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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CREPÚSCULO DOS ELFOS / Jean Louis Fetjaine
O CREPÚSCULO DOS ELFOS / Jean Louis Fetjaine

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Nos nossos dias não existem elfos. Quase nenhum. Os homens habituaram-se a ser os únicos donos da Terra, e guerreiam de tal forma entre eles, desde há tantos anos, que perderam a memória da época longínqua onde outras raças viviam a seu lado.

O povo dos elfos desapareceu brutalmente, e os que sobreviveram apagaram-se por trás do resguardo das lendas. Oh!, existem sempre encontros estranhos, arrepios na espinha e maus sonhos, mas ninguém sonharia em atribuí-los aos elfos. Durante um certo tempo, os homens inventaram-lhes outros nomes, korrigans [1], duendes ou diabretes, depois deixaram mesmo de acreditar nos contos de fadas.

Falo-vos de uma época em que os homens não eram mais que lima das quatro tribos da deusa Dana, os Tuatha Dê Danann, elfos, anões, monstros e homens. E a cada povo a deusa tinha confiado um talismã, símbolo de cada raça e garantia da sua sobrevivência. Os homens receberam o Fal Lia, a Pedra de Fal, princípio mesmo da soberania, que gemia quando um rei legítimo se aproximava dela. Talvez tenha sido por isso que eles (acreditaram que podiam dominar o mundo... Aos elfos coube o Caldeirão de Dagda, o Graal do conhecimento divino. Aos monstros a lança de Lug, o deus que os monges chamaram (Lúcifer, uma arma terrível que não podia estancar a sua fúria (assassina exceto se mergulhada num caldeirão cheio de sangue. (E os anões receberam a Espada de Nudd, a qual eles denominavam Caledfwch na sua linguagem rude e que se tornou, na língua dos homens, Excalibur.

O mundo, então, era composto de cinco elementos: o ar, a terra, o fogo, a água e as brumas, que pertenciam aos deuses.

Os elfos, a tribo do ar, eram um povo poderoso e temido pelos homens. Um povo sem cidade, disperso pelos bosques, margens dos rios e pântanos, retirando das forças mágicas da natureza a força física que lhes faltava. Altos e magros como adolescentes, a pele de um azul-pálido, os movimentos lentos, a voz calma, usavam muito pouco vestuário e pareciam indiferentes ao frio, à chuva ou ao vento, semelhantes a árvores ou a animais. Os homens, a quem a natureza assustava e que ignoravam a magia, temiam os elfos mas empenhavam-se em copiar os seus modos, em imitar as suas finas jóias de prata, em reproduzir os cânticos dos seus trovadores. Durante muito tempo, a imagem dos elfos continuou a ser um modelo de beleza no coração dos homens. E, no entanto, foram os homens que provocaram o seu desaparecimento...

Também já não existem anões nos nossos dias, ou então são considerados deficientes, aberrações.

Os anões eram o povo da terra. Dizia-se que a sua estatura pequena resultava de uma adaptação à vida subterrânea, ao subsolo das montanhas que eles tanto amavam, escavando a rocha em infindáveis galerias à procura de ouro, pedras preciosas, metais. Os anões tinham o coração tão duro quanto a pedra que eles despedaçavam todos os dias, e a força deles era superior à força da maioria dos homens. Quando deixavam as suas montanhas para caçar ou por causa da guerra, a própria terra tremia.

Dos três povos, o clã do mar, o dos homens, parecia o mais fraco. E, contudo, pouco a pouco, curvados sobre a terra, com fracas ferramentas na mão, eles deixaram as suas margens e fizeram recuar as imensas florestas de carvalhos e faias que cobriam o mundo. Apareceram rapidamente planícies com cidades fortificadas, cada vez maiores e cada vez mais numerosas.

Era uma época em que a vida não tinha preço.

Cada um lutava pela sua sobrevivência, uns através da magia, outros através da luta.

A morte estava por todo o lado: elfos isolados eram apanhados pelas razias de caçadores anões que se divertiam a atirá-los vivos sobre leitos de brasas, tropas de homens armados penetravam no centro das montanhas dos anões para lhes roubarem o ouro, viajantes perdidos nos bosques eram encontrados lívidos, como que esvaziados do seu sangue, depois de terem cruzado o caminho de um elfo, e os gnomos, pequeno povo sem graça das cidades enterradas, armavam-se de qualquer maneira para escapar às pilhagens.

Mas o perigo principal estava em outro lugar.

Para lá dos pântanos habitados pelos elfos cinzentos — assim denominados porque a sua pele tinha perdido os reflexos azuis na lama dos pântanos — estendiam-se as Terras Negras assombradas pelos monstros, a tribo maldita dos Tuatha Dê Danann, o povo do fogo. Criaturas repugnantes, gigantescas, a quem os homens chamavam gobelins e que serviam com fervor animalesco Aquele-Que-Não-Pode-Ser-Nomeado.

No dia em que os exércitos de gobelins tinham saído dos pântanos, os Povos Livres — assim decidiram chamar-se a eles próprios, homens, elfos e anões — aliaram-se para enfrentar a mais terrível das guerras.

Ela durou dez anos e terminou com a derrota do Senhor Negro e das legiões imundas, pelo preço de uma terrível carnificina.

Depois, os Povos Livres viveram numa relativa paz, sob a autoridade de um Conselho que reunia os reis e os senhores de cada povo em volta da Pedra de Fal e que estava sediado em Loth, a maior cidade dos homens no seio do reino de Logres. O Conselho arbitrava sobre desavenças e impunha uma lei comum, até ao momento em que tudo oscilou.

Esta história é o relato desses tempos longínquos e desses povos esquecidos pela História. Mas, é claro, foram os homens que escreveram a História...

 

 

 

 

Encharcado até aos ossos, o caçador de rãs estava aninhado no meio das canas, retendo a respiração. Apertando o seu saco contra o peito, tremendo de frio, ele não se mexia, incapaz de desviar o olhar do espectáculo que tinha descoberto através da chuva miudinha.

Na margem estava deitada uma elfo, com os seus longos cabelos negros espalhados sobre a erva. De olhos fechados, completamente nua, ela deixava que a chuva gelada lhe molhasse a pele fina e azulada sem parecer sentir o frio nem mostrar vontade de se secar depois do banho no lago, ou de se tapar com vestes quentes de peles, como o teria feito uma mulher.

O caçador sorriu contemplando as curvas do corpo que a chuva fazia brilhar em tons prateados. Ela era de uma delgadeza extrema, mas sem magreza nenhuma. As suas coxas e os seus braços pareciam não ter fim. Entre os seus seios de auréolas azuis-escuras, a chuva formava um rego que corria pelo seu ventre até à elevação lisa do seu sexo. Dir-se-ia que ela estava adormecida, se não fosse pelo balançar do seu pé tocando a água do lago. O homem teria gostado de se aproximar mais, tocá-la com os dedos, mas vivia já há tempo suficiente em Loth, a cidade do Grande Conselho, para saber reconhecer um elfo da antiga raça de Eirin, aqueles a quem os outros povos chamavam de altos-elfos. E contavam-se coisas inquietantes sobre os altos-elfos, apesar da sua beleza irreal...

Lentamente, ela levantou-se, tirando com os seus longos dedos os bocadinhos de erva colados à sua pele azul. Vestiu uma túnica de cor indefinível, depois atirou a cabeça para trás, juntou por detrás da nuca os seus cabelos negros num gesto impudico que fez sobressair o seu ventre suave, e ajeitou por cima do ombro uma interminável trança que começou a desfazer.

O homem engoliu em seco, fascinado por aqueles cabelos negros brilhantes de onde escorria um fiozinho de água que chegava até às coxas da aparição. Sempre de cócoras, lutou penosamente com o lodaçal para avançar um pouco mais, mas uma das suas botas ficou presa na lama: ele estatelou-se a todo o comprimento entre as canas.

Quando levantou a cabeça, a elfo tinha desaparecido.

Ela estava lá, no entanto, bem perto, imóvel entre as ervas, fixando com os seus olhos verdes, quase amarelos, o caçador de rãs que patinhava lastimosamente tentando recuperar a sua bota. O homem conseguiu-o por fim e saiu da água, tão perto dela que ela poderia tê-lo tocado. Mas ele não a viu.

O chuvisco glacial não tinha deixado de cair desde a manhã, misturando o lago, o céu e as margens numa só cor cinzento-azulada na qual os elfos se fundiam com facilidade. As suas vestes leves eram feitas de um tecido fino em tons que mudavam, que os homens chamavam de catassol, sem compreenderem o seu fabrico, e que os dissimulava facilmente aos seus olhos. Por vezes vermelhos como as folhas de Outono, por vezes verdes como os prados, por vezes cinzentos como a pedra, as roupagens élficas pareciam-lhes simplesmente de origem mágica...

O homem espirrou ruidosamente e praguejou.

— Porca! Pega! Aparece se tens coragem!

A elfo sorriu mas os seus olhos endureceram. O caçador voltou a praguejar, despejou a bota cheia de água e retirou o seu saco de rãs.

— Bruxa! Ramo de árvore! — resmungou ele. — Por quem é que ela se toma?

Ele tirou a camisa de linho ensopada, torceu-a e secou vagamente as costas.

— Tiveste sorte! — gritou ele. — Eu tinha-te mostrado como é que é! Esconde-te, vá! É melhor para ti!

— Quem é que está a esconder-se?

O homem deu um salto, deixando cair a camisa na erva.

A elfo estava em pé, mesmo ao lado dele, envolta na sua túnica de catassol, dominando-o por uma meia cabeça mas parecendo mais frágil que uma criança.

— Cos diabos, meteste-me medo! — disse o caçador de rãs voltando a recompor-se. — Com que então estás aí?

— Sim — respondeu a elfo, com o mesmo sorriso frio. — E tu estás aí em baixo no caniçal, não é?

O homem, desajeitadamente, deu uma gargalhada trocista. A túnica não estava fechada e o corpo irreal da elfo estava ali, bem perto, não precisava de mais que estender a mão... Ela não reagiu quando a rugosa palma da mão do caçador se juntou à sua pele azulada e deslizou até aos seus seios.

— Deus do céu — murmurou o caçador de rãs para si mesmo.

— Diz-se que vocês gostam disto... Diz-se mesmo que preferem os homens, hem?

— Tu tens frio — disse ela. — Tens frio e estás a tremer... no entanto, o teu ventre está em fogo...

— Sim! — murmurou ele com outra gargalhada obscena. .— Vais ver!

Ela começou a acariciar-lhe docemente a cabeça sem tirar os olhos dele.

— Em fogo... Em fogo...

O homem agarrou-a pelas ancas rasgando-lhe a frágil túnica de catassol e fê-la cair sobre a erva.

— Byrnan nith.

— Quê? Que é que disseste?

O calor entre os seus rins era demasiado forte. Insuportável. Ele desapertou o cinto, deixou cair as bragas, e depois ajoelhou-se entre as pernas abertas da elfo. Era demasiado belo. Ninguém tinha ainda...

— Byrnan Nith!

No instante em que a elfo gritou, uma dor atroz nasceu nas entranhas do caçador de rãs. Levantou-se ofegante, os olhos abertos de estupefacção, a respiração cortada pelo sofrimento. O seu ventre, os seus intestinos, o seu sexo tinham pegado fogo por dentro. Abriu a boca para gritar, mas as suas cordas vocais tinham ardido. Somente uma chama azul, ávida e ondulante como uma serpente jorrando, deixando o seu rosto, carbonizando os seus dentes, a sua língua, o céu da sua boca. O homem rolou por terra com um uivo agudo, batendo freneticamente na erva, o ventre já negro encarquilhado como gordura sobre o fogo. A última coisa que viu antes que os seus olhos derretessem foi o olhar límpido da elfo pousado nele, e o seu sorriso calmo...

A elfo levantou-se com um suspiro, arranjou a sua túnica de catassol e sentou-se sobre o cepo de uma árvore para alisar os seus longos cabelos molhados pelo banho.

Quase em seguida, ela parou e esticou a orelha. O lago estava silencioso, apesar do coaxar regular das rãs, do assobiar do vento por entre os caniçais e do grito dos corvos, ao longe, sobre as muralhas de Loth. O lago estava silencioso e no entanto diferente... A elfo voltou-se repentinamente e sobressaltou-se.

Um homem estava ali, imóvel, a algumas toesas, vestido com um fato azul-escuro que contrastava com a sua cara sorridente, pálido como a aurora do dia. Inclinou-se numa saudação um pouco irónica, sem tirar aquele sorriso divertido que parecia fazer parte da sua expressão natural, e depois ficou ali sem dizer nada, sem se mexer. Nada, na sua atitude, era ameaçador e, contudo, a elfo sentia-se oprimida, pouco à vontade. Alguém gritou um nome ao longe e o eco ressoou no lago.

Ela não tinha desviado os olhos por mais de um segundo, mas, quando voltou a olhar para o homem, ele parecia mais próximo, sempre calmo, olhando-a a sorrir como se estivesse à espera de alguma coisa. Ao perto, ele tinha um ar mais jovem, apesar dos seus curtos cabelos brancos. E os seus traços, a sua silhueta longa, o seu sorriso eterno pareciam-lhe familiares.

— O sopro do dragão — disse ele.

— O quê?

O homem-criança abanou a cabeça e o seu sorriso acentuou-se. De novo o chamamento soou, bastante mais próximo.

— Lliane!

— Estou aqui! — gritou ela.

O homem tinha desaparecido. Este pensamento veio ao espírito da elfo antes que os seus olhos o notassem. Procurou-o com a vista, sem grande convicção, espantada por sentir o seu coração bater com mais força, espantada com o alívio que sentia...

Um elfo saiu do arvoredo, cavalgando em pêlo um alazão de longa crina amarela. O cavaleiro estava equipado para a guerra, com uma cota de malha de couro que lhe cobria o dorso, os antebraços e as pernas, e trazia um arco comprido a tiracolo. Não teve mais do que um breve olhar para o cadáver fumegante do caçador de rãs.

— Minha rainha, o rei Llandon chama-vos com urgência. Lliane abanou a cabeça em silêncio e saltou para a garupa.

— Que se passa?

— Baldwin — disse simplesmente o elfo. — Chegou...

— Fechem a porta! — ordenou o Sargento aos seus homens de armas. — A noite vai cair brevemente!

Sem esperar pela execução da sua ordem, o velho soldado voltou-se para seguir com os olhos o pequeno esquadrão que seguia já pelas ruelas da cidade.

Colocou sobre os ombros uma aba do seu casaco e sorriu, apesar do frio do crepúsculo. O homem não tinha precisado de decifrar as runas traçadas na longa bandeira que segurava altivamente o primeiro cavaleiro da escolta para reconhecer o emblema de Baldwin, rei dos anões sob a Montanha Vermelha.

Um brusco ataque de tosse fê-lo piscar os olhos e curvar as costas. Sentia-se velho e cansado. A humidade glacial daquele dia de Inverno tinham-lhe reavivado antigas dores.

— A barba do velho Baldwin está ainda mais comprida murmurou para consigo.

O rei não o tinha reconhecido quando ele abrira o postigo. Nem sequer lhe tinha concedido a esmola de um olhar, os olhos fixos sobre as costas do cavaleiro que seguia à sua frente, com a expressão de tristeza e enfado própria dos senhores anões. Além disso, como poderia Baldwin tê-lo reconhecido? No tempo das grandes batalhas, muitos anos atrás, ele já era soberano dos anões sob a Montanha Vermelha há mais de duzentos anos, e ele um simples moço de armas, jovem e cheio de ilusões. No entanto, tinham combatido juntos, no dia da batalha do pântano.

O velho homem acariciou distraidamente a longa cicatriz, recordação de uma ferida feia feita por um ferro de lança de um gobelin. Tinha sido um dia triste, tão escuro e chuvoso como o que se aproximava. Os gobelins tinham conseguido levar as armadas dos Povos Livres para os seus imundos lodaçais e tinham-se atirado sobre as tropas numa carnificina sem precedentes. Raros foram os que, como o velho sargento ou o rei Baldwin, tinham conseguido escapar aos pântanos, às lâminas negras das espadas dos gobelins ou aos dentes afiados dos seus lobos. E depois, mais tarde, a sorte das armas tinha-se virado... Um barulho de passos sobre o caminho de ronda tirou o sargento dos seus sonhos. Os pesados batentes de carvalho da porta grande tinham sido fechados e um jovem arqueiro veio reunir-se a ele sobre as muralhas.

— Quem é que eles julgam que são, esses daí? — disse ele ao aproximar-se do chefe.

O velho soldado crispou-se imediatamente.

— Tento na língua. Aquele anão poderia bem cortar-ta se lhe faltasses ao respeito.

— Não tenho medo dos anões! — replicou o jovem olhando na direcção deles. — Como se fossem grandes senhores!

— Acertaste em cheio... É Baldwin.

O arqueiro empalideceu e um clarão de pânico atravessou o seu olhar. Baixou os olhos, procurando em vão uma frase que lhe permitisse pôr fim à discussão sem ficar mal, mas o velho sargento levantou os ombros.

— Vai substituir Gauvin à torre de vigia — disse ele dando meia volta.

Os passos do jovem perderam-se ao longe e o guarda deixou-se de novo invadir pelas suas recordações de guerra.

Baldwin era um anão bastante velho, em boa verdade. Senhor sob as Montanhas Vermelhas há já duzentos e trinta anos, não saía senão muito raramente do seu palácio subterrâneo, e esta viagem era-lhe muito penosa. Cavalgando pelas ruas lamacentas e já desertas da cidade dos homens do lago, deixadas à noite para os cães, porcos e ladrões, também ele sonhava com os tempos passados. Depois da época longínqua do seu primeiro encontro, o príncipe Pellehun tinha-se tornado rei de Logres e mestre do Grande Conselho dos Povos Livres. Pellehun e ele tinham sido amigos nas horas das grandes batalhas. Quando o Senhor Negro tinha sido finalmente obrigado a recuar para lá dos pântanos e dos montes desertos, depois de tantas batalhas, de mortes e de sangue, ele tinha-lhe mesmo proposto que ficasse em Loth e que presidisse ao Grande Conselho. O anão tinha recusado: viver ao ar livre, longe das suas queridas montanhas, teria sido um sacrifício demasiado grande. O bater de uma portada fê-lo sobressaltar-se. Uma mulher, à janela, olhava com espanto este velho anão de longas barbas cinzentas e com vestimentas vermelho cor de sangue, montado sobre um robusto pónei e cheio de jóias de ouro de formatos estranhos. O anão olhou-a duramente, como se estivesse à espera de alguma coisa, e então ela piscou os olhos e recuou um passo.

— Senhor... Que a paz esteja convosco — balbuciou ela, compreendendo por fim o que tinha de fazer.

O anão sorriu, embora o tamanho da sua barba não permitisse que se notasse, e deu um pequeno toque de calcanhares na sua montada. Frente à janela aberta da casa de humanos, a escolta e as bagagens de Baldwin desfilaram lentamente, deitando um brilho de ouro e de aço na ruela já sombria.

Uma chuva fina começou a cair, molhando as barbas e as armaduras de couro, no momento em que os anões chegaram à grande porta de bronze do palácio. Miolnir, o cavaleiro com direito a bandeira do rei dos anões, incitou o seu pónei para avançar e galopou até à torre de vigia. Um soldado com ar fatigado tomou as rédeas das mãos do cavaleiro e bateu três vezes num batente de metal, enquanto os guardas se alinhavam sob a morrinha, segundo a tradição sempre que um príncipe se apresentava no Conselho. As grandes portas abriram-se quase no mesmo instante em que o pequeno grupo chegou. Todos puseram os pés em terra menos Baldwin, ao qual cabia o privilégio de entrar a cavalo no palácio.

Sem um olhar para a guarda de honra, a cara fechada, incitou o seu pónei em frente até ao meio da grande sala, deixando à sua passagem pegadas lamacentas sobre as lajes de pedra. Os guerreiros anões da escolta tinham ficado lá fora, e os criados atarefavam-se já a descarregar as albardas das montadas. Três cavaleiros que entraram seguindo o seu senhor caminhavam ao lado da sua montada, com a mão no punho dos seus pesados machados de carvalho e ferro. Um quarto anão seguia-os, um pouco mais atrás. Vestido de vermelho e trazendo as runas de Baldwin, seguia de cabeça baixa, numa atitude de humildade que contrastava com o ar agressivo dos seus companheiros. Armado simplesmente de uma pequena adaga, arma pouco comum entre os anões, que preferiam rachar em vez de cortar, ele era de uma estatura admirável para a sua raça, dominando os outros por cima das suas cabeças e ombros. A sua longa barba ruiva estava enfiada no seu cinto e trazia pulseiras de prata nos pulsos. Os seus olhos eram quase invisíveis, debaixo das espessas sobrancelhas, mas quem tivesse conseguido cruzar o seu olhar teria tremido. Os anões só muito raramente têm um ar doce e amável, e franzir o sobrolho é entre eles uma expressão natural, mas este tinha uma cara de uma dureza verdadeiramente assustadora.

Baldwin parou o seu pónei e bocejou ostentosamente enquanto os passos do arauto do rei Pellehun ressoavam do outro lado da sala.

— Eu te saúdo, senhor — disse, ajoelhando-se diante do rei da Montanha Vermelha, dobrando-se de forma a mostrar-lhe a nuca (o que exigia uma certa agilidade de coluna).

O arauto levantou-se e recuou até uma certa distância, como o exigia a etiqueta. A susceptibilidade dos anões era bem conhecida, e eles detestavam acima de tudo que os olhassem de alto. Como os mais altos de entre eles mediam somente quatro pés e os homens — mesmo que de um extracto baixo — podiam chegar aos seis pés ou mais, era essencial evitar aproximar-se de um dignatário anão de muito perto e dar a impressão que gostavam de o dominar.

— Preveni o rei Pellehun da tua visita, senhor — continuou o homem. — E ele pede-te que venhas repartir com ele a sua refeição. Um boi já está a ser assado. Haverá filhoses, favos e hóstias doces, acompanhados por um vinho clarete. Ou talvez uma sopa para te aquecer?

— Tudo isso mas no meu quarto — resmungou Baldwin. — Virás buscar-me quando o Conselho se reunir.

— Infelizmente, senhor, temo que isso seja só amanhã. Só fomos informados da tua chegada esta tarde e o rei Llandon não está presente.

Um murmúrio hostil percorreu o grupo de cavaleiros. Todos conheciam Llandon, rei dos altos-elfos e senhor da floresta de Éliandre, cuja autoridade se estendia, pouco ou muito, a todas as comunidades élficas.

O arauto não conseguiu deixar de pestanejar. Os anões e os elfos não gostavam uns dos outros, era mesmo proverbial, mas este ribombar de cólera era um mau augúrio.

— Está bem — disse Baldwin desmontando do cavalo. — Esperaremos Llandon... É mesmo essencial que ele ouça a minha mensagem. Vamos!

O velho rei fez um gesto com a mão para autorizar o homem a abrir a marcha, e atrás dele a tropa pôs-se em movimento, com uma barulheira medonha que devia ensurdecer à sua passagem todos os ocupantes do palácio. ”Barulhento como um anão” era um adágio entre os homens do lago, e os guerreiros de Baldwin pareciam ter prazer em tornar-se ainda mais barulhentos, multiplicando o resmungar, os choques de metal e o arrastar de armaduras a cada passo que davam.

Caminharam assim até à ala que lhes era reservada, e depois o arauto desapareceu, deixando o senhor entrar nos seus aposentos. Os três cavaleiros prostraram-se diante da porta, apoiando-se nos seus longos machados, mas o quarto, para grande surpresa do homem, acompanhou o senhor das Montanhas Vermelhas e fechou a porta atrás dele.

”Este deve ser o pajem dele”, pensou ao afastar-se, com pouca vontade de prolongar o seu encontro com aqueles três guerreiros que cintilavam com os pingos de chuva e de aspecto esfomeado.

O palácio começava a animar-se com a chegada da noite. Um verdadeiro exército de pessoal doméstico de todas as raças e de todos os tamanhos ia invadindo os corredores, colocando as tochas para a noite, carregando o jantar dos nobres residentes no palácio e que não haviam sido convidados para a mesa do rei, limpando os trajes de cerimónia daqueles que haviam tido essa honra...

Ao virar de um corredor, o arauto, influenciado pelo mau humor dos anões, esbarra contra o pajem do senescal Gorlois.

— Que a paz esteja contigo, cavaleiro — disse o rapaz, recuando respeitosamente.

— Em vez de correres como um gamo, vê por onde andas respondeu o outro, num tom duro. — O senescal foi prevenido?

O rapaz anuiu.

— Já está com o rei.

Com um gesto, o arauto afastou o seu interlocutor e retomou o seu caminho. Deteve-se alguns segundos junto a uma janela, contemplando a cidade que se estendia aos pés do palácio. Reclinou-se nas grandes pedras de alvenaria do muro e, com uma careta, recuou de imediato. A pedra estava húmida e gelada... No corredor, um gnomo passava. Num prato, o jantar do seu senhor vacilava e um jarro de vinho quase caía ao chão.

Com isto, o arauto recuperou um pouco de bom humor. Estas horas de agitação sempre o divertiam. Em mais nenhum momento do dia a diversidade de raças reunidas no palácio se manifestava tanto. Um gnomo constipado, de largura quase igual à altura, a cara enrugada e vermelha como uma velha maçã, cruzava-se com o criado de um senhor elfo, de pele azulada e diáfana, enquanto um jovem anão de uns 60 anos martelava com os seus grandes pés o pavimento de lajes do corredor, carregando um prato de vitualhas que dois homens teriam tido dificuldade em segurar, transbordando de cântaros de vinho, salsichas e couves... O arauto sacudiu-se e seguiu caminho. Era preciso preparar ainda a sala do Grande Conselho para o dia seguinte.

Cá fora, os anões tinham levado os cavalos para a cavalariça, e os seus pajens atarefavam-se já a levar para os aposentos do rei Baldwin tudo o que era necessário à sua estada na cidade (e como o velho Baldwin com a idade gostava de conforto, o necessário era bastante considerável). Indiferente à sua agitação, um membro da sua escolta, sentado sobre os primeiros degraus da grande escada de pedra que conduzia ao palácio, com o seu saco e as suas armas pousadas em frente dele, acariciava pensativamente a sua barba castanha, fumando um grande cachimbo de barro branco.

— Mestre Tsimmi!

O anão pareceu acordar e olhou o pajem (um anãozito com apenas uns 50 anos!) que se debruçava sobre ele.

— Que é?

— Quer que lhe leve a sua bagagem?

— Bom, sim, obrigado...

Levantou a perna curta que tinha pousado sobre os seus embrulhos e o seu martelo de guerra. O pajem agarrou rapidamente os pertences e seguiu atrás da fila dos outros. Tsimmi ficou só, imóvel debaixo do chuvisco, até que o seu cachimbo se apagou. Ao contrário dos outros anões, estava vestido sem ostentação, apesar da sua posição social, e não trazia nenhuma jóia. Uma longa cota de malha de couro trabalhado caía-lhe até os tornozelos, coberta por uma simples túnica verde, e do seu cinto pendiam diversos sacos e sacolas, bem como as correias de couro de uma funda, uma arma em princípio reservada às crianças. Mas ninguém, entre os anões da Montanha Vermelha, teria sonhado em rir dele. Tsimmi era o que os anões chamavam um mestre mação, e os homens, um feiticeiro. Existia entre ele e a terra, as pedras e o rochedo uma ligação estreita, poderosa, que ultrapassava de longe o entendimento dos mais sábios. Desde tempos imemoriais, mestres mações semelhantes a Tsimmi tinham descoberto inúmeros segredos no mais profundo das suas forjas. Os homens, deslumbrados com as riquezas que eles extraíam das profundezas das suas minas, chegavam a dizer que os seus feiticeiros conheciam o Grande Segredo, a transformação dos metais comuns no mais puro ouro. Só os mestres mações teriam podido esclarecer este ponto.

Tsimmi colocou sobre os seus cabelos castanhos curtos esguedelhados o capuz verde da sua túnica e levantou-se a resmungar. Com a ponta do pé, remexeu o pó, e depois pousou a mão sobre as pedras de alvenaria colossais que formavam os muros do palácio. Os mestres mações tinham o poder de ler na pedra, testemunha muda dos dias passados. Não conseguiu entender nada, mas um sentimento difuso e desagradável tinha-se apossado dele no mesmo instante em que as altas torres de Loth tinham ficado visíveis.

— Em pé, para o rei!

O copeiro bateu nas lajes do chão com a ponta do seu bastão manchado, insígnia da sua função. Quase imediatamente, o barulho das pesadas cadeiras de carvalho a serem empurradas pelos convivas invadiu a imensa sala de banquetes. Era um jantar normal, sem grande aparato. Não havia mais que uns trinta convidados, a maioria obscuros feudatários ou pedintes de toda a espécie, vindos a Loth para solicitar um emprego para os seus filhos mais velhos ou para se queixarem dos impostos reais. Dois elfos do Havres, dos que andavam na água, tinham vindo sem dúvida vender algum tecido raro. Um barão anão, do outro lado da mesa, acompanhado pela mulher e os dois filhos pequenos com uns 30 anos, sentavam-se ao lado de um casal de gnomos grotescamente vestidos e carregados de jóias, e pareciam bastante incomodados com esta promiscuidade. De um lado e do outro das mesas dispostas em ”U” e iluminadas por velas de sebo, duas chaminés da altura de um homem e tão largas que se poderia assar um boi dentro delas, faziam suar os convivas que lhes viravam as costas. Por todo o lado, as paredes de pedra tinham sido escondidas por cortinados, peles e tapeçarias. Janelas escondidas por tela encerada não deixavam passar o menor sopro de ar fresco, e a sala estava tão quente quanto uma estufa.

Na mesa central, à direita do cadeirão real, as três cadeiras reservadas para Baldwin e a sua comitiva estavam vazias.

O rei Pellehun não podia deixar de notar a ausência dos anões, mas nada deixou transparecer. Agradeceu com um aceno de cabeça ao seu copeiro, despiu o casaco de pelo de esquilo-cinzento, e fez sinal para que retomassem os seus lugares. O senescal Gorlois sentou-se à sua esquerda, sem deitar um olhar à assistência que, no entanto, toda ela não deixava de lhe deitar olhares para obter o favor de se aproximar do rei e de apresentar os seus pedidos. Os dois homens, apesar do respeito que inspiravam, tinham uma postura tão semelhante que se tornava quase cômica. Dir-se-ia que eram irmãos, tanto que eles tinham acabado por parecer-se um com o outro, moldados em conjunto pelas horas sombrias e luminosas da cidade dos homens do lago. Tanto um como o outro estavam já velhos, segundo as contas dos homens (enquanto um anão teria considerado as suas idades como a de adolescentes), de altura média mas dotados de uma força superior à maioria dos humanos. Nenhum deles usava barba, e tinham cabelos grisalhos penteados em diversas tranças, atadas com um fio de ouro num, e laços de couro vermelho no outro. A semelhança parava por aí.

Pellehun possuía a beleza da realeza e Gorlois era feio. A sua cara tinha ficado marcada por uma terrível cicatriz, e a órbita do seu olho direito estava vazia. Este terrível ferimento tinha sido feito pela cimitarra de um gobelin, enquanto ele libertava o príncipe Pellehun das garras desses terríveis guerreiros. Feridos por todo o lado, os dois homens tinham-se tornado irmãos de armas e o seu sangue tinha-se misturado na lama do campo de batalha numa só poça.

No momento da morte do rei Ker, Pellehun tinha feito dele seu senescal, e, quando os reis dos Povos Livres que tinham vencido a guerra o escolheram para presidir ao Grande Conselho, confiou-lhe o cargo de governador do palácio e honrou-o com o título de duque de Tintagel.

— Onde está a rainha? — murmurou o rei dirigindo-se a este último.

Gorlois levantou as sobrancelhas em sinal de ignorância e depois estalou os dedos. Imediatamente, o copeiro debruçou-se sobre ele, ergueu a cabeça ao receber as instruções e dirigiu-se ao grupo de cavaleiros armados que por todo o lado seguiam o rei.

— A rainha — disse ele — está atrasada. É necessário ir buscá-la.

Ulfin, um dos bravos a quem ele se tinha dirigido, mediu o copeiro de alto a baixo com um olhar mal disfarçado de desprezo de casta superior e indicou com o queixo Uter, o mais jovem do grupo. Este partiu rapidamente, com uma ligeireza que fez sorrir os seus companheiros. Dizia-se no palácio que a jovem rainha Ygraine não era insensível ao charme do cavaleiro... O inverso talvez fosse verdade...

Quando a rainha Brunehaud tinha morrido ao dar à luz o seu único filho, nascido morto, o rei Pellehun tinha guardado luto durante vários anos. O fato de ter de assegurar uma descendência ao trono tinha sido o único motivo do seu segundo casamento, e a jovem Ygraine quase não via o seu real esposo, de tal forma que ainda não tinha conseguido dar-lhe um descendente. Com o passar do tempo e a idade a avançar, Pellehun partilhava cada vez menos o leito da sua esposa. A rainha vivia tristemente numa das alas do palácio, com os seus criados e as suas intermináveis tapeçarias, os dias sempre iguais uns aos outros, sem amor, sem esperança, sem futuro.

Uter, esbaforido e corado pelo esforço da corrida, encontrou-a na escada que conduzia aos seus aposentos.

— Senhora minha, o rei pede a vossa presença à mesa...

— Estava a caminho — disse ela. — O vosso braço, cavaleiro.

Uter esforçou-se por dominar os batimentos das suas têmporas e retomar a respiração. A rainha, de braço dado com ele, parecia tão pequena e frágil como uma criança. Não ousou olhá-la durante o trajeto, mas, quando ela se sentou ao lado de Pellehun, pareceu-lhe que os dedos dela lhe tinham acariciado intencionalmente a mão.

Tinha achado que conseguira disfarçar a sua aflição, e, no entanto, no momento em que se retirava, o olhar penetrante do senescal Gorlois fixou-se sobre ele com uma intensidade que lhe provocou frio na espinha.

Enquanto a ronda de donzelas se atarefava dispondo em frente dos convivas mel, especiarias e vinho de grenache espesso e escuro nas bilhas de estanho, o copeiro anunciou o primeiro prato:

— Fígado de boi, pasta de aves, chouriços, salsichas e tartes de massa sovada!

Para um jantar de assados — um jantar de carnes como os que se davam durante o Inverno em casa do rei —, o serviço compreendia vinte e quatro pratos divididos em seis partes, até às nêsperas, pudins doces, leite-creme e pêras cozidas para sobremesa.

O copeiro verificou com um olhar o serviço da mesa real, vindo depois murmurar algumas palavras ao ouvido do senescal.

Gorlois ergueu a cabeça, mandou-o embora e por seu turno debruçou-se sobre o rei.

— O senhor Baldwin faz saber que está cansado, senhor, e que vos verá amanhã.

Pellehun concordou, limpou a boca com a mão e bebeu um gole de vinho. Quando voltou a pousar a taça, sorria.

— Pois bem — disse voltando-se para o velho Gorlois. — Vai começar!

 

O dia acabara de nascer, sem sol, no acinzentado do lago. Na orla da floresta, o acampamento de elfos mal se distinguia dos matagais em volta. Não eram mais que cabanas de ramos, simples abrigos para a noite, erguidos em poucos minutos ao longo das suas vidas errantes. Pois os elfos não tinham cidades, simplesmente algumas aldeias, que no entanto mudavam de lugar ao fim de algum tempo. Eles não possuíam nada, nem mesmo verdadeiras famílias, no sentido em que os homens o entendiam, nem acumulavam riquezas, fosse qual fosse a sua posição social. As suas vestes eram as mesmas, desde o criado ao príncipe, e o seu único luxo consistia em finas jóias de prata — o metal da lua que eles veneravam. O trabalho em prata era, aliás, a única indústria conhecida pelos elfos. Era um povo sem necessidades, e em muitos pontos mais próximo dos animais selvagens que dos homens.

Lliane tinha acordado sozinha. Tinha entrançado os seus longos cabelos negros com a ajuda de uma fita de couro realçada com pequenas plumas de cisne de uma brancura imaculada e vestido uma túnica de catassol bastante aberta que lhe deixava livres os braços e as pernas. Colocou os seus colares e pulseiras de prata e depois calçou umas botas de camurça fina que lhe chegavam até acima do joelho. Por fim, depois de uma hesitação, colocou a sua longa adaga, Orcomhiela, o que em linguagem dos elfos significa ”assassina de gobelins”.

Esposa de Llandon e rainha dos elfos, Lliane não era uma guerreira, mas pertencia à linhagem de Morigan, a “Grande Rainha”, a antepassada mítica dos elfos à qual estavam ainda ligados todos os clãs de elfos, deusa da Guerra e do Amor.

Os homens do lago e os guardas do palácio chamavam-na por vezes de “Ilusionista”, e este nome agradava-lhe. Mas os homens não conheciam da rainha mais que os truques e acrobacias que ela lhes revelava durante as noites de festa.

Lliane era bem mais que tudo isso, embora não gostasse de falar sobre o assunto. Quem conhecia os seus poderes tratava-a com respeito, quem os desconhecia não fazia parte do seu mundo. Nas margens do lago, o corpo carbonizado do caçador de rãs podia testemunhá-lo...

Ela curvou-se para sair da sua tenda. Lá fora a erva estava ensopada de água. Sem dúvida tinha chovido a noite toda. A elfo ajoelhou-se, passou a mão pela erva e molhou o rosto com deleite, e depois ergueu os olhos para o céu. Era um desses dias incertos de Novembro. Um sol pálido irradiava por cima das nuvens. Talvez fizesse bom tempo. Talvez voltasse a chover. Os elfos não concediam ao clima a devoção dos homens curvados sobre as suas culturas. Semelhantes às árvores, às pedras e aos esquilos que faziam os ninhos nos bosques, não lhes passaria nunca pela cabeça modificar o curso da natureza. E foi por isso que desapareceram.

Um movimento, na orla do bosque, atraiu a sua atenção.

Llandon, rei dos altos-elfos, estava já montado a cavalo. Um soldado estendeu a Lliane as rédeas do seu cavalo e ela, dando um pulo, saltou para cima dele. Os elfos montavam sempre em pêlo e não tinham necessidade de selas, esporas ou chibatas. Conheciam a linguagem dos animais domésticos, e alguns deles, a linguagem dos animais selvagens. Llandon debruçou-se sobre o seu cavalo, um enorme garanhão branco cuja crina, quase a tocar o chão, nunca tinha sido cortada.

— Leve-nos a Loth — disse ele no ouvido do cavalo.

Dez elfos e nove cavalos seguiram-no. Estavam aí, para além do casal real, Blorian e Dorian, os irmãos gêmeos da rainha; Kervin, o arqueiro; Rassul, senhor dos elfos cinzentos dos pântanos que nunca o abandonava e amigo de Llandon; Assan, o seu servo elfo; Hamlin, o trovador; e Lilian, o bobo — mas é sempre bom desconfiar dos elfos que se fazem passar por cómicos —, e por fim Till, o batedor, que seguia a pé, correndo ao lado do seu cão e seguido pelo seu falcão.

Os elfos cavalgaram em silêncio, deixando que as suas montadas adotassem a postura de Lame, o garanhão branco que era chefe deles. Depois, Hamlin pegou sua viola e começou a cantar na sua voz grave a canção da Grande Horda, de que os cavalos tanto gostavam. O canto soava-lhes como uma promessa de um estábulo quente. A ”trova da Grande Horda” falava de tempos antigos, dos prados verdes sem fim onde corcéis, palafrins, hacaneias, rocinantes, rocins e cavalitos passeavam pela erva dos deuses...

Till, o seguidor de pistas, tinha mandado o seu falcão reconhecer o caminho. Depois de uma hora de cavalgada, o grito do pássaro arrancou a todos da melancolia do cântico: as torres de Loth estavam à vista.

Ao chegarem às portas da cidade, os seres azuis puseram os pés em terra e largaram os seus cavalos em liberdade, não sem antes lhes retirarem as rédeas. Os homens gostavam demasiado de cavalos para que Lame e a sua horda pudessem circular em segurança nas ruelas de Loth.

— Senhor Llandon! Que a paz esteja convosco! Tentando conciliar o seu passo com os passos largos deles, quase a correr, o arauto confirmou-lhes a presença do rei Baldwin e a reunião do Grande Conselho.

— Então é verdade que Baldwin se deslocou pessoalmente? — disse Llandon pensativamente. — Não é o gênero de anão que deixe a sua montanha de bom grado. Que quer ele?

— Não sei, senhor — respondeu o arauto baixando a voz. — Mas tinha um ar carrancudo!

— E depois? — exclamou alegremente Rassul batendo no ombro de Llandon. — Os anões estão sempre carrancudos!

A escolta élfica ruiu despreocupadamente e desapareceu na ala que lhes estava reservada, e que o arquiteto do palácio tinha muito sabiamente colocado na parte oposta à dos anões...

O arauto abanou a cabeça, decididamente inquieto com caminho que as coisas estavam a levar, e foi prevenir o rei Pellehun. Perdido nos seus pensamentos, não reparou na enorme figura de um guerreiro bárbaro, escondido numa zona sombria. O bárbaro deixou o homem passar, avançou lentamente para a luz e seguiu-o com os olhos.

Vestidos com as suas armaduras de ferro e com uma cota de armas com largas listas azuis e brancas, as cores do rei, os doze bravos reunidos na sala do Conselho constituíam a guarda dos reis que deveriam tomar lugar em volta da mesa. Eram todos homens nobres, vindos de famílias que tinham recebido nos Tempos antigos os títulos de Amigos dos elfos e de Companheiros, título equivalente entre os guerreiros anões.

Alguns falavam em voz baixa, outros jogavam aos dados, mas Uter e Roderic, os dois mais novos, olhavam para fora através da única janela da sala, invadidos pela tristeza do dia.

Várias horas tinham decorrido desde a chegada dos elfos e o toque do meio-dia não tardaria a soar. Uter estremeceu. A sua armadura de metal polido brilhava sob a morrinha que tinha começado a cair. Roderic murmurou algo que o seu companheiro não entendeu, mas este não tentou que ele repetisse e deixou que os seus olhos percorressem sonhadoramente os telhados da cidade, as ruelas estreitas do bairro do porto e os primeiros contornos do imenso lago que se estendia a perder de vista.

Uter sobressaltou-se quando um longo gemido soou no centro da mesa. Era a Pedra de Fal, o talismã dos homens e símbolo da soberania, que manifestava a chegada de um rei legítimo. Quase ao mesmo tempo, houve um ruído de passos no corredor. Ufin, o mais velho entre eles, lançou uma ordem breve. Os que estavam sentados levantaram-se de um salto, os que jogavam guardaram dados e copos e todos observaram a porta que ia abrir-se.

O arauto entrou, verificou com um olhar que tudo estava em ordem e desapareceu diante do soberano, batendo no chão com o seu bastão de ferro.

— Pellehun, filho de Ker, rei dos homens do lago e dos arredores, mestre do grande Conselho! — anunciou.

Os cavaleiros perfilaram-se e apertaram um pouco mais: o punho das suas espadas.

Pellehun, escoltado pelo senescal, deu a volta à grande mesa de bronze que ocupava a maior parte da sala e sentou-se em frente à porta, sobre o trono de cedro talhado, nos Tempos Antigos, no coração de uma árvore por um dos seus antepassados.

Gorlois, esse, ficou de pé diante do seu lugar, pois não convinha que um cavaleiro, fosse ele príncipe, senescal e governador do palácio, se sentasse antes do rei dos anões ou do dos elfos.

Houve cá fora um tinido de armaduras, um outro gemido da pedra sagrada e a porta voltou a abrir-se.

— Llandon, rei dos altos-elfos, senhor da floresta de Éliandre! — anunciou o arauto.

O elfo sorriu e ajoelhou-se em frente de Pellehun, segundo o costume.

— Que a paz esteja contigo, Llandon — disse este último levantando-se.

— Que o céu te guarde, Pellehun — replicou o elfo. — Por que é que o Conselho está reunido?

— Não sei mais do que tu... Baldwin está em Loth. Mas suponho que já foste informado...

Llandon respondeu com um aceno de cabeça e sentou-se no seu lugar, ao lado do rei dos homens; o arauto fez soar novamente o bastão sobre as lajes.

— Rassoul, rei dos elfos cinzentos, senhor dos pântanos para lá das montanhas!... Lliane, rainha dos altos-elfos!

— Cada vez mais bela — disse Pellehun prestando a sua homenagem à rainha.

— Uma tua serva — murmurou ela sem baixar os olhos.

O seu olhar parou por um breve instante no senescal, e ela inclinou educadamente a cabeça. Apesar da sua idade, o velho Gorlois sentiu-se perturbado e clareou a garganta para recuperar a compostura. Difícil escapar ao encanto daqueles olhos verdes... A comitiva de Llandon tomou lugar em volta da mesa de bronze e fez-se silêncio na sala.

Os doze bravos, de olhares fixos e mãos cruzadas sobre os punhos das suas espadas, pareciam estátuas.

Uter, colocado por trás dos elfos, fixava a nuca da rainha Lliane. As mulheres elfos eram de uma tal beleza que os homens que não tinham o costume de passar pelos seus países as tomavam por fadas. Exceto pela sua pele azul, os elfos pareciam-se com os homens, mas mesmo o mais belo homem ou a mais bela jovem tinham sempre um ar pesado e desajeitado quando comparados com a sua leveza diáfana. E, de entre eles, os altos-elfos, os que viviam nas planícies e corriam ao vento, eram os mais delicados.

Lliane deve ter sentido na sua nuca o calor do olhar do jovem: voltou-se um pouco e sorriu-lhe.

Uter sentiu o coração bater por debaixo da armadura. A elfo tinha uns olhos verdes cor de prado, quase amarelos, que contrastavam admiravelmente com os reflexos azuis da sua pele.

Sorriu por seu turno, perdendo um pouco a rigidez que exigia a sua função, mas nesse instante a pedra gemeu pela terceira vez, e o bastão do arauto soou como que chamando-o à ordem. As fórmulas protocolares em uso entre os anões eram bem mais complicadas que as dos elfos, as dos homens, ou mesmo as dos gnomos que tanto gostavam de títulos. Não havia outro remédio senão conhecer todas as fórmulas, todos os costumes e todas as línguas dos Povos Livres, pois havia certas circunstâncias, no palácio, em que a utilização da linguagem comum, entendida por todos — mesmo por bastantes raças monstruosas das Terras Negras —, teria parecido inconveniente.

— Baldwin, filho de Twor, filho de Urs Barba-Azul, rei e filho de reis! — anunciou o arauto. — Baldwin, senhor da pedra e dos metais. Baldwin Machado-Grande, Barba-Comprida, vasto tesouro! Baldwin, soberano dos anões sob a Montanha Vermelha! Que a sua barba seja sempre espessa!

O velho anão fez uma entrada ruidosa, como era seu costume. Devido à sua idade, não se ajoelhou em frente de Pellehun. Depois dos 300 anos, podem permitir-se algumas alterações ao protocolo...

Um canto do seu bigode grisalho enrolado com cera levantou-se, o que poderia indicar que ele tinha sorrido ao rei dos homens; curvou a cabeça em sinal de saudação.

— Que a paz esteja contigo, Pellehun — disse ele com a sua voz roufenha.

— Que o céu te guarde, senhor das pedras. Toma assento à minha direita.

Baldwin deu a volta à mesa de bronze, seguido dos seus conselheiros e de um anão modestamente ornado e não armado.

Os bravos alinhados por detrás do grupo dos anões tentaram estudar a cara deste último, mas chegaram à conclusão que nunca tinham visto este barbudo de ar sonhador (o que não era nada comum entre os anões). Baldwin sentou-se finalmente no seu lugar e voltou ostentosamente a cabeça para os seus seguidores. Llandon, desconcertado, hesitou um instante. A etiqueta exigia que ele saudasse primeiro o mais velho, o rei dos anões, mas este não lhe tinha concedido ainda o menor olhar.

— Que a paz esteja contigo, rei — disse ele finalmente com um sorriso diplomata. — Já há muito tempo que não nos víamos...

Baldwin não respondeu e um bramido de indignação percorreu imediatamente o grupo dos elfos. Gorlois, o arauto que saía já e fechava a porta atrás dele e o próprio rei Pellehun não puderam deixar de levantar as sobrancelhas perante a atitude do rei da Montanha Vermelha. Uter, desconcertado, procurou Ulfin com o olhar e percebeu no mais velho a mesma mudança de atitude. Endurecimento, inquietude, expectativa...

— O senhor Llandon deu-vos as boas-vindas! — repetiu Pellehun pousando a mão sobre o braço do velho anão.

— Ha? — disse Baldwin virando-se por fim. — Ah sim, os elfos! Os elfos, é claro... Perdão... Não tinha ouvido. A idade, sem dúvida...

Inclinou a cabeça e fez um gesto em direção ao seres azuis convidando-os a sentarem-se.

— Que o céu te guarde, Llandon... E a ti também, rainha dos elfos. Bem-vindo, rei Rassul!

Os elfos entreolharam-se e sentaram-se bem dispostos.

Gorlois mergulhou no fundo do seu cadeirão, brincando distraidamente com uma das suas tranças entrelaçadas com uma fita vermelha e reprimiu um sorriso. O Conselho começava bem...

Pellehun levantou-se arvorando um ar conciliador.

— Meus amigos, estamos reunidos a pedido do rei Baldwin, senhor dos anões da Montanha Vermelha. Escutemos aquilo que ele tem para nos dizer e deliberemos em conjunto sobre a conduta a seguir!

Do outro lado da porta, o arauto escutava com tanta atenção que se deixou surpreender pela aparição, do outro lado do corredor, de um gigantesco guerreiro de cabelos louros e barba hirsuta, vestido de peles e armado com uma enorme espada.

— Quem és tu? — gritou ele correndo em direção ao bárbaro. — Como é que chegaste até aqui?

— Sou Freihr, chefe dos homens livres de Seuil-des-Roches. Deixa-me passar.

O arauto não compreendeu imediatamente. Freihr falava a linguagem comum com um terrível sotaque dos homens do Norte. Não se desviou.

— Qual é o teu nome? — perguntou mais uma vez.

— Deixa passar! — murmurou o gigante. Simultaneamente, empurrou-o contra a parede com uma brusquidão tal, que este bateu nela e deslizou lentamente até ao chão com um gemido.

O bárbaro franziu as sobrancelhas, olhou rapidamente em volta e notando com alívio que a cena não tinha tido testemunhas, avançou para a porta do Conselho. Baldwin falava com tal força e cólera que o bárbaro ouvia cada uma das suas palavras através das maciças tábuas de carvalho.

— Vim reclamar justiça ao Conselho! — gritava ele. — Se não me for concedida, apelarei à cólera dos anões, e a nossa vingança será mais terrível que uma tempestade sobre as montanhas!

— Far-te-emos justiça, Baldwin — disse calmamente Pellehun. O anão parou alguns instantes quebrado no seu ímpeto. Sob as suas sobrancelhas espessas, os seus olhos buscaram os do seu conselheiro, o anão de barba ruiva e com ar modesto.

Este levantou-se da sua cadeira com um ar aborrecido. Lliane teve mesmo a impressão de que ele tinha lançado um olhar de simpatia aos elfos (mas ela não o poderia jurar).

— O meu nome é Tsimmi — disse com uma voz pausada. — O senhor Baldwin encarregou-me de pôr-vos a par dos terríveis acontecimentos que tiveram lugar na Montanha e que provocaram a sua vinda ao Conselho. Existem coisas demasiado indignas para serem pronunciadas pela boca de um rei...

Por seu turno, marcou uma pausa e solicitou o consentimento do velho Baldwin. Mas este continuava de cabeça baixa, fixando duramente os seus punhos cerrados pousados sobre a mesa de bronze.

— O elfo Gael matou Troin — disse ele por fim.

O anão Tsimmi tornou a sentar-se com um gemido, ao mesmo tempo que soava um concerto de gritos de indignação, de surpresa ou de incredulidade. Llandon e Rassul tinham-se levantado bruscamente, atirando com as cadeiras sobre as lajes de mármore da sala, e a rainha Lliane encarava-o como se ele tivesse ficado maluco.

— Pela deusa, retira essas palavras, barbudo! — berrou Rassul, o elfo cinzento que era sempre o primeiro a perder a paciência.

Gael era o senhor de uma pequena comunidade de elfos dos pântanos, nas Fronteiras, e, portanto, em teoria um dos seus vassalos. Mas, mais que qualquer outro clã da nação élfica, os elfos cinzentos escapavam na realidade a qualquer controle.

Nem sempre tinham vivido nos pântanos. Chamavam-lhes, nos Tempos Antigos ”elfos das colinas”, e tinham sido expulsos pelos anões quando estes aí tinham encontrado ouro. Os anões tinham começado por queimar as suas aldeias de choupanas, matando indiferentemente os guerreiros, as mulheres e as crianças. Depois, quando os sobreviventes não passavam de uma meia dúzia, divertiram-se a organizar caçadas a cavalo e a matá-los à funda, como se fossem coelhos. Séculos mais tarde, os descendentes das suas vítimas guardavam-lhes um rancor terrível. Os elfos tinham-se tornado num povo selvagem, imprevisível e cruel. Apesar da aliança, nenhum anão, por mais temerário ou mais forte, se aventurava nos pântanos...

Llandon acalmou Rassul com um gesto e forçou-o a voltar a sentar-se na cadeira que um dos doze bravos tinha já voltado a colocar no lugar. Do outro lado da mesa os anões estavam também em pé, com as mãos nos punhos dos seus machados. Só Baldwin e Tsimmi tinham ficado quietos.

— Peço-vos — insistiu Pellehun, fazendo um sinal para que se sentassem. — Continue a sua exposição, mestre Tsimmi.

— Troin, rei sob a Montanha Negra e príncipe da cidade subterrânea de Ghâzar-Run, está morto — continuou o anão da barba ruiva tentando a todo o custo evitar o olhar dos elfos. — Gael tinha vindo visitá-lo para lhe comprar uma cota de malha em prata, feita pelos mestres artesãos da cidade. Conheceis o valor de tudo quanto é fabricado em Ghâzar-Run...

Todos concordaram e os anões em particular. Estas armaduras em prata eram mais leves que as de couro e mais resistentes que as de aço. O próprio Llandon passou maquinalmente a mão sobre o seu fato de catassol por debaixo do qual tinha vestida uma dessas cotas de malha.

— No momento de pagar — continuou Tsimmi — Gael matou o rei Troin com um golpe de adaga nas costas e fugiu de Ghâzar-Run levando consigo o seu bem, antes que o crime fosse descoberto... O rei Baldwin, meu senhor, veio pedir justiça em seu nome, e em nome do povo da Montanha Negra!

Um silêncio de morte reinou na sala durante longos segundos. Os anões cerravam os dentes olhando fixamente para a mesa, o rei humano e o seu conselheiro trituravam nervosamente as suas tranças, e os elfos, ainda mais pálidos que o habitual, baixavam os olhos, com o coração a bater, petrificados.

— Que aconteceu ao senhor Gael, Rassul? — perguntou Pellehun com a voz o mais calma possível.

O elfo cinzento baixou a cabeça e fechou os olhos. Sentia-se humilhado perante os anões, incapaz de afirmar que a história deles era mentira. É claro que, mais que ninguém, Gael teria necessidade de uma armadura anã, ele que andava pelas fronteiras das Terras Negras, ao alcance dos ataques dos gobelins. Mas os elfos dos pântanos eram pobres, mesmo segundo os padrões dos outros povos élficos. Com que poderia ter pago uma cota de malha de prata?

Llandon baixava, também ele, a cabeça. Gael era um elfo cinzento e não um alto-elfo e não conseguia lembrar-se dele. Talvez Till, o seguidor de pistas, o conhecesse. Noutros tempos, tinha combatido com os elfos cinzentos dos pântanos, levando a cabo em território inimigo uma guerra terrível contra as patrulhas de gobelins... Llandon percebeu instantaneamente que não conseguia ligar o nome a uma cara, mas, apesar de tudo, quem é que conhecia verdadeiramente os elfos cinzentos? Nem mesmo o rei deles, Rassul, que reinava sobre um povo em desaparecimento, disseminado em pequenos clãs no reino menos hospitaleiro, nas Fronteiras das Terras Negras. Os elfos cinzentos, salvo Rassul e algumas comunidades que ainda viviam à moda antiga, pouco a pouco tinham-se isolado, não se misturando com os elfos verdes, com os elfos das dunas ou com os altos-elfos, a não ser em raras ocasiões. Além disso, ele devia ser igual a quase todos os elfos... Llandon teria tido dificuldade em recordar-se de mais que uma centena dos seus congéneres.

— Não sei — acabou por murmurar Rassul, lívido. — Não sei onde ele se encontra.

Llandon cruzou o seu olhar com o olhar verde-claro da rainha Lliane, e abanou a cabeça em sinal de de negação.

— Meus senhores, a honra dos elfos e o futuro da paz entre os Povos Livres obriga-nos a encontrar Gael — disse Lliane. Agradecemos ao senhor Baldwin... e ao mestre...

Ela tentou lembrar-se do nome do anão de barba ruiva.

— Tsimmi — soprou este com uma voz matreira que fez sorrir todos os nobres assistentes.

— Mestre Tsimmi, sim — continuou a rainha. — Perdão... Agradecemo-vos terem trazido este assunto a Conselho. Se o senhor Pellehun no-lo permitir, traremos Gael a Loth para que ele se explique.

— É claro! — resmungou Baldwin para com a sua barba. — Palavras bonitas! E dentro de duas semanas vão dizer-nos que ele desapareceu!

De novo Rassul deu um salto.

— Mais uma vez nos insultas, maldito comedor de pedras!

O elfo cinzento tinha-se erguido, com a mão sobre o punho da sua longa adaga. Do outro lado da mesa, Baldwin e os seus conselheiros brandiram os seus machados, mas imediatamente os doze bravos se aproximaram dos membros do Conselho, prestes a segurá-los antes que o sangue corresse.

— Basta! — gritou Pellehun, levantando-se. O seu grito trouxe um pouco de calma.

— Senhor Rassul, as vossas palavras ultrapassaram os vossos pensamentos, mas tenho a certeza de que o rei Baldwin não as levará em conta. Estamos todos cansados e com os nervos em franja... Sentemo-nos, meus senhores. Peço-vos...

Mais uma vez, elfos e anões retomaram os seus lugares em volta da mesa de bronze, não sem um longo concerto de resmungos diversos.

— A rainha Lliane tem razão — continuou Pellehun. — É aos elfos que cabe fazer justiça. Mas nós compreendemos toda a cólera do senhor Baldwin e... a sua desconfiança.

A seu lado, o senescal Gorlois tossiu.

— Talvez... visto tratar-se de um crime de sangue real...

— E então?

— Talvez a rainha pudesse encarregar-se ela própria das buscas?

No espaço de um instante, o olhar do rei dos homens brilhou e um grande sorriso apareceu no seu rosto enrugado.

— Que boa ideia!

Gorlois fechou modestamente o seu único olho e inclinou a cabeça.

— Que pensais acerca disto, companheiros?

Imóvel, frente à pesada porta da sala do Conselho, o bárbaro saltitava de uma perna para a outra, incapaz de tomar uma decisão. O caminho tinha sido longo até Loth, e Freirhr tinha revisto na sua cabeça mais de cem vezes o discurso que iria fazer ao rei Pellehun. Mas ali, no centro da fortaleza, já não sabia o que havia de fazer.

De repente, a ponta de uma lança veio picar-lhe as costas.

— Nem mais um gesto, bárbaro! Foste tu que mataste o arauto?

Como resposta, o imenso guerreiro loiro voltou-se com um grito terrível e o seu punho fechado bateu no cabo da lança, tirando-a das mãos do soldado que o ameaçava. O bárbaro enfrentou-o, desembainhando uma enorme espada com as duas mãos, cuja lâmina gasta mostrava bem que ele tinha o costume de se servir dela. Diante dele, o guarda desarmado bateu precipitadamente em retirada, enquanto dois outros soldados apontavam as suas lanças.

A porta do Conselho abriu-se de um golpe seco e Gorlois abrangeu toda a cena com o seu único olho, composta por dois cavaleiros, de espadas em riste, preparados para cortar em dois o gigante se ele fizesse cara de o .atacar.

— Que é que se passou? — disse, designando o arauto que continuava inanimado. — Está morto?

O bárbaro voltou-se e baixou a espada.

— Não, não, não está morto. Só atordoado...

— Quem és tu?

— Eu sou Freihr, chefe dos homens livres de Seuil-des-Roches — disse o bárbaro sorrindo, com a cara novamente serena.

— Que fazes por atrás desta porta? — perguntou o senescal. — Estás a espiar-nos?

— Freihr não espiona! Quero falar ao rei.

— Mais tarde! — disse o senescal empurrando o guerreiro meio nu debaixo das suas peles. — O rei não pode receber-te agora!

— Espera! — gritou uma voz forte.

Todos os olhares se voltaram para Pellehun. O mestre do Grande Conselho tinha-se erguido bruscamente.

— Faz entrar o senhor Freihr — ordenou num tom que contrastava com a calma que tinha mostrado desde o princípio do Conselho.

Os elfos e os anões, intrigados, viraram-se olhando para o rei e para o bárbaro. Por que é que Pellehun tinha interrompido assim o Conselho?

— Que aldeia disseste? — perguntou o rei mal o guerreiro entrou na sala.

— Seuil-des-Roches...

— Isto não te lembra nada, Gorlois? — perguntou o rei zombeteiro e triunfante.

— Não compreendo...

— Seuil-des-Roches é uma aldeia fortificada, ..no centro das Fronteiras Negras... Ao vôo de um pássaro, não deve estar mais distante que cinco léguas das primeiras cabanas dos elfos cinzentos de Gael.

Todas as caras se viraram para o gigante com um novo interesse.

— Meus senhores — prosseguiu o rei levantando bem alto a mão para segurar o bárbaro pelos ombros —, Freihr é um desses raros homens livres que conseguiram manter-se nas Fronteiras. Estou surpreendido e feliz com a tua chegada a Loth, Freihr. Por que é que querias falar comigo?

— Seuil-des-Roches foi destruída. Ajuda-me a vingar-me, e Freihr será teu escravo... Já nada me resta.

Pellehun não respondeu. Face ao gigante, o rei dos homens parecia pequeno como um anão; Uter sentia-se aliviado por não ter tido de se lhe opor. Com uma cara grave, Pellehun deu mais uma palmadinha no ombro do bárbaro, e depois avançou em silêncio até à única janela da sala. Lá fora, a chuva tinha parado de cair. O fumo que saía das chaminés levava até ao palácio os odores da comida e o rei disse para consigo que sentia fome.

— De quem queres vingar-te? — continuou.

— D’Aquele-Que-Não-Pode-Ser-Nomeado. Foi ele quem mandou destruir Seuil-des-Roches

— O Senhor Negro... — murmuraram ao mesmo tempo Llandon e mais uns quantos em volta da mesa de bronze.

A maioria deles tinham combatido nas últimas batalhas da guerra dos Dez Anos, e a mera lembrança dessa época horrível fazia-os tremer. Ninguém tinha alguma vez visto o Senhor Negro, mas a crença popular — tanto entre homens do lago como entre elfos das dunas ou anões da Montanha — concedia-lhe poderes infinitos. Todos, até os reis que se sentavam no Grande Conselho, estavam convictos de que não podiam nomeá-lo sem se arriscarem a atrair sobre si mau-olhado. Com o tempo, raros eram aqueles que ainda sabiam o seu nome...

No final da guerra, o Inominável tinha sido vencido e tinha-se retirado para além das Fronteiras, para uma terra de tal modo desoladora que era o local de preferência dos monstros. Dizia-se que ele edificara uma fortaleza, e que reconstruíra o seu exército de lobos e de gobelins. Seja como for, as Fronteiras constituíam a divisão entre o reino de Logres e o país de Gorre, o domínio do Inominável, que os homens chamavam de Terra Gasta, Terras Negras ou Terras Forasteiras.

— Ah, o Senhor Negro! — exclamou Baldwin. — E então, que é que tudo isto tem a ver com a morte de Troin?

— Conheces o elfo Gael? — perguntou a rainha Lliane ao bárbaro, sem prestar atenção ao rei dos anões.

— Sim.

— Quando é que o viste pela última vez?

— Há cinco dias. Depois de Seuil-des-Roches ter sido destruída.

Llandon saltou da sua cadeira e aproximou-se do gigante. Baldwin estremeceu e encolheu-se no seu trono mordiscando a barba grisalha. Como todos os elfos, Llandon era grande, maior que um homem normal, mas o bárbaro ainda o dominava e parecia três vezes maior que ele. Devia medir pelo menos oito pés de altura. Devia ser da altura de três anões juntos...

— Senhor Baldwin! — exclamou o rei dos altos-elfos com uma voz onde se percebia a esperança. — Quando é que Troin foi morto?

— Há uma semana.

— Então, se o que nos diz este bravo gigante é verdade, Gael não é o culpado! São mais de cinquenta léguas entre a cidade subterrânea de Ghâzar-Run, onde Troin foi morto, e as Fronteiras! Quem poderia cavalgar tão depressa? Impossível!

— Mas isso é possível com um cavalo livre — corrigiu Pellehun.

— Mas eu não vi Gael nas Fronteiras — disse lentamente o gigante. — Ele estava em Kab-Bag.

Entre a assistência, raros eram os que conheciam o lugar. A ignorância estava tão espelhada nas caras da maioria dos elfos e dos anões que Gorlois interveio, não descontente por poder resgatar o seu esquecimento precedente.

— Kab-Bag é a cidade mercantil dos gnomos. Na realidade, não é propriamente uma cidade, é mais um buraco grande onde se ergueram casas de trogloditas. Algumas são verdadeiros palácios, segundo se conta. Mas todos conheceis os gnomos... Tão ladrões quanto mentirosos!

— Onde fica essa cidade? — resmungou Baldwin.

— A meio caminho entre as Fronteiras e a nossa boa cidade de Loth... Diria cerca de quarenta ou cinquenta léguas, em direção a norte. É difícil de encontrar, suponho, pois são poucos os que podem vangloriar-se de a terem visitado... Excetuando os ladrões da Guilda e os próprios gnomos, é claro.

— Que fazia Gael em Kab-Bag? — perguntou Pellehun ao bárbaro, interrompendo o discurso satisfeito do seu senescal.

— Não sei. Gael não me cumprimentou. Talvez não me tivesse visto...

O rei reprimiu um sorriso. Não ver o gigante no meio de uma multidão de gnomos pouco mais altos que uma espada...

— Mas é preciso que me ajudem a vingar-me, ha?

— Sim, sim... Está bem!

Gorlois interrogou o rei Pellehun com o olhar e depois acompanhou o bárbaro até fora da sala.

Durante todo o tempo que ele demorou a sair, o silêncio reinou na sala. Ouvia-se cá fora o eco de uma canção de um bêbado e o rir gorjeante de uma pega.

— Que decidimos, meus senhores? — perguntou Pellehun pousando a sua taça de estanho.

Como o Conselho se prolongava, Gorlois tinha mandado servir uma refeição sólida. Os criados tinham trazido vinho e cerveja para os homens e para os anões, água fresca para os elfos, e grandes travessas com enchidos. Quando um dos criados colocou no centro da mesa de bronze dois grandes candelabros, todos se deram conta de que falavam já há muito tempo numa semiobscuridade, enquanto a nona hora do dia acabava de soar.

— Parece que não temos escolha — disse Llandon. — Se Gael está em Kab-Bag, é aí que precisamos ir. Enviarei amanhã três elfos com a minha rainha para o encontrarem.

— O xerife dos gnomos de Bag-Mor está no palácio, senhor! — interrompeu Gorlois. — Será que é necessário convocá-lo para o Conselho?

— Não, é inútil. Bag-Mor está a léguas de Kab-Bag e é pouco provável que o xerife dessa aldeia tenha qualquer coisa para nos dizer sobre Gael... Além disso, é necessário evitar a divulgação do assunto.

Todos os assistentes abanaram a cabeça. Numerosos povos viviam sob a proteção das armadas do grande Conselho, mas só os homens, os elfos e os anões faziam parte dele. Havia várias razões para isso. Alguns povos nunca tinham constituído grandes agrupamentos, não formando mais do que pequenas tribos de uma dezena de indivíduos. Outros, apesar da sua importância, não eram de grande confiança... E era esse o caso dos gnomos.

Em princípio aliados do Grande Conselho, nunca tinham tomado parte, senão muito raramente, num combate contra as armadas do Senhor Negro (embora nenhum deles lutasse verdadeiramente e a sua incapacidade militar fosse proverbial). Por outro lado, estava praticamente estabelecido que os seus centros de comércio — e portanto, Kab-Bag — mantinham relações com os monstros das Fronteiras. Tinham sido encontradas bastantes vezes, entre as moedas de ouro dos impostos do Grande Conselho, moedas goblinas para que se pudesse ainda acreditar na submissão dos gnomos.

Mais uma vez o silêncio encheu a sala. Os anões agitavam-se nos seus lugares, mastigando barulhentamente. As travessas colocadas em frente deles estavam praticamente vazias.

— Creio que a ideia do Sr. Llandon é boa — disse Pellehun. Com efeito, é necessário enviar a Kab-Bag um esquadrão com a rainha Lliane, a fim de encontrarem Gael e de o trazerem aqui...

— Claro, ou para o ajudarem a escapar — resmungou Baldwin.

— ...mas parece-me que seria mais aconselhável designar dois representantes de cada um dos nossos povos — continuou Pellehun inclinando-se sobre ele. — Enviarei dois cavaleiros da guarda do Conselho, bem como o Sr. Freihr, o último homem a ter visto Gael e, sem dúvida, conhecedor dos gnomos.

— De acordo! — disse Lliane.

Todos os olhares se voltaram para a rainha dos altos-elfos. Pausadamente, ela levantou-se, dominando a mesa com a sua estatura, e baixou o seu olhar verde-claro sobre o rei dos homens. Apesar da sua idade e da sua posição, Pellehun sentiu-se corar, e isso irritou-o. A imagem da rainha Ygraine passou-lhe fugazmente diante dos olhos. Há quanto tempo é que ele já não a honrava?

— O rei Pellehun tem razão — continuou Lliane. — Organizemos uma expedição e partamos amanhã! Aliás, se Gael está em Kab-Bag, isso não será mais que uma mera formalidade. Irei, se o meu rei permitir.

Llandon cerrou as pálpebras em sinal de consentimento.

— Dois elfos escoltarão a rainha — murmurou ele.

Baldwin deu um riso abafado.

— Um! — corrigiu ele.

— A rainha dos altos-elfos não pode ser considerada como guerreiro no meio dessa expedição!

Baldwin sorriu da indignação de Llandon.

— O senhor Llandon acha que os povos sob a Montanha ignoram o que se passa na planície... ou nas florestas?

— Nós os anões — murmurou Tsimmi na sua voz calma pouco usual para um anão — contamos aos anõezinhos, para lhes meter medo, a história da elfo Lliane e da sua longa adaga que mata gobelins.

Tsimmi tinha dito estas últimas palavras com um pequeno sorriso, e Lliane corou (o que nos elfos fazia que ficassem com as faces de um azul mais escuro).

— Ouvi falar dessa história — interveio Gorlois. — Sempre me perguntei se se trataria de uma lenda ou se seria verdadeira... Os trovadores têm um canto sobre a rainha dos elfos, atacada por Chaw, o gobelin, na floresta de Éliandre. Uns lenhadores descobriram Chaw pregado a uma árvore por um golpe de adaga. A árvore estava seca e queimada... não sabia que se tratava de vossa senhoria.

— As lendas têm sempre um fundo de verdade — disse Lliane em voz baixa, enquanto os seus dedos, por debaixo da mesa, deslizavam sobre a bainha de Orcomhiela, a sua longa adaga de prata. — Só um elfo me acompanhará.

Enquanto a rainha se sentava ao lado do seu esposo mal-humorado, os conselheiros do rei dos anões entraram num barulhento conciliábulo.

— Far-vos-emos saber amanhã quais de entre nós partirão à procura do elfo — disse finalmente Baldwin, acabando com a discussão.

Pellehun abanou a cabeça, bateu na mesa de bronze com as palmas das mãos e levantou-se para pôr fim aos debates.

— Pois bem, penso que podemos declarar agora o Conselho terminado... Proponho-vos que assistam comigo à missa, e que partilhem da minha mesa esta noite, já que chegámos todos a um acordo!

— É uma honra que nos dás, rei Pellehun — disse Llandon. Mas necessito preparar a partida da minha rainha e devo também escolher quem vai acompanhá-la.

Os elfos levantaram-se, fizeram uma grande vénia diante de Pellehun e do seu senescal, e depois saíram no seu passo silencioso, sem um olhar para Baldwin e para os seus conselheiros.

— Desculpem-me — disse o rei dos anões —, estou cansado. Já não tenho idade para festas, tu bem sabes. Quanto à tua missa... Permite-me que me retire.

Os anões levantaram-se todos ao mesmo tempo, saudaram e saíram com tanto barulho como quando haviam entrado.

Pellehun tinha ficado sentado. Com os olhos fixos sobre a pesada porta de carvalho que acabara de fechar-se atrás dos doze bravos, guardou silêncio durante um longo momento.

— Então, Gorlois, que me dizes? Não correu muito mal, não achas?

O senescal abanou a cabeça e serviu dois copos de vinho grenache, um vinho escuro, espesso, de que o rei gostava acima de tudo.

— Melhor do que poderíamos esperar, senhor... Reparou? Estavam prestes a estripar-se aqui mesmo!

— Sim...

Pellehun sorriu e bebeu um grande gole de vinho.

— Foi quase fácil demais.

 

Os elfos deixaram Loth nessa mesma noite. Os reis tinham-se reunido aos seus séquitos nos seus aposentos e as poucas bagagens que tinham trazido foram rapidamente fechadas. Till, o seguidor de pistas, foi enviado à frente para encontrar Lame e os cavalos livres e pedir-lhes que viessem fazer parte do Conselho que o rei Llandon queria reunir, já que eles próprios iriam fazer parte da expedição.

Os seres azuis atravessaram as ruelas adormecidas da cidade, deslizando suavemente sobre os pavimentos úmidos. Não acordaram nem mesmo os cães que dormiam ao lado das camas dos seus donos, dentro das casas quentes e fechadas dos homens.

Till, Lame e os cavalos estavam à sua espera quando eles chegaram às portas de Loth. Sem uma palavra, os elfos montaram os seus cavalos e desapareceram na escuridão. À meia-noite tinham chegado ao seu acampamento, do outro lado do lago.

Nem uma palavra tinha sido trocada durante a cavalgada, e a viola de Hamlin, o trovador, tinha ficado silenciosa. Lame tinha dado alguns relinchos de interrogação, mas Llandon não lhe tinha respondido, perdido nos seus pensamentos sombrios e tristonhos. O garanhão branco tinha abanado a crina e erguido a cabeça, compreendendo que se passava algo de grave.

Llandon não deu tempo aos elfos de entrarem nas suas cabanas, nem de saudarem as famílias. Desmontando em frente da sua cabana de madeira e folhas, disse em voz baixa algumas palavras a Lame, e depois, com um gesto, convidou os senhores elfos a seguirem-no.

A sua cabana era baixa e úmida, desprovida de qualquer sinal de riqueza, e bem diferente das esplêndidas casas que os nobres, da categoria de Llandon, humanos ou anões, mandavam construir.

Os elfos ignoravam o conforto, a não ser talvez os elfos das dunas que amavam tanto o sol. Os próprios altos-elfos, a antiga raça de Morigan, apesar das suas nobres origens, bebiam água da chuva e dormiam sobre o musgo.

Na floresta de Éliandre, os elfos viviam sobre plataformas colocadas entre os ramos das árvores e deslocavam-se através de pequenas pontes de corda, tão finas que os raros lenhadores humanos que se arriscavam por vezes a entrar na floresta julgavam que os elfos sabiam voar pelos ares.

Cada viagem a Loth deprimia bastante Llandon, de tal modo a cidade lhe parecia oposta a tudo o que os elfos amavam. O seres azuis não gostavam das pedras, nem do fogo, do ouro, dos metais ou dos tecidos ricos, de tudo aquilo que parecia representar a própria essência da felicidade aos olhos dos citadinos. Neste ponto, os homens estavam mais próximos dos anões que do povo etéreo das árvores, mesmo se os barbudos não se acomodassem verdadeiramente, exceto aos seus sombrios subterrâneos que tanto aterrorizavam os humanos.

Llandon sacudiu-se e olhou para os seus servos elfos, sentados em redor dele. Fatigado, triste, procurou Lliane com os olhos e sentiu a mão da sua rainha pousada sobre o seu braço. Ela tinha-se ajoelhado por trás dele, calma e sorridente, como se nada se tivesse passado, como se não fosse partir... Llandon deixou cair os ombros, tomado por uma irresistível vaga de melancolia (um traço característico próprio dos elfos). Lliane ia deixá-lo, e ele iria ficar sozinho, ao pé da cidade dos homens e tão longe da floresta de Éliandre...

De novo, teve de fazer um esforço para se recompor.

— Os anões acusaram um dos nossos de ter matado Troin, o rei deles, sob a Montanha Negra — explicou. — O Conselho encarregou a rainha de procurá-lo, chefiando um grupo composto por guerreiros de cada uma das raças, e de trazê-lo para Loth, a fim de ser julgado pelo seu crime.

— Quem é ele? — perguntou Hamlin.

O rei fez uma pausa, cruzou o olhar com Rassul, sentado à parte perto de Assan.

— O nome dele é Gael — disse por fim. — Um elfo cinzento, senhor de um clã dos pântanos...

Calou-se, observando a reação dos elfos do seu Conselho. Todos comentavam apaixonadamente a incrível notícia, exceto Till. Silencioso como era seu hábito, o seguidor de pistas não conseguiu no entanto evitar que o seu olhar brilhasse furiosamente. Llandon percebeu então que não tinha se enganado: Till devia conhecer o senhor Gael.

— Necessito agora de escolher entre vós quem irá acompanhar a rainha e protegê-la durante a viagem.

— Eu! — disse Rassul, levantando-se. Llandon sorriu ao amigo.

— Tu não podes, Rassul. Nem eu... Nós somos reis e devemos ficar no Grande Conselho até que este assunto seja esclarecido.

Todos os outros elfos, menos Assan, que não podia deixar Rassul, se ofereceram. Blorian e Dorian, visto serem irmãos de Lliane; Hamlin, o trovador, porque falava todas as línguas e o seu canto tinha o poder de enfraquecer os inimigos; Kevin, por ser o melhor arqueiro élfico; Lilian, o bobo, porque a sua leveza e agilidade permitiriam sempre salvar a rainha de um mau combate; Till, enfim, porque possuía sobre a natureza e os animais poderes desconhecidos pelo inimigo e também pelos homens e pelos anões com quem eles teriam de viajar.

Llandon agradeceu bastante a cada um deles.

— Estou-te grato, Blorian, e a ti, Dorian, irmãos valentes. Mas não sereis escolhidos. O desejo de proteger a vossa irmã tornar-vos-ia cegos às armadilhas desta viagem... E elas serão muitas.

Uma terrível decepção espelhou-se na cara dos dois príncipes.

— Além do mais — continuou o rei-, como poderia escolher um de vós sem vexar o outro?

Rassul deu uma gargalhada sonora como um riacho da montanha na Primavera, e todos se deixaram invadir pelo riso comunicativo do rei dos elfos cinzentos. Até mesmo Blorian e Dorian acabaram por rir às gargalhadas, dando-se cotoveladas.

— Agradeço-te, Hamlin — continuou Llandon —, mas também não serás tu.

— Mas... porquê? — perguntou o trovador.

— Recorda-te, caro Hamlin, de tudo o que me ensinaste interveio Lliane. — Graças a ti, falo a língua dos gnomos, a dos anões e a dos gobelins. Ensinaste-me o teu canto. Sou tua serva, nobre Hamlin, e tua aluna, e muitos dos teus cantos ainda me são desconhecidos, mas afinal de contas trata-se de ir a terras de gnomos e não às Terras Negras!

O trovador abanou a cabeça e sorriu à rainha, um sorriso triste onde se misturava admiração e pena.

— O mesmo serve para ti, arqueiro Kevin — continuou ela. — Tu que deste tanto do teu tempo para me ensinares a linguagem da corda, da madeira e da flecha...

Por seu turno, Kevin ergueu a cabeça e desviou os olhos. Depois, calmamente, tirou a sua aljava e estendeu-a a Lliane.

— Toma, minha rainha. Pelo menos, aceita estas flechas.

Lliane hesitou, e depois recebeu o presente do arqueiro. Todos dentro da cabana tinham reconhecido as legendárias flechas de prata de Kevin, forjadas nos Tempos Antigos por Gwydyn-o-velho, mas das quais ninguém conhecia realmente todos os poderes... Uma coisa era certa: quem elas tocavam não sobrevivia, e nunca falhavam o alvo.

Kevin baixou os olhos para pôr um ponto final no testemunho de gratidão da sua aluna. No fundo da sua garganta sentia um nó e fungou. Era difícil aos outros compreenderem tudo o que ligava o arqueiro às suas flechas.

— Agradeço-te, Lilian — continuou Llandon —, mas não me parece que o grupo necessite dos serviços de um bobo. Não se trata de atacar em silêncio uma praça-forte, nem de escalar muralhas ou de surpreender sentinelas, como tu sabes fazer tão bem. E depois, tu sozinho vales por um exército inteiro, e seria um desperdício juntar-te à companhia!

Lilian sorriu aos cumprimentos e inclinou-se.

— Sou eu, portanto, quem vai acompanhar a rainha — disse Till sem elevar a voz. — Conheço Gael. É um bom amigo. Não creio que tenha matado o barbudo, mas, se o matou, é porque tinha uma boa razão para o fazer. Saberei encontrá-lo e ele falará comigo.

Llandon ergueu a cabeça e consultou com um olhar Lliane e Rassul, que também concordaram.

— Contigo, meu amigo, a rainha está em segurança — concluiu o rei. — Repousemos agora. Amanhã devereis voltar à cidade dos homens... Necessito ainda falar com Lame e pedir-lhe um cavalo para a rainha.

Os elfos saíram da cabana real, deixando o casal sozinho, e o silêncio da noite, perturbado somente pelo ululo lúgubre de uma Fcoruja assustada, instalou-se entre eles. Com um nó na garganta, Llandon olhava a esposa sem encontrar palavras. No meio da noite escura e da obscuridade da cabana, um humano não teria conseguido distinguir nada, mas os elfos amigos da Lua tinham olhos de gato. O rei olhava Lliane como um náufrago completamente perdido.

— Não se trata de mais nada além de ir buscar Gael a Kab-Bag — murmurou a rainha. — Nada de grave...

Llandon sorriu tristemente.

— Achas? Eu não sei... É claro que sim. E, no entanto, durante toda a nossa cavalgada desde Loth, senti o coração oprimido, como se não voltássemos a ver-nos...

Lliane veio enroscar-se no ombro do rei. As visões de Llandon eram conhecidas e respeitadas por todos os clãs, e os elfos davam bastante importância à magia e aos sonhos para não prestarem atenção ao que pudesse assemelhar-se a um pressentimento.

— E depois, duvido que Gael ainda esteja em Kab-Bag continuou o rei. — Que é que ele faria ali?... Tenho de falar com Till. Não conheço esse Gael, não sei do que é que ele é capaz. Os elfos dos pântanos são...

Deixou a frase em suspenso, recusando-se a reformular as reservas ou o mal-estar que a maioria dos elfos sentiam nas alturas dos raros contactos com os seus primos selvagens. O próprio rei Rassul era por vezes tão imprevisível...

— Há qualquer coisa que não bate certo... Os anões acusam-no de ter matado Troin, o que é possível, apesar de tudo. Os elfos cinzentos detestam os anões, e sobretudo os da montanha. Se eles tivessem falado de uma emboscada, de uma rixa, teria acreditado neles sem pensar duas vezes, mas esta história de roubo... francamente! Matar o rei da Montanha Negra para lhe roubar uma cota de malha, mesmo sendo de prata... é muito irrisório. Seria uma loucura tão grande!

— Em que é que estás a pensar? — perguntou Lliane. Llandon olhou-a demoradamente, depois acariciou-lhe a face alegrando-se por um instante.

— Nunca se sabe, com os anões. Talvez não passe de uma metamorfose das suas malditas guerras de sucessão, e quem sabe se um dos seus príncipes cheios de ambição não organizou a morte de Troín, com a ajuda de Gael ou servindo-se dele... Talvez isto seja mais grave. Se na realidade Gael conseguiu penetrar em Ghâzar-Run, se na realidade ele matou Troin e realmente o roubou, trata-se certamente de um tesouro muito mais importante... Terás de pensar em tudo isto... e desconfiar dos anões.

Lliane concordou com um bater de pálpebras e o seu sorriso confiante não teve nenhum efeito calmante sobre o rei.

— Há outra coisa — disse ele com uma careta de renitência.

— Deverás também desconfiar de Till, temo... Sei que não trará Gael ao Conselho, nem que para isso tenha de matar todos os homens e todos os anões da expedição. Mas ele obedecerá a ti... Ele obedecer-te-á, como todos nós.

Ele aproximou-se da rainha, segurou-lhe docemente o rosto entre as suas mãos e olhou-a intensamente. Ela sorriu e beijou-lhe as mãos, primeiro uma e depois a outra.

— Eu sei tudo isso, meu rei. Mas não temas nada. Estarei alerta...

Llandon baixou a cabeça. Esta bola na sua garganta, este nó no coração... Teria ficado tanto tempo em contacto com os homens que experimentava esse sentimento desconhecido dos elfos a que eles chamavam amor? Observou Lliane, que começava a despir-se, com aquele sorriso nos olhos de que ele tanto gostava. Seria que a amava ou sofria somente com a perspectiva da sua ausência?

A comprida veste de catassol da rainha escorregou para o chão. Ela estava nua, ornamentada somente com as suas pulseiras de prata, ondulando lentamente como uma cana ao vento, e o desejo de Llandon afugentou a sua melancolia.

 

Acordado de manhã cedo por um pajem do rei Baldwin, o cavaleiro Miolnir tinha tirado as suas vestes ricas de veludo e vestido um fato de viagem mais grosseiro, coberto por uma cota de malha manchada que lhe descia até aos joelhos. O anão tinha a cabeça descoberta, mas o seu elmo pendia no seu cinto, oscilando contra o machado de ferro.

O pajem não tinha sido nada loquaz, limitando-se a transmitir a ordem do rei: equipar-se para uma viagem e ir ter com ele o mais rapidamente possível. Os boatos corriam depressa entre os anões e Miolnir estava já ao corrente da expedição que se preparava. Pertencia há cinquenta anos à guarda do velho rei e considerava-se como um dos seus melhores cavaleiros. Não era de espantar que tivesse sido escolhido! (Normal, mesmo. E que outro poderia ser? Ah!). Com o tempo, tinha aprendido a obedecer sem fazer perguntas, mesmo que um anão nunca deixe de lado as suas vestes de veludo e o seu chapéu de penas sem sentir um baque no coração, não fosse ele um guerreiro.

Ao passar ao lado de uma janela, Miolnir deitou um rápido olhar aos primeiros raios da aurora. O céu estava cinzento e carregado. Mais um frio dia de chuva em perspectiva. Os corredores do castelo estavam mergulhados numa semi-obscuridade, mal iluminados de tempos a tempos por tochas fixadas em tocheiras, e o anão sentiu-se reconfortado por essa escuridão que lhe recordava os seus queridos túneis debaixo da montanha.

Ao dobrar um corredor, avistou os alojamentos do rei, onde dois guardas anões, armados de lanças, saltaram sobre os pés ao vê-lo avançar.

— Alto! — gritou um deles. — Quem vem lá?

— Miolnir — respondeu o cavaleiro. — Anuncia-me. O rei está à minha espera.

O guarda bateu três vezes na pequena porta de carvalho que defendia. O arquitecto do palácio, por questões diplomáticas, tinha previsto portas baixas para os alojamentos que lhes tinha reservado. Um detalhe que contribuía para tranquilizar os anões: jamais um guerreiro elfo ou um humano mal-intencionado poderiam penetrar nos alojamentos reais sem se curvarem perigosamente, oferecendo assim a nuca aos machados dos defensores do rei.

Um outro guarda, no interior do alojamento, fez sinal ao cavaleiro anão para que entrasse.

Sentado num grande cadeirão ao pé da lareira, o rei Baldwin-o-velho parecia meio adormecido, com os olhos perdidos na contemplação das chamas. O anão Tsimmi também lá estava e Miolnir saudou-o com um breve sorriso. O mestre mação também tinha sido escolhido? Logo que o guarda a fechou atrás de si ao sair do quarto do rei, o ranger da porta e o bater das sonoras fechaduras ressoou na vasta sala de pedra, nua e sombria como uma gruta, sem que o velho rei pestanejasse.

— Aqui estou, rei Baldwin — disse o cavaleiro, após um momento, desejoso de acordar o soberano.

— Eu sei, ouvi-te entrar — respondeu este sacudindo-se (e Miolnir teve mesmo a impressão que o tinha acordado). — Bom... Imagino que saibas por que é que estás aqui?

— Pareceu-me ouvir falar de uma expedição...

— Isso mesmo! — resmungou Baldwin. — Dir-se-ia que os anões são incapazes de guardar um segredo. Incapazes!

Fez um gesto fatalista com a mão. Era verdade que o gosto imoderado dos anões pelas palavras lhes tinha, mais do que uma vez, trazido dissabores...

— Se te pedi para vires, bem como a Tsimmi, de manhã tão cedo, é porque há coisas que deveis saber, tanto um como o outro, antes de partirdes.

O cavaleiro contornou o trono maciço do rei e veio agachar-se ao pé da lareira. Só então notou a presença de um anão bastante grande, vestido como um pajem, e o seu movimento de surpresa indignada não escapou ao rei Baldwin.

— Paz, cavaleiro. Este anão não é um pajem e o seu sangue vale bem o teu. Não há desonra em estar sentado a seu lado, como ireis os dois compreender... Mas primeiro tenho de revelar-vos aquilo que eu não disse ao Grande Conselho.

Baldwin, com as pálpebras quase fechadas, estava de novo com um ar de quem dormia ou de quem estava mergulhado em profunda meditação.

— O elfo Gael não roubou só uma cota de malha de prata — resmungou ele repentinamente na sua voz monocórdica e rouca. — Aliás, não creio que ele tivesse sido suficientemente louco para entrar nas nossas montanhas simplesmente para comprar uma cota de malha de prata. O velho Troin, paz às suas cinzas, tê-lo-ia mandado despachar por menos que isso!... Não, o seu crime é mais grave. Gael roubou a Espada de Nudd.

O guerreiro tremeu. A Espada, segundo uma das mais antigas lendas do povo da Montanha, tinha sido confiada pela deusa a Dwalin, o mais antigo rei dos anões, cujo nome tinha sido conservado pela tradição, e ela fazia as vezes de ceptro e de símbolo da soberania sob a Montanha Negra.

Era ainda mais do que isso. Tal como o Caldeirão dos elfos ou a Pedra de Fal, Caledfwch, “Entalho do chão”, a Espada sagrada dos anões, era o talismã do seu povo inteiro, e a garantia da sua sobrevivência. Roubar a Espada de Nudd era roubar a alma dos anões e condenar a sua raça ao esquecimento.

Segundo as lendas, Caledfwch tinha sido outrora uma simples espada de ouro encavada num cabo feito de carvalho, a árvore da força. O filho de Dwalin, e depois dele todos os seus descendentes que se tinham tornado reis da Montanha, tinham ornamentado a sua lâmina com a mais bela pedra preciosa do seu reino e tinham confiado esse trabalho aos seus melhores artesãos. Com o passar dos séculos, e segundo histórias maravilhosas contadas aos serões durante gerações, a Espada de Nudd tinha-se tornado, sem dúvida, um dos tesouros mais inestimáveis de todo o reino de Logres.

Raros eram aqueles que tinham podido um dia contemplá-la. Miolnir só a conhecia de reputação, e o próprio Baldwin, tendo sangue real e sendo primo de Troin, nunca tinha podido pegar-lhe. Os descendentes da linha de Dwalin estavam entre os mais honrosos dos anões, e a perda do talismã era uma mancha insuportável sobre a honra da sua família.

Baldwin retomou a palavra sem reabrir os olhos.

— Compreendes, Tsimmi, por que é que eu não falei neste roubo ao Conselho. Se esta notícia se espalha, a linha de Dwalin e dos reis sob a Montanha estará desonrada para sempre. E depois...

Baldwin abanou lentamente a cabeça, e os seus olhos abriram-se finalmente num olhar vazio, perdido nas brumas dos seus pensamentos aterrorizados.

— Tudo isto é tão antigo!... No fundo, creio que deixei de acreditar em Dana e nos seus talismãs. E, no entanto, quem acredita ainda nisso para além dos elfos? Os homens inventaram um Deus único, e quanto aos monstros... Mas se for verdade, ha? Se era algo mais que uma espada em ouro? Se era realmente o talismã dos anões?

O rei pôs-se a fixar Tsimmi como que para o convencer a ele mais que a qualquer um dos outros na sala.

— Pensas que é um simples roubo? A Espada de Nudd é sem dúvida o mais precioso dos tesouros dos Povos Livres, mas isso seria...

Baldwin riu amargamente.

— ...isso seria quase que demasiado bom. Um simples roubo. Um ladrão para castigar, e tudo entra na ordem... Ou então, não é assim tão simples. Diz-se que a deusa Dana se desvaneceu debaixo da terra, deixando os talismãs às quatro tribos. É uma lenda, é claro, mas isto significa que o princípio divino estava contido nos talismãs, e que cada um dos nossos povos detinha uma parcela. Que acontecerá se um só povo reunir na sua mão os quatro tesouros dos Tuatha Dê Danann? Que nos acontecerá se os elfos nos tiverem roubado Caledfwch para a juntarem ao Caldeirão? Quanto tempo poderão sobreviver os anões sem o talismã?

O anão grande vestido de vermelho — as cores de Baldwin gemeu em surdina e contorceu-se na almofada.

Mais uma vez Miolnir observou-o dos pés à cabeça. A sua estatura era prodigiosa para um anão, quase semelhante à do rei Pellehun ou do seu senescal. A sua barba ruiva, de um tamanho admirável, estava passada por debaixo do seu cinto, no qual estava fixada uma adaga, arma pouco comum entre os anões. O cavaleiro reprimiu um trejeito de desprezo e depois, voltando a cabeça, cruzou um olhar com Tsimmi numa interrogação muda. Mas este contentou-se em abanar a cabeça com a sua calma habitual, fumando o seu eterno cachimbo de terra branca.

— No entanto, a linha de Dwalin ainda não está extinta prosseguiu o rei. — Fui prevenido da morte de Troin por um membro da família do defunto.

— Então, há um novo rei sob a Montanha Negra! — gritou Miolnir.

— Ainda não — respondeu Baldwin. — Segundo a tradição de Ghâzar-Run, um anão da família de Dwalin não pode pretender o trono se não estiver na posse da Espada de Nudd. E é essa a vossa verdadeira missão, anões. Encontrar a Espada de Nudd, esteja onde estiver, e trazê-la até mim. Os homens e os elfos que vão acompanhar-vos não deverão, se possível, saber o que se passou.

— Mas... e Gael? — disse Miolnir.

— Não te preocupes com o elfo. O herdeiro do trono de Troin vingará ele próprio o seu rei.

— Quem é esse herdeiro? — exclamaram ao mesmo tempo Tsimmi e o guerreiro.

— Sou eu.

Os dois anões saltaram e olharam o pajem vestido de vermelho.

— Eu sou Rogor, sobrinho de Troin, herdeiro do trono sob a Montanha Negra — disse ele com uma voz possante e cavernosa que ressoou na grande sala nua. — Eu encontrarei Caledfwch e matarei Gael. Juro.

O anão tinha-se levantado para se apresentar e Miolnir estremeceu ao pensar que lhe tinha faltado ao respeito alguns minutos antes. Com um gesto lento, o anão tirou a túnica vermelha com as runas de Baldwin e pôs a descoberto uma armadura marcada com um escudo negro e uma espada de ouro, o brasão da linha de Dwalin. Por baixo da sua túnica trazia também o ferro de um machado enorme, pronto a ser encavado e a tornar-se uma arma muito mais perigosa que a pequena adaga que trazia ao lado.

Rogor tornou a fechar a sua túnica e passou de novo a sua longa barba ruiva pelo cinto.

— Peço-te perdão, senhor — disse o cavaleiro com todo o respeito de que era capaz. — Não quis ofender-te há bocado.

— Não houve nenhuma ofensa, Miolnir. Só o elfo Gael me ofendeu. Mas graças a vós e à bondade do rei Baldwin, esta mancha será em breve lavada. Se é conveniente ao rei confiar-me a guarda da Espada, eu reinarei sob a Montanha Negra e farei de ti e do Sr. Tsimmi meus pares...

— Tu reinarás, tu reinarás — resmungou Baldwin. — Tsimmi e o meu cavaleiro ajudar-te-ão em tudo o que puderem, mas procurarão em primeiro lugar a espada de ouro. A morte de Gael é secundária.

— ...mas ela é necessária, rei — interveio Rogor.

O velho anão abanou a cabeça pensativamente. Durante alguns segundos, só o crepitar do fogo e o soprar do vento, lá fora, se fizeram ouvir.

— É justo que castigues Gael, se ele é culpado da morte do teu tio Troin — continuou ele. — Mas atenção... Estejam todos atentos, meus filhos. Não queremos uma nova guerra contra os elfos, não é verdade?

O rei voltou-se para Tsimmi e para o guerreiro, que ergueram as cabeças. Rogor, esse, olhava o vazio.

— É um problema grave, mas não é a guerra — insistiu o velho rei. — Não se esqueçam. Tu, Miolnir, tu tens a estrutura para dominar qualquer peralvilho azul que se meta no teu caminho. E tu, Tsimmi...

Baldwin fez uma pausa. Os seus olhos, por detrás das sobrancelhas grossas, brilhavam de prazer e os seus ombros agitavam-se aos sacões, enquanto uma espécie de tosse surda escapava da sua barba cinzenta. Miolnir perguntava-se se seria possível tratar-se de riso...

— Tu — continuou o rei —, conserva secretos os teus poderes o máximo de tempo possível. Que eles não vejam em ti mais que um conselheiro do palácio.

Tsimmi pousou o seu cachimbo e inclinou-se até ao chão.

— Obedecer-te-ei, senhor das pedras.

— Esse título pertence-te, bem o sabes — respondeu Baldwin. — Possuis a arte de falar com as rochas e podes erguer a montanha diante dos teus inimigos. Isso, os elfos e os homens ignoram-no. Eles consideram as experiências dos velhos mestres mações anões como lendas bonitas e não acreditam nos seus poderes. Tu reservar-lhes-ás uma enorme surpresa... Mas, até ao momento fatal, não utilizes mais que o teu martelo de armas e a tua funda, nada mais!

— Obedecer-te-ei — repetiu Tsimmi.

Baldwin começou a rir abertamente, deitando a cabeça para trás.

— Para além disso, graças à nossa astúcia, sereis três, e não dois! O Sr. Rogor conservará a sua roupagem de pajem durante toda a expedição. Aparentemente não estará armado com mais do que uma adaga e não trará nenhuma armadura visível. Má surpresa para os elfos quando ele se desmascarar!

Os anões começaram a rir uns a seguir aos outros, olhando o braço musculoso de Rogor e conscientes do poder de Tsimmi. Má surpresa para os elfos, na verdade...

 

O dia tinha por fim nascido. Um pálido fio de luz entrava pelas estreitas seteiras situadas em volta da sala, onde os archotes da noite ainda ardiam. Era a sala mais alta do palácio, no último andar da torre mais alta, da qual só o senescal e governador do palácio guardava a chave. Uma sala redonda, quase vazia, com excepção dos dois cadeirões onde eles se tinham sentado e de um cofre, de altura considerável, encaixado na parede.

O rei Pellehun abriu um olho e esticou-se. Todo o seu corpo estava dorido, e tinha frio, apesar de todas as suas peles. Levantou-se com uma careta, e depois acordou Gorlois com um pontapé.

— Levanta-te!

O senescal sobressaltou-se. O seu único olho pestanejou até recuperar os sentidos.

 

Não chovia quando a companhia se pôs a caminho de Kab-Bag, a cidade mercantil dos gnomos. O rei Pellehun tinha ordenado que a partida das delegações do Grande Conselho se fizesse sem nenhuma pompa, mas a população de Loth tinha, apesar de tudo, vindo em massa para o caminho em redor, tão pouco usual era o espectáculo de uma companhia tão díspare.

Bem mais à frente, Till, o seguidor de pistas, e o seu cão escapavam à curiosidade da multidão. As vestes esverdeadas do elfo confundiam-se já com a cor das ervas dos arredores da cidade, no cinzento matinal de um dia de Inverno. Till viajava sempre a pé, ao lado do seu cão e acompanhado pelo vôo do seu falcão. Quase não falava com mais ninguém a não ser com eles, e tomava sempre as suas refeições um pouco afastado do círculo. Armado somente de um grande arco e de uma adaga élfica comprida e afiada, não parecia digno de interesse, nem diferente dos viajantes ou dos elfos comerciantes que circulavam diariamente em Loth; a populaça não tinha, portanto, comentado a sua passagem.

Os primeiros cavaleiros do grupo tinham um ar bastante mais pomposo. Uter, o “Moreno”, seguia à frente, reto como um pau sobre a sua montada negra, e as meninas de Loth davam cotoveladas umas às outras estourando de riso à passagem do homem de cabelos castanhos, tão jovem e tão marcial, cujas tranças contrastavam com o brilho fosco da sua armadura.

A rainha Lliane cavalgava atrás dele. Desta vez foram os homens que esticaram o pescoço para a admirar. A rainha ia de cabeça descoberta, os cabelos entrançados como era seu costume, trazendo uma longa capa de catassol, presa em volta do pescoço por um alfinete duplo de prata e que se estendia até à garupa do seu cavalo. Lira, a sua égua com pêlo de alazão claro, quase ruivo, e cuja testa estava marcada por uma estrela branca, era uma das esposas de Lame, o cavalo livre amigo do rei Llandon. A rainha trazia o seu vestido rachado de catassol, sob o qual se adivinhava uma cota de malha curta de prata tecida por anões, idêntica àquela que Gael tinha roubado sob a Montanha. A luz azulada das suas coxas contrastava com as suas longas botas de camurça até acima do joelho, e os seus braços estavam nus, simplesmente ornados de grandes pulseiras de prata que lhe protegiam os pulsos como manoplas de uma armadura. Orcomhiela, a adaga lendária, pendia a seu lado, e as flechas de Kevin, o arqueiro, estavam fixadas à sela da sua montada. Vivas irromperam entre a multidão, aos quais a rainha dos altos-elfos respondeu com um sorriso de partir o coração. Vivas mas também sinais da cruz, entre as comadres e os devotos que desconfiavam dos elfos pagãos adoradores da Lua, certamente feiticeiros e malignos.

Aborrecidos e carrancudos, com os seus capuchos puxados para a frente, os dois anões, Tsimmi e Miolnir, cavalgavam atrás dela, e as aclamações dadas à rainha não fizeram mais que ensombrá-los ainda mais. No meio da bruma matinal, empoleirados nos seus pôneis robustos, assemelhavam-se a cubos, tão largos quanto altos, donde sobressaía, no caso de Miolnir, um arsenal completo de guerra de reflexos inquietantes. Roderic e Freihr, o bárbaro, fechavam a marcha, olhando em volta alegremente, felizes com esta popularidade imprevista.

Os pés do guerreiro louro quase tocavam o chão e o seu cavalo parecia dobrar-se sob o seu peso, o que divertia os citadinos (ainda mais por se sentirem abrigados por detrás das muralhas da cidade e não arriscarem nada em lhe lançarem algumas graçolas), mas Freihr não os ouvia. Depois de ter saído da sua aldeia, era a primeira vez que podia falar com alguém, mesmo que naquela linguagem comum que ele conhecia mal, e ele embriagava já Roderic com as suas intermináveis histórias.

Por trás deles, três pajens montados em mulas precediam uma equipagem reduzida de cavalos carregados de bagagens, armas e víveres. O pajem anão, bem visível na sua túnica vermelha, parecia tão grande quanto o dos homens, mas toda a gente dizia que podia ser uma ilusão de óptica.

Desde o nascer do dia que em Loth circulavam as histórias mais loucas acerca desta expedição invulgar. Alguns calculavam que a reunião dos três Povos Livres numa só companhia não podia significar senão uma coisa: o recomeço da guerra contra Aquele-Que-Não-Pode-Ser-Nomeado. Além disso, o bárbaro que cavalgava com eles não era a prova de que eles iam até às Fronteiras? Outros falavam de uma caça ao dragão (mas quem é que ainda acreditava em dragões, em Loth, a não ser as crianças?) e de um cadáver calcinado encontrado perto do lago, a oeste da cidade. Enfim, era o suficiente para que os citadinos se comprimissem nas muralhas...

Logo que a última mula passou as portas da cidade, uma ovação elevou-se das ameias para saudar a partida da companhia e os citadinos dispersaram, no meio do burburinho dos seus comentários contraditórios. Outros ainda, trabalhadores que tinham vindo alugar o trabalho dos seus braços, biltres e mendigos repelidos na barreira da portagem, vendedores e viajantes que pagavam o imposto, observaram-nos nos arredores da cidade. Depois foram os camponeses, servos e trabalhadores das aldeias das redondezas, e até os humildes pastores que saíam das suas casas de barro ou de argamassa para olharem de boca aberta o desfile do estranho grupo. Cruzaram-se também com elfos que se inclinavam deferentemente diante da rainha, com gnomos congestionados e febris que caminhavam pela estrada, carregados com montes de mercadorias, com famílias de anões viajando em carroças, com lentidão e compunção. E depois, pouco a pouco, os encontros tornaram-se mais raros.

A bruma matinal tinha dado lugar a uma chuva fina, quase um chuvisco, mas que tinha sido suficiente para impregnar o caminho esburacado pelo qual eles seguiam e torná-lo escorregadio sob o passo dos cavalos.

A rainha apeou e acariciou com ternura a longa crina da sua égua. Subitamente, o seu rosto crispou-se. Ela parou, levou a mão à garganta, possuída por uma angústia inexplicável.

Depois viu-o.

O homem-criança do fato azul estava ali, sentado no cimo de um talude ao pé de um grupo de bétulas de casca pelada, sorrindo como sempre, silencioso como sempre. Olhava para ela.

— Coração de dragão, estava à tua espera.

Lliane recuou e veio bater contra o seu cavalo.

— Estás a vê-lo? — disse esticando o dedo na direcção da aparição.

Ura, a alazã, virou a cabeça, as orelhas em alerta, resfolegou e continuou o seu caminho.

— Não há nada...

Lliane largou as rédeas da égua, escalou em algumas passadas o talude enlameado e surgiu ao pé das bétulas. Ninguém.

— Que é que aconteceu?

Nada além de um bosque de árvores e bétulas, e, para além da planície, as aldeias e os contornos já distantes de Loth.

— Que é que se passa? — repetiu Roderic, içando-se com esforço a seu lado, de espada na mão.

Lliane olhou-o como uma sonâmbula, esforçando-se por se controlar.

— Não é nada... pensei ver alguém.

 

As ruas estavam cheias do barulho das conversas. Era um dos hábitos dos homens da cidade falarem, e para dizerem tão pouco, arrogando-se o direito de darem a sua opinião, em alto e bom som, sem escutarem a dos outros, é claro, o que dava às discussões um tom exaltado.

Pelo menos um homem, entre a multidão que descia das muralhas, estava calado. A sua cara sorria como a dos curiosos entre os quais ele caminhava, mas não escutava a sua tagarelice. Armado de um estilete afiado como uma lâmina, cortava com destreza as bolsas dos citadinos, empurrando-os ligeiramente no momento em que a lâmina cortava o couro, a fim de que eles não notassem nada. Eles nunca davam por nada. Blade era um dos melhores ladrões do país.

Os menos hábeis eram apanhados com a mão na massa ao fim de alguns meses, não tardando a balançarem nas forcas da cidade. Os melhores sobreviviam dois ou três anos, depois acabavam no fundo de uma ruela, com a garganta cortada por um outro ladrão Mas o seu agressor não o tinha conseguido, demasiado apressado sem dúvida em conseguir a bolsa da sua vítima. Três meses mais tarde, Blade tinha-o encontrado numa taberna em Tintagel, a cidade marítima, e o homem foi descoberto no dia seguinte pelos guardas da cidade pregado à porta da capitania.

Blade tinha guardado desse encontro uma horrível cicatriz na garganta e o hábito de não confiar em ninguém. Depois, tinha-se tornado o melhor.

Afastando-se prudentemente da multidão que começava a dispersar, enfiou-se na parte baixa da cidade e entrou num albergue para contar os ganhos do dia.

— Uma cerveja! — gritou ao sentar-se.

As bolsas estavam mal recheadas. Uma vintena de moedas de cobre, duas moedas de prata. Embora chegasse para uma semana, não tinha valido a pena arriscar a vida...

— Que é que eles foram fazer, todos esses elfos, anões e cavaleiros? — perguntou alguém ao pé dele.

— Ouvi dizer que iam matar um dragão, nas Terras do Norte — respondeu um bêbado.

— Os únicos dragões das Terras do Norte são os gobelins! — interveio um terceiro ladrão encolhendo os ombros. — O que eles foram procurar foi um tesouro! Sei muito bem, foi um anão da escolta de Baldwin quem mo contou!

— Já agora, foi o próprio Baldwin quem te contou! — disseram os seus interlocutores, desatando a rir às gargalhadas.

— Se eu estou a dizer-vos que...

— Deixe-os rir — disse Blade voltando-se para o que contava a história. — Vem para a minha mesa. Ofereço-te uma cerveja, mas só se o que me contares valer a pena.

O homem, jovem e barrigudo, abriu um grande sorriso, deixando à mostra uma fileira bastante incompleta de dentes escuros e esburacados.

— Bebe a tua cerveja, companheiro, e abre os teus ouvidos — disse ele sentando-se em frente do ladrão. — A minha história, ouvi-a a um dos guardas de Baldwin, Tillion Maison-Bleue, um dos anões da Montanha!

— Serve uma cerveja ao meu amigo! — gritou Blade ao estalajadeiro.

O homem gordo, prudente, esperou que lhe pusessem a cerveja em frente antes de começar.

— Tillion disse-me que um elfo matou o rei sob a Montanha e que lhe roubou um tesouro — começou ele depois de dar um grande gole. — Portanto, eu penso que eles partiram para o vingar e recuperar o tesouro!

— Um tesouro, dizes tu...

— Com toda a certeza! Parece que é uma armadura em pedras preciosas, pelo menos!

O homem acabou a cerveja rapidamente e apressou-se a levantar-se da mesa antes que Blade mudasse de opinião e lha fizesse pagar. Mas o ladrão tinha ficado imóvel. Com o queixo na mão, brincava distraidamente com uma moeda de prata, com o pensamento bem longe. Talvez fosse a ocasião que ele esperava há tanto tempo... realizar um bom golpe e depois desaparecer, comprar uma terra e tornar-se senhor, em algum lugar onde as pessoas não fizessem muitas perguntas... nas Fronteiras, por exemplo. Ele saberia bem defender-se dos ataques dos gobelins, e ninguém viria contestar o seu senhorio.

Blade sobressaltou-se: um outro homem veio sentar-se em frente dele, com um pichei de vinho na mão.

— É melhor não acreditar no que conta esse bêbado, meu senhor. Está bêbado de manhã à noite!

— Tem razão — disse o ladrão. — Mas não estava a pensar nisso. A história dele divertiu-me, valia bem a cerveja, apesar de tudo.

— Cos diabos, é verdade! — disse o homem desatando a rir com um riso seco. — Contudo...

Blade sentiu-se imediatamente incomodado. O desconhecido, meio dissimulado por um casaco sem forma, não se assemelhava aos outros beberrões. Uma cicatriz impressionante cortava-lhe a cara até à órbita vazia do seu olho direito, e os seus braços musculosos pareciam prontos a partir um troll em dois, apesar da sua estatura modesta e da sua idade.

O desconhecido fixou Blade com intensidade.

— Contudo, há algo de verdade nessa história — continuou ele.

— A sério? — disse o ladrão levantando-se. — Pois ainda bem. Agora, preciso de...

A mão do outro agarrou o braço de Blade e segurou-o com força, obrigando-o a sentar-se.

— Bebe comigo!

Serviu um copo de vinho a ambos, brindou e despejou o seu copo de uma só vez. Blade hesitou e depois bebeu o seu copo de um trago. Depois da cerveja, o vinho tinha um sabor desagradável...

— Olha! — disse o homem largando-lhe o braço. — Reconheces este anel?

O ladrão baixou os olhos. Era um anel de ouro com uma pedra vermelha bastante grande. Uma jóia digna de um príncipe, que não era nada prudente mostrar na cidade baixa... O homem fez rodar um mecanismo e retirou a pedra vermelha, deixando à vista um desenho estranho. O coração de Blade saltou imediatamente dentro do seu peito. O anel tinha desenhada a runa de Beorn, uma árvore de três ramos, designando em linguagem comum um homem rico ou nobre, mas que significava, para um pequeno número de iniciados, o signo da confraria mais secreta de todo o reino — a Guilda.

Blade não conseguiu evitar olhar o seu próprio dedo, onde se encontrava um anel semelhante, mas de cobre.

— Lá fora — murmurou o homem — estão soldados do rei. Têm ordens para prender o ladrão Blade mal ele ponha o nariz de fora. Cabelos castanhos, curtos, sem barba nem bigode, sem vestimentas que chamem a atenção, sem jóias, sem qualquer sinal particular... Ah, sim, a cicatriz... Mas, vendo bem, com a tua gola ela não se vê. Pergunto-me se eles te reconhecerão...

O mestre ladrão estremeceu, mas o homem sorria amavelmente. Baixou o capuz do seu casaco e Blade teve um movimento de recuo ao descobrir a cara do governador do palácio, o senescal Gorlois em pessoa. Em volta deles as mesas esvaziaram-se em segundos. Blade não tinha sido o único a reconhecer o duque.

Indiferente, Gorlois continuou a beber o seu pichei e olhou novamente para o ladrão. Pareceu-lhe que o seu olho ria, nesse momento.

— Que é que quer?

O senescal começou a brincar com uma das suas tranças com fitas vermelhas, num gesto familiar.

— Penso que és o homem que eu preciso, Blade... Aliás, acho que não tens escolha.

 

Durante dois dias a companhia cavalgou a bom ritmo em direção a norte, fazendo quinze léguas por dia com um tempo frio, mas seco. Ao terceiro dia, por volta do meio-dia, um chuvisco glacial e penetrante começou a formar entre o céu e a terra uma cortina de umidade e nevoeiro. Homens, elfos, anões, póneis, cavalos e cavalos livres enfiaram as cabeças nos ombros avançando silenciosamente. A companhia tinha deixado para trás, há muito, as últimas quintas do reino de Logres e avançava pelas paisagens lúgubres e planas das grandes planícies humanas desertas durante o Inverno. Só muito raramente nevava no reino de Pellehun, simplesmente algumas semanas por ano, mas a terra e a erva tomavam durante a má estação tons cinzentos, sombrios e sujos, que tornavam a paisagem desesperante.

Os homens rudes do campo, atarracados e de mãos calejadas, ganhavam terreno todos os anos durante o Inverno, recuando de cada vez um pouco mais os limites das terras incultas. Brevemente chegaria o tempo em que estes homens, de coração mais duro que a terra que cavavam, conseguiriam vencer as estações do ano e se tornariam os senhores da terra, das rochas e das árvores... Lassa, o cavalo livre confiado a Llewelin, o pajem dos elfos, deu um grande relincho.

— Tenho medo da chuva, do vento, do Inverno e destas pastagens tristes! — gritou ele na morrinha.

Llewelin não o entendeu. Ignorava a linguagem dos animais, mas sabia, apesar de tudo, como todos os elfos, sentir os seus estados de alma. Debruçou-se sobre o pescoço de Lassa e cantou-lhe uma melodia ao ouvido.

Em frente dele, a montada negra de Uter resfolgou.

— Julgava os cavalos de Lame mais resistentes — disse o cavalo doméstico.

— Ninguém gosta da chuva ou do Inverno — relinchou Lassa. — Mas que sabes tu do frio e da fome, tu que dormes numa cavalariça e vais para onde te mandam?

O cavalo de Uter empinou-se bruscamente, o que surpreendeu o seu cavaleiro. Lliane, que cavalgava à sua frente, voltou-se e, para aumentar ainda mais a confusão do cavaleiro, relinchou docemente.

Como se lhe obedecesse, o cavalo doméstico trotou para ao pé dela, colocando o cavaleiro ao lado da rainha.

— Falais com os cavalos? — perguntou Uter, sem dar conta da enormidade que acabava de dizer.

— Com os cavalos, com os cães, com os lobos ou com os pássaros — disse Lliane sem parecer surpreender-se. — Mas somente algumas frases. Till, o seguidor de pistas, esse sabe realmente a linguagem dos animais.

Uter corou, coisa que o enervou muitíssimo. Nesse instante, teria desejado não ter tirado o seu elmo, para que a sua confusão ficasse em segredo.

Lliane deu algumas notas de um riso despreocupado. A chuva tinha colado à sua cara os seus longos cabelos negros e fazia-os brilhar como um capacete. Coberta por este chuvisco gelado, ela parecia mais que nunca feita de prata, irreal e quase impalpável, tanto a sua pele e vestes de catassol se fundiam com o ambiente cinzento. E os seus olhos verde-dourados brilhavam ainda mais.

— Uter?

O jovem cavaleiro agitou-se e corou de novo, percebendo que fixava silenciosamente a rainha dos altos-elfos há quase um minuto. Lliane voltou a rir, ainda mais abertamente, ao ver o seu embaraço.

— Creio que o vosso cavalo já está calmo, caro cavaleiro. Talvez devesseis galopar até Till e dizer-lhe para fazer uma paragem para o almoço?

Uter, o “Moreno”, concordou com aceno de cabeça e lançou o seu cavalo com um golpe de esporas. O pajem Llewelin avançou então até à rainha e tomou o seu lugar.

— A beleza da minha rainha não deixa os homens indiferentes — observou ele com um sorriso.

— Dir-se-ia que sim — admitiu Lliane, devolvendo-lhe o sorriso.

— Tanto melhor. Talvez ele tome o nosso partido se as coisas não correrem bem.

A rainha dos altos-elfos franziu as sobrancelhas.

— Uter, o “Moreno”, é um dos doze bravos do Grande Conselho. É um amigo dos elfos, mas também companheiro dos anões. E está certo assim. Não gostaria de fazer nada para que fosse de outra forma.

— Perdão, minha rainha — murmurou Llewelin.

O pajem parou a sua montada e deixou-se distanciar. No entanto, sabia que tinha razão. Raros eram os homens que podiam resistir à beleza de uma fêmea elfo, ao ponto de a maioria das mulheres elegantes do reino de Pellehun se esforçarem há já bastante tempo, para agradarem aos maridos, por copiarem a palidez, a graça e a calma indolente daquelas cujas lendas incertas chamavam por vezes fadas, por vezes sílfides, ondinas, damas brancas ou espíritos das florestas. Fora assim que aparecera no reino a moda dos véus de cambraia, uma tela de linho extremamente fina que cobria o pescoço e emoldurava o rosto, fazendo-as parecer mais magras, bem como as mangas compridas cobrindo as mãos e presas ao dedo, ou as toucas pontiagudas cheias de véus. Em resumo, tudo o que pudesse torná-las maiores e mais pálidas. As meninas empoeiravam o rosto e não comiam, correndo o risco de desfalecerem, enfiadas em vestidos tão justos que não conseguiam respirar livremente. Tudo isto para se parecerem com os elfos...

Llewelin encolheu os ombros. Apesar de a rainha ter querido dar-lhe uma lição, nada impedia que um jovem se apaixonasse por uma elfo. A menos que ficasse com medo... O que acontecia muitas vezes.

Gritos vindos da frente tiraram Llewelin dos seus pensamentos. Uter e o seguidor de pistas tinham encontrado um lugar para comerem.

Não passava de uma modesta cabana de pastores abandonada durante o Inverno, feita de um amontoado de pedras que quase não evitava o vento e a chuva, mas que, na altura em que pararam, deu à companhia a ilusão de conforto. Sendo a cabana pequena, os elfos, nada incomodados pela chuva, ficaram de fora com os cavalos.

No interior, Guirre, o pajem dos homens, conseguiu acender uma fogueira, verdadeiro prodígio tendo em conta o ambiente úmido, o que foi aclamado com uma ovação. O cavaleiro Miolnir, já ensopado, aproveitou para trocar as bragas, resmungando até que o grande pajem anão de libré encarnada começou a servir o primeiro tonel de vinho dos seus mantimentos.

Risos e vozes não tardaram a escapar da cabana de pedra, tal como o fumo da sua fraca fogueira de campo. Um fumo que se misturava ao do cachimbo de Tsimmi, que espalhava um doce cheiro de mel, agradável para todos e que reconfortava as almas. Sentados à porta da cabana, os elfos comiam, brincando, com uma vontade evidente de mostrarem boas-maneiras aos anões; a rainha Lliane começou mesmo a rir com a história contada pelo mestre mação, o que contribuiu em grande parte para alegrar o resto da assistência.

Sempre a rir, ela pousou a sua longa mão sobre o braço couraçado de Roderic, sentado ao lado dela perto da entrada.

— Cavaleiro, dê-me uma moeda...

Roderic olhou-a com surpresa, tal como os outros membros da expedição, mas a rainha continuava a sorrir (ao sorrir, ela fazia uma covinha ao canto da boca, que o jovem achou adorável), e ela estendeu a mão, insistindo.

— Se faz favor, meu senhor.

— Sim, sim — disse Roderic, corando atrapalhado. Começou a remexer os seus pertences à procura da sua bolsa, mas Uter, o “Moreno”, deu-lhe uma cotovelada e estendeu uma moeda de prata à elfo.

— Aqui a tendes, senhora minha...

Lliane agradeceu-lhe com um movimento de cabeça gracioso, pegou na moeda com a ponta dos dedos e mostrou-a à assistência.

— Vejam, meus senhores, nobre assistência! Uma moeda de prata! Uma moeda de prata novinha em folha!

Pediu a Freihr que verificasse, e o bárbaro, cheio de cuidado, verificou que ela não tinha qualquer truque, chegando mesmo a trincá-la com os dentes, como já tinha visto fazer.

— Agradeço-vos, Sr. Freihr — disse Lliane, pegando novamente na moeda com a mão direita. — É, portanto, uma moeda de prata verdadeira? Uma moeda de prata do rei?

— Sim, sim!

A rainha sorriu, piscou o olho a Uter, e depois levantou a mão esquerda e fez estalar os dedos. Quando voltaram a olhar para a sua mão direita, Lliane fez um trejeito de desolação...

— Oh, que azar, Sr. Uter! A vossa moeda de prata... A vossa bela moeda de prata!

Ela abriu a mão. No meio da sua palma, a moeda de prata tinha-se transformado numa reles moeda de cobre.

— Ah, bem! — soluçou Freihr. — Viram? Viram?

Lliane sorriu-lhe e franziu as sobrancelhas, como que para lhe ralhar.

— Sr. Freihr! Por que é que tirou a moeda ao Sr. Uter?

— Eu?

A elfo contornou o fogo fraco, aproximou-se do gigante e remexeu na sua cabeleira espessa.

— Ei-la! — disse ela, mostrando novamente a moeda de prata. Freihr olhou para ela, sem fala, e depois desatou a rir com um riso que em breve se pegou a todos os seus companheiros.

Tsimmi riu-se com os outros, com um riso fraco, demasiado desconcertado para participar na hilaridade geral. Era um truque fácil, sem dúvida, um truque de ilusionismo bom para divertir crianças, e no entanto ele não conseguia entender como é que ela o tinha feito. Encheu o cachimbo, com a testa franzida, e reflectiu sobre o problema, indiferente à algazarra dos risos e das vozes.

Lá fora, Till também não ria.

Silenciosamente, tinha-se levantado, aspirando o ar à maneira do seu cão de caça, perscrutando o horizonte esfumado tal como o seu falcão.

Estava ali alguém.

Desde a véspera que ele tinha farejado a sua presença. Um ser que se mantinha a uma distância suficiente para não sair da bruma, mas que estava lá, silencioso e obstinado, seguindo-os.

O seguidor de pistas voltou à cabana de pedra e tocou discretamente no ombro da rainha.

— Estamos a ser seguidos — disse. — Um humano, acho eu. Sozinho e a cavalo.

— Tens a certeza?

O seguidor de pistas sorriu e Lliane arrependeu-se de ter feito a pergunta. Till nunca se enganava.

— Devo matá-lo? — perguntou.

— Porquê? Talvez se trate de uma coincidência, de um viajante que siga o mesmo caminho que nós... E, já que se trata de um humano, deverão ser os homens da companhia a decidir a sua sorte... e a provarem-nos que não tentaram enganar-nos de forma alguma. Meus senhores!

A rainha tinha-se voltado para a assistência, enrolados em volta do fraco calor do refugio, e os seus sorrisos congelaram-se perante o seu ar grave.

— Parece que um homem a cavalo está a seguir-nos, e tomando todas as precauções para não ser visto.

Uter e Roderic olharam um para o outro. A frase da rainha tinha acabado imediatamente com os risos e pairava pesadamente sobre eles como uma nuvem de suspeita.

Miolnir levantou o dedo com um sorriso forçado.

— Sois já três guerreiros — disse olhando Roderic. — Não é já suficiente?

— Se realmente um homem nos segue, não tem nada a ver conosco — disse o cavaleiro levantando-se.

O jovem não pôde reprimir um arrepio. Com o movimento, as peças da sua armadura tinham-se deslocado ligeiramente e um fiozinho de água tinha escorrido pelas suas costas.

— Vou convidar esse homem a juntar-se a nós e a repartir conosco a nossa refeição, antes de seguir o seu caminho.

— Queres que Freihr vá contigo? — perguntou o bárbaro, que não tinha entendido grande coisa da situação, mais preocupado com o conteúdo da sua escudela que com as tensões internas da companhia, mas que, tendo cavalgado durante dois dias ao lado do cavaleiro, achava natural acompanhá-lo onde quer que ele fosse.

— Agradeço-te, Freihr — respondeu Roderic sorrindo —, mas creio que não corro grande perigo ao ir convidar um viajante.

O bárbaro encolheu os ombros e resmungou com o pajem dos homens para que este lhe servisse de beber, imitado pelos três anões, que estenderam de imediato os seus copos num movimento único.

Roderic saiu da cabana e embrenhou-se no meio do chuvisco, enquanto Uter, o “Moreno”, veio sentar-se ao lado da rainha dos altos-elfos, cá fora.

— Não gostaria que pensásseis que...

— Não penso nada, caro cavaleiro — cortou ela. — Mas Till nunca se engana. Um homem vem atrás de nós e esconde-se... Sabe porquê, cavaleiro?

Uter esboçou uma espécie de sorriso, levantou-se e deu alguns passos na direção em que o seu amigo Roderic acabava de desaparecer, engolido pelo cinzento de uma cortina de morrinha. Abanou a cabeça, fazendo rodopiar as suas tranças como um cão que se seca. À sua volta, a terra estava deserta e, com excepção da cabana dos pastores, nenhuma árvore, colina ou habitação eram visíveis nas redondezas. A chuva não tinha parado de cair há já bastantes horas, uma chuva fina, lenta e gelada que penetrava todos e que rangia como a ferrugem no coração dos mais alegres. Os elfos estavam encostados à fachada de pedra, pálidos e imóveis com as suas vestes de catassol de cores reflexas. Parecia-lhe que a rainha o observava, embora estivesse demasiado longe para poder jurar.

— Uter! Ajude-me!

O cavaleiro virou-se de um salto e começou imediatamente a correr. Tinha reconhecido a voz de Roderic, mas o seu grito, estranhamente, era ao mesmo tempo fraco e lancinante, gorgolejante e contido.

Apesar das placas de ferro da sua armadura, ele correu tão depressa que conseguiu ouvir o galopar de um cavalo que fugia, no momento em que chegou ao pé do amigo.

De costas voltadas para Uter, Roderic cambaleava. Tinha a cabeça baixa, segurando a garganta com uma mão.

— Roderic! — gritou o cavaleiro.

O bravo tentou voltar o corpo para o seu companheiro, mas cambaleou, largou a espada e caiu no chão, acompanhado do barulho metálico da sua armadura. Uter deixou-se cair ao pé dele, e só então viu o horrível ferimento. O punho de um punhal estava enterrado até ao fundo do seu pescoço e a lâmina saía do outro lado por entre a sua cota de malha, vermelha do seu sangue.

Roderic abriu os olhos e tentou falar: uma torrente escarlate brotou da sua boca num atroz gorgolejo, sufocando-lhe as palavras. Um tremor brutal apoderou-se do seu corpo durante uma fração de segundo, e depois ele caiu, inerte, entre as mãos de Uter.

Petrificado, Uter contemplou o longo fio de sangue que escapava entre as malhas e escorria pela sua armadura, contrastando cruelmente com o brilho baço do metal. Com um nó na garganta, a respiração cortada, levantou os olhos para o céu, incapaz de falar, de pedir socorro, de fazer fosse o que fosse. O vento mudou e a morrinha fustigou-os, lavando o sangue sobre a armadura, misturando-o ao tom pastel da terra e da erva. Então, baixou a cabeça oferecendo a nuca ao duche gelado.

Era a primeira vez que via morrer um homem. Um amigo. Roderic e ele vinham de dois condados vizinhos, perto do país das dunas, e haviam tido lições juntos. A sua força, qualidade de nascimento ou habilidade para as armas, o conjunto das três coisas talvez, tinham-lhes valido a honra de servirem entre os doze bravos cavaleiros da guarda do Conselho, mas tinham nascido demasiado tarde para batalhar durante a Guerra dos Dez Anos, e depois disso o reino de Pellehun vivia em paz... A habilidade de Roderic para a luta não lhe tinha servido de nada.

Sem se levantar, Uter esticou o braço, pegou na espada do seu companheiro e depositou-a entre as suas mãos cruzadas. Seria necessário dizer uma oração? Os monges rezavam sempre ao enterrarem os mortos. Mas Uter não conhecia nenhuma oração, e não tinha a certeza se Roderic acreditava na nova religião...

Agarrou o cabo do punhal e retirou-o do pescoço do amigo. A lâmina era fina e longa como a de um estilete. Era uma arma leve, eficaz, sem nenhum cinzelado nem o mais pequeno traço de luxo. Uma arma de assassino, não de soldado, mais destinada a ser dissimulada na bainha de uma bota ou na prega de uma capa que pendurada num cinto... Com um gesto brusco, atirou-a para o chão e pousou a cabeça do cavaleiro com precaução sobre o solo.

Ao levantar-se, percebeu que a companhia estava reunida em volta deles. Passando acima da cabeça e dos ombros de toda a gente, Freihr mantinha os olhos vidrados no corpo de Roderic, com uma expressão horrorizada onde se misturava a tristeza e o remorso.

O cavaleiro afastou os anões que tinham deslizado até à primeira fila, e depois dirigiu-se à cabana com os ombros caídos.

— Uter — murmurou Lliane quando ele passou por ela. O homem não lhe dirigiu nem sequer um olhar.

— Uter, eu queria...

Till reteve a rainha pelo braço. O bravo não tinha parado e as palavras de Lliane eram inúteis.

Ele apontou para o corpo de Roderic, e para a bolsa que ele tinha tirado para o truque da rainha e que continuava pendurada no seu cinto.

— Olha — disse ele. — Não o mataram para roubar... Eu tinha razão, minha rainha. Este homem segue-nos. Queres que o encontre?

Lliane não pôde responder, empurrada por Freihr, que agarrara no corpo do cavaleiro e o carregava sozinho sobre o ombro, apesar do peso da armadura. Depois, o bárbaro seguiu os passos de Uter.

A companhia retomou o caminho, deixando para trás Uter e Guirre, o seu pajem. O corpo de Roderic tinha sido colocado sobre uma mula à qual se tinha retirado a carga. Era necessário levá-lo para Loth.

Com a mão pousada sobre o aço frio da armadura do seu companheiro, o bravo parecia mergulhado nos seus pensamentos e Guirre não ousava interrompê-lo. O seu cavalo resfolegou e raspou o chão com a ferradura. Os elfos teriam podido, sem dúvida, perceber a sua mensagem, mas o pajem dos cavaleiros interpretou-a à sua maneira: a noite ia cair dentro de algumas horas — ela caía depressa, no Inverno, na província de Loth — e ele tinha de regressar sozinho, sem outra arma além de um arco e de um punhal, escoltando durante dois dias o cadáver do cavaleiro degolado, neste tempo cão, ainda por cima com o assassino de Roderic a rondar por ali, nalgum lugar, esperando pela noite para vir esfolá-lo a ele!

— Não temas — disse Uter repentinamente, como se tivesse lido os seus pensamentos. — Quem matou Roderic não queria o seu ouro. É a nós que ele quer. Alguém nos segue... Mas por que é que...

O cavaleiro olhou para o seu pajem com um sorriso forçado.

— Vá, vai lá... Quando chegares a Loth, vai ter com o senescal Gorlois e explica-lhe o que se passou.

Uter pegou nas rédeas do seu cavalo e içou-se para cima da sela.

— Esta noite estaremos em Kab-Bag — disse para consigo. Depois, picou as esporas e desapareceu a galope em direção ao norte.

 

A pista de terra tinha-se tornado desde há algumas léguas numa estrada pavimentada com largas lajes planas perfeitamente ajustadas entre si. Nas intersecções, e elas eram numerosas, painéis de madeira com entalhes verticais, horizontais ou oblíquos — a escrita dos gnomos — indicavam a direção de Kab-Bag.

Do cimo dos seus cavalos, os viajantes não percebiam, até às sombrias colinas anunciando ao longe a região das Fronteiras, de mais que de uma planície deserta e inculta. Kab-Bag não era uma cidade que pudesse ver-se ao longe. Os gnomos, citadinos trogloditas, tinham escavado a sua capital nas profundezas da terra, a fim de escaparem ao vento glacial do Inverno e ao calor do sol do Verão.

— Não devemos estar longe — disse Lliane, que seguia na frente ao lado de Till, mostrando a silhueta grotesca de um gnomo enrugado e sombrio como uma ameixa, minúsculo sobre o enorme peso das mercadorias que ia trocar na cidade.

Era quase noite, o Sol punha-se sem se ter mostrado durante todo o dia, e a tropa de homens, elfos e anões sentia-se arrasada de fadiga.

A morte de Roderic tinha pesado sobre eles durante toda a viagem, encolhendo-lhes os ombros, secando-lhes as palavras no fundo das gargantas. A rainha, por seu lado, sentia sobre ela a reprovação muda de Uter e do bárbaro, como se ela fosse a responsável pela morte do jovem cavaleiro. Uma impressão desagradável.

Os dois elfos perceberam rapidamente um montículo de terra no meio da estrada pavimentada. Apenas com a altura de um metro, surgindo do solo como uma pústula, parecia interditar a passagem...

Ao aproximarem-se, viram que o montículo estava perfurado por uma porta e uma janela. Alguns metros à frente, uma imensa fossa abrupta abria-se no solo, com várias léguas de circunferência, cercada por uma grande pista pavimentada descendo em caracol até às profundezas do buraco. Era Kab-Bag.

Os elfos ficaram silenciosos e foi somente no momento em que o resto da companhia se aproximou do montículo que os gnomos que aí habitavam perceberam sua presença. A porta da cabana de terra abriu-se bruscamente, ao toque de combate aproximativo, sobre uma tropa agitada, grotesca e de aspecto notoriamente pouco eficaz.

— Quem sois vós? — gritou o primeiro gnomo, cujo rosto terroso se assemelhava a uma batata. — Por que é que não se fizeram anunciar? Estavam a tentar surpreender-nos, ao virem rondar assim sem barulho?

— Não tenha medo, sargento — disse Lliane, que tinha reconhecido a patente da pequena criatura encolerizada. Viemos em paz...

Um punhado de outros gnomos, segurando lanças demasiado grandes para eles, saíram também do montículo.

— Não temos medo de nada! — gritou o sargento. — Digam-me os vossos nomes e o que vieram fazer a Kab-Bag!

Freihr avançou para ele no seu passo lento e pesado, desviando do seu caminho homens, elfos e anões. Com as mãos crispadas sobre o punho da sua maça de armas, o gnomo piscou os olhos e baixou a cabeça ao ver o bárbaro aproximar-se dele até o tocar.

— Eu sou Freihr, chefe dos homens livres de Seuil-des-Roches — resmungou numa voz surda.

O gnomo inclinou-se e bateu prudentemente em retirada, desviando-se como que para abrir ao gigantesco bárbaro a estrada da cidade.

— Desculpe-me, senhor, não o tinha reconhecido. Desculpe-me... Bem-vindo, senhor.

Freihr resmungou algo incompreensível e seguiu em frente passando por ele, segurando as rédeas do seu cavalo, em direção à saliência estreita que ladeava a borda da falésia e levava às profundezas da cidade mercantil.

Imóveis durante um instante devido à intervenção do bárbaro, a pequena tropa pôs-se imediatamente em marcha, saudados por sorrisos obsequiosos dos gnomos do posto de guarda.

Uter, o “Moreno”, ficou um pouco para trás, contemplando mais demoradamente o estranho arsenal guerreiro dos soldados gnomos que os tinham acolhido. Para além dos curiosos pequenos elmos de ferro colocados como barretes sobre as suas grandes cabeças enrugadas, a sua tralha de guerra parecia incrivelmente heteróclita, e particularmente inadaptada à sua constituição. Ao contrário dos anões, que forjavam nas entranhas da terra armas de um aço capaz de cortar a pedra, ou dos homens, cujos artesãos não cessavam de inventar novos meios de matar, os gnomos não eram um povo criativo. Os elfos não criavam nada e não trabalhavam o metal, com excepção da prata, com a qual faziam as suas jóias e todas as suas armas; mas se eles não criavam nada, era porque não desejavam possuir nada. Os gnomos, esses, eram comerciantes, vivendo como intrusos nos arredores das grandes cidades, nos reinos dos homens e também sem dúvida para lá das Fronteiras, até às Terras longínquas.

Os gnomos eram pouco sensíveis à beleza. O ouro e as jóias não eram para eles mais que valores de troca. Eles não acumulavam, mas compravam, vendiam, roubavam se necessário, num frenético e perpétuo espírito de troca que nenhum outro povo conseguia compreender, tão confuso e inútil isto lhes parecia.

Os soldados gnomos do posto de guarda estavam vestidos com fatos de veludo que lhes cobriam as pernas torcidas como pés de vinha. Faixas de couro guarnecidas com pregos à laia de armaduras cobriam-lhes os dorsos maciços e faziam-nos parecerem-se um pouco com as maças com que estavam armados. O olhar de Uter foi atraído por um chuço de ferro escuro com ganchos de aço rendilhados. No meio do ferro, estava lavrado um longo veio para veneno e cinzeladuras grosseiras decoravam o cabo da arma, até à sua bainha feita de cânhamo entrançado, demasiado longa para a mão grosseira do soldado gnomo que a exibia ferozmente. Os olhos de Uter cruzaram o olhar do sargento e fixaram-se nele até que o outro baixou a cabeça. O chuço do guarda, bem como a adaga demasiado grande que trazia à cintura, eram armas goblinas...

Kab-Bag estava terrivelmente atravancada de lojecas, transeuntes, animais e barulho. Saía das ruelas um odor de especiarias ao qual se juntava o das lamparinas de azeite acesas durante a noite.

Não se podia andar a cavalo nas ruelas da cidade troglodita. A passagem tornava-se difícil devido às cordas de linho onde secavam tecidos acabados de tingir e pelo enredo de varas e de cabos onde estavam penduradas uma quantidade de mercadorias, todas para venda. E era assim até ao fundo da cidade, o bairro baixo no qual se erguiam casas semelhantes às dos homens, mas feitas de argamassa e por vezes com vários andares. Nas ruas e ao longo da alameda circular que descia para a cidade, os gnomos tinham esticado imitações de pontes bem por cima das suas cabeças, a uma altura de mais ou menos dois metros, o que era considerável para eles, e que obrigava a companhia a caminhar a pé, forçando mesmo por vezes Freihr e os elfos a curvarem-se.

— Vigiem as vossas bolsas e os sacos fixados nas selas advertiu Lliane. — Ninguém está em segurança em Kab-Bag...

Os cavalos livres campeavam a cada paragem, oprimidos pela multidão, sob o olhar ávido dos comerciantes com quem se cruzavam. Pois tudo estava à venda em Kab-Bag, mercadorias, cavalos, homens ou mulheres. E tudo aí podia ser roubado. A lei não era assegurada por mais do que a milícia dos gnomos, que tinham suficiente consciência das suas limitações para procurarem não se meter em problemas... Portanto, a cidade troglodita tinha-se tornado, apesar da sua exiguidade, no ponto de encontro de tudo quanto o reino tinha de assassinos, bandidos e renegados de todas as raças.

A noite tinha caído, mas a cidade não parecia querer dormir, antes pelo contrário. Mais que nunca, a atividade era intensa e o progresso difícil, penoso. Para além do que, quanto mais eles avançavam mais necessário era habituarem-se à violência do cheiro. Os elfos, em particular, seguravam contra o nariz uma prega dos seus casacos, incapazes de suportar o inverosímil aroma da cidade, feito de mil perfumes contraditórios. Ao fedor dos penicos despejados nas ruelas e que a chuva empurrava para o fundo, para a cidade baixa, juntava-se o cheiro enjoativo dos curtumes, os perfumes de benjoim, cardamomo, coentro ou patchuli das gnomos presumidas que eles cruzavam, os odores da cozinha e o cheiro de gordura queimada que, junto às estalagens, faziam por vezes sufocar os transeuntes. Juntem a tudo isto a confusão, o barulho e a falta de horizontes, e o quadro da cidade dos gnomos estará quase completo.

Era como se todos os povos do reino tivessem resolvido encontrar-se em Kab-Bag. Os anões, pouco maiores que os gnomos mas duas vezes mais largos, armavam-se em maus e falavam alto. Os elfos sem clã vinham furtivamente beijar a mão da rainha Lliane, e Till, o seguidor de pistas, afastava-se sempre um pouco com eles para trocar algumas palavras. Nenhum tinha visto Gael. Nem em Kab-Bag, nem nas Fronteiras. Elfos cinzentos, pálidos e tristes dentro dos seus longos casacos, fingiram não os ver e afastaram-se. Sentados à mesa na varanda de uma taberna, dois elfos do Havre, rindo alto e brincando com as suas tranças cinzentas, saudaram-nos com um gesto de cabeça indolente. Como todos os que andavam no mar, os elfos do Havre nunca se mostravam surpreendidos...

Mas, dos três povos livres, os homens eram de longe os mais numerosos.

Alguns comerciantes que passeavam tranquilamente nas ruelas a abarrotar, seguidos pelos seus guardas particulares, sorriram-lhes prudentemente, um pouco inquietos por encontrarem no centro do país gnomo um cavaleiro armado trazendo a cota de malha azul e branca com as cores do rei. Os outros homens, bem mais frequentemente, baixavam os olhos e puxavam os capuzes dos seus casacos sobre a cara.

— A Guilda dos ladrões — disse a rainha designando um grupo que desaparecia num buraco aberto que servia de porta a uma casa escavada na falésia. — Kab-Bag é também um pouco a capital deles...

Instintivamente, os anões agruparam-se em volta dos seus póneis e Miolnir desembainhou o seu machado.

Devido à estreiteza das ruas e à gente que por elas circulava, os membros da companhia afastaram-se rapidamente uns dos outros sem se darem conta disso. À frente, os elfos pareciam deslizar através da multidão, guiados pelo falcão de Till. Fremr e Uter caminhavam mais lentamente, incomodados, um por causa da sua estatura, o outro por causa da armadura. Mas a multidão afastava-se à sua passagem, prudentemente. Os dois anões, esses, pareciam perdidos na enchente da populaça. Pouco mais altos que os gnomos, não conseguiam ver nada para a frente e temiam perder-se no labirinto das ruelas, o que fazia que se tornassem ainda mais prudentes, e mais lentos. No entanto, eles não arriscavam nada. Ninguém, mesmo que fosse membro da Guilda dos ladrões ou assassinos, teria atacado um cavaleiro anão armado de ferro, nem mesmo Tsimmi, que, apesar do seu ar menos belicoso, agarrava com o seu punho nodoso um martelo de armas bastante grande.

Mas, atrás deles, uma presa parecia mais fácil... Pelo menos em aparência.

No fim da fila, os pajens que acompanhavam os cavalos de albarda tinham-se distanciado bastante. Estavam esgotados de puxar pelos cavalos aterrorizados pela multidão, campeando a cada passo, sem deixarem de ser empurrados ou bloqueados pelos ajuntamentos.

Agachado sob um alpendre de terra, era por eles que Thane de Logres esperava. Thane era um assassino.

A mão direita tinha-lhe sido cortada por um senhor anão das Altas Colinas, que o tinha surpreendido ao pé do leito do filho, com um punhal na mão, prestes a usá-lo, e o seu coto tinha sido queimado com um ferro em brasa. Thane de Logres tinha ficado cinco anos nos calabouços das Altas Colinas. Os seus braços e pernas tinham sido partidos várias vezes pelos carrascos anões, mas ele não tinha falado. Os assassinos da Guilda só tinham uma honra: matar e nunca dizerem nada. Assim, nunca ninguém soube quem tinha mandado matar o príncipe das Altas Colinas.

Logo que fugiu, Thane matou o príncipe, cumprindo assim o contrato, e desapareceu. Um ano mais tarde, o irmão mais novo do senhor anão foi também ele encontrado assassinado, sem que ninguém pudesse afirmar que tinha sido vítima da sua própria vingança.

Desde essa altura, Thane, o “Maneta”, nunca mais tinha voltado a ser preso. Tinha-se tornado um dos chefes da Guilda e trazia no dedo anelar da sua única mão um anel com a runa de Beorn. Servido por uma armada de assassinos, espiões e ladrões, tinha-se fixado em Kab-Bag, a última cidade antes das Fronteiras, suficientemente rica de prazeres de toda a espécie e suficientemente longe de Loth para não ter de temer os arqueiros do rei. Embora um mestre assassino não tivesse muito que temer do rei... Desde que a lei da Guilda fosse respeitada e que as ordens dos seus chefes fossem obedecidas à letra e sem demoras — fossem elas quais fossem e custasse o que custasse —, os portadores do anel gozavam de uma relativa imunidade no que dizia respeito aos seus pequenos furtos.

Na cidade dos gnomos, da qual ele era um dos senhores ocultos, pouca coisa teria podido escapar a Thane. E certamente não uma companhia de cavaleiros, de elfos e de anões.

Caminhando em frente dos dois cavalos de albarda, segurando-os pelo freio, Llewelin, o pajem dos elfos, dava de vez em quando pequenos saltos, para tentar ver por cima da multidão o resto da companhia. Quando passou em frente ao assassino, este notou que ele tinha medo e que temia deixar-se ficar para trás. Uma presa fácil, na realidade...

Thane de Logres endireitou-se e afastou-se do alpendre, e depois levantou a mão dando a ordem. Não deu conta da silhueta maciça do anão que seguia atrás dos cavalos, enrolado num casaco poeirento. Teve azar.

Llewelin sentiu alguém empurrá-lo rudemente. O elfo voltou-se, furioso, mas as palavras bloquearam-se-lhe no fundo da garganta. De um golpe seco, um estilete tinha atravessado a sua couraça e perfurado o seu ventre. Cruzou o olhar frio de um homem de uma maldade repugnante e compreendeu imediatamente que esse homem ia matá-lo. Com um golpe de rins, o pajem agarrou-se à lâmina e caiu por terra, no meio da lama e imundícies da ruela. O sangue claro de elfo escorria entre os seus dedos crispados contra o ventre. Com os olhos aumentados pelo terror, desembainhou a sua longa adaga élfica e levantou-se a cambalear para enfrentar o assassino.

Imediatamente, a ruela encheu-se de seres armados. Havia sobretudo homens, mas o grupo de assassinos compreendia igualmente um elfo cinzento, que sorria perigosamente apontando-lhe um punhal acerado com lâmina negra. Os gnomos espalharam-se em todos os sentidos gritando, e os bêbados nas tabernas concentravam-se já nas janelas para gozar o espectáculo. Os ladrões eram cinco, armados de punhais ou de espadas curtas de grandes rebordos cortantes e de ponta quase redonda. O elfo ferido tremia, curvado sobre o seu ferimento mortal. Voltava-se sobre si próprio dando pequenos saltos, efetuando fracos molinetes com a sua adaga para manter os assassinos à distância. Ele não era um guerreiro.

Thane de Logres encostou-se ao alpendre e sorriu. Como é que os estrangeiros podiam ser tão descuidados em Kab-Bag? Deixar dois cavalos de albarda sob guarda de um único miserável elfo, vejam bem... Já nas tabernas, os risos e gargalhadas excitadas esperavam o golpe de morte. Foi então que um dos assassinos deu um grito estridente que fez saltar o maneta e trouxe o silêncio à ruela. No espaço de alguns segundos, o homem esbracejou tentando arrancar algo das costas, depois os seus olhos rolaram e caiu por terra, revelando quem acabara de o matar.

Era um anão, vestido de vermelho, de uma estatura surpreendente e cuja barba ruiva estava enrolada na cintura. Thane e os seus assassinos sentiram-se empalidecer. Quase tão grande quanto um homem, o anão segurava nas suas mãos possantes um longo machado de ferro ensanguentado. O assassino crispou nervosamente a mão no punho da sua espada e, com um gesto, lançou os seus homens ao ataque.

— Dwaaalin! — gritou Rogor, avançando sobre eles.

O primeiro ladrão fendeu o ar com um golpe de espada, forçando o anão a recuar. Ele deu imediatamente um grito horrível: o machado de Rogor tinha zumbido a alguns centímetros do chão, e no final da sua curva mortal, tinha-lhe cortado a perna por cima do joelho. O homem caiu, perturbando dois dos assassinos que perderam assim vários segundos. O terceiro, o elfo cinzento, encontrava-se sozinho frente a Rogor no momento em que, como um pêndulo, o pesado machado caiu sobre ele. O ferro fez rebentar as malhas de aço da sua cota de malha e esmagou-lhe o flanco com uma tal força que metade do machado ficou enterrado. Ao cair, o elfo arrancou a arma das mãos do anão, que desembainhou o seu punhal e desafiou os dois últimos adversários. Um deles não hesitou mais que um pequeno instante e fugiu a toda a pressa. O outro ficou, mas suava de medo. Atirou-se ao anão num ataque desesperado que Rogor evitou com facilidade. A mão possante do herdeiro de Troin fechou-se sobre o braço do ladrão e torceu-o, atirando o homem ao chão. Antes mesmo que ele conseguisse levantar-se, Rogor já o tinha pregado ao chão com o seu punhal.

Sob o alpendre de terra já não estava ninguém: Thane de Logres havia desaparecido.

O anão vestido de vermelho acabou com os moribundos, despojou-os das suas armas e do ouro, e depois recuperou o seu machado, enterrado no corpo do elfo cinzento, sem pronunciar uma única palavra e sem se preocupar com os vivas da multidão entusiasmada. Com um pontapé libertou o ferro do seu machado e depois limpou-o cuidadosamente no casaco do cadáver, antes de o fazer deslizar novamente para debaixo da sua túnica marcada com as runas de Baldwin. Recuperou também os dois cavalos, colocou o pajem ferido dos elfos como um embrulho entre a bagagem, agarrou as rédeas e entrou pelas ruelas, longe dos corpos ensanguentados.

— Espera! — gemeu Llewelin tentando levantar-se. — Estou a perder muito sangue, tenho de ser tratado... Como é que conseguiste matá-los todos? Não és um guerreiro, no entanto... Ou melhor...

Rogor olhou o jovem elfo com uns olhos fatigados.

— Vou dizer-to — murmurou ele. — Mas não aqui. Não no meio da rua...

Deixaram os cavalos à porta de uma taberna sob a vigilância dos guardas que cada estabelecimento punha ao serviço dos seus clientes, depois Rogor pôs o elfo aos ombros e enfiaram-se por uma das numerosas grutas da cidade.

Mal iluminada por alguns archotes, a caverna transbordava de gente, ao ponto de as caras se tornarem anónimas. Rogor pousou o elfo no chão, encostado a uma parede de pedra e levantou-se fechando sobre a sua túnica vermelha o seu casaco comprido. Llewelin, cheio de dores, não conseguia tirar os olhos desse anão que ele tinha julgado ser um pajem e que parecia mais experiente na arte de matar que o melhor dos mestres de armas.

— Eu sou Rogor, sobrinho de Troin, herdeiro do trono sob a Montanha Negra — disse este pousando a mão sobre o ombro do ferido.

À luz dos archotes, a sua barba ruiva parecia feita de fogo. Sob as espessas sobrancelhas, o pajem cruzou o seu olhar sombrio e soube que o anão o ia matar.

— Não!

O gesto de Rogor foi tão rápido que o pajem nem percebeu a morte. Com a garganta cortada, escorregou lentamente por terra, enquanto o anão limpava o seu punhal na túnica de catassol. Pegou em braços no cadáver do pajem e ergueu-o sem esforço. Depois saiu sem apressar o passo nem olhar para ninguém.

Cá fora, Rogor fechou os olhos e respirou várias vezes, fortemente. Quando as mãos lhe deixaram de tremer, atirou uma moeda de bronze aos guardas, içou de novo o corpo de Llewelin sobre o cavalo e abriu caminho entre a multidão procurando a companhia.

Saindo do meio de uma arcada sombria, Thane de Logres, de adaga na mão, deu um passo em direção ao anão. Já não se tratava de roubar os seus cavalos, mas sim de vingar os mortos, de acabar o que tinha sido começado, segundo o código de honra particular da Guilda. Uma mão firme parou-lhe o ímpeto e puxou-o brutalmente para a sombra. O maneta voltou-se, pronto a bater, mas reteve o seu gesto.

— Blade!

— Ainda é cedo para realizares a tua vingança, amigo — disse o ladrão de Loth.— Vamos beber qualquer coisa e falemos...

Thane de Logres não respondeu logo, deixando que as suas têmporas e o seu pulso voltassem ao normal. Blade, o ladrão, era quase uma lenda entre os membros da Guilda, e um dos poucos a trazer um anel semelhante ao seu, prova da consideração de que gozavam na hierarquia oculta dos mestres ladrões. Raros eram aqueles que, ao contrário de Blade, ousavam praticar a arte mortalmente perigosa do roubo e do assassínio mesmo no seio da cidade do Grande Conselho. Thane forçou um sorriso e guardou a sua adaga.

— Sigo-te, Blade...

A companhia tinha-se reunido no meio de uma praça a transbordar de gente e suficientemente iluminada por dezenas de lamparinas de azeite e de archotes pregados sobre as paredes ou sobre as armações de madeira dos estabelecimentos. Ao menor sopro de vento as chamas viriam lamber as cortinas de veludo que cobriam as janelas das habitações, os fardos de palha empilhados por todo o lado para os animais ou as bancadas dos inúmeros vendedores de tecidos da cidade, e nada poderia parar o incêndio. Felizmente, não havia vento nas profundezas dos bairros baixos. Todavia, a cidade tinha ardido várias vezes, mas os gnomos não eram um povo que tirasse lições deste género de experiências. Era a marca do destino, em resumo. Era mais fácil erguer aqui e acolá altares de devoção, ao lado de centenas de templos, de capelas ou de nichos consagrados a todas as divindades que havia no mundo — que iam desde as grandes cruzes da religião dos homens até aos ídolos demoníacos e sombrios das Terras Gastas. E depois, os gnomos sofriam as piores calamidades com uma espécie de resignação satisfeita, tirando mesmo um certo gozo dos seus males, empenhando-se em reconstruir aquilo que tinha sido destruído com um frenesi de formigas que fascinava todos os outros povos.

No coração da cidade, a multidão era ainda mais variada, mais densa e mais suspeita. Afastando-se furtivamente ao verem a rainha dos altos-elfos e a armadura brilhante de Uter, o “Moreno”, as silhuetas curvadas de alguns homens-cães misturavam-se na multidão. Um desses seres grotescos e monstruosos veio embater de frente com a anca de Freihr. Perdido nos pensamentos negros do seu espírito brumoso, o homem-cão não percebeu de imediato o seu erro. A sua primeira reação foi abrir os seus beiços pelados, descobrindo os dentes do seu potente maxilar, nesse esgar de uma terrível bestialidade que fazia os da sua raça assemelharem-se às hienas ou aos cães selvagens. Depois levantou a cabeça e os seus olhos cruzaram o olhar do gigante bárbaro.

— Buu! — gritou bruscamente Freihr, com ar de mau.

O homem-cão gritou e fugiu a gemer, empurrando tudo à sua passagem.

Por instantes, o riso de Freihr dominou a algazarra da multidão.

— Por que é que não o mataste? — perguntou Miolnir, segurando nervosamente o seu machado. — Era um mestre cão, esses que os gobelins chamam kobolds e que alimentam os seus lobos de guerra!

— Kobolds não são perigosos — disse simplesmente o bárbaro com um sorriso. — Vivem com os cães, comem como os cães, são medrosos como os cães... Não são dignos de um golpe de espada.

Os dois anões entreolharam-se tristemente. Nas montanhas, os homens-cães levavam hienas e lobos até às entradas das aldeias anãs e, por vezes, devoravam crianças.

Till, o seguidor de pistas, também tinha tremido. Um olhar da rainha tinha-o retido e ele tinha se agachado para murmurar ao ouvido do seu cão as palavras que acalmam a fúria instintiva. Os mestres cães das Terras Negras representavam a face sombria da união dos seres que caminhavam em pé e dos animais. Se para um anão, matar um homem-cão era um dever por causa dos anõezinhos que viviam nas cidades isoladas das montanhas, para os cães élficos e para os elfos verdes era uma espécie de missão sagrada, o combate instintivo do bem contra o mal...

— Ei-los! — gritou Uter, apontando com o dedo os dois cavalos de albarda que se lhes juntavam por fim, abrindo caminho por entre a multidão.

Foi somente quando as montadas pararam diante deles que os enviados do grande Conselho descobriram o corpo de Llewelin, atirado entre as bagagens.

— Que se passou? — perguntou Uter com a voz gelada. Rogor ergueu a cabeça e torceu as mãos num gesto de desespero.

— Fomos atacados por bandidos, meus senhores. Três morreram e os outros fugiram, mas o meu companheiro perdeu a vida...

Os elfos tinham-se aproximado do seu pajem. Tinha a marca de um golpe de punhal no abdómen, e tinha a garganta cortada de um lado ao outro: este não era o género de ferimento que se recebesse em combate.

Rogor viu os seus olhares cheios de surpresa e virou-se para eles gemendo sempre e torcendo as mãos.

— Ele bateu-se como um leão, rainha Lliane. Tiveram de ser dois para conseguirem matá-lo... Um cortou-lhe a garganta e o outro deu-lhe um golpe de espada...

— E tu não o ajudaste?

— Eu não pude — disse Rogor baixando a cabeça, como se escondesse a sua vergonha. — Não sou um guerreiro...

Os elfos abanaram a cabeça e Lliane bateu no ombro do anão em sinal de compaixão.

— Deste prova de uma grande coragem escoltando sozinho os cavalos até aqui. Se o nosso pajem morreu, a culpa é nossa. Não deveríamos ter-vos perdido de vista no meio desta multidão.

Till agarrou as rédeas das montadas de albarda e avançou em direção à estalagem, seguido pelos cavalos livres da rainha e do pajem, que não precisavam de ninguém que os guiasse. A noite tinha caído, uma chuva fina fazia crepitar os archotes sem que a multidão de gnomos e estrangeiros se dispersasse por isso. Em Kab-Bag, dormia-se, comia-se, faziam-se negócios a qualquer hora do dia ou da noite. Cada um era livre de regular a sua estada como entendesse.

Uter e Freihr escoltaram a rainha até à estalagem e baixaram-se para abrirem a porta de entrada que dava para um pequeno pátio pavimentado. Os anões foram os últimos a sair. Tsimmi murmurou algumas palavras a Miolnir, que partiu sozinho a ocupar-se dos cavalos, deixando o pajem para trás.

Arrasados pelo cansaço, minados pela morte de Roderic e de Llewelin neste primeiro dia de expedição, os homens e os elfos não repararam que era o próprio cavaleiro anão quem levava os cavalos para a cavalariça.

Cá fora, Tsimmi esperou que todos tivessem desaparecido para interrogar Rogor.

— Que aconteceu, senhor?

— Fomos mesmo atacados por ladrões, mestre Tsimmi. Tive de lutar para salvar a minha vida, mas o elfo viu. Não podia deixá-lo contar à rainha e ao seguidor de pistas que me tinha visto combater.

— Logo, fostes vós que o matastes... Os olhos de Rogor brilharam de cólera.

— E que mais podia eu fazer? Esqueceis que a minha identidade deve continuar secreta?

Tsimmi ergueu calmamente a cabeça e alisou com a mão calejada a sua longa barba castanha.

— Não vos esqueçais tão-pouco vós, senhor, que não procuramos reacender a guerra entre elfos e anões, não é verdade?

Rogor não respondeu.

— Não é verdade?

O guerreiro vermelho quis dizer algo, mas os seus olhos cruzaram o olhar cinzento do mestre mação e fechou a boca. Diziam-se tantas coisas sobre os mestres mações. Tantas coisas insuspeitáveis e terríveis podiam esconder-se por detrás do olhar cinzento deste pequeno anão, de aspecto doce e inofensivo, armado unicamente de um martelo de guerra e de uma funda.

— Sou um vosso criado, mestre Tsimmi — disse Rogor tremendo sob a chuva.

— Não vos peço tanto.

Os dois anões olharam-se em silêncio, ainda por alguns instantes, e depois o mestre mação pegou afetuosamente em Rogor pelo braço.

— Sereis um grande rei, Sr. Rogor. Vamos comer...

 

A estalagem estava quase tão atravancada quanto as ruas de Kab-Bag. Reinava um enjoativo odor a fritos, misturado ao do suor de dezenas e dezenas de viajantes. Salientando-se na sala, um pequeno estrado elevado a um canto propunha à assistência um espectáculo ininterrupto de saltimbancos dos mais diversos, e duas jovens gnomos totalmente nuas agitavam-se ao som de flautas e tamborins com a mesma graça de peixes fora de água.

A chegada dos enviados do Grande Conselho tinha provocado um brusco silêncio, bem como a fuga discreta de alguns comensais com a consciência tão negra como o céu da cidade. Depois, progressivamente, as conversas tinham sido retomadas, até se voltar ao barulho ensurdecedor habitual nestes lugares.

Os viajantes não eram mais que quatro. Miolnir, mais rabugento que nunca, tinha ido deitar. O pajem Rogor tinha-se retirado para a cavalariça para vigiar os cavalos durante a noite. Quanto a Till, o seguidor de pistas, tinha desaparecido silenciosamente depois de ter dito algumas palavras ao ouvido da rainha. Levando com ele um cavalo carregado com o cadáver de Llewelin, tinha fugido da atmosfera opressora da cidade para devolver o corpo do pajem à natureza e instalar-se com o seu cão e o seu falcão ao abrigo de um bosquete, no exterior de Kab-Bag.

Apesar do cansaço, Uter, o “Moreno”, esforçava-se por prestar atenção à interminável história que Tsimmi contava fumando o seu cachimbo de barro branco. Era um conto muito apreciado na Montanha, e Tsimmi era um bom narrador, mas era quase impossível de ser seguido por um homem, tão numerosas eram as digressões, bem como as alusões às grandes casas anãs, acompanhadas de todos os seus títulos. Uter já tinha perdido há muito tempo o fio à meada. O jovem cavaleiro deitava, de vez em quando, um breve olhar à rainha dos altos-elfos, a qual olhava o anão com um sorriso indefinido, mantendo-se perfeitamente direita. Isto não queria dizer nada... Lliane podia muito bem estar quase a dormir mantendo os seus olhos bem abertos.

Freihr, esse, não se importava com as boas-maneiras. De costas voltadas para a mesa, ria a bom rir ou aplaudia com força os diversos números, e, segundo o que Uter tinha podido observar, tinha absorvido uma quantidade de vinho bastante prodigiosa.

Cem vezes tinha Uter pensado poder aproveitar-se do fato de o anão umedecer a língua com um gole de vinho para se desculpar e levantar-se da mesa. Contudo, cada vez o mestre mação era mais rápido, e, como que de propósito, tomava o cavaleiro como testemunha pousando-lhe a mão sobre o braço para forçar a sua atenção.

Uter não retirava a sua armadura há três dias, e estava quase continuamente sacudido por arrepios. Nesse momento ele teria mesmo dado a sua espada por uma boa cama de penas...

Repentinamente, o burburinho da estalagem transformou-se num murmúrio de surpresa e de pavor. Um outro saltimbanco acabava de subir ao palco. Um homem de idade, mas robusto, de cabeça rapada e cara marcada por cicatrizes, com um chicote de chumbo atravessado à cintura e uma larga adaga de um só gume que se parecia bastante com uma faca de carniceiro. Com um gesto um pouco teatral, tinha retirado o pano negro que até aí tapava uma jaula de ferro, e a assembleia tremeu ao descobrir o seu conteúdo.

— E eis aqui a minha atração! — gritou ele com uma voz grossa e rouca. — Um gobelin das Terras Negras que eu próprio capturei pondo em perigo a minha vida!

Uter voltou-se de um salto. Nunca tinha visto um gobelin, esses guerreiros repletos de uma força sem igual e de uma crueldade terrificante em combate, que só adoravam deuses sanguinários e só obedeciam ao senhor deles, Aquele-Que-Não-Pode-Ser-Nomeado...

O monstro, agachado na pequena jaula, trazia várias ligaduras sobre o corpo, prova dos seus numerosos ferimentos. Sem dúvida que estaria desmaiado quando o domador de animais o tinha descoberto. Nunca de outra forma, apesar do seu chicote de chumbo e da sua faca de carniceiro, teria conseguido capturá-lo vivo... Freihr tinha-se levantado, tomado por uma raiva cega à vista de um desses monstros que tinham destruído a sua aldeia. Antes que Uter pudesse retê-lo, tinha-se precipitado sobre o estrado e, de espada na mão, tentava acertar através das barras da jaula no prisioneiro gobelin.

— Estás louco, bárbaro? — gritou o domador de animais, agarrando-o pelo braço.

Freihr não respondeu, mas o seu punho esquerdo distendeu-se bruscamente, acertando por baixo do nariz do homem com uma força tal, que este foi projetado para fora do estrado. Dentro da jaula, o gobelin latia como um cão e rugia como um leão, gritando injúrias na terrível língua das Terras Negras, abanando as grades da sua prisão com uma força assustadora.

As mesas mais próximas do estrado estavam já vazias, e mais de um cliente recuava em direção à saída, de tal forma era aterrador o confronto entre estes dois gigantes.

— Freihr! — gritou Uter juntando-se a ele. — Ele não pode defender-se! Não podes matar um inimigo enjaulado!

— Deixa-me! — rugiu o bárbaro dando-lhe uma cotovelada que amassou a sua armadura.

Uter resistiu e conseguiu agarrar o braço direito do guerreiro.

— Deixa-me! Deixa-me!

Lliane tinha também ela saltado para o estrado. Estava desarmada, mas a sua mão esquerda estava estendida, com a palma aberta, a alguns centímetros da cara de Freihr. Imediatamente, sem compreender porquê, ele não conseguiu desviar o olhar dessa mão que ondulava docemente.

— Acalma-te — murmurou a ilusionista com uma voz tão doce que era quase imperceptível. — Anmod eorl hael hlystan stylle... Anmod eorl hael hlystan stylle...

No entanto, as palavras ressoaram com uma força infinita dentro do cérebro do bárbaro, ao ponto de este achar que a sua cabeça ia rebentar. Contava-se que as ordens mágicas de certos altos-elfos, quando eram gritadas, podiam enlouquecer definitivamente.

Lliane baixou a mão, Freihr sentiu a dor atenuar-se e depois foi invadido por um grande cansaço. Cambaleou. O braço armado que Uter segurara com esforço até esse momento tornou-se flácido e pesado.

— Podeis levá-lo, meu senhor — disse a rainha sem abandonar o seu enigmático sorriso.

Freihr abanou a cabeça como se tivesse sido atordoado, e deixou-se conduzir docemente por Uter. Os três enviados do Grande Conselho atravessaram a sala num silêncio onde se misturavam o respeito e o pavor. Rapidamente, mais uma dezena de pessoas deixou a estalagem.

Empoleirado sobre uma mesa, Tsimmi não tinha perdido pitada do espectáculo. Reacendeu o seu cachimbo, contemplando a longa silhueta da rainha que regressava, indiferente aos olhares lúbricos ou inquietos que lhe deitavam sobre o seu corpo. Tanto um como o outro usavam a magia, mas o anão tinha agora uma vantagem sobre a ilusionista: ainda não se tinha desmascarado.

Tsimmi preparava-se para a brindar com um cumprimento sutil, quando um movimento imprevisto sobre o estrado atraiu o seu olhar. Uma gigantesca forma escura acabava de sair da jaula...

— Atenção!

Uter virou-se bruscamente e não conseguiu impedir-se de sentir uma náusea ao descobrir a silhueta monstruosa do gobelin, segurando na mão a faca do domador de animais, com a qual tinha conseguido forçar a porta da sua jaula.

Com uma altura superior a dois metros, estava vestido de farrapos que revelavam em alguns lugares uma pele escura e peluda de um cinzento-esverdeado sobre a qual se notavam os músculos fortes. As próprias mãos assemelhavam-se a armas, com unhas negras parecidas com garras. O monstro gritou e atirou-se ao ataque, direito ao grupo de enviados do Grande Conselho. Um pouco de baba argilosa escorria do canto da sua mandíbula, de onde emergiam dentes lascados tão afiados quanto os de um lobo.

Os gritos de terror dos gnomos que fugiam à sua passagem sobrepuseram-se por um instante aos do gobelin. A desordem era tal que os gnomos em pânico impediam o monstro de avançar, mas também impediam os homens, a elfo ou o anão de se aproximarem dele para o combaterem.

— Não podeis acalmá-los também a eles? — gritou Uter para a rainha.

— Não consigo nada sobre uma multidão assim!

Houve um grito ainda mais agudo que os outros e o corpo atarracado de um gnomo voou para o chão, deixando um rastro de sangue pelos ares. Em volta do gobelin enfurecido, seres de todas as raças perdiam a vida aos gritos, retalhados pelos seus furiosos golpes de faca, mas o monstro só conseguia matar. O massacre tinha por finalidade deixá-lo chegar até ao bárbaro que o tinha esfaqueado com golpes de espada dentro da sua jaula e de o fazer pagar o wergeld, o preço do sangue... Uma mesa foi projetada para um canto da sala e o monstro perdeu uma fração de segundo a vê-la esborrachar-se contra a parede. Quando o seu olhar voltou a recair sobre o seu agressor, descobriu diante dele um jovem cavaleiro de cabelos castanhos entrançados, vestido com uma armadura de metal polido. O homem tinha medo, como o indicavam as pequenas gotas de suor que lhe escorriam pela cara, mas os seus olhos brilhavam com determinação. Como nenhum gnomo nem mesa alguma o separavam dele, o gobelin deu um grunhido horroroso e investiu impetuosamente, com a arma em riste.

Uter não se mexeu senão no último instante, tal como o haviam ensinado. A sua longa espada, segura com ambas as mãos, apoiava-se no chão do seu lado esquerdo, de forma a que o cavaleiro parecia estar a dar o flanco ao agressor. Quando o gobelin se debruçou para o atingir, Uter rodou num movimento brusco. Levado pelo balanço, o monstro tropeçou na sua perna direita e caiu: a espada de Uter fendeu o ar zumbindo, com toda a força dos seus braços. O golpe foi tão forte que a espada cortou de uma só vez a horrível cabeça do gobelin, fazendo-a rolar vários metros, enquanto o corpo decapitado, continuando o seu trajeto, foi cair por terra aos pés de Tsimmi.

Durante um longo momento não se ouviu mais que o crepitar dos archotes e da gordura dos pedaços de carne a assar. Um sangue negro e espesso saía aos gorgolejos da cabeça cortada do gobelin, formando sobre o chão um horrível charco viscoso do qual Uter, fascinado, não conseguia desviar o olhar.

Aquela cabeça horrível, aquela cabeça de demónio era exatamente igual à das gárgulas que os monges esculpiam à entrada das suas igrejas. Alguém lhe bateu afetuosamente no ombro e o tirou do seu torpor. Era Freihr.

— Bom golpe — disse o bárbaro com um grande sorriso. — Gostaria de o aprender.

Uter ergueu a cabeça e forçou um sorriso.

Em volta deles, os gnomos e os viajantes retomavam os seus lugares na estalagem, comentando os acontecimentos com um alívio que os tornava ainda mais barulhentos.

— Um belo golpe, na realidade! — acrescentou Tsimmi sentando-se à mesa. — Eis algo que merece que se abra um barril!

Uter sentou-se um pouco desajeitadamente, com as mãos a tremer.

— É durante a batalha que se pode avaliar o valor de um guerreiro — disse docemente a rainha, com o seu pequeno sorriso enigmático que nunca a deixava.

Uter levantou a cabeça e despejou um copo de vinho, o tempo de compreender o que ela queria dizer.

— Pois bem, desejo-vos uma boa noite, meus senhores continuou Lliane. — Chega de emoções para um dia.

Os três companheiros levantaram-se, incluindo Tsimmi, que, em pé, mal ultrapassava o nível da mesa.

— Quereis... — Uter hesitou. — Quereis que vos acompanhe até ao vosso quarto, senhora minha?

— Agradeço-vos, cavaleiro. Mas creio que já não corremos riscos...

Uter ergueu a cabeça e sentiu-se mais uma vez corar sob o olhar verde da rainha, que deu meia volta e abriu caminho entre as mesas. Com o coração ainda a bater pela febre do combate, ficou em pé contemplando-a até que ela desapareceu no corredor que levava aos quartos. Quando voltou a sentar-se, uma cotovelada de Freihr quase o fez saltar da cadeira.

— Oh, oh! “Senhora minha”... Ela agrada-te, a bela rainha?

— Cala-te! — resmungou o cavaleiro.

Freihr bateu com a mão na mesa e desatou a rir.

— Ele está apaixonado! Viste isto, anão? Ele está apaixonado!

Uter não deitou mais que um breve olhar a Tsimmi, mas pareceu-lhe que os olhos do mestre mação brilhavam.

— Sabes, eu também já estive apaixonado — disse o bárbaro num tom repentinamente menos alegre. — E estávamos mesmo para casar...

Uter fechou os olhos. Não lhe faltava mais nada que um bárbaro com a nostalgia do vinho...

Tsimmi também percebeu a nostalgia do seu companheiro.

— Eu estava a contar, antes de nos terem interrompido...

Tinha já entrado numa das suas intermináveis histórias de batalhas, quando um gnomo envolto em armas diversas e em peças de armaduras heteróclitas se aproximou da mesa deles.

— Fostes vós quem matou o gobelin? — perguntou ele num tom o mais marcial possível.

— Porquê? — disse Uter.

O gnomo tomou a pergunta do cavaleiro por uma afirmação e fez sinal aos companheiros que o acompanhavam para levarem o corpo e a cabeça do monstro.

— Nós teríamos vindo sem problema — explicou o gnomo —, no entanto, estamos gratos por nos terdes poupado a esse problema.

Freihr fez um leve sorriso divertido e abriu a boca para dizer algo, mas um pontapé de Tsimmi por debaixo da mesa fê-lo fechar o bico.

— O nosso xerife, o Sr. Tarot, encarregou-me de vos convidar a virem contar-lhe pessoalmente a história da vossa batalha.

— As notícias correm depressa em Kab-Bag — murmurou Uter.

Tsimmi levantou-se rapidamente e contornou a mesa.

— É uma grande honra — disse inclinando-se diante do gnomo pouco mais pequeno que ele. — Fazei saber ao Sr. Tarot que aceitamos com muito gosto e que estaremos lá dentro de uma hora.

— Mas...

O gnomo interrompeu a si próprio, não sabendo o que dizer. Inocentemente, mas com mão de ferro, o anão empurrou-o para a porta da estalagem, sempre a segurá-lo amigavelmente pelos ombros. Afinal de contas o essencial era que os estrangeiros se apresentassem ao xerife, não é verdade? Teria sido sem dúvida preferível que o tivessem acompanhado, mas apesar de tudo ele não se tinha saído muito mal da sua missão...

Tsimmi fechou a porta da estalagem e veio juntar-se rapidamente aos seus companheiros.

— Que fazemos? — perguntou, servindo-se de mais um copo.

— Não sei — respondeu Uter. — É talvez uma armadilha... O Grande Conselho disse-nos para desconfiarmos dos gnomos. Se eles têm realmente comércio com os gobelins das Terras Gastas, podem querer entregar-nos ao Senhor Negro para se limparem da morte do monstro.

— É uma possibilidade — concordou Tsimmi. — Mas nós não arriscamos grande coisa. Somos três, bem armados, e o nosso grande amigo aqui presente deverá conseguir convencer os espíritos mais quentes a renunciarem às suas más ideias!

Ao dizer isto, deu uma cotovelada amigável ao bárbaro, que começou a rir e lhe administrou de volta uma boa palmada sobre o ombro.

— Isso é verdade! — disse ele sempre a rir. — Não são meia dúzia de gnomos que podem meter medo a Freihr!

Tsimmi sorriu e massajou o ombro. Aquele bruto quase lhe tinha deslocado o braço.

— Tendes sem dúvida razão — admitiu Uter. — E depois, é uma ocasião inesperada de interrogar o xerife acerca de Gael. Se ele continua em Kab-Bag, imagino que poderá revelar-nos onde é que se esconde.

— No entanto, é necessário desconfiar do que ele nos der para beber ou para comer — concluiu Tsimmi. — Os povos fracos gostam sempre de utilizar venenos que matam sem que lhes seja necessário combater... Prevenimos os outros?

— Pelo menos a rainha — disse Uter. — Ela conhece o xerife Tarot. É ela quem comanda a nossa companhia...

Houve um silêncio durante o qual todos se perguntaram se seria razoável ou não envolverem a rainha naquilo que poderia ser uma armadilha.

Para surpresa dos outros dois, foi Freihr quem falou primeiro.

— Prevenimo-la amanhã. Eu também conheço Tarot. Se for uma armadilha, para quê pôr a bonita elfo em perigo?

De novo fez ouvir o seu riso.

— Ha, Uter?

O cavaleiro atirou-lhe um olhar furioso, mas o bárbaro louro estava demasiado contente por ter descoberto uma brincadeira para se deixar intimidar.

— Julgo que não devemos fazer esperar o nosso amigo xerife — disse por fim Tsimmi.

 

A casa do Sr. Tarot elevava-se a meia altura de Kab-Bag, como um pequeno castelo, sobre uma plataforma que dominava a parte baixa da cidade. Ela parecia tão frágil e tão grosseira quanto um bolo montado de pastelaria, tantas eram as torres acumuladas, as guaritas, as gárgulas, os saguões e os pátios interiores, tudo ajustado à medida, ao longo dos séculos, por arquitectos dementes, sobre um edifício que a princípio nada tinha de um castelo. Os enviados do Grande Conselho, com excepção de Tsimmi, sentiram-se imediatamente oprimidos e apertados, mas, afinal, a casa não tinha sido concebida para seres da estatura deles.

Um guarda tinha-os introduzido numa sala coberta de almofadas e almofadões, completamente tapada por cortinados de veludo escuros, violeta, azuis ou verdes (um conjunto de cores bastante chocante à vista) e unicamente iluminada por lamparinas de azeite. Tarot fazia-se esperar para se dar um ar importante.

— Se esse aborto não aparece dentro de um minuto, sou eu quem o vai buscar! — resmungou bruscamente o bárbaro.

Uter não se alterou.

Seria possível que um xerife gnomo tratasse assim enviados do Grande Conselho? O rosto calmo e inexpressivo do anão Tsimmi não o ajudava a resolver esta questão de protocolo e de amor-próprio. Por seu lado, Uter sentia também ele um formigueiro do lado da sua espada...

Por fim, houve um movimento por trás de um cortinado e uma coorte de guardas entrou na sala, precedendo o próprio xerife dos gnomos em pessoa.

— Dignai-vos perdoar-me, nobres senhores! — disse este saudando-os com uma hábil mistura de respeito e ironia. — Estes imbecis só agora me preveniram da vossa presença no meu castelo! Acorri imediatamente, é evidente.

— É evidente — repetiu Tsimmi olhando de alto o gnomo com um ar frio.

Tarot hesitou alguns segundos e depois recompôs-se.

— A rainha Lliane não está convosco?

— A rainha pede-vos o favor de a desculpar, xerife — disse Uter. — O caminho foi longo. Ela ver-vos-á amanhã, se o desejardes.

— É claro, é claro — concordou Tarot. — Amanhã, muito bem...

Ele sorriu, enrugando um pouco mais o seu rosto de fruto murcho, mas Uter percebeu sua contrariedade. Mesmo mais do que uma contrariedade...

— Mandei que nos trouxessem de beber e de comer continuou Tarot. — Instalem-se, por favor, nobre senhores! É uma honra para a minha casa receber ao mesmo tempo dois enviados do Grande Conselho... E também o Sr. Freihr, chefe dos homens livres de Seuil-des-Roches.

— Sim! — resmungou o bárbaro

Cada um deles sentou-se, no meio de um barulho de tecidos misturado com o tinir das armas. Tarot tinha já retomado a palavra, exigindo detalhes sobre a morte do gobelin, extasiando-se a cada episódio, dando pequenos cacarejos de admiração por tudo e por nada.

Deixando que Tsimmi se encarregasse de relatar o combate, Uter olhava nervosamente em volta, impaciente para terminar com essa história e poder finalmente interrogar o gnomo sobre Gael. Uma cotovelada de Freihr tirou-o dos seus pensamentos.

— Viste? — murmurou o bárbaro. — Agora já estamos cercados de guardas...

— Vi — respondeu o cavaleiro.

Nesse instante, uma gnomo entrou na sala, trazendo sobre uma travessa uma esplêndida garrafa de cristal cheia de um vinho escuro e quatro copos de metal gravados. Curiosamente, os copos já vinham cheios.

O xerife fez ele próprio a distribuição, oferecendo a cada um dos enviados um copo, numa verdadeira ginástica de salamaleques, de sorrisos e de encorajamento à bebida.

Tsimmi foi o primeiro a ser servido. O gesto que ele esboçou por cima da beberagem não foi perceptível senão para Uter, sentado a seu lado e que vigiava a sua reação. O anão fez rodar o líquido no seu copo e depois começou a rir.

— Que se passa? — perguntou o xerife num tom inquieto.

— Nada, nada — disse Tsimmi sempre hilariante. — Então... vamos beber?

— Sim, um brinde! Longa vida ao Grande Conselho e aos Povos Livres!

Tarot levantava já o braço para levar o seu copo aos lábios quando Tsimmi parou o seu gesto.

— Beba o meu, gnomo.

Os olhos do xerife brilharam. O seu rosto enrugado pareceu tornar-se ainda mais púrpura e os seus lábios ficaram reduzidos a um simples traço. Como é que este anão ousava falar-lhe assim? Quis reagir, chamar a guarda e expulsar aquele grosseiro do seu palácio, mas estava também ali o cavaleiro armado e o Sr. Freihr, com a sua espada enorme... Sem querer, os seus dedos crisparam-se sobre o copo que tinha escolhido.

— É preciso ser idiota! — disse Tsimmi com um ar desolado. — Vês, gnomo, não tens sorte... Julgavas que a rainha estaria aqui e ela não veio.

Ele começou a mexer os dedos por cima do copo.

— Tu conheces bem a rainha Lliane. E conheces os seus poderes... Mesmo tu, não é suficientemente estúpido para tentar envenenar um elfo com um veneno vegetal, não é verdade?

O gnomo suava agora com grandes gotas. Freihr tinha-se erguido suavemente e mantinha-se agachado, intrigado, indeciso, não compreendendo realmente o que se passava. Procurou com os olhos o olhar de Uter, mas este estava cativado pelo copo de Tsimmi, sobre o qual os dedos curtos do anão continuavam a agitar-se. Parecia-lhe que bolhas de prata rompiam a superfície do vinho.

— E então, tiveste uma idéia... Um veneno, sim, mas um veneno que nenhum ilusionista elfo pudesse detectar. Um veneno mineral...

O anão despejou o copo sobre a palma da mão aberta. O vinho escorreu para as lajes do chão e pequenas gotas prateadas ficaram retidas entre os dedos calosos.

— Mercúrio... Tsimmi abanou a cabeça. — Isto não está certo, Sr. Tarot.

Em volta deles, sem saberem o que fazer, os guardas saltitavam de um pé para o outro, com as mãos fechadas sobre as suas armas, esperando a menor reação do seu xerife.

Este demorou vários segundos a recompor-se da influência do mestre mação.

— Como é que pôde imaginar que podia enganar-nos de uma maneira tão grosseira? — gritou Uter. — Veneno! Que estupidez, xerife Tarot! E porquê? Quem é que lhe ordenou a nossa morte?

O gnomo ergueu a cabeça, agitando-se como um peixe fora de água, olhando em volta, parecendo não saber onde é que estava. O seu olhar pousou finalmente sobre o alinhamento grotesco das suas tropas.

— Prendam-nos!

Os guardas sobressaltaram-se, apavorados com esta ordem um pouco temerária. Mas, apesar de tudo, os estrangeiros eram só três, e um deles anão, e eles eram uma boa vintena, mais bem armados e couraçados que qualquer pessoa na cidade!

O sargento de guarda deu um grito rouco e eles lançaram-se ao ataque.

— Matem o menos possível! — gritou Uter, fustigando com a sua manopla de ferro o primeiro que se apresentou à sua frente.

Tsimmi deu um grunhido ameaçador que fez hesitar os guardas, o que lhe deu tempo de pegar seu martelo de guerra e de recuar quase até um canto da parede, para evitar que algum deles o atacasse pelas costas.

Freihr foi mais lento a reagir e um guarda particularmente audacioso conseguiu tocar-lhe no ombro com a sua maça de armas. Foi como se tivessem libertado um furacão. Freihr levantou-se de um salto, gritando como um urso em fúria, e desferiu um murro sobre o nariz do imprudente que o matou imediatamente, quebrando-lhe ossos e cartilagens e fazendo brotar esquírolas até ao seu cérebro. A carga de um segundo gnomo foi parada por um pontapé que o fez esmagar-se contra a parede com um barulho de ferro velho, refreando imediatamente o ardor dos seus congêneres. Uter, bem protegido pela sua armadura, esquivava-se tranquilamente aos golpes de clava, de lança ou de adaga dos seus adversários, afastando os guardas com a parte plana da sua espada ou com a sua manopla de ferro. Quase parecia que estava a divertir-se.

Só Tsimmi lutava verdadeiramente pela sua vida. Os poderes de um mestre mação do seu nível ter-lhe-iam permitido cem vezes desembaraçar-se dos seus assaltantes, mas ele relutava em desmascarar-se aos olhos dos outros por tão pouco e empenhava-se em lutar com o seu martelo de guerra. O corpo de um gnomo jazendo a seus pés, com o crânio desfeito apesar do elmo, provava os seus talentos de combatente, e, no entanto, ele começava a vergar sob a quantidade. Corria já sangue do seu flanco, ferido pelo ferro dentado de uma lança.

— Freihr, aqui! — gritou Uter, indo em socorro do anão. Dois guardas armados de chuços curtos quiseram barrar-lhe a passagem, mas desta vez o cavaleiro não precisou se servir da parte plana da sua espada. Sem mesmo afrouxar o passo, aplanou o terreno com o reverso da lâmina que cortou as duas mãos daquele que o ameaçava e que colheu o segundo na base do elmo, cortando-lhe a orelha e esmagando-lhe o crânio até ao nariz.

O combate foi rápido e sangrento. A ponta de uma maça de armas rasgou a cota de malha de Uter na curva do braço, rasgando-lhe a pele. Freihr, esse, cortou a mão ao agarrar a lâmina de uma cimitarra que um guarda apontava perigosamente para ele. Ao contrário, Tsimmi, o anão, estava bastante ferido. O sangue corria das suas múltiplas feridas e ele cambaleava, atingido nas pernas por vários golpes de maça.

Quanto aos gnomos, dez deles tinham morrido, estavam feridos ou simplesmente desmaiados e os sobreviventes tinham-se refugiado com prudência no outro lado da sala, abandonando as armas no chão, levantando os braços em sinal de submissão.

O xerife Tarot, esse, tinha desaparecido. Uter, de espada em riste, perscrutou durante alguns instantes o grupo de guardas trêmulos agrupados num canto sombrio e depois virou-se para o bárbaro.

— Freihr! — lançou numa voz forte para se fazer entender bem. — Acabe com esses miseráveis! Poupe só aquele que aceitar conduzir-nos ao xerife!

O gigante bárbaro obedeceu sem discutir e avançou para os gnomos. Houve uma sinfonia de gritos aterrorizados e vários guardas puseram-se de joelhos, gritando que estavam prontos a fazer tudo aquilo que eles quisessem, desde que lhes poupassem a vida.

Uter sorriu. Não queria outra coisa.

Foi um pouco mais demorado explicar a Freihr que ele devia poupar os gnomos e recordar-lhe que tinham vindo a casa do xerife para conseguir informações...

 

O barulho incessante dos risos e conversas impedia a rainha de dormir. Tal como o seu esposo, o rei Llandon, e a maioria dos elfos, Lliane não estava habituada a estes vastos ajuntamentos de vida que eram as cidades, e ainda menos ao fervilhar arrasador das cidades dos gnomos. Na floresta de Éliandre, as coisas eram tão diferentes!... Tudo tinha uma outra dimensão, incluindo o tempo e o espaço, tudo era muito mais simples. Infelizmente, a floresta era demasiado perto das Terras Negras e muitos elfos já tinham perdido o gosto desta vida selvagem.

Gael era um deles...

O Senhor das Fronteiras teria matado o rei Troin? Era possível. Tudo se tinha tornado possível. Seguramente, o mundo nunca mais voltaria a encontrar o seu equilíbrio, já que nada poderia, ao que parecia, impedir os elfos de desaparecerem, mais tarde ou mais cedo.

Deixando os anões escavarem cada vez mais as suas malditas montanhas à procura desses minerais que tanto amavam, os homens expandiam-se já por toda a superfície das terras ainda livres, clamando em alto e bom som que só eles poderiam vencer as armadas das Terras Negras e repelir o Inominável para as trevas que o tinham criado. E, pior ainda, estavam sem dúvida de boa fé.

A rainha Lliane voltou a pensar em Uter e no olhar atrapalhado do cavaleiro quando pousava os seus olhos sobre ela. Depois pensou nos seus irmãos, Dorian e Blorian, e em Llandon, seu marido...

Um brusco rangido, em frente da sua porta, tirou-a dos seus sonhos. Apesar do zumbido surdo das discussões na sala grande da estalagem, ela percebeu uma breve troca de palavras murmuradas e de um tinido de aço.

Sem se preocupar em vestir-se, a rainha deslizou silenciosamente para fora da cama, pegando de passagem seu arco e uma das flechas de prata que lhe tinha dado Kevin, o arqueiro, na cabana de Llandon. Contornou a estreita janela do seu quarto, enquanto um raio de lua brincou brevemente com as curvas azuladas do seu corpo nu, e depois atingiu uma zona escura, onde se agachou e esperou perfeitamente imóvel. Como todos os elfos, Lliane conseguia ver no escuro com muito mais clareza que os homens, aos quais a escuridão cegava, e mesmo melhor que certos anões que, no entanto, estavam habituados à penumbra dos subterrâneos. Ela viu assim claramente a maçaneta da porta baixar centímetro a centímetro.

Envolto num casaco cinzento que lhe descia até aos tornozelos, Thane de Logres levantou a sua única mão. No outro extremo do corredor, dois homens estavam parados em frente ao quarto dos anões. O do cavaleiro e do bárbaro estava vazio... Blade tinha de contentar-se com os que eles tinham encontrado nos aposentos.

Thane fez sinal a um dos seus assassinos e bateu levemente com a mão no ombro do homem que o acompanhava.

— Vai...

Sem o menor ruído, a porta abriu-se e Lliane distinguiu os contornos de uma silhueta encapuçada avançando para dentro do quarto.

O intruso imobilizou-se por alguns instantes, o tempo de se habituar à escuridão, e depois correu para a cama com uma faca na mão. Através da porta aberta, a rainha viu uma outra silhueta tapada no corredor, a de um maneta envolto num grande casaco, que segurava com a sua mão válida uma espada curva.

— Ela não está aqui! — gritou o homem da faca. — Fomos enganados!

— Estou sim — murmurou Lliane avançando para o raio de lua. — Estou aqui, olha...

O homem levantou os olhos e ficou parado de espanto. Uma elfo de uma beleza mágica, completamente nua, tinha surgido do fundo do quarto, fundida na cor da noite. Ele só viu os seus seios, o seu ventre e o seu sexo liso, as suas longas pernas que se desdobravam lentamente num passo silencioso e felino, mas não viu o arco que ela segurava na mão nem a flecha cintilante. Soltou um grunhido obsceno e sorriu, dando um passo em direção à aparição. Depois, uma segunda elfo, idêntica à primeira, emergiu da sombra e debruçou-se sobre uma cadeira para tirar uma longa adaga élfica. O homem recuou. Fechou os olhos um segundo e sacudiu a cabeça; quando voltou a abri-los, as elfos eram três. Uma onda de pânico apoderou-se dele e atirou-se à mais próxima com um grito de raiva. Bateu, mas a sua espada só encontrou o vazio.

Logo que o assassino fez face à segunda silhueta, a longa adaga élfica da rainha fendeu o ar num silvo e ele desabou, com o coração cortado de um lado ao outro.

Lliane espreitou o homem que tinha ficado no corredor. Nesse mesmo instante, a porta de Miolnir voou em pedaços, e o grito de guerra dos anões do rei Baldwin explodiu como um trovão. Um segundo grito — este de agonia — ressoou no corredor, ao mesmo tempo que o som horrível de uma machadada partindo os ossos e abrindo as carnes. A silhueta deu meia volta e fugiu para as escadas que davam acesso à sala grande, seguido pela sombra furtiva do guerreiro anão que bramia o seu temível machado.

Lliane esticou-se e inspirou profundamente o ar da noite. O truque tinha-a esgotado. Um simples assassino não merecia que ela utilizasse uma das suas flechas de prata, e sem magia ela não teria tido tempo de agarrar a sua adaga. A arma lendária estava cravada no corpo do homem que gemia surdamente torcendo-se no chão. Ela pousou o seu pé descalço sobre a barriga dele, segurou o punho arredondado da sua adaga e tirou-a com um golpe seco, inundando imediatamente o solo com o sangue do assassino. A última coisa que ele viu nesta terra foi a penumbra onde se encontravam as longas coxas da rainha, e morreu esboçando um sorriso. Só então Lliane lembrou que estava nua.

 

O xerife tinha perdido toda a sua sobranceria. Não era mais que um velho gnomo cheio de rugas e a tremer, com o ar mais infeliz que uma pedra e mais desabado que um castelo de areia depois da maré alta. Não tinha sido nada difícil encontrarem-no, escondido no fundo do seu quarto como um cão a quem tinham batido.

— Por que é que tentou envenenar-nos? — perguntou Tsimmi numa voz cansada.

Tinha-se sentado, tão doridas estavam as suas pernas. Um golpe de maça tinha-o atingido no joelho e tinha dificuldade em manter-se de pé. Aliás, todo o seu corpo lhe doía; sentia na boca o gosto a sangue. Felizmente, na sua bagagem tinha com que se tratar, bem como uma erva para fumar que atenuava as dores.

Mas as bagagens estavam na estalagem e primeiro era preciso saber...

Uter, afastado, tinha desfeito os laços de couro que seguravam a sua espaldeira, cotoveleira e manopla, as partes da armadura que protegiam o seu braço. A ponta que lhe tinha cortado a sua cota de malha apesar da couraça não tinha, felizmente, feito mais que feri-lo de leve, mas o braço estava entorpecido. Freihr, esse, tinha-se contentado em enrolar a mão ferida num pedaço de veludo roxo cortado de um dos cortinados do xerife.

— Então? — continuou Tsimmi

Tarot hesitou, e depois pareceu subitamente desistir de lutar.

— Vós haveis matado um gobelin — gemeu ele. — O Senhor Negro nunca me perdoará a morte de um dos seus guardas na minha cidade.

Uter e o bárbaro não conseguiram impedir uma exclamação de surpresa. Tsimmi, esse, continuou perfeitamente inexpressivo.

— Portanto, conheceis Aquele-Que-Não-Pode-Ser-Nomeado?

— Não! Felizmente não!

O gnomo teve uma expressão alarmada seguida de um sorriso triste.

— Mas Loth está muito longe daqui, meus senhores. Bem mais longe que as Fronteiras. Como é que pensam que uma cidade como a nossa tem conseguido sobreviver, tão perto das Terras Negras?

Ele fez um gesto em direção a Freihr.

— Perguntem-lhe o que acontece às aldeias das Fronteiras! Seuil-des-Roches foi destruída, apesar de toda a força dos bárbaros. Como é que nós, pobres gnomos, poderíamos resistir?

— Mas aquele gobelin estava prisioneiro! Um homem mostrava-o dentro de uma jaula!

— Um homem, sim, meus senhores. Um homem e não um gnomo. Tinha ordenado que o prendessem e que acompanhassem o gobelin discretamente para fora de Kab-Bag, com as nossas desculpas. Foi então que vieram contar-me que vós o havíeis matado.

Com estas palavras, o gnomo pôs a cabeça entre as mãos, dando gemidos tão ultrajantemente pungentes, que Uter teve imediatamente vontade de esbofeteá-lo.

— Sr. Tarot — disse Tsimmi com uma voz doce —, sabe alguma coisa de Gael, o elfo cinzento?

Tarot respondeu sem refletir nem demonstrar surpresa perante esta questão.

— Ele esteve aqui. Eu até o recebi no palácio.

— Onde? — perguntou Freihr com ar zombeteiro. Tsimmi franziu as sobrancelhas para o fazer calar: era inútil amarfanhar ainda mais o que restava da honra do xerife de Kab-Bag.

— Aqui, no palácio — repetiu Tarot sem reagir à ironia do bárbaro (e, aliás, que poderia saber ele de palácios, ele que habitava em cabanas boas para cães!). — E o costume, em Kab-Bag. Todo o hóspede distinto deve vir visitar-me.

— E que é que ele lhe disse?

— Nada, nada... Mas, ahh...

Interrompeu-se como se hesitasse em continuar, mas mais uma vez de uma forma tão ultrajante que Uter teve de fazer um esforço considerável para não gritar ao gnomo que acabasse com as suas palhaçadas.

— E então? — insistiu Tsimmi.

— Quero dizer... os meus espiões disseram-me...

— Continue, continue!

— Bom, acho que ele queria encontrar-se com os membros da Guilda. Eu disse-lhe, é claro, que isso era impossível, que nós fazíamos de tudo para prender esses criminosos e que por isso me era impossível ajudá-lo, como devem perceber!

— Basta! — gritou Uter.

Agarrou o xerife pelo pescoço e encostou-o contra a parede.

— Se voltas a mentir, mato-te. Entendido?

Tarot piscou os olhos, demasiado aterrorizado para poder articular um som.

— Acho que nos entendemos. Sabemos que Gael veio a Kab-Bag, portanto responde a uma simples pergunta: ele queria mesmo entrar em contato com a Guilda?

O gnomo abriu a boca, mas Uter levantou o dedo a fim de o advertir.

— Pensa bem.

— Eu juro, cavaleiro! Veio aqui por causa da Guilda, só isso!

Os enviados do Grande Conselho olharam-se sombriamente.

O fato de Tarot mentir com todos os dentes ou de ter a lição bem estudada não tinha nenhuma importância. Se o senhor dos elfos dos pântanos se tinha encontrado com os ladrões da cidade baixa, era porque tinha alguma coisa para vender. Alguma coisa de muito valor...

— A cota de malha de prata — murmurou Uter.

Tsimmi pensou com tal intensidade na Espada de Nudd que quase se traiu e contradisse o cavaleiro.

— Que cota de malha? — perguntou o xerife com um ar tão inocente que quase conseguiria enganar uma criança.

O mestre mação agradeceu-lhe com uma pancadinha no ombro, levantou-se com uma careta de dor e afastou-se sem uma palavra. Então, Rogor tinha dito a verdade... Gael tinha roubado mesmo a Espada, ou pelo menos a cota de malha de prata, e depois tinha tentado vendê-la a um dos inúmeros receptadores da Guilda. Talvez já tivesse sido vendida. Talvez até já tivesse mudado várias vezes de dono. Assim, para a encontrarem...

Tsimmi voltou-se e olhou pensativamente o gnomo.

Covarde, mentiroso e ainda por cima mau ator... Mas quem é que o tinha obrigado a representar este papel?

 

Depois de ter saltado de quatro em quatro os degraus da escada que levava aos quartos, o maneta surgiu na sala grande da estalagem e misturou-se imediatamente com a multidão de beberrões.

Miolnir apareceu quase a seguir a ele, vestido unicamente com as bragas e com o seu martelo na mão, piscando os olhos por causa da luminosidade da sala. Pousou quase em seguida a sua arma no chão, desencorajado. Como poderia identificar, entre uma tal multidão, quem havia tentado assassiná-los, ao homem, a ele e à rainha dos altos-elfos?

O assassino tinha-se sentado numa mesa bem próxima e tinha rapidamente tirado o seu casaco cinzento para não ser reconhecido. Quando o anão deu meia volta e regressou ao seu quarto, acompanhado de alguns risos trocistas perante o seu ar furibundo que contrastava tão comicamente com a sua vestimenta noturna, o maneta espreguiçou-se e encomendou uma cerveja.

Ainda não a tinha terminado quando a porta da estalagem se abriu de novo para dar passagem a Freihr, Uter e Tsimmi. Os dois homens e o anão, esgotados e em baixo de forma, atravessaram a sala sem uma palavra e separaram-se debaixo da escada, a alguns passos da mesa ocupada pelo maneta.

— Será preciso prevenir a rainha? — perguntou Uter.

— A esta hora? — disse Tsimmi com um sorriso cansado. — Ela deve estar a dormir; faríamos bem em imitá-la. A noite já vai bem avançada e espera-nos uma jornada difícil.

Uter encarou pela primeira vez esta questão. Durante todo o trajeto de regresso, não tinha pensado em mais nada a não ser na sua cama, ou no arranhão do seu braço, que lhe doía muito, demasiado cansado para conseguir pôr as ideias em ordem (mas é verdade que Freihr tinha trazido Tsimmi às costas, por causa da dor no seu joelho... o anão tinha tido tempo de pensar no dia seguinte).

— Amanhã — explicou o anão, subindo alguns degraus para ficar ao nível dos dois homens — é preciso entrar em contato com a Guilda dos ladrões. Se Tarot falou verdade, é a nossa única pista, não é?

Virou-se para o bárbaro e pousou-lhe a mão sobre o ombro, não descontente de todo de poder dominá-lo, pelo menos uma vez.

— Tu que conheces esta cidade achas que podes encontrar-nos um receptador suficientemente rico para comprar uma cota de malha de prata?

— Sim, sim! — disse Freihr com um grande sorriso. — A melhor é a Senhora Mahault!

— Uma mulher? — admirou-se Uter.

— A melhor! A melhor! Recorri muitas vezes a ela!

Tsimmi riu às gargalhadas nas suas barbas, saudou os dois amigos e subiu para o andar de cima, coxeando.

— Recorres muitas vezes a receptadores, Freihr? — perguntou Uter, colando-se a ele.

— Ah... Por vezes, não muitas... Sabes, às vezes, nas batalhas, recuperam-se...

— O melhor é não me dizeres nada, Freihr. A sério.

Sobre o patamar, Freihr imobilizou-se, e Uter, apesar da penumbra, estremeceu ao distinguir um corpo atravessado no corredor que dava para os quartos. O homem estava esvaído em sangue, cujo longo rastro escuro, já absorvido pelo chão, conduzia até uma porta. A porta da rainha Lliane. Do outro lado do corredor, Tsimmi estava numa grande conversa com Miolnir. Virou-se para o cavaleiro e lançou na sua voz forte:

— Foram atacados!

Uter abriu de rompante a porta da rainha. Parou um instante debaixo da ombreira, com o coração a bater, para que os seus olhos se habituassem à escuridão. O carreiro escuro de sangue estendia-se até ao centro do quarto, onde um charco ainda úmido brilhava sob os raios da Lua.

— Uter?

A rainha tinha-se levantado. Tal como o assassino antes dele, o cavaleiro só conseguiu ver dela o contorno esbelto e azulado do seu ombro e do seu braço.

— Minha rainha! Não tendes nada?

Sem se ter dado conta, ele tinha-se atirado aos pés da cama e segurava a mão fria da elfo.

— Não tendes nada?

— Claro que não — disse Lliane e Uter viu que ela sorria. — Fomos atacados por uns homens, mas nós recebemo-los bem. Foi tudo.

Uter deitou um olhar ao charco de sangue e recordou o cadáver, lá fora, no corredor.

— Fostes vós quem... — Ele interrompeu-se.

— Se fui eu quem o matou? — continuou Lliane. — É claro. E fui eu que o levei lá para fora. Não tinha vontade de passar a noite com ele.

Ela voltou a sorrir, mas Uter sentia-se gelado. O pano de linho tinha deslizado sobre o peito de Lliane e a luz da Lua desenhava nessa altura as curvas dos seus seios. A respiração calma da rainha embalava-os numa doce ondulação, levando por vezes o raio de luz até aos seus mamilos escuros. Não existia mais nada para além das suas respirações contidas e do eco do barulho da rua e da taberna. Uter não ousava mexer os olhos, nem levantar a mão, nem esboçar o menor gesto. O braço doía-lhe, a sua testa suava, sentia-se sujo e fedorento. A rainha, essa, cheirava a erva cortada. Um odor de orvalho matinal.

Ela desprendeu suavemente a mão do cavaleiro e esticou-se sob os lençóis de linho.

— Já não corro perigo — disse ela. — É preciso dormir, cavaleiro.

Uter ergueu a cabeça e levantou-se de um salto, com um ruído ensurdecedor de ferro velho. Ele retirou-se, fechou a porta atrás de si sem se voltar e encostou-se à parede, ao lado do cadáver.

Ela tinha-o matado e depois, tranquilamente, tinha-o puxado para fora e voltado a deitar-se... Seria que ele a vira nua? Com o pé, Uter empurrou o corpo que se abatia no chão.

 

O maneta tinha esperado que eles desaparecessem para sair da estalagem. Um outro homem esperava-o no pátio.

— Então?

— O teu plano falhou, Blade. O elfo e os anões vigiavam-nos, ou então têm os ouvidos mais apurados que os de um gato.

Blade olhou o seu interlocutor com desprezo.

— ...ou então os teus homens são mais barulhentos que uma vara de porcos, Thane de Logres.

O assassino corou de fúria.

— Nunca ninguém falou assim comigo! Eu não tenho de receber lições de ninguém, nem mesmo de ti, Blade de Loth. Dois dos meus homens morreram e não conseguimos recuperar nem uma só moeda de bronze! Paga-me o que me é devido, mais dez moedas de prata por cada homem morto! É a lei da Guilda.

— Tu serás pago, Thane. Mas temos de voltar a fazer tudo de novo. É necessário uma outra ocasião... e eles estão de sobreaviso, infelizmente.

— Possivelmente, ela vai chegar mais depressa do que tu pensas!

Blade levou o mestre assassino para fora do pátio, para o escuro da noite.

— Explica-te.

Thane de Logres sorriu e como resposta estendeu a palma da mão. Blade teve um momento de hesitação e depois foi a sua vez de sorrir.

— De acordo...

Meteu a mão por dentro do casaco até às costas, passando-a por uma fiada de adagas, e retirou uma bolsa presa à cintura, atirando-a ao assassino.

— Eles vão estar amanhã em casa de Mahault, a receptadora — disse ele tomando o peso à bolsa. — Ela mora no centro de Scâth, o bairro das mulheres, dos prazeres e dos ladrões. Em minha casa, se...

— Eu conheço-a — murmurou Blade pensativamente.

— Ali, eu posso reunir quantos homens eu quiser — continuou o assassino. — Ou elfos, se preferires. Ou mesmo kobolds! É tudo uma questão de preço.

— Os teus homens — disse Blade cruzando as mãos sobre as costas, por debaixo do casaco — não passam de cães e tu não és melhor que eles. Não terás nada... Nem mesmo o meu dinheiro.

Thane de Logres abriu os olhos sem compreender. Depois largou a bolsa para desembainhar uma espada curta. Demasiado tarde. Antes mesmo de conseguir tirar a arma do seu casaco já estava morto, com um punhal cravado na garganta...

O maneta esperneou ainda durante alguns segundos caído no chão, coberto de sangue, e depois retesou-se, sempre com a mão esquerda crispada sobre o punho da sua espada.

Blade ficou imóvel, com as têmporas a latejar, fazendo o mínimo de barulho possível. Por fim ajoelhou-se, agarrou a bolsa e retirou da mão do cadáver o anel da Guilda. Era necessário que ele não pudesse ser reconhecido, senão a Guilda não pararia de procurar o seu assassino para fazer justiça. Assim era a lei. Tirar o anel não era suficiente. Era preciso pô-lo irreconhecível. Quem conseguiria reconhecer um cadáver desfigurado, nariz partido, rosto lacerado, o fato em farrapos? Eram tantos os homens que perdiam a vida, à noite, em Kab-Bag. Mais um, menos um... Blade pegou na espada curta e retalhou a cara da sua vítima.

— Sinto muito, Thane — murmurou ele.

No momento em que a espada cortou a carne do rosto, um falcão gerifalte deu um grito, voando por cima dele.

— Vai para o diabo!

Como se obedecesse, a ave de rapina afastou-se com um bater de asas rápido e desapareceu na noite. Voou bem alto, bem por cima da cratera de Kab-Bag, até onde todas as luzes da cidade se apagam e desaparecem na obscuridade. A ave de rapina atravessou as nuvens geladas, deu uma volta e deixou-se cair como uma pedra, embriagada na sua própria velocidade. A alguns metros do solo, começou a voar em círculos, aspirando o ar, e depois dirigiu-se para um bosquete de zimbros.

Till dormia aí com o seu cão, enrolado no seu casaco de catassol, tão escuro quanto a noite. Os seus olhos abriram-se assim que o falcão se imobilizou sobre um ramo acima dele.

O seguidor de pistas dos elfos bocejou, espreguiçou-se e sentou-se. Agarrou com a ponta dos dedos algumas bagas negras de zimbro que lançou para o ar e que a ave apanhou em vôo. Os seus lábios esticaram-se, emitindo um longo assobio modulado, i agudo.

— Então? — perguntou.

— Vi-o — disse o falcão. — Matou outra vez.

 

O novo dia tinha nascido em Loth com a palidez do sol de Inverno. Mas pelo menos não chovia. De bom humor, o senescal Gorlois percorria as muralhas saudando os guardas transidos pelo frio da vigília noturna, debruçando-se de quando em quando sobre as ameias para examinar, na base das muralhas, as liças instaladas nos fossos. Todas as manhãs, os mestres de armas, munidos de grandes paus com chumbo, ensinavam aí a arte da guerra a todos os jovens do reino. Havia arqueiros, equipados com arcos de teixo altos com uns cinco pés, por vezes tão grandes como os novatos que os manipulavam a custo. Com armas destas o exército impunha respeito. Estes arcos eram capazes de atirar, até uma distância de cem toesas [2], várias flechas por minuto, com uma força suficiente para perfurar uma armadura, e os melhores arqueiros estavam seguros de encontrar na armada real um trabalho bem remunerado e pouco cansativo, desde que os seus braços não fraquejassem.

Mais ao longe, os piqueiros treinavam-se incansavelmente a formar fileiras, joelhos em terra e lanças fixadas no chão, para formarem uma muralha dupla ou tripla de pontas afiadas, de altura suficiente para quebrar a carga dos cavaleiros; inúmeros peões com o dorso cingido num corpete de couro cravejado, ao qual chamavam saio e sobre o qual vestiam uma túnica de riscas azul e branca, com as armas do rei Pellehun, exercitavam-se com machados, com maças ou com espadas curtas; depois havia ainda os nobres, escudeiros, cavaleiros e porta-bandeiras, à parte, longe do povo, num campo fechado, ladeado por três tribunas, uma das quais forrada de veludo vermelho, reservada ao rei e à corte.

Todo um exército que se preparava para a guerra...

Pellehun estava lá, vestido com uma couraça dura, esgrimindo um pau contra um dos bravos, que Gorlois não reconheceu logo devido à distância. Deixou as muralhas e desceu rapidamente.

Quando penetrou na arena, o rei tinha parado de lutar e matava a sua sede, encostado à liça de madeira que cercava o campo, enquanto montavam um quintenário para treinarem a lança. Gorlois sorriu ao ver que tinham vestido o enorme manequim com um elmo e um grande escudo gobelin, despojos de guerras antigas. Enquanto um cavaleiro, já montado em cima da sua sela, se impacientava por mostrar a sua valentia ao rei, dois pajens de armas fixavam o boneco numa estaca colocada no meio da liça e verificavam se ele rodava bem em volta do seu eixo. O braço direito do manequim estava equipado com um malho de armas sem lança, uma simples bola de aço pendurada numa corrente, mas suficiente para atordoar os desastrados.

O senescal avançou até ao rei e saudou-o com uma inclinação de cabeça.

— Espera — disse Pellehun.

Com um gesto, fez sinal ao cavaleiro. Aquele bateu com as esporas, a espada contra o corpo, e lançou o cavalo em galope contra o manequim, visando o centro do escudo. Bateu em falso e o quintenário balançou brutalmente, desferindo-lhe um golpe de maça que lhe arrancou um grito de dor e quase o derrubou do seu cavalo.

Pellehun desatou a rir.

— Desajeitado! Queres mostrar-lhe, Gorlois?

— Noutra altura — disse o senescal. — Preciso de falar convosco.

O rei pousou o seu copo em equilíbrio sobre a liça e levou o seu velho amigo para a tribuna. Sentaram-se na primeira fila, vigiando pelo canto do olho a segunda tentativa do cavaleiro. Cada um tinha o direito de tentar cinco vezes a sua sorte, daí o nome dado ao boneco.

— Então?

— Esta manhã, um pajem trouxe o corpo de Roderic.

Pellehun voltou-se para o senescal.

— Morto? Já?

Gorlois confirmou, piscando o seu único olho válido.

— E Uter?

— Manda dizer-vos que continua a caminho de Kab-Bag.

— Evidentemente... Quem o matou?

Gorlois não respondeu. Na liça, o cavaleiro tinha acabado de bater corretamente no quintenário, arrancando o manequim da estaca com um estrondo dos diabos.

— Ele não é muito mau — murmurou, acariciando a longa cicatriz que lhe marcava o rosto. — Deveríeis observá-lo.

— Quem matou Roderic, Gorlois? — repetiu o rei. — Foi o teu homem?

— Que sei eu? É possível... Ou malfeitores, um bando que estivesse de passagem.

Pellehun bateu com a palma da mão no parapeito de madeira.

— Não estou a gostar disto! Mesmo nada!

— Eu também não. No entanto, sabíamos que isto poderia acontecer. Foi por isso que escolhemos dois novatos.

Com um gesto negligente, apontou o grupo de bravos que, de cabeça destapada, brincavam ou encorajavam o cavaleiro montado na sua sela.

— Se não fosse assim, teríamos tido de enviar Ulfin, ou então Romondo. Mas esses seriam bem capazes de conseguir e de nos trazerem o elfo. Já imaginou?

— Sim...

— Aliás — insistiu o senescal —, recordo-lhe que me pediu para nomear Roderic e Uter... Em especial Uter, por causa da rainha Ygraine e do que...

— Bom! Está bem!

Nervosamente, o rei levantou-se e saiu do recinto.

— Tenho frio e cheiro a suor. Preciso de um banho. Vai ter comigo às estufas.

Dois bravos com armaduras precipitaram-se para lhe abrir a porta da liça e escoltá-lo, espadas na mão, mas ele virou-se, voltou atrás e debruçou-se sobre o ouvido do senescal.

— Quero notícias do teu homem. E rápido!

— Ele vai dá-las, logo que possível. Sabe o que arrisca se falhar.

Pellehun respirou fundo e levantou-se. Sorriu e saudou com um gesto o cavaleiro que vinha alinhar para o seu terceiro assalto.

— Muito bem! — gritou com uma voz severa. — Bate com força e no coração!

O homem atacou como um touro em fúria. Demasiado rápido. Sem controlar o cavalo, que se espantou, assustado com o manequim. Contudo, ele quis bater e a espada espetou-se no escudo gobelin, partindo-se de imediato. Desta vez a bola de aço voou e bateu-lhe na cabeça. Caiu por terra como um saco de roupa suja, inanimado.

— Vês, eu tinha razão — disse Pellehun, abanando a cabeça.

— Ele não vale nada. Manda-o de volta para os peões. Que comande uma esquadra, isso já será bom...

O velho rei suspirou novamente e ficou um longo momento em silêncio, apoiado no parapeito.

— E o pajem? O que regressou com o corpo de Roderic? disse por fim, sem olhar para Gorlois. — Ele não pode falar...

— Mandei estrangulá-lo.

 

No subsolo das entranhas de Kab-Bag, Scâth — o país da sombra — parecia mergulhado dia e noite na mesma claridade obscura, tão longe ficava o céu e de tal forma a luz dos cotos de vela, das velas de sebo, archotes e lamparinas de azeite prevalecia sobre a do Sol. Durante o Inverno, Scâth exalava um odor de tempestade, úmido e pesado, e, no Verão, os bairros baixos tornavam-se uma fornalha. Não eram mais de algumas ruas (se assim se pode chamar a um alinhamento indeciso de casotas de argamassa, de tábuas e de telhados que surgiam e desapareciam de um dia para o outro), mas os limites do bairro eram conhecidos e respeitados por todos os habitantes de Kab-Bag, e sobretudo pela milícia dos gnomos.

Scâth era o território reservado à Guilda, um santuário guardado por centenas de assassinos invisíveis, um exército inteiro de malfeitores, prontos a cortar a garganta de intrusos suficientemente loucos para virem perder-se sem escolta nesse labirinto. A maioria das cidades do reino possuíam cursos de milagres semelhantes, mas ao país da sombra, pelo fato da liberdade que reinava na cidade dos gnomos, não havia nenhuma que chegasse perto. Era aí que os ladrões, piratas e malfeitores dos quatro ventos vinham esconder o seu ouro, protegidos pela lei da Guilda, nestes casebres miseráveis, mal equilibrados sobre as suas fundações e decorados como palácios, transbordando de veludos e peles de veiro, de armas preciosas e de cofres de pérolas. Havia em profusão vinho, cerveja e iguarias das mais ricas, bem como prostitutas de todo o mundo, desde que lhes pagassem o seu preço: esguias elfos do Havre que enrolavam as pernas nuas ao pescoço dos amantes, lascivas raparigas do Sul de cabelos negros, louras de pele diáfana e ancas largas, anãs de seios duros como madeira, gnomos pintalgadas e ridículas... Cortesãs dignas de um príncipe abandonavam-se em palácios de seda, embriagando os seus amantes afortunados com perfumes raros e vinhos caros, velhas mendigas estendiam-se pelo chão por um copo de hidromel, eunucos maquilhados massajavam longamente burgueses excitados e envergonhados nas salas dos fundos das estufas, ao abrigo de longos cortinados de linho... Em parte alguma, aliás, se encontrava uma tal gama de prazeres.

Aqui, os portadores de um anel com a runa de Beorn não arriscavam nada. Pois a Guilda punia com a mais atroz das mortes um roubo ou assassinato de um dos membros da confraria. E de fato todos aí estavam bem. Apesar do mau cheiro e do calor úmido que exalava deste buraco na terra, lamacento durante o Inverno, cheio de poeira durante o Verão, apesar da multidão que se comprimia sem cessar, os assassinos com as mãos encarnadas, os ladrões carregados com os seus furtos vinham procurar ali o mais rico dos tesouros: a paz de uma noite bem passada.

Os enviados do Grande Conselho tinham parado à entrada do bairro, ou pelo menos daquilo que Freihr lhes disse ser tal coisa: uma simples viga enterrada no chão com ornamentos de damasco, que formavam uma árvore de três ramos, a runa de Beorn, emblema da Guilda. Ele tinha partido sozinho à procura de um guia que os levasse até à receptadora Mahault. A tropa tinha deixado cedo a estalagem e todos tinham dormido pouco (exceto Rogor, que, na cavalariça, tinha ficado de fora de todos os dramas da noite e tinha roncado como um porco). Circulava já o rumor de que a milícia dos gnomos os procurava para os expulsar, e eles não tinham vontade nenhuma de verificar se era verdade...

Tinham escondido os cavalos debaixo de um alpendre e saído do meio da ruela, longe da passagem e da multidão. Tsimmi, com as pernas ainda doridas, tinha-se sentado no chão e fumava, com caretas enojadas, uma mistura que espalhava à sua volta um cheiro de veneno, mas que, segundo ele, tinha o poder de curar as dores dos ossos. Mesmo Rogor e Miolnir, que, à parte, comentavam os acontecimentos da noite e mantinham os cavalos debaixo de olho, sentiam-se incomodados.

A rainha Lliane tinha fechado os olhos e parecia dormir, ereta como uma estaca, envolta na sua capa de catassol. Uter, é claro, contemplava-a. Ela tinha desfeito a sua trança e os seus cabelos negros enfeitavam livremente o seu rosto, acentuando a palidez da sua pele azulada. A sua calma, a sua imobilidade, essa palidez, davam-lhe um ar de morta, e o cavaleiro lutava para não a sacudir.

— Ela agrada-te, a bonita rainha?

Uter deu um salto e, apanhado de surpresa, bateu com a fronte contra a viga baixa de uma loja.

— Freihr! Sabes, tu és realmente...

Ele não terminou a frase, em parte para não ferir o bárbaro que soltava o seu riso tonto, feliz com a brincadeira, e também porque a rainha tinha aberto os olhos e olhava para ele com aquele pequeno sorriso que ele não conseguia definir.

— Então? — perguntou ele asperamente. — Estamos à espera há duas horas! Encontraste a tua Mahault?

Freihr ergueu a cabeça, sorrindo com ar de desafio à companhia que se reagrupava em volta dele.

— Ela quer encontrar-se convosco, mas com um só — disse o bárbaro.

— Que é isso de um só? — disse Tsimmi. — Ela só quer encontrar-se com um de nós, é isso?

— E comigo, é claro! — disse Freihr continuando a sorrir.

— Porquê? — perguntou Uter. — Ela desconfia de nós?

Freihr desatou às gargalhadas.

— É claro que desconfia de vocês! É uma receptadora!

— Bom — disse ele. — Quem é que vai?

— Vós.

O cavaleiro olhou para a rainha. Ela enviou-lhe um breve sorriso e depois virou-se para os anões.

— Não é verdade?

Miolnir e Rogor procuraram o consentimento de Tsimmi, o qual levantou a cabeça sem olhar para eles. Uter, o “Moreno”, era o único em quem os elfos e os anões podiam confiar. Ele piscou o olho em direção ao cavaleiro e depois voltou a sentar-se com o cachimbo na boca. Miolnir encolheu os ombros e cruzou os seus braços nodosos por cima do machado preso à sua cintura. Esperar, não faziam mais do que isso ao serviço do rei Baldwin. Portanto, ele estava habituado.

Lliane veio sentar-se ao lado de Tsimmi, que esvaziou o cachimbo e raspou o fundo com a unha do polegar antes de o guardar cheio de precaução no fundo de um dos seus numerosos alforges.

— Posso fazer-vos uma pergunta, minha rainha? — disse o anão com uma voz tímida, sem olhar para ela.

— É claro...

O anão hesitou mais uma vez e alisou pensativamente a sua barba ruiva.

— Aquele truque, com a moeda... Podeis ensinar-me?

Surpreendida, Lliane sorriu-lhe. Perante o ar sério dele, ela adotou uma expressão grave e estendeu-lhe a mão aberta.

— Dê-me uma moeda de prata...

A alguns metros dali, Rogor abanou a cabeça irritado. Por vezes o velho Tsimmi não parecia ter mais cabeça que um anãozinho pequeno... Afastou-se com um suspiro desgostoso e dirigiu a sua atenção para os dois homens que se embrenhavam nas ruelas de Scâth, indiferentes às pegas seminuas que se penduravam neles ou que os chamavam do alto das suas varandas de madeira esculpidas com figuras obscenas. Parou ao pé do poste que marcava o limite, erguendo-se em bicos de pés para melhor os seguir com os olhos.

— Em breve — murmurou tocando no seu machado de ferro por debaixo da sua túnica. — Em breve...

Mesmo muito jovem, Mahault já devia ser feia, e com a idade não tinha ficado melhor. O calor e a umidade dos bairros baixos, aliados à falta de sol, exercício, água pura e legumes frescos, tinham-lhe dado a aparência de um batráquio. Inchada, redonda, flácida e pálida, enrolada num vestido de seda raiada, ornado nos punhos e na gola com martas zibelinas lustrosas e negras como a noite, ela disfarçava a sua calvície com um gorro de lã de onde saíam algumas mechas de cabelo.

A receptadora estendeu a Uter uma mão cheia de anéis e pulseiras, e o cavaleiro inclinou-se cobiçando a maior esmeralda que alguma vez tinha visto, sem notar que ela trazia no dedo anelar o anel da Guilda.

Mahault habitava numa torre, uma das raras construções de pedra de Scâth, que dominava de um piso os andaimes bambos da cidade dos ladrões. A atmosfera da habitação não era, contudo, mais respirável. A velha senhora estava sempre com frio e mantinha todo o ano em volta dela braseiros onde deitava incenso. O calor e o perfume eram tão pesados que as paredes escorriam água e os cortinados estavam manchados de grandes auréolas de bolor.

Uter endireitou-se e recuou um passo, respeitosamente. Estava enjoado e sentia as gotas de suor a escorrerem-lhe pelas costas, debaixo da maldita armadura de placas.

— Obrigado por nos receber, minha senhora.

— Uma senhora?

Mahault rebentou a rir, com um riso de assobio asmático. Que idade poderia ter ela? A gordura rejuvenescia-a, alisando-lhe as rugas, e, no entanto, ela parecia tão velha!

— Eu não sou uma senhora, meu amorzinho — disse ela abanando a mão cheia de anéis, como que para afastar essa ideia grotesca.

Uter deitou um olhar de lado a Freihr. O corpo brilhante à luz das brasas, o bárbaro tinha-se plantado atrás dele, com a impassibilidade de uma estátua, imenso e tranquilizador. Depois, varreu com o olhar o resto da assembléia. Havia uma dezena de homens e mulheres, sem contar com um grupo de crianças quase nuas, sentados aos pés do trono de Mahault, enfezados, os olhos baixos, indiferentes, resignados. Escravos.

— Freihr disse-me o que tu querias e eu decidi ajudar-te — disse ela. — Bem, bem...

Ela fez de novo um gesto fatalista com a mão.

— De qualquer modo, eu nunca gostei dos elfos... Demasiado magros. E depois (ela estremeceu), eles metem-me medo.

A imagem da rainha passou fugazmente diante dos olhos de Uter.

— Gael veio ver-me, é verdade — continuou Mahault. — Aliás, não foi a primeira vez...

— Tinha alguma coisa para vender-te? — perguntou Uter.

— Claro que sim! Todos os que vêm ver-me têm alguma coisa para vender... Para vender ou para comprar. É a mesma coisa... Ouro, jóias, tesouros de dar vômitos. Mas atenção! Vejo só aquilo que quero! Este é o mais belo, aquele o mais fabuloso... Que é que eles julgam, todos esses novatos? Eu já vi muito, sabes, eu já vi muito. E, de cada vez, isto vale pelo menos aquilo, isto vale o dobro, é uma peça única, e quase que deixo lá a minha pele! Que diferença é que isso me pode fazer, ha?

Ela agitou-se no seu trono e estendeu a mão por trás dela. Um jovem, nu até à cintura com um pano negro enrolado em volta dela, pousou nos dedos da velha receptadora um prato de rebuçados, com um sorriso e uma careta perfeitamente repugnantes. Ela tirou um punhado deles, que pousou sobre as pregas do vestido de seda, entre as coxas, e escolheu cuidadosamente antes de pegar num rebuçado dourado, que começou a chupar com ar de êxtase.

— Ha? Que diferença é que isso pode fazer-me?

Uter abanou a cabeça um pouco perdido. O sangue latejava-lhe nas têmporas, estava aturdido pelos vapores de incenso e tinha perdido o fio à meada.

— Uma cota de malha — disse ela.

— O quê?

— Mas, atenção, uma cota de malha de prata. Uma cota de malha fabricada pelos anões da Montanha. Já viste alguma, meu lindo?

Uter abanou a cabeça

— Espera. Vais ver...

Ela virou-se para o outro lado e estalou os dedos. Um homem vestido de cinzento, de olhar sombrio e brilhante, avançou para Uter e mostrou-lhe um lenço de seda vermelha que abriu cuidadosamente, como pétalas de uma flor, até que elas mostraram, ao centro, um fragmento cintilante do que poderia ser um simples tecido. Uter comprovou a sua consistência com as pontas dos dedos. A prata entrançada era tão leve quanto a lã, mas parecia dura como o aço.

— Não se vê disto todos os dias, sabes — disse Mahault, com um olhar guloso. — Até mesmo eu... E, contudo, já vimos de tudo por aqui! De tudo, de tudo, de tudo... Então, bom, eu disse que estava de acordo!

Uter concentrou-se de novo na velha. Doía-lhe a cabeça, os olhos ardiam-lhe, a sua cara estava brilhante e sentia-se a fritar, como se toda a sua armadura estivesse ao rubro. Ela continuava a tagarelar, numa voz gutural, que passava de uma sinistra caricatura de sotaques mundanos aos gorgolejos repugnantes, embriagando-se com as suas palavras.

Uter percebeu que ela estava louca, sem dúvida há já muito tempo, pobre rainha prisioneira reinando sobre algumas toesas da sua torre superaquecida, sentada sobre todo o ouro do mundo, com os seus escravos, os seus queridos, os seus rebuçados e o seu incenso. Uma tristeza de dar dó.

— Comprou a cota de malha de prata a Gael? — perguntou ele.

— Nããooo... Demasiado cara! Esse maldito bastardo só me deixou este miserável pedaço, para me fazer inveja! Mas agora é diferente, ha, meu queridinho?

— Sim... Não... Não sei. Porquê?

A velha desatou num riso surdo em assobio.

— Porque és tu quem vai comprar-ma!

O homem de vestes cinzentas retirou o fragmento das mãos de Uter e, com cuidado, tornou a embrulhá-lo no lenço de seda. O cavaleiro olhou para ele com hostilidade. De cabelo castanho e curto — contrariamente à moda no palácio de Loth —, a tez cinzenta e a silhueta atarracada, era um ser feito para se confundir na multidão, para passar despercebido. Somente os seus olhos negros brilhavam e a horrível cicatriz que lhe marcava a garganta revelava a sua verdadeira natureza: o homem era um ladrão ou um assassino. Mas de que outra coisa se estava à espera em Scâth?

— Este é Blade — disse Mahault. — Um ladrão, é claro. Um malandro. Mas é preciso confiar nele, sim, sim, sim... Ele vai explicar-te, meu lindo!

Uter percebeu uma breve luminosidade maligna nos olhos do ladrão, rapidamente substituída por uma mímica obsequiosa.

— Sei onde está Gael — disse ele. — E posso levar-te até ele. Portanto, o que Mahault te propõe...

Ele interrompeu-se para saudar cerimoniosamente a velha receptadora, a qual lhe fez sinal para que continuasse, com os olhos brilhantes de avidez.

— ...é ofereceres-lhe a cota de malha em troca da nossa ajuda — continuou Blade.

Uter olhou para ele de tal maneira que o ladrão percebeu que tinha de ser mais explícito.

— Levo-te até Gael sob pretexto de lhe comprares a cota de malha. Digo-lhe que Mahault encontrou um comprador, e dou-lhe o dinheiro... o teu dinheiro. Tu deixas-me comprar a cota de malha e deixas-me partir. Depois fazes dele o que quiseres.

— Mas... Eu não tenho ouro! — disse Uter

— Oh! Não tem ouro — coaxou Mahault do alto do seu trono.

— Não tem ouro, não tem ouro, pobre cavaleirozinho. Não tem ouro, a bela rainha Lliane, não têm ouro, os pequenos anões, nos cavalos de albarda, não têm jóias, não têm colares, nada, nada! Não têm ouro, no Grande Conselho! Pobre rei Pellehun... — Ela interrompeu-se bruscamente e mudou de tom. — Estás a ver, nós sabemos quem tu és, Uter, o “Moreno”.

O cavaleiro estremeceu. De repente, o olhar e a voz da velha Mahault tinham perdido o ar louco.

— O que tu queres de Gael não me interessa. Mas, para o encontrares, não tens escolha: alinhas com a velha Mahault... E eu o que preciso é da cota de malha. Paga com o ouro do rei. Isso vai dar-me prazer... Queres, pequenito?

— Eu não sou...

— Chega! — disse Blade ao lado dele. — Poderás recuperar o teu dinheiro depois do golpe, já que vais prender Gael. Não é verdade, meu senhor?

— Ah! É verdade! — desatou a rir Mahault. — Eis um belo negócio de lorpas! Sim, sim! De fato, não vai custar-te nada, belo senhor! Para ti, o elfo, para Mahault, a cota de malha! A cota de malha dos anões sob a Montanha!

Outros risos fizeram eco ao seu terrível cacarejo. Uter tentou reflectir friamente. Mas que outra solução para encontrar o elfo cinzento? Freihr, sempre imóvel, não o ajudou em nada.

— De acordo — disse ele. — Aceito.

Inclinou-se perante Mahault e voltou-se para Blade, que o observava com um sorriso servil.

— Estejam daqui a duas horas à saída da cidade — disse o ladrão. — Levem os cavalos e os víveres. Vai ser preciso cavalgar para o norte, até aos pântanos, até às Fronteiras... Até às Terras Gastas.

Blade espreitou a sua reação com um sorriso superior, como se esperasse que Uter manifestasse o terror comum aos homens do lago com a simples evocação das Terras Negras. Fê-lo para argumentar despesas.

Uter contentou-se em concordar com um aceno de cabeça e saiu do quarto com Freihr no seu encalço.

Lá fora, o ar tépido e adocicado da rua revigorou-o como um duche gelado.

Tinha nevado durante a noite e o frio apossou-se dos enviados do Grande Conselho quando eles deixaram Kab-Bag. Tinham-se sentado em círculo em volta de um fogo de gravetos, absorvidos pelos seus pensamentos. Uter e o bárbaro tinham confirmado a narrativa do rei Baldwin. Assim, Gael tinha mesmo roubado a cota de malha de prata. Mais ninguém, nem mesmo a rainha Lliane, nem Till, o seguidor de pistas, duvidavam que ele tivesse também matado o rei Troin. O menos estupefato de todos era sem dúvida Rogor, que já tinha formado a sua opinião há muito tempo e que não necessitava que lhe provassem a culpabilidade do elfo cinzento. Quando muito, ele não ressentia mais que a irritação, nesse quarto dia de jornada, por ter de representar o seu papel de criado e de calar-se, ainda e sempre, durante os conciliábulos do grupo.

De momento, cada um comia em silêncio pão e presunto cortado do osso, e essa silenciosa refeição não lhes levantava o moral. Os três anões, congelados, mantinham-se encostados uns aos outros, com aquele ar carrancudo que lhes era natural. Tsimmi, de quem não se via mais que a barba ruiva debaixo do capuz verde do casaco que o cobria, sentia-se triste. A noite em Kab-Bag não havia tido nada de engraçado e as suas pernas sofriam ainda com os golpes recebidos em casa do xerife. Tinha-se tornado amigo de Uter e mesmo desse traste do Freihr, e tinha a sensação de estar a traí-los ao calar-se. Naquele momento, tinha preferido que Rogor se desmascarasse, que soltasse a sua raiva; no entanto, o herdeiro do trono de Troin tinha continuado senhor de si.

— Qual é a sua opinião, mestre Tsimmi? — perguntou a rainha Lliane, tirando-o bruscamente dos seus pensamentos.

O mestre mação sacudiu-se, balbuciou algumas palavras, não fazendo a menor ideia do que lhe perguntavam. Felizmente, foi rapidamente salvo pelo riso de Miolnir.

— Para quê continuar a falar! — resmungou o cavaleiro anão levantando-se e puxando para trás a capa sobre os ombros. — Não viemos buscar Gael? Pois bem, já sabemos onde encontrá-lo! Voltou para casa, para esses horríveis pântanos nojentos! Era de prever, apesar de tudo! Quem o encontraria aí? E então, que é que se passa? Estão com medo?

Tirou o seu elmo, desgrenhou os cabelos e depois desafiou com o olhar a assembléia, parando sobre a rainha dos altos-elfos o seu olhar malévolo.

— ...ou talvez já não tenham tanta vontade de ir até o fim e de fazer justiça?

— Ninguém tem medo — interveio Tsimmi, conciliador. — Mas nem sequer sabemos se Gael está nos pântanos. Esse tal Blade falou nas Fronteiras e nas Terras Negras...

Ele tinha levantado a cabeça em direção a Uter, solicitando apoio.

— É verdade — disse este último, pousando a sua escudela.

— É como se...

Ele deteve-se, incomodado com a presença da rainha e de Till, o seguidor de pistas, que, com um olhar, compreendeu aquilo que ele tinha em mente.

— É como se o Sr. Gael estivesse ao serviço d’Aquele-Que-Não-Pode-Ser-Nomeado, não é verdade? Pois bem, diga-o!

O tom mordaz de Till fustigou Uter.

— E por que não? — retorquiu secamente. — O teu “senhor”, como tu dizes, matou o rei Troin e roubou uma preciosa cota de malha que foi tentar vender aos seus amigos receptadores de Kab-Bag! Não entendeste? É um ladrão! Um ladrão e um assassino! Portanto, sim, e por que não, eu digo que ele pode estar ao serviço das Terras Negras!

Uter tinha-se levantado, dominando com a sua estatura o magro elfo cujos olhos brilhavam com maldade.

— Gael e eu combatemos o Inominável lado a lado nos pântanos quando tu ainda não passavas de um garoto de fraldas, homem! — murmurou o elfo numa voz velada. — Quem és tu para ousares falar das Terras Negras?

— Basta, Till...

A rainha tinha-se levantado, ainda mais pálida que o normal. O vento gelado do Inverno fazia voar a sua capa de catassol e os seus longos cabelos negros. A própria túnica esvoaçava ao vento, mostrando por cima das suas botas de camurça a pele azulada das suas coxas. Uter, que depois da estufa de Scâth gelava dentro da sua armadura, reparou que ela mal estava vestida e que parecia não sentir o frio.

— O Mal, cavaleiro, não reside apenas nas Terras Negras. Está dentro de nós, em cada um dos nossos povos, como se a guerra nos tivesse contaminado a todos. Sabe que existem homens ladrões, assassinos e violadores e vocês não se espantam. Ora, o mesmo se passa entre nós. Os elfos não são nem seres perfeitos nem monstros sedentos de sangue, como se lê nas vossas histórias para crianças. Os elfos são um povo, com a sua gente boa e má, como no vosso povo. E como no povo anão, não é verdade?

Miolnir encolheu os ombros, mas Tsimmi concordou com a rainha com um aceno de cabeça.

— Portanto, sim, Gael matou, roubou... Isso não significa que todos os elfos sejam ladrões e assassinos. E depois, não sabemos aquilo que se passou. Nenhum de nós... Talvez ele tenha agido por sua conta, talvez pelo engodo do ganho, talvez para se defender, talvez mesmo por ordem do Inominável... Sabê-lo-emos quando o encontrarmos e o deixarmos explicar-se.

— Claro! — resmungou Miolnir. — Vou gostar muito de ouvir a explicação!

— No entanto, Sr. Miolnir, o Mal não é a regra comum, nem entre os elfos, nem entre os anões, nem entre nenhum dos Povos Livres!

Ela tinha falado com uma voz forte, ressonante, que os obrigou a todos a calarem-se e a olharem para ela. Tsimmi perguntava-se se ela teria usado algum sortilégio, ou se esta voz desconhecida lhe era natural.

— Iremos aos pântanos — continuou ela sentando-se e fechando o seu casaco em volta de si. — Encontraremos Gael, custe o que custar. E não o faremos nem pela honra dos elfos nem pela memória do rei sob a Montanha Negra...

Rogor cerrou os dentes ao ouvir estas palavras.

— Fá-lo-emos para fazer justiça e preservar a paz. E, se necessário, iremos até ao país de Gorre, até às Terras Negras.

Tsimmi abanou a cabeça. Penetrar nos pântanos era já, para um anão, uma loucura suicida. Os elfos cinzentos tinham-lhes um ódio absoluto (e sem dúvida justificado), desde a época em que os guerreiros anões, antes da Guerra dos Dez Anos, se divertiam a caçá-los através das colinas e até nos seus pântanos. Mas se era realmente necessário atravessar as Fronteiras e aventurarem-se nas Terras Negras... O anão varreu com o olhar a fraca companhia. Não eram mais de um punhado. Que peso teriam face às legiões de gobelins?

— É uma loucura — murmurou para com a sua barba. — Poucos entre nós voltarão... Loucura, loucura...

Erguendo a cabeça para sublinhar as suas palavras, abandonou o círculo, de mãos cruzadas sobre as costas, e caminhou até ao pequeno outeiro de onde podia ver-se o gigantesco buraco que formava a cidade de Kab-Bag.

A neve só tinha pegado em poucos lugares e o campo apresentava uniformemente um aspecto sujo e triste, deserto e plano como uma mão.

Um pesado silêncio tinha caído sobre o grupo. O anão tinha razão. Era uma loucura e alguns deles perderiam talvez a vida. Mas a rainha também tinha razão. Renunciar a perseguir Gael, voltar a Loth de mãos a abanar, seria ainda mais grave. Ninguém poderia provar jamais a inocência do elfo dos pântanos, nem a sua culpabilidade, e o assassínio do rei Troin ficaria por explicar e impune. Até que os anões sob a Montanha decidissem fazer justiça pelas suas próprias mãos. E sabia-se o que isso significava.

— Ei!

Todos se voltaram para Tsimmi, que agitava a mão em direção à cidade.

— Ei-lo! Acho que é o nosso homem!

 

Depois da partida de Uter e do bárbaro, Mahault tinha dispensado a sua corte para estudar cara a cara com Blade os detalhes da expedição. O mestre ladrão, de seu próprio testemunho, nunca tinha posto os pés nos pântanos, e não lhe seria fácil guiar os enviados do Grande Conselho até ao esconderijo de Gael. Tanto mais que Blade, excitado com o seu plano, mal escutava as explicações e conselhos da velha senhora.

— Mestre Blade, por favor, escute-me! — repetiu ela pela décima vez.

O ladrão ergueu a cabeça distraidamente, em frente de uma das poucas janelas da sala, cujos pequenos quadrados de vidro amarelo de má qualidade davam a esta divisão uma luminosidade fosca. Perdido nos seus pensamentos, deixou de novo o seu olhar vaguear pela agitação da rua, a qual ele não conseguia ver com clareza devido aos vidros. Depois, Blade levantou os olhos para o céu, ou, pelo menos, para o vago retângulo assim chamado. O dia já ia alto. Não tinham mais de algumas horas de cavalgada antes de cair a noite, mas no dia seguinte, ao meio-dia, teriam chegado às Fronteiras.

Até aqui, Blade não tinha feito mais que obedecer cegamente ao senescal portador do anel de ouro da Guilda, tal como obedecia à velha Mahault, sem fazer perguntas. Aliás, não tinha tido outra escolha senão obedecer a ordens: juntar-se à companhia, de uma maneira ou de outra, e utilizar todo o seu poder na Guilda para encontrar Gael antes deles. E matá-lo.

Mas nada o impedia de realizar ao mesmo tempo um belo golpe. Que é que tinha a perder, a partir do momento em que a sua missão estivesse cumprida?

Blade sorriu ao pensar no preço exorbitante que o elfo cinzento tinha exigido pela cota de malha fabricada em Ghâzar-Run: cem moedas de ouro. Uma fortuna. O suficiente para recomeçar a vida num outro reino qualquer, longe de tudo, e viver como um senhor. Depois, se ele se saísse bem lá nos pântanos, por que é que não haveria de conseguir dar um golpe duplo, guardar o ouro e trazer a cota de malha?

Ele desatou num riso seco que fez sobressaltar Mahault. Ela olhou-o com um misto de suspeita e crença. Seria necessário dividir com ela? Sem dúvida. Era a lei da Guilda. Mas não tinha ele acabado de infringir uma das suas leis mais sagradas ao tirar a vida a Thane de Logres?

— Está tudo pronto? — perguntou ele com um sorriso tão franco quanto possível nos lábios.

— Já dei as ordens — disse a velha. — Em breve terás o teu cavalo, os teus víveres e as tuas armas. Virão avisar-nos.

— Muito bem. Agora faz-me um último favor. Sabes escrever?

Mahault encolheu os ombros. Por quem é que ele a tomava, este jovenzito? É claro que ela sabia escrever, era indispensável na sua profissão. E ela falava dez línguas, entre as quais a tagarelice dos gnomos e o rosnar imundo da língua dos gobelins.

— Então farás chegar uma mensagem ao nosso mestre, com o selo de Beorn.

— Aonde?

— Não precisas de saber. Na minha bagagem há três pombos-correio. Utiliza-os, que eles saberão encontrá-lo. Não omitas nenhum detalhe. Diz-lhe que estarei de volta dentro de uma semana, dez dias o mais tardar, e que as suas ordens terão sido executadas.

Tentou novamente afivelar um sorriso confiante.

— Passarei por aqui no meu regresso. Repartiremos entre nós. É a lei.

— É a lei — disse Mahault.

 

Já passava do meio-dia, mas as brumas que vinham do pântano obscureciam a tal ponto a paisagem que os enviados do Grande Conselho não viam mais que alguns metros diante deles. Todos se sentiam cansados, transidos até aos ossos (exceto os elfos, para quem o frio não tinha grande importância) e de mau humor. Tinham deixado Loth há cinco dias, para o que aparentava ser uma simples cavalgada, e sobre cada um deles pesava o sentimento doloroso da sua situação: estavam tão pouco preparados para se aventurarem no pântano, conduzidos por um guia com um saco e uma corda que podia muito bem atirá-los para um lugar perigoso. Blade cavalgava à frente, arrependendo-se já de não ter prestado atenção às indicações da velha Mahault. Felizmente para ele, o único caminho de pedra da região conduzia ao embarcadouro e à casa do barqueiro.

À volta do caminho, a erva era rara e quase todas as árvores estavam mortas, meio enterradas sob um inextricável matagal de moitas espinhosas. Cada membro da companhia estava por sua vez rabugento e tenso. A própria região parecia estar a avisá-los daquilo que os esperava do outro lado do pântano, nas Terras Negras. Alguém espirrou ruidosamente — um anão, sem dúvida, dada a força do espirro — e Uter deu uma gargalhada um pouco forçada. Depois o silêncio tombou sobre a companhia, cortado de tempos a tempos pelo grasnar rouco de um corvo ou pelo relinchar de um cavalo.

— Alto! — ordenou Freihr em voz baixa, que seguia logo atrás do ladrão, levando o seu cavalo pelas rédeas.

A algumas toesas, um casebre em ruínas acabava de surgir bruscamente entre o nevoeiro.

— É a cabana do barqueiro? — perguntou Lliane aproximando-se de Blade.

O ladrão abanou a cabeça à guisa de resposta.

— Fiquem aqui — disse ele. — É melhor eu ir falar com ele sozinho. Muita gente só servirá para o assustar...

Sem esperar mais, pôs os pés em terra e dirigiu-se para a cabana no seu passo ágil. A bruma engoliu-o rapidamente e não se via mais que a sua silhueta vaga. Os golpes que deu na porta da cabana ressoaram no silêncio angustiante das margens do pântano. Respondeu-lhe o ladrar de um cão, e depois ouviu-se uma voz gritante que fez calar o animal.

— Quem está aí? — perguntou a voz de um gnomo.

— É Mahault quem me envia! Mahault de Kab-Bag! Abra, mestre Oisin! Queremos passar os pântanos. Pagaremos em ouro...

O gnomo calou-se, mas depois de alguns segundos a porta abriu-se, rangendo. De novo, o cão ladrou.

— Paz! — gritou o barqueiro.

— Eu te saúdo, Oisin.

O gnomo divisou o homem de cabelos castanhos curtos com vestes cinzentas que se encontrava em frente da porta dele. Oisin, como todos os gnomos, tinha um rosto enrugado de cor avermelhada, mas, ao contrário dos seus congêneres, estava vestido de farrapos e peles que não obedeciam a nenhuma norma de conforto e que não se coadunavam com o conceito de elegância tão particular neles.

— Já passou alguma vez os pântanos? — perguntou por fim. Blade abanou a cabeça em silêncio, afivelando um sorriso afável. Depois voltou-se para os outros e fez-lhes sinal para avançarem.

— Não estou sozinho, mestre Oisin — disse calmamente.

O gnomo piscou os olhos e meteu a cabeça de fora para tentar identificar as formas que emergiam pouco a pouco do nevoeiro.

— Elfos... — murmurou ele, estremecendo. Blade agarrou-o amigavelmente pelo ombro.

— Vamos para... (Ele precisou de ler o pergaminho de Mahault para decifrar o nome e teve dificuldade em o pronunciar) ... vamos para Gwragedd Annwh, a cidade dos pântanos. Quanto queres?

— A cidade dos pântanos, ha? — exclamou o barqueiro com um esgar de riso. — É bem boa, essa aí!

Virou a sua atenção sobre a estranha companhia que se tinha alinhado diante da sua casa. Um cavaleiro do Grande Conselho vestido de armadura ao lado de um bárbaro das Fronteiras... Guerreiros anões lado a lado com elfos acompanhados por um cão e um falcão... E a falarem de Gwragedd Annwh como se fosse uma cidade!

— Sois tantos, meus senhores. Vão ser necessárias pelo menos três jangadas... E depois, carregados como estais, com todos esses cavalos, a travessia será longa!

Ura, a égua alazã, relinchou suavemente, e a rainha Lliane ergueu a cabeça.

— Ficaremos apenas com os cavalos de albarda — disse ela.

— Os outros regressam. Qual é o teu preço, barqueiro?

Tsimmi deu uma cotovelada na perna couraçada de Uter, o “Moreno”.

— É uma loucura — murmurou ele. — Como é que vamos fazer sem montadas nas Terras Negras?

Uter não respondeu logo em seguida. Oisin acabava de dar-lhes um preço: uma moeda de ouro por jangada. Uma quantia exorbitante, como já era de esperar.

Imediatamente, os anões deixaram de pensar nos cavalos. Vermelhos de indignação, Tsimmi e Miolnir lançaram-se num acirrado regatear de preço, passando de ameaçadores a implorantes, amigáveis ou cúmplices, mas em vão.

Uter, esse, tinha-se aproximado da rainha.

— Para quê enviar de volta os cavalos, senhora minha? perguntou em voz baixa.

Lliane sorriu-lhe e mergulhou durante um breve instante os seus olhos de um verde insondável nos do cavaleiro. Contra sua vontade, a rainha sentiu-se feliz por ele lhe ter falado novamente e lhe ter chamado sua senhora...

— Não se pode forçar um cavalo livre a ir aonde ele não quer, gentil cavaleiro. Quanto aos vossos cavalos, eles arriscam-se a tornar a nossa jornada bastante mais barulhenta. Para onde vamos, caminhar já é imprudente. Nos pântanos, só se pode andar a pé. E galopar através das Terras Negras só serviria para tornar-nos mais rapidamente notados!

Uter ergueu a cabeça, procurando palavras, mas a voz possante de Freihr interrompeu o curso dos seus pensamentos.

— Venham. Já chegaram a acordo.

 

A elfo deixou que o cavaleiro se juntasse ao resto da companhia nas margens do pântano e depois reuniu-se com Till, que estava ao pé de Ura e lhe acariciava o pescoço.

— Até breve — disse a alazã, sacudindo-se. — Voltaremos a esta margem todos os dias à vossa espera!

— Até breve, Ura — murmurou Lliane. — Mas não esperes por nós. Volta para casa. E se vires o rei Llandon e os nossos, diz-lhes que... Diz-lhes que regressaremos em breve.

Till olhou-a de lado e respeitou o seu silêncio até à partida dos cavalos.

A rainha sentia-se triste e vieram-lhe lágrimas aos olhos ao vê-los afastarem-se. Eles galopavam para ao pé de Llandon, dos seus irmãos, para longe deste pântano gelado e hostil no qual, no entanto, viviam elfos.

— Vamos — disse ela com um sorriso fraco. — É preciso ajudá-los a carregar as jangadas.

— Minha rainha? — perguntou Till, retendo-a. — Quanto a esse Blade, que fazemos?

Desde o momento em que o mestre ladrão se tinha reunido à companhia, o seguidor de pistas tinha-o reconhecido. Tinha sido ele quem ele havia farejado desde a partida de Loth, ele quem havia matado Roderic, ele quem o seu falcão havia seguido até ao centro de Kab-Bag, ele quem havia voltado a matar, nas profundezas da cidade baixa. Till ignorava as suas razões, mas sabia que o ladrão não se tinha juntado a eles por acaso. Tinha avisado imediatamente a rainha; Lliane tinha, no entanto, decidido nada dizer aos outros.

— Nada mudou — disse ela na sua voz modelada de entoações élficas. — Este homem está provavelmente a levar-nos para uma armadilha, mas, nesse caso, por que é que está a dar-se a tanto trabalho? Podia ter-nos matado cem vezes em Kab-Bag... Penso que ele sabe realmente onde se encontra Gael, e que pode conduzir-nos até ele. Só isso conta. De momento.

Um silêncio de chumbo reinava sobre o pântano, cortado de vez em quando pelo barulho do movimento dos arpéus arrancando o lodo. A companhia tinha-se repartido por três grandes jangadas. Sobre a primeira estavam os anões, cuja estatura pequena acalmava um pouco o barqueiro, e Freihr, que já tinha passado o pântano outras vezes, na altura em que os homens ousavam fazer guerra nas Terras Negras. No segundo tinham tomado lugar a rainha, Uter e o ladrão, enquanto que os cavalos de albarda, sob a guarda do pajem anão e de Till, o seguidor de pistas, estavam concentrados na última jangada.

Depois de umas centenas de braças, a bruma tornou-se tão espessa que foi necessário acender tochas para conseguirem ver de uma embarcação para a outra. O andamento era de uma lentidão extrema e todos se protegiam com coberturas ou peles, tão glacial era a bruma. Até os elfos pareciam ter frio.

— Água não suficiente para remar, muito lodo para puxar! — Resmungou Freihr, especado sobre a sua vara.

Já a suar em bica, deitava olhares furibundos a Oisin que, apesar de pequeno, se mantinha do outro lado da jangada com uma facilidade desconcertante.

Sobre a jangada seguinte, Uter e Blade escorriam igualmente por causa do esforço. A cada empurrão, as varas enfiavam-se tão profundamente no lodo que era necessário arrancá-las com o esforço de uma tração dolorosa que lhes dilacerava os músculos e os salpicava de uma lama escura e malcheirosa, cheia de minúsculos vermes brancos.

— Não aguento mais! — exclamou bruscamente Uter num sopro, virando-se para a rainha. — Sufoco debaixo da minha armadura, preciso de a tirar!

Através da bruma, ouviu a voz de Oisin.

— Não faça nada, senhor! Em menos de uma hora entraremos no pântano dos mosquitos.

— O quê? — gritou Uter, mas o gnomo não respondeu.

O cavaleiro virou-se para os seus companheiros mas só encontrou nos seus olhares uma expressão de abandono e lassidão que devia ser igual à sua. A corda que os prendia à primeira jangada esticou-se bruscamente e a voz de Freihr elevou-se por seu turno.

— Empurrem! Estão a reter-nos!

Uter saltou contrafeito e meteu mãos à obra, imitado por Blade. Tinham partido há duas horas e imaginado que por esta altura estariam perto do fim. Qual seria então esse pântano de mosquitos de que falava o gnomo? Quanto tempo ainda iria durar a travessia?

A rainha Lliane levantou-se, pegou numa vara e juntou-se ao bravo. Os seus longos cabelos negros estavam colados à sua fronte devido à umidade, e a sua túnica de catassol, ensopada e salpicada de lama, colada à sua cota de malha de prata, realçava as suas formas graciosas. Ela tinha colocado no centro da jangada o arco e as flechas de Kevin e desfeito o cinto que sustinha a sua longa adaga. Equilibrada nas suas longas pernas descobertas pela sua túnica fendida até ao cimo das coxas, brilhante como todos eles sobre o nevoeiro, ela parecia feita de prata...

Uter percebeu no olhar de Blade um desejo obsceno que o revoltou.

— Reme! — gritou-lhe ele.

O ladrão teve um trejeito de espanto e depois empurrou a sua vara rindo baixinho, o que teve o dom de irritar prodigiosamente o cavaleiro.

— Oisin! — gritou ele, indo para a frente da jangada. — Quanto tempo vamos ainda arrastar-nos neste maldito pântano?

— Anos, se não empurrarem! — gritou Freihr, que tinha a impressão de ser o único a empurrar as três jangadas.

— ...E nunca menos de três dias, meus senhores! — completou o barqueiro com um cacarejo de alegria.

Todos, homens, elfos e anões, ergueram os olhos, atordoados, abatidos com a notícia. O próprio Blade, que se esforçava desde a partida em não se espantar com nada, como se já tivesse feito a travessia no passado, não conseguiu deixar de fazer uma careta.

Três dias neste pântano fedorento. Três dias nesta bruma úmida e glacial. Três dias a escorrer suor e sangue para fazer avançar estas jangadas alguns pés de cada empurrão. Três dias a encostarem-se uns aos outros, deitados sobre os troncos de madeira ensopados de lodo, para tentarem assim encontrar um pouco de calor...

Virou-se para a rainha e olhou sem vergonha a suas longas pernas, nuas até à curva da cintura. Em todo o caso ele saberia onde o encontrar, o calor...

Oisin sorriu aos seus companheiros de jangada.

— O pântano é como um mundo. Um mundo sem sol, sem terra firme, sem vida. Somente lodo, vermes e mosquitos...

Fechou o punho e fê-lo dançar alguns instantes diante dos olhos. Nem Tsimmi nem Miolnir lhe perguntaram se ele tentava com esse gesto mostrar o tamanho dos insetos, mas este horrível pensamento fê-los estremecer de nojo.

— Já atravessei o pântano — murmurou o gigante por trás deles. — Duas vezes... As Terras Negras parecem quase belas quando se sai daqui. Os mosquitos põem-nos loucos, as coisas, debaixo de água, o frio...

Ninguém respondeu e as palavras de Freihr perderam-se num silêncio pesado.

— Que coisas debaixo de água? — perguntou Miolnir, bem mais tarde, num tom que tentava mostrar descontração.

— Ninguém sabe, meus senhores — replicou o gnomo. — Mas raros são aqueles que caem à água e sobrevivem.

O anão abanou a cabeça e trocou um longo olhar com Tsimmi.

— São somente as Fronteiras, Miolnir — murmurou o mestre mação para com as suas barbas. — As Terras Gastas reservam-nos sem dúvida outras coisas bem mais desagradáveis... Ouve, substitui-me.

Ele estendeu a sua vara ao cavaleiro anão, que tinha colocado o seu elmo à invocação das ”coisas debaixo de água”. Tsimmi apertou os rins e espreguiçou-se gemendo, depois foi para a parte de trás e, com as mãos em altifalante, dirigiu-se à rainha e aos seus companheiros.

— Se vamos ficar três dias nestas jangadas, vamos precisar de víveres e de água. Passai-os!

— Sim, é justo — disse Uter olhando Lliane. — Poderá ocupar-se disso?

— Os anões pensam em tudo desde que se trate de comer — notou ela sorrindo.

Por seu lado, ela chamou a jangada de Till e o seguidor de pistas começou a transferir as provisões transportadas por um dos cavalos de albarda.

À frente, Tsimmi deu um suspiro fatalista olhando a terrível paisagem aquática que os rodeava, e na qual um anão não podia sentir senão angústia (é do conhecimento geral que os anões, normalmente, nadam como pedras). Começou a vasculhar o seu saco até que encontrou o seu cachimbo de barro e o tabaco de milho, e depois, sentado no meio da jangada, com as costas apoiadas contra a bagagem, o fornilho do seu cachimbo aquecendo-lhe as palmas das mãos calosas, o anão não tardou a dormitar.

De repente, um brusco relinchar acordou-o em sobressalto.

Apesar da bruma que esfumava todos os sons, percebeu distintamente o barulho dos cascos batendo nos troncos de madeira da última jangada. O pajem dos anões praguejava barulhentamente, e depois ouviu-se uma sucessão de relinchos modulados.

— Que se passa? — gritou a rainha com uma voz alta e clara.

— Os cavalos sentiram qualquer coisa! — respondeu Till. — Disse-lhes para se acalmarem, mas duvido que se mantenham assim por muito tempo!

Na parte de trás da grande jangada, um outro cavalo pôs-se por seu turno a bater os cascos e a agitar-se perigosamente, ao ponto de Rogor ter de ajoelhar-se para não ser atirado pelo brusco movimento da embarcação.

— Ajude-me a tapar-lhes os olhos e os ouvidos! — gritou o seguidor de pistas.

O silêncio voltou a cair, perturbado apenas pelo raspar das ferraduras e das frases soltas trocadas entre o elfo e o anão. Sobre as duas jangadas da frente, todos retinham a respiração.

— Que é que eles poderão ter sentido? — murmurou Uter, que se tinha aproximado da rainha.

— Espere! — murmurou ela parando a sua vara, com todos os sentidos em alerta.

Ela levantou os cabelos para escutar melhor, e Uter teve um movimento de surpresa ao perceber que as suas orelhas eram finas e pontiagudas nas extremidades. Para espanto do cavaleiro (que na realidade não conhecia grande coisa de elfos) a rainha conseguia orientar-se como um gato ou um cão, na direção do ruído a que estava atenta... O cavaleiro piscou os olhos e tentou ver através do nevoeiro. Durante vários segundos não ouviu nem viu nada. Depois, repentinamente, teve consciência de uma espécie de zumbido, de um estremecer difuso semelhante ao ruído do vento nas árvores altas.

— Chegamos! — avisou Oisin, o barqueiro. — O pântano dos mosquitos! Cubram o rosto e as mãos, e sobretudo não deixem que as vossas tochas se apaguem!

Tomados de um brusco frenesim, os enviados do Grande Conselho perderam por alguns instantes toda a sua dignidade na sua precipitação de se protegerem das nuvens de mosquitos. Lá atrás, os animais inquietaram-se de novo e a jangada começou a balançar perigosamente.

— Acalmem-se! — soprava Till nas narinas dos cavalos aterrorizados. — Nós afastá-los-emos com as tochas. Não têm nada a temer...

— Mas não os ouves? — responderam os cavalos. — Nada poderá impedi-los de nos picarem o ventre, as orelhas, o nariz. Já alguma vez foste picado no nariz, Till?

— Se não pararem, mordo-vos as patas! — ladrou bruscamente o cão de Till. — E atiro-vos para o pântano, onde serão engolidos para sempre!

Os cavalos estremeceram de horror e acalmaram-se um pouco, deitando olhares assustados aos dentes do cão. Till, esse, não parava de ir e vir entre eles bramindo duas tochas.

— O fogo afastá-los-á — relinchou ele. — O fogo é nosso amigo.

Rogor, seguro à sua vara, sacudiu a barba com um gesto nervoso. Este pântano imundo e a ameaça dos mosquitos eram já difíceis de suportar, sem um elfo que viesse relinchar na boca dos cavalos, no seu nariz e na sua barba!

— C’os diabos, elfo, que se passa? — gritou ele bruscamente.

— Não grites, anão. Isso só vai assustá-los ainda mais.

— Então tu falas com os cavalos?

— Com os cavalos, com as plantas e com todos os seres vivos!

Till interrompeu-se subitamente. Tinha acabado de perceber que tinha tido de forçar a voz, tal era a barulheira dos mosquitos. À frente da jangada, o seu falcão sacudia nervosamente as plumas e enfiava a cabeça debaixo da asa.

— Não é possível — murmurou Rogor por entre dentes.

O véu cinzento da bruma deixava entrever inúmeros pontos cintilantes; o barulho difuso tornava-se rapidamente preciso em todos os seus aspectos. Rogor pensou mesmo ouvir o barulho distinto de milhares de asas batendo umas nas outras.

Na primeira jangada, Oisin tinha começado a erguer um mastro no centro da embarcação.

— É inútil empurrar! — gritou ele. — Apesar de tudo, há um pouco de corrente até às Fronteiras. Protejam-se, e boa sorte!

Mal acabou de falar, cobriu completamente a sua jangada com um pano oleado negro, semelhante à cor da água.

Uter hesitou um instante. Em volta dele, Blade e a rainha desenrolavam febrilmente uma lona. Apesar da angústia que o fazia tremer, pareceu-lhe indigno de um cavaleiro do Grande Conselho enterrar-se durante dois dias debaixo de uma tenda, deixando-se levar pela corrente, tudo isso por causa de vulgares mosquitos.

Olhou para trás e percebeu a luz brilhante das tochas de Till. Esse parecia não se proteger... Qualquer coisa se agarrou aos seus cabelos e ele soprou instintivamente, abanando as tranças contra a armadura luzidia de umidade. Quase ao mesmo tempo, uma dor viva feriu-lhe a cara, depois uma outra na testa. Ele passou rapidamente a mão pela cara e voltou-se para a frente. O ar estava repleto de formas furtivas e cintilantes e pontos negros não paravam de passar diante dos seus olhos. De novo, qualquer coisa o picou, desta vez na mão direita. Baixou os olhos sobre as formas enroladas dos seus companheiros e reprimiu um arrepio de horror. A lona estava literalmente coberta de uma massa brilhante de insetos que pareciam dedicar-se a devorarem-nos. Duas outras picadelas arrancaram-lhe um gemido de dor. Abanou-se e olhou para a sua própria armadura. Ela estava também apinhada de uma multidão de pontos negros e cintilantes, fervilhante como uma cota de malha animada com vida própria.

Tomado de pânico, Uter gritou e debateu-se freneticamente, espalhando pela jangada o conteúdo do seu saco para tirar uma longa capa sob a qual se atirou, levando com ele várias centenas de mosquitos. O seu corpo inteiro estava em fogo. Os insetos tinham deslizado para dentro da sua armadura e devoravam-lhe os braços, as costas e o pescoço, obrigando-o a contorcer-se debaixo do seu frágil abrigo de pano, apertado e desajeitado, em patéticos gestos de defesa, inúteis contra tão implacável inimigo.

Repentinamente, sentiu alguma coisa empurrá-lo e a sua capa foi arrancada. Num repente, viu uma lona de tenda estendida por cima dele, e as caras crispadas da rainha Lliane e de Blade. Uter quis dizer alguma coisa, mas a chama de uma tocha queimou-lhe a cara: ele deu um grito de dor. O tratamento acabou tão bruscamente como tinha começado. Ofegante, com o rosto e o corpo doridos, parecia-lhe que tinha sido mergulhado num caldeirão de azeite a ferver. Uter não se debateu mais e caiu sobre os troncos da jangada. Os seus olhos encontraram os da rainha, os seus lábios tentaram formular uma pergunta.

— Não diga nada, cavaleiro — disse Lliane, pousando-lhe docemente a mão sobre a boca. — Queimámos a maior parte dos mosquitos que o cobriam. Seria melhor retirar a sua armadura para terminarmos a tarefa... Deixe-nos fazer isso.

Uter abanou ligeiramente a cabeça, sem forças. Sem pararem, as picadas, semelhantes a agulhadas, fustigavam-lhe o corpo, mas a dor já só lhe vinha ao cérebro como uma impressão bizarra e estranha. Sentiu que o levantavam e lhe retiravam as espaldeiras e as manoplas de ferro. Com esforço, vislumbrou Blade, com a testa a escorrer suor, dobrado sobre ele, com a cara iluminada pelas chamas da sua tocha. O seu corpo contraiu-se involuntariamente sob o golpe de uma dor fulgurante.

Necessitou de alguns segundos para perceber que os seus braços e o seu tronco estavam nus, e que o ladrão o libertava de uma nuvem de mosquitos, passando-lhe a chama pela pele.

Então, simplesmente, desmaiou.

Com a fronte contra os troncos grosseiros da jangada, os cabelos molhados pela água lodosa que enchia os intervalos, a rainha Lliane tinha caído num sono profundo, apesar do barulho ensurdecedor dos mosquitos do pântano, da falta de ar e do calor irritante que reinava na tenda improvisada que eles tinham montado. Tinha vigiado Uter durante toda a noite e uma grande parte do dia, até ao limite das suas forças, cantando ao ouvido dele a melodia do Apaziguamento da Alma.

 

               Anmod deore haeleth

               Sar colian

               Feothan

               Feothan

               Breostfrofur

               Hael Hlystan.

 

E a cabeça do cavaleiro repousava ainda sobre o seu peito.

Blade, com o corpo a suar e dorido, só conseguia dormitar. Um balanço da jangada a desviar-se acordou-o, e ele exprimentou um momento de terror, a cara endurecida encostada à lona molhada, ensurdecido pelo ranger de milhares de asas e pelo martelar dos mosquitos que caíam como se fosse chuva, mais e mais... Depois, conseguiu acalmar-se.

Deu um murro na lona e lá fora o barulho metálico redobrou. O arpéu que tinha feito as vezes de mastro central na tenda improvisada tinha escorregado devido aos movimentos da água, e a lona cobria-os como uma mortalha. Às apalpadelas, o ladrão encontrou a vara e tornou a levantá-la, dando assim um pouco de ar fresco, bem como uma luz ínfima, filtrada através de milhares de buracos minúsculos. Era o segundo ou o terceiro dia? Quanto tempo teria ainda de viver este pesadelo? Blade sentou-se com as pernas esticadas e massajou a nuca.

Do outro lado da jangada, Uter jazia, as sobrancelhas semiqueimadas, a cara inchada, suando e com uma cor terrível, cinzento-esverdeado (a pouca luz não ajudava em nada). Blade perguntou-se se ele estaria morto, mas, observando melhor, pareceu-lhe que a sua túnica com riscas azuis e brancas — as cores do rei Pellehun — que lhe cobria o dorso se levantava ainda ao ritmo fraco da sua respiração.

Depois dirigiu a sua atenção para a rainha.

Os seus cabelos negros, brilhantes como algas entre os toros, escondiam-lhe a cara. Como conseguia ela dormir assim, entre os troncos de árvore mal descascados da jangada, com todo o corpo ensopado por essa água viscosa, horrível, que aparecia por todo o lado? A sua longa túnica de catassol colava-se-lhe às formas, e Blade contemplou ainda, longamente, as intermináveis coxas da elfo.

Levantou-se e avançou de cócoras em direção à silhueta adormecida, parou e curvou-se sobre ela. Os seus olhos estavam habituados à penumbra cor de chumbo e conseguia vê-la melhor agora. Sob a massa dos seus cabelos, distinguia-se o azul da sua face e o outro mais escuro dos seus lábios entreabertos. Uma mecha sinuosa como um fio de chuva tinha escorrido até à sua boca e Blade estendeu os dedos para a afastar cuidadosamente. Com os olhos fechados, os traços calmos, ela era de uma beleza que deixava mudo o mestre ladrão. Ele já tinha conhecido elfos, mas não passavam de pegas do Havre, uma experiência exótica nos bordéis dos bairros reservados, demasiado magras e esguias, aliás, de uma frigidez que não atraía o cliente... Esta era diferente.

Agachado ao lado dela, deixou o seu olhar — unicamente o olhar — acariciar o corpo adormecido de Lliane, desde o arredondado dos seus ombros nus até às botas de camurça por cima dos joelhos. Notou que o laço cozido em cruz que fechava a sua túnica, no alto das coxas, estava desfeito, mostrando ainda mais alguns centímetros de pele, quase até à anca e como ele esboçou um gesto para a cobrir, fez ranger um dos troncos.

Lliane, das profundezas do seu sono, ouviu a tábua de madeira. As árvores que tinham servido para construir a embarcação estavam mortas há muito tempo, e já não falavam, nem mesmo aos ouvidos de uma elfo iniciada na linguagem da Natureza. Portanto, Lliane percebeu um alerta, da iminência de um perigo. Acordou em sobressalto, com o coração a bater. Ao ver a cara de Blade debruçada sobre ela, deu um grito de susto.

— Não, não — disse Blade, também surpreso com o brusco acordar. — Eu só queria...

A elfo estendeu-lhe a palma da mão aberta.

— Bregean! Bregean hael hlystan!

O mestre ladrão abriu os olhos, com o coração cheio de medo. A elfo pareceu-lhe subitamente horrível, feia de fazer medo, hedionda como os vampiros das lendas, criaturas da noite que devoravam crianças de berço. Ele retirou rapidamente a mão como se tivesse medo de a tocar e bateu em retirada, desviando os olhos para não a ver, com uma careta de desgosto.

Lliane levantou-se e, com a palma da mão sempre estendida para ele, murmurou algumas palavras na sua língua estranha, tão baixinho que o ladrão quase não as entendeu. Mas foi o suficiente. O sono abateu-se sobre ele de repente, e adormeceu como uma pedra.

 

Uma estranha sensação tirou Lliane do seu sono. Era como um grito pungente, ao mesmo tempo rouco e puro, ameaçador e no entanto familiar. Ela levantou-se, empurrando com as costas da mão a lona que os cobria. O seu rosto crispou-se de dor. Parecia-lhe que cada um dos seus ossos, cada um dos seus músculos, estavam doridos, gelados, partidos. A rainha repousou por instantes a testa sobre os rugosos troncos de madeira da jangada e depois acocorou-se. Em redor dela os dois homens dormiam, caídos como animais no lodo que banhava o chão da jangada. Uter tremia de febre e gemia sem forças, com a cara cravejada de gotas de suor.

Lá fora, o grito ressoou de novo. Um falcão... Sem dúvida a ave de rapina de Till. Mas o que mais impressionou Lliane foi o silêncio que o chamamento acabava de atravessar.

Não se ouviam mais zumbidos...

Durante longos segundos, a rainha dos altos-elfos ficou em alerta. Não havia dúvida... O incessante zumbido dos mosquitos do pântano havia terminado.

Ela sentiu o seu coração acelerar, cheio de esperança. Um novo chamamento do falcão decidiu-a e ela levantou a lona com um gesto largo.

O ar era frio e vivo e a sua primeira inspiração queimou-lhe os pulmões. Vacilando sobre as pernas entorpecidas, olhou em volta com alegria. O pântano, como que apaziguado, não estava tapado por mais do que pequenos fios de bruma. As jangadas andavam calmamente à deriva por um mar de canas e de plantas lamacentas. Ela acabava de descobrir as formas estendidas dos seus companheiros, tirando de um só golpe a lona cheia de insetos mortos e deitando-a para a água.

Blade acordou de imediato, piscando os olhos e batendo os dentes, mas com o sorriso de uma criança perante o fim de uma prova. Logo que o seu olhar se pousou sobre Lliane, o sorriso desapareceu e uma sensação desagradável apoderou-se dele. Por uma razão estranha, só o fato de a ver tinha-se tornado penoso...

No céu quase limpo, o falcão branco de Till continuava a voar, descrevendo círculos em volta das jangadas, lançando de quando em quando o seu grito agudo.

— Ei! — gritou a rainha. — O ar está livre! Saiam daí de dentro! A lona oleada da primeira jangada animou-se no mesmo instante e a gigantesca silhueta de Freihr saiu. O guerreiro observou durante alguns instantes a nova paisagem na qual vagueavam, inspirando o ar frio deliciado, e depois desatou num riso vencedor, enorme, que se pegou pouco a pouco a todos os membros da companhia.

Mas o riso terminou tão bruscamente como tinha começado. Sobre a segunda jangada, Uter, o ”Moreno”, continuava estendido, sacudido por tremores incontroláveis. O seu rosto era de uma palidez assustadora e o corpo estava coberto de pequenas bolhas, ali onde centenas de insetos o tinham picado.

— Que aconteceu aos cavalos? — gritou Blade, apontando para a terceira jangada.

Todos se voltaram para a embarcação de Till e do pajem anão, onde não se via mais, debaixo da lona brilhante, que uma forma baixa, imprecisa e imóvel.

— Till! — chamou a rainha dos altos-elfos. Nenhuma resposta. Nem um movimento.

— Puxemo-los até nós — disse Blade pegando na corda que os ligava à última jangada.

Lliane veio ter com ele, e, braçada a braçada, a embarcação aproximou-se, abrindo a cortina de canas que se tinha formado na esteira das duas primeiras jangadas. No bote da frente, os dois anões, em pontas de pés, estendiam o pescoço em vão. Teriam tido de subir para cima de Freihr para dominarem as hastes altas do caniçal...

— Deus do céu! — gritou bruscamente Blade. — Vejam isto! Que horror!

— Que se passa? — perguntou Tsimmi a Freihr, que sobressaía facilmente da floresta aquática.

O bárbaro ficou mudo, e a expressão de repugnância que deformava a sua boca e arregalava os seus olhos nada tinha de tranquilizador para os seus companheiros.

— Mas, afinal, que é que se passa? — explodiu Miolnir. — Freihr!

O gigante respondeu sem desviar o olhar.

— Blade encontrou dois cavalos. Ou aquilo que resta deles...

— Como assim? — disse o anão, elevando-se na ponta dos pés, em desespero.

— Os cavalos foram devorados.

— Os monstros debaixo de água! — gemeu Oisin, agarrando a cabeça com as mãos.

Atrás, Blade e a rainha tinham saltado sobre a última jangada. Arrancando com um golpe seco a cobertura, Lliane soltou um suspiro de alívio perante as silhuetas encolhidas de Till, do cão e do pajem anão. Ela sacudiu-os para os acordar, mas só o anão e o cão vieram a si.

Till tinha, também ele, na cara e nos braços inúmeras picadelas e, tal como Uter, estava coberto por uma película de suor gelado. Para além disso, parecia ter recebido um terrível golpe sobre a testa, que o tinha sem dúvida feito desmaiar e lhe tinha aberto um lenho do comprimento de várias polegadas. O lado direito da sua cara estava manchado de sangue seco, e asas de mosquitos agitavam-se ainda debilmente nos lados da sua ferida.

Lliane vacilou. Blade acabava de cortar, com um golpe de punhal, as rédeas que retinham os dois cavalos semidevorados, e os seus cadáveres enterraram-se imediatamente no abismo do pântano com um breve borbulhar.

— Então, conseguimos sair — murmurou Rogor para com a sua barba ao sentar-se.

Blade, sem cerimônias, agarrou-o pelos ombros e obrigou-o a levantar-se.

— Que é que aconteceu? — gritou ele.

O anão debateu-se e, no espaço de um segundo, os seus olhos brilharam de uma maneira perigosa. A rainha estremeceu sem querer, espantada com o aspecto subitamente aterrador do grande anão. A longa barba ruiva que ele enrolava normalmente à cintura estava desgrenhada e revelava, por debaixo da túnica vermelha com as runas do rei Baldwin, o brilho de uma armadura.

Rogor viu o olhar da rainha e recompôs-se rapidamente.

— Dizei-nos o que aconteceu — insistiu ela.

— Estes dias foram terríveis, majestade — disse Rogor, baixando os olhos, esforçando-se por se acalmar. — O Sr. Till queria salvar os cavalos, mas era uma tarefa impossível. Eles tinham ficado loucos por causa dos mosquitos. Um primeiro cavalo caiu à água, com toda a sua carga, e quase que virámos. Infelizmente, ele continuou preso à jangada pela arreata, e agitava-se de tal forma que fez escorregar os outros.

O anão virou-se para os seus companheiros e mostrou as vestes sujas de lodo.

— Até eu caí, estão a ver? Com efeito, a lama protegeu-me dos mosquitos, acho eu...

— E depois? — atalhou Blade, impacientemente.

Rogor deitou-lhe um olhar com uma cólera e exasperação mal disfarçadas, que foi notado pela rainha.

— Depois, o elfo Till esforçava-se por salvar esses malditos animais! — prosseguiu Rogor num tom mais vivo. — Eles enterravam-se no pântano e relinchavam como uns condenados, via-se uma espécie de serpentes ou de peixes, não sei bem, umas bestas enormes, escamosas, que faziam uns bulhões de água terríveis e que os devoraram à dentada, durante horas! E ele puxava como um louco, gritava, chorava e relinchava como se fosse um cavalo, o cão ladrava desesperado e estávamos cheios de mosquitos. Que é que acham que devíamos ter feito?

— Acalmai-vos! — ordenou uma voz autoritária por trás deles.

Era Tsimmi. Freihr tinha puxado à força de braços as duas últimas jangadas até à deles e o anão da longa barba castanha tinha acorrido ao local da contenda.

— Esqueceis que estais na presença da rainha dos altos-elfos! — gritou ele, fulminando Rogor com o olhar.

Os olhos do herdeiro da linha de Dwalin brilharam de cólera, mas, uma vez mais, conteve-se e baixou humildemente a cabeça.

— Desculpai-me, majestade — disse ele a Lliane num tom miserável —, mas essas horas foram tão duras...

— Também o foram para nós — admitiu ela calmamente. — Mas sem dúvida que ainda mais para vós, pajem. Continuai a vossa narrativa...

Rogor saudou a rainha em sinal de agradecimento.

— O Sr. Till parecia... desculpai-me, parecia ter perdido a razão — continuou ele calmamente. — Ele obstinava-se em içar os pobres animais, correndo o risco de nos fazer virar definitivamente, e ainda para mais eles já estavam enterrados, viam-se as entranhas flutuar em volta deles e o sangue salpicava a jangada. E... eu bati-lhe.

— Ah! Essa é boa! — disse Blade.

— Era certamente a única coisa a fazer — interveio a rainha. — Todos conhecemos bem o amor que Till, o elfo verde, tem aos animais. Mas esse amor cegou-o... A vida dele e a do pajem anão são-nos mais preciosas que as dos cavalos de albarda.

Ela deitou um olhar sobre o que lhes restava das bagagens. A maior parte das roupas, víveres e armas tinham desaparecido.

— Nós estamo-vos gratos, pajem. Sem vós, é provável que também Till tivesse sido devorado.

Rogor inclinou-se de novo, e começou a lavar-se sumariamente, de joelhos sobre a jangada, enquanto a rainha e Tsimmi regressavam à sua embarcação. Concordaram em que Blade deveria ficar atrás com o pajem dos anões, enquanto a rainha e o mestre mação, sobre a jangada do meio, se esforçavam por tratar de Uter e de Till.

Assim que partiram e as cordas se distenderam entre as embarcações, afastando umas das outras, o ladrão soltou um riso discreto:

— Com que então bateste no elfo? — murmurou ele de maneira a que Rogor pudesse ouvir-lo. — Fizeste bem, mas no teu lugar tinha cuidado quando ele acordasse.

— Sem dúvida, senhor — respondeu Rogor, amparando-se na sua vara.

O seu primeiro impulso foi tão vigoroso que Blade quase perdeu o equilíbrio.

A meio da tarde do terceiro dia, viram por fim a linha sombria de uma ilhota de terra firme. No seguimento do calor doentio que tinha reinado debaixo das lonas, todos se sentiam transidos de frio, molhados até aos ossos e bem pouco dispostos a lançarem-se nesta perigosa viagem. Somente a perspectiva de terem de atravessar novamente o pântano dos mosquitos impediu a maioria dos enviados do Grande Conselho de dar meia volta imediatamente.

Alguns minutos mais tarde, Oisin, o barqueiro, acostou a um rudimentar pontão de madeira, e todos desembarcaram de mau humor.

— Sr. Freihr — disse Lliane, apontando para Uter e Till ainda inconscientes —, ajudai-me. É necessário abrigá-los...

Ela sorriu ao vê-lo pegar no corpo do cavaleiro e levá-lo ao colo como se se tratasse de uma criança. O bárbaro, com um movimento de interrogação, apontou com o queixo para a armadura, reduzida a um monte de ferros sobre a jangada.

— Ele não vai precisar dela aqui — observou a rainha. — A cota de malha será suficiente.

Lliane desembainhou a sua longa adaga e, seguida pelo bárbaro, embrenhou-se num bosquete, abrindo a golpes de lâmina uma passagem no emaranhado de arbustos de vime, de silvas e de matagal que lhes interditava o acesso. Ela chegou rapidamente ao pé de um grande salgueiro, cujos ramos baixos se estendiam como um véu sobre o solo de turfa recoberto de um colchão de musgo.

Cuidadosamente, Freihr pousou nele o cavaleiro e partiu depois, sem uma palavra, à procura do seguidor de pistas.

Assim que chegou ao pontão, os anões e o ladrão tinham acabado de descarregar as jangadas. O cão de Till estava deitado ao lado do dono inanimado e o falcão voava lentamente por cima deles, com ar ameaçador.

Freihr não conseguiu olhar para ninguém. Blade tinha ficado sobre o pontão com Oisin, e os três anões tinham-lhes virado as costas, atarefados em volta das suas poucas bagagens. Sem conseguir explicar a razão, o bárbaro teve uma sensação incómoda.

Pegou o corpo delgado do elfo e, seguido pelos animais, desapareceu de novo no matagal.

Blade olhou à sua volta com um profundo nojo. Juncos, árvores comidas pelo musgo e silvas, mas nem um traço de civilização, à exceção das pranchas de madeira sobre as quais tinham desembarcado.

— Que é este buraco? — resmungou ele. — Para onde é que nos trouxeste?

— Para o lugar para onde queriam vir! — disse o gnomo com um sorriso pouco conseguido. — Gwragedd Annwh! A cidade dos pântanos, como lhe chamais!

Deu um riso de matraca quase desagradável.

— E onde é que fica essa cidade? — perguntou o ladrão. De novo, Oisin fez ressoar o seu riso penoso.

— Mas fostes vós, senhor, quem falou numa cidade! Vós! Gwragedd Annwh é somente o nome desta ilha, a maior do país dos elfos cinzentos... Penso que encontrareis alguns por aí...

Fez uma pausa e deitou um olhar malicioso aos três anões que falavam em voz baixa.

— ...a menos que sejam eles a encontrar-vos!

O gnomo encolheu os ombros. Anões no país dos elfos cinzentos... Era preciso serem loucos!

— E então, adeus, meus senhores! E boa sorte, seja qual for a vossa demanda!

— Um momento — gritou Blade, quando o outro já se encontrava dobrado sobre a sua vara. — Como é que regressamos se te vais embora com as três jangadas?

— Está certo, senhor — disse Oisin com um sorriso trocista. — Mas só pagaram uma viagem.

— O quê? — gritaram quase ao mesmo tempo Tsimmi e Miolnir, da margem.

— Será que tens a audácia de exigir uma nova quantia por essas jangadas? — acrescentou o mestre mação, consternado.

Blade saltou rapidamente para a embarcação do barqueiro e segurou-o amigavelmente pelos ombros.

— Deixai-me ser eu a ocupar-me desse detalhe — disse ele voltando-se para a companhia. — Ide ter com a rainha, irei encontrar-vos mais tarde!

Os três anões, confusos durante um momento, não sabiam o que fazer, pouco inclinados a deixarem o ladrão sem ser vigiado.

— Aliás — continuou Blade —, pergunto-me por onde é que ela passou... É verdade, partiu com o bárbaro, o outro elfo e o cavaleiro. Só ficámos nós!

Miolnir e Rogor deram um salto, trocaram um olhar e partiram rapidamente à procura de Freihr sem esperar por Tsimmi, sempre mais lento a decidir-se.

— Vá lá! — gritou Blade da jangada. — Pela minha parte, estou certo de chegar a um acordo com o mestre Oisin.

Tsimmi ainda hesitou, mas a perspectiva de ficar sozinho com aquele malandro saído de entre a pior gente de Scâth, nos pântanos assombrados por elfos cinzentos, não lhe pareceu nada atrativa: desapareceu por seu turno no interior da pouco hospitaleira Gwragedd Annwh.

— Bom — disse Blade tirando do seu alforge um frasco protegido por um tecido de ráfia. — Eis-nos sós. — Então, quanto é que queres pela viagem de regresso?

O gnomo fez um sorriso de comerciante e avançou até ao meio da jangada para pegar numa caixa coberta por um pano.

— Quando quiserem regressar, soltem esta pomba — disse ele levantando o pano e mostrando o animal numa pequena gaiola. — Logo que esteja solta, ela irá ter comigo e, o mais tardar três dias depois, estarei aqui com as minhas três jangadas.

Blade bebeu um grande gole, deu um suspiro de alívio e, muito naturalmente, estendeu o frasco ao gnomo.

— É da boa. Aquece...

Oisin hesitou, olhando o ladrão com desconfiança.

— É claro, é um pouco forte — acrescentou Blade fazendo um trejeito. — Uma bebida de homem...

O barqueiro, espicaçado, pegou no frasco e bebeu um grande gole.

— Três dias, dizes tu? — admirou-se Blade, sorrindo-lhe. — É muito tempo, principalmente para alguém que tem pressa... Não, o melhor é ficares aqui à nossa espera. Não vais esperar muito...

O gnomo fez uma careta (e, na realidade, não precisava de nada disto!)

— Esperar aqui, senhor, é perigoso... Vai ser caro!

— Vamos lá, gnomo, faz o teu preço.

— Duas moedas de ouro por cada jangada. Portanto, seis moedas, já que precisam de três.

O mestre ladrão fez um pequeno trejeito divertido.

— O dobro de uma ida, hem?

O barqueiro fez uma expressão desolada e apontou com o braço estendido o pântano por trás dele.

— Senhor, haveis comprovado os perigos que eu corro em cada passagem. Se tenho de esperar aqui, pensai o que eu arrisco! Há os elfos (ao dizer esta palavra cuspiu para a água), mas também os monstros, no pântano, e sei lá que coisas mais! Aliás, senhor, talvez não necessitem de tantas jangadas no regresso? Os elfos cinzentos não gostam muito dos anões... Não, não gostam lá muito...

O gnomo deixou pairar o subentendido, pontuando a sua frase com um sorriso fraco que exasperou o ladrão. O negociar tinha-lhe feito sede e ele bebeu de novo um grande gole. A aguardente de Blade não era assim tão forte, afinal de contas, mas tinha um gosto esquisito. Não desagradável, de resto, talvez pouco usual. Blade sorriu, tirou-lhe o frasco das mãos e fechou-o.

— É o veneno que lhe dá esse gosto — disse ele arrumando-o no seu alforje.

— O quê?

Blade bramiu um pequeno frasco em barro, agarrou na mão do gnomo estupefato e depositou-o na palma da mão.

— Eis o antídoto. Toma algumas gotas por dia, o suficiente para molhar os lábios. Terás talvez vertigens e suores frios, mas nada de grave.

Sorriu e bateu no ombro do barqueiro.

— Com isto vais aguentar-te dois ou três dias. É mais que suficiente... Estarei de volta amanhã, ou depois de amanhã o mais tardar, e dar-te-ei mais. Quando tivermos passado o pântano de regresso, virás comigo a Kab-Bag e dar-te-ei o remédio definitivo.

Oisin, de olhos esbugalhados, olhava o frasquinho sem ousar compreender. Depois, uma dor brusca, como que um longo golpe nas suas entranhas, fê-lo dobrar-se ao meio. Abriu febrilmente a pequena garrafa e começou a beber.

— Alto! — disse Blade rindo. — Não beba muito de uma só vez, mestre Oisin! Senão, em breve não lhe sobrará nada!

O gnomo, ajoelhado no lodo que banhava a sua jangada, levantou os olhos para o ladrão.

— Mas... vós bebestes antes de mim! Eu vi!

— Foi, não foi? Mas, sabes, é preciso tempo para nos habituarmos... Se eu te dissesse que há uns anos quase morri! Sim, sim... Um idiota de um comerciante de sedas, em Mag Mor, na cidade da planície. Tive de beber três vezes antes de ele ficar descansado.

Ele piscou o olho ao gnomo.

— A ti, um gole foi suficiente para te convencer, não foi? Com mil diabos, que pesadelo, esse comerciante! Se tu soubesses! Vomitei toda a noite e quase morri! Mas na manhã seguinte esse porco estava teso como uma tábua e o seu carregamento de seda era meu! Que é que tu queres... Por vezes, no meu trabalho, é preciso pagar com o corpo.

Blade deitou um olhar rápido em volta, depois pegou no barqueiro pela cota e levantou-o à força.

— Tens razão, gnomo. Não vamos precisar de três jangadas. Com efeito, acho mesmo que uma só jangada chegará. Uma só, e só para mim... Os outros não voltarão!

Oisin levantou a cabeça, com as tripas em fogo e o rosto mais encarnado que nunca.

— ...Mas eles não devem saber de nada, entendes? Será um segredo só nosso.

O outro assentiu novamente.

— Bem — disse Blade. — Dá-me a pomba.

O gnomo entregou-lha contrafeito. Blade abriu a pequena porta da gaiola e meteu a mão lá dentro.

— Que linda pomba. Que pena...

Sem dar tempo ao gnomo de reagir, torceu o pescoço à pomba e atirou-a para a margem.

— Que é que fez? — gritou Oisin, desesperado.

Sem responder, Blade saltou rapidamente sobre a segunda jangada, soltando-a do pontão. Fez o mesmo à terceira, antes de saltar para a margem. Ficou a vê-las alguns instantes à deriva na corrente de água até desaparecerem entre as brumas. Só então se voltou para o gnomo. A sua voz já nada tinha de amigável.

— Vai esconder-te com a jangada e vem aqui todas as tardes, ao cair da noite, até que eu volte. Lembra-te, gnomo: com esse frasquinho só duras alguns dias. Eu sou a tua única hipótese de sobrevivência. Portanto, não faltes ao encontro...

 

Ficando sozinha com Uter, depois da partida de Freihr, a rainha Lliane tinha-se colado ao tronco do grande salgueiro. Com o ouvido e o rosto encostados à casca, ela falou ao coração da árvore, juntando às suas artes mágicas aquilo que sabia da linguagem das plantas: sussurro das folhas, ranger dos ramos, estalidos da madeira...

Bem rapidamente, o velho salgueiro adormecido estremeceu, desde as suas raízes até às suas hastes cheias de folhas. Lentamente, imperceptivelmente, estas varreram o chão de turfa. Os ramos ergueram-se, o tronco torceu-se, as folhas entrelaçaram-se. Formou-se em volta do cavaleiro e da rainha uma cortina inviolável, um quarto secreto, ao abrigo dos olhares.

Quando Frelhr regressou, carregando o corpo inanimado de Till, Lliane esperava-o à entrada do bosque. Conduziu-o até ao salgueiro, e enquanto ele depositava o corpo de Till ao abrigo das folhas, ela levou os animais para fora. Acariciou a cabeça do cão, que gemia baixinho, inquieto com o estado do dono, e estendeu o braço ao falcão para que ele pousasse.

— Nobre ave, tu que voas mais alto e vês mais longe que qualquer outro ser vivo, com excepção das águias das montanhas de Moiran, abre as tuas asas e procura ervas e plantas curativas. Oll-iach, o visco que cura tudo, morrião e pé-de-galinha, meimendro, trifólio e betónica... Vai!

Ela ergueu o punho para o ar e o grande falcão branco desapareceu num segundo por cima do salgueiro. Ao lado dela, o cão continuava a gemer.

— Nós vamos curá-los — disse ela passando de novo os seus dedos entre o pêlo dele. — Não te aflijas.

Uter acordou em sobressalto, com um grito de terror. Depois sentiu na sua fronte umas mãos de uma infinita doçura, caçando como por magia a febre que o queimava. Alguém lhe levantou a cabeça e lhe colocou algumas gotas nos lábios.

— Bebei — disse a rainha. — É água de carvalho... Visco, e várias outras coisas. Isto vai curar-vos...

Uter sorveu um gole e deixou cair a cabeça para trás. Avistou Till, perto dele, agachado contra o tronco do salgueiro. O elfo verde abanou a cabeça na sua direção, com um piscar de olhos que poderia passar por um gesto amigável. Depois, tudo voltou a ficar negro.

O falcão planava no céu sombrio, entorpecido pela chuva que lhe tinha ensopado as asas brancas manchadas de cinzento. A perder de vista estendia-se um emaranhado vegetal de lagos, de turfeiras e de moitas, sem nenhum traço de vida. Avistou, não muito longe, as altas colinas que marcavam o começo das Fronteiras Negras e estremeceu sem querer. Virando-se sobre a sua asa direita, sobrevoou o bosquete onde Freihr, o bárbaro, que tinha partido a desbravar terreno, progredia a grandes passos, curvado sob as suas peles, os braços e as pernas cobertos de lama para melhor se camuflar. O animal deu um pequeno grasnar divertido. Era preciso ser-se um homem para se julgar invisível aos olhos dos habitantes dos céus!

Perto do embarcadouro do pântano, uma pequena mancha branca atraiu a sua atenção e o falcão, bruscamente, picou o vôo sobre ela.

Era uma pomba. De pescoço partido, ela estremecia nos últimos estertores da agonia, batendo desesperadamente as asas para escapar da morte.

A ave de rapina pousou suavemente ao seu lado e contemplou-a com um ar triste.

— É inútil debateres-te — disse-lhe por fim, e a sua voz fez estremecer a pomba, que não o tinha visto. — O teu pescoço está partido. Eu vou acabar contigo, não será doloroso.

— Não! — gritou a pomba. — Deixa-me ir embora, falcão! Deixa-me voltar para minha casa, do outro lado destes pântanos!

— Então, tu não és daqui?... Estava admirado por encontrar uma pomba num lugar como este.

— Foi o meu dono, Oisin, o barqueiro, quem me trouxe até aqui. Deixa-me partir, falcão!

O falcão abanou a cabeça suavemente.

— Tu não vais conseguir chegar, pomba. A tua queda foi mortal...

— Eu não caí! — piou num tom fraco o pássaro ferido. — Foi um homem que me partiu o pescoço. E o meu dono foi-se embora!

O falcão deu um longo grito surdo.

— Eu não vou matar-te, pomba. Não tenhas medo, viverás e encontrarás em breve o teu dono.

A pomba deixou de debater-se e esticou-se. Abrindo as asas, o falcão retomou o seu vôo depois de a saudar uma última vez. Planou por cima dela durante alguns segundos, fora do seu alcance, e depois abateu-se bruscamente sobre o pássaro de pescoço partido, com as garras para a frente. Elas enterraram-se no coração e na nuca da pomba, matando-a imediatamente. Ele voltou a pousá-la no chão e foi ter com Till, o seguidor de pistas. A pomba tinha deixado de sofrer.

 

Fazia frio no pombal, uma alta torre circular com paredes de tijolo cinzento, impregnadas de longos rastros de excrementos, perfuradas por centenas de alvéolos abertos aos quatro ventos. Ao penetrar no seu interior, o senescal e governador do palácio, Gorlois, teve de tapar os ouvidos. Entre arrulhos e incessantes bater de asas, o barulho era ensurdecedor. Não havia um único segundo em que um dos pombos acorrentados não tentasse levantar vôo caindo lastimosamente sobre o seu poleiro, em que dois machos não se batessem a golpes de asas e garras, ou sem que se sentisse o barulho de um bico sobre as lajes de pedra juncadas de grãos de milho, milho-miúdo e excrementos. Gorlois franziu o nariz. O odor que reinava na torre era simplesmente repugnante.

— Como é que conseguem suportar um barulho destes? — gritou para os dois homens que viviam lá, e que apenas tinham por abrigo uma pequena cabana de pranchas, também ela coberta de excrementos.

Os prisioneiros da torre arregalaram os olhos, entreolhando-se e virando-se para o senescal abanando a cabeça, com um sorriso imbecil nos lábios.

— Ah, é verdade, vocês são surdos — resmungou o velho guerreiro.

Surdos e mudos. Um de nascença, o outro porque lhe tinham cortado a língua e furado os tímpanos. Uma ideia do rei, para suavizar a sua condição. Aliás, quem além de um surdo teria conseguido sobreviver em tal algazarra? E depois, é claro, o fato de eles serem mudos garantia que as mensagens confiadas aos pombos continuassem confidenciais.

Os dois homens eram condenados de direito comum, que tinham escapado aos calabouços ou à polé do carrasco para caírem neste inferno malcheiroso do qual não sairiam mais. Mas de que é que eles poderiam queixar-se? Nesses tempos antigos, um condenado ou era redimido ou pendurado na forca. A prisão era um luxo de que bem poucos gozavam. Tudo quanto eles tinham de fazer era alimentar os pombos com as provisões de grãos que lhes passavam por debaixo da porta e que tinham acabado por tornar-se o seu próprio sustento diário. Mal um pássaro chegava, os guardiães da torre tocavam o sino. Uma vez, duas vezes ou três, segundo a importância da mensagem, que eles mediam pela cor do anel fixado na pata do pássaro. Anel vermelho: mensagem reservada ao rei ou ao senescal. O sino tocava três vezes. Importância extrema. Era o caso de hoje.

Gorlois só foi avisado uma hora mais tarde e quando penetrou no pombal os dois surdos-mudos estavam sobreexcitados. Há meses que esperavam a ocasião de se encontrarem com ele para lhe transmitirem as suas queixas, e o momento tinha por fim chegado.

— Então — disse Gorlois. — Essa mensagem?

O maior dos dois homens (enfim, o menos curvado) estendeu a fita de couro vermelha que tinha retirado da pata do pombo-correio e no interior da qual estava fixada uma tira comprida de pergaminho. Gorlois agarrou-a, começou a desenrolá-la e viu que a mensagem com a runa de Beorn provinha de Mahault, a velha louca de Scâth... Meteu o pergaminho no bolso e dirigiu-se para a porta, mas o prisioneiro deu uns gritos guturais para lhe chamar a atenção.

— Que é que se passa?

O homem teve um movimento de recuo, piscou várias vezes os olhos e abriu um sorriso desdentado e estúpido.

Encolhendo os ombros, Gorlois bateu com a mão nas pesadas tábuas de carvalho. Um barulho de chaves respondeu-lhe imediatamente do outro lado da porta. No momento em que ia a sair, sentiu que lhe puxavam a capa e quase perdeu o equilíbrio. O alfinete de prata que lhe segurava o casaco partiu-se sob a tração e caiu por terra, mergulhando numa infame mistura de palha, grãos e de uma massa formada por anos e anos de excrementos.

— Mas que é isto, seus miseráveis? — gritou Gorlois, arrancando-lhes o casaco das mãos.

Os dois imbecis recuaram de novo, tomados de terror pela expressão furiosa do senescal zarolho. O maior afoitou-se e estendeu-lhe a mensagem que tinha escrito muito a custo nas costas de um resto de pergaminho, e na qual eles depositavam tantas esperanças.

— Que é, agora?

Com um gesto agastado, Gorlois pegou no pedaço de papel e tentou decifrar as letras mal desenhadas.

— “Pri... Prisão acabou...” É inacreditável que se possa escrever tão mal! Mas ouçam, já é muito bom saberem escrever, principalmente dois miseráveis como vocês... Foi a ler pergaminhos que aprenderam?

O maior abanou a cabeça, com os olhos brilhantes de esperança, e alisou os cabelos imundos como que para se dar a conhecer.

— É verdade, tu estiveste ao serviço do rei, em outros tempos... Bailio ou camareiro, não foi? Quem é que ainda se lembra, ha? Tenho de contar ao rei, isto vai diverti-lo.

Pôs-se novamente a ler, com um sorriso nos lábios, piscando o único olho e revirando o pergaminho em todos os sentidos para tentar decifrar os gatafunhos.

— “Nós... quer... Sai... Sair”? É isso, “sair”? Querem sair daqui, é isso?

Gorlois mostrou a porta aberta por trás dele, e fez sinal ao guarda para que se afastasse. Levantou as sobrancelhas e sorriu, para reforçar melhor as palavras.

— Querem sair daqui?

Os infelizes compreenderam por fim e puseram-se a abanar freneticamente a cabeça, dando uma espécie de arrancos guturais pouco agradáveis à laia de riso.

O senescal virou-se para o guarda.

— Há quanto tempo é que eles estão aqui?

— Ah... Não sei, meu senhor. Eu estou neste posto há dez anos e eles já estavam aí há bastante tempo...

— Bem...

Sempre a brincar pensativamente com o pergaminho imundo, baixou os olhos sobre as caras embrutecidas e repugnantes dos dois condenados e o sorriso pateta deles deixou de o divertir. Além disso, a algazarra do pombal era completamente insuportável, e ainda por cima fazia muito frio.

— Não! — disse ele abanando a cabeça para que eles o entendessem.

E apontou com o dedo o alfinete partido caído no chão.

— Partiram uma jóia de valor, não está certo!

Ele agitava o dedo como que a ralhar com eles, tomando o guarda por testemunha.

— Não é verdade?

O soldado fez um sorriso hesitante, não sabendo o que responder.

— Não é verdade? — insistiu Gorlois.

— Sim, meu senhor.

— Aí está! — acrescentou o velho homem. — Condeno-vos a dez anos mais pelo crime de partirem uma jóia! E por terem aprendido a ler sem a permissão do rei. Não se deve ler a correspondência dos outros, nunca vos disseram?

Rasgou o pedaço de papel deles, atirou-o para o chão e saiu sem olhar para trás. Atrás dele, o soldado empurrou lentamente a pesada porta de madeira e estremeceu perante a expressão de horror e desespero dos dois prisioneiros. Deu duas voltas à chave, pendurou o molho numa argola cravada na parede e voltou a descer pesadamente as escadas de pedra que levavam à sala da guarda. Olhou com nojo para o corredor pelo qual Gorlois já tinha desaparecido em direção ao interior do palácio e cuspiu sobre as pegadas do senescal.

 

O dia caía quando Till conseguiu pôr-se de pé. Ele tinha recobrado a consciência rapidamente, mas a rainha tinha-o forçado a ficar imóvel e a respirar fundo o espesso e oloroso fumo que saía de uma minúscula fogueira de raminhos e de turfa acesa no meio do abrigo. Till tinha reconhecido a maior parte das plantas medicinais dispostas em volta da fogueira, e os gestos lentos que a rainha traçava na coluna de fumo traziam-lhe recordações antigas. Quando a sua vista deixou de estar turva, descobriu Uter deitado sobre um colchão de musgo. Sempre inconsciente, o cavaleiro estava despido da sua cota de malha e da sua cota de armas, não conservando mais que as bragas e as meias. A um canto, a sua espada e a sua armadura brilhavam debilmente à luz vacilante das chamas. O seu tronco, braços e cara, que continuavam cinzentos mas menos inchados, estavam cobertos por runas desenhadas com cinza pela rainha. Nos seus próprios dedos e na borda da sua mão, ela tinha traçado as runas mestras da cura, os, ear, ac, tir, formando esse desenho cem vezes repetido:

A rainha, dobrada sobre Uter, balançava-se como uma serpente e recitava o velho poema das runas:

 

Byth ordfruma aelcre spraece, Wisdomes wrathu ond witenafrofur, and eorla gehwam eadnys ond tohiht.

Byth egle eorla gehwylcun, Thonne faestlice flaesc ongínneth, Hraw colian, hrusan ceosan Blac to gebeddan; bleda gedreosath, Wynna gewitath, wera geswicath.

Byth on eorthan elda bearnum, Flaesces fodor, fereth gelome Ofer ganotes baeth; garsecg fandath Hwaether ac haebbe aethele treowe.

Byth tacna sum, healdeth trywa wel With aethelingas, a bith onfaerylde, Ofer nihta genipu, naefre swiceth.

O que em linguagem comum poderia traduzir-se por:

 

A boca é a origem de toda a palavra Sede da sabedoria, consolação do sábio, Repouso e esperança do nobre.

As cinzas assustam o nobre, quando repentinamente a carne gela o corpo deve escolher a terra como triste companheira.

Os belos frutos apodrecem, a alegria vai-se, a aliança quebra-se.

O carvalho sobre esta terra é útil aos homens, Como a forragem aos porcos, também ele os alimenta. O mar de vagas afiadas como o chuço Demonstra a nobreza da madeira do carvalho.

Tir é uma runa especial. Aos príncipes ela conserva a fé,

Sempre vitoriosa sobre a obscuridade da noite, ela nunca nos falta.

 

Debaixo da coberta vegetal, no silêncio da noite e no crepitar do fogo, este cântico monótono mergulhava Till numa hipnose letárgica, povoada de sonhos estranhos. Por vezes emergia do nevoeiro profundo no qual se perdia, poço sem fundo sombrio e gelado, para pequenas fases de lucidez durante as quais ele conseguia mesmo chegar a falar com o seu cão e o seu falcão. Latidos, pios, grunhidos... Nem mesmo a rainha conseguia compreender.

Por fim, quando conseguiu levantar-se, foi para se aproximar de Lliane. Pegou-lhe nas duas mãos e inclinou a cabeça.

— Minha rainha, obrigado...

A elfo levantou-lhe a cabeça e sorriu-lhe. Na noite escura, a pouca luz distribuída pelo fogo de raminhos e de ervas medicinais era tão fraca que um homem não teria conseguido distinguir mais nada, dentro da cabana vegetal, que essas minúsculas chamas. Mas os elfos eram criaturas da noite, adoradores da Lua, e os seus olhos perfuravam as trevas como os dos animais selvagens. Ajoelhada ao lado de Uter, Lliane tinha um ar esgotado; Till percebeu que ela tinha usado de magia para salvar aos dois do veneno dos mosquitos e da morte, até ao esgotamento das suas próprias forças.

— Como ele está?

A rainha olhou para o cavaleiro.

— Não sei. Os homens não são como nós, Till. Têm um ar tão forte... e, no entanto, a alma deles é tão frágil...

Ela soltou um suspiro de desalento.

— E depois, eu não consigo falar com o espírito dele. Os seus ouvidos estão fechados, os seus olhos estão fechados, o seu coração está fechado. Não sei onde é que ele está. Só abriu os olhos uma vez depois de o trazermos para cá. Freihr veio trazer bagas de zimbro e pássaros assados, mas não conseguimos fazê-lo comer. Felizmente, bebeu.

Lliane recobrou o ânimo e esboçou um sorriso.

— E tu, meu querido Till, meu amigo, estás melhor?

O elfo verde sorriu e massajou a cabeça.

— Arde-me o corpo todo... E, além disso, tenho um galo enorme na cabeça. Devo ter batido ao cair na jangada.

A rainha deitou-lhe um olhar de esguelha. Estaria a brincar ou teria realmente perdido a memória da luta contra o anão Rogor?

Ele não lhe deu tempo para se interrogar mais.

— Minha rainha, temos de conversar os dois — disse num tom que se tinha tornado grave. — O meu falcão contou-me que o homem Blade matou uma pomba utilizada pelo barqueiro para se manter em contato conosco. Não sei o que isto significa, mas lembras-te sem dúvida que também foi esse homem que matou o cavaleiro Roderic...

— Sim. E, se for esse o caso, significa que não foi por acaso que ele se juntou ao nosso grupo. Esse homem segue-nos desde o princípio, com um objetivo bem definido. Como é que ele terá feito para cruzar o nosso caminho? Como é que ele podia saber que iríamos ver essa mulher em Scâth? Nós próprios só o soubemos na véspera!

— Ignoro...

A rainha dos elfos levantou-se, tocando na abóbada de folhas formada pelo salgueiro. Também ela se tinha livrado das armas e dos equipamentos de viagem, não conservando mais que a sua longa túnica fendida de catassol. Tinha desfeito a trança, e os seus longos cabelos flutuavam livremente até abaixo dos seus rins. Descalça sobre o suave colchão de musgo úmido, esticou os seus membros entorpecidos, cruzou nas costas as suas mãos cobertas de runas e apoiou-se contra o tronco da árvore.

— É um espião — disse ela por fim. — Ele sabe onde se encontra Gael, e manipula-nos para nos conduzir até ele. Porquê?

— Porque precisa de nós para se aproximar dele — calculou Till. — Os elfos dos pântanos não gostam de estranhos. Se Gael está sob a proteção deles, só os elfos poderão chegar perto dele.

Lliane olhou pensativamente para o seguidor de pistas e fez um sinal de assentimento com a cabeça.

— Tens certamente razão. Mas isso não responde à pergunta. Por que é que ele quer tanto aproximar-se de Gael? Por uma simples cota de malha de prata?

Com um gesto quase de desprezo, ela apontou a sua própria cota de malha de prata, pousada negligentemente contra as raízes do salgueiro, com o resto do seu equipamento.

— Elas têm grande valor, é claro. E não ponho em dúvida que ele e os seu semelhantes cheguem a matar para as possuírem. Mas, nesse caso, que é que o impedia de me atacar, no pântano, para me roubar a minha? Ele podia ter cortado facilmente as cordas que nos ligavam às outras jangadas e desembaraçar-se facilmente do pobre Uter, no estado em que ele está... No entanto, não tentou nada.

A rainha interrompeu-se. Não era verdade. Blade tinha tentado qualquer coisa durante a viagem. Mas a sua ambição tinha sido de uma natureza diferente, ela tinha a certeza.

— Há qualquer coisa que nós não sabemos — continuou ela.

— Alguma coisa que nos escondem desde o início.

Till, que acariciava silenciosamente o seu cão deitado contra si, olhou o corpo inerte de Uter, estendido ao lado do fogo.

— Homens a mais — murmurou ele.

— O quê?

O seguidor de pistas voltou-se para a rainha dos altos-elfos.

— Dizia para comigo que isto é uma história entre nós e os anões, mas que foram os homens que nos enviaram sobre a pista de Gael, que é um homem quem manobra no escuro e que, afinal de contas, foram dois homens, Uter e esse bárbaro grande, que foram falar com a receptadora de Scâth... Não sabemos, com efeito, sobre o que falaram. E foram eles, no fim de contas, que voltaram com esse Blade. No mínimo, um ladrão... Se não for um assassino. E se todos esses homens estivessem envolvidos uns com os outros?

— Esqueces-te de que Blade matou o cavaleiro Roderic — disse a rainha. — Ninguém duvida de que, se Uter e Freihr soubessem, fá-lo-iam pagar com sangue. Não, eles não estão combinados. Isso não é possível.

Till voltou a acariciar o seu cão, que suspirou satisfeito e se esticou languidamente.

— Mas, como bem disseste, minha rainha, os homens não são como nós.

 

Fazia frio na capela, mais que em qualquer outro local do palácio. Os monges não tinham feito nenhuma chaminé e não havia tecidos para aquecerem as pedras nuas do edifício, exceto um dossel nas cores reais, o branco, símbolo da pureza e da justiça, e o azul, a cor do céu. Ajoelhado sobre um genuflexório forrado de veludo ao lado da rainha Ygraine, frente ao coro, Pellehun deixava o seu olhar vaguear pela abóbada pintada e pelos altos pilares da nave. Como todas as vezes, ele sorriu olhando os capitéis, ornados de monstros com garras, cornudos, deitando a língua de fora, todo um bestiário de gárgulas e demônios inspirados nos guerreiros gobelins das Terras Gastas, que só os velhos da Guerra dos Dez Anos podiam adivinhar. Quanto ao resto, a capela era de um enfado...

— Senhor, não estais a ouvir — soprou Ygraine.

— Mas sim — resmungou Pellehun, voltando a sua atenção para o catequista.

Desesperado com a falta de atenção do rei, o monge tinha-se calado e olhava-o com uma expressão tão desencorajada que a cena se tornava quase divertida.

— Então! Estava a falar dos pecados, não é?

— Sim, senhor — disse o capelão com um suspiro resignado.

— Os sete pecados capitais: orgulho, inveja, ira, preguiça, avareza, luxúria e gula.

— Pois bem — disse Pellehun, sorrindo à jovem rainha —, creio que os tenho todos! Qual é o meu prêmio?

— Cada um desses pecados é um ramo da mesma árvore, e essa árvore é o Mal — continuou o padre. — E cada ramo divide-se em raminhos. Assim, o orgulho gera deslealdade, despeito, presunção, ambição, glória vã, hipocrisia, vergonha! E cada raminho divide-se em outros novos. Da deslealdade, por exemplo, nascem os ingratos, os violentos e os renegados. O menor dos pecados chega, ele próprio, até o mal!

Pellehun já não sorria. Levantou-se lentamente e o raspar da ponta da bainha da sua espada nas lajes ressoou por toda a capela.

— Por que estás a falar de deslealdade? — disse com uma voz irada. — Violento, ha? Renegado? Quem é que tu julgas que és, monge?

O capelão titubeou, procurou com os olhos o apoio da jovem rainha, que tentava agarrar o seu esposo pela manga.

— É somente um exemplo, senhor...

— Largai-me, senhora! — grunhiu Pellehun, soltando-se. — Além disso, saí! Chega de fradarias por hoje!

O velho rei aproximou-se perigosamente do catequista, que recuava passo a passo pelo coro até ao altar. Ouviu por detrás dele o bater entrecortado dos passos de Ygraine e o rangido da porta quando ela deixou a capela.

— Irei ao vosso quarto esta noite! — gritou ele. — É preciso não esquecermos o pecado da luxúria!

Depois, baixinho, na cara do monge:

— Não é verdade, abade?

Uma voz forte ressoou nas suas costas.

— Meu senhor!

Pellehun virou-se lentamente, com um último esgar de desprezo. Era o duque Gorlois quem subia a nave a grandes passadas.

— Uma mensagem! — disse, bramindo o pergaminho atado com uma fita vermelha. — Notícias do nosso homem!

Pellehun parou-o com um gesto.

— Que é que te deu? Entras numa igreja como um caserneiro, falas alto, andas, marchas, não te persignas diante da Santa Cruz? Mas será que não tens nenhuma religião?

— Bom, sim, está bem — disse o senescal, ajoelhando-se e persignando-se apressadamente.

— Assim está melhor — disse Pellehun, virando-se para o monge com um sorriso alegre. — Não é verdade, abade?

 

A meio da noite, Uter Começou a delirar

Os seus gemidos e depois os seus gritos acordaram a rainha dos altos-elfos, que regressou à sua cabeceira. Ela acrescentou morrião e pé-de-galinha ao fogo de raminhos, segundo os rituais da magia das plantas: utilizar somente a mão esquerda e não olhar para trás para não atrair os espíritos maus.

— É inútil — disse Till atrás dela. — As fumigações curaram os seus olhos e o seu corpo, mas é a sua alma que parte.

— Cala-te!

Till não insistiu. Lliane soltou um longo suspiro e baixou a cabeça. Ele tinha razão, é claro. As bolhas e os inchaços que semeavam o corpo do cavaleiro tinham desaparecido, mas ele estava a entrar no esquecimento, ele renunciava a lutar.

— Ainda não acabou! — disse a rainha.

Ela pegou num ramo de meimendro de flores amarelas raiadas de púrpura, trazido pelo falcão de Till, e começou a pilá-lo contra um seixo. Com os seus longos cabelos colados à cara e ao pescoço, os lábios fechados, ela esmagou a planta até obter uma pasta à qual juntou um pouco de água.

— Ajuda-me! — ordenou ao seguidor de pistas.

Till agarrou firmemente a cabeça do cavaleiro e abriu-lhe os maxilares à força, enquanto a rainha lhe deitava pela garganta abaixo a papa espessa.

— Isto vai acalmá-lo — murmurou ela. — Isto vai curá-lo...

Till abanou a cabeça sem dizer nada. Ele sabia que o meimendro não era só um calmante. Desde sempre que os magos e adivinhos de todas as comunidades élficas conheciam as suas propriedades proféticas e utilizavam-no com parcimônia para provocar visões. Ele sabia igualmente — como Lliane — que o meimendro, numa dose muito forte, era um veneno.

Ele segurou a cabeça do cavaleiro até este engolir a mistura. Depois afastou-se e observou em silêncio o efeito do medicamento.

Uter abriu os olhos. Lliane estava ali, debaixo da abóbada de folhas. O seu estranho olhar em amêndoa de um verde quase amarelo acariciava-o, e os seus lábios formavam palavras que ele não conhecia. Já não estava doente. Os milhares de agulhas que o tinham martirizado tinham desaparecido. A febre tinha baixado e ele estava mergulhado num torpor infinitamente agradável.

A rainha pousou sobre a sua fronte um pano umedecido com água de carvalho, e depois secou-o com as mãos. Uter sorriu, conseguiu levantar o braço para lhe agarrar o ombro e aproximá-la suavemente dele.

— Minha rainha — murmurou ele.

Mas ela pousou-lhe um dedo sobre os lábios.

— Tu voltas — disse ela —, tu voltas para mim...

Uter puxou-a ainda mais e os seus corpos tocaram-se. Pele contra pele.

Lliane estava nua, como ele, estendida a todo o comprimento sobre o corpo do cavaleiro, tão leve quanto um sopro de ar fresco. Ele acariciou-a fechando os olhos, com medo de quebrar o encanto, e só os abriu quando sentiu os cabelos da elfo aflorarem-lhe as faces. Lliane continuava a sorrir-lhe, e foi ela quem se debruçou para o beijar. A pele dela sobre o seu ventre era tão suave como veludo.

Till sorriu e deitou um olhar à rainha, agachada a seu lado contra o tronco do salgueiro, com os joelhos envoltos pelos braços.

— Creio que sei com o que é que ele sonha, minha rainha — murmurou o elfo verde.

Lliane não respondeu. À luz do fogo de raminhos, os seus olhos brilhavam como ouro no azul-prateado da sua cara. E o seu olhar estava fixo em Uter.

 

O Sr. Rassul tinha partido à frente dele, sem refletir, com as suas longas passadas tal qual o galope de um cavalo, tão rapidamente que só Assan, o seu servo elfo, conseguiu notar a sua partida.

Lame e os cavalos livres tinham voltado de cabeça baixa para o acampamento de Llandon, de passo pesado, carregados com o peso das más notícias.

Confuso e inquieto, o garanhão branco amigo do rei atormentava-se ao ter de comunicar-lhes a morte do pajem Llewelin, o infortúnio da companhia em Kab-Bag e o seu embarque para os pântanos, sobre jangadas más, acompanhados somente por cavalos de albarda sem alma e sem coragem...

Ninguém tinha feito perguntas. As únicas palavras de Llandon tinham sido para reconfortar Lame e os seus companheiros, mas Rassul tinha sentido cair sobre si o peso desse silêncio. Se a rainha tinha seguido caminho para o pântano e para além dele, é porque estava na pista de Gael, convencida da sua culpabilidade, para se aventurar numa travessia tão perigosa... Llandon nada tinha dito, mas a desonra de Gael pesava sobre todos os elfos cinzentos, e principalmente sobre ele, o seu rei. Pobre rei sem reino e sem poder, alvo de zombaria de alguns anões ridículos, cheios de arrogância e desprezo, que reclamavam justiça agitando os seus machados, de carrascos, ainda a pingarem de sangue do seu povo! E se eles encontrassem Gael, seria necessário entregá-lo implorando-lhes perdão? E se não o encontrassem? E se Lliane fosse morta?

Rassul continuava a correr, indiferente aos ramos que lhe açoitavam a cara, debaixo dos primeiros flocos de neve do Inverno. Corria chorando de vergonha e de raiva, e as lágrimas gelavam sobre o seu rosto frio. Correu até às margens do rio, até que a água sombria e os canaviais quebraram o seu ímpeto. Então deixou-se cair como uma massa na água glacial, cedendo ao desespero absoluto a que tantas vezes se entregavam os elfos até ao completo aniquilamento.

Quando por fim Assan chegou ao pé dele, o rei dos elfos cirzentos arrastava-se no lodo das margens, sufocado no seu choro, soltando longos gemidos que lhe partiam o coração. Chafurdou até ao pé dele, agarrou-o pelos ombros e trouxe-o para a margem, onde Rassul se enterrou nos seus braços até os seus soluços se esgotarem.

A noite caiu assim sobre os dois elfos abraçados, salpicados de neve e brilhantes do gelo, semelhantes a um rochedo banhado pelas águas do lago.

 

Os lamentos dos noitibós, esses predadores noturnos do comprimento de uma mão cujas plumas se assemelham à cortiça, esgotavam-se com a aurora, e Tsimmi percebeu que quase não tinha dormido. Era a hora cinzenta da manhã e os pântanos estavam perfeitamente silenciosos. Imóveis. Presos entre céu e água no mesmo nevoeiro escuro e insípido

O anão olhou para os corpos dos seus companheiros, enrolados em cobertas. Freihr não estava ali. Deitou um olhar ao salgueiro de ramos estranhamente torcidos que formavam uma cabana natural. A rainha dos elfos, decididamente, tinha poderes estranhos...

Com a ponta da bota, tocou Miolnir, que acordou com um resmungo.

— Pelas minhas barbas! — disse ele, levantando-se do seu lugar e deitando à sua volta um olhar taciturno. — Sonhava que já estava em minha casa, nas montanhas, no meu leito de peles!... Que país!

Tsimmi deu-lhe razão com um acenar de cabeça. Os pântanos representavam tudo quanto um anão podia detestar: o frio, a humidade, a natureza selvagem e quase nenhuma terra firme para pousarem os pés. Um país odioso em todos os sentidos.

Levantou-se sobre as suas pernas curtas, massajou demoradamente as costas e começou a pentear a barba com a ajuda de um raminho (raramente se fala nisto, mas os anões são muito cuidadosos com o seu aspecto). Depois, esfregou os dentes com o mesmo raminho, lavou a boca com um gole de água e procurou dentro do seu saco alguma coisa para comer.

— Vai ser preciso caçarmos — disse ele. — Dentro em breve só nos restarão biscoitos de aveia...

Rogor e Blade tinham também acordado, igualmente de mau humor.

— Bom-dia, meus senhores — lançou ele com uma reverência desajeitada. — Que belo dia! Um verdadeiro tempo de elfos, os pés molhados e chuva sobre a cabeça!

Blade olhou para o céu e encolheu os ombros.

— Tu dizes o que te vem à cabeça, anão. Não está a chover...

— E depois? Ela vai vir! Desde que partimos, chove, neva e estamos ensopados. Por que é que havia de fazer bom tempo hoje?

— Ah, cala-te... Olha, prefiro ir mijar.

O ladrão atirou as cobertas para trás, levantou-se com ligeireza e embrenhou-se nos cercados.

Ao mesmo tempo, a cortina de folhas formada pelo salgueiro estremeceu, e a rainha Lliane saiu, seguida por Till e o seu cão.

— Vejam só quem aqui está! — disse Miolnir. — Um regresso!

O seguidor de pistas deitou-lhe um olhar sombrio, mas Tsimmi avançou para a rainha com um sorriso jovial.

— Conseguistes salvá-lo! — exclamou ele, admirado e incrédulo, examinando o seguidor de pistas com um olhar de especialista. — Gostaria muito que me ensinásseis como... E Uter?

— Melhor!

Tsimmi deu um passo para o lado e descobriu por trás da rainha a figura alta de Uter, o “Moreno”, ainda vacilante, mas com vida.

— Melhor — repetiu o bravo. — Vou ficar bom...

— Meu amigo! — murmurou o anão correndo para Uter para lhe agarrar as mãos. — Estou tão contente!

O cavaleiro sorriu-lhe, mas a sua cor acinzentada e o seu ar desfeito não agradaram nada ao mestre mação.

— Espera — disse, pegando num dos seus preciosos alforges.

— Tenho um remédio que te dará forças...

Levantou a cabeça e lançou uma piscadela de olho cúmplice ao cavaleiro.

— Quero dizer... Se a rainha deixar!

Lliane deixou escapar algumas notas de um riso puro.

— Mestre Tsimmi, se tem alguma coisa que nos dê forças, serei a vossa cliente número um!

Tsimmi empertigou-se, todo contente, mas um grito abafado imobilizou-o.

— Silêncio! — murmurou Blade agachado entre o tojo. — Vem aí alguém!

Num só movimento, todos pegaram as suas armas e abrigaram-se, uns num tronco de árvore apodrecido, outros num arbusto, outros num monte de terra. Escondido por trás de um rochedo, com a funda na mão, Tsimmi mordia os lábios, com os sentidos todos alerta. Subitamente, o estalar de um ramo, bem perto, fê-lo dar um salto e ele encontrou-se frente a frente com a cara enorme de Freihr, assustadora sob a carapaça de lama seca.

— Buu! — gritou o bárbaro, revirando os olhos.

— Cos diabos, Sr. Freihr, não tem graça nenhuma! — protestou Tsimmi levando a mão ao coração.

O guerreiro sorriu e avançou até ao meio do bosquete, feliz com a brincadeira, e também com a demonstração que tinha feito da sua habilidade de caminhar em terrenos de silvas.

Vendo Uter encostado a uma árvore, ocupado a lavar a cara com água, o bárbaro sorriu ainda mais.

— Já não estás doente — disse, dando-lhe uma palmada que quase o atirou ao chão. — Freihr está muito contente.

— Obrigado, meu amigo — disse Uter com um sorriso cansado. — A rainha Lliane tem muitos talentos...

A elfo agradeceu a Uter com um sorriso e depois deu meia volta para acabar de se equipar. O olhar do cavaleiro ficou preso a ela, sem conseguir desviá-lo. A recordação da noite febril continuava no seu espírito, mas a atitude distante de Lliane enchia-o de dúvidas. Será que tinha sonhado? Não, era muito mais real que um sonho. Ainda se lembrava do gosto dos seus lábios, do calor da sua pele; os sonhos não dão semelhantes sensações.

— Viste alguma coisa? — perguntou Blade.

O bárbaro acocorou-se, com a espada entre as pernas. De repente, a sua cara ficou séria. Todos os olhares convergiram nele, incluindo o dos três anões que estavam um pouco afastados, de sentinela.

— Há umas cabanas, mais longe, a uma hora de caminho revelou ele, esticando o braço para norte. — Vi alguns elfos, esta manhã, mas unicamente fêmeas e crianças. Os outros devem estar escondidos...

— Sim, ou estão a preparar-nos uma emboscada — disse Tsimmi.

— A vós talvez, mas não a mim! — lançou Blade num tom confiante.

— Basta-me ir lá e pedir-lhes que nos levem até Gael, eis tudo!

— Eis tudo, claro — grunhiu Miolnir. — E cairemos todos nas suas patas sujas como presas!

Till reagiu ao insulto proferido contra os elfos cinzentos, mas a mão da rainha pousou-se imediatamente sobre o seu braço.

— É verdade — reconheceu ela — que os nossos amigos anões não são bem-vindos a Gwragedd Annwh. E como creio que não quererão que sejamos só nós a procurar Gael, penso que não teremos outra escolha...

— As vossas palavras são a própria sabedoria — aprovou Blade, inclinando-se para a elfo com uma deferência de circunstância. — Por que é que os elfos cinzentos me fariam mal se eu vou trazer prosperidade ao rei deles?

O ladrão calou-se, dando tempo de reflexão a cada um deles.

— Bom, está dito! Se o Sr. Freihr aceitar guiar-me, encontraremos Gael e eu farei a minha transação, como previsto. Depois, deixo-vo-lo.

Freihr fungava e saltitava de um pé para o outro. Procurou o olhar de Uter, que avançava lentamente para eles. Tinha abandonado a sua armadura, demasiado pesada e barulhenta para os pântanos, e conservava o seu mantelete de ferro que lhe cobria o pescoço e os ombros. Os braços e as pernas estavam apenas protegidos por uma cota de malha. Uma longa cota de armas, de tecido pintado com grossas riscas horizontais azuis e brancas, cobria-lhe o corpo todo, desde os ombros aos tornozelos, e balançava ao ritmo dos seus passos. Uter tomou o tempo necessário para afivelar o talim que prendia a sua espada pesada ao seu flanco antes de levantar os olhos para Blade, o ladrão.

Os dois homens olharam-se em silêncio durante longos segundos. Uter ainda estava pálido, com a cara coberta de suores frios, os traços cansados, as sobrancelhas queimadas pelas chamas e o rosto comido por uma barba de três dias. Olhando com atenção, as runas que a rainha Lliane tinha desenhado com cinza sobre a sua testa eram ainda visíveis. O fiel cavaleiro, que tinha deixado Loth sob a aclamação do povo, não era mais que uma sombra de si mesmo, apesar do brilho sombrio dos seus olhos. De corpo baixo e olhando para cima, Blade deixou rapidamente de sorrir, não entendendo o que lhe valia um tal exame. Depois, bruscamente, a mão do cavaleiro abateu-se sobre o seu ombro e fê-lo rodopiar sobre si mesmo, antes de o agarrar pelo pescoço e de o atirar ao chão, de joelhos.

Antes que alguém pudesse reagir, Blade escapou do punho enfraquecido do cavaleiro e levantou-se, com a mão já armada com uma das suas numerosas adagas que trazia escondidas à cintura. Compreendeu imediatamente o seu erro.

Ao acordar, tinha-se esquecido de vestir o seu casaco cinzento. O cavaleiro tinha notado aquela escura enfiada de adagas em volta da cintura do mestre ladrão, e o seu sangue tinha gelado ao reconhecer as armas.

Blade deitou um rápido olhar em volta, com o estilete sempre estendido em frente dele. O cavaleiro não tinha tirado a sua espada. Os elfos não se tinham mexido e observavam-no em silêncio, mas os anões tinham sempre os seus queridos machados na mão. Freihr aproximava-se perigosamente.

— Que é que te deu? — gritou o ladrão, num tom menos seguro do que gostaria.

— O meu irmão de armas morreu com a garganta cortada, há menos de uma semana, por uma adaga semelhante às tuas — disse Uter.

— E depois? Toda a gente tem destas adagas!

— Sim, mas falta uma adaga à tua cintura...

Blade cometeu um segundo erro, o de verificar.

— Foste tu quem matou Roderic, não foste?

O ladrão não teve tempo de responder. Um uivo animalesco fê-lo dar um salto, e teve somente tempo de saltar para o lado para fugir ao ataque furioso de Freihr. Blade rolou pelo chão e levantou-se num mesmo movimento, com uma agilidade espantosa. Antes mesmo que o colosso pudesse virar-se, ele projetou a adaga na sua direção e correu a toda a pressa para os matagais. Durante alguns segundos ouviu os gritos do grupo e os uivos de Freihr. Depois não ouviu mais do que a algazarra de alguém a persegui-lo, barulho esse que não podia ser de outro que não um anão. Blade correu ainda mais e em breve só já ouvia o barulho da sua corrida. Então, só nessa altura ousou olhar para trás. Estava sozinho.

Sem fôlego, as têmporas em fogo, deixou-se cair no chão, com o espírito vazio. Os gritos de Freihr mostravam bem que tinha falhado o alvo. Uma falha inconcebível para um mestre ladrão habituado a dominar os nervos. Quando retomou o fôlego, levantou-se e inspecionou as redondezas. Só moitas de juncos, alguns amieiros murchos ou tufos de fetos. Nada de céu, nada de vistas... A bruma mantinha-se e o frio começava a tomar conta dele. Não tinha nem víveres, nem casaco, nem outras armas além destas malditas adagas que o tinham traído.

— Que se danem — resmungou ele. — Que se danem todos como cães!

Blade reprimiu um ataque de tosse, com os pulmões em fogo de tanto que tinha corrido. Estava acabado. Tinha de sair deste país maldito, encontrar o pântano e esperar até ao anoitecer, confiando em que Oisin viesse ao seu encontro.

— Deus do céu!

Tinha acabado de perceber que já não tinha o seu alforge: não tinha nada com ele que pudesse passar aos olhos do gnomo por antídoto. Tanto pior, que se dane, ele também.

Blade pôs-se a caminho em direção a um tronco branco de um choupo que emergia de uma cortina de fetos e juncos carregados de flores amarelas. Subindo a ele, talvez conseguisse orientar-se e voltar até ao pontão...

Desembainhou uma das suas adagas e abriu caminho por entre as longas hastes dos fetos, chafurdando de novo na lama turfosa do pântano. A adaga era uma arma de estoque e não de corte e a sua lâmina não tinha outro efeito senão o de afastar a cortina vegetal sem lhe fazer mossa, mas os grandes golpes raivosos que o mestre ladrão dava apaziguavam o seu pesar.

Repentinamente, um piar agudo fê-lo dar um salto. Curvado sobre si mesmo, retendo a respiração, perscrutou o céu avistando o falcão de Till. O matagal era demasiado espesso, mas talvez ele estivesse aí, voando por cima dele... Uma vez mais, o grito agudo soou, muito perto desta vez, a rasar a terra. Blade apontou a sua adaga para a insondável cortina de fetos e recuou, com a respiração entrecortada, deitando olhares ao seu redor.

No momento em que se preparava para fugir de novo com quantas pernas tinha, uma mão segurou-lhe o braço e projetou-o para o lodo. Blade gritou, arrastando-se na lama negra e conseguiu voltar-se para o seu agressor.

Eram dez, talvez mais, magros de meter medo e com as caras cinzentas.

 

— Então? — perguntou Tsimmi, vendo regressar Miolnir. Mal viu o olhar furioso e envergonhado do seu amigo, soube que a pergunta era inútil. Os anões eram ótimos guerreiros em combates frente a frente, com os terríveis molinetes das suas pesadas espadas fazendo estragos à altura das ancas na maioria dos seus inimigos, mas correr não era com eles, e toda a gente o sabia. Não só Miolnir se tinha rapidamente deixado ficar para trás, como também se tinha perdido nesses pântanos repugnantes invadidos de juncos e de bosquezinhos de vimes que, dada a sua estatura, formavam uma verdadeira cortina em volta dele. Ele tinha-se perdido e tinha tido medo (sentimento desagradável para um cavaleiro anão da sua reputação).

— Também, por que é que esse aí não fez nada? — gritou ele, designando Till. — Nunca está presente quando há perigo! E é ele seguidor de pistas!

Till empalideceu com o insulto e, agarrando no seu arco, tirou uma flecha da aljava fixada à sua cintura. O seu cão avançava já, rosnando para o cavaleiro anão, com o pêlo eriçado ao longo da espinha.

O falcão retomou imediatamente o seu vôo, pronto a atirar-se sobre o seu adversário para o matar com golpes de bico e de garras.

— Todos nós ficámos surpreendidos com a reação de Blade — interveio calmamente a rainha Lliane sem fazer um gesto para se interpor entre o elfo verde e o anão.

Till e o cavaleiro anão sentiram que a raiva mortal entre eles se esfumava. Havia qualquer coisa na voz da elfo que apaziguava a alma e fazia que a escutassem.

— Fostes o único, Sr. Miolnir, a ser suficientemente rápido para lhe dar caça — continuou a rainha.

— Ah!

O guerreiro anão regozijou-se e levantou desafiadoramente o queixo (ou seja, a sua barba teve uma espécie de tremor de orgulho). Olhou o seguidor de pistas e o cão de alto a baixo com um trejeito de desprezo, olhou negligentemente para o céu onde voava o falcão, voltou-lhes as costas rindo, e foi ter com Rogor.

O silêncio recaiu sobre a companhia. Um silêncio de bruma, denso e espesso, pesado de palavras não pronunciadas e de perguntas sem resposta. Foi Miolnir, de novo, quem cedeu primeiro.

— Então, cos diabos quê é que fazemos?

— Pois bem, eis a questão — murmurou Tsimmi que tentava em vão acender o seu cachimbo de barro branco com a sua pederneira.

Desistiu e guardou o cachimbo e a pederneira no seu alforge, antes de perceber que todos os olhares estavam postos nele, como se a sua simples frase o tornasse porta-voz dos negros pensamentos do grupo inteiro. Olhares fugidios, testas franzidas, lábios fechados.

— Bom — disse o mestre mação ao levantar-se. — Eis o ponto da situação: se as desconfianças do Sr. Uter são fundadas (e a fuga de Blade é, parece-me, prova suficiente), o homem que deveria conduzir-nos até Gael tem-nos seguido provavelmente desde que saímos de Loth. Matou o Sr. Roderic e quase reservou a mesma sorte ao Sr. Freihr — neste ponto, sublinhou as suas palavras fazendo um sinal com a cabeça em direção ao bárbaro, que continuava a pressionar contra a face profundamente ferida pela lâmina do mestre ladrão uma compressa de musgo —, e se ele sabia realmente onde encontrar o Sr. Gael, agora já não vai dizer-nos... Portanto...

— Portanto, temos de ir à aldeia que Freihr avistou e pedir ajuda aos elfos cinzentos — concluiu a rainha Lliane. — Eu irei falar com eles. Eles me escutarão...

— Perdão — disse Tsimmi —, vou continuar. Portanto, dizia eu, a questão que se põe é a seguinte: por que é que este homem nos seguia e por que é que...

— Portanto, está bem claro que estas palhaçadas já duraram o suficiente!

A voz possante do Sr. Rogor petrificou-os. Erguido em toda a sua estatura (e ela era considerável para um anão), com as pernas fixadas solidamente no chão, despiu a sua túnica vermelha de pajem, marcada com as runas do rei Baldwin e manchada pelo lodo do pântano, e atirou-a para o chão. Depois, tirou da sua cintura um ferro de um machado de dimensões consideráveis e fixou-o sobre um sólido punho que Miolnir, colocado respeitosamente dois passos atrás dele, lhe estendia.

— Oh, não — murmurou Tsimmi, interrompido no seu discurso.

Sem querer, procurou o olhar de Uter e depois o da rainha. O cavaleiro parecia fascinado por cada gesto de Rogor, mas Lliane olhava para ele, Tsimmi, com ar de reprovação, de dor e de cansaço que partiu o coração do mestre mação.

— Eu sou Rogor, sobrinho do rei Troín e herdeiro do trono sob a Montanha Negra! — disse o grande anão com a sua voz terrível subjugando o seu pesado machado com as duas mãos. — O elfo Gael matou o meu tio e eu vingá-lo-ei!

Afastou a sua longa barba ruiva e mostrou a sua armadura ornada de um brasão negro com uma espada dourada.

— Dwalin! Dwaaalin!

— Vida longa, barba longa, terror dos seus inimigos! — lançou Miolnir por trás dele com uma voz um pouco exaltada, para espanto de Tsimmi.

Uter, aturdido e ultrapassado pelos acontecimentos, procurou com os olhos a ajuda dos seus companheiros. Estremeceu ao descobrir que Till tinha o seu arco preparado, com uma flecha encaixada. A própria rainha parecia estar ao ponto de desembainhar a sua longa adaga élfica, mas sobretudo a sua cara, e a expressão de desafio selvagem que ela mostrava nesse momento, pasmaram o cavaleiro.

— Sr. Uter!

O jovem bravo aproximou-se do príncipe Rogor.

— Segundo a minha crença, foi a mim que fizeram mal! — disse o anão. — Tu, companheiro, foste enviado pelo grande Conselho com um só propósito: punir o elfo assassino. Portanto, deves ajudar-me, e tu também, Sr. Freihr... porque, se não vingarmos o Manes [3] do meu tio, não terei outra escolha senão lançar sobre o povo do assassino a ira dos anões!

Como Freihr o olhava com a sua expressão habitual (ou seja, parecia nada compreender do discurso do anão), Rogor enterrou no chão o seu enorme machado.

— Guerra!

Por trás dele, Miolnir levantou ferozmente o seu próprio machado, com os olhos a brilharem de excitação.

— Guerra! Guerra!

— O elfo Gael deve ser punido, e é isso que será feito, com a vossa ajuda ou sem ela! O sangue lavará a injúria! É a justiça! É a decisão do Conselho! É preciso marchar sobre a aldeia desses cães e forçá-los a entregarem-no-lo!

A injúria deu um nó nas tripas de Tsimmi, que se voltou

novamente para a rainha para tentar atenuar os propósitos de Rogor, mas o rosto da elfo aterrorizou-o. A recordação fulgurante das lendas aterrorizadoras e maravilhosas que lhe tinham contado noutros tempos ao adormecer passou-lhe pela cabeça. As fadas-dragões com olhos de fogo, vampiros lívidos, miragens frias, sortilégios mortais, flechas de prata. A rainha, nesse instante, parecia ter acabado de sair de um desses contos. Elfo da noite, serpente gelada que vem devorar os pobres anõezinhos de berço e que vos agarra com os seus dedos azuis e vos tritura o coração se se arriscarem a andar sozinhos na floresta...

Como dois animais selvagens, fixando os seus olhos amarelos no grupo de anões, Lliane e o seguidor de pistas avançavam para eles num passo deslizante, imperceptível, o rosto deformado por um esgar horrível, os lábios arreganhados sobre os dentes tal qual os vampiros da lenda, cuja beleza maravilhosa se transformava num instante numa monstruosidade mortal.

Uter e Freihr viravam-lhes as costas, tentando desesperadamenfe conversar com Rogor. As palavras deles eram sobrepostas por Miolnir, inconsciente e fanfarrão, que cantava a plenos pulmões o velho canto de guerra dos anões sob a Montanha Negra:

 

Om, Om, Ghâzar-Run Ouro e ferro, Tambor ribomba Sopra o vento Morte e guerra Tambor ribomba Ghâzar-Run

 

Algazarra ridícula.

Tsimmi, aterrorizado, recuou precipitadamente e caiu sobre o chão de turfa. A rainha estava muito perto dele, avançando sem olhar para ele, com os olhos fixos no grupo de guerreiros. Na bruma rasteira e nas ervas altas que lhe escondiam os pés, parecia flutuar sob o solo, pálida e silenciosa. Um fantasma. Os olhos do anão foram atraídos irresistivelmente pela lâmina de prata de Orcomhiela, a longa adaga de dois gumes que a elfo apontava em frente dela, a rasar o chão. Procurou às apalpadelas uma arma na sua cintura: o seu martelo de guerra estava longe de poder ser usado, pousado sobre as suas bagagens. Depois Miolnir gritou, com o dedo estendido para os elfos, e todos se viraram ao mesmo tempo, no momento em que Till atirava a sua flecha. Tsimmi teve tempo de ver Uter e Freihr atirarem-se ao seguidor de pistas. Percebeu ainda o grito de Miolnir no momento em que a flecha lhe atravessou a mão, depois a rainha lançou-se ao ataque e o mestre mação atirou-se aos seus pés para a fazer cair.

Lliane caiu redonda, perdeu a sua adaga e voltou-se, atirando sobre ele os seus olhos amarelos de animal selvagem. Tsimmi estava já em pé, dominando-a com a sua pequena altura, com um simples punhado de terra na mão. Lançou-a sobre ela e bateu violentamente com o pé no chão. Lliane fechou os olhos quando uma chuva de terra lhe fustigou a cara. Quando voltou a abri-los, cruzou o olhar e viu o anão abanar a cabeça com uma expressão desolada. No instante seguinte, um levantamento de terra negra e lamacenta jorrou até ao cume das árvores num estrondo ensurdecedor, depois abateu-se sobre a rainha e engoliu-a.

 

Na planície, a neve tinha deixado de cair há dois dias. A perder de vista, tudo estava branco, e o próprio lago estava coberto de placas de gelo. Só as muralhas de Loth, e por cima delas as torres do palácio, visíveis a léguas de distância, contrastavam sobre a paisagem imaculada. O senescal-duque Gorlois, agasalhado numa capa de pele e calçado com borzeguins de couro grosso e cravejado, deixava-se balançar na sua sela, saboreando o silêncio opaco da primeira neve, a ressonância acolchoada dos passos do seu cavalo e o barulho metálico quase imperceptível das armas da sua escolta. Com a cabeça tapada por um chapéu vermelho realçado por um turbante, uma longa tira de tecido que se enrolava em volta do forro para descer depois em volta do pescoço à maneira de lenço, com as mãos protegidas por luvas altas de couro forrado a pele, ele não sentia do frio mais do que um agradável entorpecimento na cara, vivificante, ao contrário dos seus homens de armas, que tiritavam debaixo das cotas de malha geladas.

Gorlois sentia-se bem.

A perder de vista estava a terra dos homens. Na sua juventude, a floresta estendia-se até às portas de Loth, na altura uma simples aldeia fortificada, mas os camponeses livres e os servos tinham queimado os bosques, desbravado, trabalhado os campos e construído aldeias. O reino de Logres tinha-se tornado imenso, mais poderoso do que alguma vez o rei Pellehun e ele haviam sonhado.

— Meus senhores! Ei-los...

A apóstrofe do cavaleiro que seguia na frente arrancou o senescal dos seus pensamentos. Picou as esporas e o seu cavalo começou a trotar, passando à frente da escolta para se apresentar frente ao senhor Rassul, rei dos elfos cinzentos dos pântanos, que esperava por ele à beira do lago. Gorlois levantou a mão direita em sinal de saudação, depois desmontou com menos elegância do que gostaria. Os anos começavam a pesar...

Rassul, tal como o senescal lhe tinha recomendado, tinha vindo sozinho ao encontro, acompanhado unicamente pelo seu servo elfo, Assan, o qual não parecia armado com mais do que uma longa vara sem ferro, nem sequer talhada em chuço.

Os dois elfos, imóveis sobre as margens do lago, pálidos e magros, estavam somente vestidos, como era seu hábito, com as suas longas vestes de catassol, e Gorlois sentiu frio por eles.

Deitou um olhar para trás, certificando-se de que os seus guardas ficavam à distância, e depois tirou a sua luva e estendeu a mão ao rei.

— Obrigado, senhor, por terdes respondido à minha mensagem — disse, inclinando a cabeça com humildade.

— E então?

Gorlois avançou mais e pegou familiarmente o elfo pelo braço. Deus do céu, ele nem sequer estava armado! Nem mesmo uma adaga!

Durante o espaço de um segundo, o velho guerreiro brincou com a ideia de lançar a sua escolta sobre os dois elfos e de os matar. Seria fácil. Bastaria deitar os corpos ao lago. Os corpos só seriam devolvidos no degelo, e os elfos cinzento não teriam mais rei...

— Então? — insistiu Rassul. Gorlois sorriu e afastou-se com ele.

— Senhor, recebi notícias da nossa delegação. Por pombo-correio, na província de Kab-Bag.

— Sim, e então?

— O rei Pellehun e eu próprio pensamos que deveríeis ser informado antes que o Grande Conselho se reunisse. Pois deverá reunir-se de novo, antes mesmo de a rainha Lliane e de os nossos enviados regressarem a Loth. São más notícias, creio.

Rassul parou e retirou o seu braço do de Gorlois.

— Encontraram Gael?

— Não, ainda não... mas já têm a prova da sua culpa. Temo que os anões tenham dito a verdade, senhor. Gael é certamente o assassino do rei Troin.

— Com mil demônios!

O elfo cinzento deu um pontapé de raiva num arbusto cheio de neve, projetando uma nuvem branca no ar, e praguejou longamente na sua linguagem, um dialeto élfico dos pântanos que Gorlois não conhecia. Deitou um olhar para trás em direção a Assan, que relinchava como um garanhão numa baia, inquieto com a fúria do seu amo. Gorlois reprimiu um sorriso, perguntando-se qual seria a natureza exacta dos laços que uniam Rassul ao seu servo elfo. Dizia-se que entre os elfos os sexos eram por vezes mal definidos... Depois retomou um ar de circunstância e dirigiu a sua atenção sobre o senhor dos pântanos.

— Já ouço Baldwin e a sua corte! — praguejou Rassul. — Ninguém vai acreditar que Gael agiu por vontade própria ou por conta de outrem. Não, vão dizer que sou eu o responsável! Eu, o mandatário da morte de Troín! Ainda e sempre, tudo é culpa dos elfos cinzentos!

Cinzento, era-o Rassul, completamente. Os seus longos cabelos não entrançados desenhavam-lhe uma crina prateada que lhe escorria pelas costas como uma cascata gelada e que mal se distinguia da sua pele de um azul exangue. Curvado, o corpo esguio, os membros longos, Rassul tinha uma cara dura, afiada, com traços e maçãs do rosto salientes. Podia parecer belo, como ;odos os elfos, mas nesse instante a sua raiva tornava-o assustador.

— Senhor, tentamos antes de tudo evitar um conflito continuou Gorlois com untuosidade. — E duvidamos que a vossa presença no Grande Conselho não provoque a hostilidade dos anões.

Interrompeu-se por um instante, como que a procurar as palavras.

— Eis porque, senhor, eu vos aconselho a fugir...

— O quê?

Com os olhos abertos, os lábios brancos, Rassul olhava-o, quase a sufocar.

— Fugir perante os anões...

— Vistes o velho Baldwin, da última vez... Dir-se-ia estar decidido a começar uma guerra.

— Que o faça! — gritou Rassul. — Comedor de pedras! Pigmeu ridículo! Desta vez não vamos ficar-nos! Já lá vai o tempo em que os elfos se arrastavam no lodo aterrorizados com as galopadas deles!

— Senhor, peço-vos, deixai o Conselho encarregar-se...

— Não! Acabou! Toda esta história cheira a conspiração. Os anões são assim, sempre a fazerem planos, sempre a matarem-se uns aos outros por causa das suas malditas montanhas. Pois bem, já chega! Não se servirão de nós!

— Mas, senhor, os elfos cinzentos nunca poderão resistir à ira dos anões! Seria o vosso fim!

— Ah, achas que sim?

Rassul agarrou o velho senescal pela capa de veludo e puxou-o para si com uma tal violência que Gorlois sentiu os pés levantarem do chão e quase perdeu o equilíbrio.

— Pela minha parte — sibilou o elfo com um olhar insano e assassino —, gostaria de ver...

Ao pé dos cavalos, os guardas da escolta reagiram imediatamente. Alguns tinham já desembainhado as suas espadas, prontos a atacar, mas o grande elfo largou Gorlois e, gritando qualquer coisa ao seu companheiro na sua linguagem impossível de compreender, partiram a passos largos, tão rápidos quanto o galope de um cavalo.

O capitão da guarda precipitou-se em direção ao senescal, de joelhos, prostrado na neve. Estendeu as mãos para o ajudar a levantar-se mas imobilizou-se imediatamente, desconcertado.

Dobrado em dois sobre a neve, com o corpo sacudido por espasmos, Gorlois ria.

 

Quando Tsimmi recuperou a consciência, o ar continuava ainda cheio de cinzas, escuro e irrespirável. Meio soterrado pelo medonho levantamento de terra que tinha causado, o anão teve dificuldade em libertar-se. Tossiu, cuspiu, atirou o seu capuz verde para trás para sacudir os curtos cabelos castanhos, depois limpou com as mãos patudas a cota de malha suja de turfa. Os seus dedos deslizaram sobre um dos numerosos alforges que trazia à cintura, e tirou de lá, com um gemido desesperado, o seu querido cachimbo de barro, que não tinha resistido ao sismo. Atirou ao chão o tubo partido, conservando contudo o fornilho, e, com um passo pouco seguro, afastou-se da nuvem de pó. As pernas ainda lhe doíam dos golpes que tinha levado em Kab-Bag, o sortilégio tinha-o deixado sem forças, aspirando-lhe, até às profundezas do seu ser, as mais pequenas partículas de energia vital.

Chegando ao pé de um grande rochedo, a algumas toesas do magma terroso, sentou-se com um suspiro triste e contemplou a sua obra.

Não restava nada da clareira onde tinham passado a noite. O salgueiro meio arrancado deixava ver as raízes, e o solo aberto, revirado como que pelo sulco de uma enorme charrua, tinha engolido a rainha sob um amontoado titânico de turfa, erva e pedras. Ao pensar nisto, o anão voltou a pôr-se de pé e mergulhou de novo na nuvem de pó que obscurecia ainda toda a cena. Durante um momento não viu nada e o coração apertou-se-lhe ao pensar que poderiam estar todos mortos, os homens, os anões e os elfos, e que ele tinha ficado sozinho, sem víveres e sem armas, demasiado esgotado para poder usar a sua magia por várias horas e incapaz de orientar-se nesse imundo país dos pântanos.

Depois viu o brilho baço de uma armadura.

De joelhos, servindo-se da sua couraça como pá, Uter esgaravatava a terra freneticamente, a cara negra de pó e sulcada por fios de suor. Ao seu lado, Freihr cavava, também ele, com ”gritos” de lenhador, arrancando enormes torrões que atirava para trás a uma cadência prodigiosa. Com o rosto em sangue, os cabelos louros sujos de lama, as vestes em farrapos, o bárbaro assemelhava-se a um ogre ou a um gigante. Tsimmi parou a alguma distância, não ousando aproximar-se mais.

O bárbaro percebeu a sua presença.

— Tsimmi! Anão estúpido! Foste tu que fizeste isto?

Uter voltou a cabeça e, vendo-o, deu um salto e agarrou-o pelo colarinho.

— Foste tu que fizeste isto? — disse por seu turno. Tsimmi, quase estrangulado, gaguejou uma resposta vaga que o cavaleiro nem se deu ao trabalho de escutar.

— Tire-a dali!

Ele atirou com o anão ao chão e Tsimmi, visivelmente pungido, levantou-se rapidamente, num rasgo de orgulho, de cara zangada e punhos fechados.

— Não posso! — gritou ele. — Que é que tu julgas? Que posso fazer e desfazer o mundo a meu bel-prazer? Pois bem, não! Não posso!

De novo, Uter agarrou-o e atirou-o ao chão, sem respeito.

— Então, cava!

Sem mais uma palavra, os três companheiros meteram mãos ao trabalho, desentulhando o caos de terra e pedras com selvajaria, descarregando a raiva num combate silencioso e obstinado.

— Ali, olha! — gritou de repente Freihr.

Tsimmi levantou-se demasiado bruscamente e pontos luminosos dançaram-lhe diante dos olhos. Cambaleou, piscando os olhos, tomado de uma vertigem terrível, esforçando-se por distinguir aquilo a que o bárbaro se referia. Uma mão. Era isso. Uma mão azul, feminina, e cujos dedos longos mexiam debilmente.

Tsimmi deixou-se cair para trás, rolou por terra e apoiou a testa no chão, retomando a respiração na expectativa de que a vertigem se dissipasse. Lliane estava viva. Os olhos fechados, as têmporas a latejar e o coração na boca, incapaz de ordenar os pensamentos, o anão sentiu-se acometido por uma torrente de questões. Por que é que a violência do seu sortilégio o tinha surpreendido A si próprio de forma a quase lhe custar a vida? Por que estava ele fatigado a este ponto? Teria querido mesmo matar a rainha? Mas, então, por que se sentia tão contente de a descobrir com vida? E onde estavam Rogor, Miolnir e Till, o seguidor de pistas? Estavam todos enterrados?

Lentamente, com precauções de convalescente, levantou-se e, com o corpo semidobrado, as mãos apoiadas nas coxas, viu os dois homens a cavarem com as mãos para libertarem a rainha. Ouvia Uter falar ininterruptamente, viu-o segurá-la nos braços, retirá-la do túmulo e carregá-la, como se fosse uma criança, para fora daquele caos mineral.

Num passo hesitante, Tsimmi foi ter com eles ao bosquete de bétulas e acocorou-se à parte, com um nó na garganta devido à emoção incontrolável. Num charco, Uter umedecia uma ponta do seu casaco para limpar a cara ferida da rainha dos altos-elfos. Encostada ao tronco branco de uma bétula, com as vestes rasgadas e os cabelos cheios de terra, sangrando de milhares de feridas na cara e no corpo, Lliane deixava-se levar, sem tirar os olhos do cavaleiro, com uma tal insistência que Uter se sentiu incomodado.

— Tive... Tive medo, minha rainha — disse ele por fim. Lliane não respondeu, mas os seus dedos pousaram-se sobre os lábios do cavaleiro, acariciando-lhe os contornos antes de lhe aflorar a. face, fazendo ranger a barba de dois dias. Depois, os dedos deslizaram sobre o pescoço dele, seguraram-lhe a nuca e puxaram-no para ela, lentamente, até que os seus lábios se tocaram. Uter olhava para baixo, com a respiração suspensa, fora de si. Ela acariciou os lábios do jovem com a ponta da língua, sorriu perante a surpresa dele (os homens, portanto, não beijavam assim), e abandonou-se num beijo reprimido, prolongado, infinito, de onde emergiram os dois como sonâmbulos, felizes, perturbados, incrédulos.

O próprio Freihr, em pé a alguns metros deles, não ousava respirar com medo de quebrar o encanto, e quando eles se separaram, com sorrisos de adolescentes, o bárbaro saltitou de uma perna para a outra, abanando a cabeça e bufando de prazer. Foi levantar Tsimmi e deu-lhe uma palmada jovial sobre o ombro, atordoando por seu lado o anão.

— Ei! Que é que tu dizes?

Tsimmi ficou silencioso, demasiado perturbado para conseguir falar. Os seus olhos brilhavam e a sua garganta ainda tinha um nó (uma sensação pouco comum para um anão). A rainha viu-o por fim e estendeu o braço para ele, com um sorriso.

— A loucura e a morte quase nos levaram a todos — disse ela. — Peço-vos perdão, Sr. Tsimmi.

O mestre mação soluçou de surpresa.

— Não, não, sou eu! Sou eu quem vos pede perdão! Pensei...

Ele não conseguiu acabar a frase. O alívio, a fadiga, a emoção, a felicidade tomaram conta dele. E, após muitos anos, Tsimmi voltou a chorar.

Eles ficaram ali, apalermados e felizes, até que a nuvem de terra se dissipou completamente e a excitação deles desapareceu, no ar frio e húmido do pântano. Depois, quando o frio se apoderou deles, levantaram-se todos ao mesmo tempo e voltaram a remexer a clareira devastada à procura das suas bagagens e das suas armas.

Lliane encontrou o arco e as flechas de Kevin, bem como a sua adaga, Orcomhiela, intacta, nem mesmo suja de terra. Recuperaram o elmo amolgado de Miolnir, a túnica vermelha que Rogor havia atirado ao chão, mas não havia vestígio dos dois anões. Foi Freihr quem fez a descoberta mais macabra. O cão de Till, com a espinha partida e a língua de fora, jazia sem vida debaixo dos escombros. Quanto ao seguidor de pistas e ao seu falcão, tinham desaparecido.

Os quatro sobreviventes equiparam-se em silêncio, evitando olharem uns para os outros, mas por razões completamente diferentes...

— É preciso encontrar Gael antes deles — disse Uter. Depois, virou-se para a rainha — Podereis guiar-nos?

Lliane fez um gesto de impotência.

— Não conheço esta região, e ignoro mesmo onde procurar. Mas sei que os elfos cinzentos me escutarão, se nos cruzarmos com eles.

— Em todo o caso — interveio Freihr, com a sua voz potente e calma — a pista dos anões é fácil de seguir... Eles vão em direção às cabanas que eu avistei hoje de manhã.

Todos olharam na direção que ele indicava, e as ervas pisadas como que por uma manada de veados mostravam bem o caminho seguido pelos dois tolos.

— Eles não têm nenhuma chance — murmurou a rainha.

— A não ser que os apanhemos a tempo — disse Uter. — Vamos. Freihr, vai à frente, abre-nos o caminho. Tu, Tsimmi, fica ao pé da rainha. Eu seguirei atrás.

O bárbaro lançou-se imediatamente, de espada na mão, e desapareceu entre os espinhos. Tsimmi aproveitou alguns segundos de descanso para apanhar algumas pedras que atirou para dentro de um dos seus alforges. Depois, tirou a sua funda e ajustou com cuidado um calhau bem redondo na correia antes de se pôr a caminho. Atrás dele, a rainha tinha encavilhado uma das flechas de Kevin no seu arco. Ela dirigiu um sorriso a Uter e depois acertou o passo com o do anão, tão silenciosa quanto ele barulhento. Uter deitou um último olhar à clareira devastada, sorriu e começou a caminhar.

A companhia prosseguia sem uma palavra, cada um atento ao menor barulho, com os dedos crispados sobre os punhos das suas armas. Em volta deles o arvoredo e as ervas altas do pântano tornavam-se cada vez mais densas, ao ponto de, por vezes, Freihr ser obrigado a abrir caminho a golpes de espada. Apesar dos seus talentos de seguidor de pistas, pensou cem vezes que tinha perdido o rasto aos anões, mas cem vezes descobriu a pegada de uma bota, fortemente impressa no lodo do pântano.

Uter, atrás de todos, sentia baforadas de calor subirem-lhe à cara e fios de suor corriam-lhe pelas costas. A febre ainda lhe queimava a cabeça e enfraquecia-o ao ponto de lhe custar segurar a sua longa espada. Maldito orgulho que o tinha levado a ficar em pé na nuvem de mosquitos e que tinha feito dele esta sombra de guerreiro, quase incapaz de andar sem ajuda! Abanou a cabeça para tentar levantar o ânimo. A companhia estava pronta a entrar em combate e era necessário que ele se mostrasse digno da confiança do Grande Conselho...

Repentinamente, percebeu que Lliane e Tsimmi se tinham imobilizado. A rainha fez-lhe sinal para que se escondesse no mato, pousou um dedo sobre os lábios, depois avançou, curvada, com o arco na mão. Desapareceu rapidamente nas ervas altas, sem um ruído.

Uter apurou o ouvido, mas o pântano estava mergulhado num silêncio insuportável, sem mesmo um pio de ave, ou o zumbir de um mosquito, como se toda a natureza estivesse a reter a respiração. Tsimmi voltou-se para ele com um erguer de sobrancelhas interrogador e o cavaleiro avançou de cócoras até ao anão. A rainha tinha partido há um minuto, tempo considerável na eminência de perigo.

— Que fazemos? — sussurrou Tsimmi.

Uter estendeu o pescoço, levantando-se um pouco para tentar aperceber-se de qualquer coisa por cima da cortina de ervas, quando a voz possante de Freihr soou a curta distância.

— Venham...

Tsimmi e o jovem cavaleiro avançaram através dos juncos. Freihr e a rainha estavam de costas voltadas para eles, imóveis diante de um mar de lodo. Uter foi o primeiro a chegar ao pé deles e estremeceu de horror. Depois, Tsimmi abriu caminho por entre eles e ele próprio viu.

— Com mil diabos!

Era Miolnir. Estendido de costas no lodo espesso e escuro e já meio atolado, com o tronco e as pernas cravejadas de flechas apesar da sua cota de malha de couro, enterrava-se inexoravelmente, aspirado pelo imundo lamaçal. Os seus olhos tinham ficado abertos, fixos com uma expressão de espanto sobre o céu mortiço do seu último dia, não deixando transparecer nenhum sofrimento. As flechas deviam tê-lo atingido todas ao mesmo tempo, de uma só vez, e nenhum dos enviados do Grande Conselho duvidava da natureza dos arqueiros. Sob o olhar cansado e enjoado deles, a lama misturou-se rapidamente com os pêlos da sua barba castanha, imiscuiu-se entre os seus lábios, nas suas narinas, nas suas órbitas, e depois a sua cara desapareceu lentamente no atoleiro. Durante algum tempo, detalhe atroz, só o penacho das flechas que o tinham matado ficou à superfície da lama, e depois elas próprias foram engolidas, não restando mais nada de Miolnir, cavaleiro com direito a bandeira do rei Baldwin e que veio encontrar uma morte sem glória tão longe das suas queridas montanhas. Triste, Tsimmi abanou a cabeça.

— Conhecia-o pelo menos há cinquenta anos — disse ele. — E, ao mesmo tempo, nunca tínhamos falado verdadeiramente um com o outro antes de partirmos para esta aventura. Era um guerreiro. Eles não falam muito, de qualquer maneira...

Uter olhou gravemente para o mestre mação. A morte de Miolnir recordava-lhe a de Roderic, tão recente e no entanto já tão distante no seu espírito. Tinham tido as suas aulas juntos e eram companheiros desde sempre. Enfim, pelo menos há dez anos... Mas que é que isso poderia representar aos olhos desses anões bicentenários, para quem o tempo não tinha fim?

— Que idade tens, Tsimmi? — perguntou de repente, e a incongruência da sua pergunta fez franzir o sobrolho a Lliane e ao bárbaro.

— Tenho 132 anos — respondeu o mestre mação. — Mais para os 133, com efeito. A idade...

— Como é que podem viver assim tanto tempo sem tédio?

Tsimmi abanou novamente a cabeça e sorriu, como se compreendesse o estado de alma do jovem e a estranha linha do seu pensamento.

— A vida é um ciclo, Uter. E o ciclo dos anões é mais longo que o dos homens. O tédio, a fadiga de viver, a perda de fé ou de entusiasmo só nos aparece depois de muitos anos. A vocês aparece mais rápido, mas a vossa vida é mais curta. A natureza está bem feita... Apesar de tudo, no que te diz respeito, pareces-me um pouco jovem demais para te pores essas questões!

— É a natureza humana — disse Lliane, aproximando-se deles. Ela agarrou o rosto de Uter entre as suas longas mãos e olhou-o com carinho. Não... não somente carinho. Qualquer coisa mais: curiosidade, incompreensão e inveja?

— Os homens não amam a vida e, contudo, têm medo da morte — prosseguiu ela continuando a fixá-lo, com o seu corpo junto ao dele. — E é por isso que eles carregam essa amargura, essa violência, essa necessidade de construir, de se perpetuarem, de imprimirem a sua marca sobre esta terra. Pobres homens que não existem se não gravarem o seu nome na casca de uma árvore...

— Mas não! — disse Uter, afastando-se da rainha descontente com as palavras dela. — Os homens...

Procurou as palavras, perturbado com o olhar claro da elfo e com o perspicaz e cerrado do anão. Irritado, virou a cara e contemplou o mar de lodo que servia de túmulo a Miolnir.

E depois, de repente, um piar agudo, semelhante ao grito de um pássaro, fê-los dar um salto e pegarem nas suas armas.

— São eles! — murmurou a rainha. — São os elfos!

Tsimmi retesou-se, contraindo o corpo como se esperasse uma saraivada de flechas, segurando nervosamente o seu pesado martelo de guerra em frente dele.

Por todo o lado, havia em volta deles estremecimentos nas ervas altas, longas ululações, sombras furtivas entre as bétulas de casca branca. Os elfos cinzentos aproximavam-se, indecisos, bastante indecisos, devido à presença de uma representante da antiga raça de Morigan, uma dessas altos-elfos de pele azulada e porte altivo que só muito raramente se via nos pântanos de Gwragedd Annwh.

Lliane tinha avançado para eles. Bem direita, com os ombros para trás, imóvel e majestosa, sem tremer, ela contemplava a progressão sinuosa e ágil dos elfos dos pântanos. Depois, quando eles estavam a menos de cinquenta metros, ela começou a falar no dialecto borbulhante deles, que se assemelhava ao barulho de água de uma corrente, sem elevar a voz e sem deixar de se lhes dirigir, como um encantador de serpentes ou um domador de ursos, com as duas mãos levantadas e as palmas abertas para mostrar bem que vinham em paz. Uma flecha espetou-se no solo de turfa, quase entre as suas pernas. Ela não se interrompeu. Houve ainda outras flechas que caíram em volta deles como que para os testar, para os incitar a fugirem ou para os forçar a atacarem, mas eles não se mexeram.

Decorreram ainda longos minutos antes que o agitar das ervas se aproximasse e que as silhuetas pálidas dos elfos cinzentos se desenhassem entre os juncos. Uter e Freihr, direitos, costas com costas, protegendo Tsimmi com os seus corpos, trocaram um olhar nervoso. As mãos quietas sobre o punho das suas espadas, eles não estavam longe de se atirarem para a frente para as ervas altas, ao assalto desses arqueiros-fantasmas. Tudo era preferível a ficarem à espera de uma saraivada de flechas, silenciosa e invisível, que os atingisse sem que tivessem podido bater-se.

— Heh alyhia eho!

Uma voz, por trás deles, fê-los voltarem-se ao mesmo tempo. Espadas no ar, corpos inclinados, olhares brilhantes, dentes cerrados.

— Hialiya kio dá dinyia!

O elfo tinha ar de velho mendigo. A pele verdadeiramente cinzenta, magro como um cão abandonado, o cabelo ralo e comprido, não estava vestido de catassol, mas sim com uma túnica, bragas e botas altas de pele não curtida, um couro ainda guarnecido de pêlo amarelo-claro, da cor das canas. Ele tinha-os debaixo da mira do seu arco curto, tão diferente do da rainha, e falava num tom brusco, cortante.

A rainha avançou para ele, piscando o olho a Tsimmi ao passar.

— Hi Hyala Ellessa Hyeh Kolotialo...

O elfo cinzento abanou a cabeça às palavras de Lliane, mas não pareceu acalmar-se. Apontando o anão, soltou uma longa dissertação que, aos ouvidos de Uter, parecia muitas vezes resvalar em sons agudos. Repentinamente, sentiu algo mexer-se ao nível das suas pernas. Era Tsimmi que se refugiava nelas.

Uter deitou uma olhadela por cima do seu ombro. Os elfos tinham-se aproximado e tinham-nos agora encurralado completamente, mantendo-se prudentemente a uma distância de dez metros do pequeno grupo, fora do alcance das suas espadas, mas prontos a cravejá-los de flechas ao mais pequeno movimento.

— Dechyhio o Rassul iad Gael edehya.

Uter esticou o ouvido, crendo ter reconhecido alguns nomes nas palavras da rainha, mas a reação do velho elfo cinzento apanhou-o de surpresa. Deu um grito modulado (a menos que quisesse dizer alguma coisa, mas decididamente a sua língua era incompreensível para os humanos), deu meia volta e desapareceu nos juncos. O jovem cavaleiro voltou-se e mal teve tempo de ver os outros arqueiros fugirem, velozes como fantasmas, sem um ruído.

Depois, o silêncio do pântano recaiu sobre eles, com o sentimento de renascer para a vida. Tsimmi largou o seu martelo de guerra e sentou-se no chão a respirar de alívio. Uter guardou a espada, inspirando agradecido o ar gelado dos pântanos. Ele sorria quando a rainha começou a falar.

— Ele recusou-se a levar-nos até Gael, mas não nos impedirá de o vermos — disse ela. — De qualquer forma, foi o que eu percebi. Desde que falei nele, ficou... É estranho...

— O quê? — perguntou Uter

— Não sei. Tinha ar... Tinha ar de não gostar muito dele, não? — Uter levantou as sobrancelhas e reprimiu um riso pouco alegre.

— Lá isso, não se pode dizer que ele tivesse um ar feliz...

A rainha calou-se, pensativa.

— Bom, vamos embora...

Ele bateu no ombro de Freihr e fez-lhe sinal para que abrisse caminho.

— Leva-nos até às cabanas que viste esta manhã — disse.

Os quatro companheiros puseram-se a caminho em fila indiana, com a rainha e Tsimmi a fecharem a comitiva.

— Por que é que ele foi embora tão depressa? — perguntou o anão. — São sempre assim, os elfos dos pântanos?

Lliane evitou o seu olhar. Ao longe, gritos responderam por ela.

— Temo que eles não estejam a caçar, mestre Tsimmi.

 

Como era seu hábito, Llandon seguia a pé. Nessa mesma manhã, tinha deixado os cavalos livres às portas de Loth, para uma vez mais responder à convocatória do Grande Conselho, com o coração cheio de esperança de obter notícias de Lliane. Desde o regresso de Lame, o seu garanhão branco de crina longa, o rei dos altos-elfos ignorava o que lhe tinha acontecido. Ignorava mesmo o que é que ela tinha ido fazer aos pântanos...

O Conselho não tinha durado mais de alguns minutos.

À sua chegada, o velho Baldwin, rei dos anões sob a Montanha Vermelha, já se encontrava lá, bem como Pellehun e o senescal Gorlois. E todos eles arvoravam caras de caso.

Llandon era o único representante dos elfos. No último Conselho — que parecia já tão distante! —, a rainha Lliane e o seu amigo Rassul estavam a seu lado. Mas Lliane tinha partido numa demanda com consequências mais pesadas e bem mais perigosa do que eles tinham imaginado, e Rassul... Por todos os espíritos da floresta, seria possível que Rassul tivesse fugido?

Escoltado por Blorian e Dorian, os irmãos da rainha, bem como por Hamlin, o trovador, e Kevin, o arqueiro — todos os principais do seu próprio Conselho —, o rei dos altos-elfos caminhava a passos largos através das ruelas imundas da cidade dos homens do lago, apressado para reencontrar o ar fresco do campo e libertar-se desta população ruidosa.

À sua passagem, cruzou olhares oblíquos que o espantaram, por vezes mesmo umas atitudes de desafio em certos jovens que enchiam o peito de ar, com a mão nas suas espadas. Havia, no labirinto da Baixa da cidade, uma quantidade considerável de homens armados vestidos com as cores azul e branca de Pellehun, dando à cidade o aspecto surpreendente de uma cidade de guarnição. Toda a população de Loth parecia ter saído para a rua, fervilhando de actividade, zumbindo de conversas exaltadas, que se interrompiam ao aproximar deles, febril, excitada.

Quando saíam do bairro dos curtumes, Llandon viu-se obrigado a abrir caminho entre um grupo de soldados que se arrastavam diante do átrio que levava aos subúrbios e às muralhas. Eles afastaram-se de mau humor, sempre com olhares hostis e fugidios que os elfos não compreendiam.

Blorian e Dorian, inquietos, esforçavam-se por seguir as grandes passadas do cunhado. Llandon não tinha dito nada à saída do Grande Conselho, mas as notícias não eram com certeza boas. Os dois elfos temiam pela vida da irmã, embora o rei dos altos-elfos parecesse mais furioso que triste.

Furioso, Llandon estava-o cada vez mais, perante a atitude inconcebível dos cidadãos de Loth. Furioso, incrédulo e humilhado pelo que tinha ouvido na reunião dos reis. O velho Baldwin não tinha ficado mais do que o tempo de lançar um ultimato, exigindo que o senhor Rassul depusesse imediatamente as armas, sob pena de um ataque preventivo dos anões da Montanha.

Llandon tinha caído das nuvens.

Ignorava que Rassul tinha abandonado as redondezas de Loth e não conseguia imaginar que o senhor dos elfos cinzentos tivesse podido pegar em armas sem falar com ele. Baldwin e o seu séquito tinham abandonado o Conselho com olhares de desprezo pelo seu gaguejar confuso e desajeitado, foi como se eles lhe tivessem cuspido na cara.

Depois da partida deles, o rei Pellehun tinha por fim dado algumas explicações. Mensagens chegadas da companhia tinham, ao que parecia, confirmado a culpa de Gael, e a fuga inexplicável do rei Rassul levantava graves suspeitas sobre todo o povo dos elfos cinzentos. Seguiram-se palavras de amizade e simpatia, mais diplomáticas que sinceras, formuladas pelo senescal Gorlois, as quais tinham sido cortadas por Llandon ao pedir autorização para se retirar.

Ao chegar ao declive que separava as últimas casas das muralhas, Llandon parou bruscamente.

Uma massa compacta de humanos dos dois sexos e de todas as idades comprimia-se em volta de uma fogueira de lenha miúda, junto da qual vociferava um monge vestido com um hábito religioso, agarrado a uma cruz gigantesca. Nem o rei nem nenhum dos elfos da sua comitiva conseguiam compreender as invectivas encolerizadas do monge, tanto a multidão gritava em volta dele.

— Que é que se passa? — perguntou Blorian, aproximando-se dele.

— Não sei...

Instintivamente, os elfos tinham-se agrupado, com as mãos colocadas sobre as armas. Kevin tinha tirado lentamente uma flecha da sua aljava e estava pronto a encavilhá-la, vigiando quem estava por trás deles. Hamlin, cujo rosto nada tinha já de meigo, contornou o rei para se colocar à frente dele e fazer uma muralha com o corpo. Depois, os elfos recomeçaram a andar, vigiando a multidão que se afastava diante deles, prosseguindo lentamente até à porta guardada que conduzia para fora da cidade.

Repentinamente, os gritos redobraram, num atroador concerto de aclamações e apupos, de assobios, de risos e de gritos de aqui d’el-rei. Houve também um piar agudo de um pedido de socorro assustado, que gelou o sangue dos elfos.

Era um dos deles que gritava.

Llandon, petrificado pelo horror, viu duas bestas vestidas com hábitos religiosos içarem sobre uma fogueira um elfo dos pântanos, enrolado e deplorável nas suas vestes andrajosas, que se debatia como um pobre diabo sob as suas mãos robustas.

Os carrascos ataram-no a uma trave enfiada nos feixes de lenha, e depois saudaram alegremente a multidão antes de saltarem para o chão. O monge continuava a pregar aos gritos, com as veias salientes por causa do esforço, agitando a sua cruz gigantesca à laia de estandarte. Houve um fumo negro e um brotar de chamas que fizeram recuar a multidão. O elfo deu um grito lancinante assim que as suas vestes pegaram fogo, mas os seus gritos atrozes foram rapidamente abafados pelos risos e graçolas da multidão feliz, que se regozijava com aquele espectáculo horrível.

Llandon, apanhado durante um instante pela surpresa do horror, recompôs-se e deitou a Kevin um olhar de louco.

— Atira! — gritou ele. — Mata-o!

O arqueiro élfico dobrou o seu arco e a flecha atingiu o supliciado em plena fronte, pondo um fim imediato aos seus gritos aterrorizados e, ao mesmo tempo, às aclamações obscenas do povo de Loth.

Fez-se um silêncio absoluto na praça, ao ponto de se ouvir o crepitar das chamas. Depois, um ruído surdo, um rumor odioso que arrastava a massa humana em direção ao grupo dos elfos como vagas contra um barco.

Llandon e os elfos desembainharam, e as suas longas adagas brilhantes como prata fizeram recuar as primeiras filas. Mas o ímpeto era demasiado forte e a cortina de populaça voltou a formar-se, quase imediatamente, quase a tocar-lhes.

Então, Llandon endireitou-se. Com os olhos brancos, indignados, lançou uma ordem imperiosa, numa voz que ressoou até ao coração dos homens, provocando-lhes um calafrio.

— Bregean! Bregean earm firas! Hael hlystan!

Todos quantos estavam suficientemente perto dele para lhe verem a cara deram um grito de medo e recuaram, cheios de terror. Os elfos aproveitaram para se lançarem em frente e transporem a toda a velocidade os últimos metros que os separavam da porta, onde os guardas que traziam o libré de Pellehun não tinham se mexido.

— Quem vos comanda?

Os guardas hesitaram, até que um sargento os afastou e se apresentou diante do rei dos altos-elfos.

— Senhor, eu...

— Sabes quem eu sou? — disse Llandon.

— Certamente, senhor.

— Então, como é que se permite que um rei elfo seja ameaçado na cidade do Grande Conselho?

Com um gesto brusco, apontou a fogueira ainda em brasas.

— E aquilo? Que é que aquilo quer dizer?

— Não consegui fazer nada, senhor — gaguejou o sargento.

— Só tenho alguns homens de armas aqui. Mas enviei um guarda para pedir reforços!

— Demasiado tarde!

O soldado baixou a cabeça, sem responder. Aliás, que poderia ele dizer? Llandon empurrou-o e atravessou a porta, seguido pelo grupo de elfos.

Quando eles já estavam lá fora, a populaça saiu da letargia, cada um comentando os acontecimentos num burburinho ensurdecedor. O monge de hábito religioso persignou-se freneticamente e lançou um novo grito, rapidamente imitado pela multidão:

— Feiticeiros! Feiticeiros!

 

A cidade dos elfos assemelhava-se a uma confusão de tojo ao pé de uma mata alta de olmeiros e de choupos. Nenhum fumo se escapava das cúpulas das ramagens que se elevavam aqui e ali, sem uma ordem aparente, ao abrigo das grandes árvores, e não se viam nem cerca nem barreiras, nem nada que pudesse evocar as cidades dos homens ou as fortalezas dos anões. Mas reinava uma agitação extrema, pouco comum ao discreto povo dos elfos, e Tsimmi achou mesmo que eles eram... barulhentos. Eles avançaram até ao ajuntamento de seres cinzentos, agrupados em frente de uma das suas cabanas pobres, e separaram a multidão por trás de Lliane. Ali só havia velhos e crianças, como se todos os habitantes da cidade que tivessem idade para pegar em armas, fosse qual fosse o seu sexo, tivessem desertado. À passagem deles todos mudavam de expressão: admiração feliz ao descobrirem a rainha dos altos-elfos, movimento de desconfiança e depois de alívio ao reconhecerem o gigantesco Freihr, cuja cidade, em linha reta, não estava mais distante do que algumas léguas, e espanto, diante do jovem cavaleiro humano, com ar sério e doente. Mal pousavam os olhos em Tsimmi — um anão barbudo e carrancudo como os dos contos! —, os mais jovens fugiam gritando de terror, e os velhos que nos Tempos Antigos tinham conhecido os ataques sanguinários dos anões das montanhas fechavam os punhos e tremiam de raiva. Rapidamente, o círculo de elfos tornou-se mais compacto, mais hostil, e a própria rainha não pôde avançar mais.

Ela endireitou-se, mais uma vez, dominando ligeiramente, por causa da sua altura, os seres cinzentos esguios mas curvados.

— Geswican, deor bearn!

E as crianças que não tinham fugido com o aparecimento do anão, retiraram-se sem uma palavra.

— Geswican, dyre leoa!

E todos os elfos cinzentos, velhos magros de ambos os sexos, estremeceram e afastaram-se.

— Eal hael hlystan!

E os últimos elfos dos pântanos curvaram a cabeça, vencidos, tímidos, não ousando mais olhar para ela.

— Não tenham medo! — disse Uter, muito estupidamente, e Freihr deitou-lhe um olhar penetrante para o fazer calar.

A rainha relaxou. Pareceu-lhes que ela vacilava, esgotada pelo esforço, mas a sua fraqueza não durou mais que um instante. Quando os últimos elfos se afastaram, Uter viu diante deles uma dessas cabanas de tojo, com uma abertura que devia servir de porta, com alguns pés de altura. Pôs-se de gatas e deslizou por debaixo dos ramos.

A princípio não viu mais que um entrelaçado de vegetação e algumas caniçadas de vime, nem sequer terra batida. Poder-se-ia julgar que era uma toca de texugos, igualmente sombria e apenas um pouco mais bem arrumada, mas de dimensões consideráveis, entrando para dentro da terra através de patamares. Avançando por estes grandes degraus, o teto tornou-se rapidamente suficientemente alto para se poder erguer, mas ele já não conseguia ver nada. De repente, a luz vacilante de uma chama iluminou o local: era Tsimmi que acabava de bater a sua pederneira.

Uter agradeceu-lhe com um inclinar de cabeça, viu atrás Freihr (que tinha, de qualquer modo, de manter-se curvado) e a rainha Lliane; mordeu o lábio e prosseguiu caminho, com uma mão no punho da sua espada, pronto a desembainhá-la.

Quanto mais avançavam mais a humilde cabana de tojo se revelava espaçosa, descendo para as profundezas da terra, os patamares transformavam-se pouco a pouco em resquícios sustentados por muretes de pedra, separados por elevações de degraus. Cruzou o olhar de diversos elfos, silenciosos e graves, que se afastavam ao vê-los, encostando-se às paredes de terra. Estava escuro lá dentro, demasiado escuro para um humano, mas pontos de luz, subindo até à superfície, davam, apesar de tudo, uma certa claridade. As últimas salas estavam decoradas à maneira dos elfos. Cortinados de juncos entrançados escondiam as paredes, raízes de bétula saindo do chão serviam de mesas ou de bancos, e grinaldas de folhas cortadas com arte caíam em chuva do tecto. Tudo isto tinha um cheiro de erva cortada e a húmus. À direita, uma grade de manjedoura, que passava despercebida devido à decoração vegetal, continha uma profusão de armas de todas as espécies, entre as quais machados de anões e chuços farpados de gobelins. Um verdadeiro estendal de armamento...

— Olhem! — disse Tsimmi.

Uter piscou os olhos (o anão, habituado aos seus subterrâneos sombrios, via melhor no escuro do que ele). Ao fundo da sala, encostado à parede decorada com juncos e cercado por velhos ajoelhados e mudos, estava um elfo vestido com roupa humana. Veludos, bordados, uma espada curta ao lado, uma adaga bonita à cintura. Com a cabeça caída para a frente, os longos cabelos negros fazendo uma cortina diante dele, os braços caídos, parado e inerte, a sua presença parecia incongruente nesta cova.

Uter deitou um olhar interrogativo à rainha, que abanou a cabeça.

Era Gael.

Lliane avançou lentamente, dirigiu algumas palavras aos velhos elfos ajoelhados em volta dele e depois, lentamente, levantou a cara daquele que eles perseguiam há dias. Imediatamente, ela teve um movimento de recuo e mostrou aos seus companheiros a mão suja de sangue.

— Senhor! — murmurou Uter...

Desde a base do pescoço até meio do dorso, um golpe de machado de uma rara potência tinha semidecapitado o elfo cinzento. O veludo tinha absorvido o sangue e a sua cara tinha ficado intacta, marcada por um esgar horrível, os olhos vidrados e os lábios arreganhados. Perto da sua mão, uma taça caída por terra formava um charco sombrio já embebido no chão de terra batida.

— Rogor — murmurou Tsimmi num tom desesperado. Levantou os olhos para os seus companheiros, mas Uter evitou o seu olhar. É claro, Rogor... Quem mais a não ser o príncipe herdeiro do trono sob a Montanha Negra poderia ter saciado a sua vingança com tal violência?

Freihr, esse, não desviou os olhos, mas pela sua expressão Tsimmi soube que ele não tinha a menor dúvida sobre a identidade do assassino.

— Um golpe de machado — disse o bárbaro em resposta à súplica muda do mestre mação. — São os anões que se servem dos machados.

O silêncio recaiu no compartimento subterrâneo onde Gael tinha encontrado a morte. Depois, uma voz elevou-se, aguda e hesitante, utilizando a custo a linguagem comum.

— Não um anão...

A rainha e os seus companheiros, num mesmo movimento, avistaram a velha elfo que acabava de falar. Encostada à parede ornamentada com caniçadas de vime entrançado, ela abanou a cabeça, com o olhar cruel.

— Não morto por um anão...

 

Com o rosto marcado pelos espinhos, a barba cheia de pauzinhos que se tinham emaranhado nela, o príncipe Rogor corria sempre em frente, bufando como um touro, segurando com as duas mãos o seu enorme machado, cujo ferro estava sujo de sangue: Sangue de elfos, de todos quantos se tinham atravessado no seu caminho. Uma flecha tinha-lhe atingido os rins, mas a sua raiva era mais forte que a dor. O elfo pálido que lhe tinha atirado a flecha jazia agora no lodo, com o crânio aberto e os miolos espalhados. Outros arqueiros tinham atirado sobre o senhor anão, e jurariam que o tinham atingido: as flechas não tinham conseguido atravessar a armadura de Rogor, mergulhando-os no terror diante da aparente invulnerabilidade do seu inimigo secular, o anão de olhos loucos, peludo como um animal selvagem, e do seu machado aterrorizador.

Sem fôlego, Rogor deixou-se cair contra um ulmeiro, os pulmões em fogo, e depois encostou-se ao tronco da árvore, bramindo o seu machado mais como uma muralha que como uma arma. Nesse momento, o anão estava no fim das suas forças, preparado para aceitar a sua morte. Aliás, que mais poderia ele esperar? Tinha falhado. Não tinha matado Gael. Nem sequer tinha conseguido chegar perto dele. Nunca conseguiria encontrar a espada de Nudd. Miolnir estava morto por sua causa, em vão, cravejado de flechas no imundo atoleiro deles, e ele tivera de fugir, covardemente, ele, o herdeiro do Troín! Que vergonha... Que desgraça...

Com um golpe de força, espetou o machado no tronco da árvore e endireitou-se, frente à cortina movediça de canas agitada pelo vento de onde viria a flecha que poria fim à sua lamentável existência. Puxou da sua longa barba ruiva os pedacinhos vegetais que a cobriam, alisou-a e enrolou-a em volta da cintura. Depois esperou, com os olhos postos no céu já encoberto como presságio de morte, cantando com a sua voz grave uma melodia fúnebre dos anões sob a Montanha Negra.

 

Didostait, bugale

Ar serr-noz hag ar goulou âeiz,

Didostait, didostait...

Aproximai, as crianças Do crepúsculo e da aurora, Aproximai, aproximai...

 

Mas só o silêncio do pântano fez eco ao seu canto. Os elfos tinham partido. A morte não queria nada com ele.

Rogor ficou imóvel por mais alguns longos minutos, até que a sua respiração voltou ao normal e o suor secou na sua fronte. Depois arrancou o seu machado, olhou em volta para se orientar e pôs-se a caminho do pontão.

 

O covil de Gael estava agora vazio. Os velhos elfos cinzentos tinham retirado as suas armas e todos os seus bens, incluindo os tecidos e as caniçadas de vime que decoravam as paredes e o chão do local escavado na terra. Só tinham ficado Freihr, Uter e Tsimmi, sentados no chão à luz de uma tocha que o anão tinha acendido graças à sua pederneira, não longe do catafalco de terra sobre o qual jazia o corpo do elfo cinzento, de braços cruzados sobre o peito.

A rainha tinha partido há mais de uma hora com os velhos da aldeia para preparar as cerimônias fúnebres de Gael. Ela tinha-lhes simplesmente dito algumas palavras antes de os deixar, recomendando-lhes que não se mexessem até ela voltar. Eles tinham obedecido, mas esta longa espera na companhia de um cadáver começava a pesar-lhes.

— Como é que achas que eles fazem com os mortos? — perguntou Tsimmi, dando uma cotovelada na coxa de Uter, sentado a seu lado.

Tinha falado em voz baixa para não acordar Freihr que roncava como um bem-aventurado.

— Diz-se que eles comem os mortos — insistiu ele. — Achas que é verdade?

— Como é que queres que eu saiba!?

— Bem — disse Tsimmi. — Pensei que, sendo tão amigo dos elfos, pelo menos conhecesses os costumes deles, só isso...

Uter suspirou. Levantou-se, cortou uma tira de tecido da sua cota de malha e enrolou-a em volta da tocha cuja chama enfraquecia, e voltou a sentar-se ao lado do companheiro. À luz vacilante do archote, a sombra do cadáver sobreelevado ondulava sinistramente, numa dança macabra, sobre as paredes de terra.

Cruzou o olhar com o de Tsimmi e achou que o anão estava pouco afoito. Com o capuz verde enfiado até às orelhas, a barba revolta, mantinha os joelhos entre os braços, encolhido sobre si mesmo, resmungando inquieto. O anão viu o olhar do cavaleiro sobre ele, vasculhou um dos seus inúmeros bolsos e tirou uma moeda de prata que agitou debaixo do nariz de Uter com um grande sorriso.

— Um dinheiro! — disse em tom de saltimbanco. — Um verdadeiro dinheiro do rei!

O jovem sorriu e prestou-se à brincadeira.

— Sim — disse, após examinar a moeda com atenção. — É realmente um dinheiro...

Tsimmi recuperou-a com a mão direita, piscou o olho e levantou bruscamente a mão esquerda fazendo estalar os dedos.

— Oh, que azar, meu senhor, a moeda desapareceu!

Ele mostrou a mão direita, que estava efetivamente vazia.

— Estás a conseguir — admitiu Uter. — Mas a rainha conseguia transformar a prata em cobre.

— Sim, bem...

Tsimmi levantou o dedo, observou a orelha do cavaleiro, depois esfregou-lhe o lóbulo, exibindo triunfante a moeda de prata desaparecida.

— Magia!

— Sim — disse Uter. — Magia...

Observou com simpatia o anão que voltar a guardar a sua moeda, todo contente por ter vencido esta volta. Seria possível que fosse o mesmo que algumas horas antes tinha desencadeado forças ocultas capazes de assolar a terra e engolir um exército?

Encostou-se contra a parede úmida e desconfortável e perdeu-se nos seus pensamentos, que derivaram rapidamente na rainha e, por associação de ideias, nas cerimônias fúnebres dos elfos.

— Tudo quanto sei — disse ele, retomando o fio à conversa — é que eles não enterram os mortos.

— Isso, de certeza! — disse Tsimmi alisando a sua barba. — Só existem vocês, homens, a quererem ser comidos pelos vermes. Irra! Que ideia repugnante!

O anão continuava a rir, enchendo o seu cachimbo, ou aquilo que restava dele depois do seu contratempo na clareira, mas o riso morreu-lhe na garganta. Tinha acabado de ter a mesma ideia de Uter.

Tsimmi virou-se bruscamente para o corpo de Gael, varreu com o olhar a sala vazia e os patamares que conduziam ao ar livre.

— Achas que nos enterraram com ele?

— Bom... pensei nisso — disse Uter, sem olhar para ele. — Mas a rainha não o permitiria. Enfim, julgo...

Tsimmi fez um trejeito alarmado, e depois o seu rosto distendeu-se.

— Bah! Ainda está para nascer um elfo que consiga enterrar um mestre mação, crê no que eu te digo!

O anão bateu novamente com a sua pederneira e ateou fogo às ervas secas do fornilho. Amputado na maior parte do seu tubo, o cachimbo estava reduzido a um objeto pequenino que mal passava os pêlos da sua barba, e Uter sentiu, quando ele o acendeu, um cheiro de pêlos queimados.

— Há elfos que queimam os mortos sobre fogueiras, como vocês — disse o anão. — Parece que é por isso que eles detestam o fogo. Fá-los pensar na morte.

— Eu não pude enterrar nenhum dos meus...

A voz de Freihr tinha soado lugubremente, causando-lhes uma surpresa ainda maior dado que o julgavam adormecido.

— Eu tive de fugir enquanto a minha aldeia ardia... Eles ainda devem lá estar... ou o que resta deles. Creio que os lobos fizeram um banquete, nesse dia.

Nem Uter nem Tsimmi souberam o que responder, e um silêncio sinistro instalou-se entre eles.

Uter cruzou os braços sobre o ventre e fechou os olhos, tentando dormir um pouco. Estava quase a consegui-lo quando o anão o abanou com uma nova cotovelada.

— Acho que vem aí alguém!

Um grupo de crianças que trazia travessas cheias de comida apareceu em seguida na sala de terra batida, seguido pela rainha Lliane. Ela agradeceu-lhes na sua língua estranha e veio sentar-se em frente aos seus companheiros assim que eles partiram.

— Meus senhores, o jantar está servido! — disse ela numa voz que tentava mostrar alegria.

— Não comemos ao ar livre? — resmungou Freihr, num tom que mostrava bem o descontentamento que sentia por estar confinado a algo que lhe parecia, pouco maior que uma cova, e ao lado de um cadáver.

— Um pouco mais de paciência — respondeu Lliane com um sorriso apaziguador. — Os elfos cinzentos estão a preparar a cerimônia fúnebre. Quando eles vierem buscar o corpo poderemos sair.

— Que é que eles te disseram? — perguntou Uter (e Tsimmi levantou as sobrancelhas com ar divertido por ele a ter tratado por tu).

— Toma, prova isto, é bom — disse a rainha, estendendo-lhe uma espécie de pastel entre duas folhas de um verde tenro.

— Que é?

Lliane sorriu.

— Não me parece que queiras mesmo saber...

Uter deitou um olhar a Tsimmi. O anão levantou as sobrancelhas e a sua boca formulou uma mensagem muda que Uter não compreendeu muito bem: ”Eles comem os mortos!”. Mas, perante a insistência da rainha, o cavaleiro trincou prudentemente um pedaço do pastel. Sabia a peixe, um pouco forte e quebradiço. Ele ignorava que gosto poderiam ter os elfos dos pântanos, mas certamente não saberiam a peixe. Assim, piscou o olho ao anão de forma a tranquilizá-lo e acabou com o pastel. Freihr, esse, não estava com meias medidas e engolia os pequenos pastéis como se fossem bagos de uva (mas com mais barulho).

— De qualquer forma — disse o bárbaro com um grande sorriso —, são de quê?

A rainha inclinou-se sobre ele a fim de que os outros não ouvissem.

— Os monstros, debaixo de água.

Enojado, Freihr olhou para ela e quase pousou o seu pastel. Mas ele tinha fome, e a rainha ria a bom rir, de forma que ele não soube se era verdade.

— Um homem foi trazido para cá esta manhã por guerreiros — continuou a rainha num tom grave. — Segundo a descrição que me fizeram, creio que era Blade. Levaram-no até Gael, trocaram algumas palavras em linguagem humana. Gael ficou com um ar feliz e convidou-o para a sua cabana. O homem saiu alguns minutos mais tarde, com um embrulho debaixo do braço, e deixou tranquilamente a aldeia. Só depois de ele ter partido é que eles descobriram o morto.

— Então foi Blade quem o matou, e não Rogor — murmurou Uter.

— De qualquer forma, eles não viram nenhum anão na aldeia — afirmou Lliane. — Ou seja... Até à nossa chegada, mestre Tsimmi.

— Mas por que é que ele o matou? — perguntou Freihr de boca cheia.

— Para o roubar, essa é boa!

Uter sentia-se furioso consigo próprio. Tudo isto era culpa sua. Tinha sido ele que tinha aceitado que Blade se juntasse à companhia. Um ladrão, um assassino... Era preciso ser doido para acreditar que ele cumpriria a sua palavra!

— Pois bem! — gritou ele num tom impaciente. — Esse vil, esse malfeitor, esse demônio matou Gael e roubou-lhe a cota de malha! Faríamos melhor em pormo-nos no seu encalço do que em perdermos tempo. Ele vai necessariamente tentar chegar às jangadas!

— Não temos a certeza de que ele tenha roubado cota de malha — disse Lliane.

— Mas é claro! Ele trazia um embrulho debaixo do braço, não é verdade? Que outra coisa poderia ser? Vamos embora, com mil diabos!

— Não!

Todos olharam para Tsimmi.

— Não — repetiu ele.

Ele limpou cuidadosamente a sua barba para retirar os restos de pastel e juntou os dedos com um ar inquieto.

— Há uma coisa que ignorais — disse gravemente. — Gael... Gael roubou essa cota de malha de prata, e não duvido que tenha matado o rei Troin, príncipe da cidade subterrânea de Ghâzar-Run e rei sob a Montanha Negra. Barba longa, machado longo, senhor do ouro e dos metais...

Uter quis intervir para lhe pedir que fosse breve, mas o olhar de Lliane reteve-o.

— Mas? — perguntou ela calmamente.

O anão abanou a cabeça.

— Mas há pior, bem pior — disse ele. — O elfo Gael roubou a Espada de Nudd...

Todos retiveram a respiração. O talismã sagrado dos anões conservado sob a Montanha Negra era conhecido por todos os Povos Livres, e mesmo pelas tropas imundas d’Aquele-Que-Não-Pode-Ser-Nomeado, para além das Fronteiras.

— O príncipe Rogor, como ele o disse, é o herdeiro do trono de Troin. Mas só reinará se encontrar a Espada Caledfwch. É como... (ele procurou as palavras) ...como a Pedra de Fal, a Fal Lia do rei Pellehun: o símbolo da sua realeza. Se Rogor não a levar para a Montanha, a honra dos anões da linhagem de Dwalin ficará manchada para sempre, e eles não terão outra hipótese senão semear a morte e a destruição, como uma horda de animais selvagens, para lavar esta infâmia.

Ele voltou para a rainha um rosto triste e derrotado.

— Isso será o fim da paz, para sempre. A ira dos anões destruirá as planícies, os bosques e os pântanos, até que o último descendente de Dwalin tenha morrido, ou que o último elfo tenha pago o insulto.

Uter abanou a cabeça, espantado.

— Por que é que ele fez isso? — exclamou, olhando Lliane como se estivesse a fazer-lhe diretamente a pergunta. — Quero dizer, por que é que Gael roubou a espada? Para desencadear a guerra? É absurdo! Os elfos cinzentos não têm chance nenhuma contra as legiões anãs!

Lliane, embora a questão pedisse uma resposta, não a deu. Descendente de Morigan, filha de Dagda, o grande deus dos Tuatha Dê Danann, ela não tinha esquecido a antiga religião e conhecia o poder dos quatro talismãs da deusa Dana. Ela olhou para Tsimmi, mas o anão, apesar da sua ciência — ou por causa dela — não parecia compreender que a perda de Caledfwch provocaria o desaparecimento do seu povo. Ela pensava em Rassul, seu amigo, senhor dos pântanos. Rassul, tão pronto a enfurecer-se, príncipe de um povo esquivo e humilhado, vivendo em condições extremamente difíceis mesmo para um elfo. Seria possível que o senhor dos elfos cinzentos tivesse ordenado a morte do rei Troin e o roubo da Espada? Pensaria vingar-se assim do povo da Montanha? Loucura!... Rassul era membro do Grande Conselho desde o fim da Guerra dos Dez Anos. Tinha conhecido o velho rei sob a Montanha Negra, como ela própria, desde o tempo em que Troin aí tinha lugar. Ninguém poderia dizer que Rassul gostasse dele, mas respeitava-o, ela tinha a certeza. E depois, porquê lançar-se subitamente numa aventura tão louca?

Lliane não conseguia acreditar.

Não tinha sido ele. O rei Rassul era pronto na resposta, colérico mesmo. Um plano tão tortuoso e tão sacrílego não parecia dele.

E os elfos cinzentos tinham tudo a perder com isso. Com efeito, o conjunto do povo élfico tinha tudo a perder.

Uma guerra entre dois dos três Povos Livres só beneficiaria o Senhor Negro. Ela olhou para Freihr e pensou naquilo que ele tinha dito no Grande Conselho. A sua aldeia tinha sido arrasada por um bando de gobelins. A guerra e a destruição fervilhavam nas fronteiras do mundo livre. Tratar-se-ia de uma simples pilhagem, como acontecia desde sempre nas Fronteiras (e os próprios bárbaros não hesitavam em aventurar-se nas Terras Negras, pilhando os postos avançados e os torreões gobelinos), ou os dois acontecimentos estariam ligados?

Seria possível que um elfo se tivesse posto ao serviço d’Aquele-Que-Não-Pode-Ser-Nomeado com o intento de desencadear uma guerra que enfraquecesse a coligação?

Lliane afastou imediatamente essa hipótese monstruosa. Ela sabia que alguns elfos eram tão depravados como alguns anões e alguns homens, capazes de tudo para conseguirem ouro e poder. Mas se Gael tinha traído o seu povo, por que tinha vindo esconder-se entre eles?

Devia haver aí outra pessoa.

Um senhor poderoso, cruel e ambicioso, para o qual uma guerra entre elfos e anões trouxesse vantagem. Alguém suficientemente crente e suficientemente instruído na religião antiga para conhecer o terrível poder dos talismãs de Dana. Alguém como...

A monstruosidade daquilo que ela concluíra interrompeu o decurso dos seus pensamentos. Sem querer, a rainha olhou para Uter. Um homem. Um representante dessa raça humana capaz do pior e do melhor, tão fraca e devorada pela ambição, capaz dos piores crimes para se impor ao mundo. Capazes de tudo...

Lliane estava horrorizada. Sacudiu-se, descartando-se desses pensamentos medonhos, e viu que os seus três companheiros se debatiam ainda sobre a conduta que deveriam seguir. Uter esforçava-se por convencer Tsimmi a lançarem-se na perseguição de Blade, enquanto o anão insistia em revistar primeiro o covil de Gael, à procura da Espada de Nudd.

Ela contemplou o perfil do cadáver, no alto do seu catafalco de terra. À luz do archote, a sua pele cinzenta adquiria reflexos rosados, quase humanos.

— Talvez haja um meio de saber o que se passou — disse ela, levantando-se.

Todos fizeram silêncio. O próprio Freihr interrompeu o seu barulhento mastigar. A rainha aproximou-se do corpo, pousou as suas longas mãos sobre as têmporas dele e fechou os olhos. Os seus polegares acariciaram os contornos ossudos de Gael, redesenhando as suas maçãs do rosto, o seu nariz, as arcadas das suas sobrancelhas e as órbitas das pálpebras fechadas. Devagarinho, levantou-as e mergulhou os seus olhos no olhar sem vida do elfo.

— Quando os olhos contemplam a luz do Sol, conservam a recordação durante muito tempo, mesmo depois das pálpebras fechadas — disse ela baixinho. — Eles guardam também a recordação de tudo aquilo que venceram, e mesmo daquilo que não viram. É por isso que sonhamos, e que os sonhos são mais belos que a vida. Depois da morte, resta sempre um sopro de alma no fundo do corpo, e a memória desses últimos instantes. Fica o que vimos antes de morrer.

Agora, as suas mãos tinham-se afastado do rosto de Gael, flutuando a alguns centímetros da sua carne gelada. Ela fechou os olhos e atirou bruscamente com a cabeça para trás. O seu corpo começou a ondular, primeiro devagarinho, depois cada vez com mais força, até ser completamente tomada por um tremor violento e desordenado. Só as mãos, que continuavam a aflorar o rosto de Gael num lento movimento circular, pareciam escapar a estes espasmos brutais. Uter estremeceu. Bruscamente, a gruta pareceu-lhe gelada. Seria possível que a temperatura tivesse descido de repente, como se o reino dos mortos acabasse de abrir-se?

De novo, Lliane pareceu-lhe horrorosa. Como na clareira, ela já não tinha nada... de humano. Dir-se-ia que forças abomináveis modelavam e deformavam o seu rosto tão puro para o secarem e o transformarem numa máscara horrível. A palidez da sua pele tornou-se glacial, as suas longas mãos assemelhavam-se a garras e os seus olhos verdes tão luminosos tinham um brilho animal. Assustador. Subitamente, ela deu um grito superagudo e interminável, que lhes zumbiu a todos dentro dos ouvidos e atirou com um movimento da cabeça os seus cabelos para a frente, chuva negra que lhe escondia o rosto.

Com uma careta de dor, as mãos pressionando os ouvidos, tão insuportável era o grito, Uter começou a dar latidos roucos e, sem querer, recuou febrilmente até à parede, tão aterrorizado quanto Freihr ou Tsimmi.

Ele ouvia-os gritar, mas os seus gritos de condenados não conseguiam sobrepor-se aos encantamentos estridentes da rainha. Julgou que a terra tremia, que a abóbada do covil se desfazia e ameaçava ceder, engolindo-os a todos. Havia neste clamor insuportável vagidos de todos os demônios do inferno, os gritos dos danados e os choros dos vampiros, o crepitar das chamas, o soprar do vento, o estrépito do fim do mundo. Depois, não houve mais nada. Nada mais que os seus ouvidos a zunirem e as suas respirações ofegantes.

Lliane já não se mexia. O seu corpo inteiro emanava um halo azulado que se estendia como um véu de nevoeiro sobre o cadáver de Gael. Uter reteve a respiração e percebeu que tremia e que os seus dentes batiam, gelado até aos ossos, sem conseguir controlar-se.

Com os olhos esbugalhados, viu o halo modelar-se, tomar a forma humana, desenhar pouco a pouco os contornos de Gael e desprender-se do seu corpo, como um fantasma. Rapidamente, pôde reconhecer os traços do elfo, as suas vestes e os seus membros. Rapidamente, pôde distinguir a taça que ele segurava na mão e ver o sorriso que tinha nos lábios. Por fim, distinguiu a segunda forma humana, a de Blade, tal como ela apareceu ao elfo cinzento momentos antes da sua morte.

O seu ouvido martirizado não era capaz de distinguir aquilo que eles diziam e, no entanto, ele compreendia as suas palavras, por fragmentos, como se elas se imprimissem diretamente no seu cérebro.

Viu Blade mostrar o seu anel e Gael responder da mesma maneira, estendendo a mão onde brilhava um anel semelhante. Viu Gael remexer num cofre e tirar de lá a cota de malha de prata. Viu-o virar as costas ao ladrão para lhe servir de beber, depois viu Blade pegar num machado sobre a grade de manjedoura e bater.

Foi tudo quanto ele viu.

 

Enrolado e agasalhado por uma manta, Oisin tiritava. O veneno causava-lhe por vezes pontadas atrozes, queimava-lhe as entranhas até ele gritar, depois a dor passava, deixando-o pasmado, sem fôlego, aterrorizado pelo sofrimento ou pela expectativa do sofrimento. Apenas um dia tinha passado desde a partida da companhia e ele já tinha bebido a metade do frasquinho que o ladrão lhe tinha dado, sorvendo febrilmente o antídoto a cada novo ataque do veneno.

Como Blade lhe tinha ordenado, ele tinha voltado, ao cair do dia, a amarrar a sua jangada ao pontão na esperança do seu regresso. Tinha-se mesmo aventurado algumas toesas para o interior de Gwragedd Annwh, a ilha dos elfos cinzentos, até ao princípio da clareira devastada pelo sortilégio de Tsimmi. Mas a vista desse monstruoso caos de terra e rochas tinha-o horrorizado, e ele tinha rugido a toda a velocidade das suas pernas curtas até ao precário abrigo da sua jangada.

Oisin tinha demasiado frio e demasiado medo para dormir. E depois o seu espírito excitado não parava de engendrar planos para matar Blade. Por mais voltas que desse à questão, chegava sempre ao mesmo ponto vital: enquanto não tivesse o antídoto do veneno, o ladrão deveria continuar vivo; mas, se ele o fizesse atravessar o pântano, como é que poderia obrigá-lo a manter a palavra?

De repente, ruídos sobre a margem fizeram-no levantar a orelha. Vinha lá alguém. Alguém que caminhava a passos largos, sozinho e sem procurar ser discreto.

O gnomo levantou-se energicamente, com o coração a bater, e perscrutou o rio, na obscuridade nascente. Uma silhueta alta emergiu por fim das silvas. Oisin não o reconheceu até que as botas ressoaram sobre o pontão de madeira. Apesar da raiva e do medo, sentiu um certo alívio.

Com os braços carregados com uma volumosa trouxa improvisada, segurando na mão um machado de guerra semelhante ao dos cavaleiros anões, Blade saltou para bordo da jangada e o balanço brusco quase fez perder o equilíbrio ao barqueiro.

— Então! — disse Blade num tom alegre. — Ainda vivo, mestre Oisin? Folgo muito em saber!

O gnomo teve de controlar-se violentamente para não lhe saltar à garganta e para disfarçar a sua raiva. Agradeceu aos deuses a escuridão que caía e impedia o ladrão de lhe ver a cara.

— Então — disse Blade. — Vamos?

Oisin encolheu os ombros.

— Não se atravessa o pântano durante a noite. Os monstros debaixo de água...

— Ainda os teus monstros, hem?

O ladrão deixou cair a sua trouxa de pano, agarrou brutalmente no barqueiro pelo colarinho e puxou-o para a lâmina do seu machado.

— Convence-te de que os teus monstros são uma brincadeira em comparação com o que te espera se não partirmos já em seguida!

Oisin, louco de raiva e semi-estrangulado, não conseguiu mais que balbuciar palavras incompreensíveis, desferindo golpes desesperados nos braços do ladrão. Então, Blade empurrou-o brutalmente e desatou a rir.

— Vamos, gnomo, sê gentil, vamos embora! Foi cá um dia... Ele abriu os braços e sorriu, inspirando deliciado o ar fresco do crepúsculo.

— ...um dia verdadeiramente maravilhoso! Vou te contar... Mas o outro, petrificado, já não o escutava. Com os olhos arregalados, examinava minuciosamente as roupas do ladrão. O homem já não tinha o seu alforge, nem nada que pudesse conter o antídoto do veneno. Freneticamente, empurrou Blade e precipitou-se sobre a trouxa.

— Larga isso! — gritou o ladrão nas costas dele. Saltou-lhe em cima e tentou arrancar-lhe a trouxa improvisada, mas Oisin esforçava-se e conseguiu desfazer o nó do tecido. Imediatamente, foi como se uma chuva de prata caísse sobre a jangada, formando um charco cintilante.

Por fim, Blade conseguiu empurrar o gnomo, que rolou até ao outro lado da embarcação. Virou-se para ele, retomou a respiração e ameaçou-o com o punho.

— Não voltes a fazer isso, percebeste? Senão, atiro-te à água!

Oisin levantou-se de um salto, vermelho de cólera.

— Pois bem, atira, e nunca sairás destes pântanos.

Blade olhou o pequeno ser com um ar divertido.

— Está bem — disse abanando a cabeça. — Tens razão. Temos ambos necessidade um do outro. Perdi a calma, desculpa-me. Não voltará a acontecer.

Voltou para ao pé da trouxa desfeita e agitou, à luz mortiça da Lua, a cota de malha de prata roubada na Montanha por Gael.

Oisin ficou rindo, maravilhado com a beleza pura da cota de malha. Blade aproximou-se dele e pousou-lhe a mão sobre a veste, como um vendedor de tecidos.

— Vá lá, toca-lhe! Nunca mais vais ter outra ocasião. É bonita, não é? Que é que me dizes? Sabes, julguei que aqueles malditos elfos iam cortar-me às rodelas. Enfim, como vês, consegui sair-me bem, mais uma vez. Ouve, eis a minha proposta: partimos imediatamente e à chegada dou-te um pedaço. O suficiente para pagares os mais belos sonhos em Kab-Bag ou em outro lugar qualquer. Estás de acordo?

Mas de novo Oisin não o escutava. A capa de lã que tinha servido de trouxa estava completamente aberta, suficientemente estendida sobre os troncos para que não restassem dúvidas: para além dessa maldita cota de malha, ela não continha mais nada.

— E os frasquinhos? — gritou na cara do ladrão. — E o antídoto?

Blade teve um momento de perplexidade.

— Ah! sim... o antídoto. Foram os elfos, sabes...

Procurou com os olhos uma arma, mas o seu machado jazia do outro lado da jangada, por atrás de Oisin.

— ... levaram-me tudo. Tive de fugir. Visto isto, não te inquietes, tens ainda o suficiente para dois dias. Mais uma razão para partirmos imediatamente, não?

— Mas a travessia dura três dias! — choramingou o gnomo com a voz estrangulada pelo desespero e pela fúria.

Blade recuou. O gnomo acabava de pegar um punhal saído não se sabia de onde. O seu rosto grotesco cheio de lágrimas, numa careta de raiva, fazia medo só de olhar. Durante um instante, o ladrão perdeu o sangue-frio. Com a preciosa cota de malha agarrada contra o peito, ele recuou passo a passo diante do gnomo até chegar à borda da jangada. Quase caiu na água escura, recuperou o equilíbrio e afastou-se de um salto. Oisin golpeou o vazio, virou-se e o seu nariz esborrachou-se na bóia do mestre ladrão. Largou o punhal, que se cravou entre dois troncos, encarou o ladrão e recebeu um golpe com o lado da mão que lhe esmagou a glote.

Só foram necessários dois minutos para morrer, asfixiado, torcendo-se sobre a madeira rugosa da sua jangada à laia de um peixe fora da água.

Blade viu-o morrer enquanto acariciava a sua cota de malha de prata, com o espírito vazio, a cara crispada num esgar horroroso. Quando tudo terminou, pegou o pequeno corpo e atirou-o para a margem como um vulgar saco de roupa suja.

O dia tinha-se posto sem que o Sol se tivesse mostrado. Não tinha havido crepúsculo, somente um enfraquecimento progressivo da luz até que a escuridão se espalhou sobre os pântanos. Ele ficou ainda um longo momento sem reagir, ouvindo o coaxar das rãs e os barulhos da noite, com o olhar fixo no vácuo, sabendo que tinha de fugir antes que os elfos cinzentos tentassem vingar a morte de Gael, mas parecia paralisado pelos perigos que o esperavam durante a travessia.

Depois, uma massa abateu-se bruscamente sobre a jangada e Blade caiu ao chão. Não teve tempo de se levantar. O machado monstruoso de Rogor cortou o céu com um zumbido sinistro antes de lhe quebrar o ombro, partindo os ossos e trinchando as carnes, espetando-se profundamente nos troncos salpicados pelo seu sangue. O ladrão gritou até dilacerar a garganta, mas o herdeiro do trono sob a Montanha Negra nem sequer olhou para ele. No fundo do braço cortado e que ainda se agitava, a mão de Blade continuava a segurar a preciosa cota de malha. Rogor inclinou-se com deferência, agarrou a vestimenta de metal e, pegando o braço ensanguentado, atirou-o à água.

— Como é conseguiste isto? — perguntou, ajoelhando-se ao lado do corpo mutilado.

Louco de dor, banhado no próprio sangue, Blade conseguiu reunir forças para lhe cuspir na cara.

— Tu vais morrer — disse Rogor sem mesmo se limpar. — Mas podes ainda sofrer muito... Fala, e morrerás depressa. Onde arranjaste esta cota de malha?

Blade, respirando com dificuldade e banhado em suor, olhou o rosto duro do anão. No escuro, ele parecia mais um urso que uma criatura humana. Depois, sentiu uma dor ainda mais atroz, ao ponto de não conseguir respirar nem mesmo gritar. Rogor tinha cravado a sua adaga nas carnes ensanguentadas do seu ombro.

— Fala, e tudo terminará...

Blade comprimiu as pálpebras cheias de lágrimas, em sinal de assentimento, e Rogor retirou a adaga. O ladrão deixou cair a cabeça sobre os troncos, reuniu as suas últimas forças e murmurou:

— Gael... Matei Gael.

As espessas sobrancelhas do anão levantaram-se e o seu olhar brilhou.

— Então foi feita justiça — murmurou com o esboço de um sorriso. — O rei Troin está vingado...

Vingado pela mão de um homem, de um ladrão, ainda por cima indigno e malfeitor, mas, de qualquer forma, vingado. Assim, nem tudo estava perdido.

Rogor virou-se para a cota estendida sobre os troncos lamacentos da jangada e sorriu mais abertamente. Ele levaria a cota de malha, prova do crime de Gael bem como da sua punição. Mas um pensamento atravessou-lhe o espírito e ele entristeceu-se.

— E a Espada? — rugiu, segurando novamente Blade pelo colarinho. — Onde está a Espada de Nudd?

Blade não respondeu. Esvaído em sangue, ele dava o último suspiro, levado já pela morte.

— Fala! — gritou o príncipe Rogor. — Onde está a Espada?

Com o seu punho forte abanou freneticamente o corpo sem vida do ladrão, cuja cabeça caída para trás balançava de um lado para o outro, mostrando o pescoço marcado pela antiga cicatriz. Rogor cerrou os dentes num esgar selvagem. Pousou a lâmina afiada da sua adaga sobre o pescoço do cadáver e degolou-o lentamente, cuidadosamente, seguindo a linha violácea deixada pelo seu antecessor.

Como se o sangue lhe salpicasse as mãos, Rogor largou-o com nojo e ficou ali, longamente, ajoelhado perto do corpo sem vida, com a cabeça em fogo. Caledfwch, a Espada de ouro de Nudd... Dizer que ela estava ali, perto e inacessível. Dizer que esse Blade talvez a tivesse visto...

Rogor olhou para a margem, quase invisível na escuridão da noite, para lá da qual se estendia o maldito território dos elfos dos pântanos. Partir sozinho nesses pântanos de pesadelo à procura do Machado teria sido um suicídio.

Virou-se para a extensão brumosa do pântano. Três dias de travessia, e depois chegaria às Fronteiras e aos postos avançados dos anões, nas colinas. Em menos de uma semana, poderia estar de regresso comandando uma armada, e destruir esses pântanos até que o talismã dos anões lhe fosse devolvido.

 

O falcão voava em silêncio aos primeiros raios da aurora. Por debaixo das suas asas, todo o pequeno mundo do pântano saudava o nascer do Sol. Viu debaixo da água lamacenta um enorme peixe-gato de espinha negra, com mais de dois metros, que terminava a sua noite de caça engolindo uma rã num brusco borbulhar, antes de regressar ao seu covil aquático. Viu ratos, ratazanas e coelhos deixarem os seus abrigos nas moitas ou nas sebes de vime para debicarem febrilmente os últimos rebentos de erva, com as orelhas alerta e os bigodes a tremer, inconscientes do perigo que planava por cima deles. Como teria sido fácil apanhá-los! Mas o grande falcão bateu as asas e continuou o seu vôo até ao interior das terras, onde o esperava o seu dono, Till.

O elfo tinha mudado, sem que a ave conseguisse realmente saber porquê. Bem, é claro que o cão estava morto, esmagado por aquela avalancha de terra que tinha subitamente jorrado do solo, e o pássaro sentia dor sempre que pensava nisso. O próprio Till tinha sido atirado ao chão, enterrado, enrolado por pedras e terra em fúria, inundado pela lama e pelo medo, e tinha fugido, abandonando o seu arco partido, abandonando o seu cão, abandonando a sua rainha, traindo a palavra dada ao rei Llandon e manchando a sua honra para sempre. Mas isso o falcão não conseguia compreender.

O elfo já estava acordado (se é que tinha dormido alguma coisa durante a noite) e, logo que avistou o seu falcão, levantou o braço num gesto imperioso para que ele pousasse. Till tinha o rosto fatigado, um ar sombrio. Acariciou a plumagem branca pintalgada de cinzento num gesto maquinal e cansado. O pássaro contou-lhe aquilo que tinha visto, tomando atenção para não se esquecer de nada. Quando acabou, o seguidor de pistas abanou a cabeça, descontente e contrariado. O falcão largou o seu punho e pousou sobre um cepo invadido de musgo, um pouco inquieto com a cólera do amo. Como é que ele poderia ter compreendido que o seguidor de pistas só tinha uma razão para existir e que essa razão acabava de escapar-lhe?

Till acalmou-se por fim e, com as mãos em concha, lançou no ar gelado da manhã um trinado modulado ao qual rapidamente responderam por todo o lado assobios semelhantes. Elfos cinzentos apareceram quase instantaneamente, armados com os seus estranhos arcos curtos, com paus e adagas.

— O anão Rogor fugiu — anunciou Till na língua dos elfos dos pântanos. — E o ladrão com ele. Para trás só deixaram o corpo do gnomo Oisin.

— Então, o ladrão estava conivente com o anão — disse um dos guerreiros elfos.

— Sem dúvida. E agora o mal está feito. Eles mataram a rainha Lliane, mataram Gael, levaram aquilo que tinham vindo procurar e partiram sem serem incomodados.

Os elfos cinzentos baixaram a cabeça, de raiva e de vergonha.

— Regressemos.

 

— Em pé! Em pé!

Uter crispou-se instintivamente, e depois o seu sangue voltou a circular-lhe nas veias quando reconheceu Freihr. Sacudiu-se, olhou em volta como se tivesse tido uma ausência e pôs-se em pé, com o coração aos saltos. Os seus ouvidos ainda zumbiam e sentia-se gelado até aos ossos, entorpecido como se tivesse saído de um sonho mau. Viu por fim a rainha, ajoelhada ao pé do catafalco, a cara entre as mãos, e o seu primeiro impulso foi de precipitar-se para ela e ajudá-la a levantar-se, mas a máscara horrível da elfo, alguns instantes antes (ou seriam algumas horas?), veio-lhe à memória, e ele não se mexeu. Tsimmi, ao lado dela, içava-se sobre as suas pequenas pernas para atingir o corpo de Gael. Ele remexia sem que Freihr nem Uter pudessem ver o que fazia, e, por fim, voltou-se para eles, com um brilho de triunfo no olhar.

— Aqui está! — disse, juntando-se a eles.

Na palma da sua mão brilhava o anel de Gael, com a runa de Beorn.

— Que é isso? — perguntou Freihr.

— O anel, vejamos! — grunhiu o anão, encolhendo os ombros.

— Dormias, há bocado, ou quê? Não viste que eles se mostravam os anéis?

Uter abanou a cabeça. A imagem dos fantasmas de Blade e Gael estava ainda bem presente no seu espírito, e cada um dos seus gestos ficaria provavelmente gravado para sempre na sua memória.

Ele pegou no anel e examinou-o. Tinha uma runa, com efeito, semelhante a uma árvore de três ramos. Uma runa que ele conhecia e que já tinha visto... em Scâth, à entrada do bairro dos ladrões, na cidade baixa de Kab-Bag. E no anel de Blade. E aonde mais?

— É o anel da Guilda — disse Frehir com a sua voz estridente, olhando o anel por cima do seu ombro.

— É claro! — resmungou Tsimmi (ele ficava sempre um pouco irritado com a lentidão das deduções do bárbaro). — E se Gael trazia este anel, é porque também ele fazia parte da Guilda. Era a Guilda que o contratava, percebes?

— Não...

— Dito de outra forma — prosseguiu Uter —, foi a Guilda que ordenou a morte do rei Troín e o roubo da Espada de Nudd.

Os olhos de Tsimmi brilharam de excitação. Tirou o anel dos dedos do cavaleiro e agarrou-o firmemente dentro da mão.

— É preciso regressar a Loth o mais depressa possível. Com isto podemos provar que os elfos são inocentes e que se trata de um roubo ignóbil! Caberia ao rei Pellehun fazer justiça e pôr ordem nesta associação de ladrões e assassinos. A paz ainda pode ser salva!

Nesse instante, Lliane deu um gemido e os três companheiros aperceberam-se de que ela tinha caído por terra, quase inconsciente, esgotada.

Tsimmi deu uma cotovelada na coxa de Uter.

— Devias ajudá-la, de qualquer forma — sugeriu ele num tom reprovador.

O jovem abriu a boca para responder mas, como tantas vezes, não encontrou resposta e contentou-se em encolher os ombros, enquanto o anão e o bárbaro riam que nem tolos.

Em dois passos chegou ao pé de Lliane e, ajoelhando-se, levantou-lhe suavemente a cabeça. Afastou os cabelos negros colados pelo suor e contemplou o rosto apaziguado da elfo, tão bela e parecendo tão frágil quanto um cristal. Como podia ela abrigar uma força tão selvagem, tão bestial, tão pouco humana? Até àquele momento, todos os elfos que o bravo tinha conhecido eram doces e pacíficos, calmos até à indolência, desapegados de tudo. Alguns velhos soldados que tinham conhecido a Guerra dos Dez Anos falavam da crueldade dos elfos e dos prodígios conseguidos pelos seus mágicos, da atrocidade dos seus malefícios e dos seus olhares de vampiros, mas nunca Uter tinha acreditado neles. Os velhos soldados inventavam sempre um pouco, era bem sabido.

Agora também ele tinha visto a outra face dos elfos. As sombras da noite, duendes, diabos, diabretes, e esses fantasmas negros do crepúsculo a quem os anões chamavam korrigans, todos esses personagens de contos de fada que se inventavam para as crianças ganhavam um novo sentido, aterrorizador e fascinante. Lliane, a mágica, seria tudo isto, fada e monstro, aterrorizadora e adorável? Os elfos eram todos assim?

Lliane recuperou os sentidos, os seus olhos verdes tão claros pousaram sobre ele com ternura. Pobre humano, preso na ronda das fadas, encantado, a alma feliz para sempre...

— Como tu me olhas — murmurou ela.

Uter não disse nada mas o seu coração batia com força. Era verdade, ele contemplava-a apaixonado, avassalado por baforadas de sentimentos difusos, num novelo de amor, de crença, de desejo, de mal-estar e de fascínio que não era capaz de desenrolar.

Ela sorriu-lhe.

— Portanto, tu amas-me? — perguntou ela.

— Sim...

Ela pousou a face sobre a mão do cavaleiro e acariciou-lhe o braço.

— Vais ter de ensinar-me...

Uter acenou com a cabeça e o nó que lhe apertava a garganta desfez-se. A face de Lliane, na sua mão, o corpo de Lliane, estendido a seu lado, os olhos de Lliane, os seus lábios, a sua beleza, a sua força... Não acabara ela de confessar que o amava? Não, não verdadeiramente, mas no entanto... Dizia-se que os elfos não conheciam o amor. Que eles eram demasiado parecidos com os animais para sentirem sentimentos reais. Seria então possível uma elfo amar um humano? Que a rainha dos altos-elfos amasse um cavaleiro? De repente ele sentiu-se forte, efervescente, pronto para a ação.

— Vamos! — gritou aos outros. — Não devemos perder mais tempo!

Depois, enquanto os seus companheiros se encaminhavam para os degraus de terra, ele ajudou Lliane a levantar-se e falou-lhe do anel de Gael, segurando-a nos seus primeiros passos.

Tsimmi e o bárbaro sentiam o mesmo transbordar de energia. Eles subiram os degraus desfeitos quase a correr, até às primeiras salas onde Freihr teve de novo de curvar-se, o que permitiu ao anão ultrapassá-lo e sair em primeiro lugar para o ar livre, com toda a velocidade das suas pernas curtas.

Ele atirou-se para luz do dia com um sorriso triunfante, que desapareceu imediatamente.

No centro da clareira estava uma pequena tropa de elfos cinzentos armados que falavam com os velhos. Um dos velhos estendeu o dedo na sua direção, e todos se voltaram para ele com um estremecimento, um pouco hostil e ao mesmo tempo hesitante. Um elfo mais alto que os outros empurrou-os, afastou o pequeno grupo e dirigiu-se-lhe, tão depressa que ele mal teve tempo de o reconhecer.

— Tu! — gritou Till, com os olhos arregalados de raiva, o rosto descomposto. — Tu vais pagar!

Tsimmi recuou, tentou desajeitadamente agarrar o martelo de guerra que trazia às costas e embateu contra a cabeça curvada de Freihr, que saía nesse instante da cabana subterrânea.

Na mesma fracção de segundo, Till bateu com um grito de raiva. A lâmina afiada da sua longa adaga rasgou o couro duro da cota de malha do anão, cortou as carnes e fez saltar o sangue.

Tsimmi deu um grito de dor. Com o braço profundamente cortado, rolou por terra, até aos pés do seguidor de pistas, que golpeou de novo, como um louco. No instante seguinte, Freihr embateu com ele de frente, numa corrida prodigiosa, com a cabeça para a frente, projetando-o a várias toesas.

O bárbaro deitou um olhar ao anão, que se aninhava contra a cabana, ferido mas vivo, e desembainhou a sua enorme espada com as duas mãos, mesmo a tempo de conter o assalto dos elfos cinzentos que acorriam em socorro de Till.

Debaixo de terra, Lliane e Uter tinham ouvido o grito de Tsimmi. Ficaram um momento paralisados, retendo a respiração.

Rapidamente, reconheceram o barulho de uma luta. Num mesmo ímpeto, precipitaram-se para fora.

Freihr, de pé, mantinha em respeito um grupo de elfos fazendo largos molinetes com a sua espada, cuja lâmina zumbia perigosamente em frente deles, como uma foice. Tsimmi, encostado à cabana, titubeava como um bêbado, sem conseguir segurar o seu machado de guerra.

— Parem!

A rainha tinha gritado na sua voz de comando, numa entoação forte que se impunha e fazia que lhe obedecessem. Os elfos recuaram e deitaram-lhe olhares inquietos. O próprio Freihr não conseguiu impedir-se de deitar um olhar à rainha, por cima do ombro. Lliane cambaleou. Sem o braço de Uter ela teria caído. Ele, que a via de perto, adivinhou o tremor dos seus membros e as gotas de suor que lhe escorriam pela cara. Este grito parecia ter-lhe tirado as últimas forças.

Uter sentiu, mesmo antes de ver, um elfo correr para eles, e apontou a sua espada para lhe barrar a passagem. Precisou de um certo tempo para reconhecer Till, tão fora de si parecia o seguidor de pistas.

— Rainha Lliane!

Ele parecia incapaz de dizer fosse o que fosse, deitando à rainha dos altos-elfos um olhar febril, terrível.

Lliane agarrou-o pelo braço, baixando-lhe ao mesmo tempo a adaga vermelha do sangue de Tsimmi.

— Estou contente de ver-te, Till — murmurou ela.

— Minha rainha, eu tinha a certeza de que havíeis sido morta, esta manhã. Eu... Eu não...

O elfo verde deitou um olhar ao mestre mação, sempre encostado à cabana de Gael, e depois voltou a olhar para a rainha, transtornado e admirado.

— Acabou-se — disse Lliane.

Ela agradeceu a Uter com um sinal de cabeça e, apoiada agora em Till, avançou para a frente dos elfos cinzentos como se nada se tivesse passado. Ao cruzar o olhar com o dela, Uter teve a certeza de que ela já tinha recuperado as forças e que só se agarrava ao braço do seguidor de pistas para o dominar.

— Fomos todos enganados — disse ela com uma voz forte. — Yelessa eh anna kolotialo. D’hya ne etio lassaleo. O anão não tem nada a ver com isto!

Uter, com um movimento de queixo, mandou Freihr vigiar os elfos, enquanto ele socorria Tsimmi. Encostado à parede de ramos da cabana, o mestre mação comprimia a sua ferida, com uma careta de dor. O sangue escorria-lhe entre os dedos. Havia bastante na sua cota de malha de couro e escorria-lhe ao longo do braço, formando um charco escuro aos seus pés, rapidamente absorvido pelo solo de turfa.

— Deixa-me ver — disse o jovem. Tsimmi obtemperou; Uter fez uma careta.

O osso estava visível por debaixo da carne ensanguentada que a lâmina afiada de Till tinha cortado como presunto. O cavaleiro arrancou com um golpe seco a manga da túnica verde. Comprimiu o tecido na ferida e depois deu um nó nas extremidades para manter a ligadura improvisada.

— Decididamente não tenho sorte — gemia Tsimmi para com a sua barba. — Primeiro, os gnomos quase me partem os joelhos, e agora este imbecil corta-me o braço. Mas que é que eu lhe fiz?

Uter absteve-se de dizer que ele o tinha sepultado sob montões de terra, e que ele próprio, na véspera, não tinha estado muito longe de o cortar em rodelas. Os anões são susceptíveis.

Houve gritos e interjeições de ódio, na estranha língua dos pântanos, da qual Uter e os seus companheiros não entendiam nada. Mas, mal um elfo apontou para um objeto que brilhava no chão de turfa, o jovem cavaleiro precipitou-se para o apanhar antes deles. Era o anel de Gael. O anel com a runa de Beorn, a única prova que tinham...

— Dá-mo! — disse Tsimmi.

Uter obedeceu sem refletir, e a mão nodosa do anão fechou-se sobre o anel no instante em que um elfo cinzento, afastando Till e a rainha, veio colocar-se em frente deles, com os olhos revirados, gritando aos seus ouvidos um palavreado incompreensível.

— Que é que ele quer? — lançou Uter, interpondo-se entre ele e o mestre mação.

Pergunta estúpida. Ele queria o anel.

— Ele acusa-nos de termos roubado Gael. É preciso devolver-lhe o anel, Tsimmi. A sério!

— Não, não — respondeu o anão, com um sorriso crispado para o elfo. — Se lho damos, não teremos nenhuma prova do que se passou...

Ele continuava a sorrir apesar do seu rosto exangue, apesar do sangue que tinha escurecido a sua ligadura improvisada, com a mão esquerda fechada sobre o anel de Gael. O elfo cinzento balançava-se de um pé para o outro e, segurando nervosamente a sua adaga, olhava-o perguntando-se que razão poderia haver para não o matar logo ali.

Com uma careta de dor, Tsimmi tentou levantar o seu braço ferido e fez estalar os dedos. O elfo deitou um olhar admirado à mão ensanguentada do anão e, quando voltou a olhar para ele, Tsimmi mostrou-lhe a mão esquerda, agora vazia.

— Fugiu! — disse no seu tom de quem faz um truque. — Desapareceu, o anel!

O elfo percebeu o golpe e franziu as sobrancelhas, o que teve o dom de encantar Tsimmi.

— Magia! — disse ele, e desatou num riso zombeteiro.

O elfo tremeu com o insulto.

— Hydlaehn’etalo!

Deu a Tsimmi um murro tão forte que o sangue lhe sujou o punho. Lliane e Uter precipitaram-se ao mesmo tempo sobre ele para o dominarem, mas ele já tinha levantado a sua adaga e abatia-a com um grito de carniceiro, para pregar o anão ao chão.

A rainha e o cavaleiro ripostaram ao mesmo tempo, e nenhum deles soube qual, se a adaga élfica de Lliane ou a pesada espada de Uter, foi a primeira a matar o elfo.

Houve imediatamente um enorme atropelo.

Os elfos dos pântanos gritavam de raiva e atiraram-se ao ataque numa massa desordenada e furiosa, rodeando por todos os lados o grupo disperso dos enviados do Grande Conselho. Freihr, já alerta, colheu um deles com um golpe de espada, separando-lhe a cabeça do corpo. Nesse movimento, o seu flanco descobriu-se e um guerreiro investiu direto a ele, segurando a sua adaga com as duas mãos. O bárbaro parou-o logo com um pontapé no ventre e depois, como que por efeito do balanço, a espada monstruosa zumbiu e veio cravar-se profundamente no corpo do elfo.

— Tal como me ensinaste! — gritou Freihr na exaltação da batalha, com um olhar triunfante em direção a Uter.

O cavaleiro nem o ouviu. Ele e Lliane combatiam costas com costas, formando uma barreira em frente do corpo inanimado de Tsimmi, submergidos pela carga furiosa e desordenada dos elfos cinzentos. Um deles atirou-se literalmente sobre a rainha, rugindo como um animal, com o olhar louco. Uter protegeu-a com o seu corpo. A sua espada espetou-se na fronte do desvairado que, ao tombar, lha arrancou das mãos. Ele vacilou, recebendo simultaneamente uma quantidade de golpes nas maçãs do rosto, no braço, no corpo. Uma lâmina cortou-lhe o lado. Um pau bateu-lhe com tal força no ombro que lhe anestesiou o braço. Estrelas puseram-se a dançar em frente dos seus olhos e ele sentiu o gosto de sangue na boca. Então, pôs-se a gritar e defendeu-se, batendo indiscriminadamente, como um louco. Já não era ele quem se batia, mas um animal primitivo lutando para salvar a vida, esquecendo as regras tantas vezes aprendidas durante os treinos, batendo com os punhos, com os pés, mordendo como um animal, na rixa furiosa de um combate de morte, sem mesmo saber se Lliane, a seu lado, ainda estava viva. Os rostos desfigurados dos elfos cercavam-no como num pesadelo, e ele batia, batia com as mãos nuas, com uma raiva tal que os elfos recuaram, tomados por essa crença supersticiosa que tantas vezes os domina. O homem tinha-se tornado o que os bárbaros do Norte chamavam de berserker, um louco de guerra, sedento de sangue, inconsciente do perigo, insensível aos assaltos dos seus inimigos. Rapidamente, Uter não encontrou mais que o vazio, e olhou em volta, cambaleando apatetado.

— Vem!

Virou a cabeça, a tempo de ver Lliane puxar por si, e precipitou-se atrás dela, com a raiva a transformar-se em medo, de medo em pânico, e cada vez mais aterrorizado a cada passo. E eles correram a direito através das moitas, juncos e silvas, durante um tempo infinito, até que o medo deu lugar à fadiga, depois a fadiga ao sofrimento, depois o sofrimento ao embrutecimento... As pernas do cavaleiro fraquejaram e ele caiu de cara no chão, incapaz de dar mais um passo. Freihr tropeçou nele e estatelou-se por seu lado, atirando como uma bola o infeliz Tsimmi, que trazia ao colo como uma criança adormecida.

Com a garganta contraída e os pulmões em fogo, o corpo banhado em suor, Uter tinha a impressão de todo ele ser chagas e golpes. Rolou sobre as costas, de cara virada para o céu, fazendo caretas e soprando como uma forja. Depois, quando conseguiu respirar de novo quase normalmente, ergueu-se e procurou com os olhos a rainha. Lliane estava ali, ofegante e com a cara coberta de equimoses, mas sempre em pé e parecendo capaz de continuar a correr indefinidamente. Era como se o esforço físico não existisse para ela; como se só os seus próprios encantamentos fossem capazes de a esgotar. Com todos os sentidos alerta, uma das flechas de Kevin já encaixada no seu grande arco, ela voltou atrás, assegurou-se de que já não eram seguidos e desapareceu por entre os fetos. Alguns minutos mais tarde, voltou para junto deles e guardou a sua preciosa flecha dentro da aljava.

— Parece que tivemos uma demora, mas não devemos prolongá-la — disse ela, deitando apenas um olhar a Uter (e, nesse instante, ele achou-a detestável).

Depois debruçou-se sobre Tsimmi e examinou-o em silêncio.

— Então? — perguntou Uter num tom brusco.

— Está vivo. É tudo quanto se pode dizer. Tratarei dele mais tarde.

— Mais tarde!

Uter sentiu a raiva invadi-lo.

— Pois, sabe que, se ele está ferido, é porque arriscou a vida para recuperar o anel de Gael e inocentar o teu povo!

A rainha pousou sobre ele os seus olhos frios.

— Se eu tratar dele aqui, os elfos cinzentos vão encontrar-nos e morreremos todos. Tsimmi sobreviverá ainda uma ou duas horas.

— Podem ter certeza disso! — disse o anão numa voz lastimável, esboçando um vago sorriso para Uter.

Lliane colocou o seu arco às costas, passando a corda por entre os seios, deitando um olhar de esguelha ao jovem cavaleiro, o que fazia pensar que ela estava consciente do facto de que a corda lhe cingia a túnica contra o peito, revelando os contornos de uma maneira provocante. Ela passou, no entanto, em frente dele como se ele não existisse e foi ajudar Freihr a levantar-se. Freihr! Dá que pensar! Uter levantou-se, gemendo. Inclinou-se, agarrou na sua espada caída no chão e levantou-a com uma nova careta de dor. Cada gesto, cada passo era um novo sofrimento. O sangue sujava um lado da sua cota de malha, no lugar onde uma adaga élfica o tinha cortado. Com efeito, ele estava cheio de sangue. Havia sangue por todo o lado. E algum era o seu.

— Partamos — disse a rainha.

Ao cair da noite, eles tinham saído de Gwragedd Annwh. O solo tinha-se tornado firme e a vegetação tinha mudado. Aos bosques de vime, de canas, de fetos e às moitas de juncos tinham-se sucedido sombrios matagais, até aos arredores de uma floresta de faias torcidas, de formas desfiguradas pelo vento, que os homens chamavam de abortos e que lhes metiam medo, tanto essas árvores enroladas, tortuosas, se assemelhavam a uma caricatura sinistra de formas humanas. O solo de turfa, esponjoso e leve, tinha dado lugar a uma terra cada vez mais rochosa, cheia de raízes de heras rastejantes que os faziam tropeçar sem parar, obrigando-os a manter os olhos baixos para verem onde punham os pés. Cada vez que levantava a cabeça, Uter sentia-se oprimido pela floresta sombria que pouco a pouco tomava forma em volta deles. As árvores negras, de troncos comidos pelas heras, as rochas úmidas de um líquen esverdeado, os longos ramos semelhantes a mãos de feiticeiras, esqueléticas e com garras, tudo isto tomava ares de pesadelo, e ele preferia manter os olhos baixos para escapar a este cenário funesto.

Entre os Povos Livres tinham circulado demasiadas histórias a propósito desta lúgubre floresta, para que algum dos quatro companheiros ignorasse onde se encontravam. A sombria floresta de faias marcava a fronteira das Terras Negras. Depois dela elevavam-se as colinas das Fronteiras, depois o País de Gorre, império d’Aquele-Que-Não-Pode-Ser-Nomeado.

Eles continuaram a avançar em silêncio (exceto pelos gemidos e recriminações de Tsimmi, ainda empoleirado às costas de Freihr, e que só tinha recuperado a consciência para se queixar) até que a escuridão os impediu de ir mais longe. Então pararam, extenuados e tão sombrios quanto a floresta, taciturnos e fechados, perdidos em negros pensamentos.

Uter desfez o seu cinto, tirou a cota de malha suja de sangue e atirou-a para longe com um ar enojado. De que servia trazer as cores do rei Pellehun, quando elas já nem se viam! O jovem esfregava convulsivamente as faces, invadidas pela barba a nascer que lhe fazia comichão. Sentia-se sujo, tinha fome, e estava farto. Além disso, tinha a sensação desagradável de ser o único a não saber para onde é que iam, depois de horas nesta floresta maldita que não levava a parte nenhuma. Como a rainha não lhe falava, ele guardava as suas perguntas para si, o que lhe atiçava o rancor.

Sem dúvida seriam incapazes de dizer quanto tempo ficaram a ruminar cada um no seu canto, mas de repente foi como se todos tivessem acordado. Lliane e Tsimmi começaram a ocupar-se das feridas do anão (e o mestre mação não parava de dar conselhos à rainha ou de gritar quando ela o magoava), e Uter começou a apanhar madeira seca para fazer uma fogueira.

— Fica de guarda — disse Freihr. — Vou caçar o jantar...

O bravo levantou-se e desembainhou a sua espada para o caso de ser necessária. Na realidade, ele não sabia o que é que devia guardar ou de onde poderia vir o perigo, mas, pelo menos, tinham todos saído daquele torpor mórbido.

Ele afastou-se um pouco na direção tomada pelo bárbaro. Ouvia-se ainda o ruído dos seus passos a afastarem-se rapidamente na noite, sem que fosse possível distinguir fosse o que fosse nas sombras e nos troncos nodosos das faias. Se a Lua tinha aparecido, devia haver muitas nuvens para que a sua luz chegasse ao bosque. Uter seguiu-o um momento com os olhos, perguntando-se como é que ele poderia caçar em tal escuridão, até que deixou completamente de o ver. Cortou com um golpe de espada os raminhos que se tinham prendido à sua cota de malha e deu meia volta, mas imobilizou-se de imediato. Já não via o fogo que tinha acendido. Não se via nada. O vazio. Uma obscuridade total e insondável. Apenas as formas torturadas e ameaçadoras dos ramos se desenhavam no cinzento escuro do céu.

O jovem engoliu em seco, forçou-se a manter a calma e avançou aos apalpões, estendendo a espada como um cego, tropeçando a cada passo sobre as raízes ou os cepos mortos, magoando-se nas árvores, das quais só conseguia adivinhar a silhueta no último instante. Caminhou alguns minutos, na suposta direcção do acampamento improvisado, sem ver nada, depois em sentido contrário; por fim, virou à direita porque lhe pareceu ter ouvido uma voz. De novo teve de parar para dominar a angústia que o envolvia.

Com o ouvido à escuta, ele tentou escutar Tsimmi e a rainha, mas só ouviu barulhos da floresta: estalidos, piares dos pássaros nocturnos, o assobiar do vento entre os ramos. E um riso...

Sobressaltou-se e segurou com mais força o punho da sua espada. Seria mesmo um riso? Dir-se-ia ser um barulho de areia numa peneira, uma risota espasmódica e abafada, muito perto dele.

— Quem está aí?

Outra vez o riso surdo e passos ligeiros nas folhas mortas.

Uter reteve a respiração, arregalou os olhos até às lágrimas, mas sem distinguir ninguém. Subitamente, houve mesmo o estalar de um ramo, por trás dele, depois outro à direita, e depois mais ao longe. E essa risota insuportável...

— Mostrem-se, com mil diabos!

— Uter!

O jovem virou a cabeça. Era a voz de Lliane, no entanto ele só viu a alta silhueta de Freihr, segurando uma tocha, ao longe. Imediatamente sentiu-se roçado, empurrado, cercado por milhares de coisas fugidias que desapareceram num instante, nas matas insondáveis da floresta, sem que ele tivesse podido identificá-las.

— Uter?

— Estou aqui! — gritou o jovem.

Avançou alguns passos em direção à luz do archote e quase bateu na rainha, a qual não precisava de luz para abrir caminho por entre o bosque.

— Lliane! Estás a vê-los? Estás a vê-los?

Ele agarrou-a pelo braço e designou com um gesto vago as moitas obscuras e os troncos nodosos do bosque de faias.

— O quê? — perguntou a rainha piscando os olhos. — Não há nada...

— Há, sim, vê bem, por todo o lado... Havia animais, não sei de que espécie, mas tive a impressão que eles riam...

— Ah, são kobolds — interveio Freihr, juntando-se a eles. — Não é nada. Não são maus. Vimo-los em Kab-Bag.

Uter lembrou-se com nojo dos homens-cães, repugnantes devoradores de cadáveres que rondavam o termo das cidades e das aldeias, e que os anões acusavam de serem ladrões de crianças. A ideia de ter sido cercado por uma matilha de kobolds selvagens no meio da floresta não lhe agradou particularmente.

— Que se passa? — perguntou Freihr. — Tiveste medo? — Deu-lhe uma palmada no ombro, desatou a rir no seu riso estúpido, e depois empurrou-o na direção do acampamento improvisado.

— Bom, está bem, não tive medo! — disse Uter bem-humorado, deitando um olhar de lado à rainha (a qual, parecia-lhe, reprimia um sorriso). — E depois, se pudesses evitar desmanchar-me o ombro a todo o instante, seria bem simpático da tua parte, e desde já to agradeço!

Lliane emitiu algumas notas do seu riso puro e pegou-lhe na mão.

— De qualquer forma, eu tive medo — murmurou-lhe ela ao ouvido. — Tive medo que te tivesses perdido...

O jovem olhou-a estupefato e deixou-se conduzir até ao acampamento, onde Tsimmi, encostado a um cepo, alimentava o fogo com pauzinhos e musgo. Havia na rainha algo que Uter não compreendia. Nem as jovens que ele tinha conhecido, nem nenhuma mulher da corte se comportavam assim. Quando uma mulher se oferecia a um homem, ela tornava-se sua companheira, e toda a gente ficava contente (o amor dos homens nesses tempos longínquos era uma coisa simples, para corações simples), mas Lliane parecia ter um prazer maligno em escusar-se no momento em que ele tinha precisado dela ou a tornar a prendê-lo nas suas teias mal ele se desprendia, como se o amor, para um elfo, fosse um jogo subtil e cruel, e não essa certeza grave que se tinha estabelecido no coração do jovem. Era de dar em louco...

— A floresta é demasiado densa para a atravessarmos — disse Freihr, saciado, chupando os dedos. — Demasiado tojo, muitas silvas. Seriam necessários dias... Eu vi um caminho, mas vai para as colinas.

Com uma careta, Uter engoliu o pedaço que mastigava a custo. A carne de rato assada tinha realmente um gosto horroroso...

— Que colinas? — perguntou ele. — Estás a falar das Fronteiras?

— As Fronteiras Negras — murmurou Tsimmi, tristemente. Uter sorriu ao ver o estado em que ele tinha ficado. O seu braço ferido estava preso ao peito e ele servia-se da mão esquerda para comer, o que não dava grande jeito.

— Não há outra maneira de passar? — perguntou a rainha. De novo, Uter teve a penosa sensação de ter perdido uma parte da história.

— Mas, enfim, passar para onde? — largou ele bruscamente.

— E depois, que é que fazemos aqui?

— Regressamos, é claro! — troçou Tsimmi.

— Depois do que se passou em Gwragedd Annwh — explicou Lliane —, o único meio de voltarmos a Loth sem atravessar o pântano é irmos até à aldeia de Freihr, Seuil-des-Roches...

Ela fez uma pausa.

— ...mas fica do outro lado.

Uter abanou a cabeça.

— Queres dizer, do outro lado das Fronteiras Negras.

— Sim.

— Pois bem, prefiro tentar a sorte mais uma vez com os elfos cinzentos.

— Uter...

— O quê, Uter? Mas vocês ficaram todos loucos, ou quê? — Virou-se para Tsimmi, que o olhava com um ar interessado, mordiscando uma minúscula coxa de rato.

— Tu, pelo menos, diz-lhes! Em Kab-Bag, foste o primeiro a dizer que seria uma loucura ir às Terras Negras! Por favor, olhem para vocês! Já perdemos metade da companhia. Primeiro Roderic, depois os pajens, depois o Sr. Rogor (sabe Deus o que terá acontecido a esse), e Miolnir, e Till, e mesmo o ladrão! Não somos mais de quatro! Que faremos se cairmos sob uma patrulha gobelin?

— E que podemos fazer mais?

A rainha fixou-o até ele ter acalmado.

— É preciso não subestimarmos os elfos cinzentos continuou ela por fim. — Se regressarmos, seremos todos mortos antes de chegarmos ao pântano. Seuil-des-Roches fica a poucas léguas. Teremos talvez uma hipótese de passar sem sermos vistos.

— E se nos virem?

— Então morreremos. Mas, pelo menos, teremos levado a nossa missão até ao fim, Uter. Pelo menos, teremos tentado preservar a paz. Não sei por que é que Gael matou o rei Troín, nem o que é que ele fazia na Guilda, nem que senhor ele servia. Em compensação, sei que a nação dos elfos nada tem a ver com este assassínio nem com o roubo da Espada de Nudd. E quero testemunhá-lo. Testemunhar se ainda for a tempo, e evitar uma guerra entre elfos e anões.

Ela interrompeu-se. À luz do fogo, os seus olhos brilhavam cheios de lágrimas.

— E se falharmos, Uter, creio que prefiro morrer a assistir a isso...

Um silêncio pesado recaiu sobre a companhia, até que Tsimmi pigarreou para chamar a atenção.

— Para responder à vossa pergunta de há pouco — disse num tom pedante que empregava muitas vezes quando dava qualquer informação —, não existem só as Fronteiras. Podemos atravessar pelas colinas!

Calou-se para ver o efeito que tinha tido.

— Conservamos nos arquivos do reino sob a Montanha a saga dos anões de Oonagh — continuou ele, fixando pensativamente o fogo. — Os anões de Oonagh eram uma grande linhagem, descendentes de Fenris Barba-Azul. Estou a falar-vos disto, mas passou-se numa época em que eu ainda não era nascido... quer dizer... Fenris partiu da Montanha Vermelha e seguiu mais ou menos o caminho que estamos a seguir hoje. A diferença é que ele estava à frente da maior armada anã de todos os tempos.

Tsimmi calou-se um momento e fechou os olhos, saboreando durante alguns segundos a evocação desse glorioso passado lendário.

— E então? — disse Uter, um pouco secamente.

O anão piscou os olhos, como se acordasse de um sono breve.

— Ha? Ah, sim, desculpem-me. A saga dos anões de Oonagh diz que as colinas não pertencem ao Senhor Negro, mas ao Povo Livre dos trolls.

— Os trolls? — disse Uter que não conhecia esse nome.

— Vocês chamam-lhes ogres, creio — precisou Tsimmi, e Uter confirmou com uma cara enojada. — E tu, sabes como é que eles vos chamam a vocês homens? Presuntos! Ah! Porque a vossa carne é cor-de-rosa e mais fina que o couro dos anões! Que delícia!

Freihr desatou a rir (esquecendo-se que ele próprio era um desses ”presuntos” que os trolls comeriam de uma dentada). O seu bom humor acabou por animar Uter.

— Pois bem, não tenho vontade nenhuma de servir de refeição aos ogres das colinas — disse a sorrir.

— Certo, meu amigo — aprovou Tsimmi. — E é por isso que o Inominável lhes deixou este território. Os trolls atacam qualquer um que se aventure nos seus domínios. Creio bem que nem uma armada passaria.

— E como é que fizeram Fenris e os teus anões de Oonagh? — perguntou o cavaleiro.

Tsimmi esboçou um pequeno sorriso malicioso, visivelmente à espera desta pergunta.

— Eles passaram por debaixo das colinas. A saga conta que existem nas Fronteiras numerosas grutas que comunicam, por um lado, com as Terras Negras e, por outro, com o mundo livre. Túneis, verdadeiros túneis.

— Nunca vi nenhum troll — resmungou o bárbaro. — Mas sabem o que se diz das Fronteiras? Diz-se que estão guardadas por um clã de lobos negros.

O bárbaro abanou a cabeça.

— Um dia eles atacaram Seuil-des-Roches, a minha aldeia... Estendeu a mão diante de si, e os três companheiros viraram-se sem refletir na direção que indicava. Evidentemente, não viram mais que a sombria cortina de árvores iluminada pelas chamas e as suas próprias sombras fantasmagóricas dançando ao ritmo da fraca fogueira.

— Nunca ninguém viu um troll — corrigiu Tsimmi. — Diz-se que só o aspecto deles faz gelar de terror os viajantes que entram nas suas colinas, e que eles os decepam vivos para os devorarem. Não gostaria de saber se isto é verdade... Os lobos negros são verdadeiros monstros, e alguns são suficientemente grandes para pegarem num gobelin com armadura, como os cavalos de batalha do rei Pellehun. Mas não passam de lobos. Pelo menos, podemos matá-los.

Deu uma risada sem alegria que se transformou numa careta de dor. O seu braço fazia-o sofrer. Com a mão esquerda procurou num dos seus alforges o que restava do cachimbo e de umas das suas ervas de fumar que lhe atenuavam a dor.

Uter veio sentar-se ao lado de Lliane, que baixou a cabeça para esconder as lágrimas silenciosas por trás da cortina dos seus longos cabelos negros. Ele ouviu-a fungar e viu-a limpar furtivamente os olhos antes de lhe conceder um sorriso forçado.

— Vais ficar melhor?

Ela abanou a cabeça e sorriu-lhe mais abertamente. Um sorriso de garota, que lhe formava no canto dos lábios duas covinhas encantadoras.

— Não é nada. Pensava em Llandon... Meu marido.

Uter mordeu o lábio. Sobre a pele azul das suas faces cobertas de poeira, via-se o sulco claro das lágrimas. Com os olhos a vaguearem, Lliane tentava ainda sorrir, mas ondas de tristeza vieram enrugar-lhe o queixo, e ele sentiu-a à beira de soluços. Tão humana...

— Ama-o? — perguntou ele.

Ela abanou a cabeça sem olhar para ele.

— Sinto a sua falta... Penso nele muitas vezes. Vejo a sua cara quando fecho os olhos. Preciso das mãos dele, do seu olhar... É isso o amor?

Uter suspirou.

— É claro...

— Então também te amo — disse ela, levantando para ele os olhos desse verde tão claro, brilhando de lágrimas à luz das chamas.

Ela acariciou a face salpicada de barba do jovem, e o contato dos seus dedos frios fê-lo tremer.

— Creio.

 

Durante a noite, Hamlin, o trovador, tocou flauta por toda a cidade, depois pelas muralhas até aos fossos do castelo, passando pelas mais pequenas ruelas da cidade baixa. Ao raiar do dia, os elfos tinham deixado a cidade, no seu passo lento e silencioso. Todos os elfos: senhores e pajens residentes no castelo, mendigos ou saltimbancos dos bairros pobres, elfos do Havre, astutos e distantes, comerciantes ou mendigos de toda a espécie, músicos, bailarinas e cortesãs, e de manhã cedo, Loth acordou com uma sensação de vazio.

O ódio caiu de um golpe, ainda as cinzas da fogueira não estavam frias, e depois, a seguir ao espanto veio a vergonha, e os homens começaram a matutar na vingança dos elfos. As pessoas baixavam a cabeça, com olhares fugidios; até mesmo as nuvens sombrias de um novo dia de Inverno pesavam como um presságio funesto sobre a cidade. Cada um deles tinha a sensação de uma mácula, de uma desonra. Era como se a magia e a graça tivessem deixado a cidade. Os homens — e isso não era novidade sentiam-se brutos, vulgares e feios (aliás, os nobres, que desde sempre imitavam os modos dos elfos, chamavam o povo de ”aldeões”), mas nesse dia a sua própria falta de graça pesava-lhes ainda mais. E depois, é certo, eles tinham medo de represálias, de uma vingança cega, que eliminasse Loth e os seus habitantes do mundo dos vivos. E as ruas encheram-se rapidamente de rumores aterrorizadores. Os que estavam perto das muralhas quando o elfo cinzento tinha sido atirado para a fogueira falavam de um sortilégio mortal lançado pelo rei Llandon para abreviar o sofrimento do supliciado, ou porque não tinham visto Kevin atirar a sua flecha, ou porque não conseguiam conceber que um arco conseguisse atingir o alvo a tal distância. Os que não tinham estado lá e que nada tinham visto asseguravam que Llandon tinha lançado um mau-olhado a toda a cidade e que o céu iria vomitar flechas de prata que os matariam a todos. Depois, mostravam as grossas nuvens negras que se amontoavam no céu de Loth e tremiam de medo fazendo o sinal da cruz.

No palácio, o senescal Gorlois em pessoa comandava os guardas na busca dos aposentos dos elfos, revistando cada quarto, cada recanto, mas eles tinham desaparecido todos ao som da flauta de Hamlin. Então, Gorlois foi ter com o rei, e o próprio Pellehun começou a tremer.

 

Quando o dia nasceu sobre a floresta de faias, os quatro companheiros já caminhavam há longas horas. A bruma dos pântanos tinha dado lugar a um frio cortante que trespassava os ossos mas clareava a vista, e as sombrias colinas que formavam as Fronteiras Negras salientavam-se como uma massa imponente.

Freihr seguia à frente, bastante mais à frente, limpando o único caminho que atravessava a floresta. Por vezes, parava para esperar por eles, e eles repousavam em silêncio, trincando os frutos oleosos das faias para enganarem a fome. À quinta hora, a neve começou a cair. Era uma neve que não pegava, quase já desfeita quando atingia o solo, uma espécie de chuva gelada. Tsimmi tremia e sentia-se a arder em febre. Uter caminhava como um espectro. A própria rainha ressentia o frio, a fadiga e a fome.

De repente, viu a silhueta de Freihr, escondida por detrás de um arbusto de espinheiro carregado de bagas vermelhas. Ela pensou por segundos que o bárbaro se tinha agachado para colher algumas bagas e ajudá-los a enganar a fome, mas, mal Freihr se virou para ela, compreendeu pelo seu olhar que não era nada disso.

Com um gesto, disse a Uter e a Tsimmi para estarem atentos, e os três companheiros juntaram-se a Freihr, pé ante pé.

— Há uma caverna em frente — explicou Freihr em voz baixa.

— Não sei se está guardada...

Uter esticou o pescoço com precaução. A neve estragava a visibilidade. Tudo quanto se via era que a colina estava ali, a uma centena de toesas, elevando-se aparentemente até ao céu.

— Há lobos? — murmurou Tsimmi.

— Não vi — respondeu Freihr.

Lliane hesitou. Nas Terras Negras o perigo estava por todo o lado, e a mais pequena imprudência ser-lhes-ia fatal. Mas a neve podia protegê-los e esconder a aproximação deles. Ela refletia ainda sobre a tática a adotar, quando um objeto brilhante, à sua direita, lhe chamou a atenção. Ela virou a cabeça e reprimiu um grito de surpresa. De espada em riste, com a cota de malha de aço brilhando sobre a chuva de neve, Uter avançava para o meio do caminho. Ela fez menção de levantar-se, mas Tsimmi agarrou-a pelo punho e forçou-a a continuar escondida.

— Ele sabe o que está a fazer, rainha Lliane. Os lobos não desconfiarão de um homem sozinho.

A elfo soltou-se com um gesto irritado e mudou de posição para encontrar um ângulo melhor para atirar. Ao verem que a rainha tinha encaixado uma das suas flechas de prata, Tsimmi e Freihr trocaram um olhar divertido.

Quando Uter desapareceu do campo de vista deles, escondido pelas árvores e pela neve, eles prosseguiram silenciosamente, renovando a operação de abrigo em abrigo, até chegarem à orla da floresta de faias, e até que a abertura de uma gruta se desenhou sobre os lados da colina.

Uter, algumas toesas à frente deles, estava parado em frente à caverna, com o corpo ligeiramente recuado, a espada encostada à perna, como se escondesse o seu golpe.

Primeiro, não distinguiu nada. Mas no instante em que ia fazer-lhes sinal para se juntarem a ele, um movimento dentro da gruta deixou-o petrificado. Era quase imperceptível. Havia ali qualquer coisa. Uter sentiu o seu coração acelerar, com a impressão de reviver a agonia da noite anterior, quando tinha sido cercado pela matilha invisível de kobolds. O clã de lobos negros estava ali, ele tinha certeza, observando-o com os seus olhos amarelos, rosnando na escuridão do covil.

— Os lobos negros têm medo da neve? — gritou ele com brusquidão, colocando-se solidamente no meio do caminho.

Das profundezas da gruta, um surdo grunhido respondeu-lhe.

— Eu sei que estás aí, velho animal! — gritou Uter. — Vem lutar, desafio-te!

Os lobos que comiam homens, embora fossem considerados os mais imundos e cruéis animais que rondavam pela terra, obedeciam a um código de honra muito antigo. O lobo que não se submetesse a ele, fosse qual fosse a sua posição dentro do clã, via-se imediatamente banido, e vivia o resto da sua triste existência como um eremita, sem loba nem esperança de lobinhos. E, acima de todas as leis deste código, o desafio era, sem dúvida nenhuma, a tradição mais antiga e mais sagrada.

Uter sabia-o. E também que, quando se desafiava às cegas uma alcatéia, era o chefe do clã quem se estava a desafiar. O lobo maior, mais forte, mais cruel...

Um outro rosnado soou nas profundezas da gruta, e os enviados do Grande Conselho viram Uter recuar um passo antes de se recompor. Quando voltaram a olhar para a entrada da caverna, todos sentiram um terror instantâneo. Um enorme lobo negro acabava de sair, avançando lentamente sobre o solo rochoso no seu passo lento, fixando o cavaleiro com os seus insondáveis olhos dourados onde pareciam luzir todos os fogos do inferno. O seu corpo era quase do comprimento de uma toesa, e de altura tinha mais de três braços, tão grande como um burro. Quando abriu os beiços num esgar horroroso, os seus longos dentes brilhantes de baba pareceram tão afiados como punhais. Outros lobos surgiram de dentro da gruta, cabeça baixa e cauda pendente em sinal de submissão, e vieram um de cada vez lamber-lhe os beiços e dar-lhe pequenas pancadas com o focinho. De cauda levantada e orelhas em riste, o chefe da alcatéia mantinha-se imóvel. Parecia indiferente ao cavaleiro que o tinha desafiado, dando por vezes um rosnado quando um dos seus lobos não se submetia de forma suficientemente ostensiva, até que o mais inferior se deitou diante dele de patas para o ar, gemendo como um cão.

Sem ousar tirar os olhos do lobo enorme, Uter ouviu um ruído de um piar à sua esquerda. Segurou melhor a espada com a mão, piscou os olhos para tentar limpar os pingos de neve derretida que corriam pela sua testa e deslocou-se para a direita. Feito isto, o chefe do clã de lobos pôs-se por seu turno em movimento, afastando-se por fim da sua alcatéia e da gruta.

A neve não tinha deixado de cair desde o princípio da manhã. Molhado até aos ossos, tiritando de febre, nervoso e gelado, Tsimmi tremia por todo o lado, encolhido por trás de umas silvas. De repente, um enorme espirro escapou-lhe, e foi como se tivesse sido dado o sinal para a batalha...

A alcatéia, até aí silenciosa, desatou bruscamente numa algazarra de rosnados e latidos de excitação. Uter desviou os olhos por um segundo, e quando voltou a olhar para o seu adversário, o lobo negro galopava sobre ele no seu passo silencioso, o olhar fixo, os beiços arreganhados sobre os dentes monstruosos. O lobo saltou, com as garras para a frente, e Uter colheu-o com um molinete de espada segura com as duas mãos, batendo com todas as suas forças. A lâmina cortou o focinho e fez jorrar o sangue, batendo nos dentes do monstro sem lhes fazer mossa. O golpe ressoou nos braços de Uter, que perdeu o equilíbrio e quase caiu ao chão quando a besta já se voltava para ele. Com as garras da pata, ele rasgou a cota de malha do cavaleiro, desfazendo o aço; Uter escapou rolando contra o corpo imenso do animal. Às cegas, deu ainda um golpe na massa de crina cinzenta e pêlo negro, cortando o couro e fazendo jorrar o sangue quente que lhe molhou a cara. Uter recuou, tomado pelo medo, arranhado e meio atordoado pela pata forte do lobo. Cambaleou, recuando ainda mais, cortando o ar em frente dele, para manter o animal à distância, quando gritos lhe chegaram aos ouvidos sem que ele os entendesse. Uter não reconheceu a voz de Lliane, que lhe gritava para que ele se afastasse e a deixasse atirar. O lobo abriu a sua boca monstruosa, ainda mais horrível por causa das carnes ensanguentadas misturadas com baba, e deu uma rosnadela do mais profundo das suas entranhas. O seu hálito espalhou-se até à cara gelada do cavaleiro numa vaga de calor, antes de se lançar de um salto prodigioso, com as duas patas para a frente, batendo-lhe nos ombros e projetando-o para o chão. Uter não sentiu mais que o peso do animal, as crinas rugosas do seu ventre endurecidas pela urina gelada, que se esmagavam sobre a sua cara, e o asfixiante odor repugnante.

E depois, um charco quente e viscoso atravessou a sua cota de malha e a túnica, inundando-lhe o peito e a cara. Enojado, com a boca e o nariz invadidos pelo sangue do animal, Uter debateu-se furiosamente e conseguiu deslizar a cara até ao ar livre.

O lobo estava morto.

Seria possível que o tivesse matado?

Afastou-se do corpo pesado da besta e arrastou-se de gatas até um arbusto cheio de neve, com a qual lavou a cara, febrilmente.

Então olhou à sua volta.

A primeira coisa que viu foi a sua espada, caída ao chão assim que o lobo o tinha agarrado, e depois a flecha de prata cravada na espinha dorsal do monstro. Tinha sido a flecha que tinha acabado com ele. Por fim, viu Lliane e os seus companheiros, em pé na orla do bosque, armados, os corpos tensos, preparados para o combate, com os olhos na caverna. Ele rastejou até à sua espada e ergueu-se com um esgar de dor.

Os lobos negros deixaram o seu covil ao lado das Fronteiras numa longa procissão, caminhando em fila indiana, pousando com precisão as suas patas nas mesmas pegadas, formando assim um trilho único. Já chefiados pelo novo chefe ao saírem do seu abrigo, deitaram olhares de esguelha ao homem que tinha vencido o seu chefe, e a esse grupo de guerreiros que tomava posse do seu antro.

O seu lento desfilar continuou em silêncio durante um tempo infinito. Uter contou cinquenta lobos e depois perdeu o fio à meada; juntou-se aos seus companheiros num passo prudente, sem tirar os olhos da alcateia.

Lliane deitou-lhe, por um segundo, um olhar que lhe fez aquecer o coração, uma mistura de amor, de alívio e mesmo, talvez, de admiração, mas a sua expressão modificou-se repentinamente num trejeito de nojo e ela desviou o olhar.

— Uter, meu amigo, estás que metes medo! — disse Tsimmi em voz baixa, como que para não provocar os lobos.

O cavaleiro levantou a lâmina da sua espada à altura da cara e olhou-se no aço. Viu nela a vaga silhueta de um homem dos bosques, desgrenhada e coberta de sangue.

— E depois, cheiras mal! — resmungou Freihr, desatando a rir.

— Calem-se! — murmurou a rainha.

Os últimos lobos tinham parado e olhavam-nos, hesitantes, com as orelhas para trás e a cauda semilevantada, sinais que a rainha tinha reconhecido. Uter virou-se para a alcatéia, ainda cheio de sangue do chefe deles, carregado do seu odor e de cabelos desgrenhados, com um aspecto tão pouco humano que os lobos retomaram a sua atitude de submissão e seguiram o trilho do seu clã, abandonando a gruta. Sem se mexerem, seguiram-nos com os olhos até que eles desapareceram nas colinas, engolidos pela cortina de neve que não parava de cair.

— Achas que eles vão voltar? — perguntou Tsimmi, sem que se soubesse a quem é que ele se dirigia.

Ninguém lhe respondeu, para grande espanto de Uter. Lliane, ao seu lado, parecia estar alerta, nada calma com a partida dos lobos. De novo, viu-a estender as suas orelhas ligeiramente pontiagudas, e este fenômeno causou-lhe mais uma vez uma impressão moderada, ao mesmo tempo divertida e reprovadora. Para dissipar o seu embaraço, virou-se para Freihr. A atitude do gigante alarmou-o. Com o nariz no ar, as narinas abertas, Freihr farejava emanações da gruta, cheirando com a mesma expressão desconfiada da rainha.

— Que se passa? — perguntou Uter. Freihr voltou-se para ele, com um ar grave.

— Kobolds.

E correu para a gruta, arrastando a sua longa espada, gritando selvaticamente.

Imediatamente, as pequenas silhuetas surgiram de dentro da caverna e dispersaram-se pelos arredores. Com a fronte baixa e alongada, um focinho pontiagudo e grandes orelhas arredondadas, o pêlo raso e acinzentado, salvo ao longo da espinha dorsal onde formava uma espécie de penacho, os kobolds pareciam-se com hienas. A única diferença é que eles andavam em pé e vestiam farrapos humanos, chegando por vezes ao pormenor de se equiparem com armas suficientemente pequenas para as mãos embrionárias, tal como gládios ou punhais. Freihr, levado pela corrida, agarrou um desses homens-cães pelo que lhe servia de túnica e atirou-o contra a parede de pedra. Voltou-se de um salto, espada em riste, mas nenhum kobold tinha sido suficientemente louco para ficar à mercê do bárbaro.

— Matem-nos! — gritou Freihr perseguindo um deles. — Matem-nos todos!

Lliane encaixou uma das suas flechas de prata, quase sem fazer pontaria, e Uter teria jurado que ela tinha descrito uma curva, como se seguisse a pista do homem-cão que uivava, trespassado de um lado ao outro. Tsimmi tinha já pegado numa pedra e fazia girar a sua funda, mas como só podia utilizar a mão esquerda, falhou o alvo.

Uter tentou lançar-se em perseguição de um kobold. Contudo, o seu corpo causava-lhe demasiadas dores e a pequena criatura era rápida. Ele renunciou ao fim de algumas toesas, não compreendendo a obstinação de Freihr em exterminá-los. Parou, sem fôlego; quase ao mesmo tempo, Lliane empurrou-o para saltar sobre um rochedo e pôr o homem-cão debaixo de mira. Ela deu um latido sonoro que, durante um segundo, fez hesitar a imunda criatura, e disparou a sua flecha. Não era uma das flechas mágicas de Kevin, o arqueiro, pois a rainha não precisava de magia para acertar a vinte toesas de distância num kobold enlouquecido. A flecha cravou-se bem no meio das costas quando ele se virou para fugir. Ele deu ainda vários passos, levado pelo balanço, depois abateu-se como uma massa, morto antes de ter tocado o chão.

— Sobrou algum? — gritou Freihr correndo para eles.

— Eu falhei o meu! — gritou Tsimmi, em frente ao antro dos lobos.

— De qualquer modo, houve pelo menos dois ou três que fugiram — acrescentou Uter. — Que mal pode haver?

— Os kobolds vão prevenir os gobelins — resmungou o bárbaro.

— Temos de despachar-nos.

Ele precipitou-se para a gruta, saltando num passo seguro sobre os rochedos cobertos de gelo e neve, e depois voltou à orla da floresta para pegar no equipamento deles.

Lliane e Uter desceram mais prudentemente os contrafortes da colina e juntaram-se a Tsimmi, que saía da caverna.

— É uma passagem — disse o anão. — Se as nossas sagas têm tendência para embelezar as histórias, o fundo é sempre verdadeiro. Os lobos guardavam um caminho por debaixo das Fronteiras.

Uter deu um grito de alegria e deu-lhe uma palmada no ombro, seguindo o hábito do bárbaro. Mas tinha-se esquecido da ferida de Tsimmi e o anão gemeu de dor.

— Oh, desculpa...

— Com mil diabos, podias ter um pouco mais de atenção! gritou o mestre mação.

Calou-se, e Uter, incomodado, saltitava de um pé para o outro, corando, como sempre que era apanhado em falta.

— É preciso fazer archotes — continuou o anão num tom ríspido. — Mesmo eu, não verei nada lá dentro. E depois, é preciso esquartejar o lobo, vamos precisar da sua carne...

— Eu vou — disse Uter.

— Não, deixa — disse a rainha. — Seria talvez melhor se aproveitasses a neve para te livrares de todo esse sangue.

— Siimm — resmungou Tsimmi.

Uter já não conseguia corar mais, mas esforçou-se por conservar um semblante digno, afastando-se deles até ao arvoredo coberto de neve. Tirou o cinto que segurava a espada, depois o mantelete e a sua pesada cota de malha, fazendo-a escorregar por cima da cabeça. Tiritando só com a túnica e as bragas, estendeu a cota de malha no chão e compreendeu o nojo dos seus companheiros. Sangue, vísceras, pêlos e excrementos formavam uma massa infame que cobria os anéis de aço e os laços de couro da sua cota de malha. Teria desventrado o lobo no decorrer da luta, ou seria isto obra da flecha de prata de Lliane? Fosse o que fosse, Uter teve um trabalho medonho para limpar a sua cota de malha daquela imundície. A cota continuava vermelha de sangue e numerosas filas de malhas tinham saltado sob os golpes das garras e dos dentes da besta, dando à vestimenta um ar deplorável. Pelo menos, parecia um pouco mais limpa e já não cheirava tão mal.

Resolvido a não ouvir mais reparos que o magoavam, Uter esforçou-se por lavar conscienciosamente a cara, o tronco e os braços com a neve e limpar um pouco a sua túnica. Quando voltou a vesti-la estava tão transido de frio que batia os dentes sem conseguir parar. Apesar disso, ainda gastou tempo desfazendo as suas numerosas tranças e limpando o caldo de sangue que as enredava, antes de pôr a espada à cintura e de voltar para junto dos seus companheiros.

Uter tinha demasiado frio para querer brincar, mas agora era Freihr, quem, depois de ter cortado com uma faca as coxas monstruosas do lobo, estava coberto de sangue e cheirava a léguas de distância.

 

O Sr. Bran roncava como um porco, e o guarda anão teve de abdicar de todas as formas de respeito e abaná-lo com as mãos, para conseguir acordá-lo.

— Quê? Que se passa?

O soldado recuou rapidamente da cama do príncipe e retomou a sua posição.

— Senhor, está um anão à entrada que pretende ser o príncipe Rogor.

Bran abriu os olhos e ergueu-se num dos cotovelos.

— O meu irmão?

O guarda assentiu com a cabeça.

— E então! Tu conheces o príncipe Rogor, não? É ele ou não é?

— Senhor, eu não sei... É melhor que venhas ver.

Bran levantou-se de imediato, atirou com os lençóis e as peles para trás e, em camisa, sentou-se na borda da cama, descobrindo ao mesmo tempo uma jovem anã completamente nua, enrolada ao seu lado. O guarda sorriu e o seu olhar demorou-se um pouco sobre as formas generosas. Azar o dele. Com um pontapé, Bran atirou-o contra o chão de granito, num estrondo medonho que acordou a jovem beldade.

— Que é que se passa?

— Dorme, minha linda... Volto já.

O soldado levantou-se, envergonhado, sob o olhar severo do príncipe Bran. Irmão mais novo de Rogor, sobrinho do defunto rei Troín, tinha sido nomeado regente da cidade de Ghâzar-Run e garante do trono da Montanha Negra, um papel do qual ele não gostava muito e para o qual não se sentia de maneira nenhuma preparado, mais inclinado para os prazeres da carne, da caça e da guerra que para as responsabilidades esmagadoras de um cargo real.

— As minhas botas, a minha capa! — resmungou ele.

O guarda precipitou-se e ajudou-o a vestir o seu espesso casaco de peles, e depois seguiu-o através das ruas subterrâneas da vasta cidade sob a Montanha, até à porta do setentrião, uma arcada majestosa talhada na falésia, na vertical de um abismo sem fundo, com uma ponte de pedra guarnecida com vigias e ela própria protegida por uma seteira, bem à frente, que lhe interditava o acesso.

Foi aí que o Sr. Bran encontrou Rogor, sentado sobre um tronco raso, sob a guarda de dois soldados indecisos, que não sabiam como haviam de comportar-se perante ele.

Para dizer a verdade, o herdeiro do trono de Troín estava irreconhecível. A sua túnica vermelha estava suja de lama, rasgada por todo o lado, uma miséria. Ele comprimia o lado onde a flecha élfica o tinha atingido nos pântanos, e sangue negro tinha secado entre os seus dedos, entesando o tecido. A sua barba ruiva estava num estado lastimoso, cheia de nós e raminhos (um desmazelo que só a fadiga extrema podia desculpar). Rogor tinha mais ar de um mendigo que de um príncipe de sangue real. A indecisão dos guardas tinha alguma desculpa.

No entanto, Bran reconheceu o seu irmão mais velho de imediato, e os dois príncipes caíram nos braços um do outro, o que provocou uma mudança radical na atitude dos guardas. Quando eles deixaram de se abraçar, os soldados da entrada estavam alinhados numa fila impecável e prestavam honras.

— A cidade é tua! — disse Bran. — Ordena e obedecer-te-ei. Tens fome? Tens sede?

Rogor desprendeu-se do irmão e ergueu-se, com a sua figura imponente. Para lá da ponte de pedra, as portas grandes abertas revelavam a decoração familiar do bairro do setentrião, com habitações grandes iluminadas pela noite, agradáveis, opulentas, com os seus cortinados de damasco pendurados nas janelas, com as fachadas esculpidas com baixos-relevos e o empedrado perfeito das ruelas.

Rogor saiu bruscamente dos seus pensamentos, pegou o machado de um guarda e atravessou a ponte em grandes passadas, sem uma palavra.

Parou sob a arcada monumental, elevou os olhos até ao cimo das pesadas portas de carvalho que a defendiam e bateu com todas as suas forças, cravando profundamente o ferro no coração da madeira.

— Eu sou Rogor, sobrinho de Troín, e matei Gael! — gritou a plenos pulmões, e o eco do seu grito ressoou longamente na cidade adormecida. — Eu sou Rogor, rei sob a Montanha Negra, e apelo à ira dos anões! Vingança! Vingança!

 

Tsimmi caminhava à frente e falava sem cessar, restabelecido pela atmosfera da caverna, que no entanto era bem penosa para os seus companheiros, comentando a qualidade da pedra e o comprimento das galerias como se fizesse uma visita guiada, indiferente aos grunhidos de Freihr que, de qualquer forma, não o ouvia, demasiado preocupado com as numerosas rugosidades da abóbada úmida do túnel, nas quais ele não parava de bater. Sentia-se de tal forma que o anão estava ávido de se vingar desses longos dias passados nos pântanos, que até era comovente, mas a sua tagarelice incessante, entrecortada pelo refrão estridente dos cânticos de guerra dos anões de Oonagh ou de intermináveis extratos da saga de Fenris Barba-Azul, tinha acabado por cansá-los a todos.

Além disso, a galeria, ao princípio iluminada de onde em onde pela luz do dia que entrava por frestas ou por poços naturais, tinha-se pouco a pouco enterrado na mais profunda escuridão, ensombrando também o humor da pequena companhia. Os archotes, confeccionados à pressa na orla da floresta de faias, iluminavam em volta deles um cenário imutável de rochas gotejantes de cor de lama, de cortinas minerais caindo da abóbada como se fossem tapeçarias de agulhas calcárias, de estalactites molhadas, de rochas derretidas como círios e de colunas torcidas que davam ao ambiente ares de templo em ruínas. Quase sempre, caminhavam sobre água, ladeando por vezes verdadeiras correntes subterrâneas que desapareciam com estrondo em estreitos sifões. Por vezes só conseguiam caminhar em fila, tão juntas estavam as paredes, e outras vezes desembocavam em salas imensas, tão altas que os seus archotes não revelavam o fim.

Foi numa dessas salas, gigantesca e um pouco mais seca, que pararam para descansar e assar sobre chamas a carne do lobo. Uter tinha perdido a noção do tempo. Há quanto tempo estavam a andar? Duas horas? Dez horas? Não tinha qualquer idéia. E Tsimmi que não parava de falar, mais e mais, como se nunca tivesse visto nada de mais belo que esse miserável túnel sem fim, a pingar de umidade e cheirando a podre e a salitre, conduzindo Deus sabe aonde!

Pouco depois da partida, Uter tinha realizado que a passagem sob as colinas seria sem dúvida tão longa como a travessia dos pântanos, e que eles teriam de caminhar assim durante dias sem verem a luz do Sol.

Lliane, silenciosa desde que tinham entrado na caverna dos lobos, pegava-lhe na mão sem olhar para ele, talvez só para se tranquilizar. Da mesma forma que os anões, habituados à escuridão dos subterrâneos, os elfos viam na noite, e não era a escuridão da gruta que os assustava, mas a falta total de vegetação, acrescida dessa sensação de estarem fechados, que os elfos suportavam tão mal.

O sentimento de ser útil à rainha ou de pelo menos lhe trazer algum conforto ajudou o cavaleiro nesse mergulho opressivo nas entranhas da terra, mas, ao fim de horas, a presença de Lliane esfumou-se nas brumas dos seus pensamentos. O próprio Tsimmi tinha acabado por calar-se e eles caminhavam como mulas, somente atentos para não caírem nas mil armadilhas do caminho.

Repentinamente, Uter saiu do seu torpor ao perceber que Lliane, na sua frente, tinha parado, e ele quase se chocara com ela.

A rainha tinha-se virado e olhava para trás sem lhe prestar atenção, como se visse através dele. Instintivamente, Uter deu meia volta e esticou o seu archote para sondar a escuridão do túnel, mas, para além de um halo de luz que morria ao fim de algumas toesas, ele não viu mais que o abismo insondável da galeria, semelhante a um poço ou à boca aberta de um monstro disforme, pronto a engoli-los.

— Ouviste alguma coisa? — murmurou ele, chegando-se para Lliane.

— Ouve...

Uter espetou a orelha e não ouviu a princípio mais nada para além da crepitação do archote, da respiração de Freihr, do fungar de Tsimmi e do barulho de uma gota a cair num charco, ao longe.

Depois ouviu.

Trazido pelo eco, o som contínuo de uma cavalgada, pesada e irregular, de uma tropa que não mostrava nenhuma tentativa de ser discreta. E depois, grunhidos de animais, barulho de armas, todo um estrondo confuso rebentando sobre eles como uma onda.

— Os gobelins! — murmurou a rainha.

Ela pegou febrilmente no seu arco, procurou na sua aljava e levantou para Uter um rosto gelado pelo medo. A aljava estava vazia. As flechas deviam ter caído ao passarem por algum trecho difícil. Uter, que caminhava atrás, não tinha dado por nada.

— Que se passa? — perguntou Tsimmi, por trás deles. Por que é que pararam?

— Cala-te! — murmurou Uter.

Tsimmi, sem compreender, viu-o desembainhar lentamente a sua espada para não fazer tinir o metal, rapidamente imitado pela rainha, que se livrou do seu arco inútil e segurou Orcomhiela, ”fendedeira de gobelins”, a sua longa adaga élfica. E também ele ouviu (os anões não têm um ouvido muito apurado, é bem conhecido, mas os gobelins aproximavam-se rapidamente, e o barulho da cavalgada ressoava na gruta como uma tempestade).

— Deixem-me tratar disto! — sussurrou ele, tentando afastá-los do seu caminho.

Mas Freihr agarrou-o pela gola do seu capuz verde e atirou-o para trás.

— Tsimmi ferido — disse com um piscar de olho. — Põe-te em segurança.

— Mas não, traste idiota! Quero tratar disto!

O gigante louro riu de uma tal maneira que Tsimmi, em outra ocasião, teria achado indelicado. Ele pegou sua espada comprida com as duas mãos e escorregou até ao lado de Lliane e Uter, barrando assim a estreita galeria subterrânea. O cavaleiro tinha colocado o seu archote entre duas pedras, a alguns passos de distância, para iluminar os assaltantes enquanto eles se mantinham na penumbra. Teve tempo para se perguntar se os gobelins veriam no escuro, ou se também eles tinham de iluminar estes obscuros estreitos. Teve tempo de se voltar para Lliane e de contemplar o seu perfil altivo, enquadrado pela longa massa de cabelos negros. Teve tempo de cruzar o olhar dela e de o ver suavizar-se e sorrir-lhe.

Depois distinguiram uma luz vacilante, logo em seguida as sombras deformadas e gigantescas de uma tropa correndo ao assalto. Uma amálgama confusa de silhuetas armadas, piques, cimitarras, elmos e escudos, projetadas sobre a parede pela luz ocre das chamas, mais imensa e mais aterrorizadora ainda que quando eles desembocaram por fim à saída de um canal de pedra.

Assim que os viu, Uter recuou.

Os gobelins eram uma meia dúzia, cercados de kobolds que ladravam aos seus pés e que lhes farejavam a pista, sobreexcitados, confusos como cachorros. Nenhum ser humano podia contemplar sem estremecer de horror as odiosas criaturas d’Aquele-Que-Não-Pode-Ser-Nomeado. O gobelin da estalagem, em Kab-Bag, ferido, humilhado e em farrapos, já lhe tinha parecido abominável. Mas isto ultrapassava em horror tudo o que ele pudesse ter imaginado. A pele cinzenta e peluda, os membros do comprimento dos de símios, vestidos de armaduras escuras e de cota de malha de couro, traziam armas de lâminas negras que pareciam de um peso formidável e não pareciam nada esgotados pela corrida.

Os monstros sorriram perante a fraca barreira formada pela rainha e pelos seus companheiros, mostrando dentes semelhantes aos dos seus lobos. Petrificado de terror, Uter via-os aproximarem-se no seu passo bamboleante. Bem maiores e mais musculosos que o próprio Freihr, semelhantes a torres em movimento, quase batiam com a cabeça na abóbada da galeria.

Eles atiraram com as suas tochas em redor, para melhor agarrarem as armas, e acotovelavam-se e davam grunhidos imundos à ideia de afrontarem a elfo, o bárbaro e esse cavaleiro meio morto de medo quase incapaz de segurar na espada.

E depois atiraram-se ao assalto.

— Felafrecen haerdingas, beon maegenheard! Feothan! Bregean!

O grito agudo da rainha surpreendeu os monstros que pararam e perderam um pouco a sua arrogância. Mas o sortilégio não lhes era destinado. Nem Uter, nem o bárbaro, nem Tsimmi, apesar da sua sabedoria, compreenderam o feitiço da rainha dos altos-elfos. No entanto, a magia das runas, violenta, devastadora, insuportável, vibrou nos seus cérebros e provocou-lhes espasmos nos corpos. Uter caiu de joelhos, tão forte essa voz lhe batia no cérebro, e ele gritou para dissipar as emanações.

Também Freihr cambaleava e sacudia a cabeça como um cão saído da água, com a espada baixa arrastando pelo chão, virando as costas ao gobelin que corria para ele fazendo rodar uma maça de armas cravejada. Quanto a Tsimmi, caído por terra, pedalava no vazio, tentando levantar-se com o seu único braço válido e piscando os olhos como que ofuscado.

— Que é que tu fizeste? — gemeu Uter, virando-se para a rainha.

Os gobelins estavam apenas a algumas toesas, com as armas já levantadas para a cena da morte, e eles estavam ali, fracos como uns recém-nascidos, quase incapazes de segurar nas espadas, os corpos consumidos por uma efervescência interior que os deixava pasmados, sem conseguirem defender-se.

— Feothan! Hael Hlystan!

O grito da rainha reanimou-os no exato momento do combate.

Uter levantou-se de um salto, com uma força e uma agilidade que nunca tinha sentido antes. Diante dele, um gobelin de olhos vermelhos, babando de excitação, urrava, a boca aberta, segurando com as duas mãos a sua cimitarra por cima da cabeça dele como que para o cortar em dois, mas com tanta lentidão que Uter desatou a rir dobrando-se, com a espada estendida na ponta do braço, visando a boca grande e aberta do monstro. A espada partiu os dentes, atravessou a carne e, numa chuva de sangue negro que atingiu o cavaleiro, rompeu a nuca do seu adversário antes que este pudesse abater a sua cimitarra.

Lliane e Freihr tinham batido antes dele, e ele não teve mais que o tempo de distinguir o corpo sem cabeça de um gobelin armado com uma maça de armas desabando sobre o solo com o alarido de um carvalho abatido, e o brilho prateado de uma adaga élfica traçando um sulco fulgurante, desde o crânio até ao ventre, na massa sombria do último monstro. Depois viu os seus dois companheiros cambalearem de novo, dobrarem-se gemendo e, no instante seguinte, também ele sentiu a atroz fraqueza que tinha tomado conta deles.

A magia tinha ampliado os sentidos deles, concentrando todas as suas forças num só passe de armas formidável, mas deixando-os esgotados, esvaziados de energia, cegos, surdos e quase incapazes de se terem em pé.

Os monstros, que, gelados de medo com a morte instantânea dos três primeiros assaltantes, tinham recuado em desordem, perceberam imediatamente fraqueza dos seus inimigos. Aproximavam-se já, sem no entanto aquele frenesi assassino do primeiro assalto, mas tal como lobos cercavam as suas presas, abrigados por trás dos seus escudos, encostados uns aos outros num atroz magma eriçado de armas horríveis.

Lliane quis fazer-lhes frente, mas também ela caiu de joelhos, sem forças, raspando nas asperezas cortantes do chão da gruta.

Era o fim.

Chorando de esgotamento, contra a sua vontade, a elfo só conseguia elevar os olhos para esses monstros imundos que se aproximavam, passo a passo, e esperar pelo instante da sua morte.

— Lliane!

Uter rastejava até ela, com o olhar de um homem que se afunda, gastando as suas últimas forças a fim de se lhe juntar.

Algo a empurrou rudemente, arrancando-lhe um grito de dor.

A princípio ela não reconheceu Tsimmi, tão grande lhe pareceu o anão, visto de baixo para cima. E Tsimmi ria, com os olhos brilhantes de energia, cheio dessa sensação de invencibilidade que lhes tinha permitido derrotar os seus assaltantes, e que ele ainda não tinha gasto em combate. Sozinho frente à falange de gobelins, ele traçou com a ponta do pé um sulco na poeira, em volta da rainha e dos seus companheiros, depois endireitou-se, lançou calhaus contra as paredes e bateu com o calcanhar no chão numa pantomima frenética que ela achou grotesca, mas que lhe evocou uma recordação confusa e inquietante. Imediatamente, um barulho surdo respondeu-lhe das profundezas da terra. O chão começou a tremer e escoamentos de terra abateram-se do teto em chuva fina. Os gobelins, estupefatos, olhavam em volta como animais presos numa armadilha. No instante seguinte, a abóbada cedeu bruscamente num estrondo de fim do mundo. Lliane teve a visão fugaz do gesto de vitória triunfante de Tsimmi, e a recordação do levantamento de terra que a tinha engolido alguns dias antes no pântano de Gwragedd Annwh. Depois, o mestre mação, feiticeiro das pedras e da terra, desapareceu nos escombros.

As tochas tinham sido esmagadas pelo desmoronamento da gruta, enterradas por debaixo de montões de entulho, asfixiadas pela poeira. Lliane, enrolada sobre si, gritava de terror, mas nenhuma pedra lhe tinha tocado. Nem mesmo um calhau. No interior do sulco traçado por Tsimmi, o solo da caverna estava intacto. A abóbada que o cobria não tinha pestanejado, enquanto que de tudo à volta não restava mais que uma amálgama rochosa coberta de poeira. Os gobelins tinham desaparecido sob toneladas de pedras partidas. A gruta estava mergulhada numa escuridão total, tão intensa que a própria Lliane teve de franzir os olhos para ver qualquer coisa.

— Lliane!

Ela reconheceu a voz de Uter e percebeu toda a sua angústia. Logo em seguida, houve um grito de Freihr, também ele aterrorizado, que chamava o cavaleiro. Sem dúvida eles não tinham visto Tsimmi lançar o sortilégio. O desmoronar da caverna tinha-os apanhado de surpresa e deixava-os sozinhos no escuro, incapazes de imaginar como tinham saído, condenados a procurarem-se às apalpadelas, sem saberem quem tinha sobrevivido. Os elfos nunca tinham partilhado da agonia dos homens com o aproximar da noite, do seu terror pelas trevas, e do empenho deles em se protegerem, acendendo desde o crepúsculo archotes e lanternas, com risco de fazerem arder as casas de madeira, mas Lliane compreendeu o pavor dos seus companheiros.

De novo, Uter chamou-a, e Lliane lançou-se na direção dele, muda pelo tom lancinante do seu grito.

— Estou aqui — disse ela, ajoelhando-se ao lado dele e pousando-lhe a mão na face.

Uter sobressaltou-se, olhou-a como um cego, apalpando-lhe a cara, os braços e abraçando-a com força.

— Estás viva! Lliane, fala comigo, não te vejo...

— Estou aqui — repetiu ela. — Não tenho nada, e Freihr também não. Foi Tsimmi quem nos salvou ao fazer desmoronar a gruta à nossa volta. Todos os gobelins estão mortos, ou se ainda vivem, estão do outro lado.

— Bem jogado, mestre Tsimmi! — gritou Uter. Mas ninguém lhe respondeu.

— Tsimmi?

A elfo sentiu o coração apertar-se. Na verdade, ela não o tinha visto em lado nenhum.

— Tsimmi?... Lliane, estás a vê-lo?

Ela piscou os olhos e tentou perfurar a insondável escuridão da caverna. Havia desmoronamentos por todo o lado, cercando-os como num poço e elevando-se até perder de vista, como se toda a gruta se tivesse desmoronado em volta deles. Ela vislumbrou por terra a forma distorcida do dorso e do crânio de um gobelin, que jazia numa poça de sangue escuro, triturado pelas pedras; perto dele, ainda incandescentes, iam morrendo as brasas do seu archote desfeito. Soltando-se dos braços de Uter, ela precipitou-se para o tição e rodeou-o com as mãos.

— Como é que se reanima um fogo? — gritou ela.

— O quê? Encontraste um archote?

— Não sei fazer lume! Diz-me!

— Pois bem... O principal é não o deixar morrer.

Freihr deu um grunhido de desprezo e arrastou-se até à rainha, guiando-se pelo som da sua voz até que ele próprio percebeu as fracas brasas incandescentes.

— Eu trato disso — disse ele ao chegar ao pé dela.

O bárbaro ajoelhou-se em frente às brasas como um padre em frente a um altar, rasgou um pedaço de tecido do cadáver do monstro e pousou um pedacinho minúsculo sobre o tição, soprando devagarinho por cima. Rapidamente o tecido começou a deitar fumo, depois pegou fogo. Freihr retirou dos escombros o resto do archote gobelin, um feixe de pauzinhos de aveleira, e enrolou-o cheio de cuidado no pedaço de tecido. A chama fraca pegou-se pouco a pouco à madeira seca, trazendo por fim um pouco de luz.

Os dois homens descobriram então a sua prisão de entulho, ruínas monumentais elevando-se quase até à abóbada da gruta, e que eles teriam de escalar para sair desta armadilha, com o risco de provocarem um novo desabamento.

— Dir-se-ia que o mestre Tsimmi, mais uma vez, não mediu a sua força — murmurou Uter.

Freihr levantou alto o seu archote, iluminando o círculo de terra e a muralha de escombros. Nem um sinal do anão.

Nada.

Os três companheiros ficaram silenciosos por um longo momento, estupefatos, como que apalermados com o desaparecimento de Tsimmi, incapazes de acreditar que ele tivesse sido vítima do seu próprio sortilégio. Uter, de ombros caídos e com um nó na garganta, avistou a sua espada caída por terra e foi agarrá-la com um passo vacilante. O barulho metálico da lâmina a deslizar na bainha ressoou sinistramente na gruta e atraiu sobre ele o olhar da rainha.

— É preciso partir — disse ele.

Ajoelhada no pó ao lado do cadáver esmagado do gobelin, Lliane não se tinha mexido depois de ter encontrado o archote.

— Sem ele, já não faz sentido... Eles nunca irão acreditar em nós... — murmurou ela.

O cavaleiro baixou a cabeça, fatigado, desanimado, vencido, à beira das lágrimas. Sem Tsimmi, sem nenhum dos anões que tinham partido para esta aventura temerária, sem o anel da Guilda que Gael usava, quem acreditaria na história da rainha, nas resmunguices confusas de um bárbaro ou mesmo no seu próprio testemunho, pobre cavaleiro apanhado pelo amor, caído nas teias das fadas?

— Temos de encontrá-lo.

Lliane e Uter tiveram o mesmo sobressalto às palavras de Freihr. A brandir o archote que fazia brilhar a sua juba de animal e vincava os seus traços grosseiros, com o corpo bem direito e a desafiar com o olhar o magma rochoso em volta, o bárbaro estendeu lentamente o dedo na direcção de um ponto preciso no meio do entulho.

— Ali.

Não havia nada no local que ele indicava. Nada mais para além do que havia por todo o lado: pedras, terra e caos.

— Tsimmi estava ali — disse Freihr. — É ali que temos de escavar.

O olhar de Uter passou alternadamente do bárbaro para a massa rochosa. Imaginando que eles conseguissem deslocar alguns blocos de pedra, arriscavam-se a provocar uma avalancha e a enterrar-se a si próprios.

— É inútil...

Freihr não respondeu. Fixou o archote a uma pedra e arrancou a primeira rocha do desmoronamento. Mal a atirou para trás para o círculo, a vibração do choque repercutiu-se até à abóbada longínqua e finos fios de terra resvalaram dos escombros, como água de uma corrente de Verão.

— É inútil, Freihr! — insistiu Uter num tom brusco.

A praguejar, o bárbaro pegou num outro pedregulho e voltou-se para o cavaleiro. A sua cara vermelha do esforço e já brilhante de suor nada tinha de jovial.

— Só a morte é inútil! — gritou ele, atirando a rocha aos pés de Uter. — Cava!

O jovem sentiu subir-lhe a raiva à cabeça. Lançou-se sobre o bárbaro, segurou-o pelo braço e atirou-o ao chão.

— Tsimmi está morto, pobre imbecil! E nós também, se tu continuares!

Freihr já estava em pé. Esfregou com as costas da mão a face suja de terra e começou a avançar para o cavaleiro num passo de lutador, com as mãos abertas visando o seu pescoço, com um olhar funesto.

— Escutem!

Os dois homens voltaram-se para Lliane e retiveram a respiração. Primeiro, não ouviram nada. Depois, ouviram um pequeno zumbido, cada vez mais claro, cada vez mais forte, até se tornar num estrondo surdo, regular e ininterrupto, do outro lado das rochas.

Instintivamente, recuaram até à outra parede, com os olhos abertos de agonia, atentos ao desmoronamento final que os submergiria a todos, e cujo ronco aumentava a cada instante.

De repente, a parede rochosa começou a tremer e pedras de todos os tamanhos, até às rochas da altura de um homem, rolaram para dentro do círculo. Mas, em vez de desabar completamente, os escombros pareceram amontoar-se, afastarem-se entre si, abrindo-se uma espécie de passagem, bloco atrás de bloco de pedra.

Os três companheiros agora sorriam, não ousando acreditar, encostados uns aos outros, fascinados, mudos de esperança. E, por fim, Tsimmi apareceu, coberto de pó, branco como um fantasma. Sorriu-lhes, levantou o capuz e sacudiu-se, desgrenhando a barba e os curtos cabelos castanhos sujos de terra.

— Não me digam que acreditaram que um mestre mação poderia morrer debaixo de um desabamento! — disse rindo. — Isso seria...

Tsimmi nunca chegou a acabar a frase.

A lâmina negra de uma cimitarra abateu-se na base do seu pescoço com uma violência desumana, cortando carne e ossos até ao coração.

O anão morreu sem um grito, sem ver o gobelin que se tinha enfiado por trás dele, levando para o Além o grito de terror da rainha e esse choque atroz no vazio do seu ombro. Ele caiu, abatendo-se sobre si mesmo, arrancando a cimitarra das mãos do monstro.

Freihr deu um grito de animal selvagem e atirou-se ao gobelin. Agarrou-o pelas orelhas e projetou-o contra um rochedo saliente. Houve um estalido horroroso, e a mancha escura do seu sangue contra a pedra, mas o monstro conseguiu desferir um golpe com as garras, que deixou um triplo rasgão sangrento no ventre do bárbaro. Depois, levantou-se e rugiu, horrível de ver com esses rastos de sangue que manchavam a terra cinzenta de que estava coberto, com as vestes em farrapos e semelhante a um animal selvagem. Freihr voltou ao ataque mas o outro agarrou-o pelo pescoço, enterrou as suas garras na pele do bárbaro e fez jorrar o sangue como se espremesse um fruto maduro.

— Egle ore ceosan elf aetheling!

O gobelin projetou Freihr por terra tal qual uma boneca de trapos e encarou a rainha. A elfo sustentou o seu olhar e estendeu um dedo na direção dele.

-Hael Hlystan!

O desafio. Uma invocação velha como as pedras da montanha, à qual o monstro não pensou sequer em resistir. Em dois passos estava sobre a rainha, com as suas garras abatendo-se sobre o pescoço gentil da elfo. Uter deu um grito batendo, e a violência do choque quase lhe arrancou a espada das mãos. Ele tinha visado o pescoço, mas o gobelin tinha sido mais rápido: o ferro do cavaleiro só lhe cortou o braço, que palpitava por terra como uma serpente. Lliane também tinha atacado e havia tocado no corpo, cortando o coração com a sua longa adaga. O gobelin caiu de joelhos, indiferente ao sangue que jorrava do seu ombro. Por fim, desabou como um tronco de árvore logo que Lliane arrancou a sua lâmina de prata.

Não houve um grito de vitória. Nem mesmo um grito de alívio.

Caído ao pé de Tsimmi, Freihr chorava em silêncio e os soluços do bárbaro cortavam o coração aos companheiros. A rainha veio ajoelhar-se ao seu lado e tentou limpar, o melhor que podia, os cortes deixados pelas garras do monstro. Uter pegou no corpo de Tsimmi, pousou-o no centro do círculo e cruzou-lhe as mãos sem vida sobre o peito, sobre o punho da cimitarra do gobelin que o tinha matado. Os anões acreditavam que ninguém podia entrar sem armas em ivalhalla, o Além dos guerreiros. Certamente que Tsimmi nunca se tinha considerado um guerreiro, mas Uter não conseguia pensar noutra homenagem para lhe prestar. Ele teria gostado de conhecer melhor os rituais fúnebres dos anões, e de prestar ao seu companheiro as últimas honras dignas da sua condição, do seu valor e da amizade entre ambos. E para quê, tudo isto?... Ele reparou que o anel de Gael estava metido no dedo mindinho da sua mão esquerda, mesmo a seguir à primeira falange. Tsimmi quase tinha sido morto por causa deste anel, no pântano de Gwragedd Annwh. Uter retirou-o delicadamente do dedo do seu companheiro e depois guardou-o na sua cota de malha, sem voltar a olhar para ele. Que valor teria ele, neste momento?

Ao chorar o seu companheiro, Uter chorou também sobre as suas últimas esperanças desaparecidas.

 

A neve caía sobre Loth e com ela um frio glacial. A noite não tinha apaziguado os espíritos nem acalmado o medo. Os monges tinham paramentado as suas igrejas com tapeçarias gigantescas representando os Mistérios da Fé, mas a multidão agitada que se comprimia nas missas baixava os olhos ao vê-las e torcia as mãos: o arcanjo Gabriel, com a sua armadura cintilante e a sua espada comprida, assemelhava-se mais a um elfo que a um cavaleiro humano.

As ruas, as tabernas e as praças estavam desertas.

Só circulavam soldados armados, vestidos com o libré de largas riscas azuis e brancas do reino de Logres, e grupos de anões, guerreiros, cortesãos ou comerciantes que fingiam barulhentamente não ter medo dos elfos.

Em pouco tempo, notou-se que os gnomos tinham fugido de Loth, como ratos que abandonam o navio no momento do naufrágio, sem que ninguém os tivesse visto partir. Não que a sua presença fizesse falta a alguém, mas os homens começaram a sentir-se sozinhos.

No segundo dia depois da fogueira, a igreja não estava mais que meio cheia nas horas dos ofícios. Durante a noite, alguém tinha deitado fogo à tapeçaria do arcanjo. Um monge tinha sido morto durante essa noite. O seu cadáver, sem sangue e gelado, tinha sido encontrado de manhã cedo por uma patrulha, e os rumores pretendiam que ele não tinha nenhuma ferida e que o seu rosto estava desfigurado de medo. Foi dito que ele tinha encontrado o fantasma do elfo cinzento, e que os longos dedos do espectro lhe tinham arrancado o coração e retirado o sangue como um vampiro. Outros juravam que os elfos tinham ficado na cidade e que saíam de noite para se vingarem. As pessoas contavam fosse o que fosse. Havia mesmo quem sustentasse que o monge estava bêbado e que tinha batido com a cabeça numa viga.

Cada um fechou-se em casa, queimando a sua madeira no fogão, espiando o silêncio opressivo que se tinha instalado na cidade. E mesmo esse silêncio parecia-lhes subitamente sobrenatural.

Quando já não tinham mais madeira, ninguém se atreveu a deixar o abrigo das muralhas para se aventurar na floresta. Na noite do segundo dia, a cidade estava coberta por uma mortalha branca. Os telhados e as ruas estavam cobertos de neve, os vidros cobertos de gelo, uma brisa gelada entrava pelas chaminés e fendas das portas. As famílias amontoavam-se dentro das camas ou queimavam os seus móveis.

Ao terceiro dia, os soldados forçaram as portas e arrancaram os homens dos braços das suas famílias geladas. Fizeram abrir à força as lojas e as tabernas, uma caravana de pescadores e outra de lenhadores saíram da cidade sob escolta, mas o lago estava gelado e as carruagens que regressavam da floresta carregadas de lenha atolaram-se nos sulcos gelados. Pellehun mandou desaferrolhar os celeiros reais e distribuir pão. Dois homens foram enforcados porque tentaram fugir da cidade, cujas portas estavam agora todas guardadas pelo exército real.

Ignorando a morte de Blade, sem notícia alguma de nenhum intermediário da Guilda, cegos e surdos, incapazes de controlar a tempestade que começava a rebentar no centro da cidade, o rei e o seu senescal estavam condenados a esperar. Enviaram um grupo de cavaleiros para fazerem um reconhecimento dos arredores da cidade, com ordens para encontrarem os elfos ou fosse quem fosse, mas os cavaleiros voltaram tal como tinham saído, transidos de frio sobre as suas montadas. Então, Pellehun e Gorlois escreveram à pressa mensagens sobre minúsculos pergaminhos destinados a serem fixados nas patas dos pombos correio, para serem enviados a cada posto avançado, a cada intermediário da Guilda, aos quatro cantos do reino de Logres. Todos tinham a mesma pergunta: Que faziam os elfos? E não confiaram a ninguém a tarefa de enviar estas missivas.

Os guardas do pombal quase caíram do seu banco de madeira ao verem os dois mais altos personagens do reino, corados e sem fôlego, passarem diante deles, sem pararem, até à pesada porta de madeira que trancava o campanário dos pombos.

— Abre! — grunhiu Gorlois ao guarda que trazia as chaves. O soldado pegou no seu molho de chaves e fez rodar a fechadura, mas a porta não se abria.

— Então? — disse o rei.

— Não consigo, senhor! — disse o guarda. — Há qualquer coisa a bloquear, no interior!

— Sai da frente!

Pellehun atirou-se contra a porta, que se entreabriu um pouco, iluminando os degraus de pedra com um raio de luz acinzentada. O odor sufocou-os instantaneamente. Não era o mau cheiro habitual do pombal, da sujidade dos pássaros, dos excrementos e da palha que apodrecia no chão. Era bem pior.

— Guardas! — gritou Gorlois, voltando a descer alguns degraus. — Arrombem-me isto!

O velho senescal agarrou o rei pela manga e fê-lo recuar, enquanto um grupo de soldados se atirava contra a porta, tentando servir-se das suas espadas como alavanca, no espaço aberto pelo rei.

Eles desceram até ao posto da guarda e sentaram-se nos bancos, à espera.

— De beber, para o rei — disse Gorlois ao sargento, que se apressou a servir-lhe um mau vinho num copo duvidoso.

Eles beberam de um trago, quentes apesar do frio, pela sua subida precipitada, franziram o nariz e reclamaram um segundo copo de vinho. Um guarda surgiu nessa altura, embaraçado e parecendo querer vomitar.

— Senhor, a porta está aberta. Talvez seja melhor não irdes ver...

A sua frase teve o efeito inverso no rei, que atirou com o copo para o chão e correu para a pequena escada que conduzia ao pombal.

De novo, o odor atroz saltou-lhe à cara. Ele levantou uma ponta da sua cota de armas para tapar o nariz e subir os últimos degraus.

O chão estava coberto de pombos mortos, já podres, numa altura de quase um braço. E, entre esse monte infame, jaziam os corpos dos dois surdos-mudos, cheios de escoriações, de feridas e sangue seco, como se as aves tivessem entrado numa batalha contra eles, grotesca e assassina. Os ratos, surgidos não se sabe de onde, faziam uma patuscada roendo as carnes em putrefação.

Gorlois, desembocando atrás do rei, ficou lívido. Nem era tanto o horror da cena que lhe transtornava o coração, mas sim a certeza de saber a causa deste massacre. Os deploráveis prisioneiros da torre tinham cedido ao desespero e empreendido esta abominável obra para acabarem com as suas miseráveis existências.

Cruzou o olhar com o do porteiro. Por um instante, antes de o homem se recompor e desviar o olhar em sinal de submissão, leu nele um clarão de ódio e de desprezo tal, que foi ele, Gorlois, quem baixou a cabeça.

Gritando de raiva, Pellehun abriu passagem a pontapé nessa vala comum e contemplou a extensão dos danos. Notando sobre o chão o cadáver de um pombo com uma fita, pegou febrilmente nele e desfez o rolo de pergaminho fixado à sua pata com uma tira de couro amarela — mensagem de rotina de um posto avançado —, e atirou-o ao chão praguejando. O rei varreu com o olhar os ninhos vazios cavados na torre de tijolo, e as varas de onde pendiam por vezes, presos por uma corrente, os pássaros de pescoço partido. Nem um único pombo estava vivo...

— Limpem-me esta imundície! — gritou numa voz de louco.

— E levem-me todas as mensagens que encontrarem! Dentro de uma hora!

Afastou Gorlois com um encontrão e desceu quatro a quatro os degraus de pedra, empurrando à passagem guardas, pajens e criados que não se afastavam com rapidez, até chegar aos seus aposentos. O senescal juntou-se-lhe alguns minutos depois, bateu à porta e entrou, sem fôlego. A cicatriz horrível que lhe riscava a cara, palpitando ao ritmo da sua respiração, parecia mais vermelha que nunca. O rei apontou-lhe então um dedo acusador.

— És tu! — disse ele.

— O quê?

— A Guilda és tu! Desenvencilha-te como quiseres, mas eu quero saber o que se passa!

O velho senescal fez sinal ao rei para falar mais baixo. Havia na sala do trono, onde eles se encontravam, uma chaminé enorme, e as suas condutas propagavam melhor o som que o calor.

— Que é que lhes aconteceu, Gorlois? — disse o rei, enquanto massajava o pescoço. — Eles partiram há... dez dias? E nós não sabemos nada, exceto pela mensagem dessa Mahault!

— Mas está tudo a correr como previsto, senhor.

— Oh, sim, tudo está perfeito! Mahault disse-nos que a rainha Lliane e a sua tropa partiam à procura de Gael no pântano, e que o teu ladrão estava com eles. E então? Encontraram-no? Estão todos mortos? Não sabemos nada... Todos os elfos deixaram Loth e o rei Rassul está preparado para a guerra. Perfeito! Mas guerra contra quem?

Ele estendeu o dedo para uma janela tapada por um pesado cortinado de veludo.

— Escuta as gentes lá fora. Eles têm frio! Eles têm fome! Eles têm medo! Estão aterrorizados! Estão convencidos de que os elfos vão lançar-lhes mau-olhado, ou sabe Deus o quê! À força de tanto lhes pregarem que são feiticeiros, eles acabaram por acreditar!

— Fostes vós quem teve a ideia de utilizar os monges...

— É verdade.

Pellehun acalmou-se de repente e olhou pensativamente para o seu velho companheiro de armas.

— Mas os monges pregam há tanto tempo no vazio...

Ele virou-se novamente para a janela tapada e, por trás dela, para o barulho das ruelas.

— Três quartos dos habitantes desta cidade acreditam nos espíritos da floresta, nos velhos deuses e em tudo o que ouviram nos quatro cantos do mundo. E, nos campos, ainda é pior. Eles veneram as fontes, ou as pedras, ou o Sol. Portanto, os monges, com o seu Deus único, as suas penitências e os seus pecados... Vais ver que vão ser massacrados pela multidão, dentro de pouco tempo. E seria bem feito para eles.

— Seria uma pena — começou Gorlois. — Os monges...

Ele calou-se deixando propositadamente a frase em suspenso, e depois sentou-se no seu lugar, ao lado do trono, recuperando toda a sua dignidade e todo o seu controlo.

— Vá, vá, conta! — disse o rei, fazendo um gesto de impaciência com a mão.

— Nós vamos precisar dos monges mais tarde — declarou o senescal. — Sem os elfos, a vida do povo será muito triste. Eles querem acreditar em algo de belo, de superior e ao mesmo tempo acessível, e então, por que não o paraíso dos monges?

— Sim! Um paraíso depois da morte! Tu falas de uma recompensa!

— Justamente! Um Deus que não oferece nada sobre esta terra mas tudo no além, não é uma maravilha? Quanto mais pobres forem aqui, mais ricos serão depois de morrerem. Que mais poderíamos querer?

O rei sorriu e acenou com a cabeça.

— Se assim for, vou ter de pensar em aumentar os impostos!

Os dois homens riram a bom rir, e o riso relaxou-os. Pellehun veio sentar-se no trono, ao lado do seu conselheiro. Gorlois ia retomar a palavra, mas o rei parou-o com um gesto e fixou-o pensativamente durante um longo momento. Depois, um sorriso malicioso veio novamente iluminar-lhe o rosto.

— Suponho que estavam lá anões, quando queimaram esse elfo?

— Anões, sim... E gnomos, e todos quantos se podem encontrar na cidade baixa.

— Sim, sim, mas bom: havia anões. E foram os anões, esses horrorosos pigmeus comedores de pedra, que fizeram queimar o elfo.

Gorlois refletiu por um instante, e depois abanou a cabeça com um ar de dúvida.

— Não vai dar certo.

— Mas sim! Dá sempre certo, desde que os façamos acreditar que não foi culpa deles!

Ele levantou o dedo e debruçou-se sobre Gorlois.

— Os anões, meu velho amigo. Desde sempre que eles odeiam os elfos, e puseram os habitantes da nossa boa cidade contra o inocente, o maravilhoso povo das fadas. Infelizmente, não haverá mais música em Loth, mais dessas jóias magníficas que eles fabricam, mais dessas roupas mágicas de cores que variam... E tudo isso porquê, Gorlois? Porque o velho Baldwin e a sua tropa de demónios barbudos surgidos das entranhas da terra nos cegaram com o seu ouro e os seus poderosos machados... Eis o que é preciso que os monges digam.

— Sim, podemos tentar.

Pellehun recostou-se no trono e, com um gesto, mandou sair o senescal.

— Vai. Os monges, os soldados, os ladrões, as putas... Serve-te de toda a gente. Antes de anoitecer, quero que o povo dê um nome ao seu ódio.

 

O archote só tinha ardido durante algumas horas. Eles caminhavam há dias no escuro, primeiro guiados pela rainha, depois cada um por si, uma vez que os seus olhos já estavam suficientemente habituados à escuridão da gruta para lhes permitir não tropeçarem a cada passo. Mas a escuridão constante tinha-lhes feito perder a noção do tempo. Avançavam pelo simples instinto de sobrevivência, deixando-se cair por vezes como massas e dormindo sobre o chão um sono profundo, acordavam sempre de noite, com a barriga vazia, sorviam as paredes húmidas para acalmarem a sede e voltavam a partir sem uma palavra.

Nenhum deles tinha pronunciado qualquer palavra depois da morte de Tsimmi. Tinham-no deixado no círculo, mas os seus pensamentos estavam repletos da sua falta.

Sem ele, não sabiam sequer para onde iam. O túnel tanto podia ser a passagem dos anões de Oonagh de que o mestre mação tinha falado, como um antigo leito glaciar, ou pior, um túnel gobelin que levava às Terras Negras. Eles já não se importavam com nada. Cada um caminhava por si, para além da fadiga, para além da esperança.

Freihr tinha perdido a sua espada, horas antes, ao tropeçar numa rocha. Tinha-se levantado sem mesmo a procurar.

A cada paragem, Lliane olhava para Uter, e o seu coração partia-se ao descobrir-lhe sobre o rosto as marcas do esgotamento. Uma barba castanha, espalhada, comia-lhe as maçãs do rosto. Os seus olhos pareciam estar cravados nas órbitas. A sua pele estava cinzenta, suja, e a sua cota de malha manchada de lama estava cortada em vários lugares. Ele nada tinha do altivo cavaleiro que havia saído de Loth, bamboleando o dorso sob as aclamações da multidão. Não passava de um homem esgotado, que só o orgulho da sua condição de cavaleiro mantinha ainda vivo. Uter não se queixava e nunca se tinha deixado distanciar dos seus companheiros, mas a rainha sabia que ele queimava as suas últimas forças. Em cada passada, Freihr percorria vários metros, e ela própria, como todos os elfos, tinha uma resistência bem superior à dos homens. Uter não aguentaria muito tempo a este ritmo.

Ela tinha tentado caminhar mais devagar, pedia para pararem mesmo sem sentir necessidade, mas já não podiam perder mais tempo.

A carne de lobo havia sido devorada, rapada até ao osso, e há séculos que eles já não tinham nada que comer. Quanto tempo aguentariam os homens sem comer? Ela não fazia idéia. Ela própria começava a sofrer. A sua cota de malha de prata esmagava-lhe os ombros, o cinto de couro onde trazia a adaga cortava-lhe os rins, ela tinha fome, não aguentava mais...

Subitamente, Lliane parou. Quase que sem querer, a sua pele eriçou-se, como se ela tivesse sentido aquilo que os olhos ainda não conseguiam distinguir, o que os seus ouvidos se recusavam a ouvir, piares, arranhadelas, barulhos de seda e ondas que se mexiam sobre a abóbada da passagem.

Uter chocou com ela e o barulho do choque provocou um remexer sensível por cima deles. Bateres de asas, gritos agudos que ela mal conseguia ouvir...

— Que se passa?

Ela colocou a mão sobre a boca do cavaleiro... demasiado tarde. Uma nuvem de morcegos jorrou da abóbada em turbilhão, batendo-lhes no seu vôo cego, agarrando-se aos longos cabelos da rainha, arranhando-os com as suas garras. Uter agarrou-a contra ele e deitaram-se no chão, com as caras enfiadas debaixo dos braços para se protegerem. Durante longos minutos ficaram assim, alucinados, gritando sob o horroroso tornado desses animais de pesadelo, meio pássaros, meio ratos, no infecto odor dos seus sucos, até que o frenesim se interrompeu por si próprio. Então, eles fugiram para fora do seu alcance, vigiando com angústia o menor bater de asas, primeiro prudentemente, depois cada vez mais depressa. Sem fôlego, Uter quis parar, mas Freihr empurrou-os para a frente.

— É preciso continuar, estamos quase lá fora!

— Meu Deus, como é que tu sabes? — gemeu Uter.

— Os morcegos não comem pedras. Eles saem de noite para caçar e dormem durante o dia. Estamos quase a sair!

— Pois bem, prossegue — murmurou Uter.

O bárbaro praguejou e, com um empurrão, afastou-o do seu caminho. O barulho dos seus passos foi-se perdendo rapidamente na galeria. Uter deixou-se cair no chão, fechou os olhos e encostou-se à parede rochosa.

— Nunca tinha visto esses animais horríveis — murmurou Lliane ao seu lado. — Freihr parecia conhecê-los... Se tu ficas, eu fico contigo. Mas se ficamos, é a morte...

Uter vislumbrou a sua silhueta, sem conseguir distinguir os traços. Acariciou-lhe a face e puxou-a suavemente para si, até que os seus lábios se tocaram. De novo, como em Gwragedd Annwh, aquando do seu primeiro beijo, a rainha entreabriu a boca e a sua língua veio forçar os lábios do cavaleiro. Os homens não conheciam semelhantes beijos. Foram os elfos quem lhos ensinaram, como tudo quanto o amor físico pode ter de doce e de sagrado. E, no entanto, os elfos diziam ignorar o amor. Entre eles não existia a paixão, juras ou desesperos sentimentais. As tribos élficas eram como clãs de animais selvagens, como manadas de renas. E nada que pudesse enfraquecer os laços do grupo ou substituí-los tinha lugar no coração dos elfos. Nem mesmo o amor.

Ela desprendeu-se de Uter e pousou a palma da mão sobre a testa do cavaleiro.

— Eorlfrofur deore...

— Não.

O jovem pegou na mão da rainha, abraçou-a e acariciou-lhe mais uma vez a face.

— Guarda a tua magia, minha rainha. A dos homens é mais forte.

Ele sorriu perante o ar incrédulo dela, hesitou um pouco, e depois ousou pronunciar a palavra.

— O amor...

Desta vez foi Lliane quem abriu os olhos

— Sabes o que se diz entre a nossa gente? — murmurou Uter. — Diz-se que o amor dá asas.

Ela ergueu as sobrancelhas, franziu-as e inclinou a cabeça para olhar o jovem.

— É uma imagem...

Ele levantou-se e estendeu-lhe a mão para a ajudar. Abraçados, puseram-se a caminho, seguindo as pegadas do bárbaro.

Freihr tinha razão.

Rapidamente a escuridão transformou-se em penumbra e a penumbra em claridade obscura, até ao esplendor ofuscante de um dia, no entanto, desagradável.

Eles tinham saído.

Sempre abraçados, apoiando-se um no outro, deram ainda alguns passos até ao arvoredo que ladeava as colinas, e caíram na erva coberta de geada, respirando deliciados o odor da terra, do musgo, o odor da própria vida. Ficaram assim durante longos minutos, o tempo de adaptarem os olhos à luz do dia; depois, Uter arrastou-se até um arbusto carregado de grossas bagas vermelhas e doces, e arrancou frutos e folhas com as mãos, que devorou como um animal selvagem.

Bem mais tarde, quando a luz desaparecia sem que o sol se tivesse mostrado, eles puderam levantar-se, deixar a desconfortável floresta sob a qual se tinham abrigado e desceram a colina, mesmo em frente deles, através de uma floresta com alguns carvalhos jovens, debaixo da qual prosperava uma vegetação de arbustos e de fetos, num estonteante odor a madeira e húmus. Seguiram por uma vereda, um vago carreiro que tanto podia ser o trilho de um javali como uma via traçada pelos homens, descobrindo através das árvores o espectáculo infinito da grande planície cheia de neve. Menos de uma hora depois, tiveram de parar, antes que a noite caísse. Sentaram-se à beira de um riacho semigelado, sobre um espesso colchão de folhas mortas, com os olhos fixos na noite que caía para não olharem um para o outro, no silêncio da neve. Um silêncio que fazia bater o coração de Uter e lhe provocava arrepios. E quanto mais este silêncio se prolongava, mais as primeiras palavras, os primeiros gestos se tornavam difíceis.

Llianne levantou-se e, com a cara pudicamente tapada pelos seus longos cabelos negros, despiu o fato de catassol e a cota de malha, tirou as botas de pele e as suas pulseiras em prata. Uter, petrificado, ouviu o passo ligeiro dos seus pés nus por trás dele sobre a neve, e não voltou a cabeça até que a elfo atirou uma grande pedra para o riacho para quebrar o gelo. Os seus olhos habituados ao escuro cruzaram o olhar mudo de Lliane, depois deslizaram contra sua vontade sobre as curvas dos seus ombros, dos seus seios, das suas coxas, das suas pernas sem fim, mesmo antes de ela saltar para a água gelada.

Ela mergulhou por debaixo do gelo, desapareceu alguns segundos e quebrou a superfície gelada do riacho ao pé da outra margem. Uter mal a distinguia, mas adivinhava-a, semi-saída da água, os longos cabelos colados à pele tão pálida, tão nua.

— Vens?

O jovem despiu-se precipitadamente e aproximou-se do riacho gelado, tiritando mesmo antes de meter o pé. Lliane começou a rir.

— Não entres! — disse ela. — Está demasiado fria para ti!

Uter hesitou, mas ela já tinha voltado a mergulhar sob o gelo.

No instante seguinte ela saltava da água mesmo em frente dele, brilhante e viva como um peixe, quase nos seus braços. Ele só teve de abri-los para que ela viesse encontrar refúgio neles.

— Aquece-me — disse ela.

Ele pegou na elfo transida e levou-a até ao leito de folhas, onde a pousou suavemente. Ela deslizou a mão sobre a nuca do cavaleiro e puxou-o contra si, e depois, num gesto brusco, fê-lo rolar no chão e deitou-se sobre ele. Uter batia os dentes e tremia dos pés à cabeça. Queria acariciá-la, mas ela pegou na mão que aflorava as suas costas e colocou-a sobre o chão.

— Acho que sou eu que vou aquecer-te — sussurrou ela com ternura ao seu ouvido.

Uter fechou os olhos. Deitado sobre o solo, tremendo ainda convulsivamente, sentiu o calor da elfo passar pouco a pouco para ele, ao ritmo das suas ondulações. Os seus longos dedos afloravam os seus ombros, o seu dorso, as suas coxas, ele arrepiava-se sob a carícia dos seus longos cabelos, estremeceu mal os lábios dela se puseram sobre ele, afundou-se com os olhos fechados numa lenta vertigem de doçura, esquecido dos murmúrios da floresta, do frio da noite, de tudo o resto que não fosse ela. Lliane endireitou-se e sorriu-lhe, as suas coxas fecharam-se sobre as ancas do homem e a sua bacia lisa deslizou lentamente até ao seu sexo, tocando-lhe. Uter abriu os olhos e reteve a respiração, mas ela esquivou-se. Ela já não sorria, fixava-o com ar sério, sem parar de ondular contra o seu ventre, como se as suas ancas tivessem vida própria. A cada respiração deles, nuvens de condensação evaporavam-se no ar gelado da noite, e os próprios corpos deitavam fumo como um leito de brasas. Lentamente as mãos de Uter deslizaram sobre o ventre da elfo até ao seu peito e envolveram-lhe os seios. Os seus dedos redesenharam o contorno azul-escuro das suas auréolas.

— És tão bonita — murmurou ele.

— Faz de mim o teu amor.

Então ele agarrou a cintura graciosa da elfo, tão fina, tão frágil e penetrou-a. Foi um movimento lento. Foi um movimento selvagem. Febril, ávido. Foi o casamento instintivo de dois corpos feitos um para o outro que finalmente se encontravam. Foi uma batalha e um abandono, uma revelação e um deslumbramento. E eles adormeceram assim, sem se separarem, nus como os primeiros amantes do mundo.

Uter acordou a gritar.

Passos pesados em volta deles. Archotes. Sombras guerreiras, guarnecidas de armas, deitando brilhos de aço sob a luz das chamas.

Ele levantou-se de um salto, interpondo-se entre os guerreiros e o corpo da rainha, e fortes gargalhadas soaram de entre as fileiras.

— Eu bem sabia! — disse uma voz que foi reconhecida de imediato.

— Freihr!

— Vês, Freihr bem te tinha dito: tu estás apaixonado!

O bárbaro afastou-se dos seus companheiros, estendeu-lhe uma capa de peles e desatou num riso atrevido que fez corar Uter até à raiz dos cabelos. Lliane, com um riso de adolescente, arrancou-lhe a capa de peles com um gesto rápido e enrolou-se nela.

— Muito apaixonado! — lançou Freihr com um levantar de sobrancelhas aprovador.

Uter seguiu o seu olhar e viu o que provocava a risota dos bárbaros. Agarrou na sua cota de malha e tapou-se o melhor que pôde.

— Andamos à vossa procura desde há bocado — disse Freihr.

— Voltámos mesmo a ir à gruta... Venham. Temos comida e bebida!

Sem um olhar para Uter, que tentava vestir-se conservando o que ainda lhe restava de dignidade, Lliane pegou nas suas roupas e deu o braço a Freihr.

— Julgava que a tua aldeia tinha sido destruída? — disse ela admirada, olhando os companheiros dele.

Eram uma dezena de homens, mulheres e crianças, todos vestidos com peles como ele, tão fortes como ursos, com espessas cabeleiras louras entrançadas. A maioria deles tinham traços de ferimentos recentes.

— Eles não são de Seuil-des-Roches, salvo Thorn...

Ele apontava para um adolescente desengonçado, armado com uma bateria de chuços endurecidos com ferro, que baixou os olhos assim que percebeu que estavam a falar dele.

— Ignorava que ele tinha sobrevivido. Foi Oddon e a sua família que o recolheram na floresta. Os outros vêm de aldeias fortificadas de Leste. Eis tudo o que resta dos homens livres das Fronteiras!

— Talvez haja outros.

Freihr abanou a cabeça vigorosamente.

— Nós vamos encontrá-los. E fundaremos uma cidade, uma só, mais forte, mais bela ainda que Seuil-des-Roches. E quando eles voltarem, estaremos preparados!

A maior parte dos bárbaros ignoravam a linguagem comum, mas os seus olhos, à luz dos archotes, brilhavam de excitação com as palavras de Freihr. Lliane ajustou a capa de peles sobre os ombros e sorriu ao bárbaro.

— Vamos? — disse ela. — Estou morta de fome! — Meteram-se ao caminho e, em poucos minutos, chegaram a um grupo de cabanas semelhantes às dos elfos de Gwragedd Annwh, salvo nas suas dimensões. Não existia nem paliçada, nem porta, nem vigia. Não passavam de simples abrigos de ramos. Ainda não era uma aldeia.

Comeram todos juntos, reunidos em volta de uma fogueira onde assava um veado, despreocupados e seguros da sua força, como uma alcatéia de lobos. Uter observava o bárbaro, furtivamente. Já não era o mesmo homem desde que tinha encontrado os seus companheiros, como se se sentisse de novo investido da responsabilidade de os proteger.

Freihr percebeu que ele o fixava e Uter ficou embaraçado.

— Não colocaste nenhuma sentinela? — perguntou-lhe.

— E para defender o quê? — disse Freihr. — Vês alguma coisa, aqui, que deva ser guardada?

— As vossas vidas, pelo menos...

Freihr olhou-o, sério.

— Quando não te resta mais nada além da vida, é preciso não a estragar receando perdê-la.

Voltou a sorrir e deu-lhe uma das suas formidáveis palmadas como só ele sabia dar.

— Não tenhas medo! Esta noite Oddon vigiará o vosso sono.

Piscou o olho para a rainha.

— Estareis melhor que ao vento!

Grandes gargalhadas fizeram eco, em volta da fogueira. Uter riu com eles, mas o simples olhar de Lliane reavivou-lhe o desejo.

— Amanhã — prosseguiu ele —, encontraremos cavalos, à hora em que eles vão beber... e poderemos partir.

Lliane levantou-se, contornou o fogo e veio ajoelhar-se em frente do bárbaro, pegando-lhe na grande mão calosa.

— Não, Freihr. Tu ficas...

Ela sorriu-lhe com ternura, e depois falou-lhe, na linguagem áspera dos homens do Norte. Rapidamente as conversas pararam e todos escutaram as palavras da rainha, no meio do crepitar do fogo e dos murmúrios da noite.

Ela falou durante bastante tempo. Quando se levantou, os olhos de Freihr estavam cheios de lágrimas. Por fim, ela estendeu a mão a Uter.

— Vens?

 

Na noite do segundo dia, a cidade incandescia como um vulcão, à luz de centenas de incêndios. Desde o princípio que tudo tinha começado mal.

Uma família de dez anões — pai, mãe, criados e filhos, simples comerciantes que tinham vindo a Loth vender as suas barras de ferro forjado sob a montanha — tinha sido atacada por um padre de cabeça rapada e pela sua tropa de fanáticos. Homens e mulheres armados de qualquer maneira, com olhos de loucos e almas atormentadas, com a voz rouca de tanto terem gritado, brandiam archotes e reuniam a populaça, gritando que os anões eram demónios e os elfos uns anjos, que Deus os vigiava e que pedia vingança.

Nenhum dos dez anões era guerreiro, mas vinham da Montanha Vermelha, fortes como troncos de árvore e tinhosos como ursos.

Antes de perceberem o que lhes estava a acontecer, uma comadre de Loth espetava um anãozinho de apenas uns trinta anos com uma forquilha, e foi como se ela tivesse desencadeado uma tempestade. A mãe da vítima estrangulou-a com as suas mãos fortes antes de sucumbir aos golpes da multidão. Então, o resto da família reagiu por fim (os anões são por vezes lentos de compreensão) e armou-se com as barras de ferro que tinham vindo vender. No fim da escaramuça, as paredes da ruela estavam cobertas de sangue e uma meia dúzia de corpos, homens e anões, jaziam na valeta.

O primeiro incêndio deflagrou numa taberna, quando um grupo de amotinados caiu sobre três soldados da guarda do rei Baldwin. Os anões couraçados, bem armados e preparados para a guerra, que nunca largavam os seus machados, nem mesmo para dormir, fizeram uma carnificina, ao ponto de a multidão louca de ódio os fechar na estalagem e lhe deitar fogo, apesar dos gritos horrorizados dos humanos ainda com vida bloqueados no interior.

Houve outros incêndios e muitos outros combates, durante todo o dia e toda a noite. Os anões organizaram-se e reagruparam-se em esquadras semelhantes a blocos de pedra, descendo pelas ruas e esmagando tudo à sua passagem, numa carnificina indescritível que se estendeu rapidamente até ao palácio. A guarda mais próxima de Baldwin bloqueava a ala reservada aos anões, protegendo a fuga do velho rei, e, por cada guerreiro anão morto, o senescal Gorlois perdia cada vez mais dos seus melhores soldados do exército. Os combates pareciam nunca mais terem fim, apesar das poças de sangue que tornavam as lajes escorregadias, apesar do horror dos combates corpo a corpo nos estreitos corredores, onde os cavaleiros humanos se empurravam contra as paredes sem conseguirem manejar as suas espadas. Foram confrontos de punhal, combates de animais sem tática nem honra, o empenhamento e o ódio que tomavam o lugar da bravura.

Três dos doze bravos que formavam a guarda do Grande Conselho pereceram nestes assaltos sem glória, cujo sentido não conseguiam entender.

Um outro, chamado Ulfin, jovem cavaleiro pouco mais velho que Uter, desapareceu durante a noite e o seu corpo nunca foi encontrado. Conta-se que a infâmia do massacre o horrorizou tanto que, colocando a sua honra acima do seu juramento a Pellehun, ajudou o rei Baldwin a fugir da cidade.

Na noite do segundo dia, não ficou nenhum anão vivo em Loth.

Do alto da torre à qual só ele e Gorlois tinham acesso, Pellehun contemplava, pela estreita frincha de uma seteira, o incêndio que destruía a cidade. Por baixo dos muros de pedra do palácio, as ruas estavam cheias de gritos, cheias de uma multidão frenética, aterrorizada e louca, cheias de pilhagens e de violações, como se a cidade se destruísse ela própria de corpo e alma. Lá fora, o exército estava alinhado a preceito, imenso, coberto de ferro e aço, esperando somente um gesto para marchar e destruir o mundo. O reino de Logres tinha caído na guerra total. Homens, elfos e anões. O pesadelo tinha começado.

Pellehun afastou-se do sinistro espectáculo e aproximou-se do cofre cravado numa parede que constituía o único móvel da sala, com exceção dos dois cadeirões ao pé da lareira. Tirou de debaixo da roupa uma chave pendurada ao seu pescoço por uma fita e fez rodar as fechaduras. Depois abriu lentamente o cofre e contemplou o seu tesouro mais precioso, que jazia sobre uma almofada de veludo escuro.

Uma espada de ouro, brilhante à luz dos archotes, cheia de pedras preciosas e de milhares de obras-primas de ourivesaria.

A Espada de Nudd, o talismã dos anões ao qual eles chamavam Caledfwch.

Excalibur.

 

Primeiro, viram uma nuvem de corvos, rodando no céu cinzento como uma coluna de fumo, depois uma manada de cavalos, galopando livremente na planície, ao longe, sem nenhum cavaleiro.

O primeiro cadáver era de um anão, encostado a um outeiro, com o corpo cravejado de flechas. Depois, a algumas toesas, o de um elfo cinzento, quase confundido com a terra. Uter desembainhou a espada e cavalgaram até ao cimo da saliência. O espetáculo petrificou-os.

A perder de vista, a planície branca de neve estava cheia de cadáveres. Gnomos atarefavam-se em volta dos corpos, assaltando os mortos, acabando com os feridos, e cães selvagens alimentavam-se dos seus restos. De longe em longe, um estandarte rangia ao vento do Inverno, marcado com o sombrio escudo com o machado de ouro dos anões sob a Montanha Negra. Por vezes, os cadáveres estavam caídos em grupo e formavam túmulos sinistros eriçados de lanças e flechas. E, por cima de tudo, o silêncio irreal da neve, o cruzar dos corvos e o cheiro dos mortos.

Lliane deu um grito selvagem e picou as esporas cavalgando através do campo de batalha. Ela galopou sempre em frente, com os olhos cheios de lágrimas, a cara entorpecida pelo frio. À sua passagem, os gnomos fugiam, dobrando-se sobre o peso das suas rapinas, os devoradores de cadáveres corriam para um outro cadáver mostrando os dentes... Chegada ao outro lado do campo de mortos, onde por fim a planície cheia de neve já não estava vermelha de sangue, ela soltou as rédeas do seu cavalo e saltou para o chão ainda antes de ele parar. Uter foi encontrá-la enroscada sobre si mesma, com a cara enfiada na neve, inundada de lágrimas, sufocada pelo choro. Ele apeou-se lentamente, avançou até ela num barulho de neve a quebrar, agarrou-a pelos ombros e levantou-a. Lliane enroscou-se nele, sem parar de chorar. Nunca Uter a tinha visto assim, aniquilada, desamparada, trémula... tão humana.

Ele ajudou-a a montar no seu próprio cavalo, que segurava pelas rédeas. O de Lliane tinha fugido para longe do campo de batalha.

Voltaram a atravessar o campo de mortos com a cabeça baixa à procura de sobreviventes, mas, com exceção de um elfo terrivelmente desfigurado por um golpe de machado que lhe tinha partido o maxilar e que não conseguia mais do que babar sangue num atroz gorgolejo, não havia na planície senão mortos já endurecidos pelo frio.

Quando a noite caiu, eles continuavam à procura, à luz de um archote.

Encontraram o Sr. Rassul e o seu servo elfo, Assan, num caminho vazio, abraçados na morte, cercados por cadáveres de anões cujo sangue tinha gelado em poças rosadas, na neve e na lama. Eles reconheceram os elfos de Gwragedd Annwh, elfos cinzentos como quase todos os que ali jaziam. E todos os anões traziam as cores da Montanha Negra.

— Rogor — murmurou Uter, num tom de ódio. — A culpa foi minha... Devia ter-te deixado matá-lo, no pântano.

— Talvez ainda haja esperança — disse Lliane. — Não há aqui nenhum alto-elfo, nem nenhuma outra comunidade anã. A guerra ainda não se estendeu a todos os povos. É preciso regressar a Loth. Tenho de falar a Llandon, e tu vais contar ao rei Pellehun aquilo que viste. Baldwin escutá-lo-á a ele. Podemos certamente...

Lliane calou-se bruscamente. A cabeça andava-lhe à roda, repentinamente, e um estranho mal-estar fê-la vacilar. Ela aspirou profundamente grandes golfadas de ar gelado, e depois pegou num bocado de neve para refrescar a cara. Foi então que o viu. O homem-criança de cabelos brancos e de vestido azul comprido, apoiado num simples ferro, que a olhava do alto de uma colina sorrindo. O homem que ela tinha vislumbrado à beira do lago. O homem que ela tinha cruzado à saída de Loth. O homem que somente ela, até ao momento, parecia ser capaz de ver.

Uter também o via, e sentia nesse momento o mesmo mal-estar. Ele tinha desembainhado a espada e tinha-se entreposto entre a rainha e a aparição, segurando com a mão esquerda o archote para ver melhor.

— Quem és tu?

— Chamo-me Myrddin — disse o outro com uma voz estranhamente jovem, com um aceno de cabeça sarcástico que poderia passar por uma saudação, mas com ar de quem estava a fazer troça do cavaleiro.

— Que é que tu queres?

— Que é que eu quero? — riu o outro. — Mas por que é que achas que eu quero alguma coisa de ti, Uter? Por que julgas que podes ser-me útil em alguma coisa, tu que falhaste a tua missão, tu que não conseguiste evitar esta lamentável matança?

O cavaleiro ficou lívido. Ele não ousava olhar para a rainha, mas sentia o peso do olhar dela. Pensaria também ela que ele tinha falhado?

— É tarde demais, Uter! — continuou Myrddin. — E depois, tu não passas, por enquanto, de um homem!

Ele desatou a rir, num riso de criança, divertido e completamente fora de sentido neste horizonte de cadáveres.

Lliane olhava-o, petrificada, e uma evidência impôs-se-lhe no espírito.

— Não é um homem — murmurou ela. — E também não é um elfo. No entanto, é um pouco dos dois...

— Tens razão — disse Myrddin. — Eu não sou ninguém. Nada mais que o filho de uma elfo e de um homem... Venham ter comigo!

— É impossível — respondeu Uter. — Nunca nasceu ninguém da união de elfos e homens!

— E, no entanto, eu existo, vês? Que importa... Bem depressa não serei mais o único.

Ele apontou para o ventre de Lliane com um sorriso entendido.

— Tu darás à luz uma menina, que os homens chamarão de Morgana. Mas não será esse o nome que tu terás escolhido.

Lliane e Uter olharam-se, e nos olhos dos dois amantes passou cada etapa dos seus pensamentos: admiração, alegria, amor, pavor, à medida que estas palavras se apoderavam dos seus sentidos.

— Não deveis ir a Loth, peço-vos — continuou Myrddin. — Falhaste porque estava escrito que deverias falhar, mas vencestes, e hoje só a vossa sobrevivência pode impedir a vitória dos homens.

De novo, o sangue de Uter gelou-se.

— Que vitória dos homens? — gritou ele. — Onde é que tu vês homens? Olha à tua volta! Olha esta...

Ele varreu com um gesto o campo de batalha.

— ...esta carnificina! Só há elfos e anões! Nós não fizemos mais nada para além de tentar salvar a paz!

Myrddin desatou num riso horripilante.

— “Nós não fizemos mais nada para além de tentar salvar a paz!” — troçou ele numa voz ridícula, imitando o cavaleiro.

Lliane reprimiu um sorriso, o que conseguiu pôr o cavaleiro louco de raiva; o homem-criança estendeu a mão em sinal de paz.

— Desculpa-me, Uter... É verdade que isto não tem nada de engraçado. Mas, vê tu bem, os homens...

Ele interrompeu-se como se um pensamento completamente diferente lhe tivesse passado pela cabeça.

— É verdade — murmurou ele. — Tu, por enquanto, não passas de um homem. Mas um dia serás dois, como eu, e nesse dia poderás compreender...

Depois voltou-se para Lliane e continuou o seu discurso.

— Os homens tiveram sempre medo de tudo. Os raios, a tempestade, as correntes, a floresta, a montanha. E tudo o que temiam tornava-se divino para eles: o sol, as estrelas, as árvores grandes ou as pedras. E eis que eles começam a venerar um só Deus. Um Deus único que substitui todos os outros, ao mesmo tempo pai e filho, o céu e o espírito. Era aquilo que lhes faltava, compreendes? Uma força única, simples, única explicação do universo e de todos os seus mistérios... Venham para ao pé de mim, devo mostrar-vos uma coisa.

Desta vez eles obedeceram-lhe, cativados por essa voz fraca e ao mesmo tempo possante. Nem um nem outro sentiam mais aquele mal-estar inexplicável que os tinha incomodado quando ele tinha aparecido. Treparam lentamente o outeiro e agarraram a mão que ele lhes estendia.

Visto de perto, Myrddin parecia mesmo uma criança, sem no entanto ser possível darem-lhe uma idade. A sua pele não era azul como a dos elfos, mas de uma palidez não humana, tão diáfana que parecia transparente, com cabelos brancos — não desse cinzento-claro-prateado próprio dos humanos velhos, mas de uma brancura absoluta, sem o menor reflexo — que formavam em volta das suas têmporas uma cascata de neve. E, nessa palidez toda, ele tinha os mesmos olhos de Lliane, de um verde-claro, intenso como ouro.

— Tinhas de falhar para que o verdadeiro combate comece — disse ele, olhando para Uter. — E neste malogro não há nenhuma vergonha, já que era tudo quanto esperavam de vós, pois que todos vos mentiram, até mesmo o objetivo da vossa demanda não passava de uma traição. É claro que podes tentar salvar a paz, mas falharás, Uter, e desta vez o teu insucesso será verdadeiro. Se fordes a Loth, ireis morrer, e então a esperança desaparecerá para sempre. Os elfos, os anões e mesmo os monstros desaparecerão no crepúsculo do tempo, como uma lenda longínqua, até ao dia em que até os seus próprios nomes sejam esquecidos, sem sentido, e onde ninguém à superfície da terra acreditará mais na sua existência... Olhem.

Ele puxou-os atrás de si e trepou as últimas toesas que os separavam do cume do outeiro. Ao longe, o horizonte era vermelho.

— É Loth — disse ele simplesmente.

A cidade continuava em chamas e o coração dos homens ardia num fogo ainda mais intenso, prestes a incendiar todo o reino.

— Mais ninguém além dos homens provocou este incêndio... Mais ninguém senão um homem o poderá apagar. Um homem ajudado pelo sopro do dragão.

Myrddin olhou Lliane e Uter e, por um instante, um véu de uma tristeza infinita petrificou o seu sorriso despreocupado. Mas o bravo, fascinado pelo horizonte em chamas, não se deu conta.

— É claro que ainda é muito cedo — disse o homem-criança. Depois atirou-se pela encosta fora, desaparecendo na noite a toda a velocidade.

— Myrddin! — gritou Uter.

Uma voz respondeu-lhe do âmago das trevas, no silêncio da neve.

— Só os elfos me chamam Myrddin... Os homens chamam-me Merlin.

 

 

                          Jean Louis Fetjaine

 

 

 

 

[1]      Nome que, na Bretanha, se dá aos espíritos maléficos. (N. do E.) 

[2]      Cerca de duzentos metros.

[3]      Manes: a designação que os Romanos davam às almas dos mortos. (N. do E.)

 

 

 

 

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