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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CAMINHO DE MERLIM I / Jean Louis Fetjaine
O CAMINHO DE MERLIM I / Jean Louis Fetjaine

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Segundo a lenda, o rei Artur terá nascido entre 470 e 500 e terá morrido por volta de 542, na batalha de Camlann, contra uma coligação de Pictos, Gaélicos e Saxões liderada pelo seu sobrinho incestuoso Mordred. Merlim, por seu lado, é mencionado durante a batalha de Arderydd, em 573, ou seja, cerca de setenta anos mais tarde. É, portanto, mais que provável que Artur estivesse morto e enterrado muito antes de Merlim ter conhecido a luz do dia, o que coloca seriamente em questão a imagem tradicional de um velho feiticeiro educando o jovem rei Artur. Sob o ponto de vista histórico, só pode haver duas explicações para este anacronismo: ou os autores dos primeiros textos arturianos misturaram voluntária ou involuntariamente as datas, ou uma destas personagens na realidade não existiu. Ou, pelo menos, não com o nome de Artur ou de Merlim.

Ora, se a existência de Merlim - Myrddin, em galês -, bardo do rei Gwenddoleu da Cúmbria, parece historicamente comprovada, o mesmo não se passa no caso de Artur. A Historia Brittonum, atribuída a Nennius, é o primeiro texto que evoca Artur, mas como “chefe de guerra”, e não como rei. É Geoffroy de Monmouth, autor do século XII da História Regum Britanniae, de Prophetiae Merlini e de Vita Merlini, grande iniciador das narrativas arturianas, logo seguido por outros autores franceses como Chrétien de Troyes (1150), Robert Wace (1155) ou Robert de Boron (1200), e depois por autores alemães, italianos e mesmo islandeses, quem faz dele o grande rei dos Bretões. No entanto, Artur não é evocado pelo primeiro historiador da Bretanha, São Cildas, que, esse sim, era contemporâneo dos acontecimentos em questão. Poderia Gildas “esquecer” o maior rei da época na sua obra principal, De Excidio Britanniae (“Sobre as ruínas da Bretanha”), escrita a partir de 529, ou seja, no princípio da vida de Artur? É difícil de acreditar nesta hipótese. É mais provável que Geoffroy de Monrnouth e os seus sucessores (todos eles escritores que viveram quinhentos anos depois dos acontecimentos) se tenham inspirado em numerosas figuras da história das ilhas Britânicas para criarem Artur e toda uma galeria de personagens, reunindo as características e os feitos de vários heróis bretões dos anos 400 a 600.

De uma certa forma, passa-se o mesmo com Merlim, dado que o personagem da lenda arturiana é moldado a partir de dois ou três “Merlins” históricos. O primeiro é Merlinus Ambrosius, príncipe do reino galês de Dyfed; ainda criança, teria, segundo a lenda, profetizado ao rei Vortigem a sua queda próxima, o que situa a sua existência nos anos 450. A concordância dos nomes e das datas faz pensar que se trata, de fato, de Ambrosius Aurelianus, chefe bretão rival de Vortigem. O segundo, mais histórico, é o bardo Myrddin que participou na batalha de Arderydd em 573 - cento e vinte anos mais tarde -, que enlouqueceu e se exilou nos bosques de Celydon, na Escócia. O terceiro chama-se Lailoken. Era também um homem selvagem, descoberto por São Kentigem, na mesma época.

Parece ser certo que não existiu nenhum rei Artur histórico, enquanto rei dos Bretões. Mas, nessa época, a noção de “rei” e de “reino” era muito diferente daquela que temos hoje em dia. Na sua maioria, os reinos da Bretanha eram minúsculos e agrupavam por vezes somente algumas aldeias. Estes territórios estavam constantemente em guerra uns com os outros, mas podiam também unir-se sob a autoridade de um “grande rei” para atacarem ou resistirem a um adversário superior. Foi este o caso que se deu, por volta de 450, quando a ilha, privada dos seus defensores romanos, foi ameaçada por todos os lados. Os Pictos, ao norte, os invasores “saxões” (este termo genérico agrupa, de fato, contingentes anglos, jutos, saxões, frísios e até francos), a oeste, e os gaélicos, vindos da Irlanda ou do reino irlandês de Dal Riada, na Escócia, a leste.

Neste contexto de conflitos incessantes, Artur era talvez um chefe de guerra cuja bravura se tornou lendária, por exemplo na batalha de Mount Badon, por volta do ano de 500. No entanto, dizem-nos que Artur morreu por volta de 540, com sessenta anos de idade, durante a batalha de Camlann; se isto é verdade, só teria uns vinte anos em Mount Badon, o que o torna bastante jovem para ser o chefe supremo dos exércitos bretões. Por outro lado, São Gildas, que diz ter nascido no ano da batalha de Mount Badon, não evoca Artur no seu relato dos acontecimentos, e atribuiu claramente esta vitória a Ambrosius Aurelianus. Artur, em contrapartida, é citado duas vezes nos Annales Cambiae - um conjunto de crônicas compiladas em 950, entre as quais as mais antigas remontam ao século VI - pela sua participação na batalha de Badon e pela sua morte, bem como a de Medrault (Mordred), na batalha de Camlann. Contudo, estudos recentes tendem a provar que estes Annales se inspiraram amplamente em crônicas irlandesas escritas anteriormente, bem como na obra de Gildas, e que as evocações de Artur são aditamentos ulteriores.

O único elemento antigo inegável respeitante a Artur é um verso de um poema épico do bardo Aneurin, Y Go Modin, no qual fala da bravura de um guerreiro, relativizando-a com esta apreciação: “ainda que não seja Artur”. Este verso não nos diz quem era Artur, mas indica que este nome era, em todo o caso, uma referência em matéria de bravura, já no século VI...

Voltemos à Historia Brittonum, atribuída a Nennius, o primeiro texto que evoca Artur na qualidade de “chefe de guerra” (Dux Bellorum). Segundo este texto, Artur teria travado doze batalhas. A maior parte delas, infelizmente, não são identificáveis, e as que o são foram vencidas por outros ou pertencem claramente ao domínio da lenda. A décima segunda, a de Badon, foi, na realidade, vencida por Ambrosius Aurelianus, ainda que Artur nela tenha participado. A décima, “travada na margem do rio Tribuit”, faz referência a um velho conto tradicional galês, evocando uma batalha contra os lobisomens. A sétima, travada na floresta caledoniana (Cat Coit Celidon), evoca o famoso Kat Godeu, o “combate das árvores” imaginado pelo bardo Taliesin. E assim por diante.

Pode ver-se bem até que ponto Artur se tornou, desde o século IX, um arquétipo capaz de reunir um conjunto de lendas e de fatos históricos em volta de uma única epopéia.

A sua lenda foi muito provavelmente elaborada ao longo dos séculos, tendo-lhe sido incorporados os feitos de vários guerreiros distintos. Um deles poderá ser Artur mac Aedan, filho de Aedan mac Cabran, rei cristianizado do reino de Dal Riada, na Escócia, contemporâneo de Merlim / Myrddin. Este caso, em particular, é interessante, pois parece que a lenda de Artur era já popular nesta época, e que o escoto Aedan mac Cabran teria dado o nome de Artur ao seu filho porque esse nome próprio era glorioso. Não impede que certos elementos da vida de Artur mac Aedan tenham sido identificados de forma verossímil com a do lendário rei Artur. Assim, retomando a lista das doze batalhas acima citadas, as quatro travadas no rio Dubglas são provavelmente façanha sua, sem dúvida contra os Pictos da tribo dos Miathi.

Por outro lado, investigadores americanos descobriram recentemente a semelhança existente entre a lenda arturiana e certos elementos da mitologia cita, que terão sido introduzidos na Grã-Bretanha por volta do ano de 200, depois de um corpo de cinco mil e quinhentos cavaleiros iazyges - uma tribo cita vencida por Marco Aurélio - ter sido enviada como guarnição militar para a Muralha de Adriano. Estes arqueiros pesados, usando cotas de malha (os romanos chamavam-lhes vasos de guerra) estão, sem dúvida, na origem de alguma das lendas que evocam cavaleiros com armaduras cintilantes... Numa época em que a armadura não existia. Um detalhe perturbador: o emblema desses cavaleiros, que ficou desenhado sobre a Muralha de Adriano, era uma espada cravada na rocha. E o seu comandante era um certo Lucius Artorius. Também ele pode ter contribuído para a lenda...

Dezenas de outros candidatos ao posto de “Artur histórico” foram citados, tais como o príncipe galês Owain Ddantgwyn, ou o príncipe Arthur ab Peter, nascido em Dyfed por volta de 570-580, sem que nenhum deles o tenha conquistado.

Mas, enfim, talvez tudo não passe de um nome próprio.

O nome Artur deriva da palavra “urso” (arzh em bretão, arth em galês), passando pelo termo britânico Art-gur, o “homem-urso”. As artes marciais célticas associam sistematicamente os guerreiros a animais ou a árvores, e este nome simbólico pode ter sido atribuído a um chefe de guerra histórico, em homenagem ao seu valor. Nos textos galeses, os guerreiros são frequentemente comparados a ursos, pela sua força ou ferocidade.

Uma outra apaixonante pista sublinha que Arcturus (“o guardião dos ursos”, em grego) é o nome de uma estrela luzente associada à Ursa Maior, frequentemente utilizada na literatura latina para designar o Ártico (assim, Lucain designa os gauleses, em Bellum Civile, como arctoas gentes, povos do Norte. Dar o nome de Arcturus a um herói é ligá-lo, simultaneamente, ao Norte e à força bélica do urso. Podemos, aliás, assinalar no imenso panteão céltico várias divindades ligadas ao urso: Artaios (semelhante ao urso), Dea Artio (deusa ursa), Artgenos (filho do urso), Andarta (urso poderoso), etc.

Finalmente, o deus guerreiro Bran, figura importante do panteão bretão, era vulgarmente chamado de Arddu (pronunciar Arthiew), “o Tenebroso”, nome que é igualmente dado a Satanás na Bíblia galesa. Não querendo dizer que Artur era um deus, podemos assinalar o aspecto divino do seu nome e do seu “totem”, o urso, e desde logo perguntarmo-nos se, por todas estas razões, este nome não seria, na realidade, um apelido.

Na tradição céltica, conhecer o verdadeiro nome de uma pessoa é apropriar-se da sua alma. Vemos, desde logo, multiplicarem-se os apelidos, tanto para os homens, como para os reinos ou para os deuses. Como, no caso de César, vemos também nomes de chefes célebres transmitirem-se de geração em geração. Foi sem dúvida esse o caso de Vortigem e de Ambrosius Aurelianus, pois a sua estranha longevidade faz crer que terão ambos tido sucessores com os seus nomes.

Por este conjunto de razões - a ausência de uma prova histórica da existência de Artur; o significado simbólico do seu nome; a vontade de apropriação, através do apelido, da aura de um herói anterior; a concordância das datas -, penso que o verdadeiro Artur é Riothamus, um chefe de guerra que operou na Cália e que, para numerosos investigadores, seria o próprio Ambrosius Aurelianus, o verdadeiro vencedor de Badon. O termo “Riothime” corresponde à antiga forma “Rigotamos”, que significa “rei supremo”; por consequência, tal como sucede com os termos vizinhos de “Vortigem” ou “Vercingétorix”, não se trata de um nome próprio, mas sim de um título.

Segundo Geoffroy de Monrnouth, Ambrosius Aurelianus, expulso da ilha por Vortígern, ter-se-á refugiado na Gália em meados do século V. Pareceu-me ter aí encontrado suficientes elementos concordantes para construir uma narrativa baseada na hipótese de Ambrosius Aurelianus ser o modelo do rei Artur e de ser a ele, num plano histórico, que devemos atribuir os feitos deste último. Ambrosius terá sido cognominado “o Urso”, da mesma forma como mais tarde se chamou a Napoleão “a Águia”. Em referência a este grande rei, outras personagens foram chamadas de Artur, como o escoto Artur mac Aedan, e - quer se tenha tratado de um erro dos autores da época ou de um propósito deliberado - contribuíram para enriquecer a sua lenda.

Ainda segundo a lenda, o irmão de Ambrosius, Uter Pendragon, casado com Ygerne da Cornualha, teria sido pai de Anna (ou Morgause), e depois de Artur. Durante o seu exílio na Armórica, durante o reinado de Vortigem, Anna teria casado com o rei da Domnónia Armoricana, Budic Mur. Geraram Hoel, ele próprio pai de vinte e dois filhos, entre os quais o célebre Judikael. Mas terá Uter Pendragon. existido, ou não passa de um norte da atual Bretanha.

O apelido de Ambrosius? Uter Pendragon significa “terrível cabeça de dragão”, e aqui encontramos, mais uma vez, os nossos cavaleiros citas: estes tinham como estandarte de guerra um peixe com cabeça de carneiro, uma espécie de manga de ar fixada no cimo de uma lança, a qual, sob o vento, se torcia em todas as direções, emitindo um som agudo. Está comprovado que os antigos bretões conservaram este tipo de estandarte e o termo “dragão” continua, aliás, ainda hoje, a designar um certo corpo de cavalaria. O “pendragon” pode, portanto, significar simplesmente “insígnia de cavalaria”. Quanto ao fato de Artur ser filho de Uter, toda a lenda veio de uma frase talvez mal interpretada: “Arthur mab utr”, que foi traduzida por “Artur, filho de Uter”, e que pode também significar “Artur, o filho terrível”.

A enorme incerteza relativamente às datas e à geografia - os limites dos reinos bretões são desconhecidos, bem como a localização precisa de numerosas batalhas históricas ou lendárias - impede a resolução definitiva do problema. É isto, aliás, que sem dúvida contribui para a extraordinária perpetuidade da lenda arturiana.

Quando Geoffroy de Monmouth redigiu a sua História dos Reis da Bretanha, por volta de 1138, e a Vida de Merlim, em 1150, seguido de perto por Chrétien de Troyes, Robert Wace e Marie de France, baseia-se em contos populares tenazes, que provam que Artur era já nessa época uma figura lendária. Em 1154, Henrique Plantageneta, rei de Inglaterra, baseia-se nessas lendas para legitimar a sua dinastia e para se atribuir uma linhagem tão prestigiosa quanto a dos reis franceses descendentes de Carlos Magno. Neste espírito, as semelhanças entre a epopéia arturiana e a do imperador “de barba rala” abundam: podemos comparar Lancelot ao bravo Roland, Excalibur substitui Durandal, e Mordred iguala em traição o terrível Canelon...

O talento e a extraordinária audácia destes autores, que escrevem mais de seiscentos anos depois dos acontecimentos, consiste em misturarem nas suas narrativas personagens históricos como Vortigem, Ambrosius Aurelianus, o rei Rhydderch ou o rei Uryen, personagens lendários como Artur ou Uter, criaturas míticas, fadas e anões, e numerosos elementos pertencentes às religiões célticas. Estes símbolos, cujo significado se tornou por vezes estranho para nós, tinham para os leitores ou ouvintes da época uma ressonância evidente. Se, num romance dos nossos dias, falamos de uma personagem que se ajoelha diante de uma cruz, não é necessário explicar que se trata de um símbolo cristão. Da mesma forma, quando o rei Artur obtém a sua legitimidade arrancando a espada Excalibur de uma pedra, cada pessoa estabelecia o paralelismo com os dois objetos sagrados mais importantes da religião céltica, a espada do Deus Nuss e a pedra de Fal - The Lia Fal of Tara, na Irlanda -, que gritava quando dela se aproximava um rei legítimo. Podemos, portanto, deduzir que as narrativas arturianas, à semelhança das aventuras de Gilgamesh ou de Hércules, tinham uma dimensão, senão religiosa, pelo menos mitológica. Em consequência, a crescente cristianização da lenda arturiana apagou progressivamente estas referências, fazendo de Artur um modelo universal, a única personagem literária cuja história nunca deixou de ser enriquecida, desde a idade Média até aos nossos dias, de um extremo da Europa ao outro.

Quis, aqui, contar uma história de Merlim através de alguns desses acontecimentos onde a História e a lenda se misturam, tentando ser tão fiel quanto possível à cronologia e aos riscos da época. As referências que se seguem - oscilando, por vezes, entre vinte anos ou mais, consoante os autores - permitir-vos-ão, espero, reproduzir o quadro histórico desta narrativa... imaginária.

 

 

 

 

Nessa manhã, o ar era diferente, mais fresco, mais puro. Não havia vento, não havia ruído, não havia chuva, apenas um ligeiro chuvisco que fazia brilhar a erva rasteira e o rochedo escuro de Dun Breatann. Do estuário perfeitamente calmo escorriam fumaradas de bruma, que encobriam parte das sombrias colinas a oeste. O mar e o rio confundiam-se num mesmo halo vaporoso, no mesmo cinzento deprimente. Do alto do seu baluarte, um simples recinto fechado por uma cerca de toros de madeira, mais de doze varas [1] acima do mar, Ryderc mantinha os olhos fixos nas ondas desesperantemente vazias. O jovem rei estava sozinho. Logo após a sua chegada, os guardas tinham-se retirado sem uma palavra, felizes por irem aquecer-se na cabana baixa que lhes servia de abrigo. A noite fora longa, debaixo de um vento gelado que soprava do alto mar...

Agasalhado no seu casaco [2] de pêlo de urso, já impregnado dos chuviscos do mar e da morrinha, Ryderc contemplou os contrafortes abruptos que marcavam o limite norte do seu reino, seguiu com os olhos as sinuosidades do rio Leven, que desaguava no grande rio, e depois deteve o olhar sobre a cidade baixa, aninhada no fundo de dois cumes gêmeos, abrigando a capital. Uma fortaleza natural que os monges chamavam de Petra Coithe, o Rochedo de Clyde, mas a que os homens da guarnição tinham dado a alcunha de Bronnau Du, os Seios Negros, de tal forma os dois montículos vulcânicos que dominavam o estuário evocavam, vistos do mar, um peito escuro. O mais firme e mais orgulhoso que se pode ver, de um extremo ao outro da terra. Os seios da deusa Clota, guardiã do rio e protetora do seu reino...

A cidade acordava pouco a pouco. Ryderc sentia subirem até ele os cheiros de lume de lenha, de vinho quente e da forja. Por todo o lado, no arco de terra protegido pela primeira cerca, as ruelas enchiam-se de homens e animais, e em poucos instantes revestiram-se da agitação habitual desses últimos dias. Os chuviscos tinham feito cair o vento, e nesse dia ainda ninguém saíra para o mar, nem para pescar, nem para fazer comércio. Os coracles [3] jaziam na margem, redondos e brilhantes como carapaças de tartarugas, entre as algas e a areia preta. Os pescadores desocupados atarefavam-se em volta das redes, batiam os pés no chão ou reuniam-se em volta de uma fogueira. Uma manada abria caminho fora do estábulo, debaixo dos gritos dos vaqueiros. No lado de fora da cerca, um contingente de soldados partia para render os guardas da noite nos postos avançados, cruzando-se com caçadores que, regressando das colinas, arrastavam sobre um estrado de madeira os despojos de um veado.

Ryderc deu um longo suspiro e afastou-se da paliçada de toros para melhor contemplar o rio. Toda esta agitação parecia longínqua, difusa, importuna e vã. Muito longe dele, o tinir das armas, os mugidos dos bois e os guinchos agudos de uma voz de mulher enredavam-se no nevoeiro, sem o atingirem.

Havia dois dias que passava a maior parte do tempo nessa colina batida pela chuva e pelo vento, espreitando o horizonte à espera do regresso do abade Kentigem. Dois dias inteiros perdidos a escrutar o estuário deserto... Havia muito que fazer, nesse dia, outras tarefas mais urgentes e úteis do que passar o tempo neste posto de vigia, mas a sorte do prelado e da sua delegação não cessavam de o obcecar. Era uma viagem longa e uma navegação difícil até à ilha de Santa lona. Talvez Kentigem se tivesse visto obrigado a parar no litoral de Kintyre, de Arran ou de Bute, talvez boiasse algures ao largo, exangue e inchado de água, carregando no seu túmulo líquido a mensagem trazia de lona. Talvez nem lá tivesse chegado... Os coracles, com as suas velas quadradas e os seus cascos de madeira e couro, não podiam enfrentar o alto mar e deviam bordejar ao longo das costas. Uma mudança brusca do vento podia ter desviado o seu bote contra a rebentação, ou provocado a cobiça dos piratas escotos... No entanto, era o único caminho possível. Por via terrestre, teria sido necessário atravessar o país dos Escotos do clã dos Dal Riada, e depois os selvagens espalhados pelo reino picto. Não havia hipóteses, mesmo para um monge...

O bater de um estandarte contra as muralhas de toros arrancou bruscamente Ryderc dos seus pensamentos lúgubres. O vento levantava-se, dispersando o nevoeiro. Um fino raio de sol atravessou timidamente as nuvens e iluminou o estuário. Subitamente, todo o seu corpo foi percorrido por um calafrio violento e ele sacudiu-se como um cão. A sua barba e os seus cabelos castanhos estavam molhados e pegajosos, bem como as suas roupas e as suas botas grossas em pele. Ryderc limpou o rosto e depois tirou a fivela de ouro que lhe prendia a capa, tão pesada de água que quase o sufocava, e deixou cair o casaco ao chão. O sol iluminava agora toda a margem sul do Clyde, até perder de vista. Um país de colinas baixas e redondas, de florestas e de terras batidas pelo vento. Strathclyde... O seu reino.

Longe, a sul, o país começava na velha muralha de Adriano e estendia-se até às montanhas do Norte, até às pedras pictas gravadas com estranhos símbolos que marcavam a fronteira do imenso território daquele povo. Bem para além das terras conquistadas pelos imperadores de Roma. Mais a norte do que qualquer outro clã bretão. Um reino de conquistadores, arrancado às montanhas, ao mar e às tribos bárbaras pelo seu antepassado Ceretic, com Dun Breatann, a fortaleza dos Bretões, ali colocada como uma provocação face à imensidão das terras altas... Infeliz daquele que lha quisesse tirar...

- Ryderc!

O rei sobressaltou-se, recompondo-se em seguida e reconhecendo a sua irmã, Guendoloena, enquanto ela atravessava a estreita poterna que conduzia ao recinto do posto de vigia. Esbaforida pela subida, estendeu-lhe, sem uma palavra, uma capa de lã que ele aceitou com um sorriso, antes de se enrolar nela, protegendo-se do frio.

- Esfregas-me as costas?

Sem esperar pela resposta da irmã, o jovem voltou a apoiar-se na paliçada de toros. O mar brilhava, sob o sol. O estuário estava limpo, até à massa sombria das colinas de CowalI, ao longe. Os pescadores mostravam-se agitados, lá em baixo, arrastando enfim os seus coracles para fora do lodo negro, carregando as redes.

- Sabia que te encontraria aqui - disse ela, esfregando-o vigorosamente. - Pelo menos a mim podias dizer o que esperas, não?

Ryderc sorriu de novo.

- Espero um sinal de Deus.

- Um sinal de Deus ou de Kentigem? - murmurou ela.

Ele não respondeu, mas voltou-se para lhe agarrar o braço e puxá-la contra ele, debaixo da capa de lã.

- Como é que está tudo, lá em baixo? Está tudo pronto para os receber?

- A cidade parece um estábulo, ou uma pocilga, se é isso que queres saber - disse Guendoloena, estreitando-se contra ele. - Acabaram de trazer mais uma manada de búfalos. O povo diz que ficaste louco, que queres dar de comer a toda a Bretanha.

- Não a toda a Bretanha, irmãzinha. Mas a todos os seus reis. E quero que eles fiquem deslumbrados...

Ryderc afastou-se dela, contemplou por alguns instantes o estandarte real por cima deles, colado contra o mastro devido aos chuviscos. Depois deu meia volta e olhou para ela. Pouco mais nova do que ele, dezesseis ou dezessete anos no máximo, parecia por vezes ser sua filha. Fazia já muito tempo que os seus longos cabelos negros e a sua pele branca como neve eram cantados pelos bardos de todos os reinos do Norte, até à Cúmbria. Por ter estado encostada a ele, o seu comprido vestido vermelho estava molhado e revelava formas desabrochadas, Já não era, na realidade, a garotinha que o seu pai, Tudwal, lhe confiara, mas uma mulher em idade de casar. Era preciso não se esquecer disso... Ryderc desviou o olhar e concentrou a sua atenção no estuário. O reflexo das ondas feria-lhe os olhos, mas parecia-lhe ver...

- Porque convocaste o conselhos dos reis? - perguntou ela, por trás dele. - Outra vez a guerra, não é verdade? Os Dal Riada, os Pictos, os Saxões? Que importa...? Ficaste aqui muito tempo, a guerra faz-te falta!

Ryderc não escutava. Ao longe, uma vela balouçava sobre as ondas. A pequena vela quadrada de um coracle, vinda de alto mar. Devolvendo bruscamente a capa da irmã, precipitou-se para a poterna e para escada de pedra que descia para o meio das duas colinas, já sem lhe prestar atenção. Com o mesmo entusiasmo, atravessou o terraço superior, onde se situavam os seus aposentos e os da casa real, empurrando criados e soldados, até ao estreito posto de guarda da terceira cerca. Os homens, arrancados à sua indolência, só tiveram tempo de lhe cingir os rins com um talim com uma espada curta e de agarrar nos seus piques, antes de se lançarem no seu encalço. Mas o rei avançava demasiado depressa, e eles perderam-se quase em seguida na multidão que atulhava os acessos ao forte. Era uma loucura. Toda a cidade baixa, até à primeira cerca e para além dela, até as margens do Clyde, estava atulhada de barracas, cheia de uma populaça vinda de todo o país, na expectativa do conselho dos reis e das festividades. Desde os primeiros raios de sol, toda esta gente se tinha espalhado pela margem norte do estuário, inebriada com o seu próprio número, barulhenta e ociosa, juntando-se em volta de algumas papas postas a ferver ao lume em grandes caldeirões, esperando uma hora decente para recomeçarem a beber. Dun Breatann não passava de uma cidade com guarnição militar, uma fortaleza austera, diluída pela chuva e batida permanentemente pelo vento do alto mar, inundada pelo cheiro a peixe que defumavam ao ar durante todo o ano, mas tinha mudado de aspecto, naqueles últimos dias. Tudo quanto havia neste Norte de vaqueiros, vagabundos, carniceiros e peixeiros, tanoeiros, padeiros ou construtores de carroças parecia ter marcado encontro nas ruelas lamacentas, ao longo do Clyde. Havia falsos bardos dedilhando tristes harpas, ferreiros e ourives, forjando armas e jóias, saltimbancos e exibidores de ursos, monges, druidas e prostitutas em grande número, ladrões e também bandidos, sem dúvida alguma, circulando por entre eles, como gerifaltes à procura de uma presa. A palha que habitualmente guarnecia as ruas tinha sido espezinhada durante muito tempo, e toda esta multidão enlameava as calças no atoleiro do riacho, entre os cães e as galinhas que vagueavam em liberdade.

Levado pelo seu entusiasmo, Ryderc desembocou numa ruela e viu demasiado tarde a vara de porcos, que a obstruía de um lado ao outro. Tentou saltar, mas tudo o que conseguiu foi espalhar-se a todo comprimento entre os animais, no meio de um concerto de grunhidos estridentes. Custou-lhe pôr-se em pé, coberto de lama e sem fôlego, enquanto à sua volta rebentavam os risos e as graçolas. Depois, alguns reconheceram-no, passaram palavra e a multidão desapareceu rapidamente.

- Quer ajuda, companheiro?

Ryderc aceitou o braço estendido, no instante antes de levantar a cabeça. O homem, vestido com uma couraça de pele escura e um casacão de lã virgem, tinha cabelos curtos, à moda romana, e o seu queixo não tinha barba. Cabelos louros e olhos azuis, penetrantes, que desmentiam o seu sorriso. Um saxão. E, debaixo da sombra do seu casaco, o brilho de uma lâmina.

Com um golpe de rins, o rei tentou fugir ao seu punho, mas o homem resistia e já golpeava. Rolando sobre si próprio, até torcer o braço, Ryderc evitou o golpe e colheu com o mesmo movimento as pernas do assassino, que caiu como um tronco de árvore, de costas, num molho enegrecido. Ryderc procurou a espada de lado, mas, devido à queda, a arma escorregara para fora da bainha. Tentou levantar-se, escorregou, apoiou-se na mão e deu um gemido de dor. O golpe de adaga acertara-lhe, sem que ele tivesse percebido, atravessando a sua larga pulseira de cobre e cortando a carne, desde o antebraço até ao punho. Só conseguiu ajoelhar-se para conter com todas as suas forças o novo ataque do assassino. O homem era tão alto quanto ele, mas mais velho, mais pesado e, além disso, estimulado por um ódio terrível que lhe deformava agora os traços. Ryderc resistiu, apesar de tudo, e conseguiu pôr-se de pé, agarrando-se com as duas mãos ao braço armado do adversário. No entanto, polegada a polegada, a lâmina aproximava-se dele, vibrando entre os punhos entrelaçados. O rei sentia-se a fraquejar. O seu pulso cortado, escorrendo um sangue quente e brilhante, latejava horrivelmente. O Saxão sorriu, seguro da vitória, mas, nesse momento, Ryderc parou bruscamente de resistir e deixou-se rolar sobre as costas, arrastando consigo para o chão o seu adversário, cuja adaga se cravou no solo. Trégua breve. Antes mesmo de conseguir levantar-se, o assassino arrancava a arma do barro e fazia-lhe de novo frente, terrífico com a cara suja de lama. Ryderc levantou-se para conter o assalto, mas alguém, nesse momento, gritou por trás dele. O rei só teve consciência de uma sombra fulgurante passando diante dos seus olhos e, depois, do grunhido espantado do seu agressor. Algumas mãos tiraram-no da valeta, levaram-no dali. Ele debateu-se furiosamente, até que reconheceu o casaco vermelho dos seus guardas.

- Sou eu, senhor, Amig! - gritou um deles. - Acabou-se...

Ryderc tomou fôlego, olhou o sargento, apoiando-se no seu ombro, e recuperou pouco a pouco a figura humana. Os dois homens tinham crescido juntos na corte de Tudwal, tinham partilhado os mesmo jogos guerreiros, montado os mesmos cavalos e bebido do mesmo odre, até que um deles se tornara rei.

- Mantenham-no vivo - disse Ryderc, endireitando-se. - Quero saber se há outros.

Amig fez uma careta e afastou-se.

- Creio que vai ser difícil - respondeu, apontando com o queixo o corpo do Saxão, pregado ao chão por dois chuços ainda presos no seu tronco.

Ryderc olhou o cadáver com nojo, cuspiu na sua direção e depois passou os olhos em volta pelo local. A multidão mantinha-se à distância, observando a cena com expressões diversas, medo, divertimento, exaltação, até mesmo hostilidade, no que respeitava a alguns... Certamente havia outros.

- Vem comigo.

Com um gesto que o rei talvez não tivesse notado, Amig fez sinal a dois dos seus homens para levarem o corpo e aos outros para os seguirem. Depois, quase a correr, para acompanhar o passo do jovem rei, cortou uma tira de tecido do seu próprio casaco e começou a tratá-lo o melhor que podia, sempre a caminhar.

- Não é muito profundo - disse, numa voz entrecortada, arquejante, devido ao passo acelerado -, mas é necessário...

- Daqui a pouco - resmungou Ryderc.

O braço latejava-lhe, com efeito, mas apressou ainda mais o passo ao reconhecer ao longe a silhueta alta de Kentigem, no embarcadouro. Marinheiros e monges descarregavam do seu coracle pesados fardos cuidadosamente atados, e o bispo-abade vigiava a operação como se se tratasse de um tesouro qualquer. Apesar do frio, Kentigem estava de pés nus nas sandálias. O seu hábito negro de beneditino estava molhado dos chuviscos e ele tremia como varas verdes, apoiado no seu bastão de pastor.

- Vejo que empregaste bem o ouro que te forneci! - gritou Ryderc, ainda à distância.

O homem idoso voltou-se lentamente e, reconhecendo o rei, começou a ajoelhar-se, coisa que Ryderc impediu chegando rapidamente até ele para o agarrar pelo braço.

- Columb Cille [4] agradece os teus presentes, rei Ryderc - murmurou Kentigem. - Todos os monges de Iona enaltecem a tua generosidade e celebram doravante missas em honra de Ryderc Hael, “o Generoso”. Columbano dignou-se oferecer-me estas relíquias destinadas a...

- Falaste com ele? - cortou o rei. - Fizeste-lhe a minha pergunta?

O bispo ficou confuso por um momento, a boca aberta e a frase suspensa, olhando o jovem de alto a baixo. Só agora reparava no braço ensanguentado do soberano, nos vestígios de lama que sujavam as suas roupas.

- Senhor! Que aconteceu, meu filho?

- Não é nada - sussurrou Ryderc, baixando a cabeça como um patife apanhado em falta.

O beneditino encolheu os ombros, agarrou o braço enfaixado, e desfez a ligadura improvisada para examinar a ferida.

- Quem fez isto?

- Fui eu, padre - disse Amig, deitando um olhar inquieto ao rei.

Kentigem sossegou-o com um sorriso.

- Eu falava da ferida, meu filho...

- Isto vai passar, abade - afirmou Ryderc, com um riso forçado destinado aos seus homens. - já vi coisas piores!

- Quem fez isto? - insistiu o bispo, com um tom grave que acabou imediatamente com as suas fanfarronadas.

- Um saxão - resmungou Ryderc. - Imagino que deve haver outros, fervilhando na cidade com as suas facas...

Kentigem levantou os olhos e olhou em volta com um ar furioso, depois abanou a cabeça pensativamente.

- Nemet outre saxas - murmurou ele.

- O quê?

- “Peguem nas vossas facas”... Foi a ordem que o rei Hengist lançou aos seus homens quando degolaram os nobres bretões no fim do banquete de Ambrius... Não mudaram, há? [5]

Kentigem sorriu, agarrou o rei pelo braço e arrastou-o para o priorado, um dos raros edifícios de pedra do terraço superior. Enquanto percorriam juntos o caminho de volta, através do burgo, os edifícios militares e o estreito caminho que conduzia aos seus aposentos, mesmo na fenda dos dois rochedos, o abade mantinha-o encostado a si, apoiando-se os dois homens um ao outro. Apesar das suas fanfarronadas, da sua barba jovem e dos seus olhos escuros como a noite, Ryderc não passava de uma criança, na verdade, uma criança assustada, criada no sangue, na morte e no culto do clã, longe da luz de Deus. Tinha ainda aquele ar imberbe, aquela impaciência juvenil, aquele atrevimento que só o tempo poderia corroer. Mas, pelo menos, já tinha perdido parte das suas certezas. Com as dúvidas vêm as perguntas. Das suas respostas surge a luz...

- Vi Columb Cille - disse, subitamente, o abade, quando chegaram ao posto da guarda da terceira cerca, tão baixo que só o rei o podia ouvir. - E fiz-lhe a tua pergunta, palavra por palavra... Devo dizer que ele fez uma cara surpreendida, e creio que não teria aceite interrogar Deus por alguém que não fosse um rei. Levou-me com ele até ao mosteiro de Dun, sobre a mais alta colina da ilha, e ali rezamos, durante todo o dia, toda a noite e ainda no dia seguinte, até os nossos ventres esfomeados fazerem maior ruído que as nossas orações!

Ryderc deu uma gargalhada divertida, à qual o abade respondeu com um sorriso que durou pouco e se gelou num esgar, enquanto os seus olhos se perdiam no vácuo.

- Nunca tinha visto nada assim - murmurou. - Os seus discípulos chamam-lhe a Pomba da Igreja. Doze discípulos que o seguiram no seu exílio, há dez anos, semelhantes aos doze apóstolos de Cristo... Havia monges de Yfferdon, Bretões, Escotos e até mesmo Pictos, e oramos todos juntos, com o mesmo fervor...

- Pictos? - perguntou Ryderc, num tom incrédulo. - Há monges pictos?

- Aquele homem é um santo - continuou Kentigem, sem lhe prestar atenção, arrebatado pela recordação de lona. - Ele é o pastor e nós somos os seus cordeiros...

O abade deteve-se e, chegados ao terraço superior, desviou-se de Ryderc para contemplar o estuário e a imensidade do céu.

Depois inspirou, baixou os olhos para o rei e deu-lhe uma palmadinha no ombro.

- Não serás massacrado pelos teus inimigos, Ryderc Hael. A profecia de Columbano diz que tu morrerás no leito, com a cabeça na almofada. São as palavras de Deus... Agora descansa, meu filho, e deixa-me fazer o mesmo. Esta noite falaremos dos nossos projetos...

O idoso recomeçou a andar, mas Ryderc não o seguiu. Com o coração a bater, fechou os olhos e saboreou a carícia do sol no seu rosto. “As próprias palavras de Deus...” As suas veias ferviam com uma força nova, com um sentimento de força irresistível. Com um gesto amplo, enviou um beijo aos seios negros que o dominavam com todo o seu tamanho, e depois desatou a rir. A angústia que o oprimia desde que convocara a assembléia dos reis parecia-lhe já tão tola que quase sentia vergonha. Que tinha a temer daqui em diante, se lhe tinham dito que morreria na sua cama? No dia seguinte, dentro de dois ou três dias no máximo, todos os príncipes bretões estariam ali, respondendo ao seu convite, reunidos pela primeira vez em volta da mesma mesa depois de muitos anos. Este fato era já por si só um sucesso, de forma a reforçar de uma maneira duradoura o seu prestígio, e pesaria bastante na balança no momento de escolher aquele que se tornaria o Grande Rei... Depois de tantos anos de derrotas e de humilhações, conduzir por fim os exércitos da Bretanha à vitória. Repelir os Saxões para o mar, depois seguir para norte, atravessar as montanhas até ao loch e subjugar os Pictos.

Ryderc deu meia volta, passeou o olhar pela agitação do cais e da cidade baixa. Seriam dias felizes, dias de júbilo para o povo e para os homens, que todos se recordariam para sempre e partilhariam deslumbrados...

- Vens? - gritou Kentigem. - Se não tratarmos bem desse braço, podes fazer com que Deus minta!

 

Nunca antes Merlim cavalgara até tão longe, durante tanto tempo, nem tão livremente. Guendoleu e o seu exército seguiam ao longo da margem oeste do Clyde, avançando ao ritmo das pesadas carroças atreladas a bois, enquanto os cavaleiros lhes abriam caminho desde as colinas. A criança ganhara o direito a estar ali, apesar da sua idade, e tinha-se imediatamente incumbido seriamente da sua missão, com os sentidos alerta, sobressaltando-se ao menor estalido, ao menor vôo de um pássaro, com a mão crispada no seu chuço, fingindo não ver o sorriso dos guerreiros que caminhavam atrás de si. Mas tinham decorrido semanas, desde a partida da Cúmbria, sem que o mais ligeiro incidente viesse justificar tanta precaução. E depois a paisagem mudara, sendo agora tão diferente de tudo quanto conhecera desde a infância, que Merlim não parava de se maravilhar. O rio ao longo do qual avançavam serpenteava até perder de vista, entre grandes colinas de tons violeta e castanhos, cobertas de urze e de fetos murchos. Não se via vivalma, mas por várias vezes distinguiu ao longe uma manada de veados ruços como o Outono ou a passagem altiva de um bando de gansos selvagens. Era um país infinito, excitante e deserto, um país de rochas e de musgo, batido pela chuva e pelo vento, mas que um raio de sol iluminava num instante com milhares de brilhos.

Aqui, longe do exército, poderia julgar-se sozinho no mundo. Aqui, não havia nada, exceto o sussurro do vento, o passo tranquilo do seu cavalo sobre a erva brilhante e o rangido regular do couro da sua sela. Apesar do seu isolamento e do peso do encontro que se preparava, Merlim cavalgava com o espírito vazio e a alma em paz.

Abaixo, perto do rio, os homens corados abafavam-se nos seus casacos de lã, praguejando conta o frio e contra a lama que lhes trespassava insidiosamente as botas. Ele ia de cabeça nua, a tez tão pálida que parecia cintilar na chuva miudinha, e o cabelo tão negro quanto o melro que lhe tinha valido o nome. Usava um simples lorigão, os braços nus e a capa voando livremente nas costas à mínima rajada de vento. Em breve, quando chegasse a hora de se juntar a eles, deveria ter o cuidado de se cobrir e de se precipitar para uma fogueira de campo, mal pusesse os pés em terra, fingindo estar gelado. De momento, na solidão desta cavalgada, a criança não sentia necessidade nenhuma em mentir a si própria. A chuva e o vento deslizavam sobre ele como sobre a casca de uma bétula. Enquanto os homens mais empedernidos tremiam, enregelados, ele nunca tinha frio. A própria noite não lhe metia medo, e o calor de uma fogueira não lhe trazia conforto algum. Pelo contrário, parecia que ele sempre tivera medo do fogo, da sua luz, do seu calor insuportável e da voracidade com que as chamas devoravam a lenha com que se alimentavam, semelhantes a monstros avermelhados.

Apesar dos anos passados a exercitar-se no arco ou na espada, a combater com bastão ou adaga, a cavalgar e a caçar com o filho do velho rei Ceido da Cúmbria, Merlim. não crescera nem engordara, e parecia tão frágil quanto uma menininha, mesmo que esta aparência se revelasse rapidamente enganadora se alguém viesse lutar com ele. A criança tinha demorado bastante a dar-se conta, mas percebia agora os olhares de esguelha que lhe deitavam os homens, os murmúrios nas suas costas e o constrangimento que provocava quando não dissimulava a sua verdadeira natureza.

Nunca ninguém ousara ou quisera falar acerca disso com ele, mas talvez fosse esse, em parte, o motivo pelo qual a mãe o confiara, anos atrás, ao rei Ceido e ao seu filho, o príncipe Guendoleu, para que eles se ocupassem da sua educação. O fato nada tinha de anormal para um jovem príncipe de sangue, e a maioria das famílias reais agia da mesma maneira, mas ele era tão pequeno, e sentira tanto a falta dela... Merlim sacudiu-se. O dia já declinava. Antes de cair a noite, teriam passado Cadzow [6], a fortaleza da rainha Languoreth, e Dun Breatann estaria então muito próxima.

Algumas horas de caminho... Algumas horas ainda de liberdade. Algumas horas ainda antes de rever a mãe, a rainha Aldan, soberana dos sete cantões do Dyfed... Dela, Merlim conservava apenas uma imagem turva, uma recordação difusa de um manto púrpura, de uma coorte de seguidores e de raros momentos de intimidade, como se todos tivessem medo de os deixar frente a frente. Na idade em que as crianças se alimentam de amor e de leite, ele crescera sozinho, longe das brincadeiras e dos risos, sem compreender a perturbação que a sua mera aparência parecia provocar. Manifestavam-lhe respeito, como convém com um príncipe, por vezes até suscitava o interesse dos druidas e dos vates [7] da casa real, mas nenhum, tanto quanto se lembrava, lhe tinha alguma vez demonstrado a menor afeição... Da sua infância, recordava-se das noites passadas a chorar no escuro, chamando pela mãe que não vinha, dos dias inteiros sem ver ninguém, tendo por únicos companheiros as aves de capoeira e as gaivotas do rio... As crianças da sua idade fugiam quando ele se aproximava, atirando-lhe pedras e chamando-lhe “sem pai”. Os monges que pouco a pouco se tinham espalhado pelo Dyfed chamavam-lhe “filho do diabo”, persignando-se à sua passagem e rezando pela salvação da rainha. Mas como é que se podia nascer “sem pai”? Toda a gente tem um pai! Mesmo que não o tivesse conhecido, não era filho de Ambrosius Aurelianus, riothime [8] dos exércitos bretões desde a morte do usurpador Vortigem, defunto rei de Dyfed e vencedor dos Saxões? Como ousavam chamar de diabo aquele a quem davam o nome de Artur, “o Urso da Bretanha”, terror dos Lioegriens?[9]

A rainha Aldan admitira monges na cidade real de Caerfyrddin [10], mas ninguém perdera tempo a instruí-lo na nova religião. Este diabo que eles evocavam a seu respeito parecia ser a divindade deles do mundo subterrâneo, o equivalente ao reino de Announ, onde viviam os mortos, segundo as velhas crenças. Como podia a rainha tolerar que insultassem a memória do Grande Rei?

Tinham-se passado dez anos desde que ele fora viver na Cúmbria, longe de Dyfed e dos rumores da corte, e estas perguntas tinham-se esbatido. Perto de Guendoleu, aprendera a viver sem ódio e sem tristeza. Não havia monges, na Cúmbria, ninguém para lhe chamar de diabo... Ali, ainda veneravam as Mães, as divindades fundadoras da Terra Média. Quando descobrira que a casa real do Dyfed descendia de Don, a primeira dentre elas, Merlim agarrara-se à Grande Deusa como um náufrago a uma jangada. Só os druidas tinham o direito de prestar culto às Mães, mas a criança criara, pouco a pouco, os seus próprios rituais, imitando aquilo que os via fazer, inventando o resto... O velho rei Ceido da Cúmbria fora o primeiro a admirar-se com os seus dons, e mandava-o vir muitas vezes para junto de si, para que ele escutasse os bardos e se instruísse, contactando com eles. Depois da morte do seu pai Ceido, Guendoleu procedera do mesmo modo e, aos dez anos de idade, Merlim tornara-se o aluno do penkerd [11] da corte. Tinha precisado apenas de alguns meses (enquanto outros precisavam da vida inteira) para receber a iluminação do canto, descobrir a linguagem das árvores e aprender de cor as velhas lendas dos Gwyr Gogledd - os Homens do Norte, como se auto-intitulavam os Bretões da Cúmbria.

Merlim aprendia depressa, demasiado depressa para que os seus mestres não ficassem assustados, e talvez Guendoleu fosse o único que não se preocupava com isso. Era um homem simples e bom, fiel na amizade, que desde sempre o considerara um pouco como filho, ou como irmão mais novo. Tal como seu pai, Ceido, tinha feito antes dele, passava horas junto da criança, ouvindo-o tocar harpa e cantar as lendas dos homens e dos deuses. Ao seu lado, o filho do diabo tornou-se um bardo reputado, mesmo que disso não tivesse consciência, e para todos, daí em diante o príncipe Emrys Myrddin, herdeiro de Ambrosius, rei de Dyfed, tornou-se o bardo Merlim.

Não passava de uma criança de aparência pálida e débil, mas a sua fama espalhara-se pouco a pouco por todo o país. Contava-se toda a espécie de histórias a seu respeito, histórias essas em que por vezes o confundiam com o seu pai. Alguns diziam que ele tinha profetizado a queda de Vortigem, quando este último morrera vários anos antes de Merlim ter visto a luz do dia. Outros afirmavam que ele podia invocar dragões ou falar a linguagem dos pássaros. Merlim aprendera a rir disso, respondia às perguntas com outras perguntas, e guardava no fundo de si mesmo as feridas da sua infância.

Tudo isto, porém, lhe vinha hoje à memória, apertando-lhe o coração, enquanto cada minuto o aproximava um pouco mais da mãe, e de reencontros que ele receava, possivelmente tanto quanto ela.

Ao cair do dia, avançando com o seu cavalo bem no alto de uma colina, avistou ao longe o aterro da velha muralha romana. Uma ligeira bruma escondia os arredores do Clyde, mas a fortaleza de Ryderc estava ali, agora muito próxima. Uma língua dourada iluminava as montanhas ao longe, no céu escurecido. O vento trazia até ele a agitação do exército em marcha na margem do rio e, pela primeira vez ao fim de vários dias, sentiu-se sozinho, gelado até ao coração. Fechou, então, cuidadosamente o casaco, agarrou as rédeas e esporeou o cavalo, descendo rapidamente a colina em direção à escolta de Guendoleu.

Era já noite escura quando chegaram aos arredores de Dun Breatann, mas uma enorme multidão esperava-os, saudando a sua chegada com uma alegria à qual a cerveja talvez não fosse estranha. De todos os lados, rostos corados apertavam-se em volta dos cavalos. Estendiam-lhes de beber, batiam-lhes nas coxas ao passarem, carregavam-nos de perguntas, de saudações ou de graçolas, numa barulheira tal, que não sabiam para onde se virarem, ao ponto de as carroças terem dificuldade em abrir caminho e de os cocheiros terem de estalar os chicotes para se libertarem. Depois de tantos dias passados nas imensidões desérticas do país de Cymru. e de Strathclyde, a multidão punha-os nervosos, homens e animais.

Merlim cavalgava ao lado de Cadvan, um guerreiro de uma altura pouco comum, cujo cavalo vergava sob a enorme carga e a quem Guendoleu tinha discretamente confiado a guarda do jovem bardo. Segurando contra si a harpa e a varinha de prata que representavam o seu cargo, a criança esforçava-se por adotar a expressão de indiferente arrogância do seu companheiro. Não era coisa fácil. Depois de terem alcançado a muralha dos Romanos, não tinham parado de cruzar acampamentos de tropas, e Merlim nunca antes vira tantos homens bêbados, tantos bois ou carneiros a assar, nem tantas mulheres tão despidas. Diante deles, Guendoleu saudava por vezes guerreiros maciços, barbudos e peludos como ursos, outros usando kilts de couro e o rosto tatuado de azul, à maneira dos Pictos, ou ainda homens de cabelo alourado com cal e espetado, semelhantes a ouriços. De cada vez, Cadvan murmurava-lhe o nome dos clãs, apontando-lhe as insígnias: Manau. Goddodin, Rheged, Powys, Gwent, Glamorgan... Todos os reinos bretões estavam ali, até os contingentes do sul vindos da Doranônia e da Cornualha.

Cruzavam outros grupos que o rei não saudava e que eles rompiam sem uma palavra, sem um olhar. Algumas contendas não se esquecem facilmente... Por fim, mesmo nos arredores da cidade, passaram perto de um acampamento importante e bem guardado. O coração de Merlim bateu acelerado, ao reconhecer o estandarte de Dyfed, mas Guendoleu forçou o passo, e a noite envolveu-os antes que alguém pudesse aproximar-se deles. A criança não ousou protestar e não fez qualquer gesto para abrandar a sua montaria. Só mais tarde, quando o acampamento dos seus compatriotas já tinha desaparecido na escuridão, e que ele se perguntou se o rei teria querido protegê-lo, ou se procurara simplesmente esconder a sua presença. Não fazia sentido algum... Depois de dez anos, quem o poderia ter reconhecido, e quem desconfiaria ainda dele? Deveria, talvez, ter-se afastado deles, para ir ao encontro dos seus, para se dar a conhecer... Agora, era demasiado tarde.

A própria cidade, que eles alcançaram quase imediatamente, estava cheia de soldados, de camponeses, libertinos e barracas. Reinava um cheiro tenaz de peixe defumado e a gentalha, o fumo dos archotes fazia arder os olhos e o barulho era ensurdecedor. Por todo o lado, pipas eram espichadas, cerveja nova e cervoise [12] corriam como nascentes e ninguém parecia conseguir exprimir-se de outra forma que não fosse gritando. Pelo canto do olho, Merlim viu os guardas arrastarem um homem até uma gaiola de vime onde estava preso um texugo. Debaixo de risos da populaça, o homem foi atirado para dentro de um grande saco, depois meteram lá o texugo e ataram tudo. Horrorizado, Merlim não conseguia desviar o olhar do volume de tecido agitado por atrozes impulsos. Os gritos lancinantes do supliciado dominaram por instantes os gritos da multidão, e o sangue sujou rapidamente o tecido...

- O jogo do Texugo - murmurou Cadvan. - Eis o fim que eles reservam aos ladrões...

- Não é um ladrão, é um saxão! - vociferou perto deles um latagão hirsuto, que vestia um kilt de couro fulvo e uma túnica de uma sujeira repugnante, que lhe dava mais o ar de um picto selvagem, do que de um guerreiro bretão. - Ao que se diz, um deles atacou o rei Ryderc! Há-de servir-lhes de lição!

Mais longe, tiveram de afastar aos pontapés e com a espada uma multidão intransponível, reunida em volta de um urso acorrentado que dançava deploravelmente ao som de uma cacofonia de tambores e de cornetas.

Merlim deitou um olhar de esguelha a Guendoleu. O rei mantinha os lábios apertados, mas toda a sua atitude traía uma intensa desaprovação. Acorrentar um urso... Provavelmente não era com intenção, mas para todos aqueles que veneravam a memória de Artus, “o Urso da Bretanha”, este triste espectáculo era uma ofensa.

Como se se tivesse sentido observado, Guendoleu puxou o capuz do seu casaco para cima dos seus longos cabelos louros com várias tranças, e o jovem bardo não pôde distinguir mais do que a sua barba, a estremecer ao ritmo do seu resmungar.

A algumas varas dali, cavaleiros enviados pelo rei Ryderc vieram ao encontro deles e saudaram-nos com deferência, e depois precederam-nos até às cercas. Passaram a primeira, a do burgo, construída a partir de um entrelaçado de toros atulhados de terra e pedras secas, formando assim a mais sólida das muralhas, tão resistente ao fogo quanto aos assaltos de aríete. Parecia impossível, e, no entanto, reinava ali uma agitação ainda mais densa. Ao longo da parede interior tinham sido encostadas as estrebarias, o curral, os celeiros e os alojamentos da tropa. Era aqui, no seio deste primeiro círculo fortificado, que se estendia geralmente o burgo, mas, tendo sido invadido até ao menor casebre pela soldadesca, os habitantes de Dun Breatann tinham tido a prudência de irem acampar em outro local. A segunda muralha estava a uma distância de alcance de flechas, ou pouco mais. Precisaram, no entanto, de tempo e paciência para abrirem de novo caminho até lá. Merlim deixava-se conduzir, fascinado pelo muro escuro, semelhante a uma falésia, que se erguia diante deles, com uma altura superior a duas toesas [13], fechando por completo o estreito sulco que conduzia ao terraço superior. Era feito de uma matéria estranha, ao mesmo tempo compacta e brilhante. Os madeiros que emergiam desta muralha estavam calcinados e as pedras enegrecidas. Entre elas, como uma argamassa, uma mistura de areia, de lenha e de palha tinha sido vitrificada pelo fogo e soldava o conjunto de maneira perfeita [14]. De longe a longe, crânios humanos tinham sido encastoados, saltando à vista pela sua brancura no meio de toda aquela massa sinistra. Os crânios dos inimigos ilustres, por vezes ainda enfeitados de jóias... Ao longe, em cima deles, sobre o caminho da ronda, guardas com elmos na cabeça, ocultos debaixo dos seus casacos vermelhos, seguravam nos braços archotes cujas chamas faziam brilhar sombriamente os muros e os despenhadeiros dos rochedos de basalto que se reclinavam sobre eles. Quando se aproximaram mais, Merlim descobriu um caminho estreito, escarpado, dominado por uma barbacã atravessada por estreitas aberturas. Alguns arqueiros deviam ser suficientes para encher de flechas qualquer assaltante suficientemente louco que tentasse entrar por ali.

No átrio, as auriflamas da casa de Strathclyde batiam de vez em quando sob uma rajada de vento, tão secamente quanto um chicote. No vão, entre dois outeiros, havia algumas árvores, alguns arbustos de bagas, e o barulho da cidade esbatia-se por fim sob o restolhar sedoso das folhagens agitadas pela brisa vindo do alto mar. Poderia ter sido um momento de calma mas, à chegada deles, os guardas amontoados perto da segunda cerca puseram-se a bater ritmadamente nos seus escudos. Rapidamente, o martelar chegou à cidade baixa. Não havia mais nenhum grito, nenhum som de voz, mas tudo quanto o burgo tinha de homens de armas batia agora em cadência, a um ritmo lento e implacável, de rebentar com os tímpanos. Os guerreiros do Norte sorriam e esta algazarra louca não passava de uma manifestação de respeito, mas o barulho das pancadas assustava os cavalos da Cúmbria, e os seus cavaleiros viam-se aflitos para os manterem imóveis.

E depois, de repente, o tumulto cessou. No súbito silêncio, um arauto avançou diante da grande porta e bateu no chão com o seu bastão de ferro.

- Ryderc Hael, filho de Tudwal, rei de Strathclyde, suserano de Dun Breatann e de Cadzow, saúda-te, Guendoleu Ceido! Guendoleu “filho de Ceido”

E enquanto este último desmontava, Ryderc apareceu, seguido de um grupo de dignatários tão ricamente vestidos, que Merlim disse para consigo que só podiam tratar-se de reis e rainhas. Ryderc parecia espantosamente jovem, pouco mais velho do que ele, apesar da barba e da estatura imponente. Usava um fato bordado com fios de ouro que brilhavam à luz das chamas, coberto com um casaco vermelho-sangue, preso ao ombro por uma grande fivela adornada de pedras preciosas. Sobre os seus longos cabelos castanhos, o círculo fino de uma coroa sobressaía pelo seu brilho. Ryderc abriu os braços e apertou Guendoleu calorosamente. Depois, continuando a segurá-lo pelo ombro, virou-se para os guerreiros da sua escolta com um gesto largo de boas-vindas.

- Os Homens do Norte saúdam os seus irmãos cymri! [15] - gritou ele. - Comei, bebei e esquecei as fadigas da viagem! Sois nossos hóspedes!

Uma aclamação ensurdecedora marcou as palavras do jovem rei, e a multidão de guerreiros reunidos no átrio convergiu em massa para a escolta. Como todos os outros, Merlim foi agarrado por mãos possantes, quase arrancado da sela, submergido por uma maré de carantonhas alegres, martelado por palmadas amigáveis que quase o deitavam ao chão. O seu cavalo foi levado, embora ele não tivesse percebido nada, e depois alguém lhe estendeu uma caneca de cerveja de cevada, a qual entornou em cima dele antes de a conseguir agarrar, de tal forma ele se aferrava à sua harpa. Rodeado de todos os lados por estes guerreiros tão grandes quanto torres, maltratado como uma alga na ressaca, sentia-se tomado pelo pânico quando, de repente, as fileiras se abriram bruscamente diante dele. No meio da multidão, reconheceu o rosto amigo de Guendoleu, que lhe fazia sinal para que se juntasse a ele.

Com o rosto corado, Merlim saiu da confusão e, quase a correr, encontrou-se subitamente ao ar livre, sob o olhar divertido de guardas armados e com elmos, vestidos com pesadas couraças acolchoadas que lhes tocavam os pés e que, com os seus corpos, formavam um corredor entre o bulício da soldadesca e a escada estreita que conduzia ao terraço superior.

- Então, tu és Merlim... - disse a voz de Ryderc.

A criança levantou os olhos e observou aquelas pessoas, calmas e dignas no meio desta agitação, vestidas de tecidos preciosos e de jóias de ouro. Em volta de Ryderc estavam as mulheres mais bonitas que ele alguma vez vira, e os homens mais nobres. Nunca antes se tinha sentido tão desajeitado e tão feio. Ryderc sorria-lhe com um ar ao mesmo tempo intrigado e cordial, mas os outros pareciam olhá-lo com uma indulgência divertida que o fez sentir vergonha. Febrilmente, puxou a túnica debaixo da cintura, colocou os cabelos para trás, brandiu a sua varinha de prata que assinalava a sua categoria de bardo real e só conseguiu deixar cair a harpa na erva. Viu Guendoleu abanar a cabeça com um ar desolado, com uma careta de desculpa dirigida a uma mulher de longos cabelos brancos presos por uma faixa de ouro. Quando estava a apanhar a insígnia do seu cargo, Merlim reconheceu-a, e o seu coração acelerou-se. Era Aldan, a sua mãe... Os dez anos decorridos tinham-na modificado, sem dúvida alguma, mas ele sentia-se mortificado com a idéia de a ter ofendido. Havia dez anos que ele sonhava com este instante, e quase a ignorava... Dez anos, e surgia diante dela esfarrapado, desgrenhado, desajeitado, como um miserável acabado de sair do estábulo...

- Tu és Merlim, o bardo - retomou Ryderc. - Ouvi falar de ti... Vem! - O rei sorriu-lhe de novo, sem malícia, e Merlim sentiu-se um pouco reconfortado. Mas a sua mãe não sorria. Os seus olhos sombrios estavam fixados nele com uma tal intensidade, que ele teve de desviar o olhar, baixando a cabeça. Hesitou em percorrer as poucas toesas que ainda o separavam dela. Os outros precipitaram-se entretanto para a poterna que conduzia ao terraço superior e eles ficaram sozinhos.

- Estás quase um homem...

Aldan estendeu-lhe os braços e ele foi agarrar-se a ela, num impulso que a surpreendeu e a pareceu divertir.

- Deixa-me olhar para ti...

Ela sorria, mas os seus olhos continuavam duros e observavam-no até ao fundo da sua alma. As suas mãos, segurando os braços dele, estavam geladas, e ele sentia-se a suar, trêmulo e imbecil.

- Tu...

Aldan perturbou-se, fez um sorriso forçado e agarrou-lhe na mão para o levar para o interior.

-...pareces-te tanto com o teu pai!

Apesar das suas dimensões consideráveis, a sala comunal não era suficientemente grande para receber os dignatários de cada delegação, e tinha sido necessário colocar mesas do lado de fora, para os protegidos do rei e oficiais de menor categoria. A chuva miudinha que começara a cair não parecia incomodar os que festejavam ao ar livre, a julgar pelos seus berros. Estavam por todo o lado: em volta do poço, encostados à falésia escarpada do rochedo mais alto, e ao longo de todo o caminho de inclinação suave que conduzia ao cume do segundo outeiro. Aí, estava-se menos exposto ao vento do mar, mas, ainda assim, era difícil ficar ali sentado mais de alguns instantes sem se ficar ensopado até aos ossos...

Merlim quase que os invejava. No centro da sala estava escavada uma lareira, cheia até cima de um leito de brasas, que libertava um calor infernal, e sobre ela um boi inteiro tinha sido colocado a assar. Continuamente, gotas de gordura evaporavam-se, crepitando sobre os tições avermelhados, carregando o ar de um cheiro de gordura queimada que sufocava a criança. Os fumos conjugados da lareira, dos tocheiros que decoravam as paredes e das velas de sebo dispostas em abundância sobre as mesas formavam, pouco a pouco, sobre as cabeças, uma camada pegajosa que ardia nos olhos, visto que as raras janelas tinham sido ocultadas por tapeçarias, privando os convivas da mais leve aragem.

Todavia, ninguém parecia queixar-se. Pelo contrário, comprimiam-se como um rebanho, salpicavam-se de cerveja e devoravam tudo quanto lhes passava pela frente, numa algazarra de fim do mundo. No meio das mesas dispostas em quadrado, os músicos tentavam em vão fazer-se ouvir, conseguindo somente atravessar com algumas notas estridentes o alarido dos comensais, sem que ninguém, aparentemente, lhes prestasse a menor atenção.

Merlim, em contrapartida, não conseguia estar quieto. O velho rei Ceido já não tinha dentes, e os banquetes eram acontecimentos raros na casa da Cúmbria. Depois da sua morte, e apesar dos esforços do seu copeiro real, Guendoleu não manifestara mais interesse do que o seu pai pelos prazeres da carne, de modo que o jovem bardo não tinha o costume de andar em farras durante horas.

Apesar da sua ascendência real, Merlim não poderia ter sido admitido à mesa dos príncipes, e só torcendo o pescoço é que ele conseguia ver a mãe ou Guendoleu, as únicas pessoas que conhecia. Cadvan e os outros senhores da Cúmbria tinham sido colocados longe dele, e a criança sentia-se perdida. Na sua maioria, os seus vizinhos estavam já demasiado bêbedos para pensarem sequer em se apresentarem, e não lhe tinham concedido mais que um vago olhar. A seu lado, um vate da casa de Rheged prognosticava entredentes, por vezes com grandes arrebatamentos marcados por gestos descoordenados que infalivelmente o aspergiam de cerveja. Os outros eram nobres descendentes das grandes famílias reinantes, homens e mulheres misturados, e todos muito corados, as mãos e a boca brilhando de gordura, rindo às gargalhadas, comendo e bebendo até rebentarem a pança, ostras, frutos e avelãs, porco, presunto e carne de vaca, tudo ao mesmo tempo, como uns mortos de fome. Merlim também tinha comido e bebido além da conta, experimentando pela primeira vez o vinho, tão raro na ilha da Bretanha. Mas agora já não tinha fome nem sede, só vontade de dormir, e de que tudo aquilo terminasse.

Quando, mais uma vez, o vate se pendurou nele para balbuciar as suas imbecilidades, Merlim levantou-se bruscamente. Estava resolvido a sair da sala, quando uma mão pousou no seu ombro e o obrigou a sentar-se, suavemente, mas com firmeza. Virou a cabeça e deu com o olhar sorridente de um homem idoso, cara sem barba e longos cabelos grisalhos. O homem agarrou o vate pelo colarinho e atirou-o ao chão, de pernas para o ar, debaixo das gargalhadas dos convivas. Depois, sem lhe prestar qualquer atenção, sentou-se no lugar dele, escolheu uma caneca mais ou menos limpa e serviu-se de bebida. Bebeu devagar, olhando Merlim como se fossem velhos companheiros. Os outros também se tinham calado e olhavam o recém-chegado à mesa com sorrisos de expectativa, parecendo prontos a aplaudir à menor palavra.

- Disseram-me que eras Merlim, o bardo - disse ele, por fim, pousando a caneca vazia. - Imaginei-te mais velho...

- Parece que toda a gente me conhece - respondeu a criança com uma careta de escárnio. - É uma vantagem que eu não tenho...

- A sério?

O idoso ergueu as sobrancelhas, com um ar divertido.

- Julgava que sabias predizer o futuro...

- Vamos lá ver! - disse, do outro lado da mesa, um comensal bochechudo, enfiado numa túnica demasiado apertada para ele e quase tão vermelha quanto a sua face. - A criança que adivinhe pelo menos quem tu és!

O idoso sorriu, abanou a cabeça, depois virou o busto para Merlim. Nesse movimento, retirou da cintura uma varinha de ouro, como se ela o incomodasse, e pousou-a sobre a mesa, entre eles. Depois esperou tranquilamente.

- Tu és o mestre dos bardos - murmurou Merlim arregalando os olhos. - És Taliesín, o rosto resplandecente da casa de Urien Rheged, chefe dos bardos da Bretanha...

- Estás a ver, quando quer... - gritou o homem gordo vestido de vermelho.

O idoso desatou a rir e saudou-o levantando a sua taça.

- Sou Taliesin - disse. - E aquele bêbado, ali ao fundo, que ainda vai rolar para baixo da mesa se não tiver cuidado, é Aneurin, o bardo do rei Mynydog. O outro, ao lado dele, é Dygineleoun, bardo do meu príncipe Cwen. Estamos felizes por finalmente te conhecermos, Emrys Myrddin. Contam-se bastantes coisas sobre ti...

Taliesin sorriu-lhe amavelmente, mas Merlim julgara perceber uma forma de acusação no último comentário. Observou rapidamente os comensais em volta e, em resposta aos seus receios, pareceu-lhe que alguns olhares continham desconfiança, ou constrangimento.

- Dizem-se tantas coisas - murmurou, fazendo um esforço para controlar o sentimento de opressão que se apoderava dele. - Não se diz que nasceste duas vezes, Gwyon Bach, filho de Greang de Lanfair?

- Ah!

O velho bardo deu-lhe uma palmada no ombro, rindo a bom rir.

- Então conheces a minha história, jovem melro! - Pois bem, seja! Conta-nos a tua versão!

Merlim sentiu-se empalidecer, mas toda a mesa se pôs a bater com o punho e com um pé, a um mesmo ritmo, reclamando a história. A muito custo, o gordo Aneurin fez um esforço para se levantar e agarrar na sua harpa para o acompanhar.

- Então? - insistiu Taliesin, sorrindo. - Vais-me dizer como é que eu nasci duas vezes?

Aneurin acentuou o convite do mestre dos bardos com um acorde de harpa e, para grande assombro de Merlim, o silêncio fez-se, pouco a pouco, por toda a sala. Na mesa real, Guendoleu e a sua mãe olhavam-no com um ar inquieto. A criança esboçou uma espécie de sorriso para os tranquilizar e levantou-se.

- História de Taliesin! - clamou ele, em voz alta. - Homenagem ao mestre dos bardos, da parte do seu humilde discípulo...

O velho bardo agradeceu-lhe com um aceno de cabeça, enquanto aplausos e vivas saudavam a sua entrada na matéria. No outro extremo da sala, cruzou o olhar de Cadvan, cuja estatura se elevava acima do resto dos convivas. O colosso levantou para ele o copo, e Merlim sentiu-se reconfortado.

- Ei-la, então: havia outrora, em Penllyn, um nobre a quem chamavam Tegid Voel e cuja esposa se chamava Ceridwen. Nasceu dessa mulher a criança mais feia do mundo, Afangddu.

- Está enganado, pequeno! - gritou alguém do fundo da sala. - O mais feio do mundo é Cadfannan!

Grandes gargalhadas jorraram ao lado deles, acompanhadas de palavrões de um guerreiro efetivamente muito feio, que devia ser esse tal Cadfannan.

- Ceridwen preparou um caldeirão de inspiração e de ciência para o seu filho - continuou Merlim - para que, apesar da sua fealdade, ele fosse aceito dignamente no mundo pela sua sabedoria. O caldeirão foi posto a ferver em Caer Einion, no reino dos Powys, e Ceridwen confiou a vigilância a um cego de nome Morda, bem como a Gwyon, “o Pequeno”, filho de Greang.

Novas aclamações jorraram, às quais Taliesin respondeu inclinando-se, como um ator. Ao voltar a sentar-se, sorriu a Merlim, que continuou com o coração mais leve.

- O caldeirão devia ferver durante um ano e um dia, sem interrupção, mas acontece que caíram três gotas da fervura e queimaram o dedo de Gwyon Bach. Por causa da dor, meteu o dedo à boca e conheceu assim a revelação. Soube do fim que lhe reservava Ceridwen e fugiu, apavorado. Infelizmente, por causa do fogo, o caldeirão abandonado partiu-se. Mal Ceridwen viu que o seu trabalho de um ano estava perdido, correu em perseguição dele.

Merlim interrompeu-se para beber um gole, deixando Aneurin improvisar um intermédio musical bastante desenfreado que provocou alguns risos.

- Quando Gwyon Bach a viu - continuou, em seguida - tomou a forma de uma lebre e começou a correr. Imediatamente, Ceridwen transformou-se num galgo e perseguiu-o até ao rio. Então, ele transformou-se em salmão, mas ela metamorfoseou-se em lontra. Ia agarrá-lo debaixo de água, quando ele se tornou um pássaro e voou para o céu. Ela tornou-se gavião e precipitou-se sobre ele. Gwyon parecia estar perdido quando, do alto dos céus, viu um monte de trigo candial colhido e se transformou em grão entre os grãos. Infelizmente, Ceridwen tomou a forma de uma galinha negra e comeu todo o trigo, como reza a história. Mas sucedeu que ela acabou por ficar grávida desse grão. Nove meses mais tarde, Ceridwen deu à luz uma criança e, não conseguindo resolver-se a matá-la, colocou-a num cesto e entregou-a às ondas. O mar, felizmente, não lhe quis fazer mal e, depois de ter navegado durante muito tempo, a criança foi recolhida pelo príncipe Elfin, que se maravilhou com a brancura do seu rosto. Um rosto grande e radioso... Um Taliesin...

Merlim avaliou o efeito. A sala inteira escutava-o em silêncio, e ele sentiu-se inebriado por este poder imprevisto. Então, lentamente, voltou-se para o velho mestre e indicou-o ao auditório.

- Essa criança - disse - ei-la aqui... Mas como ela mudou!

Todos desataram a rir e a bater palmas. Com um olhar, Merlim viu a mãe sorrir, baixando a cabeça com modéstia ao que o rei Ryderc lhe dizia ao ouvido. Ia continuar o conto, mas Taliesin levantou-se, apertou-o de encontro ao peito e depois, tomado de uma súbita inspiração, pegou na harpa de Aneurin. Por este simples gesto, o silêncio regressou. O bardo contornou a mesa deu um acorde e começou a cantar.

 

Noutros tempos fui concebido:

Fui verme, fui salmão,

Fui veado, fui um cão,

Num campo fui um grão,

Cresci numa colina.

Apanhou-me uma galinha,

De vermelhas garras e crista separada.

Fiquei nove noites

Dentro do seu útero.

Sou Taliesin,

Canto uma linhagem legítima

E assim continuarei até ao fim...

 

Tocou mais um pouco, com os seus longos dedos enrugados, o olhar perdido no vácuo, depois parou de repente e contemplou a assembléia com um ar espantado, um pouco exagerado, como se saísse de um sonho qualquer, ou assim o quisesse fazer crer. Sem prestar atenção aos aplausos e aos vivas, contornou de novo a mesa e voltou a sentar-se ao lado de Merlim para se servir de uma bebida. Rapidamente, o barulho das conversas voltou a fazer-se ouvir, e quando teve certeza de que ninguém lhe prestava mais atenção, Taliesin debruçou-se sobre a criança.

- Evidentemente, não passa de uma lenda, mas tem algo de verdadeiro, como todas as histórias. De certa forma, voltei a nascer quando o meu mestre me deu a iluminação do canto.

- Que mestre? - perguntou Merlim. - Quem te ensinou?

Taliesin fixou-o com um ar estranho.

- Um dos teus, jovem melro.

Merlim franziu as sobrancelhas, pensando nos velhos bardos do rei Ceido, sem conseguir imaginar quem quer que fosse nos Sete Cantões que pudesse ter tanto talento ou sabedoria para ensinar a Taliesin a sua arte. Foi como se este lesse os seus pensamentos.

- Não estou a pensar no Dyfed, filho do diabo, mas no teu verdadeiro clã...

O jovem bardo sobressaltou-se, ficando de novo na defensiva. No entanto, Taliesin olhava-o sem malícia e, percebendo a perturbação de Merlim, fez um gesto fatalista com a mão.

- Não tem importância. O diabo é uma bela descoberta, que encobre tantas coisas... Tudo o que mete medo, tudo o que é desconhecido, tudo o que é estranho. Sabes escrever, jovem melro?

Ainda receoso, Merlim abanou a cabeça negativamente.

- Ainda bem - disse Taliesin.

Apontou com o dedo o bispo Kentigem, sentado à distância da mesa real, com um grupo de homens vestidos de hábitos escuros.

- Todos eles escrevem, como os Romanos...

- Os Romanos partiram, Taliesin - resmungou Merlim com um resquício de agressividade,

- Mas deixaram-nos os monges, como um veneno que corroi a Bretanha! Reparaste que Ryderc não tem bardos na corte, jovem melro? E assim... Chegará um dia em que, em todo o mundo, deixarão de existir bardos, vates e druidas. O saber antigo perder-se-á, selado nos livros dos copistas, tão morto quanto os animais que esfolam para fazer os seus pergaminhos... Não aprendas a escrever, jovem melro, esquecerás tudo quanto sabes, e nunca descobrirás aquilo que ainda ignoras.

Observou Merlim com gravidade, como se esperasse uma resposta da sua parte.

- Eu... eu não compreendo, mestre...

Taliesin sorriu e abanou a cabeça.

- Claro... és tão jovem.

- Para dizer a verdade, com tudo quanto contam dele, imaginava-o bem mais velho! - lançou Aneurin empurrando toda a gente para se vir sentar em frente deles. - Ainda mais velho do que tu, Taliesin!

- Então, que idade tens, Merlim?

- Menos do que pensas - respondeu o jovem bardo, sorrindo.

- Então não és a criança que pressagiou a queda do traidor Vortigem...

- Ouvi essa história - murmurou Taliesin.

- Vortigem morreu há mais de cem anos! - exclamou Merlim, rindo. - Era preciso que eu fosse bem velho para lhe ter sobrevivido!

- Mais velho do que a águia de Gwernabwy, do que o salmão de Llyn Llifon e o sapo de Cors Fochno! [16]

Mas eles continuavam a observá-lo e não riam.

- Não, eu não sou a criança que viu a queda de Vortigem - insistiu Merlim, num tom firme. - Nasci muito depois de o meu pai o ter combatido, e mesmo ele era muito jovem nessa altura. E sou tão filho do diabo quanto tu nasceste duas vezes, Gwyon Bach...

O velho bardo sorriu, trocou um olhar rápido com Aneurin e levantou as sobrancelhas.

- No entanto, eu nasci duas vezes, jovem melro - segredou ele baixinho. - Porque é verdade que Elfin me recolheu nas ondas, e que me ensinou muitas coisas... Quanto a ti, meu filho, ainda te falta descobrires muita coisa!

Merlim abriu a boca para protestar, mas Taliesin deteve-o com um gesto.

- Tens coisas melhores a fazer do que estares a escutar os meus disparates de velho. Vês aquela garota?

Merlim voltou-se na direção que ele indicava. Na mesa dos reis, ao lado da rainha Languoreth, uma jovem muito pálida, cujos longos cabelos negros entrançados sobressaíam maravilhosamente no seu vestido de um azul tão claro como o céu de verão, desviou o olhar quando ele pousou o dele sobre ela.

- É Guendoloena, a irmã do rei Ryderc. Ela não parou de olhar para ti desde o teu canto, jovem melro. Porque é que não a levas a dar um passeio lá fora? Morre-se de calor aqui dentro, não achas?

 

Merlim acordou com o ar frio da manhã, a boca pastosa e a cabeça apertada num torno. Demasiado hidromel, demasiada cerveja, demasiado fumo e demasiado barulho... Empurrou a capa na qual se tinha enrolado, passou a mão sobre a erva espessa e coberta de geada, para lavar o rosto, e levantou-se, gemendo. Enquanto esticava as costas dormentes do pouco conforto dessa noite nas colinas, a criança contemplou o sol nascente que irisava de ouro as montanhas azuis, o movimento silencioso das folhagens agitadas suavemente pelo vento vindo do mar, o bailado incessante das gaivotas cinzentas e dos escuros corvos-marinhos no estuário. A maré baixa deixava aflorar longas fitas de algas verdes, bem como grandes rochedos musgosos que serviam de poleiro às garças-reais. Tudo quanto o Strathclyde continha de aves pescadoras parecia ter marcado encontro no estuário para o saque. Uma rajada de vento levou até ele o latido de um cão e, ao descobrir a cidade, por baixo da massa negra do rochedo, admirou-se de ter percorrido uma distância tão grande antes de dormir. Ao longo de todo o estuário, via-se subir no céu o fumo das fogueiras. Imaginava demasiado lamaçal na cidade baixa, os grupos de soldados enrolados nos seus casacões enlameados com o bafo empestado a cerveja, os guinchos dos animais degolados para alimentar aquela multidão, o mau humor de toda a aquela gentalha de ressaca, esfomeada e sem nada para fazer. Pegou no seu casaco endurecido pelo frio, enrolou-se nele e inspirou longamente o ar salgado, fechando os olhos. Imediatamente, o rosto de Guendoloena apareceu-lhe, tão próximo e doce que ele se deixou ficar assim durante bastante tempo, com as pálpebras fechadas, até a imagem dela se dissipar.

Ela levantara-se logo que o vira aproximar-se da mesa real, e saíra da sala sem um olhar, deixando-o desconcertado e corado bem no meio da sala. Instintivamente, voltara-se para os seus companheiros de banquete que, alegres, lhe tinham feito sinal para a seguir. Então, Merlim seguira-a.

Lá fora, a chuva continuava a cair. Estava tudo escuro, com exceção das fogueiras flamejantes sobre o terraço alto. Em volta das mesas, não restavam mais do que aqueles a quem a cerveja tinha prostrado e que dormiam nos seus lugares, ou alguns grupos de foliões demasiado bêbedos para se preocuparem com a chuva.

A lua estava encoberta, mas Merlim tinha aquele dom pouco comum de ver através da escuridão, como um gato. Varrera o local com o olhar e vira-a, encostada à escura falésia de basalto, iluminada somente pela luz dançante de uma fogueira que ardia ao longe. O seu coração batia estupidamente quando se aproximara dela. Ele, o melro trocista, o bardo inexaurível, procurava em vão as palavras, amaldiçoando ao mesmo tempo Taliesin e a sua própria vaidade. Como podia pensar que ela tinha saído por causa dele e que o esperava, quando os jovens nobres da Bretanha estavam dispostos a morrer pelos belos olhos claros da irmã de Ryderc, o Generoso? E, depois, encontrara-se diante dela, iluminado por um ínfimo raio de luz proveniente de uma tapeçaria mal esticada.

Merlim sacudiu-se, tocou com a ponta dos dedos os lábios que ela tinha beijado, reproduzindo o gesto de Guendoloena quando, chegado perto dela, ele se tinha posto finalmente a falar.

- Não digas nada, Emrys...

Olhara longamente para ele, com um sorriso ao mesmo tempo atrevido e ávido e depois, desviando a mão da boca de Merlim, beijara-o. Sim, tinha sido ela a beijá-lo, repentinamente, puxando-o pela gola do casaco. Depois, antes que ele conseguisse encontrar palavras, antes mesmo de ter conseguido reabrir os olhos, ela fugira a rir para a colina mais baixa e para os aposentos reais. O seu primeiro impulso fora segui-la, mas não bebera cerveja nem vinho suficiente para perder completamente o controle. Então tinha ido embora, com o coração leve. Sem se dar conta, percorrera em sentido inverso o percurso feito ao lado de Cadvan algumas horas mais cedo, desta vez indiferente aos gritos e à agitação da multidão que atulhava a cidade baixa. Chegado às margens do Clyde, continuara a caminhar na noite, até cair de cansaço...

Merlim sorriu. O beijo de Guendoloena fizera-o percorrer um longo caminho... Segurou o casaco no ombro e meteu-se a caminho, em direção à cidade.

A sala do banquete tinha sido lavada com água. Contudo, continuava a reinar ali um odor estonteante a fumo, a gordura frita e a cerveja. Ao fundo, diante de um tabique em vime que delimitava os aposentos reais, os príncipes bretões tinham tomado lugar ao longo de uma mesa, encarando uma multidão de nobres concentrados nas galerias. Merlim deslizara até à primeira fila e agachara-se contra um dos grossos madeiros que sustinham o teto cônico, suficientemente perto para ver tudo, suficientemente perto para ser visto e ser chamado, se necessitassem dele. Viu Cadvan, Diwel e Ceduit, os chefes de guerra de Guendoleu, juntos na primeira fila, do outro lado da sala, mas não ousou atravessar diante de toda a gente o espaço livre para ir ter com eles.

No centro da mesa estava Ryderc, com o rosto grave e os olhos perdidos no vazio. Aldan e Guendoleu, à sua direita, foram os únicos rostos que reconheceu à primeira vista. Um raio de sol fazia brilhar no dedo da mãe um anel de ouro cravejado de turquesas que ele lhe conhecia desde sempre, e que Ambrosius, diziam, trouxera das mãos dos Gauleses. Como se tivesse sentido o peso do seu olhar, ela levantou os olhos, sorriu e fez um sinal afetuoso ao vê-lo. Depois, debruçou-se sobre Guendoleu, murmurou algumas palavras às quais este aquiesceu com um ar divertido, o que teve o dom de fazer corar o jovem bardo até às orelhas. Aflito, encolheu-se e, por um segundo, teria dado tudo na vida para fugir aos olhares maliciosos deles. Por um segundo apenas, pois havia tanto para ver... Na ponta da mesa, um ser formidável, tão avermelhado quanto o Outono e grande como um búfalo, reteve durante muito tempo a sua atenção. A barba e os cabelos hirsutos davam-lhe o ar de um selvagem, com olhos terríveis que não paravam de rodar, como que à procura de uma presa na assembléia. Só podia ser Mynydog, rei de Caer Eden, príncipe dos dois reinos de Manau Goddodin, do qual o bardo Aneurin celebrava os feitos guerreiros contra os Pictos do Norte e os Anglos da Bernícia... Quando os seus olhos enormes passaram por ele, Merlim baixou instintivamente a cabeça, sentindo-se imediatamente culpado, não ousando enfrentar o seu olhar. Vagamente envergonhado deste sinal de fraqueza, transferiu a sua atenção para os outros. A rainha Languoreth, esposa de Ryderc, mantinha-se isolada, os cabelos presos num véu, o que fazia sobressair o seu rosto soberbo e a sua extrema palidez, trazendo em volta do pescoço um colar de ouro largo como a palma da mão e gravado com entrelaçados. Mantinha os olhos baixos, as mãos cruzadas sobre o ventre arredondado. Para aqueles que ainda ignoravam, o seu vestido claro e um pouco justo não podia deixar de revelar que a casa de Strathclyde esperava um herdeiro. Junto dela, o jovem rei triturava nervosamente um copo de estanho, com o rosto semi-escondido na sua capa vermelho vivo. Todos os príncipes da Bretanha tinham, na verdade, parecenças entre si, afetando uma atitude digna e vestidos de tecidos brilhantes. Exceto um, mais jovem ainda que Ryderc, que não tinha barba nem tranças, mas cabelos coloridos, de um castanho avermelhado, e eriçados em picos no cimo da cabeça, como se o vento o tivesse penteado assim para sempre. Estranho penteado, com efeito, fanfarrão e insolente, que não desmentia o sorriso negligente do jovem. Debaixo da sua capa azul clara, presa no ombro por um alfinete trabalhado, trazia uma túnica de couro fulvo cortada nos ombros, e os seus braços nus pareciam ser capazes de manejar o machado ou a espada durante horas seguidas sem fraquejarem. Guendoloena estava por trás dele, e o coração da criança saltou-lhe dentro do peito mal a viu. Pareceu-lhe que ela lhe fazia um sinal. Na dúvida, Merlim não ousou responder-lhe, contentou-se em esboçar um sorriso e, sem querer, pôs-se a olhar com atenção o jovem príncipe. Como os outros, esperava que todos ocupassem os seus lugares e que o conselho começasse sem fazer nada para atrair a atenção. No entanto, Merlim não conseguia desviar o olhar daquele homem e sentia o seu espírito disparar. Imagens confusas assaltavam-no. Imagens terríveis, infelizmente, pavorosas. Batalhas, sangue fumegante, fragmentos de aço... Viu homens embriagados, cheios de hidromel, cambaleando sob os golpes dos inimigos. Captou choros, gritos de ódio e gemidos de agonia... Apesar da sua juventude e da sua estranha beleza, a morte era a companheira do príncipe... a morte, a dor, a tristeza e o remorso.

- Não será através de mim que o ódio te será mostrado - murmurou Merlim. - Farei melhor contigo. Quero celebrar-te nos meus cânticos...

- Que está a dizer?

Aneurin deslizara até junto dele, e Merlim viu-o tremer quando os seus olhares se cruzaram. Mais uma vez, baixou a cabeça. O seu coração batia depressa, a sua garganta estava apertada e percebeu que estava banhado em suor, transtornado, com lágrimas nos olhos. Sacudiu-se, respirou fundo e esforçou-se por afastar aquelas imagens pavorosas.

- Que se passa, meu irmão? - murmurou Aneurin. - Viste alguma coisa?

Merlim ergueu a cabeça e cruzou o olhar inquieto de Taliesin. O mestre dos bardos aproximara-se do jovem príncipe, do outro lado da sala, e Guendoloena desaparecera.

- Que viste, meu irmão? - insistiu Aneurin.

Ao pé de Taliesin estava Dygineleoun, o bardo que lhe fora apresentado na véspera, e também ele olhou Merlim com angústia. Merlim viu-o pousar a mão sobre o ombro do príncipe, como que para o proteger. Por um instante, temeu que o interpelassem diante de todos, mas nesse momento, felizmente, o arauto da casa de Strathclyde bateu no chão com o seu bastão de ferro.

- Não é nada - disse Merlim, esforçando-se por sorrir a Aneurin. - Creio que bebi demasiado ontem à noite, só isso...

Pouco a pouco, fez-se silêncio, e o arauto avançou para o centro da sala.

- Glória a Guendoleu, Kinwarch Cat Caduc e Urien, os três touros da Bretanha! - clamou ele. - Glória a Rhun, filho de Maelgoun, a Ruan, filho de Deorath e a Owen, filho de Uríen, os três príncipes leais da Bretanha!

Na mesa dos reis, o jovem de cabelos ruivos sorriu, ergueu a mão em sinal de saudação. Então era ele, Owen, filho de Urien Rheged, de quem a Bretanha inteira cantava os feitos...

- Glória a Taliesin, Mianuerdic e Dygineleoun, valentes bardos da ilha da Bretanha!

Aneurin bateu-lhe com o cotovelo rindo.

- Olha para eles!

Os dois bardos trocaram um olhar divertido perante o ar modesto de Taliesin e do seu companheiro. Era uma honra suprema ser assim nomeado numa tríade, segundo a antiga tradição da ilha. A cada nomeado, a assistência batia as mãos e os pés, resmungava a sua concordância ou por vezes o seu desacordo. E Merlim, como certamente cada homem e cada mulher presente na grande sala, sonhou ser um dia distinguido assim perante a assembléia dos reis.

Várias vezes seguidas, o rei Ryderc foi homenageado nas tríades, pela sua filha Angharad de caracóis loiros, uma das três mais belas crianças da Bretanha, pela sua espada e até mesmo pelo seu cavalo, e o arauto continuou assim a sua litania durante um bom bocado, embora Merlim tivesse acabado por deixar de o escutar. Ergueu-se para esticar os músculos doridos das pernas, encostou-se ao madeiro, e meditou sobre a sensação estranha que se tinha apoderado dele ao olhar Owen. Tentou concentrar-se, procurar dentro dele a recordação das imagens que o tinham assaltado, mas em vão. Passado o momento, a criança sentiu a impressão desesperante de ter desperdiçado qualquer coisa, sem conseguir compreender aquilo que talvez fosse uma mensagem... Nunca tivera semelhante sensação. Como a toda a gente, os seus sonhos pareciam-lhe por vezes tão reais que continuava impressionado bem para além da noite, mas isso nada tinha de excepcional nem de comparável a este sonho acordado, aquela brusca irrupção de imagens e aquela sensação penosa de ter falhado. Aneurin, ao seu lado, reencontrara a sua boa disposição habitual, mas a criança reviu a sua expressão alarmada, e o movimento instintivo de Taliesin e do seu companheiro para protegerem o príncipe Owen. Que se teria passado? A que se assemelhava ele durante aquela visão? Fora tão assustador assim? Teria sido por isso que Guendoloena abandonara o seu lugar?

Com uma pancada de bastão, o arauto bateu subitamente no chão, concluindo a litania das tríades, clamando numa voz firme: “Nobres rainhas, nobres reis da Bretanha, que o conselho comece, e que tudo o que aqui for dito seja ouvido por todos!”

Bateu novamente no chão com o bastão de ferro e preparava-se para sair quando uma voz firme o imobilizou.

- Um momento!

Todos se voltaram para aquele que acabava de falar. O homem abriu passagem por entre a assistência e, logo que apareceu, um coro de comentários contraditórios elevou-se na sala. Era um monge alto e magro, vestido com o hábito preto dos beneditinos, pés nus dentro de sandálias. Um velho de cabelos compridos e barba branca, provavelmente tão idoso quanto Taliesin, mas sem a sua imponência e bondade, que caminhava apoiando-se num comprido bastão que terminava em cruz.

- Meus irmãos, escutai-me! - disse ele. - Escutai a palavra de Deus!

 

Revesti-vos de toda a armadura de Deus, para que possais estar firmes contra as astutas ciladas do demónio. Pois não temos de lutar contra os homens, mas sim contra as forças invisíveis, contra os príncipes das trevas que dominam o mundo, os espíritos do mal que estão acima de nós. Estai, pois, firmes, tendo cingidos os vossos rins com a verdade, e tendo vestida a couraça da justiça, e calçando os pés com a preparação do evangelho da paz, tomando, sobretudo, o escudo da fé, com o qual podereis apagar todos os dardos inflamados do Maligno. Tomai também o capacete da salvação e a espada do espírito, que é a palavra de Deus![17]

 

O idoso parou para tomar fôlego, e o seu tom inflamou-se.

- Glória à última tríade! A maior de todas, nobres senhores da Bretanha! O Pai, o Filho e o Espírito Santo, que vos vigiam e vos amam... Sou o abade Kentigem, bispo de Cristo para quem apelo em vosso nome. Que ele esteja entre nós e nos ajude nas nossas decisões!

Fez-se um silêncio pesado. Todos pareciam reter a respiração, esperando uma reação na mesa dos reis. Mas Ryderc mantinha os olhos baixos e os outros hesitavam em intervir.

- Por quem se toma este monge? - resmungou Aneurin, perto dele.

E, em voz alta:

- Proponho-te uma outra, Romano! A tríade das Mães! Don, Grande Mãe de Dyfed, de Gwynedd e de Powys, Cerídwen, guardiã do caldeirão da inspiração, e Clota, deusa do Clyde, que te vêem e não gostam muito de ti!

Gargalhadas e murmúrios indignados aclamaram a saída de Aneurin. Merlim viu-o deitar um olhar ao rei ruivo que tanto o impressionara, e pareceu-lhe que o colosso aprovava o seu bardo com um aceno de cabeça.

- Não sou romano, meu irmão - respondeu Kentigem levantando a voz para restaurar a calma. - Sou...

- Em todo o caso, não és meu irmão, ancião! - disse Aneurin com uma gargalhada. - O meu irmão está em Lothían e combate os Pictos do rei Brude para glória dos Goddodin. É tão gordo que são precisos dois cavalos para o transportarem, tão forte que a sua lança é um tronco de árvore, tão mau e tão feio que o teu Cristo morria de medo só de olhar para ele!

Desta vez, os risos venceram e a resposta do abade foi abafada pelos gracejos. Mas alguns homens consternados puxaram das espadas e atravessaram o espaço livre no centro da sala para atacarem o bardo corpulento.

- Basta!

Ryderc levantara-se e fulminava os guerreiros com o olhar.

- Fora daqui, vós que ousais comparecer de espada desembainhada na assembléia dos reis! Que sejam levados para que se lhes inflija o castigo que merecem!

Imediatamente, os três imprudentes foram cercados, desarmados, arrastados para fora e, quando passaram perto de Merlim, este viu nos seus olhos o terror abjeto da sorte que os esperava. Nos instantes que se seguiram, a sala foi tomada por uma grande confusão. De todos os lados, nobres e chefes de clã agrupavam-se em volta do seu respectivo rei, tremendo de cólera ou indignação, empurrando Kentigem ou fazendo-lhe barreira. Havia quase tantos gritos de agitação e de ódio como no meio de uma batalha, e durante longos minutos pareceu que nada podia impedir que se chegasse a vias de fato. Merlim, sacudido como um insignificante no meio do tumulto, chegou perto de Guendoleu no momento em que a calma se instaurava. Os gritos paravam, os homens recuavam, e ele ouviu pouco a pouco a voz da sua mãe, clara como um sabre no meio da algazarra louca que os rodeava.

- Senhores, escutai-me! Sou Aldan Ambrosia Dyfed, rainha de Caerfyrddirt e dos Sete Cantões, viúva de Ambrosius Arthus Aurelianus, o Urso da Bretanha! Em nome das Mães e em nome de Cristo, escutai-me!

Esperou um momento que se fizesse outra vez silêncio, e depois continuou:

- Que a vergonha caia sobre aquele que se enfurece com uma palavra de amor! Que a vergonha caia sobre aquele que perturba o conselho dos reis!

Merlim, fascinado, olhava-a com adoração. Um raio de sol deslizara até ela através dos interstícios do telhado e iluminava os seus cabelos brancos com uma áurea irreal. O ouro brilhava nas suas orelhas e pescoço, mas o seu olhar estava tão sombrio quanto a noite, mais terrível ainda do que o do rei Mynydog. Ao vê-la assim, parecia semelhante às próprias Mães ou à Virgem dos cristãos, e de uma força infinita. Cada um, sob o seu olhar encolerizado, regressou ao seu lugar, lamentando-se em surdina como uma criança apanhada em falta, mas no ar vibraram ainda durante bastante tempo os sinais da discussão acalorada.

À semelhança de Aneurin e dos outros bardos, Merlin aproveitara para se introduzir por trás da mesa real, perto dos conselheiros. Em parte alguma viu sinal do abade Kentigem, nem de qualquer outro monge.

- Ora aí está a nossa fraqueza! - exclamou Ryderc, levantando-se, mal a ordem foi restabelecida. - Prontos a atacar-nos uns aos outros, a lutarmos por causa de umas palavras! O abade Kentigem está sob a minha proteção, que ninguém o esqueça... Mas fez mal em tomar assim a palavra diante de vós, e por isso peço-vos perdão.

O jovem rei baixou a cabeça com um ar desolado que lhe valeu imediatamente a simpatia de todos.

- Agora, escutai-me. Desde a morte de Ambrosius, os nossos inimigos tornaram-se mais fortes e mais numerosos do que nunca! Espalham-se por todos os lados, como a doença amarela que provocou tanta devastação na nossa ilha e que levou o mais corajosos dos nossos reis, Maelgourt Gwynedd.

Dizendo isto, saudou o príncipe Rhun, o rei Peredur e os senhores do País Branco. Na ponta da mesa, formavam um grupo compacto, maciços e com os pescoços enterrados nas suas lorigas de couro e de malhas. Sem outra razão além de um atavismo que remontava às velhas lendas, Merlim sentiu imediatamente desconfiança ao olhar para eles.

- Se combatermos sozinhos, isoladamente, seremos vencidos continuou Ryderc. - Reagrupemo-nos, e formaremos uma onda que submergirá para sempre todos os nossos inimigos, Saxões, Anglos e Pictos!

-...E Gaélicos - acrescentou suavemente Aldan Dyfed.

E como Ryderc se interrompera e a olhava atentamente com um ar hesitante, ela continuou com uma voz firme:

- Os Deisi Muman da Hibérnia agarram-se às nossas costas e espalham-se por todo o país Cymru, em Gwynedd, e até na Domnónia. Se não os expulsarmos para o mar, serão em breve tão fortes quanto os seus irmãos escotos dos Dal Riada, e seremos atacados em tenaz.

Ryderc inclinou a cabeça na direção de Aldan em sinal de concordância.

-... E os Gaélicos - admitiu ele, sem pestanejar. - Todos aqueles que os nossos pais venceram regozijam-se agora com a nossa desunião, vêm pilhar nas nossas costas, constroem praças-fortes e cidades na ilha da Bretanha, sem sentirem medo e rindo da nossa fraqueza!

Levantou a manga, arrancou a ligadura que lhe cobria o braço e mostrou a todos a cicatriz ainda ensanguentada deixada pelo punhal do saxão.

- Eis o que nos espera, irmãos cymri! Assassinos, espiões ousam infiltrar-se entre nós, talvez até nesta sala, e neste momento! Mas, soube-o de Deus, não morrerei pela espada dos meus inimigos. Unamo-nos sob a bandeira de um Grande Rei, que o medo mude de campo e que a morte os aniquile!

Retomou o seu lugar, com o rosto corado, e o zunzum dos comentários encheu mais uma vez a sala.

- Unamo-nos então! - rugiu o rei Mynydog, com uma voz tonitruante que parecia fazer tremer as vigas. - Mas todos os nossos reinos estão ameaçados. Há guerra em todo o lado, Ryderc! Não se passa um único dia sem que os Pictos do rei Brude desçam das suas montanhas sobre Lothian. E os Anglos espalham-se pelas costas, até às minhas fronteiras... É aí que devemos atacar, antes de mais nada. Urien Rheged Sitia neste preciso momento o rei Ida da Bernícia em Lindisfarne. Ajudemo-lo! Esmaguemos sucessivamente cada um dos reinos de Lloegr, até que a sua recordação seja apagada da terra da Bretanha!

Deu um murro na mesa que fez vacilar jarros e copos, e depois voltou a sentar-se sob os clamores da assistência.

- Posso dizer uma palavra?

Owen, o príncipe de cabelos ruivos erguidos em espinha, levantou-se, terminou tranquilamente o seu copo, esperando que a calma se restabelecesse e, saindo do seu lugar, avançou até ao rei dos Coddodin.

- Quando te ouço, Mynydog, agradeço às Mães não ser saxão! - lançou ele, com um sorriso malicioso. - Porque não o enviamos a ele sozinho, senhores meus, para cortar ao meio, em combate singular, o rei Ida da Bernícia?

O soberano dos Dois Reinos desatou a rir, sendo imitado por toda a assistência e presenteou Owen com um encontrão que, com efeito, bem o podia ter partido ao meio.

- Meu pai, Urien das Planícies Cultivadas Sitia efetivamente Lindisfarne, e o meu coração sangra de não poder estar a seu lado neste momento - continuou o jovem, - Mas ele ordenou-me que estivesse aqui, o que é para mim uma imensa honra... Assim, permiti que fale em seu nome...

- Escutamos-te, Owen - disse Ryderc.

O príncipe agradeceu-lhe com um aceno de cabeça, bateu afetuosamente no ombro maciço de Mynydog e retomou a sua deambulação.

- Não existe no mundo nada mais querido ao coração de Urien que recuperar a grandeza da Bretanha. Falou-me muitas vezes da batalha de Mont Badon, da derrota infligida aos Lloegriens pelos exércitos de Artur, o maior rei conhecido nesta terra. Graças a ele, nasci durante a paz, como muitos de vós...

Murmúrios de aprovação fizeram eco às suas palavras. Nessa altura, Owen tinha chegado diante da rainha Aldan e, com a mesma vivacidade, ajoelhou-se.

- É por isso, minha rainha, que ponho em tuas mãos o reino de Rheged, em nome de Urien e de todos os meus. Que a mulher do Urso decida o futuro dos Homens do Norte. É essa a vontade de meu pai...

Sorriu-lhe com uma expressão humilde, quase receosa, que atingiu Merlim.

-...e, ouso dizê-lo é também essa a minha vontade, Aldan Ambrosia - acrescentou, num tom mais baixo.

Mal ele se levantou, Merlim, em pé atrás da mãe, cruzou por um breve instante o seu olhar. O príncipe era jovem, forte como um tronco, com um pescoço de touro e braços possantes, mas os seus olhos estavam cansados, cheios de tristeza. Embora Owen não fosse mais velho do que ele, um mundo separava-os. Um mundo de batalhas, de fúria e de sangue que, para sempre, manchara a sua alma, esmagada pelos gritos e pelas lágrimas, pelo medo indiscritível do combate, pelo ódio e pela mágoa, tão vivos e cruéis como na sua visão.

Owen segurou as mãos que Aldan lhe estendia, beijou o seu anel de ouro e turquesas, e voltou a sentar-se, com o mesmo passo indolente, indiferente aos olhares e aos murmúrios. E enquanto o rebuliço aumentava, Mynydog bateu de novo na mesa com a sua mão grande como uma pá.

- Pelas Mães, foi bem falado! - exclamou, levantando-se. - Vem aos meus braços, meu filho, deixa-me abraçar-te!

E, enquanto esmagava Owen contra as suas peles:

- Que assim seja, Aldan Dyfed! Já que Artur morreu, que a mulher do Grande Rei decida o nosso destino. Minha rainha, ponho, por minha vez, o destino dos Goddodin nas tuas mãos!

Apesar da sua pouca idade e da sua falta de experiência, Merlim soube que o que acabava de se passar tinha um impacto considerável. O peso da aliança assim concluída era enorme, de tal forma se sobrepunha a qualquer objeção. Mas o seu entusiasmo esbarrou com os rostos graves dos conselheiros que o rodeavam. Procurou com os olhos Guendoleu e viu-o prostrado, os lábios e os punhos apertados, a cara meio escondida pelas suas tranças grossas. Ryderc, perto dele, estava lívido, impassível, com exceção dos olhos que se agitavam febrilmente em todos os sentidos. Depois, transpôs a sua atenção para a mãe, tal como cada pessoa presente na sala, rei, guerreiro, druida ou escravo. Fez-se um silêncio tão pesado que todos podiam ouvir o martelar da chuva no telhado, o sopro do vento nas estreitas frestas da sala comum. Alguém tossiu, um cão ladrou furiosamente lá fora. Em seguida, Aldan levantou-se, com um grande suspiro.

- Já não estamos no tempo em que as rainhas governavam a Bretanha - disse ela. - Já não posso conduzir à guerra, nobres senhores cymri, mas que o melhor entre nós o faça em meu nome e conduza os nossos exércitos à vitória, por amor a mim e em memória do meu rei.

Varreu com os olhos a assistência, direita e orgulhosa, depois tirou da cintura um pesado colar de ouro de uma só haste, grosso como um polegar e gravado com entrelaçados, terminando em duas bolas esculpidas que representavam um javali e um urso.

- Eis o cordão de ouro do elmo de Ambrosius Aurelianus, ríothime dos exércitos bretões - disse, num tom mais decidido, brandindo-o com os braços esticados. - Que aquele que o usar a partir de agora seja digno da memória de Artur... Eu não passo de uma velha mulher, mas vi tantas guerras e tanta infelicidade... Escutai o meu conselho, senhores meus. Reunir um exército único não fará mais do que enfraquecer as nossas fronteiras. Se combatermos os Anglos, os Escotos do clã dos Dal Riada chegarão de repente às terras do Norte. Se, pelo contrário, fizermos frente aos Escotos e aos Pictos, então serão os Lloegriens e os Gaélicos da Hibérnia que invadirão o país Cymru.

- Então, que devemos fazer? - resmungou Mynydog.

- É preciso atacar em todo os lugares ao mesmo tempo, de todos os lados, como uma estrela brilhando do seu centro e atingindo com os seus raios todo o universo. Atacar em conjunto, no mesmo momento, e que o exército do riothime venha em auxílio, onde for necessário, para esmagar o inimigo. Somos mais numerosos e mais fortes do que cada um deles. O barulho das nossas vitórias enchê-los-á de terror, romperá as suas alianças e expulsá-los-á para o mar.

Aldan encarou de novo a multidão suspensa nas suas palavras.

- Pelo meu lado, confio o destino dos Sete Cantões ao mais corajoso entre nós, tão forte e temido que o inimigo nunca se arriscou nas suas fronteiras... Um homem justo e sábio, que saberá conduzir-nos à vitória...

Sentado atrás dela, Merlim viu o rosto de Ryderc iluminar-se. Por um instante, pareceu que o jovem rei se ia levantar para agarrar o colar de ouro de Ambrosius, mas a rainha voltara-se para outro que não ele.

- Guendoleu da Cúmbria, aceita este cordão de elmo - disse ela, com a voz a tremer-lhe um pouco. - Que a força do Urso e do Javali seja de novo o terror dos nossos inimigos.

 

A Lua estava cheia e alta, irisando o estuário com um clarão pálido que sobressaía sobre o escuro recorte das terras. As fogueiras atravessavam esta obscuridade desde os quarteirões baixos até às margens do rio, mas o vento vindo do mar levava para longe o ruído da cidade. Ryderc mandara embora os guardas para ficar sozinho, ruminar o seu rancor e amaldiçoar o céu. Submergia-o agora uma tristeza pesada, irreprimível, e ele deixava-se envolver por ela com um deleite mórbido. Doravante, os seus sonhos apagavam-se como as luzes das fogueiras durante a noite. Durante todos aqueles dias, fora necessário manter a postura, debater interminavelmente os planos que arruinavam os seus projetos, honrar Guendoleu durante os banquetes, dedicar-se a convencer os indecisos e até mesmo tentar deter aqueles a quem a autoridade do novo ríothime ou da rainha Aldan revoltava, e cada instante desses dias horríveis o apertava agora como uma tenaz de ferro em brasa. Ele era anfitrião e organizador do conselho dos reis. Desejara esta aliança mais que qualquer outro e, depois dos dados lançados, não pudera recusar-se a apoiar Guendoleu, sob pena de perder credibilidade. Mas, agora, a maioria dos clãs já partira. A noite tinha por fim chegado e os olhares já não pesavam sobre ele... Baixou os olhos para o anel que enfeitava o seu dedo mindinho. Um anel de ouro cravejado de turquesas, que Aldan lhe oferecera antes de partir, em sinal de amizade. A amizade de Aldan... De que valia, se ela tinha desfeito todas as suas esperanças! Raivosamente, tirou o anel do dedo com intenção de o atirar ao estuário, quando uma voz grave o fez sobressaltar-se.

- Desculpa, Ryderc...

O rei voltou-se de um salto. Iluminado pela luz fraca de um archote crepitando ao vento, Kentigem mantinha-se imóvel, demasiado longe para que ele pudesse ver mais do que uma silhueta escura destacando-se nas muralhas, mas o jovem enxugou rapidamente os olhos embaciados e fez um esforço para se recompor.

- Com a breca! Por onde andaste?

- Rezei - disse o abade.

Interrompeu-se, custando-lhe a recuperar o fôlego depois da subida da colina. O caminho íngreme e escorregadio que conduzia até ao forte superior era uma prova difícil para um homem da suaidade.

- Rezei, pedi perdão ao Céu pela minha falta de habilidade - continuou ele, por fim. - É tudo, seguramente, culpa minha. Se não tivesse falado...

Ryderc conteve-se para não deixar a onda de raiva que o submergia gritar na cara do abade o seu rancor e o seu ressentimento. Inspirou profundamente e virou-lhe as costas fechando os punhos nos toros das muralhas.

- Sei, no entanto, que a rainha Aldan se converteu a Nosso Senhor Jesus Cristo - continuou o abade. - Coloquei um dos meus monges perto dela. O seu confessor, o irmão Blaise, é da nossa ordem e...

- Para o diabo com o seu confessor! - gritou Ryderc. Dirigiu-se para Kentigem tão abruptamente que este recuou um passo. - Que me interessa que Aldan seja cristã! Que me interessa o teu Blaise, as tuas previsões e os planos do teu maldito Columbano de lona! Ouviste-os? Nada pode unir os clãs exceto a memória de Ambrosius. Que interessam as religiões, tudo o que eles querem é um novo Artur!

Os dois homens olharam-se insistentemente e, perante a calma do velho monge, o rei deu um longo suspiro de desânimo e abanou a cabeça.

- Afinal - disse, afastando-se. - Guendoleu ou outro...

- Não, Ryderc, não pode ser outro - retorquiu o abade com firmeza. - Compreendo o teu rancor, mas o futuro da Bretanha só se fará com Nosso Senhor, e tu és o seu braço armado, aconteça o que acontecer. Não é um plano, nem uma maquinação de palácio, mas o próprio sentido da história e da vida... Não percas a coragem, meu filho, e não duvides da tua fé.

O abade interrompeu-se, vendo que a atenção do jovem rei lhe escapava.

- O que é que tu queres? - perguntou, subitamente. Ryderc, como que apanhado em falta, dirigiu-lhe um olhar cheio de incompreensão.

- O que queremos todos, afinal? - insistiu Kentigem. - A paz, não é? A felicidade? Poder e glória também, sem dúvida, mas com que finalidade, senão a de pôr um fim a estas guerras incessantes? Um exército pode ser vencido, mas ninguém pode destruir um povo, sabes bem. A única coisa que pode garantir a paz entre nós é a aliança... Não te enganes quanto ao teu adversário, Ryderc. Os Gaélicos da Hibérnia ou do Dal Riada não são os nossos verdadeiros inimigos, e os próprios Pictos aderirão em breve à verdadeira fé.

- Ah! - lançou Ryderc com desdém.

- Os próprios Pictos - continuou o velho abade, obstinadamente. - Columbano encontrou-se com o rei Brude mac Maelchon, que se comprometeu a partir de então a acolher os seus missionários ou, pelo menos, a conceder-lhes a sua proteção. Jovens nobres do país Cruithni [18] estudam já em Iona para serem monges... É só uma questão de tempo... Amanhã, os Bretões, os Escotos e os Pictos não passarão de um só povo, o povo de Deus, unidos contra os inimigos da verdadeira fé! Não temos o direito de renunciar, meu príncipe... já está tudo em movimento, agora não podemos recuar.

De novo, Ryderc abanou a cabeça. A fadiga do dia abatia-se de uma só vez sobre os seus ombros. Tinha frio e só aspirava ao refúgio do sono.

- Entretanto - disse -, os teus amigos Gaélicos não param de assediar o litoral de Dyfed. Vai explicar à rainha Aldan que não são esses os seus verdadeiros inimigos!

- Os reinos da Hibérnia estão tão divididos quanto os nossos, e os Deisi Muman que se espalham pelos Sete Cantões nada têm em comum com o rei Conall dos Dai Riada - murmurou o monge, afastando o argumento com o gesto de desprezo. - O maior perigo, Ryderc, vem dos Saxões. São animais sem palavra, pagãos idólatras e assassinos. Não foste, tu próprio, quase morto pelos seus golpes, sem glória, na lama de uma pocilga?

O jovem rei acariciou com a ponta dos dedos o braço ligado, depois olhou fixamente para o velho abade. Durante um instante, perguntou-se quem teria lucrado com a sua morte...

- É preciso manter a fé, Ryderc. Subestimamos Guendoleu e a amizade que o liga a Aldan Dyfed. O velho rei Ceido e ele comportaram-se como pais para o seu bastardo, e ela parece dar importância a isso... Mas se Guendoleu morresse, eu...

- Isso surpreende-vos, meu pai?

Ryderc e Kentigem voltaram-se em simultâneo para a poterna do forte. A rainha Languoreth avançou para eles, inclinou-se para beijar a mão do prelado e depois encarou-os. Tinha desfeito o véu, e algumas mechas dos seus longos cabelos castanhos voavam na brisa marinha, escondendo-lhe uma parte do rosto, agarrando-se-lhe aos lábios. Enrolada numa capa vermelha, a cor real, estava descalça e não devia trazer por baixo mais do que uma camisa. Ryderc sorriu e puxou-a para si. Debaixo da capa, sentia o seu ventre arredondado e as suas formas, tão belas quanto os seios negros da sua querida fortaleza. Talvez nem trouxesse nada debaixo da capa...

- Porque é que uma mãe não daria importância ao seu único filho? - murmurou ela, sem olhar para o ancião, e estreitando-se um pouco mais contra o marido.

Kentigem aclarou a garganta e deu um passo para trás com um constrangimento manifesto que fez sorrir os dois.

- Esse Merlim é o filho do diabo! - insultou o abade. - Um bastardo ignorante, agarrado às velhas crenças. Um bardo sem interesse!

Languoreth tirou o braço nu para fora da capa para afastar os cabelos que lhe varriam a cara, e depois ergueu as sobrancelhas com um ar espantado.

- Ao que parece, não é a opinião de todos.

Voltou-se para Ryderc, afagou-lhe o rosto, e afastou-se no momento em que ele a ia beijar.

-...De qualquer forma não é a opinião de Guendoloena.

O rei ficou confuso.

- Que estás a dizer?

- Certamente não houve mais do que um beijo, mas ela chorou quando eles partiram... Emrys Myrddin não é um diabo, meu pai. Parece que é feito de carne e osso como nós. E bastante bem feito...

- Tu não sabes nada! - exclamou Kentigem, com um tom tão rancoroso que Ryderc se interpôs entre ele e a rainha. Imediatamente o bispo-abade baixou a cabeça e levantou as mãos, pedindo desculpa.

- Perdoai-me, minha rainha. Acreditai em mim, esse rapaz não tem o nosso sangue, não é como nós... Há certas coisas que devem continuar na ignorância, é preferível para toda a gente...

Ryderc suspirou de novo e afastou-se. Puxou para trás os cabelos molhados pelo chuvisco, alisou a barba e cruzou os braços, encostado aos toros.

- Estou cansado - disse ele. - Tenho a garganta rouca de tanta lengalenga e estou farto... Por mim, esse Merlim pode ser o filho do diabo se quiser, que não me interessa. Mas é o filho de Aldan, o príncipe herdeiro de Dyfed e o primeiro bardo de Guendoleu... Preciso pensar em tudo isso.

- Meu príncipe, não é altura para pensar. É preciso agir! - exclamou Kentigem. Guendoleu não pode conservar o cordão do elmo. É a vós que ele pertence!

- Sim, certamente - murmurou Ryderc.

Deu uma gargalhada triste e depois afastou-se da madeira úmida, agarrou a rainha pelo ombro e dirigiu-se para a poterna.

- Não devias ter saído com este vento... Tu e o bebê não devem apanhar frio.

- Então, aquece-me - disse-lhe ela ao ouvido, afastando um pouco a capa pesada para o estreitar contra ela.

Ryderc riu e abanou a cabeça. Efetivamente, ela não trazia nada por debaixo da capa... No momento de sair do forte superior, voltou-se para Kentigem.

- Sabes, abade... Se Guendoleu morresse, seria certamente para Merlim que iria o cordão de Artur!

Kentigem abriu a boca para responder, mas o jovem rei descia já para os seus aposentos. Uma rajada de vento fez crepitar os archotes e levou até ele o riso de Languoreth. Fez um movimento para se precipitar na direção deles, que refreou imediatamente. De que servia... Ryderc não estava em estado de o escutar, e talvez encontrasse nos braços da rainha um apaziguamento que a própria palavra de Deus não lhe podia trazer. Com um profundo suspiro, veio apoiar-se na paliçada de toros, no lugar exato onde o rei tinha estado alguns instantes antes. Como ele, contemplou a cintilação do estuário sob a lua cheia. A sua cólera desaparecia pouco a pouco, dando lugar a uma fadiga extrema. Dentro de si, agradeceu a Deus não ter insistido mais. Certamente teria falado demasiado.

- Não temos de lutar contra os homens, mas sim contra as forças invisíveis - murmurou. - Os príncipes das trevas que dominam o mundo...

Aquilo que a igreja sabia acerca de Merlim pertencia ao segredo da confissão. A confissão da rainha Aldan ao irmão Blaise, e depois a do monge ao seu bispo, quando sentira a necessidade imperiosa de aliviar a sua alma do terrível peso das revelações da rainha.

Acontecesse o que acontecesse, e a que preço fosse, era necessário que esse Merlim. do diabo não herdasse um dia o cordão real.

 

Ninguém falava, entre as tropas. Nem uma palavra, nem mesmo uma praga, enquanto conduziam os bois atrelados às carroças. Os homens caminhavam em silêncio, deitando por vezes um olhar ao chefe, impassível e melancólico apesar do cordão de ouro que brilhava no seu pescoço. O oscilar das armas, o martelar dos passos e o chiar do couro faziam uma música surda que mergulhava cada um deles em pensamentos sombrios. Sob o céu cinzento, o entusiasmo das primeiras horas transformara-se num pesado sentimento de angústia. Prontos a ufanarem-se da honra feita ao seu rei, os guerreiros da Cúmbria tinham saído de Dun Breatann como vencedores, mas a má disposição de Guendoleu e as severas chamadas à ordem dos sargentos mergulhavam-nos agora na perplexidade e no medo. Durante três dias, não tinham parado de beber, de comer e de se entregarem a toda a espécie de desafios absurdos, tendo-se prestado mais a cenas de pugilato do que a encontros corteses, e mal tinham dado pela partida dos guerreiros de Gwynedd, as cavalgadas raivosas e provocantes do bando armado liderado pelos sete filhos de Ellifer, as lanças erguidas, os gritos de guerra e as cruzes brandidas como auriflamas.

Tudo era diferente, hoje, e os boatos mais inquietantes circulavam de um lado ao outro da coluna. Dizia-se que o clã dos cristãos deixara o conselho dos reis, que os chefes de guerra de Gwynedd, Gurgi e Peredur não admitiam a autoridade de Guendoleu, que a rainha Aldan tivera de fugir para salvar a vida... E os olhares caíam sobre Merlim, seu filho, que cavalgava entre eles em vez de correr pelas montanhas, como à ida.

Consciente destes olhares, o jovem bardo pusera um sorriso de fachada, mas os seus olhos estavam ausentes e os seus pensamentos bem afastados das dúvidas deles. Não olhava para ninguém, nem para Guendoleu, nem para a tropa, nem mesmo para o caminho que ladeava o rio, deixando o cavalo conduzi-lo sem tocar nas rédeas. Com toda a sua alma, esforçava-se por manter a sua posição e pensar nas últimas palavras da mãe, mas não conseguia impedir-se de desviar o pensamento para Guendoloena, para os seus cabelos compridos flutuando ao vento, a fineza das suas mãos carregadas de pulseiras de prata cinzelada, a brancura da sua pele quando tinha entreaberto o vestido.

Os dois dias que se tinham seguido ao conselho dos reis marcariam para sempre a sua vida, apagando facilmente as horas penosas da audiência pública.

Até à noite, sentira-se posto de lado, impotente e revoltado, incapaz de se aproximar da mãe ou de Guendoleu, embora os tivesse visto no meio da tempestade. Como no momento em que o monge falara, os clãs bretões tinham-se dividido violentamente e aqueles homens que, algumas horas antes, festejavam juntos, enfrentavam-se agora com um ódio tal, que por várias vezes lhe tinham vindo as lágrimas aos olhos. A nomeação do novo Grande Rei mergulhara a assembléia num caos. Chefes de guerra que ele não conhecia, não medindo as palavras, lançavam frases insultuosas, davam murros na mesa e saíam uns atrás dos outros, enfraquecendo pouco a pouco, cada vez mais, a aliança bretã. E durante todo este tempo, até não se ver nada e ser preciso acender os archotes da sala grande, Guendoleu ficara calado, sem dizer uma palavra para se defender, convencer os seus adversários ou tentar retê-los. Por fim, ao cair da noite, os gritos tinham parado e a agitação do dia dera lugar a um abatimento geral, próximo da exaustão. Só então Guendoleu falara.

- Irmãos cymri, tudo quanto foi dito hoje honra e envergonha a ilha da Bretanha... Desde a morte de Arthus, vivemos sem chefe, para alegria dos nossos inimigos, e eis-nos agora mais divididos, mais amargurados do que nunca. Eu não sou Arthus, mas, por amor à rainha Aldan conduzir-vos-ei à vitória, se puder, ou morrerei ao vosso lado...

Dominando o auditório disperso, de onde se retirara já cerca de um terço da multidão que, algumas horas antes, se comprimia nas galerias, pegou o cordão de ouro do elmo de Ambrosius, afastou sem esforço as duas pontas e colocou-o ao pescoço. A luz dançante das tochas, o pesado colar entrelaçado pareceu-lhes feito de fogo, cintilando como brasas, e todos viram nisso um assombroso presságio. Um a um, os reis e chefes de guerra que tinham ficado vieram inclinar-se diante dele e estender-lhe a mão. Ryderc foi o último, mas também ele se curvou. Quando colocou um joelho no chão, Guendoleu levantou-o e apertou-o contra o coração. Depois, Aldan Dyfed ofereceu-lhe o seu anel, em sinal de afeto.

 

Não fora uma fuga, e de certo não temia pela sua vida. No entanto, as últimas horas tinham sido penosas e sentia-se esgotada. Mais do que tudo, queria reencontrar o mais depressa possível o isolamento da sua fortaleza de Caerfyrddin. A hostilidade de Rhun, de Peredur e dos chefes de guerra de Gwynedd não a surpreendera.

Fora nas terras deles, muitos anos atrás, que o seu marido Ambrosius derrotara Vortigem, fora nas terras deles que ele construíra a fortaleza que tinha hoje em dia o seu nome, Dynas Emrys, junto das montanhas dos Eryri. Além disso, as mais antigas lendas do país Cyrnru punham em confronto os Homens do Sul e os Homens do Norte. A história de Gwyddyon, sobrinho do rei Math de Gwynedd, que roubou e depois matou à traição o rei Pryderi de Dyfed, era algo que não poderia ser esquecido e que separaria sempre os Dois Reinos. Era assim desde o nascer dos tempos e certamente o seria para sempre... Mas, fosse qual fosse a força dos sete filhos de Ellifer e dos seus exércitos, e apesar do medo que a sua fúria guerreira provocava de uma ponta à outra da ilha da Bretanha, ninguém se poderia opor à aliança de Ryderc e Guendoleu, dos Manau Coddodin, de Rheged de Urien e de Dyfed.

Aldan partira de cabeça erguida, acompanhada até ao porto pelos três reis, os seus protegidos e os seus chefes de guerra, entre duas filas de guardas vestindo as capas vermelhas de Strathclyde. Merlim, perdido no meio do séquito de cortesãos, pensou que não voltaria a vê-la antes dos navios se fazerem ao mar. Desviava-se já da multidão, amargurado e com o coração afastava discretamente, pegou nas mãos do filho com ardor.

- Nem sequer tivemos tempo para conversar, Emrys... Mandei procurar-te, ontem à noite, sabes...

Merlim sentiu-se corar, e procurou em vão o que dizer..

- Não é uma censura - disse ela rindo. - Guendoloena é uma garota muito bonita, mas não te esqueças de que é irmã de Ryderc. Poderão encontrar-se casados antes mesmo de terem trocado um beijo!... A menos que já o tenham feito...?

Desta vez ele estava escarlate, e balbuciou umas palavras sem nexo que a fizeram rir a bom rir.

- Decididamente, tenho dificuldade em perceber até que ponto cresceste! Anda, vem... Está frio.

Arrastou-o pela mão para baixo de um guarda-vento de tecido, guarnecido com almofadas, onde se sentaram. Quando voltou a falar, todos os sinais de humor tinham desaparecido.

- Estou feliz por teres podido ver tudo isto - começou ela, num tom severo. - Assim compreenderás melhor o que representava Ambrosius, e até que ponto a tarefa que espera Guendoleu é enorme, cheia de perigos, e não só por causa dos Saxões e dos Gaélicos... Esses perigos ameaçam-te também a ti de agora em diante. Talvez até mais, visto que és meu filho...

O rosto de Aldan gelou-se durante um instante e Merlim julgou ver uma lágrima a brilhar-lhe no canto do olho. Ela hesitou, sorriu-lhe quase timidamente e desviou a cara.

- Sei que não fui boa mãe, Emrys... Mas não podes saber até que ponto é duro ser rainha. Se te tivesse mantido perto de mim... - Estendeu-lhe a mão e, com um sorriso triste, segurou-lhe o punho. - ...ter-te-iam morto, meu filho. Sim, ter-te-iam certamente morto.

Merlim sentiu-se aflito, incapaz de pronunciar uma palavra. Uma parte dele continuava, no entanto, a espreitar os movimentos dos marinheiros, a azáfama inquietante em redor das cordas e dos remos.

- Estou orgulhosa daquilo que te tornaste - continuou ela. - Sabes que falam de ti em Caerfyrddin?

- A sério?

- Merlim, o bardo! - disse ela, com uma pequena gargalhada. - Até os monges sabem agora o teu nome.

- Então, já não sou o filho do diabo! - riu-se ele, e imediatamente, ao ver a expressão da mãe, sentiu-se culpado. - Desculpai-me..

- Oh, não, sou eu quem tem de te pedir desculpas...

Aldan desviou o olhar, contemplou o estuário do Clyde e o vôo das gaivotas aos longo das margens rochosas.

- Um dia, terei de te falar do teu pai... Perdoa-me, mas hoje não tenho forças... Quando nos voltarmos a ver, talvez...

Então, ela não pensava levá-lo para Dyfed! Merlim sentiu-se, ao mesmo tempo, entristecido e aliviado. Apesar de tudo, relaxou, instalou-se mais confortavelmente sobre as almofadas e as mantas de pele e, como Aldan continuava silenciosa, pensou no que ela acabara de dizer e quis sossegá-la.

- Já sei tantas coisas sobre o meu pai... Aliás, quem não conhece Ambrosius, o Urso da Bretanha!

Aldan olhou-o com uma expressão brutal, quase raivosa.

- Não compreendes, jovem melro!? Será que fazes de propósito?

Merlim sentiu o coração apertar-se bruscamente. Aldan recompôs-se quase imediatamente, mas a violência da resposta tinha gelado a criança.

- Perdoa-me, estou muito cansada...

Fez um sorriso de desculpa quase instintivo, enquanto todo o seu ser se recusava a ficar por ali mais uma vez, vendo que as máscaras estavam prestes a cair.

- Não - murmurou Merlim, num tom hesitante. - Não compreendo...

- Não é nada, Emrys.

- Não é nada?

Pela primeira vez, Merlim olhou-a com indiferença. Uma raiva surda fervia dentro dele e começava a submergi-lo.

- Acho que chegou o momento, mãe. Não me fizestes vir a este barco para me falardes de Guendoloena, não é verdade?

Aldan deitou-lhe um olhar de esguelha, visivelmente incomodada com o rumo que a conversa estava a tomar.

- E então? - gritou ele

- Não levantes a voz quando falas comigo! Quem julgas que és?

- É justamente isso que gostava de saber... Sou Merlim, o bardo. Disso tenho certeza. Mas sou também o filho de Arthus e príncipe herdeiro de Dyfed, ou pelo menos foi nisso que sempre acreditei...

Agora, ele já não olhava para ela. Dava livre curso às palavras que até então tinham estado no mais profundo de si mesmo.

- Nunca ninguém me tratou como filho de rei, e até vós ficais feliz por me verdes como um simples bardo... Só me tratariam assim se eu fosse...

Hesitou em pronunciar o que lhe vinha aos lábios e fixou-a de novo com um ar perdido. Aldan estava estática, protegida por uma muralha de silêncio, erguida ao longo dos anos.

-...um bastardo.

Nos olhos da rainha brilhava o esboço de uma lágrima. Foi o seu único sinal de fraqueza.

- Então é isso - murmurou Merlim. - É claro. Isso explica muitas coisas. Ambrosius não é o meu pai, é isso? Dizei-mo! É isso?

- Não! - gritou ela bruscamente. - Meu Deus, não, o teu pai não é Ambrosius! Olha para ti! O que é que achas?

Merlim sentiu-se petrificado, a testa alagada em suor, a garganta com um nó, e olhou-a com um esgar de horror. Aldan enxugou furtivamente os olhos e quando o ousou enfrentar de novo, a expressão do filho perturbou-a profundamente. Estendeu-lhe a mão, mas a criança fez um movimento instintivo de recuo. Então ela afastou-se, também, e debaixo do guarda-vento de tecido, um silêncio mais glacial que o vento do alto mar instalou-se entre eles. Merlim baixou a cabeça, brincando maquinalmente com a correia do seu cinto, arvorando uma expressão obstinada, intransponível. Mais do que qualquer outra coisa no mundo, Aldan Ambrosia queria partir, levantar a âncora, sair o mais depressa possível de Dun Breatann e de toda esta confusão.

- Perdoa-me... O barco vai partir, temos de nos separar.

Merlim levantou-se de um salto, inclinou-se diante dela e fez um gesto para ir embora, mas ela segurou-o pela mão.

- Mantém a tua posição perto de Guendoleu, Emrys. Soubeste tornar-te outra pessoa, existires por ti próprio. É mais do que eu esperava... Volta coberto de glória e resgata o erro da tua mãe...

- Não compreendo...

- Meu pobre filho, como poderias? - murmurou ela, antes de lhe beijar a mão.

Merlim sentiu as lágrimas molharem-lhe a palma da mão. Teve imediatamente vontade de fugir, de deixar o navio o mais depressa possível.

- Cuida de Guendoleu e do cordão do elmo de Ambrosius - disse ela. - Não era teu pai, mas amava-te, apesar de tudo, como seu filho...

Largou-o e ele afastou-se, demasiado repentinamente para que ela não desse conta.

- Que Deus te proteja - disse ela.

Merlim sentiu-se ofendido.

- Deus? - desabafou ele, deitando-lhe um olhar gelado. - De que deus falais? Nunca receberei a comunhão desses monges de vestes longas. Não tenho nada em comum com eles!

Sem se virar para trás, deixou o guarda-vento, depois a ponte superior e, enquanto ele descia para a barca, Aldan mandou chamar o irmão Blaise.

- Fica com ele - ordenou. - Protege-o, pois não passa de uma criança e a sua cabeça está cheia de confusão. Guarda-o com vida e traz-mo de volta.

O pequeno monge empalideceu, mas obedeceu sem uma palavra e foi juntar a sua trouxa. Entretanto, teve de esperar que o barqueiro voltasse com a barca e, quando pôs o pé sobre a margem, Merlim tinha desaparecido. Durante alguns instantes, procurou-o com os olhos no meio da multidão de transeuntes, e depois os gritos da tripulação, a bordo do navio da rainha, atraíram a sua atenção. Ficou por momentos na margem, a vê-los com amargura içarem a vela e pegarem o vento, lentamente, sobre as águas calmas do Clyde. Proteger Merlim... Fácil de dizer. E quem o protegeria a ele? Furiosamente, afastou do seu caminho a populaça que atulhava as margens e subiu para a cidade. O acampamento dos homens da Cúmbria ficava um pouco mais longe na margem. Certamente encontraria aí esse maldito Merlim... No momento em que ia pôr-se a caminho, dois noviços abordaram-no.

- Meu pai, desculpai-me - disse um deles. - Sois o irmão Blaise?

- Sou.

- O meu senhor bispo Kentigem gostaria de falar convosco.

 

A procissão de cortesãos dispersara-se rapidamente, desde a aparelhagem dos navios de Aldan. Só tinham ficado alguns curiosos desocupados, um esquadrão de guardas e alguns pescadores para seguirem com os olhos as velas quadradas que subiam o estuário para alto mar. Merlim voltou-lhes as costas, partindo a grandes passadas na direção do acampamento dos guerreiros da Cúmbria, com a intenção de selar o seu cavalo e de fugir para longe da cidade, reencontrar o ar fresco das colinas altas e galopar até ser noite. Ao contornar o muro de pedras secas da primeira cerca, ergueu maquinalmente os olhos e foi aí que a viu, com o seu manto azul claro esvoaçando ao vento. Guendoloena não seguira o cortejo dos nobres até o embarcadouro. Quando o reconheceu, fez-lhe um sinal e desceu as muralhas a correr. Com o coração a bater, Merlim deitou um olhar em redor, hesitando em acreditar que aquele sinal lhe era dirigido, e depois, não vendo ninguém, avançou para o posto da guarda. Em plena corrida, ela atirou-se diretamente para os seus braços.

- Pensei... Pensei que tinhas partido para os Sete Cantões - disse ela, numa voz ofegante.

A corrida tinha-lhe corado as faces e despenteado os cabelos. Merlim levantou a mão para lhe afastar os cabelos da cara, mas apercebeu-se dos olhares divertidos em volta e conteve-se.

- Não partiria sem te dizer adeus - murmurou ele.

Ela olhou-o com um ar guloso, prendeu o manto nos ombros e contemplou o céu.

- Parece que hoje não vai chover. Se fôssemos buscar cavalos?

- Era o que eu ia fazer - disse ele.

Guardas com a capa vermelha de Strathclyde desciam pesadamente em direção a eles para escoltarem a princesa, mas os dois jovens escaparam rindo e perderam-se na cidade baixa. Esgueiraram-se em seguida até ao acampamento dos homens do Norte, onde guerreiros cúmplices lhes selaram montarias, dando cotoveladas a Merlim e insistentes piscadelas de olho.

Viveram dois dias maravilhosos, fora do tempo e do espaço, a galopar através do matagal, a encolherem-se nas suas capas enredadas ao cair da noite. Merlim sentia ainda nas mãos a pele frágil do seio dela, a curvatura das suas costas, a extraordinária suavidade dos seus longos cabelos negros. Tinham-se beijado interminavelmente, mais e mais, tinham-se acariciado com ternura e paixão e tinham adormecido abraçados. A meio da noite, tinham feito amor entre o sono e o sonho. Ainda hoje, ele continuava a ter uma recordação confusa, demasiado fascinado para acreditar verdadeiramente naquilo, e de manhã cedo, nem um nem outro tinham evocado os seus abraços. O amor deles inebriava-se de beijos e carícias, de conversas sem fim e de longos silêncios. Era daqueles que os bardos cantam, total e mágico, mais forte que as leis dos homens, as imposições dos clãs e das alianças, um amor de crianças, bem distante da triste realidade da idade adulta. Durante dois dias, tinham podido julgar-se sozinhos na Terra, não fazendo caso do que lhes poderia acontecer, desde que ficassem juntos. Dois dias a fazerem mil projetos, a reinventarem um mundo e a reinarem nele em paz. Dois dias a amarem-se de uma forma que recordariam durante uma vida inteira... E depois o conselho dos reis terminara.

Na manhã do terceiro dia, Guendoleu tinha levantado o acampamento. Merlim acordara em sobressalto, no meio dos preparativos da partida. Tinha corrido imediatamente até ao posto de guarda da fortaleza, mas as portas estavam fechadas e Guendoloena não estava visível em parte alguma.

Ainda hoje se sentia demasiado cheio de amor e de recordações carinhosas para sentir tristeza. Guendoloena estava dentro dele, cavalgando ao seu lado, e nada os conseguiria separar, nem mesmo as léguas que a tropa de Guendoleu percorrera desde a partida de Dun Breatann. Aqueles dois dias tinham lavado todo o rancor e toda a angústia que ele sentira ao deixar o navio de Aldan e, pela primeira vez na vida, sentia-se liberto do peso do seu nascimento. O isolamento da sua infância, o seu exílio na Cúmbria, a frieza da mãe, tudo se explicava, agora que ele já não era filho de Ambrosius... “Tornar-se outra pessoa”, dissera-lhe a mãe, “existir por si próprio”... Não era o que ele acabara de fazer? Não se tornara um homem, pelo menos aos olhos de Guendoloena?

Quando a coluna parou e viu os homens da Cúmbria deitarem as armas e as bagagens ao chão para montarem o acampamento, Merlim teve a impressão de ser arrancado brutalmente dos seus sonhos. Ficou confuso por instantes, enquanto todos se atarefavam à sua volta.

- Então, bonitão, vais ficar montado durante toda a noite? - lançou Cadvan, ao que foi respondido com gargalhadas de todos os lados.

Era verdade, o dia tinha passado sem que ele se tivesse percebido... Merlim saltou da sela, agarrou as rédeas da sua montaria e arrastou-a até um cepo ao qual outros cavaleiros tinham prendido os seus cavalos. Como eles, juntou lenha seca para a fogueira e levou a bagagem para um quadrado de erva mais ou menos seca. Em alguns minutos, a escuridão caiu por completo, à exceção das fogueiras ainda vacilantes erguidas pelos guerreiros. Comeram em silêncio, rapidamente, e depois os homens que não estavam de guarda enrolaram-se nos seus casacos e mergulharam num sono pesado.

Merlim não conseguia pensar em dormir, com a cabeça ainda cheia de Guendoloena e sem ninguém com quem falar. Deixou o grupo com o qual jantara e avançou até à fogueira do acampamento do rei.

Guendoleu saudou-o logo que o viu, e fez-lhe sinal para que viesse para junto dele.

- Nem tivemos tempo de nos ver, meu irmão. Cadvan disse que não perdeste tempo, em casa de Ryderc!

Sentado ao lado do rei, o gigante desatou a rir, apontando um dedo a Merlim, mas era sem maldade, e a criança não se sentiu ofendida.

- Parece que Ryderc não tinha previsto tudo quanto se passou em Dun Breatann - respondeu, sorrindo.

Houve um momento de surpresa, e depois Cadvan desatou de novo a rir, batendo nas coxas.

- Bem observado! Pelas Mães, bem observado!

- O príncipe Myrddin tem razão - murmurou o senhor Diwel, sério como de costume, e todos se voltaram para ele, exceto Merlim que, pela primeira vez, baixou a cabeça ao ouvir chamarem-lhe “príncipe”.

Com os cabelos tão negros quanto a noite, tão compridos quanto o dia e penteados com tranças de um lado e do outro da cara barbeada, Diwel era o mais velho dos chefes de guerra da Cúmbria, e também o mais escutado.

- Se Ryderc convocou a assembléia dos reis a tanto custo, não era com certeza para se submeter a nós - continuou, enfrentando o olhar sombrio de Guendoleu. - Eu digo que ele queria o título.

- Ele rendeu homenagem ao rei - protestou Cadvan.

- E que mais poderia fazer? Era nosso anfitrião.

Diwel voltou-se para o riothime, mas Guendoleu, com o olhar no vazio, contemplava as chamas, que atiçava distraidamente com a ponta de um pau.

Ceduit, que ainda não falara, deu bruscamente um pontapé numa acha, projetando um feixe de fagulhas na noite.

- Com os diabos, diz o que pensas!

Guendoleu lançou-lhe um olhar penetrante, mas voltou imediatamente a cair em si, e sorriu a Merlim.

- E tu, jovem melro, qual é a tua opinião?

Merlim fez um movimento de recuo. Sob o olhar dos mais velhos, sentiu as faces ficarem coradas.

- A bela Guendoloena disse-te alguma coisa? - insistiu Cadvan, dando uma cotovelada ao senhor Diwel (o qual apreciava pouco uma tal familiaridade).

- Guendoloena disse muitas coisas, grande urso - respondeu Merlim -, mas não tivemos tempo de falar do irmão dela.

- Ah!

- No entanto, Ryderc é cristão - continuou ele. - E Kentigem é o seu monge. Creio que o senhor Diwel tem razão. Ryderc queria certamente que nos uníssemos sob a bandeira do seu deus...

- A tua mãe também é cristã - precisou Guendoleu.

- Eu sei.

O rei deu um longo suspiro, levantou os olhos para a lua e, puxando para si as pontas do seu casaco de peles, ajeitou-se contra a sua sela.

- Estás enganado - disse. - Estais ambos enganados, aves de mau agouro... Ryderc é o mais exposto de todos nós. O seu reino faz fronteira com as terras pictas e as do Dal Riada. Sem aliança, está perdido. Foi por isso que convocou a assembléia...

Ninguém respondeu, mas os guerreiros trocaram olhares de dúvida. Um a um, imitaram o seu chefe cobrindo-se com as capas, e o silêncio da noite instalou-se entre eles.

Ao terceiro dia de cavalgada, quando entravam na Cúmbria e Merlim conversava com o rei, um cavaleiro de capa vermelha alcançou a coluna. O homem estava coberto de lama e pó, e o seu cavalo brilhava de suor.

- Procuro o rei Guendoleu! - gritou numa voz rouca.

- Guendoleu escuta-te - disse Cadvan, avançando com o cavalo para ele. - Quem és tu?

- Sou Amig, da casa de Ryderc - disse o homem, olhando-o com uma expressão que mostrava bem que não era parvo. - O rei enviou-me para implorar a vossa ajuda!

Guendoleu esporeou o cavalo e foi até ao mensageiro.

- Que se passa?

O homem teve um sobressalto ao ver o cordão de ouro brilhante no seu pescoço, saltou do cavalo e colocou um joelho no chão.

- Os Gaélicos desembarcaram em Dun Breatann, senhor. A cidade está em chamas.

 

É uma prova dura percorrer em sentido contrário um longo caminho já feito, quando estamos quase a chegar ao destino. Ainda o era mais para Guendoleu e os seus homens, que voltavam a subir em marcha forçada através do reino das Planícies Cultivadas em direção ao forte de Dun Breatann, sem saberem os perigos que os esperavam e, além disso, com a sensação cruel de que estavam a correr para a catástrofe. Amig partira logo em seguida, aceitando somente trocar de cavalo, e a sua partida precipitada privava-os de qualquer outra informação mais. Quantos Gaélicos eram? E de que clã? Onde estava Ryderc e o seu exército? Tinha mandado buscar outros reforços? De novo, tinham sido colocados cavaleiros em defesa do flanco, para cobrirem as colinas, e de novo Merlim conseguira estar entre eles. Isto já não tinha nada de brincadeira ou de escapadela descuidada, quando a todo o momento esperavam ver o fumo dos incêndios ou serem submergidos por uma matilha aos gritos surgida das florestas.

Os homens da Cúmbria não eram mais de duzentos, pouco mais que uma escolta, num número demasiado reduzido para enfrentarem um bando de Gaélicos sedentos de glória e de pilhagens, e ainda menos um exército de conquista. Mas, apesar disso, como poderiam não obedecer ao apelo de Ryderc? Guendoleu, a Cúmbria, bem como o conjunto dos seus guerreiros teriam perdido a face para sempre, e esta perspectiva era-lhes mais insuportável do que a derrota no campo de batalha, a captura ou a própria morte. O rei enviara cavaleiros para as terras de Urien Rheged e outros para as suas próprias praças fortes na Cúmbria, para que reagrupassem forças dignas desse nome, mas seriam precisos dias para reunirem os grupos convocados para a guerra. De momento, os Bretões estavam sozinhos, caminhando para o seu destino sem nenhum vestígio daquela exaltação febril que animava habitualmente as suas incursões guerreiras.

Rapidamente, homens e animais ficaram esgotados. Chovia sem parar e nunca descansavam o tempo suficiente, nem de dia nem de noite, para secarem as botas e os casacos ensopados. Não paravam o tempo suficiente para caçarem e comerem qualquer coisa quente, nem o tempo suficiente para que os atrasados e os cavalos mancos se juntassem à coluna. As montarias que só traziam os seus cavaleiros fungavam e tinham de ser esporeadas, arrastadas ao mínimo obstáculo. Merlim começava também a sentir o frio, a fome e o cansaço desta corrida lúgubre pela honra.

Na manhã do segundo dia, após a vinda de Amig, atravessaram a vau o rio Liddal e avançaram sobre a planície de Arderydd, uma grande clareira no coração da grande floresta caledoniana, em frente à muralha dos Romanos. Fazia frio. A erva alta e alagada de chuva parecia vomitar camadas de um nevoeiro opaco, penetrante, que impregnava os seus fatos e salpicava as armas, os escudos e os capacetes de um chuvisco gelado. A cada passo, enterravam-se num lamaçal pantanoso, como se a terra negra e pegajosa quisesse retê-los ou atraí-los mais depressa para ela...

Merlim, que caminhava no flanco da coluna, segurando o seu cavalo exausto pelas rédeas, parou de repente e susteve a respiração, com os sentidos alerta. Segurou os cabelos na nuca para ouvir melhor, escutou durante bastante tempo, depois saltou para cima da sela e esporeou o cavalo.

Como se fosse um homem só, a tropa parou ao vê-lo partir a galope, e quando ele se encontrou, por sua vez, envolto em nevoeiro, cada um deles arrebitou a orelha. Ouvia-se um rumor surdo, para leste. Nada de muito definido, mas eles serraram instintivamente fileiras e cobriram-se com os seus compridos escudos ovais. O coração batia mais depressa, os braços formigavam, as mãos tremiam agarrando o punho da espada ou o cabo do machado. Depois, o barulho da galopada interrompeu-se bruscamente. Em breve, não houve mais que o silêncio pesado do nevoeiro.

No entanto, Merlim estava muito próximo, e tinha parado a sua montaria a algumas dezenas de toesas dali. Apoiando-se sobre o pescoço do cavalo, tinha se içado para tentar atravessar a cortina cinzenta que escondia a planície, mas não distinguiu mais do que a massa sombria, difusa e ameaçadora da grande floresta. O ruído pesado, em contrapartida, tornava-se cada vez mais claro, uma espécie de choro modulado, estridente e contínuo, semelhante ao gemido duma banshee [19] portadora de maus agouros. Pouco a pouco, o som tornou-se ritmado e a atroz lamentação precisa. Ele ouvia agora os passos de um milhar de cavalos, o martelar dos tambores de guerra, o gemido pavoroso das trompas, e, franzindo os olhos até chorar, viu a frente imensa de um exército em marcha contra eles, enchendo toda a planície de Arderydd, entre os rios Liddal e Carvinolaw...

- Os Gaélicos! - gritou Merlim, voltando o seu cavalo em direção à fraca tropa de Guendoleu.

Na altura em que se juntou a eles, todos os cavaleiros bretões tinham saltado das selas, para se reagruparem atrás dos peões, comprimidos numa massa compacta por trás do muro dos seus escudos. Contornou a débil linha e galopou até o Grande Rei.

- São centenas! - anunciou, tentando controlar a sua voz. - Milhares, talvez, e milhares de cavalos!

- Controla-te! - grunhiu Cadvan. - Como é que os Gaélicos vindos por mar poderiam ter transportado milhares de cavalos?

- Talvez os tivessem tomado de Ryderc - disse o senhor Diwel.

-...A menos que não sejam Gaélicos - murmurou Guendoleu.

Cadvan e os outros olharam-no com um ar interrogativo, mas ele não disse mais nada, e sem lhes conceder um olhar avançou a sua montaria, a passo, através da massa dos seus guerreiros. Os homens afastaram-se à sua passagem e seguiram-no com os olhos até ele não ser mais que uma silhueta imprecisa na bruma. Cada um deles podia agora ouvir o choro das trompas e o barulho dos tambores. Subitamente, o barulho duma galopada através do rio Liddal fê-los voltar os olhos para trás.

O martelar dos cascos desapareceu rapidamente, sem que eles tivessem tempo de ver o que quer que fosse, mas era evidente que uma segunda tropa viera cortar-lhes a retirada. Sem mesmo esperarem as ordens, desdobraram-se sobre os dois lados, recuando até a arredores da floresta.

- É uma cilada! - gritou Ceduit, quando o rei voltou para o meio deles. - Fomos atraídos para uma cilada!

- É preciso fugir para os bosques - disse Merlim - dispersarmo-nos e tentarmos voltar a passar o rio mais longe!

Guendoleu olhou para ambos, abanou a cabeça com um sorriso triste e tirou o seu casaco, pesado da chuva e da lama.

- É certamente o que eles querem - disse, olhando a insondável floresta que se estendia atrás deles, tão densa e cheia de silvas, que para nela tentarem encontrar refúgio seria necessário abandonarem cavalos e carroças. - Nenhum de nós sairia de lá vivo...

O rei contemplou longamente o céu encoberto e depois, arrancando-se bruscamente do torpor mórbido que se tinha apoderado dele, empinou o seu cavalo e recuperou o seu tom de comando.

- Ceduit! Diwel! Que os vossos homens saiam da linha e vão cortar varas! Cadvan, tu mandarás plantá-las à nossa volta, com lenha seca e silvas. Despachem-se. Enquanto a bruma nos proteger, eles não atacarão.

Os chefes de guerra obedeceram imediatamente, e algumas ordens bastaram para porem a tropa assustada em ação. Abandonando no local bagagens e escudos, uma vintena de homens correu para a floresta, de machado na mão. E enquanto, pouco a pouco, se erguia em volta da tropa uma sebe de lenha seca, varas grosseiramente cortadas e silvas, Guendoleu aproximou a sua montaria da de Merlim.

- Ceduit tem razão - disse ele, suficientemente baixo para que só o jovem bardo o ouvisse. - É uma cilada... O maldito Amig atraiu-nos para uma cilada...

- Tu crês... Tu crês que Ryderc nos traiu?

Guendoleu voltou para a criança o seu rosto cansado.

- Não quero acreditar nisso, meu amigo.

- Mas... Porque o faria?

Uma rajada súbita de vento reteve a resposta do riothime. Ergueu de novo os olhos para o céu. Um sol pálido atravessava nuvens de bruma, que o vento empurrava inexoravelmente.

- Isso já não tem importância...

Já o nevoeiro se apagava diante deles, desfiando-se e revelando aos poucos os arredores da triste posição em que se encontravam. Guendoleu levou a mão ao pescoço, acariciou o cordão de ouro que pesava sobre as suas clavículas e voltou-se de novo para Merlim. Não disse nada, mas o gesto traía os seus pensamentos.

- Não é possível - murmurou Merlim. - Não Ryderc...

Nesse momento, a algazarra infernal dos tambores e das trompas cessou subitamente, e esse silêncio abrupto apavorou-os ainda mais.

Quase imediatamente, captaram um rugido estridente.

- Protejam-se!

Uma nuvem de flechas surgiu do céu e abateu-se sobre eles como uma tempestade. Enquanto os homens se cobriam com os seus escudos, Merlim manteve-se rígido e baixou a cabeça, petrificado, incapaz de reagir. Ouviu o choque surdo dos dardos espetando-se no chão, à sua volta, os gritos dos homens atingidos, a gritaria longínqua do exército dos Gaélicos lançando-se em combate e os uivos furiosos dos seus cães de guerra. Então, levantou-se, feliz por estar ainda vivo. Perto dele, o cavalo de Guendoleu curveteava, e o seu dono, agarrado ao seu pescoço, parecia não conseguir controlá-lo. Isto não durou mais do que um instante. O rei agarrou de novo as rédeas e levantou-se. Com horror, Merlim viu a ponta negra de uma flecha espetada no ventre do Grande Rei, como que surgida da sua túnica de malhas. Guendoleu partiu-a, e depois desembainhou a sua comprida espada de lâmina dupla.

- Morrei com honra, bravos guerreiros da Cúmbria! - gritou, fazendo a sua montaria avançar. - E que, por cada um de nós, dez desses porcos nos acompanhem!

Surgiram dos últimos bancos de bruma, numa horda selvagem, cobrindo quase toda a largura da planície de Arderydd. Eram Gaélicos, Escotos, na realidade, trazendo as insígnias do velho rei Conall do Dal Riada. A galope, cada cavaleiro transportava, agarrado à sua cela, um ou dois combatentes a pé que arremessavam diretamente contra a sebe, como uma onda furiosa quebrando-se sobre os rochedos. A algumas toesas de Merlim, um deles veio empalar-se numa das varas mal talhadas, e assim ficou durante muito tempo, incapaz de se arrancar da estaca que o desventrava, batendo os braços e os pés, e gritando com uma voz muito aguda, quase ridícula, o rosto deformado pelo terror da morte.

Imóvel no tumulto, Merlim contemplava a atroz agonia do Escoto, enquanto, à sua volta, a onda de ataque submergia as fracas defesas dos Cumbrianos. No espaço de alguns segundos, o mundo parecia ter entrado no caos. Com as mãos crispadas nas rédeas, agitadas de tremores incontroláveis, viu cair homens que conhecia havia muitos anos, tão fortes e terríveis de aparência que sempre lhe tinham parecido imortais. Isto não se assemelhava em nada às justas de treino em que participara, no espaço aberto de um recinto cercado, com espadas de madeira. Aqui, não havia habilidade, nem finta, nem destreza, nem passe de armas, somente um encarniçamento louco, o pavoroso frenesi cego de homens aterrorizados desferindo golpes ao acaso, como dementes, gritando com toda a força.

Cadvan passou diante dele, elevando-se acima do combate com a sua estatura, e gritou-lhe qualquer coisa que ele não entendeu. Então, o gigante baixou-se, apanhou uma pedra e atirou-lha com raiva.

- Pelo menos defende-te, grande idiota! Pega a tua funda!

Merlim saltou do cavalo, com o braço ainda dorido no lugar onde a pedra o tinha atingido. Agarrou, tremendo, na correia de couro pendurada à sua cintura e caiu de joelhos à procura de projéteis. O primeiro que encontrou foi a pedra de Cadvan, a qual pesava bastante na extremidade da sua funda. Merlim fê-la rodopiar primeiro sobre o lado depois por cima da cabeça, e apontou a um cavaleiro que avançava já a sua montaria para lá das silvas. Com um grito de lenhador, lançou a pedra, atingindo-o em plena cabeça. O homem perdeu a espada, escorregou para traz, ficando a descoberto. Imediatamente, uma lança bretã trespassou-lhe o ventre.

Merlim ainda tremia, o corpo inteiro agitado de espasmos, mas colocou uma segunda pedra, depois uma terceira, uma e outra vez, gritando a cada golpe, saltando de alegria como um louco, sempre que atingia o seu alvo, e caindo depois na lama do campo encharcado, para procurar febrilmente no chão um calhau suficientemente grande e cortante. Nem o tempo nem o medo tinham influência sobre ele, e foi com assombro, um assombro total e embrutecido, que descobriu de repente que não tinha mais alvos a visar e que os Escotos batiam em retirada, ao som das suas trompas de guerra.

Não se ouviu um grito de vitória entre os Bretões, nenhuma perseguição, nem insulto algum lançado aos fugitivos. Diante deles, algumas varas continuavam em pé, como suportes sinistros, mas o resto desaparecera, tendo sido esmagado sob a carga dos Escotos, enterrado debaixo da massa dos corpos massacrados. O homem que se empalara debaixo dos olhos do jovem bardo continuava ali, inerte e com os braços a balouçar, mantido em pé por uma estaca que o tinha atravessado de lado a lado, até que as linhas deles se desfizeram e um dos Cumbrianos o atirou ao chão com um pontapé.

Uns atrás dos outros, os guerreiros recuaram, e o que Merlim descobriu, então, ultrapassava em horror tudo quanto ele teria podido imaginar. Os escudos rasgados, partidos, pingavam sangue. As mãos, os braços e as caras estavam salpicados dele. Ainda ensurdecido pelo tumulto do combate, Merlim percebeu gradualmente os gemidos dos feridos, ao longo de todo aquele cemitério. Para onde quer que olhasse, via corpos amontoados, formando parapeitos macabros. Aqui e ali, pavorosos vestígios humanos estavam estendidos pelo chão, por vezes agitados de espasmos; cabeças cortadas, braços segurando ainda uma arma e, por todo o lado, homens caídos, esmagados ou gritando no meio do Sangue, chorando na erva pisada ou na lama gelada. Por todo o lado, cães e cavalos desventrados, lastimosos.

Os sobreviventes, petrificados, constituíam uma visão medonha, marcados por centenas de feridas tão terríveis que só se conseguia olhar para eles com horror. Caíam repentinamente, semelhantes a bois sob o cutelo do carniceiro, quando descobriam os seus corpos dilacerados.

Sem uma palavra, alguns percorriam o campo de cadáveres para acabarem com os feridos com um golpe de lança, apesar das súplicas, dos insultos ou dos gritos de raiva. Por vezes, era um dos seus que eles matavam assim, quando o seu estado não deixava nenhuma esperança, e o mais horrível era ver homens mutilados, mais mortos do que vivos, erguerem-se como podiam para escaparem a este fim miserável e continuarem a viver, nem que fosse por mais uns instantes... Nenhum deles esperava outra escapatória a não ser este miserável adiamento. A maior parte dos cavalos estavam mortos ou tinham fugido. Tinha-se formado uma horda que galopava através da planície como uma manada desvairada. O cavalo de Merlim estava certamente entre estes, levando com ele os seus únicos tesouros, a sua harpa e a sua varinha de prata. A criança nem sequer tinha consciência disso. Ao longe, o exército dos Escotos voltava a formar-se para um segundo ataque, a menos que se contentasse em submergi-los com flechas, até que os Bretões ficassem desnorteados e se lançassem eles próprios ao encontro da morte...

Merlim caíra de joelhos, sujo de lama e debulhado em lágrimas, quando Diwel se veio agachar a seu lado.

- Estás ferido?

A criança ergueu para ele os seus olhos embaciados. Apesar do sangue que lhe salpicara a cara, os braços, a túnica, Diwel sorria, horrível de ver...

- Estás bem? - insistiu ele.

Merlim abanou a cabeça e o guerreiro ajudou-o a levantar-se.

- Portaste-te bem, jovem melro. Pelas Mães, mataste mais do que eu, com as tuas pedras!

E desatou a rir, o que deu ao bardo vontade de vomitar. As pedras tinham matado... Era uma evidência que, até então, ele conseguira não formular. Um encontrão, e depois Diwel afastou-se para ir ter com os seus homens.

- Continua a juntá-las, eles vão voltar!

Merlim olhou em volta, inclinou-se e começou a remexer a terra à procura de projéteis, mas os seus dedos ficaram manchados de sangue. Largando a sua funda, limpou-se furiosamente à túnica e, depois, desembainhou a adaga, subitamente animado por um brusco ardor assassino. Que viessem, então, já que isto não bastava. Que viessem e que morressem! Que morressem ou o matassem, mas que tudo aquilo terminasse!

Nesse mesmo instante, um grito soou do outro lado da planície.

- Guendoooleuuu!

Como todos os outros, Merlim procurou o rei com os olhos. Descobriu-o estendido, sustido por Cadvan e com dificuldade em se levantar.

- Guendoleu Ceido!!

Quando brandiram os seus estandartes com cabeça de dragão, cada um dos cavaleiros espalhados ao longo do Liddal sentiu a mesma sucessão de sentimentos: estupor, incompreensão, ódio, pavor. A tropa que lhes cortara a retirada graças à bruma, e que assim se dava a conhecer antes da execução final, era o bando armado dos filhos de Ellifer, companhia atroz e sanguinária, cujas façanhas de armas e as atrocidades faziam estremecer a ilha de uma ponta à outra. Bretões cristãos das montanhas de Gwynedd, comandados por Peredur e o senhor Gurgi. Para aqueles que ainda duvidavam, a armadilha revelava-se em toda a sua abjeta simplicidade.

- Venham, traidores sem honra! - gritou Cadvan. - Venham morrer, lacaios pérfidos, falsos e perjuros!

- És tu, Cadvan? - gritou uma voz ao longe. - Cadvan o forte, Cadvan o fanfarrão? E se viesses combater, cão da Cúmbria?

O gigante ajudou Guendoleu a levantar-se. Quando, por fim, conseguiu, olhou para Merlim, e este precipitou-se para segurar o rei no lugar dele. Esmagado sob o seu peso, o jovem bardo sentia cambalear aquele que tinha sido ao mesmo tempo o seu único amigo, pai e irmão. A sua cota de malha em aço estava desfeita, escorrendo sangue de vários lugares, o pedaço de flecha continuava a aparecer no seu ventre, e o seu rosto estava marcado de golpes. Mas o cordão do elmo de Ambrosius continuava a brilhar no seu pescoço, e a sua mão continuava a segurar a sua espada comprida.

Merlim viu Cadvan apossar-se de um dos raros cavalos que tinham ficado no recinto de silvas, afastar as filas de sobreviventes e avançar na planície ao encontro de um cavaleiro que não reconheceu àquela distância. Depois, as linhas dos Cumbrianos voltaram a formar-se diante dele. Não ousava mexer-se, segurando firmemente Guendoleu, na certeza de que ambos cairiam se tentasse dar o menor passo. Houve um breve ruído de galopada e os homens puseram-se a gritar, encorajando Cadvan e amaldiçoando o seu adversário, aclamando cada golpe, comentando o combate como se não fossem todos morrer nesse dia... Merlim, infelizmente, já não estava em estado de seguir o confronto. Debaixo do peso do rei, os seus ouvidos zumbiam, pontos brancos dançavam-lhe diante dos olhos e as suas pernas começavam a tremer. Petrificado com a idéia de falhar a sua tarefa, esqueceu o tempo e o lugar, quando a voz débil de Guendoleu o arrancou da sua retração.

- Estou contente por seres tu...

A criança sobressaltou-se, como se tivesse sido apanhada em falta. Reforçou imediatamente a sua ação, o que arrancou um gemido de sofrimento ao riothime.

- Torna a pôr-me no chão - murmurou Guendoleu. - As minhas pernas já não me sustêm...

Merlim obedeceu, com menos habilidade do que gostaria de ter tido, e caiu de joelhos ao lado do amigo. Com horror, percebeu que o sangue corria sem parar sobre o tronco e o ventre do rei. Quis levantar-se, pedir ajuda, mas Guendoleu reteve-o pelo braço.

- O cordão - sussurrou ele.

Levou uma mão ensanguentada ao pescoço.

- Toma... o cordão... Sê digno dele...

Ajoelhado a seu lado, Merlim olhou-o sem compreender, até que os olhos azuis do rei se imobilizaram para sempre. A sua cabeça pesava-lhe nas mãos e, em volta deles, os clamores imbecis redobravam, inconscientes do drama. A criança não podia mexer-se nem falar, o corpo e a garganta apertados e o espírito vacilante. Depois, como se o céu chorasse no seu lugar, começou a chover, primeiro calmamente, e, depois, cada vez com mais força.

As gotas batiam no rosto de Guendoleu, nos seus olhos abertos, nos seus lábios inchados, escorriam pelos seus cabelos e pela sua barba, levando com elas o sangue e a lama do campo de batalha. Ficaram rapidamente ensopados, tão imóvel e tão morto um quanto o outro. E ninguém percebera nada.

Subitamente, os homens redobraram as aclamações. As suas fileiras desfizeram-se eles precipitaram-se para a frente para trazerem Cadvan em triunfo. Era ensurdecedor, apesar do martelar da chuva. Todos aqueles gritos, aquela agitação... Merlim ergueu a cabeça e viu as suas caras alarmadas, deformadas, enrugadas. Nesta algazarra de loucos, viu-os formarem fileiras à pressa e, quase imediatamente, os cavalos de Gwynedd embateram como uma lâmina contra os seus escudos, varrendo desta vez tudo quanto lhes estava na frente.

Então, o jovem bardo soltou-se, colocou cuidadosamente a cabeça de Guendoleu no chão, e depois afastou com as duas mãos o cordão de ouro preso em volta do pescoço dele. O pesado colar tinha a largura de um polegar, entrançado em todo o comprimento e terminava em duas esferas finamente trabalhadas, representando um urso e um javali, símbolos de força e de poder.

Sem refletir, Merlim colocou o cordão ao pescoço e fez força nas hastes até o fechar completamente. O colar pesava sobre as suas clavículas, tão incômodo quanto um jugo, e ele pensou que este peso, suportado antes dele pelos dois homens que tinha considerado como pais, lhes devia lembrar permanentemente o peso do cargo...

Ainda de joelhos, atirou para longe a sua adaga, apoderou-se da espada de Guendoleu, e depois levantou-se, subitamente calmo, e contemplou com indiferença o caos que o rodeava. Não havia mais nada a esperar senão a morte. Tão rápida quanto possível, para uma criança apanhada no meio de uma luta de bestas, cujo menor golpe o podia partir ao meio.

Ao contrário deles, não trazia nem armadura de malha, nem elmo, nem escudo, nem sequer uma cota de malha em couro debaixo da túnica de lã. No entanto, avançou para o combate, semelhante a um pé de erva maltratado pela torrente, desferindo golpes sem ver o que atingia, empurrado, atirado ao chão, levantando-se mais uma vez e batendo sempre, segurando com as duas mãos a espada do rei, como um chuço, até os braços lhe doerem. Ao abrigo dos seus longos escudos de madeira, os guerreiros da Cúmbria formavam agora um muro que os cavaleiros de Gwynedd já não conseguiam quebrar, passado o ímpeto da primeira carga. Incapazes de dominar as suas montarias assustadas, apertados de todos os lados e empurrados por aqueles que vinham atrás, estavam presos na confusão do combate, expondo o ventre dos cavalos aos bretões. Os animais abatiam-se uns atrás dos outros com pavorosos relinchos de agonia, condenando os seus donos a uma morte vergonhosa, pisados, esmagados debaixo dos cascos ou despedaçados com um golpe de machado. Os Cumbrianos não eram mais de uma mão-cheia, e teria bastado ao bando de Ellifer bater em retirada para os revelar em toda a sua fraqueza, incapazes de conter um novo assalto, mas a estranha honra do campo de batalha ordenava que se continuassem a encarniçar, apesar das perdas enormes, até subjugarem pela força o último quadrado de sobreviventes.

Quase ao mesmo tempo, dois homens caíram de um e de outro lado de Merlim e ele encontrou-se subitamente nu, exposto às lanças inimigas. A criança teve um momento de extrema lucidez, descobrindo, ao mesmo tempo, as carantonhas deformadas dos assaltantes, os olhos horrorizados e a baba dos cavalos puxados pelos freios, e o flanco descoberto de um cavaleiro, no momento em que levantava o machado para o atingir. Então, mergulhou, enterrou a lâmina com um grito demente, empurrando-a com todo o seu peso para a fazer penetrar mais profundamente as carnes, e foi um momento de plenitude, de alegria selvagem, catártica, quando o homem se afundou no campo de mortos. O instante não perdurou. Mal desenterrara a sua espada, já um pontapé o atingia na têmpora e o projetava por terra. Rastejou pelo chão, a vista turva e o coração transtornado, obcecado com a idéia de se levantar e morrer de pé, como devia ser. O seu adversário atravessara as linhas, ou o que restava delas. Saltou do cavalo e atacou-o de novo, antes que pudesse levantar-se. Merlim voltou-se e viu-o, erguer o chuço, mas, quando os seus olhares se cruzaram, o guerreiro de Gwynedd interrompeu o seu gesto e imobilizou-se. Tinha no rosto uma expressão estranha, de indecisão, de alegria e de crueldade misturadas, e durante longos segundos pareceu hesitar em dar o golpe fatal. Merlim rastejava de costas, mas o guerreiro avançava sobre ele, dardejando-o com a lança para o manter à sua mercê, procurando com os olhos um apoio, uma ordem, talvez, em vez de o matar. Por um breve instante, Merlim escapou à sua vigilância. Rolou sobre o ventre, levantou-se de um salto e concentrou toda a sua energia num golpe que atingiu a lança do cavaleiro, sem a quebrar. Não passou de um pequeno descanso, mas pôde levantar-se e, brandindo diante de si a pesada espada do rei, conseguiu manter o montanhês de Gwynedd à distância.

- Larga isso, fedelho! - gritou este último. - Fica no chão e viverás!

Como resposta, Merlim atingiu-lhe a lança com todas as suas forças. O ferro cortou a madeira. Não estava partida, mas o cavaleiro deitou-a ao chão e agarrou no machado que trazia debaixo do cinto, com um riso mau. De novo, a criança fendeu, mas desta vez o montanhês estava preparado. Enquanto a espada de Guendoleu fendia o ar, o homem rodopiou e abateu o seu machado com uma força espantosa. No momento em que a espada, não encontrando mais do que o vazio, se espetava na terra, o machado atingiu a lâmina debaixo do punho, e partiu-a nesse mesmo instante.

Merlim continuava a recuar, com o braço tão dorido que tinha vontade de chorar. A orla da floresta não estava a mais de alguns passos. Diante dele, o cavaleiro hesitava, balançando o machado e deitando frequentes olhares para trás, sem conseguir tomar uma decisão. Finalmente, não aguentou mais e chamou.

- Aqui, Gwynedd! Está aqui!

Tinha-se voltado e a criança aproveitou para se lançar em frente e desferir um golpe de estoque, mas o guerreiro esquivou-se com facilidade e, mais uma vez, o pedaço de espada só encontrou o vazio. Com um empurrão, conseguiu fazer com que a criança se desequilibrasse. Merlim. rebolou no chão, chorando de raiva, de exaustão e de humilhação, tanto o homem se ria agora dele...

- Então, jovem melro, já não te aguentas nas pernas? Estás a chorar? Queres a tua mãezinha?

Deu-lhe um pontapé desdenhoso. Demasiado desdenhoso. Merlim atirou-se a ele, e o gládio partido enterrou-se profundamente na virilha do cavaleiro. O homem gritou e caiu de joelhos, depois rebolou pelo chão e Merlim golpeou, segurando a espada como uma faca, repetidamente, até que o homem parou de gritar.

Quando levantou a cabeça, sem fôlego, estavam ali, em volta dele, talvez uma dezena de homens. Nenhum deles tentara vir em socorro da sua vítima.

- Rende-te, pequeno - disse um deles, um louro desgrenhado cujos cabelos compridos e sujos desciam quase até à cintura. Avançou, de espada na mão, e Merlim colocou as suas últimas forças num reverso que assentou em falso a lâmina e lhe entorpeceu o braço até ao ombro. O homem, no entanto, recuou.

- Ele tem o cordão - disse, entredentes, um cavaleiro que tinha chegado por trás deles.

- Bem vejo que ele tem o cordão do elmo! - gritou o louro.

- Queres tirar-lho?

- Porque não?

O cavaleiro pôs a sua montaria a trote e, antes que Merlim conseguisse afastar-se, atirou-o ao chão com um golpe seco da ponta da lança. Com o embate, a criança perdeu o que lhe restava da espada do rei.

Faziam círculo à sua volta, lançando-lhe encorajamentos, rindo e fazendo grandes gestos. Mal ele se tentava levantar e atacá-los, paravam os seus ataques com os escudos e depois atiravam-no ao chão como uma boneca de trapos. Merlim sentia o seu raciocínio vacilar. Porque não o matavam, em vez de o tratarem assim? Não merecera, pelo menos, a honra de uma morte decente?

Subitamente, um grito estridente, pavoroso, furou-lhe os ouvidos e fê-los recuar um instante, sem que percebesse que era ele quem gritava assim, com um voz inumana, aguda e tão potente que era dolorosa.

- Acabemos com ele! - gritou um deles.

E o homem avançou para, finalmente o atingir.

Nesse instante, uma saraivada de flechas jorrou da orla e pregou-se nele. Flechas tão finas quanto pequenos ramos compridos e brilhantes como um aguaceiro de Verão. Havia talvez umas dez, cobrindo-lhe o tronco, o pescoço e os braços, mas o homem continuava vivo. Teve até tempo para sorrir e se voltar para os seus companheiros, antes do veneno fazer efeito.

 

A noite caíra e com ela viera a chuva. Merlim escondera-se debaixo da ramagem de um carvalho tão alto quanto os pilares do céu, aterrorizado e transido, com o corpo coberto de golpes e escoriações. A sua túnica tinha se rasgado nas silvas e colava-se-lhe à pele. Ele que quase nunca tinha frio tremia e batia os dentes na escuridão da grande floresta. Estava além do esgotamento, tão no fim das forças e tão apavorado que não conseguia dormir. Mal fechava os olhos, as imagens pavorosas daquele dia assaltavam-no em peso, num insustentável jorrar de horror, tristeza e nojo. E o cordão do elmo, no seu pescoço, era pesado e frio.

Não vira o homem de Gwynedd torcer-se no chão no estertor do envenenamento, nem a derrota dos outros, sob a chuva de flechas minúsculas. Tinha-se levantado, sem saber como, e corrido diretamente para orla, diretamente para as silvas, como um javali ou um veado perseguido por uma matilha de caça. Nem o arranhar dos picos, nem o arder das urtigas o tinham feito parar, mas agora o corpo parecia-lhe em fogo. E apesar da sua coragem bárbara, nenhum dos homens de Ellifer o seguira pelo mato.

Sem saber porquê, sem compreender, uma palavra vinha-lhe à cabeça, desconhecida e ininteligível, nos seus raros momentos de lucidez. “Lailoken”... Uma palavra estranha, como que murmurada ao seu ouvido, e que, sem razão, parecia amigável.

Passou assim a noite, até que um pequeno fio de dia se conseguiu imiscuir entre a barafunda vegetal que o rodeava. E aquele fino halo de luz encontrou-o adormecido, vencido pela fadiga, inconsciente do despertar da floresta. Os rugidos medonhos da noite cediam pouco a pouco ao piar tranquilizador dos pássaros e, se o sol não brilhava, pelo menos havia luz suficiente para fazer cintilar, com milhares de raios prateados, a vegetação rasteira encharcada. O grito estridente de um pica-peixe, numa corrente de água próxima, ladeada por um pequeno bosque de amieiros, acordou-o repentinamente, com um soluço de susto. Nesse movimento, descobriu que estava nu, nu e tratado, com o corpo lavado da lama e do sangue de Arderydd. A sua roupa em farrapos desaparecera. Só lhe restavam as botas e um lençol comprido feito de um tecido de reflexos ondulados, que se modificavam como erva ao vento, a cada movimento seu, e tão quente, apesar da sua finura, quanto uma capa de peles. O cordão de ouro de Ambrosius continuava a brilhar no seu pescoço, e no seu braço um emplastro de musgo cobria um golpe do qual nem sequer tivera consciência durante a batalha.

Depois de emergir um pouco das brumas do sono, o suficiente para tomar consciência da incongruência da situação, apertou contra si o estranho tecido e inspecionou os arredores. Contudo, não havia ninguém. Ou melhor, já não havia ninguém, pois alguém viera necessariamente tratar dele. Entre as raízes da árvore, numa espécie de tigela feita de folhas entrelaçadas, tinham até colocado perto dele mirtilos e bagas ácidas de arando, vermelhas como airela, que ele devorou avidamente, com a cabeça ainda demasiado confusa para se colocar perguntas. Voltou a adormecer quase imediatamente e o dia passou sem que ele disso tivesse consciência, seguido de uma noite cheia de sonhos estranhamente reais. Silenciosos e sorridentes, seres frágeis e pálidos roçavam-no como uma brisa, sussurrando ao seu ouvido palavras tranquilizadoras, numa língua desconhecida e, ao mesmo tempo, familiar.

- Restan, Lailoken, feothan yfel sar. Slea Maith seon Myrddin...

Por vezes, acordava sozinho, cheio de angústia, com os olhos repletos dos horrores do combate, mas o seu corpo parecia ligado, incapaz de qualquer movimento, como que preso numa teia de aranha ínfima, ao ponto de nem sequer conseguir levantar a cabeça para se ver. Isto não durava quase nada. Alguns instantes e depois voltava a adormecer, e foi assim até ao nascer do dia, em todo o caso, o primeiro do qual ele teve claramente consciência.

Nessa manhã, foi acordado pelo sol e pela fome. Mal abriu os olhos, teve o espírito suficientemente lúcido para continuar deitado e reter a respiração, com todos os seus sentidos alerta. Os seus sonhos da noite estavam ainda muito próximos, e ele espiou demoradamente o menor indício de uma presença estranha em volta, o menor traço das estranhas personagens dos seus sonhos acordados. No entanto, não havia nada. Nada além da recordação. Então, levantou-se, apertando contra si o pano de reflexos ondeados com que o tinham coberto. Depois, descobriu junto a si um novo banquete de bagas, roupas feitas deste mesmo tecido fino, verde e castanho como a floresta, cuidadosamente dobradas e perfeitamente secas, pousadas perto das suas botas de pele, única coisa que lhe tinham deixado. Vestiu-as, apesar da sua singularidade. Primeiro as bragas, que segurou à cintura com um atilho e com as quais enfiou as pernas nas botas, e depois, por cima, uma espécie de túnica comprida de mangas largas e capuz, aberta dos dois lados até a altura das coxas, formando assim um avental duplo, pela frente e por trás, e que ele apertou igualmente com uma correia de cânhamo. Estas roupas, finas e leves como a seda, davam-lhe um aspecto singular, e ele riu de si próprio. Debaixo da luz ondulante filtrada pelos ramos, o tecido de reflexos ondeados parecia animado de uma vida própria, passando do verde mais escuro ao ocre claro a cada um dos seus movimentos, e pensou que se rolasse como uma bola ao abrigo de qualquer arbusto tornaria-se certamente invisível, confundindo-se com a própria floresta...

Atraído pelo sussurro de um curso de água, a criança caminhou sem barulho até ao riacho e agachou-se na margem. Ao fim de alguns minutos, imóvel e retendo a respiração, viu deslizar na ondulação trutas castanhas e lampreias, e também lagostins do rio escondidos sob pedras musgosas, depois seguiu um bando de aves cinzentas com o ventre amarelo que saltitavam sobre as rochas com divertidos movimentos da cauda. Merlim perturbou esta ordem natural ao mergulhar uma mão na água para tentar apanhar um peixe. Falhou, é claro, e tudo o que conseguiu foi ficar molhado da cabeça aos pés. Renunciando, por fim, deixou o riacho, colheu mirtilos ao passar e voltou a sentar-se perto do grande carvalho, ocioso, calmo, esperando que aqueles que o tinham tratado se dignassem ou ousassem voltar. O sol continuava fraco por causa da chuva dos últimos dias, mas ele já não sentia frio. O vento agitava as ramagens das árvores grandes e rugia lugubremente, e, no entanto, ele não sentia inquietação alguma. Apesar do seu infortúnio e do seu isolamento, apesar da morte de Guendoleu, de Cadvan e de tantos outros rostos amados, Merlim sentia-se em paz, debaixo da abóbada de pinheiros e entre as moitas de fetos, de zimbros e urze cor de malva, como numa casa reencontrada, entregue aos prazeres simples de sobrevivente: ter dormido, ter comido e já não ter frio. Tudo o resto, a recordação e o luto, os pesadelos, o desejo de vingança, as perguntas sem resposta, tudo o resto viria mais tarde...

Tudo o que o podia assustar ficara lá fora, na orla da grande floresta caledoniana, e por uma razão que não sabia explicar, mas nada do que lhe tinha acontecido depois da batalha era explicável - nenhum dos cavaleiros de Ellifer, nenhum dos Escotos, nem mesmo os seus cães de guerra, tinham seguido a sua pista. No entanto, ela devia estar escancarada, através das silvas e de todo o tojo que ele atravessara na sua fuga desvairada. Aliás, ele não tinha certamente percorrido mais de algumas toesas antes de se deixar cair perto deste imenso carvalho.

Com a ponta dos dedos, tocou no cordão de ouro no seu pescoço. Recordou os olhares dos cavaleiros de Gwynedd, voltou a pensar nas hesitações deles. Porque não o tinham morto, como aos outros? Um deles chamara-lhe “jovem melro”. Portanto, conhecía-o... Se os assassinos do bando de Ellifer o tinham poupado, só podia ser porque tinham uma ordem. Uma ordem superior, vinda de um ser suficientemente poderoso para dominar a sua fúria sanguinária, suficientemente poderoso para se aliar aos Escotos do Dal Riada e aos montanheses do País Branco, com a finalidade de os atrair para aquela armadilha... Ryderc. Seria possível que fosse Ryderc? Tinha logo de ser o próprio irmão de Guendoloena?

O rosto da jovem veio-lhe à memória, e todas as perguntas que o assaltavam se esfumaram na doce recordação dos instantes passados ao lado dela. Estendeu-se e afundava-se já, pouco a pouco, no esquecimento quando, de repente, sentiu um movimento nas moitas. Era fraco, quase imperceptível, e não obstante ele teve a sensação de uma presença. Pequenos seres aproximavam-se, vindos de todos os lados, lentamente, sem que ele conseguisse distinguir o que quer que fosse na trapalhada vegetal que o abrigava. Reteve a respiração, mas um chamamento trovejou naquele silêncio, quebrando subitamente o encanto.

- Merlim!

Imediatamente, as moitas agitaram-se. Os seres do bosque foram-se embora, já sem se preocuparem em dissimular a sua presença. A criança viu uma forma humana que escapava, levantou-se de um salto e correu direto às moitas em sua perseguição. Isto não durou mais de um instante. As silvas e uma quantidade de lenha seca pararam-no quase imediatamente, mas conseguiu de qualquer forma, no espaço de alguns segundos, vê-lo claramente. Não era verdadeiramente um homem, nem uma criança. Trazia um fato nas cores de Outono, semelhante ao seu, e lutava contra um arbusto demasiado denso para o deixar passar. Quando virou fugazmente o rosto para ele, o jovem bardo teve a impressão de se ver a si próprio, de ver um irmão gêmeo. Era um rosto jovem, pálido e magro, como nos seus sonhos, emoldurado por longos cabelos negros que saíam do seu capuz. E este rosto sorríu-lhe, ou, pelo menos, ao voltar a pensar nisso, era o que lhe parecia. O ser murmurou uma palavra “Lailoken” (outra vez esta palavra, sempre a mesma), e depois ergueu a palma da mão antes de desaparecer por completo, tragado pela vegetação.

Merlim tentou segui-lo, é claro, mas a floresta retinha-o com as suas silvas e, além disso, ele não captava qualquer movimento nos arredores, a não ser o da algazarra de um homem que se aproximava continuando a chamá-lo, tão pesado quanto um búfalo na vegetação rasteira, abrindo caminho a golpes de bastão.

- Myrddin! - gritava o homem. - Emrys Myrddin! É a tua mãe quem me envia!

Merlim desprendeu-se das moitas e estendeu o pescoço. O recém-chegado estava a alguns passos. Suado e estorvado pelo hábito de burel preto que se agarrava incessantemente aos espinhos, carregado de pesados alforges, era o irmão Blaise, o confessor da sua mãe, tão incongruente nesta floresta quanto um auroque numa igreja, e o fato do monge passar diante dele sem o ver deu a Merlim vontade de troçar dele, de saltar nas árvores como um esquilo e de o atormentar até ele cair de medo. Era, apesar de tudo, um rosto amigo e, no instante em que o religioso ia a passar por ele, Merlim afastou-se do matagal e saltou-lhe quase aos pés.

- Estou aqui! - latiu ele, e o monge deu um grito de terror.

- Senhor Deus, és tu! - disse ele, recompondo-se. - Julguei ver um demônio surgido das entranhas da terra!

Merlim limitou-se a sorrir com um ar vagamente superior.

- Estás bem, meu filho? - murmurou o monge. - Pela Virgem e os santos, tive tanto medo! Todas aquelas mortes na planície... Conseguiste escapar-lhes? E como sobreviveste tanto tempo? Meu Deus, tu tens o cordão de elmo do rei!

- Sabes...

- Então é verdade que Guendoleu morreu também... Que confusão.

Enquanto o monge descarregava as suas bagagens, Merlim franziu o sobrolho, intrigado por uma das frases do santo homem. “Tanto tempo”... De que tempo falava ele? Blaise, para por os pensamentos em ordem, fora sentar-se sobre uma raiz do carvalho. Sem pensar, tirou algumas bagas da tigela de folhas entrelaçadas e recobrou forças, e depois, só depois, pareceu descobrir as curiosas roupas com que Merlim estava vestido. Imediatamente, levantou-se e olhou em volta com um ar alarmado.

- Não está aqui mais ninguém - escarneceu Merlim.

- Então tu viste-os? - disse Blaise olhando-o fixamente. - Falaram contigo? Foram eles que te deram essas roupas, não foram?

Tinha no rosto uma expressão que o gelava até ao coração.

Medo, certamente, mas também uma curiosidade ávida, como se a criança guardasse algum segredo inacessível que o monge tivesse querido saber desde sempre, Merlim, subitamente, teve medo de falar, medo de estragar o momento e de continuar na ignorância daquilo que Blaise parecia saber.

- De que estais a falar? - murmurou ele

O beneditino abanou a cabeça negativamente, com um riso de alegria, quase desdenhoso. Limpou os lábios escurecidos pelos mirtilos, examinou por um momento a tigela de folhas entrelaçadas, depois pousou-a no chão e ergueu os olhos para Merlim. A criança vibrava como uma folha.

- Falo dos elfos, meu filho.

Olharam-se longamente em silêncio. Merlim estava confuso, perturbado, e Blaise, ao contemplá-lo, dizia para consigo que ele era realmente um deles... Com um gesto negligente, apontou para a floresta em volta deles.

- Chamam-se a eles próprios Slea Maith, as “Pessoas Boas” - continuou ele. - Ouviste com certeza falar deles, pelo menos nos contos populares...

- Os elfos não existem - protestou Merlim, com hesitação. - Não passam de lendas.

Blaise deu uma gargalhada sem alegria.

- E és tu quem o diz!

Voltou-se, desfez com a ponta do pé a cama de fetos na qual a criança tinha dormido, pegou na cobertura de tecido ondulante com que ele se cobrira e examinou-a pensativamente.

- Não - suspirou, sem o olhar - não são lendas, receio bem... Os elfos estavam aqui no princípio, muito antes dos primeiros Celtas desembarcarem sobre esta ilha, no tempo em que a Bretanha inteira não passava de uma vasta floresta. E depois os homens vieram e perseguiram-nos sem piedade. Diz-se que alguns se esconderam debaixo de terra, nas colinas de Preseli [20] ou em algum outro lugar, e que ainda há alguns bandos, nos bosques... Sabes, parece que as lendas falam a verdade...

- Mas não se trata de duendes! - exclamou Merlim. - São seres humanos!

- Então, tu viste-os - disse Blaise, caminhando vivamente em direção a ele. - Como é que eles são?

- São... são seres humanos - repetiu a criança, recuando involuntariamente, tanto o olhar do monge o assustava. - São como nós, com braços, pernas...

- Como tu, sim, certamente, Mas não como nós! São...

Blaise interrompeu-se bruscamente perante as lágrimas que embaciavam o olhar da criança, e ficou aflito.

- Desculpa - disse ele, pegando-lhe nas mãos. - Eu... eu não devia ter dito isto. Desculpa-me...

Sorriu-lhe, juntou os seus alforges e tentou arrastá-lo, mas Merlim libertou-se e fez-lhe frente, trêmulo e desfigurado, opondo-se violentamente, com todas as suas forças.

- É preciso que fales comigo! - exclamou. - Toda a minha vida só tive disso: alusões, insultos, palavras veladas que não querem dizer nada... Mas a minha mãe disse-me que Ambrosius não era meu pai. Também sabias isso? Ela disse-to em confissão, não foi?

Blaise não respondeu e tentou libertar-se dele, em vão.

- Pois bem, que mais sabes tu? O que é que eu tenho de diferente? Crês que sou um elfo, é isso?

“Olha para ti”, pensou Blaise. “Pálido e magro, com roupas de selvagem...”

- Não sou eu quem tem de te dizer...

- Então vai-te embora! Deixa-me! - gritou, agarrando o cordão de ouro ao pescoço para lhe afastar as hastes. - Vai dizer a minha mãe que estou morto como os outros!

Blaise avançou até ele, e agarrou-o pelos punhos para o impedir de tirar o colar. Merlim afastou-se, com um ar determinado, mais pálido do que nunca, e sob o seu olhar embaciado o monge baixou a cabeça. Deu um longo suspiro e foi sentar-se perto do carvalho.

- Ninguém julga que és um elfo - disse ele, encolhendo os ombros - e, aliás, isso não é um insulto. Pelo menos, não na minha boca... Desde que estou ao serviço da rainha, tua mãe, contacto com um mundo de cuja existência não suspeitava. Um mundo ao qual pertences, talvez, sem o saberes. Tu és...

Blaise interrompeu-se e baixou de novo a cabeça sob o olhar da criança. O rosto severo do abade Kentigem passara-lhe fugazmente diante dos olhos, com a memória da conversa que tinham tido no dia da partida da rainha. Era necessário fazer com que o cordão do elmo de Ambrosius voltasse para Dyfed. Servir Deus, Deus e a Igreja acima de tudo, e não dizer nada...

- Não sei quem tu és, jovem melro - continuou ele, a meia-voz. - Realmente não sei. Mas, em nome de Deus, que me está a ver, gostaria bastante de poder dizer...

- Porquê? - lançou Merlim. - Que te importa?

- Olha para mim. Sou um monge. Julgas que nasci assim, com este hábito de burel e esta tonsura?

Sorriu tristemente, e Merlim descontraiu-se o suficiente para lhe sorrir.

- Consagrei a minha vida a Deus, com a certeza inabalável da minha fé. Mas se Deus fez o homem à sua imagem e se os elfos existem, então quem fez os elfos? O diabo? É o que se diz...

- E eu sou o filho do diabo... - murmurou a criança.

- Sim, o filho do diabo, há?... E, no entanto, não tens nada de demônio. De certa forma, és melhor do que nós, e é por isso que as pessoas te temem, Merlim. Mas eu quero saber, entendes?

Merlim abanou a cabeça sem uma palavra.

- Anda, vem - disse o monge. Guarda o colar. Vou levar-te para casa.

 

Um raio de sol infiltrava-se de vez em quando através da cortina de couro que cobria a única e estreita janela do quarto real, a cada rajada de vento, iluminando a palha espalhada sobre o chão. Com o corpo pesado e os olhos queimando de cansaço, Ryderc não dormira quase nada durante toda a noite, com o espírito assaltado pela dúvida e o sentimento pavoroso de ter feito uma má escolha. O pior, sem dúvida, era não poder falar com ninguém, desde que Kentigem partira para a ilha de Iona. Só Amig e alguns chefes de guerra conheciam os seus planos, mas nenhum deles suspeitava de todo o seu alcance. Nem mesmo Languoreth, sua rainha, que dormia encostada a ele, com a respiração tranquila, nua e quente debaixo das pesadas cobertas de pele. Muito menos Guendoloena. Principalmente ela, se o que a rainha lhe tinha dito das suas ligações com aquele Merlim do diabo eram verdade. Atacar Guendoleu, coligar contra ele os seus inimigos e, ao mesmo tempo, preservar-se, de forma a parecer o único recurso possível, isso não era nada. O último dos seus vaqueiros, no mais fedorento dos seus estábulos, devia julgar que o cordão de elmo de Ambrosius lhe era devido por direito próprio e que não era mais do que natural reavê-lo à força. Mas a aliança que o bispo planejava era de um outro alcance e havia de perturbar mais seriamente os espíritos...

Uma rajada de vento mais violenta fez bater a cortina, trazendo até ele palhetas de geada e um sopro de ar frio. Languoreth acordou, gemendo, e escondeu o braço debaixo das cobertas. A sua mão gelada pousou-se sobre o tronco de Ryderc, que deu um grito de surpresa. Enquanto ele tentava escapar, ela anichou-se mais contra ele com uma gargalhada, e a sua mão deslizou até ao seu ventre, lentamente, implacavelmente. Ryderc virou-se de lado, refugiou a cara nas escuras espirais do seu cabelo perfumado, acariciou o seu corpo enlanguescido. No momento em que colocava por cima das suas cabeças a coberta de peles, alguém bateu à porta. Pancadas fortes, apressadas.

- Que se passa? - gritou Ryderc.

- Senhor, ordenastes-me que vos prevenisse! - disse a voz de um criado. - Cavaleiros de Gwynedd estão à vista!

Ryderc afastou-se com esforço dos braços da mulher e vestiu-se à pressa, sem prestar atenção aos protestos dela e sem lhe dar uma palavra de explicações. Na altura em que entrou na sala comum, os seus próprios chefes de guerra estavam lá, bem como um grupo de homens do País Branco, que o calor da lareira fazia deitar fumo como demônios surgidos do inferno. Desgrenhados e sujos dos pés à cabeça, atiravam-se sobre os restos na mesa, como se não tivessem comido nem bebido nos últimos dias. Entre eles, Ryderc só reconheceu Gurgi, um dos chefes do bando de Ellifer. Os ombros e a cabeça cobertos por um capote escuro e ensopado, trazia um lorigão em couro não tratado, sobre o qual balouçava uma cruz de madeira tosca. Como os outros, parecia esgotado, e a sua expressão não era a de um vencedor.

- Escapou-vos? - resmungou Ryderc, antes mesmo de eles o terem visto.

- Senhor, não - disse Gurgi, tirando o elmo diante do rei. Deitou um olhar desconfiado em redor, mas Ryderc fez-lhe sinal para que continuasse, com um gesto de impaciência. Os homens aqui reunidos podiam ouvir tudo.

Então, o montanhês voltou-se para um dos seus guerreiros, que abriu o casaco e lhe estendeu um saco escurecido de sangue seco. Sem uma palavra, Gurgi desfez o laço que o amarrava e agarrou pelos cabelos a cabeça cortada de Guendoleu, que brandiu com o braço esticado.

Sem querer, o coração de Ryderc apertou-se. Um rosto lívido, olhos turvos, sangue maculando a barba e os cabelos do riothime... Só um silêncio glacial acolheu o sinistro troféu.

O jovem rei abanou a cabeça várias vezes. Nervosamente, triturava no seu dedo o anel de Aldan sem conseguir desviar os olhos daquela visão macabra. Um nó tinha-se-lhe formado na garganta e teve de engolir para conseguir segurar a voz.

- E o cordão do elmo? - perguntou, por fim. - Onde está o cordão?

Gurgi ajoelhou-se rapidamente e baixou a cabeça.

- Senhor, não o temos. É o bardo, Emrys Myrddin... fugiu para a floresta.

- Myrddin, outra vez...

- Senhor, deve estar morto, por esta altura. Sei que ficou ferido durante a batalha... Não o encontramos, mas está certamente morto. Com certeza...

De novo, Ryderc abanou a cabeça, incapaz de dizer uma palavra. Sentia pesar sobre ele o olhar dos seus tenentes, e teve de fazer um esforço considerável para se conseguir dominar.

- Está bem...

Com um gesto, indicou a mesa, e depois voltou-se para os seus chefes de guerra.

- Estes restos são indignos destes bravos! Que lhes seja servida uma refeição decente, e cerveja. Devemos festejar como deve ser esta... - hesitou e depois fez um sorriso forçado - esta vitória.

Os homens do País Branco deram rugidos de aprovação e, sem prestarem atenção ao jovem rei, começaram a desembaraçar-se dos seus cinturões e das armas, das peles sujas e das pesadas cotas de malha em couro. Durante um instante, Ryderc afastou-se de Gurgi para murmurar algumas palavras ao ouvido de um dos seus vassalos, um colosso ruivo de nome Sawel. Regressou imediatamente para junto do montanhês e agarrou-o pelo ombro, com um gesto que podia ter parecido fraternal se não tivesse sido tão brusco. Enquanto Ryderc o empurrava para um lugar mais afastado, Gurgi tentou libertar-se desta dominação, mas o rei agarrou-lhe o punho com força e obrigou-o a manter-se diante dele, enquanto dois guardas de capa vermelha os vinham ladear.

- Não te mexas, Gurgi - murmurou Ryderc. - Nem uma palavra, nem um gesto...

O montanhês olhou-o com um ar confundido, depois compreendeu, e uma expressão horrorizada deformou-lhe os traços. Os seus companheiros tinham-se sentado no chão em volta da lareira, vestidos só com as túnicas, e faziam grande algazarra enquanto esperavam pelo banquete. Quando a porta que conduzia às dependências se abriu, soltaram uma aclamação selvagem, que se abafou imediatamente. Em vez de escravos carregados de mantimentos, foram Sawel, o ruivo e os seus homens que entraram na sala, espada em riste e olhar raivoso. Um dos homens de Gwynedd levantou-se e estendeu a mão para eles num gesto de apaziguamento, mas Sawel abriu-o da cabeça ao tronco, num sulco sangrento. Os outros começaram a gritar e lançaram-se na direção das armas, mas nenhum deles teve tempo de se defender. No espaço de um instante, os guerreiros de Strathclyde rodeavam-nos por todos os lados, de arma em punho, prontos a atacar.

Gurgi tremia convulsivamente, sustentado a grande custo pelos dois guardas de capa vermelha. Com os olhos esbugalhados, arfando como um cavalo, olhou atentamente para Ryderc, e o rosto do jovem rei pareceu-lhe medonho.

- Volta lá - murmurou ele. - Encontra o colar e traga-o. Senão, diz-lhes adeus...

Voltou-se para o grupo miserável cercado pelos seus guardas, e olhou rapidamente com desprezo o corpo inerte daquele que Sawel atingira. O homem jazia com a cara no chão. Uma poça de sangue escuro e brilhante aumentava debaixo dele. Impelido por uma inspiração súbita, Ryderc tirou febrilmente o anel de turquesas que Aldan lhe oferecera e estendeu-o a Gurgi.

- Encontra o bardo Myrddin, diz-lhe que é a mãe dele quem te envia. Com isto, ele vai acreditar... Mata-o, se quiseres, ou traga-o até mim, mas não voltes sem o colar, ou ninguém ouvirá falar mais do bando de Ellifer.

Gurgi engoliu a saliva e olhou-o com um ar de enorme ódio.

- Irei trazer-to, Ryderc de Strathclyde - disse, numa voz sem timbre. - Mas não tenhas muita pressa, porque nesse dia eu irei matar-te.

Ryderc sorriu. Com um gesto, fez sinal aos guardas para o libertarem.

- Essa não é a vontade de Deus.

 

- Acorda - disse Merlim - está a anoitecer...

Blaise deu um grunhido e fitou o seu companheiro com um olhar turvo. Depois, levantou-se a gemer, pouco habituado que estava a dormir no chão, e ainda menos de dia, depois de ter passado toda a noite a caminhar. Com a boca pastosa, permaneceu sentado por alguns instantes, até que percebeu que Merlim ria dele.

- Que se passa?

- Tens palha no que te resta de cabelos, monge! - disse a criança. - Parece uma coroa de casamento.

O beneditino esfregou a tonsura resmungando, depois coçou a barba, levantou-se e sacudiu o casaco enlameado com um ar de profundo nojo. Ao amanhecer, cambaleando de cansaço, tinham encontrado aquele abrigo de pastores, encostado a uma colina rochosa a pouca distância do mar. Era pouco mais do que um monte de pedras cheio de palha bafienta, fedendo a bode e fervilhando de parasitas, mas, pelo menos desta vez, tinham podido dormir mais ou menos secos. Blaise deitou uma vista de olhos pela abertura estreita e baixa que servia de porta. Não viu mais que uma brecha de céu cinzento, misturada com um mar de chumbo. O vento do mar alto precipitava-se sobre o abrigo assobiando lugubremente, a chuva crepitava por rajadas contra as pedras grossas da parede. Seria mais uma vez uma noite pavorosa... Mais uma. Desde que Aldan se tinha feito ao mar, pedindo-lhe para cuidar do filho, parecia-lhe que levava uma vida de mendigo, coisa a que ele tinha perdido o costume na companhia da rainha. O seu hábito de burel e o seu casaco tinham adquirido uma cor acastanhada, manchas de sujeira e cobertos de rasgões, semelhantes aos de um leproso. Pouco adaptadas para uma caminhada longa, as suas botas molhadas martirizavam-lhe os pés, enquanto as mãos e a cara coradas pelo frio estavam tão impregnadas de terra que a chuva não bastava para lavar. Tomado de um arrepio súbito, o monge espirrou ruidosamente, depois fungou e assoou o nariz.

- Não se vê nada daqui - resmungou. - E cheira mal...

Deslizou para fora e deu alguns passos para desentorpecer as pernas. O vento, por rajadas, fustigava-o com saraivadas de salpicos do mar misturados com chuva, mas ele quase sentia prazer, depois do mau cheiro do abrigo. Erguendo o capuz, aliviou a bexiga contemplando os arredores com um ar de profunda repugnância. Nos últimos clarões do dia, o mar, as praias de areia negra e a paisagem esbatiam-se na mesma cor metálica, sem o menor sinal de vida até onde o olhar alcançava.

Blaise olhou com atenção o jovem bardo quando este se lhe reuniu, tão sujo quanto ele, mas com a estranha túnica de tecido ondeado que não tinha ainda sofrido com os dias de caminho... A criança já não sorria. O seu rosto tinha retomado aquela expressão distante, impenetrável, por trás da qual escondia a sua tristeza desde que tinham saído da floresta. Durante todos os dias e noites que tinham passado juntos, a caminhar sem parar entre lagos e colinas, escondendo-se ao menor sinal de presença humana, fora a custo que Blaise lhe tinha conseguido arrancar algumas palavras. Via-o por vezes chorar em silêncio, mas mal tentava se aproximar dele, Merlim alterava a expressão e afastava-se. Era uma companhia sinistra, e mais de uma vez o monge sentira a raiva apoderar-se de si, uma raiva pouco caridosa, certamente, mas irreprimível, que lhe dava vontade de o abandonar de uma vez por todas às suas florestas e aos seus demônios... Até agora, no entanto, o seu sentido de dever e a promessa feita à rainha Aldan tinham sido mais fortes do que a fadiga e o desespero. Era certo que também havia outra coisa... Bastava-lhe olhar para Merlim, caminhando incansavelmente apesar da pouca idade, sem nunca se queixar nem da fome, nem da chuva, para que a tentação de o abandonar se dissipasse, ou lembrar-se, uma e outra vez, de alguns indícios encontrados no seu acampamento, no meio da floresta. Aquela tigela de folhas, a própria túnica... Mesmo que o ignorasse, a criança via claramente mistérios que Blaise não podia renunciar a desvendar. E além do mais, a sua mágoa parecia tão grande, que ele não podia abandoná-lo sem trair os seus votos mais sagrados, de tal modo se sentia culpado de não o ter preservado das medonhas visões que os esperavam quando saíram da floresta.

Talvez devessem ter tomado um outro caminho, tendo continuado ao abrigo das árvores, caminhando diretamente para a Cúmbria, mas a região estava a ser varrida pelos bandos saxônicos e o perigo era demasiado grande. Além disso, o monge não tinha tido a coragem de continuar nos bosques ao cair da noite, na hora em que os demônios vagueavam. Ao desembocarem na planície de Arderydd, quando vira o rosto lívido do jovem príncipe, Blaise compreendera o seu erro.

Ninguém viera ainda enterrar os mortos, e eles jaziam ali, no fedor abjeto da decomposição, debicados por um bando de corvos. Odor e o espetáculo não podiam deixar de transtornar o coração. O pior para Merlim tinha sido ver os restos mortais dos seus amigos, semelhantes a carcaças exangues, a maior parte deles decapitados, as cabeças levadas como troféus pelos vencedores. Daí em diante, não conseguiria conservar deles senão estas visões de pesadelo.

- Pelas Mães! - murmurara. - Há quanto tempo é que eles estão aqui?

As palavras de Blaise tinham-lhe vindo à memória e tinha-se agarrado a ele, perdido.

- Quanto tempo demoraste a encontrar-me? Quanto tempo?

- Não sei... Uma semana, dez dias, talvez...

- É impossível.

Sem compreender o terror que se apoderara de Merlim, ou menosprezando a sua causa, Blaise tentara arrastá-lo para longe do campo de batalha, mas a criança soltara-se, com raiva. Sem uma palavra, precipitara-se através do campo de mortos, até que encontrou o corpo de Guendoleu.

Também ele tivera a sua cabeça cortada, ele antes de qualquer outro, e Merlim só o reconheceu pelas vestes e pela flecha espetada no ventre... Vencendo o horror deste contacto, arrastara o cadáver do rei até um outeiro que se elevava na planície. Durante horas, com uma obstinação de animal, amontoara em volta do corpo do rei pedras grandes, que às vezes mal conseguia levantar. Blaise acabara por ajudá-lo, e todo o dia se tinha passado assim, a erguer em volta do rei defunto um túmulo de pedra, que tinham depois coberto de terra, para que, segundo as velhas crenças, ele encontrasse o Sid, a cidade de baixo, morada dos mortos. Não era nada cristão, mas um túmulo é um túmulo e, depois de terem terminado, o monge ajoelhara-se para rezar.

Blaise sentira o olhar da criança pousado nele, sem dizer uma palavra. Havia respeito nesse silêncio, e muitas perguntas caladas. Então o monge rezara também por Merlim, e depois tinham partido, ao cair da noite, carregados de mantimentos, armas e arcos recuperados no campo de mortos, seguindo para oeste, para Carlisle, a capital de Urien Rheged. Rapidamente, o clarão de um enorme incêndio iluminara a noite no horizonte e eles tinham parado, impotentes e infelizes. A terra vibrava com o estrondo da cavalaria. O vento transportava o rugido terrível de uma batalha. A guerra já estava nas Planícies Cultivadas...

De manhã, tinham tomado o caminho do sul, em direção às montanhas arredondadas da região dos lagos. Uma terra sem horizonte, úmida e escarpada, que se cobria de geada todas as noites, e onde as ervas eram tão altas que fora necessário abrir caminho a golpes de bastão. Fora uma jornada pavorosa, e tinham-se visto forçados a esconderem-se, o medo apoderando-se deles a cada som de galopada, temendo constantemente ser vistos por um ou outro dos bandos armados que percorriam o Rheged. Nessa noite, tinham parado nos arredores de um vasto círculo de pedras erguidas, perdido numa terra deserta ladeada por vales sombrios, e embora tivesse sido Blaise a conduzir a caminhada, o monge tivera a sensação de que Merlim conhecia o lugar, de que fora ele quem os tinha conduzido até ali, só Deus sabia como. Enquanto montavam o acampamento, Merlim fora instalar-se no centro do círculo, sem se mexer, até que as sombras das pedras erguidas se alongaram e o alcançaram... Só tinham dormido algumas horas e, depois dessa noite, aproveitavam a escuridão para continuarem caminho, repousando durante o dia.

Com um grande suspiro, o pequeno monge pousou perto dele os seus alforges e ajoelhou-se, de frente para o mar. Baixou a cabeça e juntou as mãos, e depois voltou-se para a criança.

- Vem para junto de mim - disse ele. - A oração pode ajudar-te, sabes...?

Merlim encolheu os ombros sem grande convicção.

- Não temos os mesmos deuses, monge!

- Que importa? Os homens rezam e os deuses escutam, sejam eles quais forem...

O beneditino susteve por um momento o olhar do jovem príncipe, depois fechou os olhos e virou-se. Enquanto rezava, ouviu Merlim ajoelhar-se ao seu lado, o que agradeceu ao Céu nas suas devoções. Quando fez o sinal da cruz e se levantou, a criança ficou surpreendida.

- É só?

- Que queres dizer com “é só”?... Deus não é surdo, sabias? Não vale a pena falarmos com ele durante horas!

Trocaram um sorriso. O primeiro, talvez.

- Anda, pega o teu saco...

Partilharam um grande pedaço de pão escuro proveniente dos mantimentos abandonados no campo de batalha de Arderydd, e depois puseram-se a caminho. A noite veio rapidamente e, como tinham se habituado, Blaise deixou-se guiar por Merlim, servindo-se do seu bastão como de uma arreata. Já deixara de se interrogar sobre a espantosa aptidão do seu companheiro para distinguir o caminho na noite escura, quando ele próprio só conseguia ver a ponta dos pés. Era preciso uma confiança total para se deixar guiar assim, como um cego, através da escuridão. Por vezes, fechava as pálpebras e avançava mecanicamente deixando os pensamentos correrem livremente, por vezes recitava salmos ou aquilo que se lembrava dos Evangelhos, inventando o resto conforme a necessidade. E Merlim escutava-o.

O mesmo se passava nessa noite, e o beneditino empenhava-se com um certo êxito a fazer um retrato do Senhor Jesus que o assemelhava mais a um herói de epopéia do que ao filho de Deus, quando Merlim lhe impôs silêncio, com um brusco esticão no bastão. Desequilibrado, o monge quase caiu, mas reteve o grito que lhe vinha aos lábios.

Diante deles, a menos de uma légua, o céu estava iluminado por um clarão alaranjado. Um clarão que eles conheciam demasiado bem, semelhante ao que tinham visto nos arredores de Carlisle. Às apalpadelas, Blaise aproximou-se de Merlim.

- É um incêndio?

A criança não respondeu. Agarrava já o seu arco e preparava-se para se precipitar para o horizonte avermelhado, quando o seu companheiro o reteve.

- Somos apenas dois - murmurou ele. - E a tua mãe ordenou-me que te mantivesse vivo.

- Não ouves? - suplicou Merlim. - Não ouves aqueles gritos, toda aquela dor?

O monge arrebitou a orelha: nada, exceto o assobiar do vento e o barulho do mar. Não disse nada, mas a criança viu a incompreensão no seu rosto.

- Que espécie de homem és tu? E que espécie de Deus serves? Só prestas para rezar pelos mortos!

Merlim libertou-se com um gesto brusco e afastou-se. Podia ter fugido nesse momento, deixá-lo ali como um cego na escuridão, mas teve um segundo de hesitação e voltou para junto do companheiro. Mesmo a tempo de ver o seu pesado bastão abater-se sobre a sua cabeça.

De manhãzinha, a erva rasteira estava coberta de geada e a água das poças estava gelada. Apesar do cansaço dos dias passados, Blaise quase não tinha dormido. Levantara o seu capuz negro sobre a nuca e sentara-se afastado do abrigo sumário que montara para Merlim, estendendo a sua capa entre dois ramos. Com as primeiras luzes do dia, distinguiam-se por fim os contornos do burgo incendiado, mais próximo do que ele imaginara, e este espetáculo enchia-o de tristeza. Era uma aldeia de pescadores, quase na ponta da Península de Furness, cercada simplesmente por uma paliçada para se proteger dos animais selvagens e dos ladrões, sobre uma praia de seixos onde uma quantidade de barcas se estendia. Ao longe, confundidas no nevoeiro que vinha do mar, desenhavam-se as costas da Cúmbria, onde se podia chegar a pé, na maré baixa, desde que não se estivesse muito carregado e se evitassem as areias movediças...

De novo, o seu olhar caiu sobre a aldeia. A chuva apagara as chamas, mas o vento, num turbilhão, arrancava ainda dos casebres calcinados baforadas de fumo que se dissipavam rapidamente. Desde a alvorada, ninguém entrara nem saíra da aldeia, e não se via vivalma. Não era nada, no entanto. Nem uma fortaleza, nem um burgo mercantil, somente um lugarejo perdido de pobre diabos que viviam do mar. Nada que pudesse justificar um ataque, exceto talvez as mulheres, ou o simples desejo de matar... Senhor, porque davam os homens tão pouca importância à vida dos outros?

Com o rosto corado pelo vento frio e crispado pelo sal dos salpicos do mar, Blaise mantinha-se ali, tremendo, transido até aos ossos, imóvel, incapaz de qualquer gesto e com o espírito a divagar, quando um gemido de Merlim, o arrancou da sua letargia mórbida. Levantou-se, então, sacudiu o hábito de burel cujas pregas estavam tesas de tão intenso que era o frio e veio agachar-se ao lado da criança. A pancada de bastão tinha-lhe aberto o couro cabeludo, sangue seco formava um sulco negro rachado escorrendo da testa até ao pescoço, mas pelo menos estava vivo, o que não seria certamente o caso, se se tivesse atirado às cegas para o burgo em chamas. Com a ponta do pé, o monge partiu a fina película de gelo que cobria uma poça formada num desmoronamento de rochas, molhou nele um pedaço de tecido e começou a lavar-lhe a cara. Imediatamente, a criança acordou.

Blaise suspendeu o gesto, recuou, mas mais uma vez Merlim. ficou calado. Estava acordado, com certeza, e olhava-o intensamente, mas não dizia nada, nem uma palavra, contentando-se com o peso do seu olhar, até que o seu companheiro não aguentou mais.

- Bom, está bem, desculpa! - resmungou, atirando com o pano. - Mas era uma verdadeira loucura...

Merlim levantou-se com uma careta, levou a mão à testa e olhou os dedos manchados de sangue fresco. Sem se preocupar mais com ele, o religioso arrancou com um gesto impulsivo a sua capa que pusera a servir tenda e cobriu-se com ela, e pegou nos seus alforges.

- E agora? - perguntou Merlim.

- Vamos ver se encontramos um barco - respondeu o beneditino, num tom arrogante, apontando a aldeia calcinada com o queixo. - Será mais seguro e mais rápido do que continuar a pé.

- Um barco...

O jovem bardo ergueu para Blaise um olhar angustiado, mas o outro já descia em direção à aldeia.

- Espera! - gritou ele, e, como o seu companheiro se voltou para ele, procurou desesperadamente um argumento.

- Que se passa? - lançou o monge. - Ontem à noite estavas pronto a avançares às cegas, e agora tens medo?

- Não é isso... É que há... é que... De fato...

Blaise colocou os alforges ao ombro, observando-o com um esboço de sorriso.

- Entendo... já em Dun Breatann fizeste uma cara esquisita quando te levei até o navio da rainha. Tens medo da água, é isso?

- Claro que não! - protestou Merlim (e sentiu-se corar, o que ainda lhe aumentou mais a atrapalhação). - Mas porque é que não continuamos a pé? Só temos de contornar a costa!

- Ora isso é que é uma boa idéia!

Blaise voltou para perto dele e apontou o seu bastão para sul.

- São mais de trezentas milhas até Dyfed, sem contar os desvios e as montanhas de Gwynedd a atravessar em comprimento e largura, onde cada homem em idade de pegar numa arma deve sonhar em te arrancar do pescoço o cordão do elmo de Ambrosius. Vai demorar semanas, e será um milagre sairmos de lá vivos!

- Podemos parar na Cúmbria - disse Merlim, sem convicção. levando inconscientemente a mão à clavícula, para tocar no colar de ouro. - Só fica a dez ou vinte léguas, e dar-nos-ão cavalos.

O monge abanou a cabeça com irritação, juntou as bagagens do jovem bardo e atirou-lhas para os braços.

- Guendoleu está morto - disse bruscamente. - A esta hora, a tua Cúmbria não deve valer muito mais que Carlisle, ou que aquele burgo lá embaixo. É a guerra, Merlim! Não entendeste?

A criança observou-o com um ar de desespero que o fez arrepender-se da sua exaltação.

- Anda, vem - continuou, mais suavemente. - Navegaremos junto à costa, pelo menos até Môn ou à península de Lleyn. Assim podemos voltar para terra a qualquer momento, se o mar ficar mau. Não há nada a temer... Confia em mim, cresci numa aldeia como aquela ali, e aprendi a navegar antes de saber andar. Acreditas?

Merlim fez uma careta, mostrando-se pouco convencido.

- Pois bem, estás enganado... Um monge quase nunca mente. Vamos?

A criança fitou o seu companheiro. Blaise estava sacudido por calafrios. A sua respiração entrecortada projetava pequenas nuvens brancas para fora dos lábios rachados. O gelo tinha-se-lhe agarrado à barba, corado o seu rosto e esticado as suas feições. A fadiga e o frio iriam vencer-lhe a resistência. Nunca conseguiria ir até Dyfed por via terrestre... Então, Merlim concordou, com um movimento de cabeça, e puseram-se a caminho.

Se não tivesse havido aquelas baforadas de fumo negro e a dança frenética de uma impressionante colônia de aves marítimas por cima da aldeia, a manhã poderia ter parecido tranquila. O vento vindo da Hibérnia empurrava as nuvens para o interior das terras, um tímido sol invernal iluminava pouco a pouco toda a costa, e a geada da noite começava a fundir-se numa miríade de brilhos de luz, a perder de vista. Era um espectáculo magnífico e rude, reconfortante, apesar da angústia que lhes apertava o ventre.

Passaram os campos em repouso e as medas de palha fumegantes, saltaram por cima de um minúsculo riacho que descia das colinas e sentiram rapidamente o odor das cinzas ainda quentes. Quando não estavam a mais de algumas toesas do burgo, agarraram nos arcos ao mesmo tempo e armaram cada um uma flecha. Um aterro de terra coroado por uma simples paliçada cercava a aldeia até às praias. No centro, uma porta de dois batentes, suficientemente larga para deixar passar carroças de bois, rangia lugubremente com a aragem do vento, meio arrombada. Alguns dos seus madeiros escurecidos jaziam na lama do caminho, atravessados na passagem, e o resto parecia prestes a cair. Foi aí que viram o primeiro cadáver, o de um guerreiro atingido por uma flecha. Um só homem... O burgo não tinha sequer sabido defender-se.

Ao passar por ele, Blaise virou o cadáver com a ponta do pé. A sua cara exangue, os seus cabelos e a sua barba estavam escurecidos de lama, assim como a sua cota de malha de couro guarnecido. já não tinha armas nem escudo. O monge fez um rápido sinal da cruz, depois deixou-o voltar a cair. O homem não se parecia com um saxão, era tudo quanto se podia dizer...

Continuaram a avançar, e quando passaram o que restava das portas, toda a selvageria do assalto lhes saltou aos olhos. Ao longo da paliçada, nas ruelas, por todo o lado em volta deles, corpos jaziam onde a morte os tinha apanhado, por vezes nus ou quase, por vezes horrivelmente queimados, as carnes cortadas, o crânio desfeito, homens e mulheres, crianças, gado e cães. Uma nuvem de aves marítimas, corvos-marinhos escuros como a noite, grandes estercorários de plumagem cor-de-terra, gaivotas esvoaçavam por cima dos mortos, numa algazarra louca, levando nos bicos afiados compridos pedaços de carne que os outros disputavam em pleno voo. Através do vão de uma porta, viram o corpo nu e inerte de uma mulher atirado sobre uma enxerga, e os corpos dos seus filhos perto da cama. Em outro local, homens pendurados numa trave ou presos a um mastro e cravejados de flechas. O horror, para onde quer que se olhasse.

- Senhor Deus, porque fizeram isto? - gemeu o padre Blaise. O odor infecto da morte e das cinzas enchia-lhes as narinas, os gritos das aves marinhas ensurdecia-os, e a sua agitação sacrílega sobrevoando os corpos martirizados acabou por transtorná-los. Bruscamente, Merlim curvou-se e vomitou, com o corpo todo a tremer, depois caiu de joelhos e enfiou o rosto no solo lamacento para não continuar a ver, não continuar a ouvir, não continuar a sentir aquela abominação. Blaise levantou-o. Com a criança apoiada nele, seguiu direito ao embarcadouro.

À medida que se aproximavam da baía, na parte do burgo batida pelo vento, os habitantes eram mais raros, e não se viam tantos cadáveres. Redes de pesca tinham sido estendidas entre as estacas e assobiavam ao vento, salpicadas de algas e de sargaço. Aqui, o odor do peixe e de uma colheita de moliço sobrepunha-se ao dos mortos. Recebiam em pleno rosto um vento úmido vindo do alto mar, e aceitavam-no com reconhecimento, a grandes golfadas que afastavam a náusea. O caminho pedregoso que serpenteava entre as redes conduziu-os a um desmoronamento de rochas sobre uma praia de areia negra e de seixos onde se encontravam as barcas. Aí, mais uma vez, ninguém.

No momento preciso em que desciam, um grito agudo veio sobressaltá-los.

Era o grito de uma mulher, tão rapidamente recoberto pela algazarra das gaivotas que poderiam ter tido dúvidas. O monge e a criança imobilizaram-se, hesitando, sem saber como proceder. No mar, lá embaixo, havia toda a espécie de barcas e coracles de vela quadrada; fazia um bom tempo para navegar, fugir para longe daquele horror. Blaise, que estava à frente, deu um passo para descer, ou talvez se tivesse simplesmente desequilibrado. Mas a criança armou novamente o arco e subiu.

A mulher calara-se. Uma vista de olhos bastou-lhes para adivinharem de onde poderia ter vindo o grito: uma arrecadação em mau estado, para lá das redes, a única casa próxima. Abandonaram as trouxas e avançaram, curvados sob as malhas encharcadas, o arco estendido à sua frente. Merlim seguia à frente, e o seu ouvido pouco comum percebia, apesar do vento e do alarido das aves marítimas, grunhidos animais, choros e risos. A sua flecha tremia na ponta do arco. No entanto, não parou antes de transpor a cortina de redes de pesca. Aí, agachou-se e voltou-se para Blaise.

O pequeno monge tinha o coração apertado e um nó na garganta. Estavam agora suficientemente perto para ele perceber também o tumulto surdo proveniente da arrecadação. Suficientemente perto para compreender a sua natureza. Agua corria sobre o seu rosto desfeito, lágrimas ou chuviscos, e os seus lábios agitavam-se numa prece muda. Merlim fez um breve sorriso, levantou-se bruscamente e caminhou com um passo decidido até à porta escancarada da cabana. Nesse momento, vozes de homens, roucas e fortes, elevaram-se. Um grito dilacerante, quando a criança atirou a primeira flecha. Depois, urros de raiva. Blaise levantou-se de um salto, perdeu o arco e procurou-o às apalpadelas na erva encharcada, com os olhos arregalados, fixos em Merlim. A mulher deu de novo um grito de perfurar os ouvidos, e os seus algozes lançavam pragas numa língua desconhecida. A cabana assemelhava-se a um vulcão prestes a explodir, a vomitar a sua lava e as suas rochas, mas Merlim não recuava. Em pé, diante da porta, atirou uma segunda flecha. O monge correu para ele, esforçando-se por armar o arco, no momento em que uma forma imensa jorrou do armazém, atirando-se sobre a criança e projetando-a ao chão. julgar-se-ia tratar-se de um urso, com o seu casaco de peles fulvo. Com o tronco nu e as bragas desapertadas, era, ao mesmo tempo, aterrador, obsceno e ridículo, o sexo ainda erguido e o rosto medonho. Sem reparar no religioso, agarrou numa grande pedra e avançou para Merlim, que a sua carga brutal deixara atordoado. Elevou a pedra à altura da cabeça, com um rugido de animal, e foi então que Blaise lançou o seu dardo.

O monge fechara os olhos, e a flecha não fez mais do que arranhar o ventre do guerreiro. Quando os voltou a abrir, passou, num único instante, da contrição ao mais abjeto terror. O homem tinha-se afastado de Merlim e caminhava na sua direção. Estorvado pelas bragas descidas até aos tornozelos, quase caiu, largou a pedra e voltou a vestir-se sumariamente. Isto teria sido suficiente para pegar numa flecha e ter tempo de lhe fazer pontaria, mas o monge, assolado pelo medo, bateu em retirada direito às redes onde ficou preso, como uma borboleta numa teia de aranha. Com os olhos arregalados, viu o homem avançar, compacto e barrigudo, estendendo na sua direção uns punhos de lenhador, com um sorriso pavoroso por trás da barba imunda. Depois houve aquela coisa monstruosa surgindo da sua boca num jorrar de sangue, levando-lhe a língua e os dentes. Uma flecha. Uma flecha que lhe tinha atravessado a nuca e a boca. A besta tentou arrancá-la, mas um novo choque surdo fê-lo vacilar, e depois cair de joelhos. Blaise descobriu então Merlim, o rosto mais pálido do que nunca, que caminhava para eles armando uma terceira flecha que atirou à queima-roupa, pregando o homem no chão.

Blaise ficou ali, preso nas redes, com o coração na boca, sem tirar os olhos do jovem bardo, enquanto este arrancava pausadamente as suas três flechas do corpo da vítima e as limpava na erva. Feito isto, Merlim veio em seu socorro, sem uma palavra nem um olhar de reprovação, e ajudou-o simplesmente a libertar-se. Tudo isto tinha algo de irreal e de absurdo. Esta criança que crescera demasiado depressa, pálida e magra, com os seus longos cabelos negros voando ao vento, o rosto tão sério e calmo, saltando sem nenhuma emoção por cima do cadáver ainda quente de um guerreiro duas vezes maior que ele, que lhe podia ter esmagado a cabeça. Esmagar-lhes a cabeça a ambos...

- Salvaste-me a vida - murmurou o monge.

Mas a criança subia já para o armazém e não o ouviu. Blaise viu-o entrar, depois voltar a sair logo em seguida e fazer-lhe sinal. Então, apressou-se a ir ter com ele..

Mal passou o vão da porta da cabana, um espasmo contraiu-o e desta vez foi ele a vomitar, apoiado ao lambril, libertando a bílis, a agonia e a vergonha que lhe queimavam as tripas. Limpou a boca com a parte exterior da manga, cuspiu e recobrou a respiração antes de encontrar forças suficientes para enfrentar de novo o penoso espectáculo.

Tão branca quanto uma banshee na penumbra, uma mulher muito jovem jazia sobre um monte de sargaço, movendo frouxamente as pernas nuas manchadas de sangue, até ao triângulo devastado do seu ventre. Encostada a ela, uma forma indistinta trespassada por uma flecha pesava ainda sobre um dos seus braços presos. E por trás de Merlim, que se tinha ajoelhado perto dela sem ousar tocar-lhe, um terceiro homem arrastava-se deploravelmente pelo chão, soprando como uma forja. Blaise arquejava, trêmulo, sem saber o que fazer. Agora que os seus olhos estavam habituados à escuridão, viu que a rapariga olhava para ele, suplicante e muda, com as roupas arrancadas espalhadas em seu redor como uma coroa, nua e matizada de golpes. Mas havia aquele homem, com uma flecha nos rins, que ainda estava vivo e ao qual Merlim não prestava atenção.

- Aquele ali não está morto - disse ele, tentando controlar a voz.

Merlim voltou-se, agarrou o guerreiro pelo atilho do casaco e virou-o brutalmente sobre as costas, o que arrancou um grito de dor ao moribundo.

- Ainda não...

E sem se preocupar mais com ele, transferiu a sua atenção para a jovem, com uma tal expressão de desespero que Blaise se apressou a ir para o seu lado. Ela mal respirava, com o rosto coberto de um suor gelado, os lábios tumefactos e o corpo de tal forma destruído que as lágrimas vieram aos olhos do monge. Os seus jovens seios e o seu ventre estavam marcados de traços escuros, até ao cimo das pernas.

- Não posso fazer nada - sussurrou ele. - Está quase morta... Falara muito baixo, mas a menina ouviu, e pôs-se a dar gemidos desarticulados, atrozes, agitando-se em desespero, tão violentamente que tiveram de fazer peso sobre ela para que não se mexesse. Quando as convulsões pararam e eles ousaram olhar de novo para ela, os seus olhos estavam definitivamente velados. Blaise desprendeu-se dela, limpou com a manga a testa a suar e depois, com um suspiro, traçou sobre ela o sinal da cruz e juntou as mãos.

- In nomine patris etfilii et spiritus sanctus...

- Ela não é cristã! - gritou Merlim. - Deixa-a em paz!

- Que sabes tu? - disse Blaise. - E, além disso, que mal poderiam umas palavras fazer a uma morta?

Merlim fechou sobre ela, o melhor que pôde, os lados do vestido em farrapos, antes de se deixar cair para trás, no limite das suas forças. Enquanto o monge salmodiava o seu latim, fixou-a intensamente. Que tinha ela conhecido da existência, confinada a esta ilhota de vida no meio de um horizonte deserto, entre o vento e o mar? Teria ela amado, pelo menos, antes daquele horror? Era pouco mais velha do que ele, magra e sem beleza, as mãos calejadas, os cabelos pegajosos de sal, e, olhando-a, pensou em Guendoloena, apesar das diferenças.

Nauseado, levantou-se e olhou com nojo o homem que agonizava a seus pés. Tinha rolado sobre o lado, e um pedaço de flecha saía ainda dos seus rins. Sangue misturado com baba corria da sua boca deformada num esgar de agonia.

- Marbhaiche... Gealtaire...

Merlim empurrou-o para trás com a ponta do pé e, lentamente, indiferente aos seus gritos, fez peso no seu ventre, até que a flecha se enterrou no couro da sua cota de malha.

- Salach cá! Chuimrígh cá!

Merlim debruçou-se energicamente, desembainhou rapidamente o punhal que ele trazia à cintura e cortou-lhe a garganta.

- Amén - disse Blaise.

Os dois companheiros trocaram um olhar cansado e depois o monge apontou para a infeliz com o queixo.

- Ajuda-me. É preciso enterrá-la...

Merlim não se mexeu, embora Blaise, depois de ter tomado a menina nos braços, tivesse erguido para ele um olhar interrogador.

- Deixa-a - disse a criança. - Se a enterrares, saberão que um monge passou aqui e perseguir-nos-ão.

- E eles, esqueceste-te deles? - exclamou Blaise, apontando os corpos trespassados de flechas.

- Eles, não interessa quem os possa ter morto. Um homem da aldeia, o pai dela, o marido... Ela está morta, de qualquer forma, não muda nada.

Nesse momento, a recordação da obstinação com que o jovem bardo construíra um túmulo para o cadáver de Guendoleu veio à mente do beneditino, mas absteve-se de fazer comentários e voltou a pousar suavemente o corpo da jovem. O cansaço e a mágoa submergiam-no pouco a pouco, dominando a sua fé ou o seu sentido do dever. Saiu sem olhar para trás.

Em silêncio, foram buscar os sacos e desceram o caminho das rochas desmoronadas que conduzia à beira-mar. Enquanto o monge escolhia uma embarcação e amontoava armas e bagagens, Merlim avançou na água do mar, até lhe ficar pelos joelhos, para lavar os braços e a cara. A água estava gelada, turva e escura, de um verde lamacento, profundo como um túmulo.

Depois de Blaise ter feito a sua escolha - um coracle redondo como uma casca de noz, cujo casco de madeira estava coberto de peles de foca engorduradas -, empurraram o barco para a água e saltaram para bordo. Merlim encostou-se imediatamente contra o bordo e enrolou-se no seu casaco, vendo-o fazer-se ao mar. Blaise não tinha mentido. Sabia aparelhar uma vela e tomar o vento. O coracle só conseguia navegar com vento de popa ou oblíquo, e tiveram de fazer várias tentativas antes de se afastarem da margem. Felizmente, a ondulação era fraca, na baía, e tinham mais a temer dos bancos de areia ou das rochas do que do efeito das ondas. Em alto mar, teria sido diferente. Os coracles não tinham quilha, e uma onda um pouco mais forte podia facilmente virá-los. Merlim, no entanto, lutava já contra o enjôo do mar, enquanto Blaise, pelo contrário, parecia renascer, orgulhosamente dedicado à cana do leme, com o vento do mar sacudindo o seu hábito preto de burel. Vendo que os seus lábios mexiam, a criança esticou as orelhas e ouviu uma evocação estranha, que o monge murmurava com um ar beato.

- Ergo-me neste dia com a força de Deus para me dirigir. A força divina para me suster, a sabedoria de Deus para me guiar. Os olhos de Deus para olharem à minha frente, o ouvido de Deus para me escutar. Cristo para me proteger, hoje, contra o veneno, contra a queimadura, contra o afogamento, contra as feridas, de forma que até mim venha abundância de recompensas...[21]

Escutou-o assim, durante muito tempo, sem dizer nada nem levantar os olhos para ele, e depois, quando, por fim, a litania se interrompeu e enquanto as costas da Cúmbria desfilavam a bombordo, dirigiu-se ao pequeno monge.

- Aqueles homens, na aldeia, eram Gaélicos, não eram?

Blaise olhou-o com um ar espantado, e o seu sorriso crispou-se. Deu um suspiro e depois concordou.

- Percebeste o que ele disse ?

Sentado sobre o pavês, o corpo balançando suavemente com a oscilação, o monge ficou por um momento silencioso, enquanto as imagens pavorosas da manhã voltavam a persegui-lo. Estremeceu bruscamente, gelado pelo vento do mar nas suas roupas molhadas.

- Ele amaldiçoou-nos, Merlim.

A criança abanou a cabeça, depois abafou-se novamente na sua capa.

- Está bem...

 

Era uma simples pedra, com alguns côvados [22] de altura e quase com a mesma largura, erguida transversalmente ao caminho que ladeava o loch [23]. Uma serpente fora gravada na rocha, artisticamente enrolada sobre si mesma, e parecia pronta a atacar, por cima de uma flecha quebrada em Z, decorada com um disco em cada uma das extremidades. Nada mais estava inscrito além destes símbolos obscuros, mas ninguém ultrapassava este marco sem tremer: aqui começavam as terras pictas do clã dos Miathi.

Ryderc levou o cavalo até à pedra, deixou os dedos deslizarem ao longo do desenho. Tinha consciência do olhar dos seus homens pousado sobre si, por isso esforçou-se por sorrir.

- Pois bem! - exclamou, voltando-se para o abade Kentigem, que seguia a pé. - Será preciso que os teus monges os ensinem pelo menos a escrever!

Houve risos como resposta a esta graçola infeliz, e depois o silêncio abateu-se ainda mais pesadamente sobre a coluna. Em volta de uma carroça de víveres e de uma liteira forrada de tecidos preciosos, escoltada por alguns religiosos vindos do mosteiro de Luss, eram menos de cem, dos quais uns trinta eram cavaleiros, cobertos de pesadas cotas de malha de escamas metálicas e de couraças de couro. Uma grande quantidade de estandartes flutuava acima deles, misturando as cruzes cristãs, as bandeiras vermelhas do Strathclyde e as cabeças de dragões, que o vento fazia bramar lugubremente. Quando deixara Dun Breatann, a tropa tinha um ar orgulhoso e parecia poderosa, mas agora caminhavam na imensidade dos Trossachs, na margem leste do loch, uma região onde o orgulho do homem não é aceite, entre a imensidade das florestas e a massa pesada das montanhas escarpadas. Cem homens podiam perder-se aí, cem ou mil, sem que ninguém voltasse a ouvir falar deles. Era ali, naquele território de fronteiras delicadas, que em outros tempos tinha desaparecido uma legião romana inteira, a nona, como que engolida pela bruma e pelas florestas, sem que nenhum homem regressasse... Era ali que se tinham fixado os Miathi, uma tribo menor, nem completamente picta, nem verdadeiramente bretã, acerca da qual circulavam as piores lendas. Para se protegerem deles, os Romanos tinham construído a Muralha da Antonino de um lado ao outro da Albany, e se agora o Strathclyde e o Manau Goddodin se tinham fixado largamente ao longo dos estuários do Clyde, a leste, e da Forth, a Oeste, o interior das terras continuava selvagem e inexplorado. Apesar de tudo, Ryderc preferira correr o risco de seguir este caminho longo e escuso para ir a Dunadd, a capital dos Dal Riada, em vez de ir por mar e ficar à mercê dos compridos barcos piratas dos Escotos.

Um grito de águia-real sobressaltou-os a todos, e seguiram com os olhos o seu vôo silencioso até que desapareceu nas nuvens. Em volta deles, a floresta sussurrava com o vento, estreitando o caminho que ladeava as aguas azuis do lago. Os homens sentiam-se espiados, como se a floresta tivesse olhos, como se por trás de cada arbusto se escondesse um bárbaro seminu, prestes a atingi-los com as suas lanças. Ryderc não tinha dito nada - não convinha que um príncipe informasse a tropa das suas intenções -, mas a pedra picta não podia deixar a mínima dúvida: cada um deles sabia agora que tinham entrado nas terras dos Miathi. O seu número, desde logo, parecia ridículo. Simplesmente o suficiente para excitar um dos chefes de guerra que procurasse armas, cavalos, sangue e glória...

Como eco dos seus piores temores, uma corneta começou a tocar na outra margem, somente a uma distância de algumas braçadas na parte alta do loch. E enquanto eles continuavam a avançar, uma segunda corneta respondeu-lhe, reenviando o sinal de uma margem para a outra, ao longo da sua progressão.

Foi assim durante horas, até à noite, sem que conseguissem ver quem quer que fosse. O próprio Ryderc escorria suor apesar do frio, por causa da tensão. Várias vezes a coluna parara sem ter recebido ordem, e os guerreiros do Strathclyde tinham-se eles próprios formado grosseiramente para combate. Um pequeno nada bastava, de tal forma os homens estavam com os nervos em franja. Um javali ou um veado a fugir nas colinas, um homem a tropeçar numa pedra, e os seus companheiros já o viam atingido por um dardo...

Ao cair da noite, tinham chegado à extremidade do loch, à fronteira do reino dos Dal Riada e das imensidões montanhosas submetidas à autoridade do rei dos Pictos Brude mac Maelchon. Tinham caminhado mais lentamente do que o previsto e estavam ainda a léguas do ponto de encontro combinado pelos monges. Enquanto a coluna fazia uma pausa, Kentigem foi a passo rápido até junto do rei.

- Porque paramos? - perguntou, o que teve o efeito de exasperar imediatamente Ryderc.

- Vai cair a noite, caso não tenhas notado...

O bispo olhou em volta e, pelo seu ar, o jovem rei teve a impressão que ele efetivamente não reparara.

- Queres que vá à frente? - disse ele. - Os meus monges levam a cruz, não arriscamos nada...

Ryderc abriu a boca para lhe responder com maus modos, mudou de opinião e anuiu, quase com raiva. Encolheu os ombros, vendo Kentigem ir embora, animado por aquela energia animalesca que punha em todas as coisas, seguido do seu séquito encapuçado, brandindo uma cruz com uma altura de várias braçadas. O jovem rei seguiu-os com os olhos durante um breve momento, até eles terem desaparecido numa curva do caminho, e depois desceu do cavalo, imediatamente imitado pelos outros cavaleiros.

- Alguns homens lá para cima - resmungou, para um sargento de armas que viera receber ordens. - Vamos parar aqui para passar a noite. Levantem o acampamento.

Durante um momento, observou a agitação metódica da tropa. Alguns juntavam os cavalos para os desaparelharem, enquanto outros desbastavam a grandes golpes de espada os arbustos em volta e arqueiros se iam colocar dispersos nos lugares mais altos. Satisfeito, aproximou-se da liteira atrelada e levantou a sua grossa cortina de couro. Descobrindo o rosto cheio e vagamente enjoado de uma dama de companhia, o seu sorriso gelou-se um pouco, mas voltou-se imediatamente para o outro lado da carroça, onde se tinham instalado Guendoloena e uma menina de longos cabelos louros e ar triste.

- Chegamos? - perguntou a jovem irmã do rei.

- Ainda não... Mas vamos fazer uma paragem aqui. O abade foi reconhecer a estrada. Ainda vamos demorar.

Estendeu o braço por cima das peles que guarneciam todo o habitáculo e segurou ternamente a mão da irmã. Depois, olhou para a companheira dela, fez uma careta divertida e bateu-lhe na coxa.

- Tens de te portar melhor, minha prima... Se não, caso-te com um picto!

Horrorizada, a jovem voltou-se para Guendoloena, que encolheu os ombros.

- Deve achar-se muito engraçado - disse ela.

E como Ryderc deixasse cair a cortina e se fosse embora a rir, ela pegou calorosamente nas mãos da prima.

- Parece que Aedan vai ser rei quando morrer o velho Conall - disse ela. - Como vês, Melangell, serás rainha antes de mim... A jovem secou furtivamente os olhos vermelhos.

- Diz-se que ele já tem uma mulher - murmurou ela. - Um cristão pode casar-se duas vezes?

- Não sei, minha prima... Estás melhor?

Melangell abanou a cabeça sem dizer nada. Guendoloena abraçou-a, confiou-a com um olhar aos cuidados da dama de companhia, depois saiu rapidamente da carroça e apanhou o irmão em algumas passadas. Sem lhe dar tempo de protestar e apesar da promessa de não sair durante toda a viagem do pequeno abrigo da liteira, enfiou o braço por debaixo do de Ryderc, sorriu inocentemente, sem lhe dar tempo para protestar, e fez-lhe sinal com o queixo para que continuasse a andar. Vencido e divertido, feliz de fato por poder dar alguns passos com a irmã, o jovem rei foi sentar-se ao abrigo de um rochedo musgoso, onde rapidamente os seus chefes de guerra foram ter com ele. Partilharam com ela fatias de presunto cru e passaram alternadamente um odre de água fresca, sem que nenhum deles fizesse qualquer pergunta. No entanto, Ryderc sentia a inquietação e a incompreensão que os minava, e decidiu revelar-lhes por fim o objetivo da expedição.

- Passam-se coisas importantes - disse ele. - O abade de Kentigem e Colunib Cille de Iona organizaram um encontro entre nós, o rei Conall dos Dal Riada e os príncipes pictos do Sul. Poderemos conseguir uma aliança contra os Saxões. Ou, pelo menos, obter uma trégua. O próprio rei Brude garantiu a nossa segurança. Não há nada a temer...

Porque é que ele próprio não conseguia acreditar nas suas palavras? Aqui, nestas montanhas que ninguém controlava, como poderiam sentir-se em segurança? Nem o poderoso reino do terrível Mynydog, o Rico, nem o Strathclyde ou o Dal Riada reivindicavam este território selvagem e magnífico, nem mesmo os Pictos de Brude mac Maelchon. Ryderc brincava distraidamente com um ramo, o que lhe evitava ver as caras assustadas dos seus tenentes. O peso do silêncio era tão duro, porém, ao fim de um momento ele levantou os olhos.

- Que se passa?

Diante dele estava Sawel Ruadh e Dafydd, dois dos seus mais valorosos chefes de guerra. Para eles, como para a maior parte dos homens do Norte, a ameaça saxônica estava ainda longe, ao passo que não tinham parado, durante toda a vida, de combater Pictos e Gaélicos...

Sawel o Ruivo, apontou com um movimento de cabeça interrogativo a jovem irmã do rei, mas este varreu a sua pergunta muda com um gesto irritado.

- Podes falar diante dela. Diz o que tens a dizer...

Então, ele encolheu os ombros e cuspiu um pedaço de presunto que estava a mastigar.

- Porque é que trouxeste as mulheres, Ryderc? Queres dá-las em casamento a esses porcos?

- Ah!

Ryderc levantou os olhos para o céu, sorrindo, contemplou as longas nuvens cor-de-rosa que se estendiam no horizonte nos últimos raios do dia, e depois, de repente, desembainhou a sua adaga e lançou-se sobre o seu tenente. Sawel lançara-se para trás, mas Ryderc imobilizou-o. A lâmina clara lançava um brilho de aço na sua barba ruiva e a ponta tinha-se cravado na maçã do rosto do guerreiro, precisamente debaixo do olho.

- Vês, Sawel, ninguém está livre de um ataque, principalmente quando não estamos à espera dele...

Endireitou-se e estendeu a mão para o ajudar a levantar-se, mas o outro desdenhou-a com um ar furibundo. Com a ponta do dedo, tirou uma gota de sangue da cara e depois voltou a sentar-se sobre um rochedo, resmungando. Guendoloena sustinha a respiração e esforçava-se por manter a cabeça baixa. Cada um deles podia sentir a humilhação ultrajada do guerreiro.

- Se queremos atacar os Saxões, é preciso manter as nossas fronteiras do Norte - continuou Ryderc, mantendo-se de pé. - Portanto, sim, vamos aliar-nos com os Dal Riada... E sim, vai haver um casamento. Dei o meu consentimento para que o príncipe Aedan mac Cabran case com a minha prima Melangell. De futuro, não voltes a chamar um membro da minha família de porco...

Um silêncio embaraçoso instalou-se entre eles, rapidamente dissipado pelo riso surdo de Dafydd.

- Que é que te faz rir? - resmungou Ryderc, voltando-se para ele.

Dafydd levantou a mão em sinal de paz, mas com um olhar mordaz.

- Guarda a tua adaga, vá... Percebi a tua lição e estou alerta.

Os dois homens fixaram-se durante um breve momento e, depois, Ryderc voltou a colocar a arma na bainha, rindo. Veio sentar-se perto de Sawel e serviu-lhe ele próprio uma bebida, com uma cotovelada amiga.

- O que me diverte - continuou Dafydd - é que Aedan já é casado...

Guendoloena sobressaltou-se, mas não disse nada e contentou-se em ouvir.

-...casou com Domelach, a irmã do rei Brude - continuou o guerreiro. - Assim, se o velho picto morresse, Aedan podia ser pretendente ao trono do reino picto... É um aliado poderoso a quem te vais unir, Ryderc. Um aliado muito poderoso...

Ryderc aprovou, e ia-lhe responder quando um soldado veio acender uma fogueira no meio do pequeno grupo. Ficaram a vê-lo acendê-la em silêncio, até que as chamas se elevaram e iluminaram o círculo. A noite tinha caído. Já nem se via o loch. Quando o guarda foi embora, juntaram-se todos, instintivamente em volta do lume fraco.

- Tens razão - continuou Ryderc, debruçando-se sobre as chamas. - Mas é mais complicado do que isso...

A expressão da sua cara atingiu Guendoloena, bem como a sua forma de martelar com o punho na palma da mão, acompanhando cada uma das palavras que dizia. Ela inclinou-se para trás, afastando-se da luz avermelhada da lareira, para passar despercebida e escutar tudo.

- Há uma quinzena de anos, o rei Gabran reinava sobre os três clãs escotos do Dal Riada - continuou Ryderc. - Os Loairn ao norte, os OEngusa na ilha de Islay, e o seu próprio clã, o Cenel Gabrain, que se fixara no Kyntire, na ilha de Arran e no país de Cowal1. Quando se sentiram suficientemente fortes, partiram em raid para leste, através das terras pictas. Como todos sabem, foi um desastre, ao qual Gabran não sobreviveu. Aedan não passava de uma criança, mas teve de fugir com a mãe, Lucan. Felizmente para eles, ela era filha do rei Brychan dos Manau Goddodin, e este ofereceu-lhes refúgio na sua fortaleza de Caer Eden. Os Pictos tinham infligido aos Escotos uma derrota severa, mas eles próprios tinham sofrido bastante para irem até ao fim e empreenderem uma conquista exemplar do Dal Riada. Contentaram-se, então, com um tratado. O reino dos Escotos teve de prestar vassalagem a Brude, o qual colocou no trono deles um primo de Aedan, o velho Conall, um homem pacífico...

- Um frouxo, isso sim!

- Mais tarde - continuou Ryderc, ignorando a intervenção - Conall obrigou o seu jovem primo Aedan a casar com a irmã de Brude, em sinal de paz. Por isso, sim, Aedan já está casado. Sim, ele é cunhado do Picto. Mas é também um príncipe dos Manau Goddodin e, acima de tudo, o filho de Gabran, que só sonha em vingar a afronta sofrida pelo pai... Também ele necessita de estar em paz conosco. Conall está velho, e a hora de Aedan vai chegar. Com a nossa aliança e a da sua família materna, os Goddodin, creio que tem força suficiente para enfrentar Brude. Acho que os monges de Iona conseguiram o que nenhum exército conseguiu, seja ele romano, escoto ou cymri: domar os Pictos. Fazer deles aliados. E, com eles, abater-se como um maremoto sobre o sul, sobre os Anglos da Bernícia, os Saxões e os Jutos, até ao mar!

À luz da fogueira, a sua cara adquiria um aspecto selvagem que assustava a todos, mas ele afastou-se com uma careta descontraída e bebeu a grandes goladas.

- Também nós estamos a sul deles - murmurou Dafydd. Ryderc voltou a pousar a sua taça e estendeu para o tenente um dedo acusador, mas, nesse momento, um grito de alarme retiniu do outro lado do acampamento. Imediatamente, gritos ensurdecedores elevaram-se de todos os lados. Sawel, que acabara de se voltar a servir de uma bebida, atirou com a cerveja para o lume, e os outros imitaram-no. Nesse mesmo instante, ficaram mergulhados na escuridão, cegos, e empurraram-se desembainhando as suas espadas compridas.

- Dafydd, cuida de Guendoloena, leva-a para a carroça! - gritou Ryderc, precipitando-se já na direção do caminho.

Um guarda correu para ele, com um archote na mão. Ele quis gritar-lhe que se livrasse dele, mas o homem foi atingido por uma lança e caiu pesadamente, enquanto um tumulto ensurdecedor se abatia de uma só vez sobre o loch. Ryderc deu meia volta e viu-os, semelhantes a espectros pálidos à luz da lua. Depois, dos arbustos desceram rapidamente, no meio da algazarra dos gritos de guerra, centenas de guerreiros nus, peludos e magros, usando curiosos escudos quadrados e cada um deles armado com várias lanças. Um deles surgiu repentinamente sobre ele com um grito rouco. Ryderc viu os seus olhos loucos, o seu rosto coberto de tatuagens azuis e a ponta da sua lança atirada na sua direção. Deu um salto para trás e atacou, cortando carne e ossos num feixe de sangue que o manchou. Uma lança, projetada de muito longe, bateu-lhe no peito sem perfurar a cota de malhas, e depois uma segunda fixou-se em frente dele, no chão, sem que ele visse dos assaltantes mais do que sombras difusas. Ryderc recuou, abrigando-se num arbusto espesso e tomou fôlego. A lua cheia confundia as margens do loch e a floresta de pinheiros no mesmo reflexo acinzentado, onde as silhuetas furtivas dos Pictos rodopiavam em todos os sentidos como gerifaltes. Ouviu vozes bretãs no tumulto louco da batalha, e dirigiu-se febrilmente para elas, a coberto das árvores. Quase imediatamente caiu numa peleja. Vinte ou trinta homens num corpo a corpo. Ryderc atirou-se para a luta, gritando a plenos pulmões, fez voar com um grande murro a arma da mão de um jovem Picto imberbe, atirou-o ao chão com um pontapé e matou-o sem se deter. Os outros tentavam já fugir, mas de todo o lado convergiam guardas de capas vermelhas. Os Pictos atiraram as suas lanças, e depois correram para a morte brandindo os seus machados, sem mais efeito do que uma onda enfurecida quebrando-se numa falésia. O massacre não durou mais do que uns instantes e depois, quando tudo estava terminado, os Bretões ergueram os olhos e esticaram as orelhas. Em algum lugar, continuavam a combater...

- Sigam-me! - gritou Ryderc, e lançaram-se como uma alcatéia de lobos para a linha clara do carreiro por cima deles.

A partir do momento em que desembocaram a descoberto, uma chuva de lanças vindas do matagal abateu-se sobre eles. Vários Bretões caíram gritando, e os outros entravam já no combate, mas uma luz avermelhada tinha chamado a atenção do jovem rei, num nível inferior, e gritou-lhes que o seguissem. Só os que estavam próximo dele obedeceram. Ryderc não se preocupou. Indiferente aos combates ou aos gemidos dos feridos, corria já diretamente para o incêndio. Outros bárbaros surgiam diante deles e o pequeno grupo de Bretões embatia neles com todo o seu peso, cortando e batendo como condenados, a golpes de força, a golpes de escudo e murros, levados por uma fúria assassina mais pavorosa ainda que a dos Pictos, tão maciços nas suas cotas de malhas de escamas metálicas que pareciam invencíveis, fazendo o medo mudar de campo. Um deles, magro e alto como um animal selvagem, trazendo como única arma um pedaço de lança, agarrou-se ao rei e atingiu-o na cabeça. Ryderc vacilou. Pontos luminosos dançavam-lhe diante dos olhos e as pernas fraquejavam-lhe. Sangue quente corria-lhe desde da testa até ao pescoço. Agarrado a ele, o bárbaro apertou-lhe o pescoço com as mãos descamadas e rolaram os dois sobre o caminho. Mas os dedos de Ryderc encontraram uma pedra e ele bateu, uma e outra vez, até que o abraço do Picto relaxou. Ficaram assim durante um bom bocado, o corpo da vítima pesando sobre ele. Os cabelos sujos do Picto cobriam-lhe a cara e o sangue de ambos misturava-se, sujando-lhe a sua cota de malha. Por fim, um dos guardas arrancou o cadáver que o cobria e Ryderc conseguiu levantar-se.

- Senhor!

- Estou bem...

O jovem rei levou a mão à cara e fez uma careta de dor. O chuço do Picto cortara-lhe o couro cabeludo e tinha-o aberto até à face. A perna doía-lhe, a ferida do braço voltara a abrir, as mãos tremiam-lhe... Apesar de tudo, voltou-se para a fogueira de luz e pôs-se novamente a caminho com um passo vacilante. Um dos seus homens apanhou-lhe a sua longa espada e devolveu-a, e em seguida, aqueles que ainda podiam andar reagruparam-se em volta do rei.

A Lua estava agora escondida pelas nuvens, mergulhando o loch e os seus arredores numa escuridão quase total. Viam-se aqui e ali archotes crepitantes pelo caminho, mas ninguém podia continuar a ignorar o clarão que iluminava as trevas, a cem varas dali. Um pouco por todo o lado, soavam gritos de vitória dos Bretões, os ruídos dos últimos combates e os gemidos dos feridos, mas o pequeno grupo avançava sem tomar cuidado, ao ritmo hesitante do passo de Ryderc. Não passavam de um punhado de homens a rodear o rei, cinco ou seis, formando uma muralha com os seus escudos compridos e perscrutando a floresta que pendia sobre eles, conscientes de que um novo ataque acabaria com eles. Mas o rei não se preocupava com isso. As chamas ficaram em breve claramente visíveis, e depois a liteira das mulheres devorada pelo fogo. Ryderc gemeu quando distinguiu as silhuetas torcidas, apanhadas na armadilha daquele horror. Apressou o passo, apesar da dor, apesar das ondas de suor gelado que o submergiam a cada esforço e quase o faziam cair, ao ponto de um dos guardas ter rapidamente de o apoiar. Dezenas de corpos estavam estendidos em volta da carroça, Pictos e Bretões, testemunhando a fúria do combate que se tinha desenrolado ali. Um cadáver ardia no meio da fornalha, pavoroso, irreconhecível. Um outro, o de uma mulher, usando os restos de um vestido branco comprido semi-calcinado, estava enrolado a algumas braçadas dali, perfurado por chuços... De que cor era o vestido de Guendoloena?

Subitamente, um pequeno grupo de homens destacou-se da escuridão e carregou sobre a fraca escolta do rei. Os Bretões retesaram-se, prontos para o combate, o tempo de distinguirem nos recém-chegados as capas vermelhas do Strathclyde. À frente caminhava Dafydd, que correu para ele mal o reconheceu.

- Pelas Mães, estás vivo!

À luz das chamas, o guerreiro cruzou o olhar com o do jovem rei, banhado em lágrimas e sangue, medonho de ódio e mágoa.

- Guendoloena está bem! - acrescentou ele com prontidão. - Ela está bem!

Ryderc olhou-o, com um ar perdido. Sacudiu a cabeça várias vezes, como que para convencer a si próprio, e agarrou-se a ele para não cair. Foi então que a viu, correndo na sua direção.

- Protejam-na! - gritou, voltando-se para a massa sombria da floresta acima deles.

Imediatamente, os guardas arrastaram-no, ao abrigo dos seus escudos até um monte de rochas musgosas perdidas no meio da urze e dos fetos altos. Mal se juntou a ele, Guendoloena refugiou-se nos seus braços. Não chorava, porque não convinha chorar em frente dos homens, mas os seus olhos estavam ainda repletos do horror que tinham visto.

- Logo no início, atacaram a carroça - disse Dafydd, por trás deles. - Escondi-me com ela, não havia mais nada a fazer. Deviam ser uma centena...

Ryderc assentiu, mas mal o escutava. Guendoloena limpava-lhe o rosto ensanguentado com a ajuda de uma compressa de musgo úmido e ele sentia-se afundar lentamente no vazio.

- Era uma armadilha - continuou Dafydd. - E era a carroça que eles queriam. Foi um massacre... Vi dois deles atacarem a menina Melangell com os chuços, apesar dos guardas. Parecia que se esforçavam acima de tudo por matar as mulheres... Acho que o velho Brude não queria este casamento!

Guendoloena ergueu para ele o rosto pálido.

- Ele já não te ouve - disse ela.

 

- Não!

Merlim acordou em sobressalto, com um movimento de recuo involuntário. Os olhos muito abertos, o rosto em suor, lutava por se restabelecer, enquanto se evaporavam como bancos de bruma as imagens pavorosas que o tinham vindo assombrar. Mortos, por todos os lados da planície, macilentos, lívidos. O corpo mutilado de Guendoleu avançava para ele, com os braços estendidos. A cabeça cortada, no chão, reclamando o colar. Sem fôlego, ainda cheio de medo, Merlim ergueu-se ao longo do pavês e levou instintivamente a mão ao pescoço. O colar estava lá, gelado e coberto de geada, bem como o resto da frágil embarcação. Blaise dormia, encostado à cana do leme e enrolado sobre si mesmo, na chiadeira regular do balanço. Com o hábito de burel endurecido e esbranquiçado pelo frio, assemelhava-se de tal forma aos cadáveres exangues do seu pesadelo, que a criança se refugiou rapidamente no fundo da embarcação. Procurou em volta alguma visão tranquilizadora, mas o próprio mar deitava um nevoeiro espesso semelhante ao do seu sonho, e ele sentiu o pânico submergi-lo. Para ele, o nevoeiro não pertencia nem a este mundo nem ao dos mortos. Inatingível, opaco e glacial, era o sopro do dragão, o tempo dos deuses, onde nenhum mortal se podia sentir em segurança. Já em volta dele galopavam, rugindo, os cavalos de Ler [24] sacudindo a seu bel-prazer a frágil casca de noz. Em breve viria Kelpie, aquele cavalo-demônio de crinas de algas verdes que assombrava as ondas e as levava para sempre para as profundezas verde-mar. Merlim estreitou-se um pouco mais contra o bordo e tapou o rosto, tão aterrorizado que precisou de vários minutos antes de pedir ajuda. Quando, por fim, abriu os olhos, um fraco raio de sol rompendo a bruma deu-lhe coragem suficiente para erguer a voz.

- Blaise! Acorda!

O monge sobressaltou-se e, ao primeiro movimento que fez, soltou pó de geada das pregas do seu hábito.

- Eu... Eu não estava a dormir - murmurou ele, com uma voz enrouquecida, quase imperceptível.

Merlim rastejou até ele de cócoras agarrando-se ao cordame para não derrapar no casco coberto de gelo.

- Acorda! Perdemo-nos, olha!

O monge endireitou-se, tremendo. A geada colara-se à sua tonsura, às suas sobrancelhas e à sua barba. A sua cara adquirira um tom violáceo e os seus lábios estavam gretados. Merlim despiu a capa e cobriu-o com ela, depois começou a friccioná-lo com todas as suas forças. Ele próprio se sentia entorpecido pelo frio e sentia a mordedura cruel do sal sobre o rosto.

- Já não se vê terra! - disse, percorrendo com um olhar angustiado a bruma insondável que os rodeava.

Blaise afastou-se dele, endireitou-se o melhor que pôde contra o casco. Uma vista de olhos e empurrou a cana do leme. A embarcação veio imediatamente à onda a bombordo, balançando perigosamente. Um vento regular empurrara-os para sul durante dois dias, ao longo das costas da Cúmbria. Certamente não deveriam estar muito afastados das margens do Gwynedd, mas o vento caíra durante a noite, e Blaise tinha adormecido... Só Deus sabia há quanto tempo andavam à deriva. Inspirou uma grande lufada de ar do mar e foi imediatamente tomado por um ataque de tosse que o dobrou ao meio. O seu corpo inteiro, cada um dos seus ossos, estava dolorido. A febre fazia-o transpirar e bater os dentes ao mesmo tempo.

- Dá-me de beber - pediu.

Blaise estendeu a mão a Merlim, mas, como se este simples gesto tivesse queimado o que lhe restava de energia, caiu no meio do cordame gelado e dos sacos de provisões. Imediatamente, a embarcação estremeceu sob o vento, com uma mudança brusca de direção que desequilibrou o jovem bardo. Com o coração a bater, precipitou-se para o seu companheiro e apertou-o contra si.

- Vais ter de te desenvencilhar sozinho - sussurrou o monge. Merlim fitou-o com horror, e depois olhou para a cana do leme, bamboleando frouxamente devido à ondulação. Blaise tremia convulsivamente nos seus braços. Os seus olhos piscaram por um momento e depois reviraram-se, e o monge perdeu os sentidos.

- Acorda! - gritou a criança. .- Não vou ser capaz!

Mas o monge não respondeu.

Merlim examinou o céu. O nevoeiro transformava-se em morrinha e depois em chuvisco. Com o dia vinha o vento e a grande vela quadrada começava a enfunar. Colocou com precaução a cabeça do companheiro sobre um saco de víveres, cobriu-o com a sua capa e rastejou até à cana. Como tinha visto fazer, empurrou com toda a força o leme para levar a embarcação para bombordo, em direção a terra. O barco obedeceu tão prontamente como um cavalo, com a mesma força, a mesma obediência instintiva e, apesar do seu medo, Merlim. sentiu-se cheio de uma lufada de exaltação logo que a vela se arredondou. Sob a sua mão, a cana do leme domava as ondas e o vento. O nevoeiro começava a dissipar-se, como se os deuses tivessem decidido deixá-los viver, apesar de tudo, pelo menos ainda esse dia. De cada vez que descia, a barcaça, conduzida sem sutileza embarcava vagas do mar, e a vela mal esticada batia à menor mudança de vento, mas lá iam navegando, sempre em frente.

Rapidamente, Merlim avistou na linha da proa do coracle uma forma escura, infinita, riscando o horizonte. Lançou um olhar feliz a Blaise, mas o monge estava de costas para ele, enrolado contra o bordo. Era terra, com certeza, e o vento empurrava-os na direção certa. Bastava agarrar-se, aguentar as ondas e as bofetadas dos salpicos do mar. Já lhe parecia ver, para lá da margem e de uma floresta que parecia quase tocar na água, uma linha de montanhas azuis, e todo o tempo que ele assim navegava os seus olhos escrutinavam desesperadamente as margens, a procura duma referência.

Não havia nada, no entanto. Nem aldeia, nem fumo, só aquela faixa de terra estendendo-se a perder de vista, esmagada pela forma escura de um maciço tão alto que parecia subir até às nuvens, maior do que tudo quanto alguma vez vira... Avistou, por fim, uma espécie de canal, para o qual a corrente o empurrava, separando a bombordo a costa abrupta de uma margem mais acolhedora a estibordo, coberta pela floresta. Era com certeza a foz de um rio... Os seus cabelos molhados pelo chuvisco do mar tinham gelado, e as ondas atingiam-lhe a cara como chibatadas, mas a criança mantinha-se de pé, tão reluzente quanto uma sereia na sua túnica de tecido ondeado, até a terra estar suficientemente próxima para ele distinguir a espuma das ondas a quebrarem-se na areia. Aproximava-se depressa, muito depressa...

- Blaise! - gritou. - Que devo fazer?

Abatido contra o fundo, o monge já não mexia. Merlim afastou com um gesto nervoso uma mecha de cabelo colada à cara e depois decidiu arriar a cana do leme. A embarcação aumentou imediatamente a velocidade e apanhava as ondas de lado. Freneticamente, a criança tentou soltar a adriça que segurava a vela, mas o cordame tinha gelado, e a costa continuava a aproximar-se. Então, desembainhou a adaga e cortou. A verga desabou imediatamente com um estrondo terrível, depois oscilou por cima do bordo. O coracle deu meia volta, abrandado pelo velame que arrastava atrás de si como uma âncora flutuante, e vinha agora de popa para a margem, perigosamente maltratado pela ressaca. Merlim, mais uma vez submergido pelo medo, agarrou-se ao mastro e implorou a Cliodna, a deusa do mar. Houve logo um leve raspar, depois um choque enorme que projetou a criança e o monge contra o bordo mal o barco encalhou nos seixos.

O primeiro reflexo de Merlim foi saltar para a água, deixar finalmente esta plataforma movediça e ir para terra firme, mas voltou para junto do seu companheiro e, com um esforço enorme, pois Blaise era muito pesado, conseguiu arrastá-lo até ao bordo. Balouçaram até caírem na agua, mergulhando até à cintura, e depois afastaram-se com esforço do mar e das algas para finalmente se deixarem cair sobre os seixos da praia.

A costa não era um abrigo nada confortável, batida que estava pelo vento, os salpicos do mar e o chuvisco. Mal tomaram fôlego, avançaram até à floresta, tão densa quanto uma muralha diante do oceano. Blaise mal conseguia caminhar. Com o braço por cima do ombro de Merlim, divagava e murmurava palavras sem nexo, que tanto podiam ser latim como indefinidas jeremiadas. A criança, esmagada pelo seu peso, não conseguiu passar muito além da orla. Deixou-o cair num maciço de fetos, depois voltou cambaleando para a barcaça encalhada para recolher as armas e tudo quanto podia levar sem desmaiar. Regressado ao abrigo dos bosques, apoiou-se num pinheiro-silvestre para, também ele, não perder a consciência.

Estranhamente, o chão parecia ondular. Sentia nas pernas o movimento da ondulação a que tivera de se habituar nos últimos dias, e precisou de um bom bocado para que essa sensação o deixasse, como se o mar quisesse continuar com ele. Lentamente, deixou-se escorregar contra o tronco, fechou os olhos e saboreou os bons odores da vegetação rasteira. Sorriu ao distinguir o chilreio dos pássaros e os barulhos furtivos da floresta, por trás do ruído das ondas e do vento. Apesar da fadiga e do frio, sentia dentro dele um renascimento, um regresso à vida depois de ter flutuado à vontade dos deuses sobre aquela imensidão medonha. A casca da árvore, debaixo dos seus dedos, era deliciosamente rugosa e estaladiça. Ele sentia a força, o calor, a tranquila indiferença ao estrondo das ondas. Aspirava o odor suave, terroso, sentia debaixo dos pés as arranhadelas das silvas e o ranger do tojo. Blaise gemia baixinho, mas a criança estava demasiado cansada para ir ajudá-lo. Ficaram assim durante muito tempo, num embrutecimento completo, e Merlim tinha certamente adormecido quando ouviu subitamente o galope longínquo de uma corça, escapando-se nas profundezas dos matagais. Teria tido medo deles? Não, era outra coisa. Qualquer coisa que se aproximava, qualquer coisa estranha à quietude da floresta. Alguém...

Então, abriu os olhos e acordou, como saído de um sonho, um pouco perdido, com o coração a bater. Prudentemente, voltou para a praia e, escondido atrás de um arbusto, viu aproximar-se um grupo de homens que, cacarejando como galinhas, caminhavam a grandes passadas em direção à barcaça encalhada. Eram monges, sem dúvida, a julgar pelos seus hábitos negros de burel, idênticos ao de Blaise. Eram seis, quase todos com barba e tonsura. Sem o verem, juntaram-se em volta da embarcação e começaram a içá-la para a praia o melhor que podiam. Depois, um deles saltou para bordo e atirou com os alforges deles para terra. Merlim reagiu imediatamente, sem refletir.

- Larguem isso, gatunos! - gritou, aparecendo bruscamente. Os homens viraram-se para ele, inquietos a princípio, depois trocistas ao verem-no tão jovem, depois de novo alarmados quando viram o arco que a criança brandia, e a sua flecha armada.

- Não queremos roubar-te, meu filho - disse um deles, com um gesto de reconciliação. - Sou Gwenfaen, prior de Penmon, e estes são os meus irmãos. É o teu barco?... Queríamos somente socorrer-te, caso tivesses necessidade de ajuda...

Merlim fitou o monge com ar desconfiado.

- Quem é o teu senhor?

- Não tenho senhor - disse Gwenfaen, com um sorriso divertido -, a não ser Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas se é isso que queres saber, encontras-te na ilha de Môn e estamos subordinados a Rhum, príncipe do reino de Gwynedd!

Sem querer, Merlim voltou-se para a margem arborizada que se adivinhava do outro lado do canal. Aquilo que ele julgara ser a foz de um rio era o estreito braço de mar que separava Ynis Môn das terras montanhosas do País Branco, que se encontrava ao alcance de uma flecha. A terra dos seus inimigos... Merlim recompôs-se imediatamente e esticou de novo a corda do arco, mas os monges tinham percebido a sua reação, e trocavam olhares cúmplices. Merlim engoliu em seco, hesitando sobre o comportamento a ter. Fugir a sete pés parecia-lhe a melhor idéia, e, no entanto, um resto de discernimento, lá no fundo do seu ser, impedia-o de ceder a um impulso tão estúpido. Em teoria, a ilha pertencia a Gwynedd, mas, para todos os outros, Cyrnri era uma terra sagrada. Durante toda a sua infância tinham-lhe falado da revolta dos druidas de Môn contra Roma, e do massacre deles pelas legiões de Agricola. Depois, os monges tinham sucedido aos druidas, mas a ilha continuava, tanto quanto se lembrava, uma terra de asilo...

- Precisas de ajuda, meu filho? - repetiu Gwenfaen.

Por trás dele, os outros monges esperavam em silêncio, agrupados perto do coracle e das suas poucas bagagens ensopadas. Merlim baixou a cabeça e distendeu suavemente a corda do seu arco. É claro que precisava de ajuda... Só tinha uma vaga idéia da configuração das costas, mas era suficiente para compreender que podia ter encalhado diretamente nas margens dos seus inimigos e que, encontrando-se agora numa ilha, nunca mais poderia escapar dela sozinho. Além disso, mesmo que soubesse navegar, como poderia pôr sozinho no mar a barcaça encalhada nos seixos? Voltou a colocar a flecha na aljava e depois, encolhendo os ombros, apontou para a floresta, por trás dele.

- Um dos vossos precisa ser tratado - disse ele.

E sem prestar atenção aos olhares de surpresa dos monges, sem mesmo se assegurar de que o seguiam, virou-lhes as costas, enfiando-se pela vegetação, até ao abrigo de verdura onde tinha deixado o seu companheiro.

 

Mesmo que não soubesse onde era o lugar, o campo de batalha estava assinalado a léguas em volta pelo vôo dos corvos e pelo cheiro pavoroso da decomposição que o vento trazia até ele. Gurgi apeou-se, tirou o casaco e cobriu com ele a cabeça do cavalo. O animal sentira o odor dos abutres e não parava de fungar e de roer o freio. O homem segurou as rédeas, desembainhou a espada comprida e avançou lentamente. Passado o rio, teve de cobrir o nariz com um lenço, também ele, para resistir ao fedor do campo de cadáveres. Os primeiros abutres tinham sido os habitantes da vizinhança, deixando aos despojos dos bravos caídos nesta carnificina somente alguns farrapos, sobre o que restava dos seus cadáveres. Depois tinham vindo os pássaros, os lobos, as raposas, as formigas e os vermes... Caminhando a passo, Gurgi avistou a uma boa distância uma alcatéia de lobos disputando os últimos pedaços de carne putrefata do que fora outrora um ser humano. À sua passagem silenciosa, os animais selvagens mal se afastaram, sem interromperem o seu pavoroso banquete, não mais do que os corvos que, às dezenas, às centenas, se tinham abatido sobre a planície. Para onde quer que se olhasse, só havia visões de horror. Vestígios pegajosos e apodrecidos eram tudo quanto restava da glória dos homens, Celtas e Gaélicos misturados, que ninguém conseguia identificar. Tornando a embainhar a sua arma inútil, apertou o lenço contra a boca e o nariz, e continuou o seu caminho. Subitamente, imobilizou-se, e o seu coração disparou dentro do peito. Na orla da floresta, um túmulo celta erguia-se numa elevação, sobre o campo de batalha. O montanhês dirigiu-se rapidamente para ele, atou as rédeas da montaria a uma árvore e começou a desaterrar febrilmente o monte de pedras e de terra. Com uma força de animal, os braços entorpecidos e as mãos arranhadas pelas arestas cortantes das rochas, empenhou-se sem parar, deitando por vezes, por cima do ombro, um olhar inquieto para a planície ou para o céu. O dia já declinava, e a perspectiva de ser apanhado pela noite neste campo de mortos cheio de animais selvagens e de fantasmas redobrava o seu ardor. Por fim, viu o brilho embaciado duma armadura de malha. Mais alguns esforços e desobstruiu-a o suficiente para reconhecer os restos de Guendoleu. O cordão do elmo não estava ali, mas tinham-lhe colocado entre as mãos descamadas o pedaço partido da sua espada...

Ofegante, em suor, Gurgi agarrou a arma e levantou-se. Arrancou o lenço e limpou a cara, depois afastou-se para recuperar os sentidos. A espada de Guendoleu... Não estava perto dele quando lhe cortara a cabeça. Mesmo partida, era um troféu que nenhum guerreiro teria desdenhado. Voltou a pensar nos últimos instantes da batalha e nos relatos dos seus companheiros. A criança... A criança apanhara a espada. A espada quebrara-se durante o combate, mas o bardo tinha morto um dos seus homens com o pedaço afiado que lhe restava na mão. Portanto, Merlim tinha sobrevivido... Quem mais poderia ter construído este montículo, rendendo as últimas homenagens ao seu rei e colocando os restos da sua espada entre as suas mãos? Voltou-se para o céu, depois inspecionou a planície, onde as silhuetas cinzentas dos lobos se esbatiam já no final do dia. Dentro de uma hora, no máximo duas, seria noite. Talvez fosse suficiente. Introduziu o pedaço partido debaixo do cinto, desembainhou a sua própria espada e aproximou-se da orla, que inspecionou demoradamente, até encontrar aquilo que procurava. Uma clareira nos bosques, ramos partidos, moitas pisadas... Com um passo hesitante, introduziu-se na floresta, observando sinais de uma pista humana. O frio tinha congelado algumas pegadas de botas. As silvas tinham ainda farrapos de tecido... Assim, subiu até ao acampamento de Merlim, uma clareira guarnecida de fetos altos. Uma cama de folhas, os vestígios de uma fogueira. A criança escondera-se ali, mas tinha ido embora, sem dúvida alguma, e havia já muito tempo, a julgar pela geada que cobria o local... Tinha partido, levando o colar consigo.

Gurgi deu um grande suspiro, e preparava-se para voltar a embainhar a espada quando tomou subitamente consciência do silêncio que caíra à sua volta. A floresta calara-se bruscamente. Com um nó na barriga, começou a recuar. O vento soprava lugubremente nos ramos e ele não ouvia nada, exceto o ranger da urze debaixo dos pés. No entanto, os fetos mexiam-se, como se agressores invisíveis irradiassem na sua direção, de todos os lados. Lembrou-se das flechas esguias que tinham abatido o seu companheiro, do tormento da sua agonia, quando o veneno produzira o seu efeito, e viu-se repentinamente tomado de um pânico visceral. De uma só vez, deu meia volta sobre os calcanhares e fugiu através do mato, das urtigas e das silvas.

Com o mesmo ímpeto, saiu do bosque e correu para o cavalo. Arrancou a capa que lhe continuava a cobrir os olhos, desatou freneticamente as rédeas e saltou para cima da sela, deixando a planície a galope.

 

O pôr do Sol iluminava os cumes de neve do Gwynedd, tão altos que se confundiam com as nuvens. Merlim sentara-se sobre um promontório rochoso, em frente ao canal que separava o País Branco da ilha de Môn, e contemplava aquela paisagem tão diferente. Não eram as colinas redondas da Cúmbria, nem sequer as imensas muralhas rochosas que marcavam a fronteira norte do reino de Ryderc. Aqui, perto da costa, erguiam-se verdadeiras montanhas, escuras e rendadas, cobertas de carvalhos, pinheiros e faias, tão abruptas, por vezes, que só as cabras teriam podido subi-las. Um país mais rude e mais selvagem do que tudo quanto ele conhecera até então, terrível pela sua massa, e cujas rochas negras contrastavam em cada local com a neve e a geada que pareciam cobri-lo por completo. Ao fundo, a algumas léguas para sul, elevava-se Dynas Emrys, a fortaleza de Ambroise, que o seu pai tinha construído nas terras do traidor Vortigem, e, mais além, a Eryri, a montanha da águia, o cume da ilha da Bretanha.

Mal os monges tinham levado Blaise, o seu primeiro reflexo impelira-o a fugir, deixar o seu companheiro e continuar sozinho o caminho, o melhor que pudesse. Talvez tivesse conseguido encontrar uma aldeia, roubar um barco e passar para a outra margem, e depois tentar a sorte através das montanhas do Gwynedd. Era um país de florestas, apesar de tudo, e ninguém conseguira ainda seguir-lhe a pista nos bosques, nem em Dyfed, quando ele era ainda criança, nem nas colinas da Cúmbria, nem mesmo depois da batalha, quando fugira da planície de Arderydd... Seria uma viagem esgotante e perigosa, através da neve e dos desfiladeiros escarpados, sem poder contar com ninguém enquanto caminhasse em terra inimiga, mas esta perspectiva não o incomodava, não mais do que a solidão de um tão longo périplo... O que o retivera então, e que o impedia ainda hoje de tentar a aventura, era a idéia angustiante de regressar a Caerfyrddin sozinho. Até agora, tinha deixado Blaise pensar por ele, o que lhe dera um certo conforto ou, pelo menos, uma certa paz de alma, ao contentar-se em segui-lo. Fugir, agora, seria suportar sozinho o peso do colar, tomar sozinho decisões terríveis. Como poderia apresentar-se diante da mãe, depois do que ela lhe dissera no barco, sem mesmo poder demonstrar ter obedecido ao seu confessor? E se voltasse para trás, se seguisse para Norte, para Dun Breatann e Guendoloena, não se arriscava a oferecer o colar ao homem que mandara matar os seus únicos amigos?

Depois dos monges terem instalado Blaise na pequena cabana que lhes servia de priorado, Merlim penetrara na floresta, ao longo da costa, até o fim da ilha, de onde podia ver a fortaleza de Caernarfon e a aldeia construída sobre as ruínas de um velho acampamento romano, do outro lado do canal. Durante todo o dia, tinha observado, do abrigo do matagal, o bailado dos barcos de pesca no braço de mar, as idas e vindas das carroças e dos cavaleiros em volta do pequeno forte. Torres de madeira cheias de arqueiros tinham sido erguidas até à praia e por trás delas elevava-se uma impressionante muralha de toros e pedras, que parecia conter um exército inteiro. Era inútil... Ele conseguira apenas manobrar a barcaça para a levar até a margem. Como poderia atravessar o canal sem atrair a atenção deles? Se, pelo menos, soubesse nadar...

Ao cair da noite, Merlim voltou para trás e enfiou-se de novo na floresta, com o coração pesado e o espírito ensombrado. Caminhava sem destino, colhendo à passagem bagas, tirando por vezes ovos dos ninhos que engolia sem apetite. Foi assim que desembocou subitamente numa clareira, dominada por uma pequena colina coberta de erva rasteira. Era uma pequena abertura na floresta, mas tinha qualquer coisa de estranho, uma atmosfera diferente, um silêncio particular que o acordou bruscamente. Sem saber bem porquê, agachou-se, encolheu-se no meio dos fetos e reteve a respiração. A noite estava tão escura que mais ninguém, a não ser ele, teria reparado. No entanto, ele viu claramente, passado pouco tempo, uma luz fraca e difusa, vinda do outeiro. Enquanto observava, sustendo a respiração, teve subitamente consciência do silêncio que reinava. Não se ouvia mais nada, além da brisa passando pelas folhas, como se todos os ruídos da floresta tivessem parado diante daquele montículo raso, como se os pássaros, as raposas e os animais selvagens se mantivessem afastados... Lentamente, saiu do seu abrigo de fetos e aproximou-se da luz. Havia uma abertura recolhida entre os arbustos e, quando se encontrou suficientemente perto, distinguiu um murmúrio de vozes humanas vindas do outeiro. Subindo agora, pé ante pé, arrastou-se até à entrada, para espreitar.

Os seus olhos de gato não tinham dificuldade em ver no escuro. Reconheceu imediatamente os monges do priorado, acocorados em volta do corpo inanimado de Blaise. Estavam lá todos seis, os mesmos da praia, segurando cada um deles uma vela que lhes iluminava os rostos graves, concentrados, apertados uns contra os outros no espaço estreito de uma sala subterrânea, arranjada entre os pilares de pedra monumentais de um antigo dólmen, agora coberto de terra. Gwenfaen, o abade a quem confiara o seu companheiro, estava encostado a uma grande pedra completamente pintada de ornamentos caligráficos, de cruzes latinas e de runas ogâmicas. Ajoelhado no fundo da ala formada pelos seus companheiros, segurava a cabeça de Blaise sobre os joelhos, e cobria-lhe o rosto com desenhos de ritual com a ajuda de um pincel que, àquela distância, parecia ter sido molhado em sangue. Num canto encontrava-se um braseiro incandescente, exalando um fumo branco com um estonteante cheiro de freixo e manjerona.

A criança já assistira a rituais druidicos suficientes para reconhecer uma das suas cerimônias, mas, debaixo deste outeiro, tudo parecia misturado, a religião de Cristo e a dos seus ancestrais, a medicina, a oração e a magia... Gwenfaen voltou a pousar o pincel e juntou as mãos, imitado por todos os seus companheiros. Depois, numa só voz, recitaram uma longa encantação em latim:

- Caput Christi, oculus Isaiae, frons nassium Noe, labia lingua Salomonis, collum Temathei, mens Beniamin, pectus Pauli, iunctus Iohannis, fides Abrache Sanctus, sanctus, Dominus deus Sabaoth...[25]

O abade cuspiu nas mãos, esfregou uma na outra e colocou-as sobre a testa do doente. Os outros puseram-se então a cantar o Pai Nosso três vezes seguidas, enquanto o superior traçava uma cruz com saliva na fronte de Blaise, e depois um sinal que a criança não compreendeu.

Merlim não viu mais nada. Um calhau rolou de repente, debaixo da sua mão e desabou no fundo do compartimento. Os monges ergueram os olhos para ele, mas ele já tinha desaparecido, e, no tempo que um deles levou a sair do outeiro, a criança voltou para o abrigo insondável da floresta.

No dia seguinte, Merlim regressou prudentemente à clareira. Já lá não havia ninguém, é claro. A criança hesitou durante uma boa parte da manhã, decidindo-se por fim a ir até ao priorado, uma grosseira cabana de pedras planas em forma de cone, tendo como única abertura uma porta estreita, mas suficientemente alta para caber um homem. Mais longe, uma meia dúzia de cabanas em madeira dispersadas em volta de um poço albergavam os monges, os seus criados e famílias, bem como os visitantes de passagem, e um pequeno murete, com pouco mais de duas braçadas, cercava tudo. O conjunto fazia lembrar mais um lugarejo de pastores do que um mosteiro, e não se parecia certamente com as ricas abadias do Dyfed. Apressando o passo para evitar ser abordado por um dos monges, sumiu-se no edifício e, no andar de cima, encontrou Blaise, fraco mas consciente, repousando numa cama de palha e de peles. Ao lado dele, Gwenfaen esmagava plantas num almofariz.

- Estou feliz de te ver assim - disse Merlim, pegando calorosamente na mão do companheiro.

- Porquê? - disse Gwenfaen, divertido. - Pensaste que ele não sobrevivia aos sortilégios da noite?

A criança não respondeu, mas corou até às orelhas. Sem ousar cruzar o olhar com o do monge, examinou o compartimento, à fraca luz de uma única vela. As paredes de pedras grosseiras estavam quase inteiramente cobertas de estantes decoradas com potes, com raízes e sacos de pano cheios a rebentar. Ramos de ervas tinham sido postos a secar no teto, e espalhavam um cheiro delicioso.

- O que é? - perguntou ele, indicando um dos sacos.

Gwenfaen deitou, por cima do ombro, uma olhadela aos seus tesouros, e sorriu mais abertamente.

- Isso, meu filho, é toda a medicina do Senhor! Olha, vê...

Estendeu-lhe algumas tigelas cheias de símplices, que lhe mostrou uma a uma:

- Borragem - respondeu o monge, mostrando pequenas flores em estrela, de cor azul-celeste. - Para ser bebida em infusão, contra a tosse, com espigas de aveia, uma decocção de casca de freixo, contra a febre, e pilosela, que macerou uma noite inteira em água fria... Podemos também usar manjerona, contra a febre e a gripe, ou uma infusão de rebentos de pinheiro, postos a secar durante pelo menos um mês. Mas não vamos ter de esperar tanto tempo... Dentro de um dia ou dois, o teu amigo estará restabelecido.

Merlim cheirou as tigelas, provou algumas com a ponta da língua e, percebendo de repente que o monge o observava, fez-lhe um sorriso.

- No entanto, tens razão - continuou Gwenfaen, num tom indiferente - naquela noite, a doença era mais forte, e o irmão Blaise precisava de uma outra medicina, mais poderosa que a dos símplices.

Merlim ousou olhá-lo na cara, desta vez, e cada um deles compreendeu que o outro sabia.

- Tu és Merlim, não é verdade? Myrddin Emrys, o bardo de Guendoleu?

- Guendoleu morreu - respondeu simplesmente a criança, levando, sem querer, a mão ao pescoço, no lugar onde pesava o cordão do elmo.

- Ignorava-o... Que tal irmos até lá fora?

Sem esperar pela resposta, o abade levantou-se e desceu a escada que conduzia ao andar inferior. Ficando sozinho com Blaise, Merlim debruçou-se sobre o seu companheiro, que lhe agarrou o braço.

- Não lhe contei nada - murmurou ele febrilmente. - Não é grave... Repousa. Não temos nada a temer aqui...

Blaise acentuou a pressão sobre o seu braço e depois libertou-o deixando-se cair na cama. Durante um instante, a criança ficou perto dele, pensando no que podia implicar o simples fato de Gwenfaen - um monge do Gwynedd, apesar de tudo - o ter reconhecido. No fundo, que importância tinha...? De uma maneira ou de outra, partiria desta ilha.

O prior de Môn esperava-o lá fora, respirando o ar vivo do mar, com um ar beato. Com a noite, o habitual concerto de gritos das aves interrompera-se. Só subsistiam o ruído regular da ressaca e o soprar do vento. Merlim avançou até ele e ficaram imóveis, sem falar, diante da imensidão do mar, cintilante à luz da lua.

- No seu delírio, Blaise citou muitas vezes o teu nome - disse, de súbito, o monge. - É frequente, com a febre... Não lhe leves a mal.

Merlim balbuciou uma vaga negação, que Gwenfaen não ouvia, de qualquer modo.

- Um dia, talvez os homens parem de fazer guerra - disse ele. - É estranho, dir-se-ia que é uma necessidade. Uma doença que trazemos dentro de nós... O Deus Cristo prega o amor e a compaixão, mas parece que o único meio de o servir é retirarmo-nos do mundo, como nós, aqui, em Môn... Só assim conseguimos uma certa paz.

Calou-se um momento e deu um longo suspiro.

- Sabes que cada um de nós sentiu aqui uma presença? Há em Môn alguma coisa à qual rezamos e chamamos de Deus, mas...

Interrompeu-se de novo, com os olhos exaltados, como se esperasse que Merlim lhe acabasse a frase, depois baixou a cabeça, com um ar quase aborrecido, quando viu que a criança não o entendia.

- Em outros tempos, havia aqui um povo que vivia em paz, um povo desaparecido, semelhante aos animais da floresta - continuou ele. - Diz-se que foi esse povo que construiu o monte da Câmara Escura e ergueu todas as pedras da ilha...

- O monte da Câmara Escura?

Gwenfaen voltou-se para a criança e sorriu-lhe.

- É um outeiro, erguido no centro de uma pequena clareira. Os antigos praticavam aí rituais de cura... Estás a ver do que estou a falar?

Merlim não respondeu e, ao fim de um momento, o abade agarrou-o pelo braço.

- Gostaria que ficasses, jovem príncipe. Há aqui tantas coisas estranhas, tantas coisas que poderíamos entender graças a ti...

- Que poderia eu ensinar-te, monge...?

Afastou-se imperceptivelmente, para esconder a sua perturbação no abrigo da noite, mas Gwenfaen continuava a segurá-lo e puxou-o para si.

- Desculpa-me, mas o irmão Blaise falou, no seu delírio, e não ouso acreditar no que ele disse... Que sabes tu do Sid de Preseli, Merlim? Da magia das pedras erguidas, do antigo povo da Deusa...? Aqui, cada pedra, cada árvore está cheia da sua recordação. E se metade do que dizem de ti é verdade, podes ser-nos tão útil! Tudo o que sabem os druidas, tudo o que cantam os bardos vem daí, compreendes? É preciso que nos ajudes, por amor de Deus!

- Que pensas? Também tu me tomas por um monstro?

O prior fez um ar estupefato.

- Um monstro? Claro que não... Não se trata disso...

Merlim libertou-se bruscamente, com o coração apertado, um nó na garganta, quase em lágrimas. Abriu a boca para lhe responder, mas só lhe vinham aos lábios o rancor e as palavras insultuosas. Que mundo era este, onde todos pareciam esperar dele prodígios, quando ele não passava de um ignorante? Antes de Gwenfaen ter podido detê-lo, deu meia volta e desapareceu na noite.

 

- Está a voltar a si...

Ryderc tinha os olhos abertos, mas não via nada, a não ser a cara de Guendoloena debruçada sobre ele. Estava mais pálida do que nunca, de uma palidez de fantasma, os traços acentuados por não ter dormido, mas aquele rosto amado iluminava-o como lampião na noite.

- Já passou, está a acordar!

Com um esforço considerável, Ryderc voltou a cara para o outro lado, depois levantou a mão ao reconhecer os seus companheiros, Dafydd, Sawel e os outros, estirados em cadeirões à volta de uma grande lareira onde brilhavam brasas. Precisou ainda de alguns instantes para emergir completamente das brumas da inconsciência, apesar da sala lhe ter, logo de início, parecido incrivelmente escura e sombria. Estava ali uma meia dúzia de homens armados, sentados contra a porta ou dormindo no chão, em volta dele. Alguém aproximou uma vela de sebo do seu leito e ele reconheceu-os, todos do Strathclyde, parecendo esgotados como se não dormissem há vários dias. De novo, voltou-se para a irmã.

- Onde estamos?

- Não te preocupes, estamos em segurança...

Infelizmente, a expressão da sua cara, a falta de espaço do local e toda aquela soldadesca em volta dele desmentiam tão perfeitamente aquela pequena mentira que até ela se deu conta.

- Foste ferido - sussurrou ela - e perdeste a consciência. Estamos em Dunadd, na fortaleza do príncipe Aedan...

Os olhos de Ryderc abriram-se muito. Com o coração a bater, voltou-se para os companheiros, agora agrupados em volta do estrado da cama acolchoada de sargaço sobre a qual ele jazia.

- Há quanto tempo? Há quanto tempo estou aqui?

- Dormiste dois dias - respondeu Sawel, pousando-lhe uma mão tranquilizadora sobre o ombro. - Kentigem e os seus monges trataram-te. Dizem que já não há nada a temer...

Ryderc agradeceu-lhe com um sorriso. Evocou fugazmente o que deveria ter sido para eles esses dois dias passados a vigiá-lo, fechados naquele pequeno compartimento estreito, temendo a cada momento um ataque surpresa dos Escotos, cuidando do rei entre a vida e a morte... Um a um, observou os homens reunidos à sua volta e exprimiu a cada um deles o seu reconhecimento, com uma palavra ou um aceno de cabeça, a garganta demasiado apertada para poder dizer mais. E todos estes guerreiros formidáveis, envoltos em couro e ferro, semelhantes a ursos com as suas barbas em desordem e as caras marcadas de cicatrizes, coravam como crianças... Por fim, Ryderc agarrou o pulso de Sawel e ergueu-se o melhor que pôde.

- Ajuda-me, tenho de me levantar.

Guendoloena ia protestar, mas um simples olhar do irmão dissuadiu-a de intervir. Ryderc já dera suficientes provas de fraqueza. Precisava de voltar a ser rei.

Mal se levantou, um rasgo de dor trespassou-lhe a cabeça, e pontos luminosos vieram dançar-lhe em frente dos olhos. Contra sua vontade, não pôde impedir-se de levar a mão à cabeça, no lugar onde o Picto o atingira. A fronte e as têmporas estavam cobertas de uma ligadura de linho, debaixo da qual sentia a espessura de um emplastro vegetal. Conseguiu içar-se para fora do leito e ficar de pé sem ajuda, enquanto Sawel o vestia.

- Há uma coisa que tens de saber - disse ele, e Ryderc viu-o deitar um olhar inquieto a Guendoloena, o que o intrigou.

- Que se passa?

O guerreiro levou o tempo necessário a apertar o cinturão em volta das ancas do rei, depois recuou para ver o efeito.

- Então?

Mais uma vez, Sawel pareceu hesitar e procurar um apoio.

- O velho rei Conall morreu - disse, por fim. - Segundo Kentigem, Aedan mandou buscar Columb Cille à sua ilha de Iona para que venha em pessoa colocar-lhe a coroa dos Dal Riada.

 

Tinha nevado durante todo o dia, pouco, mas de forma contínua. Uma chuva de flocos rodopiando no vento tinha, pouco a pouco, tornado branca a paisagem, desde a areia negra da praia até ao cume das árvores. Do outro lado do canal, o País Branco merecia bem o seu nome, e esfumava-se como um sonho na bruma.

Merlim continuava imóvel, perfeitamente invisível debaixo da camada de geada que o cobria inteiramente, confundido com os rochedos e o matagal que constituíam o seu refúgio, havia já alguns dias que não ia visitar o seu companheiro e os monges do priorado. Um pescador, navegando pelo canal, tê-lo-ia tomado por um cepo ou uma velha pedra, e até as próprias aves se enganavam, rebuscando nas pregas da sua capa de tecido ondeado as migalhas das suas refeições. Só os seus olhos continuavam vivos, observando avidamente o menor movimento sobre as margens do Gwynedd ou deambulando num sonho acordado, bem longe dali, pela floresta de Arderydd ou pelas colinas de Preseli, que Gwenfaen tinha evocado com tanta insistência. Era bem jovem, na verdade, quando a mãe o confiara ao velho rei Ceido da Cúmbria e tivera de sair de Dyfed, mas as lendas de Mynid Preseli, as colinas de cascalho azul, demarcadas com menires e montículos, eram algo que ele nunca esquecera. Só os druidas tinham o direito de lá ir, durante a noite de Samain, a assembléia do fim de Verão, e dizia-se que, de entre todos os que tinham tentado desafiar a proibição, ninguém regressara. Essa noite estava próxima, em algum lugar, e mesmo que Merlim não tivesse mais do que uma vaga idéia do correr do tempo, sabia que a chegada do Inverno anunciava a festa dos mortos. Nessa noite, no quinto dia do mês do junco, o espírito dos defuntos espalhava-se sobre a Terra Média, para que a sabedoria dos antepassados viesse inspirar os vivos [26]. Era uma das festas mais antigas da Bretanha, que os próprios monges celebravam, à maneira deles, mesmo se já ninguém ousasse seguir o caminho dos círculos de pedra de Preseli. As colinas azuis pertenciam doravante ao mundo das lendas, tornando-se um local vagamente maléfico do qual convinha desconfiar, e do qual ninguém parecia saber já grande coisa. Mas, então, porque é que Gwenfaen lhe falara dessas colinas? Pensaria que elas eram um refúgio de elfos ou de espíritos malignos, como a floresta de Celyddon, ou então que os elfos guardavam a entrada do mundo dos mortos? Que abominação escondiam essas malditas colinas para que ninguém ousasse falar delas?

Merlim ficou assim até ao cair da noite, com uma impaciência e uma excitação bem diferentes da apatia que sentira nos dias anteriores. Quando se viu envolvido na escuridão, saiu do seu refúgio e sacudiu a capa, com o coração a bater apressado. O vento norte fustigava-lhe os cabelos e colava-lhe contra o tronco a sua túnica de tecido ondulante, fazendo de cada passo uma prova. Ele alegrava-se com isso, no entanto, pois em breve esse mesmo vento empurraria a embarcação através do canal, em frente de Caernarfon e da península de Lleyn, diretamente para o alto mar, diretamente para o Dyfed, diretamente para a sua mãe e para as respostas que desta vez obteria, fosse a que preço fosse.

Já era noite quando chegou ao priorado. Transpôs de um salto o pequeno murete que delimitava o recinto santificado, provocando o vôo colérico de um casal de corvos-marinhos que se acomodava para passar a noite. Merlim não lhes prestou atenção. Centenas, milhares de aves povoavam esta língua de terra e a pequena ilha vizinha, e durante todo o dia o seu gorjeio agudo quase cobria o ruído do mar. Havia gaivotas e corvos-marinhos, mas também pombos, mergulhões e divertidos papagaios-do-mar, de bico encarnado, sem falar de todos os animais selvagens que povoavam a ilha, além das focas que vinham de vez em quando dar à costa. Espantosamente, os monges não caçavam, e até se preocupavam por vezes em tratar de um animal ferido com o mesmo cuidado que tinham dispensado a Blaise. Durante os dias que passara junto deles, Merlim nunca os tinha visto comer carne de espécie alguma, contentando-se com ovos, plantas e tubérculos. Também nunca tinha conhecido homens que vivessem assim, fora do mundo, da sua violência e tentações, sem idéias de poder ou de cobiça, e acabara por confiar neles, ao ponto de escutar as suas orações e de partilhar as suas refeições. Por essa razão, Gwenfaen não voltara a mencionar a conversa que tinham tido, nem evocado diante dele o antigo povo e os seus segredos.

À beira da praia, os monges agitavam-se agora num grupo confuso em volta do coracle, à luz de archotes vacilando ao vento. Merlim foi ter com eles rapidamente e, mal o viu, Blaise foi direito a ele, abafado num espesso casaco de lã e com a cabeça coberta com o gorro mais estranho que ele alguma vez vira, guarnecido de peles e de lã encaracolada, com correias de couro presas por baixo do queixo.

- Onde estavas, cabeça de vento?! É preciso partir, despacha-te!

A criança demorou a responder, com a cabeça formigando de réplicas mordazes, a propósito do tempo que tinham perdido devido à doença do companheiro, mas, ao vê-lo assim vestido, verdadeiramente semelhante a uma pipa, mais larga que alta e culminada por aquela touca extraordinária que só deixava ver a sua barba e a ponta do nariz a pingar, não teve coragem de lhe responder com maus modos e apressou-se a ir ter com ele à embarcação, contendo o riso. junto do coracle, Gwenfaen deteve-o para lhe apertar a mão.

- Voltaste à Câmara Escura? - perguntou, com algo no olhar que parecia uma luzinha de esperança.

Merlim quis afastar-se, mas o abade segurava-lhe a mão e fixava-o com uma tal insistência que ele teve de lhe responder.

- Desculpa-me - disse ele. - Não voltei lá, porque ignoro o que lá poderia encontrar. Ignoro mesmo quem sou... Como poderia eu esclarecer-te? Desde o meu nascimento, toda a gente parece empenhar-se em mentir e desconfiar de mim... Tudo o que sei, aprendi com os bardos de Guendoleu ou com os seus druidas, e aposto que, sobre essa matéria, não tenho nada a ensinar-te...

Gwenfaen desviou os olhos e largou-lhe a mão. Deitou um olhar a Blaise, que encolheu furtivamente os ombros com um trejeito cúmplice. Merlim teve a sensação de que os dois homens tinham falado bastante sobre ele, nos últimos dias.

- Tenho muitas coisas para descobrir - disse, em tom de desculpa, enquanto o abade se afastava dele. - Espero um dia entender o que todos esperam de mim... Então voltarei, prometo.

Gwenfaen assentiu com um sorriso forçado. No mesmo instante, uma rajada de vento vinda do mar sacudiu-lhe o hábito e os seus longos cabelos grisalhos. A vela quadrada do coracle bateu, e os monges que o seguravam na água dobraram-se para o impedirem de encalhar de novo na areia.

- É preciso aproveitarem o vento antes que mude - disse o abade de Môn. - Que Deus vos guarde...

E regressou ao priorado, sem se voltar. Merlim ficou por um momento sobre a margem a vê-lo afastar-se, depois saltou com destreza para o barco. Blaise já manobrava para apanhar o vento oblíquo à embarcação. Em alguns instantes, depois de terem soltado as amarras, os monges e os seus archotes desapareceram na noite, as suas despedidas foram engolidas pelo ruído do vento na vela ensopada de neve derretida e de chuviscos. Logo nas primeiras braças, o mar impôs-se rudemente, exigindo toda atenção dos dois.

- Passa para a frente! - ordenou Blaise. - Fica atento aos rochedos!

A criança apressou-se, saltando por cima do cordame e dos alforges carregados de víveres que enchiam a embarcação. Deitou-se sobre a roda da proa no momento em que a barcaça se enfiava numa cava, e que a onda seguinte o molhava copiosamente, mas o espectáculo valia a pena. Diante deles, a embocadura do canal estreitava-se como um funil. A corrente empurrava-os, juntamente com o vento, a uma velocidade formidável, inebriante apesar do perigo, ou por causa dele. Rapidamente, dobraram a estibordo o rochedo do qual tinham feito o seu posto de observação durante os últimos dias, e depois, na outra margem as torres de vigia e o forte de Caemarfon, iluminado por archotes vacilando debaixo da tempestade de neve. Seguiram com vento de popa, silenciosos como o vôo de uma águia sobre o Eryri e, se por acaso alguém os pudesse ter visto das margens do Gwynedd, ninguém os teria podido parar.

Em breve não houve mais nada a estibordo para além da imensidão do mar da Irlanda, enquanto ladeavam a bombordo a península de Lleyn.

- Se o vento se mantiver, dormirás em tua casa amanhã à noite! - gritou Blaise, por trás dele, com uma voz entusiasmada.

Merlim não respondeu. Agarrado ao bordo, molhado dos pés à cabeça pelos vagalhões que se vertiam na barcaça de cada vez que eles embatiam na onda, ele perscrutava a imensidão obscura que se abria diante deles, semelhante a uma boca aberta pronta a engoli-los.

Alguém os viu, no entanto. Um guerreiro isolado, abafado num casaco de pele de urso, trazendo à cintura o pedaço duma espada. Quando dobraram o último promontório, o homem montou a cavalo e partiu a galope para a cidade.

 

Comprimidos em volta do rei e da sua jovem irmã, os Bretões pareciam perdidos na multidão, formando com as suas capas compridas uma mancha vermelha visível mas insignificante, tão sozinhos quanto uma papoula num campo de trigo. A perder de vista, um sol de Inverno iluminava as montanhas e as planícies cobertas de geada em volta de Dunadd, e naquela paisagem tão vasta onde a vista parecia chegar ao infinito, Ryderc e os seus homens ressentiam com amargura a estreiteza da sua fortaleza de Dun Breatann, em comparação com a praça-forte dos Escotos. Em volta deles, em círculos concêntricos, amplas muralhas de pedra e de terra estendiam-se até ao fundo da colina, protegendo centenas de habitantes, dos mais ricos aos mais miseráveis, desde os edifícios de pedra do círculo superior, até às simples cabanas de pescadores construídas ao longo do rio. Os muros de pedras secas albergavam, além disso, salas de guarda e, por vezes, galerias que conduziam a uma sucessão de aposentos e entrepostos. Uma verdadeira cidade, sussurrante e cheia de zumbidos, cujos contornos desapareciam agora debaixo de uma onda confusa de efervescência humana que a tinha invadido, como se todo o reino se tivesse reunido em Dunadd para aclamar o seu novo rei. Estavam ali milhares de Escotos, homens, mulheres e crianças vindos dos três clãs, que se misturavam alegremente na mais perfeita desordem. Entre eles, os Cenel nGabrain eram os mais numerosos, em primeiro lugar porque Dunadd pertencia a esse território e eles tinham vindo das proximidades, mas também porque Aedan era um deles, o próprio filho de Gabran, fundador da tribo que ostentava o seu nome. Os do Cenel Loairn, vindo do Norte e da ilha de MulI, formavam um grupo impressionante, composto quase exclusivamente por guerreiros. Mais raros eram os da terceira família, os do Cenel MCEngusa instalados na ilha de Islay, aos quais se podiam juntar seguramente algumas dezenas de Gaélicos dos Dal Riada, dos Dal Fiatach e dos Dal naraide de Yfferdon [27], tendo atravessado o mar para a ocasião. Havia qualquer coisa de estranho, até mesmo de chocante, para os homens do Norte, habituados a mais recato, ao contemplarem toda aquela gente reunida, emaranhada, percorrendo os recintos baixos na maior desordem, negociando ou divertindo-se sem prestar a menor atenção às orações dos monges ou aos seus cânticos. Dir-se-ia que a coroação do seu futuro rei não passava de uma formalidade, retardando o momento dos verdadeiros festejos.

No alto da colina, a atmosfera era completamente diferente. Ali, os responsos lancinantes salmodiados pelos religiosos rodopiavam como o vento e zumbiam nos ouvidos, incansavelmente. Com o tempo, todos aqueles que, pela sua posição, tinham sido admitidos no último recinto fechado, tinham acabado por se afundar numa profunda melancolia, que se atiçava ainda mais com os risos vindos da cidade baixa. Em volta de um rochedo claro, inclinado sobre o forte e a cidade, antigas pedras gravadas, contendo runas ogâmicas ou a imagem de um javali, desapareciam debaixo da floresta de cruzes agitadas pelos monges. Não se via mais nenhuma insígnia, nem entre os dignatários escotos que representavam os três clãs, nem entre o pequeno grupo dos seus irmãos gaélicos da Hibérnia ou no seio das tropas de Ryderc. Assim, só o deus dos cristãos parecia reinar sobre esta multidão.

Afastada das outras, uma delegação de Pictos observava este espectáculo inesperado com a visível sensação de ser vítima de um inqualificável ultraje, o que Ryderc conseguia compreender bem.

Também ele irritado pela espera e pelos cânticos dos monges que lhe zumbiam na cabeça, esforçava-se por fazer boa figura, em vez de demonstrar, como eles, a sua impaciência e a sua frustração, apesar de não conseguir libertar-se do sentimento irritante de ter sido manipulado. Desde que recuperara os sentidos, tinham constantemente adiado o momento da sua entrevista com Aedan, e eis que o Escoto o obrigava a assistir ao seu triunfo! Quereria fazer-lhe crer que ele aqui estava apenas para lhe prestar homenagem? Aquilo que devia ser uma entrevista secreta para assentar as bases de uma aliança militar tornava-se esta incrível reunião de um povo inteiro, esta ostentação de força que, apesar dos risos e da agitação razoável da cidade baixa, continha implicitamente uma ameaça clara e pesada.

Os Pictos, do outro lado do rochedo claro, pareciam ter ainda mais dificuldade em conter a sua indignação. Ryderc, ao observá-los, perguntava-se qual poderia ser a razão da sua presença em Dunadd, nesse momento. Talvez tivessem sido informados da morte próxima do velho Conall. Dizia-se que os espiões de Brude estavam por todo o lado, e que um corvo não teria podido sobrevoar o seu imenso império, desde as ilhas Orcades do reino de Cait, no Norte, até Dundurn, a sua praça-forte no Sul, sem que ele fosse imediatamente avisado. Não era prova disso o ataque que os Bretões acabavam de sofrer? Quem, a não ser Brude, teria tido interesse em impedir o casamento de uma das parentes de Ryderc com o herdeiro dos Dal Riada?

O jovem rei inspirou profundamente e depois sorriu à irmã, a seu lado, quando descobriu a expressão inquieta da sua cara. No espaço de um segundo, a recordação do corpo calcinado de Melangell impusera-se-lhe em todo o seu horror...

Batendo os pés para se aquecer, deu uma vista de olhos a toda a assistência, e depois voltou a olhar para os Pictos. Eram nobres, a julgar pela riqueza dos fatos e a arrogância da atitude. Dizia-se mesmo que Wid, um dos filhos do rei Brude, estava entre eles, bem como Broichan, o feiticeiro. No momento em que tinham entrado no terreno, uma onda de murmúrio hostis percorrera as fileiras dos Escotos e dos Cyrnri e, a julgar pelo nervosismo dos Pictos, a travessia da cidade baixa devia ter sido ainda mais dura. Depois de quase vinte anos, o reino dos Dai Riada estava, em princípio, submetido à autoridade do todo-poderoso rei dos Pictos. Tinham vindo como senhores, seguramente, tão seguros da sua força que nem sequer se tinham feito acompanhar por uma escolta, e encontravam-se apanhados, agora, entregues à boa vontade de Aedan mac Gabran, loucos de raiva, humilhados no mais profundo de si próprios. O fato do Escoto ousar pretender a coroa sem se submeter previamente ao rei Brude era ainda mais do que uma provocação. Da parte do filho de Gabran, era uma verdadeira declaração de guerra...

Rodeados, como Ryderc e os seus, pelo bulício do seu povo armado na cidade baixa, os príncipes pictos não tinham outra escolha, a não ser assistir passivamente a este espectáculo que os revoltava. Esta confusão, tão estranha, era tão aprazível, que o jovem rei conseguiu ultrapassar a sua própria impaciência. Mas, ao vê-los assim, cheios de soberba nos seus mantos bordados, desfigurados pelas tatuagens repugnantes que por vezes lhes cobriam completamente o rosto, o desejo de vingança fazia-lhe ferver o sangue. Ryderc não podia ignorar os murmúrios nas suas costas, entre os seus homens, também eles magoados pela presença próxima dos Pictos, depois da emboscada do loch, e não podia deixar de pensar que uma simples palavra bastaria para desencadear... Estavam ali, ao alcance de uma pedra, não mais de trinta, contando com mulheres e pajens. Não tinham número suficiente para resistirem, e seria o bastante para lavar com sangue a morte de Melangell e de tantos dos seus. Com uma cotovelada, Guendoloena arrancou-o aos seus pensamentos macabros.

- Ei-los...

Como toda a assembléia, Ryderc voltou-se para os edifícios que ladeavam o recinto. Um movimento confuso surgiu entre a multidão dos protegidos que ali se amontoavam. Depois, Aedan apareceu, por fim, à cabeça de uma procissão de monges e nobres escotos, segurando pelo braço um homem idoso com um hábito de frade em burel, verdadeiramente semelhante a um mendigo, tão miserável e excessivamente magro ele parecia, a passada curta, o passo hesitante, como se fosse morrer de um momento para o outro de esgotamento, diante de toda aquela gente. Aedan, perto dele, parecia exatamente o contrário. Não era um homem jovem; já estaria, com toda certeza, próximo dos quarenta, mas emanava dele uma tal sensação de força física e de poder que lhe bastava aparecer para se impor a todos, homem ou mulher, príncipe ou criado. Com os ombros cobertos com uma capa de pele prateada, vestido com uma túnica comprida inteiramente bordada, apertada na cintura por um cinto de ouro e calçado com botas altas em pele, caminhava sem armas. Os seus cabelos castanhos e a sua barba estavam cortados curtos, o que seguramente o rejuvenescia. Sem ser verdadeiramente bonito, pois os seus traços estavam marcados pela insensibilidade, era inegavelmente sedutor. Consciente - como poderia ser de outra maneira? - de que todos os olhares estavam pousados sobre ele, levou o tempo necessário para acompanhar o idoso até uma cadeira instalada perto do rochedo claro, a qual Ryderc julgara ser um trono. Depois, ajoelhou-se humildemente diante dele, enquanto o resto da procissão se distribuía em volta do rochedo.

Kentigem estava lá, passando-os a todos em altura e paramentado, como todos os abades de Luss, de Lismore e de Cella-Duini, com os hábitos sacramentais resplandecentes de fios de ouro. A julgar pelo olhar indulgente com que mimava o velho ali sentado, Ryderc compreendeu que só se podia tratar de Columb Cille, o homem santo de lona, e, ao descobri-lo tão frágil, tão velho, sentiu-se quase humilhado por ter recorrido às suas profecias. Era um espectáculo estranho, na realidade, ver Aedan assim ajoelhado apesar de todo o seu ouro e de todo o seu poder, baixando a cabeça diante da cruz de Cristo. Os cânticos dos monges tinham-se interrompido e, pouco a pouco, o silêncio impôs-se, abafando por estratos sucessivos os rumores da cidade baixa. Em pouco tempo, até ao fundo do último recinto fechado, não se ouvia um único ruído, um único movimento, nada para além do sopro ligeiro da brisa. E foi nesta calma impressionante que o arauto de Gabran subiu ao talude que os dominava a todos.

- Em nome de Cristo escutai-me! - exclamou, numa voz potente. - Este é um grande dia, que vê o herdeiro de Gabran de regresso a Dunadd pousar o seu pé nas pegadas dos seus avós!

Quando tinha repetido três vezes este apelo, sucessivamente em gaélico, em bretão e em picto, calou-se para retomar fôlego, e depois inclinou-se respeitosamente para Aedan. Este trocou algumas palavras em voz baixa com Columb Cille, e depois o homem santo traçou sobre ele o sinal da cruz. Levantando-se, por fim, o Escoto contemplou a assembléia e, quando cruzou o olhar com Ryderc inclinou a cabeça com um sorriso amigável, que se acentuou ao ver Guendoloena. Foi rápido, simplesmente o tempo de Ryderc se admirar, e depois, com um aceno de cabeça, fez sinal aos seus filhos para o seguirem e subiu rapidamente o talude. Parou junto da pedra branca e murmurou algumas palavras ao ouvido do arauto que abanou a cabeça e, imediatamente, levantou o seu bastão para chamar a atenção.

- Em nome de Cristo, que todos vejam e testemunhem! O senhor Aedan mac Gabran, príncipe de Kintyre, de Arran e de Cowal, chefe do Cenel nGabrain, chama respeitosamente como testemunha o seu irmão em Jesus Cristo, Ryderc, o Generoso, rei de Dun Breatann!

Ryderc estremeceu, apanhado totalmente desprevenido. Furtivamente, cruzou o olhar com o de Guendoloena e o dos seus tenentes. Para sua grande admiração, viu que cada um deles sorria, como se se tratasse de uma honra insigne. Enquanto avançava para a pedra, Ryderc teve mais uma vez a sensação de ser soberbamente manipulado, a ponto de ter o coração a bater e de se sentir estranhamente lisonjeado. A alguns passos do rochedo, Kentigem veio ter com ele, responsando para dentro algumas palavras que ele não entendeu, somente o nome de Colomba, sobre o qual tinha posto uma ênfase especial. E sem que ele tivesse tido tempo para reflectir de forma alguma, pararam ambos diante do santo homem.

- Finalmente conheço-te, Ryderc Hael - disse o velho, com a sua voz mortificada, quase imperceptível. - O nosso querido Kentigem cumulou-me de presentes teus, e ficar-te-ei eternamente grato, em nome dos doentes e dos necessitados que vêm até mim. Deixa-me abençoar-te, meu filho...

Era um homem muito velho, sem dúvida, mas o seu olhar perspicaz, mais penetrante que o das águias do Eryri, não era deste mundo. Ryderc quase tremia de emoção quando se ajoelhou diante dele.

- Estás ferido, meu filho...

O jovem rei levou instintivamente a mão à testa enfaixada e sorriu, levantando-se.

- Sobreviverei, creio, já que tu mo disseste.

- É verdade - disse Columb Cille, devolvendo-lhe o sorriso. - Morrerás no teu leito, Ryderc. Mas ainda tens tempo, e tantas coisas importantes a realizar para glória de Deus...

Os seus olhos passaram pelo rochedo claro onde esperava Aedan.

- Entre os dois, dominareis o mundo - murmurou.

Estas simples palavras ressoaram no mais profundo do seu coração, enchendo-o de um orgulho formidável. Sem uma palavra, afastou-se de Columb e foi, a passos lentos, ter com o Escoto ao cimo do outeiro. Os dois homens agarraram os braços um do outro, como forma de saudação.

- Obrigado - disse Aedan. - E desculpa ter-te feito esperar. Não queria ver-te antes de ser também rei...

Ryderc anuiu, depois contemplou a paisagem que se estendia aos pés deles. Daqui, o último dos mendigos teria tido a sensação de reinar sobre o mundo inteiro. Que dizer, então, de um rei cujo povo, reunido no próprio coração da sua fortaleza, esperava a coroação retendo a respiração!? Ryderc deitou um olhar a Guendoloena e aos seus homens. Cada um deles sorria agora com tanto orgulho como se fosse ele que estivesse prestes a receber a coroa dos Dal Riada. Sem que fosse pronunciada uma palavra, antes mesmo de tomarem lugar em volta de uma mesa, a aliança entre os dois reinos tinha-se tornado uma evidência. O que dezenas de emissários teriam penado para obter a preço de negociações sem fim e de troca de reféns, Columb Cille e os monges acabavam de realizar, apesar da sua fraqueza aparente... Kentigem tinha razão. Havia naquele velho homem uma força bem superior à de um exército.

- Que o rei coloque o pé na pegada! - gritou o arauto.

A princípio, Ryderc não viu nada. Não passava de um rochedo como os outros, somente um pouco mais claro que os granitos cobertos de líquen que afloravam no cimo do outeiro, fendidos de compridos entalhes, como um trincho de um talhante. No meio, no entanto, viu um reforço no momento em que Aedan pousou lá o pé. Pouca coisa, realmente, mas este simples gesto desencadeou de uma ponta à outra de Dunadd uma ovação ensurdecedora, que cobriu completamente as proclamações triunfantes do arauto.

Em todo este tumulto, aumentado ainda pelos hinos cantados com toda a força pelo grupo dos monges, Ryderc precisou de um momento para perceber que tudo estava terminado. Mal começara, a cerimônia tinha já chegado ao fim. Uma coroação sem coroa, sem juramento, sem outra insígnia ou manifestação e poder, a não ser o simples fato de ter pousado a bota naquele buraco... Quando Aedan e os seus filhos voltavam a descer, brincou por um momento com a idéia de fazer o mesmo, só para ver o que se iria passar. Uma idéia divertida mas perigosa, à qual lhe pareceu prudente renunciar.

Na altura em que se juntou ao Escoto, uma multidão de cortesãos tinha rodeado Aedan para o felicitar, e toda aquela familiaridade bonacheirona evocava mais um cortejo de casamento que uma cerimônia de entronização. Ryderc teve mesmo de recuar, tanto eles se acotovelavam em volta do novo rei, o que teve o dom de avivar instantaneamente a sua irritação. Tentou abrir uma passagem para ir ter com os seus, mas, no mesmo instante, a agitação tornou a cair bruscamente e o silêncio regressou.

Os Pictos.

Abrindo caminho por entre a multidão, com toda a soberba, afastando rudemente quem quer que se dirigisse a eles, avançavam para Aedan, agrupados por trás de um jovem atarracado vestido com um lorigão em couro acolchoado, um qilt fulvo e uma capa comprida presa ao ombro por uma fivela de prata trabalhada. Como os outros, não trazia arma, exceto um aparatoso facalhão, mas a expressão da sua cara era tal que os filhos de Aedan se agruparam em volta do pai, com a mão no punho das suas espadas.

- Dou-te as boas-vindas, Wid - disse Aedan, com um vago movimento da cabeça que poderia passar por uma saudação.

- Que significa isto? - proferiu o Picto. - com que direito ousas proclamar-te rei? Ninguém pode reinar sobre estas terras sem o consentimento do meu pai, Bridei mac Maelchon!

- Wid mac Bridei, não cumpres os teus deveres - murmurou Aedan.

A sua voz tornara-se bruscamente mais dura, imperativa.

- Saúda os teus primos e vem abraçar-me, meu sobrinho. Depois falaremos dos assuntos de família.

O jovem deitou a Eochaid, Tuthal e Garnait um olhar carregado de tal desprezo que o pai teve de os deter estendendo o braço em frente deles.

- Os meus primos são uns bastardos e tu não és melhor que eles, Aedan Fear-Brathaidh. Aproveita bem a tua glória, não durará mais do que o tempo de uma batalha!

Em volta deles, a multidão dos Escotos vibrou ao ultraje. Ninguém ousava confrontar-se com o príncipe Wid, mas os dignatários pictos do seu séquito foram imediatamente comprimidos por todos os lados, empurrados, rodeados de caras hostis e de punhos fechados.

- Aedan, o Traidor... Eis um nome que soa como um elogio, vindo da tua boca - disse o Escoto. - Mas toma cuidado. O teu pai é velho, Wid, e tu és muito jovem para falares dessa maneira... Esta terra pertence ao clã dos Dal Riada, e só tenho de prestar contas a Aedh mac Ainmire, grande rei de Ulaid. Queres uma batalha? Tê-la-ás... E veremos se os Pictos são tão valentes como quando se trata de matarem mulheres.

A testa pequena de Wid enrugou-se. Era demasiado orgulhoso para fazer uma pergunta, mas o seu olhar foi suficientemente eloquente para que Aedan compreendesse o seu pensamento.

- Eu chamo de traição ao ato de se fazer uma emboscada a uma tropa à qual tínhamos garantido a segurança - disse, procurando com os olhos Ryderc, no meio da assistência. - Chamo de covardia o ato de atacarem uma mulher, em vez de enfrentarem os nobre guerreiros de Dun Breatann. Chamo traidor e covarde a um rei que manda matar a minha noiva!

- Que noiva? - disse Wid, visivelmente perdido. - De que estás a falar? É bem o gênero dos Escotos, todas essas palavras que não querem dizer nada!

- Tu é que não entendes nada, homem pintado! - disse uma voz firme por trás dele.

O príncipe voltou-se para o recém-chegado e olhou-o dos pés à cabeça, como teria feito com um leproso que viesse pedir esmola.

- Quem és tu?

- Sou Ryderc de Strathclyde, filho de Tudwal, de Clynog e de Dyfnwal, o Velho, da linhagem do tribuno Coroticus, irmão de Aedan em Jesus Cristo e rei dos Homens do Norte. A mulher que mataste era Melangell, minha prima, que eu prometera ao rei...

Fez um sorriso a Aedan, e depois os seus olhos gelaram-se quando pousaram novamente sobre o Picto.

- Disso, dar-me-ás explicações, mais cedo ou mais tarde...

Wid recuou olhando alternadamente os dois reis.

- Não sei do que falas, Bretão, e não tenho nenhum assunto a tratar contigo. Soube, no entanto, o que te aconteceu. Os que te atacaram são do clã dos Maethae. Não são dos nossos... E depois, nada disso faz sentido...

Voltou-se para Aedan e, continuando o seu testemunho, apontou-o com gesto irônico.

- Tu já estás casado, podre idiota! Esqueceste-te? Aliás, onde está a princesa Domelach? Porque é que a minha tia não assistiu a esta farsa?

- Ah, é verdade, tu não sabes...

Aedan tentou pôr um ar desolado, mas só conseguiu exibir um sorriso de uma crueldade de fazer gelar a espinha.

- Domelach morreu, meu sobrinho. Os teus primos e eu continuamos a chorá-la...

Em volta dele, os filhos de Aedan deram uma gargalhada de desprezo que atingiu o Picto como uma bofetada. Perdendo todo o controle, desembainhou a faca e atirou-se ao rei, mas imediatamente uma grade de espadas lhe barrou a passagem. Foi como que um sinal. Em volta do pequeno grupo, Escotos e Cyrnri tinham desembainhado as espadas e levantavam já os braços para a carnificina.

- Em nome de Cristo, parai!

Os homens retiveram os golpes, ao reconhecerem a voz do abade de lona.

- Estes homens vieram em paz, Aedan...

O Escoto abanou a cabeça. Ele não se tinha mexido, mas a sua cara estava vermelha de cólera. As veias do seu pescoço e as suas têmporas saíam, no esforço desmesurado que ele fazia para se conter.

- Deixem-nos - murmurou, por fim. - Garnait, zela para que eles saiam da cidade sãos e salvos... Mas a pé, e sem mais bagagem a não ser a que conseguirem levar como peregrinos. Assim, terão tempo de expiar o seu erro.

- Sim, pai...

E enquanto os seus homens rodeavam os Pictos, Aedan abanou a cabeça várias vezes, contemplou à sua volta o horizonte infinito e fechou os olhos à carícia apaziguadora do vento. Música e risos vinham da cidade baixa, ainda ignorante do que acabava de acontecer.

Quando voltou a abrir os olhos, procurou Ryderc e viu-o junto de Guendoloena.

- Os dois seres que eu amo mais no mundo! - exclamou. Meu amigo, acho que devemos uma lição a esse jovem imbecil...

Ryderc devolveu-lhe o sorriso, mas não respondeu. As mãos da irmã tinham-se crispado sobre o seu braço.

- Repara bem, Wid! E não percas pitada, para poderes contar ao teu pai, se conseguires sobreviver até lá!

Voltou-se para Columb Cille e o grupo de monges.

- Santo pai, a vossa bênção... Pela graça de Deus, não se dirá que estes porcos impediram uma aliança entre os nossos dois grandes reinos. Ryderc, meu irmão, se consentires, peço a mão da tua irmã, a bela Guendoloena...

Ryderc conteve uma careta de dor. As unhas de Guendoloena tinham se enterrado no seu braço. Esforçou-se por sorrir, com um nó na garganta e o coração gelado, e procurava uma resposta quando Wid trouxe uma distração salutar.

- Não faças isso, Columb Cille! - gritou ele ao abade de lona. - Não te esqueças que deves a tua ilha a Brude mac Maelchon, meu pai, rei de Fortrenn [28] e soberano dos Cruithni! [29]Se abençoares esse crime, nenhum dos teus monges voltará a estar em segurança, para onde quer que vá!

O velho homem ergueu as mãos em sinal de calma, e começou a traçar sobre eles o sinal da cruz.

- Eu te abençoo, Wid, filho de Brude. E abençoo Aedan, bem como todos vós, em nome de Cristo, nosso salvador. E quanto a essa união, Aedan...

Voltou-se para o rei com um sorriso fatigado.

- Não creio que um casamento deva ser acordado no meio do ódio e da confusão... Perdoa-me meu filho, mas estou esgotado. Se mo permites, vou repousar um pouco antes das festividades.

Aedan olhou-o por um momento, com um ar decepcionado e interrogador, como se não compreendesse verdadeiramente porque é que Columb se recusara a aceder ao seu pedido. Quem era ele para ousar desobedecer ao seu rei?

- Com certeza - disse, por fim. - Vou mandar acompanhar-vos.

Levantava já o dedo para um dos seus filhos, mas Columb deteve-o com um gesto e designou Guendoloena.

- Que seja ela a acompanhar-me, ela... Fazes-me o favor, minha filha? Assim poderemos conhecer-nos.

E depois, para Aedan:

- Como os poderia abençoar, se não a conheço?

Ryderc sentiu a mão da irmã relaxar-se. Encorajou-a com um olhar e acompanhou-a até perto do santo homem.

- És muito bonita, minha filha - disse Columbano. - Muito bonita realmente... Serás uma rainha maravilhosa...

O santo homem voltou-se para Ryderc e sorriu-lhe. Mais uma vez, aquele olhar penetrante, mais vivo que o de um adolescente.

- Resta saber de que reino, não é verdade?

Partiram antes do jovem rei ter podido responder, se é que ele o queria. Ainda mergulhado nos seus pensamentos, sobressaltou-se quando Aedan e os seus filhos vieram ter com ele.

- Não sei o que pensas, meu irmão, mas tudo isto me deu sede! Tenho vinho, se gostares. Vinho vindo dos Gauleses... Um presente do grande rei de Ulaid, meu primo.

Ryderc anuiu, mais uma vez, e esforçou-se por sorrir.

- Por Deus, já não era sem tempo! - disse, com um ar divertido. - Temi que nos deixasses morrer de sede nesta colina!

Enquanto o recinto se esvaziava, tendo a maioria das tropas ido para as festividades na parte baixa da cidade, chegaram aos edifícios dos aposentos reais. Sawel e Dafydd seguiram-nos sem esperarem a ordem do rei, pelo que ele lhes ficou grato. Aedan segurava-o familiarmente pelo ombro e, no entanto, Ryderc não conseguia impedir-se de sentir uma certa ameaça nesse gesto simples. O Escoto tratava-o como seu igual, até mesmo como convidado de honra, mas era maior, mais forte, mais velho do que ele. Seguramente muito mais velho que Guendoloena... E mais poderoso do que ele, talvez. O suficiente para desafiar os Pictos e as suas numerosas hordas, em todo o caso. Efetuaram em silêncio os passos que os separavam da sala grande, sem conseguirem quebrar o mal-estar que se tinha instalado entre eles, apesar dos sorrisos forçados e dos gestos fraternais.

Contudo, a sala estava quente, com um belo lume de brasas no centro, e o vinho dos Gauleses que lhes serviam a ferver cheirava a especiarias. Sentaram-se mesmo no chão em volta da lareira, quase todos encostados aos pilares centrais que sustinham o tecto. Kentigem não tardou a vir ter com eles e instalou-se perto de Ryderc, ao lado dos seus chefes de guerra. Depois do frio da rua, do barulho da agitação, ficaram em silêncio durante um bom bocado, as caras vermelhas e as orelhas a arder, saboreando alguns instantes de calma ouvindo o vento soprar lá fora. E depois, como era de esperar, foi Aedan quem falou primeiro.

- Desculpa se te tratei de forma brusca, ainda há pouco - disse ele, levantando a taça para o seu hóspede. - Espero que Guendoloena não fique ressentida...

- Acho que ela ficou surpreendida, como todos nós - retorquiu Ryderc. - Não devia estar à espera de tal honra...

- Ah!

Aedan levantou um pouco mais o copo, num gesto de saudação, e esvaziou-o, de um trago.

- Mentes mal, Ryderc Hael! Um bom mentiroso deve saber mentir não só com palavras, mas também com os olhos, a cara, o corpo todo! Acredita, sei o que digo, sou o maior mentiroso que alguma vez existiu na terra! E por isso que me chamam “o Astuto”!

Juntando-se aos risos da assistência, Ryderc pensou que lhe chamavam sobretudo “o Traidor”, e que nunca se deveria esquecer disso.

- Sei o que pensas - continuou Aedan. - Terei quarenta anos dentro de pouco tempo, e ela tem o quê, dezesseis, dezessete? Sou muito velho, é isso... Demasiado velho e demasiado feio!

- Nada disso - disse Ryderc, e depois, com um sorriso - Não sou o melhor juiz, mas não me pareces assim tão feio...

- Então, só muito velho! Anda cá, vou mostrar-te o que um velho como eu pode fazer de um jovem rei bretão! Só com uma mão, se quiseres! E com a esquerda, ainda por cima!

- Bom, está bem - disse Ryderc, rindo francamente, desta vez. - Acredito em ti, não és demasiado velho!

Estendeu a sua taça, que um escravo voltou a encher imediatamente. Enquanto o vinho corria, o homem ousou pousar sobre o jovem rei um olhar cheio de esperança e de angústia, mas Ryderc não lhe prestou a menor atenção. Era um bretão de Strathclyde. Um pescador capturado pelos Escotos no estuário, por se ter aventurado demasiado perto das costas de Dal Riada.

Demorou um pouco mais, e o vinho transbordou da taça, e correu por entre os dedos do soberano.

Desta vez, o olhar de Ryderc pousou-se sobre ele, rápido e cheio de cólera. É Claro, não o reconheceu. Para isso, seria necessário que o escravo lhe falasse, que se atirasse aos seus pés para implorar que intercedesse por ele. Mas o incidente tinha atraído a atenção de Aedan, e o Escoto olhou para o seu criado com um ar tão terrível que ele selou os lábios.

- Perdoa este imbecil pela falta de jeito - disse ele. - Cylidd, maldito desastrado, é preciso que seja o teu rei a pedir desculpa por ti?

Ryderc estremeceu ao ouvir este nome cymri, e olhou para o escravo.

- Eu... Eu peço-vos perdão, senhor - disse Cylidd, baixando a cabeça diante dele.

- Não é nada.

O homem ergueu a cabeça e os olhares deles cruzaram-se por um breve momento. Em seguida, deu meia volta e saiu da sala. Ryderc apontou com um dedo a porta por onde tinha saído o criado.

- Aquele homem...

- Aquele homem é um escravo e um desajeitado - cortou Aedan. - Será castigado, podes ter certeza... Mas não era dele que estávamos a falar, não é verdade? Não é verdade?

- Não.

Ryderc olhou furtivamente para Sawel, sentado perto dele. O guerreiro levantou a mão num gesto interrogativo ao qual o jovem rei respondeu sem uma palavra, abanando negativamente a cabeça.

- Falávamos de guerra - disse, transferindo a atenção para o seu anfitrião.

E como este levantasse uma sobrancelha com ar espantado, continuou:

- Não é disso que, na verdade, se trata? A paz entre os nossos reinos, a guerra para os outros... Eis que te encontras livre para vingares o teu pai, Aedan, e para chegares até Fortriu, sem temeres um ataque de Strathclyde ou dos Manau Goddodin.

- Falas em nome do rei Mynydog?

Ryderc, mais uma vez, sentiu uma ameaça no tom do Escoto, mas já não podia recuar.

- Falo em nome de todos os reinos da Bretanha.

- E, no entanto, não vejo o cordão do elmo de Ambrosius brilhar no teu pescoço - murmurou Aedan, abanando a cabeça com um ar desolado. - Todavia, fiz tudo para que isso acontecesse...

Ryderc clareou a garganta e deitou um olhar de esguelha aos seus partidários.

- Guendoleu está morto.

- Eu sei que está morto! E sei que mais ninguém a não ser tu poderia agora pretender o título de Grande Rei.

Inclinou a cabeça respeitosamente e ergueu o copo na direção dele.

- No entanto, precisas do colar, meu irmão... Imagina que ele cai nas mãos erradas. Imagina que um rei insignificante ou até mesmo um príncipe, uma criança que mal saiu das saias da mãe, se apodera dele, um bastardo pagão votado aos cultos antigos... Não poderia ele disputar o lugar?

Ryderc esforçou-se por não deixar transparecer nada, mas sentia-se gelado por estas palavras. Seria possível que Aedan tivesse ouvido falar de Enirys Myrddin? Houve um brilho divertido no olhar do Escoto, e depois mudou de assunto com desenvoltura.

- Devo dizer-te que tive ocasião de ver Guendoloena várias vezes, enquanto estavas inconsciente - disse, com entusiasmo. - Não sei dizer se lhe agrado... No entanto, eu pude apreciar a sua beleza, a sua doçura e a sua inteligência... Como Melangell está morta, que Deus tenha a sua alma, porque não me dás a tua irmã? Assim, seríamos verdadeiramente irmãos... Que dizes?

Sem dar tempo ao jovem rei de responder, o bispo-abade Kentigem tossiu para chamar a atenção, depois juntou as mãos num gesto de completa compunção, demasiado insistente, que Ryderc achou ridículo.

- Seguramente, meu senhor, a aliança entre as vossas duas grandes nações seria uma graça do Céu, e não há nada que a Igreja deseje mais, para maior glória de Deus.

- Mas...?

Kentigem sorriu modestamente.

- Mas a jornada foi rica em emoções, e creio que o rei e a irmã precisam conversar.

- A sério? - disse Aedan, deitando aos filhos um olhar irônico. - Ignorava que os Cyrnri tinham em tão alta consideração a opinião das mulheres...

- Não é uma mulher qualquer - retificou Kentigem. - Sua senhoria não ignora que, ao tornar-se esposo de Guendoloena, poderá aspirar à coroa de Strathclyde, se o rei Ryderc morresse sem herdeiro...

A frase do monge pairou durante muito tempo sobre o leito de brasas, sem que ninguém quebrasse o silêncio, e a atmosfera mudou pouco a pouco, impregnando-se de desconfiança e rancor. Beberam para dissimularem o aborrecimento, e ficaram ainda por um bocado à volta da lareira. Depois, Aedan desculpou-se, aproveitando um alarido na rua para lembrar que tinha obrigações para com o seu povo.

Era já noite escura, uma noite sem lua nem estrelas, com um nevoeiro gelado e úmido que pesava sobre Dunadd como uma mortalha. Ryderc sentiu Guendoloena tremer encostada a ele e abraçou-a com mais força debaixo do casaco. Gostaria de ter dito qualquer coisa, mas faltavam-lhe as palavras. Todas as palavras já tinham sido ditas, e as que lhe restavam bloqueavam-lhe a garganta, estrangulando-o, fazendo-lhe saltar as lágrimas, inúteis e vãs. Ele partia, ela ficava. Estava tudo dito.

No dia seguinte, ergueriam as velas em direção a Dunn Breatann, costeando o loch Fyne, depois a ilha de Bute, para subirem em seguida o estuário do Clyde. Um dia de mar, no máximo, e sem riscos de uma nova emboscada dos Pictos...

No dia seguinte... Os seus homens já estavam prontos, bem como os barcos carregados de tesouros oferecidos por Aedan. Poderia ter sido um momento de triunfo, o advento de uma era nova, a era da ofensiva, da reconquista e da glória, mas essa noite era amarga, e o preço a pagar bem mais pesado do que imaginara.

Quanto tempo fora necessário para chegarem ali? Quantos esforços e quanto ouro, quantos mortos, quanto sangue? Não era o bastante? Era ainda necessário este último sacrifício? Tudo se tornava por fim possível, no entanto, pela primeira vez desde a partida dos Romanos. A aliança dos Escotos e dos Bretões permitia, ao mesmo tempo, conter os Pictos e atacar os Saxões, o que nenhum rei tinha podido fazer, nem Agricola, nem Vortigem, nem Maelgoun Gwynedd, nem mesmo Ambrosius, o Urso da Bretanha... Apesar da sua força e da sua coragem, todos se tinham esgotado a combater durante toda a vida, de uma ponta da ilha à outra, em vão, antes de sucumbirem miseravelmente, abandonados e traídos. Mas, agora, era diferente. Não era só uma guerra que se preparava, mas uma cruzada, uma cavalgada irresistível contra os pagãos inimigos de Deus, fossem eles celtas, gaélicos, pictos ou saxões, ordenada e abençoada pela Igreja, aquele cimento que lhes tinha faltado a todos... Era o momento com que ele sempre sonhara e cuja realização, por fim, se encontrava ao seu alcance. E no entanto, com uma frase, Aedan. mostrara-lhe que estava tudo por fazer. O cordão do elmo... Sem cordão, a aliança era-lhe desfavorável. Pensou em Merlim, viu-o tão jovem, atrapalhado com o seu fato, desajeitado, ridículo, diante da poterna da sua fortaleza, em Dunn Breatann. Merlim, que seduzira a sua irmã. Merlim, o bardo que fugira da planície de Arderydd, levando consigo o colar de Ambrosius... Porque é que essa criança, esse bastardo, esse filho do diabo, de quem os monges tinham horror, que só servia para cantar poemas, se erguesse diante dele como um obstáculo?

Guendoloena apertava-se contra ele, abafada na sua capa de peles. Talvez ela lhe pudesse ter sido útil, se o bastardo a amava realmente. Pensou durante uns instantes no que poderia ter sido uma outra aliança, sob outros deuses... Reanimar as antigas crenças, a magia das pedras erguidas e os exércitos de árvores que cantava Taliesin. Era agora muito tarde... Não havia outra escolha, doravante.

Tudo isto, Guendoloena compreendia tão bem quanto ele. Ela não tinha precisado dos sermões de Columb, nem das explicações atrapalhadas do irmão. Desde que tivera idade para escutar, tinha-o ouvido repetir as mesmas quimeras, tinha sonhado com ele batalhas e cercos, reis vencidos, prosternados, prisioneiros algemados implorando-lhes perdão. Nos seus sonhos, no entanto, ela via-se ao lado dele, tão terrível quanto Boudicca [30], conduzindo um carro de combate decorado com as cabeças dos seus inimigos, e não prisioneira, ela própria, acorrentada para toda a vida a um homem duas vezes mais velho do que ela.

Logo no momento em que Ryderc viera ter com ela ao quarto de Columb Cille, acompanhado pelo abade Kentigem, ela tinha compreendido. Bastava ver as caras deles, os sorrisos embaraçados, a falsa boa disposição. Ela deixara-os falar pelo simples prazer de os ver atrapalhados, quando era mais que evidente que não se podia recusar a oferta de Aedan. E enquanto eles se empenhavam em desenvolver seus argumentos, ela pensara em Melangell, na sua própria insistência para que Ryderc a deixasse acompanhá-lo, e em Merlim... Emrys Myrddin, o primeiro homem que a tinha beijado por amor, e talvez o último...

Durante todo o dia ficou calada, calada e resignada, encontrando um pouco de consolo em fazer, desse modo, Ryderc sofrer também. Chegada a noite, Columb Cille de Iona abençoara o noivado da princesa celta e do rei escoto, e Aedan dera imediatamente ordens para que arranjassem os seus aposentos. Não foi surpresa. Aedan, o Astuto, nunca a teria deixado partir para esperar o dia do casamento... Deram-lhe jóias e peles, damas de companhia sorridentes e até mesmo um criado do seu país, um Bretão de Strathclyde, que Aedan tivera de libertar da escravatura, a pedido de Ryderc. O homem chamava-se Cylidd. Vestido com roupa nova e libertado da coleira de ferro que marcava ainda nessa manhã a sua triste condição, seguia-os segurando um archote para lhes iluminar o caminho. Não havia dúvida de que ele se deixaria matar por eles, mas Ryderc e a irmã não se preocupavam com isso. Abraçados um ao outro, contornaram o recinto da cidade baixa, no odor dos fogos de turfa e dos peixes postos no fumeiro, entre a populaça, as galinhas e os porcos que enchiam as ruelas imundas dos bairros mais pobres. Dafydd e alguns homens seguiam-nos à distância, a espada desembainhada debaixo do casaco, mas ninguém lhes prestava atenção. Estavam longe do rochedo branco e dos edifícios reais, onde se viam brilhar os archotes, no cimo da colina. Lá em cima, Aedan devia estar já a ruminar os seus planos de batalha, enlevando-se com os seus sucessos, dividindo já entre os filhos um reino escoto que se estendia até às Orcades... Aqui, o vento não soprava. A bruma carregava o odor fétido das margens lamacentas, ensopava o solo e pesava sobre as almas.

Sempre abraçados, chegaram até à porta grande. Uma quantidade de archotes e de fogueiras iluminavam como se fosse dia, o posto da guarda construído no meio da muralha, projetando um halo de luz vacilante até aos navios estivados nas margens do rio. Os Bretões acampavam ali, prontos a embarcar. Ryderc contemplou-os durante um longo momento, sem dizer nada. Sentia o coração de Guendoloena bater contra ele e sabia que também ela não diria nada. No entanto, teria bastado passar essa porta, correr até aos barcos e fazerem-se ao mar...

No dia seguinte, ele partiria, e ela ficaria.

 

Com a neve, o vento tinha caído, e um nevoeiro espesso reduzia a visibilidade a algumas toesas. Blaise e Merlim tinham pegado nos remos, mas a corrente empurrava-os com bastante mais eficácia do que conseguiam os seus movimentos descoordenados, mais úteis a aquecê-los do que a fazer avançar a sua pesada embarcação. Grandes flocos agarravam-se ao mar, gelando a ondulação numa camada pesada de um cinzento chumbo. O céu e as ondas confundiam-se numa massa informe, indefinível e desesperante, quando tinham julgado estar tão perto da meta.

Uma boa parte do dia decorreu assim e, ao cair da noite, deixaram-se abater no fundo da barcaça, extenuados, suados, expirando espessas nuvens brancas cada vez que respiravam. Rapidamente, a escuridão foi total. Sem terem trocado a mais pequena palavra, enrolaram-se nos seus casacos, encostados um ao outro para tentarem conservar um pouco de calor, e depois adormeceram.

Um barulho de raspagem acordou-os em sobressalto, alguns instantes ou algumas horas mais tarde, imediatamente seguido de um abanão brutal que os derrubou rudemente. Içaram-se imediatamente contra o bordo, com os olhos esbugalhados, mas não havia nada. Nada para além das trevas insondáveis, as bofetadas dos chuviscos e o turbilhão dos flocos, até mesmo nos seus olhos. Um novo refluxo levantou o coracle, e depois desviou-o duramente contra o mesmo obstáculo invisível com um barulho aterrorizador, que os fez de novo perder o equilíbrio. Desta vez, o barco ficou imobilizado, apanhando a ondulação de lado, com uma inclinação cada vez mais acentuada a cada onda. Merlim sentiu subitamente água debaixo dos pés, uma corrente gelada que se precipitava em grandes jorros para dentro da barca.

- Estamos a afundar! - gritou, com uma voz aterrada. - O barco está a afundar-se!

- Temos de saltar! - gritou Blaise, segurando-lhe o braço. Merlim afastou-se dele, paralisado pelo medo, e agarrou-se freneticamente ao bordo, enquanto o coracle tombava.

No instante seguinte, o casco escapou-se-lhe debaixo dos pés e o mar aspirou-o, tão bruscamente que não teve tempo de fechar a boca. Enquanto se debatia, o alcatrate do coracle veio bater-lhe nas costas e projetou-o para o fundo. Os joelhos bateram nas rochas, depois os cotovelos, e mais uma vez a embarcação desconjuntada passou por cima dele, mantendo-o debaixo da água gelada, a menos de uma braçada debaixo da superfície. Bateu furiosamente, mas as suas mãos rolavam sobre seixos sem encontrar lugar por onde agarrar e debatia-se em vão, tossindo, cuspindo e engolindo de cada vez um pouco mais de água do mar. E depois, subitamente, a sua cabeça estava fora de água. A rebentação tinha impelido os destroços para longe dele, libertando-o. De um salto, atirou-se para a frente, conseguiu levantar-se, voltou a cair outra vez, rastejou freneticamente, no paroxismo do terror, até que, por fim, conseguiu escapar da ondulação. Debaixo dos seus pés, grandes seixos negros faziam-no tropeçar a cada passo e a sua roupa ensopada pesava de forma extraordinária sobre os seus ombros, como se o mar o continuasse a segurar. Com as mãos estendidas como um cego, os olhos e os pulmões queimados pelo sal, deixou-se cair sobre a areia e vomitou as tripas antes de rolar pelo chão, torcendo-se, o corpo e a alma desfeitos, gritando de dor a cada inspiração.

Umas mãos agarraram-no bruscamente, erguendo-o. Só teve tempo de reconhecer Blaise e de se agarrar a ele, e depois o monge içou-o sobre as costas e arrastou-o para o relativo abrigo de um monte de terra. Uma terra lamacenta e coberta de algas que se tinham tornado quebradiças pelo gelo, que o monge juntou às mãos-cheias. Merlim, aniquilado, não teve sequer forças para se debater quando ele lhe arrancou a túnica de tecido ondulado, mas gritou de dor quando Blaise começou a esfregar-lhe vigorosamente as costas, o tronco e os membros, indiferente ao sangue que corria dos arranhões. O tratamento, embora brutal, devolveu-lhe a vida. O seu corpo era só dor, mas uma dor ardente que o arrancava do seu entorpecimento.

Blaise despiu-se, por sua vez, tirando mesmo as botas e ficando só em bragas. Sacudido por espasmos, começou a friccionar-se a si próprio, e depois Merlim pegou em algas e começou a esfregar-lhe as costas com todo o vigor de que era capaz.

- As tuas botas - murmurou o monge numa voz despedaçada. - Esvazia as tuas botas...

Tremiam ambos como varas verdes, batidos pelos chuviscos e pela neve, nus e brancos na tormenta, mas, quando se voltaram a vestir, o pior tinha passado.

- Agora temos de caminhar - disse Blaise tiritando de frio. - Caminhar até ser dia. Se ficarmos aqui, morremos.

- Eu... Eu não tenho arma - objetou Merlim.

- Eu também não. Estão no fundo da água, com os nossos víveres e tudo o resto... Queres ir buscá-las?

Merlim voltou-se para o mar. As ondas quebravam-se na areia com um ruído de trovão. Abanou a cabeça.

- Achas que estamos em Dyfed? - perguntou.

- Com certeza... Anda, vamos embora.

Então caminharam, escalando primeiro o monte de terra que delimitava a areia, depois direto, para as colinas planas do interior das terras. A cada passo, a água gelada escorria-lhes das botas, e os fatos molhados colavam-se-lhes à pele. Merlim, no entanto, já não sentia frio. Havia no ar um aroma conhecido, alguma coisa familiar nestes montes e vales infinitos. Quando passaram um curso de água que descia das colinas, teve a certeza de estar a caminho de casa.

- Este rio! - exclamou, subitamente, num tom feliz que surpreendeu o seu companheiro. - É o Afon Teifi, tenho certeza! Só temos de o seguir e chegaremos à fortaleza de Cenarth! Estamos em Dyfed, Blaise! Chegamos!

- Quanto nos falta ainda até Cenarth? - murmurou o monge.

- Não sei... Duas, três horas de caminho, talvez.

- Deus seja louvado...

De manhãzinha, continuavam a caminhar, roçando a fronteira da inconsciência, apoiando-se um ao outro, com neve até aos tornozelos, com um aspecto terrível, com os seus cabelos embranquecidos pelo gelo, as roupas rasgadas e um ar cadavérico. Blaise rezava, ruminando palavras em latim que Merlim nem sequer tentava compreender. Com os olhos muito abertos, a criança não via mais do que campos cheios de neve, colinas e vales que se estendiam a perder de vista, até ao horizonte. Estava com Guendoleu, cavalgando ao lado de Cadvan, de Diwel e dos outros, inebriado pela corrida dos cavalos e o ruído surdo dos cascos. Iam depressa, rindo como crianças, tão depressa que os cavalos deixaram o solo e voaram, direitos ao Sol, deixando-o para trás. Merlim queria gritar, mas o seu cavalo não avançava. Batia-lhe nos flancos, estalava as rédeas, em vão, e de repente já não havia cavalo. Estava sozinho, sozinho e nu, ensurdecido pelo martelar da galopada deles, abandonado, incapaz mesmo de correr para eles. Tinham desaparecido; todavia, o barulho persistia, cada vez mais claro, cada vez mais forte, avançando direito a ele.

Emergindo bruscamente da sua visão, Merlim atirou-se para trás, arrastando consigo Blaise na queda. Uma manada de cavalos surgira diante deles, quase a tocar-lhes, depois desceu rapidamente uma colina e desapareceu num pequeno vale.

- Viste-os? - gritou Merlim, levantando-se de um salto.

Blaise endireitou-se com mais dificuldade, com um ar de completa incompreensão, e depois o seu olhar caiu sobre o largo sulco formado na neve pela passagem dos animais, e um sorriso formou-se no seu rosto desfeito.

- Temos de os apanhar.

- Eu vou lá! - gritou Merlim.

Precipitou-se imediatamente, esquecendo toda a fadiga, arrastado pela sua corrida até ao fundo da colina, tão depressa que rolou pelo chão e desceu as últimas jeiras [31] num turbilhão branco. Os cavalos estavam ali, mais de uma dezena, trazendo a maioria deles ainda os seus arreios, sela e freio, à beira de um pequeno bosque de bétulas. Eram cavalos de guerra, não havia dúvida. O pêlo de alguns estava manchado de sangue, do próprio animal ou do seu cavaleiro, e um deles tinha uma flecha cravada no peito...

Merlim avançou de cócoras, invisível de tanta neve que o cobria, num movimento lento e contínuo, semelhante ao escoamento de água ou à passagem de nuvens, e quando se levantou, muito devagarinho, estava no meio deles. O cavalo ferido olhava-o, com um olhar triste, a cabeça caída e tremendo por todos os lados. Era um ruano pequeno, de crina e barbela negras, trazendo ainda uma cobertura de sela de um vermelho vivo. Merlim foi ter com ele, pousou a mão na sua testeira e falou-lhe baixinho, e depois acariciou-lhe a longa crina. A flecha tinha-lhe penetrado profundamente no peito, um pouco acima da ponta da espádua. A haste batia lentamente, ao ritmo da sua respiração, um fiozinho de sangue castanho brilhava no seu pêlo e caía, gota a gota, no chão coberto de neve. Merlim estendeu a mão para a agarrar mas, como se tivesse adivinhado o seu gesto, o cavalo relinchou, tirou bruscamente a cabeça das mãos da criança e afastou-se com um coice. Quase imediatamente, caiu e rolou sobre o flanco com um relincho agudo. Merlim veio ter com ele em algumas passadas, ajoelhou-se ao seu lado e, com os olhos brilhantes de lágrimas, escondeu a cara na sua crina. O pequeno ruano morreu enquanto ele chorava, sem ter tido sequer um último estremecimento. Não era a primeira vez que ele via morrer assim um cavalo. Os cavalos de combate eram capazes de sobreviver a feridas horrorosas durante todo o tempo de uma batalha, e depois caíam mal os levavam para o sossego... Não era a primeira vez, mas todo o cansaço, o horror e a tristeza dos últimos dias se tinham abatido sobre ele e pesavam-lhe com toda a força sobre os ombros. Não passava de um cavalo, é claro, e se uma manada galopava assim em liberdade, é porque dezenas, centenas de homens se tinham morto uns aos outros, algures para além destas colinas, e isso queria dizer que a guerra já estava no Dyfed.. Mas este pequeno ruano não tinha nada a ver com isso...

Um grasnido fê-lo levantar os olhos para o cimo das bétulas. Os corvos já se reuniam para a disputa. Merlim deu um grito e levantou-se de um salto batendo os braços, sem outro efeito além de um zumbido de asas desdenhoso. Deitou um último olhar ao cadáver e depois, compelido por uma súbita inspiração, debruçou-se sobre ele e arrancou a flecha, antes de a partir em duas e de a atirar para longe. Quando se virou, os outros cavalos olhavam-no, imóveis, as narinas fumegantes. Avançou para a horda sem que nenhum deles se mexesse, e escolheu duas montarias ilesas e aparelhadas. Um alazão, para ele, nobre animal aparelhado com uma sela de guerra, e para o seu companheiro um grande cavalo cinzento, cor-de-lobo, com ar tranquilo.

Na altura em que saltou para a sela e agarrou as rédeas do cinzento, Blaise apareceu, descendo a colina a soprar como um urso. Imediatamente, o resto da manada assustada fugiu a galope e desapareceu numa nuvem de bruma de neve.

- Ouvi-te gritar! - exclamou o monge. - Está tudo bem?

Merlim abanou a cabeça com um sorriso fraco.

- Tudo bem... Consegues aguentar-te na sela?

- Só de pensar que podemos encontrar um teto e roupas secas, estaria pronto a montar um dragão!

Merlim reprimiu um sorriso ao vê-lo içar-se a muito custo sobre o dorso da sua montaria, e depois agarrar-se às rédeas de uma maneira que mostrava bem a sua falta de prática neste gênero de exercício. Partiram a passo, subiram a colina para encontrarem, na outra encosta, o curso do rio. Na orla de uma floresta, encontraram um caminho marcado por profundos sulcos gelados, indicando a passagem de numerosas carroças. Alguns minutos mais tarde, quando chegaram ao cimo de um outeiro, viram um grupo, ao longe, caminhando na sua direção. Sem esperar pelo companheiro, Merlim, esporeou o cavalo e arrancou a galope.

Eram aldeões, homens, mulheres e crianças, carregados de bagagens e empurrando diante deles duas vacas famélicas e uma mula atrelada a uma carroça improvisada. Ao verem-no galopar direito a eles, o bando começou a dispersar-se. Alguns fugiam já para os bosques, outros agrupavam-se brandindo chuços, demasiado descontrolados para serem perigosos. Merlim meteu o alazão a passo e parou à distância.

- Não quero fazer-vos mal! - gritou. - Sou Emrys Myrddin, o filho da rainha Aldan!

- Ah, sim! - replicou um dos homens, um ruivo cuja barba lhe parecia a mais cerrada que alguma vez vira. - E eu sou o irmão dela!

Os aldeões começaram a rir, mas os chuços continuavam levantados.

- Então és meu tio! - disse Merlim aproximando-se devagarinho. - Não tivemos ocasião de nos encontrarmos muitas vezes, dir-se-ia...

- Que queres tu, pequeno? - continuou o ruivo. - És muito novo para cavalgares sozinho. Antes de mais nada, esse cavalo é teu?

Um brilho no seu olhar alertou Merlim. Os outros aldeões avançavam, por sua vez, e os que tinham fugido para os bosques retrocediam. O homem sorria (ou pelo menos era o que parecia, do que se via no meio do matagal que lhe cobria a parte inferior da cara) e mal ele ficou ao alcance, levantou o braço para lhe agarrar as rédeas. Mesmo a tempo, Merlim empinou o cavalo e soltou-se.

- Dá-nos o teu cavalo! - exclamou o homem, brandindo de novo a arma. - Temos mais necessidade dele do que tu!

- Baixa o teu chuço - disse a criança. - Não quero lutar contigo!

- Oh, claro, lutares?!

O ruivo desatou a rir, e todos os outros com ele. Rodeavam-no agora, quatro ou cinco, sem contar com os outros que apertavam atrás. Merlim procurou Blaise com o olhar, mas ele ainda não tinha passado o outeiro. Talvez tivesse caído do cavalo, quem sabe? Porque é que não tinha esperado por ele?

- Queres lutar comigo, pequeno? - troçou o ruivo. - E com quê? Nem sequer tens arma!

- É verdade.

Com uma brusca pressão de pernas, Merlim fez o cavalo dar um salto em frente. O homem tentou levantar o pique, mas a criança atingiu-o primeiro, com um pontapé em pleno rosto. E como o seu adversário recuava sob o impacto, apanhou-lhe em pleno vôo a arma. No mesmo movimento, puxou as rédeas, executou uma meia volta com o cavalo e enfrentou-o de novo, com o chuço em riste. Tudo se tinha passado em alguns segundos.

- Agora já estou armado - disse. - Continuas a querer o meu cavalo?

Vermelho de cólera, o homem cambaleou durante um instante, depois arrancou o pique de um dos aldeões e virou-se de novo para a criança, com um grito de raiva. Nesse mesmo instante, exclamações retiveram o seu assalto. Blaise chegava, finalmente, agitado pelos sobressaltos de um trote que dominava com dificuldade, bastante grotesco com o seu gorro que lhe caía sobre os olhos.

- Merlim! - gritou. - Estás bem?

Os outros trocaram olhares estupefatos, que a criança não viu. Quando chegou perto deles, o monge parou o cavalo o melhor que pôde e, quando um dos homens veio beijar o seu hábito de burel ensopado, afastou-o com um gesto brusco:

- Enlouquecestes? Como ousais levantar a mão ao príncipe Emrys?

Desta vez, Merlim não pôde ignorar os olhares pousados sobre ele, e o movimento geral de recuo daqueles que, um instante mais cedo, se preparavam para o tirar da sela. Sentiu-se lisonjeado por um momento, e depois a garganta apertou-se-lhe numa sensação familiar. Não era respeito que ele lia nos seus olhos. Era mais medo, ou aversão...

- É ele, o bardo Merlim? - murmurou o ruivo.

- Sim, é ele, grande idiota! - gritou Blaise. - E espanta-me que ele ainda não te tenha transformado em burro!

Merlim abanou a cabeça e deu um suspiro. Esporeou o cavalo e começou a afastar-se no caminho, mas um grito de Blaise parou-o.

- Senhor, esperai um pouco, para que eu questione esta gente e compre roupas secas!

Trocaram um sinal de cabeça e o monge desmontou. Ou seja, desabou do cavalo, com tão pouca dignidade quanto era possível.

- Vinde, meus irmãos, para eu vos abençoar...

Todos se ajoelharam e baixaram a cabeça enquanto ele traçava por cima deles o sinal da cruz. Depois sorriu-lhes, apontando para as bagagens:

- Não tereis por acaso dois casacos e botas? Podereis ficar com os nossos, e eu pagarei pela diferença.

Os camponeses trocaram olhares hesitantes, mas uma das mulheres empurrou-os com irritação e foi buscar o que o monge pedia.

- Deus te abençoe duas vezes - disse Blaise, indo sentar-se sobre um cepo para trocar de botas.

Tirou a capa que lhe cobria os ombros, aceitou o casaco de carneiro virado do avesso que ela lhe estendia e deu um suspiro de satisfação. Os olhares desconfiados do grupo suavizaram-se quando ele lhe deitou algumas moedas na mão. Terminando com os agradecimentos, Blaise pegou num segundo casaco para Merlim e foi levar-lho.

- Estais bem carregados - disse, avançando. - De que fugis assim?

- Meu pai, o lugar onde vivíamos foi destruído e a própria cidade está em chamas - disse a mulher, acertando o passo com ele. - Há guerreiros por todo o lado...

Merlim aceitou de mau grado o casaco e colocou-o em cima da sela.

- Que cidade? - perguntou, num tom brusco.

- Cenarth, senhor - respondeu a mulher. - Diz-se que os Gaélicos também tomaram Mathri e várias cidades da costa...

Merlim levantou para Blaise um olhar alarmado, ao qual o seu companheiro respondeu com um abanar de cabeça.

- E Caerfyrddin? - perguntou a criança.

- Não sei, senhor... Toda a gente fugiu para o interior das terras.

A mulher voltou-se de novo para Blaise, abriu a boca para fazer uma pergunta mas voltou atrás imediatamente.

- O que foi? - perguntou o monge.

- Meu pai... Esses Gaélicos, são mesmo cristãos? É o que se diz, sim... Então, por que motivo nos atacam? Não é suposto sermos todos irmãos?

Blaise ouviu Merlim troçar do alto do seu cavalo, o que o levou ao cúmulo da exasperação.

- Minha filha, o homem é uma criatura imperfeita...

- Era o que dizia o nosso padre - disse ela, num tom de reprovação. - Estava sempre a dizer que era preciso perdoar aos nossos inimigos e rezar por eles. Pergunto-me se continuará a pensar a mesma coisa, agora que está morto.

- Foram os Gaélicos que o mataram?

- Não - disse a mulher. - Eles não tocaram nos padres... Mas era um homem velho, não resistiu. De fato, até nos ajudaram a enterrá-lo na igreja, antes de queimarem a cidade.

- Meu Deus...

Pouco a pouco, os outros tinham-se reunido em volta da mulher, em silêncio, pousando sobre Blaise os olhares cheios de reprovação e de confusão. Baixou a cabeça, incapaz de encontrar palavras que conseguissem reanimar a fé vacilante daquela gente, mas a mulhar prosseguiu sem reparar na sua perturbação.

- Disse-nos para rezarmos por ele, durante dois dias, e que viria ver-nos...

Blaise levantou os olhos e franziu o sobrolho.

- Porquê dois dias?

Houve risos, entre o grupo de aldeões. Alguns abanaram a cabeça com um ar consternado.

- A festa dos mortos, meu pai!

- Samain! - exclamou Merlim.

- O dia de Todos os Santos - retificou Blaise. - O dia de Todos os Santos, é claro...

Durante alguns segundos, o monge pareceu completamente estupefato. Caminhavam há tanto tempo que perdera completamente a noção do tempo. Mentalmente, tentou recordar o passar dos dias desde a partida de Dun Breatann, mas renunciou rapidamente e esforçou-se o melhor que pôde por se recompor.

- Obrigado, meus amigos - disse ele. - Acabais de nos fazer um favor enorme. Tomai... Como agradecimento.

Estendeu as rédeas do seu cavalo à mulher e sorriu perante o seu olhar embaraçado.

- Ireis precisar dele mais do que eu - disse, apontando com o queixo as crianças.

Depois, baixando a voz:

- E para além disso, acho que esse cavalo me detesta...

Ela beijou-lhe a mão, rapidamente imitada por todos os outros, de forma que precisou de um bocado para se esgueirar do grupo e se juntar ao seu companheiro de estrada. Sem ousar olhar muito para ele, içou-se para a garupa por trás dele. Merlim bateu com os calcanhares nos flancos do seu alazão e partiram, seguidos com os olhos pelo grupo de aldeões.

Enquanto o ruivo agarrava as rédeas do cavalo que lhes tinham deixado e se preparava para montar, a mulher segurou-lhe o braço.

- Achas que era realmente Merlim?

- Acho que sim...

E cuspiu para o chão.

- O filho do diabo... Que morra, ele e a galdéria da mãe!

 

Os Pictos tinham parado para acamparem muito antes do cair da noite, esgotados, mortos de fome e frio. Caminhavam há dois dias sem víveres nem bagagens, e a maior parte deles, adulados com honras e riquezas na corte do rei Brude, perdera o hábito de tais esforços. Wid caminhava como um condenado, praguejando entredentes de manhã à noite, ruminando os seus projetos de vingança, animado por tal ódio que poderia ter atravessado todo o país Cruitimi a pé sem que sua raiva passasse. O caminho era ainda longo até Fortriu, mas bandos de cavaleiros pictos atravessavam frequentemente as altas colinas que serviam de fronteira entre o Dal Riada e o imenso reino de Brude. Mais cedo ou mais tarde, cruzariam o seu caminho. Wid poderia, então, recuperar um cavalo e galopar até à fortaleza real... E se ninguém viesse ter com eles, tanto pior. Caminharia até Fortriu. Sozinho, se fosse necessário. Que Aedan aproveitasse bem a sua traição. Em menos de duas semanas, Dunadd não passaria de um montão de ruínas fumegantes varridas pelo vento.

Enquanto os outros acendiam uma fogueira ou partiam à procura de tubérculos comestíveis, o Picto subiu um outeiro rochoso para observar melhor a paisagem. A neve tinha coberto as terras altas e o vento empurrava as nuvens, de forma que o olhar parecia chegar ao infinito. Era um espectáculo de uma grandeza e beleza de cortar a respiração, na luz acobreada do crepúsculo, mas Wid não estava com disposição para o apreciar. A noite caía, o que só significava uma perda de tempo. Horas a morrerem de frio sem conseguirem dormir, a roerem raízes como animais... Apertou o casaco e brincou nervosamente com a faca, a única arma deixada pelos Escotos a toda a sua escolta. Subitamente, um movimento atraiu-lhe a atenção. Ao longe, uma nuvem de neve, indistinta, brilhava nos últimos clarões do dia. Podia ser uma rajada de vento, mas também um rasto deixado por uma tropa de cavaleiros a galope. Com o corpo esticado para a frente, ficou ali a perscrutar aquele turbilhão ínfimo até ter certeza do que tinha visto. Então desceu a correr até ao acampamento dos seus.

- Cavaleiros! - gritou, mal ficaram ao alcance da voz. - Aumentem o fogo, é preciso que eles nos vejam!

Broichan, o feiticeiro, aproximou-se dele e franziu os olhos para tentar ver aquilo que o dedo do príncipe apontava.

- Tens certeza que são dos nossos?

- E quem mais? - replicou Wid. - Estamos nas nossas terras, velhote! Ah!

Rapidamente, o grupo de cavaleiros ficou visível. Pareciam não ser mais de uns trinta, cavalgando a alta velocidade para leste, a mais de uma légua, e não pareciam tê-los visto. Os Pictos gritavam e agitavam os casacos, como náufragos. A fogueira de lenha úmida desprendia um fumo espesso que o vento, infelizmente, dispersava depressa, e a tropa continuava a galopar, passando agora quase diante deles. Por um instante, os Pictos julgaram que os cavaleiros se iam afastar sem os verem, mas estes últimos pararam, marcaram passo durante um longo momento antes de mudarem de direção e virem direitos a eles, debaixo das aclamações de Wid e da sua escolta.

Pouco a pouco, no entanto, os gritos e os vivas cessaram. Os cavaleiros tinham alinhado em formação de combate e continuavam a galopar a toda a velocidade. Não se via mais de cada um deles do que uma massa negra confusa, contrastando com a brancura do solo, mas rapidamente ficaram suficientemente perto para que os Pictos vissem o brilho das suas espadas.

- São Escotos! - gritou Broichan, segurando Wid pelo braço. - Pelas cinzas de Cruithne, são Escotos!

Em volta deles, os Pictos fugiam, como um bando de pardais. Wid não se moveu. Lentamente, desembainhou a sua faca, depois abriu a fivela de prata que lhe prendia o casaco. Broichan, o feiticeiro, debruçou-se sobre a fogueira, agarrou um ramo a arder e traçou freneticamente em volta deles um círculo de fumo, murmurando estranhas encantações. A tocha crepitante derreteu a neve, e um círculo de cinzas e terra gelada rodeou-os rapidamente.

- É demasiado tarde - murmurou Wid.

- O fumo tornar-nos-á invisíveis! - respondeu o feiticeiro. - Não saias do círculo!

Wid não respondeu. Com uma mágoa indescritível, contemplava o massacre dos seus. Nenhum deles estava armado. Alguns tinham agarrado paus ou pedras, mas os Escotos ceifavam-nos a golpes de lança ou de espada, e o seu sangue espalhava-se sobre a neve... Cavaleiros passaram à sua direita, perseguindo um grupo de fugitivos.

- Eles não nos vêem, Wid! - murmurou Broichan, ao seu ouvido.

- Pobre louco...

Outros dois galopavam direitos a eles, como se disputassem a honra da sua morte. Certamente, Aedan prometera ouro pela sua cabeça...

No instante em que iam atacar, o Picto rolou pelo chão, saindo do círculo traçado pelo feiticeiro. Sentiu o assobio de uma espada por cima dele e levantou-se por trás deles. Com um rápido olhar, viu Broichan, o rosto e o corpo listrados de um comprido traço escarlate, caindo lentamente com uma expressão de estupefação total. Com todas as suas forças, lançou a faca às costas de um dos cavaleiros, que balançou sobre a sela e caiu ao chão, um pouco mais longe.

- Aedan, o Traidor, maldito sejas! - gritou a plenos pulmões.

O outro cavaleiro fazia voltear o cavalo e vinha já na sua direção, mas um terceiro Escoto surgiu e trespassou-o com a lança, com uma tal força que o ferro atravessou o seu lorigão de couro e jorrou do seu peito como um corno.

Wid caiu na neve. Não sentia dor, apenas a sensação de sufocar, de perder o fôlego. Diante dele, via os Escotos rodopiarem, levantarem as espadas e darem gritos de vitória... Certamente julgavam que estava morto. Era preciso ficar quieto. Não se mexer. Economizar forças. Esperar que eles partissem e depois fazer-se ao caminho. Sobreviver pelo menos o tempo necessário para avisar Brude...

Umas botas aproximaram-se, depois alguém o levantou pelos cabelos. A última coisa que viu foi o jorro de sangue que esguichava da sua cabeça cortada, manchando a neve.

 

Sentada sobre um cofre coberto de peles, as mãos cruzadas diante de si e os lábios fechados, Guendoloena deixava o olhar andar à deriva, atravessando a estreita janela do seu quarto, até à linha distante das montanhas. À luz fraca da manhã, os cumes com neve brilhavam como uma fita de prata, semelhante às que as damas de companhia usavam para entrançar os seus longos cabelos negros durante horas, ou pelo menos várias dezenas de minutos, um tempo infinito para a princesa, que só sonhava em correr lá para fora, sair finalmente daquele quarto onde a neve e o vento a tinham mantido enclausurada uma boa parte da semana. Estava bom tempo, finalmente, e ela não queria perder pitada daquele primeiro dia de sol. Percorrer a cidade, descobrir um pouco daquele reino a que teria de se acomodar, encontrar um cavalo, talvez, e galopar durante todo o dia... Se pelo menos Aedan não tivesse deixado ordens para a impedirem de sair...

Guendoloena prestou atenção à tagarelice das suas damas de companhia. Nenhuma delas falava a língua bretã, e a princesa só conseguia apanhar algumas palavras do dialeto gaélico. “Righ”, o rei. “Tuislich”, a viagem... Aedan partira havia já vários dias. Sem conseguir perceber - longe disso - tudo quanto as jovens diziam, teve a impressão de que o seu regresso estava eminente. Era com certeza por isso que elas a arranjavam assim.

- Righ Aedan... An-diugh? - perguntou, sorrindo.

Elas responderam todas ao mesmo tempo, rindo e batendo palmas, sem que Guendoloena compreendesse uma só palavra, mas ao vê-las assim, soube a resposta à sua pergunta. Sim, Aedan regressava naquele mesmo dia...

Teve de esperar ainda longos minutos para que elas acabassem de a pentear, e quando lhe estenderam com sorrisos um pouco inquietos um espelho de bronze de execução romana, Guendoloena pôde, por fim, contemplar o resultado do trabalho delas. Os seus cabelos penteados em tranças grossas, ornadas com fitas de prata, revelavam o seu rosto e pescoço, onde brilhava um colar de ouro de três voltas. Sombra nas pálpebras tornava os seus olhos maiores, e pesados brincos de ouro e turquesas deitavam um brilho suave a cada movimento da sua cabeça. O vestido claro não tinha nada de extraordinário, mas era também ele realçado por um casaco vermelho de uma lã maravilhosa, tão espesso quanto um lorigão de guerra, e, no entanto, de uma suavidade excepcional, fechado no ombro por uma fivela de ouro trabalhado, encastoada com várias pedras preciosas. Por cima das mangas, os braços estavam carregados de dezenas de pulseiras que tilintavam alegremente. Ela sorriu ao reflexo delas, depois ergueu os olhos para as suas seguidoras e agradeceu-lhes com um aceno de cabeça.

- Tapadh leat - disse. - Obrigada... Deixem-me, agora, se faz favor...

Guendoloena esperou que elas saíssem do quarto, depois saiu atrás delas e, espreitando para fora, chamou o criado. Cylidd apareceu no mesmo instante. Fechou cuidadosamente a porta atrás de si, depois ficou alguns instantes, ao vê-la.

- Minha rainha, vós... Estais realmente muito bonita...

- Tapadh leat, Cylídd...

- Fazeis progressos - observou ele, sorrindo.

- Ainda não são suficientes - suspirou ela. - Não percebi muito bem o que elas diziam, mas tive a impressão de que Aedan vai chegar hoje. Podes tentar informar-te?

- Não é necessário, minha rainha. Ele está, efetivamente de regresso. O povo só fala disso. Ao que parece, Columb Cille e ele, conseguiram o acordo do rei Ulaid para que o território dos Escotos se torne um reino independente, separado dos Dal Riada da Hibérnia. Parece ser importante... Preparam uma grande festa.

- Muito bem - disse Guendoloena. - Vai preparar-te, quero que me mostres toda a cidade, e quero estar no embarcadouro quando Aedan chegar.

Cylidd franziu o sobrolho, mas os longos anos de servidão tinham-lhe ensinado a obedecer sem fazer perguntas. No entanto, a princesa reparou na sua inquietação e reteve-o antes de ele sair.

- Não tenho escolha, entendes? Quer queira, quer não, serei sua mulher. O único meio de ter uma vida mais ou menos normal é levá-lo a confiar em mim... Fazê-lo julgar... Julgar que o amo... - Olhou em volta do quarto e deu um longo suspiro. - ...Senão, acabarei os meus dias entre estas quatro paredes... E, acredita, não tenho vontade nenhuma de que tal aconteça.

 

- Porque é que tiveste de lhes dar o teu cavalo!? - resmungou Merlim. - já teríamos chegado à fortaleza, a esta hora!

- Ou talvez já estivéssemos mortos, grande asno - replicou Blaise, por trás dele. - Com a tua pressa de galopares sempre em frente sem refletir, era o que teríamos ganho!

A criança encolheu os ombros. Desde que tinham deixado os aldeões, na floresta, devia ser a décima vez que trocavam estas palavras. Os dois em cima de um animal já cansado, não avançavam mais do que a pé, mas talvez Blaise tivesse razão. As palavras da aldeã tinham-lhe apertado o coração com uma angústia sufocante, e ele tinha de se controlar para não puxar pelo cavalo até ao fim das suas forças.

- Pelas Mães, não vamos chegar nunca!

Merlim passou uma perna por cima do pescoço do cavalo e saltou para o chão. Agarrou as rédeas e voltou-se para o companheiro, mas Blaise não lhe prestava a menor atenção. Com os olhos fixos em direção a leste, o monge perscrutava o horizonte com um ar grave, quase transtornado. A criança olhou na mesma direção sem ver nada. A parte inferior do céu diluía a paisagem na bruma, para lá das colinas que os rodeavam.

- Que é que procuras? - inquiriu, num tom desesperado. Blaise afastou-se a custo do espectáculo distante que o atraía e olhou para Merlim com tanta intensidade, que este se sentiu incomodado.

- Elas não devem estar longe. Algumas milhas... Não pode ser um acaso... Achas que é um sinal de Deus?...

- De que estás a falar?

- ... Eu acredito que sim.

Merlim deitou de novo uma espreitadela por cima do ombro. Na verdade, não havia nada. Colinas rasas e vales com neve a perder de vista. Bateu as rédeas para tirar o companheiro desta contemplação apática, exasperante e sem sentido, a seu ver.

- Anda, desce daí - disse-lhe. - Que pelo menos o cavalo repouse!

Blaise balbuciou uma resposta ininteligível mas deitou-se, ainda assim, sobre o pescoço do cavalo e deixou-se escorregar para o chão. No mesmo instante, infelizmente, o alazão deu um pinote e o monge estatelou-se no chão a todo o comprimento. Merlim deitou-lhe um olhar divertido e depois irritou-se ao ver que o outro continuava no chão.

- Levanta-te! - resmungou. - Não te magoaste assim tanto!

- Silêncio!

Blaise tinha colado o ouvido ao chão. Freneticamente, limpou a neve para escutar de novo. Um ruído. O martelar de uma tropa a galope...

- Cavaleiros! - murmurou, pondo-se de pé.

Merlim inspecionou rapidamente os arredores e depois, largando as rédeas, precipitou-se para o cimo de um montículo rochoso, a algumas varas dali. Imediatamente, agachou-se. A mais de uma légua, duas colunas galopavam na direção deles, trazendo auriflamas que ele não conhecia. Fossem quem fossem, não eram homens do Dyfed.

- Vêm para cá! Temos de fugir!

Deu um salto para cima da sela e depois estendeu a mão a Blaise, para o ajudar a montar.

- Não - disse o monge. - Sendo dois, não teremos chance alguma. O cavalo não aguentará, Tu próprio o disseste.

Merlim olhou-o em desespero. O ruído da tropa tornava-se perceptível e aumentava rapidamente.

- A mim eles não farão nada - continuou Blaise. - Lembras-te do que disse a aldeã. Sou um homem de Deus... Eles não atacam os homens de Deus.

Sorriu e estendeu-lhe a mão, com um nó na garganta.

- É aqui que os nossos caminhos se separam, príncipe Emrys. É preciso saber obedecer à vontade divina quando ela se manifesta.

Merlim deitou um olhar para trás. Dentro de um instante, as colunas de cavaleiros estariam ali.

- Ainda há tempo, monta!

Blaise fechou a mão a custo e afastou-se um passo.

- Não entendes... O teu destino encontra-se nas colinas. Terás sempre tempo de ir ter com a tua mãe mais tarde.

- Mas que colinas? - disse Merlim, tomado agora por um acesso de angústia.

Blaise apontou para leste.

- Preseli, meu filho. A entrada do Outro Mundo... Será dia de Todos os Santos, Samain, dentro de dois dias! Não vês que é o fim do caminho?

A criança olhou-o com um ar terrível, perdido, as mãos de tal forma crispadas sobre as rédeas do cavalo que os nós dos dedos estavam brancos. Tomado por uma súbita inspiração, agarrou com as duas mãos o cordão de elmo que lhe pesava sobre o pescoço e afastou as hastes, o suficiente para o tirar, e depois atirou-o ao monge.

- Esconde-o! - pediu-lhe. - Poderás devolver-mo em Caerfyrddin!

Blaise ficou confuso por um momento, olhando o colar de ouro nas suas mãos. Não era este o objetivo da sua demanda? A Fortaleza do Mar estava próxima e, acontecesse o que acontecesse a Merlim daí em diante, a missão que lhe confiara o bispo Kentigem chegava ao fim... No entanto, ele não sentia alegria alguma, nada mais que um vago desgosto.

O barulho da galopada estava agora muito próximo. Depressa, o monge abriu o casaco de carneiro e escondeu o colar debaixo do hábito. Enquanto levantava os olhos para o seu companheiro, um raio de sol trespassou o céu cinzento e veio iluminar o pêlo acobreado do alazão. Os seus olhares cruzaram-se pela última vez, depois Merlim esporeou subitamente o cavalo e partiu a galope.

Blaise, preso por este último olhar, ajoelhou-se na neve, com as mãos postas.

- Quando abriu o segundo selo saiu um cavalo vermelho murmurou. - E ao que estava assentado sobre ele, foi dado que tirasse a paz da terra, e que se matassem uns aos outros; efoi-lhe dada uma grande espada... [32]

Antes de ter acabado a sua oração, um barulho de cavalgada sobressaltou-o. Voltou-se de um salto e viu-se rodeado por um bando de guerreiros escuros como demônios, cobertos de malhas e de couro eriçados de lanças, de machados, e que lhe atiravam olhares terríveis do alto dos seus cavalos. Blaise baixou a cabeça, juntou de novo as mãos e voltou a rezar.

- Em pé, meu irmão!

O monge ergueu os olhos, procurou por um momento entre todos aqueles rostos duros, mal-humorados, aquele que lhe tinha falado. Um deles desmontou e ajudou-o a levantar-se.

- Não sois do Dyfed - murmurou Blaise.

- Isso não! - exclamou o outro, com um forte sotaque irlandês. - Somos Deisi Muman, e o Dyfed, agora, é nosso! Mas nada tens a temer, nós...

Gritos interromperam-no. A alguns passos dali, homens mostravam o rasto deixado pelo cavalo de Merlim.

- Um ladrão - disse Blaise precipitadamente. - Acaba de me levar o cavalo, e tudo quanto eu possuía!

O Gaélico deu uma ordem. Imediatamente dois cavaleiros lançaram-se sobre a pista de Merlim. Blaise seguiu-os com um olhar angustiado.

- Não tenhas receio - disse o Gaélico, voltando a montar.

Eles irão encontrá-lo e saberão castigá-lo, em nome de Deus, ámém! Vou precisar do teu cavalo, infelizmente para ti, mas fica conosco e devolver-te-emos os teus bens ...

Blaise abanou a cabeça.

- Sem cavalo, irei atrasar-vos, senhor ...

O outro abanou a cabeça com um ar divertido, depois virou as rédeas e o seu bando deu meia volta com ele.

- Se queres fugir do país, despacha-te! - disse ele, afastando-se. - Todos os teus estão a embarcar em Caerfyrddin!

 

Quando fechava os olhos, Guendoloena sentia o corpo vacilar e o chão começava a balançar, como um navio no mar. Uma impressão que não era desagradável, antes pelo contrário, divertida, na realidade. Estendeu a mão para agarrar a sua taça, mas Aedan interceptou o gesto e puxou-a para ele.

- Acho que já bebeste o suficiente...

Tirou devagarinho a taça de hidromel das mãos da noiva, despejou-a de um trago e deu um suspiro de contentamento. À luz das tochas, os seus olhos, tão escuros quanto a sua barba tinham um brilho turvo, que não se devia só à embriaguez. Não era esta a conclusão ideal de um dia perfeito? Nessa mesma manhã, tinha deixado a corte do rei Ulaid Aedh mac Affimire, enquanto esse velho louco cheio de cristianismo tentara expulsar os poetas da ilha verde. Que idéia ridícula... O próprio Columb Cille se opusera, bem como todas as pessoas sensatas da assembléia. Aedan não tinha dito nada. Obtivera a coroa do Dal Riada, a bênção do Grande Rei e a promessa de reforços se se lançasse contra os Pictos. Era bastante, e teria sido inconveniente não se mostrar reconhecido.

Mantendo sempre a jovem encostada a ele, o Escoto pousou o copo sobre a mesa, sorriu e contemplou o rosto da noiva.

- Esperei tanto por este instante... - murmurou ele.

- Ainda não estamos casados, senhor - disse ela, sustentando o seu olhar com um ar de desafio nos olhos que o espicaçou.

- Eu sei...

Com um gesto, abriu a fivela de ouro que lhe segurava o casaco, e este caiu ao chão com um sussurro de tecido. O barulho da festa, o riso e a música dos bardos chegavam-lhes esbatidos, longínquos. A respiração de Guendoloena acelerou-se quando Aedan pousou a mão sobre a pele nua do seu pescoço e a fez deslizar lentamente, por debaixo do tecido do seu vestido, até ao ombro. Fechou os olhos quando ele se debruçou sobre ela e os seus lábios lhe roçaram o pescoço. Um arrepio apoderou-se dela e eletrizou-a, o bastante para que ela ousasse cruzar as mãos sobre a nuca do Escoto e acariciasse os seus curtos cabelos castanhos. A imagem de Merlim passou-lhe pelo espírito durante um instante, bem como a lembrança da união deles. Aedan era completamente diferente. Debaixo dos dedos, sentia o seu pescoço de touro, a sua nuca tão grande quanto o tronco de uma árvore. Contra ele, os seus seios e o seu ventre ondulavam como uma chama, Com Merlim não sentira este desejo de ser possuída, mas mais o desejo de dar. Tinham feito amor como duas crianças fascinadas, sem ousarem olhar um para o outro, mal se aflorando, enquanto o Escoto a estreitava contra ele com toda a força, e os seus corpos se ligavam, e as suas mãos ávidas se agarravam apaixonadamente.

- Queres ser minha mulher? - murmurou-lhe ele ao ouvido. - Queres verdadeiramente?

Guendoloena não respondeu, mas o seu corpo falava por ela. O hidromel fazia-lhe rodar a cabeça, confundindo este instante de abandono com as recordações das últimas horas. Durante todo o dia tinha galopado livremente através das planícies selvagens de Cowal até ao loch Long, entre as montanhas e o mar, debaixo de um sol brilhante. Os guerreiros escotos, destinados à sua escolta tinham conseguido pescar um salmão e tinham-no preparado nas brasas. Não lhe tinham tocado, felizes de a verem comer com tanto apetite e contentando-se por seu lado com presunto defumado e bolachas de pão. Estes homens não se pareciam com os guardas de Dun Breatann, nem com ninguém do seu meio social. Não havia neles sinal daquela distância respeitosa que sempre a mantivera à parte, confinada a um isolamento de que não tivera verdadeiramente consciência. Pelo contrário, a familiaridade imediata deles parecia-lhe de tal forma natural, que ela não poderia ter-se ofendido. Cylidd, com as costas moídas da cavalgada, não parava de se queixar e de emitir juízos desdenhosos sobre a conduta deles, a maneira de pescarem, de comerem ou de beberem, e a verdade é que pareciam mais vadios do que guardas reais, mas ela não ligava importância. Rapidamente, mandou-o calar e ordenou-lhe que traduzisse um elogio sobre o salmão, o que os deixou encantados. Todo o dia se passara assim, até que tornaram a atravessar a península para esperarem o navio de Aedan.

Com os olhos fechados, pousou a cara no tronco do Escoto. O seu coração acelerou-se um pouco mais quando ele começou a desfazer o nó da fita que lhe fechava o vestido. Durante um momento, teve medo. Medo de ir demasiado depressa, daquilo que já não podia ser parado, daquilo que desejava com todo o seu ser, embora não tivesse direito a isso. Pensou em Ryderc, na posição que ocupava e que a proibia de aceder aos seus impulsos como uma rapariga de quinta. Mas Ryderc estava longe, e as mãos de Aedan acariciaram-lhe as costas nuas, cingiram-lhe a cintura com um tal ardor que os seus pensamentos se desvaneceram. De repente, sentiu-se levantada, tão facilmente como quando era pequena e o pai a levava no colo. Aedan colocou-a sobre a cama, e depois afastou-se para se despir.

Não era a primeira vez que via um homem nu, mas nunca tinha visto um num tão manifesto estado de desejo. Mais uma vez, sentiu medo, somente durante o tempo que ele demorou a vir ter com ela, cobrindo-a completamente com o seu corpo maciço. Ela agarrou-se a ele e mordeu os lábios quando ele entrou nela, e depois uma onda de prazer submergiu-a ao ritmo dos seus movimentos. Devagar, demoradamente, foram um do outro, até que ele se afastou dela, depois de um último beijo.

- Pelas Mães!

A exclamação de Aedan arrancou-a bruscamente daquela plenitude. Ele afastara-se dela e olhava-lhe as pernas com um ar de estupefação indignada. Imediatamente, ela sentiu-se nua, mas quando procurou um lençol para se cobrir o Escoto empurrou-a para trás.

- Que se passa? - balbuciou ela, espantada com esta brutal reviravolta, com os olhos já brilhantes de lágrimas.

- Não há sangue! - sussurrou Aedan. - Não há sangue!

Guendoloena não entendeu imediatamente, Seguiu o olhar do seu amante e descobriu a impudência das suas coxas abertas. Só então compreendeu.

- Não és virgem! - disse ele, olhando-a com uma expressão terrível.

Antes que ela pudesse dizer uma palavra, Aedan afastou-se da cama, caminhou rapidamente até à mesa e voltou, nu como um verme, segurando na mão uma adaga. Ela gritou, tentou escapar, mas ele agarrou-lhe o braço e, com um só movimento, sem hesitar, cortou-lhe a palma da mão.

Guendoloena deu um grito de dor. Não era tanto por causa da ferida, mas mais da força com que ele lhe agarrava o pulso e da humilhação daquela brusca mudança. O sangue escorria da sua mão cortada até ao punho de Aedan, e gotejava sobre os lençóis, por baixo deles. Ele segurou-a assim durante alguns instantes, depois afrouxou a força. Enquanto ela saltava para fora do alcance dele, com o rosto banhado em lágrimas, ele virou a adaga contra a sua própria palma e cortou-se da mesma maneira. Assim, o sangue de cada um deles misturado espalhou-se sobre os lençóis.

Por sua vez, Aedan levantou-se, evitando o olhar dela, voltou a vestir-se rapidamente, agarrou num pano que estava sobre a mesa e com ele fez uma ligadura, dirigindo-se em seguida para a porta. Quando se preparava para sair, voltou-se para ela, com um nó na garganta e o olhar embaciado. Guendoloena estava num canto do quarto, uma sombra tão frágil e tão desejável, apesar de tudo, que ele se sentiu despedaçado até ao mais profundo de si próprio.

- Um rei não pode nunca perder a face - murmurou ele.

 

Agarrado à crina do cavalo, sem se importar com as rédeas que batiam livremente ao ritmo desenfreado da corrida, deitado atravessado sobre o pescoço do cavalo, Merlim murmurava-lhe ao ouvido o “Dito da grande manada”, uma canção de que os cavalos gostavam e que libertava neles uma energia selvagem. Fora assim, dizia-se, que as tribos da Deusa tinham domesticado os primeiros ginetes do mundo, muito antes do homem ter posto o pé sobre a terra dos deuses... Indiferentes aos arbustos e aos fetos que por vezes se agarravam a eles na sua louca cavalgada, a criança e o cavalo corriam como o vento através da floresta, no ritmo regular da sua batida. Havia muito tempo que os dois Gaélicos os tinham perdido de vista, a uma tal velocidade. Merlim, agora, já não galopava para fugir, mas por puro prazer, o prazer exaltante de seguir em frente, sem que nada o pudesse parar, de saltar por cima de riachos, de cepos ou de rochas sem abrandar a sua corrida, de cortar mato num jorrar de neve cintilante, de estar tão intimamente ligado ao seu alazão que se diria ser um centauro surgido das entranhas da terra. Por instinto, encobrira-se sob a abóbada das árvores para fugir aos Gaélicos, sabendo que não teria nenhuma chance de se distanciar deles em campo aberto com um animal exausto. Cada passada afastava-o, tanto das colinas de Preseli, como da fortaleza da mãe. Todavia, embora se tivesse dado conta, Merlim não fazia nada para modificar a sua rota, nem abrandar o seu cavalo. Por agora, aquela louca corrida mantinha enterradas todas as perguntas que as palavras de Blaise fariam surgir, infalivelmente, mais cedo ou mais tarde, e estava bem assim.

Durante horas, galopou no meio do odor estonteante do húmus e dos fetos, através do imenso bosque de carvalhos que cobriam então as colinas do Dyfed, de Liandeilo a Caerleon. No final do dia, o animal extenuado lançou-se ao vento e começou a resfolegar. Sem que Merlim pudesse fazer nada, o alazão passou de um galope desenfreado para trote, e depois parou completamente, com o corpo a fumegar no frio do interior do bosque. Merlim, também excitado por esta longa corrida, demorou alguns instantes a voltar a si e depois saltou para o chão, com as coxas doloridas de tanto se ter agarrado ao cavalo. Deixou-se cair de joelhos, engoliu um punhado de neve para matar a sede e depois, quando recuperou o fôlego, arrancou alguns tufos de erva e começou a friccionar o cavalo brilhante de suor.

Pouco a pouco, os barulhos da floresta reconstruíram-se em volta deles. Enquanto o animal, libertado da sua sela, comia avidamente as poucas folhas de um arbusto branqueado da geada, ao qual a criança o tinha amarrado, Merlim escutou o vento nos ramos sem folhagem e, sobre as suas cabeças, o piar das aves, os estalidos furtivos da vegetação rasteira e o correr das águas debaixo da neve. Nenhum vestígio humano nessa sinfonia. Os Gaélicos deviam ter renunciado... A imagem de Blaise veio-lhe à cabeça, mas, em vez de se alarmar com a sua sorte, este pensamento fê-lo sorrir afetuosamente. Blaise, o beneditino, Blaise, o bem nutrido, confessor untuoso da rainha Aldan, monge do palácio, monge da corte, todo redondezas, segredos e Padres-Nossos, tudo aquilo que ele teria detestado... Blaise, no entanto, tornara-se seu amigo. Um amigo que, sem dúvida, conhecia desde sempre aquilo que ele, Merlim, procurava tanto, mas um amigo, contudo, tão fiel que ele lhe confiara o seu bem mais precioso, sem sequer refletir... Num gesto que se tornara familiar, a criança levou a mão ao pescoço, mas o cordão de ouro ja não pesava sobre ele. O destino da Bretanha estava, de agora em diante, nas mãos do pequeno monge. Conseguiria ele escapar aos cavaleiros gaélicos? Estaria prisioneiro, nesse momento, com o colar apreendido, enfeitando o peito de um deles? Estaria morto?

Merlim abanou a cabeça, afastou esse pensamento. Blaise não estava morto. Sem saber porquê, tinha certeza de que o monge não poderia ter sucumbido sem que ele sentisse a sua perda. Voltou a pensar nas visões que se lhe tinham imposto, nesses últimos tempos, no pavor que sentia quando as imagens se tornavam demasiado reais. Talvez um dia conseguisse dominar esses sonhos acordados, ou até mesmo provocá-los, e deixar de os temer. Enquanto esperava, só podia confiar no seu instinto. Se Blaise tivesse sido morto, ou mesmo se tivesse corrido perigo de morte, uma visão tê-lo-ia avisado. Não podia ser de outra maneira...

Enquanto a luz do dia diminuía rapidamente debaixo da abóbada de carvalhos, a criança deixou-se cair ao chão, encostou-se a um tronco de árvore e apertou contra o peito o seu casaco de pele de carneiro. Estranhamente, sentia-se em paz, sereno, apesar da escuridão que o envolvia pouco a pouco e que teria apavorado qualquer outro que não ele, no meio da floresta. Talvez tivesse agido impensadamente, mas não conseguia sentir-se culpado. Estava sozinho, mas esta solidão não lhe pesava. Todas as perguntas que tinha recalcado no fundo de si mesmo nessas últimas horas afluíam com o crepúsculo e ele deixava-se invadir sem medo, quase deleitado.

Blaise parecera-lhe abatido, no momento em que se dera conta de que a longa viagem que tinham feito juntos terminava ali, a algumas milhas de Preseli e a algumas horas do dia dos mortos. Devia, certamente, pensar que os cavaleiros gaélicos eram uma manifestação da vontade divina, chagando inesperadamente só para os separar, a fim de que Merlim terminasse sozinho a última etapa...

As colinas azuis de Preseli. Durante um longo momento, a criança esforçou-se por reunir as suas recordações, mas nada do que lhe vinha à mente lhe era útil. Na realidade, ninguém saberia dizer o que o esperava aí. Era uma terra maldita, proibida aos mortais, e que só os druidas ousavam aproximar. Todas as lendas que lhe vinham à memória evocavam o destino terrível dos irresponsáveis que tinham ousado desafiar essa proibição. Era um local de que não se falava, na verdade, a milhas de qualquer lugar habitado e do qual os próprios monges se mantinham afastados.

Merlim, no entanto, não sentia medo algum. Pelo contrário, pela primeira vez depois de bastantes dias, conseguia descontrair-se, como se o simples fato de estar liberto do colar diminuísse o peso da sua alma, tanto quanto o dos seus ombros. A primeira vez desde... desde a noite passada no abrigo do bosque dos elfos, depois da batalha. Reviu a silhueta avistada de relance nos matagais, aquele rosto de criança, pálido e magro, aquela figura vestida como ele, com aquela estranha túnica de tecido ondulante, leve e de cor variável, semelhante a uma folha ao vento. Uma túnica demasiado fina para aquecer um homem, mas que o tinha até agora protegido do frio, da chuva e do mar. Porque é que os elfos lhe teriam dado este presente? Seria possível que ele fosse um deles? Blaise acreditava que sim. E a sua mãe também, sem dúvida, e Gwenfaen, o monge de Môn, que também lhe falara de Mynid Preseli. Até o velho Taliesin, cujas palavras enigmáticas, na noite do banquete dos reis, lhe voltavam à memória. “Um dos teus”, dissera-lhe, evocando um mestre que o fizera renascer através da iluminação do canto... Poderia esse mestre ser um elfo? Seria possível que o príncipe Elfin, de que falava a lenda, fosse um deles, que esse nome fosse só uma alcunha, uma insinuação velada, inventada por Taliesin? Havia tantas perguntas, tantas coisas estranhas que só ele parecia ignorar...

Merlim escondeu a cara na lã amarelada do seu casaco, Pouco a pouco, a fadiga do dia tornava-lhe as pálpebras pesadas e certamente teria adormecido ali, encostado àquela árvore, se o grito sonoro de um noitibo não o tivesse tirado do seu entorpecimento. Apesar da escuridão, viu o pássaro no momento em que ele se preparava para voar, e seguiu com o olhar o seu vôo silencioso, acompanhado do seu ronronar característico. Ao longe, um mocho ululou. Os predadores da noite partiam em caçada... Merlim não sentia medo algum, mas o seu cavalo batia os cascos de impaciência e mordia o freio. Com certeza tinha sentido uma raposa.

Rapidamente, a criança acendeu uma fogueira entre quatro pedras. Mal ela ficou suficientemente grande para iluminar em volta e manter os animais selvagens à distância, Merlim entrou de gatas num maciço de fetos tão altos quanto ele, abriu uma clareira para passar a noite, que cobriu de compridas ramagens cheias de folhas. Mais tarde, cozinhou sobre as brasas um punhado de compridas raízes de fetos, cuja polpa pareceu, ao seu ventre esfaimado, digna da mesa de um rei, e depois estendeu-se sobre o seu colchão de folhas e caiu no sono. Um sono infelizmente agitado por sonhos sufocantes. Era noite, e cavaleiros com lanças em riste galopavam em frente de uma cidade em chamas. Ele via os seus rostos pavorosos, fazendo esgares à luz do incêndio, os molinetes das suas armas e as rajadas incessantes dos seus arqueiros, enchendo a cidade de flechas incendiadas. Viu as roupas em chamas, ouviu os gritos de dor e acordou a gritar, ensopado em suor.

 

A estrada estava lamacenta, intransitável por causa das rodas das carroças que a cobriam e do bater dos pés da multidão assustada. Eram centenas, milhares talvez, convergindo para a costa numa longa fila, embora não passasse uma hora sem que um bando de Gaélicos se abatesse sobre a sua pobre coluna. Os cavalos e os burros tinham sido levados há muito tempo, bem como tudo o que se pudesse assemelhar a uma arma. A maioria contentava-se em reclamar alguns víveres ou alguma coisa para beber, outros não tinham tão boas maneiras e abatiam os animais a golpes de lança para os meterem no espeto. Mulheres tinham sido levadas, homens tinham sido mortos tentando defendê-las, mas a massa de refugiados deixava-se espoliar sem reação, contornando os cadáveres de cabeça baixa, tapando os ouvidos aos gritos das infelizes que violavam na beira do caminho, na neve e na lama gelada, e aos gritos das crianças abandonadas. Blaise reunira uma tropa completa em volta dele e não parava de recolher mais, ao abrigo de uma cruz de ramos que brandia como um estandarte.

Foi assim durante todo o dia. Quando já não tinham mais do que uma cabra e uma galinha, os Gaélicos puseram-se a arrancar-lhes os casacos ou as botas, num frenesim crescente, à medida que se aproximavam de Caerfyrddin. Não era de certeza um raid, como o Dyfed já tinha conhecido tantas vezes, mas uma invasão segundo as regras, levada a cabo com cuidado por um exército inteiro. Dizia-se que as tropas da rainha Aldan tinham massacrado inúmeras pessoas, do lado da fortaleza de Mathri, sobre a costa oeste, e que regressavam em marcha forçada para a cidade real. Mas dizia-se também que o exército tinha perdido demasiados homens para ainda servir para alguma coisa, e que os chefes de guerra se escondiam agora nos seus fortes.

A estrada seguia ao longo do rio Duad, entre as colinas. À noite, quando passaram em frente duma enseada lodosa rodeada de juncos e protegida do vento por um desmoronamento rochoso, Blaise levou as crianças para fora da onda de fugitivos, e abrigaram-se ali debaixo de tendas improvisadas, reunindo-se-lhes pouco a pouco famílias inteiras. De manhãzinha, eram mais de trinta, semimortos de frio e de fome, sem que nenhum deles tivesse ousado acender uma fogueira. Blaise não dormira, ou então não percebera ter caído no sono. As crianças tinham-se encolhido debaixo dos seus braços, sobre os seus joelhos, agarrando-se a ele como náufragos a destroços, e era exatamente assim que ele se sentia. A cruz plantada diante dele rangia lugubremente ao vento, mas brilhava, coberta de geada. Suavemente, empurrou os pequenos corpos adormecidos à sua volta, arrancou a sua cruz do chão e içou-se para cima das rochas, na bruma da manhã. Aí, ajoelhou-se para rezar demoradamente, intensamente, com os olhos fechados, agarrado à sua cruz. Rezou por Merlim, pelo colar que pesava contra a sua camisa, pelo Dyfed e por todos aqueles infelizes que contavam com ele, agora, quando ele próprio tinha tanta necessidade de ajuda.

Quando, por fim, abriu os olhos, viu erguidos para ele os olhares perdidos das suas pobres ovelhas, ajoelhadas também a rezar, mudas e suplicantes. Um rebanho lastimoso, na realidade. Não havia um único homem válido, só estropiados, velhos e mulheres cheias de crianças... Do alto do rochedo, voltou-se para jusante do rio e para a estrada, deserta agora, que seguia até ao rio Tywi e ao canal de Caerfyrddin. Apesar do vento, a bruma ainda não se dissipara, limitando o seu campo de visão, mas ele não viu vivalma, somente sinistros vestígios humanos dispersos, imóveis na imundice. Esforçou-se por sorrir e desceu do seu poleiro com tanta dignidade quanto lhe era possível, sobre os rochedos escorregadios cobertos de musgo gelado.

- Vão, meus filhos - disse, ao chegar perto deles. - Vão buscar lenha para que possamos acender uma fogueira e comer qualquer coisa quente!

- Não há nada para comer, meu pai - gemeu uma mulher idosa.

Blaise sorriu e agarrou-lhe as mãos.

- Obrigado, mãe. Dás-me a impressão de ser o próprio Cristo.

- Vais multiplicar os pães? - perguntou uma menina.

- Não... Bem que gostaria, mas creio que não sou suficientemente santo para o conseguir. E, além disso, para multiplicar os pães teria de haver pelo menos um, não era?

Responderam-lhe alguns risos.

- Acendam fogueiras. E se algum entre vós tiver um recipiente qualquer, fervam água. Vocês os dois...

Debruçou-se sobre duas crianças abraçadas, certamente irmão e irmã.

- Vão colher urtigas, para ali. E tomem cuidado em cobrir as mãos para não se picarem. Apanhem os rebentos pequenos, são os melhores.

Depois quando eles se precipitavam, virou-se para os outros.

- Apanhem tudo o que puderem. Juncos, dentes-de-leão, tudo o que encontrarem comestível... Vamos cozer tudo. Não será muito bom, mas vai dar-nos forças. Vão!

Em alguns segundos, o torpor resignado da noite deu lugar a uma agitação quase alegre, e bem depressa as fracas chamas de três fogueiras de raminhos se elevaram na enseada. Só havia um caldeirão de cobre, e pequeno, mas eles conseguiram ferver água extraída do rio, na qual deitaram uma quantidade de rebentos de urtigas e de toda a espécie de plantas selvagens. Entre os seus poucos haveres, juntaram uma meia dúzia de tigelas de barro e de taças, graças às quais puderam todos recobrar forças com aquele caldo improvisado e, enquanto os sorrisos renasciam entre eles, Blaise pensou que Merlim tinha feito dele um verdadeiro homem dos bosques. Um homem melhor, em todo o caso... Um pastor capaz de conduzir até Deus o pobre rebanho que ele lhe tinha confiado.

Quando o nevoeiro se levantou, tornaram a meter-se ao caminho. O céu estava claro, mas uma faixa escura mantinha-se no horizonte, na direção de Caerfyrddin. O vento levantou-se e dissipou a nuvem escura em sinistras espirais de fumo. Não podia haver dúvidas, a cidade estava em chamas... Em volta deles, a neve estava suja, como que carregada de cinzas. Corpos sem vida, por vezes nus, despojados de tudo e retesados pelo gelo, cobriam o caminho, mas não se cruzaram com nenhuma tropa. Com o coração apertado, continuaram a avançar, animados pela voz de Blaise que recitava passagens do Evangelho, orações e salmos, desordenadamente, sem parar.

- Meus filhos, vede quão grande amor nos tem concedido o Pai, que fôssemos chamados filhos de Deus. Por isso o mundo não nos conhece; porque o não conhece a ele...[33]

O cheiro e a agitação chegavam agora até eles. O cheiro de morte, de incêndio e de sangue. A agitação da batalha. Atravessaram uma última colina e pararam imediatamente, presos pelo medo. Na foz do Tywi, Caerfyrddin ardia. Colunas de fumo negro em redemoinho escapavam dos restos calcinados dos casebres situados fora da fortaleza, bem como de dezenas de fogos no próprio seio da cidade real. Como uma onda quebrando-se sobre uma falésia, o exército dos Gaélicos comprimia-se contra as muralhas, coberto de flechas, de rochas e de lanças, obstinado e absurdo, e as rajadas de vento traziam até eles os gritos dos combatentes. O estandarte da rainha continuava a flutuar, mas o canal estava cheio de navios a içarem vela, como se a cidade se esvaziasse, e essa imagem, mais do que qualquer outra, cortava-lhes o coração.

Incapazes de darem mais um passo, ficaram ali, espectadores apavorados de uma batalha desordenada e brutal. Os Deisi Muman obstinavam-se, uma e outra vez, enquanto os seus corpos se empilhavam debaixo das muralhas, mortos e feridos, homens e cavalos confundidos num talude sangrento. Quando o vento soprava de terra, eles não ouviam nada, e a visão silenciosa dessa carnificina louca era ainda mais terrível. Foi assim durante uma grande parte do dia, e o tempo pareceu-lhes pavorosamente longo.

Blaise já não rezava, continuava sentado, agarrando debaixo do seu casaco de carneiro virado do avesso duas crianças transidas, com a boca seca e o coração na boca, enquanto enfraquecia em volta dele a sua pobre comunidade. Ao longo das horas, viram subir na direção deles feridos e fugitivos, com os olhos esgazeados, o rosto lívido, cobertos de sangue, o couro escurecido, por vezes sem armas. Precisou de se levantar algumas vezes, ameaçar com a cruz a soldadesca raivosa que, sem ele, se teria vingado no seu miserável grupo da humilhação da derrota. Caerfyrddin não tinha caído, o exército dos Gaélicos fundira-se, espalhado sobre a neve em horríveis túmulos sangrentos, sem que nenhum homem tivesse conseguido passar as muralhas de pedra e de madeira da cidade real. Era uma derrota, sem dúvida, mas tanto para o Dyfed como para os Deisi Muman. Nem Blaíse, nem nenhum dos seus companheiros, velhos, mulheres ou crianças, sentiam mais do que tristeza, medo ou mágoa. O monge não conseguia rezar. Na verdade, Deus parecia-lhe muito longe deste massacre, em que se opunham exércitos cristãos, ambos reclamando pertencer-Lhe. Sobre o campo de batalha reinava apenas o espectro horrendo da morte e o seu odor infame, o terror abjeto de homens que agonizavam na lama e na neve, as carnes tumefactas, abertas, esmagadas, queimadas, ainda o encarniçamento das últimas batalhas, até ao fim do dia, teimosos como touros, não tentando sequer salvar as suas vidas.

De manhã, o exército dos Gaélicos desaparecera, deixando atrás dele, dezenas, centenas de cadáveres cobrindo os arredores das muralhas. Uma das meninas estava morta nos braços de Blaise, de frio, de fome ou de esgotamento, miserável cadáver já rígido agarrado ao seu hábito, que o monge desprendeu debulhado em lágrimas. Não a enterraram - como a poderiam enterrar naquele solo gelado, para quê enterrá-la quando tantos corpos jaziam sem sepultura? - e voltaram a partir para a cidade, sem uma palavra, com o passo lento e a cabeça baixa. Passaram por soldados e salteadores de cadáveres, corvos e gaivotas que tinham vindo saciar-se naquele atoleiro humano, e como as portas tinham ficado obstruídas por um amontoado de pedras, de traves, de carroças e de móveis, entraram em Caerfyrddin escalando os muros. Não reinava nenhum júbilo na cidade libertada, só um cheiro de queimado, rostos desfeitos, saqueadores dentro das casas abandonadas, fugitivos convergindo ainda para o rio à procura de uma embarcação. O mosteiro estava intacto, e Blaise pôde aí entregar as crianças a freiras e a monges, prometendo que voltaria, o que não passava de uma mentira da qual ele tinha consciência. Depois, sem olhar para trás, dirigiu-se para as colinas dos aposentos reais. No cimo, um grupo de soldados e de arqueiros colocara-se diante da barbacã, defendendo a entrada principal da última linha de fortificação, uma grande muralha de pedras secas com uma paliçada de toros no cimo, por trás da qual viu ainda algumas tropas. Ao vê-lo subir até eles, um sargento avançou com um ar que lhe pareceu ameaçador, mas o homem reconheceu-o, apesar das roupas de pobre, e o seu rosto fechado iluminou-se.

- Sois o irmão Blaise, não é verdade? - perguntou, com um sorriso de alívio (e Blaise devolveu-lhe o sorriso, incapaz, contudo, de dar um nome a essa carantonha de mercenário). - Pois bem, chegais a tempo!

- Não tenho essa impressão - respondeu, voltando a cabeça para a cidade devastada.

- Falava da rainha, meu pai... Tendes de vos apressar.

Blaise sentiu-se gelar até aos ossos. Olhou para o sargento sem ousar fazer-lhe mais perguntas, com medo de ouvir o inconcebível, e atrás dele transpôs a barbacã para subir o atalho que conduzia aos alojamentos reais. Mal passou as proteções que levavam ao pátio interior, o monge teve um movimento de recuo. O assalto dos Deisi Muman cobrara um pesado tributo. No interior do recinto, dezenas, talvez centenas de estropiados jaziam ao longo do muro, tratados de qualquer maneira por monges e magos, centenas deles já mortos ou quase. Cruzou o olhar com o de um noviço que conhecia e só teve tempo de lhe dirigir um gesto de solidariedade, antes de ir ter com o guia, que este espectáculo sinistro não tinha detido e que empurrara a porta do edifício principal. Blaise entrou atrás dele e sentiu imediatamente um pouco de consolo. A sala grande estava tal qual a tinha deixado algumas semanas atrás. Tinham deixado apagar o lume e os cortinados de couro que escondiam os vãos das janelas batiam ao vento com sinistros estalidos, mas o chão de terra batida estava coberto de palha fresca e de juncos que espalhavam ainda um cheiro agradável. Sobre uma mesa em parte coberta por uma grande pele de urso, estavam colocados pichéis de hidromel e pratos cheios de avelãs e de frutos secos, prontos a acolherem um visitante, segundo as regras. As paredes estavam cobertas de suntuosas tapeçarias e de panóplias de armas que conservavam no local todo o seu luxo e majestade, como se a guerra não tivesse ousado passar a soleira da porta. E, no entanto, esta decoração familiar parecia estranhamente diferente... Blaise avançou a passos lentos, e sobressaltou-se quando o sargento fechou a porta atrás dele, deixando-o sozinho. Sozinho... Era isso que estava diferente. A sala, antigamente vibrante com o vaivém incessante dos criados e dos cortesãos, estava agora deserta, silenciosa, fria como a morte. Ao fundo, perto da lareira apagada, a porta dos aposentos reais estava aberta e, sobre a parte da parede visível, ele via uma sombra vacilante à luz das velas. Blaise teve de fazer um esforço para continuar a avançar, ir até lá, entrar no quarto... Não era um homem endurecido. A sua infância tinha-o poupado aos rigores da guerra e da epidemia da peste amarela; o seu noviciado, no mosteiro beneditino de Ynis Pyr, apesar das noites de oração e de jejum, não fora mais penoso do que a infância de muitas crianças da sua idade e, desde que se tornara confessor de Aldan, neste mesmo local, levava uma existência fácil que não o preparara realmente para tantas provações em tão pouco tempo. Desde que ele e Merlim tinham deixado a fortaleza dos Bretões, sofrera com a fome, o frio e a doença, sobrevivera a um naufrágio e a uma confrontação com saqueadores gaélicos. Os seus olhos, em poucos dias, tinham visto tantos mortos que ele não conseguia conservar a recordação dos seus rostos, e um bom número de certezas desvanecera-se durante a viagem. Mal viu a rainha, deitada, inerte e tão pálida quanto um cadáver, o seu coração recuou. Caindo de joelhos, desatou a chorar na soleira da porta. O corpo agitado por soluços, enrolado sobre si próprio, quase sufocando de tanto chorar, ficou assim até que braços caridosos o levantaram. Era Dawi, o abade superior, o único que ficara a velar pela rainha.

- Meu irmão, recompõe-te. Ela chama por ti...

Blaise contemplou-o com os olhos cheios de lágrimas, e depois virou-se imediatamente para ela. Pela sua palidez extrema e a sua imobilidade, julgara-a morta, mas Aldan olhava-o e acenava-lhe debilmente com a mão.

- Minha rainha, perdoai-me por ter demorado tanto!

No mesmo instante, a sua expressão gelou-se. Com horror, viu o pedaço quebrado de uma flecha saindo das ligaduras que apertavam o busto da rainha, oscilando debilmente ao ritmo da sua respiração.

- A flecha está muito perto do coração - murmurou o abade, por trás dele. - Não pudemos fazer nada. Teria morrido...

Aldan abanou a cabeça e fez um sorriso fraco.

- O meu filho... - murmurou ela - onde está?

Blaise sentiu mais uma vez a garganta apertada. O colar preso à sua cintura, debaixo do seu hábito negro, mortificava-lhe o ventre, lembrando-lhe cruelmente, se é que isso era necessário, a morte de Guendoleu e a sua completa ignorância do destino que fora reservado a Merlim, depois de se terem separado. Mas, como confessá-lo a uma moribunda?

- O príncipe está bem - disse ele numa voz trêmula. - Ele... Ele está a chegar. O exército de Guendoleu está a caminho...

- Deus seja louvado! - exclamou o abade Dawi, perto dele. - Ouvis, minha rainha? A cidade está salva!

Aldan fechou os olhos com um sorriso de alívio. A sua mão caiu sobre os lençóis brancos e uma lágrima rolou-lhe sobre a face descarnada. Blaise, mortificado por esta nova mentira, deitou um olhar pelo canto do olho ao seu superior, mas o abade não entendeu a mensagem, ou não ligou importância, julgando talvez que o monge evocava o estado de Aldan. Com um sinal, tranquilizou Blaise.

- É preciso que vos laveis dos vossos pecados, agora - disse ele, com uma voz doce, debruçando-se sobre a cabeceira da moribunda. - O irmão Blaise vai receber a vossa confissão...

- Certamente... Certamente pequei muito...

A voz não passava de um sopro. Dawi traçou sobre ela o sinal da cruz depois tirou da bolsa um frasquinho com óleos santos que colocou sem uma palavra nas mãos do confessor antes de sair do quarto. Blaise manteve-se imóvel durante um longo momento, antes de compreender que lhe cabia a ele dar a extrema-unção, segundo o ritual definido pela epístola de S. Tiago. Voltou-se rapidamente para o seu superior, mas Dawi já fechava a porta atrás de si, e Blaise não ousou levantar a voz para o reter. Com certeza iria espalhar a notícia da chegada de reforços pela cidadela, e daí por toda a cidade... Com uma mão trêmula, pousou o frasquinho no chão e depois debruçou-se sobre a rainha, pedindo a Deus que os absolvesse aos dois.

 

Foi um movimento em falso que acordou Guendoloena, reavivando bruscamente a dor da sua mão cortada. Encandeada pela luz do dia, pestanejou, estremeceu e puxou as cobertas de peles sobre o corpo nu, gemendo, quando o seu espírito liberto das brumas do sono se recordou dos acontecimentos da noite. Estava bom tempo com certeza, a julgar pelo brilho do dia filtrado pelos interstícios de uma cortina mal fechada. Mas para quê levantar-se, se era para enfrentar mais um dia de solidão e humilhação? A cabeça pesada e o coração na boca, a jovem sentia-se miserável, os seus olhos estavam vermelhos de ter chorado tanto e a sua mão latejava. Percebeu que lhe tinham lavado e ligado a palma da mão com uma faixa limpa, debaixo da qual sentiu uma compressa de folhas. A recordação do olhar de Aedan, os seus olhos brilhantes de cólera, o brilho do punhal à luz das velas, o corte do aço, tudo lhe voltava à memória com o dia, cortando-lhe o coração. Endireitou-se e levantou os lençóis, encontrando uma mancha de sangue escuro, o de Aedan e o seu, misturados para salvar as aparências... Em breve, as camareiras viriam tirá-lo para o exporem à vista de todos, para que ninguém ignorasse que ela se tornara rainha e que não conhecera nenhum homem antes dele.

A jovem fez um sorriso amargo de ironia. Nenhum outro homem... No fim de contas, talvez fosse verdade. Desde que Merlim partira, não tinham parado de a encher de alusões penosas.

Com um gesto de raiva arrancou a cobertura de peles para se enrolar nela e levantou-se bruscamente. Imediatamente, uma náusea violenta fê-la vacilar, ao ponto de ter de se agarrar ao estrado e sentar-se para não cair. Pontos brancos dançavam-lhe diante dos olhos, um suor frio cobria-a, as pernas não a sustinham... Isto não durou mais de um instante, mas a vertigem deixara-a sem forças e a tremer. Ainda sem fôlego, abriu a capa de peles e olhou para o ventre. Seria possível que uma vida nova se tivesse formado dentro dela? Guendoloena sorriu, invadida por aquilo que era mais do que uma intuição; a mais forte e mais doce das certezas... No mesmo instante, bateram à porta. Guendoloena voltou a cobrir-se precipitadamente, depois voltou a levantar-se, mais lentamente, desta vez.

- Entre!

A porta abriu-se sem ruído. Um instante depois, Aedan espreitou, viu-a e entrou, fechando a porta a trás de si. A jovem rainha não disse nada, mas o seu coração batia apressado. O Escoto esboçou um sorriso, baixou os olhos e avançou desajeitadamente até à mesa, onde agarrou num pichel e bebeu grandes goles, sem ousar olhar para ela. O seu rosto estava cinzento, os traços cansados, neve dura cobria-lhe as botas e a roupa. Dava para perceber que não dormira. Certamente cavalgara uma boa parte da noite. Voltou-se para ela, por fim, esboçando um sorriso, e ao vê-lo assim, tão infeliz e desajeitado, um ar tão desesperado, Guendoloena sentiu um nó na garganta. Com um gesto rápido, limpou uma lágrima que apareceu, revelando assim a mão ligada. Aedan estendeu o dedo para ela, mas conteve-se e coçou a barba, para dissimular a atrapalhação.

- Já não te dói? - perguntou ele. Eu... Eu vim tratar a tua mão, esta noite.

Tirou a luva e mostrou a sua, ligada de forma semelhante.

- Dentro de um dia ou dois, estará cicatrizada... As ervas deverão...

- Estou bem - cortou ela. - Não me dói.

Ele anuiu, voltou a pousar o pichel que lhe estorvava agora as mãos, e depois avançou alguns passos. Quis dizer mais alguma coisa, mas as palavras não saíam. Durante toda a noite tinha, contudo, preparado maduramente um discurso perfeito, cheio de carinho e de emoção. Bastara que ela o olhasse com aquele ar assustado, como se temesse ainda alguma violência, para que todas as frases bonitas voassem, deixando-o desamparado, imbecil, dando de si próprio a imagem de um pobre de espírito, desajeitado e comprometido. Então, abanou mais uma vez a cabeça e recuou para a porta.

- Muito bem - disse, voltando-se para sair.

- E tu?

Aedan parou imediatamente e voltou-se. Os olhos de Guendoloena continuavam brilhantes de lágrimas, mas ela esboçava um sorriso ténue.

-...A tua mão?

Aedan voltou para junto dela, ajoelhou-se e agarrou um lado da coberta com que ela se tinha tapado, para a levar devotamente aos lábios.

- Perdoa-me, minha rainha - murmurou, levantando os olhos para ela. - Preparei um discurso, mas creio que, afinal, é bem mais simples do que eu pensava. Amo-te... Julgava que não era possível acontecer-me, mas amo-te, e a idéia de que um outro tenha podido... Perdoa-me. Também eu tive outras mulheres. Fui casado, tive filhos, mas nunca amei, até agora. Durante toda a noite, não parei de pensar em ti, e odiei-me por ter feito isto. Se não me quiseres, eu compreendo. Sou suficientemente velho para compreender...

Deu um suspiro divertido, ou resignado.

- Com certeza, sou mesmo demasiado velho para ti. Tenho quase quarenta anos e tu nem sequer tens vinte.

- Nem dezessete.

Aedan anuiu, em silêncio, e pôs-se de pé.

- Enviarei uma escolta para te acompanhar até Dun Breatann. Por via marítima, estarás lá amanhã, o mais tardar.

Sorriu tristemente, pousou durante um breve instante os olhos sobre ela e voltou-se, mas no momento em que se ia embora ela reteve-o. Com o movimento a coberta escorregou para o chão e foi nua que Guendoloena se apertou contra ele. Aedan deixou-se ficar imóvel, com a respiração cortada. Uma rajada de vento afastou a cortina de uma janela. Lá fora, estava um sol radioso.

 

Na manhã do segundo dia, Merlim tinha saído da floresta. Era um dia triste de Inverno, batido pelo vento, tão pesado e frio quanto a sua alma. O seu sonho não o tinha deixado. Mal fechava os olhos, a imagem da mãe atingida por uma flecha incendiada vinha-lhe ao espírito, imagem terrível, insuportável, que ele só conseguia expulsar metendo o seu cavalo a galope. Com neve por cima dos joelhos, o alazão esgotado não aguentaria muito mais tempo, pouco mais de uma milha, e Merlim não estava com vontade de forçar a sua montaria. Cada minuto o aproximava agora do objetivo, e esta evidência, em vez de o entusiasmar, fazia-o sentir um enorme peso, com medo daquilo que encontraria, mas também porque tinha a sensação de trair o seu próprio destino, confiando neste sonho. Dentro de si, a criança não parava de ruminar as palavras de Blaise. Seguia em direção a Caerfyrddin, mas as colinas de Preseli estavam ali, em algum lugar na bruma do horizonte, para leste.

A criança desmontara para aliviar o cavalo quando chegaram até ela gritos, trazidos pelo vento. Merlim sobressaltou-se, percorreu com um olhar a paisagem de neve e viu-os por fim, a uma meia légua dali, galopando na sua direção, brandindo já as armas. Dois cavaleiros. Seria possível que os seus perseguidores lhe tivessem seguido a pista até ali, ou tratar-se-ia de outro bando? A criança não perdeu tempo a preocupar-se. Saltou para a sela, bateu furiosamente com os calcanhares no cavalo e conseguiu pô-lo a galope, mas a corrida do alazão era pesada, irregular e viciosa, com desvios bruscos que ameaçavam fazê-lo cair. Sem abrandar desprendeu dos seus arções a espada que arrancara do camponês, na floresta. Apertou-a contra si e deitou uma olhadela para trás. Os dois homens aproximavam-se irremediavelmente, gritando como se estivessem à caça, numa língua que ele não entendia. Gaélicos... Como o tinham encontrado? Tinham-se separado para o apanharem em tenaz, sem lhe deixarem outra hipótese a não ser seguir em frente, para leste, afastando-se cada vez mais de Caerfyrddin. Com falta de ar e o corpo dolorido por esta corrida caótica, Merlim não conseguia refletir. O medo apossara-se dele. Via perfilarem-se diante dele altas colinas rochosas e, sabendo que o seu cavalo no limite das forças não conseguiria subi-las a essa velocidade, ele só podia bater-lhe nos flancos com os calcanhares, bater com as rédeas no seu pescoço e implorar-lhe, sem parar, que o salvasse dos seus perseguidores. O alazão conseguiu manter este ritmo louco durante mais alguns minutos, mas a encosta tornou-se, de repente, mais abrupta. Os lados do maciço, cobertos de urze, tornavam-se impraticáveis e, a qualquer momento, seria preciso refrear para procurar uma via, perder segundos preciosos para avançar apenas algumas toesas. Merlim espreitou outra vez por cima do ombro, viu os Gaélicos ao alcance de uma flecha e, enquanto o cavalo resfolegava, tomou uma brusca decisão. Puxando as rédeas com toda a força, fê-lo dar meia volta e lançou-o para a encosta. O cavalo conseguiu ganhar alguma velocidade, enquanto os perseguidores, por sua vez, se enterravam nas urzes. Com um olhar, avaliou a situação. Uma pequena ravina cheia de silvas e mato separava os cavaleiros. Resolutamente, bateu os flancos do cavalo e avançou para aquele que se encontrava mais próximo. Em alguns segundos, estava em cima dele. O homem tentou fazer-lhe frente, mas Merlim agarrou-se à sua sela e, erguendo-se, atirou-se com toda a força fazendo pontaria com o chuço. O choque foi tão brutal como se tivesse embatido contra um muro em pleno galope. A criança foi atirada para trás como um brinquedo. Com a espada arrancada das mãos, abateu-se pesadamente sobre as pedras cobertas de neve, escorregou pela encosta várias toesas antes de conseguir se imobilizar e levantou-se com uma careta de dor, com os braços e a cara arranhados. Os dois cavalos fugiram, mas o Gaélico ficara no chão. Do outro lado da ravina, muito próximo, o outro lançava-lhe insultos, brandindo a sua comprida lança. Merlim apressou-se até ao corpo inanimado do guerreiro. O chuço, espetado debaixo do seu ombro, tinha-se partido na queda, mas não fora essa a causa da sua morte. Ao cair, o homem tinha esmagado o crânio sobre uma pedra coberta de um líquen cinzento que absorvia já o seu sangue. Freneticamente, Merlim agarrou a lança do morto, recuou para o monte de rochas e voltou-se para o segundo agressor.

Estranhamente, o homem não se mexera. Sempre do outro lado do matagal, olhava a planície por onde fugiam os cavalos. Por um instante pareceu hesitar e depois voltou-se para ele, lançou um último insulto gutural e pôs o cavalo a trote.

Merlim ficou a vê-lo ir embora. O alazão extenuado tinha-se imobilizado no meio da encosta. O Gaélico só teve de se inclinar para agarrar as suas rédeas, e partiu, sem grande pressa de alcançar o cavalo do seu malogrado companheiro que, também ele, estava imóvel. Por um momento, Merlim temeu que ele voltasse, mas o homem tomou o caminho da floresta sem se virar para trás. Conseguira os cavalos, como lhe tinham ordenado, e não sentia qualquer vontade de lutar. Tinha acabado...

Esgotado, Merlim deixou-se escorregar pela rocha com um gemido de dor. Sobre as suas faces, as suas mãos e os seus braços, gotejava sangue oriundo de centenas de arranhões, cada respiração queimava-o terrivelmente. Mas, mais do que tudo, sentia-se cheio de mágoa, desanimado e sem vontade de nada. Os Gaélicos tinham-no empurrado para longe de Caerfyrddin, para leste e para o interior das terras, em vez de descer para sul e para o mar. Em outras circunstâncias, certamente teria reconhecido o local com uma simples vista de olhos, mas o medo tapara-lhe os olhos ao longo da perseguição e, nesse momento, não fazia, de fato, a menor idéia do local onde se encontrava.

Quando, por fim, conseguiu respirar e controlar o tremor que o agitava desde que tinha morto aquele homem, ergueu os olhos para o cume rochoso que se elevava sobre ele. Lá de cima, talvez conseguisse ver uma aldeia. Então, levantou-se o melhor que pôde e, apoiando-se na lança do Gaélico, começou a abrir caminho por entre a urze. Passado pouco tempo, teve de se agarrar as raízes e às rochas para subir as últimas toesas, tão íngreme era a encosta e violento o vento. No cume, os rochedos pontiagudos jorravam por todo o lado, semelhantes a escamas de um dragão enterrado. Rajadas de vento cobertas de neve rodopiavam entre as altas pedras, num concerto confuso de rugidos surdos e estridências ensurdecedoras. Merlim sentia-se por vezes aspirado e depois empurrado pelas costas, arremessado por uma rajada raivosa, e só uma obstinação animal, superior à razão, o fazia ainda avançar. Continuou enquanto podia, por entre o monte caótico de pedras altas, até que se deixou cair, sem fôlego, contra uma laje monumental, com o rosto crispado pelo esforço. Com o coração na boca, ficou ali alguns instantes, sem olhar a paisagem infinita que se estendia diante dele. No entanto, do alto desta colina, via-se todo o país: a costa onde os Deisi Muman tinham desembarcado e onde tinham certamente reunido todos os seus exércitos, a floresta por trás dele, e as grandes planícies do Oeste. Todavia, Merlim continuava prostrado sob o tumulto dos ventos. Os olhos fechados e o rosto escondido nos braços, ficou assim até que sentiu nascer dentro dele uma sensação estranha, uma esperança não formulada que, pouco a pouco, o arrancou da sua angústia. Ergueu, finalmente, a cabeça e olhou em redor, com o coração a bater. Havia algo de familiar nestes rochedos desertos, na sua cor estranhamente azulada. E, como se esta simples constatação desfizesse o véu do pânico, a exaustão e a dor que tinham, até então, turvado o seu espírito, levantou-se de um salto. Estas rochas azuis selvagens e escarpadas, este caos de pedras desérticas, eram conhecidas de uma ponta à outra do país. Compreendia agora que o destino quisera fazê-lo obedecer a Blaise, ou àquilo que ele chamava de vontade divina. Merlim sentiu-se profundamente perturbado. Mais uma vez, quando retomara o caminho de Caerfyrddin, o destino levara-o a encontrar refúgio justamente nessas terras proibidas. As colinas de Preseli... A entrada para o Outro Mundo, a Terra de Baixo, onde permaneciam as almas dos mortos, e da qual não saíam a não ser na noite de Samain... Essa mesma noite.

Primeiro com hesitação, depois cada vez mais impacientemente, pôs-se a explorar cada anfractuosidade à procura de uma hipotética passagem, mas pareceu-lhe rapidamente que ela não existia, ou pelo menos não estava suficientemente visível para se revelar tão facilmente. Então voltou a sentar-se ao abrigo do rochedo e enrolou-se na sua capa para resistir ao vento.

 

Blaise saiu em silêncio e fechou a porta atrás de si. A rainha voltara a cair na inconsciência. As suas últimas palavras mal tinham sido perceptíveis, misturadas de incoerências e de choro. Não era uma confissão, mas a oração de uma vida de remorsos, da qual ele já guardava o segredo havia muitos anos. Desde o nascimento de Merlim, para dizer verdade...

Ao voltar-se, o beneditino não pôde refrear um movimento de surpresa. A sala grande, deserta à sua chegada, enchera-se de religiosos, de nobres e de guerreiros que fixavam sobre ele olhos carregados do mesmo cansaço e da mesma esperança. Aceitou a taça de hidromel que um monge lhe estendia, agradeceu-lhe com um aceno de cabeça e bebeu demoradamente para ter tempo ou coragem, e depois foi ele próprio pousar o copo sobre uma mesa. Havia ali pão, frutos secos e nozes, e teve de se reprimir para não se lançar para a mesa, tal era a fome que tinha. Lentamente, voltou para perto do abade e encarou-o.

- Não haverá exército de socorro - confessou. - Guendoleu morreu e a Cúmbria limita-se, como nós, a combater para sobreviver. Menti à rainha para a sossegar, que Deus me perdoe...

Os olhares apavorados foram a única resposta. Em seguida, um senhor coberto por uma dispendiosa cota de malha afastou-se das primeiras filas para ir até ele.

- Não é possível! - gritou. - É agora que estás a mentir!

- Não, senhor - disse Blaise. - O rei Guendoleu caiu numa emboscada perto de Carlisle. Todos quantos o acompanhavam estão mortos, exceto o príncipe Emrys Myrddin.

Blaise quis continuar, mas cada um deles fazia perguntas, com uma tal prontidão que ele teve de recuar até à mesa. Um guerreiro que trazia um curativo em volta da cabeça agarrou-o por um braço com uma força terrível, exigindo detalhes da batalha. Uma dama de companhia de Aldan pedia notícias do príncipe, outros queriam saber como é que ele tinha passado as linhas gaélicas, e Blaise sentia-se desnorteado quando a voz do padre Dawi trouxe um pouco de ordem ao tumulto.

- Em nome de Deus, calem-se! - vociferou ele. - A rainha luta pela vida neste preciso momento... É preciso relembrá-lo?

O grupo afastou-se com rancor, deitando olhares de esguelha à porta fechada dos aposentos reais. Dawi voltou a aproximar-se de Blaise e pousou-lhe a mão sobre o ombro, mas o seu olhar não tinha nada de amigável. A mentira do monge enchera-o de esperanças depois de tantos dias de provações, e deixara-o desconsiderado aos olhos daqueles que ali se tinham reunido, a seu pedido. Para todos eles, doravante, o futuro era ainda mais sombrio.

- Conta-nos o que se passou - disse, num tom rude. - Onde está o príncipe?

- A rainha tinha-me pedido para cuidar dele - disse Blaise. - Foi o que fiz. Quando o encontrei, estava escondido num bosque e todos os outros estavam mortos. Ele... Ele tinha o cordão do elmo de Ambrosius. Guendoleu deu-lho antes de morrer. Tivemos de nos separar, a algumas dezenas de léguas daqui, e Merlim... quero dizer o príncipe Emrys... confiou-mo.

Uma onda de murmúrios percorreu a assembléia.

- Pois bem, onde está esse colar? - disse Dawi, levantando o tom para terminar.

- Aqui...

Blaise rebuscou debaixo do seu hábito preto e brandiu o colar de ouro, suficientemente alto para que todos o pudessem reconhecer.

- Queria devolvê-lo à rainha - murmurou, apertando-o contra o peito.

Durante um instante, num silêncio absoluto, todos os olhos se fixaram sobre o colar, e depois Blaise estendeu-o num gesto hesitante ao seu superior.

- Certamente compete-vos a vós, meu pai, conservá-lo de agora em diante.

Dawi impediu-o imediatamente.

- Guarda-o, meu irmão... - Mais uma vez lhe tocou no ombro, mas agora num gesto sincero. - ...E perdoa-nos.

O abade deu um longo suspiro e foi apoiar-se contra a mesa.

- Esta noite, gostaria que dissesses a missa comigo, em honra dos mortos...

Blaise acedeu com um meneio da cabeça, e depois o seu sangue gelou-se quando percebeu o alcance do que acabava de dizer o abade.

- Nunca tivemos tantos mortos para chorar na noite de Todos os Santos - murmurou Dawi.

Afastando-se de Blaise, olhou no exterior as brumas geladas do crepúsculo a levantarem-se. Os outros afastaram-se por sua vez, alguns com um aceno de cabeça ou um gesto de conforto para o monge, o qual bem depressa ficou sozinho, com as mãos sempre crispadas sobre o colar de ouro. Agora que já ninguém se preocupava com ele, foi servir-se de frutos secos e de pão, bem como de mais um copo de hidromel.

- Com certeza, Deus não quis que o emblema da Bretanha ficasse nas mãos de um pagão, - disse o abade sem se voltar. - E, no entanto, Guendoleu era um homem justo e um guerreiro de valor, digno dessa honra... Esta noite, rezarei por ele e pelos seus. Dizes que estão todos mortos?

- Julgo que sim, meu pai.

- Quem os atacou?

- Escotos...

Blaise abanou a cabeça com um ar enojado, revendo o campo de batalha coberto de cadáveres.

-... Não eram só Escotos - acrescentou. - Os que conduziram o ataque eram Bretões, do bando de Ellifer.

A estas palavras, um brado de protesto elevou-se na grande sala. Para todos os do Dyfed, e apesar das circunstâncias que faziam hoje deles aliados, os montanheses do País Branco eram um inimigo bem mais antigo do que os Saxões ou mesmo os Gaélicos, que acabavam de lhes invadir as costas. Mais uma vez, o barulho dos seus comentários exaltados soou dentro das paredes, e de novo uma voz mais forte fê-los calar.

- Está a mentir, monge!

Todos se voltaram para o fundo da sala. Um homem vestido com um capote escuro que lhe cobria a cabeça destacou-se da sombra onde tinha encontrado refúgio. Com um gesto provocante, deitou o capuz para trás e depois pôs em confronto com eles a sua cara brutal e desdenhosa. Raros, com efeito, eram aqueles que o conheciam, exceto os homens mais idosos, ou aqueles que tinham viajado com Aldan até Dun Breatann e assistido, como parte do seu séquito, ao conselho dos reis.

- Quem és tu? - lançou, num tom de desprezo, o senhor com a cota de malha.

- Sou Gurgi de Gwynedd, filho de Ellifer, e chefe de um grupo que ninguém pode insultar sem explicar o motivo!

Empurrando monges e nobres, todos os homens armados da assistência se colocaram em frente dele, com a mão na espada e os olhos cheios de ódio.

- Serei vosso inimigo? - disse Gurgi, sem recuar. - Vim aqui em paz e não trago armas.

Tirou a capa deixando-a cair ao chão e abriu os braços. No seu tronco robusto, uma cruz de madeira balançava num cordão, a cada movimento seu.

- Os cães de guerra dos Sete Cantões atacarão um homem desarmado debaixo do teto do seu soberano?

- Que queres? - proferiu o homem de cabeça enfaixada. -jDiz o que tens a dizer e vai-te embora!

Gurgí baixou os braços e olhou-o com uma careta trocista.

- Tinham-me falado da vossa grande hospitalidade...

O homem reagiu raivosamente, mas Gurgi levantou diante dele a mão com um anel. Um anel de ouro com turquesas...

- Reconheces este anel? Não? Ninguém? E a vós, meu pai, diz-vos qualquer coisa?

O abade Dawi avançou para ele, olhou a mão estendida e a expressão da sua cara foi bastante eloquente.

- O anel da rainha Aldan - disse Gurgi, num tom triunfante. - O anel que ela ofereceu a Ryderc Hael antes de deixar a Fortaleza dos Bretões e que o próprio Ryderc me colocou na mão quando soube que os Escotos ameaçavam Guendoleu e a sua escolta. Ryderc queria que o nosso grupo fosse em seu socorro, e que Guendoleu soubesse, graças a este anel, que nós lhe obedeceríamos daí em diante.

Fez uma pausa, afastou do seu caminho o homem com a cabeça ligada e foi servir-se de uma bebida.

- Infelizmente, chegamos demasiado tarde - continuou, num tom mais baixo. - Os Escotos já tinham morto Guendoleu, que Deus tenha a sua alma. Mas, por Deus, fizemo-los lamentar o fato de terem posto os pés na Bretanha!

- Isso não faz sentido nenhum! - exclamou Blaise. - Todos quantos estavam no conselho dos reis viram-vos recusar a aliança de Guendoleu e deixar Dun Breatann como inimigos! Porque é que havíeis de ir em seu auxílio?

Gurgi voltou-se para o monge, esvaziou o copo de um trago e limpou-se às costas da mão. Por um instante, sorriu calmamente, depois, de repente, agarrou violentamente Blaise pelo colarinho e brandiu debaixo do nariz dele a cruz que trazia ao pescoço.

- És tu quem o perguntas, meu irmão? Sou cristão, como todos os de Gwynedd, em nome de Cristo e do Espírito Santo. Obedeço a Deus, aí tens o porquê!

Ficaram assim durante alguns segundos, depois o montanhês empurrou-o e virou a cabeça com um ar desanimado.

- Aliás, tu não sabes nada - disse, num tom de desabafo. - Chegaste depois da batalha e, como alguns dos nossos jaziam pelo chão, julgas que lutamos com os nossos irmãos da Cúmbria. Merlim tem o colar e tu acreditas que foi Guendoleu quem lho deu... Merlim que, como que por sorte, foi o único a sair vivo da batalha!

Blaise ouviu os murmúrios à sua volta. O próprio abade Dawi desviou o olhar. Aqui, o príncipe Emrys Myrddin nunca tinha passado de uma coisa incômoda...

- Também tu vais ter de obedecer a Deus, irmão Blaise - continuou Gurgi. - Estiveste com o bispo Kentigem, depois da partida da rainha, não estiveste?

O monge assentiu com a cabeça, corando involuntariamente debaixo do olhar da assistência.

- Que te disse ele?

Blaise não respondeu logo. O hidromel subia-lhe à cabeça, tremores agitavam-no de novo e, mesmo que rejeitasse com todo o seu ser as insinuações do montanhês, não conseguia organizar os pensamentos. Concentrou-se em Kentigem, reviu-se no priorado, na cela gelada do bispo, tão mísera quanto a cabana de um maltrapilho. O que tinham dito revelava o segredo da confissão. Depois de ter libertado a sua alma com ele anos antes, Kentigem era o único com quem ele podia falar livremente de Merlim, o único que partilhava as confidências da rainha Aldan, o único que conhecia a verdadeira natureza do príncipe bastardo Emrys Myrddin.

Sentindo pesar sobre ele os olhares de toda a assembléia, Blaise recompôs-se.

- O que o bispo me disse não vos diz respeito, senhor Gurgi - disse, erguendo o queixo. - Mas é verdade que falamos acerca do príncipe Myrddin.

Tocou no colar que tinha colocado de novo à cintura.

- E o fato do cordão do elmo de Ambrosius Aurelianus estar de regresso a Dyfed está em conformidade com as ordens que recebi. É tudo quanto direi...

- Sim - disse Gurgi, com um esgar de desprezo. - Pois então, dir-vos-ei eu o que o bispo pediu. O cordão do elmo não se deve perder, nem cair em mãos erradas. Hoje, o senhor Guendoleu está morto, paz à sua alma, e a vossa rainha irá em breve ter com ele...

Murmúrios indignados percorreram a assistência, mas todos sabiam que ele só dizia a verdade.

- Estamos a ser atacados por todos os lados, meus senhores, não é altura para hesitar. O cordão do elmo deve ir para o único homem capaz de federar todas as tribos da Bretanha e conduzir-nos à vitória.

- Ryderc, não? - sugeriu Blaise.

- Ryderc, sim! Ryderc Hael, rei do Strathclyde e filho de Deus, como nós! E não um bastardo nascido do diabo, um mago que pouco tem de humano, agarrado às velhas crenças, tão pagão quanto um Saxão!

Desta vez, os murmúrios traíam o assentimento de todos. Blaise sentia-se a perder terreno. As palavras de Gurgi revoltavam-no e, no entanto, não conseguia formular qualquer argumento que o pudesse calar e impedi-lo de derramar assim o seu fel sobre Merlim. Tentou aproximar-se do seu superior, mas Dawi falou primeiro.

- Irmão Blaise, penso que o senhor Gurgi tem razão. Foi preciso ter coragem, sem dúvida, para trazer esta mensagem até aqui, apesar de tudo o que separou outrora os nossos reinos. Bem haja por isso...

Todos o viram deitar um olhar para a porta fechada, por trás da qual agonizava a rainha Aldan.

- Dado que a nossa rainha já não está, infelizmente, em estado de nos mostrar o caminho, sou de opinião que nos devemos colocar sobre a proteção do senhor Ryderc e fazer dele o novo ríothíme, em nome de Deus e da Bretanha.

Aclamações saudaram esta decisão. Enquanto se reagrupavam em volta de Gurgi, Blaise cruzou furtivamente o olhar do montanhês. Um olhar de vitória, repleto de ironia e crueldade...

- Meu pai, só mais uma palavra! - disse o Blaise a Dawi.

- O quê?

Havia também ironia no olhar do padre superior, e um vestígio de irritação, mas Blaise arrastou-o vigorosamente para o outro lado da sala, longe dos ouvidos de Gurgi.

- Sei que não tenho qualquer prova, mas tenha certeza de que esse homem mente. Se lhe derdes o colar, ireis entregar-nos aos nossos piores inimigos!

- Ah, sim? - troçou o abade. - Julgava que os nossos piores inimigos eram os Deisi Muman da Hibérnia, ou esses porcos dos Saxões...

- Escutai, meu pai... Conheceis, tal como eu, os feitos do bando de Ellifer. São assassinos, homicidas sem fé.

- E acreditas também que o rei Ryderc seja um homem sem fé? Antes dos Gaélicos nos atacarem, falei demoradamente acerca do conselho com a rainha, da sua escolha em favor de Guendoleu. Ryderc teria sido um riothime melhor, ela própria o admitia, e se se decidira a favor do rei da Cúmbria, tal devera-se unicamente ao fato de as suas terras estarem mais próximas do Dyfed, e de temer que a aliança se movimentasse para o norte, para combater os Pictos e os Saxões, em vez de nos proteger dos nossos inimigos...

Blaise olhou-o com um ar ao mesmo tempo incrédulo e perturbado.

- Ignorava-o...

- O próprio bispo apoia Ryderc Hael. Também achas que ele é um homem sem fé?

- Não, senhor - murmurou Blaise. - Nunca pensaria semelhante coisa...

Dawi acenou com a cabeça e sorriu-lhe.

- Estás cansado, meu irmão. O teu caminho foi longo e difícil... Repousa. Amanhã, teremos de nos fazer ao mar, rumo a Dunn Breatann. Iremos juntos oferecer o cordão do elmo de Ambrosius a Ryderc.

- E Merlim?

- Que tem Merlim?

O abade superior refreou dificilmente um gesto irritado.

- Tu próprio disseste que não sabes onde está. E, aliás, o que é que isso muda?

Por um instante, Blaise quase lhe atirou à cara que o príncipe, nesse mesmo momento, se preparava para a mais terrível das provas nas colinas de Preseli, para a maior glória de Deus. Dominou-se, no entanto, e conseguiu mesmo controlar a voz.

- Se a rainha morrer, não será ele o herdeiro do reino? Não lhe caberá a ele decidir?

Dawi olhou-o demoradamente, como se duvidasse da sua sanidade mental.

- Deus nos proteja de tal coisa... - murmurou.

Abriu a mão, e como Blaise não compreendia, apontou para o colar de ouro que continuava à sua cintura.

- O cordão do elmo. Aceito agora que mo confies...

Blaise hesitou durante breves segundos, mas obedeceu. No entanto, no momento em que o abade segurava já uma das pontas, reteve o colar com uma tração brusca.

- Vou ficar aqui - disse. - Prometi ao príncipe Emrys que esperaria por ele em Caerfyrddin, e é o que farei.

- Como queiras... Mas de que adiantará?

Dawi virou-lhe as costas e foi ter com os outros. Um novo concerto de aclamações elevou-se mal ele brandiu o colar. Quase com repugnância, Blaise afastou-se deles e, lentamente, dirigiu-se para a porta fechada do quarto real. Agora, por Merlim e por Aldan, tudo o que podia fazer era rezar.

 

O vento tinha caído. Merlim tomou consciência disso abruptamente, como alguém que dorme e acorda em sobressalto, e percebeu, ao levantar a cabeça dos joelhos, que já era noite escura, de um salto, pôs-se de pé. Com o coração a bater, olhou em volta, mas não havia nada, absolutamente nada, até onde alcançavam os seus olhos de gato. Ao longo das horas passadas, curvado sobre si mesmo para resistir às furiosas rajadas de neve que varriam o cimo da colina, pensara naquele instante. O despertar dos mortos... Imaginara a irrupção de exércitos de esqueletos armados, de cadáveres descarnados enfaixados nas suas mortalhas, algo de aterrorizador, de insuportável, mas certamente grandioso, que o comum dos mortais não podia observar sem perder o juízo mas que ele, Merlim, conseguiria suportar, já que todos acreditavam nisso. Tinha mesmo ficado à espera do inimaginável, do espectáculo de abismos horrendos, de céus despedaçados ou de incêndios enormes, mas nunca desta calma branca, desta completa imobilidade. Havia, sem dúvida, algo de anormal neste silêncio absoluto, algo de ameaçador, como na aproximação de um animal selvagem ou de uma tempestade. O céu carregado de nuvens não deixava vislumbrar nem a lua nem a mais pequena estrela. Nem um sopro de vento para agitar a erva rasteira debaixo dos seus pés ou a neve que salpica os grandes rochedos. Então, como qualquer gesto teria parecido incongruente neste entorpecimento completo da terra e do céu, a criança voltou a encostar-se contra a laje que o protegera até esse momento, cruzou os braços e esperou.

Foi uma longa espera, no frio cortante dessa noite do mês do junco, e o que ainda lhe sobrava de juízo não parava de lhe gritar que fugisse, fugisse a sete pés enquanto podia, em vez de se expor ao sacrilégio e ao castigo eterno. O medo e o frio apoderavam-se dele cada vez mais cruelmente, e então apertou os braços com mais força, até se magoar. Outros seriam completamente cegos nesta escuridão, mas certamente teria sido preferível, pois nada do que conseguia distinguir o podia tranquilizar. Rochedos pontiagudos cobertos de sombras cercavam-no por todos os lados, como vestígios de uma fortaleza destruída. No frio cada vez mais intenso, via a neve gelar-se, as poças de água congelarem e os rochedos estalarem de geada. A cada respiração, uma nuvem branca exalava dos seus lábios ofegantes. A túnica dos elfos já não o protegia, nem o seu casaco de carneiro. Viu-se coberto de geada, gelado até aos ossos, englobado como as pedras e a urze nesta glaciação insidiosa que parecia chegar ao próprio céu. E no seu coração transido instalava-se uma angústia crescente, ilógica, pois nada do que os seus sentidos pudessem descobrir a justificava, exceto este frio louco. Continuava a não se ver nada, nem o menor movimento, mas o pavoroso gelo que o agarrava completamente impunha-se como uma evidência, para além das palavras, para além mesmo dos seus pensamentos não formulados, de que a noite dos mortos estava a começar.

Merlim tinha agora a forma de uma estátua de gelo, semelhante aos rochedos de Preseli, incapaz de qualquer movimento, tão petrificado quanto os menires que se espalhavam na planície em volta das colinas sagradas. Como uma pedra, na realidade, impotente e inerte, sentiu o frio descer ainda vários graus, tão forte que se tornava quente e as pedras rachavam em volta dele com estalidos pavorosos.. Um frio tal que nenhum ser humano teria suportado, enquanto os seus membros já não lhe obedeciam e os batimentos do seu coração abrandavam inexoravelmente.

Merlim teve o pressentimento da sua própria morte, sentiu-a invadi-lo sem pressa, roer lentamente o que lhe restava de vida. Os seus sentidos já não captavam nada, nem um som, nem um cheiro, nada mais que a imagem turva de uma paisagem envolta em brumas. E foi assim que teve de repente a sensação de uma presença.

Algo subia até ele, lentamente, no nevoeiro. Algo pavoroso, uma abominação indiscritível e perniciosa que se apoderava do seu corpo e da sua alma.

Com todas as suas forças quis gritar, berrar de terror diante deste horror invisível, mas uma pedra não grita. Uma pedra só pode resistir ao vento, à neve ou à chuva, corroer-se, inevitavelmente, e livrar-se de todas as suas asperezas, até se tornar imutável para sempre. Assim estava Merlim quando o sopro do primeiro defunto o atravessou.

Não durou mais que uma fração de segundo, mas foi um instante de terror absoluto. Num jorro horrendo, inundando bruscamente o seu coração e o seu espírito, a alma do morto misturou-se à de Merlim, e este relâmpago bastou à criança para saber tudo acerca de um ser que lhe fora, até então, desconhecido, para o conhecer tão bem quanto a si próprio. Viu a cara dele durante as diferentes etapas da vida, soube que ele se chamava Blaen, que era carpinteiro e que tinha perecido numa queda, algumas horas antes. Conheceu o horror da sua agonia e do seu falecimento, as alegrias da sua infância, os seus amores, os seus desgostos e os seus rancores, todos os seus defeitos e todo o seu conhecimento. Soube realmente tudo quanto Blaen sabia, todos os seus segredos, as suas mágoas e remorsos, toda a sua perícia de carpinteiro. Isto só durou o tempo de um batimento de coração, não mais, e imediatamente o espectro o deixou, tão vivamente que a criança ficou com a respiração cortada. Merlim continuava sem se poder mexer ou emitir um som. Os seus pensamentos estavam turvos pela irrupção de toda esta existência na sua própria memória, incapazes de assimilar tantas recordações, transtornados, aterrorizados. Teve a sensação confusa de que outros passavam sem o aflorarem e que se espalhavam pelo mundo, mas imediatamente a emanação de um outro defunto possuí-o da mesma maneira e da mesma forma fugaz. A alma de um guerreiro, um Gaélico que morrera afogado, e compreendeu imediatamente a sua linguagem... Depois houve outros, dezenas, centenas, que entraram assim nele, homens e mulheres, nobres e patifes, Gaélicos, Saxões ou Bretões, e de cada vez a criança impregnava-se do jorro bruto de uma vida inteira, a uma cadência tal que se sentia afundar, despenhar-se irremediavelmente atrás deles no vazio do Outro Mundo. As suas mãos sempre crispadas sobre os braços apertavam-no até ao sangue, mas ele não podia dar-se conta, de tal forma a sua alma já não lhe pertencia.

E depois, repentinamente, tudo parou.

Um outro espectro vinha assombrá-lo, mas desta vez não era o de um desconhecido. Guendoleu... Era Guendoleu que estava dentro dele. Sem uma palavra, nem sequer um pensamento inteligível, a aura do rei aqueceu-o, apaziguou-o e devolveu-o à vida. Durante a sua existência, Merlim sentira-se muitas vezes tranquilizado ao seu lado, sem que nenhuma palavra fosse necessária. Agora, esta força estava dentro dele. Não se contentava em atravessá-lo, como os outros, e em violar a sua alma, mas derramava-se dentro dele como uma ampulheta. Isto não durou certamente mais do que um curto momento, mas a criança compreendeu, apesar do caos da sua consciência, que havia ali algo de irremediável. Uma dádiva. A dádiva absoluta, a dádiva de uma vida inteira. Merlim quis lutar, sentindo instintivamente que não podia aceitar tal presente, mas o espectro do rei ficou lá até ao fim, até se dissipar dentro dele como fumo no céu. E quando tudo terminou quando a alma de Guendoleu, esvaziada de toda a sua vida, subiu aos céus, Merlim percebeu que o medo atroz que o paralisara até então tinha desaparecido. Continuava incapaz de qualquer gesto, mas os seus olhos, agora abertos, contemplavam um espectáculo que nenhum mortal antes dele pudera ver. As almas dos mortos, aos milhares, espalhavam-se sobre as colinas de Preseli, e ele podia segui-las por todo o lado. Nos quatro cantos da ilha da Bretanha, os druidas colhiam o visco nessa noite e sacrificavam touros brancos. Os padres diziam missas e os homens acendiam fogueiras para acolherem os desaparecidos, receberem a herança das suas últimas mensagens antes de eles se irem embora para sempre.

Durante toda a noite, inúmeros espíritos continuaram a atravessá-lo, mas a criança conseguia agora falar com eles, acolher voluntariamente aqueles dos quais desejava a experiência ou manter à distância as almas más, carregadas de ódio e de vingança. Dezenas, como Guendoleu, ficaram nele até aí se extinguirem. Cadvan, Diwel, e muitos outros guerreiros da Cúmbria ou do Dyfed que outrora tinham tido afeição por ele, mas também bardos, adivinhos e druidas mortos nesse ano, que lhe concediam a dádiva suprema de tudo quanto fora a sua vida, abrindo-lhe o espírito a um conhecimento imenso.

Merlim já não sofria. O seu corpo mantinha-se imóvel, ainda deformado pela angústia das primeiras possessões, mas estava desligado, ausente, indiferente. As almas dos mortos apareciam-lhe agora tão claramente que ele lhes adivinhava a vida inteira baseado no que já tinha aprendido, e a maior parte afastava-se dele. O fluxo tornava-se gradualmente menos denso, e as que ainda vagueavam eram quase sempre horrendas, a tal ponto desprezíveis que nenhum mortal as invocava e estavam condenadas a errar em vão nas colinas, até o Sid se voltar a fechar, engolindo-as por mais um ano, ou por toda a eternidade. Nenhuma delas ousava aproximar-se dele, e, aliás, Merlim não as temia, mas quando a escuridão se iluminou e uma alvorada pálida se desenhava ao longe, sentiu de novo, bruscamente, a angústia opressiva que experimentara ao princípio da noite. Uma presença medonha, imensa, aproximava-se dele, indistinta ainda e hesitante, mas a tal ponto carregada de desgosto que o coração da criança se despedaçou e Merlim começou a chorar antes mesmo de a ter reconhecido. Aquilo que os seus olhos turvos de lágrimas não teriam podido ver, ele sentia-o no mais profundo do seu ser, e esse sentimento era tão atroz que ele lutou para o rejeitar, embora o espectro vibrasse agora nas fronteiras da sua consciência.

- Meu filho, não me rejeites...

Com a surpresa, Merlim perdeu todo o controle. Era a voz da mãe que falava dentro do seu coração. A imagem de Aldan, tal como aparecera nos seus sonhos, mortalmente ferida e gritando o seu nome, surgiu dentro dele apesar de todos os seus esforços para a repelir. Os olhos da criança choravam, mas também a sua alma, o seu coração e o seu espírito, esmagados pela mágoa, murchos, revoltados.

- Olha para mim.

- Não...

- Emrys, sinto as tuas lágrimas e a tua vergonha, mas tu não tens nada de que te envergonhar...

- Eu não estava lá... Teria podido...

- Emrys, não terias visto mais do que a agonia de uma velha mulher, sem entenderes nada daquilo que eu te dissesse. Blaise ficou comigo. Falou comigo até ao fim, e sei todas as questões que te atormentam... Ofereço-te mais do que respostas, meu filho. Ofereço-te o segredo da minha vida e o do teu nascimento... Não resistas. A alvorada aproxima-se, já não temos tempo...

Merlim não respondeu, mas o seu coração abriu-se. Imediatamente, e com uma violência tal que o seu corpo foi mesmo sacudido, a vida de Aldan verteu-se nele.

Nesse instante, tudo não passou de confusão. Demasiadas recordações, demasiadas vidas se misturavam, tão ruidosas e agitadas quanto uma multidão no mercado. Fragmentos de vida vinham-lhe à memória, partes inteiras de que se recordava sem as ter vivido, e todas aquelas existências descarregavam nele o seu quinhão de sonhos e de rancores, de coisas vis, de remorsos e de orgulho. Dezenas, centenas de caras amadas, mulheres, raparigas, crianças, velhos e amantes vinham aquecer-lhe o coração, enquanto dezenas, centenas de outras o gelavam de horror ou de aversão.

O tempo já não tinha influência sobre Merlim. O seu corpo transido não passava do invólucro congelado de um tumulto irreprimível e, se tivesse podido ver-se, certamente teria ficado apavorado de se encontrar assim, petrificado, lívido e com o olhar transtornado.

Lentamente, porém, enquanto a neve recomeçava a cair e o ia cobrindo, as reminiscências de todas aquelas vidas organizavam-se dentro dele, e o tumulto das primeiras horas dava lugar a um tal sentimento de plenitude que ele teria podido ficar eternamente assim, e afastar-se pouco a pouco do mundo dos vivos.

E foi Aldan, dentro dele, que o arrancou a essa beatitude mórbida. Sem que ele tivesse consciência, as suas divagações tomavam, irresistivelmente, um novo sentido. Era um caminho doloroso e incômodo, o das recordações de Aldan, de que ela própria fugira enquanto vivera, e que era preciso desbravar como um carreiro invadido de silvas e de urtigas. A princípio, não era mais do que a evocação de momentos deliciosos. A sua infância principesca, o seu encontro com Ambrosius Aurelianus, o casamento deles e a noite de núpcias... Depois veio o período sombrio. A guerra contra Vortigem. A derrota. O exílio. Uma fuga em barco, de noite, num mar agitado. O abrigo de uma floresta imensa, no final da viagem...

Algo em Merlim tentava fazê-lo recuar. Como um afogado cujo corpo inconsciente vem à superfície, uma parte dele tentava arrancá-lo desta espiral nefasta, enquanto uma outra parte o empurrava com todas as suas forças para o abismo sombrio que ele via agora. Ainda a floresta... Recordações vaporosas, tão distantes que quase não restava nada. Rostos, no entanto, silhuetas semelhantes a crianças. A confusão de um combate, mas a sensação de que as crianças do bosque eram amigas. Depois, finalmente, rostos mais nítidos. A recordação de um nome. Um rosto, sobretudo, dominando os outros, no mais profundo da sua memória.

O choque foi tão grande que fez Merlim recuar para longe do abismo dessas recordações esquecidas, até à superfície da consciência. Libertado bruscamente, o seu corpo coberto de neve convulsionou-se, rolou pelo chão e debateu-se, na agonia de uma dor indescritível. Depois, a criança gritou até rasgar a garganta, arranhou a neve, sacudido por tremores pavorosos, vomitando e chorando ao mesmo tempo, durante um tempo infinito.

O rosto que ele vira não era humano e, no entanto, em tudo se assemelhava ao seu. Era o rosto do amante da sua mãe. O rosto do seu verdadeiro pai. E o seu nome era Morvryn.

 

Havia poucos edifícios de pedra, em Dunadd, além das muralhas. A sala comunal, onde os Escotos reuniam o conselho desde a época do rei Gabran, não era um deles. Suficientemente vasta para conter uma centena de homens, assemelhava-se ao casco de um navio voltado ao contrário, cujos mastros teriam constituído os pilares centrais, sem janelas nem outra abertura para além de uma simples fenda, no topo, para deixar sair o fumo. Como decoração, tinham pregado nas paredes os escudos grandes dos guerreiros desaparecidos, o que contribuía ainda mais para dar à sala um ar de barco pirata desviado para terra por um furacão. Os Escotos estavam ali havia duas gerações, mas a maioria parecia nunca ter saído do mar. O seu reino de ilhas montanhosas batidas pelas ondas acabara por agarrar o seu quinhão de terra firme, roendo lentamente as imensidões setentrionais do território picto. Ao olhar os chefes de clã reunidos em volta do seu rei, Guendoloena sentia-se dividida entre o pavor das atrocidades que lhe tinham contado durante a sua infância e o sentimento indefinido de ser uma deles, doravante, tão rude e selvagem quanto as suas montanhas ou as suas costas marítimas. Tomara lugar ao lado de Aedan, num trono de madeira escura esculpido com símbolos cristãos e oghams mágicas cujo sentido ela não entendia, enquanto em volta deles, agitando turíbulos, os monges de lona, de Cella-Duini e de Luss desenrolavam em língua vulgar uma longa litania de salmos guerreiros e vingadores escolhidos para a ocasião.

- Louvar-vos-ei, Senhor, de todo o meu coração - clamava o prior. - Haveis feito recuar os meus inimigos; ficaram sem força e morreram perante vós.

- Benedicamus Domino. Deo gratias...

- Fizestes-me justiça, fizestes triunfar a minha causa.

- Benedicamus Domino. Deo gratias...

Sussurrando com os outros as respostas rituais, passou o olhar por Aedan, que a oração parecia inebriar ainda mais do que o fumo do incenso.

- Haveis castigado as nações, e o ímpio pereceu; haveis apagado o seu nome para sempre por todos os séculos.

- Benedicamus Domino. Deo gratias...

- As espadas do inimigo continuam reduzidas à impotência, Runas irlandesas. destruístes-lhe as cidades e a sua memória desapareceu com estrondo.

- Benedicamus Domino. Deo gratías...

Assim era o deus deles, vingador e implacável, revestindo de graça divina as carnificinas e pilhagens passadas ou futuras. Guendoloena baixou os olhos e, no íntimo do seu coração, dirigiu ao Deus do amor e do perdão que ela venerava uma oração por si e por aquela vida que crescia no seu ventre. Rezou para que Aedan aceitasse aquela criança como sua e para que ignorasse para sempre quem poderia ser o pai...

Subitamente, tomou consciência do silêncio que se abatera sobre a sala. Cruzou o olhar com o de Kentigem, que abanou a cabeça com um sorriso mudo diante do que tomava certamente por uma manifestação de fervor. A jovem sentiu-se atrapalhada, mas o bispo já se tinha voltado para a assistência.

- Meus irmãos, demos graças a Deus por ter posto no trono o nobre Aedan, filho de Gabran, rei e fundador do Cenei nGabrain, a fim de que para sempre este reino espalhe a luz de Cristo ressuscitado.

- Deo gratias.

A resposta murmurada em uníssono pelos monges surpreendeu tanto Aedan quanto a própria Guendoloena, mas ele pareceu lisonjeado e instalou-se mais confortavelmente para esperar pela continuação.

- Graças sejam dadas ao nosso querido Columb Cille, a Pomba da Igreja, que na sua grande sabedoria soube guiar até ao rei a esposa que lhe faltava para reinar para sempre pela vontade de Deus.

- Deo gratias.

- Meus irmãos, que todos vejam aqui a esposa prometida de Aedan mac Gabran, a nossa querida Guendoloena, filha da Igreja e irmã de Ryderc de Strathclyde. Que o seu casamento próximo seja a garantia da paz entre os reinos cristãos, e que o ímpio cubra o rosto diante do brilho da glória deles. Agimus tibi gratias, omnípotens Deus, pro uníversis bebefiffis tuís, quí vivis e regnas in saecula saeculorum, ámen.

- Ámen...

Com um gesto cheio de compunção, Kentigem traçou sobre eles o sinal da cruz, depois abandonou a sua postura sacerdotal e sorriu-lhes com um ar descontraído.

- Já está - disse, em voz baixa, enquanto atrás dele a assembléia se dispersava. - Agora todos saberão que os Dal Riada terão em breve uma rainha...

- Deus vos pague - disse Aedan. -...Pois eu nunca poderia imaginar que Deus se dignasse a dar-me um dia tal presente.

Guendoloena sorriu e agradeceu-lhe com um aceno de cabeça, mas Aedan não tinha terminado. Com um gesto, mandou vir os filhos. Os três mais velhos eram parecidos, sem dúvida, e pareciam-se com o pai. Garnait, o mais velho dos três, devia ter um ou dois anos mais do que a princesa. Os seus longos cabelos negros e os fios escuros de uma barba ainda pouco abundante davam-lhe um ar severo, acentuado pelo fato de não sorrir. Eochaid Find tinha também o cabelo negro, mas um ar mais jovial. Quanto ao terceiro, Tuthal, não passava de um jovem pouco confiante, mal saído da infância. Por trás deles, uma ama trazia ao colo Domangart, o último filho que Aedan tinha tido com a mãe deles, a princesa picta Domelach.

Um após o outro e sem que o pai tivesse tido de pronunciar qualquer palavra, ajoelharam-se diante de Guendoloena e beijaram-lhe a mão em sinal de submissão. O mesmo se passou com o bebê, que a ama lhe trouxe para que ela lhe tocasse na cabeça.

Aedan, visivelmente satisfeito, acenou a cabeça várias vezes e depois, por seu turno, pegou na mão daquela que era doravante a sua noiva perante Deus, e levou-a aos lábios. Feito isto, debruçou-se sobre ela, beijou-a no rosto e murmurou-lhe ao ouvido:

- Só me falta ser amado por ti...

Guendoloena não teve tempo para responder. Aedan arrastava o abade para uma grande mesa que os escravos tinham enchido de comida e de bebida e em volta da qual se comprimiam já todos os chefes de clã. Seguiu-os com os olhos e o seu sorriso gelou-se quando o seu olhar se cruzou com o de Garnait, que ficara a seu lado.

- Não és minha mãe, nem nunca o serás - murmurou. - Que Deus amaldiçoe os bastardos que nascerem do teu ventre!

 

Deixar, por fim, a cidade, caminhar sozinho ao passo lento das mulas, deixar os seus pensamentos divagarem no silêncio apaziguador da solidão, esquecer a mágoa e a culpa... Desde que atravessara as colinas que ladeavam a Fortaleza do Mar, Blaise sentia-se aliviado do peso que o oprimia entre os muros de Caerfyrddin. Sem olhar para trás, para a baía cheia de navios que partiam, caminhava para oeste, em direção a Preseli. Dois dias tinham decorrido desde a morte da rainha. As cerimônias fúnebres tinham decorrido com uma pressa ofensiva e, depois, Dawi e os outros tinham-se apressado a fazerem-se ao mar seguindo o senhor Gurgi. Deixando para trás uma cidade exangue e fedendo a morte, onde os cadáveres mal cobertos de cal apodreciam em cada canto de rua, todos fugiam, com medo da peste.

Pelo menos, nas colinas, o ar era puro. Estava um dia calmo, com uma ligeira brisa de terra que carregava flocos tão ínfimos que se poderia ter dito ser nevoeiro. Com os olhos fechados, deixando a mula ir ao seu ritmo, Blaise já nem conseguia rezar de tão pesado que estava o seu coração. A sua vida parecia-lhe um desperdício miserável, ao serviço de um deus que ele já não compreendia e de uma rainha que ele não soubera reconfortar na sua última hora, tão vacilante estava a sua fé. Em nome de Deus, irmão matava irmão, pilhava e queimava a sua casa. Assassinos de mãos vermelhas de sangue vestiam-se com a cruz de Cristo, enquanto as suas ovelhas erravam no mais total abandono. Os olhos do monge tinham visto demasiados horrores para continuarem a acreditar na misericórdia divina, e se ainda lhe restava um objetivo, uma razão para viver, era a de encontrar Merlim. Que o juramento que fizera à rainha no seu leito de morte fosse honrado. Que a criança, pelo menos, continuasse viva.

Sentado de lado sobre uma sela que estalava a cada passo e à qual estava presa a arreata de uma segunda mula carregada com o que ele conseguira encontrar de víveres e vestuário, Blaise andou todo o dia sem encontrar ninguém, como se o país inteiro tivesse ficado deserto. Não havia sinal de Gaélicos, embora, no estado de pouso em que se encontrava o país, qualquer exército se pudesse dele assenhorar sem qualquer dificuldade. Era como se o Dyfed, depois da morte de Aldan, tivesse cessado de existir. Cessado até de atrair a cobiça do inimigo. Tudo aquilo por que os homens tinham combatido com uma cólera de cães raivosos parecia agora ter sido enterrado no manto branco do esquecimento.

Um tal absurdo tê-lo-ia seguramente revoltado alguns dias antes. Agora não. Pelo contrário, este silêncio de abandono tomava a seus olhos um ar de penitência, de purgatório. O sangue e as cinzas cobriam a neve fresca. O ruído dos combates esfumava-se com tudo o resto, debaixo da cortina de neve. Só se via até algumas toesas de distância e, assim, cada um se podia julgar sozinho no mundo...

Blaise seguiu até o fim do dia a estrada romana que atravessava o país desde Caerleon, a antiga cidade das legiões. Parou num pequeno bosque de bétulas, prendeu as mulas a um tronco e começou a construir um abrigo para a noite. Tentou fazer lume, mas a lenha estava gelada, e desistiu, embrutecido de uma vez por todas pela fadiga. Sem sequer tocar nos víveres acumulados nos coldres, enrolou-se nas mantas e adormeceu imediatamente. Foi um cheiro de carne assada que o acordou.

A neve tinha caído durante toda a noite, cobrindo as mantas debaixo das quais se escondera. Quando se destapou, o ar vivo impressionou-o. Estava bom tempo, por fim. A luz do sol encandeou-o e, a princípio, só conseguiu distinguir uma silhueta agachada perto de uma fogueira, a alguns passos dele.

- Perdão, meu irmão, mas não vejo nada.

- Estás perdoado, monge...

Blaise sentiu o coração apertar-se-lhe. Aquela voz... Baixou a cabeça, pestanejou, e quando por fim conseguiu suportar a luz do dia, o que viu deixou-o sem fala.

- Devias ver a tua cara... Parece que viste um fantasma.

O monge sentiu-se atordoado. A voz era a de Merlim, bem como a sua forma de ironia amarga, mas o ser que estava diante dele não tinha nada da criança que deixara na orla da floresta. Os seus longos cabelos negros tinham-se tornado brancos, brancos como a neve, e o seu rosto encovado parecia ainda mais pálido. Mas o pior era o olhar. Havia agora um clarão nos olhos de Merlim, que modificava tudo, e que o monge não conseguia decifrar.

- Como... Como é que me encontraste? - perguntou.

- Não juraste à minha mãe que virias procurar-me? Sabia que respeitarias os seus últimos desejos... E que tomarias a estrada dos Romanos.

Blaise sacudiu a cabeça.

- Então sabes que a tua mãe morreu... - murmurou.

- Oh sim, sei - disse Merlin, com um riso abafado. - Acredita, sei-o bem...

Com o queixo, apontou para o coelho que colocara no espeto, por cima do lume.

- Tens fome?

Blaise estava morto por um pernil assado, mas abanou negativamente a cabeça.

- Que aconteceu aos teus cabelos? - gemeu ele. - Senhor Jesus, olha para ti! Quase não te reconheci! Que se passou, Merlim?

Merlim pegou numa mecha de cabelos brancos e puxou-a para a frente dos olhos, depois encolheu os ombros com desdém.

- Certamente é o preço a pagar.

Ainda mal acordado, o corpo extenuado por aquela noite glacial, o monge levantou-se a muito custo, esticou-se e bateu os pés para se aquecer.

- Temos de dar graças a Deus e à Virgem Maria por te terem preservado - murmurou.

Com a ponta do pé, aplanou um pedaço de terra com neve, ajoelhou-se a custo, juntou as mãos e começou a rezar.

- Ave Maria, gratia plena, Dominus tectum. Benedicta tu in mulieribus et benedictusfructus ventris tui, Jesus. Sancta Maria...

Do outro lado da fogueira, Merlim ergueu os olhos para o céu, sorriu e terminou a oração de uma só vez.

-...Sancta Maria, mater Dei, ora pro nobis peccatoribus nunc et in hora mortis nostrae! E agora, comemos?

Merlim tinha retirado o coelho do lume. Arrancou-lhe uma coxa e ofereceu-lha com um olhar.

- Como... Como é que tu sabes...?

- Nostras deprecationes ne despicias in necessitamos nos, tri - murmurou Merlim.

Atirou-lhe com a coxa por cima das chamas e, durante um momento, não se ouviu mais nada a não ser o som do mastigar. Quando ficou saciado, Blaise limpou as mãos na neve e pegou numa pitada para matar a sede. Aqueles poucos minutos de silêncio tinham-lhe permitido restabelecer-se e habituar-se ao aspecto do seu companheiro. Com os seus longos cabelos brancos e os seus olhos tristes, parecia-se com a mãe, na verdade, e esta semelhança súbita só o perturbava ainda mais. Ele que, até então, nunca sentira diante da criança aquele mal-estar que Merlim parecia inspirar a alguns, ele que aprendera a amá-lo ao longo de toda a viagem e que lhe devia, sem dúvida, a vida, sentia-se agora embaraçado diante do seu olhar penetrante e do seu mutismo tranquilo. Merlim continuava ali, sentado na neve, junto da fogueira, observando-o com um esboço de sorriso, como se tudo, até aquele conhecimento súbito do latim, fosse perfeitamente normal, como se não tivessem nada para dizer um ao outro.

- Oh, está bem! - resmungou Blaise. - Conta-me o que se passou, de uma vez por todas! Foste a Preseli, é isso?

- Não era o que tu querias?

Merlim sorriu, mas o seu rosto tornou-se imediatamente grave, e depois, lentamente, encheu-se de dor e de tristeza à medida que falava.

- Deveria querer-te mal por tudo o que escondeste de mim,

“Não desprezeis as súplicas que Vos dirigimos nas nossas necessidades.” monge... Aquilo que a minha mãe te confessou outrora, não conseguiste guardá-lo para ti, não foi? Porque não guardaste silêncio? Por tua causa, tornei-me “o filho do diabo” e estive... Estive sozinho toda a vida.

- Não sei de que falas...

- Falo do meu pai, Blaise. Aquele diabo de quem sou filho. O senhor Morvryn. Morvryn, o elfo... Não achas que está na altura de me contares tudo?

Merlim parecia à beira das lágrimas, novamente semelhante à criança que Blaise conhecera. O monge sentiu-se, ao mesmo tempo, aliviado e pesaroso. Pensou levantar-se e ir reconfortá-lo, mas renunciou imediatamente, com medo da reação dele. O único conforto de que Merlim tinha necessidade era o da verdade.

- Havia guerra - começou ele, numa voz lenta e grave, separando as palavras. - De um lado aqueles que, como Ambrosius Aurelianus, continuavam fiéis a Roma, e do outro os reis bretões que reivindicavam para si próprios o poder supremo. Vortigem era um deles; para combater os exércitos do teu pai, chamou mercenários saxões...

- Ele não era meu pai - murmurou Merlim.

- Sabes bem que sim...

Blaise suspirou longamente e continuou.

- Ambrosius foi vencido e a tua mãe teve de fugir da Bretanha com ele, para salvar a vida. Ambos encontraram refúgio no continente, junto dos reis da Domnónia Armoricana, mas a guerra chegou até eles. Então, enquanto Ambrosius combatia longe, a rainha foi atacada e refugiou-se na floresta.

Blaise interrompeu-se, hesitou e escolheu as palavras.

- Diz-se que ela ficou aí durante muito tempo. Um mês, um ano... Ambrosius julgava que a perdera. Mas ela voltou a aparecer. E tu nasceste depois... Eis a história tal como eu a sei.

- Sabes bem mais do que isso e eu também - murmurou Merlim. - Foram os elfos da floresta que protegeram a minha mãe, como outros da sua raça fizeram comigo, em Arderyd. E quando Ambrosius a encontrou, ela tinha-se tornado mulher de Morvryn.

- Sim - concordou Blaise. - Foi o nome que ela pronunciou...

- Ignoro o que se passou nessa floresta, pois são coisas que a minha mãe esqueceu. Nas suas recordações, chama a essa floresta Broceliande.

- Sim... O país de Eliande. É assim que lhe chamam. - Durante um longo momento, olharam-se em silêncio, de um lado e do outro da fogueira. Blaise sentia-se aliviado e envergonhado, liberto do peso do seu silêncio, mas, ao ver o ar derrotado do seu companheiro, não ousava colocar-lhe por seu turno as perguntas que lhe queimavam os lábios.

- Eu confiava em ti - murmurou Merlim.

Levantou os olhos para o monge e fez um sorriso desiludido.

- Tu apenas obedecias a ordens...

- As ordens da tua mãe.

- Sabes bem que não... Acreditas num deus que coloca a obediência acima da honra ou da palavra dada... Deixaste o cordão do elmo de Ambrosius nas mãos dos nossos inimigos, para que eles coroem Ryderc de Strathclyde, e para que o teu deus ou o bispo reinem sobre a Bretanha... Devia odiar-te, mas sei que és um homem bom. Aliás, neste momento, tudo isso te ultrapassa. Eles já desconfiam de ti... E irão odiar-te quando souberem o que me tornei.

Gelado no mais profundo do seu ser, Blaise baixou a cabeça, como uma criança apanhada em falta.

- Como é que tu sabes do cordão do elmo? - perguntou.

- Mas foste tu próprio quem mo disse...

- Não... Eu não te disse nada.

- É como se fosses... Não falaste de outra coisa a Aldan, durante toda a noite. O cordão, a nossa viagem, a missão de Kentigem... Falaste-lhe de mim, daquilo que ambos sempre me esconderam e que era preciso contar-me quando me voltasses a encontrar. Sei que gostas de mim, meu amigo, e que me queres proteger, por isso não te quero mal.. No entanto, olha onde estamos, e como triunfam os nossos inimigos...

Merlim tinha lágrimas nos olhos, e um tal ar de angústia que o monge sentiu o coração apertar-se.

- Não percebo...

- Pobre coitado, nunca percebeste nada... Viste demasiado para continuares a acreditar cegamente e duvidas do teu deus, mas não sabes o suficiente para apreenderes o sentido de tudo isto. Sabias que na noite de Samain as almas dos mortos deixavam o Sid de Preseli porque essa é uma das crenças antigas que vos mandaram combater, mas ignoras o que aí se passa verdadeiramente. E porque gostas de mim traíste o teu bispo e conduziste-me até lá, sem saberes realmente o que me poderia acontecer. Agora vês, e não ousas compreender...

Merlim levantou-se, contornou a fraca fogueira e veio sentar-se junto do monge.

- Sou Aldan - disse. - Vê os meus olhos...

Blaise obedeceu e sentiu-se estremecer. Aquele brilho, que tanto o perturbara no momento em que reencontrara a criança, era o olhar da rainha...

- Cada palavra que disseste, eu sabia - continuou Merlim. - Tudo o que ela escondia, tudo o que te confessou, eu sei. A alma dela vive dentro de mim de agora em diante, como a alma de Guendoleu, de Cadvan e de dezenas de outros... Eis o que se passou em Preseli. Não tenhas medo. Acredita em mim, sei o que é ter medo. Conheço a morte, dezenas de mortos, e não paro de chorar com eles. É algo de abominável, meu irmão... eis o que fizeste de mim.

- Um necromante - murmurou Blaise.

- Não creio... Um necromante fala com os mortos enquanto eu, mesmo que seja difícil de acreditar, creio que estou morto, lá em cima, e que o meu corpo continua ali, estático entre as pedras... O príncipe Emrys Myrdddin já não existe, meu amigo. Não é uma boa notícia para a Bretanha? O bastardo de Ambrosius não vos voltará a incomodar, a partir de agora...

Com um suspiro profundo, Merlim levantou-se, sacudiu a neve e a geada que o cobriam, e depois estendeu a mão a Blaise para o ajudar a pôr-se de pé.

- Vamos, não fiquemos aqui - disse ele, começando a desprender as mulas.

- Será que... Será que me poderás perdoar?

- Perdoar-te, meu irmão? Mas o quê?

O sorriso de fachada que a criança exibia desapareceu perante o ar derrotado do monge. Pela primeira vez, foi ele quem baixou os olhos.

- Não tens nada a ver com isto, e eu também não. Cada um agiu seguramente pelo melhor. Mesmo Ryderc. Mesmo o teu bispo...

A criança interrompeu-se, desviou o olhar e fixou por um momento o vazio, antes de retomar o seu fraco sorriso.

- Não podemos fazer nada, de qualquer forma.

Voltou-lhe as costas para verificar os arreios das mulas, mas o pequeno monge veio imediatamente ter com ele e forçou-o a olhar para ele.

- Para onde vamos nós agora?

- “Nós”? - repetiu Merlim, fixando-o com um espanto não fingido. - A tua tarefa terminou, fosse ela qual fosse. Porque deveríamos então seguir caminho juntos, meu amigo?

- Tu próprio o disseste - resmungou o monge. - Eles desconfiam de mim. Em breve vão querer a minha cabeça tanto quanto a tua...

- Sobretudo se seguires o caminho do diabo, pequeno monge.

- Eu só sigo o caminho de Merlim... Aliás, que importa se me afastares, já que sei para onde vamos.

- A sério? E para onde vamos?

- Para onde termina a história - disse Blaise. - Para Broceliande.

 

 

 

 

                                                                                                    Jean Louis Fetjaine

 

 

 

[1] Cerca de setenta metros.

[2] O casaco, na Idade Média, consistia numa capa presa à gola.

[3] Coracle: pequeno barco dos antigos Bretões, feito de vime ou madeira recoberta de couro. (N. da T.)

[4] Cille, a Pomba da Igreja”, cognome de São Columbano, evangelizador da Escócia. (N. da T.)

[5] Narrado por Nennius e Geoffroy de Monmouth. Enganando Vortigem, o rei saxão Hengist tinha-se assim livrado de todos os reis bretões que Vortigem e ele, tinham convidado para um banquete de reconciliação. (N. da T.)

[6] Cadzow, Actualmente, Hamilton, a sudeste de Glasgow. (N. da T.)

[7] Vates, Ordem menor de adivinhos, nas sociedades célticas. (N. da T.)

[8] Riothime, “Grande Rei”. (N. da T.)

[9] Lioegriens, nome dado pelos Bretões aos reinos saxões da Grã-Bretanha. (N. da T.)

[10] Caerfyrddin, actualmente, Carmarthen, no sudoeste do País de Cales. Este termo significa “a Fortaleza do mar”. (N. da T.)

[11] penkerd, o primeiro bardo, “chefe dos cantores”. (N. da T.)

[12] cervoise: cerveja dos antigos gauleses (N. da T.)

[13] Toesa, mais de 4 metros. (N. da T.)

[14] Esta técnica céltica de vitrificação das muralhas através do fogo deu origem ao mito das “cidades de vidro” dos romances arturianos. (N. da T.)

[15] cymri, literalmente, “os compatriotas”, nome que se davam os Bretões da Grã-Bretanha desde o século VI, por oposição aos invasores saxões. O nome persistiu na parte noroeste da Inglaterra (Cúmbria) e no actual País de Gales (Cymru, em galês). (N. da T.)

[16] Fochno, os animais mais velhos do mundo, segundo a tradição galesa (N. da T.).

[17] Epístola de São Paulo aos Efésios, 6-11. (N. da T.)

[18] Cruithni, Nome que os Pictos davam a si próprios.

[19] banshee, fada da tradição irlandesa, que prediz a morte de algum membro da família (N. da T.)

[20] Preseli, colinas de Pembrokeshire, no Dyfed, que segundo a lenda escondiam a entrada do mundo subterrâneo. (N. da T.)

[21] Oração de São Patrício. (N. da T.)

[22] Côvado: medida de comprimento antiga, equivalente a 66 centímetros. (N. da T.)

[23] Loch: braço de mar, na Escócia. (N. da T.)

[24] Ler é o deus celta do mar. A expressão “cavalos de Ler” (kezeg Ler, em bretão) designa as ondas. (N. da T.)

[25] Oração contra a febre, do manuscrito irlandês de São Gali. (N. da T.)

[26] A festa de Samain tinha lugar no dia 1 de Novembro - quinto dia do mês do junco, que ia de 28 de Outubro a 24 de Novembro - e marcava o início do ano celta. Os cristãos rebaptizaram-na de All Hallows Eve, a festa de todos os santos (dia de Todos os Santos), que se tornou a moderna Halloween. (N. da T.)

[27] Os Dal Riada, com os Dal nAraide, os Dal Fiatach e os Ui Echan Coba, formavam o reino de Ulaid, no norte da Irlanda. (N. da T.)

[28] Fortrenn é o nome de uma das sete províncias do reino picto (Fib, Fotlaig, Fortrenn, Circenn, Fidach, Ce e Cait). (N. da T.)

[29] Cruithni ou Priteni - palavra que significa “o povo das formas - está na origem do termo “Britânico”. (N. da T.)

[30] Boudicca, rainha de tribos celtas do sudeste da Inglaterra que se revoltaram contra os Romanos em 60 Depois de os ter expulsado de Londres (Londinium) e de ter massacrado mais de 70 000, foi vencida e envenenou-se. (N. da T.)

[31] Jeira: antiga medida agrária, com cem varas em quadrado. (N. da T.)

[32] Apocalipse, 6-5.

[33] Primeira Epístola Universal do Apóstolo São João. (N. da T.)

 

 

 

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