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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CREPÚSCULO DA ÁGUIA / Jean Plaidy
O CREPÚSCULO DA ÁGUIA / Jean Plaidy

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

A câmara do rei no castelo de Winchester estava pintada com cenas alegóricas que representavam sua vida. Uma delas era um quadro de uma águia e quatro aguietas.

Três das aguietas atacavam o pai, enquanto a quarta ficava olhando. Dizem que o rei fez o seguinte comentário: "As quatro aguietas são os meus filhos, que irão perseguir-me até eu morrer. O mais moço deles, meu favorito, é o que mais irá me ferir. Está esperando pelo momento de arrancar-me os olhos com o bico."

 

 

 

 

ERA o PRIMEIRO DIA do ano de 1171, e no castelo de Argentan celebrava-se o término do ano velho e davam-se as boas-vindas ao ano novo. O rei estava animado, antegozando

com satisfação sua volta à Inglaterra e seu reencontro com a amante, Rosamund Clifford. Já que sua mulher, a rainha Eleanor, ficara sabendo da existência dela, não havia mais necessidade de manter oculta a ligação. Não que ele, rei da Inglaterra, duque da Normandia e do resto tivesse medo da mulher, embora ela fosse capaz de provocar um escândalo tremendo. Sua preocupação era de que Eleanor fizesse alguma vingança contra Rosamund antes que ele pudesse agir para impedi-la. Eleanor deveria saber que ele era o senhor, mas esta era uma conclusão que ela vinha evitando nos 19 anos do casamento dos dois.

Ainda assim, o rei achava que a união deles não tinha sido de todo insatisfatória. Eleanor lhe dera quatro filhos e três filhas uma boa marca - e não era só isso: as ricas terras da Aquitânia, que ela havia levado para o casamento, haviam aumentado seus domínios e tornado o rei da Inglaterra o homem mais poderoso da Europa.

O rei tinha muito por que congratular-se consigo mesmo. Levara de volta para a Inglaterra aquela justiça que o país perdera sob o reinado do fraco Estêvão; conseguira manter suas possessões ultramarinas; arranjara com habilidade o casamento dos filhos - de todos, à exceção de Joana, que estava com seis anos de idade, e de João, que tinha cinco - de modo a tirar das uniões o máximo de vantagem, e de fato era temido e respeitado em todo o seu reino - e em outros.

Embora naquele dia de Ano-Novo estivesse se sentindo benevolente, todos sabiam que o seu mau génio poderia ser despertado a qualquer momento. Então, a pele rosada tornar-se-ia rubra e os olhos ficariam ameaçadores, as narinas se alargariam até que ele ficasse parecendo o leão ao qual tanto o comparavam. O rei jamais conseguira controlar aquele mau génio, e tampouco via qualquer motivo para que devesse fazê-lo. Quando se zangava, queria que todos soubessem. Seus ataques de raiva eram terríveis. Ele perdia todo o controle de seus atos e descarregava a fúria sobre quaisquer objetos inanimados que estivessem ao seu alcance, muitas vezes causando danos a ele próprio. Dizem que rolava no chão e mordia os juncos em ocasiões assim.

- Qualquer dia, quando der um de seus acessos, vai causar danos irreparáveis a si próprio - comentara Eleanor.

Ele se lembrava do brilho no olhar dela, e na ocasião exclamara:

- Imagino, senhora, que se eu o fizesse, isso não iria desagradá-la.

Ela não negara. Sempre fora desafiadora, nunca mostrando medo dele, sempre lembrando-lhe que, embora ele pudesse ser o rei da Inglaterra, ela era a duquesa de Aquitânia.

O rei tinha dúvidas de que ela fosse sentir se ele morresse. Na verdade, o fato deveria até deixá-la satisfeita. Eles tinham um filho para segui-lo no trono. O jovem Henrique, já coroado rei, bonito, com todo o encanto imaginável, já vinculando homens a ele pela simples atração de sua personalidade. Era insensato coroar um filho rei enquanto o pai ainda estivesse vivo. Becket se mostrara contra.

- Ah, senhor arcebispo - murmurara Henrique -, terá sido porque não foi o senhor que realizou a cerimónia?

O jovem Henrique deixava, agora, a infância para trás. Estava com 16 anos. Nesta idade, os garotos ficavam ambiciosos. O rei admitia para consigo mesmo que, de vez em quando, se sentia inquieto e se perguntava se não teria agido de forma impensada no ano anterior, quando permitira que o filho fosse coroado.

Ora, estava feito. E se ele, o rei, morresse dentro de poucas semanas - o que não era improvável, já que vivia chefiando seus exércitos contra algum rebelde que pensara aproveitar-se de suas muitas obrigações -, a Inglaterra teria um rei indiscutível que já havia sido coroado e levava o título.

O rei não iria permitir que pensamentos daquele tipo o perturbassem naquele dia. Iria pensar na sua terra, em Rosamund, nos dois filhos deles e na paz doméstica que não encontrava com ninguém, a não ser com ela. Sentia-se satisfeito pelo fato de Eleanor ter atravessado o labirinto de árvores naquele dia e descoberto o Pavilhão onde ele escondera Rosamund. Estava cansado de Eleanor. Para ele, era muito bom que ela fosse para a Aquitânia; esperava que ficasse por lá; já não a desejava. Ela era quase 12 anos mais velha do que ele, e já não havia necessidade de ter mais filhos com ela, quando já tinham seis e, de qualquer maneira, Eleanor já passara da idade. Era um prazer ficar livre de sua língua rancorosa, pois ela não fazia esforço algum para controlá-la, agora que, por causa de Rosamund, tinha motivos para odiá-lo. Como se ela, uma mulher tão experiente, pudesse ter esperado que ele lhe fosse fiel! O caso não era bem esse. Como tantas mulheres de seu tipo, ela aceitaria uma aventura casual. O que a humilhava era o fato de ele realmente amar alguém como amava Rosamund e deixar que ela, Eleanor, continuasse a ter filhos dele, que Rosamund fosse alguém em que ele ia procurar paz e conforto, alguém que pudesse ser para ele a esposa que a sua rainha não podia ser. Aquilo provocava o veneno de Eleanor e a deixava pensando de que maneira poderia vingar-se dele, da forma que mais doesse.

Que tentasse!

Rosamund era tão diferente! Henrique recordou com carinho a primeira vez em que a vira no castelo do pai em Shropshire, onde ele descansara durante uma das expedições em território do País de Gales; ela era uma virgem inocente; ele a desejara e não houvera ninguém que o contrariasse - nem Sir Walter Clifford, o pai, nem a bela Rosamund; e desde então... ela tinha sido como uma esposa para ele. Uma pessoa dócil, jamais reclamando de suas infidelidades, nunca procurando recompensas para si mesma, sempre ali quando o rei a procurava para consolá-lo.

Ele se sentira feliz em relação a Rosamund e, agora que Eleanor estava fora, podia levá-la para a corte sem problemas. O rei esperava que a esposa nunca mais voltasse para a Inglaterra.

Um grito vindo lá de baixo interrompeu aquelas agradáveis recordações.

- O que se passa? - bradou o rei.

Um de seus assistentes vinha apressado em sua direção.

- Majestade, há cavaleiros vindo em direção ao castelo.

Ele foi até a janela. Homens a cavalo, sim. E vinham da Inglaterra. Problemas! Aquilo só podia significar problemas. Quem teria se levantado contra ele, agora? Ora, aquilo iria apressar o seu retorno e ele estaria com Rosamund mais cedo.

Estava no saguão quando os homens entraram. Lançaram-se aos seus pés e ele exclamou, impaciente:

- Quais são as novas? Quais são as novas?

- O arcebispo de Canterbury morreu, majestade.

- Morreu!

- Assassinado, majestade, em sua própria catedral.

- Meu Deus! Não pode ser verdade! Quem fez isso?

- Quatro de seus cavaleiros, majestade. Reginald FitzUrse, Guilherme de Tracy, Hugh de Morville e Ricardo lê Breton.

- Meus cavaleiros.

Os mensageiros curvaram a cabeça.

- Por que fizeram isso? - murmurou o rei. - O que poderá ter feito com que eles cometessem um crime desses?

Os mensageiros continuaram calados. Não ousavam dizer-lhe que os cavaleiros alegaram ter cometido o ato por ordem do rei.

- Thomas... morto! - continuou o rei, falando consigo mesmo. - Não pode ser. Não deve ser!

- Majestade, o ato foi cometido há apenas três dias, e viemos a toda velocidade, sabendo que seria de seu desejo tomar conhecimento do fato - disse um dos mensageiros.

- Vão... repousar... deixem-me com a minha dor. - Dirigiu-se aos criados. - Tragam-me os hábitos de luto. vou trocar minha túnica. Para mim, hoje é dia de luto.

Thomas... morto! Velho amigo e agora inimigo, morto! Foram tantas as recordações que lhe vieram à mente ao mesmo tempo! As brincadeiras que os dois partilharam quando Thomas era o seu chanceler e o melhor de seus amigos. "Não me faça seu arcebispo", dissera ele, "pois será o fim de nossa amizade." Teria sido uma premonição? Porque ele estivera certíssimo, e que inimigos ferrenhos os dois se haviam tornado! O que dissera ele àqueles quatro cavaleiros sobre desembainhar as espadas e invadir a catedral? Que papel teria ele representado naquilo?

com ar solene, tirou as túnicas reais e envolveu-se com um manto de aniagem.

- Deixem-me. Deixem-me sozinho com a minha dor. Dirigiu-se para o seu quarto de dormir e enfiou a cabeça nas mãos.

- Eu não queria isso - murmurou repetidas vezes.

Baixou as mãos e fixou o olhar à sua frente, sem ver as paredes cobertas por tapetes, mas o passado... e o futuro.

Thomas era uma figura demasiado popular para que sua morte passasse despercebida. Despercebida! Não havia esperanças de que isso acontecesse! Haveria uma comoção. Esta comoção iria espalharse por toda a cristandade. Thomas seria tão maçante na morte quanto o fora em vida. Iria tornar-se um mártir. Henrique não tinha medo de general algum, mas tinha terror de mártires.

O que dissera ele àqueles cavaleiros? Lembrava-se bem da ocasião em que eles estiveram presentes. Ouvira dizer que Thomas ameaçara excomungar todos aqueles que estivessem ligados à coroação do jovem Henrique e, como ninguém estivera mais ligado do que ele próprio, aquilo significava que ele também estava incluído; e um dos bispos - devia ter sido Roger de York - dissera que enquanto Thomas Becket vivesse ele nunca teria um reino tranquilo. E então, um repentino acesso de raiva se apossara do rei. Amaldiçoara todos eles. Sustentara-os e eles eram falsos escudeiros. O rei ouviu-se gritando para aqueles bajuladores:

- Vocês me deixaram muito tempo exposto à insolência desse clérigo de origem humilde e não tentaram livrar-me dele.

Eles, aqueles quatro cavaleiros, haviam tomado aquelas palavras ao pé da letra; haviam-nas interpretado como uma ordem para matar. Devia ter sido isso, pois haviam-se dirigido a Canterbury e, lá, matado Thomas em sua catedral.

- Que isso fosse acontecer! - exclamou ele; e pensava: eles vão pôr a culpa em mim. O mundo inteiro vai pôr a culpa em mim. Aqueles quatro cavaleiros desfecharam os golpes, mas eu serei citado como tendo sido o assassino.

O que poderia fazer? Via o papa e o mundo inteiro erguendose contra ele. Iriam fazer de Thomas um mártir e um santo, e quanto mais reverência dedicassem a ele, mais forte seria o ódio contra aquele sobre o qual iriam lançar a culpa pelo assassinato.

O rei precisava de tempo para pensar. Suas ações, agora, eram da máxima importância. Ele havia progredido muito nos últimos vinte anos quando, como filho de Matilda, filha de Henrique I da Inglaterra, e do conde de Anjou, não tivera um controle muito firme sobre a coroa dos duques da Normandia. Casara-se com a mais rica herdeira da Europa e recebera a coroa da Inglaterra, e não havia homem algum que pudesse fazer-lhe oposição. O rei da França o temia; ele havia desafiado o papa; agira à sua maneira e isto lhe proporcionara um grande poder.

Mas agora corria perigo, e tudo por causa de Thomas Becket. A Igreja cantaria os louvores ao arcebispo, pois Thomas havia sido morto na batalha entre a Igreja e o Estado que vinha sendo travada há anos e que sem dúvida iria continuar. E Thomas seria um santo e um mártir.

- Você sempre tentou obter vantagem sobre mim, Thomas murmurou ele, e um sorriso amargo espalhou-se em seus lábios. E sempre o combati... muitas vezes de brincadeira e, mais tarde, para valer, e você precisa saber que sempre venço.

E agora, na morte, você me dá esse golpe!

Muita coisa dependia do que Henrique fizesse agora. Primeiro, é claro, deveria insistir que os cavaleiros haviam entendido mal suas palavras. Deveria mostrar a todo mundo que ninguém lamentava mais a morte de Thomas Becket do que o rei.

Iria trancar-se em seus aposentos; mandaria dizer que ficara tão atordoado com a notícia que deveria ser deixado em paz para prantear.

Não desceria para comer; iria ingerir apenas o necessário para manter-se vivo - nunca fora de comer muito, de modo que não haveria dificuldade -, não iria vestir nada além de seu manto de aniagem, e todos deveriam compreender que queria ser deixado em paz para dedicar-se à oração e à meditação.

Felizmente, a posição do papa Alexandre não estava muito segura e a corte papal estava em Tusculum. Alexandre precisava ter cuidado para saber a quem iria ofender, e não quereria provocar a inimizade do rei da Inglaterra.

Primeiro, Henrique mandaria mensageiros a Canterbury, com a notícia de que o ex-chanceler e arcebispo de Canterbury deveria receber um enterro digno de sua posição.

A maneira de aproximar-se do papa precisava de muita ponderação. Não adiantava invocar uma inocência total. Ninguém aceitaria isso. Que houvera atritos entre ele e Thomas, era do conhecimento geral. No entanto, não deveria haver demora em escrever a Alexandre antes que outros entrassem com suas acusações.

Pegou a pena e escreveu:

"A Alexandre, Sumo Pontífice pela Graça de Deus, Henrique, rei dos ingleses, duque dos normandos e aquitanenses e conde dos angevinos, envia saudações e a devida devoção."

Não fazia mal lembrar a Alexandre o poder que detinha sobre tantos territórios.

"Por motivo de reverência para com a Igreja Romana e pelo amor a Vossa Santidade (...) concedi a paz e a total restituição dos bens, segundo vossa ordem, a Thomas, arcebispo de Canterbury, e permiti que ele vontasse para a Inglaterra com uma renda adequada.

"Ele, no entanto, trouxe não a paz, mas a espada, e fez acusações contra mim e minha coroa. Sem poderem suportar tal afronta por parte dele, aqueles a quem ele havia excomungado e outros lançaram-se sobre ele e, o que não posso dizer sem lamentar, o mataram."

O rei despachou mensageiros para Tusculum e ficou à espera com que rapidez a vida podia mudar! Acabara de se congratular consigo mesmo por exercer o controle de seus súditos, de ter-se livrado de Eleanor; estivera planejando deliciosamente um pouco de paz doméstica com Rosamund, e Thomas Becket tinha sido assassinado! Por que Thomas não podia ter morrido de algum fluxo, de alguma desordem física? Não, não podia fazer uma coisa daquelas, embora desse a impressão de que estivesse doente. Tinha de morrer da maneira mais espetacular, aos golpes de espada dos cavaleiros do rei com toda a certeza, Thomas iria atormentá-lo até o fim da vida.

O rei pensou em Eleanor, que muito em breve receberia a noticia, pois estava certo de que as novas estariam correndo por todos os quadrantes da Europa. Henrique podia ver o sorriso irónico, pois ela saberia o quanto ele estaria aniquilado. Em seu rancor, não havia dúvidas de que ela iria alimentar os boatos com narrativas das discussões dele com Thomas, pois em certa época Henrique lhe fizera muitas confidências sobre o assunto. Ela jamais gostara de Thomas. Na época da grande amizade entre o rei e seu chanceler, quando a própria Eleanor ainda estava um pouco enamorada do marido, ela sentira ciúme de Thomas porque soubera que o rei preferia a conversa dele à de qualquer outra pessoa.

- Maldita seja a rainha! - bradou o rei.

Ele agora não podia dar vazão à raiva. Precisava de todas as suas faculdades mentais na sua volta. Pensou em seus vassalos, aqueles que não o aceitavam de boa vontade como seu suserano. Estariam prontos a sussurrar contra ele, o homem que com toda a certeza deveria ser amaldiçoado porque era culpado de derramar o sangue do mártir.

O rei permaneceu em seus aposentos a maior parte daqueles dias. Não era visto à mesa. Os criados e cavaleiros falavam em sussurros.

- O rei está profundamente afetado pela morte de Thomas Becket - diziam eles.

Quando chegavam mensageiros, eram levados imediatamente à sua presença.

Tinham histórias para contar sobre o que acontecia em Canterbury. Na noite do assassinato, dizia-se, houvera uma violenta tempestade. Os relâmpagos eram assustadores, e muita gente ficara horrorizada com o trovão que estourara sobre a catedral. Uma mulher cega havia-se curvado e beijado as pedras manchadas com o sangue de Thomas e - vejam só - sua visão fora recuperada.

Um número enorme de pessoas - doentes e aleijados - se dirigia a Canterbury. Dizia-se que Cristo dera a Thomas o poder de cura.

Era pior do que Henrique temera.

Também havia notícias de Tusculum.

O papa isolara-se do mundo tão logo recebera a notícia do assassinato. Durante oito dias, ficara isolado a fim de que, como dissera, pudesse chorar a morte de seu adorado filho. Quando tornara a aparecer, dera ordens para que nenhum inglês fosse admitido à sua presença.

Enquanto isso, o arcebispo de Sens havia denunciado Henrique, rei da Inglaterra, como o assassino, e o rei da França unira-se ao arcebispo nas acusações.

Henrique sabia que era apenas uma questão de tempo para que fosse excomungado.

Aquilo era um desastre. Mas ele não era homem de ceder diante da adversidade. Na verdade, era em ocasiões como aquela que mostrava o máximo de suas habilidades. Havia feito o que podia. Escrevera ao papa em termos sinceros, expondo o acontecido. Só lhe restava declarar sua tristeza e mostrar que lamentava a morte com a mesma sinceridade de qualquer outra pessoa.

Não havia nada mais que pudesse fazer para convencer o mundo de sua inocência; e se se recusassem a acreditar nele, deveria fazer com que ficassem cientes de seus poderes.

Henrique sempre procurara acrescentar a Irlanda aos seus domínios, e havia muito tempo tinha os olhos voltados para ela.

Aquele parecia um momento adequado para mostrar ao mundo que não seria prudente alguém subestimá-lo. Seus cavaleiros tinham assassinado Becket, e ele poderia ser considerado responsável, mas que nenhum deles esquecesse que ele era bisneto do Conquistador.

Resolveu passar os dias planejando uma invasão da Irlanda.

O jovem rei Henrique recebeu a notícia no velho palácio saxão de Winchester.

Ele andara se sentindo um tanto contrariado com o destino. Tinha sido uma grande experiência ser coroado rei da Inglaterra, e jamais esqueceria aquela cerimónia que tivera lugar em junho passado, havia seis meses. Como era maravilhoso ser rei! Aqueles que o cercavam receavam ofendê-lo; lembravam-se de que o pai dele não viveria para sempre e que um dia haveria apenas um rei da Inglaterra. Ele ficara muito surpreso com o fato de o pai ter permitido que fosse coroado e tê-lo feito rei, quando estava perfeitamente claro que um número muito grande de pessoas gostava mais do filho do que do pai.

O jovem Henrique sabia que era mais bonito que o pai. Diziam-lhe que se parecia com o avô paterno, o conde de Anjou, que fora conhecido como Geofredo, o Justo. A aparência era importante, embora o pai nunca concordasse com isso. O jovem Henrique nunca ficaria com as mãos rachadas e grossas porque se recusasse a usar luvas. Gostava de vê-las adornadas de anéis. Não era nada parecido com o pai; tentava conquistar as pessoas, coisa com que o velho Henrique nunca se preocupara. Mas aquilo era importante, alegava o Henrique mais moço; fazia com que as pessoas gostassem da gente, criava um vínculo entre elas e nós; a tendência delas era serem leais se tivessem afeição pelo governante. Ninguém tinha grande afeição pelo seu pai. As pessoas podiam respeitá-lo como um grande governante e temê-lo, mas amá-lo? Nunca!

O jovem sabia como as pessoas agiam para com ele. Todos o bajulavam porque ele os bajulava; tinham sido muitos os indícios de que aqueles que o cercavam ficariam felizes quando houvesse apenas um rei para governar a Inglaterra.

Não que ele houvesse tido condições de fazer muita coisa em matéria de governo. Percebera logo que o pai não pretendera darlhe poderes, apenas uma coroa. Na realidade, o jovem ficava mais descontente a cada dia que passava.

Gostaria de poder falar com a mãe, mas ela sempre gostara mais de Ricardo do que dele; quanto ao pai, às vezes parecia querer o seu afeto. Pois então, que fizesse alguma coisa para consegui-lo. Que desse ao filho tornado rei uma terra para governar; que o deixasse ser um rei de fato, como era no nome. Como se o pai largasse alguma coisa na qual tivesse posto as mãos!

- Seu pai é o homem mais ambicioso sobre a Terra - disseralhe a mãe. - Ele nunca irá tirar as mãos de qualquer coisa depois de tê-la agarrado.

Que ódio houvera entre aqueles dois! Ele e os irmãos o haviam sentido; em segredo, haviam-se reunido ao lado da mãe, contra o pai. Eleanor os amara e, embora Ricardo fosse o favorito, mostrara que se preocupava apaixonadamente com todos eles. Parecia que quanto mais ela odiava o pai deles, mais os amava.

O rei a tratara muito mal. Não tinha direito algum de levar seu filho bastardo, Geofredo, para a ala das crianças! O filho de uma prostituta comum que acompanhara as tropas e gerara um filho para o rei - e aquele filho fora criado na ala infantil da mãe deles! Era demais para qualquer mulher orgulhosa suportar aquilo, e quando a mulher era Eleanor de Aquitânia, era natural que houvesse problemas sérios. Ela dissera:

- Henrique, meu filho, seu pai fez de você um rei. Fez isso só para irritar Thomas Becket, tenho certeza. Ele sabe que o velho ficará louco de raiva por não ter estado aqui para coroá-lo. Seu pai vai se arrepender, mas isso será vantajoso para você. Como fez de você um rei, não deverá surpreender-se se você agir como tal.

E soltara uma sonora gargalhada ao pensar naquilo; desde então, Henrique se sentira ofendido com a avareza do pai; por causa das palavras da mãe, passara a ter uma aversão pelo pai maior do que a que tivera no início. A mãe sempre salientara para os filhos todas as deficiências do pai; e o único que não lhe dava ouvidos era o bastardo Geofredo. Ele venerava o rei e, quando o pai ia à ala das crianças, tentava chamar-lhe a atenção, o que invariavelmente conseguia, pois o rei sempre ouvia com atenção o que Geofredo, o Bastardo, havia aprendido e fazia com a cabeça um sinal de aprovação.

Agora, o jovem Henrique acreditava que o rei fazia aquilo para espicaçar a mãe deles. Eram tantas as coisas que uma pessoa compreendia à medida que ficava mais velha!

- O pai de vocês irá usá-los todos como peões em um jogo de xadrez. Vejam como ele os casou sem sua permissão! - dissera-lhes a mãe.

Era verdade. O jovem Henrique tinha uma esposa, Marguerite filha do rei da França. Naquele momento, Marguerite estava na Aquitânia com Eleanor, sendo criada por ela até a época em que deveria ir ter com ele e partilhar seu leito, seu teto e sua coroa. Marguerite ainda não fora coroada, e o rei da França estava muito zangado por causa disso, mas o pai de Henrique prometera que ela deveria ser coroada e, quando o fosse, Henrique achava que iria começar a vida de casado dos dois.

Ele tinha tão poucas oportunidades de demonstrar sua condição de rei que quando surgia uma ocasião estava disposto a aproveitá-la. Foi o que fizera muito recentemente, quando Thomas Becket fora visitá-lo.

Recusara-se a receber o velho. Sentira-se um pouco constrangido com aquilo, mas havia convencido a si mesmo de que não havia outra coisa a fazer. Roger, arcebispo de York, chegara para vê-lo e dizer-lhe que o arcebispo de Canterbury estava a caminho.

O jovem Henrique ficara contente ao ouvir aquilo, pois dedicava grande afeição ao velho mestre. Ele e a jovem Marguerite tinham sido colocados sob seus cuidados havia muitos anos, antes do exílio de Thomas. Os dois tinham de passar longa sessões de joelhos, pois Thomas era rigoroso. Marguerite costumava dizer que seus joelhos doíam de tanto rezar, mas os dois o haviam adorado, apesar de seu rigor e das duras palavras que lhes dirigia, porque na sua natureza havia um lado alegre que irrompia de repente e todos se divertiam muito juntos.

Henrique se lembrava do dia em que os dois foram informados de que Thomas Becket não iria mais ensinar-lhes porque discutira com o rei e, em consequência, fugira para a França.

Passara-se muito tempo. Marguerite não se controlara e caíra em prantos; e Henrique quase fizera o mesmo. Nenhum outro professor tinha sido igual.

Mas Roger de York havia desprezado Thomas Becket.

- Senhor meu rei - dissera ele -, Vossa Majestade não pode receber este homem. Por vontade dele, Vossa Majestade nunca teria sido coroado.

- E por que não? - perguntara Henrique com sua nova arrogância.

- Porque o arcebispo de Canterbury não acreditava que devesse ser coroado. Ele é um homem que pensa saber o que é certo sobre qualquer assunto.

- É porque ele não realizou a cerimónia.

- Talvez isso tenha tido alguma coisa a ver com o caso, mas ele declarou sua desaprovação e está ameaçando excomungar todos aqueles que participaram.

- Isso é uma insolência! - bradara Henrique, pois era muito sensível a tudo aquilo que tocasse o seu orgulho no novo cargo.

- Ele é um insolente. Se Vossa Majestade o receber, ele irá fazer-lhe um sermão. Irá aconselhá-lo a desistir da coroa.

- Mandarei que ele se retire.

- É melhor dizer-lhe que não venha. Senhor meu rei, se me permitir uma opinião, em nome da dignidade de sua coroa, não poderá receber um homem cujo único objetivo é roubá-la de Vossa Majestade.

- E não posso, mesmo.

- Então, deve mandar avisá-lo de que não irá recebê-lo.

- Mandarei - declarara Henrique, e assim o fizera, mas quase de imediato se arrependera. Parecia uma grosseria recusar-se a receber seu velho professor.

Mas Roger de York tinha razão. Agora como rei não podia sofrer insulto algum.

Deixou que a mente se voltasse para a glória da coroação, quando a coroa fora colocada sobre a sua cabeça na solene cerimónia e mais tarde, no banquete, seu pai, o rei, o havia servido.

Os homens ficaram assombrados com aquela cena. A ideia de um rei - e que rei! - curvando-se diante do jovem filho era uma incongruência.

- Que cena, aquela! O rei em pessoa ajoelhando-se diante de Vossa Majestade! - dissera um deles a Henrique, depois.

- Por que não deveria o filho de um conde ajoelhar-se diante do filho de um rei? - retrucara Henrique; e a observação fora repetida, porque era realmente verdade que o jovem Henrique era filho do rei da Inglaterra e o rei da Inglaterra era filho do conde de Anjou.

Desde então, Henrique ficara profundamente cônscio de seu título, e a cada dia que passava seu ressentimento aumentava.

Era Rei havia seis meses, e ainda sendo tratado como uma criança! Não era possível. Iria falar com o pai. Era o que ele dizia, agora. A coisa seria diferente quando estivesse diante do pai. Então, ficaria com medo, como ficavam todos os homens, fossem eles príncipes ou servos, de que a perigosa cor chamejasse naquele rosto, o branco dos olhos ficasse vermelho e o terrível mau humor irrompesse como um leão rugindo, pronto para destruir todo aquele que se opusesse a ele.

- Um dia desses, quando seu pai tiver um de seus acessos de raiva, será o fim dele. - Era a voz de sua mãe, tranquila, zombeteira, pondo-lhe na cabeça ideias que, caso contrário, lá não estariam.

Mensageiros no castelo. Sempre o deixavam agitado. Que notícias estariam trazendo? Uma mensagem de seu pai? Será que ele, Henrique, deveria juntar-se ao pai na Normandia, ou onde quer que estivesse? Será que ele iria colocar-se à frente de uma tropa? Será que, finalmente, iria receber terras e castelos que seriam seus?

- Majestade, chegou um mensageiro vindo de Canterbury disse um de seus cavaleiros.

- De Canterbury. Mas meu pai está além-mar.

- Ele não vem a mando de seu pai, majestade.

- De Canterbury! Do arcebispo! Mas não irei receber o arcebispo. Falei que não receberei aqueles que não forem de meu agrado.

- Majestade, ele traz más notícias.

- Então, traga-o à minha presença.

O mensageiro chegou. Fez uma mesura acentuada.

- Majestade, hoje trago más notícias. O arcebispo de Canterbury foi assassinado em sua catedral.

- Assassinado! - bradou Henrique. - Como assim?

- Quatro dos cavaleiros de seu pai o mataram.

- Mataram-no... na catedral! - Os olhos do rapaz estavam embaçados. Não podia ser verdade. E no entanto, ele devia ter adivinhado. Thomas havia discutido com seu pai, e o rei não permitia que alguém fizesse aquilo impunemente.

- Conte-me em detalhes - ordenou ele, e a história foi contada.

Henrique foi para o seu quarto. Não conseguia afastar a terrível cena que aqueles homens haviam descrito. Thomas Becket caído nas pedras da catedral numa poça de sangue.

- Recusei-me a recebê-lo - disse ele para si próprio -, mas não queria que isso acontecesse. Meu Deus, como fico grato por não ter tomado parte alguma nisso!

Pensou, então, nos velhos tempos em que Thomas o havia recebido em sua casa e dera uma atenção especial ao filho do rei. O arcebispo lhe contara histórias sobre seu pai, dizendo que os dois tinham sido grandes amigos e haviam percorrido o interior juntos antes de ele se tornar arcebispo e quando era apenas o chanceler do rei. Agradáveis histórias alegres, mostrando o rei sob um ângulo diferente. Ficara claro, pela maneira de Thomas falar sobre Henrique, que ele o adorara. O jovem Henrique ficara tão ciente do amor de Thomas quanto ficara do ódio de sua mãe. No entanto, seu pai assassinara Thomas.

Ah, sim, assassinara. O jovem Henrique sabia que todos estavam pensando aquilo, mesmo sem ousarem expressá-lo. Quatro cavaleiros haviam desfechado os golpes, mas o mundo inteiro iria saber quem dera as instruções.

- O fato será lembrado contra ele - refletiu Henrique. - As pessoas irão afastar-se dele por causa disso. E para quem irão voltarse? Sem dúvida que para aquele a quem ele mesmo coroara como seu rei.

Eleanor, rainha da Inglaterra, estava contente por encontrar-se em sua adorada cidade de Poitiers. Aquela era a terra que ela amava; a terra de brisas suaves, sol quente e canções. Era ali o local apropriado para as Cortes do Amor; fora impossível transplantá-las para o clima mais frio da Inglaterra, com um povo pouco paciente com as leis da fidalguia e com os sonhos do amor ideal. O rei daquele país era típico do povo que ele governava, pensou Eleanor, zombeteira - vigoroso, sem imaginação, considerando uma coisa decadente deitar ao sol e fazer belos versos em honra aos amantes.

Aquele era o ambiente dela, e nunca mais queria tornar a ver a Inglaterra. Poderia dizer para si própria que nunca mais queria ver Henrique, também, mas isso não era verdade. O rei a estimulava como ninguém; penetrava em suas emoções até o fundo; nunca poderia ficar verdadeiramente alheia a ele. Houve tempo em que o amara com grande intensidade, e agora o odiava com a mesma intensidade.

Muitas vezes, em seus jardins, ficava pensando em Henrique quando belos trovadores dedilhavam seus alaúdes e olhavam para ela com amor e desejo que deviam ser fingidos, porque ela estava com quase cinquenta anos e, embora tivesse sido uma mulher excepcionalmente bonita e ainda continuasse, tivera uma vida aventurosa, e o tempo deixara sua marca. Eleanor se recordava daqueles anos em que os dois se amavam apaixonadamente e em que se divorciara de Luís, rei da França, para casar-se com Henrique. Ele estivera tão ansioso pela união quanto ela, mas talvez porque Eleanor poderia levar para ele a Aquitânia, e ele era ambicioso por terras. Às vezes, ela pensava que ele sonhava em conquistar o mundo. Ainda assim, se a Aquitânia tinha sido a principal atração, o rei escondera o fato, e aqueles primeiros anos de casamento devem terlhe proporcionado um pouco da satisfação que proporcionaram a ela. A forte atração física estivera presente - quanto a isso, não havia dúvida; mas ele, o rei vigoroso, que em toda a sua vida conseguira o que queria e quando queria, fora logo infiel. Eleanor agora ria da fúria que sentira quando descobrira o fato graças ao pequeno Geofredo bastardo que Henrique levara para a ala das crianças.

Que gloriosa batalha se travara então, e como ela se deliciara; gostara de ver a raiva que tomara conta dele, porque de certo modo aquilo o enfraquecia. Quando o genio dele ficava fora de controle e ele chutava objetos inanimados, quando se deitava no chão e rolava numa agonia de raiva e cortava os juncos imundos com os dentes, ele se traía. Aqueles magníficos poder e força que normalmente eram características suas ficavam perdidos no homem que podia controlar exércitos mas não conseguia comandar sua própria natureza.

Eleanor não conseguia parar de pensar nele e, por estranho que parecesse, seu ódio por ele a absorvia tanto quando outrora a absorvera o amor por ele. Houvera época em que ela não mediria esforços para fazê-lo progredir; agora, empregaria a mesma energia para destruí-lo.

Como Eleanor amava aquela cidade! Sua cidade! E ele, Henrique, era duque de Aquitânia, mas não deveria continuar a sê-lo. Aquele título era para o adorado filho dela, Ricardo; e quando Ricardo se tornasse duque de Aquitânia, deveria ser de verdade. Henrique ficava muito contente ao conceder títulos aos filhos, desde que ficasse entendido que nenhum poder acompanhava os títulos. A mão dele seria a mão que governaria, como o jovem Henrique - orgulhoso de ser chamado de rei - estava percebendo.

Mas não seria sempre assim. O povo de Aquitânia já estava percebendo alguns indícios quanto ao relacionamento entre o rei e a rainha, e não havia dúvidas sobre para onde pendia a sua lealdade. Ele demonstrava, sempre que Eleanor saía, que a considerava a sua duquesa e que nunca iria submeter-se ao irritável e arrogante angevino que se considerava conquistador da Europa. Não, o povo amava a sua duquesa Eleanor, a dama da canção e do saber, a rainha aventureira cuja conduta tantas vezes escandalizara o mundo, mas até mesmo aqueles escândalos haviam aumentado o carinho do seu povo do Sul por ela.

com frequência, ela subia nas muralhas do castelo e contemplava com orgulho e emoção a cidade lá embaixo. Olhava para a bela Notre Dame Ia Grande e para o batistério de Saint Jean e sentiase jovem outra vez. Lembrava-se também de quando a magnífica catedral de Saint Pierre tinha sido construída. Eram muitas as recordações, ali, de outras épocas; e olhando para o passado, estaria ela lamentando o término de sua juventude?

Como poderia lamentar, se os anos lhe haviam trazido seus ado- rados filhos? E o principal deles era Ricardo.

Ela sempre adorara a beleza na forma humana, e a seu ver o filho era o seu ideal. Alguns poderiam dizer que faltavam a ele os traços regulares de beleza do irmão mais velho, Henrique, mas a força de caráter estampava-se em seu rosto, e embora Eleanor amasse todos os filhos e tivesse se decidido a ligá-los a ela, Ricardo era o que recebia o melhor de sua dedicação.

Ricardo era alto, as pernas longas, e destacava-se pelo comprimento dos braços. Os cabelos não eram nem vermelhos nem louros, mas de uma cor intermediária, e os

olhos eram azuis. Desde cedo ele mostrara grande valentia e uma tamanha força de propósito, que uma vez tomada uma decisão de completar uma tarefa, nunca vacilava enquanto ela não estivesse terminada. Na equitação, no arco e flecha e em todos os outros esportes, sobressaía-se, e o que encantava a rainha era o fato de ele ser também perito em fazer versos; sabia cantar e tocava o alaúde como os melhores de seus trovadores. Agora que Eleanor sentia aquele violento ódio pelo marido, concentrava o amor nos filhos, e em especial em Ricardo.

Ele retribuía aquele amor. A ela, confiava suas ambições. Gostava de ouvir falar das aventuras dela na Terra Santa e ela adorava contá-las, dramatizando-as, narrando-as em versos e glorificandoas em canções. Elas eram romantizadas e davam histórias encantadoras, e Eleanor e os amantes que tivera naquela louca aventura eram a heroína e os heróis de uma história tão interessante e romântica quanto a de Arthur, Guinevere e Lancelot.

- Ah, como esta cidade é bonita! - dizia ela. - Minha cidade que será sua, Ricardo. Esta cidade sobre uma montanha. Sabia que Marco Aurélio construiu aqui um anfiteatro para receber 22 mil espectadores? Os sarracenos foram desbaratados aqui quando avançaram impetuosamente pelo território da França. Daqui destas muralhas pode-se sentir tudo isso, não?

E Ricardo compreendia como certa vez ela pensara que o pai dele iria compreender. Porque nos primeiros tempos do casamento dos dois, Henrique adorara literatura e as obras que fossem produto da imaginação. Mas se tornara grosseiro; o amor pelo poder e a devassidão tinham sido a causa.

- Quando entra numa cidade - dizia Eleanor aos filhos -, ele não vê a magnífica fachada de uma catedral; não ouve o melodioso som dos sinos. Examina as mulheres e escolhe qual a que levará para a cama para se divertir, sem se importar se ela está disposta ou não.

- Esperemos que ele não venha a Poitiers - disse Ricardo.

- Faremos o possível para mante-lo longe daqui.

- Ora, minha mãe, a senhora não poderia fazer isso.

- Acha que não? E se eu fizesse com que o povo daqui tivesse tal aversão por ele a ponto de recusar-se a recebê-lo?

- Isso seria exatamente o maior estímulo para que ele viesse. Entraria na cidade com seus cavaleiros e soldados em tal quantidade que ninguém ousaria opor-se a ele.

- Tem razão, meu filho. Mesmo assim, não pretendo que meus súditos sejam mantidos na ignorância do tipo de homem que ele é.

- Não vamos pensar nele. Somos felizes sem ele - disse Ricardo.

E eram, mesmo.

- Vamos planejar um baile de máscaras para amanhã. Será que você poderia compor alguns versos especiais para a ocasião? O que acha, Ricardo?

Ele a considerou uma excelente ideia, e disse que iria começar logo a executar a tarefa.

E assim a vida seguia prazerosa em Poitiers. Houve muitos bailes de máscaras, muitos banquetes; com Eleanor estavam seus filhos Ricardo e Geofredo, e até este último era um trovador razoável; havia Marguerite, filha de Luís e esposa do jovem Henrique, que ainda estava sob os cuidados de Eleanor. A prometida de Ricardo, Alice, outra filha de Luís, mas meia-irmã de Marguerite, porque Marguerite era filha da segunda mulher de Luís e Alice era filha da terceira, estava sendo criada na corte inglesa. Já que Eleanor não podia ser uma esposa feliz, pelo menos podia ser uma mãe satisfeita. Os filhos a amavam, e o mesmo acontecia com as filhas. Mesmo aquelas a quem ela abandonara ainda guardavam uma certa afeição por ela.

Eram Marie e Alix, as duas que ela dera a Luís quando era sua mulher. Ela as adorara quando eram criancinhas, mas fora uma mulher aventureira demais para dedicar-se às crianças. Marie e Alix estavam casadas agora - Marie com o conde de Champagne e Alix com o conde de Blois -, mas as duas haviam herdado o seu amor pela literatura e, em consequência, a melhor maneira de satisfazer aquele amor era na corte de Poitiers, e sempre que possível as duas a visitavam.

Que alegria ver os criados correndo para avisá-la de que as duas tinham chegado e então descer até o pátio para beber com elas a taça de boas-vindas! Eleanor acreditava que as filhas não lhe guardavam rancor pelo fato de tê-las abandonado. Elas, como os outros filhos, gostavam de ouvir histórias sobre a sua vida loucamente aventurosa. Marie talvez fosse a mais atraente das irmãs. Era bonita e de uma perspicácia espontânea que encantava a todos, inclusive a mãe. Marie também escrevia uma poesia sofisticada, e Eleanor sentia grande prazer em ver a afeição entre os dois mais amados de seus filhos, Marie e Ricardo.

Foi nessa corte feliz que os mensageiros chegaram da Inglaterra com a notícia de que Thomas Becket, arcebispo de Canterbury, tinha sido assassinado em sua catedral.

Os olhos de Eleanor brilharam de agitação.

- Assassinado! - exclamou. - E pelos cavaleiros do rei! Não temos dúvidas de quem é o verdadeiro assassino.

Ricardo e Geofredo fitaram-na horrorizados. Como eram inteligentes!, pensou ela. O suficiente para reconhecer a importância daquela notícia!

- A cristandade inteira irá erguer-se horrorizada contra o único responsável por esse crime - profetizou Eleanor. - Irão todos clamar contra a baixeza do assassino

de um homem desses. - Eleanor soltou uma gargalhada. Não conseguiu conter-se.

Ia ser engraçado ver o efeito daquele ato, pois sabia que seria enorme. Iria reverberar pelo mundo todo e não seria benéfico para o homem que ela odiava.

Chegara a hora dos inimigos erguerem-se contra ele.

Olhou para os filhos e disse em voz pausada.

- Em breve chegará a hora de vocês reivindicarem o que lhes pertence. O momento é perfeito para agir.

 

O PRIMEIRO CHOQUE passara. Henrique saiu de sua câmara de luto e riu de seus temores. Não era ele capaz de manter o que havia conseguido? Ia ficar com medo do castigo

que o papa poderia tentar conseguir sob a ameaça de excomunhão?

Ele era citado como o assassino de Thomas Becket, e porque as pessoas ficavam cada vez mais convencidas de que Thomas era um santo, elas o olhavam com horror.

O rei iria insistir no fato de que nunca pretendera que seus cavaleiros assassinassem Thomas, e enquanto isso era preciso cuidar das atividades referentes à sua condição de rei.

Agora, mais do que nunca, precisava mostrar ao mundo que estava pronto para qualquer um que se levantasse contra ele.

O duque Conan, da Bretanha, morrera de repente e era claro que poderia haver problemas naquela área, porque Conan estivera guardando a Bretanha para o filho de Henrique, o jovem Geofredo, que, como ainda nem completara 13 anos, não era capaz de governar sozinho.

Tão logo ficou sabendo que certos nobres bretões estavam declarando sua recusa em prestar-lhe homenagem, Henrique colocouse à frente de uma tropa de soldados e marchou contra a Bretanha. Logo de imediato, sentiu-se melhor. Independente do resultado da morte de Becket, ele ainda era o rei da Inglaterra e, sem dúvida, nem mesmo o papa ousaria atacá-lo.

com a costumeira perícia, em pouco tempo fez com que aqueles bretões percebessem que ele era o senhor. Seu filho Geofredo ainda era demasiado criança para assumir o papel de governante, mas o pai guardaria a terra para ele até que o filho atingisse a maioridade.

Dada aquela lição, Henrique estava pronto para o que desse e viesse. Pensava seriamente na Irlanda. Esta era a resposta. Não iria ficar se remoendo em um de seus castelos, à espera da excomunhão; entraria em ação e aumentaria suas possessões, tornando-se assim mais poderoso do que nunca.

Enquanto resolvia os problemas na Bretanha, ele recebeu mensagem do conde Humbert de Maurienne, que perguntava se o rei podia recebê-lo, pois tinha uma proposta a fazer-lhe.

Sabendo que o conde Humbert era viúvo e tinha duas filhas, Henrique adivinhou qual poderia ser a natureza do assunto e, quando pensou nas posses do conde, não ficou contrariado.

Recebeu-o com honras e pediu-lhe que revelasse o motivo de sua visita.

- Como sabe, senhor meu rei - disse Humbert -, não tenho filhos, mas duas filhas, e para mim seria uma grande honra se Vossa Majestade aceitasse a mais velha como esposa para o seu filho mais moço.

Henrique fingiu ter sido apanhado de surpresa. Na realidade, estava longe disso. Já pensara muito seriamente no que Humbert poderia levar para a sua família. Aquilo era muito importante. Suas filhas Matilda e Eleanor já estavam adequadamente colocadas Matilda com o duque da Saxônia, Eleanor com o rei de Castela; quanto a Joana, ainda era uma criança, tendo apenas seis anos de idade; e filhas eram um problema sem importância. Em geral, podiam fazer casamentos vantajosos. com os filhos, nem sempre era fácil, porque se esperava que o pai lhes desse terras. O jovem Henrique seria rei da Inglaterra - já estava coroado -, e como rei da Inglaterra teria a Normandia e Anjou; Ricardo teria a Aquitânia, e Henrique havia providenciado a Bretanha para Geofredo. Mas, e João, que era um garotinho? Seu património sempre fora uma ansiedade. Quando ele nascera, Henrique olhara para o seu rostinho e pensara: outro filho, e que terras darei a ele? Henrique o apelidara então de Jean Sans Terre; e o apelido pegara. Ele era chamado, com frequência, de João Sem Terra (John Lackland). E Ali estava uma oportunidade de dar-lhe um território para governar. Pela oportunidade de casar a filha com o filho do rei da Inglaterra embora esse filho tivesse três irmãos mais velhos do que ele e, portanto, se pudesse dizer que não tinha como chegar ao trono - um simples conde de Maurienne estaria pronto a dar muitas coisas.

Henrique semicerrou os olhos e estudou o conde.

- Bem, senhor conde, creio que sua filha seja uma menina graciosa, de boa saúde, e eu teria prazer em recebê-la em minha família, mas tenho de procurar o bem-estar de meu filho. Que dote ela traria?

- Para um casamento desses, eu estaria disposto a conceder a maior parte de minhas terras. Tenho, como Vossa Majestade sabe, uma filha mais moça, e para ela preciso reservar um pouco de meus.territórios, mas já que ela não pode esperar fazer um casamento tão brilhante quanto o da irmã, naturalmente que deve receber uma parte muito menor.

- Há o condado de Belley. E o vale da Novalesia - disse Henrique.

- E Rossillon-en-Bugey, majestade. Aix, Aspremont, Rochetta, Mont Major... - O conde continuou contando as propriedades nos dedos.

O rei ficou confirmando com a cabeça.

- E o senhor tem direitos sobre Grenoble, creio eu.

- Tenho, majestade, e isso também deverá passar para a minha filha mais velha.

- A mim, parece uma proposta bem justa - disse o rei.

- Eu pediria que o noivo trouxesse cinco mil libras para a minha família - acrescentou o conde.

Cinco mil libras! Por tanta coisa! Era um bom negócio, e os olhos de Henrique brilharam diante da perspectiva das terras que passariam para a família com o casamento de João com a filha de Humbert de Maurienne.

- É claro que seu filho ainda é uma criança - continuou o conde.

- Quase seis anos - concordou o rei -, mas inteligente para a idade, e não há motivo para que não façamos o noivado dos dois. Não iremos levá-los para a mesma cama, por enquanto, mas é bom que eles saibam que pensamos neles.

Negócio fechado.

João já não seria mais Sem Terra.

Era esse tipo de negócio que agradava ao rei e o fazia esquecer a tempestade que se formava devido à morte de Becket.

Enquanto o rei se congratulava consigo mesmo por aquele casamento, chegaram ao castelo notícias perturbadoras. Dois legados papais já haviam cruzado as fronteiras e entrado na França, seguindo em sua missão de levar uma mensagem do papa ao rei da Inglaterra.

Henrique estava bem ciente do que conteria aquela mensagem. Seus espiões tinham ouvido dizer que o papa queria que ele observasse sua humildade, o que significava cumprir certa penitência por sua parte no assassinato de Becket. Fazer aquilo seria admitir publicamente a culpa, e isso era uma coisa que ele não estava disposto a fazer.

Tinha de deixar a França de imediato, antes que os legados pápais chegassem até ele. Lá, daria ordens para que qualquer mensageiro do papa, ao pôr os pés na Inglaterra, fosse preso como espião.

Depois, iria fazer planos para sua campanha contra a Irlanda. A conquista daquele país não poderia ser feita em poucas semanas. Seria, sem dúvida alguma, uma campanha

de certa duração, e enquanto estivesse empenhado numa tarefa daquelas não se poderia esperar que se preocupasse com outros assuntos. Quanto maior o intervalo

entre o assassinato e a admissão, melhor.

Então... para a Inglaterra.

Sua primeira visita foi a Rosamund, agora instalada no aposento real em Westminster. Como sempre, a beleza dela o surpreendeu e ele ficou impressionado, como nunca deixara de ficar, com o fato de poder amá-la por tanto tempo. Os anos acrescentaram uma certa serenidade aos encantos dela; e Henrique pensou como Rosamund era muito mais atraente do que uma mulher mais inteligente e ambiciosa teria sido. Claro que a estava comparando com Eleanor.

Rosamund ficou contente em vê-lo, e no primeiro dia e na primeira noite não houve outra coisa senão aquele prazer mútuo.

Ela lhe falou sobre o medo que sentira enquanto ele estivera fora. O rei garantiu que na estratégia da guerra ele estava sempre um movimento à frente dos inimigos; e que nunca a esquecera e sua alegria por voltar para a Inglaterra era porque iria encontrá-la.

Os dois falaram sobre os meninos, que agora estavam crescendo.

O jovem Guilherme atingiria, dentro em pouco, a idade de ir

para a corte.

Não tenha receio, os meninos serão como meus filhos legítimos porque, Rosamund, para mim você é realmente minha esposa.

- Mas não, meu senhor, aos olhos de Deus e do Estado.

- O que importa isso, se aos meus olhos você é minha mulher? vou dizer-lhe uma coisa que ultimamente tem estado em minha cabeça. Eu não amo a rainha... nem ela me ama. Por que não me livrar dela?

- De que maneira? - perguntou Rosamund, com um tom de medo na voz.

- Por que não me divorciar dela?

- Isso nunca seria permitido.

Ele ficou estupefato. Era raro Rosamund sugerir que alguma coisa que ele quisesse não seria possível.

- Se eu o quisesse, seria feito - disse ele, com certa impaciência.

- Há o jovem rei e seus irmãos.

- Isso não é assunto de interesse deles. A situação deles não poderia ser alterada.

- com base em que iria ter o seu divórcio? Se fosse por consanguinidade, o jovem rei e seus irmãos não seriam ilegítimos?

O rei suspirou.

- É verdade - admitiu. - Se fosse com base em adultério, isso não iria afetar meus filhos. Pelos olhos de Deus, duvido que eu tivesse dificuldade em provar alguma coisa contra ela. Luís poderia ter-se divorciado dela sob a alegação de adultério. Ela teve como amantes o próprio tio e um sarraceno. Qualquer mulher que fizesse isso...

Mas um homem acusar a mulher de adultério quando ele próprio estava na cama com a amante era, até certo ponto, ridículo. Além do mais, um divórcio com aquela justificativa iria significar que nenhum dos participantes poderia tornar a se casar. Por isso, era claro que o rei não estava falando sério quando declarou que iria divorciar-se da rainha.

Rosamund ficou inquieta. Achava que deveria chegar uma hora na vida de qualquer mulher em suas condições em que ela deveria perguntar a si mesma qual seria o seu futuro. Rosamund não estava preocupada com o seu futuro material. Sabia que o rei, mesmo se deixasse de estar apaixonado por ela, iria sempre sustentá-la e também os filhos dos dois. Não era isso que a preocupava.

Como todas as demais pessoas, Rosamund horrorizara-se com a notícia do assassinato de Becket. Ela sabia o nível a que o rei se envolvera com aquele homem. Tinham sido muitas as vezes em que ele fora até ela profundamente perturbado, zangado, triste - e tudo por causa de Thomas Becket. Ele conversara com ela, muitas vezes, como se estivesse falando consigo mesmo... às vezes, divagava sobre a grande amizade que existira entre os dois, e às vezes falava sobre as inúmeras maneiras que Thomas havia descoberto para persegui-lo. Certa vez, dissera:

- Para mim, não haverá paz enquanto Thomas Becket for arcebispo de Canterbury. Quem me dera ficar livre desse homem!

Quando ouvira dizer que Thomas tinha sido assassinado, Rosamund não conseguira tirar aquelas palavras da cabeça. E estava sempre vendo Henrique naquelas ocasiões em que ele desabafava sua raiva contra o arcebispo. Na época, ele a deixara com medo diante da violência de sua fúria, e só a adorável solicitude de Rosamund havia evitado que ele cedesse a ela. Rosamund o acalmava, naquelas ocasiões, concordando com ele, oferecendo-lhe solidariedade, fazendo com que ele percebesse que, independente do que dissesse ou fizesse, ela acreditava que ele estava certo.

E agora... Becket.

Ela não conseguia deixar de pensar nele. Ficara sabendo do que acontecera na catedral depois da morte. Que os peregrinos já estavam visitando o local, os doentes e os aleijados. Eles acreditavam que se beijassem as pedras sobre as quais o sangue dele havia sido derramado seriam abençoados e, talvez, curados de seus pecados.

Pelo menos agora ela não podia dizer a si mesma ou ao rei: "O que fez estava certo."

Thomas Becket estava entre eles.

Henrique sentia a mudança que houvera nela. Aquilo o deixava frustrado, colocava uma barreira entre os dois. Ela sorria e estava tão graciosa e amorosa quanto sempre; ele estava ardente; mas algo mudara no relacionamento, e ambos sabiam disso.

Não havia, com Rosamund, o mesmo conforto de antes.

No palácio de Westminster, ele visitou a ala infantil. Dessa vez, só estavam lá seus dois filhos mais moços - Joana, com sete anos, e João com seis. O fato de ter acabado de fazer um contrato de casamento para o filho caçula despertara o seu interesse por ele, queria contar ao pequeno João a grande sorte que tivera.

E Quando entrou na ala infantil, um medo respeitoso caiu sobre o local. As amas e as criadas curvaram-se até o chão e as crianças ficaram olhando, espantadas. Henrique lançou um rápido olhar sobre as mulheres - um hábito que nunca o abandonara - para ver se alguma delas merecia suas atenções passageiras; e talvez porque sua mente estivesse ocupada com a mudança de Rosamund, ou talvez porque não ficasse muito impressionado com nenhuma delas, dispensou-as.

As crianças estavam vendo um livro de gravuras, e com elas estava uma menina de onze ou doze anos. Todas se levantaram. As duas meninas fizeram uma mesura, e o jovem João se curvou.

Que trio agradável! O rei sentiu seu estado de espírito mudar enquanto os observava. Seu filho João era uma criatura encantadora, o mesmo acontecendo com a filha. Em graça e beleza, porém, ele tinha de admitir que a companheira deles os sobrepujava.

Lembrou-se, de repente, de quem era ela. Claro que era Alice, filha do rei da França, e ela estava sendo criada ali porque estava prometida ao seu filho Ricardo.

- Estou certo de que estão contentes por me verem - disse o rei.

João sorriu; Joana parecia assustada, mas Alice respondeu:

- Isso nos dá um grande prazer, majestade.

Henrique pôs a mão sobre os macios cabelos encaracolados de Alice.

- E você sabe quem sou eu, mocinha?

- O senhor é o rei.

- Nosso pai - acrescentou João.

- Tem razão - disse Henrique. - Vim ver como estão todos passando na sua ala infantil. Vamos, Joana, está na hora de falar.

- Nós vamos bem, majestade - murmurou a garotinha, tímida.

Henrique a levantou e a beijou. As crianças eram encantadoras. Depois, segurou João e fez o mesmo. Quando o baixou, olhou para Alice. Ela ruborizou-se ligeiramente.

- E a senhora. Devo tratá-la da mesma maneira, não? Ergueu-a nos braços. O rosto dela ficou perto do seu. A tessitura da pele das crianças era tão fina, tão macia...! Nem mesmo beldades como Rosamund podiam comparar-se a elas. Henrique sentiu um grande prazer em ter aquela bela menina nos braços. Continuou a segurá-la. Olhou-a nos olhos muito bonitos. Ricardo, pensou ele, você tem uma preciosidade nesta menina. A ideia de um Luís que mais parecia um monge ser o pai de uma criaturinha tão perfeita o divertia.

João e Joana olhavam para ele. Ele apertou Alice e tornou a beijá-la, dessa vez na boca.

- Vossa Majestade está beijando mais a Alice do que a gente

- disse João.

Henrique colocou a menina no chão.

- Ora, ela é nossa hóspede, e por isso temos de fazer com que saiba que é bem-vinda.

- Então Alice é nossa hóspede? - perguntou João. - Dizem que ela é nossa irmã.

- Ela vai ser irmã de vocês, e é nossa hóspede. - Henrique pegou um dos cachos de Alice e enrolou-o no dedo. - E quero que ela saiba que nunca houve uma pessoa mais bem-vinda no meu reino. O que tem a dizer sobre isso, Alicinha?

- Vossa Majestade é bom - retrucou ela.

Ele se ajoelhou, fingindo que era para ouvi-la melhor, mas na verdade era para aproximar mais o rosto do dela.

- Eu gosto muito de você - disse ele; e deu-lhe um tapinha no rosto, e suas mãos tocaram os ombros da menina e deslizaram pelo corpo infantil ainda não formado.

Henrique se levantou.

- Agora, vou me sentar e vocês vão me dizer como estão indo nos estudos. - Olhou para João, cuja expressão se tornara um tanto acabrunhada. - Ora, ora, meu filho - disse ele, pois seu estado de espírito estava mais elevado do que estivera desde que soubera da morte de Becket -, não nos aprofundaremos muito no assunto, se isso não for agradável, porque esta é uma ocasião para se comemorar. - Tomou a mão de Alice em uma das suas e a de Joana na outra, e levou-as até a janela. Lá, sentou-se.

João encostou-se em um de seus joelhos, e Joana, no outro.

- Venha, Alice, minha queridinha - disse ele, e puxando-a por entre os joelhos segurou-a junto a ele. - Agora, somos um grupo de amigos. João, meu filho, vim vê-lo porque tenho boas notícias para você.

- Para mim, majestade! - bradou João, começando a dar pulos.

- Não deve fazer isso - disse Joana.

- Ora, vamos deixar que ele expresse um pouco de alegria, minha filha, porque o assunto é muitíssimo agradável. Tenho uma noiva para ele.

- Uma noiva. O que é isso? - indagou João.

Ele é muito criança para compreender - disse Alice.

- Claro - concordou o rei, acariciando delicadamente o braço dela. - Mas você, não, minha queridinha. Você está noiva de meu filho Ricardo, certo?

- Estou, majestade - disse Alice.

- Ainda é jovem demais para ir ter com ele - continuou o rei, e ficou assombrado com o alívio que sentiu. Seria insuportável deixar que aquela bela menina se casasse com algum menino trapalhão. Ricardo era bonito, mas ainda muito criança.

- Mas será em breve - disse Alice.

- Não. Ainda falta algum tempo - retrucou o rei, com firmeza.

- E eu? - disse João.

- Ouçam o nosso jovem noivo! Joana, Alice, minhas queridas, escutem só!

- O senhor disse que se tratava de minha noiva, meu pai.

- E é, mesmo, meu filho. Encontrei uma noiva que fará muito bem a você e a nós, e o pai dela e eu concordamos que quando os dois tiverem idade suficiente irão se casar. O nome dela é... ora, ela tem o nome mais bonito do mundo. Qual pensa que é? Alice! O mesmo que o de minha querida filha aqui. Alice, eu já passei a adorar esse nome.

Ela sorriu, encantada, e uma covinha apareceu-lhe nas faces.

- Você é uma menina querida, e eu amo você. - Henrique apertou-a contra o corpo e deu-lhe um beijo ardente no rosto.

João fazia perguntas, impaciente. Queria saber qual a altura da noiva. Se ela sabia brincar; se era bonita; se era boa nas lições.

- Ela é tudo isso e está muito feliz por ser minha filha e sua esposa - afirmou o rei.

João riu, satisfeito. Aquele seu filho caçula era um menino encantador. Os outros sempre demonstravam um certo ressentimento para com Henrique. Era influência da mãe, disso ele estava certo. Agora, o ambiente na ala das crianças estava bem diferente. Ele precisava visitá-la com mais frequência.

O filho ilegítimo, Ceofredo, já não se encontrava mais lá. Estava sendo educado nas artes do cavaleirismo. Um belo garoto, o Geofredo. Henrique sempre o havia preferido à ninhada de Eleanor. Mas seu filho Henrique era tão bonito que ele teria gostado que houvesse uma ligação mais forte entre os dois. Quanto a Ricardo, era tão preferido pela mãe que parecia que os dois nunca poderiam sentir outra coisa que não inimizade um pelo outro.

João era diferente - o filho mais moço cujo amor pelo pai nunca fora maculado pelo veneno da mãe.

Dali por diante, João seria o seu favorito. Henrique iria visitar a ala infantil com frequência, e não seria um dever, mas um verdadeiro prazer. A razão principal era aquela encantadora criaturinha, Alice. Uma belezinha em formação, se é que ele conhecia alguma coisa, e pela experiência que tivera devia saber muito bem.

Querida e doce criatura, que bem ela lhe fizera! Graças a ela, ele deixou de pensar na atitude diferente de Rosamund e, acima de tudo, no assassinato de Thomas Becket.

Henrique estaria pronto para partir em direção à Irlanda em agosto. Até ali, ele havia mantido os legados papais acuados. Sabia que eles não deixariam as coisas continuarem daquele jeito. O que iriam querer dele? Supunha que algum tipo de penitência, e se ele se recusasse a fazê-la... excomunhão. Não era bom para um rei sofrer uma excomunhão. Seus súditos eram supersticiosos, e se receassem que a mão de Deus estava contra ele, iriam afastar-se dele e até mesmo aqueles que continuassem leais perderiam o ânimo. Henrique acreditava que quando os homens se envolviam em batalhas precisavam estar bem equipados para a luta, não apenas materialmente, mas espiritualmente. Precisavam acreditar na vitória, para que pudessem alcançá-la. Esta fora uma das firmes crenças de seu bisavô, Guilherme, o Conquistador, que insistia em ver o bem em augúrios, quando outros homens temiam que eles pudessem indicar o mal. O avô, Henrique I, só acreditava em presságios quando eram bons; e mostrara ser um dos governantes mais astutos já conhecidos.

Portanto, Henrique não queria excomunhão alguma. Mas o tempo era um bom aliado. Quanto maior a demora entre o assassinato e a admissão da culpa melhor. As paixões esfriavam, e desde que não houvesse uma quantidade demasiada de milagres no santuário de Canterbury, ele poderia enfrentar aquela tempestade como enfrentara tantas outras.

A Irlanda estava agora à sua frente.

Ele estava a caminho de Portsmouth quando recebeu a notícia de que o velho bispo de Winchester se encontrava doente e achavam que estivesse morrendo, e pedia para ver o rei.

Não havia outra coisa que Henrique pudesse fazer, a não ser visitar o ancião; não se recusava o pedido de um moribundo.

Pobre homem! Estava, realmente, em seus últimos momentos. Não havia dúvida de que estava pronto para morrer, pois há muito tempo que estava cego.

Era irmão de Estêvão, que usurpara o trono que, por direito, deveria ter pertencido à mãe de Henrique, Matilda; e o bispo de Winchester fora um dos principais apoiadores do irmão, embora houvesse época em que ficara tão irritado com as loucuras de Estêvão que quase se decidira a apoiar Matilda. Isso se passara havia muito tempo, e os erros tinham sido corrigidos, porque ele, Henrique Plantageneta, neto do rei Henrique I, era o rei da Inglaterra.

Encontrou o bispo à beira da morte, mas ele pareceu reviver um pouco ao perceber a presença do rei.

- O senhor meu rei foi bom ao atender ao meu último pedido.

- Meu caro bispo, por mais que não me agradem os pedidos do meu clero, espero que não tenha sido o seu último.

- Ah, Vossa Majestade está me vendo fraco e com muita idade, e não pode ter dúvidas... já que não tenho nenhuma... de que minha hora chegou.

- Que Deus abençoe sua alma, senhor bispo.

- E a sua, majestade. Saberá o motivo pelo qual pedi para vêlo porque eu queria falar com Vossa Majestade antes de deixar esta terra para sempre. Tenho medo que algo lhe aconteça, majestade.

- Anime-se. Tenho cuidado de mim mesmo e de meu reino há muitos anos. Não tenha receio, continuarei a fazer isso, independente do que acontecer.

- É o que pode acontecer, majestade, que me deixa apreensivo.

- O senhor me chamou até aqui para fazer profecias sombrias, senhor bispo?

- Majestade, sabe que me refiro ao assassinato.

- Poucas pessoas se referem a outra coisa, agora. Estou um tanto enfadado do assunto.

- Deve estar com o coração sofrendo muito, majestade.

- O arcebispo morreu. Nada poderá trazê-lo de volta. Quando um homem tem um reino para governar, não pode dedicar-se a um luto prolongado porque um súdito morreu.

- Thomas não era um súdito qualquer.

- Nada menos do que o arcebispo de Canterbury, embora durante alguns anos tivesse preferido esquecer-se disso.

- Não pode enganar um moribundo, majestade. Vossa Majestade está com o coração aflito e teme as consequências.

- Por que estaria, diga-me?

- Porque, majestade, o senhor é culpado de assassinato, e do assassinato de um santo.

- Senhor bispo, o senhor se esquece com quem está falando.

- Estou morrendo, majestade. Nada que pudesse me fazer iria me prejudicar. Diante da morte, eu falo a verdade.

- Não é uma atitude covarde - dizer-se, diante da morte, aquilo que se temia dizer enquanto vivo?

- Eu o diria ainda que tivesse mais dez anos de vida. Tremo por Vossa Majestade, porque Vossa Majestade matou um santo.

- Senhor bispo - disse o rei, fingindo enfado -, meus cavaleiros não me entenderam de forma correta. Eu esbravejei contra ele. Quem não o faria? Ele me perseguia. Frustrava-me em todas as oportunidades. Eu o perdoava. Permiti que voltasse para a Inglaterra depois do exílio, e o que foi que ele fez? Tentou levantar o país contra mim.

- Ele não fez nada disso. Isso era o que seus inimigos diziam contra ele. Ele sempre foi amigo de Vossa Majestade.

O rei ficou calado por uns momentos, e depois bradou:

- Não tive nada a ver com a morte dele! Não queria que ele morresse.

- Majestade - disse o bispo, erguendo a mão -, seus cavaleiros mataram o arcebispo porque Vossa Majestade os fez acreditar que assim o desejava. Não pode negar isso, e Vossa Majestade é responsável pela morte dele. Receio que seu castigo será terrível.

Uma intensa raiva tomou conta do rei. Ele cerrou o punho e quis abatê-lo sobre aqueles olhos sem visão. Mas se tratava de um homem moribundo, e um medo e um remorso terríveis dominaram logo a sua fúria. Ficou quieto, com o braço erguido.

- Arrependa-se, majestade. Peça perdão a Deus por esta terrível ação. - O bispo ficou repentinamente imóvel.

- Venham cá. O bispo está morrendo! - bradou o rei. Ficou contente por escapar daquela câmara da morte. Estava

com medo, e o medo o deixava zangado.

- Thomas - murmurou ele -, será que você vai me perseguir para sempre? - Ele tinha de fugir. Tinha de tirar da mente as recordações de Thomas, recordações do bispo moribundo.

Normalmente, ele iria a toda velocidade para o lado de Rosamund; agora, achava que a inocência das crianças na ala infantil real podia acalmá-lo mais.

Quando os reis da Irlanda souberam que Henrique Plantageneta havia desembarcado, apressaram-se a jurar-lhe fidelidade. Os chefes e reis de lugares como Waterford, Cork e Limerick estavam todos ansiosos por evitar a guerra. Tremiam diante do poder do rei da Inglaterra. Eles eram celtas, homens altos e elegantes, e tinham o rosto corado. Suas túnicas eram de lã tecida toscamente, e suas armas de guerra eram primitivas, pois nada possuíam além de espadas, lanças curtas e machadinhas. Embora gostassem de discutir, com frequência pareciam ter pouco ânimo para uma luta; gostavam apaixonadamente de música, e muitos deles tocavam harpa. As casas eram de madeira e varas trançadas; o campo era verde e fértil, o clima quente e úmido. Henrique gostou do que viu, e lembrou aos seus seguidores que o avô e o bisavô tinham planejado conquistar a região, mas os compromissos na Inglaterra e na Normandia tornaram-lhes impossível fazê-lo. Agora ele, que tinha territórios cada vez maiores para controlar, estava prestes a conquistá-la.

Em Waterford, ele recebeu a homenagem dos príncipes menores e combinou que eles deveriam pagar-lhe um pequeno tributo anual como sinal de que o aceitavam como seu suserano.

Só chegou a Dublin em novembro. Instalou seu quartel-general no palácio de madeira que havia lá; e mandou seus dois comissários, Roger de Lacy e Guilherme Fitzalden, conversarem com Roderick, o rei de Connaught, que era o chefe de todos os príncipes menores. Eles se reuniram às margens do Shannon, onde Roderick deixou bem claro que ele se considerava o verdadeiro governante da Irlanda e não tinha intenção de abdicar em favor de Henrique da Inglaterra.

Quando Henrique recebeu a mensagem, ficou furioso. Tudo tinha saído tão tranquilo até ali! Ele teria gostado de entrar em combate imediatamente, para mostrar ao reizinho que era o senhor, mas o seu olho de soldado percebeu de imediato que as montanhas eram demasiado escarpadas e o tempo demasiado úmido para permitir-lhe embarcar numa campanha vitoriosa. Xingou Roderíck - o único que se opusera a ele - e jurou que tão logo o tempo mudasse estaria pronto a fazê-lo desejar que tivesse agido de maneira diferente.

Veio o Natal. Henrique não lamentou ter de celebrar o festival em Dublin. O aniversário da morte de Thomas estava muito próximo, e ele sabia que na Inglaterra e na França as pessoas iriam recordar-se. Portanto, era bom estar longe numa hora daquelas.

Os irlandeses que haviam decidido aceitá-lo como seu governante prestaram-lhe grandes homenagens. Chegaram até a construir para ele um castelo fora dos muros da cidade. O castelo foi construído em prazo muito curto, e foi feito de varas trançadas. Henrique ficou muito orgulhoso dele. Deveria haver uma grande comemoração no dia de Natal, disse ele, e ele iria convidar todos os seus novos e leais súditos para a sua mesa.

Depois, mandou seus cozinheiros prepararem uma lauta refeição que impressionasse tanto aquela gente que eles ficariam falando nela durante anos, e Roderíck de Connaught ouviria falar da riqueza do novo senhor da Irlanda.

Houve diversões e muita risada, e Henrique ouviu concentrado as canções e as execuções na harpa de seus novos súditos.

Pouco depois das festividades, providenciou para que os bispos da Irlanda jurassem fidelidade a ele, e quando isso foi feito, escreveu ao papa pedindo a Alexandre que aceitasse a ele e a seus herdeiros como governantes da Irlanda.

Tudo ia correndo bem, à exceção do irritante Roderick, que vivia afirmando sua determinação de ficar contra o rei. Henrique planejava tomar à força aquilo que Roderick não lhe desse, mas o tempo ainda estava muito traiçoeiro para que ele pudesse lançar sua campanha. O vento uivava rio acima; a chuva era torrencial; estava claro para o mais inexperiente dos soldados que nenhuma campanha poderia ser vitoriosa se executada naquelas condições.

Janeiro passou, e fevereiro havia chegado, mas o tempo continuava contra eles, e nada havia que ele pudesse fazer, a não ser esperar.

Por todo o mês de março Henrique esperou, e justamente quando se preparava para acabar com a resistência de Roderick para sempre, chegaram navios da Inglaterra.

Traziam notícias perturbadoras.

No aniversário da morte de Thomas, os peregrinos chegaram em grandes levas em Canterbury. Muitos deles declararam que foram curados de suas enfermidades no santuário do mártir. Todo mundo dizia que Thomas era um santo.

Pior ainda, o papa enviara os cardeais Theodwine e Albert à Normandia, à procura do rei.

- Por que estão esperando na Normandia? Por que não vêm à Inglaterra? - quis saber Henrique.

Havia uma resposta simples para aquela pergunta. Não iam até a Inglaterra porque sabiam que seriam presos por constituírem um perigo para a paz se pusessem os pés lá.

Em vez disso, aguardavam na Normandia.

- Então, terão de aguardar - foi a resposta de Henrique.

- Estão dizendo, majestade, que se não for à Normandia imediatamente, eles têm autorização do papa para promulgarem um edito confiscando todas as suas terras.

- Pelos olhos de Deus! - murmurou o rei.

Ele sabia, é claro, que tinha de ir. Caso contrário, poderia perder a Normandia.

Thomas continuava a persegui-lo na morte, tanto quanto o fizera em vida - e isso não era pouco.

Henrique trancou-se em seu aposento. O que devia fazer? Já fazia mais de um ano desde a morte de Thomas, e o martírio estava tão vivo como sempre estivera. Além do mais, havia todos aqueles milagres no santuário, e ele tinha um número demasiado grande de inimigos.

Não ousava demorar-se. Havia gente demais esperando para tirar-lhe as terras. Não podia conquistar a Irlanda inteira, como havia planejado. Roderick de Connaught teria de esperar.

Deixando Hugh de Lacy com uma guarnição para manter o que havia ganhado, Henrique enviou mensageiros aos cardeais para dizerlhes que estava seguindo imediatamente

para a Inglaterra e chegaria à Normandia no devido tempo.

Naquele Natal, o jovem rei Henrique decidiu lembrar a todos de sua corte que ele era realmente o rei. O pai o enviara à Normandia ao seguir para a Irlanda, e lá

ele deveria agir como uma espécie de regente.

- Um regente! - vociferou Henrique para Guilherme, o Marechal.*1

- Por que iria eu ser um regente? Sou rei por nascimento.

Guilherme, o Marechal, sobrinho do conde de Salisbury, que durante alguns anos ocupara o cargo de cavaleiro-mor do jovem Henrique, era seu mais íntimo amigo e companheiro.

- No devido tempo, Vossa Majestade será rei de todas as maneiras - lembrou-lhe ele.

- Não enquanto meu pai viver, Guilherme.

- Meu senhor, não é conveniente falar na morte do rei.

- Como posso deixar de falar nela? Só quando ela acontecer é que ficarei livre.

Guilherme, o Marechal, olhou por cima do ombro, com medo, mas Henrique caiu na gargalhada.

- Não tenha medo. As pessoas daqui são minhas amigas.

- Um rei nunca sabe quem são os seus amigos.

- Sei que não existe um rei em toda a cristandade que tenha mais inimigos do que meu pai. Ele tem um temperamento que

provoca inimizades.

- Eu me arriscaria a contradizê-lo, majestade.

- Tenha cuidado, Guilherme. Lembre-se de que sou seu rei.

- E também meu amigo. Se eu tivesse de bajulá-lo como fazem tantos, deixaria de ser amigo de Vossa Majestade. O que deseja, majestade, minha bajulação, ou minha

amizade?

- Você sabe, Guilherme.

 

*1 O problema mais sério quanto ao aportuguesamento dos nomes próprios que aparecém na saga dos Plantagenetas foi criado pela figura de William Marshal. Uma das traduções de marshal (com um ou dois "l") é marechal, mesmo, o que William era. O termo surgiu a partir do título dos marescalci, ou mestres dos cavalos, dos primeiros reis francos. Era o encarregado dos estábulos reais. Na Idade Média, o marechalato, graças à importância da cavalaria nos combates, passou a ser associado ao comando militar. William Marshal era conhecido, na época em que entra nesta narrativa, como William the Marshal (Guilherme, o Marechal). Mais tarde, de acordo com o critério adotado na Inglaterra de considerar o título hereditário, inclusive com a permissão de incorporar o Marshal ao sobrenome, William tirou o the e passou a ser William Marshal. A autora faz a distinção das duas formas, motivo pelo qual resolveu-se traduzir o nome todo, para manter a fidelidade ao original. E se o leitor estiver

pensando por que não se manteve tudo no original, deve-se lembrar que por convenção vigente os nomes de reis, imperadores, papas, até 1500 deverão ser grafados em português. Como a figura de Guilherme, o Conquistador (William the Conqueror) é citada ao longo dos volumes que compõem esta série, por coerência todos os Williams foram vertidos para Guilherme. Se não se fizesse isso, o diálogo entre Henrique e Guilherme que se segue não faria sentido no trecho que aborda o número de Guilhermes que há na corte. (N. do T.)

 

- Acho que sei, e por isso vou arriscar-me a dizer que se ninguem gosta de seu pai, são poucos os que não o respeitam e o temem; e às vezes é melhor ser respeitado e temido do que amado.

- Ele o deixou bestificado com os acessos de raiva.

- Peço-lhe que não fale dele dessa maneira. Ele é pai de Vossa Majestade e nosso rei.

Não é de se esperar que eu me esqueça disso. Mas saiba de

uma coisa, Guilherme, ele não vai me manter neste estado para sempre.

- Vossa Majestade ainda é jovem. Tem conquistado o coração dos homens pela sua índole, mas não teria condições de ir contra seu pai.

- Eu não disse que faria isso, Guilherme. Acontece que quero ser rei em algo mais do que no nome.

- Mas já existe um rei da Inglaterra. Henrique suspirou.

- Venha, vamos pensar em outras coisas. Este é o meu primeiro Natal como rei e pretendo celebrá-lo como tal. Esta corte não terá dúvidas quanto à minha categoria.

- Esta corte, majestade, sabe perfeitamente qual é a sua categoria. Vossa Majestade é o seu rei, e é a primeira vez na história da Inglaterra que ela tem dois reis.

- Foi desejo de meu pai, e ele não pode culpar ninguém, a não ser a si próprio, por isso. Venha, estou decidido a que meu primeiro Natal como rei seja lembrado para sempre, para que o povo saiba como a vida será alegre quando só houver um rei na Inglaterra. vou lhe dizer uma coisa, meu amigo: quando eu for rei e tiver um filho, não se colocará uma coroa na cabeça dele enquanto eu não tiver morrido.

Guilherme, o Marechal, ficou calado, mas imaginava, como muita gente começara a fazer, como Henrique II podia ter cometido tamanho engano ao mandar que o filho fosse coroado rei enquanto ele ainda vivia.

- Já sei - bradou o jovem Henrique. - vou convidar todos os cavaleiros, condes e nobres, juntamente com homens da Igreja, para o meu banquete. Eles receberão presentes que irão provar-lhes que serei um rei generoso. Meu pai é o mais parcimonioso homem vivo. Ele odeia dar alguma coisa. Nunca irá liberar o controle que tenha sobre um só castelo enquanto viver. Mostrarei a meus súditos daqui como serei diferente. Quero ser tão diferente de meu pai quanto me for possível. Lamento ter o mesmo nome que ele.

- Vossa Majestade preferia ter sido um Guilherme?

- Isso foi meu irmão mais velho. Existem mais Guilhermes na Inglaterra e na Normandia do que qualquer outro nome, palavra. São todos chamados assim em homenagem ao meu trisavô, Guilherme, o Conquistador. Você é um deles, meu amigo.

- Eu diria que existem outros tantos Henriques.

- Não, Guilherme, aposto que não. Tenho uma ideia. No meu banquete, vou separar todos os Guilhermes e eles irão jantar comigo num salão. Quem não se chamar Guilherme não se sentará comigo. Então, você e eu iremos contá-los e ver quantos Guilhermes existem. Aposto que haverá mais de cem.

Henrique ficou entusiasmado com a perspectiva, e Guilherme partilhou de seu entusiasmo, percebendo que ao planejar as celebrações do Natal Henrique esquecera a inimizade para com o pai.

Ao descobrir que havia 110 cavaleiros chamados Guilherme e muitos de outras categorias, Henrique ficou encantado.

Ele era o único Henrique entre os Guilhermes que lotavam seus aposentos. A reunião recebeu o nome de A Festa dos Guilhermes.

Quando seu pai soube o que acontecera, ficou contrariado com o que lhe pareceu uma frivolidade infantil. Ouviu também rumores da crescente insatisfação do filho com a sua posição, e isso era mais perturbador do que a sua irresponsabilidade.

O jovem Henrique partiu para a Inglaterra logo depois do Natal. O banquete tinha sido um grande sucesso. Seu amigo Guilherme, o Marechal, fazia bem quando lhe recomendava que tivesse cuidado com os bajuladores. Mas ele era realmente popular, bemapessoado, encantador - tudo o que o pai não era, e aquilo que Guilherme chamava de bajulação era, de fato, a verdade.

Quando ele estivera em Bures, o tio de sua mãe, Ralph de Faye, fora visitá-lo e levara com ele um amigo, Hugh de St. Maure, e os dois disseram que levariam para sua mãe as notícias sobre seus régios hábitos.

Ele ficara encantado com aquele parente e o seu amigo. Os dois se haviam declarado muito chocados diante da maneira pela qual seu pai procurava tratá-lo.

- A julgar pela maneira de o rei se portar para com Vossa Majestade, parece que Vossa Majestade é uma criança de dez anos disseram eles. - Ora, Vossa Majestade está com 17 anos. É um homem.

Era verdade; ele era um homem, sendo tratado como um menino. Vossa Majestade deve manifestar sua insatisfação - disse-lhe Ralph.

Henrique sabia disso. Mas, como? Era muito bom falar em desafiar o pai quando este não se achava lá, e uma questão inteiramente diversa quando se estava frente a frente com ele. O jovem Henrique se lembrava de como o rosto ficava corado, os olhos pareciam começar a sair das órbitas, e a terrível fúria começava a surgir. Qualquer homem inteligente ficaria longe daquilo.

Ainda assim, eles tinham razão. Algo devia ser feito, mas teria de ser mais sutil do que a confrontação com seu pai e uma exigência de que seus direitos lhe fossem concedidos.

Enquanto aquilo não acontecia, ele estava indo até a Inglaterra, e era lá que mais gostava de ficar, porque lá ele era rei; e quando o paiestava ausente, ele podia iludir-se e pensar que governava o pais.

Não lhe permitiram iludir-se por muito tempo. Não estava em Westminster havia mais de um mês, mais ou menos, quando o pai chegou.

Face a face com o Henrique mais velho, o mais jovem perdeu a coragem. Sempre fora assim. Por mais que vociferasse contra o pai junto aos amigos, bastava o pai aparecer para ele ficar imediatamente submisso.

- Eu soube que você passou um Natal agradável em Bures disse o rei.

- Penso que meus... nossos súditos ficaram contentes com a demonstração que fiz.

O Henrique mais velho balançou a cabeça para cima e para baixo.

- Você parece ter uma certa predileção pelos meus súditos normandos. Isso é bom, porque estamos partindo em pouco tempo para a Normandia.

- Nós... - gaguejou o jovem Henrique.

- Eu disse nós, o que significa você e eu.

- O senhor vai precisar de mim na Inglaterra enquanto estiver na Normandia.

- Meu magistrado Ricardo de Luci goza de minha inteira confiança.

- Pai, eu preferiria ficar aqui. Para mim, já chega de Normandia.

O rei ergueu as sobrancelhas, e o filho ficou alarmado ao ver o conhecido apertar de lábios e o brilhar de olhos que avisavam a quem quer que os visse que deveria tomar cuidado, porque eram sinais de perigo.

- Pensei que fosse querer que eu... - começou o jovem Henrique.

- Já lhe disse o que quero. Você irá preparar-se a fim de partir para a Normandia. Quero a sua companhia lá, meu filho.

- Sim, majestade - disse o jovem rei em voz baixa.

Aquilo era humilhante. No íntimo, Henrique vociferava contra o papa. Ele precisava se controlar. Estava numa posição muito delicada. O fato de ele, Henrique Plantageneta, ser convocado para um encontro com os legados papais era um insulto. No entanto, o que podia fazer? Tinha de agir com muito cuidado, ou o mundo inteiro ficaria contra ele.

Precisaria lidar com muita sutileza com aqueles emissários do papa, e queria estar inteiramente livre de angústias quando fizesse aquilo. A Irlanda estava garantida, acreditava ele, muito embora ainda não estivesse conquistada de todo. Ele próprio estaria na Normandia. Eleanor se encontrava na Aquitânia; e ele não iria deixar, em absoluto, o jovem Henrique na Inglaterra. Teria de estar atento àquele rapaz. Começava a perceber o grande erro que cometera ao coroá-lo rei. Por que fizera aquilo? Para irritar Thomas Becket. Para fazer com que o menino fosse coroado por Roger de York. Sim, aquilo tinha sido feito, em parte, para humilhar Thomas Becket. Thomas... a coisa sempre voltava para Thomas!

Agora, ele precisava de um pouco de consolo antes de partir para a Normandia, e iria visitar Rosamund.

Achou que parecia faltar algo no prazer dela. Apesar de respeitosa como sempre, decidida a agradá-lo, havia um certo ar de tristeza.

Ele acordou durante a noite e sentiu o peso de suas atribulações. Acariciou os cabelos dela e despertou-a com beijos.

- Minha Rosamund, duvido que alguma vez eu tenha estado na situação em que me encontro agora.

Ela ficou inteiramente desperta de imediato, pronta para ouvir, para consolar.

- Antes de conseguir o reino que era meu por direito, eu tinha muito pouco, a não ser minhas esperanças. Estava certo, então, do sucesso. Então, consegui esse sucesso e meus problemas começaram. É o destino dos reis da Inglaterra, desde a época do Conquistador. Nossas terras estão muito espalhadas para que possamos mante-las em ordem. Isso, eu aceitei. Sabia que a qualquer momento teria de correr para a Normandia a fim de dominar este ou aquele traidor, e depois voltar para a Inglaterra porque precisavam de mim aqui. Mas nunca fui convocado antes.

- Não pode recusar-se a ir?

- Eu teria toda a cristandade erguida contra mim. Quem dera que esses milagres em Canterbury acabassem. Não acredito neles. São uma invenção dos meus inimigos. - Henrique sentiu Rosamund estremecer. Até ela mudara depois da morte de Thomas Becket. - Você acredita nisso, Rosamund?

Ela ficou calada.

Olhos de Deus, pensou ele. Até ela acredita que Thomas é um santo e que eu sou culpado pelo seu assassinato.

Sentou-se na cama e olhou para ela à fraca luz da meia-lua. A bela Rosamund, a quem ele amara durante anos, e à qual fora fiel à sua maneira, até ela o achava culpado.

- Como é que eu iria saber que aqueles estúpidos cavaleiros iriam me tomar ao pé da letra?

Ela continuou calada.

- Por que não fala, Rosamund?

- O que quer que eu diga, majestade?

- Diga o que está pensando, não o que pensa que estou querendo ouvir.

Rosamund se levantou e passou os braços em torno do pescoço dele.

- Então eu diria, majestade, que na Normandia .Vossa Majestade deveria admitir que aqueles homens pensavam estar agindo segundo seus desejos.

- O mundo inteiro já sabe disso.

- E que Vossa Majestade daria muito para desfazer o que foi feito e que assume a responsabilidade por esse terrível crime.

- Eu... assumir a responsabilidade!

- Se fizer isso, eles irão pedir alguma penitência. E quando ela estiver cumprida, Vossa Majestade terá expiado o seu pecado.

Henrique olhou para ela, aterrado. Ela estava dizendo o que o resto do mundo dizia a seu respeito. O rei queria que ela o agarrasse e lhe dissesse o quanto ele estava sendo difamado, que estava inteira e indiscutivelmente inocente.

Ficou desapontado.

Rosamund sabia disso.

Ele olhou para ela e viu que havia lágrimas em suas faces.

- Estou com medo.

- De quê, Rosamund?

- Do pecado.

- Pecado? O que significa isso?

- Vossa Majestade e eu. Vossa Majestade tem uma rainha, e eu tenho vivido com Vossa Majestade como se fosse sua esposa. Tenho filhos seus que nasceram em pecado.

- Pelos dentes e olhos de Deus, Rosamund, o que foi que aconteceu com você?

- Há muito que venho pensando nisso, e desde o assassinato... O rei se afastou, impaciente, e ficou fitando o espaço.

Ela fechou os olhos, pois sentia que de seu relacionamento algo se fora para sempre.

O rei partiu. Seus pensamentos estavam com Rosamund, e isso o livrava de pensar no que o esperava na Normandia.

Ela mudara. Antes, não pensava em outra coisa a não ser nele. Ele precisara dela, e ela estivera lá. Agora, ela estava preocupada com a sua alma. Na vida dela penetrara algo que era mais importante do que ele. Henrique não teria acreditado que aquilo fosse possível, partindo de sua delicada e dedicada Rosamund.

E aquilo acontecera no momento em que ele mais precisara dela. Ela o decepcionara. Em pouco tempo estaria falando em entrar para um convento. As mulheres como Rosamund pensavam nisso quando atingiam uma certa idade, assim como havia homens que participavam de cruzadas ou peregrinações à Terra Santa. Ele nunca poderia fazer isso. Tinha muitas coisas que o prendiam onde estava.

Ele compreendia Rosamund. Ele a amava; ela lhe dera grandes alegrias e muito conforto; mas era inevitável que em determinado momento uma mulher direita como era ela fizesse um exame de sua vida pecaminosa e se arrependesse.

Henrique suspirou. Aquele assunto era quase tão deprimente quanto o que o aguardava na Normandia. Ia pensar em outras coisas. Em breve, teria de tirar João da ala infantil e fazer o noivado, mas isso teria de esperar. Henrique iria até lá, porém, para ver como iam as crianças. Seria um prazer ver o jovem João e sua irmã Joana... e, naturalmente, a pequenina Alice.

Encontrou Alice sozinha na sala de aulas.

- Majestade! - Ela levou um susto quando o viu e fez uma mesura enquanto um rubor inundava-lhe as faces.

- Então está sozinha - disse ele, e sentiu-se tomado por uma agitação. Ela era mais encantadora do que ele imaginara.

- Joana e João estão andando a cavalo. Eu fiquei aqui. Tinha uma lição para terminar.

- E como vai essa lição? - perguntou ele. Ergueu Alice nos braços e beijou-a. - Alice, você é uma feiticeira.

- Ah, não, Majestade. - Ela parecia amedrontada.

- Quero dizer que você me enfeitiça com a sua beleza. Ela parecia amedrontada.

Henrique andou com ela até o assento no vão da janela e sentouse com ela sobre os joelhos.

- Que idade você tem, Alicinha?

- Dentro em breve terei passado doze primaveras, majestade.

- É uma idade encantadora. Já vi muito mais primaveras do que isso. - Doze!, pensou ele. Certas meninas já eram bem maduras aos doze anos. - E você vai ser minha filha. Começo a lamentar isso.

Ela ainda parecia amedrontada.

- Se o ofendi de alguma maneira, majestade...

- Ah, sim, você me ofendeu, Alice, porque desde a última vez em que a vi tenho pensado sempre em você.

- Se me disser onde está o meu erro...

- Está nesses belos cachos, nessa pele macia, nesses lábios convidativos que me fazem querer beijá-los assim... Alice.

- Oh, majestade!

- Sim, e, oh, minha senhora! Alice, quem dera que você não estivesse comprometida com o meu filho. Se não estivesse, pelos olhos de Deus que eu iria pedir a seu pai que você ficasse noiva de mim.

Os olhos dela se arregalaram.

- Como pode ser, majestade?

- Impossível, não é.

- Mas...

- Ah, você ainda não completou treze anos e eu já fiz muitos mais. Mas os anos não importam. Veria que sou um marido muito amoroso.

- Mas Vossa Majestade tem uma rainha. A mãe de Ricardo.

- Os reis se livram das rainhas quando não mais as amam.

- Então não ama a rainha?

- Eu odeio a rainha, Alice. Odeio-a tanto quanto estou começando a amar você. - Ele a observava fixamente.

Ela agora não estava com medo. Estava ficando agitada. Henrique tentou controlar o desejo que surgia. Não podia fazer aquilo. Ela era uma criança. Estava noiva de Ricardo e era filha do rei da França. Nem Henrique podia divertir-se com a filha de um rei como faria com uma criada prostituta. Tinha havido meninas da idade daquela - embora ele sempre sentisse mais prazer com mulheres maduras. Não sabia quando se sentira tão entusiasmado com alguém

- pelo menos, desde que vira Rosamund pela primeira vez. E ela não era, na ocasião, muito mais velha do que Alice. Rosamund o desagradara; desapontara-o de uma maneira que ele nunca esperara que fizesse.

- Alice, se eu a amasse, você acha que poderia me amar?

- Terei de amar, porque Vossa Majestade é o pai do Ricardo e será o meu.

- Não, eu não quis dizer como pai.

- Como assim, majestade?

Teria sido um pouco de coqueteria que ele viu nos olhos dela? Se fosse, se aquela inocência fosse um tanto fingida, suas resoluções iriam por água abaixo; ele iria agir primeiro e pensar depois. Luís iria preferir muito mais que a filha fosse rainha da Inglaterra do que duquesa de Aquitânia, o que era tudo o que ela seria se se casasse com Ricardo.

Encostou o rosto no dela e a mão pousou no seio em botão.

- Gosta de ser acariciada dessa maneira?

- Mas claro, majestade.

- E que eu seja a pessoa que acaricia?

- É, majestade.

- Eu, de preferência a nenhum outro? Ela confirmou com a cabeça.

- Por quê?

- Porque o senhor é o rei e o nosso senhor e mestre.

- Uma ótima resposta - disse ele, dando uma risada. - E você estaria pronta a me obedecer em todas as coisas?

- Estaria, majestade.

- E fazer tudo o que eu pedir?

- Mas claro.

- Alice - sussurrou ele -, acho que você é uma garotinha inteligente. Conhece um pouco das coisas do mundo, não conhece?

- Um pouco, majestade.

- E gostaria de saber mais, isso eu garanto. Alice, vou ser o

seu tutor.

Depois que Henrique a seduziu de maneira delicada e hábil, sua consciência o incomodou um pouco. Mas logo a acalmou ao lembrarse de que tomaria conta da menina. Veria, sem dúvida alguma, se poderia divorciar-se de Eleanor e, se pudesse, faria de Alice sua mulher. A inocência dela era uma delícia; não seria difícil fazer com que ela o adorasse. Ele a ensinaria como havia ensinado a Rosamund, e se se casasse com ela - o que bem poderia fazer -, ela não precisaria ter escrúpulos quanto aos seus pecados. E se ele não se casasse, ora, na hora devida ela iria para Ricardo.

Mas ele não queria pensar nela pertencendo a alguém, a não ser a ele.

Amava aquela pequena e confiante Alice. Ela era exatamente o que ele precisava no momento; podia esquecer a provação que o aguardava. Podia esquecer as frustrações, as irritações e a angústia que começavam a nascer nele com relação aos filhos.

- Minha querida Alice - sussurrou ele ao se despedir -, este é o nosso segredo. Não diga a ninguém o que se passou entre nós. Confio em você. E um dia, que está muito perto, você será a minha rainha e colocarei uma coroa sobre a sua cabeça, e iremos a toda parte juntos.

Alice estava extasiada. Ele era tão poderoso, tão inteligente! Ela não gostara muito do que vira em Ricardo. Mas o rei iria salvála daquele casamento. Claro que iria. Iria casar-se com ela.

 

O REI PARTIU para a Normandia acompanhado do filho, que pouco se esforçava para disfarçar a contrariedade. O rapaz mostravase visivelmente mal-humorado, mas os pensamentos de seu pai estavam ocupados com um excesso de outras coisas para que ele se preocupasse muito com o jovem Henrique.

Ele não podia parar de pensar na adorável Alice e no prazer que seria voltar para ela. Iria tirá-la da ala infantil e instalá-la no palácio. Teria de haver um certo segredo, naturalmente. Henrique tinha de pensar em Rosamund, a quem ainda estava dedicado; mas Rosamund deveria saber que ele não poderia ter-se casado com ela mesmo se se divorciasse de Eleanor, embora já tivesse pensado em casar-se e tivesse mencionado o fato a ela. Talvez agisse errado ao fazer aquilo, e fosse devido a isso que ela se tornara obcecada pela ideia de que estava vivendo em pecado. Henrique recordava com ternura muitos aspectos do relacionamento dos dois. Ainda precisava de Rosamund, mas desejava Alice com uma intensidade incontida. Alice, filha do velho Luís, rei da França! Aquele velho monge! Aquilo o divertia, realmente. Alice - concebida não em paixão, mas devido ao dever, perante a França, de ter um filho. E aquela criatura perfeita tinha sido produzida para o seu prazer. "Se eu a fizesse rainha da Inglaterra, Luís não faria objeções." Só Eleanor estava no seu caminho. É bem possível que Eleanor quisesse tornar a se casar. Ela sempre fora uma mulher muito ativa. O que estaria fazendo na Aquitânia, cercada por seus trovadores? Quantos deles ela levava para a cama? Mulheres como Eleanor nunca ficavam velhas demais.

Havia outros assuntos menos agradáveis para afastar seus pensamentos de um futuro compartilhado com uma Alice ansiosa por agradar, sem a rabugenta Eleanor e sem uma dócil e compreensiva Rosamund em seu passado.

Assim que desembarcou na Normandia, chegaram mensagens dos cardeais Theodwine e Albert dizendo que estavam esperando por ele no mosteiro de Savigny.

com um mau humor que fazia com que todos temessem aproximar-se dele com medo de que tivesse um acesso de raiva por causa da menor falha, o rei dirigiu-se ao mosteiro.

Que ele, o rei da Inglaterra, fosse intimado daquela maneira, era inconcebível. E no entanto, não era bem assim. Ele tinha de enfrentar a realidade de que o papa era mais poderoso, na cristandade, do que o rei da Inglaterra. Não fora esse o motivo da discussão entre ele e Thomas Becket?

No íntimo, Henrique amaldiçoava o papa, enquanto cumprimentava com frieza os cardeais. Ele viajara muito, disse-lhes irritado, e com grande sacrifício, para vê-los. Estivera ocupado com uma importante campanha na Irlanda. Em respeito e por honra de Sua Santidade, ele viera, mas gostaria que dissessem logo o que o papa queria com ele, pois assuntos importantes exigiam a sua atenção.

- Isso - disse-lhe o cardeal Theodwine - é da máxima importância, majestade. Refere-se não só ao seu poder temporal, mas à existência mesma de sua alma.

Henrique ficou um tanto abalado. Nunca duvidara, por um momento sequer, que podia vencer qualquer tempestade terrena, mas a ideia do desconhecido provocava medo à maioria dos homens; e levando a vida que levava, como poderia estar certo de que não se veria, um dia, frente a frente com a morte? Ela nunca estava longe do campo de batalha, e um rei poderia tornar-se vítima da lança ou da flecha do assassino a qualquer momento. Todas as noites, ao recolher-se ao leito, ele teria justificativa em temer que pudesse não ver a luz do dia.

Thomas havia sido derrubado em plena glória espiritual. Maldito fosse Thomas! Não havia como fugir dele.

- O que será exigido de mim? - murmurou ele.

- Seria necessário cumprir uma penitência.

- Penitência! Eu! Por quê? Os senhores me consideram culpado deste crime?

- Aqueles que praticaram o ato eram homens de Vossa Majestade. Agiram sob ordens suas.

- Não dei tais ordens, tampouco permitirei que digam que as dei.

- Majestade, será necessário prestar um juramento nesse sentido.

- Necessário! Quem faz essas regras? O senhor se esquece de que está falando com o rei da Inglaterra.

- Estamos agindo segundo instruções de Sua Santidade, o papa.

- Eu lhes digo que, aqui, sou o senhor.

- Viemos mandados pelo senhor espiritual de todos nós - responderam os cardeais.

- Devo lembrá-los de que estas terras são minhas e seria aconselhável lembrarem-se disso.

Henrique lutava para controlar o seu génio. Sentia o sangue subir-lhe à cabeça.

- Nós o deixaremos, majestade, para pensar no que deve ser feito. Nós nos encontraremos de novo amanhã - disse o cardeal Albert.

No aposento que eles haviam preparado para ele, Henrique cerrou os punhos e mordeu-os até ficarem vermelho e azul com as marcas dos dentes.

- Pelos braços, olhos e dentes de Deus! - bradou ele. - Thomas, você não vai me deixar em paz. Quem dera que eu nunca o tivesse visto. Por que não podia ter morrido na cama?

Henrique era demasiado inteligente e esperto para acreditar que pudesse desafiar

o papa. Se o fizesse, assim que deixasse a Normandia começariam as rebeliões. Ele teria de ficar lá para detê-las. E o que estaria acontecendo na Inglaterra enquanto ele fazia isso? Ele tinha inimigos lá. Excomunhão, uma perda de suas terras. Não, ele tinha de ser inteligente. Não havia outro meio. Tinha de ceder.

Foi com moderação que ele se encontrou com os cardeais no dia seguinte.

- Bem, o que é que os senhores desejam de mim?

- Desejamos o seguinte, majestade. Vossa Majestade terá de ter a mão sobre a Bíblia enquanto jurar que não ordenou nem desejou a morte de Thomas Becket, arcebispo de Canterbury. Henrique ficou pensativo. Claro que desejara. Quem não teria desejado a morte de um homem que causava tantas complicações? Ele perguntara a seus cavaleiros o motivo pelo qual eles não o livravam do incómodo clérigo. Mas, garantia ele a si mesmo, eu não queria o assassinato de Thomas. Ele era meu amigo querido, e quisera Deus que não tivesse sido morto com tanta brutalidade na catedral.

Tomou a Bíblia nas mãos. É verdade, Thomas, pensou. Eu gostaria que estivéssemos juntos outra vez, como quando percorríamos juntos o interior. Eu sempre quis isso. Só quando você se tornou meu arcebispo foi que surgiu esse problema entre nós.

Estavam exigindo dele algum tipo de penitência. Por quê, se ele não participara do assassinato de maneira alguma? Era mais fácil conceder o que eles queriam do que jurar sobre as sagradas escrituras.

- Majestade, o papa lhe pede que sustente duzentos cavaleiros para a defesa de Jerusalém durante um ano.

- Farei isso - disse Henrique. Era sempre fácil prometer dinheiro, pois invariavelmente surgiam muitas razões pelas quais aquelas promessas não podiam ser cumpridas.

- Vossa Majestade permitirá que haja liberdade no encaminhamento de apelos ao papa.

Agora eles estavam mexendo nas Constituições de Clarendon, sobre as quais ele e Thomas tinham discutido. Ora, se tinha de ser feito, que se fizesse. Ele teria de se livrar daquele desagradável assunto o mais rápido possível e continuar a importante tarefa de salvaguardar o seu reino.

- Vossa Majestade terá de devolver as propriedades da sé de Canterbury, para que fiquem como eram antes de o arcebispo deixar a Inglaterra.

- Sim - concordou ele.

Por fim, os bispos ingleses não deveriam ser solicitados a fazer o juramento que ele exigira deles em Clarendon; e aqueles que o tivessem feito deveriam ser liberados de qualquer obrigação de cumpri-lo.

Ele precisava acabar com aquela situação humilhante. Tinha de fazer a paz com o papa.

Poderia ter assassinado aqueles cardeais. Poderia ter enfrentado o papa. Mas não era chamado de o rei mais astuto da Europa à toa. Sabia quando era preciso fazer concessões, e aquela era uma daquelas ocasiões.

Acreditava ter resolvido a questão de uma vez por todas.

Thomas, meu adorado amigo e odiado inimigo, você, em seu santuário de Canterbury, derrotou o rei da Inglaterra em seu trono. A batalha terminou, Thomas, e posso dizer com toda a sinceridade que desejava de todo o coração que nunca tivesse sido preciso entregar-me a ela.

Henrique deixou Savigny com um espírito que se revigorava. Estava livre de Thomas.

Havia notícias de Eleanor. Ricardo estava, agora, na idade de ser oficialmente declarado duque da Aquitânia, e ela acreditava que a cerimónia de nomeação não deveria ser mais postergada.

Henrique concordava com ela. Que Ricardo fosse reconhecido como duque da Aquitânia. Quando pensava no que tinha feito com a noiva de Ricardo, aliviava-lhe a consciência um pouco concordar logo que a Aquitânia passasse às mãos dele. Eleanor, pelo menos dessa vez, ficou satisfeita com a sua decisão, e quando os dois se encontraram em Poitiers foi muito delicada para com ele.

Ricardo o olhava com desconfiança. Era quase como se soubesse que o pai o havia traído com Alice. Mas não, pai e filho sempre tiveram antipatia um pelo outro. Parecia estranho que um homem pudesse ter tais sentimentos em relação a um filho tão bemapessoado e de futuro tão promissor, pois Ricardo era excelente na equitação, no uso da espada e no cavalheirismo, muito mais do que qualquer um dos irmãos. Era poeta também, de modo que talvez fosse pelo fato de ser o preferido de sua mãe que o pai não pudesse gostar dele.

com o pensamento de Alice sempre na mente agora, Henrique gostava ainda menos dele, como devia ser o caso quanto a uma pessoa a quem ele tivesse prejudicado tanto,

pois se fosse inteiramente honesto não poderia livrar-se da ideia de que, afinal, poderia ser necessário que Alice se casasse com Ricardo. Ele iria adiar aquilo tanto quanto possível. De qualquer modo, era um assunto no qual não queria pensar.

Foi uma pomposa cerimónia em Poitiers, onde aquele feliz rapaz de quinze anos assumiu o trono do abade na Abadia de SaintHilaire, onde aceitou a lança e o estandarte dos duques da Aquitânia, a insígnia de seu novo cargo.

Como o povo vibrou! Eleanor ficou observando, enternecida pela afeição e pelo orgulho que sentia por aquele favorito de todos os seus filhos.

- O povo o adora - disse ela, exultante, a Henrique; e acrescentou, manhosa: - Eles não o consideram um estrangeiro. É como se a Aquitânia fosse a terra dele.

Isso era um lembrete de que o povo nunca aceitara Henrique plantageneta como seu duque, mas o havia tolerado simplesmente porque ele era o marido da sua duquesa.

Pouco importava. Que ela se vangloriasse. Ficaria sabendo, no devido tempo, quem era o senhor. Assim que se tivesse divorciado dela... Seria possível? Henrique já estava pensando nas desculpas que iria apresentar a Rosamund. "Tenho de me casar com Alice, ela é de sangue real. Para mim, é politicamente necessário que eu me case com a filha do rei da França."

Mas primeiro ele tinha de se livrar de Eleanor. Ficou imaginando de que forma ela reagiria à sugestão.

Naquele ínterim, houve a ocasião da coroação de Ricardo como duque. Em seguida, deveria acontecer uma cerimónia em Limoges, onde ele receberia o anel de Santa Valéria, que era considerado sagrado porque se dizia ter pertencido à santa padroeira da cidade.

Lá, com o anel no dedo, o belo rapaz de cabelos dourados recebeu no altar da catedral a espada e as esporas segundo as antigas ordens da fidalguia.

Ao vê-lo ali de pé na sua túnica de seda, a coroa dourada na cabeça e o estandarte da Aquitânia nas mãos, Eleanor sentia-se emocionada, o que não ocorria havia muitos

anos; e via, naquele jovem, as mais altas esperanças para o futuro dele e para a coroa dela.

Ao lado dela estava o marido - grosseiro, feio se comparado com o belo filho. E ela se regalava com o ódio que sentia por aquele homem que certa vez amara e que ousara, nos primeiros anos de casamento, quando ela estivera preparada para oferecer-lhe seu amor indiviso, traí-la com qualquer mulher leviana que dele se aproximasse.

Meu orgulho e a sua libidinagem acabaram com o nosso casamento, pensou ela. Eles fizeram com que nos tornássemos inimigos, e por Deus e seus santos eu juro, Henrique Plantageneta, que não descansarei enquanto não o destruir e tiver colocado meus filhos em seu lugar.

Depois da coroação de Ricardo como duque da Aquitânia, Henrique voltou à Normandia e, no caminho, fez uma visita ao rei da França.

Luís era cerca de 14 anos mais velho do que Henrique e aparentava a-idade que tinha, mas com os anos viera uma certa dignidade. Acostumara-se a usar a coroa da França que, na juventude, aceitara com grande relutância. Tivera vários filhos: Marie e Alix com Eleanor, antes do divórcio que possibilitara o casamento dela com Henrique; com a segunda esposa, Constance, Marguerite, que estava casada com o jovem Henrique, e outra menina chamada Alice que morrera criança; com a terceira mulher, Adela, ele tivera seu único filho homem, Filipe, a deliciosa Alice que agora era amante de Henrique, e Agnes.

Só um filho e todas aquelas filhas, pensou Henrique, mas as filhas eram boas moedas para negociação. Luís devia estar satisfeito, pois sua filha Marguerite era uma rainha da Inglaterra em perspectiva e nada agradaria mais ao rei do que se a filha de Luís, Alice, viesse a também ser outra.

A brecha entre Luís e Henrique, que tinha sido ampliada pela briga com Thomas Becket, fora parcialmente removida pela demonstração de penitência por parte de Henrique. Luís recebeu o rei com honras.

Os dois não falaram sobre o arcebispo, mas Henrique sabia quais eram os sentimentos de Luís em relação àquele assunto. Não tinha ele dado abrigo a Thomas em seu reino e feito tudo para provocar o rei da Inglaterra pela atenção que dava ao seu sacerdote rebelde?

Luís não fizera aquilo levado pelo ódio a Henrique. Apenas demonstrava uma indulgência natural para com qualquer pessoa ligada à Igreja, e por isso apoiara Thomas contra o rei. Luís quisera ser um monge, e pelos olhos de Deus, pensava Henrique, não teria sido nada mal se isso tivesse ocorrido, mas desse modo nunca teria sido o pai da encantadora Alice. Não, não, fora melhor Luís ter sido obrigado a abandonar a vida piedosa pela qual tanto ansiava, com a morte do irmão.

Quanto haveria ainda de inimizade de Luís para com ele, por ter-lhe tirado a mulher? Sem dúvida, pensava Henrique, carrancudo, estava contente por ver-se livre dela. Ele mesmo ficaria contente ao se ver livre dela, agora. Mas isso acontecera muitos anos atrás, e ali eles eram dois reis, inimigos naturais, de certa maneira, porque Luís devia estar sempre ressentindo-se do fato de Henrique ser o senhor de uma parte da França maior do que a dele, desde o seu casamento, e Henrique não podia se esquecer de que, apesar das terras que ele possuía na França, tinha de prestar homenagens ao rei daquele pais.

Normandia, Anjou, Maine, Aquitânia, Bretanha, eram todos estados vassalos do rei da França, e muito embora Henrique fosse o governante deles (embora seus filhos o fossem nominalmente) ainda devia jurar fidelidade a Luís.

Os dois estavam desconfiados um do outro e falaram sobre assuntos de Estado. Mas Luís acabou começando a reclamar porque, embora o filho de Henrique tivesse sido

coroado rei da Inglaterra, a filha de Luís, Marguerite, que era a esposa do jovem Henrique, nunca recebera aquela honra.

- O que significa isso, Henrique? Será porque você não considera minha filha a esposa do jovem rei?

- Não é nada disso. Sua filha será coroada no momento indicado, pode estar certo disso.

- Então, por que essa coroação não aconteceu?

- Porque o momento ainda não é propício.

- Não entendo isso.

Henrique estudou Luís - pai de sua querida Alicinha. O que diria Luís se ele lhe dissesse que amava a sua filha, a noiva de seu filho Ricardo, que ele já havia deflorado a menina e estava decidido a mante-la como amante e, se possível, casar-se com ela?

Sorriu intimamente ao pensar naquilo e lembrar-se da adorável forma infantil.

- Muito bem. vou mandar os jovens para a Inglaterra sem demora. Henrique será coroado outra vez, e dessa vez Marguerite será coroada com ele.

Luís fez um gesto de assentimento com a cabeça. O rei da Inglaterra estava com espírito condescendente.

- Eu gostaria que o arcebispo Rotrou os acompanhasse até a Inglaterra e realizasse a cerimónia.

- Meu caro irmão, um arcebispo estrangeiro para realizar uma cerimónia dessas? Nunca se fez isso antes.

- A alternativa seria Roger de York, não?

- Roger de York coroou meu filho,

- Ele era um traidor do arcebispo de Canterbury - disse Luís, com firmeza. - Eu não desejaria que minha filha fosse coroada por alguém que foi falso para com aquele grande homem bom.

Henrique ficou calado; seus dedos haviam começado a coçar. Então esse ex-monge, esse marido de Eleanor, de quem ela zombara nos primeiros dias do casamento com Henrique, esse rei rival, ia lhe dizer como governar o seu reino! Pelos olhos de Deus... pensou ele, e então: mas ele é o pai da minha Alicinha. Tenho de ser cauteloso. Quando me divorciar de Eleanor e levar abertamente Alice para o meu leito, vou precisar do apoio do pai dela.

- Eu não gostaria que Roger de York nem mesmo comparecesse à cerimónia - continuou Luís. - Nem os bispos de Londres e Salisbury. Foram todos inimigos do santo arcebispo e contribuíram muito para provocar o seu lamentável fim. A meu ver, eles iriam contaminar qualquer cerimónia a que comparecessem.

- Será como você deseja. Os jovens serão coroados, e a cerimónia será realizada pelo arcebispo Rotrou - respondeu Henrique, o pensamento voltado para a pequena Alice.

Luís ficou um tanto surpreso. Ele esperara protestos. Houvera uma mudança sutil em Henrique. É devido à morte do mártir, pensou Luís. Ele está realmente arrependido.

Henrique prosseguiu para a Normandia e o jovem casal embarcou rumo à Inglaterra para a coroação.

Henrique havia decidido que passaria o Natal que se aproximava em Chinon, em Anjou, pois estava fazendo um giro completo pelos seus domínios, a fim de assegurar-se de que suas fortalezas estavam com suas forças completas. Enviou uma mensagem a Eleanor pedindo-lhe que se juntasse a ele para o Natal em Chinon. Achava que poderia sondá-la quanto à possibilidade de um divorcio.

Ela se declarou disposta, e ele decidiu que aquilo deveria ser uma reunião da família. Queria dar a impressão de que tinha feito o possível para manter a família unida.

Henrique e Marguerite deveriam juntar-se a eles também. Nesse sentido, foi enviada uma mensagem a eles dizendo-lhes que se preparassem para partir já.

O jovem rei ficou zangado. Gostava de ficar na Inglaterra, onde era o rei, e onde a vida era especialmente agradável quando o pai não se encontrava presente. Parecia uma combinação admirável o pai ficar na Normandia enquanto ele governava a Inglaterra. Ele estava cercado por parasitas que lhe asseguravam que a Inglaterra não podia ter um rei melhor, e acreditava neles. Ele gostava de Marguerite; era uma agradável pequena rainha, e gostava de sair a cavalo com ela a seu lado e ouvir a aclamação do povo. Os jovens monarcas eram sempre muito atraentes.

Mas ir para Chinon e ficar sob a sombra do pai era a última

coisa que ele queria.

- Não vou - disse ele a Marguerite, mas é claro

que teve de mudar de ideia. Os amigos lhe disseram que seria muito inoportuno desobedecer ao pai.

"Não sou um rei - reclamou ele junto a Marguerite. - tenho apenas uma coroa, e isso é tudo. Você pode imaginar meu pai abrindo mão de um pouco de poder? Mas ele

não ficará aqui para sempre. Vai partir um dia desses com todos os seus pecados sobre os ombros, quando tiver um daqueles acessos de raiva. Homens têm caído mortos quando ficam no estado em que ele costuma ficar. Acho que não vai demorar muito, agora, Marguerite.

Marguerite estava certa de que não iria demorar.

Chegou outra mensagem do rei. Seu bom amigo rei da França, dizia ele, expressara o desejo de ver a filha, de modo que o jovem casal deveria partir sem demora e, antes de ir para Chinon, deveria ficar um pouco na corte da França.

- Eu gostaria de ver meu pai - disse Marguerite.

O jovem Henrique ficou intimamente satisfeito, podia fingir que não estava obedecendo ao pai ao partir já, mas satisfazendo a vontade da esposa de ver o pai.

E assim eles deixaram a Inglaterra tão logo os ventos ficaram propícios, e Luís recebeu-os com imensa satisfação em sua corte, na época instalada em Chartres.

Luís gostava muito dos filhos. Pediu notícias da pequena Alice.

- Pobrezinha, ela é muito criança para ser educada num país estrangeiro - disse ele.

- Nós todos passamos por isso, meu senhor - respondeu Marguerite, pois ela mesma tinha sido criada na mesma corte estrangeira, embora grande parte de seu tempo tivesse sido passada na Aquitânia, com a rainha Eleanor.

Luís fez um gesto afirmativo com a cabeça.

- É o destino dos príncipes e das princesas reais. Diga-me, você viu a menina antes de partir?

- Vi, meu pai. Ela parecia bem feliz.

- Graças a Deus. Em breve chegará o dia do casamento dela. Ela está quase pronta.

- Sim, e Ricardo é muito bonito, creio eu. Não tanto quanto o Henrique, mas é muito bem-apessoado.

- Você está muito contente com o seu jovem Henrique, minha filha?

- Estou, papai.

- E quando Alice for a duquesa da Aquitânia, não parecerá estar tão longe assim de mim. Seu marido não parece muito contente com o destino, Marguerite.

- O pai o irrita muitíssimo. Trata-o como se fosse um menino.

- É mesmo? - Luís teve um leve sorriso. Não conseguia deixar de gostar de ouvir críticas a Henrique Plantageneta. No fundo do coração, sempre guardara um ressentimento em relação a Henrique por ter-lhe roubado Eleanor. A vida tinha sido mais tranquila sem ela, mas Luís pensava com frequência na primeira vez em que a vira. Que bela jovem ela tinha sido! E que vivacidade! Era tão inteligente! Metade da corte ficara apaixonada por ela. Luís suspirou. Devia ter sabido que nunca conseguiria mante-la. Ela não lhe fora fiel. Quando o traíra pela primeira vez? Teria sido o tio o primeiro naquela inesquecível viagem à Terra Santa? E o sarraceno? Teria ela realmente pensado em casar-se com ele? Luís nunca esqueceria o choque que Eleanor lhe provocara quando exigiu o divórcio. O papa a dissuadira, então, mas quando ela vira Henrique Plantegeneta ficara tão apaixonada que se decidira a casar-se com ele.

Henrique era apenas duque da Normandia na ocasião, e como dona da Aquitânia Eleanor era mais rica do que ele. Henrique era quase 12 anos mais jovem que ela. Era estranho que ela, tão exigente, tendo tanto cuidado com a aparência, ditando a moda, cuidando do corpo com unguentos e perfumes, tivesse ficado tão loucamente apaixonada pelo muito corpulento Henrique, que usava as roupas mais por conveniência do que como ornamento e nunca usava luvas ao sair quando o tempo estava implacável, de modo que suas mãos eram vermelhas e cortadas. Claro que ele possuía um poder, uma força ausente em Luís. Ele tinha charme, também, especialmente para as mulheres. Irradiava força e poder Luís achava que era disso que elas gostavam.

Mas os dois reis eram inimigos naturais. Dificilmente poderia haver outro relacionamento entre eles. Qualquer duque da Normandia tinha, quase que com toda a certeza, de estar em desavença com o rei da França. Os francos jamais haviam perdoado os viquingues por terem atacado suas terras e tornado a situação tão desagradável para seus ancestrais que, para acabar com os avanços deles pelo Sena até Paris, tiveram de pagar com a província do norte que agora era chamada de Normandia. Isso ocorrera na época distante de Rollo, mas ainda causava amargura. Havia uma coisa que se devia agradecer: os duques da Normandia, como os condes de outras provincias, permaneceram vassalos do rei de França.

E esse descendente dos duques normandos - esse Henrique Plantageneta - havia roubado sua mulher com a mesma brutalidade com que Rollo havia tirado um pedaço da França;

Luís não era homem vingativo, mas não se importaria em ver Henrique humilhado. Além do mais, Luís estava profundamente chocado com o tratamento que ele dera a Thomas de Canterbury.

Se um homem desses fosse meu súdito, pensou Luís, eu teria me considerado uma pessoa realmente de sorte.

Agora, ouvia as reclamações do jovem Henrique e de Marguerite.

- Seu pai fez de você um rei. Por que fez isso, se não tinha intenções de lhe permitir agir como tal?

- Creio que ele fez isso para irritar Thomas Becket.

- Meu caro filho, não deve dizer uma coisa dessas.

- Mas é verdade, majestade. Ele odiava Thomas. Teria feito qualquer coisa para embaraçá-lo.

Luís sacudiu a cabeça e benzeu-se.

- Que aquele grande santo nos abençoe e interceda por nós junto a Deus.

- Eu gostava muito dele - observou Henrique, e tentava não se lembrar de que se recusara a recebê-lo quando Thomas quisera visitá-lo porque agira segundo os conselhos de Roger de York.

- Todos os homens de bem gostavam dele - disse Luís. Ficaram calados durante algum tempo, pensando em Thomas.

- Foi a maior tragédia que aconteceu à Inglaterra, e o resultado não será nada bom - prosseguiu Luís.

- Dou graças a Deus por não ter tomado parte no assassinato dele - disse Henrique, com fervor.

- Há outros, não duvido, que desejariam poder dizer a mesma coisa. Bem, meu filho, você tem os seus problemas, certo?

- Tenho, e receio que continuarei com eles. Mas não vou ficar sendo tratado como criança para sempre.

- E não deveria ser tratado assim. Seu pai deveria lhe dar controle completo sobre a Inglaterra, se quiser ficar na Normandia, ou sobre a Normandia, se quiser morar na Inglaterra.

- Também acho, mas ele não quer fazer isso.

- E você vai suportar isso?

- Não - exclamou Henrique, com firmeza. - Não vou. - Mas quando pensava no rosto do pai, os olhos semicerrados, a cor brilhando sob a pele, ele sabia, no íntimo, que seria muito difícil... e muito provavelmente impossível... ficar contra ele.

- Você tem de dizer a ele o que sente no coração - disse Luís.

- É - respondeu Henrique, pensando que era mais fácil dizer do que fazer. - Mas receio que ele não vá ouvir.

- Ele tem de ouvir. Você já não é mais uma criança. É um homem; tem uma esposa; em breve, vocês terão filhos. E seu pai o tornou um rei.

- vou pedir a ele. vou dizer a ele exatamente aquilo que sinto - disse Henrique.

- E se ele não concordar, você não deverá ficar na corte dele, pois nada poderá fazer

lá. Sem autoridade alguma, o que importa se estiver lá ou não?

- Para onde eu deveria ir?

- Para onde deveria ir, a não ser para a casa de seu sogro? Se o rei da Inglaterra continuar a tratá-lo como uma criança, e não quiser dar atenção aos seus argumentos,

venha ficar comigo aqui. Acho que isso poderia fazer com que ele se dispusesse a tomar alguma providência.

Henrique segurou a mão do sogro e beijou-a com fervor. Luís tinha razão. Se o pai não o respeitasse, a revolta era a resposta.

O rei e a rainha tinham chegado, por seus caminhos diferentes, ao castelo de Chinon, a fim de passar o Natal. com a rainha chegaram o filho Ricardo, o novo duque da Aquitânia, e seu irmão mais jovem, Geofredo, o duque da Bretanha. O jovem Henrique e Marguerite estavam a caminho para juntarem-se a eles.

Eleanor e Henrique examinaram um ao outro. Ela envelheceu, pensou o rei. Pelos olhos de Deus, está agora uma velha. Ele comparava todo mundo com a suave juventude de Alice. Mas devia admitir que ainda havia uma certa qualidade em relação a Eleanor. Ninguém era tão elegante e tinha tanto ar de realeza quanto ela, e nunca seria ou teria. Talvez ela pudesse casar-se outra vez se os dois se divorciassem. Mas a sua fase de ter filhos se acabara, de modo que não poderia dar herdeiros a um novo marido. E Ricardo era, agora, o duque da Aquitânia.

Ele envelheceu, enrijado ainda mais do que antes pelos acontecimentos e pelo tempo, pensou Eleanor. A morte de Thomas o abalou porque em algum ponto daquele empedernido coração havia uma centelha de amor por aquele homem.

Houvera época em que aquela chama fora tão forte que ela o acusara de gostar do homem de uma maneira anormal. Henrique rira daquela observação, pois se alguma vez houve um homem que quisesse mulheres, esse homem era ele; no entanto, ela notara que ele ficara um pouco pensativo. Nem todos nos conhecemos, pensou ela, nem mesmo você, Henrique Plantageneta, que se acha todo-poderoso.

Ela decidira que o Natal deveria ser passado em meio a grandes festanças. Não era frequente naquela época o rei e a rainha da Inglaterra ficarem juntos. Eleanor levara com ela o que havia de melhor em matéria de poetas e músicos, e ordenara-lhes que programassem diversões que sobrepujassem todas as outras. Henrique não estava inteiramente imune aos encantos da literatura. Houvera época em que os dois tinham estado em harmonia, e ele gostara da boa literatura e de boa música quase tanto quanto Eleanor. Mas com o fim da influência dela, ele passara a pensar menos no lado artístico da vida; tornara-se absorvido pela necessidade de conquistar e dedicar-se à sua libidinagem.

No entanto, naquele Natal Eleanor tentaria recordar os bons tempos que os dois haviam passado juntos. Nos primeiros dias do casamento, ela o idolatrara. Quisera vê-lo no topo; sentira orgulho em mandar coroá-lo duque da Aquitânia. Mas como o casamento se deteriorara! Começara quando ele levara o bastardo para a ala infantil de Eleanor e ela ficara sabendo que naqueles primeiros tempos de vida juntos ele lhe fora infiel.

Muito bem, aquilo era coisa do passado, e o amor se transformara em ódio, pois era isso o que sentia por ele agora. Odiava-o por poder gerar filhos que ela não podia conceber. Claro que Eleanor começara bem antes dele. Era quase 12 anos mais velha do que ele. Ora, não estava demasiado velha para odiar, e achava engraçado ver que aquele grande homem era, sob tantos aspectos, um tolo.

Os filhos sentiam uma leve antipatia para com ele ou o odiavam muito. Ricardo sempre tivera um forte ressentimento em relação ao pai. Ela provocara aquilo. Ele era o seu filho mais querido, e devia pensar como Eleanor. Geofredo ouvia o que o irmão dizia e começava a considerar o pai como um tirano. E agora, Henrique, o mais velho, começava a se mostrar inquieto. Meu caro marido, pensou ela, que tolo você foi ao coroar o Henrique! Devia saber que só há lugar para um rei em um reino.

Henrique e Marguerite juntaram-se a eles na véspera do Natal, e Eleanor detectou de imediato o ardoroso ressentimento no filho mais velho.

Ela o levou aos aposentos dela assim que pôde, e quando ficaram a sós perguntou-lhe como achara o rei da França.

- Muito bem, e delicado para comigo - respondeu Henrique.

- E disposto a ser mais delicado.

- Era obrigação dele. Você não é filho dele pelo casamento com a filha?

- Achei-o delicado e simpático. Eleanor riu.

- Parece, meu filho, que você está fazendo comparações Achou-o mais delicado e simpático do que seu pai, hein?

- Achei - respondeu ele, desafiador. - Meu pai me considera uma criança.

- Ah, não é isso. Ele é um homem que nunca consegue tirar as mãos daquilo que elas agarraram. Você nunca será nada mais do que um peão no jogo dele, Henrique, isso eu posso afirmar. O rei desejaria que todos nós fôssemos assim.

- Nunca aceitarei isso.

- Nem deve. Procure-o e converse com ele.

- Eu sei, mas é difícil. Ele é muito violento. Tem um poder muito grande.

- Henrique quer que você tenha medo dele. Quer que todos nós tenhamos medo dele.

- A senhora não tem, eu sei.

- Nunca tive. E gostaria que meus filhos fossem iguais a mim.

- Ele tem um poder muito grande e seus acessos de raiva são terríveis. Quando tem um deles, pode mandar que façam qualquer coisa conosco.

- É verdade. Eu acho, às vezes, que ele usa seus acessos de raiva como uma tentativa de nos acovardar.

- Exceto a senhora.

- Eu era duquesa da Aquitânia quando ele era apenas duque da Normandia. Talvez tenha sido por isso que ficou tão ansioso por se casar comigo. Eu o conheço bem. Ele nunca irá lhe dar o que você quer, Henrique.

- Então terei de continuar nessa situação até ele morrer?

- A menos que você tome o que quer.

- Como assim?

- Já houve filhos que fizeram isso antes!

- Isso significaria... guerra... guerra contra meu pai! É isso que a senhora quer dizer?

- Não acho que você devesse sair daqui e reunir um exército. Embora não haja dúvidas de que pudesse fazer isso, porque ele tem seus inimigos... muitos. Mas você devia pensar nessas coisas. Ele não vai lhe dar aquilo que lhe pertence por direito. Pois muito bem, você poderia pensar com cuidado... e sem se apressar muito... na melhor maneira de pegar o que é seu.

- Tem razão. A senhora me deu uma grande esperança. A senhora e o rei da França.

- O rei da França seria um aliado muito poderoso. Lembrese disso.

Henrique e Eleanor tinham aposentos separados em Chinon e, durante a estada lá, pouco tempo tiveram para uma conversa em particular, mas havia dois assuntos sobre os quais o rei queria falar com ela. Um deles era direito: o noivado formal do filho deles, João, com Alice, filha do conde de Maurienne, depois de cuja cerimónia a menina seria levada para a Inglaterra a fim de ser educada lá. O outro deveria ser abordado de maneira sutil. Referia-se à possibilidade de um divórcio.

Logo ficou combinado que eles não deveriam perder tempo nos preparativos do noivado de João, e deveriam ser feitos de modo a que aquilo pudesse acontecer em princípios de fevereiro.

Restava o outro assunto.

O rei o abordou contrafeito.

- Temos nos visto muito pouco, ultimamente, Eleanor - começou ele.

- Não me diga que lamenta isso, porque não vou acreditar.

- Creio que não seja um assunto que lhe tenha causado muita tristeza.

- Eu não estaria sendo sincera se negasse. Na verdade, tenho me considerado bem livre de você.

- Então acho que pensamos da mesma forma. Nosso casamento já não pode ser fértil por causa de sua idade.

- E talvez da sua?

- Ora vamos, Eleanor, você sabe que sou 12 anos mais jovem do que você.

- E sem dúvida tem filhos e filhas preparando-se para nascer por todo o reino.

- Pode haver alguns. Mas não percamos tempo com uma vituperação sem sentido. Já não precisamos um do outro. Nosso casamento chegou ao fim. Nunca mais deitaremos na mesma cama

- Uma peça de mobília a que você dá grande valor.

- É uma parte necessária do casamento. A procriação de crianças. Para que outra coisa serve o casamento?

- E quando uma das partes passou da idade de gerar filhos, deve ser descartada. É isso que você está dizendo?

- Descartada! Não usei esse termo. Devemos examinar isso de forma sensata.

- Pois então faça o favor de dizer logo o que deseja

- Pode haver alguma pessoa com quem você gostaria de se casar.

- E existe, sem dúvida, alguém com quem você gostaria de se casar. - Eleanor soltou uma gargalhada. - Conheço bem a moça. Sua bela Rosamund. É isso, não é? A juventude dela também irá passar... está passando. E então você terá de encontrar alguém ainda mais jovem, não? Rosamund. Boba e afetada Rosamund! Ela nunca ergueu a voz para você, ergueu? Você gostou disso. Toda mulher... e todo homem... têm de aplaudi-lo. Para onde quer que você vá, tem de ser tratado não como um rei, mas como um deus. E agora, iria se casar com Rosamund. É isso que você quer? Iria legitimizar os bastardos dela e talvez tentar colocá-los acima de meus filhos. Isso, meu senhor, é algo com que nunca vou concordar Por isso, tire o casamento da cabeça. Nunca aceitarei o divórcio.

Henrique ficou ligeiramente aliviado pelo fato de ela não ter ideia alguma de seu relacionamento com a jovem Alice. Sem dúvida não tinha, caso contrário, nunca teria conseguido guardar o segredo. Teria espalhado logo e, sem dúvida, causado problemas. Que problemas ela sabia criar! A noiva de Ricardo! A filha de Luís! O que foi que ele fizera! Tão logo se livrara do problema com relação ao assassinato de Thomas Becket, já havia seduzido a filha do rei da França, que ainda não completara 12 anos de idade.

Mas Eleanor tinha razão. Henrique pensava realmente que havia um conjunto de regras para ele e outro para o resto do mundo.

Ele era o rei da Inglaterra e controlava grandes áreas do continente. Faria o que quisesse e ninguém ousaria condená-lo.

Mas ele tivera de se humilhar no caso de Thomas e havia seduzido a filha do rei da França.

Precisava ter muito cuidado, pois estava claro que Eleanor nunca se divorciaria dele, e assim ele nunca poderia fazer da pequena Alice sua mulher.

 

EM MONTFERRAND, em Auvergne, o conde Humbert de Maurienne chegara com a pequena Alice que ficaria noiva do príncipe João e ali o pequeno príncipe de seis anos de idade, que chegara da Inglaterra, ficou oficialmente noivo da filha do conde.

Foi uma cerimónia encantadora. Henrique sentia grande ternura pelo filho caçula. A mente de João não tinha sido envenenada pela mãe. Será diferente ele, prometeu Henrique a si mesmo. Estava muito contente com a combinação, quando pensava no belo dote que a noiva de João levava para ele, e tudo em troca do pagamento de cinco mil libras... e a ser efetuado em prestações, e a última só venceria quando o casamento fosse efetuado.

Henrique estava ampliando seu império por todos os lados.

Houve uma nota discordante. Depois da cerimónia haveria celebrações em várias cidades porque Henrique queria que todos soubessem dos bons resultados que aquele casamento traria ao dar à sua família um controle sobre um maior número de províncias. Eles deveriam passar alguns dias em Limoges, e foi enquanto estavam lá que o conde Humbert começou a se perguntar o que João estava levando para sua filha. A jovem Alice teria o filho do rei como ma rido e aquele rei era o mais poderoso da Europa, mas João tinha três irmãos mais velhos a quem já fora prometido o melhor das posses do pai. Os temores do conde tinham sido provocados quando ele ouvira o jovem noivo ser chamado de João Sem Terra.

Como era um homem franco, decidiu falar com o rei sobre isso.

- Vossa Majestade ainda não me disse quais as possessões que seu filho João levará para o casamento.

Henrique ficou calado por alguns momentos. Estava pensando: "A cerimónia foi realizada. Ele não pode recuar agora." Mas podia. Como era frequente haver noivados e não haver casamentos!

Ele estava certo de que Humbert ouviria respeitosamente tudo o que ele dissesse, e se ele nada tivesse para oferecer a João, voltaria aos seus domínios e apresentaria alguma desculpa para que o casamento não se realizasse.

Raciocinou rápido.

- João terá os castelos de Mirebeau, Loudon e Chinon.

- Folgo em saber disso - respondeu Humbert sorrindo, satisfeito - Esses castelos serão uma boa herança, e com o que minha filha leva para o casamento, os dois ficarão realmente muito bem instalados.

Henrique congratulou-se consigo mesmo por ter resolvido uma situação difícil com grande facilidade.

Na verdade, ele havia provocado um enxame de abelhas.

A corte comentava sobre a parte que João levaria para o casamento, e havia um certo grau de malevolência nas conversas, pois os três castelos que Henrique havia destinado a João já haviam sido dados a seu filho Henrique por se acharem situados em Anjou, que, com a Normandia e a Inglaterra, era a herança do rei da Inglaterra. Portanto, o rei havia roubado Henrique para pagar a João.

Quando Eleanor soube disso, estourou numa gargalhada.

- Agora, meu filho, você compreende a maneira de agir de seu pai. Para ele, as promessas são feitas para não serem cumpridas. Em seguida, você vai ficar sabendo que ele deu a coroa da Inglaterra a alguém de quem ele gosta.

- Não vou suportar isso - bradou Henrique, quase em lágrimas.

- Nem deve.

- O que posso fazer?

- Seu irmão Ricardo saberia o que fazer. Quando ouviu a notícia, ele disse: "Por Deus, se ele tentar pôr as mãos na Aquitânia, eu me colocarei à frente de qualquer exército e marcharei contra ele."

- Combater contra meu próprio pai!

- Já se fez isso antes.

- Ah, não!

Você não tem o espírito de Ricardo - disse Eleanor, olhando-o bem de perto.

- Não tenho. Sou o rei da Inglaterra, lembre-se.

- Ninguém vai se lembrar disso se você permitir que suas propriedades lhe sejam surrupiadas.

- vou falar com ele. vou dizer que não admitirei isso.

- Então, vá.

Henrique foi à presença do rei.

- Meu pai, preciso falar com o senhor.

- Fale, meu filho.

- Os castelos que o senhor deu a João me pertencem.

- Você está enganado. Eles são meus. Ainda são meus. Serão sempre meus.

- Mas eu sou o conde de Anjou... e... e aqueles castelos são parte de minhas terras.

- Você tem títulos que eu lhe dei. Posso tirá-los, se quiser. Deve-se lembrar disso, Henrique. Só existe um rei da Inglaterra, um conde de Anjou, um duque da Normandia, enquanto eu viver.

- O senhor me deu esses títulos.

- São títulos... e nada mais. Se eu morresse amanhã, então a Inglaterra, Anjou, Normandia seriam suas. Mas não estou morto. Nem pretendo morrer para que você possa possuir agora aquilo que, se esperar o suficiente, acabará sendo seu.

- Já não sou um garoto.

- Então, por que se comportar como tal?

- Não estou me portando como um garoto. Não quero que me digam para fazer isso ou aquilo. Quero terras para governar. Se o senhor quer a Normandia, dê-me a Inglaterra. Deixe-me ser independente.

O rei deu uma gargalhada de desprezo.

- Você acha que poderia manter esses domínios unidos?

- Acho.

- Eu não acho e sei que não poderia. Você tem de aprender a governar.

- Que idade o senhor tinha quando se tornou duque da Normandia e rei da Inglaterra?

- Eu havia aprendido a governar quando essas honras me foram dadas.

- Eu vou aprender. Já aprendi.

Pelos olhos de Deus, pensou Henrique, como foi errado coroar esse menino rei! Nunca cometi um erro maior em todo o meu reinado... exceto o de fazer Thomas Becket meu arcebispo de Canterbury.

- Você vai fazer o que eu quiser.

- Há quem pense que eu não devia ser tratado dessa maneira.

- Quem pensa assim?

- O rei da França. Alguns de meus cavaleiros também acham isso.

- Com que então você discute nossos assuntos com um rei estrangeiro?

- Luís é meu pai, pelo meu casamento.

- E sem dúvida gostaria de ver problemas no meu reino. Luís é nosso inimigo... nosso inimigo natural. Podemos fazer tréguas e paz com ele através de nossos casamentos, mas permanece a realidade de que ele é o rei da França e eu sou o rei da Inglaterra e, como tais, somos inimigos. Quanto aos seus cavaleiros, eu gostaria de saber quem são esses sujeitos que falam e agem como traidores. vou lhe dizer uma coisa, meu filho: eles não serão mais seus cavaleiros.

- Eu lhe digo que não serei mais tratado dessa maneira. Se o senhor é rei, eu também sou.

- Graças a mim.

- Não importa de quem é a graça. Eu sou rei e sou reconhecido como tal.

Era verdade.

O rei ficou calado algum tempo.

- Se quiser ser rei, há lições que precisa aprender. Vai começar já. vou mante-lo ao meu lado, e quando você tiver aprendido a sua tarefa, será de grande utilidade para mim. Quem sabe que então ficará encarregado de certos domínios meus quando minha presença for necessária em algum outro lugar. Até então, vai fazer o que eu quiser. Retire-se, agora. Já acabei o que tinha a dizer.

O jovem Henrique se retirou com uma raiva surda no coração. A raiva não foi atenuada quando ele soube que alguns de seus cavaleiros tinham sido dispensados de seus serviços e mandados de volta para a Inglaterra com o aviso de que tinham sido tratados com benevolência daquela vez, mas se tornassem a desagradar ao rei aquela clemência não se repetiria.

Então o rei declarou que ia deixar Limoges e seguir para a Normandia, e que seu filho Henrique iria acompanhá-lo.

Eleanor despediu-se do filho, pois estaria viajando de volta à Aquitânia com Ricardo e Geofredo.

Esteja certo de uma coisa - sussurrou ela ao jovem Henrique. - Ele irá mantê-lo a seu lado a fim de que possa ficar de olho em você. Sofrerá mais restrições do que nunca, filho.

- Não vou suportar - declarou Henrique.

- O rei da França não lhe prometeu abrigo se você considerasse a situação com seu pai intolerável?

- Meu pai diz que ele é nosso inimigo.

- E me diga, por favor, quem é o seu verdadeiro inimigo? Não é aquele que lhe roubou parte da herança? O inimigo dele não poderia ser seu amigo? Você já não é mais uma criança, meu filho. Está na hora de acordar e pegar o que é seu.

- Ele nunca permitirá isso.

- Há muita gente contra ele. Por que não deveria você tirar o que ele não quer lhe dar? Pense nisso.

Henrique pensou e ficou agitado enquanto pensava. Mas o rei havia decidido que ele deveria acompanhá-lo à Normandia.

Marguerite voltou a visitar o pai antes de retornar à Inglaterra, e os dois Henriques deixaram Limoges em direção à Normandia.

Pai e filho cavalgavam lado a lado. vou ter de vigiá-lo, pensou o Henrique mais velho. Creio que a mãe dele tem insistido para que ele se rebele. Começo a acreditar que nunca tive um inimigo maior do que minha mulher. Mas o garoto é jovem; em pouco tempo irei controlá-lo. Ao mesmo tempo, ele se sentia triste com a situação. Como teria sido agradável ter tido um filho dedicado, um filho em quem pudesse confiar. Ele sempre tivera a esperança de que com Henrique fosse assim. Ricardo, ele sabia que nunca iria gostar dele. A mente dele fora envenenada muito cedo. Mas, talvez, se ele pudesse fazer com que aquele rapaz se deixasse convencer, os dois poderiam trabalhar juntos, lado a lado, e poderia ensiná-lo a ser um grande rei. Se a Inglaterra quisesse ser uma grande potência, precisava de um rei forte. Não havia dúvidas de que o povo compreendia o que poderia acontecer com um rei fraco. Ele vira o que o reinado de Estêvão fizera ao país. Muitos haviam vivido aqueles anos de guerra civil quando Matilda e Estêvão tinham lutado pela coroa e o fracassado Estêvão assumira. O país precisava de homens como o Conquistador, Henrique I e Henrique II. E aquele garoto seria o terceiro Henrique; precisaria estar à altura dos dois primeiros. Seria possível ensinar a ele? Seria possível fazer com que ele compreendesse que devia conter sua vaidade pessoal pelo poder, pois era disso que se tratava? Que rapaz bonito ele era, e devia admitir que suas maneiras eram muito encantadoras quando não ficava emburrado como estava naquele momento. A boa aparência era um ponto a favor de um rei; Estêvão tivera; mas se podia muito bem passar sem ela se se tivesse força e aquele génio inato que dá ao homem um certo magnetismo secreto para provocar o respeito e o medo dos outros. Quando Henrique passava em revista os reinados que o antecederam, era muito fácil separar os que haviam reinado bem e os que haviam reinado mal; os dois grandes reis eram da mesma cepa, e ele esperava estar na mesma categoria.

Tinha de fazer com que o jovem Henrique compreendesse isso.

Conversou com ele enquanto cavalgavam, num estilo amigável e paternal. Tentou passar para o rapaz que queria ensiná-lo a ser um grande rei e que era, em parte, por isso que não queria colocar uma grande pressão sobre seus poderes inadequados naquele momento. Mas até mesmo ele sabia que não podia suportar o fato de tirar as mãos das rédeas. Era verdade que, uma vez adquiridas, não conseguia abrir mão das possessões.

Controlou o seu génio no esforço de conseguir a afeição do rapaz. Tentou fazer piadas enquanto o instruía. Começou a acreditar que, finalmente, estava avançando um pouco.

O Henrique mais moço ouvia o pai e seu ressentimento aumentava a cada dia que passava. Como ele é forte!, pensava ele. Vai viver muitos anos. Estarei velho antes de poder governar, e enquanto ele viver nunca cederá nem um pouco. Eu sou um rei. Há muita gente que preferiria seguir-me. Ninguém gosta dele. Todos têm medo dele. É este o único motivo pelo qual não se revoltam. Mas se tivessem um líder, de quem gostassem, a quem respeitassem, admirassem... o que aconteceria? Quando cavalgava ao lado do pai, a revolta parecia impossível. Mas quando ficava sozinho, vivia pensando nas palavras da mãe. Ela era poderosa. Se quisesse, a Aquitânia se levantaria com ela contra o marido.

O rapaz começou a ficar agitado. Se pudesse escapar, poderia procurar o rei da França e, lá, convocar homens para sua bandeira. A mãe o ajudaria porque odiava o marido. Por que iria servir ao pai anos e anos, até que ficasse um velho sem ambição?

O pai parecia sentir aquela rebelião nele. Mantinha-o a seu lado e à noite insistia para que ocupassem o mesmo quarto.

- Isso mostrará a todos como ficamos bons amigos - alegava ele, folgazão.

O jovem Henrique não dizia coisa alguma. Receava trair seus pensamentos.

Ele havia sondado um ou dois de seus amigos. Estariam prontos a segui-lo? Eles se mostravam cautelosos. Tinham um medo terrível dos acessos de raiva do rei. Ele já dispensara certos cavaleiros da equipe do filho com avisos funestos sobre o que lhes aconteceria se os descobrisse falando de traição. No entanto, o jovem rei tinha um grande charme, e sua mãe odiava tanto o pai que já fora ouvida jurando que nunca mais voltaria a viver com ele. Dizia-se que quando partira para a Aquitânia ela declarara que nunca mais voltaria. Havia algo de verdade naquilo porque o arcebispo de Rouen a avisara de que se ela abandonasse o marido a Igreja iria condená-la, e isso poderia levar à excomunhão.

Eleanor pouco ligava para a Igreja, tanto quanto o marido ligava, e havia ignorado a reprovação do arcebispo. Mas aquilo mostrava o quanto ela não gostava de seu pai e que estaria pronta a ajudar o filho contra ele.

Além do mais, o rei ainda estava sob a sombra da suspeita que surgira do assassinato do arcebispo de Canterbury. Houvera rumores de que Deus não permitiria que ele progredisse.

Naquelas circunstâncias, havia quem estivesse pronto a apoiar o jovem rei contra o velho e ele, descobrindo quem eram aquelas pessoas, fez seus planos de fuga.

Os dois haviam chegado ao castelo de Chinon. Devido à exaustiva cavalgada, o Henrique mais velho sentia-se muito cansado. Disse que iriam recolher-se cedo e dormir a noite toda antes de partirem ao amanhecer.

Tão logo o pai caiu num sono profundo, o jovem Henrique levantou-se da cama, vestiu-se depressa e dirigiu-se aos estábulos. Lá se achavam cavalos selados e à espera, e ele e alguns de seus cavaleiros de confiança seguiram a grande velocidade para a fronteira francesa.

Quando o rei acordou e descobriu que o filho partira, a raiva foi intensa. Berrava com os criados, esbofeteando-os à direita e à esquerda. Por que ele não fora avisado? Quem ajudara o filho a fugir?

Quem o acompanhara? Pelos olhos de Deus, eles iriam preferir não terem nascido.

Mas logo percebeu que estava perdendo tempo ao dar vazão à sua fúria. O filho devia ter ido para a fronteira francesa. Ele dera a entender que faria isso. Iria procurar abrigo com Luís, e isso era a última coisa que Henrique queria que fizesse.

Henrique berrou instruções. Partiriam imediatamente, e mudariam de direção. Seguiriam para a fronteira francesa. Mandou homens a cavalo em várias direções e, montando o mais rápido de seus cavalos, partiu na perseguição.

O jovem Henrique, porém, tivera uma boa dianteira, e embora o pai fizesse todos os esforços para alcançá-lo, não conseguiu. Dois dias depois Henrique chegou à corte da França.

Luís gostou muito de vê-lo. No banquete oferecido a Henrique naquela noite, o jovem sentou-se à direita do rei da França. Luís manifestou seu apoio ao jovem Henrique em sua reivindicação da Normandia, pois achava justo aquele apoio. O jovem havia feito o juramento de fidelidade a Luís, seu suserano, e portanto o rei o considerava um vassalo seu. Se quisesse conquistar um território que por direito lhe pertencia, sua causa era justa e o rei julgava seu dever ajudá-lo.

O jovem Henrique ficou encantado. Dera o primeiro passo, e tinha sido relativamente fácil.

Quando o rei da Inglaterra soube que o filho estava na corte da França e sendo recebido com honras pelo rei da França, sua raiva explodiu.

Enviou uma mensagem a Luís, na qual dizia que o rei da Inglaterra exigia que o filho lhe fosse mandado de volta.

A resposta de Luís foi a seguinte: "Não entendo essa mensagem. O rei da Inglaterra está comigo. Se o rei da Inglaterra a quem você se refere é o pai do rei, não o considero rei da Inglaterra. Sei que ele era o rei da Inglaterra, mas passou a coroa para o filho, e não é mais rei."

Quando Henrique recebeu aquela mensagem, mordeu os lábios e bateu nas coxas com os punhos cerrados, até sangrar e ficar dolorido.

Sentia raiva de si próprio, do filho e do rei da França.

Agora já não tinha dúvida de que o seu ato mais tresloucado fora permitir que o filho fosse coroado rei.

A notícia chegou a Eleanor da Aquitânia quando ela reunia uma de suas Cortes do Amor, nas quais seus trovadores entoavam canções românticas e levavam seus trabalhos literários para que ela julgasse.

Os mensageiros chegaram da corte da França, e Eleanor mandou que se parasse de cantar para que ela pudesse ouvir a notícia logo.

- Alegrem-se - bradou ela. - Afinal, ele é realmente meu filho. Decidiu que já não vai mais suportar os grilhões da tirania. Ah, como eu queria ter visto meu marido quando recebeu essa notícia! Duvido que tenha tido um acesso de raiva mais violento do que esse. Acabaram-se as canções. Quero ficar a sós com os meus filhos.

Quando os trovadores se retiraram um tanto cabisbaixos, ela se voltou para Ricardo e disse:

- Sabe o que isso significa?

- Significa que vamos entrar em guerra contra meu pai.

- Henrique não deve fazer tolices. Tenho certeza de que não fará. Luís irá orientá-lo. Sei que muitos irão aderir à bandeira dele. E vocês, meus filhos... sim, você também, Geofredo, devem unir-se a ele sem demora, para que o irmão de vocês possa saber que os tem para apoiá-lo.

- Devemos partir imediatamente - disse Ricardo, os olhos brilhando com a ideia de combate e, em particular, de um conflito contra o pai que ele tanto odiava.

Geofredo também estava ansioso. Naquela época, ele sempre queria seguir Ricardo.

Eleanor sorriu ao encará-los.

- O momento é este. Dentro de pouco tempo seu irmão será rei de verdade.

- Nosso pai é um soldado muito bom, mamãe - manifestouse Geofredo.

- Era. Não se esqueça de que ele matou o arcebispo de Canterbury. Isso é uma coisa que nunca será esquecida. Há uma maldição contra ele pelo que fez àquele santo. Todo mundo sabe disso. Vocês verão que ele não pode progredir, agora. É por isso que esta é a hora certa para atacá-lo. Vejam bem, o rei da França, que tenho boas razões para saber que é o mais conciliador dos homens, está pronto a ajudar seu irmão contra ele.

Luís tinha muita consideração por Thomas Becket. Ele abomina o seu assassino. Luís irá considerar-se o instrumento de Deus que deverá derrubar o homem que ofendeu toda a cristandade e o céu também.

- Nossa mãe tem razão - bradou Ricardo. - Estarei pronto para partir para a corte da França amanhã.

- Então, eu o acompanharei - replicou Geofredo. Eleanor abraçou os dois, e eles se prepararam para partir.

Eleanor observava-os da mais alta torrinha do castelo.

Como pareciam audazes montados em seus cavalos, as bandeiras tremulando com a brisa! Ela ficou olhando, até que já não podia vê-los.

Em seus aposentos, escreveu versos sobre a tristeza da separação dos entes queridos. Que saudade tinha de Ricardo! Ficava imaginando se ele não sentia falta de sua vida com ela. Ele sempre fora um guerreiro em formação. Será que se esqueceu das horas agradáveis que tinham passado juntos? Será que estava contente por deixála, agora, e marchar contra o pai?

Eleanor não conseguia parar para escrever. Queria ação. Devia estar cavalgando junto aos filhos. Imaginou-se montada em seu cavalo, seu porta-estandarte cavalgando à sua frente, travando combate contra o homem que odiava.

Ela ria ao pensar no que o marido diria e sentiria quando soubesse que os filhos Ricardo e Geofredo haviam-se unido ao irmão Henrique contra ele. E aquilo não seria tudo. A Aquitânia estava pronta a rebelar-se contra ele. A Bretanha, sem dúvida alguma, se encontrava na mesma situação. E Anjou? A Normandia, pelo que ela supunha, seria leal a ele.

Era muito emocionante. Eleanor não podia ficar no castelo. Mandou um mensageiro à procura do tio, Raul de Faye, pedindo-lhe que fosse visitá-la, pois precisava de seus conselhos.

Gostava muito daquele tio, embora não da mesma maneira de que gostara daquele outro, Raymond, príncipe de Antioquia, que fora seu amante; mas confiara muito em Raul de Faye, que a agradava por não gostar de Henrique Plantageneta e que fizera muito para provocar o antagonismo do jovem Henrique em relação ao pai.

Raul chegou logo, em atenção ao seu chamado. Ficou satisfeito quando ela lhe contou os acontecimentos.

- Isso será o fim desse seu marido arrogante - declarou ele.

- Praticamente não há um homem vivo que não o considere culpado do assassinato de Becket. Isso será lembrado contra ele, e até mesmo aqueles que têm sido seus mais leais seguidores até agora vão começar a mudar de atitude.

Como era agradável andar pelos jardins com Raul, homem encantador e bonito! Quando estava com ele, se esquecia - pois ele lhe dirigia os mais encantadores elogios - que já não era mais jovem e que sua notória beleza estava muito esmaecida por se sentir jovem na companhia de um homem daqueles, e por poder vangloriarse do ódio que sentia pelo marido, sentia-se feliz por alguns momentos.

Aquilo daria a ele pouco tempo para brincar com a sua Rosamund, - disse ela a Raul.

- Não duvido de que ele encontre mulheres aqui e ali para distraí-lo da maneira à qual está acostumado.

- Isso ele vai fazer, mas não ficará em paz por muito tempo.

- Eu soube que o povo da Inglaterra está resmungando contra os pesados impostos que ele cobra.

- O povo sempre reclamou. Mas se lembrava do reinado de Estêvão, quando assaltantes percorriam o interior e lhes tiravam o que possuíam. O povo prefere ser roubado pelo rei com seus impostos do que ver o seu dinheiro arrancado por assaltantes itinerantes.

- O povo vai esquecer os assaltantes e só vai se lembrar do rei ladrão.

- Ele tem amigos fiéis na Inglaterra.

- Não ligue para a Inglaterra. Nós o expulsaremos da Aquitânia, de Anjou e da Normandia.

- Meu querido tio, o senhor dará sua ajuda?

- Pode estar certa de que farei o que me for possível para provocar uma rebelião contra ele, vinda de todos os lados. Luís estará conosco. Não podemos deixar de ganhar.

- Então meu filho Henrique terá a Inglaterra, Normandia e Anjou, Ricardo a Aquitânia, e Geofredo a Bretanha, de verdade.

- Chegou a hora de Henrique Plantageneta - disse Raul de Faye.

Depois que ele partiu, Eleanor não conseguiu ficar quieta. Lembrava-se da época em que ela e Luís haviam partido em sua cruzada até a Cidade Santa. Que emoções, então - desconfortes, também, mas estes só serviam para destacar os pontos altos. Dias maravilhosos de juventude e vitalidade!

Mas não estava tão velha, assim. Pelo menos, não se sentia velha. Não podia pretender entrar em combate, mas poderia unir-se aos filhos; poderia aconselhá-los. Ninguém podia dizer que não era uma mulher com experiência.

Por que não fazê-lo?

Quanto mais pensava nisso, mais gostava da ideia. Iria para a corte da França. Era irónico estar indo de Henrique para Luís, quando certa Vez acontecera o contrário. Mas Luís estava se revelando mais astuto do que ela jamais acreditara ser possível. Tinha sido pai de vários filhos, de modo que não era tão monge assim, e desde o nascimento do filho estivera muito pronto a entrar em guerra pelo bem de seu reino.

Seria divertido tornar a ver Luís.

Quando se decidia a fazer alguma coisa, ela se tornava obcecada pela necessidade de realizá-la. Agora, decidira juntar-se aos filhos.

Não seria prudente deixar que soubessem que ela deixara Aquitânia. Poderia haver uma revolta no ducado, e por isso ela iria escapulir em segredo. Mas mesmo então, poderia ser vista.

Então ocorreu-lhe uma ideia. Iria disfarçar-se de homem e sair da Aquitânia com uma comitiva de cavaleiros. Estaria vestida como um deles.

Quando Henrique soube que Ricardo e Geofredo haviam se unido a Henrique, deu de ombros. Garotos bobos, todos eles. O que pretendiam fazer? O jovem Henrique era um impertinente, pensando que porque tinha sido coroado rei podia substituir o pai. Se o rapaz tivesse ficado com ele, teria aprendido alguma coisa sobre o que significava ser rei, e então talvez não ficasse tão disposto a assumir a responsabilidade. Quanto a Ricardo e Geofredo, tinham sido estimulados pela loba de sua mãe. Eram todos crianças, na verdade. Ele iria mandar chamá-los e lhes daria algumas lições sobre o que esperava deles.

Dentro de pouco tempo, Henrique iria perceber que a questão era mais séria do que ele acreditara. A rebelião dos filhos fora considerada como um chamado às armas a todos os descontentes por todos os seus domínios. A sombra de Becket pairava, carregada, sobre ele. Homens supersticiosos acreditavam que o mártir, capaz de realizar milagres, com toda a certeza iria ajudar aqueles que pegassem em armas contra o seu assassino.

Henrique estava plenamente ciente disso, e quando soube que o conde Filipe de Flanders havia capturado Aumâle e, depois de um cerco, o castelo de Driencourt, já não podia mais continuar complacente.

Luís havia avançado com o jovem Henrique, e eles estavam sitiando Verneuil. Podia-se confiar em que aqueles leais e fiéis seguidores, Hugh de Lacy e Hugh de Beauchamp, resistissem bem, mas quando depois de um mês de sítio os alimentos escassearam na cidade, os habitantes ameaçaram render-se

O rei decidiu, então, que precisava entrar em ação.

Chefiou seu numeroso exército até Verneuil.

A reputação do rei da Inglaterra como o maior general vivo ainda existia, e muitos dos homens do exército contrário, em especial aqueles que o haviam desertado em favor do filho, tremeram diante da ideia de sua aproximação. Se Deus e Becket não estavam ao lado dele, não havia dúvida de que o diabo estava.

Luís percebeu que numa luta cara a cara com Henrique, ele não poderia vencer. Do alto de um morro, viu a aproximação do exército de Henrique e ficou muitíssimo perturbado. Todo o seu desagrado com relação a combates voltou, e ele enviou mensageiros pedindo uma trégua até o dia seguinte.

. Normalmente, Henrique não aceitaria uma coisa dessas, mas seu filho estava com o exército do rei da França e ele desejava ensinarlhe uma lição, em vez de fazer com que qualquer mal lhe acontecesse. Afinal, ele compreendia o desejo de poder do jovem. Não tinha ele desejos semelhantes quando tinha a idade do filho?

Por isso, concordou com uma trégua. Naquela noite, soldados de Luís - fora de controle como tinham estado na notória ocasião em Vitry-a-Queimada - saquearam a cidade; e quando amanheceu, já estavam em fuga.

Quando Henrique viu a cidade incendiada, ficou muito furioso. Partiu imediatamente em perseguição ao exército de Luís, mas embora causasse um grande extermínio na retaguarda, não conseguiu alcançar Luís e o jovem Henrique.

Agora se tornava claro que a revolta deflagrava por todos os seus domínios. Era necessário que ele enviasse, sem demora, uma força à Bretanha, onde felizmente foi rápido o suficiente para abafar a insurreição.

Para ele, foi um grande golpe saber que Robert, o conde de Leicester, filho do homem que fora um de seus mais leais seguidores, e seu camarista, Guilherme de Tancarville, haviam deixado a Inglaterra e ido para a França e se unido ao jovem Henrique.

Aquilo era grave, e quando Luís, que ficara muitíssimo perturbado com o caso de Verneuil, sugeriu que os dois se encontrassem para discutir a paz, Henrique estava pronto.

Ficou muito magoado quando soube que os três filhos tinham acompanhado Luís a Gisors, o local onde a conferência iria acontecer, e que eles tinham ido apoiar o rei da França contra o próprio pai. Henrique queria ficar em termos amigáveis com os filhos e recomeçar a construir um agradável relacionamento com eles. Sua oferta foi generosa, considerando-se o fato de que eles haviam pegado em armas contra ele. Era verdade, reconheceu ele, que havia uma certa justiça nas exigências deles, mas mesmo assim era deprimente sentar-se com os próprios filhos de um lado da mesa de conferência e ele do outro. O jovem Henrique se tornara desafiador - talvez sempre o tivesse sido -, mas agora, com o apoio do rei da França, não receava demonstrar o que sentia. Ricardo lhe lançava olhares de ódio; e os dois filhos mais velhos estavam treinando o irmão Geofredo para seguir-lhes o exemplo. A vida se tornara realmente amarga quando aqueles que deveriam tê-lo amado e trabalhado ao seu lado se tornaram contra ele.

Prometeu certas concessões. Henrique poderia escolher se queria viver na Normandia ou na Inglaterra; Ricardo receberia uma receita maior da Aquitânia, e Geofredo, da Bretanha.

Como era torturante eles se retirarem com o rei da França para discutir com ele as propostas do próprio pai!

Eles saíram de Gisors sem tornar a vê-lo. Suas condições eram inaceitáveis, disseram eles. Nada parecia satisfazê-los, a não ser que ele, o rei, no auge de seus poderes, passasse tudo para as mãos dos filhos.

Frustrado e zangado, ele teve um grande acesso de raiva e declarou que se os rapazinhos quisessem guerra, iriam tê-la.

Eleanor, disfarçada em cavaleiro, cavalgava em direção à fronteira francesa. Ela recebera poucas notícias sobre os combates, mas suas esperanças eram muitas no sentido de que os três filhos, com a ajuda de Luís, sairiam vitoriosos contra o marido. Não queria enganar a si mesma; Henrique era um grande general; não se enganara sob esse aspecto quando o analisara havia tantos anos. Ele era um desses homens que nascem para comandar e conquistar. Mas nenhum homem iria conquistá-la. Se ele houvesse sido seu bom e fiel marido, os dois teriam trabalhado lado a lado e ela teria criado os filhos para que o amassem e o respeitassem. Mas a devassidão iria ser o fracasso dele.

O que aconteceria, agora? Luís, com o jovem Henrique, Ricardo e Geofredo a seu lado, iria conquistar Anjou e a Normandia; estava certa de que haveria traidores na Inglaterra que se levantariam contra o marido. Mas não seriam traidores, porque iriam apoiar o novo rei, o jovem rei, seu filho Henrique.

Como Eleanor riria de Henrique, o velho leão. "Você não coroou seu filho, Henrique?", provocaria ela. "Não foi por ordem sua que a cerimónia aconteceu?"

Hipócrita, manhoso, ele era, mas cometera dois grandes erros, um quando se envolvera com o assassínio de Becket, e o outro quando coroara o filho enquanto ele próprio ainda queria ficar com a coroa e tudo que isso implicava nas mãos.

- Devemos estar nos aproximando de Chartres - disse ela ao cavaleiro que cavalgava a seu lado.

- Daqui a pouco nós a veremos.

Ela proibira que eles a tratassem de "majestade". Só quando chegasse à corte de Luís sua identidade deveria ser revelada.

Imaginou a surpresa dele ao vê-la. Pobre Luís, que já a amara com tanta devoção antes. Ele nunca quisera o divórcio, muito embora soubesse da infidelidade dela. Ele seria seu subalterno servil, como Henrique jamais seria.

Um bando de homens a cavalo surgiu no horizonte, ao longe, e Eleanor os reconheceu como homens a serviço do marido.

- Vamos fazer uma saudação e seguir em frente, e se eles perguntarem para onde vamos, diremos que somos viajantes a caminho de Poitiers - disse ela. - Sejamos delicados com eles e fujamos deles tão logo seja possível. Mas é provável que uma simples saudação seja o bastante.

Como estava enganada! Não recebera notícias, e por isso não sabia que havia uma guerra entre seu filho Ricardo, duque da Aquitânia, e o pai, e seria logo presumido que os cavaleiros estavam seguindo para juntarem-se a Ricardo. Portanto, seriam inimigos do rei da Inglaterra.

O grupo era três vezes maior em número, do que o de Eleanor, e muito cedo ficou claro o que iria acontecer.

- Alto! - bradou o líder do grupo. - Vocês são poitevinos, não?

- Somos - respondeu um dos cavaleiros de Eleanor -, e estamos seguindo para Poitiers.

- Não chegarão até lá. Vocês são nossos prisioneiros. O duque da Aquitânia está em guerra contra o nosso rei.

Eleanor ficou horrorizada. Aquilo só podia significar uma coisa. Era prisioneira de Henrique. E por quanto tempo poderia manter sua identidade em segredo?

Henrique estava ficando muito perturbado. Aquilo não era uma revolta sem importância. Problemas surgiam em todas as direções. Ele achava que sabia o motivo. Deus estava zangado com ele. Aquilo era a vingança de Thomas. Claro que era culpado do assassinato dele. Claro que desejara que ele morresse. Tinha mais ou menos ordenado àqueles cavaleiros que o matassem. Pelo menos, reprovaraos por não o matarem. O que podia ser mais claro do que isso? E desde então, o azar tinha sido a sua sina. Os próprios filhos estavam se voltando contra ele, e por todo o reino havia insatisfação. Todos o ligavam ao assassinato de Becket e, para piorar as coisas, estavam acontecendo milagres em Canterbury e as histórias deles sendo alardeadas por todos os seus domínios.

Aquele traidor do Leicester se encontrava em Flanders, sem dúvida fazendo planos para invadir a Inglaterra com ajuda externa e tirá-la dele para que fosse dada a seu filho. E agora, outro golpe: Guilherme, rei da Escócia, tinha escolhido aquele momento - como seria de se esperar - para cruzar a fronteira. Graças a Deus, Henrique contava com alguns amigos leais. Podia confiar em Ricardo de Luci para manter os escoceses em xeque. Não passavam de um bando de selvagens, e embora pudessem arrasar o interior da maneira mais bárbara, não teriam chance contra um exército bem disciplinado. Mas ele precisava de Luci em outro lugar.

Aquilo representava um pesadelo para um governante, quando seus domínios eram tão espalhados e surgiam problemas em vários pontos ao mesmo tempo.

Um de seus homens chegou para dizer-lhe que um cavaleiro queria falar-lhe com urgência.

Mandou que o cavaleiro fosse levado até ele. Novos problemas?, pensou ele. Onde ocorreria a próxima rebelião?

Mas as notícias daquele homem eram diferentes.

- Majestade, estávamos cavalgando nas proximidades de Chartres quando encontramos um grupo de cavaleiros poitevinos. Achávamos que estavam seguindo para unirem-se ao inimigo, de modo que os capturamos.

O rei fez um aceno com a cabeça. Ação correta, mas que não merecia ser comunicada a ele.

Havia uma pessoa entre eles, majestade, que despertou nossas suspeitas. Chegamos à conclusão de que se tratava de uma mulher.

Uma mulher. O rei sorriu, mas as palavras seguintes do cavaleiro o fizeram olhá-lo com espanto.

- Ficou provado que era a rainha, majestade.

- A rainha! Minha mulher! - bradou Henrique.

- Isso mesmo, majestade. Ela admitiu isso, e na verdade não havia dúvidas.

Henrique começou a rir. Parou de repente.

- Onde está ela?

- Nós a trouxemos até Vossa Majestade, por não sabermos quais eram os desejos de Vossa Majestade.

Henrique dirigiu-se ao cavaleiro e deu-lhe uns tapinhas nas costas.

- Fez bem. Pelos olhos de Deus, prometo-lhe que não vou me esquecer de você por ter feito isso. Então ela está aqui. Tragam-na à minha presença. Quero falar com a minha prisioneira.

Era mesmo Eleanor. Ela ficou ali, à sua frente, a raiva no olhar, desafio, ódio, tudo aquilo de que ele se lembrava muito bem.

- Deixem-nos - ordenou ele. Depois, encarou-a e soltou uma gargalhada.

- Então você entrou para o exército, hein?

- É dever de todos os homens e todas as mulheres lutar contra a tirania.

- Bravas palavras de uma prisioneira. Capturada, hein? Para onde estava indo?

- Unir-me a meus filhos.

- E ia entrar em combate, com eles, contra o pai deles?

- Nada me causaria maior prazer.

- Está um pouco velha para essas atividades. Não estamos na época em que você saía cavalgando para a Terra Santa e se divertia bastante, no caminho, com seu tio e os infiéis. Viu o que aconteceu? Foi capturada antes de atingir o seu objetivo. Aposto que estava indo para a corte da França. Esperava que, agora que está velha, seu primeiro marido pudesse ser mais do seu agrado do que era na sua fase mais ardente?

- Não me surpreende o fato de os pensamentos de Henrique, o Devasso, seguirem sempre numa única direção. Meu projeto era conseguir para os meus filhos aquilo a que eles têm direito.

- Está dizendo bobagens. Eu sou o rei. Tudo que possuo é por direito e conquista. Você é uma boba, e vai aprender isso porque é minha prisioneira e juro que nunca mais será livre enquanto eu viver, para criar discórdia entre meus filhos e eu.

- O que quer dizer? Vai me jogar numa masmorra?

- O que pretendo fazer, você vai saber dentro em pouco.

- Acha que seus filhos vão permitir que insulte a mãe deles?

- Meus filhos irão aprender, assim como a mãe deles, quem é o rei e o governante de todos eles.

Eleanor se dirigiu a ele, o braço erguido. Ele a agarrou com sua mão forte, e ela gritou de dor. Os rostos estavam próximos um do outro, o dela deformado pelo ódio, o dele triunfante. Minha sorte mudou; isso é a maior das sortes grandes. Ela já não pode me causar problemas. E quando o mundo souber que ela é minha prisioneira, todos irão perceber que Henrique Plantageneta continua poderoso, e nem mesmo a ira dos céus o intimida, pensou ele.

- Levem essa mulher! - gritou para os guardas que estavam à sua porta. - Mantenham-na em prisão rigorosa. Vigiem-na. Ai de vocês se ela fugir!

Eleanor olhou por cima do ombro para ele enquanto era arrastada para fora, mas o veneno que havia em sua fisionomia só o fez dar uma gargalhada.

Os meses seguintes foram de inquietação. Ricardo de Luci, com Humphrey de Bohun, agora condestável da Inglaterra, havia resistido à invasão escocesa e conseguira estabelecer uma trégua com Guilherme da Escócia. Henrique mantivera em xeque as rebeliões que haviam estourado na Normandia e em Anjou com uma frequência alarmante.

Vivia com medo de que Eleanor fugisse. Estava decidido a levála para a Inglaterra e providenciar para que fosse encarcerada numa prisão de lá, da qual não pudesse fugir.

Não conseguia afastar o sentimento de que algum poder estava contra ele, e ocorreu-lhe que, enquanto não confessasse a sua culpa no assassinato de Thomas e pedisse perdão, teria azar.

Houve um lampejo de esplendor quando o conde de Leicester, que desembarcara na Inglaterra, foi completamente derrotado por adeptos de Henrique. O rei ficou exultante. Aquilo ensinaria ao jovem Henrique que não podia derrotar o pai com a facilidade que esperava. E o que estariam pensando seus filhos, agora que mantinha a mãe deles prisioneira?

Enquanto se congratulava porque iria esmagar todos aqueles que se levantassem contra ele, mensageiros urgentes chegaram da Inglaterra.

A princípio, o rei ouviu os avisos deles, mas decidiu que sua presença era necessária na Normandia, porém à medida que eles se tornaram mais insistentes, percebeu que seria loucura ficar na Normandia para proteger suas possessões enquanto perdia a Inglaterra.

Decidiu que faria a travessia para a Inglaterra sem demora, levando junto a rainha prisioneira, pois imaginava a confusão que ela poderia criar se fosse deixada para trás. Poderia convencer alguém a libertá-la, e se ficasse livre, ele poderia esperar problemas provocados por ela. O lugar mais seguro para Eleanor era na praça forte de algum castelo, e seu guardião deveria ser alguém em quem ele confiasse.

Ele também levaria Marguerite, a esposa do jovem Henrique, que por sorte estava sob sua custódia, pois o relacionamento dela com o filho iria torná-la sua inimiga.

Outro assunto não lhe saia da cabeça. Tinha de deter aquela série de desastres. Não iria mais fingir que não era culpado pelo assassinato de Becket, porque parecia muito provável que os acontecimentos do último ano se deviam ao que acontecera na catedral de Canterbury. Parecia-lhe que enquanto não conseguisse uma absolvição não poderia esperar por um destino mais feliz.

O seu reino, tal como a sua alma, estava em perigo.

Precisava salvar a ambos.

Ele estava pensativo enquanto cavalgava para a costa. Imaginava que o que estava prestes a fazer mereceria sorrisos do céu e, uma vez feito - por desagradável que fosse , deixaria de ser perseguido pelo azar.

Soprava um vento tempestuoso, e ele via o medo na fisionomia dos companheiros, mas estava decidido a não se demorar mais. Iria fazer o que devia ter sido feito um

ano antes, e só quando estivesse realizado, estaria a salvo de seus inimigos

- Majestade, não podemos partir com este vento - alertaram seus conselheiros.

- Vamos partir sem demora - retrucou ele.

Eles ficaram aflitos, mas não ousavam desobedecer, e quando estavam prontos para partir o vento pareceu mudar. Estava por trás deles e empurrou-os na travessia do canal. O rei ficou satisfeito.

- Viram? Vocês podem confiar sempre na minha opinião -. declarou Henrique.

Exultante, ele foi falar com a rainha.

- Então está aqui! Longe de seus trovadores! Não vai achar seus carcereiros tão dispostos a cantar para você.

- Não pense que meus filhos vão permitir que eu continue sua prisioneira.

- Eles têm de tomar cuidado para que não fiquem nas mesmas condições. Pelos olhos de Deus, vou ensinar a todos o que significa rebelar-se contra mim.

- Tome cuidado para que não lhe ensinem o que acontece com os tiranos.

- A senhora é ousada demais, madame, para uma mulher que está nas mãos do inimigo.

- Não por muito tempo.

- Enquanto eu viver, majestade.

- Foi um dia azarado para mim quando o vi pela primeira vez.

- Alegre-se, madame, ao saber que aquele dia é ainda mais lamentado por mim.

Como ele é forte, pensou ela, com uma admiração relutante. Um rei da cabeça aos pés. E a mente dela recuou para a época em que decidira casar-se com ele e o quanto

ansiara pelo momento em que os dois pudessem ficar juntos.

- Posso assegurar-lhe de que seu arrependimento não pode ser maior do que o meu. Mas o senhor é um homem enganador, pois me levou a acreditar que certa vez fui importante para o senhor.

- Isso foi antes de eu conhecê-la.

- É, e eu também tive lições amargas. Se o senhor não tivesse sido tamanho devasso, poderíamos ter trabalhado juntos.

- A senhora, madame, mal tem condições de criticar os outros por esse defeito. Antes do nosso casamento, levou estranhos para sua cama.

- Nunca um tirano como o meu segundo marido.

- Estamos perdendo tempo, e não disponho de muito. Mandei chamá-la para dizer-lhe que será levada para o castelo de Salisbury e lá ficará até que eu resolva transferi-la para outro lugar. Mas não pense que ficará em liberdade. A senhora me ofendeu demais. Provou que é uma traidora, e embora seja minha esposa será tratada como tal. - Ocorreu-lhe que poderia negociar com ela em troca de um divórcio. Seria prudente? Libertá-la para que ela se comunicasse com os filhos dele? Não. Aquela não era a hora de falar em divórcio quando estava procurando agradar aos céus penitenciando-se por sua participação no assassinato de Becket.

Por enquanto, deveria ficar calado sobre o assunto. Além do mais, o que aconteceria se ele conseguisse o divórcio? Poderia casarse com Alice? E Rosamund? Evidente que era melhor, naquele momento, não comentar sobre o divórcio - não pensar em divórcio. Sua cabeça precisava estar livre para pensar no assassinato de Becket e no fato de que ele lamentava o acontecido e se arrependia por qualquer participação que pudesse ter tido para provocá-lo.

Observou a mulher com os olhos semicerrados. Traidora! Qualquer rei tinha justificativa para aprisionar um traidor que ameaçasse o seu reino... mesmo apesar de a pessoa traidora ser a própria esposa.

- Eu me despeço. A audiência acabou.

- Não quero ser dispensada dessa maneira. Tenho muita coisa a lhe dizer.

- A senhora será dispensada quando eu a dispensar, e não tenho interesse algum no que possa querer me dizer. Fale para as paredes de sua prisão. - Henrique chamou os guardas. - Levem a rainha. Que ela vá para Salisbury e seja colocada na prisão.

Eleanor protestou com veemência. Mas não adiantou. Seus braços foram agarrados pelos guardas e ela foi retirada da presença do

rei.

 

O REI PROSSEGUIU para Canterbury. Ao avistar a catedral, os sinos tocaram e ele desmontou do cavalo e ali, na estrada, tirou os trajes reais e envolveu-se numa grossa

túnica de lã. Tirou os sapatos e entrou na cidade descalço.

As pessoas foram para as ruas ver o seu rei, uma vez na vida,vestido como um humilde peregrino e portando-se como tal. Parecendo triste, solene e realmente arrependido

ao chegar à catedral. Lá, foi recebido pelo bispo de Londres, Gilbert Foliot, que se sentia muito contrafeito, porque sempre tivera inveja de Becket e fora um de seus maiores inimigos. No entanto, o rei não o fazia lembrar-se disso, tão preocupado estava com o seu ato de penitência. Os pés do rei estavam sangrando devido às pedras ásperas da estrada, e o povo acorria, assustado, por vê-lo portar-se com tamanha humildade.

- Levem-me para o local em que ele foi abatido - disse Henrique, e quando foi conduzido ao ponto, ajoelhou-se e, encostando a cabeça nas pedras, chorou para que suas lágrimas pudessem ficar sobre o mesmo lugar em que o sangue de Thomas fora derramado.

O bispo de Londres subiu, então, ao púlpito e falou a todos os presentes, explicando-lhes o significado daquele estranho espetáculo.

- Todos aqui presentes sabem que Henrique, rei da Inglaterra, invocando, para a salvação de sua alma, Deus e o Santo Mártir, protesta perante todos que ele não ordenou, não pretendeu, nem provocou deliberadamente nem desejou no fundo do coração a morte do mártir. Mas como é possível que os assassinos se valeram de algumas palavras imprudentemente por ele pronunciadas, ele declara que procura o castigo penitencia dos bispos aqui reunidos e consente em submeter suas costas nuas à disciplina do chicote.

O rei se levantou, então, e dirigiu-se à plateia.

- O que o bispo disse é realmente o que eu mandei. Confio em que minha humilde penitência seja aceita por Deus e pelo falecido arcebispo. Nesta data devolvi a Canterbury as honrarias e os direitos da Igreja; e ordenei que luzes sejam mantidas acesas no túmulo de Thomas Becket. Um hospital será construído em Southwark, e será erguido em honra a Deus e ao Bem-aventurado Mártir São Thomas.

O bispo apressou-se a acrescentar que iria associar-se à construção daquele hospital e concederia indulgências especiais a todo aquele que contribuísse para ela.

Estava plenamente ciente de que devia estar compartilhando a penitência do rei, pois não dissera, depois do assassinato de Thomas Becket, que o corpo deveria ser atirado num esterqueiro ou pendurado numa forca? Aquele foi um dia muito difícil para o bispo de Londres.

O rei assinalou, agora, que estava pronto para o ato de penitência e, em meio a bispos, abades, e padres do cabido de Canterbury, entrou na cripta onde ficava o túmulo.

Ali, tirou a roupa e ajoelhou-se expondo as costas nuas, enquanto cada bispo apanhou um chicote e aplicou três ou quatro golpes no rei.

- Como o seu Redentor foi açoitado pelos pecados dos homens - disse cada bispo enquanto usava o chicote -, seja também açoitado pelo seu pecado. - Depois que os bispos acabaram de açoitar o rei, os padres apanharam os chicotes e fizeram o mesmo.

Quando aquilo acabou, Henrique continuou a rezar por Thomas. Percorreu a catedral detendo-se nos santuários para dizer suas orações e pedir perdão de seus pecados, e lá passou o resto do dia e a noite toda.

No dia seguinte, assistiu à missa e bebeu água-benta que continha uma gota do sangue de Thomas.

Em seguida, deixou Canterbury.

Suas angústias e o esforço das últimas horas o haviam afetado profundamente. Estava com um pouco de febre, mas queria viajar para Westminster e insistiu nisso, e quando chegou a Londres passou um dia na cama.

Foi em Londres que lhe deram a notícia de que o rei da Escócia tinha sido feito prisioneiro.

O rei saltou da cama. Sentia-se muito exultante. Aquilo era um sinal. Um sinal de Thomas!

- Thomas Becket. com que então você e eu somos amigos uma vez mais. Agora, você irá trabalhar comigo. Serei invencível. Thomas, você irá proteger meu reino para mim.

Parecia que era isso mesmo que acontecia, pois em poucas semanas em seguida à penitência do rei a rebelião estava abafada em toda a Inglaterra.

Henrique estava certo de que era como ele acreditara. Deus... e Thomas... estavam contentes com ele.

Foi ver Rosamund, que estava instalada em seu palácio agora que não se fazia mais segredo do relacionamento dos dois. Henrique continuava pensando em termos de divórcio, mas ainda não queria insistir muito no assunto. Eleanor estava presa em segurança no castelo de Salisbury. Que ficasse lá até que os domínios dele estivessem a salvo e pudesse dedicar seus pensamentos a alguma maneira de livrarse dela. Não era uma situação que exigisse uma solução imediata. Rosamund estava, como sempre, esperando carinhosamente para cumprir seus deveres de esposa; que maior prazer poderia ele obter do relacionamento dos dois se se casasse com ela? Mas era claro que não poderia casar-se com Rosamund. Não tinha intenções disso. Se conseguisse o divórcio, seria em benefício de sua querida Alicinha.

E agora, com Rosamund e Alice para aplacar sua fome sexual e São Thomas e Deus trabalhando por ele no campo de batalha, tinha muito com que se regozijar.

Os filhos de Rosamund estavam indo bem. Ele acharia lugares para eles que iriam deixar a mãe deles encantada.

- Acho que Deus não pode estar contrariado comigo - disse ele a Rosamund - porque os filhos que tenho fora do casamento são bons meninos. Há o Geofredo, filho da prostituta Hikenia, que é mais fiel a mim do que meus filhos dentro do casamento. E há os nossos dois meninos.

Às vezes tremo de preocupação por eles - disse Rosamund.

- Por quê? Eles têm o pai para cuidar do futuro deles. Mas bastardos, majestade.

- Os bastardos do rei! Lembre-se disso. Rosamund suspirou.

Tratou dos ferimentos nas costas dele feitos pelos chicotes dos sacerdotes e chorou por eles.

- Majestade, eles ousaram fazer-lhe isso!

- Eles não ousavam fazer outra coisa. Eram minhas ordens, lembre-se.

O toque dela era delicado; seus unguentos, calmantes. Querida Rosamund! Ele pensou, então, que se ela tivesse sido a sua rainha, ele teria sido um marido fiel... bem, um marido mais fiel. Mas mesmo enquanto ela cuidava de seus ferimentos e mais tarde, quando fizeram amor, ele pensava em Alice.

- Agora, estou em paz com o céu, Rosamund. Thomas e eu somos como éramos havia muito tempo, quando ele era meu chanceler. Somos bons amigos. Ele irá proteger meu reino para mim quando eu estiver ausente. Irá interceder por mim junto aos céus. Fiz a minha penitência. Minhas lágrimas tocaram o ponto em que o sangue dele foi derramado. Foi uma sensação maravilhosa, Rosamund, ter admitido um pecado e ter obtido a remissão.

- Eu penso nisso com frequência - respondeu ela.

Ela estava um tanto triste, o que o deixava impaciente. Dali a pouco, ela estaria falando em entrar para um convento. Henrique não queria nada daquilo. Fora até ali para distrair-se, e gostaria que ela ficasse contente com a condição para a qual ele a alçara.

- Meus pecados me pesam muito. Acho que estou precisando de perdão.

- Você, Rosamund! O que foi que fez que não tivesse sido delicado e amoroso?

- Tenho vivido em pecado e dei à luz bastardos.

- Você suavizou o destino de seu rei e obedeceu. Este é o seu dever, minha querida.

Ela suspirou e não respondeu.

Mais tarde, ele achou que seu estado de espírito penitente não era uma coisa assim tão má. Se alguma vez se divorciasse de Eleanor, iria querer casar-se com Alice. Então, nada poderia ser-lhe mais benéfico do que o fato de Rosamund ir para um convento expiar os pecados e deixá-lo com a consciência livre para casar-se com Alice.

Por isso, ele não afastaria de todo aquela questão do convento. Valia a pena estimular os sentimentos de pecado dela, no caso de poderem ser úteis mais tarde.

Sorriu com ternura. Podia sempre confiar em que Rosamund iria agradá-lo.

De Woodstock a Westminster para ver a sua Alicinha. Estava encantado com ela.

- Você cresceu, meu amorzinho. Ora, está quase uma mulher.

- Isso o agrada, majestade? - perguntou ela, ansiosa.

- Você nunca poderia fazer outra coisa que não me agradar. Como ela era encantadora! Estava desenvolvendo a paixão.

Agora já não havia necessidade de estimulá-la a agir.

- Sentiu saudades minhas, queridinha?

Ela lhe garantiu que vivia pensando nele e passava muitas horas na janela da torre para ver se ele chegava.

- Nunca diga a ninguém o que há entre nós. Ela não diria, assegurou-lhe.

Mas ele ficava pensando se alguns membros da criadagem desconfiavam. Nunca era fácil um rei manter os segredos de sua vida privada.

Como Alice era diferente de Eleanor! Não tinha senso de culpa, só o desejo de agradá-lo. Ele era o rei e, portanto, independente do que fizesse deveria estar certo.

O rei disse-lhe que visitara o pai dela.

- Disse a ele que íamos nos casar? Ele acariciou o braço dela.

- Não, queridinha. Não posso fazer isso enquanto não, me livrar da malvada da Eleanor.

- Ela é muito malvada?

- Mais malvada do que você possa compreender. Colocou meus filhos contra mim e entraria em combate e me mataria se fosse possível. Oh, não tenha medo, ela agora é minha prisioneira. Nenhum mal pode me atingir por meio dela. vou divorciar-me dela e depois... você verá.

- Andam falando do senhor e Rosamund Clifford. Ele soltou uma gostosa gargalhada.

- Você não deve ter ciúme, querida. Ela já foi minha amante.

- Eu sou sua amante?

- Não, você é minha futura esposa.

- Então serei realmente a rainha.

- Será, sim, quando eu tiver me livrado da velha loba. - O senhor já gostou dela?

- Não, nunca. Eu adorava as terras da Aquitânia, que eram dela.

- Qual o motivo pelo qual irá me amar?

- Pela sua beleza, sua inocência, e porque você me ama. Aquilo a satisfez. As crianças ficavam satisfeitas com facilidade. Alice nunca duvidou que o rei se casaria com ela.

Era o que ele faria, se fosse possível. Não era ela filha do rei da França?

E ele riu, exultante, imaginando o que o velho Luís diria se pudesse ver a filha deitada nua em sua cama.

E Ricardo? Era muito provável que ela tivesse de ir viver com ele, um dia. Ela era a sua prometida, e se não houvesse meios de Henrique livrar-se de Eleanor... Ricardo

estava crescendo. Dentro de muito pouco tempo estaria exigindo a presença da noiva e o velho Luís estaria sacudindo o punho e perguntando o que o rei da Inglaterra

pretendia ao manter sua filha em um de seus castelos.

Ele parecia transmitir uma parte de seus pensamentos a ela.

- Majestade, e Ricardo? Esteve com ele?

- Não. Ele é meu inimigo. Luta com os irmãos contra mim.

- Não contra Vossa Majestade.

- É difícil acreditar que um filho possa ser tão injusto com o pai. - Um sorriso manhoso passou-lhe pela boca, diante da ironia da situação. Ricardo o ofendia no campo de batalha, e ele ofendia o filho no quarto. Bem feito para o garoto. Henrique pensou no que diria o filho se um dia Henrique fosse obrigado a ceder-lhe Alice e ele soubesse que ela tinha sido amante de seu pai.

Mas Henrique não abriria mão dela. Alice era deliciosa demais. Além disso, era filha do rei da França.

Que importante figura em sua vida era aquele rei da França! Não podia haver dois homens mais desiguais. Luís, o monge, Henrique, o devasso - e os dois tinham sido maridos de Eleanor.

Ele chegaria a algum acordo. Luís iria preferir, sem dúvida, ver a jovem Alice como rainha da Inglaterra, em vez de duquesa da Aquitânia.

- Nunca poderei gostar de Ricardo porque ele não foi bom para Vossa Majestade.

Ele cobriu com beijos a pele macia como flor.

- Minha pequena Alice. Não pense em Ricardo. Vocês não foram feitos um para o outro. Como poderia isso acontecer, quando decidi que ninguém, a não ser eu, irá usá-la dessa maneira? -. Ele estava satisfeito. O futuro poderia ser bom com Thomas o protegendo lá de cima; poderia livrar-se de Eleanor; Rosamund poderia, por meio de insinuações sutis, ser empurrada para um convento, e sua adorável Alice, filha do rei da França, poderia ser a sua rainha.

Confiante em que havia celebrado a paz com o céu e que São Thomas Becket estava protegendo seu reino para ele, Henrique dedicouse a salvaguardar seus domínios além-mar.

Não podia acreditar realmente que os filhos estivessem lutando contra ele, e sentiu um grande desejo de ser amado por eles. Se tivessem sido meninos obedientes, que ajuda lhe teriam prestado! O fato de haverem se reunido ao seu inimigo, o rei da França, contra ele, era a mais baixa das ingratidões. Claro que era tudo devido às insinuações da malvada mãe deles. Na infância deles, ela fizera o possível para afastá-los dele. Que víbora! Ele se vangloriava com o fato de ela estar em seu poder, agora. Nunca, enquanto ele vivesse, Eleanor seria libertada.

Seria algum senso de fidalguia inadequado que os obrigava, naquele momento, a entrar em combate? Teriam eles algum plano para resgatar a mãe? Ele queria encontrar-se com eles, falar-lhes como pai, fazê-los compreender. Ele os adorava, particularmente Henrique. Como se orgulhara do filho mais velho enquanto ele crescia! O encanto das maneiras, a bela aparência! Quisera ensiná-lo para que se tornasse um grande rei, porque só um grande rei poderia manter unidos aqueles domínios. Sem dúvida eles sabiam o que acontecera sob o reinado de Estêvão.

Precisava pôr um fim naquele conflito. Tinha de reconquistar os filhos. Não podia tê-los unindo-se aos seus inimigos. Uma coisa ele estava decidido a fazer. O jovem João nunca deveria sentir a influência perniciosa da mãe.

Agora, ele seria invencível, porque desde que fizera as pazes com Deus havia um sentimento de confiança em todo o seu exército. Deus já não estava contra ele. Ele, o maior e mais poderoso dos reis, humilhara-se no santuário de São Thomas Becket e ordenara a seus sacerdotes que o açoitassem.

Que maior penitência poderia ter demonstrado do que aquela, que maior amor por Thomas?

- Thomas, proteja meu reino enquanto vou lutar pelos meus filhos.

 

O JOVEM HENRIQUE riu em voz alta quando soube da penitência do pai no santuário de Canterbury.

- Como é que ele pôde se humilhar tanto? - bradou ele. Seu amigo, Guilherme, o Marechal, salientou que considerava

uma jogada inteligente por parte do rei. Bem poderia ser o caso de ele estar realmente arrependido, e então ficaria com a consciência livre. Por outro lado, se se tratasse de um gesto só para impressionar, era um gesto inteligente, pois agora iria parecer que o rei tinha escapado da sombra de culpa que deveria pairar sobre ele até que confessasse sua participação no assassinato.

- Acredito que você tem simpatia pelo meu pai - disse Henrique, desconfiado.

- Quem pode deixar de admirá-lo?

- Aqueles que são amigos dele não podem ser meus amigos

- disse Henrique de forma significativa.

Guilherme, o Marechal, ficou triste. Durante muito tempo, os dois tinham sido companheiros íntimos, mas desde a coroação a arrogância tomara conta do jovem rei; ele parecia acreditar que o ato da coroação lhe dera uma força que não possuía antes. O mais experiente e coerente Guilherme estava plenamente ciente de que o pai dera ao jovem Henrique apenas um título, e achava que seria prudente ele aceitar aquela realidade.

Mas Henrique, sendo jovem e inseguro, voltava-se para aqueles que o bajulavam, em vez de para aqueles que lhe diziam a verdade. Assim, à medida que os laços de amizade entre ele e Guilherme se afrouxavam, ele se tornava cada vez mais ligado àquele ostentoso cavaleiro, Filipe de Flanders.

Fora Filipe que enviara seus flamengos à Inglaterra, visando com isso arrancar o país das mãos do Henrique mais velho. Aquilo fora um desejo desesperado, como ficou provado, e a técnica superior do rei como general derrotara os estrangeiros e colocara um fim nas esperanças de uma fácil captura da Inglaterra.

Agora, Filipe era o companheiro constante do jovem Henrique. Assegurava-lhe que fora maltratado pelo pai dele. Salientava que ele, um rei, vivia em situação muito pior do que os filhos de simples cavaleiros. Filipe era ostentoso, alegre, um dos melhores cavaleiros da França, notado por sua fidalguia e sua perícia nas justas. Henrique tivera pouca experiência naquele esporte, que se tornava cada vez mais popular e, sob a influência de Filipe, entusiasmou-se muito por ele.

Ele visualizava a liberdade que teria quando fosse rei e com o pai dominado. Prometia a si mesmo que a vida seria uma rodada só de torneios e desfiles triunfantes. Estava mais do que nunca decidido a ter o que era, asseguravam-lhe os amigos, o seu direito.

Fora um grande golpe o fato de ele e seus amigos não terem conseguido conquistar a Inglaterra. Teriam de arquivar aquele projeto por algum tempo, mas isso não deveria evitar que tentassem tomar a Normandia, e a melhor hora para começar era enquanto seu pai estivesse acertando as coisas na Inglaterra.

Filipe de Flanders concordou com ele. Filipe era ambicioso, e o jovem Henrique lhe havia prometido terras na Inglaterra quando o plano de dominar o pai e colocar o filho firme no trono fosse bemsucedido.

Era uma grande sorte eles terem o apoio do rei da França. Luís mudara desde a época em que era o jovem marido de Eleanor, deplorando o fato de seu destino ter sido uma coroa em vez dos trajes sacerdotais. Ele tinha um filho - o jovem Filipe - que agora estava com uns nove anos de idade, e o nascimento do filho fizera uma grande diferença em sua vida. Das mulheres anteriores - ele se casara três vezes -, tivera só filhas, e quando naquele radioso dia de Agosto do ano de 1165 sua mulher, Adela, dera à luz um menino, sua exultação fora tamanha que ele mandara anunciar a boa notícia nas ruas de Paris e tocar os sinos em todo o seu domínio. Ele tinha um filho homem e um herdeiro de seus domínios. Era a bênção de peus sobre um homem que sempre tentara cumprir com o seu dever naquela maneira de viver para a qual tinha sido mandado contra a vontade.

Adela tinha sido fértil, dando-lhe mais duas filhas - as jovens Alice e Agnes, ainda crianças. Ele teria gostado de ter outro filho homem porque Filipe era um menino frágil. Mas devia estar agradecido. Tinha o seu filho. Alice vivia na Inglaterra, agora, era a prometida de Ricardo da Aquitânia, e em breve Luís teria de insistir que o casamento se realizasse. Qual seria o motivo de Henrique ao procurar adiá-lo, porque parecia realmente que ele ignorava qualquer sugestão de que os dois deviam ser unidos? Talvez quisesse barganhar um pouco com relação a Alice. Luís não admitiria isso. Os dois jovens tinham ficado noivos.

Naquele ínterim, Luís percebia que a posição de Henrique não era muito boa, e com os filhos do rei da Inglaterra prontos a entrarem em combate contra ele, parecia a hora da França explorar suas vantagens.

O jovem Henrique estava em sua corte, e com ele Filipe de Flanders. Jovem inteligente, aquele conde - ativo e ansioso por derrotar o velho Henrique. Ele estava certo quando dizia que o objetivo deveria ser a Normandia.

- Não deve haver demora - disse Flanders a Luís. - Não tenha dúvida, se vamos atacar temos de fazê-lo rapidamente. Quando o velho guerreiro tiver resolvido seus assuntos ingleses, atravessará o canal ao primeiro vento favorável.

Luís concordou que o objetivo devia ser Rouen, a primeira cidade da Normandia, porque se Rouen caísse, aquilo teria um tal efeito sobre o resto da Normandia que a conquista ficaria fácil.

Eles iriam supreender a cidade e sitiá-la. Foram bem-sucedidos, e o povo de Rouen esperou em sua cidade pela chegada de Henrique que, tinham a certeza, não poderia

demorar muito quando soubesse o que se passava por lá.

A vida toda, Luís fora atormentado pela sua educação religiosa, que mais de uma vez tinha se intrometido em seus objetivos militares. O sítio prosseguia favoravelmente, mas parecia provável que a chegada de Henrique para salvar a cidade não demoraria muito a acontecer. Luís lembrou-se, então, de que a festa de São Lourenço estava próxima e não via como poderia lutar num dia daqueles, e por isso declarou uma trégua. Não haveria luta durante um dia e uma noite. Rouen poderia considerar-se livre do sítio por um dia.

Quando aquela notícia chegou à cidade, seus habitantes ficaram loucos de emoção. Aquilo era um exemplo, disseram, da ineficaz capacidade de comando de Luís. O rei da Inglaterra devia estar a caminho para salvá-los, e cada hora era importante para eles. A tolice do rei da França devia tê-los salvo, sem dúvida alguma.

Ficaram tão contentes que houve cantos e danças nas ruas. Acreditavam que o cerco de Rouen praticamente terminara. Abriram as portas da cidade e alguns dos cavaleiros montaram um torneio nos campos fora dos muros da cidade.

Os soldados franceses observavam os acontecimentos consternados, mas ninguém estava mais irritado do que Filipe de Flanders.

Estava tão irritado que esqueceu a sua reverência pela coroa da França e entrou esbaforido na tenda do rei. Luís pareceu não gostar, mas era muito conhecido pela sua brandura e pediu ao conde que dissesse o que queria.

- Majestade - bradou Filipe -, o rei da Inglaterra está a caminho. Ele não pode demorar muito. Vossa Majestade pode estar certo .de que ele já recebeu notícias sobre o estado de sítio que existe em Rouen. Ao permitir essa trégua, Vossa Majestade dá a ele a oportunidade de chegar a tempo de salvar a cidade.

- Se ele vier, nós o enfrentaremos.

- Vamos perder Rouen.

- São Lourenço, em cuja honra ordenamos essa trégua, irá nos ajudar.

- E São Thomas Becket, que ele chamará para ajudá-lo?

- São Thomas nunca o ajudaria.

- Mas ele cumpriu penitência no santuário dele ermitiu que o açoitassem.

- Ele é o assassino dele.

- Não foi a mão dele que deu o golpe, e veja que sucesso ele tem tido na Inglaterra desde a penitência.

Luís ficou um tanto abalado. Depositava grande fé em São Thomas Becket. Mas era ele, Luís, que abrigara o arcebispo na França e nunca fora necessário que ele se penitenciasse no santuário.

- Majestade - implorou Filipe de Flanders -, se essa trégua continuar durante o dia e a noite, perderemos Rouen.

- Dei a minha palavra e fiz minhas orações a São Lourenço.

- São Lourenço não pode fazer coisa alguma contra o rei da Inglaterra - retrucou Filipe quase com impaciência, e acrescentou:

- Majestade, não poderia acontecer dessa oportunidade vir através de São Lourenço? As portas da cidade estão escancaradas; os cavaleiros estão distraindo-se no torneio. Não poderia ser este o momento de ir ao ataque?

Luís ficou horrorizado.

- Eu dei a minha palavra.

Filipe de Flanders tentou esconder o desprezo. A vida toda, o rei da França tinha perdido oportunidades no campo de batalha. Estaria fazendo o mesmo agora?

Filipe apertou as mãos. Retirou-se e deixou o rei da França fazendo suas orações a São Lourenço. Pouco depois, Filipe voltou para o acampamento do rei, e com ele estava o jovem Henrique. O jovem rei atirou-se de joelhos diante do rei da França.

- Majestade, ouça-me - bradou ele. - Meu reino está em perigo. Podemos tomar Rouen agora se pegarmos a cidade de surpresa. Em breve meu pai estará aqui com os soldados. Temos de tomar a cidade antes que ele chegue.

- Eu declarei a trégua - insistiu Luís.

Os dois jovens uniram-se para convencê-lo. Mostraram-lhe o que significaria a vitória. Iria ele atirá-la fora por causa de uma promessa? Talvez, se ele não cedesse, muitos soldados franceses iriam perder a vida.

- Então exploremos a situação. Preparemo-nos para tomar a cidade enquanto as portas estão abertas para nós - decidiu Luís.

Antes que ele pudesse mudar de ideia, Filipe e Henrique saíram depressa para dar ordens no sentido de que fossem feitos preparativos imediatos para capturar a cidade.

Rouen poderia ter sido ocupada com a maior facilidade, não fosse o fato de um grupo de rapazes ter desafiado dois deles a escalar a torre da igreja. Eles subiram e, enquanto estavam lá em cima, podiam ver além da cidade, até os campos em que o exército francês estava acampado, e ficou evidente para eles que estava havendo preparativos para um ataque imediato.

Descendo, eles contaram o que tinham visto, e minutos depois os sinos da igreja estavam tocando um sinal de aviso. Aquilo era o sinal de alarme. Os cavaleiros que estavam no torneio ouviram e correram para dentro da cidade; as portas foram fechadas; piche fervendo foi preparado e levado para as ameias. Todos ficaram prontos para entrar em ação e decididos a defender Rouen com uma determinação ainda maior devido à perfídia dos franceses ao violarem uma trégua que haviam proclamado.

Assim, quando Filipe de Flanders e o jovem Henrique comandaram o ataque, foram rachaçados. Faltara a surpresa; os cidadãos estavam prontos à espera deles, e era como se a sua pequena estratégia não existisse.

Durante a noite toda, a batalha foi acirrada, e no dia seguinte os sentinelas que estavam nos muros da cidade deram um grande grito de alegria, pois o exército do rei da Inglaterra fora visto se aproximando. O cerco iria terminar em breve.

Em pouco tempo os ingleses foram avistados pelos franceses e a batalha estava prestes a começar. Luís, que não era avesso ao cerco de uma cidade, não gostava da ideia de uma batalha corpo a corpo. Ele nunca perdera sua revulsão ao derramamento de sangue, e agora desejava nunca ter-se envolvido na campanha para tomar Rouen. Quando soube que os ingleses já haviam atacado a sua retaguarda e causara graves baixas, ficou tão certo de que não poderia vencer numa luta corpo a corpo que enviou mensageiros a Henrique, solicitando uma trégua e que lhe fosse permitido retirar-se com suas tropas para um ponto a alguns quilómetros da cidade, onde os dois pudessem conversar.

Sem perceber, àquela altura, que os franceses haviam rompido traiçoeiramente a trégua que haviam feito com os cidadãos de Rouen, e intimamente não querendo combater um exército no qual seu filho lutava contra ele, Henrique concordou em permitir que os franceses se retirassem.

Não ficou surpreso nem contrariado, quando lhe levaram a notícia de que durante a noite eles tinham fugido e não pararam enquanto não cruzaram as fronteiras da França.

Henrique soltou uma sonora gargalhada. Era sempre bom forçar uma retirada sem perda de sangue. Fora uma vitória fácil. Bastava ele aparecer para implantar o terror nos seus oponentes. Aquilo serviria de lição para o jovem Henrique. Ele veria que não era fácil opor-se ao pai.

Que alegria quando ele entrou na cidade de Rouen! Elogiou os homens e mulheres valentes que haviam resistido ao cerco. Mandou chamar os rapazes que haviam subido na torre e, ao ouvir a história que contaram, abraçou-os.

Vocês fizeram bem. Isso não será esquecido - disse ele. Se seria ou não, era o que se iria ver, porque Henrique era uma pessoa que esquecia com frequência as promessas que fazia; mas sempre tornava as pessoas felizes porque tinham conseguido a sua aprovação a tal ponto que ele fizera a promessa.

Foi à igreja e deu graças a Deus e a São Thomas Becket, pois estava certo de que o arcebispo fora o responsável pelo envio daqueles homens para cima da torre e havia salvado a sua cidade de Rouen.

Ricardo, o segundo filho do rei, ainda não tinha 18 anos. Mais belicoso do que os irmãos, ele exultou com a necessidade de pegar em armas. Estava decidido a ser excelente no campo de batalha e defender a Aquitânia contra o pai. Ele o odiava. Seus irmãos eram impacientes com relação ao velho rei, e acreditavam que ele os havia tapeado quanto à herança, por isso tinham pegado em armas contra ele, mas nenhum deles o odiava tanto quanto Ricardo.

A vida toda, ele considerara o pai como um demónio - o génio mau da vida deles. Eleanor acreditara naquilo, e era sensata e inteligente, e ele a amava tanto quanto odiava o pai.

Ele ansiava por estar ao lado dela, mas era prisioneira do marido. Quando Ricardo pensava naquilo, enchia-se de tanta fúria que sentia ânsias de matar o pai. E iria matá-lo, prometia a si mesmo. com que satisfação cortaria a cabeça dele e a enviaria à mãe! Ela iria gostar. Juntos, os dois comporiam uma balada contando o caso, os dois iriam cantá-la em conjunto.

Ele agora tinha uma missão dupla - não apenas derrotar o pai e tornar-se o verdadeiro governante da Aquitânia, mas libertar a mãe. Ele gostaria de ser mais velho. Era um guerreiro de nascença, mas ninguém levava um homem tão jovem a sério, e o pai criara uma aura com relação a si próprio; estava se tornando conhecido como o leão invencível. No entanto, estava ficando velho e não seria assim para sempre. O rei da França estava contra ele; o mesmo acontecia com os outros filhos, Henrique e Geofredo. Não havia dúvidas de que ele não poderia resistir para sempre a uma oposição daquelas. E quando o arcebispo fora assassinado, o mundo inteiro parecera ficar contra ele. Haveria quem o admirasse por ter sofrido aquela humilhante penitência? Ricardo não podia acreditar que houvesse. Não havia dúvida de que ele se

humilhara, e no entanto desde então obtivera grande sucesso na Inglaterra. Tentativas para tirá-la dele tinham fracassado. Mas seria diferente na Normandia e na Aquitânia. Lá, ele não iria ganhar.

Ricardo exultava ao pensar nos exércitos do rei da França e em homens como Filipe de Flanders. Em breve, Henrique estaria no comando de seu reino. E Ricardo também teria de ficar no comando do dele.

Como gostava de seguir à frente de tropas, as bandeiras tocadas pelo vento!

- Meu filho mais querido - dissera sua mãe -, você nasceu para liderar homens. Dou graças a Deus por ter sido você a herdar a Aquitânia. Na verdade, eu nunca teria permitido que minha terra natal passasse para outra pessoa.

Ele e a mãe deveriam governá-la juntos, mas já que ela estava prisioneira do marido, não se podia dizer que tivesse voz ativa no governo da terra. O povo da Aquitânia a adorava, mas não dedicava o mesmo carinho ao filho. com os seus cabelos claros e brilhantes olhos azuis, ele não parecia ser do Sul. Havia algo de estrangeiro nele, e o povo sentia isso. Ele só fora aceito porque era filho de Eleanor mas as pessoas estavam sempre cientes de que havia nele um forte traço de descendência normanda. Ele era um poeta; adorava música. Nisso, era tal qual a mãe. Mas o povo não podia esquecer que o pai dele era Henrique Plantageneta, cuja mãe fora a neta do Conquistador normando.

Por isso, quando ele percorreu a Aquitânia tentando levantar homens para a sua bandeira a fim de preservar a sua herança de seu pai avarento, os cavaleiros da Aquitânia não estavam ansiosos por juntarem-se a ele.

Chegaram-lhe notícias de que seu pai, depois de certificar-se de que a Inglaterra estava a salvo, rumava para a Aquitânia a fim de resolver os problemas de lá. Ricardo compreendia que era muito parecido com os irmãos no fato de que, enquanto o pai estava longe, ele podia vociferar contra ele, mas o pensamento de ficar frente a frente com ele numa batalha incutia-lhe terror no coração. Não se podia esquecer a reputação do velho rei. Todos estavam cientes dela, e os homens mais fortes intimidavam-se. Henrique possuía aquela rara qualidade que tinham seu avô e seu bisavô, que muitas vezes resultara em vencerem uma batalha antes de começar, simplesmente deixando o coração dos inimigos cheios de medo e da certeza de que não poderiam vencer um homem daqueles.

Ricardo passou em revista sua companhia. Viu o medo estampado no rosto dos soldados. Desconfiava de que se soubessem que o rei estava marchando em direção a eles, muitos iriam desertar loucos de terror.

Chamou um mensageiro e ordenou-lhe que fosse a toda velocidade até o exército do rei da França, que ele acreditava estar na Normandia.

- Leve estes bilhetes e dê um a cada um de meus dois irmãos e um ao rei da França. - Observou o mensageiro afastar-se. Agora, sentia-se seguro. Eles não o deixariam ser derrotado. Mandariam ajuda.

Seu pai ainda não chegara, mas estava se aproximando. Ricardo ficava observando, à espera do mensageiro. com ele deveria chegar ajuda. Talvez seus próprios irmãos. Se eles tivessem tomado Rouen, estariam estimulados com a vitória, e essa seria a melhor notícia que ele poderia receber, porque significaria que tinham derrotado seu pai e com isso poriam fim ao mito de sua invencibilidade.

Mas não vieram soldados, e o mensageiro voltou.

"Infelizmente, irmão", escreveu Henrique, "não fomos felizes em Rouen, mas fomos forçados a fugir diante das tropas de nosso pai. Agora há uma trégua e estamos esperando para discutir as condições com ele. Mas uma das condições que ele impôs é a de não enviarmos ajuda a você."

Ricardo cerrou os punhos, numa raiva muda. Até certo ponto, ele possuía o génio angevino, mas em vez de ser feroz como o do pai, era frio. Ricardo nunca se jogava ao chão e mordia os juncos; nunca ficava vermelho para que as pessoas acreditassem que poderia cair ao chão num acesso. Ficava pálido; os olhos azuis pareciam de aço; mas a sua raiva não era menos violenta só porque era fria.

Sentia aquela raiva, agora. Ali estava ele, um garoto segundo a idade, com o pequeno exército, e teria de enfrentar sozinho o maior general da época - o próprio pai.

Ele poderia fazê-lo. Seus seguidores nunca o fariam.

Sabia que não tinha alternativa senão bater em retirada diante do pai. Quando discutiu a situação com seus cavaleiros mais hábeis, todos concordaram com ele.

- Os homens nunca iriam resistir e combater os exércitos de seu pai - disseram eles. - Iriam tremer de medo diante da perspectiva e desertar antes que seu pai chegasse.

Era verdade. Nada havia a fazer, a não ser recuar.

Que amarga humilhação! Henrique marchou pela Aquitânia exortando obediência de todos. Ricardo marchou para o Sul, mas não podia ficar marchando para sempre. Seus homens estavam desertando. Em breve só sobrariam uns poucos.

Em dado momento, percebeu que não poderia recuar mais. Tinha de encarar o pai.

O encontro aconteceu, e quando Ricardo olhou para aquele rosto de linhas fortes, os cabelos encaracolados - um pouco grisalhos agora - cortados reto na testa, as narinas alargadas, o aspecto leonino, suas emoções eram confusas. O ódio ali estava; o medo também; e sabia por que homens encolhiam-se diante de seu pai.

Ajoelhou-se e encostou o rosto no chão, num súbito acesso de desventura. Estava derrotado e sabia que ainda era muito jovem para levantar-se e enfrentar aquele homem. Fora culpado de uma grande tolice e, embora odiasse o pai com um ardor maior do que aquele com que algum dia poderia odiar qualquer outra pessoa, devia-lhe respeito.

Henrique o observava em silêncio. Meu filho, pensou ele. Este belo rapaz é meu filho Ricardo, o noivo de Alice.

Sentiu uma súbita ternura por ele - talvez porque fosse seu filho, talvez porque lhe tivesse tirado a noiva.

- Levante-se, Ricardo - disse ele.

Quando o rapaz se levantou e os dois ficaram frente a frente

- e Ricardo tinha de baixar os olhos para encará-lo, porque era vários centímetros mais alto do que o pai - Henrique colocou os braços em torno dele e abraçou-o.

- É uma coisa triste quando um filho pega em armas contra o próprio pai.

Ricardo não disse nada. Uma expressão ligeiramente malhumorada tocou-lhe os lábios.

- Triste - continuou o rei - e inútil. Você é um bom combatente, segundo me disseram, Ricardo. Mas uma batalha é mais do que brandir uma lança, meu rapaz. Há sutileza e estratégia. Um bom general sabe quando deve recuar e quando deve avançar. Ora, diremos o seguinte: você soube quando recuar, não soube, e quando mostrar humildade? Basta dizer que foi um general de valor. Agora vamos conversar.

Passou o braço pelo de Ricardo e os dois caminharam juntos.

- Não gosto dessas discussões. Seus irmãos tomaram juízo. Irei vê-los em breve. Vamos ter uma reunião e seria bom se você participasse. Tenho muita coisa a dizer-lhes porque não concordo em suportar essas brigas de família.

- NÓS somos homens. E homens não podem ser tratados como meninos.

Tanto meninos como homens recebem o tratamento que merecem- Lembre-se disso e iremos nos entender. Agora, meu filho, saiba de uma coisa. No momento, há paz na Aquitânia. Você é o duque de lá, mas os títulos que meus filhos detêm estão sob o meu comando. Lembre-se disso, e ficaremos em paz.

O rei ordenou que se preparasse um banquete, e à mesa manteve o filho a seu lado; todos notaram que ele mostrava uma certa afeição por ele e que Ricardo estava submisso, embora parecesse mal-humorado.

No dia seguinte, o rei mandou chamar o filho.

- Vá, agora, e junte-se a seus irmãos na corte do rei da França. Diga-lhes que decidiu que não haverá mais discórdia na Aquitânia, e que você, como eles, está ciente da tolice de suas ações. Como eles, você está em paz com seu pai. Iremos todos nos encontrar em breve e então lhes direi quais são as minhas propostas.

Ricardo despediu-se do pai e cavalgou em direção à fronteira francesa.

Henrique ficou pensativo. Não podia olhar para Ricardo sem pensar em Alice. O garoto não falara na noiva. Será que alguma vez pensava nela?

Henrique pensava sempre.

No castelo de Salisbury, a rainha recebeu notícias dos filhos. Estava presa há mais de um ano, e a sua primeira sensação de raiva humilhada já passara. Acostumara-se à prisão, que não era, em absoluto, rigorosa. A princípio, havia pensado que Henrique tentaria assassiná-la. Talvez o fizesse. Queria ver-se livre dela. Queria mesmo? Ou aquilo era apenas um engodo para Rosamund? Ele não podia se casar com Rosamund. O povo jamais aceitaria. Mas em se tratando de Henrique, ele poderia tentar o que outros receavam fazer.

Todas as suas esperanças estavam nos filhos. Se eles pudessem vencer a batalha contra o pai, o primeiro dever seria libertá-la. Podia estar certa de que eles a soltariam. Que grande dia seria aquele em que a situação se inverteria, em que Henrique ficaria prisioneiro da mulher e dos filhos! Como Eleanor iria zombar dele!

Mas ainda não seria agora. Ainda havia fogo no velho leão. Velho leão. Precisava se lembrar de que ele era 12 anos mais novo que ela!

Subiu ao ponto mais alto do castelo e olhou por cima do fosso. Podia andar livremente pelo castelo, mas se tentasse atravessar a pon te levadiça, seria impedida pelos guardas. A princípio, planejara fugir, mas nada resultara disso. Estava muito bem vigiada. O suborno era inútil. Todos os seus guardas sabiam que se a deixassem escapar, a fúria de Henrique seria desfechada e a maior das punições seria aplicada a eles.

Sempre fora uma intrigante, e agora o seu maior prazer era seguir suas inclinações. Como era estranho que ela, a aventureira que viajara à Terra Santa, que tivera seus amantes, que se divorciara do rei da França para que pudesse casar-se com Henrique Plantageneta, fosse agora uma prisioneira, confinada num lugar pequeno, olhando dia após dias para os mesmos horizontes!

Mas com o tempo seria a vencedora. Aquele pensamento a mantinha animada. Todos os dias, ao acordar, pensava: pode ser hoje. Hoje poderá chegar um mensageiro mandado pelos meus filhos... por Henrique ou Ricardo... com a boa nova. Talvez eles lhe mandassem a cabeça dele para que a mãe se vangloriasse. Não, isso não. Eleanor não queria que ele morresse. Sabia que o mundo seria o lugar mais enfadonho para ela sem o rei. Sempre fora assim. Nada a excitara tanto quanto suas brigas com ele. Pensava na época da paixão dos dois. Na verdade, nunca tivera um amante que se comparasse com ele. Henrique tinha uma força, e era essa força que a atraía. Ela acreditara, nos primeiros tempos do casamento, que iria sempre amá-lo com uma profunda paixão duradoura por toda a vida. A paixão permanecera, mas se tornara uma paixão de ódio.

Ela se lembrava da raiva que sentira quando soubera, pela primeira vez, das infidelidades dele. Fora quando ele colocara o seu bastardo Geofredo na ala das crianças dela. O filho de um de seus pretensos amores sendo criado com as crianças reais! E aquele mesmo Geofredo estava lutando ao lado dele, agora, sempre fiel a ele, e dizia-se que o rei gostava muito do filho.

- Os bastardos podem ser fiéis - dissera ela. - Têm de ser agradecidos. Eles não têm direitos. É diferente com aqueles que têm direitos justos a terras e títulos.

Que ele bajulasse o filho bastardo! Era aos filhos legítimos que ele teria de responder.

- Oh, Deus, entregue-o nas mãos deles - rezava ela. Eleanor tinha seus espiões. Eles iam ao castelo sob vários pretextos e achavam um momento para falar com a rainha.

Alguns de seus criados tinham amigos que lhes davam notícias. Eleanor tinha ao seu lado algumas das mulheres de sua Aquitânia natal, e elas falavam a língua provençal. Cantavam as notícias para ela naquela língua como se se tratasse de uma canção. Talvez aquilo não fosse necessário, mas agradava ao seu senso de intriga e animava os dias de cativeiro.

Como ficara contente quando soubera que Ricardo estava controlando a Aquitânia e levantando cavaleiros daquela bela terra contra o pai!

Depois, chegara a notícia do cerco de Rouen. Como fora típico de Luís, pensara ela!

Falara com suas amas sobre antigamente, quando Luís deixara de lutar porque não gostava de violência.

- Ele poderia ter enfrentado o rei da Inglaterra, lutado com ele. Mas tinha de fugir. Ele sempre foi mais monge do que homem. Embora nos primeiros dias de nosso casamento eu quase o tenha transformado num homem. E meus filhos... Henrique e Geofredo? O que se passara com eles? Deviam ter ficado para lutar. Mas ceder, pedir uma trégua... e depois contentarem-se em ouvir as condições dele...! E quais serão essas condições, eu lhes pergunto? Henrique Plantageneta nunca tirará as mãos da terra ou de um castelo. Desde que suas presas o agarraram, ele nunca o largará. Meu filho Ricardo tinha mais espírito do que o irmão. Podem ter certeza de que ele nunca cederá.

Mas cedeu Ela imaginou a raiva dele quando percebeu que não era adversário para o pai. O povo da Aquitânia não confiara num rapaz tão jovem e tinha medo da ira de Henrique Plantageneta. Por isso, a guerra na Aquitânia dera em nada, como acontecera fora de Rouen.

- Parece que basta ele aparecer e o povo fica com medo. Por quê? - perguntou ela, mas sabia a resposta. O rei tinha uma qualidade que ela jamais esqueceria. Desejou que ele aparecesse na prisão onde a colocara. Como gostaria de uma batalha verbal com ele!

Vituperou contra o destino. Henrique era demasiado forte, ainda detinha os vigores da juventude; e os rapazes eram demasiado jovens. com o tempo a coisa não seria assim, e à medida que os filhos amadurecessem, o rei envelheceria. Precisava esperar até que os anos toldassem os olhos do leão; então, os filhotes o atacariam, ferozes.

Se ao menos pudesse estar lá com eles, para aconselhá-los, talvez para cativar Luís com agrados! Poderia fazer isso? Como ansiava por estar livre!

Ficou agitada por uma notícia inesperada.

Foi-lhe transmitida numa canção. Um grande rei amava uma garota... uma garota muito jovem... que era noiva do filho dele.

Ela prestou atenção. Não podia ser.

Alice!

Ora, não passava de uma criança! E a noiva do filho dele! Noiva de Ricardo!

O que estaria ele planejando? Passar a beleza maculada para Ricardo, quando tivesse terminado com ela?

Não podia ser aquilo.

Então, outro pensamento lhe passou pela cabeça. Henrique queria o divórcio. Chegara a sugerir isso.

Meu Deus, pensou, será que ele quer se casar com Alice?

Convencera-se de que ele não se casaria com Rosamund. O povo não iria querê-la como sua rainha, e ele era rei o bastante para saber que tinha, acima de tudo, que obter a aprovação de seu povo. Mas Alice, a filha do rei da França! Aquilo era outra coisa.

Divertindo-se com Alice! Que devasso! Via o rosto dele com clareza; a especulação nos olhos castanhos amarelados, as narinas dilatando-se de repente, como faziam em momentos de intensa emoção.

Até que ponto ele queria se casar com Alice?, imaginou ela. O suficiente para assassinar a esposa?

Como seria simples. Quem sentiria falta dela? Os filhos? Mas também eram filhos dele, e ele era o senhor. O que se estaria passando por trás da máscara do leão?

Até que ponto Eleanor estava em segurança?

Precisava agir com rapidez.

Mandaria uma mensagem a Ricardo. Contava com amigos em número suficiente para poder fazer aquilo.

Formava a mensagem na cabeça.

"Exija que o rei mande a sua noiva para você. Já está na hora de você e Alice estarem casados. Ele tem de fazer isso. Diga ao rei da França que você quer a sua noiva."

Ela ficou alerta.

Agora, teria de tomar um cuidado especial.

No último dia de setembro - moderado e nevoento - que Henrique se sentou à mesa de conferência diante dos filhos Henrique, Ricardo e Geofredo.

Em seu coração havia triunfo misturado com uma certa tristeza. Ficava mal um pai ter de acertar condições de paz com os filhos; por outro lado, era um prazer o fato de tê-los colocado todos sob a sua autoridade - todos eles - Henrique, com suas ideias grandiosas sobre o que lhe pertencia, porque o pai tivera a magnanimidade de permitir que ele fosse coroado rei; Ricardo, o ódio frio brilhando-lhe nos olhos azuis, muito criança e inexperiente para perceber como fora insensato em demonstrá-lo; e Geofredo, que ainda parecia um menino. Belos rapazes, os três - e todos ali porque haviam conspirado contra o pai.

Não podia deixar de sentir-se orgulhoso deles. Eram todos bem-apessoados. Henrique era o mais bonito; era considerado o príncipe mais bonito da cristandade; Geofredo

era quase tão bonito quanto ele, saindo ao avô de Anjou que tivera o mesmo nome. Ricardo era diferente. Apesar disso, bonito de uma maneira diferente. Mais alto do que os irmãos e mais habilidoso nas artes equestres; um dia, quando fosse mais experiente, seria um inimigo formidável para se enfrentar em campo de batalha.

A ideia de ser o pai deles lhe causava uma certa emoção, e a severidade desapareceu do seu olhar. Mesmo assim, iria mostrarlhes quem era o senhor.

- Meus filhos, lamento que tenhamos de nos sentar aqui dessa maneira. Lembro-me bem daquele época em que vocês estavam na ala infantil de meus castelos e da alegria com que os vi crescer. Vocês têm sido mal assessorados e infringiram as leis de Deus e do homem ao pegarem em armas contra seu pai. Mas não me esqueço de que são meus filhos, e por causa disso serei tolerante. Primeiro, vamos fazer um juramento solene de que todos perdoaremos nossos inimigos e devolveremos aos donos os castelos que tomamos durante o conflito entre nós. Vocês podem ter feito promessas a meus inimigos de juntarem-se a eles contra mim. Devem declarar, agora, que estão livres de todas as promessas e cometimentos.

Observou-os em silêncio. Henrique e Geofredo estavam ligeiramente mal-humorados, Ricardo um tanto desafiador. Mas todos - até Ricardo - sabiam que não tinham alternativa senão concordar com as condições do rei.

- Henrique, você terá dois castelos na Normandia e uma pensão de 15 mil libras em moeda angevina. Ricardo terá dois em Poitou e metade da receita daquelas terras. - Voltou-se para Geofredo. - E você, meu filho, em breve vai se casar com a filha de Conan, Constance. Vai ficar agora com a metade da parte que lhe cabe pelo casamento e, quando a cerimónia se realizar, ficará com o total. No íntimo, os irmãos ficaram consternados, porque sabiam que os castelos que lhes foram dados não tinham importância estratégica e que ao fazer aqueles presentes o pai estava, na realidade, tirandolhes todos os vestígios de poder pelo qual eles estiveram lutando.

- Vocês têm um irmão mais moço - continuou o rei, a voz abrandando-se um pouco. O jovem João era o melhor de todos. Ele não tinha se levantado contra o pai. Aos oito anos de idade, era um garoto encantador. Graças a Deus, escapara da influência da mãe. - Ele também é meu filho. Da parte dele, não tive sinal algum de desobediência. Dei a ele três castelos, como sabem muito bem. - Deixou que os lábios se curvassem num sorriso sardónico. Não fora por causa daqueles três castelos que surgiram todos os problemas? - Uma herança pobre para o filho de um rei. Agora vou dar a ele mil libras por ano na Inglaterra e os castelos de Marlborough e Nottingham. Ele receberá 250 libras por ano de suas terras na Normandia, e a mesma quantia de sua propriedade em Anjou, onde lhe darei um castelo. Terá também um em Touraine e outro em Maine. Vocês não iam querer que seu irmão se tornasse um indigente, eu sei, simplesmente porque teve a infelicidade - ou, de acordo com o que se viu, pode ser a felicidade - de nascer depois de vocês.

Os rapazes ficaram consternados. O problema com o pai começara porque ele quisera tirar deles para dar a João - embora a causa fosse mais profunda do que aquela - e agora eles estavam em situação pior do que quando começaram. Mas sabiam que não podiam protestar. Viam as intenções no rosto dele; e não importava o quanto pudessem vociferar contra ele na sua ausência, cara a cara com o pai eles conheciam a sua força e a temiam. Henrique não hesitara em colocar a mãe deles na prisão. Sabiam perfeitamente que se houvesse qualquer resistência à vontade dele, acabariam em situação semelhante O rei, afinal, segundo seus padrões, estava agindo com muita tolerância em relação a eles, já que haviam pegado em armas contra ele.

- Há mais uma coisa - disse o rei. - Preciso ter uma garantia de vocês de que não vão me pedir mais nada e que não irão afastar-se de mim ou deixar de servir-me.

Aquela talvez fosse a parte mais importante de todas, mas eles sabiam da impossibilidade de evitá-la. Estavam ali naquela pequena Aldeia de Mont Louis, perto de Tours, e ele podia, se quisesse, prendêlos. Eram virtualmente seus prisioneiros, porque ele era o seu senhor.

Henrique sorria para eles.

- Então ficamos amigos. Ricardo, Geofredo, vocês irão me prestar vassalagem, o que mostrará que são realmente meus filhos leais e que sou o seu senhor feudal.

Os dois filhos se ajoelharam e juraram fidelidade a ele, e quando aquilo acabou, o jovem Henrique preparou-se para fazer o mesmo. O pai sorriu para ele com ar zombeteiro,

- Não, Henrique. Você não é um rei, e rei da Inglaterra? Não pode, então, prestar vassalagem a mim.

Um grande terror envolveu o rapaz. Num pânico súbito, ele disse:

- O senhor é meu pai. vou jurar-lhe vassalagem, como fizeram meus irmãos.

Mas o rei balançou a cabeça.

- Não, meu filho. - Colocou a mão no ombro do jovem Henrique e pressionou-a. - vou esperar lealdade de você, e sei que a dará, caso contrário, poderá haver consequências terríveis... para você. Mas você vai ficar com os seus votos. Vai se lembrar de que sou o seu pai, que é destas mãos que flui a sua boa fortuna. Ficará ao meu lado. Aprenderá a tornar-se um rei de verdade, e eu serei o seu tutor.

O jovem Henrique teve um ligeiro sorriso, mas estava contrafeito.

Agora que fizera as pazes com os filhos, o rei decidiu que iria mantelos ao seu lado por enquanto, para que pudesse incutir-lhes a necessidade de manter as promessas que fizeram.

Pesaroso, lembrou-se que eles eram seus filhos. Ele nem sempre mantivera suas promessas. E se tivessem saído ao pai nesse aspecto? Imaginava que tinham. Eram lutadores, todos, ele não tinha certeza era de que dariam bons reis. Mas não restava dúvida de que poderiam ser instruídos. Ele queria que o jovem Henrique desse sequência às suas conquistas, porque ele seguira, até certo ponto, as normas estabelecidas pelos seus grandes antecessores. Poderia confiar em que Henrique faria o mesmo?

Não àquela altura. Henrique era influenciado com muita facilidade; dava muito ouvido aos bajuladores. Aquilo era uma característica que de nada adiantava para um rei. Um de seus melhores homens tinha sido Ricardo de Luci, seu magistrado; um dos poucos em quem confiava e nunca se decepcionara nem fora bajulado por ele. Às vezes, sua franqueza podia ter irritado o rei, mas não passava de uma raiva momentânea. Dava graças a Deus por ser um governante suficientemente bom para não se afastar de seus melhores amigos por causa de um pouco de franqueza. O jovem Henrique precisava aprender aquilo. Vivia em companhia de bajuladores. Estava se afastando de Guilherme, o Marechal, que era um bom amigo e um grande cavaleiro. Gente como Filipe de Flanders o atraía. Henrique seria o primeiro a admitir que aquele tipo de homem podia ser atraente, divertido, mas não se devia dar uma importância exagerada à amizade deles.

O jovem Henrique tinha muito a aprender, e onde poderia aprender mais do que ao lado do pai?

Por enquanto o rei iria esperar para ver para onde mandaria os filhos. Forçosamente, durante algum tempo, iriam cavalgar com ele. Era bom fazer com que o considerassem como um pai, reparar uma parte do dano que a loba causara. Que mulher desnaturada! Como teria sido diferente se Rosamund tivesse sido a sua rainha... ou Alice! Ela ainda era criança para ter filhos. Mais cedo ou mais tarde ele iria engravidá-la, disso não tinha dúvidas. E então...? Aquilo poderia ser resolvido naturalmente quando surgisse o caso.

Tinham passado por Anjou ao seguir para a Normandia. Queria que o povo visse seus filhos cavalgando com ele. Henrique de um lado, Ricardo do outro, e o jovem Geofredo um passo ou dois atrás. "Estão vendo? Estamos unidos." Era o que ele dizia para o povo. "Quem estiver com ideias de rebelião na cabeça, livre-se delas depressa. Eu sou invencível... mas com meus filhos ao meu lado, devo ser mais temido do que nunca."

Sim, era um prazer cavalgar pelos seus domínios com os filhos fazendo-lhe companhia.

Em dezembro chegaram a Argentan.

- Vamos passar o Natal aqui. É ótimo estarmos todos juntos - anunciou o rei.

Seria um Natal alegre. Como seria maravilhoso se a pequena Alice estivesse ali com ele, como sua rainha! Outras mulheres não o podiam satisfazer inteiramente. Fora assim nos primeiros tempos com Rosamund.

Seus guardas-florestais da Inglaterra mandaram oitenta cervos para Argentan porque, disseram eles, não havia cervos que se comparassem com os da Inglaterra. O rei tinha de celebrar o seu Natal com os filhos e com os cervos da Inglaterra.

Henrique gostou daquele gesto, embora a comida nunca tivesse sido uma grande preocupação para ele. Ficou contente, porém, pelo reconhecimento de que aquele Natal era especial.

Saía com frequência com os filhos, e poucos dias antes do Natal, enquanto voltava para o castelo disse a Ricardo:

- Você parece acabrunhado, meu filho. Não está se sentindo

bem?

- Eu estava pensando em minha mãe. A fisionomia do rei ficou séria.

- Infelizmente, ela precisa aprender uma lição.

- É uma lição dura, majestade.

- Como devem ser as lições dos traidores.

- Vossa Majestade tem sido mais bondoso para com os seus filhos do que para com sua esposa - retrucou Ricardo.

- Cabe a mim decidir qual será o castigo dos que me traem.

- Ela não lutou contra Vossa Majestade.

- Como é que poderia lutar... uma mulher?

- Mas ela veio juntar-se a nós, seus filhos.

- Para que pudesse incutir em vocês o desejo de se rebelarem contra o seu pai.

- Se ela cometeu um erro, não poderia Vossa Majestade perdoá-la, agora, como nos perdoou?

- Não, não poderia.

- Mas Vossa Majestade não deveria ser gentil ipara com sua esposa?

- Pelos olhos de Deus, Ricardo, você vai ter a ousadia de me dizer qual é o meu dever?

- Não, papai, acho que o seu coração é que irá lhe dizer.

- Eu sei, meu filho. Ele me diz para mante-la sob controle. Ela é uma loba que ensinaria seus filhotes a devorarem o pai.

- O pai deles não iria permitir.

- Pelas mãos, pelos dentes e olhos de Deus, não iria. Mas chega... já chega. Cale-se! Se não, poderia mudar de ideia a seu respeito. Você não iria querer ter o mesmo destino que sua mãe.

Ricardo ficou calado. Os conhecidos sinais de raiva estavam surgindo. Ricardo era ousado demais, concluiu o rei. O rapaz teria de aprender uma lição. De todos os seus filhos, Ricardo era o que mais o deixava contrafeito. Mas talvez fosse .por causa de Alice.

Eles se deleitaram com a carne dos cervos que vieram da Inglaterra, e depois do banquete os músicos tocaram para eles. Ricardo cantou uma canção de sua autoria que se referia a um cavaleiro que era noivo de uma bela donzela que um ogro malvado aprisionara num castelo. A canção era sobre o amor do cavaleiro pela sua dama e sua determinação de enfrentar quaisquer perigos para salvar a noiva.

O rei sentiu-se ligeiramente constrangido, e mais ainda depois, quando Ricardo estava sentado a seu lado e lhe disse:

- Papai, já não sou mais um garoto. Como o cavaleiro da canção, estou noivo.

- Ah, sim... da jovem Alice. Dizem que ela é uma menina graciosa.

- Já é hora de nos casarmos. O rei concordou com a cabeça.

- Muito em breve - disse ele, apaziguador -, muito em breve.

- Já tenho idade para ter uma esposa.

- Tem muito o que fazer, meu filho. Tenho planos para você. Possuímos domínios imensos, e eles precisam de proteção. Sou feliz por ter quatro filhos que dominaram a sua tolice e agora aprenderam o que é melhor para eles. Posso ver que você será um grande lutador, Ricardo, um líder de homens.

- Eu também sinto isso, papai, mas também vou precisar de um esposa. Creio que o rei da França é de opinião de que o nosso casamento deveria realizar-se já.

- O rei da França nunca foi um homem de tomar boas decisões. Deixe que eu decida, Ricardo, o momento em que você terá a sua esposa.

- E isso será em breve, majestade?

- Será quando eu achar certo, meu filho.

- O senhor viu a minha noiva, papai?

- Vi, ela tem estado na sala de aulas com o jovem João e Joana.

- Acha que ela vai ser uma boa esposa para mim?

- Acho que ela pode bem vir a ser uma boa esposa.

- Então, a cerimónia deve realizar-se em breve. Estou decidido. O rei ficou calado. Depois, bateu palmas e pediu outra canção. Um sujeito impertinente, o Ricardo. Diferente dos outros. De certo modo, mais forte.

Mas o filho não se casaria com Alice. Ele, Henrique, não iria separar-se dela. Alguma coisa deveria ser feita. Quando voltasse à Inglaterra, iria pensar num plano.

 

O REI NÃO PRETENDIA perder tempo com as comemorações do Natal. Queria ir para a Inglaterra, mas antes precisava certificar-se de que suas possessões ali estavam protegidas. Podia confiar nos filhos... por enquanto. Os juramentos deles ainda estavam muito recentes para que ousassem quebrá-los. Mandou o jovem Henrique dirigir-se para Rouen e anunciar que ia com a aprovação de seu pai. Ricardo deveria seguir para Poitou e preservar a ordem por lá; Geofredo iria para a Bretanha e agiria da mesma maneira. Ele, Henrique, atravessaria a Normandia e providenciaria para que o ducado pudesse ser deixado em segurança nas mãos de pessoas de confiança.

Os rapazes, todos aliviados por terem escapado da vigilância do pai, partiram nas suas diversas direções.

O jovem Henrique não pôde resistir a dirigir-se à corte da França sob o pretexto de que sua mulher, Marguerite, queria visitar o pai. Luís os recebeu com toda a pompa, porque ficou muito satisfeito com o fato de o jovem ir visitá-lo, e Henrique, sentindo a humilhação que a rendição aos desejos do pai lhe provocara, sentiu-se tranquilo ao ser recebido daquela maneira pelo rei da França.

Luís quis saber sobre a reunião e expressou o seu horror ao ouvir as condições do rei.

- Meu querido filho, está vendo que ele lhe roubou os seus direitos.

- Estou vendo que não me encontro em melhor situação do que antes de minha rebelião... na verdade, a minha situação é ainda pior.

Luís assentiu com a cabeça.

- Não ficará assim para sempre.

- Mas jurei não me levantar contra ele.

- Os acontecimentos irão mostrar-lhe como agir.

- Vossa Majestade não gosta de meu pai.

- Gostar dele? Quem gosta dele? Ele não é homem de quem se goste. É um grande general. É vitorioso nas batalhas. Mas há algo mais na vida do que combater.

- Parece que isso representa um grande papel na vida de um rei.

- Infelizmente! Como o homem seria muito mais feliz vivendo em paz com os filhos à sua volta!

- Meu pai não permitiu que eu prestasse vassalagem a ele. Aceitou-a de meus irmãos, mas, quanto a mim, alegou que eu era um rei coroado, e isso não seria adequado.

Luís ficou pensativo.

- Não deixou, então? - remoeu ele e abanou a cabeça lentamente.

- Isso mostra que ele me considera rei, não é?

- A prestação de vassalagem é uma faca de dois gumes - disse o rei da França. - O cavaleiro jura servir o seu senhor, o senhor dele jura protegê-lo. Talvez seu pai não quisesse comprometer-se a protegê-lo.

- E por que não?

- Ele deve ter suas razões.

- Que razões seriam essas?

- Sua mãe é prisioneira dele, e mostrou que pretendia rebelarse contra ele. Você mostrou isso, meu filho.

- E meus irmãos também.

- Mas eles não foram coroados rei.

- O que Vossa Majestade acha que pode me acontecer?

- Como ele não tem o compromisso de protegê-lo, poderia prendê-lo como fez com sua mãe.

- Vossa Majestade acredita que ele faria isso?

- Eu acreditaria em qualquer coisa partindo de Henrique Plantageneta.

O jovem rei ficou alarmado, mas Luís colocou-lhe a mão no braço.

- Tome cuidado, só isso. Esteja sempre certo de que não se encontra numa situação como a de sua mãe.

- Como poderei ter certeza disso?

- É claro que você nunca poderia estar absolutamente certo. Mas se seu pai aceitasse a sua vassalagem e, em troca, jurasse protegêlo, poderia sentir-se muito melhor.

Henrique estava com medo. Não confiava no pai. Iria mesmo o rei prendê-lo? Então, por que não o fizera? Capturara a mãe dele quando estava disfarçada de cavaleiro. Aquilo era diferente.

Continuou a sentir-se contrafeito.

Na corte francesa, encontrou-se com Filipe de Flanders, com quem vinha tendo laços de amizade desde que Filipe o ajudara a invadir a Inglaterra. A tentativa fracassara, mas Filipe não estava preocupado.

Os dois lutaram juntos em torneio. Filipe era um mestre na arte da justa. Ela era a sua paixão. Precisava-se de um equipamento tão grande que Henrique não tinha condições de participar muito. Filipe ria dele.

- E você é um rei! Não importa. vou ajudá-lo. Posso fornecerlhe tudo de que precisar.

Era um passatempo maravilhoso. Henrique gostaria de se demorar e aproveitá-lo. O pai consideraria aquilo uma perda de tempo. Não pensava em outra coisa a não ser em governar seus domínios; sempre dissera que não arriscava tirar as mãos das rédeas um só momento. Bem feito. Devia deixar os filhos assumirem a herança e governarem em lugar dele, agora que estava ficando velho, deixar que Henrique fosse para a Inglaterra e vivesse como um rei. Mas ele nunca se preocupara com coisas que significavam tanto para Henrique. Quando cavalgava levando uma lança, tinha de ser um combate de verdade; quando gastava dinheiro, era para equipar o seu exército e construir algum castelo. Para ele, só existia trabalho e dever o tempo todo. Perdia muita coisa da vida. O jovem Henrique, no entanto, não pretendia perder aqueles prazeres se dependesse dele.

Promover justas, dar festas, gozar da companhia de mulheres

- isso eram as boas coisas da vida.

Ele gostaria de viver como Filipe de Flanders.

Filipe lhe disse que estava examinando a possibilidade de uma viagem a Jerusalém. Para ele, seria uma grande aventura viajar à Terra Santa e aplicar o golpe em favor da cristandade.

Como Henrique teria gostado de acompanhá-lo! Imaginou-se contando o seu desejo ao pai. Podia ver os sinais de desprezo manifestando-se no rosto leonino.

- Lutar pela Terra Santa! Aqui, meu filho, tem um reino pelo qual precisa lutar.

No entanto, a mãe dele tinha ido. Tivera grandes aventuras. Que pena ela estar presa! E pensar que o pai era o carcereiro dela!

Era ele que estava na raiz de todos os problemas deles.

Lembrou-se então de que devia estar em Rouen. com relutância, ele e Marguerite se despediram de Filipe de Flanders e ele se apresentou ao amigo e sogro, Luís da França, para receber as bênçãos.

- Tome cuidado. Cuidado com Henrique Plantageneta. Não deixe que ele o trate como tem feito com a mulher. Se o enviar para a Inglaterra, não vá enquanto ele não tiver aceito sua vassalagem e prometido proteção. Se você não fizer isso, poderá vir a ser prisioneiro dele, porque na Inglaterra ele tem o poder de fazer aquilo que hesitaria em fazer em qualquer outro lugar.

Henrique agradeceu ao sogro e partiu para Rouen.

Parecia que estavam lá havia muito pouco tempo quando chegou uma ordem do rei. O filho e a nora deveriam juntar-se a ele em Bures, para acompanhá-lo à Inglaterra. O jovem casal ficou aflito.

- Meu pai preveniu-nos de que isso ia acontecer - bradou Marguerite. - Ele quer que você esteja na Inglaterra, onde irá fazê-lo seu prisioneiro.

O jovem Henrique não sabia o que fazer. Desobedecer à ordem era inconcebível e, no entanto, o que significaria ir?

- Seu pai disse que se ele aceitasse minha vassalagem, teria dificuldade em me prender.

- Entendo - respondeu Marguerite.

- A única coisa que posso fazer é implorar que ele me permita jurar fidelidade.

- Tente isso, e se ele se recusar você saberá que precisará precaver-se. Poderíamos fugir. Meu pai acha que se você não tiver jurado fidelidade, assim que estiver em solo inglês ficará à mercê dele.

- Já estou à mercê dele - disse o jovem Henrique, com um sorriso amargo.

- Mas pelo menos não pode agir contra seus próprios juramentos assim tão depressa.

- Ele pode fazer e fará o que quiser. Mas pelo menos acho que esperaria algum tempo. vou implorar para que aceite minha vassalagem. Veremos, então, qual será a resposta.

Quando chegaram a Bures, o rei estava impaciente, aguardando a chegada deles. Abraçou-os com ardor, perguntou como iam de saúde, em especial a nora, porque estava imaginando se ela já teria engravidado, e depois lhes disse que planejava partir para a Inglaterra imediatamente.

O jovem Henrique perguntou se podia falar com ele a sós, e no mesmo instante a permissão foi concedida.

- Meu pai, não posso acreditar que o senhor goste de mim como gosta de meus irmãos, e isso faz de mim um homem muitíssimo infeliz.

- Por que iria ter uma ideia dessas? Você não é o meu filho mais velho? E se se rebelou contra mim, seus irmãos também o fizeram. Eu o perdoei, e se você for um bom filho para mim, poderá estar certo de meu amor. Quantos pais teriam perdoado uma traição como a que você e seus irmãos mostraram contra mim? E acha que não gosto de você!

- O senhor se recusou a aceitar minha vassalagem.

- Ora, não é porque fiz de você um rei?

- Não passa de um título.

- Sim, apenas um título! Não pode haver dois reis num só reino. Fiz de você um rei, meu filho, para que quando eu morrer não haja dúvida de quem é o meu sucessor. Você fica com o título até receber a coroa, e isto só poderá fazer quando eu não estiver aqui para usá-la.

- Sou rei só no nome. O senhor é o nosso soberano. No entanto, não quer aceitar minha vassalagem. Não consigo encontrar um motivo para isso, exceto o de que o senhor

não gosta de mim.

- Meu querido filho, se quiser jurar vassalagem e fazer o seu voto de fidelidade, que assim seja.

- Oh, papai, então o senhor gosta mesmo de mim! Os dois se abraçaram, e o rei disse, emocionado:

- Fico contente ao vê-lo assim arrependido.

Lágrimas de alívio estavam nas faces do jovem Henrique. Se o pai aceitasse a vassalagem dele, estaria a salvo.

- Vou providenciar para que essa pequena cerimónia tenha lugar sem demora, porque vejo que enquanto ela não se realizar irá pensar que continuo com raiva de você. Será tratado como seus irmãos, e então seremos bons amigos. Porque isso, meu filho, interessa a nós dois.

Henrique contou a Marguerite o que o rei lhe dissera. Ela ficou satisfeita.

- Mas se certifique de que ele cumprirá a promessa. Sabe como ele é. Nem sempre acha necessário cumprir uma promessa.

Aquela, no entanto, o rei cumpriu.

Foram trazidas as relíquias sagradas e, colocando as mãos sobre elas, o jovem Henrique fez o seu juramento de fidelidade ao pai.

- Mostrarei fidelidade a Vossa Majestade contra todos os homens e, enquanto eu viver, procurarei não prejudicar quer os meus homens, quer os do rei, meu pai, que serviram na guerra quando estivemos um contra o outro. Obedecerei aos seus conselhos em todos os meus atos.

O rei ouvia com uma expressão ternamente afetuosa. Quando o juramento acabou, ele abraçou o filho.

- De agora em diante, você e eu seremos os melhores dos amigos, e isso é uma boa nova para nós e nossos domínios.

Pouco depois, partiram para a Inglaterra.

A primeira indulgência do rei foi visitar Alice. Já não era a criança que de quando se tornara amante dele, porque amadurecera depressa. Henrique ficava cada vez mais apaixonado, porque descobria nela maiores profundezas de sensualidade, enquanto ao mesmo tempo ela continuava dócil e sem fazer exigências. Certa vez, ele pensara que Rosamund lhe dava tudo de que precisava, mas faltava-lhe o prazer sensual que se tornava cada vez mais evidente em Alice. Essa, sim, era a amante perfeita. Não havia dúvidas quanto a isso. Ele percebia que durante os momentos mais apaixonados dos dois, Rosamund olhava, por assim dizer, por cima do ombro para ver se o anjo que tomava notas estava presente. Um amor como aquele devia preencher por completo os momentos; não se devia pensar no acerto de contas. Se esse chegasse, teria de ser mais tarde.

Henrique gostaria de passar mais tempo com Alice.

- Agora que estou na Inglaterra, virei vê-la mais vezes. Estará sempre tão ansiosa por me ver?

Ela garantiu-lhe que sim.

O rei não lhe disse que o noivo, Ricardo, estava querendo casar logo - Henrique não queria estragar momentos como aquele. Além do mais, tinha outros assuntos com que se ocupar. Estava especialmente interessado no filho Henrique, que pretendia manter a seu lado. Não apenas porque não confiasse nele, mas porque queria sinceramente ensinar-lhe a arte do governo monárquico. O jovem Henrique tinha muitas qualidades. Era bonito e muito encantador. Possuía aqueles dons a seu favor, o que nunca acontecera com o pai. Mas era frívolo e faltava-lhe a dedicação que o pai possuía. Ainda não entendia que para governar um reino - e em especial um reino tão espalhado assim - um rei nunca deveria permitir que o prazer atrapalhasse o seu dever para com a coroa. Henrique teve um pensamento fugidio quanto a Alice. Bem, admitiu ele, quase nunca. E se fosse descoberto o segredo de que ele tomara a noiva de Ricardo como amante, ele superaria aquilo como fizera com outros problemas. Insistiria no divórcio. Ofereceria a Luís um casamento para a filha... casamento com o rei da Inglaterra. E nada lhe causaria maior prazer.

Além do mais, após um bom governo no passado, podia-se correr riscos, o que não ocorria com alguém inexperiente.

Um de seus primeiros deveres na Inglaterra seria visitar o santuário de Santo Thomas, prestar homenagem ao santo que, agora, era seu bom amigo e estava trabalhando a seu favor no céu. Havia, agora, um novo arcebispo, Ricardo, prior de Dover, que fora eleito por unanimidade e estava no cargo havia quase um ano. No dia em que ele fora eleito, chegaram notícias do papa dizendo que o nome de Thomas Becket havia sido incluído na lista de santos.

Ricardo, pelo que parecia, não seria um criador de problemas, e por isso o rei se sentia grato. Podia congratular-se consigo mesmo pelo fato de que tudo funcionara muito bem.

Enquanto seguia para Canterbury com o jovem Henrique ao lado, recebeu notícias tristes do conde Humbert de Maurienne. A filhinha dele, Alice, que tinha sido prometida ao príncipe João, morrera de repente. O rei ficou momentaneamente consternado, mas depois lhe ocorreu que com as melhores perspectivas de João ele poderia fazer um casamento mais vantajoso. Era muito frequente aqueles compromissos darem em nada. As crianças eram comprometidas nos berços, e por isso poderiam acontecer coisas enquanto cresciam, evitando assim que os casamentos se realizassem.

João era, agora, um objeto de barganha livre, e o pai ficaria alerta para uma proposta mais vantajosa.

E agora, para Canterbury.

O rei observava o filho enquanto cavalgavam. Bonito demais, ainda um pouco petulante. E como se mostrara insistente para que sua vassalagem fosse aceita! Por que seria? Teria ele realmente se conscientizado da loucura de seus atos?

O rei ficou surpreso ao descobrir no seu íntimo um carinho pela família. Ele teria gostado de uma esposa delicada - Alice, claro

- e uma prole de filhos e filhas que o admirassem, o amassem e só pensassem em servi-lo. Isso não era pedir demais. Era natural que pais e filhos homens trabalhassem juntos.

Alguma coisa dera errado na família. Por necessidade, ele tivera que se ausentar por longos períodos de cada vez, e Eleanor... Tudo voltava a Eleanor. Era muito lamentável que tivesse se casado com ela. Mas seria, mesmo? E a Aquitânia? Eleanor fora a mais rica herdeira da Europa, e ele fora considerado um homem de sorte por tê-la agarrado.

Se se divorciasse dela, perderia a Aquitânia. Aquilo dava o que pensar.

Mas aquela não era a hora de pensar naquilo.

Estavam se aproximando de Canterbury.

- Veja, meu filho, à nossa frente, a torre e as flechas da catedral. Não posso vê-la sem ficar emocionado.

- Isso não é de admirar, papai, considerando-se o que aconteceu lá.

- Fico contente por ter feito as pazes com Thomas Becket. Agora, voltamos a ser amigos

como éramos no início de nosso relacionamento. O mesmo ocorre conosco, meu filho. Nossa força é a nossa união. Lembre-se sempre disso. Quero que você e toda a Inglaterra saibam disso. É por isso que vou divulgar que você e eu juramos fidelidade um ao outro. Quem ousaria voltar-se contra nós, quando estamos juntos?

- Todos sabem que somos amigos, papai.

- Os chegados a você, sim- mas quero que todos saibam, e por isso vou fazer uma declaração pública, para que ninguém tenha dúvida.

- Não entendi, papai.

- Não se preocupe, meu filho; você vai ver.

Henrique viu.

O rei passou algum tempo com o seu novo arcebispo e declarouse satisfeito com ele.

Pediu ao arcebispo que convocasse todos os bispos de Canterbury e ele próprio os acompanhasse. Ordenaria a todos os cavaleiros e barões que comparecessem, porque tinha uma coisa importante a lhes comunicar.

- Para que essa reunião, papai? - perguntou o jovem Henrique.

- Você verá quando chegar a hora.

No salão do palácio, pai e filho estavam sentados lado a lado sobre o palanque, e o rei se dirigiu aos presentes.

- Os senhores me vêem aqui com o meu filho, e vêem que existe amizade entre nós. Sabem muito bem que há pouco tempo a situação era muito diferente. Mas tenho notícias excelentes para os senhores. Meu filho, o rei Henrique, foi me procurar em Bures, e com lágrimas e muita emoção pediu humildemente perdão. Pediu-me que o perdoasse pelo que me fizera antes, durante e depois da guerra. com toda a humildade, pediu que eu, pai dele, aceitasse sua vassalagem e toda fidelidade, declarando que não poderia acreditar que eu o tivesse perdoado se não aceitasse. Fiquei emocionado com isso. Minha pena foi grande, pois vi o quanto ele estava arrependido, a ponto de se humilhar tanto à minha frente. Coloquei de lado meus ressentimentos contra ele e permiti que me prestasse vassalagem. Sobre relíquias sagradas, ele jurou que mostraria fidelidade a mim contra todos os homens e obedeceria aos meus conselhos e que ordenará todo o seu pessoal segundo meus conselhos, e doravante em todas as coisas.

O jovem rei sentiu surgir uma violenta indignação. De fato, havia prometido aquilo, mas aquela declaração pública preparada pelo pai era extremamente humilhante.

Levara-o até ali para que os principais homens da nação soubessem que, embora o jovem Henrique levasse o título de rei, só havia um rei na Inglaterra e que todos - inclusive seu filho - eram seus súditos.

O ressentimento do jovem Henrique chegou ao máximo. Queria erguer-se e bradar que pedira ao pai que aceitasse sua vassalagem não porque quisera servi-lo, mas porque receava o que poderia lhe acontecer se não fizesse aquela declaração.

Não iria suportar aquele tratamento. Fizera o juramento, mas iria aguardar a sua oportunidade.

O rei sentia prazer em estar na Inglaterra. Seria sempre rei da Inglaterra antes de qualquer outra coisa, e aquela terra era, para ele, mais importante do que qualquer outra, apesar de ter nascido e sido criado em Anjou. Perder a Inglaterra seria o maior desastre que poderia acontecer a um descendente do Conquistador. Não haveria perigo disso, não fosse o fato de que precisaVa proteger suas terras muito longínquas.

Mantinha o jovem Henrique a seu lado, tentando conquistarlhe a afeição. Tinha pena do rapaz e, embora desconfiasse dele, queria ser um pai para ele. Estava aprendendo que mesmo um rei não podia ordenar que houvesse afeição. Tentara explicar por que fizera aquela declaração pública da vassalagem do filho. Não pretendera humilhá-lo com isso. Fora para mostrar ao povo que os dois tinham jurado que seriam amigos.

- Não foi suficiente eu ter-lhe prestado meu juramento?

- Era melhor que todos soubessem que você me fizera o juramento.

- Eu me senti humilhado.

- Nunca se sinta humilhado porque cumpre com seu dever para com seu pai. Sinta-se orgulhoso de ter tido a coragem de confessar o seu erro e alegre por seu pai ter tido a magnanimidade de perdoá-lo e aceitá-lo de volta em seu coração - retrucou o rei.

Ele mandava o filho sentar-se a seu lado à mesa e cavalgar a seu lado em combate. Teria mandado o rapaz dormir no seu quarto, não fosse o fato de Henrique ser casado e ele, o rei, muitas vezes preferir dormir com outra pessoa.

Alice, querida e doce Alice! Ela estava mudando; o corpo se formava à medida que passava da infância para a condição de mulher.

Um dia, quando a visitou, ela lhe deu a notícia perturbadora.

- Majestade, creio que estou grávida de um filho seu.

Ele sentiu um misto de horror e prazer. Alguma coisa tinha de ser feita, agora. O quê? Como poderia escrever ao rei da França e dizer-lhe que engravidara a filha dele? Como poderia dizer a Ricardo que sua noiva ia ser mãe?

Abraçou-a com força para que ela não visse a expressão de seu rosto.

Ele soubera que havia aquela possibilidade e recusara-se a enfrentá-la de frente. Sabia que quando acontecesse haveria alguma mudança em sua maneira de viver, porque Alice não podia ficar no palácio e ter um filho que todos saberiam ser dele. E mesmo que não fosse - que escândalo haveria se a noiva de seu filho Ricardo ficasse naquelas condições, quando não se havia casado nem estivera perto do noivo havia anos.

Como já não seriam os sussurros? As visitas dele ao palácio deveriam ter sido observadas. Muitos talvez soubessem de seu relacionamento com Alice. Ninguém ousaria revelar o segredo, com medo da raiva dele, mas os comentários velados deviam existir.

- O que devo fazer, majestade?

- Deixe isso comigo, minha querida.

Ele ficou feliz com aquilo. Que esposa ela daria! Não perguntou como, onde ou por quê. Contentava-se em deixar que ele resolvesse, tão certa estava de sua capacidade de solucionar todos os problemas dela.

Ele ponderou sobre o problema. Se pudesse divorciar-se de Eleanor agora... e casar-se com Alice... Mas não havia tempo. Imaginava as dificuldades que estariam no caminho de seu divórcio. Não podia, em absoluto. Se ao menos Alice não fosse filha do rei da França, como seria fácil! Apenas mais um bastardo para somar-se aos muitos que ele já fizera. Mas a filha do rei da França! Á noiva de seu filho! Tratava-se de uma situação muito delicada.

Alice não podia permanecer no palácio. Seria inteiramente impossível ter a criança lá. Para onde, então, poderia ir? Tinha de tirá-la o mais rápido possível dali, antes que a gravidez se tornasse evidente. E para onde iria mandá-la?

Se ao menos pudesse se casar com ela. Mas como? Só havia um modo... se Eleanor morresse.

Aquilo era impossível. Se ocorresse uma morte misteriosa, as suspeitas cairiam sobre ele. Seria, outra vez, o caso Thomas Becket. E a Aquitânia? Passaria para Ricardo, e ele, o rei, nunca seria aceito lá. Aquilo era coisa que não se discutia. Além do mais, ele não era aquele tipo de assassino. Podia matar um homem numa batalha; podia mandar matar pessoas que o ofendessem, mas não podia assassinar a esposa.

Teve um sorriso irónico. Lembrava-se tanto dela. Certa vez, estivera enamorado dela. Que tigresa ela era - e uma grande amante! Haviam passado bons momentos juntos no começo. Algo os unia, ainda que fosse apenas o ódio. Gostava de pensar que ela ainda estava na Terra - e o que era melhor, numa prisão escolhida por ele.

Querida Alice, pensou, por mais que gostasse de torná-la minha esposa, esse não é o caminho. Quem dera que isso não tivesse acontecido; poderíamos continuar no esquema antigo até eu elaborar um plano. Agora temos de planejar algo bem rápido.

Estudou o problema de todos os ângulos e pareceu só existir uma solução.

Seguiu para o seu palácio de Woodstock.

Rosamund ficou, como sempre, contente em vê-lo.

Abraçou-a com ardor e disse que, como sempre, ela lhe proporcionava um grande conforto. Ela percebeu logo que ele não fora passar uns dias tranquilos em sua companhia. Ele tinha um problema e achava que ela poderia ajudá-lo.

- Há uma coisa que preciso lhe dizer, Rosamund. Vamos andar pelos jardins, porque lá poderemos ficar a sós.

Pelos caminhos, com os arbustos cuidadosamente bem tratados, os dois caminharam de braços dados.

- Preciso de sua ajuda neste assunto, Rosamund. Refere-se à princesa Alice. - Percebeu que ela se retraiu. Então houve rumores, e tinham chegado até ela! Quem mais teria ouvido? - Ela é uma criatura graciosa, e no momento se encontra numa situação difícil. Está grávida.

- Majestade!

- Sim - disse o rei, pesaroso. - Isso aconteceu e, é claro, haveria um grande escândalo se fosse revelado.

- Ela está noiva de Ricardo!

- Ricardo, é claro, não deve saber.

- Mas ela vai ser mulher dele!

- Aquele casamento poderá não se realizar nunca. Você sabe como acontece com esses noivados. Houve o noivado de João com aquela outra Alice. Houve protestos com

relação aos castelos que eu dei a ele. Aquilo provocou uma guerra. E agora, veja só, a pequena Alice está morta e João não tem noiva.

- Eles não passavam de crianças, mas Ricardo e Alice...

- Acontece que ela está grávida e não quero que isso seja divulgado.

- De que modo, então, majestade, este assunto pode ser mantido em segredo?

- Ora, vamos, Rosamund! Esta não é a primeira vez que uma criança nasce em segredo.

- Em Westminster?

- Tem razão, preciso tirá-la de lá. Este pavilhão aqui já serviu de local isolado. Pode servir de novo.

- Vossa Majestade vai mandar Alice para o pavilhão?

- Quero que você vá com ela, para protegê-la e fazer-lhe companhia. Quer fazer isso, Rosamund?

- Se for de seu desejo.

- Deus a abençoe, querida. Eu sabia que podia confiar minha vida a você.

- Ela deverá ser mantida aqui em segredo?

- Você saberá como fazer isso. Comunicarei a todos que ela deixou o palácio por uns tempos para uma viagem ao norte. Você cuidará dela aqui e terá com você apenas uns poucos de seus criados da máxima confiança. Aqueles que certa vez guardaram bem o nosso segredo. Diga-lhes, discretamente, que agem assim por vontade do rei e que se comentarem algo, provocarão a minha raiva. Mantenha-a aqui. Trate-a com carinho. E deixe que ela tenha o filho em paz.

- E quando a criança nascer?

- Pode deixar isso comigo. Providenciarei para que ela seja criada numa situação à sua altura. Faz isso por mim, Rosamund?

- Como Vossa Majestade sabe, vivo para servi-lo.

- Oh, foi um dia feliz, para mim, quando cheguei ao castelo de seu pai - comentou Henrique.

Ele não se demorou. Precisava voltar para o lado de Alice e contar-lhe que tomara as providências. Ela nada tinha a temer. A sua querida e boa amiga Rosamund Clifford tomaria conta dela, e ele confiava em Rosamund como não confiava em ninguém mais.

Enquanto voltava para Westminster, estava exultante. Não havia situação que não pudesse dominar. Mesmo aquela, de engravidar a noiva do filho, não era, para ele, impossível de solucionar.

Queria se casar com Alice. Então, legitimaria a criança, porque parecia improvável que o casamento pudesse realizar-se antes do nascimento. Ele tinha de se casar com Alice, porque cada vez se aproximava mais o momento em que Ricardo iria exigir a noiva, e como poderia ele, o rei, continuar dando desculpas para não entregá-la?

De volta a Westminster, ele enviou uma mensagem secreta a Roma, convidando o legado papal, cardeal Huguzon, a ir à Ingla terra. Havia certos assuntos que só poderia discutir em pessoa. O principal era o conflito entre os arcebispos de York e Canterbury.

Ultimamente houvera uma certa controvérsia com relação a quem deveria ser considerado o primaz da Inglaterra. E só o rei e o emissário do papa poderiam solucionar essa questão.

Esse assunto, Henrique iria discutir, mas o verdadeiro motivo de sua conversa com o cardeal era um possível divórcio de Eleanor para que ele pudesse casar-se com Alice.

Rosamund conseguira esconder do rei os seus sentimentos, mas era uma mulher muito triste.

Como tudo teria sido diferente se o rei não aparecesse a cavalo no castelo de seu pai naquele dia fatídico! Na época, estava com a idade de Alice e o achara o cavaleiro mais maravilhosamente perfeito que jamais vira. E era assim que continuara a considerá-lo.

Antes de conhecê-lo, acreditara que fossem encontrar para ela um marido e se casaria e criaria os filhos como seus pais criaram os deles. Como era diferente ser a amante de um rei!

Sabia que chegaria a hora em que seria posta de lado. Sempre temera aquilo, embora Henrique tivesse jurado fidelidade eterna. A hora chegara. Ela compreendera, pela maneira como ele falara de Alice e de sua grande preocupação com a princesa, que tinha perdido o lugar.

Era uma situação pavorosa. Alice era tão criança, e já estava grávida de um filho dele, e ela, a filha do rei da França e noiva do filho do rei, Ricardo! O que aconteceria se aquele segredo fosse descoberto?

Sabia que devia fazer o possível para evitar aquilo. Tinha de abafar o seu ciúme; tinha de cuidar da criança, que era inocente. Não sabia ela como era fácil sucumbir às artimanhas de Henrique?

E ali estava ela, que já não era mais jovem, a mulher que pecara e que não tinha nem mesmo o amor de seu parceiro no pecado para ampará-la.

O rei ainda gostava dela, de certo modo, mas Rosamund sabia que isso seria apenas enquanto ela o servisse bem. Houvera época em que ele gostara da rainha, e agora a odiava.

Precisava arrepender-se de seus pecados, e a única maneira de fazer aquilo era entrar para um convento. Pensava naquilo havia algum tempo. Os filhos estavam crescendo. Já não estavam numa idade em que precisassem dela. O rei cuidaria deles, porque gostava muito de seus filhos, ainda mais dos nascidos fora do casamento, porque eles tinham-lhe sido mais fiéis do que os legítimos. Ela tomaria conta da princesa Alice, faria com que passasse pela gravidez sem problemas, e quando a criança nascesse e a princesa pudesse voltar para Westminster, ou onde quer que pudesse aparecer com dignidade, Rosamund comunicaria ao rei sua decisão de retirar-se do mundo.

O rei recebeu o cardeal Huguzon com muitas honras. Estava decidido a mostrar-lhe que tinha o máximo de respeito por ele e seu mestre.

Era ótimo que o papa e o cardeal concordassem com o seu pedido de que aquele assunto problemático fosse resolvido. Como o cardeal sabia, tinha havido um conflito entre Canterbury e York desde o exílio do santo arcebispo Thomas Becket. Para o rei, estava na hora de o assunto ser resolvido.

O cardeal ficou satisfeito por encontrar o rei tão cordato. Era um prazer ficar instalado com tanto luxo e receber presentes caros.

Para ele, estava claro que Henrique se achava muito ansioso por aplacar Roma, e isso era sempre reconfortante, porque um homem com aquele poder podia causar muitas dificuldades para o papado, se quisesse.

Era inesperado que ele estivesse tão apreensivo com as reivindicações de supremacia de York e Canterbury. A sua grande preocupação sempre fora reduzir o poder de ambos e torná-los subordinados à coroa. Por isso, o cardeal, enquanto discutia o assunto, perguntava a si mesmo que outro problema estaria perturbando o rei. Era óbvio que se tratava de um problema para o qual precisava da ajuda do papa.

- Canterbury há muito que detém a primazia na Inglaterra

- dizia o rei. - Durante a ausência de Thomas Becket, o arcebispo de York desincumbiu-se de obrigações que teriam cabido a Canterbury. O senhor vê o dilema em que nos encontramos. York, agora, não quer ceder o lugar a Canterbury.

O cardeal expressou sua compreensão, mas se Roma determinara que o arcebispo de Canterbury devia ser o primaz, assim deveria ser. Ele levaria o problema do rei ao papa, e haveria um pronunciamento formal. Era evidente que o desejo do rei era de que todas as honras fossem devolvidas a Canterbury.

O rei assentiu com a cabeça.

- Há outro assunto... já que o senhor está aqui.

Ah, pensou o cardeal, vamos passar a ele, agora.

- Como Vossa Eminência sabe, tenho sido seriamente perseguido por minha mulher, a rainha.

- Sei que ela agora é sua prisioneira.

O rei ergueu as mãos num gesto de desesperança.

- O que pode um rei fazer quando a mulher volta os filhos contra ele e os incita à rebelião?

O cardeal concordou, sério.

- Como sabe, senhor cardeal, recentemente envolvi-me numa guerra em que meus filhos estavam do lado contrário. A mãe deles criou-os para que me odiassem. Ela foi apanhada, disfarçada de homem, quando ia juntar-se a eles e lutar pessoalmente contra mim. Não fui excessivamente tolerante ao limitar-me a detê-la em um de meus castelos onde, embora seja prisioneira, é tratada como uma rainha?

- Foi, majestade.

- Muitos reis teriam mandado executá-la. O cardeal tossiu ligeiramente.

- Estou certo, majestade, de que nunca seria culpado de uma loucura dessas. A rainha é a duquesa da Aquitânia. Acredito que o povo daquela terra teria se revoltado se ela tivesse sido molestada de qualquer maneira.

- Eu a mantenho sob controle, mas ela vive como uma rainha. Não passa nenhuma dificuldade, exceto a de não poder viajar para o exterior, e quando sai do castelo leva uma escolta armada. Tendo em vista o que ela fez e tentou fazer, tenho de mante-la sob controle. É trágico, senhor cardeal, quando um homem é privado de seus direitos naturais.

- É verdade, majestade.

- Há muito venho pensando que devia afastar a rainha de mim.

- Vossa Majestade fala em se divorciar da rainha? Isso não seria possível.

- A rainha e eu somos parentes próximos. Poderíamos ser divorciados com base em consanguinidade.

O cardeal suspirou. O pedido eterno. com base na consanguinidade! Se se procurasse bem, era possível encontrar alguma ligação sanguínea entre a nobreza da Inglaterra e a Europa toda. O problema era que ao atender o pedido de um lado ofendia-se o outro.

O cardeal prometeu, então, que levaria o pedido do rei ao papá e garantiu-lhe que faria tudo ao seu alcance para fazer com que o santo padre ficasse cônscio das dificuldades do rei da Inglaterra.

Ricardo de Luci, o magistrado do rei, sempre fora um homem em quem o rei podia confiar. Desde que Henrique recebera a coroa, Ricardo de Luci exercia um alto cargo e não deixara de servir ao rei uma só vez. Havia momentos em que ele irritava o rei, mas Henrique era inteligente bastante para saber que Ricardo de Luci mantinha suas opiniões unicamente porque acreditava que eram vantajosas para a Inglaterra e o rei. Um governante inteligente não achava ruim um servidor que se opunha a ele para o seu próprio bem.

Ricardo de Luci era o homem de confiança do rei, e ao aproximar-se de Henrique consternado, o rei estava pronto para ouvi-lo.

Ricardo, como era de seu estilo, foi direto ao assunto.

- A visita do cardeal Huguzon não foi provocada simplesmente para resolver a controvérsia entre Canterbury e York, isso eu sei. Vossa Majestade está pensando em divorciar-se da rainha.

- É desagradável estar ligado a uma pessoa que mostrou ser inimiga.

Ricardo concordou.

- Majestade, o que aconteceria à rainha se Vossa Majestade se divorciasse dela e tornasse a se casar?

- Ela continuaria minha prisioneira. Pelos olhos de Deus, Ricardo, acha que eu daria àquela mulher a liberdade para que pudesse voltar para a Aquitânia e planejar contra mim?

- Não, acho que Vossa Majestade não faria isso. Mas peço que pense com muito cuidado nesse caso.

O rei ficou encolerizado, mas Ricardo ignorara mais de uma vez os crescentes sinais de um acesso de raiva.

- Acha que não pensei nisso com o máximo de cuidado! bradou o rei.

- Sei que tem sido uma grande preocupação de Vossa Majestade há algum tempo. Mas lhe imploro, majestade, que pense de novo no que esse divórcio iria significar.

- Ele iria me livrar de uma loba que tem me atormentado e voltou meus filhos contra mim.

- É mais do que isso, majestade. Ele iria livrá-lo da Aquitânia.

- Eu continuaria com ela. Ricardo sacudiu a cabeça.

- Ela é a duquesa, e seu filho Ricardo foi proclamado duque.

- É um título sem valor. A Aquitânia é minha

- Vossa Majestade recebeu o título quando se casou com a duquesa, mas o povo nunca o aceitaria. Sempre foi leal à rainha e a considera a verdadeira governante. Se Vossa Majestade se livrar da rainha, perderá a Aquitânia.

- Pelos olhos de Deus, Ricardo, quer que eu fique ligado a uma mulher que odeio.

- Eu não poderia fazer nada se Vossa Majestade quisesse o contrário. Meu dever é lembrá-lo do que esse divórcio iria significar. Ela é uma grande herdeira. A Aquitânia iria levantar-se contra Vossa Majestade. E a Normandia?

- Meus filhos juraram que não pegariam em armas contra mim.

- Majestade, nós sabemos o que esses juramentos significam em casos de emergência.

- Maldito seja, Ricardo. Você me deixa intranquilo. Eu tinha me decidido. Mas, meu bom amigo, sei que diz isso por amor e lealdade para comigo.

- Então consegui o que queria.

- Quer dizer que acredita que não há jeito de obter um divórcio sem uma luta que bem poderia continuar pelo resto de minha vida?

- Acredito, majestade.

- Mas quero tornar a me casar.

- Majestade, não poderia contentar-se com uma amante? Há muito que Vossa Majestade faz essa concessão.

- Agora não é tão fácil assim. Diga com sinceridade, Ricardo, você tem ouvido rumores?

- Tenho, majestade.

- Então tem-se falado nisso.

- com discrição e só em certos setores. Temos de evitar que seja do conhecimento geral.

- Mas o que posso fazer, Ricardo?

- A moça foi retirada da corte. Está viajando pelo norte, como parte de sua educação. Quando ela voltar, seria bom Vossa Majestade não tornar a vê-la.

- Isso é impossível.

- Ela deve se casar sem demora.

O rei bateu na mão esquerda com a direita fechada.

- Não. Nunca irei concordar com isso.

- Se ela não fosse a filha do rei da França...

- Por isso mesmo que eu poderia me casar com ela.

- A noiva de seu filho!

- Esses noivados muitas vezes dão em nada.

- É verdade. Devemos nos ater à questão do divórcio. Majestade, deve pensar se vai ficar com o casamento e a perda de seus domínios ou manter o seu controle sobre eles e continuar casado com a rainha.

- O cardeal dá a entender que um divórcio seria possível.

- Realmente, majestade. O papa não gostaria de ver o seu poder diminuído?

- Você está decidido a me deixar frustrado.

- Estou decidido a servir a Vossa Majestade de todo o meu coração e com todas as minhas forças, e se o ofendo ao fazer isso, que assim seja.

O rei passou o braço pelo de Ricardo de Luci.

- Meu bom amigo, vejo que tenho de me afastar e meditar sobre esse assunto - falou Henrique.

Não conseguiu dormir; cavalgou pela floresta, devolveu o cavalo suado aos cavalariços; deitou-se na cama e olhou para o futuro.

Meditou; decidiu-se e mudou de ideia.

E o tempo todo um pensamento ficava martelando-lhe a cabeça: Alice, a mulher que ele amava, e a perda da Aquitânia. Alice e conflito. E ficar com Eleanor, a rainha que ele odiava, ou perder o controle de seu império.

Pensava com frequência no seu bisavô, o Conquistador, e parecia que o homem o visitava em seus sonhos. Ele via o desprezo naquela fisionomia austera. Para Guilherme, o Conquistador, não teria havido problema. Nunca teria podido achar que uma mulher fosse mais importante que o poder. Nos mesmos sonhos, via o avô, Henrique I. Ali estava um homem cuja necessidade de mulheres tinha sido tão grande - se não maior - quanto a do neto. Ele também sacudia a cabeça, sério. Era inconcebível que o descendente deles fosse pensar num possível desastre para o império que eles lhe haviam deixado para livrar-se de uma mulher e casar-se com outra.

Era um conflito entre amor e poder. E Henrique Plantageneta era rei e descendente de Guilherme, o Conquistador. Não havia, na verdade, necessidade de estudar o assunto.

Ele sabia o que devia fazer.

No pavilhão de Woodstock, a hora de Alice estava chegando.

Rosamund cuidava dela com carinho e passou a gostar muito da menina. De certo modo, as duas eram iguais, talvez fosse essa a razão de ambas terem atraído o rei.

Rosamund sentava-se ao lado da cama da princesa enquanto fazia seu trabalho de agulha, e Alice lhe perguntava sobre os sofrimentos do parto.

Elas iriam rezar por um parto fácil, dizia Rosamund. Ela duvidava que fosse fácil. A garota era jovem e talvez ainda não estivesse pronta para dar à luz. Rosamund tremia, pensando na ira do rei se alguma coisa saísse errada com Alice.

Dedicava-se a cuidar da menina. Era o último serviço que faria para ele. Decidira-se firmemente a entrar para um convento tão logo a criança de Alice nascesse e ela se recuperasse. Escolhera o de Godstow e já fizera doações a ele; sabia que quando chegasse a hora, seria bem recebida.

Naquele ínterim, havia Alice.

Tratava-se de uma bela menina, e acreditava que o rei era todopoderoso. Era um tanto inocente, e parecia não adivinhar o relacionamento anterior do rei com Rosamund. Talvez aquilo tornasse a coisa mais fácil.

Alice falava no rei, pois até ela estava ciente de que Rosamund sabia que ele era o pai da criança.

Era um grande homem bom, disse ela a Rosamund, que estava casado com uma mulher malvada. A rainha era advogada do diabo, e o rei iria separar-se dela e casar-se com Alice.

- Minha querida, você não está noiva do príncipe Ricardo?

- Estava, mas isso agora não significa coisa alguma. É o que o rei diz, e o rei sabe.

Então a jovem Alice achava que em breve seria rainha da Inglaterra! Certa vez ele lhe prometera a mesma coisa. Havia muito tempo que ele odiava a rainha. Quantas vezes falara em livrar-se dela! O divórcio não seria difícil, dissera ele, porque era certo haver laços sanguíneos. Ele prometera, então, fazer de Rosamund a sua rainha.

Agora chegara a vez de Alice, que ali estava prestes a dar à luz um filho dele, cuidada por ela, Rosamund, a amante descartada.

Os meses se passaram. As duas andavam pelos jardins; conversavam; bordavam roupas de criança, e Rosamund mostrou as que seus filhos tinham usado - meio-irmão do pequenino que estava para nascer. O filho de Alice devia usá-las. Por que não, já que haveria um forte laço entre eles?

- O rei é bom para todos os seus filhos - disse Rosamund.

- Não é uma maldade os filhos se voltarem contra ele? - bradou Alice. - Eles foram estragados pela mãe. Mas em breve será afastada dele. Ela não usará o título de rainha da Inglaterra por muito tempo.

Rosamund era mais velha e mais experiente; ouvira promessas já esquecidas. Não adiantava dar a entender a Alice que não seria tão fácil assim para o rei obter o divórcio.

No devido tempo, Alice começou os trabalhos de parto e deu à luz uma menina que morreu poucas horas depois de nascer.

Alice ficou desolada. Quando o rei foi visitá-la, ele fingiu que também estava, mas não pôde deixar de pensar consigo mesmo que talvez tivesse sido melhor assim.

- Quando estiver recuperada, meu amor, deverá voltar para a corte. E se estiver um pouco abatida, diremos que foi uma viagem cansativa ao norte e o clima de lá não lhe fez bem.

- Estou pensando em entrar para um convento - comentou Rosamund, tranquila.

- Penso que já faz algum tempo que esse é o seu desejo retrucou o rei.

- Sinto necessidade de solidão e meditação. Acho que chegou a hora de procurar perdão pelos meus pecados.

- Rosamund, minha rosa do mundo, você é uma boa mulher. Deus irá perdoar as suas transgressões.

- Nem todos concordarão com você. Eu soube que em alguns círculos sou tratada de Rosa-immundi, a rosa da impureza.

- Sempre haverá quem atire pedras nos outros.

- No entanto, sinto minha culpa pesar sobre mim e quero passar meus últimos anos em arrependimento.

- Para onde você iria?

- Para Godstow. Já tomei as providências. Estão preparados para me receber.

- Quando a receberem, farei doações a eles. Não vão se prejudicar quando a receberem.

- Como sempre, Vossa Majestade é bom para mim. - Mas Rosamund viu o alívio no rosto dele. Era o que o rei queria que ela fizesse. Faria doações a Godstow porque o convento oferecera santuário a sua amante. Já não precisava dela, mas a amara o suficiente para querer vê-la em boa situação.

Assim, com a tristeza no coração, Rosamund retirou-se para o convento, e Alice voltou para o palácio.

O rei sabia que seria muito difícil divorciar-se de Eleanor, mas ao mesmo tempo estava decidido a não abrir mão de Alice.

 

O JOVEM REI HENRIQUE estava inquieto. Aquilo era demais. Praticamente não podia se mexer sem que o pai soubesse. Estava cansado de ouvir que precisava fazer isso

e aquilo, que só havia uma maneira de governar, ou seja, a adotada pelo rei, seu pai.

Ouvia histórias sobre como homens como Filipe de Flanders passavam o tempo. Filipe era um cavaleiro esplêndido, perito na justa, e sua fama se espalhava por toda a Europa. Em breve, faria uma peregrinação à Terra Santa. Filipe era rico, vestia-se com trajes luxuosíssimos; seus cavalos eram ricamente ajaezados e os homens o olhavam com respeito.

Quanto a Henrique, tinha muito pouco. A única maneira de viver com algum conforto era fazer dívidas. Isso não era difícil, já que era filho do rei e, na verdade, rei também. Isso o deixava irritado. Era rei, mas sem poder. O título representava uma palavra, nada mais.

Os homens temiam o pai dele, e por isso pouco respeitavam o filho; e quando ele cavalgava ao lado daquela figura quadrada, com trajes que eram usados como uma utilidade e não como ornamento e olhava aquelas mãos muitas vezes tornadas ásperas pelo tempo, sentia vontade de berrar a sua frustração.

Seu amigo Guilherme, o Marechal, já não o agradava como antes.

Apesar de tratar-se de um excelente cavaleiro, um amigo fiel, Guilherme não era como Filipe de Flanders. De fato, às vezes Henrique achava que Guilherme se mostrava favorável ao modo como o pai o orientava.

Pensando em Filipe de Flanders, ele ficou imaginando se também não poderia partir em algum tipo de peregrinação. Qualquer coisa para fugir do pai.

Lembrava-se das histórias contadas pela mãe, de que o pai dela, desejando ter um herdeiro homem, decidira seguir para

compostella e pedir ajuda no santuário de São Tiago. A estrada era difícil, as condições terríveis, e o duque caíra doente com uma febre virulenta. Soubera que o fim estava próximo, mas fora carregado em sua liteira, e estava enterrado em frente ao altar principal da igreja de São Tiago de Compostella.

Nada mais natural que o neto dele sentisse a necessidade de fazer uma peregrinação ao santuário de São Tiago e à sepultura de seu avô por parte de mãe.

Disse ao pai o que queria fazer.

- Por quê?

- Cometi o grande pecado de pegar em armas contra meu pai.

- Seu pai o perdoou, e por isso Deus irá perdoá-lo.

- Isso pesa muito em minha consciência.

- Então, alegro-me, porque assim é que deve ser, e a melhor maneira de você expiar esse pecado é trabalhando bastante e aprendendo depressa tudo o que eu gostaria de ensinar-lhe.

Sinto necessidade de ir a Compostella.

- E eu, meu filho, preciso de você aqui, e posso assegurá-lo de que minha necessidade é maior do que a sua.

- Sou tratado como uma criança - disse Henrique, mal-humorado.

- Porte-se, então, como um homem e faça jus ao direito de ser tratado como tal.

- Há quem faça essas peregrinações.

- Pode ser, mas eles não têm reinos que precisam aprender a governar.

- Filipe de Flanders planeja ir a Jerusalém.

- Que vá. Vai evitar que ele se meta em travessuras.

- com isso, ele vai obter a remissão dos pecados.

- Sem dúvida isso é necessário, porque acredito que ele tenha cometido vários. Mas não quero ouvir mais falar nisso. Você não pode ir a Compostella. Ficará perto de mim, para que eu possa prepará-lo para a coroa quando ela chegar às suas mãos.

- Mas, papai...

- Já falei! - vociferou o rei; e quando as iradas luzes saltavam-lhe nos olhos, não era hora de continuar a discussão.

O rei ficou perturbado, o que sempre ocorria quando recebia notícias de Ricardo.

Seu filho estava chegando à Inglaterra, pois estava alarmado pelos levantes na Aquitânia e queria consultar o pai.

Era quase certo que iria pedir que a noiva fosse viver com ele, e aquilo era uma coisa que o rei não iria permitir. Via Alice com frequência, agora, e sua paixão por ela não diminuía. Adorava a menina, e à medida que ela ficava mais velha, maior era a sua devoção. Estava decidido a não se separar dela, mas poderia continuar dizendo que ela e Ricardo eram demasiado jovens?

Se Ricardo fosse à Inglaterra, Alice teria de ir embora. Henrique poderia tê-la enviado outra vez para o pavilhão, mas agora Rosamund não estava lá. Não poderia tirá-la de Godstow para cuidar de sua amante. Ainda assim, poderia mandar Alice para o pavilhão, e aqueles bons criados que haviam servido bem Rosamund e que ele, com uma certa antevisão, mantivera por lá, poderiam cuidar dela. De uma coisa estava certo: Ricardo e Alice não podiam se encontrar.

Sentiria prazer em ver o filho, porque tinha uma certa admiração por ele. O rapaz estava mostrando ser um comandante valente, um excelente combatente, e um génio quando se tratava de batalhas. Era diferente do jovem Henrique e de Geofredo, que só pensavam no prazer e em conseguir o poder sem fazer força.

E agora Ricardo estava para chegar à Inglaterra com o irmão Geofredo, e o rei decidiu que iria mostrar aos seus súditos o grau de amizade com que vivia com os filhos. A Páscoa estava se aproximando, e eles iriam passá-la juntos, e que melhor lugar do que o seu castelo de Winchester? No entanto, o jovem Henrique gostaria de poder ir à Normandia, e como surgiu a necessidade de um membro da família aparecer por lá, o rei consentiu que ele fosse. O jovem Henrique ficou contentíssimo com a perspectiva de escapar do pai, e fez preparativos imediatos para partir.

Os ventos, porém, estavam contra ele, e quando chegou a Páscoa o rei mandou que ele participasse das festividades em Winchester, para que ficassem todos juntos.

Assim, o rei teve os quatro filhos com ele, o que muito o agradou. Tinha conselhos a dar a Ricardo e a Geofredo, e esperava ter com ele o jovem João - o único dos filhos de Eleanor no qual pretendia provocar afeição. Chegara à conclusão de que devia dar ao jovem Henrique uma certa liberdade, caso contrário o rapaz iria romper as amarras e rebelar-se. Fora por isso que concordara em mandálo à Normandia, mas enquanto ele estivesse lá deveria ser mantida uma vigilância rigorosa, para que não se envolvesse em atividades nocivas.

Que prazer ele teria sentido ao discutir seus negócios com eles, sem reservas porque não havia necessidade de reservas! Se eles tivessem sido filhos leais, é o que teria acontecido. Agora, embora eles fingissem amizade, a desconfiança estava lá.

Ricardo era o mais franco de todos. Dizia o que pensava, sem subterfúgios, e o que queria era ajuda na Aquitânia. Ele não era tão popular entre o povo como gostaria de ser.

- O fato de o senhor e eu sermos amigos - disse ele, rudemente - faz com que eles se voltem contra mim. Pensam que sou inimigo de mamãe.

- É claro que sabem que não é assim.

- Alegam que se sou seu amigo, não posso ser amigo dela. Tenho um pedido a fazer.

Henrique teve uma terrível apreensão. O filho agora ia pedir para ver Alice e perguntar quando seria o seu casamento. Mas estava enganado.

- Quero ver minha mãe - pediu Ricardo.

- Sua mãe está no castelo de Salisbury.

- Estamos todos reunidos aqui. Ela devia estar conosco.

- Você se esquece de que ela me traiu.

- O senhor não poderia dizer o mesmo de seus filhos?

- Poderia... para minha infelicidade.

- No entanto, o senhor nos perdoou. Por que não iria perdoá-la?

- Porque foi ela que fez vocês se afastarem de mim. com o leite materno, ela os alimentou com calúnias contra mim. Não fosse ela, estas não existiriam. Eu teria sido um pai com filhos bons e leais.

- Ela não alterou a nossa natureza.

- O que quer dizer com isso?

- Nós nos levantamos contra o senhor porque o senhor nos deu títulos e depois se recusou a dar significado a eles. Minha mãe não teve nada a ver com isso.

- Você pode ir a Salisbury visitar sua mãe, mas não será deixado a sós com ela.

- Não. Ela tem de vir aqui. Se o senhor convidá-la para cá e ela vier, na Aquitânia vão saber que fui eu quem pediu para vê-la e que sou amigo dela. Só então vão me aceitar.

O rei ficou pensativo.

- Deixe minha mãe voltar para a Aquitânia comigo - continuou Ricardo.

- Nunca.

- Devo voltar com ela e com minha noiva. Os lábios do rei se apertaram.

- Sua mãe virá para Winchester. Ficará alguns dias e depois será levada de volta para Salisbury. O povo da Aquitânia verá, então, que ela foi trazida para cá porque você intercedeu por ela. Não vão poder dizer, então, que você não é amigo dela.

Ricardo curvou a cabeça.

- Há a questão da minha noiva.

- Domine a Aquitânia, e depois haverá tempo para você pensar em casamento.

- Eu queria ver a princesa Alice. Já deve estar em idade de casar. Meu irmão Henrique me contou que o rei da França anda perguntando por que o casamento tem sido adiado há tanto tempo.

- A princesa está viajando pelo norte. Se voltar enquanto você estiver aqui, não há dúvida de que vocês se encontrarão. Resolva seus assuntos na Aquitânia e depois veremos se vai haver casamento. Enquanto isso, prometo-lhe uma coisa: você verá sua mãe, e vai ser aqui, em Winchester.

Eleanor riu em voz alta quando soube que iria viajar até Winchester. Que prazer ver o seu adorado Ricardo! Ela deveria ficar contente ao ver Henrique e Geofredo também, e talvez o jovem João. O melhor de tudo talvez fosse encontrar-se com o marido. Vitupérios já se formavam em sua mente. Estava ansiosa por dizer-lhe o que pensava dele, participar de uma daquelas batalhas verbais que sempre a excitavam.

Mandou chamar suas costureiras. Tinha a sorte de não lhe faltar nenhuma das amenidades da vida ali em Salisbury; era uma prisioneira tratada como rainha. Havia pouca coisa para fazer na prisão, e suas amas costuravam túnicas para ela e, como sempre fora notada pela elegância, duvidava que houvesse qualquer coisa na corte do rei que pudesse se comparar com trajes desenhados por ela.

Animada, partiu na viagem de Salisbury para Winchester, cercada pelos guardas do rei. Ficou exultante quando viu as torres do palácio e, enquanto avançava, ria alto por causa de seu triunfo.

O rei recebeu-a, e por alguns momentos os dois se entreolharam com ar de observação. Ela inclinou a cabeça e soltou uma gargalhada.

- Então finalmente nos encontramos, majestade.

O rei fez um gesto com a mão para aqueles que estavam em sua câmara.

- Deixem-nos - ordenou ele.

- Bem, estamos sozinhos. Por Deus, Henrique, vejo cabelos grisalhos e rugas profundas em seu rosto.

- Tenho tido muita coisa com que me preocupar, como você bem sabe.

- Sei que seus filhos não gostam de você.

- Porque os pensamentos deles foram envenenados pela mãe. Ela ergueu os ombros.

- Foram os próprios atos do pai que os afastaram dele. Por que permitiu a minha vinda?

- Para que pudesse ver seus filhos.

- Tão tolerante! Vamos, Henrique, há outro motivo que não o amor que você sente por eles... ou por mim.

- Não sinto amor nenhum por você.

- Era o que eu temia - zombou ela.

- Mas você é mãe de meus filhos, e eles pediram para vê-la.

- Então vamos nos encontrar. Fico contente. E você me trouxe aqui para agradar aos meus súditos da Aquitânia, não foi? Se souberem da minha presença aqui nesta época pascal, irão odiá-lo menos e perceber que Ricardo é meu amigo. Isso é estadismo, Henrique, meu marido, e posso dizer que você é muito bom nisso.

- Obrigado.

- E agora que Ricardo está aqui, temos um assunto a discutir... ele, eu e talvez você.

- E o assunto?

- O casamento dele, é claro. - Ela o examinava atentamente. - E onde está a nossa querida princesinha? Confesso que esperava encontrá-la aqui.

- Ela foi para o norte... por causa da saúde. A rainha levantou as sobrancelhas.

- Ela está doente, então? Não doente de amor... por Ricardo? Mas ela não o tem visto no auge de sua juventude, não é?

- Ela já havia partido quando ele chegou.

- Grosseria da parte dela! Não está ansiosa por ver o noivo?

- Pensei que depois do seu isolamento você teria outros assuntos para discutir que não esse noivado de Ricardo.

- Eu poderia pedir minha liberdade. Você estaria disposto a dá-la?

- Se desse, como iria saber que você não iria tramar contra mim, como fez antes?

- É uma coisa sobre a qual você nunca teria certeza.

- Neste caso, entende por que tem de continuar minha prisioneira.

- Pensei que pudéssemos fazer um pacto.

- Por que eu iria fazer um pacto com uma prisioneira?

- Você quer o divórcio.

- Quem lhe disse isso?

- Há rumores.

- Você não devia confiar em rumores.

- Oh, depende da fonte. E suponha que eu concorde com o divórcio; você me libertaria?

- Vai haver um divórcio.

- Ouvi dizer que você já se decidiu quanto à sua próxima rainha.

- Diga-me quem lhe deu essa notícia. vou cortar-lhe a língua, porque não tolerarei que mentiras desse tipo sejam ditas sobre mim.

- Então é verdade, não é?

- Se fosse verdade que quero o divórcio, por que não iria fazer um pacto com você, como sugere?

- Não tenho dúvidas de que tem suas razões.

- Não. Não pedi divórcio.

- Você deu ricos presentes ao cardeal Huguzon. Foi só para resolver a disputa entre York e Canterbury?

- Não a trouxe aqui para discutir meus atos com você.

- Não. Sei perfeitamente por que me chamou Você sempre age movido pela ambição. É necessário que Ricardo mostre ao meu povo que é meu amigo, e não seu. Por isso, você permite que se divulgue que ele o convenceu a deixar que nos encontrássemos aqui. Pensa que não conheço o seu modo de agir, Henrique Plantageneta?

Henrique deu de ombros.

Devo lhe dizer que se fizer alguma coisa para me prejudicar

aqui, será mandada de volta para uma prisão ainda mais rigorosa. Ela assentiu lentamente com a cabeça.

- O que pretende fazer comigo, marido? Me matar? Isso deixaria o caminho livre sem complicações, não é? Mas é claro que tem de esperar até que a Aquitânia seja dominada e aceite Ricardo como o duque. Então, se puder mante-lo como seu vassalo, o que eu duvido, a Aquitânia será sua, como sempre foi o seu desejo. É um tempo muito longo para espera, e o tempo é importante para você. O que pretende fazer? Conseguir um herdeiro com ela? Você tem os seus herdeiros, Henrique, e veja bem os problemas que eles trouxeram.

- Você está dizendo bobagens.

- Não, não, isso é bom senso, e você não gosta. Sabe o que o rei da França vai dizer quando souber que sua filha foi seduzida?

- O que é isso?

- Que ignorância! Pobre criança. Mal saída do berço. Mas dizem que os homens que vão envelhecendo e cujos sentidos estão satisfeitos procuram emoções novas. Crianças, não é?

Ele avançou para ela, a mão erguida.

- É isso, Henrique. Me bata. Isso será uma ótima notícia para a Aquitânia. vou contar que o incitei, o insultei por ter seduzido a filha do rei da França.

Ele se deteve, lutando para manter o controle da raiva que ia aumentando.

- Saia daqui: Antes que eu a mate com as minhas próprias mãos, saia daqui! - gritou ele.

- Fico imaginando como se sentiria se você pusesse as mãos em mim. Já fez isso com a maior ternura. Lembra-se?

- Só sei que amaldiçoo o dia em que a conheci.

- Isso foi antes de a princesa da França ser concebida. Mas havia a bela Rosamund, não? Nunca me esquecerei do terror dela quando o rolo de seda me levou ao seu esconderijo. E você foi o traidor. O rolo estava preso à sua espora. Mas você não é um traidor de todos nós?

- Se não se retirar, não responderei pelos meus atos.

Ele tinha razão. Eleanor percebia que embora ele tivesse lutado muito para se controlar, o seu génio estava levando vantagem sobre ele.

Henrique iria esquecer a diplomacia. Toda a sensatez o abandonaria se aquela raiva demoníaca vencesse.

Eleanor não queria morrer, por enquanto; fez-lhe uma mesura zombeteira e retirou-se.

Quando a raiva passou, o rei enfrentou a realidade.

Então, ela descobrira. A loba sabia que Alice era sua amante. O que iria ela fazer? Sabia que, independente do que fosse, iria trazerlhe gravíssimos prejuízos.

O rei da França iria saber. Ricardo iria saber, e em pouco tempo todos estariam contra ele. Ele tivera alguma experiência do tipo de condenação que poderia esperar. Fazia muito pouco tempo que escapara dos problemas que a sua conexão com o assassinato de Thomas Becket lhe havia causado. E a que custo para a sua dignidade real! Não deveria ser divulgado que ele havia seduzido a noiva de Ricardo e que ela tivera um filho seu. Mas Eleanor sabia, e o grande prazer de Eleanor na vida era agir contra o marido.

O que ele podia fazer?

Alice não podia ficar ao lado de Ricardo. Não era só porque o rei queria mante-la para si mesmo. Era muito criança, faltava-lhe a astúcia para poder guardar segredos. Alice tinha de ficar, e ele precisava encontrar meios de manter Ricardo afastado. Se Eleanor começasse a espalhar boatos, diria que ela os inventara só por maldade.

O rei acreditava ter progredido um pouco com relação ao jovem Henrique; nos últimos meses, o rapaz parecia estar quase gostando dele. Ricardo seria sempre seu inimigo, disso ele sabia. Era demasiado parecido com a mãe para manifestar qualquer outro sentimento. Geofredo tinha tendências a seguir o irmão mais velho. Eles poderiam ser influenciados com uma facilidade maior do que Ricardo.

O rei precisava fazer o possível para evitar que ela transmitisse aquela informação a Ricardo, e se ela tentasse afastar Henrique e Geofredo dele, diria a eles que ela mesma levara uma vida longe de ser exemplar. Afinal, quando pensava nos escândalos que Eleanor provocara na juventude, como poderia ela julgá-lo porque se apaixonara por uma menina que estava noiva de um de seus filhos?

Era uma pena que tivesse parecido necessário deixar que ela saísse da prisão. Embora ele compreendesse que fora uma boa política, lamentava profundamente a necessidade daquilo.

O período de liberdade de Eleanor acabaria em breve, e ele demoraria muito a permitir que ela reaparecesse.

Eleanor arranjou logo uma oportunidade de ficar a sós com Ricardo. Os dois se encontraram no novo jardim de ervas, onde podiam gozar de uma certa privacidade.

- Meu querido filho, temos de dizer depressa o que se passa na nossa cabeça, porque não acho que seu pai vai me permitir a liberdade por muito mais tempo. Conversei com o rei e ele me transmitiu o seu ódio. Está especialmente desconfiado de você, meu filho. É por causa de Alice.

- A princesa Alice? Minha noiva.

- Tenho novidades para você, Ricardo. Ela se tornou amante de seu pai e é por isso que ele a mantém afastada de você.

- Papai pode ficar com ela. Não quero a amante que ele descartou.

- Não, nem deve. Mas, meu filho, ele precisa pensar que você a quer. Tem de perguntar a ele onde está a sua noiva. Não deve deixá-lo em paz. O rei da França precisa fazer um movimento em favor de seu casamento com a princesa Alice. É a melhor maneira de atormentá-lo. Nunca o vi tão perturbado como quando falei nela. O rei é matreiro. Sabe ser mais vivo do que seus inimigos. Vai mentir, fazer promessas que não pretende cumprir; mas não conseguia esconder o desejo que sente por essa menina. E está mais alarmado com o que poderia significar a revelação de seu relacionamento com ela do que jamais ficou com relação a entrar em combate.

- Há quanto tempo isso vem acontecendo?

- Uns dois anos, creio eu. Ouvi um boato de que ela teve um filho dele.

- Por Deus, e todos os santos! vou dizer isso ao mundo todo!

- Ainda não, Ricardo. Ainda não. Por enquanto, finja ignorar o caso. Deixe que ele se atormente. Se todos soubessem, o que poderia acontecer? Haveria um escândalo, mas com o tempo ele se livraria. - Havia na voz dela uma admiração que ia contra a sua vontade. - Pense no que aconteceu em Canterbury. Que outra pessoa poderia ter-se humilhado e se saído quase que com louvor? Ser açoitado em público! Não. O que o irá perturbar mais é o fato de que haverá tentativas de tirá-la dele. Por isso, meu filho, peça a Luís que o seu casamento seja celebrado. Diga-lhe que você está impaciente para ter a sua esposa. Deixe que seu pai seja apoquentado por pedidos contínuos para que a filha de Luís seja liberada, porque pode ter a certeza de que ele vai querer manter a ligação deles em segredo enquanto lhe for possível.

- Eu gostaria de ir procurá-lo e jogar-lhe na cara a sua baixeza.

- Sei que gostaria, e sua franqueza é um traço de seu caráter que me causa uma certa preocupação. Ouvi falar no seu novo apelido, "Ricardo Sim e Não", segundo eles, porque com você é sempre "Vai ser" ou "Não será". Aprenderá que às vezes é necessário tergiversar, e não poderia ter um professor, nessa arte, melhor do que seu pai.

- A senhora quer que me comporte como ele?

- Tenho ódio dele e amo você. Mas mesmo odiando-o como odeio, vejo que ele tem uma certa grandeza. A devassidão dele irá destruí-lo, como destruiu o nosso casamento. No entanto, não o subestime, porque ele é um adversário temível. Combata-o com sutileza. Certifique-se de que a vingança que fizer será aquela que mais o atingirá.

- vou fazer o que diz, mamãe. Não vou deixar que ele saiba que estou ciente dessa sedução. Não vou querer Alice, mas não direi isso a ninguém, e só quando ela me for trazida é que irei recusá-la.

- Pela boboca da menina, eu pouco me importo. Tudo o que quero é humilhá-lo.

- Como a senhora o odeia!

- Você também não?

- Desde a minha infância a senhora me mostrou o que ele é. A rainha riu, satisfeita. O rei tinha pela frente um período de

muita intranquilidade.

Era difícil para Ricardo guardar consigo aquela revolta. Não que tivesse ficado chocado com a sedução de uma menina pelo pai; a moral de Ricardo não era assim tão rígida; mas o fato de o pai haver tido a ousadia de conquistar a sua noiva era um insulto pessoal. Ele seria vingado, mas o que a mãe dissera era verdade. Por enquanto, deveria fazer o possível para fingir amizade ao rei, porque precisava de ajuda para abafar as rebeliões na Aquitânia. Precisava enfrentar a realidade de que não era popular naquela região. Apesar de ser o favorito de sua mãe e de ser desejo dela que o filho fosse coroado duque, não o queriam. Ele não era do sul. Um simples olhar para aquele jovem de braços e pernas longos e cabelos dourados era o suficiente para classificá-lo como um normando. Eram muitas as suas características viquingues: os olhos azuis, os cabelos louros, a figura alta, a maneira de ficar sobre o cavalo, a força imensa. Sem dúvida que ele era um poeta e adorava os trovadores, mas até suas canções tinham um tom nortista. Elas se pareciam mais com as que Rollo e seus homens haviam cantado quando desciam pelo Sena para saquear a França do que com as voluptuosas baladas do sul.

O povo da Aquitânia não podia aceitá-lo de todo. Desconfiava daquela imensa energia. Ele sabia ser feroz numa batalha, e as pessoas desconfiavam dele. Todos queriam Eleanor de volta. Eles a compreendiam. Admiravam-lhe a elegância; e seu espírito aventuroso os agradava. Haviam ficado sem a sua duquesa devido a uma trapaça, e embora lhes tivesse sido assegurado que Ricardo era o filho favorito, não confiavam nele nem no pai dele.

Portanto, ele precisava de ajuda. O melhor que poderia ter acontecido teria sido ele levar a mãe de volta junto.

Isso o rei não permitia.

Mandou chamar seus dois filhos, Henrique e Ricardo, e lhes disse o que queria que fizessem.

Ele resolvera dois problemas de um só golpe.

Henrique iria acompanhar Ricardo à Aquitânia e ajudá-lo a manter a ordem por lá.

Henrique não protestou. Seu grande desejo era fugir aos cordões controladores em que dizia que o pai o metera. Se pudesse escapar e colocar o oceano entre eles, estaria livre.

Assim, Eleanor voltou para Salisbury, e Ricardo se preparou a fim de seguir para a França. Antes da partida, a mulher de Henrique, Marguerite, foi a Canterbury para rezar no santuário de Thomas Becket. Ela ansiava por ter um filho e pediu ao santo que intercedesse em seu favor.

Depois, os irmãos e Marguerite deixaram a Inglaterra.

 

HAVIA UMA DIFERENÇA de opinião entre os irmãos. Ricardo queria voltar para a Aquitânia o mais rápido possível, porque a perspectiva de um combate sempre o agitara. Mas Henrique não tinha tanta pressa assim. Estava livre do pai, ou pelo menos era o que pensava, e queria aproveitar ao máximo a sua sorte.

Marguerite expressou o desejo de visitar o pai, e Henrique disse que antes de acompanharem Ricardo à Aquitânia poderiam fazer uma visita ao rei da França.

Luís recebeu-os com prazer e, como sempre, tratou Henrique como um filho. Ele amava todos os filhos e sempre gostava muito da companhia de qualquer um deles. Quando soube que Marguerite estivera em Canterbury para rezar no santuário de Santo Thomas, aplaudiu o procedimento dela.

- Um santo cuja morte foi uma das grandes tragédias da cristandade - comentou ele. - Nunca me esquecerei do dia em que soube de seu assassinato. Tenho certeza de que suas orações serão ouvidas e atendidas.

Ele próprio realizou missas especiais para o casal e os dois ficaram convencidos de que em breve o seu grande desejo seria atendido.

O jovem Henrique ficou contente por saber que se o pai soubesse da visita dele ao rei da França, ficaria furioso. Embora pouco tempo atrás ele tivesse fingido afeição pelo pai e talvez às vezes tivesse sentido um pouco, agora que já não estava ao lado dele todo o seu ressentimento brotava, e o ódio, revivido, era tão forte quanto sempre fora.

Contou a Luís que eles tinham visto a mãe. Luís nunca podia ficar inteiramente indiferente a Eleanor, e quis saber como a rainha estava se saindo na prisão.

- Pouca coisa mudou nela - disse Henrique ao rei.

- Ela é capaz de sair ilesa de quaisquer aventuras - comentou Luís, com um tom de admiração.

Henrique levantou então a questão sugerida pela mãe que ele levasse à atenção do rei da França.

- Ricardo tem inveja da nossa felicidade no casamento - disse Henrique. - Está querendo saber quando a noiva lhe será entregue.

- Também quero saber - disse Luís, franzindo o cenho. Não entendo por que essa demora. Alice está, agora, com dezesseis anos. Sem dúvida que é uma idade para o casamento.

- Ricardo está quase com vinte. Nada mais certo do que poder ficar com a noiva.

- Por que deve haver essa demora? - perguntou Luís.

- É alguma maldade de meu pai. Esteja certo disso.

- Não faz sentido. O rei da Inglaterra quer o casamento, e eu também. No entanto, a princesa é mantida na corte da Inglaterra e não é devolvida ao pai nem entregue ao marido.

- O que pensa Vossa Majestade em fazer sobre isso? - perguntou Henrique.

- O rei da Inglaterra parece ter certas intenções que para nós não estão claras. vou enviar uma mensagem ao papa e pedir-lhe ajuda.

O jovem Henrique deixou o rei da França e viajou para Poitiers, a bela capital da Aquitânia situada sobre um monte. Parecia ao jovem rei que entrar em combate era uma tolice. Havia tanta coisa mais divertida. A Aquitânia, assim chamada devido à abundância de nascentes, riachos e rios, era uma terra bonita. Num território assim com tanta água, havia muitos vinhedos, e a vegetação era realmente luxuriante.

Era uma terra feita para canções e diversões, e dedicar-se a batalhas e à falta de conforto não era a ideia que o jovem Henrique fazia de diversão. De que adiantava ser rei, se era preciso estar sempre em marcha e viver em desconforto como um soldado comum?

A bela cidade de Poitiers o agradava, e ele teria gostado de ficar por lá, mas Ricardo salientou que eles não tinham ido à Aquitânia para passar os dias na indolência. Havia problemas em Angoulême, e era para Angoulême que tinham de ir.

Ricardo partiu e Henrique o acompanhou, mas lamentou deixar a cidade em que tanto se divertira; e enquanto entrava em Angoulême, recebeu uma mensagem de seu velho amigo, Filipe de Flanders.

Filipe, algum tempo atrás, jurara que seguiria numa cruzada à Terra Santa, e Henrique ficou surpreso ao ver que ele ainda não tinha partido. Filipe escreveu dizendo que tivera um motivo para ficar em Flanders que iria explicar quando os dois se encontrassem. Entretanto, queria que Henrique fosse juntar-se a ele e aproveitasse um ciclo de diversões, porque estava organizando uma série de torneios e sabia que Henrique gostava daquele tipo de distração.

Henrique vacilou. Claro que devia ficar com Ricardo, porque a sua ajuda seria necessária e fora aquilo que seu pai ordenara. Mas Ricardo tinha capacidade de lutar suas batalhas sozinho, pois era um guerreiro famoso, e por que ele, o rei da Inglaterra coroado, teria sempre de levar em consideração as vontades do pai? Convenceu-se de que podia ir para onde quisesse, e, logo depois de receber a mensagem de Filipe, partiu para Flanders.

Filipe ficou muito contente ao vê-lo, e Henrique gostou de enumerar todos os males que sofrera nas mãos do pai e declarar que nunca mais voltaria a sofrê-los.

Fora um fantoche, nada mais.

Filipe compadeceu-se. Era monstruoso que alguém coroado rei da Inglaterra fosse tratado daquela maneira.

- Meu pai lamenta muito ter permitido que a coroa fosse colocada sobre a minha cabeça.

- Então, se lamenta atos assim tão importantes que foram realizados por ordem dele, isso não mostra que ele é incapaz de governar?

Os amigos estavam de acordo.

Foram dias de imenso prazer.

- Isso, sim, é vida! - bradou Henrique.

Os torneios eram falsas batalhas. Proporcionavam o máximo de prazer sem o desconforto da guerra. A emoção e a capacidade de fazer bonito eram salientadas. O que poderia ser mais estimulante?

Filipe de Flanders tinha grande experiência naqueles assuntos, e por ser um participante com tamanha habilidade, todos o olhavam com respeito e admiração. Henrique ansiava por conseguir aquelas glórias.

A chegada de Henrique devia ser comemorada com um grande torneio, disse Filipe, e mandou arautos por toda a região para dizer a todos os cavaleiros que estavam convidados a testar sua perícia.

Depois, houve o prazer de selecionar os juizes, e erigiram-se altas torres e palanques de madeira. Condes e suas condessas, duques e suas duquesas, cavaleiros e suas damas sentavam-se de acordo com a sua categoria; e era costume todo homem usar uma lembrança dada pela esposa ou amante. Muitas vezes, os torneios duravam dias, e eram vários os tipos de combate - às vezes vários cavaleiros se envolviam numa ação, outras vezes havia combates isolados.

No fim do dia, os juizes davam o veredicto e as damas conduziam os vencedores para o salão, onde lhes tiravam a armadura e eles eram vestidos com belas túnicas. Os menestréis tocavam, versos eram recitados e canções eram cantadas elogiando as glórias da justa.

Dedicar-se àquele passatempo era, evidentemente, uma atividade cara, e embora o rei da Inglaterra pudesse fornecer ao filho certas quantias necessárias à realização de uma guerra contra os seus inimigos, não o fazia de modo a que pudessem ser gastas com torneios.

Mas Filipe de Flanders era um bom amigo, e assegurou a Henrique que não precisava preocupar-se com as despesas. Algo tão sem importância assim não devia privá-lo de aproveitar a ocasião. Filipe iria fornecer os belos trajes, os cavalos, as lanças e os chuços.

Henrique aceitou os presentes e jurou a Filipe que um dia ele seria recompensado com propriedades na Inglaterra. Jamais se esqueceria do bom amigo.

Filipe começou a exercer grande influência sobre ele. Um governante precisa ser forte, dizia Filipe. Devia se divertir onde quisesse e não devia deixar que ninguém o criticasse.

Filipe mostrou a Henrique como tratava os traidores quando lhe contou o motivo pelo qual acabara não seguindo na cruzada pretendida. Referia-se à sua mulher.

Filipe era casado com a bonita Isabel de Vermandois, que vinha a ser parente do jovem Henrique, porque a mãe dela era irmã da rainha Eleanor. A irmã de Eleanor, Petronelle, enamorara-se do conde de Vermandois pouco depois do casamento de Eleanor com o rei da França. O conde fora um mulherengo, e primeiro tentara conquistar a própria rainha Eleanor. Ele tornara claros os seus sentimentos sentando-se aos pés dela e suspirando enquanto ela entoava canções de amor. Naquela época, Eleanor, recém-casada com o rei da França e esperançosa de ter um herdeiro, não se dedicara a uma infidelidade ativa, e o impaciente conde amoroso voltara suas atenções para a irmã dela, Petronelle. Sem os mesmos motivos para preservar a castidade, Petronelle deixou-se ser seduzida. Ela era, no entanto, irmã da rainha da França, e o casamento foi considerado necessário. Portanto, o conde divorciou-se da mulher com base na batidíssima desculpa de consanguinidade, e ele e Petronelle se casaram. Duas filhas foram o resultado da união, e delas Isabel era a mais nova.

Isabel herdara a natureza dos pais, e embora Filipe fosse um marido viril, ela não podia evitar que sua atenção se desviasse.

O jovem rei ouviu uma narrativa dos problemas entre Filipe e sua mulher. Os dois eram parentes de Henrique, pois enquanto Isabel era sua prima, Filipe era descendente de Fulk de Anjou; a avó de Filipe, Sibyl, filha de Fulk, era irmã do avô de Henrique, Geofredo de Anjou. Daí o parentesco.

Naquela época, Henrique admirava o seu parente Filipe mais do que qualquer outra pessoa que conhecesse, e aplaudia tudo o que ele fazia com tal dedicação não crítica que Filipe não podia deixar de sentir uma grande afeição por ele.

- Você ouviu falar em Walter de Lês Fontaines?

- Ouvi dizer que ele havia morrido. Não era um cavaleiro de certa fama?

- Dizia-se que era uma espécie de Sir Lancelot, e o nome se encaixa bem nele, se você me considerar como Arthur e Isabel como Guinevere.

- Não está me dizendo que Walter é amante de Isabel?

- Foi, primo! Foi! Não pensa que eu permitiria que minha mulher me fosse infiel, pensa?

- Acredito que você nem sempre foi fiel a ela.

- Isso é outra coisa.

- Fale-me sobre esse Walter. Ouvi dizer que havia uma certa lenda a respeito dele.

- Ele era muito bonito, muito habilidoso. Poucos podiam enfrentá-lo no torneio.

Você podia, Filipe.

- Poucos além de mim. Imagine a minha raiva quando descobri que Isabel sentia atração por ele.

- Não era possível que ela o preferisse a você.

- Parece que ela queria os dois. Desconfiei que quando estive fora ele se tornou amante dela.

- O que foi que você fez?

- Insultei-o por isso. Ele negou. Mas era o que ele achava que um fidalgo tinha a fazer.

- Você o torturou?

- Não. Simplesmente perguntei-lhe. Disse que confiava na palavra dele de cavaleiro.

- Mas se ele estava protegendo uma dama...

- Exatamente. Proibi que ele entrasse no meu castelo e fiz um plano. Oh, um plano simples, que não duvido que muito marido desconfiado já usou. Fiz um grande estardalhaço sobre me afastar por alguns dias. Parti e voltei às escondidas.

- E os descobriu...

- Peguei-o no quarto dela. Agora, eu havia provado aquilo de que desconfiava, e ninguém poderia me culpar se agisse contra ele.

- O que foi que fez?

- Perguntei-lhe por que estava ali, quando a minha ordem expressa fora no sentido de que não entrasse no castelo. Eu sabia que minha mulher o havia convidado, mas ele não iria traí-la. Mandei açoitá-lo até se transformar numa massa de carne sangrenta, mas ainda estava decidido a protegê-la-. Foi um cavaleiro até o fim. Ele era elegante, sabe? Sua roupa branca era perfumada e ele se cuidava muito bem. Creio que era isso que ela achava tão atraente. Pareceu uma boa vingança pendurá-lo acima de uma fossa sanitária, e foi o que fiz. Ficou ali até morrer.

Os olhos de Henrique brilharam.

- É assim que eu agiria com um amante de Marguerite, se o descobrisse.

- Ninguém poderia condená-lo. Ninguém me condenou. Um marido traído tem os seus direitos.

- E Isabel? Qual foi o seu castigo? Poderia tê-la afastado de você.

- O quê? com as ricas terras de Vermandois em jogo? Eu não queria problemas por lá. Ela é uma mulher bonita, e aquilo serviu de aviso.

Henrique concordou com a cabeça e admirou ainda mais o amigo.

- Tudo isso atrasou minha partida para a cruzada - continuou Filipe. - Por isso que ainda não fui. Tenho de ficar algum tempo aqui, devido a esse caso. Mas qualquer dia eu parto. Será uma emoção ainda maior do que o torneio, e tenho alguns pecados para os quais devo pedir perdão.

- Quando você for, Filipe, eu o acompanharei.

À medida que a influência de Filipe de Flanders sobre o jovem Henrique ficava mais forte, a de velhos amigos como Guilherme, o Marechal, e seu vice-chanceler, Adam de Churchdown, diminuía. Guilherme, apesar de ser um cavaleiro que adorava participar de tor neios e, de fato, brilhava neles, era sério por natureza e ficava perturbado ao ver Henrique tornar-se muito devasso e mais arrogante do que nunca.

Tentou admoestá-lo, salientando que seu pai o mandara ajudar Ricardo e ficaria muitíssimo contrariado quando soubesse que ele passara o tempo em diversões extravagantes.

- Por Deus, Guilherme, parece que você é mais amigo de meu pai do que de mim - bradou Henrique.

- Sirvo a ambos de todo o meu coração - respondeu Guilherme.

- Está chegando a hora em que não será possível servir aos dois. Então, terá de fazer a sua escolha.

- Rezo para que essa hora não chegue nunca.

- Eu rezo para que ela chegue muito em breve. Já estou preso a cordões de comando há muito tempo. Afinal, não sou o rei da Inglaterra?

- Vossa Majestade é rei de verdade, porque seu pai mandou colocar a coroa em sua cabeça, mas cabe a nós todos lembrar que ele é o senhor de todos nós.

- Que Deus amaldiçoe o rei, Guilherme. Não vou ser escravo dele.

- Não é em escravo que ele quer transformá-lo. Ele quer que Vossa Majestade aprenda a arte de governar com ele e então, quando chegar a hora, assuma a posição dele. É uma preocupação paternal.

- O diabo que carregue a preocupação paternal dele. Ele é um sovina, e você sabe disso, Guilherme.

- Shhhh, majestade, não diga o que pode ser considerado uma traição.

Guilherme covarde! - zombou Henrique.

Nada disso, majestade. Corajoso, e de pulso forte, espero

eu, quando se tratar de protegê-lo.

Marguerite estava grávida.

- Santo Thomas intercedeu por mim. Oh, como estou feliz! vou rezar para ser menino - declarou ela.

- Esse menino um dia será o rei da Inglaterra - disse Henrique, orgulhoso.

- Espero que ele nunca tente tirar a coroa do pai como você tentou tirar do seu.

Henrique ficou zangado.

- Você acha que eu mereceria ser tratado assim? Além disso, ele nunca será coroado rei enquanto eu viver - acrescentou ele, com perspicácia.

Estava encantado. Era um prazer ser pai.

Precisava enviar mensagens aos reis da Inglaterra e da França, para informá-los de que iriam ser avós.

Ele pensou em Ricardo, combatendo na Aquitânia. Sempre sentira algum ciúme de Ricardo porque a mãe deles o idolatrara muito. Gostaria de saber por que, pois Ricardo não se parecia nem um pouco com ela. Era uma reversão aos seus ancentrais normandos. O velho Rollo devia ter-se parecido um pouco com ele.

Ricardo estava conseguindo dominar a Aquitânia porque era um guerreiro muito brilhante, mas se comentava que nunca seria aceito por todos, porque se mostrava estranho a tudo o que o povo era. Em essência, era muito do norte; sabia ser duro e cruel; e embora tivesse algum talento como músico e poeta, era muito diferente do povo indolente de sua mãe. E se o povo não o aceitasse, não poderia aceitar alguém que se parecesse mais com ele, alguém que se contentasse em gozar a vida e não quisesse estar sempre entrando em combate, alguém que fosse mais camarada, que gozasse a vida confortável e tranquila?

Por que não?

Aquela vida era boa, mas a inatividade estava se tornando maçante. A intriga era emocionante, e nada poderia ser mais emocionante do que a intriga contra aquele que mais queria derrotar: o próprio pai. Um de seus sonhos mais deliciosos era aquele em que seu pai, submisso e penitente, vinha pedir-lhe perdão e perguntar se poderia haver um fim para a disputa entre eles. Nunca conseguira eliminar por completo sua recordação daquela humilhante cena em que fora procurar o pai, ajoelhara-se diante dele e suplicara que lhe permitisse prestar-lhe vassalagem. E a consequência daquilo, a declaração pública de sua humilhação! Nunca perdoaria o pai por ter feito aquilo.

E se provocasse uma revolta - na Normandia, talvez? Sempre havia pessoas dispostas a se revoltarem. Por outro lado, e se enviasse à Aquitânia elementos que fizessem uma sondagem? Iria o povo apoiá-lo?

Eram várias as possibilidades.

Guilherme, o Marechal, adivinhou os pensamentos perigosos que passavam pela mente do jovem rei.

Imaginou se poderia falar com Marguerite sobre suas preocupações. A jovem rainha, desde que ficara grávida, tornara-se serena e mais madura. Amava o marido. Havia muita coisa em Henrique para se amar. Ele podia ser muito encantador, quando queria, e sua aparência lhe era muito favorável. Quando ele entrava num salão, pessoas que desconhecessem a sua identidade saberiam que se tratava de um príncipe. Dizia-se que era o príncipe mais bonito da cristandade, e se de vez em quando estava com uma expressão de contrariedade, nem sempre isso ocorria.

Guilherme, que o conhecia desde criança, quando fora ajudantede-ordens das crianças reais, até pouco tempo atrás estivera mais chegado a Henrique do que a seus amigos; era muito mais velho e infinitamente mais sensato, e deplorava a maneira pela qual o caráter do jovem rei se desenvolvia; acima de tudo, lamentava a atitude dele para com o pai.

Foi procurar Marguerite, que estava fazendo alguns exercícios nos jardins, como lhe haviam recomendado, a fim de garantir um parto fácil. Quando se juntou a ela, as duas damas que a acompanhavam ficaram para trás, e Guilherme caminhou lado a lado com a jovem rainha.

Depois de indagar sobre a sua saúde, tocou no assunto do marido e comentou que achava Henrique cada vez mais impaciente.

- Mas está tão contente com a perspectiva de ter um filho homem! - respondeu ela.

- E está, mesmo. Mas receio muito que o conflito entre ele e o pai aumente, e eu faria um grande esforço para evitar isso.

- O rei está decidido a evitar que Henrique tenha qualquer grau de poder, e isso deixa Henrique possesso.

- com o tempo, o rei poderia mudar de ideia.

- Henrique acha que ele não vai mudar nunca. Fica muito zangado pelo fato de o rei tratá-lo como uma criança.

- Vossa Majestade gostaria de tentar acalmá-lo? Penso que se for paciente por algum tempo, o rei poderá mudar. De qualquer modo, não poderá haver benefício algum em estimular a raiva dele contra o pai. Majestade, por favor, tente fazê-lo entender isso. Vossa Majestade tem mais facilidade do que ninguém para falar com ele. Nós dois gostamos muito dele, e o bem dele é a nossa maior preocupação. Sei que é inútil ele tramar contra o pai. Não é esse o caminho para conseguir o que ele quer.

- Tentarei falar com ele - disse Marguerite.

Os dois estavam tão animados com a conversa que não viram a aproximação de Henrique.

- Ora, ora! O que vejo? Meu amigo e minha mulher trocando segredos! - bradou ele.

- Eu estava perguntando sobre a saúde da rainha - disse Guilherme.

- Como pode ver, é boa - falou Henrique. Henrique acertou o passo para caminhar ao lado deles.

- Estou ansioso pelo nascimento de meu filho. - A expressão emburrada já não estava mais em seu rosto.

De fato, ele é o mais bonito dos príncipes, pensou Guilherme. Quisera Deus que fosse o mais feliz.

Mas ele estava bem feliz caminhando com Guilherme e sua esposa e falando sobre os planos para o futuro do filho que ainda não nascera.

A perspectiva de ser pai não afastara, em absoluto, os pensamentos de Henrique de uma rebelião. Pelo contrário, aquilo o deixara ainda mais decidido.

Planos começaram a se formar em sua mente, e vivia em companhia de homens que se sabia serem hostis a seu pai.

Guilherme, o Marechal, não era o único que se sentia apreensivo. Adam de Churchdown, homem de idade avançada, também via o que estava acontecendo e se perguntava que providências deveria tomar.

Ele devia fidelidade ao pai do jovem Henrique. Além do mais, estava plenamente ciente de que quaisquer insurgentes que Henrique conseguisse levantar pouco poderiam fazer durante algum tempo contra as forças e a competência superiores do rei.

Ocorreu-lhe que se pudesse mandar uma mensagem de aviso ao rei da Inglaterra sobre o que se passava, ele saberia como cuidar do caso. Portanto, chamou um mensageiro, deu-lhe uma carta e disse-lhe que fosse o mais rápido possível até a costa e entregasse a carta nas mãos do rei.

Ele redigira a carta com cuidado. Não considerava aquilo uma traição ao jovem Henrique; simplesmente devia colocar o rei em alerta, e Adam sabia que ele agiria de maneira que cerceasse as atividades rebeldes do jovem Henrique e, assim, o salvasse de um desastre.

Infelizmente para Adam, seu mensageiro caiu nas mãos de um daqueles cavaleiros que odiava o rei da Inglaterra e estava ansioso por apoiar o filho numa rebelião.

O mensageiro e a mensagem foram levados à presença do jovem rei, e quando Henrique a leu, ficou possesso de raiva. Tragam Adam de Churchdown aqui! - bradou ele.

Adam, de pé diante dele, percebeu o que acontecera. Aquilo era um desastre. Sob as instruções de Filipe de Flanders, ele sabia que o seu senhor se tornara impiedoso, e podia esperar pouca coisa em matéria de misericórdia.

com que então o senhor é um traidor - disse ele, com veemência.

Não é isso, majestade. Quero apenas o seu bem.

Foi a pior coisa que ele poderia ter dito. com que frequência Henrique ouvira aquelas palavras: "É para o seu próprio bem"! Estava sinceramente farto de ser tratado como uma criança. Mostraria a eles que era um homem, e ainda por cima um rei.

Pensou no fidalgo Walter de Lês Fontaines, e bradou:

Levem este homem para fora, tirem-lhe a roupa e saiam pelas ruas açoitando-o. Que todos saibam que é assim que trato os traidores. Proclamem a todos que ele tentou agir como espião de meu pai. Confiei nele no passado e o considerava meu amigo, mas é assim que trato os traidores. Depois que ele tiver sido açoitado pelas ruas, levem-no para o castelo de Argentan e atirem-no numa masmorra. Mas em cada cidade por que passarem, ele deverá ser açoitado na rua e declarado traidor do rei Henrique da Inglaterra, duque da Normandia e conde de Anjou.

Após levarem Adam, Guilherme, o Marechal, foi falar com o jovem rei.

- Suplico-lhe que pense no que está fazendo.

- Pelos olhos de Deus, Guilherme, lembre-se de com quem está falando, senão o mesmo poderá acontecer a você - retrucou Henrique.

Guilherme se afastou com um dar de ombros.

- Ah, sim, sei muito bem que você é nobre de nascença e é sobrinho do conde de Salisbury. Sei que vai dizer que é meu amigo desde quando eu era criança. Mas não vou tolerar traidores. Adam é, e vai pagar por isso, porque merece e assim servirá de exemplo para todos os outros.

- Ele fez isso para o seu próprio bem.

- Pare com isso! - berrou o rei. - Agora não sou seu pupilo, Guilherme Marechal. Cuidado, digo eu. Que todos os traidores tomem cuidado.

Guilherme se retirou, triste. A situação se tornava cada vez mais perigosa. Ele achava, como muitos antes dele tinham achado, que o velho rei cometera o erro mais grave de seu reinado quando mandara coroar o filho como rei da Inglaterra.

Não era inevitável que houvesse um conflito desastroso quando dois reis possuíam a mesma coroa?

 

ALICE ESTAVA DE VOLTA a Westminster; Ricardo permanecia na Aquitânia; e ela confiava em que o rei a fosse manter a salvo dele.

Quanto a Henrique, achava muito agradável ficar na Inglaterra. Lá, ele podia visitar Alice com frequência e ver mais seu filho João. O desejo de ser um bom pai e de ter a afeição dos filhos estava se tornando uma obsessão para ele. Perdera quase todas as esperanças com relação aos mais velhos, mas havia, entretanto, os dois mais jovens membros da família - Joana e João - e ele estava tentando conseguir deles o amor e a consideração que os outros lhe haviam negado.

Culpava a mãe deles por isso. Que Eleanor se martirizasse o resto da vida na prisão por ele escolhida; ela mostrara que bastava aparecer para criar problemas. Estava certo de que a insistência de Luís quanto ao casamento de Alice e Ricardo era trabalho de Eleanor. Ficara abalado, como raramente acontecia, quando descobrira que ela sabia do relacionamento entre ele e Alice. Teria ela contado a verdade a Luís? Não, isso não. Ele teria ficado horrorizado. Aquilo ofenderia a sua alma piedosa, e ele nunca ficaria calado. Mas ela o havia instigado de alguma maneira, disso Henrique estava certo.

Aquele assunto o ocupava mais do que qualquer outro, porque se convencera de que os filhos se manteriam fiéis às promessas.

Ricardo estava indo bem na Aquitânia, e sem dúvida era um grande guerreiro. Henrique gostava demais dos prazeres da vida e era extravagante, e Geofredo saíra a ele. Mas Marguerite estava grávida, e se ela lhe desse um neto o rei ficaria contente com ela.

O grande problema era como ficar com Alice.

Era uma pena ela estar crescendo. Ainda não fizera dezessete anos, mas é claro que iriam dizer que ela deveria casar-se naquela idade. Ricardo era um molengão; graças a Deus, não demonstrara um grande desejo de se casar.

Se Alice fosse filha de qualquer outra pessoa que não de Luís... ah, mas Henrique tinha de admitir que aquilo dera um sabor picante ao caso. Gostava de pensar que estava fazendo amor com a filha daquele velho monge. E ela daria uma esposa digna dele, se um dia os dois pudessem se casar.

Enquanto o rei meditava sobre aquilo, chegou uma carta do papa. Trancou-se em seu quarto, e com certa apreensão abriu a carta. Passando os olhos rapidamente por ela, viu que Alice era o assunto e seu coração afundou.

O papa escrevera que seu muito querido filho em Cristo, Luís, ilustre rei dos franceses, estava reclamando porque sua filha, que havia muito tempo fora mandada para a Inglaterra para que pudesse ser criada no país do noivo, não tinha se casado nem sido devolvida ao pai. O rei da França estava insistindo para que fosse adotada uma daquelas duas providências.

Henrique jogou a carta para um lado e ficou olhando para a frente.

O que poderia fazer? Se não fosse Eleanor, poderia casar-se com Alice. Naquela situação, qual era a alternativa?

Levantou-se e cerrou os punhos.

- Pelos olhos, dentes e boca de Deus, não vou abrir mão de Alice! - bradou ele.

O rei foi visitar os filhos. Tinha novidades para os dois.

Sentou-se no vão da janela e enquanto eles se encostavam nele, abraçou-os; não pôde deixar de pensar no quadro encantador que deviam estar formando, e ficou indignado com Eleanor, que o privara do amor que os filhos mais velhos lhe deviam. Não era um mau pai. Seus filhos ilegítimos eram-lhe dedicados. Só a prole de Eleanor se voltava contra ele. Mas não os mais novos. Os dois seriam leais e amorosos. Iriam compensá-lo pelo que não tivera com os outros.

João era naturalmente o favorito, porque era menino. Os outros iriam compreender o quanto teriam sido mais felizes se tivessem gostado dele. Iriam ver o que ele faria por um filho afetuoso. João poderia não ser o rei da Inglaterra, duque da Normandia ou da Aquitânia, mas ficaria com as terras mais ricas que o pai pudesse lhe dar. Nunca mais João seria conhecido como João Sem Terra.

- Joana, minha filha, o que diz disso? Gostaria de ser uma rainha?

Joana, com onze anos de idade, arregalou os olhos.

- Uma rainha, majestade! Não uma rainha da Inglaterra?

- Não, meu amor. Como é que você poderia ser? Marguerite será a rainha. Para que você fosse uma rainha, precisava ter um marido que lhe desse a coroa. Por isso, escolhi um marido para você. Vai ser a rainha da Sicília, porque o rei daquele país está pedindo sua mão em casamento.

- Terei de ir embora - disse Joana.

- Na verdade, deverá ir para o país de seu marido e lá se casar. Será uma grande dama, esse é o meu desejo.

Ela ficou um tanto confusa e olhou para João, para ver quais eram as reações dele.

- E eu? - perguntou ele. Era um ano mais novo que a irmã, mas sabia que o fato de ser menino dava-lhe uma importância maior.

- Sua hora chegará, meu filho, e em breve, não duvido Mas você não nos deixará. Sua esposa virá para você, pois são as esposas que devem ir para os maridos.

- Quando é que Alice vai para o marido dela, papai? - perguntou Joana.

Olhos de Deus, pensou ele, estão comentando isso na ala infantil

- Tudo a seu tempo, meu amor.

- Ela é uma velha - retrucou João.

- Bem, não se trata disso, mas é mais velha do que você, digamos assim. Você vai ter um maravilhoso vestido de noiva, Joana. Será bordado especialmente para você e adornado de muitas pedras cintilantes. Vai gostar, não vai, querida?

Ela fechou os punhos e olhou para o teto.

- vou sim, majestade.

Ele a beijou. Pobrezinha, pensou, conformada com um vestido de noiva.

Ele foi visitar Alice. E se fosse obrigado a abrir mão dela? Não podia. Quando achava a amante perfeita, sua intenção era ficar com

ela.

Estava mais velha, agora, numa idade para compreender, e o rei queria dividir a responsabilidade com ela. Queria fazer com que ela compreendesse o quanto gostava dela, já que era capaz de passar tantas dificuldades para mante-la.

- Alice, meu amor, estão me atormentando para que eu a entregue a Ricardo.

Ela se agarrou nele.

- Não vou. Não vou! vou ficar com você. Você não vai me mandar embora.

- Não pense que algum dia eu a mandaria embora, querida, se fosse possível ficar com você.

- Então, estou salva, porque só se você quiser se livrar de mim é que terei de ir.

Henrique acariciou-lhe os cabelos. Ela confiava nele. Como poderia ele permitir que a confiança dela fosse traída?

- Pelos olhos, dentes e lábios de Deus, Alice, ninguém vai tirála de mim! - jurou ele.

Abraçou-a com ardor e a possuiu com intensidade. Depois, ele soltou uma gargalhada e sussurrou:

- Mas precisaremos ser astutos, Alice, meu amor. Temos de burlar seu pai e Ricardo. Duvida que eu possa fazer isso?

- Sei que pode.

- E o papa, também, Alice. Ele está nos perseguindo.

- Vamos desafiar todos eles.

- Acha que pode fazer isso, Alice?

- Você pode. Pode fazer o que quiser.

Uma amante devia ser assim - amorosa, dócil e com uma confiança total.

Ele ficaria com Alice. Não tinha coisa alguma a temer. Iria ludibriar o papa e os cardeais. De qualquer modo, todos tinham medo dele. Era simplesmente uma questão de quem eles temiam mais - ele, ou Luís. O rei da França era um velho fraco, e o jovem Filipe era débil; enquanto Henrique era chamado de leão por causa de sua força.

Ficaria com ela, não importava quem se voltasse contra ele

A pequena Joana partira, para se casar com Guilherme da Sicília, levando consigo o prometido vestido de noiva que custara mais de cem libras. Pobrezinha, estava encantada com o vestido. O pai esperava que fosse feliz e que não sentisse muita saudade de casa. Ela viajou pela França à frente de um brilhante cortejo até St. Gilles, onde seria recebida pelo bispo de Norwich, que Henrique enviara à Sicília alguns meses antes para negociar o casamento. com ele estariam os dignitários da Sicília, à espera para conduzi-la ao futuro marido.

O rei se sentia tranquilo com o fato de Guilherme da Sicília ser um velho e de que, por isso, seria bom para com a menina, e Joana era uma criatura tão bonita e cativante que ele devia ficar satisfeito com ela.

Não adiantava ficar triste com a partida de Joana. As irmãs tinham saído antes dela, com pouca idade: Matilda, para o duque da Saxônia, e Eleanor, para o rei de Castela.

E assim as filhas saem dos nossos cuidados, e muitas vezes são de boa utilidade; mas ele acreditava que as filhas mais velhas tinham sido criadas com o mesmo leite amargo que os filhos, o que não era de supreender, pois eles tinham sido amamentados no seio da mesma loba.

Não fazia mal. Ele tinha o filho João, e João devia amá-lo. Não podia ser abandonado por todos os filhos. Para compensar João pela perda da irmã, comprou-lhe dois palafréns que ele mesmo escolheu e sentiu um grande prazer em levar o garoto para vê-los.

Tinham custado 52 libras, e valiam a pena. Disse isso a João, porque queria que o garoto crescesse dando valor ao dinheiro. O jovem Henrique era extremamente extravagante, o mesmo acontecendo com Geofredo. Ricardo também parecia ter pouca noção do valor do dinheiro, muito embora o quisesse para a manutenção de seus domínios, não para malbaratá-lo como faziam Henrique e Geofredo.

Agora, o tempo de Henrique era passado entre João e Alice. Estava ficando velho. Talvez estivesse solitário, muito embora se achasse sempre cercado de homens e mulheres. Aquela ânsia por afeição continuava. Presumia que fosse porque a mulher o odiava, e parecia que os filhos só pensavam naquilo que podiam tirar dele.

com Alice, não era assim. Amava-o pelo que ele era. Não guardava ressentimento algum porque ele a seduzira quando era uma menina inocente; nunca o repreendia por não ter conseguido o divórcio prometido. Alice sempre compreendia; sempre se dispunha a agradar, e nunca a criticar.

Podia confiar em Alice. Esperava poder confiar em João.

Ficou contente com o fato de que o casamento de João com Alice de Maurienne não iria realizar-se. Ele pensara que tornar-se marquês da Itália teria sido uma bela solução para os seus problemas, pois era isso que João seria se o dote dela tivesse sido recebido por ele. Henrique já encontrara propriedades para João na Inglaterra. Dera-lhe os condados de Cornwall e Nottingham, e propunhase a fazer dele o rei da Irlanda.

Outra ideia lhe ocorreu, e viu uma possibilidade de João tornarse o dono de propriedades muito grandes em Gloucester.

Robert, conde de Gloucester, filho ilegítimo de Henrique I e, portanto, irmão da mãe de Henrique, fora a pessoa que mais o apoiara em sua reivindicação do trono e ensinara ao próprio Henrique muita coisa que lhe eram de valia e que o tinham ajudado a transformar-se no homem que era. Henrique lembrava-se bem de sua dor quando o conde morrera. Como era estranho que muitas vezes os filhos de homens bons e fiéis revelavam-se traidores!

Era o que acontecia com o filho do conde, o conde Guilherme de Gloucester.

Guilherme, que herdara imensas propriedades do pai, envolverase na rebelião contra o rei. Quando Henrique pensava nisso, ficava com muita raiva. Como ele era diferente do pai, e levando-se em consideração que havia um laço de sangue entre eles, a perfídia parecia mais imperdoável do que nunca.

Guilherme estava, agora, em seu poder e o rei mandou que o levassem à sua presença.

Esperando um castigo terrível, Guilherme entrou tremendo, mas o rei, refletindo sobre o futuro de João, tinha uma ideia que parecia boa.

- Guilherme - disse ele em tom de reprovação -, você traiu minha confiança. Imagino o que seu pai diria se estivesse aqui e soubesse que você me traiu.

Guilherme sentiu-se envergonhado à menção do nome do pai.

- Lembro-me bem dele. Minha mãe nunca teve amigo mais fiel do que o meio-irmão bastardo; e quando eu era jovem, comigo foi a mesma coisa. Nunca me esquecerei do dia em que soube de sua morte. Foi como se uma parte de minha vida tivesse morrido, e agora você, filho dele, está à minha frente como um traidor.

- Majestade, o que posso fazer para conseguir o seu perdão?

- bradou Guilherme.

O rei balançou a cabeça.

- Você me roubou a confiança que eu tinha em você. É uma coisa triste, quando gente do mesmo sangue age um contra o outro. Seu avô também era meu avô. É por isso que não o atiro numa masmorra. Sabe, respeito laços sanguíneos. Veja bem, um rei tem o seu dever e precisa proteger o seu reino, não importa quais as condições que lhe sejam exigidas. Não apenas meu filho conspirou contra mim, mas também aqueles em quem eu achava que podia confiar. Mas existe uma maneira pela qual poderíamos fechar essa ferida. Você tem uma jovem filha solteira e eu tenho um filho, João.

Guilherme ficou alerta. Estaria o rei sugerindo realmente uma união entre o príncipe João e sua filha?

Ele não tinha filhos homens, mas três filhas, duas das quais estavam casadas. A mais moça, Isabel, era da idade de João. Ficou um tanto aflito, pois esperava ter um filho homem, e se tivesse, como poderia negar a ele a herança?

- Que sua filha fique noiva de meu filho João, e o seu condado e suas terras serão dele com o casamento com sua filha.

- Minhas filhas que estão casadas... - começou Guilherme. Mas o rei agitou a mão.

- Já pensei nisso. A coroa irá recompensá-las. Cada uma receberá cem libras por ano.

- Majestade - começou Guilherme -, esta é uma grande oportunidade para minha filha, e eu ficaria contente se ela a agarrasse com ambas as mãos, mas se eu tiver um filho homem...

O rei também pensara nisso.

- Nesse caso, as terras serão divididas entre ele, de um lado, e João e sua filha do outro - disse o rei, sem embaraço.

- Então, fico feliz. Mas tenho medo de uma coisa. O laço sanguíneo entre essas crianças é forte. Pode ser que o casamento não seja possível por causa da consanguinidade.

- vou convencer o papa a conceder uma dispensa. Não acho que ele vá querer contrariar os meus desejos. Que se faça o noivado e, se por alguma infelicidade a dispensa não for concedida, encontrarei um marido rico e digno para sua filha. O que diz a isso, Guilherme?

O que Guilherme poderia dizer? Afinal, ele podia ser condenado como traidor.

O rei ficou muito satisfeito. João estava, agora, bem colocado e com o sustento garantido. Nunca mais seria conhecido como João Sem Terra. O garoto ficaria grato ao pai. Agora, todos os seus filhos estavam colocados e com companheiras - exceto Ricardo. Parecia que para onde quer que se virasse, ele voltava para Alice.

Luís estava decidido a não permitir que o caso do casamento de sua filha fosse arquivado por mais tempo. Havia alguma razão para aquilo, sabia ele. Era uma situação muitíssimo extraordinária, e conhecendo Henrique ele desconfiava de alguma perfídia.

O papa agira de modo um tanto morno, e ele estava disposto a conseguir uma satisfação.

Alexandre não pretendia ofender Luís nem Henrique, e sabia que precisava tomar algumas providências decisivas naquele caso. Portanto, mandou avisar que, a menos que o casamento de Ricardo e Alice se realizasse sem demora, ele decretaria uma interdição sobre todas as terras de Henrique, não apenas no continente europeu, mas na própria Inglaterra.

Henrique ficou irado, mas dessa vez não teve um de seus incontroláveis acessos de raiva. Havia muita coisa em jogo para desperdiçar suas energias sem resultado algum. Precisava pensar em um jeito de ficar com Alice.

Quando se estava errado, era sempre uma boa ideia virar a mesa e acusar aquele contra quem se tinha cometido o erro.

Então alegou junto ao papa que Luís não liberara os territórios que havia prometido a título de dote de Alice, dando a entender que aquela falta por parte do rei francês era responsável pela demora. Tão logo aquelas questões fossem resolvidas, ele concordaria com o casamento de Alice e Ricardo. Propunha-se a ir em pessoa visitar Luís, e talvez os dois pudessem chegar a alguma conclusão.

Antes de partir, Henrique foi passar uma noite com Alice.

Ela estava amedrontada porque haviam chegado aos seus ouvidos rumores do conflito entre seu pai e seu amante. Mas ele a acalmou logo. Não confiava nele? O rei não deixaria que nada interferisse no romance deles.

Querida Alicinha, ela não era a sua adorada, e não tinha sido assim já há longo tempo? Será que não aprendera a confiar nele? Não sabia que com ele tudo era possível?

Alice sabia disso. Estava confiante em que tudo acabaria bem.

com que então Henrique iria visitá-lo. Luís estava intrigado. Precisava ficar alerta.

Ele era vários anos mais velho do que Henrique, mas parecia viver sempre em desvantagem em relação a ele. Devia ser quatorze anos mais velho, e Henrique estava com 44 anos. Luís sentia sua idade com desgosto. A vida fora difícil para ele, mas tivera alguns momentos maravilhosos. Os primeiros tempos de seu casamento com Eleanor lhe haviam proporcionado a maioria deles. Na ocasião ele inocentemente acreditara que seriam felizes pelo resto da vida. O nascimento de seu filho Filipe fora outro momento de felicidade. Que dia feliz, quando ele soubera que finalmente tinha um filho homem!

Como a vida teria sido diferente se ele tivesse podido seguir carreira na Igreja, seu plano inicial; mas com a morte do irmão mais velho - um acidente simples, causado quando um porco assustara seu cavalo ao passar correndo na frente dele -, e da noite para o dia ele se tornara herdeiro do trono. Recordou-se com pena daquele menino amedrontado, mas quase que de imediato Eleanor aparecera.

Pobre Eleanor, uma mulher orgulhosa, agora prisioneira! Se tivesse continuado leal ao primeiro marido, seu destino nunca teria sido aquele. Independente do que Eleanor tivesse feito, Luís nunca a teria colocado na prisão como Henrique fizera. Henrique era um homem insensível e impiedoso; e agora estava indo visitá-lo.

Luís adorava os filhos. Às vezes pensava no quanto poderia ter sido feliz se pudesse ter sido um simples nobre, com a família à sua volta. Ele pouco os via. Havia, necessariamente, casamentos políticos para todos eles; e agora, que mistério era aquele em relação a Alice? Àquela altura, ela já devia ser mais inglesa do que francesa; não a via desde quando ela era uma criança. E havia Marguerite, que um dia seria rainha da Inglaterra; e com Alice, irmã dela, casada com o irmão do jovem Henrique, haveria laços tão fortes entre a França e a Inglaterra que com certeza haveria paz.

Agora Luís estava preocupado com Marguerite, pois o filho dela estava para nascer a qualquer momento. Sentia-se satisfeito com o fato de ela ir ter a criança em Paris. Poderia vê-la e também o neto quando ele nascesse, e poderia providenciar para que se fizesse tudo para o conforto dela.

Luís gostava também do genro, que era muito diferente do pai. Ultimamente tinha havido rumores sobre a preocupação do jovem Henrique com aqueles extravagantes torneios que estavam tão em moda, mas todos os moços gostavam de se divertir. Acreditava que Henrique fosse um marido fiel, e como Marguerite parecia feliz com ele, sentia-se contente.

Chegou um mensageiro para dizer-lhe que o filho de Marguerite nascera e que era um menino.

Luís ficou muito contente. Iria ver a filha. Era preciso mandar a notícia para o rei da Inglaterra. Aquilo era mais um elo entre eles.

O filho de Marguerite foi batizado com o nome de Guilherme, em homenagem ao mais ilustre de seus ancestrais - o Conquistador - Infelizmente, a criança era fraca, e depois de viver três dias, apesar de todos os esforços para salvá-lo, o garotinho morreu.

Ao chegar à Normandia, Henrique foi recebido pelos dois filhos, Henrique e Geofredo.

Abraçou Henrique com emoção, expressou seus sentimentos pela morte da criança, e aguardou o momento adequado para aconselhá-lo a não dedicar-se demais aos prazeres da vida. Disselhe que estava surpreso com o fato de ele não ter ficado com Ricardo para ajudá-lo em sua campanha. A resposta de Henrique foi às que Ricardo não fazia questão de ajuda. Gostava de ser o comandante supremo, e era difícil um rei receber ordens de um duque, e o duque era o seu irmão mais novo.

- Espero que você não tenha feito muitas dívidas - replicou Henrique.

A voz de Henrique indicava mau humor quando ele respondeu:

- É necessário que eu viva dentro de um certo padrão.

O rei não queria discutir com os filhos. O desejo de manter boa relações com eles era grande, já que ansiava pelo amor e pela leal dade deles, mas era astuto demais para não saber que eles se volta riam contra ele se surgisse uma oportunidade.

Pois bem, ele tinha Alice e iria ficar com ela. Ninguém iria tirá-la dele.

Deu instruções a Geofredo sobre o que devia ser feito na Bretanha e despachou-o para iniciar as operações por lá, e depois que Geofredo partiu, Ricardo juntou-se a eles.

Ali estava um jovem com quem ele podia conversar de maneira sensata sobre a estratégia da guerra. Ricardo saíra-se bem na Aqui tânia. Mas como os dois eram diferentes!

Ricardo era um homem frio. Henrique ouvira histórias de que ele não desprezava um pouco de libertinagem de vez em quando, mas que nunca perdia de vista o seu objetivo.

Não era como o jovem Henrique, que podia perder uma vantagem em combate porque queria praticar esporte num torneio.

Os dois conversaram longamente sobre as dificuldades de dominar e governar a Aquitânia.

- Todos me consideram um estrangeiro, e aí é que está o problema. Têm medo de mim. Quando chego numa cidade, os agitadores se dispersam, mas me chamam de filho do senhor, e não de minha mãe. Tenho tentado assegurá-los de que sou contra a prisão dela, mas não aceitam.

O rei resmungou. Ficou zangado com Ricardo por levantar aquela questão, mas sabia que era verdade.

- Se você puder dominá-los, isso é bom.

- Eles não são como os ingleses. Devem ser analisados sob um ponto de vista diferente. Adoram se divertir; querem cantar, dançar e sonhar ao sol.

- Então, não deveria ser difícil mante-los em ordem.

- Eles atuam de maneiras sutis. Despertam a raiva do povo através de sua poesia. Cantam canções sobre a sua duquesa padecendo na cela.

- Absurdo! Ela tem criados e é bem tratada em Salisbury. A única restrição é que não pode sair para ficar colocando as pessoas contra mim.

- Ninguém acredita nisso. Nas canções, ela é representada como uma pobre prisioneira. Colocam-na atrás de grades da prisão naquelas canções, e o senhor é representado como o tirano que provoca humilhação e tormento.

- Então, faça canções que digam a verdade.

- O prisioneiro é melhor motivo de pena do que o carcereiro.

- Maldita seja a composição de canções deles. Faça com que sintam a existência da espada.

- Já fiz isso, papai, e provoquei uma espécie de concessões mútuas, mas sempre haverá rebeliões. Sempre os poetas irão cantar as injustiças sofridas por sua adorada duquesa. Liberte-a. Mande-a de volta à Aquitânia.

- Para conspirar com o rei da França contra mim? Nunca! Ricardo deu de ombros.

- Nunca haverá paz na Aquitânia enquanto minha mãe for sua prisioneira.

Aquilo era verdade; e com aquele pensamento preocupante, Henrique seguiu viagem para o seu encontro com Luís.

pobre Luís, pensou Henrique. Seu aspecto denunciava a sua idade. Nunca fora um homem muito forte, segundo a avaliação de Henrique, mas agora estava realmente fraco.

Estava nitidamente surpreso por Henrique ter ido visitá-lo, e muito desconfiado quanto ao que aquilo poderia significar. Acreditava que a visita tinha algo a ver com o noivado de Ricardo com Alice, sobre o qual ele começava a pensar que era evidente a existência de um certo mistério.

Henrique mandara Ricardo de volta para a Aquitânia, porque não queria que ele estivesse presente durante as negociações com Luís sobre o casamento, e Ricardo, a bela figura de homem que era, iria provar que não podia haver qualquer motivo, de seu lado, para que o casamento não se realizasse de imediato.

Foi desconcertante verificar que Luís reunira um cardeal e alguns de seus principais bispos. Estava claro que eles iriam tentar forçá-lo a concordar com a celebração do casamento sem demora.

Henrique se encontrava numa situação muito delicada, e precisava de toda a sua astúcia para evitar a decisão. De uma coisa estava certo: não ia deixar que Alice se fosse.

Abraçou Luís de rei para rei, e depois prestou-lhe vassalagem como duque da Normandia ao seu senhor feudal.

Falaram com tristeza sobre o neto que haviam perdido, e logo após foi abordado o caso de Alice e Ricardo e todos aguardaram para ouvir as objeções de Henrique ao enlace.

Objeções? As sobrancelhas castanho-amareladas se ergueram, as narinas se alargaram. O leão foi tolerante na sua surpresa. Mas era claro que o casamento ia se realizar. Ricardo e Alice não estavam noivos?

- Tem havido muita demora - lembrou-lhe Luís.

- Meu caro irmão - respondeu Henrique com um sorriso -, a princesa Alice ainda é jovem. Quanto ao meu filho, ele tem o seu ducado da Aquitânia para proteger. Faz algum tempo que praticamente ele não está na Inglaterra.

- Mas ele tem idade para se casar, e a princesa já não é mais criança.

- Isso é verdade, e o casamento tem de se realizar - concordou Henrique.

O grupo ficou desapontado, pois esperava que houvesse algum indício sobre a objeção do rei. Os argumentos que ele preparara de nada adiantavam agora, porque o grupo tivera a intenção de salientar as vantagens do enlace e ouvir as objeções do rei.

- Então parece que estamos de acordo quanto a isso - falou o rei da França.

Henrique curvou a cabeça.

- A questão agora é quando o casamento pode se realizar.

- Esta é a única questão. Sugiro que, como irei ter a honra de sua companhia por alguns dias, discutamos juntos a época mais adequada - disse Henrique.

O cardeal e os bispos se retiraram. Parecia-lhes que não tinha sido necessária a vinda deles. O casamento teria lugar num momento adequado. O rei da Inglaterra não levantara nenhuma das objeções que esperavam; e era verdade que Ricardo se achava ocupado protegendo o seu ducado.

Tão logo fosse possível, o rei mandaria Ricardo voltar da Aquitânia, o casamento seria realizado e todos ficariam satisfeitos. Agora só falatava o acerto da data pelos dois reis.

Henrique se sentia satisfeito consigo mesmo. Passara pela primeira parte da prova. Diante do cardeal e dos bispos, prometera que Ricardo e Alice se casariam. Tudo o que tinha a fazer era protelar a combinação de uma data.

A sós com Luís, ele expressou uma grande preocupação com a aparência do rei francês.

- Tem sido uma fase de angústia para você, sem dúvida.

- O destino de um rei é sempre angustiante - replicou Luís.

- Ah, você diz a verdade, irmão. E cabe a cada um de nós dois lembrar-se disso e fazer todo o possível para ajudar o outro. É uma coisa triste quando reis se enfrentam em combate. A coroa é uma coisa sagrada... não importa a coroa de quem... e a desonra de uma representa a desonra de todas.

- Quanto a isso, concordo com você.

- A saúde de seu filho lhe causa uma certa preocupação, creio eu. Luís confirmou com a cabeça, pesaroso.

- Como sabe muito bem, tenho sofrido muito com os meus filhos - disse Henrique.

- Há o conflito entre você e a mãe deles. Ele é a raiz disso.

- Ela é uma mulher traiçoeira, Luís. Nós dois temos motivos para nos lembrarmos disso.

- No entanto, ela sabe ser fiel. Creio que aos filhos, ela é.

- Só porque ao apoiá-los ela trai o marido. Ela o traiu uma vez, Luís. É estranho que você, rei da França, e eu, rei da Inglaterra, tenhamos sofrido nas mãos dela.

- Liberte-a, Henrique. Não é bom a realeza estar presa.

- Bem que eu gostaria. Mas como vou confiar nela? Foi ela que levantou meus filhos contra mim. Temos nossos problemas, você e eu. Talvez Deus esteja nos castigando.

- Pelos nossos pecados... sem dúvida.

- Dos quais cometi muitos, e você, poucos, Luís.

- Será? Ainda ouço os gritos de pessoas inocentes nas cidades e aldeias que meus soldados saquearam.

- Há um jeito de abafar esses gritos. Você já fez uma vez, e não duvido que seus pecados tenham sido perdoados. Desde então, porém, deve ter havido outros.

- Não duvido.

- Você já pensou, Luís, em partir numa outra cruzada? Luís ficou pasmo, mas Henrique percebeu que havia tocado no

ponto certo. Luís não podia ter muitos anos de vida, e sempre fora um homem muito religioso. Considerava pecado aquilo que para Henrique era uma ocorrência normal. Henrique duvidava que Luís tivesse, alguma vez, sido um marido infiel. Sempre tentara ser justo. Estava fraco, mas a melhor maneira de salvar Alice era chegar ao pai dela através da religião.

Foi um golpe brilhante, porque Henrique tinha de sair daquela reunião sem uma data definida para o casamento de Ricardo e Alice.

- Eu mesmo tenho pensado muito em participar de uma cruzada.

- Você, Henrique! Fico surpreso. Não pensei que se preocupasse com esses assuntos.

- É verdade que tenho tido de proteger e manter minhas terras. Você tem sido menos atormentado quanto a isso do que eu. Mas muitas vezes penso em reunir um exército e marchar para a Terra Santa a fim de defender essa causa justíssima.

- E os seus domínios?

- Eu tenho filhos.

- Daria ao jovem Henrique o poder pelo qual ele anseia?

- É o direito dele.

Luís o encarou. Seus planos estavam dando resultado. Ele apoiara o jovem Henrique contra o pai. Luís acreditava que o rei devia dar mais poder ao filho. Aquele fora

o motivo da guerra entre eles. Henrique vencera aquela rodada; mas se partisse realmente numa cruzada e deixasse o jovem Henrique para governar, com a filha de Luís, Marguerite, a seu lado, aquilo agradaria muito a Luís.

- Você tem razão. Vamos pensar nessa questão de uma cruzada

- Vejo que está pronto a se unir a mim nisso. Nunca fiquei mais contente. Você e eu nos unindo como outros fizeram antes de nós e participando de uma batalha justa.

Podemos arranjar os homens e o dinheiro de que precisamos para esse empreendimento.

- Podemos e arranjaremos, Henrique.

- Vamos fazer um juramento juntos, porque não deverá haver atrito entre nós. Isso é uma inspiração de Deus. Não sente isso, Luís?

Luís estava certo de que sentia. Era o que ele sempre quisera fazer, e agora chegara a hora. Era a maneira de lavar a sua alma de todos os pecados; e se morresse na peregrinação, iria direto para o céu. Até o rei da Inglaterra ter sugerido aquilo e falado no assunto como se não houvesse dificuldades que não pudessem ser eliminadas, ele não tinha pensado que fosse possível.

Henrique passou a falar com entusiasmo no projeto. Que homens de sorte eram eles! Os dois tinham filhos. Filipe ainda era jovem - doze anos de idade - mas ele tinha bons assessores, e um futuro rei não tinha idade em que pudesse arcar com responsabilidades. Vejam o Conquistador - aquele que era sempre citado como o maior governante de todos os tempos: ele era uma criança quando recebeu o ducado. Henrique tinha filhos; Luís tinha um filho. Os dois poderiam pensar naquele emocionante projeto sabendo que não se tratava de uma impossibilidade.

- Devemos jurar que somos amigos e que nenhum dos dois fará qualquer coisa que possa prejudicar o outro, Luís. Vamos fazer um juramento nesse sentido. Mostremos ao mundo que esse empreendimento é o acontecimento mais importante de que qualquer um de nós já participou.

Luís concordou.

- O mundo vai saber disso.

- E agora, Luís, temos de planejar nossa tarefa. É preciso pensar muito. A equipagem de exércitos para realizar um empreendimento desses é uma questão muito séria. Dispense os seus sacerdotes depois que eles ficarem sabendo do que pretendemos fazer, porque não posso ficar muito tempo com você e temos muito o que planejar.

Luís não conseguia pensar em outra coisa, a não ser na expedi cão que fora proposta. Ele já fizera, antes, uma viagem daquelas. Tinha sido um fracasso, mas isso se devera ao fato de que Eleanor o acompanhara. Deus não ficara satisfeito, então, e ao se lembrar disso Luís não se surpreendia. Na época, Luís estava tão enamorado de Eleanor, que lhe dera liberdade demais. Como ela o recompensara - entregando-se a uma relação incestuosa com o tio e, segundo diziam, tomando um sarraceno como amante! Foi naquela época que ele começou a pedir o divórcio. Ah, sim, fora um fracasso, e ele podia ver que Eleanor, com os belos trajes que levara para a viagem, transformara-a de uma missão santa em uma exibição mundana de esplendor e imoralidade.

Aquela seria diferente. Dois homens sérios e que estavam envelhecendo, dispostos a servir a Deus e, assim, obter a redenção de seus pecados.

Não pensava em outra coisa, a não ser nos meios que iria usar para levantar o dinheiro, no equipamento de que iriam precisar, e quem levaria com ele.

Henrique partilhou de seu entusiasmo, e o restante do tempo que os dois passaram juntos foi dedicado à tomada daquelas providências.

Henrique despediu-se de seu querido irmão com quem fizera juras de amizade. Era verdade que ele prometera que o casamento entre Ricardo e Alice devia ser realizado, mas o ponto vital tinha sido evitado. Não se havia marcado data alguma.

Quanto a partir numa cruzada, Henrique riu da ideia. Luís era um tolo. Estaria ele pensando que Henrique passaria o seu reino para meninos inexperientes? Luís era desinteressado, não compreendia o que o poder significava para um homem como Henrique. Tampouco compreendia a determinação de ficar com a mulher que o agradava mais do que qualquer outra.

 

NO CONVENTO DE GODSTOW, Rosamund sabia que seu fim estava próximo. Fazia pouco mais de um ano desde que chegara ao convento, onde fora bem recebida pelas freiras. Não se tratava apenas do fato de o rei ter feito doações ao convento desde que ela chegara o que a tornara popular; sua natureza delicada tornara-a, em muito pouco tempo, adorada por todos.

Não havia ninguém mais devota do que Rosamund. Ela passava muitas horas em meditação e penitência; tal era a sua preocupação com os seus pecados que lhe pareciam ter sido de tamanha magnitude que não importava se ela vivesse vinte anos, jamais poderia apagá-los, mesmo que passasse aquele período em extrema devoção.

Às vezes, ela falava nisso com as freiras, que procuravam consolá-la.

- Sei que foi errado. Eu nunca deveria ter concordado em me tornar amante do rei. Eu o amava e não podia negar-lhe nada. Não posso lhes descrever o encanto de Henrique Plantageneta.

- Outras cometeram pecados semelhantes, minha filha lembrava-lhe a abadessa. - Procuraram e encontraram perdão, como você está fazendo.

Mas Rosamund se sentia oprimida pela sua concepção de pecado

Se houvesse sido seduzida contra a sua vontade teria sido diferente; se tivesse cedido para salvar sua família da contrariedade do rei, teria havido alguma esperança para sua alma.

Mas não. Ele chegou ao castelo de meu pai e foi recebido

lá. Bastou trocarmos um só olhar e a tentação nasceu. Lembro-me bem de que voltei para o meu quarto e meu coração batia como nunca batera antes. Soltei os cabelos,

fazendo-os cair sobre os ombros, e vesti a minha túnica mais bonita. Esperei o chamado, e quando ele veio, fui com o máximo de disposição.

- Você era apenas uma criança.

- Uma criança que sabia a diferença entre o bem e o mal.

Ela não conseguia se perdoar. Chorava com frequência; costurava roupas para os pobres até que surgiam fortes sombras por baixo dos olhos que já tinham sido bonitos. E a cada dia ficava mais pálida e abatida.

De vez em quando, recebia notícias do que se passava no mundo fora de Godstow. Dizia-se que em breve haveria um casamento real para o príncipe Ricardo e a princesa Alice, da França.

Pobre Alice! Que vida seria a sua? Como poderia casar-se com o noivo, quando já dera um filho ao rei? Pouca gente sabia disso, e Rosamund esperava que nunca se divulgasse aquilo. Será que algum dia Alice acharia o grande peso de seus pecados tão insuportáveis quanto Rosamund agora achava o dela?

E o rei? Como se sentiria em relação a abrir mão de Alice? No entanto, ele havia aberto mão de Rosamund, e não havia dúvida de que gostara dela tal como agora amava Alice.

O mundo era miserável, e Rosamund estava convencida de que seus pecados eram grandes demais para receberem o perdão divino.

Já não era uma mulher jovem, e talvez o rei tivesse se cansado dela por esse motivo. Em breve iria completar quarenta invernos. Tantos anos se haviam passado desde que o rei mandara chamá-la pela primeira vez! No entanto, lembrava-se daquela ocasião em todos os detalhes, e com ela estava a certeza de que se fosse jovem novamente e se o rei estivesse lá, tudo teria acontecido como antes.

Era isso que a fazia sentir-se tão perdida.

A abadessa a censurava. Será que não devia trabalhar um pouco no jardim? Aquilo lhe daria um pouco de ar fresco, e ela adorava as plantas.

- Eu adoro o jardim. Cuidar das flores me daria imenso prazer. De agora em diante, quero dar as costas a tudo o que me agrada.

Já tive prazeres suficientes na vida. Está na hora de suportar a dor - respondia Rosamund

Confinada à sua cela, ela passava muitas horas de joelhos, com o peludo traje que usava torturando sua pele macia. E acabou chegando um dia em que a abadessa perdeu as esperanças de que ela vivesse, de tanto que descuidara da saúde e de tanto que parecia enamorada da morte.

Não tinha mais condições de se levantar de seu catre, e quando as freiras traziam certas coisas para confortá-la, ela as desprezava. Elas procuravam envolvê-la em cobertas que a aquecessem, mas ela as rejeitava com desdém; estava tão magra que não podia ser reconhecida como a bela penitente que entrara para o convento apenas um ano antes.

- Fique tranquila, minha filha. Seus pecados lhe serão perdoados, porque você realmente se arrependeu - confortou-a a abadessa.

Rosamund sacudiu a cabeça e lágrimas correram pelas faces encovadas.

- Não. Sabe aquela grande árvore no jardim., a minha árvore favorita?

A abadessa confirmou com a cabeça.

- Quando ela virar pedra, a senhora saberá que fui recebida no céu.

- Você mostrou um arrependimento sincero, e Deus é bom.

Mas Rosamund não podia acreditar que seus pecados estivessem perdoados, porque bastava pensar em Henrique Plantageneta e sabia que se ele fosse procurá-la e insistisse em que ela fosse ficar com ele, seria incapaz de deixar de ir. Como poderia alguém ser perdoado de um pecado, quando no fundo do coração sabia que se a tentação voltasse a ocorrer não haveria resistência alguma?

As freiras choraram por ela quando de sua morte. Fora uma boa e encantadora dama; e muita prosperidade tivera Godstow por tê-la abrigado.

O rei compareceu ao convento. Estava profundamente triste. Sua querida Rosamund, morta! Bela Rosamund! A Rosa do Mundo que, através dele, se tornara a Rosa da Impureza.

- Ela foi uma boa mulher, e eu a amava muito. Se ela pecou, foi ao me amar. Foi o meu consolo quando eu mais precisava. Ela me deu o conforto de que, como rei, eu necessitava. Por causa dela, fui um homem melhor do que teria sido - Ele quis que ela fosse enterrada com uma certa pompa. Mandou que o caixão fosse colocado nos jardins do convento que ela tanto amava. O túmulo não deveria ser fechado. Construiriam um tabernáculo acima do caixão; depois, deveria ser criado um altar, com o caixão sendo colocado sobre ele. O caixão deveria ser coberto com um manto de seda; candeias deveriam estar sempre acesas nas duas extremidades, e bandeiras deveriam tremular por sobre ele.

Assim seria mostrado que aquele era um santuário dedicado a uma pessoa que fora altamente prezada pelo rei, e ele decidira que um dia deveria ser construído um monumento adequado, sob o qual Rosamund seria enterrada.

Até que aquilo acontecesse, que ela ficasse em câmara ardente e que as freiras de Godstow mantivessem as candeias acesas e estivessem sempre rezando para a salvação da alma de alguém que o rei amara bastante.

 

FILIPE, FILHO DO REI da França, chefiava um grupo de caçadores que se embrenhava pela floresta. Não era um garoto muito feliz nem popular. Desde tenra idade, estivera

cônscio de sua importância como único filho homem do rei, e tinha havido uma grande ansiedade com relação à sua saúde. Aos 14 anos - faria quinze em breve -, ele era mimado, irritadiço e arrogante. Desprezava o pai, mas naturalmente tinha de aceitar o fato de que ele era o rei; sua mãe, que tentara conter o seu egoísmo, irritava-o com frequência e ele a avisara mais de uma vez para que tivesse cuidado, pois um dia seria rei e então ela teria de obedecê-lo.

Ele era doentio e se resfriava com facilidade, e quando não se sentia bem - o que acontecia com frequência - ficava irascível. Tinha poucos amigos sinceros, e seus criados consideravam-se felizes quando os deveres não faziam com que ficassem muito perto dele.

Naquela época, Filipe estava mais arrogante do que nunca, porque o pai lhe dissera que estava providenciando a sua coroação.

- Você sabe, meu filho, já não sou um jovem - explicou Luís.

- Esperei muito tempo por um filho homem e me casei com três mulheres para ter você.

- Sei disso - disse Filipe, com impaciência. - Todos sabem disso.

- Foi uma grande alegria quando você chegou. Mandei tocar os sinos por toda a França.

Filipe inclinou a cabeça. Não era avesso a ouvir a repetidíssima história de sua muito divulgada chegada ao mundo.

A ideia da coroação o deixou muito contente. Então, ele seria rei da França ao lado ao pai; e o velho estava envelhecendo depressa. Não devia faltar muito para que ele, Filipe, fosse o único governante do país.

Quanto mais pensava naquilo, mais impaciente se tornava; e naquele dia, quando saiu com o seu bando de caçadores, pensava no grande dia na catedral de Rheims. Já estava assumindo ares de rei, vendo-se com as túnicas da coroação, a coroa na cabeça. Rei da França - que título glorioso!

Ele havia avistado o veado, e ele queria que fosse sua a flecha que o matasse. Haveria uma festança naquela noite, e ele estaria à cabeceira da mesa. Havia uma maior deferência para com ele, agora que a sua coroação estava próxima, e ele não era tanto o garoto doentio que devia ser tratado com carinho quando o futuro monarca que devia ser aplacado. Ele gostara da mudança.

Esporeou o cavalo, e de imediato os cavaleiros que o pai mandara protegê-lo emparelharam com ele.

Ele lançou um olhar irado à direita e à esquerda.

- Parem de me perseguir - resmungou, e eles imediatamente ficaram para trás; ele esporeou o cavalo e ficou muito satisfeito por deixá-los para trás.

Continuou a galopar. Estava certo de que o veado tinha ido naquela direção. Queria encurralar o animal. Quando o tivesse matado, gritaria para os outros, e eles chegariam correndo em atenção ao seu chamado e o cumprimentariam pelo mais belo veado que já fora abatido com uma flecha. Teria de ser, porque o futuro rei o abatera, e ainda que se tratasse de um mero filhote de veado, teriam de considerá-lo o mais belo. Aquele era o prazer de ser rei. Seu pai era um velho tolo. Falava em honestidade e em não aceitar bajulações, e que os melhores e mais leais amigos de um rei eram, muitas vezes, aqueles que o criticavam. Ninguém iria criticar Filipe II da França.

Continuou galopando pela floresta, deixando os outros muito Para trás. Aquela região lhe era desconhecida, mas sabia de que direção tinha vindo. Onde estava o veado?

Parou e correu os olhos à sua volta. Não havia sinal dele.

Gritou e ficou esperando uma resposta. Nenhuma. Seus criados tinham obedecido suas ordens para que não o seguissem, e devia ter deixado o grupo muito para trás.

Continuou em frente. A floresta se tornara mais densa. Parou e tornou a gritar. Não houve resposta. Prestou atenção para ver se ouvia o barulho de patas de cavalo, mas havia apenas o leve suspiro do vento nas espessas folhas de agosto e o estalar da vegetação rasteira quando algum animal pequeno saía correndo.

Havia algo de sinistro na floresta quando se estava sozinho. As árvores altas, majestosas, davam a entender que não se curvariam para ninguém e que, para elas, um rei não tinha mais importância do que o lenhador. Lá em cima, por entre as folhas delas, ele via o céu de verão quente.

Estava um pouco cansado e com sede. Sua garganta ansiava por um líquido fresco e calmante. Talvez houvesse uma cabana de lenhador ali por perto, onde pudesse pedir algo que refrescasse a sua garganta. Gostou da ideia. Aquelas histórias - e havia muitas - nas quais um grande personagem visitava uma humilde choupana e lhe davam algo para refrescar a garganta e ele era tratado como um viajante comum e depois anunciava, de repente: "Eu sou o seu rei" - ou alguma frase parecida, o deixavam muito empolgado.

Seguiu em frente. Estava penetrando cada vez mais na floresta e não estava certo quanto a que direção devia tomar. Tentou gritar de novo, mas quando ergueu a voz ela rachou e as palavras se tornaram um mero grasnido.

Começou a sentir-se um pouco tonto.

Como não podia ficar montado firme no cavalo, desmontou, atrelou o animal numa árvore com a rédea frouxa, e deitou-se na grama.

Sentiu-se melhor deitado. Devia ter cochilado um pouco, porque acordou de repente e seu cavalo já não estava mais lá.

Teria alguém o roubado ou ele se soltara? Ou aquilo não passava de um sonho?

Ergueu-se cambaleante. Não havia dúvida de que o cavalo desaparecera.

Não poderia estar longe. Chamou-o pelo nome. Não houve nenhum relincho de resposta, e de repente percebeu que estava perdido na floresta.

Ergueu os olhos para o céu. Começava a escurecer. Devia ter cochilado mais do que pensava. A noite iria chegar em breve. A ideia deixou-o com medo. Era alarmante ficar perdido de dia, mas à noite era apavorante

As árvores assumiam formas esquisitas. Pareciam adquirir vida, e os galhos oscilavam em sua direção como braços vingadores. Levantou-se e avançou, trôpego. Samambaias agarravam em suas roupas como se quisessem contê-lo. A luz estava diminuindo bem rápido. A brisa havia parado, e à volta dele existia uma quietude sobrenatural.

A noite estava quase o envolvendo.

Os membros de seu grupo deveriam estar preocupados porque ele estava perdido. Iriam dizer a seu pai, e o pobre velho ficaria furioso. Grupos de resgate seriam enviados para vasculhar a floresta... todos os trechos seriam examinados. Logo o achariam. O rei ficaria zangado com os seus guardas. Bem feito para eles! Mas iriam alegar que o deixaram sozinho por ordens dele mesmo, e o pai, sempre tolerante, sempre querendo ser justo, iria acreditar neles.

- Venham me buscar! - gritou ele.

Não houve resposta, só uma agitação nos galhos enquanto algum bicho, assustado pelo barulho, saía correndo.

Filipe ficou com medo, pois já escurecera. E se nunca o encontrassem? Seu corpo estava fervendo; a febre o atingira. Ele a conhecia bem, pois se tratava de uma velha inimiga. com ela veio o delírio.

Pensou que tivesse morrido e ido para o inferno. Aquilo era o inferno. Havia demónios em toda a sua volta, e tentavam agarrálo e levá-lo para a condenação eterna.

- Deixem-me em paz! - gritava ele. - Eu sou o rei da França. Minha coroação vai ser dentro em pouco, e então vocês vão ver.

Parecia ouvir risos zombeteiros que diziam: no lugar em que você se encontra não há diferença entre um rei e o mais humilde dos servos.

Não podia ser. Reis estabeleciam rendas de abadias; saíam em peregrinações; lutavam em cruzadas. Servos humildes não podiam proceder daquela maneira. Aquilo devia atribuir um certo mérito aos ricos e pobres.

Mas ele nunca fizera aquelas coisas. E ali estava, perdido na floresta com a morte acenando para ele. Onde estava seu pai? Onde estavam os seus guardas? Onde estava o seu cavalo, pois ele lhe teria proporcionado um certo conforto?

Tropeçou e caiu; o capim parecia úmido quando se deitou por um instante. A umidade penetrava pela roupa e ele começou a tremer.

- Mãe de Maria, ajudai-me - rezou ele.

Sentiu as lágrimas nas faces. Agora não era o futuro rei da França; mas simplesmente um garoto muito amedrontado.

Tornou a se levantar sem firmeza e saiu cambaleando. Estaria sonhando, ou as árvores estavam menos grossas? Não tinha certeza, mas a ideia o tranquilizava. Queria sair da floresta, porque ela era nociva.

Suas roupas estavam molhadas, ou seria suor, agora que a febre baixara um pouco? Sentia frio agora, tremendo e com medo.

Iria morrer se não o achassem. Quando ficava doente, o rei, seu pai, mandava chamar os melhores médicos do país para cuidar dele; orações eram feitas por todo o país. Mas agora estava sozinho, e ninguém sabia de sua terrível privação.

- Só Deus pode me ajudar agora - murmurava ele. - Oh, Deus, perdoe meus pecados. Dê-me uma oportunidade de redimii minha alma.

Aquela foi uma das raras ocasiões em que ele teve humildade.

Como se em resposta à sua oração, viu por entre as árvores uma pequena clareira na floresta e uma luz fraca. Seu coração pulou de alegria

- Obrigado, meu Deus. O senhor ouviu minhas orações - sussurrou ele.

Seguiu cambaleante em direção à luz. Vinha de um chalé que era um pouco mais do que uma cabana. Conseguiu chegar até a porta e bater nela com o punho fechado, e quando ela se abriu caiu aos pés de um homem velho.

- Socorro... - murmurou Filipe.

O velho se ajoelhou e olhou para ele. Depois, arrastou-o para dentro do chalé.

Filipe ficou deitado no chão e o velho colocou-lhe uma sopa quente nos lábios. O homem viu, pela maneira de vestir, que se tratava de um nobre.

- O senhor está doente. Suas roupas estão úmidas. Deve descansar em meu humilde chalé até ficar bom.

Filipe permitiu que lhe fosse tirada a capa. Sentia-se melhor, em parte devido à sopa, mas principalmente por causa da companhia humana.

- Avise... ao rei - balbuciou ele.

- Senhor?

- Sou o filho do rei.

- Senhor. Então é isso? O velho se ajoelhou.

Era a velha história da qual ele tinha tido vontade de participar, mas como aquilo era diferente do que imaginara!

- Eu me perdi e estou doente. Por favor, mande avisar o rei sem demora.

- Meu filho irá já, meu senhor. Deve ficar aqui e aquecer-se. Só posso lhe dar roupas velhas que o senhor talvez ache que não ficaria bem usar.

- Deixe-me abrigar aqui, e mande avisar ao meu pai.

- Somos apenas humildes carvoeiros, alteza, mas somos bons e leais servos do rei. vou mandar meu filho agora mesmo.

Filipe assentiu com um gesto da cabeça e fechou os olhos.

Só na manhã seguinte chegaram guardas do castelo. Filipe, àquela altura, estava delirando.

O carvoeiro recebeu uma bolsa cheia de moedas de ouro pela sua participação na aventura, o que o tornou mais rico do que poderia ter ficado à custa do trabalho de uma vida inteira, e Filipe foi levado de volta para o castelo.

Sua constituição não era suficientemente forte para suportar uma prova daquelas, e ele ficou muito doente, tão doente, na verdade, que parecia muito provável que não pudesse sobreviver.

Luís estava fora de si. Sabia que estava sendo punido por seus pecados; precisava seguir naquela cruzada com Henrique. Aquele era o seu único filho homem, que segundo os seus planos deveria ser coroado com a pompa que ele achava necessária numa ocasião daquelas, e Deus estava ameçando tirá-lo dele.

Chorou; suplicou; consultou seu parente, o conde de Flanders, recém-chegado de uma cruzada depois da qual acreditava ter-se eximido de todos os seus pecados. O conde era um homem comparativamente jovem, e tinha bastante tempo para cometer mais pecados e redimir os novos, e por isso estava se sentindo entusiasmado.

Luís não conseguia dormir, tal era a sua angústia. Convocou seus ministros e disse:

- Já não sou jovem. Duvido que possa arranjar mais filhos homens, e se tivesse um agora, ele seria ainda uma criança quando eu partisse. Deus está me castigando. Sinto isso. Por que Ele iria fazer isso comigo? Filipe nunca foi tão forte quanto eu poderia desejar, e sempre tive medo de que alguma coisa como esta lhe acontecesse.

Os ministros o lembraram de que o jovem Filipe continuava vivo e os médicos estavam tratando dele. Havia uma boa chance de que sobrevivesse.

Mas quando Luis procurou os médicos, eles pareciam muito sérios. A febre de Filipe subira muito Estava delirante e ficava sempre bradando que as árvores eram suas inimigas e estavam tentando agarrá-lo e transformá-lo numa delas.

Os conselheiros do rei preveniram-no de que precisava cuidar de sua própria saúde. Caso contrário, se morresse enquanto o único filho homem estivesse naquelas condições, poderia ser um desastre para a França.

Luís lamentou o fato de ainda não ter partido na cruzada que ele e Henrique estavam planejando, e pensando em Henrique, lembrou-se de Thomas Becket, o grande homem bom que tinha sido tão cruelmente assassinado sobre as pedras da catedral de Canterbury. Seus médicos lhe deram um calmante que, segundo eles, lhe daria um sono tranquilo, e quando ele estava deitado em sua cama, entre adormecido e desperto, teve uma estranha experiência que acreditou ser uma visão.

Thomas, o Mártir, estava no quarto.

- É mesmo você, meu amigo, Thomas Becket, arcebispo de Canterbury? - perguntou o rei.

- Sou - disse o vulto.

- Vem do céu, onde tem um lugar de honra?

- Venho procurá-lo mandado por Deus. Vá a Canterbury, humilhe-se diante de meu santuário. Confesse seus pecados e peça perdão. Se eu interceder por você, terá seu filho de volta.

O rei sentou-se na cama. Estava tremendo. Encontrava-se sozinho no quarto.

Estava convencido de que Thomas Becket o visitara e salvaria a vida de seu filho.

Ir a Canterbury! Seus ministros mostravam-se perturbados. Ir ao reino de seu velho inimigo, o rei da Inglaterra!

- Os senhores se esquecem de que agora somos amigos. Fizemos um juramento nesse sentido, e estamos planejando partir juntos numa cruzada.

- Não é prudente confiar demais no rei da Inglaterra - avisaram os ministros.

- Agora confio nele. Além do mais, Santo Thomas pediu-me que fosse. Caso contrário, meu filho morrerá. Mesmo que desconfiasse de uma deslealdade por parte do rei da Inglaterra, eu iria, para salvar meu filho.

Os ministros viram que não adiantava tentar dissuadi-lo.

Filipe de Flanders ficou entusiasmado com a perspectiva. Estava inclinado a concordar com os ministros do rei, achando que não era muito prudente Luís ir à Inglaterra, mas a perspectiva de agitação sempre o animava. A vida andara um tanto enfadonha desde que voltara da cruzada, e agora estava tentando ganhar as boas graças do jovem Filipe, pois sabia que Luís não ia viver muito mais e a viagem por mar seria, sem dúvida, um grande esforço para ele.

- Majestade, espero ter permissão para acompanhá-lo.

- Seria um prazer, Filipe.

Seus ministros continuaram indecisos. O rei achava que podia suportar a travessia do mar? Ele sabia como era imprevisível aquela faixa de água.

Luís estava bem ciente disso, mas já se decidira. Tudo o que restava a fazer antes de partir era comunicar o seu desejo ao seu bom amigo, o rei da Inglaterra.

Quando Henrique soube que Luís desejava visitar o santuário em Canterbury, ficou preocupado, porque lhe ocorreu a ideia de que enquanto estivesse na Inglaterra o rei da França iria, sem dúvida alguma, querer visitar a filha. Henrique teria de convencer Alice, se aquele encontro acontecesse - embora ele fosse fazer o máximo ao seu alcance para que não acontecesse -, a não deixar transparecer, de forma alguma, o seu sentimento por ele. Sem dúvida que se falaria em Ricardo, e caso isso acontecesse, Alice deveria fingir que o aceitaria com prazer como marido. Ela podia confiar em que Henrique providenciaria para que aquele casamento nunca se realizasse. Mas havia tempo suficiente para prepará-la, se houvesse um encontro entre pai e filha. Luís era, na época, um homem muito angustiado, preocupado apenas com uma coisa - a preservação de seu filho, e por isso talvez até se esquecesse da situação difícil da filha.

Henrique mandou um mensageiro a Luís, com uma efusiva mensagem de boas-vindas. O rei da Inglaterra ficaria honrado em receber o rei da França. Compreendia a sua grande dor e seu desejo de interceder por meio de Santo Thomas. Acrescentaria suas orações às de Luís, e o amigo podia estar

certo de que se deslocaria a salvo. Todos na França, que temiam pela segurança de Luís, poderiam ficar despreocupados. O rei da Inglaterra iria tornar-se pessoalmente responsável por ela.

Reunindo um brilhante cortejo, Henrique viajou até Dover, para aguardar a chegada do rei da França. As pessoas se reuniram à beira da estrada para vê-lo passar, e houve muita gente para testemunhar o encontro dos dois reis.

O pobre Luís, arrasado pela ansiedade por causa do filho e pelo sofrimento que suportara durante a travessia, parecia um velho. Será que envelheci tanto quanto ele nos últimos anos?, pensou Henrique. Ainda podia passar um dia montado numa sela, sem se cansar; estava tão ativo quanto antes, e as pessoas ainda se admiravam com aquela tremenda energia que não dava sinais de diminuir. Ele nunca se preocupara com a sua aparência. Eleanor o reprovara bastante por causa disso, chamando-o de camponês em alguns dos seus acessos de raiva, zombando de suas mãos rachadas e de sua manei rã de vestir-se, chamando-o de bárbaro porque ele dizia que roupas serviam para serem usadas, e não para serem um ornamento. Bárbaro, hein? Alguns bárbaros adoravam seus enfeites. O amante sarraceno que ela tivera, por exemplo? Por que Henrique pensava em Eleanor depois de todo aquele tempo? A opinião dela não lhe importava. Alice o amava.

Alice o achava o ser mais maravilhoso que jamais vivera. Era isso que importava. Seus cabelos estavam ficando ralos, e ele sentira orgulho de seus cachos castanho-escuros. Talvez tivessem sido a sua maior vaidade pessoal. Mesmo agora, penteava-os com cuidado, numa tentativa de esconder a calvície.

Ele envelhecera um pouco, então, mas com graça, como era de esperar. Mas o pobre do Luís estava um velho. Devia estar perto dos sessenta - uma idade e tanto; e não parecia que ia durar muito tempo mais.

Henrique o abraçou.

- Meu caro amigo. Seja bem-vindo. Fico contente por vê-lo aqui.

Havia lágrimas nos olhos de Luís.

- Deus o abençoe, Henrique. É muita bondade sua receberme com tanta satisfação em suas terras. Meu coração está doente, meu caro amigo, doente de angústia. Meu adorado filho...

Sinto por você, e mandei avisar que não vai haver demora.

Quando tiver descansado da viagem, iremos juntos ao santuário de Canterbury e lá misturaremos nossas lágrimas e nossas orações. Não tenho dúvidas de que elas serão ouvidas. Alegre-se. Santo Thomas é um bom amigo de nós dois, e irá interceder a seu favor. Eu sei.

Luís agradeceu ao seu bondoso anfitrião, e no dia seguinte eles partiram juntos para Canterbury.

Os reis cavalgaram lado a lado pela estrada para Canterbury. Conversaram, e Luís falava das desventuras do filho na floresta e dizia que a noite naquele lugar úmido e isolado provocara a febre alta que muitas vezes o atormentava.

- Ele é o único filho homem que tenho - lamentava-se Luís.

- Você, meu bom amigo, é mais feliz, pois é pai de vários.

Mais do que você sabe. pensou Henrique, e por estranho que pareça, recebo mais conforto daqueles que nasceram fora do casamento do que dos que nasceram nele. Talvez isso tenha alguma coisa a ver com as mães deles.

- Tive minhas provações com a minha prole - disse Henrique.

- Nunca teve preocupações quanto à saúde deles.

- Não, mas eles são lutadores, acho eu. Espero que o meu jovem João não se volte contra o pai como fizeram os outros. Pelo menos, você não sofreu esse tipo de ingratidão - retrucou Henrique.

Ainda há tempo para Filipe lhe dar motivos para isso, pois eu não confiaria nele, pensou Henrique. Pelo menos meus filhos são bonitos, dignos de orgulho, embora rebeldes. Eu detestaria ter um fraco mal-humorado como o seu Filipe.

- Nós somos íntimos, Henrique. Unidos pelos casamentos de nossos filhos. Que triste golpe Marguerite ter perdido o filho. Nosso neto teria estabelecido um elo mais forte entre nós. Sou o pai de seu filho Henrique, assim como você é pai de minha filha Marguerite. E o mesmo acontecerá com Ricardo e Alice...

- Claro, claro, Luís. Você deve ter ouvido falar nos inúmeros milagres que têm sido realizados no santuário de Santo Thomas. Os cegos têm recuperado a visão, os coxos têm andado. Creio, de todo o coração, que a essa hora, amanhã, quando tivermos feito nossas orações, Filipe começará a melhorar.

- Você me conforta, meu amigo. Também estou começando a acreditar que será assim.

Os sinos tocavam as boas-vindas quando eles atravessaram os muros da cidade. Luís seguiu imediatamente para a cripta e ajoelhouse ao lado do túmulo de Santo Thomas.

Ali rezou o dia e a noite toda, recusando alimentos, implorando a Santo Thomas que intercedesse junto a Deus pela vida do filho.

E não se contentou com rezar. Prometeu que o convento iria receber o seu vinho grátis todos os anos, diretamente da França.

Henrique expressou seus agradecimentos e insistiu em levar seu convidado a Winchester, para que ele tivesse um breve descanso antes de fazer a árdua viagem para

além-mar. Estava decidido a mostrar amizade para com Luís. Não adiantava oferecer-lhe um banquete. Luís estava mais interessado em igrejas. Henrique, no entanto, levou-o aos cofres onde guardava seus tesouros e pediu-lhe que apanhasse alguma coisa como um penhor da amizade que os unia.

Henrique tremia de angústia enquanto Luís mexia em alguns de seus preciosíssimos ornamentos de ouro, prata e incrustados de pedras preciosas, porque não suportava separar-se de quaisquer coisas que possuía; não precisava ter-se preocupado. Luís escolheu uma coisa de pequeno valor, e uma vez mais os dois juraram amizade.

Henrique disse que teria implorado ao rei da França que estendesse sua permanência, porque eram muitas as coisas que queria mostrar-lhe na Inglaterra, mas sabia muito bem o quanto ele estava ansioso por voltar para o lado do filho. Sua grande preocupação durante a visita era de que Luís pudesse pedir para ver Alice ou Eleanor.

Qualquer um dos dois pedidos poderia mostrar-se fatal. Alice faria o possível para manter o segredo dos dois, mas será que teria forças para isso? E o fato de que Eleanor sabia fazia com que muitas vezes ele suasse de medo. Ficava imaginando por que ela não divulgara a notícia. Só podia acreditar que ela achava que podia atormentá-lo mais deixando-o na dúvida.

com habilidade, evitou ambos os problemas, e foi com grande prazer que acompanhou o rei da França até Dover. Luís embarcou no navio que o aguardava e seguiu de volta à França.

Lá, uma notícia agradável o aguardava. Filipe estava recuperando a saúde. Os médicos juraram que devia ter sido precisamente no momento em que Luís jazia prostrado diante do túmulo do mártir que Filipe começara a reviver.

Luís foi imediatamente ver o filho, e a mudança era notável.

Só podia ser um milagre, declarou o rei; e como ficou contente por ter desafiado seus ministros e depositado sua confiança no mártir e em Henrique da Inglaterra! Considerou que aquilo era um bom sinal para o futuro e para a nova amizade dos dois, que iria levá-los juntos à Terra Santa.

- Sua coroação não demorará muito. Vamos fazer os preparativos sem demora - avisou ele a Filipe.

Ficou encantado quando seu genro, o Henrique mais moço, chegou à corte da França com a esposa, Marguerite.

Luís abraçou-os com emoção. Henrique estava bem e muito bonito, embora Marguerite estivesse um pouco abatida depois do que sofrera.

- Como fico contente ao vê-los, meu filho e minha filha! disse ele, e acrescentou dirigindo-se a Henrique: - Quero que você e o meu Filipe sejam sempre amigos. Seu pai e eu fizemos um juramento de amizade, e um dia vocês dois estarão na mesma posição em que nos achamos hoje - reis da França e da Inglaterra. Quero que haja amizade entre vocês. Lembre-se disso, Henrique, porque na guerra não há nada, a não ser miséria. Pudera eu nunca ter participado de uma guerra. Hoje seria um homem mais feliz.

As guerras eram uma parte necessária da vida de um rei, supunha Henrique, mas não se preocupou em contradizer Luís. O pobre homem parecia mais velho do que nunca, e a pele adquirira uma tonalidade doentia.

Henrique ficou contente por renovar a amizade com Filipe de Flanders, mas era menos influenciado por ele agora, porque adquirira mais experiência do mundo e, embora se lembrasse de como o conde havia sido generoso quando o iniciara nos prazeres do torneio, ele já não parecia a mesma pessoa encantadora de antes.

Tampouco tinha Henrique uma grande consideração pelo jovem príncipe da França. Ninguém tinha; ele não era uma pessoa muito atraente. Só o pai o idolatrava, e, naturalmente, os ministros da França percebiam a sua importância, pois ele era o herdeiro e se tivesse morrido depois daquele contratempo na floresta, não havia dúvida de que teriam aparecido tantos pretendentes ao trono que uma guerra civil teria sido inevitável.

Luís decidiu que haveria uma missa de ação de graças em St. Denis para comemorar a milagrosa recuperação de Filipe; a missa deveria acontecer o mais rápido possível.

Não queria demonstrar ingratidão a Thomas Becket pela sua intercessão.

A data foi marcada. O jovem Henrique cavalgaria lado a lado com Filipe, para mostrar a todos que a amizade entre a França e a Inglaterra estava firme.

Quando os criados ajudaram Luís a montar em seu cavalo, ficaram impressionados com a palidez do rei, e um deles perguntou se estava se sentindo mal.

- Um pouco cansado - respondeu Luís.

- Majestade, não seria melhor descansar?

- Não. Eu não perderia essa cerimónia por nada.

Mas perdeu, porque enquanto o cortejo seguia para a abadia, o rei assustou a todos caindo para a frente. Teria escorregado para o chão se um dos cavaleiros, que intimamente vinha observando a sua palidez, não tivesse corrido para salvá-lo.

O rei foi levado de volta para o castelo, e pouco depois seus médicos estavam ao lado de sua cama.

Ele sofrera um ataque, e não podia falar nem se mexer.

Em poucos dias ficou ligeiramente melhor. A fala voltou, mas um braço e uma perna ficaram paralisados.

Uma coisa Luís havia decidido. A coroação não devia ser adiada novamente. Agora mais do que nunca, era necessário que Filipe fosse coroado rei da França.

Mandou chamar Filipe de Flanders e pediu-lhe que tomasse conta do jovem Filipe. O conde era um dos padrinhos de Filipe, lembrou ele, e aquilo era seu dever.

- Meu filho é inteligente, mas muito jovem. Tem muito que aprender, mas é bastante inteligente. Espero que aqueles que me querem bem sejam bons amigos dele.

Filipe de Flanders jurou que serviria Filipe com todas as suas forças.

E serviria, prometeu a si mesmo, se o garoto fosse influenciado por ele. O conde imaginou-se ficando cada vez mais poderoso à medida que sua influência aumentasse. Sabia que Luís não viveria por muito mais tempo; o novo rei seria demasiado jovem, e se aceitasse a orientação do padrinho, Filipe de Flanders ficaria muito contente. Seria como Luís queria, só que o jovem Filipe iria servir o conde Flanders, e não o contrário. Quando aquilo acontecesse, haveria amizade entre os dois e iriam trabalhar juntos para o bem da França e do conde.

A mulher de Luís, Adela, foi vê-lo na cama e ele lhe falou de suas preocupações.

- Eu gostaria que nosso filho fosse um pouco mais velho. - Em breve ele ficará mais velho - disse Adela, para consolá-lo.

- Não haverá tempo.

- Vai haver tempo. - Os olhos dela estavam tristonhos, pois Luís fora um marido bom e delicado. Ela tivera medo, quando fora para Paris a fim de se casar com ele

e ser rainha da França. Sua família ficara encantada, como era natural, com o casamento, e Adela agora pensava nos irmãos, porque se Luís morresse iria precisar da ajuda deles. Filipe era muito criança para governar, e bem poderia ser influenciado por aqueles que não fossem bons para ele.

- Adela, minha querida, você tem sido uma boa mulher para num, e nunca poderei agradecer-lhe o bastante por ter-me dado meu filho.

Ela se ajoelhou ao lado da cama e beijou-lhe a mão. Luís murmurou uma palavra de carinho.

- Você precisa ficar bom.

Ele assentiu com a cabeça para consolá-la, mas não acreditava que algum dia sairia da cama.

No dia da coroação, Luís continuava de cama e ansiava por estar em Rheims. Lá, a coroa seria colocada na cabeça de Filipe por seu tio - irmão de Adela - que era o arcebispo de Rheims. Era um homem bom e forte. Os irmãos ficariam ao lado de Adela e em breve o rapaz, que todos tinham de admitir que era inteligente, atingiria uma idade em que poderia agir por conta própria.

Se ao menos Filipe fosse um pouco mais velho, ele poderia morrer em paz. Não que tivesse qualquer utilidade, agora, exceto como um símbolo; mas ainda era o rei da França, e os homens o respeitavam como tal, mas naquele dia haveria outro rei, um rapaz que ele rezava com fervor para que crescesse e fosse um grande rei.

Para Luís, embora permanecesse acamado em Paris e o filho se encontrasse em Rheims, ele estava com o filho em espírito.

Sabia que Filipe de Flanders levaria a espada de ouro e o jovem Henrique da Inglaterra seguraria a coroa, e a cerimónia seria realizada pelo tio de Filipe.

Podia ouvir a música. Podia ver tudo, e rezava: Mãe de Deus, cuide de meu filho. Dê-lhe a sabedoria que não tive. Faça-o forte para resistir aos inimigos e mostre-lhe como ser tolerante para com aqueles que lhe fizerem mal. Se fizer isso, estarei pronto para partir em paz.

Na catedral de Rheims, o jovem Filipe estava exultante. Rei da França, finalmente! O jovem Henrique, observando-o, queria dizer: "O fato de estar coroado não faz de você um rei. Terá de esperar seu pai morrer, mas sem dúvida isso não vai demorar. Deus sabe o quanto eu terei de esperar."

Aonde quer que o jovem rei da França fosse, o conde de Flanders o acompanhava. O astuto conde estava tentando, agora, ser para Filipe aquilo que certa vez tentara ser para Henrique. Os dois jovens se encontravam em circunstâncias semelhantes: ambos haviam sido coroados enquanto os pais ainda viviam; e levavam o título de rei, sem o poder.

O conde admirava-se da tolice do rei da França e do rei da Inglaterra ao demonstrarem tão pouca visão ao alçarem os filhos àquela eminência enquanto eles ainda detinham a coroa. Era provocar confusão. No caso de Luís, que não podia viver por muito mais tempo, havia uma certa razão; mas era um mistério que Henrique Plantageneta tivesse demonstrado tanta insensatez.

No entanto, o conde estava agora mais interessado no novo rei da França do que em Henrique. O pai de Henrique ainda tinha muitos anos de vida pela frente; era um homem forte, com o qual poucos podiam competir em inteligência e capacidade de lutar e sair vitoriosos. Era totalmente diferente no caso de Filipe.

Por isso, ele usou de todos os artifícios com o rapaz.

Filipe de Flanders era exatamente o tipo de homem que para o jovem Filipe era natural admirar. Sua ostentação, sua bajulação sutil, sua extravagância, sua riqueza, sua generosidade, tudo aquilo encantava o jovem rei.

A rainha Adela via o efeito que o conde de Flanders estava tendo sobre o filho, e lamentava isso. Tentou adverti-lo.

- Filipe, seu pai ainda vive. Lembre-se de que ele ainda é o rei da França.

- Ele nada pode fazer. Fica deitado na cama incapacitado de se mexer. A França precisa ser governada.

- Seu pai sempre disse que um rei precisa de bons ministros para governar bem.

- Meu pai sempre teve medo de governar.

- Cuidado com o que diz, meu filho. Seu pai é um homem bom e a única coisa que temia era cometer um erro.

- Um rei precisa ser ousado. Um rei tem de tomar decisões, quer outros gostem delas, ou não. Precisa aceitar apenas o conselho que julga bom, mas deve dar a última palavra.

- Mas também precisa de experiência. Pedi a seus tios que venham para a corte.

Filipe teve um acesso de raiva. Seus tios! Irmãos dela. Aqueles homens da casa de Blois exageravam na opinião que tinham deles mesmos. Era o que o conde de Flanders dizia. Como a irmã casarase com o rei da França, eles achavam que tinham o direito de governar.

- Então, pode cancelar o convite - bradou Filipe.

- Não vou fazer uma coisa dessas. Seu pai está satisfeito por eu ter feito isso. Ele entende que você vai precisar da orientação deles.

- É claro que não preciso. E tampouco irei aceitá-los.

- Filipe, lembre-se de uma coisa. Você foi coroado rei, mas isso não o torna governante deste país. A França já tem um rei, e enquanto ele viver a coroa, e a autoridade que ela representa, pertence a ele.

- Ele está morto... ou quase. Não pode pensar; não pode agir.

- Filipe, como pode falar assim? Ele é seu pai e rei da França. Está sofrendo de uma terrível doença. Você vai trazer tristeza para os seus últimos meses de vida?

- Sou rei da França e todos devem saber disso.

- Você não passa de um menino.

Não havia nada que enfurecesse mais Filipe do que ser lembrado de sua pouca idade. Teve um acesso de raiva e berrou:

- A senhora vai saber... todos saberão... o que significa contrariar o rei da França, muito embora ele seja o que vocês chamam de menino!

- Deve controlar a sua paixão, Filipe. Foi coroado como seu pai queria. Ele quer que a França nunca fique sem um rei coroado. Por isso, ordenou a sua coroação. Lembre-se de que deve a sua coroa a ele; deve a vida a ele. Nada de bom aconteceu àqueles que não honraram os pais. A coroa é dele. O selo do cargo é dele. Os franceses leais devem obediência a ele, e só a ele... por enquanto.

Filipe saiu irado do aposento.

Nos jardins, Filipe de Flanders caminhava com Henrique e Marguerite. Ainda havia amizade entre Henrique e o conde, que observava com prazer que Henrique sentia um pouco de ciúme das atenções que ele agora dedicava a Filipe.

Filipe juntou-se a eles.

- Que fisionomia carrancuda! - disse o conde de Flanders, em tom despreocupado. - Parece que há trovoadas no ar.

- É minha mãe. Ela vai trazer meus tios para cá, para me ajudar a governar.

O conde ficou alerta. A última coisa que queria era aqueles irmãos na corte. A Casa de Blois tinha uma opinião exagerada a seu próprio respeito. Estava intimamente

ligada à realeza, porque uma das filhas do Conquistador, Adela - em homenagem a quem a atual rainha da França tinha sido batizada -, entrara para ela pelo casamento.

Por essa razão, Estêvão, filho dela, se tornara rei da Inglaterra; e o irmão de Estêvão, Theobald, era pai de Adela, rainha da França. Adela tinha quatro irmãos: um era o arcebispo de Rheims, que havia coroado o jovem Filipe; Henrique, o conde de Champagne, e Theobald, conde de Blois, que se casaram com Marie e Alix, respectivamente - filhas de Luís com Eleanor; e o quarto era o influente Estêvão, conde de Sancerre.

Não era de admirar que numa época daquelas eles se considerassem os conselheiros de direito do jovem rei da França, e o conde de Flanders tinha de evitar que eles exercessem influência sobre o jovem Filipe.

- Certamente você não vai permitir isso - disse Filipe, de imediato.

- Farei o possível.

- O possível! Basta dizer que não vai aceitar a vinda deles. Você não é o rei?

- Bem, sou, mas como minha mãe salientou, a coroa e o selo do cargo ainda pertencem a meu pai.

Isso era verdade. Adela podia falar com Luís e conseguir que ele levasse os irmãos dela para a corte. Aquilo precisava ser evitado. Filipe de Flanders podia ver o seu sonho de poder ser arruinado se eles chegassem e assumissem o controle daquele muitíssimo impressionável rapaz.

- Vamos conversar - disse o conde, animado. - Henrique vai nos ajudar, não vai? Ele sabe o que é ficar frustrado.

- Sei, mesmo. Meu pai me impôs a obrigação de não agir contra ele.

- E você está impaciente sob o jugo - replicou o conde. Temos de providenciar para não permitirmos que eles imponham o jugo sobre o seu belo pescoço, meu caro Filipe.

Marguerite olhou para o seu meio-irmão com o cenho franzido. Não gostava muito dele. Não se conformava com as honrarias dispensadas aos meninos. Ela e suas irmãs nunca tinham sido tão consideradas quanto Filipe, simplesmente porque eram meninas. Além do mais, ela gostava muito do pai. Luís sempre fora bom e delicado para com os filhos, e estava muito aflita por ele se encontrar, agora, deitado no que todos acreditavam ser o seu leito de morte.

- Não quero ouvir essa conversa. Meu pai... nosso pai, Filipe... está de cama, seriamente doente. Pelo amor de Deus, não falemos como se já estivesse morto!

Henrique pôs delicadamente a mão no braço dela.

- Não é dele que falamos, como pessoa, Marguerite. Gostamos muito dele. Tem sido um bom pai para mim. Melhor do que o meu. Mas Filipe precisa certificar-se de que seus direitos não lhe sejam roubados.

- Filipe é apenas um garoto - respondeu Marguerite. Filipe ruborizou-se e olhou irritado para ela.

- Sou um homem. Sou capaz de governar, e por Deus, irei governar!

- Falou como um rei - interveio o conde de Flanders. - Gosto de ouvi-lo falar assim. Mas é a ação que conta. Deve estar preparado quando o dia chegar.

Marguerite se afastou, os olhos embaçados de lágrimas. Não queria ficar ali e ouvi-los falar como se o pai já tivesse morrido. Viu Guilherme, o Marechal, no jardim e foi juntar-se a ele. O conde a observava. Ele acreditava que ela estivesse contando a Guilherme o motivo de sua perturbação.

O conde não dava muita importância à influência que Guilherme, o Marechal, exercia sobre Henrique e Marguerite. Tinha sido ajudante-de-ordens na ala infantil quando os dois eram crianças, e por se tratar de um amigo de tanto tempo assim, era importantíssimo para eles. Os dois o admiravam demais. Guilherme, o Marechal, era um daqueles homens respeitáveis cujos atos eram previsíveis. Não procurava honrarias para si mesmo; era o tipo de cavaleiro de cujo valor Henrique Plantageneta estava ciente e o tipo que ele gostava de ver ao lado do filho. Guilherme, o Marechal, e o conde Filipe de Flanders se mostravam tão diferentes quanto era possível que dois homens o fossem.

O conde voltou a atenção para os dois jovens e escolheu Henrique para falar dos males que ele havia sofrido nas mãos do pai.

- Você está numa situação diferente, Filipe. O pobre do Henrique, aqui, é filho de um homem vigoroso que nunca cederá. Você é filho de um pai moribundo.

- Há uma grande diferença - concordou Henrique. Ele observava Marguerite e Guilherme, o Marechal. Este estava, evidentemente, tranquilizando-a. Aquilo era função dele, Henrique. E também detestava ouvi-los falar como se Luís estivesse morto. Ele sempre dissera que Luís fora um pai para ele. Mas ao mesmo tempo, estivera preso a cordões de comando e compreendia o ressentimento de Filipe.

- Uma grande diferença - prosseguiu o conde. - Henrique pouco pode fazer a esta altura. O pai é forte demais para ele. Não será assim para sempre. Então, nos dedicaremos a ajudá-lo, não, Filipe?

Filipe concordou, entusiasmado.

- Mas para começar, não podemos permitir que Filipe seja submetido a controles dos quais teremos dificuldades de tirá-lo.

- Não vou permitir - disse Filipe, em voz esganiçada. Então, sua fisionomia se transformou. - Mas Marguerite tem razão. Meu pai ainda tem a coroa e o selo do cargo.

- Lembre-se de que você foi coroado. E onde está o selo do cargo? - disse o conde.

- Ele o guarda no quarto, debaixo do travesseiro. O conde sorriu.

- Se pudéssemos pôr as mãos no selo...

- O que quer dizer? - perguntou Filipe.

O conde olhou do jovem rei da França para Henrique, que, no entanto, estava observando sua esposa e Guilherme, o Marechal, que estavam caminhando juntos em direção ao pátio.

- Se você tivesse o selo, se pudesse haver a impressão de que ele lhe dera o selo...

- Mas não vai me dar o selo. Devo pedir a ele?

- Não. A rainha deve ter dito a ele que não deve entregá-lo a você. Se você metesse a mão por baixo do travesseiro... Se o apanhasse...

- Eu podia fazer isso! - exclamou Filipe. - Mas ele diria que não me deu o selo.

- A palavra dele contra a sua! Ele é um homem doente. Muitas vezes fica delirando. Se você apanhasse o selo, ele seria seu.

- vou fazer isso - sussurrou Filipe. - Será fácil, e quando estiver com o selo vou proibir que meus tios venham para a corte.

O conde de Flanders caminhava pelos jardins a sós com Henrique. Gostava de andar ali, não porque admirasse as flores - mal as percebia -, mas porque ao ar livre era possível falar sem ser ouvido por outras pessoas.

Estava obtendo sucesso; intrigante de nascença, sentia-se no seu elemento. A vida tinha de ser, para ele, uma aventura permanente. Voltara da Terra Santa, onde levara uma vida excitante, e nada o agradaria mais do que governar a França através de seu fraco e jovem rei.

Certa vez, ele pensara que poderia obter um alto cargo na Inglaterra caso instalasse o jovem Henrique no trono, mas não era tão estúpido a ponto de se considerar adversário para Henrique Plantageneta, e sabia que o velho leão iria agarrar-se ao poder enquanto houvesse um sopro de vida em seu corpo. O rugido não ficara menos ameaçador, nem suas garras menos respeitáveis, à medida que ele envelhecia. Filipe, com o pai moribundo, era um projeto muito melhor.

Mesmo assim, ele não deveria perder de vista o velho leão que estava do outro lado do oceano. O abutre tinha de estar seguro de que não iriam tirar a sua presa. O jovem Henrique era fácil de manobrar. Seu ressentimento em relação ao pai era tal que sempre estaria pronto a entrar em ação contra ele se surgisse uma oportunidade. Era praticamente impossível muita esperança de sucesso naquela área. Mas se o velho Henrique morresse e o jovem Henrique fosse o rei, iria tornar-se um objetivo digno da atenção do conde.

Enquanto isso, precisava garantir sua posição na França, mas sempre de olho em Henrique. Após observar Guilherme, o Marechal, percebera que ele procurara influenciar Henrique contra ele. Aquilo não devia ser permitido. Filipe de Flanders se sentiria muito mais feliz se Guilherme, o Marechal, estivesse em outro lugar qualquer que não a serviço do jovem Henrique.

Observando-o em companhia de Marguerite, passara-lhe pela cabeça uma ideia que considerara boa.

Marguerite era uma moça bonita e atraente, e não havia dúvidas de que Henrique estava satisfeito com a esposa. Ele não vivia à procura de outras mulheres, como tantos jovens faziam, e era um marido fiel.

- O Marechal é um homem bonito - comentou o conde.

- E que cavaleiro! Ninguém tem tanto sucesso nos torneios quanto ele, exceto você, primo - concordou Henrique.

- Um sujeito atraente. As senhoras também acham, creio eu.

- Eu diria que sim. Mas ele nunca foi um homem muito interessado por mulheres. Respeitá-las faz parte de suas qualidades de cavaleiro. É o tipo de cavaleiro sobre o qual se canta na Aquitânia... os trovadores, sabe?

- Sei. Eles se apaixonam e adoram suas damas. São fidalgos e morreriam por elas. Parece uma maneira esquisita de professar a devoção dispondo-se a morrer. As meio-irmãs de Marguerite, creio eu, são poetisas e compositoras.

- É natural. Elas são minhas meio-irmãs também, sabe? Temos a mesma mãe.

- E o nosso Guilherme, o Marechal, é um cavaleiro desses. Está claro que Marguerite compartilha da admiração que suas meioirmãs têm por essas ideias.

- O que quer dizer?

- Ela e o Marechal são... bons amigos, não são? Henrique ruborizou-se.

- Ora... - gaguejou ele, - nós... conhecemos Guilherme desde que éramos crianças. Ele... foi nomeado nosso ajudante-deordens.

- Uma ligação sentimental. Bem, é ótimo você não ser um homem ciumento, Henrique. Como eu sou diferente! Contei-lhe a história, não? Lembra-se de que mandei açoitar o amante de minha mulher quase até a morte, e para acabar com ele mandei pendurá-lo sobre uma fossa sanitária?

- Você está insinuando...

- Meu caro Henrique, claro que não. Mas as mulheres são frágeis, e Walter de Lês Fontaines era um cavaleiro que conquistava admiração onde quer que aparecesse, graças aos seus modos de fidalgo e de cavaleiro. Esses modos não evitaram que ele fosse para a cama com minha mulher durante a minha ausência. Creio, na verdade, que ela o atraiu para lá. Ele não quis admitir. Um cavaleiro até a morte, entende? Mas foi isso o que sempre achei. Não, você não é um sujeito ciumento como eu. Mas, falemos de outras coisas. Sabia que Filipe está de posse do selo do pai?

- Não - disse Henrique, com o pensamento longe do selo de Filipe. Estava pensando em Guilherme e Marguerite. Não acreditava.

Não podia ser verdade. E no entanto, os dois eram amigos. Lembrava-se que quando estivera perturbada ela fora procurá-lo e conversara com ele.

- Sim, ele visitou o pai e ficou a sós com ele. Quando saiu do quarto, estava com o selo. Agora, é claro, Filipe tem autoridade. O selo está em seu poder, e por isso deve ser a vontade do pai que fique com o filho. Pode estar certo de que aqueles tios ardilosos nunca virão para a corte. Eles e a rainha vão aprender que Filipe pode ser um rapaz, mas tem bons homens para assessorá-lo, e está decidido a ser o rei da França.

De uma torrinha do castelo, Henrique viu Guilherme, o Marechal, entrar a cavalo no pátio. Ninguém tinha na sela de um cavalo o porte de Guilherme. Era, de fato, um belo cavaleiro. Henrique semicerrou os olhos. Claro que Guilherme estava tentando tornar-se amante de Marguerite, e Marguerite estava encantada por ele.

Oferecia a ela uma solidariedade muito afetuosa diante da saúde de seu pai, que se deteriorava. Por que iria ela procurar Guilherme, em vez de o marido? Talvez porque o marido fosse muito amigo de Filipe de Flanders e ela nunca pudera ver como ele era atraente. Marguerite achava que ele exercia uma má influência sobre Henrique, sem dúvida porque Guilherme, o Marechal, assim lhe dissera.

- Mandem Guilherme, o Marechal, à minha presença! - berrou Henrique para um de seus criados.

Pouco depois, Guilherme apareceu.

- Há uma coisa que estou para lhe dizer há muito tempo disse Henrique, os olhos semicerrados.

Guilherme enfrentou o seu olhar com firmeza.

- Majestade?

- Você me ofende com suas atitudes reprovadoras - replicou Henrique.

- Não compreendo.

- E vejo que você é muito afetuoso para com a rainha Marguerite.

- Majestade, estou certo de que sou um bom amigo de ambos.

- E particularmente dela, hein?

- Não compreendo essas insinuações.

- Não compreende? Então, você é mesmo um bobo. vou ser claro. Chegou ao meu conhecimento que você passa muito tempo ao lado de minha mulher. Não quero isso. Se você não fosse meu amigo há tanto tempo, eu o castigaria como merece. No entanto, serei tolerante. - Henrique tremia.

Era muito difícil, quando cara a cara com aquele olhar firme, acreditar naquelas coisas! Guilherme sempre fora tão digno, tão ansioso por servir a ele; e quando, no passado, ele parecera estar do lado de outras pessoas, sempre se comprovava que tinha sido para o próprio bem de Henrique. Saia da minha vista. Não o quero perto de mim. Vai deixar de trabalhar para mim. Volte para a Inglaterra.

- Quer dizer que está realmente me despedindo?

- Estou. Vá embora, antes que eu fique tentado a lhe causar algum mal.

Guilherme, o Marechal, curvou-se com dignidade e retirou-se. Antes do dia acabar, estava a caminho da Inglaterra.

Marguerite ficou triste e zangada.

- Despedir Guilherme! Você está louco. Ele é o seu melhor amigo.

- Claro que você pensa assim.

- Claro que penso. Como você deveria pensar, se raciocinasse de maneira sensata.

- Sei que ele é muito amigo seu.

- Ele é amigo de nós dois. Sei que gosta muito de você e sempre gostou. Ele tem tentado provocar um melhor relacionamento entre você e seu pai. É mais amigo seu do que Filipe de Flanders jamais será. Aquele homem só pensa em subir na vida.

Henrique começou a se sentir constrangido. O conde estava mais ou menos dizendo ao jovem Filipe o que fazer. E lá estava Luís, impossibilitado de ajudar. Os irmãos da rainha já tinham sido proibidos de ir para a corte, e a própria rainha estava sendo tratada com grosseria.

Sentindo que tinha sido um tolo, ele procurou culpar Marguerite.

- Sei perfeitamente o que tem se passado entre você e Marechal. Marguerite ficou perplexa.

- Ele é seu amante... ou pretende ser.

- Henrique! Você está louco, mesmo!

- Não. Eu vi.

- O que foi que viu?

- Vocês dois juntos.

- Quando?

- Ora... outro dia, no jardim... quando você estava transtornada por causa de seu pai. Ele a consolou.

- Por que não iria consolar? Não vou ficar ouvindo o conde e meu irmão falarem de meu pai como se ele estivesse

morto. Pensei que você pudesse ter expressado uma certa indignação, mas isso não ocorreu. Em vez disso, fica imaginando... absurdos... sobre mim e Guilherme.

- Ele foi embora. Não o quero por aqui. Não tenho a menor intenção de bancar o marido enganado.

- Oh, Henrique, como pode dizer essas coisas? Sabe que não é verdade. Guilherme é um amigo muito bom que você tem. Eu sou a sua esposa fiel. Está sendo enganado por gente maldosa.

Henrique não gostava de pensar que tinha sido tapeado de tal maneira, e por isso fingiu acreditar que havia um certo grau de verdade no boato relativo a Guilherme e sua mulher. Seria humilhante demais pedir a Guilherme que voltasse e pedir-lhe desculpas. Estava mal-humorado e continuou fingindo que era um marido desconfiado, o que deixou Marguerite desesperada.

Ficou aliviado quando a rainha Adela perguntou se podia falar com ele em particular.

Revelou-lhe que se sentia muito angustiada e acreditava que ele poderia ajudá-la, se quisesse.

- De todo o meu coração - disse ele. Dirigiu-se aos aposentos privados da rainha, e lá ela lhe disse que era uma mulher muito infeliz.

- Meu marido está morrendo, e meu filho voltou-se contra mim. Meus irmãos estão proibidos de virem para a corte e eles... e eu... estamos ameaçados de confisco de nossas terras.

- O rei não vai permitir que isso aconteça.

- Como poderia eu ir procurar o rei nas condições atuais dele e dizer-lhe o que o filho está tentando fazer e que está seguindo conselhos perniciosos?

Henrique mordeu os lábios, humilhado. Filipe não era o único que fizera isso.

- Se eu pudesse fazer alguma coisa para ajudá-la...

- Pode, e foi por isso que pedi que viesse.

- O que Vossa Majestade deseja de mim?

- Vá até a Inglaterra. Procure seu pai. Fale com ele sobre a posição em que me encontro. Sei que ele me ajudará.

Henrique pensou. Ficaria satisfeito em deixar a corte da França, pois estava se sentindo cada vez mais envergonhado de si mesmo.

Se fosse à Inglaterra falar com o pai, aquilo seria uma maneira de escapar de uma situação delicada e embaraçosa.

O rei estava bem-humorado quando foi a Westminster. Lá estava a querida Alicinha esperando ansiosa para saudá-lo.

- A notícia é boa e má ao mesmo tempo, querida. Seu pai está gravemente doente.

Alice tentou demonstrar consternação, mas já fazia tanto tempo desde que vira o pai que não se lembrava como era ele.

- Tão doente que, pelo visto, não vai durar muito. Este é o lado mau da notícia. O bom é que enquanto ele está nessas condições, não pode haver hipótese de um casamento entre você e Ricardo.

- É como se Deus estivesse cuidando de nós - disse Alice, esquecendo-se de que enquanto Ele os protegia, Ele estava sendo muito injusto para com o piedoso Luís.

- Sei que Santo Thomas Becket é meu amigo. Agora, querida, podemos afastar nossos temores. - Gostaria de poder colocála no pavilhão de Rosamund, mas isso não era possível por se tratar de uma princesa, e ultimamente falara-se muito em seu casamento.

Ficou algum tempo com ela, e quando partiu para uma viagem por Oxfordshire, chegou um mensageiro para dizer-lhe que seu filho estava no país e se achava a caminho para visitá-lo.

Pai e filho se encontraram em Reading, e lá o jovem Henrique contou ao rei por que tinha ido com tanta pressa.

- A rainha da França pede o seu conselho, pai. O rei está à morte, e o jovem Filipe está nas mãos do conde de Flanders, que tenta governar a França através dele.

- Loucura de juventude! - disse Henrique de maneira que fez o filho enrubescer. - Sem dúvida o conde está bajulando o jovem Filipe como bem sabe fazer.

Lembrando-se de que fora o conde o responsável por ele demitir Guilherme, o Marechal, o que agora considerava ter sido uma tolice, Henrique disse:

- O conde está, na verdade, governando a França neste momento, porque Filipe o obedece em tudo, e agora que Filipe roubou o selo, ele está mandando.

- Não se pode permitir que isso continue. Pelo que sei, eles podem estar planejando uma invasão da Normandia. Isso lhes agradaria. Filipe de Flanders gostaria, sem dúvida, da Normandia. Mas esse impostor não a terá nunca.

- A rainha da França pede a sua ajuda.

- Ela a terá.

- Ficará muito grata se o senhor for ajudá-la.

- E deve ficar mesmo, porque Flanders fará com que o jovem Filipe não passe de um fantoche para servir aos seus fins. É triste quando um filho desrespeita a autoridade do pai.

O jovem Henrique pareceu contrafeito, porque a situação que surgira na França era semelhante à que existira na Inglaterra quando os filhos de Henrique Plantageneta tentaram tomar o poder que o pai não queria lhes dar enquanto vivesse. Assim Filipe estava tomando o poder enquanto o pai ainda estava de cama, doente.

O rei estava decidido a dar a lição.

- Quando meus filhos se voltaram contra mim, foram pedir ajuda ao rei da França e ele os ajudou. No entanto, quando o filho do rei da França tenta roubar-lhe a autoridade, a mulher dele, a rainha, pede o meu auxílio. Estou disposto a dá-lo.

- É um gesto nobre de sua parte, majestade. O rei soltou uma gargalhada.

- Nobre! Os reis não podem dar-se ao luxo de serem nobres! Os reis têm de pensar no que é bom para seus reinos, e se a nobreza for, tanto melhor. Caso contrário, o rei que servisse mal ao seu país para ser nobre seria um tolo. Não, vou ajudar Luís e Adela porque estou decidido a reduzir o poder do conde de Flanders e de seu esbirro, o rei da França. Providenciarei para que a Normandia fique garantida. Por isso, vou ajudar meu ex-amigo Luís e esquecer o mau serviço que ele me prestou quando estive em situação semelhante. A posse da coroa deve ser a sua primeira preocupação, meu filho. Segure-a firme. Então, será um bom rei, e por mais nobre que você seja, não pense nisso.

- Vamos partir imediatamente, então?

- Vamos. Infelizmente, você não será acompanhado pelo seu bom amigo Guilherme, o Marechal. Você o mandou de volta para a Inglaterra quando não estava em condições de perder os serviços dele.

O jovem Henrique ficou calado. Como sempre, o pai conseguira humilhá-lo.

Quando Filipe de Flanders soube que o rei da Inglaterra havia desembarcado, ficou com medo. Não era isso que ele queria. Sabia muito bem que ele e o jovem Filipe não podiam enfrentar aquele valente guerreiro. Outra coisa que ele soubera era que os ministros de Luís estavam se tornando um tanto inquietos e se se chegasse a uma guerra não estariam dispostos a apoiá-lo.

O conde amaldiçoou o jovem Henrique por ter ido falar com o pai; supunha que se tratasse de algum tipo de vingança, porque o aconselhara a se livrar de Guilherme, o Marechal. Azar, outra vez. Não conseguira dominar o jovem Henrique e, se não tivesse cuidado, iria fracassar com Filipe. Assim que Henrique Plantageneta chegasse com seus exércitos em defesa da rainha Adela e seus irmãos, Filipe não encontraria ninguém disposto a enfrentá-los a seu lado. Uma coisa era certa, o conde não podia perder a influência sobre Filipe.

O rapaz ficou esbravejando bobamente quando soube que o rei da Inglaterra havia partido.

- Deixe que venha. Vai encontrar meus exércitos esperando por ele - bradou.

O conde concordou com um gesto de cabeça, mas estava muito inquieto. Mas viu uma maneira de poder manter sua influência sobre o rei.

Nunca houve um acontecimento que garantisse mais uma aliança do que um casamento. O conde Filipe abominava com frequência a esterilidade da mulher, mas nunca o fizera mais do que naquela ocasião. Se ao menos tivesse uma filha que pudesse casar com Filipe.. Então, ele seria o pai da rainha da França e poderia, de fato, intitular-se pai do rei.

Ele tinha, no entanto, uma sobrinha. Ela era apenas uma criança, mas também Filipe não era muito velho.

- Agora que você é realmente rei da França, devia ter uma rainha - sugeriu ele.

Filipe pensou na ideia. Ela o agradava.

- Minha sobrinha Isabel é uma menina muito encantadora. O que você acharia de um casamento desses? No devido tempo, ficaria com Flanders e Vermandois.

Filipe disse que gostaria de conhecer Isabel.

- Vai conhecê-la.

Quando o encontro foi arranjado, Filipe manifestou-se atraído pela perspectiva, porque Isabel tinha sido bem instruída pelo tio para se comportar de maneira a agradar ao jovem rei, que naturalmente era mostrar-se impressionadíssima com ele e portar-se como se estivesse na presença de um jovem deus.

Não foi difícil, então, o conde arranjar um casamento logo e uma coroação.

Havia, quanto a isso, uma dificuldade, pois naturalmente a pessoa a realizar a cerimónia devia ser o arcebispo de Rheims, irmão da rainha Adela, que na França estava na mesma posição em que o arcebispo de Canterbury se encontrava na Inglaterra.

O conde Filipe viu-se ficando numa situação cada vez mais complicada. com os dois Henriques da Inglaterra a caminho e com o povo da França tornando-se inquieto, o jovem Filipe poderia começar muito em breve a perceber que não tinha sido tão esperto quanto pensava ao colocar o seu destino nas mãos do conde de Flanders.

O arcebispo de Sens deveria ser convencido de que não seria bom para ele não realizar a coroação da rainha Isabel, e tão logo a coroou, o arcebispo de Rheims viu a sua oportunidade de romper a influência do conde de Flanders. O direito de coroar a rainha da França era dele, e embora sua irmã, a rainha Adela, e seus irmãos estivessem sendo tratados tão mal, o papa não poderia deixar de apoiá-lo quanto àquele último ato de loucura.

Em meio à agitação provocada por aquele assunto, Henrique da Inglaterra chegou.

A reputação de Henrique Plantageneta era tal que quando chegou à frente de um exército o terror tomou conta dos corações de todos aqueles que ele considerava seus inimigos.

Foi portanto com grande alívio que Filipe de Flanders recebeu uma mensagem dizendo que o rei da Inglaterra queria talar com ele e com Filipe da França antes de entrar em combate contra os dois

- Devíamos nos reunir com o rei da Inglaterra - disse o conde.

- Por quê? - perguntou o jovem Filipe. - Como é que ele ousa vir até aqui me ameaçar? Sou o rei, não sou?

- É, mas dentro em pouco poderia não ser, se Henrique agisse contra nós. Luís ainda vive, e temos muitos inimigos. Sejamos cautelosos. Claro que não devemos entrar em guerra contra Henrique Plantageneta, se pudermos evitar.

- O jovem Henrique está com ele. Pensei que fosse meu amigo, mas ele é falso... muito falso.

- Não faça um juízo muito severo. Um dia, ele será o rei da Inglaterra, e vale a pena manter um bom relacionamento com ele.

- Meu pai nunca confiou realmente no rei da Inglaterra.

- E você também não deve confiar. Nós nos encontraremos com eles e iremos ludibriá-los, isso é uma maneira mais inteligente de lidar com um oponente do que travar um combate.

Mas Henrique se recusou a permitir que o conde de Flanders se juntasse a eles. Agora queria falar só com o jovem Filipe, insistiu, e o conde foi obrigado a concordar com os desejos do rei da Inglaterra.

Quando o encontro aconteceu, Henrique estudou o jovem rei da França. Considerou-o uma pobre criatura, e não pôde deixar de compará-lo com seus filhos. Não havia um só deles que não fosse bonito. Pobre Luís! Apostara tudo naquele rapaz, e o que conseguira? Um rapazinho tão ansioso pelo poder que estava roubando a coroa da cabeça do pai antes dele morrer. Os dele também eram maus, isso ele sabia; mas pelo menos tinham a aparência de homens.

E Filipe de Flanders... que homem ambicioso! Ora, podia entender aquilo. O conde teria gostado de se tornar rei, e como não era, fazia de tudo para conseguir seu objetivo. Teria de ser vigiado. Henrique tinha mais respeito por ele do que pelo jovem rei.

- Majestade - disse ele, em tom suave -, falo com Vossa Majestade como um pai.

Peço-lhe que tome cuidado na maneira de agir. Sua mãe está seriamente aflita. Seus tios também. Essas pessoas querem o seu bem. Vossa Majestade não pode tratá-las com ingratidão, como vem tratando. Isso não é digno de Vossa Majestade.

O jovem Filipe olhou para ele irritado. Quem era aquele homem? com quem pensava que estava falando?

- O duque da Normandia é um tanto ousado. O rei caiu na gargalhada.

- Venho procurá-lo não como duque da Normandia para prestar vassalagem ao meu senhor feudal, mas como o rei da Inglaterra que é irmão do rei da França e que, neste momento, vê que aquele irmão está precisando muito de ajuda.

- Não compreendo o que quer dizer.

- Então, permita que eu explique. Meu bom amigo, o rei Luís da França, está doente, de cama. Enquanto ele viver, só poderá haver um rei da França de fato, embora um outro... e com justiça... também tenha o título e quando chegar a hora deva assumir a coroa. Há homens dignos em seu reino que não gostam de ver a rainha e sua família humilhadas.

- E eles devem gostar do que faço?

- Os reis governam pela vontade do povo.

- Fico surpreso ao ouvir o rei da Inglaterra falar assim.

- Um rei forte governa seu povo, e se o fizer bem, por mais rigorosas que sejam suas leis, se forem justas, o povo irá aceitá-las e receberá bem o seu governo. Um rei forte e bom é respeitado pelo povo, e sem esse respeito a coroa não fica bem sobre a sua cabeça.

Filipe baixou os olhos. Sabia que não era adversário para o rei da Inglaterra.

- Agora - continuou Henrique -, Vossa Majestade deve reconciliar-se com sua mãe. O povo não gosta de vê-lo tratando-a com crueldade. As mães da nação irão voltar-se contra Vossa Majestade, e poderão persuadir os filhos a fazerem o mesmo. Vossa Majestade precisa dos serviços de homens como seus tios. Traga-os para a corte. Ouça o que eles têm a dizer. Um rei não aceita, necessariamente, o conselho de seus ministros, mas os ouve.

Não era fácil para o jovem Filipe resistir aos argumentos de Henrique, e antes da entrevista acabar, havia decidido chamar de volta sua mãe e receber os tios na corte.

Quando o conde de Flanders soube o que se passara, percebeu que havia perdido e que devia retirar-se temporariamente de campo.

Foi nessa época que a doença de Luís se agravou.

Numa noite de setembro, ele ficou muito doente, e era óbvio que o fim não estava muito longe. Adela estava com ele no final, e isso pareceu confortá-lo. Filipe ajoelhou-se ao lado da cama e chorou de remorso, porque agora que tinha sido obrigado a aceitar o retorno dos tios e voltara a ser amigo da mãe, compreendia o quanto fora precipitado e a má impressão que causara a seus súditos ao tentar tomar a coroa enquanto o pai ainda vivia.

Quanto a Luís, jazia com um sorriso de tranquilidade no rosto.

Aquilo era o fim. Não se lamentava, porque a vida não tinha sido fácil. Desde o momento em que soubera que o seu destino era usar a coroa, sentira medo, ansiara com frequência pela paz que acreditava caber a um homem da Igreja. O caminho, muitas vezes, fora tempestuoso. Nunca se esqueceria dos gritos de homens e mulheres morrendo no campo de batalha. Fora atormentado por eles a vida inteira. Houvera bons momentos - com Eleanor, no início; com as crianças e, em particular, com Filipe.

Mas estava tudo acabado.

- Meu filho... - murmurou ele. Filipe beijou-lhe a mão.

- Deus o abençoe, meu filho. Um reinado longo e feliz. Adeus, Filipe, adeus, França. - E Luís fechou os olhos e morreu.

 

LADO A LADO com seu amigo Sancho, príncipe de Navarra, cavalgava Ricardo, duque da Âquitânia. Era raro ele ter uma folga da contínua batalha para defender o ducado, mas considerava aquilo uma missão política, pois queria pedir um favor ao rei de Navarra.

Sancho, aquele príncipe conhecido como o Forte, o convidara para um torneio que estava sendo realizado em Pampeluna, e Ricardo era conhecido por sua perícia na justa; além do mais, ele e o príncipe Sancho tinham muito em comum, porque além de bravos guerreiros também eram poetas.

Na corte de Sancho, o Sábio, - pai de Sancho, o Forte - os trovadores também floresciam como na Âquitânia. Assim, enquanto os dois jovens seguiam para o sul, tinham muito do que falar.

Ricardo fazia uma bela figura em seu cavalo, por ser muito alto e dotado de uma boa aparência loura que era rara naquela parte do país. Embora sofresse periodicamente de uma angustiante doença conhecida como febre quarta, era forte e saudável. Contraíra aquela febre ainda quando adolescente, e não havia dúvida de que ela era o resultado de dormir muito no chão úmido quando acampado. Seus membros tremiam, e o efeito era extraordinário, porque a intensidade de seus frios olhos azuis parecia contradizer o seu tremor. Dizia-se, entre os seus soldados, que quando estava com febre ficava violento ao extremo, e aqueles que não o conheciam bem, pensando que aquilo podia ser um sinal exterior de alguma fraqueza íntima, aprendiam logo que se tratava do contrário. Parecia haver uma compulsão dentro dele para contradizer os tremores. Sua ferocidade aumentava, e ele se salientava pela crueldade. Se um prisioneiro era levado à sua presença e mostrava sinais de que acreditava poder aproveitar-se dele porque se percebia que estava tremendo, o homem era condenado a ter os olhos arrancados, para que não pudesse nunca mais ver o tremor de Ricardo. O povo da Aquitânia começara a ter medo dele, e ele ainda não compreendera que, embora aquele povo não fosse guerreiro por natureza e o amor pela vida tranquila e pela poesia fosse a sua principal característica, não era do tipo que aceitava uma tirania; e a indignação, estimulada pelos versos de seus poetas, estava latente e pronta a explodir em chamas. Estava-se fomentando confusão na Aquitânia. O povo não queria aquele normando no governo - porque embora a mãe dele fosse a sua Eleanor e o pai fosse filho de Geofredo de Anjou, pelo lado materno o pai era descendente do Conquistador e daqueles bárbaros que vinham das terras do norte para saquear e conquistar.

O próprio Ricardo sabia que a única maneira de estabelecer a paz na Aquitânia era levar de volta sua mãe. Ela era a duquesa deles. Aos olhos deles, seu casamento com Henrique Plantageneta tinha sido um desastre. Ela o fizera duque deles, o que ninguém nunca aceitou; e tivera filhos como Ricardo - que levara para a Aquitânia um modo de vida considerado inaceitável.

Não haveria fim para o conflito; e por entender isso, ele decidira aceitar aquele convite para ir a Pampeluna, a fim de que pudesse fugir para pensar mais claramente na situação que tinha pela frente.

Enquanto iam lado a lado, os seguidores atrás, eles cantavam muitas vezes canções de autoria dos dois. As canções de Sancho brilhavam com o calor do sul; mas aqueles que escutavam com atenção percebiam, como outros haviam percebido antes, um toque do norte nas canções de Ricardo. As do sul eram lânguidas, as do norte estavam cheias de vigor.

Mesmo os mais chegados a Ricardo pensavam que ele não era um deles.

Quando chegaram a Pampeluna, viajantes já estavam vindo para o torneio que se realizaria num grande prado fora dos muros do castelo. As estalagens estavam superlotadas; pedintes postavam-se à margem do caminho, patéticos e astutos; ladrões e vagabundos misturavam-se aos cidadãos respeitáveis, todos à procura de um pequeno furto. Barracas tinham sido montadas e expunham toda sorte de artigos: cintas e fivelas, bolsas, rendas, broches, navalhas, dados, grosas para quem sentisse coceira se coçar, peles de lontra para fazer pelicas, peles de animais transformadas em peças de roupa, pilões, vinho, lã, cevada - na verdade, artigos de todos os tipos estavam em exibição.

As pessoas olhavam com reverência o cortejo passar. Olharam para o belo príncipe Sancho e sentiram uma certa apreensão ao verem Ricardo da Aquitânia. Havia nele algo de repelente, embora ao mesmo tempo de fascinante. Era muito alto; raramente viam um homem tão alto naquela região, e ele montava seu cavalo como se os dois fossem uma coisa só - algum ser estranho vindo do céu ou do inferno. Sua reputação chegara na frente. Ricardo, filho de Henrique Plantageneta e Eleanor da Aquitânia, homem que fizera com que todo o seu ducado pegasse em armas, um homem que procurava dominá-los pelo terror.

Tinham sido muitos os rumores. Era um grande guerreiro, como o pai, e seu pai era bisneto do poderoso Conquistador, cujo nome continuava a reverberar pelo país inteiro, embora tivesse morrido havia muitos anos. De Henrique Plantageneta dizia-se que tinha muitos filhos homens. Eram quatro nascidos de Eleanor e muitos mais que ele tivera com outras mulheres. Dizia-se que, na realidade, não eram filhos do Plantageneta, mas do Demónio. Ver aquele homem alto, com cabelos que não eram exatamente ruivos nem louros, mas de um tom intermediário, e olhos azuis e frios como gelo, era acreditar que poderia haver algo de verdade na história.

Dizia-se que quando saqueava uma cidade, ele apanhava as mulheres e se metia em orgias, e quando já não as queria mais as entregava a seus soldados. Era difícil acreditar nisso a respeito do homem de aparência fria, e era sabido que os inimigos de um homem seriam capazes de falar qualquer coisa para desonrá-lo. Que ele era cruel, todos podiam acreditar.

As mulheres sorriam para Sancho, arrebatadas. Como o seu jovem príncipe era diferente! Parecia insignificante ao lado do outro, mas elas gostavam ainda mais dele por causa disso. Era Sancho, o Forte, que fora perito no campo de batalha e lhes dava um grande prazer na justa.

- Viva Sancho, o Forte! - gritavam.

O rei de Navarra saudou Ricardo de forma acalorada. Era um prazer, disse ele, ter o filho do rei Henrique e da rainha Eleanor em sua corte. Seu filho Sancho havia-lhe falado muitas vezes dos talentos de Ricardo, e ele quisera conhecê-lo.

O torneio começaria no dia seguinte, e ele esperava que Ricardo aumentasse o prazer dos espectadores participando dele. Ricardo mostrou-se interessado em participar.

- Hoje à noite daremos uma festa no salão, e depois espero que você e seus auxiliares nos encantem com algumas das melodias pelas quais são famosos - comentou o rei.

Ricardo replicou dizendo que estava ansioso por ouvir as canções de Navarra que, segundo lhe asseguravam, igualavam-se em encanto e beleza às da Aquitânia.

- Você será o nosso juiz. Meu filho e minhas duas filhas cantarão para você - falou Sancho.

Sancho, rei de Navarra, era espanhol por descendência, sendo seu ancestral o imperador da Espanha. Casara-se com Beatrice, a filha do rei Afonso de Castela. Sentia-se extremamente orgulhoso de sua família - a bela mulher, o filho batizado em homenagem a ele e que já adquirira uma reputação de corajoso e recebera o apelido de "o Forte", e as duas lindas filhas, Berengária e Blanche.

Ricardo, como convidado de honra, sentou-se à direita do rei, e ao lado de Ricardo sentou-se a filha do rei, Berengária. Era muito jovem, graciosa, e mostrava uma promessa de beleza.

Eles comemoravam e bebiam enquanto Ricardo observava a encantadora jovem ao seu lado Era, na verdade, uma criança, mas a sua inteligência o assombrou, e mais tarde, quando ela cantou, ficou encantado e achava difícil desviar o olhar.

O pai dela, observando-os, percebeu aquilo e pensou que se Ricardo não estivesse noivo de Alice da França, poderia haver um casamento entre os dois.

Ricardo entoou canções de amor e guerra, e de algum modo parecia que cantava mais vezes a guerra do que o amor. Sancho, o mais jovem, era diferente. Aquele herói que se destacara em combate contra os belicosos mouros, deixava todos cientes, pela trémula paixão de suas canções, de que também era um amante.

O rei continuou ao lado de Ricardo, e disse-lhe que sabia da situação na Aquitânia e lamentava.

- O povo quer sua mãe de volta. Não há dúvida sobre isso.

- Sei muito bem disso. Quem dera que meu pai entendesse a razão.

- Parece tão desumano... um marido fazer da mulher uma prisioneira.

- Meu pai sabe ser um homem muitíssimo desumano. Havia um veneno na voz de Ricardo que assustou Sancho. Era verdade, então, supôs ele, que os filhos do rei da Inglaterra o odiavam. Olhou para o seu belo Sancho e suas adoráveis filhas, e deu graças a Deus.

- No entanto, se ele compreendesse que o povo da Aquitânia nunca se acalmará enquanto ela continuar prisioneira, talvez entendesse a sensatez de soltá-la.

- Eles odeiam um ao outro. Há anos que estão assim. Fiquei ciente disso quando ainda estava na ala infantil. Meu pai levou o seu bastardo para lá, a fim de ser criado conosco. Foi uma coisa que o orgulho de minha mãe não tolerou.

- Isso é compreensível.

- Realmente. Quando eles se casaram, a posição de minha mãe era mais elevada do que a dele. Depois, ele se tornou rei da Inglaterra. Minha mãe queria ficar ao lado dele, para ajudá-lo... mas ele estragou tudo... com a sua devassidão, segundo dizia ela. Eu os ouvia, então, trocando insultos.

- Você gosta muito de sua mãe, creio eu.

- Eu faria tudo para vê-la livre. Tenho planos de reduzir meu pai a um estado tal que ele terá de ouvir as minhas condições, e a primeira delas será a liberdade de minha mãe.

Sancho fez um gesto afirmativo com a cabeça, mas no fundo sabia que ele jamais faria com que Henrique Plantageneta se pusesse de joelhos.

- A esta altura, poderia ser melhor convencê-lo do que a libertação dela faria pela Aquitânia.

- Já fiz isso. Ele não dá ouvidos. E me considera partidário de minha mãe. Acredita que se a libertar, ela será capaz de traí-lo.

- Talvez se outra pessoa expusesse o caso a ele.

O coração de Ricardo pulou de alegria. Era por isso que tinha ido a Navarra.

- Quer dizer... que Vossa Majestade faria isso?

- Quero dizer que poderia tentar.

- Pelos dentes de Deus, ele daria ouvidos a Vossa Majestade.

- Então, deixe-me tentar. vou mandar uma mensagem a ele.

Direi que como observador de fora, vejo como está a situação na Aquitânia e que o povo de lá nunca estará em paz enquanto a duquesa for prisioneira.

- Se Vossa Majestade pudesse fazer isso, seria de grande ajuda Para mim e Para a Aquitânia.

- Farei o possível, então - prometeu Sancho, o Sábio.

Naquela noite, Ricardo trocou lembranças com o jovem Sancho e fez os juramentos de fidalguia com ele. Dali por diante, os dois seriam frates jurati (irmãos juramentados).

No palanque, ao lado do pai, a jovem Berengária se achava sentada vendo a brilhante formação no prado à sua frente. Os trompetes soaram, as bandeirolas em cores alegres tremulavam ao vento, e seu coração batia com a emoção de observar um determinado cavaleiro. Ela o reconheceria logo, muito embora, segundo a prática, a viseira fosse estar baixada. Não havia ninguém, entre os participantes, tão alto e ereto, que montasse seu cavalo com tanta distinção, ninguém a não ser aquele mais perfeito de todos os cavaleiros.

Ela dissera a Blanche que nunca vira alguém que se comparasse a Ricardo. Blanche concordava que ele era, realmente, um belo cavaleiro. Destacava-se de todos os homens que as duas já haviam visto, a maioria dos quais tinha cabelos pretos, era moreno e de menor estatura. Mas Ricardo, duque da Aquitânia, parecia pertencer a uma raça diferente.

Os deuses - aqueles que certa vez habitaram a Terra - também pareciam ser, acreditava Berengária.

Ela olhou para o pai; estava usando a coroa incrustada de jóias, pois aquela era uma grande ocasião. Ele não entraria na arena a cavalo. O irmão dela faria isso, pela honra da coroa. Berengária esperava que Sancho não arremetesse com a lança contra Ricardo, porque nesse caso não saberia por quem rezar, para sair-se vencedor.

- Os dois não vão duelar - sussurrou para Blanche, pois havia pensado em voz alta. - São irmãos juramentados. Por isso, não vão enristar a lança um contra o outro hoje.

- Isso não é uma batalha. Só um torneio - replicou Blanche.

- Mesmo assim, eles não farão isso - disse Berengária.

O dia estava maravilhoso, com um céu azul sem nuvens e um sol deslumbrante brilhando sobre aquela cena de cores vivas. As armaduras dos galantes cavaleiros brilhavam, assim como os olhos de cada dama ao pousarem no cavaleiro que levava as suas cores, proclamando ao mundo que ela era a sua dama e que suas façanhas heróicas daquele dia eram a ela dedicadas!

Foi emocionante quando se anunciou a primeira das competições e os cavaleiros entraram na arena. Pareciam vestidos de prata, e como eram vivas as cores dos vestidos

das damas graciosamente sentadas em suas plataformas, os olhos nunca deixando o colorido campo que se estendia à sua frente.

E lá estava ele - destacando-se como ela sabia que aconteceria - diferente de todos os outros devido a sua altura. Estava certa de que a sua armadura brilhava mais do que as demais.

Sentiu-se estonteada de tanta alegria, porque sobre o elmo ele usava uma pequena luva com uma guarnição de jóias Berengária conhecia bem aquela luva, pois era sua.

Aquela maravilhosa criatura, que parecia um deus, entrara em campo naquele dia em homenagem a ela. Aquilo era extasiante.

Claro que ele se saiu vitorioso. Teria sido embaraçoso se não houvesse vencido, pois era o convidado de honra. Mas não precisara haver medo de que aquilo não acontecesse. Mostrou-se o mais ousado, mais hábil, mais audacioso, sob todas as maneiras.

Cavalgou em direção ao palanque sobre o qual o rei estava sentado com a mulher e as duas filhas. Curvou-se montado, e Berengária apanhou uma das rosas que enfeitavam o balcão e jogou-a para ele. Ricardo a pegou com destreza, beijou-a e colocou-a à altura do coração.

Foi um encantador gesto de fidalguia; e daquele momento em diante, Berengária de Navarra ficou apaixonada por Ricardo da Aquitânia.

Ele não podia se demorar muito em Navarra. Sua ausência daria a seus inimigos as oportunidades que buscavam. Mas se sentia atraído por Berengária. Era apenas uma criança, mas iria crescer. Ele ainda não queria se casar. Podia esperar. Ela o adorava e o considerava um ser superior. Aquilo era um prazer.

Quando os dois se sentavam lado a lado à mesa, ele lhe falava das belezas da Aquitânia; falou sobre o seu crescente desejo de partir numa cruzada para expulsar o Infiel da Terra Santa.

Berengária prestava atenção, as mãos juntas com os dedos entrelaçados, os olhos brilhando. Ricardo estava certo de que se se casasse com ela enquanto fosse assim tão jovem e inocente, poderia transformá-la na esposa que desejava.

Falou com o pai dela.

- Vossa Majestade tem duas belas filhas, e em especial a mais velha. Quem dera que eu estivesse em condições de pedir-lhe a mão dela.

- Se pedisse, eu não a negaria.

- Vossa Majestade conhece a minha situação. Há anos que sou noivo da filha do rei da França.

- Sei disso. Mas o casamento vem sendo adiado há muito tempo...

- Segundo meu pai, ele iria se realizar. Mas depois, não ouvi falarem mais nada.

- Você deseja esse casamento?

- Depois que vi sua filha, não.

- Já que tem havido esse adiamento, seu pai deve ter algum motivo para isso.

- Minha mãe também pensa assim. Contou-me que ele fica aflito quando se insiste no assunto.

- Você acha que ele gostaria de abrir mão de uma aliança com a França devido a uma outra com Navarra?

- Temos alianças com a França. Meu irmão mais velho é casado com a filha do rei da França.

- Você está numa situação muito estranha, mas me sinto honrado por admirar minha filha. - Sancho ficou pensativo. Não era por nada que ele era chamado de o Sábio. - Por enquanto, não digamos coisa alguma sobre a atração que sente por minha filha. A princesa Alice vem sendo mantida longe de você há muito tempo. Por que não iria você, se ela lhe fosse oferecida, recusar-se a ficar com ela? Você tem recebido desculpas. Por que, então, não apresentar desculpas? Se não quiser se casar com a princesa Alice, poderá evitá-lo.

- Vou fazer isso, e cedo ou tarde...

- Berengária ainda é jovem... demasiado jovem. Talvez daqui a algum tempo...

Ricardo agradeceu a Sancho com fervor.

- vou esperar. E nesse ínterim, Vossa Majestade falará com meu pai... não sobre um possível casamento, mas sobre a prisão de minha mãe?

-- Farei isso. Dou-lhe minha palavra.

Ricardo dedilhava o alaúde. Berengária estava sentada ao seu lado, os olhos brilhando.

A canção era de amor, e embora tivesse sinais do norte, vibrava de paixão.

- Eu voltarei. vou encontrá-la aqui... à minha espera. - Largou o alaúde e sorriu para ela. - Você ainda é uma criança, Berengária.

- Daqui a pouco vou crescer.

- Então nos reencontraremos.

- Você não vai me esquecer?

- Nunca a esquecerei. vou voltar, e você estará à minha espera?

- Estarei, até morrer.

- Muito antes de morrermos, estaremos juntos.

- Ricardo, ouvi falar que você está noivo de uma princesa francesa. É verdade?

- Fiquei noivo dela quando estava no berço.

- Ouvi dizer que é muito bonita. Você acha?

- Não posso achá-la bonita porque não sei que aparência ela tem. Embora estejamos noivos, ela tem sido mantida afastada de mim.

- Isso o deixa triste?

- Agora isso só me deixa contente.

- E se seu pai arranjar um casamento para você?

- Não será a primeira vez que irá me considerar um filho desobediente.

- Vai mesmo se recusar a casar-se com ela? Ele sorriu e confirmou com um gesto da cabeça.

- Só há uma pessoa com quem eu me casaria.

- E quem é?

Ricardo segurou-lhe a mão e a beijou.

- Meu pai sabe?

- Já conversamos sobre isso.

- E o que diz ele?

- Que quando você atingir uma certa idade e eu estiver livre de minhas complicações, o casamento poderia realizar-se.

- Sinto-me muito feliz.

Ele apertou-lhe a mão e tornou a apanhar o alaúde. Quando Ricardo partiu, ela estava na torrinha, acompanhandoo com os olhos.

- A vinda dele mudou a minha vida - disse a Blanche. vou rezar pelo dia em que poderemos estar juntos.

Ele se voltou e agitou um pedaço de seda - um pedaço de um dos vestidos dela. Sabia que ela estaria vendo.

- Ricardo deverá voltar em breve - murmurou ela.

 

HENRIQUE NÃO PODIA DEIXAR de se congratular consigo mesmo. Luís havia morrido, e portanto a controvérsia sobre o casamento de Alice tinha de ser posta de lado. Ele sabia, claro, que seria apenas uma trégua temporária, e que muito em breve talvez o jovem Filipe fosse querer saber o que acontecia com a irmã.

Mas Filipe era apenas um garoto, e Henrique já dera a entender que queria que ele o considerasse como um pai. Que era um garoto voluntarioso, estava claro, mas Henrique tinha uma sensação incómoda de que quando adquirisse alguma experiência ele não seria tão fraco quanto o pai. Henrique teria de ficar de olho vivo no que se passava na França.

Chegaram notícias da Aquitânia; havia revolta em toda parte. O povo queria Eleanor livre e mandada de volta para lá. Aquilo jamais iria acontecer.

Sancho de Navarra lhe enviara uma mensagem dizendo que estava preocupado com os acontecimentos na Aquitânia e que acreditava que nunca haveria paz enquanto Eleanor não voltasse.

Henrique agradecera a Sancho pelo conselho e dissera-lhe que embora não pudesse libertar Eleanor naquela ocasião, pois Sancho devia compreender como aquilo seria perigoso para ele, iria permitir que ela tivesse um pouco mais de liberdade. Por exemplo, se visitantes fossem à Inglaterra, ela poderia ir à corte para vê-los, ou eles poderiam visitá-la. Mas deixá-la percorrer o mundo, livre para prejudicá-lo, era algo com que não poderia concordar.

Enquanto refletia sobre aqueles problemas, chegou uma mensagem do jovem rei da França dizendo-lhe que Filipe de Flanders virara traidor e fizera um pacto com os tios do rei, que agora ameaçavam marchar contra ele e tirar-lhe o trono. Como Henrique lhe assegurara que podia considerá-lo como seu pai, era o que estava fazendo agora. Pedia a ajuda de um pai.

Henrique sorriu. Claro que ajudaria o jovem Filipe. O conde de Flanders se achava muito poderoso. Ali estava um homem que devia ser vigiado.

Henrique enviara os filhos em auxílio do rei da França. O jovem Henrique iria com Geofredo, e como seria necessário que houvesse perícia militar, também mandaria Ricardo. O jovem Filipe devia ver que podia confiar em Henrique Plantageneta, e então talvez não fizesse exigências para o casamento da irmã.

O jovem Henrique chegou a Paris, seguido logo depois pelos irmãos Ricardo e Geofredo.

com Ricardo chegou um guerreiro trovador, Bertrand de Born. Era o castelão de Hautefort e um homem cuja reputação como poeta começava a se igualar à de Bernard de Ventadour.

Suas canções, segundo se dizia, eram uma inspiração para todos aqueles que estavam prestes a entrar em combate, e eram consideradas uma parte importante de qualquer campanha.

O jovem Filipe recebeu-os com entusiasmo, e houve uma festa no grande salão, seguida de canções de amor e de guerra. Filipe já não era mais o menino petulante da época que antecedera à morte do pai. Parecia haver tido uma grande percepção dos perigos de sua posição, e parecia ter ficado sensato em poucos meses. Ouviu com atenção os conselhos de Ricardo, pois percebera logo que se encontrava à frente de um génio militar. Ninguém podia negar os dons sociais do jovem Henrique e de Geofredo, também, que era uma sombra do irmão mais velho, mas no momento só Ricardo podia socorrê-lo.

Ficara entusiasmado com Ricardo, com aqueles frios olhos azuis e os maravilhosos cabelos claros! Acima de tudo, devia ser admirado pela sua grande estatura, e o fato de ter, às vezes, um ataque daquela estranha febre aumentava a sua virilidade essencial.

Filipe sentia-se atraído por Ricardo.

Enquanto Filipe admirava Ricardo, Bertrand de Born observava Henrique. Bertrand nunca vira um espécime de homem tão magnífico como o jovem rei da Inglaterra.

Henrique era conhecido como o príncipe mais bonito da cristandade, e com justiça. Tinha um rosto tão bonito quanto o de qualquer mulher; tinha modos graciosos e encantadores. Não se tratava de um guerreiro como seu irmão Ricardo. Era um homem para vencer mais através de seu encanto do que pela espada.

Teria sido muito melhor para a Aquitânia, pensou o trovador, se Henrique se tivesse tornado o seu duque, em vez de Ricardo.

Ricardo estava animado, falando sobre a campanha que eles fariam contra Filipe de Flanders e a Casa de Blois.

Filipe ouvia, sério.

- Dou-lhe o comando, porque deposito inteira confiança en você.

Ele tinha razão em confiar. Os dois entraram em ação lado a lado, e aconteceu como Filipe previra. Filipe de Flanders, empurrado de volta para o seu castelo, ficou sitiado nele até ser obrigado a pedir clemência.

A revolta foi abafada.

Não havia dúvidas quanto ao génio militar que estivera por trás daquilo.

Bertrand de Born achou uma oportunidade de falar com Henrique.

- Escrevi versos para Vossa Majestade. Posso ter a sua permissão para cantá-los para Vossa Majestade?

Henrique, que aceitava qualquer grau de bajulação sem desconfiar de um motivo oculto, dispôs-se logo a ouvir.

Sabia que era bonito, mas era agradável ver-se pelos olhos do poeta. O poeta estava apaixonado por ele. Aquilo era divertido, mas Henrique nunca se interessara por ligações apaixonadas com membros de seu sexo. Gostava só de mulheres.

Então Bertrand fez um comentário que logo chamou-lhe a atenção.

- Como Vossa Majestade é diferente de seu irmão Ricardo! O povo da Aquitânia nunca irá aceitar Ricardo, mas seria capaz de aceitar Vossa Majestade.

- Como assim?

- Se Vossa Majestade fosse o duque deles...

- Sou o duque da Normandia, conde de Anjou e rei da Inglaterra. Ricardo recebeu a Aquitânia.

- O povo da Aquitânia prefere decidir por si mesmo a quem se entregar.

- Acha que se entregariam a mim por vontade própria?

- Se Vossa Majestade fosse tomar a Aquitânia, eles a dariam a Vossa Majestade.

- Como poderia eu tomar o que é de meu irmão?

- Como pode a Aquitânia ser de seu irmão se o povo o rejeita?

- É meu pai que eles rejeitam... e os filhos dele juntos.

- Mas não rejeitam a mãe de Vossa Majestade.

- Ricardo é filho dela. Foi o escolhido por ela para receber essa herança.

- E onde está ela, agora? Uma prisioneira! O povo aceitaria Vossa Majestade se fosse levado a isso.

- Quem o levaria?

- Há uma coisa mais poderosa do que a espada. Vossa Majestade pode não acreditar em mim. Meu povo é mais levado pela poesia do que pelos gritos de guerra.

- É possível.

- Será possível, só depende de Vossa Majestade. Henrique ficou agitado. Queria as emoções da aventura sem

o desconforto. Seria um prazer para ele se o povo da Aquitânia lhe implorasse para que fosse ser o seu duque. Ele diria: "O que posso fazer? Temos paz na Aquitânia.

O povo me quer. Está exigindo que seja eu. Ele não quer Ricardo." Que divertido! Ricardo, que era o grande guerreiro! Ricardo, que não conseguia manter a Aquitânia em ordem!

Bertrand de Born aproximou-se mais e tocou a manga da túnica de Henrique.

- Você poderia tentar.

- vou conseguir! - bradou Bertrand de Born. - Terei toda a Aquitânia em armas, exigindo que Henrique seja o duque.

Henrique hesitou por um instante.

- Por que faz isso?

O poeta curvou a cabeça.

- Porque o amo.

Henrique sorriu... não de todo contrariado.

- Então agora você vai embora? - indagou Filipe a Ricardo.

- Precisam de mim na Aquitânia.

- Ainda estão revoltados contra você?

- É sempre assim. Enquanto estou lá, posso manter uma certa ordem. Quando me afasto, eles se tornam demasiado ousados.

- Dizem que você é impiedoso, Ricardo, um governante cruel. É verdade?

- Estou decidido a manter a ordem, se é a isso que você se refere.

- Daqui para sempre, vou considerá-lo como meu irmão. Salvou o trono para mim.

- Não acho que tenha mais problemas com seus súditos rebeldes.

- Não. Filipe de Flanders reconhece que é um homem derrotado.

- Cuidado com ele.

- vou ter. - Filipe ergueu os olhos para os de Ricardo. Como ele era alto, imponente, pensou ele. Nunca vira um homem que transmitisse tamanha sensação de poder.

- Fico triste pela sua partida. Eu organizaria banquetes e torneios para distraí-lo.

- Infelizmente, meu destino não é participar dessas diversões.

- Você tem de proteger o seu ducado. Mas saiba de uma coisa: sou seu amigo e irmão.

- Vou me lembrar disso.

O rei colocou a mão sobre o braço do duque.

- Espere vê-lo em breve - disse ele, a voz um pouco trémula. - E não ficarei contente enquanto isso não acontecer.

Os olhos deles se encontraram, e por alguns segundos os dois se entreolharam. Então, Filipe segurou a mão de Ricardo e a beijou.

O rei não queria deixar a Inglaterra, mas quando pudera fazer o que queria? Sua presença era necessária além-mar, e precisava despedir-se de Alice. Como ela crescera no último ano! Já não era uma criança. Ele havia adorado a doce e jovem inocência dela, mas de certo modo ficava contente ao vê-la amadurecer; estava enamorado dela como nunca, o que poderia ser um sinal de que estava envelhecendo. Mesmo os homens mais saudáveis tinham o seu ritmo reduzido pelos anos, e a fidelidade a uma só mulher era uma coisa que chegava com a idade.

Estava mais determinado do que nunca a ficar com ela. Em nome da honra, não poderia permitir que uma mulher que tivesse tido um filho seu se tornasse a esposa de seu filho, pensava ele. Além do mais, sabia que alguém descobriria o segredo e estaria disposto a usá-lo contra ele. A verdade era que queria ficar com Alice. Queria passar a viver com Alice. Queria a família à sua volta - uma adorável e delicada mulher, como Alice seria para ele, e os filhos ansiosos por apoiá-lo em tudo o que ele fizesse. Eram aquelas as alegrias familiares às quais todos os homens - reis ou servos - tinham direito. Estaria pedindo demais?

Sempre a política se interpunha entre ele e seus desejos. Sempre devia refletir sobre o que era bom para a Inglaterra ou para seus domínios ultramarinos antes de pensar em suas necessidades pessoais. Agora, queria ficar com Alice e tinha de atravessar o mar, pois havia trabalho a fazer. Era imperativo que se mantivesse em bons termos com o irmão dela, o rei da França, e a melhor maneira de fazer aquilo era celebrar algum tipo de tratado entre o jovem Filipe e o conde de Flanders.

A situação de Flanders não lhe permitia ditar condições, e não foi difícil conseguir dele uma promessa de ressarcir os danos que causara.

A Aquitânia ocupava muito o pensamento do rei, e enquanto ele tratava do acordo francês, Geofredo chegou da Bretanha. Geofredo era cortês e conhecido por suas maneiras graciosas, e ocorreu ao rei que ele seria um bom mediador entre Ricardo e aqueles cavaleiros que estavam causando problemas na Aquitânia.

- Vá à Aquitânia, meu filho. Converse com aqueles nobres, analise as suas reclamações e tente obter algum entendimento entre eles e seu irmão Ricardo. Faça com que vejam que só poderá haver paz na Aquitânia se houver amizade entre eles.

Geofredo partiu. Era um intrigante de nascença, e vivia pensando de que maneira poderia tirar vantagem de tudo. Ouvira algumas das canções de Bertrand de Born e acreditava que o povo da Aquitânia não aceitaria Ricardo, mas estaria disposto a colocar seu irmão Henrique como duque no lugar de Ricardo, e por isso achava que

Henrique tinha uma boa probabilidade de ganhar de Ricardo e ele, Geofredo, estaria do lado vencedor. Por isso, em vez de seguir as ordens de seu pai, fez intrigas da parte de Henrique, exaltando as virtudes do irmão e explicando aos nobres da Aquitânia como eles ficariam mais felizes sob o governo de Henrique do que sob o de Ricardo.

Henrique, enquanto isso, após terminar o acordo entre o rei da França e o conde de Flanders, voltou a atenção para a Aquitânia,

Entrou no condado e convocou uma reunião daqueles que estavam se rebelando contra Ricardo, com o propósito de chegar a um acordo com eles. Como os rebeldes acreditavam estar prestes a depor Ricardo e colocar Henrique em seu lugar, recusaram-se a comparecer à reunião.

Então, devido às intrigas do jovem Henrique e Geotredo, nenhum dos dois lados sabia qual o objetivo do outro. Houve uma total confusão. Enquanto isso, o jovem Henrique chegara a Limoges, onde fora saudado como o novo duque. Aceitou a homenagem do povo, e depois marchou em frente para juntar-se ao pai e a KIcardo, que não tinham ideia do que ele fizera.

Cara a cara com o pai, foi impossível para Henrique explicar que tinha sido aceito como duque, e quando o rei lhe disse que ele havia chegado a tempo de participar da repressão dos que estavam revoltados contra Ricardo, não teve coragem de fazer outra coisa que não unir-se a eles.

O povo da Aquitânia ficou, como era natural, estupetato. Henrique, considerado seu novo duque, estava agora lutando ao lado do pai e do irmão Ricardo, cujo objetivo só podia ser colocar Ricardo no comando.

O jovem Henrique sabia que seria sempre assim. Jamais conseguiria enfrentar o pai, e só quando o rei estava bem longe, ele julgava ser possível. Uma grande angústia o sufocava; temia pelo que iria acontecer se o pai descobrisse a sua perfídia.

Pareceu um milagre quando eles receberam a noticia de que a irmã dele, Matilda, casada com o duque da Saxônia, estava a caminho da Normandia.

Ela se sentia muito triste porque o marido estivera envolvido numa disputa com o imperador Frederico Barbarossa, que confiscara suas terras e o mandara para o exílio. Ela e a família não tinham para onde ir, e implorava ao pai que fosse imediatamente em seu auxílio.

O rei, numa tentativa desesperada de ganhar a afeição de membros de sua família, ficou feliz por ser procurado.

Mandou chamar os filhos.

- A rebelião na Aquitânia está esmagada - disse ele. us problemas, agora, deverão ser poucos. Deixarei vocês aqui e irei à Normandia para ver o que pode ser feito por Matilda e sua família. O jovem Henrique congratulou-se consigo mesmo porter escapado de uma situação muito incómoda. O rei partira para a Normandia, e o jovem Henrique estava, agora, livre para entregar-se a negociações secretas com os cavaleiros da Aquitânia, cujas paixões e ressentimentos estavam sendo agitados pelas canções de Bertrand de Born.

O rei sentia-se, em suma, feliz por reconciliar-se com a filha. Ela precisava dele, e ele ansiava por que precisassem dele. Ela e o duque da Saxônia tinham três filhos - Henrique, Otto e Matilda. O rei ficou emocionado ao observá-los. Brincou com os netos, e eles trepavam por cima dele, davam puxões em seus cabelos e o chamavam de vovô. Lembrou-se de sua mãe contar o quanto o seu avô, o rei Henrique, gostara dele e de seus irmãos - mas em especial dele; e que os homens tremiam na presença de seu avô enquanto ele, o netinho, puxava o nariz do grande homem e não tinha medo dele.

Quem dera, pensou ele, que meus filhos tivessem gostado de mim.

Enquanto brincava com as crianças, pensava na época em que seus filhos e filhas viviam na ala infantil. Que bela criança tinha sido o jovem Henrique! E continuava muito bonito. Apesar de tudo o que acontecera, Henrique era o seu filho favorito. Como poderia ele deixar de se orgulhar de um jovem tão bonito assim? Quando estavam juntos, Henrique o cativava de tal maneira que ele esquecia as indicações do bom senso em favor de sua opinião e acreditava no afeto do filho. Geofredo era a mesma coisa, de uma maneira ligeiramente menos encantadora, mas ainda assim um rapaz de quem se devia ficar orgulhoso. Ricardo? Ora, sempre houvera animosidade entre os dois, mas também era um filho do qual qualquer homem devia sentir-se orgulhoso. E havia João-já não tão criança, agora com quase 15 anos.

com o passar dos anos, Henrique estava ficando sentimental. Queria acreditar neles, e como adquirira o hábito de conseguir o que queria, mantinha a sua fé. Mas a sua astúcia muitas vezes dominava o seu grande desejo de afeição. Então, perguntava-se qual deles seria o próximo a traí-lo, e se João, quando ficasse mais velho, não iria ser tão falso para com o pai como os irmãos.

Ele precisava daquele curto interregno com os netos. Eram muito novos para serem falsos.

Quando o rei partiu, as ambições do jovem Henrique aumentaram. Não era um garoto. Fazia 28 anos desde que ele viera à luz.

Oh, Deus, bradava ele, vou ser tratado como criança até morrer?

Bertrand de Born entoava canções descrevendo a beleza e a bravura de Henrique. Escrevia sobre o jugo sob o qual o povo da Aquitânia sofria. Ricardo, o impiedoso e cruel, aquele filho severo de um pai severo, aquele viquingue, com os cabelos amarelos e olhos azuis de aço, colocara aquele jugo sobre eles. No entanto, havia um de quem todo mundo gostava, um belo homem gentil, que odiava guerras e adorava canções e poesia. Ricardo também gostava, mas aquele homem cantava o amor, não a guerra. Henrique adorava o prazer. Tinha um coração generoso; era perito nos torneios - Ricardo também, mas manifestava preferência por batalhas de verdade. Não conseguia ver glória numa batalha de mentira. Henrique estava esperando para tomar o lugar de Ricardo. Que o recebessem de braços abertos.

Ali estavam eles à espera para recebê-lo, pensou o jovem Henrique, e o pai tratando-o como criança!

Ficou imaginando se as notícias do que se passava na Aquitânia tinham chegado aos ouvidos do pai. Claro que teria de explicar o fato de ter aceitado a aclamação do povo e depois unir-se com Ricardo e o pai, agindo como se estivesse do lado deles.

Antes que o pai pudesse ficar sabendo de sua conduta, ele adotou uma atitude ofensiva e escreveu ao rei em termos imperativos, exigindo que lhe fosse dado o controle sobre a Normandia.

A resposta do rei veio de imediato. Ele ficaria com seus domínios enquanto houvesse vida nele. Bastava que um filho bom e obediente honrasse o pai e estivesse preparado para servir sob suas ordens. Deveria ele lembrar a Henrique que fizera o juramento de que seguiria aquele caminho?

O jovem Henrique bateu o pé e xingou de raiva, quando recebeu a resposta do pai.

- Não adianta, Henrique. Seu pai não abrirá mão de coisa alguma enquanto viver - consolou-o Marguerite.

- Neste caso, vejo-me obrigado a tomar.

Ela deu um sorriso dócil. Henrique sabia, tanto quando ela, que não podia tirar coisa alguma que o pai não quisesse lhe dar.

- Não me resta outra coisa a fazer, a não ser tomar a Aquitânia. Se for bem-sucedido e o povo me aclamar, meu pai será forçado a deixar que eu fique com ela.

Marguerite estava indecisa, mas sabia que não adiantava tentar se opor ao marido.

Surgiu uma oportunidade naquele momento, para a qual sua atenção foi chamada por Bertrand de Born, que havia composto uma canção que os trovadores estavam cantando por toda a Aquitânia.

Tinha sido construído, perto de Mirabeau, um castelo que ficava próximo às fronteiras de Poitiers, mas que, na realidade, ficava em Anjou. Anjou era, naturalmente, aquele território que o jovem Henrique teria governado se lhe tivessem consentido. Ricardo construíra aquele castelo e, ao fazê-lo, saíra do território da Aquitânia e penetrara no de Anjou.

Permitiria o jovem rei que aquela insolência não fosse reprimida? Ele deveria ficar contrariadíssimo com o fato de o tirano Ricardo ter invadido suas terras.

Quando o jovem Henrique soube da notícia e ouviu a canção que estava sendo cantada em todos os salões onde os cavaleiros se reuniam, ficou irado. Teria de fazer alguma coisa, ou então o povo iria rir dele. Bertrand de Born não continuaria amando um homem e escrevendo belos versos a seu respeito se ele se mostrasse demasiado submisso para enfrentar o insolente irmão.

Mandou uma mensagem ao pai, exigindo que Ricardo lhe desse o castelo por estar em suas terras.

Quando o rei recebeu a mensagem, soltou um grunhido. Quem queria ter filhos? Ele cometera um erro a determinada altura. Ninguém poderia chamá-lo de fraco, e no entanto havia fracassado com a família.

Daquela vez, Ricardo estava errado. Nunca deveria ter construído um castelo fora da Aquitânia.

Mandou uma mensagem para Ricardo, dizendo que chegara a seu conhecimento que o castelo construído perto de Mirabeau ficava, na verdade, em Anjou. Aquilo, como era de compreender, ofendera o irmão dele, Henrique, e nada mais justo do que, tendo cometido a ofensa, ele transferisse o castelo para o irmão.

A resposta de Ricardo foi de que não cederia o castelo. Ele era necessário para a defesa de Poitiers, porque a cidade estava desprotegida em seu flanco norte.

Henrique sempre podia ter a sua raiva provocada mais facilmente através de Ricardo. Sobre este filho, ele não tinha certeza. Sabia que ele era mais estável do que o irmão, mais honesto e mais confiável. Reconhecia-o como um grande soldado e um homem dedicado ao dever. Mas entre eles havia uma emoção tão violenta que não podia ser sufocada, e era, em sua grande parte, constituída de ódio. Ricardo o odiava pelo que ele havia feito com sua mãe; e ele não gostava de Ricardo, que se afastara dele quando criança. Aquela antipatia se transformara em ódio porque ele o ofendera por intermédio de Alice.

Henrique mandou imediatamente uma mensagem em resposta. "Entregue o castelo; se não, irei tirá-lo de você."

A última coisa que Ricardo queria era uma guerra contra o pai. Precisava muito do auxílio dele. Não podia dominar a Aquitânia e lutar contra o pai ao mesmo tempo.

Ricardo escreveu como resposta. "Não vou dar o castelo ao meu irmão Henrique, que está trabalhando contra mim aqui na Aquitânia. Darei o castelo ao senhor, se achar que ele deve, ou não, ficar em minhas mãos, já que é necessário para a defesa de Poitiers"

Quando o rei recebeu aquela mensagem, ficou muito perturbado. Henrique trabalhando contra Ricardo! Não, Henrique não podia ser tão louco assim. Enviou logo uma mensagem a Ricardo. Seria como ele queria. O rei iria tomar uma decisão sobre a quem o castelo deveria pertencer, e gostaria que seu filho fosse o mais rápido possível para Angers, pois queria dizer-lhe algo importante.

Henrique encontrou-se com os três filhos em Angers, para onde havia convocado todos eles.

- Eu os trouxe aqui porque há uma coisa de grande importância que preciso lhes dizer. Fui informado de que existe um certo conflito entre vocês, e ordeno que acabem com esse antagonismo. Precisam compreender que toda a sua força está na união. Temos grandes domínios, e se quisermos manter o controle deles, temos de ficar juntos. Quando há problemas entre nós, nossos inimigos se alegram. Não deve haver essa alegria entre nossos inimigos. Na nossa discórdia está o triunfo deles.

O jovem Henrique ficou impassível, embora intimamente estivesse sorrindo. O que diria Ricardo se soubesse que a Aquitânia estava pronta para expulsá-lo e aceitar seu irmão Henrique?

- Uma vez vocês juraram servir-me durante toda a minha vida. Às vezes acho que se esqueceram disso, porque o modo de me prejudicarem é brigarem uns com os outros. vou ordenar-lhes que jurem fidelidade um ao outro agora... aqui, neste momento.

O jovem Henrique não se mostrava muito perturbado. Seu pai estava sempre quebrando a palavra, e os homens o respeitavam. Não havia motivos para não imitá-lo nesse aspecto.

- Henrique é meu filho mais velho, e como tal será o rei da Inglaterra e deterá os direitos sobre as minhas terras. Ricardo e Geofredo, vocês ficarão com a Aquitânia e a Bretanha pela graça de seu irmão. Irão, portanto, jurar fidelidade a ele.

O jovem Henrique sorriu, satisfeito com aquele esquema. Ricardo, não. Seus olhos estavam frios como aço, e se as mãos tremiam ligeiramente era de febre, e como a sua família sabia, não devia interpretar mal a razão do tremor.

Ao contrário de seu irmão Henrique, Ricardo não era capaz de falsidades. Não tinha ele sido apelidado de "Ricardo Sim e Não" porque dava uma nítida confirmação ou negativa a qualquer pergunta e era sincero? Não tinha medo da verdade.

- Não vou jurar fidelidade a meu irmão por causa da Aquitânia. Foi vontade de minha mãe que eu herdasse as terras dela. Não devo isso ao senhor, e nada tem a ver com os seus domínios. Henrique pode ser seu filho mais velho, mas também sou seu filho e de minha mãe. Não prestarei vassalagem a ninguém por causa da Aquitânia, exceto ao rei da França, que o costume e a tradição exigem.

Maldito seja, Ricardo, pensou o pai, mas ao mesmo tempo com certa admiração. Você está certo, claro. A Aquitânia não é a Normandia nem Anjou. Mas por que não pode ser um filho obediente?

- Você vai obedecer à minha vontade! - berrou ele.

- Não vou fazer nada disso.

O rei liberou sua raiva, mas na realidade se tratava de medo do filho que era o noivo de Alice. Não podia deixar, mesmo naquele momento, de ficar imaginando o que o filho diria se soubesse que ela fora seduzida por seu pai e já tivera um filho dele.

Ricardo afastou-se.

- Volte! - berrou o rei Ricardo, contudo não ligou.

O rei ficou olhando para Henrique e Geofredo.

- Pelos olhos de Deus! - exclamou o rei. - Não vou ser desrespeitado pelos meus próprios filhos!

- Ricardo diz que não irá sujeitar-se a ninguém - disse Henrique.

- Você o viu me desafiar. O que vai fazer a esse respeito? replicou o rei.

- O seu filho Ricardo deve receber uma lição - manifestouse Henrique.

- Neste caso, estamos totalmente de acordo - disse o rei.

O jovem Henrique ficou exultante.

Ricardo tinha caído na sua armadilha. Se ele ia dar uma lição a Ricardo, a melhor maneira seria tomando a Aquitânia.

Enquanto isso, Ricardo estava seguindo de volta ao seu ducado.

O jovem Henrique, com Geofredo ao lado, dirigiu-se exultante à Aquitânia.

- Agora, vamos mostrar ao nosso pai o que somos na realidade! A Ricardo. Na Aquitânia todos já estão fartos dele. Não gostam desses homens rigorosos que se intitulam justos. Ricardo, com seus modos belicosos e o violento castigo que impõe aos infratores, perdeu a consideração deles. Querem livrar-se dele. Sei como o povo da Aquitânia quer ser governado, e isso se encaixa muito bem com o meu desejo - falou Henrique.

Imaginou-se presidindo as grandes mesas em seus castelos. Haveria canções e risos; ele encantaria os súditos com os torneios que iria inventar. Via-se entrando na arena, e as damas sorrindo para ele da plataforma. Todas disputariam entre si os seus favores. Marguerite iria sentir-se orgulhosa dele. Ele usaria as cores dela.

Era assim que se governava. Era assim que os provençais queriam. Ricardo não os compreendia.

Que grande sorte, a sua, Ricardo ser tão odiado.

Quando chegou às fronteiras da Aquitânia, muitos nobres estavam à sua espera junto com seus seguidores.

Ele teria um grande exército. Não poderia falhar.

Muito bem, Ricardo, você não quis jurar vassalagem a mim, pensou Henrique. Não preciso do seu voto. vou simplesmente tomar aquilo que não quer me dar.

Quando o rei soube o que se passava na Aquitânia, ficou muito angustiado.

Irmãos lutando uns contra os outros! Aquilo só podia acabar em desastre.

Que tipo de homens nós dois, Eleanor e eu, geramos?, perguntou-se. Por que os filhos que tivera com outras mulheres tinham sido súditos bons e leais? Seria porque, como dissera Eleanor, não tinham direito algum, e seus benefícios eram proporcionados por ele, enquanto que os nascidos do casamento acreditavam que o que era dele se tornava deles por direito? Seria porque a sua união com Eleanor sempre fora condenada?

Havia rumores a respeito de seus ancestrais. Dizia-se que um dos condes de Anjou, quando cavalgando na floresta, encontrou uma mulher tão bonita que ficou cativado por ela e com ela se casou. A beleza da jovem era tal que todos ficavam maravilhados; no entanto, ela relutava em entrar numa igreja, e quando entrava sempre saía antes da consagração da hóstia. Aquilo intrigava o marido, e vários anos depois do casamento, um dia, no exato momento em que ela se preparava para deixar a igreja, ele segurou-lhe a capa e não quis soltá-la.

De repente, dizem, ela começou a subir flutuando no ar, segurando pela mão dois de seus filhos. Ela desapareceu, deixando o aturdido marido segurando a capa. Dizia-se que ela era uma feiticeira e uma serva do diabo. Embora tivesse levado dois filhos com ela, deixara dois, e um deles se tornara o próximo conde de Anjou.

Essa lenda continuava a existir, e por causa dela muita gente dizia que havia um traço satânico no sangue dos condes angevinos.

Seria verdade?, imaginou Henrique. Teria aquele traço chegado até ele? Teria sido aquilo nele que o fizera seduzir a noiva do filho? Seria aquilo que fizera seus filhos lutarem entre si e contra o pai?

Não, é da mãe que eles herdam a sua índole, refletiu ele.

O que era o seu pecado de seduzir Alice, comparado ao incesto de Eleanor com o tio?

E o que se podia esperar dos filhos de duas pessoas como ele e Eleanor?

Mas precisava parar de remoer aquilo. Havia trabalho a fazer. Iria o mais rápido possível até Limoges, onde Henrique estava acampado, para acabar sem demora com a sua tentativa de fratricídio.

No caminho, encontrou Ricardo, que ficou contente com a sua chegada.

Com o pai a seu lado contra os irmãos, ele não podia deixar de vencer.

- Isso me deixa muito triste. Será que nada que digo tem qualquer efeito sobre vocês?

- O senhor sempre preferiu Henrique - repreendeu-o Ricardo. - No entanto, ele o tem enganado esse tempo todo, e mostrado muito claramente que não está apto a governar.

- Ele é meu filho mais velho, e vocês todos me desafiaram. Meus filhos são uma amarga decepção para mim... exceto João.

João ainda é muito criança para pensar por si mesmo.

- Eu confio no afeto dele. - O rei decidiu que teria que entrar em negociações com Henrique, que estava em Limoges.

- vou acompanhá-lo, e levaremos uma companhia conosco.

- Não, Ricardo. vou mandar avisá-los de que vim em missão de paz- Eles irão me reconhecer e não haverá mal nenhum.

- Não confio neles.

- Você ficará aqui enquanto eu avanço até a cidade; levarei comigo apenas um pequeno grupo de cavaleiros.

- Não gosto disso.

- Meu filho, terá de aprender que faço o que quero. Enquanto seguia em frente, ele pensava: por que, Henrique, meu filho, você não se comporta como o garotinho afetuoso que era na ala infantil, antes de sua mãe modificá-lo? Por que suas ambições tinham de lhe tirar o senso de honra? Como posso lhe dar o que pede? Tenho de governar. Possuo experiência na maneira de agir dos governantes. Você não entende. Governar não é levar uma vida de prazeres. O prazer que tenho tido foi encaixado entre incursões aqui, expedições punitivas ali, e todas as preocupações que tem um rei dono de domínios muito espalhados. Se compreendesse, ficaria contente por eu estar aqui para governar e ter você para aprender comigo, para que no momento adequado você possa manter o reino em suas mãos.

Estavam se aproximando da cidade. O rei seguia à frente do grupo. Por sobre a sua cabeça tremulava a sua bandeira, proclamando-o rei da Inglaterra, soberano de todos.

De repente, uma onda de flechas cortou o ar. Um de seus homens gritou:

- O rei está chegando!

Houve outra rajada de flechas. Uma delas furou a capa do rei.

- Majestade - disse o porta-bandeira -, eles sabem quem Vossa Majestade é e estão tentando matá-lo. Não estamos em condições de enfrentar o ataque deles.

- Tem razão. Vamos voltar - concordou o rei. Retirou a flecha da capa.

Olhou para ela. Teria sido muito fácil ela perfurar-lhe o coração. E homens de Henrique a tinham lançado.

De volta ao acampamento, contou a Ricardo o ocorrido.

A expressão fria de Ricardo não deu sinais de medo pelo que poderia ter acontecido; só havia desprezo pela loucura do pai. Não o avisara? Por que continuara a confiar no filho mais velho, quando repetidas vezes ele se mostrara leviano, capaz de atraiçoar o pai e o irmão?

Henrique ficou meditando, a flecha diante dele.

Meu filho quer me ver morto. Está tão ansioso pela minha coroa que seria capaz de apressar o meu fim para consegui-la. Havia tristeza no coração dele, e mais do que nunca ansiava pelo afeto da família.

Enquanto estava ali sentado, meditando, entrou um mensageiro para dizer-lhe que seu filho Henrique estava lá fora e pedia para vê-lo.

- Mande-o aqui.

Henrique entrou; tirou o elmo, e os belos cabelos claros caíram-lhe por sobre o rosto; ajoelhou-se diante do pai.

- Pois bem, meu filho.

- Oh, papai, quando vi o que aconteceu...

- Você viu a flecha, não viu? Viu-a furar minha capa?

- Alegro-me por ter sido apenas a sua capa.

- Santo Thomas estava nos protegendo... a você e a mim. Ele me salvou da morte e evitou que você se tornasse o assassino de seu pai.

- Oh, Deus me ajude - murmurou Henrique.

Ergueu o rosto para o pai e havia lágrimas em seus olhos. O rei se levantou e ajudou o filho a ficar de pé. Abraçou-o.

- Meu filho, meu filho, vamos acabar com este conflito.

- Oh, papai, o senhor me perdoa, então?

- Sei que não foi você quem disparou a flecha.

- Não, mas foram aqueles que pensavam estar me servindo.

- Precisamos acabar com este conflito, Henrique. Ele vai nos destruir a todos.

- Sei disso, papai. E hoje... quando pensei que o senhor poderia ter morrido...

- Vamos esquecer. Você é meu filho e devo amá-lo. Sabe muito bem que sempre deplorei essa divisão entre nós.

- Se ao menos o senhor me concedesse alguma autoridade...

- vou conceder... quando chegar a hora. Estou ficando velho, e por ter vivido muitos anos, posso controlar meus territórios. Há tanto o que aprender, e quando você tiver aprendido, tudo o que é meu passará para você

- Oh, papai, dê-me a sua bênção. - Ajoelhou-se e o rei colocou a mão em sua cabeça.

Depois, os dois conversaram durante algum tempo.

- Pensei que o senhor tivesse se aliado a Ricardo contra mim e Geofredo.

- Foram você e Geofredo que causaram esse caso infeliz. Ricardo é o duque da Aquitânia pela vontade da mãe dele.

- Mas o senhor mandou que ele jurasse vassalagem a mim.

- Não quero guerra entre vocês. Quero que sejam unidos. Vocês devem ficar juntos.

- Papai, tenho influência na Aquitânia. O povo me quer como seu duque... e não Ricardo. O senhor sabe como ele é impiedoso. Ele chama isso de justiça. Tem aplicado castigos terríveis àqueles que agiram contra ele, a quem chama de traidores. Não querem aceitar Ricardo. Mas eu poderia persuadi-los a aceitar o senhor.

- Você faria isso?

- Faria, papai, pois agora vejo que é o melhor caminho. Ricardo, eles não querem. Mas se o senhor se oferecesse para servir de mediador e deixasse que decidissem quem aceitariam como seu duque, poderia haver paz. Deixe-me voltar para eles como seu emissário.

- Vá, então.

O jovem Henrique partiu e o rei continuou a olhar com imensa tristeza a flecha que havia furado a sua capa.

Geofredo aguardava pelo irmão na cidade de Limoges.

- Falei com ele - disse Henrique. - Ele me perdoou. Havia lágrimas em seus olhos. Como é possível um rei ser tão bobo assim?

- E agora? - disse Geofredo.

- Temos o povo do nosso lado. Vamos vencer. Meu pai vai ver que nada pode fazer aqui. Terá de levar Ricardo de volta com ele. Houve época em que chamavam o nosso irmão João de "Sem Terra". Talvez agora digam o mesmo de Ricardo, ex-duque da Aquitânia. Agora, nós vamos tratar de fortificar esta cidade. O rei irá compreender, então, que não poderá toma-la.

O rei foi o primeiro a entender que uma vez mais se deixara enganar pelo filho. Qual teria sido o motivo de Henrique ao ir fazer as pazes? Talvez ganhar tempo para a fortificação de Limoges?

- Gerei um ninho de serpentes. Mas pelo menos sou o pai delas.

Havia decidido o que fazer: num gesto de ousadia, entraria em Limoges e mandaria que o deixassem falar com os filhos.

Dessa vez, seguiu com um grupo ainda menor; havia apenas o seu porta-bandeira e dois outros cavaleiros.

Quando chegou perto dos muros da cidade, ouviu-se um grito e ele viu seus filhos Henrique e Geofredo olhando das ameias.

Então, como acontecera antes, veio a chuva de flechas; dessa vez, seu cavalo foi ao chão, levando-o junto.

Então agora eles conseguiram!, pensou o rei.

Ficou surpreso ao descobrir que embora seu cavalo estivesse morto, ele nada sofrera. Os cavaleiros haviam saltado de seus cavalos.

- Não estou ferido - disse ele. E nunca estive tão machucado, pensou. Meus filhos pretendem me levar à morte. Deus me ajude, e que não os abandone.

Alguém se aproximava a cavalo. Era seu filho Henrique. Ele soltou uma risada amargurada.

- O quê? Errou de novo?

- O que quer dizer, papai?

- Você matou meu cavalo. Se ele não tivesse empinado no exato momento, a flecha teria passado pelo meu peito, como se pretendia.

- Oh, meu pai! - Lágrimas, outra vez, nos belos olhos! Por estranho que pareça, o rei ficou emocionado por causa delas. Não acreditava nelas, mas mesmo assim ficava contente ao vê-las.

Aquele seu filho era um inimigo. No que dizia respeito aos filhos, ele podia ser um velho sentimental, mas não era tolo a ponto de se recusar a admitir a verdade quando ela estivera à sua frente por tanto tempo.

Aquele filho a quem amara - mais do que a nenhum dos outros - não passava de um traidor. Queria matar o pai. Em duas ocasiões, no espaço de poucos dias, ele quase morrera, quando houvera uma tentativa contra a sua vida.

Acabou o pai sentimental, avisou a si mesmo. Nada de obrigar você mesmo a acreditar no que quiser. Nada de dar as costas à verdade porque ela é horrenda.

Você tem quatro filhos homens nascidos do casamento. Dois deles agem contra você; são seus inimigos; ficaram olhando enquanto seus homens tentavam assassiná-lo. Do outro, Ricardo, você não pode gostar. Ele é frio demais, indiferente, foi criado para odiá-lo, e nunca fará outra coisa; nunca poderá gostar dele; é igual à mãe, sente ódio de você por ter mandado prendê-la, e você o odeia porque ele nunca ligou para você e - já que estamos enfrentando a verdade - porque você o ultrajou ao seduzir-lhe a noiva e impedir o casamento. Isso faz com que só sobre João.

Meu filho João, meu adorado filho João! Deposito em você todas as minhas esperanças. Você nunca esteve naquela ala infantil que o ódio de uma mãe pelo pai de seus filhos tornou amargurada. A você tenho amado; transformei-o de João Sem Terra em João de muitas propriedades. Você me amará. Devo me voltar para você, para que me dê tudo de que senti falta nos outros.

Naquele ínterim, ele precisava estabelecer a paz na Aquitânia, e quando o seu filho Henrique fosse procurá-lo com lágrimas nos olhos, não seria enganado uma segunda vez. Jogaria com as regras de Henrique; fingiria estar reconciliado, enquanto o tempo todo saberia que Henrique e Geofredo eram seus inimigos.

Deixou-se ser ajudado a montar o cavalo que lhe haviam providenciado. Entrou com o filho em Limoges e lá se sentou com ele e ouviu seus planos para levar a paz à Aquitânia.

Não se surpreendeu com o que se seguiu.

Geofredo deixara o irmão e o pai em Limoges, enquanto saía para convocar mais forças para a bandeira do irmão. Dias depois, o rei juntou-se outra vez a Ricardo, para descobrir que o jovem Henrique e Geofredo haviam levantado forças por toda a Aquitânia e que Filipe da França estava enviando ajuda.

- Que ingratidão! - bradou o rei. - Quanto tempo faz que salvei a coroa para ele?

Não era só isso, havia rumores de que chegara a hora de atacar a Normandia.

O rei ficou enfurecido. Iria sitiar Limoges, e quando tomasse a cidade não teria piedade de ninguém, ainda que se tratasse de seus filhos.

O jovem Henrique, no entanto, aproveitara a oportunidade para fugir da cidade antes que seu pai percebesse suas intenções, e enquanto o rei estava cercando Limoges ele percorria toda parte provocando destruição no domínio de Ricardo.

O jovem Henrique não era um grande soldado. Não gostava de entrar em combate. Ansiava pela série de torneios, nos quais se viciara. Era muito mais agradável participar de batalhas simuladas, vencer as justas, ser levado em triunfo para o salão por belas mulheres, sentar-se ao lado delas e ouvir as canções sobre o amor e a bravura. O combate de verdade era totalmente diferente. Não era tanto pelo risco da morte; considerava aquilo emocionante; os dêsconfortos que acompanhavam a guerra de verdade simplesmente não o agradavam.

Ainda assim, estava decidido a conseguir o seu intento. Considerava extremamente humilhante ele, um homem de 28

anos e coroado rei da Inglaterra, não possuir dinheiro e ser absolutamente impotente, sempre contido por um pai dominador.

Sua queixa não era realmente contra Ricardo, e sim contra o pai. Não que quisesse especificamente a Aquitânia; desejava poder, e se o pai visse que ele era capaz de tomar a Aquitânia, não estaria disposto a lhe dar a Normandia ou a Inglaterra? O pai queria ficar com o poder total, e isso era ridículo. O pai não via a impossibilidade de manter o controle sobre a Normandia, Anjou e a Inglaterra, tudo ao mesmo tempo?

Por que não delegava uma parte do governo aos filhos? Era por isso que havia a guerra.

Henrique gostava demais de luxo; era excessivamente generoso; sempre gostara muito de dar presentes a quem o agradasse. Para ele, aquilo parecia uma confirmação do seu poder. Era característica de um rei agir assim, e como todos sabiam que ele não passava de um rei sem poderes, ele tinha de viver lembrando às pessoas que era, pelo menos, um rei.

O que poderia ele fazer para conseguir dinheiro?

Um de seus capitães fora procurá-lo para dizer que os soldados estavam exigindo pagamento.

- Eles têm de esperar - bradara ele.

- Majestade, eles não querem esperar. Caso não recebam, desertarão.

- Traidores! - bradara o rei.

Mas de que adiantava? Ele precisava de dinheiro.

Dinheiro. Só sonhava com aquilo. Tinha de arrranjá-lo em algum lugar. Estava começando a desejar que não tivesse começado aquela guerra. Não era assim que se fazia.

Começou a ter sonhos agitados. Lembrava-se do pai entrando na ala infantil - uma figura pujante, que gostava de brincar com as crianças. Mas podia ficar muito zangado, e quando isso ocorria, todos os criados se afastavam para que ficassem fora do alcance da tempestade. Todos o receavam. Ele sabia inspirar medo, embora não soubesse inspirar amor. Os filhos nunca o amaram, nenhum deles, exceto talvez o bastardo Geofredo, que fora colocado na ala infantil para grande desgosto de sua mãe. O Geofredo bastardo achara o pai maravilhoso, fizera tudo para agradá-lo. Tentara brilhar nas lições, na equitação, no cavaleirismo, no arco e flecha, em tudo que o agradasse.

Ricardo não ligara muito para agradar o pai. Ele sempre fora impassível, distante. Mas gostava muito da mãe. Havia fervor nos olhos frios quando pousavam nela. Mas Henrique não gostara de nenhum dos dois. Quisera, acima de tudo, ser rei, e quando de sua coroação ficara contente com a vida até que percebera que aquilo, na realidade, não significava poder. Não significava coisa alguma A coroa seria uma ilusão enquanto o pai vivesse.

Mas dinheiro? Onde iria consegui-lo?

Haviam parado numa abadia e ali fizeram uma pausa para descansar. Os monges receberam-nos bem e convidaram-nos para o refeitório.

Henrique e seus capitães sentaram-se com os monges; participaram da comida simples que eles haviam preparado; depois de se saciarem, admiraram os ricos ornamentos de ouro e prata que decoravam a abadia e os maravilhosos presentes cravejados de pedras preciosas, ofertados à Virgem.

Henrique examinou aqueles ornamentos com os olhos semicerrados. Tanto objeto bonito valendo muito, e tudo escondido ali na abadia.

- Pelos olhos de Deus! - exclamou ele a seus capitães. - Poderíamos alimentar um exército à custa de alguns desses cálices de prata!

Os capitães evitavam olhá-lo de frente, mas ele insistiu em transmitir suas ideias. De que adiantavam aqueles ornamentos escondidos numa abadia? Como seriam mais úteis fornecendo-lhe o dinheiro de que desesperadamente necessitava!

Quando os belos objetos foram retirados dos sacrários dos santos, os monges reclamaram. O jovem Henrique, porém, fez um gesto para que parassem com o protesto.

Seus soldados estavam com fome, queriam os seus pagamentos. Ele estava decidido a alimentar seu exército e continuar com a guerra.

Riu da atitude excessivamente escrupulosa de alguns de seus homens.

Eles temiam represálias por parte dos santos.

- Não, isso é uma causa justa - exclamou Henrique.

A providência parecia estar comprovando isso, pois haviam chegado notícias de que vários cavaleiros importantes e os homens que os acompanhavam estavam prontos para unirem-se a ele na marcha contra Ricardo.

Henrique ficou muito contente. Agora, nada iria detê-lo. Sabia como conseguir o dinheiro de que precisava. Eram muitas as abadias ricas nos arredores. Por que não iriam elas fornecer os meios de alimentar e equipar o seu exército?

Uma agitação febril o invadiu. Seu sono era perturbado por sonhos estranhos. Muitas vezes se revirava em seu catre, e o pai dominava aqueles sonhos.

Agora, quando seus exércitos eram avistados, os monges tentavam fechar as portas para impedir a sua entrada. Ele não iria tolerar isso. Às vezes era necessário derrubá-las.

Ele agora estava rico. Roubar os sacrários era uma fonte aparentemente interminável para atender suas necessidades.

O terror espalhou-se pela região. Contavam-se histórias terríveis de soldados bêbados saqueando as abadias. Os monges mantinham sentinelas à espera dos exércitos que se aproximavam e procuravam defender-se, mas se mostravam impotentes contra os homens de Henrique.

Ele parecia um homem possuído por demónios. Enquanto dormia, gritava que sua ancestral feiticeira o estava perseguindo. Seus criados pensavam que estivesse doente, mas de manhã ele estava de pé e pronto para seguir em frente.

Suas faces estavam coradas, ele parecia estar com febre. Foi aconselhado a descansar um pouco, mas se recusou.

- O quê! Quando estamos vencendo? Dar a meu pai e a Ricardo uma oportunidade para me sobrepujarem? Não! vou prosseguir e conquistar a Aquitânia, e um dia os monges irão alegrar-se pelo papel que representaram na minha vitória.

E seguiam em frente. Perto dali estava a mais famosa igreja da França, muito conhecida por ser o santuário de Roc Amadour. Os tesouros daquele santuário valiam uma fortuna. Peregrinos dirigiam-se a ele, vindos de todos os cantos do país. Dizia-se que ali tinham sido realizados milagres, e que a própria Virgem muitas vezes se fazia presente.

Henrique observou que seus subordinados estavam com medo. Sentia a febre queimando-lhe o corpo e se viu tomado por uma onda de arrojo.

- Por que pensam que viemos a Roc Amadour, a não ser para nos servirmos dos tesouros do santuário? - perguntou ele.

Talvez ninguém acreditasse que fosse cometer aquele ato de sacrilégio. Talvez nem mesmo ele acreditasse. Viu a expressão no rosto dos homens - expressão de medo - e riu em voz alta. Algo o impelia para a frente. Não sabia o que era. Iria provar a todos que não temia coisa alguma... nem ao pai, nem a Deus. Então, veriam se ele era digno de ser o rei. E iriam compreender por que ele sentia tanta raiva por ser privado do poder que era seu por direito.

- Para o santuário! - bradou ele.

Olhou para os homens com um olhar fulminante.

- Aqueles que estiverem com medo, voltem para suas lareiras. Não são dignos de seguir comigo para a Aquitânia. Não os quero ao meu lado, pois não gosto de covardes - disse o jovem Henrique.

Então avançou e entrou na igreja, e praticamente não houve um homem que não o seguisse. Que riqueza! Que tesouros!

- Esses despojos irão nos levar, através de nossas campanhas, à Aquitânia! - bradou ele.

Naquela noite, a febre tomou conta dele. Delirava, e aqueles que o cercavam tremiam. Não conseguiam esquecer que ele profanara o santuário de Roc Amadour.

Pela manhã, sentia-se um pouco melhor. Avisou que seguiriam em frente.

- À noite passada, pensei que fosse morrer. Sonhei que Nossa Senhora veio a mim e disse que meus dias estavam contados. "Arrependa-se", disse ela, "porque lhe resta pouco tempo! Pensei que estivesse morrendo - disse ao duque de Borgonha, que se unira ao seu grupo e colocara várias centenas de homens à sua disposição.

- Não seria melhor Vossa Majestade repousar? - perguntou o duque.

- Não. Desejo continuar. Mande um de meus mensageiros até aqui. Quero ver uma pessoa, e ela deve ser trazida à minha presença sem demora, pois talvez de fato me reste pouco tempo.

- Quem é essa pessoa? - perguntou o duque.

- É Guilherme, o Marechal. Quero vê-lo. Deve vir o mais rápido possível.

Nos dias seguintes, o jovem Henrique ficou tão mal que lhe era impossível prosseguir. Permaneceu alguns dias de cama na casa de um comerciante, falando muito sozinho, e de vez em quando parecendo saber onde estava e perguntando se Guilherme, o Marechal, havia chegado.

Guilherme por fim chegou, e quando entrou no quarto em que Henrique jazia na cama, o jovem rei deu um grito de boas-vindas.

- Com que então você veio, meu amigo.

- Tão logo recebi sua mensagem.

- bom Guilherme, sempre fomos amigos, não é?

- Fomos - respondeu Guilherme.

- Você esteve comigo durante a minha infância, de modo que é bom estar comigo no final.

- No final. O que quer dizer?

- Então não sabe, Guilherme? Sou um homem doente e muitíssimo arrependido, porque irei à presença do meu Criador levando meus pecados... e que pecados! Você sabe que profanei lugares sagrados.

- Por quê, majestade? Por quê?

- Era necessário arranjar dinheiro para os meus soldados,

- Mas dessa maneira!

- Não. Foi à minha maneira. Sabe que tenho como ancestral uma feiticeira do diabo. Foi como se ela tivesse me possuído.

- Vossa Majestade devia se arrepender.

- Eu vou. Eu queria vê-lo, Guilherme.

- Eu sabia, majestade. E agora que estou aqui, não irei mais deixá-lo.

- Não precisará ficar por muito tempo.

- Nada disso, Vossa Majestade vai se recuperar.

- Guilherme, nunca acreditei que você fosse amante de Marguerite.

- Sei disso.

- Algum diabo tomou conta de mim. O mesmo que estava dentro de mim quando saqueei os santuários.

- Filipe de Flanders foi o seu génio do mal.

- Não, fui o meu próprio génio do mal, Guilherme. Agora que estou livre desse diabo, percebo que sou realmente mau e que devo me arrepender.

- Quer que eu mande chamar um padre?

- Mais tarde, Guilherme. Por enquanto, fique comigo. Ainda me resta um pouco de tempo.

- Vossa Majestade devia fazer as pazes com Deus.

- vou fazer, vou fazer. Agora que veio para cá, tudo parece diferente. Sinto-me de novo como uma criança. Eu o admirava muito, Guilherme. Você era o cavaleiro perfeito. Sabia fazer tudo melhor do que qualquer outro. Era bom demais.

- Sou um pecador, tanto quanto Vossa Majestade, e ninguém pode ser bom demais. Mas descanse, agora. Deixe-me chamar o bispo.

- Se houvesse tempo, Guilherme, eu lhe pediria que me acompanhasse numa cruzada.

- Mais tarde, após se recuperar, talvez.

- Mais tarde? Não haverá mais tarde para mim. Sabe disso, Guilherme. Por que finge, agora? Sempre um homem tão honesto!

- Então, se há pouco tempo, arrependa-se, senhor meu rei.

- Sim, sim, tenho de me arrepender. Abaixe-se e veja o que está no chão, Guilherme. É a cruz de um cruzado. Tirei-a do santuário.

- Majestade!

- Nada disso, pare de ficar chocado. O que fiz está feito, e não há como desfazer.

- Então se arrependa, majestade.

- Mande o padre vir aqui, então, Guilherme. E diga que me perdoa. Foi um dia aziago aquele em que o mandei embora.

- Isso passou. Agora estou de volta.

- Guilherme, tome conta de Marguerite por mim. Receio que vá ficar viúva dentro de pouco tempo.

Guilherme se afastou. Não suportava olhar para o rosto que já fora bonito e agora era ora pálido ora afogueado, os belos olhos com uma expressão alucinada e injetados.

Devia ter ficado com ele. Mas como, se fora mandado embora? Mas devia ter voltado, e não esperar que fosse chamado. Devia ter avisado ao jovem rei que o caminho

escolhido por ele só poderia levar ao desastre.

O bispo de Cahors chegou e deu a absolvição.

Estava claro agora que Henrique não viveria muitos dias mais.

Pediu que Guilherme, o Marechal, ficasse com ele.

- O fim está muito próximo, agora. Está vendo, eis aqui a cruz do cruzado. Como poderei expiar o pecado de tirá-la do santuário? Se me devolvessem a saúde, eu partiria numa cruzada e a levaria a Jerusalém. Lá, eu a colocaria no Santo Sepulcro e rezaria pedindo perdão. Oh, Deus, conceda-me o dom da vida, para que eu possa conseguir a tempo o perdão de meus pecados!

Guilherme se afastou. Sabia que Henrique jamais iria a Jerusalém.

- Preciso ver meu pai antes de morrer. Menti para ele e fui injusto para com ele. Tenho de pedir o seu perdão.

- Mandarei um mensageiro chamá-lo, imediatamente. vou dizer a ele em que estado Vossa Majestade se encontra e pedir-lhe que venha vê-lo - prometeu Guilherme.

- Eu lhe imploro. - Ele pareceu reanimar-se um pouco. Era como se precisasse ver o pai e pedir-lhe perdão antes de morrer.

O rei não foi vê-lo em seu leito de morte. Henrique mentira para ele antes; como poderia ter certeza de que aquilo não passava de mais uma mentira a fim de atraí-lo para uma armadilha? Mandou um de seus bispos com um anel que nunca antes saíra de seu dedo, para que o filho soubesse que o bispo tinha ido com a sua aprovação.

Henrique segurou o anel e colocou-o junto ao coração.

- O senhor levará uma mensagem para meu pai. Estou morrendo e gostaria de tê-lo visto, e sei muito bem que ele gostaria de ter vindo.

- Ele estava disposto, mas foi aconselhado a não vir - disse o bispo.

O rosto de Henrique se contorceu num sorriso doloroso.

- Eu sei. Eu sei. Menti para ele tantas vezes! Ele agora não podia confiar em mim. Foi sensato da parte dele... mas acontece que desta vez não estou mentindo. Por favor, peça-lhe que cuide da rainha minha esposa. Eu gostaria de mandar uma mensagem a minha mãe. Penso muito nela, e gostaria de pedir a meu pai que fosse mais delicado com ela. Cometi pecados terríveis. Assaltei santuários sagrados. Gostaria que meu pai ressarcisse o que roubei, na medida de suas possibilidades. Peça-lhe que perdoe este filho pecador. - O esforço de falar estava se mostrando demais para ele, mas parecia mais satisfeito, agora que enviara um recado para o pai. Era quase como se tivesse se preparado para a morte.

Pediu que chamasse Guilherme, o Marechal, outra vez.

- Apanhe a cruz, e se surgir uma oportunidade, leve-a para Jerusalém em meu nome.

- Se eu for até lá, levarei, majestade.

- Mande preparar para mim um leito de cinzas no chão e tragame uma camisa de pêlo. Coloque uma pedra para servir de travesseiro e outra aos meus pés e deixem que eu morra assim, para que Deus e todos os seus anjos possam saber que parto com toda a humildade. Estou profundamente manchado de pecados, mas me sinto muitíssimo arrependido.

Guilherme deu as ordens para que aquilo fosse feito, e depois, com delicadeza, o jovem rei foi levantado da cama e colocado sobre as cinzas.

Ficou ali deitado com um grande desconforto físico, mas parecia ter encontrado uma paz espiritual.

Poucas horas depois, estava morto.

 

QUANDO o REI soube da morte do filho mais velho, durante alguns dias não sentiu outra coisa senão pesar; mas não podia ceder por muito tempo à tristeza. A morte de Henrique criava muitos problemas. O que era mais importante, precisava agora de um novo herdeiro de seus domínios.

Ricardo!

A expressão do rei endureceu. Se houver qualquer coisa que eu possa fazer para impedir isso, assim o farei, refletiu ele.

No entanto, era perigoso depor o herdeiro de direito e colocar outro em seu lugar. Ricardo nunca ligara muito para a Inglaterra. A Aquitânia tinha sido a sua paixão. Talvez porque ela pertencia a Eleanor, e ele era muito chegado à mãe. Apesar de sua aparência nórdica, ele adorava as terras do sul.

Meus filhos!, pensou o rei. Que afeto eles me deram? Henrique! Ricardo! Geofredo! - meus inimigos, todos eles.

Havia um que até ali tinha sido seu filho obediente: João.

Por que não fazer seu herdeiro aquele que lhe fora leal? Assim, mostraria aos traidores, ainda que fossem seus próprios filhos, que não esquecia injustiças.

Ricardo? Devia admitir que o filho nunca fora nada mais do que sincero. Se Ricardo estivesse planejando agir de determinada maneira, não fingia outra coisa. Não era como Henrique tinha sido ou Geofredo se mostrara. Naqueles dois, ele nunca pudera confiar. Mas não podia gostar de Ricardo.

Como a vida era irónica... e em especial a vida de um rei! Ansiara por ter filhos homens, e quando eles vieram tornaram sua vida um fardo pesado.

Henrique mentira para ele e ficara assistindo quando um de seus homens atirara flechas contra ele. Qual teria sido o verdadeiro sentimento do filho quando a flecha furara apenas a sua capa, e seu cavalo, não ele?

Ele era um homem astuto em tudo, exceto no tocante às afeições da família. Devia ter percebido há muito tempo que os filhos não tinham amor algum por ele, só pela sua coroa.

Ele gostaria de poder amar Ricardo. Talvez fosse o único em que ele deveria ter confiado. Mas se sentia constrangido na presença dele; sempre temia que fosse abordado um determinado assunto que iria deixá-lo nervoso, que até pudesse fazer com que ele traísse algo que nunca poderia ser contado.

- Oh, Alice, minha querida, você tem muito a sofrer. - Ele ansiava por estar em casa... e com Alice. Pensava nela em Westminster, em Winchester ou em Woodstock. Querida, adorada Alice, que nunca reclamava por ele não se casar com ela; que se contentava em ficar num retiro relativo; que ficava contente apenas por ele a amar e mante-la longe de Ricardo.

Tinha Alice, mas queria desesperadamente a afeição dos filhos. Imaginara, quando eles estavam na ala infantil, que iriam crescer e trabalhar juntos, e com que alegria iriam obedecer à vontade dele. Imaginara-os como uma família temível de homens fortes, com ele à frente. Ninguém ousaria enfrentá-los. Quatro filhos homens que se casariam com mulheres de famílias europeias e levariam cada vez mais terras ricas para a coroa Plantageneta. Como era triste, desenganador, ter os filhos guerreando uns contra os outros e contra ele e aliando-se ao rei da França!

E agora, Henrique morrera - e fora tão ignóbil o seu ato de saquear santuários sagrados que alguma coisa precisava ser feita, caso contrário não haveria boas perspectivas de felicidade para a família. Os santos precisavam ser aplacados.

Henrique, o mais bonito príncipe da cristandade, com seus modos encantadores que atraíam homens para o seu lado... morto! Que desperdício de uma vida!

Meu filho, que eu tanto queria amar e que de mim não queria outra coisa a não ser a coroa!

E Ricardo? Não, Ricardo, não! Não poderia tê-lo a seu lado, sendo o futuro rei da Inglaterra. Como faria isso? E o seu casamento? Era de esperar que agora ele acontecesse.

vou mandar chamar João, pensou o rei.

João voltava da caçada quando recebeu a notícia de que o pai queria que fosse juntar-se a ele.

João estava, agora, com dezessete anos; perfeitamente cônscio de ser o filho caçula, decidira esforçar-se. Seu irmão Henrique fora alto e bonito, e o mesmo acontecia com Ricardo. João, no entanto, saíra ao seu irmão Geofredo, ambos de pequena estatura, embora os braços e pernas fossem bem formados. O pai, que ficava um pouco acima da altura média, parecia destacar-se deles. Geofredo e João eram muito parecidos na fisionomia e no caráter. Ambos adquiriam conhecimentos sem muita dificuldade e estavam mais interessados em aprender com os livros do que o jovem Henrique estivera ou do que Ricardo. Geofredo sempre pudera expressar-se com clareza e apresentar uma boa explanação quando isso parecia difícil. Quanto a isso, João era igual a Geofredo. Era delicado e cheio de palavras doces quando queria alguma coisa. Era capcioso e parecia ter prazer em enganar. Pela simples alegria de levar vantagem sobre alguém, esforçava-se bastante e no fim talvez não conseguisse coisa alguma a não ser o prazer de enganar alguém.

Gerald de Gales, o sacerdote que tinha sido enviado para ficar com João e ajudar a promover sua educação, percebeu que não adiantava tentar contrariar-lhe a natureza.

Havia muito tempo que João era um devasso. Vinha seduzindo mulheres desde uma idade muito tenra, e muitas vezes saía a cavalo pelo interior, com um bando de companheiros saudáveis, dedicando-se à sedução ou ao estupro, dependendo do que aparecesse.

Estava sob a tutela do magistrado Ranulf Glanville, homem muito capaz que se distinguira no campo de batalha e conquistara as boas graças do rei a tal ponto que o rei concordava em deixar passar seus peculatos, que eram inúmeros, mesmo quando havia provas contra ele.

Era estranho que seu filho João tivesse siao colocado sob a tutela de um homem daqueles, muito embora se tratasse de um magistrado da Inglaterra e um dos homens mais importantes do país.

João o admirava e não via nada demais nas suas negociatas.

Aos 17 anos, estava perfeitamente ciente de que era o filho caçula, e nunca se esquecera do fato de que quando nascera seu pai o chamara de João Sem Terra.

Agora, seu irmão Henrique estava morto e Ricardo era o herdeiro, com Geofredo vindo em seguida, e depois ele. Parecia não haver esperança para ele, com dois irmãos fortes entre ele e a coroa; mas havia uma coisa a seu favor: o pai o considerava muito.

João achava engraçado. Henrique talvez tivesse sido o favorito porque era alto e bonito e sabia encantar as pessoas, até mesmo o pai. Parecia ser capaz de atirar uma flecha nele, que poderia tê-lo matado, se em vez disso não tivesse furado a sua capa, e ainda assim, com uma boa conversa, ter-se livrado de uma situação daquelas.

João admirava aquilo no irmão, mas Henrique era um bobo, é claro. Morrera de febre, e com isso encerrara a sua carreira. Ricardo estava sempre indo à guerra, e por isso não havia dúvida de que um dia teria uma morte violenta.

com isso, sobrava Geofredo. João tinha muitas coisas em comum com Geofredo - os dois se pareciam; tinham um caráter semelhante. João era o mais dissoluto. Cercara-se de companhias de gostos similares. Geofredo era, comparado a ele, um homem casado e ajuizado; tinha uma esposa, Constance de Bretanha, e uma filha, Eleanor, assim chamada em homenagem à mãe deles. João, também, tinha herdado o mau génio angevino. Estava tão pronto a estourar quanto o pai, e seu acesso de raiva podia ser terrível. Naturalmente que não era tão temido quanto o pai, mas seus auxiliares sempre se mantinham fora do seu caminho quando o génio de João estava a ponto de vir à tona. Havia também um traço sádico que não era peculiar a Geofredo. E embora aparentemente fosse um jovem agradável, de modos encantadores, por trás daquela fachada havia traços de caráter ainda insuspeitados mesmo por aqueles chegados a ele.

Quando recebeu a notícia de que o pai queria vê-lo na Normandia, mandou chamar Ranulf de Glanville para contar-lhe a novidade.

- Está vendo o que está acontecendo, Ranulf? Agora sou o favorito de meu pai.

- Boas novas, alteza. Boas novas.

- O pobre velho deve ter um filho a quem idolatrar.

- E é uma sorte, alteza, Ricardo e Goefredo terem desagradado tanto o rei, que Vossa Alteza será o escolhido.

- O escolhido! O que acha que isso significa?

- Significa que depende de Vossa Alteza.

- O que quer dizer com "depende de mim"?

- De como Vossa Alteza representar a sua parte. Poderia ganhar a Inglaterra.

- Eu... rei da Inglaterra, com dois irmãos na minha frente, pela ordem!

- Ricardo não gosta da Inglaterra. Ele prefere a Aquitânia. Geofredo perdeu as boas graças. Ficou assistindo enquanto alguém atingiu o cavalo do rei, fazendo-o cair, e não se mexeu. Acha que o rei vai esquecer isso?

- Rei da Inglaterra, Ranulf Estou gostando. Estou gostando muitíssimo. Pense em como iríamos nos divertir... você e eu... e outros., percorrendo o país. . recebidos com aclamação em toda parte. Entrando nas cidades, escolhendo as mulheres mais promissoras... e todas a minha disposição.

- Poderá haver algumas que irão repeli-lo.

- Tanto melhor. Um pouco de resistência é divertido. Não se procura a submissão o tempo todo. Se fosse assim, o que seria da delicada arte do estupro?

- Alteza, deve conter a sua linguagem quando estiver na presença do rei.

- Olha só quem fala! E ele? Quando era jovem, nenhuma mulher estava a salvo dele, e parece que mesmo agora ele tem condições de sair-se muito bem.

- Alice o satisfaz quando ele está na Inglaterra.

- Isso me faz rir, Ranulf. A noiva de Ricardo é amante de meu pai! Eu soube que ela lhe dá filhos. Você acha isso?

- Não devíamos acreditar em tudo que ouvimos, mas se Alice for fértil, isso é o máximo que se pode esperar.

- Acho que ele não gosta de Ricardo.

- E Geofredo o contrariou.

- E assim, resta o filho caçula... o bom e obediente João, que irá amá-lo e obedecê-lo e provar-lhe que será um filho muito bom. Acha que posso representar esse papel, Ranulf?

- Meu caro senhor, penso que pode representar qualquer papel que lhe venha à cabeça.

- Estou decidido quanto a este. Ele tem de me tornar seu herdeiro, Ranulf, antes de morrer; e uma vez feito isso, estarei pronto a me despedir carinhosamente do velho. - João começou a rir.

- Vossa Alteza está alegre.

- Estou pensando em meu pai. O grande Henrique Plantageneta diante do qual os homens tremem. Seus filhos foram uma decepção... todos, exceto João. Ele não sabe que João é o pior de todos. É verdade, não é, Ranulf?

- Pode ser. Mas, por favor, não deixemos que seu pai fique sabendo dessa interessante verdade.

- Pode confiar em mim, Ranulf. - João caiu de joelhos e ergueu olhos úmidos de lágrimas para Ranulf. - "Papai, sou seu filho caçula. Quem dera que fosse o mais velho. Mas apesar de jovem, terei tempo de mostrar que irei dar-lhe aquilo que meus irmãos não deram. Seus filhos o desapontaram... todos, exceto João. Minha missão é provar ao senhor que houve um, na ninhada, cuja chegada irá recompensá-lo por toda a ingratidão dos demais." Que tal, Ranulf?

- Poderia ser melhorado.

- Será, meu amigo. Será.

Henrique recebeu o filho de braços abertos.

- Meu filho João! Ver você me faz bem. - Olhou para o rosto jovem.

João ergueu olhos tão cheios de emoção quanto estiveram quando ele representara em frente a Ranulf.

- Papai, o senhor tem sofrido muito. Fiquei contente ao receber o seu chamado. Eu queria vir para lhe trazer consolo.

- Eu o abençoo. Preciso de consolo. Seu irmão, João, meu belo filho Henrique, morreu daquele jeito! Ele era tão jovem!

- Estava com 28 anos, papai, e é verdade que profanara santuários antes de morrer?

- Precisamos rezar pela alma dele, João. Ele se arrependeu no fim. Guilherme, o Marechal, me descreveu suas últimas horas. Quando morreu, estava deitado num leito de cinzas, vestindo uma camisa de pêlo.

- Graças a Deus, papai.

- Você sabe, meu filho, que estou sendo seriamente pressionado. Seus irmãos estão guerreando um contra o outro numa hora, contra mim na seguinte. Henrique estava empenhado numa guerra contra mim ao morrer. Isso me entristece profundamente. Mas ele me enviou uma mensagem, e o perdoei. Éramos amigos, então. Quisera Deus que nunca tivéssemos sido outra coisa. Essas brigas na família, João, não trazem benefícios para nenhum de nós.

- Não, papai.

- Você está numa idade em que pode gozar de minha confidência.

- Isso me alegra. Quero estar ao seu lado. Quero ajudá-lo. Tenho de aprender depressa.

Os olhos de Henrique demonstraram, de repente, sinais de emoção. Seria mesmo possível que naquele filho ele iria encontrar aquele que compensaria o desapontamento que os outros lhe haviam trazido?

- A morte de seu irmão provocou grandes mudanças. O rei da França, agora, vai exigir a devolução do dote de Marguerite. Não posso abrir mão da Vexin, tal a sua importância para a defesa da Normandia.

- Meu irmão Ricardo é, agora, o herdeiro da Inglaterra, da Normandia, de Anjou...

O rei ficou calado.

- Ele agora vai ter de se casar com a princesa Alice, papai-

- Veremos, meu filho.

- Todos dizem que há algo de estranho a respeito da princesa. Está noiva há tanto tempo, e ainda não saiu o casamento.

- As pessoas vão sempre criar mistérios onde não existe.

- Mistérios, sim. Não existem mistérios de verdade, porque alguém sempre sabe a resposta.

- Mandei chamar seu irmão Ricardo. O povo da Aquitânia não o aceita, e vou fazer com que desista do ducado.

- Quem irá ficar com ele, então?

- Você, meu filho.

João fez um gesto de assentimento com a cabeça. A ideia o agradava. Iria ser o rei da Irlanda; tinha várias propriedades na Inglaterra; e agora, duque da Aquitânia!

A morte do irmão lhe fora muitíssimo benéfica. Tinha de manter a boa vontade do pai, e muita coisa boa mais viria em sua direção.

Ricardo ficou imaginando o que o pai queria dizer-lhe. O problema da Aquitânia tinha sido resolvido favoravelmente, com a ajuda do rei, e agora ele podia dizer que decidira sua posição lá.

Sabia que deveria haver mudança. O herdeiro do trono estava morto e ele era o seguinte. Acreditava que o pai ainda teria muitos anos de vida, e uma coisa era certa: ninguém iria assumir a coroa da Inglaterra ou exercer o menor controle da Normandia ou de Anjou enquanto ele vivesse. A Aquitânia era diferente. Ele a recebera da mãe, e podia-se dizer que a conquistara nos últimos anos pelo direito de sua espada.

Se se tornasse herdeiro do trono da Inglaterra e dos domínios de seu pai da Normandia e de Anjou, o que aconteceria com a Aquitânia?

O rei recebeu Ricardo com a costumeira reserva, e gostaria que não tivesse sido necessário aquele encontro.

Os dois irmãos se estudaram com desconfiança. João sentiu uma forte inveja, porque o gigante louro tinha um porte de rei que ele jamais possuiria. Sempre antipatizara com Ricardo, embora não tanto quanto com Henrique, porque Henrique fora ainda mais bonito, da mesma altura, e possuíra um encanto que deliciava quase todo mundo.

Bem, ele agora estava morto e Ricardo era o herdeiro do trono e de vários domínios além-mar, e era melhor ser rei da Inglaterra do que duque da Aquitânia.

- Meus filhos - disse o rei, levando-os para seus aposentos privados, onde poderiam ficar a sós para conversar. - Nós nos encontramos numa hora de grande tristeza.

- Henrique era um bobo - disse Ricardo, no seu costumeiro estilo franco. - Sabia que estava com febre e recusou-se a se tratar. Provocou a própria morte.

O rei baixou a cabeça.

- Cale-se, Ricardo. Não vê o sofrimento de nosso pai?

- Como eles estavam em guerra e Henrique estava se portando de maneira muitíssimo idiota, não duvido que nosso pai se lembra disso - retrucou Ricardo.

Ricardo está certo. Lamento a morte de meu filho, mas não posso esquecer que ele era meu inimigo, refletiu o rei. Ele seria capaz de me ver morto e não se lamentar. No entanto, eu o amava e sempre esperava que ele fosse mudar em relação a mim. Mas João é afetuoso. Ricardo é um brilhante soldado, mas João é bondoso. Vai ser um bom filho para mim. E é disso que preciso para me consolar.

- Não vamos remoer o passado. Estamos reunidos com uma finalidade. O irmão de vocês está morto e isso alterou muitas coisas. Eu o trouxe aqui, Ricardo, para que se retire da Aquitânia. Seu irmão João será o duque, e você agora irá entregar o ducado a ele.

Os olhos de Ricardo estavam frios como aço; a febre se mostrava em suas mãos.

- A Aquitânia está dominada, agora. Desde que minha mãe me mandou ser coroado duque, tenho lutado pelo meu cargo com a espada. E o conquistei. O senhor não vai me pedir que desista, agora.

- Não se trata de um pedido. Isto é uma ordem.

Ricardo não disse nada. Seu irmão Henrique tinha sido coroado rei da Inglaterra e nunca tivera poder algum. Ele era duque da Normandia, conde de Anjou, e de grande coisa isso lhe servira!

O jovem Geofredo, conde de Bretanha, governava aquela terra. Ele, como duque da Aquitânia, iria governar o seu território. Preferia ser governante de fato do que ter a promessa de títulos pomposos que de nada valeriam enquanto o pai não morresse. Não que o rei tivesse falado em torná-lo herdeiro de seus domínios. Era de se presumir que ele deveria ser o herdeiro, porque era o filho vivo mais velho, mas o pai não confirmara. E pela maneira em que começava a tratar João, quem sabia o que lhe passava pela cabeça?

Ricardo não confiava no pai, especialmente agora que ele mandara chamar João.

Portanto, não apresentou, como poderia ter feito antes, qualquer recusa definitiva a entregar a terra pela qual lutara. Disse que a proposta era uma surpresa tão grande que ele precisava de tempo para pensar.

O rei concordou, mas acrescentou que precisaria de uma resposta - e devia ser uma concordância... até a semana seguinte.

Ricardo cavalgou de volta à Aquitânia. De lá, mandou a reposta para o pai.

Enquanto vivesse, iria governar a Aquitânia, e ninguém mais deveria governá-la.

O rei se demorou na Normandia. Mantinha João a seu lado, e o filho caçula representava o papel a que se destinara. Ouvia sério os conselhos do pai; fingia maravilhar-se com a sabedoria dele; e estava decidido a se tornar o filho favorito.

Henrique não era bobo. Ficava muitas vezes pensando em João, mas estava tão ansioso por ser amado que continuava a enganar a si mesmo - metade dele avisando-o que tomasse cuidado com uma traição, enquanto a outra lhe assegurava que pelo menos tinha um filho que gostava dele.

Havia muita coisa para mante-lo no exterior, mas estava louco para voltar para a Inglaterra.

Houve um encontro com Filipe, quando os dois discutiram a devolução do dote de Marguerite. Resolveram a questão combinando que Henrique deveria pagar a ela uma renda de mais de duas mil libras angevinas. Henrique nunca relutava em fazer um acordo desses, porque prometia a si mesmo que se o pagamento se tornasse difícil ele simplesmente se desinteressava dele.

Era inevitável que se falasse em Alice.

- O casamento dela com Ricardo já devia ter acontecido havia muito tempo - disse Filipe.

- Tem havido muita coisa a preocupar a mim e a Ricardo replicou o rei.

- E agora você está tendo problemas com ele, creio eu.

- Ele é um filho desobediente.

- Você tem ficado desapontado com os filhos, irmão.

- Eles têm me criado problemas. Será diferente com o meu caçula. João será um bom filho.

Filipe fez uma pausa com ironia, como se estivesse prestando atenção. Para ouvir o quê?, imaginou Henrique. O riso irónico dos deuses? Os dois chegaram a um acordo quanto ao dote de Alice.

- Você poderá decidir que se ela não for para Ricardo, poderia ser de João - disse Filipe. - Geofredo está casado e vivendo na Bretanha.

- João está noivo da filha do conde de Gloucester.

- Esses noivados são, muitas vezes, esquecidos. Não se esqueça, irmão, de que Alice é uma princesa da França.

- Farei o possível para que ela seja bem encaminhada. Filipe não insistiu. Às vezes Henrique ficava imaginando até que ponto se sabia a respeito dele e de Alice.

Henrique fez planos para deixar a Normandia no início do verão e levar com ele o duque e a duquesa da Saxônia. Sua filha Matilda estava grávida, e ele achava que seria uma boa ideia a criança nascer na Inglaterra. Estivera pensando muito muito em Sancho de Navarra, cujo conselho tinha sido no sentido de que mostrasse uma certa tolerância para com Eleanor.

Ela estava com 62 anos de idade - o que, quase que certamente, não era uma idade de provocar rebeliões. Mas ela não podia ser julgada por padrões comuns. Não havia nada de comum com relação a Eleanor. Parecia incrível que ela já estivesse presa havia onze anos, mas se tratava disso mesmo.

No último encontro entre os dois, ela não mostrara o mínimo de arrependimento. Era impossível imaginá-la com esse sentimento. Fizera o possível para criar problemas entre ele e os filhos; e havia muito tempo que isso fora o grande propósito de sua vida.

No entanto, talvez fosse aconselhável dar-lhe um pouco de liberdade - não muito, mas o suficiente para mostrar a quem estivesse observando a situação entre eles que estava disposto a ser tolerante, se ao menos Eleanor tornasse possível ele confiar nela. Ricardo o estava desafiando na Aquitânia, e poderia haver dificuldades por lá. O povo daquela província ficaria satisfeito se ele lhe mostrasse que sua atitude em relação a Eleanor estava melhorando. A filha deles, Matilda, estaria na Inglaterra e seria um gesto amável deixar que mãe e filha se encontrassem.

O rei iria pensar na possibilidade de conceder a Eleanor permissão para ir de Salisbury para Winchester, onde poderia ficar com a filha na época do parto.

Quanto mais o rei pensava na ideia, melhor ela lhe parecia. A rainha não poderia prejudicá-lo, pois mandaria que fosse vigiada de perto, e iria mostrar que estava disposto a ser tolerante se ao menos ela também fizesse concessões.

Eleanor achava a prisão mais tediosa do que desconfortável. Para uma mulher de seu temperamento, tinha sido torturante ficar isolada dos acontecimentos e, assim, incapaz de participar deles, mas conseguira manter-se a par do que se passava. Ela não teria sido Eleanor se não tivesse conseguido montar um esquema através do qual podia fazer com que mensageiros lhe trouxessem cartas com notícias e também levassem as que ela escrevesse.

Sabia o que se passava na Aquitânia e ansiava por estar lá. Sabia das aventuras dos filhos e sentia-se profundamente satisfeita pelo ódio que eles tinham do pai.

Ela cuidara de sua aparência, e para a idade que tinha parecia muito moça.

Decidira-se a manter a elegância, e levava-se muito tempo fazendo seus vestidos; ela mesma os desenhava, pois assim poderia ter certeza de que ninguém estaria trajada exatamente igual a ela.

Às vezes, ela se lembrava com tristeza de que quando estivera casada com o rei da França fizera de sua corte a mais elegante da Europa. Luís a amara até o momento do divórcio; gostava de acreditar que ele a amara até morrer. Henrique fora o único que a enganara.

Ele nunca poderia desejá-la, caso contrário nunca a teria mantido isolada por tanto tempo. A infidelidade dele fora a responsável por aquele ódio que a consumia e que a levara a voltar os filhos contra ele.

Ela pensava muito na morte de Henrique. Tivera uma experiência fantástica antes de ele morrer. Sonhara que se encontrava andando sobre as pedras frias do que acreditava ser uma cripta. Havia uma luz fraca que ela seguira. De repente, a luz parara. Ela se aproximara e vira que a luz iluminava um homem que jazia num sofá. Ela prendera a respiração de medo, pois o homem era seu filho Henrique. Estava como se fosse uma efígie sobre um túmulo, e em sua cabeça apareciam duas coroas: uma era a da Inglaterra, e a outra era uma espécie de halo. Henrique estava sorrindo, embora os olhos estivessem fechados, e Eleanor ficou impressionada com a expressão de paz que nunca vira igual nele. Acordara assustada.

- Oh, meu Deus, o que significava isso?

E então chegara a notícia da morte dele, e o sonho voltara com intensidade.

Henrique estava morto - aquele menino inteligente e bonito já não existia mais. Fora aquilo que o sonho lhe dissera. Ele morrera em conflito com o pai. Era uma terrível história de ódio, traição e deslealdade. O filho saqueara santuários sagrados, aldeias, e o povo fugira dele e de seus soldados. E o fim... o terrível fim... quando a febre tomara conta dele e a morte chegara. Ele se arrependera. Tanta gente se arrependia em seus leitos de morte, e o dele tinha sido um leito de cinzas, e o travesseiro, uma pedra.

Meu filho, pensou ela. Oh, meu Deus, onde foi que erramos?

Por que perguntava? Ela sabia. Seus filhos tinham sido criados no ódio, diante da violenta emoção de um pai devasso e de uma mãe vingativa.

Pensávamos em nossas próprias emoções, recriminou-se ela. Não nos contínhamos. Estávamos obcecados por nós mesmos e não parávamos para pensar no que estávamos fazendo aos nossos filhos.

Nós, sim, devíamos fazer nossa cama de cinzas. O pecado foi nosso.

Pensou no filho Henrique, que se tornara o mais velho desde a morte do pequeno Guilherme. Henrique, o mais bonito de um belo grupo. Lembrou-se da emoção que os dois sentiram quando da vinda de outro filho homem, porque na época a saúde do pequeno Guilherme estava em declínio. Um menino tão inteligente! Como o pai se orgulhara dele! Ele sempre fora o favorito de Henrique, tal como Ricardo fora o dela. Ricardo notara a preferência do pai, e por causa disso se tornara mal-humorado e despeitado. E ela o recompensara pela negligência do pai, e entre ela e Ricardo nascera um vínculo apaixonado que acreditava ser mais forte do que qualquer emoção que os dois sentiam por qualquer outra pessoa.

A decomposição começara na ala infantil. As crianças eram criadas para odiarem o pai, e fora ela quem fizera aquilo.

Então, Henrique Plantageneta cometera o erro de coroar seu filho Henrique rei da Inglaterra. Ele cometera poucos erros no governo de seus domínios, embora a sua vida familiar tivesse sido um longo engano; mas nada poderia ter contribuído mais para a sua derrota do que a coroação do jovem Henrique - fazer um homem ambicioso virar rei só no nome e depois negar-lhe o poder de ser rei. Oh, Henrique, Henrique, inteligente Henrique Plantageneta, como você é bobo!

Eleanor chorou, pois, embora Ricardo fosse o seu favorito, ela amava todos os filhos. Queria o melhor para todos. Amava as duas filhas que tivera com Luís. E quando pensava nos últimos meses de vida de Henrique, tremia pelo filho. Ela mesma havia pecado, Deus sabia, o mesmo acontecendo com Henrique Plantageneta, mas eles não tinham sido derrubados no apogeu da vida com todos os pecados nas costas.

Henrique se arrependera no final. Dera a Guilherme, o Marechal, a cruz, para que a levasse a Jerusalém; mas aquela mesma cruz ele tinha tirado de um santuário. E pedira o perdão do pai, e Henrique isso ela reconhecia - de imediato o perdoara. Ele não fora ver o filho na hora final, embora pudesse ter ido. Seus cavaleiros aconselharamno a não ir, por temerem uma traição. Traição entre pai e filho!

Oh, por quantas coisas temos de responder!

Eleanor rezava pedindo perdão, e que os pecados dos filhos pudessem ser transferidos para ela.

A culpa foi nossa, oh, Deus, rezava ela. Não culpe nossos filhos.

Passou vários dias em jejum e rezando pela alma de Henrique.

Mas era uma intrigante de nascença, e não lhe saía da cabeça que agora Ricardo era o herdeiro do trono, e o próximo rei não seria Henrique in, mas Ricardo I.

O arcediago de Wells foi visitá-la em nome do marido. Informou-lhe que o rei queria que ela se preparasse para seguir até Winchester, e o futuro dela iria depender de como se comportasse enquanto estivesse lá. O rei estava na Normandia, mas esperava chegar à Inglaterra em breve.

- Ele disse que queria me ver?

- Não disse, majestade.

Ela achou graça e ficou intrigada. Aquilo era a liberdade... temporária, salientara o rei. Seria libertada porque sua filha estava indo para a Inglaterra. Seria aquela a verdadeira razão? Henrique era ladino. Por que acharia tão importante assim causar uma boa impressão ao duque e à duquesa da Saxônia, que eram simples exilados?

Havia outro motivo. A Aquitânia. O povo de Eleanor o odiava porque ele mantinha a sua duquesa presa. Ela o conhecia bem. Seus motivos eram sempre suspeitos.

Uma grande agitação envolveu o castelo quando chegaram para ela presentes enviados pelo rei. Por que ele mandara presentes? Quanto tempo fazia desde que recebera alguma coisa dele?

Suas damas a rodearam. Acreditavam que o rei iria aceitá-la de volta. Já fazia algum tempo que Rosamund morrera, e ela fora uma das principais causas das desavenças dos dois. Agora, Eleanor seria rainha de verdade. Iriam todos deixar Salisbury e seguir para Winchester ou Westminster, onde quer que a corte estivesse. A vida isolada chegara ao fim.

Surgiu um belo vestido escarlate, ao ser desembrulhado.

Belle, a mais moça e mais bonita de suas amas, exclamou, com surpresa:

- Veja, majestade. Está forrado de pele branca.

A rainha pegou o vestido e colocou-o junto ao corpo.

- Faz muito tempo que não uso um vestido assim tão bonito

- disse ela. Mandaria modificá-lo um pouco para adequá-lo ao seu gosto pessoal, e assim ficaria perfeito. A pele era da melhor qualidade, e o tecido vermelho era excelente.

No dia seguinte, chegou outro presente mandado pelo rei. Era uma sela ornamentada em ouro. As amas dançaram de alegria em volta da rainha. Eleanor as observava, pensativa.

O rei iria demorar-se mais na Normandia do que pretendera. Havia muitas coisas a resolver. Eleanor ouviu dizer que ele estava se metendo em assuntos da França. Ele tinha medo de Filipe; e não era de admirar, quando tratara a irmã de Filipe daquela maneira.

O que se passava com relação a Alice? Permanecia em Westminster, e Ricardo continuava recebendo negativas quanto a ficar com a noiva.

Eleanor teve um sorriso amargo ao pensar no que teria acontecido se a notícia do que realmente se passara entre Henrique e Alice tivesse se tornado do conhecimento público. Tantas vezes ela quisera revelar o segredo! Que confusão aquilo teria provocado - mas apenas temporariamente! Podia-se ter a certeza de que Henrique encontraria uma saída. Não, ela se divertira mais mantendo-o pisando em brasa. Ele teria se livrado daquela dificuldade com a mesma perícia com que se livrara do assassinato de Thomas Becket. Estava certa de que a melhor maneira de perturbá-lo era ficar calada e de vez em quando dar-lhe um pequeno susto, dando a entender que o caso poderia ser divulgado.

Ricardo não ia aceitar Alice, agora, mas Eleanor o aconselhara a não deixar o pai ficar sabendo. Que Henrique continuasse a se preocupar, como fizera durante anos.

Como Henrique Plantageneta era enganador! A consciência de Eleanor ficava aliviada quando o insultava em pensamento! Se de algum modo era culpada pelo conflito entre os filhos deles, o rei era ainda mais responsável.

Ansiava por vê-lo, e quando soube que ele estava pensando em seu retorno para a Inglaterra, ficou animada. O rei encontrava-se a caminho, e com ele seguiam a filha deles, Matilda, já em avançado estado de gestação, e o marido. Chegara a hora de Eleanor sair de Salisbury.

com que alegria ela recebeu a filha!

Matilda estava com 28 anos, e o marido, o duque, era muitos anos mais velho; e agora Matilda estava grávida, e manifestou sua satisfação por ver Eleanor.

As duas passavam grande parte dos dias juntas, e Matilda muitas vezes ficava impressionada com a aparência jovem da mãe.

- Passei tantos anos presa, que pude me conservar - disse a rainha, rindo.

- A senhora vai notar mudanças no rei quando o vir.

- Será que irei vê-lo? Quem sabe? Ele não disse nada sobre um nosso encontro.

- Está muito perturbado com a morte de Henrique.

- Isso provocou alguma mudança nele?

- A perda de um filho não o modificaria muito. Só a perda da coroa.

- Com que então ele aparenta a idade que tem?

- A senhora sabe que ele nunca foi de cuidar da aparência.

Estou certa de que ele é muitas vezes confundido com o mais humilde de seus criados, porque só em raras ocasiões se preocupa com as roupas que usa.

- Ele sempre foi assim. Eu costumava dizer a ele que mais parecia um servo. - Queria saber muito a respeito dele, mas teve de controlar a curiosidade. Não queria que nem mesmo Matilda soubesse o quanto pensava nele.

As duas se sentavam juntas, Matilda bordando uma roupa para o bebé, e Eleanor cantando ou tocando alaúde.

- Quando eu estava em Salisbury, recebia novas canções. Grande parte das novidades chegava a mim por meio delas. Menestréis cantavam para mim sobre o que se passava com seu pai e seus irmãos. - Eleanor amava as crianças; Henrique, Otto e a pequenina Matilda. Vigiava a saúde de Matilda com cuidado maternal, e ela mesma fazia muitos dos preparativos para o puerpério.

Perguntou a Matilda o que iria acontecer na Saxônia, mas a filha não soube responder. O marido dela, conhecido como Henrique, o Leão, não quisera guerrear contra a Itália, como o imperador Barbarossa queria que fizesse, e por isso o imperador se voltara contra ele. Resultado: o exílio.

- Fico muito grata por termos podido apelar para meu pai disse Matilda.

Seu marido era muitos anos mais velho do que ela, salientou Eleanor. Sentia-se feliz com ele?

Matilda sentia-se tão feliz quanto se esperava que se sentissem as princesas reais, foi a resposta.

- Talvez eu esperasse demais - comentou Eleanor. - Sabe, casei-me com seu pai por amor.

- E veja como terminou. Em pouco tempo estavam se odiando, e durante esses anos todos ele a tem mantido prisioneira.

- Pelo menos ele estava apaixonado no início. E embora eu nunca amasse Luís, ele me amou, creio eu, até morrer.

- Mas a senhora é diferente de nós, mamãe. Guia o seu destino. O nosso nos apanha.

- E como você diz, fui alcançada pela prisão, no final. Talvez seja melhor termos o casamento arranjado e sermos boas esposas dóceis. O seu Henrique é um bom marido?

- Ele é ciumento.

- É sempre assim, com homens mais velhos. com mulheres mais velhas, também. Eu era doze anos mais velha do que seu pai, e acho que foi esta uma das razões que começaram a discórdia entre nós. Ele era infiel, e eu não suportava isso.

- No entanto, a senhora foi infiel no seu primeiro casamento.

- O Luís era diferente. Luís poderia ter sido infiel, que eu não teria ligado. Mas talvez eu esteja mentindo. Posso dizer isso porque ele nunca teria sido infiel. Não, não acho que eu teria tolerado infidelidade de nenhum de meus dois maridos, e quando a descobri em Henrique, foi o começo do problema entre nós.

- O meu Henrique ficou zangado por causa de Bertrand de Born - disse Matilda. - Ele escreveu poemas de amor para mim. Henrique descobriu e o baniu da corte.

- Ele é um grande poeta - disse Eleanor. - É comparado a Bernard de Ventadour. Não deixei que seus versos fossem cantados em Salisbury, porém, porque ele fez muito para prejudicar seu irmão Ricardo.

- A senhora sabe por quê. Ele se apaixonou pelo meu irmão Henrique.

- Pensei que estivesse apaixonado por você.

- Ele fez versos para mim, mas era Henrique que ele amava. Se a senhora tivesse visto os versos que ele escreveu para Henrique, teria percebido o quanto ele o amava. Ele achava meu irmão a criatura mais bonita que ele já vira, e a senhora sabe como esses poetas veneram a beleza. Quando meu pai acabara de tomar o castelo dele e Bertrand, feito prisioneiro, se achava à sua frente, meu pai o instigou com aquela tão alardeada inteligência e perguntou o que acontecera com a inteligência dele. Sabe o que ele respondeu? "No dia em que seu valoroso filho morreu, eu perdi a consciência, a inteligência e o sentido de direção."

- Ao ouvir isso, seu pai caiu na gargalhada, zombando dele, sem dúvida.

- Não, mamãe, ele ficou tão emocionado que devolveu o castelo a Bertrand.

- Ele ainda pode ter sentimentos com relação aos filhos disse Eleanor, pensativa.

- Papai gostava muito de Henrique. Ele sempre fora o filho favorito. Repetidas vezes o enganava, e papai sempre o perdoava e queria recomeçar. Queria que Henrique o amasse. A morte do filho foi um grande golpe para ele.

Eleanor tocava alaúde e Matilda cantava algumas canções que haviam chegado à Normandia vindas da corte da França e da Aquitânia.

Falavam do conflito entre os filhos do rei e do amor dos cavaleiros pelas suas damas.

No devido tempo, nasceu o filho de Matilda. O parto foi fácil e o garotinho recebeu o nome de Guilherme.

Eleanor, que adorava bebés, ficou encantada por cuidar dele.

O Natal se aproximava.

Para surpresa e alegria secreta de Eleanor, chegou uma mensagem do rei. Ele estava chamando os filhos a Westminster e convidava a esposa a juntar-se a eies lá. Matilda, o marido e os filhos iriam acompanhar a rainha, e seria uma reunião da família.

Os cinzentos nevoeiros pairavam sobre Westminster naquele dia de novembro, e no palácio havia um ar de expectativa. Era uma ocasião que seria lembrada por todos os participantes enquanto vivessem. O rei, a rainha e os filhos estariam juntos lá.

Quando Eleanor entrou a cavalo na capital, o povo a observava em silêncio. Aquela rainha permanecera presa durante dez anos. Ela ainda o impressionava como no tempo em que era jovem. Havia algo nela que atraía todos os olhares, mesmo agora. Era uma mulher de idade, mas continuava bonita; os anos não lhe haviam tirado o encanto voluptuoso. Em sua túnica escarlate forrada de pele branca, adaptada ao seu gosto especial e com aquele talento sem igual que havia estilizado todas as suas roupas, estava majestosa.

As pessoas que a observavam ficaram perplexas.

Depois, veio o rei - tão diferente de sua rainha mas, no entanto, embora lhe faltasse a elegância dela, havia nele um ar de dignidade que devia impressionar a todos que o vissem. Sua capa podia ser curta e usada torta, os cabelos estavam ficando grisalhos e eram penteados de modo a esconder a calvície, e embora pelos trajes ele pudesse ser confundido com um homem de pouca importância, seu porte e suas maneiras proclamavam a condição de rei.

Eleanor estava esperando por ele, e por uns instantes os dois se estudaram em silêncio.

Por Deus!, pensou ele, ela ainda é uma mulher bonita. Como esconde bem a idade!

Os anos o fustigaram, pensou Eleanor, satisfeita. Ora, Henrique, você agora está um velho. Onde está a dourada juventude que me atraiu? Seus cabelos estão grisalhos, e não há como disfarçar a calvície através de penteados. O seu mau génio ainda explode? Continua com os mesmos acessos de raiva? Você se deita no chão e dá pontapés nos pés das mesas? Morde os juncos? Mas de que adiantava zombar? Sabia que ele ainda era o rei e que homens tremiam diante dele.

O rei curvou-se para a rainha, e ela inclinou a cabeça.

- Bem-vinda a Westminster.

- Agradeço-lhe as boas-vindas e os presentes que me mandou.

- Já faz muito tempo que não nos vemos. Pois que seja com amizade, Eleanor.

- Como quiser. Você, o meu senhor, agora decide em que estado de espírito nós nos encontramos.

- Deve haver uma demonstração de amizade entre nós - disse o rei. Ele se afastou. - A dor nos uniu.

Os dois ficaram se entreolhando, e então a lembrança de Henrique, o filho deles que morrera, pareceu forte demais para ambos. O rei baixou os olhos, e ela viu a tristeza em seu rosto.

- Eleanor, nosso filho...

- Morreu. Meu belo filho está morto.

- Meu filho também, Eleanor. Nosso filho.

A rainha estendeu a mão e ele a segurou, e de repente era como se os anos fossem apagados e os dois fossem amantes outra vez, como ocorrera na época do nascimento de Henrique.

- Ele era um menino muito bonito.

- Nunca vi um mais bonito, Eleanor.

- Não posso acreditar que tenha morrido.

- Meu filho, meu filho. Durante muito tempo, ele lutou contra mim, mas sempre o amei.

Eleanor poderia ter dito: "Se você o tivesse amado, teria dado o que ele mais queria. Ele pedia terras para governar. Você poderia ter-lhe dado a Normandia... ou a Inglaterra... a que você preferisse. Mas não, você tinha que ficar com o controle de tudo. Não abria mão de nada." Embora o reprovasse, sabia que devia ser justa. Ele agira muito certo em não ter dado poder ao belo jovem irresponsável.

- Nós o amávamos, nós dois. Era nosso filho. Temos que rezar por ele, Henrique. Juntos, temos de rezar por ele.

- Ninguém compreende meu sofrimento.

- Eu o compreendo porque partilho dele.

Os dois se entreolharam, e Henrique levou a mão de Eleanor aos lábios e a beijou.

A dor realmente os unira.

Mas não por muito tempo. Os dois eram inimigos, inimigos naturais. Ambos sabiam que os elos teriam de afrouxar-se. Não podiam continuar chorando para sempre o filho morto. Não fora para lamentações que Henrique permitira a presença de Eleanor. Ela compreendeu logo isso. Não a soltara da prisão porque quisesse mostrar-lhe alguma consideração, porque se arrependera de sua crueldade para com ela. Não, ele tinha seus motivos, como Henrique sempre tinha.

Levara-a até ali por várias razões que não diziam respeito ao seu conforto ou bem-estar.

Em primeiro lugar, Eleanor ficara sabendo, por intermédio de Ricardo, que fora Sancho de Navarra que solicitara aquilo e Henrique queria manter boas relações com Navarra. A razão principal, porém, era que a morte de Henrique tornara necessária uma reordenação da herança real e ele precisava da aquiescência dela em determinados pontos, principalmente, claro, na nova distribuição da Aquitânia.

A rainha ficou contentíssima quando Ricardo chegou a Westminster. Os olhos dela brilharam de orgulho ao ver aquele homem alto que parecia um herói.

Os dois se abraçaram, e os olhos de Ricardo brilharam com uma ternura que lhe era rara.

- Oh, meu filho adorado! - bradou Eleanor. - Há quanto tempo!

- Tenho pensado sempre na senhora.

Por conhecer tão bem o filho, Eleanor podia acreditar nele. O seu querido audaz, honesto Ricardo, que não fingia como o resto da família! Ricardo, em quem ela podia confiar; cujo amor e confiança que sentiam um pelo outro eram iguais.

- Precisamos falar a sós, meu filho.

- vou providenciar isso - replicou ele.

Ricardo foi ao quarto da mãe, e ela se sentiu jovem outra vez, como no passado quando ele não passava de uma criança e ela o amara tanto e muito mais do que os outros filhos, como ainda amava.

- Sabe por que seu pai me trouxe aqui? Ele confirmou com a cabeça.

- Ele quer me tirar a Aquitânia e dá-la a João.

- Você agora é o herdeiro do trono da Inglaterra, Ricardo. Inglaterra, Normandia e Anjou.

- Ele não falou nada sobre me tornar seu herdeiro.

- Nem precisa. Você agora é o mais velho, e o herdeiro por direito. Nem ele poderá ir contra a lei.

- O rei é capaz de tudo.

- Disso, não. Nunca seria permitido. Iria mergulhar o país numa guerra.

- Ele não é avesso a uma guerra.

- Você não o conhece. Seu pai sempre deplorou a guerra. Odeia desperdiçar o dinheiro que ela exige. Você não viu que se houver uma oportunidade de evitar uma guerra, o rei o fará? Ele gosta de ganhar à custa de tapeações e esperteza. Tem feito isso repetidas vezes. Isso, meu filho, é o que se conhece como ser um grande rei.

- Eu nunca me passaria por isso. Eu venceria pela espada.

- Você é um guerreiro nato, Ricardo. Um homem honesto. Não poderia haver outro mais diferente de seu pai. Talvez seja por isso que o amo.

- O que acha dele? Envelheceu, não é?

- Envelheceu, sim. Mas me lembro dele quando jovem... quase um menino quando me casei com ele... ainda não tinha vinte anos. Nunca foi bonito como você, Henrique e Geofredo... e mesmo João.

- Herdamos a nossa boa aparência da senhora, mamãe.

- É verdade. Embora seu avô de Anjou fosse reconhecido como o homem mais bonito de sua época. Todos o chamavam de Geofredo, o Belo. - Ela sorriu ao se lembrar. - Eu o conheci bem... durante algum tempo, muito bem. Um homem de grande charme e bem-apessoado, mas sem muita força. Não era como o filho. Mas no que seu pai se transformou, agora? Um velho... um velho corpulento. Ele sempre teve tendência a engordar. Era por isso que fazia as refeições em pé, e de maneira a dar a impressão de que fazia isso mais por necessidade do que por prazer. É claro que aquela sua incontida vitalidade mantinha reduzida a sua corpulência na juventude, mas estava fadada a conquistá-lo. Percebo que agora ele usa muito uma bengala quando anda.

- Um de seus cavalos o escoiceou e ele está com uma unha do dedo do pé encravada, o que provoca dor de vez em quando.

- Pobre velho! - zombou Eleanor. - Ele poderia ter cuidado mais de si mesmo. Ele nunca pára. Não se pode ficar com ele por muito tempo sem perceber aquela alucinada determinação de estar fazendo alguma coisa. Nisso, ele não mudou. E como está desleixado! Suas roupas são uma vergonha.

- Papai nunca ligou para elas. "Eu sou o rei", diz ele, "e todos sabem disso. Ninguém vai ter mais medo de mim só porque uso uma capa de veludo e pele branca."

- Na época de seu amor por Thomas Becket, quando ele era o chanceler e os dois saíam juntos, pensava-se que Thomas fosse o rei e o rei o subalterno.

- No entanto, Thomas morreu e ele continua vivo, e agora declara que Thomas gosta mais ainda dele do que quando os dois eram jovens e está de olho nele lá no céu.

- Isso é típico de Henrique - disse Eleanor, não sem um toque de admiração. - Ele vira tudo a seu favor. Mas perdemos o nosso tempo falando nele. Nós o conhecemos muito bem, nós dois, e isso é bom, porque sabemos com quem estamos lidando. E a Aquitânia, Ricardo?

- Nunca abrirei mão dela.

- Você tem passado por uma fase turbulenta, lá.

- Mas a coloquei em ordem. Todos me consideram cruel, mas justo. Nunca matei ou mutilei por esporte. Apliquei castigos terríveis, mas sempre merecidos.

Ela concordou com a cabeça.

- Na época de meus ancestrais e no meu governo, a vida era feliz na Aquitânia. Vivíamos para a poesia e as canções.

- Poesia e canções têm feito muito para inflamar o povo. A senhora sabe que Bertrand de Born tornou possível que Henrique se voltasse contra mim.

- Eu sei. Eles me adoravam. Nunca teriam me causado mal algum. Por que não poderiam ter aceito meu filho, aquele que escolhi para me suceder?

- Nunca acreditaram, mesmo, que eu estava do seu lado. Odeiam meu pai e me consideram filho dele, não da senhora. Mas conquistei o meu lugar com a espada, e vou mante-lo. Prefiro ser duque da Aquitânia do que rei da Inglaterra. Nunca abrirei mão da Aquitânia em favor de João.

- Ele transformou João em seu favorito. Isso é uma imprudência da parte dele. Acha que João vai gostar mais dele do que você e os outros gostaram?

- Não sei. João se parece com ele sob um aspecto. Tem aquele mau génio violento.

- Isso praticamente não o recomenda. Henrique teria feito bem se tivesse controlado o dele. Gostaria de saber se João herdou a concupiscência dele.

- Eu soube que sim.

- Vamos esperar que também tenha herdado a esperteza, caso contrário passará por grandes dificuldades. Mas é de você que quero falar, Ricardo. Você será o rei da Inglaterra quando Henrique morrer.

- E duque da Aquitânia, porque não irei entregá-la nunca. E quando eu for o rei, mamãe, minha primeira preocupação será com a senhora. Antes de qualquer outra coisa, eu a libertarei e ficará ao meu lado. Juro.

- Deus o abençoe, Ricardo. Não precisa jurar. Sei que será assim. Há outro assunto. Você já não é um garoto, e continua solteiro. E sua noiva?

- Se a senhora se refere a Alice, ela permanece sob a proteção do rei.

- Continua amante dele! Como ele lhe é fiel! O que ela tem para prendê-lo? Eu seria capaz de jurar que ela é uma outra Rosamund. Você não vai aceitar a mulher que seu pai largou, Ricardo?

- Eu, não. Estou decidido a dizer a ele que pode ficar com a amante e fazer as pazes com Filipe. Não sei como. Poderá haver uma guerra por causa disso.

- Não duvido que o rei encontre uma saída. Ele tem a astúcia de uma raposa e se livra das confusões com o desembaraço de uma cobra.

- Mamãe, conheci uma mulher com a qual me casaria.

- E quem é ela?

- A filha do rei de Navarra. Berengária. O pai deu a entender que se eu ficasse livre de Alice, receberia de bom grado o casamento. Berengária é muito criança. Pode esperar algum tempo.

A rainha concordou com um gesto da cabeça.

- Não diga nada sobre isso. Vamos continuar a perseguir Henrique por causa de Alice. Quem dera que eu soubesse se ele se prende a ela por achá-la muito irresistível ou se é porque tem medo do que poderia acontecer se fosse revelado que ele seduziu a noiva do filho e receia que ela revele isso. Ah, Ricardo, é uma situação divertida. Você e eu estamos juntos contra o casamento dele com Alice. Se nenhum de nós dois estivesse aqui, seu pai se casaria com ela e pegaria o dote, e o assunto estaria resolvido. Eu gostaria de saber se ele seria fiel a ela. É possível que sim, agora que está tão gordo a anda com uma bengala e tem problemas com as pernas e com os pés. A moralidade se instala junto com as deficiências.

- A senhora ainda o odeia, mamãe.

- Pelo que ele fez com vocês e comigo, odeio. Podia ter sido diferente, Ricardo. Todas as nossas vidas poderiam ter sido diferentes. Se ele não tivesse me traído com outras mulheres, eu teria trabalhado para ele e com ele. Teria feito com que meus filhos crescessem respeitando-o e admirando-o. Ele só pode culpar a si mesmo. Mas talvez isso se aplique a todos nós. Oh, Ricardo, como foi bom falarmos um com o outro!

O rei anunciou que o Natal deveria ser comemorado em Windsor e que a rainha deveria fazer parte do grupo. Eleanor ficou encantada. Seria a primeiro Natal que passava fora da prisão em muitos anos. Estava animadíssima. Tinha sido maravilhoso rever Ricardo, e embora lamentasse a morte de Henrique, precisava estar cônscia da mudança de sua sorte, porque Ricardo era de confiança. O que prometera, ele faria. Ele era o Ricardo Sim e Não. Deus o abençoasse! Ele sempre seria amigo da mãe.

Para o Natal, eles precisavam esquecer as inimizades. Deveriam juntar-se aos foliões. Haveria festas e música, e pelo menos daquela vez o rei se veria obrigado a sentar-se e comportar-se como se aquilo não passasse de um festival e que eles não estivessem à beira de uma batalha.

Eleanor e ele tinham-se observado furtivamente. Nenhum dos dois confiava no outro. Era essa a natureza do seu relacionamento, e não podia ser de outra maneira. Ele estava planejando roubar a Aquitânia de Ricardo e dá-la a João, que ficaria em situação tão boa quanto qualquer um deles. Por que não? João nunca pegara em armas contra o pai, como os outros tinham feito. Um homem devia ter um filho a quem amar.

Que família desassossegada eles formavam! No fundo do coração, ele não acreditava que pudesse confiar mais em João do que em qualquer um dos outros. Ali estavam eles, todos no mesmo barco, e todos prontos a agir uns contra os outros.

Que força eles teriam se houvessem trabalhado juntos! E ali, à sua mesa, estava a sua rainha. Como conseguira continuar com uma aparência tão jovem e elegante? Seria com feitiçaria? Aquilo não o surpreenderia.

Como cantava bem - canções de sua autoria! Cantava sobre o amor. Devia saber muito sobre isso. Quantos amantes teria tido, incluindo o tio e um sarraceno pagão? Todos aqueles trovadores que a cercavam quando ela estava na corte com ele - quantos tinham sido seus amantes?

E quantas vezes ele se desviara do leito conjugal? Tantas vezes; eram inúmeras as mulheres de cujos nomes ele não conseguia se lembrar! Duas, iria venerar para sempre - Rosamund e Alice.

Oh, Alice, bela Alice! Uma mulher feita, agora. Vinte e três anos. Estava com doze quando ele a possuíra pela primeira vez. E tinha sido sua desde então. Amara Rosamund e amara Alice - só amara de verdade aquelas duas. Sobre o que tinha sido com Eleanor, ele não sabia ao certo. Sempre houvera conflito entre os dois. Mas que conflito excitante, no começo, quando nenhuma outra mulher o satisfizera como Eleanor. E, é claro, havia a Aquitânia, que viera com ela.

com Alice, seria a Vexin, aquela região tão vital para a defesa da Normandia. Deus do céu, por que Eleanor não morria? Já tinha idade bastante para morrer. Já vivera bastante. Queria continuar presa? Porque, pelos olhos de Deus, ele já vira o suficiente a seu respeito para saber que depois daquele período de liberdade ela devia voltar direto para a prisão.

Nunca mais confiaria em deixá-la em liberdade. Seria uma loucura dar-lhe essa oportunidade.

O rei mandou chamar Ricardo.

- Está decidido a nunca abrir mão da Aquitânia?

- Estou, majestade.

- Então, volte para lá.

Ricardo ficou pasmo. Aquilo só poderia significar que o rei havia decidido não interferir no seu controle sobre o ducado.

Quando se despediu da mãe, ela o avisou que tomasse cuidado com o pai. Suas promessas não mereciam confiança, e se agora o rei concordava em deixar que ele ficasse com a Aquitânia, poderia mudar de ideia na semana seguinte.

Ricardo partiu, dando à mãe a certeza de sua devoção, que nunca se alteraria.

Em seguida, o rei mandou chamar seu filho Geofredo.

- Você vai voltar para a Normandia e manter a paz por lá. E concedeu a Geofredo poderes maiores do que nunca tivera antes.

Eleanor estava vigilante. O que significava aquilo? Estaria ele dizendo que se Ricardo estava tão decidido a ficar com a Aquitânia, podia desistir da coroa da Inglaterra?

Que mente sinuosa, aquela! Ele jamais gostara de Ricardo. Ocorreu à rainha que se o rei pudesse tirar de Ricardo o que era dele de direito e dar aos outros filhos, seria capaz disso. O que estaria ele planejando dar a João?

Por fim, ele mandou chamar seu filho João e lhe disse que se preparasse para assumir o seu domínio da Irlanda. João aproveitou a oportunidade com entusiasmo. Estaria pronto para partir na primavera.

O rei, então, partiu com a rainha e sua corte para Winchester.

Winchester - o palácio de muitas recordações, ultrapassado apenas pelo de Westminster. Ali, ele mantivera Rosamund durante algum tempo, quando deixara de fazer segredo da ligação entre os dois. Ali, Alice estivera com ele. E agora, vinha Eleanor.

Ela ficou encantada com o palácio; sempre ficara. Admirou o jardim de ervas, que tinha sido feito pouco tempo antes, e colheu muitas que declarou serem as melhores de seu tipo.

Ficou imaginando por quanto tempo lhe permitiriam ficar em liberdade. No íntimo, sabia que aquilo não ia durar. Como poderia durar? Os interesses dos dois teriam, com toda certeza, que se chocar. Nada poderia impedir que ela tramasse com Ricardo contra ele, quando chegasse a hora, e ele devia saber. Bem, ela preferia voltar para a prisão do que deixar que o rei pensasse que conseguira dominá-la, ou que ela iria parar de exigir seus direitos por causa da liberdade.

Henrique mandara pintar muitos painéis decorativos nas paredes daquele castelo. Gostava muito de alegorias, e as paredes estavam adornadas com cenas de sua vida. As gerações futuras deveriam saber que ele fora o responsável pela restauração do castelo para torná-lo bonito.

Um dia, ao andar pelo castelo, Eleanor chegou a uma sala e entrou, em silêncio. Para sua surpresa, o rei estava ali, de pé.

A luz que entrava pela estreita janela mostrava a sua fisionomia contraída e triste. As roupas descuidadamente vestidas, postura desleixada, a maneira dele se apoiar na bengala, fizeram-na sentir pena dele, enquanto ao mesmo tempo pensava: não vai demorar muito para Ricardo ser o rei da Inglaterra. Meu adorado filho, você e eu vamos ficar juntos. E no entanto, sentia uma certa tristeza. Desde que conhecera Henrique, nunca quisera pensar em um mundo sem ele. Jamais se esqueceria da primeira vez que o vira – filho de seu amante, pois por uma ou duas vezes se deitara com o pai dele. Geofredo, o Belo, nunca fora o mais adorado de seus admiradores, embora também se tratasse de um homem excepcionalmente bem-apessoado e viril. Mas quando ela vira o filho, não quisera mais o pai. Henrique, amante e marido pelo qual ela se divorciara do rei da França, pai de sua prole agitadora, o leão e os filhotes que desde tenra idade tinham planejado a derrota dele.

O rei pressentiu a presença dela, e sem tirar os olhos das paredes, disse:

- É você, então?

- Essa sala mudou desde que a vi há muitos anos.

- Mandei pintá-la de novo.

- E é evidente que a admira.

- Venha ver esta cena.

Ela se aproximou e ficou ao lado dele.

- Uma águia e quatro aguietas.

- É. Olhe mais de perto. Veja como as jovens atacam o velho pássaro. Vê algo de familiar no rosto delas?

Eleanor voltou-se para olhar para ele e viu o brilho de lágrimas em seus olhos.

Henrique Plantageneta chorando! Era impossível!

- Eu sou a águia. As quatro aguietas são meus filhos.

- Você mandou pintar isso. Ele confirmou com a cabeça.

- Estou sempre olhando para essa cena. Veja como eles me atacam. Meus três filhos, Henrique, Ricardo e Geofredo. E veja o quarto, pousado no meu pescoço. É o João. Eu lhe digo uma coisa: ele, o caçula, aquele a quem amo com tanto carinho, está esperando o momento em que os irmãos tiverem me derrubado; então, me arrancará os olhos.

- Fico surpresa por você se atormentar com um quadro desses.

- Deve haver um lugar em que eu enfrente a verdade. Finjo acreditar neles. Sou o pai. Tenho sido tolerante demais com eles. Deixo que me enganem e engano a mim mesmo dizendo que eles devem me amar porque são meus filhos.

- Você nunca devia ter colocado uma coroa na cabeça de Henrique.

- Sei disso muito bem.

- Você o fez para espicaçar Thomas de Canterbury. Queria uma coroação da qual ele não participasse.

- Foi. Mas fiz isso também porque temia que Deus me levasse numa batalha, e eu não queria derramamento de sangue. Assim, se o rei morresse, já haveria um novo rei à espera.

- Foi uma tolice.

- Indigno de um rei astuto. E aqui eu olho para esse quadro e enfrento a verdade.

- Não é tarde demais. Confie nos seus filhos. Passe a gostar de Ricardo. Ele é seu herdeiro. Dê-lhe o poder de que ele precisa.

- Para que possa me tirar a coroa?

- Ele não irá tirá-la enquanto não for direito e correto fazer isso.

- As aguietas estão impacientes.

- Porque a águia os manteve no ninho por um tempo demasiado longo.

- Você os voltou contra mim. Você é a fonte de todos os meus problemas.

- Se você tivesse sido o marido dos meus sonhos, eu o teria amado até o fim.

- Você queria mandar.

- É. Nós dois queríamos.

- E você e eu geramos as aguietas. - Ele se afastou na porta, e voltou-se para olhar para ela. - Esse quadro será copiado e vou tê-lo na minha câmara em Windsor. Lá, irei olhar para ele com frequência e me lembrarei. - A voz dele tremeu um pouco: - Oh, meu Deus, Eleanor, por que não foi diferente? O que eu não daria apenas por um filho afetuoso! - E então ele partiu.

Ela ficou ouvindo o som de sua bengala nas pedras do chão.

A rainha riu em silêncio. Pobre Henrique, o grande rei, o sedutor de mulheres, o amante a quem ninguém podia resistir. Fracassara onde ela vencera, porque tinha um filho que a amava.

 

O REI RECEBEU A NOTÍCIA, em Westminster, de que Heráclio, o patriarca de Jerusalém, chegara a Canterbury e fizera a viagem até a Inglaterra para lhe dar novas que, tinha a certeza, provocariam uma ação por parte de Henrique.

Temendo o que a visita poderia significar, Henrique não podia dar qualquer desculpa para evitar falar com o patriarca, porque seus súditos nunca deveriam duvidar que fosse um homem profundamente religioso. Lembrava-se, apreensivo, de que na época do assassinato de Thomas Becket fizera o juramento de que iria a Jerusalém numa cruzada. Pensara vagamente que partiria quando pudesse afastar-se do seu reino, mas no fundo do coração estava ciente de que isso nunca ocorreria.

Agora, ali estava o patriarca, e só podia haver um motivo para a presença. Estaria querendo levantar homens ou dinheiro para a preservação da Cidade Santa. Ansioso por ouvir as notícias que ele trouxera, Henrique concedeu imediamente uma entrevista a Heráclio e a Roger du Moulin, o grão-mestre dos Hospitalários, que o acompanhava. O primeiro ato do patriarca foi oferecer ao rei as chaves de Jerusalém e do Santo Sepulcro.

- Trago más notícias - bradou Heráclio. - A rainha Sibila, de Jerusalém, deseja ardentemente a sua ajuda. O filho dela, que é apenas uma criança, é o herdeiro da coroa, e o irmão dela, Balduíno, está prestes a morrer. Contraiu lepra, e a pele começou a murchar e cair rapidamente. Não pode viver muito tempo mais, e os sarracenos estão prontos para tornar a Cidade Santa. Ela precisa ser salva, e a rainha Sibila implora que Vossa Majestade vá em seu auxilio.

- É claro que lhe daremos ajuda. vou cobrar um imposto imediatamente, pois se trata de uma causa muito digna.

- Não é de dinheiro que se precisa. É de um príncipe para comandar um exército contra os sarracenos. O senhor é este homem, oh, senhor rei, porque na época da morte de Thomas Becket Vossa Majestade jurou que iria à Cidade Santa.

Oh, Thomas, pensou Henrique, será que nunca vou escapar de você? Cumpri a minha penitência. Não foi o bastante?

Ele fizera aquele juramento, mas era claro que se referira a quando a hora fosse apropriada, e sempre soubera que isso nunca ocorreria. Como ele, um rei com domínios tão espalhados, poderia deixá-los para ir à Terra Santa?

- Vossa Majestade é o mais poderoso dos reis - prosseguiu Heráclio. - Deus o abençoará se fizer isso. Se não...

- Deixar meus domínios seria uma questão não tanto para eu decidir, mas para meus ministros - interrompeu-o rapidamente o rei. - Eu seria obrigado, primeiro, a pedir a opinião deles. Se concordarem, eu irei. Caso contrário, terei de obedecer à decisão deles.

- Por que, majestade? Vossa Majestade é um rei que toma suas próprias decisões. O mundo inteiro sabe disso. Ninguém ousaria contrariar a sua vontade.

- Não, um rei governa pela graça de seu povo. Fique certo de que farei o possível a fim de atender aos seus desejos. A Terra Santa não pode cair nas mãos do Infiel. Permita que submeta esse assunto aos meus ministros, e lhe darei a resposta deles.

- Majestade, não devia deixar que sua resposta dependa deles. Deve-se lembrar do juramento que fez. Deve-se lembrar de seu dever para com Deus. Vossa Majestade já não é um jovem. Pode estar mais perto do que pensa do trono do julgamento.

Que homem desagradável, esse Heráclio! Henrique não gostou dele. Como se ele não tivesse o suficiente para preocupá-lo sem provocar aquele assunto para atormentá-lo.

Não iria a Jerusalém. Como poderia ir? Podia imaginar o caos que resultaria se ele fosse. Seus filhos atacando uns aos outros e a ele. Eleanor, que precisava ser

vigiada! Claro que não poderia sair.

Insistiu que submeteria o assunto a um conselho que convocaria imediatamente.

Foi o que fez, avisando primeiro que os ministros seriam reunidos para discutir se ele devia, ou não, organizar um exército para ir lutar numa cruzada pela Cidade Santa; e deixou claro que quem votasse a favor de sua ida perderia os seus favores. Tinham de decidir que de maneira alguma ele podia deixar os seus domínios e que fazer isso naquele momento seria um ato contra a vontade de Deus.

Eleanor achou graça quando soube. Compreendia-o muito bem. Ir a Jerusalém! Deixar Alice! Tentar acabar com os seus pecados! Não, pensou a rainha, eles são muito numerosos para isso. O rei precisaria de umas vinte missões daquelas.

Será que ele iria? Claro que não. Por estranho que parecesse, embora tivesse passado a maior parte da vida perto de campos de batalha, não gostava de lutar. Sempre alegara que as batalhas não passavam de um desperdício e raramente proporcionavam ao vencedor aquilo por que ele havia lutado. Era muito melhor discutir e levar o inimigo a fazer concessões. Era adepto de fazer negociações que se mostrassem vantajosas para ele.

E ela? Quais os planos dele a seu respeito? Ela não sabia. Mas continuava na corte. Não lhe permitiam muita liberdade. Se saía a cavalo, estava sempre acompanhada por criados escolhidos por ele. Será que ele pensava que ela seguiria para o litoral e pegaria um navio para a França?

De fato, muitas vezes ela pensara nisso. Se pudesse chegar até Ricardo, os dois juntos poderiam defender a Aquitânia contra todos, e se Henrique estivesse realmente planejando dá-la a João, então, por Deus, Eleanor faria de tudo ao seu alcance para chegar até Ricardo.

Pensou no estado de excitação em que ela e Luís se achavam quando partiram na sua cruzada. Havia algo numa missão daquelas que fazia o sangue disparar. A pessoa se imaginava seguindo para a glória carregando a cruz. Claro que, no campo de batalha, tudo era muito diferente. Morte era morte - e não gloriosa, mas sangrenta e horrível. E homens eram homens, fossem eles cristãos ou sarracenos, como Eleanor descobrira.

Ah, Saladino! Que amante ele fora! E agora, havia outro Saladino. Seria filho dele, ou seu neto? E estava ameaçando tomar Jerusalém dos cristãos!

Suponhamos que ela tivesse se casado com Saladino, como certa vez pensara que poderia, suponhamos que como resultado desse casamento tivesse sido conseguida a paz entre sarracenos e cristãos. Se Saladino tivesse se tornado cristão, o velho Heráclio não estaria ali, agora, implorando que Henrique saísse em auxílio do pobre leproso Balduíno.

Mas a vida não seguira aquele caminho. Em vez de Saladino, ela se casara com Henrique Plantageneta.

Enquanto isso, Henrique preparava os membros de seu conselho. Considerando-se a situação na Aquitânia, na Normandia e em Anjou, ele não achava que aquele fosse o momento de ir para muito longe. Pediu-lhes que pensassem nos problemas que poderiam surgir se ele estivesse afastado. Uma cruzada era um empreendimento caro. Seria preciso tributar o povo, e como ele reagiria a isso? Já não era bom quando o povo tinha de pagar para manter a segurança de seu próprio país. Henrique, pessoalmente, poderia conseguir uma glória pessoal, mas, e o seu país? Ele sempre procurara servir aos seus súditos e fazer com que pudessem viver em paz, numa comunidade justa. Se estivesse ausente, não via como poderia preservar as leis da Inglaterra estabelecidas por seu bisavô e revigoradas por ele; e sabia que os membros de seu conselho, por se tratar de homens sensatos, nunca permitiriam que ele partisse numa missão daquelas.

O conselho reuniu-se em Londres; a nobreza inglesa esteve presente, juntamente com altos dignitários da Igreja, e sobre uma plataforma Henrique sentava-se ao lado de seus convidados, Heráclio e Roger du Moulin.

O rei disse à assembleia qual era o motivo da missão e falou sobre a grande honra que lhe fora feita. A Cidade Santa estava em perigo; o rei Balduíno se achava à morte por causa de uma terrível doença; havia apenas uma criança para assumir o seu lugar; e as chaves do Santo Sepulcro tinham sido oferecidas a ele, Henrique da Inglaterra. Ali estava uma oportunidade para conseguir uma grande glória pessoal e eliminar os pecados de toda a sua vida. Mas ele era um rei que sempre levara em consideração, primeiro, o seu povo. Não tinha vontade própria, mas apenas a deles, e os convocara até ali para que pudessem decidir por ele se devia, ou não, fazer aquela peregrinação.

Heráclio se pôs de pé e disse à assembleia que Jesus Cristo e os devotos do mundo inteiro estavam pedindo que o rei da Inglaterra salvasse Jerusalém. Ele queria dizer aos presentes que Saladino, o líder dos sarracenos, aqueles pagãos que eram inimigos de Cristo, estava se preparando para tomar Jerusalém. Poderiam os verdadeiros cristãos ficar indiferentes e permitir que aquilo acontecesse? Não! Aquele que agisse assim não era um verdadeiro cristão.

Henrique respondeu que faria tudo ao seu alcance para salvar a Cidade Santa.

Pediu, então, que a assembleia lhe dissesse o que queria que ele fizesse.

Ricardo, arcebispo de Canterbury, ergueu-se.

- Senhor meu rei, o seu dever é cuidar de seus domínios. Heráclio voltou-se para o arcebispo.

- Senhor arcebispo - disse ele, em altos brados -, invoco um outro arcebispo, um santo, um mártir. Ele foi morto sobre as pedras de sua catedral, e na época o rei jurou que iria a Jerusalém.

- Se ele pudesse ir - replicou o arcebispo. - Mas o nosso senhor, o rei, fez outro juramento ao ser coroado. Nele, declarou que sempre cuidaria do bem-estar de seus súditos. Esse juramento, meus senhores, por ser o título de posse da coroa, suplanta todos os outros. Uma cruzada à Palestina não pode ser comparada com os deveres de um rei. E por isso, senhor meu rei, e meu senhor patriarca, o rei deve permanecer em seus domínios.

Henrique fez um lento gesto afirmativo com a cabeça.

- Vejo que os membros de meu conselho falam com bom senso. Meu coração irá até a Palestina, mas me vejo obrigado a ficar aqui. Meu dever tem de ser cumprido.

Heráclio estava prestes a dar vazão à sua indignação.

- vou dar cinquenta mil para a causa, e se quaisquer súditos meus quiserem participar de uma cruzada, farei tudo para ajudá-los.

- Não vim atrás de dinheiro! - bradou Heráclio. Voltou-se contra Henrique na sua fúria, pois sabia muito bem que aqueles homens nunca teriam ousado tomar uma decisão contra a vontade dele, a menos que instruídos pelo rei. Aquilo era uma decisão de Henrique, e só dele. - E quanto a Vossa Majestade, até aqui reinou com uma abundância de glória, mas saiba que Deus, cuja causa Vossa Majestade abandonou, agora está prestes a abandoná-lo. Verá o que vai lhe acontecer em consequência de sua ingratidão. Vossa Majestade apresenta desculpas. Diz que precisa ficar para proteger seus súditos. Assassinou o arcebispo de Canterbury e recusa uma expiação de sua culpa naquele crime ao realizar essa Guerra Santa.

À menção de Thomas Becket, o rubor tomou conta das faces do rei, os olhos adquiriram um brilho assassino.

- Não pense que tenho medo de sua fúria - bradou Heráclio. - Corte a minha cabeça, se quiser. Trate-me como tratou Santo Thomas Becket. Prefiro morrer pelas suas mãos na Inglaterra do que pelo sarraceno na Síria. Tenho mais estima pelos sarracenos do que por Vossa Majestade.

Henrique tremia de raiva. Nunca podia ouvir impassível quando Thomas era mencionado. Por alguns instantes, esteve a ponto de gritar para os que o cercavam para que agarrassem o patriarca, atirassem-no numa masmorra e lhe arrancassem os olhos.

Heráclio não deu sinais de medo. Mas no íntimo estava angustiado. Tinha de conseguir um príncipe nobre, rico e forte, que fosse com ele salvar Jerusalém.

- Dê-me um de seus filhos. Se não quiser salvar pessoalmente a sua alma, permita que um deles vá em seu nome - implorou ele.

- Preciso de meus filhos.

- Deus precisa deles.

Henrique pensou: Ricardo? Geofredo? João? Não, nunca. Tinha de mante-los por perto. Só assim saberia o que estavam fazendo. Não podia confiar em nenhum deles.

- Deus me deu grandes terras para defender. Tenho de defendê-las. Se eu partisse, meus filhos lutariam entre si. Meu dever está aqui.

O patriarca sabia que estava derrotado.

- O senhor e seus filhos... são enviados do Diabo, e para o Diabo voltarão. Nada de bom lhe acontecerá, Henrique Plantageneta, porque virou a cara para Deus.

Henrique retirou-se da câmara. Só havia uma pessoa para tranquilizá-lo e fazê-lo esquecer as funestas profecias do patriarca: Alice.

Henrique ficou abalado. Seria verdade, perguntava-se, que Deus o esquecera?

Seus filhos não mereciam confiança - nem mesmo João, o caçula, agora seu filho adorado. De que adiantava fingir? Poderia confiar em João? Em que sorte de homem ele se transformaria ao crescer?

Mandou chamá-lo, e João atendeu logo. O rapaz sabia que, agora com a morte do irmão Henrique, ele era o favorito do pai.

João, sonso, bem versado em baixezas, pois os tutores haviam identificado suas tendências e o estimularam, estava à procura da vantagem. Menosprezava o pai com o desprezo que os jovens sentem pelos velhos. João acreditava estar no limiar de uma vida de poder e aventura, e que o pai estava chegando ao fim da sua.

Antigamente, ele observara o pai no castelo, vira seus olhos demorarem-se ao admirarem mulheres, vira-o acariciá-las e levá-las para o quarto. Não demorara muito e João já fazia tentativas naquele jogo que os homens diziam ter sido uma obsessão de seu pai. João compreendia as inclinações do pai naquela direção. Eram as dele, também.

E agora, quem sabia o que o aguardava? Geofreao ofendera tanto o pai que não havia como perdoá-lo, porque seus homens tinham atirado flechas contra o rei enquanto ele ficara olhando. Quanto a Ricardo, o rei jamais gostaria dele. Sobrava João.

O velho, às vezes, ficava muito sentimental.

João ouvira o apelo de Heráclio, e um de seus companheiros lhe falara sobre as aventuras de sua mãe na Terra Santa, ainda quando mulher do velho Luís. Tal como seu pai, sua mãe soubera aproveitar a vida! João achou que gostaria de ir à Terra Santa. Nada poderia ser mais divertido do que levar uma vida desregrada no caminho e depois arrepender-se no santuário.

Por isso, quando se apresentou ao pai, começou por ajoelharse e dizer que queria ir para a Terra Santa.

- Deixe-me ir, papai. Lá, conseguirei a remissão de seus pecados e também dos meus.

- Não, meu filho. Há coisas demais para proteger aqui. Eu não poderia deixar que você fosse.

- Mas, papai, Heráclio o amaldiçoou.

- Deus não vai ligar para as maldições dele.

- Ele não é um homem bom... o patriarca de Jerusalém?

- Isso é um título. Ele vem me procurar porque quer salvar a sua posição. Não se importa com o que possa acontecer aqui. E o que acha você que iria acontecer por aqui? E o que acha que iria acontecer, se eu me afastasse para longe?

- O senhor tem filhos, papai.

- Ah, João, isso devia ser um consolo para mim, não é? Mas você acha que é? Geofredo, Ricardo... Quando foi que foram bons filhos para mim?

- O senhor tem outro.

- Você, João, o caçula. Todas as minhas esperanças estão depositadas em você

- Papai, vou fazer o possível para lhe mostrar que sua confiança não é infundada.

- Conto com você, João. Deve ir para a Irlanda. Seus domínios lá precisam de você. Como sabe, mandei Hugh de Lacy segurar a Irlanda para mim, mas já não confio nele. Casou-se com a filha do rei de Connaught. Não pediu minha permissão para esse casamento, mas me disse que foi contratado segundo a tradição do país. Chamei-o de volta, mas achei melhor tornar a mandá-lo para lá, pois não havia dúvidas de que ele tinha grandes conhecimentos a respeito do país e parecia o melhor homem - e isso era ajudado pelo seu casamento - a fim de segurá-lo para mim. Ele é um homem ambicioso, e creio que pensa em se instalar como rei da Irlanda. Isso, meu filho, é uma honra que reservei para você.

João pensou naquilo. A Irlanda parecia uma boa troca pela Terra Santa. A Irlanda seria dele. Era o rei da Irlanda. Se fosse para a Terra Santa, seria como filho do rei; estaria à frente das tropas, mas sem dúvida haveria outros de patente mais alta. Na Irlanda, seria rei.

- Papai, meu espírito anseia por participar de uma cruzada. Sou jovem, mas cometi pecados e gostaria de receber o perdão deles. Sei que o senhor ficou profundamente afetado pelas maldições de Heráclio e gostaria de rezar pelo senhor junto ao Santo Santuário. Mas o senhor decidiu que não será desta vez. Cumprirei o dever que o senhor me atribui. Irei para a Irlanda, e queira Deus que eu possa agir de maneira a agradar ao senhor e fazer com que se alegre por ter um filho que o obedeça sem discutir.

O rei abraçou João.

Aquele era, realmente, seu filho adorado.

João, depois disso, dedicou-se aos preparativos para a viagem, e antes do mês terminar partiu de Milford Haven com sessenta navios, nos quais seguiam trezentos cavaleiros e uma companhia de arqueiros.

Em menos de um dia, tinham desembarcado em Waterford.

Se ao menos seus outros filhos fossem tão obedientes quanto João! Geofredo era tido em pouca conta. Adorava os prazeres da vida e preferia divertir-se em torneios do que no campo de batalha. O rei achava aquilo lamentável, porque tinha um espírito vivo e era capaz de analisar uma situação em curtíssimo tempo. Seu casamento era um sucesso; tinha uma filha, Eleanor, e sua mulher, muito provavelmente, iria dar-lhe mais filhos Deveria controlar a Bretanha de maneira satisfatória.

O filho que mais preocupações lhe trazia era, naturalmente, Ricardo. A questão de quando ele iria se casar estava sendo sempre levantada. Aquilo estava ficando ridículo. Alice estava, agora, com 25 anos. Durante todos aqueles anos, tinha sido amante de Henrique, e continuava sendo. Parecia-lhe jovem devido à grande diferença de idade dos dois, e ela se tornara um vício. Embora já não tivesse um desejo tão apaixonado quanto antes, o rei ainda a adorava; no seu desejo por ela havia uma certa dose de ódio por Ricardo e pelo rei da França. Tinha de manter Alice. Se a liberasse agora, a história de sua sedução viria à tona. Alice estava adulta; dera-lhe um filho. Não iria ser confundida com uma virgem. Então, o escândalo estouraria. Seus inimigos iriam regozijar-se com ele, aumentá-lo. Henrique podia imaginar o que o velho Heráclio faria com o escândalo.

Conseguira sobreviver a um escândalo, o assassinato de Thomas. Como se sairia se a história da sedução de Alice aos 12 anos, do romance entre os dois durante 13 anos, quando ele a detivera apesar da insistência de Ricardo e da família de Alice, fosse divulgada? O que diria o mundo?

Iriam considerá-lo um monstro. Então, se recordariam de que uma ancestral sua era uma feiticeira; diriam que a família de Anjou era filha do Diabo.

Ele era jovem quando Thomas foi assassinado; sua vitalidade e seu raciocínio rápido o haviam feito passar por aquilo. Agora, às vezes, sentia-se um homem velho e derrotado. E cada vez que os filhos se rebelavam contra ele, sentia-se um pouco mais vulnerável.

Sua presença era necessária na Normandia, e ele deixou a Inglaterra acossado por muitos problemas. Estava pensando muito em Ricardo, que o desafiara quando se recusara a abrir mão da Aquitânia. No entender de Henrique, Ricardo tinha de passar a Aquitânia para João.

De repente, ocorreu a Henrique que havia uma pessoa à qual Ricardo cederia o seu ducado: sua mãe.

Mandou buscar Eleanor para que a levassem à Normandia, escolhendo uma escolta adequada para ela.

Eleanor ficou entusiasmada.

O que significava aquilo? Sua sorte parecia mudar. Fazia anos que ela não atravessava o canal. Henrique devia estar compreendendo, afinal, que estava fazendo inimigos demais ao mante-la presa.

Quando a rainha chegou, Henrique a recebeu com cortesia e Eleanor ficou muito ansiosa por ouvir o que ele tinha a dizer.

- Majestade, a que devo esta honra? - perguntou assim que ele lhe concedeu uma audiência particular.

- Quero falar com você.

- Eu sabia que iria querer alguma coisa - zombou ela. Não esperava que me chamasse aqui para outra coisa. Ora, Henrique, você está perplexo. O velho Heráclio anda importunando você com suas maldições?

- Ele não me incomoda.

- Dizem que ele é um homem muito santo.

- Ele é um homem que, como a maioria, tem no fundo seus próprios interesses.

- Como você costuma dizer, quem não tem? E quais são os seus, no momento?

- Devo lembrá-la de que está aqui por uma clemência de minha parte.

- Não esquecerei isso. Você e seus servidores estão sempre me lembrando.

- Mandei chamá-la porque quero discutir a Aquitânia com você.

- É mesmo? - Ela ergueu as sobrancelhas. - Pode começar.

- Ricardo se recusa a abrir mão dela.

- Muito justo. Ele lutou pela Aquitânia.

- Não deveria ter sido preciso lutar por ela.

- E não teria, se meu povo tivesse me visto sendo tratada de acordo com a minha posição.

- O seu povo, se tiver bom senso, saberá que você agiu como traidora para com seu marido, e como ele é um rei, tem meios de lidar com traidores.

- Meu povo não gosta de me ver presa.

- Neste caso, talvez fique satisfeito ao ver a terra devolvida a você.

- O que quer dizer, Henrique?

- Que estou mandando Ricardo devolver a Aquitânia a você.

- A mim. - Os olhos dela brilhavam de excitação.

Ele a observava atentamente. Era assim que devia agir.

- Ricardo deve ser o meu herdeiro, devido à idade. Ele ficará com a Inglaterra, Normandia, Anjou, tudo com que Henrique teria ficado, se estivesse vivo. Temos outro filho, o João. Quero meus domínios divididos de forma equitativa.

- Então você quer a Aquitânia para João.

- Quero a Aquitânia para você.

- E voltarei para o meu país. - Por um momento, as emoções foram demais para que Eleanor as controlasse. - Oh, meu Deus, como tenho estado ansiosa por estar lá! Como o frio do castelo de Salisbury penetrou em meus ossos! Estou ansiosa pelo sol.

Ele ficou calado, observando-a. Se a Aquitânia fosse de Eleanor, e ela era a única pessoa a quem Ricardo a daria, e ela fosse sua prisioneira, ele manteria o controle daquela terra.

Eleanor estava ciente do olhar dele fixo nela, e pensou: tão logo ela seja minha, tornarei a dá-la a Ricardo, como fiz antes. A Aquitânia é de Ricardo. Lá era o lugar dele, como nunca fora na Inglaterra. Ele é meu filho, e a Aquitânia será dele.

- Será a maneira de restaurar a ordem na Aquitânia, Henrique.

Há anos que Eleanor não ficava tão agitada. Afinal, sua prisão terminara. Ficaria em liberdade, livre para manter a sua própria corte, para reunir à sua volta os trovadores do Sul, para tramar com o seu querido Ricardo contra o pai dele.

 

O PLANO DE HENRIQUE dera resultado. Ricardo, que se recusara a passar a Aquitânia para o irmão, concordou imediatamente em entregá-la à sua mãe. Isso foi feito.

Quando Eleanor estava fazendo os preparativos para seguir para a Aquitânia, teve um choque.

Henrique foi vê-la.

- Vejo que está pronta para partir. Isso é bom, porque não quero que haja demora alguma.

- Dentro de poucos dias, partirei. Em breve estarei em Poitiers.

O rei ergueu as sobrancelhas.

- Não, não é isso que pretendo. Eleanor o encarou, sem acreditar.

- Você se esqueceu de uma coisa. É minha prisioneira. Como poderia confiar em você na Aquitânia? Qual seria a primeira coisa que faria? Tramar contra mim. Pensa que sou bobo? Você voltará para a Inglaterra. No seu castelo, estarão esperando para recebê-la.

- Não!

- Sim. Fico contente por ver que em breve estará pronta para partir.

- Você me devolveu a Aquitânia.

- Só no nome. Isso irá manter a paz.

- Seu... trapaceiro!

- Chame-me, isso sim, de guardião de meus domínios.

- Eu devia ter sabido que você nunca cumpriu uma promessa.

- Ora, você teve muitos anos para me conhecer, e por isso seria de se esperar que me conhecesse bem.

- Não é de admirar que todos os seus filhos o odeiem.

- Você os criou para que fosse assim. Uma perversidade bemfeita. Acha que algum dia irei esquecer ou perdoá-la por isso? Se acha, não conhece Henrique Plantageneta. Além do mais, como é que eu poderia dormir tranquilo, se pensasse em você na Aquitânia tramando contra mim, provocando meus filhos para que se rebelassem?

- Eu... odeio você - disse ela, em voz baixa. Ele deu de ombros.

- Há anos que me odeia, e tenho conseguido sobreviver.

- Que mentiroso, que trapaceiro, que devasso, que quebrador de promessas; não admira que Heráclio diga que Deus o abandonou.

De repente, Henrique sentiu medo dela. com os cabelos soltos e os olhos em brasa, parecia uma feiticeira profetisa. Ele se voltou e retirou-se.

com orgulho, João pisou em solo irlandês. Sua terra! Senhor da Irlanda! Rei da Irlanda! Os títulos soavam em seus ouvidos, e a sensação de poder que aquilo trazia era tão embriagadora quanto qualquer vinho.

O que fazia um rei em sua própria terra? Fazia com que todos ficassem cientes de que eram seus súditos. O que ele quisesse deles, teriam de dar. Uma situação maravilhosa. Terras, mulheres, tudo o que quisesse era seu. Não se esquecia disso. Escolhera seus amigos especiais para acompanhá-lo, jovens como ele. Eles se pavoneavam, bebiam demais, jactavam-se de suas conquistas de mulheres, e nunca se esqueciam de dar ao seu príncipe aquilo que ele estava sempre exigindo: bajulação.

Os trajes dos irlandeses os divertiam e quando dignitários vinham recebê-los, João caía na gargalhada diante de sua indumentária, e seus seguidores logo se juntavam a ele em sua hilaridade. Os irlandeses eram barbados. Este era um de seus costumes. Para João, era cómico, e ele e seus amigos davam um puxão nas barbas daqueles que iam saudá-los, numa insolência sem igual.

Como era natural, os chefes de clãs sentiram-se insultados e não iriam suportar aquilo.

Hugh de Lacy tentou conter os jovens irresponsáveis, mostrando a João que os irlandeses eram um povo brigão e guerreiro, e não iriam tolerar aquele tratamento.

- Eles vão tolerar o tratamento que eu quiser lhes dar - retrucou João.

Hugh de Lacy gemeu. Por que o rei, era geral tão esperto, arriscava a perda da Irlanda enviando aquele estúpido e arrogante jovem?

O pior estava por vir. João e seu bando atravessaram a Irlanda marchando. Sempre que queriam alguma coisa, eles a tiravam. Saqueavam as cidades, coagiam as mulheres, e se elas não estivessem dispostas, eram estupradas.

Os irlandeses não permitiriam tranquilamente aquela profanação de sua pátria. À medida que João avançava pelo país, era recebido por exércitos, e como ele era mais competente em saquear cidades indefesas do que em lutar, dentro de muito pouco tempo se viu numa situação desesperadora.

Depois de cinco meses, ficara tão pobre e suas forças tão reduzidas que não teve alternativa se não voltar para a Inglaterra.

Foi procurar o pai, que o recebeu com afeto e grande consternação quando soube do fracasso na Irlanda.

- Como pôde sofrer um desastre desses?

- A resposta, papai, é o traidor Hugh de Lacy. Ele provocou um ressentimento contra nós por toda a Irlanda. O senhor sabe que ele tem planos de ser senhor da Irlanda. Ele quer ser o rei.

Henrique estudou atentamente o filho. Havia sinais de dissipação em seu rosto, embora fosse jovem. Henrique ouvira histórias sobre as mulheres que ele seduzira. Um jovem, era verdade, tinha de seguir seus instintos naturais, e Henrique era o último homem que podia condenar alguém por gostar de mulheres. Ele mesmo tinha sido pai de dois filhos ilegítimos antes de fazer dezoito anos.

Pequenas dúvidas surgiram-lhe na mente, mas ele se recusou a percebê-las. Não poderia suportar ter outro filho em quem não pudesse confiar. Devia haver um, na prole, que o amasse e o servisse bem.

Pensou no quadro das aguietas e na mais nova à espera para arrancar os olhos da velha águia com o bico. Por que ele mandara pintar aquele quadro? Se acreditava em João, por que iria ele dizer que a aguieta mais nova estava do lado à espera para arrancar-lhe os olhos com o bico?

O que acontecera, de fato, na Irlanda? Estaria João embriagado pelo poder? Teria ele se comportado de tal maneira que os irlandeses haviam-se voltado contra ele?

O astuto Henrique, que chegara tão longe porque compreendera a maneira de agir dos homens, disse: descubra. Pergunte àqueles em quem pode confiar. Conheça esse seu filho.

Mas ele era um velho cansado, ansioso por afeto. Era inconcebível que todos os filhos fossem traí-lo. Devia haver pelo menos um que o amasse; e quem poderia ser, exceto João?

Chegaram notícias da Irlanda.

Hugh de Lacy tinha sido assassinado.

- Uma recompensa justa pela sua traição ao seu rei - disse João.

Henrique ouviu as notícias. Os irlandeses tinham feito aquilo. Tinham-lhe cortado a cabeça fora. Sem dúvida, tinham-se cansado de suas pretensões, pensou Henrique.

Mandou chamar João.

- Hugh de Lacy possuía muitas propriedades na Irlanda. Devem ser confiscadas sem demora. Prepare-se para partir para aquele país.

João não se fez de rogado. Antegozava mais diversões.

Antes que ele tivesse tempo de partir, porém, chegaram mais notícias, dessa vez da França.

Geofredo se apresentara a Filipe da França, ostensivamente para prestar vassalagem ao seu senescal, e Filipe o recebera com tantas honrarias que aquilo pareceu suspeito. Filipe havia insistido para que Geofredo ficasse um pouco na corte da França, e nascera uma tal amizade entre os dois que aqueles que queriam bem ao rei da Inglaterra acharam que ele devia saber disso.

Henrique não quis saber daquilo. Não confiava em Filipe, que não era nenhum Luís fraco e vacilante.

Por estranho que parecesse, Filipe se transformara de menino mimado em um governante que não devia ser ignorado de maneira irrefletida. Estava se tornando um homem muito ambicioso. Seu sonho era, obviamente, ampliar os seus domínios. Filipe teria gostado que todos os estados vassalos fossem inteiramente seus, e, como Henrique, era suficientemente astuto para não querer ir à guerra se pudesse adquirir o que queria através da diplomacia e de negociações engenhosas.

Henrique sabia, fazia tempo, que precisava ficar de olho em Filipe da França.

Se Filipe estava se aproveitando tanto assim de Geofredo, com certeza tinha um determinado motivo. Estaria de olho na Bretanha... ou, ainda pior, na Normandia?

Henrique tinha de ficar muito alerta para o que acontecia na corte da França. Poderia precisar de todas as forças disponíveis, e seria insensato mandar o filho João para a Irlanda. Assim, a expedição irlandesa deveria ser adiada temporariamente.

O rei estava certo. Dizia-se que em suas conversas secretas Geofredo e Filipe debatiam a invasão da Normandia. E Ricardo? Como se sentia? Ele havia passado a Aquitânia para sua mãe, e descobrira que ela fora imediatamente mandada de volta para a prisão.

Oh, sim, Henrique precisava ficar realmente atento. As aguietas bem poderiam estar prontas para cair sobre a velha águia.

Geofredo gozava de sua temporada na França, e uma das razões para isso era o fato de saber o efeito que sua presença lá teria sobre seu pai.

Geofredo adorava uma maldade. Sempre fora assim, desde a sua fase na ala infantil. Se pudesse provocar confusão, ficava feliz. Tinha uma mágoa do pai e outra de seu irmão Ricardo, porque o primeiro lhe negara o poder, e o segundo mostrara que Geofredo era inferior a ele em combate.

Além do mais, era agradável ser tratado com honras pelo rei da França. O fato de Geofredo ser inteligente, sagaz, e capaz de expressar seus pensamentos com uma lucidez fora do comum deixava-o mais descontente com o seu destino. Havia nele uma certa grandeza, mas ele era prejudicado pelas falhas em seu caráter, e não em sua capacidade. Sabia ser persuasivo e eloquente, mas raramente era sincero no que dizia; as pessoas haviam começado a considerá-lo um hipócrita com talento para a impostura. Simplesmente já não confiavam mais nele.

Ele estava contente com o seu casamento com Constance, a herdeira que lhe dera a Bretanha e, até ali, uma filha. Ela estava grávida, e os dois esperavam que fosse um filho homem.

Desde que começara a participar de torneios, graças a Filipe de Flanders. tornara-se obcecado por aquele esporte. Consideravao uma batalha simulada. Era adequado ao temperamento dele. Adorava o espetáculo e a cerimónia, o perigo ocasional, pois era perigoso e muitos cavaleiros tinham perdido a vida nas justas. Agora era conhecido por sua perícia, e quando se apresentava era um dos destaques.

O rei da França, conhecendo o seu amor pelo esporte, providenciara para que houvesse um torneio atrás do outro, para que seu hóspede pudesse perceber o quanto o anfitrião queria agradá-lo.

Foram feitos os convites, e os homens da classe de Geofredo reuniam seus seguidores com a intenção de montar batalhas simuladas contra outros homens e seus cavaleiros. Eram executadas como combates de verdade, e uma das práticas favoritas era separar um cavaleiro dos membros de seu grupo e, se possível, derrubá-lo e capturá-lo. Eram muito frequentes as baixas, e quando um cavaleiro se tornava prisioneiro, seus captores exigiam resgate por ele. Aquele tipo de ação tornava as batalhas mais emocionantes. Havia muitos exemplos de combates individuais, mas as batalhas em formação cerrada emocionavam mais, tanto os espectadores quanto os participantes.

Geofredo ouvira dizer que seu pai estava profundamente perturbado devido à hospitalidade que o rei da França lhe proporcionava e estava planejando ir à Normandia. Era uma pena. Teria sido muito mais satisfatório ter lançado um ataque sobre a Normandia antes que o pai pudesse aparecer. Talvez Filipe não se mostrasse tão ansioso por fazer aquilo quanto fingia estar. Estaria o próprio Geofredo tão ansioso? Não, era muito mais divertido atacar o pai com boatos do que de verdade. Ele preferia os torneios.

Geofredo se preparava para entrar em ação quando sua mulher, que acabara de ter certeza quanto à sua gravidez, foi colocar o seu presente em seu elmo.

Era um pedaço de cetim de cor viva, cortado de seu vestido.

- Estarei assistindo - disse ela - e é por esse pedaço que poderei identificá-lo.

- Quando a batalha terminar, espero que você esteja à minha espera para me conduzir ao salão.

Naquele dia, Geofredo entrou no campo sem nenhuma premonição de perigo. Cercado pelo seu pequeno grupo de cavaleiros, pensava no triunfo que iria obter quando o combate terminasse. A vida era cheia de promessas. O rei da França era seu amigo. Seu irmão Henrique morrera, e só Ricardo se achava entre ele e as coroas da Inglaterra, da Normandia e de Anjou. Já possuía a Bretanha. Tinha uma filha, e sua mulher estava grávida. A mocidade de seu pai estava passando depressa. Quantos anos ele iria viver? Ricardo pertencia mais à Aquitânia do que à Inglaterra. E o seguinte, na ordem, era ele, Geofredo.

De repente, percebeu que estava cercado por cavaleiros atacantes. O que acontecera aos seus aliados? Tinham sido empurrados para o lado, e ali estava ele, enfrentando-os sozinho. Eles o cercaram.

Geofredo estava prestes a atacar quando seu cavalo sofreu um golpe de uma lança e caiu ao chão. Geofredo caiu embaixo do cavalo.

- Entregue-se! Entregue-se! - gritaram.

Entregue-se! Ele, o filho do rei da Inglaterra, entregar-se a um cavaleiro francês! Nem pensar.

- Nunca! - bradou ele, e enquanto falava as patas de um dos cavalos dos cavaleiros desceram sobre a sua cabeça.

Ele perdeu a consciência e ficou ali caído.

Quando se descobriu que o cavaleiro que tombara em combate era Geofredo, conde de Bretanha, levaram-no com cuidado para o castelo, mas já era tarde.

Sua mulher, Constance, chegou e ficou ao lado da carreta fúnebre. Viu que o pedaço de cetim de seu vestido permanecia no elmo, ajoelhou-se e cobriu o rosto com as mãos; o marido estava morto e ela pensava na criança que estava carregando e imaginava o que seria delas.

Henrique recebeu a notícia com pesar.

- Estamos condenados. Por que Deus me virou a cara? Dois de meus filhos abatidos no vigor da juventude! - Agora, só lhe restava João... Ricardo lá estava, é claro, mas Ricardo era seu inimigo.

Agora, precisava torturar-se com recordações de quando Geofredo era pequeno. Henrique não podia considerá-lo como o filho preferido, mas apesar de tudo tinha sido seu descendente. Que mal tomara conta deles, a ponto de fazer com que vivessem sempre em guerra? Por que não tinham ficado juntos, como deviam ficar um pai e seus filhos? Guilherme, primeiro, ainda bebé, depois Henrique, e agora, Geofredo. Três filhos perdidos, e dos outros... ele só podia confiar em João.

Voltou-se para João, agora.

- João, meu filho querido, perdi seus irmãos. Você agora tem de ser o meu consolo.

- Serei, papai. Irei servi-lo com a própria vida. Era consolador lembrar-se de que tinha João.

Em seu castelo-fortaleza, Eleanor chorava a morte do filho.

Seu Geofredo, como o chamava para diferenciá-lo daquele outro, com o mesmo nome, que Henrique levara para a ala infantil - o Geofredo bastardo.

Seu filho Geofredo tinha sido um menino inteligente, muito bonito, embora às vezes sobrepujado pelo irmão Henrique, porque Henrique fora mais bonito. Mas Geofredo era o mais inteligente dos dois. Geofredo tinha sido o maquinador, o planejador, aquele que encantava enquanto tramava uma falsidade.

Nenhum daqueles filhos teria governado um reino como o pai deles, mas ela os amara como amava todos os filhos. Embora não pudesse ser uma esposa fiel, sabia ser uma mãe afetuosa.

Agora pensava em Geofredo como tinha sido quando convivera com ele. Na época, ele era um menino, e Eleanor tornou a odiar Henrique, que a mantivera todos aqueles anos isolada dos filhos.

O seu adorado Ricardo estava mais seguro, porque Geofredo não tinha sido amigo dele. Talvez a posição de Ricardo estivesse mais segura desde a morte do irmão.

Por isso, enquanto ela chorava Geofredo, pensava em Ricardo. Concentrava todas as suas esperanças nele. Henrique sabia disso. Seria essa a razão pela qual ele estava fazendo o possível - tal como Eleanor suspeitara - para deslocar Ricardo e colocar João em seu lugar?

Aquilo não deveria acontecer nunca.

Oh, Deus, bradou ela, será que a luta nesta família não vai acabar?

O rei, agora, idolatrava João mais do que nunca, e o filho agia de acordo com a situação com toda a manha de que era capaz. Achava divertido o fato de que ele, que nascera João Sem Terra, estivesse agora em vistas de possuir grandes domínios. Bastava enganar o seu pobre velho pai e levá-lo a pensar que ele era um filho bom e obediente; podia fazer isso com facilidade, e sua natureza era tal que ele gostava da dissimulação.

O rei gostava de caminhar ou de cavalgar com ele e iniciá-lo, como dizia, nos deveres de um rei. Henrique se portava como se não fosse haver discussão sobre ele receber a coroa quando chegasse a hora. Se falava em Ricardo, era para preteri-lo como se ele não tivesse importância alguma, como se fosse o filho mais novo, e não o mais velho.

- Eu nunca poderia amar de verdade seu irmão Ricardo disse Henrique um dia. - Ele me odiou desde a infância. A mãe dele foi a culpada. Dou graças a Deus, João, por você ter sido criança demais para ser influenciado por ela.

- Eu nunca teria sido - replicou João, suavemente. - Eu teria visto a verdade.

- Teria, meu filho? Às vezes penso que seus irmãos não viram. Todos eles me causaram problemas sérios.

- Eu jamais causarei.

- Graças a Deus, um de meus filhos me dá um pouco de afeto.

- Irei recompensá-lo, papai, pelo que o senhor tem sofrido. O Natal se aproximava, e o rei decidiu passá-lo no castelo de Guildford. Na fortaleza normanda, o rei ordenou que houvesese uma festança, porque queria que todos soubessem que tinha o seu adorado filho João em alta estima. João permaneceu ao lado do pai nos dois dias que eles ficaram lá, e viu-se que o rei gostava muito de sua companhia. Os dois eram vistos caminhando em torno do muro do castelo, profundamente concentrados em conversa, o rei falando com entusiasmo, João ouvindo ansioso, como se estivesse decidido a não perder nenhuma daquelas palavras de sabedoria.

João ficou muito satisfeito quando, no início do ano novo, chegou uma bula do papa Urbano, na qual era dada a aprovação ao desejo de Henrique de fazer de seu filho João o rei da Irlanda. A comitiva real viajou até Westminster para receber o cardeal Octavian, que levava uma coroa de ouro e de penas de pavão, com a qual o cardeal iria coroar o jovem João.

Mas uma vez mais as pretensões de João não se concluíram, pois antes que a coroação pudesse ser realizada, chegaram notícias inquietantes da França. Filipe era muito diferente de Luís. Não se conseguia enganá-lo com facilidade. Se Henrique quisesse manter a paz, disse ele, deveria haver um encontro entre os dois, pois havia certos assuntos que Filipe precisava discutir com Henrique.

Henrique sabia, claro, que um daqueles assuntos dizia respeito a Alice. O fato de ele ter ficado com ela tanto tempo parecia um milagre - Quem mais, além de Henrique Plantageneta, poderia ter feito aquilo?

Não podia durar muito.

Ele teria de adiar a coroação de João e partir para a França.

João ficou um tanto desconcertado com o adiamento. Teve vontade de manifestar sua desaprovação aos berros, deitar-se no chão e chutar tudo que estivesse por perto. Mas sabia que não devia dar demonstrações de mau génio; e o jogo de enganar o pai e fazê-lo pensar que ele era o filho bom e obediente era tão intrigante no momento que conseguiu dominar a raiva.

Disse a si mesmo que se pudesse continuar a obter os favores do pai, se pudesse suplantar Ricardo, se pudesse se tornar rei da Inglaterra, poderia ter quanto acessos de raiva quisesse. Enquanto isso, tinha de se lembrar do que estava em jogo.

Por isso, com docilidade e uma demonstração de afeto, partiu com o pai para a França.

Foi marcada uma reunião, quando seriam discutidas as diferenças entre os dois reis e, esperava Filipe, resolvidas de modo tão satisfatório que não haveria necessidade alguma de um conflito entre eles.

Antes que o confronto acontecesse, chegaram notícias da Bretanha. Constance, esposa de Geofredo, que estivera grávida na época da morte do marido, tinha dado à luz. Daquela vez era um menino.

Henrique ficou muito contente. Um neto! Seus filhos - à exceção de João - o haviam desapontado, e agora que ele estava à procura do afeto familiar, talvez aquele afeto chegasse até ele pela geração mais nova.

Escreveu dando os parabéns a Constance da Bretanha; enquanto escrevia pensava: vou ter de arranjar outro marido para ela, sem demora. Assim que se recuperasse do parto, ele arranjaria.

Ele consideraria, escreveu, um cumprimento a si próprio se o neto recebesse o nome de Henrique.

Infelizmente, parecia que todos estavam decididos a fazer-lhe desfeita. Até o povo da Bretanha.

Constance escreveu dizendo que os sinos tocaram por toda a Bretanha anunciando o nascimento de um menino. O povo não queria saber dele ser balizado com outro nome que não o de Arthur. Queria que tivesse o nome do grande rei que fora o libertador de seu povo.

Henrique considerou aquilo um agouro, e ficou irritado por sua vontade não ter sido levada em consideração. Ainda assim, aquilo era uma questão que, tendo em vista a sua atual posição precária, ele tinha de deixar passar.

Assim, o filho de Geofredo foi batizado com o nome de Arthur, de acordo com a vontade de seus futuros súditos.

 

HENRIQUE SE SENTIA DOENTE. Sofria de uma incómoda e humilhante doença interna. Longas horas montado numa sela o deixavam cansado. Era desagradável. Sempre tivera

dez vezes a energia dos outros homens, mas já não era mais jovem. Estava com 54 anos. Apesar de Eleanor ser doze anos mais velha, ela parecia indestrutível, e durante os anos de cativeiro levara uma vida pacífica, ocupada apenas com manter-se jovem e bonita e com dedicar-se a intrigas sempre que possível. Enquanto ele travara uma luta perpétua para manter seus domínios intatos, manter Alice com ele, manter o jovem e astuto rei da França em xeque. Fora tão mais fácil quando Luís estava vivo. O delicado Luís tinha sido muito diferente de seu astuto filho. Quem iria pensar que o menino mimado iria tornar-se um governante considerável? E agora, Henrique teria de enfrentá-lo.

Os dois travariam combate um contra o outro. A conferência fracassara, como Henrique temera que fracassaria. Filipe não tivera a intenção de fazer outra coisa que não humilhá-lo. Henrique jamais quisera a guerra. Sempre preferira vencer por meio de uma diplomacia astuta. Luís pensava da mesma maneira; mas como tinha sido fácil iludir Luís com promessas que ele não pretendia cumprir!

Filipe, o astuto jovem Filipe, como era diferente!

Deus me ajude, rezava Henrique. Esqueça-se de meus pecados até a batalha acabar. Depois, seguirei numa cruzada até a Terra Santa.

Henrique deu um sorriso irónico. Era assim que se saía de situações difíceis com Luís. Pobre Luís, que sempre fora piedoso e podia ser tapeado com uma conversa daquelas. Poderia ele enganar a Deus como fizera com Luís?

Não, ele nunca seguiria numa cruzada. De que jeito? Tinha terras para governar.

Pelo menos nessa ocasião, tinha os filhos com ele. Ricardo, o guerreiro, e João, o adorado. Aquilo era uma graça. Pelo menos eles estavam juntos contra o rei da França.

Ricardo se sentia constrangido. Ultimamente, andara imaginando quais seriam as intenções de seu pai. Falava-se tanto em João, e João dava-se a tais ares de superioridade até mesmo em relação ao irmão mais velho, que Ricardo ficava pensando se ele não sabia de algum plano do pai. Sempre que Ricardo se achava na presença do pai, o antagonismo lá estava. Os dois sentiam isso; Ricardo vivia imaginando se o pai o estava enganando.

Enquanto Ricardo refletia, um de seus criados lhe disse que se encontrava lá fora um cavaleiro que pedia para dar uma palavra com ele. Para surpresa de Ricardo, Filipe de Flanders foi levado à sua presença. Aquele homem ambicioso, amante de aventuras, que a princípio tentara dominar o rei da França e posteriormente pegara as armas contra ele, agora servia no exército do rei, e aquilo significava que correra um risco muito grande ao ir ao campo inimigo.

- Olá, primo - disse Filipe de Flanders.

- O que faz aqui?

- Vim falar com você.

- Você, vir aqui?!

Filipe soltou uma gargalhada.

- Sempre fui de correr riscos.

- O que quer me dizer?

- Quero avisá-lo. Você está se preparando para lutar contra o rei da França. Já se esqueceu de que o ducado da Aquitânia é controlado por ele? Assim... você estaria

lutando contra o seu suserano.

- Estou do lado de meu pai.

- De um pai que está planejando deserdá-lo.

- Isso não é verdade.

- O que diz de seu irmão, que ele idolatra? Eu gostaria que tomasse cuidado, Ricardo. Você é melhor guerreiro do que seu irmão ou seu pai. Pense. Não seja precipitado.

- O que devo fazer, então? Voltar-me contra meu pai? Juntarme ao inimigo?

- Não, eu não lhe pediria isso, mas o rei da França quer vê-lo e falar com você.

- Ele quer fazer uma trégua?

- Ele quer apenas falar com você.

- Quando?

- Agora.

- Você veio para me levar a ele?

- Venha assim como está. De armadura. Ele não lhe pede que venha com humildade. Ele desejaria recebê-lo como amigo... um primo.

- Devo contar a meu pai?

- Não, isso seria a última coisa a fazer. Ele quer que você venha comigo agora.

- Como posso saber que posso confiar nele?

- Ele dá a sua palavra. Como eu dou a minha. Ricardo não procurava falsidade nos outros.

- Eu vou.

- Então, vamos logo.

Juntos, a cavalo, atravessaram as linhas, e quando chegaram ao acampamento francês, Filipe de Flanders conduziu Ricardo aos aposentos do rei da França.

O rei da França saiu de sua barraca e ergueu os olhos para Ricardo, montado no cavalo. Poucos homens montavam um cavalo como Ricardo. Parecia magnífico, quase como um deus, em sua brilhante armadura e montado em seu cavalo esplendidamente ajaezado.

- Ricardo! Primo, seja bem-vindo.

- O que quer de mim, Filipe?

- Amizade.

- Ofereça-a a meu pai.

- Não tenho amizade alguma para oferecer a ele. Venha para minha barraca. Vamos conversar. - O rei da França fez-lhe a grande honra de segurar o estribo.

- Ora, Ricardo, como você é alto! É um viquingue de verdade.

- Já me disseram isso. Isso vem do meu ancestral, o Conquistador.

- E você deve se orgulhar dele. Juntos, os dois entraram na barraca.

- Tire a parte de sua armadura que o incomodar. Pode confiar em mim, Ricardo. Está vendo, estou desarmado.

- E eu em pleno campo inimigo.

- Por Deus, Ricardo, creio que você se sairia muito bem se todo o meu exército viesse contra você. Mas isso não ocorrerá. Pedi que viesse aqui em boa-fé. Não permitirei que qualquer mal lhe aconteça.

- Palavras agradáveis - disse Ricardo.

- Vindas do coração. Sente-se aqui, onde eu possa vê-lo. Filipe olhava para ele, absorto.

- Você tinha algum assunto a discutir?

- Você e eu não devíamos estar em campos opostos.

- Como poderia ser de outra maneira?

- Seria de outra maneira se você não lutasse ao lado de seu pai.

- Eu não ia querer lutar contra ele.

- Não seria a primeira vez que seu pai lutaria contra você. Ele o traiu, Ricardo, repetidas vezes. E minha irmã Alice? Por que ela não é sua esposa?

- Meu pai estava sempre adiando o casamento.

- Por que, Ricardo? - Filipe deu uma risada. - Tem havido rumores. Ela é minha irmã, uma filha da França. Vai se casar com você, Ricardo, e então nós dois seremos irmãos de verdade. Você é o herdeiro da Inglaterra e seremos amigos, você e eu. As guerras entre nós destroem a nós dois. Seu pai é meu inimigo, não você, Ricardo, e eu o trouxe aqui para lhe dizer que se ele não é seu inimigo, não é seu amigo. Você está lutando ao lado dele. Por quê? Para que ele o deserde e coloque outro em seu lugar? Ele enganou meu pai... repetidas vezes, ele o enganou. Venceu a batalha contra Luís VII não com a espada e a lança, mas com grande astúcia; não vai vencer Filipe II. Peço-lhe que pense nisso. Você e eu não devíamos estar do mesmo lado?

- Se isso é tudo que quer me dizer, já vou indo.

- Nada disso, fique um pouco. Não tenha receio. Será levado de volta ao acampamento de seu pai em segurança.

- Não tenho medo.

- É verdade, Ricardo. Você é um grande guerreiro. Nunca o vi sem que meu ânimo se elevasse. É por isso que quero que seja meu amigo.

Ricardo havia-se posto de pé, e Filipe levantou-se; Ricardo era, de longe, o mais alto.

- Nobre Ricardo. Sei que é possível confiar em você. Ricardo Sim e Não. Se você dissesse "vou ser seu amigo", eu saberia que estava sendo sincero. Não há muitos homens em quem se pode confiar. Sou oito anos mais moço do que você, Ricardo... sim, só conheci 22 invernos, e você, trinta... mas tenho experiência no que se refere às coisas do mundo, e o respeito, Ricardo. Quero que seja meu amigo.

- Você me honra, Filipe.

- Se me desse sua amizade, eu é que teria a honra.

- vou indo, agora, e pensarei no que me disse.

Filipe ergueu a mão de Ricardo e beijou-a. E então ajudou-o a vestir a armadura.

- Que honra, o rei da França, meu camareiro!

- A honra é minha - disse Filipe, com voz suave.

Os dois saíram para a noite. Filipe de Flanders, que estivera esperando, adiantou-se.

- Leve meu primo são e salvo ao seu acampamento.

Ricardo pensou na estranha entrevista e ficou imaginando o que ela significava. Ninguém poderia parecer mais amistoso do que Filipe. E estava prevenindo-o contra o pai. Poderia ser mesmo verdade que seu pai estava planejando deserdá-lo? E por que Filipe estava tão ansioso por ajudá-lo? Seria porque a irmã de Filipe era sua noiva?

Ricardo estava intrigado.

Assim que rompeu a madrugada, foi procurar o pai. Henrique estava pálido e parecia doente à impiedosa luz da manhã.

- Bem-vindo, Ricardo - disse o rei.

- O senhor não está bem, majestade.

- É a minha enfermidade. Ricardo, não gosto da situação. Parece-me que o rei da França está decidido a ir à guerra.

- Ele estava disposto a considerar uma trégua.

- Mas em que condições? Ele quer me humilhar, obrigar-me a fazer isto e aquilo.

- O senhor está falando em entregar Alice!

- Alice! - bradou Henrique. - A princesa Alice? Mas você vai se casar com ela... quando chegar a hora.

- A hora tem sido adiada há muito tempo. O senhor se esquece, papai, de que estou com trinta anos, e Alice já não é mais criança.

- Ela está numa boa idade para o casamento, e você não estava pronto antes.

- Por que o senhor estaria tão preocupado ao liberá-la?

- Eu não estava pensando em Alice. Como eu desejava que Luís estivesse vivo! Eu poderia argumentar com ele.

- Filipe é mais forte do que o pai.

- É um jovem decidido.

- Acho que é mais sutil do que o pai; vai ser um governante inteligente.

- É o que receio. Isso não é bom, Ricardo. Quero evitar um conflito direto. Não vejo proveito em fazer uma guerra em que muito sangue possa ser derramado sem finalidade alguma.

- Pode ser que não haja outra alternativa.

- Pensei numa coisa. Estou ficando velho, Ricardo, e meus pecados me pesam muito. Muitas vezes me ocorreu que, afinal, eu devia ir à Terra Santa. Você se lembra de Heráclio, o patriarca, e das más notícias que ele nos trouxe. Tem me deixado triste o fato de que na época me recusei a atendê-lo, embora tenha sido por conselho de meus ministros.

- Sei perfeitamente bem, por ordem de quem eles se manifestaram contra a sua ida - retrucou Ricardo com frieza.

- Meu filho, eu tinha de governar os meus domínios. Um rei não pode esquecer seu dever para com o povo por causa de seus pecados.

- É isso que o senhor quer fazer agora.

- Não, não. Partirei numa cruzada e pedirei a Filipe que me conceda uma trégua de dois anos, enquanto eu estiver fora. Creio que ele é um jovem cinico, mas mesmo ele não ousaria atacar meus domínios enquanto eu estivesse lutando uma guerra santa.

- Sempre desejei combater o Infiel.

- Eu sei, meu filho. Iremos juntos. vou mandar emissários ao acampamento do rei francês para comunicar-lhe minhas intenções.

Quando Filipe ouviu o pedido do rei, teve um sorriso irónico. Mandou chamar Filipe de Flanders.

- Sabe, conde, o que o rei da Inglaterra sugere? Que eu lhe dê uma trégua de dois anos, enquanto ele vai à Terra Santa.

- Ele nunca irá à Terra Santa.

- Sei muito bem disso.

- Está velho e doente.

- Embora ainda seja um leão.

- Um leão miserável.

- Ainda pode rugir ameaçadoramente e tem alguns de seus dentes. Não nos esqueçamos disso, conde.

- O que fará Vossa Majestade?

- Aceitarei a trégua. Que ele vá à Terra Santa, e veremos o que acontecerá aos seus domínios enquanto ele estiver ausente.

- Vossa Majestade os atacaria? Enquanto ele estiver ausente, participando de uma cruzada?

- Digamos que eu não teria hesitação se surgisse uma oportunidade. Mas fique tranquilo, conde, que ele nunca partirá numa cruzada. Foi isso que ele disse a meu pai. Ele quer, apenas, adiar uma batalha. Não tem intenção de ir à Terra Santa.

- O que deseja Vossa Majestade, então?

- Dizer que sim. Haverá uma trégua por dois anos. Agora, que ele vá para a Terra Santa! Está na hora de Henrique perceber que conheço as artimanhas dele. Deixe-os ir. Não posso esperar para ouvir o que o rei da Inglaterra tem a dizer.

Mesmo antes de os emissários voltarem, Henrique estava desesperado.

Mandou chamar Ricardo, cujos conhecimentos bélicos eram muito maiores do que os de João.

- Eu não confiaria em Filipe. Se eu partisse numa cruzada, como iria saber o que estivesse acontecendo ao meu país? Ele não é como o pai.

- Não, realmente, não é como o pai - concordou Ricardo.

- Acho que ele aceitará minhas condições. Se isso ocorrer, como poderei partir numa cruzada? Como, Ricardo?

- O senhor correria o risco de perder tudo se fosse.

- Então, como posso ir? E a outra alternativa é a guerra. vou toma-lo sob a minha confidência, Ricardo. Durante todos os anos em que o pai de Filipe foi rei, houve conflitos entre o país dele e o meu. Às vezes penso que sempre haverá. O que devo fazer? Preciso de uma trégua. Tenho de evitar uma guerra.

Ricardo olhou para o pai. Não podia acreditar que aquele que falava era o grande Henrique Plantageneta. Como estava grisalho, como estava enrugado! Ele estava mais doente do que gostaria de admitir.

- Ricardo, você tem de falar com o rei da França. Peça-lhe novos termos para uma trégua. Não estou em condições de ir à guerra. O rei da França está ansioso por ela, agora, o que só pode significar que está ciente de sua força.

- Eu... falar com o rei da França! O senhor me pede que vá... como suplicante?

- Eu lhe pediria que fosse com todas as honras, mas que tentasse fazer com que ele aceitasse as condições.

- O senhor comunicou a ele suas condições. Irá numa cruzada durante uma trégua de dois anos.

- Não posso seguir numa cruzada! Não tenho coragem. Não, Ricardo, deve haver outras condições.

- E o senhor acha que ele apresentaria essas condições a mim?

- Você é meu filho, meu filho mais velho...

- Acho que isso é uma coisa de que o senhor está sempre se esquecendo - retrucou Ricardo, com tranquilidade.

- Consiga essa trégua, que irei me lembrar sempre.

Dito com sinceridade, mas o que significava aquilo em Henrique Plantageneta?

- Vejo que tenho de ir. Devo ser humilde, e não gosto disso.

- Às vezes é necessário uma humilhação temporária, para uma glória futura.

- Neste caso, vou falar com o rei da França.

Filipe esperou para recebê-lo.

Como era bonito!, pensou o rei da França quando Ricardo entrou a cavalo no acampamento. Aqueles frios olhos azuis, aqueles cabelos que não eram nem ruivos nem louros, a força da expressão e a figura alta, ereta!

Como o rei da Inglaterra devia sentir-se orgulhoso de um filho daqueles, e como era bobo ao confiar em João! A loucura do rei da Inglaterra era lucro para o rei da França.

Cerimonioso, Ricardo entregou a espada a Filipe. Estava com a cabeça descoberta quando se ajoelhou.

Filipe estendeu uma das mãos e tocou os cabelos encaracolados.

- Levante-se, Ricardo - disse em tom delicado. Levou-o para a sua barraca, como fizera antes.

- Venho com humildade. Meu pai pede uma trégua. Filipe deu um sorriso.

- Para que possa partir numa cruzada?

- Ele não pode partir numa cruzada. Quer uma trégua para que os dois possam confabular e chegar a um acordo.

- Chegar a um acordo com seu pai! Mas ele não sabe cumprir uma promessa. Meu pai vivia fazendo acordos com o rei da Inglaterra, e que vantagem a França teve com isso?

- Ainda assim, ele pede condições.

- Neste caso, irei encontrar-me com ele. Ora, Ricardo, se eu o enfrentasse numa batalha, agora, eu o derrotaria.

- Ele nunca foi derrotado.

- Mas está ansioso por uma trégua agora porque sabe que finalmente chegou a hora de enfrentar a derrota. vou ser tolerante com ele, Ricardo. Você iria lutar ao lado dele. Não quero que você sofra a humilhação de uma derrota... ou possivelmente a morte. Por sua causa, primo, vou pensar nessa trégua.

- Quais são os seus termos, majestade?

Filipe olhou para aquele rosto orgulhoso e bonito.

- Que o rei da Inglaterra me dê seu filho para ficar comigo um pouco, para que possamos conversar sobre nossas dificuldades.

- Quer dizer... um refém?

- Eu não diria isso. Você será tratado como um hóspede de honra. Não quero que pense que o faria prisioneiro. Desejo a sua amizade, Ricardo. Sim, quero tanto que estou pronto a pensar em dar uma trégua a seu pai... quando o tiver à minha mercê... só por causa dela.

Um refém!, pensou Ricardo. Pois era disso que se tratava. Não gostou. E a alternativa? Derrota em combate. Ele tinha de ceder.

Filipe se esforçava muito para tratar seu convidado com o máximo de cortesia. Queria que Ricardo soubesse que lhe dava grande prazer tê-lo em sua corte.

Os dois caçavam juntos, e quando se sentavam à mesa comiam do mesmo prato. Era assim que os hóspedes mais respeitados eram tratados, e Filipe dava a entender que era assim que considerava Ricardo.

Não se sentia feliz quando Ricardo não estava a seu lado. Sua voz era frequentemente ouvida perguntando onde andava o duque da Aquitânia.

- É costume que a maior honra que se pode conceder a um hóspede é pedir-lhe que partilhe do nosso leito. É isso que eu gostaria que você fizesse, meu adorado primo.

E foi o que aconteceu. A amizade entre Ricardo e o rei da França era de uma devoção apaixonada.

Ricardo começou a aprender muito sobre os assuntos da França com Filipe, e por sua vez falava de suas dificuldades. Os dois confiavam um no outro naquela época, pois havia um profundo elo de amor entre eles.

Quando andavam a cavalo juntos na floresta, falavam de seus problemas e às vezes, quando estavam juntos na cama, Filipe contava seus planos a Ricardo.

- Você precisa vigiar seu pai, Ricardo. Já vi que ele não é seu amigo. Era a favor de seu irmão Henrique, embora não quisesse dar a ele poder algum, e quando Henrique morreu ele se voltou para João. Sei que ele planeja pôr você de lado em favor de João.

- Não vou permitir isso.

- E eu estarei do seu lado.

- Por que ele iria me tratar assim?

- Por que, de alguma forma, tem medo de você. Você tem uma aparência tão nobre! É tão diferente dele! Que criatura grosseira, ele! As roupas estão frequentemente sujas, e as mãos... - Filipe estremeceu. - Meu belo Ricardo, parece impossível que você possa ser filho dele. Mas, veja o meu caso. Eu tive um pai que era um monge... ou seria, se pudesse ter escolhido. Você nasceu para governar, e ele tem medo de você. Isto está no cerne do problema. Ele evitou que você se casasse com minha irmã. Irá tentar, agora, deserdá-lo.

- Isso ele não pode fazer. Sou o filho mais velho.

- Ele vai tentar. Quer que João fique com o que é seu.

- Não vou permitir isso. O povo, tampouco.

- Precisamos fazer com que o povo não permita. Você e eu vamos trabalhar juntos, Ricardo. Sempre... você e eu, juntos.

Henrique estava intrigado. Que estranha amizade era aquela de seu filho com o rei da França? Os dois eram vistos frequentemente juntos. Dizia-se que o rei da França ficava mal-humorado quando Ricardo não se encontrava a seu lado.

Aquilo era desconcertante. Henrique não gostava de pensar no irmão de Alice e no noivo de Alice trocando ideias.

Às vezes, ele sentia uma dor intensa. Nessas horas, só queria ficar em paz. Se pudesse ficar com Alice, ficava contente. Alice se tornara um símbolo para ele; era mais do que uma amante. Quando a perdesse, teria perdido a batalha. Sentia que, de algum modo, aquilo seria o fim.

Aquilo era uma loucura. Ele era um grande rei. Fora conhecido como o mais temido da cristandade. Era simplesmente por estar velho e doente que se sentia assim.

Ele mantinha João a seu lado, e dava graças a Deus por tê-lo. O pobre velho que ele se tornara precisava de João, precisava de sua afeição, precisava saber que não tinha fracassado com todos os filhos. O velho Henrique que ele tinha sido parecia uma parte isolada dele, um outro ser que se postava de lado e ficava observando com ar de zombaria. João, dizia aquele Henrique, você confia em João? Já se esqueceu da aguieta que estava esperando o momento de arrancar-lhe os olhos com o bico?

Ricardo e Filipe... juntos. Seu filho e o rei da França!

Era uma amizade perigosa.

Escreveu para Filipe.

Sabia que uma das diferenças entre eles era o noivado de Alice com Ricardo. Aquele casamento vinha sendo adiado havia muito tempo. Ricardo nunca demonstrara qualquer interesse nele. Agora ele, Henrique, tinha outros planos. Suponhamos que ele desse todas as suas terras - à exceção da Inglaterra e da Normandia - a João, e João se casasse com Alice.

Faltava a Henrique a sua costumeira esperteza. Cheio de artimanhas, ele pensara que Filipe fosse igual.

Filipe, no entanto, estava apaixonado. Estava, também, tentando provar a Ricardo que este estava cometendo um erro ao confiar no pai.

Mostrou de imediato a carta de Henrique a Ricardo.

Ricardo ficou furioso. A Aquitânia representava tudo para ele. Ele a subjugara pela espada, e só deixara que sua mãe ficasse com ela por considerá-la uma aliada fiel e que no devido tempo a Aquitânia seria inteiramente sua. Não iria abrir mão da Aquitânia.

- Por Deus, Filipe, preciso defender o que é meu.

Filipe fez um sinal afirmativo com a cabeça, com ar de inteligente.

- Parece que vou ter de deixar você partir - acrescentou, tristonho.

- Preciso fortificar meus castelos e me preparar contra meu pai.

Filipe tinha de raciocinar: ou perderia o amigo ou ficava com ele contra a vontade dele. Amava Ricardo, e não queria perder a sua estima. Se o deixasse partir, provaria realmente a profundeza de seus sentimentos.

Decidiu que devia fazer o sacrifício.

- Fico profundamente triste ao vê-lo partir, Ricatdo, mas tem razão quando diz que precisa defender seus castelos contra seu pai. A qualquer momento ele poderia tirá-los de você, pois é essa a intenção dele. Por isso, não vou dizer adeus, mas au revoir! Tornaremos a nos encontrar em breve. Talvez, quando a ocasião estiver propícia, você e eu partamos numa cruzada até a Terra Santa.

- Pelos olhos de Deus! - bradou Ricardo. - Pouca coisa me agradaria mais!

Depois, afastou-se em direção à Aquitânia.

Ricardo havia fortalecido seus castelos e pretendia partir para a Terra Santa em companhia de Filipe. Não podia pensar em nada que melhor se encaixasse ao seu estado de espírito Sair a cavalo com Filipe a seu lado, dois bons amigos empenhados numa missão justa. Antes de deixar Filipe, eles tinham conversado sobre pouca coisa que não suas aventuras na Terra Santa.

- Lado a lado. Isso me daria um prazer maior do que qualquer coisa que já conheci - dissera Filipe.

Chegaram-lhe notícias de Jerusalém. Heráclio havia preparado o mundo para o que estava acontecendo. Não tinha ele implorado ao rei Henrique que fosse em seu auxílio? Ele lhes falara sobre a terrível doença que atacara o rei Balduíno e explicara que a carne caíra de seus ossos e que ele se encontrava em estado tão lastimável que não poderia viver muito mais tempo.

Agora, ele estava morto; o sobrinho o sucedera - um garoto que era pouco mais do que um infante. Além do mais, o garoto não era robusto e seguira rapidamente o tio à sepultura.

Saladino, o líder dos infiéis, homem de ação que não conhecia o medo, estava tão determinado a expulsar os cristãos da Terra Santa quanto estes estavam decididos a conservá-la. Era violento e corajoso; não dava quartel, nem o pedia. Aquele Saladino estava se tornando rapidamente uma lenda, e os cristãos tremiam ao ouvir o seu nome.

Heráclio havia previsto isso. Fora implorar ao rei da Inglaterra que salvasse Jerusalém, porque Henrique da Inglaterra tinha a reputação de ser um homem forte.

Eles haviam cometido um engano em relação a seu pai, pensou Ricardo. Henrique já não era mais um homem forte; não passava de um homem frágil e velho. Não seria ele o salvador do Santo Sepulcro.

Mas ele tinha um filho; e em Ricardo nasceu, então, um grande desejo.

Ele foi a Tours e, lá, apanhou a cruz e jurou que iria participar de uma cruzada e salvar a Terra Santa.

Agora que Ricardo tinha partido, Filipe estava decidido a impor suas condições a Henrique. Sabia que Henrique escrevera a Ricardo e que o filho não estava plenamente convencido da traição do pai. Ele era, afinal, filho de Henrique, e não podia acreditar de todo que o próprio pai lhe desejasse mal. A Filipe parecia errado Ricardo estar unido a outra pessoa contra o próprio pai, muito embora essa outra pessoa fosse Filipe.

Filipe conhecia perfeitamente o caráter de Ricardo, e seu grande objetivo, agora, era provar-lhe o quanto seu pai era traiçoeiro. Assim, enquanto Ricardo colocava seus castelos em estado de defesa e jurava fidelidade à cruz em Tours, ele decidiu agir.

Henrique, que fora levado a ter sensação de segurança, acreditando que Ricardo havia provocado uma paz temporária com Filipe, planejava voltar para a Inglaterra. Estava ansioso por escapar para uma certa paz. Ficaria tranquilo com Alice por algum tempo. Ela poderia tratar dele, pois ele precisava de tratamento; e lá, na paz de um de seus palácios, ficaria mais forte e pronto para qualquer coisa que Filipe pudesse estar planejando.

O Natal não foi muito festivo. Como poderia ser, com a segurança do rei correndo perigo e o seu humor muito incerto, porque ele sentia dores esporádicas? Toda a companhia esperava ansiosa estar na Inglaterra, onde o rei se sentiria mais tranquilo. Infelizmente, Filipe não pretendia proporcionar a Henrique uma saída fácil.

Que Henrique fosse para a Inglaterra, se quisesse. Então, Filipe invadiria a Normandia e poderia ser bem-sucedido com Henrique fora do caminho. Por outro lado, se Henrique preferisse ficar e lutar que assim fosse.

Henrique suspirou e viu que não podia fazer a tão esperada visita à Inglaterra.

Chegou uma mensagem de Filipe. Ele salientava que Henrique se apossara do dote de Alice, mas que não houvera casamento algum.

Quando o casamento seria realizado? Ou ele devolvia as terras que tomara, ou Ricardo devia se casar com Alice sem demora.

Começava de novo. A velha questão.

Oh, Alice, pensou ele, o que vou fazer? A decisão está se aproximando cada vez mais. Luís, por que você tinha de morrer e me dar esse seu filho para que eu negociasse com ele?

Eles deviam se encontrar em Gisors, cidade para a qual Filipe exigia que ele voltasse.

Estaria chegando o momento em que ele teria de entregar Alice?

Deus estava do seu lado. Ou seria Thomas Becket? De qualquer modo, foi-lhe mostrada uma saída.

Antes do início da conferência de Gisors, o arcebispo de Tyre entrou na cidade a cavalo. Soubera que os reis da França e da Inglaterra estavam lá e tinha notícias tristes para eles.

Quase três meses antes, Jerusalém caíra nas mãos de Saladino. O reizinho tinha morrido, como os dois já sabiam. A mãe dele, que tornara a se casar, nomeara o segundo marido rei de Jerusalém. Agora, Saladino estava em Jerusalém e se apossara da Santa Cruz.

Os cristãos do mundo inteiro deviam estar mergulhados na mais profunda tristeza. O rei Guy fora capturado, e a verdadeira Cruz estava em mãos de Saladino. Todos os bons cristãos deviam levantarse e arrancar as relíquias sagradas dos infiéis.

Era impossível, diante de tamanha calamidade, os dois reis discutirem suas diferenças. Elas agora pareciam insignificantes... para todos, exceto para Henrique.

Filipe, que de qualquer maneira havia planejado partir numa cruzada com Ricardo, sabendo que Ricardo já apanhara a cruz, declarou imediatamente sua intenção. E o arcebispo de Tyre, numa comovente cerimónia, presenteou-o com a cruz. Não havia nada que Henrique pudesse fazer, a não ser aceitá-la também. Mas ele duvidava que algum dia cumprisse os juramentos. Só podia considerar aquilo como uma saída temporária para suas dificuldades. Os soldados dos dois acompanharam-nos, e eram tantos que cruzes de diversas cores tiveram de ser entregues às diferentes nacionalidades - vermelhas para os franceses, brancas para os ingleses, e verdes para os flamengos.

Filipe e Henrique trocavam ideias, agora, não como inimigos, mas como aliados, e os dois juraram o que iriam fazer para que pudessem sair em sua cruzada juntos. Precisariam de tempo para se preparar, e decidiram que levariam um ano para reunir o dinheiro de que iriam precisar e para montar o equipamento. Planejavam partir na Páscoa de 1189.

Discutiram juntos a maneira de arrecadar o dinheiro, e Henrique sugeriu que cada homem que não os acompanhasse contribuísse com um décimo de suas posses para a causa, e aqueles que seguissem com eles deviam pôr de lado um décimo das suas, para que se abastecessem do que fosse necessário.

Aquilo pareceu justo, e com grande alívio Henrique partiu para a Inglaterra.

Encontrou Alice ansiosa, pois ela recebera notícias de que o rei da França estava decidido quanto ao seu casamento.

Henrique abraçou-a com fervor. Só o fato de vê-la reavivou sua juventude.

- Quais são as novidades, majestade? - perguntou, ansiosa.

- Está tudo bem. Deus está comigo. É Santo Thomas, acho eu, pois foi como um milagre. Seu irmão é um homem difícil, Ali cê. É muito diferente de seu pai. É esperto, e astuto, e acho que está fazendo o possível para me destruir.

Ela estremeceu.

- Não tenha medo, querida. Serei um adversário à altura. Ele não passa de um garoto, e sou um homem de grande experiência. Ele ia exigir que você se casasse com Ricardo, e então o arcebispo de Tyre apareceu com a terrível notícia. Como poderíamos discutir nossos problemas, então? Só havia uma coisa a fazer, e era nos reunirmos e partirmos numa cruzada.

- Vai partir numa cruzada?

- Isso não vai dar em nada. Muitas vezes, na vida, falou-se em cruzadas, e ainda não participei de nenhuma. Não. Algo vai acontecer, pode confiar, e me impedirá de ir a Jerusalém. Tenho meus deveres aqui. Não consigo ver vantagem alguma em deixar minhas terras expostas ao desastre e à rebelião, talvez, enquanto vou lutar para devolver a Cidade Santa à cristandade. Agora, se eu fosse um homem sem responsabilidades... mas não sou, Alice. Por isso, não tenha medo. Estamos juntos e só existe uma pessoa que poderia nos separar.

- Quem?

- A Morte. Ela estremeceu.

- Eu agora a fiz ficar aflita. Sorria, Alice, sorria para mim Não imagina como estive ansioso por vê-la fazer isso.

E assim ela sorriu e os dois se esqueceram de todas aquelas forças contrárias que procuravam separá-los, das quais a principal era a Morte.

Ricardo ficou muito contente ao saber que a conferência entre Filipe e Henrique tinha sido abandonada para que eles pudessem unirse e planejar uma cruzada.

Sua natureza era tal que, por mais que antipatizasse com o pai e por mais que fosse atraído para Filipe, não podia se esquecer de que era filho de Henrique e que os reis da França eram os inimigos naturais dos reis da Inglaterra. Não queria ser desleal com o pai, e se ao menos Henrique tivesse chegado a um meio-termo com ele, Ricardo estaria preparado para lutar por uma harmonia entre os dois.

O fato de que Henrique agora assumira o compromisso de partir numa cruzada o agradava. Tornava possíveis as esperanças de uma reconciliação entre os dois.

Ricardo escreveu ao pai pedindo que mandasse dinheiro para a sua cruzada. E também, como partiria numa empreitada tão perigosa, pediria aos cavaleiros e bispos da Inglaterra que jurassem fi delidade a ele, como filho mais velho e herdeiro do seu pai.

Aquilo era o ponto crítico da questão. Equivalia a pedir a Henrique que negasse os rumores de que estava planejando deserdar Ricardo em favor de João.

Ricardo já não era um garoto. Era um homem que precisava da garantia de que seu futuro estava assegurado; e aquele assunto das cruzadas fizera com que a questão chegasse ao seu ponto crítico. Tudo dependia da resposta de Henrique. Se concordasse que Ricardo fosse à Inglaterra para receber os votos de fidelidade, os rumores teriam mentido. Seria vontade do rei que ele se tornasse o seu herdeiro, e uma vez feitos os juramentos, ele seria aceito.

A resposta de Henrique foi típica, mas para Ricardo foi uma indicação da verdadeira situação.

Não iriam seguir separados para Jerusalém. Ricardo não precisava se preocupar em levantar dinheiro, pois o rei e o filho compartilhariam de tudo.

E não houve menção do juramento que deveria ser feito para assegurar-lhe a herança.

Quando Ricardo leu a resposta, seus olhos ficaram frios como aço e a fúria explodiu dentro dele, que não era menos violenta pelo fato de não tê-la demonstrado numa explosão furiosa.

Aquilo foi o fim de todas as esperanças de harmonia entre os dois.

Pela sua resposta, e mais pela sua omissão, o rei mostrara a Ricardo que estava contra ele.

- E ele vai descobrir que aqueles que trabalham contra mim verão em mim um inimigo implacável - disse Ricardo.

Era inevitável que irrompesse um conflito entre Filipe e Henrique. Quando a excitação sobre a cruzada diminuiu, como devia, pois os preparativos eram demorados e o entusiasmo não podia continuar em nível de uma febre, Filipe lembrou-se de que o maior objetivo de sua vida era expulsar Henrique da França e colocar todas as províncias sob uma mesma coroa; Henrique, por outro lado, estava decidido a não perder a sua herança e aquela terra que somara a ela através de sua inteligente diplomacia. Cada qual estava firme em sua determinação, e como se achavam em posições inteiramente opostas, o conflito era inevitável.

Filipe estava, uma vez mais, convocando uma conferência. Sabia que Ricardo ainda não se decidira. Estivera envolvido em hostilidades contra o conde de Toulouse, assunto que não perturbou muito Filipe, porque lhe dava a oportunidade de reprovar Henrique pela conduta do filho. Ele fora, no entanto, obrigado a sair em auxílio do conde de Toulouse, e isso significara que durante algum tempo Ricardo e Filipe estiveram em campos opostos. Filipe não pretendia deixar que aquilo afetasse seu relacionamento com Ricardo, mas o fato de haver, segundo Henrique, problemas entre a Aquitânia e a França significava que ele, Henrique, já não podia mais ficar na Inglaterra, e ele se preparou para atravessar o canal e ir para a Normandia.

Henrique se sentia assediado por grandes preocupações. Sabia que a curta trégua terminara. Filipe não deixaria que ela se prolongasse. Além do mais, o povo da Inglaterra, que no passado se mostrara satisfeito com o seu governo muito enérgico, mas justo, estava agora reclamando do Dízimo Saladino imposto por ele em benefício da cruzada. Se perguntassem ao povo, ele iria declarar que era composto de verdadeiros cristãos e que a ideia de as Relíquias Sagradas estarem em mãos do Infiel lhe era repugnante; mas quando aquilo significava que um décimo de suas posses devia ser entregue em nome de uma tentativa de recuperá-las, ele ficava menos entusiasmado. A vida na Inglaterra não era tão confortável, assim, que não pudesse ser melhorada; o dinheiro que sairia do país parecia ser necessário dentro dele.

Havia muito que corriam murmúrios de descontentamento em relação às leis florestais. Como seus ancestrais normandos, Henrique gostava de caçadas. Elas lhe proporcionavam consolo e alívio, como proporcionara ao Conquistador, e não havia distração igual para um homem tão ativo como ele sempre fora. Para preservar as florestas para o seu uso - uma vez mais como seus ancestrais ele achava necessário manter as leis enérgicas que eles haviam promulgado. Ele criara um sistema legal projetado por si próprio; e os principais objetivos desse sistema eram manter a ordem e, ao mesmo tempo, estar sempre reabastecendo o erário real. No governo de um país havia uma constante necessidade de dinheiro, e para Henrique parecia um plano excelente ganhar tanto na aplicação de multas quanto na arrecadação de impostos, embora essa última também fosse necessária.

Decidido a restaurar a ordem que se perdera com o reinado do fraco Estêvão, os transgressores sofriam punição com a morte. Muitos iam para a forca, e muitos eram quebrados na roda, e era comum encontrar um homem morto pendurado numa árvore ou numa forca.

Isso o povo aceitava, porque significava a supressão do crime e tratava-se de um benefício para os membros da população cumpridores das leis. O povo nunca concordava era com o castigo aplicado aos que infringiam as leis florestais. Qualquer um que invadisse a floresta do rei ou matasse um veado ou um javali quando a família pudesse estar passando fome provocava penalidades terríveis. Por ofensa àquelas leis, cortavam-se braços, pés, ou mãos; arrancavam-se olhos; homens eram castrados; e se o crime fosse considerado grave, ferviam-nos vivos.

Muitas dessas tristes vítimas eram vistas mendigando à beira das estradas, e as pessoas estremeciam ao vê-las, porque sabiam que muitas poderiam ter tido o mesmo destino. Aquilo era simplesmente um sinal de que aquelas pessoas tinham invadido e tomado liberdades com as florestas do rei.

Por causa das boas leis do rei, todos aceitavam aquilo; mas quando eram cobrados o que consideravam impostos injustos, todos se lembravam. Isso ocorria agora.

Por isso, havia mais outra angústia para Henrique. O povo da Inglaterra, que até então lhe dera poucos motivos para preocupação, mostrava-se inquieto e reclamando de seu governo. com isso para atormentá-lo e o incómodo de sua doença somados à consciência de que seu corpo estava perdendo a sua excepcional vitalidade, ele partiu para a França.

Precisava falar com Filipe; se os dois reis pudessem chegar a algum acordo, disseram-lhe os respectivos ministros, poderiam evitar as consequências de uma guerra violenta, que no fundo nenhum dos dois queria.

Filipe estava ansioso por conversar. Seu grande objetivo era provar a Ricardo que seu pai o estava enganando. Queria obrigar Henrique a admitir aquilo. Mas ele era jovem, e Henrique era velho e astuto como uma raposa; fazia promessas com uma honestidade aparentemente autêntica, apenas sem jamais pretender cumpri-las. Cada rei sabia dos objetivos do outro; Filipe, pegar de volta tudo, e Henrique, aguentar firme.

Os dois se encontraram sob um velho olmo em Gisors, que era bem conhecido como a árvore sob a qual os reis da França e da Inglaterra tinham se encontrado muitas vezes para tentar eliminar suas diferenças. Os ingleses, chegando primeiro, ocuparam a parte da sombra, e os franceses foram obrigados a esperar ao sol, e por ser agosto e fazer um calor intenso, os franceses banhados pelo sol mal podiam aguentar. Não foi possível chegar a uma conclusão satisfatória, e Filipe ficou tão zangado por ele e seus homens terem sido obrigados a suportar o calor do sol, enquanto seus oponentes aproveitavam a sombra, e pelo fato de o velhaco Henrique ter aparentemente levado vantagem sobre ele, que num acesso de raiva mandou derrubar o olmo, para que não fosse mais possível realizar conferências sob seus ramos.

Mandou chamar Ricardo e, como seu suserano, ordenou que ele se apresentasse imediatamente.

Quando Ricardo chegou, Filipe abraçou-o com vigor.

- Estamos separados há muito tempo.

- Majestade, eu adoro a sua companhia, mas sou filho de meu pai e não posso, com a consciência tranquila, agir contra ele.

- Não pode, quando ele está sempre agindo contra você? O rei não lhe negou a sua herança?

- Ele não disse isso. Tem simplesmente demonstrado que não me dará poder algum e que devo esperar ele morrer.

- Não é isso que ele tem em mente. vou convocar uma conferência e você estará lá. Farei minhas exigências de tal maneira que ele será obrigado a trair suas verdadeiras intenções a seu respeito. Então, nós dois ficaremos juntos contra ele, seremos os amigos que devíamos ser, como eu sabia quando você me visitou como meu convidado. Diga-me, Ricardo, se sente em condições de saber a verdade?

- Quero conhecer a verdade, mais do que qualquer outra coisa.

- Então espere que irei colocar o rei da Inglaterra diante de minhas condições, e vamos ver.

Os dois reis encontravam-se frente a frente. Ricardo estava com eles.

- Eu lhe ofereço todas as terras que tomei no último conflito.

- disse Filipe. - Ricardo ficará com o que ganhou. Peço que ele receba minha irmã a princesa Alice, como esposa, e que você ordene a seus nobres, arcebispos, bispos e todos os homens de autoridade que jurem fidelidade a Ricardo na qualidade de herdeiro de seus domínios.

Henrique ficou encurralado. Pediam-lhe que abrisse mão das duas coisas de que ele jurara nunca abrir mão. A primeira era Alice. Ela lhe pertencia e iria mante-la sua. Além do mais, não queria que Ricardo governasse depois dele. A Inglaterra e a Normandia destinavam-se a João. Ricardo podia ficar com a Aquitânia, mas a Inglaterra pertencia a João.

O que podia fazer? Aquela não era hora de tergiversação. Finalmente, ele tinha sido apanhado.

O rei francês tinha um sorriso malicioso; Ricardo olhava para ele com olhar firme, e Henrique continuava calado.

- Vossa Majestade ouviu o rei da França. Jure que terei a minha noiva e que serei reconhecido como seu herdeiro, posição à qual, devido à minha condição de seu filho mais velho vivo, tenho todo o direito.

Em vão, Henrique procurou uma saída. Não havia. Ele poderia prometer, sim, mas percebia pela intenção nos olhos de Filipe e Ricardo que seria obrigado a cumprir suas promessas imediatamente.

- Não! Não juro!

Ricardo olhou para ele com um certo espanto Depois, disse com voz tranquila:

- Agora finalmente vejo que o senhor está sendo sincero. Eu não acreditava que fosse possível, mas agora sei que é. - Voltou-se para o rei da França e, desafivelando a espada, entregou-a a ele.

- Meu senhor supremo e suserano, eu lhe ofereço minha vassalagem - disse ele.

Ricardo havia segurado as mãos de Filipe, e Filipe curvou-se num gesto rápido e beijou-lhe as mãos.

Os olhos deles se encontraram, e os presentes admiraram-se com a ternura entre os dois.

Henrique ficou estupefato. Diante de seus olhos, seu próprio filho jurava vassalagem ao inimigo. Filipe era o seu senhor feudal, por causa da Aquitânia, mas aquilo era um juramento de ficar com o rei da França contra o próprio pai.

Filipe disse logo que concordaria com uma trégua até janeiro, quando voltariam a se encontrar. Enquanto isso, talvez o rei da Inglaterra pensasse em suas exigências, e se não pudesse concordar com elas, a guerra seria inevitável.

Filipe conseguira o seu intento. Provara a Ricardo que seu pai não iria aceitá-lo, decidira deserdá-lo e colocar João em seu lugar.

Quando a conferência terminou, Henrique teve o vexame de ver o filho afastar-se ao lado do rei da França, em atitude das mais carinhosas.

 

CHEGOU o NATAL. Henrique ainda estava na França, e passou-o em Saumur. Sentia-se muito doente e velho, e tinha dores constantes. Sabia que Ricardo e Filipe haviam se unido. Várias reuniões tinham sido sugeridas, mas ele sempre alegara doença como justa causa. Recebia um grande consolo do velho amigo e cavaleiro-mor do jovem Henrique, Guilherme, o Marechal, e de seu filho bastardo Geofredo, que demonstrara mais afeição sincera por ele do que qualquer um de seus filhos.

- Não posso compreender por que meus filhos se voltaram contra mim. Veja só, meu bom Marechal, Ricardo se uniu ao meu inimigo.

- Isso é porque ele é o seu filho mais velho, Majestade - respondeu Guilherme, com sua sinceridade habitual -, e acredita que Vossa Majestade está tentando roubar-lhe a herança.

- Eu coloco a minha coroa onde quiser - retrucou Henrique, com teimosia. - A Aquitânia sempre foi para Ricardo.

Depois que o inverno passou, ele ficou um pouco melhor, e quando em junho Filipe sugeriu outra conferência, os dois reis se encontraram em La Ferté Bernard. Ricardo acompanhou Filipe, pois os dois eram inseparáveis, e como Filipe iria insistir no reconhecimento de Ricardo como herdeiro do trono da Inglaterra e da Normandia, levou com ele vários membros da Igreja para que se Henrique pudesse ser obrigado a fazer o juramento, houvesse muitas testemunhas presentes.

- Nós queremos a paz - disse Filipe. - Nós brigamos por nossas disputas insignificantes, enquanto a Cidade Santa nos chama. Façamos a paz, irmão. Você conhece minhas condições. O casamento de Ricardo com Alice e o seu reconhecimento de que ele é o herdeiro de seus domínios, direito que lhe cabe como seu filho mais velho vivo. Ricardo jurou que vai, dentro em breve, até à Terra Santa. Seu filho João deve tomar a cruz e acompanhá-lo.

Henrique semicerrou os olhos. João, acompanhar Ricardo! Ele sabia o que isso significava. Não confiava nele nem em João, e queriam saber onde João se encontrava e o que estava fazendo. Se ele estivesse participando de uma cruzada à Terra Santa, não poderia tomar a coroa da Inglaterra com a morte do pai.

- Não! Não concordo. Darei meu consentimento ao casamento de Alice com João - rugiu Henrique.

Olhou para um dos cardeais que havia subornado para que ficasse do seu lado. Ele se insinuara para conseguir a confiança do cardeal explicando que enquanto o rei da França lhe fosse hostil, ele não poderia participar da cruzada à Terra Santa que havia sido proposta. Não tinha coragem. Se pudesse provar que tinha razão naquela discussão entre os dois, se o rei da França aceitasse as suas condições, não haveria mais demora.

O cardeal tinha ficado tentado pelos ricos presentes do rei da Inglaterra, e agora declarou que Filipe deveria aceitar as condições de Henrique. Que mal fazia se a princesa Alice se casasse com o príncipe João e não com o príncipe Ricardo, especialmente se estava claro que Henrique faria de João o seu herdeiro?

Filipe ficou furioso.

- Como ousa vir aqui, fedendo ao ouro do rei! Pensa que não sinto o cheiro? Não, não vou aceitar as condições do rei da Inglaterra. Ele é que, por obrigação moral, deve aceitar as minhas. Se ele não concordar com o casamento de minha irmã com o príncipe Ricardo, e não ordenar que seus cavaleiros e homens da Igreja jurem vassalagem a Ricardo, não poderá haver paz entre nós. Voltou-se para Henrique. - Você jura?

Henrique ficou encolerizado. Bateu com um punho fechado na palma da outra mão.

- Não! Nunca! Nunca!

A conferência acabou, e uma vez mais terminou num impasse.

Henrique sempre gostara muito da cidade de Lê Mans. Talvez significasse mais para ele do que qualquer de suas possessões continentais. Seu pai estava enterrado lá; e assim que voltou, Henrique foi até o seu túmulo para rezar.

Sentia-se velho e cansado, e estava farto da batalha! Pensou no pai, que tinha sido muito alegre e bonito e que discutira de forma muito violenta com sua mãe. Lembrava-se daquelas discussões, do desprezo que a mãe tivera pelo pai, e a antipatia que o pai tinha para com ela. Claro que fora uma mulher dominadora, e seu pai fora irresponsável e amante dos prazeres; seus filhos Henrique e Geofredo tinham saído ao avô.

Geofredo, o Belo, era como chamavam o homem que agora jazia naquele túmulo. Henrique descendia dos impetuosos condes de Anjou, aqueles que, segundo se dizia, descendiam do Diabo. Se a história sobre a sua antepassada que adotara sua verdadeira forma na igreja, ao enfrentar a Missa, era verdadeira, eles eram descendentes de uma feiticeira e podia muito bem haver um diabo em todos eles. Não tinha seduzido a noiva do filho, quando ela não passava de uma criança? Quando o seu mau génio ficava no auge, que coisas ele não tinha feito? Quantos homens havia assassinado? Sim, o Diabo estava nele; mas com a sua descendência satânica de um lado, e sua mãe vigorosa, neta do Conquistador, do outro, o que ele podia esperar?

Sua mãe trabalhara pelo seu sucesso. Amara-o à sua maneira bravateadora. O pai também o amara, de forma diferente, mais terna. Geofredo, o Belo, amante de muitas mulheres! Dizia-se que Eleanor partilhara de seu leito durante um curto período. Henrique sorriu com ironia. De Eleanor podia-se esperar tudo. Por isso, durante todos aqueles anos, a mantivera prisioneira.

Henrique deu de ombros. Ela merecia o destino que tinha. Não sentiria pena dela.

Ele fora até aquela cidade para ficar tranquilo, para pensar no pai e dizer a si mesmo que todos os governantes ficavam assediados por angústias. Não havia paz numa coroa. Por que, então, os homens a perseguiam com tanta paixão que estavam prontos a trocar a vida - e a vida de outros - por ela? Faziam-no pela glória. E para onde iam todos, no fim? Para o túmulo.

Henrique se levantou de sua posição ajoelhada, e enquanto seguia para seus aposentos, chegou um mensageiro para lhe dizer que Filipe estava em marcha. Ricardo o acompanhava, e eles estavam a apenas poucos quilómetros de Lê Mans.

Do alto das ameias, o rei via os exércitos acampados lá. Filipe e Ricardo estavam juntos na mesma barraca.

- O que foi que fiz para que meus filhos pegassem em armas contra mim? - perguntava a si mesmo.

Tenho um único filho bom - Geofredo - o bastardo Geofredo, a quem eu confiaria minha vida.

Mas havia João, a quem ele devia amar mais do que aos outros, porque era seu filho legítimo. Meu mais novo e meu melhor filho, garantia a si mesmo.

João deveria ser o seu herdeiro. Se ele derrotasse Filipe, se impusesse suas condições a ele, iria tirar tudo de Ricardo - até mesmo a Aquitânia.

Um pouco de seu antigo ardor voltou. Sentiu-se melhor. Se ao menos tivesse havido uma conferência! Antigamente, ele se saía vitorioso nas conferências. Conseguia sempre levar a melhor sobre seus oponentes, graças à sua inteligência ágil e, é claro, ao velho truque de concordar em fazer aquilo que não tinha intenção alguma de fazer. Mas as pessoas se tornavam precavidas. Não se pode continuar a aplicar truques velhos.

- Não vão tomar Lê Mans. Não a cidade de que mais gosto, não aquela que guarda o túmulo de meu pai.

Ele tinha horror à ideia de uma batalha de frente. Sempre evitara aquilo. Tanta coisa dependia da sorte e dos números, e sempre achara que era uma destruição sem sentido. Ele, que sempre confiara na estratégia, confiava nela agora.

Henrique provocaria um incêndio, e como o vento estava na direção certa, as chamas seriam levadas para o acampamento francês. Na melhor das hipóteses, poderia destruir tanto que os deixaria fora de combate; quando nada, provocaria confusão. Deu a ordem.

Enquanto ficava na torrinha observando o incêndio, deu um sorriso de satisfação. A estratégia era sempre melhor do que o combate corpo a corpo.

Sua alegria se transformou subitamente em consternação. Deus estava realmente contra ele, pois o vento mudara, de repente, de direção. Era como se se tratasse de uma ordem direta do céu. Em vez de envolver o acampamento francês, estava soprando de volta, em direção à cidade.

Henrique deixou a torrinha. Seus cavaleiros, vendo o que acontecia, aguardavam suas ordens.

- A cidade será destruída! - berrou Henrique. - A mão de Deus está contra nós. Nada nos resta fazer a não ser fugir enquanto podemos.

Ele e seus homens saíram da cidade, que agora começava a se transformar num grande incêndio, com as chamas levadas pelo forte vento envolvendo-a.

Henrique estava deprimido. Aquilo era o desastre final. Alguma coisa lhe dizia que ele não poderia sobreviver àquilo. O novo vigor que o dominara havia evaporado.

Cavalgou até o topo de um morro e voltou-se para olhar para a cidade em chamas.

Seu filho Geofredo estava a seu lado, e Henrique disse a ele:

- Deus me tirou a cidade que eu mais amava.

- Foi uma aberração do tempo. Quem iria adivinhar que o vento mudaria assim tão de repente? - comentou Geofredo.

- É o aviso de Deus de que Ele me abandonou. Geofredo, meu filho, na minha juventude passei muitos anos naquela cidade. O túmulo de meu pai está lá. E Ele está reduzindo tudo a cinzas. - Num súbito acesso de raiva, Henrique sacudiu o punho para o céu.

Geofredo ficou com medo de que o pai tivesse alguma coisa, e procurou acalmá-lo.

- Eu lhe peço, majestade, que pense. Vossa Majestade precisa da ajuda de Deus como nunca precisou antes. Vossa Majestade blasfema. Não devia rezar humildemente a Ele?

Henrique soltou uma gargalhada e seus olhos faiscaram com a velha fúria, enquanto o sangue martelava em suas têmporas.

- Por que iria eu apelar a quem está decidido a me destruir? Por que iria eu prestar-lhe homenagens? O que foi que Ele fez por mim? Ele me deu filhos homens e voltou-os contra mim. Naquele acampamento está meu filho Ricardo. O que foi que eu fiz, Geofredo, para ser tratado dessa maneira?

- Deus lhe deu muito, majestade. Deu-lhe uma coroa e a força para mante-la. Talvez as dificuldades tenham vindo para testálo. Dizem que Deus adora testar aqueles a quem Ele mais ama.

Henrique virou-se e olhou para o filho, e de repente seguroulhe o braço.

- Você tem sido um bom filho para mim, Geofredo. Quem dera que você fosse meu filho legítimo. Como isso teria sido diferente! Ele me deu você, não deu?, e me deu meu filho João. Meu filho João será um bom rei, pois estou decidido que ele irá me suceder. É o único que demonstrou afeto por mim. Eu tenho meu filho João.

Geofredo afastou o olhar e dirigiu-o para a cidade que queimava, e pediu a Deus que não deixasse o rei descobrir o verdadeiro caráter de seu filho caçula, pois Geofredo sabia que o rapaz era dissoluto, inconfiável, hipócrita e muito menos digno do que o irmão Ricardo, que o rei procurava deserdar.

- Majestade, agradeça a Deus, então, pelo que Ele lhe deu, e lhe peço que sigamos em frente, pois o inimigo irá nos perseguir, e não deve nos capturar.

Enquanto ele falava, Guilherme, o Marechal, aproximou-se do rei, a cavalo.

- O exército francês está atrás de nós - disse Guilherme. Vá em frente, majestade, a toda velocidade. Eu e minha companhia cobriremos a sua retirada, mas siga o mais depressa possível.

O rei em retirada! O rei sendo protegido por uma retaguarda! Aquilo lhe partia o coração.

Guilherme, o Marechal, via que eles não poderiam deter os franceses. Ricardo cavalgava à frente deles. Ele queria ser aquele que capturasse o pai. Nem parara para vestir a armadura, e estava desarmado.

Uma fúria fria o possuía enquanto ele dizia para consigo mesmo o que iria dizer ao velho que fizera o possível para deserdá-lo. A cidade fumegante ficara para trás, o ar tomado por um cheiro acre. Ricardo via o grupo de homens em retirada, no centro do qual estaria seu pai.

com um grito, ele avançou. Enquanto cavalgava, falava ao velho. "Que tipo de pai o senhor foi para mim? O senhor não me odiou, sempre? E por quê? Porque minha mãe me amava. O senhor a odiava, e por isso me odiava e tentou me tirar aquilo que é meu por direito. Pai desnaturado! Agora, verá o que acontece quando for meu prisioneiro."

Um cavaleiro pareceu surgir diante dele. Uma lança estava apontada para a sua garganta.

- Alto, Ricardo de Aquitânia! - disse uma voz que Ricardo reconheceu.

- É Guilherme, o Marechal! - bradou Ricardo. - Vai me matar, então? Isso seria uma traição. Não vê que estou desarmado?

- Não vou matá-lo. Deixarei isso para o Diabo.

- Guilherme...!

- Eu nada tenho a lhe dizer. Você é um traidor de seu pai.

- E com aquelas palavras, Guilherme enfiou a lança no cavalo de Ricardo.

O cavalo caiu moribundo, e Ricardo foi jogado ao chão.

Guilherme, o Marechal, voltou-se e se afastou a galope.

Ricardo estava desarmado, mas como não podia continuar, mandou que seus homens parassem. Voltaram, desconsolados, para o acampamento francês.

O rei e seu bando de seguidores fiéis, que incluía seu filho Geofredo e Guilherme, o Marechal, pararam para descansar num pequeno castelo, e como o rei estava demasiado exausto para prosseguir, decidiram que deviam ficar ali algum tempo.

Geofredo estava ao lado do rei e tirou sua capa para cobri-lo, porque embora fosse o mês de junho e fizesse calor, Henrique estava sempre tremendo de frio.

Enquanto o rei dormia um sono agitado, Geofredo e Guilherme, o Marechal, conversavam com alguns dos cavaleiros do rei, debatendo a situação desesperadora em que se encontravam.

- Devemos seguir para a Normandia. Lá, poderíamos convocar muitos cavaleiros fiéis para a causa do rei - comentou Guilherme.

- Lá chegando, poderíamos mandar buscar reforços na Inglaterra - concordou Geofredo.

- É a nossa única esperança.

Pela manhã, o rei pareceu um pouco melhor. Recusou-se a ir para a Normandia.

- Lê Mans está destruída. Nunca me esquecerei dela. vou ficar em Anjou, que é a terra de meus antepassados. Meu filho João irá juntar-se a mim. Ele é um bom guerreiro, e vai dar ânimo ao nosso exército e provocar medo no inimigo.

Guilherme, o Marechal, não encarou Henrique. Se o rei estivesse mais forte, ele teria tido algo a dizer, mas Henrique precisava de um mastro para se apoiar. Que acreditasse que João lhe proporcionava esse apoio.

- Onde está meu filho João? Estou surpreso por ele ainda não ter-se juntado a mim.

- Ainda não há notícias dele, majestade - disse Geofredo.

- Ele vai nos surpreender. Eu o conheço. Vai chegar com homens para nos libertar. Vocês vão ver - disse Henrique.

Geofredo e Guilherme nada responderam.

Os exércitos de Filipe estavam tomando todos os castelos em seu caminho. Ele enviou uma mensagem a Henrique. Estava pronto a reencontrar-se com ele, e achava que agora Henrique poderia julgar conveniente pensar em suas exigências.

- Eu não queria que o jovem Filipe me visse como estou agora - disse Henrique. - Dentro de poucos dias estarei melhor. Adie a resposta. Diga-lhe que estou indisposto. Se ao menos João chegasse! Mas vai chegar, em breve.

Os mensageiros voltaram com a resposta de Filipe.

Ele não acreditava na indisposição do rei. Henrique dera tantas desculpas em sua vida, contara tantas mentiras, que agora ninguém acreditava nele.

Filipe prosseguiu na sua marcha, e castelo após castelo caía em suas mãos.

Uma vez mais, Filipe sugeriu uma conferência, e outra vez Henrique respondeu que estava doente demais para isso.

A resposta veio: "O rei da França está cansado das continuadas desculpas do rei da Inglaterra. Henrique tinha de comparecer à conferência ou corrrer o risco do resultado."

Então ele tinha de ir. Mal podia montar seu cavalo.

- Se meu filho João estivesse aqui, iria no meu lugar. Ele discutiria com meu inimigo e com meu filho traidor.

Era difícil manter-se em cima do cavalo. Guilherme, o Marechal, estava de um lado, Geofredo do outro. Os dois estavam prontos a segurá-lo se ele caísse.

Oh, Deus, pensou ele, eu chegar a este ponto! O outrora orgulhoso Henrique Plantageneta, agora um rei vencido, com um corpo torturado pela dor, abandonado por meu próprio filho. Oh, João, meu adorado caçula, onde está você agora?

As condições de Filipe foram lidas para ele.

Ele tinha de aceitar as opiniões do rei da França e prestar vassalagem por todo o seu território no continente. Quando Ricardo voltasse de Jerusalém, deveria receber a princesa Alice como esposa e ser proclamado herdeiro de todos os territórios do pai. Henrique teria de pagar a Filipe o custo da guerra. Se não concordasse em cumprir os termos daquele tratado, seus cavaleiros e barões deveriam jurar que o abandonariam e se uniriam a Ricardo.

Henrique curvou a cabeça. A humilhação era maior do que ele podia suportar. Eles o estavam matando.

No entanto, tinha de ceder, pois qual era a alternativa? Eles o fariam prisioneiro. Ele, o orgulhoso Henrique, prisioneiro do jovem rei da França e do próprio filho!

Era insuportável.

Ele tinha de aceitar. Depois, quando a saúde voltasse, encontraria um meio de fugir àquelas condições. Quantas vezes não cumprira os seus contratos? Aquilo fizera parte de sua política. Àquilo ele devia o seu sucesso.

Aceitou. Sua humilhação estava completa. Mas nem tanto.

Agora que aceitara as condições para a paz, mais uma coisa lhe foi exigida. Portara-se de maneira injusta para com o filho; tentara tirar-lhe a herança. Não deveria haver recriminações. Agora, daria o beijo da paz em Ricardo, diante de todos os presentes.

Ricardo cavalgou até ele - jovem, ereto, belo com o sol batendo nos cabelos claros, parecendo um deus. O rei da França ficou olhando, com amor e orgulho.

Os olhos injetados de Henrique, com um ódio violento, fitaram os azuis de aço do filho. Os dois se abraçaram.

Henrique não conseguiu controlar a raiva.

- Rogo a Deus que eu possa viver o bastante para me vingar de você como você merece.

Ricardo sorriu friamente. O ódio entre os dois era enorme.

Iriam levá-lo para o castelo de Chinon, porque ficava perto e ele não estava em condições de suportar uma viagem longa.

Geofredo ordenou que trouxessem uma padiola, e, com algum protesto, Henrique deixou-se ser colocado nela.

- Em breve meu filho João estará comigo. Então, poderei começar a planejar minha vingança. Ricardo nunca deverá ficar com a coroa - avisou ele.

Quando chegou ao castelo, sentiu-se melhor. Viveria para lutar outra vez. Quando fora obrigado a dar em Ricardo o beijo da paz, a raiva fora tamanha que provocara o velho espírito.

- vou ter a minha vingança. Tenho de ter - disse o rei. Ficou na cama coberto com a capa de Geofredo, porque estava cansado demais para se despir.

- Geofredo, havia muitos cavaleiros do lado de Filipe e de Ricardo que deveriam estar do meu. Eles desertaram. Abandonaramme em favor do inimigo.

- Foi isso mesmo, majestade. E muitos outros se foram.

- Eu gostaria de saber quem são.

Geofredo fez um gesto afirmativo com a cabeça.

- É bom conhecer os traidores.

- Envie um homem ao rei da França. Peça-lhe o seguinte favor: quero uma lista de todos os cavaleiros que me abandonaram. Ele não pode me negar isso.

- Assim será feito, majestade.

O rei balançou a cabeça num gesto afirmativo e fechou os olhos.

- Fique ao meu lado, Geofredo. Você me conforta. É bom saber que tenho amigos fiéis. Não me sinto desesperado, embora nunca tenha estado tão difícil como agora. Já enfrentei situações desesperadoras, mas nunca uma como esta. Mas vou me sair dela. Não tenha dúvidas, Geofredo. Meu filho João estará aqui muito em breve, e ele e eu, com você, Geofredo, e Guilherme, o Marechal, e aqueles em quem confio a própria vida... faremos planos juntos. Quero meu filho Ricardo trazido à minha presença, um prisioneiro miserável. Ele irá juntar-se à mãe na prisão. Pense nisso, Geofredo. Uma esposa e os filhos que se voltaram contra mim!

- Procure descansar, majestade. Vossa Majestade precisa dormir.

- vou tentar, Geofredo. Acorde-me assim que João chegar.

- Acordarei, majestade.

O rei acordou sobressaltado.

- É o João?

- Não, majestade. É a lista enviada pelo rei da França. A lista dos cavaleiros que abandonaram suas fileiras e uniram-se às de Filipe e Ricardo - respondeu Geofredo.

- Ah! Agora, vou saber quem são os traidores. Que a lista seja lida para mim.

Houve um curto silêncio.

- Estou pronto.

Ainda assim não houve resposta.

- O que se passa com vocês? Por que não me dão os nomes desses traidores?

- O primeiro da lista é...

- O que se passa com você, homem? Quem é o primeiro da lista?

- É o príncipe João, majestade. Henrique ficou angustiado e calado.

Não podia acreditar. Tinha de ver, ele mesmo. Ali estava, bem claro. O príncipe João encabeçando a lista. Então era por isso que ele esperara em vão.

Por quê, João, por quê?

Podia ver o rosto do filho. Podia imaginar os pensamentos por trás daquela fisionomia atraente. Porque o senhor está liquidado, papai. O senhor foi vencido. Como poderia estar do seu lado, quando o senhor nada tem a me oferecer? Ricardo está em ascensão. Dentro em pouco, será rei. Não posso me dar ao luxo de ofender o novo rei da Inglaterra, papai, mesmo quando o antigo é o senhor.

Sozinho, doente, abandonado!

O que me importa, agora?, perguntou-se. Nada. Deixem que eu morra. Sou um rei derrotado. Oh, que vergonha, que vergonha isso ter acontecido com Henrique Plantageneta. Abandonado pelo filho que eu mais amava, João. Não foi por você, meu filho, que me envolvi nesta guerra? Ricardo me odiava e não fazia segredo disso. E você... você fingiu me amar, e eu acreditei em você. Acreditei? Bem no fundo do coração, eu não sabia?

Pensou no quadro na parede de Winchester. As aguietas vorazes matando o pai com bicadas, e a mais nova esperando o momento de arrancar-lhe os olhos com o bico.

Foi isso que você me fez, João. Você me arrancou os olhos com o bico. Já não tenho vontade alguma de viver. Agora, nada mais importa. Perdi tudo. Enquanto acreditava em você, havia uma razão para continuar. Mas você mentiu para mim, me enganou, riu de mim pelas minhas costas, sem dúvida. João, você é um monstro. Todos os meus filhos foram contra mim. Não houve quem não erguesse a mão e não tentasse me apunhalar pelas costas. Todos eles... e agora aquela loba que está presa, a mãe deles... estão rindo de mim.

Veja a que ponto você chegou, Henrique. Você, o orgulhoso, o árbitro de nossos destinos, onde está agora? Estamos zombando de você, Henrique. Já não tem poderes para nos prejudicar.

Ele não tinha certeza de onde estava. Ficara frio, de repente. Estava no pavilhão de Rosamund. Bela Rosamund, a quem amara tanto. Ela se transformara em Alice. Alice, Alice, o que vai ser de você, agora? Irá para Ricardo, para ser a esposa. Ele nunca a perdoará por ter me amado, por ter tido um filho meu. Ele é duro e cruel. Eu sei. Já olhei em seus olhos gelados. Alice, minha querida Alice, o que será de você?

Por que fazia um frio tão maravilhoso assim? Henrique abriu os olhos. O filho Geofredo abanava o seu rosto.

- Oh, Geofredo, meu bom Goefredo. Quem dera que você tivesse sido meu filho legítimo! O que está fazendo?

- Estou mantendo as moscas afastadas. Esquentou muito. Deseja alguma coisa majestade?

- Não me chame de majestade. Me chame de papai. Você tem sido um verdadeiro filho para mim. Por que você foi tão bom para mim, e os filhos de minha rainha me abandonaram? Eles me destruíram, o caçula acima de tudo. Ele estava calmamente esperando para me arrancar os olhos com o bico. Deus irá recompensá-lo, Geofredo... meu filho.

- Não quero recompensa alguma, papai. Se o servi e tive o seu amor, isso já é uma recompensa suficiente.

- Há um anel de safira no meu dedo, Geofredo. Nunca liguei para essas bugigangas, mas eu as tinha pelo seu valor. Pegue-o. É seu. Lembre-se de mim quando olhar para ele, Geofredo.

Geofredo pegou o anel e beijou a mão do pai.

- Que Deus o abençoe, você que foi realmente meu filho. Geofredo sentou-se ao lado da cama, enquanto ele ficava mais delirante.

- Ele devia ver um padre, porque seu fim está próximo.

Não havia padres. Os padres tinham ido embora, como acontecera com a maioria dos cavaleiros. Não havia vantagem alguma em ficar com um rei morto e derrotado.

Geofredo ficou ao lado dele com Guilherme, o Marechal, e enquanto os dois ficavam olhando, o rei parou de murmurar e os olhos ficaram vidrados. Então, ele falou. Guilherme se curvou para ficar mais perto e ouvir suas palavras.

- Vergonha. Oh, a vergonha de um rei derrotado! - murmurou o rei.

E então viram que ele estava morto.

Eles o levaram para a abadia de Fontevrault e colocaram-no na igreja. Só uns poucos homens fiéis tinham ficado com ele. O resto havia tirado suas jóias e suas roupas.

Ricardo, o novo rei da Inglaterra, foi ver o corpo do pai. Olhou para ele impassível, e ninguém soube que emoções se passavam em seu coração.

Guilherme, o Marechal, encarou-o do outro lado do cadáver do pai, e a expressão de Ricardo não mudou.

Isso é o meu fim, pensou Guilherme. Ele nunca me perdoará pelo que fiz.

- Você era meu inimigo há poucos dias, Guilherme, o Marechal. Matou meu cavalo para que ele caísse e me jogasse ao chão.

- Isso mesmo, majestade, e em circunstâncias semelhantes, faria isso outra vez.

Ricardo fez um gesto afirmativo com a cabeça.

- Agora, que sou o seu rei, vai tentar me matar?

- Não, porque Vossa Majestade é o verdadeiro rei. Servi ao rei antes, e era por isso que os inimigos dele eram meus inimigos.

Ricardo não disse nada, mas se afastou, e Guilherme, o Marechal, ficou imaginando qual seria o seu destino. Morte ou masmorra?

Quando Ricardo deixava Fontevrault, chamou Guilherme, o Marechal, para andar ao seu lado.

- Volte para a Inglaterra. Proteja meu reino até eu chegar. Guilherme foi colhido de surpresa.

- Eu... majestade?

- Sim, você. Gosto de homens que são fiéis a seus reis. Guilherme, o Marechal, voltou-se para Ricardo.

- O rei está morto. Viva o rei. Foi o suficiente.

A notícia chegou à Inglaterra. O rei morreu. Há um novo rei, Ricardo I.

Em seus aposentos em Westminster, deram a notícia à princesa Alice. Ela teve um acesso de tremor, e fechou-se em seu quarto.

Era impossível. Ele morrera. Estava sozinha. O que seria dela?

Iriam casá-la com Ricardo. Ela não iria suportar aquilo. Ouvira dizer que ele era frio, que seu irmão Filipe o amava muito e ele amava Filipe.

Estava chocada demais para chorar.

Só lhe restava murmurar para si mesma: e agora? O que será de mim?

Em Salisbury, a rainha Eleanor recebeu a notícia.

Ele morrera. Aquele homem vigoroso que certa vez a amara e que mais tarde ela odiara e injuriara. Ela não acreditava. Henrique Plantageneta, morto!

Soube das últimas horas dele. Todos tinham se voltado contra o rei. Bem feito. Ele tentara deserdar Ricardo, o seu Ricardo, o filho que ela mais adorava.

Havia mudanças no ar. Tudo agora seria diferente. Ela tocou o rosto. Era uma velha. com 67 anos de idade, e tantos passados na prisão! Seus dois maridos estavam mortos, seus amantes tinham morrido, e ela continuava viva.

Teria um motivo para viver; sempre tivera. Sempre adorara a vida. Era por isso que estava jovem, mesmo aos 67 anos.

Mas era uma nova vida que se abria para ela. Liberdade! E estaria com o filho adorado. Ela e Ricardo ficariam juntos, como sempre desejara.

Em breve, seria libertada. Ele prometera que aquilo seria a primeira coisa que faria.

O dia inteiro, ela esperou na torrinha. Antes do pôr-do-sol, viu um grupo de cavaleiros indo em direção ao castelo.

Desceu para recebê-los.

Tinha razão. Sabia que podia confiar em Ricardo.

Saudações do rei à sua venerável mãe.

Eleanor estava livre.

 

 

                                                                                                    Jean Plaidy

 

 

 

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