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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O FESTIM DOS CORVOS / George R. R. Martin
O FESTIM DOS CORVOS / George R. R. Martin

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Dragões — disse Mollander. Pegou numa maçã estragada que estava no chão e a jogou de uma mão para a outra.
— Atire a maçã — pediu Alleras, o Esfinge. Puxou uma seta da aljava e prendeu-a na corda do arco.
— Eu gostaria de ver um dragão. — Roone era o mais novo do grupo, um rapaz atarracado ainda a dois anos de se fazer homem. — Gostaria muito mesmo.
E eu gostaria de dormir com os braços da Rosey à minha volta, pensou Pate. Mexeu-se inquieto no banco. De manhã a garota podia bem ser sua.
Vou levá-la para longe de Vilavelha, para o outro lado do mar estreito até uma das Cidades Livres. Lá não havia meistres, não existia ninguém que o acusasse.
Ouvia as gargalhadas de Emma, vindas de uma janela fechada por cima da sua cabeça, misturadas com a voz mais profunda do homem que estava recebendo. Era a mais velha das mulheres que serviam no Pena e Caneca, tinha pelo menos quarenta anos, mas ainda era bonita ao seu jeito carnudo. Rosey era sua filha, com quinze anos e acabada de florir.
Emma decretara que a virgindade de Rosey custaria um dragão de ouro. Pate poupara nove veados de prata e um cântaro de estrelas e dinheiros de cobre, mas isso de nada lhe serviria. Teria tido mais chance de trazer ao mundo um dragão verdadeiro do que de poupar moedas suficientes para um de ouro.
— Nasceu tarde demais para dragões, moço — disse a Roone Armen, o Acólito. Armen usava uma tira de couro em volta do pescoço, amarrada com elos de peltre de estanho, chumbo e cobre, e tal como a maioria dos acólitos, parecia pensar que os noviços tinham nabos crescendo entre os ombros no lugar das cabeças. — O último morreu durante o reinado do Rei Aegon Terceiro.
— O último dragão em Westeros — insistiu Mollander.
— Atire a maçã — voltou a pedir Alleras. Era um jovem bem apessoado, o Esfinge. Todas as criadas tinham um fraco por ele. Até Rosey lhe tocava por vezes no braço quando lhes trazia vinho, e Pate tinha de ranger os dentes e fingir não ver.

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— O último dragão em Westeros foi o último dragão — disse Armen com teimosia. — Isso é bem sabido.
— A maçã — disse Alleras. — A menos que queira comer ela.
— Aqui. — Arrastando a perna de pau, Mollander deu um curto salto, rodopiou e arremessou horizontalmente a maçã para as névoas que pairavam sobre o Vinhomel. Se não fosse o pé, teria sido um cavaleiro como o pai. Tinha a força necessária naqueles braços grossos e ombros largos. A maçã voou para longe rápido…
… mas não tão rápido como a seta que assobiou no seu encalço, um metro de haste de madeira dourada com penas escarlates. Pate não viu a seta atingir a maçã, mas ouviu-a. Um tchunc suave ecoou por sobre o rio, seguido por um esparrinhar de água.
Mollander assobiou.
— Mesmo em cheio. Boa.
Nem de perto tão boa como Rosey. Pate adorava os seus olhos cor de avelã e os seus seios em botão, e o modo como ela sorria sempre que o via. Adorava as covinhas no seu rosto. Ela por vezes andava descalça enquanto servia, para sentir a erva sob os pés. Também adorava isso. Adorava o cheiro limpo e fresco que ela exalava, o modo como o cabelo se lhe curvava sob as orelhas. Até adorava os seus dedos dos pés. Uma noite deixara-o esfregar-lhe os pés e brincar com eles, e ele inventara uma história divertida para cada dedo, a fim de pô-la aos risinhos.
Talvez fizesse melhor em permanecer deste lado do mar estreito. Podia comprar um burro com o dinheiro que poupara, e ele e Rosey podiam montá-lo por turnos enquanto vagueavam por Westeros. Ebrose podia não o achar merecedor da prata, mas Pate sabia como endireitar um osso e curar uma febre com sanguessugas. O povo ficaria grato pela sua ajuda. Se conseguisse aprender a cortar cabelo e a fazer barbas, podia mesmo tornar-se barbeiro. Isso seria o bastante, disse a si próprio, desde que tivesse a Rosey. Rosey era tudo o que desejava no mundo.
Nem sempre fora assim. Em tempos sonhara em ser um meistre num castelo, ao serviço de qualquer senhor generoso que o honrasse pela sua sabedoria e lhe concedesse um belo cavalo branco a fim de lhe agradecer pelos seus serviços. E quão alto o montaria, quão nobremente, concedendo sorrisos aos plebeus quando passasse por eles na estrada… Uma noite na sala comum do Pena e Caneca, após a segunda caneca de uma cidra terrivelmente forte, Pate gabara-se de que não seria noviço para sempre.
 — É verdade — gritara o Leo Preguiçoso. — Vais ser um antigo noviço, criando porcos.
 Ele esvaziou sua caneca. A varanda iluminada pelos archote do Pena e Caneca era naquela manhã uma ilha de luz num mar de névoa. Rio abaixo, o distante brilho de uma alta torre, flutuava no relento da noite como uma lua alaranjada e brumosa, mas a luz pouco fez para lhe melhorar o estado de espírito. O Arquimeiestre já devia ter chegado há esta hora. Teria sido tudo alguma despedida cruel, ou teria algo acontecido ao homem? Não seria a primeira vez que a sorte cobria Pate de amargura. Uma vez achara-se sortudo por ter sido escolhido para ajudar o velho Arquimeistre Walgrave com os corvos, sem sonhar que em breve estaria também buscando as refeições do homem, varrendo os seus aposentos e a vestindo-o todas as manhãs.
Todos diziam que Walgrave esquecera mais da criação de corvos do que a maior parte dos meistres achava, portanto Pate assumira que um elo negro de ferro era o mínimo que poderia esperar, mas acabara por descobrir que Walgrave não poderia dar. O velho continuava a ser arquimeistre apenas por cortesia. Por maior que tivesse sido como meistre, agora o mais frequente era que as suas vestes escondessem a roupa interior emporcalhada, e meio ano antes um grupo de acólitos tinha-no encontrado chorando na Biblioteca, sem ser capaz de encontrar o caminho de volta aos seus aposentos. Era o Meistre Gormon que se sentava sob a máscara de ferro no lugar de Walgrave, o mesmo Gormon que um dia acusara Pate de roubo.
Na macieira, junto à água, um rouxinol começou a cantar. Era um som doce, uma pausa bem vinda nos gritos roucos e no crocitar sem fim dos corvos de que cuidara o dia inteiro. Os corvos brancos conheciam o seu nome, e o resmungavam uns para os outros sempre que o vislumbravam, “Pate, Pate, Pate”, até deixá-lo a ponto de gritar. As grandes aves brancas eram o orgulho do arquimeistre Walgrave. Desejava que o comessem quando morresse, mas Pate andava meio desconfiado de que os corvos também pretendiam comê-lo. Talvez fosse a cidra terrivelmente forte — não viera para beber, mas Alleras estava pagando para festejar o seu elo de cobre, e a culpa dera-lhe sede — mas quase soava como se o rouxinol estivesse a trinar ouro por ferro, ouro por ferro, ouro por ferro. O que era muitíssimo estranho, pois fora isso o que o estranho dissera na noite em que Rosey os juntara.
— Quem é você? — quisera saber Pate, e o homem respondera:
— Um alquimista. Sei transformar ferro em ouro. — E então tinha a moeda na mão, dançando sobre os nós dos dedos, fazendo brilhar o suave ouro amarelo à luz das velas. De um lado tinha um dragão de três cabeças, do outro a cabeça de um rei qualquer morto. Ouro por ferro recordou Pate, não vai conseguir fazer melhor. Você a quer? Você a ama?
— Não sou nenhum ladrão — dissera ao homem que se designava por alquimista. — Sou um noviço da Cidadela. — O alquimista inclinara a cabeça e dissera:
— Se reconsiderar, voltarei aqui dentro de três dias com o meu dragão. Tinham-se passado três dias. Pate regressara ao Pena e Caneca, ainda incerto do que seria, mas em vez do alquimista encontrara Mollander, Armen e o Esfinge, com Roone a reboque. Teria levantado suspeitas se não se juntasse a eles.
O Pena e Caneca nunca fechava. Havia seiscentos anos que se erguia a sua ilha no Vinhomel, e nem por uma vez tivera as portas fechadas ao negócio. Embora o alto edifício de madeira se inclinasse para sul como os noviços por vezes se inclinavam após beberem uma caneca, Pate supunha que a estalagem continuaria em pé por mais seiscentos anos, vendendo vinho, cerveja e cidra terrivelmente forte a homens do rio e do mar, a ferreiros e cantores, a sacerdotes e príncipes, e aos noviços e acólitos da Cidadela.
— Vilavelha não é o mundo — declarou Mollander, alto demais. Era filho de um cavaleiro, e não poderia estar mais bêbado. Desde que lhe tinham trazido a notícia da morte do pai na Água Negra, embebedava-se quase todas as noites. Até em Vilavelha, longe da luta e em segurança atrás das suas muralhas, a Guerra dos Cinco Reis tocara-os a todos… embora o Arquimeistre Benedict insistisse que nunca houvera uma guerra de cinco reis, uma vez que Renly Baratheon fora morto antes de Balon Greyjoy se ter coroado.
— O meu pai sempre disse que o mundo era maior do que o castelo de qualquer senhor — prosseguiu Mollander. — Os dragões devem ser a menor das coisas que um homem poderá encontrar em Qarth, Asshai e Yi Ti. Estas histórias dos marinheiros…
—… são histórias contadas por marinheiros — interrompeu Armen.
— Marinheiros, meu caro Mollander. Vai lá abaixo às docas, e aposto que irá encontrar marinheiros que te falarão das sereias com que dormiram, ou de como passaram um ano na barriga de um peixe.
— Como é que você sabe que não passaram? — Mollander bateu os pés pela relva a fora, à procura de mais maçãs. — Tinha de estar você próprio na barriga para jurar que não passaram. Um marinheiro com uma história está bem, um homem podia rir-se dela, mas quando remadores vindos de quatro navios diferentes contam a mesma história em quatro línguas diferentes…
— A história não é a mesma — insistiu Armen. — Dragões em Asshai, dragões em Qarth, dragões em Meereen, dragões dothraki, dragões libertando escravos… todos os contos são diferentes uns dos outros.
— Só nos detalhes. — Mollander ficava mais teimoso quando bebia, e até sóbrio era obstinado. — Todos falam de dragões, e de uma bela jovem rainha.
O único dragão que interessava a Pate era feito de ouro amarelo. Perguntou a si próprio o que teria acontecido ao alquimista. Ao terceiro dia. Ele disse que estaria aqui.
— Há outra maçã perto do seu pé — gritou Alleras a Mollander — e eu ainda tenho duas setas na aljava.
— Que se foda a tua aljava. — Mollander apanhou o fruto caído. — Esta tem bicho — protestou, mas atirou-a assim mesmo. A seta atingiu a maçã quando ela começava a cair e cortou-a ao meio. Uma metade caiu no telhado de um torreão, tombou até um telhado mais baixo, saltou, e não acertou em Armen por meio metro.
— Se cortar um verme em dois, vai criar dois vermes — informouos o acólito.
— Se ao menos acontecesse o mesmo com as maçãs, nunca ninguém precisaria passar fome — disse Alleras com um dos seus sorrisos suaves. 
O Esfinge andava sempre a sorrir, como se conhecesse algum gracejo secreto. Isso lhe dava um aspecto malicioso que combinava bem com o queixo pontiagudo, com o bico que a linha do cabelo formava a meio da testa, e com o denso matagal de caracóis negros de azeviche cortados curtos. Alleras chegaria a meistre. Só estava na Cidadela há um ano, mas já forjara três elos da sua corrente de meistre. Armen podia ter mais, mas levara um ano para ganhar cada um dos seus. Mesmo assim, ele também chegaria a meistre. Roone e Mollander continuavam a ser noviços de pescoço rosado, mas Roone era muito novo e Mollander gostava mais de beber do que de ler.
Mas Pate… Estava na Cidadela há cinco anos, tendo chegado com não mais de treze, mas o seu pescoço permanecia tão rosado como fora no dia em que viera das terras ocidentais. Julgara-se pronto por duas vezes. Da primeira apresentara-se ao Arquimeistre Vaellyn para demonstrar o seu conhecimento dos céus. Em vez disso ficara sabendo como fora que o Vinagre Vaellyn ganhara esse nome. Pate levara dois anos a reunir coragem para voltar a tentar. Dessa vez, submetera-se ao velho e amável Arquimeistre Ebrose, famoso pela sua voz suave e mãos gentis, mas os suspiros de Ebrose revelaram-se tão dolorosos como as farpas de Vaellyn.
— Uma última maçã — prometeu Alleras — e eu contarei a vocês as minhas suspeitas acerca desses dragões.
— O que você pode saber que eu não saiba? — resmungou Mollander. Localizou uma maçã num ramo, saltou, arrancou‑a e arremessou‑a. Alleras puxou a corda do arco até a orelha, virando‑se habilmente para seguir o alvo em voo. Largou a seta precisamente no momento em que a maçã começava a cair.
— Você sempre falha no último tiro — disse Roone.
A maçã mergulhou no rio, intacta.
— Viu? — disse Roone.
— No dia em que acertar todos é o dia em que irei parar de melhorar. — Alleras desprendeu a corda do arco e enfiou-o no seu estojo de couro.
O arco fora esculpido em amagodouro, uma madeira rara e lendária das Ilhas do Verão. Pate tentara uma vez dobra-lo, e falhara. O Esfinge parece franzino, mas há força naqueles braços magros, refletiu, enquanto Alleras fazia passar uma perna por sobre o banco e estendia a mão para a taça de vinho.
 — O dragão tem três cabeças — anunciou, na sua arrastada pronúncia dornesa.
— Isso é um enigma? — quis saber Roone. — Nas histórias, as esfinges falam sempre por enigmas.
— Não é enigma nenhum. — Alleras bebericou do vinho. 
Os outros emborcavam canecas da cidra terrivelmente forte pela qual o Pena e Caneca era famoso, mas ele preferia os estranhos vinhos doces do país da mãe. Mesmo em Vilavelha, tais vinhos não se obtinham a baixo preço. Fora o Leo Preguiçoso quem apelidara Alleras como “o Esfinge”.
Uma esfinge é um pouco disto, um pouco daquilo: uma cara humana, o corpo de um leão, as asas de um falcão. Alleras era igual: o pai era dornês, a mãe uma mulher de pele negra das Ilhas do Verão. A sua pele era escura como teca. E, tal como as esfinges de mármore verde que flanqueavam o portão principal da Cidadela, Alleras tinha olhos de ônix.
— Nunca nenhum dragão teve três cabeças, exceto em escudos e bandeiras — disse com firmeza Armen, o Acólito. — Isso é um símbolo heráldico, nada mais. Além disso, os Targaryen estão todos mortos.
— Nem todos — disse Alleras. — O Rei Pedinte tinha uma irmã.
— Julgava que a cabeça dela tinha sido esmagada contra uma parede — disse Roone.
— Não — disse Alleras. — Foi a cabeça do jovem filho do Príncipe Rhaegar que foi atirada contra uma parede pelos bravos homens do Leão de Lannister. Estamos falando da irmã de Rhaegar, nascida em Pedra do Dragão antes do castelo cair. Aquela a quem chamaram Daenerys.
— A Nascida na Tormenta. Agora lembro. — Mollander ergueu bem alto a caneca, agitando a cidra que restava. — A ela! — Emborcou, bateu com a caneca vazia na mesa, arrotou, e limpou a boca com as costas da mão. — Onde está a Rosey? A nossa legítima rainha merece outra rodada de cidra, não acham?
Armen, o Acólito, fez uma expressão de alarme.
— Baixe a voz, palerma. Nem devia brincar com essas coisas. Nunca se sabe quem poderia ouvir. A Aranha tem ouvidos por todo o lado.
— Oh, não se mije, Armen. Estava a propor uma bebida, não uma rebelião.
Pate ouviu um risinho abafado. Uma voz suave e zombeteira gritou atrás dele.
— Sempre soube que você era um traidor, Salto de Rã. — Leo Preguiçoso estava encostado à base da antiga ponte de pranchas, envolto em cetim listado de verde e dourado, com uma meia capa de seda negra presa ao ombro por uma rosa de jade. O vinho que deixara pingar na parte da frente do traje era de um robusto tinto, ajuizando pela cor das manchas. Uma madeixa do seu cabelo louro acinzentado caia por sobre um olho.
Mollander irritou-se ao vê-lo.
— Que se lixe isso. Vai embora. Não é bem vindo aqui. — Alleras colocou uma mão no braço dele para acalmá-lo, enquanto Armen franzia a sobrancelha
— Leo. Senhor. Achava que estava confinado à Cidadela durante…
—… mais três dias. — Leo Preguiçoso encolheu os ombros. — O Perestan diz que o mundo tem quarenta mil anos. Mollos diz que tem quinhentos mil. Que são três dias, eu pergunto? — Embora houvesse uma dúzia de mesas vazias na varanda, Leo sentou-se na deles. — Compre para mim uma taça de dourado da Árvore, Salto de Rã, e eu talvez não informe o meu pai sobre o teu brinde. As pedras viraram-se contra mim na Sorte Xadrez, e desperdicei o meu último veado no jantar. Leitão com molho de ameixas, recheado de castanhas e trufas brancas. Um homem tem de comer. O que vocês comeram rapazes?
— Carneiro — resmungou Mollander. Não soava nada satisfeito com isso. — Partilhamos um quarto de carneiro cozido.
— Tenho certeza que estão satisfeitos. — Leo virou-se para Alleras. — O filho de um senhor devia ser generoso, Esfinge. Soube que ganhaste o teu elo de cobre. Bebo a isso.
Alleras sorriu-lhe.
— Eu só pago aos amigos. E não sou nenhum filho de senhor, já te tinha dito. A minha mãe era uma mercadora.
Os olhos de Leo eram cor de avelã, brilhantes de vinho e malícia.
— A sua mãe era uma macaca das Ilhas do Verão. Os dorneses fodem qualquer coisa que tenha um buraco entre as pernas. Sem ofensa. Podes ser castanho como uma noz, mas pelo menos tomas banho. Ao contrário do nosso criador de porcos malhado. — Indicou Pate com um aceno de mão.
Se batesse a caneca na sua boca, podia partir-lhe metade dos dentes, pensou Pate. Pate Malhado, o criador de porcos, era o herói de mil histórias libertinas: um rústico de bom coração e cabeça vazia que conseguia sempre levar a melhor sobre os fidalgos gordos, os altivos cavaleiros, e os septões pomposos que lhe criavam dificuldades. De algum modo, a sua estupidez revelava ser uma espécie de astúcia rude; as histórias terminavam sempre com o Pate Malhado sentado no cadeirão de um lorde ou dormindo com a filha de um cavaleiro. Mas isso eram as histórias. No mundo real, os criadores de porcos nunca se davam tão bem. Pate por vezes achava que a mãe devia tê-lo odiado, para lhe dar o nome que dera.
Alleras já não estava sorrindo.
— Tens que pedir desculpa.
— Ah tenho? — disse Leo. — Como serei capaz de tal, com a garganta tão seca…
— Envergonha a tua Casa com cada palavra que fala — disse-lhe Alleras. — Envergonha a Cidadela por ser um de nós.
— Eu sei. Portanto paga-me um pouco de vinho, para que eu possa afogar a minha vergonha.
Mollander disse:
— Eu gostaria de te arrancar a língua pela raiz.
— A sério? Então como é que eu contaria sobre os dragões? — Leo voltou a encolher os ombros. — O mestiço tem razão. A filha do Rei Louco está viva, e conseguiu fazer nascerem três dragões.
— Três? — disse Roone, espantado.
Leo deu-lhe palmadinhas na mão.
— Mais do que dois e menos do que quatro. Eu se fosse você não tentava ganhar o elo dourado por enquanto.
— Deixa-o em paz — avisou Mollander.
— Que Salto de Rã tão cavalheiresco. Como quiser. Todos os homens de todos os navios que velejaram a menos de cem léguas de Qarth estão falando desses dragões. Alguns até dizem que os viram. O Mago está inclinado a crer neles.
Armen apertou os lábios com desaprovação.
— Marwyn é insano. O Arquimeistre Perestan seria o primeiro a te dizer isso.
— O Arquimeistre Ryam diz o mesmo — disse Roone.
Leo bocejou.
— O mar é molhado, o sol é quente, e os animais enjaulados odeiam o mastim.
 Ele tem um apelido para todo mundo, pensou Pate, mas não podia negar que Marwyn se parecia mais com um mastim do que com um meistre. É como se quisesse nos morder. O Mago não era como os outros meistres. Dizia-se que ele se fazia acompanhar de prostitutas e de feiticeiros andantes, que falava com ibbeneses peludos e ilhéus do verão, negros como breu nas suas próprias línguas, e fazia sacrifícios a deuses estranhos nos pequenos templos dos marinheiros que se erguiam junto aos molhes. Os homens falavam de o terem visto na parte escura da cidade, em arenas de ratazanas e bordéis negros, na companhia de saltimbancos, cantores, mercenários, até pedintes. Alguns chegavam mesmo a sussurrar que ele uma vez matara um homem com os punhos.
Quando Marwyn regressara a Vilavelha, depois de passar oito anos no leste mapeando terras distantes em busca de livros perdidos, e estudando com feiticeiros e umbromantes, o Vinagre Vaellyn apelidara-o de “Marwyn, o Mago”. O nome espalhara-se rapidamente por toda a Vilavelha, para grande aborrecimento de Vaellyn.
— Deixe os feitiços e as preces para os sacerdotes e os septões, e vire a inteligência para a aprendizagem de verdades em que um homem possa confiar — aconselhara o Arquimeistre Ryam uma vez a Pate, mas o anel, bastão e máscara de Ryam eram de ouro amarelo, e a sua corrente de meistre não incluía um elo de aço valiriano.
Armen olhou ao longo do nariz para o Leo Preguiçoso. Tinha o nariz perfeito para isso, longo, estreito e pontiagudo.
— O Arquimeistre Marwyn acredita em muitas coisas curiosas — disse — mas não tem mais provas sobre os dragões do que Mollander. Só tem mais histórias de marinheiro.
— Está enganado — disse Leo. — Há uma vela de vidro ardendo nos aposentos do Mago.
Um silêncio caiu sobre a varanda iluminada por archotes. Armen suspirou e abanou a cabeça. Mollander pôs-se a rir. O Esfinge estudou Leo com os seus grandes olhos negros. Roone pareceu não compreender. Pate sabia das velas de vidro, embora nunca tivesse visto uma ardendo. Era o segredo mais mal guardado da Cidadela. Dizia-se que tinham sido trazidas de Valíria para Vilavelha mil anos antes da Perdição. Ouvira dizer que havia quatro; uma era verde e três negras, e todas eram altas e retorcidas.
— O que são essas velas de vidro? — perguntou Roone.
Armen, o Acólito, pigarreou.
— Antes de um acólito proferir os seus votos, tem de passar a noite anterior de vigília na cave. Não lhe é permitida lanterna, archote, lâmpada ou círio… só uma vela de obsidiana. Tem de passar a noite na escuridão, a menos que seja capaz de acender essa vela. Alguns tentam. Os tolos e os teimosos, aqueles que estudaram os ditos mistérios superiores. É freqüente cortarem os dedos, pois se diz que as arestas das velas são afiadas como navalhas. Então, com mãos ensanguentadas, têm de esperar a alvorada, cismando sobre o seu fracasso. Homens mais sensatos vão simplesmente dormir, ou passam a noite em oração, mas todos os anos há sempre alguns que têm de tentar.
— Sim. — Pate ouvira as mesmas histórias. — Mas de que serve uma vela que não dá luz?
— É uma lição — disse Armen — a última lição que temos de aprender antes de pormos as nossas correntes de meistre. A vela de vidro pretende representar a verdade e a aprendizagem, coisas raras, belas e frágeis. Tem a forma de uma vela para nos lembrar de que um meistre deve iluminar o lugar em que prestar serviço, e é cortante para nos lembrar de que o conhecimento pode ser perigoso. Os sábios podem tornar-se arrogantes da sua sabedoria, mas um meistre deve permanecer sempre humilde. A vela de vidro lembra-nos também disso. Mesmo depois de ter proferido os votos, colocado a corrente e partido para servir, um meistre recordará a escuridão da sua vigília e irá se lembrar de que nada do que fizera conseguira fazer com que a vela ardesse… pois mesmo com o conhecimento, algumas coisas não são possíveis.
O Leo Preguiçoso desatou à gargalhada.
— Não são possíveis para você, quer dizer. Eu vi a vela ardendo com os meus próprios olhos.
— Vistes uma vela ardendo, não duvido — disse Armen. — Uma vela de cera negra, talvez.
— Eu sei o que vi. A luz era estranha e brilhante, muito mais brilhante do que a de qualquer vela de cera de abelha ou de sebo. Gerava sombras estranhas e a chama nunca oscilava, nem mesmo quando uma brisa soprou pela porta aberta atrás de mim.
Armen cruzou os braços.
— A obsidiana não arde.
— Vidro de dragão — disse Pate. — O povo chama de vidro de dragão. — Não sabia por que, mas aquilo parecia importante.
— Chamam. — meditou Alleras, o Esfinge — e se houver de novo dragões no mundo…
— Dragões e coisas mais escuras — disse Leo. — As ovelhas cinzentas fecharam os olhos, mas o mastim vê a verdade. Velhos poderes acordam. Sombras agitam-se. Uma era de maravilha e terror cairá em breve sobre nós, uma era para deuses e heróis. — Espreguicou-se, exibindo o seu sorriso indolente.
— Isto vale uma rodada, julgo eu.
— Já bebemos o suficiente — disse Armen. — A manhã chegará mais depressa do que gostaríamos, e o Arquimeistre Ebrose irá falar sobre as propriedades da urina. Aqueles que tencionam forjar um elo de prata fariam bem em não perder a sua palestra.
— Longe de mim afastar vocês da prova de mijo — disse Leo. — Eu por mim, prefiro o sabor do dourado da Árvore.
— Se a escolha for entre você e o mijo, eu bebo o mijo. — Mollander afastou-se da mesa. — Vem, Roone.
O Esfinge estendeu a mão para o estojo do arco.
— Para mim também é cama. Imagino que sonharei com dragões e velas de vidro.
— Todos? — Leo encolheu os ombros. — Bem, a Rosey fica. Talvez acorde a nossa pequena doçura e faça dela uma mulher.
Alleras viu a expressão no rosto de Pate.
— Se ele não tem um cobre para uma taça de vinho, não pode ter um dragão para a moça.
— Verdade — disse Mollander. — Além disso, é preciso ser homem para fazer de uma garota uma mulher. Vem com a gente, Pate. O Velho Walgrave há de acordar quando o sol nascer. Ele vai precisar que o ajude a ir à latrina.
Se hoje se lembrar de quem sou. O Arquimeistre Walgrave não tinha dificuldade em distinguir os corvos uns dos outros, mas não era tão bom com as pessoas. Havia dias em que parecia pensar que Pate era alguém chamado Cressen.
— Ainda não — disse aos amigos. — Vou ficar por algum tempo. — A alvorada ainda não rompera, não propriamente. O alquimista podia ainda vir, e Pate pretendia estar ali se ele viesse.
— Como quiser — disse Armen. Alleras deitou a Pate um olhar demorado, e então pendurou o arco num ombro magro e seguiu os outros na direção da ponte.
 Mollander estava tão bêbado que tinha de caminhar com uma mão no ombro de Roone para evitar cair. A Cidadela não ficava a uma grande distância em voo de corvo, mas nenhum deles era um corvo, e Vilavelha era um verdadeiro labirinto, cheia de ruelas, vielas entrecruzadas e ruas estreitas e tortuosas.
— Cuidado — ouviu Armen dizer quando as névoas do rio engoliram os quatro — a noite está úmida, e as pedras vão estar escorregadias.
Quando desapareceram, Leo Preguiçoso observou amargamente Pate por cima da mesa.
— Que tristeza. O Esfinge falou com toda a sua prata, abandonando com o Pate Malhado, o criador de porcos. — Espreguicou-se, bocejando. — Como anda a nossa adorável Roseyzinha, diga-me?
— Está dormindo — disse Pate secamente.
— Nua, com certeza. — Leo fez um sorriso. — Achas que ela vale mesmo um dragão? Suponho que um dia tenho de verificar.
Pate sabia que não era boa ideia dar resposta àquilo.
Leo não precisava de resposta.
— Suponho que uma vez que eu sangre a garota, o preço dela caia de forma que até criadores de porcos consigam pagá-la. Devia me agradecer.
Devia te matar, pensou Pate, mas estava longe de se encontrar suficientemente bêbado para jogar a vida fora. Leo recebera treino de armas, e tinha fama de ser mortífero com espada de sicário e punhal. E se Pate de algum modo conseguisse mata-lo, isso iria lhe custar também a cabeça. Leo tinha dois nomes, enquanto que Pate não possuía mais do que um, e o segundo era Tyrell. Sor Moryn Tyrell, comandante da Patrulha da Cidade de Vilavelha, era pai de Leo. Mace Tyrell, Senhor de Jardim de Cima e Protetor do Sul, era primo de Leo. E o Velho de Vilavelha, lorde Leyton de uma alta torre, que incluía “Protetor da Cidadela” entre os seus muitos títulos, era vassalo ajuramentado à Casa Tyrell. Deixa estar, disse Pate a si próprio. Ele diz estas coisas só para me ferir.
As névoas estavam se iluminado a leste. A alvorada compreendeu Pate. A alvorada chegou, e o alquimista não. Não sabia se deveria rir ou chorar. Ainda serei um ladrão se devolver tudo e ninguém souber de nada? Era outra pergunta para a qual não tinha resposta, como aquelas que Ebrose e Vaellyn em tempos lhe tinham feito. Quando se afastou do banco e se pôs em pé, a cidra terrivelmente forte subiu-lhe à cabeça toda ao mesmo tempo. Teve de pousar uma mão na mesa para se equilibrar.
— Deixe Rosey em paz — disse, em jeito de despedida. — Deixe ela em paz, senão pode ser que te mate.
Leo Tyrell afastou o cabelo do olho num movimento rápido.
— Não travo duelos com criadores de porcos. Vá embora.
 Pate virou-se e atravessou a varanda. Os seus calcanhares ressoaram nas pranchas desgastadas da velha ponte. Quando chegou ao outro lado, o céu oriental estava tornando-se rosado. O mundo é grande, disse a si próprio. Se comprasse tal burro, ainda podia vaguear pelas estradas e atalhos dos Sete Reinos, sangrando o povo e catando-lhe lêndeas dos cabelos. Podia me oferecer num navio qualquer, puxar um remo, e velejar para Qarth, a dos Portões de Jade, para ver esses malditos dragões com os meus próprios olhos. Não teria de voltar para o velho Walgrave e os corvos.
Mas sem saber como, os pés levaram-no na direção da Cidadela. Quando o primeiro raio de sol perfurou as nuvens a leste, os sinos matinais começaram a repicar no Septo do Marinheiro, junto ao porto. O Septo do Senhor juntou-se um momento mais tarde, seguido pelos Sete Santuários nos seus jardins do outro lado do Vinhomel, e por fim o Septo Estrelado, que fora a sede do Alto Septão durante os mil anos que antecederam o desembarque de Aegon em Porto Real. Faziam uma música poderosa.
Embora não tão doce como um pequeno rouxinol.
Também ouvia cantos, sob o repique dos sinos. Todas as manhãs, à primeira luz da aurora, os sacerdotes vermelhos reuniam-se para dar as boas vindas ao sol no exterior do seu modesto templo erguido junto aos molhes. Pois a noite é escura e cheia de terrores. Pate ouvira-os gritar aquelas palavras uma centena de vezes, pedindo ao seu deus R’hllor para protegê-los da escuridão. Os Sete eram deuses suficientes para ele, mas ouvira dizer que Stannis Baratheon orava agora às fogueiras noturnas. Até pusera o coração flamejante de R’hllor nos seus estandartes, em vez do veado coroado.
Se ele conquistar o Trono de Ferro, vamos todos ter de aprender a letra da canção dos sacerdotes vermelhos, pensou Pate, mas isso não era provável. Tyrion Lannister esmagara Stannis e R’hllor na Água Negra, e em breve acabaria com eles e espetaria a cabeça do pretendente Baratheon num espigão por cima dos portões de Porto Real.
À medida que as névoas da noite se dissipavam, Vilavelha ia tomando forma à sua volta, emergindo fantasmagoricamente das sombras que antecediam a alvorada. Pate nunca vira Porto Real, mas sabia que era uma cidade de taipa, uma extensão de ruas lamacentas, telhados de colmo e telheiros de madeira. Vilavelha era construída em pedra, e todas as suas ruas eram empedradas, até a mais escusa das vielas. A cidade nunca era tão bela como ao romper da aurora. A oeste do Vinhomel, as sedes das Guildas orlavam a margem como uma fileira de palácios. A montante, as cúpulas e torres da Cidadela erguiam-se de ambos os lados do rio, ligadas por pontes de pedra repletas de casas e edifícios públicos. Logo abaixo, sob as muralhas de mármore negro e janelas arqueadas do Septo Estrelado, as mansões dos piedosos aglomeravam-se como crianças reunidas em torno dos pés de uma velha viúva rica.
E mais para diante, onde o Vinhomel se alargava e mergulhava na Enseada dos Murmúrios, erguia-se a Alta torre, com as suas fogueiras de aviso brilhantes contra o fundo da aurora. Desde o local onde ela se erguia no topo das escarpas da Ilha da Batalha, a sua sombra cortava a cidade como uma espada. Os nascidos e criados em Vilavelha sabiam dizer as horas pelo ponto onde a sombra caía. Alguns diziam que do topo da torre se conseguia ver tudo, até a Muralha. Talvez fosse por isso que Lorde Leyton não descia havia mais de uma década, preferindo governar a sua cidade a partir das nuvens. A carroça de um açougueiro passou por Pate trovejando ao longo da estrada do rio, levando cinco leitões que guinchavam numa aflição. Afastando- se do seu caminho, evitou por pouco ser salpicado quando uma mulher esvaziou um balde de dejetos noturnos de uma janela por cima dele. Quando for um meistre num castelo terei um cavalo para montar, pensou.
Então tropeçou numa pedra e perguntou a si próprio quem estava enganando. Para ele não haveria corrente, não haveria lugar à mesa de honra de um senhor, não haveria nenhum alto cavalo branco para montar. Os seus dias seriam passados a ouvir o cuorc dos corvos e a lavar manchas de merda da roupa interior do Arquimeistre Walgrave. Estava apoiado num joelho, tentando limpar a lama da sua veste quando uma voz disse:
— Bom dia, Pate.
O alquimista estava em pé ao seu lado.
Pate ergueu-se.
— O terceiro dia… disse que estaria no Pena e Caneca.
— Estava com seus amigos. Não queria me intrometer na camaradagem de vocês. — O alquimista trazia um manto de viajante com capuz, castanho e incaracterístico. O sol nascente espreitava por sobre os telhados atrás do seu ombro, tornando difícil distinguir o rosto dentro do capuz. — Já decidiste o que és?
Será que ele tem de me obrigar a dizê-lo?
— Suponho que sou um ladrão.
— Achei que talvez fosse.
A parte mais difícil fora pôr-se de quatro para puxar a caixa forte de debaixo da cama do Arquimeistre Walgrave. Embora a caixa fosse robusta e reforçada com ferro, tinha a fechadura quebrada. O Meistre Gormon suspeitara que fora Pate que quebrá-la, mas isso não era verdade. Fora o próprio Walgrave quem quebrara a fechadura, depois de perder a chave que a abria.
Lá dentro, Pate encontrara um saco de veados de prata, uma madeixa de cabelo amarelo atada com uma fita, uma miniatura pintada de uma mulher que se assemelhava a Walgrave (até no bigode), e uma manopla de cavaleiro feita de aço articulado. A manopla pertencera a um príncipe, segundo Walgrave afirmava, embora já não parecesse ser capaz de recordar qual deles. Quando Pate a sacudira, a chave caíra ao chão. Se apanhar aquilo, sou um ladrão, lembrava-se de ter pensado. A chave era velha e pesada, feita de ferro negro; supostamente, abria todas as portas da Cidadela. Só os arquimeistres possuíam chaves daquelas. Os outros transportavam as suas consigo ou escondiam em algum local seguro, mas se Walgrave tivesse escondido a sua, nunca mais ninguém a veria. Pate apanhara a chave e percorrera metade do caminho até a porta antes de voltar para trás para apanhar também a prata. Um ladrão era um ladrão, quer roube muito, quer roube pouco. “Pate” chamara um dos corvos brancos, “Pate, Pate, Pate”.
— Você tem o meu dragão? — perguntou ao alquimista.
— Se você tiver o que eu quero.
— Dê ele aqui. Quero ver. — Pate não tencionava permitir que o enganassem.
— A estrada do rio não é lugar para isso. Vem.
Não teve tempo de pensar, de pesar as suas hipóteses. O alquimista estava afastando-se. Pate tinha de segui-lo ou perderia tanto Rosey como o dragão, e para sempre. Seguiu-o. Enquanto caminhavam, enfiou a mão na manga. Conseguia sentir a chave, em segurança dentro do bolso escondido que cosera aí. As vestes de meistre tinham bolsos por todo o lado. Pate sabia disso desde rapaz.
Tinha de se apressar para conseguir acompanhar os passos mais longos do alquimista. Desceram por uma viela, viraram uma esquina, atravessaram o antigo Mercado dos Ladrões, percorreram a Ruela do Trapeiro. Por fim, o homem virou para outra viela, mais estreita do que a primeira.
— Já chega — disse Pate. — Não há ninguém à nossa volta. Vamos fazer aqui.
— Como quiser.
— Quero o meu dragão.
— Com certeza. — A moeda surgiu. O alquimista a fez caminhar por sobre os nós dos dedos, como fizera quando Rosey os juntara. À luz da manhã, o dragão cintilava enquanto se movia, e dava aos dedos do alquimista um brilho dourado.
Pate tirou a moeda da mão do outro. O ouro parecia-lhe morno contra a pele da mão. Levou-o à boca e trincou-o, como vira os homens fazer.
Na verdade, não tinha a certeza de qual era suposto ser o sabor do ouro, mas não queria parecer um tolo.
— A chave? — inquiriu educadamente o alquimista.
Algo levou Pate a hesitar.
— É algum livro que você quer? — Dizia-se que alguns dos velhos pergaminhos valirianos trancados nas caves eram as únicas cópias que sobreviviam no mundo.
— O que eu quero não é da tua conta.
— Não. — Está feito, disse Pate a si próprio. Vai. Corre de volta ao Pena e Caneca, acorda Rosey com um beijo e diz-lhe que te pertence. Mas ainda se deixou ficar. — Mostre-me seu rosto.
— Como quiser. — O alquimista baixou o capuz.
Era apenas um homem, e o seu rosto era apenas um rosto. Um rosto de jovem, comum, com faces cheias e a sombra de uma barba. Uma tênue cicatriz entrevia-se na bochecha direita. Tinha um nariz adunco, e uma densa cabeleira preta que se encaracolava, bem apertada, em volta das orelhas.
Não era um rosto que Pate reconhecesse.
— Não te conheço.
— Nem eu a ti.
— Quem é você?
— Um estranho. Ninguém. A sério.
— Oh. — Pate ficara sem palavras. Puxou da chave e a pos na mão do estranho, sentindo a cabeça leve, sentindo-se quase com vertigens. Rosey recordou a si próprio. — Então é tudo.
Já tinha percorrido metade da viela quando o empedrado começou a mover-se por baixo dos seus pés. As pedras estão escorregadias e úmidas, pensou, mas não era isso. Sentia o coração martelando no peito.
— O que está acontecendo? — disse. Suas pernas tinham se transformado em água. — Não compreendo.
— E nunca vai compreender — disse uma voz num tom triste.
O empedrado saltou para beijá-lo. Pate tentou gritar por ajuda, mas a voz também estava falhando.
O seu último pensamento foi para Rosey.
 
O profeta estava afogando homens em Grande Wyk quando vieram lhe dizer que o rei estava morto.
Era uma manhã de ventania e fria, e o mar mostrava o mesmo tom cinzento do céu. Os primeiros três homens tinham oferecido sem temor as suas vidas ao Deus Afogado, mas o quarto era fraco na fé e começou a se debater quando os pulmões gritaram por ar. Mergulhado até à cintura na rebentação, Aeron segurou o rapaz nu pelos ombros e empurroulhe a cabeça para baixo quando ele tentou inspirar um pouco de ar.
— Tenha coragem — disse. Viemos do mar, e ao mar temos de regressar.
Abre a boca e bebe profundamente a bênção de deus. Encha os pulmões de água, para que possa morrer e renascer. Lutar não adianta nada.
Ou o rapaz não o conseguia ouvir com a cabeça submersa nas ondas, ou a fé o tinha abandonado por completo. Desatou a espernear e a sacudir-se com tamanha violência que Aeron teve de pedir ajuda. Quatro dos seus ajudantes afogados entraram na água para segurar o desgraçado e mantê-lo submerso.
— Senhor Deus que te afogaste por nós — orou o sacerdote, numa voz profunda como o mar. — Permita que Emmond, teu servo, renasça do mar, tal como tu. Abençoe-o com sal, abençoe-o com pedra, abençoe-o com aço.
Por fim, terminou. Não havia mais bolhas de ar saindo-lhe da boca, e toda a força sumira dos membros do rapaz. Emmond flutuava de cabeça para baixo no mar pouco profundo, branco, frio e em paz.
Foi então que Cabelo Molhado percebeu que três cavaleiros tinham juntado aos seus afogados na costa pedregosa. Aeron conhecia o Sparr, um velho com cara de machadinha e olhos aguados, cuja voz trêmula era lei naquela parte de Grande Wyk. O filho Steffarion o acompanhava, com outro jovem, cujo manto vermelho-escuro e forrado de peles estava preso ao ombro com um ornamentado broche que mostrava o corno de guerra negro e dourado dos Bons Irmãos. 
Um dos filhos de Gorold, decidiu o sacerdote num relance. A esposa do Goodbrother dera tardiamente à luz três filhos altos, após uma dúzia de filhas, e dizia-se que não havia homem capaz de distinguir um filho dos demais. Aeron Cabelo Molhado não se dignou a tentar. Fosse aquele Greydon, Gormond ou Gran, o sacerdote não tinha tempo para ele.
Rosnou uma ordem brusca, e os seus afogados pegaram no rapaz morto pelos braços e pernas para leva-lo até acima da linha da maré. O sacerdote seguiu-os, vestido apenas com uma tanga de pele de foca que lhe cobria as partes pudicas. Com a pele arrepiada e pingando, voltou para terra, atravessando areia molhada e fria e seixos polidos pelo mar. Um dos seus afogados entregou-lhe uma veste de pesado tecido grosseiro, tingido com tons variados de verde, azul e cinza, as cores do mar e do Deus Afogado. Aeron envergou a veste e libertou o cabelo. Negro e molhado, seu cabelo; nenhuma lâmina tocara desde que o mar o erguera. Envolvia-lhe os ombros como um manto esfarrapado e filamentoso, e lhe caía até abaixo da cintura. Aeron entrelaçava-o com cordões de algas, e fazia o mesmo à barba emaranhada e por cortar.
Os seus afogados formavam um círculo em volta do rapaz morto, orando. Norjen trabalhava com os seus braços, enquanto Rus estava sentado em cima do rapaz, comprimindo-lhe ritmicamente o peito, mas todos se afastaram para deixar Aeron passar. Este afastou com os dedos os lábios frios do rapaz e deu a Emmond o beijo da vida, e voltou a dar-lhe, e de novo o deu, até que o mar jorrou da sua boca. O rapaz tossiu e cuspiu e os olhos abriram-se, cheios de medo.
Outro que regressou. 
Era um sinal do favor do Deus Afogado, diziam os homens. Todos os outros sacerdotes perdiam alguém de vez em quando, até Tarle, o Triplamente Afogado, que fora um dia considerado tão santo que fora escolhido para coroar um rei. Mas Aeron Greyjoy, nunca. Ele era o Cabelo Molhado, aquele que vira os salões aquáticos do próprio deus e regressara para falar deles.
— Erga-se — disse ao rapaz ofegante enquanto lhe dava uma palmada nas costas nuas. — Afogou-se e fora devolvido. O que está morto não pode morrer.
— Mas volta. O rapaz tossiu violentamente, cuspindo mais água. — Volta a erguer-se. Cada palavra era arrancada com dor, mas o mundo era assim, um homem tinha de lutar para viver. Volta a erguer-se. 
Emmond pôs-se instavelmente em pé. Mais duro. E mais forte.
— Agora pertence ao deus — disse-lhe Aeron. Os outros afogados reuniram-se em volta do rapaz e todos lhe deram um murro e um beijo para lhe dar as boas-vindas à irmandade. Um deles o ajudou a envergar uma veste de tecido grosseiro tingido com tons variados de verde, azul e cinza. Outro o presenteou com uma maça feita de madeira trazida pelo mar. — Agora pertence ao mar, e por isso o mar te armou — disse Aeron. —Oramos para que maneje a sua maça com ferocidade, contra todos os inimigos do nosso deus.
Só então o sacerdote virou-se para os três cavaleiros que observavam de cima das selas.
— Vieram ser afogados, senhores?
O Sparr tossiu.
— Fui afogado em rapaz — disse. E o meu filho no dia do seu nome.
Aeron soltou uma fungada. Que Steffarion Sparr fora entregue ao Deus Afogado pouco depois de nascer não duvidava. Também conhecia o modo como isso acontecera, um rápido mergulho numa tina de água do mar que quase não molhava a cabeça do bebê. Pouco admirava que os homens de ferro tivessem sido conquistados, eles que em tempos tinham dominado todos os locais onde o som das ondas conseguisse ser ouvidos.
— Isso não foi um verdadeiro afogamento, disse aos cavaleiros. Aquele que não morre de verdade não pode esperar erguer-se da morte. Porque viestes, se não foi para demonstrar a vossa fé?
— O filho do Lorde Gorold veio à sua procura com notícias. 
O Sparr indicou o jovem do manto vermelho.
O rapaz parecia não ter mais de dezesseis anos.
— Sim, e qual deles é você? — Quis saber Aeron.
— Gormond. Gormond Goodbrother, se agradar ao senhor.
— É ao Deus Afogado que devemos agradar. Foi afogado, Gormond Goodbrother?
— No dia do meu nome, Cabelo Molhado. O meu pai me mandou te procurar e leva-lo até ele.
Precisa te ver.
— Aqui estou eu. Que Lorde Gorold venha e banqueteie os olhos. — Aeron pegou num odre de couro que Rus lhe entregou, acabado de encher com água do mar. O sacerdote tirou a rolha e bebeu um gole.
— Devo levá-lo até a fortaleza — insistiu o jovem Gormond, de cima do seu cavalo.
Ele tem medo de desmontar, não vá ficar com as botas molhadas.
— Tenho o trabalho do deus a fazer. — Aeron Greyjoy era um profeta. Não admitia que pequenos senhores lhe ordenassem o que fazer como se fosse algum servo.
— Gorold recebeu uma ave — disse o Sparr.
— Uma ave de meistre, vinda de Pyke — confirmou Gormond.
Asas escuras, palavras escuras.
— Os corvos voam sobre sal e pedra. Se há novas que me dizem respeito, dai-me já.
— Novas como aquelas que trazemos são apenas para os vossos ouvidos, Cabelo Molhado — disse o Sparr. — Estes não são assuntos de que eu queira falar aqui, perante estes outros.
— Estes outros são os meus afogados, servos do deus, tal como eu. Não tenho segredos para eles, nem para o nosso deus, junto a cujo mar me encontro.
Os cavaleiros trocaram um olhar.
— Diga-o — disse o Sparr, e o jovem do manto vermelho reuniu coragem.
— O rei está morto — disse com toda a simplicidade. Quatro pequenas palavras, e, no entanto o próprio mar tremeu quando as pronunciou.
Havia quatro reis em Westeros, mas Aeron não precisou perguntar sobre qual ele falava. Balon Greyjoy, e nenhum outro, governavam as Ilhas de Ferro. 
O rei está morto. Como pode ser? Aeron vira o irmão mais velho ainda não havia uma volta de lua, quando regressara às Ilhas de Ferro depois de assolar a Costa Pedregosa. O cabelo grisalho de Balon tornara-se quase branco enquanto o sacerdote andara por fora, e a inclinação dos seus ombros tornara-se mais pronunciada do que quando os dracares partiram. Mas apesar disso, o rei não parecera enfermo. Aeron Greyjoy construíra a sua vida sobre dois poderosos pilares. Aquelas quatro pequenas palavras tinham derrubado um deles. 
Só me resta o Deus Afogado. Que me torne tão forte e incansável como o mar.
— Conte-me o modo como o meu irmão morreu.
— Sua Graça estava atravessando uma ponte em Pyke quando caiu e foi atirado contra as rochas, em baixo.
O castelo Greyjoy erguia-se sobre um promontório quebrado, e as suas torres e fortalezas tinham sido construídas no topo de maciças colunas de pedra que se projetavam do mar. Pontes uniam Pyke; pontes em arco de pedra esculpida e pontes oscilantes de corda de cânhamo e tábuas de madeira.
— A tempestade soprava quando ele caiu? — Perguntou-lhes Aeron.
— Sim — disse o jovem. — Soprava.
— O Deus da Tempestade derrubou-o — anunciou o sacerdote. — Havia milhares de anos que o mar e o céu estavam em guerra. 
Do mar tinham vindo os homens de ferro, e os peixes que os sustentavam mesmo no auge do inverno, mas as tempestades traziam apenas angústia e desgosto. 
— O meu irmão Balon nos tornou de novo grandes, o que atraiu a ira do Deus da Tempestade. Agora se banqueteie nos salões aquáticos do Deus Afogado, com sereias a obedecer ao seu mínimo desejo. Caberá a nós, que ficamos para trás neste vale seco e sombrio, terminarmos a sua grande obra. Voltou a enfiar a rolha no odre. 
— Falarei com o senhor teu pai. A que distância estamos de Cornartelo?
— Seis léguas. Pode cavalgar comigo.
— Um cavalga mais depressa do que dois. Dê-me o seu cavalo, e o Deus Afogado te abençoará.
— Leve o meu cavalo, Cabelo Molhado. — Ofereceu Steffarion
Sparr.
— Não. A montada dele é mais forte. O seu cavalo, rapaz.
O jovem hesitou por meio segundo, após o que desmontou e entregou as rédeas ao Cabelo Molhado. Aeron enfiou um pé descalço e negro num estribo e içou-se para a sela. Não gostava de cavalos, eram criaturas das terras verdes e ajudavam a tornar os homens fracos. Mas a necessidade obrigava à cavalgada. 
Asas escuras, palavras escuras. Preparava-se uma tempestade, ouvia-o nas ondas, e as tempestades nada traziam que não fosse maligno.
— Encontrem-me em Seixeira, sob a torre do Lorde Merlyn — disse aos seus afogados, enquanto virava a cabeça do cavalo.
O caminho era duro, por montes, florestas e desfiladeiros pedregosos, ao longo de uma trilha estreita que parecia com frequência desaparecer sob os cascos dos cavalos. A Grande Wyk era a maior das Ilhas de Ferro, tão vasta que alguns dos seus senhores tinham propriedades que não confinavam com o mar sagrado. Gorold Goodbrother era um desses homens. A sua fortaleza ficava nos Montes Pedra-dura, o mais longe dos domínios do Deus Afogado que se podia estar nas ilhas. O povo de Gorold trabalhava nas minas de Gorold, na escuridão rochosa por baixo da terra. Alguns viviam e morriam sem pôr os olhos em água salgada. 
Pouco admira que uma tal gente seja complicada e estranha.
Enquanto Aeron cavalgava, os seus pensamentos viraram-se para os irmãos. Nove filhos tinham nascido das virilhas de Quellon Greyjoy, o Senhor das Ilhas de Ferro. Harlon, Quenton e Donel tinham nascido da primeira mulher do Lorde Quellon, uma mulher de Pedrarbor. Balon, Euron, Victarion, Urrigon e Aeron eram os filhos da segunda mulher, uma Sunderly de Salésia. Para terceira esposa, Quellon escolhera uma garota das terras verdes, que lhe deu um rapaz enfermiço e idiota chamado Robin, o irmão que era melhor esquecer. O sacerdote não tinha memória de Quenton ou Donel, que tinham morrido na infância. Recordava Harlon apenas vagamente, sentado de rosto cinzento e imóvel numa sala de torre sem janelas, e falando em sussurros que se iam tornando mais tênues a cada dia que passava, à medida que a escamagris ia lhe transformando a língua e os lábios em pedra. 
Um dia banquetearemos juntos com peixe, nos salões aquáticos do Deus Afogado, nós os quatro, e Urri também.
Nove filhos tinham nascido das virilhas de Quellon Greyjoy, mas só quatro tinham sobrevivido até a idade adulta. Era assim este mundo frio, no qual os homens pescavam no mar, escavavam o solo e morriam, enquanto as mulheres davam à luz crianças de vida breve em camas de sangue e dor.
Aeron foi à última e a menor das quatro lulas gigantes, e Balon o mais velho e o mais ousado, um rapaz feroz e destemido que vivia apenas para devolver aos homens de ferro a sua antiga glória. Aos dez anos, escalara os Penhascos de Pederneira até a torre assombrada do Senhor Cego. Aos treze conseguia governar os remos de um dracar e dançar a dança dos dedos tão bem como qualquer homem das ilhas. Aos quinze velejara com Dagmer Boca Fendida até aos Degraus, e passara um verão na ceifa. Matara aí o primeiro homem, e tomara as duas primeiras esposas de sal. Aos dezessete, Balon capitaneava o seu primeiro navio. Era tudo aquilo que um irmão mais velho devia ser, embora nunca tivesse mostrado a Aeron nada a não ser desprezo. 
Eu era fraco e cheio de pecado, e desprezo era mais do que eu merecia. Era melhor ser desprezado por Balon, o Bravo, do que ser amado por Euron Olho de Corvo. 
E se a idade e o desgosto tinham tornado Balon amargo com os anos, tinham também o deixado mais determinado do que qualquer outro homem vivo. 
Ele nasceu como filho de um lorde, e morreu como um rei, assassinado por um deus ciumento, pensou Aeron, e agora a tempestade está chegando, uma tempestade tal como estas ilhas nunca conheceram.
Já havia escurecido há muito quando o sacerdote vislumbrou as pontiagudas ameias de ferro de Cornartelo, que tentavam agarrar o crescente da lua. A fortaleza de Gorold tinha um aspecto desajeitado e pesado, e foi feita com grandes pedras cortadas ao monte que se erguia por detrás. Sob as muralhas, as entradas de grutas e antigas minas abriam-se como bocas negras e desdentadas. Os portões de ferro de Cornartelo tinham sido fechados e trancados para a noite. Aeron bateu neles com uma pedra até que o barulho acordou um guarda.
O jovem que o deixou entrar era a imagem de Gormond, cujo cavalo tomara.
— Quem é você? — Quis saber Aeron.
— Gran. O meu pai o espera lá dentro.
O salão era escuro e amplo, cheio de sombras. Uma das filhas de Gorold ofereceu ao sacerdote um corno de cerveja. Outra espevitou um fogo sombrio que gerava mais fumaça do que calor. O próprio Gorold Goodbrother estava a conversar em voz baixa com um homem magro que envergava uma veste de bom tecido cinzento e usava em volta do pescoço uma corrente de muitos metais que o identificava como um meistre da Cidadela.
— Onde está Gormond? — Perguntou Gorold quando viu Aeron.
— Regressa a pé. Mande embora as mulheres, senhor. E o meistre também. Não gostava de meistres. Os seus corvos eram criaturas do Deus da Tempestade, e desde Urri que não confiava nas suas curas. Nenhum homem verdadeiro escolheria uma vida de escravatura, nem forjaria uma corrente de servidão para usar em volta da garganta.
— Gysella, Gwin, deixe-nos — disse Goodbrother secamente. — Você também, Gran. O Meistre Murenmure ficará.
— Ele sairá.
— Este salão é meu, Cabelo Molhado. Não cabe a você dizer quem deve ir e quem deve ficar. O meistre fica.
O homem vive longe demais do mar, pensou Aeron.
— Então vou eu embora — disse a Goodbrother. Esteiras secas estalejaram sob os seus pés descalços e negros quando virou e se dirigiu à porta. Parecia que tinha cavalgado muito tempo para nada.
Aeron estava quase junto da porta quando o meistre pigarreou e
disse:
— Euron Olho de Corvo ocupa a Cadeira de Pedra do Mar.
O Cabelo Molhado virou-se. O salão arrefecera de um momento para o outro. 
O Olho de Corvo está a meio mundo de distância. Balon mandou-o embora há dois anos, e jurou que se regressasse isso lhe custaria a vida.
— Conte-me — disse, com voz rouca.
— Entrou em Fidalporto no dia seguinte ao da morte do rei, e reclamou o castelo e a coroa na condição de irmão mais velho de Balon — disse Gorold Goodbrother. — Agora está enviando corvos, convocando a Pyke os capitães e os reis de todas as ilhas, para dobrarem os joelhos e lhe prestarem homenagem como o seu rei.
— Não. — Aeron Cabelo Molhado não pesou as palavras. — Só um homem devoto pode sentar-se na Cadeira da Pedra do Mar. O Olho de Corvo não adora nada a não ser o seu próprio orgulho.
— Esteve em Pyke não há muito tempo e viu o rei — disse Goodbrother.
— Balon disse-lhe alguma coisa acerca da sucessão?
Sim. Tinham conversado na Torre do Mar, enquanto o vento uivava do lado de fora das janelas e as ondas se esmagavam sem descanso em baixo. Balon abanara a cabeça em desespero, quando ouvira o que Aeron tinha a lhe dizer sobre o último filho que lhe restava.
— Os lobos fizeram dele um fraco, tal como eu temia — dissera o rei. — Rezo ao deus para que o tenham matado, para que não se possa atravessar no caminho de Asha. — Era essa a cegueira de Balon; se via na filha selvagem e obstinada, e acreditava que ela podia suceder-lhe. Nisso enganava-se e Aeron tentara dizer-lhe.
— Nenhuma mulher governará algum dia os homens de ferro, nem mesmo uma mulher como Asha — insistira, mas Balon sabia ficar surdo para aquilo que não desejava ouvir.
Antes que o sacerdote tivesse tempo de responder a Gorold Goodbrother, a boca do meistre abriu-se uma vez mais.
— Pelo direito, a Cadeira da Pedra do Mar pertence à Theon, ou a Asha, se o príncipe estiver morto. A lei é essa.
— Lei da terra verde — disse Aeron com desprezo. — Que nos interessa isso? Somos homens de ferro, os filhos do mar, os escolhidos do Deus Afogado. Nenhuma mulher pode nos governar, tal como nenhum homem sem deus pode fazer.
— E Victarion? — Perguntou Gorold Goodbrother. — Ele tem a Frota de Ferro. Irá Victarion avançar com uma pretensão, Cabelo Molhado?
— Euron é o irmão mais velho… — Começou o meistre. 
Aeron silenciou-o com um olhar. Fosse em pequenas vilas de pescadores, fosse em grandes fortalezas de pedra, um olhar assim do Cabelo Molhado fazia com que donzelas perdessem a força nas pernas e punha crianças a correr aos gritos para junto das mães, e era mais do que o suficiente para dominar o servo com a corrente ao pescoço.
— Euron é mais velho  disse o sacerdote. Mas Victarion é mais devoto.
— Chegaria a haver guerra entre eles? — Perguntou o meistre.
— Os homens de ferro não devem derramar o sangue de homens de
ferro.
— Um sentimento piedoso, Cabelo Molhado. — Disse Goodbrother. — Mas não é algo que vosso irmão partilhe. Mandou afogar Sawane Botley por dizer que a Cadeira de Pedra do Mar pertencia por direito a Theon.
— Se ele foi afogado, nenhum sangue foi derramado — disse Aeron.
O meistre e o lorde trocaram um olhar. 
— Tenho de mandar uma mensagem a Pyke, e em breve — disse Gorold Goodbrother. 
— Cabelo Molhado, gostaria de obter o seu conselho.
O que será homenagem ou desafio? — Aeron puxou pela barba e refletiu. 
Vi a tempestade, e o seu nome é Euron Olho de Corvo.
— Por agora, envie só o silêncio — disse ao lorde. Tenho de rezar sobre isto.
— Reze o tanto que quiser — disse o meistre. Isso não muda a lei. Theon é o legítimo herdeiro e Asha vem depois.
— Silêncio! — Rugiu Aeron. — Foi demasiado o tempo passado pelos homens de ferro ouvindo os meistres de correntes ao pescoço tagarelando sobre as terras verdes e as suas leis. É tempo de voltarmos a escutar o mar. É tempo de escutarmos a voz de deus. — A sua própria voz ressoou no salão fumacento, tão cheia de poder que nem Gorold Goodbrother nem o seu meistre se atreveram a responder. 
O Deus Afogado está comigo, pensou Aeron. Ele me mostrou o caminho.
Goodbrother ofereceu-lhe o conforto do castelo para a noite, mas o sacerdote declinou. Raramente dormia sob o teto de um castelo, e nunca o fazia tão longe do mar.
— O conforto, conheço-o nos salões aquáticos do Deus Afogado, sob as ondas. Nascemos para sofrer, para que o nosso sofrimento nos faça fortes. Não preciso mais do que um cavalo repousado para me levar até Seixeira.
Isso, Goodbrother sentiu-se feliz por fornecer. Enviou também o filho Greydon, a fim de mostrar ao sacerdote o caminho mais curto através dos montes, até ao mar. A aurora ainda tardava uma hora quando partiram, mas as montadas eram resistentes e de patas seguras, e fizeram um bom tempo, apesar da escuridão. Aeron fechou os olhos e proferiu uma prece silenciosa, e passado algum tempo pôs-se a cochilar na sela.
O som chegou tênue, o grito de uma dobradiça enferrujada.
— Urri! — Murmurou e acordou, temeroso. 
Não há aqui dobradiças, não há porta, não há Urri. 
Um machado voador levara metade da mão de Urri quando ele tinha catorze anos e brincava à dança dos dedos, enquanto o pai e os irmãos mais velhos estavam longe, na guerra. A terceira esposa do Lorde Quellon fora uma Piper do Castelo de Donzela-rosa, uma garota com grandes seios fofos e olhos castanhos de corça. Em vez de curar a mão de Urri pelo Costume Antigo, com fogo e água do mar, entregara-o ao seu meistre das terras verdes, que jurara que conseguiria voltar a coser os dedos em falta. Fizera-o, e depois usara poções, cataplasmas e ervas, mas a mão gangrenara e Urri apanhara uma febre. Quando o meistre lhe serrara o braço, era tarde demais.
Lorde Quellon nunca regressara da sua última viagem; o Deus Afogado, na sua bondade, concedera-lhe uma morte no mar. Fora Lorde Balon quem voltara, com os irmãos Euron e Victarion. Quando Balon ouvira contar o que acontecera a Urri, removera três dos dedos do meistre com um cutelo de cozinheiro e mandara-lhe a mulher Piper do pai para que lhos cosesse. Cataplasmas e poções funcionaram tão bem para o meistre como para Urrigon. O homem morrera em delírio, e a terceira esposa do Lorde Quellon seguira-o pouco depois, quando a parteira removera uma filha natimorta do seu ventre. Aeron sentira-se feliz. Tinha sido o seu machado que cortara a mão de Urri, enquanto dançavam juntos a dança dos dedos, como os amigos e irmãos costumavam fazer.
Ainda o envergonhava recordar os anos que se seguiram à morte de Urri. Aos dezesseis intitulava-se homem, mas na verdade fora um saco de vinho com pernas. Cantava, dançava (mas não a dança dos dedos, essa nunca mais), gracejava, falava sem parar e fazia brincadeiras. Tocava gaita, fazia malabarismo, montava a cavalo e era capaz de beber mais do que todos os Wynch e os Botley e também metade dos Harlaw. O Deus Afogado concede a todos os homens um dom, até a ele; nenhum homem era capaz de mijar por mais tempo ou até mais longe do que Aeron Greyjoy, coisa que ele provava em todos os banquetes. Uma vez, apostara o seu novo dracar contra uma manada de cabras que seria capaz de apagar uma lareira sem recorrer a nada mais do que a pica. Aeron banqueteara-se com cabra durante um ano, e chamara o navio de Tempestade Dourada, embora Balon tivesse ameaçado enforca-lo no mastro do navio quando lhe contaram que tipo de esporão o irmão tencionava montar na sua proa.
No fim das contas, o Tempestade Dourada fora ao fundo ao largo da Ilha Bela durante a primeira rebelião de Balon, cortado ao meio por uma enorme galé de guerra chamada Fúria, quando Stannis Baratheon apanhara Victarion na armadilha que montara e esmagara a Frota de Ferro. Mas o deus ainda não se cansara de Aeron, e levara-o para terra. Um grupo de pescadores o tomara cativo e o levara agrilhoado para Lanisporto, e ele passara o resto da guerra nas entranhas de Rochedo Casterly, provando que as lulas gigantes eram capazes de mijar durante mais tempo e até mais longe do que os leões, os javalis ou as galinhas.
Esse homem está morto. Aeron afogara-se e renascera do mar, como o profeta do próprio deus. Não havia mortal que fosse capaz de o assustar, e o mesmo podia-se dizer da escuridão… e das memórias, os ossos da alma.
O som de uma porta abrindo, o grito de uma dobradiça de ferro enferrujada.
Euron regressou. Não importava. Ele era o sacerdote Cabelo Molhado, o amado do deus.
— Chegará à guerra? — Perguntou Greydon Goodbrother quando o sol iluminou os montes. — Uma guerra de irmão contra irmão?
— Se o Deus Afogado o desejar. Nenhum homem sem deus pode sentar-se na Cadeira da Pedra do Mar. 
O Olho de Corvo lutará, isso é certo.
Nenhuma mulher seria capaz de derrotá-lo, nem mesmo Asha; as mulheres eram feitas para travar as suas batalhas na cama de partos. E Theon, se ainda vivesse, era igualmente impotente, um rapaz de amuos e sorrisos.
Em Winterfell demonstrara o seu valor, aquele que tinha, mas o Olho de Corvo não era nenhum rapaz aleijado. Os conveses do navio de Euron estavam pintados de vermelho, para melhor esconder o sangue que os ensopava.
Victarion. O rei tem de ser Victarion, senão a tempestade matará a  todos. 
Greydon o deixou depois de o sol nascer, para ir levar a notícia da morte de Balon aos primos, nas suas torres em Covabaixa, no Forte do Espigão do Corvo e no Lago do Cadáver. Aeron prosseguiu sozinho, subindo montes e descendo vales ao longo de um trilho pedregoso que se ia tornando mais largo e mais nítido à medida que se ia aproximando do mar. Em todas as aldeias fazia uma pausa para pregar, e o mesmo fazia nos pátios dos pequenos senhores.
— Nascemos do mar, e ao mar voltaremos — dizia-lhes. A sua voz era profunda como o oceano, e trovejava como as ondas. — O Deus da Tempestade, na sua ira, arrancou Balon ao seu castelo e derrubou-o, e ele agora se banqueteia sob as ondas nos salões aquáticos do Deus Afogado. 
Ergueu as mãos. 
— Balon está morto! O rei está morto! Mas um rei voltará! Pois o que está morto não pode morrer, mas volta a se erguer, mais duro e mais forte! Um rei se erguerá!
Alguns daqueles que o escutavam largavam as enxadas e as picaretas para segui-lo, de modo que quando ouviu o bater das ondas uma dúzia de homens caminhava atrás do seu cavalo, tocados pelo deus e desejosos de se afogar.
Seixeira era o lar de vários milhares de pescadores, cujas cabanas se aglomeravam em volta da base de uma casa torre quadrada com um torreão em cada canto. Quatro dezenas dos afogados de Aeron o esperavam ali, acampados ao longo de uma praia de areia cinzenta em tendas de peles de foca e abrigos construídos com madeira trazida pelo mar. As suas mãos tinham sido endurecidas pela maresia, marcadas pelas redes e linhas, tinham ganhado calos devido a remos, picaretas e machados, mas agora essas mãos empunhavam maças duras como ferro, feitas de madeira trazida pelo mar, pois o deus armara-os com o seu arsenal submarino.
Tinham construído um abrigo para o sacerdote logo acima da linha das marés. Enfiou-se lá dentro de bom grado, depois de afogar os seus mais recentes seguidores. 
Meu deus, orou, fale-me com o estrondo das ondas, e me diz o que fazer. Os capitães e os reis esperam a tua palavra. Quem será nosso rei no lugar de Balon? Canta-me na língua do leviatã, para que eu possa saber o seu nome. Diz-me, oh Senhor sob as ondas, quem tem força para combater as tempestades em Pyke?
Embora a cavalgada até Cornartelo tivesse o deixado fatigado, Aeron Cabelo Molhado não conseguiu ficar quieto no seu abrigo de madeira trazida pelo mar, com teto de algas negras. As nuvens chegaram para esconder a lua e as estrelas, e a escuridão caiu tão densa sobre o mar como sobre a sua alma. 
Balon favorecia Asha, a filha do seu corpo, mas uma mulher não pode governar os homens de ferro. Tem de ser Victarion. 
Nove filhos tinham nascido das virilhas de Quellon Greyjoy, e Victarion era o mais forte de todos, um autêntico touro, destemido e obediente. 
E é aí que se encontra o perigo. Um irmão mais novo deve obediência a um irmão mais velho, e Victarion não era homem que velejasse contra a tradição. Mas ele não tem qualquer simpatia por Euron, não a tem desde que a mulher morreu.
Lá fora, sob o ressonar dos seus afogados e os lamentos do vento, ouviu o rebentar das ondas, o martelo do seu deus a chamar para a batalha. Aeron gatinhou para fora do seu pequeno abrigo, e penetrou no frio da noite. Pôs-se em pé, nu, pálido, descarnado e alto, e nu caminhou até o negro mar salgado. A água estava gelada, mas a carícia do seu deus não o fez vacilar. Uma onda esmagou-lhe contra o peito, o fazendo cambalear. 
A seguinte se quebrou por cima da sua cabeça. Sentiu o sabor do sal nos lábios e a presença do deus à sua volta, e os ouvidos ressoaram-se com a glória da sua canção. 
Nove filhos nasceram das virilhas de Quellon Greyjoy e eu fui o último, tão fraco e assustado como uma menina. Mas já não. Esse homem afogou-se, e o deus fez-me forte. O frio mar salgado rodeou-o, abraçou-o, avançou através da sua carne fraca de homem e tocou-lhe os ossos.
Ossos, pensou. Os ossos da alma. Os ossos de Balon, e os de Urri. A verdade encontra-se nos nossos ossos, pois a carne decompõe-se e o osso resiste. E no monte de Nagga, os ossos do Palácio do Rei Cinzento…
E descarnado, pálido e tremendo, Aeron Cabelo Molhado lutou por regressar a terra, mais sábio do que fora quando entrara no mar. Pois encontrara a resposta nos seus ossos, e o caminho que tinha em frente lhe era claro. A noite estava tão fria que o corpo pareceu fumegar quando regressou em silêncio ao abrigo, mas havia uma fogueira ardendo em seu coração, e por uma vez o sono chegou facilmente, sem ser quebrado pelo grito de dobradiças de ferro.
Quando acordou, o dia estava soalheiro e ventoso. Aeron quebrou o jejum com um caldo de mariscos e algas marinhas cozido numa fogueira de madeira trazida pelo mar. Tinha acabado de terminar quando Merlyn desceu da sua casa-torre com meia dúzia de guardas, à sua procura.
— O rei está morto — disse-lhe o Cabelo Molhado.
— Sim. Recebi uma ave. E agora outra. — Merlyn era um homem calvo, redondo e carnudo que chamava a si próprio “lorde” ao jeito das terras verdes, e se vestia de peles e veludos. — Um corvo me convoca a Pyke, e outro às Dez Torres. Vocês, as lulas gigantes, possuem muitos tentáculos, despedaçam um homem. Que diz, sacerdote? Para onde devo enviar os meus dracares?
Aeron franziu as sobrancelhas.
— Dez Torres, diz? Que lula gigante você chama aí? Dez Torres era a sede do Senhor de Harlaw.
— A Princesa Asha. Virou as velas para casa. O Leitor envia corvos, convocando todos os seus amigos a Harlaw. Diz que Balon tencionava que fosse ela a ocupar a Cadeira da Pedra do Mar.
— Será o Deus Afogado que decidirá quem deve ocupar a Cadeira da Pedra do Mar — disse o sacerdote. — Ajoelhai, para que possa lhe abençoar.
O Lorde Merlyn caiu sobre os joelhos, e Aeron tirou a rolha ao odre e despejou-lhe um gole de água do mar na careca. 
— Senhor Deus que te afogaste por nós, permite que Meldred, teu criado, renasça do mar. Abençoe-o com o sal, abençoe-o com a pedra, abençoe-o com o aço. 
A água escorria pelas gordas bochechas de Merlyn e ensopava-lhe a barba e a capa de pele de raposa. — O que está morto não pode morrer — terminou Aeron. — Mas volta a se erguer, mais duro e mais forte. 
Mas quando Merlyn se ergueu, disse-lhe. 
— Fique e escute, para que possas espalhar a palavra de deus.
A um metro da borda de água as ondas se arrebentavam em volta de um pedregulho redondo de granito. Foi aí que Aeron Cabelo Molhado subiu, para que todo o seu cardume pudesse vê-lo e ouvir as palavras que tinha a dizer.
— Nascemos do mar, e ao mar regressaremos, começou como começara cem vezes antes. O Deus da Tempestade, na sua ira, arrancou Balon ao seu castelo e o derrubou, e ele agora banqueteia-se sob as ondas.
Ergueu as mãos. 
— O rei de ferro está morto! Mas um rei voltará a surgir! Pois o que está morto não pode morrer, mas volta a erguer-se, mais duro e mais forte!
— Um rei se erguerá! — Gritaram os afogados.
— Se erguerá. Tem de se erguer. Mas quem? 
O Cabelo Molhado escutou por um momento, mas apenas as ondas lhe responderam. 
Quem será o nosso rei?
Os afogados puseram-se a bater com as maças umas nas outras.
— Cabelo Molhado! — Gritaram. — Cabelo Molhado Rei! Aeron Rei! Dê-nos o Cabelo Molhado!
Aeron abanou a cabeça.
— Se um pai tem dois filhos e dá a um deles um machado e ao outro uma rede, qual deles pretende que seja o guerreiro?
— O machado é para o guerreiro — gritou Rus em resposta. — A rede para um pescador dos mares.
— Sim — disse Aeron. — O deus levou-me até às profundezas sob as águas e afogou a coisa imprestável que eu era. Quando voltou a atirar-me para a terra, deu-me olhos para ver, orelhas para ouvir, e uma voz para espalhar a sua palavra, para que eu pudesse ser o seu profeta e ensinar a sua verdade àqueles que a esqueceram. Não fui feito para me sentar na Cadeira da Pedra do Mar… tal como Euron Olho de Corvo não o foi. Pois eu escutei o deus, que diz: Nenhum homem sem deus pode sentar-se na minha Cadeira da Pedra do Mar!
O Merlyn cruzou os braços ao peito.
— Então é Asha? Ou Victarion? Diga-nos, sacerdote!
— O Deus Afogado os dirá, mas não aqui. — Aeron apontou para a gorda face branca de Merlyn. — Não olhe para mim, nem para as leis do homem, mas sim para o mar. Içai as velas e estendei os remos, senhor, e vá até Velha Wyk. Você, e todos os capitães e reis. Não vá para Pyke, baixar a cabeça perante o infiel, nem para Harlaw, ligar-se a mulheres intriguentas. Aponte a proa a Velha Wyk, onde se erguia o Palácio do Rei Cinzento. Em nome do Deus Afogado os convoco. Convoco a todos! Deixe os seus salões e cabanas, os seus castelos e as suas fortalezas, e regressem ao monte de Nagga para uma assembleia de homens livres!
Merlyn olhou de boca aberta.
— Uma assembleia de homens livres? Não há uma verdadeira assembleia há…
—… demasiado tempo! Gritou Aeron numa angústia. Mas na alvorada dos dias, os homens de ferro escolhiam os seus próprios reis, promovendo os mais valorosos dentre eles. É tempo de regressarmos ao Costume Antigo, pois só isso nos devolverá a grandeza. Foi uma assembleia de homens livres que escolheu Urras Pé de Ferro para Rei Supremo, e lhe pôs uma coroa de madeira trazida pelo mar na cabeça. Sylas Nariz Chato, Harrag Hoare, a Velha Lula Gigante, foi a assembleia que os ergueu a todos. E desta assembleia emergirá um homem capaz de terminar o trabalho que o Rei Balon iniciou de nos devolver a liberdade. Não vão para Pyke, nem para as Dez Torres de Harlaw, mas para a Velha Wyk, repito. Demandai o monte de Nagga e os ossos do Palácio do Rei Cinzento, pois nesse lugar sagrado, quando a lua se afogar e renascer, elegeremos um rei respeitável, um rei devoto. 
Voltou a erguer bem alto as mãos ossudas. 
— Escutem! Escutem as ondas! Escutem o deus! Ele está a nos falar e diz: Não teremos rei a menos que seja escolhido pela assembleia de homens livres!
Ergueu-se um rugido em resposta e os afogados bateram as suas maças umas nas outras.
— Uma assembleia de homens livres! — Gritaram. — Uma assembleia, uma assembleia. Não há rei sem ser pela assembleia! 
O clamor que fizeram foi tão forte que certamente Olho de Corvo ouviu os gritos em Pyke, bem como o maligno Deus da Tempestade no seu salão de nuvens.
E Aeron Cabelo Molhado soube que agiu bem.
 
As laranjas de sangue já estão mais que maduras. — Observou o príncipe numa voz cansada quando o capitão empurrou sua cadeira para a varanda.
Depois disso não voltou a falar durante horas.
Era verdade sobre as laranjas. Algumas tinham caído e estourado no mármore rosa pálido. O penetrante cheiro doce que exalavam enchia as narinas de Hotah a cada vez que inspirava. Sem dúvida, o príncipe podia cheirá-las também enquanto estava sentado sob as árvores na cadeira de rodas que o Meistre Caleotte tinha feito para ele, com as suas almofadas de penas de ganso e ruidosas rodas de ébano e ferro.
Durante um longo tempo os únicos sons que se ouviram foram os das crianças chapinhando nas lagoas e fontes, e uma vez mais um suave plop quando outra laranja caiu na varanda e estourou-se. Então o capitão ouviu o fraco tamborilar de botas no mármore vindo do outro lado do palácio. 
Obara. Ele conhecia sua passada; passos longos, apressados, irados. Nos estábulos junto aos portões o seu cavalo estaria espumando e ensanguentado pelas suas esporas. Ela sempre montava garanhões, e foi ouvida vangloriando-se de que era capaz de domar qualquer cavalo em Dorne… e qualquer homem também. O capitão podia ouvir outros passos também, o rápido arrastar de pés do Meistre Caleotte que se apressava para acompanhar o ritmo da mulher.
Obara Sand sempre caminhava muito rápido. Ela persegue algo que nunca poderá alcançar, disse uma vez o príncipe a sua filha ao alcance dos ouvidos do capitão.
Quando ela surgiu sob o arco triplo, Areo Hotah estendeu o seu machado de cabo longo para o lado bloqueando seu caminho. A cabeça da arma estava presa a um cabo de um metro e oitenta, e ela não podia rodeá-lo.
— Minha Senhora, pare. — Sua voz era um murmúrio pesado com o sotaque de Norvos. — O príncipe não quer ser incomodado.
O rosto de Obara já era rígido antes que ele falasse, depois, ele tornou-se de pedra.
— Está em meu caminho, Hotah. — Obara era a mais velha das Serpentes da Areia, uma mulher de ossos grandes de aproximadamente trinta anos, com os olhos juntos e o cabelo castanho de ratazana da prostituta de  Vilavelha que lhe deu à luz. Sob o manto de sedareia mosqueado de castanho-escuro e dourado suas roupas de montar eram de couro marrom e velho, desgastado e flexível. Eram as coisas mais suaves sobre ela. Em um quadril trazia um chicote enrolado, nas costas um escudo redondo de aço e cobre.
Ela deixou a lança lá fora. Areo Hotah deu graças por isso. Apesar da sua força e rapidez, sabia que a mulher não era páreo para ele… mas ela não sabia, e o capitão não sentia nenhum desejo de ver o sangue dela sobre o mármore rosa pálido.
O Meistre Caleotte mudou o peso de um pé para o outro.
— Senhora Obara, eu tentei te dizer…
— Ele sabe que o meu pai está morto? — Perguntou Obara ao capitão, sem prestar mais atenção ao meistre do que prestaria a uma mosca, se alguma mosca fosse tola o suficiente para zumbir sobre sua cabeça.
— Sabe. — Disse o capitão. — Recebeu uma ave…
A morte tinha chegado a Dorne em asas de corvo, escrita em letras pequenas e selada com uma gota de dura cera vermelha. Caleotte devia ter pressentido o que estava naquela carta, pois deu a Hotah para que a entregasse.
O príncipe agradeceu, mas por muito tempo não quis quebrar o selo. Ficou sentado à tarde inteira com o pergaminho em seu colo, observando as brincadeiras das crianças. Observou-as até que o sol se pôs e o ar do fim da tarde esfriou o suficiente para levá-lo para dentro; então observou a luz das estrelas refletida na água. A lua já nascia quando mandou Hotah buscar uma vela para que pudesse ler sua carta debaixo das laranjeiras, na escuridão da noite.
Obara tocou seu chicote.
— Milhares de homens estão atravessando as areias a pé para subir o Caminho do Espinhaço e ajudar Ellaria a trazer o meu pai para casa. Os septos estão cheios até o ponto de estourarem e os sacerdotes vermelhos acenderam as fogueiras em seus templos. Nas casas de almofadas as mulheres copulam com qualquer homem que vá atrás delas, recusando pagamento. Em Lançassolar, no Braço Partido, ao longo do Sangueverde, nas montanhas, nas areias profundas, em todos os lugares, as mulheres arrancam os cabelos e os homens gritam de raiva. Ouve-se a mesma pergunta em todas as línguas: o que fará Doran? O que fará o seu irmão para vingar o nosso príncipe assassinado? 
Ela aproximou-se do capitão. — E você diz que ele não quer ser incomodado!
— Ele não quer ser incomodado — Voltou a dizer Areo Hotah.
O capitão dos guardas conhecia o príncipe que guardava. Um dia, há muito tempo, um fedelho chegou de Norvos, um rapaz grande e de ombros largos com uma cabeleira escura. Esse cabelo era branco agora, e seu corpo ostentava as cicatrizes de muitas batalhas… mas conservava a força e mantinha o seu machado afiado como os sacerdotes barbudos haviam lhe ensinado. Ela não passará, disse a si mesmo, e em voz alta disse:
— O príncipe está assistindo as crianças brincarem. Ele nunca deve ser incomodado quando está assistindo as crianças brincarem.
— Hotah. — Disse Obara Sand. — Você vai sair do meu caminho, ou pegarei esse machado e…
— Capitão. — Veio a ordem de trás dele. — Deixe-a passar. Eu falarei com ela. — A voz do príncipe estava rouca.
Areo Hotah pôs o machado na vertical e deu um passo para o lado. Obara lançou-lhe um último e prolongado olhar e passou por ele a passos largos com o meistre correndo perto de seus calcanhares. Caleotte não tinha mais de um metro e meio de altura e era calvo como um ovo. O seu rosto era tão liso e gordo que era difícil calcular sua idade, mas ele estava aqui desde antes do capitão e serviu até mesmo a mãe do príncipe. Apesar da idade e amplitude da cintura, ele ainda era bastante ágil e esperto como poucos, mas também era dócil. Ele não é um oponente à altura de nenhuma das Serpentes da Areia, pensou o capitão.
À sombra das laranjeiras, o príncipe ocupava sua cadeira com as pernas gotosas apoiadas à sua frente e pesadas olheiras sob os olhos… embora Hotah não soubesse dizer se aquilo que o mantinha sem dormir era o pesar ou a gota. Abaixo, nas fontes e lagoas, as crianças prosseguiam os seus jogos. As mais novas não tinham mais de cinco anos, as mais velhas nove e dez. Metade eram garotas e metade rapazes. Hotah as ouvia chapinhar e gritar umas com as outras em vozes altas e estridentes.
— Não foi assim há tanto tempo que você era uma das crianças naquelas lagoas, Obara. — Disse o príncipe quando ela ajoelhou-se diante da sua cadeira de rodas.
Ela fungou.
— Foi há vinte anos, ou tão perto disso que não faz diferença. E não estava aqui nesse tempo. Sou a cria da prostituta, ou será que se esqueceu?
— Quando ele não respondeu, ela levantou-se e colocou as mãos nos quadris. — Meu pai foi assassinado.
— Foi morto em combate singular durante um julgamento por batalha. — Disse o Príncipe Doran. — Pela lei, isso não é assassinato.
— Ele era seu irmão.
— Ele era.
— O que pretende fazer a respeito de sua morte?
O príncipe virou laboriosamente a cadeira para encará-la. Embora não tivesse mais de cinquenta e dois anos, Doran Martell parecia muito mais velho. Seu corpo era mole e disforme sob suas roupas de linho, e era difícil olhar para suas pernas. A gota inchou e avermelhou suas articulações de forma grotesca; o joelho esquerdo era uma maçã, o direito um melão, e os dedos dos pés transformaram-se em uvas vermelhas escuras, tão maduras que parecia que bastaria um toque para estourarem. Até o peso de uma colcha conseguia fazê-lo estremecer, embora suportasse a dor sem queixas. O silêncio é amigo de um príncipe, o capitão ouviu-o dizer à filha uma vez. As palavras são como flechas, Arianne. Depois de disparadas não podem ser chamadas de volta.
— Escrevi ao Lorde Tywin…
— Escreveu? Se você fosse metade do homem que o meu pai era…
— Eu não sou o seu pai.
— Eu sei disso. — A voz de Obara estava carregada de desprezo.
— Você quer que eu parta para a guerra.
— Não espero tal coisa. Você nem precisa sair de sua cadeira. Deixe-me vingar meu pai. Você possui uma tropa no Passo do Príncipe. O Lorde Yronwood tem outra no Caminho do Espinhaço. Entregue-me uma delas e outra a Nym. Deixe que ela percorra a Estrada do Rei enquanto eu tiro os senhores da Marca dos seus castelos e dou a volta para marchar sobre Vilavelha.
— E como você espera controlar Vilavelha?
— Bastará saqueá-la. A riqueza da Alta torre…
— O que deseja é ouro?
— O que desejo é sangue.
— Lorde Tywin nos entregará a cabeça da Montanha.
— E quem nos entregará a cabeça de Lorde Tywin? A Montanha sempre foi o seu animal de estimação.
O príncipe fez um gesto na direção das lagoas.
— Obara, olhe para as crianças, se te agradar.
— Não me agrada. Obteria mais prazer em enfiar minha lança na barriga do Lorde Tywin. Vou fazê-lo cantar “As Chuvas de Castamere” enquanto lhe tiro as tripas e procuro por ouro.
— Olha. — Repetiu o príncipe. — Ordeno-te.
Algumas das crianças mais velhas jaziam de barriga para baixo no mármore liso e rosado, bronzeando-se ao sol. Outras nadavam no mar mais adiante. Três estavam construindo um castelo de areia com um grande espigão que se assemelhava à Torre da Lança do Palácio Antigo. Vinte ou mais se reuniram na lagoa grande para ver as batalhas em que as crianças menores lutavam montadas nos ombros das maiores, tentando empurrar umas às outras na água. Sempre que um par caía, o chapinhar era seguido por uma revoada de gargalhadas. Eles assistiram a uma menina morena como uma noz puxar um rapaz muito louro dos ombros de seu irmão e cair de cabeça na lagoa.
— O seu pai jogou esse mesmo jogo uma vez, tal como eu fiz antes dele. — Disse o príncipe. — Tínhamos dez anos de diferença, portanto eu já tinha deixado as lagoas quando ele era velho suficiente para jogar, mas costumava observá-lo quando vinha visitar nossa mãe. Ele era tão feroz, mesmo quando rapaz… Rápido como uma cobra d’água. Muitas vezes o vi derrubar rapazes muito maiores do que ele. Lembrou-me disso no dia em que partiu para Porto Real. Jurou que faria isso mais uma vez, caso contrário nunca o teria deixado ir.
— Deixado ir? — Obara soltou uma gargalhada. — Como se você pudesse impedi-lo. A Víbora Vermelha de Dorne ia onde bem entendia.
— Ele ia. Eu gostaria de ter alguma palavra de conforto para…
— Não vim visitá-lo em busca de conforto. — A voz dela estava cheia de escárnio. — No dia em que o meu pai veio me reclamar como filha, a minha mãe não quis que eu partisse. “Ela é uma menina”, ela disse, “e eu não acho que ela seja sua. Tive outros mil homens.” Ele jogou sua lança aos meus pés e deu com as costas da mão na cara da minha mãe, a fazendo chorar. “Menina ou rapaz, nós travamos as nossas batalhas”, ele disse, “mas os deuses nos deixam escolher nossas armas”. Ele apontou para a lança, e depois para as lágrimas da minha mãe, e eu peguei a lança. “Eu te disse que ela era minha”, disse o meu pai, e me levou com ele. Minha mãe bebeu até a morte dentro de um ano. Dizem que ela estava chorando quando morreu. — Obara aproximou-se da cadeira do príncipe. — Deixe-me usar a lança; não lhe peço mais nada.
— É muito o que me pede, Obara. Pensarei sobre o assunto.
— Você já pensou demais.
— Talvez tenha razão. Mandarei uma mensagem para Lançassolar.
— Desde que a mensagem seja a guerra. — Obara girou sobre os calcanhares e caminhou para fora de modo tão irritado como quando chegou, dirigindo-se aos estábulos em busca de um cavalo descansado e outro galope impetuoso estrada fora.
O Meistre Caleotte deixou-se ficar para trás.
— Meu príncipe? — Perguntou o homenzinho redondo. — Não te doem as pernas?
O príncipe sorriu levemente.
— O sol é quente?
— Devo buscar algo para a dor?
— Não. Preciso de minha cabeça limpa.
O meistre hesitou.
— Meu príncipe, será… será prudente permitir que a Senhora Obara retorne a Lançassolar? Ela irá certamente inflamar o povo. Eles também amavam muito seu irmão.
— Assim como todos nós. — Ele comprimiu as têmporas com os dedos. — Não. Você tem razão. Tenho que voltar a Lançassolar também.
O homenzinho redondo hesitou.
— Será isso sensato?
— Não é sensato, mas é necessário. Melhor enviar um mensageiro a Ricasso e lhe ordenar que abra os meus aposentos na Torre do Sol. Informe minha filha Arianne de que estarei lá amanhã.
A minha pequena princesa. O capitão sentia amargamente a sua
falta.
— Você será visto. — Advertiu o meistre.
O capitão compreendeu. Dois anos antes, quando trocaram Lançassolar pela paz e isolamento dos Jardins de Água, a gota do Príncipe Doran não estava nem de perto tão ruim. Naqueles dias ele ainda caminhava, embora lentamente, apoiando-se numa bengala e fazendo caretas a cada passo. O príncipe não desejava que os seus inimigos soubessem como ele tinha se tornado fraco, e o Palácio Antigo e a sua cidade sombria estavam cheios de olhos. Olhos, pensou o capitão, e degraus que ele não podia subir. Ele precisaria voar para chegar ao topo da Torre do Sol.
— Eu devo ser visto. Alguém precisa despejar óleo na água. Dorne tem de ser lembrada de que ainda tem um príncipe. — Ele sorriu com ar triste. — Por mais velho e gotoso que ele seja.
— Se regressar a Lançassolar, terá de conceder audiência à Princesa Myrcella. — Disse Caleotte. — O seu cavaleiro branco estará com ela… e sabe que ele envia cartas à rainha.
— Suponho que sim.
O cavaleiro branco. O capitão franziu o cenho. Sor Arys tinha chegado a Dorne para servir a sua princesa, como Areo Hotah um dia também chegou com a sua. Mesmo seus nomes soavam estranhamente parecidos: Areo e Arys. Mas as semelhanças terminavam aí. O capitão tinha deixado Norvos e os seus sacerdotes barbudos, mas Sor Arys Oakheart ainda servia o Trono de Ferro. Hotah sentia uma certa tristeza sempre que via o homem com o longo manto branco como a neve nas vezes que o príncipe o enviou a Lançassolar. Um dia, ele pressentia, os dois lutariam; nesse dia Oakheart morreria, com o machado de cabo longo do capitão rachando seu crânio. Ele deslizou sua mão ao longo do liso cabo de freixo do machado e se perguntou se esse dia estava se aproximando.
— A tarde quase já chegou ao fim. — O príncipe estava dizendo. — Esperaremos pela manhã. Assegure-se de que a minha liteira esteja pronta à primeira luz da aurora.
— Às suas ordens. — Caleotte executou uma reverência. O capitão afastou-se para deixá-lo passar e ouviu seus passos desaparecerem. 
— Capitão? — A voz do príncipe era suave.
Hotah deu um passo à frente, uma mão fechada sobre o machado. O cabo parecia tão suave quanto a pele de uma mulher contra a sua palma. Quando chegou à cadeira de rodas, bateu fortemente com a base no chão para anunciar sua presença, mas o príncipe só tinha olhos para as crianças.
— Você tinha irmãos, capitão? — Perguntou. — Lá em Norvos, quando você era jovem? Irmãs?
— Ambos. — Disse Hotah. — Dois irmãos, três irmãs. Eu era o caçula. — O caçula e não desejado. Outra boca para alimentar, um rapaz grande que comia demais e cuja roupa deixava rapidamente de servir.
Não era de se admirar que eles o tivessem vendido aos sacerdotes barbudos.
— Eu era o mais velho. — Disse o príncipe. — E ainda assim, eu sou o último. Depois de Mors e Olyvar terem morrido em seus berços, perdi a esperança de chegar a ter irmãos. Tinha nove anos quando Elia chegou e eu era um escudeiro a serviço na Costa do Sal. Quando o corvo chegou com a notícia de que a minha mãe tinha entrado em trabalho de parto um mês antes do tempo, eu já tinha idade suficiente para saber que o bebê não sobreviveria. Mesmo quando o Lorde Gargalen me disse que eu tinha uma irmã, garanti-lhe que ela deveria morrer em breve. No entanto, ela sobreviveu, graças à misericórdia da Mãe. E um ano depois Oberyn chegou, berrando e chutando. Eu era um homem feito na época em que eles brincavam nestas lagoas. Mas aqui estou, e eles se foram.
Areo Hotah não sabia o que responder a isso. Ele era apenas o capitão dos guardas, e ainda se mantinha um estranho àquela terra e ao seu deus de sete faces mesmo após todos esses anos. Servir. Obedecer. Proteger. Prestou aqueles votos aos dezesseis anos, no dia em que se casou com seu machado. Votos simples para homens simples, os sacerdotes barbudos tinham lhe dito. Não foi treinado para consolar príncipes de luto.
Ele ainda tateava em busca de algumas palavras para dizer quando outra laranja caiu com um pesado som úmido, a não mais de meio metro de onde o príncipe estava sentado. Doran estremeceu ao som, como se de alguma forma ele o tivesse magoado.
— Basta. — Ele suspirou. — É o suficiente. Vá embora, Areo. Deixe-me observar as crianças por mais algumas horas.
Quando o sol se pôs, o ar esfriou e as crianças foram para dentro em busca do jantar, o príncipe ainda permaneceu sob as suas laranjeiras, olhando as lagoas paradas e o mar que se estendia mais além. Um criado trouxe-lhe uma tigela de azeitonas roxas, pão folha, queijo e pasta de grão-de-bico. Ele comeu um pouco e bebeu um cálice do doce e pesado vinho-forte que adorava. Quando este se esvaziou, voltou a enchê-lo. Ás vezes, nas horas profundas e negras da madrugada, o sono vinha encontrá-lo em sua cadeira. Só então o capitão o empurrava ao longo da galeria iluminada pelo luar, passando por uma fileira de pilares canelados e através de uma graciosa arcada até uma grande cama com frescos lençóis de linho num aposento com vista para o mar. Doran gemeu quando o capitão o deslocou, mas os deuses mostraram-se bondosos e ele não acordou.
A cela onde o capitão dormia era adjacente ao quarto do seu príncipe. Ele sentou-se na cama estreita, tirou a pedra de amolar e o oleado do seu nicho e começou a trabalhar. Mantém o machado afiado, tinham-lhe dito os sacerdotes barbudos no dia em que o marcaram. Ele sempre manteve.
Enquanto amolava o machado Hotah pensou em Norvos, na cidade no alto da colina e na pequena perto do rio. Ainda recordava o som dos três sinos, o modo como os profundos repiques de Noom o faziam estremecer até os ossos, a voz forte e orgulhosa de Narrah, o riso doce e prateado de Nyel. O sabor do bolo de inverno voltou a encher sua boca, rico em gengibre, pinhões e pedacinhos de cereja, com nahsa para empurrá-lo para baixo, o leite de cabra fermentado servido numa caneca de ferro e temperado com mel. Viu sua mãe em seu vestido com gola de esquilo, aquele que não usava mais do que uma vez por ano, quando iam ver a dança dos ursos ao longo da Escadinha dos Pecadores. E ele sentiu o fedor de pelos queimados de quando o sacerdote barbudo lhe tocara o centro do peito com o ferrete. A dor foi tão violenta que ele pensou que o seu coração pararia, mas ainda assim Areo Hotah não se encolheu. Os pelos nunca mais voltaram a crescer sobre o machado. 
O capitão só pousou sua esposa de freixo e ferro na cama quando ambos os gumes ficaram suficientemente afiados. Bocejando, ele despiu a roupa suja, atirou-a no chão e estendeu-se no colchão de palha. Pensar no ferrete fizera sua marca comichar, então ele teve que se coçar antes de fechar os olhos. Eu devia ter apanhado as laranjas que caíram, ele pensou, e adormeceu sonhando com o seu gosto ácido e doce, com a sensação pegajosa que o sumo vermelho deixava em seus dedos.
A aurora chegou cedo demais. À porta dos estábulos a menor das três liteiras transportadas por cavalos estava pronta, a de madeira de cedro com cortinas de seda vermelha. O capitão escolheu vinte lanceiros para acompanhá-la, fora os trinta que estavam postados nos Jardins de Água; o resto ficaria para proteger o terreno e as crianças, algumas das quais eram os filhos e filhas de grandes senhores e mercadores ricos.
Embora o príncipe tivesse falado em partir à primeira luz da aurora, Areo Hotah sabia que se atrasaria. Enquanto o meistre ajudava Doran Martell a tomar banho e enfaixava suas articulações inchadas com ataduras de linho embebidas em loções calmantes, o capitão vestiu o blusão de cobre que era próprio de seu posto, e um manto ondulante de sedareia castanha escura e amarela para manter o sol afastado do cobre. O dia prometia ser quente, e o capitão há muito tinha descartado a pesada capa de crina de cavalo e a túnica de couro batido que usara em Norvos, capazes de cozinhar um homem em Dorne. Ele manteve o meio elmo de ferro com a sua crista de espigões afiados, mas agora ele usava-o enrolado em seda cor de laranja, entrançando o tecido entre e em volta dos espigões. De outro modo, o sol batendo no metal deixaria sua cabeça latejando antes de avistarem o palácio.
O príncipe ainda não estava pronto para partir. Ele decidiu quebrar o jejum antes de ir, com uma laranja de sangue e uma bandeja de ovos de gaivota cortados em cubos com pedaços de presunto e pimenta. Então não pôde deixar de se despedir das várias crianças que tinham se tornadas favoritas em especial: o rapaz Dalt, os filhos da Senhora Blackmont e a órfã de cara redonda cujo pai vendera tecidos e especiarias ao longo do Sangueverde. Doran manteve um magnífico cobertor de Myr sobre as pernas enquanto falava com eles para poupar os pequenos da visão de suas articulações inchadas e enfaixadas.
Era meio-dia quando se puseram a caminho; o príncipe em sua liteira, o Meistre Caleotte montado em um jumento, os outros a pé. Cinco lanceiros caminhavam à frente e outros cinco atrás, com outros dez flanqueando a liteira de ambos os lados. Areo Hotah ocupou seu lugar familiar à esquerda do príncipe, apoiando o machado num ombro enquanto caminhava. A estrada entre Lançassolar e os Jardins de Água corria junto ao mar, então eles tinham uma brisa fresca para mitigar o calor enquanto avançavam por uma região de terra vermelha acastanhada com pedras, areia e árvores retorcidas e raquíticas.
No meio do caminho, a segunda Serpente da Areia apanhou-os. 
Ela apareceu de repente sobre uma duna, montada em um corcel dourado com uma crina que era branca e fina como a seda. Até a cavalo, a Senhora Nym parecia graciosa, vestida com vestes lilás cintilantes e uma grande capa de seda em tons de creme e cobre que se levantava a cada sopro do vento, fazendo parecer que ela podia levantar voo. Nymeria Sand tinha vinte e cinco anos, e era esguia como um salgueiro. O seu cabelo negro e liso, usado em uma longa trança atada com um fio vermelho-ouro, começava em um pico de viúva acima de seus olhos escuros, à semelhança de seu pai. Com as suas maçãs do rosto altas, lábios cheios e pele branca como leite, ela possuía toda a beleza que faltava à sua irmã mais velha… mas a mãe de Obara tinha sido uma prostituta de Vilavelha, enquanto que Nym nascera do mais nobre sangue da antiga Volantis. Uma dúzia de lanceiros montados a seguia, os seus escudos redondos brilhando ao sol. Seguiram-na duna abaixo. 
O príncipe tinha amarrado as cortinas da liteira para aproveitar melhor a brisa que soprava do mar. A Senhora Nym pôs-se a seu lado, retardando a sua bela égua dourada para igualar o ritmo da liteira.
— É bom vê-lo, tio. — Ela cantou, como se tivesse sido o acaso a trazê-la ali. — Posso seguir contigo até Lançassolar? — O capitão estava do lado oposto da liteira, mas ainda conseguia ouvir cada palavra que a Senhora Nym dizia.
— Ficaria feliz com isso. — Respondeu o Príncipe Doran, embora não soasse feliz aos ouvidos do capitão. — A gota e a tristeza dão fracos companheiros de estrada. — Com aquilo, o capitão soube que cada seixo do caminho era uma pontada em suas articulações inchadas.
— Não posso ajudar quanto à gota. — Disse ela. — Mas meu pai não tinha nenhum uso para a tristeza. A vingança era mais de seu gosto. É verdade que Gregor Clegane admitiu ter assassinado Elia e seus filhos?
— Rugiu sua culpa para que toda a corte ouvisse. — Admitiu o príncipe. — O Lorde Tywin prometeu-nos sua cabeça.
— E um Lannister sempre paga suas dívidas. — Disse a Senhora Nym. — E, no entanto, me parece que Lorde Tywin pretende nos pagar com as nossas próprias moedas. Recebi uma ave do nosso querido Sor Daemon, que jura que o meu pai fez cócegas àquele monstro mais de uma vez durante a luta. Se assim for, Sor Gregor é um homem morto, e não graças a Tywin Lannister.
O príncipe fez uma careta. Se foi devido à dor causada pela gota ou às palavras de sua sobrinha, o capitão não saberia dizer.
— Pode ser verdade.
— Pode ser? Eu digo que é.
— Obara quer que eu parta para a guerra.
Nym soltou uma gargalhada.
— Sim, ela quer passar uma tocha por Vilavelha. Ela odeia tanto essa cidade quanto a nossa irmãzinha a ama.
— E você?
Nym olhou de relance por sobre um ombro para onde seus companheiros a seguiam uma dúzia de metros atrás.
— Eu estava na cama com os gêmeos Fowler quando a notícia chegou até mim. — O capitão ouviu-a dizer. — Conhece o lema dos Fowler? Deixe-me pairar! É tudo o que te peço. Deixe-me pairar, tio. Não preciso de nenhuma tropa poderosa, só de uma doce irmã.
— Obara?
— Tyene. Obara é muito ruidosa. Tyene é tão doce e gentil que ninguém suspeitará dela. Obara transformaria Vilavelha na pira funerária do nosso pai, mas eu não sou assim tão ambiciosa. Quatro vidas me bastariam. Os gêmeos dourados de Lorde Tywin, como pagamento pelos filhos de Elia. O velho leão, pela própria Elia. E por fim o reizinho, pelo meu pai.
— O rapaz nunca nos ofendeu.
— O rapaz é um bastardo nascido da traição, incesto e adultério, se é possível acreditar em Lorde Stannis. — O tom divertido tinha desaparecido de sua voz, e o capitão deu por si mesmo observando-a através de olhos semicerrados.
Sua irmã Obara usava o chicote no quadril e carregava uma lança onde qualquer um podia vê-la. A Senhora Nym não era menos mortífera, embora mantivesse as suas facas bem escondidas. — Só sangue real pode limpar o assassinato de meu pai.
— Oberyn morreu durante combate singular, lutando por um assunto que não lhe dizia respeito. Não chamo a isso de assassinato.
— Chame do que quiser. Enviamos-lhes o melhor homem de Dorne, e eles nos mandam de volta um saco de ossos.
— Ele foi além de qualquer coisa que eu lhe pedi. “Avalie esse rei menino e seu conselho, e tome nota de seus pontos fortes e fracos”, eu disse a ele, na varanda. Estávamos comendo laranjas. “Encontre para nós amigos, se for possível encontrar algum. Descubra o que possa sobre o fim de Elia, mas trate de não provocar indevidamente o Lorde Tywin”, essas foram minha palavras para ele. Oberyn riu e disse: “Quando foi que eu provoquei qualquer homem… indevidamente? Você faria melhor em avisar aos Lannister para não me provocarem.” Ele queria justiça por Elia, mas não quis esperar…
— Ele esperou dezessete anos. — Interrompeu a Senhora Nym. — Se fosse a você que eles tivessem matado, meu pai teria levado seus vassalos para o norte antes que seu cadáver esfriasse. Se fosse você, as lanças estariam caindo como chuva agora.
— Não duvido disso.
— Assim como não deve duvidar disso, meu príncipe: minhas irmãs e eu não esperaremos dezessete anos por nossa vingança. — Ela enterrou as esporas na égua e desapareceu a galope na direção de Lançassolar, perseguida a grande velocidade por sua comitiva.
O príncipe recostou-se nas almofadas e fechou os olhos, mas Hotah sabia que ele não estava dormindo. Ele estava com dores. Por um momento pensou em chamar o Meistre Caleotte até a liteira, mas se o Príncipe Doran o quisesse, ele mesmo o teria chamado.
As sombras da tarde tornaram-se longas e escuras, o sol tão vermelho e inchado como as articulações do príncipe, antes que eles vislumbrassem as torres de Lançassolar a leste. Primeiro a esguia Torre da Lança, com quarenta e cinco metros de altura e coroada com uma lança de aço dourada que lhe acrescentava outros nove metros; em seguida, a grandiosa Torre do Sol, com sua cúpula de ouro e vidro; e por fim, o Navio de Areia de cor parda, que se parecia a uma gigantesca dromunda que tinha se chocado à costa e se transformado em pedra.
Apenas três léguas de estrada costeira separavam Lançassolar dos Jardins de Água, mas tratava-se de dois mundos diferentes. Lá, as crianças divertiam-se nuas ao sol, música era tocada em pátios azulejados, e o ar estava perfumado com o cheiro penetrante dos limões e laranjas de sangue. Aqui, o ar cheirava a poeira, suor e fumaça, e as noites eram vivas com o murmúrio de vozes. Em vez do mármore cor-de-rosa dos Jardins de Água, Lançassolar foi construída a partir do barro e palha, toda em tons de marrom e castanho. A antiga fortaleza da Casa Martell erguia-se na extremidade mais oriental de uma pequena saliência de pedra e areia, com o mar cercando três dos seus lados. A oeste, à sombra das maciças muralhas de Lançassolar, lojas de adobe e casebres sem janelas agarravam-se ao castelo como cracas ao casco de uma galé. Estábulos, estalagens, tabernas e casas de almofadas tinham crescido a oeste das lojas e dos casebres, muitos rodeados por seus próprios muros, e mais casebres tinham se erguido à sombra desses muros. E por aí a fora, e assim por diante, como diriam os sacerdotes barbudos.
Comparada com Tyrosh, Myr ou com a Grande Norvos, a cidade sombria não era mais que uma vila, mas era a coisa mais próxima a uma cidade de verdade que aqueles dorneses possuíam.
A chegada da Senhora Nym precedera a deles por algumas horas, e não havia dúvidas de que ela tinha avisado aos guardas de sua vinda, pois o Portão Triplo encontrava-se aberto quando se aproximaram. Só ali os portões estavam alinhados um atrás do outro para permitir que os visitantes passassem direto sob todas as três Muralhas Sinuosas e se dirigissem diretamente ao Palácio Antigo sem terem primeiro que passar através de quilômetros de ruas estreitas, pátios escondidos e bazares ruidosos.
O Príncipe Doran fechara as cortinas de sua liteira assim que a Torre da Lança tornou-se visível, mas mesmo assim o povo gritou-lhe enquanto a liteira passava. As Serpentes da Areia os fizeram ferver, pensou o capitão, preocupado. 
Hotah desistiu de procurar por quem falava; a multidão era muito densa, e um terço dela estava gritando. “Às lanças! Vingança pela Víbora!” No momento em que atingiram o terceiro portão, os guardas estavam empurrando as pessoas para os lados, a fim de abrir caminho para a liteira do príncipe, e a multidão atirava coisas. Um rapaz esfarrapado conseguiu passar correndo pelos lanceiros com uma romã meio podre em uma mão, mas quando viu Areo Hotah em seu caminho com seu machado pronto, deixou a fruta cair e bateu em rápida retirada. Outros mais atrás jogaram limões, limas e laranjas, gritando “Guerra! Guerra! Às lanças!”. Um dos guardas foi atingido no olho por um limão, e o próprio capitão viu uma laranja se arrebentar em seu pé.
Nenhuma resposta veio de dentro da liteira. Doran Martell mantevese oculto no interior de suas paredes de seda até que as muralhas mais grossas do castelo engoliram a todos eles, e a ponte levadiça desceu atrás deles com um estrondo chocalhante. A gritaria desapareceu gradualmente. A Princesa Arianne estava esperando no pátio exterior para saudar seu pai com metade da corte ao seu redor: o velho e cego senescal Ricasso, Sor Manfrey Martell, o castelão, o jovem Meistre Myles com suas vestes cinzentas e barba sedosa e perfumada, quarenta cavaleiros de Dorne vestidos em linho leve de meia centena de cores. A pequena Myrcella Baratheon estava acompanhada por sua septã e Sor Arys da Guarda Real, o qual sufocava em sua armadura esmaltada de branco.
A Princesa Arianne caminhou para a liteira em sandálias de pele de cobra atadas até as coxas. Seu cabelo era uma juba de caracóis negros como o azeviche que caíam até sua cintura, e em volta da testa trazia uma faixa de sóis de cobre. Ela ainda é uma coisinha pequena, pensou o capitão. Enquanto as Serpentes da Areia eram altas, Arianne parecia-se com a mãe, que não tinha mais de um metro e cinquenta e sete. Mas sob o seu cinturão incrustado de jóias e camadas soltas de leve seda púrpura e samito amarelo ela possuía um corpo de mulher, exuberante e cheio de curvas.
— Pai. — Anunciou quando as cortinas se abriram. — Lançassolar rejubila com o vosso regresso.
— Sim, eu ouvi o júbilo. — O príncipe sorriu languidamente e envolveu o rosto da filha com uma mão avermelhada e inchada. — Você parece bem. Capitão, tenha a bondade de me ajudar a descer daqui.
Hotah enfiou o machado na correia de couro que trazia às costas e pegou o príncipe em seus braços com delicadeza para não sacudir suas articulações inchadas. Mesmo assim, Doran Martell reprimiu um gemido de dor.
— Ordenei aos cozinheiros que preparassem um banquete para esta noite. — Disse Arianne — Com todos os seus pratos preferidos.
— Temo que não possa fazer justiça a ele. — O príncipe olhou lentamente o pátio a seu redor. — Não estou vendo Tyene.
— Ela suplica por uma conversa em particular. Mandei-a esperar sua chegada na sala do trono.
O príncipe suspirou.
— Muito bem. Capitão? Quanto mais depressa despachar isso, mais depressa posso descansar.
Hotah carregou-o pelas longas escadas de pedra da Torre do Sol até a grande sala redonda sob a cúpula, onde a última luz da tarde entrava em diagonal através de espessas janelas de vidro multicolorido e tingia o mármore pálido com losangos de meia centena de cores. Aí os esperava a terceira Serpente da Areia. Ela estava sentada de pernas cruzadas numa almofada sob o estrado onde se situavam os tronos, mas levantou-se quando entraram, trajando um vestido justo de samito azul-claro com mangas de renda de Myr que a fazia parecer tão inocente quanto a própria Donzela. Em uma mão segurava um pedaço de bordado em que estivera trabalhando, na outra um par de agulhas douradas. Seu cabelo também era dourado, e os olhos eram profundas lagoas azuis… e, no entanto, de alguma forma eles lembravam ao capitão os olhos de seu pai, embora os de Oberyn tivessem sido negros como a noite. Todas as filhas do Príncipe Oberyn têm os seus olhos de víbora, percebeu Hotah de repente. A cor não importa.
— Tio. — Disse Tyene Sand. — Tenho estado à sua espera.
— Capitão, me ajude a sentar no trono.
Havia dois tronos no estrado, quase gêmeos um do outro, exceto que um tinha a lança Martell folheada a ouro no espaldar, enquanto o outro ostentava o sol ardente de Roine, o mesmo que flutuava nos mastros dos navios de Nymeria quando eles chegaram a Dorne pela primeira vez. O capitão colocou o príncipe sob a lança e afastou-se.
— Dói muito? — A voz da Senhora Tyene era gentil, e ela parecia tão doce como morangos de verão. Sua mãe era uma septã, e Tyene possuía um ar de inocência quase de outro mundo sobre ela. — Há alguma coisa que eu possa fazer por você para aliviar sua dor?
— Diga-me o que tem a dizer e deixe-me descansar. Estou cansado,  Tyene.
— Fiz isto para você, tio. — Tyene desdobrou a peça que esteve bordando. Ela mostrava o pai, o Príncipe Oberyn, montado em um corcel cor de areia e envergando uma armadura vermelha, sorrindo. — Quando terminar ele será seu, para ajudá-lo a se lembrar dele.
— Não é provável que me esqueça do seu pai.
— É bom saber. Muitos têm tido dúvidas.
— O Lorde Tywin me prometeu a cabeça da Montanha.
— Ele é tão gentil… mas a espada de um carrasco não é um fim adequado para o bravo Sor Gregor. Temos rezado muito por sua morte, é apenas justo que ele reze por ela também. Eu conheço o veneno que o meu pai usava, e não há nenhum outro mais lento ou mais doloroso. Em breve poderemos ouvir a Montanha gritar, até mesmo aqui em Lançassolar.
O Príncipe Doran suspirou.
— Obara choraminga comigo pela guerra. Nym se contentaria com o assassinato. E você?
— A guerra. — Disse Tyene. — Embora não a guerra da minha irmã. Os dorneses lutam melhor em casa, então eu digo para afiarmos nossas lanças e esperar. Quando os Lannister e os Tyrell caírem sobre nós, os sangraremos nos passos e os enterraremos sob as areias sopradas pelo vento, como fizemos uma centena de vezes antes.
— Se eles caírem sobre nós.
— Oh, mas eles precisarão, se não quiserem ver o reino despedaçado de novo, como era antes de nos casarmos com os dragões. Foi meu pai que me disse isso. Ele disse que tinha que agradecer ao Duende por nos enviar a Princesa Myrcella. Ela é tão linda, não acha? Gostaria de ter caracóis como os dela. Foi feita para ser rainha, assim como sua mãe. — Covinhas apareceram nas bochechas de Tyene. — Eu ficaria honrada em organizar as bodas e também de orientar a fabricação das coroas. Trystane e Myrcella são tão inocentes que pensei que talvez ouro branco… com esmeraldas, para combinar com os olhos de Myrcella. Oh, diamantes e pérolas também serviriam, desde que os pequenos sejam casados e coroados. Então precisaremos apenas saudar Myrcella como a Primeira do Seu Nome, Rainha dos Ândalos, dos Roinares e dos Primeiros Homens, e legítima herdeira dos Sete Reinos de Westeros, e esperar que os leões venham.
— A herdeira legítima? — O príncipe fungou.
— Ela é mais velha do que seu irmão. — Explicou Tyene, como se ele fosse algum idiota. — Por lei, o Trono de Ferro deverá passar para ela.
— Pela lei de Dorne.
— Quando o bom Rei Dareon casou com a Princesa Myriah e nos juntou ao seu reino, foi acordado que em Dorne sempre dominaria a lei de Dorne. E acontece que Myrcella está em Dorne.
— Pois ela está. — Seu tom era relutante. — Deixe-me pensar sobre isso.
Tyenne zangou-se.
— Você pensa demais, tio.
— Penso?
— Meu pai dizia que sim.
— Oberyn não pensava o suficiente.
— Alguns homens pensam, porque têm medo de fazer. 
— Há uma diferença entre medo e cautela.
— Oh, eu preciso rezar para nunca vê-lo assustado, tio. Talvez se esqueça de respirar. — Ela ergueu uma mão…
O capitão bateu o cabo do machado contra o mármore com um estrondo surdo.
— Minha senhora, você já ultrapassou o limite. Afaste-se do estrado, por favor.
— Não pretendi ofender, capitão. Eu amo o meu tio, assim como sei que ele amava o meu pai. — Tyene ajoelhou-se perante o príncipe. — Disse tudo o que vim dizer, tio. Perdoe-me se te ofendi; meu coração está despedaçado. Ainda tenho o seu amor?
— Sempre.
— Dê-me então a sua bênção e eu partirei.
Doran hesitou durante meio segundo antes de colocar a mão na cabeça da sobrinha.
— Seja corajosa, filha.
— Oh, como não seria? Sou filha dele.
Assim que ela se retirou, o Meistre Caleotte correu para o estrado.
— Meu príncipe, ela não… aqui, deixe-me ver sua mão. — Ele examinou primeiro a palma, depois virou-a gentilmente ao contrário para farejar a parte de trás dos dedos do príncipe. — Não, ótimo. Muito bom. Não há arranhões, então…
O príncipe retirou a mão.
— Meistre, eu poderia incomodá-lo por um pouco de leite de papoula? Um dedal será suficiente.
— A papoula. Sim, com certeza.
— Agora, eu acho. — Insistiu Doran Martell com gentileza, e Caleotte correu para as escadas.
Lá fora, o sol tinha se posto. A luz dentro da cúpula era o azul do crepúsculo, e todos os losangos no chão estavam expirando-se. O príncipe continuava sentado em seu trono sob a lança Martell, o rosto pálido de dor.
Após um longo silêncio, ele virou-se para Areo Horah.
— Capitão — Ele disse — Quantos de meus guardas são leais?
— Leais. — O capitão não sabia o que mais dizer.
— Todos eles? Ou alguns?
— Eles são homens de bem. Bons homens de Dorne. Cumprirão as minhas ordens. — Ele bateu com o machado no chão. — Trarei a cabeça de qualquer homem que te traia.
— Não quero cabeças. Quero obediência.
— É sua. — Servir. Obedecer. Proteger. Votos simples para um homem simples. — Quantos homens são necessários?
— Deixarei isso ao seu critério. Pode ser que alguns homens de boa vontade nos sirvam melhor do que vinte. Quero isso feito tão rápida e silenciosamente como for possível, sem derramamento de sangue.
— Rápido, silencioso e sem derramamento de sangue, sim senhor. Quais são suas ordens?
— Você vai encontrar as filhas do meu irmão, levá-las sob custódia, e confiná-las nas celas do topo da Torre da Lança.
— As Serpentes da Areia? — A garganta do capitão estava seca. — Todas… todas as oito, meu príncipe? As pequenas também?
O príncipe refletiu sobre aquilo.
— As meninas de Ellaria são jovens demais para serem um perigo, mas há aqueles que poderiam procurar usá-las contra mim. Seria melhor mantê-las a salvo e ao nosso alcance. Sim, as pequenas também… mas primeiro prenda Tyene, Nymeria e Obara.
— Às suas ordens, meu príncipe. — Seu coração estava perturbado. Minha princesinha não irá gostar disso. — E Sarella? Ela é uma mulher feita, quase com vinte anos.
— A menos que ela retorne para Dorne, não há nada que eu possa fazer a respeito de Sarella, exceto rezar para que mostre mais bom senso do que as irmãs. Deixe-a com o seu… jogo. Reúna as outras. Não dormirei até saber que estão em segurança e sob guarda.
— Será feito. — O capitão hesitou. — Quando isso for conhecido nas ruas, o povo irá fazer barulho.
— Toda a Dorne fará barulho. — Disse Doran Martell numa voz cansada. — Só rezo para que o Lorde Tywin os ouça em Porto Real, para que fique sabendo como é leal o amigo que tem em Lançassolar.
 
Sonhou que estava sentada no Trono de Ferro, bem alto acima de todos eles.
Os cortesãos eram ratos brilhantemente coloridos lá em baixo. Grandes senhores e orgulhosas senhoras ajoelhavam perante si. Valentes jovens cavaleiros depositavam as espadas aos seus pés e suplicavam-lhe favores, e a rainha sorria-lhes. Até que o anão apareceu, como que vindo de parte nenhuma, apontando para ela e uivando de riso. Os senhores e as senhoras começaram também a soltar risinhos, escondendo os sorrisos atrás das mãos. Foi só então que a rainha se percebeu que estava nua.
Horrorizada, tentou cobrir-se com as mãos. As farpas e lâminas do Trono de Ferro morderam-lhe a carne quando se abaixou para esconder a vergonha. O sangue escorreu vermelho, pelas pernas abaixo, enquanto dentes de aço lhe roíam as nádegas. Quando tentou levantar, enfiou o pé numa fenda no metal retorcido. Quanto mais lutava, mais o trono a engolia, arrancando pedaços de carne dos seus seios e barriga, cortando-lhe os braços e pernas até os deixar cintilantes de vermelho.
E o irmão não parava de brincar lá em baixo, rindo.
O divertimento dele ainda lhe ecoava aos ouvidos quando sentiu um leve toque no ombro e acordou de repente. Durante meio segundo, a mão pareceu fazer parte do pesadelo, e Cersei gritou, mas era apenas Senelle. O rosto da criada estava branco e assustado.
Não estamos sós, apercebeu-se a rainha. Sombras erguiam-se à volta da sua cama, silhuetas altas com cota de malha brilhando debilmente por baixo dos seus mantos. Homens armados não tinham nada a fazer ali. Onde estão os meus guardas? O quarto encontrava-se mergulhado na escuridão, à exceção da lanterna que um dos intrusos segurava bem alto. Não posso mostrar medo. Cersei afastou para trás cabelos desgrenhados pelo sono, e disse:
— Que quereis de mim? — Um homem avançou para baixo da luz da lanterna e ela viu que o manto dele era branco. — Jaime? — Sonhei com um irmão, mas o outro veio acordar-me.
— Vossa Graça? — A voz não era a do irmão. — O Senhor Comandante disse para virmos te buscar.—O cabelo dele encaracolava-se, como o de Jaime, mas o cabelo do irmão era ouro batido, tal como o dela, ao passo que o deste homem era negro e oleoso. Fitou-o, confusa, enquanto ele resmungava qualquer coisa acerca de uma latrina e uma besta, e dizia o nome do pai. Ainda estou a sonhar, pensou Cersei. Não acordei, e o meu pesadelo não terminou. Tyrion sairá em breve a gatinhar de debaixo da cama e começará a rir de mim.
Mas isso era uma loucura. O irmão anão encontrava-se nas celas negras, condenado a morrer precisamente naquele dia. Olhou para as mãos, virando-as para se certificar de que ainda lá tinha todos os dedos. Quando passou uma mão pelo braço, a pele estava eriçada em pele de galinha, mas sem golpes. Não havia cortes nas suas pernas, nenhum rasgão nas solas dos pés. Um sonho, foi só isso, um sonho. Bebi demasiado na noite passada, estes medos são só humores nascidos do vinho. Quem rirá serei eu, ao chegar o ocaso. Os meus filhos estarão a salvo, o trono de Tommen estará seguro, e o meu retorcido pequeno valonqar terá uma cabeça a menos e estará a apodrecer.
Jocelyn Swyft estava junto ao seu cotovelo, pressionando-a para que pegasse numa taça. Cersei bebeu um gole: água, misturada com umas gotas de limão, tão azeda que a cuspiu. Ouvia o vento noturno a agitar as janelas, e via com uma estranha clareza penetrante. Jocelyn estava a tremer como uma folha, tão assustada como Senelle. Sor Osmund Kettleblack pairava acima dela. Atrás dele encontrava-se Sor Boros Blount, com uma lanterna. À porta havia guardas Lannister com leões dourados a cintilar no topo dos capacetes. Também pareciam assustados. Poderá ser? perguntou a rainha a si própria. Poderá ser verdade?
Ergueu-se, e permitiu que Senelle lhe pusesse um roupão sobre os ombros para esconder a sua nudez. Foi a própria Cersei a atar o cinto, sentindo os dedos rígidos e desastrados.
          — O senhor meu pai mantém guardas à sua volta, de noite e de dia — disse. Sentia a língua pesada. Bebeu outro gole de água com limão e bochechou com ela para lhe refrescar o hálito. Uma mariposa entrara na lanterna que Sor Boros segurava; conseguia ouvi-la a zumbir e via a sombra das suas asas enquanto ela batia no vidro.
— Os guardas estavam nos seus postos, Vossa Graça — disse Osmund Kettleblack. — Encontramos uma porta escondida atrás da lareira. Uma passagem secreta. O Senhor Comandante desceu para ver onde vai dar.
— Jaime? — O terror capturou-a, súbito como uma tempestade. — O Jaime devia estar com o rei…
— O rapaz nada sofreu. Sor Jaime enviou uma dúzia de homens para ver como ele se encontrava. Sua Graça está pacificamente a dormir. 
Que tenha um sonho melhor do que o meu, e um acordar mais suave.
— Quem está com o rei?
— Sor Loras tem essa honra, se vos aprouver.
Não aprazia. Os Tyrell não passavam de intendentes que os reis do dragão tinham elevado muito acima do seu estatuto. A sua vaidade era apenas excedida pela sua ambição. Sor Loras podia ser tão lindo como um sonho de donzela, mas por baixo do manto branco era Tyrell até ao osso. Tanto quanto sabia, o maligno fruto daquela noite fora plantado e nutrido em Jardim de Cima. Mas essa era uma suspeita que não se atrevia a exprimir em voz alta.
— Permiti-me um momento para que me vista. Sor Osmund, acompanhe-me à Torre da Mão. Sor Boros desperte os carcereiros e certifique-se de que o anão continua na sua cela. — Não queria proferir o seu nome. Ele nunca teria encontrado coragem para erguer uma mão contra o pai, disse a si própria, mas tinha de ter a certeza.
— Às ordens de Vossa Graça. — Blount entregou a lanterna a Sor Osmund. Cersei não se sentiu insatisfeita por o ver pelas costas. O pai nunca lhe devia ter devolvido o branco. O homem provara ser um covarde.
Quando abandonaram a Fortaleza de Maegor, o céu tomara um profundo tom de azul-cobalto, embora as estrelas ainda brilhassem. Todas menos uma, pensou Cersei. A estrela brilhante do oeste caiu, e as noites serão agora mais escuras. Fez uma pausa sobre a ponte levadiça que transpunha o fosso seco, fitando os espigões, no fundo deste. Eles não se atreveriam a mentir-me acerca de uma coisa destas.
— Quem foi que o encontrou?
— Um dos seus guardas — disse Sor Osmund. — Lum. Sentiu o chamamento da natureza, e encontrou sua senhoria na latrina.
Não, isso não pode ser. Não é assim que um leão morre. A rainha sentia-se estranhamente calma. Lembrou-se da primeira vez que perdera um dente, quando não era mais que uma rapariguinha. Não doera, mas o buraco com que ficara na boca era tão estranho que não conseguia parar de o tocar com a língua. Agora há um buraco no mundo onde estava o pai, e os buracos querem algo que os encha.
Se Tywin Lannister estava realmente morto, ninguém se encontrava a salvo… principalmente o seu filho, no trono. Quando o leão cai, as feras menores avançam: os chacais, os abutres e os cães bravios. Iriam tentar pô-la de lado, como sempre tinham feito. Iria ter de se mover depressa, como quando Robert morrera. Aquilo podia ser obra de Stannis Baratheon, por intermédio de algum homem a soldo. Podia perfeitamente ser o prelúdio de outro ataque contra a cidade. Esperava que o fosse. Que ele venha. Vou esmagá-lo, tal como o pai fez, e desta vez morrerá. 
Stannis não a assustava mais do que Mace Tyrell. Ninguém a assustava. Era uma filha do Rochedo, um leão. Não haverá mais conversas acerca de me obrigarem a voltar a casar. O Rochedo Casterly era agora seu, com todo o poder da Casa Lannister.
Nunca mais ninguém a menosprezaria. Mesmo quando Tommen deixasse de ter necessidade de um regente, a Senhora de Rochedo Casterly continuaria a ser uma força a ter em conta.
O sol nascente pintara os topos das torres de um vermelho-vivo, mas a noite ainda se acumulava sob as muralhas. O castelo exterior estava tão silencioso que poderia imagina-lo com toda a gente morta. E devia estar. Não é próprio que o Lorde Tywin morra só. Um tal homem merece uma comitiva para cuidar das suas necessidades no inferno.
Quatro lanceiros com mantos vermelhos e elmos coroados por leões estavam colocados à porta da Torre da Mão.
— Ninguém deverá entrar ou sair sem a minha autorização — disse-lhes.
O comando veio-lhe fácil. O meu pai também tinha aço na voz.
Dentro da torre, a fumaça dos archotes irritou-lhe os olhos, mas Cersei não chorou, como o pai não teria chorado. Sou o único verdadeiro filho que ele teve. Os calcanhares raspavam na pedra enquanto subia, e ainda conseguia ouvir a mariposa a esvoaçar furiosamente dentro da lanterna de Sor Osmund. Morre, pensou a rainha, irritada, voa para a chama e acaba com isso.
No topo da escada encontravam-se mais dois guardas de mantos vermelhos. O Lester Vermelho murmurou uma condolência quando ela passou. A respiração da rainha estava rápida e pouco profunda, e ela sentia o coração a tamborilar no peito. Os degraus, disse a si própria, esta maldita torre tem degraus a mais. Estava meio decidida a deita-la abaixo.
O salão estava cheio de palermas que falavam em murmúrios, como se o Lorde Tywin estivesse a dormir e tivessem medo de o acordar. Tanto os guardas como os criados se encolhiam perante ela, com as bocas a adejar. Via-lhes as gengivas cor-de-rosa e as línguas a abanar, mas as suas palavras não faziam mais sentido do que o zumbido da mariposa. Que estão eles a fazer aqui? Como souberam? O correto teria sido chamarem-na primeiro.
Ela era a Rainha Regente, tinham esquecido disso?
À porta do quarto da Mão encontrava-se Sor Meryn Trant com a sua armadura e manto brancos. A viseira do seu elmo estava aberta, e os papos sob os olhos davam-lhe um ar de quem ainda estava meio a dormir.
— Levai esta gente daqui — disse-lhe Cersei. — O meu pai está na latrina?— Levaram-no de volta para a cama, senhora. — Sor Meryn abriu a porta para ela entrar.
A luz da manhã entrava em diagonal através das portadas, e ia pintar barras douradas nas esteiras espalhadas pelo chão do quarto. O tio Kevan estava de joelhos ao lado da cama, tentando rezar, mas quase não conseguia forçar as palavras a sair. Guardas aglomeravam-se perto da lareira. A porta secreta de que Sor Osmund falara encontrava-se escancarada por trás das cinzas, não ultrapassando o tamanho de um forno. Um homem teria de gatinhar.
Mas Tyrion é só meio homem. O pensamento irritou-a. Não, o anão está trancado numa cela negra. Aquilo não podia ser obra sua. Stannis, disse a si própria, é Stannis quem está por trás disto. Ele ainda tem partidários na cidade. Ele, ou os Tyrell…
Sempre se falara de passagens secretas no interior da Fortaleza Vermelha. Supunha-se que Maegor, o Cruel, tinha morto os homens que construíram o castelo para manter o conhecimento sobre elas secreto.
Quantos outros quartos terão portas escondidas? Cersei teve uma súbita visão do anão a sair de gatas de detrás de uma tapeçaria no quarto de Tommen com uma lâmina na mão. Tommen está bem guardado, disse a si própria. Mas o Lorde Tywin também estivera bem guardado.
Por um momento, não reconheceu o morto. Sim, tinha um cabelo semelhante ao do pai, mas aquele era decerto outro homem qualquer, um homem mais pequeno, e muito mais velho. Tinha o roupão puxado para cima em redor do peito, o que o deixava nu abaixo da cintura. O dardo atingira-o na virilha, entre o umbigo e o membro viril, e penetrara tão profundamente que apenas se viam as penas. Os pêlos púbicos tinham sido deixados rígidos pelo sangue seco. Mais sangue coagulava no umbigo. O cheiro que ele exalava a fez franzir o nariz.
— Tirai-lhe o dardo do corpo — ordenou. — Este homem é a Mão do Rei! — E o meu pai. O senhor meu pai. Deveria gritar e arrancar os cabelos?
Dizia-se que Catelyn Stark rasgara o próprio rosto em tiras sangrentas quando os Frey lhe mataram o precioso Robb. Gostarias disso, pai?, desejou perguntar-lhe. Ou quererias que eu fosse forte? Choraste pelo teu pai?
O avô morrera quando Cersei tinha apenas um ano de idade, mas conhecia a história. O Lorde Tytos tornara-se muito gordo, e o coração rebentara-lhe um dia, enquanto subia as escadas para ir ter com a amante. O pai de Cersei encontrava-se em Porto Real quando isso acontecera, servindo como Mão do Rei Louco. Lorde Tywin estivera com frequência em Porto Real quando ela e Jaime eram jovens. Se ele chorara quando lhe trouxeram a notícia da morte do pai, fizera-o onde ninguém pudesse ver as lágrimas.
A rainha sentia as unhas a enterrar-se nas palmas das mãos.
— Como pudestes deixa-lo assim? O meu pai foi Mão de três reis, o maior homem que alguma vez caminhou nos Sete Reinos. Os sinos têm de soar por ele, tal como soaram por Robert. Tem de ser banhado e vestido como é próprio do seu estatuto, de arminho, pano de ouro e seda carmesim.
— Onde está Pycelle? Onde está Pycelle? — Virou-se para os guardas. — Puckens, traga aqui o Grande Meistre Pycelle. Ele tem de ver Lorde Tywin.
— Ele já o viu, Vossa Graça — disse Puckens. — Veio, viu e foi-se, para chamar as irmãs silenciosas. 
Foram me buscar em último lugar. Perceber daquilo deixou-a quase demasiado furiosa para falar. E Pycelle corre a enviar uma mensagem em vez de sujar as suas mãos moles e enrugadas. O homem é um inútil. — Encontre o Meistre Ballabar — ordenou. — Encontre o Meistre Frenken. Qualquer um dos dois. — Puckens e o Orelha-Curta correram a obedecer.
— Onde está o meu irmão?
— Lá em baixo no túnel. Há um poço, com degraus de ferro presos à pedra. Sor Jaime foi ver até que profundidade chega.
Ele só tem uma mão, quis gritar-lhes. Devia ter sido um de vós a ir. Ele não tem nada que andar a trepar escadas. Os homens que assassinaram o pai podem estar lá em baixo, à espera dele.
O gêmeo sempre fora demasiado impetuoso, e, segundo parecia, nem mesmo perder uma mão o ensinara a ter cautela. Apressava a ordenar aos guardas para descerem à sua procura e o trazerem de volta quando Puckens e o Orelha-Curta regressaram com um homem de cabelo grisalho entre os dois.
— Vossa Graça — disse o Orelha-Curta — este diz que era um meistre. — O homem fez uma profunda vénia.
— Como posso servir Vossa Graça?
O rosto do homem era-lhe vagamente familiar, embora não fosse capaz de o situar. Velho, mas não tão velho como Pycelle. Este ainda tem em si alguma força. Era alto, embora tivesse as costas ligeiramente tortas, e mostrava rugas em volta dos ousados olhos azuis. Tem a garganta nua.
— Não usais corrente de meistre.
— Foi-me tirada. O meu nome é Qyburn, se aprouver a Sua Graça. Tratei a mão do vosso irmão.
— O seu coto, quereis vós dizer. — Agora se lembrava dele. Viera com Jaime de Harrenhal.
— Não consegui salvar a mão de Sor Jaime, é verdade. As minhas artes salvaram-lhe o braço, porém, e talvez mesmo a vida. A Cidadela tiroume a corrente, mas não puderam tirar-me os conhecimentos.
— Talvez sejais suficiente — decidiu. — Se me falhar vai perder mais do que uma corrente, garanto. Tire o dardo da barriga do meu pai e prepare-o para as irmãs silenciosas.
— Às ordens da minha rainha. — Qyburn dirigiu-se à cama, fez uma pausa, olhou para trás.
— E como é que lido com a garota, Vossa Graça?
— Garota? — Cersei não reparara no segundo corpo. Aproximou-se a passos largos da cama, atirou para o lado a pilha de colchas ensangüentadas e lá estava ela, nua, fria, e rosada… exceto a cara, que se tornara tão negra como a de Joff no banquete de casamento. Uma corrente de mãos de ouro ligadas umas às outras estava meio enterrada na carne da sua garganta, torcida com tanta força que lhe rasgara a pele. Cersei silvou como uma gata irritada.
— Que está ela a fazer aqui?
— Encontramos ela ali, Vossa Graça — disse o Orelha-Curta. — É a rameira do Duende. — Como se isso explicasse porque estava ela ali.
O senhor meu pai não tinha nenhuma utilidade a dar a rameiras, pensou. Depois da nossa mãe morrer, nunca tocou numa mulher. Deitou ao guarda um olhar gelado.
— Isto não é… quando o pai de Lorde Tywin morreu, ele regressou a Rochedo Casterly e foi encontrar uma… uma mulher desta espécie… adornada com as jóias da senhora sua mãe, usando um dos seus vestidos. Ele arrancou-lhes, e arrancou tudo o mais também. Durante uma quinzena, ela foi obrigada a desfilar nua pelas ruas de Lanisporto, para confessar a todos os homens que encontrasse que era ladra e meretriz. Era assim que o Lorde Tywin Lannister lidava com rameiras. Ele nunca… esta mulher estava aqui para outro fim qualquer, não para…
— Talvez sua senhoria estivesse a interrogar a garota acerca da sua ama — sugeriu Qyburn. — Sansa Stark desapareceu na noite em que o rei foi assassinado, segundo ouvi dizer.
— É verdade. — Cersei adotou avidamente a sugestão. — Estava a Interroga-la com certeza. Não pode haver qualquer dúvida. — Conseguia ver Tyrion a olhá-la de esguelha, com a boca torcida num esgar de macaco sob as ruínas do nariz. E que melhor maneira de a interrogar do que nua, com as pernas bem abertas? Sussurrou o anão. Também é assim que eu gosto de a interrogar.
A rainha virou as costas à cena. Não olharei para ela. De súbito, até estar na mesma sala da morta era demasiado. Passou por Qyburn com um empurrão e saiu para o salão. Sor Osmund estava em companhia dos irmãos Osney e Osfryd.
— Há uma mulher morta no quarto da Mão — disse Cersei aos três Kettleblack. — Ninguém deverá saber que ela estava aqui.
— Sim, senhora. — Sor Osney tinha tênues arranhões no rosto, onde outra das rameiras de Tyrion o tinha esgatanhado.
— E o que faremos com ela?
— De aos seus cães. Mantenha a como companheira de cama. Que me importa? Ela nunca esteve aqui. Mandarei cortar a língua de qualquer homem que se atreva a dizer que esteve. Me compreendem?
Osney e Osfryd trocaram um olhar.
— Sim, Vossa Graça.
Seguiu-os de volta ao quarto e ficou os vendo enrolarem a garota nos cobertores ensanguentados do pai. Shae, o nome dela era Shae. A última vez que tinham conversado fora na noite anterior ao julgamento por combate do anão, depois daquele dornês sorridente se ter oferecido como seu campeão. Shae inquirira acerca de umas jóias que Tyrion lhe oferecera, e de certas promessas que Cersei poderia ter feito, uma mansão na cidade e um cavaleiro que a desposasse. A rainha tornara claro que a rameira não obteria nada dela até que lhes dissesse para onde fora Sansa Stark.
— Era a aia dela. Espera que eu acredite que não sabia nada de seus planos? — dissera. Shae partira lavada em lágrimas.
Sor Osfryd pôs o cadáver entrouxado ao ombro.
— Quero aquela corrente — disse Cersei. — Assegure-se de não riscar o ouro. — Osfryd acenou com a cabeça e dirigiu-se à porta.
— Não, pelo pátio não. — Gesticulou para a passagem secreta. — Há um poço que vai dar às masmorras. Por ali.
Quando Sor Osfryd se apoiou num joelho à frente da lareira, a luz lá dentro tornou-se mais brilhante, e a rainha ouviu ruídos. Jaime emergiu, dobrado sobre si próprio como uma velha, com as botas a fazer voar nuvenzinhas de fuligem do último fogo de Lorde Tywin.
— Sai da minha frente — disse aos Kettleblack. Cersei correu para ele.
— Encontrou? Encontrou os assassinos? Quantos eram? — Decerto que teriam sido mais do que um. Um homem sozinho não poderia ter morto o pai deles.
O rosto do gêmeo trazia um ar descomposto.
— O poço desce até uma câmara onde se encontram meia dúzia de túneis. Estão fechados por portões de ferro, acorrentados e trancados. Tenho de encontrar chaves. — Lançou um relance pelo quarto. — Quem quer que tenha feito isto pode ainda estar escondido nas paredes. Aquilo ali é um labirinto, e escuro. — Cersei imaginou Tyrion a gatinhar entre as paredes como uma ratazana monstruosa. Não. Está sendo tola. O anão está na sua cela.
— Arrebenta as paredes com martelos. Põe esta torre abaixo, se tiver de ser. Quero-os encontrados. Quem quer que tenha feito isto. Quero-os mortos. Jaime abraçou-a, com a mão boa a apertar-lhe o fundo das costas. Ele cheirava a cinza, mas tinha o sol da manhã no cabelo, dando-lhe um brilho dourado. Desejou puxar a cara dele para a sua e beija-lo. Mais tarde, disse a si própria, ele mais tarde virá ter comigo, para me confortar.
— Somos os seus herdeiros, Jaime — sussurrou. — Nos cabe terminar a sua obra. Tens de tomar o lugar do pai como Mão. Agora vês isso, certamente. Tommen irá precisar de ti… Ele afastou-a e ergueu o braço, pondo-lhe o coto em frente dos olhos.
— Uma Mão sem mão? Mau gracejo, irmã. Não me peças para governar. — O tio ouviu a recusa. Qyburn também, e os Kettleblack igualmente, lutando para fazer passar a sua trouxa pelas cinzas. Até os guardas ouviram, Puckens e Hoke e o Perna de Cavalo e o Orelha-Curta. Todo o castelo saberá ao cair da noite. Cersei sentiu o calor a subir-lhe ao rosto.
— Governar? Nada disse de governar. Eu governarei até o meu filho ter idade.
— Não sei de quem tenho mais pena — disse o irmão. — Se de Tommen, se dos Sete Reinos.
Ela esbofeteou-o. O braço de Jaime ergueu-se para apanhar o golpe, com a rapidez de um gato… mas aquele gato tinha um coto de aleijado no lugar de uma mão direita. Os dedos dela deixaram marcas vermelhas da sua face.
O som levou o tio a erguer-se.
— O vosso pai jaz aqui morto. Tende a decência de levar a discussão lá para fora. — Jaime inclinou a cabeça, num pedido de desculpa.
— Perdoai-nos, tio. A minha irmã está doente de dor. Ela esquece o que é próprio.
Cersei desejou voltar a esbofeteá-lo por aquilo. Devia estar louca quando pensei que ele podia ser Mão. Mais depressa aboliria o cargo.
Quando lhe teria uma Mão trazido algo além de pesar? Jon Arryn pusera Robert Baratheon na sua cama, e antes de morrer começara também a farejar em volta dela e de Jaime. Eddard Stark apanhara o fio à meada onde Arryn o deixara; a sua intromissão forçara-a a livrar-se de Robert mais depressa do que teria desejado, antes de ter tempo de tratar dos seus pestilentos irmãos. Tyrion vendera Myrcella aos dorneses, tomara um dos seus filhos como refém e assassinara o outro. E quando Lorde Tywin regressara a Porto Real… O próximo Mão conhecerá o seu lugar, prometeu a si própria.
Teria de ser Sor Kevan. O tio era incansável, prudente, infalivelmente obediente. Poderia contar com ele, tal como o pai contara. A mão não discute com a cabeça. Tinha um reino para governar, mas teria necessidade de novos homens para a ajudar a governa-lo. Pycelle era um lambe botas trêmulo, Jaime perdera a coragem com a mão da espada, e Mace Tyrell e os seus amiguinhos Redwyne e Rowan não eram dignos de confiança. Tanto quanto sabia, podiam ter desempenhado um papel naquilo. O Lorde Tyrell tinha de saber que nunca governaria os Sete Reinos enquanto Tywin Lannister vivesse.
Terei de me mover com cautela relativamente a esse. A cidade estava cheia dos seus homens, e ele até conseguira plantar um dos seus filhos na Guarda Real, e pretendia plantar a filha na cama de Tommen.
Ainda a deixava furiosa pensar que o pai concordara em prometer Tommen a Margaery Tyrell. A garota tem o dobro da idade dele e é duas vezes viúva. Mace Tyrell afirmava que a filha ainda era virgem, mas Cersei tinha as suas dúvidas. Joffrey fora assassinado antes de se poder deitar com a garota, mas ela fora primeiro casada com Renly… Um homem pode preferir o sabor do hipocraz, mas se puser uma caneca de cerveja na sua frente, emborca-a bem depressa. Teria de ordenar ao Lorde Varys para descobrir o que pudesse.
Aquilo a fez estacar. Esquecera-se de Varys. Ele devia estar aqui. Está sempre aqui. Sempre que algo de importância acontecia na Fortaleza Vermelha, o eunuco aparecia como que saído de parte nenhuma.
Jaime está aqui, bem como o tio Kevan, Pycelle chegou e partiu, mas Varys não. Um dedo frio tocou-lhe a espinha. Ele participou nisto. Deve ter temido que o pai quisesse cortar-lhe a cabeça, portanto atacou primeiro.
O Lorde Tywin nunca sentira nenhuma amizade pelo afetado mestre dos sussurros. E se havia homem que conhecia os segredos da Fortaleza Vermelha, era certamente o mestre dos sussurros. Ele deve ter feito causa comum com Lorde Stannis. Afinal de contas, serviram juntos no conselho de Robert…
Cersei dirigiu-se à porta do quarto, para falar com Sor Meryn Trant.
— Trant, traga-me o Lorde Varys. Guinchando e esperneando, se tiver de ser, mas ileso.
— Às ordens de Sua Graça.
Mas assim que um homem da Guarda Real partiu, outro regressou. Sor Boros Blount estava corado e ofegava da corrida precipitada pelos degraus acima.
— Desapareceu — arquejou, quando viu a rainha. Caiu sobre um joelho. — O Duende… tem a cela aberta, Vossa Graça… não há sinal dele em sítio nenhum… — O sonho era verdadeiro.
— Eu dei ordens — disse. — Ele deveria ser mantido sob guarda, de dia e de noite…
O peito de Blount palpitava.
— Um dos carcereiros também desapareceu. Chamava-se Rugen.
Dois outros homens foram encontrados a dormir.
Foi com dificuldade que evitou gritar.
— Espero que não os tenha acordado, Sor Boros. Deixe-os dormir.
— Dormir? — Ergueu o olhar, queixudo e confuso. — Sim, Vossa Graça. Quanto tempo deverá…
— Para sempre. Certifique-se de que eles durmam para sempre, sor. Não admitirei que guardas durmam em serviço. — Ele está nas paredes. Ele matou o pai, tal como matou a mãe, e tal como matou Joff.
O anão também viria atrás dela, a rainha sabia, tal como a velha vaticinara na escuridão daquela tenda. Eu ri na cara dela, mas a mulher tinha poderes. Vi o meu futuro numa gota de sangue. A minha perdição.
Sentia as pernas fracas como água. Sor Boros tentou pegar-lhe no braço, mas a rainha afastou-se do seu toque. Tanto quanto sabia, ele podia ser uma das criaturas de Tyrion.
— Afaste-se de mim — disse. — Afaste-se! — Cambaleou até um
banco.
— Vossa Graça? — disse Blount. — Deverei ir buscar uma taça de água? — Eu preciso é de sangue, não de água. O sangue de Tyrion, o sangue do valonqar.
Os archotes rodopiaram à sua volta. Cersei fechou os olhos, e viu o anão a sorrir-lhe. Não, pensou, não, já me tinha quase visto livre de ti. Mas os dedos dele tinham-se fechado em torno do seu pescoço, e sentia-os a começar a apertar.
 
Quando a procura de uma donzela de treze anos — disse ela à dona de casa de cabelo grisalho junto ao poço da aldeia. — Uma donzela bem nascida e muito bela, com olhos azuis e cabelo ruivo. Ela pode ter viajado com um cavaleiro corpulento de quarenta anos, ou talvez com um bobo. Você a viu?
— Que eu me lembre não, sor. — disse a mulher batendo na testa com os nós dos dedos. — Mas vou ficar alerta, ah isso vou. 
O ferreiro também não a tinha visto, e o septão da aldeia também não, ou a moça que arrancava cebolas do seu jardim, ou qualquer outra das pessoas simples que a Donzela de Tarth encontrou entre as cabanas de taipa de Rosby. Mesmo assim, ela persistiu. Este é o caminho mais curto para Valdocaso, Brienne disse a si mesma. Se Sansa veio por aqui, alguém deve tê-la visto. Aos portões do castelo fez a sua pergunta aos dois lanceiros cujas divisas mostravam três asnas vermelhas em arminho, as armas da Casa Rosby.
— Se ela está na estrada por estes dias, não será donzela por muito tempo — disse o homem mais velho. O mais novo quis saber se a moça era também ruiva entre as pernas.
Aqui não encontrarei ajuda. Quando Brienne voltou a montar, vislumbrou um rapaz magro em cima de um cavalo malhado na outra ponta da aldeia.
Não falei com aquele, pensou, mas o rapaz desapareceu atrás do septo antes dela ter tempo de interrogá-lo. Não se incomodou em segui-lo. O mais certo era ele não saber mais do que os outros. Rosby pouco mais era do que um sítio mais largo na estrada; Sansa não teria motivo algum para se demorar ali. Regressando à estrada, Brienne seguiu para o norte e para o leste, passando por pomares de macieiras e campos de cevada, e rapidamente deixou a aldeia e o seu castelo bem para trás. Seria em Valdocaso que encontraria a sua presa, disse ela a si própria. Se é que Sansa veio nesta direção.
— Encontrarei a moça e a manterei a salvo — prometera Brienne a Sor Jaime, em Porto Real. 
— Pelo amor de sua velha mãe. E por vós. — Nobres palavras, mas proferir palavras era fácil. Agir era difícil. Demorara-se demasiado e ficara a saber muito pouco na cidade. Devia ter partido mais cedo… mas para onde?
Sansa Stark desaparecera na noite em que o Rei Joffrey morrera, e se alguém a vira desde então, ou tivera algum indício do local para onde ela poderia ter ido, não falavam. Pelo menos, não para mim.
Brienne estava convencida de que a moça deixara a cidade. Se ainda estivesse em Porto Real, os homens de mantos dourados a teriam encontrado. Tinha de ter ido para outro lugar… mas o outro lugar é um lugar muito grande. Se eu fosse uma donzela acabada de florir, sozinha e assustada, em desesperado perigo, o que faria? Perguntara a si mesma. Para onde iria? Para ela, a resposta foi simples. Regressaria a Tarth, para junto do pai. Mas o pai de Sansa fora decapitado na sua frente. A senhora sua mãe também estava morta, assassinada nas Gêmeas, e Winterfell, a grande fortificação dos Stark, fora saqueada e queimada, e transpassadas pela espada. Ela não tem um lar para onde correr, não tem pai, não tem mãe, não tem irmãos. Podia estar na vila seguinte, ou num navio com destino a Asshai; uma coisa parecia tão provável como a outra.
Mesmo se Sansa Stark quisesse ir para casa, como chegaria lá? A estrada do rei não era segura; até uma criança saberia disso. Os homens de ferro controlavam o Fosso Cailin no meio do Gargalo, e nas Gêmeas estavam os Frey, que tinham assassinado o irmão de Sansa e a senhora sua mãe. A moça podia ir por mar se tivesse dinheiro, mas o porto Porto Real continuava em ruínas, com o rio transformado numa confusão de cais quebrados e galés incendiadas e afundadas. Brienne fizera perguntas ao longo das docas, mas ninguém conseguia lembrar-se de um navio ter partido na noite em que o Rei Joffrey morrera. Alguns navios mercantes tinham vindo a ancorar na baía e a descarregar por intermédio de botes, dissera-lhe um homem, mas eram mais os que prosseguiam ao longo da costa até Valdocaso, cujo porto nunca tivera tanto movimento.
A égua de Brienne era linda de se ver, e manteve um belo ritmo. Havia mais viajantes do que teria imaginado ser possível. Irmãos mendigando passavam por ela com as tigelas penduradas ao pescoço. Um jovem septão passou a galope num palafrém tão fino como o de qualquer lorde, e mais tarde encontrou um bando de irmãs silenciosas que abanaram as cabeças quando Brienne lhe fez as suas perguntas. Um comboio de carros de bois arrastava-se penosamente para sul com cereais e sacas de lã, e mais tarde passou por um criador de porcos que levava uma vara de animais, e por uma velha numa liteira a cavalo com uma escolta de guardas montados.
 Perguntou a todos se teriam visto uma moça de nascimento elevado com treze anos, olhos azuis e cabelo ruivo. Nenhum vira. Interrogou-os também acerca da estrada que tinha em frente.    — Daqui a Valdocaso está bastante segura — disse-lhe um homem — mas depois de Valdocaso há foras da lei e homens quebrados na floresta.
Só os pinheiros marciais e as árvores sentinela ainda ostentavam verde; as árvores de folha caduca tinham vestido mantos de castanhoavermelhado e dourado, ou então haviam-se descoberto para arranhar o céu com ramos castanhos e nus. Cada rajada de vento fazia com que a estrada sulcada fosse atravessada por rodopiantes nuvens de folhas mortas. Faziam um som farfalhante ao esgueirar-se junto aos cascos da grande égua baia que Jaime Lannister lhe dera. É tão fácil encontrar uma folha no vento como uma moça perdida em Westeros. Deu por si a interrogar-se sobre se Jaime lhe teria atribuído aquela tarefa como uma cruel forma de gracejo. Talvez Sansa Stark estivesse morta, decapitada pelo papel desempenhado na morte do Rei Joffrey, enterrada em alguma sepultura anônima. Que melhor forma de esconder o seu assassinato do que enviar uma prostituta grande e estúpida de Tarth à sua procura?
 Jaime não faria isso. Ele foi sincero. Deu-me a espada, e a chamou de Cumpridora de Promessas. Fosse como fosse, não fazia diferença. Prometera à Senhora Catelyn que lhe traria as filhas de volta, e não havia promessa mais solene do que aquela feita aos mortos. A moça mais nova estava a muito morta, afirmava Jaime; a Arya que os Lannister tinham enviado para norte a fim de se casar com o bastardo de Roose Bolton era uma fraude. Só restara Sansa. Brienne tinha de encontra-la.
Perto do crepúsculo, viu uma fogueira de acampamento a arder ao lado de um regato. Dois homens encontravam-se sentados junto dela grelhando trutas, com as armas e armaduras empilhadas por baixo de uma árvore. Um deles era velho e o outro algo mais novo, embora estivesse longe de ser jovem. O homem mais novo ergueu-se para saudá-la. Tinha uma grande barriga que lhe esticava os cordões do seu gibão malhado de pele de corça. Uma barba desgrenhada e por aparar cobria-lhe o rosto e o queixo da cor de ouro antigo. — Temos truta o bastante para três, sor — gritou. Não era a primeira vez que Brienne era confundida com um homem. Tirou o elmo, deixando que o cabelo se derramasse, livre. Era amarelo, da cor de palha seca, e quase igualmente quebradiço. Longo e fino, foi soprado em volta dos seus ombros.
— Agradeço, sor.
O cavaleiro andante semicerrou os olhos com tal zelo que ela compreendeu que o homem devia ser míope. — É uma senhora? Armada e vestida de armadura? Illy, pela bondade dos deuses, o tamanho que ela tem. 
— Também a tomei por um cavaleiro — disse o mais velho, virando as trutas. Se Brienne fosse um homem, a chamariam grande; para uma mulher, era enorme. Monstruosa era a palavra que ouvira a vida inteira. Era larga de ombros e mais larga nas ancas. As pernas eram longas, os braços grossos. O peito era mais músculo do que seio. As mãos eram grandes, os pés enormes. E além do mais era feia, com uma cara de cavalo e sardenta e dentes que pareciam ser quase grandes demais para a boca. Não precisava que lhe recordassem de nada daquilo.
— Sores, — disse — viram uma donzela de treze anos na estrada? Tem olhos azuis e cabelo ruivo, e podia estar na companhia de um homem robusto de rosto vermelho com quarenta anos. O cavaleiro andante míope coçou a cabeça. 
— Não me lembro de nenhuma donzela assim. Que tipo de cabelo é o ruivo?
— Vermelho-acastanhado, normalmente — disse o homem mais
velho.
— Não, não a vimos.
— Não a vimos, senhora — disse-lhe o mais novo. — Venha, desmonte, o peixe está quase pronto. Está com fome?
De fato tinha, mas também tinha cautela. A reputação dos cavaleiros andantes era duvidosa. “Um cavaleiro andante e um cavaleiro assaltante são dois lados da mesma espada”, dizia-se. Aqueles dois não parecem muito perigosos. Posso saber os vossos nomes, sores?
— Tenho a honra de ser Sor Creighton Longbough, sobre o qual cantam os cantores — disse o barrigudo. — Tereis ouvido falar dos meus feitos na Água Negra, talvez. O meu companheiro é Sor Illifer, o Sem Dinheiro. 
Se havia canções sobre Creighton Longbough, não eram das que Brienne tivesse ouvido. Os nomes dos homens não tinham mais significado para ela do que as suas armas. O escudo verde de Sor Creighton mostrava apenas um chefe castanho, e uma profunda ranhura feita por algum machado de guerra. O de Sor Illifer mostrava o diâmetro de ouro e arminho, embora tudo nele sugerisse que nunca conhecera mais do que ouro e arminho pintado. Não teria menos de sessenta anos, e possuía um rosto atormentado e estreito, sob o capuz de um manto remendado de tecido grosseiro. Andava vestido de cota de malha, mas pontos de ferrugem sarapintavam o ferro como sardas. Brienne era uma cabeça mais alta do que qualquer dos dois, e estava melhor montada e melhor armada também. Se eu temer homens como estes, é melhor que troque a espada por um par de agulhas de malha.
— Agradeço, bons sores — disse. — De bom grado partilharei a vossa truta. — Desmontando, Brienne tirou a sela da égua e deu-lhe de beber antes de prendê-la, deixou-a pastar. Empilhou as armas, escudo e alforjes por baixo de um ulmeiro. Quando terminou, a truta já estava pronta e estaladiça. Sor Creighton trouxe-lhe um peixe, e Brienne sentou-se de pernas cruzadas no chão para o comer.
— Vamos a Valdocaso, senhora — disse-lhe Longbough, enquanto desfazia a sua truta com os dedos. — Seria bom seguir conosco. As estradas são perigosas.
Brienne poderia ter-lhe contado mais sobre os perigos das estradas do que ele gostaria de saber.
— Agradeço, sor, mas não tenho necessidade da vossa proteção.
— Insisto. Um verdadeiro cavaleiro deve proteger o sexo gentil. Brienne tocou o cabo da espada.
— Isto ira me defender, sor.
— Uma espada tem apenas o valor do homem que a brande.
— Eu brando-a suficientemente bem.
— Como quiser. Não seria cortês discutir com uma senhora. A levaremos em segurança até Valdocaso. Um grupo de três pode cavalgar de forma mais segura do que uma pessoa sozinha.
Éramos três quando partimos de Correrio, e, no entanto Jaime perdeu a mão da espada e Cleos Frey a vida.
— As vossas montarias não seriam capazes de acompanhar o ritmo da minha. — O castrado castanho de Sor Creighton era uma velha criatura com o dorso demasiado curvo e olhos ramelosos, e o cavalo de Sor Illifer parecia pouco robusto e meio morto de fome.
— O meu corcel serviu-me bastante bem na Água Negra. — Insistiu Sor Creighton. — Ora, aí realizei grande carnificina e conquistei uma dúzia de resgates. A senhora estava familiarizada com Sor Herbert Bolling? Nunca o irá encontrar agora. Matei-o de um golpe. Quando as espadas se encontram, nunca encontrareis Sor Creighton Longbough na retaguarda. O companheiro soltou um risinho seco.
— Creigh, para com isso. Gente como ela não tem uso a dar a gente como nós.
— Gente como eu? — Brienne não tinha certeza do que ele queria dizer.
Sor Illifer entortou um dedo ossudo na direção do seu escudo. Embora a tinta estivesse estalada e a cair, o símbolo via-se com clareza: um morcego negro num campo dividido em banda, de prata e ouro.
— Usa um escudo de mentiroso, ao qual não tens direito. O avô do meu avô ajudou a matar os últimos dos Lothston. Ninguém desde então se atreveu a mostrar esse morcego, negro como as ações daqueles que o usavam.
O escudo era aquele que Sor Jaime levara do armeiro de Harrenhal. Brienne encontrara-o nos estábulos com a égua e com muitas outras coisas; sela e freios, lorigão de cota de malha e um grande elmo com viseira, bolsas de ouro e prata e um pergaminho mais valioso do que qualquer uma delas.
— Perdi o meu escudo — explicou.
— Um verdadeiro cavaleiro é o único escudo de que uma donzela necessita — declarou Sor Creighton em tom resoluto. Sor Illifer não lhe ligou.
— Um homem descalço procura uma bota, um homem enregelado um manto. Mas quem se envolveria em vergonha? Lorde Lucas usou o morcego, bem como o Proxeneta e Manfryd do Capuz Negro, seu filho. Por que usar tal brasão, pergunto eu a mim próprio, a menos que seu pecado seja ainda maior… e mais fresco. 
Desembainhou o punhal, um feio bocado de ferro barato. — Uma mulher monstruosamente grande e monstruosamente forte que esconde as suas verdadeiras cores. Creigh contempla a Donzela de Tarth, que abriu a real garganta de Renly.
— Isso é uma mentira—. Renly Baratheon fora mais do que um rei para ela. Amara-o desde a primeira que vez viera a Tarth durante a sua vagarosa viagem senhorial, com que marcara a passagem à idade adulta. O pai dera-lhe as boas vindas com um banquete e ordenara a Brienne para estar presente; de outro modo teria se escondido no seu quarto como uma fera ferida. Nessa época não era mais velha do que Sansa, e temia mais os risos abafados do que as espadas. Eles saberão da rosa, dissera ao Lorde Selwyn, rirão de mim.   
Mas a Estrela da Tarde não quisera ceder. E Renly Baratheon mostrara-lhe toda a cortesia, como se ela fosse uma donzela como devia ser, e bonita. Até dançara com ela, e nos seus braços sentira-se graciosa, e os seus pés tinham flutuado pelo chão a fora.
Mais tarde outros pediram-lhe uma dança, por causa do exemplo dado por ele. Desse dia em diante, só desejara estar perto do Lorde Renly, servi-lo e protegê-lo. Mas no fim, falhara. Renly morreu nos meus braços, mas não o matei, pensou, mas aqueles cavaleiros andantes nunca compreenderiam.
— Teria dado a vida pelo Rei Renly e morrido feliz. — Disse. — Não lhe fiz nenhum mal. Juro pela minha espada.
— Quem jura pela espada são os cavaleiros — disse Sor Creighton.
— Jure pelos Sete — sugeriu Illifer, o Sem Dinheiro.
— Que seja pelos Sete. Não fiz nenhum mal ao Rei Renly. Juro pela Mãe. Que nunca conheça a sua misericórdia se minto. Juro pelo Pai, e peço que ele me possa julgar com justiça. Juro pela Donzela e pela Velha, pelo Ferreiro e pelo Guerreiro. E juro pelo Estranho, e que ele me leve agora se sou falsa.
— Ela jura bem, para uma donzela—. Admitiu Sor Creighton.
— Verdade. — Sor Illifer, o Sem Dinheiro encolheu os ombros.
— Bem, se mentiu os deuses tratarão dela. — Voltou a guardar o punhal. — O primeiro turno de vigia é seu.
Enquanto os cavaleiros andantes dormiam, Brienne passeou sem descanso pelo pequeno acampamento, escutando o crepitar da fogueira. Devia seguir caminho enquanto posso. Não conhecia aqueles homens, mas não conseguia convencer-se a abandoná-los sem defesa. Mesmo na escuridão da noite, havia viajantes na estrada e ruídos nos bosques que podiam, ou não, ser corujas e raposas à caça. E assim Brienne passeou, e manteve a lâmina solta dentro da bainha.
No fim de contas, o turno foi fácil. Depois é que se tornou difícil, quando Sor Illifer acordou e disse que a substituiria. Brienne abriu uma manta no chão e enrolou-se para fechar os olhos. Não dormirei, disse a si própria, apesar de se encontrar exausta até aos ossos. Nunca dormira facilmente na presença de homens. Mesmo nos acampamentos do Lorde Renly, o risco de violação estava sempre presente. Era uma lição que aprendera sob as muralhas de Jardim de Cima, e voltara a aprender quando ela e Jaime caíram nas mãos dos Bravos Companheiros.
O frio da terra infiltrou-se através dos cobertores de Brienne e entrou em seus ossos. Não demorou muito a sentir cada músculo preso e dorido, do queixo aos dedos dos pés. Perguntou a si própria se Sansa Stark teria também frio, onde quer que estivesse. A Senhora Catelyn dissera que Sansa era uma alma gentil que adorava bolos de limão, vestidos de seda e canções de cavalaria, mas a moça vira a cabeça do pai a saltar e fora forçada a casar depois com um dos seus assassinos. Se metade das histórias fossem verdadeiras, o anão era o mais cruel de todos os Lannister. Se ela envenenou o Rei Joffrey, o Duende certamente a forçou. Ela estava só e sem amigos naquela corte. Em Porto Real, Brienne encontrara uma certa Brella, que fora uma das aias de Sansa. A mulher dissera-lhe que havia pouco calor entre Sansa e o anão. Talvez andasse fugida tanto dele como do assassinato de Joffrey.
Quaisquer sonhos que Brienne pudesse ter tido haviam desaparecido quando a aurora a despertou. Sentia as pernas duras como madeira devido ao terreno frio, mas ninguém a molestara, e os seus bens mantinham-se intactos. Os cavaleiros andantes estavam acordados e em pé. Sor Illifer esfolava um esquilo para o pequeno almoço, enquanto Sor Creighton estava virado para uma árvore, aliviando-se numa boa e longa mijada. Cavaleiros andantes, pensou, velhos, vaidosos, roliços e míopes, mas apesar de tudo homens decentes. Animava-a saber que ainda existiam homens decentes no mundo.
Quebraram o jejum com esquilo assado, papa de bolota e picles, enquanto Sor Creighton a regalava com as suas façanhas na Água Negra, onde matara uma dúzia de temíveis cavaleiros de que ela nunca ouvira falar.
— Oh, foi uma luta fora do comum, senhora — disse — uma rara e sangrenta batalha. — Admitiu que Sor Illifer também lutara nobremente na batalha. O próprio Illifer pouco disse. Quando chegou o momento de reatarem a viagem, os cavaleiros puseram-se um de cada lado dela, como guardas a proteger uma qualquer grande senhora… embora aquela senhora fizesse de ambos os protetores anões e estivesse na ocasião melhor armada e couraçada.
— Alguém passou durante os seus turnos? — perguntou-lhes Brienne.
— Alguém assim como uma donzela de treze anos, com cabelo ruivo? Disse Sor Illifer, o Sem Dinheiro. — Não, senhora. Ninguém.
— Eu tive alguns. — Interpôs Sor Creighton. — Um moço de lavoura qualquer montado num cavalo pigarço, e meia hora mais tarde meia dúzia de homens a pé com bordões e gadanhas. Viram a nossa fogueira, e pararam para deitar um longo olhar aos nossos cavalos, mas eu mostrei-lhes um vislumbre do meu aço e disse-lhes para prosseguirem caminho. Tipos duros, pelo aspecto, e também desesperados, mas não o suficiente para brincar com Sor Creighton Longbough. — Pois não, pensou Brienne, assim tão desesperados, não. Virou a cabeça para esconder o sorriso. Felizmente, Sor Creighton estava demasiado absorto na história da sua épica batalha com o Cavaleiro da Galinha Vermelha para reparar no divertimento da donzela. Era bom ter companheiros na estrada, mesmo companheiros como aqueles dois.
Era meio dia quando Brienne ouviu cânticos à deriva através das árvores nuas e castanhas.
— Que som é aquele? — Perguntou Sor Creighton.
— Vozes, erguidas em prece. — Brienne conhecia o cântico. Estão a implorar proteção ao Guerreiro e a pedir a Velha que lhes ilumine o caminho.
Sor Illifer, o Sem Dinheiro, descobriu a sua lâmina surrada e freou o cavalo para esperar a chegada do grupo.
— Já estão próximos.
Os cânticos enchiam a floresta como um trovão piedoso. E de súbito a fonte do som surgiu na estrada. Um grupo de irmãos suplicantes seguia à frente, homens mal vestidos e barbudos com vestes de tecido grosseiro, alguns descalços e outros de sandálias. Atrás deles marchavam sessenta homens, mulheres e crianças esfarrapadas, uma porca malhada e várias ovelhas. Vários dos homens traziam machados, e eram mais os que empunhavam cacetes e mocas toscas. Por entre eles seguia uma carroça de duas rodas feita de madeira cinzenta e lascada, contendo uma grande pilha de crânios e bocados quebrados de osso. Quando viram os cavaleiros andantes, os irmãos mendicantes fizeram alto, e o cântico morreu.
— Bons cavaleiros. — Disse um deles — a Mãe ama-vos.
— E a vós, irmão. — Disse Sor Illifer. — Quem sois?
— Pobres companheiros. — Disse um homem grande com um machado.
Apesar do frio da floresta outonal, não trazia camisa, e no peito tinha esculpida uma estrela de sete pontas. Guerreiros ândalos ostentavam estrelas daquelas gravadas na carne quando atravessaram pela primeira vez o mar estreito para esmagar os reinos dos Primeiros Homens.
— Marchamos para a cidade. — Disse uma mulher alta de detrás da carroça — para levar estes ossos sagrados a Baelor, o Abençoado, e procurar o auxílio e a proteção do rei.
— Juntai-vos a nós, amigos. — Exortou um homem magro e pequeno que trajava uma veste de septão no fio e usava um cristal num colar em volta do pescoço. — Westeros tem falta de todas as espadas.
— Nós vamos a Valdocaso — declarou Sor Creighton — mas talvez pudéssemos levar-vos em segurança até Porto Real.
— Caso tenham dinheiro para nos pagar pela escolta. — Acrescentou Sor Illifer, que parecia tão prático como sem dinheiro.
— Os pardais não têm necessidade de ouro — disse o septão.
Sor Creighton não compreendeu.
— Pardais?
— O pardal é a mais humilde e a mais comum das aves, tal como nós somos os mais humildes e mais comuns dos homens. — O septão possuía uma cara magra e angulosa e uma curta barba, grisalha e castanha. O seu cabelo fino estava puxado para trás e atado atrás da cabeça e tinha os pés nus e negros, nodosos e duros como raízes de uma árvore.
— Estes são os ossos de homens santos, assassinados pela sua fé. Serviram os Sete até a morte. Alguns morreram à fome, outros foram torturados. Septos foram pilhados, donzelas e mães violadas por homens ímpios e adoradores de demônios. Até irmãs silenciosas foram molestadas. A nossa Mãe no Céu grita na sua angústia. É a hora de todos os cavaleiros ungidos abandonarem os seus senhores terrenos e defenderem a nossa Fé Sagrada. Vinde conosco para a cidade, caso amais os Sete.
— Tenho bastante amor por eles. Disse Illifer — mas preciso comer. — Tal como todos os filhos da Mãe.
— Vamos para Valdocaso — disse Sor Illifer terminantemente. Um dos irmãos mendicantes cuspiu, e uma mulher soltou um gemido.
— São falsos cavaleiros — disse o grandalhão com a estrela gravada no peito. Vários dos outros brandiram cacetes. O septão descalço acalmou-os com uma palavra.
— Não julgueis, pois o julgamento cabe ao Pai. Deixai-os passar em paz. Eles também são pobres companheiros, perdidos na terra.
Brienne fez a égua avançar.
— A minha irmã também está perdida. Uma moça de treze anos com cabelo ruivo, bonita de se ver.
— Todos os filhos da Mãe são bonitos de se ver. Que a Donzela vigie esta pobre moça… e a vós também, julgo eu. — O septão pôs um dos tirantes da carroça ao ombro e começou a puxar. Os irmãos mendicantes recomeçaram o cântico. Brienne e os cavaleiros andantes ficaram parados, montados nos cavalos, enquanto a procissão passava lentamente por eles, seguindo a estrada sulcada na direção de Rosby. O som dos seus cânticos foi lentamente minguando até morrer. Sor Creighton ergueu uma nádega da sela para coçar o traseiro.
— Que tipo de homem mataria um santo septão?
Brienne conhecia esse tipo de homem. Perto de Lagoa da Donzela, recordava-se, os Bravos Companheiros tinham pendurado um septão, de cabeça para baixo, do ramo de uma árvore, e usado o seu cadáver para praticar tiro ao alvo. Perguntou a si própria se os seus ossos estariam empilhados naquela carroça com todos os outros.
— Um homem teria de ser um idiota para violar uma irmã silenciosa. — Estava Sor Creighton a dizer. — Ou até para pôr as mãos numa… diz-se que são as esposas do Estranho, e as suas partes femininas são frias e úmidas como gelo. Deu um relance a Brienne. — Ah… peço perdão.
Brienne esporeou a égua na direção de Valdocaso. Um momento depois, Sor Illifer seguiu-a, e Sor Creighton fechou a retaguarda.
Três horas mais tarde encontraram outro grupo que seguia penosamente na direção de Valdocaso; um mercador e os seus criados, acompanhados por outro cavaleiro andante. O mercador montava uma égua cinzenta sarapintada, enquanto os criados se revezavam a puxar o seu carro. Quatro esforçavam-se aos tirantes enquanto os outros dois caminhavam ao lado das rodas, mas quando ouviram o som de cavalos, formaram em volta do carro com paus de freixo ferrados prontos a usar. O mercador puxou de uma besta, o cavaleiro de uma espada.
— Irão perdoar a minha suspeita — gritou o mercador — mas os tempos são conturbados, e só tenho o bom Sor Shadrich para me defender. — Quem são?
— Ora. — Disse Sor Creighton, ofendido — eu sou o famoso Sor Creighton Longbough, vindo da batalha da Água Negra, e este é o meu companheiro, Sor Illifer, o Sem Dinheiro.
— Não pretendemos fazer nenhum mal a vocês — disse Brienne.
O mercador avaliou-a com ar duvidoso.
— Senhora, devia estar a salvo em casa. Porque usa um vestuário tão pouco natural?
— Ando em busca da minha irmã. — Não se atrevia a mencionar o nome de Sansa, com a rapariga acusada de regicídio. — É uma donzela bem nascida e bela, com olhos azuis e cabelo ruivo. Talvez a tenham visto com um cavaleiro robusto de quarenta anos, ou um bobo bêbado.
— As estradas estão cheias de bobos bêbados e de donzelas espoliadas. Quanto a cavaleiros robustos, é difícil a qualquer homem honesto manter a barriga redonda quando a tanta falta de comida… embora o vosso Sor Creighton não tenha passado fome, ao que parece.
— Tenho ossos grandes — insistiu Sor Creighton. — Seguimos juntos por algum tempo? Não duvido do valor de Sor Shadrich, mas ele parece pequeno, e é melhor três lâminas do que uma.
Quatro lâminas pensou Brienne, mas controlou a língua.
O mercador olhou para a sua escolta.
— O que diz, sor?
— Oh, estes três não são nada a temer. — Sor Shadrich era um homem seco e nervoso com cara de raposa, um nariz aguçado e uma mecha de cabelo laranja, montado num corcel acastanhado de pernas altas. Embora não pudesse ter mais de um metro e cinquenta e cinco, possuía modos senhores de si.
— Aquele é velho, o outro gordo, e a grande é mulher. Que venham.
— Assim seja — O mercador baixou a besta.
Quando reataram a viagem, o cavaleiro contratado deixou-se ficar para trás e olhou Brienne de cima a baixo como se ela fosse uma peça de bom porco salgado.
— É uma senhora forte e saudável, parece. 
O escárnio de Sor Jaime golpeara-a profundamente; as palavras do homenzinho quase nem lhe tocaram.
— Uma gigante, comparada com certos homens.
Ele riu.
— Sou suficientemente grande onde conta, senhora.
— O mercador chamou você Shadrich.
— Sor Shadrich de Vale Sombrio. Há quem me chame Rato Louco. — Virou o escudo para mostrar o seu símbolo, um grande rato branco com ferozes olhos vermelhos, sobre bandas de castanho e azul. — O castanho simboliza as terras que percorri, o azul os rios que atravessei. O rato sou eu.
— E és louco?
— Oh, bastante. Um rato comum fugirá do sangue e da batalha. O rato louco procura-os.
— Aparentemente é raro encontrá-los.
— Encontro-os o suficiente. É verdade que não sou nenhum cavaleiro de torneios. Guardo o meu valor para o campo de batalha, mulher.
Supunha que mulher era marginalmente melhor do que garota.
— Então você e o bom Sor Creighton tem muito em comum.
Sor Shadrich riu.
— Oh, duvido, mas pode ser que você e eu partilhemos uma demanda. Uma irmãzinha perdida, não é? Com olhos azuis e cabelo ruivo? Voltou a rir. — Não é o único caçador nos bosques. Eu também procuro Sansa Stark.
Brienne manteve o rosto numa máscara, para esconder a consternação.
— Quem é essa Sansa Stark, e porque é que a procura?
— Por amor, que outra coisa poderia ser?
Brienne enrugou a testa.
— Amor?
— Sim, amor pelo ouro. Ao contrário do nosso bom Sor Creighton, eu realmente lutei na Água Negra, mas do lado perdedor. O meu resgate arruinou-me. Sabeis quem é Varys, espero? O eunuco ofereceu um saco rechonchudo de ouro por essa moça de que nunca ouviu falar. Não sou um homem ganancioso. Se alguma senhora grande demais me ajudasse a encontrar essa criança marota, eu dividiria o dinheiro da Aranha com ela.
— Pensei que estivesse contratado pelo mercador.
— Só até Valdocaso. Hibald é tão avarento como temeroso. E é muito temeroso. Que diz, senhora?
— Não conheço nenhuma Sansa Stark — insistiu ela. — Ando a procura da minha irmã, uma rapariga bem nascida…
— … com olhos azuis e cabelo ruivo, certo. Me diga, quem é esse cavaleiro que viaja com a sua irmã? Ou será que se chama bobo? — Sor Shadrich não esperou pela resposta dela, o que era bom, visto que não tinha nenhuma.
— Um certo bobo desapareceu de Porto Real na noite da morte do Rei Joffrey, um tipo robusto com um nariz cheio de veias rotas, um certo Sor Dontos, o Vermelho, originalmente de Valdocaso. Rezo para que a sua irmã e o bobo bêbado dela não sejam confundidos com a moça Stark e Sor Dontos. Isso poderia ser um grande infortúnio. — Bateu com os calcanhares no corcel e avançou a trote.
Até Jaime Lannister só raramente fazia com que Brienne se sentisse uma tola tão grande. Não é o único caçador nos bosques. A mulher, Brella, contara-lhe como Joffrey despojara Sor Dontos das esporas, como a Senhora Sansa suplicara a Joffrey que lhe poupasse a vida. Ele ajudou-a a fugir, decidira Brienne, quando ouvira a história. Se encontrar Sor Dontos, encontrarei Sansa. Deveria ter sabido que outros também o compreenderiam.
Alguns podem mesmo ser menos palatáveis do que Sor Shadrich. Só podia esperar que Sor Dontos tivesse escondido Sansa bem. Mas se assim for, como é que eu a encontro?
Fez descair os ombros e prosseguiu caminho, de cenho carregado.
A noite já se instalava quando o grupo chegou a uma estalagem, um edifício alto de madeira que se erguia junto à confluência de dois rios, empoleirada numa velha ponte de pedra. Era esse o nome da estalagem, disse-lhes Dor Creighton: A Velha Ponte de Pedra. O estalajadeiro era seu amigo.
— Não é mau cozinheiro, e os quartos não têm mais pulgas do que de hábito — assegurou. — Quem é a favor de uma cama quente esta noite?
— Nós não, a não ser que o seu amigo as queira oferecer — disse Sor Illifer, o Sem Dinheiro. — Não temos dinheiro para quartos.
— Posso pagar por nós três. — Brienne não tinha falta de dinheiro; Jaime tratara disso. Nos alforjes havia uma bolsa cheia de veados de prata e estrelas de cobre, outra menor atulhada de dragões de ouro, e um pergaminho ordenando a todos os súditos leais do rei para prestarem assistência à portadora, Brienne da Casa Tarth, que andava a tratar de assuntos de Sua Graça. Estava assinado numa letra infantil por Tommen, o Primeiro do Seu Nome, Rei dos Ândalos, dos Roinares e dos Primeiros Homens, e Senhor dos Sete Reinos.
Hibald também estava a parar, e pediu aos seus homens para deixarem a carroça perto dos estábulos. Uma quente luz amarela brilhava através das vidraças em forma de losango das janelas da estalagem, e Brienne ouviu um garanhão bramir ao sentir o cheiro da sua égua. Estava a desprender a sela quando um rapaz saiu da porta do estábulo e disse:
— Deixai-me fazer isso, sor.
— Não sou nenhum sor — disse-lhe — mas podes levar a égua. Certifica-te de que ela seja alimentada e escovada e que lhe dêem de beber.
O rapaz ruborizou-se.
— Peço perdão, senhora. Pensei…
— É um erro comum. — Brienne entregou-lhe as rédeas e seguiu os outros para a estalagem, com os alforjes ao ombro e o rolo de dormir debaixo de um braço.
Serragem cobria o chão de tábuas da sala comum, e o ar cheirava a lúpulo, fumo e carne. Um assado silvava e crepitava ao fogo, de momento sem ninguém a tratar dele. Seis homens da terra estavam sentados em volta de uma mesa, conversando, mas pararam quando os estranhos entraram. Brienne sentiu os seus olhos. Apesar da cota de malha, do manto e do justilho, sentiu-se nua. Quando um homem disse:
— Olha para aquilo — soube que não estava a falar de Sor Shadrich.
O estalajadeiro apareceu, trazendo três canecas em cada mão e derramando cerveja a cada passo.
— Tem quartos, bom homem? — perguntou-lhe o mercador.
— Pode ser que tenha — respondeu o estalajadeiro — para quem tiver dinheiro.
Sor Creighton Longbough pareceu ofendido.
— Naggle, é assim que saúda um velho amigo? Sou eu, o Longbough.
— É você, é. Me deve sete veados. Mostre-me alguma prata, e eu te mostro uma cama. — O estalajadeiro pousou as canecas uma a uma, derramando mais cerveja sobre a mesa enquanto o fazia.
— Pago por um quarto para mim e por outro para os meus dois companheiros.
— Brienne indicou Sor Creighton e Sor Illifer.
— Eu também vou querer um quarto — disse o mercador — para mim e para o bom Sor Shadrich. Os meus criados dormirão nos vossos estábulos, se vos aprouver.
O estalajadeiro olhou-os bem.
— Não me apraz, mas pode ser que deixe. Vão querer jantar? Aquilo ali no espeto é uma boa cabra, oh se é.
— Eu próprio julgarei se ela é boa ou não — anunciou Hibald. — Os meus homens contentar-se-ão com pão e gordura do assado.
E assim jantaram. Brienne experimentou a cabra, depois de seguir o estalajadeiro pela escada acima, de lhe enfiar umas moedas na mão e de armazenar as suas posses no segundo quarto que o homem lhe mostrou. Pediu também cabra para Sor Creighton e para Sor Illifer, visto que tinham partilhado as trutas com ela. Os cavaleiros andantes e o septão empurraram a carne para baixo com cerveja, mas Brienne bebeu uma taça de leite de cabra. Ficou à escuta das conversas à mesa, esperando contra toda a esperança poder ouvir algo que a ajudasse a encontrar Sansa.
— Veio de Porto Real — disse um dos homens da terra a Hibald.
— É verdade que o Regicida foi mutilado?
— É bem verdade — disse Hibald. — Perdeu a sua mão da espada.
— Verdade — disse Sor Creighton — arrancada por um lobo gigante, segundo ouvi dizer, um daqueles monstros que desceram do norte. Nunca veio nada de bom do norte. Até os deuses deles são esquisitos.
— Não foi um lobo — ouviu-se Brienne a dizer. — Sor Jaime perdeu a mão para um mercenário de Qohor.
— Não é coisa fácil lutar com a mão má — observou o Rato Louco.
— Bah — disse Sor Creighton Longbough. — Acontece que eu luto igualmente bem com ambas as mãos.
— Oh, não tenho nenhuma dúvida disso. — Sor Shadrich ergueu a caneca numa saudação.
Brienne recordou a sua luta com Jaime Lannister na floresta. Fora com dificuldade que mantivera a espada dele afastada. Ele estava fraco do tempo passado encarcerado, e tinha correntes nos pulsos. Nenhum cavaleiro dos Sete Reinos o poderiam enfrentar na posse de todas as suas forças, sem correntes que lhe tolhessem os movimentos. Jaime fizera muitas coisas malignas, mas o homem sabia lutar! A sua mutilação fora monstruosamente cruel.
Uma coisa era matar um leão, outra era cortar-lhe a pata e deixá-lo quebrado e desorientado.
De súbito, a sala comum ficou demasiado ruidosa para ela suportar nem que fosse mais um momento. Murmurou umas boas noites e foi para a cama. O teto, no seu quarto, era baixo; ao entrar com um círio na mão, Brienne teve de se abaixar para não bater com a cabeça. A única mobília era uma cama suficientemente larga para seis pessoas, e o coto de uma vela alta no peitoril da janela. Acendeu-a com o círio, trancou a porta e pendurou o cinto da espada em uma das colunas da cama. A bainha era uma coisa simples, madeira envolta em couro castanho e fendido, e a espada era ainda mais simples. Comprara-a em Porto Real, para substituir a lâmina que os Bravos Companheiros lhe tinham roubado. A espada de Renly. Ainda lhe doía saber que a perdera. Mas tinha outra espada escondida no rolo de dormir.
Sentou-se na cama e tirou-a para fora. Ouro cintilou, amarelo, à luz da vela, e rubis arderam, rubros. Quando tirou a Cumpridora de Promessas da bainha ornamentada, Brienne sentiu que a respiração se lhe prendia na garganta. As ondulações corriam, negras e vermelhas, pelas profundezas do aço. Aço valiriano forjado com feitiços. 
Era uma espada digna de um herói. Quando era pequena, a ama enchera-lhe os ouvidos com contos de valor, regalando-a com os nobres feitos de Sor Galladon de Morne, de Florian, o Bobo, do Príncipe Aemon, o Cavaleiro do Dragão e de outros campeões. Cada um usava a sua espada famosa, e certamente que o lugar da Cumpridora de Promessas era na sua companhia, mesmo se o seu não fosse.
— Irá proteger a filha de Ned Stark com o aço do próprio Ned Stark — prometera Jaime.
Ajoelhando-se entre a cama e a parede, ergueu a lâmina e proferiu uma prece silenciosa à Velha, cuja lâmpada dourada mostrava aos homens o caminho pela vida. Guiai-me, rezou, iluminai o caminho que tenho em frente, mostrai-me o rumo que leva até Sansa. Falhara a Renly, falhara à Senhora Catelyn. Não podia falhar a Jaime. Ele confiou-me a sua espada. Confiou-me a sua honra.
Depois, estendeu-se o melhor que pôde na cama. Apesar de ser tão larga, não tinha comprimento suficiente, portanto Brienne deitou-se em diagonal. Ouvia o tinir das canecas vindo de baixo, e vozes que vagavam pelos degraus acima. As pulgas de que Longbough falara fizeram a sua aparição. Coçar-se a ajudou a manter-se acordada.
Ouviu Hibald subir as escadas, e algum tempo depois ouviu também os cavaleiros.
—… não cheguei a saber o seu nome — Sor Creighton dizia enquanto passava — mas no escudo trazia uma galinha vermelha como sangue, e a sua lâmina pingava tripas… — A voz do homem desvaneceu-se, em algum lugar mais acima e uma porta abriu-se e fechou-se.
A vela apagou-se. A escuridão caiu sobre a Velha Ponte de Pedra, e a estalagem ficou tão sossegada que Brienne conseguia ouvir o murmúrio do rio. Só então se ergueu para reunir as suas coisas. Abriu lentamente a porta, ficou à escuta, desceu as escadas descalça. Lá fora calçou as botas e dirigiuse à pressa aos estábulos para selar a égua baia, pedindo um perdão silencioso a Sor Creighton e Sor Illifer enquanto montava. 
Um dos criados de Hibald acordou quando ela passou por ele, já a cavalo, mas nada fez para Pará-la. Os cascos da égua ressoaram na velha ponte de pedra. Então, as árvores fecharam-se à sua volta, negras como breu e cheias de fantasmas e memórias. Vou à sua procura, Senhora Sansa, pensou enquanto penetrava na escuridão. Não tenha medo. Não descansarei enquanto não te encontrar.
 
Sam estava lendo acerca dos Outros quando viu o rato.
Tinha os olhos vermelhos e ardendo. Não devia esfregá-los tanto, dizia sempre a si próprio enquanto os esfregava. A poeira irritava e os faziam lacrimejar, e havia poeira por todo o lado ali em baixo. Pequenas nuvenzinhas enchiam o ar cada vez que uma página era virada, e erguia-se em nuvens cinzentas sempre que movia uma pilha de livros para ver o que poderia estar escondido por baixo.
Sam não sabia quanto tempo passara desde que dormira pela última vez, mas restavam pouco mais de dois centímetros da gorda vela de sebo que acendera quando começara a ler o irregular monte de páginas soltas que encontrara atadas com guita. Estava brutalmente cansado, mas era difícil parar. Mais um livro, dizia a si mesmo, e depois paro. Mais uma folha, só mais uma. Mais uma página, e vou para cima descansar e comer qualquer coisa. Mas havia sempre outra página depois dessa, e outra a seguir, e outro livro à espera por baixo da pilha. Vou só dar uma espiada rápida para ver qual o assunto deste, pensava, e antes de se dar conta já tinha lido metade. Não havia comido nada desde a tigela de sopa de feijão com toucinho que comera na companhia de Pyp e Grenn. Bem, a não ser o pão e o queijo, mas isso foi só uma dentadinha, pensou. Foi então que lançara um rápido relance à bandeja vazia e vira o rato banqueteando-se com as migalhas do pão.
O rato tinha metade do comprimento do seu mindinho, com olhos negros e um pêlo cinzento e macio. Sam sabia que devia matá-lo. Os ratos podiam preferir pão e queijo, mas também comiam papel. Encontrara bastante excremento de rato entre as prateleiras e as pilhas, e algumas das encadernações de couro dos livros mostravam sinais de terem sido roídas. Mas era uma coisinha tão pequenina. E esfomeada. Como podia recusar a ele algumas migalhas? Mas está comendo os livros, pensou…
 Depois de passar horas na cadeira, as costas de Sam estavam duras como uma prancha, e sentia as pernas meio adormecidas. Sabia que não seria suficientemente rápido para apanhar o rato, mas talvez conseguisse esmagálo. Junto ao seu cotovelo encontrava-se uma maciça cópia encadernada a couro dos Anais do Centauro Negro, o exaustivamente detalhado relato do Septão Jorquen acerca dos nove anos que Orbert Caswell servira como Senhor Comandante da Patrulha da Noite. Havia uma página para cada dia do seu mandato, e todas pareciam começar com: “Lorde Orbert levantou-se à alvorada e moveu as tripas”, exceto a última, que dizia: “Lorde Orbert foi encontrado morto ao amanhecer.”
Nenhum rato era adversário à altura do Septão Jorquen. Muito lentamente, Sam pegou no livro com a mão esquerda. Era grosso e pesado, e quando tentou ergue-lo só com uma mão, escorregou dos seus dedos gordos e voltou a cair com estrondo. O rato desapareceu em meio segundo, com a rapidez de um raio. Sam sentiu-se aliviado. Esmagar o pobre bicho teria lhe dado pesadelos. “Mas não devia comer os livros” disse em voz alta. Talvez devesse trazer mais queijo da próxima vez que viesse ali abaixo.
 Ficou surpreendido ao reparar no quanto a vela ardera. A sopa de feijão com toucinho teria sido naquele dia ou no anterior? Foi ontem. Deve ter sido ontem. Perceber aquilo o fez bocejar. Jon devia estar se perguntando o que lhe teria acontecido, embora não houvesse dúvida de que o Meistre Aemon compreenderia. Antes de perder a vista, o meistre amara tanto os livros como Samwell Tarly. Compreendia o modo como por vezes se podia cair dentro deles, como se cada página fosse um buraco aberto para outro mundo.
 Pondo-se de pé, Sam fez um esgar devido às picadas e alfinetadas que sentia nas barrigas das pernas. A cadeira era muito dura, e cortava-lhe na parte de trás das coxas quando se debruçava sobre um livro. Tenho de me lembrar de trazer uma almofada. Ainda seria melhor se pudesse dormir ali embaixo, na cela que encontrara meio escondida atrás de quatro arcas cheias de páginas soltas que se tinham separado dos livros a que pertenciam, mas não queria deixar o Meistre Aemon sozinho por tanto tempo. O meistre nos últimos tempos não andava forte e precisava de ajuda, especialmente com os corvos. Aemon tinha Clydas, com certeza, mas Sam era mais jovem, e tinha mais jeito com as aves.
Com uma pilha de livros e pergaminhos debaixo do braço esquerdo e a vela na mão direita, Sam abriu caminho através dos túneis que os irmãos chamavam de caminhos de minhoca. Um pálido pilar de luz iluminava os íngremes degraus de madeira que levavam à superfície, de modo que soube que o dia tinha chegado lá acima. Deixou a vela a arder num nicho na parede e começou a subir. Ao chegar ao quinto degrau já arquejava. No décimo parou para passar os livros para o braço direito.
Emergiu sob um céu da cor do chumbo branco. Um céu de neve, Sam pensou, dando uma olhadinha para cima. A perspectiva de neve deixouo inquieto. Lembrou-se daquela noite no Punho dos Primeiros Homens, quando as criaturas e a neve tinham chegado juntas. Não seja tão covarde, pensou. Tem seus Irmãos juramentados à sua volta, já para não falar de Stannis Baratheon e de todos os seus cavaleiros. As fortalezas e torres do Castelo Negro erguiam-se em seu redor, tornadas insignificantes pela imensidão de gelo da Muralha. Um pequeno exército arrastava-se sobre o gelo a um quarto da altura, aonde uma nova escada em ziguezague ia se elevando para se encontrar com os restos da antiga. O som das suas serras e martelos ecoava no gelo. Jon mantinha os construtores trabalhando noite e dia naquela tarefa. Sam ouvira alguns se queixando ao jantar, insistindo que Lorde Mormont nunca os encarregara nem de metade daquele trabalho. Mas sem a grande escada não havia maneira de chegar ao topo da Muralha sem ser através do guincho de correntes. E por mais que Samwell Tarly odiasse degraus, odiava ainda mais a gaiola do guincho. Fechava sempre os olhos quando subia ou descia nela, convencido de que a corrente estava prestes a quebrar-se. Todas as vezes que a gaiola de ferro raspava no gelo, o seu coração parava de bater por um instante.
Houve aqui dragões há duzentos anos, Sam se pegou pensando, enquanto observava a gaiola a descer lentamente. Eles teriam se limitado a voar até ao topo da Muralha. A Rainha Alysanne visitara Castelo Negro montada no seu dragão, e Jaehaerys, o seu rei, viera à sua procura no dele. Poderia Alaprata ter deixado um ovo para trás? Ou teria Stannis encontrado um ovo em Pedra do Dragão? Mesmo se tiver um ovo, como pode esperar chocá-lo? Baelor, o Abençoado, rezara sobre os seus ovos, e outros Targaryen tinham procurado incubá-los com feitiçaria. Tudo o que tinham conseguido fora farsa e tragédia.
— Samwell – disse uma voz taciturna – vinha te buscar. Disseramme para te levar até ao Senhor Comandante.
Um floco de neve pousou no nariz de Sam.
— Jon quer me ver?
— Quanto a isso, não sei dizer – disse Edd Doloroso Tollett. – Nunca quis ver metade das coisas que vi, e nunca vi metade das coisas que quis ver. Não me parece que o querer entre na coisa. Mas é melhor você ir mesmo assim. Lorde Snow quer falar contigo assim que tiver acabado com a mulher de Craster.
— Goiva.
— Essa mesma. Se a minha ama de leite tivesse sido parecida com ela, ainda mamava. A minha tinha suíças.
— A maior parte das cabras tem suíças – gritou Pyp, no momento em que ele e Grenn surgiam de uma esquina, com arcos nas mãos e aljavas de setas às costas. – Onde estava, Matador? Demos pela sua falta ontem à noite no jantar. Um boi assado inteiro ficou por comer.
— Não me chame de Matador. – Sam ignorou o gracejo sobre o boi. Isso era só o Pyp. – Estava lendo. Apareceu um rato…
— Não fale de ratos com Grenn. Ele tem pavor de ratos.
— Não tenho nada — declarou Grenn com indignação.
— Você teria medo de comer um.
— Comia mais ratos do que você.
Edd Doloroso Tollett soltou um suspiro.
— Quando eu era moço, só comíamos ratos em dias especiais de banquete. Eu era o mais novo, por isso ficava sempre com o rabo. Não há carne no rabo.
— Onde está o seu arco, Sam? – perguntou Grenn. Sor Alliser costumava chamar-lhe Auroque, e ele a cada dia que passava parecia crescer um pouco mais para dentro da alcunha. Chegara à Muralha grande, mas lento, de pescoço grosso, de cintura grossa, de rosto vermelho e desajeitado. Embora o pescoço ainda se ruborizasse quando Pyp lhe dava a volta em alguma tolice, horas de trabalho com a espada e o escudo tinham-lhe endireitado a barriga, endurecido os braços, alargado o peito. Era forte, e também desgrenhado como um auroque. – Ulmer estava à sua espera junto aos alvos.
— Ulmer – disse Sam, atrapalhado. Instituir exercícios diários de tiro com arco para toda a guarnição, até os intendentes e os cozinheiros, fora quase a primeira coisa que Jon Snow fizera como Senhor Comandante. A Patrulha tinha posto demasiada ênfase na espada e insuficiente no arco, dissera, uma relíquia dos dias em que um irmão em dez fora um cavaleiro, e não um em cem. Sam compreendia a sensatez do decreto, mas detestava o treino com arco quase com igual força com que detestava subir escadas. Quando usava as luvas nunca conseguia acertar em nada, mas quando as tirava ficava com bolhas nos dedos. Aqueles arcos eram perigosos. O Cetim arrancara metade de uma unha com a corda de um arco. – Tinha esquecido.
— Partiu o coração da princesa selvagem, Matador – disse Pyp. Nos últimos tempos, Val ganhara o hábito de observá-los da janela do seu quarto na Torre do Rei. – Ela andou à sua procura.
— Não andou nada! Não diga isso! – Sam só falara com Val duas vezes, quando o Meistre Aemon a visitara para se certificar de que os bebês eram saudáveis. A princesa era tão bonita que era frequente dar por si gaguejando e corando na sua presença.
— Porque não? — perguntou Pyp. — Ela quer ter filhos seus. Talvez devêssemos te chamar de Sam, o Sedutor. Sam enrubesceu. Sabia que o Rei Stannis tinha planos para Val; ela era a argamassa com a qual pretendia selar a paz entre os nortenhos e o povo livre. - Hoje não tenho tempo para o tiro com arco, tenho de ir ver o Jon.
— Jon? Jon? Conhecemos alguém chamado Jon, Grenn?
— Ele fala do Senhor Comandante.
— Aaaah. O Grande Lorde Snow. Com certeza. Porque quer ver ele? Nem sequer consegue abanar as orelhas.  — Pyp abanou as suas, para mostrar que conseguia. Eram umas orelhas grandes, vermelhas do frio. — Ele agora é o Lorde Snow de verdade, bem nascido como um raio para gente como nós.
— Jon tem deveres — disse Sam em sua defesa. — A Muralha é sua, com tudo o que isso traz.
— Um homem também tem deveres para com os amigos. Se não fôssemos nós, o nosso senhor comandante podia ser Janos Slynt. Lorde Janos teria enviado Snow em patrulha nu e montado numa mula. “Galopa até a Fortaleza de Craster”, ele teria dito, “e me traga de volta o manto e as botas do Velho Urso”. Nós o salvamos disso, mas agora ele tem deveres demais para beber uma taça de vinho temperado junto à lareira?
Grenn concordou.
— Os deveres dele não o afastam do pátio. São mais os dias em que está lá lutando com alguém do que os outros.
Sam tinha de admitir que aquilo era verdade. Uma vez, quando Jon viera consultar o Meistre Aemon, Sam perguntara-lhe porque passava tanto tempo praticando com a espada. “O Velho Urso nunca treinou muito quando era Senhor Comandante” fizera notar. Em resposta, Jon pusera Garralonga na mão de Sam. Deixara-o sentir a leveza, o equilíbrio, fizera-o virar a lâmina para que as ondulações cintilassem no metal escuro como fumo. “Aço valiriano” dissera, “ forjado com feitiços e afiado como uma navalha, praticamente indestrutível. Um espadachim deve ser tão bom como a sua espada, Sam. Garralonga é aço valiriano, mas eu não sou. O Meia-Mao podia ter me matado com a mesma facilidade com que você esmaga um inseto”.
Sam devolvera-lhe a espada. 
— Quando eu tento esmagar um inseto, ele voa sempre para longe. Só consigo dar uma palmada no braço. Isto arde. — Aquilo fizera Jon rir. — Como quiser. Qhorin podia ter me matado com a mesma facilidade com que você come uma tigela de mingau de aveia. — Sam gostava de mingau de aveia, especialmente quando era adoçado com mel.
— Não tenho tempo para isto. — Sam deixou os amigos e dirigiu-se ao armeiro, apertando os livros ao peito. Sou o escudo que defende os reinos dos homens, recordou. Perguntou a si próprio o que esses homens diriam se se apercebessem de que os seus reinos eram defendidos por gente como Grenn, Pyp e o Edd Doloroso.
A Torre do Senhor Comandante fora destruída pelo incêndio, e Stannis Baratheon apropriara-se da Torre do Rei para sua residência, portanto Jon Snow se estabelecera nos modestos quartos de Donal Noye por trás do armeiro. Goiva ia saindo quando Sam chegou, envolta no velho manto que lhe dera quando fugiram da Fortaleza de Craster. Quase passou por ele correndo, mas Sam pegou-lhe no braço, deixando cair dois livros ao fazê-lo.
— Goiva.
— Sam. – A voz dela parecia rouca. Goiva tinha cabelo escuro e era magra, com os grandes olhos castanhos de uma corça. Era engolida pelas dobras do velho manto de Sam, com a cara meio escondida pelo capuz, mas apesar disso tremia. A cara parecia abatida e assustada.
— O que aconteceu? – perguntou-lhe Sam. – Como estão os bebês?
Goiva libertou-se da mão dele.
— Estão bem, Sam. Bem.
— Entre os dois, é um espanto que você consiga dormir – disse Sam num tom agradável. – Qual foi o que ouvi chorando ontem à noite? Achei que nunca mais iria se calar.
— Foi o filho de Dalla. Chora quando quer mamar. O meu… o meu quase nunca chora. Às vezes gorgoleja, mas… – Os olhos dela encheram-se de lágrimas. – Tenho de ir. Já passa da hora de alimentá-los. Se não for, vou ficar cheia de leite. – Correu pelo pátio fora, deixando um Sam perplexo para trás.
Teve de se pôr de joelhos para apanhar os livros que deixara cair. Não devia ter trazido tantos, disse a si próprio, enquanto sacudia terra do Compêndio de Jade de Colloquo Votar, um grosso volume de contos e lendas do oriente que o Meistre Aemon lhe ordenara que encontrasse. O livro parecia não ter sido danificado. Pele de Dragão, uma História da Casa Targaryen do Exílio à Apoteose, com Considerações Sobre a Vida e Morte dos Dragões, do Meistre Thomax, não tivera tanta sorte. Abrira-se ao cair, e algumas páginas tinham ficado enlameadas, incluindo uma que exibia uma imagem bastante boa de Balerion, o Terror Negro, feita com tintas coloridas. Sam amaldiçoou-se por ser um cretino desastrado enquanto alisava as páginas e as sacudia. A presença de Goiva agitava-o sempre e levantava… bem, coisas. Um Irmão juramentado da Patrulha da Noite não devia sentir o tipo de coisas que Goiva o fazia sentir, especialmente quando falava sobre os seios, e…
— Lorde Snow está à espera. – Dois guardas envergando mantos negros e meio-elmos de ferro encontravam-se em pé junto às portas do armeiro, encostados às lanças. Quem falara fora o Hal Peludo. Mully ajudou Sam a pôr-se de novo em pé. Proferiu um agradecimento atrapalhado e apressou-se a passar por eles, agarrando-se desesperadamente à pilha de livros enquanto abria caminho pela forja com a sua bigorna e foles. Um pacote de correspondência descansava sobre sua bancada, semi-concluida. Fantasma estava deitado por baixo da bigorna, roendo um osso de boi para chegar ao tutano. O grande lobo gigante branco ergueu os olhos quando Sam passou, mas não soltou um som.
O aposento privado de Jon ficava ao fundo, atrás das fileiras de lanças e escudos. Ele estava lendo um pergaminho quando Sam entrou. O corvo do Senhor Comandante Mormont encontrava-se empoleirado no seu ombro, espreitando para baixo como se também ele estivesse lendo, mas quando a ave viu Sam abriu as asas e pairou na sua direção gritando “Grão, grão!”
Deslocando os livros, Sam enfiou o braço no saco que se encontrava junto à porta e quando o tirou trazia uma mão cheia de sementes. O corvo pousou em seu pulso e comeu um da sua palma, dando-lhe uma bicada tão grande que Sam soltou um ganido e recolheu a mão. O corvo voltou a levantar voo, e grãos vermelhos e amarelos voaram para todo o lado.
— Fecha a porta, Sam. – Leves cicatrizes ainda marcavam a face de Jon, no local onde uma águia tentara um dia arrancar-lhe um olho. – Esse patife rompeu a sua pele?
Sam pousou os livros e descalçou a luva.
— Rompeu. – Sentiu a cabeça rodando. – Estou sangrando.
— Todos derramamos o nosso sangue pela Patrulha. Use luvas mais grossas. – Jon empurrou uma cadeira para ele com um pé. – Senta e dá uma olhada nisto. – Entregou-lhe o pergaminho.
— O que é? – perguntou Sam. O corvo pôs-se à caça de grãos de milho entre as esteiras.
— Um escudo de papel.
Sam sugou o sangue da palma da sua mão enquanto lia. Reconheceu a letra do Meistre Aemon assim que a viu. Tinha uma escrita pequena e precisa, mas o velho não conseguia ver onde a tinta borrara, e por vezes deixava manchas disformes.
— Uma carta para o Rei Tommen?
— Em Winterfell, Tommen lutou com o meu irmão Bran com espadas de madeira. Estava tão almofadado que parecia um ganso estufado. Bran atirou-o ao chão. – Jon dirigiu-se à janela. – Mas Bran está morto, e o rechonchudo Tommen de cara rosada está sentado no Trono de Ferro, com uma coroa aninhada entre os seus caracóis dourados.
Bran não está morto, desejou Sam dizer. Foi para lá da Muralha com o Maos-Frias. Ficou com as palavras presas na garganta. Jurei que não contaria.
— Você não assinou a carta.
— O Velho Urso suplicou ajuda ao Trono de Ferro uma centena de vezes. Enviaram-lhe Janos Slynt. Nenhuma carta fará com que os Lannister gostem mais de nós. Em especial depois de ouviram dizer que temos ajudado Stannis.
— Só a defender a Muralha, não na sua rebelião. – Sam voltou a ler rapidamente a carta. – É o que diz aqui.
— A diferença pode escapar ao Lorde Tywin. – Jon recuperou a carta. – Porque haveria de nos ajudar agora? Nunca o fez antes.
— Bem – disse Sam – ele não irá querer que se diga que Stannis correu em defesa do reino enquanto o Rei Tommen estava brincando com os seus brinquedos. Isso faria cair o escárnio sobre a Casa Lannister.
— O que eu quero fazer cair sobre a Casa Lannister é morte e destruição, não o escárnio. – Jon ergueu a carta. – A Patrulha da Noite não participa nas guerras dos Sete Reinos – leu. – Os nossos juramentos são prestados ao reino, e o reino encontra-se agora em terrível perigo. Stannis Baratheon ajuda-nos contra os nossos inimigos do alem-Muralha, embora nós não sejamos seus homens…
— Bem — disse Sam, torcendo-se — e não somos. Somos?
— Dei a Stannis alimentos, abrigo, e Fortenoite, além de autorização para instalar algum povo livre na Dádiva. É tudo.
— Lorde Tywin dirá que foi demasiado.
— Stannis diz que não é o suficiente. Quanto mais você der a um rei, mais ele ira querer. Estamos percorrendo uma ponte de gelo com um abismo de cada lado. Agradar a um rei já é bastante difícil. Agradar a dois é praticamente impossível.
— Sim, mas… se os Lannister prevalecerem e Lorde Tywin decidir que traímos o rei ao ajudarmos Stannis, isso poderá significar o fim da Patrulha da Noite. Ele tem os Tyrell atrás de si, com todo o poderio de Jardim de Cima. E derrotou Lorde Stannis na Água Negra. – Ver sangue podia fazer Sam desmaiar, mas sabia como as guerras eram ganhas. O pai assegurara-se disso.
— A Água Negra foi uma batalha. Robb venceu todas as suas batalhas e ainda assim perdeu a cabeça. Se Stannis for capaz de levantar o norte… 
Ele está tentando convencer-se a si próprio, compreendeu Sam, mas não consegue. Os corvos tinham partido de Castelo Negro numa tempestade de asas negras, apelando aos senhores do Norte para se declararem por Stannis Baratheon e juntarem as suas forças às dele. Fora o próprio Sam quem enviara a maior parte. Até então só uma ave regressara, aquela que fora enviada a Karhold. À exceção dessa, o silêncio fora atroador.
Mesmo se de algum modo conseguisse trazer os nortenhos para o seu lado, Sam não via como Stannis poderia esperar igualar o poderio combinado de Rochedo Casterly, Jardim de Cima e das Gêmeas. Mas sem o norte, a sua causa estaria certamente perdida. Tão perdida como a Patrulha da Noite, se Lorde Tywin nos puser na conta de traidores.
— Os Lannister têm os seus próprios nortenhos.  Lorde Bolton e o seu bastardo.
— Stannis tem os Karstark. Se conseguir conquistar Porto Branco…
— Se – acentuou Sam. – Se não… senhor, até um escudo de papel é melhor do que nenhum.
Jon sacudiu a carta.
— Suponho que sim. – Suspirou e então pegou uma pena e rabiscou uma assinatura no fim da carta. – Traga-me a cera de selar.
 Sam aqueceu um pau de cera negra à chama de uma vela, fez pingar um pouco sobre o pergaminho e ficou vendo Jon comprimir com firmeza o selo do Senhor Comandante na pequena poça que criara. 
— Leva isto ao Meistre Aemon quando sair – ordenou – e diga-lhe para despachar uma ave para Porto Real.
— Farei isto. – Sam hesitou. – Senhor, se posso perguntar… vi Goiva saindo. Estava quase chorando.
— Val enviou-a outra vez para suplicar por Mance.
— Oh. – Val era a irmã da mulher que o Rei-Para-lá-da-Muralha tomara como rainha. Stannis e os seus homens chamavam-na princesa selvagem. A irmã Dalla morrera durante a batalha, embora nenhuma lâmina lhe tivesse tocado; perecera ao dar à luz o filho de Mance Rayder. O próprio Rayder iria em breve segui-la para a tumba, se os murmúrios que Sam ouvira tivessem algum fundo de verdade. – O que lhe disse?
— Que falaria com Stannis, embora duvide de que as minhas palavras o influenciem. O primeiro dever de um rei é defender o reino, e Mance atacou-o. Não é provável que Sua Graça se esqueça desse fato. O meu pai costumava dizer que Stannis Baratheon era um homem justo. Nunca ninguém disse que era clemente. – Jon fez uma pausa, franzindo as sobrancelhas. – Preferiria ser eu próprio a decapitar Mance. Ele foi, em tempos, um homem da Patrulha da Noite. Pelo direito, a sua vida nos pertence.
— Pyp diz que a Senhora Melisandre pretende entrega-lo às chamas, a fim de fazer algum feitiço.
— O Pyp devia aprender a controlar a língua. Ouvi a mesma história de outros. Sangue de um rei, para despertar um dragão. Onde Melisandre pensa encontrar um dragão adormecido ninguém tem bem a certeza. É um disparate. O sangue de Mance não é mais régio do que o meu. Nunca usou uma coroa nem se sentou num trono. É um salteador, nada mais. Não há qualquer poder em sangue de salteador.
O corvo ergueu os olhos do chão. “Sangue” gritou.
Jon não lhe prestou atenção.
— Vou mandar Goiva embora.
— Oh. – Sam abanou a cabeça para cima e para baixo. – Bem, isso é… isso é bom, senhor. – Seria o melhor para ela, ir para algum lugar quente e seguro, bem longe da Muralha e da luta.
— A ela e ao rapaz. Precisaremos arranjar outra ama de leite para o seu irmão de leite.
— Leite de cabra pode servir, até que encontre outra. É melhor para um bebê do que o de vaca. – Sam lera aquilo em algum lugar. Mexeu-se na cadeira. – Senhor, ao procurar nos Anais, encontrei outro rapaz comandante. Quatrocentos anos antes da Conquista. Osric Stark tinha dez anos quando foi escolhido, mas serviu durante sessenta. Foram quatro, senhor. Não esta nem perto de ser o mais novo de sempre. Até agora é o quinto mais novo.
— Sendo que os quatro mais novos são todos filhos, irmãos ou bastardos do Rei no Norte. Diga-me algo de útil. Fala-me do nosso inimigo.
— Os Outros. – Sam lambeu os lábios. – São mencionados nos Anais, embora não com tanta frequência como eu esperava. Isto é, nos Anais que encontrei e vasculhei. Sei que há mais que ainda não encontrei. Alguns dos livros mais antigos estão caindo aos pedaços. As páginas desfazem-se quando tento vira-las. E os livros realmente velhos… ou se desfizeram por completo ou estão enterrados em algum lugar onde ainda não procurei, ou… bem, pode ser que esses livros não existam e nunca tenham existido. As histórias mais antigas que temos foram escritas depois dos ândalos chegarem a Westeros. Os Primeiros Homens só nos deixaram runas em pedras, de modo que tudo o que julgamos saber acerca da Era dos Heróis, da Era da Alvorada e da Longa Noite vem de relatos escritos por septões milhares de anos mais tarde. Há arquimeistres na Cidadela que questionam tudo isso. Essas velhas histórias estão cheias de reis que reinaram por centenas de anos, e cavaleiros que andaram por aí mil anos antes de serem cavaleiros. Conhece as histórias: Brandon, o Construtor, Symeon Olhos de Estrela, O Rei da Noite… dizemos que é o nono centésimo nonagésimo oitavo Senhor Comandante da Patrulha da Noite, mas a lista mais antiga que encontrei menciona seiscentos e setenta e quatro comandantes, o que sugere que foi escrita durante…
— Há muito tempo – interrompeu Jon. – E os Outros?
— Encontrei menções a vidro de dragão. Os filhos da floresta costumavam oferecer à Patrulha da Noite cem punhais de obsidiana todos os anos, durante a Era dos Heróis. A maior parte das histórias concorda que os Outros vêm quando está frio. Ou então fica frio quando eles vêm. Por vezes aparecem durante tempestades de neve e desaparecem quando os céus se limpam. Escondem-se da luz do sol e emergem à noite… ou então a noite cai quando emergem. Algumas histórias falam deles montados nos cadáveres de animais mortos. Ursos, lobos gigantes, mamutes, cavalos, não importa, desde que o animal esteja morto. Aquele que matou Paul Pequeno estava montado num cavalo morto, portanto essa parte é claramente verdade. Alguns relatos falam também de aranhas gigantes de gelo. Não sei o que elas são. Homens que caem em batalha contra os Outros têm de ser queimados, caso contrário os mortos voltarão a erguer-se como seus servos.
— Já sabíamos tudo isso. A questão é: como os combatemos?
— A armadura dos Outros é à prova da maior parte das lâminas comuns, se é possível crer nas histórias – disse Sam – e as espadas que eles usam são tão frias que estilhaçam o aço. Mas o fogo os desencoraja, e são vulneráveis à obsidiana. – Recordou aquele que enfrentara na floresta assombrada, e o modo como parecera derreter-se quando o apunhalara com o punhal de vidro de dragão que Jon fizera para ele. – Encontrei um relato da Longa Noite que falava do último herói a matar Outros com uma lâmina de aço de dragão. Supostamente não conseguiam resistir.
— Aço de dragão? — Jon franziu a sobrancelha. — Aço valiriano?
— Essa foi minha primeira idéia também.
— Então se eu conseguir convencer os senhores dos Sete Reinos a nos dar as suas lâminas valirianas, tudo será salvo? Isso não há de ser difícil.  – A gargalhada que soltou não tinha nenhuma alegria. – Descobriu quem são os Outros, de onde vem, o que querem?
— Ainda não, senhor, mas pode ser que tenha simplesmente lido os livros errados. Há centenas que ainda não folheei. Dê-me mais tempo, e encontrarei tudo o que houver para encontrar.
— Não há mais tempo. – O tom de Jon era triste. – Tem que juntar as suas coisas, Sam. Você vai com Goiva.
— Vou?  – Por um momento, Sam não compreendeu. – Eu vou? Para Atalaialeste, senhor? Ou… para onde…
— Vilavelha.
— Vilavelha? – O nome saiu num guincho. Monte Chifre ficava perto de Vilavelha. A minha casa. A ideia deixou a sua cabeça zonza. O meu pai.
— Aemon também.
— Aemon? O Meistre Aemon? Mas… ele tem cento e dois anos de idade, senhor, ele não pode… esta mandando a ele e a mim? Quem tratará dos corvos? Se adoecerem ou se ferirem, quem…
— Clydas. Ele está com Aemon há anos.
— Clydas é só um intendente, e está perdendo a visão. Precisa de um meistre. O Meistre Aemon está tão fraco, que uma viagem marítima… – Pensou na Árvore e na Rainha da Árvore e quase se engasgou com a língua. – Isso pode… ele é velho, e…
— A sua vida estará em risco. Estou consciente disso, Sam, mas o risco aqui é maior. Stannis sabe quem Aemon é. Se a mulher vermelha precisar de sangue real para os seus feitiços…
— Oh. — Sam empalideceu.
— Dareon vai se juntar a vocês em Atalaialeste. A minha esperança é que as suas canções nos conquistem alguns homens no sul. O Melro vai desembarcar em Bravos. A partir daí, arranjarei para vocês a passagem para Vilavelha. Se ainda quiser assumir o bebê de Goiva como seu bastardo, mande-a com a criança para Monte Chifre. Se não, Aemon encontrará para ela um lugar de criada na Cidadela.
— Meu b-b-bastardo. – Havia dito, era verdade, mas… Toda aquela água. Posso afogar-me. Os navios afundam o tempo todo, e o outono é uma estação tempestuosa. Mas Goiva estaria consigo, e o bebê cresceria em segurança. – Sim, eu… a minha mãe e irmãs ajudarão Goiva a criar a criança. – Posso mandar uma carta, não terei de ir pessoalmente a Monte Chifre. – Dareon podia levá-la para Vilavelha tão bem como eu. Eu… tenho treinado o tiro com arco todas as tardes com Ulmer, conforme ordenou… bem, menos quando estou nas caves, mas me disse para descobrir coisas sobre os Outros. O arco faz-me doer os ombros e faz crescer bolhas nos meus dedos. – Mostrou a Jon o lugar onde uma rebentara. – Mas continuo a treinar. Agora são mais as vezes que acerto no alvo do que as que não acerto apesar de ainda ser o pior arqueiro que alguma vez curvou um arco. Mas gosto das histórias de Ulmer. Alguém tem de escrever-las e as pôr num livro.
— Faça isso. Têm pergaminho e tinta na Cidadela, e também têm arcos. Conto que continue com o seu treino. Sam, a Patrulha da Noite tem centenas de homens capazes de disparar uma seta, mas só uma mão cheia sabe ler ou escrever. Preciso que se torne meu novo meistre. — A palavra o fez estremecer. Não, Pai, por favor, não voltarei a falar disso, juro pelos Sete. Daí-me uma saída, por favor, daí-me uma saída.
— Senhor, eu… o meu trabalho é aqui, os livros…
—… ainda estarão aqui quando voltar para nós.
Sam pôs uma mão na garganta. Quase conseguia sentir a corrente ali, a sufocá-lo.
— Senhor, a Cidadela… lá nos obrigam a cortar cadáveres. – Obrigam-nos a usar uma corrente em volta do pescoço. Se é corrente que você quer, vem comigo. Ao longo de três dias e três noites Sam adormecera a soluçar agrilhoado de mãos e pés a uma parede. A corrente em volta da garganta estava tão apertada que lhe rompera a pele, e sempre que rolava para o lado errado, no sono, cortava-lhe a respiração. – Não posso usar uma corrente.
— Pode. Vai usar. O Meistre Aemon está velho e cego. As suas forças estão o abandonando. Quem tomará o seu lugar quando morrer? O Meistre Mullin, da Torre Sombria, é mais guerreiro do que erudito, e o Meistre Harmune de Atalaialeste passa mais tempo bêbado do que sóbrio.
— Se pedir mais meistres à Cidadela…
— Pretendo pedir. Teremos falta de todos os que nos mandarem. Mas não é assim tão fácil substituir Aemon Targaryen. – Jon fez uma expressão surpreendida. – Estava convencido de que isto te agradaria. Há tantos livros na Cidadela que ninguém pode ter esperança de lê-los a todos. Iria se dar bem por lá, Sam. Eu sei que sim.
— Não. Podia ler os livros, mas… um m-meistre tem de ser um curandeiro, e o s-s-sangue me faz desmaiar. – Estendeu uma mão trêmula para Jon ver. – Sou Sam, o Assustado, não Sam, o Matador.
— Assustado? Com quê? Com a censura de velhos? Sam, você viu as criaturas atacando o Punho, uma maré de morto-vivos com mãos negras e brilhantes olhos azuis. Você matou um Outro.
— Foi o vidro de d-d-d-dragão, não fui eu.
— Quieto. Você mentiu, maquinou e conspirou para fazer de mim Senhor Comandante. Irá obedecer. Irá para a Cidadela e forjará uma corrente, e se tiver que abrir cadáveres, que seja. Pelo menos em Vilavelha os cadáveres não levantarão objeções.
Ele não compreende.
— Senhor – disse Sam – o meu p-p-p-pai, Lorde Randyll, ele, ele, ele, ele, ele… a vida de um meistre é uma vida de servidão. – Estava a balbuciar, bem sabia. – Nenhum filho da Casa Tarly alguma vez usará uma corrente. Os homens de Monte Chifre não se dobram nem se vergam perante senhores insignificantes. – Se é corrente que você quer, vem comigo. – Jon, não posso desobedecer ao meu pai. 
Jon, ele tinha dito, mas Jon havia desaparecido. Agora quem o encarava era Lorde Snow, olhos cinzentos duros como gelo.
— Você não tem pai – disse Lorde Snow. – Só irmãos. Só tem a nós. A sua vida pertence à Patrulha da Noite, portanto vai enfiar a sua roupa de dentro num saco, com o que quer que queira levar para Vilavelha. Irá partir uma hora antes do nascer do sol. E eis outra ordem. Deste dia em diante, não se chamará mais de covarde. Enfrentou mais coisas neste último ano do que a maioria dos homens enfrenta no tempo de uma vida. Pode enfrentar a Cidadela, mas irá enfrentá-la como Irmão Juramentado da Patrulha da Noite. Não posso ordenar que seja valente, mas posso ordenar que escondas os seus medos. Você proferiu as palavras, Sam. Lembra?
Sou a espada na escuridão. Mas era uma desgraça com uma espada, e a escuridão assustava-o.
— Eu… eu vou tentar.
— Não vai tentar. Vai obedecer.
“Obedecer”. O corvo de Mormont bateu as suas grandes asas negras.
— Às vossas ordens, senhor. O… o Meistre Aemon sabe?
— Isto foi tanto ideia dele como minha. — Jon abriu-lhe a porta. — Nada de despedidas. Quanto menos pessoas souberem disto, melhor. Uma hora antes da primeira luz da aurora, junto ao cemitério.
Mais tarde, Sam não conseguiria recordar ter saído do armeiro. Só voltou a si quando já tropeçava em lama e manchas de neve velha, na direção dos aposentos do Meistre Aemon. Podia me esconder, disse a si próprio. Podia me esconder nas caves entre os livros. Podia viver lá em baixo com o rato e me esgueirar à noite para roubar comida. Pensamentos enlouquecidos, bem sabia, tão fúteis como desesperados. As caves eram o primeiro lugar aonde iriam procurá-lo. O último lugar onde o procurariam era para lá da Muralha, mas aí a loucura ainda seria maior. Os selvagens iriam me apanhar e me matar lentamente. Podiam me queimar vivo, como a mulher vermelha pretende fazer a Mance Rayder.
Quando foi encontrar o Meistre Aemon na colônia de corvos, entregou-lhe a carta de Jon e despejou os seus temores num grande jorro de palavras.
— Ele não compreende. — Sam sentia-se prestes a vomitar. — Se eu puser uma corrente ao pescoço, o senhor meu p-p-p-pai… ele, ele, ele…
— O meu pai levantou as mesmas objeções quando eu escolhi uma vida de serviço – disse o velho. – Foi o pai dele quem me enviou para a Cidadela. O Rei Dareon foi pai de quatro filhos, e três tinham filhos seus. Dragões demais é tão perigoso como dragões de menos, eu ouvi Sua Graça dizer ao senhor meu pai, no dia em que me mandaram embora. – Aemon levou uma mão malhada à corrente de muitos metais que pendia solta, em volta do seu estreito pescoço. – A corrente é pesada, Sam, mas o meu avô tinha razão. E o seu Lorde Snow também.
“Snow” resmungou um corvo. “Snow” ecoou outro. Então todos pegaram na palavra. “Snow, snow, snow, snow, snow”. Foi Sam quem os ensinou. Viu que ali não haveria ajuda. O Meistre Aemon estava tão encurralado como ele. Ele morrerá no mar, pensou, desesperando. É muito velho para sobreviver a uma viagem como essa. O filhinho de Goiva também pode morrer, não é tão grande e forte como o rapaz de Dalla. Jon quer matar-nos todos?
Na manhã seguinte, Sam deu por si selando a égua que trouxera de Monte Chifre e a levando pela arreata até ao cemitério que havia junto da estrada oriental. Os alforges transbordavam de queijo, salsichas e ovos cozidos, e com metade de um presunto salgado que o Hobb Tres-Dedos lhe dera no dia do seu nome.
— É um homem que aprecia a cozinha, Matador – dissera o cozinheiro – Precisamos de mais homens como tu. — O presunto ajudaria, sem dúvida. O caminho até Atalaialeste era longo e frio, e não havia vilas nem estalagens à sombra da Muralha.
 A hora que precedia a aurora era escura e calma. Castelo Negro parecia estranhamente silencioso. No cemitério, um par de carroças de duas rodas esperava-o, com Jack Negro Bulwer e uma dúzia de patrulheiros experientes, tão duros como os garranos que montavam. Kedge Olho-Branco praguejou sonoramente quando o seu único olho bom vislumbrou Sam.
— Não lhe ligues, Sam — disse o Jack Negro. — Perdeu uma aposta, disse que ia ter de te arrastar aos guinchos de debaixo de alguma cama.
Meistre Aemon estava demasiado fraco para montar a cavalo, de modo que uma carroça fora preparada para ele, com uma cama coberta com uma alta pilha de peles, e um toldo de couro atado por cima, a fim de manter afastadas a chuva e a neve. Goiva e o filho seguiriam com ele. A segunda carroça levaria as suas roupas e posses, bem como uma arca de velhos livros raros que Aemon pensava que a Cidadela poderia não ter. Sam passara metade da noite à procura deles, embora tivesse encontrado apenas um em quatro. E ainda bem, senão precisaríamos de outra carroça.
Quando o meistre surgiu, vinha enrolado numa pele de urso com o triplo do seu tamanho. Enquanto Clydas o levava para a carroça, soprou uma rajada de vento, e o velho cambaleou. Sam correu para ele e colocou um braço em sua volta. Outra rajada como aquela podia soprá-lo por cima da Muralha.
— Segure-se ao meu braço, meistre. Não é longe.
O cego fez um aceno enquanto o vento puxava para trás os capuzes de ambos.
— Em Vilavelha faz sempre calor. Há uma estalagem numa ilha no Vinhomel, onde eu costumava ir quando era um jovem noviço. Será agradável voltar a me sentar lá e bebericar cidra.
Quando por fim colocaram o meistre na carroça, Goiva surgiu com a criança entrouxada nos braços. Sob o capuz, os seus olhos estavam vermelhos de chorar. Jon apareceu ao mesmo tempo, com Edd Doloroso.
— Lorde Snow – chamou o Meistre Aemon — deixei um livro para você nos meus aposentos. O Compêndio de Jade. Foi escrito pelo aventureiro volanteno Colloquo Votar, que viajou até ao oriente e visitou todas as terras do Mar de Jade. Há uma passagem que pode achar interessante. Disse a Clydas para marcar para você.
— Certamente que a lerei — respondeu Jon Snow.
Uma linha de muco branco correu do nariz do Meistre Aemon. O velho limpou-se com as costas da luva.
— O conhecimento é uma arma, Jon. Arme-se bem antes de partir para a batalha.
— Eu irei. — Uma neve ligeira começara a cair, com os grandes flocos fofos a descer preguiçosamente do céu. Jon virou-se para o Jack Negro Bulwer. — Faça o melhor tempo que puder, mas não corra riscos disparatados. Tem um velho e um bebê de peito com você. Trate de os manter quentes e bem alimentados.
— Faça o mesmo, s’enhor — disse Goiva. — Faça o mesmo com o outro. Encontre outra ama de leite, como disseste. Prometeu-me isso. O rapaz… o rapaz de Dalla… o principezinho, quer dizer… arranje alguma boa mulher, p’ra que ele cresça grande e forte.
— Tem a minha palavra quanto a isso – disse solenemente Jon Snow.
— Não lhe de um nome. Não faça isso até ele ter mais de dois anos. Dá azar dar-lhes nome quando ainda ‘tão ao peito. Vocês corvos podem não saber isso, mas é verdade.
— Como quiser senhora.
Um espasmo de ira relampejou no rosto de Goiva.
— Não me chame assim. Eu sou uma mãe, não uma senhora. Sou mulher de Craster e filha de Craster, e uma mãe. 
 Edd Doloroso pegou o bebê enquanto Goiva subia para a carroça e cobriu-lhe as pernas com algumas peles bafientas. Por essa altura, o céu oriental já se mostrava mais cinzento do que negro. Lew Mão Esquerda estava ansioso para se pôr a caminho. Edd entregou a criança, e Goiva colocou-a no peito. Esta pode ser a última vez que vejo Castelo Negro, pensou Sam enquanto se içava para cima da égua. Por mais que tivesse em tempos odiado Castelo Negro, deixar o castelo estava o dilacerando.
— Vamos a isto — ordenou Bulwer. Um chicote estalou, e as carroças começaram a retumbar lentamente pela estrada sulcada enquanto a neve caía à volta delas. Sam deixou-se ficar junto a Clydas, Edd Doloroso e Jon Snow.
— Bem — disse — até a vista.
— Até a vista, Sam — disse Edd Doloroso. — Não é provável que o seu navio se afunde, parece-me. Os navios só se afundam quando eu vou a bordo.
Jon estava observando as carroças.
— Da primeira vez que vi Goiva — disse — ela estava encostada à parede da Fortaleza de Craster, esta garota magricela de cabelo escuro com a sua grande barriga, encolhida com medo do Fantasma. Ele tinha se metido no meio dos coelhos dela, e parece que ela tinha receio que a abrisse e devorasse o bebê… mas não era do lobo que ela devia ter tido medo, não?
Não, pensou Sam. O perigo era Craster, o seu próprio pai.
— Ela tem mais coragem do que julga.
— E você também, Sam. Faz uma viagem rápida e segura, e cuida dela, de Aemon e da criança. — Jon fez um sorriso estranho e triste. — E puxa o seu capuz para cima. Os flocos de neve estão derretendo no seu cabelo.
 
 A luz ardia tênue e distante, baixa no horizonte, brilhando através das névoas marítimas.
— Parece uma estrela — disse Arya.
— A estrela do lar — disse Denyo.
O pai dele gritava ordens. Marinheiros subiam e desciam os três grandes mastros e moviam-se pelo cordame, recolhendo as pesadas velas púrpuras. Em baixo, remadores arquejavam e esforçavam-se em duas grandes fileiras de remos. Os conveses inclinaram-se, rangendo, quando a galeota Filha do Titã adernou para estibordo e começou a mudar de bordo.
A estrela do lar. Arya estava em pé, à proa, com uma mão pousada na figura de proa dourada, uma donzela que segurava uma cesta de frutas. Durante meio segundo permitiu-se fingir que o que tinha em frente era o seu lar.
Mas isso era estúpido. O seu lar desaparecera, os pais estavam mortos, e todos os irmãos tinham sido assassinados, salvo Jon Snow, que estava na Muralha. Fora para aí que quisera ir. Dissera isso mesmo ao capitão, mas nem mesmo a moeda de ferro conseguira convencê-lo. Arya nunca parecia encontrar os lugares que se propunha alcançar. Yoren jurara entregá-la em Winterfell, mas acabara em Harrenhal e Yoren na sepultura. Quando fugira de Harrenhal em direção de Correrio, o Lem, Anguy e o Tom das Sete a capturaram e arrastaram-na em vez disso para o monte oco. Então o Cão de Caça a raptara e a arrastara para as Gêmeas. Arya deixara-o moribundo junto ao rio e prosseguira até Salinas, esperando arranjar passagem para Atalaialeste-do-Mar, só que…
Bravos pode não ser muito mau. Syrio era de Bravos, e Jaqen também pode estar lá. Fora Jaqen quem lhe dera a moeda de ferro. Ele não fora realmente seu amigo, como Syrio fora, mas que bem lhe tinham feito os amigos? Não preciso de amigos, desde que tenha a Agulha. Esfregou a ponta do polegar no suave botão de punho da espada, desejando, desejando…
Na verdade, Arya não sabia o que desejar, tal como não sabia o que a esperava sob aquela luz distante. O capitão dera-lhe passagem, mas não tivera tempo de conversar com ela. Alguns dos membros da tripulação a evitavam, mas outros lhe davam presentes — um garfo de prata, luvas sem dedos, um chapéu mole de lã remendado com couro. Um homem mostraralhe como fazer nós de marinheiro. Outro lhe servia dedais de vinho ardente.
Os amigáveis batiam nos peitos, dizendo os nomes uma e outra vez até que Arya os repetisse, embora nenhum tivesse tido a ideia de perguntar o seu nome. A chamavam de Salgada, visto ter embarcado em Salinas, perto da foz do Tridente. Supunha que era um nome tão bom como qualquer outro.
As últimas das estrelas da noite tinham desaparecido… todas menos o par que estava mesmo em frente.
— Agora são duas estrelas.
— Dois olhos — disse Denyo. — O Titã está nos vendo.
O Titã de Bravos. A Velha Ama contara-lhes histórias sobre o Titã, em Winterfell. Era um gigante alto como uma montanha, e sempre que Bravos estava em perigo acordava com fogo nos olhos, fazendo trovejar e ranger os membros de pedra enquanto entrava no mar para esmagar os inimigos.
— Os bravosianos o alimentam com a carne sumarenta e cor-de-rosa de garotinhas bem nascidas — terminava Velha Ama, e Sansa soltava um guincho estúpido. Mas o Meistre Luwin dizia que o Titã era apenas uma estátua, e as histórias da Velha Ama não passavam de histórias.
Winterfell ardeu e caiu, recordou Arya a si própria. A Velha Ama e o Meistre Luwin estavam ambos mortos, provavelmente, e Sansa também. Não fazia bem nenhum pensar neles. Todos os homens têm de morrer. Era isso que as palavras queriam dizer, as palavras que Jaqen H’ghar lhe ensinara quando lhe dera a gasta moeda de ferro.
Aprendera mais palavras bravosianas desde que deixara Salinas, as palavras para por favor, obrigado, mar, estrela e vinho ardente, mas chegara até eles sabendo que todos os homens têm de morrer. A maior parte da tripulação da Filha conhecia um pouco do idioma comum, das noites passadas em terra, em Vilavelha, Porto Real e Lagoa da Donzela, embora apenas o capitão e os filhos o falassem suficientemente bem para conversar com ela. Denyo era o mais novo desses filhos, um rapaz gorducho e alegre de doze anos que cuidava da cabina do pai e ajudava o irmão mais velho com as somas.
— Espero que o seu Titã não esteja com fome — disse-lhe Arya.
— Fome? — disse Denyo, confuso.
— Não interessa. — Mesmo se o Titã realmente comesse carne sumarenta e rosada de garotinhas, Arya não o temeria. Era uma coisinha magricela, não uma refeição decente para um gigante, e tinha quase onze anos, praticamente uma mulher feita. E, além disso, a Salgada não é bemnascida.
— O Titã é o deus de Bravos? — perguntou. — Ou são os Sete?
— Todos os deuses são honrados em Bravos. — O filho do capitão gostava quase tanto de falar sobre a sua cidade como gostava de falar sobre o navio do pai.
— Os seus Sete têm aqui um septo, o Septo-do-Ultramar, mas só os marinheiros de Westeros que vão cultuá-los. 
Não são os meus Sete. Eram os deuses da minha mãe, e deixaram que os Frey a assassinassem nas Gêmeas. Perguntou a si própria se encontraria um bosque sagrado em Bravos, com um represeiro no coração. Denyo talvez soubesse, mas não lhe podia perguntar. A Salgada era de Salinas, e o que saberia uma garota de Salinas dos velhos deuses do norte? Os velhos deuses estão mortos, disse a si própria, com a Mãe, o Pai, Robb, Bran e Rickon, todos mortos. Lembrava-se do pai ter dito há muito tempo que quando os ventos frios sopram, o lobo solitário morre e a alcatéia sobrevive. Agora tinha as coisas ao contrário. Arya, a loba solitária, sobrevivia, mas os lobos da alcatéia tinham sido capturados, mortos e esfolados.
— Os Cantores da Lua nos trouxe para este refúgio, onde os dragões de Valíria não conseguissem nos encontrar — disse Denyo. — O templo deles é o maior. Estimamos também o Pai das Águas, mas a sua casa é construída de novo sempre que toma a sua noiva. O resto dos deuses vivem juntos numa ilha no centro da cidade. É aí que você pode encontrar o… o Deus das Muitas Caras.
Os olhos do Titã pareciam agora brilhantes, e mais afastados um do outro. Arya não conhecia nenhum Deus das Muitas Caras, mas se respondia a preces, podia ser o deus que procurava. Sor Gregor, ela pensou, Dunsen, Raff, o Querido, Sor Ilyn, Sor Meryn, Rainha Cersei. São apenas seis agora. Joffrey estava morto, o Cão de Caça matara Polliver e ela própria apunhalara o Cócegas, e aquele estúpido escudeiro com a espinha. Não o teria morto se ele não me tivesse agarrado. O Cão de Caça estava moribundo quando o deixara nas margens do Tridente, ardendo em febre devido ao ferimento. Devia ter-lhe oferecido a dádiva da misericórdia e enfiado uma faca no seu coração.
— Salgada, olha! — Denyo puxou-a pelo braço e a fez virar. — Consegue ver? Ali. — E apontou.
As névoas cederam à frente do navio, cortinas cinzentas esfarrapadas afastadas pela proa. A Filha do Titã abria caminho através das águas cinzaesverdeadas, apoiada em asas enfunadas de cor púrpura. Arya ouvia os gritos das aves marinhas por cima da sua cabeça. Ali, no local para onde Denyo apontava, uma linha de picos rochosos erguia-se de súbito do mar, com vertentes íngremes cobertas de pinheiros marciais e abetos negros. Mas mesmo em frente o mar abrira caminho, e aí, sobre as águas abertas, erguiase o Titã, com os seus olhos em fogo e o seu longo cabelo verde soprado pelo vento.
As suas pernas erguiam-se sobre a abertura, com um pé plantado em cada montanha, e os ombros a subir bem acima dos cumes irregulares. As pernas tinham sido esculpidas na pedra sólida, o mesmo granito negro dos montes submarinos sobre os quais se erguia, embora usasse em torno dos quadris uma saia couraçada de bronze esverdeado. A placa de peito era também de bronze e a cabeça era um meio elmo com crista. O cabelo que o vento soprava era feito de cordas de cânhamo tingidas de verde, e enormes fogueiras ardiam nas grutas que eram os seus olhos. Uma mão descansava no topo do pico da esquerda, com dedos de bronze enrolados em volta de uma protuberância de pedra; a outra projetava-se no ar, agarrando o cabo de uma espada quebrada.
É só um pouco maior do que a estátua do Rei Baelor em Porto Real, disse ela a si própria quando ainda se encontravam bem ao largo. Mas à medida que a galeota se aproximou do local onde as ondas rebentavam contra a cumeada, o Titã cresceu ainda mais. Arya ouvia o pai de Denyo a berrar ordens com a sua voz profunda, e, no cordame, os homens enrolavam as velas. Vamos passar por baixo das pernas do Titã a remos. Arya viu as seteiras abertas na grande placa de peito em bronze, e manchas e salpicos nos braços e ombros do Titã, nos locais onde as aves marinhas faziam os ninhos. Esticou o pescoço para cima. Baelor, o Abençoado, não lhe chegaria ao joelho. Podia passar por cima das muralhas de Winterfell.
Então o Titã soltou um poderoso rugido. O som foi tão monstruoso como ele, um terrível trovejar e ranger, tão forte que até encobriu a voz do capitão e o estrondo que as ondas faziam contra aquelas elevações revestidas de pinheiros. Um milhar de aves marinhas levantou voo ao mesmo tempo, e Arya encolheu-se até ver que Denyo estava rindo.
— Ele previne o Arsenal da nossa chegada, é só isso — gritou. — Não precisa ter medo.
— Não tive — gritou Arya em resposta. — Foi do barulho, só isso.
O vento e as ondas tinham agora a Filha do Titã bem presa nas mãos, empurrando-a rapidamente para o canal. A dupla fileira de remos mergulhava ritmicamente, fustigando o mar com espuma branca enquanto a sombra do Titã caía sobre eles. Por um momento pareceu certo que iriam se esmagar contra as rochas sob as pernas dele. Aninhada à proa com Denyo, Arya sentia o sabor do sal onde a maresia lhe tocara o rosto. Tinha que olhar diretamente para cima para ver a cabeça do Titã.
— Os bravosianos alimentam-no com a carne sumarenta e cor-derosa de garotinhas bem nascidas — ouviu de novo a Velha Ama dizer, mas ela não era uma garotinha, e não iria se deixar assustar por causa de uma estúpida estátua. Mesmo assim, manteve uma mão pousada na Agulha enquanto se esgueiravam por entre as pernas do Titã. Mais seteiras pontilhavam o interior daquelas grandes coxas de pedra, e quando Arya virou o pescoço para ver o cesto da gávea passar com uns bons dez metros de folga, vislumbrou alçapões por baixo das saias couraçadas do Titã, e rostos pálidos a fitá-los de detrás das barras de ferro. E então estavam do lado de lá.
A sombra ergueu-se, as elevações cobertas de pinheiros afastaram-se de ambos os lados, os ventos reduziram-se, e acharam-se em movimento por uma grande lagoa. Em frente erguia-se outro monte submarino, uma protuberância de rocha que se projetava da água como um punho coberto de espigões, com ameias rochosas eriçadas de balistas, catapultas de fogo e trabucos.
— O Arsenal de Bravos — chamou-lhe Denyo, tão orgulhoso como se o tivesse construído. — Ali conseguem construir uma galé de guerra num dia. — Arya via dezenas de galés amarradas ao cais e empoleiradas em rampas de lançamento. As proas pintadas de outras galés espreitavam de dentro de um sem-número de galpões de madeira erguidos ao longo das costas rochosas, como se fossem cães de caça num canil, esguias, más e famintas, à espera de serem chamadas pelo corno de um caçador. Tentou contá-las, mas havia muitas, e viam-se mais docas, galpões e cais onde a linha da costa fazia uma curva e se afastava.
Duas galés tinham vindo ao seu encontro. Pareciam pairar sobre a água como libélulas, com os remos de cor clara a relampejar. Arya ouviu o capitão gritar para elas e os capitães delas responderem, mas não compreendeu as palavras. Um grande corno soou. As galés puseram-se de ambos os lados do navio deles, tão próximas que conseguia ouvir o som abafado dos tambores a soar dentro dos seus cascos de cor púrpura, bum bum bum bum bum bum bum bum, como o bater de corações vivos.
Então as galés ficaram para trás, e o Arsenal também. Em frente estendeu-se uma vastidão de água cor de ervilha, encrespada como uma folha de vidro colorido. Do seu coração úmido ergueu-se a cidade propriamente dita, uma grande extensão de cúpulas, torres e pontes, cinzentas, douradas e vermelhas. As cem ilhas de Bravos no mar.
O Meistre Luwin lhe havia falado sobre Bravos, mas Arya esquecera a maior parte do que ele dissera. Era uma cidade plana, isso ela podia ver mesmo de longe, ao contrário de Porto Real, que se erguia nas suas três grandes colinas. As únicas colinas que ali havia eram aquelas que os homens tinham erguido com tijolo e granito, bronze e mármore. Havia algo mais em falta, embora Arya demorasse alguns momentos a compreender o que era. A cidade não tem muralhas. Mas quando disse isso a Denyo, ele riu dela.
— As nossas muralhas são feitas de madeira e pintadas de púrpura — disselhe. — As nossas muralhas são as nossas galés. Não precisamos de outras.
O convés rangeu sob os seus pés. Arya virou-se para descobrir o pai de Denyo a erguer-se acima dela com o seu grande casaco de capitão feito de lã púrpura. O Capitão mercador Ternesio Terys não usava barba e mantinha o cabelo grisalho curto e bem tratado, emoldurando o rosto quadrado e queimado pelo sol. Durante a travessia o vira com frequência a trocar brincadeiras com a tripulação, mas quando franzia a testa, os homens fugiam dele como quem foge de uma tempestade. Ele estava de cenho franzido agora.
— A nossa viagem está no fim — disse a Arya. — Vamos para o Porto Axadrezado, onde os oficiais da alfândega do Senhor do Mar virão a bordo inspecionar os nossos porões. Levarão nisso meio dia, sempre levam, mas não há necessidade de que você espere. Junte as suas coisas. Vou baixar um bote, e Yorko vai colocá-la em terra.
Em terra. Arya mordeu o lábio. Atravessara o mar estreito para chegar ali, mas se o capitão tivesse perguntado, teria lhe dito que queria ficar a bordo da Filha do Titã. A Salgada era pequena demais para manejar um remo, agora sabia disso, mas podia aprender a amarrar cordas e a rizar velas e a traçar um rumo através do grande mar salgado. Denyo a levara uma vez até ao cesto da gávea, e não tivera medo nenhum, embora o convés parecesse uma coisinha minúscula lá em baixo. E também sei fazer somas, e manter uma cabine arrumada. Mas a galeota não precisava de um segundo moço de cabina. Além do mais, bastava olhar para a cara do capitão para saber como ele estava ansioso por se ver livre dela. Portanto, Arya limitou-se a anuir.
— Em terra firme — disse, embora em terra significasse apenas estranhos.
— Valar dohaeris. — Levou dois dedos à testa. — Peço que se lembre de Ternesio Terys e do serviço que ele te prestou.
— Eu lembrarei — disse Arya em voz baixa. O vento lhe puxava pelo manto, insistente como um fantasma. Era tempo de ir embora. Junte as suas coisas, dissera o capitão, mas elas eram bem poucas.
Só as roupas que usava, a sua pequena bolsa de moedas, os presentes que a tripulação lhe dera, o punhal que trazia no quadril à esquerda e a Agulha que usava à direita.
O bote ficou pronto antes dela, e Yorko pôs-se aos remos. Era também filho do capitão, mas mais velho do que Denyo e menos amigável. Não cheguei a me despedir de Denyo, pensou enquanto descia para se juntar a Yorko. Ela se perguntou se algum dia voltaria a ver o rapaz. Eu devia ter dito adeus.
A Filha do Titã diminuía, enquanto a cidade crescia a cada movimento dos remos de Yorko. Um porto estava visível à direita, um emaranhado de piers e cais repletos de baleeiros de casco largo vindos de Ibben, navios cisne das Ilhas do Verão, e mais galés do que uma garota conseguiria contar. Outro porto, mais distante, via-se à esquerda, para lá de uma ponta de terreno afundado, onde os topos de edifícios meio afogados se projetavam da água. Arya nunca vira tantos edifícios de grandes dimensões juntos num mesmo lugar. Porto Real tinha a Fortaleza Vermelha, o Grande Septo de Baelor e o Fosso dos Dragões, mas Bravos parecia fazer alarde de inúmeros templos, torres e palácios de igual tamanho ou até maiores. Voltarei a ser um rato, pensou sombriamente, tal como era em Harrenhal antes de fugir.
De onde o Titã se encontrava, a cidade parecera construída numa grande ilha, mas à medida que Yorko os levava para mais perto, Arya foi vendo que se erguera em muitas ilhas pequenas e muito próximas, ligadas por pontes arqueadas de pedra que transpunham um sem-número de canais. Para lá do porto, vislumbrou ruas de casas de pedra cinzenta, tão próximas umas das outras que se encostavam. Aos olhos de Arya tinham um aspecto estranho, com quatro e cinco andares de altura e muito estreitas, com telhados de telha pontiagudos que eram como chapéus bicudos. Não viu colmo, e viu apenas algumas casas de madeira, do tipo que conhecia de Westeros. Eles não têm árvores, compreendeu. Bravos é toda em pedra, uma cidade cinzenta num mar verde.
Yorko virou para norte das docas e para o interior da desembocadura de um grande canal, uma larga estrada aquática e verde que corria em linha reta para o coração da cidade. Passaram sob os arcos de uma ponte de pedra esculpida, decorada com meia centena de espécies de peixes, caranguejos e lulas. Uma segunda ponte surgiu em frente, esta esculpida com vinhedos frondosos, e depois dessa uma terceira, que os fitava com centenas de olhos pintados. As embocaduras de canais menores abriam-se de ambos os lados, e as de outros ainda menores abriam-se nesses. Arya viu que algumas das casas eram construídas por cima dos canais, transformando-os numa espécie de túnel. Barcos esguios deslizavam de um lado para o outro, talhados de modo a tomarem a forma de serpentes aquáticas com cabeças pontiagudas e caudas erguidas. Arya viu que esses barcos não se moviam a remos, mas sim à vara, por homens que se mantinham em pé nas suas popas, envoltos em mantos cinzentos, castanhos ou de um profundo verde musgo. Viu também enormes barcaças de fundo chato, carregadas com grandes pilhas de caixotes e barris e empurradas por vinte remadores de cada lado, e elegantes casas flutuantes com lanternas de vidro colorido, cortinas de veludo e figuras de bronze à proa.
A uma grande distância, erguendo-se tanto sobre os canais como sobre as casas, via-se uma espécie de maciça estrada de pedra, suportada por três camadas de poderosos arcos que marchavam para sul, para o interior da neblina.
— O que é aquilo? — perguntou Arya a Yorko, apontando.
— O rio de água doce — disse-lhe ele. — Traz água doce do continente, através dos mangues e dos baixios salgados. Boa água doce para as fontes.
Quando ela olhou para trás, o porto e a lagoa estavam fora de vista. Em frente, uma fileira de grandes estátuas erguia-se de ambos os lados do canal, homens solenes de pedra com longas vestes de bronze, salpicados com os excrementos de aves marinhas. Alguns seguravam livros, outros punhais, outros martelos. Um tinha uma estrela dourada na mão erguida. Outro, com um jarro de pedra, derramava um infindável jorro de água no canal.
— São deuses? — perguntou Arya.
— Senhores do Mar — disse Yorko. — A Ilha dos Deuses é mais adiante. Vê? Seis pontes abaixo, na margem direita. Aquele é o Templo dos Cantores da Lua.
Era um daqueles edifícios que Arya vislumbrara da lagoa, uma massa grandiosa de mármore branco como a neve, encimada por uma enorme cúpula prateada, cujas janelas de vidro leitoso mostravam todas as fases da lua. Um par de donzelas de mármore flanqueava os seus portões, tão altas como os Senhores do Mar, suportando um lintel em forma de crescente. Depois erguia-se outro templo, um edifício de pedra vermelha, tão severo como qualquer fortaleza. No topo da sua grande torre quadrada ardia uma fogueira num braseiro de ferro com seis metros de largura, enquanto fogueiras menores flanqueavam as suas portas de bronze.
— Os sacerdotes vermelhos adoram as suas fogueiras — disse Yorko. — O seu deus é o Senhor da Luz, o R’hllor vermelho.
Eu sei. Arya lembrou-se de Thoros de Myr com os seus pedaços velhos de armadura, usados sobre vestes tão desbotadas que parecia mais um sacerdote cor-de-rosa do que vermelho. Mas o seu beijo trouxera o Lorde Beric de volta à vida. Observou a casa do deus vermelho enquanto passava por ela, perguntando a si mesma se aqueles sacerdotes bravosianos de R’hllor seriam capazes de fazer a mesma coisa.
A seguir surgiu uma enorme estrutura de tijolo coberta de líquenes. Arya poderia tê-la tomado por um armazém, se Yorko não tivesse dito:
— Aquele é o Refúgio Sagrado, onde honramos os deuses menores que o mundo esqueceu. Você também pode ouvir a chamarem de Coelheira. — Um pequeno canal corria entre as altas paredes cobertas de líquens da Coelheira, e foi aí que ele virou o barco para a direita. Passaram por um túnel e voltaram a sair para a luz do dia. Mais templos se erguiam de ambos os lados.
— Não sabia que existiam tantos deuses — disse Arya.
Yorko soltou um grunhido. Fizeram uma curva e passaram por baixo de outra ponte. À esquerda surgiu um pequeno monte rochoso com um templo sem janelas de pedra cinzenta escura no topo. Um lance de escadas de pedra levava das suas portas a uma doca coberta. Yorko inverteu o sentido da remada, e o bote colidiu suavemente com estacas de pedra. Agarrou numa argola de ferro destinada a segura-los por um momento.
— É aqui que te deixo.
A doca estava na sombra, os degraus eram íngremes. O telhado de telhas negras do templo fazia um bico aguçado, como os das casas ao longo dos canais. Arya mordeu o lábio. Syrio veio de Bravos. Pode ter visitado este templo. Pode ter subido estes degraus. Agarrou numa argola e içou-se para a doca.
— Sabe o meu nome — disse Yorko de dentro do barco. — Yorko
Terys.
— Valar dohaeris. — Empurrou o cais com o remo e flutuou para águas mais profundas. Arya ficou a vê-lo remar de volta por onde tinham vindo, até que o barco desapareceu nas sombras da ponte. Quando o marulhar dos remos desapareceu, quase conseguiu ouvir o bater do seu coração. De súbito, estava noutro lugar… de volta a Harrenhal com Gendry, talvez, ou com o Cão de Caça nas florestas ao longo do Tridente.
A Salgada é uma criança estúpida, disse a si própria. Sou uma loba, e não vou ter medo. Afagou o cabo da Agulha para lhe dar sorte e mergulhou nas sombras, subindo os degraus dois a dois para que ninguém pudesse alguma vez dizer que tinha medo.
No topo encontrou um conjunto de portas esculpidas em madeira com três metros e meio de altura. A porta da esquerda era feita de represeiro branco como osso, a da direita de reluzente ébano. No centro encontrava-se esculpido um rosto de lua; ébano do lado do represeiro, represeiro no do ébano. O aspecto das portas a fez se lembrar, sem saber porquê, da árvore coração no bosque sagrado de Winterfell. As portas estão me observando, pensou. Empurrou ambas as portas ao mesmo tempo com o lado das mãos enluvadas, mas nenhuma se moveu. Trancadas.
— Me deixem entrar, suas estúpidas — disse. — Atravessei o mar estreito. — Fez um punho e bateu. — Jaqen me disse para vir. Tenho a moeda de ferro. — Tirou-a da bolsa e a mostrou. — Vê? Valar morghulis. As portas não responderam, exceto abrindo-se.
Abriram para dentro, num silêncio total, sem mão humana que as movesse. Arya deu um passo em frente, e depois outro. As portas fecharamse atrás dela, e por um momento ficou cega. Tinha a Agulha na mão, embora não se recordasse de a ter desembainhado.
Algumas velas ardiam ao longo das paredes, mas davam tão pouca luz que Arya não conseguia ver os próprios pés. Alguém estava a sussurrar, baixo demais para que distinguisse palavras. Outra pessoa chorava. Ouviu passos leves, couro a deslizar sobre pedra, uma porta a abrir e a fechar. Água, também ouço água.
Lentamente, os olhos ajustaram-se. O templo parecia muito maior por dentro do que parecera de fora. Os septos de Westeros tinham sete lados, com sete altares para os sete deuses, mas ali havia mais deuses do que sete. Estátuas deles erguiam-se ao longo das paredes, maciças e ameaçadoras. Em volta dos seus pés, velas vermelhas tremeluziam, tênues como estrelas distantes. O deus mais próximo era uma mulher de mármore com seis metros e meio de altura. Lágrimas verdadeiras escorriam dos olhos e iam encher a bacia que embalava nos braços. Atrás dela estava um homem com cabeça de leão sentado num trono, esculpido em ébano. Do outro lado das portas, um enorme cavalo de bronze e ferro empinava-se em duas grandes patas. Mais adiante conseguia distinguir um grande rosto de pedra, um bebê pálido com uma espada, uma cabra preta com o pelo emaranhado do tamanho de um auroque, um homem encapuzado apoiado num bastão. O resto era para ela apenas grandes silhuetas, entrevistas na escuridão. Entre os deuses havia alcovas escondidas, carregadas de sombras, aqui e ali com uma vela a arder.
Silenciosa como uma sombra, Arya avançou por entre filas de longos bancos de pedra, de espada na mão. Os pés disseram-lhe que o chão era feito de pedra; não de mármore polido como o chão do Grande Septo de Baelor, mas algo mais áspero. Passou por algumas mulheres que sussurravam juntas. O ar estava quente e pesado, tão pesado que bocejou. Sentiu o cheiro das velas. O odor não era familiar, e atribuiu-o a algum tipo estranho de incenso, mas à medida que penetrava mais profundamente no templo, elas pareceram cheirar a neve, a agulhas de pinheiro e a cozido quente. Bons cheiros, disse Arya a si mesma, e se sentiu um pouco mais corajosa. Suficientemente corajosa para voltar a embainhar Agulha.
No centro do templo encontrou a água que ouvira; um tanque com três metros de largura, negro como tinta e iluminado por fracas velas vermelhas. Ao lado encontrava-se sentado um homem jovem com um manto prateado, chorando baixinho. O viu mergulhar uma mão na água, fazendo ondulações atravessarem o tanque. Quando tirou os dedos da água chupouos, um por um. Deve ter sede. Havia taças de pedra ao longo da borda do tanque. Arya encheu uma e levou para ele beber. O jovem fitou-a por um longo momento quando lhe ofereceu a água.
— Valar morghulis — disse.
— Valar dohaeris — respondeu ela.
Ele bebeu até ao fim e deixou cair a taça no tanque com um plop suave. Então pôs-se em pé, cambaleando, segurando a barriga. Por um momento, Arya pensou que o homem ia cair. Foi só então que viu a mancha escura sob o seu cinto, que se espalhava perante os seus olhos.
— Você foi esfaqueado — exclamou, mas o homem não lhe deu atenção. Arrastou-se na direção da parede com um andar instável, e enfiouse numa alcova, estendendo-se numa dura cama de pedra. Quando Arya olhou em volta, viu outras alcovas. Em algumas havia velhos dormindo.
Não, pareceu ouvir uma voz meio lembrada a sussurrar na sua cabeça. Estão mortos, ou a morrer. Olha com os olhos. 
Uma mão tocou seu braço. Arya rodopiou para longe, mas era só uma menininha: uma menininha pálida usando uma veste encapuzada que a parecia engolir, negra do lado direito e branca do esquerdo. Sob o capuz estava uma cara lúgubre e ossuda, um rosto chupado, e olhos escuros que pareciam grandes como pires.
— Não me agarre — disse Arya à criança abandonada, num aviso. — Matei o último rapaz que me agarrou.
A menina disse algumas palavras que Arya não reconheceu. Ela balançou a cabeça.
— Você não fala o idioma comum?
Uma voz atrás dela disse:
— Eu falo.
Arya não gostava da maneira como não paravam de a surpreender. O homem encapuzado era alto, envolto numa versão maior da veste preta e branca que a menina usava. Sob o capuz, tudo o que ela conseguia ver era a tênue cintilação vermelha da luz das velas, que refletia nos olhos.
— Que lugar é este? — perguntou.
— Um lugar de paz. — A voz do homem era gentil. — Aqui está em segurança. Esta é a Casa do Preto e Branco, filha. Embora seja nova para procurar o favor do Deus de Muitas Faces.
— É como o deus do sul, aquele com sete rostos?
— Sete? Não. As faces dele são incontáveis, pequena, tantas como as estrelas que há no céu. Em Bravos, os homens rezam como entenderem… mas no fim de todos os caminhos está O das Muitas Faces, à espera. Ele estará lá para ti um dia, não temas. Não precisas correr para os seus braços.
— Só vim à procura de Jaqen H’ghar.
— Não conheço esse nome.
O coração de Arya afundou-se.
— Ele era de Lorath. O cabelo era branco de um lado e vermelho do outro. Disse que me ensinaria segredos, e me deu isto. — Tinha a moeda de ferro apertada no punho. Quando abriu os dedos ficou colada à palma suada da sua mão.
O sacerdote estudou a moeda, embora não tenha feito nenhum movimento para lhe tocar. A criança abandonada dos olhos grandes também estava a olhá-la. Por fim, o homem encapuzado disse:
— Diz-me o teu nome, filha.
— Salgada. Venho de Salinas, junto do Tridente.
Embora não conseguisse ver o rosto, de algum modo sentiu o velho
sorrir.
— Não — disse o homem. — Diz-me o teu nome.
— Pombinha — respondeu daquela vez.
— O teu nome verdadeiro, filha.
— A minha mãe me chamou Nan, mas todos me chamavam de Doninha…
— O teu nome.
Arya engoliu em seco.
— Arry. Sou Arry.
— Está mais perto. E agora a verdade?
O medo golpeia mais profundamente que as espadas, disse a si mesma.
— Arya. — Da primeira vez murmurou a palavra. Da segunda atirou-a. — Sou Arya, da Casa Stark.
— Pois é — disse ele — mas a Casa do Preto e Branco não é lugar para Arya da Casa Stark.
— Por favor — disse ela. — Não tenho lugar para onde ir.
— Temes a morte?
Arya mordeu o lábio.
— Não.
— Vejamos. — O sacerdote baixou o capuz. Por baixo não tinha rosto; só uma caveira amarelada com uns restos de pele ainda agarrados às bochechas, e um verme branco a se contorcer numa órbita vazia. — Beijame, filha — crocitou, numa voz tão seca e enrouquecida como o matraquear da morte.
Será que ele quer me assustar? Arya beijou-o no lugar onde o nariz deveria estar e tirou-lhe o verme do olho tencionando come-lo, mas ele derreteu-se como uma sombra na sua mão. A caveira amarela também estava a derreter-se, e o velho mais amável que já vira sorria para ela.
— Nunca ninguém tinha tentado comer o meu verme — disse. — Tens fome, filha?
Sim, pensou ela, mas não de comida.
 
Uma chuva fria caía, deixando os muros e muralhas da Fortaleza Vermelha escuros como sangue. A rainha segurou a mão do rei e levou-o firmemente pelo quintal enlameado até onde sua liteira esperava com sua escolta. 
— Tio Jaime disse que eu poderia montar meu cavalo e jogar moedas para o povo. — O garoto contestou. 
— Você quer pegar um resfriado? — Ela não arriscaria; Tommen nunca foi tão robusto quanto Joffrey. — Seu avô queria que você se parecesse com um rei em seu próprio velório. Nós não vamos aparecer no Grande Septo molhados e sujos. — Já é ruim o suficiente ter que vestir luto de novo. O preto nunca foi uma cor alegre para ela. Com sua pele clara, ela se parecia meio cadáver. Cersei levantou-se uma hora antes do amanhecer para tomar banho e arrumar o cabelo, e ela não pretendia deixar que a chuva arruinasse os seus esforços. 
Dentro da liteira, Tommen recostou-se sobre os travesseiros e espiou a chuva que caía. 
— Os deuses estão chorando por nosso avô. A Senhora Jocelyn diz que as gotas de chuva são suas lágrimas. 
— Jocelyn Swyft é uma tola. Se os deuses pudessem chorar, eles teriam chorado pelo seu irmão. Chuva é chuva. Feche a cortina antes que entre mais água. O manto é de zibelina, você quer deixá-lo encharcado? 
Tommen fez como lhe foi proposto. Sua submissão a incomodava. Um rei tinha que ser forte. Joffrey teria respondido. Ele nunca foi fácil de intimidar. 
— Não se desanime — ela disse para Tommen. — Sente-se como um rei. Coloque os seus ombros para trás e arrume a sua coroa. Você quer que ela caia da sua cabeça na frente de todos os seus lordes?
— Não, mãe. — O garoto sentou-se ereto e conseguiu arrumar a sua coroa. A coroa de Joffrey era muito grande para ele. Tommen sempre teve tendência a engordar, mas seu rosto parecia mais fino agora. Ele está se alimentando bem? Ela deveria se lembrar de perguntar ao mordomo. Ela não poderia correr o risco de Tommen crescer doente, não com Myrcella nas mãos do homem de Dorne. Ele vai crescer ao tamanho da coroa de Joffrey em seu tempo. Até lá, será preciso uma menor, uma que não ameace cair de sua cabeça. Ela iria resolver isso com o ourives. 
A liteira fez o seu lento caminho descendo a alta colina de Aegon. Dois guardas reais montavam a frente deles, cavaleiros brancos em cavalos brancos com suas capas brancas e encharcadas penduradas em seus ombros. Atrás vinham cinquenta guardas Lannister em dourado e carmesim. 
Tommen olhou através das cortinas nas ruas vazias. 
— Achei que teriam mais pessoas. Quando o pai morreu, todo mundo veio para fora nos ver passar. 
— Esta chuva levou-os para dentro. — Porto Real nunca amou Lorde Tywin. No entanto, ele nunca quis amor. — Você não pode comer amor, nem comprar um cavalo com ele, nem aquecer seus aposentos em uma noite fria. — Ela o ouviu dizer a Jaime uma vez, quando seu irmão tinha aproximadamente a idade de Tommen. 
No Grande Septo de Baelor, aquele magnificente em mármore no topo da Colina de Visenya, o pequeno grupo de pranteadores foi superado em número pelos mantos dourados que Sor Addam Marbrand havia trazido pela praça. Mais pessoas virão mais tarde, a rainha disse a si mesma enquanto Sor Meryn Trant a ajudou na liteira. Apenas os nobres e seus séquitos seriam admitidos no velório matutino; haveria outro à tarde para as pessoas comuns, e as orações da noite seriam abertas a todos.
Cersei precisaria voltar para este velório, para que o povo pudesse vê-la chorar. A multidão deve ter o seu show. Era um incômodo. Ela tinha cargos políticos para preencher, uma guerra para ganhar, um reino para governar. Seu pai teria entendido isso.
O Alto Septão se encontrou com eles no topo da escadaria. Um homem curvado com uma barba grisalha e rala. Ele estava tão curvado pelo peso de seu manto bordado e ornamentado que seus olhos estavam no nível dos seios da rainha... embora a sua coroa, uma delicada confecção de cristal lapidado e fios de ouro, tenha acrescentado um bom pé e meio à sua altura. 
Lord Tywin deu esta coroa para substituir a outra perdida quando a multidão matou o Alto Septão anterior. Eles puxaram o tolo gordo de sua liteira e o dilacerou, no dia em que Myrcela navegou para Dorne. Ele era um grande glutão, e obediente. Esse agora… este Alto Septão era dos homens de Tyrion, Cersei lembrou de repente.  Foi um pensamento inquietante. 
A mão do velho homem se parecia com uma pata de frango enquanto apontava dentro da manga encrustada com arabescos de ouro e pequenos cristais. Cersei se ajoelhou sobre o mármore molhado e beijou seus dedos, e mandou Tommen fazer o mesmo. O que ele sabe de mim? O que o anão contou a ele? O Alto Septão sorriu enquanto a acompanhou para o septo. Mas era um sorriso ameaçador cheio de conhecimento tácito, ou apenas um inexpressivo movimento de lábios enrugados de um velho? A rainha não podia saber ao certo.
Eles seguiram seu caminho pelo Salão das Lâmpadas sob globos de vidro chumbado colorido, a mão de Tommen na sua. Trant e Kettleblack os acompanharam, a água pingando de suas capas molhadas para uma poça no chão. O Alto Septão caminhou devagar, inclinado sobre um bastão de carvalho encimado por uma esfera de cristal. Sete dos Mais Devotos o assistiram, tremeluzindo em capas de prata. Tommen usava uma capa de ouro sob seu manto de zibelina, a rainha, um vestido velho de veludo preto forrado de arminho. Não houve tempo para que um novo fosse confeccionado, e ela não poderia vestir o mesmo vestido que ela usou para Joffrey, nem aquele com que enterrou Robert.
Pelo menos não esperarão que eu vista luto por Tyrion. Vou usar vestido de seda escarlate tecido com ouro, e usar rubis no meu cabelo. O homem que trouxesse a ela a cabeça do anão seria intitulado lorde, ela proclamou, não importa quão pobre e humilde fosse seu nascimento ou posição. Os corvos estavam carregando sua promessa para todas as partes dos Sete Reinos, e logo a notícia cruzaria o mar estreito para as Nove Cidades Livres e as terras mais além. Deixe que o Duende corra até os confins da terra, ele não vai escapar de mim.  
O cortejo real passou pelas portas internas para o coração cavernoso do Grande Septo, e entrou em um largo corredor, um dos sete que levavam ao pé do domo. À direita e a esquerda, nobres em luto caíram de joelhos enquanto o rei e a rainha passavam. Muitos dos homens da bandeira de seu pai estavam lá, e cavaleiros que lutaram ao lado de Lord Tywin em meia centena de batalhas. Vê-los a fez sentir-se mais confiante. Não estou sem amigos. 
Abaixo do grandioso domo de ouro e cristal do Grande Septo o corpo de Lord Tywin Lannister descansava em cima de um caixão de mármore pisado. Jaime ficou de vigíla, a sua cabeça, sua mão boa segurando o punho de uma espada larga de ouro cuja ponta estava no chão. A capa com capuz que ele usava era branca como neve recém-caída, e as escalas de sua cota de malha longa eram de madrepérola seguida de ouro. Lord Tywin teria gostado que ele usasse ouro Lannister e carmesim, ela pensou. Sempre o irritou ver Jaime todo de branco. O irmão dela também estava deixando a barba crescer. A barba por fazer cobria seu queixo e suas bochechas, e dava a seu rosto uma aparência rude, áspera. Ele deveria ter esperado pelo menos até que os ossos de seu pai fossem enterrados embaixo do Rochedo. 
Cersei guiou o rei acima de três pequenos degraus, para ajoelhar-se ao lado do corpo. Os olhos de Tommen estavam cheios de lágrimas; 
— Chore silenciosamente, — ela disse a ele, inclinando-se para perto. —Você é um rei, não uma criança esquálida. Seus lordes estão te observando. — O garoto enxugou as lágrimas com as costas da mão. Ele tinha os olhos dela, verde esmeralda, tão grandes e brilhantes como os de Jaime eram quando tinha a idade de Tommen. O irmão dela era realmente um bonito garoto… mas feroz também, como um verdadeiro filhote de leão. A rainha colocou seus braços ao redor de Tommen e beijou seus cachinhos. Ele vai precisar de mim para ensinar como governar e mantê-lo a salvo de seus inimigos. Alguns deles estavam por perto, mesmo nesse momento, fingindo serem amigos. As irmãs silenciosas tinham colocado a armadura em Tywin como se fosse lutar em alguma batalha final. Ele vestia sua mais fina armadura, de pesado aço esmaltado, um profundo e escuro carmesim, com incrustações de ouro em suas luvas, grevas e peitoral. Suas medalhas eram de ouro reluzente; Uma leoa dourada agachada em cima de cada ombro; um leão no alto do elmo ao lado de sua cabeça. Sobre o seu peito descansava uma espada longa em uma bainha dourada cravejada com rubis, suas mãos apoiadas no punho em luvas de cota de malha dourada. Mesmo na morte seu rosto é nobre, ela pensou, embora a boca...  Os cantos dos lábios de seu pai estavam curvados para cima, ainda que levemente, dando-lhe uma vaga aparência de espanto. Isso não deveria estar assim. Ela censurou Pycelle; ele deveria ter dito às irmãs silenciosas que Lord Tywin Lannister nunca sorria. O homem é tão inútil como mamilos em um peitoral de armadura. Aquele meio sorriso fez Lord Tywin parecer, de alguma forma, menos assustador. Isso, e o fato de seus olhos estarem fechados. Os olhos de seu pai sempre foram inquietantes; de um verde pálido, quase luminosos, salpicados com ouro. Seus olhos podiam ver dentro de você, podia ver quão fraco e desprezível e feio você é em seu interior. Quando ele olhava para você, ele sabia. 
Espontaneamente, uma lembrança lhe ocorreu, do banquete que o Rei havia dado quando Cersei veio pela primeira vez para a corte, uma garota tão verde quanto a grama no verão. O velho Merryweather estava falando sobre aumentar o imposto sobre o vinho quando Lord Rykker disse.
— Se precisamos de ouro, a Sua Graça deveria sentar Lord Tywin no seu penico. — Aerys e seu puxa-saco riram alto, enquanto o pai olhava para Rykker sobre seu copo de vinho. Muito depois que o divertimento havia acabado esse olhar permaneceu.  Rykker afastou-se, voltou, encontrou os olhos do pai, então os ignorou, bebeu uma caneca de cerveja, e ficou com o rosto vermelho, derrotado por um par de olhos inabaláveis. 
Os olhos de Lord Tywin estão fechados para sempre agora, Cersei pensou. É ao meu olhar que eles vão recuar a partir de agora, é a minha cara feia que eles devem temer. Eu sou um leão também.
Estava triste dentro do septo como o céu tão cinza fora. Se a chuva parasse, o sol se inclinaria para baixo através dos cristais pendurados para guarnecer o cadáver com o arco-íris. O Senhor de Rochedo Casterly  merecia um arco-íris. Ele havia sido um grande homem. No entanto, eu devo ser maior. Daqui a cem anos, quando os meistres escreverem sobre esses tempos, ele deve ser lembrado apenas como o pai da rainha Cersei.
— Mãe. — Tommen puxou sua manga. — O que cheira tão mal? 
O Senhor meu pai.
— Morte. — Ela podia sentir esse cheiro também; um leve sussurro de apodrecimento a fez querer franzir o nariz. Cersei não prestou atenção a isso. Os sete septãos em suas vestes de prata ficaram atrás do caixão, rogando ao Pai dos Céus que julgasse com justiça Lorde Tywin. Quando eles terminaram, setenta e sete septãs se reuniram diante do altar da “Mãe” e começaram a cantar a ela por misericórdia. Tommen estava se remexendo até então, e até os joelhos da rainha tinham começado a doer. Ela olhou para Jaime. Seu irmão gêmeo estava como se tivesse sido esculpido em pedra, e seus olhos não encontraram os dela. 
Nos bancos, seu tio Kevan ajoelhou-se com os ombros caídos, o seu filho ao lado dele. Lancel parecia pior que o seu pai. Apesar de ter apenas dezessete anos, talvez ele passasse por setenta; o rosto acinzentado, magro, com bochechas côncavas, olhos encovados e cabelo tão branco e frágil como o giz.  Como Lancel pode estar entre os vivos quando Tywin Lannister está morto? Teriam os deuses perdido o juízo? 
Lorde Gyles estava tossindo mais do que o habitual e cobrindo o nariz com um quadrado de seda vermelho. Ele também consegue sentir o cheiro. Grande Maester Pycelle fechou os olhos. Se ele adormecer, eu juro que bateria nele. Os Tyrell se ajoelhavam a direita do caixão: O Senhor de Jardim de cima, sua hedionda mãe e sua esposa insípida, seu filho Garlan e sua filha Margaery. Rainha Margaery, ela lembrou a si mesma. Viúva de Joff e futura esposa de Tommen. Margaery se parecia muito com seu irmão, o Cavaleiro das Flores. A rainha imaginou se eles teriam outras coisas em comum. Nossa pequena rosa tem um bom número de senhoras esperando para atendê-la noite e dia. Eles estavam com ela agora, quase uma dúzia deles.  Cersei estudou seus rosto, imaginando. Quem é o mais terrível, o mais desenfreado, o mais faminto por favores? Quem teria a língua mais solta? Ela precisaria descobrir.
Foi um alívio quando o canto finalmente acabou. O cheiro que vinha do cadáver de seu pai parecia ter ficado mais forte. A maior parte dos enlutados tinha a decência de fingir que nada estava errado, mas Cersei viu dois dos primos da Senhora Margaery torcendo seus pequenos narizes de Tyrell. Enquanto ela e Tommen foram caminhando de volta pelo corredor a rainha pensou ter ouvido alguém murmurar "privada" e rir, mas quando ela virou a cabeça para ver quem tinha falado um mar de rostos solenes olhou para ela fixamente. Eles jamais teriam ousado fazer piadinhas sobre ele quando ainda estava vivo. Ele teria transformado as suas entranhas em água com um olhar. 
De volta ao Salão das Lâmpadas, os enlutados zumbiam sobre eles numerosos como moscas, ansiosos para inundá-la com condolências inúteis.  Ambos os gêmeos Redwyne beijaram a mão dela, e seu pai, as bochechas. Hallyne, o Piromático, prometeu a ela que uma mão flamejante iria queimar no céu acima da cidade no dia que os ossos de seu pai fossem para o oeste. Entre tossidas, Lord Gyles disse a ela que ele havia contratado um mestre escultor para fazer uma estátua de Lorde Tywin, para ficar em eterna vigília ao lado do Portão do Leão. Sor Lambert Turnberry apareceu com um curativo sobre o seu olho direito, jurando que iria usá-lo até que ele pudesse trazer-lhe a cabeça de seu irmão anão.
Mal a rainha escapou das garras desse idiota ela se viu encurralada pela Senhora Falyse de Stokeworth e seu marido, Sor Balman Byrch.
 — A senhora minha mãe manda condolescências, Vossa Graça, — Falyse balbuciava para ela. —Lollys está de cama por causa da criança e minha mãe sentiu a necessidade de ficar com ela. Ela pede seu perdão, e disse que eu deveria pedir a você… minha mãe admirava seu pai acima de todos os homens. Minha irmã deverá ter um menino, é desejo dela que o chamemos de Tywin se… se isso te agradar.
Cersei a encarou, horrorizada.
— Sua irmã desajuizada se deixa ser estuprada por metade dos Reis deste Reino, e Tanda pensa em honrar o bastardo com o nome do Senhor meu pai? Eu acho que não. 
Falyse recuou como se tivesse sido esbofeteada, mas seu marido apenas acariciou seu espesso bigode loiro com um polegar.
— Eu disse a Senhora Tanda  várias vezes. Nós devemos achar um nome mais, ah… um nome mais apropriado para o bastardo de Lolly, você tem a minha palavra. 
— Vejo que sim. Cersei deu de ombros e retirou-se. Tommen tinha caído nas garras de Margaery Tyrell e sua avó, ela percebeu. A Rainha de espinheiros era tão baixa que por um instante Cersei pensou que ela era outra criança. Antes que ela pudesse resgatar seu filho das rosas, a pressão a fez ficar cara a cara com seu tio. Quando a rainha o lembrou da reunião que tiveram anteriormente, Sor Kevan lhe deu um aceno cansado e pediu licença para se retirar. Mas Lancel demorou-se, a imagem de um homem com um pé na cova. Mas ele está tentando sair ou entrar? Cersei se forçou a sorrir.
— Lancel, eu estou feliz em vê-lo tão mais forte. Meistre Ballabar nos trouxe relatórios realmente terríveis, nós tememos pela sua vida. Mas eu pensei que você estaria em seu caminho para Darry agora, para ocupar o seu senhorio. — Seu pai tinha nomeado Lancel um lorde depois da Batalha da Água Negra, como um suborno para seu irmão Kevan. 
— Ainda não. Há foras da lei em meu castelo. A voz de seu primo era fraca como o bigode sobre os seus lábios. Embora seus cabelos tenham ficado brancos, a penugem de seu bigode permaneceu cor de areia. Cersei muitas vezes olhou para o bigode enquanto o garoto estava dentro dela, a montando respeitosamente afastado. Parecia com uma mancha de sujeira em seus lábios. Ele tinha medo de arrancá-lo com um pouco de saliva — Os ribeirinhos precisam de uma mão forte, meu pai disse.
Uma pena que eles terão a sua, ela quis dizer. Ao invés disso ela sorriu. — E você deve se casar também. 
Um olhar sombrio passou pelo rosto devastado do jovem cavaleiro. 
— Uma Frey, e não foi escolha minha. Ela nem mesmo é uma donzela. Uma viúva, com o sangue dos Darry. Meu pai diz que vai me ajudar com os camponeses, mas os camponeses estão todos mortos. — Ele procurou por sua mão. — Isso é cruel, Cersei. Vossa Graça sabe que eu amo...
—... a Casa Lannister, — ela terminou para ele. — Ninguém pode duvidar disso, Lancel. Talvez sua esposa lhe dê filhos fortes. — Melhor não deixar que o lorde avô seja o anfitrião do casamento, no entanto. —  Eu sei que você fará muitas nobres ações em Darry.
Lancel acenou com a cabeça, claramente infeliz. 
— Quando parecia que eu estava para morrer, meu pai trouxe o Alto Septão para orar por mim. Ele é um bom homem. — Os olhos de seu primo estavam molhados e brilhantes, olhos de criança em um rosto de homem feito. — Ele disse que a Mãe me poupou por algum motivo santo, então eu devo expiar os meus pecados.
Cersei imaginou como ele pretendia expiar para ela. Faze-lo um cavaleiro foi um erro, e deitar-se com ele um erro maior ainda. Lancel  era um junco fraco, e ela não gostava nada de sua piedade recém-criada; ele era muito mais interessante quando estava tentando ser Jaime. O que esse tolo choramingão disse para o Alto Septão? E o que ele vai dizer a pequena Frey quando eles se deitarem juntos no escuro? Se ele confessar ter se deitado com Cersei, bem, ela poderia resistir a isso. Os homens sempre mentem sobre as mulheres; ela poderia colocar como fanfarronice de um jovem imaturo apaixonado por sua beleza.  Se ele falar sobre Robert e o vinho forte, então...
— Expiação é melhor alcançada através da oração, — Cersei disse a ele. — Oração silenciosa. — Ele o deixou pensando sobre isso e se preparou para encarar Tyrell. Margaery a abraçou como se fosse sua irmã, o que a rainha achou presunçoso, mas aquele não era o local para censurá-la. A Senhora Alerie e os primos se contentaram em beijar-lhe os dedos. A Senhora Graceford, que tinha vários filhos, perguntou se a rainha deixaria colocar o nome de Tywin se fosse um menino, ou Lanna se fosse uma menina. Outro? Ela quase murmurou. O reino vai se afogar em Tywins. Ela deu consentimento tão graciosamente quanto pode, fingindo prazer. 
Foi a Senhora Merryweather quem realmente a agradou. “Vossa Majestade” esta disse, em seu tom abafado de Myr.
— Eu enviei uma mensagem aos meus amigos do outro lado do mar estreito, pedindo a eles para prenderem o Duende assim que ele mostrar sua cara feia nas Cidades Livres. 
— Você tem muitos amigos do outro lado do oceano?
— Em Myr, muitos. Em Lys também, e Tyrosh. Homens de poder. 
Cersei poderia muito bem acreditar nisso. A mulher Myrish era parcialmente muito bonita; pernas longas e seios fartos, com suave pele cor de oliva, lábios maduros, olhos grandes e escuros, e cabelos escuros e grossos que sempre pareciam como se ela tivesse acabado de se levantar. Ela até cheirava a pecado, como uma lótus exótica.
— Lorde Merryweather e eu queremos apenas servir a Vossa Majestade e ao pequeno rei,” A mulher ronronou, com um olhar tão grávido como a Senhora Graceford.
Ela é ambiciosa, e seu Lorde é orgulhoso, mas pobre. 
— Devemos nos falar novamente, minha senhora. Taena, não é isso? Você é muito gentil. Eu sei que seremos grandes amigas. 
Então o Lorde de Jardim de cima aproximou-se dela. 
Mace Tyrell não era mais que dez anos mais velho que Cersei, ainda assim ela pensava nele como a idade de seu pai, não a sua. Ele não era tão alto como Lord Tywin foi, mas no mais, ele era maior, com o tórax largo e uma pança ainda maior. Seu cabelo era castanho, mas havia manchas de branco e cinza em sua barba. Seu rosto muitas vezes ficava vermelho. 
— Lord Tywin foi um grande homem, um homem extraordinário, — declarou ele pesadamente depois que beijou suas duas bochechas. — Nós nunca mais veremos outro como ele, eu temo. — Você está olhando para este outro, tolo, pensou Cersei .É a filha dele que está a sua frente. Mas ela precisava de Tyrell e da força de jardim de Cima para manter Tommen em seu trono, então tudo o que ela disse foi: 
— Ele vai fazer uma imensa falta.
Tyrell colocou a mão sobre o ombro dela.
— Nenhum homem vivo está apto a usar a armadura de Lorde Tywin, isto é claro. Ainda assim, o domínio continua, e deve ser derrubado. Se houver alguma coisa que eu poderia fazer para servir nesta hora escura, Sua graça só precisa pedir.
Se você quiser ser a Mão do Rei, meu Senhor, tenha a coragem de dizer isso abertamente. — A rainha sorriu. Deixe que ele interprete isso da forma que achar melhor. 
— Certamente meu senhor é necessário na Campina?
— Meu filho Willas é um rapaz capaz, — o homem respondeu, se recusando a entender a sua dica perfeitamente clara. — Sua perna deve estar torcida, mas ele não precisa de mais destreza. E Garlan logo terá Águas Claras. Com eles a Campina estará em boas mãos, caso eu seja necessário em outros lugares. A governança do reino deve vir em primeiro lugar, Lorde Tywin sempre dizia. E é um prazer trazer a Vossa Graça boas notícias a esse respeito. Meu tio Garth concordou em servir como mestre de moeda, como o senhor seu pai desejava. Ele está a caminho de Vilavelha para pegar um navio. Os filhos dele irão acompanhá-lo. Lorde Tywin mencionou alguma coisa sobre encontrar atribuições para os dois também. Talvez na Patrulha da Cidade.
O sorriso da rainha havia congelado tanto que ela temia que os dentes pudessem quebrar. Garth, o Greosseiro no conselho e seus dois pequenos bastardos em capas de ouro... os Tyrell pensam que eu vou servirlhes o reino em uma bandeja dourada? A arrogância lhe tirou o fôlego.  
— Garth serviu também a mim como Lorde Senescal, assim como ele serviu a meu pai antes de mim, — Tyrell continuava. — Mindinho tinha faro para o ouro, eu lhe confirmo, mas Garth. 
— Meu senhor, — Cersei o interrompeu. — Eu temo que tenha havido algum mal entendido. Eu solicitei a Lorde Gyles Rosby para servir como nosso novo mestre da moeda, e ele me fez a honra de aceitar.
Mace ficou boquiaberto. — Rosby? Aquele... tossidor? Mas... se foi aprovado, Vossa Graça. Garth está a caminho de Vilavelha.
— Melhor enviar um corvo para Lorde Hightower e pedir a ele que se assegure que seu tio não embarque. Nós detestaríamos que Garth enfrentasse um mar de outono para nada. — Ela sorriu agradavelmente. 
Um rubor subiu o pescoço grosso de Tyrell.
— Isso… o senhor seu pai me assegurará... — Ele começou a gaguejar.
Então, sua mãe apareceu e deslizou seu braço sobre o dele. 
— Parece que Lorde Tywin não dividiu seus planos com nossa regente, eu não consigo imaginar o motivo. Ainda assim, mas não tem com o que se preocupar, Vossa Graça. Está certa, deve escrever a Lorde Leyton antes que Garth embarque em um navio. Você sabe que o mar vai fazê-lo sentir-se mal e deixar sua flatulência pior.
A Senhora Olenna deu um sorriso sem dentes a Cersei.
— Suas câmaras do conselho terão cheiro mais doce com Lorde Gyles, embora eu ouse dizer que a tosse me levaria à distração. Todos nós adoramos o velho tio Garth, mas o homem é flatulento, isso não se pode contradizer. Eu realmente abomino maus cheiros. — Seu rosto enrugado se enrugou ainda mais.  — Eu senti um cheiro desagradável no Santo Septo, na verdade. Talvez você tenha sentido também?
— Não. — Cersei disse friamente. — Um odor, você diz?
— Mais como um fedor.
— Talvez você sinta falta de suas rosas de outono. Nós os mantivemos aqui por muito tempo.
Quanto mais rápido ela se livrasse da corte da corte da Senhora Olenna, melhor. Lorde Tyrell iria, com certeza, enviar um bom número de cavaleiros para levar sua mãe em casa, em segurança, e quanto menos espadas dos Tyrell na cidade, melhor dormiria a rainha.
— Eu realmente sinto falta das fragrâncias de Jardim de Cima, confesso, — disse a velha mulher, — mas obviamente não posso partir antes de ver minha doce Margaery casada com o seu precioso pequeno Tommen.
— Eu também espero ansiosamente por esse dia, — Tyrell acrescentou. — Lorde Tywin e eu estávamos no ponto de definir uma data. Talvez você e eu possamos retomar a discussão, Vossa Graça.
— Em breve.
— Em breve vai servir, — disse a Senhora Olenna com uma fungadela. — Agora venha, Mace, deixe Vossa Graça com o seu... pesar.
Eu a verei morta, sua velha, Cersei prometeu a si mesma enquanto a Rainha dos Espinhos cambaleava entre seus altos guardas, um par de homens grandes que a divertia chamar de Direito e Esquerdo. Veremos que bela defunta você será. A velha era duas vezes mais esperta que seu filho lorde, isso era claro.
A rainha resgatou seu filho de Margaery e seus primos, e se dirigiu para as portas. Lá fora, a chuva finalmente parou. O ar de outono tinha um cheiro doce e fresco. Tommen tirou sua coroa.
— Coloque isso de volta na cabeça, — Cersei mandou. 
— Ela faz o meu pescoço doer, — o garoto disse, mas foi como se fosse um apelo. — Eu vou me casar logo? Margaery disse que assim que nos casarmos podemos ir para Jardim de cima.
— Você não vai para Jardim de Cima, mas você pode voltar para o castelo. — Cersei acenou para Sor Meryn Trant. — Traga para a Vossa Graça uma montaria, e peça a Lorde Gyles se ele me daria a honra de me acompanhar em minha liteira. — As coisas estavam andando mais rápido do que ela esperava; não havia tempo para ser desperdiçado. 
Tommen estava contente diante da perspective de uma montaria, e claro que Lord Gyles estava honrado pelo convite dela... mas quando ela lhe pediu para ser seu mestre de moeda, ele começou a tossir tão violentamente que ela teve medo que ele morresse ali naquele momento. Mas a Mãe era misericordiosa, e Gyles eventualmente se recuperou o suficiente para aceitar, e até começou a tossir os nomes dos homens que ele queria substituir, os funcionários aduaneiros e os administradores de lã nomeados por Mindinho, até um dos guardiões das chaves. 
— Nomeie como a vaca quem você quiser, contanto que o leite flua. E se a questão for levantada, você se uniu ao conselho ontem.
— Ont... — Um acesso de tosse o fez se dobrar. — Ontem. Certamente. — Lord Gyles tossiu em um quadrado vermelho de seda, como se para ocultar o sangue em sua saliva. Cersei fingiu não notar. 
Quando ele morrer eu vou encontrar outra pessoa. Talvez ela chamasse de volta Mindinho. A rainha não imaginava que aquele Petyr Baelish fosse autorizado permanecer como Lorde Protetor do Vale por muito tempo, com Lysa Arryn morta. Os senhores do Vale já estavam se agitando, se o que Pycelle disse for verdade.  Uma vez que levarem o menino miserável para longe dele, o Lorde Petyr virá rastejando de volta. 
Vossa Graça? — Lord Gyles tossiu, e limpou a boca. — Eu poderia... — Ele tossiu de novo. — ...perguntar quem ... — Outra série de tosse o atormentou. — ... quem será a Mão do Rei? 
— Meu tio, — ela respondeu ausentemente. 
Foi um alívio para ela ver as portas da Muralha Vermelha iminentes à sua frente. Ela deu Tommen a carga de seus escudeiros e se retirou agradecia para seus aposentos para descansar. 
Mal ela tirou os sapatos e Jocelyn entrou timidamente para dizer que Qyburn estava lá fora e ansiava por uma audiência.
— Deixe-o entrar, — a rainha ordenou. Um governante não descansa. 
Qyburn era velho, mas seus cabelos ainda tinham mais cinza do que neve neles, e as linhas de riso ao redor da boca o faziam se parecer como o avô preferido de algumas menininhas. Um avô um tanto maltrapilho, pensou. O colarinho de seu robe estava desgastado, e uma manga havia sido rasgada e mal costurada. 
— Devo pedir perdão a Vossa Graça pela minha aparição, — disse ele. — Eu tenho estado lá embaixo nos calabouços fazendo interrogações a respeito da fuga do Duende, como a senhora ordenou.
— E o que você descobriu?
— A noite que Lorde Varys e seu irmão desapareceram, um terceiro homem também desapareceu.
— Sim, o carcereiro. O que tem ele?” 
— Rugen era o seu nome. O carcereiro que era responsável pelas celas negras. O chefe da carceragem o descreve como corpulento, com barba por fazer, e fala ríspida. Ele honrou seu compromisso com o antigo rei, Aerys, vinha e ia como ele quisesse. As clas negras não foram ocupadas muitas vezes nos últimos anos. Os outros carcereiros tinham medo dele, ao que parece, mas ninguém sabia muito sobre ele.
Ele não tinha amigos, nem parentes. Nem bebia ou ia a bordéis frequentemente. A cela em que dormia era úmida e triste, e a palha em que dormia em cima estava mofada. O seu penico estava transbordando.
— Eu sei disso tudo. — Jaime examinou a cela de Rugen, e os homens de Manto Dourado de Sor Addam a examinaram novamente. 
— Sim, Sua Graça, — disse Qyburn, — mas você sabia que embaixo do penico fedorento havia uma pedra solta, que abria em uma pequena cavidade? O tipo de lugar onde um homem esconderia objetos de valor que ele não queria que descobrissem?
— Valiosos? — Isso era novo. — Moeda, você quer dizer? — Ela suspeitou o tempo todo que Tyrion tinha, de alguma forma, comprado este carcereiro. 
— Permanece uma dúvida. Com certeza, o buraco estava vazio quando eu o encontrei. Sem dúvida Rugen levou o seu tesouro ilícito com ele quando fugiu. Mas enquanto eu estava agachado em cima do buraco com a minha tocha, eu vi algo brilhar, então eu esfreguei a sujeita até que ficasse visível. — Qyburn abriu sua mão. — Uma moeda de ouro.
Ouro, sim, mas no momento em que Cersei o pegou podia dizer que havia algo errado. Muito pequeno, ela pensou, muito fino. A moeda estava velha e desgastada. De um lado era o rosto de um rei de perfil, do outro lado a marca de uma mão. 
— Isso não é dragão, — ela disse. 
— Não, — Qyburn concordou. — Isso data de antes da Conquista, Vossa Graça. O rei é Garth o Décimo Segundo, e a mão é Sigil da Casa Gardener.” 
De Jardim de Cima. Cersei fechou sua mão sobre a moeda. Que traição é esta? Mace Tyrell foi um dos juízes de Tyrion, e gritou alto por sua morte. Seria um estratagema? Ele poderia estar tramando com o Duende o tempo todo, conspirando a morte do meu pai?  Com Tywin Lannister em sua cova, Lord Tyrell seria uma escolha óbvia para ser o Conselheiro do Rei, mas mesmo assim... 
— Você não vai falar disso com ninguém, — ela ordenou.
— Vossa Graça deve confiar em minha discrição. Qualquer homem que ande com mercenários aprende a segurar a sua língua, ou então não consegue tê-la por muito tempo. 
— Em minha companhia também. — A rainha colocou a moeda de lado. Ela deveria pensar sobre isso mais tarde. — O que há sobre o outro assunto?
— Sor Gregor. — Qyburn deu de ombros. — Eu o examinei, como a senhora mandou. O veneno da lança de Víbora era veneno de manticora do leste, eu apostaria minha vida nisso.
— Pycelle disse que não. Ele disse ao senhor meu pai que o veneno de manticora mata no instante em que atinge o coração.
— E assim ele age. Mas esse veneno foi, de alguma maneira, engrossado, para protelar a morte do Montanha. 
— Engrossado? Engrossado como? Com alguma outra substância?
— Pode ser como Sua Graça sugere, embora na maioria dos casos adulterar um veneno só diminui sua potência. Pode ser que a causa seja... menos natural, digamos. Um feitiço, eu acho
Seria esse um grande tolo como Pycelle?
— Então você está me dizendo que a Montanha está morrendo de alguma magia negra?
Qyburn ignorou a zombaria em sua voz.
— Ele está morrendo envenenado, mas vagarosamente, e com uma agonia extraordinária. Os meus esforços em diminuir sua dor provaram ser tão improdutivos como os de Pycelle. Sor Gregor está excessivamente acostumado com a papoula, eu temo. Seu escudeiro me diz que ele é atormentado por dores de cabeça cegante e frequentemente toma o leite da papoula como outros homens bebem cerveja . Seja como for, suas veias ficaram pretas da cabeça ao calcanhar, sua água é nublada e com pus, e o veneno gerou um buraco na sua lateral tão grande quanto o meu punho. É uma surpresa que este homem ainda esteja vivo, verdade seja dita.
— O tamanho dele, — a rainha sugeriu, franzindo o cenho. — Gregor é um homem muito grande. E também muito idiota. Muito idiota para saber que ele deve morrer, parece. — Ela estendeu seu copo e Senelle o encheu novamente. — Seus gritos assustam Tommen. É sabido que me acorda a noite. Eu diria que já passamos do tempo de convocarmos Ilyn Payne. 
— Vossa Graça, — disse Qyburn, — talvez eu devesse levar Sor Gregor para os calabouços? Seus gritos não irão perturbá-la de lá, e eu poderei cuidar dele mais livremente.
— Cuidar dele? — Ela riu. — Deixe Sor Ilyn cuidar dele.
— Se é o desejo de Vossa Graça, — Qyburn disse, — mas esse veneno... seria útil descobrir mais sobre isso, não seria? Envie um cavaleiro para matar um cavaleiro e um arqueiro para matar um arqueiro, o povo costuma dizer. Para combater as artes da magia negra... — Ele não terminou o raciocino, mas sorriu para ela. 
Ele não é Pycelle, isso é claro. A rainha o considerou, imaginando.
— Porque tomaram sua cadeira na Cidadela?
— Os arquimestres são todos covardes de coração. A ovelha cinza, Marwyn os chama. Eu era um curandeiro qualificado como Ebrose, mas aspirava a ultrapassá-lo. Por centenas de anos os homens da Cidadela abriram os corpos dos mortos, para estudar a natureza da vida. Eu queria entender a natureza da morte, então abri os corpos dos vivos. Por esse crime a ovelha cinza se envergonhou de mim e me forçou ao exílio... mas eu entendo a natureza da vida e da morte melhor do que qualquer homem em Vilavelha.
— Você entende? — Isso a intrigou. — Muito bem. Ele é seu. Faça o que quiser com ele, mas limite seus estudos às celas negras. Quando ele morrer, traga-me a cabeça. Meu pai prometeu-a a Dorne. Príncipe Doran sem dúvida preferiria matar Gregor ele mesmo, mas todos nós devemos sofrer decepções nesta vida. 
— Muito bem, Vossa Graça. — Qyburn limpou a garganta. — Eu não estou tão bem fornecido como Pycelle, no entanto. Devo precisar equipar-me com certas..." 
— Vou instruir o Senhor Gyles para fornecê-lo com ouro suficiente para suas necessidades. Compre para você algumas roupas novas também. Você parece que veio do Baixio das Pulgas.  — Ela estudou seus olhos, perguntando o quão longe se atrevia a confiar nele. — Eu preciso dizer que as coisas irão mal para você, se qualquer palavra de seus... trabalhos... passar para além destas paredes?
— Não, Vossa Graça. — Qyburn deu a ela um sorriso reconfortante. — Seus segredos estão a salvo comigo.
Quando ele se foi, Cersei serviu-se de uma xícara de vinho forte e bebeu ao lado da janela, observando as sombras aumentarem em todo o quintal e pensando sobre a moeda. Por que um carcereiro em Porto Real tinha ouro vindo da Campina, a não ser que fosse pago para ajudar a provocar a morte de meu Pai? 
Por mais que tentasse, ela não conseguia trazer à mente o rosto de Lorde Tywin sem ver aquele meio-sorriso tolo e relembrando o cheiro desagradável vindo de seu cadáver. Ela imaginava como Tyrion estava de alguma forma por trás disso também. Isso é pequeno e cruel, como ele. Poderia Tyrion ter feito de Pycelle seu joguete? Ele enviou o velho para as celas negras, e este Rugen era o encarregado dessas celas, lembrou-se. Todas as pontas soltas estavam se amarrando de forma que ela não gostava. Esse Alto Septão é instrumento de Tyrion também, Cersei se lembrou de repente, e o corpo de seu pobre Pai estava aos seus cuidados desde o anoitecer até o amanhecer. 
Seu tio chegou prontamente ao pôr do sol, vestindo um gibão acolchoado de lã cor de carvão tão sombrio quanto o seu rosto. Como todos os Lannisters, Sor Kevan era de pele clara e loiro, e embora tivesse cinquenta e cinco anos ele havia perdido a maior parte de seu cabelo. Ninguém nunca diria que ele é gracioso. Cintura larga, ombros redondos, com um queixo quadrado e saliente que sua barba curta e loira pouco fazia para esconder, ele a lembrava um velho mastim... mas um velho e fiel mastim era o  mesmo que ela precisava. Eles comeram uma ceia simples de beterrabas e pão e carne sangrenta com um frasco de dornês vermelho para levar tudo para baixo. Sor Kevan falou pouco e raramente tocou sua taça de vinho. Ele medita muito, ela decidiu. Ele precisa ser colocado para trabalhar para esquecer a sua dor. 
Ela disse quando o último dos alimentos haviam sido removidos e os servos tinham partido.
— Eu sei o quanto meu pai confiava em você, Tio. Agora eu devo fazer o mesmo.
— Você precisa de uma Mão, — ele disse, — e Jaime a recusou.
Ele é franco. Muito bem.
— Jaime... eu me senti tão perdida com a morte de meu Pai, eu mal sabia o que estava dizendo. Jaime é galante mas um pouco tolo, sejamos francos.Tommen precisa de um homem mais maduro. Alguém mais velho...
— Mace Tyrell é mais velho.
— Suas narinas queimaram. 
— Nunca. Cersei empurrou uma mecha de cabelo de sua testa. — Os Tyrell estão se excedendo.
— Você seria tola em fazer Mace Tyrell sua Mão, — Sor Kevan admitiu, — mas uma tola ainda maior de fazê-lo seu inimigo. Eu ouvi sobre o que aconteceu no Salão das Lâmpadas. Mace deveria ter pensado melhor antes de abordar esses assuntos em público, mas mesmo assim, você não foi esperta ao envergonhá-lo em frente a metade da corte.
— Melhor do que sofrer com outro Tyrell no conselho. — A reprovação dele a irritou. — Rosby será um mestre da moeda adequado. O senhor viu a sua liteira, com suas esculturas e tapeçarias de seda. Seus cavalos são melhores vestidos que a maior parte dos cavaleiros. Um homem tão rico não deve ter problemas para encontrar ouro. E como Mão... quem melhor para terminar o trabalho de meu pai do que o irmão que participou de todos os conselhos?
— Todo homem precisa de alguém para confiar. Tywin tinha a mim, e anteriormente a sua mãe.
— Ele a amava muito. — Cersei se recusou a pensar sobre a prostituta morta em sua cama. — Eu sei que eles estão juntos agora.
— Por isso eu oro. — Sor Kevan estudou sua face por um longo momento antes de responder. —Você pede a mim, Cersei.
— Não mais que meu pai.
— Eu estou cansado. — O tio buscou pelo copo de vinho e tomou um gole. — Eu tenho uma esposa que não vejo há dois anos, um filho morto para chorar, outro filho que está para se casar e assumir um senhorio. O Castelo Darry precisa se tornar forte novamente, suas terras protegidas, seus campos queimados precisam ser arados e plantados de novo. Lancel vai precisar da minha ajuda.
— Assim como Tommen. — Cersei não esperava que Kevan pedisse adulação. Ele nunca se fazia de desentendido com o Pai. — O reino precisa de você. 
— O reino. Sim. E a casa Lannister. — Ele tomou outro gole do vinho. — Muito bem. Eu vou permanecer e servir a Vossa Graça... 
— Muito bom, — ela começou a dizer, mas Sor Kevan elevou seu tom de voz e a interrompeu. 
—... desde que me nomeie também como regente assim como Mão e você volte para Rochedo Casterly. 
Por metade um batimento cardíaco Cersei só pode olhar para ele. 
— Eu sou a regente, — ela o relembrou. 
— Você era. Tywin não tinha a intenção de que você continuasse no cargo. Ele me contou sobre seus planos de lhe enviar de volta para Rochedo e encontrar um novo marido para você. 
Cersei pôde sentir sua raiva aumentando. 
— Ele falou sobre isso sim. E eu disse a ele que não era o meu desejo casar-me novamente.
Seu tio não se comoveu.
— Se você estiver resolvida a não se casar outra vez, não vou forçála. Quanto ao outro assunto, entretanto... você é a Senhora de Rochedo Casterly agora. Seu lugar é lá.
— Como ousa? Ela queria gritar. Ao invés disso, ela disse:
— Eu sou também a Rainha Regente. Meu lugar é ao lado do meu
filho.
— Seu pai não pensava assim.
— Meu pai está morto.
— Para minha tristeza, e infortúnio de todo o reino. Abra os seus olhos e olhe a sua volta, Cersei. O reino está em ruínas. Tywin poderia ter sido capaz de definir corretamente as questões, mas...
— Eu serei capaz de definir corretamente as questões! — Cersei deixou sua voz mais doce. — Com a sua ajuda, tio. Se o senhor me servir tão fielmente quanto serviu meu pai. 
— Você não é o seu pai. E Tywin sempre considerou Jaime como seu herdeiro legítimo. 
— Jaime... Jaime tomou os votos. Jaime nunca pensa, ele ri de tudo e de todos e diz o que lhe vem a cabeça. Jaime é um tolo bonito.
— E mesmo assim foi a sua primeira escolha para ser o Conselheiro do Rei. O que isso te parece, Cersei? 
— Eu disse ao senhor, eu estava doente de sofrimento, eu não pensei. 
— Não mesmo, Sor Kevan concordou. — O que é o motivo pelo qual você deve retornar à Rochedo Casterly e deixar o rei com aqueles que pensam.
— O rei é meu filho! — Cersei levantou-se. 
— Sim, — seu tio disse, — e pelo o que eu vi de Joffrey, você é tão inapropriada como mãe quanto como governante. 
Ela jogou o conteúdo de sua taça de vinho cheia no rosto dele. 
Sor Kevan levantou-se com uma dignidade ponderosa.
— Vossa Graça. — O vinho escorria pelo seu rosto e pingava pela sua barba bem cortada. — Com a sua licença, poderia me retirar?” 
— Com que direito o Senhor acha que pode me colocar condições? Você não é mais que um dos cavaleiros de meu pai. 
— Eu não tenho terras, é verdade. Mas eu tenho renda certa, e baús de moedas bem guardados. Meu próprio pai não se esqueceu de nenhum dos filhos quando morreu, e Tywin sabia como recompensar bom serviço. Eu mantenho duzentos cavaleiros e posso dobrar esse número caso seja necessário. Há também cavaleiros livres que seguirão a minha bandeira, e eu tenho ouro para contratar mercenários. Você seria esperta em não me negligenciar, Vossa Graça… e ainda mais esperta de não fazer-me seu inimigo.
— O senhor está me ameaçando? 
— Eu a estou aconselhando. Se você não vai ceder a regência para mim, nomeie-me seu castelão em Rochedo Casterly  e faça ou Mathis Rowan ou Randyll Tarly a Mão do Rei. 
Homens da bandeira de Tyrell, os dois. A sugestão a deixou sem palavras. Ele foi comprado? Ela imaginou. Ele teria recebido ouro para trair a casa Lannister? 
— Mathis Rowan é sensível, prudente, bem aceito, — o seu tio continuou, absorto. — Randyll Tarly é o mais fino soldado do reino. Uma Mão fraca para tempos de paz, mas com a morte de Tywin não há homem melhor para terminar essa guerra. Lorde Tyrell não poderá ofender-se se você escolher um de seus próprios homens como Mão. Tanto Tarly quanto Rowan são homens hábeis... e leais. Nomeie qualquer um, e você faz dele seu aliado. Você se fortalece e enfraquece Jardim de Cima, e ainda Mace provavelmente vai agradecê-la por isso. — Ele deu de ombros. — Esse é o meu conselho, pegue-o ou não. Você fazer do Menino Lua a Mão não me importaria. Meu irmão está morto, mulher. Eu vou levá-lo para casa. 
Traidor, ela pensou. Vira-casaca. Ela imaginou o quanto Mace Tyrell teria dado a ele.
— O senhor vai abandonar o seu rei quando ele mais precisa do senhor, — ela disse a ele. — O senhor está abandonando Tommen.
— Tommen tem a sua mãe. — Os olhos verdes de Sor Kevan encontraram aos dela, sem piscar. Uma última gota de vinho tremeu vermelha e molhada abaixo de seu queixo e finalmente caiu. — Sim, — ele adicionou suavemente, depois de uma pausa, — e a seu pai também, eu acho.
 
Jaime Lannister, todo em branco, ficou ao lado do caixão de seu pai. Cinco dedos enrolados sobre o cabo de uma larga espada de ouro.
Ao anoitecer, o interior do Grande Septo de Baelor ficou escuro e assustador. A última luz do dia se inclinou baixo através das altas janelas, lavando as semelhanças dos Sete em uma penumbra vermelha. Em torno de seus altares, velas perfumadas piscavam enquanto sombras profundas reuniam-se no transeptos e rastejava silenciosamente pelo piso de mármore. Os ecos de qualquer som morreram ao longo enquanto as pranteadoras estavam de partida.
Balon Swann e Loras Tyrel permaneceram quando o resto tinha ido.
— Ninguém pode fazer uma vigília durante sete dias e sete noites — Sir Balon disse. — Quando você dormiu pela ultima vez, meu senhor?
— Quando o senhor meu pai estava vivo — Jaime disse.
— Permita-me ficar esta noite em seu lugar — Sor Loras se ofereceu.
— Ele não era seu pai — você não matou ele. Eu matei. Tyrion talvez tenha lançado o dardo que o matou, mas eu soltei Tyrion. — Me deixe.
— Como meu senhor ordena — disse Swann. Sor Loras parecia que iria argumentar mais, mas Sor Balon tomou seu braço e puxou-o para fora. Jaime ouviu os ecos de seus passos desaparecerem. E então, ele estava sozinho com seu pai, entre as velas, cristais e o cheiro adocicado da morte. Suas costas doíam com o peso da armadura, e suas pernas estavam quase dormentes. Ele mudou um pouco sua postura e apertou ainda mais os dedos ao redor da espada de ouro. Ele não podia empunhar uma espada, mas ele podia segurar uma. A mão que lhe faltava estava latejando. Isso era quase engraçado. Ele sentia mais a mão que tinha perdido do que o resto do seu corpo.
Minha mão esta com fome de espada. Eu preciso matar alguém. Varys, para começar, mas primeiro ele precisava encontrar a rocha que ele estava escondendo debaixo.
— Eu mandei o eunuco levá-lo para o navio, não para seu quarto — disse o cadáver — o sangue está tanto em suas mãos quanto... nas de Tyrion.
O sangue está na suas mãos tanto quanto nas minhas, ele quis dizer, mas as palavras ficaram presas em sua garganta. O que quer que Varys fez, eu o fiz fazer. Ele tinha esperado na câmara do eunuco aquela noite, quando finalmente tinha decidido não deixar o seu irmão mais novo morrer. Enquanto esperava, ele afiou sua adaga com uma mão, tendo um conforto esquisito no raspe-raspe do metal com pedra. Ao som de passos, ele ficou ao lado da porta. Varys entrou em uma lavagem de pó e lavanda. Jaime saiu atrás dele, chutou-o na parte de trás do joelho e ajoelhou-se em seu peito, e empurrou a faca para cima no queixo mole e branco, forçando a cabeça a ficar erguida.
 — Porque Lorde Varys — ele disse pensativamente — imaginei que o encontraria aqui.
— Sor Jaime? — Varys ofegou — O senhor me assustou.
— Eu pretendia — quando ele torceu o punhal um fio de sangue escorreu na lamina. — Eu estava pensando que você talvez pudesse me ajudar a arrancar meu irmão para fora de sua cela antes que Sor Ilyn arranque sua cabeça fora. É uma cabeça feia, eu garanto, mas ele só tem aquela.
— Sim... bem... se você... remover a lamina... sim, delicadamente, como agradar meu senhor, gentilmente... oh, eu fui cortado! — o eunuco tocou o pescoço e ficou boquiaberto com o sangue em seus dedos. — Eu sempre abomino a visão do meu próprio sangue.
— Você terá mais a abominar brevemente, a não ser que me ajude.
Varys esforçou para sentar-se.
— O seu irmão... se o Duende desaparecer inexplicavelmente de sua cela, p-p-perguntas serão feitas. Eu t-t-temo por minha vida.
— Sua vida é minha. Eu não me importo que segredos você saiba. Se Tyrion morrer, você não viverá mais do que ele, eu prometo.
— Ah — o eunuco sugou o sangue em seus dedos — Você pede uma coisa terrível. Para soltar o Duende que matou nosso rei encantador. Ou será que você acredita que ele é inocente?
— Inocente ou culpado — Jaime tinha dito, como o tolo que era. — Um Lannister sempre paga suas dívidas. — As palavras tinham vindo tão fáceis. 
Ele não tinha dormido desde então. Ele podia ver seu irmão agora, a forma que seu irmão sorriu por baixo de seu nariz, como a luz das tochas lambia seu rosto.
— Seu pobre cego tolo aleijado estúpido — ele rosnou, numa voz grossa com malícia. — Cersei é uma puta mentirosa. Ela tem fodido Lancel e Osmund Kettleblack e provavelmente o Menino Lua pelo que sei. E eu sou o monstro que todos dizem que sou. Sim, eu matei seu filho malvado.
Ele nunca tinha dado a entender que pretendia matar nosso pai. Se ele tivesse, eu o teria parado. Então eu seria o Regicida, não ele.  
Jaime se perguntou onde Varys estava escondido. Sabiamente, o mestre dos segredos não havia voltado para sua própria câmera, nem uma procura na Fortaleza Vermelha o encontrou. Pode ser que o eunuco tenha tomado o navio com Tyrion, ao invés de permanecer para responder as perguntas difíceis. Se assim for, os dois estavam bem em alto mar agora, partilhando um frasco de vinho da Árvore na cabine de uma galera.
A não ser que meu irmão assassinou Varys também, e deixou seu corpo para apodrecer debaixo do castelo. Lá em baixo levaria anos para alguém descobrir os seus ossos. Jaime tinha levado uma dúzia de guardas abaixo, com tochas, cordas e lanternas. Durante horas eles tinham marchado através de passagens torcidas, espaços estreitos, portas escondidas e passagens secretas e eixos mergulhados na escuridão total. Raramente se sentira tão completamente um aleijado. Um homem demora muito para rastejar quando só tem uma mão. Escadas por exemplo. Mesmo rastejando não era fácil. Não o suficiente se falar de mãos e joelhos. Nem podia segurar uma tocha e subir, como os outros poderiam. 
E tudo por nada. Eles encontraram somente escuridão, poeira e ratos. E dragões, a espreita lá em baixo. Lembrou-se do sombrio brilho alaranjado do carvão na boca do dragão de ferro. O brazeiro aquecia o fundo de um poço onde meias dúzias de túneis se encontravam. No chão ele tinha encontrado um mosaico arranhado do dragão de três cabeças da Casa Tagaryen feito de telhas pretas e vermelhas. Eu conheço você, Regicida, a besta parecia dizer. Eu tenho estado aqui o tempo todo, esperando você vir até mim. E parecia a Jaime que ele conhecia aquela voz, os tons de ferro que haviam pertencido a Rhaegar, Príncipe de Pedra do Dragão. 
O dia tinha tido muito ventania quando ele disse adeus a Rhaegar, no pátio da Fortaleza Vermelha. O Príncipe tinha vestido sua armadura negra como a noite, com o dragão de três cabeças feito em rubis em seu peitoral.
— Vossa Graça — Jaime tinha alegado — Deixe Darry ficar para guardar o rei desta vez, ou Sor Barristan. Suas vestes são tão brancas quanto as minhas.
Príncipe Rhaegar balançou sua cabeça.
— Meu real pai teme mais o seu pai do que nosso primo Robert. Ele quer você perto, então Lorde Tywin não poderá machucá-lo. Não me atrevo tirar esse suporte dele a essa hora.
A raiva de Jaime subiu em sua garganta.
— Não sou um suporte. Sou um cavaleiro da Guarda Real.
— Então guarde o rei. —  Sor Jon Darry tinha lhe estapeado. — Quando você vestiu a capa você jurou obedecer. 
 Rhaegar tinha posto a mão no ombro de Jaime.
— Quando esta batalha acabar eu pretendo chamar um Cônsul. Mudanças serão feitas, eu queria fazer isso a muito tempo atrás, mas... Bem, não faz bem falar de estradas ainda não tomadas. Nós devemos conversar quando eu voltar.
Essas foram as ultimas palavras que Rhaegar Tagaryen falou com ele. Do lado de fora dos portões um exército havia se reunido, com outro descendente do Tridente. Então o Príncipe de Pedra do Dragão montou seu cavalo e vestiu seu elmo negro e alto, e cavalgou para sua desgraça.
Ele estava mais certo do que sabia. Quando a batalha acabou, mudanças foram feitas.
— Aerys pensou que nenhum mal viria a ele se me mantivesse perto — ele contou ao corpo de seu pai. — Isso não é divertido?
Lord Tywin parecia pensar assim. Seu sorriso parecia maior do que antes. Ele parece gostar de estar morto. Era estranho, mas ele não sentiu nenhuma dor. Onde estão minhas lagrimas? Onde esta minha raiva? Jaime Lannister nunca estava fechado para a raiva.
— Pai — ele disse ao corpo — Foi você que me disse que lagrimas eram marcas de fraqueza em um homem, então você não deve esperar que eu chore por você. 
Milhares de senhores e senhoras tinham vindo esta manhã para desfilar no esquife, e vários milhares de pequenos povos depois do meio dia. Eles usavam roupas sombrias e rostos solenes, mas Jaime suspeitava que muitos deles estavam secretamente contentes de ver o grande homem abatido. Mesmo no Ocidente, Lorde Tywin havia sido mais respeitado do que amado, e Porto Real ainda se lembrava do saque.
De todos os enlutados, Grande Meistre Pycelle parecia o mais perturbado.
— Eu tenho servido seis reis — ele disse a Jaime, após o segundo velório enquanto fungava em duvida sobre o cadáver. — Mas aqui diante de nós reside o maior homem que já conheci. Lord Tywin não usava coroa, mas era tudo que um rei deveria ser.
Sem sua barba Pycelle não parecia só velho, mas também fraco. Barbeá-lo foi a coisa mais cruel que Tyron podia ter feito, pensou Jaime, que sabia o que era perder parte de si mesmo, a parte que faz você ser quem você é.
A barba de Pycelle tinha sido magnífica, branca como a neve e macia como a lã de cordeiro, um tamanho exuberante que cobria as bochechas e queixo e descia quase até sua cintura. O Grande Meistre era acostumado a acariciá-la quando se prontificava.  Tinha lhe dado um ar de sabedoria, e escondia todo o tipo de coisas desagradáveis. A pele caída balançando embaixo da mandíbula do velho, a pequena boca e a falta de dentes, rugas, verrugas e manchas de idade demasiada numerosas para contar. Embora Pycelle estivesse tentando regenerar o que ele tinha perdido, estava falhando. Apenas tufos brotavam em seu rosto enrugado e queixo fraco, tão fina que Jaime podia ver a pele rosa por baixo.
— Sor Jaime, eu tenho visto terríveis coisas em minha vida — o homem velho disse — Guerras, batalhas, assassinatos dos mais tolos... Era um menino em Vilavelha quando a peste cinza levou metade da Cidade e três quartos da Cidadela. Lorde Hightower queimou todos os navios no porto, fechou os portões e ordenou que os seu guardas matassem todos aqueles que tentassem fugir, sejam eles homens, mulheres, ou bebes de colo. Eles o mataram quando a peste tinha tomado o seu curso. No mesmo dia em que ele reabriu o porto, eles o arrastaram de seu cavalo e cortaram sua garganta, assim como a de seu filho mais novo. Para este dia, o ignorante vai cuspir seu nome em Vilavelha, mas Quenton Hightower fez o que era necessário. Seu pai era esse tipo de homem também. Um homem que fazia o que era preciso.
 — É por isso que ele parece tão contente consigo mesmo?
 Os vapores subindo do cadáver estavam trazendo água aos olhos de Pycelle.
 — A carne... a carne seca, os músculos ficam tensos e puxam os lábios para cima. Isso não é um sorriso, só... uma secagem. Só isso. — Ele piscou para conter as lágrimas. — Você deve me perdoar. Estou tão cansado.
 Inclinando-se pesadamente em sua bengala, Pycelle cambaleou para fora do Septo.
 Este ai está morrendo também, Jaime percebeu, não me admira que Cersei o chamou de inútil.
 Na verdade, sua doce irmã parecia pensar que metade da corte era inútil ou traidor; Pycelle, a Guarda Real, mesmo Jaime... Sor Ilyn Pyne, o silencioso cavaleiro que servia como carrasco. Assim como a Justiça do Rei, as masmorras eram sua responsabilidade. Desde que ele perdeu a língua, Payne em grande parte deixou o funcionamento das masmorras para seus subordinados, mas Cersei culpou-o pela fuga de Tyron do mesmo jeito. Isso foi meu trabalho, não dele, Jaime quase disse a ela. Ao invés disso ele havia prometido encontrar as respostas que pudesse ao carcereiro chefe, um velho homem curvado chamado Rennifer Longaágua.
 — Vejo que está se perguntando, que tipo de nome é esse — O homem tinha gargalhado quando Jaime pensou em perguntá-lo. — É um velho nome, esta é a verdade. Eu não sou de me vangloriar, mas há sangue real em minhas veias. Eu sou descendente de uma princesa. Meu pai me contou a história quando eu era pouco mais que um rapaz. — Águalonga deixou de ser um rapaz há muitos anos, a julgar pela sua cabeça e os cabelos brancos crescendo em seu queixo. — Ela era o mais belo tesouro da Arcada das Donzelas. Lorde Oakenfist, o grande almirante perdeu seu coração para ela, embora fosse casado com outra. Eles deram ao seu filho o bastardo nome de ‘Água’ em honra a seu pai, e ele cresceu para ser um grande cavaleiro, como fez seu próprio filho, ao qual ele colocou o ‘Longa’ antes de ‘Água’, então os homens saberiam que ele não nasceu de si mesmo. Então, eu tenho um pequeno dragão em mim.
 — Sim, eu quase confundi você com Aegon, o Conquistador — Jaime tinha respondido. ‘Água’ era um nome bastardo comum entre os Blackwater Bay; O Velho Longaágua estava mais para ser descendente de um menor cavalheiro doméstico do que de uma princesa. — Como se importasse, porém, tenho preocupações mais prementes do que sua linhagem.
 Longaágua inclinou sua cabeça.
 — O prisioneiro perdido.
 — E o carcereiro faltando.
 — Rugem — o velho forneceu — o carcereiro de baixo. Ele tinha o encargo de terceiro nível, as celas negras.
 — Me fale sobre ele — Jaime teve que dizer. Uma farsa sangrenta. Ele sabia quem Rugem era. Mesmo se Longaágua não soubesse.
 — Despenteado, barba por fazer, fala grosseira. Eu não ia com a cara do homem, é verdade, eu confesso isso. Rugen estava aqui quando eu cheguei, doze anos atrás. Ele segurou sua nomeação desde Rei Aerys. O homem raramente vinha aqui, eu devo dizer.  Eu fiz nota disso em meu relatório, meu senhor, eu realmente fiz. Eu te dou a minha palavra, a palavra de um homem com sangue real.
 Mencione esse sangue real mais uma vez e eu talvez derrame um pouco dele, Jaime pensou.
 — Quem leu seu relatório?
 — Alguns deles foram para o Mestre das Moedas, e outro para o Mestre dos Segredos. Tudo para o carcereiro chefe e para a Justiça do Rei. Tem sempre sido assim nas masmorras.
 Longaágua coçou o nariz.
 — Rugens ficava aqui quando era preciso, meu senhor, Isso deve ser dito. As celas negras são pouco usadas. Antes do irmãozinho de Vossa Senhoria ser enviado aqui para baixo, tivemos Grande Meistre Pycelle por um tempo, e antes dele Lorde Stark, o traidor.  Tiveram outros três, homens comuns. Mas Lorde Stark os enviou para a Patrulha da Noite. Eu não achei que fosse bom liberar aqueles três, mas os papéis tinham a ordem. Eu fiz nota disso em meu relatório também, você pode estar certo disso.
 — Me conte dos dois carcereiros que foram dormir.
 — Carcereiros? – Longwaters fungou. — Eles não eram carcereiros. Eles eram meros carcerários. A coroa paga salário para vinte carcerários meu senhor, mas durante o meu tempo nunca tivemos mais de doze. Supostamente devíamos ter seis carceiros de baixo também, dois em cada nível, mas só a tínhamos três.
 — E os outros dois?
Longaágua fungou outra vez.
— Eu sou o chefe dos carcereiros de baixo, meu senhor. Eu estou acima dos carcereiros de baixo. Estou encarregado de manter a obra. Se meu senhor quiser olhar sobre meus livros, ele verá que todas as figuras estão exatas. — Longaágua havia consultado o grande livro com capa de couro espalhado em frente a ele. — Atualmente nós temos quatro prisioneiros no primeiro nível e um no segundo, adicionando o irmão de Vossa Senhoria. — O velho franziu o cenho. — Que está foragido. Isso é verdade, eu vou jogálo para fora. — Ele pegou uma pena e começou a apontar.
Seis prisioneiros, Jaime pensou amargamente, enquanto nós pagamos o salário de vinte carcerários, seis carcereiros de baixo, um carcereiro chefe, um encarregado da Justiça do Rei.
— Eu quero interrogar esses dois carcerários.
Rennifer Águalonga deixou de afiar sua pena e olhou em dúvida para Jaime.
— Interrogá-los, meu senhor?
— Você me ouviu.
— Eu ouvi, meu senhor, eu realmente ouvi, mas ainda... meu senhor interroga a quem ele quer, isso é verdade, não é meu lugar dizer que ele não possa. Mas Sor, se me permite a ousadia, eu não acho que eles irão responder. Eles estão mortos, meu senhor.
— Mortos? Pelo comando de quem?
— Seu mesmo, eu acho, ou... do rei talvez? Eu não perguntei. Não... não é meu lugar questionar a guarda do rei.
Aquilo foi sal para sua ferida.  Cersei havia usado seus próprios homens para fazer seu trabalho sangrento. Eles e seus preciosos Kettleblacks.
— Seus tolos inúteis! — Jaime tinha rosnado para Boros Blount e Osmund Kettleblack mais tarde, em um calabouço que fedia a sangue e a morte. — O que vocês imaginavam que estavam fazendo?
— Não mais do que nos foi dito, senhor — Sor Boros era menor que Jaime, mas mais pesado. — Vossa Graça ordenou. Sua irmã. 
Sor Osmond atravessou um polegar em seu cinturão. 
— Ela disse que eles deveriam dormir para sempre, então eu e meus irmãos checamos para ela.
Isso você fez. Um cadáver estirado de bruços sobre a mesa, como um homem desmaiado em uma festa, mas era uma poça de sangue sobre a sua cabeça, e não uma poça de vinho. O segundo carcerário conseguiu se empurrar para trás do banco e sacar uma adaga antes que alguém empurrasse uma longa espada através de suas costelas. Ele tinha tido um longo e confuso fim. Eu disse a Varys que ninguém deveria estar armado na fuga, Jaime pensou, mas eu deveria ter dito a meu irmão e minha irmã.
— Isto foi mal feito, senhor — Sir Osmund deu de ombros — Eles não farão falta. Aposto que faziam parte disso, junto com aqueles que desapareceram.
Não. Jaime poderia ter dito a ele. Vayrs drogou seus vinhos para faze-los dormir.
— Se assim fosse, poderíamos ter arrancado a verdade deles. — Ela tem fodido Lancel e Osmund Ketteblack e o Menino Lua pelo que sei... — Se eu tivesse uma natureza desconfiada me perguntaria porque vocês estariam com tanta pressa de ter certeza que esses dois nunca seriam interrogados. Será que vocês precisavam silenciá-lo para esconder sua própria parte nisso?
— Nós? — Katteblack se chocou com isso — Tudo o que fizemos foi o que a Rainha comandou. Tem minha palavra como seu Irmão Juramentado.
Os dedos fantasmas de Jaime se contraíram quando ele disse.
— Tragam Osney e Osfryd aqui para baixo para limparem essa bagunça que vocês fizeram. E da próxima vez que minha doce Irmã comandar vocês para matar um homem, venham a mim primeiro, de outra forma fiquem fora de minha vista sores.
As palavras ecoaram em sua cabeça pela penumbra do septo de Baelor. Sobre ele, todas as janelas tinham ficado negras, e ele podia ver a luz fraca das estrelas distantes. O sol tinha se posto completamente. O fedor da morte estava ficando mais forte, apesar das velas perfumadas. O cheiro lembrava Jaime Lannister do passado pertencente a Dente Dourado, onde ele havia conquistado uma gloriosa vitória nos primeiros dias de guerra. Na manha depois da batalha, os corvos se banquetearam nos vencedores e vencidos da mesma forma, como uma vez eles banquetearam em Rhaegar Targaryen após o Tridente.  Quanto pode valer uma coroa, quando um corvo pode jantar em cima de um rei?
Havia corvos circulando as Sete Torres e a grande cúpula do Septo de Baelor mesmo agora, Jaime suspeitava, suas asas negras batendo contra a noite enquanto eles tentavam uma maneira de entrar para dentro. Cada corvo nos Sete Reinos deve prestar homenagem a você, pai. De Castemare até Água Negra, vocês os alimentou bem. Aquela noção de prazer de Lord Tywin; seu sorriso ainda mais alargado. Infernos, ele esta sorrindo como um noivo em sua cama.
Era tão grotesco que fez Jaime rir alto.
O som ecoou pelos transeptos, criptas e capelas, como se os mortos enterrados no interior da muralha estivessem rindo também. Porque não?
Isto é mais absurdo que a farsa do ator, eu de pé em vigília a um pai que eu ajudei a matar, enviando homens para capturar meu irmão que eu ajudei a libertar... Ele havia comandado Sir Addam Marbrand para procurar na Rua de Seda.
— Procure em baixo de cada cama. Você sabe como meu irmão é com bordéis. — Os Mantos Dourado iriam ter mais interesse debaixo das saias das prostitutas do que debaixo de suas camas. Ele se perguntou quantos filhos bastardos nasceriam dessa procura inútil.
Espontaneamente, seus pensamentos foram para Brienne de Tarth. Criada teimosa, estúpida e feia. Ele se perguntou onde ela estava. Pai, dêlhe força. Quase uma oração... Mas era o deus que ele invocava. O Pai Acima cuja torres douradas brilhavam a luz de velas sobre todo o septo? Ou ele estava orando ao cadáver que estava deitado diante dele? Isso importa? Eles nunca ouvem, nenhum deles. O Guerreiro havia sido o deus de Jaime desde que ficara velho o suficiente para segurar uma espada.  Outros homens talvez fossem pais, filhos, maridos, mas nunca Jaime Lannister, cuja espada era dourada como seu cabelo. Ele era um guerreiro, e isso era tudo que ele sempre seria.
Eu deveria dizer a Cersei a verdade, admitir que fui eu quem libertou nosso pequeno irmão de sua cela. A verdade havia funcionado tão esplendidamente com Tyron, no final das contas. Eu matei seu maldito filho, e agora estou livre para matar seu pai também. Jaime podia ouvir o Duende rindo na escuridão. Ele virou a cabeça para olhar, mas o som era apenas seu próprio riso voltando para ele. Ele fechou seus olhos, e então rapidamente os abriu. Eu não devo dormir. Se ele dormisse, ele talvez sonhasse. Oh, como Tyron ria silenciosamente... Uma puta mentirosa... fodendo Lancel e Osmund Kettleblack...
Á meia noite, as dobradiças das Portas do Pai gemeu como uma centena de septos se curvando para suas devoções. Alguns estavam vestidos nas roupas de prata e a coroa de cristais que marcavam o Mais Devoto; seus irmãos mais humildes usavam cristais em tangas sobre seu pescoço e cingia suas vestes brancas com cintos, cada um com uma cor diferente. Através da Porta da Mãe marcharam septões brancos de seus claustros, sete pares e cantando baixinho, enquanto as irmãs silenciosas paravam abaixo dos Passos do Estranho. As servas da morte estavam vestidas com cinza suave, seus rostos estavam encapuzados e sombreados, então somente seus olhos podiam ser vistos. Uma série de irmãos apareceram também, com vestes em tom de marrons, alguns ainda não tingidos, com cintos do comprimento de corda de cânhamo.  Alguns penduraram seu martelo de ferro do Ferreiro sobre seus pescoços, enquanto outros carregavam tigelas de esmola. 
Nenhum dos devotos deu a Jaime qualquer atenção. Eles fizeram um circuito pelo Septo, adorando em cada um dos setes altares para honrar os sete aspectos da divindade. Para cada deus fizeram um sacrifício, para cada um cantaram um hino. Doce e solene levantaram suas vozes. Jaime fechou os olhos para ouvir, mas abriu-os novamente quando começou a ficar zonzo. Estou mais cansado do que pensava.
Tinha se passado anos desde sua última vigília. E eu era um jovem de quinze anos. Ele não tinha usado nenhuma armadura, apenas uma túnica branca simples. O septo onde ele tinha passado a noite não era um terço tão grande como qualquer um dos Grandes Septos dos Sete Transeptos. Jaime tinha colocado sua espada através do joelho do Guerreiro, empilhado sua armadura em seus pés, e se ajoelhou no chão de pedra áspera diante do altar. Quando o amanhecer veio ele estava com os joelhos em carne viva, e sangrando.
— Todos os cavaleiros devem sangrar, Jaime. —  Sor Arthur Dayne tinha dito quando viu. — Sangue é o selo de sua devoção.
Com o amanhecer ele bateu-lhe no ombro. A lamina pálida era tão afiada que até mesmo o suave toque cortou a túnica de Jaime, e então ele sangrou de novo. Ele nunca sentiu. Um garoto se ajoelhou, um cavaleiro se ergueu. O jovem Leão, não o Regicida.
Mas isso foi há muito tempo atrás. O garoto estava morto. 
Ele não pode dizer quando a devoção acabou. Talvez ele dormiu, ainda em pé. Quando os devotos se retiraram, o Septo ficou silencioso mais uma vez. As velas eram uma parede de estrelas queimando na escuridão, embora o ar estivesse espesso como a morte. Jaime mudou sua espada de ouro de lado. Talvez ele devesse ter deixado Sor Loras aliviá-lo no fim das contas. Cersei teria odiado isso. O Cavaleiro das Flores ainda era meio menino, arrogante e vaidoso, mas ele tinha algo em si para ser grande, para realizar atos dignos do Livro Branco.
O Livro Branco estaria esperando quando a vigília estivesse terminada, suas paginas abertas no próprio mundo. Irei cortar o livro sangrento em pedaços antes de enche-los de mentiras. No entanto, se ele não mentisse, o que ele poderia escrever além da verdade?
Uma mulher estava em pé diante dele.
Está chovendo de novo, ele pensou quando viu o quão molhada ela estava. A água escorria de seu manto e fazia uma poça em volta de seus pés.  Como ela chegou aqui? Eu não a ouvi entrar. Ela estava vestida como uma moça de taberna, com um manto áspero e pesado, um marrom desbotado com a bainha desgastada. Um capuz escondia seu rosto, mas ele podia ver a luz das velas dançando nas piscinas verdes que eram seus olhos, e quando ela se moveu, ele a reconheceu.
— Cersei — ele falou lentamente, como um homem acordado de um sonho, ainda se perguntando onde estava. — Que horas são?
— A hora do lobo — sua irmã abaixou o capuz e fez uma careta. — O lobo afogado talvez. — ela sorriu para ele, muito docemente. — Você se lembra da primeira vez que eu vim até você desse jeito? Era em algum lugar no Beco da Doninha, e eu coloquei trajes de servos para passar pela guarda do meu Pai.
— eu me lembro. Era Beco Eal. – Ela quer algo de mim. – Porque você esta aqui há essa hora? O que você quer de mim?
Sua ultima palavra ecoou pelo septo, mim... mim... mim... mim... desaparecendo em um sussurro. Por um momento ele se atreveu a ter esperança de que tudo o que ela queria era o conforto de seus braços.
— Fale em voz baixa. — sua voz soou estranha... ofegante, quase assustada. — Jaime, Kevan me recusou. Ele não vai servir como Mão. Ele sabe sobre nós. Ele disse isso.
— Recusou? — isso o surpreendeu — Como ele pode saber? Ele teria que ler o que Stannis escreveu, mas não há...
— Tyron sabia — ela lembrou-o — Quem pode dizer que contos aquele malvado anão contou, ou para quem? Tio Kevan é o de menos. O Alto Septão... Tyron ressuscitou-o para a coroa, quando o gordo morreu. Ele talvez saiba também. – ela se aproximou – você deve ser a Mão de Tommen. Eu não confio em Mace Tyrell. E se ele teve algo a ver com a morte do pai? Ele talvez tenha conspirado com Tyron. O Duende pode estar em seu caminho para Jardim de cima.
— Ele não está.
— Seja a minha Mão. — ela pediu — e nós reinaremos os Sete Reinos juntos, como um rei e sua rainha.
— Você foi a rainha de Robert, e ainda assim você não será minha.
— Eu seria, se me atrevesse, mas nosso filho...
— Tommen não é meu filho, não mais que Joffrey era. — sua voz estava dura. — Você o fez de Robert também.
Sua irmã encolheu.
— Você jurou sempre me amar. Não é amor me forçar implorar.
Jaime podia cheirar o medo nela, mesmo através do mal cheiro do cadáver. Ele queria pegá-la em seus braços e beijá-la, enterrar seu rosto em suas mechas douradas e prometê-la que ninguém nunca a machucaria... não aqui, ele pensou, não em frente aos deuses e em frente ao Pai.
— Não — ele disse — Eu não posso, eu não vou.
— Eu preciso de você, eu preciso da minha outra metade — ele podia ouvir a chuva batendo no vidro acima dele — Você é eu, eu sou você. Eu preciso de você comigo. Dentro de mim. Por favor, Jaime, por favor.
Jaime olhou para ter certeza que Lord Tywin não estava se erguendo de dentro da sua esquife em ira, mas seu pai ficou imóvel e frio, apodrecendo.
— Eu fui feito para um campo de batalha, não para uma sala de conselho. E agora pode ser que sou incapaz até mesmo para isso.
Cersei enxugou suas lagrimas com uma esfarrapada manga marrom.
— Muito bem, se é um campo de batalha que você quer, é um campo de batalha que darei a você. —Ela puxou seu capuz sobre si com raiva. — Eu fui tola de vir. Eu fui tola de sequer amar você.
Seus passos ecoaram alto no silêncio, e deixaram marcas molhadas no chão de mármore.
A madrugada pegou Jaime quase de surpresa. Assim que o vidro na cúpula começou a clarear, de repente havia um arco-íris cintilante nas paredes, chão e pilares, banhando o cadáver de Lord Tywin em uma névoa de muitas cores e luz. A Mão do Rei estava apodrecendo visivelmente. Seu rosto havia tomado uma coloração esverdeada, e seus olhos estavam extremamente afundados, duas poças negras. Fissuras haviam se aberto em seu queixo, e um sujo fluído branco foi se infiltrando pelas juntas de sua armadura de ouro e esplêndido carmesim para a piscina debaixo de seu corpo. Os septãos foram os primeiros a ver, quando voltaram de sua devoção pela manhã. Eles cantaram suas músicas, rezaram suas orações e enrugaram seus narizes, e um dos mais devotos ficou tão fraco que teve que ser ajudado a partir do septo. Pouco depois um bando de novatos vieram balançando incensários, e o ar tornou-se tão grosso com o incenso que o esquife parecia envolto em fumaça. Todos os arco-íris se desfizeram naquela nevoa perfumada, mas o cheiro persistia, um cheiro doce e podre que fazia Jaime querer vomitar. 
Quando as portas foram abertas os Tyrell estavam entre os primeiros a entrar, como convinha sua classificação. Margaery tinha trago um grande buquê de rosas douradas. Ela colocou ostensivamente ao pé do esquife de Lord Tywin, mas manteve uma com ela e segurou-a sob seu nariz enquanto tomava seu lugar. Então a menina é tão inteligente quando bonita. Tommen podia fazer um negócio ruim para uma rainha. Outros fizeram. As damas de Margaery seguiram seu exemplo.
Cersei esperou que todos estivessem em seus lugares para fazer sua entrada, com Tommen a seu lado. Sor Osmund Kettleblack passou ao lado deles em seu prato de esmalte branco e casaco de lã branca.
—... Ela tem fodido Lancel e Osmund Kettleblack e o Menino Lua pelo que eu sei...
Jaime tinha visto Kettleblack nu no banheiro, tinha visto seu cabelo preto do peito, e a grossa palha entre suas pernas. Ele imaginou aquele peito pressionado contra sua irmã, aquele cabelo roçando na pele macia dos seios. Ela não fez isso. Aquele Duende mentiu. Fios dourados e pretos entrelaçados, suados. A bochecha estreita de Kettleblack se apertava cada vez que ele estocava. Jaime podia ouvir sua irmã gemer. Não. Uma mentira. 
De olhos vermelhos e pálida, Cersei subiu os degraus e ajoelhou-se acima do seu pai, trazendo Tommen a seu lado.  O rapaz recuou a vista, mas sua mãe agarrou seu pulso antes que ele pudesse se afastar.
— Ore! — sua mãe sussurrou, e Tommen tentou. Mas ele tinha apenas oito anos e Lord Tywin era um horror. Ele desesperadamente puxou o ar, e então o rei começou a soluçar. — Pare com isso — Cersei disse. Tommen virou a cabeça e se dobrou, vomitando. Sua coroa caiu e rolou pelo chão de mármore. Sua mãe se afastou com nojo, e de repente o rei estava correndo para a porta, tão rápido quanto suas pernas de oito anos de idade poderiam levá-lo.
— Sir Osmund, me alivie — Jaime disse acentuadamente, enquanto Kettleblack virou-se para perseguir a coroa. Ele entregou ao homem a espada de ouro e seguiu atrás de seu rei. No Salão das Lâmpadas ele o apanhou, sob os olhos de duas dezenas de assustados septos.
— Sinto muito — Tommen chorou — Eu vou fazer melhor da próxima vez. A mãe diz que um rei deve mostrar o caminho, mas o cheiro me deixou doente.
Isso não vai dar. Muitos ouvidos ouvindo e olhos assistindo.
— Melhor irmos para fora, Vossa Graça. — Jaime levou o menino para fora onde o ar era tão fresco e puro quanto era o de Porto Real.
Quarenta homens de Manto Dourado tinham sido colocados ao redor da praça para guardar os cavalos e as ninhadas. Ele levou o rei para o lado, bem longe de todos, e sentou-se sobre os degraus de mármore.
— Eu não estava assustado — o garoto insistiu — o cheiro me deixou doente. Não o fez ficar doente? Como pode suportá-lo, Sor tio? 
Eu já cheirei minha própria mão podre quando Vargo Hoat me fez usá-la como um pingente.
- Um homem pode suportar quase qualquer coisa, se ele deve. — Jaime disse a seu filho.  Eu tenho cheirado uma mão apodrecida, como se rei Aerys a tivesse cozido em sua própria armadura. — O mundo é cheiro de horrores, Tommen. Você pode lutar contra eles, ou rir deles, ou olhar sem ver... ir embora por dentro.
Tommen considerou isto.
— Eu costumo ir embora por dentro as vezes — ele confessou — Quando Joff...
— Joffrey. — Cersei estava sobre eles, o vento chicoteando sua saia em torno de suas pernas. — O nome do seu irmão era Joffrey, e ele nunca teria me envergonhado assim.
— Nunca foi minha intenção. Eu não estava assustado, mãe. É só que seu senhor pai cheirava tão mal...
— Você acha que ele cheira mais doce pra mim? Eu tenho um nariz também. — Ela pegou-o em suas orelhas e puxou-o para seus pés. — Lord Tyrell tem um nariz. Você o viu vomitando no sagrado septo? Você viu a Senhora Margaery berrando como um bebe?
Jeime ficou de pé.
— Cersei, chega.
Suas narinas inflaram.
— Sor? Porque você está aqui? Você jurou velar o pai até que o despertar estivesse acabado, se me lembro.
— E está acabado. Vá e olhe para ele.
— Não. Sete dias e sete noites, você disse. Certamente o Senhor Comandante se lembra como contar até sete. Pegue o numero dos seus dedos, e então adicione dois. 
Outros começaram a fluir para fora, para a praça, fugindo do odor nocivo do septo.
— Cersei, mantenha sua voz baixa — Jaime advertiu — Lord Tyrell está se aproximando.
Isso atingiu ela. A rainha trouxe Tommen para seu lado. Mace Tyrell se curvou diante deles.
— Vossa Graça não esta doente, espero?
— O rei foi tomado pela dor — Cersei disse.
— Assim como estamos todos. Se há algo que eu possa fazer...
Em cima, um corvo gritou bem alto. Ele estava empoleirado na estatua do rei Baelor, defecando na cabeça santa.
— Há muito e mais que você pode fazer por Tommen, meu Lord. — Jaime disse. — Talvez você faria a Vossa Graça a honra de cear com ela, depois do velório da noite?
Cersei lhe lançou um olhar fulminante, mas desta vez ela teve o senso de morder na língua.
—Cear? — Tyrell parecia surpreso — Suponho que... é claro, eu ficaria honrado, minha senhora esposa e eu.
A rainha forçou um sorriso e fez um ruído agradável. Mas quando Tyrell tinha se despedido e Tommen tinha sido expulso com Sor Addam Marbrand, ela se voltou para Jaime com raiva.
— Você está bêbado ou sonhando, sor? Ora diga, porque estou jantando com este tolo e sua apegada esposa? — Uma rajada de vento agitou seus cabelos dourados. — Eu não vou nomeá-lo Mão, se é isso que...
— Você precisa de Tyrell — Jaime a interrompeu. — Mas não aqui. Peça-o para capturam Ponta Tempestade para Tommen. Lisonjeie-o, e diga que você precisa dele no campo, para substituir o seu pai. Mace se imagina um poderoso guerreiro. Ou ele vai entregar Ponta Tempestade para você, ou vai falhar e parecer um tolo. De qualquer forma, você vence.
— Ponta Tempesdade? — Cersei olhou pensativa. — Sim, mas Lord Tyrell tornou tediosamente claro que não partirá de Porto Real até que Tommen se case com Margaery.
Jaime suspirou.
— Então deixe que eles se casem. Será anos até que Tommen tenha idade suficiente para consumar o casamento. E até que ele faça, a união pode sempre ser anulada. De a Tyrell seu casamento e envie-o para brincar na guerra.
Um sorriso cauteloso se esgueirou no rosto da irmã.
— Mesmo cercos tem seus perigos. — Ela murmurou. — Assim, nosso Lorde de Jardim de Cima pode até perder sua vida nessa aventura.
— Há esse risco —Jaime concordou. — Especialmente se sua paciência for pouca, e ele decida invadir o portão.
Cersei deu-lhe um olhar demorado.
— Você sabe. — disse ela. — Por um momento você soou exatamente como o pai.
 
Os portões de Valdocaso foram fechados e barrados. Através da escuridão da madrugada, as muralhas da cidade brilhavam palidamente. Em suas muralhas, tufos de nevoeiro se moviam como sentinelas fantasmagóricas. Uma dúzia de carros de bois haviam parado em frente aos portões, esperando o sol nascer. 
Brienne tomou seu lugar por trás de alguns nabos. Suas panturrilhas doíam, e foi bom ela ter desmontado e esticado as pernas. Em pouco tempo, veio outra carruagem ribombando dos bosques. No momento em que o céu começou a clarear, a fila se estendia para trás de um quarto de milha.
O povo da fazenda lhe lançava olhares curiosos, mas ninguém falou com ela. É para mim falar com eles, Brienne disse a si mesma, mas ela sempre achara difícil falar com estranhos. Mesmo quando garota ela tinha sido tímida. Longos anos de desprezo só a tinham feito ainda mais tímida. Eu devo perguntar por Sansa. De que outra forma poderei encontrá-la? Ela limpou a garganta.
— Boa senhora — ela disse a mulher no carro de nabos — talvez você viu minha irmã na estrada? Uma jovem empregada, treze anos, rosto cheio, olhos azuis e cabelos ruivos. Ela pode estar andando com um cavaleiro bêbado.
A mulher balançou a cabeça, mas o marido disse:
— Então ela não é empregada doméstica, eu aposto. Será que a pobre menina tem um nome?
A cabeça de Brienne estava vazia.  Eu deveria inventar um nome para ela. Qualquer nome serviria, mas nenhum vinha a ela.
— Sem nome? Bem, as estradas estão cheias de garotas sem nome.
— O cemitério é ainda mais cheio — disse sua esposa.
Quando amanheceu, os guardas apareceram nos parapeitos. Os agricultores subiram em suas carroças e sacudiram as rédeas.  Brienne montou também e deu uma olhada para trás. A maioria da fila de espera para entrar em Valdocaso eram os povos das fazendas carregados com frutas e verduras para vender. Um par de burgueses ricos sentaram-se polidamente há uma dúzia de lugares atrás dela, e mais para trás, ela viu um garoto magro em um cavalo malhado. Não havia sinal dos dois cavaleiros, nem Sor Shadrich, o Rato Louco. 
Os guardas estavam acenando através das carruagens com um olhar perdido, mas quando Brienne chegou ao portão eles lhe deram uma pausa.
— Pare, você! — bradou o capitão. Um par de homens em armaduras e cotas de malha cruzaram suas lanças e barraram seu caminho —  Declare o seu propósito aqui!
— Eu procuro o Senhor de Valdocaso, ou seu Meistre. 
Os olhos do capitão permaneceram em seu escudo.
— O bastão preto de Lothston. Este é um brasão de má reputação.
 Eles não são meus. Eu pretendo ter o escudo repintado.
— Oh sim? — o capitão coçou o queixo mal barbeado. – Minha irmã faz esse trabalho, quando isso acontece. Você vai encontrá-la em uma casa com as portas pintadas, em frente da Sete Espadas. — Ele fez um gesto para os guardas. — Deixem-na passar, rapazes, é uma meretriz. 
O portão se abriu em uma praça de mercado, onde aqueles que estavam entrando antes dela estavam descarregando para vender pelas ruas seus nabos, cebolas amarelas e sacos de grãos de cevada. Outros vendiam armas e armaduras, e muito mais baratos ao julgar pelos preços que eles gritavam quando ela passou. Os saqueadores vem com os corvos de carniça depois de cada batalha. Brienne passou com seu cavalo por expedições de camisas ainda manchadas de sangue marrom, elmos golpeados, e longas espadas denteadas. Lá havia roupas para serem adquiridas também: botas de couro, casacos de pele e casacos corados com rendas suspeitas. Ela conhecia muito dos emblemas.  O Punho do Guadeleite, O Alce, O Sol Branco, O Machado de Duas Laminas, todos esses eram do norte. Os homens de Tarly pereceram aqui também, ela pensou, e muitos das terras das tempestades. Ela viu as maças vermelhas e verdes, um escudo que levava os três raios de Leygood, arreios de cavalos modelados com as formigas de Ambrose. O próprio Lorde Tarly apareceu em um crachá, broches e gibão. Amigo ou inimigo, os corvos não se importam. 
Havia escudos de pinheiro e tília, a ser obtidos por alguns centavos, mas Brienne passava por eles. Ela pretendia manter o pesado escudo de carvalho que Jaime havia dado a ela, aquele que havia suportado a si mesmo de Harrenhal à Estrada do Rei. Um escudo de pinheiros tinha sua vantagem.  Era mais leve e portanto mais fácil de suportar, e a madeira macia era melhor para prender um machado inimigo ou uma espada. Mas carvalho dava mais proteção, se você fosse forte suficiente para suportar o seu peso.
Valdocaso foi construída em torno de seu porto. Ao norte da cidade os penhascos eram como giz rosa; ao sul uma península rochosa blindava os navios fundeados de tempestade chegando do mar estreito. O castelo tinha vista para o porto, mantinha suas grandes torres visíveis para todo o porto.
Nas ruas apinhadas de paralelepípedos, era mais fácil andar de passeio, então Brienne deixou sua égua estável e continuou a pé, com seu escudo pendurado nas costas e seu saco de dormir colocado debaixo de seus braços. 
A irmã do capitão não era difícil de encontrar. A Sete Espadas era a maior estalagem da cidade, uma estrutura de quatro andares que se erguia sobre seus vizinhos, e as duplas portas através do caminho eram pintadas de forma deslumbrante. Elas mostravam um castelo em uma madeira de outono, as arvores feitas em tons de dourado e castanho-avermelhado. A hera rastejando até os troncos de carvalho antigo, e até mesmo as bolotas haviam sido feitas com carinho. Quando Brienne olhou mais de perto, ela viu as criaturas na folhagem: uma manhosa raposa vermelha, dois passarinhos em um galho, e por trás destes havia uma sombra de um javali. 
— Sua porta é muito bonita — ela disse a mulher de cabelos negros que respondeu quando ela bateu. — Que castelo seria este?
— Todos os castelos — disse a irmã do capitão — O único que eu conheço é Forte Pardo pelo porto. Eu fiz outro em minha cabeça, de como um castelo deveria parecer. Eu nunca vi um dragão também, nem um grifo, nem um unicórnio. 
Ela tinha um jeito alegre, mas quando Brienne lhe mostrou seu escudo, seu rosto ficou escuro.
— Minha velha mãe costumava dizer que os morcegos gigantes voam para fora de Harrenhal nas noites sem lua, para transportar crianças más a Danelle, a Louca, para seus cozidos.  Às vezes, eu os ouvia riscando as janelas. — ela tocou os dentes com a língua pensativa — O que vai em seu lugar? 
O brasão dos Tarth era um esquartejado de rosas com azul, e davam a luz um sol amarelo e a uma lua crescente. Mas, enquanto os homens acreditassem que ela era uma assassina, Brienne não se atreveria a carregálo.
— Sua porta me lembrou de um velho escudo que eu uma vez vi no arsenal do meu pai. — ela descreveu os brasões da melhor maneira que pode se lembrar. A mulher assentiu com a cabeça.
— Eu posso pintá-lo de imediato, mas a tinta terá que secar. Pegue um quarto na Sete Espadas, se lhe agradar. Vou lhe trazer o escudo pela manhã.
Brienne não tinha intenções de passar a noite em Valdocaso, mas talvez fosse o melhor. Ela não sabia se o senhor do castelo estava na residência, ou se ele consentiria em vê-la. Ela agradeceu a pintora e atravessou a calçada para a estalagem. Acima de sua porta, sete espadas de madeira balançavam sob um pico de ferro. A cal que a cobria estava rachada e descascada, mas Brienne sabia o seu significado. Elas ficaram para os sete filhos de Darklyn, que havia usado os mantos brancos da Guarda Real. Nenhuma outra casa em todo o reino poderia reivindicar tanto assim.  Eles foram a glória de suas casas. E agora eles são um sinal acima de uma estalagem. Ela entrou para dentro da sala e pediu ao estalajadeiro por um quarto e um banho.
Ele a colocou no segundo andar, e uma mulher com uma marca de nascença no rosto da cor de fígado lhe trouxe uma banheira de madeira, e então a água, balde por balde.
— Por acaso algum Darklyn permanece em Valdocaso? — Brienne perguntou enquanto entrava na banheira.
— Bem, há Darkes, e há eu mesma.  Meu marido diz que eu era uma Darke antes de casar. — ela riu. — Não é possível jogar uma pedra em Valdocaso sem acertar alguns Darke, Darkwood ou Dargood, mas os nobres Darklyns se foram. Lorde Denys foi o último deles, o tolo e doce jovem. Sabia que os Darklyn foram reis em Valdocaso antes dos ândalos chegarem? Você nunca saberia ao olhar para mim, mas eu tenho sangue real em mim. Você pode ver? ‘Vossa Graça, outro copo de cerveja’, eu deveria fazê-los dizer, ‘Vosa Graça, o penico precisa ser esvaziado, e busque alguns peixes frescos, Vossa Graça sangrenta, o fogo está se acabando’ — Ela riu novamente e esvaziou as ultimas gotas do balde. — Bem, aqui está, a água está quente o suficiente para você?
— Vai servir. — a água estava morna.
— Eu traria mais, mas acabou. E uma garota do seu tamanho, você própria enche uma banheira.
Apenas uma banheira pequena e apertada como esta. Em Harrenhal as banheiras eram enormes e feitas de pedras. A casa de banho era espessa com todo o vapor subindo da água, e Jaime tinha vindo caminhando através dessa névoa nu como no dia de seu nome, parecendo meio homem e meio deus. Ele entrou na banheira comigo, ela se lembrou, corando. Ela agarrou um pedaço duro de sabão detergente e esfregou por baixo de seus braços, tentando chamar a face de Renly novamente.
Quando a água ficou fria, Brienne estava tão limpa quanto gostava de estar. Ela vestiu as mesmas roupas que havia tirado e cingiu-as com um cinturão apertado ao redor dos quadris, mas sua cota e elmo ela deixou para trás, de modo a não parecer muito ameaçadora em Forte Pardo. Era bom esticar as pernas. Os guardas nos portões do castelo usavam gibões de couro com um emblema que mostrava martelos de batalhas cruzados em cima de uma cruz branca.
— Eu gostaria de falar com seu senhor — Brienne disse a eles.
Um deles riu.
— Melhor gritar alto então.
— Lord Rykker cavalgou para Lagoa da Donzela com Randyll Tarly – o outro disse – Ele deixou Sor Leek Rufus como castelão, para cuidar da Senhora Rykker e os jovens. — Foi para Leek que eles a escoltaram.  Sor Rufus era um curto e robusto com uma barba grisalha, cuja perna esquerda terminara em um toco.
— Você vai me perdoar se eu não me levantar — ele disse. Brienne ofereceu-lhe sua carta, mas ele não sabia ler, então ele mandou-a para o Meistre, um homem careca com o couro cabeludo sardento e um duro bigode vermelho.
Quando ele ouviu o nome Hollard, o meistre franziu a testa com irritação.
— Quantas vezes devo cantar esta canção? — seu rosto devia tê-la feito se distanciar — Vocês acham que foram os primeiros a virem procurar depois de Dontos? Vocês estão mais para o vigésimo primeiro. Os Mantos Dourados estiveram aqui durante alguns dias depois do assassinato do rei, por ordem do Lorde Tywin. E o que vocês tem feito, orado?
Brienne lhe mostrou a carta, com o selo Tommen e a assinatura infantil. O meistre fez hmmmmmmm, cortou a cera, e finalmente devolveulhe a carta.
— Parece estar em ordem. — Ele subiu em seu banquinho e fez um gesto à Brienne para outro. — Eu nunca conheci Sor Dontos. Ele era um menino quando deixou Valdocaso. Os Hollard foram uma casa nobre uma vez, é verdade. Você conhece seus estandartes? Buréis vermelhos e rosas, com três coroas douradas sobre um chefe azul. Os Darklyn eram reis insignificantes durante a Idade dos Heróis, e três tomaram esposas Hollard. 
Mais tarde seu pequeno reino foi engolido por reinos maiores, mesmo assim os Darklyn endureceram e suportaram, e os Hollard os serviram... Sim, mesmo em lutas. Você sabia disso?
— Um pouco — seu próprio meistre costumava dizer que era o desafio de Valdocaso que havia deixado o rei Aerys louco.
— Em Valdocaso eles amam Lorde Denys ainda, apesar da desgraça que ele trouxe. É a Senhora Serala que eles culpam, sua esposa Myrish. A Serpente de Renda, como ela é chamada. Se Lorde Darklyn tivesse ao menos desposado uma Stauton ou uma Stokeworth... Bem, você sabe como pequenos povos continuariam. A Serpente de Renda encheu o ouvido de seu marido com veneno Myrish, eles dizem, até que Lorde Denys levantou-se contra seu rei e o levou cativo. Durante a tomada, seu mestre de armas Sor Symon Hollard retirou Sor Gwayne Gaunt da Guarda Real. Por meio ano, Aerys foi mantido dentro destes muros, enquanto a Mão do Rei permaneceu fora de Valdocaso com um poderoso exército. Lorde Tywin tinha força suficiente para invadir a cidade a qualquer momento que desejasse, mas Lorde Denys mandou dizer a ele que ao primeiro sinal de agressão ele mataria o rei.
Brienne se lembrava do que vinha a seguir.
 
— O Rei foi resgatado — ela disse — Barristan, o Ousado, o trouxe para fora.
— Ele trouxe — o meistre disse — E uma vez que Lorde Denys perdeu seu refém, ele abriu os seus portões e terminou com seu maior desafio para não deixar que Lord Tywin tomasse a cidade. Ele dobrou o joelho e implorou misericórdia, mas o rei não era uma mente de perdão.  Lorde Denys perdeu sua cabeça, assim como seus irmãos, irmãs, tios, primos, todos os nobres Darklyn. A Serpente de Renda foi queimada viva, pobre mulher, acho que sua língua foi arrancada primeiro, junto com as suas partes femininas, com as quais se dizia que ela havia escravizado o seu senhor. Metade de Valdocaso ainda dirá a você que Aerys foi muito gentil com ela.
— E os Hollard?
— Desonrados e destruídos — disse o meistre. — Eu estava forjando meus grilhões na Cidadela quando aconteceu, mas eu li os contos de seus julgamentos e punições. Sor Jon Hollard, o Camareiro, havia se casado com a irmã de Lorde Denys e morreu com sua esposa, assim como seu filho pequeno, que era meio Darklyn. Robin Hollard foi um escudeiro, e quando o rei foi capturado ele dançou em volta dele e puxou sua barba. Ele morreu em cima de uma prateleira. Sor Symon Hollard foi morto por Sor Barristan durante a fuga do rei. As terras Hollard foram tomadas, seus castelos demolidos e suas aldeias queimadas. Assim como os Darklyn, a casa Hollard foi extinta. 
— Salvo por Dontos.
— Isto é verdade. O jovem Dontos era filho de Sor Steffon Hollard, o irmão gêmeo de Sor Symon, que tinha morrido de febre alguns anos antes e não teve parte no Desafio. Aerys ainda teria arrancado fora a cabeça do menino, mas Sor Barristan pediu que sua vida fosse poupada. O rei não podia ignorar o homem que o havia salvado. Assim, Dontos foi levado para Porto Real como escudeiro. Que eu saiba ele nunca retornou para Valdocaso, e porque ele deveria? Ele não tem terras aqui, não tem parentes e nem castelos aqui. Se Dontos e essa menina do norte ajudaram a assassinar o nosso doce rei, parece que eles iriam querer colocar muitas léguas entre eles e a justiça. Procure por eles em Vilavelha, se você quiser, ou do outro lado do mar estreito. Procure por eles em Dorne, ou na Muralha. Procure em outro lugar. — levantou-se — Eu ouço meus corvos me chamando, me perdoe se vos desejo uma boa manhã. 
A caminhada de volta para a estalagem parecia mais longa do que para Forte Dun, embora talvez fosse só seu humor. Ela não encontraria Sansa Stark em Valdocaso, o que parecia claro. Se Sor Dontos a tivesse levado para Vilavelha ou para o outro lado do mar estreito, como o meistre parecia pensar, a busca de Brienne seria desesperadora. O que havia para ela em Vilavelha? Ela perguntava a si mesmo. O meistre nunca a conheceu, não mais que conhecera Hollard. Ela não iria para estranhos. 
Em Porto Real, Brienne havia encontrado uma antiga empregada de Sansa fazendo lavagem em um bordel.  
— Eu servi Lorde Renly antes da Senhora Sansa, e ambos viraram traidores. — reclamou amargamente a mulher chamada Brella — senhor nenhum irá tocar-me agora, então eu tenho que lavar para prostitutas.
Mas quando Brienne perguntou sobre Sansa, ela disse:
— Eu direi a você o que eu disse a Lorde Tywin. Essa menina estava sempre rezando. Ela ia para o septo e acendia suas velas como uma dama, mas perto de uma noite, ela foi para o Bosque Sagrado. Voltou para norte. É ai que os deuses estão.
O norte é enorme, pensou, e Brienne não tinha noção de qual estandarte de seu pai Sansa estaria mais inclinada a confiar. Ou ela deveria procurar o próprio sangue ao invés disso? Apesar de todos os seus irmãos terem sido mortos, Sansa tinha um tio e um irmão bastardo na muralha, servindo na Patrulha da Noite. Outro tio, Edmure Tully era um cativo nas Gêmeas, mas seu tio Sor Bryden ainda tinha Correrrio. E a irmã mais nova da Senhora Catelyn, governava o Vale. Sangue chama sangue. Sansa podia muito bem ter corrido para um deles. Mas, qual deles?
A Muralha era muito longe, certamente, além disso, um lugar muito sombrio e amargo. E para chegar a Correrrio, a menina teria que passar pelas terras dos rios devastadas pela guerra e através da linha de cerco dos Lannister. O Ninhi da Águia seria mais simples, e a Senhora Lysa certamente daria boas vindas à filha de sua irmã...
À frente, o beco dobrado. De alguma forma Brienne havia tomado o curso errado. Ela se viu em um beco sem saída, um pequeno quintal enlameado onde três porcos estavam em volta de uma pedra também enlameada. Um gritou ao vê-la, e um velho homem que estava extraindo água olhou-a de cima a baixo.
— O que você quer?
— Eu estava procurando pela Sete Espadas.
— Volte por onde você veio. À esquerda no septo.
— Eu lhe agradeço — Brienne voltou-se para refazer seus passos, e bateu de cabeça em alguém que estava correndo de volta pela curva. A colisão o fez tremer sobre os pés e ele caiu no chão, de bunda na lama.
— Perdão — ela murmurou. Ele era só um garoto. Um rapaz magro, com cabelo liso e fino e lama de chiqueiro sob um olho. — Você está machucado? — ela ofereceu uma mão para ajudá-lo a se levantar, mas o rapaz se contorceu para longe dela com seus pés e cotovelos. Ele não podia ter mais que dez ou doze anos, embora usasse uma cota de malha e uma longa espada e bainha pendurado em suas costas. — Eu conheço você? — Brienne perguntou, seu rosto parecia-lhe vagamente familiar, embora ela não conseguisse lembrar de onde.
— Não, você não conhece. Você nunca... — ele ficou de pé — Pperdoe-me minha senhora, Eu não estava olhando. Quero dizer, eu estava, mas para baixo. Eu estava olhando para baixo. Para meus pés. 
 O menino virou os calcanhares, mergulhando de cabeça por onde ele vinha. Algo sobre ele despertou todas as suspeitas de Brienne, mas ela não estava disposta a persegui-lo pelas ruas de Valdocaso. Fora dos portões essa manha, foi aí que eu o vi, ela se deu conta. Ele que estava montando um cavalo malhado. E parecia que ela o tinha visto em outro lugar também, mas onde?
No momento em que Brienne encontrou Sete Espadas de novo, a sala comunal estava lotada. Quatro septãos se sentavam perto do fogo, com vestes manchadas e empoeiradas da estrada. Em outros lugares, moradores enchiam os bancos, tomando tigelas com sopa de ensopado de caranguejo quente e pedaços de pão. O cheiro fez seu estomago roncar, mas ela não viu assentos vazios. Então uma voz atrás dela disse:
— Minha senhora, aqui, pegue o meu lugar. — Depois que ele pulou para fora de seu acento, Brienne percebeu que o orador era um anão. O homenzinho não era mais alto que cinco pés de altura. Seu nariz era vermelho e bulboso, seus dentes eram vermelhos de folhamarga e estava vestido com o manto marrom áspero de um santo irmão, com um martelo de ferro do Ferreiro pendurado para baixo em pescoço grosso.
— Fique com seu assento — ela disse — posso ficar em pé tão bem quanto você.
— Sim, mas minha cabeça não está tão perto de bater no teto — o discurso do anão foi grosseiro, mas cortês. 
Brienne podia ver a coroa de seu couro cabeludo onde ele tinha raspado. Muitos irmãos sagrados usavam tais tonsuras. Septão Roelle uma vez lhe disse que era para mostrar que eles não tinham nada a esconder do Pai.
— O Pai não pode ver através do cabelo? — Brienne havia perguntado. Uma estúpida coisa para se dizer. 
Ela tinha sido uma criança lerda; Septão Roelle muitas vezes disse isso a ela. Ela se sentiu quase estúpida agora, então pegou o lugar do homenzinho no fim do banco, sinalizou por guisado e voltou-se para agradecer ao anão.
— Você serve em alguma casa santa em Valdocaso, irmão?
— Twas, perto de Lagoa da Donzela, minha senhora, mas os lobos queimaram-nos para fora — disse o homem, roendo um pedaço de pão. — Nós reconstruímos da melhor maneira que podíamos, até que alguns vendedores de mundo apareceram. Eu não podia dizer quem eram homens, mas eles levaram nossos porcos e mataram nossos irmãos. Eu me apertei dentro de um tronco oco e me escondi, mas os outros eram grandes demais. Levei muito tempo para enterrá-los todos, mas o Ferreiro me deu força.
Quando isso foi feito eu desenterrei algumas moedas que meu irmão havia escondido e parti sozinho.
- Eu conheci outros irmãos indo para Porto Real.
— Sim, há centenas nas estradas. Não só irmãos. Septões também, e povos pequenos. Todos pardais. Pode ser que eu seja um pardal também. O Ferreiro me fez pequeno o suficiente. — ele riu. — E qual é o seu conto triste, minha senhora?
— Estou procurando minha irmã. Ela é nova, apenas treze anos, uma empregada bonita com olhos azuis e cabelos ruivos. Talvez você tenha vistoa viajando com um homem. Um cavaleiro, talvez um bobo. Há ouro para o homem que me ajudar a encontrá-la.
— Ouro? — ele deu-lhe um sorriso vermelho — Uma tigela de ensopado de caranguejo seria recompensa suficiente para mim. Mas, eu temo que não possa ajudá-la.  Bobos eu já conheci, e muitos, mas empregadas bonitas, nem tanto. — Ele levantou a cabeça e pensou por um momento — Houve um bobo em Lagoa da Donzela, agora que penso nisso. Ele estava vestido com trapos sujos, tão próximo quanto eu poderia dizer, mas abaixo da sujeira havia uma capa de retalhos.
Dontos Hollard usava sua manta? Ninguém havia dito a Brienne que ele usava... mas ninguém havia dito que ele não usava também. Porque o homem deveria andar em trapos, porém? Teria algum infortúnio o passado a ele e Sansa depois que partiram de Porto Real. Bem que isso podia ser, com as estradas tão perigosas. Mas, podia não ter sido ele no final das contas.
— Será que este bobo teria um nariz vermelho cheio de veias quebradas?
— Eu não poderia prometer isso. Eu confesso, dei-lhe pouca atenção. Eu tinha ido para Lagoa da Donzela depois de enterrar meus irmãos, pensando que eu talvez encontrasse um navio para me levar para Porto Real. Da primeira vez eu visualizei o bobo pelas docas. Tinha um ar furtivo e um cuidado para evitar os soldados de Lorde Tarly, mas tarde encontrei-o novamente no Ganso Fedorento.
— O Ganso Fedorento? — ela disse, incerta.
— Um lugar desagradável — admitiu o anão — Os homens de Lorde Tarly patrulham do porto até Lagoa da Donzela, mas o Ganso está sempre cheio de marinheiros, e marinheiros tem sido conhecidos por contrabandear homens a bordo de seus navios, se o preço for justo. Este bobo estava procurando passagem para três através do mar estreito. Eu o vi muitas vezes lá, conversando com remadores das galeras. Às vezes, ele cantava uma musica engraçada.
— Procurando passagens para três? Não dois?
— Três minha senhora. Isto eu juro. Pelos Sete.
Três, ela pensou, Sansa, Sor Dontos... mas quem seria o terceiro? O Duende?
— Será que o bobo encontrou seu navio?
— Isto eu não poderia dizer — o anão disse — Mas uma noite os soldados do Lorde Tarly visitou o Ganso procurando por ele, e alguns dias depois eu ouvi outro dizer que havia enganado um Bobo e tinha o ouro para provar. Ele estava pagando cerveja para todos.
— Enganando um bobo — ela disse — o que ele quis dizer com
isso?
— Eu não saberia te dizer. Seu nome era Dick, o Ágil, acho, isto eu me lembro. — o anão abriu suas mãos — temo que isto seja tudo que posso lhe oferecer, além das orações de um homem pequeno.
Fiel a sua palavra, Brienne comprou-lhe uma tigela de ensopado de caranguejo quente, um pouco de pão fresco e um copo de vinho também. Enquanto ele comia, parado ao seu lado, ela remoia o que ele havia dito a ela. Podia o Imp ter se juntado a eles? Se Tyron Lannister esta por trás do desaparecimento de Sansa, e não Dontos Hollard, eles estavam com razão em fugir para o outro lado do mar estreito.
Quando o homenzinho terminou com a sua tigela de sopa, ele terminou com o que restava da dela também. 
— Você deveria comer mais — ele disse — uma mulher grande como você precisa manter sua força. Não é muito longe para Lagoa da Donzela, mas as estradas são perigosas hoje em dia.
Eu sei. Foi nessa mesma estrada em que Sor Cléo Freys havia morrido. E ela e Sor Jaime tinham sido atacados pelos Saltimbancos Sangrentos. Jaime tentou matar-me, ela lembrou, embora ele estivesse magro e fraco e seus pulsos estivessem acorrentados. Mas tinha sido por pouco, mesmo assim, mas isso foi antes de Zollo cortar sua mão fora. Zollo, Roger e Shagwell a teria estuprado uma centena de vezes se Jaime não tivesse contado a eles que ela valia seu peso em safiras.
— Minha senhora? Você parece triste, você está pensando em sua irmã? — o anão deu um tapinha em sua mão — A Velha irá iluminar seu caminho para ela, nunca tema. A Donzela irá mantê-la segura.
— Rezo para que esteja certo.
— E estou — ele fez uma mesura — mas agora eu devo pegar meu caminho. Eu ainda tenho um longo caminho a percorrer para chegar a Porto Real.
— Você tem um cavalo? Uma mula?
— Duas mulas — o homenzinho riu — Lá estão elas, na parte inferior das minhas pernas, elas me levam onde eu quero ir. — Ele se curvou e gingou para a porta, balançando a cada passo.
Ela permaneceu na mesa depois dele ter ido embora, saboreando um copo de vinho regado. Brienne não bebia vinho frequentemente, mas uma vez ela descobriu que ajudava a silenciar sua barriga. E onde eu quero ir? Ela perguntou a si mesma. Para Lagoa da Donzela, para procurar por um homem chamado Dick, o Ágil em um lugar chamado Ganso Fedorento?
Da ultima vez que ela tinha visto Lagoa da Donzela a cidade tinha sido uma desolação, o senhor havia se enfiado dentro de seu castelo e seu pequeno povo tinha sido morto ou fugido se escondendo. Ela se lembrava de casas queimadas e ruas vazias, portões esmagados e quebrados. Cães selvagens haviam se escondido atrás de seus cavalos, enquanto cadáveres inchados flutuavam como enormes lírios pálidos em cima da piscina de primavera que dera o nome a cidade. Jaime cantou ‘Seis Criadas em uma Piscina’ e riu quando eu o implorei para ficar quieto. E Randyll Tarly estava em Lagoa da Donzela também, outra razão para ela evitar a cidade. Ela talvez fizesse melhor em pegar um navio para Vila Gaivota ou para Porto Branco. Eu poderia fazer as duas coisas, pensou. Pagar uma chamada para o Ganso Fedorento e falar com este Dick, o Ágil, e então encontrar um navio para Lagoa da Donzela para levar-me mais para o norte.
A sala comum tinha começado a esvaziar-se. Brienne rasgou um pedaço de pão ao meio, ouvindo as conversas das outras mesas. A maior parte dizia respeito à morte do Lorde Tywin Lannister.
— Assassinado pelo seu próprio filho, eles dizem — um homem local estava dizendo, um sapateiro pelo jeito que parecia — aquele vil pequeno anão.
— E o rei é só um garoto — disse o mais velho dos quatro septões. — Quem vai nos governar até que ele chegue à idade?
— O Irmão de Lorde Tywin — disse um guarda — ou aquele Lorde Tyrell, talvez, ou o Regicida.
— Ele não! — declarou o estalajadeiro — Não aquele quebrador de promessas. — Ele cuspiu no fogo.
Brienne deixou o pão cair de suas mãos e limpou as migalhas de suas vestes. Ela tinha ouvido o suficiente. Naquela noite, sonhou que estava na tenda Renly novamente. Todas as velas foram jogadas fora e o frio era intenso ao seu redor. Algo estava se movendo através do verde escuridão. Algo sujo e terrível foi jogado em direção ao seu rei. Ela queria protegê-lo, mas seus membros estavam duros e congelados, e gastou mais força do que ela tinha para levantar apenas sua mão. E quando a espada de sombra cortou o ar reluzindo aço verde e o sangue começou a fluir, ela viu que o rei que estava morrendo, não era Renly então, mas Jaime Lannister, e ela tinha fracassado com ele.
A irmã do capitão encontrou-a na sala comum bebendo um copo de leite quente com mel e três ovos crus misturados dentro.
— Você fez lindamente — ela disse quando a mulher lhe mostrou o escudo pintado com tinta fresca. Era mais um retrato do que um revestimento adequado de armas, e a visão a levou de volta através dos anos, para o escuro e fresco arsenal de seu pai. Ela se lembrou de como corria seus dedos pela descascada e enfraquecida pintura, sobre as folhas verdes da árvore e ao longo do caminho da estrela cadente. Brienne pagou a irmã do capitão mais a metade do que haviam combinado e pendurou o escudo no ombro quando deixou a estalagem, depois de comprar algum pão, queijo e farinha da cozinha. Ela deixou a cidade pelo portão norte, andando lentamente pelos campos e fazendas, onde o pior da luta tinha sido, quando os lobos desceram de Valdocaso. 
Lorde Randyll Tarly havia comandado o exército de Joffrey, composta de homens do ocidente e das terras das tempestades e cavaleiros de Campina. Os homens que haviam morrido aqui tinham sido levados de volta para dentro das muralhas, para descansar em túmulos de heróis debaixo dos septos de Valdocaso. Os mortos do norte, mais numerosos, foram enterrados em uma vala comum junto ao mar. Acima dos lugares que marcaram seus lugares de descanso, os vencedores tinham levantado um marcador tosco de madeira. AQUI JAZEM OS LOBOS era tudo que dizia. Brienne parou ao lado dele e fez uma oração silenciosa para eles, e para Catelyn Stark, seu filho Robb e todos os homens que tinham morrido com ele. Ela se lembrou da noite em que a Senhora Catelyn descobriu que seus filhos estavam mortos, os dois rapazes que ela tinha deixado em Winterfell para mantê-los seguros. Brienne sabia que tinha algo terrivelmente errado. Ela tinha perguntado a ela se tinha tido noticias de seus filhos.
— Eu não tenho filhos além de Robb — a Senhora Catelyn havia replicado. Ela soava como se uma faca estivesse sido cravada em sua barriga. Brienne havia atravessado através da mesa para dar-lhe conforto, mas ela parou antes que seus dedos tocassem a mulher mais velha, com medo de que esta recuasse para longe. a Senhora Catelyn havia virado suas mãos para mostrar a Brienne cicatrizes em suas mãos e dedos, onde uma vez uma faca cortou fundo em sua carne. Então ela começou a falar sobre suas filhas.
— Sansa era uma mocinha — ela disse — sempre cortês e ansiosa para agradar. Ela adorava contos de valor cavalheiresco.  Ela vai se transformar em uma mulher mais bonita do que eu, você pode ver isso. Eu muitas vezes iria escovar os seus cabelos. Ela tinha cabelos ruivos, grossos e macios... o vermelho que iria brilhar como cobre na luz das tochas.
Ela falou sobre Arya também, sua filha mais nova. Mas Arya estava morta, provavelmente morta agora. Sansa, embora... Eu vou encontrá-la, minha senhora. Brienne jurou sobre a solidão inquieta da Senhora Catelyn. Eu nunca pararei de procurar, eu darei minha vida se preciso for, desisto de minha honra, desisto de todos meus sonhos, mas eu irei encontrá-la.
Além do campo de batalha a estrada corria junto à costa, entre o crescente mar verde-acinzentado e uma linha de baixas colinas de calcário. Brienne não era a única viajante na estrada. Havia aldeias de pescadores ao longo da costa por muitas léguas, e os pescadores usavam este caminho para levarem seus peixes ao mercado. Ela cavalgou passando por uma peixeira e suas filhas voltando para casa com uma cesta vazia sobre os ombros. Por sua armadura, elas pensaram que ela era um cavaleiro, até que viram seu rosto. Então as garotas sussurraram uma para outra e lançaram olhares para ela.
— Vocês viram uma empregada de treze anos ao longo da estrada? — ela lhes perguntou. — Uma criada bem nascida com olhos azuis e cabelos vermelhos? — Sor Shadrich havia feito-a prudente, mas ela tinha que continuar tentando.  — Ela pode estar viajando com um bobo. — Mas elas só balançaram a cabeça e riram dela por trás das mãos.
Na primeira vila que ela chegou, meninos descalços corriam ao lado de seu cavalo, ela tinha vestido seu elmo, chateada pelas risadinhas dos pescadores, então eles a tomaram por um homem. Um rapaz ofereceu-lhe moluscos, outro ofereceu caranguejos, e outro ofereceu sua irmã.
Brienne comprou três caranguejos do segundo garoto. Quando ela chegou a deixar a aldeia, já estava chovendo e o vento subia. Tempestade se aproxima, ela pensou, olhando para o mar. As gotas de chuva pingavam contra seu elmo em sua direção, fazendo seus ouvidos vibrarem enquanto andava, mas era melhor do que estar lá fora, em um barco. Uma hora ao norte, a estrada estava dividida em uma pilha de pedras caídas que marcavam a ruína de um pequeno castelo. A via direita serpenteava-se ao longo da costa em direção a Ponta da Garra Rachada, uma terra sombria de pântanos. A via esquerda atravessava montanhas, campos e bosques em direção a Lagoa da Donzela. A chuva estava caindo mais pesadamente até então. Brienne desmontou e tirou a égua da estrada para pegar algum abrigo entre as ruínas. 
O curso das muralhas do castelo ainda podia ser discernido entre o silvo e a erva daninha e olmos selvagens, mas as pedras que havia o erguido estavam espalhadas como bloco de crianças pela estrada. Mas, no entanto, parte do principal ainda se mantinha de pé. Suas triplas torres eram de granito cinza, como as paredes quebradas, mas os seus merlões eram de arenito amarelo. Três coroas, ela percebeu, enquanto olhava para elas através da chuva. Três coroas de ouro. Este havia sido um castelo Hollard. Sor Dontos havia nascido aqui.  Ela levou sua égua entre os escombros para a entrada principal da fortaleza. Da porta, somente as dobradiças de ferro enferrujadas permaneceram, mas o teto ainda se sustentava, e estava seco lá dentro. Brienne amarrou a égua rente à parede, retirou o elmo e sacudiu os cabelos. Ela estava procurando por um pouco de madeira seca para acender o fogo, quando ouviu o som de outro cavalo se aproximando. Algum instinto a fez se afastar de volta para as sombras, onde ela não podia ser vista da entrada. Este foi o mesmo caminho onde ela e Sor Jaime haviam sido capturados. Ela não tinha a intenção de sofrer isso de novo.
O cavaleiro era um pequeno homem. O Rato Louco, pensou ela quando teve seu primeiro vislumbre dele. De alguma forma ele me seguiu. Sua mão foi para o punho de sua espada, e ela viu perguntando-se se Sor Shadrich poderia pensar que ela era presa fácil só porque era uma mulher. O castelão de Lorde Grandison havia cometido este erro uma vez. Humfrey Wagstaff era o seu nome, um orgulhoso homem de sessenta e cinco anos. Com o nariz parecido com o de um falcão e uma cabeça manchada. No dia em que tinham ficado prometidos, ele advertiu Brienne que esperava que ela fosse uma mulher boa já que iriam se casar.
— Eu não ver ter minha senhora esposa pinoteando em uma cota de homem. Sobre isso você deve obedecer-me, para que eu não seja obrigado a castigá-la. 
Ela tinha dezesseis anos e não era estranha a uma espada, mas ainda era tímida, apesar de sua proeza no quintal. No entanto, de alguma forma ela encontrara coragem de dizer a Sor Humfrey que só aceitaria castigo de um homem que poderia lutar com ela. O velho cavaleiro ficou púrpura, mas concordou em vestir sua própria armadura e ensiná-la o lugar de uma mulher. Eles lutaram com armas de torneio, então, a maça de Brienne não tinha espinhos. Ela quebrou a clavícula de Sor Humfrey, duas costelas e o noivado. Ele foi seu terceiro respectivo marido, e o último. Seu pai não insistiu novamente. Se Sor Shadrich fosse ladrando em seus calcanhares, ela poderia muito bem ter uma luta em suas mãos. Ela não tinha intenção de se associar com o homem ou deixá-lo segui-la até Sansa. Ele tem o tipo de arrogância que vem com as habilidades com as armas, ela pensou, mas ele é pequeno. Eu tenho o alcance dele, e devo ser mais forte também. Brienne era tão forte quando a maioria dos cavaleiros, e seu antigo mestre de armas costumava dizer que ela era mais rápida do que qualquer mulher do seu tamanho tinha o direito de ser. Os deuses haviam dado a ela perseverança também, o que Sor Goodwin considerava um nobre dom. Luta de espada e escudo era cansativo, e a vitória frequentemente ia para o homem com mais resistência.  Sor Goodwin havia lhe ensinado a lutar com cautela, para conservar sua força deixando os inimigos gastarem as suas em ataques furiosos.
— Os homens sempre vão subestimar você — ele disse. — E seu orgulho vai fazê-los querer aniquilá-la rapidamente, para não dizer que uma mulher lutou duramente.
Ela tinha aprendido a verdade quando foi para o mundo. Mesmo Jaime Lannister tinha visto ela deste jeito, nas florestas de Lagoa da Donzela. Se os deuses são bons, o Rato Louco iria cometer este mesmo erro. Ele pode ser um cavaleiro experiente, ela pensou, mas ele não é Jaime Lannister. Ela deslizou sua espada da bainha. Mas não foi o cavalo castanho de Sor Shadrich que caminhou pela estrada bifurcada, mas um velho cavalo malhado com um rapaz magro em suas costas. Quando Brienne viu o cavalo ela recuou, confusa. Apenas algum menino, ela pensou, até que vislumbrou o rosto debaixo da capa. O garoto em Valdocaso, aquele que trombou comigo. É ele. 
O meninão não deu ao castelo em ruínas nem um relance, mas olhou para baixo em uma estrada, e depois na outra. Após um momento de hesitação ele virou o cavalo para as colinas e continuou se arrastando. Brienne o viu se afastar através da chuva que caia, e de repente lhe veio que ela havia visto este mesmo menino em Rosby. Ele está me perseguindo, ela se deu conta, mas esse é um jogo que dois podem jogar. Ela desamarrou a égua, subiu de volta para a sela e foi atrás dele.
O garoto estava olhando para o chão enquanto cavalgava, observando os sulcos na estrada enchidos com água. A chuva abafava o som de sua abordagem, e com certeza seu capuz desempenhou esse papel também. Ele não olhou para trás uma só vez, até que Brienne trotou por trás dele e deu ao seu cavalo uma pancada na garupa com a folha de sua espada longa. O cavalo empinou, e o garoto magro saiu voando, sua capa batendo como asas. Ele pousou na lama e se ergueu com grama morta e suja entre os dentes, encontrando Brienne de pé sobre ele. Era o mesmo rapaz, sem duvida. Ela o reconheceu do chiqueiro. 
— Quem é você? — Ela exigiu.
A boca do menino trabalhou silenciosamente.  Seus olhos eram grandes como ovos.
— Puh — foi tudo o que ele conseguiu falar — Puh — sua cota de malha fez um som de chocalho quando ele estremeceu. — Puh. Puh.
— Por favor? — disse Brienne — Você esta dizendo por favor? — ela deslizou a ponta da espada para o seu pomo de adão. — Por favor, me diga quem você é, e porque está me seguindo.
— Não puh-puh-por favor. — Ele enfiou um dedo em sua boca e cuspiu fora um amontoado de lama, tossindo. — Puh-puh-Pod. Meu nome. Puh.puh.Podrick. Puh-Payne.
Brienne abaixou a espada. Sentiu uma onda de simpatia pelo garoto. Ela se lembrou um dia do Entardecer, um jovem cavaleiro com uma rosa na mão. Ele trouxe a rosa para dar a mim. Ou assim sua septã lhe contou. Tudo o que ele teve que fazer era recebê-lo no castelo de seu pai. Ele tinha dezoito anos, com longos cabelos ruivos que caiam até seus ombros. Ela tinha doze anos, firmemente atada em um novo e duro vestido, seu corpete brilhando com granadas. Os dois eram da mesma altura, mas ela não conseguia olhar nos olhos dele, nem dizer as palavras simples que os septões haviam lhe ensinado. Sor Ronnet, eu lhe desejo boas vindas aos salões de meu pai. É bom olhar em seu rosto finalmente.
— Porque você esta me seguindo? — Ela perguntou ao garoto — Você foi ordenado a me espionar? Você pertence à Varys? Ou a rainha?
— Não e não. Nenhum deles.
Brienne chutou sua idade em dez, mas ela era terrível em dizer a idade de uma criança. Ele sempre pensava que eram mais jovens do que realmente eram. Talvez porque foi uma criança muito grande para sua idade. Grande Extravagância, Septã Roelle costumava dizer, e masculinizada.
— Esta estrada é muito perigosa para um menino sozinho.
— Não para um escudeiro. Eu sou um escudeiro. O Escudeiro da
Mão.
— Lord Tywin? — Brienne embainhou sua espada.
— Não. Não essa Mão. A Mão antes dele. Seu filho. Eu lutei com ele na batalha. Eu gritei “Meio homem! Meio homem!”
O escudeiro do Duende. Brienne nunca soube que ele tinha um. Tyron Lannister não era cavaleiro. Talvez ele tivesse um menino ou dois para servi-lo, ela supunha, um pajé e um copeiro, alguém para ajudá-lo a se vestir. Mas um escudeiro?
— Porque você esta me perseguindo? — disse — o que você quer?
— Encontra-la — ele ficou de pé. – Minha senhora. Você está procurando por ela. Brella me contou. Ela é sua esposa. Não Brella, a Senhora Sansa. Então eu pensei, se você encontrá-la... — seu rosto contorceu-se em uma agonia repentina. — Eu sou seu escudeiro — ele repediu, com a chuva caindo em seu rosto — Mas ele me deixou.
 
Uma vez, quando ela era apenas uma garotinha, um cantor viajante tinha ficado com eles em Winterfell por meio ano. Ele era um homem idoso de cabelos grisalhos e rosto curtido pelo vento, mas ele cantou sobre cavaleiros, feitos e lindas mulheres, e Sansa derramou lágrimas amargas quando ele os deixou, implorando a seu pai para que não o deixasse partir.
— O homem tocou para nós todas as músicas que sabia pelo menos três vezes. — Lorde Eddard disse-lhe com carinho. — Eu não posso mantêlo aqui contra sua vontade. No entanto, você não precisa chorar. Eu prometo a você, outros cantores virão.
Porém, eles não vieram, não por um ano ou mais. Sansa havia orado para os Sete em seu septo e para os deuses antigos da árvore-coração, pedindo a eles para trazerem o velho homem de volta, ou melhor ainda, mandarem um outro cantor, jovem e charmoso. Mas os deuses não lhe responderam, e os salões de Winterfell permaneceram em silêncio.  
Mas isso foi quando ela era uma garotinha, e tola. Ela era uma donzela agora, tinha treze anos e havia florescido. Todas as suas noites estavam cheias de música, e durante o dia ela rezava por silêncio. 
Se o Ninho da Águia tivesse sido construído como os outros castelos, somente os ratos e os guardas teriam ouvido o canto do homem morto. As paredes das masmorras eram grossas o suficiente para engolir tanto canções quanto gritos. Mas as celas do céu tinham uma parede de ar, por isso todo acorde que o homem morto tocava voava livre para ecoar nas rochas da Lança do Gigante. E as músicas que ele escolheu... Ele cantou sobre a Dança dos Dragões, do justo Jonquil e seu bobo, de Jenny de Pedravelhas e o Príncipe das Libélulas. Ele cantou sobre traições e dos mais sujos assassinatos, de homens enforcados e vinganças sangrentas. Ele cantou sobre pesar e tristeza.
Onde quer que fosse no castelo, Sansa não podia escapar da música.  Ela flutuava pelos degraus da torre mais sinuosa, encontrava-a nua em seu banho, jantava com ela ao anoitecer, e entrava furtivamente em seu quarto de dormir mesmo quando ela trancava as janelas. Ela vinha com o ar frio e rarefeito, dando-lhe calafrios. Embora não tenha nevado no Ninho da Águia desde que a Senhora Lysa caiu, as noites tinham sido muito frias. 
A voz do cantor era forte e doce. Sansa pensava que ele soava melhor do que ela já ouvira antes, sua voz mais rica de alguma forma, cheia de medo, dor e saudade. Ela não entendia porque os deuses deram tal voz a um homem tão mau. Ele teria me tomado à força nos Dedos se Petyr não tivesse enviado Sor Lothor para cuidar de mim, ela teve que se lembrar. E ele tocou para abafar os meus gritos quando a tia Lysa tentou me matar. 
Isso não tornava as músicas mais fáceis de ouvir.
— Por favor — ela havia implorado à Lorde Petyr — Você não pode fazê-lo parar?
— Eu dei ao homem a minha palavra, doçura. — Petyr Baelish, Senhor de Harrenhal, Senhor Supremo do Tridente, e Lorde Protetor do Ninho da Águia e do Vale de Arryn, olhou para cima da carta que estava escrevendo. Ele tinha escrito uma centena de cartas desde a queda da Senhora Lysa. Sansa tinha visto os corvos indo e vindo do aviário. — Eu prefiro sofrer o seu canto do que ouvir o seu choro.
É melhor que ele cante, sim, mas...
— Ele deve tocar a noite toda, meu senhor? Lorde Robert não consegue dormir. Ele chora...
— Por sua mãe. O que não pode ser ajudado, a moça está morta. — Petyr deu de ombros — Não será por muito mais tempo. Lorde Nestor fará sua subida no dia seguinte.
Sansa conheceu Lorde Nestor Royce uma vez antes, após o casamento de Petyr com sua tia. Royce era o Guardião dos Portões da Lua, o grande castelo que ficava no sopé da montanha e protegia o caminho até o Ninho da Águia. Os convidados do casamento tinham passado a noite lá antes de empreenderem a subida. Lorde Nestor tinha escassamente olhado para ela duas vezes, mas a perspectiva de vê-lo ali a apavorava.  Ele também era o Alto Administrador do Vale, um vassalo de Jon Arryn e da Senhora Lysa.
— Ele não vai... Você não deixará Lorde Nestor ver Marillion, vai?
Seu horror deve ter transparecido em seu rosto, já que Petyr largou sua pena.
— Muito pelo contrário. Eu vou insistir nisso. — Ele acenou para que ela se sentasse ao lado dele. — Nós chegamos a um acordo, Marillion e eu. Mord pode ser tão persuasivo... E se nosso cantor nos desapontar e cantar uma canção que não seja de nosso interesse... então bastará dizermos que ele está mentindo. Em quem você imagina que Lorde Nestor vai acreditar?
— Em nós? — Sansa teria dado qualquer coisa para estar certa.
— É claro. Nossas mentiras serão seu lucro.
O solar estava morno, o fogo crepitando alegremente na lareira, mas Sansa estremeceu do mesmo jeito.
— Sim, mas... E se...?
— E se Lorde Nestor valoriza mais honra do que lucro? — Petyr colocou seu braço em volta dela — E se ele quer a verdade, se procura justiça para sua senhora assassinada? — Ele sorriu — Eu conheço Lorde Nestor, doçura. Você acha que eu o deixaria machucar minha filha?
Eu não sou sua filha, ela pensou. Eu sou Sansa Stark, filha do Senhor Eddard e da Senhora Catelyn, o sangue de Winterfell. Porém, ela não disse isso. Se não fosse por Petyr Baelish seria Sansa que teria girado através de um céu azul e frio para a morte nas pedras seiscentos metros abaixo em vez de Lysa Arryn. Ele é tão ousado. Sansa queria ter sua coragem. Tudo que ela queria era rastejar de volta para sua cama, esconderse debaixo dos cobertores para dormir e dormir. Ela não havia dormido uma noite inteira desde a morte da Senhora Lysa Arryn.
— Você não poderia dizer à Lorde Nestor que eu estou... Indisposta, ou...
— Ele vai querer ouvir seu relato sobre a morte de Lysa.
— Meu Senhor, e se Marillion falar a verdade...
— Se ele mentir, você quer dizer.
— Mentir?... Sim, se ele mentir, então será minha palavra contra a dele, e Lorde Nestor só terá que olhar em meus olhos para ver quão assustada eu estou...
— Um pouco de medo não será fora de lugar, Alayne. Você testemunhou uma cena terrível. Nestor vai se comover. — Petyr estudou seus olhos, como se os visse pela primeira vez. — Você tem os olhos de sua mãe. Olhos honestos e inocentes. Azuis como o mar iluminado pelo sol. Quando você estiver um pouco mais velha, muitos homens vão se afogar nestes olhos.
Sansa não sabia o que dizer a isso.
— Tudo o que você precisa fazer é contar à Lorde Nestor o que você contou à Lorde Robert. — Petyr continuou.
Robert é apenas um garotinho doente, ela pensou, Lorde Nestor é um homem crescido, rigoroso e desconfiado. Robert não era forte e tinha de ser protegido, mesmo da verdade.
— Algumas mentiras são por amor. — Petyr assegurou-lhe. Ela se lembrou disso.
— Quando nós mentimos para Lorde Robert foi apenas para poupálo. — Ela disse.
— E essa mentira pode nos poupar. De outra forma eu e você deixaremos o Ninho da Águia pela mesma porta de saída que Lysa usou. — Petyr pegou sua pena novamente. — Vamos servir-lhe mentiras e dourado da Árvore, e ele beberá e pedirá por mais, eu prometo.
Ele está me servindo mentiras da mesma forma, Sansa percebeu. Porém, elas eram mentiras reconfortantes, e ele as dizia com boa intenção. Uma mentira não é tão ruim se é dita com boa intenção. Se somente ela pudesse acreditar... 
As coisas que sua tia havia dito pouco antes de cair ainda incomodavam muito Sansa. ‘Delírios, Petyr explicou. Minha esposa estava louca, você mesma viu. ’ E ela tinha visto. Tudo o que fiz foi construir um castelo de neve e ela queria me empurrar para fora pela Porta da Lua. Petyr me salvou. Ele amava minha mãe também, e...
E ela? Como ela podia duvidar? Ele a tinha salvado.
Ele salvou Alayne, sua filha, uma voz dentro dela sussurrou. 
Mas ela era Sansa também... E às vezes parecia que o Lorde Protetor era dois homens também. Ele era Petyr, seu protetor, amoroso, divertido e gentil. Mas ele também era Mindinho, o Lorde que ela tinha conhecido em Porto Real, sorrindo maliciosamente e acariciando sua barba enquanto sussurrava no ouvido da rainha Cersei.  E Mindinho não era seu amigo. Quando Joff bateu nela, o Duende a defendeu, não Mindinho. Quando a multidão tentou estuprá-la, o Cão a levou para a segurança, não Mindinho. Quando os Lannister a casaram com Tyrion contra sua vontade, foi Sor Garlan, o Valente que lhe deu conforto, não Mindinho. Mindinho nunca levantou um único dedo mindinho por ela.
Exceto para me libertar, isso ele fez por mim. Eu pensava que era Sor Dontos, meu pobre Florian bêbado, mas foi Petyr o tempo todo. Mindinho era apenas uma máscara que ele teve que usar. Mas às vezes Sansa achava difícil dizer onde o homem começava e a máscara terminava. Mindinho e Lorde Petyr eram muito parecidos. Ela teria fugido dos dois, talvez, mas não havia para onde ir. Winterfell tinha sido queimada; Bran e Rickon estavam mortos e frios; Robb tinha sido traído e assassinado nas Gêmeas, assim como a senhora sua mãe. Tyrion foi condenado à morte por matar Joffrey, e se ela voltasse para Porto Real a rainha teria sua cabeça também. A tia que ela acreditava que iria protegê-la tinha tentado assassinála ao invés disso.  Seu tio Edmure era um cativo dos Frey, enquanto seu tio avô, Peixe Negro, estava sob cerco em Correrrio. Eu não tenho nenhum lugar além daqui, Sansa pensou miseravelmente, e nenhum amigo além de Petyr.
Naquela noite o morto cantou “O Dia Em Que Enforcaram Robin, o Negro”, “As Lágrimas da Mãe” e “As Chuvas de Castamere”. Então ele parou um pouco, mas assim que Sansa começou a cochilar ele começou a tocar novamente. Ele cantou “Seis Dores”, “Folhas Caídas” e “Alysanne”. Canções tão tristes, ela pensou. Quando ela fechava os olhos podia vê-lo em sua cela do céu, amontoado em um canto o mais longe possível do frio e escuro céu, coberto com uma pele e com sua harpa embalada em seu peito. Mas eu não posso ter pena dele, ela disse a si mesma. Ele é vaidoso e cruel, e em breve estará morto. Ela não podia salvá-lo. E além disso, porque ela iria querer? Marillion tinha tentado estuprá-la, e Petyr tinha salvado sua vida, não uma, mas duas vezes. Às vezes você precisa mentir. Apenas mentiras a mantiveram viva em Porto Real. Se ela não tivesse mentido para Joffrey, sua Guarda Real a teria espancado até a morte. 
Depois de ‘Alysanne’ o cantor parou novamente por tempo suficiente para Sansa arrebatar uma hora de sono. Mas quando a primeira luz da manhã arranhou sua janela lhe chegaram os primeiros suaves acordes de “Em uma Manhã Sombria”, e ela acordou de imediato. Aquela era uma canção mais apropriada para uma mulher, um lamento cantado por uma mãe na manhã após uma terrível batalha enquanto ela procura entre os mortos o corpo de seu filho único. A mãe canta sua tristeza por seu filho morto, pensou Sansa, mas Marillion chora por seus dedos, por seus olhos. 
A letra da canção chegou até ela como flechas que perfuraram a escuridão.
 
Oh, você viu meu garoto, bom senhor?
Seu cabelo é castanho
Ele prometeu que voltaria para mim
Para nossa casa na Cidade Wendish. 
 
Sansa tapou os ouvidos com um travesseiro de penas de ganso para não ouvir o resto da canção, mas não adiantou. O dia havia chegado e ela estava acordada, e Lorde Nestor Royce estava subindo a montanha.
O Alto administrador e sua comitiva chegaram ao Ninho da Águia no final da tarde, quando o vale se tornou dourado e vermelho atrás deles, e o vento começou a aumentar. Ele trouxe seu filho Sor Albar, juntamente com uma dúzia de cavaleiros e vinte soldados. 
Tantos estranhos. Sansa olhou para seus rostos ansiosamente. Será que eles eram amigos ou inimigos? 
Petyr deu boas vindas aos visitantes em um gibão de veludo preto com mangas cinza que combinavam com as calças de lã e deixavam uma certa sombra em seus olhos verdes acinzentados.  Meistre Colemon estava ao lado dele, suas correntes de muitos metais soltas sobre o seu pescoço longo e magro. Embora o meistre fosse muito mais alto que os dois homens, foi o Lorde Protetor que chamou atenção. Ele tinha deixado de lado os seus sorrisos para o dia, parecia. Ele ouviu solenemente enquanto Royce apresentava os cavaleiros que o acompanhavam e então disse:
— Meus senhores, sejam bem-vindos aqui. Vocês conhecem nosso Meistre Colemon, é claro. Lorde Nestor, você se lembra de Alayne, minha filha natural?
— Com certeza. — Lorde Nestor Royce tinha pescoço de touro, peito de barril, careca, uma barba grisalha e olhar severo. Ele inclinou a cabeça em saudação. 
Sansa fez uma reverência, assustada demais para falar, temerosa de dizer algo inconveniente. Petyr chamou-a.
— Doçura, seja uma boa menina e traga Lorde Robert ao Alto Salão para receber seus convidados.
— Sim, pai. — Sua voz soou fina e tensa. A voz de uma mentirosa, ela pensou enquanto se apressava em subir os degraus e atravessava a galeria para a Torre da Lua. Uma voz culpada. 
Gretchel e Maddy estavam ajudando Robert Arryn a se contorcer em suas calças quando Sansa entrou em seu quarto. O Senhor do Ninho da Águia tinha estado chorando novamente. Seus olhos estavam vermelhos e irritados, os cílios duros, o nariz inchado e com corrimento nasal. Um rastro de muco brilhava debaixo de uma narina, e seu lábio inferior estava sangrando onde ele tinha mordido. Lorde Nestor não pode vê-lo assim, Sansa pensou, desesperada.
— Gretchel, traga para mim o lavatório — Ela pegou o menino pela mão e levou-o para a cama — O meu doce Robin dormiu bem noite passada?
— Não. — Ele fungou — Eu não dormi nem um pouco, Alayne. Ele estava cantando de novo, e minha porta estava trancada. Eu pedi para eles me deixarem sair, mas ninguém veio. Alguém me trancou no meu quarto.
— Isso foi mau deles. — Mergulhou um pano macio na água morna e começou a limpar o rosto dele... gentilmente, oh, muito gentilmente. Se você limpasse Robert muito rapidamente, ele podia começar a tremer. O menino era frágil e terrivelmente pequeno para sua idade. Ele tinha oito anos, mas Sansa tinha conhecido meninos de cinco anos mais encorpados.
Os lábios de Robert tremeram.
— Eu estava indo dormir com você.
Eu sei que você estava. Doce Robin estava acostumado a meter-se na cama com sua mãe, até que ela se casou com Lorde Petyr. Desde a morte da Senhora Lysa ele fora pego vagando pelo Ninho da Águia em busca de outras camas. A que ele mais gostava era a de Sansa... razão pela qual ela pediu a Sor Lothor Brune para trancar sua porta noite passada. Ela não teria se importado se ele só dormisse, mas ele estava sempre tentando mamar em seus seios, e quando tinha pesadelos ele muitas vezes molhava a cama.
— Lorde Nestor Royce subiu dos Portões para ver você. — Sansa limpou debaixo de seu nariz.
— Eu não quero vê-lo. — ele disse — Eu quero uma estória. A estória do Cavaleiro Alado.
— Depois — Sansa disse — Primeiro você deve ver Lorde Nestor.
— Lorde Nestor tem uma verruga. — Ele disse, se contorcendo. Robert tinha medo de homens com verrugas. — Mamãe disse que ele era terrível.
— Meu pobre doce Robin. — Sansa alisou seu cabelo para trás. — Você sente falta dela, eu sei. Lorde Petyr sente também.  Ele a amava do mesmo modo que você. — Isso era uma mentira, embora dita com boa intenção. A única mulher que Petyr já amou foi a assassinada mãe de Sansa. Ele havia confessado tudo isso para a Senhora Lysa antes de empurrá-la pela Porta da Lua. Ela estava louca e perigosa. Ela assassinou o próprio marido, e teria me assassinado se Lorde Petyr não tivesse aparecido para me salvar.
Robert não precisava saber disso, entretanto. Ele era apenas um garotinho doente que amava sua mãe.
— Pronto. — Sansa disse. — Agora você parece um bom senhor. Maddy, traga sua capa. 
Era lã de carneiro, macia e quente, um lindo azul-celeste que ressaltava a cor creme de sua túnica. Ela a fixou sobre os ombros com um broche de prata em forma de lua crescente e tomou-o pela mão. Robert veio mansamente dessa vez.
O Alto Salão havia sido fechado desde a queda da Senhora Lysa, e Sansa teve um calafrio ao adentrá-lo novamente. O salão era longo, grandioso e bonito, ela supunha, mas não gostava dele. Era um lugar pálido e frio no melhor dos tempos. Os pilares delgados pareciam dedos ossudos, e as veias azuis no mármore branco traziam a sua mente as veias da perna de uma velha. Embora cinquenta candelabros de prata cobrissem as paredes, menos de uma dúzia estavam acesos, de forma que as sombras dançavam sobre os pisos e se agrupavam em cada esquina. Seus passos ecoavam no mármore, e Sansa podia ouvir o barulho do vento na Porta da Lua. Eu não devo olhar para ela, disse a si mesma, se não eu vou começar a tremer tanto quanto Robert.
Com a ajuda de Maddy, ela sentou Robert em seu trono de madeira com uma pilha de travesseiros embaixo dele e mandou dizer que o senhorio iria receber os convidados. Dois guardas em capas azul-celeste abriram as portas na extremidade inferior do salão, e Petyr trouxe-os para dentro pelo longo tapete azul que corria entre as fileiras de pilares brancos como ossos. 
O menino cumprimentou Lorde Nestor com cortesia e não fez nenhuma menção a sua verruga.  Quando o Alto Administrador perguntou a ele sobre a senhora sua mãe as mãos de Robert começaram a tremer levemente.
— Marillion machucou minha mãe. Ele jogou-a pela Porta da Lua.
— E vossa senhoria viu isso acontecer? — perguntou Sor Marwyn Belmore, um cavaleiro loiro, alto e magro que tinha sido capitão dos guardas de Lysa até Petyr colocar Sor Lothor Brune em seu lugar.
— Alayne viu. — o garoto falou — E o senhor meu padrasto.
Lorde Nestor olhou para ela. Sor Albar, Sor Marwyin, Meistre Colemon, todos estavam olhando. Ela era minha tia, mas queria me matar, Sansa pensou. Ela me arrastou até a Porta da Lua e tentou me jogar para fora. Eu nunca quis um beijo. Eu estava construindo um castelo de neve. Ela abraçou a si mesma para não tremer.
— Perdoem-na, meus senhores — Petyr Baelish disse suavemente — Ela ainda tem pesadelos com aquele dia. Não é de se admirar que ela não possa suportar falar sobre isso. — Ele veio por trás dela e colocou as mãos gentilmente sobre seus ombros. — Eu sei como isso é difícil para você, Alayne, mas nossos amigos precisam ouvir a verdade.
— Sim — Sua garganta parecia tão seca e apertada que quase lhe doía falar. — Eu vi... Eu estava com a Senhora Lysa quando... — Uma lágrima rolou por seu rosto. Isso é bom, uma lágrima é algo bom.  — Quando Marillion a empurrou... — E ela disse o conto mais uma vez, mal ouvindo as palavras que eram cuspidas de sua boca.
Um pouco antes que ela terminasse Robert começou a chorar, os travesseiros movendo-se perigosamente debaixo dele.
— Ele matou minha mãe. Eu quero que ele voe! — O tremor em suas mãos tinha piorado, e seus braços estavam tremendo também. A cabeça do menino se sacudiu e seus dentes começaram a bater. — Voar! — Ele gritou — Voar, voar. — seus braços e pernas se agitavam loucamente. Lothor Brune caminhou até a plataforma a tempo de pegar o menino quando ele caiu do seu trono. Meistre Colemon estava apenas um passo atrás, embora não houvesse nada que ele pudesse fazer. 
Impotente como o resto, Sansa só pôde ficar e observar enquanto seu ataque de tremores continuava. 
Uma das pernas de Robert chutou Sor Lothor no rosto. Brune amaldiçoou, mas ainda segurou o garoto enquanto ele se contorcia e se debatia, molhando as calças. Os visitantes não disseram uma palavra; Lorde Nestor pelo menos já tinha visto isso antes. Passou muito tempo antes que os espasmos de Robert começassem a diminuir, e parecia que eles estavam durando cada vez mais tempo. No fim, o pequeno senhor estava tão fraco que não podia manter-se em pé.
— Melhor levar seu senhorio para a cama e sangrar-lhe — Lorde Petyr disse. Brune ergueu o menino nos braços e o carregou do salão. Meistre Colemon o seguiu, seriíssimo.
Quando seus passos se perderam na distância não havia mais nenhum som no Alto Salão do Ninho da Águia. Sansa podia ouvir o vento da noite gemendo lá fora e arranhando a Porta da Lua. Ela estava com muito frio e muito cansada. Será que eu devo contar a estória de novo? Ela se perguntou.
Mas ela devia já ter dito o suficiente. Lorde Nestor limpou a garganta.
— Eu não gostei do cantor desde o inicio — Ele resmungou — Eu pedi a Senhora Lysa para mandá-lo embora. Muitas vezes eu lhe pedi.
— Você sempre lhe deu bons conselhos, meu senhor. — Petyr disse.
— Ela não deu atenção a isso — Queixou-se Royce — Ela ouviu-me a contragosto e não deu atenção.
— Minha senhora era muito confiante neste mundo — Petyr falou tão ternamente que Sansa teria acreditado que ele amava sua esposa. — Lysa não podia ver o mau nos homens, apenas o bem. Marillion cantava doces canções, e Lysa confundiu isso com sua natureza.
— Ele nos chamou de porcos — Sor Albar Royce disse. Um cavaleiro robusto de ombros largos que raspava seu queixo, mas cultivava suíças que emolduravam seu rosto rústico como sebes, Sor Albar era uma versão jovem de seu pai. — Ele fez uma canção sobre dois porcos fungando em volta de uma montanha, comendo os restos de um falcão. Era uma canção sobre nós, mas quando lhe disse isso, ele riu. ‘Ora Sor, é uma canção sobre alguns porcos’, ele me disse.
— Ele fez piada de mim também. — Sor Marwyn Belmore disse. — Sor Ding-Dong, ele me nomeou. Quando eu jurei que cortaria sua língua fora, ele correu para a Senhora Lysa e se escondeu atrás de suas saias.
— Como ele frequentemente fazia — Lorde Nestor disse. — O homem era um covarde, mas o favor que a Senhora Lysa oferecia a ele o fez insolente. Ela vestiu-o como um senhor, deu-lhe anéis de ouro e um cinto de pedra da lua.
— E o falcão favorito de Lorde Jon. — O gibão do cavaleiro mostrava as seis velas brancas de Waxley. — Sua senhoria amava aquele pássaro. Rei Robert deu a ele.
Petyr Baelish suspirou.
— Foi impróprio — Ele concordou — E eu coloquei um fim nisso. Lysa concordou em mandá-lo embora. Foi por isso que o chamou aqui, naquele dia. Eu devia ter estado com ela, mas nunca sonhei que... Se eu não tivesse insistido... Fui eu quem a matou.
Não, Sansa pensou, você não deve dizer isso, você não deve dizer a eles, você não deve. Mas Albar Royce estava negando com sua cabeça.
— Não, meu senhor, você não deve culpar a si mesmo. — Ele disse.
— Isso foi trabalho do cantor — Seu pai concordou — Traga-o para cima, Lorde Petyr. Deixe-nos pôr fim a esse lamentável assunto.
Petyr Baelish se recompôs e disse: — Como quiser, meu senhor. 
Ele se virou para seus guardas, deu uma ordem, e o cantor foi trazido das masmorras. O carcereiro Mord veio com ele, um homem monstruoso com pequenos olhos pretos e um rosto assimétrico cheio de cicatrizes. Uma orelha e parte da bochecha foram perdidas em alguma batalha, mas pelo menos uma dúzia de arrobas de carne pálida permaneceu. Suas roupas se encaixavam mal e ele exalava um odor rançoso. 
Em contraste Marillion parecia quase elegante. Alguém o havia banhado e vestido em calças azul-celeste e uma túnica branca folgada com mangas bufantes, e em sua cintura estava o cinto prateado que havia sido presente da Senhora Lysa. Luvas de seda branca cobriam suas mãos, enquanto uma atadura de seda branca poupou aos Lordes a vista de seus olhos.
Mord permaneceu atrás dele com um chicote. Quando o carcereiro cutucou suas costelas, o cantor ficou de joelhos.
— Bons Senhores, eu imploro vosso perdão.
Lorde Nestor fez uma careta.
— Você confessa seu crime?
— Se eu tivesse olhos, choraria. — A voz do cantor, tão forte e segura durante a noite, estava rachada e sussurrante agora. — Eu a amava muito, não pude suportar vê-la em outros braços, saber que ela partilhava sua cama. Eu não quis fazer mal a minha doce senhora, eu juro. Eu bloqueei a porta para que ninguém nos perturbasse enquanto eu declarava minha paixão, mas a Senhora Lysa estava tão fria... Quando ela me disse que estava carregando uma criança de Lorde Petyr, uma... uma loucura me tomou...
Sansa olhou para suas mãos enquanto ele falava. Maddy afirmou que Mord tinha tirado três de seus dedos, os dois mindinhos e um anelar. Seus dedos mindinhos pareciam um pouco mais rígidos que os outros, mas com as luvas era difícil ter certeza. Poderia ter sido não mais do que uma estória. Como Maddy saberia?
— Lorde Petyr foi gentil o suficiente para me permitir manter minha harpa — O cantor cego disse — Minha harpa e... minha língua, para que eu possa cantar minhas músicas. A Senhora Lysa gostava tanto de me ouvir cantar...
— Leve essa criatura para longe, eu gostaria de matá-lo eu mesmo — Lorde Nestor rosnou — Me deixa doente olhar para ele.
— Mord, leve-o de volta para sua cela do céu. — Petyr disse.
— Sim, meu senhor.  — Mord agarrou Marillion pelo colarinho. — Sem mais conversa. — Quando ele falou, Sansa viu com surpresa que os dentes do carcereiro eram feitos de ouro. Eles observaram enquanto ele meio empurrava, meio arrastava o cantor em direção às portas.
— O homem deve morrer — Sor Marywn Belmore  declarou quando eles se foram — Ele deveria ter seguido a Senhora Lysa para fora da Porta da Lua.
— Sem a sua língua — Lorde Albar Royce acrescentou — Sem aquela mentirosa e zombadora língua.
— Eu tenho sido muito gentil com ele, eu sei. — Lorde Petyr disse em um apologético tom. — Verdade seja dita, eu tenho pena dele. Ele matou por amor.
— Por amor ou ódio — Disse Belmore — Ele deve morrer.
— Muito em breve — Sor Nestor disse rispidamente — Nenhum homem permanece por muito tempo na cela do céu. O azul irá chamá-lo.
— Talvez chame — Disse Petyr Baelish — Mas se Marillion vai responder só depende dele. — Ele fez um gesto e seus guardas abriram as portas na extremidade do corredor. — Senhores, eu sei que vocês devem estar cansados após a subida. Aposentos foram preparados para todos vocês passarem a noite, e comida e vinho esperam por vocês no Baixo Salão. Oswell, mostre-lhes o caminho e garanta que tenham tudo que precisem. — Virou-se para Nestor Royce — Meu senhor, você vai se juntar a mim no solar para um copo de vinho? Alayne, doçura, venha nos servir. 
Um fogo baixo queimava no solar, onde um frasco de vinho os esperava. Dourado da Árvore. Sansa encheu o copo de Lorde Nestor enquanto Petyr incitava as toras com um atiçador de ferro.
Lorde Nestor sentou-se ao lado do fogo.
— Este não será o fim disso — Ele disse a Petyr, como se Sansa não estivesse ali — Meu primo pretende interrogar o cantor ele mesmo.
— Yohn Bronze desconfia de mim. — Petyr empurrou um carvão de
lado.
— Ele pretende vir com um exército. Symond Templeton vai se juntar a ele, sem dúvida. E a Senhora Waynwood também, eu temo.
— E Lorde Belmore; e Lorde Hunter, o Jovem; e Horton Redfort. Eles trarão Sam Stone, o Forte; e os Tollett, os Shett, os Coldwater, e alguns Corbray.
— Você está bem informado. Quais Corbray? Não será Lorde Lyonel?
— Não, seu irmão. Sor Lyn não gosta de mim, por algum motivo.
— Lyn Corbray é um homem perigoso — Lorde Nestor disse obstinadamente — O que você pretende fazer?
— O que posso fazer além de lhes dar boas-vindas se eles vierem? — Petyr revolveu as chamas mais uma vez e deixou o atiçador de lado.
— Meu primo pretende removê-lo do posto de Lorde Protetor.
— Se assim for, eu não poderei impedi-lo.  Eu mantenho uma guarnição de vinte homens. Lorde Royce e seus amigos podem levantar vinte mil. — Petyr foi até a arca de carvalho que ficava embaixo da janela. — Yohn Bronze vai fazer o que tiver que fazer. — Ele disse, ajoelhando-se. Ele abriu a arca, tirou um rolo de pergaminho e o entregou à Lorde Nestor. — Meu Senhor. Este é um sinal do amor de minha senhora por você.
Sansa assistiu Royce desenrolar o pergaminho.
— Este... Isso é inesperado, meu senhor.
Ela ficou surpresa ao ver lágrimas em seus olhos.
— Inesperado, mas não imerecido. Minha senhora valorizava você acima de todos os seus outros bandeirantes. Fostes sua rocha, ela me contou.
— Sua rocha — Lorde Nestor estava vermelho — Ela disse isso?
— Frequentemente. E isto — Petyr gesticulou para o pergaminho — É a prova disso.
— Isso... Isso é bom saber. Jon Arryn valorizava meu serviço, eu sei, mas a Senhora Lysa... ela desprezou-me quando vim para cortejá-la, e eu temia... — Lorde Nestor franziu o cenho — Ele tem o selo Arryn, eu vejo, mas a assinatura...
— Lysa foi assassinada antes que o documento fosse levado para que ela assinasse, então eu assinei como Lorde Protetor. Eu sabia que teria sido seu desejo.
— Eu vejo — Lorde Nestor enrolou o pergaminho. — Você é... honrado, meu senhor. Sim, e não sem coragem. Alguns chamarão a isso de concessão imprópria e culparão você por fazê-lo. O cargo de Guardião nunca foi hereditário. Os Arryn ergueram os Portões nos dias em que eles ainda usavam a Coroa Falcão e governavam o Vale como reis. O Ninho da Águia era sua sede de verão, mas quando a neve começava a cair a corte fazia sua decida.  Muitos dizem que os Portões eram tão reais quanto o Ninho da Águia.
— Não houve nenhum rei no Vale há trezentos anos — Petyr Baelish apontou.
— Os dragões vieram — Lorde Nestor concordou — Mas mesmo depois, os Portões permaneceram um castelo Arryn. O próprio Jon Arryn foi Guardião dos Portões enquanto seu pai viveu. Depois de sua ascensão ele nomeou seu irmão Ronnel, e mais tarde seu primo Denys.
— Lorde Robert não tem irmãos, e apenas primos distantes.
— Verdade — Lorde Nestor agarrou firmemente o pergaminho — Não vou dizer que não tive esperanças de que esse momento chegasse. Enquanto Lorde Jon governou o reino como a Mão, coube a mim governar o Vale para ele. Eu fiz tudo que era necessário e nunca pedi nada para mim mesmo. Mas, pelos deuses, eu merecia isso!
— Você tem razão — disse Petyr — E Lorde Robert dorme mais facilmente sabendo que você está sempre lá, um amigo fiel ao pé da sua montanha. — Ele levantou uma taça — Então... um brinde, meu senhor. Pela Casa Royce, Guardiões dos Portões da Lua... agora e sempre!
— Sim, agora e sempre! — As taças de prata chocaram-se.
Depois, muito depois, após a jarra de Arbor dourado estar seca, Lorde Nestor despediu-se para juntar-se a sua companhia de cavaleiros. Sansa estava dormindo em pé naquela hora, querendo apenas rastejar para a sua cama, mas Petyr a pegou pelo pulso.
— Você vê as maravilhas que podem ser conseguidas com mentiras e dourado da Árvore?
Por que ela teve vontade de chorar? Era algo bom que Lorde Nestor estivesse do lado deles.
— Era tudo mentira?
— Nem tudo. Lysa frequentemente chamava Lorde Nestor de rocha, mas eu acho que não era como um elogio. Ela chamou seu filho de estúpido. Ela sabia que Lorde Nestor sonhava em governar os Portões por direito próprio, em ser um senhor de verdade e não apenas no nome. Mas Lysa sonhava com outros filhos, e pretendia que o castelo fosse para os irmãozinhos de Robert. — Ele se levantou — Você entende o que aconteceu aqui, Alayne?
Sansa hesitou por um momento.
— Você deu ao Lorde Nestor os Portões da Lua para ter certeza do seu apoio.
— Certo — Petyr admitiu — Mas a nossa rocha é um Royce, o que quer dizer que ele é super orgulhoso e espinhoso. Se eu tivesse lhe perguntado o seu preço ele teria inchado como um sapo, zangado com a afronta que isso suporia a sua honra. Mas desta forma... o homem não é completamente estúpido, mas as mentiras que eu lhe servi eram mais doces que a verdade. Ele quer acreditar que Lysa o valorizava além dos outros vassalos. Um desses outros é Yohn Bronze, afinal de contas, e Lorde Nestor é muito consciente de que descende de um ramo menor da casa Royce. Ele quer mais para seu filho. Homens de honra fazem coisas por seus filhos que eles nunca considerariam fazer por si mesmos.
Ela assentiu.
— A assinatura... você poderia  ter pedido a Lorde Robert que assinasse e selado para ele, mas ao invés disso...
—... Assinei eu mesmo, como Lorde Protetor. Por quê?
— Então... se você for removido, ou... ou morto...
— ...A reivindicação de Lorde Nestor sobre os Portões de repente torna-se questionável. Eu prometo a você, isto não está perdido a ele. Foi inteligente de sua parte perceber isso, embora eu não esperasse menos da minha própria filha.
— Obrigada — Ela sentiu-se absurdamente orgulhosa por encaixar tudo, mas igualmente confusa. — Eu não sou, no entanto, sua filha. Não de verdade. Quero dizer, eu pretendo ser Alayne, mas você sabe...
Mindinho colocou um dedo sobre seus lábios.
— Eu sei o que eu sei. E você também. Algumas coisas são melhores quando não ditas, doçura.
— Mesmo quando estamos sozinhos?
— Especialmente quando estamos sozinhos. De outra forma, qualquer dia desses entrará um empregado sem se anunciar, ou um guarda na porta ouvirá algo que não deve. Você quer mais sangue em suas preciosas mãozinhas, minha querida?
O rosto de Marillion pareceu flutuar diante dela, a pálida bandagem sobre seus olhos. Atrás dele ela podia ver Sor Dontos, as setas da besta ainda presas nele.
— Não — Ela disse — Por favor.
— Sou tentado a dizer que este não é um jogo que jogamos, filha, mas é claro que é. O Jogo dos Tronos.
Eu nunca pedi para jogar. O jogo era perigoso demais. Um escorregão e eu estou morta.
— Oswell... meu senhor, Oswell remou para mim para fora de Porto Real na noite em que eu escapei. Ele deve saber quem eu sou. 
— Se ele tem metade da inteligência de uma ovelha, é claro que sim. Sor Lothos sabe também. Mas Oswell tem estado a meu serviço há muito tempo, e Brune é de uma natureza discreta. Kettleblack vigia Brune para mim, e Brune vigia Kettleblack. Não confie em ninguém. Uma vez eu disse isso a Eddard Stark, mas ele não me ouviu. Você é Alayne, e você deve ser Alayne o tempo todo. — Ele colocou dois dedos em seu seio esquerdo. — Mesmo aqui. Em seu coração. Você pode fazer isso? Você pode ser minha filha em seu coração?
— Eu...
Eu não sei, meu senhor, ela quase disse, mas não era isso que ele queria ouvir. Mentiras e Arbor dourado, ela pensou.
— Eu sou Alayne, Pai. Quem mais eu seria?
Lorde Mindinho beijou sua bochecha.
— Com a minha inteligência e a beleza de Cat o mundo será seu, doçura. Agora vá para a cama.
Gretchel havia colocado fogo em sua lareira e afofado seu colchão de penas. Sansa despiu-se e entrou debaixo dos cobertores. Ele não cantará esta noite, ela rezou, não com Lorde Nestor e os outros no castelo. Ele não ousaria. Ela fechou os seus olhos.
Durante a noite ela acordou quando o pequeno Robert subiu em sua cama. Eu esqueci de dizer a Lothor para trancá-lo outra vez, ela percebeu. Não havia nada a ser feito agora, então ela colocou seu braço em torno dele.
— Doce Robin? Você pode ficar, mas tente não se contorcer demais. Apenas feche seus olhos e durma, pequenino.
— Eu vou — Ele se aconchegou mais perto e colocou a cabeça entre seus seios. — Alayne? Você é minha mãe agora?
— Eu suponho que sim. — Ela disse. Uma mentira não era ruim se dita com boa intenção.
 
O salão retumbava com os gritos bêbados dos Harlaws, todos primos distantes. Cada senhor tinha pendurado seus estandartes por trás das bancadas, onde os seus homens estavam sentados. Muito poucos, pensou Asha Greyjoy, olhando para baixo da galeria, de longe muito poucos. Três quartos dos bancos estavam vazios.
A donzela Qarl dissera tantas vezes quando o Vento Negro estava se aproximando do mar. Ela havia contado os navios ancorados no castelo de seu tio, e sua boca tinha se apertado.
— Eles não vieram, — observou ela, — ou não o suficiente deles. — Ela não estava errada, mas Asha não poderia concordar com ela onde sua tripulação pudesse ouvir. Ela não tinha dúvidas da devoção deles, mas mesmo os homens de ferro hesitariam em dar suas vidas por uma causa que é claramente perdida.
Tenho tão poucos amigos? Entre as faixas, ela viu o peixe prateado dos Botley, a árvore de pedra dos Stonetree, o leviatã negro dos Volmark, os laços dos Myre. O resto eram foices dos Harlaw. A dos Boremund estava sobre um campo azul pálido, a de Hotho circundada por uma borda, pronta para o combate, e a do Cavaleiro tinha o vistoso pavão da casa de sua mãe. Até mesmo Sigfryd Cabelocinzento mostrava duas foices se enfrentado em um campo dividido. Somente Lorde Harlaw exibida uma foice prata, plana sobre um campo de noite preto, tal como fora em outros dias: Rodrik, o chamado Leitor, Senhor das Dez Torres, Senhor dos Harlaw, Harlaw dos Harlaw... seu tio favorito.
O trono de Lorde Rodrik estava vazio. Duas foices de prata cruzavam-se sobre ele, tão grandes que até mesmo um gigante teria dificuldade em empunhá-las, mas abaixo tinha apenas almofadas vazias. Asha não ficou surpresa. A festa foi longa, concluiu. Somente ossos e pratos gordurosos permaneciam sobre as mesas de cavalete. Os que restavam estavam bebendo, e  seu tio Rodrik nunca se agradou da companhia de bêbados briguentos.
Ela virou-se para Três-Dentes, uma velha de idade inimaginável que tinha sido mordoma de seu tio desde que ela era conhecida como DozeDentes.
— Meu tio está com seus livros?
— Sim, onde mais estaria? — A mulher era tão velha que um septão tinha dito uma vez que ela deve ter amamentado a Velha. Foi quando a fé ainda era tolerada nas ilhas. Lorder Rodrik manteve os septãos nas Dez Torres, não por causa de sua alma, mas para cuidarem de seus livros. — Com os livros, e com Botley. Ele estava com ele também.
 
O estandarte de Botley estava pendurado no salão, um cardume de peixes de prata sobre um campo verde pálido, embora Asha não tivesse visto seu Barbatana Veloz entre os outros navios. 
— Eu tinha ouvido que o meu tio Olho de Corvo tinha mandado afogar Sawane Botley.
— Este é o Senhor Tristifer Botley.
Tris. Ela se perguntou o que havia acontecido com o filho mais velho de Sawane, Harren. Eu vou descobrir em breve, sem dúvida. Isso é estranho. Ela não tinha visto Tris Botley desde... não, ela não deveria pensar nisso.
— E a Senhora minha mãe?
— De cama, — disse Três-Dentes, — na Torre da Viúva.
Sim, onde mais? A Torre da Viúva foi nomeada devido a sua tia. A Senhora Gwynesse tinha vindo para casa a chorar depois que seu marido tinha morrido em Ilha Bela durante a primeira rebelião de Balon Greyjoy.
— Só vou ficar até a minha dor passar, — ela disse a seu irmão uma frase que entrou para a história, — embora por direito as Dez Torres devam ser minhas, porque eu sou sete anos mais velha. — Longos anos se passaram desde então, mas a viúva ainda demorava ali, de luto, e murmurava de vez em quando que o castelo deveria ser dela. E agora Lorde Rodrik tem outra irmã viúva e meio louca vivendo sob o seu teto, Asha refletiu. Não é de admirar que ele procure consolo em seus livros.
Mesmo agora, era difícil acreditar que a frágil e doentia Senhora Alannys tinha sobrevivido a seu marido, Lorde Balon, que parecia tão duro e forte. Quando Asha navegou para a guerra, ela o tinha feito com o coração pesado, temendo que sua mãe morresse antes que ela pudesse voltar. Nenhuma vez pensou que pudesse ser o seu pai a morrer. O Deus Afogado joga brincadeiras selvagens sobre todos nós, mas os homens são ainda mais cruéis. Uma tempestade repentina e uma corda partida tinham enviado Balon Greyjoy à sua morte. Ou assim disseram.
Asha tinha visto sua mãe pela última quando ela parou em Dez Torres para armazenar água doce, em seu caminho para o norte para atacar Bosque Profundo. Alannys Harlaw nunca tivera a sorte da beleza que cantavam os bardos, mas a filha adorava o rosto forte e feroz, e o riso em seus olhos. Nessa última visita, porém, ela havia encontrado a Senhora Alannys em um assento abaixo da janela, amontoada debaixo de uma pilha de peles, olhando através do mar. É esta a minha mãe, ou o seu fantasma? Lembrou-se pensar lhe dando um beijo na bochecha.
A Pele de sua mãe era fina como pergaminho, e seus longos cabelos eram brancos. Permanecia algum orgulho na forma com a qual ela erguia sua cabeça, mas seus olhos eram escuros e nublados, e sua boca tremeu quando ela perguntou sobre Theon.
— Você trouxe o meu menino? — Ela tinha perguntado. Theon tinha dez anos de idade quando foi levado para Winterfell como refém, e, parecia à Senhora Alannys que ele sempre tivera a mesma idade.
— Theon não pôde vir — Asha teve que lhe dizer. — O pai o enviou para saquear a Costa Pedregosa. — A Senhora Alannys não tinha nada a dizer sobre isso. Ela só balançou a cabeça lentamente, mas qualquer um podia ver o quão profundo as palavras de sua filha a tinham cortado.
E agora devo dizer-lhe que Theon está morto, tenho que cravar outro pedaço de punhal em seu coração. Já tem dois pedaços encravados lá. Em suas lâminas estão escritas as palavras Rodrik e Maron, e muitas vezes elas se retorcem dolorosamente durante a noite. Vou vê-la no dia seguinte, Asha jurou a si mesma. Sua jornada tinha sido longa e cansativa, ela não poderia enfrentar sua mãe agora.
— Preciso falar com o Lorde Rodrik, — disse ela a Três-Dentes. — Vá ver a minha tripulação, uma vez que seja feito o descarregamento do Vento Negro. Eles irão trazer cativos. Eu quero que eles tenham camas quentes e uma refeição quente.
— Tem carne fria na cozinha. E mostarda em uma jarra de pedra grande, de Vilavelha. — O pensamento da mostarda fez a velha sorrir. Um único dente, longo e marrom, brotando de sua gengiva.
— Isso não vai servir. Fizemos uma travessia difícil. Eu quero algo quente em suas barrigas. — Asha apoiou um polegar sobre o cinto cravejado sobre seus quadris. — A Senhora Glover e as crianças devem ter madeira para o calor. Coloque-os em alguma torre, não as masmorras. O bebê está doente.
— Babes ficam doentes muitas vezes. A maioria morre, e as pessoas lamentam muito. Vou perguntar ao meu senhor onde colocar esses amigos do lobo.
Ela pegou a mulher pelo nariz, entre o polegar e o indicador, e retorceu.
— Você vai fazer o que eu digo. E se essa criança morrer, ninguém vai lamentar mais do que você. — Três-Dentes gritou e prometeu obedecer, Asha a soltou e foi procurar seu tio.
Era bom andar por aqielas salas novamente. Asha sempre se sentiu em Dez Torres como se estivesse em casa, muito mais do em Pyke. Não é um castelo, são dez castelos juntos, ela tinha pensado na primeira vez que as viu. Lembrou-se das corridas sem fôlego para cima e para baixo, os passos e as caminhadas sobre as muralhas e nas pontes cobertas, e a pesca no cais de pedra, os dias e noites perdidas entre a riqueza dos livros de seu tio. O avô de seu avô tinha levantado aquele castelo, o mais novo das ilhas. Lorde Theomore Harlaw tinha perdido três filhos no berço e colocou a culpa sobre os porões inundados, as pedras úmidas e o salitre supurante da antiga Torre de Harlaw. Dez Torres era mais arejado, mais confortável, melhor situado... Mas Lorde Theomore era um homem mutável, como qualquer uma de suas esposas testemunharam. Ele tinha seis dessas, tão diferentes entre si quanto as Dez Torres.
A Torre dos Livros era a mais gorda das dez, em forma octagonal e feita com grandes blocos de pedras lavradas. A escada foi construída dentro da espessura das paredes. Asha subiu rapidamente, entrando no quinto andar, onde seu tio costumava ler. Não que existam salas onde ele não leia. Lorde Rodrik raramente era visto sem um livro na mão, fosse na privada, no convés do seu Canção do Mar ou durante uma audiência. Asha já o tinha já visto lendo em seu trono, sob as foices de prata. Ele escutava os casos quando eram colocados diante dele, pronunciava o seu julgamento... e lia um pouco, enquanto o capitão da guarda ia trazer o suplicante seguinte.
Encontrou-o debruçado sobre uma mesa atrás de uma janela, cercado por rolos de pergaminho que podiam ter vindo de Valyria antes da Perdição, e livros de pesada capa de couro e ferrolhos de ferro e bronze. Velas de cera de abelha com espessura e altura de braços de um homem queimavam em ambos os lados de onde se sentava, em suportes de ferro ornamentado. Lorde Rodrik Harlaw não era nem gordo nem magro, nem alto nem baixo, nem feio nem bonito. Seus cabelos eram castanhos, assim como seus olhos, embora a barba curta e elegante tivesse se tornado cinza. Posto tudo, ele era um homem comum, que se distinguia apenas por seu amor pelas palavras escritas, hábito que tantos homens de ferro consideravam poucou viril e perverso.
— Tio. — Ela fechou a porta atrás dela. — O que a leitura tem de tão urgente que faz você deixar seus convidados sem um anfitrião?
— O Livro dos Livros Perdidos, do Arquimeistre Marwyn. — Ele levantou o olhar da página para estuda-la. — Hotho me trouxe uma cópia de Vilavelha. Ele tem uma filha, ele queria me casar. — Lorde Rodrik bateu no livro com uma grande unha. — Veja aqui? Marwyn afirma ter encontrado três páginas de sinais e presságios, visões escritas pela filha solteira da Aenar Targaryen antes da Perdição cair em Valyria. Lanny sabe que você está aqui?
— Ainda não. — Lanny era o nome carinhoso de sua mãe, só o leitor a chamava assim. — Deixe-a descansar. — Asha moveu uma pilha de livros para fora de um banquinho e se sentou. — Três-Dentes parece ter perdido mais dois de seus dentes. Você a chama de Um-Dente agora?
— Eu raramente a chamo de algo. A mulher me assusta. Que horas são? — Lorde Rodrik olhou pela janela o mar iluminado pela lua. — Escuro, tão cedo? Eu não tinha me dado conta. Você chegou atrasada. Te esperávamos já a alguns dias.
— Os ventos estavam contra nós, e eu tinha a preocupação dos cativos. A esposa de Robett Glover e suas crianças. O mais jovem ainda mama, e o leite da Senhora Glover secou durante a nossa travessia. Eu não tive escolha se não levar Vento Negro para Costa Pedregosa e enviar meus homens para encontrar uma ama de leite. Eles encontraram um bode em vez. A menina não cresce. Existe uma mãe de leite na aldeia? Bosque Profundo é importante em meus planos.
— Seus planos devem mudar. Você chegou tarde demais.
— Tarde e faminta. — Ela estendeu suas longas pernas em baixo da mesa e virou as páginas do livro mais próximo, um discurso de um septão sobre a guerra de Maegor, o Cruel, contra os Pobres Coitados. — Oh, e sedenta também. Um corno de cerveja cairia bem, tio.
Lorde Rodrik franziu os lábios.
— Você sabe que eu não permito comida ou bebida em minha biblioteca. Os livros...
— Podem sofrer danos. — Asha riu.
Seu tio franziu o cenho.
— Você gosta de me provocar.
— Oh, não, não faça essa cara. Eu nunca encontrei um homem que não tenha te provocado, você deve saber o suficiente agora. Mas chega de mim. Você está bem?
Ele deu de ombros.
— Bem o suficiente. Meus olhos se tornaram mais fracos. Eu pedi de Myr uma lente para me ajudar a ler.
E a como anda a minha tia?
Lorde Rodrik suspirou.
— É sete anos mais velha, e está convencida de que Dez Torres deveria ser dela. Gwynesse está perdendo a memória, mas disso ela não esquece. Ela chora por seu marido morto tão profundamente como no dia em que morreu, embora ela nem sempre consiga lembrar seu nome.
— Não estou certo de que ela já soube seu nome alguma vez. — Asha fechou o livro do septão com um baque. — Meu pai foi assassinado?
— É o que sua mãe acredita.
Houve momentos em que ela mesma o assassinaria de bom grado, pensou ela. 
— E o que o meu tio acredita?
— Balon caiu para a morte quando uma ponte de cordas rompeu abaixo dele. A tempestade aumentava, e a ponte balançava e retorcia a cada rajada de vento. — Rodrik encolheu os ombros. — Ou assim nos é dito. Sua mãe recebeu um pássaro de Meistre Wendamyr.
Asha deslizou o punhal da bainha e começou a limpar a sujeira debaixo de suas unhas.
— Três anos longe, e Olho de Corvo retorna no dia em que meu pai
morre.
— No dia seguinte, nós ouvimos. O Silêncio ainda estava em altomar quando Balon morreu, ou assim foi dito. Mesmo assim, eu concordo que o retorno de Euron foi... oportuno, digamos?
— Não diria assim. — Asha cravou a ponta do punhal na mesa. — Onde estão os meus navios? Contei quarenta atracados abaixo, não é o suficiente para tirar Olho de Corvo do trono de meu pai.
— Fiz a convocação. Em seu nome, e pelo amor que tenho por você e por sua mãe. A Casa Harlaw se reuniu. Stonetree também, e Volmark. Alguns Myre...
— Todos da ilha de Harlaw... uma ilha apenas, e são sete. Eu vi um solitário estandarte dos Botley no salão, de Pyke. Onde estão os navios dos Saltcliffe, dos Orkwood, dos  Wyk?
Baelor Blacktyde veio no Maré Negra se consultar comigo, e tão logo partiu novamente. — Lorde Rodrik fechou O Livro dos Livros Perdidos. — Ele está em Velha Wyk agora.
— Velha Wyk? — Asha temia que ele estivessee prestes a dizer que todos tinham ido para Pyke, para prestar homenagem ao Olho de corvo. — Por que Velha Wyk?
— Eu pensei que você tivesse ouvido. Aeron, o Cabelo-Molhado, a chamou de assembleia de homens livres.
Asha jogou a cabeça para trás e riu.
— O Deus afogado deve ter enfiado o ferrão de um peixe no cu do tio Aeron. Uma assembleia de homens livres? É brincadeira, o que ele quer dizer, realmente?
— Cabelo-molhado não brinca desde que se afogou. E os outros sacerdotes estão com ele. Beron Blacktyde, o Cego, Tarle, o Tri-afogado... até mesmo a Velha Gaivota Cinza deixou a rocha em que vive para proclamar essa Assembleia por toda Harlaw. Os capitães estão se reunindo em Velha Wyk enquanto conversamos.
Asha foi surpreendida.
— Olho de Corvo concordou em participar desta farsa religiosa e respeitar a sua decisão?
— Olho de Corvo não confia em mim. Desde que ele me convocou para lher prestar homenagens em Pyke, não tive palavras com Euron"
Uma assembleia de homens livres. Isto é algo novo... ou melhor, algo muito antigo.
— E meu tio Victarion? O que ele pensa do plano do Cabelomolhado?
— A Victarion foi enviada a notícia da morte de seu pai. E desta Assembleia também, não tenho dúvidas. Não sei nada mais do que isso.
Uma assembleia de homens livres é melhor do que uma guerra.
— Eu acredito que vou beijar os pés federentos do Cabelo-molhado e arrancar as algas entre seus dedos. — Asha arrancou o seu punhal da mesa e o prendeu mais uma vez à bainha. — Uma assembleia de homens livres sangrenta!
— Em Velha Wyk, — confirmou Lorde Rodrik. — Embora eu reze para não ser sangrenta. Fui consultar a História dos Homens de Ferro, de Hareg. Na última vez que os reis do sal e os reis do penhasco se reuniram em uma assembleia de homens livres, Urron Orkmont deixou seus homens com machados soltos entre eles, e as costelas de Nagga ficaram vermelhas de sangue. A Casa Greyiron governaram sem mais eleições desde aquele dia terrível, até que o vieram os ândalos.
— Você deve me emprestar o livro de Hareg, tio. — Ela precisava aprender tudo o que conseguisse sobre Assembleias do Rei antes de chegar em Velha Wyk.
— Você pode lê-lo aqui. É velho e frágil. — Estudou-a, franzindo a testa. — O Arquimeistre Rigney uma vez escreveu que a história é como uma roda, fundamental e imutável para a natureza do homem. O que aconteceu antes irá acontecer de novo, inevitavelmente, disse ele. Eu me lembro disso sempre que contemplo Olho de Corvo. Euron Greyjoy soa estranhamente como Urron Greyiron a esses ouvidos de idade. Eu não irei para Velha Wyk. Nem você deveria.
Asha sorriu.
— E perder a primeira assembleia de homens livres que foi convocada? Em quanto tempo, tio?
— Quatro mil anos, se acreditarmos no que disse Hareg. Metade disso, se você aceitar os argumentos de Meistre Denestan em Perguntas. Ir a Velha Wyk não servirá para nada. Este sonho da realeza é uma loucura em nosso sangue. Eu disse a seu pai na que a primeira vez que ele subiu, e isso é mais verdade agora do que era então. É de terra que precisamos, não de coroas. Com Stannis Baratheon e Tywin Lannister alegando o Trono de Ferro, temos uma rara chance de melhorar nossa situação. Vamos tomar um dos lados, ajudá-lo a ganhar com as nossas frotas, e reivindicar as terras que precisamos a um rei agradecido.
— Isso pode valer uma reflexão, uma vez que eu sente na Cadeira de Pedra do Mar — disse Asha.
Seu tio deu um suspiro.
— Você não vai querer ouvir isso, Asha, mas você não será escolhida. Nenhuma mulher jamais governou os homens de ferro. Gwynesse é sete anos mais velha que eu, mas quando nosso pai morreu, Dez Torres veio para mim. Será o mesmo com você. Você é filha de Balon, e não seu filho. E você tem três tios.
— Quatro.
— Três tios lulas. Eu não conto.
— Você conta para mim. Enquanto eu tiver meu tio em Dez Torres, eu terei Harlaw. — Harlaw não era a maior das Ilhas de Ferro, mas era a mais rica e populosa, e o poder de Lorde Rodrik não era de ser desprezado. Em Harlaw, Harlaw não tinha rival. Os Volmark e os Stonetree tinham grandes participações na ilha e vangloriavam-se de terem famosos guerreiros a seu serviço, mas mesmo os mais ferozes dobravam-se ante a foice. Os Kenning e os Myre, outrora inimigos mortais, há muito tempo foram rebaixados a vassalos.
— Meus primos me tem fidelidade, e na guerra eu mando em suas espadas e velas. Na assembleia de homens livres, porém... — Lorde Rodrik balançou a cabeça. — Abaixo dos ossos de Nagga, todos os capitães são iguais. Alguns podem até gritar o seu nome, eu não duvido. Mas não será suficiente. E quando gritarem os nomes de Victarion ou de Olho de Corvo, alguns dos que agora bebem a minha mesa se juntaram ao resto. Repito, não navegue para esta tempestade. Sua luta é inútil.
— Nenhuma luta é inútil até que tenha sido travada. Eu tenho a melhor reivindicação. Eu sou a herdeiro do trono de Balon.
— Você ainda é uma criança voluntariosa. Pense na sua pobre mãe. Você é a única que restou para ela. Se for necessário, vou colocar uma tocha no Vento Negro para mantê-la aqui.
— O que quer é me faz nadar até Velha Wyk?
"Uma natação longa e fria, por uma coroa que não pode ganhar. Seu pai tinha mais coragem do que sensatez. O Costume Antigo serviu bem as ilhas quando éramos um pequeno reino entre muitos, mas Aegon, o Conquistador, pôs fim a isso. Balon recusou-se a ver o que era comum antes dele. O Costume Antigo morreu com Harren, o Negro, e seus filhos.
— Eu sei disso. — Asha amara muito seu pai, mas não se iludia. Balon era cego em alguns aspectos. Foi um homem corajoso, mas péssimo senhor. — Isso significa que devemos viver e morrer como escravos do Trono de Ferro? Se há pedras para estibordo e uma tempestade à porta, um capitão sábio dirige para um terceiro curso.
— Mostre-me este terceiro curso.
— Eu vou... na minha assembleia de mulheres livres. Tio, como você pode sequer pensar em não assistir? Ela entrará para a história...
— Eu prefiro minha história morta. A história dos mortos é escrita com tinta, a dos vivos com sangue.
— Você quer morrer velho e covarde na sua cama?
— De que outra forma eu gostaria? Embora não até que termine de ler. — Lorde Rodrik foi até a janela. — Você não perguntou sobre a senhora sua mãe.
Eu estava com medo.
— Como ela está?
— Forte. Pode que sobreviva a todos nós. Ela certamente vai sobreviver a você, se insistir nessa loucura. Ela come bem mais do que fazia quando chegou aqui, e muitas vezes dorme durante a noite.
— Que bom. — Em seus últimos anos em Pyke, A Senhora Alannys não conseguira dormir. Ela vagava pelos corredores à noite com uma vela, à procura de seus filhos. — Maron? — Ela chamava estridentemente. — Rodrik, onde está você? Theon, meu bebê, vem aqui na mamãe. — Asha tinha visto muitas vezes um mesitre tirar lascas dos pés de sua mãe pela manhã, depois dela ter atravessado descalça a balançante ponte de tábuas para a Torre do Mar. — Vou vê-la pela manhã.
— Ela vai querer saber sobre Theon.
O Príncipe de Winterfell.
— O que você disse a ela?
— Muito pouco. Não havia nada para dizer. — Ele hesitou. — Tem certeza de que ele está morto?
— Não tenho certeza de nada.
— Você encontrou o corpo?
— Encontramos muitas partes de corpos. Os lobos estiveram lá antes de nós... os de quatro patas, mas mostraram pouco respeito aos seus parentes de duas pernas. Os ossos dos mortos foram espalhados, e abertos para que pudessem comer a medula. Confesso, é difícil saber o que aconteceu por lá. Pareceu-me que os nortenhos lutaram entre si.
— Corvos vão lutar pela carne dos homens mortos, e matar uns aos outros pelos seus olhos. — Lorde Rodrik olhou através do mar, vendo o jogo do luar sobre as ondas. — Nós tivemos um rei, depois de cinco anos. Agora, tudo o que vejo são corvos, disputas sobre os cadáveres de Westeros. — Prendeu as venezianas. — Não vá para Velha Wyk, Asha. Fique com sua mãe. Temo que não terá tanto tempo conosco.
Asha se mexeu em seu assento.
— Minha mãe sempre me disse para ser ousada. Se eu não for, vou passar o resto da minha vida me perguntando o que poderia ter acontecido se eu tivesse sido.
— Se você for, o resto de sua vida poderá ser curta demais para
saber.
— Melhor isso do que passar o resto dos meus dias reclamando que a Cadeira de Pedra do Mar era minha por direito. Eu não sou Gwynesse.
Isso o fez estremecer.
— Asha, meus dois filhos se tornaram alimento para os caranguejos de Ilha Bela. Não é provável que eu me case novamente. Fique, e eu te nomearei herdeira de Dez Torres. Se você se contentar com isso.
— Dez Torres? — Será que eu posso? — Seus primos não irão gostar disso. O Cavaleiro, velho Sigfryd, Hotho, o Corcunda...
"Eles têm suas terras e castelos próprios.
É verdade. Úmida e em decomposição, o Salão de Harlaw pertencia a Harlaw Sigfryd, o velho Cabelocinzento; Hotho Harlaw, o Corcunda tinha a Torre do Reflexo como sua sede, em um penhasco acima da costa ocidental. O Cavaleiro, Sor Harras Harlaw, tinha sua corte em Jardim Cinzento; Boremund, o Azul, governava sobre a Colina da Bruxa. Mas todas eram vassalos de Lorde Rodrik.
— Boremund tem três filhos, Sigfryd Cabelocinzento tem netos, e Hotho tem ambições — disse Asha. — Todos querem te suceder, inclusive Sigfryd. Esse pretende viver para sempre.
— O Cavaleiro será Senhor de Harlaw depois de mim — disse seu tio, — mas ele pode governar de Jardim Cinzento tão facilmente quanto daqui. Jurará lealdade em troca do castelo, e Sor Harras irá protegê-la.
— Eu posso me proteger. Tio, eu sou uma lula gigante. Asha, da Casa Greyjoy. — Se pôs sobre os pés. — É a cadeira do meu pai que quero, não a sua. As foices são tão perigosas. Uma pode cair e cortar minha cabeça. Não, eu vou sentar na Cadeira de Pedra do Mar.
— Então você é apenas um outro corvo, procurando por carniça. — Rodrik — sentou-se novamente atrás de sua mesa. — Vá. Gostaria de saber do Arquimeistre Marwyn sobre sua pesquisa.
— Não deixe de me avisar se ele encontrar outra página. — Seu tio era seu tio. Ele nunca iria mudar. Mas ele irá para Velha Wyk, não importa o que disser.
Sua tripulaçao deveria estar comendo no salão. Asha sabia que tinha que se juntar a eles, para lhes falar da Assembleia em Velha Wyk, e o que isso significava para eles. Seus homens a seguiriam sem vacilar, mas ela precisaria de outros, como seus primos Harlaw, os Volmark, e os Stonetree. Esses são os que preciso ganhar. Sua vitória em Bosque Profundo lhe seria muito útil, uma vez que os seus homens começassem a fanfarrear, como ela sabia que eles fariam. A tripulação de seu Vento Negro tinha um orgulho perverso das ações de seu capitão mulher. Metade deles a amava como uma filha, e a outra metade queria abrir suas pernas, mas de qualquer jeito morreriam por ela. E eu por eles, ela ia pensanso enquanto passava pela porta dos fundos, saindo para o quintal, sob o luar.
— Asha? — Uma sombra saiu de trás do poço.
Sua mão foi de uma vez a bainha, onde estava seu punhal... a luz da lua transformou a forma escura em um homem com um casaco de pele de foca. Outro fantasma.
— Tris. Eu pensei que te encontraria no salão.
— Eu queria ver você.
— Que parte de mim, eu me pergunto? — Ela sorriu. — Bem, aqui estou, todos crescemos. Olhe tudo o que você gosta.
— Uma mulher. — Ele se aproximou. — E bonita.
Tristifer Botley havia engordado desde a última vez que tinha visto ele, mas ele tinha o mesmo cabelo rebelde de que ela se lembrava, e os olhos tão grandes e confiantes como os de um foca. Olhos doces, de verdade. Esse é o problema do pobre Tristifer, ele é demasiado doce para um homem das Ilhas de Ferro. Seu rosto cresceu formasamente, pensou ela. Quando menino, Tris sempre sofrera uma aflição com espinhas. Asha tinha sofrido a mesma aflição, talvez fosse isso o que os tinha juntado.
— Fiquei triste quando ouvi sobre seu pai — disse ela.
— E eu sinto pelo seu.
Por quê? Asha quase perguntou. Foi Balon quem tinha enviado o garoto para longe de Pyke, para ser um pupilo de Baelor Blacktyde.
— É verdade que você agora é Lorde Botley?
— Pelo menos no nome. Harren morreu em Fosso Cailin. Um dos demônios do pântano atirou nele uma flecha envenenada. Mas eu não sou o senhor de nada. Quando meu pai negou sua reivindicação a Cadeira de Pedra do Mar, Olho de Corvo o afogou e fez com que meus tios lhe jurassem fidelidade. Depois ele deu a metade das terras de meu pai para o Bosque de Ferro. O Senhor Wynch foi o primeiro homem a dobrar os joelhos e a chamá-lo rei.
A Casa Wynch era forte em Pyke, mas Asha tomou cuidado para não deixar ele perceber sua frustração.
— Wynch não teve a coragem de seu pai.
— Seu tio os comprou, — Tris disse. — O Silêncio retornou com porões cheios de tesouros. Prata e pérolas, esmeraldas e rubis, safiras grandes como ovos, sacos de moedas que de tão pesados ninguém pode tirálos... Olho de Corvo tem comprados muitos amigos. Meu tio Germund chama a si mesmo de Lorde Botley agora, e governa em Fidalporto como homem de seu tio.
— Você é o legítimo Lorde Botley — ela assegurou-lhe. — Depois que eu tomar a Cadeira de Pedra, as terras de seu pai lhe serão restituídas.
— Se você quiser. São inúteis para mim. Você é tão adorável ao luar, Asha. Uma mulher adulta agora, mas eu me lembro de quando você era uma garota magra, com o rosto cheio de espinhas.
Por que eles sempre mencionam as espinhas? 
— Eu também me lembro bem. — Ainda que não tão carinhosamente como você. Dos cinco meninos que sua mãe trouxera para Pyke quando Ned Stark levara seu único filho para viver como refém, Tris fora o mais próximo de Asha em idade. Ele não foi o primeiro menino que ela beijou, mas foi o primeiro a desfazer os laços de seu gibão e deslizar a mão suada por debaixo para sentir seus seios brotando.
Eu teria deixado ele sentir mais se tivesse sido ousado o suficiente. Sua primeira floração tinha vindo durante a guerra e despertado seu desejo, mas mesmo antes disso Asha já estava curiosa. Ele estava lá, era da minha idade, e estava disposto, e aconteceu o que aconteceu... isso, e o sangue da lua. Mesmo assim, ela o chamou de amor, até Tris começar a falar das crianças que eles teriam, pelo menos uma dúzia de filhos, pelo menos, e oh, algumas filhas também.
— Eu não quero ter uma dúzia de filhos — ela dissera a ele, horrorizada. — Eu quero ter aventuras. — Pouco tempo depois, Meistre Qalen os pegou em sua brincadeira, e o jovem Tristifer Botley foi mandado ao Vento Negro.
— Eu te escrevi cartas — disse ele — mas Meistre Joseran não quis as enviar. Uma vez eu dei um veado para um remador de um navio comerciante com destino a Fidalporto, que prometeu colocar a minha carta em suas mãos.
O remador jogou a sua carta no mar.
— Eu temia isso. Eles nunca me deram suas cartas também.
Eu não escrevi nenhuma. Na verdade, ela tinha se aliviado quando Tris fora mandado embora. Até então, sua estranheza tinha começado a aborrecê-la. Não era algo que ele gostaria ouvir, claro.
— Aeron, o Cabelo-molhado convocou uma assembleia de homens livres. Você irá falar por mim?
— Eu irei a qualquer lugar com você, mas... Lorde Blacktyde disse que isso é uma loucura, uma assembleia de homens livres é perigosa. Ele acha que seu tio descerá sobre eles e matará a todos, como Urron fez.
Ele é louco o suficiente. 
— Ele não tem a força.
— Você não sabe a sua força. Ele está reunindo homens em Pyke. Orkwood de Montrasgo lhe trouxe vinte dracares, Jon Myre, o Cara-pintada, uma dúzia. Lucas Codd, o Canhoto, está com eles. E Harren, o bastardo Hoare, o Remador Vermelho, Kemmett Pyke, o Bastardo, Rodrik Freeborn, Torwold Browntooth...
— Homens de pouca importância. — Asha conhecia cada um. — Filhos de mulheres de sal, netos de escravos. Os Codd... você conhece o lema deles?
— Ainda que todos os homens nos desprezem — Disse Tris. — Mas se eles pegarem você nessas redes, você será tão morta como se fossem os Senhores Dragões. E não há pior. Olho de Corvo trouxe de volta os monstros do leste... sim, e feiticeiros também.
— O tio sempre teve uma predileção por monstros e loucos — disse Asha. — Meu pai costumava brigar com ele por isso. Deixe os feiticeiros chamarem pelos seus deues. Cabelo-molhado chamará o nosso, e irá afogalos. Contarei com você na assembleia de mulheres livres, Tris?
— Você terá tudo de mim. Eu sou seu homem, para sempre. Asha, gostaria de me casar com você. A senhora sua mãe deu o seu consentimento.
Ela abafou um gemido. Você devia ter me perguntado antes... embora você não fosse gostar tanto da resposta.
— Eu não sou um segundo filho agora — continuou. — Eu sou o legítimo Lorde Botley, como você mesmo disse. E você é...
— O que eu sou vai ser determinado em Velha Wyk. Tris, não somos mais crianças desajeitadas que ficam tentando ver o que encaixa com o que. Você acha que quer casar comigo, mas você não quer.
— Quero sim. Tudo o que eu sonho é sobre você. Asha, eu juro sobre os ossos de Nagga, eu nunca toquei outra mulher.
"Vá tocar uma... ou duas, ou dez. Eu tenho tocado mais homens do que posso contar. Alguns com meus lábios, a maioria com o meu machado. — Ela tinha entregado a sua virgindade aos dezesseis anos, a um marinheiro loiro e bonito em uma cozinha comercial em Lys. Ele só sabia seis palavras da língua comum, mas "foder" era um deles, e era a que ela mais desejava ouvir. Depois, Asha teve o bom senso de procurar uma bruxa dos bosques, que lhe mostrou como preparar o chá da lua, para manter sua barriga plana.
Botley piscou, como se não entendesse muito bem o que ela tinha dito.
— Você... Eu pensei que você esperaria. Por que... — Ele esfregou a boca. — Asha, você foi forçada?
— Sim, fui obrigada a rasgar sua túnica. Você não quer se casar comigo, tem a minha palavra quanto a isso. Você é um menino doce e sempre foi, mas eu não sou uma menina doce. Se nos casarmos, em breve você virá a me odiar.
— Nunca. Asha, tenho sofrido tanto por você.
Ela já tinha escutado o bastante. Uma mãe doente, um pai assassinado e uma praga de tios eram mais do que qualquer mulher podia lidar, só faltava um filhote doente de amor.
— Encontre um bordel, Tris. Ali te curarão do sofrimento.
— Eu nunca poderia... — Tristifer balançou a cabeça. — Você e eu fomos feitos um para o outro, Asha. Eu sempre soube que você seria minha esposa, e mãe de meus filhos. — Ele agarrou seu braço.
Em um piscar de olhos o punhal dela estava em sua garganta. 
Me solte, ou você não vai viver tempo suficiente para produzir um filho. Agora. — Quando ele soltou, ela baixou a lâmina. — Você quer uma mulher, muito bem. Eu vou colocar uma na sua cama hoje à noite. Finja que sou eu, se isso lhe der prazer, mas não presuma me agarrar novamente. Eu sou sua rainha, não sua esposa. Lembre-se disso. — Asha embainhou seu punhal e deixou-o ali, com uma gota de sangue rastejando lentamente pelo pescoço, preto na luz pálida da lua.
 
Oh, espero que os Sete não permitam que chova no casamento do rei — disse Jocelyn Swyft enquanto atava o vestido da rainha. 
— Ninguém quer chuva — disse Cersei. Para si mesma, intimamente ela queria granizo e gelo, ventos uivantes, trovões que estremecessem as pedras da Fortaleza Vermelha. Ela queria uma tempestade que combinasse com sua fúria. Ela disse a Jocelyn:
— Mais apertada. Aperte mais as cilhas, sua tolinha sorridente.  
Era o casamento que a enfurecia, embora a burrinha da garota Swyft fosse um alvo mais seguro. A posse do Trono de Ferro para Tommen ainda não estava assegurada suficientemente para arriscar uma ofensa a Jardim de Cima. Não enquanto Stannis Baratheon mantivesse Pedra do Dragão e Ponta Tempestade, enquanto Correrio ainda continuasse se rebelando, enquanto os homens de ferro rondassem os mares como lobos. Então Jocelyn precisava comer do prato que Cersei tinha servido mais cedo a Margaery Tyrell e a sua hedionda e enrugada avó. 
Para quebrar o jejum da rainha foi enviado das cozinhas dois ovos cozidos, uma broa de pão e um jarro de mel. Mas quando ela quebrou o primeiro ovo e encontrou um pintinho semi-formado dentro, seu estomago se agitou:
— Leve isto embora e me traga um vinho aromatizado quente, disse a Senelle. O frio que pairava no ar impregnava em seus ossos, e ela tinha um longo e horrível dia para encarar.   
Nem Jaime ajudou a melhorar seu humor quando ele apareceu todo de branco e ainda com a barba por fazer para contar a ela como ele pretendia proteger seu filho de ser envenenado:
— Eu colocarei alguns homens nas cozinhas vigiando cada prato que será preparado — disse ele. — Os mantos dourados de Sor Addam irão escoltar os serviçais enquanto eles trazem a comida para a mesa, para ter certeza que nada seja acrescentado no percurso. Sor Boros irá provar de cada prato antes que Tommen morda qualquer coisa. E se tudo isso falhar, Meistre Ballabar ficará posicionado no fundo do salão com expurgos e antídotos para vinte tipos de veneno comum. Tommen ficará seguro, eu prometo. 
— Seguro. — A palavra veio amarga em sua boca. Jaime não entendia. Ninguém entendia. Somente Melara esteve na tenda para ouvir os resmungos ameaçadores da velha feiticeira, e Melara estava morta há muito tempo. 
— Tyrion não matará da mesma maneira duas vezes. Ele é muito astuto para isso. Ele pode estar embaixo do chão agora mesmo, escutando cada palavra que estamos dizendo e fazendo planos para abrir a garganta de Tommen. 
— Supondo que ele esteja, disse Jaime. — Seja qual o plano que ele traçar, ele ainda será pequeno e atrofiado. Tommen estará rodeado pelos melhores cavaleiros de Westeros. A guarda real o protegerá. 
Cersei olhou onde a manga da túnica de seda branca de seu irmão estava pregada sobre o cotovelo.
— Eu lembro como eles protegeram Joffrey tão bem, estes seus esplendidos cavaleiros. Quero que você fique com Tommen a noite toda, entendeu? 
— Eu colocarei um oficial de guarda do lado de fora de sua porta. 
Ela pegou seu braço
— Não quero um oficial de guarda. Você. E dentro de seu quarto. 
— Caso Tyrion venha pela lareira? Ele não fará isto.  
— Assim diz você. Você por acaso encontrou todos os túneis secretos destas paredes? Ambos conheciam bem. Eu não deixarei Tommen sozinho com Margaery, não mais do que meio segundo. 
— Eles não ficarão sozinhos. As primas dela estarão com eles. 
— Assim como você. Eu ordeno, em nome do rei.
Na verdade Cersei não queria que Tommen e sua esposa dividissem uma cama, mas os Tyrells insistiram. Marido e mulher devem dormir juntos, a Rainha dos Espinhos tinha dito. Mesmo que não façam nada mais além disso. A cama de Vossa Graça é suficiente para dois, com certeza, Senhora Alerie fez coro com sua sogra. Deixem que as crianças aqueçam uma a outra durante a noite. Isto aproximará os dois. Margaery com frequência dividia o cobertor com suas primas. Elas cantam, brincam e compartilham segredos entre elas quando os candelabros são apagados.
— Que interessante. Cersei tinha respondido. Deixem que continuem, de qualquer maneira. Na Arcada das donzelas.  
— Eu tenho certeza que Vossa Graça sabe muito bem — Senhora Ollena disse à Senhora Alerie. — Afinal, ela é a mãe do menino, nisso nós todos temos certeza. E claro que nós podemos concordar a respeito da noite do casamento? Um homem não pode dormir separado de sua esposa na noite do casamento. É má sorte para o casamento deles se eles fizerem isso. 
— Qualquer dia eu irei ensiná-la o significado de ‘‘má sorte’’ — a rainha tinha prometido. Margaery poderia dividir o quarto com Tommen está noite, ela foi forçada a dizer. Não mais que isto.
— Vossa Graça é tão graciosa — a Rainha dos Espinhos respondeu, e todos trocaram sorrisos. Os dedos de Cersei estavam furando os braços de Jaime forte o suficiente para deixar marcas. 
— Eu preciso de olhos dentro daquele quarto — a Rainha disse.
— Para ver o que? — Disse Jaime. — Não pode haver perigo na consumação. Tommen é muito jovem.  
— E Ossifer Plumm estava morto demais, mas isto não o impediu de ter um filho, ou impediu? 
Seu irmão parecia perdido
— Quem foi Ossifer Plumm? Ele era o pai de Lord Philip, ou... Quem? 
Jaime era quase tão ignorante como Robert. Toda sua inteligência estava em sua espada. 
— Esqueça Plumm, apenas lembre-se do que eu te disse. Jure que você ficará ao lado de Tommen até o nascer do sol.
— Como você ordenar — ele respondeu — como se seus medos fossem irracionais. Você ainda quer prosseguir com o plano de queimar a Torre da Mão? 
— Depois do banquete. — Era a única parte das festividades do dia que Cersei achava que a divertiria. — O senhor nosso pai foi assassinado naquela torre. Não posso suportar olhar para ela. Se os deuses são bons, o fogo queimará alguns ratos do cascalho.
Jaime virou os olhos:
— Você quer dizer Tyrion. 
— Ele, Lorde Varys, e este carcereiro. 
— Se algum deles estivesse escondido na torre, nós os teríamos encontrado. Eu enviei um pequeno exército para lá com picaretas e martelos.
Nós quebramos as paredes e abrimos o chão e localizamos umas quinhentas passagens.
— E pelo que você deve saber deve existir mais quinhentas passagens secretas
Alguma das passagens de rastejar soube-se que eram tão pequenas que Jaime precisou de escudeiros e cavalariços para explorá-las. Uma passagem para as masmorras foi descoberta e um poço de pedra que parecia não ter fundo. Eles encontraram uma câmara cheia de crânios e ossos amarelados, e quatro sacas de moedas de prata manchadas da época do reinado do rei Viserys. Eles encontraram um monte de ratos também... Mas nem Tyrion e nem Varys estavam por lá, e Jaime finalmente insistiu que as buscas deveriam ser interrompidas.   
Um dos meninos tinha ficado entalado em uma passagem estreita e teve que ser puxado pelos pés, guinchando. Outro caiu de um mastro e quebrou as pernas. E dois guardas desapareceram enquanto exploravam um túnel lateral. Alguns dos outros guardas juravam que eles podiam ouvi-los chamando fracamente através das pedras, mas quando os homens de Jaime derrubaram a parede eles encontraram apenas terra e cascalho do outro lado.
— O Duende é pequeno e astuto — disse Cersei. Ele ainda deve estar pelas paredes. Se ele estiver, o fogo irá carbonizá-lo.  
— Mesmo se Tyrion estivesse ainda escondido no castelo, ele não estará na Torre da Mão — disse Jaime. — Nós a reduzimos a escombros.
— Nós poderíamos fazer o mesmo com o resto deste maldito castelo — disse Cersei. — Depois da guerra eu pretendo construir um novo palácio além do rio. 
Cersei tinha sonhado com isto a duas noites atrás, um magnífico castelo branco cercado de bosques e jardins, muitas léguas do fedor e barulho de Porto Real
— Esta cidade é uma fossa. Por meia moeda eu mudaria a corte para Lannisporto e comandaria o reino de Rochedo Casterly. 
— Isto seria uma loucura ainda maior do que incendiar a Torre da Mão. Enquanto Tommen se sentar no Trono de Ferro, o reino o verá como o verdadeiro rei. Esconda-o em Rochedo ele se tornará apenas outro pedinte pelo trono, não será diferente de Stannis.
— Eu sei disto, a rainha respondeu bruscamente. Eu disse que eu queria mudar a corte para Lannisporto, não que eu vou fazer isto. Você sempre foi lento assim, ou perder uma mão deixou você mais devagar?
Jaime ignorou o comentário.
— Se as chamas se espalharem além da torre, você acabará incendiando o castelo querendo ou não. Fogo descontrolado é traiçoeiro. 
— Lorde Hallyne me assegurou que seus piromânticos podem controlar o fogo. — a Guilda dos Alquimistas vinha fabricando fogovivo por uma quinzena. — Deixe que todos em Porto Real vejam as chamas. Será uma lição para nossos inimigos. 
— Agora você está parecendo Aerys. 
As narinas dela dilataram.
— Controle esta língua, sor. 
— Eu também te amo, minha querida irmã.
Como eu posso ter amado esta criatura miserável? Ela se perguntou depois que ele se foi. Ele era seu gêmeo, sua sombra, sua outra metade, outra voz sussurrou. Uma vez talvez, ela pensou. Não mais. Ele se tornou um estranho para mim.
Comparado à magnitude do casamento de Joffrey, o casamento do Rei Tommen era bem simples, e pequeno. Ninguém queria outro casamento caro, menos ainda a rainha, e mais ninguém queria pagar por um, muito menos os Tyrells. Então o jovem rei escolheu Margaery Tyrell para ser sua esposa no septo real da Fortaleza Vermelha, com menos de cem convidados assistindo no lugar dos milhares que assistiram a cerimônia de seu irmão casando com a mesma mulher. 
A noiva era clara, alegre e bela, o noivo tinha cara de criança e era roliço. Ele recitou os votos em uma voz alta e infantil, prometendo seu amor e devoção à duplamente viúva, filha de Mace Tyrell. Margaery usou o mesmo vestido que usou ao casar com Joffrey, uma confecção arejada de seda de marfim puro, laço de Myr e sementes de pérolas. Cersei ainda estava de preto, como sinal de luto por seu falecido primogênito. Sua viúva poderia estar contente para rir e beber e dançar e esquecer completamente de Joff, mas sua mãe jamais o esqueceria tão facilmente. Isto está errado, ela pensou. É muito cedo. Um ano, dois anos, teria sido tempo suficiente. Jardim de Cima deveria ficar satisfeito com um noivado. Cersei olhou para trás para onde Mace Tyrell estava parado entre sua esposa e sua mãe. Você me forçou a este casamento bizarro meu senhor, e eu não me esquecerei. 
Quando chegou a hora de trocar as capas, a noiva ajoelhou graciosamente e Tommen a cobriu com um enorme e pesado tecido dourado que Robert tinha envolvido uma vez Cersei no dia do casamento deles, com o veado coroado de Baratheon trabalhado na parte de trás com contas de ônix. Cersei queria que ela usasse a capa vermelha de seda fina que Joffrey usou.
— Foi a capa que o senhor meu pai usou quando casou com a senhora minha mãe, ela explicou aos Tyrell, mas a Rainha de Espinhos recusou isto a ela também.
— Essa velharia? — A velha disse. Parece-me um pouco gasto... E eu ousaria dizer, azarado? E não seria um veado mais próprio a um filho legitimo do Rei Robert? No meu tempo, uma noiva se vestia com as cores de seu marido, não com as da senhora sua mãe. 
Graças a Stannis e sua maldita carta, já corriam muitos boatos a respeito da paternidade de Tommen. Cersei não ousou atiçar o fogo insistindo que ele vestisse sua noiva no carmesim dos Lannister, então ela aceitou o mais amistosamente que pode. Mas a visão de todo aquele dourado e ônix ainda enchia ela de ressentimento. Quanto mais damos a estes Tyrells, mais eles exigem de nós.
Quando todos os votos foram feitos, o rei e sua nova rainha foram para fora do septo para receber os cumprimentos. 
— Westeros tem duas rainhas agora, e a mais nova tão bonita quanto a mais velha — disse Lyle Crakehall , um cavaleiro imbecil que sempre fazia Cersei se lembrar de seu falecido e lastimável marido. Ela poderia ter lhe dado um tapa. Gyles Rosby tentou beijar sua mão, e só conseguiu tossir em seus dedos. Lorde Redwyne beijou-a na bochecha e Mace Tyrell em ambas as bochechas. O Grande Meistre Pycelle disse a Cersei que ela não perdeu um filho, tinha ganhado uma filha. Pelo menos ela foi poupada dos abraços lacrimosos da Senhora Tanda. Nenhuma das mulheres dos Stokeworth apareceu, e por aquilo a rainha estava grata.
Entre os últimos estava Kevan Lannister:
— Eu sei que você pretende nos deixar por outro casamento — a rainha disse a ele.
— Hardstone retirou os homens feridos do Castelo de Darry — ele respondeu. — A noiva de Lancel nos aguarda. 
— A senhora sua esposa irá com você à cerimônia?
— As terras fluviais ainda estão muito perigosas. A corja de Vargo Hoat ainda está por lá, e Beric Dondarrion está enforcando os Frey. É verdade que Sandor Clegane se juntou a ele? 
Como ele sabe disso?
— Existem boatos. Os relatos são confusos. — O pássaro tinha vindo na noite passada, de um septo de uma ilha próximo da boca do Tridente. A próxima cidade das Salinas havia sido saqueada brutalmente por um bando de foragidos, e alguns dos sobreviventes disseram que um bruto atroador com um elmo de cão na cabeça estava entre os saqueadores. Supostamente ele havia matado uma dúzia de homens e violentado uma garota de doze anos. 
— Sem duvida Lancel ficará ansioso em caçar Clegane e Lord Barric, para restaurar a paz do rei às terras do rio.   
Sor Kevan olhou em seus olhos por um momento: 
— Meu filho não é o homem ideal para lidar com Sandor Clegane.
Nisso concordamos nisto pelo menos, pensou a rainha.
— Seu pai deve ser. 
A boca do seu tio cresceu muito: 
— Se meus serviços não são mais necessários em Rochedo... 
Seus serviços eram necessários aqui. Cersei nomeara seu primo, Damion Lannister, como seu castelão em Rochedo, e outro primo, Sor Daven Lannister, o Protetor do Oeste. 
— Insolência tem o seu preço, tio. Traga-nos a cabeça de Sandor, e eu sei que Vossa Graça ficará grato. Joff podia gostar do homem, mas Tommen sempre teve medo dele... Com boa razão, pelo que parece. 
— Quando um cão fica mau, a culpa é de seu dono — Sor Kevan disse. 
Então ele se virou e partiu. Jaime a escoltou até o Pequeno Salão, onde o banquete estava acontecendo.
— Eu o culpo por tudo isso — Cersei sussurrou enquanto eles andavam. — Deixe que eles casem você disse. Margaery deveria estar de luto por Joffrey, não casando com seu irmão. Ela deveria estar doente de dor assim como eu estou. Eu não acredito que ela seja uma criada. Renly tinha um cozinheiro, não tinha? Ele era irmão de Robert, claro que ele tinha um cozinheiro. Se aquela velha nojenta pensa que eu vou permitir que meu filho...
— Você se livrará de Senhora Olenna logo — Jaime a interrompeu baixinho. — Ela voltará para Jardim de Cima amanhã. 
— Assim ela diz. — Cersei não confiava em nenhuma promessa de um Tyrell. 
— Ela está partindo — ele insistiu. — Mace está levando metade das forças dos Tyrell para Ponta Tempestade e a outra metade está indo para a Campina para fazer a sua reivindicação a Águas Claras. Alguns dias mais, e as únicas rosas que sobraram em Porto Real será Margaery e suas damas e alguns guardas.  
— E Sor Loras. Ou vocês esqueceu-se de seu irmão juramentado? 
— Sor Loras é um cavaleiro da Guarda Real. 
— Sor Loras é tão Tyrell que sua urina é cor de rosa. Ele nunca deveria ter sido presenteado com um manto branco. 
— Ele não teria sido minha escolha, eu te asseguro. Ninguém se incomodou em me consultar. Loras se sairá bem, eu acho. Uma vez que um homem veste o manto branco, ele o muda. 
— Certamente mudou você, e não para melhor. 
— Também te amo, querida irmã. — Ele segurou a porta para ela, e a conduziu a mesa alta e ao seu assento, ao lado do rei. Margaery estava do outro lado de Tommen, no lugar de honra. Quando ela entrou, de braços dados com o pequeno rei, ela parou para beijar Cersei nas bochechas e abraçá-la.
— Vossa Graça — disse a menina, vigorosa como latão polido. — Eu me sinto como se tivesse uma segunda mãe afora. Eu rezo para que sejamos bem próximas, unidas pelo amor que sentimos pelo seu querido filho.
— Eu amava meus dois filhos. 
— Joffrey também está em minhas orações — disse Margaery. — Eu o amei profundamente, embora não tive a chance de conhecê-lo. 
Mentirosa, pensou a rainha. Se você o tivesse amado mesmo que por um instante, você não teria tanta pressa para casar com seu irmão. Sua coroa é tudo o que você quer. Por meia moeda ela teria estapeado a noiva corada bem ali em seu trono, na frente de metade da corte. 
Como o que foi servido, o banquete do casamento foi modesto. A Senhora Alerie tinha feito todos os preparos; Cersei não teve estômago de encarar aquela tarefa assustadora de novo depois do ocorrido no casamento de Joffrey. Somente sete pratos foram servidos. Bossas-de-manteiga e o Rapaz Lua entretinham os convidados entre os pratos, e músicos tocavam enquanto comiam. Eles escutaram os flautistas e os violinistas, um alaúde, uma flauta e uma harpa alta. O único cantor era um favorito da Senhora Margaery, um arrojado e empolgado jovem vestido em tons de azul que se proclamava Poeta Azul. Ele cantou algumas canções românticas e se retirou. 
— Que desapontamento, — a Senhora Ollena reclamou em voz alta. Eu estava ansiosa para ouvir ‘As Chuvas de Castamere’.
Qualquer fosse momento que Cersei olhasse para a velha, o rosto de Maggy, a Sapa, ficava flutuando diante de seus olhos, enrugada, terrível e sábia. Todas as mulheres idosas se parecem, ela tentou dizer a si mesma, isto é tudo. Na verdade, a feiticeira corcunda em nada se parecia nada com a Rainha dos Espinhos, ainda que de alguma maneira a vista do sorriso provocador da Senhora Ollena fosse o suficiente para levá-la novamente a tenda de Maggy. Ela ainda se lembrava do cheiro daquele lugar, impregnado de estranhas especiarias orientais, e a maciez da gengiva de Maggy enquanto ela sugava o sangue do dedo de Cersei. Rainha você pode ser, a velha mulher prometera, com seus lábios ainda úmidos, vermelhos e brilhantes, até que chegue outra, mais jovem e mais bela, para te derrubar e tomar seu lugar, minha querida. 
Cersei olhou para além de Tommen, para onde Margaery estava sentada, rindo com seu pai. Ela é bonita o suficiente, ela teve que admitir, mas a maior parte disto é a juventude. Até garotas plebéias são bonitas em certa idade, enquanto ainda jovens, inocentes e conservadas, e a maioria delas tem os mesmo cabelos e olhos castanhos dela. Somente um tolo diria que ela é mais bela que eu. Entretanto, o mundo estava cheio de tolos. A corte de seu filho também era. Seu humor não melhorou quando Mace Tyrell apareceu para propor o brinde. Ele levantou alto uma taça de ouro, sorriu para sua linda filhinha, e em voz alta disse:
— Ao rei e a rainha! As outras ovelhas repetiram com ele: ‘Ao rei e a rainha’ eles gritavam, entrechocando seus copos. ‘Ao rei e a rainha’ Ela não teve escolha senão beber junto com eles, a todo o momento desejando que os convidados tivessem apenas um rosto, então ela poderia jogar seu vinho em seus olhos e lembrá-los que ela era a verdadeira rainha. O único bajulador dos Tyrell que parecia se lembrar dela era Paxter Redwyne, que levantou a taça e surgiu e fez seu próprio brinde, balançando suavemente.
— Para ambas nossas rainhas, ele gorjeou. Para a jovem rainha e para a velha. 
Cersei bebeu várias taças de vinho e empurrou sua comida pelo prato de ouro. Jaime comeu menos ainda, e raramente se dignou a ocupar seu lugar no estrado. Ele está tão ansioso como eu, a rainha percebeu enquanto o observava perambulando pelo salão, virando as tapeçarias com sua mão boa para se assegurar que ninguém estava escondido atrás delas. Havia lanceiros Lannister envolta do edifício, ela sabia. Sor Osmund Kettleblack guardava uma porta, Sor Meryn Trant a outra. Balon Swann ficava atrás da cadeira do rei, Loras Tyrell atrás da cadeira da rainha. Nenhuma espada era permitida dentro do banquete menos as que os homens de manto branco usavam.  
Meu filho está seguro, Cersei disse a si mesma. Nenhum mal pode acontecer a ele, não agora. Ainda assim, toda vez que ela olhava para Tommen, ela via Joffrey segurando sua garganta. E quando o menino começou a tossir o coração da rainha parava de bater por um momento. Ela derrubou uma serviçal em sua tentativa de se aproximar dele.
— Foi só um vinhozinho que desceu errado — Margaery Tyrell assegurou-a, sorrindo. Ela segurou a mão de Tommen nas dela e beijou seus dedos 
— Meu amorzinho precisa tomar goles menores.  Viu, você quase matou de susto a senhora sua mãe.
— Me desculpe Mãe — Tommen disse, envergonhado. 
Era mais do que Cersei podia aguentar. Eu não posso deixá-los me ver chorando, ela pensou, quando sentiu as lágrimas nascendo em seus olhos. Ela passou por Sor Meryn Trant e saiu pela porta dos fundos. Sozinha embaixo de um castiçal seboso, ela se permitiu dar um soluço estremecido, e depois outro. Uma mulher pode chorar, mas não uma rainha.
— Vossa Graça, disse uma voz atrás dela. Posso me intrometer? 
Era uma voz de mulher, com o sotaque delicioso do leste. Por um momento ela temeu que Maggy, a Sapa, estivesse falando com ela de seu túmulo. Mas era apenas a esposa de Merryweather, a beleza tonta com a qual Lorde Orton tinha se casado durante seu exílio e foi para casa com ele para Mesalonga.
— O Pequeno Salão está muito cheio — Cersei ouviu-se dizendo. — A fumaça fez meus olhos lacrimejarem.
— Os meus também, Vossa Graça. 
Senhora Merryweather era tão alta quanto à rainha, mas era morena e não loira. Cabelos de corvo e pele oleosa e mais jovem por uma década. Ela ofereceu a rainha um lenço azul claro de seda e renda.
— Eu também tenho um filho, eu sei que eu também irei derramar rios de lágrimas no dia do seu casamento. 
Cersei enxugou as bochechas, furiosa que suas lágrimas tinham sido vistas:
— Meus agradecimentos, disse rigidamente.
— Vossa Graça, eu... A mulher de Myr abaixou mais a sua voz. Há uma coisa que você deve saber. Sua dama é comprada e paga para isto. Ela conta para a Senhora Margaery tudo o que a senhora faz.
— Senelle? — Uma repentina contração de fúria na barriga da rainha. Não havia ninguém em quem pudesse confiar? — Você tem certeza disso? 
— Mandei que a seguissem, Margaery nunca se encontra com ela de maneira particular. Suas primas são seus corvos, elas trazem mensagens para ela. Algumas vezes é Elinor, algumas vezes Alla, algumas vezes Megga. Todas elas são próximas de Margaery como irmãs. Elas se encontram no septo e fingem que rezam. Coloque seu próprio homem no balcão na manhã seguinte, e ele verá Senelle sussurrando para Megga embaixo do altar da Donzela.
— Se isto for verdade, por que me contou? Você é uma das companheiras de Margaery. Por que você a trairia? 
Cersei tinha aprendido a desconfiar no colo de seu pai; podia ser uma armadilha, uma mentira para causar discórdia entre o leão e a rosa.
— Mesalonga pode ser juramentada a Jardim de Cima — a mulher respondeu, sacudindo seus cabelos negros. — Mas eu sou de Myr, e minha lealdade é para com meu marido e meu filho. Eu quero o melhor para eles. 
— Entendi. — Com a aproximação, a rainha podia sentir o perfume da outra mulher, uma essência almiscarada que parecia ser musgo, terra e flor selvagem. Embaixo disso ela cheirou ambição. Ela tinha dado um depoimento no julgamento de Tyrion. Cersei se lembrou de repente. Ela viu o Duende colocando o veneno na taça de Joff e não teve medo de dizer.
— Eu posso investigar isso, ela prometeu.  Se o que diz é verdade, você será recompensada. E se for mentira, eu cortarei sua língua, e as terras e o ouro do senhor seu marido também.   
— Vossa Graça é gentil e linda. —A Senhora Merryweather sorriu. Seus dentes eram brancos, seus lábios grandes e escuros. Quando a rainha voltou para o Pequeno Salão, ela encontrou seu irmão andando impacientemente 
— Foi apenas um gole de vinho que desceu errado. Apesar de ter me assustado também. 
— Minha barriga está um nó que eu não posso comer, ela o dardejou. O vinho tem gosto de bile. Este casamento foi um erro. 
— Este casamento foi necessário. O garoto está a salvo.
— Tolo. Ninguém que usa uma coroa está a salvo. — Ela olhou pelo salão. Mace Tyrell ria entre seus cavaleiros. Lorde Redwyne e Rowan conversavam furtivamente. Sor Kevan se sentou aninhando seu vinho no fundo do salão, enquanto Lancel sussurrava alguma coisa ao septão. Senelle se movia pela mesa, enchendo as taças das primas da rainha com vinho vermelho como sangue. O Grande Meistre Pycelle adormeceu. Não há ninguém que eu possa confiar, nem mesmo em Jaime, ela percebeu sombriamente, eu terei que mudar todos eles e cercar o rei com minha própria gente.  
Mais tarde, depois que os doces, as nozes e o queijo foram servidos e retirados. Margaery e Tommen começaram a dançar, parecendo um pouco menos que ridículos enquanto giravam pelo chão. A garota Tyrell ficava uns bons centímetros mais alta que seu pequeno marido, e Tommen era um dançarino desajeitado, gentilmente dizendo, com nada da graciosidade de Joffrey. Ele deu o seu melhor, apesar de tudo, e parecia obvio para os espectadores que ele estava se esforçando ao máximo. Então não demorou muito para as primas da Senhora Margaery entrarem, uma depois da outra, insistindo que Vossa Graça tinha que dançar com todas elas. Elas o terão tropeçando e se embaralhando como um tolo até elas dançarem com ele, Cersei pensou ressentida enquanto ela assistia. Metade da corte estará rindo pelas costas dele.  
Enquanto Alla, Elinor e Megga tiveram suas vezes com Tommen, Margaery dançou com seu pai, e outra com seu irmão Loras. O Cavaleiro das Flores estava em seda branca, com um sinto de rosas douradas em sua cintura e uma rosa de jade apertando sua capa. Eles poderiam ser gêmeos, Cersei pensou enquanto os observava. Sor Loras era um ano mais velho que sua irmã, mas eles tinham os mesmos olhos castanhos, o mesmo cabelo grosso castanho caindo em cachos em seus ombros, a mesma pele suave e sem defeitos. Uma pústula amadurecida poderia ensiná-los alguma humildade. Loras era mais alto e tinha uma penugem marrom no rosto, e Margaery tinha a forma de uma mulher, mas fora isto eles eram bem parecidos quanto ela e Jaime. Isto a incomodava também. 
Seu próprio gêmeo interrompeu seu devaneio:
— Vossa Graça poderia dar a honra de dançar com seu cavaleiro branco? 
Ela lhe lançou um olhar fulminante:
— E você me dará este toco? Não. Eu o deixarei encher minha taça de vinho. Se você acha que pode fazê-lo sem derramar. 
— Um aleijado como eu? Não mesmo. — Ele se afastou e fez outro circuito pelo salão. Ela teve que encher sua própria taça. 
Cersei recusou Mace Tyrell também, e depois Lancel. Os outros entenderam o aviso, e ninguém mais se aproximou dela. Nossos amigos velozes e leais senhores. Ela não podia nem mesmo confiar nos homens do oeste, nos cavaleiros juramentados do seu pai e seus vassalos. Não se o seu próprio tio estava conspirando com seus inimigos...
Margaery estava dançando com sua prima Alla, Megga com Sor Tallad, o Alto. A outra prima, Elinor, estava compartilhando uma taça de vinho com o jovem e bonito bastardo de Driftmark, Aurane Waters. Não era a primeira vez que a rainha observava Waters, um jovem magro com olhos verdes acinzentados e cabelos louro prateados. A primeira vez que ela o viu, por meio segundo ela pensou que ele fosse Rhaegar Targaryen retornando das cinzas. É o cabelo, ela disse a si mesma. Ele não tem metade da graciosidade que Rhaegar tinha. A cara dele é muito fina, e ele tem aquela covinha no queixo. Entretanto os Velaryons vieram do antigo povo da Valiria, e alguns deles tinham os mesmos cabelos prateados como os antigos reis dragões. 
Tommen voltou ao seu assento para dar uma mordidela em um bolo de maçã. O lugar de seu tio estava vazio. A rainha finalmente o encontrou em uma quina, conversando intensamente com o filho de Mace Tyrell, Garlan. Do que eles tanto falam? A Campina pode chamar Sor Garlan de valente, mas ela podia confiar nele tanto quanto em Margaery ou Loras. Ela não se esqueceria da moeda de ouro que Qyburn descobriu embaixo de câmara da prisão. Uma mão dourada de Jardim de Cima. E Margaery está me espionando. Quando Senelle apareceu para encher sua taça, a rainha teve que resistir a vontade de pegá-la pela garganta e esganá-la. Não se atreva a sorrir para mim, sua vadia traidorazinha. Você me implorará por perdão antes de eu acabar com você. 
— Eu acho que Sua Graça bebeu muito vinho está noite. Ela escutou seu irmão Jaime falando.
Não, a rainha pensou. Nem todo o vinho do mundo seria o suficiente para me fazer aceitar esse casamento. Ela levantou tão rápido que quase caiu. Jaime segurou-a pelo braço e a estabilizou. Ela se soltou e bateu as palmas. A música parou, as vozes silenciaram 
— Senhoras e senhores, Cersei disse em voz alta. Se vocês fizerem a bondade de vir para fora comigo, nós vamos acender uma vela para celebrar a união de Jardim de Cima e Rochedo Casterly, e uma nova era de paz e abundância para os Sete Reinos.
Escura e abandonada estava a Torre da Mão, com apenas alguns buracos onde as portas de carvalho e as janelas lacradas antes ficavam. Ainda que em ruínas e desfeita, se agigantava sobre o pátio externo. Enquanto os convidados saiam do Pequeno Salão, eles passavam pela sua sombra. Quando Cersei olhou para cima ela viu a ameia embotada consumindo uma lua sangrenta, e matutou por um momento quantas Mãos de reis moraram lá nas três últimas décadas.
A uma centena de metros da torre, ela respirou fundo para impedir que ficasse tonta.
— Lorde Hallyne! Você pode começar. 
Hallyne o piromântico disse:
— Hmmmmmm. — E acenou uma tocha que segurava, e os arqueiros nas muralhas inclinaram seus arcos e mandaram uma dúzia de flechas flamejantes pelos buracos nas janelas. 
A torre subiu com um ‘whoosh’. Em meio segundo o interior estava cheio de luz, vermelha, amarela, laranja... e verde, e verde escuro sinistro, a cor do bílis, jade e mijo de piromântico. ‘A substância’, os alquimistas a nomearam, mas os leigos chamavam de fogovivo. Cinquenta jarros tinham sido colocados dentro da Torre da Mão, junto com lenha e barris de piche e a maior parte dos pertences do anão chamado Tyrion Lannister. A rainha podia sentir o calor daquelas chamas verdes. Os piromânticos disseram que somente três coisas queimavam com mais intensidade que a substância deles: Chama de dragão, os fogos debaixo da terra, e o sol do verão. Algumas das senhoras engasgaram quando as primeiras chamas apareceram na janela, lambendo as janelas como línguas verdes gigantes. Outros comemoravam e faziam brindes.  
É lindo, ela pensou, lindo como Joffrey, quando o colocaram em meus braços. Nenhum homem a fez se sentir bem como quando ela sentiu-o pegando seu mamilo com a boca para amamentar. 
Tommen olhava com olhos arregalados as chamas, tão fascinado como temeroso, até Margaery sussurrar algo em seu ouvido que o fez rir. Alguns dos cavaleiros começaram a fazer apostas de quanto tempo levaria para a torre cair. Lorde Hallyne ficou sussurrando para si próprio e balançando em seus calcanhares. 
Cersei pensou em todas as Mãos do Rei que ela conheceu pelos anos: Owen Merryweather, Jon Connington, Qarlton Chelsted, Jon Arryn, Eddard Stark, seu irmão Tyrion. E seu pai, Lorde Tywon Lannister, seu pai acima de tudo. Todos eles estão queimando agora, ela disse a si mesma, saboreando o pensamento, Eles estão mortos e queimados, cada um deles, com todas as suas tramas e esquemas e traições. É meu dia agora. É o meu castelo e meu reino.  
A Torre da Mão deu um gemido repentino, tão alto que toda a conversa silenciou. Pedras rachavam e se soltavam, e partes das ameias superiores caíram e pousaram com uma pancada que fez tremer a colina, formando uma nuvem de poeira e fumaça. Como ar fresco correndo pela alvenaria, o fogo apareceu em cima. Chamas verdes saltaram para o céu e giraram entre elas. Tommen as evitou até Margaery pegar sua mão e dizer 
— Olhe, as chamas estão dançando assim como nós dançamos meu amor.
— Elas estão. — Sua voz se encheu de admiração. — Mãe, olhe, elas estão dançando.
— Eu as vi. Lorde Hallyne, quanto tempo o fogo vai durar? 
— A noite toda, Vossa Graça.
— Isto faz um lindo candelabro, eu te garanto. — Disse a Senhora Olenna Tyrell, se inclinando em sua bengala entre a esquerda e a direita. — Brilhante o suficiente para nos sentirmos seguros para dormir. Eu acho, ossos velhos vão se fatigando, e estes novos tiveram muita diversão por uma noite. É hora do rei e a rainha irem para a cama. 
— Sim. — Cersei se virou para Jaime. — Lorde Comandante, escolte Vossa Graça e sua rainhazinha para a cama, se você puder. 
— Como ordena. Você também? 
— Não precisa. — Cersei se sentia muito viva para dormir. O fogovivo a agradava, queimando toda a fúria e medo, enchendo-a de determinação. As chamas são tão lindas. Eu quero assistir elas por enquanto.
Jaime hesitou: 
— Você não deve ficar sozinha. 
— Eu não estarei sozinha. Sor Osmund pode ficar comigo e me proteger. Seu Irmão Juramentado. 
— Se agradar a Vossa Graça — disse Kettleblack. 
— Agrada. — Cersei deslizou seu braço pelo dele, e lado a lado eles assistiram a fúria das chamas.
 
A noite estava invulgarmente fria, mesmo para o outono. Um vento vivo e úmido rodopiava pelas vielas, levantando a poeira do dia. Um vento do norte, e cheio de gelo. Sor Arys Oakheart puxou o capuz para cima, a fim de esconder o rosto. Não seria bom que fosse reconhecido. Uma quinzena antes, um mercador fora assassinado na cidade das sombras, um homem inofensivo que viera à Dorne em busca de fruta e encontrara a morte em vez de tâmaras. O seu único crime fora ser de Porto Real.
A turba encontraria um adversário mais duro em mim. Teria quase agradecido um ataque. A mão caía-lhe para se ir roçar levemente no cabo da espada que pendia, meio escondida, entre as pregas das suas vestes sobrepostas de linho, a exterior com as suas riscas azul-turquesa e de sóis dourados, e a mais leve e laranja por baixo. O traje dornês era confortável, mas o pai teria ficado horrorizado se tivesse vivido tempo suficiente para o ver vestido assim. Era um homem da Campina, e os dorneses eram os seus inimigos ancestrais, como testemunhavam as tapeçarias em Carvalho Velho. A Arys ainda bastava fechar os olhos para as ver. Lorde Edgerran, o MãosAbertas, sentado em esplendor com as cabeças de uma centena de dorneses empilhadas em volta dos seus pés. As Três Folhas, no Passo do Príncipe, perfuradas por lanças dornesas. Alester a soprar o corno de guerra com o seu último suspiro. Sor Olyvar, o Carvalho Verde, todo vestido de branco, morrendo ao lado do Jovem Dragão. Dorne não é lugar adequado para um Oakheart, seja ele qual for.
Mesmo antes do Príncipe Oberyn ter morrido, o cavaleiro sentia-se pouco à vontade sempre que saía do recinto de Lançassolar para percorrer as vielas da cidade sombria. Sentia olhos postos em si onde quer que fosse, pequenos e negros olhos dorneses que o fitavam com uma hostilidade mal dissimulada. Os lojistas faziam o possível para enganá-lo em cada negócio, e por vezes perguntava a si próprio se os taberneiros cuspiriam nas suas bebidas. Uma vez, um grupo de rapazes esfarrapados pusera-se a atirar-lhe pedras, até que ele puxara pela espada e correra com eles. A morte da Víbora Vermelha inflamara ainda mais os dorneses, embora as ruas se tivessem acalmado um pouco desde que o Príncipe Doran confinara as Serpentes de Areia a uma torre. Mesmo assim, usar abertamente o manto branco na cidade sombria seria pedir para ser atacado. Trouxera três consigo: dois de lã, um leve e um pesado, e o terceiro de seda branca. Sentia-se nu sem um deles a pender dos seus ombros.
Antes nu do que morto, disse a si próprio. Ainda sou um membro da Guarda Real, mesmo sem manto. Ela tem de respeitar isso. Tenho de fazer com que compreenda. Nunca se devia ter deixado arrastar para aquilo, mas o cantor dissera que o amor pode transformar qualquer homem num tolo.
Era frequente que a cidade sombria de Lançassolar parecesse deserta ao calor do dia, quando apenas moscas se deslocavam a zumbir pelas ruas poeirentas, mas uma vez caída à noite, as mesmas ruas voltavam à vida. Sor Arys ouviu uma música tênue que vogava através de janelas tapadas por persianas enquanto passava por baixo, e, algures, tambores digitais batiam o ritmo rápido de uma dança de lanças, dando à noite um pulso. No local onde três vielas se encontravam junto à segunda das Muralhas Sinuosas, uma almofadeira chamou de uma varanda. Estava vestida de jóias e azeite. Deitou-lhe um olhar, curvou os ombros e avançou, direito aos dentes do vento. Nós, os homens, somos tão fracos. Os corpos traem até os mais nobres de nós. Pensou no Rei Baelor, o Abençoado, que jejuava até desmaiar para domar os desejos que o envergonhavam. Teria ele de fazer o mesmo?
Um homem baixo encontrava-se em frente a uma arcada, a grelhar postas de cobra num braseiro, virando-as com pinças de madeira à medida que iam tomando. O pungente odor dos seus molhos trouxe lágrimas aos olhos do cavaleiro. Ouvira dizer que o melhor molho de cobra tinha uma gota de veneno, bem como sementes de mostarda e pimentos de dragão. Myrcella passara a gostar da comida de Dorne tão depressa como do seu príncipe de Dorne, e de tempos a tempos Sor Arys experimentava um prato ou outro para contentá-la. A comida cauterizava-lhe a boca e deixava-o a arquejar por vinho, e ainda queimava mais ao sair do que ao entrar. Mas a sua princesinha gostava.
Deixara-a nos seus aposentos, debruçada sobre uma mesa de jogo em frente do Príncipe Trystane, empurrando peças elaboradas por quadrados de jade, cornalina e lápis-lazúli. Os lábios cheios de Myrcella estavam ligeiramente abertos, e os seus olhos verdes semicerrados de concentração. O jogo chamava-se cyvasse. Chegara a Vila Tabueira numa galé mercante proveniente de Volantis, e os órfãos tinham-no espalhado para cima e para baixo, ao longo do Sangueverde. A corte dornesa era louca por ele.
Sor Arys limitava-se a acha-lo enlouquecedor. Havia dez peças diferentes, cada uma com os seus próprios atributos e poderes, e o tabuleiro mudava de jogo para jogo, dependendo do modo como os jogadores distribuíam os seus quadrados iniciais. O Príncipe Trystane tornara-se imediatamente apreciador, e Myrcella aprendera o jogo para poder jogar com ele. Não tinha ainda bem onze anos, e o seu prometido tinha treze; mesmo assim, nos últimos tempos, era mais frequente ela ganhar do que perder.
Trystane não parecia importar-se. As duas crianças não podiam parecer mais diferentes, ele com a sua pele cor de azeitona e cabelo negro liso, ela branca como leite com uma cabeleira de caracóis dourados; claro e escuro, como a Rainha Cersei e o Rei Robert. Rezava para que Myrcella encontrasse mais alegrias no seu rapaz dornês do que a mãe achara no seu senhor da tempestade.
Sentia-se inquieto por deixá-la, embora devesse ficar a salvo dentro do castelo. Havia apenas duas portas que davam acesso aos aposentos de Myrcella na Torre do Sol, e Sor Arys mantinha dois homens em cada uma; guardas domésticos Lannister, homens que tinham vindo com eles de Porto Real, testados em batalha, duros, e leais até aos ossos. Myrcella tinha também as suas aias e a Septã Eglantine, e o Príncipe Trystane era servido pelo seu escudo ajuramentado, Sor Gascoyne do Sangueverde. Ninguém a incomodará, disse a si próprio, e dentro de uma quinzena estaremos longe e a salvo. 
O Príncipe Doran prometera-o. Embora Arys se tivesse sentido chocado quando vira como o príncipe dornês parecia envelhecido e enfermo, não duvidava da sua palavra. — Lamento não ter podido encontrar-me com o senhor até agora, ou conhecer a Princesa Myrcella — dissera Martell quando Arys fora recebido no seu aposento privado — mas confio que a minha Arianne tenha feito você se sentir bem vindo aqui em Dome, sor.
— Fez, meu príncipe — respondera, e rezara para que nenhum rubor se atrevesse a trai-lo.
— A nossa terra é dura e pobre, mas não está desprovida de belezas. Magoa-nos que não tenhais visto de Dorne mais do que Lançassolar, mas temo que nem você nem a vossa princesa estivessem a salvo fora destas muralhas. Nós, os dorneses, somos um povo de sangue quente, rápido na ira e lento no perdão. Me alegraria coração se pudesse garantir que as Serpentes de Areia estavam sós no seu desejo de guerra, mas não lhe contarei mentiras, sor. Ouviu o meu povo nas ruas, gritando para que eu convoque as lanças. Temo que metade dos meus lordes concorde com eles.  
— E você, meu príncipe? — Atrevera-se o cavaleiro a perguntar. 
— A minha mãe ensinou-me há muitos anos que só loucos travam guerras que não podem vencer. — Se a franqueza da pergunta o ofendera, o Príncipe Doran escondera-o bem. — Mas esta paz é frágil... tão frágil como a sua princesa.
— Só um animal faria mal a uma menina
— A minha irmã Elia tinha também uma menina. O seu nome era Rhaenys. Era também uma princesa. — O príncipe suspirou. — Aqueles que querem mergulhar uma faca na Princesa Myrcella não lhe têm qualquer rancor, tal como Sor Amory Lorch não tinha quando matou Rhaenys, se é que o fez mesmo. Procuram apenas me obrigar a agir. Pois se Myrcella fosse morta em Dorne enquanto estivesse sob a minha proteção, quem acreditaria nas minhas justificações?
— Nunca ninguém fará mal a Myrcella enquanto eu for vivo.
— Uma nobre jura — dissera Doran Martell com um tênue sorriso. — Mas é apenas um homem, sor. Tive a esperança de que aprisionar as minhas obstinadas sobrinhas pudesse ajudar a acalmar as águas, mas tudo o que fizemos foi correr com as baratas para debaixo das esteiras. Todas as noites as ouço a murmurar e a aguçar as facas.         Ele tem medo, compreendera então Sor Arys. Olha, a mão treme-lhe. O Príncipe de Dorne está aterrorizado. Faltaram-lhe palavras.
— As minhas desculpas, sor - dissera o Príncipe Doran. - Estou fraco e doente e por vezes... Lançassolar cansa-me, com o seu ruído, sujidade e cheiros. Assim que os meus deveres o permitam, pretendo regressar aos Jardins de Água. Quando o fizer, levarei comigo a Princesa Myrcella. — Antes do cavaleiro ter tempo de protestar, o príncipe erguera uma mão, de articulações vermelhas e inchadas. — Você irá também, e a sua septã, as suas aias, os seus guardas. As muralhas de Lançassolar são fortes, mas à sua sombra fica a cidade sombria. Mesmo dentro do Castelo há centenas de pessoas a ir e a vir todos os dias. Os Jardins são o meu porto de abrigo. O Príncipe Maron construiu-os como presente para a sua noiva Targaryen, a fim de assinalar o casamento de Dorne com o Trono de Ferro. Lá, o outono é uma estação adorável... dias quentes, noites frescas, a brisa salgada que vem do mar, os fontanários e as lagoas. E há outras crianças, rapazes e raparigas de nascimento elevado e de boa estirpe. Myrcella terá amigos da sua idade com quem brincar. Não se sentirá sozinha.
— Às suas ordens. — As palavras do príncipe martelavam-lhe na cabeça. Lá, ela ficará em segurança. Mas se assim era, porque lhe teria Doran Martell pedido para não escrever para Porto Real a relatar a mudança? Myrcella ficará mais segura se ninguém souber exatamente onde se encontra. Sor Arys concordara, mas que alternativa teria? Era um Cavaleiro da Guarda Real, mas apesar de tudo era apenas um homem, tal como o príncipe dissera.
A viela abriu-se de súbito para um pátio iluminado pelo luar. Depois da loja do fabricante de velas, escrevera ela, um portão e uma curta escadaria exterior. Empurrou o portão e subiu os degraus desgastados até uma porta sem nada que a distinguisse das demais. Devo bater? Em vez disso, empurrou à porta, abrindo-a, e deu por si num aposento grande e sombrio com um teto baixo, iluminado por um par de velas odoríferas que tremeluziam em nichos cortados nas espessas paredes de barro. Viu por baixo das sandálias tapetes de Myr decorados com padrões, uma tapeçaria pendurada numa parede, uma cama.
Senhora? - chamou. - Onde está? 
— Aqui. — Ela saiu da sombra atrás da porta.
Uma serpente ornamentada se enrolava em volta do seu braço direito, com escamas de cobre e ouro a cintilar quando se movia. Era tudo o que trazia vestido.
        Não, quis o cavaleiro dizer, só vim te dizer que tenho de ir embora, mas quando a viu a brilhar à luz das velas pareceu perder o poder da fala. Sentia a garganta tão seca como as areias de Dorne. E em silêncio ficou, bebendo a glória do corpo dela, a cova da sua garganta, os seios redondos e maduros com os seus enormes mamilos escuros, as curvas luxuriantes da cintura e da anca. E então, sem saber como, deu por si a abraça-la, e por ela a tirar-lhe as vestes. Quando alcançou a túnica interior pegou-lhe pelos ombros e rasgou a seda até ao umbigo, mas Arys já ultrapassara o ponto em que ainda se importava. A pele dela era lisa por baixo dos seus dedos, tão quente ao toque como areia cozida pelo sol de Dorne. Ergueu-lhe a cabeça e encontrou os seus lábios. A boca dela abriu-se sob a dele, e os seus seios encheram-lhe as mãos. Sentiu os mamilos a retesar-se quando roçou neles os polegares. O cabelo dela era negro e espesso e cheirava a orquídeas, uma cheiro escuro e terroso que o deixou tão teso que quase doía.         — Me toque, sor — murmurou a mulher ao seu ouvido. A sua mão deslizou ao longo da barriga arredondada dela e foi encontrar o lugar doce e úmido por baixo do matagal de pelos negros. — Sim, aí — murmurou ela enquanto Arys enfiava um dedo no seu interior. Ela soltou um som lamuriento, puxou-o para a cama e empurrou-o para baixo. — Mais, oh, mais, sim, que bom, meu cavaleiro, meu cavaleiro, meu querido cavaleiro branco, sim, você, você, te desejo. — As mãos dela guiaram-no para dentro de si, e depois envolveram-lhe as costas para o puxar para mais perto. — Mais fundo — murmurou. — Sim, oh. — Quando o envolveu com as pernas, pareceram-lhe fortes como aço. As unhas arranharam-lhe as costas enquanto a penetrava, outra vez, e outra, e outra, até que ela gritou e arqueou as costas por baixo de si. Quando o fez, seus dedos se fecharam sobre os mamilos, beliscando-os até que ele derramou a sua semente dentro dela. Podia morrer agora, feliz, pensou o cavalheiro, e, durante uma dúzia de segundos, ao menos ficou em paz.
Não morreu.
O seu desejo fora tão profundo e sem limites como o mar, mas quando a maré desceu, os rochedos da vergonha e da culpa ergueram-se, tão afiados como sempre. Por vezes as ondas cobriam-nos, mas permaneciam por baixo da água, duros, negros e viscosos. Que estou fazendo? Perguntou a si próprio. Sou um cavaleiro da Guarda Real. Rolou de cima dela e esticouse de olhos no teto. Uma grande racha atravessava-o, duma parede à outra. Não reparara nisso antes, tal como não reparara na imagem da tapeçaria, uma cena de Nymeria e dos seus dez mil navios. Só vejo a ela. Um dragão podia estar a espreitar pela janela, e eu não teria visto nada além dos seus seios, o seu rosto, o seu sorriso. 
— Tem vinho — murmurou ela junto de seu pescoço. Passou-lhe uma mão pelo peito. — Tem sede?
— Não. - Rolou para longe dela e sentou-se à beira da cama. O quarto estava quente, e no entanto tremia.
— Estais sangrando - disse ela. - Arranhei com força demais.
        Quando lhe tocou as costas, Arys estremeceu como se os dedos estivessem em fogo.
— Não faça isso. - Nu, pôs-se em pé. - Já chega. 
— Tenho bálsamo. Para os arranhões.
Mas não para a vergonha.
- Os arranhões não são nada. Perdoe-me, senhora, tenho que ir...
— Tão depressa? — Ela tinha uma voz rouca, uma boca larga feita para murmúrios, lábios cheios, maduros para beijar. O cabelo caía em cascata sobre os ombros nus e até ao topo dos seios cheios, negro e denso. Encaracolava-se em caracóis grandes, fofos e indolentes. Até os pelos no púbis eram fofos e encaracolados. — Fique comigo esta noite, sor. Ainda tenho muito a te ensinar.
— Já aprendi demasiado com você.
— Durante as lições pareceu bastante feliz com elas, sor. Tem a certeza de que não vai para outra cama, ter com outra mulher? Me diga quem é ela. Lutarei por você, de peito nu, faca contra faca. - Sorriu. - A menos que seja uma Serpente de Areia. Se assim for, podemos partilhá-lo. Amo muito as minhas primas.
— Sabe que não tenho outras mulheres. Só... a obrigação.
Ela rolou sobre um cotovelo para o olhar, com os grandes olhos negros a brilhar à luz das velas.
— Essa cadela bexiguenta? Conheço-a. Seca como poeira entre as pernas, e os seus beijos o deixa a sangrar. Que a obrigação durma só, para variar, e fique comigo esta noite.
— O meu lugar é no palácio.
 Ela suspirou.
— Com a vossa outra princesa. Acaba por me deixar ciumenta. Parece-me que a ama mais do que a mim. A donzela é nova demais para você. Precisa de uma mulher, não de uma rapariguinha, mas posso fazer papel de inocente, se isso te excita.         — Não deve dizer tais coisas. - Lembre-se, ela é dornesa. Na Campina, os homens diziam que era a comida que deixava os dorneses tão temperamentais e as suas mulheres tão violentas e sensuais. Pimentas de fogo e estranhas especiarias aquecem o sangue, ela não pode evitar. — Eu amo Myrcella como uma filha. — Nunca poderia ter uma filha sua, tal como nunca poderia ter uma esposa. Em vez disso, tinha um manto branco. — Vamos para os Jardins de Água.
— A seu tempo - concordou ela — se bem que com o meu pai tudo demore quatro vezes mais do que devia. Se ele diz que pretende partir amanhã, irá de certeza se por a caminho dentro de uma quinzena. Se sentirá só nos Jardins, garanto. E onde está o bravo e jovem galante que disse que desejava passar o resto da vida nos meus braços?
— Estava bêbado quando disse isso
— Tinha bebido três taças de vinho agudo.
— Estava bêbado de você. Tinham-se passado dez anos desde que... desde que enverguei o branco e, até você, não toquei em nenhuma mulher. Não sabia o que o amor podia ser, mas agora... tenho medo.
— O que poderia assustar o meu cavaleiro branco?
— Temo pela minha honra — disse ele — e pela sua.
— Eu posso cuidar da minha honra. — Levou um dedo ao seio, rodeando lentamente o mamilo. — E dos meus prazeres, se necessário. Sou uma mulher feita.         Lá isso era, para lá de qualquer dúvida. Vê-la ali em cima do colchão de penas, sorrindo aquele sorriso travesso, brincando com o seio... teria alguma vez havido mulher com mamilos tão grandes e tão prontos a responder? Quase não conseguia olhar para eles sem desejar agarra-los, chupa-los até ficarem rijos, úmidos e brilhantes...         Afastou os olhos. Tinha a roupa interior espalhada nos tapetes. O cavaleiro dobrou-se para a apanhar. 
      —Tem as mãos a tremer — fez ela notar. — Elas prefeririam estar a acariciar-me, julgo eu. É preciso estar nessa pressa toda para vestir a roupa, sor? Prefiro você como está. Na cama, despidos, somos às nossas naturezas, um homem e uma mulher, amantes, uma só carne, tão chegados como duas pessoas podem ser. As nossas roupas tornam-nos diferentes. Prefiro ser sangue e carne a seda e jóias, e você. . . você não é o seu manto branco, sor.
— Mas sou — disse Sor Arys. — Eu sou o meu manto. E isto tem de terminar, para o seu bem, e também para o meu. Se formos descobertos...
— Os homens te julgarão afortunado.
— Os homens me julgarão um perjuro. E se alguém fosse ter com o seu pai e lhe contasse o modo como te desonrei?
— O meu pai é muitas coisas, mas nunca ninguém lhe chamou tolo. O Bastardo de Graçadivina tirou-me a virgindade quando tínhamos ambos catorze anos. Sabe o que fez o meu pai quando soube? — Reuniu os lençóis no punho e puxou-os até ao queixo, para esconder a nudez. — Nada. O meu pai é muito bom a não fazer nada. Chama a isso pensar. Diga-me a verdade, sor, é a minha desonra que vos preocupa, ou a sua?
         — Ambas. — A acusação foi uma ferroada. — É por isso que esta deverá ser a última vez.
— Já disse isso antes.
Pois disse, e também falava a sério. Mas sou fraco, caso contrário não estaria agora aqui. Não lhe podia dizer isso; ela era o tipo de mulher que desprezava a fraqueza, podia sentir. Tem em si mais do tio do que do pai. Virou-se e encontrou a túnica interior de seda numa cadeira. Ela rasgara o tecido até ao umbigo quando lhe despira a vestimenta.
         — Isto está estragado — queixou-se. — Como poderei usá-la agora?          — Ao contrário — sugeriu ela. — Depois de envergardes as vestes ninguém verá o rasgão. A sua pequena princesa talvez vo-lo cosa. Ou deverei eu mandar uma túnica nova para os Jardins de Água?
— Não me mande presentes. — Isso serviria apenas para chamar a atenção. Sacudiu a túnica interior e enfiou-a pela cabeça, com as costas para a frente. Sentia a seda fresca contra a pele, embora aderisse às costas nos locais onde ela o arranhara. Serviria para voltar para o palácio, pelo menos. — Tudo o que quero é pôr a este... a este...
        — Será isso galante, sor? Me magoou. Começo a pensar que todas as suas palavras de amor eram mentiras.
Nunca poderia mentir para você. Sor Arys sentiu-se como se ela o tivesse esbofeteado.         — Por que outro motivo teria eu posto de parte a minha honra, se não fosse por amor? Quando estou com você, eu... quase não consigo pensar, é tudo aquilo em que sempre sonhei, mas...
— As palavras são vento. Se me ama, não me deixe.
— Eu prestei um juramento...
—... De não casar nem gerar bem, eu bebi o meu chá de lua, e sabe que não posso casar contigo. — Sorriu. — Embora talvez pudesse ser convencida a te manter como concubino.
— Agora troça de mim.
— Talvez um pouco. Julga que é o único membro da Guarda Real que alguma vez amou uma mulher?
— Sempre houve homens que acharam mais fácil proferir votos do que mantê-los — admitiu. Sor Boros Blount não era nenhum estranho na Rua da Seda, e Sor Preston Greenfield costumava visitar uma certa casa de comerciante de fazendas sempre que o comerciante andava por fora, mas Arys não desejava envergonhar os seus Irmãos Juramentados falando das suas debilidades. — Sor Terrence Toyne foi encontrado na cama com a amante do seu rei — preferiu dizer. — Era amor, jurou ele, mas custou-lhe a vida e a dela, e originou a ruína da sua Casa e a morte do cavaleiro mais nobre que já viveu.
— Sim, mas e então Lucamore, o Ardente, com as suas três esposas e dezesseis filhos? A canção sempre me dá vontade de rir.
— A verdade não é assim tão engraçada. Em vida nunca lhe chamaram Lucamore, o Ardente. O nome dele era Sor Lucamore Strong, e toda a sua vida era uma mentira. Quando a fraude foi descoberta, os seus próprios Irmãos Juramentados castraram-no e o Velho Rei mandou-o para a Muralha. Esses dezesseis foram entregues ao choro. Ele não era um verdadeiro cavaleiro, tal como aconteceu com Terrence Toyne... 
— E o Cavaleiro do Dragão? — Ela atirou os lençóis para o lado e pousou os pés no chão. — O mais nobre cavaleiro que já viveu, você disse, e levou a sua rainha para a cama e deixou-a grávida.
— Não acredito nisso — disse ele, ofendido. — A história da traição do Príncipe Aemon com a Rainha Naerys era apenas isso, uma história, uma mentira que o irmão contou quando quis pôr de lado o seu legítimo a favor do seu bastardo. Aegon não era chamado o Indigno sem motivo. — Encontrou o cinto da espada e em volta da cintura. Embora tivesse um aspecto estranho sobre a seda da túnica interior dornesa, o peso familiar da espada e do punhal recordar-se de quem era. — Não serei recordado como Sor Arys, o Indigno — declarou. — Não macularei o meu manto.
— Sim — disse ela — esse belo manto branco. Esqueceu que o meu tio-avô usou o mesmo manto. Morreu quando eu era pequena, mas ainda me lembro dele. Era alto como uma torre e costumava me fazer cócegas até perder o fôlego de tanto rir.
— Nunca tive a honra de conhecer o Príncipe Lewyn — disse Sor Arys — mas todos são unânimes em dizer que era um grande cavaleiro.
— Um grande cavaleiro com uma concubina. Ela hoje é uma velha, mas os homens dizem que na juventude era uma beleza rara. 
       O Príncipe Lewyn? Aquela era uma história que Sor Arys nunca ouvira. Chocou-o. A traição de Terrence Toyne e as fraudes de Lucamore, o Ardente, estavam registradas no Livro Branco, mas não havia nem sequer a sugestão de uma mulher na página do Príncipe Lewyn.
— O meu tio sempre disse que era a espada na mão de um homem que determinava o seu valor, não aquela que tinha entre as pernas — prosseguiu ela — portanto poupe-me de sua conversa pia acerca de mantos maculados. Não foi o nosso amor que te desonrou, foram os monstros que servistes e os brutamontes a que chamastes irmãos.
Aquilo atingiu-o demasiado perto do alvo.
— Robert não era monstro nenhum.
— Trepou para o trono por cima dos cadáveres de crianças — disse ela — se bem que eu admita que não era propriamente um Joffrey. 
Joffrey. Fora um rapaz bem parecido, alto e forte para a idade, mas isso era todo o bem que se podia dizer dele. Ainda envergonhava Sor Arys lembrar-se de todas as vezes que batera na pobre rapariga Stark às ordens do rapaz. Quando Tyrion o escolhera para ir com Myrcella para Dorne, acendera uma vela ao Guerreiro para agradecer.
— Joffrey está morto, envenenado pelo Duende. — Nunca teria achado o anão capaz de tal enormidade. — Agora o rei é Tommen, e ele não é o irmão. 
— Nem a irmã.
Era verdade. Tommen era um homenzinho de bom coração que procurava sempre fazer o seu melhor, mas a última vez que Sor Arys o vira estava a chorar no cais. Myrcella não derramara uma lágrima, embora fosse ela quem estivesse a abandonar o lar para selar uma aliança com a sua virgindade. A verdade era que a princesa era mais corajosa do que o irmão, e também mais inteligente e confiante. Tinha o espírito mais vivo, as cortesias mais polidas. Nunca nada a intimidava, nem mesmo Joffrey. A força está realmente nas mulheres. Estava a pensar não só em Myrcella, mas também na mãe dela e na sua, na Rainha dos Espinhos, nas belas, mortíferas Serpentes de Areia da Víbora Vermelha. E na Princesa Arianne Martell acima, de tudo nela. 
— Não desejo dizer que se engana. — A voz soou-lhe rouca. 
— Não quer? Não pode! Myrcella é mais capaz para governar... 
— Um filho tem precedência sobre uma filha.
— Porquê? Que deus fez as coisas assim? Eu sou herdeira do meu pai. Deverei abdicar dos meus direitos em favor dos meus irmãos?
— Está a retorcer as minhas palavras. Nunca disse. — Dorne é diferente. Os Sete Reinos nunca foram governados por uma rainha.
— O primeiro Viserys pretendia que a Rhaenyra lhe sucedesse, será que o nega? Mas enquanto o rei jazia moribundo, o Senhor Comandante da sua Guarda Real decidiu que devia ser de outro modo.
Sor Criston Cole. Criston, o Fazedor de Reis, pusera irmão contra irmã e dividira a Guarda Real contra si própria, dando origem à terrível guerra a que os cantores chamavam a Dança dos Dragões. Alguns diziam que ele agira por ambição, pois o Príncipe Aegon era mais tratável do que a sua voluntariosa irmã mais velha. Outros concediam-lhe motivos mais nobres, e argumentavam que estava a defender o antigo costume ândalo. Alguns sussurravam que Sor Criston fora amante da Princesa Rhaenyra antes de envergar o branco e desejava vingança contra a mulher que o desdenhara.
— O Fazedor de Rei realizou um grande mal — disse Sor Arys — e pagou caro por isso, mas... 
— Mas talvez os Sete o tenha enviado para cá a fim de que um cavaleiro branco pudesse endireitar aquilo que outro pôs de pantanas. Sabe que quando o meu pai regressar aos Jardins de Água pretende levar Myrcella com ele? 
— Para a manter a salvo daqueles que lhe querem causar dano.
— Não. Para a manter longe daqueles que procurariam coroá-la. O Príncipe Oberyn Víbora teria colocado ele próprio a coroa na cabeça se tivesse sobrevivido, mas o meu pai não tem coragem para isso. — Pôs-se em pé. — Diz que ama a rapariga como amaria a uma do seu sangue. Deixaria que a sua filha fosse espoliada dos seus direitos e trancada numa prisão?
— Os Jardins de Água não são nenhuma prisão — protestou Arys debilmente. 
— Uma prisão não tem fontanários e figueiras, é isso o que pensa? Mas uma vez que a rapariga lá esteja, não será autorizada a sair. Tal como você. Hotah se assegurará disso. Não o conhece como eu conheço. Ele é terrível quando entra em ação.
Sor Arys franziu o sobrolho. O grande capitão norvoshi de cara marcada sempre o deixara profundamente inquieto. Dizem que dorme com aquele grande machado a seu lado.
— O que acha que eu devia fazer?
— Nada mais do que jurou fazer. Proteger Myrcella com a vida. Defende-la... e aos seus direitos. Colocar-lhe uma coroa na cabeça. 
— Eu prestei um juramento!
— A Joffrey, não a Tommen.
— Sim, mas Tommen é um rapaz de boa índole. Ele será melhor rei do que Joffrey.
— Mas não melhor do que Myrcella. Ela também ama o rapaz. Eu sei que não permitirá que algum mal lhe aconteça. Ponta Tempestade é legitimamente sua, visto que Lorde Renly não deixou herdeiros e Lorde Stannis está proscrito. A seu tempo, Rochedo Casterly também passará para o rapaz, por via da senhora sua mãe. Será um lorde tão importante como qualquer outro no reino... mas Myrcella deve ocupar o Trono de Ferro.
— A lei... não sei...
— Eu sei. — Quando se punha em pé, o longo emaranhado negro do seu cabelo caía-lhe até ao fundo das costas. — Aegon, o Dragão, criou a Guarda Real e os seus votos, mas o que um rei faz, outro pode desfazer ou alterar. Anteriormente, a Guarda Real servia de forma vitalícia, mas Joffrey demitiu Sor Barristan para que o seu cão pudesse ter um manto. Myrcella vai quer que seja feliz, e também gosta de mim. Ela nos dará licença para casar se a pedirmos. — Arianne pôs os braços em volta dele e encostou o rosto ao seu peito. O topo da cabeça chegava-lhe logo abaixo do queixo. — Pode comigo e com o manto branco, se for isso que quiser.
Ela está a dilacerar-me. 
— Sabe que quero, mas... 
— Eu sou uma princesa de Dorne — disse ela com a sua voz enrouquecida — e não é próprio que me faça implorar.
Sor Arys sentia o cheiro do perfume que ela tinha no cabelo, e sentia-lhe o coração a bater contra o seu peito. O seu corpo estava a responder à proximidade da mulher e não duvidava de que ela também o sentia. Quando pôs os braços sobre os seus ombros, apercebeu-se de que ela tremia.
— Arianne? Minha princesa? O que se passa, meu amor?
— Terei de o dizer, sor? Tenho medo. Chama-me amor, mas recusame, no momento em que me é mais necessário. Será assim tão errado da minha parte querer um cavaleiro que me mantenha em segurança?
Ele nunca a ouvira parecer tão vulnerável. 
— Não — disse — mas tem os guardas do seu pai para te manter em segurança, porque...
— São os guardas do meu pai que temo. — Por um momento, pareceu mais nova do que Myrcella. — Foram os guardas do meu pai que arrastaram as minhas queridas primas a ferros. 
— A ferros, não. Ouvi dizer que têm todo o conforto.
— Ela soltou uma gargalhada amarga.  
— As viste? Ele não me permite vê-las, sabe disso? 
— Andavam a falar de traição, a fomentar a guerra...
— Loreza tem seis anos. Dorea oito. Que guerras podiam elas fomentar? E no entanto, o meu pai aprisionou-as com as irmãs. Você viu. O medo faz com que até homens fortes façam coisas que poderiam nunca fazer de outro modo, e o meu pai nunca foi forte. Arys, coração, escute-me pelo amor que diz sentir por mim. Nunca fui tão destemida como as minhas primas, pois fui feita com semente mais fraca, mas Tyene e eu somos da mesma idade e fomos chegadas como irmãs desde rapariguinhas. Não há segredos entre nós. Se ela pode ser aprisionada, eu também, e pelo mesmo motivo... este, de Myrcella.
— O vosso pai nunca o faria. 
— Não conhece o meu pai. Eu tenho-o desapontado desde que cheguei a este mundo sem uma picha. Tentou me casar meia dúzia de vezes com grisalhos desdentados, cada um mais desprezível do que o anterior. Nunca me ordenou que os desposasse, admito, mas bastam às ofertas para demonstrar a baixa conta em que me tem. 
— Mesmo assim, será sua herdeira. 
— Serei? 
— Ele te deixou a governar em Lançassolar quando se mudou para os seus Jardins de Água, não deixou?
— A governar? Não. Deixou o primo, Sor Manfrey, como Castelão, o velho e cego Ricasso como senescal, os seus beleguins a coletar taxas e impostos para o tesoureiro Alyse Ladybright contar, os seus xerifes a policiar a cidade sombria, os seus funcionários judiciais a realizar julgamentos, e o Meistre Myles a tratar de quaisquer cartas que não precisassem de atenção pessoal do príncipe. Acima de todos, colocou a Víbora Vermelha. O meu encargo eram os festejos e os divertimentos, e o entretenimento de hóspedes distintos. Oberyn visitava os Jardins de Água duas vezes por quinzena. A mim, convocava duas vezes por ano. Não sou a herdeira que o meu pai quer, ele deixou isso claro. As nossas leis constrangem-no, mas eu sei que ele preferiria que o meu irmão lhe sucedesse. 
— O seu irmão? — Sor Arys pôs-lhe a mão debaixo do queixo e ergueu-lhe a cabeça, para melhor a olhar nos olhos. — Não pode estar falando de Trystane, ele é só um rapaz.
— Não é Trys. Quentyn. — Os olhos dela eram arrojados e negros como o pecado, e não vacilavam. — Sei a verdade desde os meus catorze anos, desde o dia em que fui ao aposento privado do meu pai para lhe dar um beijo de boa noite, e não o encontrei lá. Soube mais tarde que a minha mãe o tinha mandado chamar. Ele deixara uma vela a arder. Quando fui apagar, encontrei uma carta incompleta a seu lado, uma carta para o meu irmão Quentyn, que se encontrava em Paloferro. O meu pai dizia a Quentyn que devia fazer tudo o que o seu meistre e o mestre de armas lhe pedissem, porque ‘um dia te sentarás onde eu me sento e governarás todo o Dorne, e um governante deve ser forte de mente e de corpo.’ — Uma lágrima correu pela face suave de Arianne. — Palavras do meu pai, escritas na sua letra. Ficaram marcadas a fogo na minha memória. Nessa noite, e muitas noites dessa em diante, chorei até adormecer.
Sor Arys ainda não conhecia Quentyn Martell. O príncipe fora criado pelo Lorde Yronwood desde tenra idade, servira-o como pajem, depois como escudeiro, até preferira ser armado cavaleiro pelas suas mãos em vez das da Víbora Vermelha. Se eu fosse um pai, também quereria que o meu filho me sucedesse, pensou, mas ouvira a dor na voz dela, e sabia que, se dissesse o que estava a pensar, a perderia.
— Talvez tenha compreendido mal — disse. — Era apenas uma criança. O príncipe talvez tenha escrito isso só para encorajar o seu irmão a ser mais diligente.
— Acha que sim? Então diga-me, onde está agora Quentyn?
— O príncipe está com a hoste do Lorde Yronwood no Caminho do Espinhaço — disse cautelosamente Sor Arys. Era o que o muito idoso castelão de Lançassolar lhe dissera, quando chegara a Dome. O meistre com a barba sedosa dissera o mesmo.
Arianne objetou. 
— Isso é o que o meu pai quer que nós pensamos, mas eu tenho amigos que me dizem outras coisas. O meu irmão atravessou o mar estreito em segredo, pretendendo ser um simples mercador. Porque?       
— Como hei de saber? Pode haver uma centena de motivos. 
— Ou um só. Estás ciente de que a Companhia Dourada quebrou o seu contrato com Myr?
— Os mercenários andam sempre a quebrar contratos.
— A Companhia Dourada não. Gabam-se de que a nossa palavra vale ouro desde os dias do Açamargo. Myr está à beira da guerra com Lys e Tyrosh. Porquê quebrar um contrato que lhes oferecia a possibilidade de boa paga e bom saque?
— Talvez Lys lhes tenha oferecido melhor paga. Ou Tyrosh.
— Não - disse ela. - Acreditaria nisso se fosse alguma das outras companhias livres, sim. A maioria mudaria de lado por meio dinheiro. A Companhia Dourada é diferente. Uma irmandade de exilados e de filhos de exilados, unida pelo sonho de Açamargo. O que eles desejam é a terra natal, tanto como o ouro. Lorde Yronwood sabe disso tão bem como eu. Os seus ancestrais acompanharam Açamargo durante três das Rebeliões Blackfyre. — Pegou na mão de Sor Arys, e entrelaçou os dedos dele nos seus. — lá alguma vez viu as armas da Casa Toland, de Monte Espírito?
Arys teve de pensar por um momento.
— Um dragão a comer a própria cauda?
— O dragão é o tempo. Não tem princípio nem fim, portanto todas as coisas ressurgem. Anders Yronwood é Criston Cole renascido. Ele murmura aos ouvidos do meu irmão que é ele quem deve governar depois do meu pai, que não está certo que os homens se ajoelhem perante as mulheres... que Arianne, em particular, não está preparada para governar, sendo a voluntariosa libertina que é. — Sacudiu o cabelo em desafio. — Portanto, as suas duas princesas partilham uma causa comum, sor... e partilham também um cavaleiro que ama a ambas, mas não quer lutar por elas.
— Lutarei. — Sor Arys caiu sobre um joelho. — Myrcella é a mais velha, e a mais adequada para a coroa. Quem defenderá os seus direitos, se não for o seu guarda real? A minha espada, a minha vida, a minha honra, todas lhe pertencem... e a vós. delícia do meu coração. Juro, nenhum homem vos espoliará do vosso direito de nascença enquanto eu ainda tiver forças para erguer uma espada. Sou seu. O que quer de mim? 
— Tudo. — Ela ajoelhou para o beijar nos lábios. — Tudo, meu amor, meu amor verdadeiro, meu doce amor, e para sempre. Mas primeiro...
— Pede, e será seu... 
— Myrcella.
 
A muralha de pedra era velha e estava desmoronando, mas a sua visão através dos campos fez os cabelos da nuca de Brienne ficarem em pé. 
Foi ali que os arqueiros se esconderam e mataram o pobre Cleos Frey, ela pensou... Mas meia milha a frente ela passou por outra muralha que se parecia muito com a primeira, o que a deixou em dúvida. A estrada esburacada fazia curvas e entortava, e as árvores marrons e nuas pareciam diferentes das verdes que ela se lembrava. Teria ela escondido no passado o local onde Sor Jaime arrebatou a espada da bainha de seu primo? Onde estavam as árvores onde eles lutaram? O córrego onde eles espirraram e cortaram um ao outro até que tiveram os Bravos Companheiros sobre eles? 
— Minha senhora? Sor? — Podrick parecia nunca estar certo de como chamá-la. — O que você está procurando?
Fantasmas.
— Uma parede por onde passei uma vez. Não importa. — Isso foi quando Sor Jaime ainda tinha suas duas mãos. Como eu o odiava, com todas as suas provocações e sorrisos. — Fique em silêncio, Podrick. Ainda pode haver foras da lei nessas árvores.
O garoto olhou para as árvores marrons e nuas, as folhas molhadas, a estrada de lama à frente.
— Eu tenho uma espada longa. Eu posso lutar.
Não bem o suficiente. Brienne não duvidava da coragem do garoto, só do seu treinamento. Ele poderia ser um escudeiro, ao menos em nome, mas os homens a quem ele serviu, serviu mal. 
Ele tinha começado a sua história aos trancos e barrancos na estrada de Valdocaso. Ele era de um ramo menor da Casa de Payne, um ramo empobrecido que brotou do lombo de um filho mais novo. Seu pai havia passado toda a sua vida servindo como escudeiro aos primos mais ricos. Teve Podrick com a filha de um mercador com quem ele se casou antes de ir para a Rebelião de Greyjoy para morrer. Sua mãe o havia abandonado com um de seus primos quando ele tinha quatro anos, então ela poderia correr atrás de um cantor maravilhoso que tinha colocado outro bebê em sua barriga. Podrick não se lembrava de como ela era. Sor Cedric Payne era o mais próximo de um parente que o garoto conhecia, apesar de que por suas histórias gaguejadas, parecia a Brienne que o primo Cedric havia tratado Podrick mais como um servo do que como um filho. Quando Rochedo Casterly solicitou sua bandeira, um cavaleiro o havia levado junto para cuidar de seu cavalo e limpar sua correspondência. Então Sor Cedric foi assassinado em terras fluviais enquanto combatia nas tropas de Lorde Tywin. 
Longe de casa, sozinho, e sem dinheiro, o garoto se juntou a um cavaleiro gordo e ambíguo chamado Sor Lorimer, o Barriga, que era parte do contingente de Lorde Lefford, encarregado de proteger o trem de bagagem.
— Os garotos que guardam a comida sempre comem o melhor — Sor Lorimer gostava de dizer, até que ele foi descoberto com um presunto salgado que ele havia roubado da provisão pessoal de Lorde Tywin.
Tywin Lannister escolheu enforcá-lo como uma lição para outros ladrões. Podrick havia divido o presunto e deveria ter dividido a corda também, mas seu nome o salvou. Sor Kevan Lannister se encarregou dele, e algum tempo depois enviou o garoto para servir como escudeiro de seu sobrinho Tyrion.
Sor Cedric havia ensinado a Podrick como cuidar de um cavalo e verificar seus sapatos para pedras, e Sor Lorimer o havia ensinado a roubar, mas nenhum havia lhe dado muito treinamento com uma espada. O Duende ao menos o havia despachado para o mestre de armas do Forte Vermelho quando eles vieram para a corte. Mas durante os motins do pão, Sor Aron Santagar estava entre aqueles que foram assassinados, e esse foi o fim do treinamento de Podrick.
Brienne cortou duas espadas de madeira de ramos caídos para ter uma idéia das habilidades de Podrick. O garoto era devagar de fala, mas não de mãos, ela ficou satisfeita ao notar. Apesar de não ter medo e ser atento, ele era também mal alimentado e magrelo, e nem perto de ser forte o suficiente. Se ele sobreviveu à batalha da Água Negra como disse, só podia ser porque ninguém pensou que valesse a pena matá-lo. 
— Você pode chamar a si mesmo de escudeiro — ela disse a ele, — mas eu tenho visto pajens com metade de sua idade que poderiam tirar-lhe sangue. Se você ficar comigo, vai dormir com bolhas nos dedos e contusões nos ombros a maior parte das noites e você vai estar tão tenso e ferido que mal vai conseguir dormir. Você não quer isso.
— Eu quero — o garoto insistiu. — Eu quero isso. As contusões e as bolhas. Quero dizer, eu não quero, mas quero. Sor. Minha senhora.
Até agora ele tinha sido fiel à sua palavra, e Brienne fiel à dela. Podrick não havia reclamado. Toda vez que surgia uma bolha em sua mão que segurava a espada, ele sentia a necessidade de mostrar a ela com orgulho.
Ele cuidou muito bem de seus cavalos também. Ele ainda não é um escudeiro, ela lembrou a si mesma, mas eu também não sou um cavaleiro, não importa quantas vezes ele me chame de ‘Sor’. Ela o teria mandado seguir o seu caminho, mas ele não tinha para onde ir. Além disso, apesar de Podrick ter dito não saber onde Sansa Stark havia ido, poderia ser que ele soubesse mais do que tenha falado. Alguma observação ao acaso, meio relembrada, poderia ser a chave para a busca de Brienne.
  — Sor? Minha senhora? — Podrick apontou. — Há uma carroça à frente. 
Brienne a viu: um carro de boi de madeira, de duas rodas e com as laterais altas. Um homem e uma mulher estavam trabalhando na pista, puxando a carroça ao longo dos sulcos em direção a Lagoa da Donzela. Camponeses, pela sua aparência.
— Vamos mais devagar agora — ela disse ao garoto. — Eles devem imaginar que somos foras da lei. Não diga mais do que deve e seja cortês.
— Eu serei, Sor. Ser cortês. Minha senhora. — O garoto parecia quase prazeroso com a possibilidade de ser tomado por um fora da lei. 
Os camponeses os observaram com cautela enquanto vinham trotando, mas uma vez que Brienne deixou claro que ela não lhes oferecia perigo, eles a deixaram cavalgar ao lado deles.
— Nós tínhamos um boi — o velho contou a ela enquanto eles seguiam o seu caminho através dos campos de ervas-daninhas, lagos de lama macia e árvores escurecidas, — mas os lobos sumiram com ele. — A face dele estava vermelha com o esforço de puxar a carroça. — Eles levaram nossa filha também e seguiram seu caminho com ela, mas ela voltou andando após a batalha lá embaixo em Valdocaso. O boi nunca voltou. Os lobos o comeram, eu acho.
A mulher tinha pouco a acrescentar. Ela era aproximadamente vinte anos mais nova que o homem, mas nunca disse uma palavra, só olhava para Brienne da mesma forma que teria olhado para um bezerro de duas cabeças. 
A donzela de Tarth já havia sido observada daquela forma antes. A Senhora Stark havia sido gentil com ela, mas a maioria das mulheres eram tão cruéis quanto os homens. Ela não poderia ter dito o que achava mais ofensivo, as garotas bonitas com suas línguas petulantes e seus sorrisos irritadiços ou as donzelas de olhar frio que escondiam seu desdém atrás de uma máscara de cortesia. E mulheres comuns podiam ser más da mesma forma.
— Lagoa da Donzela estava em ruínas da última vez que eu vi — ela disse. — Os portões estavam quebrados e metade da cidade havia sido queimada.
— Eles reconstruíram algumas coisas. Esse Tarly, ele é um homem duro, mas um lorde mais corajoso que Mooton. Ainda há foras da lei, mas não tanto quanto antes. Tarly perseguiu os piores deles e diminuiu o seu número com aquela grande espada. — Ele virou sua cabeça e cuspiu. — Vocês têm encontrado foras da lei na estrada?” 
— Nenhum. — Não dessa vez. Quanto mais eles se afastavam de Valdocaso, mais a estrada se tornava vazia. 
Os únicos viajantes que haviam vislumbrado se dissolveram dentro da floresta antes que pudessem alcançá-los, salvos por um septão grande e barbudo que eles encontraram caminhando para o sul com cerca de quarenta seguidores cansados. As pousadas, pelas quais eles passaram tinham sido saqueadas e abandonadas ou transformadas em campos armados. Ontem eles haviam encontrado uma das patrulhas de Lorde Randyll, equipada com arcos longos e lanças. Os cavaleiros os tinham cercado enquanto o capitão questionava Brienne, mas no final ele os deixou seguir seu caminho. 
— Seja cautelosa, mulher. O próximo homem que você encontrar pode não ser tão honesto quanto meus homens. O Cão de Caça cruzou o Tridente com uma centena de foras da lei, e dizem que estão estuprando todas as camponesas que encontram e cortando seus seios como troféus.
Brienne sentiu-se obrigada a passar esse aviso para o agricultor e sua esposa.  O homem acenou com a cabeça enquanto ela falava, mas quando ela tinha terminado, ele cuspiu novamente e disse:
— Que os Outros levem todos esses malditos cães, lobos e leões. Esses foras da lei não vão ousar chegar muito perto de Lagoa da Donzela, não enquanto Lorde Tarly for o governante lá. 
Brienne conheceu Lorde Randyll Tarly em seu tempo como hóspede do Rei Renly. Embora ela não pudesse encontrar em si mesma afeição pelo homem, ela não poderia esquecer a dívida que ela tinha com ele. Se os deuses forem bons, nós vamos passar por Lagoa da Donzela antes que ele saiba que estive lá.
— A cidade será restaurada para Lorde Mooton quando a guerra acabar — ela disse ao fazendeiro. — Seu senhorio foi perdoado pelo rei.
— Perdoado? — O velho homem riu. — Pelo o que? Sentar sua bunda no seu maldito castelo? Ele enviou homens para Correrrio para lutar, mas ele mesmo nunca foi. Leões saquearam sua cidade, depois lobos, depois mercenários, e seu senhorio sentou-se a salvo atrás dos muros. Seu irmão nunca teria se escondido assim. Sor Myles foi forte como bronze até que Robert o matou.
Mais fantasmas, Brienne pensou.
— Estou procurando por minha irmã, uma donzela bonita de treze anos. Talvez você a tenha visto?
— Eu não tenho visto donzelas, bonita ou feia.
Ninguém tem. Mas ela precisava continuar perguntando. 
— A filha de Mooton, ela é uma donzela — o homem continuou. — Até a noite de núpcias, de qualquer modo. 
— Esses ovos, eles são para o casamento dela. Dela e do filho de Tarly. Os cozinheiros vão precisar de ovos para os bolos.
— Eles vão precisar. — O filho de Lorde Tarly. O jovem Dickon está para casar-se. Ela tentou se lembrar qual era a sua idade; oito ou dez, ela pensou. Brienne havia noivado aos sete, um garoto três anos mais velho que ela, o filho mais novo de Lorde Caron, um garoto tímido com uma verruga acima de seus lábios. Eles haviam se encontrado apenas uma vez, na ocasião de seu noivado. Dois anos mais tarde ele estava morto, levado pelo mesmo abatimento que levou Lorde e Senhora Caron e suas filhas. Se ele tivesse vivido, eles teriam se casado em até um ano após sua primeira florescência, e toda a sua vida teria sido diferente. Ela não estaria aqui agora, vestida em uma armadura de homem e carregando uma espada, procurando pela filha de uma mulher morta. Mais provavelmente ela estaria cantando uma canção de ninar, envolvendo uma criança e olhando outra. Esse não era um pensamento novo para Brienne. Isso sempre a fez sentir-se um pouco triste, mas um pouco aliviada também. 
O sol estava meio escondido atrás de um banco de nuvens quando eles saíram de trás das árvores escurecidas para encontrar Lagoa da Donzela a frente deles, com as águas profundas da baía do outro lado. Os portões da cidade haviam sido reconstruídos e reforçados, Brienne percebeu de uma vez, e homens com arcos curvos andavam nas paredes cor-de-rosa novamente. Acima do portão de entrada flutuava estandarte real do Rei Tommen, um veado preto e um leão dourado combatendo em um campo dividido em ouro e carmesim. Outros estandartes exibiam o caçador Tarly, mas o salmão vermelho da Casa Mooton voava apenas de seu castelo em sua colina.
Na ponte levadiça eles encontraram uma dúzia de guardas armados com alabardas. Seus distintivos os marcava como soldados que serviam à Lorde Tarly, embora nenhum deles fosse empregado de Lorde Tarly.
Ela viu dois centauros, um raio, um besouro azul e uma seta verde, mas não o caçador caminhando de Monte Chifre.  O sargento deles tinha um pavão no peito, sua cauda brilhante por causa do sol. 
Quando os fazendeiros apareceram com sua carroça ele deu um assobio.
— O que é isso agora? Ovos? — Ele jogou um para cima, pegou novamente, e sorriu. — Nós vamos ficar com eles.
O velho homem gritou.
— Nossos ovos são para Lorde Mooton. Para os bolos de casamento e demais pratos.
— Faça suas galinhas botarem mais. Eu não tenho um ovo há meio ano. Aqui, não diga que não estamos pagando. — Ele atirou um punhado de moedas de um centavo aos pés do velho. 
A mulher do fazendeiro falou. “— Isso não é suficiente — ela disse. — Nem perto de ser suficiente.
— Eu digo que é — disse o sargento. — Pelos ovos, e por você também. Tragam-na aqui garotos. Ela é muito jovem para aquele homem velho. — Dois guardas pousaram suas alabardas contra a parede e puxaram a mulher para fora da carroça, lutando. O fazendeiro assistiu com a cara fechada, mas não se atreveu a fazer nenhum movimento. 
Brienne estimulou sua égua para frente.
— Soltem-na.
A voz dela fez os guardas hesitarem tempo suficiente para a esposa do fazendeiro se livrar do alcance deles. 
— Isso não é da sua conta — um homem disse. — Você controle sua boca, meretriz.
Ao invés disso Brienne desembainhou sua espada. 
— Bem, agora — o sargento disse — aço nu. Parece que estou cheirando um fora da lei. Você sabe o que Lorde Tarly faz com foras da lei?
— Ele continuava segurando o ovo que ele pegou da carroça. Sua mão fechou-se, e a gema vazou por seus dedos. 
— Eu sei o que Lorde Randyll faz com os foras da lei — Brienne disse. — E também sei o que ele faz com estupradores.
Ela esperava que o nome fosse intimidá-lo, mas o sargento só chacoalhou a mão tirando o ovo de seus dedos e sinalizou para os seus homens para espalharem-se. Brienne se encontrava cercada por pontas de aço.
— O que você estava dizendo, meretriz? O que é que Lorde Tarly faz com...
—... Estupradores — uma voz mais profunda terminou. — Ele os capa ou os envia para a Muralha. Às vezes os dois. E ele corta fora os dedos dos ladrões. — Um homem jovem e lânguido saiu do portão principal, um cinturão com a espada afivelada a sua cintura. A túnica que ele usava sobre sua cota de malha já tinha sido branca, e aqui e ali ainda estava sob as manchas de grama e sangue seco. O seu símbolo estava disposto em seu peito: um veado marrom, morto e amarrado, pendurado em um poste.
Ele. Sua voz era um soco no estômago dela, e sua face uma lâmina em suas entranhas.
— Sor Hyle — ela disse rigidamente. 
— Melhor deixá-la em paz, companheiros — avisou Sor Hyle Hunt. — Esta é Brienne, a Bela, a Donzela de Tarth, quem matou o Rei Renly e metade de sua Guarda Arco-íris. Ela é tão desprezível quanto é feia, e não há ninguém mais feia... exceto talvez por você, Pisspot, mas o seu pai era o a parte traseira de um boi selvagem, então você tem uma boa desculpa. O pai dela é a Estrela da Tarde de Tarth.
Os guardas riram, mas as alabardas de dividiram.
— Não deveríamos prendê-la, sor? — o sargento perguntou. — Por ter matado Renly?
— Por quê? Renly era um rebelde. Então todos nós fomos rebeldes para um homem, mas agora nós somos todos leais a Tommen. — O cavaleiro acenou para os fazendeiros do portão. — O intendente de sua senhoria vai ficar feliz em ter esses ovos. Vocês irão encontrá-lo no mercado.
O velho homem franziu o cenho.
— Meus agradecimentos, meu lorde. O senhor é um verdadeiro cavaleiro, isso é fácil de se ver. Venha, esposa. — Eles colocaram os seus ombros na carroça novamente e de deslocaram para o portão fazendo barulho.  
Brienne trotou depois deles, com Podrick em seus calcanhares. Um verdadeiro cavaleiro, ela pensou, franzindo o rosto. Dentro da cidade ela tirou o arreio. As ruínas de um estábulo podiam ser vistas à sua esquerda, de frente para um beco lamacento. Do outro lado, havia três prostitutas seminuas no balcão de um bordel, cochichando umas com as outras. Uma parecia um pouco com uma seguidora do acampamento que uma vez veio a Brienne para perguntar se ela tinha uma boceta ou um pinto dentro do seu calção.
— Aquele cavalo deve ser o mais terrível que já vi — disse Sor Hyle da montaria de Podrick. — Eu estou surpreso que você não o esteja montando, minha senhora. Você planeja me agradecer pela minha ajuda?
Brienne desmontou de sua égua. Ela ficou uma cabeça mais alta que Sor Hyle. — Um dia eu vou agradecê-lo em uma luta, Sor.
— Da maneira que você agradeceu a Ronnet, o Vermelho? — Hunt riu. Ele tinha uma risada cheia, rica, mas sua face era clara. Um rosto honesto, ela pensou uma vez, antes de conhecê-lo melhor. Cabelo castanho desgrenhado, olhos castanhos, uma cicatriz perto de sua orelha esquerda. Seu queixo tinha uma fenda e seu nariz era torto, mas ele ria muito bem, e frequentemente. 
— O senhor não deveria estar vigiando o seu portão?
— Ele fez uma careta para ela.
— Meu primo Alyn está lá fora caçando foras da lei. Sem dúvida ele irá voltar com a cabeça do Cão de Caça, regozijando e coberto de glória. Enquanto isso, eu estou condenado a guardar este portão, graças a você. Eu espero que você esteja satisfeita, minha bela. O que é que você está procurando? 
— Um estábulo.
— Perto do portão leste. Está queimado.
Eu posso ver.
— O que você disse para aqueles homens... eu estava com o Rei Renly quando ele morreu, mas foi algum feiticeiro que o assassinou, sor. Eu dou a minha palavra. — Ela colocou a sua mão sobre o cabo da espada, pronta para lutar se Hunt a chamasse de mentirosa na sua cara. 
— Sim, e foi o Cavaleiro das Flores quem retalhou a Guarda Arcoíris. Em um dia santo você poderia ter sido capaz de derrotar Sor Emmon. Ele era um lutador imprudente e se cansava facilmente. Royce, então? Não. Sor Robar era duas vezes o espadachim que você é… embora você não seja um espadachim, você é? Existe a palavra para uma meretriz da espada? O que a traz a donzela a Lagoa da Donzela, eu imagino? 
Procurando por minha irmã, uma donzela de treze anos, ela quase disse, mas Sor Hyle saberia que ela não tinha irmãs.
— Procuro um homem, em um lugar chamado Ganso fedorento.
— Eu pensava que Brienne a Bela não tivesse uso para homens. — Houve um requinte de crueldade em seu sorriso. — O Ganso Fedorento. Um nome adequado para aquela… parte fedorenta, pelo menos. É perto do porto. Mas primeiro você vem comigo para ver sua senhoria.
Brienne não tinha medo de Sor Hyle, mas ele era um dos capitães de Randyll Tarly. Um assobio, e uma centena de homens viriam correndo para defendê-lo.
— Eu serei presa?
— O que, por Renly? Quem era ele? Nós trocamos de reis desde então, alguns de nós duas vezes. Ninguém se importa, ninguém se lembra. — Ele pousou a mão levemente sobre o ombro dela. — Por aqui, se me acompanhar. 
Ela se afastou.
— Eu agradeceria se não me tocasse.
— Enfim agradecimentos — ele disse, com um sorriso torto. 
Na última vez em que ela esteve em Lagoa da Donzela, a cidade estava desolada, um lugar cruel com ruas vazias e casas queimadas. Agora as ruas estavam repletas de porcos e crianças, e a maioria dos prédios queimados tinham sido demolidos. Vegetais foram plantados nos lotes onde uma vez estiveram. Barracas de comerciantes e pavilhões de cavaleiros tomaram o lugar de outros. Brienne viu novas casas sendo construídas, uma pousada de pedra sendo erguida onde uma de madeira foi queimada, um novo teto de ardósia no septo da cidade. O ar gelado de outono tocou ao som de uma serra e um martelo. Homens carregavam madeira através das ruas, e pedreiros levavam seus carros para as ruas enlameadas. Muitos usavam o caçador caminhando em seu peito. 
— Os soldados estão reconstruindo a cidade — ela disse surpresa. 
— Eles em breve devem estar jogando, bebendo e fodendo, eu não duvido, mas Lorde Randyll acredita em colocar os homens indolentes para trabalhar.
Ela esperava ser levada ao castelo. Ao invés, Hunt os guiou para o porto movimentado. Os comerciantes voltaram para Lagoa da Donzela, ela estava satisfeita em ver. A galera, uma galé, e um grande barco pesqueiro com dois mastros estavam no porto, juntamente com um grupo de pequenos barcos de pesca. Mais pescadores eram visíveis fora na baía. Se o Ganso Fedorento não render nada, eu vou pegar uma passagem em um navio, ela decidiu. Vila Gaivota estava apenas a uma curta viagem de distância. De lá ela poderia tomar o seu caminho para o Ninho da Águia facilmente.  
Eles encontraram Lorde Tarly no mercado de peixe, fazendo justiça. 
Uma plataforma havia sido colocada no alto ao lado da água, de onde seu senhorio poderia olhar de cima os homens acusados de crimes. A sua esquerda estava uma longa forca, com cordas suficientes para vinte homens. Quatros defuntos estavam pendurados nela. Um parecia fresco, mas os outros claramente estavam lá já há algum tempo. Um corvo estava puxando tiras de carne das ruínas maduras de um homem morto. Os outros corvos estavam dispersos, desconfiados com a multidão de moradores que se reuniam na esperança de que alguém fosse enforcado.
Lorde Randyll dividia a plataforma com Lorde Mooton, um homem pálido, agradável, e carnudo em um gibão branco e calças vermelhas, sua capa de arminho pendurada no ombro por um broche de ouro vermelho na forma de um salmão. Tarly vestia cota de malha e couro cozido, e uma couraça de aço cinzento. O punho de uma espada larga estava em cima de seu ombro esquerdo. Veneno de Coração, era o nome, o orgulho de sua Casa. 
Um rapaz em uma capa singela e um gibão sujo estava sendo ouvido quando eles chegaram. 
— Eu nunca machuquei ninguém, meu lorde, — Brienne o ouviu dizer. — Eu só tomei o que os septões deixaram quando partiram. Se o senhor quer cortar os meus dedos por isso, faça-o.
— É costumeiro tirar um dedo de ladrões — Lorde Tarly replicou em um tom duro. — Mas um homem que rouba de um septo está roubando de deus. — Ele se virou para o chefe da guarda. — Sete dedos. Deixe os seus polegares.
— Sete? — O ladrão empalideceu. Quando os guardas o seguraram, ele tentou lutar, mas debilmente, como se ele já estivesse mutilado.
Assistindo a cena, Brienne não pode deixar de pensar em Sor Jaime, e da maneira com que ele gritou quando o arakh de Zollo veio cintilando em sua direção. 
O próximo homem era um padeiro, acusado de misturar serragem com farinha; Lorde Randyll o multou em cinquenta veados de prata. Quando o padeiro jurou que não tinha toda aquela prata, o senhorio declarou que ele poderia levar uma chicotada para cada veado de prata faltante. Ele foi seguido por uma prostituta desfigurada de cara cinzenta, acusada de passar sífilis para quatro dos soldados de Tarly.
— Lavem as partes íntimas dela com lixívia e joguem-na na masmorra. — Tarly mandou. Enquanto a prostituta era arrastada soluçando, sua senhoria viu Brienne na beira da multidão, em pé entre Podrick e Sor Hyle. Ele fez uma careta pra ela, mas os seus olhos o traíram não mostrando nem um lampejo de reconhecimento. 
Um marinheiro de uma galé veio em seguida. Seu acusador era um arqueiro da guarnição de Lorde Mooton, com uma mão enfaixada e um salmão no peito. — Se o senhor me permite, meu lorde, este bastardo colocou sua adaga em minha mão. Ele disse que eu estava roubando nos dados.
Lorde Tarly levou seu olhar para longe de Brienne a observar os homens à frente dele.
— E você estava?
— Não, meu lorde. Eu nunca.
— Por roubar, eu vou tirar-lhe um dedo. Por mentir para mim eu vou enforcá-lo. Posso ver esses dados?
— O dado? — O arqueiro olhou para Mooton, mas seu senhorio estava olhando os barcos de pesca. O arqueiro engoliu em seco. — Talvez seja que... esses dados, eles me trazem sorte, é verdade, mas...
Tarly tinha ouvido o suficiente.
— Tirem o seu dedo mindinho. Ele pode escolher de qual mão. Um prego através da palma para o outro. — Ele parou. — Terminamos. Marche o resto deles de volta à masmorra, eu vou lidar com eles amanhã. — Ele se virou para acenar para Sor Hyle à frente. Brienne o seguiu.
— Meu lorde, — ela disse, quando estava a frente dele. Ela se sentiu com oito anos novamente. 
— Minha donzela. A que devo esta... honra?
— Eu fui enviada para procurar por... por... — ela hesitou. 
— Como você vai encontrá-lo se você não sabe o nome dele. Você matou Lorde Renly?
— Não.
Tarly pesava as palavras. Ele está me julgando, como ele julgou aos outros. 
— Não — ele disse por fim — Você só deixou que ele morresse.
Ele havia morrido nos braços dela, o sangue dele a umedecendo. Brienne se encolheu.
— Foi feitiçaria. Eu nunca... 
— Você nunca? — Sua voz tornou-se um chicote. — Sim. Você nunca deveria ter vestido armadura, nem afivelado uma espada. Você nunca deveria ter deixado a casa de seu pai. Isso é uma guerra, não o baile da colheita. Por todos os deuses, eu devo embarcá-la de volta para Tarth.
— Faça isso e responda ao trono. — Sua voz soava alta e feminina, quando ela queria mostrar que não tinha medo. — Podrick. Em minha bolsa você encontrará um pergaminho. Traga-o para este senhor. 
Tarly pegou a carta e a desenrolou, franzindo as sobrancelhas. Seus lábios se moviam enquanto ele lia. 
— Os negócios do reis. Que tipo de negócios? 
Minta pra mim e eu vou enforcá-lo.
— Sansa Stark.
— Se a garota Stark estivesse aqui, eu saberia. Ela seguiu de volta para o norte, eu apostaria. Esperando encontrar refúgio com um dos homens da bandeira de seu pai. Ela tinha grandes esperanças se encontrar o aliado certo.
— Ao invés disso, ela deve ter ido ao vale — Brienne se ouviu deixar escapar. — Para a irmã de sua mãe. — Lorde Randyll deu a ela um olhar insolente. — A Senhora Lysa está morta. Algum cantor a empurrou montanha abaixo. Mindinho dirige o Ninho da Águia agora... mas não por muito tempo. Os lordes do Vale não são do tipo que dobram os seus joelhos para patetas cuja única habilidade é contar cobres. — Ele devolveu a carta a ela. — Vá onde quiser e faça como achar melhor... mas quando você for estuprada não me procure para justiça. Você terá o que conseguiu com sua tolice. —  Ele lançou um olhar para Sor Hyle. — E você, Sor, deveria estar no seu portão. Eu te dei o comando, não dei?
— O senhor comandou, meu lorde — disse Hyle Hunt. — Mas eu pensei...
— Você pensa muito. — Lorde Tarly afastou-se.  
Lysa Tully está morta. Brienne ficou embaixo da forca, o precioso pergaminho em sua mão. A multidão havia se dispersado, e os corvos haviam voltado para reiniciar o seu banquete. Um cantor a empurrou montanha abaixo. Teriam os corvos jantado a irmã da Senhora Catelyn também? 
— A senhorita falou do Ganso Fedorento, minha donzela — disse Sor Hyle. — Se a senhorita quiser que eu lhe mostre... 
— Volte para o seu portão. 
Um olhar de aborrecimento passou pelo seu rosto. Um rosto claro, mas não honesto. 
— Se é o seu desejo.
— É sim. 
— Foi apenas um jogo para passar o tempo. Não pretendíamos machucar... — Ele hesitou. — Ben morreu, você sabe. Redução em Água Negra. Farrow também, e Will, o Cegonha . E Mark Mullendore teve um ferimento que lhe custou metade do braço.
Bom, Brienne quis dizer. Bom, ele mereceu. Mas ela se lembrou de Mullendore sentado do lado de fora de seu pavilhão com seu macaco no ombro em uma pequena cota de malha, os dois fazendo caretas um para o outro. De que foi que Catelyn Stark os tinha chamado, naquela noite em Ponteamarga? Os cavaleiros do verão. E agora é inverno e eles estão caindo como folhas… ela virou de costas para Hyle Hunt. — Podrick venha.
O garoto trotou depois dela, levando seus cavalos.
— Estamos indo encontrar o lugar? O Ganso Fedorento? 
— Eu vou. Você está indo para os estábulos, perto do portão leste. Pergunte ao cavalariço se há uma pousada onde podemos passar a noite.
— Eu vou, Sor. Minha senhora. — Podrick olhou para o chão enquanto eles caminhavam, chutando pedras de tempos em tempos. — Você sabe onde é? O Ganso? O Ganso Fedorento, eu quero dizer.
— Não.
— Ele disse que nos mostraria. Aquele cavaleiro. Sor Kyle. 
— Hyle.
— Hyle. O que ele faz a você, sor? Quero dizer, minha donzela.
O garoto pode ser um gaguinho, mas não é idiota.
— Em Jardim de Cima, quando o Rei Renly chamou seus aliados, alguns homens fizeram uma brincadeira comigo. Sor Hyle foi um deles. Era uma brincadeira cruel, dolorosa e descortês. — Ela parou. — O portão leste é naquela direção. Espero por mim lá. 
— Como você diz, minha senhora. Sor.
Nenhuma placa marcava o Ganso Fedorento. Ela levou quase uma hora para encontrá-lo, debaixo de um lance de degraus de madeira abaixo de um abate de cavalos. O lugar era escuro e o teto era baixo, e Brienne bateu a sua cabeça em uma viga quando entrou. Não havia nenhum ganso em evidência. Algumas fezes estavam espalhadas, e um banco tinha sido empurrado para cima contra uma parede de barro. As mesas eram barris velhos de vinho, cinza e esburacados. O fedor prometido permeava tudo. A maior parte era vinho, umidade e mofo, o seu nariz lhe disse, mas havia também um pouco de excrementos, e alguma coisa de morte também. 
Os únicos beberrões eram três marinheiros de Tyroshi em um canto. Rosnando um para o outro através de suas barbas verdes e roxas. Ele a inspecionaram brevemente, e um deles disse alguma coisa que fez os outros rirem. A proprietária estava atrás de uma prancha que havia sido colocada atrás de dois barris. Ela era uma mulher redonda, pálida e careca, com seios grandes e macios balançando debaixo de uma blusa suja. Parecia que os deuses a tinham feito de massa crua. Brienne não se atreveu a pedir água aqui. Ela comprou uma taça de vinho e disse: 
— Eu estou procurando por um homem chamado Dick, o Ágil.
— Dick Crabb. Vêm quase todas as noites. — A mulher olhou a armadura de Brienne e sua espada. — Se você vai cortá-lo, faça isso em outro lugar. Nós não queremos problemas com Lorde Tarly.
— Eu quero conversar com ele. Por que eu iria machucá-lo?
E mulher deu de ombros. 
— Se você sinalizasse com a cabeça quando ele entrar, eu seria grata.
— Quão grata?
Brienne colocou uma estrela de cobre na prancha entre elas e encontrou um lugar nas sombras com uma boa vista dos degraus.  
Ela provou o vinho. Estava oleoso na língua e havia um cabelo boiando nele. Um cabelo tão fino como a minha esperança de encontrar Sansa, ela pensou enquanto o tirava. Perseguir Sor Dontos foi infrutífero, e agora com a Senhora Lysa morta o vale não mais parece um provável refúgio. Onde está você, Senhora Sansa? Você correu para casa em Winterfell, ou você está com seu marido, como Podrick parece pensar? Brienne não queria perseguir a garota através do mar estreito, onde até a linguagem seria estranha para ela. Eu serei ainda mais estranha lá, grunhindo e gesticulando para me fazer entender. Eles irão rir de mim, como riram em Jardim de Cima. Um calor tomou as suas bochechas enquanto ela lembrava. 
Quando Renly vestiu sua coroa, a Donzela de Tarth havia se escondido por todo o caminho através da Campina para se juntar a ele. O próprio rei a havia cumprimentado com cortesia e dado às boas-vindas a ela em seu serviço. Não foi assim com seus lordes e cavaleiros. Brienne não esperava uma recepção calorosa. Ela estava preparada para frieza, para gozações, para hostilidade. Desse prato ela já havia provado. Não era o desprezo de tantos homens que a deixou vulnerável e confusa, mas a doçura de alguns.
A Donzela de Tarth havia sido traída três vezes, mas ela nunca havia sido cortejada até vir para Jardim de Cima. 
O grande Ben Bushy foi o primeiro, um dos poucos homens no acampamento de Renly que a superava em altura. Ele mandou seu escudeiro para limpar a armadura dela, e fez para ela um chifre para beber de prata. 
Sor Edmund Ambrose o superou, trazendo flores e a convidando para cavalgar com ele. Sor Hyle Hunt superou aos dois. Ele deu a ela um livro, lindamente iluminado e recheado com uma centena de contos de cavaleiros de valor. Ele trouxe cenouras e maçãs para os seus cavalos, e uma pluma azul de seda para o elmo dela. Ele disse a ela as fofocas do acampamento e disse coisas inteligentes, mordazes, que a fizeram sorrir. Ele até treinou com ela um dia, o que significou mais que todo o resto. 
Ela pensou que fosse por causa dele que os outros começaram a ser corteses. Mais do que corteses. Na mesa, homens brigavam para sentar-se ao lado dela, se oferecendo para encher a sua caneca de vinho ou buscar para ela pães doces. Sor Richard Farrow tocou músicas de amor em seu alaúde do lado de fora do pavilhão dela. 
Sor Hugh Beesbury trouxe para ela um pote de mel ‘tão doce quanto as Donzelas de Tarth.’ Sor Mark Mullendore a fez rir com as esquisitices de seu macaco, uma criatura preta e branca, pequena e curiosa das Ilhas do Verão. Um cavaleiro da barreira chamado Will, o Cegonha se ofereceu para esfregar os nós de seus ombros.
Brienne o recusou. Ela recusou todos eles. Quando Sor Owen Inchfield a segurou numa noite e pressionou um beijo sobre ela, ela o empurrou com a bunda em uma fogueira. Mais tarde ela olhou para si mesma em um vidro. Seu rosto estava tão amplo e com dentes de coelho e sardento como sempre, lábios grandes, queixo largo, tão feia. Tudo o que ela queria era ser um cavaleiro e servir ao Rei Renly, até agora... 
Não era como se ela fosse a única mulher lá. Mesmo as seguidoras do acampamento eram mais belas que ela, e lá em cima no castelo de Lorde Tyrell, Rei Renly festejava toda noite, enquanto donzelas bem-nascidas e damas adoráveis dançavam ao som da gaita de fole, da buzina e da harpa. Por que você está sendo gentil comigo? Ela queria gritar, toda vez que um cavaleiro estranho lhe cumprimentava. O que você quer? 
Randyll Tarly resolveu o mistério o dia em que enviou dois de seus homens de armas para chamá-la em seu pavilhão. O seu filho mais novo, Dickson, tinha ouvido quatro cavaleiros rindo enquanto selavam os seus cavalos, e contou ao seu pai o que eles disseram. 
Eles tinham uma aposta.
Três dos cavaleiros mais jovens tinham começado, ele disse a ela: Ambrose, Bushy, e Hyle Hunt, de sua própria casa. À medida que a notícia se espalhou pelo acampamento, outros entraram no jogo. Cada homem precisava entrar com um dragão de ouro, a quantia total iria a quem conseguisse tirar a sua virgindade. 
— Eu preciso dar um fim nesse esporte — Tarly a disse. — Alguns desses... jogadores... são menos honoráveis que outros, e o bolo está crescendo cada vez mais. É só uma questão de tempo antes que algum deles decida tomar o prêmio a força.
— Eles eram cavaleiros — ela disse atordoada. — Cavaleiros ungidos.
— E homens honoráveis. A culpa é sua.
A acusação à fez recuar.
— Eu nunca... meu lorde, eu não fiz nada para encorajá-los. 
— Você estar aqui os encorajou. Se uma mulher comporta como uma seguidora do acampamento, ela não pode opor-se a ser tratada como uma. Uma batalha de guerra não é lugar para uma donzela. Se você tem alguma consideração por sua virtude ou pela honra de sua Casa, você vai tirar esta armadura, voltar para casa, e pedir ao seu pai para encontrar um marido para você.
— Eu vim para lutar — ela insistiu. — Ser um cavaleiro. 
— Os deuses fizeram os homens para lutar, e as mulheres para criar as crianças, — disse Randyll Tarly. — A guerra de uma mulher está na cama do parto.
Alguém estava descendo os degraus da adega. Brienne colocou seu vinho de lado enquanto um homem maltrapilho, magro, com cara de trapaceiro com cabelos castanhos e sujos entrou no Ganso. Ele deu uma olhadela para os marinheiros de Tyroshi e uma olhada mais longa para Brienne, e então foi até a prancha. 
— Vinho — ele disse. — e nada de mijo do seu cavalo nesse, obrigado.
A mulher olhou para Brienne e acenou com a cabeça. 
— Eu vou pagar o seu vinho — ela disse — por umas palavras.
O homem olhou melhor, seus olhos cautelosos. 
— Umas palavras? Eu sei muitas delas. — Ele se sentou do outro lado do tambor de frente para ela. — Diga-me o que minha senhora quer ouvir, e Dick, o Ágil vai dizer.
— Eu ouvi que você enganou um bobo. 
O homem esfarrapado tomou um gole de vinho, pensando. 
— Talvez eu tenha. Ou não. — Ele usava um gibão desbotado e rasgado, de onde o distintivo de algum lorde havia sido arrancado. — Quem quer saber?
— Rei Robert. — Ela colocou um veado de prata entre eles. A cabeça de Robert estava de um lado, o veado do outro.
— Ele agora? — O homem pegou a moeda e a girou, sorrindo. — Eu gosto de ver um rei dançar, hey-nonny hey-nonny hey-nonny-ho. Talvez eu tenha visto o seu bobo.
— Havia uma garota com ele?
— Duas garotas — ele disse de uma vez. 
— Duas garotas? — Poderia a outra ser Arya? 
— Bem — o homem disse. — Eu nunca vi as duas doçuras, note você, mas ele queria passagens para três.
— Passagens para onde?
— Pro outro lado do oceano, se bem me lembro.
— Você se lembra qual era a sua aparência? 
— De um bobo. — Ele pegou a moeda girando em cima da mesa quando ela começou a ficar mais lenta, e a fez desaparecer. — Um bobo assustado. 
— Assustado por quê? 
Ele deu de ombros.
— Ele nunca disse, mas o velho Dick, o Ágil conhece o cheiro do medo. Ele vinha aqui quase todas as noites, comprando bebidas para marinheiros, fazendo gracejos, cantando pequenas canções. Em uma noite alguns homens chegaram com aqueles caçadores em suas tetas, e seu bobo ficou branco como leite e ficou quieto até que eles saíram... — Ele ficou mais perto do banco dela. —Aquele Tarly colocou soldados rastejando sobre as docas, vendo todos os navios que chegam ou partem. O homem quer um veado, ele vai até a floresta. Se ele quer um barco, ele vai às docas. Seu bobo não se atreveu. Então eu ofereci ajuda a ele.
— Que tipo de ajuda?
— O tipo que custa mais que um veado de prata. 
— Diga-me, e você terá outro.
— Vamos ver — ele disse. Ela colocou outro veado no barril. Ele a girou, sorriu e a jogou pra cima. — Um homem que não pode pegar os navios precisam que os navios venham até ele. Eu disse a ele que conhecia um lugar onde isso pudesse acontecer. Um local escondido, por exemplo.
Uma picada de ganso subiu pelos braços de Brienne.
— Uma enseada de contrabandistas. Você enviou o bobo para contrabandistas.
— Ele e suas duas garotas. — Ele riu. — A única coisa, bem, o local que eu os enviei, não há navios lá há algum tempo. Trinta anos, eu diria. — Ele coçou seu nariz. — O que esse bobo é para você?
— As duas garotas são minhas irmãs. 
— Elas são agora? Coitadas das coisinhas. Eu tive uma irmã uma vez. Uma garota magrela com joelhos saltados, mas então cresceu nela um par de tetas e o filho de um cavaleiro ficou entre suas pernas. A última vez que a vi ela estava fora de Porto Real para fazer uma vida por ela mesma.
— Onde você os enviou?
Ele encolheu os ombros de novo. 
— Ah, isso, não consigo me lembrar.
— Onde? — Brienne bateu com a mão aberta outro veado de prata. 
Ele jogou a moeda de volta para ela com o dedo indicador. 
— Algum lugar onde não se encontra o veado... um dragão talvez.
Prata não tiraria a verdade dele, ela sentiu. Ouro talvez, mas talvez não. O aço daria mais certo. Brienne tocou a sua adaga, mas então pegou a sua bolsa. Ela encontrou um dragão de ouro e colocou sobre o barril. 
— Onde?
O homem esfarrapado pegou a moeda e a mordeu. — Doçura. Me vem a mente a Ponta da Garra Rachada. Ao norte daqui, há uma terra selvagem com colinas e pântanos, mas acontece que eu nasci e fui criado lá. Dick Crabb, é meu nome, embora muitos me chamem de Dick, o Ágil.” 
Ela não ofereceu seu próprio nome.
— Onde no na Ponta da Garra Rachada?” 
— Os Sussurradores. Você já ouviu falar em Crabb, com certeza.
— Não.
Isso pareceu surpreendê-lo.
— Sor Clarence Crabb, eu disse. Eu tenho o sangue dele em mim. Ele tinha oito pés de altura, e tão forte que podia desenraizar pinheiro com uma mão e atirar a meia milha de distância. Nenhum cavalo podia aguentar o seu peso, então ele montava um auroque.
— O que ele tem a ver com a cova dos contrabandistas?
— Sua mulher era uma feiticeira dos bosques. Toda vez que Sor Clarence matava um homem, ele levava a sua cabeça de volta para casa e sua mulher beijava os lábios e os trazia de volta à vida. Eles eram lordes, e magos, e cavaleiros famosos e piratas. Um deles era Rei de Valdocaso. Eles deram ao velho bons conselhos. Sendo eles apenas cabeças, eles não podiam falar muito alto, mas também nunca se calavam. Quando você é uma cabeça, falar é tudo o que você tem para passar o dia. Então, os que o Crabb manteve ficaram conhecidos como os Sussurradores. Ainda é, apesar de ter sido uma ruína por mil anos. Um local solitário, os Sussurradores. — O homem deslizou a moeda habilmente entre seus dedos. — Um dragão por ele mesmo se sente sozinho. Agora, dez... 
— Dez dragões são uma fortuna. Você está me tomando como um bobo?
— Mas, mas eu posso levá-la para um. — A moeda dançou para um lado, e voltou pelo outro. — Levar você aos Sussurradores, minha senhora.
Brienne não gostou da maneira como os dedos dele brincavam com a moeda. Ainda…
— Seis dragões se encontrarmos minha irmã. Dois se encontrarmos apenas o bobo. Nada se nada encontrarmos.
Crabb deu de ombros. — Seis é bom. Seis vão servir. 
Muito rápido. Ela segurou o pulso dele antes que ele pudesse guardar o ouro. — — Não me venha com falsidades. Você não vai me achar fácil de lidar.” 
Quando ela soltou, Crabb esfregou seu pulso.
— Maldita — ele murmurou. — Você machucou minha mão.
— Eu sinto muito por isso. Minha irmã é uma garota de treze anos. Preciso encontrá-la antes...
—... Antes que algum cavaleiro entre na fenda dela. Sim, eu entendo você. Ela está tão bem a salvo. Dick, o Ágil, está com você agora. Encontreme perto do portão leste na primeira luz do dia. Eu tenho que buscar um cavalo.
 
amwell Tarly sempre acabava enjoado em viagens marítimas.
Não era por medo de se afogar, se bem que, sem dúvida tinha algo a ver. O problema era o movimento do barco, e a maneira como o convés parecia se mexer sob os seus pés.
— As minhas tripas estão se revolvendo — confessou a Dareon no dia em que zarparam de Atalaialeste do Mar.
O cantor lhe deu uma palmada nas costas e começou a rir.
- Com o tamanho da barriga que você tem... é capaz de começar uma revolução, Matador.
Sam tentou bancar o valente, ainda que fosse somente por Goiva. Ela nunca vira o mar antes. Na penosa travessia pela neve, depois de fugir da casa de Craster, haviam passado por vários lagos, e mesmo eles pareciam impressionantes para ela. Quando o Pássaro Negro se afastou da margem, a jovem começou a tremer, e grandes lágrimas salgadas lhe correram pelas bochechas.
— Que os deuses tenham piedade de nós. — A ouviu sussurrar Sam.
Atalaialeste do Mar foi o que primeiro perderam de vista, e a Muralha foi fazendo-se cada vez menor até que, por fim, também desapareceu. O vento soprava com força. As velas eram de lona negra, mas já estavam cinza por terem sido lavadas demasiadamente, e Goiva tinha a cara branca de medo.
— Estamos em um bom barco — tratou de dizer Sam. — Não há por que ter medo.
No entanto, a garota se limitou a encará-lo, abraçou o bebê com mais energia e saiu correndo até as cabines.
Sam se agarrou com força à borda e contemplou o movimento dos remos. Era agradável admirar seu ritmo uniforme; desde logo, muito melhor que mirar a água. Bastava fitar a água e lhe vinha à mente o terror de se afogar. Quando era pequeno, seu pai havia tentado lhe ensinar a nadar, e para isso o atirou na lagoa que ficava no pé da Monte Chifre. A água havia entrado no seu nariz, na boca e nos pulmões, e ainda estava tossindo horas depois que Sor Hyle o tirou de lá. Nunca mais se atreveu a meter-se em algum lugar em que a água passasse de sua cintura.
A Baía das Focas era muito mais profunda, chegava muito mais do que só à cintura, e as águas eram muito mais agitadas do que as do pequeno lago de peixes no castelo de seu pai. As águas eram verde-acinzentadas, turbulentas, e a margem bastante arborizada, eles navegavam em uma confusão de rochas e redemoinhos. Mesmo que conseguisse chegar até ali chutando e batendo as mãos, as ondas o arremessariam contra uma rocha e quebrariam a sua cabeça.
— Que foi Matador, procurando sereias? — lhe perguntou Dareon ao vê-lo contemplar a baía.
Com os cabelos loiros e os olhos cor de avelã, o jovem e belo cantor de Atalaialeste do Mar parecia mais um príncipe que um irmão negro.
— Não.
Sam não sabia o que buscava, nem o que fazia naquele barco.
Vou à Cidadela forjar para mim um colar e tornar-me meistre, e assim servir melhor à Patrulha, tentou se convencer, mas a simples ideia lhe resultava exaustiva. Não queria se transformar em meistre, nem levar um pesado colar em torno do pescoço, tão frio contra a pele. Não queria se distanciar de seus irmãos, os únicos amigos que havia tido em toda sua vida. E, com certeza, não queria enfrentar o pai que o havia enviado à Muralha para morrer.
Para os demais era diferente. Para eles, a viagem teria um final feliz. Goiva estaria a salvo em Monte Chifre, separada por toda a extensão de Westeros dos horrores que havia conhecido na Floresta Assombrada. Como criada no castelo do pai de Sam, teria proteção e comida, e uma pequena parte de um mundo com o qual ela jamais pôde sonhar como esposa de Craster. Veria o seu filho crescer até se tornar um homem robusto; seria caçador, ajudante ou ferreiro. Se mostrasse alguma aptidão para armas, talvez algum cavaleiro o tomasse como escudeiro.
Meistre Aemon também ia a um lugar melhor. Era bom pensar que ele passaria o que lhe restava de vida acariciado pelas brisas cálidas de Vilavelha, conversando com seus camaradas meistres e compartilhando sua sabedoria com noviços e acólitos. Ele merecia cem vezes esse descanso.
Até Dareon seria mais feliz. Sempre havia dito que era inocente da violação pela qual o enviaram à Muralha; insistia que o seu lugar estava na corte de algum senhor, cantando em troca de seu jantar. Ia ter essa oportunidade. Jon o havia nomeado recrutador para ocupar o lugar de um tal de Yoren, que havia desaparecido e que se dava por morto. Sua missão consistiria em percorrer os Sete Reinos cantando as façanhas da Patrulha da Noite, e somente de quando em quando teria que voltar a Muralha com seus novos recrutas.
Sim, a viagem seria dura e demorada, isso era inegável, mas para todos os demais, ao menos teria um final feliz. Esse era o consolo de Sam.
Faço por eles, disse a si mesmo, pela Patrulha da Noite e pelo final feliz. Mas quanto mais olhava para o mar, mais frio e profundo ele lhe parecia.
O ruim era que não olhar para as águas era ainda pior, como compreendeu no abarrotado camarote que dividiam os passageiros embaixo do castelo de popa. Tratou de não pensar no frio que lhe dava no estômago, e para isso se dedicou a falar com Goiva, que estava dando seu peito para seu filho.
— Este barco nos levará para Bravos — lhe disse. — Lá buscaremos outro que nos leve a Vilavelha. Quando era pequeno eu li um livro sobre Bravos. A cidade inteira está construída numa enseada, em mais de cem ilhas, e ali há um titã, um homem de pedra que mede dezenas de metros de altura. Não viajam com cavalos, mas sim com botes, e seus bobos representam histórias que estão escritas, em vez de inventarem farsas estúpidas, como fazem em outros lugares. A comida é muito boa, sobretudo os peixes. Eles têm todos os tipos de mariscos, enguias e ostras frescos. Com certeza demoraremos alguns dias antes de pegarmos o outro barco. Se for assim, podemos ver um espetáculo de bobos, e comer ostras.
Havia pensado que a ideia animaria Goiva, mas estava muito equivocado. A garota ficou encarando-o com olhos apagados, melancólicos, entre mechas do cabelo sujo.
— Como queira, meu senhor.
— O que você quer? — lhe perguntou Sam.
— Nada.
Virou-se e passou seu filho de um peito a outro.
O movimento do barco estava revolvendo os ovos com bacon e pão frito que havia comido antes de zarpar. De repente sentiu que já não suportava nem um instante mais no camarote. Pôs-se em pé e subiu pela escadinha para despejar o desjejum no mar. As náuseas o haviam assaltado de maneira tão repentina que não parou para calcular para qual direção soprava o vento, de modo que vomitou pela borda incorreta e terminou todo salpicado. Ainda assim, depois se sentiu melhor... Se bem que não durou muito tempo.
O navio era o Pássaro Negro, a maior das galeras da Patrulha. A Corvo da Tormenta e a Garra eram mais rápidas, como havia dito Cotter Pyke ao meistre Aemon em Atalaialeste do Mar, mas eram navios de combate, esbeltas, aves de rapina muito velozes nas quais os remadores iam na coberta superior. O Pássaro Negro era melhor para as águas agitadas do mar passando por Skagos.
— Tivemos tormentas — avisou Pyke. — As de inverno são as piores, mas as de outono são mais frequentes.
Os dez primeiros dias haviam sido bastante tranquilos; o Pássaro Negro cruzou a Baía das Focas, sem perder de vista a terra em nenhum momento. Quando soprava o vento fazia frio, mas de alguma forma o cheiro salgado do ar era revigorante. Sam quase não podia comer, e quando conseguia engolir algo não retinha por muito tempo, mas apesar disso, não estava indo tão mal. Tentou inspirar confiança a Goiva e animá-la um pouco, mas acabou sendo muito difícil. Não conseguiu convencê-la a subir ao convés; preferia ficar embaixo, na escuridão, agarrada com seu filho. Pelo visto o bebê gostava do barco não mais que a sua mãe: quando não estava berrando, estava vomitando leite materno. Tinha a tripa solta, manchava constantemente as peles nas quais Goiva o envolvia para lhe dar calor e impregnava o ambiente com um fedor de esterco. Apesar das muitas velas de sebo que Sam acendia o cheiro de merda não se dissipava.
Sempre ficava melhor do lado de fora, ao ar livre, sobretudo quando Dareon cantava. Os remadores do Pássaro Negro conheciam o cantor, que tocava para animá-los enquanto trabalhavam. Sabia todas as suas canções favoritas, como O Dia em que enforcaram Robin, o Negro, O lamento da sereia e outono do meu dia; as estimulantes, como Lanças de Ferro e Sete espadas para sete filhos, e as picantes, como O jantar de minha senhora, Sua pequena flor e Meggett andava com muitos machos, muitos machos sim. Quando cantava O urso e a donzela, todos os remadores cantavam juntos e o Pássaro Negro parecia voar sobre as águas. Dareon não era grande coisa com a espada, Sam o havia visto quando treinavam juntos a mando de Alliser Thorne, mas tinha uma voz excelente. Como mel que se derrama sobre um trovão, havia dito em certa ocasião o meistre Aemon. Tocava a lira e o violino, e até escrevia suas próprias canções... Se bem que a Sam não lhe pareciam grande coisa. Ainda assim, era agradável sentar-se e escuta-lo, apesar de a madeira estar tão dura e tão lascada que Sam quase se alegrava de ter as nádegas tão carnosas.
Os gordos sempre levam uma almofada aonde que quer vão, pensou.
O meistre Aemon também preferia passar o dia no convés, empacotado em peles e contemplando as águas.
— O que adianta ele ficar aqui? — perguntou Dareon uma manhã. — Para ele, isto está tão escuro como o camarote.
O ancião os olhou. Os olhos de Aemon se haviam manchado e escurecido, mas os ouvidos lhe funcionavam bem.
— Não nasci cego — lhes recordou, — A última vez que passei por esta zona vi cada rocha, cada árvore, a espuma de cada onda, as gaivotas cinzentas que nos seguiam. Tinha trinta e cinco anos e havia sido meistre com colar durante dezesseis anos. Egg queria que o ajudasse a governar, mas eu sabia que este era meu lugar. Enviou-me ao norte a bordo do Dragão de Ouro, e teimou que deveria me acompanhar seu amigo Sor Duncan, para que chegasse são e salvo a Atalaialeste do Mar. Nenhum novo irmão havia chegado à Muralha com tanta pompa desde que Nymeria enviou à Patrulha seis reis com grilhões de ouro. Além disso, Egg esvaziou as masmorras para que não tivesse que pronunciar meus votos sozinho. Dizia que os antigos presos eram a minha guarda de honra. Entre eles estava nada menos que Brynden Rivers, que chegou a Lorde Comandante.
— Corvo de Sangue? — se surpreendeu Dareon. — Conheço uma canção sobre ele. O título é Mil olhos, e mais um. Mas eu pensava que ele havia vivido há cem anos.
— E assim foi. Houve um tempo em que fui tão jovem como tu.
Aquilo pareceu entristecê-lo. Limpou a garganta, fechou os olhos e dormiu. Cada vez que uma onda mexia o barco, se sacudia entre as peles.
Navegaram por céus cinzentos para leste, para sul e de novo pra leste, à medida que a Baía das Focas se alargava ante eles. O capitão, um irmão grisalho com uma pança que parecia um barril de cerveja, vestia roupas negras tão manchadas e descoloridas que a tripulação lhe havia posto o apelido de Velho dos Trapos. Raramente dizia uma palavra. O contramestre o compensava enchendo o ar salgado de maldições cada vez que o vento amainava ou os remadores pareciam fraquejar. Pelas manhãs tomavam copos de aveia; ao meio-dia, sopa de ervilhas verdes, e pela noite, carne salgada, bacalhau salgado e carneiro salgado, tudo isso regado com cerveja. Dareon cantava; Sam vomitava; Goiva chorava e amamentava o bebê; meistre Aemon dormia e tremia, e os ventos se tornavam mais gélidos e tempestuosos dia a dia.
Apesar de tudo, a viagem para Sam acabou sendo mais agradável que a última que havia realizado. Não tinha mais de dez anos quando zarpou na galera de Lorde Redwyne, a Rainha da Árvore. Era cinco vezes maior que o Pássaro Negro, um barco formidável, com três gigantescas velas de cor vinho e fileiras de remos que brilhavam dourados e brancos à luz do Sol. Sua maneira de balançar quando zarpou de Vilavelha era tão impressionante que Sam ficou sem palavras... Mas aquela foi a última boa recordação que teria dos estreitos de Redwyne. Naquela altura, igual ao que acontecia agora, estava enjoado, para decepção do seu pai.
Quando chegaram na Árvore, as coisas foram de mal a pior. Os filhos gêmeos de Lorde Redwyne desprezaram Sam logo que o viram. A cada dia encontravam uma nova maneira de humilhá-lo no pátio de treinamento. No terceiro dia, Horas Redwyne o obrigou a gritar como um porco quando suplicou rendição. No quinto, seu irmão Hobber vestiu um ajudante de cozinha com sua armadura e lhe encarregou de dar uma surra em Sam com uma espada de madeira até que o garoto começasse a chorar. Quando se descobriu quem era, todos os escudeiros, pajens e ajudantes rugiram de tanto rir.
— O garoto ainda tem que amadurecer, isso é tudo. — havia dito seu pai a Lorde Redwyne aquela noite.
— Sim, com uma pitada de pimenta, uns cravos de cheiro e uma maçã na boca — replicou fazendo soar sua matraca.
Depois daquilo, Lorde Randyll proibiu Sam de comer maçãs enquanto estivessem embaixo do teto de Paxter Redwyne. Também havia enjoado na viagem de volta, mas sentiu tanto alívio ao sair de lá que inclusive agradeceu o sabor do vômito na garganta. Até retornarem de novo à Monte Chifre Sam não soube que seu pai não tinha a intenção de regressar com ele, segundo lhe disse sua mãe.
— Horas viria em seu lugar; você iria ficar na Árvore com pajem e copeiro de Lord Paxter. Se você tivesse caído nas graças dele, lhe haveria prometido sua filha. — Sam ainda recordava o toque suave da mão de sua mãe quando lhe enxugou as lágrimas com um pano umedecido com saliva. — Meu pobre Sam — murmurou. — Meu pobre, meu pobre Sam.
Me alegro de voltar a vê-la, pensou, agarrado à borda do Pássaro Negro, contemplando as ondas que quebravam contra a costa rochosa. Quando me vir de negro, se sentirá orgulhosa. ‘Agora sou um homem, mãe’, podia lhe dizer isso. ‘Sou intendente e membro da Patrulha da Noite. Às vezes, meus irmãos me chamam Sam, o Matador’. Também podia ver o seu irmão Dickon, e suas irmãs. ‘Vêem?’, lhes diria. ‘Vêem como no final eu servi para alguma coisa?’. Mas, se ia à Monte Chifre, talvez se encontrasse com seu pai.
A simples ideia revirou seu estômago outra vez. Debruçou-se sobre a murada do navio e vomitou, mas não contra o vento. Naquela ocasião não havia errado de borda. Vomitar estava começando a lhe fazer bem.
Pelo menos era nisso em que acreditava, até que o Pássaro Negro deixou a terra firme para trás e se pôs rumo a leste, cruzando a baía pelas costas de Skagos.
A ilha, situada na entrada da Baía das Focas, era uma terra enorme, montanhosa, imponente, habitada por selvagens. Sam havia lido que viviam em cavernas e em sombrias fortalezas nas montanhas, e iam à guerra montados em grandes unicórnios peludos. Skagos significava pedra na antiga língua. Os skagosis se autodenominavam filhos da pedra, mas os nortenhos os chamavam skaggs, e não lhes tinham nenhum tipo de afeto. Fazia um século que Skagos havia se rebelado. Demoraram anos para sufocar a revolta, e mesmo assim lhes custou a vida do senhor de Winterfell e centenas de suas espadas juramentadas. Em algumas canções se dizia que os skaggs eram canibais. Ao que parecia, seus guerreiros devoravam o coração e o fígado daqueles a quem matavam. Em tempos passados, os skagosis navegaram até a ilha de Skane, cercando-a; se apoderaram de todas as mulheres, mataram todos os homens e os comeram em uma praia, num banquete que se prolongou durante quinze dias. Desde então, Skane seguia desabitada.
Dareon também conhecia as canções. Quando os sombrios picos cinzentos de Skagos se destacaram sobre o mar, foi se reunir com Sam na proa do Pássaro Negro.
— Se os deuses forem bons, talvez vejamos um unicórnio.
— Se o capitão for bom, não nos aproximaremos tanto. As correntes são traiçoeiras em torno de Skagos; há rochas que podem quebrar o casco de um navio como se fosse um ovo. Mas não mencione isso a Goiva; já está bastante assustada.
— Igual a esse cachorro chorão que tem. Não sei qual dos dois faz mais barulho. Só deixa de chorar quando enfia o peito na boca, e então, quem começa com a lamentação é ela.
Sam também havia dado conta disso.
— Com certeza o bebê está lhe causando dor quando está mamando — argumentou sem convicção. — Os dentes estão começando a crescer...
Dareon rasgou uma corda do alaúde para arrancar uma nota depreciativa.
— Pensava que os selvagens fossem mais valentes.
— Ela é muito valente — teimou Sam, se bem que nunca tinha visto Goiva tão amuada. Apesar de sempre ocultar seu rosto e seu camarote estar sempre às escuras, havia percebido que sempre tinha os olhos avermelhados e as bochechas empapadas de lágrimas. Mas quando lhe perguntou o que estava acontecendo, a garota se limitou a sacudir a cabeça, de modo que não lhe deixou dúvidas. — Tem medo do mar, nada mais — disse a Dareon. — Antes de ir à Muralha, o único lugar que conhecia era a casa de Craster e os bosques das redondezas. Creio que, em toda a sua vida, nunca havia se afastado mais de meia légua do lugar de onde nasceu. Havia visto rios e arroios, mas nunca um lago até que chegamos em um, e o mar... O mar dá muito medo.
— Nem sequer perdemos de vista a terra firme.
— Logo nós perderemos. — A Sam não agradava essa ideia.
— Ah, não me diga que um pouco de água faz o Matador tremer de
medo.
— Não — mentiu — eu não. Mas Goiva... Olha, porque não toca algumas canções de ninar para ela? Pelo menos o bebê vai dormir.
Dareon fez um gesto de nojo.
— Só se antes lhe enfiarem uma rolha no cu. Não suporto esse
cheiro.
No dia seguinte, começaram as chuvas, e o mar se agitou.
— Será melhor que desçamos, ou acabaremos ensopados — disse Sam a Aemon.
O velho meistre se limitou a sorrir.
— Gosto da sensação da chuva no rosto. É como se fossem lágrimas. Se não te importa, ficarei um pouquinho mais. Já se passou muito tempo desde a última vez que chorei.
Se o meistre Aemon, sendo o ancião frágil que era, decidia ficar na popa, a Sam não lhe restava alternativa que não fosse fazer o mesmo. Ficou a seu lado durante quase uma hora, vestido com a capa enquanto a chuva, fina e constante, o ensopava até os ossos. Aemon não parecia notá-la. Suspirou e fechou os olhos. Sam se aproximou dele para escutá-lo na medida do possível.
Já, já vai me pedir para levá-lo de volta ao camarote, pensou, com certeza. Mas ele não pediu, e em pouco tempo, começaram a rugir os trovões a leste, ao longe.
— Temos de descer — insistiu Sam, tremendo. O velho meistre Aemon não respondeu. Sam percebeu que havia dormido. — Meistre — disse ao mesmo tempo em que o sacudia por um ombro com delicadeza. — Meistre Aemon, acorda.
Os olhos cegos de Aemon se abriram.
— Egg? — disse, enquanto a chuva corria por suas bochechas. — Eu sonhei que era um velho, Egg.
Sam não sabia o que dizer. Ajoelhou-se, colocou o ancião nos braços e o levou ao piso inferior. Ninguém o havia considerado forte em toda a sua vida, e a chuva que ensopava a roupa negra do meistre Aemon fazia com que pesasse o dobro, mas ainda assim, era como carregar um garotinho.
Quando entrou no camarote com Aemon nos braços percebeu que Goiva havia deixado que as velas se consumissem. O bebê havia dormido, e ela estava sentada em um canto soluçando entre as dobras da enorme capa negra que Sam lhe havia dado.
— Me ajude — disse com urgência. — Me ajude a secá-lo. Teremos que fazer com que entre algum calor aqui.
A garota se levantou imediatamente, e os dois tiraram a roupa ensopada do meistre e o cobriram com uma montanha de peles. Mas continuava tendo a pele fria e úmida, quase pegajosa.
— Fique com ele — disse Sam a Goiva. – Abrace-o, de calor com o teu corpo. Temos que fazer com que ele se recupere.  – A garota obedeceu, sem dizer palavra, sem deixar de soluçar. — Onde está Dareon? — perguntou Sam. — Se estivéssemos todos juntos, seria mais fácil de aquecer. Ele tem que vir.
Ia subir para chamar o cantor quando o barco se balançou sob os seus pés e desceu bruscamente. Goiva soltou um uivo, Sam perdeu o equilíbrio e o bebê despertou berrando.
A segunda sacudida do barco aconteceu quando ele tentava se por de pé. O movimento lançou Goiva em seus braços, e a garota selvagem se agarrou a ele com tanta força que lhe deixava apenas respirar.
— Não tenha medo. — Ele disse. — Isto não é mais que uma aventura. Algum dia você contará isso a seu filho.
A única coisa que conseguiu foi que ela cravasse as unhas mais profundamente no seu braço. Goiva tremia; a violência dos soluços a fazia tremer da cabeça aos pés.
Diga o que disser, só consigo piorar as coisas.
A abraçou com força, incomodamente consciente da pressão de seus peitos. Apesar do medo, teve uma ereção. Ela vai notar, pensou avergonhado. Mas se Goiva se deu conta, não deixou transparecer; se limitou a grudar nele com mais força.
A partir de então, as viagens se sucederam a toda velocidade. Não voltaram a ver o sol. Os dias eram cinzentos, e as noites, negras, exceto quando os relâmpagos acendiam o céu sobre o pico de Skagos. Todos estavam mortos de fome, mas não podiam comer. O capitão abriu um barril de vinho de fogo para fortalecer os remadores. Sam provou um copo e deixou escapar um suspiro ao notar as serpentes quentes que percorriam a sua garganta e o peito. Dareon também se apegou à bebida, e depois daquilo, raramente era visto sóbrio.
Içavam as velas; abaixavam as velas; uma se desgarrou, se desprendeu do mastro e saiu voando como uma enorme ave cinzenta. Quando o Pássaro Negro estava contornando a costa sul de Skagos, divisaram entre as rochas os restos de uma galera. As ondas haviam arrastado parte da tripulação até a orla, e os caranguejos haviam se reunido para lhes fazerem as homenagens.
— Estamos muito perto da orla — rugiu o velho dos trapos ao vê-lo. — Um golpe de vento e acabaremos como eles.
Apesar de estarem esgotados, os remadores voltaram ao trabalho, e o barco tomou o rumo do sul, pelo mar estreito, até que Skagos se converteu em uma série de manchas negras no horizonte que podiam ser confundidas com nuvens de tormenta, os cumes de altas montanhas negras ou as duas coisas. Depois daquilo, desfrutaram de oito dias e sete noites de navegação tranquila.
Logo chegaram mais tormentas, ainda piores que a primeira.
Foram três, ou só uma, com alguns momentos de calma? Sam não chegou a saber, mas tratou desesperadamente de averiguar.
— Que importa? — lhe gritou Dareon em certa ocasião, quando estavam todos encolhidos no camarote.
Não importa, Sam quis dizer, mas enquanto eu pense nisso, não pensarei em me afogar, nem em me enjoar, nem em como treme o meistre Aemon.
— Não importa. — Conseguiu dizer, mas um trovão afogou o resto da frase, o barco se moveu e o fez cair de lado.
Goiva não deixava de soluçar, o bebê berrava, e por cima de tudo se ouviam os gritos do velho dos trapos, o maltrapilho capitão que não falava nunca, dando ordens à tripulação.
Odeio o mar, pensou Sam. Odeio o mar, odeio o mar, odeio o mar. O relâmpago seguinte foi tão intenso que iluminou o camarote através das rendas da cortina que ficavam nas janelinhas do teto. É um bom barco, um barco seguro, um barco seguro. Não vai naufragar. Não tenho medo.
Durante um período de calmaria entre tormenta e tormenta, enquanto se aferrava à borda com as juntas brancas pelo esforço, tratando de vomitar, Sam ouviu uns tripulantes murmurarem que aquilo acontecia por levar uma mulher a bordo, e ainda por cima, uma selvagem.
— Fodia com seu pai — escutou Sam enquanto o rugido do vento voltava a se impor. — Isso é pior que ser puta. Isso é o pior que pode haver. Ou nos livramos dela e dessa abominação que pariu, ou nos afogamos todos.
Sam não se atreveu a enfrentá-los. Eram maiores que ele, duros e encorpados, com os braços e os ombros musculosos pelos anos de manejar com os remos. Mas se assegurou de ter a adaga bem afiada, e sempre que Goiva saía do camarote para fazer suas necessidades, a acompanhava.
Dareon tampouco estava a favor da selvagem. Uma vez, depois de muitas súplicas de Sam, o cantor começou a entoar uma canção de ninar para acalmar o bebê, mas apenas havia começado, quando Goiva começou a chorar, inconsolável.
— Pelos sete infernos. — Dareon perdeu a paciência. — Não pode deixar de chorar nem pelo tempo de ouvir uma canção?
— Canta, anda. — lhe pediu Sam. — Canta, não se importe com isso.
— Não lhe fazem falta as canções — replicou Dareon. — O que lhe fazem falta são umas boas palmadas, ou melhor, um bom pau. Fora do meu caminho, Matador.
Empurrou Sam para um lado e saiu do camarote para buscar consolo em um copo de vinho de fogo e na irmandade dos remadores.
Sam já não sabia o que fazer. Quase havia se acostumado com o cheiro, mas entre as tormentas e os soluços de Goiva, passava dias sem dormir.
— Não pode lhe dar nada? — perguntou em voz baixa ao meistre Aemon quando viu que estava desperto. — Alguma erva, alguma poção, para que não tenha medo...
— O que você está ouvindo não é medo — lhe respondeu o ancião. — É o som do desespero, e para isso não há poções. Deixa que as lágrimas sigam seu curso, Sam. Não se pode conter a maré com um muro.
Sam não compreendeu nada.
— Está indo para um lugar seguro. Para um lugar quente. Porque estaria desesperada?
— Sam — sussurrou o ancião. — Tens dois olhos que te servem, mas não vê nada. É uma mãe que chora por seu filho.
— Ele não está doente; está enjoado, igual a todos nós. Logo chegaremos ao porto de Bravos...
—... E o bebê continuará sendo o filho de Dalla, não fruto de seu
ventre.
Sam demorou um momento para entender o que Aemon estava insinuando.
— Não é possível... Ela jamais... Claro que é seu. Goiva jamais haveria saído da Muralha sem o seu filho. Ela o ama.
— Amamentou os dois e amava os dois. — Replicou Aemon. — Mas não da mesma maneira. Não há mãe que ame seus filhos todos por igual, nem sequer a Mãe Divina. E Goiva jamais haveria deixado o menino por sua própria vontade, estou certo. Não sei com o que a ameaçou o Lorde Comandante, nem o que lhe prometeu; só posso imaginar... Mas não tenho dúvidas de que houve ameaças e promessas.
— Não. Não é possível. Jon jamais...
— Jon jamais faria algo assim. Lorde Snow o fez. Às vezes não há uma boa opção, Sam, somente uma menos dolorosa que as outras.
Não há boa opção. Sam pensou em tudo o que ele e Goiva sofreram; na casa de Craster, na morte do Velho Urso, no gelo, na neve e nos ventos gélidos, nos dias e mais dias de caminhada, nos espectros da Árvore Branca, em Mãos-frias e a árvore dos corvos, na Muralha, na Muralha, na Muralha... A Porta Negra, embaixo da terra. E tudo para quê? Não há boa opção, não há final feliz.
Queria gritar. Queria uivar, soluçar, tremer e sentar-se para lamentar.
Trocou os bebês. Trocou os bebês para proteger o príncipe, para distanciá-lo das fogueiras da Senhora Melisandre e de seu deus vermelho. Se fizer arder o bebê de Goiva, a quem importa? A ninguém mais do que a ela. Na verdade, não era mais que um cachorro de Craster, uma abominação nascida do incesto, não o filho do Rei-pra-lá-da-Muralha. Não vale como refém, nem como sacrifício, nem como nada; nem sequer tem nome.
Sem palavras, Sam se dirigiu cambaleante ao convés para vomitar, mas não tinha nada no estômago. A noite havia caído sobre eles, uma noite estranha e tranquila, como não haviam visto em muitos dias. O mar estava negro como uma boca de lobo. Os remadores descansavam nos seus postos. Um ou dois haviam dormido sentados. O vento inchava as velas, e ao norte, Sam viu uma constelação, assim como a estrela errante vermelha que o povo livre chamava O Ladrão.
Essa deveria ser a minha estrela. Eu fiz com que elegessem Jon Senhor Comandante; eu lhe levei Goiva e o bebê. Não há final feliz.
— E então, Matador? — Dareon se pôs a seu lado, sem perceber a melancolia de Sam. — Bonita noite, pelo menos uma vez. Olha, estão aparecendo as estrelas. Se tivermos sorte até veremos a lua. Pode ser que o pior já tenha passado.
— Não. — Sam limpou o nariz e sinalizou para o sul com um dedo gordo, em direção ao lugar onde a escuridão era mais densa. — Ali. — Não disse nada, e um relâmpago acendeu no céu, repentino, silencioso, com um brilho cegante. As nuvens distantes brilharam por um segundo, montanhas sobre montanhas, roxas, vermelhas e amarelas, mais altas que o mundo. — O pior nem começou, e não há final feliz.
— Louvados sejam os deuses. — Riu Dareon. — Matador, você é tão covarde.
 
Lorde Tywin Lannister entrara na cidade em um garanhão, sua armadura vermelho-esmaltada polida e brilhante, reluzente com gemas e filigrana. Ele a deixou no carro fúnebre, drapejado de bandeiras vermelhas, com cinco irmãs silenciosas velando a seus ossos.
O cortejo fúnebre deixou Porto Real pelo Portão dos Deuses, mais largo e esplêndido do que o Portão do Leão. A escolha parecia errada para Jaime. Seu pai tinha sido um leão, ninguém podia negar, mas até mesmo Lorde Tywin nunca reivindicou ser um deus.
Uma guarda de honra de cinquenta homens cercava o carro de Lorde Tywin, flâmulas vermelhas esvoaçavam das lanças. Os senhores do oeste seguiam atrás deles. O vento batia nos estandartes, fazendo-os dançar e voejar. Enquanto ele trotava para a coluna, Jaime passou por javalis, texugos, e besouros, uma flecha verde e um boi vermelho, alabardas cruzadas, lanças cruzadas, um gato de árvore, um morangueiro, uma figura de escudo com uma manga, e quatro figuras de sóis ao contrário.
Lorde Brax vestia um gibão cinza-claro com bordados de prata, uma ametista em forma de um unicórnio em cima de seu coração. Lorde Jast usava uma armadura de aço negro, três cabeças de leões douradas incrustadas na sua couraça. A julgar pela sua aparência, os rumores sobre sua morte não tinha sido de todo errados; as feridas e as prisões tinham deixado apenas uma sombra do homem que ele fora. Lorde Banefort vencera melhor a batalha, e parecia pronto para retornar para a guerra mais uma vez. Plumm vestia roxo, Prester, arminho, Moreland, ferrugem e verde, mas cada um vestira uma capa de seda vermelha, em honra ao homem que eles escoltavam de volta para casa.
Atrás dos senhores vinham uma centena de besteiros e três centenas de soldados, e o vermelho também ondeava de seus ombros. Em sua capa branca e armadura branca escamada, Jaime se sentia de fora naquele rio de vermelho.
O seu tio também não deixava aquilo mais fácil. 
— Senhor Comandante — Sor Kevan disse quando Jaime trotou ao lado dele no alto da coluna. Vossa Graça tinha alguma última ordem para mim?
— Eu não estou aqui por Cersei. — Um tambor começou a rufar atrás deles, devagar, mensurado, fúnebre. Morto, ele parecia dizer, morto, morto. — Eu vim para dar adeus. Ele era o meu pai.
— E dela.
— Eu não sou Cersei. Eu tenho uma barba, e ela tem peitos. Se você ainda está confuso, tio, conte nossas mãos. Cersei tem duas.
— Os dois gostam do escárnio — seu tio disse. — Poupe-me de suas zombarias, sor, eu não gosto delas.
— Como deseja. Isto não está indo tão bem como eu desejava. Cersei iria querer ver você de fora, mas ela tem muitos deveres.
Sor Kevan bufou. 
— Assim como todos nós. Como passa o seu rei? — O seu tom de voz fez da pergunta uma repreensão.
— Bem o suficiente — Jaime disse defensivamente. — Balon Swann está com ele pelas manhãs. Um bom e bravo guerreiro.
— Foi o tempo em que não se falava daqueles que vestem o manto
branca.
Nenhum homem pode escolher seus irmãos, Jaime pensou. Dê-me a licença para escolher meus homens, e a Guarda Real será grande novamente. Mas colocar isso grosseiramente soaria frágil; uma jactância vazia de um homem da realeza chamado Regicida. Um homem com uma honra de merda. Jaime preferiu esquecer aquilo. Ele não viera para discutir com o tio. 
— Sor — ele disse. — Você precisa fazer as pazes como Cersei.
— Estamos em guerra? Ninguém me contou.
Jaime ignorou aquilo.
— Discórdia entre Lannister e Lannister ajudará apenas os inimigos da nossa Casa.
— Se há discórdia, não é por minha culpa. Cersei quer governar. Muito bem. O reino é dela. Tudo o que eu peço é ser deixado em paz. Meu lugar é em Darry com meu filho. O castelo precisa ser restaurado, as terras, semeadas e protegidas. — Ele deu um latido de risada amarga. — E sua irmã me deixou pouco para ocupar o tempo. Eu também vi Lancel se casar. Sua esposa tem pressa em ir para Darry.
Sua viúva das Gêmeos. Seu primo Lancel estava a cem metros atrás deles. Com seus olhos ocos e cabelos secos e brancos, ele parecia mais velho do que Lorde Jast. Jaime podia sentir seus dedos fantasmagóricos se coçando... Fodendo com Lancel e Osmund Kettleblack e Menino Lua, pelo que sei... Ele tentara falar com Lancel mais vezes do que podia contar, mas nunca o encontrava sozinho. Se seu pai não estava com ele, algum septão estava. Ele podia ser o filho de Kevan, mas ele tinha leite em suas veias. Tyrion estava mentindo para mim. Suas palavras queriam ferir. Jaime tirou seu primo de seus pensamentos e voltou-se para o tio. 
— Você vai permanecer em Darry depois do casamento?
— Por um tempo, talvez. Sandor Clegane está saqueando tudo que encontra ao longo de Tridente, ao que parece. Sua irmã quer sua cabeça. É possível que ele tenha se unido com Dondarrion.
Jaime tinha ouvido sobre as Salinas. Por ora, metade do reino ouvira. Ataques excepcionalmente selvagens. Mulheres estupradas e mutiladas, crianças assassinadas nos braços de suas mães, metade da cidade queimada. 
— Randyll Tarly está em Lagoa da Donzela. Deixe-o lidar com os fora da lei. Eu iria o quanto antes a Correrrio.
— Sor Daven governa lá. O Guardião do Oeste. Ele não precisa de mim. Lancel, sim.
— É Como você diz, tio. — A cabeça de Jaime estava martelando como a batida do tambor. Morto, morto, morto. — Você faria bem em manter seus cavaleiros por perto.
Seu tio o olhou com frieza; 
— Isto é uma ameaça, sor?
Uma ameaça? A sugestão o assustou. 
— Um aviso. Eu só quis dizer... Sandor é perigoso.
— Eu estava enforcando foras da lei e cavaleiros ladrões quando você ainda estava cagando em suas fraldas. Eu não vou fugir e encarar Clegane e Dondarrion sozinho, se esse é o seu medo, sor. Nem todo Lannister é capaz de fazer estupidez por glória. 
Por que, tio, eu acredito que você está falando de mim?
— Addam Marbrand poderia negociar com esses foras da lei tão bem quanto você. Assim como Brax, Banefort, Plumm, qualquer um desses. Mas nenhum deles daria uma boa Mão do Rei.
— Sua irmã conhece as regras. Elas não foram mudadas. Diga a ela isso, da próxima vez que estiver em seu dormitório.
Sor Kevan colocou seus tornozelos no seu corcel e galopou adiante, terminando abruptamente a conversa.
Jaime o deixou ir, sua mão da espada perdida se contraindo. Ele tinha esperado contra toda a esperança que Cersei tivesse, de alguma forma, entendido mal, mas claramente aquilo estava errado. Ele sabe sobre nós dois. Sobre Tommen e Myrcella. E Cersei sabe que ele sabe. Sor Kevan era um Lannister de Rochedo Casterly. Ele podia não acreditar que ela nunca o faria mal, mas... Eu estava errado sobre Tyrion, por que não sobre Cersei? Quando filhos matam pais, o que há de impedir uma sobrinha de ordenar que matem seu tio? Um tio inconveniente que sabe demais. Embora Cersei talvez estivesse esperando que o Cão fizesse seu trabalho. Se Sandor Clegane matasse Sor Kevan, ela não precisaria sujar suas mãos com sangue. E ele vai, se eles se encontrarem. Kevan Lannister fora uma vez um homem robusto com uma espada, mas a juventude havia passado, e o Cão...
A coluna o havia alcançado. Quando seu primo passou junto a ele, flanqueado por seus dois septões, Jaime o gritou.
— Lancel, primo. Eu quis te parabenizar por seu casamento. Eu lamento que meus deveres não me permitem assistir.
— Vossa Graça deve ser protegida.
— E será. Mesmo assim, eu odeio ter que perder seu casamento. É seu primeiro casamento e o segundo dela, eu entendo. Tenho certeza que minha senhora ficará encantada de mostrar a você como funcionam as coisas.
A observação obscena desenhou um sorriso no rosto de vários senhores que estavam por perto e um olhar desaprovador dos septões de Lancel. Seu primo se contorceu com desconforto na sela. 
— Eu conheço meus deveres como marido, sor.
— É apenas o que uma esposa quer na noite de núpcias, disse Jaime. Um marido que saiba como fazer seu dever.
Um rubor subiu nas bochechas de Lancel. 
— Eu oro por você, primo. E por Vossa Graça, a rainha. Que a Velha a guie à sua sabedoria e que o Guerreiro a proteja.
— Por que Cersei precisaria do Guerreiro? Ela tem a mim. — Jaime virou seu cavalo, sua capa branca batendo contra o vento. O Duende estava mentindo. Cersei antes teria o cadáver de Robert entres suas pernas do que um idiota como Lancel. Tyrion, seu bastardo maldito, você deveria ter mentido sobre alguém mais plausível. Ele galopou adiante, passando pelo cortejo funeral do seu pai, em direção à cidade.
As ruas de Porto Real pareciam quase desertas quando Jaime Lanninster voltava para a Fortaleza Vermelha, em cima da Alta Colina de Aegon. Os soldados que tinham abarrotado as covas de jogo da cidade e lojas de ervas já tinham se ido. Garlan, o Galante, levara metade dos homens de Tyrell para o Jardim de Cima, e sua mãe e sua avó tinham ido com ele. A outra metade marchara para o sul com Mace Tyrell e Mathis Rowan para defender Ponta Tempestade.
Quanto ao exército dos Lannister, dois mil veteranos sobravam acampados do lado de fora dos muros da cidade, esperando a frota Paxter Redwyne para carrega-los sobre a Baía da Águas Negra para Pedra do Dragão. Lorde Stannis parecia ter deixado uma pequena tropa atrás dele quando navegou para o norte, de modo que Cersei julgara que dois mil homens seriam mais do que o suficiente.
O resto dos homens do oeste tinha voltado para suas esposas e seus filhos, para reconstruir suas casas, plantar nos seus campos e fazer uma colheita pela última vez. Cersei levara Tommen pelos seus campos antes que eles marchassem, para deixa-los saudar seu pequeno rei. Ela nunca estivera mais bonita do que naquele dia, com um sorriso em seus lábios e o sol de outono brilhando no seu cabelo dourado.
O que quer que alguém dissesse sobre sua irmã, ela sabia como fazer os homens a amar quando se importava em tentar.
Quando Jaime trotou através dos portões do castelo, ele encontrou duas dúzias de cavaleiros treinando com lanças no pátio. Algo que eu não posso mais fazer, ele pensou. Uma lança era mais pesada e mais incômoda do que uma espada, e espadas já davam mais problemas do que o suficiente. Ele pensou que poderia segurar a lança com sua mão esquerda, mas aquilo queria dizer segurar o escudo com seu braço direito. Em um torneio, o inimigo de um homem estava sempre à esquerda. Um escudo no seu braço direito seria tão útil como mamilos em sua couraça. Não, meus dias de justa acabaram, pensou enquanto desmontava... Mas, mesmo assim, parou para assistir um pouco.
Sor Tallad, o Alto, perdeu a montaria quando o saco de areia bateu contra sua cabeça. Javali golpeou o escudo tão forte que este acabou quebrando. Kennos de Kayce terminou a destruição. Penduraram novo escudo para Sor Dermot de Mata de Chuva. Lambert Turnberry só deu um golpe, mas Jon Bettley, o Imberbe, Humfrey Swyft e Alyn Stackspear contaram com muitos golpes, e Ronnet Connington, o Vermelho, quebrou sua lança. Então o Cavaleiro das Flores montou e humilhou todos os outros.
Jaime sempre acreditara que três quartos do exército numa justa dependiam da habilidade como cavaleiro. Sor Loras cavalga soberbamente, e lidava com a lança como se ele tivesse nascido com ela na mão... O que, sem dúvida, explicaria a permanente expressão de dor no rosto de sua mãe. Ele coloca a ponta onde ele quer coloca-la, e parece ter o equilíbrio de um gato. Talvez não fosse por simples casualidade que ele me desmontou. É uma pena que ele nunca terá a chance de tentar a sorte com o garoto de novo. Ele deixou os homens continuarem seu treinamento.
Cersei estava em seus aposentos Fortaleza de Maegor, com Tommen e a esposa de Myr de cabelos negros de Lorde Merryweather. Os três estavam rindo do Grande Meistre Pycelle. 
— Perdi alguma piada inteligente? — Perguntou Jaime ao cruzar a porta.
— Oh, olha — ronronou a Senhora Merryweather. — Seu irmão corajoso retornou, Vossa Graca.
— Grande parte dele. — A rainha estava bêbada — Jaime percebeu. Ultimamente, Cersei parecia ter sempre uma jarra de vinho na mão, ela que tivera uma vez zombado de Robert Baratheon pela sua bebedeira. Ele não gostou daquilo, mas naqueles dias ele parecia não gostar de nada que sua irmã fizesse. 
— Grande Meistre — ela disse. — Tenha a amabilidade de compartilhar as novidades com o Senhor Comandante.
Pycelle parecia desesperadamente desconfortável. 
— Veio um pássaro — ele disse. De Stokeworth. A Senhora Tanda diz que sua filha Lollys deu à luz um filho forte e saudável.
— E você não acredita o nome que deram ao bastardinho, irmão.
— Eles querem chama-lo de Tywin, se me recordo.
— Sim, mas eu proibi. Eu disse a Falyse que eu não queria o nobre nome do nosso pai dado a uma cria de um porquinho e de uma porca fraca de raciocínio.
— A Senhora Stokeworth insiste que não foi ela que deu o nome à criança — Grande Meistre Pycelle apontou. Sua testa enrugada pontilhada de suor. — O marido de Lollys escolheu, ela escreve. Este homem Bronn, ele... Parece que ele...
— Tyrion, arriscou Jaime. Ele chamou o filho de Tyrion.
O velho balançou a cabeça tremendo, enxugando a testa com a manga de seu robe.
Jaime teve que rir. 
— Aí está querida irmã. Você tem procurado por Tyrion por todo canto, e esse tempo todo ele esteve escondido no ventre de Lollys.
— Engraçadinho. Você e Bronn são dois palhaços. Sem dúvida o bastardo está chupando uma das tetas de Lollys Lackwit enquanto falamos, enquanto este mercenário olha, rindo de sua insolenciazinha.
— Talvez essa criança carregue alguma semelhança com seu irmão, sugeriu a Senhora Merryweather. Ele pode ter nascido deformado, ou sem o nariz. Ela deu uma risada gutural.
— Nós enviaremos ao nosso querido menino um presente, a rainha declarou. Não é, Tommen?
— Podemos lhe enviar um gato.
— Um leãozinho, disse a Senhora Merryweather. — Para arrancar sua garganta fora, seu sorriso parecia sugerir.
— Eu tenho um tipo diferente de presente em mente — disse Cersei.
Um novo padrasto, com certeza. Jaime conhecia o olhar nos olhos de sua irmã. Ele o vira antes, o mais recente na noite do casamento de Tommen, quando ela queimou a Torre da Mão. A luz vermelha do fogovivo banhou o rosto dos guardas, de forma que eles ficaram parecidos com cadáveres apodrecidos, um bando de espectros alegres, mas alguns dos cadáveres eram mais bonitos que outros. Atém mesmo no brilho maligno, Cersei era bonita de se ver. Ela ficou em pé com uma mão em um peito, seus lábios partidos, seus olhos verdes brilhando. Ela estava chorando, Jaime percebera, mas se era de pesar ou êxtase, não sabia dizer.
A visão o encheu com inquietação, lembrando-o de Aerys Targaryen e o jeito com que um incêndio iria acordá-lo. Um rei não guarda segredos de sua Guarda Real. As relações entre Aerys e sua rainha tinham se extenuado durante os últimos anos de seu reinado. Eles dormiam separados e faziam o melhor para evitar um ao outro durante o tempo em que estavam acordados. Mas sempre que Aerys dava um homem às chamas, a Rainha Rhaella fazia uma visita na mesma noite. O dia em que ele queimou sua mão da maça e da espada, Jaime e Jon Darry guardavam a entrada do dormitório enquanto o rei tirava seu plazer. 
— Você está me machucando. — Eles ouviram Rhaella chorando através da porta de carvalho. Você está me machucando. De um jeito estranho, aquilo tinha sido pior do que o grito de Lorde Chelsted. Nós juramos protege-la também, Jaime disse finalmente. 
— Sim — Darry reconheceu — mas não dele.
Depois disso, Jaime só vira Rhaella uma vez, na manhã do dia em que ela foi para Pedra do Dragão. A rainha tinha sido encapuzada enquanto subia na casa do leme real, que a levaria para a Alta Colina de Aegon, onde o navio a esperava, mas ele ouviu suas donzelas sussurrando depois que ela tinha ido. Elas diziam que a rainha tinha a aparência de alguém que tinha sido atacado por uma fera, rasgado nas coxas e mastigado nos peitos. Uma fera coroada, Jaime sabia.
Em seus últimos dias, o Rei Louco tinha tanto medo que não permitia lâmina nenhuma em sua presença, a não ser as espadas da Guarda Real. Sua barba estava embaraçada e suja, seu cabelo, uma confusão de prata e dourado que chegava a sua cintura, suas unhas, garras de vinte centímetros rachadas e amarelas. Ainda assim as espadas o atormentavam, as que ele não podia escapar; as espadas do Trono de Ferro. Seus braços e pernas estavam sempre cobertos de cicatrizes e cortes meio curados.
Um rei que governa sobre ossos chamuscados e carne cozida, Jaime lembrou-se, observando o sorriso de sua irmã. É o rei das cinzas. 
— Vossa Graça — Jaime disse. — Podemos ter uma conversa em particular?
— Como quiser. Tommen acabou o tempo de sua lição de hoje. Vá com o Grande Maestre.
— Sim, Mãe. Estamos aprendendo sobre Baelor, o Abençoado.
A Senhora Merrywether também saiu, beijando a rainha nas duas bochechas. 
— Podemos retornar para a ceia, Vossa Graça?
— Ficarei muito zangada se assim não fizer — disse Cersei.
Jaime não podia deixar de notar o jeito com que a myriana movia seus quadris enquanto andava. Cada passo, uma sedução. Quando a porta se fechou atrás dela, ele limpou a garganta e disse:
— Primeiro esses Kattleback, depois Qyburn, agora ela. Ultimamente, você tem mantido um alojamento de feras, querida irmã.
— Estou gostando muito da companhia da Senhora Taena. Ela me diverte.
— Ela é uma das parceiras de Margaery Tyrell — Jaime a lembrou. — Ela informa sobre você para a rainhazinha.
— Claro que ela informa. — Cersei foi para o aparador encher de novo sua taça. — Margaery estava palpitando quando eu pedia a ela para levar Taena como minha parceira. Você devia tê-la ouvido. Ela será uma irmã para você, como está sendo para mim. Claro que você pode levá-la! Eu tenho minhas primas e outras senhoras para me servir de companhia. Nossa rainhazinha não quer ficar só.
— Se você sabe que ela é uma espiã, por que a trouxe?
— Margaery não tem nem metade da esperteza que ela pensa que tem. Ela não tem noção da serpente que é aquela puta myriana. Eu uso Taena para dar à rainhazinha as informações que eu quero. Algumas delas são até verdade. Os olhos de Cersei estavam brilhantes de malícia. E Taena me conta tudo o que Margaery faz.
— É? O quanto você sabe sobre ela?
— Eu sei que ela é uma mãe com um jovem filho que ela quer destacar sobre esse mundo. Ela fará o que quer que seja preciso para ver ele conseguir. As mães são todas iguais. A Senhora Merrywether pode ser uma serpente, e está longe de ser estúpida. Ela sabe que posso fazer mais por ela do que Margaery pode, então ela se faz útil para mim. Você ficaria surpreso de todas as coisas interessantes que ela me conta.
— Que tipo de coisas?
Cersei se sentou abaixo da janela. 
— Sabia que a Rainha dos Espinhos tem um baú de moedas na sua casa do leme? Ouro antigo que veio antes da Conquista. Se algum mercador comete o erro de dar o preço em moedas de ouro, ela o paga com as mãos de Jardim de Cima, cada uma vale metade do peso dos nossos dragões. Que mercador ousaria reclamar de ser enganado pela mãe de Mace Tyrell? — Ela bebericou o vinho e disse. — Gostou de seu passeio?
— Nosso tio perguntou por você.
— As preocupações do nosso tio não dizem respeito a mim.
— Deveriam. Você poderia fazer bom uso dele. Se não for em Correrrio ou no Rochedo, será no norte, contra Lorde Stannis. Nosso Pai sempre contou com Kevan quando...
— Roose Bolton é nosso Guardião do Norte. Ele lidará com Stannis.
— Não por muito tempo. O filho bastardo de Bolton removerá em breve aquele pequeno obstáculo. Lorde Bolton terá dois mil homens do Frey para aumentar sua força, mais os filhos de Lorde Walder, Hosteen e Aenys. Seria mais que o suficiente para lidar com Stannis e alguns mil homens fracos.
— Sor Kevan...
—... Terá suas mãos cheias em Darry, ensinando a Lancel como limpar sua bunda. A morte de nosso pai o fez menos homem. Ele é um homem velho feito. Daven e Damion nos servirão melhor.
— Eles serão o suficiente. — Jaime não tinha rixas com seus primos. —  Entretanto, você ainda necessita de uma Mão. Se não for nosso tio, quem?
Sua irmã riu. 
— Não você. Por esse lado, fique tranquilo. Talvez o marido de Taena. Seu avô serviu como Mão no reinado de Aerys.
A Mão corno da abundância. Jaime se lembrou de Owen Merrywether muito bem; um homem amável, mas inútil. 
— Se me lembro, ele fez seu trabalho tão bem que Aerys o exilou e tomou suas terras.
— Robert as devolveu a ele. Algumas, pelo menos. Taena ficaria satisfeita se Orton pudesse reaver o resto.
— Tudo isso é sobre satisfazer uma puta myriana? Eu pensava que fosse sobre governar o reino.
— Eu governo o reino.
Que os Sete nos protejam, é verdade, você governa. Sua irmã gostava de pensar sobre ela como Lorde Tywin com tetas, mas ela estava errada. Seu pai tinha sido tão impiedoso e implacável como uma geleira, e Cersei era só fogovivo, principalmente quando contrariada. Ela ficara inconstante como uma dondoca ao saber que Stannis tinha abandonado Pedra do Dragão, certa de que ele tinha finalmente desistido de lutar e velejado para o exílio. Quando a mensagem do norte chegou até ela, dizendo que ele voltou-se novamente para a Muralha, sua fúria tinha sido terrível. Ela não tem carência de inteligência, mas ela não tem julgamento nem paciência. 
— Você precisa de uma Mão forte para lhe ajudar.
— Um governador fraco precisa de uma Mão forte, como Aerys precisou do Pai. Um governador forte requer apenas um servo diligente para carregar suas ordens. — Ela mexeu o vinho. — Lorde Hallyne deve servir. Ele não seria o primeiro que praticou a piromancia para servir como a Mão do Rei.
— Não. Eu matei o último. Há uma conversa dizendo que você que fazer de Aurane Waters o mestre dos navios.
— Alguém tem me espionado? — como ele não respondeu, Cersei jogou seu cabelo para trás e disse. — Waters é bom para o ofício. Ele passou metade de sua vida com barcos.
— Metade de sua vida? Ele não pode ter mais de vinte anos.
— Vinte e dois, e o que tem isso? O Pai não tinha nem vinte e um quando Aerys Targaryen o nomeou Mão. Já chegou o tempo em que Tommen tenha jovens no lugar desses barbas-brancas enrugados. Aurane é forte e vigoroso.
Forte, vigoroso e bonito, Jaime pensou... Pelo que sei, ela tem fodido com Lancel e Osmund Kettleblack e o Menino Lua... 
— Paxter Redwyne seria uma escolha melhor. Ele comanda a maior frota em Westeros. Aurane Waters poderia comandar um esquife, mas só se você compra-lo um.
— Você é uma criança, Jaime. Redwyne é um homem do estandarte de Tyrell, e sobrinho daquela sua avó medonha. Eu não quero nenhuma criatura de Lorde Tyrell no meu conselho.
— O conselho de Tommen, você quer dizer.
— Você sabe o que eu quero dizer.
— Muito bem. Eu sei que Aurane Waters é uma má ideia e Hallyne é ainda pior. Quando a Qyburn... Que os deuses nos abençoe, Cersei. Ele era do bando de Vargo Hoat. A Fortaleza o livrou de sua cadeia!
— A ovelha cinza. Qyburn se fez mais útil para mim. E ele é leal, o que é mais do que eu posso dizer de meu próprio parente.
— Seremos um banquete para os corvos se você for por esse caminho, querida irmã. Cersei ouça a si mesma. Você está vendo anões em cada sombra e fazendo de amigos inimigos. Tio Kevan não é seu inimigo. Eu não sou seu inimigo.
Sua face se desfigurou em fúria. 
— Eu te implorei por ajuda. Eu implorei de joelhos, e você me rejeitou!
— Meus votos...
— ...não o impediram de matar Aerys. Palavras são como vento. Você poderia ter me tido, mas escolheu uma capa ao invés de mim. Saia.
— Irmã...
— Saia, eu disse. Estou farta de olhar para esse seu toco ridículo. Saia! — Para fazer com que ele se fosse mais rápido, ela jogou sua taça de vinho na sua cabeça. Ela errou, mas Jaime entendeu a mensagem.
O cair da noite o encontrou sentado sozinho na sala comum da Torre da Espada Branca, com uma taça de vinho tinto dornês e o Livro Branco. Ele estava passando as páginas com o toco da sua mão da espada quando o Cavaleiro das Flores entrou, tirou sua capa e o cinto e os pendurou em um cabide na parede perto de Jaime.
— Eu te vi no jardim hoje — disse Jaime. — Você monta bem.
— Melhor que bem, com certeza. — Sor Loras pegou uma taça de vinho para si e se sentou na abertura da mesa em forma de meia-lua.
— Um homem mais modesto poderia ter respondido ‘Meu senhor é muito gentil’, ou ‘Eu tenho um bom cavalo’.
— O cavalo era adequado e meu senhor é tão gentil quanto eu sou modesto. — Loras brandiu o livro. — Lorde Renly sempre disse que aqueles livros eram para meistres.
— Este é para nós. A história de cada homem que usou um manto branco está escrita aqui.
— Eu dei uma olhada nele. Os escudos são bonitos. Eu prefiro livros com mais iluminações. Lorde Renly tinha alguns com desenhos que faria com que um septão ficasse cego.
Jaime teve que rir. 
— Não há nenhum deles aqui, Sor, mas as histórias abrirão seus olhos. Você faria bem se soubesse sobre as vidas daqueles que foram antes de você.
— Eu sei. Príncipe Aemon, o Cavaleiro do Dragão, Sor Ryan Redwyne, o Bom Coração, Barristan, o Ousado...
—... Gwayne Corbray, Alyn Connington, o Demônio de Darry, sim. Você terá ouvido sobre Lucamore Strong também.
— Sor Lucamore, o Forte? — Sor Loras parecia estar se divertindo. — Três esposas e trinta filhos, não foi? Eles cortaram sua pica fora. Devo cantar a música para você, meu senhor?
— E Sor Terrence Toyne?
— Comeu a ama do rei e morreu gritando. A lição é: homens que usam calções brancos precisam mantê-los bem apertados.
— Gyles Capa Cinza? Orivel, o Mão Aberta?
— Gyles era um traidor, Orivel era um covarde. Homens que envergonharam o manto branco. O que meu senhor está sugerindo?
— Pouco e menos. Não se sinta ofendido no que não foi intencional, sor. E sobre Tom Costayne, o Largo?
Sor Loras balançou a cabeça.
— Ele foi um cavaleiro da Guarda Real por sessenta anos.
— Quando foi isso? Eu nunca...
— Sor Donnel de Vakdicasi, então?
— Eu posso ter ouvido o nome, mas...
— Addison Hill? O Coruja Branca, Michael Mertyns? Jeffory Norcross? Eles o chamavam de Nunca-cede. Robert Flowers, o Vermelho? Por que você não me pode falar sobre eles?
— Floers é um nome bastardo. Assim como Colina.
— No entanto, ambos os homens comandaram a Guarda Real. Seus contos estão no livro. Rolland Darklyn está aqui também. O homem mais novo em serviço da Guarda Real, até eu. Foi-lhe dada a sua capa em um campo de batalha e morreu dentro de uma hora depois de vesti-lo.
— Ele não deve ter sido muito bom.
— Bom o suficiente. Ele morreu, mas seu rei viveu. Muitos homens valentes vestiram o manto branco. A maioria foi esquecida.
— A maioria merece ser esquecida. Os heróis serão sempre relembrados. Os melhores.
— Os melhores e os piores. Assim um de nós viverá nas canções. E alguns que são um pouco dos dois. Como ele. — Ele bateu de leve na página que ele estivera lendo.
— Quem? — Sor Loras esticou o pescoço para ver. Dez balas pretas no campo escarlate. — Eu não conheço estes braços.
— Eles pertenceram a Criston Cole, que serviu o primeiro Viserys e o segundo Aegon. — Jaime fechou o Livro Branco. — Eles o chamaram Fazedor de Reis.
 
Três miseráveis idiotas com um saco de couro, pensou a rainha quando os homens se afundaram sobre os joelhos à sua frente. O aspecto deles não a encorajava. Suponho que haja sempre uma hipótese.
— Vossa Graça — disse Qyburn em voz baixa — o pequeno conselho...
—... esperará por mim. Talvez lhes possa trazer notícias sobre a morte de um traidor. — Do outro lado da cidade, os sinos do Septo de Baelor cantavam a sua canção de luto. Nenhum sino soará por você, Tyrion, pensou Cersei. Mergulharei a tua cabeça em alcatrão e darei o teu corpo retorcido aos cães. — Em pé — disse ela aos aspirantes a lordes. — Mostrem o que me trouxeram.
Eles ergueram-se; três homens feios e esfarrapados. Um tinha um furúnculo no pescoço, e nenhum tomou banho no último meio ano. A possibilidade de elevar gente daquela a uma senhoria divertia-a. Podia sentálos ao lado de Margaery em banquetes. Quando o idiota-chefe desatou o cordão que fechava o saco e mergulhou a mão lá dentro, o cheiro de decomposição encheu a sala de audiências como uma roseira fétida. A cabeça que ele tirou para fora era verde-acinzentada e estava repleta de larvas. Cheira como o pai. Dorcas arquejou, e Jocelyn cobriu a mão e vomitou.
A rainha examinou a captura, sem vacilar.
— Mataram o anão errado — disse por fim, ressentindo-se de cada palavra.
— Não matamos — atreveu-se um dos idiotas a dizer. — Isto tem de ser ele. Um anão, está vendo? Apodreceu um bocado, é só isso.
— E também cresceu um nariz novo — observou Cersei. — E um nariz bastante bulboso, diria eu. O nariz de Tyrion foi-lhe cortado numa batalha. 
Os três idiotas trocaram um olhar.
— Ninguém nos disse — informou aquele que tinha a cabeça na mão. — Este apareceu a andar com todo o descaramento do mundo, um anão feio qualquer, e a gente pensou... 
— Ele disse que era um pardal — acrescentou o do furúnculo — e você disse que era mentira. — Dirigindo-se ao terceiro homem. 
A rainha enfureceu-se ao pensar que tinha deixado o pequeno conselho esperando por causa daquela farsa. 
— Desperdiçaram o meu tempo e mataram um homem inocente. Deveria mandar cortar as suas cabeças. — Mas se o fizer, o próximo homem poderia hesitar e permitir que o Duende escape à rede. Preferiria fazer uma pilha de anões mortos com três metros de altura a deixar que isso aconteça. — Saiam da minha vista.
— Sim, Vossa Graça — disse o furúnculo. — Pedimos perdão.
— Vai querer a cabeça? — perguntou o homem que a tinha na mão.
— Entregue-a a Sor Meryn. Não, dentro do saco, seu cretino. Sim. Sor Osmund, acompanhe-os até lá fora.
Trant levou a cabeça e o Kettleblack os carrascos, deixando apenas o pequeno almoço da Senhora Jocelyn como indício da sua visita.
— Limpe isso imediatamente – ordenou-lhe a rainha. Aquela fora a terceira cabeça que lhe fora entregue. Pelo menos este era um anão. O último era apenas uma criança feia.
— Alguém encontrará o anão, não tema — garantiu-lhe Sor Osmund. — E quando o fizerem, o deixaremos bem morto.
Ah sim? Na noite anterior, Cersei tinha sonhado com a velha, com as suas maxilas pedregosas e voz coaxante. Maggy, a Rã, era como lhe chamavam nas ruas de I.anisporto. Se o pai tivesse sabido o que ela me disse, teria mandado lhe cortar a língua. Cersei nunca contara a ninguém, porém, nem mesmo a Jaime. Melara disse que se nunca falássemos das profecias, as esqueceríamos. Disse que uma profecia esquecida não podia tomar-se verdadeira.
 — Tenho informantes rastreando o Duende por todo o lado, Vossa Graça — disse Qyburn. Envergava algo muito semelhante a uma veste de meistre, mas branca em vez de cinzenta, imaculada como os mantos da Guarda Real. Volutas de ouro lhe decoravam a bainha, mangas e colarinho alto rígido, e trazia uma faixa dourada atada à cintura. — Em Vilavelha, Vila Gaivota, Dorne, até nas Cidades Livres. Fuja para onde fugir, os meus transmissores de segredos o encontrarão.
— Partindo do princípio de que ele abandonou Porto Real. Pode estar escondido no Septo de Baelor, tanto quanto sabemos, balançando nas cordas dos sinos para fazer aquele horrível chinfrim. — Cersei fez uma expressão amarga e permitiu que Dorcas a ajudasse a ficar em pé.  — Venha, senhor. O meu conselho espera. — Deu o braço a Qyburn ao descer as escadas. — Tratou daquela pequena tarefa que o atribuí?
— Tratei Vossa Graça. Lamento que tenha demorado tanto tempo. É uma cabeça tão grande. Os escaravelhos levaram muitas horas para limpar a carne. Em jeito de pedido de desculpa, forrei uma caixa de ébano e prata com feltro, para fazer uma apresentação adequada para o crânio.
— Um saco de pano serviria igualmente bem. O Príncipe Doran quer a sua cabeça. Está-se nas tintas para o tipo de caixa em que ela vem.
O repique dos sinos era mais forte no pátio. Ele era só um Alto Septão. Quanto mais tempo teremos de aguentar isto? Os sinos eram mais melodiosos do que os gritos da Montanha tinham sido, mas...
Qyburn pareceu pressentir o que ela estava pensando.
— Os sinos pararão ao pôr-do-sol, Vossa Graça. 
— Isso será um grande alivio. Como você sabe?
— Saber é a natureza do serviço que presto.
Varys nos fez acreditar que era insubstituível. Que tolos fomos. Depois de a rainha ter feito com que Qyburn ocupasse o lugar do eunuco, os parasitas do costume não tinham perdido tempo em lhes dar seu conhecimento em troca dos seus sussurros por algumas moedas. Sempre foi a prata, não a Aranha. Qybum nos serve igualmente bem. Estava ansiosa por ver a expressão no rosto de Pycelle quando Qyburn ocupasse o seu lugar.
Um cavaleiro da Guarda Real encontrava-se sempre a postos à porta dos aposentos do conselho quando o pequeno conselho estava em sessão.
Naquele dia, era Sor Boros Blount.
— Sor Boros — disse a rainha num tom agradável — parece bastante cinzento hoje de manhã. Algo que tenha comido, talvez? — Jaime fez dele provador do rei. Uma tarefa saborosa, mas vergonhosa para um cavaleiro. Blount odiava-a. As suas bochechas pendentes estremeceram quando segurou a porta para eles passarem.
Os conselheiros aquietaram-se quando ela entrou. Lorde Gyles tossiu em jeito de saudação, fazendo ruído suficiente para acordar Pycelle.
Os outros se ergueram, proferindo palavras de circunstância. Cersei permitiu-se o mais tênue dos sorrisos.
— Senhores. Sei que todos perdoarão o meu atraso.
— Estamos aqui para servir Vossa Graça — disse Sor Harys Swvft. — É um prazer antecipar a vossa chegada. 
— Estou certa de que todos conhecem lorde Qyburn.
O Grande Meistre Pycelle não a desapontou.
— Lorde Qyburn? — conseguiu dizer, tornando-se roxo. — Vossa Graça, este... Um meistre profere votos sagrados, jurando não possuir terras nem senhorias...
— A sua Cidadela tirou-lhe a corrente — fez-lhe lembrar Cersei. — Se ele não é um meistre, não pode ser limitado pelos votos de meistre. Talvez você se recorde de que também chamávamos lorde ao eunuco.
Pycelle pôs-se a falar de forma atabalhoada.
— Este homem é... Ele é inadequado...
— Não ouse falar-me de adequação depois do nauseabundo objeto de escárnio em que transformou o cadáver do meu pai.
— Vossa Graça não pode pensar... — O velho ergueu uma mão manchada, como que para se proteger de um golpe. — As irmãs silenciosas removeram as entranhas e órgãos do Lorde Tywin, drenaram lhe o sangue... tomaram todos os cuidados... o seu corpo foi cheio de sais e ervas odoríferas...
— Oh, me poupe dos detalhes repugnantes. Eu cheirei o resultado dos seus cuidados. As artes curativas do Lorde Qybum salvaram a vida do meu irmão, e não duvido de que ele servirá ao rei de forma mais capaz do que aquele eunuco afetado. Senhor, conhece os seus colegas do conselho?
— Seria fraco informante se não conhecesse, Vossa Graça. — Qybum sentou-se entre Orton Merryweather e Gyles Rosby.
Os meus conselheiros. Cersei arrancara todas as rosas, e todos aqueles com obrigações para com o tio ou os irmãos. Nos seus lugares encontravam-se homens cuja lealdade lhe pertenceria. Até lhes dera novos títulos, pedidos de empréstimo às Cidades Livres; a rainha não admitiria nenhum “mestre” na corte além de si própria. Orton Merryweather era o seu administrador de justiça, Gyles Rosby o seu senhor tesoureiro. Aurane Waters, o fogoso jovem Bastardo de Derivamarca, seria o seu grande almirante.
E para Mão, Sor Harys Swyft.
Mole, careca e obsequioso, Swyft possuía um absurdo tufozinho branco de barba onde a maior parte dos outros homens tinham um queixo. O galo anão azul da sua Casa estava desenhado na frente do seu gibão de pelúcia amarela em contas de lápis-lazúli. Por cima daquilo, usava uma capa de veludo azul decorada com uma centena de mãos douradas. Sor Harys ficara deliciado com a nomeação, sendo como era demasiadamente obtuso para perceber que era mais refém do que Mão. A filha era esposa do tio de Cersei, e Kevan amava a sua senhora desprovida de queixo, por mais rasa de peito que fosse, por mais galináceas que fossem as suas pernas.
Enquanto tivesse Sor Harys na mão, Kevan Lannister teria de pensar duas vezes antes de lhe opor. É certo que um sogro não é o refém ideal, mas antes um escudo fraco do que nenhum.
— O rei virá juntar-se à nós? — perguntou Orton Merryweather.
— O meu filho está brincando com a sua pequena rainha. De momento, a sua ideia de ser rei é carimbar papéis com o selo real. Sua Graça é ainda novo demais para compreender assuntos de estado.
— E o nosso valente Senhor Comandante? 
— Sor Jaime encontra-se no seu armeiro, provando uma mão. Sei que estávamos todos fartos daquele feio toco. E creio bem que ele acharia estes procedimentos tão cansativos como Tommen. — Aurane Waters respondeu com um risinho. Ótimo, pensou Cersei, quando mais rirem, menos ameaça ele é. Que riam. — Temos vinho?
— Temos, Vossa Graça. — Orton Merryweather não era um homem bem parecido, com o seu grande nariz de aspecto pesado e o desordenado matagal ruivo alaranjado que tinha na cabeça, mas nunca era menos que cortês. — Temos tinto de Dorne e dourado da Árvore, e um belo hipocraz doce de Jardim de Cima.
— O dourado, me parece bom. Acho os vinhos de Dorne tão amargos como os dorneses. — Enquanto Merryweather lhe enchia a taça, Cersei disse: — Suponho que, já agora, podemos começar por eles.
Os lábios do Grande Meistre Pycelle ainda tremiam, mas de algum modo conseguiu descobrir onde tinha a língua.
— Às vossas ordens. O Príncipe Doran prendeu as bastardas insubmissas do irmão, mas Lançassolar continua em ebulição. O príncipe escreve que não tem esperança de acalmar as águas até receber a justiça que lhe foi prometida.
— Com certeza. — Uma criatura cansativa, este príncipe. — A sua longa espera está prestes a terminar. Vou enviar Balon Swann a Lançassolar, para lhe entregar a cabeça de Gregor Clegane. — Sor Balon teria também outra tarefa, mas era melhor omitir essa parte.
— Ah. — Sor Harys Swyít remexeu na sua divertida barbinha com o polegar e o indicador. — Então ele está morto? Sor Gregor?
— Imagino que sim, senhor — disse secamente Aurane Waters. — Disseram-me que remover a cabeça de cima do corpo é frequentemente mortal.
Cersei favoreceu-o com um sorriso; apreciava um pouco de espírito, desde que não fosse ela o alvo.
— Sor Gregor não resistiu aos ferimentos, tal como o Grande Meistre Pycelle tinha previsto.
Pycelle herrumpou e fitou Qyburn com uma expressão amarga.
— A lança estava envenenada. Ninguém poderia tê-lo salvado.
— Foi o que você disse. Lembro-me bem. — A rainha virou-se para a sua Mão. — De que estava falando quando cheguei, Sor Harys?
— De pardais, Vossa Graça. O Septão Raynard diz que podem subir a dois mil os que se encontram na cidade, e chegam mais todos os dias. Os seus líderes pregam sobre a condenação e a adoração de demônios...
Cersei provou o vinho. Muito agradável.
— E já há muito que alguém o devia ter feito, não lhe parece? Que chamássemos aquele deus vermelho que Stannis idolatra, se não por demônio? A Fé deve opor-se a um tal mal. — Qyburn lembrara-lhe daquilo, o esperto do homem. — O nosso falecido Alto Septão deixava passar em demasia, temo. A idade diminuíra-lhe a visão e exaurira lhe as forças.
— Ele era um velho acabado, Vossa Graça. — Qyburn sorriu a Pycelle. — O seu falecimento não nos devia ter surpreendido. Ninguém pode pedir mais do que morrer pacificamente no sono, cheio de anos.
— Pois não — disse Cersei — mas esperemos bem que o seu sucessor seja mais vigoroso. Os meus amigos da outra colina me dizem que o mais provável é que seja Torbert ou Raynard.
O Grande Meistre Pycelle pigarreou.
— Também tenho amigos entre os Mais Devotos, e eles falam do Septão Ollidor.
— Não menospreze Luceon – disse Qyburn. – Na noite passada homenageou trinta dos Mais Devotos com leitão e dourado da Árvore, e de dia distribui pão duro aos pobres, para demonstrar a sua piedade.
Aurane Waters parecia tão aborrecido como Cersei com toda aquela conversa oca sobre septões. Visto de perto, o seu cabelo era mais prateado do que dourado, e os olhos eram cinzentos esverdeados, ao passo que os do Príncipe Rhaegar tinham sido purpúreos. Mesmo assim, a semelhança... Perguntou a si própria se Waters cortaria a barba por si. Embora fosse dez anos mais novo do que ela, desejava-a; Cersei via-o no modo como a olhava. Os homens olhavam-na daquela forma desde que os seios tinham começado a despontar. Porque eu era tão bela, diziam eles, mas Jaime também era belo, e nunca o olhavam daquela forma. Quando era pequena, por vezes vestia a roupa do irmão, na brincadeira. Ficava sempre surpreendida com a diferença de tratamento dos homens para com ela quando pensavam que era Jaime. Até o próprio Lorde Tywin...
Pycelle e Merryweather continuavam jogando com as palavras a propósito de quem seria provável tornar-se o novo Alto Septão.
— Um servirá tão bem como o outro — anunciou abruptamente a rainha — mas seja quem for que coloque a coroa de cristal tem de proclamar um anátema contra o Duende. — O último Alto Septão mantivera-se notavelmente silencioso acerca de Tyrion. — Quanto a esses pardais cor-derosa, desde que não preguem a traição são problema da Fé, não nosso.
Lorde Orton e Sor Harys murmuraram o seu acordo. A tentativa de Gyles Rosby para fazer o mesmo dissolveu-se num ataque de tosse. Cersei virou a cara, repugnada, quando ele puxou um escarro de muco ensanguentado.
— Meistre, trouxe a carta vinda do Vale?
— Trouxe, Vossa Graça. — Pycelle colheu-a da sua pilha de papéis e alisou-a. — É mais uma declaração do que uma carta. Assinada em Pedraruna por Bronze Yohn Royce, pela Senhora Waynwood, pelos Lordes Hunter, Redfort e Belmore e por Symond Templeton, o Cavaleiro de Novestrelas. Todos eles afixaram os seus selos. Escrevem...
Um monte de asneiras.
— Os senhores podem ler a carta se assim o desejarem. Royce e os outros estão a reunir homens por baixo do Ninho de Águia. Pretendem retirar do Mindinho o cargo de Senhor Protetor do Vale, à força se necessário. A questão é: devemos permiti-lo?
— O Lorde Baelish procura a nossa ajuda? — perguntou Harys Swyft.
— Por enquanto não. Em boa verdade, parece bastante despreocupado. A sua última carta menciona os rebeldes apenas de passagem antes de me implorar que lhe envie umas velhas tapeçarias de Robert.
Sor Harys passou os dedos pela barba.
— E esses senhores da declaração, será que eles apelam ao rei para que os ajude?
— Não.
— Então... Talvez não tenhamos de fazer nada.
— Uma guerra no Vale seria uma grande tragédia — disse Pycelle.
— Guerra? — Orton Merryweather soltou uma gargalhada. — Lorde Baelish é um homem muito divertido, mas não se trava uma guerra com ditos de espírito. Duvido que chegue a haver derramamento de sangue. E será que importa quem é regente do pequeno Lorde Robert, desde que o Vale envie os seus impostos?
Não, decidiu Cersei. Em boa verdade, o Mindinho fora mais útil na corte. Ele tinha um dom para arranjar ouro, e nunca tossia.
—Lorde Orton convenceu-me. Meistre Pycelle, instruí esses Senhores Declarantes de que nenhum mal deve acontecer a Petyr. Fora isso, a coroa satisfaz-se com quaisquer disposições que possam fazer para a governação do Vale durante a menoridade de Robert Arryn.
— Muito bem, Vossa Graça.
— Podemos discutir a frota? — perguntou Aurane Waters. — Menos de uma dúzia dos nossos navios sobreviveu ao inferno na Água Negra. Temos de restaurar o nosso poder no mar.
Merryweather concordou.
— O poder naval é altamente essencial.
— Seria possível fazer uso dos homens de ferro? — perguntou Orton Merryweather. — O inimigo do nosso inimigo? O que queria de nós a Cadeira de Pedra do Mar como preço de uma aliança?
— Eles querem o norte — disse o Grande Meistre Pycelle — que o nobre pai da nossa rainha prometeu à Casa Bolton.
— Que inconveniente — disse Merryweather. — Mesmo assim, o norte é grande. As terras poderiam ser divididas. Não tem de ser um arranjo permanente. Bolton poderá consentir, desde que lhe asseguremos de que as nossas forças serão suas assim que Stannis for destruído.
— Ouvi dizer que Balon Greyjoy está morto — disse Sor Harys Swyft. — Sabemos quem governa agora as ilhas? Lorde Balon tinha um filho? 
— Leo? — tossiu o Lorde Gyles. — Theo? 
— Theon Greyjoy foi criado em Winterfell, como protegido de Eddard Stark — disse Qyburn. — Não é provável que seja amigo nosso. 
— Tinha ouvido dizer que estava morto — disse Merryweather. 
— Só havia um filho? — Sor Harys Swyft repuxou a barbicha. — Irmãos. Havia irmãos. Não havia? 
Varys teria sabido, pensou Cersei com irritação. 
— Não pretendo subir para a cama com essa lamentável matilha de lulas. A vez deles chegará, depois de ter lidado com Stannis. Aquilo de que necessitamos é de uma frota nossa. 
— Proponho que construamos novos dromones — disse Aurane Waters. — Dez, para começar. 
— E de onde vem o dinheiro? — perguntou Pycelle. 
Lorde Gyles tomou aquilo como um convite para recomeçar a tossir. Veio-lhe à boca mais cuspo cor-de-rosa e ele limpou-o com pancadinhas dadas na boca com um quadrado de seda vermelha. 
— Não há... — conseguiu dizer, antes da tosse lhe engolir as palavras. ... não... nós não... — Sor Harys mostrou-se suficientemente lesto para compreender o significado que se escondia atrás da tosse. 
— Os rendimentos da coroa nunca foram maiores – objetou. – Foi o próprio Sor Kevan quem me disse. 
Lorde Gyles tossiu. 
—... despesas... mantos dourados... 
Cersei já ouvira as objeções do homem. 
— O nosso senhor tesoureiro está a tentar dizer que temos demasiados homens de mantos dourados e ouro insuficiente. — A tosse de Gyles começara a enfadá-la. Garth, o Grosso, talvez não tivesse sido assim tão mau. — Embora grandes, os rendimentos da coroa não são suficientes para acompanhar as dívidas de Robert. Por consequência, decidi adiar o pagamento das somas devidas à Fé Sagrada e ao Banco de Ferro de Bravos até ao fim da guerra. — Não havia dúvida de que o novo Alto Septão retorceria as suas santas mãos, e os bravosianos guinchariam e grasnariam, mas e daí? — Os fundos poupados serão usados para a construção da nossa nova frota. 
— Vossa Graça é prudente — disse Lorde Merryweather. — Esta é urna medida sensata. E necessária, até a guerra terminar. Concordo.
— Eu também — disse Sor Harys. 
— Vossa Graça — disse Pyrcelle numa voz insegura — temo que isto cause mais problemas do que pensa. O Banco de Ferro... 
—... Continua em Bravos, longe, do outro lado do mar. Eles terão o seu ouro, meistre. Um Lannister paga as suas dividas.
— Os bravosianos também têm um ditado. — A corrente provida de joias de Pycelle tilintou suavemente. — O Banco de Ferro obterá o que lhe devido, dizem eles.
— O Banco de Ferro obterá o que lhe é devido quando eu disser. Até esse momento, o Banco de Ferro esperará respeitosamente. Lorde Waters, dê inicio à construção dos seus drornones.
— Muito bem, Vossa Graça.
 Sor Harys remexeu nuns papéis.
— O assunto seguinte... Recebemos uma carta de Lorde Frey avançando com algumas exigências...
— Quantas terras e honrarias quer esse homem? — Exclamou a rainha. — A sua mãe deve ter tido três tetas.
— Os senhores podem não saber — disse Qyburn — mas nas tabernas e casas de pasto da cidade, há quem sugira que a coroa pode ter sido de algum modo cúmplice com o crime do Lorde Walden.
 Os outros conselheiros fitaram-no com incerteza.
— Está referindo ao Casamento Vermelho? — Perguntou Aurane Waters.
— Crime? — Disse Sor Harys. Pycelle pigarreou ruidosamente. Lorde Gyles tossiu.
— Aqueles pardais são particularmente diretos — preveniu Qyburn. — O Casamento Vermelho foi uma afronta a todas as leis dos deuses e dos homens, dizem eles, e os que tiveram uma participação no caso estão condenados.
 Cersei não foi lenta a perceber o que ele queria dizer.
—Lorde Walder terá de enfrentar em breve o julgamento do Pai. Muito velho. Que os pardais cuspam na sua memória. Nada tem a ver conosco.
— Pois não — disse Sor Harys.
— Pois não — disse Lorde Merryweather.
— Ninguém poderia pensar o contrário — disse Pycelle. Lorde Gyles tossiu.
— Um pouco de cuspe na tumba do Lorde Walder não é coisa que perturbe os vermes — concordou Qyburn — mas também seria útil se alguém fosse punido pelo Casamento Vermelho. Algumas cabeças Frey fariam muito pelo apaziguamento do norte.
—Lorde Walder nunca sacrificará os seus — disse Pycelle.
— Pois não — meditou Cersei — mas os seus herdeiros podem ser menos melindrosos. Podemos esperar que o Lorde Walder nos faça em breve a cortesia de morrer. Que melhor maneira para o novo Senhor da Travessia se livrar de meios irmãos, primos desagradáveis e irmãs intriguistas do que indicando-os como culpados?
— Enquanto aguardamos a morte do Lorde Walder, há outro assunto — disse Aurane Waters. — A Companhia Dourada quebrou o contrato com Myr. Nas docas, tenho ouvido homens dizer que Lorde Stannis os contratou e os vai trazer do outro lado do mar.
— Com o que lhes pagaria?   — Perguntou Merryweather. — Neve? Eles chamam-se Companhia Dourada. Quanto ouro tem Stannis?
— Bastante pouco — assegurou-lhe Cersei. — Lorde Qyburn falou com a tripulação daquela galé de Myr que se encontra na baia. Dizem que a Companhia Dourada se dirige a Volantis. Se pretendem vir para Westeros, estão marchando na direção errada.
— Talvez se tenham cansado de lutar do lado perdedor – sugeriu Lorde Merryweather.
— Também tem isso — concordou a rainha. — Só um cego pode não conseguir ver que a nossa guerra está praticamente ganha. Lorde Tyrell tem Ponta Tempestade sob ataque. Correrrio está cercada pelos Frey e pelo meu primo Daven, o nosso novo Protetor do Oeste. Os navios do Lorde Redwyne cruzaram os Estreitos de Tarth e sobem rapidamente a costa. Só restam em Pedra do Dragão alguns barcos de pesca para se oporem ao desembarque de Redwyne. O castelo pode aguentar durante algum tempo, mas assim que controlemos o porto podemos separar a guarnição do mar. Então só restará o próprio Stannis a nos aborrecer.
— Se é possível crer no Lorde Janos, ele tentando fazer causa comum com os selvagens — avisou o Grande Meistre Pycelle.
— Selvagens vestidos de peles — declarou Lorde Merryweather. — Lorde Stannis deve estar realmente desesperado, para procurar tais aliados.
— Desesperado e insensato — concordou a rainha. — Os nortenhos odeiam os selvagens. Roose Bolton não deverá ter problemas em ganhá-los para a nossa causa. Alguns já se reuniram ao seu filho bastardo para o ajudar a enxotar os malditos homens de ferro de Fosso Cailin e abrir caminho para o regresso do Lorde Bolton. Umber, Ryswell... Esqueço-me dos outros nomes. Até Porto Branco está a ponto de se juntar a nós. O seu lorde concordou em casar ambas as netas com os nossos amigos Frey e em abrir o porto aos nossos navios.
— Julgava que não tínhamos navios — disse Sor Harys, confuso.
— Wyman Manderly era um vassalo leal de Eddard Stark — disse o Grande Meistre Pycelle. Podemos confiar em tal homem?
Não podemos confiar em ninguém.
— É um velho gordo e assustado. No entanto, está a mostrar-se teimoso num ponto. Insiste que não dobrará o joelho até que lhe seja devolvido o herdeiro.
— E esse herdeiro está nas nossas mãos? – perguntou Sor Harys.
— Deve estar em Harrenhal, se ainda estiver vivo. Gregor Clegane tomou-o cativo. — A Montanha nem sempre fora branda para com os seus prisioneiros, mesmo aqueles que valiam um resgate considerável. — Se estiver morto, suponho que tenhamos de enviar ao Lorde Manderly as cabeças daqueles que o mataram, com os nossos mais sinceros pedidos de desculpa. — Se uma cabeça era suficiente para apaziguar um príncipe de Dome, um saco de cabeças deveria ser mais do que adequado para um nortenho gordo enrolado em peles de foca.
— Mas Lorde Stannis não procurará conquistar também a aliança de Porto Branco? — perguntou o Grande Meistre Pycelle.
— Oh, ele tentou. Lorde Manderly enviou-nos as suas cartas e respondeu com evasivas. Stannis exige as espadas e a prata de Porto Branco, pelas quais oferece... Bem, nada. — Um dia teria de acender uma vela ao Estranho por ter levado Renly, deixando Stannis. Se tivesse sido o contrário, a sua vida teria sido mais dura. — Hoje mesmo chegou outra ave. Stannis enviou o seu contrabandista de cebolas para negociar com Porto Branco em seu nome. Manderly enfiou o desgraçado numa cela. Pergunta o que deve fazer com ele.
— Que o envie para cá, para podermos interrogá-lo — sugeriu o Lorde Merryweather. — O homem pode saber muitas coisas valiosas.
— Ele que morra — disse Qyburn. — A sua morte será uma lição para o norte, mostrando-lhes o que acontece aos traidores.
— Estou bastante de acordo — disse a rainha. — De instruções a Lorde Manderly para lhe cortar imediatamente a cabeça. Isso porá fim a qualquer hipótese de Porto Branco apoiar Stannis.
— Stannis irá precisar de outro Mão — observou Aurane Waters com um risinho. — O cavaleiro dos nabos, talvez?
— Um cavaleiro dos nabos? — Disse Sor Harys Swyft, confuso. — Quem é esse homem? Nunca ouvi falar dele.
 A única resposta de Waters foi rolar os olhos.
— E se Lorde Manderly recusar? — perguntou Merryweather.
— Não se atreverá. A cabeça do cavaleiro das cebolas é a moeda com que terá de comprar a vida do filho. — Cersei sorriu. Aquele velho palerma gordo pode ter sido leal aos Stark A sua maneira, mas com os lobos de Winterfell extintos...
— Vossa Graça esqueceu a Senhora Sansa disse Pycelle.
A rainha irritou-se.
— Pode ter certeza de que não me esqueci dessa pequena loba. — Recusava-se a proferir o nome da menina. — Devia tê-la mostrado as celas negras como filha de um traidor, mas em vez disso acolhi-a entre os meus. Partilhou o meu salão e a minha lareira, brincou com os meus filhos. A alimentei, a vesti, tentei deixá-la um pouco menos ignorante acerca do mundo, e como foi que ela me pagou a bondade? Ajudou a assassinar o meu filho. Quando encontrarmos o Duende, encontraremos também a Senhora Sansa. Ela não está morta... Mas antes de eu acabar o que tenho planeado para ela, os garanto, desatará a cantar ao Estranho, suplicando o seu beijo.
Seguiu-se um silêncio incomodo. Terão todos engolido as línguas? Pensou Cersei, irritada. Aquilo era o suficiente para se interrogar por que se incomodava com um conselho.
— Em todo o caso — prosseguiu a rainha — A filha mais nova do Lorde Eddard está com o Lorde Bolton, e se casará com o seu filho Ramsay assim que Fosso Cailin cair. — Desde que a menina desempenhe o seu papel suficientemente bem para cimentar a pretensão a Winterfell, nenhum dos Bolton se importaria muito que ela fosse na realidade a cria de algum intendente ataviada pelo Mindinho. — Se o norte tem de ter um Stark, daremos um. — Permitiu que Lorde Merryweather voltasse a encher-lhe a taça. — Outro problema surgiu na Muralha, porém. Os irmãos da Patrulha da Noite perderam o juízo e escolheram o bastardo de Ned Stark para ser o seu Senhor Comandante.
— O rapaz chama-se Snow – disse Pycelle inutilmente.
— Vi-o de passagem urna vez em Winterfell — disse a rainha — se bem que os Stark tivessem feito os possíveis por escondê-lo. Parece-se muito com o pai. — Os bastardos do marido também tinham o seu aspecto, se bem que pelo menos Robert tivesse tido a elegância de mantê-los longe de sua vista. Uma vez, depois daquele lamentável assunto do gato, fizera uns ruídos acerca de trazer uma de suas filhas ilegítimas qualquer para a corte.
— Faça o que quiser — dissera-lhe Cersei — mas talvez venha a descobrir que a cidade não é um lugar saudável para uma rapariga em crescimento. — A nódoa negra que aquelas palavras lhe tinham conquistado não fora fácil de esconder de Jaime, mas não voltara a ouvir falar daquela bastarda. Catelyn Tully era uma ratinha, caso contrário teria se visto livre daquele Jon Snow no berço. Em vez disso, deixou a tarefa suja para mim.
— O Snow também partilha o gosto do Lorde Eddard pela traição — disse. — O pai queria entregar o reino a Stannis. O filho deu-lhe terras e castelos.
— A Patrulha da Noite jurou não participar nas guerras dos Sete Reinos — recordou-lhes Pycelle.  Ao longo de milhares de anos, os irmãos negros mantiver essa tradição.
— Até agora — disse Cersei. O bastardo escreveu-nos para afirmar que a Patrulha da Noite não favorece nenhum dos lados, mas os seus atos desvendam a mentira das suas palavras. Deu a Stannis comida e abrigo, e mesmo assim tem a insolência de nos suplicar armas e homens.
— Um ultraje — declarou o Lorde Merryvveather. — Não podemos permitir que a Patrulha da Noite junte as suas forças as do Lorde Stannis.
— Temos de declarar este Snow um traidor e um rebelde — concordou Sor Harys Swyft. — Os irmãos negros têm de o destituir.
 O Grande Meistre Pycelle anuiu solenemente.
— Proponho que informemos Castelo Negro de que não lhes serão enviados mais homens até que o Snow desapareça.
— Os nossos novos dromones vão precisar de remadores — disse Aurane Waters. — Mandemos instruções aos lordes para que daqui em diante me enviem os seus caçadores furtivos e ladrões, e não à Muralha.
Qyburn inclinou-se para a frente com um sorriso.
— A Patrulha da Noite protege a todos nós dos snarks e dos gramequins. Senhores, o que eu digo é que temos de ajudar os bravos irmãos negros.
 Cersei deitou-lhe um olhar penetrante.
— O que você está dizendo?
— O seguinte — disse Qybum. — Há anos que a Patrulha da Noite suplica por homens. Lorde Stannis respondeu ao seu apelo. Poderá o Rei Tommen fazer menos do que isso? Sua Graça deve mandar cem homens para a Muralha. Ostensivamente para vestir o negro, mas na verdade...
— Para destituir Jon Snow do comando — terminou Cersei, deliciada. Eu sabia que tinha razão em querê-lo no meu conselho. — É isso mesmo que vamos fazer. — Soltou uma gargalhada. Se este bastardo for mesmo filho de seu pai, não suspeitará de nada. Talvez até me agradeça, antes da lâmina lhe deslizar entre as costelas. — Terá de ser feito com cautela, com certeza. Deixe o resto comigo, senhores. — Era assim que havia que lidar com um inimigo: com um punhal, não com uma declaração. — Hoje fizemos bom trabalho, senhores. Agradeço-vos. Há mais algum assunto?
— Uma última coisa, Vossa Graça — disse Aurane Waters, num tom de quem pede desculpas. — Hesito em ocupar o tempo do conselho com bagatelas, mas tem-se ouvido um estranho falatório nas docas nos últimos tempos. Marinheiros vindos de leste. Falam de dragões...
— E sem dúvida de mantícoras e de snarks barbudos? — Cersei soltou uma gargalhadinha abafada. — Venha falar comigo quando falarem de anões, senhor. — Pôs-se em pé, a fim de assinalar o fim da reunião.
Soprava um vento forte de outono quando Cersei saiu das salas do conselho, e os sinos do Abençoado Baelor cantavam a sua canção de luto do outro lado da cidade. No pátio, duas vintenas de cavaleiros golpeavam-se uns aos outros com espadas e escudos, somando ruído ao ruído. Sor Boros Blount escoltou a rainha de volta aos seus aposentos, onde foi encontrar a Senhora Merryweather aos risinhos com Jocelyn e Dorcas.
— O que vocês acham tão divertido?
— Os gêmeos Redwyne — disse Taena. — Ambos se apaixonaram pela Senhora Margaery. Costumavam lutar um com o outro relativamente a qual seria o próximo Senhor da Árvore. Agora ambos querem juntar-se a Guarda Real, só para ficar perto da pequena rainha.
— Os Redwyne sempre tiveram mais sardas do que miolos. — Mas era útil saber aquilo. Se o Horror ou o Babeiro for encontrado na cama com Margaery... Cersei se perguntou se a pequena rainha gostaria de sardas. — Dorcas, vá buscar Sor Osney Keitleblack.
 Dorcas corou.
— Ás suas ordens.
 Depois da menina sair, Taena Merryweather deu a rainha um olhar zombeteiro.
— Por que ela ficou tão vermelha?
— Amor. — Foi a vez de Cersei rir.   Ela gosta do nosso Sor Osnev. — Era o mais novo dos Kettleblack, o escanhoado. Embora tivesse o mesmo cabelo negro, nariz adunco e sorriso fácil do irmão Osmund, urna bochecha ostentava três longos arranhões, cortesia de uma das rameiras de Tyrion, — Gosta das cicatrizes dele, parece-me.
Os olhos escuros da Senhora Merryweather brilharam de travessura.
— É isso mesmo, As cicatrizes fazem um homem parecer perigoso, e o perigo é excitante.
— Choca-me, senhora — disse a rainha, provocando. — Se o perigo a excita assim tanto, por que casar com o Lorde Orton? Nós todos o apreciamos é verdade, mas mesmo assim... — Petyr comentara uma vez que a cornucópia que adornava as armas da Casa Merryweather se adequava admiravelmente ao Lorde Orton, visto que tinha cabelo cor de cenoura, um nariz tão bulboso corno urna raiz de beterraba e papas de ervilhas em vez de miolos.
Taena riu.
— O meu senhor é mais magnânimo do que perigoso, é verdade. Mas... Espero que Vossa Graça não pense o pior de mim, mas não cheguei inteiramente donzela à cama de Orton.
 Vocês das Cidades Livres são todas rameiras, não são? Era bom saber; um dia, poderia ser capaz de arranjar um uso para aquilo.
— Diga-me, quem foi esse amante tão... Cheio de perigo? A pele cor de azeitona de Taena tornou-se ainda mais escura quando ela corou.
— Oh, não devia ter dito nada. Vossa Graça guardará o meu segredo, sim?
— Os homens têm cicatrizes, as mulheres mistérios. – Cersei beijoulhe o rosto. Arrancarei o nome dele bem depressa.
 Quando Dorcas regressou com Sor Osney Kettleblack, a rainha mandou as suas senhoras embora.
— Venha se sentar comigo junto à janela, Sor Osney. Quer urna taça de vinho? — Foi ela própria quem os serviu. — Tem o manto no fio. Tenho em mente pôr-vos num novo.
— O quê, um branco? Quem morreu?
— Ninguém, por enquanto — disse a rainha. — É esse o seu desejo, juntar-se ao seu irmão Osmund na nossa Guarda Real?
— Preferia ser guarda da rainha, se aprouver a Vossa Graça. — Quando Osney sorriu, as cicatrizes no seu rosto tomaram um tom vermelho vivo.
Os dedos de Cersei percorreram o caminho que elas seguiam na cara do homem.
— Tem uma língua ousada, sor. Ainda fareis com que volte a descontrolar-me.
— Ótimo. — Sor Osney pegou-lhe na mão e beijou-lhe bruscamente os dedos. Minha querida rainha.
— É um homem perverso — sussurrou a rainha — e não um verdadeiro cavaleiro, penso eu. — Permitiu que lhe tocasse os seios através da seda do vestido. — Basta.
— Não basta. Desejo-a.
— Já me teve.
— Só uma vez. — Voltou a agarrar-lhe no seio esquerdo e deu-lhe um apertão desajeitado que lhe fez lembrar Robert.
— Uma boa noite para um bom cavaleiro. Prestaste-me um serviço com valentia, e obteve a recompensa. Cersei passeou os dedos pelas ataduras dele. Conseguia senti-lo a enrijecer através das calças. — Aquilo foi um cavalo novo que montou no pátio ontem de manhã?
— O garanhão negro? Sim. Um presente do meu irmão Osfryd. O chamei Meia-Noite.
Que maravilhosa originalidade.
— Uma bela montaria para uma batalha. Para o prazer, porém, nada se compara a um galope numa jovem potra fogosa. — Concedeu-lhe um sorriso e um apalpão. — Diga-me a verdade. Acha que a nossa pequena rainha é bonita?
 Sor Osney retraiu-se, cauteloso.
— Suponho que sim. Para urna rapariga. Eu preferia ter uma mulher.
— E porque não ambas? — sussurrou Cersei. — Faça-me o favor de colher a rosinha, e não me achará ingrata.
— A rosinha... fala de Margaery? — O ardor de Sor Osney estava murchando nas calças. — Ela é a esposa do rei. Não houve um membro qualquer da Guarda Real que perdeu a cabeça por se deitar com a esposa de um rei?
— Há séculos.  — Ela era a amante do rei, não esposa, e a cabeça foi a única coisa que não perdeu. Aegon desmembrou-o bocado a bocado, e obrigou a mulher a ver. Contudo, Cersei não queria que Osney remoesse esse antigo e desagradável caso. — Tommen não é Aegon, o indigno. Não tenha medo, ele fará o que eu lhe pedir. Pretendo que seja Margaery a perder a cabeça, não você.
Aquilo o fez hesitar.
— Refere-se ao cabaço?
— Isso também. Assumindo que ainda o tem. — Voltou a percorrer lhe as cicatrizes. — A menos que pense que Margaery mostre-se indiferente aos vossos... Encantos?
Osney deitou-lhe um olhar magoado.
— Ela gosta bastante de mim. Aquelas primas dela andam sempre a me atormentar por causa do nariz. Que é muito grande, e tal. Da última vez que Megga fez isso, Margaery disse-lhes para parar, e disse que eu tinha uma cara adorável.
— Então ai tem.
— Aí tenho — concordou o homem, em tom de dúvida — mas o que terei se ela... se eu... depois de nos...
— Fizerem o ato? — Cersei concedeu-lhe um sorriso cheio de farpas. — Dormir com uma rainha é traição. Tommen não terá alternativa a não ser envia-lo para a Muralha.
— A Muralha? – disse ele, consternado.
 Foi com dificuldade que Cersei evitou rir. Não, é melhor não. Os homens odeiam que alguém ria deles.
— Um manto negro combinaria bem com seus olhos, e com esse seu cabelo negro.
— Ninguém regressa da Muralha.
— Você regressará. Tudo o que tem de fazer é matar um rapaz.
— Que rapaz?
— Um rapaz bastardo conivente com Stannis. É jovem e verde, e você terá cem homens.
Kettleblack tinha medo, Cersei conseguia cheirá-lo, mas era demasiado orgulhoso para admitir esse medo. Os homens são todos iguais.
— Já perdi a conta aos rapazes que matei — insistiu. — Depois desse rapaz estar morto, obterei o perdão do rei?
— Isso, e uma senhoria. — A menos que os irmãos do Snow te enforquem primeiro. — Uma rainha tem de ter um consorte. Um consorte que não conheça o medo.
— Lorde Kettleblack? — Um sorriso lento espalhou-se pelo seu rosto, e as cicatrizes flamejaram rubras. — Sim, gosto do som disso. Um majestoso lorde...
—... e digno de dormir com uma rainha.
O homem franziu as sobrancelhas.
— A Muralha é fria.
— E eu sou quente. — Cersei pôs seus braços em volta do pescoço. — Durma com uma menina e mate um rapaz, e eu sou sua. Tem coragem para tal?
 Osney pensou um momento antes de concordar.
— Sou o seu homem.
— É sim, sor. — Beijou-o, e permitiu-lhe saborear um pouco de língua antes de se afastar. — Basta por agora. O resto terá de esperar. Sonhará comigo esta noite?
— Sim. — A voz dele soou rouca.
— E quando estiver na cama com a nossa Donzela Margaery? — Perguntou -lhe, provocando-o. Quando estiver dentro dela, sonhará comigo nesse momento?
— Sonharei — jurou Osney Kettleblack.
— Ótimo.
 Depois de ele sair, Cersei chamou Jocelyn para lhe escovar o cabelo enquanto ficava descalça e se espreguiçava como uma gata. Fui feita para isto, disse a si própria. O que mais lhe agradava era a pura elegância do plano. Nem mesmo Mace Tyrell se atreveria a defender a sua filha querida se fosse apanhada em flagrante com um homem como Osney Kettleblack, e nem Stannis Baratheon nem Jon Snow teriam motivos para se interrogarem sobre o motivo de Osney ser enviado para a Muralha. Se asseguraria de ser Sor Osmund quem descobriria o irmão com a pequena rainha; desse modo, a lealdade dos outros dois Kettleblack não teria de ser posta em causa. Se o pai pudesse me ver agora, não se apressaria tanto a falar em voltar a me casar. Uma pena que esteja tão morto. Ele e Robert, Jon Anyn, Ned Stark, Renly Baratheon, todos mortos. Só resta Tyrion, e não por muito tempo.
 Naquela noite, a rainha chamou a Senhora Merryweather ao seu
quarto.
— Toma uma taça de vinho? Perguntou-lhe.
— Uma pequena. — A mulher de Myr soltou uma gargalhada. — Uma grande.
— Amanhã quero que faça urna visita a minha nora — disse Cersei enquanto Dorcas a vestia para se deitar.
— A Senhora Margaery fica sempre feliz por me ver.
— Eu sei. — A rainha não deixou de reparar no título que Taena usou ao referir-se à pequena esposa de Tommen.  — Diga-lhe que mandei sete velas de cera de abelha ao Septo de Baelor em memória do nosso querido Alto Septão.
 Taena riu-se.
— Se assim é, ela mandará setenta e sete velas a fim de não ser ultrapassada em luto.
— Ficarei muito zangada se não o fizer — disse a rainha, sorrindo. — Diga-lhe também que tem um admirador secreto, um cavaleiro tão enfeitiçado pela sua beleza que não consegue dormir à noite.
— Posso perguntar a Vossa Graça que cavaleiro é esse? — A travessura cintilou nos grandes olhos escuros de Taena. — Poderá ser Sor Osney?
— Podia ser — disse a rainha — mas não mencione esse nome de imediato. Obrigue-a esforçar-se para obtê-lo. Fará o que te peço?
— Se a agradar. É tudo o que eu desejo Vossa Graça.
 Lá fora se levantava um vento frio. Ficaram acordadas até tarde, madrugada adentro, bebendo vinho dourado da Árvore e contando histórias uma a outra. Taena embebedou-se bastante e Cersei arrancou-lhe o nome do seu amante secreto. Era um capitão naval de Myr, meio pirata, com cabelo negro até aos ombros e uma cicatriz que lhe marcava a cara do queixo a orelha.
— Disse-lhe cem vezes que não, e ele dizia que sim — disse-lhe a outra mulher — até que por fim também eu estava a dizer que sim. Ele não era o tipo de homem que podia ser recusado.
— Conheço o gênero — disse a rainha com um sorriso perverso.
— Vossa Graça alguma vez conheceu um homem assim?
— Robert – mentiu Cersei, pensando em Jaime.
 Mas quando fechou os olhos, foi com o outro irmão que sonhou, e com os três malditos idiotas com quem começara o dia. No sonho, a cabeça que traziam no saco era a de Tyrion. Mandara revesti-la a bronze e guardava-a no penico.
 
O vento soprava do norte enquanto o Vitória de Ferro virou na baía sagrada do Berço de Nagga.
Victarion juntou-se a Nute, o Barbeiro, na proa. À frente, assomava a costa sagrada de Velha Wyk e acima dela o monte relvado, onde as costelas de Nagga ascendiam da terra como grandes troncos de árvores brancas, tão grandes ao redor como um mastro de um dromon e duas vezes mais altas.
Os ossos do Salão do Rei Cinza. Victarion podia sentir a mágica do lugar. 
— Balon esteve perto desses ossos quando se proclamou rei pela primeira vez — relembrou. — Ele jurou conquistar de volta nossa liberdade, e Tarle, o Três Vezes Afogado, colocou uma coroa feita de madeira sobre sua cabeça. BALON! eles clamaram. BALON! BALON REI!
— Eles gritarão seu nome tão alto quanto — disse Nute.
Victarion concordou com a cabeça, embora ele não quisesse compartilhar da certeza do Barbeiro. Balon teve três filhos, e uma filha que ele amava também.
Ele dissera tanto para os seus capitães em Fosso Cailin, quando eles encorajaram-no a reclamar a Cadeira de Pedra do Mar.
— Os filhos de Balon estão mortos — afirmou Ralf Stonehouse, o Vermelho — e Asha é uma mulher. Você era o braço direito de seu irmão, você deve pegar a espada que ele deixou cair. — Quando Victarion lembroulhes que Balon o ordenara a segurar o Fosso contra os homens do norte, Ralf Kenning disse: 
— Os lobos estão quebrados, senhor. Do que adianta ganhar o pântano e perder as ilhas? — E Ralf, o Coxo, acrescentou:
— Olho de Corvo ficou muito tempo longe. Ele não nos conhece.
Euron Greyjoy, Rei das Ilhas e do Norte. O pensamento despertou uma raiva antiga em seu coração, mas, mesmo assim...
— Palavras são como o vento — Victarion lhes falou, — e o único vento bom é o que empurra nossas velas. Você deseja que eu lute contra Olho de Corvo? Irmão contra irmão, filho do ferro contra filho do ferro? — Euron ainda era seu irmão mais velho, não importava quanto sangue maldito estivesse entre eles. Nenhum homem é tão amaldiçoado como aquele que mata um dos seus.
  Mas quando o chamado de Cabelo Molhado chegou, o chamado para a assembleia do rei, então tudo tinha mudado. Aeron fala com a voz do Deus Afogado, Victarion lembrou-se, e se é o desejo do Deus Afogado que eu sente na Cadeira da Pedra do Mar... No dia seguinte, ele deu o comando do Fosso Cailin para Ralf Kenning e partiu por terra para o Rio Febre, onde a Frota de Ferro descansou entre os bambus e salgueiros. Mares agitados e ventos inconstantes o atrasaram, mas apenas um navio foi perdido, e ele estava em casa.
O Aflição e o Vingança de Ferro estavam logo atrás, e o Vitória de Ferro atravessava o cabo. Mais atrás, vinham o Mão Rígida, Vento de Ferro, Fantasma Cinza, Lorde Quellon, Lorde Vickon, Lorde Dagon, e o resto, nove décimos da Frota de Ferro, navegando na maré da noite numa linha irregular que se estendia por léguas. A visão de suas velas enchiam Victarion Greyjoy de satisfação. Homem nenhum amara suas esposas como o Senhor Capitão amou seus navios.
Ao longo da costa sagrada de Velha Wyk, drácares cobriam a praia até onde os olhos podiam ver, seus mastros como lanças. Nas águas mais profundas passeavam prêmios: cocas, naus, e dromons conquistados com saques ou guerra, muito grandes para sair da costa. Da proa e popa e mastro, estandartes familiares se agitavam ao vento.
Nute, o Barbeiro, estreitou os olhos na direção da costa. 
— Aquele é o Canção do Mar de Lorde Harlow? — O Barbeiro era um homem atarracado de pernas arqueadas e braços longos, mas seus olhos não eram tão perspicazes como fora quando era jovem. Naqueles dias, ele podia jogar um machado tão bem que diziam que podia se barbear com ele.
— Canção do Mar, sim. — Rodrik, o Leitor, deixara para trás seus livros, ao que parecia. — E lá está o velho Trovejador da Drumm, com o Voador Noturno de Blacktyde ao seu lado. Os olhos de Victarion continuavam aguçados como sempre foram. — Mesmo com suas velas recolhidas e seus estandartes  pendendo debilmente, ele os conhecia, como convém ao Senhor Capitão da Frota de Ferro. — O Barbatana de Prata também. Algum parente de Sawane Botley. — Olho de Corvo afogara Lorde Botley, Victarion ouvira, e seu herdeiro morrera em Fosso Cailin, mas houvera irmãos, como também outros filhos. Quantos? Quatro? Não, cinco, e nenhum deles por causa do amor a Olho de Corvo.
E, então, ele a viu: uma galera de apenas um mastro, inclinada e baixa, com o casco vermelho escuro. Suas velas, agora recolhidas, eram negras como um céu sem estrelas. Mesmo ancorado, o Silêncio parecia veloz e cruel. Na sua proa estava uma donzela feita de ferro negro com o braço estendido. Sua cintura era esbelta, seus seios, altos e orgulhosos, suas pernas, longas e simétricas. Um cabelo de ferro negro esvoaçado pelo vento ondeante em sua cabeça, e seus olhos eram madrepérola, mas ela não tinha boca.
Victarion cerrou os punhos. Ele matou quatro homens com aquelas mãos, assim como uma esposa. Embora seus cabelos estivessem salpicados com geada, ele continuava forte como sempre, com o peito largo de um touro e a barriga lisa de um garoto. Quem mata um dos seus é amaldiçoado aos olhos dos deuses e dos homens, Balon o lembrara no dia que enviou Olho de Corvo para o mar.
— Aqui está ele — Victarion disse ao Barbeiro. — Abaixar velas. Continuaremos apenas com remos. Ordene o Aflição e o Vingança de Ferro a ficar entre o Silêncio e o mar. O resto da frota para bloquear a baía. A ninguém é permitido partir, a não ser por ordem minha, nem homem nem corvo. 
Os homens na costa tinham espionado suas velas. Gritos ecoaram através da baía enquanto amigos e parentes gritavam saudações. Mas, nada do Silêncio. No seu convés, uma tripulação variegada de mudos e animais não falavam uma palavra enquanto o Vitória de Ferro passava perto. Homens negros como alcatrão e os outros, que estavam agachados e eram tão peludos como os macacos de Sothoros, fitavam-no. Monstros, Victarion pensou.
             Eles ancoraram a vinte jardas do Silêncio. 
              — Desçam um barco. Eu irei em direção à praia. Ele afivelou seu talim enquanto os remadores tomavam seus lugares; sua espada repousada numa anca, um punhal na outra. Nute, o Barbeiro, atou a capa do Senhor Capitão nos seus ombros. A capa era feita de nove camadas de pano de ouro, costurada na forma da lula gigante da Casa Greyjoy, braços bamboleando a suas botas. Embaixo, ele usava pesadas cotas de malha cinza sobre couro preto cozido. Em Fosso Cailin ele tivera que usar cota de malha dia e noite. Ombros feridos e uma dor nas costas eram mais fáceis de suportar do que intestinos ensanguentados. As setas envenenadas dos demônios do pântano só precisavam arranhar um homem, e algumas horas depois ele estaria esguichando e gritando enquanto sua vida estaria se esvaindo pelas pernas em gota de vermelho e marrom. Quem quer que ganhe a Cadeira de Pedra do Mar, eu devo lidar com os demônios do pântano.
Victarion vestiu um elmo alto e preto, na forma de uma lula de ferro, seus braços serpenteando nas suas bochechas para se encontrarem abaixo de seu queixo. Até lá, seu barco estava pronto. 
— Eu coloquei as arcas a seu comando, ele falou a Nute enquanto subia ao lado. —Verifique se estão fortemente guardados. — Muita coisa dependia das arcas.
— Como ordena, Vossa Graça.
Victarion franziu a testa novamente. Eu não sou rei ainda. Ele desceu ao barco.
Aeron Cabelo Molhado estava esperando por ele na rebentação com seu cantil amarrado embaixo do braço. O sacerdote era mais baixo que Victarion, embora ainda fosse alto, e magro. Seu nariz erguia-se como a barbatana de um tubarão de rosto esquelético, e seus olhos eram como ferro. Sua barba alcançava a cintura, e cabelos enrolados batiam nas costas de suas pernas quando o vento soprava. 
— Irmão — ele disse enquanto as ondas batiam brancas e frias ao redor de seus tornozelos, — o que está morto jamais pode morrer.
— Mas levanta-se novamente, mais forte e rígido. — Victarion tirou seu elmo e se ajoelhou. A baía preenchia suas botas e encharcava suas nádegas enquanto Aeron derramava água salgada na sua testa. Então eles oraram.
— Onde está nosso irmão Olho de Corvo? — O Senhor Capitão exigiu de Aeron Cabelo Molhado quando as orações tinham terminado.
— Sua é a grande tenda de pano de ouro, lá é onde o estrondo é o mais alto. Ele se cerca de ímpios e monstros, pior do que antes. Nele o sangue de nosso pai desandou.
— Assim como o sangue de nossa mãe. — Victarion não falaria sobre matar um dos seus neste lugar religioso, debaixo dos ossos de Nagga e do Salão do Rei Cinza, mas muitas vezes na noite ele sonhou em atingir o rosto sorridente de Euron, até que sua carne se rachasse e seu sangue maldito corresse vermelho e livre. Eu não devo. Eu dei minha palavra a Balon. 
— Todos vieram? — Ele perguntou a seu irmão sacerdote.
— Todos os que interessam. Os capitães e os reis. Nas Ilhas de Ferro eles eram os mesmos, cada capitão era um rei em seu convés, e cada rei deveria ser um capitão. Você quer dizer reivindicar a coroa de nosso pai?
Victarion imaginou-se sentado na Cadeira de Pedra do Mar. 
— Se o Deus Afogado deseja isso.
— As ondas falarão — disse Aeron Cabelo Molhado enquanto se virava. — Ouça as ondas, irmão.
 — Sim. — Ele se perguntou como seu nome soaria sussurrado pelas ondas e gritado pelos capitães e reis. Se a taça deve ser passada para mim, eu não irei recusá-la.
Uma multidão se amontoou em volta para desejar-lhe bem e buscar seu favor. Victarion viu homens de todas as ilhas: Blacktyde, Tawney, Orkwood, Stonetree, Wynche, e muito mais. Os Bons Irmãos de Velha Wyk, os Bons Irmãos de Grande Wyk, e os Bons Irmãos de Montrasgo: todos tinham vindo. Os Codd estava lá, embora homens decentes os desprezassem. Pastores Humildes, tecelões, e os Netley esfregavam seus ombros com homens de casas antigas e orgulhosas. 
Até mesmo humildes Humble, o sangue de escravos e esposas pungentes. Um Volmark golpeou Victarion nas costas; dois Sparrs empurraram odres de vinho em suas mãos. Ele bebeu profundamente, limpou a boca, e os deixou lhe levar para suas fogueiras, para ouvir suas conversas de guerra, de coroas e pilhagem, e a glória e a liberdade de seu reino.
Naquela noite, os homens da Frota de Ferro ergueram uma enorme tenda de lona sobre a terra coberta pela preamar, então Victarion poderia festejar com meia centena de capitães famosos com carneiro assado, bacalhau salgado e lagosta. Aeron também veio. Ele comeu peixe e bebeu água, enquanto os capitães bebiam cerveja o suficiente para fazer com que a Frota de Ferro flutuasse. Muitos prometeram a ele suas vozes: Fralegg, o Forte, destro Alvyn Sharp, Hotho Harlaw corcunda. Hotho o ofereceu uma filha de sua rainha.
— Eu não tenho sorte com esposas — Victarion lhe contou. Sua primeira esposa morreu no parto, dando-o uma filha natimorta. Sua segunda tivera varíola. E a sua terceira...
— Um rei deve ter um herdeiro — Hotho insistiu. — Olho de Corvo traz três filhos para mostrar antes da assembleia do rei.
— Bastardos e animais. Qual a idade dessa filha?
— Doze, disse Hotho. Bela e fértil, recentemente florida, com cabelo da cor de mel. Seus peitos são pequenos ainda, mas ela tem boas ancas. Saiu mais a sua mãe do que a mim.
Victarion sabia que aquilo queria dizer que a menina não tinha uma corcunda. Entretanto, quando ele tentou imaginá-la, só viu a esposa que tinha matado. Ele soluçava a cada vez que a atingia, e depois a levou para as rochas embaixo, para dá-la aos caranguejos.
— Uma vez que eu esteja coroado, eu irei com prazer olhar essa menina — ele disse. Aquilo era mais do que Hotho ousava esperar, e ele saiu bamboleando, contente.
Baelor Blacktyde era mais difícil de agradar. Ele se sentou ao cotovelo de Victarion, na sua túnica de lã de carneiro que variava de verde a preto, sereno e agradável. Sua capa era negra, com uma estrela de sete pontas prateada. Ele fora refém por oito anos em Vilavelha, e retornara como um adorador dos deuses das sete ilhas verdes. 
— Balon estava furioso, Aeron está mais furioso, e Euron é o mais furioso de todos, Lorde Baelor disse. E você, Senhor Capitão? Se eu gritar o seu nome, você dará um fim nessa guerra furiosa?
Victarion franziu as sobrancelhas. 
— Você se dobraria aos meus joelhos?
— Se preciso for. Nós não podemos ficar sozinhos contra todos os homens de Westeros. O Rei Robert provou isso, para nossa tristeza. Balon pagaria o preço de ferro pela liberdade, ele disse, mas nossas mulheres compraram as coroas de Balon com camas vazias. O Costume Antigo acabou.
— O que está morto jamais pode morrer, mas levanta-se novamente mais forte e rígido. Em cem anos, homens cantarão sobre Balon, o Valente.
— Balon, o Viuveiro, chamam ele. Eu irei alegremente negociar sua liberdade por um pai. Você tem um para me dar? — Como Victarion não respondeu, Blacktyde bufou e se afastou.
A tenda crescia quente e fumacenta. Dois dos filhos do Bom Irmão Gorold derrubavam uma mesa lutando; Will Humble perdeu uma aposta e teve que comer sua bota; Lenwood Tawney, o Pequeno, tocava rabeca enquanto Rommy, o Tecelão cantava: ‘A Taça Sangrenta’ e ‘Chuva de Aço’ e outras velhas canções arrebatadoras. Qarl, o Donzela, e Eldred Codd dançaram a dança do dedo. Um gargalhada estrondosa veio quando um dos dedos de Eldred pousou na taça de vinho de Ralf, o Coxo.
Uma mulher estava no meio das risadas. Victarion se ergueu e a viu perto da tenda, sussurrando alguma coisa no ouvido de Qarl, o Donzela, que o fazia rir. Ele esperara que ela não fosse boba o suficiente para vir aqui, no entanto a visão dela fê-lo sorrir de qualquer forma. 
— Asha, ele chamou numa voz comandante. Sobrinha.
Ela andou até seu lado, magra e leve, em botas altas de couro manchadas do sal, calções verdes de lã, uma túnica marrom acolchoada, e um gibão de couro sem mangas meio amarrado. 
— Tio. — Asha Greyjoy era alta para uma mulher, mas ela tinha que ficar na ponta dos pés para beijá-lo na bochecha. Estou feliz de te ver na minha assembleia da rainha.
— Assembleia da rainha? Victarion riu. Você está bêbada, sobrinha? Sente-se. Eu não vi o seu Vento Negro na praia.
— Eu o puxei para perto do castelo do Bom Irmão Norne e ancorei na ilha. — Ela se sentou em um banquinho e se serviu do vinho de Nute, o Barbeiro. Nute não objetou; ele desmaiara de bêbado pouco tempo antes. 
— Quem defende o Fosso?
— Ralf Kenning. Com o Jovem Lobo morto, apenas os demônios do pântano sobram para nos atormentar.
— Os Stark não eram os únicos homens do norte. O Trono de Ferro nomeou o Senhor do Forte do Pavor como Protetor do Norte.
— Você me ensinaria a guerra? Eu estava lutando em batalhas quando você chupava o leite de sua mãe.
— E perdendo em batalhas também. — Asha tomou um pouco de vinho.
Victarion não gostou de ser lembrado da Ilha do Justo. 
— Todo homem deveria perder uma batalha em sua juventude, assim ele não perde uma guerra quando já é velho. Você não veio para fazer uma reivindicação, espero.
Ela o provocou com um sorriso. 
— E se eu vim?
— Há homens que se lembram de quando você era uma menina, nadando nua no mar e brincando com sua boneca.
— Eu brincava com machados também.
— Sim — ele tinha que admitir — mas uma mulher quer um marido, não uma coroa. Quando eu for rei, lhe darei uma.
— Meu tio é tão bom pra mim. Devo encontrar uma esposa para você, quando eu for rainha?
— Não tenho sorte com esposas. Há quanto tempo está aqui?
— Tempo o suficiente para ver que Tio Cabelo Molhado despertou mais do que pretendia. Drumm pretende fazer uma reivindicação, e Tarle, o Três Vezes Afogado, foi ouvido para dizer que Maron Volmark é o verdadeiro herdeiro da linha negra.
— O rei deve ser uma lula gigante.
— Olho de Corvo é uma lula gigante. O irmão mais velho vem antes do mais novo. — Asha chegou mais perto. — Mas eu sou a criança do corpo do Rei Balon, assim, eu venho primeiro que vocês dois. Ouça-me, tio...
Mas então um silêncio repentino surgiu. A cantoria morreu, Lenwood Tawney, o Pequeno, abaixou sua rabeca, homens viraram suas cabeças. Até mesmo o ruído dos pratos e facas silenciaram.
Uma dúzia de recém-chegados entrara no banquete da tenda. Victarion viu Jon Myre Cara Apertada, Torwold Dente Marrom, Lucas Codd, o Mão Esquerda. Germund Botley cruzou os braços contra a couraça dourada que tirara de um capitão Lannister durante a rebelião de Balon. Orkwood de Orkmont estava ao seu lado. Atrás deles estavam Mão de Pedra, Quellon, o Humilde, Remador Vermelho com seus cabelos de fogo trançado. Ralf, o Pastor, também, e Ralf de Fildaporto, e Qarl, o Escravo.
E Olho de Corvo, Euron Greyjoy.
Ele continua o mesmo, Victarion pensou. Ele parecia o mesmo de antes, o dia em que ele riu de mim e partiu. Euron era o mais encantador dos filhos de Lorde Quellon, e três anos de exílio não tinham mudado isso. Seu cabelo ainda era negro como o mar da meia-noite, com nenhuma crista a ser vista, e seu rosto ainda era brando e pálido debaixo de sua barba negra e limpa. Um pedaço de couro preto cobria o olho esquerdo de Euron, mas o seu direito era azul como o céu de verão.
Seu olho sorridente, pensou Victarion. 
— Olho de Corvo — ele disse.
— Rei Olho de Corvo — irmão. Euron sorriu. Seus lábios pareciam tão negros na luz das lanternas, machucado e azul.
— Não teremos mais rei, a não ser na assembleia do rei. — Cabelo Molhado ficou em pé. Nenhum homem ímpio...
—... pode sentar na Cadeira de Pedra do Mar, sim. — Euron olhou para a tenda. — A casualidade das muitas vezes que tenho me sentado na Cadeira de Pedra do Mar ultimamente. Isto não levanta nenhuma objeção. — Seu olho sorridente estava brilhando. — Quem sabe mais de deuses do que eu? Deuses de cavalos e deuses de fogo, deuses feitos de ouro com olhos de gema, deuses entalhados em madeira de cedro, deuses cinzelados em montanhas, deuses do ar vazio... Eu conheço todos eles. Eu vi seus povos os afestoando com flores, e derramando o sangue de bodes, de touros e de crianças em seus nomes. E eu ouvi orações, de centenas de línguas. Cure minha perna mirrada, faça as virgens me amarem, conceda-me um filho saudável. Salve-me, socorra-me, faça-me próspero... proteja-me! Proteja-me de meus inimigos, proteja-me da escuridão, proteja-me dos caranguejos em minha barriga, dos senhores de cavalos, dos traficantes de escravos, dos mercenários na minha porta. Proteja-me do Silêncio. — Ele riu. 
— Ímpio? Por que, Aeron, eu sou o homem mais ímpio de todos nascido pra velejar! Você serve a um deus, Cabelo Molhado, mas eu servi a dez mil. De Ib à Asshai, quando os homens vêem minhas velas, eles oram.
O sacerdote ergueu um dedo esquelético. 
— Eles oram para árvores e ídolos de ouro e abominações com cabeça de bode. Falsos deuses...
— Certamente — disse Euron — e por esse pecado mato todos eles. Eu derramo seu sangue no mar e semeio suas mulheres com minha semente. Seus deusinhos não podem me impedir, claramente eles são falsos deuses. Eu sou mais devoto até mesmo que você, Aeron. Talvez seja você quem devesse se ajoelhar e me pedir bênçãos.
Remador Vermelho riu alto, e os outros assumiram o comando dele.
— Tolos, disse o sacerdote, tolos, escravos e cegos, isto é o que vocês são. Vocês não vêem o que está diante de vocês?
— Um rei — disse Quellon Humble.
Cabelo Molhado cuspiu, e andou a passos largos na noite.
Quando ele se foi, Olho de Corvo virou-se sorrindo à Victarion. 
— Senhor Capitão, você não dará boas vindas a um irmão que estava longe? Nem você, Asha? Como passa sua mãe?
— Miseravelmente, Asha disse. Algum homem fez dela viúva.
Euron encolheu os ombros.
— Eu ouvi que o Deus da Tempestade varreu Balon à morte. Quem é esse homem que o matou? Diga-me seu nome, sobrinha, e eu porei minha vingança sobre ele.
Asha levantou-se. 
— Você sabe seu nome tanto quanto eu. Por três anos você esteve longe de nós, e, no entanto, o Silêncio retorna um dia após a morte de meu pai.
— Está me acusando? — Euron perguntou suavemente.
— Devo? — A severidade na voz de Asha fez Victarion franzir as sobrancelhas. Era perigoso falar com Olho de Corvo daquele jeito, mesmo quando seu olho sorridente brilhava com deleite.
— Eu comando os ventos? — Olho de Corvo perguntou aos seus favoritos.
— Não, Vossa Graça — disse Orkwood de Orkmont.
— Homem nenhum comanda os ventos — disse Germund Botley.
— Comandaria se fosse você — disse o Remador Vermelho. — Você velejaria quando quisesse e nunca seria acalmado.
— Aí está, da boca de três homens corajosos — Euron disse. — O Silêncio estava ao mar quando Balon morreu. Se duvida de uma palavra de um tio, lhe dou permissão para perguntar à tripulação.
— Uma tripulação de mudos? Sim, isto serviria bem.
— Um marido ia servir-lhe bem. — Euron voltou-se a seus seguidores de novo. —Torwold, eu tenho uma memória fraca, você tem uma esposa?
— Só uma. — Torwold Dente Marrom arreganhou os dentes, e mostrou como tinha ganhado seu nome.
— Eu sou solteiro — anunciou Lucas Codd, o Mão Esquerda.
— E por uma boa razão — Asha disse. — Todas as mulheres desprezam os Codds. Não olhe para mim tão miseravelmente, Lucas. Você ainda tem sua famosa mão. — Ela fez um movimento com seu punho.
Codd xingou, até que Olho de Corvo colocou a mão sobre seu peito. 
— Isso não foi delicado, Asha. Você feriu Lucas em carne viva.
— Mais fácil do quer feri-lo no pau. Eu jogo um machado tão bem quanto um homem, mas quando o alvo é tão pequeno...
— Essa menina perdeu a cabeça — rosnou Jon Myre, o Cara Apertada. — Balon a deixou acreditar que ela era um homem.
— Seu pai cometeu o mesmo erro com você — disse Asha.
— A de para mim, Euron — sugeriu o Remador Vermelho. — Eu darei palmadas nela até seu traseiro ficar vermelho como meu cabelo.
— Tente — disse Asha — e depois nós podemos te chamar de Eunuco Vermelho. —Um machado estava em sua mão. Ela o jogou no ar e o pegou com destreza. — Aqui está meu marido, tio. Homem que me queira deve ter isto com ele.
Victarion bateu o punho na mesa. 
— Eu não quero sangue derramado aqui. Euron vá embora com os seus... Favoritos.
— Eu esperava boas-vindas mais calorosas de você, irmão. Eu sou o seu irmão mais velho... Em breve, seu legítimo rei.
O rosto de Victarion escureceu. 
— Quanto à assembleia do rei, nós veremos quem usará a coroa de madeira.
— Nisso nós concordamos. — Euron ergueu dois dedos em direção ao couro que cobria seu olho esquerdo, e foi embora. Os outros o seguiram grudados ao seu calcanhar, como cachorros. O Silêncio demorava-se atrás deles, até Lenwood Tawney, o Pequeno pegar sua rabeca. O vinho e a cerveja começaram a fluir novamente, mas vários convidados tinham perdido a vontade. Eldred Codd saiu rapidamente, embalando sua mão ensanguentada. Então, Will Humble, Hotho Harlaw, e boa parte dos Bons Irmãos.
— Tio. — Asha colocou sua mão sobre seu ombro. — Caminhe comigo, se você quiser.
Do lado de fora da tenda o vento soprava cada vez mais forte. Nuvens corriam sobre o rosto pálido da lua. Elas pareciam um pouco com galeras, remadas fortemente. As estrelas eram poucas e lânguidas. Por toda a praia os dracares descansavam, mastros altos se erguiam como uma floresta crescendo da espuma das ondas. Victarion podia ouvir seus cascos rangendo enquanto eles se assentaram na areia. Ele ouviu o lamentar de seus forros, o soar dos estandartes agitando-se ao vento. Além, nas águas profundas da baía, grandes barcos ancoravam sombras horríveis envolvidas na névoa.
Eles andaram pela praia juntos, acima da espuma do mar, longe dos acampamentos e fogueiras. 
— Diga-me a verdade, tio. — Disse Asha. — Por que Euron se foi tão repentinamente?
— Olho de Corvo muitas vezes foi um saqueador.
— Nunca por tanto tempo.
— Ele levou o Silêncio para o leste. Uma longa viagem.
— Eu perguntei por quê ele foi, não onde. — Como ele não respoe, Asha disse. — Eu estava longe quando o Silêncio velejou. Eu levei o Vento Negro da Árvore para os Degraus, para roubar algumas jóias sem valor dos piratas de Lyseni. Quando eu voltei, Euron tinha-se-ido e sua nova esposa estava morta.
— Ela era só uma esposa indecente. Ele não tocara em outra mulher desde que ele a deu aos caranguejos. Eu precisarei de uma esposa quando for rei. Uma esposa de verdade, para ser minha rainha e dar-me filhos. Um rei deve ter um herdeiro.
— Meu pai se recusa a falar com ela — disse Asha.
— Não traz bem algum falar de coisas que nenhum homem pode mudar. — Ele estava se cansando do assunto. Eu vi o drácar do Leitor.
— Levou todo meu charme piscar pra ele sair da Torre do Livro.
Ela tinha os Harlaws, então. Victarion franziu a testa ainda mais. 
— Você não pode aspirar governar. Você é uma mulher. 
— É por causa disso que eu sempre perco as competições de mijo? — Asha riu. — Tio, isto me aflige, mas você pode estar certo. Por quatro dias e quatro noites, eu tenho estado a beber com os capitães e os reis, ouvindo ao que eles dizem... e ao que eles não irão dizer. Estou comigo mesma, e muitos Harlaw. E Tris Botley também, e alguns outros. Não é o suficiente. — Ela chutou uma pedra que foi chapinhando na água entre dois dracares. — Tenho em mente gritar o nome do meu tio.
— Qual? — Ele exigiu. — Você tem três.
— Quatro. Tio, ouça-me. Eu mesma colocarei a coroa de madeira na sua testa... Se você concordar em dividir o trono.
— Dividir o trono? Como? — A mulher falava coisas sem sentido. Queria ela ser uma rainha? Victarion achou-se olhando para Asha de um jeito que nunca fizera. Ele podia sentir sua virilidade começar a endurecer.
Ela é a filha de Balon, ele lembrou a si mesmo. Ele recordou de quando ela era uma menina, jogando machados na porta. Cruzou os braços contra o peito. Na Cadeira da Rocha do Mar só um se senta.
— Então, meu tio senta — Asha disse. — Eu estarei atrás de você, protegendo-o e sussurrando em seu ouvido. Nenhum rei pode governar sozinho. Mesmo quando os dragões sentaram no Trono de Ferro, tinham homens para ajudá-los. As Mãos do Rei. Deixe-me ser sua mão, Tio.
Nenhum Rei das Ilhas precisou de uma Mão, muito menos a de uma mulher. Os capitães e os reis zombariam de mim. 
— Por que você desejaria ser minha Mão?
— Para acabar com essa guerra antes que ela acabe conosco. Nós ganhamos tudo o que queríamos ganhar... E ficamos para perder tudo tão rápido, a não ser que nós façamos a paz. Eu mostrei a Senhora Glover toda cortesia, e ela jurou que o seu senhor entraria em entendimento comigo. Se nós devolvermos Bosque Profundo, Praça de Torrhen e Fosso Cailin, ela diz, os homens do norte nos cederão a Ponta do Dragão Marinho e toda a Costa Pedregosa. Essas regiões são poucos povoadas, mas dez vezes maiores do que as ilhas todas juntas. Uma troca de reféns selará o pacto, e cada lado concordará com o outro na junção do Trono de Ferro.
Victarion riu. 
— Esta Senhora Glover a faz de tola, sobrinha. O Ponta do Dragão Marinho e a Costa Pedregosa são nossos. Por que devolver alguma coisa? Winterfell está queimada e destruída, e o Jovem Lobo apodrece imprudentemente na terra. Nós teremos todo o norte, como o senhor seu pai sonhou.
— Quando os dracares aprenderem a remar através de árvores, talvez. Um pescador pode pegar um leviatã cinza, mas ele iria levá-lo ao fundo do oceano e morreria, a não ser que o pescador cortasse a linha. O norte é muito grande para nós mantermos, e muito cheio de homens do norte.
— Volte para suas bonecas, sobrinha. Deixe a vitória das guerras para os guerreiros. — Victarion mostrou a ela seus punhos. — Eu tenho duas mãos. Nenhum homem precisa de três.
— Embora eu conheça um homem que precise da Casa Harlaw.
— Hotho, o Corcunda ofereceu-me sua filha para ser minha rainha. Se eu ficar com ela, eu terei os Harlaw.
Aquilo fez a garota pestanejar. 
— Lorde Rodrik governa a Casa Harlaw.
— Rodrik não tem filhas, só livros. Hotho será seu herdeiro, e eu serei o rei. Uma vez que ele dissesse as palavras em voz alta, elas soaram como verdade. Olho de Corvo tem estado muito tempo longe.
— Alguns homens parecem maiores de longe — Asha advertiu. — Caminhe por entre as fogueiras se ousa, e ouça. Eles não estão contando histórias sobre a sua força nem sobre a minha beleza. Eles só falam de Olho de Corvo; os lugares distantes que viu, as mulheres que ele comeu e os homens que matou, as cidades que saqueou, o jeito que ele queimou a frota de Lorde Tywin em Lannisporto...
— Eu queimei a frota do leão — Victarion insistiu. — Com minhas próprias mãos coloquei fogo na sua capitania.
— Olho de Corvo tem um esquema. — Asha colocou sua mão sobre seu braço. — E matou sua esposa também... não foi?
Balon ordenara-os a não falar sobre isso, mas Balon estava morto. 
— Ele colocou um bebê em sua barriga e me fez fazer o serviço. Eu o teria matado também, mas Balon não queria nenhum assassino em sua mansão. Ele mandou Euron ao exílio, para nunca retornar...
— ... enquanto Balon viver?
Victarion olhou para seus punhos. 
— Ela deu-me um par de chifres. Eu não tive escolha. Teria sido conhecido, homens estariam rindo de mim, como Olho de Corvo ria quando o confrontei. Ela veio a mim molhada e desejosa, ele se gabara. Parece que Victarion é grande em todo lugar, mas principalmente onde importa. Mas ele não podia conta-la isso.
— Sinto muito por você — disse Asha — e mais ainda por ela... mas você me deu pouca escolha senão reivindicar a Cadeira de Pedra do Mar por mim mesma.
— Não. Seu bafo é seu para desperdiçar, mulher.
— Sim — ela disse, e o deixou.
 
Somente quando seus braços e pernas estavam dormentes por causa do frio, foi que Aeron Greyjoy nadou de volta a costa e vestiu suas roupas novamente.
 Ele havia corrido diante do Olho de Corvo como se ainda fosse a coisa fraca que havia sido, mas quando as ondas quebravam-se sobre sua cabeça, o lembrava mais uma vez que aquele homem estava morto. Renasci do mar, um homem mais duro e mais forte. Nenhum homem poderia assustálo, não mais que a escuridão poderia, nem os ossos de sua alma, as cinzas e terríveis ossos de sua alma. O barulho de uma porta se abrindo, o grito de uma dobradiça de ferro enferrujada.
 Suas vestes de sacerdote estalaram quando ele as vestiu, ainda dura com o sal proveniente de sua ultima lavada nos últimos quinze dias. A lã se agarrou ao seu peito molhado, absorvendo a água que escorria do seu cabelo. Ele encheu o cantil e atirou-o sobre seu ombro.
 Assim que ele atravessou a costa, um homem afogado, retornando de um chamado da natureza tropeçou nele na escuridão.
  — Cabelo Molhado! — Ele murmurou.
 Aeron colocou a mão sobre sua cabeça, o abençoou e continuou andando. 
O chão se ergueu sob seus pés, delicadamente no inicio, e então mais acentuado. Quando ele sentiu a grama verde esfregando-se entre seus dedos, ele sabia que havia deixado à costa para trás. Lentamente ele subiu, ouvindo as ondas. O mar nunca está cansado. Devo ser incansável também.
 No topo da colina, monstruosas costelas de pedras erguiam-se da terra rosada, como troncos pálidos de grandiosas árvores. A visão fez o coração de Aeron bater mais rápido. Nagga havia sido o primeiro dragão do mar, o mais poderoso de todos os tempos que surgiu das ondas. Ela se alimentou de lulas e leviathans e afundou ilhas inteiras em sua ira, mas mesmo assim o Rei Cinzento havia a matado e o Deus Afogado tinha transformado seus ossos em pedras para que os homens nunca cessassem de admirar a coragens dos primeiros dos reis.  As costelas de Nagga tornaramse as vigas e pilares de seu longo corredor, assim como suas mandíbulas se tornou seu trono. Por mil e sete anos ele reinou aqui, lembrou Aeron. Aqui ele pegou sua esposa sereia e planejou as suas guerras contra o Deus da Tempestade. A partir daqui ele governou tanto pedra e sal, usando mantos tecidos de algas e uma coroa alta e pálida, feita com os dentes de Nagga. 
 Mas isso fora na aurora dos dias, quando poderosos homens ainda habitavam a terra e o mar. O salão havia sido aquecido pelo fogovivo de Nagga, que o Rei Cinza havia feita seu escravo. Em suas paredes pendiam tapeçarias feitas de algas marinhas prateadas, mais agradáveis aos olhos. Os guerreiros do Rei Cinza tiveram um banquete da generosidade do mar, em uma mesa com o formato de uma grande estrela do mar, enquanto sentava-se sobre tronos entalhados pela mãe-de-pérola. Então, toda a glória se foi. Homens são menores agora. Suas vidas se tornaram curtas. O Deus da Tempestade afogou o fogo de Nagga após a morte do Rei Cinza. As cadeiras e as tapeçarias tinham sido roubadas, os telhados e as paredes haviam apodrecido. Mesmo o grande trono do Rei Cinza, feito com os dentes de Nagga havia sido engolido pelo mar. Apenas os ossos de Nagga resistiram para relembrar o ‘nascido do ferro’ de toda a maravilha que havia sido. 
 É o suficiente, pensou Aeron Greyjoy.
 Nove passos de largura haviam sido cavados no topo da colina de pedra. Subiu por trás dos morros uivantes de Velha Wyk, com suas negras e cruéis montanhas ao longo. Aeron parou onde as portas uma vez se ergueram, retirou a rolha de seu cantil, bebeu um gole de água salgada, virou o rosto para o mar. Nascemos do mar, e ao mar devemos retornar.  Mesmo aqui, ele podia ouvir o barulho incessante das ondas e sentir o poder do deus que se escondia sobre as águas. Aeron caiu de joelhos. Você enviou seu pessoal para mim, ele orou. Eles deixaram suas salas e casebres, seus castelos e seus pertences, e vieram aqui para os ossos de Nagga, de cada vila de pescadores e de cada vale escondido. Agora lhes conceda sabedoria para reconhecer o verdadeiro rei quando estiver diante deles e força para evitar o falso. Toda a noite ele orou, pois quando o deus estava nele, Aeron Greyjoy não tinha necessidade de sono, não mais que as ondas precisam, ou os peixes do mar.
 Nuvens escuras correram perante o vento quando a primeira luz adentrou o mundo. O céu negro se tornou cinza como ardósia. O mar preto virou cinza-verde; As montanhas negras de grande Wyk por toda a baía colocou os tons de azul-verde dos pinheiros. Assim como a cor voltou ao mundo, uma centena de estandartes se levantaram e começaram a bater. Aeron observou os peixes prateados de Botley, a lua sangrenta de Wynch, as árvores verdes escuras de Orkwood. Ele viu machados, leviatãs e foices, e por todo lado as lulas gigantes, grandes e dourados. Abaixo dele, os escravos e suas mulheres começaram a se mover, agitando carvões e criando brasas para um novo dia, limpando peixes para os capitães e reis quebrarem seus jejuns.
  A luz da manhã tocou a vertente pedregosa, e ele assistiu os homens acordarem de seus sonos, jogando de lado seus cobertores de pele de foca enquanto eram chamados para seu primeiro chifre de cerveja. Bebam bastante, ele pensou, pois nós temos um trabalho de deus para fazer hoje.
 O mar estava se movimentando também. As ondas ficaram maiores quando o vento aumentou, enviando plumas como spray que se quebravam contras os navios. O deus Afogado acorda, pensou Aeron. Ele podia ouvir sua voz brotando das profundezas do mar. Eu estarei com vocês aqui hoje, a voz disse. Nenhum homem sem deus irá se sentar em minha cadeira de pedra do mar.
 Foi lá, sob os arcos das costelas de Nagga que seu homem afogado o encontrou, em pé, alto e severo com seus longos cabelos negros balançando ao vento.
 — É a hora? — Rus perguntou.
 Aeron deu um aceno de cabeça e disse.
 — É, Vá em frente e faça a convocação.
 Os homens afogados pegaram seus bastões de troncos e começaram a bater um contra o outro, enquanto caminhavam de volta morro abaixo. Outros juntaram-se a eles, e o retinir se espalhava ao longo da costa. Tais retinir criavam um barulho assustador, como se centenas de arvores fossem compelidas umas as outras com seus membros. Tambores começaram a bater também, boom-boom-boom-boom-boom, boom-boom-boom-boom-boomboom-boom. Um corno de guerra soou, e logo após outro. AAAAAAooooooooooooooo.
Homens deixaram seus fogos para fazerem seus próprios caminhos para os ossos do Salão do Rei Cinza; remadores, timoneiros, veleiros, carpinteiros, os guerreiros com seus eixos e os pescadores com suas redes. Alguns tinham escravos para servi-los, outros tinham esposas de sal. Outros, que haviam navegado muitas vezes para terras verdes, foram atendidos por cantores, meisters e cavaleiros. Os homens comuns, amontoavam-se em torno da colina, com escravos, crianças e mulheres, na parte de trás. Os capitães e os reis fizeram seus caminhos até a encosta. Aeron Cabelo Molhado viu o alegre Sigfry Stonetree, Andrik, o Sério. O cavaleiro Sor Baelor Blacktyde em seu manto negro, ficando ao lado de Stonehouse em sua pele de foca irregular. Victarion pairava acima de todos eles, exceto Andrik. Seu irmão não usava capacete, mas tinha seu esplendor todo em sua armadura: seu dourado manto de lula pendurado sobre seus ombros. Ele deve ser nosso rei. Que homem poderia olhar para ele e duvidar?
 Quando o Cabelo Molhado levantou suas mãos ossudas, os tambores e os chifres de guerra ficaram em silêncio. Os homens afogados abaixaram suas lanças e todas as vozes silenciaram-se. Apenas o som das ondas batendo permaneceu. Um rugido que homem algum poderia deter.
 — Nós nascemos do mar, e para o mar devemos retornar. — Aeron começou, suavemente no início, assim os homens se esforçavam para ouvilo. — O Deus da Tempestade em sua ira arrancou Balon de seu castelo e derrubou-o, mas agora ele festeja sob as ondas, nos salões de água do Deus Afogado. — Ele levantou seus olhos para o céu. — Balon está morto! O rei de ferro está morto!
 — O rei está morto! — Seus homens afogados gritavam.
 — Mas ainda, o que está morto pode nunca morrer, mas erguer-se novamente, mais duro e mais forte. — Lembrou-os — Balon caiu, Balon meu irmão, que honrou o Costume Antigo e pagou o preço do ferro. Balon, o Bravo, Balon, o Abençoado, Balon Duas Vezes Coroado. Que conquistou de volta nossa liberdade e nosso deus. Balon está morto, mas um rei de ferro precisa erguer-se novamente, e se assentar sobre ao Cadeira de Pedra do Mare governar as ilhas.
 — Um rei precisa erguer-se — eles responderam — Ele precisa erguer-se!
 — Ele precisa. Ele deve! — A voz de Aeron trovoou como as ondas. — Mas, quem? Quem deve sentar-se no lugar de Balon? Quem deve governar estas ilhas sagradas? Ele está entre nós agora? — O sacerdote abriu suas mãos amplamente. — Quem deve ser rei sobre nós?
 Uma gaivota gritou de volta para ele. A multidão começou a se mover, como se fossem homens acordando de um sonho. Cada homem olhou para seu vizinho, para ver qual deles talvez pretendiam reclamar uma coroa. Olho do Corvo nunca foi paciente, Aeron Cabelo Molhado disse a si mesmo. Talvez ele vá falar primeiro, e se assim for, seria sua ruína. Os capitães e reis haviam percorrido um longo caminho para aquele banquete e não escolheriam o primeiro prato que lhes fosse oferecido. Eles vão querer experimentar e provar, uma mordida deste, uma mordidela em outro, até aquele que melhor lhes convier. 
 Euron deveria saber daquilo também. Ele permaneceu com seus braços cruzados entre seus mudos e seus monstros, apenas o vento e as ondas responderam ao apelo de Aeron.
 — Os nascidos do ferro devem ter um rei. — Ele insistiu depois de um longo silencio. — Eu pergunto novamente, quem deve ser rei sobre nós?
 — Eu serei. — A resposta veio de baixo.
 — Gylbert — Subiu da multidão um grito áspero. — Gylbert, Rei Gylbert.
 Os capitães deram lugar para deixar o requerente e seus campeões subirem ao monte e se postarem ao lado de Aeron, sob as costelas de Nagga. 
 Este candidato a rei era um senhor alto com uma expressão melancólica, sua mandíbula se destacava raspada e limpa. Seus campeões tomaram posições dois passos atrás dele, tendo sua espada, escudo e estandarte. Eles compartilhavam da aparência do alto senhor, e Aeron acreditou que fossem seus filhos. Um desfraldou seu estandarte, uma grande e negra canoa contra um sol poente.
 — Eu sou Gylbert Farwynd, Senhor da Luz Solitária — o senhor disse à assembleia de homens livres.
 Aeron conhecia alguns Farwynd, um povo estranho que ocupou terras nas margens ocidental de Grande Wyk e as ilhas espalhadas além, pequenas rochas que a maioria das pessoas não poderia suportar, exceto uma única família. Destas, A Luz Solitária era a mais distante, velejando oito dias para o noroeste, entre colônias de focas, leões-marinhos, e o oceano cinza e sem limites. Os Farwynd ali presentes eram ainda mais estranhos que o resto. Alguns diziam que eles eram transformadores de pele, profanas criaturas que podiam assumir a forma de leões marinhos, morsas, e mesmo baleias manchadas, os lobos do mar selvagem.
 Lord Gylbert começou a falar. Ele falou de uma terra maravilhosa além do por do sol no mar, uma terra sem inverno, onde a morte não tinha domínio.
 — Façam-me seu rei, e eu levarei vocês até lá. — Ele proclamou. — Vamos construir dez mil navios, assim como Nymeria fez uma vez, e velejar com todo o nosso povo para a terra além do por do sol. Então todo homem será um rei, e toda esposa uma rainha.
 Seus olhos, Aeron viu, ora cinzas, ora azuis, eram tão mutáveis quanto o mar. Olhos de louco, ele pensou, olhos de tolo. A visão de que ele falava, sem dúvidas se tratava de uma armadilha armada pelo deus da tempestade, para trair os filhos do ferro a destruição. As ofertas que seus homens derramavam perante a assembleia de homens livres incluíam peles e presas de morsa, braceletes feitos de ossos de baleias, e cornos de guerra enfaixados em bronze. Os capitães olharam e se afastaram, deixando homens menores ajudarem-nos com os presentes.  Quando o tolo havia terminado de falar e seus campeões começaram a gritar seu nome, apenas os Farwynd ajudaram no coro, e nem todos eles. Logo, o grito de ‘Gylbert, Gylbert Rei’ deu lugar ao silêncio. A gaivota gritou bem alto acima deles e pousou em cima de uma das costelas de Nagga, enquanto o Senhor da Luz Solitária fazia seu caminho de volta morro abaixo.
 Aeron Cabelo Molhado adiantou-se novamente.
 — Eu pergunto outra vez, quem deve ser rei sobre nós?
 — Eu! — uma voz profunda soou, e mais uma vez a multidão se afastou.
 O orador foi levado até o monte em uma flutuante cadeira de madeira esculpida, carregada nos ombros de seus netos. O homem era uma grande ruína, tinha o peso de vinte pedras e noventa anos de idade, e estava envolto em uma pele de urso branco. Seu próprio cabelo era tão branco como a neve também, e sua enorme barba cobria-o como um cobertor, de suas bochechas até suas coxas, então era difícil dizer onde a barba terminava e a pele de urso começava. Apesar de seus netos serem grandes homens, eles lutaram com seu peso através dos degraus de pedra íngreme. Antes do salão do Rei Cinza, eles o colocaram no chão e se puseram atrás dele, como seus campeões. 
 Sessenta anos atrás, ele poderia ter ganho o favor da Assembleia, Aeron pensou,  mas isso seria há muito tempo atrás.
 — Sim, Eu! — O homem gritou sentado onde estava, com uma voz tão grande quanto ele era. —  Porque não? Quem é melhor? Eu sou Erick Ironmaker, para aqueles que são cegos. Erik, o Justo, Erick, o Batedor de Bigorna! Mostre-lhes o meu martelo Thormor. 
 Um de seus campeões levantou para que todos pudessem ver. Era uma coisa monstruosa. Seu cabo envolto com couro vermelho, e sua cabeça como um tijolo de aço tão grande como um pedaço de pão.
 — Eu não consigo contar quantas mãos eu esmaguei com este martelo. — Erik disse. — Mas talvez algum ladrão possa dizer. Eu não posso dizer quantas cabeças eu esmaguei contra minha bigorna também, mas há algumas viúvas que poderiam. Eu poderia dizer a vocês todas as obras que fiz em batalha, mas eu tenho oitenta e oito anos, e não vivi ainda o suficiente para terminar. Se velho é sábio, ninguém é mais sábio que eu. Se grande é forte, ninguém é mais forte. Você quer um rei com herdeiros? Eu tenho mais do que posso contar. Rei Erik, sim, eu gosto de como isso soa.
Venham, digam comigo: ERIK! ERIK BATEDOR DE BIGORNA! REI ERIK!
 Assim como seus netos assumiram o coro, seus filhos se adiantaram com os peitos estufados, quando eles suspenderam-no na base dos degraus de pedra, uma torrente de prata, bronze e aço foram derramados, braçadeiras, colares, punhais e machados de arremesso. Alguns capitães se aproximaram e escolheram os melhores itens, acrescentando suas vozes ao coro. Mas, assim que o grito começou a crescer, a voz de uma mulher cortou-o.
 — ERIK! — Homens moveram-se para o lado para deixá-la passar. Com um pé no degrau mais baixo ela disse: — Erik, levante-se.
 Um silencio se fez. O vento soprava, as ondas quebravam-se na costa, homens sussurravam nos ouvidos dos outros. Erik Ironmaker olhou para Asha Greyjoy.
 — Menina! Três vezes maldita menina, o que você disse?
 — Levante-se Erik — ela disse. — Levante-se e eu gritarei seu nome junto com todos os outros, levante-se e eu serei a primeira a te seguir. Você quer uma coroa? Sim, levante-se e pegue-a. 
 Em outra parte da multidão, Olho de Corvo riu. Erik olhou para ele. As mãos do grande homem se fecharam firmemente em volta dos braços de seu trono. Sua face ficou vermelha, e então roxa. Seus braços tremiam com o esforço. Aeron podia ouvir uma grossa veia azul pulsando em seu pescoço enquanto ele se esforçava para se levantar. Por um momento, pareceu que ele conseguiria, mas sua respiração saiu de uma só vez, e ele gemeu e afundou de volta para suas almofadas. Euron riu ainda mais alto. O grande homem abaixou a cabeça e envelheceu, tudo em um piscar de olhos. Seus netos o levaram de volta para baixo do monte. 
 — Quem deve governar os filhos do ferro? — Aeron chamou outra vez. — Quem deve ser rei sobre nós?
 Homens entreolharam-se. Uns olharam para Euron, uns para Victarion, alguns para Asha. Ondas quebravam verdes e brancas contra as canoas.  A gaivota gritou mais uma vez, um grito estridente, desesperado.
 — Faça sua reivindicação, Victario. —Merlyn falou. — Vamos acabar com essa farsa.
 — Quando eu estiver pronto. — Victarion gritou de volta. 
 Aeron estava satisfeito. É mesmo melhor ele esperar.
Drumm veio depois, outro homem velho, porém não tão velho quanto Erik. Ele subiu a colina com suas próprias pernas, em seu quadril estava Chuva Vermelha, a sua famosa espada, forjada de aço valiriano ainda nos dias antes da Perdição. Seus campeões eram homens importantes; seus filhos Denys e Donnel, ambos lutadores robustos, e entre eles Andrik, O Sério, um gigante homem com braços da grossura de uma árvore, o que era bom para Drumm, demonstrando o tipo de homem que estaria com ele.
— Onde está escrito que nosso rei deve ser uma lula gigante? — Drumm começou. — Que direito Pyke tem para nos governar? Grande Wyk é a maior ilha, Harlaw a mais rica, Velha Wyk a mais sagrada. Quando a linha preta foi consumida pelo dragão de fogo, o filho do ferro deu primazia à Vickon Greyjoy, sim... mas como Senhor, não como Rei.
Foi um bom começo. Aeron ouviu gritos de aprovação, mas diminuiu quando o velho começou a falar das glórias dos Drumms. Falou do Dale, o Temor, Roryn, o Salteador, os cem filhos de Gormond Drumm, o Velho Pai.  Ele desembainhou Chuva Vermelha e contou-lhes como Hilmar Drumm, o Astuto, havia tomado a lamina de um cavaleiro com armadura, usando apenas a inteligência e um porrete de madeira. Ele falou de navios perdidos há muito tempo e de batalhas esquecidas há oitocentos anos, e a multidão começou a ficar impaciente. Ele falou e falou, e então falou um pouco mais. E quando as caixas de Drumm foram abertas, os capitães viram os presentes avarentos que ele trouxe.
Nenhum trono nunca foi comprado com bronze, Cabelo Molhado pensou. A verdade estava clara de se perceber, os gritos de ‘Drumm, Drumm, Dustan Rei’ morreram.
 Aeron começou a sentir um frio na barriga, e de repente as ondas pareciam estar batendo mais alto que antes. É a hora, ele pensou. É a hora de Victarion fazer sua reclamação.
 — Quem deve ser rei sobre nós? — O sacerdote clamou uma vez mais, mas desta vez os seus ferozes olhos negros encontraram seu irmão no meio da multidão. — Nove filhos nasceram de Quellón Greyjoy. Um era mais forte que o resto, e não conhecia o medo.
Victarion encontrou seus olhos e acenou. Os capitães se separaram diante dele enquanto ele subia os degraus.
— Irmão, me dê sua benção — ele pediu, quando chegou ao topo. 
Ele ajoelhou-se e abaixou a cabeça. Aeron desarrolhou seu cantil e derramou um fluxo de água do mar sobre sua testa.
— O que está morto não pode morrer — disse o sacerdote.
 — Mas ergue-se de novo, mais duro e mais forte – Victarion replicou.
Quando Victarion se ergueu, seus campeões se dispuseram abaixo dele, Ralf, o Manco, Ralf Stonehouse, o Vermelho, e Nute, o Barbeiro, todos notados guerreiros. Stonehouse carregava o estandarte Greyjoy; a lula gigante dourada em um campo tão negro como o mar a meia noite. Assim que desfraldada, os capitães e os reis começaram a gritar o nome do Senhor Comandante. Victarion esperou até que se aquietasse, e então disse:
— Vocês todos me conhecem, se vocês querem palavras doces, procure em outro lugar, eu não tenho língua de cantor. Eu tenho um machado, e eu tenho esses — Ele ergueu suas enormes mãos para lhes mostrar, e Nude, o Barbeiro, exibiu seu machado, um temível pedaço de aço.
— Eu era um irmão leal. — Victarion continuou — Quando Balon se casou, foi a mim quem ele enviou a Harlaw para trazer de volta sua esposa. Eu conduzi seus navios em muitas batalhas e não perdi nenhuma. A primeira vez que Balon pegou uma coroa, fui eu quem navegou até Lannisporto para queimar a cauda do leão. Da segunda vez, foi a mim quem ele enviou para esfolar o Jovem Lobo para que este viesse uivando para casa. Tudo que vocês terão de mim é mais do que tiveram de Balon. Isso é tudo que tenho a dizer.
Com isso, seus campeões começaram a cantar:
— VICTARION, VICTARION, REI VICTARION! — A seguir, seus homens derramaram para fora de suas cestas uma cascata de prata, ouro e pedras preciosas. Uma pilha de riquezas. Capitães mexiam-se para aproveitar as peças mais ricas, gritando enquanto isso: — VICTARION! VICTARION! REI VICTARION!. — Aeron observou o Olho do Corvo.  Ele falará agora, ou deixaria a assembleia de homens livres decida seu curso? Orkwood de Montrasgo estava sussurrando no ouvido de Euron.
 Mas, não foi Euron quem colocou um fim no canto, foi à mulher. Ela colocou dois dedos na boca e assobiou, um som agudo e estridente que cortou o tumulto como uma faca na coalhada. 
 — Tio! Tio! — Dobrando-se, ela pegou um colar de ouro torcido e subiu os degraus. Nute agarrou-a pelo braço, e por metade de uma batida de coração, Aeron estava esperando que o campeão de seu irmão conseguisse mantê-la em silencio, mas Asha arrancou suas mãos do Barbeiro e disse algo a Ralf, o Vermelho que o fez se afastar. Assim que ela o empurrou para trás, toda a torcida se extinguiu. Ela era filha de Balon Greyjoy, e a multidão estava curiosa para ouvi-la falar.
 — Foi bom você trazer estes presentes para minha assembleia de mulheres livres, tio. — Ela disse a Victarion. — Mas você não precisava ter usado tanta armadura. Eu prometo não machucá-lo. — Asha virou seu rosto para os capitães.  — Não há ninguém mais bravo do que meu tio, ninguém mais forte, ninguém tão feroz em luta. E ele conta até dez tão rápido quanto qualquer outro homem, eu o vi fazer isso... embora quando ele precisa ir até vinte ele tenha que tirar suas botas. — Isso fez eles rirem. — Ele não tem filhos, eu acho. Suas esposas continuam morrendo. O Olho de Corvo sim, é mais velho e possui um melhor argumento...
 — Ele tem! — Oarsman, o Vermelho gritou lá de baixo.
 — Ah, mas minha reivindicação é melhor ainda! — Asha colocou o colar em sua cabeça em um confiante ângulo, de forma que o ouro brilhou contra seu cabelo escuro. — O irmão de Balon não pode vir antes do filho de Balon!
 — O filho de Balon está morto! — Exclamou Ralf, O Manco — Tudo o que vejo é a filhinha de Balon.
 — Filha? — Asha escorregou a mão sobre seu gibão. — Oho! O Que é isso? Deveria eu mostrar a vocês? Alguns de vocês não viram um desde que foram desmamados. — Eles riram de novo. — Mamilos em um rei é uma coisa terrível, é isso que parece? Ralf, você me pegou, eu sou uma mulher. Embora não velha como você. Ralf, o Manco, não deveria ser Ralf o Coxo? — Asha desenhou um punhal entre seus seios. — Eu sou uma mãe também, e aqui está o meu bebe mamão. — Ela ergueu-o. — E aqui estão meus campeões. Eles empurraram os três de Victarion para trás e se postaram atrás dela; Qarl, a Donzela, Tristifer Botley, e o cavaleiro Sor Harras Harlaw, cuja espada anoitecer era tão celebre quanto a Chuva Vermelha de Dustan Drumm é. — Meu tio disse que você o conhece. Vocês me conhecem também!
 — Eu quero te conhecer melhor! — alguém gritou.
 — Vá para casa e conheça sua esposa. — Asha gritou de volta. — Meu tio disse que dará a você mais do que meu pai deu. Bem, e o que foi isso? Ouro e glória, alguns dirão. Liberdade, sempre doce. Sim, então, ele nos deu isso... E viúvas também, como Lorde Blacktyde irá dizer. Quantos de vocês tiveram suas casas queimadas quando Robert chegou? Quantos de vocês tiveram suas filhas estupradas e despojadas? Cidades queimadas e castelos quebrados! Meu pai os deu isso. Derrota foi o que ele os deu.  O tio aqui dará a vocês mais. Não eu.
 — O que você vai nos dar? — perguntou Lucas Codd. — Tricô?
 — Sim Lucas, eu irei vos tricotar todo um reino! — Ela jogou sua adaga de uma mão para outra. — Nós precisamos aprender uma lição com o Jovem Lobo, que venceu todas as batalhas... e perdeu tudo.
 — Um lobo não é uma lula. — Victarion objetou. – O que uma lula gigante agarra não perde, seja uma canoa ou um leviathan. 
 — E o que nós temos apreendido, tio? O norte? O que é isso além de léguas, léguas, léguas e léguas longe do som do mar? Temos tomado Cailin, Bosque Profundo, Praça de Torrhen, até mesmo Winterfell.  E o que temos ganho com isso? – ela acenou, e seus homens do Vento Negro foram empurrando para frente arcas de carvalho e ferro em seus ombros. 
— Eu vos dou a riqueza de Costa Pedregosa. – Asha disse assim que o primeiro se levantou. Uma avalanche de pedras caíram para a frente, descendo os degraus em cascatas; pedrinhas cinzas, brancas e pretas, desgastadas pelo mar. — Eu dou a vocês a riqueza de Bosque Profundo —  Ela disse, e o segundo cesto foi aberto. — Pinhos vieram a tona, rolando e saltando para dentro da multidão. — E por ultimo, o ouro de Winterfell. — Do terceiro cesto vieram nabos amarelos, redondos, duros e grandes como a cabeça de um homem. Eles caíram em meios às pedras e pinhos. Asha espetou um em seu punhal. — Harmund Sharp. – ela gritou. – Seu filho Harrag morreu em Winterfell por isso. — Ela puxou o nabo para fora de sua lamina e o jogou para ele. — Você tem outros filhos, eu acho. Se você trocaria sua vida por nabos, grite o nome de meu tio. 
— E se eu gritar o seu nome? — Harmund perguntou. — O que será então?
— A paz — disse Asha. — Terra, Vitória. Te darei a Ponta do Dragão Marinho, e Costa Pedregosa. Terra negra, árvores altas e pedras suficientes para cada filho mais novo construir um salão. Nós teremos os homens do norte também, como amigos, para estarem conosco contra o Trono de Ferro. Sua escolha é simples. Coroem-me para paz e vitória, ou coroem meu tio, para mais guerra e mais derrota. — Ela embainhou sua adaga novamente. — o que vocês escolhem, homens de ferro?
— VITÓRIA! — Gritou Rodrik, o Leitor com as mãos em concha sobre a boca — Vitória e Asha!
— ASHA! — Lord Baelor Blacktyde ecoou. — RAINHA ASHA!
A própria Asha tomou o canto da multidão.
— ASHA! ASHA! RAINHA ASHA! — Eles batiam os pés, sacudiam os punhos e gritavam, enquanto Cabelo ouvia incrédulo. Ela quer desfazer o trabalho de seu pai! Mesmo assim, Tristifer Botley estava gritando por ela, como muitos Harlaw, alguns Bons Irmãos, Lord Merlyn, e mais homens do que o sacerdote jamais teria acreditado... para uma mulher!
Mas outros estavam segurando suas línguas, ou murmurando a parte para seus vizinhos.
— Não queremos a paz dos covardes! — Ralf, O Manco rugiu. Ralf Stonehouse, o Vermelho, rodou a bandeira Greyjoy e berrou:
— Victarion! VICTARION! VICTARION! — Os homens começaram a empurrar uns aos outros, alguém jogou uma pinha na cabeça de Asha. Quando ela se abaixou, sua coroa provisória caiu. Por um momento, pareceu ao sacerdote que ele estava em cima de um formigueiro gigante, com milhares de formigas fervendo em seus pés. Gritos de ‘Asha’ e ‘Victarion’ iam e vinham, e parecia que uma alguma tempestade selvagem estava prestes a engolir todos eles. O deus da tempestade está entre nós, o sacerdote pensou, semeando fúria e discórdia. 
Afiada como uma espada, o som de um corno de guerra dividiu o ar.
Brilhante e funesta foi sua voz, um tremendo e quente grito que fez os ossos dos homens parecerem tamborilar dentro deles. O grito pairava no ar úmido do mar: AAAAAAAARRRRRRRREEEEEEEEE!
Todos os olhares se viraram em direção ao som. Foi um dos mestiços de Euron quem fez a chamada, um monstruoso homem com a cabeça raspada. Anéis de ouro e jade brilhavam em seus braços, e em seu peito largo estava tatuado uma ave de rapina, com as garras pingando sangue.
aaaaRRREEEEeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee.
O corno que ele tocou era preto brilhante e torcido, maior que um homem, tanto que quem o segurava usava as duas mãos. Ele estava preso com bandas de ouro vermelho e aço escuro, inciso com antigos grifos Valirianos, que pareciam brilhar enquanto o som se propagava.
aaaaaaaRRREEEEEEEEEEEEeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee.
Era um terrível som. Um gemido de dor e fúria que parecia queimar os ouvidos. Aeron Cabelo Molhado cobriu os seus ouvidos, e orou ao deus afogado para erguer uma grande onda e esmagar o corno para o silencio. Ainda assim, o grito soou, soou. É o cifre do inferno, ele quis gritar, pensava que nenhum homem havia o escutado. As bochechas do homem tatuado estavam Tão estufadas que pareciam prestes a estourar. E os músculos em seu peito contraídos de tal forma que parecia que o pássaro ali estava prestes a rasgar seu peito e voar livremente, e agora os grifos foram acesos, cada linha e letra brilhando com o fogo branco. E o som foi, foi, foi... ecoando entre as colinas, uivando atrás deles e através das águas do Berço de Nagga, para se chocar contra as montanhas de Grande Wyk, e indo e indo e indo, até preencher completamente as mundo.
E quando parecia que o som nunca iria acabar, acabou.
A respiração do soprador do corno falhou por fim.  Ele cambaleou e quase caiu. O sacerdote viu Orkwood de Montrasgo agarrá-lo por um braço e segurá-lo em pé, enquanto a mão esquerda de Lucas Codd tomou o retorcido corno negro de suas mãos. Uma fina coluna de fumaça se erguia do corno, e o sacerdote viu sangue e bolha nos lábios do homem que havia o soado. O pássaro em seu peito estava sangrando também. 
Euron Greyjoy subiu o morro lentamente, com todos os olhares sobre ele. Acima, a gaivota gritou e gritou novamente. Nenhum homem sem deus deveria sentar-se na Cadeira de Pedra do Mar, Aeron pensou, mas sabia que deveria deixar seu irmão falar. Seus lábios moviam-se silenciosamente em oração.
Os campeões de Asha se afastaram, e os de Victarion também. O sacerdote deu um passo para trás e colocou uma mão sobre a fria e áspera costela de Nagga.  Olho de Corvo parou em cima dos degraus, ás portas do salão do Rei Cinza, e voltou seu olho sorridente aos capitães e aos reis, mas Aeron podia sentir seu outro olho também, aquele que ele mantinha escondido.
— HOMENS DE FERRO — gritou Euron Greyjoy. — Vocês ouviram meu corno, agora, ouçam minhas palavras. Eu sou o irmão de Balon. O mais velho filho vivo de Quellon, o sangue de Lorde Vickon está em minhas veias, e o sangue da velha lula gigante. Ainda assim eu tenho navegado para mais longe do que qualquer um desses.  Apenas uma lula viva nunca conheceu a derrota. Apenas uma nunca dobrou o joelho. Apenas uma navegou para Asshai pelas sombras, e viu maravilhas e terrores além da imaginação...
— Se você gosta das sombras tanto assim, volte para lá. — Chamou, com as faces rosadas Qarl, a Donzela, uma entre os campeões de Asha.
Olho de Corvo o ignorou.
— Meu irmãozinho iria terminar a guerra de Balon e tomar o norte. Minha doce sobrinha iria vos dar paz e pinhos — seus lábios azuis se torceram em um sorriso. – Asha prefere vitória à derrota. Victarion quer um reino, não uns poucos metros de terra. De mim, vocês terão os dois. Olho do Corvo, vocês me chamam. Bem, quem tem o olho mais aguçado que o corvo? Depois de cada batalha os corvos vem em centenas e em milhares para banquetear-se dos caídos. Um corvo pode espiar a morte de longe. E eu digo que todos o Westeros está morrendo. Aqueles que me escolherem irão festejar até o fim de seus dias. Nós somos os homens de ferro, e uma vez fomos conquistadores. Nosso lema corria por toda a parte em que o som das ondas eram ouvidos. Meu irmão fizeram vocês se contentarem com o frio e sombrio norte, minha sobrinha com menos ainda... Mas eu darei a vocês Lannisporto. Jardim de Cima. A Árvore. Vilavelha. As terras dos rios e a Campina, a estrada do rei e a Mata da Chuva, Dorne e a Marca, as Montanhas da Lua e o Vale de Arryn, Tarth e os Degraus. Eu digo que pegaremos tudo isso! Eu digo que pegaremos Westeros — ele olhou para o sacerdote. — Tudo para a maior glória do nosso deus afogado, na realidade. 
Pela metade de um batimento cardíaco até Aeron foi varrido pela ousadia de suas palavras. O sacerdote havia sonhado o mesmo sonho, quando ele tinha visto o cometa vermelho no céu pela primeira vez. Devemos varrer as terras verdes com fogo e espada, extirpar os sete deuses e as arvores brancas dos homens do norte...
— Olho do Corvo. — Asha chamou — Você deixou seu juízo em Asshai? Se não podemos manter o norte — e não podemos — como vamos ganhar os Sete Reinos?
— Porque não? Já foi feito antes. Será que Balon ensinou tão pouco a sua garota sobre os caminhos das guerras? Victarion, a filha de nosso irmão nunca ouviu falar de Aegon o Conquistador, é o que parece.
— Aegon? — Victarion cruzou seus braços sobre a armadura em seu peito. — O que o conquistador tem a ver conosco?
— Eu sei tanto de guerra quanto você, Olho do Corvo — Asha disse — Aegon Tagaryen conquistou Westeros com dragões.
— E assim iremos nós — Euron Greyjoy prometeu — Esse corno que vocês ouviram eu encontrei entre as ruínas fumegantes que foram Valiria, onde nenhum homem ousou andar, exceto eu. Você ouviu seu chamado, e sentiu seu poder. Isto é um chifre de dragão, amarrados com bandas de ouro vermelho e esculpido em aço Valiriano com encantamentos. Os antigos senhores dragões procuraram tais chifres, antes de a Perdição os devorarem. Com esse corno, homens de ferro, eu posso trazer dragões a minha vontade.
Asha riu em voz alta.
— Um chifre para ligar cabras a sua vontade seria de mais uso, Olho de Corvo. Não existem mais dragões.
— Novamente garota, você está errada. Existem três, e eu sei onde encontrá-los. Certamente isso vale uma coroa de troncos.
— EURON! — gritou Lucas Codd, o Mão o Esquerda.
— EURON! OLHO DE CORVO! EURON! — cantou o Oarsman, o Vermelho. 
Os mudos e mestiços do Silencio abriram os cestos de Euron e derramaram seus presentes diante dos capitães e dos reis. Em seguida, foi Hotho Harlaw que o sacerdote ouviu, assim que ele enchia suas mãos de ouro. Gorold Goodbrother gritou também, e Erik, o Quebrador de Bigornas.
— EURON! EURON! EURON! — o grito cresceu, tornou-se um rugido. — EURON! EURON! OLHO DE CORVO! REI EURON! — Rolou pela Colina de Nagga, como o deus da tempestade chacoalhando as nuvens. — EURON! EURON! EURON! EURON! EURON! EURON!. — Até mesmo um sacerdote pode duvidar.  Até mesmo um profeta pode conhecer o terror. Aeron Cabelo Molhado procurou dentro de si mesmo por seu deus e encontrou apenas o silencio. Com as milhares de vozes gritando o nome de seu irmão, tudo o que ele podia ouvir era o grito de uma dobradiça de ferro enferrujada. 
 
A leste desta Lagoa da Donzela, os montes erguiam-se, selvagens, e os pinheiros fechavam-se em volta deles como uma hoste de soldados cinzentos esverdeados.
Dick dizia que a estrada costeira era o caminho mais curto e mais fácil, portanto raramente perdiam de vista a baía. As vilas e aldeias ao longo da costa iam-se tornando mais pequenas à medida que avançavam, e também menos frequentes. Ao cair da noite procuravam uma estalagem. Crabb partilhava a cama comum com outros viajantes, enquanto Brienne pagava um quarto para si e para Podrick.
— Era mais barato se dormíssemos todos na mesma cama, senhora — dizia o Dick. — Poderia pôr a sua espada entre nós. O Velho Dick era um tipo inofensivo. Cavalheiresco como um cavaleiro e tão honesto como o dia é longo.
— Os dias estão ficando mais curtos — fez notar Brienne.
— Bom, pode ser que sim. Se não confia em mim na cama, podia enrolar-me no chão, senhora.
— No meu chão, não.
— Um homem pode pensar que não tem nenhuma confiança em mim.
— A confiança ganha-se. Como o ouro.
— Como quiser, senhora — disse Crabb — mas lá em cima, a norte, onde a estrada acaba, nessa altura irá ter de confiar no Dick. Se eu quisesse roubar lhe o ouro à espadeirada, quem é que me impedia?
— Não tem uma espada. Mas eu tenho
Brienne fechou a porta entre eles e ficou ali à escuta até ter a certeza dele se ter ido embora. Por mais lesto que fosse, Dick Crabb não era nenhum Jaime Lannister, nenhum Rato Louco, nem sequer um Humfrey Wagstaff. Era magro e mal alimentado, e a sua única armadura era um meio-elmo amolgado e salpicado de ferrugem. Em vez de espada, usava uma velha adaga cheia de entalhes. Enquanto estivesse acordada, o homem não constituía qualquer ameaça para si.
— Podrick — disse — chegará uma altura em que não haverá mais estalagens para nos fornecer abrigo. Não confio no nosso guia. Quando acamparmos, pode me vigiar enquanto durmo?
— Ficar acordado, senhora? Sor. — O rapaz refletiu. — Tenho uma espada. Se Crabb tentar te fazer mal, posso matá-lo.
— Não — disse ela com severidade. — Não deve tentar lutar com ele. Tudo o que peço é que o vigie enquanto eu durmo e me acorde se ele fizer alguma coisa suspeita. Vai descobrir que acordo depressa.
Crabb mostrou as suas verdadeiras cores no dia seguinte, quando pararam para dar água aos cavalos. Brienne teve de se esconder atrás de uns arbustos para esvaziar a bexiga. No momento em que se acocorava, ouviu Podrick dizer:
— O que está fazendo? Saí daí. — Acabou o que tinha a fazer, puxou as bragas para cima e quando regressou à estrada foi encontrar Dick a limpar farinha dos dedos.
— Não vai encontrar dragões nos alforges — disse-lhe. — Transporto o ouro comigo. — Algum encontrava-se na bolsa que trazia ao cinto, o resto estava escondido num par de bolsos cosidos no interior do vestuário. A gorda bolsa que tinha dentro do alforge estava cheia de cobres grandes e pequenos, dinheiros e meios-dinheiros, pequenas moedas de prata e estrelas... e fina farinha branca, para a tornar ainda mais gorda. Comprara a farinha ao cozinheiro das Sete Espadas, na manhã em que partira de Valdocaso.
— O Dick não tinha más intenções, senhora. — Torceu os seus dedos manchados de farinha para mostrar que não tinha armas. — Tava só vendo se tinha esses dragões que me prometeu. O mundo está cheio de mentirosos, prontos a aldrabar um homem honesto. Não que você seja um deles.
Brienne esperava que ele fosse melhor guia do que era ladrão.
— É melhor irmos andando. — Voltou a montar
Dick costumava cantar enquanto viajavam; nunca era uma canção inteira, só um bocado desta, um verso daquela. Brienne suspeitava que o homem pretendia seduzi-la, para a fazer baixar a guarda. Por vezes tentava levar a ela e a Podrick a cantar com ele, mas sem sucesso. O rapaz era demasiado tímido e tinha a língua demasiado presa, e Brienne não cantava. Cantava para o seu pai? Perguntara-lhe uma vez a Senhora Stark, em Correrrio. Cantava para Renly? Não o fizera, nunca, embora tivesse desejado... tinha-o desejado...
Quando não estava a cantar, o Dick falava, regalando-os com histórias sobre a Ponta da Garra Rachada. Cada vale sombrio tinha o seu senhor, dizia ele, todos unidos apenas pela desconfiança que sentiam por forasteiros. Nas suas veias, o sangue dos Primeiros Homens corria escuro e forte.
— Os ândalos tentaram tomar a Garra, mas sangramos eles nos vales e os afogamos nos pântanos. Só que o que os filhos deles não conseguiram conquistar com as espadas, as lindas filhas conquistaram com beijos. Casaram com as casas que não conseguiam conquistar, ah foi.
Os reis Darklyn de Valdocaso tinham procurado impor o seu domínio sobre a Ponta da Garra Rachada; os Mooton de Lagoa da Donzela também, e mais tarde fora a vez dos altivos Celtigar da Ilha dos Caranguejos. Mas os homens da Garra conheciam os seus pântanos e florestas como nenhum forasteiro podia conhecer, e quando eram muito pressionados desapareciam nas cavernas que transformavam os seus montes em colmeias. Quando não lutavam com aspirantes a conquistadores, lutavam uns com os outros. As suas rixas de sangue eram tão profundas e escuras como os pântanos entre os seus montes. De tempos a tempos, algum campeão trazia a paz à Ponta, mas nunca durava mais do que a sua vida. Lorde Lúcifer Hardy, esse fora um dos grandes, e os Irmãos Brune também. O Velho Crackbones ainda mais, mas os Crabb eram os mais poderosos de todos. — Dick ainda se recusava a acreditar que Brienne nunca tivesse ouvido falar de Sor Clarence Crabb e das suas façanhas.
— Porque haveria eu de mentir? — perguntou-lhe ela. — Todos os sítios têm os seus heróis locais. No lugar de onde venho, os cantores cantam sobre Sor Galladon de Morne, o Cavaleiro Perfeito.
— Sor Gallaquem de Quê? — O homem soltou uma fungadela. — Nunca ouvi falar. Porque diabo era ele assim tão perfeito?
— Sor Galladon foi um campeão de tal valor que a própria Donzela perdeu o coração por ele. Deu-lhe uma espada encantada como símbolo do seu amor. Chamava-se a Justa Donzela. Nenhuma espada vulgar era capaz de a parar, e nenhum escudo podia aguentar o seu beijo. Sor Galladon usava orgulhosamente a Justa Donzela, mas só por três vezes a desembainhou. Não queria usar a Donzela contra os mortais, pois era tão potente que desequilibraria qualquer luta.
Crabb achou aquilo hilariante.
— O Cavaleiro Perfeito? Soa mais ao Palerma Perfeito. Pra que raio se há-de ter uma espada mágica, se não é pra lhe dar uso?
— Honra — disse ela. — O motivo é a honra.
Aquilo só conseguiu fazê-lo rir mais alto.
— Sor Clarence Crabb era capaz de limpar aquele rabo peludo que tinha com o seu Cavaleiro Perfeito, senhora. Se algum dia se tivessem encontrado, era mais uma cabeça cheia de sangue na prateleira dos Murmúrios, cá pra mim. ‘Devia ter usado a espada mágica’, ele iria dizer às outras cabeças. ‘Devia ter usado a merda da espada.’
Brienne não pôde evitar sorrir.
— Talvez — concedeu — mas Sor Galladon não era palerma nenhum. Contra um inimigo com dois metros e quarenta, montado num auroque, podia perfeitamente ter desembainhado a Justa Donzela. Usou-a uma vez para matar um dragão, segundo se diz.
Dick não se deixou impressionar.
— O Crackbones também lutou com um dragão, mas não precisou de espada mágica nenhuma. Deu-lhe só um nó no pescoço, de modo que de cada vez que ele largava fogo, assava o próprio rabo.
— E o que fez o Crackbones quando Aegon e as irmãs chegaram? — perguntou-lhe Brienne.
— Tava morto. A senhora tem de saber disso. — Crabb deitou-lhe um olhar de través. — Aegon mandou a irmã à Garra Rachada, a tal Visenya. Os senhores tinham ouvido falar do fim de Harren. Como não eram palermas nenhuns, puseram as espadas aos pés dela. A rainha tomou-os como seus homens, e disse que não deviam lealdade a Lagoa da Donzela, Ilha dos Caranguejos ou Valdocaso. Isso não impediu aqueles malditos Celtigar de mandar homens à costa oriental pra coleta de impostos. Se mandar suficientes, alguns regressam... fora isso, a gente dobra-se só aos nossos senhores, e ao rei. Ao rei verdadeiro, não a Robert e gente desse. — Cuspiu. — Havia alguns Crabb, Brune e Boggse com o Príncipe Rhaegar no Tridente, e na Guarda Real também. Um Hardy, um Cave, um Pyne, e três Crabb, o Clement, o Rupert e Clarence, o Baixo. Tinha um metro e oitenta, o tipo, mas era baixo comparado com o verdadeiro Sor Clarence. Somos todos bons homens dos dragões, aqui no caminho da Garra Rachada.
O tráfego continuou a reduzir-se à medida que avançavam para norte e para leste, até que por fim deixaram de encontrar estalagens. Por essa altura, a estrada costeira era mais ervas daninhas do que sulcos. Naquela noite abrigaram-se numa aldeia de pescadores. Brienne pagou um punhado de cobres aos aldeões para os deixarem pernoitar num celeiro cheio de feno.
Ficou com o sobrado para si e para Podrik e puxou a escada depois de subirem.
— Se me deixar aqui em baixo sozinho, posso perfeitamente roubar os cavalos — gritou Crabb de baixo. — É melhor que os faça subir a escada tamem, senhora. — Quando ela o ignorou, ele prosseguiu dizendo:
— Esta noite vai chover. Uma chuva fria e forte. Você e o Pod irão dormir todos aconchegadinhos e quentes, e o pobre velho Dick vai ficar aqui em baixo a tremer sozinho. — Abanou a cabeça, resmungando, enquanto transformava uma pilha de feno numa cama. — Nunca conheci donzela tão desconfiada como você.
Brienne enrolou-se debaixo do manto, com Podrick a bocejar a seu lado. Não fui sempre cautelosa, podia ter gritado a Crabb. Quando era rapariguinha., acreditava que todos os homens eram tão nobres como o meu pai. Até os homens que lhe diziam como era uma menina bonita, como era alta, esperta e inteligente, como era graciosa quando dançava. Fora a Septã Roelle quem tirara as lascas de cima dos seus olhos.
— Eles só dizem aquelas coisas para conquistar o favor do senhor vosso pai — dissera a mulher. — Encontrará a verdade no espelho, não na língua dos homens. — Fora uma lição dura, uma lição que a deixara a chorar, mas servira-lhe bem em Harrenhal quando Sor Hyle e os amigos tinham jogado o seu jogo. Uma donzela tem de ser desconfiada neste mundo, senão não será donzela por muito tempo, estava ela a pensar quando a chuva começou a cair.
No corpo-a-corpo, em Pontamarga, procurara os seus pretendentes e espancara-os um por um, Farrow, Ambrose e Bushy, Mark Mullendore, Raymond Nayland e Will, o Cegonha. Atropelara Harry Sawyer e quebrara o elmo de Robin Potter, deixando-lhe uma cicatriz com mau aspecto. E quando o último deles caíra, a Mãe entregara-lhe Connington. Daquela vez, Sor Ronnet empunhava uma espada, em vez de uma rosa. Cada golpe que lhe dera era mais doce do que um beijo.
Loras Tyrell fora o último a enfrentar a sua fúria naquele dia. Nunca a cortejara, quase nem sequer a olhara, mas naquele dia trazia três rosas douradas no escudo, e Brienne odiava rosas. Vê-las dera-lhe uma força furiosa. Adormeceu sonhando com a luta que tinham tido, e com Sor Jaime a prender-lhe um manto de arco-íris em volta dos ombros.
Ainda chovia na manhã seguinte. Ao quebrarem o jejum, Dick sugeriu que esperassem que a chuva parasse.
— E isso será quando? Amanhã? Dentro de uma quinzena? Quando o verão voltar? Não. Temos mantos, e léguas a percorrer.
Choveu durante todo aquele dia. O estreito trilho que seguiam rapidamente se transformou em lama por baixo deles. As árvores que viam estavam despidas, e a chuva contínua transformara as folhas delas caídas num tapete encharcado e castanho. Apesar do seu forro de pele de esquilo, o manto de Dick deixava passar a água, e Brienne via-o a tremer. Sentiu um momento de piedade pelo homem. Ele não tem comido bem, isso é evidente. Perguntou a si própria se haveria realmente uma angra de contrabandistas, ou um castelo arruinado chamado Murmúrios. Homens famintos fazem coisas desesperadas. Tudo aquilo podia ser um estratagema para a intrujar. A suspeita amargou-lhe o estômago.
Durante algum tempo pareceu que o marulhar constante da chuva era o único som que havia no mundo. Dick continuou a avançar, sem querer saber de nada. Observou-o de perto, notando o modo como ele dobrava as costas, como se enrolar-se na sela pudesse mantê-lo seco. Daquela vez não havia uma aldeia à mão quando a escuridão caiu sobre eles. Nem havia árvores que lhes fornecessem abrigo. Foram forçados a acampar por entre uns rochedos, cinquenta metros acima da linha das marés. Os rochedos, pelo menos, manteriam o vento afastado.
É melhor a gente fazer turnos de vigia esta noite, senhora — disselhe Crabb, no momento em que Brienne lutava por acender uma fogueira com a madeira trazida pelas marés. — Num sítio como este pode haver chapinheiros.
— Chapinheiros? — Brienne deitou-lhe um olhar desconfiado.
— Monstros — disse Dick com satisfação. — Parecem homens até se chegar perto, mas a cabeça é grande demais, e têm escamas onde um homem comum deve ter pelos. São brancos como a barriga dum peixe, com pele entre os dedos. Tão sempre úmidos e a cheirar a peixe, mas atrás daqueles lábios com ar choramingas que têm há filas de dentes verdes afiados como agulhas. Há quem diga que os Primeiros Homens os mataram a todos, mas não acredite nisso. Chegam de noite e roubam criancinhas malcriadas, andando por aí com aqueles pés de pato com um ruidinho de chapinhar. Ficam com as moças pra acasalar, mas comem os rapazes, roendo-os com aqueles dedos verdes e afiados. — Mostrou um sorriso a Podrick. — A você comeriam, moço. O comeriam cru.
— Se tentarem, eu mato-os. — Podrick tocou a espada.
— Tenta lá. Tenta. Os chapinheiros não são fáceis de matar. — Piscou o olho a Brienne. — É uma mocinha má, senhora?
— Não. — Só uma idiota. A madeira estava demasiada úmida para pegar, por mais faíscas que Brienne fizesse saltar da pederneira e do aço. Os gravetos fumegaram um pouco, mas foi tudo. Descontente, instalou-se com as costas apoiadas num rochedo, cobriu-se com o manto e resignou-se a uma noite fria e úmida. Sonhando com uma refeição quente, roeu uma porção de carne de vaca dura e salgada enquanto Dick falava sobre a altura em que Sor Clarence Crabb lutara com o rei dos chapinheiros. Ele conta histórias bem contadas, teve de admitir, mas Mark Mullendore também era divertido, com o seu macaquinho.
O tempo estava demasiado úmido para se ver o sol a pôr-se, demasiado cinzento para se ver a lua a nascer. A noite foi negra e desprovida de estrelas. Crabb esgotou as histórias e foi dormir. Podrick também estava em breve a ressonar. Brienne ficou sentada com as costas apoiadas ao rochedo, escutando as ondas. Está perto do mar, Sansa? Perguntou a si própria. Está à espera nos Murmúrios por um navio que nunca chegará? Quem está com você? Passagens para três disse ele. Terá o Duende se juntado a vós e a Sor Dontos ou será que encontrou a sua irmãzinha?
O dia fora longo, e Brienne estava fatigada. Descobriu que até ficar sentada contra o rochedo, com a chuva a tamborilar levemente a toda a volta, fazia com que as pálpebras começassem a pesar. Dormitou por duas vezes. Da segunda, acordou de repente, com o coração aos saltos, convencida de que alguém estava em pé por cima dela. Sentia os membros rígidos, e o manto estava a enrodilhar-se em volta dos seus tornozelos. Libertou-se dele com um pontapé e levantou-se. Dick estava aninhado de encontro a um rochedo, meio enterrado em areia molhada e pesada, a dormir. Um sonho. Foi um sonho.
Talvez tivesse cometido um erro ao abandonar Sor Creighton e Sor Illifer. Tinham-lhe parecido honestos. Gostaria que Jaime estivesse comigo, pensou... mas ele era um cavaleiro da Guarda Real, o lugar que lhe competia era com o rei. Além disso, era Renly quem desejava. Jurei que o protegeria, e falhei. Depois jurei que o vingaria, e também falhei em fazê-lo. Em vez disso, fugi com a Senhora Catelyn, e também a ela falhei. O vento mudara de direção, e a chuva escorria-lhe pela cara.
No dia seguinte, a estrada reduziu-se a um fio pedregoso, e por fim a uma mera sugestão. Perto do meio-dia, chegou a um fim abrupto no sopé de uma escarpa esculpida pelo vento. Por cima, um pequeno castelo franzia o cenho por sobre as vagas, com três torres tortas delineadas contra um céu de chumbo.
— Aquilo são os Murmúrios? — perguntou Podrick.
— Aquilo parece-te uma porcaria duma ruína? — Crabb cuspiu. — Aquilo é o Antro Terrível, onde o velho Lorde Brune tem a sede. Mas a estrada acaba aqui. Pra nós, daqui pra frente são pinheiros.
Brienne estudou a escarpa.
Como chegamos lá acima?
— É fácil. — Dick deu a volta ao cavalo. — Fique perto do Dick. Os chapinheiros são bichos pra apanhar os que ficam pra trás.
O caminho ascendente revelou-se um íngreme trilho pedregoso escondido no interior de uma fenda na rocha. A maior parte era natural, mas aqui e ali tinham sido esculpidos degraus para facilitar a ascensão. Paredes abruptas de rocha, carcomida por séculos de vento e borrifos das ondas, apertavam-nos de ambos os lados. Em alguns pontos tinham tomado formas fantásticas. Dick indicou algumas enquanto subiam.
— Ali está a cabeça de um ogro, vê? — disse, e Brienne sorriu quando a viu. — E aquilo ali é um dragão de pedra. A outra asa partiu-se quando o meu pai era moço. Aquilo ali por cima são as tetas descaídas como as duma velha bruxa. — E deitou um relance ao peito de Brienne.
— Sor? Senhora? — disse Podrick. — Há um cavaleiro.
— Onde? — Nenhuma das rochas lhe sugeria um cavaleiro.
— Na estrada. Não é cavaleiro de pedra. Um verdadeiro. A seguirnos. Lá em baixo. — Apontou.
Brienne torceu-se na sela. Tinham subido até uma altura suficiente para ver léguas ao longo da costa. O cavalo aproximava-se pela mesma estrada que tinham percorrido, duas ou três milhas atrás deles. Outra vez? Deitou um relance desconfiado a Dick.
— Não me olhe de lado — disse Crabb. — Ele não tem nada a ver com o velho Dick, seja quem for. Algum homem do Brune, o mais certo, a voltar das guerras. Ou um daqueles cantores que andam dum lado pró outro. — Virou a cabeça e cuspiu. — Não é chapinheiro nenhum, isso é certo. Esses não montam a cavalo.
—Não — disse Brienne. Naquilo, pelo menos, podiam concordar.
Os últimos trinta metros da subida revelaram-se os mais íngremes e traiçoeiros. Pedrinhas soltas rolavam por baixo dos cascos dos cavalos e caíam aos saltinhos pelo caminho pedregoso que tinham deixado para trás. Quando emergiram da fenda na rocha, encontraram-se junto às muralhas do castelo. Num parapeito, por cima deles, uma cara espreitou-os, após o que desapareceu. Brienne achou que podia ter sido uma mulher e disse isso mesmo a Dick.
Ele concordou.
— O Brune é velho demais pra andar a subir aos adarves, e os filhos e netos foram prás guerras. Não ficou ali ninguém a não ser mulheres, e um bebê ranhoso ou dois.
Estava nos lábios de Brienne perguntar ao guia de qual dos reis fora a causa que o Lorde Brune abraçara, mas já não tinha importância. Os filhos de Brune tinham partido; alguns podiam nem regressar. Não obteremos aqui hospitalidade esta noite. Não era provável que um castelo cheio de velhos, mulheres e crianças abrisse as portas a estranhos armados.
— Fala de Lorde Brune como se o conhecesse — disse ela ao Dick.
— Pode ser que tenha conhecido, em tempos.
Brienne deitou um relance ao peito do gibão do homem. Fios soltos e um bocado esfarrapado de pano mais escuro indicavam o lugar de onde um símbolo qualquer fora arrancado. O seu guia era um desertor, não duvidava. Poderia o cavaleiro que os seguia ser um dos seus irmãos de armas?
— Devíamos continuar — exortou o homem — antes do Brune começar a perguntar a si próprio por que diabo estamos aqui à sombra das suas muralhas. Até uma mulher pode esticar a porcaria da corda duma besta. — Dick indicou com um gesto os montes de pedra calcária que se erguiam atrás do castelo, com as suas vertentes arborizadas. — Daqui prá frente não há mais estradas, só ribeiros e trilhos de caça, mas a senhora não precisa de ter medo. Dick conhece esta zona.
Era isso que Brienne temia. O vento soprava em rajadas ao longo do topo da escarpa, mas a única coisa que conseguia cheirar era uma armadilha.
— E aquele cavaleiro? — A menos que o seu cavalo fosse capaz de caminhar sobre as ondas, em breve subiria a escarpa.
— Que é que ele tem? Se for um palerma qualquer de Lagoa da Donzela, pode nem sequer encontrar a porcaria do caminho. E se encontrar, a gente despista-o nos bosques. Não vai ter lá estrada pra seguir.
Só o nosso rastro. Brienne perguntou a si própria se não seria melhor enfrentar o cavaleiro ali, de espada na mão. Parecerei uma completa idiota se for um cantor ambulante ou um dos filhos do Lorde Brune. Supunha que Crabb tinha razão. Se ainda vier atrás de nós amanhã, posso lidar com ele nessa altura.
— Como quiser — disse, virando a égua na direção das árvores.
O castelo do Lorde Brune minguou nas suas costas, e em breve ficou fora de vista. Sentinelas e pinheiros marciais erguiam-se a toda a volta, altas lanças vestidas de verde lançadas para o céu. O chão da floresta era um tapete de agulhas caídas com a espessura de uma muralha de castelo, juncado de pinhas. Os cascos dos cavalos pareciam não fazer um som. Choveu um pouco, parou durante algum tempo, e então recomeçou a chover, mas entre os pinheiros quase não sentiram uma gota.
O avanço era muito mais lento nos bosques. Brienne incitava a égua a avançar através da penumbra verde, ziguezagueando de um lado para o outro por entre as árvores. Apercebeu-se de que seria muito fácil perder-se ali. Todos os lados para onde olhava pareciam iguais. O próprio ar parecia cinzento, verde e imóvel. Galhos de pinheiro raspavam nos seus braços e arranhavam ruidosamente o escudo pintado de novo. A estranha quietude mexia-lhe mais com os nervos a cada hora que passava.
Também a incomodava Dick. Mais tarde nesse dia, quando o ocaso se aproximava, tentou cantar.
— Havia um urso, um urso, um urso! Preto e castanho e coberto de pêlo — cantou, com uma voz tão áspera como um par de bragas de lã. Os pinheiros beberam a sua canção, tal como bebiam o vento e a chuva. Pouco depois, parou.
— Isto aqui é mau — disse Podrick. — Este lugar é mau.
Brienne sentia o mesmo, mas não serviria de nada admiti-lo.
 — Um pinhal é um sítio sombrio, mas no fim de contas é só uma floresta. Não há nada aqui que tenhamos que temer.
— Então e os chapinheiros? E as cabeças?
— Aí está um moço esperto — disse Dick, rindo.
Brienne deitou-lhe um olhar aborrecido.
— Os chapinheiros não existem — disse a Podrick — e as cabeças também não.
Os montes subiram, os montes desceram. Brienne deu por si a rezar para que Dick fosse honesto, e soubesse para onde os estava a levar. Sozinha, nem sequer tinha a certeza de conseguir voltar a encontrar o mar. De dia ou de noite, o céu mostrava-se de um cinzento sólido e encoberto, sem sol nem estrelas que a ajudassem a orientar-se.
Acamparam cedo naquela noite, depois de descerem uma colina e de se acharem na borda de um reluzente pântano verde. À luz cinzenta esverdeada, o terreno que se estendia em frente parecia bastante sólido, mas quando avançaram, engoliram os cavalos até ao garrote. Tiveram de dar meia volta e lutar por regressar a um terreno mais sólido.
— Não importa — garantiu-lhes Crabb. — Voltamos subir a colina e descermos por outro lado.
O dia seguinte foi igual. Cavalgaram por entre pinheiros e pântanos, sob céus escuros e chuva intermitente, passando por poços e grutas e pelas ruínas de antigas fortalezas cujas pedras estavam cobertas de musgo. Cada pilha de pedras tinha uma história, e Dick contou todas. Se acreditasse no que ele contava, os homens da Ponta da Garra Rachada tinham lavado os seus pinheiros com sangue. A paciência de Brienne começou rapidamente a desgastar-se.
— Quanto falta? — quis finalmente saber. — Por esta altura já devemos ter visto todas as árvores na Ponta da Garra Rachada.
— Nem por sombras — disse Crabb. — Já estamos perto. Olha aí, o bosque está ficando  menos denso. Estamos perto do mar estreito.
Este bobo que ele me prometeu é provável que seja o meu próprio reflexo num charco, pensou Brienne, mas parecia inútil voltar para trás depois de vir até tão longe. Contudo, estava cansada, não podia negá-lo. Sentia as coxas duras como ferro, devido à sela, e nos últimos tempos tinha vindo a dormir só quatro horas por noite, enquanto Podrick a vigiava. Se Dick pretendesse tentar assassiná-los, estava convencida de que o faria ali, em terreno que conhecia bem. Podia estar a levá-los para algum covil de ladrões onde tivesse familiares tão traiçoeiros como ele. Ou talvez estivesse apenas a levá-los aos círculos, à espera que o outro cavaleiro os apanhasse. Não tinham visto nenhum sinal do homem desde que deixaram para trás o castelo do Lorde Brune, mas isso não queria dizer que ele tivesse desistido da perseguição.
Pode ser que tenha de o matar, disse a si própria uma noite enquanto andava de um lado para o outro no acampamento. A ideia deixou-a mal disposta. O seu velho mestre de armas sempre questionara se ela seria suficientemente dura para a batalha.
Tem nos braços a força de um homem — dissera-lhe Sor Goodwin, mais do que uma vez — mas o seu coração é suave como o de qualquer donzela. Uma coisa é treinar no pátio com uma espada embotada na mão, outra é enfiar trinta centímetros de aço afiado nas tripas de um homem e ver a luz apagar-se nos seus olhos. — Para a endurecer, Sor Goodwin costumava mandá-la ao carniceiro do pai para abater cordeiros e leitões. Os leitões guinchavam e os cordeiros gritavam como crianças assustadas. Quando acabava, Brienne estava cega com lágrimas e tinha a roupa tão ensanguentada que a deva à aia para que a queimasse. Mas Sor Goodwin ainda ficara com dúvidas. — Um leitão é um leitão. Com um homem é diferente. Quando eu era um escudeiro tão novo como você, tive um amigo que era forte, rápido e ágil, um campeão no pátio. Todos sabíamos que um dia seria um cavaleiro magnífico. Então a guerra chegou aos Degraus. Vi o meu amigo pôr o seu adversário de joelhos e tirar-lhe o machado da mão, mas na altura em que pôde acabar com ele, hesitou durante meio segundo. Na batalha, meio segundo é uma vida inteira. O homem puxou a adaga e descobriu uma fenda na armadura do meu amigo. A sua força, a sua rapidez, o seu valor, toda a sua perícia duramente conquistada... valeu menos do que um peido de saltimbanco, porque vacilou perante a matança. Lembre-se disso, menina.
Me lembrarei, prometeu à sombra do homem, ali no pinhal. Sentouse numa pedra, desembainhou a espada e pôs-se a amolar-lhe o gume. Me lembrarei, e rezo para não vacilar.
O dia seguinte amanheceu ventoso, frio e encoberto. Não chegaram a ver o sol nascer, mas quando o negrume se transformou em cinza Brienne soube que estava na altura de voltar a selar o cavalo. Com Dick a indicar o caminho, voltaram a penetrar nos pinheiros. Brienne seguiu-o de perto, com Podrick a fechar a retaguarda no seu pigarço.
O castelo caiu sobre eles sem avisar. Num momento estavam nas profundezas da floresta, sem nada à vista ao longo de léguas e léguas a não ser pinheiros. Então deram a volta a um pedregulho, e uma brecha surgiu à frente. Uma milha mais adiante, a floresta terminou abruptamente. Em frente havia céu e mar... e um castelo antigo e arruinado, abandonado e coberto de vegetação na borda de uma falésia.
— Os Murmúrios — disse Dick. — Escute. Dá pra ouvir as cabeças.
A boca de Podrick escancarou-se.
— Estou ouvindo.
Brienne também as ouvia. Um murmúrio tênue e suave que parecia vir tanto do chão como do castelo. O som foi ficando mais forte à medida que se aproximavam da falésia. Era o mar, apercebeu-se ela de súbito. As ondas tinham roído buracos na falésia, lá em baixo, e ressoavam por grutas e túneis por baixo da terra.
— Não há cabeças nenhumas — disse. — O que está ouvindo a murmurar são as ondas.
— As ondas não murmuram. São cabeças.
O castelo fora feito de velhas pedras soltas e não tinha duas que fossem iguais. Musgo crescia, denso, em fendas entre as rochas, e havia árvores a crescer nas fundações. A maior parte dos castelos antigos possuía um bosque sagrado. Pelo aspecto, os Murmúrios pouco mais tinham. Brienne levou a égua a passo até à borda da falésia, onde a muralha exterior ruíra. Montículos de hera vermelha venenosa cresciam sobre a pilha de pedras partidas. Atou o cavalo a uma árvore e aproximou-se o mais que se atreveu do precipício. Quinze metros mais abaixo, as ondas turbilhonavam por dentro e por cima dos restos de uma torre desfeita. Por trás, vislumbrou a embocadura de uma grande caverna.
— Isso é a antiga torre sinaleira — disse Dick quando se aproximou por trás dela. — Caiu tinha eu metade da idade aqui do Pods. Havia degraus até à angra, mas quando a arriba ruiu, tamem caíram. Os contrabandistas deixaram de vir aqui depois disso. Houve tempo que eles podiam entrar cos botes na gruta, mas não mais. Vê? — Pôs-lhe uma mão nas costas e apontou com a outra.
A pele de Brienne arrepiou-se. Um empurrão, e vou fazer companhia à torre lá em baixo. Deu um passo para trás.
— Tira as mãos de cima de mim.
Crabb fez uma careta.
— Eu estava só...
— Não me interessa o que estava só. Onde fica o portão?
— Lá do outro lado. — O homem hesitou. — Este seu bobo, não é homem de guardar rancor, ou é? — disse, nervoso. — Quer dizer, na noite passada pus-me a pensar que ele se calhar está zangado com o velho Dick, por via daquele mapa que lhe vendi e porque não lhe disse que os contrabandistas já não desembarcam aqui.
— Com o ouro que vai receber, pode devolver o que quer que ele tenha pago pela tua ajuda. — Brienne não conseguia imaginar Dontos Hollard a constituir uma ameaça. — Isto é, se ele estiver mesmo aqui.
Fizeram o circuito das muralhas. O castelo fora triangular, com torres quadradas em cada canto. Os portões estavam muito apodrecidos. Quando Brienne puxou por um, a madeira rachou-se e desfez-se em longas lascas úmidas, e metade do portão caiu sobre ela. Viu mais sombras verdes lá dentro. A floresta abrira brechas nas muralhas, e engolira torre e parede exterior. Mas havia uma porta levadiça atrás do portão, com dentes profundamente afundados no solo mole e lamacento. O ferro estava vermelho de ferrugem, mas aguentou quando Brienne o sacudiu.
— Há muito tempo que ninguém usa este portão.
— Podia escalar a muralha — ofereceu-se Podrick. — Pela falésia. Onde a muralha caiu.
— É demasiado perigoso. Aquelas pedras pareceram-me soltas, e aquela hera vermelha é venenosa. Tem de haver uma poterna.
Encontraram-na no lado norte do castelo, meio escondida atrás de uma amoreira silvestre. As amoras tinham sido todas colhidas, e metade do arbusto fora cortado para abrir caminho até à porta. A visão dos ramos quebrados encheu Brienne de inquietação.
— Alguém passou por ali, e não faz muito tempo.
— O vosso bobo e as moças — disse Crabb. — Eu disse.
Sansa? Brienne não conseguia acreditar. Até um bêbado encharcado em vinho como Dontos Hollard teria bom-senso suficiente para não a trazer para aquele sítio desolado. Algo nas ruínas a enchia de desconforto. Não encontraria ali a menina Stark... mas tinha de dar uma olhadela. Alguém esteve aqui, pensou. Alguém que precisava ficar escondido.
— Vou entrar — disse. — Crabb, você vens comigo. Podrick, quero que fique vigiando os cavalos.
— Quero ir também. Sou um escudeiro. Posso lutar.
— É por isso que quero que fiques aqui. Pode haver foras da lei nestes bosques. Não nos atrevemos a deixar os cavalos desprotegidos.
Podrick remexeu numa pedra com a bota.
— Como quiser.
Brienne abriu caminho através das amoras silvestres e puxou por um anel ferrugento de ferro. A poterna resistiu durante um momento, e depois abriu-se de repente, com as dobradiças a gritar em protesto. O som fez com que os pêlos na parte de trás do pescoço se lhe eriçassem. Desembainhou a espada. Apesar de vestida de cota de malha e couro fervido, sentiu-se nua.
— Vá lá, senhora — incentivou-a Dick, o Ágil, atrás dela. — De que esta à espera? O Velho Crabb está morto há mil anos.
E de que estava à espera? Brienne disse a si própria que estava a ser tola. O som era só o mar, ecoando constantemente pelas cavernas por baixo do castelo, subindo e descendo a cada onda. Realmente soava como murmúrios, porém, e por um momento quase conseguiu ver as cabeças, arrumadas nas suas prateleiras e resmungando umas com as outras.
— Devia ter usado a espada — estava uma delas dizendo. — Devia ter usado a espada mágica.
— Podrick — disse Brienne. — Tem uma espada e uma bainha enrolada no meu rolo de dormir. Traga os aqui.
 — Sim, sor. Senhora. Eu trago. — O rapaz partiu a correr.
 — Uma espada? —Dick coçou-se por trás da orelha. — Tem uma espada na mão. Pra que precisa de outra?
— Esta é para você. — Brienne ofereceu-lhe o cabo.
— Sério? — Crabb estendeu hesitantemente a mão, como se a lâmina lhe pudesse morder. — A donzela desconfiada está a dar uma espada ao velho Dick?
— Espero que saiba como se usa.
— Sou um Crabb. — Arrancou-lhe a espada da mão. — Tenho o mesmo sangue do velho Sor Clarence. — Golpeou o ar e sorriu-lhe. — Há quem diga que é a espada que faz o senhor.
Quando Podrick Payne regressou, trazia a Cumpridora de Promessas com tanto cuidado como se fosse uma criança. Dick soltou um assobio ao ver a ornamentada bainha com a sua fileira de cabeças de leão, mas silenciou-se quando ela desembainhou a arma e experimentou um golpe. Até o som que faz é mais aguçado do que o de uma espada vulgar.
— Comigo — disse a Crabb. Esgueirou-se, de lado, pela poterna, baixando a cabeça para passar por baixo do arco da porta.
O pátio exterior abriu-se na sua frente, coberto de vegetação. À esquerda ficava o portão principal, e a casca arruinada daquilo que poderia ter sido um estábulo. Árvores novas espreitavam de metade das baias e cresciam através do colmo seco e castanho do telhado. À direita, viu degraus apodrecidos de madeira que desciam para a escuridão de uma masmorra ou um armazém subterrâneo. Onde estivera a torre de menagem, encontrava-se uma pilha de pedras derrubadas, cobertas de musgo verde e púrpura. O pátio era só ervas daninhas e agulhas de pinheiro. Havia pinheiros marciais por todo o lado, alinhados em solenes fileiras. Entre eles, erguia-se um estranho branco; um represeiro jovem e esguio com um tronco tão pálido como uma donzela enclausurada. Folhas vermelhas escuras nasciam nos seus longos ramos. Mais adiante encontrava-se o vazio do céu e do mar, no local onde a muralha ruíra...
... e os restos de uma fogueira.
Os murmúrios mordiscavam-lhe os ouvidos, insistentes. Brienne ajoelhou junto à fogueira. Pegou num pau enegrecido, cheirou-o, remexeu as cinzas. Alguém tentou manter-se quente ontem à noite. Ou então estavam a tentar enviar um sinal a um navio de passagem.
— Oláááááááá — gritou Dick. — está aqui alguém?
— Cale-se — disse-lhe Brienne.
— Pode haver alguém escondido. Querendo dar uma olhadela à gente antes de se mostrar. — Dirigiu-se a onde os degraus desciam para o subsolo e espreitou a escuridão. — Olááááááááá — voltou a gritar. — está alguém aí em baixo?
Brienne viu uma árvore jovem a balouçar. Um homem esgueirou-se do interior dos arbustos, de tal modo coberto de terra que parecia ter nascido do chão. Trazia uma espada quebrada na mão, mas foi o seu rosto que a levou a hesitar, os olhos pequenos e as narinas largas e achatadas.
Conhecia aquele nariz. Conhecia aqueles olhos. Os amigos lhe chamavam de Pyg.
Tudo pareceu acontecer num segundo. Um segundo homem apareceu em cima da borda do poço, sem fazer mais ruído do que uma serpente faria ao deslizar sobre uma pilha de folhas úmidas. Usava um meioelmo de ferro enrolado em seda vermelha enodoada, e tinha uma lança de arremesso curta e grossa na mão. Brienne também o conhecia. Atrás de si ouviu-se um restolhar no momento em que uma cabeça espreitou através das folhas vermelhas. Crabb estava por baixo do represeiro. Olhou para cima e viu a cara.
— Está aqui — gritou para Brienne. — É o seu bobo.
— Dick — chamou ela com urgência — a mim.
Shagwell deixou-se cair do represeiro a zurrar uma gargalhada. Estava vestido de retalhos, mas de tal modo desbotados e manchados que exibiam mais castanho do que cinzento ou cor-de-rosa. No lugar do malho de um bobo, trazia um mangual triplo, com três bolas eriçadas de espigões acorrentadas a um cabo de madeira. Brandiu-o com força e por baixo, e um dos joelhos de Crabb explodiu numa nuvem de sangue e osso.
— Isto é engraçado — vangloriou-se Shagwell quando Dick caiu. A espada que Brienne lhe dera voou de sua mão e desapareceu nas ervas daninhas. Ficou a contorcer-se no chão, gritando, e agarrado aos restos do joelho. — Oh, olha — disse Shagwell — é o Dick Contrabandista, o tipo que nos fez o mapa. Veio até tão longe para nos devolver o ouro?
— Por favor — choramingou Dick — por favor, não, a minha perna...
— Dói? Posso fazer parar.
— Deixa-o em paz — disse Brienne.
— NÃO! — guinchou Dick, erguendo mãos ensanguentadas para proteger a cabeça. Shagwell voltou a fazer rodopiar a bola de espigões em volta da cabeça e atirou-a contra o meio da cara de Crabb. Ouviu-se um repugnante ruído de esmagamento. No silêncio que se seguiu, Brienne conseguiu ouvir o som do seu coração.
— Shags mau — disse o homem que saíra do poço. Quando viu a cara de Brienne, soltou uma gargalhada. — Você outra vez, mulher? O que foi, veio nos dar caça? Ou teve saudades das nossas caras amigáveis?
Shagwell dançou de um pé para o outro e fez girar o seu malho.
— Foi atrás de mim que ela veio. Sonha comigo todas as noites, quando enfia os dedos na racha. Ela me quer, rapazes, a grande cavalgadora tem saudades do alegre Shags! Vou fodê-la pelo cu acima e enchê-la de semente aos retalhos, até parir um euzinho.
— Vai ter que usar um buraco diferente para isso, Shags — disse Timeon, com o seu sotaque arrastado de Dorne.
— Então o melhor é usar os buracos todos. Só para ter a certeza. — Moveu-se para a sua direita enquanto Pyg a rodeava pela esquerda, forçando-a a recuar na direção da borda irregular da falésia. Passagem para três, recordou Brienne.
— Vocês são três.
Timeon encolheu os ombros.
— Fomos todos cada um para seu lado, depois de deixarmos Harrenhal. Urswyck e a sua malta foi para sul, na direção de Vilavelha. Rorge achou que podia escapulir-se de Salinas. Eu e os meus rapazes dirigimo-nos a Lagoa da Donzela, mas não conseguimos aproximar-nos de um navio. — O dornês sopesou a lança. — Acabou com o Vargo com aquela dentada, sabia? A orelha ficou preta e começou a deitar pus. Rorge e Urswyck queriam ir embora, mas o Bode diz que tínhamos de defender o seu castelo. Senhor de Harrenhal, diz ele que é, que ninguém o ia roubar. Disse aquilo todo baboso, como falava sempre. Ouvimos dizer que a Montanha o matou um bocadinho de cada vez. Um dia uma mão, um pé no seguinte, cortados com toda a limpeza. Ligavam os cotos para que o Hoat não morresse. Estava a guardar a pica para o fim, mas uma ave qualquer chamou-o a Porto Real, de modo que acabou com ele e foi-se embora.
— Não estou aqui por vós. Estou à procura de... — quase disse da minha irmã. — de um bobo.
— Eu sou um bobo — anunciou Shagwell em tom feliz.
— O bobo errado — exclamou Brienne. — Aquele que eu quero encontrar está com uma menina bem nascida, a filha de Lorde Stark, de Winterfell.
— Então é o Cão de Caça que procuras — disse Timeon. — Acontece que ele também não está aqui. Só nós.
— Sandor Clegane? — disse Brienne. — Que quer dizer?
— É ele quem tem a miúda Stark. Segundo ouvi dizer, ela andava a tentar chegar a Correrrio e ele raptou-a. Maldito cão.
Correrrio, pensou Brienne. Ele dirigia-se a Correrrio. Para junto dos tios.
— Como sabe?
— Ouvi dizer a um dos tipos de Beric. O senhor do relâmpago também anda à procura dela. Mandou os seus homens para cima e para baixo ao longo do Tridente, a farejar-lhe o rasto. Encontramos três deles depois de Harrenhal, e arrancamos a história a um deles antes de morrer.
— Pode ter mentido.
— Pode, mas não mentiu. Mais tarde ouvimos contar como o Cão de Caça matou três dos homens do irmão numa estalagem junto ao entroncamento. A menina estava lá com ele. O estalajadeiro jurou antes de Rorge o matar, e as putas disseram a mesma coisa. Eram um grupinho bem feio. Não tão feio como você, nota, mas mesmo assim...
Ele está tentando me distrair, apercebeu-se Brienne, tenta adormecer-me com a voz. Pyg aproximava-se devagar. Shagwell deu um salto em sua direção. Afastou-se deles, recuando. Vão fazer-me recuar até cair da falésia, se eu deixar.
— Fique onde está — avisou-os.
— Acho que vou foder-te pelo nariz, puta — anunciou Shagwell. — Isso não será divertido?
— Ele tem uma pica muito pequena — explicou Timeon. — Larga essa espada bonita, e pode ser que te tratemos bem, mulher. Precisamos de ouro para pagar aos contrabandistas, nada mais.
— E se eu vos der ouro, vai nos deixar ir embora?
— Deixamos. — Timeon sorriu. — Depois de fodermos a todos. Te pagaremos como uma puta a sério. Uma moeda de prata por cada fodida. Caso contrário, ficamos com o ouro e violamos-te na mesma, e fazemos o que a Montanha fez ao Lorde Vargo. O que é que prefere?
— Isto. — Brienne atirou-se contra Pyg.
Ele ergueu a sua lâmina quebrada para proteger a cara, mas enquanto ele se erguia, ela abaixou-se. A Cumpridora de Promessas mordeu através de couro, lã, pele e músculo, enfiando-se na coxa do mercenário. Pyg ripostou violentamente no momento em que perdia o apoio da perna. A sua espada quebrada raspou na cota de malha de Brienne antes dele cair de costas. Brienne espetou-lhe a espada na garganta, torceu a lâmina com força, e puxou-a para fora, rodopiando no preciso instante em que a lança de Timeon lhe passou a relampejar pela cara. Não vacilei, pensou, enquanto o sangue escorria, rubro, pela sua cara. Viu, Sor Goodwin? Quase nem sentiu o golpe.
— É a sua vez — disse a Timeon, no momento em que o dornês puxava uma segunda lança, mais curta e mais larga do que a primeira. — Atira-a.
— Para que possas esquivar-se e carregar sobre mim? Acabaria tão morto como Pyg. Não. A apanhe, Shags.
A apanhe você — disse Shagwell. — Viu o que ela fez com o Pyg? Está doida com o sangue da lua. — O bobo encontrava-se atrás dela, Timeon à frente. Virasse-se como virasse, um deles estava nas suas costas.
— Apanhe-a — instou Timeon — e deixo foder o cadáver.
— Oh, você me adoras mesmo. — O mangual estava a rodopiar. Escolhe um, disse Brienne a si própria. Escolhe um e mata-o depressa. Então surgiu uma pedra, vinda de lugar nenhum, atingiu Shagwell na cabeça. Brienne não hesitou. Voou contra Timeon.
Ele era melhor do que Pyg, mas tinha só uma curta lança de arremesso, ao passo que ela possuía uma lâmina de aço valiriano. A Cumpridora de Promessas estava viva nas suas mãos. Nunca fora tão rápida. A lâmina transformou-se numa mancha cinzenta. Timeon feriu-a no ombro quando caiu sobre ele, mas ela cortou-lhe a orelha e metade da bochecha, cortou-lhe a ponta da lança, e enfiou-lhe trinta centímetros de aço ondulado na barriga através dos elos do lorigão de cota de malha que ele usava.
Timeon ainda estava a tentar lutar quando ela puxou a espada de dentro do seu corpo, com os sulcos a escorrer, vermelhos de sangue. Atirou a mão ao cinto e puxou um punhal, o que levou Brienne a corta-la. Essa foi por Jaime.
— Pela misericórdia da Mãe — arquejou o dornês, com sangue a sair-lhe da boca aos borbotões e a jorrar do seu pulso. — Acaba com isto. Manda-me de volta para Dorne, sua puta de merda.
Foi o que ela fez.
Shagwell estava de joelhos quando se virou, com um ar entontecido, enquanto tateava em busca do mangual. Quando se pôs em pé, cambaleante, outra pedra atingiu-o na orelha. Podrick trepara a muralha caída e estava em pé no meio da hera, de cenho franzido, com outra pedra na mão.
— Eu disse que podia lutar! — gritou para baixo.
Shagwell tentou afastar-se engatinhando.
— Me rendo — gritou o bobo — me rendo. Não deve fazer mal ao querido Shagwell, sou demasiado engraçado para morrer.
— Não é melhor do que os outros. Roubou, violou e assassinou.
— Oh, é verdade, é verdade, não vou negar... mas sou divertido, com todos os meus gracejos e cabriolas. Faço os homens rir.
— E as mulheres chorar.
— E a culpa disso é minha? As mulheres não têm senso de humor.
Brienne baixou a Cumpridora de Promessas.
— Cava uma sepultura. Ali, por baixo do represeiro. — Apontou com a lâmina.
— Não tenho pá.
— Tem duas mãos. — Uma a mais do que deixou a Jaime.
— Para quê o esforço? Deixe-os para os corvos.
— O Timeon e o Pyg podem alimentar os corvos. Dick terá uma sepultura. Ele era um Crabb. Este é o lugar dele.
O solo estava mole da chuva, mas mesmo assim o bobo precisou do resto do dia para cavar uma cova suficientemente profunda. A noite caía quando ele terminou, com as mãos ensanguentadas e cheias de bolhas. Brienne embainhou a Cumpridora de Promessas, pegou Dick Crabb e levouo para o buraco. Era difícil olhar para o seu rosto.
— Lamento nunca ter confiado em você. Já não sei como fazê-lo.
Quando ajoelhou para pousar o corpo, pensou: O bobo fará agora a sua tentativa, enquanto estiver de costas.
Ouviu a sua respiração entrecortada meio segundo antes de Podrick gritar um aviso. Shagwell trazia um bocado irregular de rocha numa mão. Brienne tinha o punhal enfiado na manga.
Um punhal vence quase sempre uma rocha.
Afastou-lhe o braço e enfiou-lhe o aço nas tripas.
— Ri — rosnou-lhe. Em vez disso, ele gemeu. — Ri — repetiu, agarrando-lhe na garganta com uma mão e apunhalando sua barriga com a outra. — Ri! — E continuou a dizer aquilo, uma e outra vez, até ficar com a mão vermelha até ao pulso e o fedor da morte do bobo estar prestes a sufocála. Mas Shagwell não chegou a rir. Os soluços que Brienne ouvia eram todos seus. Quando se apercebeu disso, deitou a faca fora, e estremeceu.
Podrick ajudou-a a baixar o Dick para a sua cova. Quando terminaram, a lua já subia no céu. Brienne sacudiu a terra das mãos e atirou dois dragões para a sepultura.
— Porque fez isso, senhora? Sor? — perguntou Pod.
— Era a recompensa que lhe prometi por me encontrar o bobo.
Uma gargalhada soou atrás deles. Brienne arrancou a Cumpridora de Promessas da bainha e rodopiou, esperando mais Saltimbancos Sangrentos. Mas era apenas Hyle Hunt empoleirado no topo da muralha em ruínas, de pernas cruzadas.
— Se houver bordéis no inferno, o desgraçado irá te agradecer — gritou o cavaleiro para baixo. — Caso contrário, isso é um desperdício de bom ouro.
— Eu cumpro as minhas promessas. Que está fazendo aqui?
—Lorde Randyll me pediu para te seguir. Se por algum estranho acaso tropeçasse em Sansa Stark, ele disse-me para a levar de volta para Lagoa da Donzela. Nada tema, me foi ordenado que não te fizesse mal.
Brienne fungou.
— Como se pudesse fazer.
— O que fará agora, senhora?
— Tapá-lo.
— Referia-me à menina. À Senhora Sansa.
Brienne pensou por um momento.
— Ela dirigia-se a Correrrio, se o que Timeon contou for verdade. Algures ao longo do caminho, foi capturada pelo Cão de Caça. Se o encontrar...
—... ele matar-vos-á.
— Ou então mato-o eu — disse ela, teimosamente. — Irá ajudar-me a tapar o pobre Crabb, sor?
— Nenhum verdadeiro cavaleiro poderia dizer que não a uma tal beleza. — Sor Hyle desceu a muralha. Juntos, empurraram a terra para cima do Dick, enquanto a lua se ia erguendo no céu, e debaixo da terra as cabeças de reis esquecidos murmuravam segredos.
 
Sob o sol ardente de Dorne, a riqueza era tanto medida em água como em ouro, de modo que cada poço era zelosamente guardado. Contudo, o poço em Pedramarela secara havia cem anos, e os seus guardiões tinham partido para algum lugar mais úmido, abandonando a sua modesta fortaleza, com as suas colunas caneladas e arcadas triplas. Mais tarde, as areias tinham chegado, para reclamar o que lhes pertencia.
Arianne Martell chegou com Drey e Sylva no momento em que o sol se punha, com o ocidente transformado numa tapeçaria de ouro e púrpura e as nuvens a brilhar em tons de carmim. As ruínas pareciam também ter brilho; as colunas caídas projetavam uma luz rosada, sombras rubras rastejavam pelos assoalhos rachados de pedra, e as próprias areais iam passando de dourado a laranja e a púrpura à medida que a luz se desvanecia. Garin chegara algumas horas antes, e o cavaleiro chamado Estrela Negra no dia anterior.
— Isso aqui é lindo — observou Drey enquanto ajudava Garin a dar água aos cavalos. Tinham trazido consigo sua própria água. Os corcéis de areia de Dorne eram rápidos e incansáveis, e continuavam a avançar longas léguas depois dos outros cavalos cederem, mas nem mesmo eles podiam passar sem água. — Como soube deste lugar?
— O meu tio me trouxe aqui, com Tyene e Sarella. — A recordação fez Arianne sorrir. — Apanhou algumas víboras e mostrou a Tyene a maneira mais segura de obter o seu veneno. Sarella pôs-se a revirar pedras, a sacudir areia dos mosaicos, e quis saber tudo o que havia a saber acerca das pessoas que tinham vivido aqui.
— E o que você fez, princesa? — perguntou a Sylva Malhada.
Sentei-me junto ao poço e fingi que um ladrão tinha me trazido aqui para levar-me com ele, pensou, um homem alto e duro com olhos negro e cabelo recuado nas têmporas. A recordação deixou-a embaraçada.
— Sonhei — disse — e quando o sol se pôs sentei-me de pernas cruzadas aos pés do meu tio e implorei por uma história.
— O Príncipe Oberyn era um homem cheio de histórias. — Garin também estivera com eles naquele dia; era irmão de leite de Arianne, e os dois eram inseparáveis desde antes de aprenderem a andar. — Lembro-me dele ter contado a história do Príncipe Garin, aquele em honra do qual me deram o nome.
— Garin, o Grande — disse Drey, — a maravilha de Roine.
— Esse mesmo. Fez Valíria tremer.
— Tremeram – disse Sor Gerol — e depois o mataram. Se eu levasse um quarto de um milhão de homens para a morte, me chamariam de Gerold, o Grande? — Fungou. —  Acho que prefiro Estrela Negra. Pelo menos o nome é meu. — Desembainhou a sua espada, sentou-se na borda do poço seco e pôs-se a amolar a lâmina com uma pedra.
Arianne observou-o com cuidado. É suficientemente bem-nascido para dar um consorte honrado, pensou. O pai questionaria o meu bom senso, mas os nossos filhos seriam tão belos como os senhores dos dragões. Se existia homem mais bem-apessoado em Dorne, ela não o conhecia. Sor Gerold Dayne tinha um nariz aquilino, malares elevados um maxilar forte. Mantinha o rosto fechado, mas o cabelo denso caía-lhe até o colarinho como um glacial de prata, dividido por uma faixa do negro da meia-noite. Mas tem uma boca cruel, e uma língua mais cruel ainda. Ali sentado contra a luz do sol moribundo, amolando o aço, os seus olhos pareciam negros, mas ela os vira de perto e sabia que eram púrpuros. De um púrpura escuro. Escuro e irado.
Ele deve ter sentido o olhar dela em si, pois levantou os olhos da espada, encarou o olhar dela e sorriu. Arianne sentiu o calor subir-lhe ao rosto. Nunca deveria tê-lo trazido. Se me olhar deste jeito enquanto Arys estiver aqui, teremos sangue na areia. De quem, não saberia dizer. Por tradição, os homens da Guarda Real eram os melhores cavaleiros de todos os Sete Reinos... mas o Estrela Negra era o Estrela Negra.
As noites de Dorne tornavam-se frias na areia. Garin arranjou-lhes madeira, ramos descorados até se tornarem brancos, provenientes de árvores que tinham murchado e morrido há cem anos. Drey acendeu uma fogueira, assobiando enquanto fazia saltar faíscas da pederneira.
Depois da madeira ter pegado fogo, sentaram-se em volta das chamas e passaram um odre de vinho do verão de mão em mão... todos menos Estrela Negra, que preferiu beber limonada amarga. Garin estava bem disposto e entreteve-os com as últimas histórias de Vila Tabueira, na foz do Sangueverde onde os órfãos do rio vinham comercializar com as carracas, cocas e galés provenientes do outro lado do mar estreito. Se fosse possível crer nos marinheiros, o leste fervilhava de maravilhas e terrores: uma revolta de escravo em Astapor, dragões em Qarth, praga cinzenta em Yi Ti. Um novo rei corsário ascendera nas Ilhas Basilisco e atacara a Vila das Árvores Altas, e em Qohor seguidores dos sacerdotes vermelhos tinham-se feito um motim e tentado incendiar a Cabra Negra.
— E a Companhia Dourada quebrou o contato com Myr, precisamente no momento em que os myranos se preparavam para declarar guerra a Lys.
— Os lisenos compraram-nos — sugeriu Sylva.
— Lisenos espertos — disse Drey. — Lisenos esperto e covardes.
Arianne sabia que não era assim. Se Quentyn tiver a Companhia Dourada atrás de si... O seu grito era “Sob o ouro, o aço amargo”. Vai precisar de aço amargo e de mais do que isso, irmão, se pensa em me por de lado. Arianne era amada em Dorne, Quentyn pouco conhecido. Nenhuma companhia de mercenários podia mudar isso. 
Sor Gerold se ergueu.
— Acho que vou mijar.
— Olhe por onde pisa — avisou Drey. — Já faz algum tempo que o Príncipe Oberyn colheu o veneno das víboras desta zona.
— Eu fui criado com veneno, Dalt. Qualquer víbora que me picar vai ser arrepender. Sor Gerold desapareceu através de uma arcada quebrada.
Depois de ele ir embora, os outros trocaram olhares.
— Perdoai-me, princesa — disse Garin em voz baixa — mas não gosto daquele homem.
— É uma pena — disse Drey. — Acho que ele está meio apaixonado por você.
— Precisamos dele — recordou-lhes Arianne. — Pode ser que venhamos a ter necessidade de sua espada, e certamente que precisaremos do seu castelo.
— O Alto Ermitério não é o único castelo de Dorne — observou Sylva Malhada — e vocês tem outros cavaleiros que lhes querem bem. Drey é um cavaleiro.
— Pois sou — afirmou este. — Tenho um cavalo maravilhoso e uma espada muito boa, e meu valor só é inferior a... bem, a vários homens, na verdade.
— Melhor dizendo, várias centenas, sor — disse Garin.
Arianne deixou-os na brincadeira. Drey e Sylva Malhada eram os seus amigos mais queridos, se não contasse com a prima Tyene, e Garin a acompanhava desde o tempo que ambos ainda mamavam na mãe dele, mas naquele momento não estava com disposição para gracejos. O sol tinha-se posto, e o céu estava cheio de estrelas. Tantas. Encostou as costas em um pilar canelado e perguntou a si própria se o irmão estaria a olhar as mesmas estrelas naquela noite, estivesse onde estivesse. Vê a branca, Quentyn? Aquela é a estrela de Nymeria, a arder, luminosa, e aquela faixa leitosa atrás dela, aquilo são dez mil navios. Ela ardeu tanto como qualquer homem, e eu farei o mesmo. Não roubará meu direito de nascença!
Quentyn era muito novo quando fora enviado para Paloferro; novo demais, segundo a mãe. Os Norvoshi não criavam os filhos fora de casa, e a Senhora Mellario nunca perdoara o Príncipe Doran por afastar seu filho.
— Não gosto mais disso que você — Arianne ouvira o pai dizer. — Mas há uma dívida de sangue, e Quentyn é a única moeda que o Lorde Ormond aceitará.
— Moeda? — gritara a mãe. — Ele é seu filho. Que tipo de pai usa a sua carne e o seu sangue para pagar dívidas?
— O tipo principesco — respondera Doran Martell.
O príncipe Doran ainda fingia que o irmão se encontrava com o Lorde de Yronwood, mas a mãe de Garin o vira em Vila Tabueira, disfarçado de mercador. Um dos seus companheiros tinha um olho vesgo, tal como Cletus Yronwood, o turbulento filho do Lorde Anders. Um meistre também viajava com eles, um meistre conhecedor de línguas. O meu irmão não é tão esperto como julga ser. Um homem esperto teria partido de Vilavelha, mesmo que isso significasse uma viagem mais longa. Em Vilavelha podia ter passado incógnito. Arianne possuía amigos entre os órfãos de Vila Tabueira, e alguns tinham ficado curiosos com o motivo que levaria um príncipe e um filho de senhor a viajar sob nomes falsos e a procurar passagem para o outro lado do mar estreito. Um deles trepara a uma janela, arrombara a fechadura do pequeno cofre de Quentyn, e encontrara os pergaminhos lá dentro.
Arianne teria dado muito, e mais ainda, para saber que aquela viagem secreta pelo mar estreito fora obra de Quentyn e apenas sua... mas os pergaminhos que transportava iam selados com o sol e a lança de Dorne. O primo de Garin não se atreverera a quebrar o selo para os ler, mas...
— Princesa.  — Sor Gerold Dayne estava atrás dela, meio iluminado pela luz das estrelas e meio escondido pelas sombras.
— Que tal foi a sua mijada? — perguntou maliciosamente Arianne. 
— A areia ficou devidamente grata. — Dayne pós um pé na cabeça de uma estátua que podia ter sido a Donzela até que as areias lhe destruíram os traços do rosto. — Ocorreu-me enquanto mijava que este seu plano pode não trazer-lhe o que quer.
— E o que é que eu quero, Sor? 
— A libertação das Serpentes de Areia. Vingança para Oberyn e Elia. Conheço a canção? Quer provar um pouco de sangue de leão.
Isso, e o meu direito de nascença. Quero Lançassolar e o trono do meu pai. Quero Dorne.
— Quero justiça. 
— Dê-lhe o nome que quiser. Coroar a menina Lannister é um gesto sem Substância. Ela nunca ocupará o Trono de Ferro. Nem terá a guerra que deseja. O leão não é provocado com essa facilidade.
— O leão está morto. Quem sabe qual das crias a prefere?
— Aquela que estiver na sua toca. — Sor Gerold puxou pela espada. Cintilou à luz das estrelas, afiada como mentiras. — É com isto que se começa uma guerra. Não com uma coroa de ouro, mas com uma lâmina de aço.
Não sou nenhuma assassina de crianças. 
— Guarde isso. Myrcella está sob a minha proteção. E Sor Arys não permitirá que algum mal aconteça à sua preciosa princesa, sabe disso.
— Não, senhora. O que eu sei é que os Dayne andam a matar Oakhearts há vários milhares de anos.
A arrogância do homem deixou-a sem respiração.
— Parece-me que os Oakheart andam a matar Daynes há tanto tempo como o contrário.
— Todos nós temos as nossas tradições familiares. — Estrela Negra embainhou a espada. — A lua vai nascer, e vejo o seu modelo de perfeição aproximar-se.
Os olhos dele eram penetrantes. O cavaleiro no grande palafrém cinzento revelou ser realmente Sor Arys, com o manto branco a esvoaçar ousadamente enquanto ele esporeava o cavalo pela areia fora. A Princesa Myrcella vinha atrás, em montaria dupla, enrolada num roupão com capuz que lhe escondia os caracóis dourados.
No momento em que Sor Arys a ajudou a descer do cavalo, Drey caiu sobre um joelho na sua frente.
— Vossa Graça.
— Senhora minha suserana —Sylva Malhada ajoelhou ao lado dele.
— Minha rainha, sou vosso. — Garin caiu sobre ambos os joelhos. 
Confusa, Myrcella agarrou-se ao braço de Arys Oakheart.
  — Porque é que me estão a chamar Graça? — perguntou Myrcella em voz lamentosa. — Sor Arys, que sítio é este, e quem são eles?
Será que ele não lhe disse nada? Arianne avançou num rodopio de seda, sorrindo para por a criança à vontade.
— São meus amigos verdadeiros e leais, Vossa Graça... e querem ser também seus amigos.
— Princesa Arianne? — A menina atirou os braços em volta dela. — Porque é que me chamam rainha? Aconteceu algo de mau a Tommen?
— Ele caiu sob o domínio de homens maus, Vossa Graça — disse Arianne — e temo que tenham conspirado com ele para lhe roubar o trono. 
— O trono? Está falando do Trono de Ferro? — A rapariga estava mais confusa do que nunca. — Ele não o roubou. Tommen é...
— ...mais novo do que você, certo?
— Eu sou um ano mais velha.
— Isso quer dizer que o Trono de Ferro é seu por direito — disse Arianne. — O seu irmão é só um garotinho, não deve culpá-lo. Tem maus conselheiros... mas você tem amigos. Posso ter a honra de apresentar-lhe? — Pegou na mão da menina. — Vossa Graça, apresento-lhe Sor Andrey Dalt, o herdeiro de Limoeiros.
— Os amigos chamam-me Drey — disse ele — e ficaria muito honrado se Vossa Graça fizesse o mesmo.
Embora Drey tivesse um rosto aberto e um sorriso fácil, Myrcella olhou-o com prudência.
— Até que o conheça, tenho de chamá-lo Sor. 
— Seja qual for o nome que Vossa Graça prefira, eu estou às suas ordens.
Sylva pigarreou, e Arianne disse: 
— Posso apresentar-lhe a Senhora Sylva Santagar, minha rainha? A minha querida Sylva Malhada.
— Porque lhe chamam assim? — Perguntou Myrcella.
— Por causa das minhas sardas, Vossa Graça — respondeu Sylva. — Embora todos finjam que é por eu ser herdeira de Matamalhada.
O seguinte era Garin, um tipo de membros soltos, trigueiro, com um longo nariz e um botão de jade numa orelha.
— Este é o alegre Garin, dos órfãos, que faz me rir — disse Arianne — a mãe dele foi a minha ama de leite.
— Lamento que esteja morta — disse Myrcella.
— Não está, querida rainha. — Garin mostrou o dente de ouro que Arianne lhe comprara para substituir aquele que partira. — O que a minha senhora quer dizer é que eu pertenço aos órfãos do Sangueverde.
Myrcella teria tempo bastante para aprender a história dos órfãos durante a Viagem pelo rio acima. Arianne levou a sua futura rainha até ao último membro do pequeno bando.
— Por último, mas primeiro em valor, apresento-lhe Sor Gerold Dayne, um cavaleiro de Tombastela.
Sor Gerold caiu sobre um joelho. O luar brilhou nos seus olhos escuros enquanto ele estudava friamente a menina.
— Houve um Arthur Dayne — disse Myrcella. — Ele foi um cavaleiro da Guarda Real nos tempos do Rei Louco Aerys. 
— Era a Espada da Manhã. Está morto. 
— Agora você é a Estrela da Manhã? 
— Não. Os homens chamam-me Estrela Negra, e eu pertenço à noite.
Arianne afastou dele a criança.
— Deve estar com fome. Temos tâmaras, queijo e azeitonas, e limonada doce para beber. Mas não deve comer ou beber demais. Após um pequeno descanso, temos de continuar. Aqui na areia é sempre melhor viajar de noite, antes do sol subir no céu. É melhor para os cavalos.
— E para os cavaleiros — disse a Sylva Malhada. — Venha, Vossa Graça, se aqueça. Me sentirei honrada se me deixardes os servir. 
Enquanto levava a princesa para junto da fogueira, Arianne sentiu Sor Gerold atrás de si.
— A minha Casa existe há dez mil anos, desde a aurora dos tempos — protestou ele. — Porque é que o meu primo é o único Dayne de que as pessoas se lembram? 
— Ele foi um grande cavaleiro — interveio Sor Arys Oakheart.
— Tinha uma grande espada — disse o Estrela Negra. 
— E um grande coração. — Sor Arys tomou Arianne pelo braço. — Princesa, gostaria de falar com você por um momento.
— Venha. — Levou Sor Arys mais para dentro das ruínas. Por baixo do manto, o cavaleiro usava um gibão de pano de ouro com as três folhas verdes de carvalho da sua Casa nele bordadas. Na cabeça trazia um elmo de aço ligeiro encimado por um espigão dentilhado, coberto por voltas de um lenço amarelo, à moda dornesa. Podia ter passado por um cavaleiro qualquer, se não fosse o manto. Era de cintilante seda branca, pálido como o luar e imaterial como uma brisa. Um manto da Guarda Real para lá de qualquer dúvida, o galante tolo. — O que sabe a garota?
— Bastante pouco. Antes de deixarmos Porto Real, o tio fez-lhe lembrar que eu era seu protetor e que quaisquer ordens que lhe desse se destinavam a mantê-la a salvo. Também ela os ouviu nas ruas a gritar por vingança. Sabia que isto não era jogo nenhum. A menina é valente, e sábia para além da idade. Fez tudo o que lhe pedi, e nunca levantou uma questão. — O cavaleiro tomou-lhe o braço, olhou em volta, baixou a voz. — Há outras notícias que deve ouvir. Tywin Lannister está morto. 
Aquilo era um choque.
— Morto?
— Assassinado pelo Duende. A rainha assumiu a regência.
— Ah foi? — Uma mulher no Trono de Ferro? Arianne refletiu sobre aquilo por um momento e decidiu que tanto melhor. Se os senhores dos Sete se acostumassem ao governo da Rainha Cersei, seria muito mais fácil dobrar os joelhos à Rainha Myrcella. E  Lorde Tywin fora um adversário perigoso; sem ele, os inimigos de Dome seriam muito mais fracos. Lannister matando Lannisters, que bom. — Que aconteceu ao anão?
— Fugiu — disse Sor Arys. — Cersei oferece uma senhoria a quem quer que lhe entregue a sua cabeça. — Num pátio interior coberto de azulejos, meio enterrado pela areia solta, empurrou-a de encontro a uma coluna para beijá-la, e a mão subiu-lhe ao seio. Beijou-a longa e profundamente e tentou subir-lhe as saias, mas Arianne libertou-se dele, rindo.
— Estou a ver que fazer rainhas o excita, sor, mas não temos tempo para isto. Mais tarde, prometo. — Tocou-o no rosto. — Encontrou algum problema?
— Só Trystane. Queria sentar-se junto à cama de Myrcella e jogar cryvasse com ela.
— Eu lhes disse que ele teve manchas vermelhas quando tinha quatro anos. Só se pode apanhá-las uma vez. Devia ter-lhe dito que Myrcella sofria de escamagris, isso teria mantido-o bem longe.
— Ao rapaz, talvez, mas não ao Meistre de seu pai.
  — Caleotte — disse ela. — Ele tentou vê-la? 
— Depois de eu lhe descrever as manchas vermelhas que ela teria na cara, não. Disse que não se podia fazer nada até que a doença seguisse o seu caminho, e deu-me um boião de unguento para lhe diminuir a coceira.
Nunca ninguém com menos de dez anos morrera de manchas vermelhas, mas a doença podia ser mortal nos adultos, e Meistre Caleotte nunca sofrera dela em criança. Arianne soubera disso quando sofrera das suas manchas, aos oito anos.
— Ótimo — disse. — E a aia? É convincente?
— À distância. O Duende escolheu-a com este propósito, entre muitas garotas de nascimento mais nobre. Myrcella ajudou-a a encaracolar o cabelo, e foi ela própria que lhe pintou as manchas na cara. São distantemente aparentadas. Lannisporto está cheio de Lannys, Lannetts, Lantells e Lannisters menores, e metade deles têm aquele cabelo amarelo. Vestida com o roupão de Myrcella com o unguento do meistre espalhado na cara até podia me enganar, a uma luz fraca. Foi bastante difícil arranjar um homem que tomasse o meu lugar. Dake é o que tem uma altura mais próxima da minha, mas é gordo demais, de modo que enfiei Rolder na minha armadura e disse-lhe para manter a viseira descida. O homem é sete centímetros mais baixo do que eu, mas talvez ninguém repare se não estiver nós dois lado a lado. Em todo o caso, não sairá dos aposentos de Myrcella.
— Não precisamos de mais do que alguns dias. Depois, a princesa estará fora do alcance do meu pai.
— Onde? — Puxou-a para si e esfregou-lhe o nariz no pescoço.  — Está na hora de me contar o resto do seu plano, não acha?
Ela riu, afastando-o.
— Não, está na altura de continuarmos nos cavalos.
A lua coroara a Donzela da Lua quando partiram das ruínas poeirentas de Pedramarela, avançando para sudoeste. Arianne e Sor Arys tomavam a dianteira, com Myrcella entre os dois, montada numa égua fogosa. Garin seguia logo atrás com a Sylva Malhada, enquanto os dois cavaleiros dorneses fechavam a retaguarda. Somos sete, pensou Arianne enquanto cavalgavam. Não pensara naquilo antes, mas parecia um bom presságio para a sua causa. Sete cavaleiros a caminho da glória. Um dia, os cantores nos transformaram em imortais. Drey quisera um grupo maior, mas isso poderia ter atraído atenções indesejadas, e cada homem adicional duplicava o risco de traição. Isso, pelo menos, o meu pai ensinou-me. Mesmo quando fora mais jovem e mais forte, Doran Martell fora um homem cauteloso muito dado a silêncios e a segredos. É tempo de pousar os seus fardos, mas não admitirei desfeitas à sua honra ou à sua pessoa. Ela o levaria para seus Jardins de Água, a fim de viver os anos que lhe restassem rodeado das gargalhadas de crianças e do cheiro de limas e laranjas. Sim, e Quentyn pode fazer-lhe companhia. Depois de coroar Myrcella e libertar as Serpentes de Areia, toda Dorne se reunirá sob os meus estandartes. Os Yronwood podiam declarar-se por Quentyn, mas sozinhos não constituíam ameaça. Se passassem para o lado de Tommen e dos Lannister, fariam com que o Estrela Negra os destruísse, das raízes aos ramos.
— Estou cansada — protestou Myrcella, depois de passar várias horas sobre a sela. — Ainda falta muito? Onde vamos?
— A Princesa Arianne vai levar Vossa Graça para um lugar onde estará a salvo — assegurou-lhe Sor Arys.
— É uma longa viagem — disse Arianne - mas será mais fácil depois de chegarmos ao Sangueverde. Alguns dos membros do povo de Garin, os órfãos do rio, irão encontrar-se conosco lá. Vivem em barcos, e empurram-nos à vara para cima e para baixo ao longo do Sangueverde e dos afluentes, pescando e colhendo frutas, e fazendo qualquer trabalho que seja preciso fazer.
— Sim, - gritou alegremente Garin - e cantamos, tocamos e dançamos sobre a água, e conhecemos muitas e muitas coisas sobre as artes da cura. A minha mãe é melhor parteira de Westeros, e o meu pai sabe curar verrugas.
— Como pode ser órfão se tem pai e mãe? — perguntou a garota.
— Eles são os roinares — explicou Arianne — e a Mãe deles era o rio Roine.
Myrcella não compreendeu.
— Pensava que vocês eram os roinares. Os dorneses, quero dizer. 
— Somos em parte, Vossa Graça. Tenho em mim o sangue de Nymeria, bem como o de Mors Martell, o lorde dornês com quem ela casou. No dia do casamento, Nymeria pôs fogo nos seus navios, para que o seu povo compreendesse que não podia haver regresso. A maioria ficou feliz por ver aquelas chamas, pois as suas viagens tinham sido longas e terríveis até chegarem a Dorne, e muitos e mais ainda tinham sido perdidos para tempestades, doenças e escravatura. Houve uns poucos que choraram, porém. Não gostaram desta terra seca e vermelha nem do seu deus de sete deuses, e agarraram-se aos seus costumes antigos, construíram barcos com os cascos dos navios queimados, e transformaram-se nos órfãos do Sangueverde. A Mãe nas suas canções não é a nossa Mãe, mas sim a Mãe Roine, cujas águas os alimentaram desde a aurora dos tempos.
— Tinha ouvido dizer que os roinares tinham um deus tartaruga qualquer - disse Sor Arys.
— O Velho de Rio é um deus menor — disse Garin. — Também nasceu da Mãe Rio, e lutou contra o Rei Caranguejo para conquistar o domínio sobre todos os que vivem sob a corrente.
— Oh — disse Myrcella.
— Ouvi dizer que você também travou algumas grandes batalhas, Vossa Graça — disse Drey na sua voz mais alegre. — Diz-se que não mostrou qualquer misericórdia para com o nosso valente Príncipe Trystanne na mesa de cryvasse.
— Ele põe os quadrados sempre da mesma maneira, com todas as montanhas à frente e os elefantes nos passos — disse Myrcella. — De modo que eu mando o meu dragão para comer os elefantes dele.
— A sua aia também sabe jogar? — perguntou Drey.
— Rosamund? — perguntou Myrcella. — Não. Tentei lhe ensinar, mas ela disse que as regras eram muito difíceis.
— Ela também é uma Lannister? — Perguntou a Senhora Sylva.
— É uma Lannister de Lanisporto, não uma Lannister de Rochedo Casterly. Tem o cabelo da cor do meu, mas é liso em vez de encaracolado. Rosamund realmente não me favorece, mas quando se veste com a minha roupa as pessoas que não nos conhecem julgam que ela sou eu.
— Então já fez isto antes?
— Oh, sim. Trocamos de lugar no Mar Ligeiro, a caminho de Bravos. A Septã Eglantine pôs-me tinta castanha no cabelo. Disse que faríamos isso como um jogo, mas a idéia era manter-me a salvo, para o caso do navio ser capturado pelo meu tio Stannis.
A garota estava claramente cansada, de modo que Arianne resolveu parar. Voltaram a dar água aos cavalos, descansaram durante algum tempo, e comeram um pouco de queijo e fruta. Myrcella dividiu uma laranja com Sylva Malhada, enquanto Garin comeu azeitonas e cuspiu os caroços para cima de Drey.
Arianne tivera esperança de chegar ao rio antes do nascer do sol, mas tinham voltado a cavalgar muito mais tarde do que planejara, e ainda estavam nas selas quando o céu do oriente ficou vermelho.  Estrela Negra aproximou-se dela a meio galope.
— Princesa — disse — eu seguiria a um ritmo mais elevado, a menos que afinal de contas queira matar a garota. Não temos tendas, e de dia as areias são cruéis.
— Eu conheço as areias tão bem como você, sor — disse-lhe Arianne. Apesar disso, fez o que ele sugerira. Era duro para as montarias, mas seria melhor perder seis cavalos do que uma princesa.
Em breve, o vento chegou em rajadas do oeste, quente, seco e cheio de areia. Arianne cobriu o rosto com o véu. Era feito de uma seda tremeluzente, verde-clara em cima e amarela em baixo, com as cores a fundindo uma na outra. Pequenas pérolas verdes davam-lhe peso, e cantavam baixinho quando mexia.
— Sei porque é que a minha princesa usa um véu - disse Sor Arys no momento em que ela o prendia às têmporas do seu elmo de cobre. — Se assim não fosse, a sua beleza brilharia no céu mais do que o sol.
Arianne teve de rir.
— Não, a sua princesa usa um véu para manter a luminosidade afastada dos olhos e a areia afastada da boca. Deveria fazer o mesmo, sor. — Perguntou a si própria quanto tempo teria levado o seu cavaleiro branco a polir aquele laborioso galanteio. Sor Arys era uma companhia agradável na cama, mas ele e o espírito se conheciam.
Os seus dorneses cobriram os rostos tal como ela, e Sylva Malhada ajudou a velar a pequena princesa contra o sol, mas Sor Arys permaneceu obstinado. Não demorou muito até o suor começar a escorrer pela cara e as faces tomarem um rubor rosado. Muito mais e ele cozinhará naquela roupa pesada, refletiu ela. Não seria o primeiro. Em séculos anteriores, muitas hostes tinham cruzado o Passo do Príncipe com estandartes a esvoaçar, só para secarem e assarem nas quentes e rubras areias de Dorne.
— As armas da Casa Martell ostentam o sol e a lança, as armas preferidas dos dorneses — escrevera um dia o Jovem Dragão na sua fantasiosa Conquista de Dorne — mas, das duas, o sol é a mais mortífera.
Felizmente não tinham de atravessar as areias profundas, mas apenas uma faixa das terras áridas. Quando Arianne vislumbrou um falcão a rodopiar bem alto acima deles, num céu sem nuvens, soube que o pior tinha ficado para trás. Rapidamente chegaram a uma árvore. Era uma coisa nodosa e retorcida com tantos espinhos como folhas, da espécie chamada penúria de areia, mas significava que não se encontravam longe de água.
  — Estamos quase lá, Vossa Graça — disse alegremente Garin a Myrcella quando viram mais penúrias de areia em frente, um bosque delas a crescer em volta do leito seco de um rio. O sol atingia a terra como um martelo de fogo, mas não importava, com a viagem perto do fim. Pararam de novo para dar água aos cavalos, beberam profundamente dos seus odres e umedeceram os véus, e voltaram a montar para a cavalgada final. Meia légua depois estavam a cavalgar sobre escalracho e a passar por olivais. Depois de uma linha de colinas pedregosas, a erva tornou-se mais verde e mais luxuriante, e apareceram limoais regados por uma teia de velhos canais. Garin foi o primeiro a vislumbrar o rio a cintilar em tons de verde. Soltou um grito e correu em frente.
Arianne Martell atravessara uma vez o Vago, quando fora com três das Serpentes de Areia visitar a mãe de Tyene. Comparado com aquele poderoso curso de água, o Sangueverde quase não merecia o nome de rio, mas era na mesma a vida de Dorne. O nome provinha do verde opaco das suas águas lentas; mas quando se aproximaram, a luz do sol pareceu transformar essas águas em ouro. Poucas vezes vira uma paisagem mais agradável. A parte seguinte deverá ser lenta e simples, pensou, pelo Sangueverde acima, e depois pelo Vaith, até tão longe quanto um barco de varejo pode chegar. Isso lhe daria bastante tempo para preparar Myrcella para tudo o que se seguiria. Depois do Vaith esperavam as areias profundas. Precisariam da ajuda de Arenito e da Toca do Inferno para fazer a travessia, mas não duvidava de que ela surgiria. Víbora Vermelha fora criado em Arenito, e a concubina do Príncipe Oberyn, Ellaria Sand, era ilegítima do Lorde Uller; quatro das Serpentes de Areia eram suas netas. Coroarei Myrcella na Toca do Inferno, e erguerei ai os meus estandartes.
Encontraram o barco a meia légua para jusante, escondido sob os ramos pendentes de um grande salgueiro verde. Baixos e de través largo, os barcos de varejo quase não tinham calado de que se pudesse falar; o Jovem Dragão depreciara-os como “cabanas construídas em jangadas”, mas nisso pouca justiça havia. Todos os barcos dos órfãos, exceto os dos mais pobres, eram maravilhosamente esculpidos e pintados. Aquele fora trabalhado em tons de verde, com uma cana do leme curva, de madeira, com a forma de uma sereia, e cabeças de peixe a espreitar das amuradas. Varas, cordas e jarros de azeite atravancavam o seu convés, e lanternas de ferro balançavam à proa e à popa. Arianne não viu órfãos. Onde está a tripulação? Perguntou a si própria.
Garin puxou as rédeas do cavalo por baixo do Salgueiro.
Acordem, seus dorminhocos de olhos de peixe — gritou ao saltar da sela. — A sua rainha está aqui, e quer as suas régias boas-vindas. Subam, saiam, queremos canções e vinho doce. A minha boca está pronta a...
A porta do barco de varejo abriu-se com estrondo. À luz do sol surgiu Areo Hotah, com um longo machado na mão. 
Garin parou com um sobressalto. Arianne sentiu-se como se um machado tivesse sido enterrado em sua barriga. Não era para terminar assim. Isto não podia acontecer. Quando ouviu Drey dizer:
— Aí está a última cara que eu esperava ver — soube que tinha de agir. 
— Para trás! - gritou, saltando de novo para a sela. — Arys, proteja a princesa...
Hotah bateu com o cabo do machado no convés. De trás das ornamentadas amuradas do barco de varejo, ergueu-se uma dúzia de guardas, armados com lanças de arremesso ou bestas. Mais surgiram no topo da cabina.
— Renda-se, minha princesa — gritou o capitão — caso contrário teremos de matar todos menos a criança e você, por ordens do seu pai. 
A Princesa Myrcella estava sentada, imóvel, na montaria. Garin afastou-se lentamente do barco de varejo, com as mãos no ar. Drey desafivelou o cinto da espada.
— Render-se parece o mais sensato — gritou para Arianne, no momento em que a espada caía no chão com um ruído surdo.
— Não! — Sor Arys Oakheart colocou o cavalo entre Arianne e as bestas, com a espada a brilhar, prateada, na mão. Desprendera o escudo e enfiara o braço esquerdo nas correias. — Não a capturarão enquanto eu ainda respirar.
Seu estouvado idiota, foi tudo o que Arianne teve tempo de pensar, o que pensa que está fazendo?
A gargalhada do Estrela Negra ressoou. 
— É cego ou estúpido, Oakheart? Eles são muitos. Largue a espada.
— Faça o que ele diz, Sor Arys — insistiu Drey. 
Fomos capturados, sor, podia ter gritado Arianne. A sua morte não nos libertará. Se ama a sua princesa, renda-se. Mas quando tentou falar, as palavras ficaram-lhe presas na garganta.
Sor Arys Oakheart deu-lhe um último olhar cheio de perguntas, e depois espetou as esporas no cavalo, e atacou.
Avançou impetuosamente contra o barco de varejo, com o manto branco a esvoaçar atrás de si. Arianne Martell nunca vira nada com metade da galanteria ou com metade da estupidez daquele homem.
— Não! — Guinchou, mas encontrara a voz tarde demais. Numa corneta soou um trum, e logo noutra. Hotah berrou uma ordem. A tão curta distância, a armadura do cavaleiro branco bem podia ter sido feita de pergaminho. O primeiro dardo penetrou através do pesado escudo de carvalho, atingindo ao ombro. O segundo raspou-lhe na têmpora. Uma lança de arremesso atingiu a montaria de Sor Arys no flanco, mas mesmo assim o cavalo continuou a avançar, vacilando ao atingir a prancha de embarque. — Não — estava a gritar uma garota qualquer, uma qualquer garotinha tola — não, por favor, não era para isto acontecer.  — Também conseguia ouvir Myrcella a guinchar, com a voz estridente de medo.
A espada de Sor Arys golpeou para a direita e para a esquerda, e dois lanceiros caíram. O cavalo empinou-se e deu um coice em um besteiro na cara no momento em que o homem tentava recarregar, mas as outras bestas estavam a disparar, enchendo o grande corcel com os seus dardos. Os projéteis atingiam-no com tanta força que empurravam o cavalo para o lado. Perdeu o apoio das patas, e caiu sobre o convés. De algum modo, Arys Oakheart saltou, livre. Até conseguiu continuar com a espada na mão. Pôs-se de joelhos com dificuldade, ao lado do seu cavalo moribundo...
... e deu com Areo Hotah em pé em cima de si.
O cavaleiro branco ergueu a lâmina, com demasiada lentidão. O machado de Hotah cortou-lhe o braço direito no ombro, afastou-se a girar, jorrando sangue, e voltou a cair; num relâmpago, num terrível golpe a duas mãos que cortou a cabeça de Arys Oakheart e a atirou pelo ar, a rodopiar. A cabeça aterrou entre os juncos, e o Sangueverde engoliu o vermelho com um suave chapinhar.
Arianne não teve consciência de subir para o cavalo. Talvez tenha caído. Também não teve consciência disso. Mas deu por si com as mãos e pés na areia, a tremer, a soluçar e a vomitar o almoço. Não, era tudo o que conseguia pensar, não, ninguém devia sair machucado, estava tudo planejado, eu fui tão cautelosa. Ouviu Areo Hotah rugir:
— Atrás dele. Não pode escapar. Atrás dele! — Myrcella estava no chão, a chorar, a tremer, com o rosto pálido nas mãos, e sangue a escorrer por entre os dedos. Arianne não compreendia. Homens subiam precipitadamente para cavalos enquanto outros caíam sobre ela e os seus companheiros, mas nada daquilo fazia sentido. Caíra num sonho, um terrível pesadelo rubro. Isto não pode ser real. Acordarei em breve, e rirei dos terrores da noite.
Quando tentaram atar-lhe as mãos atrás das costas, não resistiu. Um dos guardas colocou-a em pé com um puxão. Usava as cores do pai dela. Outro dobrou-se e tirou a faca de arremesso que ela trazia dentro da bota, um presente da prima, a Senhora Nym.
Areo Hotah recebeu-a das mãos do homem e olhou-a de cenho franzido.
— O príncipe disse que devo levar você de volta para Lançassolar — anunciou. Tinha as bochechas e a testa salpicadas com o sangue de Arys Oakheart. — Lamento, pequena princesa.
Arianne ergueu uma face riscada por lágrimas.
— Como pôde ele saber? — Perguntou ao capitão. — Eu fui tão cautelosa. Como pôde ele saber?
— Alguém falou. — Hotah encolheu os ombros. — Há sempre alguém que fala.
 
Cada noite antes de dormir, ela murmurava sua oração dentro de seu travesseiro.
— Sor Gregor — e ia — Dunsen, Raff, o Querido, Sor Ilyn, Sor Meryn, Rainha Cersei. — Ela teria sussurrado o nome dos Freys da encruzilhada também, se ela os soubesse.  Um dia eu vou saber, ela disse a si mesma. E então eu matarei todos eles. Nenhum sussurro era muito fraco para ser ouvido na Casa do Preto e Branco.
— Criança — disse o homem bondoso um dia. — Que nomes são aqueles que você sussurra a noite?
— Eu não sussurro nome algum — ela disse.
— Você mente — ele disse. — Todos os homens mentem quando estão com medo. Alguns contam muitas mentiras, outros contam algumas. Alguns têm apenas uma mentira, mas a contam tão frequentemente que quase chegam a acreditar... Embora uma pequena parte dele sempre irá saber que aquilo ainda é uma mentira e que ira mostrar sobre seus rostos. Fale-me sobre esses nomes.
Ela mordeu o lábio.
— Os nomes não tem importância.
— Eles têm — o homem bondoso insistiu. — Conte-me criança.
  Conte-me ou irei mandá-la embora, foi o que ela ouviu.
— Eles são pessoas que eu odeio. Eu quero que eles morram.
— Nós ouvimos muito dessas orações nessa Casa.
— Eu sei — disse Arya. Jaqen H’ghar tinha garantido três dessas orações uma vez, tudo o que eu tive que fazer foi sussurrar...
— É por isso que você teve que vir até nós? — O homem bondoso continuou. — Pra aprender nossas artes, e então matar esses homens que você odeia?
Arya não sabia como responder a isso.
— Talvez.
— Então você veio ao lugar errado. Não cabe a você dizer quem deve viver e quem deve morrer. Este dom pertence ao deus de Muitas Faces. Somos nada além de seus servos, jurados a sua vontade.
— Oh — Arya olhou para as estatuas ao longo das paredes, velas redondas brilhavam em seus pés — Qual deus é ele?
— Todos eles — disse o sacerdote em preto e branco.
Ele nunca disse a ela seu nome. Nem a esposa, a pequena garota com grandes olhos e um rosto oco que a lembrava de outra pequena garota, chamada Weasel. Como Arya, a esposa vivia debaixo do templo, juntamente com três acólitos, dois servos e um cozinheiro chamado Umma. Umma gostava de conversar enquanto trabalhava, mas Arya não conseguia entender uma palavra do que ela dizia. Os outros não tinham nome, ou escolheram não compartilhá-los. Um dos serventes era muito velho, suas costas eram dobradas como um arco. O segundo tinha um rosto vermelho, e cabelos cresciam de suas orelhas. Ela pensava que os dois eram mudos até que os ouviu orando. Os acólitos eram mais jovens. O mais velho era da idade do seu pai; Os outros dois não podiam ser muito mais velhos que Sansa, que tinha sido sua irmã. Os acólitos usavam preto e branco também, mas suas vestes não tinham capuz e eram negras do lado esquerdo e brancas do lado direito. Com o homem bondoso e a esposa, era o oposto. A Arya foi dada trajes de servo: uma túnica de lã não tingida, calças largas, pequenas roupas e chinelos de pano para seus pés.
Apenas o homem bondoso conhecia a Língua Comum.
— Quem é você? — ele a perguntava todo dia.
— Ninguém — ela respondia. Ela que tinha sido Arya da Casa Stark. Arya pés-leves, Arya cara de cavalo. Ela tinha sido Arry e Weasel também, e Gorducho e Salgada, Nan, o copeiro, um rato cinza, a ovelha, o fantasma de Harrenhal... Mas não de verdade. Não no fundo do seu coração. Lá ela era Arya de Winterfell, a filha de Lorde Eddard Stark e a Senhora Catelyn, que uma vez teve irmãos chamados Robb, Bran e Rickon, e uma irmã chamada Sansa, um lobo gigante chamado Nymeria, um meio irmão chamado Jon Snow. Lá ela era alguém... Mas essa não era a resposta que ele queria.
Sem a língua comum, Arya não tinha como falar com os outros. Ela os ouvia, porém, e repetia as palavras para si mesma como se fosse seu trabalho. Embora o acólito mais jovem fosse cego, ele tinha o encargo das velas. Ele caminhava pelo templo de chinelos macios, rodeado pelas murmurações das velhas que vinham todos os dias para orar. Mesmo sem olhos, ele sempre sabia quais velas tinham se apagado.
— Ele tem o cheiro para guiá-lo — explicou o homem bondoso — e o ar é mais quente onde uma vela queima. 
— Ele disse a Arya para fechar os olhos e experimentar por si mesma. Eles oraram até o amanhecer antes de quebrar o jejum, de joelhos ao redor da piscina ainda preta. Alguns dias o homem bondoso conduzia a oração, outros dias era a esposa. Arya conhecia apenas algumas palavras dos Braavosi.  Aquelas que eram as mesmas no Alto Valiriano. Então ela orou sua própria oração para o deus de Muitas Faces, aquela que ia, Sor Gregor, Dunsen, Raff, o Querido, Sor Ilyn, Sor Meryn, Rainha Cersei. Ela orava em silencio.  Se o deus de Muitas Faces fosse mesmo um deus, ele a ouviria.
Adoradores vinham para a Casa do Preto e Branco todos os dias. A maioria vinha sozinha e sentava sozinha; ascendiam suas velas em um altar ou em outro, oravam ao lado da piscina, e algumas vezes choravam. Alguns bebiam do copo preto e adormeciam; a maioria não bebia.  Não havia serviços, nenhum som, nem coros de louvores para agradar os deuses.  O templo nunca estava cheio. De tempo em tempo, um adorador pedia para ver um sacerdote, e o homem bondoso ou a esposa o levava para baixo no sacrário, mas isso não acontecia frequentemente. 
Treze diferentes deuses permaneciam ao longo das paredes, rodeados por suas pequenas luzes. A Mulher que Chora era a favorita de velhas mulheres, Arya percebeu; homens ricos preferiam o Leão da Noite, homens pobres o Viajante Encapuzado, Soldados acendiam velas para Bakkalon, a Criança Pálida, vendedores para a Donzela da Lua Pálida e o Rei Merling. O Estranho tinha seu santuário também, embora raramente alguém viesse ter com ele. . Na maioria das vezes apenas uma pequena vela permanecia flamejando em seus pés. O homem bondoso dizia que não importava.
— Ele tem muitas faces, e muitos ouvidos para ouvir.
A colina sobre qual o templo estava parecia uma colmeia, com passagens escavas nas rochas. Os sacerdotes e acólitos tinham seus quartos no primeiro nível, Arya e os servos no segundo. O nível mais baixo era proibido para todos, salvo o sacerdote. Lá era onde o santuário sagrado estava. 
Quando não estava trabalhando, Arya estava livre para vagar como ela quisesse entre as abobadas e armazéns, no entanto, desde que não deixasse o templo, nem descesse ao porão do terceiro andar. Ela encontrou um quarto cheio de armas e armaduras: elmos ornamentados, e curiosas couraças velhas, espadas longas, punhais, bestas e lanças altas, com as folhas em formatos de cabeças.  Outro cofre estava cheio de roupas, peles grossas e sedas esplendidas em quase uma centena de cores, ao lado de pilhas de trapos de mal cheiro, e mantos ásperos e puídos. Deve haver câmaras de tesouros também, Arya pensou. Ela imaginou pilhas de placas de ouro, bolsas de moedas de pratas, safiras azuis como o mar, colares de pérolas verdes.
Um dia o homem bondoso foi até ela inesperadamente e perguntou o que ela estava fazendo. Ela disse a ele que tinha se perdido. 
— Você mente. Pior, você mente miseravelmente. Quem é você? 
— Ninguém. 
— Outra mentira — ele suspirou.
Weese teria batido nela pra caramba se tivesse pegado ela em uma mentira, mas era diferente na Casa do Preto e do Branco. Quando ela estava ajudando na cozinha, Umma, algumas vezes batia nela com sua colher se ela ficasse no caminho, mas ninguém mais nunca ergueu uma mão para ela. Eles somente levantam suas mãos para matar, ela pensou. 
Ela se dava bem o suficiente com a cozinheira. Se Umma colocava uma faca e uma cebola na mão dela, Arya iria cortá-la. Umma empurrava-a em direção a um monte de massa e Arya iria amassa-la até a cozinheira dizer pare (pare foi a primeira palavra Braavosi que ela aprendeu). Umma lhe entregava um peixe, e Arya o desossava e o foliava.  As águas salobras que rodeavam Bravos fervilhavam com peixes e mariscos de toda espécie, o homem bondoso explicou. Um lento rio marrom entrava na lagoa pelo sul, vagando por uma vasta extensão de canas, piscinas de marés e poços de lama. Ameijoas e berbigões abundavam por ali; mexilhões, ranas, tartarugas, caranguejos de lama, caranguejos leopardos e caranguejos escaladores, enguias vermelhas, enguias pretas, enguias listradas, lampreias e ostras; todas tinham frequente aparições na mesa de madeira entalhada onde os servos do deus de Muitas Faces tomavam suas refeições. Algumas noites Umma temperava o peixe com sal marinho e pimenta rachada, ou cozia as enguias com alho picado. Muito de vez em quando, o cozinheiro até usava um açafrão. Torta quente cairia bem aqui, Arya pensava.
A ceia era sua hora favorita. Já tinha se passado um longo tempo desde que Arya tinha ido dormir toda noite com a barriga cheia. Algumas noites o homem bondoso permitia que ela lhe fizesse perguntas. Uma vez ela perguntou a ele porque as pessoas que vinham ao templo pareciam tão pacíficas; em sua casa, as pessoas tinham medo de morrer. Ela se lembrou de como aquele escudeiro chorou quando ela o esfaqueou na barriga, e a forma como Sor Amory Lorch tinha implorado quando Goat o tinha jogado em uma cova de urso. Lembrou-se da aldeia no Olho de Deus e a maneira como os moradores gritaram e gemeram toda vez que Tickler começava a perguntar atrás do ouro.
— Morte não é a pior coisa — o homem bondoso replicou. — É o presente dele para nós, um fim para a ganância e para a dor. No dia que nós nascemos o deus de Muitas Faces envia para cada um de nós um anjo negro para caminhar através da vida do nosso lado. Quando nossos pecados e nossos sofrimentos crescem em demasia para serem suportados, o anjo nos toma pela mão para nos levar as terras da noite, onde as estrelas sempre queimam brilhantes. Aqueles que vem beber do copo negro estão procurando por seus anjos. Se eles estão com medo, as velas os acalmam.  Quando você sente o cheiro das velas queimando, o que elas fazem você pensar, minha criança?
Winterfell, ela talvez tivesse dito. Eu sinto cheiro da neve, fumaça e pinheiros. Eu sinto o cheiro dos estábulos. Eu sinto o riso de Hodor, e Jon e Robb batalhando no quintal, e Sansa cantando sobre algum estúpido conto de senhora. Eu sinto o cheiro das criptas onde os reis de pedras estão, eu sinto o cheiro de pão assado, eu sinto o cheiro das arvores-coração. Eu sinto o cheiro de minha loba, de seu pelo, quase como se ela ainda estivesse do meu lado. 
— Eu sinto o cheiro de nada — ela disse, para ver o que ele iria dizer. 
— Você mente — ele disse — mas você pode manter seus segredos se você deseja, Arya da Casa Stark. — Ele apenas a chamava assim quando ela o desapontava. — Você sabe que talvez deixe esse lugar. Você não é um de nós, não ainda. Você poderá ir para casa a hora que quiser. 
— Você me disse que se eu partir, eu não poderia voltar.
— Exatamente. 
Aquelas palavra a entristeceram. Syrio costumava dizer isso também, Arya lembrava. Ele dizia isso todo o tempo. Syrio Forel lhe tinha ensinado esgrima e morrera por ela.  — Eu não quero partir. 
— Então fique… Mas lembre-se, a Casa do Preto e Branco não é um lar para órfãos. Todo homem deve servir debaixo desses telhados.  Valar dohaeris é como nós dizemos aqui. Permaneça se quiser, mas saiba que nós iremos requerer sua obediência. Em todo o tempo e em todas as coisas. Se você não pode obedecer, você deve partir. 
— Eu posso obedecer.
— Nós veremos. 
 Ela tinha outras tarefas além de ajudar Umma. Ela varria o chão do templo, servia durante as refeições, separava as pilhas de roupas dos homens mortos, esvaziava seus bolsos e contava pilhas de moedas. Todas as manhãs ela caminhava ao lado do homem bondoso enquanto ele fazia sua patrulha no templo para encontrar os homens mortos. Silenciosa como uma sombra, ela disse a si mesma, se lembrando de Syrio. Ela carregava lanternas com persianas de ferro espesso. Em cada nicho, ela abria o disparador com um crack, para procurar cadáveres. Os mortos nunca eram difíceis de encontrar. Eles vinham para a Casa do Branco e Preto, oravam por uma hora, um dia ou um ano, bebiam da doce e negra água da piscina, e se esticavam em uma cama de pedra atrás de um deus ou outro. Eles fechavam seus olhos, e dormiam, e nunca mais acordavam.
— O presente do Deus Muitas Faces assume formas variadas — o homem bondoso disse a ela — mas aqui é sempre gentil. — Quando eles encontravam um corpo, ele fazia uma oração e checava se realmente estava morto, então Arya buscava os homens servos, cuja tarefa era levar os mortos até o cofre. Lá acólitos iriam despir e lavar os corpos.  Roupas, moedas e objetos de valores dos homens mortos iam para uma caixa para a seleção. Suas frias carnes eram levadas para o sacrário, onde apenas o sacerdote podia ir. O que acontecia ali não era permitido a Arya saber. Uma vez, enquanto ela comia sua ceia, uma terrível suspeita a tomou, então ela largou sua faca e encarou desconfiada a fatia pálida de carne branca em seu prato. O Homem bondoso viu o horror em seu rosto. 
— É um porco, criança — ele disse a ela. — Somente um porco.
 Sua cama era de pedra, e a fazia se lembrar de Harrenhal e a cama que ela dormia quando esfregava os degraus para Weese. O colchão era recheado com trapos ao invés de palha, o que a tornava menos volumosa do que em Harrenhal, mas menos arranhada também. A ela foi permitido tantos cobertores quando ela desejasse: Cobertores de lã grossos, verdes, vermelhos e xadrez. E sua cela era somente dela. Ela mantinha seus tesouros lá: O garfo de prata, o chapéu e luvas sem dedos dado a ela pelos marinheiros da Filha do Titã, sua adaga, botas e cintos, sua pequena economia de moedas e as roupas que vinha usando...
 E Agulha.
 Apesar de seus deveres deixarem pouco tempo para sua costura, ela praticava quando podia, duelando com sua sombra sob a luz de uma vela azul. Uma noite aconteceu de uma órfã passar e ver Arya em sua brincadeira com a espada. A garota não disse uma palavra, mas no outro dia, o homem bondoso acompanhou Arya de volta para sua cela.
— Você precisa de livrar de tudo isso. — Ele disse sobre os seus tesouros.
Arya sentiu como se fosse atingida.
— Eles são meus.
— Quem é você?
— Ninguém.
— Ele pegou o garfo de prata.
— Isso pertence à Arya da Casa Stark. Todas essas coisas pertencem a ela. Aqui não há lugar para isso. Aqui não há lugar para ela. O nome dela carrega muito orgulho, e aqui nós não temos lugar para o orgulho. Nós somos servos aqui. 
— Eu sirvo — ela disse, ferida. Ela gostava do garfo de prata.
— Você brinca de ser uma serva, mas em seu coração você é a filha de um lorde. Você tem usado outros nomes, mas você os usa como usa um vestido. Debaixo deles você é sempre Arya.
— Eu não uso vestidos. Você não pode lutar em um estúpido vestido. 
— Porque você desejaria lutar? Você é algum bravo, caminhando por becos, procurando por sangue? — Ele suspirou. — Antes de você beber do copo frio, você deve oferecer você toda para o Deus de Muitas Faces. Seu corpo. Sua alma. Você mesma. Se você não pode trazer você para fazer isso, você deve deixar este lugar.
— A moeda de ferro...
—… tem pagado sua passagem aqui. A partir deste momento você deve pagar do seu jeito, e o custo é alto.
— Eu não tenho nenhum ouro.
— O que nós oferecemos não pode ser pago com ouro. O custo é você toda. Homens pegam muitos caminhos através deste vale de lágrimas e dor. O nosso é o mais difícil. Poucos são feitos para caminhar nele. É preciso ter força incomum de espírito, e um coração duro e forte.
Eu tenho um buraco onde meu coração deveria estar, ela pensou, e nenhum lugar mais para ir.
— Eu sou forte. Tão forte quanto você. E eu sou dura. 
— Você acredita que este é o único lugar para você. — Era como se ele tivesse lido seus pensamentos — você está errada nisso.  Você encontraria mais delicado serviço na casa de algum mercador. Ou você logo seria uma cortesã, e teria músicas sobre sua beleza? Diga a palavra, e nós a enviaremos para o Pérola Negra ou a Filha do Crepúsculo. Você ira dormir em pétalas de rosas e usar saias de seda que irão farfalhar enquanto você anda, e grandes lordes vão mendigar por seu sangue de donzela. Ou se é casamento e crianças que você deseja, diga-me, e então encontraremos um marido para você. Algum aprendiz honesto, um velho rico, um marinheiro, o que quer que deseje. 
Ela não queria nada disso. Sem palavras, ela sacudiu sua cabeça. 
— É com Westeros que você sonha, criança? A Senhora Luminosa de Luco Prestayn parte amanha, para Vila Gaivota, Valdocaso, Porto Real, e Tyrosh. Devemos encontrar uma passagem nela pra você?
— Eu acabei de chegar de Westeros. — Às vezes parecia que se tinha passado mil anos desde que ela fugira de Porto Real, e às vezes parecia como se fosse ontem, mas ela sabia que não podia voltar. — Eu irei se você não me quiser, mas eu não quero ir pra lá.
— Meus desejos não importam — disse o homem bondoso. — Pode ser que o Deus de Muitas Faces a conduziu aqui para ser seu instrumento, mas quando eu olho para você eu vejo uma criança... E pior, uma criança garota. Muitos têm servido ao Deus de Muitas Faces por séculos, mas apenas alguns de seus servos tem sido mulheres. Mulheres trazem vida para o mundo. Nós trazemos o presente da morte. Ninguém pode fazer os dois. 
Ele esta tentando me assustar pra fora, Arya pensou, do mesmo modo que ele faz com algum verme.
— Eu não me importo com isso.
— Você deveria. Fique, e o Deus de Muitas Faces irá pegar suas orelhas, seu nariz, sua língua. Ele ira pegar seus tristes olhos cinzentos que já viram muito. Ele ira pegar suas mãos, seus pés, seus braços e pernas, suas partes privadas. Ele ira tomar suas esperanças e sonhos, seus amores e seus ódios. Aqueles que entram para seu serviço devem desistir de tudo que os fazem quem eles são. Você pode fazer isso?
Ele a segurou pelo queixo e olhou profundamente em seus olhos, tão profundo que a fez estremecer. 
— Não — ele disse. — Eu acho que você não pode 
Arya empurrou suas mãos.
— Eu poderia se eu quisesse. 
— Assim diz Arya da Casa Stark, comedora de grandes vermes.
— Eu posso desistir de qualquer coisa que eu quiser.
Ele gesticulou para seus tesouros.
— Então comece com esses.
Aquela noite depois da sopa, Arya voltou para sua cela, retirou seu robe e sussurrou seus nomes, mas o sono recusou pegá-la. La se jogou no colchão recheado com trapos e mordeu seu lábio. Ela podia sentir o buraco dentro dela onde um coração havia estado. 
 Na escuridão da noite ela se levantou outra vez, vestiu as roupas que ela usara em Westeros, e seu cinturão. Agulha estava pendurada em um quadril, sua adaga em outro. Com seu chapéu em sua cabeça, e suas luvas sem dedos dobrado em seu cinto, e seu garfo de prata em uma mão, ela furtivamente subiu os degraus. Aqui não há lugar para Arya da Casa Stark, ela estava pensando. O lugar de Arya era Winterfel, só que Wenterfell tinha se acabado. Quando a neve cai e os ventos brancos sopram, o lobo solitário morre, mas a alcateia sobrevive. Ela não tinha alcateia, no entanto. Eles haviam matado sua matilha, Sor Ilyn, Sor Meryn e a rainha, e quando ela tentou fazer uma nova, todos eles fugiram, Torta Quente, Gendry, Yoren e Lommy Mãos-verdes, até mesmo Harwin, que tinha sido homem de seu pai. Ela passou através das portas, para fora, dentro da noite.
 Era a primeira vez que ela estava do lado de fora desde que entrara no templo. O céu estava nublado e a neblina cobria o chão como um manto cinza desgastado. A sua direita, ela ouvia o remar do canal. Bravos, a Cidade Secreta, ela pensou. O nome parecia muito apto. Ela rastejou descendo os degraus íngremes para o cais coberto, as brumas rodopiantes rodando em seus pés. Estava tão nebuloso que ela não podia nem ver a água, mas ela ouvia o gotejar suave nas estacas de pedras. Ao longe, uma luz brilhava na penumbra: O fogo noturno no templo dos sacerdotes vermelhos, ela pensou.
A beira da água, ela parou, o garfo de prata na mão. Era prata real. Totalmente sólido em sua mão. Não é meu garfo. É das Salinas. Ela deixou que ele caísse de sua mão, ouviu o plop suave enquanto ele se afundava na água.
Seu chapéu foi o próximo, e então as luvas. Eles pertenciam a Salinas também. Ela esvaziou a bolsa em sua palma. Cinco moedas de prata e nove de cobre, além de alguns cereais. Ela os espalhou através da água. Depois suas botas. Elas fizeram o barulho mais alto. Sua adaga a seguiu, aquela que ela conseguira do arqueiro que implorara a Cão de Caça por misericórdia. Seu cinturão mergulhou no canal. Seu manto, túnica, calças, roupas pequenas, tudo isso. Todos, exceto Agulha.
Ela permaneceu no final da doca, pálida e tremendo no nevoeiro. Em sua mão, Agulha parecia sussurrar para ela. Fure-os com a extremidade pontiaguda, e não conte a Sansa! A marca de Mikken estava na lamina. É somente uma espada. Se ela precisasse de uma espada havia centenas debaixo do templo. Agulha era pequena demais para ser uma espada apropriada, ela era pouco mais que um brinquedo. Ela tinha sido uma estúpida garotinha quando Jon tinha feito para ela. 
— É apenas uma espada. — ela disse, em voz alta desta vez.
...mas não era.
Agulha era Robb, Bran e Rickon, sua mãe e seu pai, até mesmo Sansa. Agulha era os muros cinzentos de Winterfell, e o riso de suas pessoas. Agulha era a neve de verão, as histórias da Velha Ama, a árvore coração com suas folhas vermelhas e rosto assustador, o cheiro quente da terra dos jardins de vidro, o som do vento do norte chacoalhando as janelas do seu quarto. Agulha era o sorriso de Jon Snow. Ele costumava bagunçar meu cabelo e me chamar de irmãzinha, ela se lembrou, e repentinamente havia lágrimas em seus olhos.
Polliver havia roubado a espada dela quando a Montanha havia a prendido, mas quando ela e o cão entraram em uma estalagem em uma encruzilhada, lá estava ela. Os deuses querem que eu a tenha. Não os sete, nem o Deus de Muitas Faces, mas os deuses de seus pais, os velhos deuses do norte. O Deus de Muitas Faces pode ter o resto, ela pensou, mas ele não pode ter isto. 
Ela caminhou para os degraus tão nua quanto no dia do seu nome, segurando Agulha. No meio do caminho, uma das pedras se moveu sob seus pés. Arya ajoelhou-se e cavou ao redor de suas bordas com os dedos. Não quis se mover de inicio, mas Arya persistiu, pegando na argamassa em ruína com as unhas. Finalmente a pedra deslocou. Ela usou as duas mãos e a puxou, uma fenda se abriu a sua frente.
— Você ficara salva aqui — ela disse a Agulha. — Ninguém saberá onde você está exceto eu.
Ela empurrou espada e bainha para debaixo do degrau, então empurrou a pedra de volta ao lugar, de modo que parecesse com todas as outras pedras. Enquanto ela subia de volta para o templo, ela contou os degraus, então ela saberia onde encontrar a espada outra vez. Um dia talvez precisasse dela. 
— Um dia. — Ela sussurrou para si mesma. 
Ela nunca contou ao homem bondoso que ela tinha feito, mas mesmo assim ele sabia. Na próxima noite ele veio até a cela dela, depois da ceia.
— Criança — ele disse — venha e se sente comigo. Eu tenho um conto para contar a você.
— Que tipo de conto? — Ela perguntou cautelosa. 
— O conto de seus princípios. Se você for um de nós, você faria bem em saber quem nós somos e como chegamos a ser. Os homens podem talvez sussurrar sobre os Homens Sem Rosto de Bravos, mas nós somos mais velhos que a Cidade Secreta. Antes que se fizesse o Titã , antes do desmascaramento de Uthero, antes da Fundação, nós já existíamos. Nós florescemos em Bravos entre essas névoas nortenhas, mas começamos a aparecer em Valiria, entre os escravos miseráveis que trabalhavam nas minas profundas sob as Quatorze Chamas que iluminava as antigas noites da Cidade Franca. A maioria das minas são locais úmidos e frios, pedaços de pedras frias e mortas, mas as Quatorze Chamas vivia nas montanhas com veias de rocha fundida e corações de fogo. Então, as minhas da velha Valiria permaneciam sempre quentes, e elas cresceram cada vez mais quentes enquanto os eixos se cavavam, mais profundos, cada vez mais. Os escravos trabalhavam em um forno. As rochas em volta deles eram muito quentes para tocar. O ar fedia a enxofre e enchia seus pulmões enquanto respiravam. As solas de seus pés queimavam mesmo através das mais grossas sandálias. Às vezes, quando eles quebravam uma parede a procura de ouro, eles encontravam vapor ao invés de disso, ou água em ebulição, ou rocha fundida. Certos eixos foram cortados tão baixos que os escravos não podiam ficar de pé, mas tinham que dobrar e se rastejar.  E havia vermes naquela escuridão vermelha também.
— Minhocas? — ela perguntou, franzido a testa.
— Foginhocas. Alguns dizem que são semelhantes a dragões, por cuspirem fogo também. Mas ao invés de voar pelo céu, eles perfuram pedras e o solo. Se os velhos contos podem ser acreditados, elas estavam entre as Quatorze Chamas antes mesmo de os dragões chegarem. Os mais novos não eram mais largos do que estes seus magros braços, mas eles podiam crescer até monstruosos tamanhos e não tem nenhum amor por homens. 
— Eles mataram os escravos?
— Cadáveres queimados e enegrecidos eram encontrados frequentemente em poços onde as rochas foram rachadas ou cheias de buraco. Ainda assim as minas foram mais para o fundo. Escravos pereceram pelas rochas, mas seus mestres não se importavam. Ouro vermelho, ouro amarelo e prata eram reconhecidos por serem mais preciosos do que as vidas dos escravos, pois os escravos eram baratos na velha Cidade Franca. Durante a guerra, os valirianos os pegaram aos milhares. Em tempos de paz eles os criavam, acho que só os piores eram enviados para morrer na escuridão vermelha.
— Os escravos não se levantaram e lutaram?
— Alguns fizeram — ele disse. — Revoltas eram comuns nas minas, mas poucos conseguiram muito. Os senhores dragões da velha Cidade Franca eram fortes em feitiçaria, e os homens menores os desafiavam correndo enorme risco. O primeiro Homem sem Rosto foi um dos que o fez.
— Quem era ele? — Arya desabafou, antes de parar para pensar.
— Ninguém — ele respondeu — Alguns dizem que ele era um escravo. Outros insistem que ele era filho de um homem da Cidade Franca, nascido de ações nobres. Alguns vão mesmo dizer que ele era um bispo que teve pena de suas acusações. A verdade é: ninguém sabe. Quem quer que ele fosse moveu-se entre os escravos e deu ouvido a suas orações. Homens de centenas de diferentes nações trabalhavam na mina, e cada oração era para seus próprios deuses em suas próprias línguas, porém todos eles oravam pela mesma coisa.  Era liberdade que eles pediam, e para que a dor acabasse. Uma pequena coisa, e simples. Mesmo assim seus deuses não responderam, e seus sofrimentos continuaram. Seus deuses estariam todos mortos? Ele se perguntou… Até que algo aconteceu com ele, uma noite, na escuridão vermelha.  Todos os deuses têm seus instrumentos, homens e mulheres que os servem e os ajudam para trabalhar em sua vontade na terra. Os escravos não estavam chorando para milhares de deuses diferentes, parecia, mas para um Deus com milhares de diferentes faces...  E ele era o instrumento do deus. Naquela mesma noite ele escolheu o mais miserável dos escravos, aquele que havia orado fervorosamente para a liberação, e libertou-o de seu cativeiro. O primeiro presente havia sido dado.
Arya recuou.
— Ele matou o escravo? — Aquilo não soava certo — Ele devia ter matado os mestres! 
— Ele trouxe o presente para eles da mesma forma… mas este é um conto para outro dia, um que é melhor não compartilhar com ninguém. — Ele abaixou a cabeça. — E quem é você, criança? 
— Ninguém.
— Mentira. 
— Como você sabe? É uma mágica? 
— Um homem não precisa ser mago pra reconhecer a verdade da falsidade, não se ele tem olhos. Você só precisa aprender a ler um rosto. Olhos nos olhos. A boca. Os músculos aqui, no canto da mandíbula, e aqui, onde o pescoço se junta aos ombros. — Ele a tocou levemente com os dois dedos. — Alguns mentirosos piscam. Alguns encaram, outros desviam o olhar, outros lambem os lábios. Muitos cobrem suas bocas assim que contam uma mentira, como se quisesse esconder suas decepções. Outros sinais podem ser mais sutis, mas eles estão sempre lá. Um sorriso falso e um verdadeiro podem parecer iguais, mas eles são tão diferentes quando o crepúsculo e o amanhecer. Você pode diferenciar o crepúsculo e o amanhecer?
Arya assentiu, embora não estivesse certa se poderia. 
— Então você pode aprender a ver uma mentira… E uma vez que você aprender, nenhum segredo será salvo de você.
— Me ensine. — Ela seria ninguém se fosse isso o que precisasse. Ninguém não tinha buracos dentro dela. 
— Ela vai ensinar você. — Disse o homem bondoso quando a órfã apareceu do lado de fora de sua porta. — Começando com a língua de Bravos. Que uso você tem se não pode falar ou entender? E você deve ensiná-la sua própria língua. Vocês duas devem aprender juntas, uma com a outra. Você fará isso? 
— Sim. — Disse, e a partir daquele momento ela era uma noviça na Casa do Preto e Branco. Seus trapos de servos foram levados embora, e a ela foi dado roupas para usar, um robe preto e branco, tão suave quanto o velho cobertor vermelho que ela uma vez teve em Winterfell. Por baixo ela usava roupas de linho branco fino, além de uma pequena túnica preta que batia pouco abaixo de seus joelhos.
Posteriormente, ela e a órfã passavam o tempo todo tocando e apontando coisas, enquanto uma tentava ensinar à outra algumas palavras em sua própria língua. Simples palavras a princípio, copo, velas e sapatos; então palavras difíceis, e então frases. Tempos atrás Syrio Forel costumava fazer Arya permanecer em uma perna. Outra vez a enviava para perseguir gatos. Ela teve que dançar a dança da água entre as árvores, com uma espada de pau na mão. Todas essas coisas tinham sido difíceis, mas isto era ainda mais difícil.
Até mesmo costura é mais divertido do que aprender línguas, ela pensou, depois de uma noite em que tinha esquecido metade das palavras que ela pensou que sabia, e pronunciou a outra metade tão mal que a órfã tinha rido dela. Minhas frases são tão tortas como meus pontos costumavam ser. Se a menina não fosse tão pequena e carente, Arya teria estapeado seu rosto estúpido. Ao invés disso ela mordia o lábio.  Muito estúpida para aprender e muito estúpida para desistir. 
A órfã aprendeu a língua comum mais rápido. Um dia ela se virou para Arya durante a ceia e perguntou:
— Quem é você?
— Ninguém — Arya respondeu em bravosiano. 
— Você mente — disse a órfã. — Você deve mentir mais bom.
Arya riu.
— Mais bom? Você quer dizer melhor, estúpida.
— Melhor estúpida. Eu vou mostrar a você.
No próximo dia eles começaram o jogo de mentiras, fazendo perguntas uma para a outra, usando turnos. Algumas vezes elas responderiam a verdade, às vezes deveriam mentir.  O questionador deveria tentar dizer o que era real e o que era falso. A órfã parecia saber sempre. Arya tinha que adivinhar. Na maioria das vezes ela adivinhava errado. 
— Quantos anos você tem? — A órfã a perguntou uma vez, na língua comum.
— Dez — disse Arya, e cruzou os dedos. Ela pensava que ainda tinha dez, embora fosse difícil saber com certeza. Os bravosiano contavam os dias diferente de como eles faziam em Westeros. Tudo o que ela sabia era que o dia de seu nome havia chegado e passado.
A órfã assentiu. Arya assentiu de volta, e em seu melhor bravosiano
disse:
— Quantos anos você tem? 
A órfã lhe mostrou dez dedos. Então dez outra vez, e ainda outra vez. Então seis. Sua expressão permaneceu como água parada. Ela não pode ter trinta e seis anos, Arya pensou. Ela é uma garotinha.
— Você está mentindo. — Ela disse. A órfã balançou a cabeça e mostrou mais uma vez: dez, dez, dez e seis. Ela disse as palavras para trinta e seis, e fez Arya dizer também. 
No próximo dia, ela disse ao Homem Bondoso o que a órfã tinha dito. 
— Ela não mentiu — o sacerdote disse, rindo. — Aquela que você chama de órfã é uma mulher crescida que passou sua vida servindo ao Deus de Muitas Faces. Ela deu a ele tudo o que ela era, tudo o que ela talvez viesse a ser, toda a vida que continha nela. 
Arya mordeu o lábio.
— Eu serei como ela?
— Não — ela disse. — Não, a menos que você deseje. São os venenos que fizeram ela do jeito que você a vê. 
Venenos. Ela entendia então. Toda noite depois da oração à órfã esvaziava um frasco de pedra dentro das águas da piscina negra.
A órfã e o homem bondoso não eram os únicos servos do Deus de Muitas Faces. De tempo em tempo, outros visitavam a casa do Branco e Preto.   O sujeito gordo tinha vorazes olhos negros, um nariz adunco, e uma boca cheia de dentes amarelos. O rosto severo nunca sorria, seus olhos eram pálidos e seus lábios nunca sorriam. O homem charmoso tinha a barba diferente em cada vez que ela o via, e um nariz diferente, mas ele nunca era nada menos que gracioso. Estes três vinham frequentemente, mas ainda tinham outros: O vesgo,  o fidalgo, e o homem esfomeado. Uma vez o homem gordo e o vesgo vieram juntos.  Umma enviou Arya para servi-los.
— Quando você não está servindo, você deve ficar imóvel como se tivesse sido esculpida em pedra — o Homem Bondoso lhe disse. — Você pode fazer isso?
— Sim! —Antes que você possa aprender a se mover você deve aprender a ficar parada, Syrio Forel tinha dito a ela muito tempo atrás em  Porto Real, e ela aprendeu. Ela tinha servido como copeira de Roose Bolton em Harrenhal, e ele a esfolaria se ela derramasse o seu vinho.
— Bom — o homem Bondoso disse. — Seria melhor se você fosse cega e surda também. Você talvez escute coisas, mas você deve deixá-las passar de um ouvido para o outro. Não as ouça. 
Arya ouviu muito e mais naquela noite, mas quase tudo foi na língua dos homens de Bravos, e ela dificilmente entendia uma palavra em dez. Parada como uma pedra, ela disse a si mesmo. A parte mais difícil era ela lutando para não bocejar. Antes de a noite acabar, seus pensamentos estavam vagando. Permanecendo de pé lá com a bandeja em suas mãos, ela sonhou que era um lobo, correndo livre em uma floresta a meia noite com uma grande alcateia uivando em seus calcanhares.
— Os outros homens são todos sacerdotes?  — Ela perguntou ao homem bondoso na manha seguinte. — Aquelas são seus verdadeiros rostos? 
— O que você acha criança? 
  Ela achava que não.
— Jaqen H’ghar  é um sacerdote também? Você sabe se Jaqen vai voltar para Bravos? 
— Quem? — Ele disse todo inocente.
— Jaqen H’ghar. Ele me deu a moeda de ferro.
— Não conheço ninguém com este nome, criança.
— Eu o perguntei como ele muda sua face, e ele disse que não é mais difícil do que pegar um novo nome, se você sabe o jeito.
— Ele disse?
— Você vai me mostrar como mudar meu rosto? 
— Se você deseja — ele pegou o queixo dela com a mão e virou sua cabeça — estufe suas bochechas e estique sua língua.
Arya estufou sua bochecha e colocou sua língua pra fora. 
— Ai está. Seu rosto esta mudado.
— Não foi isso que eu quis dizer. Jaqen usava magia. 
— Toda feitiçaria tem custo, criança. Anos de oração, sacrifício e estudo são requeridos para ter um glamour apropriado.
— Anos? — Ela disse, desanimada. 
— Se isso fosse fácil, todos os homens fariam. Você deve caminhar antes de correr. Porque usar um feitiço, onde truques de atores vão servir?
— Eu não sei nenhum truque de ator também.
— Então pratique fazer expressões. Debaixo de sua pele estão músculos. Aprenda a usá-los. É o seu rosto. Suas bochechas, seus lábios, suas orelhas. Sorrisos e carrancas não devem vir a você como rajadas repentinas. Um sorriso deve ser seu servo, e vir apenas quando você o chamar. Aprenda a controlar o seu rosto.
— Mostre-me como. 
— Estufe suas bochechas — ela estufou — levante suas sobrancelhas. Não, mais alto. — Ela fez isso também — Bom. Veja quanto tempo você consegue segurar assim.  Não será muito. Tente novamente amanha. Você encontrara um espelho de Myr nos cofres. Treine diante dele uma hora todos os dias. Olhos, bochechas, orelhas, lábios, narinas, aprenda a controlar todos eles. — Ele pegou o queixo dela. — Quem é você?
— Ninguém.
— Mentira. Uma triste pequena mentira, criança. 
Ela encontrou o espelho de Myr no dia seguinte. E toda manhã e toda noite ela sentava diante dele com uma vela em cada lado, fazendo expressões. Controle seu rosto, ela disse a si mesmo, e assim você pode mentir. 
Logo depois o homem bondoso a mandou ir ajudar os outros acólitos a ir preparar os cadáveres.  O trabalho não estava nem perto de ser tão duro como lavar os degraus de Weese.  Às vezes se o cadáver era grande ou gordo, ela lutava com o peso, mas a maioria dos mortos eram velhos com ossos secos e pele enrugada. Arya os observava enquanto os lavava, se perguntando o que os trouxe para a piscina negra. Ela se lembrou do conto que ela tinha ouvido da Velha Ama, sobre como às vezes durante um longo inverno, homens que viveram além de seus anos anunciavam que iam caçar. E suas filhas choravam e seus filhos viravam seus rostos para o fogo, ela podia ouvir a Velha Ama dizendo, mas ninguém podia para-los, ou perguntar o que eles pretendiam caçar, com a neve tão profunda e o vendo cortante. Ela se perguntou o que o velho homem de Bravos disse a seus filhos e suas filhas, antes deles virem para a casa do Branco e Preto.
A lua foi e voltou, e Arya nunca a viu. Ela serviu, lavou os mortos, fez expressões em frente os espelhos, aprendeu a língua de Bravos, e tentava se lembrar de que ela era ninguém. 
Um dia o homem bondoso foi até a ela.
— Seu sotaque é terrível. — Ele disse. — Mas você tem palavras suficiente para fazer seus desejos entendidos. É tempo de você nos deixar por um tempo.  O único jeito de você ser mestre em nossa língua é se você a falar todos os dias do amanhecer ao entardecer. Você deve ir.
— Quando? — Ela perguntou a ele. — Pra onde? 
— Agora — ele respondeu. — Por trás desses muros você encontrará uma centena de ilhas de Bravos no mar. A você foi ensinado palavras como mexilhões, berbigões, e ameijoas, certo?
— Sim. — Ela os repetiu, em seu melhor bravosiano. 
Seu melhor bravosiano o fez rir.
— Isso vai servir. Ao longo do cais abaixo da cidade Afogada você vai encontrar um peixeiro chamado Brusco. Um homem bom com um problema nas costas. Ele precisa de uma garota para empurrar seu carrinho de mão e vender seus berbigões, mexilhões e ameijoas, para os marinheiros no navio. Você deve ser essa garota. Você entendeu?
— Sim.
— E quando Brusco perguntar, quem é você?
— Ninguém.
— Não, isto não vai servir do lado de fora desta Casa. 
Ela hesitou.
— Eu poderia ser Salty, das Salinas.
— Salty é conhecida para Ternesio, Terys e os homens do Filha do Titã. Você esta marcada pelo jeito que você fala então você deve ser alguma garota de Westeros... Mas uma garota diferente, eu acho. 
Ela mordeu seu lábio.
— Eu poderia ser Cat? 
— Cat — ele considerou. — Sim. Bravos está cheio de gatos. Um a mais não será notado. Você é Cat, uma órfã de... 
— Porto Real. — Ela tinha visitado Porto Branco com seu pai duas vezes, mas ela conhecia Porto Real melhor. 
— Exatamente. Seu pai era remador em uma galera. Quando sua mãe morreu, ele levou você para o mar com ele. Então ele morreu também, e o seu capitão não tinha uso para você, então ele colocou você para fora do navio em Bravos. E qual é o nome do navio? 
— Nymeria — ela disse de uma vez. 
Aquela noite ela deixou a Casa do Preto e do Branco. Uma longa faca de ferro estava em seu quadril direito, escondido por sua capa, uma coisa remendada e desbotada que um órfão poderia vestir. Seus sapatos apertavam os seus dedos dos pés, e sua túnica estava tão surrada que o vento podia entrar através dela. Mas Bravos estava adiante dela. O ar da noite cheirava a fumo, sal e peixe. Os canais eram tortos, e as vielas ainda mais tortas. Homens lhe lançavam curiosos olhares quando ela passava, e crianças mendigas falavam palavras que ela não conseguia entender. Por muito tempo ela esteve completamente perdida. 
— Sor Gregor — ela cantou, enquanto cruzava a ponte de pedra suportada por quarto colunas. Do seu centro ela podia ver as velas dos navios no Porto de Ragman — Dunsen, Raff, o Querido, Sor Ilyn, Sor Meryn, Rainha Cersei. — A Chuva começou a cair. Arya ergueu seu rosto para cima para deixar as gotas de chuva lavar suas bochechas, tão feliz que poderia dançar.
— Valar morghulis — ela disse. — Valar morghulis, valar morghulis.
 
Quando a luz do sol nascente começou a entrar pelas janelas, Alayne saiu da cama e se espreguiçou. Gretchel a ouviu se mover, e imediatamente levantou-se para lhe levar o robe. O ambiente havia esfriado muito durante a noite.
E será muito pior quando o inverno chegar, pensou. Este lugar ficará frio como uma tumba. Alayne vestiu o robe e o atou contra a sua cintura.
— O fogo se apagou quase todo. — Observou. — Ponha mais lenha, por favor.
— Como queira, minha senhora. — Respondeu a anciã.
Os aposentos de Alayne na Torre da Donzela eram maiores e mais luxuosas que o pequeno dormitório que lhe haviam designado quando ainda vivia com a Senhora Lysa. Tinha um armário e um banheiro somente para ela, e um balcão forjado em pedra branca, de onde podia se divisar toda a extensão do Vale. Enquanto Gretchel atiçava o fogo, Alayne percorreu o ambiente descalça e saiu ao exterior. Sentiu a pedra fria debaixo dos seus pés, e o vento soprava feroz, como sempre ali em cima, mas a vista fez com que tudo fosse esquecido por um instante. A Donzela era a torre mais oriental de todas as sete do Ninho da Águia, de modo que o Vale se estendia à sua frente, com os bosques, os rios e seus braços envoltos na névoa da luz da manhã. Ao iluminar as montanhas, o sol fazia com que parecessem de ouro maciço.
É tão bonito... O cume nevado da Lança do Gigante se alçava ante ela, uma imensidão de pedra e gelo que diminuía o castelo pousado em seu ombro. Estalactites de seis metros de altura pendiam coladas da borda do precipício de onde, no verão, caíam as Lágrimas de Alyssa. Um falcão sobrevoou a cascata gelada, com as asas azuis estendidas contra o céu da manhã. Quem dera se eu tivesse asas também.
Apoiou as mãos na balaustrada de pedra e se obrigou a olhar para baixo. Cerca de duzentos metros abaixo se alçava o Céu, com as bases de pedra escavadas na montanha, a trilha serpenteante que passava por Neve e Pedra até chegar ao fundo do Vale. Divisou as torres e edifícios da Porta da Lua, pequenos como brinquedos de crianças. Ao redor das muralhas, os exércitos dos Senhores Rebeldes começavam a ganhar vida, e os homens saiam de suas tendas como formigas de um formigueiro.
Quem dera fossem formigas de verdade, pensou. Poderia pisá-las e esmagá-las.
Lord Hunter, o Jovem, e seus homens haviam se unido aos demais fazia dois dias. Nestor Royce havia cerrado os portões para detê-los, mas sua guarnição contava com menos de trezentos homens. Cada um dos Senhores Rebeldes havia chegado com pelo menos mil, e eram seis. Alayne conhecia seus nomes tão bem como o seu próprio. Benedar Belmore, senhor de Forte Canção. Symond Templeton, o Cavaleiro das Nove Estrelas. Horton Redfort, senhor de Forte Vermelho. Anya Waynwood, senhora de Carvalho de Ferro. Gilwood Hunter, ao que muitos chamavam Lorde Hunter, o Jovem, senhor de Arco Longo. E Yohn Royce, o mais poderoso de todos, o temível Yohn Bronze, senhor de Pedra das Runas, primo de Nestor e cabeça do ramo mais importante da Casa Royce. Os seis haviam se reunido em Pedra das Runas após a queda de Lysa Arryn, e haviam feito o juramento de defender Lorde Robert, o Vale e uns aos outros. Em sua declaração não se mencionava o Lorde Protetor, mas falava-se de um mal governo ao qual se havia de pôr fim, assim como de falsos amigos e conselheiros astutos.
Uma lufada de vento frio lhe percorreu as pernas. Entrou no dormitório para escolher um vestido para o desjejum. Petyr lhe havia dado o guarda-roupa de sua esposa defunta, um tesouro de sedas, cetins, peles e veludos mais ricos do que jamais havia sonhado, ainda que quase todas as roupas acabassem ficando muito grandes para ela. A Senhora Lysa havia engordado muito em sua longa sucessão de gestações, abortos e partos de bebês mortos. Por sorte, alguns dos vestidos mais antigos haviam sido confeccionados para a jovem Lysa Tully de Correrrio, e Gretchel havia conseguido ajustar outros para que servissem a Alayne, que aos seus treze anos tinhas as pernas quase tão largas quanto às teve sua tia aos vinte.
Naquela manhã, o que captou sua atenção foi um vestido costurado em vermelho e azul dos Tully, com acabamento de arminho. Gretchel a ajudou a meter os braços nas mangas em forma de sino e atou os cordões das costas, e logo penteou o cabelo e o amarrou. Alayne havia voltado a escurecê-lo na noite anterior, antes de dormir. O banho de cor que sua tia havia lhe dado trocara o cabelo ruivo de Alayne pelo castanho claro, mas em pouco tempo, o vermelho voltava a aparecer nas suas raízes.
O que vou fazer quando a tinta acabar? A tinta que usava vinha de Tyrosh, do outro lado do mar Estreito.
Quando desceu para o desjejum, Alayne voltou a surpreender-se com a calmaria do Ninho da Águia. Não havia castelo mais silencioso nos Sete Reinos. Os criados eram poucos e velhos, e falavam em voz baixa, para não perturbar o seu pequeno senhor. Na montanha não havia cavalos, nem cachorros que latiam e grunhiam, nem cavaleiros treinando no pátio. Até as pisadas dos guardas soavam estranhas, amortecidas, quando percorriam os salões de pedra branca. Ouvia-se o som do vento que gemia em torno das torres, mas nada mais. Quando chegou ao Ninho da Águia se ouvia também o barulho das Lágrimas de Alyssa, mas a cascata se havia congelado. Gretchel lhe disse que permaneceria em silencio até a primavera.
Lorde Robert estava sozinho no Salão Matinal, por cima das cozinhas, passando com indiferença uma colher de madeira por uma tigela de sopa de aveia com mel.
— Queria ovos. — Se queixou quando a viu. — Queria três ovos fritos e um pedaço de bacon.
Não tinham ovos, assim como não tinham bacon. Os celeiros do Ninho da Águia continham aveia, milho e cevada suficientes para alimentálos durante um ano, mas era uma garota bastarda, uma tal Mya Stone, quem subia os alimentos frescos do Vale. Depois que os Senhores Rebeldes acamparam ao pé da montanha, Mya já não podia passar. Lord Belmore, que havia sido o primeiro dos seis a se apresentar nas Portas, enviou um corvo a Mindinho para lhe comunicar que o Ninho da Águia não receberia mais comida até que lhes enviassem Lorde Robert. Não era uma chantagem, mas se parecia muito com isso.
— Quando Mya vier, poderá comer tantos ovos quanto quiser. — Prometeu Alayne ao pequeno senhor. — Trará ovos, manteiga, melões e outras coisas muito gostosas.
Não conseguiu acalma-lo.
— Eu queria ovos hoje.
— Não há ovos, pequeno Robert, você já sabe disso. Por favor, coma a aveia, está muito gostosa. — Tomou uma colherada de sua tigela para dar exemplo.
Robert voltou a passear a colher pela tigela, mas não a levou aos lábios.
— Não tenho fome — disse finalmente. — Quero voltar para a cama. Não dormi nada esta noite. Dava para ouvir as músicas. O Meistre Colemon me deu vinho do sono, mas continuei ouvindo.
Alayne deixou a colher.
— Se houvesse alguém cantando, eu também haveria ouvido. Foi um pesadelo, nada mais.
— Não, não foi um pesadelo. — Seus olhos se encheram de lágrimas. — Marillion estava cantando outra vez. Seu pai disse que está morto, mas é mentira.
— É verdade. — Lhe dava medo ouvi-lo falar assim. Já tem problemas o bastante por ser pequeno e doente, e se estiver ficando louco? — É verdade, pequeno Robert. Marillion amava demais a sua mãe e não podia viver com o que lhe havia feito, assim caminhou até o céu. — Alayne não havia visto o cadáver, como tampouco o havia visto Robert, mas não duvidava que o cantor estivesse morto.  — Ele se foi, com certeza.
— Mas se eu o ouço todas as noites... Ainda que eu feche os olhos e enfie a cabeça embaixo da almofada. Seu pai deveria lhe ter cortado a língua. Eu lhe disse, mas ele não quis.
Ele precisava da língua de Marillion para que ele pudesse confessar.
— Seja bom e coma a aveia. — Lhe suplicou Alayne. — Anda, por favor. Faça por mim.
— Não quero aveia. — Robert atirou a colher ao outro lado do aposento. Foi parar em uma cortina de uma parede, e deixou uma mancha em uma renda de seda branca. — O senhor quer ovos!
— O senhor comerá a aveia e agradecerá. — A voz de Petyr soou atrás deles.
Alayne se virou e o viu na porta de entrada, ao lado de meistre Colemon.
— Deveria obedecer ao Lord Protetor, meu senhor — disse o meistre. — Os senhores seus vassalos estão subindo para prestar-lhe homenagem, e tem que estar forte.
Robert esfregou o olho esquerdo com a mão.
— Expulse-os. Não quero vê-los. Se vierem, os farei voar.
— É tentador para mim também, meu senhor, mas temo que lhes prometi um salvo-conduto — disse Petyr. — Em todo caso, é muito tarde para que deem a volta. Já devem estar na altura da Pedra.
— Por que não nos deixam em paz? — Soluçou Alayne. — Não fizemos nada a eles. Que eles querem de nós?
— Lorde Robert, nada mais. E com ele, o Vale, claro. — Petyr sorriu. — Serão oito. Lorde Nestor os guia, e Lyn Corbray os acompanha. Sor Lyn não é dos que ficam para trás quando há a perspectiva de sangue.
Não eram precisamente as palavras que podiam acalmar os seus temores. Lyn Corbray havia matado quase tantos homens em duelos como em batalha. Sabia que havia ganhado as esporas durante a Rebelião de Robert, lutando contra Lorde Jon Arryn nas portas de Vila Gaivota, e mais tarde, sob o seu estandarte no Tridente, onde matou o príncipe Lewyn de Dorne, um cavaleiro branco da Guarda Real. Petyr dizia que o príncipe Lewyn já estava gravemente ferido quando o desfecho da batalha o levou à dança final com a Dama Desesperada.
— Mas não é um tema que interesse discutir na frente de Corbray — dizia. — Aqueles que se atrevem, logo têm a chance perguntar ao próprio Martell nas salas do inferno.
Se devia acreditar na metade do que tinha ouvido comentarem os guardas de Lorde Robert, Lyn Corbray era mais perigoso que os outros seis Senhores Rebeldes juntos.
— Porque vem? — Perguntou. — Pensei que os Corbray estavam do seu lado.
— Lorde Lyonel Corbray tem boa disposição comigo — disse Petyr. — Mas o seu irmão segue outro caminho. No Tridente, quando seu pai caiu ferido, foi Lyn quem pegou a Dama Desesperada e matou o homem que o havia derrubado. Enquanto Lyonel levava o velho à retaguarda, com os meistres, Lyn encabeçou o ataque contra os dorneses que ameaçavam o flanco esquerdo de Robert, fez em pedaços suas linhas de defesa e matou Lewyn Martell. Assim que Lorde Corbray morreu, entregou a Dama ao seu filho menor. Lyonel ficou com as terras, o título, o castelo e todo o seu dinheiro, mas ainda assim tem a impressão de que lhe roubaram o que lhe corresponde por direito, enquanto que Sor Lyn... Bom, digamos que dedica a Lyonel tanto carinho como a mim. Ele também aspirava à mão de Lysa.
— Não gosto de Sor Lyn — insistiu Robert. — Não o quero aqui. Que permaneça embaixo. Não lhe mandei que subisse. Que não entre. Minha mãe dizia que o Ninho da Águia é inexpugnável.
— Sua mãe está morta, meu senhor. Até o décimo sexto dia do seu nome, o Ninho da Águia será governado por mim. — Petyr se voltou para a criada encurvada que aguardava perto das escadas que conduziam à cozinha. — Mela, traga outra colher para o seu senhor. Ele quer comer a aveia.
— Não quero! Que voe a sopa de aveia!
Naquele momento, Robert lançou a tigela de aveia com mel. Petyr Baelish se virou para o lado com facilidade, mas Meistre Colemon não foi tão rápido. A tigela de madeira o acertou em cheio no peito, e o conteúdo se esparramou na sua cara e nos ombros. Gritou de maneira muito pouco apropriada para um meistre enquanto Alayne tentava acalmar o pequeno senhor, mas era tarde demais. Estava tendo um ataque. Uma jarra de leite saiu voando quando a derrubou com um espasmo. Tratou de se levantar, mas a cadeira caiu para trás, e com ela, o menino. Um de seus pés acertou Alayne no ventre com tanta força que lhe cortou a respiração.
— Oh, pelos deuses — ouviu dizer Petyr, com nojo.
Os restos de aveia salpicavam o rosto e o cabelo do Meistre Colemon quando se ajoelhou junto ao seu protegido para lhe sussurrar palavras tranquilizadoras. Um caroço deslizou pela bochecha direita, como uma lágrima marrom-acinzentada. Não é tão grave quanto o ataque anterior, pensou Alayne, tratando de recuperar a esperança. Quando deixou de tremer, dois guardas com capas azul-celeste e cotas de malha prateada acudiram à chamada de Petyr.
— Levem-no para a cama e o sangrem — disse o Lorde Protetor, e o guarda mais alto pegou o menino nos braços.
Até eu poderia levá-lo, pensou Alayne. Pesa menos que uma boneca.
Colemon se deteve um instante antes de segui-lo.
— Talvez fosse melhor deixar esta reunião para um outro dia, meu senhor. Os ataques dele tem piorado desde a morte da Senhora Lysa. São cada vez mais frequentes e violentos. O sangro tanto quanto me atrevo, e misturo vinho do sono com o leite da papoula para ajudá-lo a dormir, mas...
— Dorme doze horas por dia — replicou Petyr. — Necessito dele desperto de tempos em tempos.
O meistre passou a mão pelos cabelos, jogando no chão vários caroços de aveia.
— Quando ele se sobressaltava em excesso, a Senhora Lysa lhe dava o peito. O Arquimeistre Ebrose assegura que o leite materno tem muitas propriedades saudáveis.
— É isso o que me aconselha, meistre? Que lhe busquemos uma ama de leite para o senhor do Ninho da Águia e Defensor do Vale? Quando vamos desmamá-lo? No dia do seu casamento? Assim poderá passar diretamente do mamilo de sua ama para o de sua esposa. — A gargalhada de Lorde Petyr deixou bem clara a sua opinião. — Não, muito obrigado. Sugiro que busquemos outro sistema. O garoto gosta de doces, não?
— Doces?
— Doces. Tortas, pastéis, marmeladas, gelatina, pedaços de pão com mel... Já tentou pôr um pouquinho de sonho doce no leite? Só um pouquinho, o suficiente para acalmá-lo e acabar com esses tremores infernais.
— Um pouquinho? — O meistre tragou saliva, e o seu pomo se moveu para cima e para baixo na garganta. — Uma pequena pitada... É possível, é possível. Não muito, e nem sempre, mas eu poderia tentar...
— Uma pitada — repetiu Lorde Petyr. — Antes que o leve para receber os senhores.
— Como ordenar, meu senhor.
O meistre saiu apressadamente, com o colar tilintando a cada passo.
— Pai — disse Alayne quando ficaram a sós. — Quer uma tigela de aveia para o desjejum?
— Não gosto de aveia. — Ele a olhou com os olhos de Mindinho. — Prefiro desjejuar com um beijo.
Uma boa filha jamais negaria um beijo a seu pai, assim que Alayne se adiantou e lhe deu um beijo rápido na bochecha, e retrocedeu igualmente rápida.
— Que... obediente. — Mindinho sorriu com a boca, não com os olhos. — Enfim, há outras instruções que terá de dar aos serviçais. Diga aos cozinheiros que façam uma infusão de vinho tinto com mel e passas. Nossos hóspedes estão realizando uma longa subida, terão frio e estarão com sede. Quando chegarem, terá que sair para recebê-los e oferecer-lhes as boasvindas. Vinho, queijo e pão. Que queijos ainda nos restam?
— O branco forte e o azul que cheira mal.
— O branco. E será melhor que troque de roupa.
Alayne olhou seu vestido, azul-escuro e vermelho, as cores de Correrrio.
— É muito...?
— É muito Tully. Os Senhores Rebeldes não gostarão de ver a minha filha bastarda se pavoneando com a roupa de minha esposa falecida. Escolha outra roupa. Tenho de lhe lembrar que não deve escolher azulceleste ou creme?
— Não — o azul-celeste e o creme eram as cores da casa Arryn. — O senhor disse que são oito pessoas? Yohn Bronze é um deles?
— É o único que importa.
— Yohn Bronze me conhece — lhe recordou. — Foi nosso convidado em Winterfell quando seu filho foi para o norte vestir o negro. — Tinha uma vaga recordação de haver se enamorado loucamente de Sor Waymar, mas aquilo fazia muito tempo, toda uma vida, havia ocorrido quando ainda era uma garotinha estúpida. — E não foi a única vez. Lord Royce viu... Viu Sansa Stark outra vez em Porto Real, durante o torneio da Mão.
Petyr pôs um dedo por baixo da barbicha.
— Com certeza Royce viu este rosto tão bonito, mas para ele foi apenas um em um milhão. Quando alguém participa de um torneio, tem coisas mais importantes com que se preocupar do que uma garotinha na multidão. E em Winterfell, Sansa era uma garotinha de cabelo castanhoavermelhado. Minha filha é uma donzela alta e formosa, com o cabelo escuro. Os homens veem o que esperam ver, Alayne. — A beijou no nariz. — Diga a Maddy que acenda a lareira nos meus aposentos. Receberei ali os Senhores Rebeldes.
— Não na Sala Alta?
— Não. Não queiram os deuses que me vejam perto do trono dos Arryn; poderiam crer que penso em me sentar lá. Umas nádegas de tão baixa estirpe como as minhas não poderiam aspirar a almofadas tão fofas.
— Nos seus aposentos. — Teria que se haver detido, mas as palavras lhe escaparam sem que pudesse se conter. — Se você entregar Robert a eles...
— E o Vale?
— Já têm o Vale.
— Boa parte, sim, é verdade. Mas não todo. Vila Gaivota têm apreço por mim, e também conto com a lealdade e a amizade de alguns senhores. Grafton, Lynderly, Lyonel Corbray... Não são rivais para os Senhores Rebeldes, claro. Além disso, aonde queria que fôssemos, Alayne? À minha impressionante fortaleza nos Dedos?
Já havia pensado nisso.
— Joffrey outorgou a você Harrenhal. Ali você é o senhor em pleno direito.
— Só tenho o título. Precisava de um assentamento importante para me casar com Lysa, e os Lannister não estavam dispostos a me conceder Rochedo Casterly.
— Sim, mas o castelo é seu.
— Que castelo. Salões cavernosos, torres em ruínas, fantasmas e correntes de ar. Esquentá-lo é difícil; defendê-lo, impossível... E também está em questão o assunto da maldição.
— As maldições só existem nas canções e nos contos.
Aquilo lhe fez achar graça.
— Quem compôs a canção sobre a morte de Gregor Clegane pela ferida de uma lança envenenada? Ou do mercenário que o precedeu, aquele que Sor Gregor foi despedaçando articulação por articulação? Esse recebeu o castelo de Sor Amory Lorch, que o recebeu de Lorde Tywin. O primeiro foi morto por um urso, e o segundo pelo seu filho anão. Antes deles, a Senhora Whent também morreu. Lothston, Strong, Harroway, Strong outra vez... Harrenhal tem decepado todas as mãos que tem lhe tocado.
— Então lhe entregue a Lorde Frey.
Petyr começou a rir.
— Não seria má ideia, ou melhor ainda, à nossa querida Cersei. Se bem que não deveria falar mal dela; enviou-me uns tapetes esplêndidos. Que amável da sua parte, não é verdade?
Ficou tensa somente por ouvir o nome da rainha.
— Não é amável. Me dá medo. Se chegar a descobrir onde eu estou...
— Me veria obrigado a tirá-la do jogo antes do previsto. Isso, se ela não sair antes por sua própria culpa. — Petyr lhe dedicou um sorriso zombeteiro. — No jogo dos tronos, até as peças mais humildes podem ter vontade própria. Às vezes se negam a executar os movimentos que se havia planejado para elas. Recorda bem, Alayne: é uma lição que Cersei Lannister não aprendeu ainda. Bom, não tem obrigações pendentes?
Tinha. Primeiro se encarregou de que preparassem o vinho, escolheu um bom pedaço de queijo e ordenou na cozinha que fabricassem pães para vinte pessoas, no caso de os Senhores Rebeldes chegarem com mais homens que o previsto.
Quando tiverem provado nosso pão e nosso sal, serão nossos hóspedes, e não poderão nos fazer mal. Os Frey haviam transgredido todas as leis da hospitalidade quando assassinaram a sua mãe o seu irmão nas Gêmeas, mas não podia acreditar que um senhor tão nobre como Yohn Royce se rebaixasse a fazer algo semelhante.
A seguir se encarregou de preparar o ambiente. O chão estava coberto com um tapete de Myr, assim não havia necessidade em se apressar. Alayne orientou dois criados a montarem a mesa com os cavaletes e a levarem ali oito das pesadas cadeiras de carvalho e couro. Se fosse um banquete, haveria situado uma na cabeceira da mesa e outra no extremo contrário, e outras três de cada lado, mas era uma reunião, de modo que ordenou que pusessem seis cadeiras em um lado da mesa e dois no outro. Os Senhores Rebeldes já haviam chegado à Neve. Em cima de mulas, a subida demorava quase um dia inteiro. A pé, a maioria demorava várias jornadas.
Provavelmente, os senhores permaneceriam conversando até bem tarde da noite. Logo, iriam necessitar de velas novas. Quando Maddy acendeu o fogo, a enviou para buscar velas de cera aromatizada que Lorde Waxley havia presenteado a Senhora Lysa quando aspirava obter sua mão. Então voltou às cozinhas para se assegurar de que estivessem preparando o vinho e o pão. Tudo estava andando bem, e teria tempo de sobra para se banhar, lavar o cabelo e trocar de roupa.
Sentiu-se tentada por um vestido de seda violeta e por outro de veludo azul-escuro com bordados de prata que ressaltaria a cor dos seus olhos, mas logo se recordou de que Alayne era bastarda e não devia se vestir de maneira mais ostentosa do que correspondia sua condição. Optou por uma túnica de lã cor marrom-escuro, de corte simples, com bordados de folhas e rendas de fios de ouro no busto, nas mangas e nas bainhas. Era modesto e pudico, e um pouco mais luxuoso que a vestimenta de uma criada. Petyr lhe havia dado também todas as joias da Senhora Lysa, assim experimentou vários colares, mas todos lhe pareceram aparatosos. Por fim, decidiu por uma simples fita de veludo dourado. Quando Gretchel lhe mostrou o espelho prateado de Lysa, lhe pareceu que a cor combinava maravilhosamente com o cabelo escuro de Alayne.
Lord Royce não me reconhecerá, pensou. Até eu custo a me reconhecer.
Alayne Stone se sentia quase tão ousada quanto Petyr Baelish. Esboçou o seu melhor sorriso e desceu para receber os convidados.
O Ninho da Águia era o único castelo dos Sete Reinos que tinha a entrada principal por debaixo do nível das masmorras. Os acentuados degraus de pedra ascendiam pela ladeira e passavam junto aos castelos de Pedra e Neve, mas terminavam no Céu. Os últimos cento e oitenta metros eram de subida vertical, logo os visitantes tinham que descer das mulas e tomar uma decisão: subir na cesta de madeira oscilante que era utilizada para levar suprimentos ao castelo, ou escalar uma pequena parede, apoiando-se em buracos na rocha.
Lorde Redfort e a Senhora Waynwood, os mais idosos dos Senhores Rebeldes, optaram pela cesta, que logo teve que descer mais uma vez para recolher o obeso Lorde Belmore. Os demais preferiram escalar. Alayne os recebeu na Câmara da Lua Crescente, junto a um fogo acolhedor, de onde lhes deu as boas-vindas em nome de Lorde Robert, e lhes serviu pão, queijo e vinho apimentado em copos de prata.
Petyr lhe havia dado um pergaminho em que apareciam seus escudos para que os estudasse, assim reconheceria os brasões, ainda que não os rostos. Olhou o castelo vermelho, que seria obviamente de Redfort, um homem baixo de barba acinzentada bem aparada e com olhos amáveis. A Senhora Anya, a única mulher entre os Senhores Rebeldes, vestia um manto verde com a roda de vime dos Waynwood em contas de jade. Os seis sinos de prata sobre um campo roxo correspondiam a Belmore, de barriga proeminente e ombros redondos. Sua barba era uma aberração cor de gengibre que lhe ocultava a papada. Pelo contrário, Symond Templeton era moreno e anguloso. O nariz em forma de gancho e os gélidos olhos azuis faziam com que o Cavaleiro das Nove Estrelas parecesse uma elegante espécie de ave de rapina. Seu gibão mostrava nove estrelas negras sobre uma lâmina dourada. A capa de arminho de Lord Hunter, o Jovem, a confundiu a princípio, até que mirou o broche que a prendia: cinco flechas de prata abertas ao vento. Alayne calculou que ele estava mais perto dos cinquenta que dos quarenta anos de idade. Seu pai havia governado em Arco Longo durante quase sessenta anos, para morrer de maneira tão repentina que houve rumores que o novo senhor havia acelerado o processo. Hunter tinha as bochechas e o nariz vermelhos como maçãs, o que denunciava sua possível fixação pelas uvas. Teve cuidado em encher seu copo cada vez que ele o esvaziava.
O mais jovem do grupo levava três corvos no peito, cada um com um coração vermelho entre as garras. O cabelo castanho lhe chegava até os ombros, e uma mecha solta lhe caía pelo rosto.
Sor Lyn Corbray, pensou Alayne, observando com apreensão a boca dura e os olhos inquietos.
Os últimos a chegar foram os Royce, Lorde Nestor e Yohn Bronze. O senhor de Pedra das Runas era tão alto como o Cão de Caça. Tinha o cabelo grisalho e o rosto cheio de rugas, mas Lorde Yohn aparentava ser capaz de quebrar, com aquelas enormes mãos nodosas, homens mais jovens como se fossem galhos secos. Seu rosto marcado e solene lhe fez recordar sua visita a Winterfell. Veio à lembrança aquele homem sentado à mesa, falando com sua mãe. Voltou a ouvir sua voz retumbante quando voltara da caça com um corvo encarrapitado na sela do cavalo. O viu no pátio com a espada de treinamento na mão, derrubando seu pai e voltando-se para derrotar também Sor Rodrik.
Ele me reconhecerá. É impossível que ele não me reconheça. Por um momento, pensou em se jogar aos seus pés e lhe suplicar proteção. Se não lutou por Robb, porque iria lutar por mim? A guerra já terminou, e Winterfell caiu.
— Lord Royce. — Lhe perguntou com timidez. — Deseja um copo de vinho para aplacar o frio?
Yohn Bronze tinha olhos cinza-ardósia meio ocultos pelas sobrancelhas mais espessas que já tinha visto. Os entrecerrou quando a analisou desde acima.
— Te conheço, menina?
Alayne sentiu como se tivesse engolido a língua, mas Lorde Nestor veio em seu auxílio.
— Alayne é filha natural do Lorde Protetor — disse a seu primo com rispidez.
— Mindinho tem estado muito ocupado — disse Lyn Corbray com um sorriso perverso.
Belmore começou a rir, e Alayne notou que estava ficando vermelha.
— Quantos anos tem, menina? — perguntou a Senhora Waynwood.
— C-Catorze, minha senhora. — Durante um momento havia esquecido a idade de Alayne. — E não sou uma menina, sou uma donzela florescida.
— Mas não desflorada, espero. — O espesso bigode de Lord Hunter, lhe escondia a boca quase por completo.
— Por enquanto — disse Lyn Corbray como se ela não estivesse ali. — Em pouco tempo já será uma fruta madura.
— Isso é o que vocês entendem de cortesia em Hogar? — Anya Waynwood tinha o cabelo branco, pés de galinha em torno dos olhos e a pele solta debaixo do queixo, mas o seu ar de nobreza era inconfundível. — A menina é jovem, tem recebido uma boa educação e já padeceu horrores suficientes. Cuidado com o que diz, sor.
 — O que eu digo é assunto meu — replicou Corbray. — Sua senhora deveria ocupar-se dos seus. Nunca gostei de reprimendas, como lhe poderia dizer um bom número de homens mortos.
A Senhora Waynwood lhe deu as costas.
— Será melhor que nos leve até o seu pai, Alayne. Quanto antes acabarmos com isto, melhor.
— O Lorde Protetor os espera nos seus aposentos. Se meus senhores tiverem a amabilidade de me seguir...
Saíram da Câmara da Lua Crescente, subiram por um corredor de degraus de mármore que ficava ao redor de criptas e masmorras e passaram por baixo de três balestreiros que os Senhores Rebeldes fingiram não ver. Belmore não demorou para suspirar como uma gaita de foles, e Redfort estava com o rosto tão branco como o cabelo. Os guardas postados nas portas acompanhavam seus passos.
— Por aqui, meus senhores.
Alayne os guiou quando passaram por baixo da galeria, junto a uma dúzia de esplêndidos tapetes. Sor Lothor Brune estava em frente à porta. Abriu-a para que eles passassem e entrou em seguida.
Petyr estava sentado junto à mesa de cavaletes, com um copo de vinho em uma mão, examinando um pergaminho branco. Ergueu os olhos quando os Senhores Rebeldes entraram.
— Sejam bem-vindos, meus senhores. E a vós também, minha senhora. Já sei que a subida é muito cansativa. Por favor, sentem-se. Alayne, minha querida, traga mais vinho para os nossos nobres convidados.
— Agora mesmo, meu pai.
Ficou satisfeita ao ver que haviam acendido as velas, o aposento despendia um aroma de noz-moscada e outras especiarias caras. Foi buscar a garrafa enquanto os convidados se sentavam lado a lado... Todos, exceto Nestor Royce, que titubeou um instante antes de rodear a mesa e ocupar a cadeira vazia, junto a Lorde Petyr, e Lyn Corbray, que preferiu ficar em pé junto à lareira. O rubi em forma de coração do punho de sua espada despendia um brilho vermelho enquanto esquentava as mãos. Alayne o viu sorrir a Sor Lothor Brune.
Sor Lyn é muito atraente para a sua idade, pensou. Mas não gosto do seu sorriso.
— Eu estava lendo esta declaração notável — começou Petyr. — Esplêndida. Não sei qual meistre a redigiu, mas esse homem tem um verdadeiro dom para as palavras. Eu teria gostado que me convidassem a assiná-la também.
Aquilo os pegou desprevenidos.
— Você? — Disse Belmore. — Assinaria?
— Sei manejar a pluma igual a qualquer um, e ninguém gosta de Lorde Robert mais do que eu. E quanto a esses falsos amigos e conselheiros astutos, deve-se acabar com eles imediatamente. Estou com vocês de corpo e alma, meus senhores. Por favor, me diga onde devo assinar.
Alayne, que estava servindo o vinho, ouviu o risinho de Lord Corbray. Os outros pareciam inseguros, até que Yohn Bronze fechou as mãos.
— Não viemos pela sua assinatura. Tampouco pensamos em estabelecer um concurso de retórica com você, Mindinho.
— Que pena. Adoro esses concursos. — Petyr deixou o pergaminho de lado. — Como quiserem. Sejamos diretos. Meus senhores, minha senhora, que querem de mim?
— De você não queremos nada. — Symond Templeton fixou seu olhar azul gélido no Lord Protetor. — Somente que vá embora.
— Que eu vá embora? — Petyr pareceu surpreso. — Para onde?
— A Coroa o nomeou Senhor de Harrenhal — lembrou Lord Hunter, o Jovem. — Qualquer um se conformaria com isso.
— Faz falta um senhor na terra dos rios — interviu o ancião Horton Redfort. — Correrrio resiste ao cerco, Bracken e Blackwood estão em guerra, os bandidos estão acampados nas margens do Tridente, roubando e matando à vontade. Por todas as partes há cadáveres sem enterrar.
— Tal como você o descreve, parece ser um lugar muito atrativo, Lord Redfort — respondeu Petyr. — Mas acontece que eu tenho obrigações importantes aqui. Também há que pensar em Lorde Robert. Quer que eu arraste um menino doente ao centro de semelhante carnificina?
— Sua senhoria ficará no Vale — declarou Yohn Royce. — Vou levá-lo à Pedra das Runas, onde crescerá para se converter em um cavaleiro do qual Jon Arryn se sentiria muito orgulhoso.
— Por que para a Pedra das Runas? — Ponderou Petyr. — Porque não a Carvalho de Ferro, ou a Redfort? Porque não a Arco Longo?
— Qualquer um desses lugares seria adequado — declarou Lord Belmore. — E sua senhoria os visitará por turnos quando chegue o momento.
— De verdade? — O tom de Petyr deixava transparecer suas dúvidas.
A Senhora Waynwood suspirou.
— Se você tem a intenção de que nos desentendemos entre nós, poupe-se deste esforço, Lorde Petyr. Falamos com uma só voz. Pedra das Runas parece muito bom para todos nós. Lorde Yohn criou três filhos, não há homem mais capacitado para educar o jovem senhor. O meistre Helliweg é muito mais antigo e tem mais experiência que o seu Meistre Colemon, poderá tratar melhor as doenças de Lorde Robert. Em Pedra das Runas, Sam Stone, o Forte, lhe ensinará as artes da guerra. Não há melhor mestre de armas. Septão Lucos o instruirá nos assuntos do espírito. Além disso, em Pedra das Runas estará com outros meninos da sua idade, uma companhia muito mais adequada do que as das velhas e dos mercenários que o rodeiam agora.
Petyr Baelish acariciou a sua barba.
— Estou de acordo: sua senhoria necessita de companhia. Mas não se pode dizer que Alayne seja uma velha. Lord Robert gosta muito da minha filha, como ele mesmo os poderá dizer. Além disso, por coincidência pedi a Lord Grafton e a Lord Linderly que nos enviem um filho cada um para servir como pupilos. Os dois têm meninos da idade de Robert.
Lyn Corbray começou a rir.
— Dois cachorrinhos de dois cães de colo.
— Também seria conveniente a Robert ter por perto um garoto maior. Um escudeiro jovem e promissor, por exemplo. Alguém a quem possa admirar e a com quem possa treinar combate. — Petyr se voltou para a Senhora Waynwood. — Em Carvalho de Ferro tem um garoto assim, minha senhora. Aceitaria me enviar Harrold Hardyng?
Anya Waynwood parecia se divertir.
— Jamais havia conhecido um ladrão tão ousado como você, Lorde Petyr.
— Não quero roubar o garoto — disse Petyr. — Mas Lorde Robert e ele deveriam se tornar amigos.
Yohn Bronze tomou a dianteira da situação.
— Me parece apropriado que Lorde Robert inicie uma amizade com o jovem Harry, e assim será... Em Pedra das Runas, sob a minha tutela, quando for meu pupilo e escudeiro.
— Nos entregue o garoto e poderá partir para Harrenhal, seu legítimo lugar, sem que ninguém o faça mal — disse Lord Belmore.
Petyr lhe dirigiu um olhar carregado de deboche.
— Me está dando a entender que, do contrário, poderia me acontecer algo, meu senhor? Não consigo pensar por que. Minha finada esposa pensava que este era o meu legítimo lugar.
— Lord Baelish — interviu a Senhora Waynwood. — Lysa Tully era a viúva de Jon Arryn e a mãe de seu filho, e governava como regente. Mas... sejamos francos, você não é um Arryn, e Lorde Robert não é do seu sangue. Com que direito você se atreve a nos governar?
— Creio recordar que Lysa me nomeou Lord Protetor.
— Lysa Tully nunca foi parte do Vale verdadeiramente — replicou Lorde Hunter, o Jovem. — Não tinha o direito de dispor de nós.
— E Lorde Robert? — Perguntou Petyr. — Sua senhoria insinua que a Senhora Lysa não tinha o direito de dispor de seu próprio filho?
— Eu abrigava a esperança de me casar com a Senhora Lysa — disse Nestor Royce, que havia guardado silencio até então. — Assim como o pai de Lorde Hunter e o filho da Senhora Anya. Corbray não saiu do seu lado durante meio ano. Se houvesse escolhido qualquer um de nós, ninguém disputaria o direito de ser Lorde Protetor. Mas escolheu o Lorde Mindinho, e lhe confiou o seu filho.
— Também é filho de Jon Arryn, primo — replicou Yohn Bronze mirando o Guardião com cenho franzido. — Seu lugar é no Vale.
Petyr fez uma cara de assombro.
— O Ninho da Águia faz parte do Vale tanto como Pedra das Runas. Ou alguém o moveu sem que eu soubesse?
— Faça quantas piadas quiser, Mindinho — falou Lord Belmore.  — O menino virá conosco.
— Lamento decepcioná-los, Lorde Belmore, mas meu enteado ficará comigo. Como bem sabem vocês todos, não é um menino robusto. A viagem se tornaria muito cansativa. Como seu padrasto e Lorde Protetor, não posso permitir isso.
Symond Templeton limpou a garganta.
— Cada um de nós tem mais de mil homens ao pé desta montanha, Mindinho.
— É um lugar muito bonito.
— Se for necessário, podemos convocar mais.
— Está me ameaçando com uma guerra, sor? — Petyr não parecia assustado em absoluto.
— Nós vamos levar Lord Robert — replicou Yohn Bronze.
Durante um momento, pareceu que haviam chegado a um beco sem saída, até que Lyn Corbray se afastou da lareira.
— Já estou farto. Se continuarem a escutar o Mindinho, ele vai convencê-los a baixar os calções. Só há uma maneira de resolver isso, e é com aço. — Desembainhou a espada larga.
Petyr estendeu as mãos.
— Vou desarmado, sor.
— Isso tem remédio. — A luz da vela ondulava ao longo do aço acinzentado da espada de Corbray, era tão escura que Sansa se recordou de Gelo, a espada de seu pai. — O Devora-maçãs está armado. Que dê a ele a espada, ou saque esse punhal.
Viu como Lothor Brune punha a mão na espada, mas antes que ele a desembainhasse, Yohn Bronze se levantou, irado.
— Guarda esse aço, sor! Quem é você? Um Corbray ou um Frey? Estamos aqui como convidados.
— Isso é improcedente — disse a Senhora Waynwood franzindo o cenho.
— Embainhe esse aço, Corbray — mandou Lord Hunter, o Jovem. — Está nos envergonhando a todos.
— Venha, Lyn — repreendeu Redfort em tom mais suave. — Isto não serve de nada. Meta a Dama Desesperada na cama.
— Minha senhora tem sede — insistiu Sor Lyn. — Sempre que sai para dançar toma um copo de vinho, bem vermelho.
Yohn Bronze se interpôs no caminho de Corbray.
— Pois desta vez ela continuará com sede.
— Senhores Rebeldes — bufou Lyn Corbray. — Teríamos que chamá-los de as Sete Velhas.
Voltou a embainhar a espada escura, empurrou Brune para o lado e saiu do aposento. Alayne ouviu como se distanciavam os sons dos seus passos.
Anya Waynwood e Horton Redfort trocaram um olhar. Hunter bebeu o copo de vinho e o estendeu para o enchessem novamente.
— Terá que nos perdoar esta ridícula exibição, Lorde Baelish — disse Sor Symond.
— Verdade? — A voz de Mindinho havia tornado-se gélida. — Foram vocês quem o trouxeram, meus senhores.
— Não era nossa intenção... — começou Yohn Bronze.
— Foram vocês quem o trouxeram. Eu tenho todo o direito de chamar os meus guardas e manda-los deter todos.
Hunter se pôs em pé tão bruscamente que quase bateu na garrafa que Alayne tinha nas mãos.
— Nos prometeu salvo-conduto!
— Sim. Então dê graças aos deuses por eu ter mais honra que outros. — Nunca havia ouvido Petyr tão furioso. — Já li sua declaração e já ouvi suas exigências. Ouçam agora as minhas: retirem seus exércitos dessa montanha, marchem para as suas terras e deixem em paz o meu filho. Aqui tem havido um mau governo, não duvido, mas foi obra de Lysa, não minha. Deem-me um ano, e com a ajuda de Lorde Nestor, os prometo que nenhum de vocês terá motivo de queixa.
— Isto é você quem diz — replicou Belmore. — Porque teremos que confiar?
— Como ousa desconfiar de mim? Não fui eu quem desembainhou aço no meio de uma trégua. Falam de defender Lorde Robert e ao mesmo tempo lhe negam comida. Isto tem que acabar. Não sou guerreiro, mas se não levantarem o sítio, lutarei com vocês. Não são os únicos senhores do Vale, e Porto Real também me enviará homens. Se é guerra o que vocês querem, digam, e o Vale sangrará.
Alayne viu que a dúvida começava a florescer nos olhos dos Senhores Rebeldes.
— Um ano não é tanto tempo — comentou Lorde Redfort, inseguro. — Talvez... se nos assegurar...
— Nenhum de nós quer a guerra — disse a Senhora Waynwood. — O outono chega ao seu fim; teremos que nos preparar para o inverno.
Belmore interrompeu.
— Ao final deste ano...
— Se não puser ordem no Vale, me demitirei voluntariamente do cargo de Lorde Protetor – lhes prometeu Petyr.
— Me parece mais que justo — disse Lorde Nestor Royce.
—Não deve haver represálias — insistiu Templeton. — Não se falará de traição nem de rebelião. Isso também deve jurar.
— Encantado — respondeu Petyr. — O que quero são amigos, não inimigos. Outorgo perdão a todos, por escrito se quiserem. Inclusive a Lyn Corbray. Seu irmão é um bom homem, não há necessidade de que uma Casa tão nobre caia na vergonha.
A Senhora Waynwood se voltou para os Senhores Rebeldes.
— Podemos negociar, meus senhores?
— Não é necessário. É evidente que ele já ganhou. — Yohn Bronze cravou os olhos cinzentos em Petyr Baelish. — Não gosto disso, mas parece que vai ter o ano que quis. Use-o bem, meu senhor. Que não tenha nos enganado.
Abriu a porta com tanta força que esteve a ponto de arrancá-la das dobradiças.
Mais tarde, houve uma espécie de banquete, ainda que Petyr tivesse que pedir desculpas pela humildade da comida. Levaram-lhes a Robert vestido com um gibão azul e creme, que representou com bastante elegância o seu papel de senhor. Yohn Bronze não o presenciou: já havia partido do Ninho da Águia para começar a longa descida, com o fez Sor Lyn Corbray antes dele. Os outros senhores ficaram até a manhã seguinte.
Ele os seduziu, pensou Alayne aquela noite, na cama, enquanto ouvia o rugido do vento pela janela. Não havia sabido dizer como surgiu a suspeita, mas quando passou pela sua cabeça, não houve maneira de conciliar o sono. Mexeu-se e rolou na cama durante um longo tempo. Por último, se levantou e se vestiu, deixando Gretchel dormindo.
Petyr seguia acordado, escrevendo uma carta.
— Alayne? Olá querida, que faz aqui tão tarde?
— Preciso saber? O que acontecerá dentro de um ano?
— Redfort e Waynwood são velhos. — Petyr deixou a pluma sobre a mesa. — Pode ser que morra um deles, ou os dois. Os irmãos de Gilwood Hunter o assassinarão. Provavelmente se encarregará o jovem Harlan, o mesmo que tratou da morte de Lorde Eon. E já que comecei, vamos até o final. Belmore é corrupto, posso comprá-lo. Templeton e eu nos tornaremos amigos. Temo que Yohn Bronze continue sendo hostil, mas enquanto seja somente ele não representará nenhuma ameaça.
— E Sor Lyn Corbray?
A luz da vela dançava nos olhos de Petyr.
— Sor Lyn continuará sendo meu inimigo implacável. Falará de mim com desprezo e ódio a todo aquele que queira escutá-lo prestará sua espada a cada plano secreto para acabar comigo.
Foi então quando as suspeitas se converteram em certezas.
— E como lhe pagará os seus serviços?
Mindinho começou a rir.
— Com ouro, meninos e promessas, claro. Sor Lyn é um homem de gostos simples, querida. As únicas coisas que quer são ouro, meninos e alguém a quem matar.
 
 O rei estava amuado.
— Quero sentar no Trono de Ferro — disse ele. — Você sempre deixava Joff sentar lá.
— Joffrey tinha doze anos.
— Mas eu sou rei. O trono pertence a mim.
— Quem lhe disse isso? — Cersei respirou profundamente para que Dorcas pudesse amarrar mais firmemente. Ela era uma garota grande, muito mais forte que Senelle, apesar de mais atrapalhada também.
O rosto de Tommen ficou vermelho.
— Ninguém.
— Ninguém? É assim que chama a Senhora sua esposa? — A rainha podia sentir o cheiro de Margaery Tyrell naquela rebelião. — Se mentir para mim não terei escolha a não ser chamar Pate e espancá-lo até que sangre. — Pate era o bode expiatório de Tommen, assim como havia sido o de Joffrey. — É o que quer?
— Não — o rei murmurou emburrado.
— Quem lhe disse isso?
Ele embaralhou os próprios pés.
— A Senhora Margaery. — Ele não era bobo de chamá-la de rainha na frente da mãe.
— Assim esta melhor. Tommen, eu tenho assuntos sérios para decidir, assuntos que você é jovem demais para entender. Eu não preciso de um garotinho bobo se remexendo no trono atrás de mim e me distraindo com questões infantis. Eu suponho que Margaery ache que você deveria estar nas minhas reuniões do conselho também?
— Sim— ele admitiu. — Ela sempre diz que tenho que aprender a ser um rei.
— Quando for mais velho, poderá ir a quantos Conselhos quiser — Cersei disse a ele. — Eu lhe garanto logo você ficará enjoado deles. Robert costumava cochilar durante as sessões. — Quando ele ao menos se incomodava de comparecer. — Ele preferia caçadas e águias e deixava o tédio para o velho Lorde Arryn, lembra se dele?
— Ele morreu de dores de barriga.
— Sim morreu o pobre homem. Como está tão ávido, talvez devesse aprender os nomes de todos os reis de Westeros e das Mãos que os serviram. Pode recitá-los para mim no dia seguinte.  
— Sim, mãe. — Ele disse docilmente. 
— Este é o meu bom garoto. — O poder era dela, ela não pretendia desistir dele até Tommen atingir a idade certa. Eu esperei então ele também pode esperar. Eu esperei metade de minha vida. Ela havia sido a filha obediente, a noiva ruborizada, a esposa flexível. Ela havia sofrido com as apalpadelas de bêbado de Robert, o ciúme de Jaime, a zombaria de Renly, Varys e suas risadinhas, Stannis rangendo seus dentes interminavelmente. Ela havia disputado com Jon Arryn, Ned Stark, e o odioso, traiçoeiro e homicida irmão anão dela, todo esse tempo se prometendo que um dia seria a vez dela. Se Margaery Tyrell pensa em roubar minha hora ao sol, é melhor ela pensar muito bem antes.
De qualquer modo, este era um jeito ruim de quebrar o seu jejum, e o dia de Cersei não melhorou tão cedo. Ficou o resto de sua manhã com Lorde Gyles e seus livros de contabilidade, ouvindo-o tossir sobre estrelas, cervos e dragões. Posteriormente, chegou Lorde Waters, para contar que os três primeiros dromons estavam quase sendo finalizados e implorou por mais ouro para terminá-los com o esplendor que mereciam. A rainha estava satisfeita em lhe conceder seu pedido. Rapaz Lua pulava quando ela teve sua refeição do meio dia com os mercadores das guildas e ouviu suas reclamações sobre pássaros vagando pelas ruas e dormindo nas praças. Talvez eu precise usar as capas de ouro para tirar esses pássaros da cidade, ela estava pensando, quando Pycelle intrometeu-se. 
O Grande Meistre estava especialmente impertinente ultimamente nos conselhos. Na ultima sessão ele havia se queixado amargamente do homem que Aurane Waters tinha escolhido para comandar os seus novos dromons. Waters planejava dar os navios para homens jovens, enquanto Pycelle argumentou pela experiência, insistindo que o comando deveria ir para aqueles capitães que haviam sobrevivido ao incêndio de Água Negra.
— Homens experientes, comprovadamente leais — ele os havia chamado. Cersei os chamou de velhos e ficou ao lado de Lorde Waters.
— A única coisa que provaram é que sabem nadar — disse. — Nenhuma mãe deve durar mais que seus filhos e nenhum capitão deve durar mais que seu navio. — Pycelle recebeu a repreensão com alguma má vontade.
Ele parecia menos colérico hoje, e até exibia um tipo de sorriso tremulo.
— Vossa Graça, boas noticias — anunciou. — Wyman Manderly cumpriu suas ordens e decapitou o cavaleiro das cebolas de Lorde Stannis.
— Podemos ter certeza disso?
— A cabeça e as mãos do homem foram espetadas em cima das muralhas de Porto Branco. Lorde Wyman declarou isso e os Frey confirmam. Eles viram a cabeça lá, com uma cebola na boca. E uma das mãos tinha seus dedos encurtados. 
— Muito bem — disse Cersei. — Mande um pássaro para Manderly e lhe informe que seu filho vai ser devolvido imediatamente, agora que provou sua lealdade.
Porto Branco logo retornaria para a paz do rei, e Roose Bolton e seu filho bastardo estavam se aproximando de Fosso Cailin pelo sul e norte. Uma vez que o Fosso fosse deles, eles deveriam juntar forças e tirar os homens de ferro da Praça de Torrhen e de Bosque Profundo também.  Assim deveriam ganhar a lealdade dos homens que restavam sob o estandarte de Ned Stark quando chegasse à hora de marchar contra Stannis.
Para o sul, entretanto, Mace Tyrell tinha levantado acampamento fora de Ponta Tempestade e tinha duas catapultas arremessando pedras contra as paredes maciças do castelo, até agora sem grandes efeitos. Lorde Tyrell, o guerreiro, a rainha meditou. Seu selo deveria ser um homem gordo sentando sua bunda.
Naquela tarde, o sisudo enviado bravosiano apareceu para sua audiência. Cersei havia o colocado para fora durante duas semanas e teria prazer em colocá-lo mais um ano, mas Lorde Gyles alegou que não poderia mais lidar com o homem... e a rainha começava a pensar se Lorde Gyles conseguia fazer algo além de tossir.
Noho Dimittis, o bravosiano intitulou-se. Um nome irritante, para um homem irritante. Sua voz era irritante também. Cersei se mexeu em seu assento quando ele entrou, imaginando quanto tempo teria que aguentar sua prepotência. Atrás dela agigantava-se o Trono de Ferro, suas farpas e laminas jogando sombras sobre o chão. Apenas o rei ou sua Mão podiam sentar-se nele. Cersei sentava em seu trono, em um assento dourado com almofadas vermelhas empilhadas. Quando o bravosiano parou para respirar ela viu sua chance.
— Isto é um assunto mais apropriado para nosso Lorde Tesoureiro.
Esta resposta não agradou ao nobre Noho, ao que pareceu.
— Eu falei com Lorde Gyles seis vezes. Ele tosse em mim e conta desculpas, Vossa Graça, mas o ouro não parece estar vindo. 
— Fale com ele uma sétima vez — Cersei sugeriu agradavelmente. O numero sete é sagrado para nossos deuses.
— Parece-me que fazer gracejos agrade Vossa Graça.
— Quando eu faço um gracejo eu sorrio. Está vendo-me sorrir? Está ouvindo gargalhadas? Eu lhe garanto, quando eu faço um gracejo, os homens riem.
— O rei Robert...
— Está morto — ela disse bruscamente. O Banco de Ferro terá seu ouro quando a rebelião for controlada.
Ele teve a insolência de interrompê-la.
— Vossa Graça...
— Esta audiência está terminada. — Cersei havia sofrido o bastante por um dia. — Sor Meryn, leve o nobre Noho Dimittis até porta. Sor Osmund, você deve me escoltar de volta aos meus aposentos. — Seus convidados logo chegariam e ela teria que tomar um banho e se trocar. O jantar prometia ser tão tedioso como a audiência. Era um trabalho duro governar um reino, ainda mais sete reinos.
Sor Osmund Kettleblack ficou ao lado dela nas escadas, alto e magro em suas vestes brancas da Guarda Real. Quando Cersei teve certeza de que estavam sozinhos, ela passou um braço ao redor do dele.
— Como seu irmão menor esta se saindo, diga?
Sor Osmund pareceu desconfortável.
— Ah... bem o suficiente, apenas...
— Apenas? — A rainha deixou um traço de raiva subir sua voz. — Eu tenho que confessar, estou ficando sem paciência com o caro Osney. É passado o tempo em que quebrou aquele pequeno potro. Eu o nomeei escudeiro jurado de Tommen então ele pode passar quase todos os dias na companhia de Margaery. Ele já deveria ter arrancado a rosa agora. A pequena rainha é cega aos seus encantos?
— O charme dele está bem. Ele é um Ketteblack, não? Desculpe-me. — Sor Osmond correu seus dedos pelo cabelo oleoso. — É o dela que é o problema.
— E porque isso? — A rainha começava a levantar duvidas sobre Sor Osney. Talvez outro homem fosse mais ao agrado de Margaery. Aurane Waters, com seu cabelo prateado, ou um sujeito maior, como Sor Tallad. — A moça prefere a outro? O rosto do seu irmão a desagrada? 
— Ela gosta do rosto dele. Ela tocou suas cicatrizes dois dias atrás, ele me disse. Que mulher lhe fez isso? Ela perguntou. Ele nunca lhe disse que havia sido uma mulher, mas ela sabia. Talvez alguém tenha lhe contado. Ela está sempre o tocando quando eles conversam, ele diz. Endireitando o fecho de sua capa, passando seu cabelo para trás, coisas assim. Uma vez, no arco e flecha ela lhe pediu para mostrar como segurar um arco, então ele pôs um braço ao redor dela. Osney conta a ela gracejos picantes e ela ri e replica com alguns ainda mais picantes. Não, ela o quer, isto é certo, mas....
— Mas? — Cersei perguntou.
— Mas eles jamais estão sozinhos. O rei está com eles a maior parte do tempo, e quando não está, há outra pessoa. Duas das damas dela dormem com ela, uma em cada noite. Duas outras trazem seu desjejum e a ajudam a se vestir. Ela reza com sua septã, lê com sua prima Elinor, canta com sua prima Alla e costura com sua prima Megga. Quando não esta caçando com Janna Fossoway e Merry Crane esta brincando de venha-para-meu-castelo com aquela garotinha de Bulwer. Ela nunca vai montar, mas ela tem em seu rabo, quatro ou cinco companheiras e ao menos doze guardas. E há sempre homens ao redor dela, mesmo na Arcada das Donzelas.   
— Homens. — Aquilo era algo. Havia uma possibilidade. — Que homens são estes, ora me diga?
Sor Osmond encolheu os ombros.
— Cantores. Ela tem uma queda por cantores, malabaristas e coisas assim. Cavaleiros vêm para ficar ao redor de suas primas. Sor Tallad é o pior, segundo Osney. Aquele grande idiota não parece saber se é Elinor ou Alla que ele quer, mas ele a quer terrivelmente. Os gêmeos Redwyne aparecem também. Sloober traz-lhes flores e frutas e Horror toma o alaúde. Pelo que Osney diz, poder-se-ia fazer um som mais doce ao estrangular um gato. O homem da ilha do verão está sempre aos seus pés também.
— Jalabhar Xho? — Cersei deu um muxoxo irônico. — Implorando a ela por ouro e espadas para reconquistar sua terra natal, me parece mais. — Sob suas joias e penas, Xho não era nada mais que um mendigo bem nascido. Robert poderia ter dado um fim nas importunações dele com um firme não, mas a ideia de reconquistar as Ilhas do Verão tinha apelo o bastante com seu rústico marido bêbado.  Sem duvida ele sonhava com as prostitutas de pele escura, cobertas com mantos de penas, com mamilos negros como carvão. Então ao invés de não, Robert sempre dizia a ele, no próximo ano, embora de algum modo o próximo ano nunca chegou.
— Eu não poderia dizer se ele está implorando, Vossa Graça — Sor Osmond respondeu. — Osney diz que ele esta as ensinando a língua do Verão. Não Osney, a rai... A égua e suas primas.
— Uma égua que fala a língua do Verão seria uma grande sensação — disse a rainha secamente. — Diga a seu irmão para manter suas esporas bem afiadas. Eu acharei algum modo dele montar sua potranca muito em breve, pode ter certeza disso. 
— Eu direi a ele, Vossa Graça. Ele está ansioso por esta cavalgada, não pense que ele não está. Ela é uma bela coisinha, aquela potranca.
É por mim que ele está ansioso, bobo, a rainha pensou. Tudo que ele quer de Margaery é o senhorio entre as suas pernas. Gostava quando estava com Osmond, mas às vezes ele era tão lento quanto Robert. Esperava que sua espada fosse mais rápida que sua inteligência. Chegaria o dia em que Tommen iria precisar dela.
Eles estavam cruzando a sombra da destruída Torre da Mão quando o som de vivas os atravessou. Do outro lado do pátio, algum escudeiro tinha feito um passe na Justa e jogado uma cruzeta girando.
Os vivas estavam vindo de Margaery Tirell e suas galinhas. Muito tumulto por pouco. Alguém poderia pensar que o rapaz tinha ganhado um torneio. Então ela surpreendeu-se, vendo que o rapaz era Tommen no cavalo, vestindo placas douradas.
A rainha não teve alternativa a não ser colocar um sorriso e ir ver seu filho. Ela chegou a ele quando o Cavaleiro das Flores estava o ajudando a descer de seu cavalo. O garoto estava sem fôlego de excitação. 
— Vocês viram? — Ele perguntava a todos. — Eu fiz exatamente como Sor Loras disse. Você viu Sor Osney?
— Eu vi. — Disse Osney Kettleblack. — Uma bela visão. 
— Você tem um assento melhor que o meu senhor — interviu Sor Dermot.
— Eu quebrei a lança também, você ouviu Sor Loras?
— Tão alto como um trovão. — Uma rosa de jaspe e ouro entrelaçados estava no ombro de Sor Loras e o vento remexia artisticamente os seus cabelos. Você montou um campo excelente, mas apenas uma vez não é suficiente. Você deve fazer novamente amanhã. Deve montar todos os dias até que a terra exploda verdadeira e diretamente, e sua lança se torne tão parte de seu corpo quanto seu braço.
— Eu quero.
— Você foi glorioso. — Margaery dobrou um joelho e deu um beijo na bochecha de Tommen e colocou seus braços ao seu redor. — Cuidado irmão — ela alertou Sor Loras. — Meu marido galante vai ultrapassa-lo em mais alguns anos, eu penso.
As três primas delas concordaram, e a desgraçada garotinha de Bulwer dava pulos, cantando.
— Tommen será o campeão, o campeão, o campeão.
— Quando for crescido. — Disse Cersei. 
Os sorrisos secaram como rosas beijadas pelo gelo. E a cara de varíola da septã foi a primeira a dobrar seus joelhos. Os restantes a seguiram, exceto a pequena rainha e seu irmão.
Tommen não pareceu notar o súbito arrepio no ar. 
— Mãe, você me viu? — Ele balbuciou feliz. — Eu quebrei minha lança no escudo e a bolsa não me acertou!
— Eu estava assistindo do outro lado da praça. Você foi muito bem, Tommen. Eu não esperaria nada menos de você. A Justa está em seu sangue. Um dia você irá liderar as listas, exatamente como seu pai fazia.
— Nenhum homem se comparara a ele. Margaery Tirell lançou um sorriso tímido à rainha. Mas eu nunca soube que o Rei Robert fosse tão bom na Justa. Por favor, Vossa Graça, nos conte, quais torneios ele venceu? Quais grandes cavaleiros ele fez cair da sela? Tenho certeza que o rei iria adorar ouvir sobre as vitórias de seu pai.
Um rubor subiu pelo pescoço de Cersei. A garota a havia pego. Robert Baratheon havia sido inexpressivo na Justa, na verdade. Durante os torneios ele havia preferido o corpo a corpo, onde ele poderia fazer homens sangrarem com seu machado embotado ou seu martelo. Era em Jaime em quem ela pensava, quando havia falado. Não era próprio dela se esquecer assim. 
— Robert venceu o torneio do Tridente. — Ela teve de dizer. — Ele derrubou o Príncipe Rhaegar e me nomeou Rainha do amor e da beleza. Estou surpresa de você não saber a história, minha filha. — Ela não deu tempo a Margaery para moldar uma resposta. — Sor Osmond, ajude meu filho com sua armadura, por bondade.  Sor Loras caminhe comigo, preciso trocar uma palavra contigo.
O Cavaleiro das Flores não teve escolha a não ser seguir nos seus calcanhares, como o cachorrinho que era. Cersei esperou até estarem nas escadas em espiral antes de falar.
— O que era aquilo, me diga?
— Minha irmã — ele admitiu. — Sor Tallad, Sor Dermot e Sor Portifer estavam montando na Justa, e a rainha sugeriu que Vossa Graça gostaria de ter um turno.
Ele a chamou assim para provocar-me.
— E você fez?
—Eu ajudei Vossa Graça a colocar sua armadura e mostrei a ele como treinar sua lança — respondeu.
— Aquele cavalo era muito grande para ele. E se ele caísse? E se o saco de areia tivesse amassado a cabeça dele?
— Contusões e lábios sangrando fazem parte de ser um cavaleiro.
— Começo a entender porque seu irmão é um aleijado. — Isto tirou o sorriso do lindo rosto dele, ela ficou feliz em ver. — Se porventura meu irmão falhou em explicar as suas obrigações, sor. Você está aqui para proteger meu filho dos inimigos. Treiná-lo para cavalaria é da competência do mestre de armas.
— A Fortaleza Vermelha não tem um mestre de armas desde que Aron Santagar foi morto — Sor Loras disse, com uma pontada de reprovação em sua voz. — Vossa Graça tem nove anos e está ansioso para aprender. Na idade dele ele deveria ser um escudeiro. Alguém tem que ensiná-lo.
Alguém irá. Mas não será você.
— Diga-me, de quem foi escudeiro, Sor? — Ela perguntou docemente. — Sor Renly, não foi?
— Tive a honra.
—Sim, imagino quanta. — Cersei havia visto quão apertado eram os laços entre escudeiros e os cavaleiros a que serviam. Ela não queria Tommen crescendo próximo a Loras Tyrell. O Cavaleiro das Flores não era o tipo de homem para nenhum garoto imitar. — Eu tenho sido descuidada. Com um reino para governar, uma guerra para lutar, e um pai para lamentar, talvez eu tenha esquecido um assunto tão crucial quanto nomear um mestre de armas. Devo corrigir este erro quanto antes.
Sor Loras puxou de volta uma mecha que havia caído em sua testa.
— Vossa Graça, não encontrará um homem tão habilidoso com a espada e a lança quanto eu.
Humilde, não?
— Tommen é seu rei, não seu escudeiro. Você deve lutar por ele, morrer por ele se for necessário. Nada mais. 
Ela o deixou na ponte levadiça, que se estendia sobre o fosso como uma cama de pregos de ferro e entrou na Fortaleza de Maegor sozinha. Onde encontrarei um mestre de armas, ela pensava enquanto subia para seus aposentos. Recusando Sor Loras, ela havia tirado a chance de todos os cavaleiros da Guarda Real. aquilo seria sal na ferida, certamente irritaria Jardim de Cima. Sor Tallad, Sor Dermot? Certamente deve haver alguém. Tommen estava gostando de seu escudo jurado, mas Osney estava se mostrando menos capaz do que ela esperava no assunto da donzela Margaery, e ela tinha uma função diferente em mente para seu irmão Osfryd. Tinha sido realmente uma pena que o Cão tivesse ficado raivoso. Tommen sempre tivera medo da voz áspera e da face queimada de Sandor Clegane, e o desdém de Clegane seria o antídoto perfeito para o cavalheirismo afetado de Loras Tyrell.
Aron Santagar é de Dorne, Cersei lembrou. Eu poderia enviá-lo para Dorne. Séculos de guerras sangrentas estavam entre Lançassolar e Jardim de Cima. Sim, um homem de Dorne poderia preencher minhas expectativas perfeitamente. Deve haver boas espadas em Dorne.
Quando Cersei entrou em seu solar, encontrou Lorde Qyburn lendo em um assento na janela.
— Se agradar a Sua Graça, tenho relatórios.
— Mais conspirações e traições? — Cersei perguntou. — Eu tive um dia longo e cansativo. Diga-me rapidamente.
Ele sorriu simpaticamente.
— Como quiser. Há rumores de que o Arconte de Tyrosh ofereceu um acordo a Lys, para entrar em sua atual guerra comercial. Dizem que Myr esteve a ponto de entrar na guerra, do lado de Tyrosh, mas sem a Companhia Dourada os homens de Myr não acreditaram que...
— O que os homens de Myr acreditam não me interessa. As Cidades Livres estavam sempre lutando entre si. Suas traições e alianças sem fim significavam pouco ou nada para Westeros. Tem alguma noticia de maior importância?
— A revolta de escravos em Astapor se espalhou para Meereen, ao que parece. Marinheiros de uma dúzia de navios falam de dragões...
— Harpias. Tem harpias em Meereen. — Ela lembrava-se disso de algum lugar. Meereen era no fim do mundo, mais a leste que Valiria. — Deixe os escravos se revoltarem. Não mantemos escravos em Westeros. É tudo que tem para mim?
— Há algumas notícias de Dorne que Vossa Graça pode achar interessante. Príncipe Doran prendeu Sor Daemon Sand, um bastardo que uma vez foi escudeiro da Víbora Vermelha. 
— Lembro-me dele. Sor Daemon estava entre os Cavaleiros de Dorne que haviam acompanhado Príncipe Oberyn a Porto Real. O que ele fez?
— Ele exigiu que a filha de Príncipe Oberyn fosse libertada.
— Muito tolo ele.
— Também — Lorde Qyburn disse. — A filha do Cavaleiro de Bosquepinto ficou noiva inesperadamente de Lorde Estermont, nosso amigo em Dorne nos disse. Ela foi enviada a Pedra Verde tarde da noite, e dizem que ela e Estermont já se casaram.
— Um bastardo no ventre explica bem isso. — Cersei brincou com uma mecha de seu cabelo. Quantos anos tem a noiva?
—Vinte e três, Vossa Graça. Enquanto Lorde Estermont...
— Deve estar com setenta. Estou ciente disso. Os Estermont eram seus parentes através de Robert, cujo pai tomou uma delas como esposa, o que deve ter sido um ataque de loucura ou de luxuria. 
Na época que Cersei casou-se com o rei, a Senhora mãe de Robert estava a muito morta, embora seus dois irmãos tenham vindo para o casamento e ficado por meio ano. Robert depois havia insistido em retornar a cortesia com uma visita a Estermont, uma ilhazinha montanhosa, fora de Cabo Cólera. A úmida e sombria quinzena que Cersei havia passado em Pedra Verde, a sede de Casa Estermont foi o mais longo de sua jovem vida. Jaime apelidou o castelo Merda Verde à primeira vista, e logo Cersei começou a chamá-lo assim também.  Sabiamente ela passara seus dias assistindo seu marido real falcoar, caçar, e beber com seus tios, e ameaçar sem razão vários primos no pátio de Merda Verde.
Havia uma prima também, uma corpulenta viuvinha, com peitos tão grandes como melões, cujo pai e marido haviam morrido em Ponta Tempestade durante o cerco.
— O pai dela foi bom para mim — Robert contou a ela. — Eu e ela brincávamos juntos quando éramos crianças. — O que não o impediu de voltar a brincar com ela. Tão logo Cersei fechava os olhos o rei se furtava para consolar a pobre criatura solitária. Uma noite ela pediu a Jaime para segui-lo, para confirmar suas suspeitas. Quando seu irmão retornou, ele perguntou a ela se ela queria Robert morto.
— Não — ela respondeu. — Quero que ele seja corno. — Ela gostava de pensar que fora naquela noite que Joffrey fora concebido. 
— Eldon Estermont tomou uma esposa cinquenta anos mais jovem. — Disse a Qyburn. — Por que isso deveria me preocupar?
Ele encolheu os ombros.
— Eu não digo que deveria... Mas Daemon Sand e esta garota Santagar são ambos próximos da filha do Príncipe Doran, Arianne, ou ao menos o homem de Dorne nos faz acreditar. Talvez isso signifique pouco ou nada, mas achei que Vossa Graça deveria saber. 
— Agora sei. — Cersei estava perdendo a paciência. — Tem algo mais?
— Algo mais. Um assunto trivial. — Ele deu a ela um sorriso de desculpas e contou a ela de um show de fantoches que recentemente havia se tornado popular entre os cidadãos. Um fantoche, vestido de Rei dos Animais era dominado por orgulhosos leões altivos. — Os leões fantoches ficam mais gananciosos e arrogantes de acordo com que o conto de traição continua, até que eles começam a devorar a si mesmos. Quando o nobre cervo faz uma objeção, os leões o devoram, e rugem que este é seu direito como a mais poderosa das bestas.
— E este é o fim? — Cersei perguntou, divertida. Olhado sobre certa luz, aquilo poderia ser visto como uma lição saudável.
—Não, Vossa Graça. No fim um dragão eclode do ovo e devora todos os leões.
O fim levava o show de fantoches de uma simples insolência, para traição.
— Bobos e estúpidos.  Apenas cretinos arriscariam a cabeça por um dragão de madeira. — Ela considerou durante um momento. — Mande algum de seus murmuradores para estes shows e faça nota de quem os frequenta, eu posso querer saber seus nomes.
— O que será feito deles, se posso ser atrevido? 
— Qualquer homem de importância deve ser multado. Metade de sua fortuna deve ser suficiente para ensiná-los uma boa lição e preencher nossos cofres sem esvaziar os deles. Aqueles que forem pobres demais devem perder um olho, por assistir traição. Para os marionetistas, o machado.
— Eles são quatro, porventura Vossa Graça poderia deixar-me dois deles para meus próprios propósitos. Uma mulher seria especialmente...
— Eu lhe dei Senelle. A rainha disse rispidamente.
— Pobre de mim. A pobre garota está bastante... exausta.
Cersei não queria nem pensar nisso. A garota havia vindo com ela sem imaginar, achando que estava vindo para servir. Mesmo quando Qyburn colocara as correntes em torno de seus pulsos ela não pareceu entender. A lembrança ainda fazia a rainha ficar enjoada. As celas estavam geladas. As tochas estremeciam, e aquela coisa suja gritando na escuridão...
— Sim, você pode pegar uma mulher. Duas se quiser. Mas primeiro eu terei nomes.
— Como quiser — Qyburn retirou-se.
Lá fora, o sol estava se pondo. Dorcas havia preparado seu banho. Cersei estava agradavelmente imersa na água morna e pensando no que diria aos hóspedes na ceia, quando Jaime estourou a porta e ordenou que Dorcas e Jocelyn saíssem. Seu irmão parecia um pouco menos que limpo e tinha um pouco de cheiro de cavalo sobre ele. Ele trazia Tommen com ele.
— Doce irmã — ele disse. — O rei requer uma palavra. 
As tranças douradas de Cersei flutuavam na água do banho. O quarto estava cheio de vapor. Uma gota de suor escorria pelo seu rosto.
— Tommen? — Ela disse em uma voz perigosamente doce. — O que foi agora? 
O garoto conhecia aquele tom.  Ele encolheu.
— O garoto quer o corcel branco amanha — disse Jaime. — Para suas lições de Justa.
Ela sentou-se na banheira.
— Não haverá Justa.
— Sim, haverá. — Tommen inflou seu lábio inferior. — Eu tenho que montar todos os dias.
— E você poderá — declarou a rainha. — Uma vez que tiver um mestre de armas adequado para supervisionar seu treinamento.
— Eu não quero um mestre de armas adequado. Quero Sor Loras.
— Você faz muito daquele garoto. Sua esposinha encheu-lhe a cabeça de noções loucas das proezas dele, eu sei, mas Osmund Kettleblack é três vezes mais cavaleiro que ele.
Jaime riu.
— Não o Osmund Kettleblack que eu conheço.
Ela poderia tê-lo estrangulado. Eu preciso ordenar a Sor Loras que permita a Sor Osmund desmontá-lo. Isso deverá tirar as estrelas dos olhos de Tommen. Sal em uma lesma e vergonha em um herói e eles encolhem.
— Estou procurando um homem de Dorne para te treinar — disse ela. — Os homens de Dorne são os melhores do reino na Justa.
— Eles não são. De qualquer modo não quero qualquer homem estúpido de Dorne, eu quero Sor Loras. Eu ordeno.
Jaime riu. Ele não ajuda em nada. Ele achava isso divertido? A rainha deu um tapa na água com raiva.
— Devo mandar buscar Pate? Você não ordena a mim. Eu sou sua mãe.
— Sim, mas eu sou o Rei. Margaery diz que todos têm que fazer o que o Rei quer. Eu quero meu corcel branco selado amanhã, então Sor Loras irá me ensinar Justa. E eu quero um gatinho e não vou comer mais beterrabas.
Ele cruzou os braços.
Jaime ainda estava rindo. Então a rainha o ignorou.
— Tommen, venha aqui.
Quando ele deu um passo atrás, ela suspirou.
— Você esta com medo? Um rei não deveria mostrar seu medo. 
O garoto se aproximou da banheira, com os olhos baixos. Ela acariciou seus cachos dourados.
— Rei ou não, você é um garotinho. Até você atingir a idade, o poder será meu. Você irá aprender Justa, eu prometo. Mas não com Loras. Os cavaleiros da guarda real têm obrigações mais importantes que brincar com crianças. Pergunte ao comandante. Não é isso, Sor? 
— Obrigações muito importantes — ele sorriu francamente. — Rodear as muralhas da cidade, por exemplo.
Tommen parecia quase as lágrimas.
— Eu ainda posso ter um gatinho?
— Talvez — a rainha admitiu. — Desde que eu não ouça mais bobagens sobre Justa. Promete?
Ele arrastou os pés.
— Sim.
— Muito bem. Agora vá. Meus convidados chegarão logo.
Tommen foi embora, mas antes de sair ele virou-se para dizer: 
— Quando eu for um rei de direito, eu irei proibir beterrabas.
O irmão dela fechou a porta com o pé.
— Vossa Graça — Jaime disse quando estavam a sós. — Eu estava imaginando. Está bêbada, ou é meramente estúpida?
Ela bateu na água novamente, mandando outro respingo de água para molhar os pés dele.
— Segure sua língua, ou...
— Ou o que? Vai me mandar inspecionar os muros da cidade de novo? Ele sentou-se e cruzou as pernas. A droga das suas muralhas estão bem. Eu rastejei sobre cada centímetro delas e olhei todos seus sete portões. As dobradiças do portão de ferro estão enferrujadas, e o Portão do Rei e o Portão da Lama precisam ser substituídos após Stannis ter batido neles com seus homens.  As muralhas estão tão fortes como sempre foram... Mas talvez Vossa Graça tenha esquecido que nossos amigos de Jardim de Cima estão dentro das muralhas?
— Eu não me esqueci de nada — Cersei disse a Jaime, pensando em certas moedas de ouro com uma Mão em um lado e o rosto de um rei esquecido no outro. Como um carcereiro miserável podia ter uma moeda como aquela escondida embaixo de seu penico? Como um homem como Rugen tinha ouro antigo de Jardim de Cima?
— Esta é a primeira vez que ouço sobre um novo mestre de armas. Você precisará procurar muito por um homem melhor na Justa que Loras. Sor Loras é...
— Eu sei o que ele é. Eu não o quero perto do meu filho. Você tem que lembra-lo das suas obrigações. — O banho estava ficando melhor.
— Ele sabe suas obrigações. E não há melhor lance...
— Você era melhor, antes de perder sua mão. Sor Barristan, quando era jovem. Arthur Dayne era melhor e Príncipe Rhaegar era um adversário até para ele. Não me irrite sobre quão feroz a flor é. Ele é só um garoto.
Ela estava cansada de Jaime a desafiando. Ninguém havia desafiado o senhor seu pai. Quando Tywin Lannister falava os homens obedeciam. Quando Cersei falava os homens sentiam se livres para aconselha-la, para contradizê-la, até recusar. Isto é apenas por que sou uma mulher. Porque não posso lutar com uma espada. Eles davam mais respeito a Robert do que dão a mim, e Robert era um idiota bêbado. Ela não deveria aguentar aquilo, especialmente de Jaime. Eu preciso me livrar dele, e logo. Havia existido um tempo em que ela sonhara que eles deveriam governar os Sete Reinos lado a lado, mas Jaime havia se tornado mais um obstáculo do que uma ajuda.
Cersei saiu do banho. Água escorreu pelas suas pernas dos seus cabelos. 
— Quando eu quiser um conselho, eu pedirei. Deixe-me, sor, eu preciso me vestir.
— Seus convidados do jantar, eu sei. Que conluio é agora? São tantos que perco a conta. — Sua atenção havia caído na água que havia nos cabelos dourados entre as pernas dela.
Ele ainda me quer.
— Com saudades do que perdeu irmão?
Jaime levantou os olhos.
— Eu a amo também, doce irmã. Mas você é uma tola. Uma tola linda e dourada.
As palavras a picaram. Você me disse palavras doces em Pedra Verde, na noite em que plantou Joff dentro de mim, Cersei pensou.
— Saia.
Ela virou-se de costas para ele e ouviu-o sair, atrapalhado com a porta e com seu coto. Enquanto Jocelyn estava garantindo que estava tudo pronto para a ceia, Dorcas ajudou a rainha com seu novo vestido. Tinha listras de cetim verde brilhante, alternando com listras de veludo preto de pelúcia, e renda preta de Myr intrincada acima do corpete. Renda de Myr era caro, mas era necessário a uma rainha parecer bem em todos os momentos, e suas lavadeiras miseráveis haviam encolhido vários de seus vestidos velhos, então eles não serviam mais. Ela poderia ter as chicoteado pelo descuido, mas Taena lhe pediu para ser misericordiosa.
— O povo irá amá-la mais se for gentil — havia dito. Então Cersei ordenou que deduzissem os valores dos salários das mulheres, uma solução muito mais elegante.
Dorcas colocou um espelho de prata em sua mão. Muito bom, a rainha pensou, sorrindo a seu reflexo. Era muito melhor estar fora do luto. Preto a fazia parecer muito pálida. É uma pena que não estou jantando com a Senhora Merryweather, a rainha pensou. Havia sido um longo dia, e a sagacidade de Taena sempre a animava. Cersei não tinha uma amiga de quem gostava tanto desde Melara Hetherspoon, e Melara havia provado ser uma pequena conspiradora gananciosa, com ideias acima de seu posto. Eu não devo pensar mal dela. Ela esta morta e enterrada, e me ensinou a nunca confiar em ninguém além de Jaime.
 Quando Cersei se juntou aos convidados no solar, eles já haviam feito um bom começo com o hidromel. A Senhora Falyse não apenas parece com um peixe, mas também bebe como um, pensou ao notar que esta havia esvaziado quase meio copo.
— Doce Falyse, exclamou, beijando as bochechas da mulher. E bravo Sor Balman. Eu estava distraída quando ouvi de sua querida mãe. Como esta nossa Senhora Tanda?
A Senhora Falyse parecia como se estivesse a ponto de chorar.
— Que bom que Vossa Graça perguntou. O quadril da mamãe foi destruído pela queda, Meistre Frenken disse. Ele fez tudo que pode. Agora nós rezamos, mas...
Reze o quanto quiser, ela ainda vai estar morta quando a lua mudar. Mulheres tão velhas como Tanda Stokeworth não sobrevivem a um quadril quebrado.
— Devo acrescentar minhas preces também — disse Cersei. — Lord Qyburn me disse que Tanda foi jogada de seu cavalo.
— A sela estourou enquanto ela estava montando — disse Sor Balman Byrch. — O cavalariço deveria ter visto a corda que foi usada. Ele foi punido.
— Severamente, espero. — Cersei sentou-se, indicando que seus convidados também deveriam sentar-se. — Vai querer outro copo de hidromel, Falyse? Você sempre foi apaixonada por ele, eu me lembro.
— Muito gentil de sua parte lembrar, Vossa Graça.
Como poderia esquecer? Jaime disse que era incrível você não urinar nas coisas. 
— Como foi sua viajem?
— Desconfortável — reclamou Falyse. — Choveu na maioria dos dias. Pensamos em passar a noite em Rosby, mas o jovem protegido de Lorde Gyles recusou-nos hospitalidade — ela fungou. — Guarde minhas palavras, quando Gyles morrer aquele malnascido desgraçado vai fugir com o seu ouro. Ele pode até tentar reivindicar as terras e o senhorio, embora por direito Rosby deva vir para nós quando Gyles morrer. A senhora minha mãe era tia de segunda esposa, e prima de terceiro grau do próprio Gyles.
Seu sigilo é de uma ovelha minha senhora, ou de uma espécie de macaco? Cersei pensou
— Lorde Gyles está ameaçando morrer desde que eu o conheci, mas ele ainda está conosco, e estará por muitos anos, eu espero — ela sorriu agradavelmente. — Sem dúvidas ele vai tossir em cima de nossos túmulos.
— Provavelmente — Sor Balman concordou. O protegido de Rosby não foi o único a atormentar-nos, Vossa Graça. Encontramos rufiões na estrada também. Imundos, criaturas despenteadas com escudos de couro e seixos. Alguns tinham estrelas costuradas em suas jaquetas, as estrelas sagradas de sete pontos, mas tinham uma aparência do mal sobre todos eles.
— Eles estavam cheios de piolhos, estou certa. — Falyse acrescentou.
— Eles chamam a si mesmos pardais. — Cersei disse. — Uma praga sobre a terra. Nosso novo Alto Septão terá de lidar com eles, uma vez que for coroado. Se não, vou lidar com eles eu mesma.
— Sua alta santidade já foi escolhida? — Perguntou Falyse. 
—Não — a rainha teve que confessar. — O Septão Ollidor estava a ponto de ser escolhido, até que alguns desses pardais seguiram-no até um bordel e o arrastaram nu na rua. Luceon parece à opção mais provável agora, embora os nossos amigos sobre a colina digam que ele ainda tem alguns votos aquém do número necessário.
— Que a Velha guie as deliberações com sua lâmpada de ouro da sabedoria — disse Falyse piedosamente. — Sor Baldan remexeu-se em sua cadeira. — Vossa Graça, um assunto estranho, mas para evitar mal estar entre nós, você deveria saber que nem minha boa esposa, nem sua boa mãe tiveram uma boa mão para nomear essa criança bastarda. Lollys é uma criatura simples, e seu marido é dado ao humor negro. Eu lhe disse para escolher um nome mais apropriado, porem ele riu.
A rainha tomou um gole de vinho e estudou-o. Sor Balman tinha sido bom na Justa, observou uma vez, e um dos cavaleiros mais belos nos Sete Reinos. Ele poderia ainda ostentar um bigode bonito; entretanto, ele não tinha envelhecido bem.  Seu cabelo ondulado loiro tinha recuado, enquanto sua barriga avançado inexoravelmente contra o seu gibão. Como um fantoche ele deixa muito a desejar, ela refletiu. Ainda assim, ele deve servir.
— Tyrion era o nome de um rei, antes dos dragões chegarem. O anão despojou-o, mas talvez esta criança possa trazer honra de novo a este nome. Se este bastardo viver o suficiente. Eu sei que não devo culpá-los. A Senhora Tanda é a irmã que nunca tive, e você... Sua voz se quebrou. Perdoe-me, eu vivo com medo. 
Falyse abriu e fechou sua boca, o que a fez parecer algum tipo especialmente estúpido de peixe. 
— Com... com medo, Vossa Graça?
— Não tenho dormido uma noite inteira desde que Joffrey morreu. Cersei encheu o cálice com hidromel. Meus amigos... são meus amigos, espero? E do Rei Tommen?
— Aquele doce rapaz — Sor Balman declarou. — As próprias palavras da Casa Stokeworth são orgulhosas de serem leais.
— Eu gostaria que houvesse mais como você, sor. Eu digo a verdade, eu tenho grande duvidas a respeito de Sor Bronn da Água Negra.
Marido e mulher trocaram um olhar.
— O homem é insolente, Vossa Graça. — Falyse disse. — Rude e desbocado.
— Ele não é um verdadeiro cavaleiro — disse Sor Balman.
—Não — Cersei sorriu toda para ele. — E você é um homem que conhece o verdadeiro cavalheirismo, sor. Eu me lembro de assisti-lo na justa e... que torneio era onde você lutou com tanto brilhantismo, sor?
Ele sorriu modestamente. 
— Aquele em Valdocaso há seis anos? Não, você não estava lá, senão você certamente teria sido coroada a rainha do amor e da beleza. Foi o torneio em Lannisporto após a Rebelião Greyjoy, não?  Eu desmontei um bom número de cavaleiros naquela vez.
— Foi este. — Seu rosto ficou sombrio. — O anão desapareceu na noite que meu pai morreu, deixando dois bons carcereiros para trás em poças de sangue. Alguns afirmam que ele fugiu através do mar estreito, mas eu me pergunto. O anão é astuto. Talvez ele ainda se esconda por perto, planejando mais assassinatos. Talvez algum amigo está escondendo-o.
— Bronn? — Sor Balman acariciou seu bigode.
— Ele sempre foi uma criatura do anão. Só os Outros sabem quantos homens ele mandou para o inferno sob as ordens de Tyrion.
— Vossa Graça, eu acho que já teria notado um anão se escondendo em nossas terras — disse Sor Balman.
— Meu irmão é pequeno. Ele foi feito para esconder-se. — Cersei deixou sua mão balançar. O nome de uma criança é uma coisa pequena... Mas insolência não punida instiga rebelião. E este homem Bronn estava encontrando mercenários para ele, Qyborn me disse.
— Ele tomou quatro cavaleiros para sua casa — disse Falyse.
Sor Balman bufou.
— Minha boa esposa os lisonjeia ao chamá-los de cavaleiros. Eles são mercenários indignos, sem um pingo de cavalheirismo, todos os quatro.
— Como eu temia. Bronn está juntando espadas para o anão. Talvez os Sete salvem o meu filhinho. O anão irá matá-lo, como matou seu irmão — ela soluçou. — Meus amigos, eu ponho minha honra em suas mãos... mas o que é a honra de uma rainha contra os medos de uma mãe?
— Diga, Vossa Graça. — Sor Balman lhe garantiu. — Suas palavras nunca deixarão este quarto.
Cersei alcançou o outro lado da mesa e sacudiu a mão dele.
— Eu... eu dormiria mais facilmente a noite se eu fosse ouvir que Sor Bronn tivesse sofrido um acidente... enquanto caça, talvez.
Sor Balman considerou por um instante.
— Um acidente mortal?
Não, eu desejo que você quebre o dedão do pé dele. Meus inimigos estão em todos os lugares e meus amigos são idiotas.
— Eu imploro, Sor — suspirou. Não me faça dizer isso.
— Eu entendo. — Sor Balman levantou um dedo.
Um nabo teria entendido mais rápido.
— Você é um verdadeiro cavaleiro de fato, Sor. A resposta às orações de uma mãe amedrontada. — Cersei o beijou. — Faça isso rápido, se puder. Bronn tem apenas alguns homens com ele agora, mas se não agirmos, ele certamente encontrará mais. — Ela beijou Falyse. — Eu nunca esquecerei isto meus amigos. Meus amigos verdadeiros de Stokeworth. Orgulhosos de serem leais. Eu prometo-lhes que acharemos um marido melhor para Lollys quando isso terminar. Um Kettleblack, talvez. Nós Lannister pagamos nossas dividas.
O restante foi Hidromel e beterraba com manteiga, pão quente cozido, erva-crostosas, e as costelas de javali. Cersei havia descoberto que gostava muito de javali desde a morte de Robert. Ela não se incomodava nem com a companhia, mesmo que os sorrisos de Falyse e Sor Balman estivessem sujos de sopa doce. Já havia passado da meia noite quando ela conseguiu desvencilhar-se deles. Sor Balman provou um grande frasco para sugerir ainda outro, e a rainha não achou prudente recusar. Eu poderia ter contratado um Homem Sem Rosto para matar Bronn pela metade do que gastei em hidromel, ela refletiu quando eles finalmente foram.
 Naquela hora seu filho já estava adormecido, mas Cersei deu uma olhada nele antes de procurar sua própria cama. Ela ficou surpresa ao encontrar três gatinhos aninhados a ele.
— De onde eles vieram? Perguntou a Sor Meryn, do lado de fora da câmara real.
— A pequena rainha os deu a ele. Ela só queria lhe dar um, mas ele não conseguia decidir de qual deles gostava mais.
Melhor que cortá-los fora de sua mãe com uma adaga, eu suponho. As tentativas grotescas de sedução de Margaery eram tão obvias que era para se rir. Tommen é jovem demais para beijos, então ela lhe dá gatinhos. Cersei desejava que eles não fossem pretos, entretanto. Gatos pretos davam má sorte, como a garotinha de Rhaegar tinha descoberto naquele mesmo castelo. Ela poderia ser minha filha, se o Rei Louco não tivesse feito sua brincadeira cruel com meu pai. Tinha que ter sido loucura o que levara Aerys a recusar a filha de Lorde Tywin e pegar seu filho em vez disso, enquanto casava seu próprio filho com uma fraca princesa de Dorne, com olhos negros e peito liso.
A memória da rejeição ainda estava inflamada, mesmo depois de todos esses anos. Mais de uma noite ela havia assistido o príncipe Rhaegar no salão, tocando sua harpa de cordas de prata com seus longos e elegantes dedos. Algum homem já havia sido tão bonito? Ele era mais que um homem, todavia. Seu sangue era o sangue da antiga Valiria, o sangue dos dragões e dos deuses. Quando ela era apenas uma garotinha seu pai havia lhe prometido que ela poderia se casar com Rhaegar. Ela não poderia ter mais que seis ou sete anos.
— Não fale disso, criança — ele havia dito a ela, com seu sorriso secreto que apenas Cersei já havia visto. — Não até que Vossa Graça concorde com o noivado. Isto deve permanecer nosso segredo por agora. — E havia sido, entretanto uma vez ela havia desenhado um retrato de si mesma voando atrás de Rhaegar em um dragão, seus braços apertados ao redor do peito dele. Quando Jaime a descobriu, disse que era a Rainha Alysanne e o Rei Jaehaerys.
Ela estava com dez anos quando viu seu príncipe em carne e osso, no torneio que seu pai havia feito para recepcionar o Rei Aerys ao oeste. Estandes haviam sido levantados junto às muralhas de Lannisporto, e a torcida do povo tinha ecoado por Rochedo Casterly como um trovão. Eles torceram por seu pai duas vezes mais alto que pelo Rei, mas isso foi apenas a metade de tão alto quanto torceram por Rhaegar.
Com dezessete anos e novo na cavalaria, Rhaegar Targaryen usava uma placa preta em cima de sua armadura dourada quando galopou para a Justa. Longas correntes de vermelho, dourado e de seda laranja haviam flutuado por trás de seu elmo, como chamas. Dois de seus tios caíram diante de sua lança, juntamente com dúzias dos melhores na Justa de seu pai, a flor do oeste. À noite o príncipe tocou sua harpa de prata e a fez chorar. Quando ela foi apresentada a ele, Cersei quase se afogou nas profundezas de seus tristes olhos roxos. Ele foi ferido, ela se lembrou de ter pensado, mas vou curar suas feridas quando nos casarmos. Perto de Rhaegar até seu lindo Jaime não parecia nada mais que um rapazote. O príncipe será meu marido, ela pensara, com vertiginosa excitação, e então quando o velho rei morrer, eu serei a rainha. A rainha havia lhe confidenciado aquela verdade antes do torneio.
— Você deve estar especialmente linda — a SenhoraGenna lhe disse, agitando seu vestido. — No final da festa deve ser anunciado que você e o Príncipe Rhaegar estão noivos.
Cersei havia sido tão feliz naquele dia. De outro modo ela jamais teria ousado visitar a tenda de Maggy, a Sapa. Ela somente havia feito isso para mostrar a Jeyne e Melara que leoas não temiam nada. Eu serei rainha. Por que uma rainha deveria ter medo de uma velha hedionda. A lembrança daquela profecia ainda a fazia tremer uma vida depois. Jeyne saira correndo da tenda, mas Melara havia ficado, e ela também. Nós a deixamos experimentar nosso sangue, e rimos de suas estúpidas profecias. Nenhuma delas fazia nenhum sentido. Ela seria a esposa de Rhaegar, não importava o que a mulher havia dito. Seu pai havia prometido e a palavra de Tywin Lannister era ouro.
Sua risada morreu no fim do torneio. Não havia tido festa final, sem brindes para comemorar seu noivado com príncipe Rhaegar. Apenas o silencio gelado e olhares frios entre o rei e seu pai. Mais tarde, quando Aerys e seu filho e todos seus galantes cavaleiros se foram para Porto Real ela havia ido até sua tia em prantos, sem entender.
— Seu pai propôs o compromisso — Senhora Genna lhe disse, — mas Aerys recusou-se a ouvir sobre isso. ‘Você é meu mais fiel servo, Tywin’ — o rei disse — ‘mas um homem não casa seu herdeiro com a filha de seu servo.’ Seque suas lágrimas pequena. Já viu um leão chorar? Seu pai achará um homem para você, um melhor que Rhaegar.
Sua tia tinha mentido, entretanto, e seu pai havia falhado com ela, assim como Jaime estava falhando agora. Papai não me encontrou um homem melhor, ao invés disso ele me deu Robert, e a maldição de Maggy floresceu como uma flor envenenada. Se ela tivesse se casado com Rhaegar, como os deuses pretendiam, ele nunca teria olhado duas vezes para a garota lobo. Rhaegar poderia ser nosso rei hoje e eu seria sua rainha, a mãe de seus filhos.
Ela nunca havia perdoado Robert por matá-lo.
Mas claro, leões nunca haviam sido bons em perdoar. Como Sor Bronn de Água Negra logo aprenderia.
 
Foi Hyle Hunt quem insistiu que eles pegassem as cabeças.
— Tarly vai querê-las para colocá-las nas muralhas — ele disse. 
— Nós não temos nenhum alcatrão — Brienne apontou. — A carne vai apodrecer. Deixem-nas aqui. — Ela não queria viajar pela escuridão verdejante da floresta de pinheiros com as cabeças dos homens que tinha matado.
Hunt não a escutou. Ele mesmo cortou o pescoço dos cadáveres, amarrou as três cabeças pelos cabelos e as jogou em sua sela. Brienne não tinha escolha a não ser fingir que elas não estavam lá, mas, às vezes, principalmente à noite, ela podia sentir seus olhos mortos nas suas costas. Uma vez sonhou que elas sussurravam uma para outra.
Estava frio e úmido na Ponta da Garra Rachada quando eles voltaram a andar. Alguns dias chovia, em outros, só parecia que iria chover. Eles nunca estavam aquecidos. Mesmo quando acampavam era difícil encontrar lenha seca para a fogueira.
Quando eles chegaram aos portões de Lagoa da Donzela, uma multidão de moscas os recebeu, um corvo comera os olhos de Shagwell e tinham larvas engatinhando em Pyg e Timeon. Brienne e Podrick estavam, há muito, cavalgando muitos metros à frente, para manter o cheiro de podridão bem atrás deles. Sor Hyle afirmou ter perdido todo o olfato até então.
— Enterre-as — ela o falava toda vez que acampavam à noite, mas Hunt não era nada mais senão intratável. Ele vai preferir dizer a Lorde Randyll que matou todos os três.
Mas, pela sua honra, o cavaleiro não fez nada do tipo.
— O escudeiro gago jogou uma pedra — informou quando o levaram, junto com Brienne, à presença de Tarly, no pátio do castelo de Mooton. As cabeças foram apresentadas a um sargento da guarda, a quem foi dito para limpá-las, cobri-las de breu e ergue-las sobre o portão. — A moça da espada se encarregou do resto.
— Todos os três? — Lorde Randyl estava incrédulo.
— O jeito que ela lutou... ela poderia ter matado mais três.
— E você encontrou a menina Stark? — Tarly exigiu dela.
— Não, meu senhor.
— Ao invés disso você matou alguns ratos. Gostou?
— Não, meu senhor.
— Uma pena. Bem, você já sentiu o gosto de sangue. Provou o que quer que tenha querido provar. É hora de você tirar a cota de malha e por roupas adequadas novamente. Há navios no porto. Um deles vai à Tarth. Você irá com ele.
— Obrigada, meu senhor, mas não.
O rosto de Lorde Tarly dizia que não queria nada mais a não ser cortar sua cabeça e enfiá-la numa estaca acima dos portões de Lagoa da Donzela, junto a Timeon, Pyg e Shagwell. 
— Você pretende continuar com essa insensatez?
— Eu pretendo encontrar a Senhora Sansa.
— Se isso agradar a meu senhor — Sor Hyle disse. — Eu a vi lutando contra os Saltimbancos. Ela é mais forte do que a maioria dos homens, e rápida.
— A espada é rápida — Tarly interrompeu. — Essa é a natureza do aço valiriano. Mais forte que a maioria dos homens? Sim. Ela é uma aberração da natureza, longe de mim negar isso.
Gente como ele nunca me amará, Brienne pensou, não importa o que eu faça.
— Meu senhor, pode ser que Sandor Clegane tenha algum conhecimento sobre a menina. Se eu pudesse encontra-lo...
— Clegane se tornou um fora da lei. Ele cavalga com Beric Dondarrion agora, ao que parece. Ou não, os contos variam. Mostre-me onde eles estão escondidos. Eu irei com prazer cortar suas barrigas ao meio, puxar suas entranhas para fora e queimá-las. Nós enforcamos dúzias de foras da lei, mas os líderes ainda se esquivam de nós. Clegane, Dondarrion, o feiticeiro vermelho, e agora esta mulher, Coração de Pedra... Como você pretende encontrá-los, quando eu mesmo não posso?
— Meu senhor, eu... — Ela não tinha uma boa resposta para ele. — Tudo que posso fazer é tentar.
— Tente, então. Você tem sua carta, não precisa de minha licença, entretanto, eu lhe darei. Se você for bem sucedida, tudo que conseguirá com isso serão feridas de tanto cavalgar. Se não, talvez Clegane deixe você viver depois que ele e seus capangas tenham acabado de te estuprar. Você pode engatinhar de volta à Tarth com algum cachorro bastardo na barriga.
Brienne ignorou aquilo.
— Se isso agradar a meu senhor, quantos homens cavalgam com o Cão?
— Seis ou sessenta ou seiscentos. Depende a quem nós perguntamos. — Randyl Tarly estava, claramente, cheio daquela conversa. Ele começou a se virar.
— Se meu escudeiro e eu pudermos implorar por sua hospitalidade até...
— Implore o quanto quiser. Eu não irei te tolerar em minha residência.
Sor Hyle Hunt deu um passo à frente.
— Com a licença do meu senhor, eu pensei que esta ainda fosse a residência de Lorde Mooton.
Tarly deu ao cavaleiro um olhar venenoso.
— Mooton tem a coragem de uma minhoca. Você não me falará sobre Mooton. Quanto a você, minha senhora, é dito que seu pai é um bom homem. Neste caso, tenho pena dele. Alguns homens são abençoados com filhos, alguns com filhas. Nenhum homem merece ser amaldiçoado com algo como você. Viva ou morta, Senhora Brienne, não virá à Lagoa da Donzela enquanto eu ainda governar.
Palavras são como vento, Brienne falou para si mesma. Elas não podem te machucar. Deixe-as passarem por cima.
— Como desejar, meu senhor — ela tentou dizer, mas Tarly já tinha saído. Ela saiu do pátio como um sonâmbulo, sem saber onde estava indo.
Sor Hyle se pôs ao lado dela.
— Existem estalagens.
Ela balançou a cabeça. Não queria uma palavra com Hyle Hunt.
— Você se lembra do Ganso Fedorento?”
Sua capa ainda tinha o cheiro daquilo.
— Por quê?
— Encontre-me lá no dia seguinte, ao meio-dia. Meu primo Alyn foi um dos que tentaram achar o Cão. Eu falarei com ele.
Por que faria isso?
— Por que não? Se você for bem sucedida onde Alyn falhou, eu poderei escarnecer dele por muitos anos.
Ainda havia estalagens em Lagoa da Donzela, Sor Hyle estava certo. Algumas tinham queimado durante um saque ou outro, e tiveram que ser reconstruídas, e as que permaneceram estavam cheias de soldados do exército de Lorde Tarly. Ela e Podrick visitaram todas elas naquela tarde, mas não havia camas para eles em lugar nenhum.
— Sor? Minha senhora? — Podrick disse enquanto o sol se deitava. — Há navios. Navios têm camas. Redes. Ou beliches.
Os homens de Lorde Randyll ainda rondavam pelo estaleiro, tão numerosos como as moscas que voavam nas cabeças dos Saltimbancos Sangrentos, mas seu sargento conhecia Brienne de vista, e a deixou passar. Os pescadores locais estavam amarrando as redes para a noite e lamentando o que tinham conseguido naquele dia, mas seu interesse estava nos navios maiores, que dobravam as águas tempestuosas do mar estreito. Meia-dúzia deles estavam no porto, menos uma galera chamada Filha do Titã, que estava puxando suas cordas para navegar na maré da noite. Ela e Podrick Payne rondaram pelos barcos que permaneceram. O capitão da Menina de Vila Gaivota achou que ela era uma prostituta e falou para eles que seu barco não era um bordel, e o arpoador do baleeiro ibenês quis comprar o menino, mas eles tinham uma fortuna melhor em outro lugar. Ela comprou para Podrick uma laranja no Caminhante dos Mares, um barco de pesca recémchegado de Vilavelha, pelo caminho de Tyrosh, Pentos, e Valdocaso.
— Vila Gaivota é a próxima — seu capitão lhe disse, — dali para Dedos, depois para Vilirmãs e Porto Branco, se as tempestades permitirem. É um barco limpo, o Caminhante dos Mares, não tem muitos ratos, quando muito, e nós teremos ovos frescos e manteiga recém-batido a bordo. Minha senhora está procurando por uma passagem para o norte?
— Não. — Ainda não. Ela estava tentada, mas...
Enquanto caminhavam para o próximo píer, Podrick arrastou os pés e disse: 
— Sor? Minha senhora? E se minha senhora for para casa? Minha outra senhora, quero dizer. Sor. A Senhora Sansa.
— Eles queimaram sua casa.
— Mesmo assim. Os deuses dela estão lá. E os deuses não podem morrer.
Os deuses não podem morrer, mas meninas podem.
— Timeon era um homem cruel e um assassino, mas eu não acredito que ele mentiria sobre o Cão. Nós não podemos ir para o norte sem termos certeza. Haverá outros barcos.
Na ponta leste do porto, eles finalmente encontraram abrigo para a noite, em uma galera comercial quebrada pela tempestade, chamada Dama de Myr. O estado do barco não era bom. Tinha perdido seu mastro e metade da tripulação em uma tempestade, mas o senhor não tinha o dinheiro que precisava para consertá-lo, então ele estava feliz em fazer algum negócio permitindo que Brienne e Pod compartilhassem uma cabina vazia.
Eles não tiveram uma noite revigorante. Brienne acordou três vezes. Uma vez quando a chuva tinha começado, outra vez quando um rangido a fez pensar que Dick, o Ágil, estava rastejando para matá-la. Na segunda vez, ela acordou com a faca na mão, mas não era nada. Na escuridão da cabine apertada, levou um tempo para ela se lembrar de que Dick, o Ágil, estava morto. Quando ela voltou a dormir, sonhou com os homens que matou. Eles dançaram ao seu redor, zombando, beliscando-a, quando ela os golpeou com a espada. Ela cortou os três em fitas sangrentas, ainda assim eles se apinhavam ao seu redor... Shagwell, Timeon e Pig, sim, mas Randyll Tarly também, e Vargo Hoat, e Ronnet Connington, o Vermelho. Ronnet tinha uma rosa entre seus dedos. Quando ele a segurou em sua frente, ela cortou sua mão fora.
Ela acordou suando, e passou o resto da noite amontoada debaixo da capa, ouvindo o som da chuva no convés acima dela. Foi uma noite selvagem. De quando em quando ela ouvia o som de um trovão distante, e pensou no barco de Bravos que velejou na maré da noite.
Na manhã seguinte, ela foi ao Ganso Fedorento novamente, acordou sua proprietária negligente e comprou algumas salsichas gordurosas, pão frito, meio copo de vinho, uma jarra de água fervendo e dois copos limpos. A mulher olhou de soslaio para Brienne enquanto colocava a água para ferver.
— Você é a grandalhona que marchou junto com Dick, o Ágil. Eu me lembro. Ele traiu você?
— Não.
— Te estuprou?
— Não. 
— Roubou seu cavalo?
— Não. Ele foi morto por foras da lei.
—Foras da lei? A mulher parecia estar mais curiosa do que chateada. — Eu sempre pensei que Dick iria ser pendurado ou enviado para aquela Muralha.
Eles comeram o pão frito e metade das salsichas. Podrick Payne lavou sua ração com água e um pouco de vinho enquanto Brienne bebia um copo de vinho aguado e se perguntava o que fazia ali. Hyle Hunt não era nenhum cavaleiro de verdade. Seu rosto honesto era apenas uma máscara. Eu não preciso de sua ajuda, não preciso nem de sua proteção, e eu não preciso dele, ela falou a si mesma. Ele provavelmente nem vem. Me falar para vir aqui foi apenas mais uma peça.
Ela se levantou para ir embora quando Sor Hyle chegou. 
— Minha senhora. Podrick. — Ele olhou de relance para os copos e pratos e para as salsichas meio comidas, esfriadas numa poça de gordura, e disse: — Deuses, espero que você não tenha comida a comida daqui.
— O que nós comemos não te interessa — Brienne disse. — Você encontrou seu primo? O que ele te falou?
— Sandor Clegane foi visto pela última vez nas Salinas, no dia do ataque. Depois disso ele cavalgou para o oeste, ao longo do Tridente.
Ela fez uma careta.
— O Tridente é um rio longo.
— Sim, mas eu não acho que nosso cachorro vagará para muito longe da sua boca. Westeros perdeu seu charme para ele, ao que parece. Nas Salinas ele estava procurando por um barco. — Sor Hyle tirou um rolo de couro de ovelha da sua bota, empurrou as salsichas e o desenrolou. Era um mapa. — O Cão matou três dos homens de seu irmão em uma velha estalagem na encruzilhada, aqui. Ele levou o ataque para as Salinas, aqui. — Ele apontou as Salinas com seu dedo. — Ele pode entrar numa armadilha. Os Frey se encontram aqui em cima, nas Gêmeas, e Darry e Harrenhal estão no sul, do outro lado do Tridente, a oeste ele tem os Blackwood e os Bracken brigando, e Lorde Randyll está aqui em Lagoa da Donzela. A estrada de altitude para o Vale está coberta pela neve, se ele conseguir passar pelos clãs da montanha. Para onde um cachorro iria?
— Se ele estiver com Dondarrion...?
— Não. Alyn tem certeza disso. Os homens de Dondarrion estão procurando por ele também. Eles deram sua palavra de que pretendem pendurá-lo pelo que ele fez nas Salinas. Eles não tem parte nisso. Lorde Randyll ouviu um boato de que eles esperam colocar os homens comuns contra Beric e sua irmandade. Ele nunca terá o senhor do relâmpago enquanto o povo o estiver protegendo. E tem essa outra banda, liderada por essa Coração de Pedra... Amante de Lorde Beric, de acordo com um conto. Supostamente, ela foi enforcada pelos Frey, mas Dondarrion a beijou e a trouxe de volta à vida, e agora ela não pode morrer, não mais do que ele pode. 
Brienne estudou o mapa.
— Se Clegane foi visto pela última vez nas Salinas, esse seria o lugar para achar sua trilha.
— Não há mais ninguém nas Salinas, a não ser um velho cavaleiro escondido no seu castelo, segundo Alyn.
— Mesmo assim seria um bom lugar para começar.
— Há um homem — Sor Hyle disse. — Um septão. Ele passou pelo meu portão no dia anterior ao que você apareceu. Meribald é seu nome. Nascido e crescido junto ao rio, e ele serviu aqui por toda a vida. Partirá de manhã para fazer sua rota, e sempre passa pelas Salinas. Deveríamos ir com ele.
Brienne olhou para cima bruscamente.
— Nós?
— Eu irei com você.
— Não.
— Bem, eu irei com o septão Meribald para as Salinas. Você e Podrick podem ir para onde quiserem.
— Lorde Randyll ordenou que me seguisse de novo?
— Ele ordenou que eu ficasse longe de você. Lorde Randyll acha que você pode ser um bom estupro.
— Então por que viria comigo?
— Era isso ou retornar para o trabalho no portão.
— Se seu senhor ordenou.
— Ele não é mais meu senhor.
Aquilo foi inesperado para ela.
— Você deixou seu serviço?
— Sua senhoria me informou que ele não tinha de longe nenhuma necessidade de minha espada, ou de minha insolência. Isso significa a mesma coisa. Doravante, eu irei aproveitar a vida de aventureiro de um cavaleiro errante... Embora eu imagine que se nós achássemos Sansa Stark, seríamos recompensados.
Ouro e terra, são essas coisas que ele pensa que conseguirá com isso.
— Eu pretendo salvar a garota, não vendê-la. Eu fiz um voto.
— Eu não me lembro de ter feito.
— Este é o motivo pelo qual você não virá comigo.
Eles partiram na manhã seguinte, quando o sol subia.
Foi uma procissão estranha: Sor Hyle em um cavalo de cor castanha e Brienne na sua égua alta e cinza, Podrick Payne escarranchado na sua sela, e o septão Meribald andando ao lado deles com sua lança, guiando um pequeno jumento e um grande cachorro. O jumento carregava um peso tão grande que Brienne estava com medo de que suas costas se quebrassem.
— Comida para os pobres e famintos dos rios — Septão Meribald falou-lhes nos portões de Lagoa da Donzela. — Sementes e nozes e frutas secas, mingau de aveia, farinha de trigo, pão de cevada, três rodelas de queijo amarelo da estalagem pelo Portão dos Tolos, bacalhau salgado para mim, carneiro salgado para o Cachorro... oh, e sal. Cebolas, cenouras, nabos, dois sacos de feijão, quatro de cevada, e nove de laranjas. Eu tenho uma queda por laranjas, confesso. Eu comprei essas de um marinheiro, e receio que essas serão as últimas que vou chupar até a primavera.
Meribald era um septão sem septo, situado um pouco acima de um irmão pidão na hierarquia da fé. Havia centenas como ele, um bando maltrapilho cuja humilde tarefa era ir de aldeia em aldeia, conduzindo serviços religiosos, selando casamentos e perdoando pecados. Ele esperava que aqueles a quem visitava o desse abrigo e comida, mas a maioria era tão pobre quanto ele, então Meribald não podia demorar-se em um lugar por muito tempo sem causar algum aperto aos seus anfitriões. Estalajadeiros bondosos permitiam que ele dormisse às vezes em sua cozinha ou em seu estábulo, e havia refúgios e ainda alguns castelos onde ele sabia que podiam lhe dar alguma hospitalidade. Quando não havia esses lugares, ele dormia debaixo de árvores ou nas matas.
— Há muitas florestas nas zonas do rio — Meribald disse. — As antigas são as melhores. Não há nada melhor do que uma árvore de cem anos. Dentro de uma delas um homem pode dormir como em uma estalagem, com menos medo das pulgas.
O septão não podia ler ou escrever, como ele alegremente confessou ao longo do caminho, mas ele sabia uma gama de diferentes orações e podia recitar longas passagens de A Estrela de Sete Pontas, o que era tudo que as pessoas das vilas precisavam. Ele tinha o rosto cicatrizado, coberto de pelos cinza, rugas nos cantos dos olhos. Embora fosse um homem robusto, um metro e oitenta de altura, tinha um jeito de curvar-se quando andava que o fazia parecer muito mais baixo. Suas mãos eram grandes e coriáceas, com os nós dos dedos vermelhos e sujeira debaixo das unhas. E ele tinha o maior pé que Brienne já tinha visto, nu e negro, e duro como um chifre.
— Eu não uso sapato há vinte anos — ele falou a Brienne. — No primeiro ano, eu tinha mais calos do que dedos, e a planta dos meus pés sangravam como um porco quando caminhava por pedras duras, mas eu rezei e o Sapateiro de cima transformou minha pele em couro.
— Não existe nenhum sapateiro em cima — Podrick protestou.
— Existe, rapaz... embora você possa chamá-lo por outro nome. Diga-me, qual dos sete deuses você ama mais?
— O Guerreiro — disse Podrick sem nenhuma hesitação.
Brienne pigarreou.
— No Castelo do Entardecer o septão de meu pai sempre disse que não há mais de um deus.
— Um deus com sete aspectos. É assim, minha senhora, e você está certa em apontar isso, mas o mistério dos sete que são um só não é fácil para o povo simples compreender, e eu não sou nada se não for simples, então eu ensino sobre os sete deuses. — Meribald voltou-se para Podrick. — Eu conheci um garoto que não amava o Guerreiro. Mas eu estou velho, e como velho, eu amo o Ferreiro. Sem o seu labor, o que o Guerreiro defenderia? Toda cidade tem um ferreiro, e todo castelo. Eles fazem o arado que precisamos para plantar o que vamos colher, os pregos que usamos para construir nossos barcos, sapatos de aço para os cascos dos nossos cavalos fiéis, as espadas brilhantes dos nossos senhores. Ninguém pode duvidar do valor de um ferreiro, então nós nomeamos um dos Sete em honra a eles, mas poderíamos também chama-lo de o Fazendeiro ou o Pescador, o Carpinteiro ou o Sapateiro. No que ele trabalha não importa. O que importa é que ele trabalha. O Pai governa, o Guerreiro luta, o Ferreiro trabalha, e juntos eles realizam tudo o que é preciso para um homem. Assim como o Ferreiro é um dos aspectos da divindade, o Sapateiro é um aspecto do Ferreiro. Foi ele quem ouviu minha oração e curou meus pés.
— Os deuses são bons — Sor Hyle disse numa voz seca — mas por que incomodá-los quando você poderia simplesmente ter calçado os sapatos?
— Ir com os pés descalços foi a minha pena. Até mesmo os septãos santos podem ser pecadores, e minha carne é tão fraca quanto poderia ser. Eu era jovem e cheio de vida, e as garotas... um septão pode parecer tão elegante como um príncipe se ele é o único homem que conhece que tem tido mais do que um sorriso na sua vila. Eu recitava para elas A Estrela de Sete Pontas. O Livro da Donzela funcionava melhor. Oh, eu era um homem fraco antes de jogar fora meus sapatos. Envergonha-me pensar em todas as garotas que deflorei.
Brienne se consertou na sela desconfortavelmente, pensando no campo abaixo das muralhas de Jardim de Cima e a aposta que Sor Hyle e os outros tinha feito para ver quem seria o primeiro que iria para a cama com ela.
— Nós estamos procurando por uma donzela — confidenciou Podrick Payne. — Uma garota nobre de treze anos, ruiva.
— Eu pensei que procuravam por foras da lei.
— Eles também — Podrick admitiu.
— A maioria dos viajantes fazem tudo que podem para evitar homens como esses — disse o Septão Meribald, — ainda assim vocês procuram por eles.
— Nós procuramos por apenas um fora da lei — Brienne disse. — O Cão.
— Foi o que Sor Hyle me disse. Que os Sete te salvem, filha. É dito que deixa um trilha de bebês mortos e mulheres violadas atrás de si. O Cachorro Louco das Salinas, eu ouvi o chamarem. O que um povo tão bom iria querer com tal criatura?
— A donzela de que Podrick falou pode estar com ele.
— Verdade? Então devemos rezar pela pobre menina.
E por mim, pensou Brienne, uma oração por mim também. Peça à Velha para erguer sua lanterna e me guiar até a Senhora Sansa, e ao Guerreiro para dar força aos meus braços para que eu possa defendê-la.
Entretanto, ela não disse essas palavras em voz alta, não enquanto Hyle Hunt pudesse ouvi-la e zombar da sua fraqueza de mulher.
Com o Septão Meribald andando a pé e seu jumento carregando uma carga tão pesada, eles andaram devagar por todo o dia. Eles não pegaram o caminho principal para oeste, o caminho que Brienne tinha cavalgado com Sor Jaime quando foram para Lagoa da Donzela, encontrando-a saqueada e cheia de mortos. Ao invés disso, eles tomaram o sentido noroeste, seguindo a praia da Baía dos Caranguejos em uma trilha tortuosa que não aparecia em nenhum dos preciosos mapas de pele de carneiro de Sor Hyle. As colinas íngremes, os pântanos negros e as florestas de pinheiros da Ponta da Garra Rachada não podiam ser encontrados daquele lado da Lagoa da Donzela. As terras em que eles viajaram eram baixas e molhadas, uma natureza repleta de dunas de areia e charcos salgados debaixo de um firmamento cinza-azulado. O caminho parecia desaparecer por entre os juncos e poços de maré para aparecer de novo uma milha adiante. Brienne pensou que sem Meribald eles já estariam perdidos. O chão geralmente era macio, mas mesmo assim o septão batia no chão com sua lança para saber os lugares apropriados para pisar. Não havia árvores a léguas a frente deles, apenas mar e céu e areia.
Nenhuma terra poderia ser mais diferente de Tarth, com suas montanhas e cachoeiras, seus altos prados e vales escuros, no entanto, o lugar tinha sua própria beleza, Brienne pensou. Eles passaram por dúzias de córregos com sapos e grilos, viram andorinhas-do-mar voando no céu da baía, ouviram os maçaricos chamando das dunas. Uma vez uma raposa cruzou o seu caminho e fez o cachorro de Meribald latir selvagemente. 
E havia pessoas também. Algumas viviam entre os juncos em casas construídas de barro e palha, enquanto outras pescavam na baía em coracles e construíram suas casas em estacas de madeira raquíticas sobre as dunas. A maioria parecia viver sozinha, sem qualquer visão de ocupação humana a não ser a própria.
Eles pareciam ser um povo tímido, mas perto do meio-dia o cachorro começou a latir novamente, e três mulheres emergiram dos juncos e deram a Meribald uma cesta cheia de mariscos. Ele deu a cada uma delas uma laranja em retribuição, embora mariscos fossem a coisa mais comum naquele mundo, enquanto laranjas eram raras e caras. Uma das mulheres era muita velha, outra tinha uma criança pesada no colo. A outra era uma menina tão nova e bonita como uma flor de primavera. Quando Meribald começou a falar sobre seus pecados, Sor Hyle riu e disse: 
— Parece que os deuses caminhavam conosco... pelo menos a Donzela, a Mãe, e a Velha. — Podrick parecia tão atônito que Brienne teve que dizer que não, elas só eram três mulheres do pântano.
Depois, quando eles recomeçaram a jornada, ela virou-se para o septão e disse,
— Estas pessoas vivem a menos de um dia de viagem de Lagoa da Donzela, no entanto a peleja ainda não os tocou.
— Eles têm pouco para ser tocado, minha senhora. Seus tesouros são conchas, pedras e barcos de couro, suas melhores armas são facas enferrujadas. Eles nascem, vivem, amam e morrem. Sabem que Lorde Mooton governa sobre suas terras, mas poucos o viram e o Rio Corrente e as Terras do Rei são apenas nomes para eles.
— E mesmo assim eles conhecem os deuses — disse Brienne. — Esse é seu trabalho, eu acho. Por quanto tempo você andou pelas terras dos rios?
— Logo fará quarenta anos — o septão disse, e seu cachorro deu um latido alto. — De Lagoa da Donzela a Lagoa da Donzela, meu circuito dura a metade de um ano, às vezes mais, mas não conheço o Tridente. Eu vislumbrei os castelos de grandes senhores apenas a uma distância, mas eu conheço os mercados das cidades e os refúgios, vilas muito pequenas para terem um nome, a mata e as colinas, os regatos de onde um homem sedento pode beber e as cavernas onde ele pode se proteger. E as estradas que o povo usa, as trilhas tortuosas e lamacentas que não aparecem em mapas de pergaminho, eu as conheço também. — Ele riu. — Eu devo. Meus pés andaram por cada milha das terras dos rios, e dez vezes mais.
As estradas de trás são as que os fora da lei usam, e as cavernas um bom lugar para eles se esconderem. Um comichão de suspeita fez com que Brienne se perguntasse o quão bem Sor Hyle conhecia esse homem.
— Deve ser uma vida muito solitária, septão.
— Os Sete estão sempre comigo — disse Meribald, — e eu tenho meu servo fiel e meu cachorro.
— Ele tem nome? — Perguntou Podrick Payne.
— Deve ter — disse Meribald — mas ele não é meu cachorro. Não ele.
O cachorro latiu e abanou o rabo. Ele era enorme, criatura peluda, sessenta quilos no mínimo, mas amigável.
— A quem ele pertence? Perguntou Podrick Payne.
— Por quê deveria? A si mesmo, e aos Sete. Quanto ao seu nome, ele não me falou qual é. Chamo-o Cachorro.
— Oh. — Podrick não sabia o que fazia uma pessoa chamar um cachorro de Cachorro. O garoto mastigou o pensamento por um tempo e depois disse. Eu tinha um cachorro quando criança. Eu o chamava de Herói.
— Ele era?
— Ele era o quê?
— Um herói.
— Não. Mas era um bom cachorro. Ele morreu.
— Cachorro me mantém protegido nas estradas, até mesmo em tempos tão difíceis como esses. Nem lobo nem bandido ousa aproximar-se de mim quando Cachorro está comigo. — O septão fez uma careta. — Ultimamente os lobos se multiplicam terrivelmente. Há lugares em que um homem só pode encontrar uma árvore para dormir dentro. Em todos esses anos a maior matilha que já vi tinha menos de uma dúzia de lobos, mas a matilha que ronda ao longo do Tridente tem quase cem.
Você os viu? — Sor Hyle perguntou.
— Fui poupado disso, os Sete me salvaram, mas eu os ouvi à noite mais de uma vez. Tantas sons... sons que fazem o sangue de um homem coagular. Faz até mesmo Cachorro ter calafrios, e ele matou uma dúzia de lobos. — Ele acariciou a cabeça do cachorro. — Algumas pessoas dirão que são demônios. Eles dizem que a matilha é liderada por uma loba monstruosa, uma sombra perseguidora horrível, cinza, enorme. Eles te dirão que ela é conhecida por derrubar bisões sozinha, que nenhuma armadilha ou laço pode segurá-la, que não teme nem aço nem fogo, que mata qualquer outro lobo que tente tomar seu posto, que não come carne alguma a não ser humana.
Sor Hyle Hunt riu.
— Agora você conseguiu, septão. Os olhos do pobre Podrick estão tão grandes como ovos cozidos.
— Não estão — disse Podrick, indignado. Cachorro latiu.
Naquela noite eles montaram um acampamento frio nas dunas. Brienne mandou Podrick ir até à praia encontrar madeira para o fogo, mas ele voltou com as mãos vazias, com lama até os joelhos.
— A maré está baixa, sor. Minha senhora. Não tem água nenhuma, apenas alagadiços.
— Fique longe da lama, filho — aconselhou Septão Meribald. — A lama não é gentil com estranhos. Se andar pelos caminhos errados, ela vai se abrir e te engolir.
— É apenas lama — insistiu Podrick.
— Até que encha sua boca e comece a entrar em seu nariz. Então, é morte. — Ele sorriu para tirar a frieza de suas palavras. — Limpe essa lama e coma um pedaço de laranja, rapaz.
O dia seguinte foi mais do mesmo. Eles quebraram o jejum com bacalhau e mais fatias de laranja e tomaram seu rumo antes que o sol tivesse nascido completamente, com um céu cor de rosa atrás deles e um céu roxo a sua frente. Cachorro guiou-os, farejando cada tufo de junco e parando de vez em quando para mijar; ele parecia conhecer a estrada tão bem quanto Meribald. O canto das andorinhas-do-mar tremia no ar da manhã enquanto a maré subia.
Perto do meio-dia eles pararam numa pequena vila, a primeira que tinham encontrado, onde oito das casas de estaca se erguiam sobre um pequeno córrego. Os homens pescavam em seus coracles, mas as mulheres e as crianças desceram as escadas de corda e se juntaram ao redor do Septão Meribald para rezar. Depois do serviço ele perdoou seus pecados e os deixou com alguns nabos, um saco de feijão, e duas de suas preciosas laranjas.
De volta à estrada, o septão disse.
— Faríamos bem se fizéssemos turnos de vigia essa noite, meus amigos. Os aldeões disseram que viram três homens quebrados se escondendo nas dunas, a oeste da velha vigia.
— Só três? — Sor Hyle sorriu. — Três homens são como mel para nossa espadachim. Eles não irão perturbar homens armados.
— A não ser que estejam morrendo de fome — o septão disse. — Há comida nesses brejos, mas apenas para aqueles que têm os olhos para encontrá-la, e esses homens são estranhos aqui, sobreviventes de alguma batalha. Se eles nos abordarem, sor, deixe-os comigo.
— O que fará com eles?
— Os alimentarei. Pedirei para que confessem seus pecados, então eu poderei perdoá-los. E os convidarei para irem conosco para a Ilha Quieta.
— Seria melhor convidá-los para cortar nossas gargantas enquanto dormimos — Hyle Hunt replicou. — Lorde Randyll tem outras maneiras de lidar com homens quebrados, aço e corda de cânhamo.
— Sor? Minha senhora? — Disse Podrick. — Um homem quebrado é um fora da lei?
— Mais ou menos — Brienne respondeu.
O Septão Meribald discordou.
— Mas menos do que mais. Há muitas espécies de fora da lei, assim como há muitos espécies de pássaros. Um maçarico e uma águia-do-mar têm asas, mas não são os mesmos. Os cantores amam cantar sobre homens bons forçados a quebrar a lei para lutar contra algum senhor perverso, mas a maioria dos foras da lei são mais parecidos com esse Cão voraz do que com o Senhor do Relâmpago. Eles são homens maus, guiados pela ganância, azedados pela malícia, desprezando os deuses e cuidando apenas de si mesmos. Homens quebrados são mais merecedores de nossa pena, embora também possam ser perigosos. Quase todos são homens comuns, povo simples que nunca esteve a mais de um quilômetro da casa em que nasceram até o dia em que algum senhor veio para leva-los para a guerra. Mal calçados e mal vestidos, eles marcham para longe dos estandartes, na maioria das vezes armadas com nada além de uma foice ou uma enxada afiada, ou uma marreta que eles mesmos fizeram, amarrando uma pedra a um pedaço de madeira com tiras de couro. Irmãos marcham com irmãos, pais com filhos, amigos com amigos. Eles ouviram as canções e as histórias, então eles vão com o coração ansioso, sonhando com as maravilhas que verão, da riqueza e glória que ganharão. A guerra parece ser uma aventura legal, a maioria deles nunca saberá. Então eles sentem o primeiro sabor da batalha. Para alguns, o sabor é suficiente para quebrá-los. Outros continuam por anos, até que percam a conta de todas as batalhas em que lutaram, mas até mesmo um homem que sobreviveu a cem batalhas pode ser quebrado como se a centésima fosse a primeira. Irmãos veem irmãos morrerem, pais perdem filhos, amigos veem amigos tentando segurar suas entranhas depois de serem atingidos por um machado. Eles veem o senhor que os levou para lá cair, e algum outro senhor gritar que eles pertencem a ele agora. Eles adquirem uma ferida, e quando essa está quase se curando, adquirem outra. Nunca há o suficiente para comer, seus sapatos caem aos pedaços na marcha, suas roupas estão rasgando e apodrecendo, e metade deles se cagam nas calças por beberem água contaminada. Se querem botas novas ou uma capa mais quente ou talvez um elmo enferrujado, eles precisam tirá-los de um cadáver, e quando caem em si, estão roubando dos vivos também, dos aldeões em cujas terras estão lutando, homens bem parecidos com aqueles que costumavam ser. Eles matam suas ovelhas e roubam suas galinhas, e depois disso é apenas um pequeno passo para que comecem a roubar suas filhas também. E um dia eles olham ao redor e percebem que todos os seus amigos e parentes se foram, que estão lutando ao lado de estranhos debaixo de um estandarte que eles sequer reconhecem mais. Eles não sabem quem são ou como voltar para casa, e o senhor para quem estão lutando não sabe seus nomes, mesmo assim ele vem, gritando para que eles fiquem em sentido, para que formem uma linha com suas lanças e foices e enxadas afiadas, para defender a posição. E os cavaleiros vêm até eles, homens sem face vestidos em aço, e o trovão de ferro que carregam parece encher o mundo... e o homem se quebra. Ele volta e corre, ou engatinha sobre os cadáveres da matança, ou roubam na escuridão da noite, e ele encontra algum lugar para se esconder. Todo pensamento sobre seu lar já se foi, e reis e senhores e deuses significam menos do que uma coxa de carne estragada que o deixará vivo por mais um dia, ou um odre de vinho ruim que poderá afogar seu medo por algumas horas. O homem quebrado vive dia a dia, de refeição a refeição, mais fera do que homem. A Senhora Brienne não está errada. Em tempos como esse, o viajante deve estar atento a homens quebrados, e temêlos... mas deve sentir pena deles também.
Quando Meribald terminou, um silêncio profundo desceu sobre o grupo. Brienne podia ouvir o vento murmurando em uma moita de salgueiro e ao longe o débil som de uma gavia. Ela podia ouvir Cachorro arquejando suavemente enquanto trotava ao lado do septão e seu jumento, com a língua pra fora da boca. O silêncio se estendeu e se estendeu, até que finalmente ela disse.
— Quantos anos você tinha quando eles te enviaram para a guerra?
— Ora, quando era mais novo do que seu menino — Meribald replicou. — Muito novo para tal coisa, de fato, mas meus irmãos todos estavam indo, e eu não seria deixado para trás. Willam disse que eu poderia ser seu escudeiro, embora ele não fosse nenhum cavaleiro, apenas um garçom de taverna armado com uma faca de cozinha que roubou da estalagem. Ele morreu nos Degraus de Pedra, sem acertar um golpe. A febre o levou, assim como a meu irmão Robin. Owen morreu quando uma clava acertou e quebrou sua cabeça, e seu amigo Jon Pox foi enforcado por estupro.
— A Guerra dos Reis de Nove Centavos? — Perguntou Hyle Hunt.
— Assim a chamam, embora eu nunca tenha visto um rei, ou ganhado um centavo. Mas foi uma guerra. Aquilo foi uma guerra.
 
Sam estava em pé diante da janela, balançando nervosamente, enquanto observava a última luz do sol desaparecer atrás de uma fileira de telhas pontiagudas. Ele deve ter ficado bêbado de novo, pensou melancolicamente. Ou então ele conheceu outra garota. Ele não sabia se praguejava ou chorava. Dareon era para ser seu irmão. Peça-lhe para cantar, e ninguém poderá ser melhor. Peça-lhe para fazer qualquer outra coisa...
As névoas da noite tinham começado a subir, enviando dedos cinza sobre as paredes dos edifícios que ladeavam o velho canal.
— Ele prometeu que estaria de volta — disse Sam. — Você o ouviu também. 
Goiva olhou para ele com os olhos avermelhados e inchados. Os cabelos sujos e embaraçados caíam sobre seu rosto. Ela parecia um animal cauteloso olhando através de um arbusto. Haviam se passado dias desde que eles tinham acendido uma fogueira, mas a menina selvagem gostava de se aconchegar perto da lareira, como se as cinzas frias ainda tivessem um pouco de calor restante.
— Ele não gosta de ficar aqui conosco — disse ela, sussurrando para não acordar o bebê. — É triste aqui. Ele gosta de ficar onde há vinho e sorrisos.
Sim, pensou Sam, e o vinho está em toda parte menos aqui. Bravos estava cheia de estalagens, tavernas e bordéis. E se Dareon preferiu uma fogueira e uma taça de vinho quente ao invés de pão amanhecido e companhia de uma mulher chorosa, um glutão covarde e um velho doente, quem poderia culpá-lo? Eu poderia culpá-lo. Ele disse que estaria de volta antes do crepúsculo, ele disse que iria nos trazer vinho e comida.
Ele olhou pela janela mais uma vez, alimentando a esperança de ver o cantor correndo para casa. A escuridão estava caindo na cidade secreta, arrastando-se pelos becos e descendo pelos canais. O bom povo de Bravos logo estaria fechando as janelas e trancando as suas portas. A noite pertencia aos bravos e as prostitutas.
Os novos amigos de Dareon, Sam pensou amargamente. O cantor só falava deles ultimamente. Ele estava tentando escrever uma canção sobre uma prostituta, uma mulher chamada de Sombra da Lua, que o tinha ouvido cantar ao lado do Lago da Lua e o recompensou com um beijo.
— Você deveria ter pedido prata para ela — Sam disse. — É de moedas que precisamos, não de beijos. — Mas o cantor apenas sorriu. — Alguns beijos valem mais que ouro amarelo, Matador.
Aquilo o irritou também. Dareon não deveria estar compondo canções sobre prostitutas. Ele deveria estar cantando sobre a Muralha e o valor da Patrulha da Noite. Jon tinha esperança de que talvez suas canções pudessem convencer alguns jovens a vestir o negro. Em vez disso, ele cantou sobre beijos dourados, cabelos prateados e lábios vermelhos. Ninguém nunca vestiria o negro por causa de lábios vermelhos.
Às vezes, ao tocar ele acordava a criança também. Então a criança começava a chorar. Dareon gritava para ela ficar quieta, Goiva chorava, e o cantor se enfurecia, saía e não voltava por dias.
— Toda essa choradeira me faz querer dar um tapa nela — ele reclamou: — E eu mal posso dormir quando ela soluça.
Você iria chorar também se tivesse um filho e o perdesse, Sam quase disse. Ele não podia culpar Goiva por seu lamento. Em vez disso, ele culpou Jon Snow e se perguntou quando o coração de Jon tinha se transformado em pedra. Uma vez ele fez a Meistre Aemon essa mesma pergunta, quando Goiva foi para o canal buscar água para eles.
— No momento em que você o elevou como senhor comandante  — respondeu o velho.
Mesmo agora, apodrecendo na sala fria sob o beiral do telhado, parte de Sam não queria acreditar que Jon tinha feito o que o Meistre Aemon pensava. Deve ser verdade, no entanto. Por que mais Goiva choraria tanto? Tudo o que ele tinha que fazer era perguntar-lhe de quem era criança que ela estava amamentando, mas ele não teve coragem. Ele estava com medo da resposta que poderia receber. Eu ainda sou um covarde, Jon. Não importa onde ele fosse neste mundo, seus medos iriam com ele.
Um estrondo oco ecoou pelos os telhados de Bravos, como o som de um trovão distante. O Titã, soando como o cair da noite do outro lado da lagoa. O barulho foi alto o suficiente para acordar o bebê, e seu choro repentino acordou Meistre Aemon. Enquanto Goiva foi dar o peito ao menino, os olhos do velho se abriram, e ele se mexeu debilmente em sua cama estreita.
— Egg? Está escuro. Por que está tão escuro?
Porque você é cego. A sanidade de Aemon estava diminuindo mais e mais desde que chegaram a Bravos. Alguns dias ele não parecia saber onde estava. Alguns dias ele se perdia ao dizer alguma coisa e começava a divagar sobre seu pai ou seu irmão. Ele tem cento e dois anos, Sam lembrou a si mesmo, mas ele também era velho em Castelo Negro e sua sanidade nunca tinha se perdido por lá. 
— Sou eu — ele tinha que dizer. — Samwell Tarly. O seu intendente.
— Sam — Meistre Aemon lambeu os lábios, e piscou. — Sim. E aqui é Bravos. Perdoe-me, Sam. A manhã chegou?
— Não. — Sam sentiu a testa do velho. Sua pele estava úmida de suor, fria e úmida ao toque, sua respiração era um chiado suave. — É noite, Meistre. Você estava dormindo.
— Por muito tempo. Está frio aqui dentro.
— Nós não temos madeira — Sam disse a ele — e o estalajadeiro não nos dará mais se não tivermos moeda. — Foi a quarta ou quinta vez que eles tiveram essa mesma conversa. Eu deveria ter usado a nossa moeda para madeira, Sam repreendia-se o tempo todo. Eu deveria ter tido o bom senso de mantê-lo aquecido.
Ao contrário, ele havia desperdiçado a última de sua prata em um curandeiro da Casa das Mãos Vermelhas, um homem alto, pálido com vestes bordadas com listras vermelhas e brancas em espiral. Tudo o que a prata comprou-lhe foi meio frasco de vinho dos sonhos.
— Isso pode suavizar a sua morte — o bravosiano tinha dito, mas não de maneira indelicada. Quando Sam perguntou se não havia mais nada que ele pudesse fazer, ele balançou a cabeça. — Pomadas eu tenho, poções e infusões, tinturas, venenos e cataplasmas. Eu poderia sangrá-lo, purificá-lo, aplicar sanguessugas... mas por quê? Nenhuma sanguessuga pode fazê-lo ser jovem outra vez. Este é um homem velho, e a morte está em seus pulmões. Dê-lhe isto e deixe-o dormir.
E assim ele fez toda noite e todo o dia, mas agora o velho estava se esforçando para se sentar.
— Devemos ir até os navios.
Os navios novamente.
— Você está fraco demais para sair — ele teve que dizer. Meistre Aemon teve durante a viagem um calafrio que se instalou em seu peito. No momento em que eles chegaram a Bravos ele tinha ficado tão fraco que tiveram que carregá-lo em terra. Eles ainda tinham uma gorda bolsa de prata até então, de modo que Dareon pediu a maior cama da estalagem. A cama que eles tinham no início era grande o suficiente para dormir oito pessoas, de modo que o estalajadeiro insistiu em cobrá-los como se eles fossem oito. 
— No dia seguinte nós podemos ir para as docas — Sam prometeu. — Vamos sair perguntando e descobrir qual é o próximo navio que parte para Vilavelha. — Mesmo no outono, Bravos ainda era um porto movimentado. Assim que Aemon estivesse forte o suficiente para viajar, eles não deveriam ter problemas para encontrar um navio adequado para levá-los onde eles tinham que ir. Pagar pelas suas passagens se mostraria mais difícil. Um navio dos Sete Reinos seria a sua melhor esperança. Um comerciante de Vilavelha, talvez, com parentes na Patrulha da Noite. Ainda deve haver alguns que honram os homens que andam sobre a Muralha.
 — Vilavelha — Meistre Aemon resfolegou. — Sim. Eu sonhei com Vilavelha, Sam. Eu era jovem novamente e meu irmão Egg estava comigo, com aquele cavaleiro grande que servia. Estávamos bebendo na velha estalagem, onde eles fazem a sidra assustadoramente forte. — Ele tentou levantar novamente, mas o esforço foi demais para ele. Depois de um momento ele se acomodou. — Os navios — disse ele novamente. — Nós vamos encontrar a nossa resposta lá. Sobre os dragões. Eu preciso saber.
Não, pensou Sam, é de alimento e calor que você precisa, de uma barriga cheia e um fogo crepitante na lareira quente. 
— Você está com fome, meistre? Temos algum pão restante e um pouco de queijo.
— Não agora, Sam. Mais tarde, quando eu estiver me sentindo mais forte.
— Como é que vai ficar mais forte se você não come? — Nenhum deles tinha comido muito no mar, não depois de Skagos. Os ventos do outono haviam os perseguido através de todo o mar estreito. Às vezes, eles subiam do sul, agitando com raios e trovões e chuvas negras que caíram por dias. Às vezes, eles desciam do norte, frios e sombrios, com ventos brutais que açoitavam os homens. Uma vez eles ficaram tão frios que Sam acordou e encontrou o navio todo revestido em gelo brilhante e branco como pérola. O capitão abaixou seu mastro e amarrou-o no convés para concluir sozinho a travessia a remo. Ninguém tinha comido enquanto eles viam o Titã.
Entretanto, uma vez seguro em terra, Sam descobriu que estava faminto. Foi o mesmo para Dareon e Goiva. Até o bebê começou a chupar mais vigorosamente. No entanto, Aemon...
— O pão envelheceu, mas eu posso pedir algum caldo das cozinhas para embebê-lo — Sam dissera ao velho. O estalajadeiro era um homem duro, com olhos frios e desconfiados com esses estranhos vestidos de preto sob o seu teto, mas seu cozinheiro era gentil.
 — Não. Mas talvez um gole de vinho?
Eles não tinham vinho. Dareon tinha prometido comprar com a moeda de seu canto.
— Nós vamos ter o vinho mais tarde — Sam teve que dizer. — Temos água, mas não é água boa.  — A água boa chegava ao longo dos arcos do grande aqueduto de tijolos bravosianos chamado o rio Água Doce. Homens ricos a tinham encanada em suas casas; os pobres enchiam os baldes e bacias de fontes públicas. Sam tinha enviado Goiva para fora para encher alguns, esquecendo que a menina selvagem tinha vivido toda a sua vida sob a vista da Fortaleza de Craster e nunca tinha vistonada parecido a uma cidade mercantil. O labirinto de ilhas de pedras e canais que era Bravos, desprovido de grama e árvores e repleta de estranhos que falavam com ela em palavras que ela não conseguia entender a assustava tanto que ela perdeu o mapa e logo se perdeu também. Sam encontrou-a chorando aos pés de pedra de algum Senhor do Mar morto há tempos. — Tudo o que temos é a água do canal — disse ele a Meistre Aemon, mas a cozinheira a ferveu. Há vinho dos sonhos também, se você precisar mais disso.
— Eu sonhei o suficiente por enquanto. Água do canal será suficiente. Ajude-me, se quiser.
Sam ajudou velho a se levantar e segurou o copo até os seus lábios secos e rachados. Mesmo assim, metade da água escorreu pelo peito do Meistre.
— Basta — Aemon tossiu, depois de alguns goles. — Você vai me afogar. Estremeceu nos braços de Sam. — Por que o quarto está tão frio?
— Não há mais madeira. — Dareon havia pagado o dobro para o estalajadeiro por um quarto com uma lareira, mas nenhum deles havia percebido que a madeira seria tão cara aqui. Árvores não cresciam em Bravos, salvo nas cortes e jardins dos poderosos. Também os bravosianos não cortavam os pinheiros que cobriam as ilhas periféricas em torno de sua grande lagoa e que funcionavam como quebra-ventos para protegê-los das tempestades. Em vez disso, a lenha era trazida em barcaças, pelos rios e através da lagoa. Até esterco era estimado por lá. Os bravosianos usavam barcos no lugar de cavalos. Nada disso teria importância se eles tivessem partido como o planejado para Vilavelha, mas isso se tornou impossível com Meistre Aemon tão fraco. Outra viagem em mar aberto iria matá-lo.
A mão de Aemon se arrastou pelos cobertores, tateando para encontrar o braço de Sam.
— Temos de ir para as docas, Sam.
— Quando você estiver mais forte. — O velho não estava em condições para enfrentar a rajada de sal e os ventos úmidos ao longo da orla, e Bravos era todo mar. Ao norte ficava Porto Roxo, onde os comerciantes bravosianos amarravam suas embarcações debaixo das cúpulas e torres do Palácio do Senhor do Mar. A oeste se encontrava o Porto de Ragman, repleto de navios de outras Cidades Livres, de Westeros e Ibben e das lendárias terras distantes do Oriente. E todos os outros lugares eram pequenos píers e atracadores para balsas e cais velhos cinzentos onde pescadores de camarões, caranguejeiros e pescadores atracavam depois de trabalhar nos lamaçais e nos rios. — Seria uma pressão muito grande sobre você.
— Então vá em meu lugar — Aemon pediu, — e me traga alguém que tenha visto esses dragões.
— Eu? — Sam estava desanimado com a sugestão. — Meistre, foi apenas uma história. História de um marinheiro. — Dareon era o culpado por isso também. O cantor tinha trazido de volta todos os tipos de contos estranhos das tavernas e bordéis. Infelizmente, ele estava bêbado quando ouviu aquela sobre os dragões e não conseguia se lembrar dos detalhes. — Dareon pode ter inventado a história toda. Cantores fazem isso. Eles inventam coisas.
— Eles inventam — disse Meistre Aemon, — mas mesmo a música mais fantasiosa podem ter um fundo de verdade. Procure a verdade para mim, Sam.
— Eu não saberia a quem perguntar, ou a forma de perguntar. Eu só falo um pouco de valiriano e quando eles falam comigo em bravosiano eu não consigo entender metade do que eles estão dizendo. Você fala mais línguas do que eu, assim que você estiver mais forte você pode...
— Quando eu ficarei mais forte, Sam? Diga-me quando. 
—Em breve. Se você descansar e comer. Quando alcançarmos Vilavelha...
— Não verei Vilavelha novamente. Eu sei disso agora. — O velho apertou o braço de Sam. — Eu estarei com meus irmãos em breve. Alguns eu ganhei por votos e outros por sangue, mas eram todos os meus irmãos. E meu pai... ele nunca pensou que o trono passaria para ele, e mesmo assim ele assumiu. Ele costumava dizer que era o seu castigo pelo golpe que matou seu irmão. Eu rezo para que ele tenha encontrado a paz na morte que ele nunca conheceu na vida. Os septões cantam sobre o fim agradável, sobre deixar os nossos fardos e viajar para uma terra muito agradável onde podemos rir e amar e festejar até o fim dos dias... mas e se não houver terra de luz e mel, só frio e escuridão e dor além da Muralha chamada morte?
Ele tem medo, Sam percebeu.
— Você não está morrendo. Você está doente, é só isso. Isso vai passar.
 — Não desta vez, Sam. Eu sonhei... na escuridão da noite, um homem faz todas as perguntas que ele não ousa fazer de dia. Para mim, nestes últimos anos, me restou apenas uma pergunta. Por que os deuses tirariam minha visão e minha força ainda que me condenassem a permanecer vivo por tanto tempo, congelado e esquecido? Que uso eles poderiam ter para um velho como eu? — Os dedos de Aemon tremeram, galhos revestidos de pele manchada. — Eu me lembro, Sam. Eu ainda me lembro.
Ele não estava fazendo sentido.
— Do que você se lembra?
— Dragões — Aemon sussurrou. — Eles foram a dor e a glória de minha casa.
— O último dragão morreu antes de você nascer — disse Sam. — Como é que você se lembra deles?
 — Eu os vejo em meus sonhos, Sam. Eu vejo uma estrela vermelha sangrando no céu. Ainda me lembro do vermelho. Eu vejo suas sombras na neve, ouço o estalo de asas de couro, sinto sua respiração quente. Meus irmãos também sonharam com dragões e os sonhos os mataram, cada um deles. Sam, nós estremecemos à proximidade de profecias mal lembradas, de maravilhas e terrores que nenhum homem vivo poderia esperar compreender... ou...
— Ou? — Disse Sam.
 —... ou não. — Aemon riu baixinho. — Ou eu sou um homem velho, febril e morrendo. — Fechou os olhos brancos cansado, então os forçou a se abrirem mais uma vez. — Eu não deveria ter deixado a Muralha. Lorde Snow não poderia saber, mas eu deveria ter visto. Fogo consome, mas o fio preserva. A Muralha... mas é tarde demais para voltar atrás. O Estranho espera do lado de fora da minha porta e não isso não lhe será negado. Intendente, você tem me servido fielmente. Faça uma última coisa corajosa por mim. Vá até os navios, Sam. Aprenda tudo o que puder sobre esses dragões.
 Sam colocou seu braço fora do alcance do velho.
— Eu vou. Se você deseja. Eu só... — Ele não sabia mais o que dizer. Eu não posso recusá-lo. Ele poderia procurar por Dareon também, ao longo das docas e cais do porto de Ragman. Eu encontrarei Dareon primeiro, e vamos juntos para os navios. E quando voltarmos nós vamos trazer comida, vinho e madeira. Teremos uma fogueira e uma boa refeição quente. Ele se levantou. — Bem. Eu deveria ir, então. Se eu estou indo, Goiva ficará. Goiva, tranque a porta quando eu me for. — O Estranho espera do lado de fora da porta.
Goiva balançou a cabeça, embalando o bebê contra seu peito, com os olhos cheios de lágrimas a brotar. Ela vai chorar de novo, Sam percebeu. Foi mais do que ele podia aguentar. Seu cinturão pendia em uma estaca na parede, ao lado dos cornos velhos e quebrados que Jon lhe dera. Ele arrancou o cinturão e o vestiu, então varreu a sua capa de lã negra sobre os ombros arredondados, saiu pela porta e desceu por uma escada de madeira cujos degraus rangeram sob seu peso. A estalagem tinha duas portas da frente, uma saindo em uma rua e outra em um canal. Sam saiu pela última, para evitar a sala comum, onde o estalajadeiro com certeza lhe daria o olhar azedo que ele reservara para os clientes que abusavam da sua hospitalidade.
 Havia um frio no ar, mas a noite não era tão nebulosa quanto outras. Sam estava muito grato por isso. Às vezes a névoa cobria tanto o chão que um homem não podia ver seus próprios pés. Isto era bom uma vez que ele estaria a um passo de cair em um canal.
Quando menino Sam tinha lido uma história de Bravos e sonhava em um dia ir para lá. Queria contemplar o Titã crescendo severo e temível pelo mar, deslizar pelos canais em um barco serpente passando por todos os palácios e templos, e ver Bravos fazer sua dança da água, lâminas piscando sob a luz das estrelas. Mas agora que ele estava aqui, tudo que ele queria era sair e ir a Vilavelha.
 Com seu capuz levantado e seu manto balançando ele fez o seu caminho ao longo da calçada em direção ao Porto de Ragman. Seu cinturão continuava ameaçando cair sobre os tornozelos, então ele tinha que continuar puxando de volta para cima. Ele ficou nas menores e mais escuras ruas, onde era menos provável encontrar alguém, mas cada gato que passava ainda fazia seu coração disparar... Bravos estava cheia de gatos. Eu preciso encontrar Dareon, pensou. Ele é um homem da Patrulha da Noite, meu irmão juramentado; eu e ele vamos descobrir o que fazer. A força de Meistre Aemon se foi, e Goiva teria se perdido aqui, mesmo se ela não estivesse tão angustiada, mas Dareon... Eu não deveria pensar mal dele. Ele pode estar ferido, talvez seja por isso que ele não voltou. Ele poderia estar morto, deitado em algum beco em uma poça de sangue, ou flutuando de bruços em um dos canais. À noite, os bravos gabavam-se pela cidade em suas melhores roupas multicoloridas, saqueando para provar suas habilidades com as espadas finas que usavam. Alguns poderiam lutar por qualquer causa, outros por nenhuma, e Dareon tinha uma língua solta e um temperamento explosivo, especialmente quando ele bebia. Só porque um homem pode cantar sobre batalhas não significa que ele pode lutar em uma.
A melhores tavernas, estalagem e bordéis estavam perto de Porto Roxo ou do Lago da Lua, mas Dareon preferia o porto de Ragman, onde os clientes eram mais aptos a falar a língua comum. Sam começou sua busca na estalagem da Enguia Verde, no Barqueiro Negro e na Estalagem do Moroggo, lugares onde Dareon tinha jogado antes. Ele não foi encontrado em qualquer uma delas. Do lado de fora da Casa da Névoa vários barcos serpente estavam amarrados aguardando seus capitães, e Sam tentou perguntar aos barqueiros se tinham visto um cantor todo de preto, mas nenhum dos barqueiros entendeu seu Alto Valiriano. Ou então eles preferiram não entender. Sam olhou para o sombrio bar abaixo do segundo arco da ponte de Nabbo, apenas grande o suficiente para acomodar dez pessoas. Dareon não era um deles. Ele tentou a Taverna do Exilado, a Casa dos Sete Candeeiros, e o bordel chamado Gatil, onde ele obteve olhares estranhos, mas não obteve ajuda.
Saindo, ele quase colidiu com dois jovens sob a lanterna vermelha do Gatil. Um era negro e o outro era louro. O de cabelos escuros disse algo em Bravosiano. 
— Eu sinto muito — Sam teve que dizer. — Eu não entendo. — Ele se afastou deles, com medo. Nos Sete Reinos os nobres vestem-se em veludos, sedas, e samites de uma centena de tons, enquanto os camponeses e pessoas sem importância usavam lã crua e seda de fios grossos e de cores apagadas. Em Bravos era o contrário. Os bravosianos se vangloriavam como pavões, dedilhando suas espadas, enquanto os poderosos andavam vestidos de cinza-carvão e roxo, azuis que eram quase pretos e negros tão escuros como uma noite sem lua.
— Meu amigo Terro diz que você é tão gordo que deixa ele com nojo — disse o bravosiano louro, cuja capa era de veludo verde de um lado e pano-de-prata do outro. — Meu amigo Terro diz que o chocalho de sua espada faz a cabeça dele doer. — Ele estava falando no Idioma Comum. O outro, o bravosiano de cabelo preto com sua capa de brocado cor de vinho e amarelo, cujo nome parecia ser Terro, fez um comentário em bravosiano, e seu amigo loiro riu e disse:
— Meu amigo Terro diz que você está vestido acima da sua posição. Você é algum grande senhor para usar o preto? 
Sam queria correr, mas se ele fizesse isso tropeçaria em seu próprio cinturão. Não toque em sua espada, ele disse a si mesmo. Até mesmo um dedo no punho pode ser suficiente para um dos bravosianos tomar como um desafio. Tentou pensar em palavras que poderiam apaziguá-los.
— Eu não sou — foi tudo que ele conseguiu.
 — Ele não é um senhor — a voz de uma criança se intrometeu. — Ele é da Patrulha da Noite, estúpido. De Westeros. — Uma menina surgiu sob a luz, empurrando um carrinho de mão cheio de algas, uma criatura desajeitada e magricela com botas grandes, com cabelos sujos e mal lavados. — E há outro para os lados do Porto Feliz, cantando canções para a Esposa do Marinheiro, — ela informou aos dois bravosianos. Para Sam, ela disse: — Se eles perguntam quem é a mulher mais bonita do mundo, diga Rouxinol ou então eles vão desafiá-lo. Você quer comprar alguns mariscos? Vendi todas as minhas ostras.
— Eu não tenho nenhuma moeda — disse Sam.
— Ele não tem moeda — zombou o bravo louro. Seu amigo de cabelos escuros sorriu e disse algo em Bravosiano. — Meu amigo Terro está com frio. Seja nosso bom amigo gordo e dê-lhe o seu manto.
 — Não faça isso também — disse a garota do carrinho de mão — ou então eles vão pedir suas botas em seguida e em pouco tempo você estará nu.
— Gatos pequenos que miam muito alto acabam se afogando nos canais, alertou o bravosiano louro.
— Não se ele tem garras. — E de repente havia uma faca na mão esquerda da menina, uma lâmina tão fina quanto ela. O bravosiano chamado Terro disse algo ao seu amigo de cabelos louros e os dois se afastaram, rindo um para o outro.
 — Obrigado — Sam disse para a menina quando eles foram embora. Sua faca desapareceu. — Se você usar uma espada durante a noite isso significa que você pode ser desafiado. Você queria lutar contra eles?
— Não. — A palavra saiu em um guincho que fez Sam corar.
— Você é realmente da Patrulha da Noite? Eu nunca vi um irmão negro como você antes. — A menina apontou para o carrinho de mão. — Você pode ficar com os últimos mariscos se você quiser. Está escuro, ninguém vai comprá-los agora. Você está navegando para a Muralha?
— Para Vilavelha. — Sam pegou um dos mariscos cozidos e o devorou. — Estamos entre navios. — O marisco estava bom. Ele comeu o outro.
 —Os bravosianos nunca incomodam ninguém sem uma espada. Nem mesmo merdas de camelo estúpidos como Terro e Orbelo.
— Quem é você?
— Ninguém. — Ela fedia a peixe. — Eu costumava ser alguém, mas agora eu não sou. Você pode me chamar de Cat, se quiser. Quem é você?
— Samwell, da Casa Tarly. Você fala a língua comum.
— Meu pai era o mestre dos remos no Nymeria. Um bravosiano o matou por ele dizer que minha mãe era mais bonita que a Rouxinol. Não um daqueles merdas de camelo que você conheceu, um bravosiano de verdade. Algum dia eu vou cortar sua garganta. O capitão disse que o Nymeria não precisava de garotinhas, por isso ele me expulsou. Brusco me acolheu e me deu um carrinho de mão. — Ela olhou para ele. — Em qual navio vocês está navegando?
— Compramos a passagem na Senhora Ushanora.
A garota olhou para ele com desconfiança.
— Ela se foi. Você não sabe? Ela zarpou há dias e dias atrás.
Eu sei, Sam poderia ter dito. Ele e Dareon tinham ficado no cais assistindo a subida e descida de seus remos à medida que ela rumou para o mar aberto.
— Bem — o cantor dissera. — Já era. — Se Sam tivesse sido um homem corajoso, ele teria o empurrado na água. Quando o assunto era mulheres sem roupas, Dareon tinha uma língua doce, ainda na cabine do capitão de alguma forma Sam tinha falado, tentando convencer o Bravosiano a esperar por eles.
— Já faz três dias que eu espero por esse velho — o capitão tinha dito. — Minhas celas estão cheias e os meus homens já deram suas fodidas de despedida com as suas esposas. Com ou sem você a minha Senhora vai embora na maré.
— Por favor — Sam implorou. — Só mais alguns dias, isso é tudo que eu peço. Então Meistre Aemon pode recuperar sua força.
— Ele não tem força. — O capitão havia o visitado na estalagem na noite anterior para ver Meistre Aemon por conta própria. — Ele está velho e doente e eu não vou vê-lo morrer na minha Senhora. Fique com ele ou deixe-o, não importa para mim. Eu vou embora.
Pior ainda, ele se recusou a devolver o dinheiro que haviam pagado pela passagem, a prata que serviria para leva-los em segurança até Vilavelha.
— Você comprou a minha melhor cabine. Ela está lá, esperando por você. Se você escolheu não ocupá-la isso não é culpa minha. Por que eu deveria arcar com a perda?
Agora poderíamos estar em Valdocaso, Sam pensou melancolicamente. Poderíamos até ter chegado à Pentos, se os ventos fossem bons.
Mas nada disso teria importância para a garota do carrinho de mão.
— Você disse que viu um cantor ...
— Em Porto Feliz. Ele vai se casar com a esposa do marinheiro.
— Casar?
— Ela só se deita com os que se casam com ela.
— Onde fica este Porto Feliz?
— Na direção do Navio do Mascarado. Eu posso te mostrar o caminho.
— Eu sei o caminho. — Sam tinha visto o Navio do Mascarado. Dareon não pode casar! Ele fez o juramento! — Eu tenho que ir.
Ele correu. Foi um longo caminho sobre pedras lisas. Em pouco tempo ele estava ofegante, seu grande manto preto batendo ruidosamente atrás de si. Ele tinha que manter uma mão em seu cinturão enquanto corria. As poucas pessoas que ele encontrou deram-lhe olhares curiosos, e de vez um quando um gato se eriçava e silvava para ele. Quando ele atingiu o navio estava cambaleando. Porto Feliz ficava apenas do outro lado do beco.
 Logo quando ele entrou, corado e sem fôlego, uma mulher de um olho só jogou os braços ao redor de seu pescoço.
— Não — Sam disse a ela. — Eu não estou aqui para isso. — Ela respondeu em Bravosiano. — Eu não falo essa língua — Sam disse em Alto Valiriano. Havia velas acesas e um fogo crepitante na lareira. Alguém estava tocando um violino e então ele viu duas meninas dançando em torno de um feiticeiro vermelho, de mãos dadas. A mulher de um olho só pressionou os seios contra o seu peito. — Não faça isso! Eu não estou aqui para isso!
— Sam! — A voz familiar Dareon ecoou. — Yna, deixe-o ir, este é o Sam, o Matador. Meu irmão juramentado!
A mulher de um olho só se despiu ainda mantendo uma mão em seu braço. Um dos dançarinos gritou: 
— Ele pode me matar se quiser — e o outro disse:
— Você acha que ele me deixa tocar sua espada? — Atrás deles, uma galé púrpura tinha sido pintada na parede, tripulado por mulheres vestindo botas altas e nada mais. Um marinheiro Tyroshi estava desmaiado em um canto, ressonando em sua enorme barba escarlate. Noutro canto uma mulher mais velha com seios enormes estava jogando com um enorme homem das Ilhas do Verão vestido com penas pretas e escarlates. No meio de tudo isso Dareon estava sentado, acomodando o pescoço da mulher em seu colo. Ela estava vestindo sua capa preta.
— Matador — o cantor o chamou, bêbado. Venha conhecer minha esposa. — Seu cabelo era de areia e mel, seu sorriso caloroso. — Eu cantei minhas canções de amor. As mulheres se derretem como manteiga quando eu canto. Como eu poderia resistir a este rosto? — Ele beijou seu nariz. — Mulher, dê um beijo no Matador, ele é meu irmão. — Quando a menina se levantou, Sam viu que ela estava nua por baixo do manto. — Não vá acariciar minha esposa agora, Matador. — Disse Dareon, rindo. — Mas se você quiser uma de suas irmãs, fique a vontade. Eu ainda tenho bastante moeda, eu acho.
Moeda que poderia ter nos comprado comida, Sam pensou, moeda que poderia ter comprado madeira, de modo Meistre Aemon poderia se manter aquecido.
— O que você fez? Você não pode se casar. Você fez o juramento, o mesmo que eu. Eles poderiam cortar sua cabeça por isso.
— Nós estamos casados só por esta noite, Matador. Mesmo em Westeros ninguém perde a cabeça por isso. Você nunca foi para a Vila Toupeira cavar um tesouro enterrado?
— Não. Sam corou. — Eu nunca...
— E quanto a sua puta selvagem? Você deve ter fodido ela uma vez ou três. Todas aquelas noites na mata, amontoados sob o seu manto, não me diga que você nunca enfiou nela. — Ele acenou com a mão em direção a uma cadeira. — Sente-se, Matador. Tome um copo de vinho. Pegue uma puta. Pegue os dois.
 Sam não queria um copo de vinho. 
— Você prometeu voltar antes do crepúsculo. Para trazer de volta vinho e comida.
— Foi assim que matou aquele Outro? Ralhando com ele até a morte? — Dareon riu. — Ela é minha mulher, não você. Se você não vai beber no meu casamento então vá embora.
— Venha comigo — disse Sam. — Meistre Aemon acordou e quer ouvir sobre esses dragões. Ele está falando de estrelas sangrando e sombras brancas e sonhos e... se pudéssemos descobrir mais sobre esses dragões, isso poderia ajudar a amenizar as coisas para ele. Ajude-me.
— Amanhã. Não na minha noite de núpcias. — Dareon levantou-se, levou sua noiva pela mão, e começou a andar em direção à escada, puxandoa atrás dele. Sam bloqueou seu caminho.
— Você prometeu, Dareon. Você disse as palavras. Você deveria ser meu irmão.
— Em Westeros. Isto parece Westeros para você?
— Meistre Aemon...
— Está morrendo. Aquele curandeiro no qual você desperdiçou toda a nossa prata disse isso. — As palavras de Dareon se tornaram insuportáveis. — Pegue uma garota ou vá embora, Sam. Você está estragando o meu casamento.
— Eu vou — disse Sam, — mas você vem comigo.
— Não. Eu estou farto de você. Eu estou farto do negro. — Dareon arrancou o manto de sua noiva nua e jogou no rosto de Sam. 
— Aqui. Jogue esse pano sobre o velho, isso pode mantê-lo um pouco mais quente. Não vou precisar dele. Eu estarei vestido em veludo em breve. No próximo ano vou estar vestindo peles e comendo... — Sam o atingiu.
Ele não pensou nisso. Sua mão veio, enrolada em um punho e caiu na boca do cantor. Dareon xingou e sua esposa nua deu um grito, e Sam se atirou sobre o cantor e o jogou sobre uma mesa baixa. Eles eram quase da mesma altura, mas Sam pesava o dobro e pela primeira vez ele estava zangado demais para ter medo. Ele socou o cantor no rosto e na barriga, em seguida começou a esmurrá-lo sobre os ombros com ambas as mãos. Quando Dareon agarrou seus pulsos, Sam o acertou com a cabeça e rasgou o seu lábio. O cantor o soltou e ele socou seu nariz. Em algum lugar um homem estava rindo, uma mulher xingando. A luta parecia ficar mais lenta, como se fossem duas moscas pretas lutando em âmbar. Então alguém arrastou Sam para fora do peito do cantor. Ele bateu naquela pessoa também e algo duro quebrou na sua cabeça.
A seguir ele sabia que ele estava do lado de fora, voando de cabeça através do nevoeiro. Por um momento ele viu a água preta por baixo dele. Em seguida, o canal apareceu e esmagou-o no rosto.
Sam afundou como uma pedra, como um bloco, como uma montanha. A água escura entrou em seus olhos e no nariz, fria e salgada. Quando ele tentou gritar por socorro ele engoliu mais. Chutando e ofegando ele rolou, bolhas estourando de seu nariz. Nadar, ele disse a si mesmo, nadar. A salmoura ardeu em seus olhos quando ele os abriu, cegando-o. Ele apareceu à superfície por um instante sugando o ar e bateu desesperadamente com uma mão enquanto a outra raspou na parede do canal. Mas as pedras estavam escorregadias e viscosas e ele não podia segurar. Ele afundou novamente.
Sam podia sentir o frio contra sua pele à medida que a água encharcava suas roupas. Seu cinturão escorregou pelas suas pernas e ao redor dos seus tornozelos enroscados. Vou me afogar, pensou ele em um pânico cego. Ele se debatia, tentando escalar seu caminho de volta para a superfície, mas ao invés disso seu rosto bateu no fundo do canal. Estou de cabeça para baixo, ele percebeu, eu estou me afogando. Algo se moveu debaixo, uma mão abanando, uma enguia ou um peixe, deslizando por entre os seus dedos. Eu não posso me afogar, Meistre Aemon vai morrer sem mim, e Goiva não terá ninguém. Eu tenho que nadar, eu tenho que...
Houve um enorme splash, e algo se enrolou em torno dele, sob seus braços e em volta do peito. Uma enguia, foi seu primeiro pensamento, uma enguia me pegou. Ela vai me puxar para baixo. Ele abriu a boca para gritar, e engoliu mais água. Estou me afogando, foi seu último pensamento. Oh, deuses, sejam bons, estou me afogando.
Quando ele abriu os olhos estava deitado de costas e um grande negro das Ilhas do Verão estava apertando em sua barriga os punhos do tamanho de pernis. Pare com isso, você está me machucando, Sam tentou gritar. Em vez de palavras ele vomitou a água e engasgou. Ele estava encharcado e com frio, deitado na calçada em uma poça de água do canal. O homem das Ilhas do Verão socou sua barriga de novo, e mais água veio esguichando do seu nariz.
— Pare com isso — Sam engasgou. — Eu não me afoguei. Eu não me afoguei.
— Não. — Seu salvador inclinou-se sobre ele, enorme, negro e gotejando. — Você deve a Xhondo muitas penas. A água estragou capa fina de Xhondo. — Deivo mesmo, Sam percebeu. O manto de penas se agarrou aos ombros enormes do homem negro, encharcado e sujo.
— Eu não queria...
— ...nadar? Xhondo viu. Muita água espirrada. Homens gordos devem flutuar. — Ele agarrou as mãos de Sam com um punho preto enorme e o colocou de pé. — Xhondo é ajudante no Vento de Canela. Muitas línguas ele fala, um pouco. — Xhondo riu por dentro, por ver você socar o cantor. — E Xhondo ouve. — Um largo sorriso branco espalhou-se por seu rosto. — Xhondo conhece esses dragões.
 
Esperava que por esta altura que você já estivesse farto dessa deplorável barba. Todos esses pelos deixa você parecido com o Robert. — A irmã colocou de lado o luto em prol de um vestido cor de jade com mangas de renda de Myr prateada. Uma esmeralda do tamanho de um ovo de pombo pendia-lhe do pescoço num fio de ouro.
— A barba de Robert era preta. A minha é dourada.
— Dourada? Ou prateada? — Cersei arrancou um pelo abaixo do seu queixo e ergueu-o. Era grisalho. — Está perdendo a cor, irmão.  Você se transformou num fantasma do que você era, numa coisa pálida e aleijada. E tão exangue, sempre de branco. — Desfez-se do pelo com um piparote. — Prefiro você vestido de ouro e carmesim.
Eu prefiro você sarapintada de luz do sol, com gotículas de água na pele nua. Desejava beijá-la, levá-la para o quarto, atirá-la na cama… ela anda fodendo com Lancel e Osmund Kettleblack e o Rapaz Lua…
— Vou propor negócio. Liberte-me deste dever, e a minha navalha estará às suas ordens.
A boca dela se apertou. Havia tomado vinho quente com especiarias e cheirava a noz-moscada.
— Você ousa discutir comigo? Tenho que relembrar que jurou obedecer?
— Jurei proteger o rei. O meu lugar é a seu lado.
— O seu lugar é onde quer que ele ordene que você esteja.
— Tommen coloca seu selo em todos os papéis que você põe na frente dele. Isto é obra sua e é uma loucura. Para quê nomear Daven o seu Protetor do Oeste se não tem confiança nele?
Cersei sentou-se junto à janela. Por trás dela, Jaime conseguia ver as ruínas enegrecidas da Torre da Mão.
— Por quê tanta relutância, sor? Perdeu a coragem com a mão?
— Prestei um juramento à Senhora Stark de nunca mais pegar em armas contra os Stark ou os Tully.
— Uma promessa de bêbado feita com uma espada na garganta.
— E
— Como poderei defender Tommen se não estiver com ele?
— Derrotando os seus inimigos. O pai sempre disse que um golpe rápido de espada é uma defesa melhor do que qualquer escudo. Admito que a maior parte dos golpes de espada precisam de uma mão. Apesar disso, até um leão mutilado pode inspirar medo. Quero Correrrio. Quero Brynden Tully agrilhoado ou morto. E alguém tem de pôr Harrenhal nos eixos. Temos necessidade urgente de Wylis Manderly, assumindo que ainda está vivo e cativo, mas a guarnição não respondeu a nenhum dos nossos corvos.
— Quem está em Harrenhal são homens de Gregor — lembrou-lhe Jaime — A Montanha gostava deles cruéis e estúpidos. O mais provável é que tenham comido os seus corvos, com mensagens e tudo.
— É por isso que vou mandar você para lá. Podem comer você também, valente irmão, mas confio que você causará indigestão. — Cersei alisou a saia. — Quero que seja Sor Osmund que comande a Guarda Real na sua ausência.
… ela anda fodendo com Lancel e Osmund Kettleblack e o Rapaz Lua, pelo que sei…
— Essa escolha não pertence a você. Se eu for, Sor Loras ficará aqui no comando em meu nome. 
— Isso é algum gracejo? Sabe o que eu sinto por Sor Loras.
— Se não tivesse mandado Balon Swann para Dorne…
— Preciso dele lá. Os dorneses não são dignos de confiança. Aquela serpente vermelha foi campeã de Tyrion, você se esqueceu disso? Não deixarei a minha filha à mercê deles. E não terei Sor Loras ao comando da Guarda Real.
— Sor Loras é três vezes melhor homem do que Sor Osmund.
— As suas noções de virilidade mudaram um pouco, irmão.
Jaime sentiu a ira a aumentar. 
— É verdade, Loras não te olha para as tetas como Sor Osmund, mas não penso…
— Pensa nisto — Cersei esbofeteou-o.
Jaime não fez qualquer esforço para bloquear o golpe.
— Estou vendo que vou precisar de uma barba mais espessa, para me proteger das carícias da minha rainha. — Desejava arrancar-lhe o vestido e transformar os golpes em beijos. Já antes o fizera, na época em que tinha duas boas mãos.
Os olhos da rainha eram gelo verde.
— É melhor que vá embora, sor.
… Lancel, Osmund Kettleblack, e o Rapaz Lua…
— Além de mutilado, você é surdo? Encontrará a porta atrás de você, sor.
— Às suas ordens. — Jaime girou nos calcanhares e a deixou.
Em algum lugar os deuses riam. Cersei nunca aceitara de bom grado ser contrariada, ele sabia disso. Palavras mais suaves poderiam tê-la feito mudar de ideias, mas nos últimos tempos bastava vê-la para sentir-se irritado.
Parte de si ficaria contente por deixar Porto Real para trás. Em nada lhe agradava a companhia dos bajuladores e dos tolos que rodeavam Cersei. O pequeno conselho era como chamavam no Fundo das Pulgas, de acordo com Addam Marbrand. E Qyburn… podia ter salvo a vida de Jaime, mas não deixava de ser um Saltimbanco Sangrento.
— Qyburn fede a segredos — dissera a Cersei, num aviso. Isso apenas a fez rir.
— Todos nós temos segredos, irmão — respondera.
… ela anda fodendo com Lancel e Osmund Kettleblack e provavelmente até com o Rapaz Lua, pelo que sei…
Quarenta cavaleiros e outros tantos escudeiros o esperavam à porta dos estábulos da Fortaleza Vermelha. Metade eram ocidentais juramentados à Casa Lannister, os outros inimigos recentes transformados em amigos duvidosos. Sor Dermot da Mata de Chuva levaria o estandarte de Tommen, o Ronnet Connington, o Vermellho, a bandeira branca da Guarda Real. Paege, Piper e Peckledon partilhariam a honra de servir o Senhor Comandante como escudeiros.
— Mantenha os amigos atrás de você e os inimigos onde você possa ver — aconselhara-o um dia Sumner Crakehall. Ou teria sido o pai?
O seu palafrém era um baio sanguíneo, e o corcel de batalha um magnífico garanhão cinzento. Tinham-se passado longos anos desde a última vez que Jaime dera nomes a qualquer um dos seus cavalos; vira muitos morrer em batalha, e isso se tornava mais duro quando lhes eram dados nomes. Mas quando o rapaz Piper começou a chamá-los de Honra e Glória, riu-se e deixou que os nomes pegassem. Glória usava arreios do carmim Lannister. Honra estava ajaezado com o branco da Guarda Real. Josmyn Peckledon segurou nas rédeas do palafrém quando Sor Jaime montou. O escudeiro era magro como uma lança, com longos braços e pernas, um cabelo oleoso de um castanho de rato, e bochechas cobertas por uma suave penugem de pêssego. O seu manto ostentava o carmim Lannister, mas sobretudo mostrava as dez moletas púrpuras da sua Casa, dispostas em fundo de amarelo.
— Senhor — perguntou o rapaz — quer a sua nova mão?
— Use-a, Jaime — instou Sor Kennos de Kayce. — Acene aos plebeus e dê a eles algo para contar aos filhos.
— Penso que não — Jaime não queria mostrar à multidão uma mentira dourada. Que vejam o coto. Que vejam o aleijado. — Mas fique à vontade para compensar a minha falta, Sor Kennos. Acene com ambas as mãos e sacuda os pés, se te agradar. — Pegou nas rédeas com a mão esquerda e deu meia volta ao cavalo. — Payne — chamou enquanto os outros formavam — seguirá a meu lado.
Sor Ilyn Payne abriu caminho até junto de Jaime, parecendo um pedinte num baile. A sua cota de malha estava velha e enferrujada, e era usada sobre uma jaqueta manchada de couro fervido. Nem o homem nem a sua montaria ostentavam símbolos heráldicos; o escudo estava tão amolgado e fendido que era difícil dizer de que cor teria sido a tinta que em tempos o cobrira. Com a sua cara severa e olhos vazios e encovados, Sor Ilyn podia ter passado pela própria morte… e fora o que fizera, durante anos.
Mas já não. Sor Ilyn constituíra metade do preço de Jaime por engolir a ordem do seu rei rapaz como um bom Menino Comandante. A outra metade fora Sor Addam Marbrand.
— Preciso deles — dissera à irmã, e Cersei não resistira. O mais certo é estar satisfeita por se livrar deles. Sor Addam era amigo de infância de Jaime, e o carrasco silencioso fora um homem de seu pai, se é que era homem de alguém. Payne fora capitão da guarda da Mão quando alguém o ouvira numa vanglória de que era Lorde Tywin quem governava os Sete Reinos e dizia ao Rei Aerys o que fazer. Aerys Targaryen cortou a língua por isso.
— Abram os portões — disse Jaime, e o Varrao-Forte, com a sua voz trovejante, gritou:
— ABRAM OS PORTÕES!
Quando Mace Tyrell se pôs em marcha através do Portão da Lama ao som de tambores e violas, milhares de pessoas encheram as ruas para aclamá-lo. Rapazinhos tinham-se juntado à marcha, caminhando ao lado dos soldados Tyrell com cabeças erguidas e elevando bem as pernas, enquanto as irmãs desses rapazes atiravam beijos das janelas.
Mas naquele dia era diferente. Algumas rameiras gritavam convites à passagem dos homens, e um vendedor de pastéis de carne oferecia a mercadoria. Na Praça do Sapateiro estavam dois pardais velhos perante várias centenas de plebeus, clamando pela danação de homens sem deus e adoradores de demônios. A multidão abriu alas para deixar passar a coluna. Tanto pardais como os sapateiros observaram com olhos carregados.
— Gostam do cheiro das rosas, mas não sentem amizade pelos leões — observou Jaime. — A minha irmã faria bem em tomar nota disso. — Sor Ilyn não lhe deu resposta. O companheiro perfeito para uma longa cavalgada. Vou apreciar a sua companhia. A maior parte das suas tropas o esperava para lá das muralhas da cidade; Sor Addam Marbrand com os seus batedores, Sor Steffon Swyft e o comboio logístico, a Santa Centena do velho Sor Bonifer, o Bom, os arqueiros a cavalo de Sarsfield, o Meistre Gulian com quatro gaiolas cheias de corvos, duas centenas de cavaleiros pesados sob o comando de Sor Flement Brax. Somando tudo, não era uma grande hoste; menos de mil homens ao todo. Um grande número era a última coisa necessária em Correrrio. Um exército Lannister já investia sobre o castelo, bem como uma força ainda maior dos Frey; a última ave que tinham recebido sugeria que os sitiantes estavam tendo dificuldades em manteremse alimentados. Brynden Tully deixara o terreno limpo antes de se retirar para o interior das suas muralhas. Não que precisasse de grande limpeza. Pelo que Jaime vira das terras fluviais, quase não havia campo de cultivo que permanecesse por queimar, vila por saquear e donzela por espoliar. E agora a minha querida irmã mandou-me acabar o trabalho que Amory Lorch e Gregor Clegane começaram.
Aquilo deixou um sabor amargo na boca. Tão perto de Porto Real, a estrada do rei era tão segura como qualquer estrada podia ser em tempos como aqueles, mas mesmo assim Jaime enviou Marbrand e os seus batedores em frente.
— Robb Stark apanhou- me desprevenido no Bosque dos Murmúrios — disse. — Isso nunca mais voltará a acontecer. 
— Tem a minha palavra quanto a isso. — Marbrand parecia visivelmente aliviado por estar de novo a cavalo, usando o manto de um cinzento fumarento da sua Casa em vez da lã dourada da Patrulha da Cidade.
— Se algum inimigo se aproximar mais do que uma dúzia de léguas, ficará sabendo sobre ele de antemão. 
Jaime ordenara severamente que nenhum homem devia se afastar da coluna sem a sua licença. Se assim não fosse, sabia que teria jovens fidalgotes aborrecidos a fazer corridas pelos campos, espalhando gado e espezinhando as culturas. Ainda se viam vacas e ovelhas perto da cidade; maçãs nas árvores e bagas nos arbustos, searas de cevada, aveia e trigo de inverno, carroças e carros de bois na estrada. Mais adiante, as coisas não seriam tão rosadas. Avançando à frente da hoste com Sor Ilyn silencioso a seu lado, Jaime se sentiu quase satisfeito. O sol estava quente nas suas costas e o vento afagava o seu cabelo como os dedos de uma mulher. Quando Lew Pequeno Piper se aproximou a galope com um elmo cheio de amoras silvestres, Jaime comeu uma mão cheia e disse ao rapaz para partilhar o restante com os outros escudeiros e Sor Ilyn Payne.
Payne parecia tão confortável no seu silêncio como na sua cota de malha ferrugenta e couro fervido. O ruído dos cascos do seu castrado e o chocalhar da espada na bainha sempre que se movia na sela eram os únicos sons que emitia. Embora a sua cara marcada pelas bexigas fosse severa e os seus olhos frios como gelo num lago de inverno, Jaime sentia que o homem estava satisfeito por ter vindo. Dei-lhe uma escolha, recordou a si próprio. Ele podia ter dito que não e continuar como magistrado do rei.
A nomeação de Sor Ilyn fora um presente de casamento de Robert Baratheon para o pai da sua noiva, uma benesse para compensar Payne pela língua que perdera ao serviço da Casa Lannister. Ele dava um magnífico carrasco. Nunca estragara uma execução, e raramente precisava de um segundo golpe. E havia algo no seu silêncio que inspirava terror. Raramente tinha um magistrado do rei parecido ser tão adequado ao seu cargo.
Quando Jaime decidiu levá-lo consigo, procurara os aposentos de Sor Ilyn, na ponta do Passeio do Traidor. O andar superior da torre atarracada e semicircular estava dividido em celas para prisioneiros que precisassem de algum grau de conforto, cavaleiros cativos ou fidalgos à espera de resgate ou troca. A entrada para as masmorras propriamente ditas ficava ao nível do chão, atrás de uma porta de ferro martelado e de uma segunda porta de madeira cinzenta e lascada. Nos andares intermédios ficavam quartos guardados para o uso do Carcereiro-Chefe, para o Senhor Confessor e para o Magistrado do Rei. O Magistrado era um carrasco, mas por tradição estava também encarregado das masmorras e dos homens que nelas trabalhavam.
E Sor Ilyn Payne era singularmente pouco adequado para essa tarefa. Como não sabia ler nem escrever, e não podia falar, Sor Ilyn deixara o governo das masmorras aos seus subordinados, fossem eles quem fossem. Porém, o reino não tinha um Senhor Confessor desde o segundo Daeron, e o último Carcereiro-Chefe fora um mercador de tecidos que comprara o cargo ao Mindinho durante o reinado de Robert. Sem dúvida que teve um bom lucro com ele durante alguns anos, até cometer o erro de conspirar com mais alguns palermas ricos para entregar o trono a Stannis. Chamavam a si próprios “Homens Chifrudos”, e Joff pregou neles hastes à cabeça antes de atirá-los por cima das muralhas da cidade. Portanto recaíra em Rennifer Longwaters, o chefe dos carcereiros de costas torcidas que afirmava com entediante abundância de pormenores ter em si uma “gota de dragão”, a tarefa de destrancar as portas das masmorras para Jaime entrar e conduzi-lo pelos estreitos degraus que subiam por dentro das paredes até ao local onde Ilyn Payne vivera durante quinze anos.
Os aposentos fediam a comida apodrecida, e as esteiras estavam cobertas de bicharada. Quando Jaime entrou, quase pisou numa ratazana. A espada longa de Payne repousava sobre uma mesa de montar, ao lado de uma pedra de amolar e de um oleado sebento. O aço se mostrava imaculado, com o gume a cintilar, azul, à luz pálida, mas noutros pontos havia pilhas de roupa suja espalhadas pelo chão, e os bocados de cota de malha e armadura espalhados por aqui e por ali estavam rubros de ferrugem. Jaime não conseguiu contar os jarros de vinho quebrados. O homem não tem interesse por nada além de matar, pensou, no momento em que Sor Ilyn emergia de um quarto que fedia a penicos a transbordar. — Sua Graça me pediu que reconquistasse as terras fluviais — disse-lhe Jaime. — Gostaria de tê-lo comigo… caso consiga aguentar a ideia de desistir de tudo isto.
A sua resposta foi o silêncio, e um longo olhar sem pestanejar. Mas no momento em que se preparava para se virar e ir embora, Payne fez um aceno. E aqui vem ele. Jaime deitou um relance ao seu companheiro. Talvez ainda haja esperança para ambos. Nessa noite acamparam à sombra do castelo dos Hayford, que se erguia no cume de uma colina. Enquanto o sol descia, uma centena de tendas brotou na base da colina, ao longo das margens do ribeiro que corria junto a ela. Foi o próprio Jaime quem posicionou as sentinelas. Não esperava problemas tão perto da cidade, mas o tio Stafford também se julgara em segurança em Cruzaboi. Era melhor não correr riscos.
Quando o convite para jantar com o castelão da Senhora Hayford desceu do castelo, Jaime levou consigo Sor Ilyn, bem como Sor Addam Marbrand, Sor Bonifer Hasty, o Ronnet Connington, o Vermelho, o VarrãoForte e uma dúzia de outros cavaleiros e fidalgos.
— Suponho que devia usar a mão — disse a Peck antes de iniciar a subida. 
O rapaz foi imediatamente buscá-la. A mão era esculpida em ouro, muito semelhante a uma mão verdadeira, com unhas de madrepérola embutidas nela e os dedos e polegar meio fechados, a fim de poder com eles rodear a haste de um cálice. Não posso lutar, mas posso beber, refletiu Jaime enquanto o rapaz apertava as correias que lhe prendiam a mão ao coto. — Deste dia em diante, os homens o chamarão de mão de ouro, senhor — assegurara-lhe o armeiro da primeira vez que a encaixara no pulso de Jaime. Engana-se. Serei Regicida até morrer.
A mão de ouro foi motivo de muitos comentários de admiração durante o jantar, pelo menos até Jaime derrubar um cálice de vinho. Então foi dominado pelo mau gênio.
— Se admiram tanto assim esta maldita coisa, cortem a mão com a espada e poderão ficar com ela — disse a Flement Brax. Depois daquilo não houve mais conversas acerca da mão, e logrou beber em paz um pouco de vinho.
A senhora do castelo era uma Lannister pelo casamento, uma bebê rechonchuda que fora casada com Tyrek, primo de Jaime, antes de completar um ano. A Senhora Ermesande foi trazida para a aprovação do grupo, como era próprio, toda entrouxada num pequeno vestido de pano de ouro com o fretado verde e a pala ondeada verde da Casa Hayford desenhados com minúsculas contas de jade. Mas logo a moça começou a guinchar, e então ela foi rapidamente levada para a cama pela ama de leite.
— Não houve notícias do nosso Senhor Tyrek? — perguntou o seu castelão enquanto era servido um prato de truta.
— Nenhuma. — Tyrek Lannister desaparecera durante os tumultos em Porto Real, enquanto Jaime estava cativo em Correrrio. O rapaz teria catorze anos por aquela altura, assumindo que ainda estava vivo.
— Eu próprio liderei uma busca, por ordens do Lorde Tywin — interveio Addam Marbrand enquanto tirava as espinhas ao seu peixe — mas não descobri mais do que Bywater antes de mim. O rapaz foi visto pela última vez a cavalo, quando a pressão da turba quebrou a linha de homens de mantos dourados. Depois disso… bem, o seu palafrém foi encontrado, mas o cavaleiro não. O mais certo é terem-no derrubado e morto. Mas se assim foi, onde está o corpo? A multidão deixou os outros cadáveres no local, porque não o dele?
— Ele teria sido mais valioso vivo — sugeriu o Varrão Forte. — Qualquer Lannister traria um robusto resgate.
— Sem dúvida — concordou Marbrand — e, no entanto, nunca houve um pedido de resgate. O rapaz simplesmente desapareceu.
— O rapaz está morto. — Jaime bebera três taças de vinho e a sua mão dourada parecia tornar-se mais pesada e desajeitada a olhos vistos. Um gancho me serviria igualmente bem. — Se descobriram quem mataram, sem dúvida o atiraram ao rio com medo da ira do meu pai. Em Porto Real conhecem o sabor que ela tinha. O Lorde Tywin sempre pagou as suas dívidas.
— Sempre — concordou o Varrão Forte, e isso foi o fim da conversa.
Mas mais tarde, sozinho no quarto de torre que lhe fora oferecido para a noite, Jaime deu por si com dúvidas. Tyrek servira o Rei Robert como escudeiro, ao lado de Lancel. O conhecimento podia ser mais valioso do que o ouro, mais mortífero do que um punhal. Foi em Varys que então pensou, sorrindo e cheirando a lavanda. O eunuco tinha agentes e informantes por toda a cidade. Seria coisa simples arranjar as coisas de forma que Tyrek fosse capturado durante a confusão… desde que soubesse de antemão que era provável haver um tumulto. E Varys sabia de tudo, ou pelo menos era nisso que gostava de nos fazer acreditar. Mas não deu qualquer aviso a Cersei acerca desse tumulto. Nem desceu aos navios para se despedir de Myrcella.
Abriu as portadas. A noite estava ficando fria, e uma lua cornuda cavalgava no céu. A sua mão brilhava baça, à luz que ela deitava. Não serve para esganar eunucos, mas é suficientemente pesada para transformar aquele sorriso viscoso numa bela ruína vermelha. Queria bater em alguém. 
Jaime foi encontrar Sor Ilyn amolando a espada. — Está na hora — disse ao homem. O carrasco ergueu-se e o seguiu, arrastando as botas de couro rachado pelos íngremes degraus de pedra enquanto desciam a escada. Um pequeno pátio se abriu junto ao armeiro. Jaime encontrou aí dois escudos, dois meios elmos e um par de espadas embotadas de torneio. Entregou uma a Payne e pegou na outra com a mão esquerda enquanto enfiava a direita nas presilhas do escudo. Os seus dedos de ouro eram suficientemente curvos para enganchar, mas não podiam agarrar, de modo que o seu controlo sobre o escudo era pouco firme.
— Você foi um cavaleiro em algum tempo sor — disse Jaime. — Eu também. Vejamos o que somos agora.
Sor Ilyn ergueu a lâmina em resposta, e Jaime se atirou imediatamente ao ataque. Payne estava tão enferrujado como a sua cota de malha, e não era tão forte como Brienne, mas parou todos os golpes com a sua lâmina, ou interpôs o escudo. Dançaram sob o crescente de lua enquanto as espadas embotadas cantavam a sua canção de aço. O cavaleiro silencioso se contentou por algum tempo em deixar que Jaime liderasse a dança, mas por fim começou a responder a cada golpe com um seu. Assim que passou ao ataque, atingiu Jaime na coxa, no ombro, no antebraço. Fez ressoar a cabeça dele por três vezes com golpes atirados ao elmo. Com uma estocada arrancou o escudo do braço direito, e quase rebentou as correias que prendiam a mão de ouro ao coto. Quando baixaram as espadas, Jaime estava cheio de nódoas negras e dolorido, mas o vinho fora queimado e tinha a cabeça limpa.
— Voltaremos a dançar — prometeu a Sor Ilyn. — Amanhã, e no dia seguinte. Dançaremos todos os dias, até que eu seja tão bom com a mão esquerda como fui com a direita.
Sor Ilyn abriu a boca e soltou um som seco. Uma gargalhada, compreendeu Jaime. Algo retorceu nas suas tripas. Ao chegar à manhã, nenhum dos outros teve a ousadia de fazer menção às suas nódoas negras. Ao que parecia, ninguém ouvira o som das espadas na noite. Mas quando voltaram a descer dos cavalos para acampar, Lew Pequeno Piper deu voz à pergunta que cavaleiros e fidalgos não se atreviam a colocar. Jaime sorriu.
— Na Casa Hayford existem moças cheias de luxúria. Isto são mordidas de amor, rapaz.
Outro dia luminoso e ventoso foi seguido por um enevoado, e depois houve três dias de chuva. O vento e a água não tinham importância. A coluna manteve o ritmo, para norte ao longo da estrada do rei, e todas as noites Jaime encontrava algum local recatado para arranjar mais mordidas de amor. Lutaram dentro de um estábulo observados por uma mula zarolha, e na adega de uma estalagem entre os barris de vinho e cerveja. Lutaram na concha enegrecida de um grande celeiro de pedra, numa ilha arborizada num ribeiro pouco profundo, e num campo aberto enquanto a chuva tamborilava suavemente nos seus elmos escudos.
 Jaime arranjava desculpas para os seus devaneios noturnos, mas não era insensato ao ponto de pensar que os outros acreditavam nelas. Addam Marbrand sabia certamente o que ele andava fazendo, e alguns dos seus outros capitães deviam suspeitar. Mas nenhum falou do assunto ao alcance dos seus ouvidos… e como à única testemunha faltava uma língua, não tinha de temer que alguém ficasse sabendo exatamente quão inepto se tornara o Regicida com a espada.
Em breve se viam sinais da guerra por todo o lado. Ervas daninhas, espinheiros e matagais cresciam tão altos como a cabeça de um cavalo em campos onde o trigo de outono devia estar madurando, a estrada do rei estava despojada de viajantes, e lobos governavam o fatigado mundo do crepúsculo à alvorada. A maior parte dos animais era suficientemente cautelosa para manter a distância, mas um dos batedores de Marbrand viu o cavalo ser perseguido e morto quando desmontou para urinar.
— Nenhum animal teria tamanha ousadia — declarou Sor Bonifer, o Bom, com tristeza na cara austera. — Isto são demônios em pele de lobos, enviados para nos castigar pelos nossos pecados.
— Então este deve ter sido um cavalo invulgarmente pecador — disse Jaime, em pé junto ao que restava do pobre animal. Deu ordens para que o resto da carcaça fosse cortada e salgada; poderiam vir a precisar da carne.
Num lugar chamado Corno de Porca encontraram um velho e rijo cavaleiro chamado Sor Roger Hogg, que defendia teimosamente a sua torre com seis homens de armas, quatro besteiros e uma vintena de camponeses. Sor Roger era tão grande e hirsuto como um porco de engorda e Sor Kennos sugeriu que podia ser algum Crakehall perdido, visto que o símbolo deles era um varrão malhado. O Varrão Forte pareceu acreditar e passou uma intensa hora interrogando Sor Roger acerca dos seus ancestrais.
Jaime estava mais interessado no que Hogg tinha a dizer sobre os lobos.
— Tivemos alguns problemas com um bando daqueles lobos da estrela branca — disse-lhe o velho cavaleiro. — Vieram por aí a farejar o seu rasto, senhor, mas nós corremos com eles, e enterramos três lá em baixo ao pé dos nabos. Antes deles houve um grupo de malditos leões, com a vossa licença. Aquele que os liderava tinha uma mantícora no escudo.
— Sor Amory Lorch — esclareceu Jaime. — O senhor meu pai ordenou-lhe que assolasse as terras fluviais.
— Às quais nós não pertencemos — disse resolutamente Sor Roger Hogg. — A minha lealdade é devida à Casa Hayford, e a Senhora Ermesande dobra o seu pequeno joelho a Porto Real, ou o fará assim que tenha idade para andar. Eu disse isso, mas esse Lorch não era grande ouvinte. Matou metade das minhas ovelhas e três boas cabras leiteiras, e tentou assar-me na minha torre. Mas as minhas muralhas são de pedra sólida com dois metros e meio de espessura, de modo que depois do fogo se apagar ele se foi embora aborrecido. Os lobos vieram depois, aqueles de quatro patas. Comeram as ovelhas que a mantícora me deixou. Fiquei com algumas boas peles como recompensa, mas peles não enchem a barriga de ninguém. O que devemos fazer senhor?
— Plantem — disse Jaime — e rezem por uma última colheita. — Não era resposta prestável, mas era a única que podia dar. No dia seguinte, a coluna atravessou o ribeiro que formava a fronteira entre as terras que deviam lealdade a Porto Real e aquelas obrigadas a Correrrio. O Meistre Gulian consultou um mapa e anunciou que aqueles montes pertenciam aos irmãos Wode, um par de cavaleiros com terras, juramentados a Harrenhal… mas os fortes deles tinham sido construídos de terra e madeira, e só restavam vigas enegrecidas.
Não apareceu nenhum Wode, nem nenhum dos seus plebeus, embora alguns foras da lei se tivessem abrigado na cave por baixo da fortaleza do segundo irmão. Um deles usava as ruínas de um manto carmesim, mas Jaime enforcou-o com os outros. Senti-me bem. Isso foi justiça. Habitua-te a isso, Lannister, e um dia os homens talvez te chamem Mão de Ouro, afinal. Mão de Ouro, o Justo.
O mundo foi ficando mais cinzento à medida que se aproximavam de Harrenhal. Avançavam sob céus de ardósia, ao lado de águas que brilhavam, velhas e frias como uma folha de aço batido. Jaime deu por si perguntando a si próprio se Brienne teria passado por ali antes dele. Se ela pensou que Sansa Stark se dirigiu a Correrrio… Caso tivessem encontrado outros viajantes, podia ter parado para perguntar se algum teria por acaso visto uma donzela bonita com cabelo ruivo, ou uma grande e feia com uma cara capaz de coalhar leite. Mas não havia nada nas estradas a não ser lobos, e os seus uivos não continham respostas.
As torres da loucura do Harren Negro surgiram por fim do outro lado das águas de peltre do lago, cinco dedos negros retorcidos, pedra deformada que se estendia para o céu. Embora o Mindinho tivesse sido nomeado Senhor de Harrenhal, parecia não ter grande pressa de ocupar os seus novos domínios, e assim coube a Jaime Lannister “pôr em ordem” Harrenhal a caminho de Correrrio.
Não duvidava de que o castelo necessitava de ser posto em ordem. Gregor Clegane arrancara o imenso e sombrio castelo aos Saltimbancos Sangrentos antes de Cersei o chamar a Porto Real. Sem dúvida que os homens da Montanha continuavam a chocalhar lá por dentro como outras tantas ervilhas secas no interior de uma armadura, mas não eram os homens ideais para devolver o Tridente à paz do rei. A única paz que o bando de Sor Gregor alguma vez dera a alguém era a paz da sepultura. Os batedores de Sor Addam tinham relatado que os portões de Harrenhal se encontravam fechados e trancados. Jaime enfileirou os seus homens à frente deles e ordenou a Sor Kennos de Kayce para fazer soar o Corno de Herrock, negro, retorcido e ligado com ouro velho.
Depois de três sopros terem ecoado nas muralhas, ouviram o gemido de dobradiças de ferro e os portões abriram-se lentamente. As muralhas da loucura do Harren Negro eram tão espessas que Jaime passou por baixo de uma dúzia de alçapões antes de emergir à súbita luz do sol no pátio onde dissera adeus aos Saltimbancos Sangrentos não havia assim tanto tempo. Ervas daninhas brotavam da terra bem batida, e moscas zumbiam em volta da carcaça de um cavalo.
Um punhado dos homens de Sor Gregor emergiu das torres para o ver desmontar; homens de olhos e bocas duras, todos eles. Tinham de ser, para acompanhar a Montanha. O melhor que podia ser dito dos homens de Gregor era que não eram propriamente um bando tão vil e violento como os Bravos Companheiros.
— Que me fodam, é Jaime Lannister — exclamou um homem de armas cinzento e grisalho. — É o raio do Regicida, rapazes. Que eu seja fodido por uma lança!
— E você quem é? — perguntou Jaime.
— O sor costumava me chamar Boca de Merda, se agradar ao senhor. — Cuspiu nas mãos e limpou a cara com elas, como se aquilo de algum modo o deixasse mais apresentável.
— Encantador. É você quem comanda aqui?
— Eu? Não, merda. Senhor. Que me enrabem com a porra duma lança. — O Boca de Merda tinha na barba migalhas suficientes para alimentar a guarnição. Jaime teve de se rir. O homem tomou aquilo como encorajamento. — Que me enrabem com a porra duma lança — voltou a dizer, e também se pôs a rir.
— Ouviram o homem — disse Jaime a Ilyn Payne. — Arranjem uma boa e longa lança e enfiem-na pelo cu acima.
Sor Ilyn não tinha uma lança, mas o Jon Imberbe Bettley lhe tirou uma de bom grado. O riso ébrio do Boca de Merda parou abruptamente.
— Mantém a merda dessa coisa longe de mim.
— Vê se decida — disse Jaime. — Quem tem aqui o comando? Sor Gregor nomeou um castelão?
— Polliver — disse outro homem — só que o Cão de Caça o matou, senhor. A ele e ao Cócegas, e àquele moço Sarsfield.
Outra vez o Cão de Caça.
— Sabe que foi Sandor? Você o viu?
— Nós não, senhor. O estalajadeiro nos disse.
— Aconteceu na estalagem do entroncamento, senhor. — Quem falou foi um homem mais novo, com um matagal de cabelo cor de areia. Usava a corrente de moedas que em tempos pertencera a Vargo Hoat; moedas de meia centena de cidades distantes, de prata e ouro, de cobre e bronze, moedas quadradas e moedas redondas, triângulos e anéis e bocados de osso. — O estalajadeiro jurou que o homem tinha um lado da cara todo queimado. As rameiras dele contaram a mesma história. Sandor tinha um rapaz qualquer com ele, um moço esfarrapado do campo. Fizeram Polly e Cócegas em bocados sangrentos e foram embora pelo Tridente abaixo.
— Mandaram homens atrás deles?
O Boca de Merda franziu o sobrolho, como se a ideia fosse dolorosa.
— Não, senhor. Que nos fodam a todos, não mandamos.
— Quando um cão enlouquece, se corta a garganta dele.
— Bem — disse o homem, esfregando a boca — eu nunca gostei muito do Polly, esse merda, e o cão, o gajo era irmão do Sor, de modo que…
— Nós somos maus, senhor — interrompeu o homem que usava as moedas — mas é preciso ser doido para enfrentar o Cão de Caça.
Jaime o olhou de cima a baixo. Mais ousado do que os outros, e não tão bêbado como o Boca de Merda.
— Tiveram medo dele.
— Eu não diria medo, senhor. Diria que o estávamos deixando para homens melhores que nós. Para alguém como o sor. Ou o senhor.
Eu, quando tinha duas mãos. Jaime não se iludia. Agora Sandor trataria dele em dois tempos.
— Você tem nome?
— Rafford, se agradar. A maioria me chama de Raff.
— Raff, reúna a guarnição no Salão das Cem Lareiras. Os cativos também. Vou querer vê-los. Incluindo aquelas rameiras da encruzilhada. Oh, e Hoat. Fiquei perturbado quando soube que morreu. Gostaria de ver a sua cabeça.
Quando lhe trouxeram, descobriu que os lábios do Bode tinham sido cortados, tal como as orelhas e a maior parte do nariz. Os corvos tinham jantado os seus olhos. Mas ainda era possível reconhecer ali o Hoat. Jaime conheceria a sua barba em qualquer parte; uma absurda corda de pelos com sessenta centímetros de comprimento, que pendia de um queixo pontiagudo. Além disso, só algumas fitas de pele com textura de couro ainda aderiam ao crânio do qohorik.
— Onde está o resto dele? — perguntou.
Ninguém lhe queria dizer. Por fim, o Boca de Merda baixou os olhos, e resmungou.
— Apodreceu, sor. E foi comido.
— Um dos cativos andava sempre a mendigar comida — admitiu Rafford — de modo que o sor disse para lhe dar bode assado. Mas o qohorik não tinha lá muita carne. O Sor cortou-lhe primeiro as mãos e os pés, depois os braços e as pernas.
— O paneleiro gordo ficou com a maior parte, senhor — esclareceu o Boca de Merda — mas o Sor disse para a gente tratar de que todos os cativos provassem um bocadinho. E o próprio Hoat também. Aquele filho da puta babava-se quando a gente lhe dava de comer, e a gordura corria por aquela barba fininha que ele tinha.
Pai, pensou Jaime, ambos os teus cães enlouqueceram. Deu por si recordando histórias que ouvira pela primeira vez em criança, no Rochedo Casterly, sobre a louca Senhora Lothston que se banhava em banheiras de sangue e presidia a banquetes de carne humana dentro daquelas mesmas muralhas.
De algum modo, a vingança perdera o sabor.
— Leva isto e joga no lago. — Jaime atirou a cabeça de Hoat a Peck, e voltou-se para se dirigir à guarnição. — Até que Lorde Petyr chegue para reclamar os seus domínios, Sor Bonifer Hasty controlará Harrenhal em nome da coroa. Aqueles de vocês que o desejem podem juntar-se a ele, se ele quiser. O resto seguirá comigo para Correrrio.
Os homens da Montanha olharam uns para os outros. — Nós estamos à espera de pagamento — disse um. — Foi promessa de sor. Ricas recompensas, disse ele.
— Foram as palavras dele — concordou Boca de Merda. — Ricas recompensas para quem seguir comigo. — Uma dúzia de outros pôs-se a clamar o seu acordo.
Sor Bonifer ergueu uma mão enluvada.
— Qualquer homem que permaneça comigo terá uma jeira de terra para trabalhar, uma segunda jeira quando tomar esposa, uma terceira quando o seu primeiro filho nascer.
— Terra, sor? — Boca de Merda cuspiu. — Estou cagando para isso. Se quiséssemos fossar na porra da terra, bem podíamos ter ficado em casa, ou o raio, com a vossa licença, sor. Ricas recompensas, disse o sor. Querendo dizer ouro.
— Se você tiver motivo de queixa, vá a Porto Real e fale à minha querida irmã. — Jaime virou-se para Rafford. — Quero ver agora esses cativos. Começando por Sor Wylis Manderly.
— É o gordo? — perguntou Rafford.
— Espero piamente que sim. E não me contem tristes histórias sobre como ele morreu, senão todo o vosso bando é capaz de fazer o mesmo.
Quaisquer esperanças que pudesse ter nutrido de encontrar Shagwell, Pyg ou Zollo definhando nas masmorras foram tristemente desiludidas. Os Bravos Companheiros tinham abandonado Vargo Hoat até o último homem, aparentemente. Do pessoal da Senhora Whent só restavam três: o cozinheiro que abrira a poterna a Sor Gregor, um armeiro corcunda chamado Ben Blackthumb, e uma moça chamada Pia, que já não era nem de perto tão bonita como fora da última vez que Jaime a vira. 
Alguém lhe quebrara o nariz e lhe fizera saltar metade dos dentes. A moça caiu aos pés de Jaime quando o viu, soluçando e agarrando-se à perna dele com uma força histérica até que o Varrão Forte a obrigou a soltá-la.
— Ninguém te fará mal agora — disse-lhe, mas isso só a fez soluçar mais alto.
Os outros cativos foram mais bem tratados. Sor Wylis Manderly estava entre eles, com vários outros nortenhos de elevado nascimento, tomados prisioneiros pela Montanha Que Cavalga no combate nos vaus do Tridente. Reféns úteis, todos eles valiam um resgate considerável. Estavam todos esfarrapados, imundos, e desgrenhados, e alguns tinham nódoas negras recentes, dentes partidos, e dedos em falta, mas os seus ferimentos tinham sido lavados e ligados, e nenhum passara fome. Jaime perguntou a si próprio se teriam alguma noção do que tinham comido, e decidiu que era melhor não perguntar.
Em nenhum restava qualquer desafio; especialmente em Sor Wylis, uma banheira de sebo de cara peluda com olhos mortiços e bochechas pálidas e decaídas. Quando Jaime lhe disse que seria escoltado até Lagoa da Donzela e aí posto num navio com destino a Porto Branco, Sor Wylis transformou-se numa poça no chão e soluçou durante mais tempo e mais ruidosamente do que a Pia. Foram necessários quatro homens para voltar a pô-lo em pé. Demasiado bode assado, refletiu Jaime. Deuses como odeio este maldito castelo. Harrenhal vira mais horrores nos seus trezentos anos do que o Rochedo Casterly testemunhara em três mil.
Jaime ordenou que fossem acesos fogos no Salão das Cem Lareiras e enviou o cozinheiro a coxear até às cozinhas para preparar uma refeição quente para os homens da sua coluna.
— Qualquer coisa menos bode.
Quanto a ele, jantou no Salão do Caçador com Sor Bonifer Hasty, uma solene cegonha dada a salgar o discurso com apelos aos Sete.
— Não quero nenhum dos seguidores de Sor Gregor — declarou enquanto cortava uma pera tão seca como ele por forma a assegurar-se de que o sumo inexistente do fruto não iria manchar o seu imaculado gibão. — Tais pecadores ao meu serviço.
— O meu septão costumava dizer que todos os homens eram pecadores.
— Não se enganava — concedeu Sor Bonifer — mas alguns pecados são mais negros do que outros, e mais nauseantes às narinas dos Sete.
E você não tem mais nariz do que o meu pequeno irmão, caso contrário os meus pecados far-te-iam engasgar com essa pêra.
— Muito bem. Tirarei o bando de Gregor das suas mãos. — Podia sempre dar uso a combatentes. Mais que não fosse, podia mandá-los subir primeiro as escadas, caso tivesse necessidade de assaltar as muralhas de Correrrio.
— Leve também a rameira — pediu Sor Bonifer. — Sabe qual é. A moça das masmorras.
— Pia. — Da última vez que estivera ali, Qyburn mandara a rapariga à sua cama, julgando que isso lhe agradaria. Mas a Pia que tinham trazido das masmorras era uma criatura diferente da doce, simples e risonha criatura que se lhe enfiara sob as mantas. Cometera o erro de falar quando Sor Gregor queria silêncio, e a Montanha fizera-lhe os dentes em lascas com um punho coberto de cota de malha e quebrara-lhe também o belo narizinho. Teria feito pior, sem dúvida, se Cersei não o tivesse chamado a Porto Real para enfrentar a lança da Víbora Vermelha.  Jaime não faria luto por ele.
— Pia nasceu neste castelo — disse a Sor Bonifer. — É a única casa que ela alguma vez conheceu.
— Ela é uma fonte de corrupção — disse Sor Bonifer. — Não a quero perto dos meus homens, exibindo as suas… formas.
— Julgo que os seus dias de exibição tenham ficado para trás — disse — mas se ela levanta tantas objeções, eu a levo. — Supunha que podia fazer dela uma lavadeira. Os seus escudeiros não se importavam de lhe montar a tenda, de lhe tratar do cavalo ou de lhe limpar a armadura, mas a tarefa de lhe cuidar da roupa era vista por eles como pouco viril. — Você é capaz de defender Harrenhal apenas com a sua Santa Centena? — perguntou Jaime. Na verdade deviam chamá-los Santos Oitenta e Seis, visto terem perdido catorze homens na Água Negra, mas não havia dúvida de que Sor Bonifer recomporia as fileiras assim que encontrasse recrutas suficientemente pios.
— Não prevejo dificuldades. A Velha nos iluminará o caminho, e o Guerreiro dará força aos nossos braços. 
Ou então, o Estranho aparecerá em busca de todo o vosso santo bando. Jaime não tinha a certeza de quem convencera a irmã de que Sor Bonifer devia ser nomeado castelão de Harrenhal, mas a nomeação cheirava a Orton Merryweather. Julgava lembrar-se vagamente de que Hasty servira em tempos passados o avô de Merryweather. E o administrador de justiça de cabelo cor de cenoura era mesmo o tipo de pateta simplório capaz de partir do princípio de que alguém chamado “o Bom” era a exata poção de que as terras fluviais necessitavam para sarar as feridas deixadas por Roose Bolton, Vargo Hoat e Gregor Clegane.
Mas talvez não se engane. Hasty provinha das terras da tempestade, de modo que não tinha nem amigos nem inimigos ao longo do Tridente; não havia contendas de sangue, não havia dívidas a pagar, não havia companheiros a recompensar. Ele era sóbrio, justo e cumpridor, não havia nos Sete Reinos soldados melhor disciplinados do que os seus Santos Oitenta e Seis e davam um belo espetáculo quando faziam os seus grandes castrados cinzentos rodopiar e empinar-se. Mindinho dissera um dia, em gracejo, que Sor Bonifer devia ter também castrado os cavaleiros, de tal modo imaculada era a sua reputação.
Mesmo assim, Jaime duvidava de quaisquer soldados que fossem mais conhecidos pelos seus lindos cavalos do que pelos inimigos que tivessem morto. Eles rezam bem, suponho, mas serão capazes de lutar? Não se tinham desonrado na Água Negra, tanto quanto sabia, mas também não se tinham distinguido. O próprio Sor Bonifer fora um cavaleiro prometedor na juventude, mas algo lhe acontecera, uma derrota, uma desonra ou uma visão próxima da morte, e depois disso decidira que justar era uma vaidade vazia e pusera definitivamente a lança de lado.
Mas Harrenhal tem de ser controlado, e aqui o Baelor Olho-do-Cu é o homem que Cersei escolheu para o controlar.
— Este castelo tem má reputação — preveniu-o — e uma reputação que foi bem merecida. Diz-se que Harren e os filhos ainda vagueiam de noite pelos salões, incendiados. Aqueles que os contemplam rebentam em chamas.
— Não temo sombras, sor. Está escrito na Estrela de Sete Pontas que espíritos, criaturas de além-túmulo e morto-vivos não podem fazer mal a um homem piedoso, desde que ele esteja coberto pela armadura da sua fé.
— Então se arme de fé, com certeza, mas use também um lorigão e placa de aço. Todos os homens que controlam este castelo parecem ter mau fim. A Montanha, o Bode, até o meu pai…
— Se perdoar a ousadia, eles não eram homens devotos, como nós somos. O Guerreiro protege-nos, e a ajuda está sempre próxima, caso algum terrível inimigo nos ameace. O Meistre Gulian ficará aqui com os seus corvos, Lorde Lancel está perto, em Darry, com a sua guarnição, e o Lorde Randyll controla Lagoa da Donzela. Juntos, nós três perseguiremos e destruiremos quaisquer foras da lei que percorram esta região. Depois disso feito, os Sete guiarão o bom povo de volta às suas aldeias, para arar a terra, plantá-la e reconstruir.
Aqueles que o Bode não matou, pelo menos. Jaime enganchou a haste do seu cálice de vinho nos dedos de ouro.
— Se algum dos Bravos Companheiros de Hoat sair das mãos me mande avisar imediatamente. — O Estranho podia ter-se escapulido com o Bode antes de Jaime arranjar a oportunidade para tratar dele, mas o gordo Zollo ainda andava por aí, com Shagwell, Rorge, o Fiel Urswyck e os outros.
— Para que você possa torturá-los e matá-los?
— Suponho que você os perdoaria, se estivesse no meu lugar?
— Se se arrependessem sinceramente dos seus pecados… sim, os abraçaria a todos como irmãos e rezaria com eles antes de os mandar para o cepo. Os pecados podem ser perdoados. Os crimes requerem punição. — Hasty fechou as mãos à sua frente fazendo com elas uma espécie de campanário, de um modo que fez com que Jaime se lembrasse desconfortavelmente do pai. — Se for Sandor Clegane que encontrarmos, o que quer que eu faça?
Reze muito, pensou Jaime, e fuja.
— O mande juntar-se ao seu querido irmão, e fique feliz por seus deuses terem criado sete infernos. Só um nunca seria suficiente para conter ambos os Clegane. — Pôs-se desajeitadamente em pé. — Beric Dondarrion é diferente. Se o capturar, mantenha-o preso até o meu regresso. Vou querer levá-lo para Porto Real com uma corda em volta do pescoço, e ordenar a Sor Ilyn que lhe corte a cabeça onde metade do reino possa ver.
— E o tal sacerdote de Myr que o acompanha? Diz que espalha a sua falsa fé por todo o lado.
— Mate-o, beije-o ou reze com ele, como quiser.
— Não tenho qualquer desejo de beijar um homem, senhor.
— Não tenho dúvidas de que ele diria o mesmo de você. — O sorriso de Jaime transformou-se num bocejo. — Perdão. Irei me retirar, se não tiverdes objeções.
— Nenhuma senhor — disse Hasty. Certamente queria rezar.
Jaime queria lutar. Atacou os degraus dois a dois, até onde o ar da noite fosse frio e vivificante. No pátio iluminado por archotes, o Varrão Forte e Sor Flement Brax defrontavam-se enquanto um anel de homens de armas os aclamavam. Sor Lyle levará a melhor nesta luta, compreendeu. Tenho de encontrar Sor Ilyn. Tinha de novo a comichão nos dedos. Os seus passos afastaram-no do ruído e da luz. Passou por baixo da ponte coberta e atravessou o Pátio das Lâminas antes de se dar conta do local para onde se dirigia. 
Ao aproximar-se da arena dos ursos, viu o brilho de uma lanterna e a pálida luz invernal que ela derramava sobre as fileiras de íngremes bancos de pedra. Alguém chegou antes de mim, segundo parece. A arena seria um belo local para dançar; talvez Sor Ilyn se tivesse antecipado.
Mas o cavaleiro em pé junto à arena era maior; um homem rude e barbudo com um sobretudo vermelho e branco adornado com grifos. Connington. Que ele está fazendo aqui? Lá em baixo, a carcaça do urso ainda jazia na areia, embora só restassem os ossos e a pele esfarrapada, meio enterradas. Jaime sentiu uma pontada de piedade pelo animal. Pelo menos morreu em batalha.
— Sor Ronnet — chamou — Você se perdeu? É um grande castelo, bem sei.
O Ronnet, o Vermelho ergueu a lanterna.
— Quis ver o local onde o urso dançou com a donzela não muito bela. — A barba do homem brilhava à luz como se estivesse em fogo. Jaime sentiu o cheiro de vinho no seu hálito. — É verdade que a moça dançou nua?
— Nua? Não. — Perguntou a si próprio como teria essa prega sido adicionada à história. — Os Saltimbancos enfiaram-na num vestido de seda cor-de-rosa e meteram-lhe uma espada de torneio na mão. O Bode queria que a sua morte fosse divertida. Se assim não fosse…
—… a visão de Brienne nua poderia ter feito o urso fugir aterrorizado — Connington soltou uma gargalhada. Jaime não.
— Fala como se conhecesse a senhora.
— Estive prometido a ela.
Aquilo apanhou-o de surpresa. Brienne nunca mencionara um noivado.
— Meu pai arranjou-lhe uma união… — Três vezes — disse Connington. — Eu fui o segundo. Ideia do meu pai. Eu tinha ouvido dizer que a moça era feia, e foi o que lhe disse, mas ele respondeu que todas as mulheres eram iguais depois de se apagar a vela.
— O seu pai. — Jaime examinou o sobretudo do Ronnet, o Vermelho, onde dois grifos se defrontavam num campo de vermelho e branco. Grifos dançantes. — O… irmão do nosso falecido Mão, não era?
— Primo. Lorde Jon não tinha irmãos.
— Pois não. — Veio-lhe tudo à memória. Jon Connington fora amigo do Príncipe Rhaegar. Quando Merryweather falhara tão tristemente em conter a Rebelião de Robert e não fora possível encontrar o Príncipe Rhaegar, Aerys virara-se para a segunda melhor opção e promovera Connington ao cargo de Mão. Mas o Rei Louco andava sempre a cortar as Mãos. Cortara Lorde Jon depois da Batalha dos Sinos, despindo-o de honrarias, terras e riquezas, e expulsando-o mar fora para ir morrer no exílio, onde rapidamente bebera até à morte. Mas o primo, pai do Ronnet, juntara-se à rebelião e fora recompensado com o Poleiro do Grifo após o Tridente. Mas só recebera o castelo; Robert ficara com o ouro e outorgara a maior parte das terras dos Connington a apoiantes mais fervorosos. 
Sor Ronnet era um cavaleiro com terras, nada mais. Para um homem como ele, a Donzela de Tarth teria sido realmente um belo acepipe.
— Porque foi que não se casaram? — perguntou-lhe Jaime.
— Ora, fui a Tarth e a vi. Era seis anos mais velho do que ela, mas a moça conseguia olhar-me nos olhos. Era uma porca vestida de seda, embora a maioria das porcas tenham tetas maiores. Quando tentou falar quase se engasgou com a própria língua. Dei-lhe uma rosa e disse que isso seria tudo o que teria de mim. — Connington olhou a arena de relance. — O urso era menos peludo do que essa aberração. Eu…
A mão dourada de Jaime atingiu-o na boca com tanta força que o outro cavaleiro caiu aos tropeções pelos degraus abaixo. A lanterna caiu e esmagou-se, e o azeite espalhou-se, ardendo.
— Você estava falando de uma senhora de elevado nascimento, sor. Trate-a pelo nome. Chamava-se Brienne.
Connington afastou-se das chamas que se espalhavam, apoiado nas mãos e nos joelhos.
— Brienne. Se agradar ao senhor. — Cuspiu um escarro de sangue aos pés de Jaime. — Brienne, a Bela.
 
Foi uma lenta subida até ao topo da Colina de Visenya. Enquanto os cavalos se esforçavam a subir, a rainha encostou-se numa fofa almofada vermelha.
De fora vinha à voz de Sor Osmund Kettleblack.
— Abram alas. Desapareçam da rua. Abram alas para Vossa Graça, a rainha.
— Margaery realmente mantém uma corte animada — estava a Senhora Merryweather a dizer. — Temos malabaristas, saltimbancos, poetas, fantoches…
— Cantores? — sugeriu Cersei.
— Mais do que muitos, Vossa Graça. Hamish, o Harpista, toca para ela uma vez por quinzena, e por vezes Alaric de Eysen entretém-nos durante uma noite, mas o seu favorito é o Bardo Azul.
Cersei recordava-se de ver o bardo no casamento de Tommen. Jovem, e bonito ao olhar. Poderá haver aí alguma coisa?
— Ouvi dizer que também há outros homens. Cavaleiros e cortesãos. Admiradores. Diga-me a verdade, minha senhora. Acha que Margaery ainda é donzela?
— Ela diz que é, Vossa Graça.
— Realmente diz. E você, diz o quê?
Os olhos negros de Taena cintilaram de travessura.
— Quando se casou com Lorde Renly em Jardim de Cima, eu ajudei a despi-lo. Sua senhoria era um homem bem feito e robusto. Vi a prova quando o atiramos para a cama de núpcias onde a sua noiva aguardava nua como no dia do seu nome, com um lindo rubor por baixo da colcha. Sor Loras tinha-a trazido em pessoa pelos degraus acima. Margaery pode dizer que o casamento nunca foi consumado, que Lorde Renly bebera demasiado vinho no banquete de casamento, mas garanto-lhe que aquilo que tinha entre as pernas estava tudo menos cansado da última vez que o vi.
— Teria por acaso visto a cama nupcial na manhã seguinte? — perguntou Cersei. — Ela sangrou?
— Não foi exibido qualquer lençol, Vossa Graça.
É uma pena. Apesar de tudo, a ausência de um lençol ensanguentado, por si só, pouco queria dizer. Tinha-lhe constado que as camponesas comuns sangravam como porcos nas suas noites de núpcias, mas isso era menos verdadeiro em relação a donzelas de elevado nascimento como Margaery Tyrell. Dizia-se que era mais provável que a filha de um lorde entregasse a virgindade a um cavalo do que a um marido, e Margaery montava desde que tivera idade para andar.
— Consta-me que a pequena rainha tem muitos admiradores entre os nossos cavaleiros domésticos. Os gêmeos Redwyne, Sor Tallad…diga-me, quem mais?
A Senhora Merryweather encolheu os ombros.
— Sor Lambert, o tolo que esconde um olho bom atrás de um tapa olho. Bayard Norcross, Courtenay Greenhill. Os irmãos Woodwright, por vezes Portifer e muitas vezes Lucantine. Oh, e o Grande Meistre Pycelle é um visitante frequente.
— Pycelle? Realmente?  — Teria aquele tremulo e velho verme abandonado leão em favor da rosa? Se assim for, irá se arrepender. — Quem mais?                                                                                                                                
— O ilhéu do Verão com o seu manto de penas. Como pude esquecer-me dele, com a sua pele negra como tinta? Outros vêm cortejar as primas. Elinor está prometida ao rapaz Ambrose, mas adora namoricar, e Megga tem um novo pretendente todas as quinzenas. Uma vez beijou um latrineiro na cozinha. Ouvi falar acerca de um casamento dela com o irmão da Senhora Bulwer, mas estou certa de que se Megga pudesse escolher, preferiria Mark Mullendore.
Cersei soltou uma gargalhada.
— O cavaleiro das borboletas que perdeu o braço na Água Negra? De que serve metade de um homem?
— Megga acha-o querido. Pediu à Senhora Margaery para a ajudar a encontrar um macaco para ele.
— Um macaco. — A rainha não soube o que dizer a respeito daquilo. Pardais e macacos. É verdade, o reino está a enlouquecer. 
— E o nosso valente Sor Loras? Com que frequência ele visita a
irmã?
— Mais do que qualquer dos outros. — Quando Taena franzia as sobrancelha , aparecia uma minúscula ruga entre os seus olhos escuros.                                                                                  
— Visita-a todas as manhãs e todas as noites, a menos que os seus deveres interfiram. O irmão lhe é devotado, partilham tudo um com … oh…
Por um momento, a mulher de Myr pareceu quase chocada. Então um sorriso espalhou-se pelo seu rosto.
— Tive a mais perversa das ideias, Vossa Graça.
— É melhor guarda-la para você. A colina está repleta de pardais, e todos sabemos como os pardais abominam a perversidade.
— Ouvi dizer que também abominam o sabão e a água, Vossa Graça.
— Talvez demasiadas rezas roubem a um homem o sentido do cheiro. Não me esquecerei de perguntar se assim é a Sua Alta Santidade. — As cortinas oscilavam de um lado para o outro numa onda de seda carmesim.
— Orton disse-me que o Alto Septão não tem nome — disse a Senhora Taena. — Poderá ser verdade? Em Myr todos temos nomes.
— Oh, ele teve um nome um dia. Todos tiveram. — A rainha fez um gesto de indiferença com a mão. — Até septões nascidos de sangue nobre respondem apenas pelos seus nomes próprios depois de tomarem votos. Quando um deles é elevado a Alto Septão, põe de lado também esse nome. A fé diz-lhe que ele já não tem necessidade de um nome de homem, porque se transformou na manifestação dos deuses.
— Como distinguis os Altos Septões uns dos outros?
— Com dificuldade. Tem de se dizer “o gordo”, ou “aquele que veio antes do gordo”, ou “o velho que morreu durante o sono”. É sempre possível arrancar-lhes os nomes próprios, se quiser, mas melindram-se se os usarmos. Faz-lhes lembrar que um dia nasceram como homens comuns, e não gostam disso.
— O senhor meu esposo disse-me que este novo nasceu com porcaria debaixo das unhas.
— Suspeito que sim. Como regra, os mais devotos elevam um dos seus, mas houve exceções. — O Grande Meistre Pycelle informara-a da história, com um detalhe entediante. — Durante o reinado do Rei Baelor, o Abençoado, um simples pedreiro foi escolhido como Alto Septão. O homem trabalhava a pedra de forma tão bela que Baelor decidiu que era o Ferreiro renascido em carne mortal. Não sabia ler nem escrever, nem era capaz de se recordar das palavras da mais simples das preces. Ainda há quem diga que o Mão de Baelor mandou envenenar o homem para poupar embaraços ao reino. Depois desse morrer, foi elevado um rapaz de oito anos, de novo por insistência do Rei Baelor. Vossa Graça declarou que o rapaz operava milagres, embora nem mesmo as suas pequenas mãos curandeiras tivessem salvo Baelor durante o seu último jejum.
A Senhora Merryweather soltou uma gargalhada.
— Oito anos? Talvez o meu filho possa ser Alto Septão. Tem quase
sete.
— Ele reza muito? — perguntou a rainha.
— Prefere brincar com espadas.
— Então é um rapaz a sério. É capaz de dizer o nome de todos os sete deuses?
— Julgo que sim.
— Terei de levá-lo em consideração. — Cersei não duvidava de que havia uma grande quantidade de rapazes que honrariam mais a coroa de cristal do que o desgraçado a quem os mais devotos haviam decidido concedê-la. Isto é o que acontece quando se deixa que idiotas e covardes se governem a si próprios. Da próxima vez, eu escolherei o seu chefe. E a próxima vez podia não demorar muito a chegar, se o novo Alto Septão continuasse a aborrecê-la. A Mão de Baelor tinha pouco a ensinar a Cersei Lannister em assuntos como esse.
— Desimpedi o caminho! — estava Sor Osmund Kettleblack a gritar. — Abram alas para a Graça da Rainha!
A liteira começou a abrandar, o que só podia querer dizer que estavam perto do topo da colina.
— Deveria trazer esse seu filho para a corte — disse Cersei à Senhora Merryweather. — Seis anos não é novo demais. Tommen precisa de outros rapazes à sua volta. Porque não o seu filho? — Joffrey nunca tivera um amigo íntimo da sua idade, que se lembrasse. O pobre rapaz sempre esteve só. Eu tinha Jaime quando era criança… e Melara, até ela cair ao poço. Joff gostara do Cão de Caça, certamente, mas isso não era amizade. Procurava o pai que nunca encontrara em Robert. Um irmãozinho adotivo pode ser precisamente aquilo de que Tommen precisa para o afastar de Margaery e das suas galinhas. Há seu tempo podiam tornar-se tão chegados como Robert e o seu amigo de infância, Ned Stark. Um tolo, mas um tolo leal. Tommen precisará de amigos leais que lhe vigiem a retaguarda.
— Vossa Graça é bondosa, mas Russell nunca conheceu outro lar além de Mesalonga. Temo que se sentiria perdido nesta grande cidade.
— A princípio, sim — concedeu a rainha — mas em breve ultrapassaria isso, tal como eu ultrapassei. Quando o meu pai mandou trazerme para a corte chorei e Jaime enfureceu-se, até que a minha tia se sentou comigo no Jardim de Pedra e me disse que não havia ninguém em Porto Real que eu devesse temer. “És uma leoa”, disse, “e cabe a todas as feras menores temer-te a ti”. O seu filho também encontrará a sua coragem. Decerto que preferia tê-lo por perto, onde pudesse vê-lo todos os dias. É o seu único filho, não é?
— Por agora. O senhor meu esposo pediu aos deuses para nos abençoarem com outro, para o caso de…
— Eu sei. — Pensou em Joffrey, arranhando o pescoço. Nos seus últimos momentos olhara-a num apelo desesperado, e uma súbita recordação parara-lhe o coração, uma gota de sangue rubro a silvar na chama de uma vela, uma voz coaxante que falava de coroas e mortalhas, de morte às mãos do valonqar.
Fora da liteira, Sor Osmund estava a gritar qualquer coisa, e alguém gritava-lhe em resposta. A liteira parou com um solavanco.
— Estão todos mortos? — rugiu o Kettleblack. — Saiam da porcaria do caminho!
A rainha puxou para trás um canto da cortina e chamou Sor Meryn Trant com um gesto.
— O que é que se passa?
— São os pardais, Vossa Graça.
Sor Meryn usava armadura de escamas brancas por baixo do manto. O seu elmo e escudo estavam pendurados na sela. 
— Acampados na rua. Farei eles se mexerem.
— Faça-o, mas com gentileza. Não quero ser apanhada noutro tumulto. — Cersei deixou a cortina cair. — Isto é absurdo.
— Pois é, Vossa Graça — concordou a Senhora Merryweather. — O Alto Septão devia ter vindo ter contigo. E estes deploráveis pardais…
— Ele alimenta-os, acarinha-os, abençoa-os. E no entanto não quer abençoar o rei. — Sabia que a bênção era um ritual vazio, mas os rituais e as cerimônias tinham poder aos olhos dos ignorantes. O próprio Aegon, o Conquistador, determinara que o início do seu reinado se dera no dia em que o Alto Septão o ungira em Vilavelha. 
— Este miserável sacerdote irá obedecer, caso contrário ficará a saber quão fraco e humano ainda é.
— Orton diz que o que ele realmente quer é ouro. Que pretende reter a bênção até que a coroa reate os pagamentos.
— A Fé terá o seu ouro assim que tivermos paz. 
O Septão Torbert e o Septão Raynard tinham-se mostrado muito compreensivos relativamente à sua promessa… ao contrário dos malditos bravosianos que haviam perseguido o pobre Lorde Gyles tão desapiedadamente que ele caíra de cama, tossindo sangue. Tínhamos de ter aqueles navios. Não podia depender da Árvore para a marinha, os Redwyne eram demasiado próximos dos Tyrell. Precisava das suas próprias forças no mar. Os dromones que se erguiam no rio iriam dá-las. O navio almirante teria duas vezes mais remos do que o Martelo do Rei Robert. Aurane pediralhe autorização para lhe chamar Lorde Tywin, a qual Cersei ficara feliz por conceder. Esperava com antecipação ouvir os homens falar do casco e remos do pai. Outro dos navios ia se chamar Doce Cersei, e teria uma figura de proa dourada, esculpida à sua semelhança, vestida de cota de malha, com um elmo de leão e uma lança na mão. Valente Joffrey, Senhora Joanna e Leoa iam segui-la para o mar, em conjunto com Rainha Margaery, Rosa Dourada, Lorde Renly, Senhora Olenna e Princesa Myrcella.
A rainha cometera o erro de dizer a Tommen que podia batizar os últimos cinco. Ele chegara a escolher Rapaz Lua para um deles. Só quando Lorde Aurane sugerira que os homens talvez não quisessem servir num navio batizado em honra de um bobo é que o rapaz concordara relutantemente em honrar a irmã.
— Se este septão esfarrapado planeja obrigar-me a comprar a bênção de Tommen, em breve aprenderá umas coisas — disse a Taena. A rainha não tencionava submeter-se a uma matilha de sacerdotes. A liteira voltou a parar, tão subitamente que Cersei se sobressaltou.
— Oh, isto é de enfurecer.
— Voltou a debruçar-se para fora, e viu que tinham chegado ao topo da Colina de Visenya. Em frente erguia-se o Grande Septo de Baelor, com a sua magnífica cúpula e sete torres brilhantes, mas entre si e os degraus de mármore, estendia-se um soturno mar de humanidade, castanho, esfarrapado e sujo. Pardais, pensou, fungando, embora nenhum pardal tivesse tido algum dia cheiro tão fétido. Cersei ficou espantada. Qyburn trouxera-lhe relatórios acerca da quantidade de pardais, mas ouvir falar dos números era uma coisa e vê-los outra. Centenas estavam acampadas na praça, mais centenas nos jardins. As suas fogueiras enchiam o ar de fumo e maus cheiros. Tendas de ráfia e cabanas miseráveis feitas de lama e bocados de madeira sujavam o imaculado mármore branco. Estavam até aninhados nos degraus, sob as altas portas do Grande Septo. Sor Osmund regressou a trote para junto dela. A seu lado seguia Sor Osfryd, montado num garanhão tão dourado como o seu manto. Osfryd era o Kettleblack do meio, mais calado do que os irmãos, mais inclinado a franzir a sobrancelha do que a sorrir. E também mais cruel, se as histórias forem verdadeiras. Talvez devesse tê-lo enviado para a Muralha.
O Grande Meistre Pycelle quisera um homem mais velho, “mais experiente nos usos da guerra”, para comandar os homens de mantos dourados, e vários dos outros conselheiros tinham concordado com ele.
— Sor Osfryd tem suficiente experiência — dissera-lhes, mas nem mesmo isso os calara. Ladram-me como uma matilha de cãezinhos irritantes. Já praticamente esgotara a paciência com Pycelle. O homem até tivera a temeridade de levantar objeções quando falara em mandar buscar um mestre de armas em Dorne, com o argumento de que isso poderia ofender os Tyrell. 
— Porque julgais que eu o estou a fazer? — perguntara-lhe desdenhosamente.
— Perdão, Vossa Graça — disse Sor Osmund. 
— O meu irmão chamou mais homens de mantos dourados. Abriremos uma passagem, não tenha medo.
— Não tenho tempo. Prosseguirei a pé.
— Por favor, Vossa Graça. Taena pegou-lhe no braço. — Eles assustamme. São centenas, e tão sujos. Cersei beijoulhe o rosto.
— O leão não teme o pardal… mas é bom que os preocupem. Eu sei que gosta bastante de mim, senhora. Sor Osmund, tenha a bondade de me ajudar a descer. — Se soubesse que ia ter de caminhar, teria me vestido a rigor. Trazia um vestido branco fendido com pano de ouro, rendado mas recatado. Tinham-se passado vários anos desde a última vez que o envergara, e a rainha achava-o desconfortavelmente apertado na cintura.
— Sor Osmund, Sor Meryn, acompanhem-me. Sor Osfryd, assegurese de que nada de mal aconteça à minha liteira. — Alguns dos pardais pareciam suficientemente descarnados e de olhos vazios para lhe comer os cavalos.
Enquanto abria caminho através da multidão esfarrapada, passando pelas suas fogueiras, carroças e rudes abrigos, a rainha deu por si a recordar outra multidão que um dia se reunira naquela praça. No dia em que casara com Robert Baratheon, milhares tinham aparecido para os aclamar. Todas as mulheres usavam as suas melhores roupas, e metade dos homens tinham crianças aos ombros. Quando emergira de dentro do septo, de mão dada com o jovem rei, a multidão soltara um rugido tão ruidoso que poderia ter sido ouvido em Lannisporto.
— Eles gostam bastante de você, senhora — murmurara-lhe Robert ao ouvido. — Veja, todos os rostos estão a sorrir. 
Durante aquele curto momento, fora feliz no casamento… até calhar deitar um relance a Jaime. Não, lembrava-se de ter pensado, não são todos os rostos, senhor. Ninguém estava agora a sorrir. Os olhares que os pardais lhe deitavam eram mortiços, carrancudos, hostis. Abriam caminho, mas com relutância . Se fossem mesmo pardais, um grito os teria posto a voar. Uma centena de homens de mantos dourados com bordões, espadas e maças limparia esta gentalha bem depressa. Seria isso que Lorde Tywin teria feito. Ele teria cavalgado por cima deles, em vez de caminhar através da populaça. Quando viu o que tinham feito a Baelor, o Adorado, a rainha teve motivos para se arrepender do seu coração suave. A grande estátua de mármore, que levara cem anos a sorrir serenamente sobre a praça, estava enterrada até à cintura numa pilha de ossos e crânios. Alguns dos crânios mostravam bocados de carne ainda agarrada. Um corvo encontrava-se pousado em num desses crânios, desfrutando de um banquete seco e com uma consistência de couro. Havia moscas por todo o lado.
— Que significa isto? — perguntou Cersei à multidão. — Pretendem enterrar o Abençoado Baelor numa montanha de carniça?
Um homem perneta deu um passo em frente, apoiado numa muleta de madeira.
— Vossa Graça, esses são os ossos de homens e mulheres santos, assassinados devido à sua fé. Septões, septãs, irmãos castanhos, pardos e verdes, irmãs brancas, azuis e cinzentas. Alguns foram enforcados, outros esventrados. Septos foram pilhados, donzelas e mães violadas por homens ímpios e adoradores de demônios. Até irmãs silenciosas foram molestadas. A Mãe no Céu chora em angústia. Trouxemos os seus ossos de todo o reino até aqui, para servir de testemunho à agonia da Santa Fé.
Cersei sentia o peso dos olhos em cima de si.
— O rei saberá dessas atrocidades — respondeu solenemente.
— Tommen partilhará de sua indignação. Isto é obra de Stannis e da sua bruxa vermelha, e dos nortenhos selvagens que adoram árvores e lobos. 
Ergueu a voz.
— Bom povo, os vossos mortos serão vingados!
Alguns aclamaram, mas só alguns.
— Não pedimos vingança pelos nossos mortos — disse o perneta — apenas proteção para os vivos. Para os septos e lugares santos.
— O Trono de Ferro tem de defender a Fé — resmungou um corpulento labrego com uma estrela de sete pontas pintada na testa. 
— Um rei que não protege o seu povo não é rei nenhum. — Murmúrios de assentimento ergueram-se daqueles que o rodeavam. Um homem teve a temeridade de agarrar no pulso de Sor Meryn e dizer:
— É tempo de todos os cavaleiros ungidos renunciarem aos seus senhores terrenos e defenderem a nossa Santa Fé. Junte-se a nós, sor, se amas os Sete.
— Tire as mãos de cima de mim — disse Sor Meryn, libertando-se com uma sacudidela.
— Estou ouvindo — disse Cersei. — O meu filho é jovem, mas ama bastante os Sete. Terão a sua proteção e a minha.
O homem com a estrela na testa não se mostrou aplacado.
— O Guerreiro iria nos defender — disse — não esse rapaz-rei gordo. Meryn Trant estendeu a mão para a espada, mas Cersei parou-o antes que a desembainhasse. Tinha apenas dois cavaleiros no meio de um mar de pardais. Via bordões e gadanhas, clavas e mocas, vários machados.
— Não quero sangue derramado neste lugar sagrado, sor. — Porque serão todos os homens umas crianças tão grandes? Abate-o, e os outros irão desfazer-nos membro a membro.
— Somos todos filhos da Mãe. Venha, Sua Alta Santidade nos espera. 
Mas ao abrir caminho na direção dos degraus do septo, um bando de homens armados saiu e bloqueou as portas. Usavam cota de malha e couro fervido, com um bocado de placa amolgada de aço aqui e ali. Alguns traziam lanças e outros espadas. Eram mais os que preferiam os machados, e tinham estrelas vermelhas cosidas nos seus sobretudos branqueados. Dois deles tiveram a insolência de cruzar as lanças e barrarlhe a passagem.
— É assim que recebem a sua rainha? — perguntou-lhes. — Digamme, onde estão Raynard e Torbert? 
Não era hábito desses dois perderem uma oportunidade para a adular. Torbert fazia sempre alarde de se pôr de joelhos para lhe lavar os pés.
— Não conheço os homens de quem fala — disse um dos homens com uma estrela vermelha no sobretudo — mas se pertencerem à Fé, sem dúvida que os Sete tiveram necessidade dos seus serviços.
— O Septão Raynard e o Septão Torbert pertencem aos Mais Devotos — disse Cersei — e ficarão furiosos quando souberem que me obstruíram a passagem. Pretende negar-me a entrada no septo sagrado de Baelor?
— Vossa Graça — disse um homem de barba grisalha com um ombro curvado. — Você é bem vinda aqui, mas os seus homens deverão deixar ficar os cintos das espadas. Não são permitidas armas lá dentro, por ordens do Alto Septão.
— Cavaleiros da Guarda Real não põem de lado as suas espadas, nem mesmo na presença do rei.
— Na casa do rei, deverá reinar a palavra do rei — respondeu o cavaleiro idoso — mas esta é a casa dos deuses.
A cor subiu-lhe ao rosto. Bastaria dizer uma palavra a Meryn Trant e aquele grisalho de costas arqueadas iria encontrar-se com os seus deuses mais cedo do que talvez preferisse. Mas aqui não. Agora não.
— Esperem por mim — disse secamente à Guarda Real. Sozinha, subiu os degraus. Os lanceiros descruzaram as lanças. Outros dois homens encostaram o seu peso às portas, e elas afastaram-se com um grande rangido.
No Salão das Lâmpadas, Cersei foi encontrar uma vintena de septões de joelhos, mas não em oração. Tinham baldes de água e sabão, e estavam a esfregar o chão. As suas vestes de tecido grosseiro e sandálias levaram Cersei a toma-los por pardais, até que um deles ergueu a cabeça. Tinha a cara vermelha como uma beterraba, e bolhas rebentadas sangravam nas suas mãos.
— Vossa Graça.
— Septão Raynard? — A rainha quase não conseguia crer no que estava a ver. — O que faz de joelhos?
— Está a limpar o chão. — O homem que falou era vários centímetros mais baixo do que a rainha e magro como um pau de vassoura.
— O trabalho é uma forma de prece, muito do agrado do Ferreiro. — O homem pôs-se em pé, de escova na mão. — Vossa Graça. Temos estado à sua espera. A barba do homem era grisalha e castanha e cortada curta, o cabelo atado num nó apertado por trás da cabeça. Embora as vestes que envergava estivessem limpas, estavam também puídas e remendadas. Enrolara as mangas até aos cotovelos enquanto esfregara o chão, mas abaixo dos joelhos o pano estava encharcado em água. A cara era fortemente pontiaguda, com olhos encovados de um castanho de lama. Os pés dele estão nus, viu Cersei, consternada. E também eram hediondos, umas coisas duras e coriáceas, tornadas grossas por calos.
— És a Sua Alta Santidade?
— Somos.
Pai, daí-me forças. A rainha sabia que devia ajoelhar, mas o chão estava molhado com sabão e água suja, e ela não desejava estragar o vestido.
Deitou um relance aos velhos de joelhos.
— Não vejo o meu amigo, o Septão Torbert.
— O Septão Torbert foi confinado a uma cela de penitente, a pão e água. É um pecado que um homem seja tão gordo quando metade do reino passa fome.
Cersei já aguentara o suficiente por um dia. Deixou-o ver a sua ira.
— É assim que me cumprimenta? Com uma escova na mão, a pingar água? Sabeis quem eu sou?
— Vossa Graça é a Rainha Regente dos Sete Reinos — disse o homem — mas na Estrela de Sete Pontas está escrito que tal como os homens se dobram perante os seus senhores e os senhores perante os seus reis, assim os reis e as rainhas devem dobrar-se perante os Sete Que São Um Só. — Estará ele a dizer-me para ajoelhar? Se assim fosse, não a conhecia muito bem.
— O certo seria que tivésseis ido cumprimentar-me na escada, com as suas melhores vestes e a coroa de cristal na cabeça.
— Não temos qualquer coroa, Vossa Graça.
A sua sobrancelha franziu-se mais.
— O senhor meu pai deu ao seu antecessor uma coroa de rara beleza, trabalhada em cristal e ouro tecido.
— E por essa dádiva honramo-lo nas nossas preces — disse o Alto Septão — mas os pobres precisam mais de comida na barriga do que nós precisamos de ouro e cristal na cabeça. Essa coroa foi vendida. O mesmo aconteceu às outras que tínhamos nas caves, bem como a todos os nossos anéis e vestes de pano de ouro e prata. A lã manterá os homens igualmente quentes. Foi para isso que os Sete nos deram as ovelhas.
Ele é completamente louco. Os Mais Devotos deviam estar também loucos, para elegerem aquela criatura… loucos ou aterrorizados pelos pedintes que lhes batiam à porta. Os informadores de Qyburn diziam que o Septão Luceon estava a nove votos da eleição quando aquelas portas tinham cedido, e uma torrente de pardais entrara no Grande Septo, com o seu líder aos ombros e machados nas mãos.
Fitou o homenzinho com um olhar gelado.
— Há algum lugar onde possamos falar com mais privacidade, Vossa Santidade?
O Alto Septão entregou a escova a um dos Mais Devotos.
— Se Vossa Graça nos quiser seguir… Levou-a através das portas interiores, entrando no septo propriamente dito. Os passos de ambos ecoaram no chão de mármore. Partículas de pó dançavam nos feixes de luz colorida que entravam em diagonal pelos vitrais da grande cúpula. Incenso adoçava o ar, e ao lado dos sete altares brilhavam velas como se fossem estrelas. Um milhar tremeluzia para a Mãe e quase outras tantas para a Donzela, mas era possível contar as velas do Estranho com duas mãos e ainda se ficaria com dedos por usar. Até aquele local os pardais tinham invadido. Uma dúzia de cavaleiros andantes mal vestidos estava ajoelhada perante o Guerreiro, suplicando-lhe que abençoasse as espadas que tinham empilhado aos seus pés. No altar da Mãe, um septão liderava as preces de uma centena de pardais, com vozes tão distantes como ondas a bater na costa. O Alto Septão levou Cersei até onde a gelha erguia a sua lanterna. Quando ajoelhou perante o altar, ela não teve outra hipótese que não fosse ajoelhar a seu lado. Misericordiosamente, aquele Alto Septão não era tão prolixo como o gordo fora. Suponho que deva sentir-me grata por isso. Sua Alta Santidade não fez qualquer movimento para se erguer quando terminou a prece. Parecia que teriam de conferenciar de joelhos. Um estratagema de homem pequeno, pensou, divertida.
— Alta Santidade — disse — estes pardais estão a assustar a cidade. Quero que vão embora.
— Para onde irão , Vossa Graça?
 Há sete infernos, qualquer um servirá.
— Para o lugar de onde vieram, imagino.
— Eles vieram de todo o lado. Tal como o pardal é o mais humilde e comum dos pássaros, eles são os mais humildes e comuns dos homens. — Eles são comuns, pelo menos nisso concordamos.
—Viu o que fizeram à estátua do Abençoado Baelor? Eles conspurcam a praça com os seus porcos, cabras e dejetos noturnos.
— É mais fácil lavar dejetos noturnos do que sangue, Vossa Graça. Se a praça foi conspurcada, foi pela execução que aqui aconteceu. — Ele atreve-se a atirar-me Ned Stark à cara?
— Todos a lamentamos. Joffrey era jovem, e não tão sensato como poderia ser. Lorde Stark devia ter sido decapitado noutro lugar, por respeito ao Abençoado Baelor… mas o homem era um traidor, que não o esqueçamos.
— O Rei Baelor perdoou aqueles que conspiraram contra si. — O Rei Baelor aprisionou as suas próprias irmãs, cujo único crime era serem belas. Da primeira vez que Cersei ouvira contar essa história, dirigira-se ao berçário de Tyrion e beliscara o monstrinho até o pôr a chorar.
Devia ter-lhe apertado o nariz e enfiado uma meia na sua boca. Forçou-se a sorrir.
— O Rei Tommen também perdoará aos pardais, depois de eles regressarem a suas casas.
— A maior parte deles perdeu a casa. Há sofrimento por todo o lado… e luto, e morte. Antes de vir para Porto Real, cuidava de meia centena de aldeolas, demasiado pequenas para terem o seu próprio septo. Caminhava de uma aldeia até à seguinte, celebrando casamentos, absolvendo pecadores dos seus pecados, batizando crianças recém nascidas. Essas aldeias já não existem, Vossa Graça. Ervas daninhas e espinheiros crescem onde os jardins em tempos floriram, e ossos juncam as bermas das estradas.
— A guerra é uma coisa terrível. Essas atrocidades são obra dos nortenhos, e de Lorde Stannis e seus adoradores de demônios.
— Alguns dos meus pardais falam de bandos de leões que os espoliaram… e do Cão de Caça, que era um homem juramentado a você. Em Salinas matou um septão idoso e atacou uma rapariga de doze anos, uma criança inocente prometida à Fé. Usou a armadura enquanto a violava, e a terna carne da menina foi rasgada e esmagada pelo ferro da cota de malha.
Quando acabou, deu-a aos seus homens, que lhe cortaram o nariz e os mamilos.
— Sua Graça não pode ser responsabilizada pelos crimes de todos os homens que um dia serviram a Casa Lannister. Sandor Clegane é um traidor e um bruto. Porque julga que o demiti do meu serviço? Ele agora luta pelo fora da lei Beric Dondarrion, não pelo Rei Tommen.
— É como diz. E no entanto tenho que perguntar o seguinte: por onde andavam os cavaleiros do rei quando estas coisas estavam a acontecer? Não é verdade que Jaehaerys, o Conciliador, um dia jurou pelo próprio Trono de Ferro que a coroa protegeria e defenderia sempre a Fé?
Cersei não fazia ideia do que Jaehaerys, o Conciliador, poderia ter jurado.
— É verdade — concordou — e o Alto Septão abençoou-o e ungiu-o como rei. É tradicional que cada novo Alto Septão dê ao rei a sua bênção… e no entanto você se  recusou a abençoar o Rei Tommen.
— Vossa Graça está enganada. Nós não recusamos.
— Não veio.
— A hora ainda não está madura.
É um sacerdote, ou um vendedor de hortaliças?
  — E o que poderei eu fazer para a tornar… mais madura? — Se ele se atrever a mencionar ouro, lidarei com este como lidei com o último, e encontrarei um piedoso miúdo de oito anos para usar a coroa de cristal.
— O reino está cheio de reis. Para que a Fé exalte um acima dos demais temos de ter a certeza. Há trezentos anos, quando Aegon, o Dragão, desembarcou no sopé desta mesma colina, o Alto Septão trancou-se no interior do Septo Estrelado de Vilavelha e rezou durante sete dias e sete noites, sem ingerir nada além de pão e água. Quando saiu, anunciou que a Fé não se oporia a Aegon e às irmãs, pois a Velha erguera a sua lanterna e mostrara-lhe o caminho em frente. Se Vilavelha pegasse em armas contra o Dragão, Vilavelha arderia, e a Torre alta, a Cidadela e o Septo Estrelado seriam derrubados e destruídos. Lorde Hightower era um homem devoto. Quando ouviu a profecia, manteve as suas forças em casa e abriu os portões da cidade a Aegon quando ele chegou. E Sua Alta Santidade ungiu o Conquistador com os sete óleos. Eu devo fazer o que ele fez, há trezentos anos. Devo rezar e jejuar.
— Durante sete dias e sete noites?
— Durante o tempo que for necessário.
Cersei sentiu vontade de esbofetear a solene e pia cara do homem. Podia te ajudar a jejuar, pensou. Podia trancar-te em alguma torre e assegurar-me de que ninguém te traria comida até os deuses falarem.
— Aqueles falsos reis abraçam falsos deuses — fez-lhe lembrar. 
— Só o Rei Tommen defende a Santa Fé.
— E no entanto, os septos são queimados e saqueados por toda a parte. Até irmãs silenciosas foram violadas, gritando a sua angústia até ao céu. Vossa Graça viu os ossos e crânios dos nossos santos mortos?
— Vi — teve de dizer. — Dai a Tommen a sua bênção, e poremos fim a essas afrontas.
— E como farei tal coisa, Vossa Graça? Enviará um cavaleiro para percorrer as estradas com cada irmão mendicante? Irá nos dar homens para defender as nossas septãs contra os lobos e os leões?
Vou fazer de conta que não falou de leões.
— O reino está em guerra. Sua Graça tem necessidade de todos os homens. —Cersei não tencionava esbanjar as forças de Tommen para fazer de ama seca a pardais, ou para proteger as conas enrugadas de um milhar de septãs. Metade delas estão provavelmente a rezar por uma boa violação.
— Os seus pardais têm cacetes e machados. Que eles defendam a si próprios.
— As leis do Rei Maegor proíbem-no, como Vossa Graça deve saber. Foi por decreto seu que a Fé pousou as espadas.
— Agora o rei é Tommen, não Maegor. — Que lhe importava o que Maegor, o Cruel, decretara trezentos anos antes? Em vez de tirar as espadas das mãos dos fiéis, devia tê-las usado para os seus próprios fins. Apontou para onde o Guerreiro se erguia por cima do seu altar de mármore vermelho. — O que é que ele tem na mão?
— Uma espada.
— Ele esqueceu-se de como usa-la?
— As leis de Maegor...
—... podem ser desfeitas. — Deixou aquilo pairar entre ambos, esperando que o Alto Septão engolisse a isca.
Ele não a desiludiu.
— A Fé Militante renascida… isso seria a resposta para trezentos anos de preces, Vossa Graça. O Guerreiro voltaria a erguer a sua espada brilhante e limparia este pecaminoso reino de todo o mal. Se Sua Graça me permitisse restaurar as antigas ordens abençoadas da Espada e da Estrela, todos os homens devotos dos Sete Reinos saberiam que ele é o nosso senhor legítimo e verdadeiro. — Aquilo era bom de ouvir, mas Cersei teve o cuidado de não parecer muito ávida.
— Vossa Alta Santidade falou há pouco de perdão. Nestes tempos conturbados, o Rei Tommen ficaria muito grato se pudesse arranjar maneira de perdoar a dívida da coroa. Parece-me que devemos à Fé cerca de novecentos mil dragões.
— Novecentos mil, seiscentos e setenta e quatro dragões. Ouro que poderia alimentar os famintos e reconstruir um milhar de septos.
— É ouro o que deseja? — perguntou a rainha. — Ou será que prefere ver aquelas poeirentas leis de Maegor postas de lado?
O Alto Septão refletiu naquilo por um momento.
— Como quiser. Essa dívida será perdoada, e o Rei Tommen terá a sua bênção. Os Filhos do Guerreiro irão me escoltar até ele, brilhando na glória da sua Fé, enquanto os meus pardais partem para defender os dóceis e humildes do mundo, renascidos como Pobres Irmãos, como antigamente.  — A rainha pôs-se em pé e alisou as saias.
— Mandarei preparar os papéis, e Sua Graça irá assina-los e dar-lhes o selo real. — Se havia alguma parte de ser rei que Tommen adorava, era brincar com o seu selo.
— Que os Sete protejam Sua Graça. Que tenha um longo reinado. 
O Alto Septão fez das mãos um campanário e ergueu os olhos para o céu.
— Que os malvados tremam!
Esta a ouvir isto, Lorde Stannis? Cersei não conseguiu impedir-se de sorrir. Nem mesmo o senhor seu pai poderia ter se saído melhor. De um golpe, livrara Porto Real da praga dos pardais, assegurara a bênção de Tommen, e diminuíra a dívida da coroa em quase um milhão de dragões. Tinha o coração a pairar bem alto quando permitiu que o Alto Septão a acompanhasse de regresso ao Salão das Lâmpadas. A Senhora Merryweather partilhou o deleite da rainha, embora nunca tivesse ouvido falar dos Filhos do Guerreiro ou dos Pobres Irmãos.
— Datam de antes da Conquista de Aegon — explicou-lhe Cersei. 
— Os Filhos do Guerreiro eram uma ordem de cavaleiros que renunciavam às suas terras e ouro e  juramentavam as espadas a Sua Alta Santidade. Os Pobres Irmãos… eram mais humildes, apesar de muito mais numerosos. Uma espécie de irmãos mendicantes, embora transportassem machados em vez de tigelas. Vagueavam pelas estradas, escoltando viajantes de septo em septo e de vila em vila. O seu símbolo era a estrela de sete pontas, vermelha sobre branco, de modo que o povo simples lhes chamava Estrelas. Os Filhos do Guerreiro usavam mantos arco-íris e armadura embutida de prata por cima de cilícios, e traziam cristais em forma de estrela nos botões do punho das espadas. Esses eram as Espadas. Homens santos, ascetas, fanáticos, feiticeiros, matadores de dragões, caçadores de demônios… havia muitas histórias acerca deles. Mas todos concordam que eram implacáveis no seu ódio por todos os inimigos da Santa Fé. — A Senhora Merryweather compreendeu de imediato.
— Inimigos tais como Lorde Stannis e a sua feiticeira vermelha, talvez?
— Ora, sim, por acaso — disse Cersei, rindo-se como uma menina.
— Encetamos um jarro de hipocraz e bebemos ao fervor dos Filhos do Guerreiro no caminho para casa?
— Ao fervor dos Filhos do Guerreiro e ao brilhantismo da Rainha Regente. A Cersei, a Primeira do Seu Nome!
O hipocraz era tão doce e saboroso como o triunfo de Cersei, e a liteira da rainha pareceu quase flutuar enquanto atravessava a cidade de volta à Fortaleza Vermelha. Mas na base da Colina de Aegon, encontraram Margaery Tyrell e as primas, que regressavam de um passeio. Ela segue-me onde quer que eu vá, pensou Cersei, aborrecida, quando pôs os olhos na pequena rainha. Atrás de Margaery vinha uma longa comitiva de cortesãos, guardas e criados, muitos dos quais carregados com cestos de flores frescas. Cada uma das primas trazia um admirador a reboque; o espigado escudeiro Alyn Ambrose acompanhava Elinor, à qual se encontrava prometido, Sor Tallad vinha com a tímida Alla, e Mark Mullendore, com o seu único braço, seguia com Megga, rechonchuda e risonha. Os gêmeos Redwyne escoltavam duas das outras damas de Margaery, Meredith Crane e Janna Fossoway. Todas as mulheres traziam flores no cabelo. Jalabhar Xho também se juntara ao grupo, tal como Sor Lambert Turnberry com a sua pala, e o bem parecido cantor conhecido como Bardo Azul. E claro que um cavaleiro da Guarda Real tem de acompanhar a pequena rainha, e claro que é o Cavaleiro das Flores. Numa armadura de escamas brancas com embutidos de ouro, Sor Loras resplandecia. Embora já não tomasse a liberdade de treinar Tommen no manejo das armas, o rei ainda passava muito mais tempo do que devia na sua companhia. De todas as vezes que o rapaz regressava de uma tarde passada com a sua pequena esposa, tinha alguma nova história a contar acerca de algo que Sor Loras dissera ou fizera. Margaery saudou-os quando as duas colunas se encontraram e se pôs ao lado da liteira da rainha. Tinha as bochechas rosadas, e os caracóis castanhos caiam-lhe livremente em volta dos ombros, agitados por cada sopro de vento.
— Temos estado a colher flores de outono na mata do rei — disse-lhes.
Eu sei onde estiva, pensou a rainha. Os seus informantes eram muito bons em mantê-la ao corrente dos movimentos de Margaery. É uma rapariga tão inquieta, a nossa pequena rainha. Raramente deixava que se passassem mais de dois dias sem que fosse passear a cavalo. Certos dias cavalgava ao longo da estrada de Rosby à caça de conchas e para comer junto ao mar. Outras vezes levava a comitiva para a outra margem do rio, para passar uma tarde a fazer falcoaria. A pequena rainha gostava também de sair de barco, velejando para cima e para baixo ao longo da Torrente da Água Negra sem nenhum objetivo em particular. Quando estava a sentir-se piedosa, deixava o castelo para ir rezar ao Septo de Baelor. Dava freguesia a uma dúzia de costureiras diferentes, era bem conhecida entre os ourives da cidade, e até visitara o mercado de peixe perto do Portão da Lama para dar uma olhadela à captura do dia. Onde quer que fosse, o povo adulava-a, e a Senhora Margaery fazia o que podia para alimentar o seu ardor. Andava sempre a dar esmolas a pedintes, a comprar tortas quentes nas carroças dos pasteleiros, e a refrear o cavalo para falar com mercadores comuns.
Se dependesse dela, teria posto Tommen a fazer também todas essas coisas. Andava eternamente a convida-lo para a acompanhar e às suas galinhas nas suas aventuras, e o rapaz andava eternamente a suplicar à mãe licença para ir. A rainha dera o seu consentimento algumas vezes, quanto mais não fosse para permitir que Sor Osney passasse mais algumas horas na companhia de Margaery. E de muito isso serviu. Osney revelou-se um penoso desapontamento.
— Lembra do dia em que a sua irmã zarpou para Dorne? — perguntara Cersei ao filho. — Recorda dos uivos da turba quando voltávamos para o castelo? Das pedras, das pragas?
Mas o rei mostrara-se surdo ao bom senso, graças à sua pequena rainha.
— Se nos misturarmos com os plebeus, eles gostarão mais de nós.
— A turba gostou tanto do Alto Septão gordo que o desfez um membro de cada vez, e ele era um homem santo — fizera-lhe lembrar. Tudo o que conseguira fora deixa-lo amuado consigo. Tal como Margaery quer, aposto. Tenta roubar-me todos os dias e de todas as maneiras. Joffrey teria visto para lá do seu sorriso de intriguista e a faria ficar consciente do seu lugar, mas Tommen era mais ingênuo. Ela sabia que Joff era forte demais para si, pensou Cersei, lembrando-se da moeda de ouro que Qyburn encontrara. Para a Casa Tyrell ter esperança de governar, ele tinha de ser tirado do caminho. Recordou-se de que Margaery e a sua hedionda avó tinham em tempos conspirado para casar Sansa Stark com o irmão aleijado da pequena rainha, Willas. Lorde Tywin antecipara-se, casando Sansa com Tyrion, mas a ligação estava lá. Estão todos juntos na intriga, compreendeu com um sobressalto. Os Tyrell subornaram os carcereiros para libertar Tyrion, e levaram-no à pressa pela estrada das rosas abaixo para ir se juntar à sua desprezível noiva. Por esta altura estão os dois a salvo em Jardim de Cima, escondidos por trás de uma muralha de rosas.
— Devia ter vindo conosco, Vossa Graça — tagarelou a pequena intriguista enquanto subiam a encosta da Colina de Aegon. — Podíamos ter passado umas horas tão agradáveis juntas. As árvores estão vestidas de dourado, vermelho e laranja, e há flores por todo o lado. E castanhas também. Assamos algumas no caminho de regresso.
— Não tenho tempo para cavalgar pelos bosques e colher flores — disse Cersei. — Tenho um reino a governar.
— Só um, Vossa Graça? Quem governa os outros seis? — Margaery soltou uma alegre gargalhadinha. — Espero que perdoe o meu gracejo. Eu conheço o fardo que suporta. Devia deixar-me partilhar a carga. Deve haver algumas coisas que eu possa fazer para te ajudar. Acabaria com todo este falatório sobre você e eu rivalizarmos pelo rei.
— É isso o que se diz? — Cersei sorriu. — Que tontice. Nunca a olhei como uma rival, nem por um momento.
— Agrada-me tanto ouvir isso. — A rapariga não parecia perceber que fora golpeada. — Você e Tommen tende de vir conosco da próxima vez. Eu sei que Sua Graça adoraria. O Bardo Azul tocou para nós, e Sor Tallad nos mostrou como lutar com um bastão, como o povo luta. Os bosques são tão lindos no outono.
— O meu falecido esposo também adorava a floresta. — Nos anos iniciais do seu matrimônio, Robert andava eternamente a implorar para que Cersei fosse à caça com ele, mas ela sempre pedira dispensa. As viagens de caça dele permitiam-lhe passar tempo com Jaime. Dias de ouro e noites de prata. A dança que os dois tinham dançado fora decerto perigosa. Dentro da Fortaleza Vermelha havia olhos e ouvidos por todo o lado e nunca se podia ter a certeza de quando Robert regressaria. De algum modo, o perigo só servira para fazer com que o tempo passado juntos fosse ainda mais emocionante. — Mesmo assim, a beleza pode por vezes esconder um perigo mortal — preveniu a pequena rainha. — Robert perdeu a vida na floresta.
Margaery sorriu a Sor Loras; um sorriso doce e fraternal, cheio de carinho.
—Vossa Graça é gentil por temer por mim, mas o meu irmão me mantém bem protegida.
Vá caçar, dissera Cersei a Robert meia centena de vezes. O meu irmão me mantém bem protegida. Recordou o que Taena lhe dissera horas antes e uma gargalhada saltou-lhe dos lábios.
— Vossa Graça tem um riso tão lindo. — A Senhora Margaery deitou-lhe um sorriso zombeteiro. — Podemos saber qual é a piada?
— Saberá — disse a rainha. — Garanto a você que saberá.
 
Os tambores marcavam um ritmo de batalha enquanto o Vitória de Ferro se precipitava em frente, rompendo com o esporão as agitadas águas verdes.
O navio menor, à sua frente, estava virando de bordo, chicoteando o mar com os remos. Rosas agitavam-se nos seus estandartes; à proa e à popa com uma rosa branca num escudete vermelho, no topo do mastro uma dourada num campo tão verde como relva. O Vitória de Ferro varreu-lhe o flanco com tanta força que metade do destacamento de abordagem perdeu o equilíbrio. Remos partiram-se e se fizeram em lascas, doce música para os ouvidos do capitão.
Saltou sobre o talabardão, caindo convés abaixo, com o manto dourado ondeando atrás de si. As rosas brancas recuaram como os homens faziam sempre que viam Victarion Greyjoy armado e couraçado, de rosto escondido atrás do elmo em forma de lula gigante. Seguravam espadas, lanças e machados, mas nove em dez não trazia armadura, e o décimo tinha apenas um saião de escamas cosidas umas às outras. Estes não são homens de ferro, pensou Victarion. Ainda têm medo de se afogar.
— Apanhem-no! — Gritou um homem. — Ele está sozinho!
— VENHAM! — Rugiu em resposta. — Venham me matar, se conseguirem!
Os guerreiros das rosas convergiram de todos os lados, com aço cinzento nas mãos e terror por trás dos olhos. O seu medo estava tão maduro que Victarion conseguia saboreá-lo. Golpeou à esquerda e à direita, decepando o braço do primeiro homem pelo cotovelo, abrindo uma grande fenda no ombro do segundo. O terceiro enterrou o machado no escudo de pinheiro de Victarion. Empurrou-o contra a cara do idiota, derrubou-o, e o matou quando tentou voltar a pôr-se de pé. Enquanto lutava por libertar o machado das costelas do morto, uma lança picou-o entre as omoplatas. Foi como se alguém lhe tivesse dado uma palmada nas costas. Victarion rodopiou e atirou o machado contra a cabeça do lanceiro, sentindo o impacto no braço quando o aço cortou com estrondo elmo, cabelo e crânio.
O homem cambaleou durante meio segundo, até o capitão de ferro libertar o aço e empurrar o cadáver que partiu cambaleando pelo convés afora, sem força nos membros, parecendo mais bêbado do que morto. Por essa altura, os seus nascidos no ferro tinham-no seguido até o convés do dracar quebrado. Ouviu o Wulfe-Uma-Orelha soltar um uivo quando se lançou ao trabalho, vislumbrou Ragnor Pyke com a sua cota de malha enferrujada, viu Nute, o Barbeiro, fazendo um machado de arremesso rodopiar pelo ar e ir atingir um homem no peito. Victarion matou outro homem, e depois mais um. Teria matado um terceiro, mas Ragnor abateu-o primeiro.
— Bom golpe — berrou-lhe Victarion.
Quando se virou em busca da próxima vítima do seu machado, viu o outro capitão do outro lado do convés. Tinha o sobretudo branco manchado de sangue e tripas, mas Victarion conseguia distinguir o brasão que trazia ao peito, a rosa branca dentro do seu escudete vermelho. O homem ostentava o mesmo símbolo no escudo, num campo branco com uma bordadura ameiada de vermelho.
— Você! — Gritou o capitão de ferro através da carnificina. — Você, o da rosa! Seria você o senhor de Escudosul?
O outro ergueu a viseira para mostrar um rosto sem barba.
— O seu filho e herdeiro, Sor Talbert Serry. E quem é você, lula?
— A sua morte! — Victarion investiu contra ele.
Serry saltou para defrontá-lo. A sua espada era de bom aço forjado em um castelo, e o jovem cavaleiro a fazia cantar. O seu primeiro golpe foi baixo, e Victarion afastou-o com o machado. O segundo atingiu o capitão de ferro no elmo antes de ter tempo de erguer o escudo. Victarion respondeu com um golpe lateral com o machado. O escudo de Serry interpôs-se. Voaram lascas de madeira, e a rosa branca fendeu-se de cima a baixo com um belo e penetrante crac. A espada do jovem cavaleiro bateu-lhe na coxa, uma, duas, três vezes, gritando contra o aço. Este rapaz é rápido, compreendeu o capitão de ferro. Atingiu a cara de Serry com o escudo, e o fez cambalear para trás, de encontro ao talabardão. Victarion ergueu o machado e pôs todo o seu peso no golpe, para rasgar o rapaz do pescoço às virilhas, mas Serry rodopiou para longe. A cabeça do machado esmagou-se contra a amurada, fazendo voar lascas, e ficou presa quando tentou libertá-la. O convés moveu-se sob os seus pés e o homem de ferro caiu sobre um joelho. 
Sor Talbert jogou fora o escudo quebrado e lançou um corte vertical com a espada. O escudo de Victarion tinha feito metade da rotação quando ele tropeçara. Apanhou a lâmina de Serry com um punho de ferro. Aço articulado foi esmagado, e uma punhalada de dor o fez soltar um grunhido, mas Victarion agüentou.
— Eu também sou rápido, rapaz — disse enquanto arrancava a espada das mãos do cavaleiro e a atirava ao mar.
Os olhos de Sor Talbert esbugalharam-se.
— A minha espada…
Victarion atingiu o rapaz na garganta com um punho ensanguentado.
— Vai buscá-la — disse, forçando-o a cair de costas, por cima da amurada para dentro da água manchada de sangue. Com aquilo conseguiu uma pausa para soltar o machado. As rosas brancas estavam recaindo perante a maré de ferro. Alguns tentavam fugir para dentro do navio, enquanto outros gritavam por trégua. Victarion sentia sangue quente escorrendo pelos seus dedos, por baixo da cota de malha, do couro e do aço articulado, mas isso não era nada. Do outro lado do mastro, um espesso nó de inimigos continuava lutando, resistindo, ombro a ombro, num anel. 
Aqueles pelo menos são homens. Preferem morrer a se render. Victarion iria conceder a alguns esse desejo. Bateu no escudo com o machado e abateu sobre eles.
O Deus Afogado não esculpira Victarion Greyjoy para lutar com palavras em assembleias de homens livres, nem para combater contra inimigos furtivos e dissimulados em países intermináveis. Era para aquilo que foi posto na terra; para avançar vestido de aço com um machado manchado de sangue na mão, oferecendo a morte a cada golpe.
Atacaram-no pela frente e pelas costas, mas, pelo dano que lhe causaram as espadas bem podiam ter sido chibatas de salgueiro. Não havia lâmina capaz de atravessar o aço pesado de Victarion Greyjoy, e ele não dava aos inimigos tempo suficiente para encontrarem os pontos fracos nas juntas, onde apenas cota de malha e couro o protegiam. Quer três homens o assaltassem, ou quatro, ou cinco; não fazia diferença. Matava-os um de cada vez, confiando no aço para protegê-lo dos outros. Quando um inimigo caía, virava a sua fúria para o seguinte. O último homem que enfrentou devia ter sido um ferreiro; os ombros pareciam os de um touro, e um deles era muito mais musculoso do que o outro. A sua armadura era uma brigantina tachonada e um boné de couro fervido. O único golpe que deu completou a destruição do escudo de Victarion, mas a estocada que este atirou em resposta lhe abriu a cabeça em duas. 
Seria bom se pudesse lidar com o Olho de Corvo com esta simplicidade.
Quando voltou a libertar o machado, o crânio do ferreiro pareceu arrebentar. Osso, sangue e cérebro saltaram para todo o lado, e o cadáver caiu para frente, contra as suas pernas. Tarde demais para suplicar agora por tréguas, pensou Victarion enquanto se desembaraçava do morto. A essa altura, o convés encontrava-se escorregadio sob os seus pés, e os mortos e moribundos jaziam em pilhas por todos os lados.  Jogou escudo fora e encheu os pulmões de ar.
— Senhor capitão — ouviu o Barbeiro dizer a seu lado. — O dia é nosso.
A toda a volta, o mar estava cheio de navios. Alguns ardiam, outros se afundavam, outros tinham sido feitos em lascas. Entre os cascos, a água estava espessa como guisado, cheia de cadáveres, ramos quebrados e homens agarrados aos destroços. À distância, meia dúzia dos dracares dos homens do sul corriam de volta ao Vago. Que vão, pensou Victarion, que contem a história. Depois de um homem virar as costas e fugir da batalha, deixava de ser um homem.
Os seus olhos ardiam do suor que neles entrara durante a luta. Dois dos seus remadores ajudaram-no a desprender o elmo da lula gigante para que pudesse tirá-lo. Victarion limpou a testa.
— Aquele cavaleiro — resmungou. — O cavaleiro da rosa branca. Algum de vocês o puxou para fora? O filho de um senhor valeria um resgate considerável; do pai, se o Lord Serry tivesse sobrevivido àquele dia. Do seu suserano em Jardim de Cima talvez.
Mas nenhum dos seus homens tinha visto o que acontecera ao cavaleiro depois de ir borda afora. O mais provável era que o homem tivesse se afogado.
— Que se banqueteie tão bem como lutou, nos salões aquáticos do Deus Afogado. — Embora os homens das Ilhas Escudo chamassem a si mesmos marinheiros, cruzavam os mares aterrorizados e seguiam levemente vestidos para a batalha, com medo do afogamento. O jovem Serry fora diferente. Um homem corajoso pensou Victarion. Quase um nascido no ferro.
Entregou o navio capturado a Ragnor Pyke, nomeou uma dúzia de homens para tripulá-lo, e subiu de volta para o seu Vitória de Ferro.
— Despe os cativos de armas e armaduras e cure os seus ferimentos, — disse a Nute, o Barbeiro. — Atire os moribundos ao mar. Se algum pedir misericórdia, corte-lhe a garganta primeiro. — Só sentia desprezo por homens assim; era melhor afogar-se em água do mar do que em sangue. — Quero uma contagem dos navios que ganhamos e de todos os cavaleiros e fidalgos que capturamos. Também quero os seus estandartes. — Um dia os penduraria no seu salão, para que quando se tornasse velho e frágil, pudesse recordar-se de todos os inimigos que matara quando era jovem e forte.
— Será feito — Nute fez um sorriso. — É uma bela vitória.
Sim, pensou. Uma grande vitória para o Olho de Corvo e os seus feiticeiros.
Os outros capitães voltariam a gritar o nome do irmão quando as notícias chegassem a Escudo Escudorroble. Euron seduzira-os com a sua língua fluente e olho sorridente e prendera-os à sua causa com o saque de meia centena de terras distantes; ouro e prata, armaduras ornamentadas, espadas curvas com botões de punho dourados, punhais de aço valiriano, peles listradas de tigres e de gatos malhados, mantícoras de jade e antigas esfinges valirianas, arcas de noz moscada, cravinho e açafrão, presas de marfim e chifres de unicórnio, penas verdes, cor de laranja e amarelas vindas do Mar do Verão, rolos de boa seda e cintilante samito… E, no entanto isso tudo era quase nada, comparado com isto. Agora, deu lhes conquista, e são seus de uma vez por todas, pensou o capitão. O sabor que tinha na língua era amargo. Esta vitória foi minha, não dele. Onde estava ele? Em Escudo de Carvalho, dormindo num castelo. Roubou-me a esposa e me roubou o trono, e agora me rouba a glória.
A obediência era natural para Victarion Greyjoy; nascera nela. Crescendo até à idade adulta à sombra dos irmãos, seguira obedientemente Balon em tudo o que ele fizera. Mais tarde, quando os filhos de Balon nasceram, foi aos poucos aceitando a ideia de um dia também ajoelhar perante eles, quando um tomasse o lugar do pai na Cadeira da Pedra do Mar. Mas o Deus Afogado chamara Balon e os filhos para os seus salões aquáticos, e Victarion não conseguia chamar “rei” a Euron sem sentir o gosto da bílis na garganta. O vento estava tornando-se mais fresco, e sentia uma sede furiosa.
Depois de uma batalha desejava sempre vinho. Entregou o convés a Nute e desceu. Na sua apertada cabine de ré, foi encontrar a mulher morena, úmida e pronta; a batalha talvez tivesse também a ela aquecido o sangue.
Tomou-a por duas vezes, em rápida sucessão. Quando terminaram, havia sangue espalhado pelos seus seios, coxas e barriga, mas era sangue dele, proveniente do golpe que tinha na palma da mão. A morena lavou-o com vinagre fervido.
— O plano era bom, admito — disse Victarion quando ela se ajoelhou ao seu lado. — O Vago está agora aberto para nós, como estava antigamente. — O rio era indolente, largo, lento e traiçoeiro com recifes e bancos de areia. A maior parte das embarcações marítimas não se atrevia a navegar para lá de Jardim de Cima, mas os dracares, com os seus baixos calados, podiam subir até Pontamarga. Nos tempos antigos, os nascidos no ferro tinham velejado ousadamente pela estrada do rio e feito pilhagens ao longo de todo o Vago e dos seus afluentes… até que os reis da mão verde armaram os pescadores das quatro pequenas ilhas ao largo da foz do Vago e os nomearam seus escudos.
Tinham-se passado dois mil anos, mas nas torres de vigia ao longo das suas costas escarpadas os grisalhos ainda mantinham a antiga vigília. Ao primeiro vislumbre de dracares, os velhos acendiam as suas fogueiras sinalizadoras, e o chamado saltava de monte em monte e de ilha em ilha. Medo! Inimigos! Atacantes! Atacantes! Quando os pescadores viam as fogueiras ardendo nos montes altos, punham de lado as redes e os arados e pegavam nas espadas e machados. Os seus senhores saíam em corrida dos castelos, servidos por cavaleiros e homens de armas. Cornetas de guerra ecoavam sobre as águas, vindos de Escudoverde e Escudogris, de Escudorroble e Escudossul, e os seus dracares deslizavam das enseadas de pedra coberta de musgo ao longo das costas, com os remos relampejando enquanto atravessavam em nuvens os estreitos e iam selar o Vago e perseguir e assolar os atacantes rio acima até à sua destruição.
Euron mandara Torwold Browntooth e o Remador Vermelho para o Vago com uma dúzia de dracares rápidos, para que os senhores das Ilhas Escudo partissem em perseguição. Quando a frota principal chegara, só restava uma mão cheia de guerreiros defendendo as ilhas propriamente ditas.
Os nascidos no ferro tinham vindo na maré do fim da tarde, para que o clarão do poente os mantivesse escondidos dos grisalhos nas torres de vigia até ser tarde demais. Tinham o vento pelas costas, como estivera ao longo de toda a viagem desde Velha Wyk. Murmurava-se na frota que os feiticeiros de Euron tinham mais do que muito a ver com isso, que o Olho de Corvo apaziguava o Deus da Tempestade com sacrifícios de sangue. De que outra forma se atreveria a velejar até tão longe para oeste, em vez de seguir a linha da costa como era costume? Os nascidos no ferro encalharam os seus dracares nas praias de cascalho e jorraram para o crepúsculo púrpura com aço cintilando nas mãos. A essa altura, as fogueiras já ardiam nos locais elevados, mas poucos tinham ficado para trás para pegar em armas. Escudogris, Escudo verde e Escudosul caíram antes de o Sol nascer. Escudo de Carvalho resistiu mais meio dia. E quando os homens dos Quatro Escudos desistiram da perseguição movida a Torwold e ao Remador Vermelho e viraram para jusante, foram encontrar a Frota de Ferro à sua espera na foz do Vago. 
— Tudo aconteceu como Euron disse — disse Victarion à morena enquanto ela lhe ligava a mão com linho. — Os seus feiticeiros devem tê-lo visto. — O irmão tinha três a bordo do Silêncio, confidenciara Quellon Humble num murmúrio. — Mas ainda precisa de mim para travar as suas batalhas — insistiu Victarion. — Os feiticeiros podem ser muito bons, mas é o sangue e o aço que vence as guerras. — O vinagre fez o ferimento doer mais do que nunca. Afastou a mulher com um empurrão e fechou o punho, carrancudo. — Traga-me vinho.
Bebeu na escuridão, matutando no irmão. Se não der o golpe com a minha própria mão, serei na mesma um fratricida? Não havia homem que Victarion temesse, mas a maldição do Deus Afogado fazia-o hesitar. Se for outro a abatê-lo às minhas ordens, o seu sangue manchará também as minhas mãos? Aeron Cabelo Molhado saberia a resposta, mas o sacerdote estava em algum lugar nas Ilhas de Ferro, ainda com esperança de amotinar os nascidos no ferro contra o seu rei recém coroado. Nute, o Barbeiro, é capaz de barbear um homem com um machado arremessado de vinte metros de distância. E nenhum dos mestiços de Euron conseguiria resistir a Wulfe Uma Orelha ou a Andrik, o Sério. Qualquer deles poderia fazer. Mas sabia que o que um homem pode fazer e o que um homem quer fazer eram duas coisas diferentes.
— As blasfêmias de Euron farão cair à fúria do Deus Afogado sobre todos nós — profetizara Aeron, ainda em Velha Wyk. — Temos de detê-lo, irmão. Ainda somos do sangue de Balon, não somos?
— Ele também é — dissera Victarion. — Não gosto disto mais do que você, mas Euron é o rei. A sua assembleia de homens livres elegeu-o, e foi você mesmo quem lhe pôs na cabeça a coroa de madeira trazida pelo mar!
— Eu coloquei a coroa na cabeça — dissera o sacerdote, com algas a pingar no cabelo. — E de bom grado voltaria a arrancá-la e te coroaria no seu lugar. Só você tem força suficiente para lutar contra ele.
— Foi o Deus Afogado que o elevou — protestara Victarion. — Que seja o Deus Afogado a derrubá-lo.
Aeron deitara-lhe um olhar sinistro, o olhar que tinha fama de tornar imprópria a água de poços e deixar estéreis as mulheres.
— Não foi o deus que falou. Sabe-se que Euron tem feiticeiros e magos malignos naquele seu navio vermelho. Eles atiraram algum feitiço sobre nós, para não conseguirmos ouvir o mar. Os capitães e os reis estavam bêbados com toda aquela conversa de dragões.
— Bêbados, ou com medo daquele corno. Ouviu o som que ele fez. Mas não importa. Euron é o nosso rei.
— Meu não — declarara o sacerdote. — O Deus Afogado ajuda os valentes, não aqueles que se aninham dentro dos navios quando a tempestade chega. Se não quer se mexer para remover o Olho de Corvo da Cadeira da Pedra do Mar, tenho de ser eu a pôr as mãos à obra.
— Como? Não tem navios e não tem espadas.
— Tenho a minha voz — respondeu o sacerdote. — E o deus está comigo. É minha a força do mar, uma força à qual o Olho de Corvo não pode esperar resistir. As ondas podem quebrar-se na montanha, mas continuam a vir onda atrás de onda, e no fim só restarão pedregulhos onde esteve a montanha. E em breve até os pedregulhos serão varridos para longe, para o chão sob o mar para toda a eternidade.
— Pedregulhos? — Resmungara Victarion. — Está louco se pensa em derrubar o Olho de Corvo com conversas sobre ondas e pedregulhos.
— Os nascidos no ferro serão as ondas — dissera o Cabelo Molhado. — Não os grandes e senhores, mas o povo simples, os que lavram a terra e os que pescam no mar. Os capitães e os reis fizeram subir Euron, mas o povo o derrubará. Irei a Grande Wyk, a Harlaw, a Montrasgo, à própria Pyke. As minhas palavras serão ouvidas em cada vila e aldeia. Nenhum homem sem deus pode sentar-se na Cadeira da Pedra do Mar! — Abanara a cabeça peluda e penetrara a passos largos na noite. Quando o sol se ergueu no dia seguinte, Aeron Greyjoy desaparecera da Velha Wyk. Nem mesmo os seus afogados sabiam para onde. Dizia-se que o Olho de Corvo se limitara a rir quando o disseram.
Embora o sacerdote tivesse desaparecido, os seus terríveis avisos tinham ficado. Victarion deu-se a lembrar-se também das palavras de Baelor Blacktyde. “Balon era louco, Aeron é mais louco ainda, e Euron é o mais louco de todos.” O jovem senhor tentara zarpar para casa após a assembléia de homens livres, recusando-se a aceitar Euron como suserano. Mas a Frota de Ferro fechara a baía, pois o hábito da obediência estava profundamente enraizado em Victarion Greyjoy, e Euron usava a coroa de madeira trazida pelo mar. O Voador da Noite fora apreendido, e o Lord Blacktyde entregue agrilhoado ao rei. Os mudos e mestiços de Euron tinham-no cortado em sete partes, para alimentar os sete deuses das terras verdes que ele adorara. Como recompensa pelo seu leal serviço, o recém coroado rei dera a Victarion a morena, roubada de algum mercador de escravos a caminho de Lys.
— Não quero nenhuma das suas sobras — dissera desdenhosamente ao irmão, mas quando o Olho de Corvo dissera que a mulher seria morta se não a aceitasse, fraquejara. A língua dela tinha sido arrancada, mas tirando essa parte o restante estava intacto, e era também bela, com uma pele tão castanha como teca oleada. Mas por vezes, quando a olhava, dava-se lembrando da primeira mulher que o irmão lhe dera, para fazer dele um homem.
Victarion quis voltar a usar a morena, mas achou-se incapaz.
— Vai me buscar outro odre de vinho — disse. E depois saia.
Quando ela regressou com um odre de um tinto amargo, o capitão levou-o para o convés, onde podia respirar o ar limpo do mar. Bebeu metade do odre e despejou o resto no mar para todos os homens que tinham morrido.
O Vitória de Ferro permaneceu durante horas ao largo da foz do Vago. Enquanto a maior parte da Frota de Ferro se punha a caminho de Escudorroble, Victarion manteve o Luto, o Lorde Dagon, o Vento de Ferro e a Desgraça da Donzela ao seu redor como retaguarda. Içaram sobreviventes do mar, e viram o Mão Dura afundar lentamente, arrastada para o fundo pelo destroço que abalroara. Quando o navio desapareceu sob as águas, Victarion tinha a contagem que pediu. Perdeu seis navios, e capturou trinta e oito.
— Servirá — disse a Nute. — Aos remos. Regressamos à Vila do Lorde Hewett.
Os remadores esforçaram as costas em direção a Escudorroble, e o capitão de ferro voltou a ir para baixo.
— Podia matá-lo — disse à morena. — Embora seja um grande pecado matar um rei, e um pecado pior matar um irmão. — Franziu as sobrancelhas. — Asha teria me dado a sua voz. — Como ela podia ter esperado conquistar os capitães e os reis com as suas pinhas e nabos? O sangue de Balon corre-lhe nas veias, mas não deixa de ser uma mulher. Fugiu após a assembleia dos homens livres. Na noite em que a coroa de madeira trazida pelo mar foi colocada na cabeça de Euron, ela e a sua tripulação tinham desaparecido. Uma pequena parte de Victarion sentia-se satisfeita com isso. Se a mulher mantiver a cabeça no lugar, casará com algum lorde nortenho e viverá com ele no seu castelo, longe do mar e de Euron Olho de Corvo.
— A Vila do Lorde Hewett, Senhor Capitão! — Gritou um tripulante.
Victarion ergueu-se. O vinho abafara o latejar na sua mão. Talvez a levasse ao meistre de Hewett para que a visse, se o homem não tivesse sido morto. Regressou ao convés no momento em que dobravam um promontório.
O modo como o castelo do Lorde Hewett se erguia por cima do porto fez-lhe lembrar Fidalporto, embora aquela vila fosse duas vezes maior. 
Uma vintena de dracares patrulhava as águas para lá da enseada, com a lula gigante dourada balançando em suas velas. Centenas e outros navios encontravam-se encalhados ao longo das praias de cascalho e içados para os pontões que rodeavam o porto. Num cais de pedra viam-se três grandes cocas e uma dúzia de outros menores, embarcando saque e provisões.
Victarion deu ordens para o Vitória de Ferro largar âncora.
— Mande preparar um bote.
A vila parecia estranhamente parada quando se aproximaram. A maior parte das lojas e casas tinham sido saqueadas, como as suas portas arrombadas e portadas quebradas testemunhavam, mas só o septo foi incendiado. As ruas estavam apinhadas de cadáveres, todos eles com um pequeno bando de gralhas pretas prestando-lhes assistência. Um bando de taciturnos sobreviventes deslocava-se entre eles, afastando as aves negras e atirando os mortos para um carro a fim de serem enterrados. A ideia encheu Victarion de repugnância. Nenhum verdadeiro filho do mar quereria apodrecer debaixo da terra. Como encontraria os salões aquáticos do Deus Afogado, para beber e banquetear-se por toda a eternidade?
O Silêncio encontrava-se entre os navios por que passaram. O olhar de Victarion foi atraído para a sua figura de proa em ferro, a donzela sem boca com o cabelo soprado pelo vento e braço estendido. Os seus olhos de madrepérola pareceram segui-lo. Ela tinha uma boca como qualquer outra mulher, até o Olho de Corvo costurá-la.
Ao se aproximarem da costa, reparou numa fila de mulheres e crianças que eram pastoreadas para o convés de uma das grandes cocas. Algumas tinham as mãos atadas atrás das costas, e todas usavam laços de corda de cânhamo em torno do pescoço.
— Quem são? — Perguntou aos homens que ajudaram a amarrar o seu bote.
— Viúvas e órfãos. Vão ser vendidas como escravas.
— Vendidas? — Não havia escravos nas Ilhas de Ferro, havia apenas servos. Um servo estava obrigado a servir, mas não era um bem. Os seus filhos nasciam livres, desde que fossem entregues ao Deus Afogado. E os servos nunca eram comprados ou vendidos em troca de ouro. Se um homem não pagasse o preço de ferro por servos, não tinha nenhum. — Deveriam ser servas, ou esposas de sal — protestou Victarion.
— É por decreto do rei — disse o homem.
— Os fortes sempre tiraram aos fracos — disse Nute, o Barbeiro. — Servas ou escravas, não tem importância. Os seus homens não foram capazes de defendê-las, portanto agora são nossas, para fazermos com elas o que quisermos.
O Costume Antigo não é assim, podia ter dito, mas não houve tempo. A sua vitória precedera-o, e os homens estavam a se reunindo à sua volta para lhe dar os parabéns. Victarion deixou-os adulá-lo, até que um se pôs a elogiar a ousadia de Euron.
— É ousado velejar longe de vista de terra, para que nenhuma notícia da nossa aproximação chegasse a estas ilhas antes de nós — resmungou. — Mas atravessar metade do mundo para ir caçar dragões, isso é outra coisa. — Não esperou resposta, e abriu caminho através da aglomeração e dirigiu-se à fortaleza.
 O castelo do Lorde Hewett era pequeno, mas forte, com paredes espessas e portões de carvalho com rebites que evocavam as antigas armas da sua Casa, um escudete de carvalho com rebites de ferro sobre um fundo ondulado de azul e branco. Mas era a lula gigante de Greyjoy que flutuava agora no topo das suas torres de telhados verdes, e foram encontrar os grandes portões queimados e partidos. Nas ameias caminhavam homens de ferro com lanças e machados, e também alguns dos mestiços de Euron.
No pátio, Victarion encontrou Gorold Goodbrother e o velho Drumm, conversando em voz baixa com Rodrik Harlaw. Nute, o Barbeiro, soltou um grito ao vê-los.
— Leitor! — Gritou. — Por que a cara de preocupação? Os seus receios não serviram de nada. O dia é nosso e é nossa a recompensa!
A boca de Lorde Rodrik franziu-se.
— Fala destes rochedos? Os quatro juntos não chegam a fazer uma Harlaw. Conquistamos algumas pedras, árvores e bugigangas, e a inimizade da Casa Tyrell.
— As rosas? — Nute soltou uma gargalhada. — Que rosa pode causar dano às lulas gigantes das profundezas? Tiramos-lhes os escudos, e os fizemos todos em pedaços. O que os protegerá agora?
— Jardim de Cima. — Respondeu o Leitor. — Em breve, todo o poderio da Campina será reunido contra nós, Barbeiro, e então pode ser que fique sabendo que há rosas com espinhos de aço.
Drumm anuiu com a cabeça, com uma mão no cabo da sua Rubra Chuva.
— Lord Tarly usa a espada Veneno do Coração, forjada de aço valiriano, e está sempre na vanguarda Tyrell.
A ira de Victarion estalou.
— Que venha. Tornarei minha a espada dele, tal como o vosso antepassado tomou a Rubra Chuva. Que venham todos, e que tragam também os Lannister. Um leão pode ser bastante feroz em terra, mas no mar é a lula gigante que tem o poder supremo. — Daria metade dos dentes pela hipótese de experimentar o machado contra o Regicida ou o Cavaleiro das Flores. Era esse o tipo de batalha que compreendia. O regicida era amaldiçoado aos olhos dos deuses e dos homens, mas o guerreiro era honrado e reverenciado.
— Não tenha medo, Senhor Capitão. — Disse o Leitor. — Todos eles virão. Sua Graça deseja-o. Por que outro motivo nos teria ordenado que deixássemos voar os corvos de Hewett?
— Você lê demais e não luta o suficiente — disse Nute. — O seu sangue é leite. — Mas o Leitor fingiu que não ouviu.
Um festim tempestuoso desenrolava-se quando Victarion entrou no salão. Filhos do ferro enchiam as mesas bebendo, gritando e empurrando-se uns aos outros, vangloriando-se dos homens que tinham matado, dos feitos que tinham realizado, daquilo que tinham conquistado. Muitos estavam ornamentados com objetos pilhados. Lucas Mao Esquerda Codd e Quellon Humble tinham arrancado tapeçarias das paredes para servirem de mantos. Germund Botley usava um fio de pérolas e granadas sobre a sua dourada placa de peito Lannister. Andrik, o Sério, andava por ali a cambaleando com uma mulher debaixo de cada braço; embora continuasse sério, tinha anéis em todos os dedos. Em vez de travessas esculpidas em velho pão bolorento, os capitães comiam de bandejas de prata maciça.
O rosto de Nute, o Barbeiro, escureceu de fúria enquanto olhava em volta.
— O Olho de Corvo envia-nos para enfrentar os dracares, enquanto os seus homens tomam os castelos e as aldeias e arrecadam todo o saque e as mulheres. Que foi que deixou para nós?
— Nós temos a glória.
— A glória é boa — disse Nute. — Mas o ouro é melhor.
Victarion encolheu os ombros.
— O Olho de Corvo diz que teremos Westeros inteira. A Árvore, Vilavelha, Jardim de Cima… será ali que encontrará o seu ouro. Mas basta de conversas. Tenho fome.
Por direito de sangue, Victarion podia ter exigido um lugar no estrado, mas não queria comer com Euron e as suas criaturas. Em vez disso, escolheu um lugar junto a Ralf, o Coxo, capitão do Lorde Quellon.
— Uma grande vitória, Senhor Capitão. — Disse o Coxo. — Uma vitória merecedora de uma senhoria. Você deveria ficar com uma ilha.
Lorde Victarion. Sim, e porque não? Podia não ser a Cadeira da Pedra do Mar, mas seria alguma coisa. Hotho Harlaw estava do outro lado da mesa chupando carne de um osso. Jogou-o fora com um peteleco e dobrouse para a frente.
— O Cavaleiro vai ficar com Escudogris. O meu primo. Sabia?
— Não. — Victarion olhou para o outro lado do salão, para onde Sor Harras Harlaw bebia vinho de uma taça dourada; um homem alto, de rosto comprido e austero. — Porque daria Euron uma ilha para aquele?
Hotho ergueu a sua taça de vinho vazia e uma pálida jovem com um vestido de veludo azul e renda dourada voltou a enchê-la.
— O Cavaleiro tomou Vila Severa sozinho. Plantou o estandarte junto ao castelo e desafiou os Grimm a enfrentá-lo. Um o fez, depois outro, e outro a seguir. Matou-os a todos… Bem, quase, dois renderam-se. Quando o sétimo homem caiu, o septão do Lorde Grimm decidiu que os deuses tinham falado e entregou o castelo. — Hotho soltou uma gargalhada. — Ele vai ser Senhor de Escudogris, e que lhe faça bom proveito. Com ele longe, sou eu o herdeiro do Leitor. — Bateu no peito com a taça de vinho. — Hotho, o Corcunda, Senhor de Harlaw.
— Sete você diz. — Victarion perguntou a si próprio como Anoitecer se aguentaria contra o seu machado. Nunca lutara contra um homem armado com uma lâmina de aço valiriano, embora tivesse sovado muitas vezes o jovem Harras Harlaw quando ambos eram jovens. Em rapaz, Harlaw fora um grande amigo do filho mais velho de Balon, Rodrik, que morrera à sombra das muralhas de Guardamar. O banquete era bom. O vinho era dos melhores, e havia boi assado, mal passado e em sangue, e também pato recheado e baldes de caranguejo fresco. O Senhor Comandante não deixou de reparar que as servas usavam finas lãs e luxuosos veludos. Tomou-as por ajudantes de cozinha cativas com as roupas da Senhora Hewett e das suas damas, até que Hoth lhe disse que eram a Senhora Hewett e as suas damas. Eram oito: sua senhoria, ainda bem aparentada embora tivesse ganhado alguma robustez, e sete mulheres mais jovens com idades entre os vinte e cinco e os dez anos, suas filhas e noras.
Lord Hewett, em pessoa, estava sentado no seu lugar habitual sobre o estrado, vestido com todos os seus enfeites heráldicos. Os braços e as pernas tinham sido atados à cadeira, e um enorme rabanete branco fora enfiado entre os seus dentes para que não pudesse falar… embora pudesse ver e ouvir. Olho de Corvo ocupara o lugar de honra à mão direita de sua senhoria. Tinha uma moça bonita e roliça de dezessete ou dezoito anos no colo, descalça e desgrenhada, com os braços em volta do seu pescoço.
— Quem é aquela? — Perguntou Victarion aos homens que o rodeavam.
— A bastarda de sua senhoria — disse Hotho com uma gargalhada. — Antes de Euron tomar o castelo, era obrigada a servir os outros à mesa e fazer as refeições com os criados.
Euron levou os lábios azuis ao pescoço da rapariga, e ela soltou um risinho e sussurrou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Sorrindo, ele voltou a beijar-lhe a garganta. A pele branca da rapariga estava coberta de marcas vermelhas onde a boca dele estivera; formavam um colar rosado em volta do seu pescoço e ombros. Outro sussurro ao ouvido, e desta vez o Olho de Corvo riu alto, após o que bateu com a taça de vinho na mesa, pedindo silêncio.
— Boas senhoras! — Gritou para as suas criadas bem nascidas. — Falia está preocupada com os vossos belos vestidos. Não quer vê-los manchados de gordura, vinho e apalpadelas de dedos sujos, visto que lhe prometi que podia escolher a sua roupa entre os seus guarda-roupas depois do banquete. Portanto o melhor é que vocês tirem-nos.
Um rugido de gargalhadas varreu o grande salão, e a cara do Lorde Hewett ficou tão vermelha que Victarion julgou que a sua cabeça se arrebentaria.
As mulheres não tiveram alternativa senão obedecer. A mais nova chorou um pouco, mas a mãe a confortou e a ajudou a desfazer os nós pelas costas abaixo. Depois, continuaram a servir como antes, movendo-se entre as mesas com jarros cheios de vinho para encher todas as taças vazias, só que agora o faziam nuas.
Ele envergonha Hewett como em tempos me envergonhou, pensou o capitão, recordando-se do modo como a esposa soluçara enquanto ele a espancava. Sabia que os habitantes dos Quatro Escudos se casavam frequentemente entre si, tal como os filhos do ferro. Uma daquelas criadas nuas podia perfeitamente ser esposa de Sor Talbert Serry. Uma coisa era matar um inimigo, outra era desonrá-lo. Victarion fez um punho. Tinha a mão ensanguentada onde o ferimento empapara o linho.
No estrado, Euron empurrou a sua cadela para o lado e pulou em cima da mesa. Os capitães puseram-se a bater com as taças na mesa e a bater os pés no chão.
— EURON! Gritavam. EURON! EURON! EURON! — Era de novo a assembleia de homens livres.
— Jurei lhes dar Westeros. — Disse o Olho de Corvo quando o tumulto diminuiu. — E aqui vocês têm um pouco para saborear. Um bocado, nada mais do que isso… Mas nos banquetearemos antes do cair da noite! — Os archotes ao longo das paredes soltavam um brilho vivo, e ele também, lábios azuis, olho azul e tudo. — O que a lula gigante agarra não larga. Estas ilhas foram em tempos nossas, e agora são de novo… Mas precisamos de homens fortes para defendê-las. Portanto erga-se, Sor Harras Harlaw, Senhor de Escudogris. — O Cavaleiro pôs-se de pé, com uma mão apoiada no botão de pedra da lua do Anoitecer. — Erga-se, Andrik, o Sério, Senhor de Escudossul. — Andrik empurrou as suas mulheres para o lado e se levantou de um salto, como uma montanha que se erguesse súbita do mar. — Erga-se, Maron Volmark, Senhor de Escudoverde. — Um rapazinho sem barba de dezesseis anos, Volmark pôs-se hesitantemente em pé, parecendo um senhor dos coelhos. — E erga-se, Nute, o Barbeiro, Senhor de Escudorroble.
Os olhos de Nute puseram-se cautelosos, como se ele temesse estar a ser alvo de um gracejo cruel.
— Um lorde? — Grasnou.
Victarion esperara que Olho de Corvo entregasse as senhorias às suas criaturas, ao Mão de Pedra, ao Remador Vermelho e ao Lucas Mao Esquerda. Um rei tem de ser pródigo, tentou dizer a si próprio, mas outra voz sussurrou: Os presentes de Euron estão envenenados. Quando revirou a ideia na cabeça, viu-o com clareza. O Cavaleiro era o herdeiro escolhido pelo Leitor, e Andrik, o Sério, o forte braço direito de Dunstan Drumm. Volmark é um rapaz inexperiente, mas tem em si o sangue do Harren Negro por via materna. E o Barbeiro…
Victarion agarrou-o pelo antebraço.
— Recuse!
Nute olhou-o como se tivesse enlouquecido.
— Recusar? Terras e uma senhoria? Você me fará um senhor? — Libertou o braço com um puxão e pôs-se de pé, gozando os vivas.
E agora rouba-me os homens, pensou Victarion.
O Rei Euron chamou pela Senhora Hewett para que lhe trouxesse uma nova taça de vinho e ergueu-a bem alto acima da cabeça.
— Capitães e reis! Ergam suas taças aos Senhores dos Quatro Escudos! — Victarion bebeu com os outros. Não há vinho mais doce do que o vinho roubado de um inimigo. Alguém lhe disse isso um dia. O pai, ou o irmão Balon. Um dia beberei o teu vinho, Olho de Corvo, e lhe roubarei tudo o que lhe é querido. Mas haveria alguma coisa que fosse querida a Euron?
— Amanhã nos prepararemos novamente para zarpar. Estava o rei dizendo. —Encham as barricas de novo com água da nascente, levem todas as sacas de cereais e barris de carne de vaca e tantas ovelhas e cabras que possamos transportar. Os feridos que ainda estiverem suficientemente vigorosos para puxar por um remo, remarão. Os outros ficarão aqui, para ajudar a manter estas ilhas nas mãos dos seus novos senhores. Torwold e o Remador Vermelho regressarão em breve com mais provisões. Os nossos conveses irão feder a porcos e galinhas na viagem para leste, mas regressaremos com dragões.
— Quando? — A voz era a do Lorde Rodrik. — Quando regressaremos, Vossa Graça? Dentro de um ano? Três anos? Cinco? Os seus dragões estão a um mundo de distância, e o outono chegou. — O Leitor avançou, enumerando todos os perigos. — Galés defendem os Estreitos Redwyne. A costa dornesa é seca e estéril, quatrocentas léguas de redemoinhos, falésias e baixios escondidos, quase desprovida de um desembarcadouro seguro seja onde for. Depois, nos esperam os Degraus, com as suas tempestades e os seus ninhos de piratas lisenos e miranos. Se um milhar de navios se fizer à vela, trezentos poderão chegar ao outro lado do mar estreito… E então, o quê? Lys não nos dará as boas vindas, e Volantis tampouco. Onde encontraremos água doce e alimentos? A primeira tempestade nos dispersará por metade da terra.
Um sorriso brincou nos lábios azuis de Euron.
— Eu sou a tempestade, senhor. A primeira tempestade e a última. Levei o Silêncio em viagens mais longas do que esta, e em viagens muito mais perigosas. Você se esqueceu? Naveguei pelo Mar Fumegante e vi Valíria.
Todos os presentes sabiam que a Destruição ainda reinava em Valíria. Ali, o próprio mar fervia e fumegava, e a terra fora invadida por demônios. Dizia-se que qualquer marinheiro que sequer vislumbrasse as montanhas de fogo de Valíria a se erguendo acima das ondas morreria rapidamente de uma morte terrível, e no entanto Olho de Corvo estivera lá e regressara.
— Ah vistes? — Perguntou o Leitor, tão suavemente.
O sorriso azul de Euron eclipsou-se.
— Leitor. — Disse, no meio do silêncio — faria você melhor se mantivesse o nariz nos seus livros.
Victarion conseguia sentir o constrangimento no salão. Pôs-se em pé.
— Irmão — trovejou. — Não respondeste às perguntas de Harlaw.
Euron encolheu os ombros.
— O preço dos escravos esta subindo. Venderemos os nossos escravos em Lys e Volantis. Isso e o saque que capturamos aqui nos dará ouro suficiente para comprar provisões.
— Agora somos traficantes de escravos? — Perguntou o Leitor. — E para quê? Dragões que nenhum dos presentes viu? Deveremos perseguir a fantasia de um marinheiro bêbado qualquer até ao longínquo fim da terra?
As suas palavras geraram resmungos de assentimento.
— A Baía dos Escravos é longe demais — gritou Ralf, o Coxo.
— E perto demais de Valíria! — Gritou Quellon Humble. Fralegg, o Forte, disse:
— Jardim de Cima é perto. Procuremos por dragões ali, digo eu. Da espécie dourada! 
Alvyn Sharp disse:
— Para quê navegar pelo mundo quando temos o Vago à nossa frente? — O Ralf Vermelho Stonehouse pôs-se de pé num salto.
— Vilavelha é mais rica, e a Árvore ainda mais. A frota Redwyne anda para longe. Só temos de estender a mão para colher a mais madura fruta de Westeros.
— Fruta? — O olho do rei parecia mais negro do que azul. — Só um covarde rouba um fruto quando pode tomar o pomar.
— É a Árvore que queremos. — Disse o Ralf Vermelho, e outros homens acompanharam-no no grito. Olho de Corvo deixou-se varrer pelos gritos. Então saltou da mesa, agarrou a sua cadela pelo braço, e arrastou-a para fora do salão.
Fugiu como um cão. O controle de Euron sobre a Cadeira da Pedra do Mar pareceu de súbito não estar tão firme como estivera momentos antes. Eles não o seguirão até à Baía dos Escravos. Talvez não sejam tão cães e tolos como eu temi. Aquilo era uma ideia tão alegre que Victarion teve de empurrá-la para baixo. Esvaziou uma taça com o Barbeiro, para lhe mostrar que não lhe tinha má vontade pela senhoria, mesmo tendo vindo da mão de Euron.
Lá fora, o sol se pôs. A escuridão reuniu-se para lá das paredes, mas dentro delas os archotes ardiam com um brilho alaranjado, e o fumo que deitavam concentrava-se sob as vigas do telhado como uma sombra cinzenta.
Bêbados puseram-se a dançar a dança dos dedos. A certa altura, o Lucas Mao Esquerda Codd decidiu que desejava uma das filhas do Lorde Hewett, e possuiu-a sobre a mesa enquanto as irmãs gritavam e soluçavam.
Victarion sentiu uma pancada no ombro. Um dos filhos mestiços de Euron estava na sua frente, um rapaz de dez anos com um cabelo lanoso e a pele da cor da lama.
— O meu pai quer falar com você.
Victarion ergueu-se, pouco firme. Era um homem grande, com uma vasta capacidade para o vinho, mas mesmo assim bebera demasiado. Espanquei-a até à morte com as minhas próprias mãos, pensou, mas o Olho de Corvo matou-a quando se enfiou nela. Eu não tive alternativa. Seguiu o pequeno bastardo para fora do salão e pela espiral de uma escada em pedra acima. Os sons da violação e da festança foram diminuindo à medida que subiam, até restar apenas o suave raspar das botas em pedra.
Olho de Corvo ocupara o quarto do Lorde Hewett com a sua filha bastarda. Quando Victarion entrou, a rapariga estava estendida nua na cama, a ressonar baixinho. Euron se encontrava de pé junto à janela, bebendo de uma taça de prata. Usava o manto de zibelina que tirara de Blacktyde, a pala de couro e nada mais.
— Quando era rapaz, sonhei que podia voar. — Anunciou. — Quando acordei, não podia… Ou pelo menos foi o que o meistre disse. Mas e se ele mentiu?
Victarion sentia o cheiro do mar que entrava pela janela aberta, embora o quarto fedesse a vinho, sangue e sexo. O frio ar salgado ajudou a limpar-lhe a cabeça.
— Que você quer dizer com isso? — Euron virou-se para encará-lo, com os magoados lábios azuis encurvados em um meio sorriso. — Talvez possamos voar. Todos nós. Como saberemos a menos que saltemos de uma torre alta qualquer? 
O vento entrava em rajadas pela janela e sacudia-lhe o manto de zibelina. Havia algo de obsceno e perturbador na sua nudez. 
— Não há homem nenhum que realmente saiba o que pode fazer a menos que se atreva a saltar.
— Está ali a janela. Salta. — Victarion não tinha paciência para aquilo. A mão ferida estava a incomodá-lo. — O que é que você quer?
— O mundo. — A luz da lareira cintilou no olho de Euron. O seu olho sorridente. — Aceita uma taça do vinho do Lorde Hewett? Não há vinho cuja doçura chegue aos calcanhares daquele que é tirado de um adversário derrotado.
— Não. — Victarion afastou o olhar. — Cubra-se.
Euron sentou-se e deu um torção ao manto, de modo a cobrir-lhe as virilhas.
— Tinha me esquecido de como os meus filhos do ferro são uma gente pequena e barulhenta. Quero lhes trazer dragões, e eles gritam por uvas.
— As uvas são reais. Um homem pode empanturrar-se de uvas. O seu sumo é doce, e fazem vinho. O que fazem os dragões?
— Angústia. — Olho de Corvo bebericou da sua taça de prata. — Uma vez tive um ovo de dragão nesta mão, irmão. Um feiticeiro de Myr jurou que conseguia faze-lo eclodir se lhe desse um ano e todo o ouro que me pedisse. Quando me cansei das suas desculpas, matei-o. Enquanto o homem observava as entranhas a deslizando-se por entre os dedos, disse: “Mas não se passou um ano.” Soltou uma gargalhada. Cragorn morreu, sabe?
— Quem?
— O homem que soprou o meu corno de dragão. Quando o meistre o abriu, tinha os pulmões carbonizados, negros como fuligem.
Victarion estremeceu.
— Mostra-me esse ovo de dragão.
— Atirei-o ao mar durante um dos meus humores negros. — Euron encolheu os ombros. — Ocorreu-me que o Leitor não se enganava. Uma frota grande demais nunca poderá manter-se unida ao longo de uma tal distância. A viagem é longa demais, e demasiado perigosa. Só os nossos melhores navios e tripulações podem esperar viajar até à Baía dos Escravos e voltar. A Frota de Ferro.
A Frota de Ferro é minha, pensou Victarion. Nada disse.
Olho de Corvo encheu duas taças com um estranho vinho negro que fluía espesso como mel.
— Bebe comigo, irmão. Prove isso. — Ofereceu uma das taças a Victarion.
O capitão pegou na taça que Euron não oferecera, cheirou desconfiadamente o seu conteúdo. Visto de perto, o líquido parecia mais azul do que negro. Era espesso e de aspecto oleoso, e cheirava a carne podre. Experimentou um pequeno gole, e cuspiu-o imediatamente.
— Que porcaria. Quer me envenenar?
— Quero te abrir os olhos. — Euron bebeu profundamente da sua taça e sorriu. — Sombra da tarde, o vinho dos magos. Encontrei um barril quando capturei uma certa galeota vinda de Qarth, que trazia também cravinho e noz moscada, quarenta fardos de seda verde, e quatro magos que contaram uma curiosa história. Um deles ousou me ameaçar, de modo que o matei e o dei a comer aos outros três. A princípio recusaram-se a comer da carne do amigo, mas quando ficaram suficientemente esfomeados mudaram de idéias. Os homens são carne. 
Balon era louco, Aeron é mais louco, e Euron é o mais louco de todos. Victarion estava virando-se para se ir embora quando Olho de Corvo disse:
— Um rei tem de ter uma esposa, para lhe dar herdeiros. Irmão, tenho necessidade de ti. Irá à Baía dos Escravos trazer o meu amor?
Em tempos também eu tive um amor. As mãos de Victarion se enrolaram em punhos, e uma gota de sangue caiu ao chão com um pequeno ruído. Devia te espancar até te deixar em sangue e te dar de comer aos caranguejos, como fiz com ela.
— Você tem filhos — disse ao irmão.
— Mestiços ilegítimos, nascidos de rameiras e carpideiras.
— São frutos do teu corpo.
— Também o conteúdo do meu penico o é. Nenhum deles é digno de se sentar na Cadeira de Pedra do Mar, muito menos no Trono de Ferro. Não, para fazer um herdeiro que o mereça, preciso de uma mulher diferente. Quando a lula gigante casa com o dragão, irmão, que o mundo se acautele.
— Que dragão? — Disse Victarion, franzindo o sobrolho.
— A última da sua linhagem. Dizem que é a mais bela mulher do mundo. O cabelo é louro prateado, e os olhos ametistas… mas não precisa de aceitar a minha palavra, irmão. Vai até à Baía dos Escravos, contemple a sua beleza, e traga-a até mim.
— Porque haveria de fazê-lo? — Quis saber Victarion.
— Por amor. Por dever. Porque o seu rei te ordena. — Euron soltou um risinho abafado. — E pela Cadeira de Pedra do Mar. É sua, assim que eu reclame para mim o Trono de Ferro. Me sucederá como eu sucedi a Balon… E os teus filhos legítimos te sucederão um dia.
Os meus filhos. Mas para ter um filho legítimo, um homem tinha primeiro de ter uma esposa. Victarion não tinha sorte com as esposas. Os presentes de Euron estão envenenados, recordou, mas ainda assim…
— A opção é sua, irmão. Vive como servo ou morre como rei. Se atreverá a voar? Se não der o salto, nunca saberá.
O olho sorridente de Euron estava brilhante de troça.
— Ou será que estou pedindo demasiadamente de ti? Velejar para lá de Valíria é coisa de meter medo.
— Eu seria capaz de levar a Frota de Ferro até o inferno, se fosse necessário. — Quando Victarion abriu a mão, a palma estava rubra de sangue. — Sim, irei até à Baía dos Escravos. Descobrirei essa mulher dragão e a trarei de volta. 
Mas não para você. Me roubou a mulher e a espoliou, portanto eu ficarei com a sua. A mais bela mulher do mundo, para mim.
 
Os campos junto das muralhas de Darry estavam de novo sendo trabalhados.
As plantações queimadas tinham sido aradas, e os batedores de Sor Addam avistaram mulheres nos regos arrancando ervas daninhas enquanto uma parelha de bois rasgava novos sulcos nos limites de um bosque próximo. 
Uma dúzia de homens barbudos com machados mantinha-se de guarda enquanto o trabalho avançava.
Quando Jaime e a sua tropa chegaram ao castelo, todos tinham fugido para dentro das muralhas. Foi encontrar Darry fechada, tal como Harrenhal estivera. 
Gelidamente acolhido pelo meu próprio sangue.
— Faz soar a corneta. — Ordenou. Sor Kennos de Kayce pegou no Corno de Herrock que trazia a tiracolo e soou. Enquanto esperava por uma resposta vinda do castelo, Jaime observou o estandarte que flutuava, em castanho e carmim, por sobre a seteira do primo. Aparentemente, Lancel decidira esquartelar o leão dos Lannister com o lavrador de Darry.
Viu naquilo a mão do tio, tal como na escolha da noiva para Lancel. A Casa Darry governava aquelas terras desde que os Andalos derrubaram os Primeiros Homens. Não havia dúvida de que Sor Kevan compreendera que o filho teria menos problemas se os camponeses o vissem como uma continuação da antiga linhagem, obtendo aquelas terras por direito de casamento e não por decreto real. Kevan devia ser a Mão de Tommen. Harys Swyft é uma cavalgadura, e a minha irmã é estúpida se pensa que não.
Os portões do castelo abriram-se lentamente.
— O meu primo não terá espaço para instalar mil homens, — disse Jaime ao Varrão Forte. 
— Acamparemos a sombra da muralha ocidental. — Quero fossos e estacas no perímetro. Ainda há bandos de foras da lei por estes lados.
— Teriam de ser loucos para atacar uma força tão poderosa como a nossa.
— Loucos ou esfomeados. — Até ter uma ideia mais concreta sobre esses foras da lei e da sua força, Jaime não se sentia inclinado a correr riscos com as defesas. 
— Fossos e estacas, — voltou a dizer, antes de esporear Honra na direção do portão. Sor Dermot seguiu a seu lado com o veado e leão real, e Sor Hugo Vance com o estandarte branco da Guarda Real.
Jaime atribuíra ao Ronnet Vermelho a tarefa de levar Wylis Manderly para Lagoa da Donzela, para não ter de continuar a vigia‑lo.
Pia seguia com os escudeiros de Jaime, no castrado que Peck lhe arranjara.
— É como um castelo de brinquedo, — se ouviu dizendo. 
Ela não conheceu nenhum lar além de Harrenhal, refletiu. Todos os castelos no reino lhe parecerão pequenos, exceto o Rochedo.
Josmyn Peckleton estava pensando a mesma coisa.
— Não pode avaliá-lo por Harrenhal. O Harren Negro construiu-o grande demais. — Pia escutou-o com a solenidade de uma menininha de cinco anos recebendo lições da septã. 
Não passa disso, uma menininha num corpo de mulher, cheia de cicatrizes e assustada. 
Mas Peck estava cativado por ela. Jaime suspeitava que o rapaz nunca conhecera uma mulher, e Pia ainda era bastante bonita, desde que mantivesse a boca fechada. 
Não há mal se ele dormir com ela, suponho, desde que ela tenha vontade.
Um dos homens da Montanha tentara violar a menina em Harrenhal, e pareceu honestamente perplexo quando Jaime ordenou a Ilyn Payne que lhe cortasse a cabeça.
— Já a tive antes, umas cem vezes. — Não parou de dizer enquanto o obrigavam a ajoelhar-se. —Um cento de vezes, senhor. Todos a tivemos. — Quando Sor Ilyn presenteou Pia com a cabeça do homem, ela sorriu através dos seus dentes arruinados.
Darry mudara várias vezes de lado durante a luta, e o seu castelo fora uma vez queimado e pelo menos duas saqueado, mas, aparentemente, Lancel demorou pouco tempo a pôr as coisas no lugar.
Os portões do castelo estavam instalados de novo, pranchas rudes de carvalho reforçadas com tachões de ferro. Um novo estábulo estava sendo construído no local onde o antigo fora passado pelo archote. Os degraus que levavam à torre de mensagem tinham sido substituídos, bem como os marcos em muitas das janelas. Pedras enegrecidas mostravam os locais onde as chamas as tinham lambido, mas o tempo e a chuva extinguiriam essas marcas.
Dentro das muralhas, besteiros percorriam a murada, alguns com mantos carmim e elmos coroados por leões, outros com o azul e cinzento da Casa Frey. Quando Jaime atravessou o pátio trotando, galinhas fugiram por debaixo dos cascos de Honra, ovelhas baliram e camponeses o fitaram com olhos carrancudos. 
Camponeses armados. 
Não lhe passou despercebido. Alguns tinham foices, outros porretes, outros enxadões de tal forma aguçados que exibiam pontas cruéis. Também machados estavam em evidência, e vislumbrou vários homens barbudos com estrelas vermelhas de sete pontas cosidas em túnicas esfarrapadas e imundas. 
Mais dos malditos pardais. De onde veio toda esta gente?
Do tio Kevan, não viu sinal. Nem de Lancel. Só um meistre veio ao seu encontro, com uma veste cinzenta esvoaçando em volta das suas pernas descarnadas.
— Senhor Comandante, Darry está honrado por esta… visita inesperada. Perdoe-nos pela falta de preparativos. Tínhamos sido levados a crer que se dirigia para Correrrio.
— Darry ficava no caminho, — mentiu Jaime. 
Correrrio pode esperar. 
E se por acaso o cerco terminasse antes de chegar ao castelo, seria poupado à necessidade de pegar em armas contra a Casa Tully. Desmontando, entregou Honra a um moço de estrebaria.
— Encontrarei o meu tio aqui? — Não forneceu um nome. Sor Kevan era o único tio que lhe restava, o último filho sobrevivente de Tytos Lannister.
— Não, senhor. Sor Kevan retirou-se após a boda. — O meistre puxou pelo colar de corrente, como se tivesse tornado demasiado apertado para o seu pescoço. 
— Eu sei que Lorde Lancel ficará contente por vos ver e… E a todos os seus galantes cavaleiros. Embora me magoe confessar que Darry não pode alimentar tantos homens.
— Nós temos as nossas próprias provisões. Você é?...
— O Meistre Ottomore, se agradar ao senhor. A Senhora Amerei desejava dar-lhe as boas vindas em pessoa, mas está tratando dos preparativos para um banquete em sua honra. É sua esperança que sua senhoria e os seus cavaleiros e capitães nos faça companhia à mesa esta noite.
— Uma refeição quente será muito bem vinda. Os dias estão frios e úmidos. — Jaime passou os olhos pelo pátio, pelas caras barbudas dos pardais. 
Demasiados. E também os Frey são demasiados. 
— Onde poderei encontrar Herrock?
— Recebemos relatos sobre foras da lei na outra margem do Tridente. — Sor Harwyn levou cinco cavaleiros e vinte arqueiros e foi lidar com eles.
— E Lorde Lancel?
— Está nas suas preces. Sua senhoria nos ordenou para nunca o incomodar quando está rezando.
Ele e Sor Bonifer se darão bem.
— Muito bem. — Mais tarde haveria tempo suficiente para falar com o primo. — Me leve até os meus aposentos e ordene que um banho me seja preparado. 
— Se aprouver ao senhor, o instalaremos na Torre do Lavrador. Eu o levo até lá.
— Eu conheço o caminho. — Jaime não era estranho àquele castelo. Ele e Cersei tinham estado ali hospedados por duas vezes, uma a caminho de Winterfell com Robert, a outra na viagem de regresso a Porto Real. 
Embora fosse pequeno para um castelo, era maior do que uma estalagem, e tinha boa caça ao longo do rio. Robert Baratheon nunca se mostrara relutante em impor-se à hospitalidade dos seus súditos. A torre era muito semelhante a aquilo que dela recordava.
— As paredes continuam despidas. — Observou Jaime enquanto o meistre o levava ao longo de uma galeria.
— Lorde Lancel espera um dia cobri-las com tapeçarias, — disse Ottomore. — Cenas de piedade e devoção.
Piedade e devoção. 
Foi com dificuldade que evitou rir. As paredes também tinham estado nuas na sua primeira visita. Tyrion indicara os quadrados de pedra mais escura onde tapeçarias tinham estado penduradas.
Sor Raymun podia removê-las, mas não as marcas que elas deixavam. Mais tarde, o Duende fizera deslizar uma mão cheia de veados para as mãos de um dos criados de Darry em troca da chave da cave onde as tapeçarias em falta encontravam-se escondidas. Mostrou-as a Jaime à luz de uma vela, sorrindo; retratos tecidos de todos os reis Targaryen, do primeiro Aegon até ao segundo Aenys.
— Se contar a Robert, ele talvez faça de mim Senhor de Darry, — dissera o anão entre gargalhadas. 
O Meistre Ottomore levou Jaime até ao topo da torre.
— Espero que fique confortável aqui, senhor. Há uma latrina, para quando a natureza chama. A sua janela dá para o bosque sagrado. O quarto está ligado ao da senhora, com uma cela de criado entre ambos.
— Estes eram os aposentos do próprio Lorde Darry.
— Sim, senhor.
— O meu primo é muito generoso. Não pretendia pôr Lancel fora do seu próprio quarto.
— Lorde Lancel tem dormido no septo.
Dormir com a Mãe e a Donzela, quando tem uma esposa quente mesmo para lá daquela porta? 
Jaime não soube se haveria de rir ou de chorar. Talvez ande a rezar para que a pica endureça. Em Porto Real consta que os ferimentos de Lancel o tinham deixado incapaz. 
Mesmo assim, devia ter senso suficiente para tentar. 
A posse das novas terras pelo primo não estaria segura até gerar um filho à sua esposa Darry. Jaime começava a se arrepender do impulso que o trouxera ali. Agradeceu a Ottomore, fez-lhe lembrar o banho e mandou que Peck o acompanhasse à porta. O quarto do senhor mudara desde a sua última visita, e não para melhor. Velhas esteiras apodrecidas cobriam o chão no lugar do bom tapete de Myr que estivera lá antes, e toda a mobília era nova e mal feita. A cama de Sor Raymund Darry fora suficientemente grande para seis pessoas, com cortinas de veludo castanho e postes de carvalho esculpidos com trepadeiras e folhas; a de Lancel era um granuloso catre de palha, colocada abaixo da janela, onde a primeira luz da aurora o acordaria decerto. Sem dúvida que a outra cama teria sido queimada, esmagada ou roubada, mas mesmo assim… 
Quando a banheira chegou, o Pequeno Lew tirou as botas de Jaime e o ajudou a remover a sua mão de ouro. Peck e Garrett carregaram água, e Pia arranjou qualquer coisa limpa para ensopar. A menina olhou-o de relance, timidamente, enquanto lhe tirava o gibão às sacudidelas. Jaime ficou desconfortavelmente consciente das curvas de ancas e seios por baixo do vestido castanho de tecido grosseiro que ela trazia. Recordou-se das coisas que Pia lhe segredara em Harrenhal, na noite em que Qyburn a enviara à sua cama. Às vezes quando estou com um homem, dissera, fecho os olhos e finjo que é você que está em cima de mim.
Sentiu-se grato quando o banho ficou suficientemente profundo para lhe esconder a ereção. Quando se abaixou para dentro da água fumegante, recordou outro banho, aquele que partilhara com Brienne. Estivera febril e enfraquecido devido à perda de sangue, e o calor o entontecera tanto que dera por si a dizer coisas que era melhor deixar por dizer. Desta vez não tinha semelhante desculpa. 
Lembra-te dos teus votos. Pia é mais digna da cama de Tyrion do que da tua.
— Vai me buscar sabão e uma escova rija, disse a Peck. Pia, deixe-nos.
— Sim, senhor. Obrigada, senhor.  
Ela cobria a boca quando falava, para esconder os dentes quebrados.
— Deseja-a? — Perguntou Jaime a Peck depois de a menina sair.
O escudeiro ficou vermelho como uma beterraba.
— Se ela te quiser, tome-a. Decerto te ensinará algumas coisas que vai achar úteis na noite de núpcias, e não é provável que arranje um bastardo com ela. 
Pia abriu as pernas para metade do exército do pai e nunca engravidou; o mais certo era que a puta fosse estéril. 
— Mas se deitar com ela, seja bondoso.
— Bondoso senhor? Como… como poderei eu…?
— Palavras doces. Toques gentis. Não quer casar com ela, mas enquanto estiver na cama trate-a como trataria a sua noiva.
O rapaz anuiu.
— Senhor, eu… para onde posso levá-la? Nunca há lugar para… para…
— Ficar sozinho? — Jaime fez um sorriso. —Passaremos várias horas jantando. A palha parece cheia de grumos, mas há de servir.
Os olhos de Peck esbugalharam-se.
— A cama de sua senhoria?
— Quando acabar há de se sentir também um senhor, se Pia souber o que fazer. 
 E alguém devia dar algum uso àquele miserável colchão de palha.
Quando desceu para o banquete naquela noite, Jaime Lannister usava um gibão de rico veludo fendido com pano de ouro, e uma corrente de ouro salpicada de diamantes negros. Também prendera a mão de ouro, que foi polida até mostrar um belo lustre brilhante. Aquele não era lugar apropriado para usar o branco. O dever esperava-o em Correrrio; o que o trouxera ali fora uma necessidade mais sombria. O Grande Salão de Darry era grande só por cortesia. Mesas de montar preenchiam-no de parede a parede e as vigas do teto estavam negras de fumo. Jaime sentou-se no estrado, à direita da cadeira vazia de Lancel.
— O meu primo não irá juntar-se a nós para o jantar? — Perguntou ao se sentar.
— O meu senhor prefere jejuar, — disse a esposa de Lancel, a Senhora Amerei. — Está doente de desgosto pelo pobre Alto Septão. 
Era uma moça robusta de pernas longas e peitos cheios, com cerca de dezoito anos; uma moça saudável, pelo aspecto, embora a sua cara chupada e sem queixo fizesse lembrar a Jaime o seu falecido e não lamentado primo Cleos, que sempre tivera certo aspecto de doninha. 
Jejuar? Ainda é um idiota maior do que eu suspeitava. 
O primo devia andar ocupado a gerar na sua viúva um pequeno herdeiro com cara de doninha, em vez de se matar de fome. Perguntou a si próprio o que Sor Kevan poderia ter dito acerca do novo fervor do filho. 
Poderia ter sido esse o motivo da partida abrupta do tio? 
Sobre tigelas de sopa de feijão e toucinho, a Senhora Amerei contou a Jaime como o seu primeiro marido fora morto por Sor Gregor Clegane quando os Frey ainda lutavam por Robb Stark.
— Supliquei-lhe para não ir, mas o meu Pate era, oh, tão corajoso, e jurou que seria ele o homem que mataria aquele monstro. Queria arranjar um grande renome para si.
Todos querem.
— Quando eu era escudeiro disse a mim mesmo que seria eu o homem que mataria o Cavaleiro Sorridente.
— O Cavaleiro Sorridente? Ela parecia confusa. Quem foi esse?
A Montanha da minha juventude. Com metade do tamanho e o dobro da loucura.
— Um fora da lei, há muito morto. Ninguém com quem vossa senhoria deveria se preocupar.
O lábio de Amerei tremeu. Lágrimas rolaram-lhe dos olhos castanhos.
— Perdoe a minha filha, disse uma mulher mais velha.
A Senhora Amerei trouxera consigo uma vintena de Freys para Darry; um irmão, um tio, um tio em segundo grau, vários primos… e a mãe, que nascera Darry. Ainda chora pelo pai.
— Foras da lei mataram-no, — soluçou a Senhora Amerei. —O pai só tinha ido resgatar o Petyr Espinha. Ele levou-lhes o ouro que pediam, mas penduraram-no.
— Enforcaram, Ami. O teu pai não era uma tapeçaria. —A Senhora Mariya voltou a virar-se para Jaime. — Creio que o conheça, Sor.
— Servimos juntos, em tempos, como escudeiros, em Paço de Codorniz. — Não chegaria ao ponto de afirmar terem sido amigos. Quando Jaime chegara, Merrett Frey era o rufião do castelo, dominando todos os rapazes mais novos. 
Então tentou intimidar a mim. 
— Ele era… muito forte. — Foi o único elogio que lhe ocorreu. Merrett fora lento, desajeitado e estúpido, mas era forte.
— Lutaram juntos contra a Irmandade da Mata de Rei, — fungou a Senhora Amerei. 
— O pai costumava me contar histórias.
O seu pai costumava se gabar e mentir, você quer dizer.
— Lutamos. — As principais contribuições do Frey para a luta tinham consistido em contrair sífilis com uma seguidora de acampamentos e ser capturado pela Cerva Branca. A rainha fora da lei queimara lhe o rabo com o seu símbolo antes de devolvê-lo, após resgate, a Sumner Crakehall. Merrett passara uma quinzena sem ser capaz de se sentar, embora Jaime duvidasse de que o ferro em brasa fosse tão desagradável como as panelas de merda que os colegas escudeiros o tinham obrigado a comer quando regressara. 
Os rapazes são as criaturas mais cruéis à face da terra. 
Pôs a mão de ouro em volta da taça de vinho e ergueu-a.
 — À memória de Merrett, — disse. Era mais fácil beber ao homem do que falar dele.
Depois do brinde, a Senhora Amerei parou de chorar e a conversa a mesa mudou para os lobos. Sor Danwell Frey afirmou que havia mais animais na região do que até o avô conseguia recordar.
— Perderam todo o medo do homem. Alcateias atacaram a nossa tropa logística durante a viagem desde as Gêmeas. Os nossos arqueiros tiveram de encher de penas uma dúzia antes dos outros fugirem. Sor Addam Marbrand confessou que a sua tropa enfrentara problemas semelhantes no trajeto desde Porto Real.
Jaime concentrou-se na comida que tinha em frente, arrancando nacos de pão com a mão esquerda e atrapalhando-se com a taça de vinho com a direita. Observou Addam Marbrand encantando a menina que tinha ao lado, observou Steffon Swyft simulando a batalha de Porto Real com pão, nozes e cenouras. Sor Kennos pôs uma criada ao colo, insistindo para que a moça lhe tocasse o membro, enquanto Sor Dermot alegrava alguns escudeiros com histórias sobre cavaleiros vagueando pela mata de chuva. Mais ao fundo da mesa, Hugo Vance fechara os olhos. 
Matutando sobre os mistérios da vida, pensou Jaime. Ou isso, ou a cochilar entre um prato e o seguinte. 
Voltou a virar-se para a Senhora Mariya.
— Os foras da lei que mataram o vosso esposo… foi o bando do Lorde Beric?
— Foi o que pensávamos a princípio. — Embora o cabelo da Senhora Mariya estivesse malhado de grisalho, ainda era uma mulher de aspecto agradável. 
— Os assassinos se dispersaram quando saíram de Pedravelhas. Lorde Vypren seguiu um bando até Feirajusta, mas lhes perdeu ali o rastro. O Walder Negro levou cães de caça e caçadores para o Atoleiro da Bruxa atrás dos outros. Os camponeses negaram os ter visto, mas quando foram interrogados intensamente cantaram uma história diferente. Falaram de um homem com um olho só e outro que usava um manto amarelo… E de uma mulher, coberta por manto e capuz.
— Uma mulher? — Julgaria que a Cerva Branca tivesse ensinado Merrett a manter-se longe de mulheres foras-da-lei. 
— Também havia uma mulher na Irmandade da Mata de Rei.
— Eu sei. — E como não, sugeria o seu tom de voz, se ela deixou a sua marca no meu marido? — A Cerva Branca era jovem e bela, segundo dizem. Esta mulher encapuzada não é nem uma coisa, nem outra. Os camponeses queriam nos fazer crer que a sua cara estava rasgada e cheia de cicatrizes, e que os seus olhos eram terríveis de contemplar. Dizem que liderava os foras-da-lei.
— Liderava-os? — Jaime achava difícil acreditar naquilo. 
— Beric Dondarrion e o sacerdote vermelho…
—… Não foram vistos. — A Senhora Mariya parecia ter a certeza.
— Dondarrion está morto, — disse o Varrao Forte. 
— A Montanha enfiou-lhe uma faca no olho, temos conosco homens que viram.
— Essa é uma história, disse Addam Marbrand. Outros dirão que lorde Beric não pode ser morto.
— Sor Harwyn diz que essas histórias são mentiras. — A Senhora Amerei enrolou uma trança no dedo. — Ele me prometeu a cabeça do Lorde Beric. É muito galante. — Estava corando por baixo das lágrimas.
Jaime recordou a cabeça que dera a Pia. Quase conseguia ouvir o risinho do seu irmão mais novo. O que aconteceu a dar flores às mulheres? Poderia ter perguntado Tyrion. Teria também algumas palavras selecionadas para Harwyn Plumm, embora galante não tivesse sido uma delas.
Os irmãos Plumm eram grandes e carnudos com pescoços grossos e caras vermelhas; ruidosos e vigorosos, rápidos no riso, rápidos na ira, rápidos no perdão. Harwyn era diferente de Plumm; de olhos duros e taciturno, rancoroso… E mortal com o martelo na mão. Era um bom homem para comandar uma guarnição, mas não um homem para ser amado.
Se bem que… Jaime fitou a Senhora Amerei.
Os criados estavam trazendo o prato de peixe, um Lúcio cozido numa crosta de ervas e nozes moídas. A senhora de Lancel provou, aprovou e ordenou que a primeira porção fosse servida a Jaime. Enquanto lhe punham o peixe na frente, ela se debruçou sobre o lugar do marido para tocar- lhe na mão de ouro.
— Você poderia matar Lorde Beric, Sor Jaime. Matastes o Cavaleiro Sorridente. Por favor, senhor, lhe suplico, fique e ajude-nos com Lorde Beric e o Cão de Caça. 
Os seus dedos pálidos acariciaram os dedos de ouro de Jaime.
Pensará ela que eu sinto aquilo?
— Foi a Espada da Manhã quem matou o Cavaleiro Sorridente, senhora. Sor Arthur Dayne, um cavaleiro melhor do que eu.  —Jaime recolheu os seus dedos de ouro e voltou a virar-se para a Senhora Mariya. 
— O Walder Negro seguiu essa mulher encapuzada e os seus homens até onde?
— Os cães voltaram a lhes apanhar o cheiro a norte do Atoleiro da Bruxa, — disse a mulher mais velha. 
— Ele jura que não estava mais de meio dia atrás deles quando desapareceram no Gargalo.
— Que apodreçam ali, — declarou alegremente Sor Kennos. — Se os deuses forem bons, irão ser engolidos por areias movediças ou devorados por lagartos-leões.
— Ou acolhidos por papa-rãs, — disse Sor Danwell Frey. — Eu não acharia os cranogmanos incapazes de abrigar foras-da-lei.
— Bem gostaria que fossem só eles, — disse a Senhora Mariya. — Alguns dos senhores do rio andam também de mãos dadas com os homens do Lorde Beric. 
— Os plebeus também, — fungou a filha. — Sor Harwyn diz que os escondem e alimentam, e quando pergunta para onde foram, mentem.
Mentem aos seus próprios senhores!
— Mande-lhes cortar as línguas, — sugeriu o Varrão Forte.
— Boa sorte em obter respostas depois disso, —disse Jaime. — Se querem a ajuda deles, terão de fazer com que os amem. Foi assim que Arthur Dayne fez, quando avançou contra a Irmandade da Mata de Rei. Pagou aos plebeus por aquilo que comeu, levou as suas queixas ao Rei Aerys, expandiu as pastagens em volta das suas aldeias, até lhes conquistou o direito de derrubar certo número de árvores todos os anos e abater alguns dos veados do rei durante o outono. O povo da floresta se virou para Toyne para defendê-lo, mas Sor Arthur fez mais por eles do que a Irmandade alguma vez podia almejar fazer, e os conquistou para o seu lado. Depois disso, o resto foi fácil.
— O Senhor Comandante fala com sabedoria, — disse a Senhora Mariya.
— Nunca nos livraremos destes foras-da-lei até que os plebeus comecem a amar tanto Lancel como em tempos amaram o meu pai e avô.
Jaime deitou um relance ao lugar vazio do primo. 
Mas Lancel nunca conquistará o amor deles com rezas.
A Senhora Amerei fez beicinho.
— Sor Jaime, lhe suplico, não nos abandone. O meu senhor precisa de você, e eu também. Estes tempos são tão temíveis. Há noites em que quase não consigo dormir, com medo.
— O meu lugar é junto do rei, senhora.
— Eu ficarei. — Se ofereceu o Varrão Forte. — Depois de nos despacharmos em Correrrio, ficarei em pulgas por outra luta. Não que seja provável que Beric Dondarrion me dê luta. Lembro-me do homem de torneios passados. Era um moço bem apessoado com um manto bonito. Franzino e inexperiente.
— Isso foi antes de morrer, — disse o jovem Sor Arwood Frey. — O povo diz que a morte o mudou. Pode matá-lo, mas ele não fica morto. Como se luta com um homem assim? E também há o Cão de Caça. Ele matou vinte homens em Salinas.
O Varrão Forte soltou uma gargalhada roufenha.
— Vinte estalajadeiros gordos, talvez. Vinte criados a se mijarem nos grilhões. Vinte irmãos mendicantes com tigelas. Mas não vinte cavaleiros.
Não a mim.
— Há um cavaleiro em Salinas, insistiu Sor Arwood. Ele se escondeu atrás das suas muralhas enquanto Clegane e os seus cães enlouquecidos assolavam a vila. Você não viu as coisas que ele fez, sor. Eu vi. Quando as notícias chegaram às Gêmeas, avancei com Harys Haigh, o irmão Donnel e meia centena de homens, arqueiros e homens de armas. Pensávamos que aquilo fora obra do Lorde Beric, e esperávamos encontrarlhe o rastro. Tudo o que resta de Salinas é o castelo, e o velho Sor Quincy, tão assustado que não quis abrir os portões, e falou conosco das ameias, aos gritos. O resto são ossos e cinzas. Uma vila inteira. O Cão de Caça passou os edifícios pelo archote e o povo pela espada, e foi-se embora a rir. As mulheres… Não acreditaria no que ele fez a algumas das mulheres. Não falarei disso à mesa. Dá-me enjoos de o ver. 
— Eu chorei quando ouvi contar, — disse a Senhora Amerei.
Jaime bebericou do vinho.
— Como pode ter certeza de ter sido o Cão de Caça? — Aquilo que estavam descrevendo parecia mais trabalho de Gregor do que de Sandor. Sandor fora duro e brutal é certo, mas o irmão mais velho é que era o verdadeiro monstro da Casa Clegane.
— Ele foi visto — disse Sor Arwood. Aquele seu elmo não é fácil de confundir, ou de esquecer, e houve alguns que sobreviveram para contar a história. A moça que ele violou, alguns rapazes que se esconderam, uma mulher que encontramos presa por baixo de uma viga enegrecida, os pescadores que observaram a carnificina dos seus barcos…
— Não lhe chame de carnificina, — disse a Senhora Mariya em voz baixa. — Isso é um insulto aos honestos carniceiros de todo o lado. Salinas foi obra de um animal feroz em pele humana.
Estes tempos são para feras, refletiu Jaime, para leões, lobos e cães raivosos, para corvos e gralhas pretas.
— Uma obra maligna. — O Varrão Forte voltou a encher a taça. 
— Senhora Mariya, Senhora Amerei, a sua angústia me comoveu. Dou a minha palavra, assim que Correrrio cair regressarei para perseguir o Cão de Caça e mata-lo em seu nome. Os cães não me assustam.
Este devia assustar. 
Ambos os homens eram grandes e poderosos, mas Sandor Clegane era muito mais rápido, e lutava com uma selvageria que Lyle Crakehall não podia esperar igualar.
Mas a Senhora Amerei estava entusiasmada.
— É um verdadeiro cavaleiro, Sor Lyle, por ajudar uma dama em dificuldades.
Pelo menos não chamou a si própria “donzela”. Jaime estendeu a mão para a taça e derrubou-a. A toalha de mesa em linho bebeu o vinho. Os seus companheiros fingiram não reparar na mancha vermelha que se espalhava.
Cortesia de mesa de honra, disse a si próprio, mas sabia mesmo a piedade. Ergueu-se de súbito.
— Senhora. Peço que me dê licença.
A Senhora Amerei pareceu magoada.
— Quer nos deixar? Ainda há veado, e capões recheados com cogumelos.
— Muito bons, sem dúvida, mas não seria capaz de dar nem mais uma dentada. Tenho de falar com o meu primo. — Com uma mesura, Jaime os deixou entregues à sua comida.
Também no pátio havia homens comendo. Os pardais tinham se reunido em volta de uma dúzia de fogueiras para aquecer as mãos contra o frio do ocaso e vigiar gordas salsichas que chiavam e pingavam sobre as chamas. Não podiam ser menos de cem. Bocas inúteis. Jaime perguntou a si próprio quantas salsichas o primo pusera de parte e como tencionava alimentar os pardais depois dos seus homens irem embora. Quando chegar o inverno estarão comendo ratazanas, a menos que consigam uma colheita. Com o outono tão avançado, as hipóteses de mais uma colheita não eram boas.
Encontrou o septo depois do pátio interno do castelo; um edifício sem janelas, de sete lados e parcialmente construído em madeira, com portas de madeira entalhada e um telhado de telha. Três pardais encontravam-se sentados nos degraus. Quando Jaime se aproximou, ergueram-se. 
— Onde está indo, senhor? — perguntou um deles. Era o menor dos três, mas tinha a barba maior.
— Lá dentro.
— Sua senhoria está lá, rezando.
— Sua senhoria é meu primo.
— Bem, nesse caso, senhor, — disse outro pardal, um homem enorme e calvo com uma estrela de sete pontas pintada por cima de um olho. — Não quer incomodar o seu primo nas suas preces.
— Lorde Lancel está pedindo orientação ao Pai no Céu, — disse o terceiro pardal, o que não tinha barba. Um rapaz, pensara Jaime, mas a voz dela a identificava como uma mulher, vestida de trapos sem forma e um saiote ferrugento. 
— Está rezando pela alma do Alto Septão e de todos os outros que morreram.
— Amanhã continuarão mortos, — disse Jaime. — O Pai no Céu tem mais tempo do que eu. Sabe quem sou?
— Um lorde qualquer, — disse o grandalhão com o olho estrelado.
— Um aleijado qualquer, — disse o pequeno com a grande barba.
— O Regicida, — disse a mulher. Mas nós não somos reis, somos só Pobres Companheiros, e você não poderá entrar, a menos que sua senhoria diga que pode. Equilibrou uma maça com espigões, e o homem pequeno ergueu um machado.
As portas atrás deles se abriram.
— Deixa o meu primo passar em paz, amigos. — Disse Lancel em voz baixa. — Tenho estado à espera dele.
Os pardais deram um passo para o lado. Lancel parecia ainda mais magro do que em Porto Real. Estava descalço, e vestido com uma túnica simples de lã não tingida que o fazia se assemelhar mais a um pedinte do que a um lorde. Rapara o cocuruto da cabeça até o deixar liso, mas a barba cresceu um pouco. Chamar a barba de penugem de pêssego teria sido insultuoso para o pêssego. Combinava estranhamente com o cabelo branco que lhe rodeava as orelhas.
— Primo, — disse Jaime quando ficaram sós dentro do septo. — Perdeu o raio do juízo?
— Prefiro dizer que encontrei a minha fé.
— Onde está o teu pai?
— Foi embora. Discutimos. — Lancel ajoelhou perante o altar do seu outro Pai. 
— Quer rezar comigo, Jaime?
— Se eu rezar bem o Pai me dará uma mão nova?
— Não. Mas o Guerreiro lhe dará coragem, o Ferreiro lhe emprestará a força, e a Velha lhe dará sabedoria.
— É de uma mão que preciso. — Os sete deuses erguiam-se por cima de altares esculpidos, cuja madeira escura brilhava à luz das velas. Um tênue cheiro de incenso pairava no ar. — Dorme aqui em baixo?
— Todas as noites faço a cama junto a um altar diferente, e os Sete me enviam visões. Baelor, o Abençoado, também tivera em tempos visões. 
Especialmente quando jejuava.
— Há quanto tempo você não come?
— A fé é toda a nutrição de que necessito.
— A fé é como papas de aveia. É melhor com leite e mel.
— Sonhei que viria. No sonho sabia o que eu tinha feito. Como pequei. Matou-me por isso.
— É mais provável que seja você a se matar com todos esses jejuns. Não foi Baelor, o Abençoado, que foi em jejum até ao ataúde?
— As nossas vidas são chamas de vela, segundo a Estrela de Sete Pontas. Qualquer brisa vadia pode nos apagar. A morte nunca está longe neste mundo, e sete infernos esperam os pecadores que não se arrependem dos seus pecados. Reze comigo, Jaime.
— Se o fizer, come uma tigela de papas? — Quando o primo não respondeu, Jaime suspirou. — Devia estar dormindo com a tua mulher, não com a Donzela. Precisa de um filho com sangue Darry se quiser manter este castelo.
— Uma pilha de pedras frias. Nunca a pedi. Nunca a desejei. Só desejava… — Lancel estremeceu. — Que os Sete me salvem, mas eu desejava ser você.
Jaime teve de rir.
— É melhor ser eu do que o Abençoado Baelor. Darry precisa de um leão, primo. E a nossa pequena Frey também. Ela fica úmida entre as pernas sempre que alguém menciona o Herrock. Se ela ainda não se deitou com ele, deitará em breve.
— Se o ama, desejo-lhes felicidade um com o outro.
— Um leão não devia ter cornos. Tomou a moça como esposa.
— Disse algumas palavras e lhe dei um manto vermelho, mas só para agradar ao pai. O casamento requer a consumação. O Rei Baelor foi obrigado a casar com a irmã Daena, mas nunca viveram como marido e mulher, e ele a pôs de lado assim que foi coroado.
— O reino teria ficado mais bem servido se ele tivesse fechado os olhos e fodido a irmã. Sei história suficiente para saber disso. Seja como for, não é provável que te confundam com Baelor, o Abençoado.
— Pois não. — Concordou Lancel. — Ele era um espírito raro, puro, bravo e inocente, intocado por todo o mal do mundo. Eu sou um pecador, com muitíssimo a expiar.
Jaime pousou a mão no ombro do primo.
— O que você sabe de pecado, primo? Eu matei o meu rei.
— O homem corajoso mata com uma espada, o covarde com um odre de vinho. Somos ambos regicidas, sor.
— Robert não era um verdadeiro rei. Há até quem diga que o veado é a presa natural do leão. — Jaime conseguia sentir os ossos sob a pele do primo… e também mais qualquer coisa. Lancel estava usando um cilício por baixo da túnica. — Que mais você fez que requer tanta penitência? Diga-me.
O primo baixou a cabeça, com lágrimas correndo pelo rosto.
Essas lágrimas foram toda a resposta de que Jaime precisou.
— Matei o rei. Disse. E depois fodi a rainha.
— Eu nunca… Se deitou com a minha querida irmã? Diga! Diga!
— Nunca derramei a minha semente dentro… dentro de…
—… Da boceta? — sugeriu Jaime.
—… Do ventre — concluiu Lancel. — Não é traição, a menos que se termine lá dentro. Dei-lhe conforto, depois de o rei morrer. Você estava preso, o seu pai se encontrava em campo, e o seu irmão… Ela tinha medo dele, e com bons motivos. Ele me obrigou a trai-la.
— Ah, obrigou? — Lancel, Sor Osmund e quantos mais? Seria a parte acerca do Rapaz Lua só um sarcasmo? — A obrigou?
— Não! Eu a amava. Queria protege-la.
Queria ser eu. Os seus dedos fantasma lhe fizeram cócegas. No dia em que a irmã viera à Torre da Espada Branca para lhe suplicar que renunciasse aos seus votos, rira-se depois dele a recusar, e vangloriara-se de ter mentido mil vezes. Jaime tomara aquilo como uma tentativa desajeitada de feri-lo como ele a ferira. 
Pode ter sido a única coisa verdadeira que ela alguma vez me disse.
— Não pense mal da rainha, — suplicou Lancel. — Toda a carne é fraca, Jaime. Nenhum mal proveio do nosso pecado. Nenhum… nenhum bastardo.
— Ora. Os bastardos raramente são feitos na barriga. — Perguntou a si próprio o que o primo diria se confessasse os seus pecados, as três traições a que Cersei dera os nomes de Joffrey, Tommen e Myrcella.
— Fiquei zangado com Sua Graça depois da batalha, mas o Alto Septão disse que eu devia perdoá-la.
— Ah confessou os seus pecados a Sua Alta Santidade?
— Ele rezou por mim quando fui ferido. Era um bom homem.
É um homem morto. Fizeram soar os sinos por ele. Perguntou a si próprio se o primo faria alguma ideia do fruto que as suas palavras tinham gerado.
— Lancel, você um maldito tolo.
— Você está certo — disse Lancel. — Mas a minha tolice ficou para trás, sor. Pedi ao Pai no Céu para me mostrar o caminho, e ele mostrou. Vou renunciar a esta terra e a esta esposa. Pedra-Dura pode ficar com ambas, se quiser. Amanhã regressarei a Porto Real e ajuramentarei a espada ao novo Alto Septão e aos Sete. Pretendo proferir votos e me juntar aos Filhos do Guerreiro.
O rapaz não estava fazendo  sentido.
— Os Filhos do Guerreiro foram proscritos há trezentos anos.
— O novo Alto Septão os fez renascer. Emitiu um chamado aos guerreiros de mérito para colocarem as vidas e as espadas ao serviço dos Sete. Os Pobres Companheiros também serão restaurados.
— Porque haveria o Trono de Ferro de permitir tal coisa? — Jaime se lembrava de que um dos primeiros reis Targaryen lutara durante anos para suprimir as duas ordens militares, embora não recordasse qual. Maegor, talvez, ou o primeiro Jaehaerys. 
Tyrion saberia.
— Sua Alta Santidade escreveu que o Rei Tommen deu o seu consentimento. Eu te mostro a carta, se quiser.
— Mesmo se isso for verdade… Você é um leão do Rochedo, um senhor. Tem esposa, castelo, terras a defender, pessoas a proteger. Se os deuses forem bons, terá filhos do teu sangue para te suceder. Porque jogaria tudo isso fora em troca… Em troca de um voto qualquer?
— Porque você fez os seus? — Perguntou Lancel em voz baixa.
Por honra, poderia ter dito Jaime. Por glória. Mas teria sido mentira. A honra e a glória tinham desempenhado os seus papéis, mas a maior parte do motivo fora Cersei. Uma gargalhada escapou dos seus lábios.
— Vai correr para junto do Alto Septão, ou da minha querida irmã? Reza por isso, primo. Reza muito.
— Rezará comigo, Jaime?
Olhou em volta, para os deuses do septo. A Mãe, cheia de misericórdia. O Pai, severo em julgamento, o Guerreiro, com uma mão sobre a espada. O Estranho, nas sombras, com a cara meio humana escondida sob uma capa com capuz. 
Julgava que eu era o Guerreiro e Cersei a Donzela, mas ela foi todo o tempo o Estranho, escondendo o seu verdadeiro rosto do meu olhar.
— Reza por mim, se quiser. — Disse ao primo. — Eu esqueci todas as palavras.
Os pardais ainda esvoaçavam em volta dos degraus quando Jaime voltou a sair para a noite.
— Obrigado. — Disse-lhes. — Agora me sinto muito mais santo.
E foi em busca de Sor Ilyn e de um par de espadas. O pátio do castelo estava cheio de olhos e ouvidos. Para fugir deles, demandaram o bosque sagrado de Darry. Ali não havia pardais, só árvores nuas desconfiadas, com ramos negros que arranhavam o céu. Um tapete de folhas mortas rangia sob os seus pés.
— Está vendo aquela janela, Sor? — Jaime usou uma espada para apontar. — Ali era o quarto de Raymun Darry. Onde o Rei Robert dormiu no nosso regresso de Winterfell. A filha de Ned Stark tinha fugido depois de o seu lobo ter atacado Joff, deve se lembrar. A minha irmã quis que a menina perdesse uma mão. A velha punição, por bater em alguém de sangue real. Robert lhe disse que era cruel e louca. Levaram metade da noite discutindo… Bem, Cersei discutiu, e Robert bebeu. Já depois da meia noite, a rainha me chamou. O rei estava sem sentidos, a ressonar no tapete de Myr. Perguntei à minha irmã se queria que eu o levasse para a cama. Ela me disse que devia levar a ela para a cama, e se despiu do roupão. A possuí na cama de Raymun Darry depois de passar por cima de Robert. Se Sua Graça tivesse acordado, eu o teria matado naquele momento e local. Não seria o primeiro rei a morrer pela minha espada… Mas você já conhecia essa história, não é verdade? — Golpeou um ramo de árvore, o partindo ao meio. — Enquanto a fodia, Cersei gritou: “Eu quero”. Julguei que se referia a mim, mas o que ela queria era a rapariga Stark, mutilada ou morta. As coisas que eu faço por amor. — Foi por sorte que os homens dos Stark encontraram a menina antes de mim. Se eu tivesse dado com ela primeiro…
As marcas de bexigas no rosto de Sor Ilyn eram buracos negros à luz do archote, tão escuras como a alma de Jaime. Fez aquele som de estalar.
Está rindo de mim, compreendeu Jaime Lannister.
— Tanto quanto sei também você fodeu a minha irmã, seu bastardo de cara bexigosa. — Cuspiu. — Bem, fecha a merda da boca e me mata se conseguir.
 
O septo ficava sobre uma ilha elevada a meia milha da costa, onde a selvagem foz do Tridente se alarga ainda mais para beijar a baía dos Caranguejos. Mesmo da costa sua prosperidade era aparente. Sua encosta estava coberta de plantações em terraços, com viveiros de peixes abaixo e moinhos de vento acima, suas pás de madeira e lona girando lentamente com a brisa da baía. Brienne podia ver ovelhas pastando na encosta e cegonhas andando nas águas rasas próximas ao porto das balsas. 
— As Salinas estão do outro lado da água, — disse o Septão Meribald, apontando para o norte através da baía. — Os irmãos vão nos levar de balsa com a maré da manhã, apesar de eu temer o que vamos encontrar lá. Vamos comer uma refeição quente antes de enfrentar a travessia. Os irmãos sempre têm um osso extra para o cachorro — o cachorro latiu e abanou o rabo. 
A maré estava baixando agora, rapidamente. A água que separava a ilha da costa estava retrocedendo, deixando para trás uma vasta extensão de lama marrom e brilhante pontilhada por piscinas d’água que brilhavam a luz do sol como moedas de ouro. Brienne coçou sua nuca, onde um inseto a picou. Ela tinha seu cabelo preso no alto e o sol aqueceu sua pele. 
— Por que eles chamam este lugar de Ilha Quieta? —  perguntou Podrick. 
— Os que vivem aqui são penitentes, que procuram expiar seus pecados através de contemplação, orações e silêncio. Apenas o Irmão Mais Velho e seus procuradores que têm permissão para falar, e os ajudantes apenas por um dia a cada sete. 
— As irmãs silenciosas nunca falam, — disse Podrick. — Eu ouvi dizer que elas não têm língua. 
Septão Meribald sorriu. 
— As mães têm intimidado suas filhas com esse conto desde que eu tinha a sua idade. Não havia verdade nisso naquela época e continua não tendo. Um voto de silêncio é um ato de contrição, um sacrifício pelo qual se prova sua devoção aos Sete. Para um mudo fazer voto de silêncio seria como para um aleijado desistir de dançar. — Ele levou o seu jumento encosta abaixo, acenando para que os outros o seguissem. — Se vocês quiserem dormir sob um teto esta noite, vocês devem desmontar de seus cavalos e atravessar a lama comigo. O caminho da fé, é como nós o chamamos.
Apenas os que têm fé podem cruzá-lo com segurança. Os perversos são engolidos pela areia movediça, ou são afogados quando a maré retorna com força. Nenhum de vocês é perverso, eu espero? Mesmo assim, eu teria cuidado onde colocar os pés. Pisem apenas onde eu piso e vocês devem alcançar o outro lado. 
O caminho da fé era tortuoso, Brienne não pôde deixar de notar. Embora a ilha parecesse elevar-se para o nordeste de onde eles deixaram a costa, Septão Meribald não se dirigiu diretamente para lá. Ao invés, ele iniciou o caminho para o leste, para as águas profundas da baía, que, à distância, bruxuleavam em tons de azul e prata. A lama marrom e macia se amassava entre seus dedos. Ao andar, ele parava de tempos em tempos, para testar a lama à frente com seu bastão. O cachorro permaneceu perto de seus calcanhares, cheirando cada rocha, concha e tufos de alga. A princípio ele não seguiu a frente ou afastado. Brienne os seguiu, tomando cuidado para permanecer próxima a linha das pegadas deixadas pelo cachorro, pelo burro e o santo homem. Depois seguiu Podrick, e por ultimo Sor Hyle. Após cem jardas, Meribald se virou abruptamente em direção ao sul, então ficou quase de costas para o septo. Ele seguiu nessa direção por mais cem jardas, os guiando entre duas rasas piscinas. O cachorro parou em uma delas e ganiu quando um caranguejo o prendeu com sua garra. Uma luta breve, mas furiosa se seguiu antes do cachorro voltar trotando, molhado e sujo de lama, com o caranguejo entre suas presas. 
— Não é lá onde queremos ir? — Sor Hyle chamou de trás deles, apontando para o septo. — Parece que estamos indo para qualquer lugar, menos para lá. 
— Fé, — urgiu Septão Meribald. — Acredite, persista, siga, e iremos encontrar a paz que procuramos.
As poças tremeluziram ao redor deles, em meia centena de tons. A lama era de um marrom muito escuro que parecia quase negro, porém também havia faixas de areia dourada, rochas elevadas cinza e vermelhas, e emaranhados de algas pretas e verdes. Storks espreitou em torno das piscinas e deixou suas pegadas por todo lado, e os caranguejos correram pelas águas rasas. O ar cheirava a salmoura e podridão, e o chão sugou seus pés e os deixava continuar com relutância, emitindo um suspiro barulhento. Septão Meribald virou, girou e virou mais uma vez. Suas pegadas se encheram de água assim que ele continuou. Quando o chão começou a parecer mais firme e começou a se elevar sob os pés, eles haviam andado pelo menos dois quilômetros e meio. 
Três homens esperavam por eles quando subiram as pedras quebradas que cercavam a costa da ilha. Eles estavam vestidos com as túnicas marrons e pardas dos irmãos, com largas mangas em formato de sino e capuzes pontudos. Os dois também tinham peças de lã enroladas na metade de baixo de seus rostos, então tudo o que podia ser visto eram seus olhos. O terceiro irmão foi o único a falar. 
— Septão Meribald, — ele chamou. — Já tem quase um ano. Seja bem-vindo. Seus acompanhantes também.
O cachorro abanou o seu rabo, e Meribald tirou a lama dos seus sapatos. 
— Poderíamos solicitar a sua hospitalidade por uma noite? 
— Sim, claro. Teremos cozido de peixe esta noite. Vocês vão precisar da balsa pela manhã?
— Se não for pedir muito. — Meribald virou-se para seus amigos viajantes. — Irmão Narbert é um procurador da ordem, então é permitido a ele falar por um dia a cada sete. Irmão, esse bom camarada me ajudou em meu caminho. Sor Hyle Hunt é um cavaleiro da Campina. O rapaz é Podrick Payne, vindo de Westerland. E esta é a Senhora Brienne, conhecida como Donzela de Tarth. 
Irmão Narbert aproximou-se um pouco. 
— Uma mulher. 
— Sim, irmão. — Brienne soltou seu cabelo e o balançou. — Vocês não tem mulheres aqui? 
— Não no momento, — disse Narbert. — As mulheres que nos visitam vem a nós doentes ou feridas, ou grávidas. Os sete abençoaram nosso Irmão Mais Velho com mãos que curam. Ele recuperou a saúde de muitos homens que mesmo os meistres não conseguiram curar, e de muitas mulheres também.
— Eu não estou doente, machucada ou grávida. 
— Senhora Brienne é uma donzela guerreira, — confidenciou Septão Meribald, — Caçando o Cão de Caça. 
— É mesmo? — Narbert parecia surpreso. — Com que finalidade? 
Brienne tocou o cabo da Cumpridora de Promessas. 
— Ele, — ela disse. 
O procurador a estudou. 
— Você é... forte para uma mulher, é verdade, mas... mas talvez eu devesse levar você até Irmão Mais Velho. Ele deve ter visto você atravessando a lama. Venha. 
Narbert os guiou por um caminho de pedras entre um bosque de macieiras para um estábulo camuflado com um telhado de sapê pontiagudo. 
— Vocês devem deixar seus animais aqui. Irmão Gillam vai cuidar para que sejam alimentados e recebam água. 
O estábulo tinha mais do que três quartos vazios. De um lado havia meia dúzia de mulas, sendo cuidadas por um pequeno irmão de pernas tortas que Brienne pensou ser Gillam. Abaixo, na outra extremidade, bem longe dos outros animais, um grande garanhão tropeou ao som de suas vozes e deu um coice na porta de sua cocheira. 
Sor Hyle olhou admirado para o grande cavalo enquanto ele segurava suas rédeas para o Irmão Gillam. 
— Uma bonita fera. 
Irmão Narbert disse suspirando. 
— Os Sete nos enviam bênçãos, os Sete nos enviam provações. Ele deve ser bonito, mas Driftwood certamente foi parido no inferno. Quando nós o buscamos para aproveitá-lo em um arado, ele deu um coice no Irmão Rawney e quebrou sua tíbia em dois lugares. Nós tínhamos esperança que a castração iria melhorar o temperamento doentio da fera, mas... Irmão Gillam, pode mostrar a eles? 
Irmão Gillam baixou o seu capuz. Sob este ele tinha um punhado de cabelo loiro, o couro cabeludo tonsurado e uma bandagem marcada de sangue onde ele deveria ter uma orelha. 
Podrick disse assustado. 
— O cavalo mordeu e arrancou sua orelha? 
Gillam afirmou com um aceno, e cobriu novamente a sua cabeça. 
— Desculpe-me,irmão, — disse Sor Hyle, — mas eu poderia arrancar a outra orelha, se você se aproximasse de mim com um par de tesouras. 
A brincadeira não agradou ao Irmão Narbert. 
— Você é um cavaleiro, Sor. Driftwood é uma besta de carga. O Pai deu cavalos aos homens para que estes os ajudassem em seus trabalhos. — Ele virou-se. — Se me acompanham. O Irmão Mais Velho sem dúvida os estará esperando. 
A encosta era mais íngreme do que parecia entre as piscinas d’água. Para tornar mais fácil, os irmãos construíram um lance de degraus que vagava para frente e para trás por toda a costa e entre os edifícios. Depois de um longo dia numa sela Brienne estava feliz por uma chance de estender suas pernas. 
Eles passaram por uma dúzia de irmãos da ordem em sua subida; homens encapuzados em túnicas marrons e pardas que os olhavam curiosamente enquanto eles passavam; mas não disseram uma palavra de saudação. Um deles estava conduzindo um par de vacas leiteiras em direção a um celeiro baixo com telhado de grama; outro trabalhava batendo a manteiga. Nas encostas mais altas eles viram três garotos conduzindo ovelhas, e mais acima eles passaram por um cemitério onde um irmão, maior que Brienne, estava esforçando-se para cavar uma sepultura. Pela maneira com que ele se movia, era claro que ele era manco. Quando ele arremessou uma pá do solo pedregoso sobre um ombro, acidentalmente borrifou lama sobre seus pés. 
— Preste mais atenção aí, — ralhou Irmão Narbert. — Septão Meribald poderia ter sido atingido por um bocado de sujeira. — O coveiro abaixou a cabeça. Quando o cachorro foi cheirá-lo ele derrubou sua pá e arranhou sua orelha. 
— Um novato, — explicou Narbert. 
— Para quem é a cova? — perguntou Sor Hyle, já que recomeçaram sua subida pelos degraus de madeira.
— Irmão Clement, que o Pai o julgue justamente. 
— Ele era velho? —  perguntou Podrick Payne. 
— Se você considerar alguém de oitenta e quatro anos velho, sim, mas não foram os anos que o mataram. Ele morreu por causa dos ferimentos que ele obteve nas Salinas. Ele havia levado um pouco do nosso hidromel para o mercado lá, no dia que os fora-da-lei desceram à cidade.  
— O Cão de Caça? —  disse Brienne. 
— Outro, tão bruto quanto. Ele cortou fora a língua do pobre Clement, pois ele não falava. Como ele havia feito voto de silêncio, o corsário disse que ele não precisava mais dela. O Irmão Mais Velho sabe mais. Ele guarda o pior das notícias de fora para si mesmo, para não perturbar a tranquilidade do septo. Muitos dos nossos irmãos vieram para cá para fugir dos horrores do mundo, não para conviver com eles. Irmão Clement não foi o único ferido entre nós. Algumas feridas não aparecem. — Irmão Narbert gesticulou para a direita. — Aqui fica nosso caramanchão de verão. As uvas são pequenas e azedas, mas fazem um vinho agradável. Nós também fermentamos nossa própria cerveja, e o nosso hidromel e nossa sidra são muito conhecidos. 
— A Guerra nunca chegou até aqui? —  Brienne disse. 
— Não essa guerra, louvados sejam os Sete. Nossas orações nos protegem.
— E a maré, —  sugeriu Meribald. O cachorro latiu em concordância. 
O cume da colina foi coroado por um muro baixo de pedra não cimentado, circundando um grupo de grandes prédios; o moinho-de-vento, suas pás rangendo a medida que giravam, o mosteiro onde os irmãos dormiam e a sala comunal onde eles faziam suas refeições, um septo de madeira para orações e meditação. O septo tinha janelas de vidro chumbado, grandes portas esculpidas com imagens da Mãe e do Pai, e um campanário de sete lados com uma passarela no topo. Atrás ficava uma horta onde alguns irmãos de mais idade estavam tirando as ervas daninhas. Irmão Narbert guiou seus visitantes em torno de uma castanheira até uma porta de madeira localizada na lateral da colina. 
— Uma caverna com porta? —  Sor Hyle disse surpreso. 
Septão Meribald sorriu. 
— É chamada de o Buraco do Ermitão. O primeiro homem santo que veio para cá para encontrar o seu caminho viveu nela, e trabalhou tão maravilhosamente que outros vieram juntar-se a ele. Isso foi a dois mil anos atrás, eles dizem. A porta veio um pouco depois. 
Talvez há dois mil anos atrás, o Buraco do Ermitão fosse único, escuro, coberto de sujeira e ecoando os sons da água pingando, mas agora não era mais. A caverna que Brienne e seus acompanhantes entraram era quente, um santuário confortável. Tapetes de lã cobriam o chão, tapeçarias cobriam as paredes. Altas velas de cera de abelha davam mais do que ampla luminosidade. Os móveis eram estranhos, mas simples; uma mesa longa, um cadeirão, um baú, várias prateleiras altas de madeira cheias de livros, e cadeiras. Tudo fora feito de madeira flutuante, estranhas peças talentosamente talhadas e unidas e polidas até que brilhassem em profundo dourado a luz de velas.  
O Irmão Mais Velho não era o que Brienne esperava. Ele mal poderia ser chamado de idoso, para começar; considerando que os irmãos que estavam capinando o jardim tinham ombros inclinados e costas curvadas de velhos, ele ficava ereto e alto, e se movia com o vigor de um homem no auge de seus anos. Nem tinha o rosto suave e gentil que ela esperava de um curador. Sua mão era grande e quadrada, seus olhos eram perspicazes, seu nariz era venoso e vermelho. Apesar de ele ser tonsurado, seu courocabeludo era eriçado como sua mandíbula pesada. 
Ele se parecia mais com um homem para quebrar ossos do que um santo, pensou a Donzela de Tarth, enquanto o Irmão Mais Velho atravessou a sala para abraçar Septão Meribald e afagar o cachorro. 
— É sempre um dia feliz quando nossos amigos Meribald e seu cachorro nos honram com uma nova visita, — ele anunciou antes de se virar aos outros convidados. — E novas caras são sempre bem-vindas. Nós vemos tão poucas delas. 
Meribald fez as costumeiras cortesias antes de se sentar sobre o cadeirão. Diferentemente do Septão Narbert, o Irmão Mais Velho não pareceu consternado pelo sexo de Brienne, mas seu sorriso estremeceu e desvaneceu quando o Septão disse a ele porque ela e Sor Hyle vieram. 
— Eu entendo, — foi tudo o que ele disse antes de se virar dizendo, — Vocês devem estar com sede. Por favor, tome um pouco da nossa sidra doce para lavar a poeira da viagem de suas gargantas. — Ele mesmo os serviu. As canecas também eram de madeira flutuante e esculpidas não havendo duas iguais. Quando Brienne as elogiou, ele disse — A donzela é gentil. Tudo o que fazemos é cortar e polir a madeira. Nós somos abençoados aqui. Onde o rio encontra a baía, as correntes e a maré lutam uma contra a outra e muitas coisas estranhas e maravilhosas são empurradas até nós, surgindo em nossa costa. Madeira flutuante é o menor presente de todos. Nós encontramos canecas de prata e potes de ferro, sacos de lã e cortes de seda, elmos enferrujados e espadas brilhantes... ah, e rubis. 
Isso interessou ao Sor Hyle.  
— Rubis de Rhaegar? 
— Devem ser. Quem poderia dizer? A batalha foi a muitas léguas daqui, mas o rio é incansável e paciente. Seis foram encontrados. Nós estamos esperando pelo sétimo. 
— Melhor rubis do que ossos. — Septão Meribald estava esfregando seu pé, a lama se soltando por debaixo de seus dedos. — Nem todos os presentes do rio são agradáveis. Os bons irmãos coletam os mortos também. Vacas afogadas, veados afogados, porcos mortos inchados do tamanho de meio cavalo. Ah, e cadáveres.
— Muitos cadáveres, esses dias. — O Irmão Mais Velho suspirou.  — Nosso coveiro não conhece o descanso. Homens do rio, do leste e do norte, todos são trazidos para cá. Cavaleiros e patifes são iguais. Nós os enterramos lado a lado, Stark e Lannister, Blackwood e Bracken, Frey e Darry. Esse é o dever que o rio pede em troca de todos esses presentes, e nós fazemos o melhor que podemos. Às vezes encontramos uma mulher, ou pior, uma pequena criança. Esses são os presentes mais cruéis. — Ele virou-se para Septão Meribald. — Eu espero que você tenha tempo para nos absolver de nossos pecados. Desde que os atacantes mataram os antigos, não temos ninguém para ouvir nossas confissões. 
— Eu preciso ter tempo — disse Meribald, — embora eu espere que você tenha pecados melhores que da última vez que eu vim — O cachorro latiu. — Está vendo? Até o cachorro ficou entediado.
Podrick Payne ficou intrigado. 
— Eu pensei que ninguém pudesse falar. Bem, ninguém não. Os irmãos. Os outros irmãos, não você. 
— Nós temos a permissão de quebrar o silêncio para confessar, — disse o Irmão Mais Velho. — É difícil falar de pecados com sinais e acenos de cabeça. 
— Eles queimaram o septo nas Salinas? —  perguntou Hyle Hunt. 
O sorriso desapareceu. 
— Eles queimaram tudo nas Salinas, exceto o castelo. Só ele era feito de pedra… embora poderia ter sido feito também de sebo por tudo que serviu a cidade. Coube a mim tratar de alguns dos sobreviventes. Um pescador os trouxe pela baía até mim depois que as chamas acabaram e que considerou seguro aportar. Uma pobre mulher foi estuprada uma dúzia de vezes, e seus seios... minha donzela, você veste uma armadura de homem então não devo poupá-la desses horrores... seus seios foram rasgados e mastigados e comidos, como se fosse por algum tipo de... fera cruel. Eu fiz o que eu podia por ela, embora não tenha sido suficiente. Enquanto ela agonizava, suas piores maldições não foram para o homem que a estuprou, não para o monstro que devorou sua carne viva, mas para o Sor Quincy Cox, que barrou a entrada em seus portões quando os fora da lei entraram na cidade e sentou-se seguro do outro lado das paredes de pedra enquanto seu povo gritava e morria.
— Sor Quincy é um homem velho, — disse Septão Meribald gentilmente. — Seus filhos e seus afilhados estão distantes ou mortos, seus netos ainda são meninos e ele tem duas filhas. O que poderia ter feito, um homem contra tantos? 
Ele podia ter tentado, Brienne pensou. Ele poderia ter morrido. Velho ou jovem, um verdadeiro cavaleiro jurou proteger aqueles que são mais fracos do que ele, ou morrer na tentativa. 
— Palavras verdadeiras, e sábias, — disse o Irmão Mais Velho para Septão Meribald. — Quando você cruzar para as Salinas, sem dúvida Sor Quincy vai pedir seu perdão. Estou feliz que você esteja aqui para perdoá-lo. Eu não poderia — Ele deixou de lado a caneca de madeira flutuante e ficou parado. — O sino da ceia vai soar em breve. Meus amigos, venham comigo para o Septo, para orar pelas almas do bom povo das Salinas antes de nos sentarmos para partir o pão e partilhar um pouco de carne e hidromel?
— Alegremente, —  disse Meribald. O cão latiu. 
O ceia no septo foi a refeição mais estranha que Brienne já havia comido, mas não de todo desagradável. A comida era simples, mas muito boa; havia pães crocantes ainda mornos do forno, potes de manteiga fresca, mel das colméias do septo e um espesso cozido de caranguejo e mexilhões, e pelo menos três tipos diferentes de peixe. 
Septão Meribald e Sor Hyle beberam o hidromel feito pelos irmãos, e afirmaram estar excelente, enquanto ela e Podrick se contentaram com mais sidra doce. A refeição não foi melancólica. Meribald fez uma oração antes que a comida fosse servida, e enquanto os irmãos comiam em quatro longas mesas, um deles tocou para eles uma harpa alta, enchendo o salão com sons leves e doces. Quando o Irmão Mais Velho dispensou o músico para fazer sua refeição, Irmão Narbert e outro procurador revezaram-se lendo A estrela de sete pontas. 
No momento em que a leitura estava completa, o resto da comida foi recolhido pelos noviços cuja tarefa era servir. Muitos eram rapazes na idade de Podrick, ou mais novos, mas eles eram homens feitos também, e entre eles o grande coveiro que eles encontraram na colina, que tinha o andar desajeitado e balançante de um meio-aleijado. Como o salão estava vazio, o Irmão Mais Velho pediu a Narbert para mostrar a Podrick e Sor Hyle seu catre nos claustros. 
— Vocês não se importam de dividir uma cela, eu espero? Não é grande, mas vocês vão achar confortável. 
— Eu quero ficar com sor, —  disse Podrick. — Quero dizer, minha senhora.  
— O que você e a Senhorita Brienne fazem em outro lugar é entre vocês e Os Sete, — disse Irmão Narbert, — mas na Ilha Quieta, homens e mulheres não dormem debaixo do mesmo teto a não ser que sejam casados. 
— Nós temos algumas modestas cabanas separadas para as mulheres que nos visitam, sejam elas nobres senhoras ou garotas comuns da vila, — disse o Irmão Mais Velho. — Elas não são utilizadas com frequência, mas as mantemos limpas e secas. Senhora Brienne, você me autorizaria a mostrarlhe o caminho? 
— Sim, obrigada. Podrick, vá com o Sor Hyle. Aqui nós somos hóspedes dos irmãos santos. Sob o teto deles, suas regras. 
As cabanas eram no lado leste da ilha, com vista para uma grande extensão de lama e as águas distantes da Baía dos Caranguejos. Era mais frio do que no lado protegido, e mais selvagem. A colina era íngreme, e o caminho serpenteava para frente e para trás entre ervas daninhas e arbustos, rochas esculpidas pelo vento, e árvores torcidas, espinhosas que se agarravam tenazmente a encosta pedregosa. O Irmão Mais Velho trouxe uma lanterna para iluminar o caminho durante a decida. Em uma curva ele parou 
— Numa noite clara você poderia ver os fogos nas Salinas daqui. Do outro lado da baía, ali. —  Ele apontou.  
— Não tem nada lá, — Brienne disse. 
— Só sobrou o castelo. Mesmo os pescadores se foram, os poucos afortunados que foram embora pelas águas quando os corsários vieram. Eles viram suas casas pegarem fogo e ouviram os gritos e choros flutuarem pelo porto, ficaram com muito medo para aportarem seus barcos. Quando afinal vieram a terra, foi para enterrarem os amigos e parentes.  O que há para eles agora além de ossos e lembranças amargas? Eles se mudaram para Lagoa das Donzelas ou outras cidades. — Ele gesticulou com a lanterna, e eles reiniciaram sua decida. — Salinas nunca foi um porto importante, mas alguns barcos atracavam lá de tempos em tempos. Era o que os corsários queriam, uma galera ou um barco de pesca para carregá-los através do mar estreito. Como não havia nenhum a mão, eles descontaram sua raiva e desespero no povo da cidade. Eu me pergunto, minha donzela … o que você espera encontrar lá? 
— Uma garota, — ela disse a ele. — Uma donzela nobre de treze anos, com um rosto justo e cabelos ruivos. 
— Sansa Stark. — O nome foi dito suavemente. — Você acredita que esta pobre criança está com o Cão de Caça?  
— Um homem de Dorne disse que ela estava a caminho de Correrrio. Timeon. Ele é um mercenário, um da Companhia dos Bravos Companheiros, um matador e estuprador e um mentiroso, mas eu não acho que ele tenha mentido a esse respeito. Ele disse que o Cão de Caça a roubou e a levou embora. 
— Eu entendo. — O caminho fez uma curva, e havia as casas à frente deles. O Irmão Mais Velho as tinha chamado de modestas. E lá estavam elas.
Elas se pareciam com colméias feitas de pedra, baixas e redondas, sem janelas. — Esta, — ele disse, indicando a cabana mais próxima, a única com fumaça saindo pela chaminé no centro do telhado. Brienne teve de curvar-se ao entrar para não bater a cabeça contra o batente. Dentro ela encontrou um chão sujo, um catre de palha, peles e cobertores para mantê-la aquecida, uma bacia de água, um frasco de sidra, um pouco de pão e queijo, um pequeno fogo, e duas cadeiras baixas. O Irmão Mais Velho sentou-se em uma delas e abaixou a lanterna. — Posso ficar mais um pouco? Eu sinto que precisamos conversar. 
— Se você desejar. — Brienne soltou seu cinturão e o pendurou na segunda cadeira, então sentou-se no catre com as pernas cruzadas. 
— O seu homem de Dorne não mentiu, — o Irmão Mais Velho começou, — mas eu acredito que você não o tenha entendido. Você está perseguindo o lobo errado, minha donzela. Eddard Stark teve duas filhas. Foi com a outra que Sandor Clegane fugiu, a mais nova. 
— Arya Stark? — Brienne ficou boquiaberta, espantada. — Você sabia disso? A irmã da Senhora Sansa está viva? 
— Então, — disse o Irmão Mais Velho. — Agora ... Eu não sei. Ela pode ter sido morta entre as crianças nas Salinas. 
As palavras foram uma facada em sua barriga. Não, Brienne pensou. Não, isso seria muito cruel. 
— Pode ser que... o senhor queira dizer que não tem certeza... ?
— Estou certo de que a criança estava com Sandor Clegane na pousada ao lado da encruzilhada, aquela onde a velha Masha Heddle costumava ficar, antes dos leões a terem enforcado. Estou certo de que estavam a caminho de Salinas. Mais que isso... não. Eu não sei onde ela está, ou mesmo se ela vive. Há uma coisa que eu sei, no entanto. O homem que você busca está morto.
Ela teve outro choque.
— Como ele morreu? 
— Pela espada, como ele tinha vivido.
— Você sabe disso com certeza? 
— Eu mesmo o sepultei. Eu posso lhe dizer onde está seu túmulo, se você desejar. Eu o cobri com pedras para impedir os comedores de carniça de comer a sua carne, e coloquei o seu elmo em cima do monte de pedras para marcar o seu lugar de descanso final. Esse foi um erro muito grave.
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Alguns outros viajantes encontraram o meu marcador e o reclamaram para si mesmos. O homem que estuprou e matou em Salinas não foi Sandor Clegane, embora ele possa ser tão perigoso quanto. As terras ribeirinhas são cheias desses carniceiros. Eu não vou chamá-los de lobos. Os lobos são mais nobres do que isso... e assim são os cães, eu acho. 
— Eu sei um pouco a respeito desse homem, Sandor Clegane. Ele foi o escudeiro do Príncipe Joffrey por muitos anos, e mesmo por aqui podemos ouvir falar de suas obras, tanto boas como ruins. Se metade do que ouvimos for verdade, essa era uma alma amarga, atormentada, um pecador que zombava tanto dos deuses quanto dos homens. Ele serviu, mas não encontrou nenhum orgulho em serviço. Ele lutou, mas não tomou nenhuma alegria na vitória. Ele bebeu, para afogar a sua dor em um mar de vinho. Ele não amava, nem amava a si mesmo. Foi o ódio que o guiou. Apesar de ter cometido muitos pecados, ele nunca pediu perdão. Onde outros homens sonharam encontrar o amor, ou riqueza, ou a glória, este homem Sandor Clegane sonhou em matar seu próprio irmão, um pecado tão terrível que me faz tremer só de falar dele. Esse foi o pão a alimentá-lo, o combustível que manteve suas chamas queimando. Ignóbil como foi, a esperança de ver o sangue de seu irmão sobre sua lâmina foi tudo pelo qual viveu essa triste e colérica criatura... e mesmo isso foi tirado dele, quando o príncipe Oberyn de Dorne apunhalou Sor Gregor com uma lança envenenada. 
— Você fala como se tivesse pena dele, — disse Brienne. 
— Eu tive. Você também teria pena dele, se o tivesse visto em seu final. Deparei-me com ele no Tridente, guiado por seus gritos de dor. Ele me implorou pelo golpe de misericórdia, mas estou jurado a não matar novamente. Em vez disso, banhei sua testa febril com água do rio, e dei-lhe vinho para beber e um cataplasma para sua ferida, mas meus esforços foram insuficientes e tardios demais. O Cão de Caça morreu ali, nos meus braços. Você deve ter visto um garanhão negro nos nossos estábulos. Esse era o seu cavalo de batalha, Estranho. Um nome blasfêmico. Nós preferimos chamá-lo de Driftwood, já que ele foi encontrado as margens do rio. Temo que ele tenha a natureza de seu antigo mestre. 
O cavalo. Ela esteve no estábulo, ouviu os seus coices, mas ela não tinha entendido. Garanhões eram treinados para dar coices e morder. Em uma batalha eles eram armas, como os homens que os montavam. Como o Cão de Caça. 
— É verdade, então, — ela disse sombriamente. — Sandor Clegane está morto. 
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— Ele descansou. — O Irmão Mais Velho fez uma pausa. — Você é jovem, criança. Eu já contei quarenta e quatro aniversários... o que é mais que o dobro da sua idade, eu acho. Você ficaria surpresa ao saber que eu já fui um cavaleiro?
— Não. Você se parece mais com um cavaleiro do que com um homem santo. — Isto é demonstrado por seu peito e ombros, e através de sua mandíbula larga e quadrada. — Por que você desistiu de ser cavaleiro?
— Eu nunca escolhi isso. Meu pai era um cavaleiro, e seu pai antes dele. Assim foram cada um de meus irmãos. Fui treinado para a batalha desde o dia em que fui considerado com idade suficiente para segurar uma espada de madeira. Eu vi a minha parte nisso, e não me desgracei. Eu tive mulheres também, e então eu fiz minha desgraça, pois algumas eu tomei pela força. Houve uma garota com quem eu desejava me casar, a filha mais jovem de um senhor de pequenas posses, mas eu era o terceiro filho de meu pai e não tinha nem a terra nem a riqueza para oferecer-lhe... apenas uma espada, um cavalo, um escudo. E em geral, eu era um homem triste. Quando eu não estava lutando, estava bêbado. Minha vida foi escrita em vermelho, de sangue e vinho.
— Quando isso mudou? —  perguntou Brienne. 
— Quando eu morri na batalha do Tridente. Eu lutei ao lado do príncipe Rhaegar, embora ele nunca tenha sabido o meu nome. Eu não poderia lhe dizer o porquê, salvo que o senhor a quem servi decidiu apoiar o dragão ao invés do veado. Se ele tivesse decidido de outra forma, eu provavelmente estaria do outro lado do rio. A batalha foi muito sangrenta. Os cantores querem nos fazer crer que era tudo porque Rhaegar e Robert estavam lutando por uma mulher que ambos alegaram amar, mas garanto, outros homens estavam lutando também, e eu era um deles. Eu levei uma flechada na coxa e outra no pé, e meu cavalo foi morto debaixo de mim, mas eu continuei lutando. Eu me lembro o quão desesperado eu fiquei para encontrar um outro cavalo, pois eu não tinha dinheiro para comprar um, e sem um cavalo eu não poderia ser mais um cavaleiro. Isso era tudo em que eu estava pensando, verdade seja dita. Eu nunca vi o golpe que me derrubou. Ouvi cascos nas minhas costas e pensei: um cavalo! mas antes que eu pudesse me virar algo bateu na minha cabeça e jogou-me de volta ao rio, onde certamente eu deveria ter me afogado. Ao invés disso acordei aqui na Ilha Quieta. O Irmão Mais Velho me contou que a maré me trouxera, nu como eu vim ao mundo. Só consigo pensar que alguém me encontrou na água rasa, tirou-me a minha armadura, botas e calças, e me empurrou de volta para águas mais profundas. O rio fez o resto. Todos nós nascemos nus,
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então eu suponho que era justo que eu viesse em minha segunda vida da mesma maneira. Passei os dez anos seguintes em silêncio.
— Eu entendo. — Brienne não sabia por que ele estava dizendo a ela tudo isso, ou o que mais ele deveria dizer.
— Você entende? — Ele se inclinou para frente, suas grandes mãos sobre os joelhos — Então, desista dessa sua busca. O Cão de Caça está morto, e em todo caso ele nunca teve a sua Sansa Stark. Quanto a esta besta que usa seu elmo, ele será encontrado e enforcado. As guerras estão acabando, e estes fora-da-lei não podem sobreviver à paz. Randyll Tarly está procurando desde Lagoa da Donzela e Walder Frey desde de as Gêmeas, e tem um jovem Lorde em Darry, um homem piedoso que certamente vai definir suas terras ao lado dos justos. Vá para casa, criança. Você tem um lar, o que é mais que muitos podem dizer nesses dias negros. Você tem um pai nobre que certamente te ama. Pense em sua dor se você nunca voltar. Talvez eles levem para ele sua espada e seu escudo, depois de sua queda. Talvez ele até os pendure em sua sala e olhe para eles com orgulho… mas se você perguntar a ele, eu sei que ele diria que preferiria ter uma filha viva do que um escudo quebrado. 
— Uma filha. — Os olhos de Brienne se encheram de lágrimas. — Ele merece. Uma filha que possa cantar para ele e encher a sua casa de netos. Ele merece um filho também, um filho forte e galante para trazer honra ao seu nome. Galladon se afogou quando eu tinha quatro anos e ele tinha oito, e Alysanne e Arianne morreram quando ainda eram bebês. Eu sou a única filha que os deuses deixaram ele criar. A bizarra, que não está apta para ser nem um filho, nem uma filha. — Tudo isso veio a tona, como o sangue negro de uma ferida, as traições e os noivados, Ronnet Vermelho e sua rosa, Lord Renly dançando com ela, a aposta por sua virgindade, as lágrimas amargas que ela derramou na noite em que seu rei casou-se com Margaery Tyrell, a disputa em Ponteamarga, a capa de arco-íris da qual ela tinha sido tão orgulhosa, a sombra no pavilhão do rei, Renly morrendo em seus braços, Correrrio e a Senhora Catelyn, a viagem até o Tridente, o duelo com Jaime na floresta, os homens sem cara, Jaime chorando — Safiras, — Jaime na banheira em Harrenhal com vapor subindo de seu corpo, o gosto do sangue de Vargo Hoat quando ela o mordeu na orelha, a arena do urso, Jaime saltando para baixo na areia, a longa viagem para Porto Real, Sansa Stark, o voto que fez a Jaime, o voto que fez a Senhora Catelyn, Cumpridora de Promessas, Valdocaso, Lagoa da Donzela, Dick, o ágil e Ponta da Garra Rachada e os sussurros dos homens que ela havia matado... 
— Eu preciso encontrá-la, — ela terminou. — Há outros procurando, todos querendo capturá-la e vendê-la para a rainha. Preciso encontrá-la
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primeiro. Eu prometi a Jaime. Cumpridora de Promessas, ele nomeou a espada. Eu preciso tentar salvá-la… ou morrer na tentativa.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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CERSEI CERSEI CERSEI CERSEI  
 
 
il Navios! — O cabelo castanho da pequena rainha estava emaranhado e despenteado, e a luz das tochas fazia com que suas bochechas parecessem coradas, como se tivesse acabado de sair dos braços de algum homem. — Vossa graça, isso deve ter uma resposta violenta! — Sua última palavra ressoou pelas vigas e ecoou pelo teto cavernoso da sala do trono.
Sentada na sua grande cadeira dourada e carmim abaixo do Trono de Ferro, Cersei podia sentir um crescente aperto em seu pescoço. Deve, ela pensou. Ela ousa dizer “deve” para mim. Desejou dar um tapa na cara da garota Tyrell. Ela deveria estar de joelhos, implorando por minha ajuda. Em vez disso, se atreve a dizer a legítima rainha o que deve ser feito.
— Mil Navios? — Sor Harys Swift estava ofegante. — Certamente não. Nenhum rei comanda mil navios.
— Algum idiota assustado contou em dobro — concordou Orton Merryweather. — Isso, ou os vassalos do Lorde Tyrell estão mentindo para nós, aumentando os números dos inimigos para que não pensemos que eles são uns frouxos.
As tochas da parede de trás jogavam a longa e cortante sombra do Trono de Ferro a meio caminho das portas. A extremidade distante do salão estava perdida na escuridão, e Cersei não podia deixar de sentir que as sombras também estavam se fechando em torno dela. Meus inimigos estão em toda a parte, e meus amigos são inúteis. Ela só tinha que olhar para seus conselheiros para saber isso, somente Lorde Qyburn e Aurane Waters pareciam acordados. Os outros tinham sido despertados da cama pelos mensageiros de Margaery batendo em suas portas, e estavam ali confusos e perturbados. Lá fora a noite era negra e silenciosa. O castelo e a cidade dormiam. Boros Blunt e Meryn Trant pareciam dormindo também, embora permanecessem em pé. Até mesmo Osmund Kettleback bocejava. Mas Loras não. Não nosso Cavaleiro das Flores. Ele estava atrás de sua pequena irmã, uma tênue sombra com uma espada longa no quadril.
— Metade desses tantos navios ainda seriam 500, meu senhor — Waters fez notar a Orton Merryweather. — Somente a Árvore teria força suficiente no mar para se opor a uma frota desse tamanho.
— E os nossos novos dromondes? — perguntou Sor Harys. — Certamente os dracares dos homens de ferro não poderão resistir aos nossos
— M
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dromondes, certo? O Martelo do Rei Robert é o mais poderoso navio de guerra em toda Westeros.
— Ele era — disse Waters. — Doce Cersei será equivalente, uma vez concluído, e Lorde Tywin terá o dobro do tamanho de ambos. No entanto, apenas metade está equipada, e nenhum está totalmente tripulado. Mesmo quando estiverem, os números estarão muito contra nós. O dracár comum é pequeno comparado as nossas galés, isso é verdade, mas os homens de ferro possuem grandes navios também. Grande Kraken do Lorde Balon e os navios de guerra da frota dos homens de ferro foram feitos para guerra, não para assalto. Eles são iguais as nossas menores galés de guerra em força e velocidade, e a maioria são melhores tripulados e com melhores capitães. Os homens de ferro passam suas vida inteiras no mar.
Robert devia ter limpado as ilhas depois que Balon Greyjoy se levantou contra ele, pensou Cersei. Ele estraçalhou suas frotas, queimou suas cidades, e quebrou seus castelos, mas quando os teve de joelhos voltou a largá-los. Ele deveria ter feito outra ilha com seus crânios. Isso é o que seu pai teria feito, mas Robert nunca tivera o estômago que um rei deve ter para manter um reino em paz. 
— Os homens de ferro não tinham ousado invadir a Campina desde que Dagon Greyjoy sentou-se na Cadeira de Pedra do Mar, — ela disse. — Porque eles o fariam agora? O que os encorajou?
— Seu novo rei. — Qyburn estava com suas mãos escondidas nas mangas. — O irmão do Lorde Balon. O chamam de Olho de Corvo.
— Corvos fazem seus banquetes sobre os cadáveres e moribundos, — disse Meistre Pycelle. — Eles não descem sobre animais fortes e saudáveis. Lorde Euron vai se empanturrar de ouro e saque, sim, mas assim que nos movermos contra ele, ele voltará para Pyke, assim como Lorde Dagon costumava fazer em seu tempo.
— Você está errado — disse Margaery Tyrell. — Corsários não atacam com tamanha força. Mil navios! Lorde Hewett e Lorde Chester estão mortos, assim como o filho herdeiro de Lorde Serry. Serry fugiu com os poucos navios que restou para Jardim de Cima, e Lorde Grimm foi feito prisioneiro em seu próprio castelo. Willas disse que o rei de ferro nomeou quatro lordes em seus lugares.
Willas, pensou Cersei, o aleijado. Ele é o culpado por isso. Esse tolo do Mace Tyrell deixou a defesa da Campina nas mãos de um fraco infeliz. 
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— É uma longa viagem da Ilha de Ferro até as Ilhas Escudos — ressaltou. — como poderiam mil navios fazerem todo o caminho sem serem vistos?
— Willas acredita que eles não seguiram pela costa — disse Margaery. — Eles fizeram a viagem fora de vista, navegando longe através do Mar do Poente e caindo sobre a costa, vindos pelo oeste.
O mais provável é que o irmão aleijado não tinha deixado suas torres guarnecidas, e agora teme que o saibamos. A pequena rainha está dando desculpas pelo irmão. A boca de Cersei estava seca. Preciso de um copo de vinho dourado da Árvore. Se os homens de ferro decidirem em seguida tomar a Árvore, o reino inteiro poderia passar sede em breve. 
— Stannis pode ter um dedo nisso. Balon Greyjoy ofereceu uma aliança ao senhor meu pai. Talvez seu filho tenha oferecido uma a Stannis.
Pycelle franziu a testa. 
— O que Lorde Stannis ganharia…
— Ele ganha outro ponto de apoio. E saque, isso também. Stannis precisa de ouro para pagar seus mercenários. Ao invadir o oeste, ele espera distrair-nos em Pedra do Dragão e Ponta Tempestade.
Lorde Merryweather assentiu. 
— Uma distração. Stannis é mais inteligente do que sabíamos. Vossa Graça é inteligente por ter visto através de sua tática.
— Lorde Stannis está tentando ganhar os nortenhos para sua causa — disse Pycelle. — Se fez amizade com os homens de ferro, não pode esperar...
— Os nortenhos não estarão com ele — disse Cersei, perguntando-se como um homem culto podia ser tão estúpido. — Lorde Manderly cortou a cabeça e mãos do Cavaleiro das Cebolas, sabemos disso pelos Frey, e meia dúzia de outros senhores do norte se uniram à Lorde Bolton. O inimigo do meu inimigo é meu amigo. Para onde mais Stannis irá se virar, se os homens de ferro e os selvagens são os inimigos do norte? Mas se ele pensa que eu irei cair em sua armadilha, é mais tolo que você. — Ela voltou-se para a pequena rainha. — As Ilhas Escudos pertencem a Campina. Grimm, Serry e o restante são juramentados a Jardim de Cima. Cabe a Jardim de Cima responder a isso.
— Jardim de Cima responderá — disse Margaery Tyrell. — Willas enviou uma mensagem para Leyton Hightower em Vilavelha, para que trate das suas defesas. Garlan está reunindo homens para retomar as ilhas. Mas a
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maior parte da nossa força permanece com o senhor meu pai. Devemos enviar uma mensagem a ele em Ponta Tempestade. Imediatamente.
— E levantar o cerco? — Cersei não gostou da presunção de Margaery. Ela diz “imediatamente” para mim. Será que pensa que sou sua aia? — Eu não tenho dúvida que Lorde Stannis ficaria satisfeito com isso. Ele ficaria muito satisfeito em virar nossos olhos para longe de Pedra do Dragão e Ponta Tempestade, para esses rochedos...
— Rochedos? — arquejou Margaery. — Vossa Graça disse rochedos?
O Cavaleiro das Flores colocou a mão sobre o ombro da irmã. 
— Se Vossa Graça me permitir, são desses rochedos que os homens de ferros ameaçam Vilavelha e a Árvore. Das fortalezas nas Ilhas Escudos, salteadores podem subir o Vago até bem no coração da Campina, como já fizeram no passado. Com homens suficientes, podem até ameaçar Jardim de Cima.
— Realmente? — disse a rainha, com toda inocência. — Bem, então é melhor que seus corajosos irmãos os expulsem daqueles rochedos, e depressa.
— Como a rainha sugere que eles façam isso, sem barcos suficientes? — perguntou Sor Loras. — Willas e Garlan podem juntar 10 mil homens em uma quinzena e duas vezes mais em uma virada de lua, mas não podem andar sobre a água, Vossa Graça.
— Jardim de Cima está em cima do Vago — Cersei o lembrou. — Você e seus vassalos comandam mil léguas da costa. Não existem pescadores ao longo do seu litoral? Não existem barcaças de prazer, balsas, galés fluviais, esquifes?
— Muitos e muitos mais — Sor Loras admitiu.
— Esses devem ser mais do que suficientes para carregar uma tropa através de um pequeno trecho de água, eu acho.
— E quando os dracares dos homens de ferro descerem sobre a nossa miserável frota assim que estivermos fazendo o caminho através deste ‘pequeno trecho de água’, o que sua graça espera que façamos?
Se afoguem, pensou Cersei. 
— Jardim de Cima tem ouro. Você tem minha permissão para contratar mercenários do outro lado do mar estreito.
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— Piratas de Myr e Lys, você quer dizer? — Loras disse com desprezo. — A escória das Cidades Livres? 
Ele é tão insolente como a irmã. 
— É triste dizer, mas todos nós devemos lidar com a escória de tempos em tempos — ela disse com uma doçura venenosa. — Talvez tenha uma ideia melhor?
— Somente a Árvore tem galés suficiente para retomar a boca do Vago dos homens de ferro e protegerem meus irmãos durante a travessia. Eu lhe imploro Vossa Graça, envie uma mensagem a Pedra do Dragão e ordene que Lorde Redwyne levante suas velas imediatamente.
Pelo menos tem o bom senso de implorar. Paxter Redwyne tinha duzentos barcos de guerra, e cinco vezes mais naus mercantes, cocas de vinho, galés comerciais e baleeiros. Redwyne estava acampado junto às muralhas de Pedra do Dragão e a maioria de sua frota estava empenhada em transportar os homens através de Baia da Água Negra para o ataque àquela fortaleza insular. O restante patrulhava a Baia dos Naufrágios ao sul, onde só sua presença impedia que Pedra do Dragão fosse reabastecida pelo mar.
Aurane Water irritou-se com a sugestão de Sor Loras. 
— Se Lord Redwyne conduzir seus barcos para longe, como vamos abastecer nossos homens em Pedra do Dragão? Sem as galés da Árvore, como vamos manter o cerco a Ponta Tempestade?
— O cerco pode ser retomado mais tarde, depois...
Cersei o interrompeu. 
— Ponta Tempestade é cem vezes mais valioso do que os Escudos, e Pedra do Dragão... enquanto Pedra do Dragão permanecer nas mãos de Stannis Baratheon, é uma faca na garganta de meu filho. Libertaremos Lord Redwyne e sua frota quando o castelo cair. — A rainha pôs-se de pé. — Essa audiência está terminada. Grande Meistre Pycelle, uma palavra.
O velho sobressaltou-se, como se a voz dela houvesse o acordado de algum sonho de juventude, mas antes que pudesse responder, Loras Tyrell avançou a passos largos tão rapidamente que a rainha recuou com receio, alarmada. Estava prestes a gritar para Sor Osmund defendê-la quando o Cavaleiro das Flores caiu sobre um joelho. 
— Vossa Graça, deixe-me tomar Pedra do Dragão.
A mão de sua irmã foi parar na boca. 
— Loras, não.
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Sor Loras ignorou sua súplica. 
— Levará meio ano ou mais para levar Pedra do Dragão à submissão pela fome, como Lorde Paxter quer fazer. Dê-me o comando, Vossa Graça. O castelo será seu em uma quinzena, nem que tenha que derrubá-lo com as minhas próprias mãos. 
Ninguém tinha dado a Cersei um presente tão adorável desde que Sansa Stark correu a ela para revelar os planos de Lorde Eddard. Estava satisfeita de ver como Margaery tinha ficado pálida. 
— Sua coragem me tira o fôlego, Sor Loras — disse Cersei. — Lorde Waters, algum de nossos novos dromondes está preparado para ser lançado ao mar?
— Doce Cersei está, Vossa Graça. Um barco rápido, e tão forte como a rainha da qual obteve o nome.
— Esplêndido. Vamos deixar Doce Cersei levar nosso Cavaleiro das Flores para Pedra do Dragão imediatamente. Sor Loras, o comando é seu. Jura-me que não retornará enquanto Pedra do Dragão não for de Tommen.
— Eu juro, Vossa Graça. — Ele levantou.
Cersei o beijou em ambas as bochechas. Beijou também sua irmã, e sussurrou: 
— Você tem um irmão galante. — Ou Margaery não teve a elegância de responder, ou o medo tinha roubado suas palavras. 
A alvorada estava a várias horas de distância quando Cersei se esgueirou pela porta do rei atrás do Trono de Ferro. Sor Osmund foi a sua frente com o archote e Qyburn caminhava ao seu lado, caminhando em pequenos passinhos. Pycelle tinha que se esforçar para acompanhar. 
— Se vossa graça me permite — ele ofegou — jovens são muito ousados, e pensam somente na glória da batalha, nunca em seus perigos. Sor Loras... o plano dele é repleto de perigos. Para invadir as muitas muralhas de Pedra do Dragão…
— ...tem que ser muito corajoso.
— ...corajoso, sim, mas...
— Não tenho dúvidas que o nosso Cavaleiro das Flores será o primeiro homem a ganhar as ameias. 
E talvez o primeiro a cair. O bastardo bexiguento que Stannis tinha deixado para manter seu castelo não era nenhum campeão de torneio
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imaturo, mas sim um assassino experiente. Se os deuses fossem bons, dariam a Sor Loras o fim glorioso que ele parecia querer. Assumindo que o garoto não se afogaria no caminho. Tinha havido outra tempestade na noite passada, uma das violentas. A chuva havia caído em lençóis negros por horas. E isso não seria triste? A rainha pensou. Afogamento é comum. Sor Loras anseia por glória assim como homens de verdade anseiam por mulheres, o mínimo que os deuses podiam fazer é conceder a ele uma morte digna de canção.
Não importava o que acontecesse ao garoto em Pedra do Dragão e, de qualquer maneira, a rainha sairia vencedora. Se Loras tomasse o castelo, Stannis sofreria um golpe doloroso, e a frota Redwyne estaria livre para navegar ao encontro dos homens de ferro. Se falhasse, ela asseguraria de que levasse a parte da culpa do leão. Nada mancha mais o herói do que o fracasso. E se ele tiver que voltar para casa em seu escudo, coberto de sangue e glória, Sor Osney estará lá para consolar o sofrimento de sua irmã.
O riso não podia ser contido por muito mais tempo. Ele explodiu dos lábios de Cersei, e ecoou pelo corredor.
— Vossa Graça? — pestanejou Grande Meistre Pycelle, com sua flácida boca aberta. — Porque... porque está rindo?
— Porque, — ela tinha de dizer — caso contrário poderia chorar. Meu coração está repleto de amor pelo nosso Sor Loras e pelo seu valor.
Ela deixou o Grande Meistre na escada em espiral. Aquele já viveu mais do que qualquer utilidade que um dia pode ter tido, decidiu a rainha. Tudo que Pycelle estava fazendo era praguejá-la com advertências e objeções. Até mesmo tinha contestado o acordo que tinha feito com o Alto Septão, olhando-a de boca aberta e com um olhar estúpido quando o ordenou que preparasse os documentos necessários e balbuciando acerca de história velha e morta até que Cersei o interrompera.
— Os tempos do Rei Maegor terminaram, e os seus decretos também — disse com firmeza. — Estes são os tempos do Rei Tommem, e meus. — Teria feito melhor se tivesse o deixado nas celas negras. 
— Caso Sor Loras caia, Vossa Graça irá precisar encontrar alguém merecedor para a Guarda Real. — disse Lorde Qyburn quando atravessavam o fosso coberto de espigões que cingia a Fortaleza de Maegor.
— Alguém esplêndido — concordou. — Alguém tão jovem, rápido e forte que Tommen esqueça tudo sobre Sor Loras. Um pouco de cavalheirismo não lhe faria mal, mas sua cabeça não deve estar cheia de ideias tolas. Você conhece tal homem?.
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— Quem me dera! — disse Qyburn. — Tenho outro tipo de herói em mente. O que lhe falta de cavalheirismo ele lhe dará dez vezes em devoção. Protegerá seu filho, matará seus inimigos, e guardará seus segredos, e nenhum homem vivo será capaz de resistir a ele.
— Isso é o que você diz. Palavras são vento. Na hora certa, você poderá apresentar este santo e veremos se ele é tudo isso que você prometeu.
— Irão cantar sobre ele, eu juro isso. — Os olhos de Lorde Qyburn enrugavam-se com a diversão. — Posso perguntar sobre a armadura?
— Eu estou cuidando de seu pedido. O armeiro pensa que sou louca. Ele me garante que nenhum homem é forte o suficiente para mover-se e lutar com tamanho peso de aço. — Cersei deu ao meistre sem corrente um olhar de advertência. — Faça-me de tola, e irá morrer gritando. Acredito que esteja ciente disso?
— Sempre, Vossa Graça.
— Bom. Não diga mais nada sobre isso.
— A rainha é sábia. Estas paredes têm ouvidos.
— Pois elas têm. — À noite, Cersei às vezes ouvia sons suaves, até mesmo em seus próprios aposentos. Ratos nas paredes, ela se dizia, nada mais que isso.
Uma vela estava queimando ao lado de sua cama, mas a lareira apagou-se e não havia mais nenhuma luz. O quarto estava frio também. Cersei despiu-se e caiu debaixo dos cobertores, deixando seu vestido amontoado no chão. Do outro lado da cama, Taena se moveu. 
— Vossa Graça — murmurou baixinho. — Que horas são?
— A hora da coruja — a rainha respondeu.
Embora muitas vezes Cersei dormisse sozinha, nunca tinha gostado. Suas mais antigas memórias eram de compartilhar a cama com Jaime, quando eram tão jovens que ninguém os conseguia distinguir. Mais tarde, depois de terem sido separados, teve uma série de companheiras de cama, a maioria garotas de mesma idade que ela, filhas de cavaleiros e vassalos de seu pai. Nenhuma tinha lhe agradado e poucas duraram muito. Serpentezinhas, todas elas. Insípidas, criaturas chorosas, sempre contando histórias e tentando intrometer-se entre mim e Jaime. Ainda assim, houve profundas noites nas entranhas do Rochedo, em que aceitou de bom grado o calor delas ao seu lado. Uma cama vazia é uma cama fria.
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Ainda mais ali. Aquele quarto lhe dava calafrios, e seu miserável real marido havia morrido sob aquela copa. Robert Baratheon, o Primeiro de Seu Nome, que nunca haja um segundo. Um burro, bêbado bruto. Que chore no inferno. Taena aquecia a cama como Robert jamais o fez, e nunca tentou forçá-la a abrir as pernas. Nos últimos tempos, compartilhava a cama da rainha mais frequentemente do que com Lorde Merryweather. Orton parecia não se importar... Ou se ele se importava, sabia que não o devia dizer.
— Fiquei preocupado quando acordei e vi que tinha ido embora — murmurou a Senhora Merryweather, sentando-se e encostando-se nos travesseiros, com as colchas envolvendo sua cintura. — Alguma coisa errada?  
— Não — disse Cersei — tudo está bem. De manhã Sor Loras irá navegar a Pedra do Dragão, para conquistar o castelo, liberar a frota Redwyne, e provar sua virilidade para todos nós. 
Disse à mulher Myrish tudo o que tinha ocorrido sob a oscilante sombra do Trono de Ferro. 
— Sem seu valente irmão, nossa pequena rainha está quase nua. Ela tem seus guardas, com certeza, mas eu tenho visto o seu capitão por aí, no castelo. Um homem loquaz com um esquilo em sua armadura. Os esquilos fogem dos leões. Ele não tem o que é preciso para desafiar o Trono de Ferro.
— Margaery tem outras espadas — advertiu a Senhora Merryweather. — Ela tem feito muitos amigos na corte, e ela e suas jovens primas tem admiradores.
— Alguns pretendentes não me preocupam — disse Cersei — Já o exército em Ponta Tempestade...
— O que está pretendendo fazer, Vossa Graça?
— Porque está perguntando? — A pergunta era um pouco afiada demais para o gosto de Cersei. — Eu espero que não esteja pensando em compartilhar meus pensamentos com a nossa pequena pobre rainha?
— Nunca. Eu não sou a tal Senelle. 
Cersei não queria pensar em Senelle. Ela pagou a minha bondade com traição. Sansa Stark tinha feito o mesmo. E o mesmo tinham feito Melara Hetherspoon e a gorda Jeyne Farman quando as três eram crianças. Nunca teria entrado naquela tenda se não fosse por elas. Nunca teria permitido que Maggy, a Rã, saboreasse os meus amanhãs numa gota de sangue.
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— Ficaria muito triste se um dia traísse minha confiança, Taena. Não teria escolha a não ser entregar você a Lorde Qyburn, mas sei como eu choraria.
— Nunca daria motivos para você chorar, Vossa Graça. Se eu der, me diga, e eu própria me entregarei a Qyburn. Só quero estar perto de você. Para servir você, de qualquer jeito que você necessitar.
— E por este serviço, que recompensa você espera?
— Nada. Agrada-me lhe agradar. — Taena rolou para o lado dela, sua pela morena brilhando a luz das velas. Seus seios eram maiores do que os da rainha e terminava com enormes mamilos, negros como carvão. Ela é mais jovem que eu. Seus seios não começaram a ceder. Cersei se perguntou como seria a sensação de beijar outra mulher. Não levemente na bochecha, como era comum na cortesia das senhoras de alto nascimento, mas sim em cheio nos lábios. Os lábios da Taena eram muito cheios. Ela se perguntou como seria a sensação de mamar naqueles seios, colocar a mulher Myrish de costas e empurrar as pernas dela e usá-la como um homem poderia usá-la, como Robert a usou quando a bebida estava nele, e ela era incapaz de fazê-lo parar com sua mão ou boca.
Aquelas tinham sido as piores noites, encontrando-se impotente debaixo dele e ele a tendo a seu prazer, fedendo a vinho e grunhindo como um javali. Normalmente ele saia e ia dormir assim que acabava, e estava roncando antes que sua semente pudesse secar nas coxas de Cersei. Ela sempre ficava ferida depois, em carne viva entre as pernas, com seus seios doloridos pelo maltrato que eles sofreram. A única vez que a deixara molhada foi na noite de núpcias.
Robert fora bastante bonito quando se casaram. Alto, forte e poderoso, mas seu cabelo era preto e pesado, espesso no peito e grosso em torno de seu sexo. O homem errado tinha voltado do Tridente, a rainha pensava às vezes enquanto ele estava lutando com ela. Nos primeiros anos, quando montava nela mais vezes, fechava os olhos e fingia que era Rhaegar. Não conseguia fingir que era Jaime; Era tão diferente, tão estranho. Até mesmo o cheiro dele estava errado.
Para Robert, nunca aquelas noites aconteceram. Ao chegar a manhã nada recordava, ou ao menos era isso que queria que ela acreditasse. Uma vez, durante o primeiro ano do casamento, Cersei manifestou seu descontentamento no dia seguinte. 
— Você me machucou — reclamou. Ele teve a decência de parecer envergonhado. 
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— Não fui eu, minha senhora — disse em um aborrecido tom sombrio, como uma criança que foi pega tentando roubar bolos de maçã da cozinha. — Foi o vinho, eu bebo muito vinho. — Para arrastar abaixo sua confissão, ele pegou seu chifre de cerveja. Quando o levou para a boca, ela atirou-lhe seu próprio chifre no rosto dele, com tanta força que lascou um dente. Anos mais tarde em um banquete o escutou contando a uma criada como quebrou o dente em um corpo a corpo. Bem, nosso casamento foi uma briga, ela refletiu, então ele não mentiu. 
Mas todo o resto tinha sido só mentiras. Ele se lembrava do que lhe fazia a noite, estava certa disso. Podia ver em seus olhos. Só fingia esquecer; isso era mais fácil do que enfrentar sua vergonha. No fundo, Robert Baratheon era um covarde. Com o tempo os assaltos se tornaram menos frequentes. Durante o primeiro ano, ele a tomava pelo menos uma vez por quinzena, no final não era mais do que uma vez por ano. Nunca parou completamente, no entanto. Cedo ou tarde sempre havia uma noite em que bebia demais e queria reivindicar os seus direitos. O que o envergonhava a luz do dia o dava prazer na escuridão.
— Minha rainha? — disse Taena Merryweather. — Está com um olhar estranho em seus olhos. Está indisposta?
— Eu só estava… lembrando. — Sua garganta estava seca. — Você é uma boa amiga, Taena. Não tenho uma verdadeira amizade desde...
Alguém bateu com força à porta.
De novo? A urgência do som a fez estremecer. Terão mais mil navios caído sobre nós? Escorregou para dentro de seu manto e foi ver quem era. 
— Perdão por perturbar Vossa Graça — o guarda disse — mas a Senhora Stokeworth está lá embaixo, implorando uma audiência.
— A esta hora? — falou Cersei. — Será que Falyse perdeu o juízo? Diga a ela que eu estou deitada. Que plebeus estão sendo chacinados nos Escudos. Que fui acordada no meio da noite. Irei vê-la pela manhã. 
O guarda hesitou. 
— Se Vossa Graça me permite, ela… ela não está com uma boa aparência, se é que você me entende.
Cersei franziu a testa. Assumiu que Falyse estava ali para dizer que Bronn estava morto. — Muito bem. Vou precisar me vestir. Leve ela ao meu aposento privado e diga que me aguarde. — Quando a Senhora
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Merryweather levantou para ir junto, a rainha objetou. — Não, fique. Uma de nós deve descansar um pouco pelo menos. Eu não deverei demorar.
O rosto da Senhora Falyse estava machucado e inchado, os olhos vermelhos de tanto chorar. O lábio inferior estava cortado, sua roupa suja e rasgada. 
— Pela bondade dos deuses — disse Cersei levando-a para dentro do seu aposento e fechando a porta. — O que aconteceu com seu rosto?
Falyse pareceu não ouvir a pergunta. 
— Ele o matou — disse numa voz trêmula. — Mãe, tenha misericórdia, ele… ele… — Ela desabou em soluços, com o corpo tremendo.
Cersei despejou vinho em um copo e levou para mulher que chorava. 
— Beba isto. O vinho a acalmará. Isso. Um pouco mais. Pare de chorar e me diga por que está aqui.
Foi preciso um jarro inteiro até que a rainha finalmente conseguisse arrancar toda a triste história da Senhora Falyse. Uma vez que tinha ouvido, não sabia se ria ou gritava. 
— Um combate singular — repetiu. Não há ninguém nos Sete Reinos em que eu realmente possa confiar? Sou a única em Westeros com uma pitada de juízo? — Você está me dizendo que Sor Balman desafiou Bronn para um combate singular?
— Ele disse que isso seria s-s-simples. A lança é a uma arma de cacavaleiro, ele disse, e B-Bron não é um verdadeiro cavaleiro. Balman disse que ia derrubá-lo do cavalo e acabar com ele assim que ele caísse at-atatordoado.
Bronn não é nenhum cavaleiro, isso era verdade. Bronn é um assassino endurecido pela batalha. O cretino do seu marido escreveu sua própria sentença de morte. 
— Um plano esplêndido. Posso me atrever a perguntar o que deu errado?
— Bronn enfiou a lança no peito do pobre cavalo do Balman. Balman, ele... suas pernas foram esmagadas quando a besta caiu. Ele gritou tão piedosamente...
Mercenários não tem piedade, Cersei poderia ter dito. 
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— Disse para encenar um acidente de caça. Uma flecha perdida, queda de cavalo, um furioso javali... há várias maneiras que um homem pode morrer numa mata. Nenhuma delas envolve lanças.
Falyse pareceu não ouvir. 
— Quando tentei correr para o meu Balman, ele, ele, ele me bateu no rosto. Ele fez meu senhor confessar. Balman estava implorando por Meistre Frenken, para que o tratasse, mas o mercenário, ele, ele, ele...
— Confessar? — Cersei não gostou daquela palavra. — Acredito que nosso bravo Sor Balman controlou a língua.
— Bronn enfiou o punhal em seu olho, e me disse que era melhor eu ir embora de Stokeworth antes de o sol se pôr ou eu teria o mesmo. Disse que me entregaria a guarnição, se algum deles me quisesse. Quando ordenei que capturassem Bronn, um de seus cavaleiros teve a audácia de dizer que era melhor fazer o que o Lorde Stokeworth disse. O chamou de Lorde Stokeworth! — A Senhora Falyse agarrou a mão da rainha. — Vossa Graça têm que me dar cavaleiros. Uma centena de cavaleiros! E besteiros, para retomar o meu castelo. Stokeworth é meu! Eles nem sequer permitiram que eu pegasse as minhas roupas! Bronn disse que eram as roupas de sua esposa agora, todas as minhas sedas e veludos.
Seus trapos são os menores dos seus problemas. A rainha libertou seus dedos para longe do pegajoso aperto da outra mulher. 
— Pedi para você que apagasse uma vela para ajudar a proteger o rei. Em vez disso você atira um frasco de fogo vivo nele. O idiota do seu Balman pôs meu nome nisso? Diga-me que não.
Falyse lambeu os lábios. 
— Ele... ele estava com dor, suas pernas estavam quebradas. Bronn disse que teria misericórdia, mas... O que vai acontecer com minha pobre mãe? — Eu imagino que ela vai morrer. 
— O que você acha? — Senhora Tanda poderia muito bem já estar morta. Bronn não parecia ser o tipo de homem que iria despender muito esforço cuidando de uma velha com o quadril quebrado.
— Você tem que me ajudar. Para onde eu irei? O que vou fazer? 
Talvez você possa se casar com o Rapaz Lua, Cersei quase disse. Ele é quase tão tolo quanto o seu falecido marido. Não poderia arriscar uma guerra à porta de Porto Real, não agora. 
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— As irmãs silenciosas estão sempre felizes em receber viúvas — disse — Elas têm uma vida boa, uma vida de oração, contemplação e boas obras. Levam consolo para os vivos e paz para os mortos. — E também não falam. Não podia deixar a mulher andando pelos Sete Reinos, espalhando contos perigosos.
Falyse era surda para o bom senso. 
— Tudo que fizemos, fizemos a serviço de Vossa Graça. Orgulhosos de sermos fieis. Você disse... 
— Eu me lembro. — Cersei forçou um sorriso. — Ficará aqui conosco, minha senhora, até descobrirmos um jeito de conquistar seu castelo de volta. Deixe-me servi-la outro copo de vinho. Isso te ajudará a dormir. Você está doente e com o coração enfermo, isso é fácil de perceber. Minha pobre Falyse. Isso, beba.
Enquanto sua convidada tomava o vinho, Cersei foi até a porta chamar suas aias. Disse a Dorcas para procurar Lorde Qyburn e trazê-lo quando o encontrasse. Despachou Jocelyn Swyft de volta para a cozinha. 
— Traga pão e queijo, um pedaço de carne e algumas maçãs. E vinho. Temos sede.
Qyburn chegou antes da comida. A senhora Falyse tinha bebido outros três copos, e começava a adormecer, apesar de às vezes acordar e dar outro soluço. A rainha levou Qyburn de lado e contou-lhe da loucura de Sor Balman. 
— Eu não posso deixar Falyse espalhando histórias sobre a cidade. Sua dor a deixou fraca de espírito. Ainda precisa de mulheres para o seu... trabalho?
— Preciso, Vossa Graça. Os titereiros estão bastante gastos 
— Leve ela e faça o que quiser, então. Mas, uma vez que tenha descido para as celas negras... Preciso dizer mais alguma coisa?
— Não, Vossa Graça. Eu compreendo.
— Ótimo. — A rainha sorriu novamente. — Querida Falyse. Meistre Qyburn está aqui. Ele te ajudará a descansar.
— Oh, — disse Falyse vagamente. — Oh, que bom.
Quando a porta se fechou atrás deles, Cersei colocou outro copo de vinho para si. 
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— Eu estou cercada por inimigos e imbecis, — disse. Não poderia confiar nem no seu próprio sangue, nem em Jaime, que tempos atrás tinha sido sua outra metade. Ele tinha prometido ser minha espada e escudo, e meu forte braço direito. Por que insiste em me irritar? Bronn certamente não era mais que um aborrecimento. Nunca acreditou de verdade que ele estava dando abrigo ao duende. Seu pequeno e deformado irmão era muito esperto para permitir que Lollys desse seu nome ao maldito bastardo que acabou de parir, tendo a certeza de que iria atrair a fúria da rainha sobre ela. A Senhora Merrywether tinha dito isso, e estava certa. A zombaria era certamente obra do mercenário. Conseguia imaginar ele vendo seu enrugado e vermelho filho adotivo sugando uma das tetas de Lolly, um copo de vinho em uma mão e um sorriso insolente no rosto. Aproveite todos os seus desejos, Sor Bronn, você estará gritando em breve. Aproveita sua senhora desmiolada e seu castelo roubado enquanto puderes. Quando for hora, vou te esmagar como se fosse uma mosca. Talvez devesse mandar Loras Tyrell para esmagá-lo, isso se de alguma forma o Cavaleiro das Flores conseguisse retornar vivo de Pedra do Dragão. Isso seria maravilhoso. Se os deuses forem bons, irão matar-se um ao outro, como Sor Arryk e Sor Erryk. E quanto a Stokeworth... Não, estava farta de pensar sobre Stokeworth.
Taena voltara a dormir quando a rainha retornou ao quarto, com a cabeça girando. Muito vinho e pouco descanso, disse para si mesma. Não era toda noite que era acordada duas vezes com tão desesperadas notícias. Pelo menos pude levantar. Robert estaria muito bêbado para levantar, quanto mais para governar. Teria pedido para Jon Arryn cuidar de tudo isto. Lhe agradava pensar que era um rei melhor que Robert.
O céu lá fora já estava começando a clarear. Cersei sentou na cama ao lado da Senhora Merryweather, ouvindo sua leve respiração, vendo seus seios subirem e descerem. 
Será que está sonhando com Myr? Ela imaginava. Ou era com o seu amante da cicatriz, o perigoso homem de cabelos escuros que não poderia ser recusado? Estava certa de que Taena não estava sonhando com Lorde Orton.
Cersei colocou suas mãos no seio da mulher. Suavemente, quase nem o tocando, sentindo o calor que emitia na palma de sua mão, a pele lisa como cetim. Deu um aperto suave, então passou o dedo levemente sobre o grande e escuro mamilo, para trás e para frente e para trás e para frente até que o sentiu endurecer. Quando olhou pra cima, os olhos de Taena estavam abertos.
— Isso foi bom? — perguntou.
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— Sim, — a Senhora Merryweather disse.
— E isso? — Cersei beliscou o mamilo, com força, torcendo-o entre seus dedos.
A mulher de Myr deu um suspiro de dor. 
— Você está me machucando.
— É só o vinho. Eu bebi um frasco na minha janta, e outro com a viúva Stokeworth. Tive que beber para manter a calma. — Ela torceu o outro mamilo de Taena, beliscando até a mulher suspirar de novo. — Eu sou a rainha. Eu tenho que exigir meus direitos.
— Faça o que a senhora desejar. — O cabelo de Taena era negro igual ao de Robert, mesmo entre suas pernas, e quando Cersei os tocou, estavam encharcados, enquanto os de Robert eram grossos e secos. — Por favor — a mulher Myrish disse — vá em frente, minha rainha. Faça o que quiser comigo. Eu sou sua.
Mas não valia a pena. Não podia sentir o que quer que Robert sentisse nas noites em que a possuía. Não havia prazer, não para ela. Para Taena, sim. Seus mamilos eram dois diamantes negros, seu sexo estava escorregadio e fumegante. Robert poderia tê-la amado por uma hora. A rainha deslizou um dedo para dentro do pântano da Myrish, depois outro, movendo eles para dentro e para fora, mas uma vez que Robert estivesse dentro de você, ele dificilmente lembraria seu nome.
Queria ver se seria tão fácil com uma mulher como era com Robert. Dez mil de nossos filhos pereceram na minha mão, Vossa Graça, pensou, deslizando um terceiro dedo para dentro de Myr. Enquanto você roncava, eu lambia os vossos filhos da minha cara e dedos um por um, todos aqueles pálidos e pegajosos príncipes. Você reivindicou seus direitos, meu lorde, mas na escuridão eu comia seus herdeiros. Taena estremeceu. Ofegou algumas palavras em uma língua estrangeira, depois ofegou de novo, arqueou suas costas e gritou. Soa como se estivesse sendo estripada, a rainha pensou. Por um momento se deixou imaginar que seus dedos eram as presas de um javali, rasgando a mulher de Myr da virilha até a garganta.
Ainda não está bom.
Nunca tinha sido bom com ninguém a não ser com Jaime.
Quando tentou tirar sua mão, Taena pegou seus dedos e os beijou. 
— Querida rainha, como eu posso te agradar? — Ela deslizou sua mão em Cersei e tocou-lhe sexo. — Diga o que quer de mim, meu amor. 
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— Saia — Cersei afastou-se e puxou as mantas para se cobrir, tremendo. Estava amanhecendo. Logo amanheceria, e tudo isso seria esquecido.
Nunca teria acontecido.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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JAIME JAIME JAIME JAIME  
 
 
s trompetes lançaram o seu grito metálico, que ascendeu ao tranquilo céu azul do pôr-do-sol. Josmyn Peckledon se pôs em pé de um salto e correu para pôr o cinto de seu senhor.
 O garoto tem um bom instinto.
 — Os bandidos não anunciam a sua chegada com trompetes. — lhe disse Jaime. — Não preciso de uma espada. Deve ser o meu primo, o Guardião do Oeste.
 Quando saiu da tenda, os cavaleiros já estavam desmontando: meia dúzia de cavaleiros e mais de vinte arqueiros e soldados a cavalo.
 — Jaime! — rugiu um homem desgrenhado que vestia uma cota de malha dourada e capa de pele de burro. — Tão fraco, e todo de branco! E com barba!
 — Isto? Apenas uma penugem se comparada com a tua, primo. — A barba encrespada e o farto bigode de Sor Daven se fundiam num cavanhaque espesso como um arbusto, e o emaranhado cabelo ruivo era amassado pelo elmo que estava tirando. No meio de todo aquele cabelo sobressaia um nariz arrebitado e um par de olhos castanhos, cheios de energia. — Algum bandido te roubou a navalha com que você fazia a barba?
 — Jurei que não cortaria o cabelo até que meu pai fosse vingado. — Apesar de seu aspecto leonino, a voz de Daven Lannister tinha uma estranha timidez. — Mas o Jovem Lobo se encarregou de Karstark antes de mim. Tirou a vingança de minhas mãos. — Estendeu o elmo ao escudeiro e passou os dedos pelo cabelo. — Mas gosto de ter barba. As noites são cada vez mais frias; um pouco de pelugem mantém a cara quente. Além disso, como dizia tia Genna, tenho um carvão no lugar do queixo. — Agarrou Jaime pelos braços. — Tememos por ti depois do que aconteceu no Bosque dos Murmúrios. Houve rumores de que o lobo gigante do Stark havia destroçado tua garganta.
 — Derramou amargas lágrimas por mim, primo?
 — A metade de Lannisporto derramou. A metade feminina. — O olhar de Daven se parou no coto do braço de Jaime. — Então é verdade. Esses filhos da puta te cortaram a mão da espada.
 — Agora tenho uma nova, de ouro. Ser maneta tem as suas vantagens. Bebo menos vinho, por medo de derramá-lo.
O
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 — Bem pensado. — Seu primo começou a rir. — Quem te fez isso? Catelyn Stark?
 — Vargo Hoat.
 De onde saem essas lendas?
 — O qoriense? — Sor Davos cuspiu. — Isto é para ele e a sua Companhia dos Bravos. Disse a teu pai que eu mesmo me encarregaria de conseguir provisões, mas se negou. Me disse que há tarefas adequadas para os leões, e que a forragem era destinada às cabras e aos cães.
 Eram as palavras literais de Lorde Tywyn, Jaime sabia; quase podia ouvir a voz de seu pai.
 — Entra, primo. Temos que conversar.
 Garrett havia acendido a fogueira, e as cinzas conferiam à tenda de Jaime um calor avermelhado. Sor Daven tirou a capa e a atirou a Lew Pequeno.
 — É um Piper, garoto? — grunhiu. — Parece um tanto insignificante.
 — Sou Lewys Piper, se ao meu senhor lhe agrada.
 — Uma vez dei uma boa surra no teu irmão no corpo a corpo. O magrelo se ofendeu quando lhe perguntei se a mulher que dançava nua no seu escudo era a sua irmã.
 — É o brasão de nossa Casa. Não temos nenhuma irmã.
 — Que pena. Vosso brasão tem uns peitos estupendos. Mas que classe de homens se esconde atrás de uma mulher nua? Cada vez que lhe dava uma golpe no escudo me sentia muito pouco cavalheiro.
 — Já basta. — Interrompeu Jaime entre risos. — Deixe-o em paz. — Pia estava preparando vinho apimentado; removia o líquido com uma tigela. — Tenho que saber o que vou encontrar em Correrrio.
 Seu primo encolheu os ombros.
 — O cerco continua. Peixe Negro está cruzando os braços no seu castelo e nós em nossos acampamentos. Na verdade, estamos morrendo de tédio. — Sor Daven se sentou em um banco. — Tully deveria fazer algo para nos recordar que ainda estamos em guerra. E assim, poderíamos nos livrar de uns quantos Frey. De Ryman, para começar. Passa o dia bêbado. Ah, e de Edwyn. Não é tão imbecil como o seu pai, mas está cheio de ódio como um furúnculo de pus. E nosso Sor Emmon...  Ah, não, Lorde Emmon, os Sete
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nos amparem se nos esquecermos seu novo título... Nosso Senhor de Correrrio não para de me dizer como tenho que conduzir o cerco. Quer que o castelo seja tomado sem causar danos, porque agora é o seu senhorial assentamento.
 — O vinho já está quente? — perguntou Jaime a Pia.
 — Sim, meu senhor. — A garota tapava a boca ao falar.
 Peck lhes serviu o vinho numa bandeja dourada. Sor Daven tirou as luvas e se serviu de um copo.
 — Obrigado, garoto. Quem é você?
 — Josmyn Peckledon, se ao meu senhor lhe agrada.
 — Peck foi um herói na Batalha da Água Negra. — disse Jaime. — Matou dois cavaleiros e capturou outros dois.
 — Deve ser mais corajoso do que aparenta, menino. Isso que você tem na cara é barba, ou se esqueceu de se lavar? A mulher de Stannis Baratheon tem um bigode mais farto. Quantos anos você tem?
 — Quinze, meu senhor.
 Sor Daven soltou um resmungo.
 — Sabe o que é o melhor dos heróis, Jaime? Que como todos morrem jovens, os demais pegam mais mulheres. — Estendeu o copo ao escudeiro. — Enche outra vez e eu também direi que é um herói. Tenho sede.
 Jaime levantou o seu copo com a mão esquerda e bebeu um gole. O calor se estendeu pelo seu peito.
 — Estava falando dos Frey que queria ver mortos. Ryman, Edwyn, Emmon...
 — E Walder Rivers. — acrescentou Daven. — Pequeno filho da puta. Odeia ser bastardo e odeia todo mundo que não é. Em troca, Sor Perwyn parece uma boa pessoa; a esse que não o matem. As mulheres também não estão mal. Tenho entendido que vou casar com uma. De certo, seu pai podia me dar a cortesia de me consultar sobre este matrimônio. Meu pai já estava tratando com Paxter Redwyne antes do que aconteceu em Cruzaboi, sabia? Redwyne tem uma filha que vem com um bom dote...
 — Desmera? — Jaime começou a rir. — Você gosta tanto de sardas?
 — Se tenho que escolher entre os Frey e as sardas... Que quer que eu te diga? A metade dos cachorros de Lorde Walder tem cara de doninha.
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 — Só a metade? Já pode dar graças. Em Darry conheci a esposa de Lancel.
 — Ami Portas Abertas, pelos deuses. Quando me inteirei de que Lancel havia escolhido essa, não pude acreditar. Que acontece com esse garoto?
 — Se tornou devoto. — replicou Jaime. — Mas a escolha da esposa não foi coisa sua. A mãe de Senhora Amerei é uma Darry. Nosso tio pensou que essa esposa nos ajudaria a ganhar o apoio dos camponeses.
 — Como? Fodendo com cada um deles, um depois do outro? Sabe porque a chamam Ami Portas Abertas? Porque levanta as saias para cada cavaleiro que passa. Mais vale que Lancel procure um armeiro que faça um elmo com cornos.
 — Não vai precisar disso. Nosso primo está voltando para Porto Real para professar os votos como espada do Septão Supremo.
 Sor Daven não ficaria mais atônito se Jaime lhe dissesse que Lancel havia decidido virar bobo da corte.
 — Não pode ser verdade! Está brincando comigo. Ami Portas Abertas deve ter ainda mais cara de doninha do que ouvi falar, para que o rapaz acabe assim.
 Quando Jaime tinha ido se despedir de Senhora Amerei a havia encontrado soluçando pela dissolução do seu casamento, enquanto Lyle Crakehall a consolava. Suas lágrimas não o haviam preocupado nem a metade do que os olhares odiosos que lhe lançaram seus parentes no pátio.
 — Espero que não esteja pensando em professar os votos tu também, primo. — disse a Devan. — Em questão de acordos matrimoniais, os Freys são muito melindrosos. Nem pensaria em decepcioná-los outra vez.
 Sor Daven soltou um resmungo.
 — Me casarei e levarei a minha doninha para a cama, pode ter certeza. Lembro muito bem o que aconteceu com Robb Stark. Mas, pelo que me conta Edwyn, é melhor que escolha alguém que ainda não tenha florescido, ou o mais provável é que Walder Negro já tenha passado por minhas terras. Com certeza ele já fodeu Ami Portas Abertas, e mais de uma vez. Pode ser que isso explique a santidade de Lancel e o cansaço de seu pai.
 — Tem visto Sor Kevan?
 — Sim. Passou por aqui a caminho do oeste. Pedi-lhe que nos ajudasse a tomar o castelo, mas não quis nem ouvir falar do tema. Passou
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sem fazer nada todo o tempo em que esteve aqui. Sempre cortês, mas gélido. Jurei a ele que não havia pedido que me nomeassem Guardião do Oeste, que essa honra deveria pertencer a ele, e me disse que não guardava nenhum ressentimento em relação a mim, mas seu tom de voz dizia o contrário. Ele esteve aqui três dias, e se me dirigiu três palavras, foram muitas. Queria que tivesse ficado; seu conselho seria de grande ajuda. Nossos amigos Frey não se atreveriam a fatigar Sor Kevan tanto como eu.
 — Me conta. — disse Jaime.
 — Te contaria, mas por onde começo? Enquanto eu construía aríetes e torres de assalto, Ryman se dedicava a construir um patíbulo. Todos os dias, ao amanhecer, pega Edmure Tully, põe uma corda no pescoço e ameaça executá-lo se o castelo não se render. O Peixe Negro não faz nem caso disso, assim que, ao anoitecer voltam a levar Lorde Edmure. Sua esposa está grávida, sabia?
 Não haviam lhe contado isso.
 — Se deitou com ela depois do Casamento Vermelho?
 — Estava na cama com ela durante o Casamento Vermelho. Roslin era uma garota muito bonita, sem cara de doninha, e por incrível que lhe pareça, ela gosta de Edmure. Perwyn me disse que reza para que seja uma menina.
 Jaime meditou um instante sobre aquilo.
 — Quando nascer o filho de Edmure, Lorde Walder não precisará mais dele.
 — Acho o mesmo. Nosso tio político, Emm... Perdão, Lorde Emmom, quer que Edmure seja logo enforcado. Que haja um Tully senhor de Correrrio o preocupa tanto como a perspectiva de que nasça outro. Não passa um dia sem que me suplique que obrigue Sor Ryman a enforcar o Tully, seja como seja. Enquanto isso tem Lorde Gawen Westerling me puxando a outra manga. Peixe Negro tem em seu castelo sua senhora esposa e três de seus fedelhos. Sua senhoria tem medo de que o Tully os mate se os Frey enforcam Edmure. Uma dessas fedelhas é a rainha do Jovem Lobo.
 Jaime pensou já ter visto Jeyne Westerling em alguma ocasião, mas não se lembrava de seu aspecto.
 Deve ser muito formosa para valer um reino.
 — Sor Brynden não matará nenhum menino. — assegurou a seu primo. — Não é um peixe tão negro. — Começava a entender porque
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Correrrio não havia caído ainda. — Diga-me como tem conduzido tudo, primo.
 — Temos o castelo cercado. Sor Ryman e os Frey estão ao norte de Pedra Caída. Ao sul do Ramo Vermelho se encontra Lorde Emmom, junto com Sor Forely Prester e o que resta de seu antigo exército, além dos senhores dos rios que se uniram conosco depois do Casamento Vermelho. Sempre estão de mal humor. Valem para se enfiar nas suas tendas e um pouco mais. Meu acampamento está entre os rios, em frente ao fosso e na porta principal de Correrrio. Também montamos uma barreira flutuante, que cruza o Ramo Vermelho, rio abaixo. Manfryd Yew e Raynard Ruttiger estão coordenando a defesa, logo ninguém poderá escapar por barco. Também lhes dei redes para pescar. Assim nos abasteceremos.
 — Podemos render o castelo por fome?
 Sor Daven negou com a cabeça.
 — O Peixe Negro tirou de Correrrio todas as bocas inúteis e limpou as provisões. Tem reservas suficientes para manter seus homens e seus cavalos durante dois anos.
 — E como nós estamos de provisões?
 — Enquanto houver peixes nos rios, não morreremos de fome, ainda que não sei como vamos dar de comer aos cavalos. Os Frey baixam comida e feno desde as Gêmeas, mas Sor Ryman afirma que não tem o suficiente para compartilhar, assim que teremos que buscar comida por nossa conta. A metade dos homens que enviei em busca de alimentos não voltou. Uns têm desertado; outros temos encontrados pendurados em árvores como se fossem frutas maduras.
 — No caminho até aqui tropeçamos com alguns. — assentiu Jaime.
 Os exploradores de Adam Marbrand os haviam encontrados pendurados em uma macieira silvestre, com os rostos enegrecidos. Os assassinos haviam despido os cadáveres e haviam metido uma maçã entre os dentes de cada um. Nenhum apresentava feridas; era evidente que se haviam rendido. Javali se enfureceu, e jurou uma vingança sangrenta a quem havia atado guerreiros para que morressem como porcos.
 — Talvez fossem os bandidos. — comentou Sor Daven após escutar Jaime. — Ou não. De vez em quando aparecem por aqui grupos de nortenhos. E talvez esse senhores do Tridente tenham dobrado os joelhos, mas me parece que no fundo seguem sendo um pouco... lobos.
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 Jaime observou seus dois escudeiros mais jovens, que rondavam em torno das fogueiras e fingiam que não estavam escutando. Lewys Piper e Garrett Peck eram filhos dos senhores dos rios. Gostava deles, e não gostaria nada ter que entregá-los a Sor Illyn.
 — As cordas são típicas dos Dondarrion.
 — O senhor do relâmpago não é o único que sabe fazer um nó. Não comecemos com Lorde Berric. Está aqui, está ali, em todas as partes, mas quando se enviam homens em sua procura, ele se evapora como a névoa. Os senhores dos rios o estão ajudando, tenho certeza disso. Malditos sejam. Um dia dizem que está morto, e no seguinte, que não pode morrer. — Sor Daven deixou o copo de vinho. — De noite, meus exploradores avistam fogueiras em lugares elevados. Creio que são sinais, como se estivessem nos vigiando. Também há fogueiras nos povoados. Algum deus novo...
 Não, um deus antigo.
 — Thoros, o sacerdote myriense, aquele gordo que bebia às vezes com Robert, está com Dondarrion. — Sua mão dourada estava em cima da mesa. Jaime a mexeu e observou o resplendor do ouro à escassa luz das fogueiras. — Nos encarregaremos de Dondarrion se precisar, mas primeiro trataremos do Peixe Negro. Tem que saber que não há esperança. Já tentou fazer um trato com ele?
 — Sor Ryman tentou. Cavalgou até as portas do castelo meio bêbado, gritando insultos e ameaças. O Peixe Negro apareceu entre as ameias somente o tempo necessário para lhe dizer que não pensava em desperdiçar palavras com um ser tão deprimente. Logo disparou um flecha na garupa da sua montaria, que se empinou, e o Frey caiu na lama. Eu ri tanto que quase mijei nas calças. Se fosse eu, teria cravado a flecha na sua boca mentirosa.
 — Então eu colocarei o elmo quando for tratar com eles. — replicou Jaime com um ligeiro sorriso. — Tenho intenção de lhe oferecer umas condições muito generosas.
 Se conseguisse por fim ao cerco sem derramamento de sangue, não se poderia dizer que tivesse levantado armas contra a casa Tully.
 — Pode tentar, se quiser, meu senhor, mas duvido muito que consigamos alguma coisa conversando. Vamos ter que atacar o castelo.
 Houve tempos, e não tão remotos, em que Jaime havia tomado aquela mesma decisão sem duvidar. Sabia que não podia dispor de dois anos para render o Peixe Negro por fome.
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 — Seja o que for que fizermos, terá que ser depressa. — disse a Sor Daven. — Meu lugar está em Porto Real, com o rei.
 — Claro. — concordou o seu primo. — Compreendo que tua irmã deve precisar de ti. Porque dispensou Sor Kevan? Acreditava que ele seria nomeado Mão.
 — Ele não aceitou.
 Não estava tão cego como eu.
 — Kevan deveria ser o Guardião do Oeste. Ou tu. Não é que eu não agradeça a honra, claro, mas nosso tio tem o dobro da minha idade e tem muito mais experiência de comando. Espero que saiba que eu não pedi este cargo em nenhum momento.
 — Ele sabe.
 — Como está Cersei? Tão bonita como sempre?
 — Radiante. — Vaidosa. — Loira. — Mais falsa que ouro de bobo. Na noite anterior havia sonhado que a surpreendia fodendo com o Rapaz Lua. Ele matava o bobo, e quebrava os dentes da sua irmã com a mão dourada, como havia feito Gregor Clegane com a pobre Pia. Em seus sonhos, Jaime sempre tinha duas mãos; uma era de ouro, mas funcionava como a outra. — Quanto antes terminarmos com o assunto de Correrrio, antes poderei estar ao lado de Cersei. — O que não sabia era o quê faria a seguir.
 Seguiu falando com seu primo durante mais uma hora, até se despedirem. Depois, Jaime pôs a mão de ouro e uma capa marrom para passear entre as tendas.
 A verdade era que gostava daquela vida. Sentia-se mais à vontade no acampamento, entre soldados, que na corte, e seus homens também pareciam cômodos com ele. Junto a uma fogueira de cozinha, três arqueiros lhe ofereceram um pedaço da lebre que haviam caçado. Ao lado de outra, um jovem cavaleiro lhe pediu conselhos sobre a melhor maneira de se defender de uma maça. Mais abaixo, na margem do rio, comentou como duas lavadeiras lutavam nos ombros de um par de soldados. As garotas estavam meio bêbadas e meio nuas; riam e lançavam golpes com capas enroladas enquanto uma dúzia de homens as aplaudiam. Jaime apostou uma estrela de cobre na ruiva que montava Raff, o Querido, e o perdeu quando os dois caíram com estrépito na grama.
 Do outro lado do rio, os lobos uivavam; o vento soprava entre os salgueiros, e fazia com que os ramos se mexessem e sussurrassem. Jaime
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deu com Sor Illyn Payne do lado de fora de sua tenda. Estava afiando a espada com uma amoladeira.
 — Vamos. — disse, e o cavaleiro silencioso se levantou com um tênue sorriso.
 Ele gosta disso, compreendeu. Ele gosta de me humilhar noite após noite. Pode ser que gostasse ainda mais de me matar. Queria acreditar que estava melhorando, mas a melhoria era lenta e tinha um preço elevado. Por baixo da armadura de aço e as amarras de couro e lã, Jaime Lannister era uma tapeçaria de cortes, hematomas e contusões.
 Um sentinela lhes deu passagem quando saiam do acampamento com seus cavalos. Jaime lhe deu uma palmada no ombro com a mão dourada.
 — Siga alerta. Há lobos pelas redondezas.
 Cavalgaram ao largo do Ramo Vermelho até os restos de uma aldeia incendiada que haviam cruzado aquela tarde. Ali aconteceu sua dança noturna, entre pedras enegrecidas e cinzas frias e velhas. Durante um momento, Jaime tomou a iniciativa e se permitiu crer que talvez estivesse recuperando sua antiga habilidade. Talvez aquela noite fosse Payne quem iria dormir dolorido e ensanguentado.
 Foi como se Sor Illyn tivesse lido seus pensamentos. Deteve o último golpe de Jaime, e lançou um contra-ataque que o fez retroceder até o rio, onde caiu contra a grama. Acabou de joelhos, com a espada do cavaleiro silencioso na garganta, enquanto que a sua havia se perdido entre as plantas. À luz da lua, as marcas de varíola no rosto de Payne eram grandes como crateras. Emitiu aquele som abafado que talvez fosse uma gargalhada, e subiu a espada pelo pescoço de Jaime até que a ponta repousou entre os seus lábios. Logo retrocedeu e embainhou o aço.
 Seria melhor que tivesse desafiado Raff, o Querido com uma puta nos ombros, pensou Jaime enquanto sacudia o barro da mão dourada. Uma parte dele tinha gana de arrancar essa inutilidade e atirá-la ao rio. Não servia pra nada, e a mão esquerda tampouco servia pra alguma coisa. Sor Illyn havia voltado com os cavalos, o deixando só para que se pusesse de pé. Pelo menos, ainda tenho duas pernas.
 O último dia de viagem havia sido frio e ventoso. O vento sacudia os ramos das árvores nos bosques sem folhas e inclinava os pés de cana junto aos rios ao longo do Ramo Vermelho. Apesar da capa de inverno de lã da Guarda Real, Jaime sentia os dentes batendo contra o vento enquanto cavalgava com seu primo Daven. A tarde estava muito avançada quando
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avistaram Correrrio, que sobressaia no estreito cabo onde Pedregoso confluía com Ramo Vermelho. O castelo dos Tully parecia um grande navio de pedra cuja proa apontava rio abaixo. A luz tingia de vermelho e dourado os muros de arenito, que pareciam mais altos e grossos do que Jaime recordava.
 Vai ser um osso duro de roer, pensou sombrio. Se o Peixe Negro não ouvia a voz da razão, teria que romper o juramento que havia feito a Catelyn Stark; o que havia feito ao seu rei tinha prioridade.
 A barreira do rio e os três grandes acampamentos de cerco eram exatamente como lhe havia descrito seu primo. O de Sor Ryman Frey, ao norte do Pedregoso, era o maior, e também o mais desordenado. Um enorme andaime cinzento, alto como um gigante, se alçava por cima das tendas. Nele divisou uma figura solitária com uma corda em torno do pescoço.
 Edmure Tully. Sentiu uma pontada de compaixão. É uma crueldade mantê-lo ali, de pé, dia após dia, com a corda no pescoço. Seria melhor se cortassem a sua cabeça e acabassem com isso de uma vez.
 Por trás do andaime se estendiam tendas e fogueiras em um emaranhado desorganizado. Os Frey menores e seus cavaleiros haviam ocupado seus pavilhões rio acima, logo após as trincheiras de latrinas; rio abaixo haviam cabanas de barro, caravanas e carros de bois.
 — Sor Ryman não quer que seus garotos se aborreçam, assim que lhes proporciona putas, rinhas de galos e caça de javalis. — lhe contou Daven. — E tem até um cantor. Nossa tia trouxe Wat Sorriso Branco de Lannisporto, acredita nisso? Assim que Ryman também tinha que ter um cantor para não ser menos. Que tal se fizermos uma armadilha no rio e afogarmos todos, primo?
 Jaime observou os arqueiros que se moviam por trás das ameias nas muralhas do castelo. Por cima delas ondulavam os estandartes da casa Tully, com a truta de prata desafiante sobre um campo de goles azul. Mas na torre mais alta se via uma bandeira diferente, grande, branca, com o lobo gigante dos Stark.
 — A primeira vez que vi Correrrio, era um escudeiro mais verde que a grama do verão. — disse Jaime a seu primo. — O velho Summer Crakehall me enviou para entregar uma mensagem; insistia que não se podia confiar num corvo. Lorde Hoster me reteve uma semana enquanto meditava sobre a resposta. Me sentou junto com sua filha Lysa em todas as refeições.
 — Não me estranha que vestiu o branco. Eu teria feito o mesmo.
 — Homem, Lysa não estava tão mal.
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 Na realidade, era uma jovem muito bonita, delicada, com lindos olhos e larga cabeleira castanha.
 Mas era muito tímida. Ficava em silêncio a maior parte do tempo e tinha ataques de riso tontos; não tinha nada do fogo de Cersei. Sua irmã maior parecia mais interessante, mas Catelyn estava prometida a um nortenho, o herdeiro de Winterfell. De todos os modos, naquela idade não havia nenhuma garota que interessasse a Jaime tanto como o famoso irmão de Hoster, que havia ganhado fama combatendo aos Nove Pequenos Reis nos Degraus. Quando estava sentado na mesa, fazia caso omisso da pobre Lysa enquanto pressionava Brynden Tully para que lhe contasse anedotas de Maelys, o Monstruoso e o Príncipe de Ébano. Naquela época, Sor Brynden era mais jovem que eu agora, pensou Jaime. E eu era mais jovem que Peck.
 A passagem mais próxima para cruzar o Ramo Vermelho estava corrente acima, mais pra lá do castelo. Para chegar ao acampamento de Sor Devan tiveram que atravessar a cavalo o de Emmom Frey, e passar pelos pavilhões dos senhores dos rios que haviam dobrado o joelho para voltar à paz do rei. Jaime se fixou nos estandartes de Lychester, Vance, Roote e Godbrook, nas bolotas da Casa Smallford e na donzela bailando de Lorde Piper, mas os que lhe deram o que pensar foram os que não viu. A águia prateada dos Mallister não estava por ali, nem tampouco o cavalo vermelho dos Bracken, o salgueiro dos Ryger nem as serpentes entrelaçadas dos Paege. Todos eles haviam renovado sua lealdade ao Trono de Ferro, mas não se haviam unido ao cerco. Jaime sabia que os Bracken estavam lutando contra os Blackwood: isso explicava sua ausência, mas os demais...
 Nossos novos amigos não são tão amigos. Sua lealdade é superficial. Tinha que tomar Correrrio o quanto antes. Quanto mais durasse o cerco, mais Casas procurariam uma maneira de deixa-los, como Tytos Blackwood.
 Na passagem, Sor Kennos de Kayce fez soar o Corno de Herrock.
 Isso deveria atrair o Peixe Negro até as ameias. Sor Hugo e Sor Dermont guiaram Jaime até o outro lado do rio; os cascos de seus cavalos chapinharam nas lodosas águas avermelhadas enquanto estandarte branco da Guarda Real, e o leão e o veado de Tommen, ondulavam ao vento. O resto da coluna os seguia de perto.
 O acampamento dos Lannister retumbava com o som dos martelos contra a madeira ali onde se alçava uma nova torre de assalto. Já havia outras duas terminadas, semicobertas com couro de cavalo sem curtir. Entre elas viu um aríete, um tronco de árvore com a ponta endurecida ao fogo, pendurado com cordas em uma estrutura de madeira.
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 Parece que meu primo não tem estado ocioso.
 — Meu senhor, onde quer que monte a sua tenda? — lhe perguntou Peck.
 — Ali, naquele aclive. — Apontou com a mão de ouro, ainda que não fosse o instrumento ideal para aquela tarefa. — As provisões e o equipamento aqui; os cavalos, do outro lado. Utilizaremos as latrinas, que tão amavelmente escavou o meu primo. Sor Addam, inspecione o nosso perímetro para ver se encontra algum ponto fraco. — Jaime não previa nenhum ataque, mas tampouco havia previsto o que aconteceu no Bosque dos Murmúrios.
 — Chamo as doninhas para uma reunião do conselho de guerra? — perguntou Daven.
 — Antes quero falar com o Peixe Negro. — Jaime fez um sinal a Jon Bettley, o careca, para que se aproximasse. — Busque um estandarte de paz e leve uma mensagem ao castelo. Informe a Sor Brynden Tully que quero falar com ele ao amanhecer. Me encontrarei na borda do fosso e nos reuniremos em sua ponte levadiça.
 Peck o olhou, alarmado.
 — Mas, meu senhor, os arqueiros podem...
 — Não o farão. — Jaime desmontou. — Monte a tenda e ponha meus estandartes.
 E vejamos quem vem correndo e a que velocidade.
 Não teve que esperar muito. Pia estava muito ocupada acendendo um braseiro. Peck foi ajudá-la. Nas últimas noites, Jaime ia dormir com o som de fundo dos jovens que fodiam em um canto da tenda.
  — Eh, já está aqui! — retumbou a voz de sua tia. Seu corpanzil ocupava todo o limiar, enquanto seu esposo Frey observava atrás dela. — Já era hora. Venha! Um abraço para a gorda da tua tia!
 Estendeu-lhe os braços, com o que não houve outro remédio que não abraça-la.
 Quando era jovem, Genna Lannister tinha curvas generosas, sempre ameaçando estourar o sutiã, mas com o tempo, havia se tornado quadrada. Tinha o rosto largo e suave; seu pescoço era uma grossa coluna rosada; seu busto era imenso. Com sua carne havia bastado para fazer dois homens do tamanho de seu marido. Jaime esperou obediente sua tia lhe beliscar a orelha. Sempre tinha a orelha beliscada por ela desde que a conheceu, mas
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aquele dia ela se conteve, e só lhe plantou um beijo úmido e brando em cada bochecha.
 — Sinto muito por sua perda.
 — Agora tenho uma mão nova, de ouro. — Mostrou a ela.
 — Muito bonita. Também vai mandar fazer um pai de ouro? — A voz de Senhora Genna era áspera. — Me referia à perda de Tywyn.
 — Um homem como Lorde Tywyn Lannister só aparece a cada mil anos. — Declarou seu esposo. Emmom Frey era um homenzinho irritável de mãos nervosas. Pesava pouco mais de setenta e cinco quilos... e isso, molhado, e com a cota de malha. Era um pé de cana vestido de lã e sem sinal de barba, um defeito que o queixo proeminente tornava ainda mais absurdo. Havia perdido a metade do cabelo antes de completar os trinta. Àquelas alturas já tinha uns sessenta, e só lhe restavam algumas mechas brancas.
 — Ultimamente nos chegam notícias muito estranhas. — disse Senhora Genna depois que Jaime dispensou Pia e seus escudeiros. — Já não sabemos no que acreditar. É verdade que Tyrion assassinou Tywyn? Ou é alguma calúnia que tua irmã está divulgando?
 — É verdade.
 O peso da mão de ouro começava a se tornar cansativo. Desamarrou meio desajeitado as correias que a mantinham ligadas ao coto.
 — Um filho que levanta a mão contra o seu pai. — suspirou Sor Emmom. — É monstruoso. Correm tempos amargos em Westeros. Com o fim de Lorde Tywyn, temo por todos nós.
 — Também temia por todos nós quando ele ainda vivia. — Genna descarregou o peso de suas amplas nádegas em um banco, que rangeu de maneira alarmante sob o seu peso. — Conte-nos sobre nosso filho Cleos, sobrinho; diga—nos como morreu.
 Jaime desamarrou a última correia e deixou a mão a um lado.
 — Uns bandidos nos fizeram uma emboscada. Sor Cleos os pôs em fuga, mas isso lhe custou a vida. — A mentira saiu naturalmente. Viu que lhes havia agradado.
 — O garoto tinha muito valor, eu lhe disse. Levava isso no sangue. — A Sor Emmom aparecia uma saliva rosada entre os lábios quando falava, cortesia da folhamarga a que era tão aficionado.
 — Seus ossos deveriam repousar sob Rochedo Casterly, na Sala dos Heróis. — declarou Senhora Genna. — Onde foi enterrado?
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 Em nenhum lugar. Os Saltimbancos Sangrentos despiram seu cadáver e o deixaram para que os corvos carniceiros fizessem um festim.
 — Junto a um arroio. — mentiu. — Quando terminar esta guerra, irei buscar o lugar exato para levá-lo para casa. — Ossos eram ossos; não havia nada mais fácil de conseguir naqueles tempos.
 — Esta guerra... — Lorde Emmom tossiu; o pomo da sua garganta se moveu para cima e para baixo. — Você já deve ter visto as máquinas de assalto. Aríetes, trabuques, torres... Não servirão de nada, Jaime. Daven quer destroçar minhas muralhas e derrubar minhas portas. Fala de azeite fervendo, de tocar fogo no castelo. No meu castelo! — Enfiou a mão em uma manga, sacou um pergaminho e o balançou diante do rosto de Jaime. — Tenho o decreto. Firmado pelo rei, por Tommen, olhe, o selo real, o veado e o leão. Sou o legítimo senhor de Correrrio; não quero que o reduzam a um monte de ruínas chamejantes.
 — Anda, guarda essa porcaria. — espetou sua mulher. — Enquanto o Peixe Negro estiver em Correrrio, esse papel só vale para limpar o teu cu e pouco mais. — Fazia cinquenta anos que havia se unido aos Frey, mas continuava sendo uma Lannister. Uma enorme porção de Lannister. — Jaime te entregará o castelo.
 — Estou seguro. — assentiu Lorde Emmom. — Mostrarei que seu pai acertou ao confiar em mim, Sor Jaime. Serei firme, mas justo com meus novos vassalos. Blackwood, Bracken, Jason Mallister, Vance, Piper... Todos saberão que têm em Emmom Frey um senhor justo. E também meu pai, sim. É o senhor de Cruzaboi, mas eu sou o senhor de Correrrio. Um filho deve obedecer a seu pai sim, mas um vassalo deve obedecer a seu senhor.
 Que os deuses tenham piedade de mim.
 — Não é o seu senhor, sor. Leia bem o pergaminho. Está sendo outorgado ao senhor Correrrio, com todas as suas terras e rendas, mas nada mais. Petyr Baelish é o Senhor Supremo do Tridente. Correrrio está submetido ao governo de Harrenhall.
 Lorde Emmom não achou graça nisso.
 — Harrenhall não é mais do que um monte de ruínas malditas. — protestou. — E quanto a Baelish... Por favor, é somente um conta-moedas, não um senhor. Sua linhagem...
 — Se você tiver alguma queixa, vá a Porto Real e a exponha a minha querida irmã. — Cersei o comeria vivo e limparia os dentes com os seus ossos.
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 Quer dizer, se não estiver muito ocupada fodendo com Osmund Kettleblack.
 Senhora Genna soltou um resmungo.
 — Não há porque aborrecer Vossa Graça com essas besteiras. Porque não sai e vai tomar um pouco de ar, Emm?
 — Tomar ar?
 — Ou mijar, se quiser. Meu sobrinho e eu queremos tratar de assuntos de família.
 Lorde Emmom corou.
 — Sim, aqui faz calor. Esperarei fora, minha senhora. Sor... — Sua senhoria enrolou o pergaminho e fez uma falsa reverência em direção a Jaime antes de sair da tenda.
 Era difícil não desprezar Emmom Frey. Havia chegado a Rochedo Casterly quando tinha catorze anos para se casar com uma leoa de somente sete. Tyirion dizia sempre que o presente de casamento de Lorde Tywyn havia sido um ventre frouxo.
 Genna também contribuiu. Jaime recordava de mais de um banquete em que Emmom ficava sentado em silêncio, mal-humorado, remexendo a comida com o garfo, enquanto sua esposa fazia brincadeiras obscenas para o cavaleiro que estava sentado a sua esquerda, com a sua conversa em voz baixa, sempre salpicada de gargalhadas. Deu quatro filhos a Frey. Pelo menos diz que são seus. Em Rochedo Casterly, ninguém tinha coragem de insinuar o contrário, e Sor Emmom, menos que ninguém.
 Enquanto o homenzinho saía, sua senhora esposa pôs os olhos em branco.
 — Meu amor e meu senhor. Em que diabos estava pensando seu pai quando o nomeou senhor de Correrrio?
 — Suponho que em seus filhos.
 — Eu também penso neles. Ele será um péssimo senhor. Ty podia fazer melhor, se tivesse a sensatez de aprender comigo, e não com o pai. — Olhou ao redor. — Tem vinho?
 Jaime encontrou uma garrafa e lhe serviu um copo.
 — Que faz aqui, minha senhora? Devia ter ficado em Rochedo Casterly até que terminasse o problema.
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 — Quando soube de sua nomeação, ele tratou de vir imediatamente para reclamar suas posses. — Senhora Genna bebeu um gole e limpou a boca com a manga. — Teu pai devia ter nos dado Darry. Não sei se você se lembrará, mas Cleos estava casado com a filha de um agricultor. Sua sofrida viúva está furiosa porque seus filhos não receberam as terras de seu senhor pai. Minha nora Jeyne é sua tia; é irmã de Maryia.
 — Irmã menor. — lhe recordou Jaime. — E Ty receberá Correrrio, uma recompensa muito maior que Darry.
 — Um presente envenenado. A Casa Darry está extinta pela linha masculina, e a Casa Tully, não. Esse cretino do Sor Ryman põe uma corda no pescoço de Edmure, mas não está disposto a enforca-lo. E a Roslyn Frey lhe está crescendo uma truta na barriga. Meus netos nunca estarão seguros em Correrrio enquanto reste um Tully vivo.
 Jaime sabia que ela não estava equivocada.
 — Se Roslin tiver uma menina...
 — Pode se casar com Ty, sempre que o velho Lorde Walder dê o seu consentimento. Sim, eu já pensei nisso. Mas é igualmente  provável que tenha um menino, e um bebê com pau acabaria com tudo. E se Sor Brynden sobrevive a este cerco, pode ser que resolva reclamar Correrrio para si... ou em nome de Robert Arryn.
 Jaime se recordava do pequeno Robert, em Porto Real, ainda mamando aos quatro anos de idade.
 — Arryn não viverá o suficiente para ter filhos. E para quê serve Correrrio para o senhor do Ninho das Águias?
 — Se um homem tem um cofre de ouro, para quê quer outro? As pessoas são gananciosas. Tywin deveria ter entregue Correrrio para Kevan, e Darry, para Emm. É o que eu teria lhe dito se tivesse me consultado; mas claro, seu pai nunca se preocupou em consultar a ninguém mais que a Kevan. — Deixou escapar um profundo suspiro. — Acredite, compreendo que Kevan quisesse o assentamento mais seguro para seu filho. O conheço muito bem.
 — Pois parece que Kevan e Lancel querem coisas muito diferentes. — Lhe falou sobre a decisão de Lancel de renunciar a sua esposa, suas terras, e sua posição para ir lutar pela Sagrada Fé. — Se ainda quiser Darry, escreva a Cersei e explique seu caso.
 Senhora Genna moveu o copo como se desconsiderasse a ideia.
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 — Não, esse cavalo já não está no estábulo. Emm já meteu na cabeça e no seu pequeno cérebro que governará as terras dos rios. E quanto a Lancel... Isto teríamos que ter visto acontecer. Ao fim e ao cabo, uma vida dedicada a proteger o Septão Supremo não é tão diferente de uma vida dedicada a proteger o rei. Mas Kevan vai ficar furioso, tanto como Tywyn quando soube que você iria vestir o branco. Ao menos a Kevan lhe resta um herdeiro, Martyn. Sempre poderá casá-lo com Ami Portas Abertas para que ocupe o posto de Lancel. Que os Sete tenham piedade de nós. — deixou escapar um suspiro. — Falando dos Sete, porque permite que Cersei deixe a Fé voltar a tomar as armas?
 Jaime encolheu os ombros.
 — Ela deve ter seus motivos.
 — Seus motivos? — Senhora Genna fez um ruído um tanto grosseiro. — Tomara que sejam uns motivos excelentes. Os Espadas e Estrelas foram um problema até para os Targaryen. O próprio Conquistador tratava a fé com cuidado para não ter que enfrentá-los. E quando Aegon morreu e os senhores se alçaram contra seus filhos, as duas ordens estiveram a um passo da rebelião. Contavam com o apoio dos senhores mais devotos e da maior parte do povo. No fim, o rei Maegor teve que oferecer uma recompensa para eles. Se me lembro bem das lições de História, pagava um dragão pela cabeça de cada Filho do Guerreiro que não houvesse se arrependido, e um veado de prata pelo couro cabeludo de cada Clérigo Humilde. Morreram milhares, mas outros tantos seguiram percorrendo o reino, desafiantes, até que o Trono de Ferro decretou a morte de Maegor e o rei Jaehaerys outorgou o perdão a todos que rendessem a espada.
 — Tinha esquecido de tudo isso. — confessou Jaime.
 — E tua irmã também. — bebeu outro gole de vinho. — É verdade que Tywyin sorria em seu caixão?
 — Estava se apodrecendo no seu caixão. Sua boca ficou retorcida.
 — Era só isso? — pareceu entristecida. — Todos diziam que Tywyin nunca havia sorrido, mas sorria quando se casou com sua mãe, e também quando Aerys o nomeou Mão. Ty jurava que também sorriu quando Torre Tarbeck caiu em cima de Senhora Ellyn, aquela raposa intrigante. E sorriu quando você nasceu Jaime, isso eu mesma vi. Cersei e tu, tão rosados, tão perfeitos, idênticos como gotas de água... Bom, exceto entre as pernas. Que pulmões vocês tinham!
 — Ouviu meu rugido. — Jaime sorriu. — Agora você vai me dizer o quanto ele gostava de rir.
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 — Não. Tywyn não confiava no riso. Tinha ouvido muita gente rir de seu avô. — franziu a sobrancelha. — Te garanto que este fraco cerco não lhe teria feito nenhuma graça. Agora que está aqui, como pensa em pôr fim a isso?
 — Negociando com o Peixe Negro.
 — Não te servirá de nada.
 — Tenho intenção de lhe oferecer umas condições muito generosas.
 — Para oferecer condições é preciso que haja confiança. Os Frey assassinaram seus próprios convidados, e tu, bom... Sem intenção de te ofender, meu bem, matou um certo rei que havia jurado proteger.
 — E matarei o Peixe Negro se não se render. — A voz lhe saiu mais brusca do que havia pretendido, mas não estava de humor para que lhe esfregassem na cara o que aconteceu entre ele e Aerys Targaryen.
  — Como? Na base de insultos? — replicou em um tom carregado de desprezo. — Sou somente uma velha gorda Jaime, mas o que tenho entre as orelhas não é queijo. O mesmo se passa a Peixe Negro. Não o dobrarás com ameaças vazias.
 — O que me aconselha?
 Sua tia encolheu os enormes ombros.
 — Emm quer que cortem a cabeça de Edmure. Pode ser que tenha razão, uma vez na vida. As ameaças de execução de Sor Rymen se transformaram em piadas de mau gosto. Tem que mostrar a Sor Brynden que suas ameaças são sérias.
 — A morte de Edmure poderia reforçar a vontade de Sor Brynden de não sair do castelo.
 — Sor Brynden nunca precisou de mais motivos. Sor Hoster Tully poderia ter te falado isso. — Senhora Genna bebeu mais um copo de vinho. — Enfim, não quero que ache que estou te dizendo como deve conduzir uma guerra. Sei qual é o meu lugar... Diferentemente de tua irmã. É verdade que Cersei mandou atear fogo à Fortaleza Vermelha?
 — Só à Torre da Mão.
 Sua tia pôs os olhos em branco.
 — Teria feito melhor em deixar a Torre tranquila e queimar a Mão. Harys Swift? Por favor! Se houve alguma vez um homem que merecesse seu brasão, esse foi Sor Harys. E Gyles Rosby, que os Sete nos amparem, achava
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que estava morto fazia anos! E Merryweather... Para você saber, seu pai chamava teu avô de Risonho. Tywyin dizia que Merryweather só servia para rir quando o rei falava algo supostamente engraçado. Creio recordar que sua senhoria ganhou o exílio a golpe de risadas. Cersei também meteu um bastardo no conselho, e um inútil Kettleblack na Guarda Real. Agora, a Fé está se rearmando, e os bravosianos se dedicam a reclamar o pagamento dos empréstimos por todo Westeros. Nada disso haveria acontecido se ela tivesse a sensatez de nomear Mão o seu tio.
 — Sor Kevan rechaçou a nomeação.
 — Isso ele nos disse. O que não disse é o porque. Houve muitas coisas que não disse. Que não quis dizer. — Senhora Genna fez uma careta. — Kevan sempre fez o que lhe foi pedido. Não é próprio dele dar as costas ao seu dever. Está acontecendo algo, sinto isso.
 — Disse que estava cansado.
 Ele sabe, lhe havia dito Cersei diante do cadáver de seu pai. Sabe sobre nós.
 — Cansado? — sua tia apertou os lábios. — Enfim, tem direito a estar. Deve ter sido duro passar toda a vida à sombra de Tywyin. Foi duro para todos os meus irmãos. A sombra que projetava Tywyin era grande e negra; todos tinham que se debater para encontrar um pouco de sol. Tygett tratou de se emancipar, mas nunca pôde competir com seu pai, e isso lhe tornou amargo com o passar dos anos. Geron sempre estava tentando ser engraçado. É melhor rir do jogo que jogar e perder. Mas Kevan se deu conta em seguida de como iam acabar as coisas, assim que conquistou um lugar ao lado de teu pai.
 — E tu? — perguntou Jaime.
 — Não era um jogo para garotas. Eu era a princesinha adorada de meu pai, e também a de Tywyn, até que o decepcionei. Nunca lidou bem com as decepções. — se pôs em pé. — Já te disse tudo o que tinha que dizer; não te roubarei mais tempo. Faz o que acha que faria Tywyn.
 — Ele queria isso? — se ouviu perguntar Jaime.
 Sua tia lhe lançou um olhar de estranheza.
 — Tinha sete anos quando Walder Frey convenceu meu senhor pai para que entregasse minha mão a Emm. A seu segundo filho, nem sequer a seu herdeiro. Meu pai era o terceiro filho, e os meninos buscam a aprovação dos adultos. Frey viu este ponto fraco, e meu pai aceitou sem outro motivo que não satisfazê-lo. Meu compromisso se anunciou em um banquete ao que
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assistia metade do Oeste. Ellyn Tarbeck começou a rir, e o Leão Vermelho saiu do salão cheio de fúria. Os demais permaneceram sentados e em silêncio. O único que se atreveu a se opor ao compromisso foi Tywyn. Um garoto de dez anos. Nosso pai ficou branco como leite de égua, e Walder Frey tremia. — sorriu. — Depois daquilo, como ia querê-lo? Não significava que aprovava tudo o que fazia, nem que gostasse muito de estar com o homem em quem se converteu... Mas toda garotinha necessita de um irmão maior que a proteja. Tywyn era grande até quando era pequeno. — deixou escapar um suspiro — Quem nos protegerá agora?
 Jaime lhe deu um beijo na bochecha.
 — Tywyn deixou um filho.
 — Certo. E isso é o que me dá mais medo.
 Era um comentário muito estranho.
 — Porque te dá medo?
 — Jaime. — disse enquanto lhe beliscava a orelha. — Meu bem, te conheço desde que era um bebê que mamava no peito de Joanna. Sorri como Gerion e luta como Tyg, e até tem algo de Kevan; do contrário não levaria essa capa... Mas o verdadeiro filho de Tywyn é Tyrion, não você. Eu disse isso a seu pai uma vez, e não voltou a me dirigir a palavra durante quase um ano. Às vezes, os homens podem chegar a ser tão estúpidos... Até os que aparecem uma vez a cada mil anos.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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GATA DOS CANAIS GATA DOS CANAIS GATA DOS CANAIS GATA DOS CANAIS  
 
 
la acordou antes do sol nascer, em uma salinha pouco abaixo do beiral que ela dividia com as filhas de Brusco. 
Cat era sempre a primeira a acordar. Estava morno e confortável debaixo dos cobertores com Talea e Brea. Ela podia ouvir os suaves sons de suas respirações. Quando ela se espreguiçou, sentando-se e atrapalhando-se entre seus chinelos, Brea murmurou uma queixa sonolenta e mudou de posição, virando-se. O frio fora das paredes de pedra cinzenta deu a Cat arrepios.  Ela se vestiu rapidamente no escuro. Enquanto ela deslizava sua túnica sobre sua cabeça, Talea abriu seus olhos e a chamou:
— Cat, seja gentil e traga minhas roupas para mim. — Ela era uma garota desajeitada, toda pele, ossos e cotovelos, sempre reclamando que estava com frio. 
 Cat buscou suas roupas para ela, e Talea se contorceu para dentro delas ainda debaixo dos cobertores. Juntas, elas puxaram a irmã mais velha da cama, enquanto Brea murmurava sonolentas ameaças. 
 No momento em que as três desceram a escada do quarto sob o beiral, Brusco e seus filhos estavam fora no barco em um pequeno canal atrás da casa. Brusco rosnou para as meninas se apressarem, como fazia todas as manhãs. Seus filhos ajudaram Talea e Brea a subirem no barco. Era tarefa de Cat desatá-los a partir do empilhamento, atirar a corda para Brea e empurrar o barco para longe do cais com uma bota. Os filhos de Brusco inclinaram-se em seus pólos.  Cat correu e pulou sobre a crescente lacuna entre o cais e o convés.
 Depois disso, ela não tinha mais nada pra fazer além de sentar-se e bocejar durante muito tempo, enquanto Brusco e seus filhos empurrava-os através da escuridão da madrugada, passando por uma confusão de pequenos cais. O dia parecia ser raro, límpido, claro e brilhante. Bravos só tinha três tipos de clima, nevoeiro era ruim, chuva era pior, e chuva gelada era ainda pior. Mas, de vez em quando vinha um amanhecer em que a manhã surgia rosa e azul, e o ar era afiado e salgado. Estes eram os dias que Cat mais amava.
 Quando chegaram à hidrovia, uma ampla linha reta que era o Longo Canal, eles se voltaram para o sul, para o mercado de peixes. Cat sentou com as pernas cruzadas, lutando contra um bocejo e tentando lembra-se de detalhes do seu sonho. Eu sonhei que eu era um lobo outra vez. Ela podia se lembrar do melhor de todos os cheiros: as árvores e a terra, seus irmãos, os
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aromas dos cavalos, veados e homens, cada um diferente do outro, e o cheiro acre e forte do medo, sempre o mesmo. Às vezes, os sonhos de lobo eram tão vívidos que ela podia ouvir seus irmãos uivando mesmo quando acordava, e uma vez, Brea alegou que ela estava rosnando em seu sono, enquanto se debatia debaixo das cobertas. Ela pensou que fosse uma estúpida mentira até Talea dizer isso também.
 Eu não deveria sonhar sonho de lobos, a garota disse a si mesma. Eu sou uma gata agora, não uma loba. Eu sou a gata dos canais. Os sonhos de lobo pertenciam a Arya da Casa Stark. Por mais que tentasse, porém, ela não conseguia livra-se de Arya. Não fazia diferença se ela dormia debaixo do templo ou em uma salinha pouco abaixo do beiral com as filhas de Brusco, os sonhos de lobo ainda a assombrava pela noite... e algumas vezes, outros sonhos também. Os sonhos de lobos eram os bons. Em seus sonhos de lobo ela era rápida e forte, correndo atrás de sua presa com sua matilha em seus calcanhares. Era o outro sonho que ela odiava. Aquele em que ela tinha dois pés ao invés de quatro. Neste ela estava sempre à procura de sua mãe, tropeçando por uma terra devastada de fogo, lama e sangue. Estava sempre chovendo no sonho, e ela podia ouvir sua mãe gritando, mas um monstro com a cabeça de um cão não a deixava ir salvá-la. Nesse sonho ela estava sempre chorando, como uma garotinha assustada. Gatos nunca choram, ela disse a si mesma, não mais do que os lobos. É somente um sonho estúpido.
 O Longo Canal levou o barco de Brusco para baixo das cúpulas de cobre verde do Palácio da Verdade e das torres altas e quadradas da Prestayns e Antaryons antes de passar sob os imensos arcos cinza do rio Águadoce, para o bairro conhecido como Vila Siltosa, onde os prédios eram menores e menos grandiosos. No final do dia o canal seria sufocado com barcos e barcaças serpenteantes, mas agora, na escuridão da madrugada, eles tinham a hidrovia só para si mesmos. Brusco gostava de chegar ao mercado de peixes do mesmo modo que o Titã rugia para anunciar a chegada do sol. O som ressoava por toda a lagoa, fraco com a distância, mas o suficiente para acordar a cidade adormecida.
 No momento em que Brusco e seus filhos chegaram ao mercado de peixes, este estava cheio de vendedores e esposas de bacalhau, homensostras, escavadores de moluscos, mordomos, cozinheiros, pequenas esposas, e marinheiros das cozinhas, todos discutindo em voz alta uns com os outros, como eles inspecionaram na manhã de apreensão.  Brusco andava de barco em barco, olhando para todos os mariscos, e de vez em quando tocando um com a bengala.
 — Este aqui — ele dizia. — Sim — tap-tap. — Este aqui — tap-tap. — Não, este não, aqui! — Tap. 
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 Ele não era muito de falar, Talea dizia que seu pai era tão relutante com suas palavras quanto com suas moedas. 
 Ostras, mariscos, caranguejos, mexilhões, ameixas, às vezes camarões... Brusco comprava tudo isso, dependendo do que parecia melhor no dia. Era para eles levarem de volta às caixas e barris para o barco. Brusco tinha um problema nas costas, e não podia levantar nada mais pesado do que uma boa caneca de cerveja marrom. Cat sempre fedia a peixe e água salgada quando voltavam para casa novamente. Ela tinha crescido tão acostumada ao cheiro que nem sequer sentia mais. Cat não se importava com o trabalho.  Quando seus músculos doíam de tanto carregar, ou suas costas ardiam pelo peso de um barril, dizia a si mesma que estava ficando mais forte.
 Uma vez que todas as barricas foram carregadas, Brusco empurrouos para fora outra vez e os seus filhos os levaram de volta ao Longo Canal. Brea e Talea se sentaram na frente do barco cochichando uma para a outra. Cat sabia que elas estavam falando sobre o garoto de Brea, aquele que ela havia subido em cima do telhado para conhecer, depois que seu pai estava dormindo.
 — Aprenda três novas coisas antes de voltar a nós. — o homem bondoso havia mandado a Cat, antes de mandá-la para fora, para a cidade. Ela sempre aprendia. Às vezes eram nada mais do que três novas palavras da língua bravosiana.  Às vezes, ela trazia de volta contos de marinheiros, de acontecimentos estranhos e maravilhosos do amplo e molhado mundo além das ilhas de Bravos, das guerras, das chuvas de sapos e inundações de dragões. Às vezes, ela aprendia três novas piadas ou três novos enigmas, ou truques de um comércio ou de outro. E, de vez enquanto, ela aprendia um novo segredo. 
Bravos era uma cidade feita de segredos, uma cidade de nevoeiros, máscaras e sussurros. Sua própria existência havia sido um segredo durante um século, a menina tinha aprendido; sua localização havia sido escondida por três vezes esse tempo.
— As Nove Cidades Livres são filhas do que foi Valyria — o homem bondoso lhe ensinara. — Mas Bravos é um filho bastardo que fugiu de casa. Somos um povo mestiço, filhos de escravos, prostitutas e ladrões. Nossos antepassados vieram de meia centena de terras para esse lugar de refúgio, para escaparem dos senhores dragões que os escravizaram. Meia centena de deuses vieram com eles, mas há um só deus que eles compartilham em comum.
— Aquele de Muitas Faces.
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— E muitos nomes — o homem bondoso tinha dito. Em Qohor ele é o Bode Preto, em Yi Ti O Leão da Noite, em Westeros, o Estranho. Todos os homens devem se curvar a ele no final, não importa se eles servem os Sete, ou o Senhor da Luz, a Mãe Lua, o Deus Afogado ou o Grande Pastor. Todos os tipos de homens pertencem a ele… Outra coisa em algum lugar do mundo seria algum povo que viveu para sempre. Você já viu algum povo que viveu para sempre?
— Não — ela deveria responder. — Todo homem deve morrer. 
Cat sempre encontrava o homem bondoso esperando por ela quando ela voltava rastejando para o templo da colina em noite de lua negra.
— O que você sabe que você não sabia quando nos deixou? — Ele sempre perguntava a ela 
— Eu sei o que o Cego Beqqo coloca no molho quente e o que ele usa em suas ostras — ela dizia. — Eu sei que os atores na Lanterna Azul vão fazer ‘O Senhor da Triste Figura’, e os atores dos navios pretendem responder com os ‘Os Sete Remadores Embriagados’. Eu sei que o vendedor de livros Lotho Lornel dorme na casa do Capitão Comerciante Moredo Prestayn sempre que o honorável capitão comerciante está longe em viagem, e vai embora sempre que Vixen volta para casa.
— É bom saber essas coisas. E quem é você? 
— Ninguém.
— Você mente. Você é a gata dos canais, eu conheço você bem. Vá e durma criança. Amanhã você irá servir. 
— Todo homem deve servir.  — E assim ela fazia três a cada trinta dias. Quando a lua era negra, ela era ninguém, uma serva do deus de Muitas Faces em vestes branca e preta. Ela caminhara ao lado do homem bondoso entre a escuridão perfumada, carregando sua lanterna de ferro. Lavava os mortos, passava suas roupas, e contava suas moedas. Alguns dias, ela ainda ajudava Umma a cozinhar, cortar grandes cogumelos e desossar peixes. Mas somente quando a lua estivesse negra. Nos outros dias ela era uma garota órfã em um par de botas muito grandes para seus pés e uma capa marrom com bainha esfarrapada, gritando “mexilhões, berbigões e amêijoas” enquanto ela passava com seu carrinho de mão com rodas através do porto de Ragman.
A Lua deveria ser negra esta noite, ela sabia; na última noite, havia sido nada mais do que uma fatia. O que você sabe que você não sabia quando você nos deixou? O homem bondoso perguntaria assim que a visse. Eu sei que a filha de Brusco, Brea conheceu um garoto no telhado quando
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seu pai estava dormindo, ela pensou. Brea deixou que ele a tocasse, Talea disse, mesmo pensando que ele era somente um rato de telhado e todos os ratos de telhados supostamente são ladrões. Isso é apenas uma coisa, ela pensou. Cat precisaria de mais duas. Ela não estava preocupada. . Lá havia sempre novas coisas para aprender, perto dos navios.
Quando eles voltaram para a casa, Cat ajudou os filhos de Brusco a descarregarem a canoa. Brusco e suas filhas dividiram o marisco em três carrinhos de mão, organizando-os em camadas forradas de algas.
— Volte quando tudo for vendido — Brusco disse as garotas, assim como fazia todas as manhãs, e eles se agrupavam para vender a captura. Brea rodaria com seu carrinho de mão para o Porto Roxo, para vender para os marinheiros bravosianos cujos navios estavam ancorados ali. Talea tentaria os becos rodados do Tanque da Lua, ou vender pelos templos na Ilha dos Deuses. Cat iria para o Porto de Ragman, como ela fazia nove dias a cada dez. 
Somente aos bravosianos era permitido usar o Porto Roxo, a Cidade Afogada e o Palácio do Senhor do Mar; navios das cidades irmãs e do resto do mundo tinham que usar o Porto de Ragman. Pior, áspero, e mais sujo porto do que o Roxo. Também era mais ruidoso, com marinheiros e comerciantes de meia centena de terras lotando seus cais e becos, misturando-se com aqueles que serviam e predavam sobre eles. Cat gostava disso mais do que qualquer lugar em Bravos. Ela gostava dos irritantes e estranhos cheiros, e ver quais navios haviam chegados dentro da maré da noite e quais navios haviam partido. Ela gostava dos marinheiros também, o violento de Tyrochi com suas vozes em franca expansão e bigodes tingidos; O Lyseno de cabelos louros, tentando mesquinhamente abaixar seus preços; os atarracados e peludos marinheiros do Porto de Ibben, rosnando baixo em vozes roucas. Seus favoritos eram os das Ilhas do Verão, com suas peles tão lisas e escuras como teca.  Eles vestiam mantos de penas vermelhas, verdes e amarelas, e os altos mastros e velas brancas de seus navios de cisne eram magníficos. 
E às vezes, havia homens de Westeros também, remadores e marinheiros das naus fora de Vilavelha, cozinhas comerciais fora de Valdocaso, Porto Real e Vila Gaivota, carregadas com vinhos da Árvore. Cat conhecia as palavras mexilhões, berbigões e amêijoas em bravosiano, mas ao longo do Porto Ragman, ela gritou suas mercadorias na língua do comercio, a linguagem dos cais, docas e tavernas de marinheiros, uma mistura grosseira de palavras e frases em uma dúzia de idiomas, acompanhado de sinais e gesto das mãos, a maioria deles insultando. Estes eram os que Cat
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mais gostava. Qualquer homem que a incomodava era para ver o figo, ou ouvir a si mesmo sendo descrito como pizzle, burro ou boceta de camelo.
— Talvez eu nunca visse um camelo — ela lhes dizia — mas eu reconheço a boceta de um camelo quando eu sinto o cheiro de uma.
De vez em quanto ela fazia alguém ficar com raiva, mas quando isso acontecia, ele tinha sua faca na mão. Ela a mantinha muito afiada, e sabia como usar também. Vermelho Roggo lhe mostrou uma tarde em Porto Feliz, enquanto ele esperava Lanna vir. Ele ensinou-lhe como escondê-la na manga e deslizá-la para fora quando precisasse, e como cortar uma bolsa de modo tão suave e rápido que todas as moedas cairiam antes que seu dono desse por falta delas. Isso era bom de saber, até mesmo o homem bondoso concordou; principalmente à noite, quando os bravosianos e ratos do telhado estavam para fora. Cat havia feito amigos ao longo do cais; carregadores e cantores, fabricantes de cordas e vendedores de velas, taverneiros, cervejeiros, padeiros, mendigos e prostitutas. Eles compraram amêijoas e berbigões dela, disseram contos verdadeiros de Bravos e contaram mentiras sobre suas vidas, e riam do jeito que ela falava ao tentar falar o bravosiano.  
Ela nunca deixou que isso se tornasse um problema. Ao invés disso ela mostrou todos os figos, e lhes disseram que eram bocetas de camelo, o que os fez rugirem de tanto rir. Gyloro Dothare lhe ensinou canções sujas, e seu irmão Gyleno disse-lhe os melhores lugares para se pegar enguias. Os cantores fora dos navios lhe ensinaram como um herói se porta, e ensinoulhe discursos de ‘O Som de Rhoyne’, ‘As Duas Esposas do Consquistador’ e a ‘Senhora Lusty do Comerciante’. Quill, o homenzinho de olhos tristes, que era responsável por todas as farças indecentes do navio, se ofereceu para ensiná-la como uma mulher beija, mas Tagganaro lhe bateu com um bacalhau e o fez parar. Cossomo, o Conjurador instruiu-a no passe de mágica. Ele podia engolir ratos e trazê-los de sua orelha.
— É mágica! — ele dizia. 
— Não é — Cat disse. — O rato estava em sua manga o tempo todo. Eu podia vê-lo se movendo. “Ostras, amêijoas e berbigão” Eram as palavras mágicas de Cat, e, como toda boa palavra mágica, elas podiam levá-la em quase todo lugar. Ela havia embarcado nos navios de Lys, Vilavelha e Porto de Ibben, e vendia suas ostras direto no convés. Alguns dias ela rolava seu carrinho de mão sob as torres dos poderosos para oferecer mariscos cozidos aos guardas em seus portões. Uma vez ela gritou suas mercadorias nos degraus do Palácio da Verdade, e quando outro vendedor tentou espantá-la, ela virou um pouco mais o seu carrinho e deixou suas ostras deslizando em todo o calçamento. Funcionários da alfândega de Porto Chequy iam comprar dela, e remadores da Cidade Afogada cujas cúpulas e torres eram afundadas
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até o cotovelo nas águas verdes da lagoa. Uma vez, quando Brea foi para a cama devido ao seu sangue de lua, Cat havia empurrado seu carrinho de mão para Porto Roxo, para vender caranguejos e camarões a remadores fora da barca de prazeres Senhor do Mar, coberto de popa a proa com sorridentes rostos. Outros dias, ela seguiu o rio Águaverde até o Tanque da Lua. Ela vendeu para presunçosos bravosianos em cetim listrado, e guardiões e juízes em monótonas túnicas de marrom e cinza. Mas ela sempre voltava para o porto de Ragman.
— Ostras, amêijoas e berbigões — a menina gritou enquanto empurrava seu carrinho de mão ao longo do cais. — Mexilhões, camarões e amêijoas.  — Um sujo gato laranja apareceu atraído pelo som de sua chamada. Mais adiante, um segundo gato apareceu, triste, sujo e cinza, com uma cauda erguida. Gatos gostavam do cheiro de Cat. Há alguns dias, ela tinha visto uma dúzia deles trilhando atrás dela antes do por do sol. De tempos em tempos a garota lançava uma ostra entre eles e assistia para ver quem a conseguiria.  O maior raramente ganhava, ela notou, e como acontecia frequentemente, o premio foi para algum animal menor, mais rápido, mais magro e faminto. Como eu, ela disse a si mesma. Seu favorito era um velho magricela com uma orelha mastigada, que a lembrava de um gato que ela uma vez havia perseguido por toda a Fortaleza Vermelha.  Não, aquela era uma outra garota, não eu. 
Cat percebeu que dois navios que haviam estado lá ontem tinham partido. Mas cinco novos atracaram; uma pequena carraça chamada O Macaco de Bronze, um enorme Ibbenês baleeiro que cheirava alcatrão, sangue e óleo de baleia, duas engrenagens violentas de Pentos, e uma galera verde e inclinada partindo para Velha Volantis. Cat parou ao pé de cada prancha para gritar seus mariscos e ostras, uma vez na língua do comércio e novamente na língua comum de Westeros.  Um tripulante do baleeiro lhe gritou uma maldição tão alto que assustou seus gatos, e um dos remadores de Pentos perguntou quanto ela queria pelo marisco entre suas pernas, mas ela se saiu melhor em outros navios. Um companheiro da galera verde abocanhou meia dúzia de ostras e disse a ela como seu capitão havia sido morto pelos piratas Lysenos que tentou aplaca-los perto dos Degraus.
— Aquele bastardo Saan, com o Filho da Velha Mãe e seu grande Valiriano. Nós nos distanciamos, só isso.
O pequeno Macaco de Bronze provou ser de Vila Gaivota, com uma tripulação Westeros que estava contente de falar com alguém em sua língua comum.  Um perguntou como uma garota de Porto Real passou a ser vendedora de mexilhões nas docas de Bravos, então ela teve que contar sua história.
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— Estamos aqui a quatro dias e quatro longas noites — outro disse a ela. — Onde vai um homem para encontrar um pouco de diversão?
— Os cantores no navio estão tocando ‘Os Sete Remadores Embriagados’ — Cat lhes disse — E há brigas de Enguias na Adega Manchada, perto dos portões da Cidade dos Afogados. Ou se você quiser pode ir para o Tanque da Lua, onde os bravos duelam a noite.
— Sim, isso é bom — outro marinheiro disse. — Mas o que Wat realmente estava querendo era uma mulher.
— As melhores prostitutas estão no Porto Feliz, lá embaixo onde navios dos cantores estão atracados — Ela apontou, algumas das prostitutas dos cais eram viciosas, e marinheiros frescos dos cais nunca sabiam quais eram. S’vrone era a pior. Todo mundo dizia que ela havia roubado e matado uma dúzia de homens, rolando seus corpos nos canais para alimentar as enguias. A filha de Drunken podia ser doce quando sóbria, mas não com vinho em seu sistema. E Canker Jeyne era realmente um homem. — Pergunte por Alegria. Alegrira é seu verdadeiro nome, mas todos a chamam de Alegria, ela está sempre alegre. 
Merry lhe comprava uma dúzia de ostras toda vez que Cat ia ao bordel e compartilhava-as com suas meninas. Ela tinha um bom coração, todos concordavam. Isso, e o maior par de tetas em toda Bravos. Assim ela gostava de se gabar.
Suas garotas eram muito gentis também; Betânia, a Corada, a Esposa do Marinheiro, Yna de um olho só que podia dizer sua fortuna a partir de uma gota de sangue. A pequena e bela Lanna, e até mesmo Assadora, a mulher ibenense de bigode. Elas podia não ser lindas, mas eram gentis com ela. 
— O Porto Feliz é aonde todos os porteiros vão — garantiu Cat aos homens do Macaco de Bronze — Os meninos descarregam os navios, Marry sempre diz, e as meninas descarregam os rapazes que navegam nele.
— E sobre aquelas fantasias de prostitutas de quem os bardos cantam?  — Perguntou o mais jovem macaco, um menino de cabelos vermelhos e sardas que não podia ter mais que dezesseis anos. — Elas são tão bonitas como eles dizem? Onde é que eu consigo uma delas?
Seus companheiros de navio olharam para ele e riram.
— Sete infernos, garoto — disse um deles. — Talvez o capitão consiga para si uma destas, mas somente se ele vendesse o seu navio sangrento. Este tipo de buceta é para senhores e tais, não para aqueles como nós.
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As cortesãs de Bravos eram famosas em todo o mundo. Cantores cantavam delas, ourives e joalheiros banhava-as com presentes, artesãos imploravam pela honra de sua companhia, príncipes mercantes pagavam resgates reais para tê-las em seus braços nos bailes, festas e shows, e bravosianos matavam uns aos outros em seus nomes. Enquanto ela empurrava seu carrinho de mão pelos canais, Cat às vezes vislumbrava uma delas flutuando, a caminho de uma noite com algum amante. Cada cortesã tinha seu próprio barco, e servos para levá-las para seus encontros. A Poetisa sempre tinha um livro à mão, a Sombra da Lua usava apenas branco e prata, e a Rainha Merling nunca era vista sem suas sereias, quatro jovens donzelas no rubor de sua primeira floração, que seguravam o vestido e lhe penteavam o cabelo. Cada cortesã era mais bonita que a anterior. Mesmo a Senhora Veiled era bonita, apesar de apenas aqueles que ela aceitava como amante já tinham visto seu rosto.
— Eu vendi três amêijoas para uma cortesã — Cat disse aos marinheiros. — Ela me chamou enquanto saía de seu barco. 
Brusco tinha deixado claro para ela que ela nunca deveria falar com uma cortesã, a menos que esta falasse primeiro, mas a mulher havia sorrido para ela e lhe pagado em prata, dez vezes mais do que as amêijoas valiam. 
— E qual era essa? A Rainha do Berbigão, não é?
— A Pérola Negra – ela os contou. Marry afirmou que Pérola Negra era a cortesã mais famosa de todas. — Ela é descendente dos dragões, esta ai. — A mulher havia dito a Cat. — A primeira Pérola Negra era uma rainha pirata. Um príncipe de Westeros a pegou como uma amante e teve uma filha com ela, que cresceu para ser uma cortesã. Sua própria filha a seguiu, e sua filha depois dela, até chegar a esta ai. O que ela disse a você, Cat?
— Ela disse ‘Eu vou levar três berbigões, e você tem um pouco de molho quente, pequenina? Cat’.  — a garota respondeu.
— E o que você disse?
— Eu disse ‘Não minha senhora’ e, ‘não me chame de pequenina. Meu nome é Cat’. Eu deveria ter molho quente, Beqqo tem, e ele vende três vezes mais ostras do que Brusco.
Cat disse ao homem bondoso sobre Perola Negra também.
— Seu verdadeiro nome é Bellegere Otherys — ela o informou. Isto era uma das três coisas que ela havia aprendido.
— É verdade — o sacerdote disse suavemente. — Sua mãe ela Bellonara, mas a primeira Pérola Negra era Bellegere também.
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Cat sabia que aos homens do Macaco de Bronze não importaria o nome da mãe de uma cortesã, ela pensou. Ao invés disso ela pediu-lhes notícias dos Sete Reinos, e da guerra.
— Guerra? — Riu um deles — Que guerra? Não há nenhuma
guerra.
— Não em Vila Gaivota — disse outro. — Não no Vale.  O pequeno senhor nos mantém fora disso, do mesmo modo que sua mãe fez.
Mesmo modo que sua mãe fez. A Senhora do Vale era irmã de sua
mãe. 
— Lady Lysa — ela disse. — Ela está...?
— ...Morta? — terminou o menino sardento cuja cabeça estava cheia de cortesãs. — assassinada pelo próprio cantor.
— Oh. — Não tem nada a ver comigo. A gata dos canais nunca teve uma tia. Ela nunca teve. Cat levantou seu carrinho de mão e se afastou do Macaco de Bronze, balançando sobre paralelepípedos.
— Ostras, mexilhões e berbigões — ela gritava — Ostras, mexilhões e berbigões.
Ela vendeu a maioria dos seus mexilhões fora do carregamento de engrenagens e vinho do grande navio da Árvore, e o restante para os homens que estavam concertando uma galera de comercio, a Myrish, que havia sido atacada pelas tempestades. 
Mais abaixo nas docas, ela foi até Tagganaro, sentado de costas para um empilhamento, perto de Casso, Rei das Focas.  Ele comprou alguns mexilhões dela, e Casso deixou que ela mexesse em suas barbatanas.
— Venha trabalhar comigo, Cat — pediu Tagganaro enquanto chupava os mexilhões de suas conchas. Ele vinha procurando um novo parceiro desde que a filha de Drunken colocou sua faca através da pequena mão de Narbo. — Eu lhe darei mais do que Brusco, e você não irá cheirar como peixe.
— Casso gosta do jeito que eu cheiro — ela disse. O Rei das Focas latiu como se concordasse — A mão de Narbo não está melhor?
— Três dedos não dobram — reclamou Tagganaro entre mexilhões. — Quão bom é um batedor de carteiras que não pode usar os dedos? Narbo era um bom batedor de carteiras, mas não tão bom em escolher prostitutas.
— Merry diz o mesmo. — Cat estava triste, ela gostava do pequeno Narbo, mesmo ele sendo um ladrão. — O que ele vai fazer?
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— Puxar um remo, ele diz. Dois dedos são suficiente para isso, ele acha, e o Senhor do Mar está sempre procurando por mais remadores. Eu digo a ele, ‘Narbo, não. Este oceano é mais frio que uma donzela e mais cruel do que uma prostituta. Melhor seria se você cortasse sua mão e mendigasse’. Casso sabe que eu estou certo. Não sabe, Casso?
A foca fez um barulho e Cat teve que sorrir. Jogou outro berbigão sem seu caminho antes de sair dali sozinha.
O dia estava quase acabando quando Cat chegou ao Porto Feliz, através do beco onde os navios estavam ancorados. Alguns dos cantores sentavam-se no convés dos navios, passando um odre de vinho de mão em mão, mas quando viram o carrinho de mão de Cat, eles desceram para comprar algumas ostras. Ela perguntou-lhes como foi com Os Sete Remadores Bêbados. Joss o Melancólico balançou a cabeça.
— Quence acabou de encontrar Allaquo na cama com Sloey. Eles foram um para o outro como espadas de mentira, e os dois nos deixaram. Nós seremos apenas cinco remadores bêbados esta noite, ao que parece.
— Devemos nos esforçar para compensar na embriagues o que nos falta em remadores — declarou Myrmello. — Posso dizer que estou à altura da tarefa.
— O Pequeno Narbo quer ser um remador — Cat disse-lhes. — Se vocês o pegarem, teriam seis.
— Você faria melhor se fosse ver Alegria. — Joss disse a ela. — Você sabe como ela fica azeda sem suas ostras.
Quando Cat escorregou para dentro do bordel, porém, ela encontrou Alegria sentada na sala comum com os olhos fechados, ouvindo Dareon tocar sua harpa de madeira. Yna estava lá também, trançando o fino e longo cabelo dourado de Lanna. Outra estúpida canção de amor. Lanna estava sempre pedindo a cantora para tocar suas estúpidas canções de amor. Ela era a mais nova das prostitutas, apenas quatorze anos. Alegria cobrava três vezes mais por ela do que por qualquer outra menina. Cat sabia.
Ela ficou brava ao ver Daeron sentado ali tão descarado, fitando Lanna enquanto seus dedos dançavam ao som da harpa. As prostitutas o chamavam de Cantor Negro, mas dificilmente havia algo negro nele agora. Com as moedas que o seu canto lhe trouxe, o corvo havia se transformado em um pavão. Hoje ele usava um manto de veludo púrpura, uma túnica branca e lilás listrada, e as calças multicoloridas de um bravosi. Mas, ele usava um manto de seda também, e um feito de veludo cor de vinho que era
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forrado com um pano-de-ouro. A única coisa negra nele eram suas botas. Cat tinha ouvido ele dizer a Lanna que tinha jogado todo o resto em um canal.
— Eu estou farto da escuridão — ele anunciara. 
Ele é um homem da Patrulha da Noite, ela pensou, enquanto ele cantava sobre uma estúpida senhora que se jogou de uma estúpida torre porque seu estúpido príncipe estava morto. A senhora deveria ir matar aqueles que mataram o príncipe dela. E o cantor deveria estar na Muralha. Quando Daeron havia aparecido pela primeira vez em Porto Feliz, Arya quase perguntou se ele poderia levá-la de volta para o leste, até que ela o ouviu dizendo a Bethany que ele nunca iria voltar.
— Camas duras, peixes salgados, e vigilância sem fim, é o que é a Muralha — ele disse. – Além disso, não há ninguém que tenha a da sua beleza no leste, como eu poderia deixá-la?
Ele havia dito a mesma coisa a Lanna, Cat ouviu, e para uma das prostitutas de Cattery, e o mesmo para a Ventania Noturna na noite que ele tocou na Casa dos Sete Lampiões. 
Eu gostaria de ter estado aqui na noite em que o gordo o acertara.  As prostitutas de Alegria ainda riam sobre isso. Yna disse que o garoto gordo havia ficado vermelho como uma beterraba cada vez que ela lhe tocava, mas quando ele começou a ser um problema, Alegria o tinha arrastado e o jogado no canal.
Cat estava pensando sobre o garoto gordo, relembrando de como ela o salvara de Terro e Orbelo, quando a mulher do marinheiro apareceu sobre ela.
— Ele faz um belo som — ela murmurou suavemente, na língua comum de Westeros. —– Os deuses devem tê-lo amado para dar a ele tal voz. E este rosto cheio também.
Ele tem um rosto cheio e um coração vazio, pensou Arya, mas ela não disse isso. Daeron havia uma vez desposado a Esposa do Marinheiro, que só ia para a cama com homens que se casavam com ela. Em Porto Feliz às vezes haviam três ou quatro casamentos por noite. Muitas vezes, o alegre sacerdote Ezzelyno encharcado de vinho vermelho realizava os ritos. Outras vezes era Eustace, que tinha sido um Septão além do mar. Se nem o sacerdote nem o Septão estivessem presentes, uma das prostitutas corria até o navio e voltava com um dos cantores. Alegria sempre clamou que cantores faziam casamentos muito melhor que os sacerdotes, especialmente Myrmello.
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Os casamentos eram altos e alegres, com muitas bebidas. Sempre que Cat aparecia por lá com seu carrinho de mão, a Esposa do Marinheiro insistia que seu novo marido lhe comprasse algumas ostras, para endurecê-lo para a consumação.  Ela era boa desse jeito, e ria com freqüência também, mas Cat achava que tinha algo triste sobre ela também. 
As outras prostitutas disseram que a Esposa do Marinheiro visitava a Ilha dos deuses nos dias em que estavam em floração, e conhecia todos os deuses que havia ali, mesmo os que os bravosianos haviam esquecido. Elas diziam que ela ia orar para seu primeiro marido, o seu verdadeiro marido, que havia se perdido no mar quando ela era uma menina não mais velha que Lanna.
— Ela acha que se encontrar o deus certo, talvez ele envie os ventos e soprará seu antigo amor de volta para ela. — disse Yna, que a conhecia a mais tempo. — Mas eu rezo para que nunca aconteça. Seu amor está morto. Eu pude sentir em seu sangue.  Se ele algum dia voltar para casa, será um cadáver.
A canção de Daeron estava finalmente terminando. Quando as últimas notas desapareceram no ar, Lanna deu um suspiro, e o cantor colocou sua harpa de lado e a puxou para cima de seu colo. Ele tinha acabado de começar a fazer cócegas nela quando Cat disse em voz alta;
— Aqui estão as ostras, se alguém estiver querendo um pouco — e os olhos de Alegria se abriram.
— Bom — disse a mulher. — Traga-as criança. Yna, busque um pouco de pão e vinagre.
O inchado e vermelho sol estava pendurado no céu atrás das linhas do mastro quando Cat se retirou de Porto Feliz, com uma gorda bolsa de moedas e um carrinho de mão vazio, além de sal e algas marinhas. Daeron estava partindo também.  Ele havia prometido cantar na Estalagem Enguia Verde esta noite. Ele disse-lhe enquanto andavam juntos.
— Toda vez que eu toco na Enguia eu saio com prata — ele se gabou — e algumas vezes há capitães lá, e proprietários. — Eles atravessaram por uma pequena ponte e fizeram seu caminho de volta por um caminho torto enquanto as sombras do dia cresciam mais.
— Logo, eu estarei tocando em Porto Roxo e depois no Palácio do Senhor do Mar. — Daeron continuou. O carrinho de mão vazio de Cat chacoalhava ruidosamente pelos paralelepípedos, fazendo seu próprio estilo de música. — Ontem eu comi arenque com as prostitutas, mas daqui a um ano estarei comendo caranguejo imperador com as cortesãs.
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— O que aconteceu com seu irmão? — Cat perguntou. — O gordo. Será que ele alguma vez encontrou o navio para Vilavelha? Ele disse que deveria navegar na Senhora Ushanora.
— Nós todos deveríamos. Ordens de Lorde Snow. Eu disse a Sam, deixe o velho homem, mas o tolo gordo não quis ouvir. — A última luz do sol brilhou em seu cabelo. — Bem, agora é tarde demais.
— Simples assim. — Disse Cat quando pisaram na escuridão de um pequeno beco torto.
Enquanto Cat voltava para a casa de Brusco, um nevoeiro noturno estava se reunindo acima do pequeno canal. Ela deixou de lado seu carrinho de mão, encontrando Brusco em seu quarto de contagem, batendo a sua bolsa em cima da mesa em frente a ele. Ela bateu suas botas também. Brusco afagou a bolsa.
— Bom, mas o que é isso?
— Botas.
— Boas botas são difíceis de encontrar — disse Brusco — mas estas são muito pequenas para meus pés. — Ele pegou uma e olhou de soslaio para ela.
— A lua será negra hoje. — Ela o lembrou.
— Melhor você rezar então. — Brusco empurrou as botas de lado e derramou as moedas para contá-las. — Dohaeris Valar.
Valar morghulis, ela pensou.
O nevoeiro se levantou completamente enquanto ela caminhava pelas ruas de Bravos. Ela estava tremendo toda quando empurrou a porta para dentro da Casa do Preto e do Branco. Apenas algumas velas queimavam esta noite. Cintilando como estrelas caídas, na escuridão, todos os deuses eram estranhos.
Baixo nos cofres, ela desatou o manto esfarrapado de Cat, puxou a túnica de peixe marrom sobre a cabeça de Cat, arrancou o sal manchado das botas de Cat, saiu para fora das pequenas roupas de Cat, e se banhou em água de limão para lavar o forte cheiro da gata dos canais. Quando ela emergiu, com a pele rosada ensaboada e limpa, o cabelo castanho colado ao rosto, Cat tinha ido embora. Ela vestiu roupas limpas e um par de chinelos de pano macio e acolchoado para as cozinhas, para pedir um pouco de comida à Umma. 
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Os sacerdotes e acólitos já haviam comido, mas o cozinheiro havia guardado um agradável pedaço de bacalhau frito para ela, além de alguns nabos amarelos. Ela devorou-o, lavou o prato, e depois foi ajudar as párias a preparar suas poções.
Sua parte era na maioria buscas, subindo escadas para encontrar ervas e partir com o que a órfã pediu.
— Doce sono é o mais gentil dos venenos, — a órfã disse a ela, enquanto ela estava moendo alguns com um almofariz e um pilão. – Alguns grãos deverão desacelerar um coração batendo forte, fazer uma mão parar de tremer, e fazer um homem sentir-se calmo e forte. Uma pitada concederá uma noite de sono profundo e sem sonhos. Três pitadas concederão um sono que não termina. O sabor é muito doce, por isso é melhor usado em bolos, tortas, doces e vinhos. Aqui, você pode sentir o cheiro da doçura. 
Ela deixou com que ela cheirasse então lhe enviou até as escadas para encontrar uma garrafa de vidro vermelho.
— Este é o veneno mais cruel, mais insípido e inodoro, portanto, mais fácil de esconder. Ás Lágrimas de Lys, os homens a chamam. Dissolvido em vinho ou água, ele come as entranhas e barrigas de um homem, e mata como uma doença nessas partes. Cheire.
Arya inalou, e sentiu nada. A órfã colocou a lágrima de lado e abriu um gordo frasco de pedra.
— Essa massa é temperada com o sangue de basilisco. Ele dará a carne cozida um aroma apetitoso, mas se ingerido, produz loucura violenta, em animais assim como em homens. Um rato irá atacar um leão após provar do sangue de basilisco.
Arya mordeu o lábio.
— Será que funcionaria em cães?
— Em qualquer animal com sangue quente. — A órfã lhe estapeou.
Ela levantou sua mão para a bochecha, mais surpresa do que machucada.
— Porque você fez isso?
— É Arya da Casa Stark que morde o seu lábio sempre que está pensando. Você é Arya da Casa Stark?
— Eu não sou ninguém — ela estava brava. – Quem é você?
Ela não esperava que a órfã respondesse, mas ela respondeu.
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— Eu nasci a única filha de uma antiga casa, meu pai era um herdeiro nobre — a órfã respondeu. — Minha mãe morreu quando eu era pequena, e eu não tenho nenhuma memória dela. Quando eu tinha seis anos meu pai casou-se de novo. Ela tratava-me gentilmente até dar a luz a sua própria filha. Então, era seu desejo que eu deveria morrer, assim seu próprio sangue herdaria a riqueza do meu pai. Ela deveria ter pedido o favor ao deus de Muitas Faces, mas ela não suportaria o sacrifício que ele pediria a ela. Ao invés disso, ela tentou me envenenar com suas próprias mãos. Ela me deixou como você me vê agora, mas eu não morri. Quando os curandeiros da Casa das Mãos Vermelhas disseram ao meu pai o que ela tinha feito, ele veio aqui e fez o sacrifício, oferecendo toda a sua riqueza e a mim. Aquele de Muitas Faces ouviu sua oração. Eu fui traga ao templo para servir, e a esposa do meu pai recebeu o presente.
Arya a considerou com cautela.
— Isso é verdade?
— Há verdade nisto.
— E mentiras também?
— Há alguma inverdade, e um exagero. 
Ela tinha observado o rosto da órfã o tempo todo em que ela contara a história, mas a garota não mostrara nenhum sinal.
— O deus de Muitas Faces pegou um terço da riqueza do seu pai, mas não toda.
— Exatamente, esse foi o meu exagero.
Arya sorriu, e percebendo que estava sorrindo, se deu um beliscão na bochecha. Controle seu rosto, disse a si mesma. Meu sorriso é meu servo, ele deve vir ao meu comando.
— Que parte é a mentira?
— Nenhuma. Eu menti sobre a mentira.
— Você fez? Ou você está mentindo agora?
Mas, antes que a órfã pudesse responder, o homem bondoso entrou na sala, sorrindo.
— Você retornou para nós!
— A lua está negra.
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— É verdade. Quais são as três novas coisas que você sabe que você não sabia quando nos deixou?
Eu sei de trinta coisas novas, ela quase disse.
— Três dos dedos no pequeno Narbo não irão mais se dobrar, ele pretende ser um remador.
— É bom saber disso. O que mais?
Ela fez uma retrospectiva em seus dias.
— Quence e Alaquo tiveram uma briga e deixaram o navio, mas eu acho que eles irão voltar.
— Você apenas acha ou você sabe?
— Eu apenas acho. — Ela teve que confessar, mesmo pensando que estava certa disso. Cantores tinham que comer o mesmo que os outros homens, e Quence e Alaquo não eram bons suficientes para o Lanterna Azul.
— Este é o ponto — disse o homem bondoso — e a terceira coisa?
Desta vez ela não hesitou.
— Dareon está morto. O negro cantor que estava dormindo no Porto Feliz. Ele realmente era um desertor da Patrulha da Noite. Alguém cortou sua garganta e empurrou-o em um canal, mas eles mantiveram suas botas.
— Boas botas são difíceis de encontrar.
— Exatamente. — Ela tentou manter seu rosto imóvel.
— Quem poderia ter feito uma coisa dessas, eu me pergunto.
— Arya da Casa Stark. — Ela observou seus olhos, sua boca, os músculos da sua mandíbula.
— Aquela garota? Eu pensei que ela havia deixado Bravos. Quem é
você?
— Ninguém.
— Você mente. — Virou-se para a órfã. — Minha garganta está seca. Faça a gentileza de trazer-me uma taça de vinho e um leite quente para nossa amiga Arya, que voltou para nós de forma tão inesperada.
Em seu caminho através da cidade, Arya se perguntava o que o homem bondoso diria quando ela lhe contasse sobre Dareon. Talvez ele ficasse zangado com ela, ou talvez ele ficaria satisfeito que ela tivesse dado ao cantor o presente do deus de Muitas Faces. Ela havia passado esta
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conversa dentro de sua cabeça centenas de vezes, como um cantor em seu show. Mas ela nunca pensou em leite quente. 
Quando o leite veio, Arya bebeu o todo. Cheirava um pouco queimado e tinha um sabor amargo.
— Vá para a cama agora, criança. — O homem bondoso disse — amanhã você deverá servir.
Esta noite ela sonhou que era um lobo novamente, mas foi diferente dos outros sonhos. Neste sonho, ela não tinha matilha. Ela vagava sozinha, pulando sobre os telhados e estofamentos em silencio ao lado dos bancos de um canal, perseguindo sombras através do nevoeiro.
Quando ela acordou na manhã seguinte, ela estava cega.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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SAMWELL SAMWELL SAMWELL SAMWELL  
 
 
Vento Canela era um navio-cisne procedente da Cidade das Árvores Altas, nas Ilhas do Verão, onde os homens eram negros, as mulheres eram ousadas e até os deuses eram estranhos. Não levavam a bordo nenhum septão que pudesse fazer uma pregação fúnebre, de modo que esta tarefa foi designada à Samwell Tarly, enquanto passavam pelo litoral sul de Dorne.
Sam se vestiu de negro para dizer suas palavras, mesmo com a tarde seca e abafada, sem nenhum sopro de vento.
— Foi um bom homem — ele começou. Mas assim que disse as palavras, se deu conta de que estava errado. — Não, foi um grande homem. Um meistre da Cidadela, com a corrente e o juramento, um irmão juramentado da Patrulha da Noite, sempre fiel. Quando nasceu, lhe deram o nome de um herói que havia morrido muito jovem, mas ele viveu muito, muito tempo, e sua vida não foi menos heróica. Não houve um homem mais sábio, mas gentil, mais bondoso. Pela muralha, uma dúzia de lordes comandantes veieram e se foram durante seus anos de serviço, e ele esteve lá para aconselhar a cada um. Também aconselhou reis. Ele mesmo poderia ter sido um rei. Porém, quando lhe ofereceram a coroa, pediu que a entregassem a seu irmão mais novo. Quantos homens fariam isso? — Sam sentiu lágrimas escorrerem pelo seu rosto, e sabia que não podia continuar por muito mais tempo. — Ele era do sangue do dragão, mas agora seu fogo se apagou. Ele era Aemon Targaryen, e agora seu tempo chegou ao fim.
— Agora seu tempo chegou ao fim, — murmurou Goiva depois dele, balançando o bebê em seus braços. Kojja Mo também repetiu na língua comum de Westeros, e depois continuou na língua de verão para Xhondo, seu pai e o resto da tripulação. Sam abaixou a cabeça e começou a chorar, com soluços tão altos e violentos que faziam todo seu corpo estremecer. Goiva veio e o deixou ficar ao seu lado, a chorar sobre o seu ombro. Havia lágrimas em seus olhos também.
O ar estava úmido, quente, mortalmente calmo, e o Vento Canela estava à deriva em um mar azul profundo, onde a terra estava muito além da vista.
— Sam, o Negro, disse belas palavras, — disse Xhondo. — Agora nós beberemos a sua vida. — Ele gritou algo na língua de verão, e um barril de rum foi rolado pelo convés, e depois foi aberto, para que pudessem encher suas taças em memória do velho dragão cego. A tripulação havia se
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conhecido há pouco tempo, mas, nas Ilhas do Verão, se reverenciavam os idosos e celebravam os mortos.
Sam nunca havia bebido rum antes. O licor era estranho e inebriante, doce no início, mas com um sabor de fogo que queimou sua língua. Estava cansado, muito cansado. Todos os seus músculos doiam, e doiam também lugares onde ele nem sabia ter músculos. Seus joelhos estavam rigídos, e as mãos estavam cobertas de bolhas novas, enquanto tinha manchas de pele onde as bolhas antigas tinham estourado. No entanto, o rum e a tristeza pareciam levar suas mágoas para longe.
— Se pudéssemos ter chegado a Vilavelha, o arquimeistre poderia tê-lo salvo, — disse Goiva, uma vez que tomou o rum na proa alta do Vento Canela. — Os curandeiros da Cidadela são os melhores dos Sete Reinos, por um tempo eu pensei... Eu esperava...
Em Bravos, pareceu possível que Aemon pudesse se recuperar. Quando Xhondo falou de dragões, o ancião quase pareceu voltar a ser o que era. Naquela noite ele comeu até a última mordida do que Sam havia colocado diante dele.
— Ninguém nunca pensou em uma garota, — disse ele. — Foi um príncipe que nos prometeram, não uma princesa. Rhaegar, eu pensei... a fumaça era do fogo que devorou o Salão de Verão no dia de seu nascimento, o sal das lágrima derramadas por aqueles que morreram. Ele compartilhou minha crença quando era jovem, porém depois ele se convenceu de que a profecia se cumpriria em seu filho, pois um cometa foi visto sobre Porto Real no dia do nascimento de Aegon, e Raeghar estava seguro de que a estrela sangrenta havia de ser um cometa. Quão estúpidos fomos! Nos achávamos tão sábios. O erro veio da tradução. Os dragões não são machos nem fêmeas. Eles são agora um e agora o outro, tão mutáveis como as chamas. A linguagem nos enganou por mil anos. Daenerys é a enviada, nascida entre sal e fumaça. Os dragões provaram isto. — Falar de sua família parecia torná-lo mais forte. — Tenho que ir vê-la. Eu devo. Gostaria de ser dez anos mais jovem.
O velho estava tão determinado que caminhou por conta de suas próprias pernas pela prancha do Vento Canela, após Sam fazer os arranjos de sua passagem. Ele já tinha dado sua espada para Xhondo, o reembolsando assim pela perda do manto de penas, quando salvou Sam do afogamento. Não tinha mais nada de valor exceto os livros que havia retirado de Castelo Negro. Sam se separou deles com melancolia.
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— Eles foram feitos para a Cidadela, — disse ele, quando Xhondo lhe perguntou o que estava errado. Quando essas palavras foram traduzidas, o capitão riu.  
— Quhuru Mo disse que os homens cinzentos ainda terão esses livros, — Xhondo lhe disse. — Eles os comprarão de Quhuru Mo. Os meistres pagam bem por livros que ainda não têm com prata, e também ouro.
O capitão também queria a corrente de Aemon, mas Sam não deixou. É uma grande vergonha para qualquer meistre entregar sua corrente, ele explicou. Xhondo teve que repetir isso três vezes para Quhuru Mo concordar. Quando eles fecharam o negócio, Sam não tinha mais suas botas, suas roupas pretas ou mesmo suas roupas interiores, nem o chifre quebrado de Jon Snow que tinha encontrado no Punho dos Primeiros Homens. 
Eu não tive escolha, disse Sam a si mesmo. Nós não poderíamos ter ficado em Bravos, roubando e mendigando, e não havia outra forma de pagar a passagem. Teria pago três vezes mais, e ainda acharia barato, se tivessem conseguido levar Aemon em segurança até Vilavelha.
A passagem pelo sul tinha sido tempestuosa, e cada novo vendaval diminua a força e o ânimo do velho ancião. Em Pentos, ele pediu para ser trazido ao convés, para que Sam, em palavras, pintasse um retrato da cidade para ele. Essa foi a última vez que ele deixou a cama do capitão. Pouco tempo depois, seus pensamentos começaram a vaguear novamente. Quando o Vento Canela passou diante da Torre Sangrenta para parar no Porto de Tyrosh. Aemon não disse nada sobre tentar encontrar um navio que os levasse ao leste. Em vez disso começou a falar de Vilavelha e os arquimeistres da cidadela.
— Você tem que convencê-los Sam, — disse-lhe. — Aos arquimeistres. Tem que fazer com que entendam. Os homens que viveram na Cidadela enquanto eu estava lá já estão mortos há 50 anos. Estes de agora não me conhecem. Minhas cartas... Em Vilavelha, devem ter lido como delírios de um homem velho, cuja inteligência fugiu. Você tem que convencê-los, Sam, porque eu não posso. Diga-lhes, como é depois da muralha, como são as criaturas, os caminhantes brancos, o frio que rasteja.
— Eu vou, — Sam prometeu. — Vou juntar a minha voz à sua, meistre. Nós dois vamos dizer a eles, nós dois juntos.
— Não! Respondeu o velho. Tem que ser você. Diga a eles. A profecia... O sonho do meu irmão... Melisandre interpretou mal os sinais. Stannis... Stannis tem um pouco do sangue de dragão. Seus irmãos fizeram o mesmo. Rhaelle, a filha de Egg... mãe de seu pai... ela costumava me chamar de tio meistre quando era apenas uma garotinha. Lembrei-me que, assim que
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me permiti ter esperança... talvez eu quisesse... todos nós nos enganamos, quando queríamos acreditar em algo. Melisandre foi a que mais se enganou, esta é a espada errada, ela tem que saber... luz sem calor... um glamour vazio, esta é a espada errada, a luz falsa só pode nos aprofundar ainda mais na escuridão. Sam, Daenerys é a nossa esperança. Diga a todos na Cidadela. Faça-os ouvir. Eles devem a enviar um meistre. Daenerys deve ser aconselhada, ensinada, protegida. Por todos esses anos que se passaram eu fiquei esperando, assistindo, e agora que o tempo chegou, eu estou velho demais. Eu estou morrendo, Sam. — Lágrimas escorreram de seus olhos cegos e brancos. — A morte não deveria assustar a um homem de minha idade, mas tenho medo. Que estupidez, não? Se é sempre tão escuro onde eu estou, por que tenho medo da escuridão? No entanto, eu não posso ajudar, mas me pergunto o que vai acontercer quando o último calor deixar o meu corpo. Será sempre festa no salão dourado do Pai, como diz o septão? Vou falar com Egg novamente, encontrar Dareon inteiro e feliz, ouvir minhas irmãs cantando para seus filhos? E se for verdade o que diz os senhores dos cavalos? Será que passearei pelo céu noturno, eternamente, montado em um garanhão feito de chamas? Ou terei que voltar a este vale de lágrimas? Quem pode dizer, realmente? Quem já atravessou de volta a parede da morte? Apenas as criaturas, e nós sabemos como elas são! Nós sabemos.
Sam não tinha resposta às perguntas do velho, mas deu a ele o pouco conforto que podia. Goiva veio logo em seguida e cantou para ele uma canção sem sentido que havia aprendido com as outras esposas de Craster. Conseguiu fazer com que Aemon sorrisse, e depois o ajudou a ir dormir.
Esse foi o último de seus dias bons. Depois disso passava mais tempo dormindo do que acordado, enrolado sob uma pilha de peles na cabine do capitão. Às vezes ele murmurava enquanto dormia. Quando ele acordava, mandava chamar Sam, insistindo que tinha algo para dizer. Mas quase sempre esquecia as palavras quando ele chegava, e, quando ele se lembrava, sua conversa era sempre confusa. Ele falou de sonhos, mas nunca nomeando o sonhador, de uma vela de vidro que não poderia ser acesa e de ovos que não poderiam ser chocados. Ele disse que a esfinge era o enigma, não a charada, o que quer que isso significasse. Ele pediu para Sam ler um livro do Septão Barth, cujos escritos foram queimados durante o reino de Baelor, o Bem Aventurado. 
Certa vez ele acordou chorando.
— O dragão deve ter três cabeças — ele lamentou, — mas eu sou muito frágil para ser uma delas. Eu deveria estar com ela, mostrando-lhe o caminho, mas meu corpo me traiu.
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Quando o Vento Canela cruzou os Degraus, Meistre Aemon já tinha esquecido o nome de Sam. Às vezes o confundia com um de seus irmãos mortos. 
— Ele era muito frágil para uma viagem tão longa, — disse Sam a Goiva na proa, após tomar mais um gole de rum. — Jon deveria ter visto isso. Aemon tinha cento e dois anos de idade, ele nunca deveria ter sido enviado para o mar. Se ele tivesse ficado em Castelo Negro, poderia ter vivido por mais dez anos.
— Ou então ela poderia o ter queimado. A mulher vermelha. — Mesmo aqui, a mil milhas da muralha, Goiva ainda relutava em dizer o nome de Melisandre. — Ela queria o sangue de reis para seus incêndios. Val sabe o que ela fez. Jon Snow também. Por isso me fizeram levar o bebê de Dalla e deixar o meu no lugar. Meistre Aemon foi dormir para não mais acordar, mas se ele tivesse sobrevivido, ela o teria queimado.
Vai ser queimado de qualquer forma, Sam pensou tristemente, mas sou eu quem vai queimar ele. Os Targaryens sempre deram seus mortos para as chamas. Quhuro Mo não permitiria uma pira funerária a bordo do Vento Canela, então o cadaver de Aemon foi colocado dentro de um barril de rum para ficar conservado até que chegassem a Vilavelha.
— Na noite antes de morrer ele perguntou se poderia segurar o bebê, — Goiva continuou. — Eu estava com medo de deixar, mas ele nunca tinha segurado antes. Ele o sacudiu e cantarolou para ele, e o menino de Dalla esticou a mão e tocou o seu rosto. A forma que ele puxou seu lábio. Eu pensei que ele poderia machucar Aemon, mas isso só fez o velhor rir. — Ela acariciou a mão de Sam. — Nós poderíamos dar-lhe o nome de Meistre, se você quiser. Quando ele tiver idade suficiente, não agora.
— Meistre não é um nome, você pode chama-lo de Aemon.
Goiva pensou por um momento.
— Dalla o pariu durante a batalha, com as espadas cantando ao seu redor. O seu nome deveria ser Aemon Battleborn. Ou Aemon Steelsong.
Meu pai gostaria destes nomes, pensou Sam. É um nome de guerreiro. O menino era filho de Mance Rayder e neto de Craster, afinal. Em suas veias não corriam o sangue de Sam, o Covarde. 
— Sim, chame-o assim, — disse Sam. 
— Quando ele fizer dois anos ela prometeu. Não antes.
— Onde está o menino? — Sam perguntou. Entre tanto rum e tristeza, levou muito tempo para perceber que ela não estava com o ele.
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— Está com Kojja. Pedi que ela cuidasse dele por um tempo.
— Ah...
Kojja Mo era filha do capitão, mais alta do que Sam e esbelta como uma lança, com uma pele negra e lisa como jato polido. Ela era a capitã dos arqueiros vermelhos do navio também, e utilizava um arco de dupla curvatura que podia atirar flechas a trezentos e sessenta metros. Quando foram atacados pelos piratas nos Degraus, as flechas de Kojja mataram uma dúzia deles, enquanto as de Sam caíram na água. A única coisa que Kojja Mo gostava mais do que o seu arco era ficar com o bebê de Dala, fazendo-o pular sobre seus joelhos e cantarolando para ele na língua de verão. O príncipe selvagem se tornou o queridinho de todas as mulheres na tripulação, e Goiva parecia confiar nelas como nunca havia confiado em qualquer homem.
— Que legal da parte de Kojja, — disse Sam.
— Eu estava com medo dela no início, — disse Goiva. — Ela é tão negra, e seus dentes são tão grandes e brancos, eu tinha medo que ela fosse um animal ou um monstro, mas ela não é. Ela é boa. Eu gosto dela.
— Eu sei. — Na maior parte de sua vida, o único homem que Goiva tinha conhecido fora o aterrorizante Craster. Todo o resto de seu mundo era constituído por mulheres. Homens a assutam, Sam percebeu, mas as mulheres não. Ele entendia isso. Quando voltou para Monte Chifre ele também tinha preferido à companhia das meninas.
Suas irmãs tinham sido gentis com ele, e apesar das outras meninas, às vezes, zombarem dele, as palavras cruéis eram mais fáceis de perdoar do que os golpes e bofetadas que ele levava dos outros meninos no castelo. Mesmo agora, no Vento Canela, Sam sentia-se mais confortável com Kojja Mo do que com o pai dela, apesar de que poderia ser, porque ela falava o Idioma Comum e ele não.
— Eu também gosto de você, Sam. E também gosto dessa bebida. Tem sabor de fogo.
Sim, pensou Sam. É uma bebida feita para dragões. Seus copos estavam vazios, por isso ele foi até o barriu e os encheu novamente. O sol estava baixo no oeste, e sua luz avermelhada fazia a face de Goiva parecer corada. Eles beberam a saúde de Kojja Mo, ao menino de Dalla, ao bebê de Goiva que havia ficado para trás, na muralha. Depois, se sentiram obrigados a beber dois copos a Aemon, da Casa Targaryen.
— Que o Pai julgue-o com justiça, — Disse Sam, fungando.
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O sol estava quase desaparecendo com o passar do tempo, o mesmo que o tempo havia feito com Meistre Aemon. Apenas uma linha avermelhada muito fina brilhava no horizonte ocidental, como uma fita no céu. Goiva disse que a bebida estava fazendo o barco dar voltas, assim Sam a auxiliou a descer as escadas para os aposentos das mulheres na proa do navio.
Havia apenas uma lanterna pendurada na cabine, e ele conseguiu bater sua cabeça nela ao adentrar o aposento. 
— Ai! — Ele disse.
E Goiva disse.
— Você se machucou? Deixe-me ver. — Ela se inclinou... E beijou sua boca. Sam devolveu o beijo. Eu fiz o juramento, ele pensou, mas as mãos dela já estavam desamarrando os cordões de sua calça. Ele interrompeu o beijo apenas tempo suficiente para dizer:
— Nós não podemos.
Mas Goiva disse:
— Nós podemos! — E cobriu a boca dele com a sua própria boca.
O Vento Canela estava girando em torno deles, e ele provava o rum na boca de Goiva, e logo viu seus seios nus, e os tocou. Pronunciei o juramento, pensou outra vez, mas os seus lábios encontraram o caminho até um dos mamilos dela. Eram rosados e duros, e, quando ele chupou, sua boca se encheu de leite, misturando-se com o sabor do rum, e ele descobriu que nunca tinha provado nada tão belo, tão doce, tão bom. Se eu fizer isso eu não sou melhor do que Dareon, Sam pensou, mas tudo era tão bom que ele não podia parar. E de repente seu pau estava para fora, projetado por cima de suas calças, como um mastro rosado de gordura. Ele tinha um aspecto tão tolo que ele poderia ter rido, mas Goiva o segurou, subiu suas saias em torno das coxas, e abaixou-se sobre ele com um gemido. Isto era ainda melhor que os mamilos. Ela é tão molhada, ele pensou ofegante. Eu nunca soube que era tão molhado embaixo das pernas de uma mulher.
— Eu sou sua mulher agora, — ela sussurrou, deslizando sobre ele, para cima e para baixo. E gemendo.
Sam pensou: Não, não, você não pode ser, eu disse as palavras, eu fiz o juramento. Mas a única palavra que ele disse foi:
— Sim. 
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Depois ela dormiu com os braços em torno dele, com o rosto em seu peito. Sam precisava dormir bem, mas ele estava bêbado de rum e do leite materno de Goiva. Ele sabia que deveria se arrastar de volta para sua  rede na cabine dos homens, mas se sentia tão bem enrolado contra ela que de alguma forma não conseguia se mover.
Outros entraram, um homem e uma mulher, e ele ouviu os dois se beijando, rindo e se acasalando. Nas Ilhas do Verão, é assim que eles choram. Eles respondem a morte com a vida. Sam tinha lido isso em algum lugar, há muito tempo. Ele se perguntou se Goiva sabia disto, se Kojja Mo havia lhe contado.
Ele respirou o perfume dos cabelos dela e olhou para a lanterna que acompanhava o balanço do navio. Nem mesmo a Velha poderia me tirar dessa em segurança, pensou Sam. A melhor coisa que eu poderia fazer era escapar saltando para o mar. Se eu morresse afogado, ninguém precisaria ficar sabendo que eu me envergonhei. Que quebrei meu juramento, e Goiva poderia encontrar um homem melhor, um que não fosse um grande gordo covarde.
Ele acordou na manhã seguinte em sua própria rede  na cabine dos homens, com os berros de Xhondo sobre o vento. 
— O vento esta aumentando, — gritava Xhondo. — Acorde e trabalhe Sam, o Negro.  O vento está aumentando.
O que faltava no vocabulário do homem, ele completava com a altura de seus berros. Sam se levantou da rede com um supetão, e se arrependeu. Sentia como se sua cabeça fosse se partir ao meio. Uma das bolhas de sua mão se rasgara durante a noite, e ele se sentiu prestes a vomitar.
Xhondo não era misericordioso, e por isso, tudo que Sam tinha a fazer era colocar suas vestes negras.  As encontrou no convés, sob sua rede, amontoadas e úmidas. Ele as cheirou para ver como estavam, e inalou o cheiro de sal, de mar e de alcatrão, de lona molhada e de mofo, de frutas e de peixes e de rum, de especiarias e de madeiras exóticas e estranhas, e um cheiro inebriante de seu próprio suor seco. Mas o cheiro de Goiva ofuscava todos os outros, o cheiro de seus cabelos limpos, de seu leite doce, ele se alegrou em usar novamente suas vestes. De qualquer forma, teria dado qualquer coisa por meias secas. Algum tipo de fungo começara a crescer entre os dedos dos seus pés.
O cofre de livros não era suficiente para comprar quatro passagens de Bravos até Vilavelha. Por sorte, faltavam homens no Vento Canela, e Quhuro Mo concordou em levá-los, desde que trabalhassem a sua maneira.
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Quando Sam começou a argumentar que Meistre Aemon era muito fraco, o menino ainda era um bebê e Goiva morria de medo do mar, Xhondo apenas riu.
— Sam, o Negro, é gordo e grande. Trabalhará por quatro.
A bem da verdade, os dedos de Sam eram tão ruins que ele duvidava estar trabalhando por um, mas ele tentava. Ele limpava o convés e o esfregava com pedras lisas, puxava a corrente da ancora, enrolava as cordas e caçava os ratos, ele costurava as velas rasgadas. Também desossava os peixes e descascava as frutas para o cozinheiro. Goiva também tentava colaborar. Ela se saía melhor do que Sam com a aparelhagem, mas de vez em quando, a visão de tanta água sem terra a fazia fechar os olhos.
Goiva, pensou Sam. O que vou fazer com ela?
Era um dia quente, de calor pegajoso, que fazia a dor de sua cabeça aumentar. Sam estava ocupado com as cordas, com as velas e com outras tarefas que Xhondo lhe dera, e tentava não deixar que seus olhos vagueassem ao barril de rum onde estava o corpo de Meistre Aemon... ou a Goiva. Ele não poderia enfrentar a menina selvagem agora. Não após o que eles tinham feito na última noite.  Quando ela chegou ao convés, ele desceu. Quando ela foi para frente, ele foi para trás. Quando ela sorriu para ele, se virou, sentindo-se miserável. Eu deveria ter saltado para o mar enquanto ela ainda estava dormindo, ele pensou. Eu sempre fui um covarde, mas eu nunca fui um quebrador de juramentos até agora.
Se Meistre Aemon não tivesse morrido, Sam poderia lhe perguntar o que fazer. Se Jon Snow estivesse a bordo, ou mesmo Pip ou Grenn, ele poderia ter perguntado a um deles.  Porém ele só tinha a Xhondo.
E Xhondo jamais entenderia o que eu tenho a dizer, pensou Sam. Ou, se ele entendesse, iria me dizer para foder a garota novamente. Foder tinha sido a primeira palavra do Idioma Comum que Xhondo tinha aprendido, e ele gostava muito dela.
A sua sorte era o Vento Canela ser um navio muito grande. A bordo do Pássaro Negro poderia encontrar Goiva por acaso a qualquer momento.  Navios Cisne, assim eram chamados nos Sete Reinos esses grandes navios das Ilhas do Verão, por causa de suas grandes velas brancas e das figuras em sua proa, que geralmente tinham a forma de pássaros. Grandes como eram, eles montavam as ondas com uma graça própria. Com a ajuda de um vento bom, o Vento Canela superava qualquer galé, mas ele ficava impotente quando o mar estava calmo. E ele oferecia lugares em abundancia para um covarde se esconder.
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Perto do fim de seu horário de trabalho, Sam foi finalmente encurralado. Ele estava descendo uma escada quando Xhondo o agarrou pelo colarinho. 
— Sam, o Negro, vem com Xhondo, — disse ele, arrastando-o por todo o convés e colocando-o aos pés de Kojja Mo.
Longe ao norte, uma névoa era visível no horizonte. Kojja apontou para lá. 
— Aquilo é a costa de Dorne. Areia, pedras e escorpiões, e nenhum bom ancoradouro por centenas de quilômetros. Você pode nadar até lá, se você quiser, e então caminhar até Vilavelha. Você terá que atravessar o deserto profundo e subir algumas montanhas, atravessar a nado o Torentine. Ou então você pode ir com Goiva.
— Você não entende. Na noite passada nós...
— ...honraram seus mortos, e os deuses que te fizeram. Xhondo fez o mesmo. Eu cuidava do bebê, se não, teria feito com ele. Todos vocês de Westeros tem uma vergonha de amar. Não há vergonha em amar. Se os seus septãos dizem que há, então seus deuses devem ser sete demônios. Nas ilhas sabemos que não é assim. Nossos deuses nos deram pernas para correr, um nariz para cheirar, mãos para tocar e sentir. Que deus cruel e louco daria aos homens olhos e depois diria para que os deixassem sempre fechados, e nunca olhar para toda a beleza do mundo? Só um deus monstro, um demônio da escuridão. — Kojja colocou a mão entre as pernas de Sam. — Os deuses deram-lhe isso por uma razão também, para ... qual é a palavra em Westeros?
— Foder, — Xhondo aproveitou para dizer. 
— Sim, para foder. Para a concessão do prazer e criação de crianças. Não há vergonha nisso.
Sam afastou a mão dela.
— Eu fiz um juramento. Eu não vou tomar nenhuma mulher, nem ser pai de nenhuma criança. Eu disse as palavras.
— Ela sabe as palavras que você disse. Ela é uma criança em alguns aspectos, mas ela não é cega. Ela sabe por que você usa o preto, porque você vai para Vilavelha. Ela sabe que vocês não podem ficar juntos para sempre. Ela quer você por pouco tempo, é tudo. Ela perdeu o pai e o marido, sua mãe e suas irmãs, sua casa, seu mundo. Tudo o que ela tem é você e o bebê. Então você vai ficar com ela, ou vai nadar.
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Sam olhou desesperado na neblina a costa distante. Ele sabia que nunca poderia nadar até tão longe.
Ele foi ter com Goiva. 
— O que fizemos... Se eu pudesse ter uma esposa, eu preferia tê-la do que qualquer princesa ou donzela nobre, mas não posso. Eu ainda sou um corvo. Eu disse as palavras, Goiva. Fui com Jon para a floresta e disse as palavras perante uma árvore coração.
— As árvores velam por nós, — sussurrou Goiva, secando as lágrimas de suas bochechas. — Na floresta, elas veem tudo... Mas não há árvores aqui. Apenas água, Sam. Apenas água.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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CERSEI CERSEI CERSEI CERSEI
 
dia tinha sido frio, cinza e úmido. Tinha chovido toda a manha, e mesmo quando a chuva parou naquela tarde as nuvens recusaram-se a partir. Eles não viram o sol. Tal clima miserável foi suficiente para desencorajar até mesmo a pequena rainha. Ao invés de caminhar com suas galinhas e seu contigente de guardas e admiradores, ela gastou o dia todo na Arcada das Donzelas com suas galinhas, escutando o Bardo Azul cantar.
O dia de Cersei tinha sido um pouco melhor, até o cair da noite. Assim que o céu cinza começou a desvanecer para preto, eles disseram a ela que o Doce Cersei tinha vindo na maré da noite, e que estavam com Aurane Waters, pedindo audiência. A Rainha mandou chamá-lo antes. Assim que ele entrou no solar dela, ela sabia que as notícias que ele trazia eram boas. 
— Vossa Graça, — ele disse com um sorriso amplo, — Pedra do Dragão é sua.
  — Que esplêndido. — Ela pegou suas mãos e o beijou nas bochechas. — Eu sei que Tommen também ficará satisfeito. Isso significa que nós podemos liberar a frota de Lorde Redwyne, e conduzir os homens de ferro para os Escudos. — As notícias da Campina pareciam mais terríveis com a chegada de cada corvo. Os homens de ferro pareciam não ter se contentado com suas novas rochas. Eles estavam invadindo Vago à força, e tinha ido longe o suficiente a ponto de atacar a Árvore e as ilhas menores que a rodeavam. Os Redwynes tinham mantido não mais que uma dúzia de navios de guerra em suas próprias águas, e todos os demais tinham sido esmagados, tomados ou afundados. E agora havia os relatos que um homem louco, que chamava a si mesmo Euron Olhos de Corvo, tinha enviado navios longos do Som Surrante para Vilavelha.
— Lorde Paxter estava planejando provisões para a viagem para casa quando o Doce Cersei levantou vela, — Lorde Waters reportou. — Eu poderia imaginar que agora sua frota principal deva estar no mar.
— Vamos esperar que ele aproveite uma rápida viagem, e um clima melhor que hoje. — A rainha chamou Water para sentar-se ao seu
O
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lado abaixo da janela. — Nós temos que agradecer Sor Loras por este triunfo?
Seu sorriso desapareceu.
— Alguns dirão isso, Vossa Graça.
— Alguns? — Ela deu a ele um olhar zombeteiro. — Não você? 
— Eu nunca vi um cavaliero bravo, — Waters disse, — mas ele transformou o que poderia ter sido uma vitória sem derramamento de sangue em um abate. Mil homens estão mortos, ou perto o suficiente disso, não importa. A maioria homens nossos. E não apenas homens comuns, Vossa Graça, mas cavaleiros e senhores jovens, os melhores e mais corajosos.
— E quanto a Sor Loras?
— Ele será o número mil e um. Levaram-no para o interior do castelo após a batalha, mas seus ferimentos são graves. Ele perdeu tanto sangue que os meistres não vão nem utilizar sanguessugas.
— Oh, que triste. Tommen ficará de coração partido. Ele admirava tanto nosso galante Cavaleiro das Flores. 
— O povo também — disse o almirante. — Teremos donzelas chorando em seu vinho em todo o reino enquanto Loras morre.
Ele não estava errado, a rainha sabia. Três mil pessoas tinham lotado o Portão de Lama para ver Sor Loras partir, e três em cada quatro eram mulheres. A visão apenas tinha servido para despertar-lhe o desprezo. Ela tinha vontade de gritar para eles que não passavam de ovelhas, e dizer-lhes que tudo o que podiam ter esperança de obter de Sor Loras era um sorriso e uma flor.
Ao invés disso, ela tinha proclamado Sor Loras o mais ousado cavaleiro nos Sete Reinos, e sorrido quando Tommen deu a ele uma espada cravejada de jóias para usar na batalha. O rei tinha até lhe dado um abraço, o que não estava nos planos de Cersei, mas isso não importava agora. Ela podia se dar ao luxo de ser generosa. Loras Tyrell estava morrendo.
— Conte-me, — Cersei ordenou. — Eu quero saber de tudo, do inicio ao fim.
O quarto já estava escuro quando ele terminou. A Rainha acendeu algumas velas e enviou Dorcas as cozinhas para trazer um pouco de pão,
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queijo e carne cozida com rabanete. Como eles suporam, ela pediu a Aurane que contasse tudo novamente, assim ela se lembraria dos detalhes corretamente.
— Eu não quero que a nossa preciosa Margaery escute estas notícias de um estranho, afinal de contas, — disse ela. — Eu mesma vou contar a ela.
— Vossa Graça é bondosa, — disse Waters com um sorriso. — Um sorriso perverso, a Rainha pensou. Aurane não se parecia tanto com o Príncipe Raegar como ela pensava. Ele tinha o cabelo, mas o mesmo acontecia com metade das prostitutas em Lys, se o que diziam era verdade. Rhaegar era um homem. Este é apenas um menino esperto, nada mais. Entretanto útil no seu caminho.
Margaery estava na Arcada das Donzelas, bebendo vinho e tentando decifrar algum novo jogo de Volantis com seus três primos. Embora já fosse tarde, os guardas admitiram Cersei.
— Sua Graça, — ela começou, — é  melhor você ouvir as notícias de mim. Aurane está de volta de Pedra do Dragão. Seu irmão é um herói.
— Eu sempre soube disso. — Margaery não parecia surpresa. Porque estaria? Ela esperava por isso, desde o momento que Loras implorou pelo comando. No entanto, quando Cersei terminou suas notícias, as lágrimas brilhavam no rosto da jovem Rainha.
— Redwyne tinha mineiros trabalhando para construir um túnel por baixo das muralhas do castelo, mas o trabalho estava muito lento para o Cavaleiro das Flores. Sem dúvida, ele estava pensando no sofrimento das pessoas de seu pai nos Escudos.
Lorde Waters disse que ele ordenou o assalto antes da metade do dia após assumir o comando, depois que o castelão do Senhor Stannis recusou sua oferta para resolver o cerco entre eles em um único combate. Loras foi o primeiro no ataque quando quebraram as portas do castelo. Ele andava em linha reta até a boca do dragão, eles disseram, todo em branco e balançando a maça sobre sua cabeça, matando todos a sua volta.”
Megga Tyrel soluçava abertamente.
— Como ele morreu? — ela perguntou. — Quem o matou?
— Ninguém teve essa honra, — disse Cersei. — Sor Loras teve um corte na coxa e outro no ombro, mas ele lutou bravamente mesmo
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com o sangue jorrando. Mais tarde ele sofreu um golpe de maça que lhe quebrou algumas costelas. Depois disso... não, eu queria polpa-la do pior.
— Conte-me, — disse Margaery. — Eu lhe ordeno.
Ordena? Cersei parou por um momento, e então decidiu que deixaria passar.
— Os defensores recuraram para o interior uma vez que a cortina caiu. Loras liderou o ataque lá também. Ele foi encharcado com óleo fervendo. — A Senhora Alla ficou branca como giz e saiu correndo do quarto.
— Os Meistres estão fazendo tudo o que podem, Lorde Waters garantiu a mim, mas temo que seu irmão queimou-se demais. — Cersei tomou Margaery em seuus braços para confortá-la. — Ele salvou o reino. — Quando ela beijou a pequena rainha no queixo, ela sentiu o gusto das lágrimas. — Jaime vai escrever todos os feitos de Loras no Livro Branco, e os cantores vão cantar sobre ele pelos próximos mil anos.
Margaery livrou-se de seu abraço tão violentamente que Cersei quase caiu.
— Morrendo não é morto. — Ela disse.
— Não, mas os Meistres disseram
— Morrendo não é morto! 
— Eu só queria poupá-la.
— Eu sei o que você quer. Saia.
Agora você sabe como eu me senti, na noite que meu Joffrey morreu. Ela se curvou, sua face era uma máscara de falsa cortesia.
— Querida filha. Eu estou tão triste por você. Eu a deixarei com a sua dor.
 
A Senhora Merryweather não apareceu naquela noite, e Cersei encontrou-se também inquieta para dormir. Se Lorde Tywin pudesse me ver agora, ele saberia que tinha o seu herdeiro, e um herdeiro digno do Rochedo, ela pensou enquanto Jocelyn Swyft ressonava suavemente no outro travesseiro. Margaery logo estaria chorando as lágrimas amargas que ela deveria ter chorado por Joffrey. Mace Tyrell choraria também, mas ela não lhe dera nenhum motivo para romper com ela. O que ela
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tinha feito, afinal de contas, além de ter honrado Loras com a sua confiança? Ele havia solicitado o comando de joelhos, enquanto metade da corte os observavam.
Quando ele morrer eu devo levanter uma estátua dele em algum lugar, e dar-lhe um funeral como Porto Real nunca viu. O povo gostaria disso. E também Tommen. Mace poderia até agradecer-lhe, pobre homem. Quanto a senhora sua mãe, se os deuses forem bons, essas notícias vão matá-la.
 
The sunrise was the prettiest that Cersei had seen in years. Taena appeared soon thereafter, and confessed to having spent the night consoling Margaery and her ladies, drinking wine and crying and telling tales of Loras. “Margaery is still convinced he will not die,” she reported, as the queen was dressed for court. “She plans to send her own maester to look after him. The cousins are praying for the Mother’s mercy.” 
O nascer do sol era o mais bonito que Cersei havia visto em anos. Taena apareceu logo depois, e confessour ter passado a noite consolando Margaery e suas damas, bebendo vinho e chorando, contando histórias sobre Loras.
— Margaery ainda está convencida de que ele não vai morrer, — ela relatou, enquanto a Rainha vestia-se para a corte. — Ela pretende mandar seu próprio meistre para cuidar dele. Os primos estão orando pela misericórdia da Mãe.
— Vou rezar também. Amanhã, venha comigo para o Septo de Baelor, e vamos acender uma centena de velas para o nosso galante Cavaleiro das Flores. — Virou-se então para sua serva. — Dorcas, traga a minha coroa. A nova, por favor. — Era mais leve que o antigo conjunto, de ouro pálido com esmeraldas que brilhavam quando ela virava a cabeça.
— Há quatro vindo falar sobre o anão esta manhã, — Sor Osmund disse quando Jocelyn o admitiu no aposento.
— Quatro? — A rainha foi agradavelmente surpreendida. Um fluxo constante de informantes ia seguindo seu caminho até a Fortaleza Vermelha, alegando ter visto Tyrion, mas quatro em um dia era incomum.
— Sim, 
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— Vou vê-lo primeiro. Traga-o ao meu solar. — Desta vez, que não tenha erros. Deixe-me ser vingada, finalmente, de modo que Joff possa descansar em paz. O Septões diziam que o número sete era sagrado para os deuses. Se assim for, talvez esta sétima cabeça iria trazer a sua alma o bálsamo desejado.
O homem provou ser de Tyroshi; pequeno, robusto e suado, com um sorriso suntuoso que lembrava-lhe Varys e uma barba bifurcada pintada de verde e rosa. Cersei não gostou dele a primeira vista, mas estava disposta a esquecer suas falhas, se ele realmente tirasse a cabeça de Tyrion de dentro do baú que carregava. Era de cedro, com incrustrações em marfim em um padrão de vinhas e flores, com dobradiças e fechos de ouro branco. Uma coisa linda, mas para a Rainha só interessava o que poderia estar dentro. É grande o suficiente, pelo menos. Tyrion tinha uma cabeça grotescamente grande, para alguém tão pequeno e atrofiado.
— Vossa Graça, — o Tyroshi murmurou, curvando-se, — Eu a vejo tão linda como nos contos. Mesmo para além do mar estreito temos ouvido falar de sua grande beleza, e da dor que dilacera seu coração gentil. Nenhum homem pode devolver-lhe seu bravo e jovem filho, mas é minha esperança que eu possa, pelo menos, oferecer-lhe algum bálsamo para sua dor. — Ele colocou a mão sobre o peito. — Trago-lhe justiça. Trago-lhe a cabeça de seu valonqar.
A palavra do Valiriano antigo provocou um calafrio, mas também lhe deu um arrepio de esperança.
— O Duende não é mais meu irmão, se algum dia ele foi, — ela declarou. — Nem vou dizer o nome dele. Foi um nome de orgulho uma vez, antes dele desonrá-lo.
— Em Tyrosh nós o chamamos Mãos Vermelhas, pelo sangue que correu pelas suas mãos. O sangue de um rei, e de seu pai. Alguns disseam que ele matou sua mãe também, rasgando seu caminho através do seu ventre com garras selvagens.
Que bobagem, Cersei pensou.
— Isso é verdade, — ela disse. — Se a cabeça do Duende está neste baú, eu o declararei Senhor e concederei-lhe terras ricas e bens. — Títulos eram mais baratos que a sujeira, e as terras dos rios estavam cheias de castelos em ruínas desolados entre campos abandonados e aldeias queimadas. — Minha corte aguarda. Abra a caixa e deixo-nos ver.
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O Tyroshi abriu a caixa com um floreio, e recuou sorrindo. Dentro, a cabeça de um anão repousava sobre um leito de veludo azul suave, olhando para ela.
Cersei deu uma longa olhada.
— Este não é meu irmão. — Havia um gosto amargo na sua boca. Suponho que tive esperanças demais, depois de Loras. Os deuses nunca são tão bons. — Este homem tem olhos castanhos. Tyrion tinha um olho roxo e um 
— Os olhos, tão… Vossa Graça, os olhos de seu irmão eram... um pouco decadentes. Eu tomei a liberdade de substituí-los com vidro... mas da cor errada, como você disse.
Isso só a incomodava mais.
— Sua cabeça pode ter olhos de vidro, mas eu não. Há gárgulas em Pedra do Dragão que parecem mais com o Duende que esta criatura. Ele é careca, e tem duaz vezes a idade do meu irmão. O que aconteceu com os dentes?
O homem encolheu diante da fúria de sua voz.
— Ele tinha um belo conjunto de dentes de ouro, Vossa Graça, mas... lamento...
— Oh, não ainda. Mas você vai. — Eu deveria estrangulá-lo. Deixá-lo ofegar para respirar até que o rosto fique preto, da forma como meu querido filho fez. As palavras estavam em seus lábios.
— Um erro honesto. Um anão se parece muito com o outro, e… Vossa Graça vai observer, ele não tem nariz...
— Ele não tem nariz porque você o cortou.
— Não! — O suor em sua testa denunciava a mentira que ele tentava negar.
— Sim. — Havia um doce veneno no tom de voz de Cerse — Pelo menos  você teve bom senso. O último tolo tentou me contar que um grande feiticeiro havia feito o nariz crescer novamente. Ainda assim, parece que devo a este anão um nariz. A Casa Lannister paga suas dívidas, e assim será com você. Sor Meryn, leve esta fraude para Qyburn.
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Sor Meryn Trant pegou o Tyroshi pelo braço e arrastou-o, ainda protestando. Quando eles foram embora, Cersei virou-se para Osmund Kettleblack.
— Sor Osmund, tire esta coisa da minha vista, e traga os outros três que afirmam terem conhecimento do Duente.
— Sim, Vossa Graça.
Triste dizer que os três supostos informantes não se mostraram mais úteis que o de Tyroshi. Um deles disse que o Duente estava escondido em um bordel em vilavelha, dando prazer a homens com a boca. Era uma visão curiosa, mas Cersei não acreditou por um instante. O segundo afirmou ter visto ter visto o anão em um show de múmias em Bravos. O terceirou insisitou que Tyrion tinha se tornado um eremita nas terras dos rios, vivendo em uma colina assombrada. A rainhda deu a mesma resposta a cada um.
— Se você for tão bom em levar alguns dos meus bravos cavaleiros a este anão, você será muito bem recompensado, — prometeu. — Desde que ele seja o Duende. Se não for... bem, meus cavaleiros tem pouca paciência para a enganação, ou para tolos que os enviem para perseguir sombras. Um homem pode perder sua língua. — E rapidamente todos os três informantes perderam e fé e afirmaram que talvez eles poderiam ter visto algum outro anão.
Cersei nunca havia percebido que havia tantos anões.
— Está o mundo todo invadido por estes pequenos monstros torcidos? — ela reclamou, enquanto o último dos informantes estava sendo levado para fora. — Como pode existir tantos deles?
— Menos do que existem, — disse a Senhora Merryweather. — Posso ter a honra de acompanhar Vossa Graça para a corte?
— Se você pode suportar o tédio, — disse Cersei. — Robert foi um tolo sobre muitas coisas, mas ele estava certo em um aspecto. É um trabalho cansativo governar um reino.
— Entristece-me ver Vossa Graça tão atromentada. Eu digo, corra e brinque e deixe a Mão do Rei ouvir estas petições cansativas. Poderíamos nos vestir como servas e passar o dia todo entre o povo, para ouvir o que eles estão dizendo sobre a queda de Pedra do Dragão. Eu conheço a estalagem onde o Bardo Azul brinca quando não está cantando para a pequena rainha, e uma adega onde um mágico transforma chumbo
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em ouro, água em vinho e meninas em meninos. Talvez ele possa trabalhar seus feitiços em nós duas. Seria divertido para Vossa Graça ser um homem por uma noite?
Se eu fosse um homem eu seria Jaime, a Rainha pensava. Se eu fosse um homem eu poderia governar este reino em meu próprio nome no lugar de Tommen. 
— Só se você se mantiver uma mulher, — ela disse, sabendo que era o que Taena queria ouvir. — Você é uma coisa má para tentar-me assim, mas que tipo de rainha eu seria se colasse meu reino nas mãos trêmulas de Harys Swyft?
Taena amuou.
— Vossa Graça é muito diligente.
— Eu sou, — Cersei concordou, — e no final do dia eu lamentarei. — Ela escorregou seu braço com o da Senhora Merryweather. — Vamos.
Jalabhar Xho foi a sua primeira petição naquele dia, como convém a ele como um príncipe no exílio. Esplendido em seu manto de penas brilhantes, ele tinha vindo apenas para implorar. Cersei deixou ele fazer seu discurso sobre homens e braços para ajudá-lo a recuperar o Vale da Flor Vermelha, e em seguida disse:
—Vossa Graça está lutando sua própria guerra, Principe Jalabhar. Ele não tem homens de sobra para sua guerra agora. No ano que vem, talvez.
— Isso era o que Robert sempre dizia a ele. Ano seguinte ela lhe diria nunca, mas não hoje. Pedra do Dragão era dela.
Lorde Hallyne da Guilda dos Alquimistas apresentou-se, para pedir que seus piromaníacos fossem autorizados a eclodir qualquer ovo de dragão que pudesse se transformar em Pedra do Dragão, agora que a ilha estava a salvo de volta nas mãos do rei.
— Se esses ovos permancerem, Stannis poderia vendê-los para pagar por sua rebelião, — a rainha disse a ele. Ela se absteve de dizer que o plano era louco. Desde que o último dragão Targaryen tinha morrido, todas estas tentativas terminaram em morte, desgraça ou desastre.
Um grupo de comerciantes apareceu diante dela para implorer que o trono intercedesse por eles junto ao Banco de Ferro de Bravos. Os
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Bravosianos estavam exigindo reembolso das suas dividas pendentes ao que parecia, e recusavam todos os novos empréstimos. Precisamos de nosso próprio banco, Cersei decidiu, o Banco de ouro de Lannisporto. Talvez quando o trono de Tommen fosse seguro, ela poderia fazer isso acontecer. Por agora, tudo o que podia fazer era dizer aos comerciantes para pagar aos Bravosianos o que lhes era devido. 
A delegação da Fé era chefiada por seu velho amigo Septão Raynard. Seis dos Filhos do Guerreiro acompanhavam-o por toda a cidade; juntos eles eram sete, um número sagrado e propício. O novo Alto Septão — ou Alto Pardal, como o Menino da Lua o tinha apelidado — fez tudo pelo sete. Os cavaleiros usava cinto para espadas listrados nas sete cores da Fé. Cristais adornavam as baias de suas espadas longas e as cristas de seus grandes elmos.
Eles carregavam escudos no format de pipas, um estilo não comum desde a Conquista, exibindo um dispositivo que não era visto nos Sete Reinos pos séculos: uma espada arco-íris brilhando em cima de um campo de escuridão. Perto de uma centena de cavaleiros já haviam saído para lhe prometer suas vidas e espadas para os Filhos do Guerreiro, Qyburn alegou, e muitos mais a cada dia. Bêbados dos deuses, a maioria deles. Quem teria pensando o que reino tinha tantos deles?
A maioria tinha sido cavaleiros domésticos e cavaleiros de fortalezas, mas um punhado era de nascimento elevado; filhos mais novos, lordes mesquinhos, velhos querendo expiar os pecados da idade. E então havia Lancel. Ela tinha pensando que Qyburn deveria estar blefando quando ele disse a ela que seu primo idiota havia abandonado o castelo, as terras e a mulher e perambulou de volta a cidade para participar da nobre e pulsante Ordem dos Filhos dos Guerreiros, mas lá estava ele com os outros tolos piedosos.
Cersei não gostava de todos. Nem estava satisfeita com a truculência infinita e ingratidão do Alto Pardal.
— Onde está o Alto Septão? — Ela exigiu de Raynard. — Foi ele que eu convoquei.
Septão Raynard assumiu um tom pesaroso.
Sua Alta Santidade me enviou em seu lugar, e mandou que eu diga a Vossa Graça que os Sete enviaram a ele uma dura batalha.
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— Como? Pregando a castidade ao longo da Rua da Seda? Será que ele pensa que orando por prostitutas vai transformá-las de volta em virgens?
— Nossos corpos foram moldados por nossos Pai e Mãe, assim poderíamos ser tanto do sexo masculino quanto feminino e gerar filhos legítimos, — Raynard respondeu. — É de base e pecaminoso para as mulheres vender suas partes sagradas por moedas.
The pious sentiment would have been more convincing if the queen had not known that Septon Raynard had special friends in every brothel on the Street of Silk. No doubt he had decided that echoing the High Sparrow’s twitterings was preferable to scrubbing floors. “Do not presume to preach at me,” she told him. “The brothel keepers have been complaining, and rightly so.” 
O sentimento piedoso teria sido mais convincente se a rainha não soubesse que o Septão Raynard tinha amigos especiais em cada bordel da Rua da Seda. Sem dúvida, ele havia decidido que ecoar os pios do Alto Pardal era preferível que esfregar pisos.
— Não cabe a mim pregar. — Ela disse a ele. — Os guardas dos bordéis tem reclamado, e com razão.
— Se são os pecadores que falam, porque os justos deveriam
ouvir?
— Esses pecadores alimentam os cofres reais, — a rainha disse sem rodeios, — e seus centavos ajudam a pagar o salário da minha guarda real e construir navios para defender nossas costas. Existe um comércio a ser considerado também. Se Porto Real não tivesse bordéis, os navios iriam para Valdocaso ou Vila Gaivota. Sua Alta Santidade prometeu-me paz nas minhas ruas. Prostituir ajuda a manter a paz. Homens comuns quando privados de prostitutas estão aptos a voltar-se para o estupro. Doravante, Sua Alta Santidade faz suas preces no Septo, o lugar ao qual ele pertence.
A rainha esperava ouvir notícias de Lorde Gyles, mas ao invés disso o Grande Meistre Pycelle apareceu, sua face cinza e apática, para dizer que Rosby estava fraco demais para deixar sua cama.
— Triste dizer, eu temo que Lorde Gyles deve se juntar aos seus antepassados nobres em breve. Que o Pai possa julgá-lo com justiça.
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Se Rosby morrre, Mace Tyrell e a pequena rainha vão tentar forçar Garth, o Bruto a mim novamente.
— Lorde Gyles tem tosse há anos, e ele não morreu por isto, — reclamou. — Ele tossiu durante a metade do reinado de Robert e todo o reinado de Joffrey. Se ele está morrendo agora, só pode ser porque alguém o quer morto.
Grande Meistre Pycelle piscou em descrença.
— Vossa Graça? Quem iria querer Lorde Gyles morto?
— Seu herdeiro, talvez. — Ou a pequena rainha. — Alguma mulher que ele tenha desprezado. — Margaery e Mace e a Rainha de Espinhos, porque não? Gyles estava em seu caminho. — Um velho inimigo. Um novo. Você.
O velho empalideceu.
— Vossa Graça. Eu… tenho purgado este Lorde, sangrado ele, o tratado com cataplasmas e infusões... as nevoas dão a ele algum alívio e doces sonhos ajudam com a violência de sua tosse, mas ele está trazendo pedaços de seu pulmão agora, eu temo.
— Seja como for, você vai retornar para Lorde Gyles e informá-lo que ele não tem a minha licença para morrer.
— Se Vossa Graça permitir, dê-me licença. — Pycelle curvou-se rigidamente.
Havia mais, e mais, e mais, cada um dos peticionários mais chato que o último. E naquela noite, quando o último deles tinha finalmente voltado e ela estava comendo uma ceia simples, com seu filho, ela lhe disse:
— Tommen, quando você diz suas preces antes de dormir, diga a Mãe e ao Pai que você lhes é grato por ainda ser uma criança. Ser rei é trabalho duro. Eu prometo a você, você não vai gostar. Eles bicam você como em um assassinato de corvos. Cada um quer um pedaço da sua carne.
— Sim, Mãe, — disse Tommen, em um tom triste. A pequena rainha lhe contara sobre Sor Loras, ela compreendeu. Sor Osmund disse que o menino tinha chorado. Ele é jovem. Até chegar a idade na qual Joff moreu, ele não se lembrará da aparência de Loras. — Eu não me importaria com as bicadas, porém, — seu filho chegou a dizer. — Eu
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deveria ir ao tribunal com vocês todos os dias, para ouvir. Margaery disse.
— É coisa demais, — Cersei completou. — Por um momento eu ficaria feliz que ela tivesse sua língua arrancada.
— Não diga isso, — gritou Tommen de repente, seu rosto redondo ficando um pouco vermelho. — Você deixará a língua dela em paz. Não vai tocá-la. Eu sou o Rei, não você.
Ela olhou para ele, incredula.
— O que você disse?
— Eu sou o Rei. Eu que direi quem terá a língua arrancada, não você. Eu não vou deixar você machucar Margaery. Eu não vou. Eu a proíbo.
Cersei tomou-o pela orelha e arrastou-o gritando para a porta, onde encontrou Sor Boros Blounte em guarda permanente.
— Sor Boros, Vossa Graça esqueceu de si mesmo. Gentileza escoltá-lo até seu quarto e traga Pate. Desta vez eu quero que Tommen chicoteie o garoto. Ele deve continuar até que o garoto esteja sangrando nas duas bochechas. Se Vossa Graça se recursar, ou diga uma palavra de protesto, chame Qyburn e diga-lha para remover a língua de Pate, assim Vossa Graça poderá aprender qual é o custo da insolência.
— Será como ordena, — Sor Boras bufou, olhando para o rei, inquieto. — Vossa Graça, venha comigo por favor.
Quando a noite caiu sobre a Fortaleza Vermelha, Jocelyn acendeu um fogo na lareira, enquanto a criada da rainha, Dorcas, acendeu as velas da cabeceira. Cersei abriu a janela para uma lufada de ar, e encontrou as nuvens escondendo as estrelas.
— Uma noite muito escura, Vossa Graça, — murmurou Dorcas.
Sim, ela pensou, mas não tão escuro quanto na Arcada das Donzelas, ou em Pedra do Dragão onde Loras Tyrell se encontra queimado e sangrando, ou abaixo nas celas escuras do castelo. A Rainha não sabia porque lhe ocorreu. Ela tinha resolvido não dar a Falyse outro pensamento. Um combate singular. Falyse deveria ter pensado melhor antes de se casar com um tolo. A palavra de Stokewoth foi que a Senhora Tanda tinha morrido de um calafrio no peito, causado por seu quadril quebrado. Lollys Lackwit havia sido proclamada Senhora Stokeworth,
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com Sor Bronn seu senhor. Tanda morta e Gyles morrendo. Ainda bem que temos o Rapaz Lua, ou o tribunal seria inteiramente desprovido de tolos. A rainha sorria quando deitou a cabeça sobre o travesseiro. Quando eu beijei seu rosto, eu pude provar o sal das suas lágrimas.
Ela sonhou um sonho antigo, de três meninas em capas marrons, uma velha abraçada, e uma tenda que cheirava a morte. A tenda da velha era escura, com um teto alto fino. Ela não queria entrar, não mais do que ela queria quando tinha dez anos, mas as outras meninas estavam olhando para ela, então ela não poderia se afastar. Elas eram três no sonho, como tinham sido na vida. A gorda Jeyne Farman a abraçou por trás como sempre fazia. Era uma maravilha que ela tivesse chegado tão longe. Melara Hetherspoom era mais velha, mais ousada e mais bonita, em um jeito difícil de dizer. Envolta em mantos de pele com seus capuzes puxados para cima, as três haviam roubado de suas camas e partido em uma cruzada para encontrar a feiticeira. Melara tinha ouvido as criadas sussurando como ela poderia amaldiçoar um homem ou fazê-lo cair no amor, convocar demônios e prever o futuro.
Na vida as garotas tinha ficado sem folego e tontas, sussurando uma para as outras como elas tinha ido, excitadas como estavam com o medo. No sonho foi diferente. No sonho, os pavilhões estavam sombreados e os cavaleiros e criados que passavam eram feitos de névoa. As meninas vagaram por um longo tempo antes de encontrar a tenda da velha. Encontraram no momomento que todas as tochas foram colocadas para fora. Cersei observava as meninas conversando, sussurando uma para as outras. Volte, ela tentou dizer a eles. Afastem-se. Não há nada aqui para vocês. Mas ainda que ela tenha movido seus lábios, as palavras não saíam.
A filha do Lorde Twin foi a primeira a passar pelo retalho, com Melara logo atrás dela. Jeyne Farman entrou por último, e tentou se esconder atrás das outras duas, como ela sempre fazia.
O interior da tenda estava cheio de cheiros. Canela e nozmoscada. Pimenta, vermelha, branca e preta. Leite de amendoas e cebolas. Cravo e capim-limão e açafrão, e especiarias raras e estranhas. A única luz vinha de um braseiro de ferro em forma de cabeça de um basilisco, uma lua verde fraca que fez as paredes da tenda parecerem frias, mortas e podres. Teria sido assim em vida também? Cersei não conseguia se lembrar.
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A feiticeira estava dormindo no sonho, assim como ela estava dormindo na vida. Deixe-a, a rainha queria gritar. Suas pequenas tolas, nunca acorde uma feiticeira de seu sonho. Sem a língua, ela só conseguia ver a menina jogando fora seu manto, chutando a cama da bruxa, e dizendo:
— Acorde, nós queremos que conte nossos futuros.
Quando Maggy, a Sapa abriu os olhos, Jeyne Farman deu um guincho assustado e fugiu da tenda, mergulhando de cabeça de volta para a noite. Pequena e estúpida Jeyne, de rosto pálido, gorda e com medo de cada sombra. Ela foi a única sábia, entretanto. Jeyne viveu em Ilha Quieta. Ela casou-se com um vassalo de seu irmão Lorde e pariu uma dúzia de filhos. 
 
The old woman’s eyes were yellow, and crusted all about with something vile. In Lannisport it was said that she had been young and beautiful when her husband had brought her back from the east with a load of spices, but age and evil had left their marks on her. She was short, squat, and warty, with pebbly greenish jowls. Her teeth were gone and her dugs hung down to her knees. You could smell sickness on her if you stood too close, and when she spoke her breath was strange and strong and foul. “Begone,” she told the girls, in a croaking whisper. 
Os olhos da velha eram amarelos, e seu rosto era encrostado por algo maligno. Em Lannisporto foi dito que ela tinha sido jovem e bonita quando seu marido a trouxe de volta do oriente com uma carga de especiairas, mas a idade e o mal tinha deixado suas marcas sobre ela. Ela era pequena, curta e encurvada, e sua mandíbula tinha pelos esverdeados. Seus dentes tinham ido embora e seus seios chegavam aos joelhos. Era possível sentir o cheiro da doença se chegasse perto demais dela, e quando ela falou, sua respiração era estranha, forte e fétida.
— Vão embora, ela disse às meninas, em um sussurro.
— Nós viemos para uma previsão, — a jovem Cersei disse a ela.
— Vão Embora, — resmungou a velha, uma segunda vez.
— Nós ouvimos que você pode prever o futuro, — disse Melara. — Nós só queremos saber com que homens nós nos casaremos.
— Vão embora, — resmungou Maggy, uma terceira vez.
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Escutando-a, a rainha teria gritado se ela tivesse voz. Vocês ainda tem tempo para fugir. Corram, suas pequenas tolas!
A menina com os cachos dourados colocou as mãos sobre seus quadris.
— Dê-nos a nossa previsão, ou contarei ao senhor meu pai e você será chicoteada por insolência.
— Por favor, — implorou Melara. — Basta dizer-nos o nosso futuro, e nós iremos embora.
— Alguns que estão aqui não tem futuro, — Maggy murmurou em sua terrível voz grave. Ela puxou o manto sobre seus ombros e acenou para as meninas chegarem mais perto. — Aproxime-se, se não querem ir embora. Tolas. Aproximem-se, sim. Eu preciso provar seu sangue.
Melara empalideceu, mas não Cersei. Uma leoa não teme um sapo, não importa quão velho e feio a velha poderia ser. Ela deveria ter ido embora, ela deveria ter escutado, ela deveria ter fugido. Em vez disso, ela tomou o punhal que Maggy ofereceu a ela, e correu a lâmina de ferro torcido através de seu polegar. Então ela fez em Melara o mesmo.
Na tenda iluminada por luz verde, o sangue parecia mais negro que vermelho. A boca desdentada de Maggy tremeu ao ver isso.
— Aqui, — ela sussurou: — dá-la aqui. — Quando Cersei estendeu a mão, ela sugou o sangue com gengivas tão suaves como as de um recém-nascido. A rainhda ainda podia se lembrar quão estranha e fria a boca da velha havia sido. — Três perguntsa você pode fazer, — disse a anciã, uma vez que ela tinha bebido. — Você não vai gostar das minhas respostas. Pergunte, ou termino com você.
Vá, sonhando, a Rainha pensou, segure sua lingua, e fuja. Mas a garota não tinha bom senso suficiente para ter medo.
— Quando eu vou casar com o Príncipe? — Ela perguntou.
— Nunca. Você vai casar com o Rei.
Sob seus cachos dourados, o rosto da menina enrugou em perplexidade. Durante anos depois, ela tomou essas palavras para significar que ela não se casaria com Rhaegar até depois que seu pai Aerys tivesse morrido.
— Eu serei a rainha, então? — perguntou a jovem Cersei.
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“Aye.” Malice gleamed in Maggy’s yellow eyes. “Queen you shall be... until there comes another, younger and more beautiful, to cast you down and take all that you hold dear.” 
Anger flashed across the child’s face. “If she tries I will have my brother kill her.” Even then she would not stop, willful child as she was. She still had one more question due her, one more glimpse into her life to come. “Will the king and I have children?” she asked. 
— Sim. — A malícia brilhou nos olhos amarelos de Maggy. — Rainha você será … até que venha outra, mais jovem e mais bonita, para lançar você para baixo e tomar a todos que lhe são caros.
A raiva passou pelo rosto da criança.
— Se ela tentar, terei meu irmão para matá-la. — Mesmo assim ela não pararia, criança voluntariosa como ela era. Ela ainda tinha mais uma pergunta para ela, mais um vislumbre de sua vida por vir. — Eu e o rei teremos filhos? — Ela perguntou.
— Oh, sim. Dezeis para ele, e três para você.
Isso não fazia sentido para Cersei. Seu polegar estava latejando onde ela tinha se cortado, e o sangue estava pingando sobre o tapete. Como pode ser isso? Ela queria perguntar, mas ela já havia acabado com suas perguntas.
A velha no entanto não havia terminado para ela.
— O ouro deve ser as suas coroas e suas mortalhas, — disse ela. — E quando suas lágrimas te afogarem, o valonqar deve envolver as mãos sobre sua garganta pálida e sufoca-la até a morte.
— O que é um valonqar? Um monstro? — A menina de ouro não estava gostando da previsão. — Você é uma mentirosa, uma sapa e uma selvagem velha e fedida, e eu não acredito em nenhuma palavra do que você diz. Saia Melara. Ela não vale a pena ser ouvida.
— Eu tenho três pergunts também, — insistiu a amiga. E quando Cersei puxou seu braço, ela se contorceu e se livrou, e voltou para a velha. — Vou casa com Jaime? — Ela deixou escapar.
Sua garota estúpida, a Rainha pensou, com raiva até mesmo agora. Jaime não sabe nem que você existe. Naquela época, seu irmão vivia apenas para espadas, cães e cavalos ... e para ela, sua irmã gêmea.
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— Não Jaime, nem qualquer outro homem, — disse Maggy. — Vermes terão a sua virgindade. Sua morte está aqui esta noite. Pode cheirar seu hálito? Está bem perto.
— O único cheiro que podemos respirar é o seu, — Cersei disse. Havia um pote de alguma poção espessa perto de seu cotovelo, colocado em uma mesa. Ela agarrou-o e jogou-o nos olhos da velha. Na vida a velha tinha gritado para elas em uma estranha língua estrangeira, e as amaldiçoou enquanto elas fugiram da tenda. Mas no sonho a face da bruxa se dissolveu, derretendo em fitas de névoa cinza até que tudo que restava eram dois olhos amarelos, os olhos da morte.
O valonqar deverá envolver as mãos sobre sua garganta, a Rainha ouviu, mas a voz não pertencia a mulher idosa. As mãos emergiram das brumas do seu sonho e enrolaram seu pescoço, mãos grossas e fortes. Acima deles, flutuava o seu rosto, olhando de soslaio para ela com olhos incompatíveis. Não, a Rainha tentou gritar, mas os dedos do anão apertaram seu pescoço, asfixiando seus protestos. Ela chutou e gritou em vão. Em pouco tempo ela estava fazendo o mesmo som que seu filho havia feito, o som de sucção terrível que marcou o último suspiro de Joff na terra.
 
Ela acordou ofegante no escuro, com o cobertor ferindo-a no pescoço. Cersei arrancou-o tão violentamente que se rasgou, e sentou-se com os seios arfando. Um sonho, disse a si mesma, um sonho antigo e confuso, isso é tudo. Taena foi passar a noite com a pequena rainha de novo, por isso era Dorcas que dormia ao lado dela. A Rainha apertou a garota no ombro.
— Acorde, e encontre Pycelle. Ele vai estar com Lorde Gyles, eu espero. Traga-o aqui rápido. — Ainda meio adormecida, Dorcas tropeçou da cama e foi correndo para o outro lado da câmara para pegar suas roupas, seus pés descalços sobre o piso.
Depois de bastante tempo, o Grande Meistre Pycelle entrou e parou diante dela com a cabeça curvada, piscando seus olhos de pálpebras pesadas e lutando para não bocejar. Ela olhou como o peso da corrente do Meistre era enorme sob seu pescoço e o arrastava paa o chão. Pycelle tinha sido velho desde que Cersei conseguia se lembrar, mas houve um momento que ele também havia sido magnífico: ricamente vestido, digno, requintadamente cortês. Sua barba branca imensa lhe tinha dado um ar de sabedoria. Tyrion tinha raspado a barba fora, e o que
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tinha crescido de volta era triste, tufos de cabelo fino e frágil que pouco servia para esconder a carne cor de rosa solta sob o queixo flácio. Este não é um homem, pensou ela, apenas as ruínas de um. As celas pretas roubaram-lhe toda a força que tinha. Isso, e a navalha do Duende.
— Quanto anos você tem? — Cersei perguntou, abruptamente.
— Oitenta e quatro, se agradar Vossa Graça.”
— Um homem mais jovem me agradaria mais.
O velho passou a língua pelos lábios.
— Eu tinha quarente e dois anos quando o Conclave me chamou. Kaeth tinha oitenta quando foi escolhido, e Ellendor estava perto dos noventa anos. Os afazeres do trabalho os esmagaram e ambos estavam mortos antes de completar um ano. Merion veio em seguida, com sessente e seis anos, mas ele morreu de frio a caminho de Porto Real. Depois o Rei Aegon pediu a cidadela para enviar um homem mais jovem. Ele foi o primeiro Rei que eu servi. 
E Tommen deverá ser o ultimo.
— Eu preciso de uma poção de você. Algo para me ajudar a dormir.
— Um copo de vinho antes de dormir pode...
— Eu bebo vinho, seu idiota cretino. Preciso de algo mais forte. Algo que não me deixe sonhar.
— Vossa Graçã não deseja sonhar?
— O que acabei de dizer? Suas orelhas ficaram tão fracas quanto seu pau? Você pode me fazer a tal poção, ou devo pedir ao Lorde Qyburn para corrigir outras de suas falhas?
— Não. Não há necessidade de envolvê-lo... envolver Qyburn. Sono sem sonhos. Você terá a sua poção.
— Bom. Você pode ir. — Quando ele se virou em direção a porta ela o chamou de volta. — Mais uma coisa. O que a Cidadela ensina sobre profecias? Podem ser preditos nossos futuros?
O velho hesitou. Uma mão enrugada tateou cegamente seu peito, procurando pela barba que não estava mais lá.
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— Se o futuro pode ser predito? — Ele repetiu lentamente. — Provavelmente. Há certas magias nos livros antigos... ao invés disso,Vossa Graça pode perguntar — Nosso futuro deve ser contado? E para isso eu deveria responder: — Não. Algumas portas é melhor serem mantidas fechadas.
— Feche a minha porta quando você sair. — Ela deveria ter sabido que ele lhe daria uma resposta tão inútil como ele próprio era.
Na manhà seguinte ela quebrou seu jejum com Tommen. O garoto parecia muito fraco; bater em Pate tinha servido ao seu propósito ao que parece. Eles comeram ovos fritos, pão frito, bacon e algumas laranjas vermelhas recém-chegadas de navio de Dorne. Seu filho teve a participação dos seus gatinhos. Enquanto ela observava os gatos brincando sob seus pés, Cersei sentiu-se um pouco melhor. Nenhum dano será feito a Tommen enquanto eu viver. Ela iria matar metade dos senhores em Westeros e todo o povo, se era isso que deveria ser feito para mantê-lo seguro.
— Vá com Jocelyn, disse ao menino depois que comeram.
Então ela foi encontrar Qyburn.
— A Senhora Falyse ainda está viva?
— Viva, sim. Talvez não totalmente... confortável.
— Eu vejo. — Cersei considerou por um momento. — Este homem, Bronn… eu não gosto de saber que tenho um inimigo tão próximo. Seu poder vem todo de Lollys. Se fossemos produzir uma irmã mais velha…
— Ai de mim — disse Qyburn. — Temo que a Senhora Falyse já não seja capaz de governar Stokeworth. Ou, de fato, de se alimentar. Tenho aprendido muito com ela, é um prazer dizer, mas as aulas não foram totalmente gratuitas. Espero não ter ultrapassado as instruções de Vossa Graça.
— Não. — Tudo que ela tinha pretendido, era tarde demais. Não havia sentido em deliberar sobre tais coisas. É melhor para ela morrer, ela disse a si mesma. Ela não iria querer continuar vivendo sem o marido. Idiota como ele era, a tola parecia gostar dele. — Há um outro assunto. Ontem a noite eu tive um sonho terrível.
— Todos os homens tem suas aflições de tempos em tempos.
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— Este sonho diz respeito a uma mulher bruxa que eu visitei quando era criança.
— Uma bruxa dos bosques? A maioria são criaturas inofensivas. Elas sabem um pouco da arte das ervas e algumas são parteiras, entretanto...
— Ela era mais que isso. Metade de Lannisporto costumava ir até ela para encantos e poções. Ela era a mãe de um senhor pequeno, um rico comerciante trazido pelo meu avô. O pai deste senhor tinha criado seu comércio no leste. Alguns dizem que ela lançou um feitiço sobre ele, embora o único encanto que ela precisava estava no meio de suas coxas. Ela nem sempre foi horrível, eles diziam. Não me lembro o nome da mulher. Algo grande e estrangeiro. O povo costumava chamá-la Maggy.
— Maegi?
— É asim que você pronuncia isso? A mulher chuparia uma gota de sangue de seu dado, e lhe diria o que o seu futuro aguarda.
— Magia de sangue é o tipo mais negro de feitiçaria. Alguns dizem que é o mais poderoso também.
Cersei não queria ouvir isso.
— Esta Maegi fez certas profeciais. Eu ri delas no início mas... Ela previu a morte de um das minhas aias de companhia. Na época que ela fez a profecia, a menina tinha 11 anos e era saudável como um cavalo pequeno, e segura dentro do Rochedo. No entanto, ela logo caiu em um poço e se afogou. — Melara havia implorado para não falar das coisas que elas ouviram naquela noite de Maegi. Se nunca falarmos sobre isso vamos esquecer logo, e então será apenas um sonho ruim que tivemos, Melara havia dito. Maus sonhos nunca se tornam realidade. Ambas era tão jovens, que havia soado quase sábio esquecer deste episódio. 
— Você ainda lamenta por essa amiga da sua infância? — Qyburn perguntou. — É isso que a incomoda, Vossa Graça?
— Melara? Não. Eu mal posso me lembrar de como ela se parecia. É apenas... Maegi sabia quantos filhos eu teria, e ela sabia dos bastardos de Robert. Anos antes dele ter desejado, mesmo o primeiro deles, ela sabia. Ela me prometeu que eu deveria ser a rainha, mas disse que outra rainha viria... — mais jovem, e mais bonita, ela disse. —... Outra rainha, que me tiraria tudo que eu amava.
— E você deseja evitar esta profecia?
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Mais do que tudo, ela pensou.
— Pode ser evitado?
— Oh sim, nunca duvide disso.
— Como?
— Acho que Vossa Graça sabe como.
Ela sabia. Eu sabia disso o tempo todo, ela pensou. Mesmo na tenda. Se ela tentar, terei meu irmão para matá-la.
Saber o que precisava ser feito era uma coisa, fazê-lo era outra. Jaime já não podia ser chamado. Uma doença súbita seria melhor, mas os deuses raramente eram tão maleáveis. Como então? Uma faca, um travesseiro, um copo de veneno para o coração? Todos estes problemas juntos. Quando um homem velho morre durante o sono ninguém pensa duas vezes nele, mas uma menina de dezesseis anos encontrada morta na cama com certeza levantaria questões embaraçosas. Além disso, Margaery nunca dormia sozinha. Mesmo com Sor Loras morrendo, havia espadas com ela dia e noite.
Espadas tem dois gumes, no entanto. Os mesmos homens que a guardam poderiam ser usados para derrubá-la. As provas teriam de ser tão grandes que até mesmo o lorde pai de Margaery não teria outra opção a não ser concordar com a sua execução. Isto não seria fácil. Seus amantes não confessariam, sabendo que isto significaria suas cabeças, assim como a dela. A menos que...
No dia seguinte, a Rainha foi até Osmund Kettleblack no pátio, enquanto ele treinava com um dos gêmeos Redwyne. Qual era aquele ela não poderia dizer, ela nunca tinha sido capaz de dizer qual dos dois era, quando estavam separados. Ela assistiu a esgrima por um tempo, então ela chamou Sor Osmund de lado.
— Caminhe comigo um pouco, — disse ela, — e me diga a verdade. Não quero elogios vazios, sem falar que um Kettleblack é três vezes melhor que qualquer outro cavaleiro. Pode montar sua resposta direito. Seu irmão Osney. Quão boa é a espada dele?
— Boa. Você viu ele. Ele não é tão forte quanto eu ou Osfryd, mas ele é rápido para matar.
— Se ele veio para isso, ele poderia derrotar Sor Boros Blount?
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— Boros a Barriga? — Sor Osmund gargalhou. — Ele tem o que, quarenta? Cinquenta? Meio bêbado metade do tempo, gordo mesmo quando está sóbrio. Sim Vossa Graça, se quer Sor Boros morto, Osney poderia fazê-lo facilmente. Porque? Boros fez alguma traição.
— Não — ela disse. Mas Osney fez.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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BRIENNE BRIENNE BRIENNE BRIENNE  
 
 
les encontraram o primeiro cadáver a uma milha da encruzilhada.
Ele balançava sob o galho de uma árvore morta, cujo tronco enegrecido ainda trazia as cicatrizes do relâmpago que o tinha matado. Os corvos haviam trabalhado em seu rosto, e os lobos fizeram um banquete da parte inferior de suas pernas, que ficaram perto do chão. Somente ossos e trapos permaneceram abaixo dos joelhos... juntamente com um sapato bem mastigado, semicoberto por lama e mofo.
— O que ele tem na boca? — Perguntou Podrick. Brienne teve que se obrigar a olhar. Seu rosto era cinza, verde, medonho, e a boca estava aberta e distendida. Alguém tinha enfiado uma pedra branca entre seus dentes. Uma pedra, ou...
— Sal — disse o Septão Meribald.
Cinquenta metros adiante, viram o segundo corpo. Os lobos o tinham rasgado embaixo, e o que restou dele estava espalhado pelo chão, debaixo de uma corda desfiada que estava amarrada ao galho de um olmo. Brienne poderia ter passado por ele sem percebê-lo, se o cão não o tivesse cheirado e galopado mato adentro, seguindo o rastro do cheiro.
— O que tem lá, cão? — Sor Hyle desmontou, caminhou atrás do cachorro, e voltou com um pedaço de elmo. O crânio de um homem morto ainda estava dentro dele, junto com algumas minhocas e besouros. — Aço bom, — ele examinou, — e não está muito estragado, ainda que o leão tenha perdido sua cabeça. Pod, gostaria de ter um elmo?
— Não esse. Tem vermes nele.
— Lave-o, rapaz. Você é medroso como uma menina.
Brienne fez uma careta para ele.
— É grande demais para ele.
— Ele vai crescer dentro dele.
— Eu não quero, — disse Podrick. Sor Hyle encolheu os ombros, e jogou o elmo quebrado de volta para o mato, com a cabeça do leão e tudo. O cachorro latiu e então foi levantar a perna contra uma árvore.
Depois disso, raramente andavam cem metros sem encontrar um cadáver. Eles balançavam sob cinzas e amieiros, faias e bétulas, lariços e olmos, de velhos salgueiros cinza e imponentes castanheiras. Cada homem
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tinha uma corda em seu pescoço, e pendia por um pedaço de corda de cânhamo, e a boca de cada um estava cheia de sal. Alguns usavam capas de cor cinza, azul ou carmesim, embora a chuva e o sol as tivesse desvanecido de tal forma que era difícil distinguir uma cor da outra. Outros tinham emblemas costurados em seus peitos. Brienne viu eixos, flechas, vários salmões, um pinheiro, uma folha de carvalho, besouros, galinhas anãs, uma cabeça de javali e meia dúzia de tridentes. Homens quebrados, ela percebeu, sobras de uma dúzia de exércitos, os restos dos senhores.
Alguns dos homens mortos eram carecas, e alguns barbudos, alguns eram jovens e outros eram velhos, alguns eram baixos, alguns altos, alguns gordos e outros magros. Com o inchaço da morte, seus rostos roídos e podres, todos pareciam iguais. Numa árvore de forca, todos os homens são irmãos. Brienne tinha lido isso em um livro, embora qual ela não conseguisse lembrar.
Foi Hyle Hunt, que, finalmente, disse as palavras que todos já tinham descobertos.
— Estes são os homens que invadiram as Salinas.
— Que o Pai julgue-os severamente, — disse Meribald, que tinha sido amigo do velho septão da cidade.
Quem eles eram não preocupava Brienne, e sim quem os tinham pendurado. O enforcamento era o método preferido de execução de Beric Dondarrion e seu bando de foras da lei. Se assim fosse, o chamado senhor dos raios poderia estar bem próximo dali.
O cão latiu, e Septão Meribald olhou em volta com a testa franzida.
— Vamos aumentar o passo? O sol não tardará a se por, e os cadáveres não são uma boa companhia à noite. Estes homens eram escuros e perigosos, vivos. Duvido que a morte os tenha melhorados.
— Nisso estamos em desacordo, — disse Sor Hyle. — Estes são exatamente o tipo de pessoas que estão melhores com a morte. — Tendo dito, ele colocou os calcanhares em seu cavalo, e eles passaram a andar um pouco mais rápido.
Mais adiante as árvores começaram a ficarem escassas, mas não os cadáveres. O bosque deu seu lugar a campos de lama, galhos de árvores para forcas. Nuvens de corvos levantavam voo dos corpos entre grasnidos com a aproximação dos viajantes, e voltavam novamente após eles passarem. Estes homens eram maus, Brienne lembrou a si mesma, mas a visão ainda a deixou triste.
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Ela se forçou a olhar para cada homem em busca de rostos conhecidos. Alguns ela pensou reconhecer de Harrenhal, mas a condição deles tornava difícil ter certeza. Nenhum deles tinha um elmo em forma de cabeça de cão, embora alguns tivessem elmos de outras espécies. A maioria tinha sido despojada de suas armas, armaduras e botas, antes de serem enforcados.
Quando Podrick perguntou o nome da estalagem onde eles iriam passar a noite, o Septão Meribald apoderou-se do assunto, talvez para tirar suas mentes das terríveis sentinelas ao longo da estrada.
— A Velha Estalagem, alguns a chamam. Lá existiu uma estalagem por muitas centenas de anos, embora ela tenha sido construída apenas durante o reinado do Jaehaerys primeiro, o rei que construiu a Estrada do Rei. Jaehaerys e sua rainha dormiam lá durante suas viagens, dizem. Por um tempo a pousada foi conhecida como Duas Coroas em sua honra, até que o conservador da estalagem construiu uma torre com um sino, e o seu nome foi alterado para Estalagem do Sino. Mais tarde ela passou para as mãos de um cavaleiro aleijado chamado Longo Jon Liza, que se dedicou ao trabalho de ferreiro quando começou a se sentir velho demais para lutar. Ele forjou um novo signo para o pátio, um dragão negro de ferro com três cabeças, que ele pendurou num poste de madeira. A besta era tão grande que teve de ser feita em uma dezena de peças, unidas com corda e arame. Quando o vento soprava as peças se chocavam umas nas outras, de modo a que a estalagem acabou ficando conhecida como o Dragão Tilintante.
— O signo do dragão ainda está lá? — Perguntou Podrick.
— Não, — disse o Septão Meribald. — Quando o filho do ferreiro ficou velho, um filho bastardo de Aegon Quarto levantou-se em rebelião contra o seu irmão legítimo e adotou como escudo um dragão negro. Essas terras pertenciam a Lorde Darry, e sua senhoria era ferozmente leal ao rei. A visão do dragão de ferro negro o deixava indignado, por isso ele cortou o poste de madeira, e o dragão foi fatiado e depois lançado ao rio. Uma das cabeças do dragão foi achada na Ilha Quieta muitos anos depois, embora, por essa altura, já estivesse vermelha de ferrugem. O conservador da estalagem nunca pendurou outro sinal, assim os homens esqueceram o dragão e passaram a chamar o lugar de Estalagem do Rio. Naqueles dias, o Tridente corria por baixo da porta dos fundos, e metade de seus quartos foram construídas sobre a água. Os hóspedes podiam jogar uma linha pela janela e pegar uma truta, diziam. Também havia um barco que fazia a travessia do rio, assim os viajantes podiam ir para a aldeia do Senhor Harroway e para a Muralha.
— Nós deixamos o sul do Tridente aqui, e andamos em direção ao
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noroeste... não em direção ao rio, mas para longe dele.
— Sim, minha senhora, — disse o septão. — O rio se moveu. Há setenta anos. Ou oitenta? Foi quando o avô de Masha Heddle cuidava da estalagem. Foi ela quem me contou toda esta história. Uma mulher bondosa, Masha, amante de folhamarga e bolos de mel. Quando ela não tinha um quarto vago para mim, me deixava dormir ao lado da lareira, e ela nunca me deixou seguir meu caminho sem um pouco de pão, queijo e alguns bolos duros.
— Ela é a estalajadeira agora? — Perguntou Podrick.
— Não. Os leões a enforcaram. Depois que eles se mudaram, eu ouvi dizer que um de seus sobrinhos tentou reabrir a estalagem, mas as guerras deixaram as estradas muito perigosas para o povo viajar, assim ele não teve muitos clientes. Ele trouxe prostitutas, mas nem isso o salvou. Alguns senhores o mataram, eu ouvi falar.
Sor Hyle fez uma careta.
— Eu nunca sonhei que manter uma estalagem pudesse ser tão perigoso.
— O perigo é ser parte do povo quando os grandes senhores jogam o jogo dos tronos, — disse o Septão Meribald. — Não é assim, cachorro? — O cão latiu concordando.
— Então, — disse Podrick, — como se chama a estalagem agora?
— A chamamos de A Estalagem da Encruzilhada. O Irmão Maior me disse que duas das sobrinhas de Masha Heddle a abriram para o comércio mais uma vez. — Ele levantou seu bastão. — Se os deuses forem bons, esta fumaça que sobe além dos enforcados será a que sai de suas chaminés.
— Eles podem chama-la de Estalagem da Forca — disse Sor Hyle.
Chama-se o que fosse, era uma grande estalagem. Subia três andares acima das estradas enlameadas, suas paredes, suas torres e suas chaminés de uma fina pedra branca brilhavam pálidas e fantasmagóricas contra o céu cinzento. Sua ala sul fora construída sobre pilares de madeira, sobre um terreno cheio de ervas daninhas e grama seca. Na ala norte havia um estábulo com telhados de palha e uma torre com um sino. A estalagem era cercada por um muro baixo de pedras brancas, quebradas, cobertas por musgo.
Pelo menos não a queimaram. Nas Salinas, tinham encontrado apenas morte e desolação. Até o momento Brienne e seus companheiros tinham sido levados de barco para fora da Ilha Quieta, os sobreviventes
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tinham fugido e os mortos tinham sido enterrados, mas o cadáver da própria cidade permanecia pálido, insepulto. O ar ainda cheirava a fumaça e os grasnidos das gaivotas que sobrevoavam a região pareciam quase humanos, como os gritos das crianças que se perdem. Até mesmo o castelo parecia triste e abandonado. Tão cinza como a cidade que o rodeava, o castelo era um quadrado rodeado por uma muralha, construído de forma que pudesse ser avistado do porto. Ele foi firmemente fechado quando Brienne e os outros tiraram seus cavalos da balsa, e nada se movia em suas ameias. Demorou quinze minutos de latidos de cães e batidas no portão do Septão Meribald para uma mulher aparecer acima deles, lhes perguntando o que queriam.
Por essa altura, o barco já havia partido e a chuva tinha começado a
cair.
— Eu sou um septão, boa senhora, — Meribald gritou para ela, — e estes são viajantes honestos. Procuramos abrigo da chuva, e um lugar ao fogo durante a noite. — A mulher foi indiferente a seus apelos. — A estalagem mais próxima fica na encruzilhada, a oeste, — ela respondeu. — Não queremos estranhos aqui. Vão embora.
Quando ela desapareceu, nem as orações de Meribald, nem os latidos do cachorro, nem as maldições de Sor Hyle foram capazes de trazê-la de volta. Eles acabaram passando a noite no mato, debaixo de um abrigo feito de ramos entrelaçados.
No entanto, havia vida na estalagem da encruzilhada. Mesmo antes de chegarem ao portão, Brienne tinha ouvido um som a martelar, fraco, mas constante.
— Uma forja, — Sor Hyle disse. — Ou eles tem um ferreiro, ou o fantasma do velho estalajadeiro está fazendo outro dragão de ferro. — Ele colocou seus calcanhares no cavalo. — Eu espero que eles tenham um cozinheiro fantasma também. Um frango assado fresquinho me deixaria muito feliz.
O pátio da estalagem era um mar de lama marrom que atolava os cascos dos cavalos. O barulho de aço era mais forte ali, e Brienne via o brilho vermelho da forja do outro lado dos estábulos, atrás de um carro de boi com uma roda quebrada. Ela podia ver os cavalos nos estábulos também, e um menino que balançava em uma forca nas cadeias enferrujadas que pairavam sobre o quintal. Quatro meninas estavam na varanda da estalagem, observando-os. A mais nova não tinha mais do que dois anos, e estava pelada. A mais velha, de nove ou dez, tinha os braços postos protetoramente sobra a pequena.
— Meninas, — disse Sor Hyle, — corram e tragam sua mãe.
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O menino caiu da cadeira e correu em direção aos estábulos. As quatro meninas ficaram inquietas. Depois de um momento, uma deles disse:
— Nós não temos mães, — e outra acrescentou:
— Eu tinha uma, mas eles a mataram.
A mais velha das quatro adiantou-se, empurrando a menor para trás de suas saias.
— Quem são vocês? — Ela perguntou exigente.
— Honestos viajantes à procura de abrigo. Meu nome é Brienne, e este é o Septão Meribald, muito conhecido nas terras do Tridente. O menino é o meu escudeiro, Podrick Payne, e o cavaleiro é Sor Hyle Hunt.
O martelar parou de repente. A menina na varanda os analisou, cautelosa como só uma criança de dez anos pode ser. — Eu sou Willow. Vocês querem camas?
— Camas e cerveja, e comida quente para encher a barriga, — disse Ser Hyle Hunt desmontando. — Você é a estalajadeira?
Ela balançou a cabeça negativamente.
— É a minha irmã Jeyne. Ela não está aqui. Tudo o que temos para comer é carne de cavalo. Se veio aqui buscando prostitutas, não há nenhuma. Minha irmã as expulsou. Temos camas, no entanto. Alguns colchões são de plumas, mas a maioria são feitos de palha.
— E todos têm pulgas, não tenho dúvida, — disse Ser Hyle.
— Vocês tem dinheiro para pagar? Prata?
Ser Hyle riu.
— Prata? Para uma só noite e um pernil de cavalo? Você quer nos roubar, filha?
— Teremos prata. Ou você pode dormir na floresta com os mortos. — Willow olhou para o burro, e viu os tonéis e os fardos que ele carregava. — É comida? Onde você conseguiu?
— Em Lagoa da Donzela, — disse Meribald. E o cachorro latiu.
— Você questiona dessa forma todos seus hóspedes? — Perguntou Ser Hyle.
— Nós não temos tantos hóspedes. Não é como antes da guerra. São principalmente pardais. Ou coisa pior.
— Coisa pior? — Brienne perguntou.
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— Ladrões, — disse a voz de um menino, vinda dos estábulos. — Ladrões.
Brienne se virou, e viu um fantasma.
Renly. Nem um golpe no coração poderia ter deixado ela assim.
— Meu senhor? — Ela engasgou.
— Senhor? — O menino empurrou para trás uma mecha de cabelo preto que havia caído sobre seus olhos. — Eu sou apenas um ferreiro.
Ele não é Renly, compreendeu Brienne. Renly está morto. Renly morreu em meus braços. Este é só um menino. Um garoto que parecia com Renly quando ele visitara Tarth pela primeira vez. Não, é ainda mais jovem. Sua mandíbula é mais quadrada, e suas sobrancelhas maiores. Renly tinha sido magro e ágil, e este menino tinha os ombros pesados e o braço direito musculoso tão comum em ferreiros. Ele usava um avental de couro muito velho, mas por baixo do peito estava nu. A barba escura cobria o rosto e o queixo, e sua barba negra por fazer cobria seu rosto e seu queixo, e seu cabelo era um esfregão preto que descia abaixo de suas orelhas. O cabelo do rei Renly também fora daquele preto, mas o seu sempre tinha sido lavado, escovado e penteado. Às vezes, ele o cortava curto, e às vezes o deixava solto até os ombros, ou amarrados atrás de sua cabeça com uma fita de ouro, e nunca o deixava enrolado ou emaranhado de suor. E embora os olhos de ambos tivessem o mesmo azul profundo, Lorde Renly sempre teve um olhar caloroso e acolhedor, risonho, enquanto os olhos do menino eram cheios de raiva e desconfiança.
Septão Meribald também achou isso.
— Não lhe queremos fazer nenhum mal, rapaz. Quando Masha Heddle foi proprietária desta estalagem ela sempre tinha um bolo de mel para mim. Às vezes ela até me deixava ter uma cama, se a estalagem não estivesse cheia.
— Ela está morta, — disse o garoto. — Os leões a enforcaram.
— Enforcamento parece ser o esporte favorito por estas bandas, — disse Sor Hyle Hunt. — Se eu tivesse umas terras por aqui. Eu plantaria cânhamo, venderia cordas e faria uma fortuna.
— Todas essas crianças, — perguntou Brienne a menina Willow. — Eles são suas... irmãs? Irmãos? Parentes e primos? 
— Não. — Willow olhava para ela de uma forma que ela conhecia muito bem. — Eles são apenas ... Eu não sei ... os pardais as trazem aqui, às vezes. Os outros encontram seu próprio caminho. Se você é uma mulher, por
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que você está vestido como um homem?
O Septão Meribald a respondeu.
— A Senhora Brienne é uma guerreira e está em uma missão. Agora, porém, ela precisa de uma cama seca e de um fogo morno. Como todos nós. Meus velhos ossos dizem que logo irá chover novamente. Você tem quartos para nós?
—Não, — disse o menino ferreiro. 
— Sim, — disse a menina Willow.
Eles trocaram olhares. Então Willow bateu o pé.
— Eles têm comida, Gendry. E os pequenos estão famintos. — Ela assobiou, e mais crianças apareceram como que por magia; meninos esfarrapados rastejaram debaixo do alpendre, e meninas furtivas apareceram nas janelas que tinham vista para o quintal. Alguns se agarravam a bestas, prontos para atacar.
— Eles podem chamar isso de Estalagem das Bestas , — sugeriu Sor Hyle.
Estalagem dos Órfãos seria mais apto, pensou Brienne.
— Wat, ajude-os com os cavalos, — disse Willow. — Will, abaixe essa pedra, eles não vieram nos fazer mal. Pate, Tansy, procurem um pouco de madeira para alimentar o fogo. Jon, Penny, vocês vão ajudar o septão com a bagagem. Vou lhes mostrar seus quartos.
No final, eles adotaram três quartos adjacentes, cada um com um colchão de penas, um penico e uma janela. O quarto de Brienne também tinha uma lareira. Ela deu mais algumas moedas para os órfãos em troca de um pouco de lenha.
— Vou dormir no seu quarto, ou no do Sor Hyle? — Podrick perguntou enquanto ela abria as venezianas.
— Não estamos na Ilha Quieta, — disse ela. — Aqui você pode ficar comigo. — Sua intenção era que eles continuassem no dia seguinte, ela explicou para os dois. O Septão Meribald estava indo para a Curva do Rio , e para a Aldeia de Lorde Harroway, mas Brienne não via sentido em continuar o seguindo. Ele tinha o cachorro para lhe fazer companhia, e o Irmão Mais Velho a convencera de que não encontrariam Sansa Stark ao longo da Tridente. — Quero que levantemos antes do nascer do sol, enquanto Sor Hyle ainda estiver dormindo. — Brienne não o havia perdoado pelo que acontecera em Jardim de Cima... e como ele mesmo disse, Hunt não tinha
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feito nenhum juramento com relação a Sansa.
— Para onde iremos, sor? Quero dizer, minha senhora?
Brienne não tinha uma resposta para ele. Eles tinham chegado a uma encruzilhada, literalmente, o lugar onde a Estrada do Rei, a Estrada do Rio, e a Estrada das Montanhas se encontravam. A estrada das Montanhas atravessava as colinas até o leste, indo para o Vale de Arryn, onde a tia da Senhora Sansa tinha governada até sua morte. Para o oeste corria a estrada do rio, que seguia o curso do Ramo Vermelho até Correrrio, onde o tio-avô de Sansa estava sitiado, mas ainda vivo. Ou eles poderiam caminhar para o norte pela Estrada do Rei, atravessar as Gêmeas e o Gargalo, com seus pântanos e brejos. Se ela pudesse encontrar uma maneira de passar em segurança pelo Fosso Cailin, a Estrada do rei iria levá-los até Winterfell.
Ou eu poderia tomar a Estrada do Rei para o sul, pensou Brienne. Eu poderia voltar para Porto Real, confessar meu fracasso a Sor Jaime, devolver sua espada, e encontrar um navio que me leve para casa, em Tarth, como pediu o Irmão Mais Velho. O pensamento era muito amargo, uma parte dela ansiava por ver seu pai em Entardecer, e a outra se perguntava se Sor Jaime a confortaria e se ela deveria chorar em seu ombro. Isso é o que os homens querem, não é? Mulheres suaves e indefesas que precisam de proteção?
— Sor? Minha senhora? Eu perguntei: para onde iremos?
— Desceremos para a sala comum, para jantar.
A sala comum estava cheia de crianças. Brienne tentou contá-las, mas eles não ficaram parados nem por um instante, de forma que ela contava alguns deles duas ou três vezes e outros nenhuma, até ela finalmente desistir. Eles tinham empurrado as mesas formando três fileiras, e os meninos mais velhos estavam lutando no banco de trás. Os mais velhos tinham apenas dez ou doze. Gendry era a coisa mais próxima de um homem adulto, mas era Willow quem dava as ordens, como se ela fosse uma rainha em seu castelo e as outras crianças não mais do que servos.
Se fosse bem nascida, dar ordens seria natural para ela, e para eles, obedecer. Brienne se perguntou se Willow não poderia ser mais do que aparentava. A menina era muito jovem e muito simples para ser Sansa Stark, mas era da idade da irmã mais nova dela, e até mesmo a Senhora Catelyn dissera que em Arya faltava a beleza de sua irmã. Cabelos castanhos, olhos castanhos, magra... poderia ser? O Cabelo de Arya Stark era castanho, ela se lembrava, mas Brienne não tinha certeza da cor de seus olhos. Castanho e castanho,é isso? Será que ela não morreu nas Salinas, afinal?
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Lá fora, a última luz do dia estava desaparecendo. Lá dentro, Willow tinha acendido quatro velas de sebo gorduroso e disse as meninas para manter o fogo da lareira queimando alto e quente. Os meninos ajudaram Podrick Payne a descarregar o burro e transportar o bacalhau, o carneiro, os legumes, as nozes, e os queijos, enquanto o Septão Meribald se dirigia à cozinha, para tomar conta do mingau.
— Ai, minhas laranjas se foram, e duvido que verei outra até a primavera, — disse a um menino pequeno. — Você já teve uma laranja, rapaz? Alguma vez você espremeu uma laranja para beber o suco? — Quando o menino balançou a cabeça negando, o septão despenteou seu cabelo. — Então eu vou lhe trazer uma quando chegar a primavera, se você for um bom menino me ajudando a mexer o mingau.
Sor Hyle tirou as botas para aquecer os pés no fogo. Quando Brienne sentou-se ao lado seu lado, ele apontou com a cabeça para a outra extremidade da sala.
— Há manchas de sangue no chão, onde o cão está farejando. Elas foram limpas, mas o sangue está profundamente embebido madeira, não havendo maneira de limpa-la.
— Esta é a estalagem onde Sandor Clegane matou três dos homens do seu irmão, — ela o lembrou.
— Sim, — Hunt concordou, — mas quem é que disse que eles foram os primeiros a morrer aqui... ou que serão os últimos.
— Você está com medo de algumas crianças?
— Quatro são poucos. Dez um excesso. Isto está um caos. As crianças devem ser enroladas em panos e penduradas nas paredes até que cresçam os seios das meninas e os garotos tenham idade suficiente para fazer a barba.
— Eu sinto pena deles. Todos eles perderam seus pais e mães. Alguns os viram morrer.
Hunt revirou os olhos.
— Eu esqueci que estava falando com uma mulher. Seu coração é tão mole quanto o mingau do nosso septão. Poderá ser? Em algum lugar dentro de nossa guerreira há uma mãe se contorcendo para dar à luz. O que você realmente quer é um doce bebê rosado para mamar no seu peito. — Sor Hyle sorriu. — Você precisa de um homem para isso, eu sei. Um marido de preferência. Por que não eu?
— Você ainda tem esperança de ganhar aquela aposta?
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— O que eu quero ganhar é você, a única menina de Lorde Selwyn. Eu conheço homens que se casariam com velhas ou com bebês por prêmios de um décimo do tamanho de Tarth. Eu não sou Renly Baratheon, confesso, mas eu tenho a virtude de ainda estar entre os vivos. Alguns diriam que é a minha única virtude. Um casamento serviria a nós dois. Terras para mim, e um castelo cheio desses para você. — Ele acenou com a mão para as crianças. — Eu sou capaz, lhe garanto. Eu já gerei pelo menos um bastardo. Não tenha meda, não terá problemas coma mãe dele. A última vez que fui vê-la, ela me encharcou com uma caldeira de sopa.
Um rubor subiu pelo seu pescoço.
— Meu pai só tem cinquenta e quatro anos. Não é velho demais para se casar novamente e ter um filho com sua nova esposa.
— Mas isso é arriscado... se seu pai se casar novamente, se sua noiva for fértil e se o bebê for um menino. Eu já fiz apostas piores.
— E as perdeu. Jogue o seu jogo com outra pessoa, sor.
— Assim fala uma donzela que nunca jogou nenhum jogo. Uma vez que você jogar, terá uma visão diferente. No escuro você ficaria tão bonita quanto qualquer outra. Seus lábios foram feitos para beijar.
— São lábios, — disse Brienne. — Todos os lábios são iguais.
— E todos os lábios são feitos para beijar, — concordou Hunt prazerosamente. Deixe a porta do seu quarto destrancada hoje à noite, e irei furtivamente a sua cama e provarei que é verdade o que digo.
— Se fizer isso, será um eunuco quando sair. — Brienne se levantou e caminhou para longe dele.
O Septão Meribald perguntou se poderia abençoar a mesa e os pequenos, ignorando a pequena menina que engatinhava pelada sobre a mesa.
— Sim, — disse Willow, agarrando a garota antes que ela chegasse ao mingau. Então, inclinaram-se e juntos, agradeceram ao Pai e a Mãe por sua generosidade... todos, mas o menino de cabelos negros da forja cruzou os braços contra o peito e se sentou com um olhar furioso enquanto os outros rezavam. Brienne não foi a única a notar. Quando terminaram a oração, o Septão Meribald olhou para ele, do outro lado da mesa, e disse:
— Você não têm amor pelos deuses, filho?
— Não para seus deuses. — Gendry disse abruptamente. — Eu tenho trabalho a fazer. — E saiu sem comer um pedaço sequer.
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— Existe algum outro deus que ele ama? — Perguntou Hyle Hunt.
— O Senhor da Luz, — disse um menino magrelo, com quase seis
anos.
Willow acertou-o com a colher.
— Ben Boca Grande. Vai ficar sem comida. Você deveria estar comendo, não incomodando os senhores com essa conversa.
As crianças caíram sobre a ceia como lobos caem em cima de um cervo ferido, disputando o bacalhau, rasgando o pão de cevada em pedaços e tomando o mingau. Mesmo a enorme roda de queijo não sobreviveu por muito tempo. Brienne contentou-se com peixe, pão e cenouras, enquanto o Septão Meribald alimentava o cão com dois pedaços para cada um que ele mesmo comia. Lá fora, uma chuva começou a cair. No interior, o fogo crepitava, e a sala estava cheia de sons de mastigação, e Willow golpeava as crianças com uma colher.
— Um dia essa menina vai ser para algum homem uma esposa terrível, — observou, Sor Hyle. — Provavelmente para esse pobre aprendiz.
— Alguém deve levar comida para ele, antes que acabe.
— Você é alguém.
Ela pegou uma fatia de queijo, um pedaço de pão, uma maçã seca e dois pedaços de bacalhau frito. Quando Podrick se levantou para acompanha-la, ela disse para ele voltar a se sentar e comer.
— Não vou demorar.
A chuva estava caindo com força no quintal. Brienne cobriu a comida com uma dobra de seu manto. Alguns dos cavalos relincharam para ela quando ela passou pelos estábulos. Eles também estão com fome, ela pensou.
Gendry estava em sua forja, com o peito nu sob o avental de couro. Ele estava batendo em uma espada como se ela fosse um inimigo, seu cabelo molhado de suor escorria pela testa. Ela o observou por um momento. Ele tem os olhos e os cabelos de Renly, mas não a sua constituição. O Senhor Renly era mais ágil do que forte... não como seu irmão Robert, cuja força foi fabulosa.
Renly não a tinha visto até o momento em que parou para limpar sua
testa.
— O que você quer?
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— Eu trouxe o jantar. Ela abriu o pano para ele ver.
— Se eu quisesse comida, teria comido.
— Um ferreiro precisa comer para conservar sua força.
— Você é a minha mãe?
— Não. — Ela colocou a comida no chão. — Quem era sua mãe?
— O que você tem a ver com isso?
— Você nasceu em Porto Real. — Ela tinha certeza, devido ao seu modo de falar.
— Eu e muitos mais. — Ele mergulhou a espada em uma banheira de água da chuva para resfriá-la. O aço quente sibilou raivoso.
— Quantos anos você tem? — Brienne perguntou. — E a sua mãe ainda está viva? E seu pai, quem era ele?
— Você faz muitas perguntas. — Ele deixou a espada. — Minha mãe está morta e eu nunca soube quem é o meu pai.
— Você é um bastardo.
Ele tomou isto como um insulto.
— Eu sou um cavaleiro. E a espada vai ser minha, uma vez que ficar
pronta.
O que um cavaleiro estaria fazendo em uma forja?
— Você tem cabelo preto e olhos azuis, e você nasceu à sombra da Fortaleza Vermelha. Ninguém nunca comentou sobre o seu rosto?
— O que há de errado com meu rosto? Não é tão feio quanto o seu.
— Em Porto Real você deve ter visto o Rei Robert.
Ele deu de ombros.
— Às vezes. Em torneios, de longe. Uma vez no Septo de Baelor os mantos dourados nos empurraram de lado para que ele pudesse passar. Outra vez eu estava brincando perto do Portão de Lama quando ele voltou de uma caçada. Ele estava tão bêbado que quase me atropelou. Um grande gordo e beberrão, ele era, mas um rei melhor que esses seus filhos.
Eles não são seus filhos. O que Stannis disse é verdade, naquele dia em que ele se encontrou com Renly. Joffrey e Tommen nunca foram filhos de Robert. Este menino, apesar de...
— Ouça-me, — começou Brienne. Então ela ouviu os latidos do
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cachorro, altos e frenéticos. — Alguém está vindo.
— Amigos, — disse Gendry, despreocupado.
— Que tipo de amigos? — Brienne foi para trás da porta da oficina para espiar através da chuva.
Ele deu de ombros.
— Você vai encontrá-los em breve.
E se eu não quiser conhecê-los, Brienne pensou, quando os primeiros cavaleiros entraram espirrando pelas poças do quintal. Sob o tamborilar da chuva e os latidos do cão, ela podia ouvir o tilintar de espadas e armaduras sob mantos esfarrapados. Ela os contou a medida em que passavam. Dois, quatro, seis, sete. Alguns deles estavam feridos, a julgar pela forma como eles montavam. O último homem era enorme e desmedido, tão grande como dois dos outros. Seu cavalo estava exausto e ensanguentado, cambaleando sob o seu peso. Todos os cavaleiros tinham seus capuzes os protegendo da chuva, exceto um. Seu rosto era largo e sem pelos, branco como um verme, e suas bochechas redondas estavam cobertas de feridas que sangravam.
Brienne prendeu a respiração e puxou sua espada. Muitos, ela pensou, com um pouco de medo, eles são muitos.
— Gendry, — disse ela em voz baixa, — você vai querer uma espada e uma armadura. Estes não são seus amigos. Eles não são amigos de ninguém.
— Do que você está falando? — O menino veio e ficou ao lado dela, com seu martelo na mão.
Um relâmpago rasgou o céu indo para o sul enquanto os cavaleiros desmontavam. Pelo tempo de meio batimento cardíaco a escuridão virou luz. Um machado brilhou azul e prateado, e a luz refletiu na armadura e na couraça, e sob o capuz de chumbo escuro de um cavaleiro Brienne vislumbrou um focinho de ferro e fileiras de dentes de aço, que rosnavam.
Gendry também viu.
— Ele.
— Não ele. Seu elmo. — Brienne tentou manter o medo longe de sua voz, mas sua boca estava seca como pó. Ela sabia muito bem quem usava o elmo do Cão de Caça. As crianças, ela pensou.
A porta da estalagem se abriu com uma batida. Willow saiu para a chuva, carregando uma besta em suas mãos. A garota gritou com os
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cavaleiros, mas um trovão ecoou pelo quintal, abafando suas palavras. Ela desapareceu, e Brienne ouviu o homem com o elmo do Cão de Caça dizer:
— Se se atrever a atirar uma flecha em mim, eu vou enfiar essa besta na sua boceta e vou te foder com ela. Então eu vou arrancar seus olhos fora e fazer você comê-los. — A fúria na voz do homem fez Willow retroceder um passo, tremendo.
Sete, Brienne pensou novamente, desesperada. Ela não tinha nenhuma chance contra sete, ela sabia. Sem chance, e sem escolha.
Ela saiu para a chuva, de espada na mão.
— Deixe-a em paz, Sor. Se quer estuprar alguém, tente a mim.
Os bandidos a olharam como um só. Um riu, e outro disse algo em uma língua que Brienne não conhecia. O enorme com o rosto largo e branco soltou um suaaaaaaaa malévolo. O homem com o elmo do Cão de Caça começou a rir.
— Você é ainda mais feia do que eu me lembrava. Prefiro estuprar seu cavalo.
— Cavalos, que é o que queremos, — disse um dos feridos. — Cavalos frescos, e alguns alimentos. Tem bandidos atrás de nós. Dê-nos seus cavalos e vamos embora. Nós não vamos lhes fazer mal.
— Foda-se. — O bandido com o elmo do Cão de Caça puxou um machado de batalha da sela. — Eu quero cortar suas pernas fora. Eu vou coloca-la em seus cotos para que possa me ver foder a menina da besta.
— Com o quê? — O insultou Brienne. — Shagwell disse que cortaram sua masculinidade fora quando tomaram seu nariz.
Ela quis dizer isso para provocá-lo, e ela conseguiu. Gritando maldições, ele veio para cima dela, seus pés levantando salpicos de água negra. Os outros estavam assistindo ao show, como resposta as suas orações. Brienne permaneceu imóvel como pedra, esperando. O quintal estava escuro, a lama escorregadia sob seus pés. Melhor deixar ele vir para cima de mim. Se os deuses forem bons, ele vai escorregar e cair.
Os deuses não eram tão bons, mas sua espada era. Cinco passos, quatro passos, agora, contou Brienne, e a espada se lançou junto à corrida. Aço se chocou contra aço quando a lâmina atravessou seus trapos e abriu um corte na cota de malha, mesmo com seu machado desabando sobre ela. Ela torceu de lado, cortando o peito novamente, enquanto recuava.
Ele, cambaleou e sangrou, rugindo de raiva.
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— Sua puta, — ele gritou. — Aberração! Puta! Vou te dar para o meu cão te foder, sua puta sanguinária! — Seu machado girava em arcos assassinos, uma brutal sombra negra que virava prata cada vez que os relâmpagos a iluminavam. Brienne não tinha um escudo para parar os golpes. Tudo o que ela podia fazer era se esquivar para longe dele, lançandose de um lado ao outro a cada estocada da cabeça do martelo. Quando a lama cedeu sob seu calcanhar ela quase caiu, mas de alguma forma se recuperou, embora o machado tenha passado sobre seu ombro esquerdo deixando uma mancha de dor.
— Você é uma puta! — Disse um deles, e outro disse:
— Olha como ela está dançando.
Ela dançava, aliviada porque eles apenas assistiam. Melhor isso do que tê-los interferindo. Ela não poderia lutar contra sete, não sozinha, mesmo que um ou dois estivessem feridos. Fazia muito tempo que o velho Sor Goodwin jazia em seu túmulo, no entanto, ela podia ouvi-lo sussurrando em seu ouvido. Os homens sempre subestimam você, ele disse, e seu orgulho vai fazê-los querer vencer rapidamente, para que não se possa dizer que uma mulher os pôs a prova. Deixe-os gastar suas forças em ataques furiosos, enquanto você conserva a sua. Aguarde e observe, menina, aguarde e observe. Ela esperou, observando, movendo-se de lado, depois recuando, em seguida, novamente para os lados, atacando o rosto, depois as pernas, depois o braço. Os golpes dele ficavam mais lentos à medida que o machado ficava mais pesado. Brienne o fez girar de forma que a chuva caísse em seus olhos, e ela rapidamente recuou dois passos. Ele brandiu seu machado novamente, xingando, e se precipitou ao ataque, e seu pé deslizou na lama...
... E ela saltou contra ele, ambas as mãos seguras na espada. A ponta da espada foi até ele, e perfurou através do pano, da cota de malha, do couro e de muito mais pano, e entrou fundo em suas entranhas e em suas costas, raspando em sua espinha. Seu machado caiu dos dedos, e os dois se chocaram, o rosto de Brienne contra o elmo de cabeça de cachorro. Ela sentiu o metal frio e úmido contra o rosto. A chuva corria em rios pelo aço, e quando os relâmpagos novamente iluminaram, ela viu dor, medo e descrença nos olhos dele.
— Safiras, — ela sussurrou para ele, e lhe tocou com a lâmina, o fazendo estremecer. Sentia o seu peso contra ela, e de repente ela se viu abraçada a um cadáver na chuva negra. Ela recuou e o deixou cair...
... e Dentadas se lançou contra ela, gritando.
Ele caiu sobre ela como uma avalanche de lã molhada e carne
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branca, levantando-a do chão e depois a jogando contra ele. Ela caiu em uma poça, e um esguicho de água foi de encontro ao seu nariz e olhos. Todo o ar foi expulso de seu corpo, e ela bateu a cabeça contra alguma pedra semienterrada.
— Não, — foi tudo o que ela teve tempo de dizer antes dele cair em cima, seu peso a enterrando mais fundo na lama. Uma de suas mãos agarrava seu cabelo, empurrando a cabeça para trás. A outra tateou até a garganta. A espada tinha desaparecido, arrancada de seu alcance. Ela tinha apenas as mãos para combatê-lo, mas quando ela bateu o punho em seu rosto, viu que era como golpear uma massa branca e molhada. Ele silvou para ela.
Ela lhe bateu novamente, novamente e novamente, e com a palma da mão acertou seu olho, mas ele não parecia sentir os golpes. Ela cravou suas unhas nos pulsos dele, mas só conseguiu ser ainda mais sufocada, embora o sangue corresse onde ela o arranhara. Ele estava a esmagando, a sufocando. Ela empurrou os seus ombros para tirá-lo de cima, mas ele era pesado como um cavalo, impossível de ser movido. Quando ela tentou dar uma joelhada na virilha, tudo que conseguiu foi levar uma joelhada no ventre. Grunhindo, Dentadas arrancou um punhado do cabelo de Brienne.
Meu punhal. Brienne se agarrou a esse pensamento, desesperada. Ela trabalhou a mão entre eles, os dedos se contorcendo sob sua carne sufocante, tateando, até que finalmente encontrou o cabo. Mordedor colocou ambas as mãos sobre seu pescoço e começou a bater sua cabeça contra o chão. Mais um raio, desta vez dentro de seu crânio, mas de alguma forma, com os dedos apertados, ela puxou o punhal da bainha. Com ele em cima dela, ela não podia levantar a lâmina para apunhalar, assim ela arrastou o punhal sobre sua barriga. Algo quente e molhado jorrou entre os dedos. Mordedor voltou a silvar, mais alto do que antes, e soltou a garganta dela apenas tempo suficiente para esmagar a sua cara. Ela ouviu o quebrar de ossos, e a dor a cegou por um instante. Quando ela tentou cortar ele de novo, ele arrancou a adaga de seus dedos e bateu o joelho em seu antebraço, quebrando-o. Então ele pegou a cabeça dela novamente e voltou a tentar arrancá-la de seus ombros.
` Brienne podia ouvir o latir do cão, e os homens gritavam tudo sobre ela, e entre os trovões, e ela ouviu o choque de aço no aço. Sor Hyle, ela pensou, Sor Hyle juntou-se à luta, mas tudo parecia distante e sem importância. Seu mundo não era maior do que as mãos no seu pescoço e no rosto que pairava acima dela. A chuva pingou do seu capuz quando ele se inclinou. Seu hálito cheirava a queijo podre.
O peito de Brienne estava queimando, e a tempestade cegava seus olhos. Ossos rangiam uns contra os outros dentro dela. A boca de Dentadas
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estava escancarada, incrivelmente grande. Ela viu os dentes, amarelos e tortos, afiados e pontiagudos. Quando eles se fecharam na carne macia de seu rosto, ela mal o sentiu. Ela podia sentir-se em espiral para baixo no escuro. Eu não posso morrer ainda, disse a si mesma, ainda há algo que preciso fazer.
A boca de Dentadas se afastou, cheia de sangue e carne. Cuspiu, sorriu, e afundou os dentes afiados em sua carne novamente. Desta vez ele mastigou e engoliu. Ele está me comendo, ela percebeu, mas não tinha forças para lutar com ele por mais tempo. Ela se sentia como se estivesse flutuando acima de si mesma, observando o horror como se estivesse acontecendo com alguma outra mulher, com uma garota estúpida que achava que ela era um cavaleiro. Acabaria em breve, disse a si mesma. Então não importa se ele me comer. Dentadas jogou sua cabeça para trás e abriu a boca novamente, urrando, e mostrou a língua para ela. Era pontiaguda, pingava sangue. Nenhuma língua podia ser tão grande. Entrava e saía de sua boca, entrava e saía, vermelha, molhada, brilhante, era uma visão medonha, obscena. Sua língua tem um palmo de comprimento, Brienne pensou, pouco antes de a escuridão a tomar. Parece uma espada.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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JAIME JAIME JAIME JAIME  
 
 
broche que prendia o manto de Sor Bryden Tully era um peixe negro, forjado em jato e em ouro. Seu anel era cruel e cinzento. Acima disso ele usava perneiras, gorjal, manoplas, ombreiras e polainas de aço enegrecido, nenhuma peça nem metade tão escura quanto o olhar em seu rosto enquanto esperava por Jaime Lannister no final da ponte levadiça, sozinho em um corcel castanho ajaezado em vermelho e azul.
Ele não me ama. O Tully tinha um rosto desgastado, profundamente enrugado e queimado pelo vento, debaixo de um coque de um duro cabelo grisalho, mas Jaime ainda podia ver o grande cavaleiro que uma vez havia encantado um escudeiro com os contos dos Reis Nove Centavos. Os cascos de Honra batiam contra as tabuas da ponte levadiça. Jaime tinha pensado muito se deveria usar sua armadura de ouro ou a branca para este encontro; no fim ele escolheu um manto de couro e uma capa escarlate. 
Ele parou a uma certa distancia de Sir Bryden e inclinou a cabeça para o homem mais velho.
— Regicida. — Disse Tully.
Assim ele faria desse nome à primeira palavra a sair de sua boca, o que faria Jaime o xingar de diversas formas, mas ele estava resolvido a manter a calma.
— Peixe Negro, — ele respondeu. — Obrigado por vir.
— Eu suponho que você voltou para cumprir os juramentos que fez a minha sobrinha, — Sor Bryden disse. — Se bem me lembro, você prometeu a Catelyn suas filhas em troca de sua liberdade. Sua boca se apertou. E ainda assim, eu não vejo as garotas, onde elas estão?
Ele vai me fazer dizer isto?
— Eu não as tenho.
— Que pena. Você deseja retornar ao seu cativeiro? Sua cela antiga ainda está disponível. Pusemos junco fresco no chão.
E um agradável balde novo pra eu cagar, não duvido.
— Foi atencioso da sua parte, sor, mas eu temo que devo recusar. Eu prefiro o conforto do meu velho pavilhão.
— Enquanto Catelyn desfruta o conforto de seu túmulo.
O
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Eu não tive nada com a morte da Senhora Catelyn, poderia ter dito, e suas filhas foram embora antes que eu chegasse a Porto Real.  Estava na ponta da língua para falar de Brienne e da espada que tinha dado a ela, mas Peixe Negro estava olhando para ele da mesma maneira que Eddard Stark tinha o olhado quando o encontrou no Trono de Ferro com o sangue do Rei Louco sob sua lâmina.
— Eu vim pra falar da vida, não da morte. Daqueles que não precisam morrer, mas devem...
— A menos que eu o entregue Correrio. É aqui que vocês ameaçam enforcar Edmure? — Sob suas sobrancelhas espessas, os olhos do Tully eram pedras. — Meu sobrinho está condenado a morte não importa o que eu faça. Então o enforque e esteja acabado com ele. Eu espero que Edmure esteja tão cansado de ficar de pé sobre aquelas forcas como eu estou de vê-lo lá.
Ryman Frey é um idiota. Seu teatro com Edmure e a forca só tinha feito Peixe Nnegro mais obstinado, isto estava claro.
— Você mantém a Senhora Sybelle Westerling e três de seus filhos. Eu vou devolver o seu sobrinho em troca delas.
— Como você devolveu as filhas da Senhora Catelyn?
Jaime não se permitiu ser provocado.
— Uma velha mulher e três crianças pelo seu senhor. Isso é um negócio melhor do que você poderia ter esperado.
Sor Bryden deu um sorriso duro.
— A você não falta valor, Regicida. Negociação com perjúrios é como construir sobre areia movediça, embora Cat deveria ter pensado melhor ao confiar em pessoas como você.
Era em Tyron que ela confiava, Jaime quase disse. O duende a enganou também.
— As promessas que fiz a Senhora Catelyn foram arrancadas com uma lamina no pescoço.
— E o juramento que fez a Aerys?
Ele sentiu seus dedos fantasmas coçando. 
— Aerys não faz parte disso. Você vai trocar os Westerlings por Edmure?
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— Não. Meu rei confiou sua rainha a minha guarda, e eu jurei mantê-la segura. Eu não vou entregá-la a armadilha de um Frey.
— A garota foi perdoada. Nenhum mal acontecerá a ela, você tem a minha palavra nisso.
— Sua palavra de honra? — Sor Bryden ergueu uma sobrancelha. — Você ao menos sabe o que é honra?
Um cavalo.
— Eu farei qualquer juramento que você quiser.
— Me poupe Regicida. 
 — Eu quero. Suspenda suas bandeiras e abra seus portões que eu concederei aos seus homens suas vidas. Aqueles que quiserem permanecer em Correrio em serviço de Lorde Emmon poderá fazê-lo. O resto será livre para ir onde quiserem, embora eu vá exigir que entreguem suas armas e armaduras.
— Eu me pergunto, quão longe eles chegarão desarmados antes dos “bandidos” caírem sobre eles. Você não ousaria permitir que eles se unissem à Lorde Beric, ambos sabemos disso. E quanto a mim? Serei exibido em Porto Real para morrer como Eddard Stark?
— Eu vou lhe permitir vestir o negro. O bastardo de Stark é o Lorde Comandante na Muralha.
Peixe Negro estreitou os olhos.
— O seu pai fez arranjo para isso também? Catelyn nunca confiou no menino, se bem me lembro, não mais do que ela confiava em Theon Greyjoy. E parece que ela estava certa sobre os dois. Não sor, eu acho que não. Eu morrerei quente, se te agrada, com uma espada na mão correndo vermelho com o sangue do leão.
— Sangue Tully também corre vermelho, — Jaime o lembrou. — Se você não entregar o castelo, eu irei arrasá-lo. Centenas irão morrer.
— Centenas dos meus, milhares dos seus.
— Sua guarnição perecerá até o último homem.
— Eu conheço este som. Você o cantou ao som de “As Chuvas de Castemare”? Antes meus homens morrerão lutando sobre seus pés do que de joelhos sob o machado de um carrasco.
Isto não está indo bem.
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— Este desafio de nada serve, sor. A guerra acabou, e seu Jovem Lobo está morto.
— Assassinado na violação sagrada de todas as leis de hospitalidade.
— Trabalho de Frey, não meu.
— Chame isso como quiser. Isto fede a Tywin Lannister.
Jaime não podia negar isso.
— Meu pai está morto também.
— Que o Pai o julgue com justiça.
Agora, há uma perspectiva terrível.
— Eu teria matado Robb Stark no Bosque dos Murmúrios, se eu pudesse ter chegado até ele. Alguns tolos ficaram em meu caminho. Por acaso importa como o garoto pereceu? Ele não ficará menos morto, e seu reino morreu junto com ele.
— Você deve ser cego, assim como aleijado, sor. Levante os olhos e você verá que o lobo gigante ainda voa acima de nossas paredes.
— Eu o tenho visto. Ele parece solitário. Harrenhal caiu. Guardamar e Lagoa da Donzela também. Os Brackens têm se ajoelhado, e eles tem Tyto Blackwood encurralado no Bosque dos Murmúrios. Piper, Vance, Mooton, todos os seus aliados se renderam. Apenas Correrio permanece. Nós temos vinte vezes o seu número.
— Vinte vezes homens requerem vinte vezes comida. Quão bem provisionado você está, meu lorde?
— Bem o suficiente para sentar aqui até os fins dos dias se precisar, enquanto você passa fome dentro de suas paredes. — Ele disse a mentira tão corajosamente quanto podia e esperava que seu rosto não o traísse.
Peixe-negro não estava convencido.
— O fim dos seus dias talvez. Nossos próprios abastecimentos são amplos, embora temo que não deixamos muita coisa nos campos para nossos visitantes.
— Nós podemos trazer comidas das Gêmeas, — Jaime disse. — Ou sobre as colinas do oeste, se chegar a isso.
— Se você diz. Longe de mim questionar a palavra de um tão honrado cavaleiro.
O desprezo em sua voz fez Jaime se arrepiar.
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— Existe um meio mais rápido de decidir o assunto. Um único combate. Meu campeão contra o seu.
— Eu estava me perguntando quando você chegaria a isso. Sor Brynden gargalhou. Quem seria? Strongboar? Addam Marbrand? Walder Negro, Frey? Ele se inclinou para frente. Porque não eu e você, sor?
Essa teria sido uma doce luta um dia, Jaime pensou, forragens para os cantores.
— Quando a Senhora Catelyn me libertou, ela me fez jurar não erguer armas novamente contra os Stark ou os Tully.
— Um juramento muito conveniente, sor.
Seu rosto escureceu.
— Você esta me chamando de covarde?
— Não. Eu estou te chamando de aleijado. — Peixe Negro acenou com a cabeça para a mão dourada de Jaime. — Nós dois sabemos que você não pode lutar com isso.
— Eu tinha duas mãos. Será que você jogaria sua vida fora por orgulho? — Uma voz dentro dele sussurrou. — Alguns podem dizer que um aleijado e um velho estão bem combinados. Liberte-me de meu voto à Senhora Catelyn e eu irei encontrá-lo espada a espada. Se eu ganhar, Correrrio é nossa. Se você me vencer, levantaremos o cerco.
Sir Brynden riu de novo.
— Por mais que eu goste da chance de tomar essa espada dourada de você e cortar o seu coração negro, suas promessas são inúteis. Eu ganharia nada com sua morte, exceto o prazer de matar você, e não vou arriscar a minha vida por isso, por menor que possa ser o risco.
Foi uma coisa boa Jaime não usar uma espada, de outra forma ele teria rasgado sua lamina e se Sor Brynden não o matasse, os arqueiros na parede certamente o fariam.
— Ah algum termo que você irá aceitar? — Ele exigiu de Peixe
Negro.
— De você?  — Sir Brynden deu de ombros. — Não.
— Porque você sequer chegou a tratar comigo?
— Um cerco é um mortalmente maçante.  Eu queria ver este seus tocos e ouvir quaisquer desculpas que você teria a oferecer por sua mais
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recente barbaridade. Elas são mais fracas do que eu esperava. Você sempre me decepciona Regicida.
Peixe Negro girou em sua égua e trotou em direção a Correrio. A ponte levadiça desceu rapidamente, seus picos de ferro causando estragos no chão lamacento. 
Jaime virou a cabeça de Honra para a longa viagem de volta para as linhas de cerco Lannister. Ele podia sentir os olhos sobre ele. Os homens de Tully em suas ameias, os Freys do outro lado do rio. Se eles não forem cegos, irão todos saber que ele jogou minha oferta em minha cara. Ele precisaria arrasar o castelo. Bem, o que é mais uma promessa quebrada para o Peixe Negro? Apenas mais merda no balde. Jaime resolveu ser o primeiro homem nas ameias. E com essa minha mão de ouro, provavelmente o primeiro a cair. 
De volta ao acampamento, Pequeno Lew segurou suas rédeas enquanto Peck deu-lhe uma mão para ajudá-lo a descer da sela. Será que eles pensam que sou tão aleijado que não posso desmontar sozinho?
— Como você se saiu, meu senhor? — Perguntou seu primo, Sor Daven. 
— Ninguém colocou uma flecha na garupa do meu cavalo. De outra forma haveria pouco para distinguir-me de Sor Ryman. — Ele fez uma careta. — Portanto, agora ele precisa fazer o Ramo Vermelho ficar mais vermelho. Culpe a si mesmo por isso, Peixe Negro, você me deixou uma pequena escolha. Monte um conselho de guerra. Sor Addam, Strongboar, Forley Prester, os nossos senhores dos rios... E os nossos amigos dos Frey. Ser Ryman, Lord Emmon, e quem mais eles se importarem em trazer. 
Eles se reuniram rapidamente. Lorde Piper e ambos os Lorde Vance vieram falar pelos arrependidos senhores do Tridente, cuja lealdade em breve seria posta a prova. O oeste foi representado por Sor Daven, Javali Forte, Addam Marbrand, e Forley Prester. Lorde Emmon Frey juntou-se a eles, com sua esposa. A Senhora Genna reivindicou sua cadeira com um olhar que desafiou qualquer homem ali para questionar sua presença. Ninguém fez. Os Freys enviaram Sor Walder Rivers, conhecido como “Bastardo Walder” e Edwyn, o primogênito de Sir Ryman, um homem pálido e delgado, com um nariz comprimido e cabelos lisos e escuros. Sob um manto azul, Edwyn usava um gibão de couro de bezerro cinza, finamente bordadas com arabescos ornados trabalhados no couro.
— Eu falo pela Casa Frey, — ele anunciou. — Meu pai está indisposto esta manhã.
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Sor Daven suspirou.
— Ele está bêbado ou apenas enjoado pelo vinho da noite anterior?
Edwyn enrijeceu a boca, como um avarento.
— Lorde Jaime, — ele disse. — Preciso sofrer tanta descortesia?  
— Isso é verdade? — Jaime perguntou a ele. — Seu pai está bêbado?
Frey apertou seus lábios e olhou Sor Ilyn Payne, que estava de pé ao lado da tenda, em sua malha enferrujada, sua espada cutucando sobre um ombro.
— Ele... Meu pai tem um estomago ruim, meu senhor. Vinho tinto o ajuda em sua digestão.
— Ele deve estar digerindo um sangrento mamute! — disse Sor Daven. 
Javali Forte e Senhora Genna riram.
— Já chega. — Disse Jaime. — Nós temos um castelo a vencer. Quando seu pai armava um conselho, ele deixava seus capitães falarem primeiro. Jaime resolveu fazer o mesmo. — Como devemos proceder? 
— Enforque Edmure Tully, para começar. — Exortou Lorde Emmon Frey. — Isto irá ensinar a Sor Bryden que nós realmente queremos dizer o que dizemos. Se enviarmos a cabeça de Edmure a seu tio, pode convencê-lo a ceder.
— Brynden Peixe Negro não é movido tão facilmente. — Disse Karyl Vance, o senhor do Pouso do Viajante, tinha um melancólico olhar. A marca de nascença da cor de vinho cobria seu pescoço e um lado do rosto. Seu próprio irmão não conseguiu move-lo para uma cama de casal.
Sor Daven balançou a cabeça desgrenhada.
— Temos que demolir as paredes, como eu venho dizendo o tempo todo. Torres de cerco, escadas de escalada, e um aríete para quebrar o portão, isto é o que precisamos aqui.
— Eu liderarei o ataque, — disse Javali Forte. — De ao peixe o sabor do aço e do fogo, isso é o que eu digo.
— Eles são meus muros, — Protestou Lorde Emmon. — E este é o meu portão que você irá quebrar. Ele tirou um pergaminho novamente de sua manga. Rei Tommen pessoalmente me deu...
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— Nós todos vimos seu papel, tio. — Retrucou Edwyn Frey. — Porque você não vai e balançe-o para o Peixe Negro para ver se funciona?
— Demolir as muralhas será um negócio sangrento, — disse Addam Marbrand. — Proponho esperarmos uma noite sem lua e enviarmos uma dúzia de homens escolhidos pelo rio em um barco com remos abafados. Eles podem escalar os muros com cordas e ganchos, e abrir os portões a partir do interior. Eu os liderarei, se o conselho desejar.
— Loucura, — declarou o bastardo, Walder Rivers. — Sor Bryden não é homem para ser enganado com esses truques.
— O Peixe Negro é o obstáculo, — concordou Edwyn Frey. — Seu elmo tem uma truta preta na crista que o faz fácil de achar ao longe. Eu proponho que movamos nossas torres de cerco para perto, enchemos de arqueiros, e fingimos um ataque contra os portões. Isso vai trazer Sor Bryden para as ameias, cristas e tal. Deixe que cada arqueiro lancem seus dardos como um solo da noite, e fazerem da crista sua marca. Uma vez que Sor Bryden morra, Correrrio é nossa.
— Minha. — Canalizou Lorde Emmon. — Correrrio é minha. 
A marca de nascença de Lord Karyl escureceu. 
— O Solo da noite será sua própria contribuição, Edwyin? Um veneno mortal, não duvido. Peixe Negro merece uma morte nobre, e eu sou o homem que dará a ele. — Javali Forte bateu com o punho na mesa — Vou desafiá-lo para um combate. Maça, machado ou espada longa, não farei distinção. O velho será minha carne.
— Porque ele se dignaria a aceitar seu desafio, sor? — Perguntou Sor Forley Prester. — O que ele poderia ganhar com tal duelo? Vamos levantar o cerco se ele conseguir ganhar? Eu não acredito nisso. Nem ele. Um único combate não iria conseguir nada.
— Eu conheço Bryden Tully desde que éramos escudeiros juntos, em serviço de Lorde Darry, — disse Norbert Vance, o cego Lorde de Atranta. — Se agradar aos meus senhores, deixem-me ir e falar com ele e tentar fazê-lo entender o desespero de sua posição.
— Ele entende isso bem o suficiente, — disse Lord Piper. Ele era um baixo, roliço homem de cabelo vermelho selvagem, o pai de um dos escudeiros de Jaime. A semelhança com o menino era inconfundível. — O homem não é estúpido, Nobert. Eles têm olhos... E muito senso para ceder a coisas como essas. Ele fez um gesto obsceno em direção a Edwyn Frey e Walder Rivers.
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Edwyn arrepiou.
— Se meu senhor de Piper pretende implicar...
— Eu não implico Frey. Eu digo o que quero dizer diretamente, como um homem honesto. Mas o que você saberia dos costumes dos homens honestos? Você é um traiçoeiro mentiroso, como todos os seus parentes. Prefiro beber uma caneca de mijo do que pegar a palavra de qualquer um Frey. Ele se inclinou sobre a mesa, onde está Marq? Responda-me isso. O que você fez com meu filho? Ele era um convidado em seu maldito casamento.
— E nosso honrado convidado ele deve permanecer, — disse Edwyn. — Até que você prove sua lealdade para Vossa Graça, Rei Tommen.
— Cinco cavaleiros e vinte homens armados foram com Marq para as Gêmeas. — Disse Piper. — Eles são seus convidados também, Frey?
— Alguns dos cavaleiros, talvez. Aos outros foram servidos nada mais do que mereciam. Você faria bem em guardar sua língua traidora, Piper, a menos que você queira que seu herdeiro retorne em pedaços.
Os conselhos de meu pai nunca chegaram a isso, Jaime pensou quando Piper veio cambaleado para seus pés.
— Diga isso com uma espada em suas mãos, Frey. — O pequeno homem rosnou. — Ou você só luta com manchas de merda?
O rosto do Frey empalideceu. Ao lado dele Walder Rivers se ergueu.
— Edwyn não é homem de espada... Mas eu sou Piper. Se você tiver mais observações para fazer vamos lá fora fazê-las.
— Este é um conselho de guerra, não uma guerra, — Jaime lembrou a eles. — Sentem-se, os dois. 
Nenhum homem se moveu. 
— Agora!
Walder Rivers sentou-se. Lord Piper não era tão fácil de comover. Ele resmungou uma maldição e saiu da tenda.
— Eu devo enviar homens atrás dele e arrasta-lo de volta, meu senhor? — Sor Daven perguntou a Jaime.
— Envie Sor Ilyn, — exortou Edwyn Frey. — Nós só precisamos de sua cabeça.
Karyl Vance se virou para Jaime.
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— Lord Piper falou de tristeza. Marq é seu primogênito. Os cavaleiros que o acompanharam até as Gêmeas eram sobrinhos e primos.
— Traidores e rebeldes, todos, você quer dizer, — disse Edwyn
Frey.
Jaime lhe lançou um olhar frio.
— As Gêmeas pegaram a causa do Jovem Lobo também, — ele lembrou ao Frey. — Então você o traiu. Isso faz de você duas vezes mais traidor que Piper. — Ele gostou de ver o fino sorriso de Edwyn morrer. Eu tenho tido conselho suficiente por um dia, decidiu. — Estamos acabados. Vejam suas preparações, meus senhores. Nós atacaremos na primeira luz.
O vento soprava do norte quando os senhores deixaram a tenda. Jaime podia sentir o mau cheiro do acampamento Frey além do Pedregoso. Do outro lado da água Edmure Tully ficou abandonado na forca no alto do cadafalso cinza, com uma corda em seu pescoço. 
Sua tia partiu depois, seu marido em seus calcanhares. 
— Lorde Sobrinho, — Emmon protestou. — Este ataque a meu lugar... Você não deve fazer isso. — Quando ele engoliu, a maça em sua garganta se moveu para baixo e para cima. — Você não deve... Eu o proíbo. — Ele tinha mastigado folhamarga outra vez; espuma rosada brilhava em seus lábios. — O castelo é meu, eu tenho o pergaminho. Assinado pelo rei. Pelo pequeno Tommen. Eu sou o senhor legal de Correrrio, e...
— Não por muito tempo enquanto Edmure Tully vive, — disse a Senhora Genna. — Ele é macio de coração e de cabeça, eu sei, mas vivo o homem ainda é um perigo. O que você pretende fazer sobre isso, Jaime?
— É Peixe Negro que é perigoso, não Edmure.
— Deixem Edmure comigo. Sor Lyle, Sor Ilyn. Assistam-me se quiser. É hora de eu pagar uma visita para aquelas forcas.
O Pedregoso era mais profundo e mais rápido que o Ramo Vermelho, e o vau mais próximo estava a léguas de distancia. A balsa tinha acabado de começar a cruzar o rio com Walder Rivers e Edwyn Frey quando Jaime e seus homens chegaram ao rio. Enquanto aguardavam seu retorno, Jaime disse a eles o que queria. Sor Ilyn cuspiu no rio.
Quando os três desceram da balsa na margem norte, uma camponesa bêbada se ofereceu para agradar a Javali Forte com sua boca. 
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— Aqui, divirta-se meu amigo, — Sor Lyle disse, empurrando-a para Sor Ilyn. Rindo, a mulher moveu-se para beijar Payne nos lábios, em seguida viu seus olhos e se encolheu.
O caminho entre as cocheiras eram primitivos, de lama marrom, misturado com esterco de cavalo e marcado tanto por cascos como por botas. Em todos os lugares Jaime viu as torres gêmeas da Casa Frey exibidas em escudos e flâmulas azul e cinza, juntamente com casas menores juramentadas a Coroa: A garça de Erenford, o tridente de Haigh, os três raminhos de viscos de Lord Charlton. A chegada do Regicida não passou despercebida. Uma velha vendendo leitões em uma cesta parou para encarálo, um cavaleiro com uma cara meio-familiar se colocou em um joelho, e dois homens mijando em uma vala viraram-se pulverizando entre si.
— Sor Jaime, — alguém chamou atrás dele, mas ele seguiu em frente sem se virar. Em torno dele ele vislumbrou os rostos dos homens que haviam feito o seu melhor para matá-lo no Bosque dos Murmúrios, onde os Freys lutaram sob as bandeiras do Lobo Gigante de Robb Stark. Sua mão de ouro pendurava-se pesada em seu lado. 
O grande pavilhão retangular de Ryman Frey era maior no campo; suas paredes de lona cinza foram feitas de quadrados costurados para assemelhar-se a pedras, e seus dois picos evocava as Gêmeas. Longe de estar indisposto, Lorde Ryman estava desfrutando algum entretenimento. O som do riso de uma mulher embriagada vinha de dentro da tenda, misturada com a melodia de uma harpa e a voz de um cantor. Eu lidarei com você mais tarde, sor, Jaime pensou. Walder Rivers permaneceu diante de sua própria modesta tenda, conversando com dois homens armados. Seu escudo trazia as armas da Casa Frey com as cores invertidas, e uma curva vermelha sinistra do outro lado das torres. Quando o bastardo viu Jaime, ele franziu a testa. Aí está um frio olhar suspeito se eu alguma vez vi um. Este ai é mais perigoso do que qualquer um de seus legítimos irmãos.
A forca havia sido levantada a três metros do chão. Dois lanceiros foram postados ao pé da escada.
— Você não pode ir lá em cima sem a permissão de Lorde Ryman, — um disse a Jaime.
— Isso diz que eu posso, Jaime bateu no punho de sua espada com um dedo. A questão é, para passar eu terei que ir sobre o seu cadáver?
O lanceiro arredou para o lado.
No topo da forca, o Senhor de Correrrio ficou olhando para a armadilha abaixo dele. Seus pés estavam pretos e cheios de lama, sua perna
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estava nua. Edmure vestia uma túnica de seda suja listrada em vermelho e azul, e um laço de corda de cânhamo. 
Ao som dos passos de Jaime, ele levantou sua cabeça e passou a língua sobre seus lábios rachados.
— Regicida? — A visão de Sor Ilyn fez seus olhos se arregalarem. — Melhor uma espada que uma corda. Faça-o Payne.
— Sor Ilyn, — disse Jaime. — Você ouviu Lorde Tully. Faça. 
O silencioso cavaleiro agarrou sua espada larga com as mãos. Longa e pesada ela era, e afiada como um metal comum podia ser. Os lábios rachados de Edmure moveram-se silenciosamente. Quando Sor Ilyn levou a lamina para trás, ele fechou seus olhos. O curso teria todo o peso de Payne.
— Não! Pare! NÃO!  — Edwyn Frey chegou ofegante a vista. — Meu pai esta vindo. Mais rápido que pode. Jaime, você deve...
— “Meu senhor” me serviria melhor, Frey, — disse Jaime. — E você faria bem em omitir a maior parte dos discursos que você dirige a mim.
Sor Ryman veio subindo os degraus da forca na companhia de uma meretriz com cabelos de palha tão bêbada quanto ele estava. Seu vestido era amarrado na frente, mas alguém tinha desfeito os laços do umbigo, então seus seios estavam saindo. Eles eram grandes e pesados, com grotescos mamilos marrons. Em sua cabeça um diadema de bronze, martelado e com pontas tortas, esculpidas com runas e unidas com pequenas espadas negras. Quando ela viu Jaime, riu.
— Quem nos sete infernos é esse ai?
— O Lorde Comandante da Guarda Real, — Jaime respondeu com fria cortesia. — Eu talvez pergunte o mesmo de você, senhora.
— Senhora? Eu não sou uma senhora. Eu sou a rainha. 
— Minha irmã ficará surpresa ao ouvir isso. 
— Lorde Ryman me coroou ele mesmo. — Ela apertou seus quadris largos. — Eu sou a rainha das prostitutas.
Não, Jaime pensou, minha doce irmã tem este título também. 
Sor Ryman encontrou sua língua. 
— Cale a Boca. Lorde Jaime não quer ouvir alguns disparates de prostituta.
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Este Frey era um homem atarracado com um rosto largo, olhos pequenos e um conjunto carnudo e macio de queixos. Seu hálito tinha o fedor do vinho e de cebolas.
— Fazendo rainhas, Sor Ryman? — Jaime perguntou suavemente. Estúpido. Tão estúpido quanto este negócio com Lorde Edmure.
— Eu dei o aviso a Peixe Negro. Eu disse a ele que Edmure morreria a menos que ele entregasse o castelo. Eu tinha essa forca construída, para mostrar a ele que Sor Ryman Frey não faz ameaças vazias. Em Guardamar meu filho Walder fez o mesmo com Patrek Mallister e Lorde Jason dobrou os joelhos, mas... Peixe Negro é um homem frio, ele nos recusou então...
—... Você enforcou Lorde Edmure?
 O homem avermelhou.
— Meu senhor avô... Se pendurarmos o homem, nós não teremos refém, sor. Você considerou isso?
— Somente tolos fazem tratos que não estão preparados para cumprirem. Se eu tratasse de bater em você a menos que você calasse sua boca, e você resolvesse falar, o que você acha que eu faria? 
— Sor, você não entend… 
Jaime bateu nele. Foi um golpe de costas da mão feita com a mão de ouro, mas a força dele enviou Sor Ryman tropeçando para trás para os braços de sua prostituta.
— Você tem uma cabeça gorda, Sor Ryman. E um pescoço grosso também. Sor Ilyn, quantos golpes você levaria para decepar o pescoço?
Sor Ilyn colocou um único dedo contra seu nariz.
Jaime riu.
— Você esta se vangloriando. Eu digo três.
Ryman Frey ficou de joelhos.
— Eu não fiz nada… 
— Além de beber e prostituir. Eu sei. 
— Eu sou herdeiro do Gargalo, você não pode...
— Eu avisei você sobre falar.  — Jaime observou o homem ficando pálido. Um beberrão, um tolo, um covarde. Sor Walder devia ter melhor resistência que esse, ou os Frey estão acabados.
— Você está destituído, sor. 
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— Destituído?
— Você me ouviu. Vá embora. 
— Mas… Aonde eu devo ir? 
— Para o inferno ou para casa, como você preferir. Desde que você não esteja no acampamento quando o sol nascer. Você talvez leve sua rainha das prostitutas, mas não a coroa dela. — Jaime virou de Sor Ryman para seu filho. Edwyn, eu estou dando a você o comando de seu pai. Tente não ser tão estúpido quanto ele.
— Isso não deve ser muito difícil, meu senhor.
— Envie uma palavra para Lorde Walder. A coroa requer todos os seus prisioneiros. — Jaime acenou com sua mão de ouro.
—Sor Lyle, tragam-no.
Edmure Tully desabou de bruços quando a lamina de Sor Ilyn partiu a corda em dois. Um pé de cânhamo ainda estava pendurado da corda em seu pescoço. Javali Forte agarrou o final dela e puxou para seus pés.
— Um peixe em uma coleira, — ele disse rindo. — Aí esta uma visão que eu nunca vi antes.
Os Freys se afastaram para deixá-lo passar. Uma multidão se reuniu abaixo do andaime, incluindo uma dúzia de seguidores do campo em vários estados de desordem. Jaime notou um homem segurando uma harpa.
— Você, cantor, venha comigo.
O homem tirou o chapéu.
— Como meu senhor ordena.
Ninguém disse uma palavra enquanto caminhavam de volta para a balsa, com o cantor de Sor Ryman trilhando atrás deles. Mas quando eles impeliram para fora da margem do rio em direção para o lado sul de Pedregoso, Edmure Tully agarrou Jaime pelo braço.
— Por quê?
Um Lannister sempre paga suas dívidas, ele pensou, e você é a única moeda que me sobrou.
— Considere um presente de casamento. 
Edmure olhou para ele com cautelosos olhos.
— Um… Presente de casamento? 
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— Eu fui informado que sua esposa é bonita. Ela teria que ser para você ir para a cama com ela enquanto sua irmã e seu rei estavam sendo assassinados.
— Eu nunca soube, — Edmure lambeu os lábios rachados. — Havia violonistas fora do quarto de dormir.
— E a Senhora Roslin estava distraindo você.
— Ela... Eles a fizeram fazer isso, Lorde Walter e o resto. Roslin nunca quis... Ela chorou, mas eu pensei que era…
— O sinal de sua masculinidade desenfreada? Sim, isso faria qualquer mulher chorar, eu tenho certeza.
— Ela está carregando meu filho.
Não, Jaime pensou, esta é sua morte que esta crescendo dentro da barriga dela. De volta em seu pavilhão, ele dispensou Javali Forte e Sor Ilyn, mas não o cantor.
— Eu talvez precise de uma curta canção, — ele disse ao homem. — Lew, aqueça um pouco de água para o banho do meu convidado. Pia, encontre para ele alguma roupa limpa. Nada com leões, se puder. Peck, vinho para Lorde Tully. Você esta com fome meu senhor?
Edmure negou com a cabeça, mas seus olhos ainda estavam desconfiados.
Jaime se sentou em um banquinho enquanto Tully tinha seu banho. A sujeira saia em nuvens cinzas.
— Depois que você tiver comido, um de meus homens escoltará você até Correrrio. O que acontece depois disso depende de você. 
— O que você quer dizer? 
— Seu tio é um homem velho. Valente, sim, mas a melhor parte de sua vida acabou. Ele não tem nenhuma noiva para lamentar por ele, nenhum filho para defender. Uma boa morte é tudo o que Peixe Negro pode esperar... Mas você tem anos pela frente, Edmure. E você é o senhor legítimo da Casa Tully, não ele. Seu tio deve servir a seu prazer. O destino de Correrrio está em suas mãos.
Edmure o encarou.
— O destino de Correrrio...
— Entregue o castelo e ninguém morre. Seu pequeno povo pode ir em paz ou ficar para servir Lorde Emmon. A Sor Bryden será permitido
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vestir o negro, juntamente com a quantidade de militares que preferir se juntar a ele. Você também, se a Muralha apelar por você. Ou você pode ir para o Rochedo Casterly como meu cativo e desfrutar de todos os confortos e cortesias que convém a um refém da sua classificação. Eu enviarei sua esposa para se juntar a você, se você quiser. Se seu filho for um garoto, ele irá servir a Casa Lannister como um Pagem ou Escudeiro, e quando ele se tornar cavaleiro, lhe daremos algumas terras. Se Roslin te der uma filha, eu a verei com um bom dote quando tiver idade suficiente para casar. A você mesmo pode até ser concedida liberdade condicional, uma vez que a guerra estiver acabada. Tudo o que você precisa fazer é entregar o castelo.
Edmure levantou suas mãos da banheira e observou a água correr por entre seus dedos.
— E se eu não entregar o castelo?
Será que você vai me fazer dizer as palavras? Pia estava junto à aba da tenda com o braço cheio de roupas. Seus escudeiros estavam ouvindo também, assim como o cantor. Deixe-os ouvir, Jaime pensou, deixe o mundo ouvir. Não fará diferença alguma. Ele forçou a si mesmo um sorriso.
— Você tem visto nossos números, Edmure. Você já viu as escadas, as torres, os trabucos e os aríetes. Assim que eu der o comando, minha vanguarda irá pontear o seu fosso e quebrar o seu portão. Centenas morrerão, a maioria de seu próprio povo. Seus ex-juramentados farão parte da minha primeira onda de ataque, assim você vai começar o dia matando pais e irmãos daqueles que morreram por você nas Gêmeas. A segunda onda será Freys, eu tenho destes de sobra. Minha retaguarda seguirá quando seus arqueiros ficarem em falta de flechas, e seus cavaleiros tão cansados que nem poderão levantar as laminas. Quando o castelo cair, todos aqueles que estiverem dentro serão postos a espadas. Seu rebanho será massacrado, suas florestas dos deuses serão derrubadas, suas guardas e torres irão queimar. Eu colocarei suas muralhas a baixo, e desviarei o Pedregoso sobre as ruínas. Depois que eu terminar, nenhum homem jamais saberá que um castelo alguma vez ficava aqui. — Jaime ficou de pé. — Sua esposa talvez vá parir depois disso.  Você vai querer seu filho, eu espero. Eu vou mandá-lo a você quando ele nascer. Com uma catapulta.
Silencio seguiu seu discurso. Edmure sentado em sua banheira. Pia agarrando as roupas contra seus seios. O cantor reforçou uma corda em sua harpa. Pequeno Lew escavava um naco de pão para fazer uma trincheira, fingindo que não tinha ouvido. Com uma catapulta, Jaime pensou. Se sua tia estivesse estado lá, ela ainda diria que Tyrion era filho de Tywin?
Edmure Tully finalmente encontrou sua voz. 
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— Eu poderia sair dessa banheira e matá-lo onde você está, Regicida.
— Você poderia tentar. 
Jaime esperou. Quando Edmure não fez movimento para se erguer, ele disse
— Eu deixarei você para aproveitar sua comida. Cantor, cante para nosso convidado enquanto ele come. Você conhece a musica, eu acredito. 
— Aquela sobre a chuva? Sim, meu senhor, eu a conheço.
Edmure parecia ver o homem pela primeira vez.
— Não. Ele não! Tire ele de perto de mim.
— Por quê? É só uma canção, — disse Jaime. Ele não pode ter uma voz tão ruim.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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CERSEI CERSEI CERSEI CERSEI  
 
Grande Meistre Pycelle já era velho quando Cersei o conhecera, mas parecia ter envelhecido mais cem anos nas três últimas noites. Precisou de uma eternidade para dobrar o joelho enferrujado à sua frente, e depois de o fazer não conseguiu voltar a erguer-se até Sor Osmund o agarrar e o pôr em pé.
 Cersei estudou-o com desagrado. 
— Lorde Qyburn informa-me de que Lorde Gyles tossiu pela última vez.
— Sim, Vossa Graça. Fiz o melhor que pude para aliviar o seu falecimento.
— Fez? — A rainha virou-se para a Senhora Merryweather. — Eu disse que queria Rosby vivo, não disse?
— Disse, Vossa Graça.
— Sor Osmund, o que recorda da conversa?
— Ordenou ao Grande Meistre Pycelle que salvasse o homem, Vossa Graça. Todos ouvimos.
 A boca de Pycelle abriu-se e fechou-se.
— Vossa Graça tem de saber que eu fiz tudo o que podia ser feito pelo pobre homem.
— Tal como fez com Joffrey? E o seu pai, o meu querido marido? Robert era tão forte como qualquer homem nos Sete Reinos, e no entanto o perdeu para um javali. Oh, e não nos esqueçamos de Jon Arryn. Sem dúvida que teria matado também Ned Stark, se eu tivesse deixado que ficasse com ele mais tempo. Diga-me, meistre, foi na Cidadela que aprendeu a apertar as mãos e arranjar desculpas?
 A voz dela fez o velho se encolher. 
— Ninguém poderia ter feito mais, Vossa Graça. Eu... eu sempre prestei um serviço leal.
— Quando aconselhou o Rei Aerys a abrir os portões à aproximação da hoste do meu pai, era essa a sua ideia de serviço leal?
— Isso... eu avaliei mal o. . .
— Foi esse um bom conselho?
O
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— Vossa Graça tem certamente de saber...
— O que eu sei é que quando o meu filho foi envenenado se mostrou ser menos útil do que o Rapaz Lua. O que eu sei é que a coroa tem uma necessidade desesperada de ouro, e o nosso mestre da moeda está morto.
O velho idiota agarrou-se àquilo.
— Eu. . . eu esboçarei uma lista de homens capazes de ocupar o lugar do Lorde Gyles no conselho.
— Uma lista. — Cersei sentiu-se divertida com o atrevimento. — Posso bem imaginar o tipo de lista que me arranjaria. Grisalhos, tolos gananciosos e Garth, o Grosso. — Os lábios se apertaram. – Tem andado muito em companhia da Senhora Margaery nos últimos tempos.
 - Sim. Sim, eu... a Rainha Margaery tem estado muito perturbada por causa de Sor Loras. Eu forneço a Sua Graça preparados para dormir e... outros tipos de poções.
— Sem dúvida. Diga-me, foi a nossa pequena rainha quem ordenou que matasse o Lorde Gyles? 
— M-matar? — Os olhos do Grande Meistre Pycelle ficaram do tamanho de ovos cozidos. — Vossa Graça não pode acreditar. . . foi a sua tosse, por todos os deuses, eu. . . Sua Graça não faria. . . ela não tinha má vontade contra o Lorde Gyles, porque haveria a Rainha Margaery de o querer. . .
— . . . morto? Ora, para plantar outra rosa no conselho de Joffrey. É cego, ou foi comprado? Rosby estava no seu caminho, de modo que o pôs na cova. Com a vossa conivência.
— Vossa Graça, juro, o Lorde Gyles pereceu devido à tosse. — Tinha a boca a tremer. — A minha lealdade sempre esteve com a coroa, com o reino. . . c-com a Casa Lannister.
Por essa ordem? O medo de Pycelle era palpável. Está suficientemente maduro. É altura de espremer o fruto e provar o seu sumo.
— Se é tão leal como diz, porque estaria mentindo? Não se incomode em negá-lo. Começou a dançar em volta da Donzela Margaery antes de Sor Loras partir para Pedra do Dragão, portanto poupe-me a mais fábulas sobre só desejar consolar a nossa nora na sua dor. O que te leva tão frequentemente à Arcada das Donzelas? Não é, certamente, a desenxabida conversa de Margaery. Andai a cortejar aquela sua septã de cara bexiguenta?
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Fazendo festinhas na pequena Senhora Bulwer? É um espião, informando-a sobre mim para lhe alimentar as maquinações? 
— Eu. . . eu obedeço. Um meistre jura servir.
— Um grande meistre jura servir o reino.
— Vossa Graça, ela... ela é a rainha... 
— Eu é que sou a rainha. 
— Quis dizer. . . ela é a esposa do rei, e. . .
— Eu sei quem ela é. O que quero saber é por que motivo tem necessidade de você. A minha nora está enferma?
— Enferma? — O velho puxou a coisa a que chamava barba, aquela sementeira remendada de pêlos finos e brancos que brotava das barbelas soltas e rosadas que tinha sob o queixo. — N-não está enferma, Vossa Graça, não propriamente. Os meus votos proíbem-me de divulgar. . .
— Os seus votos serão pequeno conforto nas celas negras — avisou-o a rainha. — Ou eu ouço a verdade, ou passará a usar grilhetas. 
Pycelle ruiu sobre os joelhos.
— Suplico... eu fui um homem do senhor seu pai, e para você um amigo no problema de Lorde Arryn. Não poderia sobreviver às masmorras, de novo não...
— Porque é que Margaery manda te chamar?
— Ela deseja... ela... ela...
— Diga!
O velho encolheu-se de medo.
— Chá da lua — sussurrou. — Chá da lua, para...
— Eu sei para que é usado o chá da lua. — Aí está. — Muito bem. Endireite esses joelhos vergados e tente se lembrar de como se é um homem. Pycelle lutou por erguer-se, mas levou tanto tempo que teve de dizer a Osmund Kettleblack para lhe dar outro puxão. — E quanto à Lorde Gyles, não há dúvida de que o Pai no Céu o julgará com justiça. Não deixou filhos?
— Não há filhos da sua semente, mas há um protegido. . .
—... que não é do seu sangue. — Cersei ignorou aquele aborrecimento com um golpe de mão. —Gyles conhecia a nossa terrível necessidade de ouro. Sem dúvida que te falou do desejo que tinha de deixar todas as suas terras e fortuna a Tommen. — O ouro de Rosby ajudaria a
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refrescar os seus cofres, e as terras e castelo de Rosby podiam ser outorgados a um dos seus como recompensa por serviços leais. Lorde Waters, talvez. Aurane tinha andado a sugerir a necessidade que sentia de uma propriedade; a sua senhoria não passava de uma honraria vazia sem propriedades. Cersei sabia que o homem tinha os olhos postos em Pedra do Dragão, mas aí estava a mirar alto demais. Rosby seria mais adequado ao seu nascimento e estatuto.
— O Lorde Gyles adorava Vossa Graça de todo o coração — estava dizendo Pycelle — mas... o seu protegido...             —... irá sem dúvida compreender, depois de te ouvir falar do desejo expresso por Lorde Gyles ao morrer. Vá, e trate do assunto.
— Se aprouver a Vossa Graça. — O Grande Meistre Pycelle quase tropeçou na própria veste com a pressa de sair.
 A Senhora Merryweather fechou a porta nas costas dele.              — Chá da lua — disse, ao voltar-se para a rainha. — Que tolice da parte dela. Porque haveria de fazer uma coisa dessas, de correr tal risco?
— A pequena rainha tem apetites que Tommen é por enquanto novo demais para satisfazer. — Isso era sempre um perigo, quando uma mulher feita era casada com uma criança. Ainda mais com uma viúva. Ela pode afirmar que Renly nunca lhe tocou, mas eu não acredito. As mulheres só bebiam chá de lua por um motivo; as donzelas não tinham qualquer necessidade da bebida. — O meu filho foi traído. Margaery tem um amante. Isso é alta traição, punível pela morte. — Só podia esperar que a bruxa de cara de ameixa seca da mãe de Mace Tyrell sobrevivesse o suficiente para assistir ao julgamento. Ao insistir que Tommen e Margaery casassem de imediato, a Senhora Olenna condenara a sua preciosa rosa à espada de um carrasco. — Jaime levou Sor Ilyn Payne. Suponho que terei de encontrar outro Magistrado do Rei para lhe fazer voar a cabeça.
— Eu farei — ofereceu-se Osmund Kettleblack com um sorriso fácil. — Margaery tem um pescocinho bonito. Uma boa espada o atravessará sem dificuldade.
— Atravessaria — disse Taena — mas há um exército Tyrell em Ponta Tempestade e outro em Lagoa da Donzela. Eles também têm espadas afiadas. 
Estou lavada em rosas. Era um aborrecimento. Ainda precisava de Mace Tyrell, mesmo que não precisasse da filha. Pelo menos até que Stannis esteja derrotado. Depois, não precisarei de nenhum deles. Mas como podia livrar-se da filha sem perder o pai?
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— Traição é traição — disse — mas temos de ter provas, algo mais substancial do que chá da lua. Se se provar que ela é infiel, até o próprio pai terá de a condenar, caso contrário a vergonha dela transforma-se na sua. 
O Kettleblack mordeu uma ponta do bigode. 
— Temos de os apanhar durante o ato. 
— Como? Qyburn tem olhos postos nela de noite e de dia. Os seus criados aceitam as minhas moedas mas trazem-nos só ninharias. E no entanto ninguém viu esse amante. Os ouvidos à sua porta ouvem cantos, risos, mexericos, nada que possamos usar.
— Margaery é demasiada astuta para ser apanhada assim tão facilmente — disse a Senhora Merryweather. — As suas mulheres são as muralhas do seu castelo. Dormem com ela, vestem-na, rezam com ela, lêem com ela, fazem costura com ela. Quando não está fazendo falcoaria ou passeando a cavalo, está brincando de entra-no-meu-castelo com a pequena Alysanne Bulwer. Sempre que há homens por perto, a septã encontra-se presente, ou então as primas.
— Em alguma altura ela terá de se livrar das galinhas — insistiu a rainha. Uma ideia assaltou-a. — A menos que as senhoras também participem... nem todas, talvez, mas algumas.
— As primas? — Até Taena mostrou dúvidas. — Todas as três são mais novas do que a pequena rainha, e também mais inocentes.
— Libertinas vestidas com o branco de donzelas. Isso só torna os seus pecados mais chocantes. Os seus nomes perdurarão em vergonha. — De súbito, a rainha pôde quase saboreá-lo. — Taena, o senhor seu esposo é o meu administrador de justiça. Vocês dois tem de jantar comigo, nesta mesma noite. — Queria aquilo feito depressa, antes de Margaery enfiar na cabecinha a ideia de regressar a Jardim de Cima ou zarpar para Pedra do Dragão para acompanhar o irmão ferido às portas da morte. — Ordenarei aos cozinheiros que cozinhem um javali para nós. E claro que temos de ter alguma música, para ajudar à nossa digestão.
 Taena foi muito rápida a compreender. 
— Música. Exatamente. 
— Vá dizer ao senhor seu esposo e fazer preparativos para o cantor — disse Cersei. — Sor Osmund, você pode ficar. Temos muito a discutir. Também terei necessidade de Qyburn.
Infelizmente, as cozinhas revelaram-se desprovidas de javalis, e não havia tempo para pôr caçadores em campo. Em vez disso, os cozinheiros
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mataram uma das porcas do castelo, e serviram-lhes pernil guarnecido com cravinho e untado com mel e cerejas secas. Não era o que Cersei queria, mas contentou-se com o que havia. Para sobremesa, tinham maçãs cozidas com um forte queijo branco. A Senhora Taena saboreou cada garfada. Não se pôde dizer o mesmo de Orton Merryweather, cuja cara redonda se manteve manchada e pálida do caldo ao queijo. Bebeu muito, e não parou de deitar olhares de soslaio ao cantor.
— Uma grande pena, o que aconteceu a Sor Gyles — disse por fim Cersei. — Contudo, atrevo-me a dizer que nenhum de nós sentirá falta da sua tosse.
— Não. Não, penso que não.
— Vamos ter necessidade de um novo mestre da moeda. Se o Vale não estivesse tão instável, traria de volta Petyr Baelish, mas... estou com ideias de testar Sor Harys no cargo. Ele não pode fazer pior do que Gyles, e pelo menos não tosse. 
— Sor Harys é Mão do Rei — disse Taena.
 Sor Harys é um refém, e até nisso é fraco.
  — Já é tempo de Tommen ter uma Mão mais enérgica. 
O Lorde Orton levantou o olhar da taça de vinho. 
— Enérgica. Com certeza. — Hesitou. — Quem?...
— Você, senhor. Está no seu sangue. O seu bisavô ocupou o lugar do meu pai como Mão de Aerys. — Substituir Tywin Lannister por Owen Merryweather revelara-se semelhante a substituir um cavalo de batalha por um burro, era certo, mas Owen já era um homem velho e acabado quando Aerys o promovera, amável, ainda que ineficaz. O neto era mais novo, e... Bem, ele tem uma mulher forte. Era uma pena que Taena não pudesse servir como Mão. Era três vezes mais homem do que o marido, e muito mais divertida. No entanto, também nascera em Myr e era mulher, de modo que Orton teria de servir. — Não tenho dúvidas de que é mais capaz do que Sor Harys. — O conteúdo do meu penico é mais capaz do que Sor Harys. — Consentirá em servir?
— Eu... sim, claro. Vossa Graça concede-me uma grande honra. 
Uma honra maior do que merece.
— Me serviu capazmente como administrador de justiça, senhor. E continuará a fazê-lo nos... tempos difíceis que se avizinham. — Quando viu que Merryweather compreendera o que queria dizer, a rainha virou o seu
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sorriso para o cantor. — E você também deve ser recompensado, por todas as doces canções que tocou para nós enquanto comíamos. Os deuses te concederam um dom.
O cantor fez uma vénia.
— É bondade de Vossa Graça dizê-lo.
— Não é bondade — disse Cersei — é meramente a verdade. Taena informou-me de que te chamam Bardo Azul.
— Chamam, Vossa Graça — As botas do cantor eram de flexível couro de vitela azul, as bragas de boa lã azul. A túnica que usava era de seda azul clara cortada com cintilante cetim azul. Até chegara ao ponto de pintar o cabelo de azul, à moda de Tyrosh. Longo e encaracolado, o cabelo caía-lhe até aos ombros e cheirava como se tivesse sido lavado em água de rosas. De rosas azuis, sem dúvida. Pelo menos tem os dentes brancos. Eram bons dentes, nem um pouco tortos.
— Não tem outro nome?
Uma sugestão de rosa inundou-lhe o rosto.
— Em rapaz era chamado Wat. É um bom nome para um rapaz do campo, mas menos adequado a um cantor.
Os olhos do Bardo Azul eram da mesma cor dos de Robert. Bastava isso para Cersei o odiar.
— É fácil compreender por que é o favorito da senhora Margaery. 
— Sua Graça é bondosa. Ela diz que lhe dou prazer.
— Oh, estou certa disso. Posso o vosso alaúde?
— Se aprouver a Vossa Graça – Sob a cortesia, havia uma tênue sugestão de desconforto, mas ele entregou-lhe o alaúde mesmo assim. Não se recusa um pedido da rainha.
Cersei fez vibrar uma corda e sorriu perante o som.
— Doce e triste como o amor. Diga-me, Wat...  a primeira vez que levou Margaery para a cama foi antes dela casar com o meu filho, ou depois?
Por um momento, ele não pareceu compreender. Quando compreendeu, os seus olhos esbugalharam-se. 
— Vossa Graça foi mal informada. Juro, eu nunca...
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— Mentiroso! — Cersei bateu com tal força com o alaúde na cara do cantor que a madeira pintada explodiu em cacos e lascas. — Lorde Orton, chame os meus guardas e leve esta criatura para as masmorras. 
A cara de Orton Merryweather estava húmida de medo.
— Isto... oh, infâmia... ele atreveu-se a seduzir a rainha?
— Temo que tenha sido ao contrário, mas é na mesma um traidor. Que cante para Lorde Qyburn. 
O Bardo Azul ficou branco.
— Não. — Pingou sangue do seu lábio, onde o alaúde o rasgara. — Eu nunca... — Quando Merryweather lhe pegou no braço, ele gritou: — Mãe, misericórdia, não. 
— Eu não sou a sua mãe — disse Cersei.
Mesmo nas celas negras, tudo o que obtiveram dele foi desmentidos, orações e súplicas por misericórdia. Não demorou muito a escorrer-lhe sangue pelo peito abaixo, vindo de todos os dentes partidos, e ele molhou as suas bragas azuis-escuras por três vezes, mas mesmo assim o homem persistiu nas suas mentiras.
 — Será possível que tenhamos o cantor errado? — Perguntou
Cersei. 
— Tudo é possível, vossa Graça. Não tenha medo. O homem confessará antes da noite terminar. —Lá embaixo nas masmorras, Qyburn usava lã grosseira e um avental de couro de ferreiro. Dirigindo-se ao Bardo azul, disse: — Lamento se os guardas foram rudes com você. A educação deles é tristemente deficiente. — A voz era bondosa, solícita. — Tudo o que queremos de você é a verdade.
— Eu disse a verdade — soluçou o cantor. Grilhetas de ferro prendiam-no solidamente à fria parede de pedra.
— Nós sabemos que não. — Qyburn tinha na mão uma navalha, cujo gume cintilava tenuemente à luz do archote. Cortou a roupa ao Bardo Azul, até deixar o homem nu, à exceção das altas botas azuis. Cersei achou divertido ver que os pêlos entre as suas pernas eram castanhos.
— Diga-nos como deu prazer à pequena rainha — ordenou. 
— Eu nunca... eu cantei, só isso, cantei e toquei. As suas senhoras o dirão. Elas estiveram sempre conosco. As primas.
— De quantas delas tens conhecimento carnal? 
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— De nenhuma. Eu sou só um cantor. Por favor. 
Qyburn disse:
— Vosso Graça, pode ser que este pobre homem tenha só tocado para Margaery enquanto ela recebia outros amantes. 
— Não. Por favor. Ela nunca... eu cantei. Só cantei... 
Lorde Qyburn percorreu com uma mão o peito do Bardo Azul. 
— Ela põe os seus mamilos na boca durante os jogos de amor? — Pôs um deles entre o polegar e o indicador, e torceu. — Há homens que gostam disso. Os mamilos deles são tão sensíveis como os de uma mulher. — A navalha relampejou, o cantor guinchou. No seu peito, um olho vermelho chorou sangue. Cersei sentiu-se nauseada. Parte de si queria fechar os olhos, virar costas, para fazer aquilo parar. Mas era a rainha e tratava-se de traição. Lorde Tywin não teria afastado o olhar.
No fim, o Bardo Azul contou-lhes a vida inteira, até ao primeiro dia do seu nome. O pai fora fabricante de velas e Wat fora educado nesse mister, mas em rapaz descobrira que tinha mais habilidade para fazer alaúdes do que cilindros de cera. Aos doze anos, fugira para se juntar a uma trupe de músicos cuja atuação ouvira numa feira. Vagueara por metade da campina antes de vir para Porto Real, na esperança de cair nas boas graças da corte. 
— Boas graças? — Qyburn soltou um risinho. — É assim que as mulheres lhe chamam agora? Temo que tenha arranjado demasiadas, meu amigo... e da rainha errada. A verdadeira encontra-se na sua frente. 
Sim. Cersei culpava Margaery Tyrell por aquilo. Se não fosse ela, Wat podia ter vivido uma vida longa e frutuosa, cantando as suas cançonetas e deitando-se com criadoras de porcos e filhas de caseiros. As suas intrigas obrigaram-me a isto. Ela conspurcou-me com a sua perfídia.
Ao romper da aurora, as altas botas azuis do cantor estavam cheias de sangue e ele contara-lhes como Margaery se acariciava enquanto via as primas dar-lhe prazer com as bocas. Noutras alturas, cantava para ela enquanto saciava os seus apetites com outros amantes.
- Quem eram eles? - quis saber a rainha, e o infeliz Wat nomeou Sor Tallad, o Alto, Lambert Turnberry, Jalabhar Xho, os gémeos Redwyne, Osney Kettleblack, Hugh Clifton e o Cavaleiro das Flores. 
Aquilo desagradou-lhe. Não se atrevia a manchar o nome do herói de Pedra do Dragão. Além disso, ninguém que conhecesse Sor Loras acreditaria em tal coisa. Os Redwyne também não podiam estar incluídos no
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grupo. Sem a Árvore e a sua frota, o reino nunca poderia esperar ver-se livre daquele Euron Olho de Corvo e dos seus malditos homens de ferro. 
— Só está cuspindo os nomes de homens que viu nos seus aposentos. Nós queremos a verdade!
— A verdade. — Wat olhou-a com o único olho azul que Qyburn lhe deixara. Sangue borbulhou através dos buracos que mostrava onde tinham estado os dentes da frente. — Eu posso ter tido... uma falha de memória.
— Horas e Hobber não participaram nisto, pois não?
— Não — admitiu. — Eles não.
— E quanto a Sor Loras, eu tenho a certeza de que Margaery teve todo o cuidado para esconder do irmão o que andava a fazer. 
— Teve. Agora me lembro. Uma vez, tive de me esconder debaixo da cama quando Sor Loras veio visita-la. Ele nunca poderá saber, disse ela.
— Prefiro esta canção à outra. — Era melhor deixar os grandes senhores de fora. Mas os outros... Sor Tallad fora cavaleiro andante, Jalabhar Xho era um exilado e um pedinte, Clifton era o único dos guardas da pequena rainha. E Osney é a cereja em cima do bolo. — Sei que se sente melhor por ter dito a verdade. Quero que se lembre disso quando Margaery comparecer ao julgamento. Se começar outra vez a mentir... 
— Não começarei. Direi a verdade. E depois...
— ...te será permitido vestir o negro. Tem a minha palavra a esse respeito. — Cersei virou-se para Qybum. — Trate de o limpar e ligar os ferimentos, e de a ele leite da papoula para as dores. 
— Vossa Graça é bondosa. — Qyburn deixou cair a navalha ensanguentada num balde de vinagre. — Margaery pode querer saber para onde foi o seu bardo.
— Os cantores vão e vêm, são tristemente famosos por isso.
A subida pela escura escada de pedra que levava às celas negras deixou Cersei sem fôlego. Tenho de descansar. Chegar à verdade era um trabalho cansativo, e temia o que se seguiria. Tenho de ser forte. O que tenho de fazer, faço por Tommen e pelo reino. Era uma pena que Maggy, a Rã, estivesse morta. Merda para a tua profecia, velha. A pequena rainha pode ser mais nova do que eu, mas nunca foi mais bela, e em breve estará morta. 
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A Senhora Merryweather estava à espera no seu quarto. Era noite Cerrada, mais próxima da aurora do que do ocaso. Jocelyn e Dorcas encontravam-se ambas a dormir, mas Taena não.
— Foi terrível? — perguntou.
— Não pode imaginar. Preciso de dormir, mas temo sonhar. 
Taena afagou-lhe o cabelo. 
— Foi tudo por Tommen. 
— Foi. Eu sei que foi. — Cersei estremeceu. — Tenho a garganta seca. Seja uma querida a servi-me um pouco de vinho. 
— Se te agradar. Isso é tudo o que eu desejo. 
Mentirosa. Cersei sabia o que Taena desejava. Seja. A mulher estar embevecida consigo só ajudava a assegurar que ela e o marido permaneciam leais. Num mundo tão cheio de traição, isso valia uns quantos beijos. Ela não é pior do que a maioria dos homens. Pelo menos não há perigo de alguma vez me deixar grávida.
O vinho ajudou, mas não o suficiente.
— Sinto-me conspurcada — lamentou-se a rainha junto à janela, de taça na mão.
— Um banho te deixaria em em condições, minha querida. — A Senhora Merryweather acordou Dorcas e Jocelyn e mandou-as buscar água quente. Enquanto a banheira era cheia, ajudou a rainha a despir-se, desatando-lhe com dedos hábeis as fitas do vestido e puxando-o para baixo. Então libertou-se do próprio vestido e deixou-o amontoar-se no chão. 
As duas partilharam o banho, com Cersei recostada nos braços de
Taena.
— Tommen tem de ser poupado ao pior disto — disse à mulher de Myr. — Margaery ainda o leva todos os dias ao septo, para pedirem aos deuses que lhe curem o irmão. — Sor Loras continuava irritantemente a agarrar-se à vida. — Ele também gosta das primas dela. Será duro para ele perdê-las a todas.
— Talvez nem todas as três sejam culpadas — sugeriu a Senhora Merryweather. — Ora, pode bem acontecer que uma não tenha participado. Se ficou envergonhada e enojada pelas coisas que viu...
—... pode ser convencida a testemunhar contra as outras. Sim, muito bem, mas qual delas é a inocente?
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— Alla. 
— A acanhada?
— Tem esse ar, mas há mais nela de dissimulado do que de acanhado. Deixe-a comigo, minha querida.
— De bom grado. — Por si só, a confissão do Bardo Azul nunca seria suficiente. Afinal de contas, os cantores ganhavam a vida mentindo. Alla Tyrell seria uma grande ajuda, se Taena conseguisse pô-la nas suas mãos. — Sor Osney também confessará. Os outros deverão ser levados a compreender que só através da confissão poderão conquistar o perdão do rei, e a Muralha. — Jalabhar Xho acharia a verdade atraente. Estava menos certa a respeito dos outros, mas Qyburn era persuasivo...
 A aurora rompia sobre Porto Real quando saíram da banheira. A pele da rainha estava branca e encarquilhada devido à longa imersão.
— Fique comigo — disse a Taena. — Não quero dormir sozinha. — Até proferiu uma oração antes de se enfiar debaixo da colcha, suplicando sonhos bons à Mãe.
 A oração revelou-se um desperdício de saliva; como sempre, os deuses mostraram-se surdos. Cersei sonhou que estava de novo nas celas negras, só que desta vez era ela que se encontrava acorrentada à parede, em vez do cantor. Estava nua, e sangue pingava das pontas dos seus seios, de onde o Duende lhe arrancara os mamilos com os dentes.
— Por favor — suplicou — por favor, os meus filhos não, não faça mal aos meus — Tyrion limitou-se a olhá-la de esguelha. Também ele estava nu, coberto de pêlos grossos que o faziam assemelhar-se mais a um macaco do que a um homem.
— Vais vê-los coroados — disse ele — e vais vê-los morrer. — Então enfiou o seu seio sangrento na boca e pôs-se a chupar, e a dor cortou através dela como uma faca quente.
Acordou tremendo nos braços de Taena.
— Um pesadelo — disse com voz fraca. — Gritei? Lamento.
— Os sonhos transformam-se em poeira à luz do dia. Foi outra vez o anão? Porque é que esse homenzinho tolo te assusta tanto?
— Ele ia me matar. Foi predito quando eu tinha dez anos. Eu queria saber com quem casaria, mas ela disse...
— Ela?
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— A maegi. — As palavras jorraram dela em catadupa. Ainda conseguia ouvir Melara Hetherspoon a insistir que, se nunca falassem das profecias, elas não se concretizariam. Mas ela não ficou lá muito silenciosa no poço. Gritou e guinchou. — Tyrion é o valonqar — disse. — Usa essa palavra em Myr? É alto valiriano, quer dizer irmão mais novo. — Depois de Melara se afogar, interrogara a Septã Saranella sobre a palavra.
Taena pegou-lhe na mão e afagou-a.
— Essa mulher era odiosa, velha, doente e feia. Você era jovem e bela, cheia de vida e orgulho. Ela vivia em Lannisporto, segundo disses, portanto devia saber do anão e do modo como ele matou a senhora sua mãe. Essa criatura não se atrevia a te bater, por causa de quem éra, portanto procurou te ferir com a sua língua viperina. 
Será possível? Cersei queria acreditar naquilo.
— Mas Melara morreu, tal como ela predisse. Eu não cheguei a casar com o Príncipe Rhaegar. E Joffrey... o anão matou o meu perante os meus olhos.
— Um filho — disse a Senhora Merryweather — mas tem outro, amável e forte, e nenhum mal acontecerá a ele.
— Nunca, enquanto eu viver. — Dizê-lo ajudava-a a acreditar que era verdade. Os sonhos transformam-se em poeira à luz do dia, sim. Lá fora, o sol da manhã brilhava através de uma cerração de nuvens. Cersei saiu de debaixo dos cobertores. — Esta manhã vou quebrar o jejum com o rei. Quero ver o meu filho. — Tudo o que faço, faço por ele.
Tommen ajudou-a a voltar a si. Nunca lhe fora mais precioso do que naquela manhã, a tagarelar acerca dos gatinhos enquanto fazia pingar mel para cima de um bocado de pão escuro quente, acabado de sair dos fornos.
— O Sor Salto apanhou um rato — disse o rapaz — mas a Senhora Bigodes o roubou.
 Eu nunca fui tão doce e inocente, pensou Cersei. Como pode ele alguma vez esperar reinar neste reino cruel? A mãe em si queria apenas protegê -lo; a rainha sabia que ele teria de endurecer, caso contrário o Trono de Ferro iria certamente devorá-lo.
— O Sor Salto deve aprender a defender os seus direitos — disselhe. — Neste mundo, os fracos são sempre as vitimas dos fortes. 
O rei refletiu sobre aquilo, lambendo mel dos dedos.
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— Quando Sor Loras voltar, vou aprender a lutar com lança, espada e maça de armas, como ele luta.
— Aprenderás a lutar — prometeu a rainha — mas não com Sor Loras. Ele não vai voltar, Tommen.
— Margaery diz que vai. Nós rezamos por ele. Pedimos a misericórdia da Mãe e que o Guerreiro lhe dê forças. Elinor diz que esta é a mais dura batalha de Sor Loras.
Cersei alisou-lhe para trás o cabelo, os suaves caracóis dourados que tanto lhe faziam lembrar Joff.
— Vais passar à tarde com a sua esposa e as primas?
— Ela disse que tem de jejuar e purificar-se.
Jejuar e purificar-se. .. oh, para o Dia da Donzela. Tinham-se passado anos desde que Cersei tivera de celebrar aquele dia santo em particular. Três vezes casada, mas ainda quer fazer-nos crer que é donzela. Recatada e de branco, a pequena rainha levaria as suas galinhas ao Septo de Baelor para acender grandes velas brancas aos pés da Donzela e pendurar grinaldas de pergaminho em volta do seu pescoço sagrado. Algumas das suas galinhas, pelo menos. No Dia da Donzela, tanto viúvas, como mães ou prostitutas eram proibidas de entrar nos septos, à semelhança dos homens, a fim de não profanarem as sagradas canções de inocência. Só donzelas podiam... 
— Mãe? Disse algo de errado? 
Cersei deu um beijo na testa do filho.
— Disse uma coisa muito sábia, querido. Agora corre a brincar com os seus gatinhos.
Mais tarde convocou Sor Osney Kettleblack ao seu aposento privado. Ele chegou do pátio, suado e fanfarrão, e quando se apoiou num joelho despiu-a com os olhos, como sempre fazia.
— Erga-se, sor, e sente-se aqui junto a mim. Me prestou um valente serviço um dia, mas agora tenho uma tarefa mais dura para você.
— Sim, e eu tenho uma coisa dura para vós.
— Isso tem de esperar. — Passou-lhe os dedos levemente sobre as cicatrizes. — Lembra-se da rameira que vos fez isto? Quando regressar da Muralha, será sua. Gostaria de a ter? 
— É você que eu desejo. 
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Aquela era a resposta certa. 
— Primeiro teria que confessar a sua traição. Os pecados de um homem podem envenenar-lhe a alma, se ele os deixar apodrecer. Eu sei que deve ser difícil viver com aquilo que fez. Já é mais que tempo de se livrar da vergonha. 
— Vergonha? — Osney pareceu confuso. — Eu já disse a Osmund, Margaery só provoca. Nunca me deixa fazer mais do que...
— Protegê-la é cavalheiresco da sua parte — interrompeu Cersei — mas é um cavaleiro bom demais para continuar vivendo com o seu crime. Não, tem de ir ao Grande Septo de Baelor esta mesma noite e falar com o Alto Septão. Quando os pecados de um homem são tão escuros, só Sua Alta Santidade em pessoa pode salvá-lo dos tormentos do inferno. Conte para ele como dormiu com Margaery e suas primas. 
Osney pestanejou.
— O quê, com as primas também?
— Megga e Elinor — decidiu Cersei — Alla nunca. — Esse pequeno detalhe tornaria toda a história mais plausível. — Alla ficava chorando, e a suplicando às outras que parassem de pecar.
— Só Megga e Elinor? Ou também Margaery?
— Margaery com toda a certeza. Era ela quem estava por trás de
tudo.
Contou-lhe tudo o que tinha em mente. À medida que Osney ia ouvindo, a apreensão foi-se espalhando lentamente pelo seu rosto. Quando Cersei terminou, ele disse: 
— Depois de lhe cortardes a cabeça, quero roubar esse beijo que ela nunca me deu.
 — Podeis roubar todos os beijos que quiser. 
— E depois disso a Muralha? 
— Só por pouco tempo. Tommen é um rei Clemente.
 Osney coçou a face marcada.
— Normalmente, quando minto sobre alguma mulher sou eu a dizer que nunca a fodi e ela a dizer que sim. Isto... nunca antes menti ao Alto Septão. Acho que se vai parar em algum inferno por isso. Um dos maus.
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A rainha sentiu-se surpreendida. A última coisa que esperava de um Kettleblack era devoção.
— Está se recusando a me obedecer?
— Não. — Osney tocou-lhe o cabelo dourado. — O que acontece é que as melhores mentiras têm alguma verdade nelas... pra lhes dar sabor, por assim dizer. E você que quer que eu conte como fodi uma rainha. . .
Cersei quase o esbofeteou. Quase. Mas fora longe demais, e havia demasiado em jogo. Tudo o que faço, faço por Tommen. Virou a cabeça e tomou a mão de Sor Osney nas suas, beijando-lhe os dedos. Eram ásperos e duros, calejados da espada. Robert tinha mãos assim, pensou.
Cersei envolveu-lhe o pescoço nos braços.
— Não quereria que se dissesse que fiz de você mentiroso — sussurrou numa voz enrouquecida. — Me de uma hora, e vá ter comigo ao meu quarto. 
— Já esperamos o suficiente. — Osney enfiou os dedos no corpete do seu vestido e puxou, e a seda abriu-se com um som de rasgar tão forte que Cersei temeu que metade da Fortaleza Vermelha o tivesse ouvido. — Tire o resto antes que também o rasgue — disse ele. — Podes ficar com a coroa posta. Gosto de te ver de coroa.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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A PRINCESA NA TORRE A PRINCESA NA TORRE A PRINCESA NA TORRE A PRINCESA NA TORRE  
 
 
ua prisão era um lugar gentil.
Arianne tomou isso como seu único consolo. Por que seu pai esforçou-se tanto para proporcionar-lhe conforto em um cativeiro, se ele tinha decido que ela morreria por traição? Ele não deseja me matar, disse a si mesma uma centena de vezes. Tamanha crueldade não pode sair dele. Eu sou o seu sangue e sua semente, sua herdeira, sua única filha. Se necessário, ela iria atirar-se sob as rodas da sua cadeira, admitir sua culpa, e implorar pelo seu perdão. E ela choraria. Quando ele visse lágrimas escorrendo por seu rosto, iria perdoá-la.
Mas não estava certa se poderia perdoar a si mesma.
— Areo, — ela suplicou a seu captor durante a longa e seca viagem de Sangue Verde de volta para Lançasolar. — Eu nunca quis que a menina se machucasse. Você tem que acreditar em mim.
Hotah não a deu nenhuma resposta, exceto grunhidos. Arianne podia sentir sua raiva. Estrelanegra lhe escapara, o mais perigoso de todo o seu pequeno grupo de conspiradores. Ele foi mais veloz que todos os seus perseguidores e desapareceu no meio do deserto, com sangue sobre sua lâmina.
— Você me conhece, capitão, — Arianne dissera, com o passar das léguas. — Você me conhece desde que eu era pequena. Você sempre me manteve segura, como mantinha a senhora minha mãe quando vocês vieram de Grande Norvos, para ser o seu escudo em uma terra estranha. Eu preciso de você agora. Preciso de sua ajuda. Eu nunca quis...
— O que você quis não importa, pequena princesa, — Areo Hotah disse. — Só o que você fez. — Seu semblante era de pedra. —Eu sinto muito. É o meu príncipe quem ordena, e é Hotah quem obedece.
Arianne esperava ser levada perante o trono de seu pai, sob a cúpula de vitrais na Torre do Sol. Em vez disso, Hotah a deixou na Torre do Sol, a custódia do senescal de seu pai, Ricasso, e de Sor Manfrey Martell, o castelão.
— Princesa, — disse Ricasso, — você vai perdoar um velho cego, se ele não fizer a subida com você. Essas pernas não estão à altura de tantos degraus. Um aposento foi preparado para você. Sor Manfrey deve acompanhá-la, para aguardar a vontade do príncipe.
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— A má vontade do príncipe, você quer dizer. Meus amigos também serão confinados aqui? — Arianne fora separada de Garin, Drey, e os outros após ser capturada, e Hotah se recusou a dizer o que seria feito com eles.
— Isso o Príncipe decidirá, — era tudo o que capitão tinha a dizer sobre o assunto. Sor Manfrey provou ser um pouco mais próximo.
— Eles foram levados para a Cidade de Planky, e serão encaminhados de navio para Ghaston Grey, até que o Príncipe Doran decida seus destinos.
Ghaston Grey era um antigo castelo em ruínas sobre uma rocha no mar de Dorne, uma prisão espantosa e terrível, onde os mais vis criminosos eram enviado para apodrecer e morrer.
— Será que meu pai pretende matá-los? — Arianne não podia acreditar. — Tudo o que eles fizeram foi por amor a mim. Se o meu pai deve ter sangue, deve ser meu.
— Como quiser, princesa.
— Eu quero falar com ele.
— Ele pensou que você pudesse querer. — Sor Manfrey tomou seu braço e marchou com ela pelos degraus, cada vez mais para cima, e até sua respiração ficou curta. A Torre da Lança se erguia a quarenta e cinco metros de altura, e sua cela ficava quase no topo. Arianne olhou todas as portas por que eles passaram, se perguntando se uma das serpentes de areia poderia estar lá dentro.
Depois que sua própria porta foi fechada e cerrada, Arianne explorou seu novo lar. Sua cela era grande e arejada, e não faltava conforto. Havia tapetes de Myr no chão, vinho tinto para beber, livros para ler. Em um canto estava uma mesa de cyvasse ornamentada com peças esculpidas em marfim e ônix, embora ela não tivesse ninguém para jogar com ela em caso de lhe apetecer. Ela tinha uma cama de penas para dormir, e um banheiro com assento de mármore, aromatizado por um cesto cheio de ervas. Na altura em que se encontrava, a vista era esplêndida. Uma janela estava aberta para o leste, para que ela pudesse ver o sol se levantar por sobre o mar. Outra lhe permitia olhar de cima a Torre do Sol, as Muralhas Serpenteantes e o Portão Trino.
A exploração levou menos tempo do que teria levado para amarrar um par de sandálias, mas pelo menos serviu para manter as lágrimas afastadas por um tempo. Arianne encontrou uma bacia e uma jarra de água fria e lavou as mãos e o rosto, mas nenhuma quantidade de esfregadas poderia purificá-la de seu sofrimento. Arys,pensava ela, meu cavaleiro
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branco. Lágrimas encheram seus olhos, e de repente ela estava chorando, todo o seu corpo se destroçando em soluços. Ela se lembrou de como o pesado machado de Hotah tinha fendido através de sua carne e osso, e a forma que sua cabeça tinha girado pelo ar. Por que você fez isso? Por que jogau sua vida fora? Eu nunca lhe disse, eu nunca quis isso, eu só queria... Eu queria... Eu queria...
Naquela noite, ela chorou até dormir... pela primeira vez, se não a última. Mesmo em seus sonhos ela não encontrou paz. Ela sonhava com Arys Oakheart a acariciando, sorrindo para ela, dizendo-lhe que a amava... mas ao mesmo tempo as discussões começaram e seus ferimentos choravam, mudando de branco para vermelho. Ainda que sonhasse, parte dela sabia que aquilo era um pesadelo. Pela manhã tudo isso vai desaparecer, a princesa disse a si mesma, mas quando amanheceu, ela ainda estava em sua cela, Sor Arys ainda estava morto, e Myrcella... Eu nunca quis isso, nunca. Eu nunca quis fazer a menina mal nenhum. Tudo o que eu queria era que ela fosse uma rainha. Se não tivéssemos sido traídos...
— Alguém disse, — Hotah tinha dito. A memória ainda a deixava com raiva. Arianne se agarrou a isso, alimentando a chama dentro de seu coração. A raiva é melhor do que lágrimas, melhor do que pesar, melhor do que culpa. Alguém disse, alguém em quem ela confiava. Arys Oakheart morreu por causa disso, morto pelos sussuros do traidor, tanto quanto pelo machado do capitão. O sangue que escorreu pelo rosto de Myrcella, também foi trabalho do traidor. Alguém disse, alguém que ela amava. Isso era o mais cruel de tudo.
Encontrou um baú de cedro cheio com suas roupas aos pés da cama, então retirou os trajes manchados da viagem com os quais tinha dormido, e vestiu as roupas mais provocativas que pode encontrar, tiras de seda que cobriam tudo, mas não escondiam nada. O Príncipe Doran podia tratá-la como uma criança, mas ela se recusava a se vestir como uma. Ela sabia que tal vestimenta iria deixar seu pai desconfortável quando viesse para castigála pelo que fez à Myrcella. Ela contava com isso. Se eu tiver que rastejar e chorar, que ele se sinta desconfortável também.
Ela o esperava naquele dia, mas quando a porta finalmente se abriu, entraram apenas os servos com a refeição do meio-dia.
— Quando eu vou poder ver o meu pai? — perguntou ela, mas nenhum deles respondeu. O cabrito tinha sido assado com limão e mel. Com ele iam folhas de uva recheadas com uma mistura de uva passas, cebola, cogumelos e ardentes pimentas de dragão. — Eu não estou com fome, — disse Arianne. Seus amigos estariam comendo biscoitos e carne salgada em um navio no caminho para Ghaston Grey. — Leve isso para longe, e me
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tragam o Príncipe Doran. — Mas eles deixaram a comida, e seu pai não veio. Depois de um tempo, a fome enfraqueceu sua determinação, e ela se sentou e comeu.
Uma vez que a comida não estava mais lá, Arianne não tinha nada para fazer. Ela andou por sua torre, por duas vezes, três vezes e mais três vezes, e três vezes mais. Ela se sentou ao lado da mesa cyvasse e mexeu distraidamente em um elefante. Ela se enrolou no assento da janela e tentou ler um livro, até que as palavras se tornaram um borrão, e ela percebeu que estava chorando de novo. Arys, meu doce, meu cavaleiro branco, por que você fez isso? Você devia ter se rendido. Tentei dizer-lhe, mas as palavras se agarraram em minha garganta. Seu tolo galante, eu nunca quis que você morresse, ou que Myrcella... oh, deuses, sejam bons, aquela menina... Finalmente, ela se arrastou de volta para o colchão de penas. O mundo já estava escuro, e ela não tinha mais nada para fazer, além de dormir. Alguém falou, ela pensou. Alguém falou. Garin, Drey, e Sylva Pintas eram amigos de infância, tão caros a ela quanto sua prima Tyene. Ela não podia acreditar que tinham a entregado... mas dessa forma, sobrava apenas Estrelanegra, e se ele era o traidor, por que ele voltou sua espada contra a pobre Myrcella? Ele queria matá-la em vez de coroá-la, ele disse isso em Pedrescura. Ele disse que assim começaria a guerra que queria. Mas não fazia sentido Dayne ser o traidor. Se Sor Gerold tinha sido o verme da maçã, por que ele tinha voltado a espada contra Myrcella?
Alguém falou. Poderia ter sido Sor Arys? Teria a culpa do Cavaleiro Branco triunfado sobre a sua luxúria? Ele tinha amado Myrcella mais do que a ela, teria traído sua nova princesa para reparar sua traição cometida contra a antiga? Ele estava tão envergonhado ao ponto de jogar sua vida fora no Sangue Verde, em vez de viver e enfrentar a desonra?
Alguém falou. Quando seu pai viesse vê-la, ela iria descobrir. No entando, o Príncipe Doran não veio no dia seguinte. Nem no dia depois. A princesa foi deixada sozinha para andar, e chorar, e cuidar de suas feridas. Durante o dia ela tentava ler, mas os livros que eles tinham dado a ela eram mortalmente maçantes: velhos tratados de história e geografia, mapas anotados, um estudo sobre as leis de Dorne tão seco quanto o pó, A estrela de Sete Pontas e Vida dos Alto-Septãos, um tomo enorme sobre dragões que de alguma forma os fez parecerem tão interessante como salamandras. Arianne teria dado qualquer coisa por um exemplar de Dez Mil Navios ou Os Amores de Rainha Nymeria, qualquer coisa para ocupar seus pensamentos e deixá-la escapar de sua torre por uma ou duas horas, mas tais divertimentos foram negados a ela.
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De seu assento na janela, ela tinha apenas que olhar para fora para ver a grande cúpula de ouro, com vitrais coloridas abaixo dela, onde seu pai sentava para governar. Ele vai me convocar em breve, disse a si mesma.
Os únicos visitantes permitidos eram os servos; Bors com sua mandíbula eriçada, Timoth, molhado, alto e digno, as irmãs Morra e Mellei, a pequena e bonita Cedra, e Belandra, que tinha sido criada de cama de sua mãe. Eles traziam suas refeições, arrumavam sua cama e esvaziavam seu penico, mas nenhum deles falava com ela. Quando ela pediu mais vinho, Timoth foi buscar. Se ela desejava algumas de suas comidas favoritas, figos, azeitonas ou pimentões recheados com queijo, só precisava dizer a Belandra, e ela iria aparecer com elas. Morra e Mellei levaram a sua roupa suja e depois devoveram-as limpas e frescas. A cada dois dias lhe levavam uma banheira, e a pequena e tímida Cedra esfregava as suas costas e a ajudava a escovar o cabelo.
No entanto, nenhum deles tinha palavras para ela, nem se dignavam a lhe contar o que estava acontecendo no mundo do outro lado de sua jaula de arenito.
— Estrelanegra foi capturado? — Ela perguntou a Bors um dia. — Eles ainda estão caçando ele? — O homem simplesmente virou as costas para ela e foi embora. — Você ficou surdo? — Arianne vociferou para ele. — Volte aqui e me responda. Eu te ordeno. — Sua única resposta foi o som de uma porta se fechando.
— Timoth, — ela tentou outro dia, — o que aconteceu com a princesa Myrcella? Eu nunca quis mal a ela. — A última vez em que tinha visto a outra princesa fora no dia de sua viagem de volta para Lançassolar. Fraca demais para se sentar num cavalo, Myrcella viajou em uma liteira, com a cabeça enrolada em vendas de seda onde Estrelanegra a tinha ferido, seus olhos verdes brilhantes de febre. — Diga-me que ela não morreu, eu imploro. Que mal poderia vir de mim sabendo isso? Diga-me como ela está. — Timoth não falou.
— Belandra, — Arianne disse, alguns dias depois, — se você já amou minha mãe, tenha piedade de sua pobre filha e diga-me quando o meu pai vai vir me ver. Por favor. Por favor. — Mas Belandra também tinha perdido sua língua.
É a noção do meu pai de um tormento? Sem ferros ou tortura, apenas o simples silêncio? Era tão próprio de Doran Martell que Arianne teve que rir. Ele pensa que está sendo sutil quando está sendo fraco. Ela resolveu desfrutar da calma, usar o tempo para se curar e fortalecer-se para o que viria.
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Ela sabia que por mais que pensasse o tempo todo sobre Sor Arys, de nada adiantaria. Em vez disso, ela se fez pensar sobre as serpentes de areia, especialmente Tyene. Arianne amava todos os seus primos bastardos, da irritadiça e esquentada Obara a pequena Loreza, a caçula, de apenas seis anos de idade. Tyene sempre fora a que ela mais amava, a doce irmã que nunca teve. A princesa nunca fora muito próxima de seus irmãos; Quentyn estava fora, em Paloferro, e Trystane era muito jovem. Não, ela sempre tinha estado com Tyene, com Garin, com Drey e Sylva Pintas. Nym, às vezes, se juntava a eles nos esportes, e Sarella estava sempre tentando se enturmar, mas na maioria das vezes, eles formavam um grupo de cinco. Eles brincavam nas piscinas e fontes dos Jardins da Água, e faziam batalhas empoleirando-se uns nos outros. Ela e Tyene aprenderam a ler juntas, aprenderam a cavalgar juntas, aprenderam a dançar juntas. Quando elas tinham dez anos, Arianne roubou uma garrafa de vinho, e as duas se embebedaram juntas. Elas compartilhavam refeições, camas e jóias. Elas teriam compartilhado seu primeiro homem também, mas Drey ficou tão excitado que jorrou nos dedos de Tyene no momento em que ela o tirava das calças. Suas mãos são perigosas. A memória a fez sorrir.
Quanto mais pensava sobre seus primos, mais a princesa sentia falta deles. Pelo que sei, eles podem estar logo abaixo de mim. Em uma noite Arianne tentou bater no chão com o calcanhar da sandália. Quando ninguém respondeu, ela se inclinou por uma janela e olhou para baixo. Ela podia ver outras janelas abaixo, menores do que a sua própria, algumas não eram maiores do que um laço de seta.
— Tyene! — Ela chamou. — Tyene, você está aí? Obara, Nym? Vocês podem me ouvir? Ellaria? Alguém? TYENE? — A princesa passou metade da noite pendurada para fora da janela, chamando até sua garganta ficar rouca, mas nem um grito em resposta voltou para ela. Isso a assustava mais do que ela poderia dizer. Se as serpentes de areia estivessem presas na Torre da Lança, certamente a teriam ouvido gritar. Por que elas não respondem? Se o pai lhes fez mal, eu nunca vou perdoá-lo, nunca, disse a si mesma.
O tempo de duas semanas se passaram, e sua paciência tinha se desgastado a ponto de ficar fina como papel.
— Vou falar com meu pai agora, — ela disse a Bors, com sua voz mais imponente. — Você vai me levar até ele. — Ele não a levou. — Estou pronta para ver o príncipe, — disse ela a Timoth, mas ele se virou como se não tivesse ouvido. Na manhã seguinte, Arianne estava esperando ao lado da porta quando essa se abriu. Ela fugiu quando Belandra passou, enviando um prato de ovos temperados contra a parede, mas os guardas a pegaram antes
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dela correr três metros. Ela sabia quem eles eram também, mas eles estavam surdos a suas súplicas. Eles a arrastaram de volta para sua cela, enquanto ela chutava e se contorcia.
Arianne decidiu que tinha que ser mais sutil. Cedra era sua melhor esperança; a garota era jovem, ingênua e crédula. Garin se gabava de ter dormido com ela uma vez, a princesa se lembrou. Na próxima vez em que ela se banhava, enquanto Cedra esfregava seus ombros, ela começou a falar de tudo e de nada.
— Eu sei que você foi ordenada a não falar comigo, — disse ela, — mas ninguém me disse para não falar com você. — Ela falou sobre o calor do dia, e sobre o que ela comeu na ceia na noite anterior, e sobre como a pobre Belandra estava se tornando lenta e dura. Príncipe Oberyn tinha armado cada uma de suas filhas para que elas nunca estivessem indefesas, mas Arianne Martell não tinha outra arma senão a astúcia. E então ela sorriu e encantou, e não pediu a Cedra nada em troca, nem palavra nem aceno.
No dia seguinte ao jantar, ela falou com a garota novamente, enquanto esta estava servindo. Desta vez, ela tramou para mencionar Garin. Quando Cedra ouviu timidamente o seu nome, quase derramou o vinho que estava servindo. Então, este é o caminho, não é? Pensou Arianne.
Durante seu banho seguinte, ela falou de seus amigos presos, especialmente de Garin.
— É por ele que mais temo, — ela confidenciou a menina que a servia. — Os órfãos são espíritos livres, eles vivem a vagar. Garin precisa de sol e ar fresco. Se eles o prenderem em alguma cela de pedra úmida, como ele vai sobreviver? Ele não vai durar um ano em Ghaston Grey. — Cedra não respondeu, mas seu rosto estava pálido quando Arianne levantou-se da água, ela estava apertando a esponja com tanta força que o sabão estava pingando sobre o tapete de Myr.
Mesmo assim, precisaram se passar mais quatro dias e dois banhos antes de a menina ser dela.
— Por favor, — sussurrou Cedra, finalmente, depois de Arianne ter pintado um retrato vívido de Garin atirando-se pela janela de sua cela, para provar a liberdade uma última vez antes de morrer. — Você tem que ajudálo. Por favor, não deixe ele morrer.
— Eu posso fazer pouco ou nada enquanto estiver presa aqui, — ela sussurrou de volta. — Meu pai não vai me ver. Você é a única que pode salvar Garin. Você o ama?
— Sim, — Cedra sussurrou, corando. — Mas como eu posso ajudar?
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— Você pode contrabandear uma carta para mim, — disse a princesa. — Vai fazer isso? Você vai correr o risco... por Garin?
Cedra arregalou os olhos. Ela assentiu com a cabeça.
Eu tenho um corvo, Arianne pensou, triunfante, mas a quem vou mandá-lo? O único conspirador que escapara de seu pai era Estrelanegra. Sor Gerold poderia muito bem já ter sido preso, se não, certamente já teria fugido de Dorne. Seu pensamento seguinte foi a mãe de Garin e os órfãos do Sangue Verde. Não, não eles. Tem que ser alguém com poder real, alguém que não tenha tomado nenhuma parte em nossa intriga, mas que tenha motivos para simpatizar conosco. Ela considerou apelar para sua própria mãe, mas a Senhora Mellario estava longe de Norvos. Além disso, o Príncipe Doran não tinha escutado a senhora sua esposa por muitos anos. Nem ela mesma tinha. Eu preciso de um lorde, um grande o suficiente para que meu pai se acovarde e me liberte.
O mais poderoso dos lordes de Dorne era Anders Yronwood, o Sanguerreal, Lorde de Yronwood e Guardião do Caminho de Pedra, mas Arianne sabia melhor do que ninguém que não adiantaria procurar a ajuda do homem que tinha tido seu irmão Quentyn como pupilo. Não. O irmão de Drey, Sor Deziel Dalt outrora aspirava a se casar com ela, mas ele era muito obediente para ir contra o seu príncipe. Além disso, ainda que o Cavaleiro de Limoeiros pudesse intimidar um pequeno lorde, ele não tinha força para influenciar o Príncipe de Dorne. Não. O mesmo acontecia com o pai de Sylva Pintas. Não. Arianne finalmente decidiu que tinha somente duas esperanças reais: Harmen Uller, Lorde de Toca do Inferno e Franklyn Fowler, Lorde de Skyreach e Guardião do Passo do Príncipe.
Metade dos Uller são meio loucos, dizia um ditado, e a outra metade é pior ainda. Ellaria Sand era filha natural de Lorde Harmen. Ela e seus pequeninos foram trancados com o resto das serpentes de areia. Isso devia ter feito Lorde Harmer se indignar, e os Uller eram perigosos quando indignados. Muito perigosos, talvez. A princesa não queria pôr mais vidas em perigo.
Lorde Fowler poderia ser uma escolha mais segura. O Velho Falcão, ele era chamado. Ele nunca tinha se dado bem com Anders Yronwood; os ressentimentos entre suas casas se remetiam há mil anos, desde quando os Fowler escolheram os Martell no lugar dos Yronwood durante a Guerra de Nymeria. Os gêmeos Fowler eram amigos famosos da Senhora Nym, mas até que ponto isso pesaria ao Velho Falcão?
Arianne demorou vários dias para escrever sua carta secreta. Dê ao homem que lhe entregar isso uma centena de veados de prata, começou ela.
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Isso devia garantir que a mensagem fosse entregue. Escreveu onde ela estava, e pediu por socorro. Aquele que me livrar desta cela não será esquecido quando eu me casar. Isso deve trazer os heróis correndo. A menos que o Príncipe Doran a tenha deserdado, ela continuava a ser a herdeira legítima de Lançasolar; o homem que se casasse com ela governaria Dorne ao seu lado, um dia. Arianne só podia rezar para que seu salvador se provasse mais jovem do que os anciãos que seu pai lhe oferecera ao longo dos anos. Quero um consorte com dentes, ela lhe disse quando recusou o último.
Ela não ousou pedir pergaminho por medo de despertar as suspeitas de seus captores, então escreveu a carta na parte inferior de uma página rasgada de A Estrela de Sete Pontas, e apertou-a na mão de Cedra no dia de seu banho seguinte.
— Há um lugar ao lado do Portão Triplo, onde as caravanas se abastecem antes de atravessar a areia profunda, — Arianne disse para ela. — Encontre algum viajante indo para Passo do Príncipe, e prometa-lhe uma centena de veados de prata se ele colocar isso na mão de Lorde Fowler.
— Eu irei. — Cedra escondeu a mensagem em seu corpete. — Eu vou encontrar alguém antes do pôr do sol, princesa.
— Bom, — disse ela. — Diga-me como foi no dia seguinte.
A menina não retornou na manhã seguinte, no entanto. Nem no dia que se seguiu. Quando chegou a hora de Arianne se banhar, foram Morra e Mellei que encheram banheira, e ficaram lavando suas costas e escovando seu cabelo.
— Cedra está doente? — A princesa perguntou, mas elas não responderam. Ela foi capturada, era tudo o que ela podia pensar. O que mais poderia ser? Naquela noite, ela quase não dormiu, com medo do que poderia vir a seguir.
Quando Timoth trouxe seu café da manhã no dia seguinte, Arianne pediu para ver Ricasso, em vez de seu pai. Claramente ela não podia obrigar o Príncipe Doran a recebê-la, mas certamente um mero senescal não iria ignorar uma intimação da legítima herdeira de Lançassolar.
Ele, no entanto, ignorou.
— Você deu meu recado a Ricasso? — ela exigiu saber na próxima vez em que viu Timoth. — Disse a ele que eu tinha necessidade de vê-lo? — Quando o homem se recusou a responder, Arianne jogou uma garrafa de vinho tinto sobre sua cabeça. O homem retirou-se gotejando, o rosto como uma máscara de dignidade ferida. Meu pai quer me deixar aqui para
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apodrecer, a princesa concluiu. Ou então ele está fazendo planos para me casar com algum velho nojento e pretende me manter trancada até o casamento.
Arianne Martell tinha crescido esperando que um dia se casasse com algum grande lorde da escolha de seu pai. Era para isso que serviam as princesas, ela tinha sido ensinada... embora, reconhecidamente, seu tio Oberyn tinha tomado uma visão diferente dessas questões.
— Se você quer se casar, case, — contava a Víbora Vermelha a suas filhas. — Se não, obtenha o seu prazer onde o encontrar. Há muito pouco neste mundo. Escolha bem, no entanto. Se você se selar com um tolo ou um bruto, não olhe para mim para livrá-lo dele. Eu dei-lhe as ferramentas para fazer isso por si mesma.
A liberdade que o príncipe Oberyn permitia as filhas bastardas nunca tinha sido compartilhada pela herdeira legítima do Príncipe Doran. Arianne devia se casar; ela tinha aceitado isso. Drey a queria, ela sabia, assim como seu irmão Deziel, o Cavaleiro dos Limoeiros. Daemon Sand tinha ido tão longe a ponto de pedir a mão dela. Daemon era bastardo, no entanto, e o Príncipe Doran não desejava que ela se casasse com um dornês.
Arianne tinha aceitado isso também. Há um ano, o irmão do Rei Robert veio para visita-la, e ela fez o seu melhor para seduzi-lo, mas ela era um pouco mais que uma garotinha, e Lorde Renly parecia mais confuso do que inflamado por sua insinuação. Mais tarde, quando Hoster Tully pediulhe para ir a Correrrio e conhecer seu herdeiro, ela acendeu velas para a Donzela em agradecimento, mas o Príncipe Doran recusou o convite. A princesa poderia até ter considerado Willas Tyrell, com a perna aleijada e tudo, mas seu pai recusou-se a mandá-la para Jardim de Cima para encontrálo. Ela tentou ir, apesar disso, com a ajuda de Tyene... Mas o príncipe Oberyn os pegou em Vaith e os trouxe de volta. Nesse mesmo ano, o Príncipe Doran tentou desposa-la a Ben Beesbury, um fidalgote menor que um dia teve oitenta anos, tão cego quanto desdentado.
Beesbury morreu alguns anos mais tarde. Isso lhe deu algum conforto em sua situação atual, ela não poderia ser forçada a se casar com ele se estava morto. E o Senhor da Travessia tinha casado de novo, então ela estava segura quanto a ele também. Elden Estermont ainda está vivo e solteiro, no entanto. Lorde Rosby e Lorde Grandison também. Grandison era chamado de Barbacinzenta, mas quando ela o conhecera, viu que sua barba já estava branca como a neve. Na festa de boas-vindas, ele tinha ido dormir entre o prato de peixe e o de carne. Drey achou aquilo muito apropriado, já que seu brasão apresentava um leão adormecido. Garin desafiou-a a ver se podia dar um nó na barba sem acordá-lo, mas Arianne se absteve.
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Grandison parecia um companheiro agradável, menos queixoso do que Estermont e mais robusto do que Rosby. Ela nunca se casaria com ele, no entanto. Nem mesmo se Hotah estivesse atrás de mim com seu machado.
Ninguém veio casar com ela no dia seguinte, nem no dia seguinte. Nem Cedra retornou. Arianne tentou ganhar Morra e Mellei da mesma maneira, mas não conseguiu. Se ela tivesse sido capaz de tentar com qualquer uma delas sozinha poderia ter alguma esperança, mas juntas as irmãs eram como uma parede. Nessa altura, a princesa já teria preferido o toque do ferro quente, ou uma noite de tortura. A solidão estava levando-a a loucura. Eu mereço um machado de carrasco pelo que fiz, mas nem isso ele vai me dar. Ele prefere me prender e esquecer que já vivi. Perguntou-se se Meistre Caleotte estava desenhando uma proclamação para nomear seu irmão Quentyn, herdeiro Dorne.
Dias vieram e se foram, um após o outro, tantos que Arianne perdeu a conta de há quanto tempo havia estado presa. Ela se viu passar mais e mais tempo na cama, até chegar ao ponto em que não mais se levantava dela, exceto para usar a privada. As refeições que os servos traziam esfriavam, intocadas. Arianne dormiu e acordou e dormiu de novo, e ainda se sentia muito cansada para se levantar. Ela rezava para a Mãe por misericórdia e ao Guerreiro por coragem, então dormia um pouco mais. Novas refeições substituíam as antigas, mas ela não as comia também. Uma vez, quando se sentiu especialmente forte, carregou toda a comida para a janela e atirou-a para o quintal, para que não a tentassem. O esforço a esgotou, então depois ela se arrastou de volta para a cama e dormiu durante meio dia.
Então chegou um dia em que uma mão rude a acordou, sacudindo-a pelo ombro.
— Pequena princesa, — disse uma voz que conhecia desde a infância. — Levante-se e vista-se. O príncipe mandou chama-la. — Areo Hotah estava sobre ela, seu velho amigo e protetor. Ele estava falando com ela. Arianne sorriu sonolenta. Foi bom ver seu o rosto, com sua cicatriz costurada, e ouvir sua voz, rouca e profunda com um espesso sotaque de Norvos.
— O que você fez com Cedra?
— O príncipe mandou-a para os Jardins da Água, — disse Hotah. — Ele vai lhe dizer. Primeiro você deve se lavar, e comer.
Ela devia parecer uma criatura horrível. Arianne arrastou da cama, fraca como um gatinho.
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— Peça a Morra e Mellei para prepararem um banho, — disse ela, — e diga a Timoth para trazer um pouco de comida. Nada pesado. Um pouco de caldo frio e um pouco de pão e frutas.
— Sim, — disse Hotah. Nunca tinha ouvido um som mais doce.
O capitão esperou enquanto a princesa se banhava, escovava os cabelos e comia com moderação o queijo e as frutas que tinham trazido. Ela bebeu um pouco de vinho para sossegar seu estômago. Estou assustada, ela percebeu, pela primeira vez na minha vida, tenho medo do meu pai. Isso a fez rir tanto que o vinho saiu pelo seu nariz. Quando chegou a hora de se vestir, ela escolheu um vestido simples de linho cor de marfim, com videiras e uvas roxas bordadas nas mangas e no corpete. Ela não usava joias. Eu devo ser casta, humilde e contrita. Devo me jogar a seus pés e pedir perdão, ou talvez eu nunca ouça outra voz humana novamente.
No momento em que se aprontou, o crepúsculo tinha caído. Arianne tinha pensado que Hotah a acompanharia à Torre do Sol para ouvir o julgamento de seu pai. Ao contrário, ele a levou ao solar do príncipe, onde encontraram Doran Martell sentado atrás de uma mesa de cyvasse, com as pernas apoiadas em um banquinho almofadado. Ele estava brincando com um elefante de ônix, dando voltas em suas mãos vermelhas e inchadas. O príncipe parecia pior do que qualquer outra vez que ela o vira. Seu rosto estava pálido e inchado, suas articulações tão inflamadas que se machucava só de olhar para elas. Vê-lo desta forma fez o coração de Arianne ir até ele... e ela não podia se ajoelhar e implorar, como tinha planejado.
— Pai, — disse ela no lugar.
Quando ele levantou a cabeça para olhar para ela, seus olhos escuros estavam nublados pela dor. Será por causa da gota? Arianne se perguntou. Ou por minha causa?
— Gente estranha e sutil, os volantenos, — ele murmurou, colocando o elefante de lado. — Estive em Volantis uma vez, indo para Norvos, onde eu conheci Mellario. Os sinos estavam tocando, e os ursos dançavam sob os degraus. Areo deve lembrar do dia.
— Eu me lembro, — ecoou Areo Hotah em sua profunda voz. — Os ursos dançaram e os sinos soaram, e o príncipe vestia vermelho, dourado e laranja. Minha senhora me perguntou quem era aquele que brilhava tanto.
Príncipe Doran deu um sorriso pálido.
— Deixe-nos, capitão.
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Hotah golpeou o chão com a coronha de seu machado, virou as costas, e saiu.
— Eu disse a eles para colocarem uma mesa de cyvasse em sua cela, — disse seu pai quando os dois estavam sozinhos.
— Com quem eu ia jogar? — Por que ele está falando de um jogo? A gota roubou-lhe o juízo?
— Com você mesma. Às vezes é melhor estudar um jogo antes de tentar joga-lo. O quanto você conhece do jogo, Arianne?
— O suficiente para jogar.
— Mas não para ganhar. Meu irmão lutava por amor à luta, mas eu só jogo os jogos quando eu posso ganhar. Cyvasse não é para mim. — Ele estudou seu rosto por um longo momento antes de dizer. — Por quê? Digame, Arianne. Diga-me por quê.
— Pela honra de nossa Casa. — A voz de seu pai a deixou com raiva. Ele parecia tão triste, tão exausto, tão fraco. Você é um príncipe! Ela queria gritar. Você deveria estar furioso! — Sua mansidão envergonha a todos os dorneses, pai. Seu irmão foi para Porto Real em seu lugar, e eles o mataram!
— Você acha que eu não sei disso? Oberyn está comigo cada vez que fecho meus olhos.
— Dizendo para abri-los, sem dúvida. — Ela sentou-se sobre a mesa de cyvasse de seu pai.
— Eu não lhe dei permissão para sentar.
— Então chame Hotah e mande ele me chicotear por minha insolência. Você é o Príncipe de Dorne. Você pode fazer isso. — Ela tocou uma das peças de cyvasse, o pesado cavalo. — Você já pegou Sor Gerold?
Ele balançou a cabeça.
— Quem dera que tivéssemos. Você foi uma tola por fazê-lo parte disso. Estrelanegra é o homem mais perigoso de Dorne. Você e ele nos causaram um grande dano.
Arianne quase tinha medo de perguntar.
— Myrcella. Ela está...?
— ... morta? Não, embora Estrelanegra tenha feito o seu melhor. Todos os olhos estavam em seu cavaleiro branco, e ninguém pareceu bastante certo sobre o que aconteceu, mas parece que seu cavalo se esquivou
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no último instante, senão ele teria tirado o topo do crânio da menina. Da forma como foi, o golpe abriu sua bochecha até o osso e cortou sua orelha direita. Meistre Caleotte foi capaz de salvar a vida dela, mas nenhum cataplasma ou poção poderão arrumar seu rosto. Ela era a minha protegida, Arianne. Prometida a seu próprio irmão e sob minha proteção. Você desonrou todos nós.
— Eu nunca quis feri-la, — insistiu Arianne. — Se Hotah não tivesse interferido...
—... você teria coroado Myrcella rainha, para levantar uma rebelião contra o seu irmão. Em vez de um ouvido, ela teria perdido a vida.
— Só se nós tivessemos perdido.
— Se? A palavra é quando. Dorne é o menos populoso dos Sete Reinos. O Jovem Dragão gostava de fazer os nossos exércitos parecerem maiores quando escreveu aquele livro, de modo a tornar sua conquista muito mais gloriosa, e a nós resta regar a semente que ele plantou, deixando nossos inimigos pensarem que somos mais poderosos do que somos, mas uma princesa deve saber a verdade. Valor é um substituto pobre para os números. Dorne não pode esperar ganhar uma guerra contra o Trono de Ferro, não sozinho. E isso pode muito bem ser o que você nos deu. Você está orgulhosa? — O príncipe não deu tempo para a resposta. — O que vou fazer com você, Arianne?
Perdoe-me, parte dela queria dizer, mas as palavras a tinham cortado muito profundamente.
— O quê? Faça o que você sempre fez. Não faça nada.
— Você torna difícil para um homem engolir sua raiva.
— Melhor parar de engoli-la, ela pode sufocá-lo. — O príncipe não respondeu. — Diga-me como você soube dos meus planos.
— Eu sou o Príncipe de Dorne. Homens me procuram pelo meu
favor.
Alguém disse.
— Você sabia, e mesmo assim você ainda nos permitiu fugir com Myrcella. Por quê?
— Esse foi meu erro, e se revelou grave. Você é minha filha, Arianne. A menina que costumava correr para mim quando seu joelho se esfolava. Eu achei difícil acreditar que você iria conspirar contra mim. Eu tive que descobrir a verdade.
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— Agora você descobriu. Eu quero saber quem te informou.
— Eu também iria querer, em seu lugar.
— Você vai me dizer?
— Não consigo pensar em nenhuma razão de por que eu deva.
— Você acha que eu não consigo descobrir a verdade por mim mesma?
— Você está convidada a tentar. A essa altura você deve desconfiar de todos eles... e um pouco de desconfiança é uma coisa boa em uma princesa. — Príncipe Doran suspirou. — Você me decepcionou, Arianne.
— Disse a gralha para o corvo. Você foi decepcionante para mim durante anos, pai. — Ela não tinha a intenção de ser tão brusca com ele, mas as palavras saíram se derramando. Bem, agora já disse.
— Eu sei. Eu sou muito manso, fraco e cauteloso, muito clemente para com nossos inimigos. Agora, porém, você está necessitando de um pouco desta clemência, me parece. Você deveria estar pedindo meu perdão em vez de tentar me provocar ainda mais.
— Peço clemência apenas por meus amigos.
— Que nobre da sua parte.
— O que eles fizeram, fizeram por amor a mim. Não merecem morrer em Ghaston Grey.
— Quanto a isso, concordo. Fora Estrelanegra, seus companheiros conspiradores não eram mais do que crianças tolas. Ainda assim, esse não é um jogo inofensivo como cyvasse. Você e seus amigos estavam brincando de traição. Eu deveria cortar suas cabeças.
— Você deveria, mas não o fez. Dayne, Dalt, Santagar... não, você nunca se atreveria a fazer inimigos de tais casas.
— Atrevo-me mais do que você sonha... mas deixe isso por enquanto. Sor Andrey foi enviado para Norvos para servir a senhora sua mãe por três anos. Garin vai gastar seu próximos dois anos em Tyrosh. Com os demais parentes e órfãos, consegui moeda e reféns. A Senhora Sylva não recebeu punição de mim, mas ela estava em idade de casar. Seu pai a enviou para se casar com Lorde Estermont em Pedraverde. Quanto a Arys Oakheart, ele escolheu seu próprio destino e encontrou-o bravamente. Um cavaleiro da Guarda Real... o que você fez com ele?
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— Eu fodi ele, pai. Você me mandou entreter os nossos nobres visitantes, se bem me lembro.
Seu rosto ficou corado.
— Isso foi tudo o que precisou?
— Eu disse a ele que uma vez que Myrcella fosse rainha, ela nos daria licença para casar. Ele me queria para esposa.
— Você fez tudo que pode para impedi-lo de desonrar seus votos, tenho certeza, — disse o pai.
Foi a sua vez de corar. Sua sedução a Sor Arys tinha requerido meio ano. Embora ele tenha alegado ter conhecido outras mulheres antes de tomar o branco, ela nunca teria descoberto pela forma como ele agia. Suas carícias tinham sido desajeitadas, seus beijos nervosos, e a primeira vez que eles estiveram juntos na cama, ele derramou sua semente em suas coxas enquanto ela o guiava para dentro com a mão. Pior, ele tinha sido consumido pela vergonha. Se ela ganhasse um dragão por cada vez que ele sussurou, “Nós não deveríamos estar fazendo isso”, ela seria mais rica que os Lannister. Ele atacou Areo Hotah na esperança de me salvar? Arianne se perguntou. Ou ele fez isso para fugir de mim, para lavar a sua desonra com o sangue de sua vida?
— Ele me amava, — ela se ouviu dizer. — Ele morreu por mim.
— Se assim for, ele pode muito bem ser o primeiro de muitos. Você e seus primos queriam a guerra. Você pode obter o seu desejo. Outro cavaleiro da Guarda Real rasteja na direção de Lançassolar enquanto falamos. Sor Balon Swann está trazendo-me a cabeça da Montanha. Meus vassalos estão o atrasando, me ganhando algum tempo. Os Wyls o fizeram caçar e a praticar falcoaria por oito dias no Espinhaço, e Lorde Yronwood lhe deu um banquete de quinze dias, quando ele surgiu das montanhas. Atualmente ele está em Tor, onde a Senhora Jordayne organiza jogos em sua honra. Quando ele chegar a Colina Fantasma vai encontrar a Senhora Toland com o intento de expulsá-lo. Mais cedo ou mais tarde, no entanto, Sor Balon deve chegar Lançasolar, e quando ele o fizer ele vai querer ver a Princesa Myrcella... e Sor Arys, seu irmão juramentado. O que vamos dizer a ele, Arianne? Devo dizer que Oakheart morreu em um acidente de caça, ou de uma queda em alguma escada escorregadia? Talvez que Arys foi nadar em Jardins de Água, escorregou sobre o mármore, bateu a cabeça e se afogou?
— Não, — disse Arianne. — Diremos que ele morreu defendendo sua pequena princesa. Diga a Sor Balon que Estrelanegra tentou matá-la e Sor Arys se colocou entre eles e salvou sua vida. — É assim que os
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cavaleiros brancos da Guarda Real deveriam morrer, desistindo de suas próprias vidas para salvar aqueles que juraram proteger. — Sor Balon pode ficar desconfiado, como você ficou quando os Lannisters mataram sua irmã e seus filhos, mas ele não terá prova...
—... até que ele fala com Myrcella. Ou quer que a criança sofra um trágico acidente também? Se for assim, isso significará guerra. Nenhuma mentira vai livrar Dorne da indignação da rainha, se sua filha perecer enquanto estiver sob meus cuidados.
Ele precisa de mim, Arianne compreendeu. Foi por isso que ele me convocou.
— Eu poderia dizer a Myrcella o que dizer, mas por que eu?
Um espasmo de raiva ondulou no rosto de seu pai.
— Eu a adverti, Arianne, estou sem paciência.
— Comigo? — Isso é tão próprio dele. — Porque com Lorde Tywin e com os Lannister você sempre teve a paciência de Baelor, o Abençoado, mas para com seu próprio sangue, nenhuma.
— Você confunde paciência com abstencão. Eu tenho trabalhado em prol da queda de Tywin Lannister desde o dia em que me disseram de Elia e seus filhos. Era minha esperança de tirar tudo o que ele tinha de mais precioso antes de matá-lo, mas ao que parece, seu filho anão roubou-me do prazer. Eu tomo um pouco de consolo em saber que ele teve uma morte cruel nas mãos do monstro que ele mesmo gerou. Seja como for, Lorde Tywin uiva no inferno... onde mais milhares irão se juntar a ele em breve, se a sua loucura se transformar em guerra. — O pai dela fez uma careta, como se a própria palavra fosse dolorosa para ele. — É isso que você quer?
A princesa recusou-se a ser intimidada.
— Eu quero meus primos libertados. Eu quero meu tio vingado. Eu quero os meus direitos.
— Os seus direitos?
— Dorne.
— Você terá Dorne depois que eu estiver morto. Você está tão ansiosa assim para se livrar de mim?
— Eu que deveria lhe perguntar isso, pai. Você tem tentado se livrar de mim durante anos.
— Isso não é verdade.
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— Não? Vamos perguntar ao meu irmão?
— Trystane?
— Quentyn"
— O que tem ele?
— Onde ele está?
— Ele está como hóspede de Lorde Yronwood, no Espinhaço.
— Você mente bem, pai, eu reconheço isso. Você nem sequer piscou. Quentyn foi para Lys.
— De onde você tirou essa idéia?
— Um amigo me contou. — Ela também podia ter segredos.
— Seu amigo mentiu. Você tem a minha palavra, seu irmão não foi para Lys. Juro pelo sol, pela lança e pelos Sete.
Arianne não podia ser enganada tão facilmente.
— Myr, então? Tyrosh? Eu sei que ele está em algum lugar além do mar estreito, contratando mercenários para roubar o que é meu por direito como primogênita.
O rosto de seu pai escureceu.
— Essa desconfiança que você tem não a honra, Arianne. Quentyn deveria ser o único a conspirar contra mim. Mandei-o embora quando ele era apenas uma criança, jovem demais para entender as necessidades de Dorne. Anders Yronwood tem sido mais pai para ele do que eu, mas o seu irmão permanece fiel e obediente.
— Por que não? Você sempre foi a favor dele. Ele se parece com você, ele pensa como você, e você tem o intento de lhe dar Dorne, nem tente negar isso. Eu li a sua carta. — As palavras ainda queimavam brilhantes como o fogo em sua memória. — Um dia você vai sentar onde eu sento e reger todos os dorneses, você escreveu para ele. Diga-me, pai, quando você decidiu me deserdar? Foi no dia em que Quentyn nasceu, ou no dia em que eu nasci? O que fiz para você me odiar assim? — Devido a fúria, havia lágrimas em seus olhos.
— Nunca odiei você. — A voz do Príncipe Doran era como pergaminho fino e cheio de tristeza. — Arianne, você não entende.
— Você nega que você escreveu essas palavras?
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— Não. Foi quando Quentyn foi para Paloferro. Tinha a intenção de que ele me sucedesse. Eu tinha outros planos para você.
— Oh, sim, — disse ela com desdém, — tinha planos. Gyles Rosby. Ben Beesbury, o Cego. Grandison Barbacinzenta. Eles eram seus planos. — Ela não lhe deu chance para resposta. — Eu sei que é meu dever fornecer um herdeiro para Dorne, eu nunca me esqueci disso. Eu teria casado, e de bom grado, mas os homens que você trouxe para mim eram insultos. Com cada um você cuspiu em mim. Se você já sentiu qualquer amor por mim, por que me ofereceu a Walder Frey?
— Porque eu sabia que você o iria desprezar. Eu tinha que ser visto tentando encontrar um companheiro para você, quando você atingesse a idade propícia, senão teria levantado suspeitas, mas não me atrevi a lhe trazer qualquer homem que pudesse aceitar. Estava prometida, Arianne.
Prometida? Arianne olhou para ele, incrédula.
— O que você está dizendo? É esta outra mentira? Você nunca
disse...
— O pacto foi selado em segredo. Eu queria lhe dizer quando tivesse idade o suficiente... quando você tivesse idade, pensei, mas...
— Eu tenho vinte e três anos, faz sete que sou uma mulher adulta.
— Eu sei. Se tenho te matido tempo demais na ignorância, foi só para protegê-la. Arianne, a sua natureza... para você, um segredo é apenas um conto divertido para sussurrar para Garin e Tyene, em sua cama, de noite. Garin fofoca como só os órfãos conseguem, e Tyene conta tudo a Obara e a Senhora Nym. E se elas soubessem... Obara é muito chegada a vinho, e Nym é demasiada próxima das gêmeas Fowler. E quem pode confiar nas gêmeas Fowler? Eu não poderia correr o risco.
Ela estava perdida, confusa. Prometida. Eu estava prometida.
— Quem? A quem fui prometida em casamento, por todos esses
anos?
— Tanto faz, não importa. Ele está morto.
Isso a deixou mais perplexa do que nunca.
— Os mais velhos são tão frágeis. Foi uma fratura no quadril, um resfriado, a gota?
— Foi um pote de ouro derretido. Nós príncipes fazemos nossos planos com cuidado, e os deuses os esmagam. — Príncipe Doran fez um gesto cansado com uma mão irritada e vermelha. — Dorne será seu. Você
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tem minha palavra, se a minha palavra ainda tem algum significado para você. Seu irmão Quentyn tem uma estrada mais difícil para percorrer.
— Que estrada? — Arianne continuava suspeitando dele. — O que você está ocultando? Os Sete me perdoem, mas estou cansada de segredos. Diga-me o resto, pai... ou então nomeie Quentyn seu herdeiro e me envie para Hotah e o seu machado, e deixe-me morrer ao lado de meus primos.
— Você realmente acredita que eu iria prejudicar as crianças do meu irmão? — O pai dela fez uma careta. — Obara, Nym e Tyene nada falta, exceto liberdade, e Ellaria e suas filhas estão felizes refugiadas em Jardim da Água. Dorea tira laranjas das árvores com sua maça, e Elia e Obella se tornaram o terror das piscinas. — Suspirou. — Não faz tanto tempo que você brincava nessas piscinas. Você costumava a montar nos ombros de uma menina mais velha... uma menina alta com pouco cabelo amarelo...
— Jeyne Fowler, ou sua irmã Jennelyn. — Fazia anos que Arianne não pensava nisso. — Oh, e Frynne, seu pai era um ferreiro. Seu cabelo era castanho. Garin era o meu favorito, no entanto. Quando eu montava Garin ninguém podia nos derrotar, nem mesmo Nym e a menina de cabelo verde, a Tyroshi.
— Aquela garota de cabelo verde era filha do Arconte. Eu devia ter mandado você para Tyrosh em seu lugar. Você teria servido o Arconte como copeira e se encontraria com seu noivo em segredo, mas sua mãe ameaçava fazer mal a si mesma se eu roubasse outro de seus filhos, e eu... Eu não poderia fazer isso com ela.
Seu conto cresce cada vez mais estranho.
— É para lá que Quentyn foi? Para Tyrosh, para cortejar a filha do Arconte?
Seu pai pegou uma peça de cyvasse.
— Eu preciso saber como você descobriu que Quentyn estava no exterior. Seu irmão foi com Cletus Yronwood, Mesitre Kedry, e três dos melhores jovens cavaleiros de Lorde Yronwood em uma viagem longa e perigosa, com uma acolhida incerta em seu fim. Ele foi para nos trazer de volta o desejo do nosso coração.
Ela estreitou os olhos.
— O que é o desejo do nosso coração?
— Vingança. — Sua voz era suave, como se estivesse medo de que alguém pudesse estar ouvindo. — Justiça. — Príncipe Doran pressionou o
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dragão de ônix em sua palma inchada, com os dedos gotosos, e sussurrou: — Fogo e sangue.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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ALAYNE ALAYNE ALAYNE ALAYNE  
 
 
irou o anel de ferro e abriu a porta com um empurrão, só um pouco.
— Pisco-doce? — chamou. — Posso entrar?
— Tenha cuidado, senhora — avisou a velha Gretchel, apertando as mãos. — Sua senhoria atirou o penico ao meistre.
— Então não tem penico para me atirar. Não há trabalho que devia estar fazendo? E você também, Maddy... as janelas estão todas fechadas e as portadas trancadas? A mobília já foi toda coberta?
— Toda, senhora — disse Maddy.
— É melhor ir se certificar. — Alayne penetrou no quarto escurecido. — Sou só eu, pisco-doce.
Alguém fungou na escuridão.
— Está sozinha?
— Estou, senhor.
— Então se proxime. Só você.
Alayne fechou firmemente a porta atrás de si. Era de carvalho sólido, com dez centímetros de espessura; Maddy e Gretchel podiam tentar escutar o que quisessem, que nada ouviriam. E ainda bem. Gretchel sabia controlar a língua, mas Maddy mexericava desavergonhadamente.
— Foi o Meistre Colemon que te mandou cá? — perguntou o rapaz.
— Não — mentiu. — Ouvi dizer que o meu pisco-doce estava aflito. — Depois do seu encontro com o penico, o meistre correra para Sor Lothor, e Brune viera ter com ela.
— Se a senhora conseguir convencê-lo a sair da cama, ótimo — dissera o cavaleiro — não terei de o arrancar de lá.
E isso não pode ser, disse a si mesma. Quando Robert era tratado com rudeza costumava ter ataques de tremores.
— Tem fome, senhor? — perguntou ao pequeno lorde. — Quer que mande Maddy até lá embaixo para te trazer bagas com creme, ou um pouco de pão quente com manteiga? — Tarde demais, lembrou-se de que não havia pão quente; as cozinhas estavam fechadas, os fornos frios. Se isso
V
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tirar Robert da cama, poderá valer a pena o incómodo de acender um fogo, disse a si mesma.
— Não quero comida — disse o pequeno lorde, numa voz esganiçada e petulante. — Hoje vou ficar na cama. Poderia ler para mim, se quiser.
— Aqui está escuro demais para ler. — As pesadas cortinas que cobriam as janelas tornavam o quarto negro como a noite. — O meu piscodoce esqueceu-se de que dia é hoje?
— Não — disse — mas não vou. Quero ficar na cama. Podia me ler histórias do Cavaleiro Alado.
O Cavaleiro Alado era Sor Artys Arryn. A lenda rezava que ele expulsara os Primeiros Homens do Vale e voara até ao topo da Lança do Gigante sobre o dorso de um enorme falcão para matar o Rei Grifo. Havia uma centena de histórias sobre as suas aventuras. O pequeno Robert conhecia-as a todas tão bem que as poderia recitar de memória, mas mesmo assim gostava que lessem para ele.
— Querido, nós temos de ir — disse ela ao rapaz — mas eu prometo, quando chegarmos aos Portões da Lua leio duas histórias do Cavaleiro Alado.
— Três — disse ele de imediato. Independentemente do que lhe era oferecido, Robert queria sempre mais.
— Três — concordou ela. — Posso deixar entrar um pouco de sol?
— Não. A luz magoa-me os olhos. Vem para a cama, Alayne.
Ela foi na mesma até às janelas, contornando o penico partido. Conseguia cheirá-lo melhor do que o via.
— Não as abrirei muito. Só o suficiente para ver a cara do meu pisco
doce.
Ele fungou.
— Se tem mesmo de ser.
As cortinas eram feitas de veludo felpudo azul. Puxou uma delas um dedo para trás e atou-a. Partículas de poeira puseram-se a dançar num raio da luz pálida da manhã. As pequenas vidraças em forma de diamante da janela estavam obscurecidas por geada. Alayne esfregou uma com a base da mão, o suficiente para vislumbrar um brilhante céu azul e um clarão branco vindo do flanco da montanha. O Ninho da Águia estava envolto num manto de gelo, e a Lança do Gigante, mais acima, enterrada num metro de neve.
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Quando se virou, Robert Arryn estava encostado à almofada, olhando-a. O Senhor do Ninho da Águia e Defensor do Vale. Uma manta de lã cobria-o abaixo da cintura. Acima dela estava nu, um rapaz pálido com o cabelo tão longo como o de qualquer menina. Robert tinha membros alongados, um peito liso e côncavo e uma pequena barriga, e olhos que estavam sempre vermelhos e ramelosos. Ele não pode evitar ser como é. Nasceu pequeno e enfermiço.
— Parece muito forte hoje de manhã, senhor. — Ele adorava que lhe dissessem como era forte. — Quer que mande Maddy e Gretchel trazer água quente para o banho? Maddy pode esfregar suas costas e lavar seus cabelos, para te deixar limpo e senhorial para a viagem. Não é bom?
— Não. Odeio a Maddy. Tem uma verruga no olho, e esfrega com tanta força que magoa. A minha mamã nunca me magoava ao esfregar.
— Eu digo à Maddy para não esfregar o meu pisco-doce com tanta força. Se sentirá melhor quando estiver limpo e fresco.
— Não quero banho, já te disse, dói-me horrivelmente a cabeça.
— Quer que te traga um pano quente para a testa? Ou uma taça de vinho de sonhos? Mas só uma pequena. Mya Stone está à espera lá em baixo, em Céu, e ficará magoada se adormecer. Sabe como ela gosta de você.
— Mas eu não gosto dela. É só a menina das mulas. — Robert fungou. — O Meistre Colemon colocou uma coisa nojenta qualquer no leite ontem à noite, eu senti o gosto. Disse que queria leite doce, mas ele não quis trazer. Nem sequer quando ordenei. O senhor sou eu, ele devia fazer o que eu dissesse. Ninguém faz o que eu digo.
— Eu falo com ele — prometeu Alayne — mas só se sair da cama. Está um dia lindo lá fora, pisco-doce. O sol brilha, está um dia perfeito para descer a montanha. As mulas estão à espera em Céu com Mya...
A boca dele estremeceu.
— Odeio essas mulas malcheirosas. Uma vez houve uma que me tentou morder! Vai dizer a essa Mya que eu vou ficar aqui. — Soava como se estivesse prestes a chorar. — Ninguém pode me fazer mal desde que eu fique aqui. O Ninho da Águia é inexpugnável.
— Quem quereria fazer mal ao meu pisco-doce? Os seus senhores e cavaleiros te adoram, e o povo aclama o seu nome. — Ele tem medo, pensou, e com bons motivos. Desde que a senhora sua mãe caíra, o rapaz nem sequer queria sair para uma varanda, e o caminho que levava do Ninho
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da Águia aos Portões da Lua era suficientemente perigoso para assustar qualquer um. Alayne tivera o coração na garganta quando subira com a Senhora Lysa e o Lorde Petyr, e todos concordavam que a descida ainda era mais aflitiva, uma vez que se passava o tempo todo olhando para baixo. Mya podia falar de grandes senhores e ousados cavaleiros que tinham empalidecido e molhado a roupa interior na montanha. E nenhum deles tinha a doença dos tremores.
Mas mesmo assim, não podia ficar ali. No fundo do vale o outono ainda se demorava, morno e dourado, mas o inverno fechara-se em volta dos picos das montanhas. Já tinham suportado três tempestades de neve, e uma de gelo que transformara o castelo em cristal durante quinze dias. O Ninho da Águia podia ser inexpugnável, mas em breve seria também inacessível, e a descida tornava-se dia a dia mais perigosa. A maior parte dos criados e soldados do castelo já tinha feito a descida. Só uma dúzia ainda permanecia ali em cima, para servir Lorde Robert.
— Pisco-doce — disse ela com suavidade — a descida vai ser tão alegre, verá. Sor Lothor estará conosco, e Mya também. As mulas dela já subiram e desceram mil vezes esta velha montanha.
— Odeio mulas — insistiu ele. — As mulas são más. Já te disse, uma tentou me morder quando eu era pequeno.
Alayne sabia que Robert nunca aprendera a montar como devia ser. Mulas, cavalos, burros, não importava; para ele eram todos feras temíveis, tão aterrorizadoras como dragões ou grifos. Fora trazido para o Vale aos seis anos, com a cabeça aninhada entre os seios de leite da mãe, e nunca deixara o Ninho da Águia desde então.
Mesmo assim, tinham de ir, antes do gelo se fechar de vez em volta do castelo. Não havia maneira de saber quanto tempo mais o tempo se aguentaria.
— Mya evitará que as mulas mordam — disse Alayne — e eu seguirei logo atrás de você. Sou só uma menina, não tão corajosa e forte como você. Se eu sou capaz de fazer, sei que você também será, pisco-doce.
— Eu podia fazê-lo — disse o Lorde Robert — mas decidi não o fazer. — Limpou o nariz ranhoso com as costas da mão. — Diga à Mya que vou ficar na cama. Talvez desça amanhã, se me sentir melhor. Hoje está demasiado frio lá fora, e dói-me a cabeça, você também pode beber um pouco de leite doce, e eu vou dizer a Gretchel para que nos traga uns favos de mel para comermos. Vamos dormir, trocar beijos e jogar jogos, e você podes me ler histórias sobre o Cavaleiro Alado.
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— Lerei. Três histórias, como prometi... quando chegarmos aos Portões da Lua. — Alayne estava perdendo a paciência. Temos de ir, recordou a si mesma, senão ainda estaremos na zona nevada quando o Sol se puser. — Lorde Nestor preparou um banquete para te dar as boas vindas, com sopa de cogumelos, carne de veado e bolos. Não quer desapontá-lo, não é?
— Haverá bolos de limão? — Lorde Robert adorava bolos de limão, talvez porque Alayne também gostasse.
— Bolos de limão, limãozinho, limãozão — assegurou-lhe — e poderá comer tantos quantos quiser.
— Cem? — quis ele saber. — Posso comer cem?
— Se você quiser. — Sentou-se na cama e alisou-lhe o longo cabelo fino. Ele tem um cabelo bonito. A própria Senhora Lysa o escovava todas as noites, e cortava-o quando precisava de ser cortado. Depois da sua queda, Robert sofrera terríveis ataques de tremores sempre que alguém se aproximava dele com uma lâmina, de modo que Petyr ordenara que deixassem que o cabelo crescesse. Alayne enrolou uma madeixa no dedo e disse: — Bom, irá sair da cama e deixar que se vista?
— Quero cem bolos de limão e cinco histórias!
Gostava de te dar cem palmadas e cinco galhetas. Não se atreveria a portar-se assim se Petyr  estivesse aqui. O pequeno senhor sentia um bom e saudável medo do padrasto. Alayne forçou-se a sorrir.
— Como o meu senhor quiser. Mas nada até estar lavado, vestido e a caminho. Vinha, antes que a manhã chegue ao fim. — Pegou-lhe firmemente na mão, e arrancou-o da cama.
Mas antes de ter tempo de chamar os criados, o pisco-doce pôs-lhe os braços escanzelados em volta e beijou-a. Foi um beijo de rapazinho, e desajeitado. Tudo o que Robert Arryn fazia era desajeitado. Se fechar os olhos posso fingir que é o cavaleiro das flores. Sor Loras dera um dia uma rosa a Sansa Stark, mas nunca a beijara... e nenhum Tyrell alguma vez beijaria Alayne Stone. Por mais bonita que fosse, nascera do lado errado dos lençóis.
Quando os lábios do rapaz tocaram os seus, deu por si a lembrar-se de outro beijo. Ainda recordava a sensação de ter a cruel boca dele comprimida contra a sua. Viera ter com Sansa na escuridão, enquanto um fogo verde enchia o céu. Levou uma canção e um beijo e não me deixou nada além dum manto ensanguentado.
Não importava. Esse dia terminara, e Sansa também.
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Alayne afastou o seu pequeno lorde.
— Basta. Poderá voltar a me beijar quando chegarmos aos Portões, se cumprir a sua promessa.
Maddy e Gretchel estavam à espera lá fora com o Meistre Colemon. O meistre lavara os dejetos do cabelo e mudara de veste. Os escudeiros de Robert também tinham aparecido. Terrance e Gyles conseguiam sempre farejar sarilhos.
—Lorde Robert está se sentindo mais forte — disse Alayne às criadas. —busquem água quente para o seu banho, mas tentem não o escaldar. E não lhe puxem o cabelo quando o desemaranhar, ele detesta isso. — Um dos escudeiros abafou um risinho, e ela disse-lhe: — Terrance, prepare a roupa de montar de sua senhoria e o seu manto mais quente. Gyles, você pode limpar aquele penico partido.
Gyles Grafton fez uma careta.
— Não sou nenhuma criada.
— Faça o que a Senhora Alayne ordena, senão Lothor Brune saberá — disse o Meistre Colemon. Seguiu-a ao longo do corredor e pela escada em caracol abaixo. — Estou grato pela sua intervenção, senhora. Tem jeito para lidar com ele. — Hesitou. — Observou alguns tremores enquanto esteve com ele?
— Os dedos tremiam um pouco quando eu peguei na mão, nada mais. Ele diz que pôs uma coisa nojenta qualquer no leite.
— Nojenta? — Colemon olhou-a, a pestanejar, e o pomo-de-adão se moveu para cima e para baixo. — Eu apenas... ele está sangrando o nariz?
— Não.
— Ótimo. Isso é bom. — A corrente tilintou suavemente quando o meistre balançou a cabeça, empoleirada no topo de um pescoço ridiculamente longo e magro. — Esta descida... senhora, poderá ser mais seguro se eu der a sua senhoria um pouco de leite de papoula. Mya Stone podia prendê-lo à garupa da sua mula mais segura enquanto ele dormisse.
— O Senhor do Ninho da Águia não pode descer da sua montanha atado como uma saca de sementes de cevada. — Quanto a isso, Alayne tinha a certeza. O pai a avisara de que não se atreviam a permitir que toda a fragilidade e covardia de Robert fosse conhecida por muita gente. Gostaria que ele estivesse aqui. Teria sabido o que fazer.
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Mas Petyr Baelish encontrava-se do outro lado do Vale, de visita ao Lorde Lyonel Corbray por ocasião do seu casamento. Viúvo, com quarenta e tal anos e sem filhos, Lorde Lyonel ia casar com a robusta filha de dezesseis anos de um mercador rico de Vila Gaivota. Fora o próprio Petyr a combinar a união. Dizia-se que o dote da noiva era assombroso; tinha de ser, uma vez que ela era de nascimento plebeu. Os vassalos de Corbray estariam presentes, bem como os Lordes Waxley, Grafton, Lynderly e alguns pequenos senhores e cavaleiros com terras... e Lorde Belmore, que nos últimos tempos se reconciliara com o pai. Esperava-se que os outros Senhores Declarantes evitassem a boda, de modo que a presença de Petyr era essencial.
Alayne compreendia tudo aquilo bastante bem, mas a situação significava que o fardo de fazer com que pisco-doce descesse a montanha em segurança caíra sobre ela.
— Dê a sua senhoria uma taça de leite doce — disse ao meistre. — Isso evitará que ele trema na viagem para baixo.
— Ele bebeu uma taça ainda não há três dias — objetou Colemon.
— E queria outra na noite passada, que lhe recusastes.
— Era cedo demais. Senhora, você não compreende. Tal como eu disse ao Senhor Protetor, uma pitada de sonodoce evita os tremores, mas não abandona o corpo, e com o tempo...
— O tempo não importará se sua senhoria tiver um ataque de tremores e cair da montanha. Se o meu pai estivesse aqui, sei que ele te diria para manter Lorde Robert calmo a todo o custo.
— Eu tento, senhora, mas os seus ataques vão-se tornando cada vez mais violentos, e ele tem o sangue tão fino que já não me atrevo a sangrá-lo. O sonodoce... tem a certeza de que ele não sangrava do nariz?
— Estava fungando — admitiu Alayne — mas não vi nenhum sangue.
— Tenho de falar com o Senhor Protetor. Este banquete... pergunto a mim próprio se será sensato, a seguir à tensão da descida.
— Não será um grande banquete — assegurou-lhe, — Não haverá mais de quarenta convidados. Lorde Nestor e o seu pessoal, o Cavaleiro do Portão, alguns senhores menores e respectivas comitivas...
—Lorde Robert não gosta de estranhos, sabe disso, e haverá bebida, ruído... música. A música assusta-o.
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— A música acalma-o — corrigiu Alayne — especialmente a harpa vertical. O que ele não suporta são cantos, desde que Marillion lhe matou a mãe. — Alayne dissera a mentira tantas vezes que já era mais frequente lembrar-se dos acontecimentos dessa maneira; a outra não parecia mais do que um pesadelo que por vezes lhe perturbava o sono. — Lorde Nestor não terá cantores no banquete, só flautas e rabecas para as danças. — O que faria quando a música começasse a tocar? Era uma questão incómoda, à qual o coração e a cabeça davam respostas diferentes. Sansa adorava danças, mas Alayne... — De a ele uma taça de leite doce antes de partirmos, e outra no banquete, e não deverá haver problemas.
— Muito bem. — Fizeram uma pausa na base da escada. — Mas estas deverão ser as últimas. Em meio ano, ou mais.
— É melhor levar esse assunto ao Senhor Protetor. — Alayne cruzou a porta e atravessou o pátio. Sabia que Colemon queria apenas o melhor para o rapaz que tinha a cargo, mas o que era melhor para Robert, o rapaz, e o que era melhor para Lorde Arryn nem sempre eram a mesma coisa. Fora Petyr que o dissera, e era verdade. Mas o Meistre Colemon só se preocupa com o rapaz. O pai e eu temos preocupações mais vastas.
Neve velha cobria o pátio, e pingentes pendiam das varandas e das torres como lanças de cristal. O Ninho da Águia fora construído com boa pedra branca, e o manto do Inverno tornava-o ainda mais branco. Tão belo, pensou Alayne, tão inexpugnável. Não conseguia amar aquele lugar, por mais que tentasse. Mesmo antes dos guardas e criados terem descido, o castelo parecera vazio como uma tumba, e ainda mais quando Petyr Baelish andava por longe. Ali em cima, desde Marillion que ninguém cantava. Nunca ninguém ria alto demais. Até os deuses eram silenciosos. O Ninho da Águia possuía um septo, mas não tinha septão; um bosque sagrado, mas sem árvore-coração. Aqui nenhuma prece é atendida, pensava com frequência, embora houvesse dias em que se sentia tão solitária que tinha de tentar. Só o vento lhe respondia, cantando sem cessar em volta das sete esguias torres brancas e fazendo chocalhar a Porta da Lua a cada rajada. Será ainda pior no inverno, compreendeu. No inverno, isto será uma fria prisão branca.
E no entanto, a ideia de partir assustava-a quase tanto como assustava Robert. Ela apenas o escondia melhor. O pai dizia que não havia vergonha em ter medo, só em mostrá-lo.
— Todos os homens vivem com o medo — dissera. Alayne não estava certa de acreditar. Nada assustava Petyr Baelish. Ele só disse aquilo para me dar coragem. Teria de mostrar coragem lá em baixo, onde a possibilidade de ser desmascarada era muito mais elevada. Os amigos de Petyr na
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corte tinham-lhe mandado a notícia de que a rainha tinha homens em campo em busca do Duende e de Sansa Stark. Me custará a cabeça se for encontrada, lembrou a si mesma enquanto descia um lance de geladas escadas de pedra. Tenho de ser Alayne permanentemente, por dentro e por fora.
Lothor Brune estava na sala do guincho, ajudando o carcereiro Mord e dois criados a carregar arcas de roupas e fardos de pano em seis enormes baldes de madeira de carvalho, cada um deles suficientemente grande para conter três homens. Os grandes guinchos eram a maneira mais fácil de chegar ao castelo intermediário Céu, cento e oitenta metros mais abaixo; Se não se fosse pelos guinchos tinha de se descer a chaminé natural de pedra que se abria na subcave. Ou ir como Marillion, e a Senhora Lysa antes dele.
— O rapaz está fora da cama? — perguntou Sor Lothor.
— Estão lhe dando banho. Estará pronto dentro de uma hora.
— Esperemos que esteja. Mya não esperará até depois do meio-dia. — A sala do guincho não era aquecida, e a respiração dele condensava em névoa a cada palavra.
— Ela esperará — disse Alayne. — Tem de esperar.
— Não tenha tanta certeza, senhora. É meia mula, aquela. Acho que nos deixaria aqui com fome antes de pôr aqueles animais em risco. — Brune sorriu quando disse aquilo. Ele sorri sempre que fala de Mya Stone. Mya era muito mais nova do que Sor Lothor, mas quando o pai estava negociando o casamento entre Lorde Corbray e a sua filha de mercador, dissera-lhe que as meninas jovens eram sempre mais felizes com homens mais velhos.
— A inocência e a experiência dão um casamento perfeito — dissera.
Alayne perguntou a si mesma o que Mya pensaria de Sor Lothor.
Com o seu nariz esmagado, queixo quadrado, e cabelo macio e completamente grisalho, Brune não podia ser chamado bonito, mas também não era feio. É uma cara comum, mas honesto. Embora tivesse sido erguido ao grau de cavaleiro, o nascimento de Sor Lothor fora muito baixo. Uma noite contara-lhe que era aparentado com os Brune de Cova Castanha, uma velha família de cavaleiros da Ponta da Garra Rachada.
— Fui ter com eles quando o meu pai morreu — confessara — mas eles cagaram em mim, e disseram que eu não era do seu sangue. — Não quis falar do que acontecera depois disso, salvo para dizer que aprendera tudo o que sabia sobre armas da maneira mais difícil. Sóbrio, era um homem
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calmo, mas forte. E Petyr diz que é leal. Não confia em ninguém mais do que nele. Brune seria um bom partido para uma menina bastarda como Mya Stone, pensou. Poderia ser diferente se o pai a tivesse reconhecido, mas ele não o fez. E Maddy diz que, além disso, ela não é donzela.
Mord pegou no chicote e o fez estalar, e o primeiro par de bois pôsse a caminhar penosamente em círculo, virando o guincho. A corrente desenrolou-se, chocalhando ao raspar na pedra e fazendo oscilar o balde de carvalho que iniciava a longa descida até Céu. Pobres bois, pensou Alayne. Mord cortaria lhes as gargantas antes de partir e os deixaria para os falcões. O que restasse quando o Ninho da Águia fosse reaberto seria assado para o banquete de primavera, se não se tivesse estragado. Uma boa reserva de carne congelada e dura predizia um verão de abundância, segundo afirmava a velha Gretchel.
— Senhora — disse Sor Lothor — é melhor que saiba. Mya não subiu sozinha. A Senhora Myranda a acompanha.
— Oh. — Porque subiria ela a montanha, apenas para voltar a descê-la? Myranda Royce era a filha do Lorde Nestor. Da única vez que Sansa visitara os Portões da Lua, a caminho do Ninho da Águia, com a tia Lysa e Lorde Petyr, ela estivera por fora, mas Alayne ouvira os soldados do Ninho da Águia e as criadas falarem muito dela desde então. A mãe morrera há muito, de modo que era a Senhora Myranda quem cuidava do castelo do pai; segundo os rumores, a corte era muito mais animada quando ela se encontrava presente do que quando estava longe.
— Mais tarde ou mais cedo terá de conhecer Myranda Royce — prevenira-a Petyr. — Quando isso acontecer, tenha cautela. Ela gosta de fazer o papel de pateta alegre, mas por baixo é mais sagaz do que o pai. Cuidado com a língua perto dela.
Terei, pensou, mas não sabia que teria de começar tão cedo.
— Robert ficará satisfeito. — Ele gostava de Myranda Royce. — Tem que me perdoar, sor. Preciso ir acabar de fazer as malas. — Sozinha, subiu os degraus que levavam ao seu quarto pela última vez. As janelas haviam sido trancadas e as portadas fechadas, a mobília fora coberta. Parte das suas coisas tinha já sido levada, o resto armazenado. Todas as sedas e samitos da Senhora Lysa seriam deixados para trás. Os seus linhos mais puros e veludos mais felpudos, os ricos bordados e a bela renda de Myr; tudo ficaria. Lá em baixo, Alayne tinha de se vestir modestamente, como era próprio de uma menina de modesto nascimento. Não importa, disse a si mesma. Nem aqui me atrevi a usar as melhores roupas.
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Gretchel desfizera a cama e preparara o resto das suas roupas. Alayne já trazia meias de lã por baixo das saias, sobre uma dupla camada de roupa interior. Agora envergou uma túnica de lã de cordeiro e um manto de peles com capuz, apertando-o com o tejo esmaltado que fora presente de Petyr. Também havia um cachecol, e um par de luvas de couro forradas de peles, que combinavam com as suas botas de montar. Depois de vestir tudo aquilo, sentiu-se tão gorda e peluda como uma cria de urso. Me sentirei grata pela roupa na montanha, teve de recordar a si mesma. Olhou uma última vez para o quarto antes de sair. Aqui estive em segurança, pensou, mas lá em baixo...
Quando Alayne regressou à sala do guincho, foi encontrar Mya Stone impacientemente à espera com Lothor Brune e Mord. Deve ter subido no balde para ver qual era a demora. Magra e vigorosa, Mya parecia tão dura como os velhos couros de montar que usava por baixo do lorigão prateado. Tinha o cabelo tão negro como a asa de um corvo, tão curto e desgrenhado que Alayne suspeitou que o cortava com um punhal. Os olhos de Mya eram o seu melhor traço, grandes e azuis. Ela podia ser bonita, se se aperaltasse como uma menina. Alayne deu por si curiosa em saber se Sor Lothor gostaria mais dela vestida de ferro e couro, ou se sonhava em vê-la enfeitada de renda e seda. Mya gostava de dizer que o pai fora um bode e a mãe uma coruja, mas Alayne soubera a verdadeira história por Maddy. Sim, pensou, olhando agora para ela, aqueles são os olhos dele, e também tem o seu cabelo, o espesso cabelo preto que partilhava com Renly.
— Onde está ele? — quis saber a menina bastarda.
— Sua senhoria está sendo banhado e vestido.
— Tem de se apressar. Está ficando mais frio, não sente? Temos de estar abaixo de Neve antes do Sol se pôr.
— Como está o vento? — perguntou-lhe Alayne.
— Podia estar pior... e estará, depois de anoitecer. — Mya afastou uma madeixa dos olhos. — Se ele levar muito mais tempo no banho, ficaremos encurralados aqui em cima o inverno inteiro, sem nada para comer além de nós.
Alayne não soube o que responder àquilo. Felizmente, foi poupada à resposta pela chegada de Robert Arryn. O pequeno senhor trazia veludo azul-celeste, um colar de ouro e safiras, e um manto branco de pele de urso. Cada um dos escudeiros segurava numa ponta, a fim de evitar que o manto arrastasse pelo chão. O Meistre Colemon acompanhava-os, com um puído manto cinzento forrado de pele de esquilo. Gretchel e Maddy não vinham muito atrás.
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Quando sentiu o vento frio na cara, Robert titubeou, mas Terrance e Gyles estavam atrás dele, de modo que não pôde fugir.
— Senhor — disse Mya — me acompanha até lá abaixo?
Demasiada brusquidão, pensou Alayne. Ela devia tê-lo saudado com um sorriso, e dito como parece forte e corajoso.
— Quero Alayne — disse o Lorde Robert. — Só irei com ela.
— O balde pode levar nós três.
— Só quero Alayne.  Você é toda fedorenta, como uma mula.
— Às suas ordens — A cara de Mya não mostrou qualquer emoção.
Algumas das correntes dos guinchos estavam presas a baldes de vime, outras a robustos baldes de carvalho. O maior destes últimos era mais alto do que Alayne, com arcos de ferro a cingir as suas aduelas castanhas escuras. Mesmo assim, quando pegou na mão de Robert e o ajudou a entrar, tinha o coração na garganta. Depois de o alçapão ser fechado atrás deles, a madeira rodeou-os por todos os lados. Só o topo estava aberto. É melhor assim, disse a si mesma, não podemos olhar para baixo. Abaixo deles havia apenas Céu e o céu. Cento e oitenta metros de céu. Por um momento deu por si curiosa em saber quanto tempo teria levado a sua tia a cair essa distância, e qual teria sido o seu último pensamento enquanto a montanha corria ao seu encontro. Não, não posso pensar nisso. Não posso!
— LARGA! — soou o grito de Sor Lothor. Alguém empurrou o balde com força. Este oscilou e inclinou-se, raspou no chão, e então balançou, livre. Alayne ouviu o crac do chicote de Mord e o chocalhar da corrente. Começaram a descer, a princípio aos sacões e sobressaltos, depois de uma forma mais regular. Robert tinha a cara pálida e os olhos inchados, mas as suas mãos estavam calmas. O Ninho da Águia encolheu por cima deles. As celas do céu dos andares inferiores faziam o castelo parecer-se um pouco com uma colmeia quando visto de baixo. Uma colmeia feita degelo, pensou Alayne, um castelo feito de neve. Ouvia o vento a assobiar em volta do balde.
Trinta metros mais abaixo, uma súbita rajada apanhou-os. O balde oscilou para o lado, girando no ar, e então colidiu com força contra a face da rocha atrás deles. Estilhaços de gelo e neve choveram sobre os dois, e o carvalho rangeu e deformou-se. Robert arquejou e a agarrou, enterrando a cara entre os seus seios.
— O meu senhor é corajoso — disse Alayne, quando o sentiu a tremer. — Estou tão assustada, que quase nem consigo falar, mas você não.
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Sentiu-o a anuir.
— O Cavaleiro Alado era corajoso, e eu também sou — vangloriouse o rapaz para o seu corpete. — Sou um Arryn.
— O meu pisco-doce abraça-me com força? — perguntou ela, embora ele já a estivesse a apertar tanto que quase não conseguia respirar.
— Se quiser — murmurou ele. E, fortemente abraçados um ao outro, continuaram a descer em direção a Céu.
Chamar castelo a isto é como chamar lago a uma poça no chão duma latrina, pensou Alayne, quando o balde foi aberto para saírem dentro do castelo intermediário. Céu não passava de uma muralha em forma de crescente, feita de pedra velha e sem argamassa, que rodeava uma saliência rochosa e a abertura escancarada de uma caverna. Lá dentro havia armazéns e estábulos, um longo salão natural, e os apoios entalhados que levavam ao Ninho da Águia. Lá fora, o terreno estava semeado de pedras e pedregulhos quebrados. Rampas de terra davam acesso à muralha. Cento e oitenta metros mais acima, o Ninho da Águia era tão pequeno que Alayne podia esconder o castelo com a mão, mas muito abaixo estendia-se o Vale, verde e dourado.
Vinte mulas esperavam dentro do castelo intermediário, com dois condutores de mulas e a Senhora Myranda Royce. A filha de Lorde Nestor revelou-se uma mulher baixa e carnuda, da mesma idade de Mya Stone, mas enquanto Mya era magra e vigorosa, Myranda tinha um corpo mole e de cheiro doce, largo de ancas, pesado de peito, e extremamente roliço. Os seus espessos caracóis cor de avelã enquadravam bochechas redondas e rubras, uma boca pequena, e um par de animados olhos castanhos. Quando Robert saiu cautelosamente do balde, ela ajoelhou-se numa mancha de neve para lhe beijar a mão e o rosto.
— Senhor — disse — se tornou tão grande!
 Me tornei? — disse Robert, agradado.
— Em breve estará mais alto do que eu — mentiu ela. Pôs-se em pé e sacudiu a neve das saias. — E você deve ser a filha do Senhor Protetor — acrescentou, enquanto o balde iniciava, a chocalhar, a viagem de regresso ao Ninho da Águia. — Já tinha ouvido dizer que era bela. Vejo que é verdade.
Alayne fez uma vénia.
— A senhora é bondosa por dizê-lo.
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— Bondosa? — A menina mais velha soltou uma gargalhada. — Que aborrecido que isso seria. Eu almejo ser malvada. Tem que me contar todos os seus segredos na viagem para baixo. Posso te chamar de Alayne?
— Se quiser, senhora. — Mas de mim não arrancará segredos.
— Eu sou "senhora" nos Portões, mas aqui na montanha pode me chamar de Randa. Quantos anos tem, Alayne?
— Catorze, senhora. — Decidira que Alayne Stone devia ser mais velha do que Sansa Stark.
— Randa. Parece que já se passaram cem anos desde que eu tive catorze. Como era inocente. Ainda é inocente, Alayne?
Alayne corou.
— Não devia... sim, claro.
— Está se guardando para Lorde Robert? — brincou a Senhora Myranda. — Ou haverá algum ardente escudeiro a sonhar com os seus favores?
— Não — disse Alayne, ao mesmo tempo que Robert dizia:
— Ela é minha amiga. Terrance e Gyles não podem ficar com ela.
Por aquela altura já um segundo balde chegara, batendo suavemente num monte de neve gelada. O Meistre Colemon saiu lá de dentro com os escudeiros Terrance e Gyles. O guincho seguinte trouxe Maddy e Gretchel, acompanhadas por Mya Stone. A menina bastarda não demorou a pôr-se ao comando.
— Não queremos nos amontoar na montanha — disse aos outros condutores de mulas. — Eu levo Lorde Robert e os companheiros. Ossy, você tras para baixo Sor Lothor e os outros, mas me dê um avanço de uma hora. Carrot, você ficará encarregado das arcas e caixas. — Virou-se para Robert Arryn, com o cabelo negro a esvoaçar ao vento. — Que mula montará hoje, senhor?
— Elas são todas fedorentas. Fico com aquela cinzenta que tem a orelha roída. Quero que Alayne venha comigo. E Myranda também.
— Onde o caminho for suficientemente largo. Venha, senhor, vamos te subir para a sua mula. Há um cheiro a neve no ar.
Passou-se mais meia hora antes de estarem prontos a partir. Quando todos montaram, Mya Stone deu uma ordem decidida, e dois dos homens de armas de Céu abriram os portões. Mya foi a primeira a sair, com Lorde
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Robert logo atrás, enfaixado no seu manto de pele de urso. Alayne e Myranda Royce seguiam-nos, depois vinham Gretchel e Maddy, e a seguir Terrance Lynderly e Gyles Grafton. O Meistre Colemon fechava a retaguarda, trazendo pela arreata uma segunda mula carregada com as suas arcas de ervas e poções.
Para lá das muralhas, o vento aumentou rapidamente de intensidade. Ali estavam acima da linha das árvores, expostos aos elementos. Alayne sentiu-se grata por ter vestido roupa tão quente. O manto batia ruidosamente atrás dela, e uma súbita rajada arrancou-lhe o capuz da cabeça. Soltou uma gargalhada, mas alguns metros mais à frente, Lorde Robert torceu-se e disse:
— Está frio demais. Devíamos voltar e esperar até o tempo ficar mais quente.
— No fundo do vale estará mais quente, senhor — disse Mya. — Verá quando chegarmos lá.
— Eu não quero ver — disse Robert, mas Mya não lhe prestou aten
ção.
A estrada era uma tortuosa série de degraus de pedra esculpidos no flanco da montanha, mas as mulas conheciam cada centímetro dela. Isso deixou Alayne contente. Aqui e ali a pedra fora estilhaçada pela tensão causada por um sem-fim de estações, com os seus gelos e degelos. Aglomerações de neve, de um branco que cegava, agarravam-se à rocha de ambos os lados do caminho. O sol brilhava, o céu estava azul, e havia falcões aos círculos por cima do grupo, cavalgando o vento.
Ali em cima, onde a encosta era mais íngreme, os degraus ziguezagueavam de um lado para o outro em vez de mergulharem a direito para baixo. Sansa Stark subiu a montanha, mas é Alayne Stone que desce. Era um estranho pensamento. Lembrava-se de que, ao subir, Mya a avisara para manter os olhos no caminho que se estendia em frente.
— Olhe para cima, não para baixo — dissera... mas isso não era possível na descida. Podia fechar os olhos. A mula conhece o caminho, não tem necessidade de mim. Mas isso parecia algo que Sansa, essa menina assustada, teria feito. Alayne era uma mulher mais velha, e tinha a coragem dos bastardos.
A princípio, seguiram em fila única, mas mais abaixo o caminho alargava-se o suficiente para dois cavaleiros seguirem lado a lado, e Myranda Royce aproximou-se de Alayne.
— Recebemos uma carta do seu pai — disse, com tal casualidade que era como se estivessem sentadas com a septã, bordando. — Vem a caminho
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de casa, diz ele, e espera ver a sua querida filha em breve. Escreve que Lyonel Corbray parece muito contente com a noiva, e ainda mais com o dote dela. Eu espero que o Lorde Lyonel se lembre de qual dos dois tem de levar para a cama. A Senhora Waynwood apareceu no banquete nupcial com o Cavaleiro de Novestrelas, diz Lorde Petyr, para espanto de toda a gente.
— Anya Waynwood? Deveras? — Dos seis Senhores Declarantes restavam três, aparentemente. No dia em que partira da montanha, Petyr Baelish mostrara-se confiante em conquistar Symond Templeton para o seu lado, mas a Senhora Waynwood não. — Há mais alguma coisa? — perguntou. O Ninho da Águia era um lugar tão solitário, que estava ansiosa por qualquer migalha de novidades vinda do mundo lá fora, por trivial ou insignificante que fosse.
— Do seu pai não, mas chegaram-nos outras aves. A guerra prossegue, em todo o lado menos aqui. Correrrio rendeu-se, mas Pedra do Dragão e Ponta Tempestade ainda resistem por Lorde Stannis.
— Senhora Lysa foi tão sensata por nos manter longe da guerra.
Myranda deitou-lhe um sorrisinho astuto.
— Sim, ela era a própria alma da sensatez, essa boa senhora. — Mexeu-se na sela. — Porque terão as mulas de ser tão ossudas e temperamentais? Mya não as alimenta o suficiente. Uma boa mula gorda seria mais confortável de montar. Há um novo Alto Septão, sabia? Oh, e a Patrulha da Noite tem um rapaz como comandante, um filho bastardo qualquer de Eddard Stark.
— Jon Snow? — disse antes de pensar, espantada.
— Snow? Sim, deve ser Snow, suponho.
Havia séculos que não pensava em Jon. Era só seu meio-irmão, mas mesmo assim... com Robb, Bran e Rickon mortos, Jon Snow era o único irmão que lhe restava. Agora também eu sou bastarda, como ele. OK seria tão bom voltar a vê-lo. Mas claro que isso nunca poderia acontecer. Alayne Stone não tinha irmãos, ilegítimos ou não.
— O nosso primo Bronze Yohn organizou um corpo-a-corpo em Pedrarruna — prosseguiu Myranda Royce, sem se dar conta de nada — um pequeno, só para escudeiros. Destinava-se a que Harry, o Herdeiro, ganhasse o título, e foi o que ele fez.
— Harry, o Herdeiro?
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— O protegido da Senhora Waynwood. Harrold Hardyng. Suponho que agora tenhamos de lhe chamar Sor Harry. Bronze Yohn armou-o cavaleiro.
— Oh. — Alayne sentiu-se confusa. Porque haveria o protegido da Senhora Waynwood de ser seu herdeiro? Ela tinha filhos do seu sangue. Um deles era o Cavaleiro do Portão Sangrento, Sor Donnel. Mas não quis parecer estúpida, de modo que tudo o que disse foi: — Rezo para que prove ser um cavaleiro de mérito.
A Senhora Myranda soltou uma fungadela.
— Eu rezo para que apanhe varíola. Tem uma filha bastarda de uma plebéia qualquer, sabia? O senhor meu pai tinha a esperança de me casar com Harry, mas a Senhora Waynwood nem quis ouvir falar do assunto. Não sei se foi a mim que achou inadequada, ou só o meu dote. — Suspirou. — Realmente preciso de um novo marido. Tive um, em tempos, mas o matei.
— Matou? — disse Alayne, chocada.
— Oh, sim. Ele morreu em cima de mim. Dentro de mim, em boa verdade. Sabe o que acontece numa cama de casado, espero?
Alayne pensou em Tyrion, e no Cão de Caça e no modo como ele a beijara, e confirmou com a cabeça.
— Isso deve ter sido terrível, senhora. Ele morrer. Aí, quero eu dizer, enquanto... enquanto estava...
— ...me fodendo? — A Senhora Myranda encolheu os ombros. — É decerto desconcertante. Já para não falar da descortesia. Ele nem sequer teve a decência básica de plantar uma criança em mim. Os velhos têm a semente fraca. De modo que aqui estou eu, viúva, mas quase por usar. Harry podia ter-se saído muito pior. E atrevo-me mesmo a dizer que sairá. O mais certo é a Senhora Waynwood casá-lo com uma das suas netas, ou com uma das de Bronze Yohn.
— Com certeza, senhora — Alayne lembrou-se do aviso de Petyr.
— Randa. Vá lá, consegui dizer. Randa.
— Randa.
— Muito melhor. Temo que tenha de lhe pedir perdão. Irá me julgar uma terrível cabra, bem sei, mas me deitei com aquele belo rapaz, o Marillion. Não sabia que ele era um monstro. Cantava lindamente, e sabia fazer as coisas mais deliciosas com os dedos. Nunca o teria levado para a cama se soubesse que ele ia empurrar a Senhora Lysa pela Porta da Lua. Por
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regra não me deito com monstros. — Estudou a cara e o peito de Alayne. — É mais bonita do que eu, mas os meus seios são maiores. Os meistres dizem que seios grandes não produzem mais leite do que os pequenos, mas eu não acredito. Já alguma vez conheceu uma ama-de-leite de mamas pequenas? As suas são amplas para uma menina da sua idade, mas como são seios bastardos não me preocuparei com eles. — Myranda aproximou a sua mula da dela. — Sabe que a nossa Mya não é donzela, espero?
Sabia. A gorda Maddy segredara-lhe essa informação, um dia que Mya trouxera para cima as suas provisões.
— Maddy disse-me.
— Claro que disse. Tem a boca tão grande como as ancas, e as ancas são enormes. Foi Mychel Redfort. Ele era escudeiro de Lyn Corbray. Um escudeiro a sério, ao contrário daquele rapaz desajeitado que Sor Lyn tem agora. Diz-se que só aceitou esse por dinheiro. Mychel era o melhor jovem espadachim do Vale, e também galante... pelo menos foi o que a pobre Mya pensou, até que o homem se casou com uma das filhas de Bronze Yohn. Tenho a certeza de que Lorde Horton não lhe deu voto na matéria, mas foi na mesma uma coisa cruel para se fazer com Mya.
— Sor Lothor gosta dela. — Alayne olhou de relance a menina das mulas, vinte passos mais abaixo. — Mais do que gosta...
—... Lothor Brune? — Myranda ergueu uma sobrancelha. — E ela sabe? — Não esperou resposta. — Ele não tem hipótese, pobre homem. O meu pai tentou arranjar par para Mya, mas ela não quis nenhum deles. É mesmo meio mula, aquela.
Involuntariamente, Alayne deu por si a simpatizar com a menina mais velha. Não tivera uma amiga com quem mexericar desde a pobre Jeyne Poole.
— Acha que Sor Lothor gosta dela como é, vestida de couro e cota de malha? — perguntou à menina mais velha, que tanta experiência do mundo parecia ter. — Ou será que sonha com ela envolta em sedas e veludos?
— Ele é um homem. Sonha com ela nua.
Está tentando me fazer corar outra vez.
A Senhora Myranda deve ter-lhe ouvido os pensamentos.
— Você realmente fica com um belo tom de rosa. Quando eu coro fico igualzinha a uma maçã. Mas há anos que não coro. — Inclinou-se para mais perto. — O seu pai planeja voltar a casar?
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— O meu pai? — Alayne nunca pensara naquilo. Sem saber porquê, a ideia deixou-a desconfortável. Deu por si a lembrar-se da expressão no rosto de Lysa Arryn quando caíra pela Porta da Lua.
— Todos sabemos como ele era dedicado à Senhora Lysa — disse Myranda — mas não pode ficar eternamente de luto. Precisa de uma esposa bonita e jovem para lhe lavar o desgosto. Imagino que podia escolher entre metade das nobres donzelas do Vale. Quem poderia ser melhor marido do que o nosso ousado Senhor Protetor? Embora ele pudesse ter um nome melhor que Mindinho. Sabe se o dedo é assim tão mínimo?
— O dedo? — Alayne voltou a corar. — Eu não... nunca...
A Senhora Myranda riu-se tanto que Mya Stone deitou um relance para trás.
— Não se incomode com isso, Alayne, tenho a certeza de que é suficientemente grande.
Passaram por baixo de um arco esculpido pelo vento, onde longos pingentes pendiam da pedra clara, pingando sobre eles. Do outro lado, o caminho estreitava e mergulhava bruscamente por trinta metros ou mais. Myranda foi forçada a deixar-se ficar para trás. Alayne afrouxou as rédeas da mula. A inclinação daquela parte da descida a obrigou a se agarrar bem à sela. Os degraus tinham sido ali desgastados e alisados pelos cascos ferrados de todas as mulas que os tinham pisado, até se assemelharem a uma série de bacias pouco profundas de pedra. Água enchia o fundo das bacias, cintilando dourada ao sol da tarde. Agora é água, pensou Alayne, mas ao chegar a noite transformará toda em gelo. Apercebeu-se de que estava retendo a respiração, e soltou-a. Mya Stone e Lorde Robert tinham quase atingido a agulha de rocha onde o declive voltava a diminuir. Tentou olhar para eles, e só para eles. Não cairei, disse a si mesma. A mula de Mya me levará até ao outro lado. O vento guinchava à sua volta, enquanto o animal ia avançando passo a passo, aos solavancos e raspando com as patas. Pareceu demorar uma vida.
Então, de súbito, viu-se no fim da descida com Mya e o seu pequeno senhor, aninhados por baixo de uma retorcida agulha rochosa. Em frente estendia-se uma depressão elevada, estreita e gelada. Alayne ouvia o vento a gritar, e sentia-o a puxar-lhe o manto. Lembrava-se daquele lugar, da subida. Então assustara-a, e assustava-a agora.
— É mais largo do que parece — estava Mya dizendo à Lorde Robert em voz alegre. — Um metro de largura, e não tem mais de seis metros de comprimento, não é nada.
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— Não é nada — disse Robert. Tinha a mão tremendo.
Oh, não, pensou Alayne. Por favor. Aqui não. Não agora.
— É melhor levar as mulas pela arreata — disse Mya. — Se aprouver ao senhor, eu levo a minha primeiro, e depois volto para vir buscar a sua. — Lorde Robert não respondeu. Fitava a estreita depressão com os seus olhos avermelhados. — Não demorarei, senhor — prometeu Mya, mas Alayne duvidava de que o rapaz sequer a ouvisse.
Quando a menina bastarda tirou a mula de baixo do abrigo da agulha, o vento capturou-a nos seus dentes. O seu manto se ergueu, torcendo-se e batendo no ar. Mya cambaleou, e durante meio segundo pareceu que seria arrastada para o precipício, mas conseguiu de algum modo recuperar o equilíbrio e avançou.
Alayne tomou a mão enluvada de Robert na sua para lhe parar o tre
mor.
— Pisco-doce — disse — estou assustada. Pegue na minha mão, e me ajude a atravessar. Sei que você não tem medo.
Ele olhou-a, com pupilas que eram pequenas cabeças escuras de alfinete em olhos tão grandes e brancos como ovos.
— Não tenho?
— Você, não. É o meu cavaleiro alado. Sor Pisco-doce.
— O Cavaleiro Alado podia voar — sussurrou Robert.
— Mais alto do que as montanhas. — E deu-lhe um apertão na mão.
A Senhora Myranda se juntara eles na agulha.
— Pois podia — ecoou, quando viu o que estava a acontecer.
— Sor Pisco-doce — disse o Lorde Robert, e Alayne compreendeu que não se atreveria a esperar pelo regresso de Mya. Ajudou o rapaz a desmontar e, de mãos dadas, saíram para a depressão de rocha nua, com os mantos batendo e torcendo nas suas costas. A toda a volta havia ar e céu vazio, o chão caía abruptamente de ambos os lados. Havia gelo sob os seus pés, e pedras partidas só à espera para torcerem um tornozelo, e o vento uivava ferozmente. Soa como um lobo, pensou Sansa. Um lobo fantasma, tão grande como montanhas.
E então se viram do outro lado, e Mya Stone estava a rindo e erguendo Robert para um abraço.
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— Cuidado — disse Alayne. — Ele pode te machucar a esbravejar. Não parece, mas pode. — Arranjaram um lugar para ele, uma fenda na rocha, para o manter abrigado do vento frio. Alayne cuidou dele até os tremores passarem, enquanto Mya regressava para ajudar os outros a atravessar.
Mulas frescas os esperavam em Neve, bem como uma refeição quente constituída por cabra estufada e cebolas. Comeu com Mya e Myranda.
— Então além de bela é corajosa. — disse-lhe Myranda.
— Não. — O elogio a fez corar. — Não sou. Estava tão assustada. Não me parece que tivesse atravessado sem Lorde Robert. — Virou-se para Mya Stone. — Quase caiu.
— Está enganada. Eu nunca caio. — O cabelo de Mya caíra-lhe sobre o rosto, escondendo um olho.
— Eu disse quase. Eu vi. Não teve medo?
Mya abanou a cabeça.
— Lembro-me de um homem me atirando ao ar quando era muito pequena. Ele é alto como o céu, e me atira tão alto que eu me sinto a voar. Estamos os dois rindo, rindo tanto que quase não consigo respirar, e por fim eu rio com tanta força que me molho toda, mas isso só o faz rir ainda mais. Nunca tinha medo quando ele me atirava. Sabia que estaria sempre lá para me apanhar. — Empurrou o cabelo para trás. — E então houve um dia que não estava. Os homens vão e vêm. Mentem, morrem ou nos abandonam. Mas uma montanha não é um homem, e uma pedra é filha da montanha. Eu confio no meu pai e confio nas minhas mulas. Não cairei. — Pousou a mão num esporão irregular de rocha e pôs-se em pé. — É melhor acabar. Ainda temos um longo caminho a percorrer, e me cheira  a tempestade.
A neve começou a cair no momento em que saíam de Pedra, o maior e o mais baixo dos três castelos intermediários que defendiam a abordagem ao Ninho da Águia. Por essa altura, caía o ocaso. A Senhora Myranda sugeriu que talvez pudessem voltar para trás, passar a noite em Pedra e reatar a descida quando o sol nascesse, mas Mya não quis ouvir falar da ideia.
— Por essa altura, a neve pode ter metro e meio de profundidade, e os degraus estarão traiçoeiros até para as minhas mulas — disse. — É melhor continuarmos. Iremos devagar.
E foi o que fizeram. Abaixo de Pedra, os degraus eram mais largos e menos íngremes, ziguezagueando para dentro e para fora dos grandes pinheiros e das árvores-sentinela cinzentas-esverdeadas que cobriam as
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encostas inferiores da Lança do Gigante. As mulas de Mya, aparentemente, conheciam cada raiz e pedra da descida, e alguma que elas esquecessem era lembrada pela menina bastarda. Decorreu metade da noite até avistarem as luzes dos Portões da Lua através da neve que caía. A última parte da viagem foi a mais pacífica. O nevão era constante, cobrindo o mundo de branco. O Pisco-doce adormeceu na sela, oscilando de um lado para o outro com os movimentos da mula. Até a Senhora Myranda se pôs a bocejar e a queixarse de cansaço.
— Temos aposentos preparados para todos vós — disse a Alayne — mas se quiser, pode dividir a minha cama esta noite. Tem tamanho suficiente para quatro.
— Me sentiria honrada, senhora.
— Randa. Pode se achar com sorte por eu estar tão cansada. Só me apetece me enrolar e dormir. Normalmente, quando as senhoras partilham a minha cama têm de pagar um imposto de almofada e me contar tudo sobre as malvadezas que fizeram.
— E se não fizeram malvadezas?
— Ora, nesse caso têm de confessar todas as malvadezas que querem fazer. Você não, claro. Consigo ver como é virtuosa só de olhar para essas suas bochechas rosadas e grandes olhos azuis. — Voltou a bocejar. — Espero que tenha os pés quentes. Detesto companheiras de cama com pés frios.
Quando finalmente chegaram ao castelo do pai, a Senhora Myranda também já dormitava, e Alayne sonhava com a cama. Será um colchão de penas, disse a si mesma. Mole, quente e profundo, debaixo de um monte de peles. Sonharei um sonho agradável e quando acordar haverá cães a ladrar; mulheres a coscuvilhar junto ao poço, espadas a ressoar no pátio. E mais tarde haverá um banquete, com música e danças. Após o silêncio mortal do Ninho da Águia, ansiava por gritos e risos.
Mas quando os viajantes estavam descendo das mulas, um dos guardas de Petyr surgiu vindo da fortaleza.
— Senhora Alayne — disse — o Senhor Protetor tem estado à sua espera.
— Ele está de volta? — disse ela, sobressaltada.
— Voltou ao cair da noite. Vai encontra-lo na torre oeste.
A hora era mais próxima da alvorada do que do ocaso, e a maior parte do castelo encontrava-se adormecida, mas Petyr Baelish não. Alayne foi encontrá-lo sentado junto a uma crepitante lareira, a beber vinho quente com
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especiarias com três homens que não conhecia. Todos se ergueram quando ela entrou, e Petyr dirigiu-lhe um sorriso caloroso.
— Alayne. Vem, dá um beijo no teu pai.
Alayne abraçou-o obedientemente e deu-lhe um beijo na face.
— Lamento incomodar, pai. Ninguém me disse que tinha companhia.
— Você nunca incomoda, querida. Estava mesmo agora contando a estes bons cavaleiros como a minha filha era atenciosa.
— Atenciosa e bela — disse um jovem cavaleiro elegante, cuja espessa cabeleira loura caía em cascata até bem depois dos ombros.
— Pois — disse o segundo cavaleiro, um indivíduo entroncado com uma grossa barba salpicada de branco, um nariz vermelho e bulboso com veias rebentadas e mãos nodosas, grandes como presuntos. — Não me referi a essa parte, senhor.
— Eli faria o mesmo se ela fosse minha filha — disse o último cavaleiro, um homem baixo e seco com um sorriso sardónico, nariz pontiagudo e um hirsuto cabelo cor de laranja. — Especialmente perto de labregos como nós.
Alayne riu.
— São labregos? — disse, brincando. — Ora, e eu que os tomei por galantes cavaleiros.
— Cavaleiros, são — disse Petyr. — A sua galanteria ainda está por demonstrar, mas podemos ter esperança. Permite-me que te apresente Sor Byron, Sor Morgarth e Sor Shadrich. Senhores, a Senhora Alayne, minha filha ilegítima e muito esperta... com a qual tenho de conferenciar, se fizerem a bondade de nos deixar a sós.
Os três cavaleiros fizeram vénias e retiraram-se, embora o alto do cabelo louro lhe tenha beijado a mão antes de sair.
— Cavaleiros andantes? — disse Alayne, quando a porta foi fechada.
— Cavaleiros famintos. Achei melhor termos mais algumas espadas à nossa volta. Os tempos tornam-se cada vez mais interessantes, minha querida, e quando os tempos são interessantes, nunca se pode ter demasiadas espadas. O Rei Bacalhau regressou a Vila Gaivota, e o velho Oswell tinha algumas histórias para contar.
Alayne sabia não ser boa ideia perguntar que tipo de histórias. Se Petyr tivesse querido que ela soubesse, teria lhe dito.
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— Não o esperava de volta tão cedo — disse. — Me agrada que tenha vindo.
— Nunca teria percebido tal coisa pelo beijo que me deu. — Puxou-a para si, prendeu-lhe o rosto entre as mãos, e beijou-a nos lábios durante muito tempo. — Isto é que é o tipo de beijo que diz bem-vindo a casa. Trata de melhorar da próxima vez.
— Sim, pai. — Conseguia sentir-se a corar.
Ele não lhe guardou rancor pelo beijo.
Não acreditaria em metade do que está acontecendo em Porto Real, querida. Cersei cambaleia de idiotice em idiotice, ajudada pelo seu conselho de moucos, obtusos e cegos. Sempre julguei que ela iria deixar o reino falido e destruir-se, mas nunca esperei que o fizesse assim tão depressa. É bastante aborrecido. Esperava ter quatro ou cinco anos calmos para plantar certas sementes e deixar alguns frutos a amadurecer, mas agora... ainda bem que eu prospero no caos. A pouca paz e ordem que os cinco reis nos deixaram não sobreviverá por muito tempo às três rainhas, temo bem.
— Três rainhas? — Não estava compreendendo.
E Petyr também não achou por bem explicar. Em vez disso sorriu e
disse:
— Trouxe um presente à minha querida menina.
Alayne ficou tão contente como surpreendida.
— É um vestido? — Tinha ouvido dizer que havia boas costureiras em Vila Gaivota, e estava farta de usar vestidos sem graça.
— Coisa melhor. Tenta outra vez.
— Jóias?
— Não há jóias que possam esperar igualar os olhos da minha filha.
— Limões? Encontrou limões? — Prometera bolo de limão ao Piscodoce, e para fazer bolo de limão eram precisos limões.
Petyr Baelish pegou-lhe na mão e sentou-a ao seu colo.
— Fiz um contrato de casamento para ti.
— Um contrato... — A garganta lhe apertou. Não queria voltar a casar, agora não, talvez nunca mais. — Eu não... não posso casar. Pai, eu... — Alayne olhou para a porta, a fim de se assegurar de que estava fechada. — Eu sou casada — sussurrou. — Você sabei.
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Petyr pôs-lhe um dedo nos lábios para a silenciar.
— O anão casou com a filha de Ned Stark, não com a minha. Mas seja como for. Isto é só um noivado. O casamento terá de esperar até que Cersei esteja acabada e Sansa seguramente viúva. E você tem de conhecer o rapaz e conquistar a sua aprovação. A Senhora Waynwood não o obrigará a casar contra a sua vontade, é bastante firme quanto a isso.
— A Senhora Waynwood? — Alayne quase não conseguia acreditar no que ouvia. — Porque haveria ela de casar um dos filhos com... com uma...
—... bastarda? Para começar, você é a bastarda do Senhor Protetor, não se esqueça. Os Waynwood são muito antigos e muito orgulhosos, mas não tão ricos como se poderia pensar, como eu descobri quando comecei a comprar  sua dívida. Não que a Senhora Anya alguma vez vendesse um filho por ouro. Mas um protegido... o jovem Harry é só um primo, e o dote que eu ofereci a sua senhoria é ainda maior do que aquele que Lyonel Corbray acabou de receber. Tinha de ser, para ela se arriscar à fúria do Bronze Yohn. Isto porá todos os planos dele de pantanas. Está prometida a Harrold Hardyng, querida, desde que consiga conquistar o seu coração de rapaz... o que para você não deverá ser difícil.
— Harry, o Herdeiro? — Alayne tentou recordar-se do que Myranda lhe dissera na montanha acerca dele. — Ele acabou de ser armado cavaleiro. E tem uma filha bastarda duma plebeia qualquer.
— E outra a caminho, de outra menina. Harry pode ser um sedutor, não há dúvida. Suave cabelo cor de areia, profundos olhos azuis, e covinhas quando sorri. E muito galante, segundo ouvi dizer. — Provocou-a com um sorriso. — Bastarda ou não, querida, quando esta união for anunciada será a inveja de todas as donzelas bem-nascidas do Vale, e também de algumas das terras fluviais e da Campina.
— Porquê? — Alayne não estava entendendo. — Sor Harrold é... como é que ele pode ser herdeiro da Senhora Waynwood? Ela não tem filhos do seu próprio sangue?
— Três — concedeu Petyr. Alayne sentia o cheiro do vinho no hálito dele, o cravinho e a noz-moscada. — E também filhas e netos.
— Eles não têm precedência sobre Harry? Não compreendo.
— Compreenderá. Escuta. — Petyr pegou em sua mão e esfregou levemente a palma com os dedos. — Lorde Jasper Arryn, comecemos por ele. Pai de Jon Arryn. Ele gerou três crianças, dois filhos e uma filha. Jon era o mais velho, de modo que o Ninho da Águia e a senhoria passaram para ele.
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A irmã Alys casou com Sor Elys Waynwood, tio da atual Senhora Waynwood. — Fez uma careta sardónica. — Elys e Alys, não é uma delícia? O filho mais novo de Lorde Jasper, Sor Ronnel Arryn, casou com uma menina Belmore, mas só lhe tocou o sino uma ou duas vezes antes de morrer de um mal de barriga. Elbert, o filho deles, nasceu numa cama no momento em que o pobre Ronnel estava a morrer noutra ao fundo do corredor. Estás prestando atenção, querida?
— Sim. Havia Jon, Arys e Ronnel, mas Ronnel morreu.
— Ótimo. Bom, Jon Arryn casou por três vezes, mas as duas primeiras esposas não lhe deram filhos, de modo que durante longos anos o sobrinho Elbert foi seu herdeiro. Entretanto, Elys arava Alys com bastante diligência, e ela paria uma vez por ano. Deu-lhe nove filhos, oito meninas, e um precioso rapazinho, outro Jasper, após o que morreu, exausta. O jovem Jasper, sem mostrar consideração pelos heróicos esforços que tinham sido desenvolvidos para o gerar, arranjou maneira de ser escoiceado na cabeça por um cavalo aos três anos. Um surto de varíola levou-lhe duas das irmãs pouco depois, deixando seis. A mais velha casou com Sor Denys Arryn, um primo afastado dos Senhores do Ninho da Águia. Há vários ramos da Casa Arryn espalhados pelo Vale, todos tão orgulhosos como penuriosos, à exceção dos Arryn de Vila Gaivota que tiveram o raro bom senso de casar com mercadores. São ricos, mas não chegam a refinados, portanto ninguém fala deles. Sor Denys provinha de um dos ramos pobres e orgulhosos... mas também era combatente de renome em justas, bem-parecido e galante e transbordando de cortesia. E possuía aquele mágico nome Arryn, o que o tornava ideal para a mais velha das meninas Waynwood. Os seus filhos seriam Arryn, e os herdeiros seguintes do Vale, caso algo de mal acontecesse a Elbert. Bem, e calhou acontecer a Elbert o Rei Louco Aerys. Conhece essa história?
Conhecia.
— O Rei Louco assassinou-o.
— De fato o fez. E, pouco depois, Sor Denys deixou a sua esposa Waynwood grávida para partir para a guerra. Morreu durante a Batalha dos Sinos, de um excesso de galanteria e de um machado. Quando contaram a sua morte à sua senhora, ela pereceu de desgosto, e o filho recém-nascido rapidamente a seguiu. Não importava. Jon Arryn arranjara uma jovem esposa durante a guerra, uma esposa que tinha motivos para julgar fértil. Estava muito esperançado, tenho a certeza, mas ambos sabemos que tudo o que obteve de Lysa foi nati-mortos, abortos, e o pobre Pisco-doce. O que nos traz de volta às restantes filhas de Elys e Alys. A mais velha foi deixada com terríveis cicatrizes pela mesma varíola que lhe mataram as irmãs, de modo
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que se tornou septã. Outra foi seduzida por um mercenário. Sor Elys expulsou-a, e ela juntou-se às irmãs silenciosas depois de o bastardo morrer bebê. A terceira casou com o Senhor das Bossas, mas demonstrou ser estéril. A quarta ia a caminho das terras fluviais para casar com um Bracken qualquer quando Homens Queimados a levaram. Ficou a mais nova, que casou com um cavaleiro com terras, ajuramentado aos Waynwood, lhe deu um filho a que chamou Harrold, e faleceu. — Virou-lhe a mão e deu-lhe um leve beijo no pulso. — Portanto diz-me, querida: porque é Harry o Herdeiro?
Os olhos dela esbugalharam-se.
— Ele não é herdeiro da Senhora Waynwood. É herdeiro de Robert. Se Robert morrer...
Petyr arqueou uma sobrancelha.
— Quando Robert morrer. O nosso pobre e bravo Pisco-doce é um rapaz tão enfermiço que é só questão de tempo. Quando Robert morrer, Harry, o Herdeiro, torna-se Lorde Harrold, Defensor do Vale e Senhor do Ninho da Águia. Os vassalos de Jon Arryn nunca gostarão de mim, nem do nosso pateta e trémulo Robert, mas gostarão do seu Jovem Falcão... e quando se reunirem para o seu casamento, e você sair com os teus longos cabelos ruivos, vestida com um manto de donzela de branco e cinzento com um lobo gigante desenhado na parte de trás... ora, todos os cavaleiros do Vale oferecerão as suas espadas para te reconquistar o que é teu por direito de sangue. De modo que são estes os presentes que eu te dou, minha querida Sansa... Harry, o Ninho da Águia, e Winterfell. Isso merece outro beijo, não acha?
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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BRIENNE BRIENNE BRIENNE BRIENNE  
 
 
ste é um sonho ruim, pensou. Mas se ela estava sonhando, por que doía tanto?
A chuva tinha parado de cair, mas todo o mundo estava molhado. Sentia seu manto tão pesado quanto uma cota de malha. As cordas que prendiam seus pulsos estavam encharcadas, mas isso só a deixava mais apertada. Não importa o quanto Brienne tentasse, ela não poderia escapar. Ela não sabia quem a tinha a prendido, ou por quê. Ela tentou perguntar às sombras, mas elas não responderam. Talvez elas não a ouvissem. Talvez elas fossem reais. Sob camadas de lã molhada e armadura enferrujada, sua pele estava vermelha e febril. Ela se perguntava se tudo isso era apenas um sonho provocado pela febre.
Ela tinha um cavalo debaixo dela, embora não conseguisse se lembrar de ter montado. Se deitou de bruços em sua parte traseira, como um saco de aveia. Seus pulsos e tornozelos estavam amarrados. O ar estava úmido, o chão envolto em névoa. Sua cabeça batia a cada passo. Ela podia ouvir vozes, mas tudo que ela podia ver era a terra sob os cascos do cavalo. Havia coisas quebradas dentro dela. Sentia seu rosto inchado, e a face estava pegajosa com o sangue, e a cada sacudida sentia uma pontada de agonia em seu braço. Ela podia ouvir Podrick chamá-la, como se estivesse longe.
— Sor? — Ele dizia. — Sor? Minha senhora? Sor? Minha senhora? — Sua voz estava fraca e difícil de ouvir. Finalmente, houve apenas silêncio.
Ela sonhou que estava em Harrenhal, outra vez na arena dos ursos. Desta vez era Dentadas quem vinha de encontro a ela, enorme, calvo, branco como um verme, com feridas que choravam em seu rosto. Ele vinha pelado, acariciando seu membro, rangendo os dentes limados em conjunto. Brienne fugiu dele.
— Minha espada, — ela chamou. — Cumpridora de Promessas. Por favor. — Os espectadores não responderam. Renly estava lá, com Dick Nimble e Catelyn Stark. Shagwell, Pyg e Timeon também, e os cadáveres das árvores com as bochechas afundadas, línguas inchadas e órbitas vazias. Brienne gemeu de horror ao vê-los, e Dentadas agarrou o braço dela e a puxou para mais perto, e rasgou um pedaço de seu rosto. — Jaime, — ela gritou, — Jaime.
Mesmo nas profundezas do sonho a dor estava lá. Seu rosto pulsava. Seu ombro sangrava. A respiração falhava. A dor espalhava-se no braço como um relâmpago. Ela gritou por um meistre.
E
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— Nós não temos meistre, — disse a voz de uma menina. — Só tem
a mim.
Eu estou procurando uma menina, Brienne lembrou. Uma donzela nobre, com treze anos, de olhos azuis e cabelos ruivos.
— Minha senhora, — ela disse. — Senhora Sansa?
Um homem riu.
— Ela pensa que você é Sansa Stark.
V Ela não pode ir muito mais longe. Ela vai morrer.
— Um leão a menos. Eu não vou chorar.
Brienne ouviu o som de alguém orando. Ela pensou no Septão Meribald, porém não era uma de suas orações. A noite é escura e cheia de terrores, assim como os sonhos.
Eles estavam andando por um bosque sombrio, úmido, um lugar escuro, silencioso, onde os pinheiros cresciam muito juntos. O chão era macio sob os cascos de seu cavalo, e as faixas de sangue que ela deixava para trás. Ao lado dela montava Lorde Renly, Dick Crabb, e Vargo Hoat. Sangue corria da garganta de Renly. E a orelha rasgada da cabra estava cheia de pus.
— Para onde vamos? — Brienne perguntou. — Onde vocês estão me levando? — Nenhum deles iria responder. Como eles poderiam responder? Todos eles estão mortos. Isso significava que ela estava morta também?
Lorde Renly, seu doce rei sorridente, ia atrás dela. Ele estava conduzindo seu cavalo por entre as árvores. Brienne o chamou para dizer o quanto ela o amava, mas quando se virou para a carranca dele, ela percebeu que não era Renly. Renly nunca fez uma careta. Ele sempre tinha um sorriso para mim, pensou ... exceto ...
— Frio, — disse seu rei, perplexo, e uma sombra sem homem se projetou para ele, e o sangue de seu doce senhor correu pelo aço verde do gorjal e lhe banhou as mãos. Ele tinha sido um homem quente, mas o seu sangue estava frio como gelo. Isto não é real, ela disse a si mesma. Este é um outro sonho ruim, e logo eu vou acordar.
Sua montaria deu uma parada súbita. Mãos ásperas a agarraram. Ela viu raios de luz vermelha da tarde oblíqua através dos galhos de uma castanheira. Um cavalo pairava entre as folhas mortas depois das castanheiras, e os homens moviam-se por perto, conversando em voz baixa.
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Dez, doze, talvez mais. Brienne não conseguia reconhecer seus rostos. Ela estava estendida no chão, de costas contra um tronco de árvore.
— Beba isso, Minha senhora, — disse a voz da menina. Levou um copo aos lábios de Brienne. O gosto era forte e azedo. Brienne cuspiu para fora. — Água, — ela ofegou. — Por favor. Água.
— A água não vai ajudar com a dor. Se é sua vontade. Tome aqui um pouco." A menina levou o copo aos lábios Brienne novamente.
Até beber era doloroso. Vinho correu pelo queixo e pingou em seu peito. Quando se esvaziou, a menina o encheu novamentede de um odre. Brienne bebeu até não poder suportar mais.
— Não mais.
— Mais. Você tem um braço quebrado, e algumas de suas costelas estão rachadas. Duas, talvez três.
— Dentadas, — Brienne disse, lembrando de seu peso, da maneira como seu joelho tinha batido em seu peito.
— Sim. Um verdadeiro monstro.
Ela se lembrou de tudo de repente; dos relâmpagos no céu, da lama no chão, da chuva pingando suavemente contra o aço escuro do elmo de Cão de Caça, a terrível força nas mãos de Dentadas. De repente, ela não pode surportar as amarras. Ela tentou arranca-las, ficar livre das cordas, mas tudo o que fez foi ficar mais irritada. Os pulsos haviam sido amarrados com muita força. Havia sangue seco sobre o cânhamo.
Ele está morto? — Ela estremeceu. — Dentadas. Ele está morto? — Lembrou-se dos dentes rasgando a carne de seu rosto. O pensamento de que ele ainda poderia estar lá fora em algum lugar, respirando, dava a Brienne vontade de gritar.
— Ele está morto. Gendry empurrou uma ponta de lança na parte de trás do pescoço. Beba, minha senhora, ou vou derramar tudo em sua garganta. —  Ela bebeu.
— Estou procurando uma garota, — ela sussurrou, entre cada golada. Ela quase disse: a minha irmã. — Uma doce donzela de treze anos. Ela tem olhos azuis e cabelos ruivos.
— Eu não sou ela.
Não. Brienne podia ver isso. A menina era magra ao ponto de ter o olhar faminto. Usava o cabelo castanho em uma trança, e seus olhos eram
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mais velhos do que seus anos. Cabelos castanhos, olhos castanhos, liso. Willow, seis anos mais velha.
— Você é a irmã. A estalajadeira.
— Eu poderia ser. — A menina apertou os olhos. — E se eu for?
— Você tem um nome? — Brienne perguntou. Seu estômago borbulhava. Ela temia que fosse vomitar.
— Liza. Como Willow. Jeyne Liza.
— Jeyne. Desate minhas mãos. Por favor. Tenha piedade. As cordas estão fazendo escoriações em meus pulsos. Estou sangrando.
— Não é permitido. Você tem que continuar atada, até que... até que você fique diante da minha senhora. — Renly estava atrás da garota, afastando os cabelos negros de seus olhos. Não Renly. Gendry. — Minha senhora quer que você responda por seus crimes.
— Minha senhora. — O vinho fazia sua cabeça girar. Era difícil pensar. — Coração de pedra. É o que você quer dizer? — Lorde Randyll tinha falado dela em Lagoa da Donzela. — Senhora Coração de Pedra.
— Alguns a chamam assim. Alguns a chamam de outras coisas. A irmã silenciosa. Mãe Impiedosa. A Mulher Enforcadora.
A Mulher Enforcadora. Quando Brienne fechou seus olhos, viu os corpos balançando nus sob os galhos marrons, pretos com seus rostos inchados. De repente, ela sentiu muito medo.
— Podrick. Meu escudeiro. Onde está Podrick? E os outros... Sor Hyle, Septão Meribald. O cachorro. O que você fez com o cachorro?
Gendry e a menina trocaram olhares. Brienne tentou se levantar, e conseguiu levar uma joelhada antes que o mundo começasse a girar.
— Foi você que matou o cachorro, minha senhora, — ela ouviu Gendry dizer, pouco antes de a escuridão engoli-la novamente.
Então, ela estava de volta nos Sussuros, em pé entre as ruínas e de frente para Clarence Crabb. Ele era enorme e feroz, montava um auroque mais peludo do que ele. A besta pateava o chão furiosa, rasgando sulcos profundos na terra. Os dentes de Crabb eram afiados, pontiagudos. Quando Brienne foi pegar sua espada, encontrou sua bainha vazia.
— Não, — ela chorou, quando Sor Clarence cavalgou contra. Não era justo. Ela não poderia lutar sem a sua espada mágica. Sor Jaime tinha
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dado a ela. Ia falhar, assim como tinha falhado com Renly. — Minha espada. Por favor, eu tenho que encontrar a minha espada.
— A moça quer que sua espada de volta, — declarou uma voz.
— E eu quero Cersei Lannister para chupar meu pau. E daí?
— Jaime a chama de Cumpridora de Promessas. Por favor. — Mas as vozes não deram ouvidos, e Clarence Crabb caiu sobre ela e arrancou sua cabeça. Brienne desceu em espiral para uma escuridão mais profunda.
Ela sonhou que estava deitada em um barco, a cabeça em um travesseiro, no colo de alguém. Havia sombras em torno deles, homens encapuzados em cotas de malha e artigos de couro, remando em um rio nebuloso, abafando os remos para evitar produzirem barulho. Ela estava encharcada de suor, ardendo, mas de alguma forma tremendo também. O nevoeiro estava repleto de faces.
— Beleza, — sussurraram os salgueiros na margem, mas os juncos disseram”
— Monstro, monstro. Brienne estremeceu.
— Parem, — disse ela. — Alguém faça-os parar. — Na próxima vez que ela acordou, Jeyne levou as seus lábios uma colher de sopa quente. Cebola, caldo de carne, Brienne pensou. Ela bebeu tanto quanto pode, depois pegou um pedaço de cenoura e o pos na boca, mas engasgou. A tosse era uma agonia. 
— Fique tranquila, — a menina disse.
— Gendry, — ela ofegou. — Eu tenho que falar com Gendry"
— Ele voltou ao rio, minha senhora. Voltou para a forja, para proteger Willow e os pequeninos, para mantê-los seguros.
Ninguém pode mantê-los seguros. Ela começou a tossir.
— Ah, deixe-a engasgar. Poupe-nos uma corda. — Um homem das sombras empurrou a menina de lado. Ele estava usando anéis enferrujados e um cinto cravejado. Pendurada em seu quadril estava uma espada longa e um punhal. Uma capa amarela lhe cobria os ombros, encharcada e suja. Tinha emcima dos ombros uma cabeça de cachorro de aço, seus dentes à mostra em um rosnado.
— Não, — Brienne gemeu. — Não, você está morto, eu matei você.
O Cão riu.
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— Para trás. Eu é que vou matar você. Eu faria isso agora, mas minha senhora quer vê-la enforcada.
Enforcada. A palavra a deu um calafrio de medo. Ela olhou para a menina, Jeyne. Ela é muito jovem para ser tão dura.
— Pão e sal, — Brienne engasgou. — A estalagem... Septão Meribald alimentou as crianças... partiu o pão com sua irmã...
— A prerrogativade de hóspedes não é o que parecia, — disse a menina. — Ainda menos desde que minha senhora voltou do casamento. Alguns desses que balançam à beira do rio também acreditavam serem convidados.
— Foi um pequeno mal entendido, — disse Cão de Caça. — Eles queriam camas. Nós demos árvores.
— Nós ainda temos mais árvores, porém, — disse outro homem na sombra, tinha apenas um olho sob um elmo enferrujado. — Nós sempre temos mais árvores.
Quando chegou a hora de montarem novamente, eles taparam seu rosto com uma capa de couro. Não tinha buraco para os olhos. O couro abafava os sons ao seu redor. O gosto de cebolas permanecia em sua língua afiada, como lembrança de seu fracasso. Vão me enforcar. Ela pensou em Jaime, em Sansa, em seu pai em Tarth, e se alegrou de ter o capus. Ele ajudou a esconder as lágrimas em seus olhos. De vez em quando ela ouvia os bandidos falarem, mas ela não conseguia distinguir suas palavras. Depois de um tempo ela se entregou ao cansaço e ao movimento lento e constante de seu cavalo.
Desta vez, ela sonhou que estava em casa novamente. Através das altas janelas arqueadas no salão do senhor seu pai, ela podia ver o sol. Eu estou segura aqui. Eu estou segura aqui.
Ela estava vestida com um brocado de seda, e um vestido azul e vermelho decorado com sóis dourados e luas crescentes de prata. Em outra garota aquele poderia ter sido um lindo vestido, mas não sobre ela. Ela tinha doze anos, desajeitada e desconfortável, esperando para se encontrar com o jovem cavaleiro que seu pai tinha arranjado para ela se casar, um menino seis anos mais velho que ela, com a certeza de ser um campeão famoso um dia. Ela temia sua chegada. Seus seios eram muito pequenos, e as mãos e os pés muito grandes. Seu cabelo se arrupiava constantemente, e tinha uma espinha aninhada do lado do seu nariz.
— Ele vai trazer uma rosa para você, — seu pai lhe prometeu, mas uma rosa não era boa, uma rosa não poderia mantê-la segura. Era uma
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espada que ela queria. Cumpridora de Promessas. Eu tenho que encontrar a garota. Tenho que recuperar a horna de Jaime.
Finalmente as portas se abriram, e seu noivo caminhou na sala de seu pai. Ela tentou cumprimentá-lo como tinha sido instruída a fazer, só para ter sangue saindo de sua boca. Ela tinha mordido a língua mais forte do que queria. Ela cuspiu aos pés do jovem cavaleiro, e viu o desgosto em seu rosto.
— Brienne a Beleza, — disse ele em tom de zombaria. — Eu vi semeadoras mais bonitas que você. — Ele jogou a rosa na cara dela. Enquanto se afastava, os grifos em seu manto ondulado e turvo se transformaram em leões. Jaime! Ela queria chorar. Jaime, volte para mim! Mas a língua estava deitada no chão, junto da rosa, afogada em sangue. Brienne acordou de repente, ofegante.
Ela não sabia onde estava. O ar estava frio e pesado, e cheirava a terra, a vermes e a fungos. Ela estava deitada sobre um monte de peles de ovelhas, havia uma pedra acima de sua cabeça e raízes sobressaiam-se das paredes. A única luz vinha de uma vela de sebo, fumegante em uma poça de cera derretida.
Ela afastou as peles. Alguém a tinha despido de suas roupas e armadura. Ela estava vestida com um vestido de lã marrom, fino, mas bem lavado. Seu antebraço tinha sido imobilizado e ligado à roupa. Um dos lados de seu rosto estava molhado e rígido. Quando ela tocou a si mesma, encontrou uma espécie de cataplasma úmido cobrindo o rosto, o maxilar e a orelha. Dentadas...
Brienne ficou de pé. Sentia suas pernas tão fracas como a água, e a cabeça tão leve como o ar.
— Tem alguém aí?
Algo se moveu em uma das alcovas, nas sombras atrás da vela, um homem cinzento, velho e vestido com trapos. As mantas que a cobriam escorregaram para o chão. Ela se sentou e esfregou os olhos.
— Senhora Brienne? Você me deu um susto. Eu estava sonhando.
Não, ela pensou, eu é que estava.
— Que lugar é esse? É uma masmorra?
— Uma caverna. Como ratos, temos que correr de volta para os nossos buracos quando os cães farejadores vêm atrás de nós, e há mais cães a cada dia. — Ele estava vestido com os restos esfarrapados de um manto velho, rosa e branco. Seu cabelo era longo e cinza, e embaraçado, a pele solta das bochechas e do queixo estava coberta com uma palha grossa. —
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Você está com fome? Você gostaria de um copo de leite? Talvez um pouco de pão e mel?
— Eu quero as minhas roupas. Minha espada. — Sentia-se nua sem a sua cota de malha, e ela queria a Cumpridora de Promessas ao seu lado. — O caminho para fora daqui. Mostre-me o caminho para sair. — O chão da caverna era terra e pedra, áspera sob a sola dos seus pés. Mesmo agora, ela sentia-se tonta, como se estivesse flutuando. A luz bruxeleante projetava sombras estranhas. Espíritos dos mortos, pensou ela, dançando sobre mim, escondendo-se quando me viro para olhar para eles. Em todos os lugares viu buracos, fendas e rachaduras, mas não havia maneira de saber quais passagens iam para fora, e quais poderiam levá-la mais para fundo da caverna, e quais não dariam em nada. Todas eram negras como breu.
— Posso sentir sua testa, minha senhora? — A mão do carcereiro estava cheia de feridas e calos duros, mas era estranhamente delicada. — Sua febre acabou, — anunciou, numa voz floreada com o sotaque das Cidades Livres. — Muito bem. Ontém a sua carne parecia como se estivesse em fogo. Jeyne temia que pudéssemos perdê-la.
— Jeyne. A menina alta?
— Essa mesma. Embora ela não seja tão alto quanto você, minha senhora. Jeyne, a comprida, os homens a chamam. Foi ela quem cuidou do seu braço, tão bem quanto qualquer meistre. Ela fez o que pode no seu rosto, bem como, lavou as feridas com cerveja fervida para parar a mortificação. Mesmo assim... uma mordida humana é uma coisa imunda. Foi daí que a febre veio, estou certo disso. — O homem grisalho tocou seu rosto enfaixado. — Tivemos que cortar algum pedaço de carne. Temo que seu rosto não vá ficar muito bonito.
Nunca foi tão bonito.
— Vão ficar cicatrizes, você quer dizer?
— Minha senhora, aquela criatura mastigou fora metade da sua bochecha.
Brienne não pode deixar de estremecer. Todo cavaleiro tem cicatrizes de batalha, Sor Goodwin a avisara quando ela lhe pediu para que ele a ensinasse a usar uma espada.
— É isso que você quer, criança? — Porém, seu velho mestre de armas se referia a cortes de espada, ele nunca poderia ter antecipado dentes tão pontudos quanto os de Dentadas.
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— Por que arrumar meus ossos e lavar as minhas feridas se você só quer me enforcar?
— Por quê? — Ele olhou para a vela, como se já não suportasse mais olhar para ela. — Você lutou bravamente na estalagem, disseram-me. Lem não deveria ter saído da encruzilhada. Foi-lhe dito para ficar perto, escondido, e vir de imediato se visse fumaça saindo da chaminé... mas quando lhe chegou a notícia de que o Cachorro Louco das Salinas tinha sido visto trilhando um  caminho ao longo do norte do Ramo Verde, ele mordeu a isca. Tivemos o caçado por tanto tempo... Ainda assim, ele deveria ter sido mais sensato. Levou metade de um dia para perceber que os mascarados tinham usado um córrego para esconder seus rastros e ficar atrás dele, então ele perdeu mais tempo circulando em torno de uma coluna de cavaleiros de Lorde Frey. Se não fosse por você, Lem e seus homens teriam encontrado apenas cadáveres. Foi por isso que Jeyne cuidou de suas feridas. O que quer que tenha feito, você ganhou essas feridas honradamente, defendendo a melhor causa possível.
O que quer que tenha feito.
— O que é que você acha que eu fiz? — Disse. — Quem é você?
— Nós fomos homens do rei quando começamos, — o homem lhe disse: — mas os homens do rei precisam ter um rei, e não temos nenhum. Éramos irmãos também, mas agora a nossa irmandade está quebrada. Eu não sei quem somos, verdade seja dita, nem para onde vamos. Eu só sei que a estrada é escura. Os incêndios não me mostram final algum.
Eu sei onde termina. Tenho visto corpos nas árvores.
— Incêndios, — Brienne repetiu. Compreendeu tudo de uma vez. — Você é o sacerdote Myrish. O feiticeiro vermelho.
Ele olhou para suas roupas esfarrapadas, e sorriu com tristeza.
— O rosa a lembra, sim. Eu sou Thor, vim depois de Myr, sim ... um sacerdote ruim e um feiticeiro pior.
— Você monta com Dondarrion. O Senhor do Relâmpago.
— O relâmpago vai e vem. Assim também é com os homens. O Senhor do fogo Beric saiu deste mundo, eu temo. Uma sombra mais sombria nos guia em seu lugar.
— Cão de Caça?
O feiticeiro franziu os lábios.
— O Cão está morto e enterrado.
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— Eu o vi. Na floresta.
— Um sonho vindo da febre, minha senhora.
— Ele disse que iria me enforcar"
— Mesmo os sonhos podem mentir. Minha senhora, quanto tempo se passou desde que você comeu? Certamente você está faminta?
Ela estava, percebeu. Sentiu sua barriga vazia.
— Comida... alimentos seriam bem-vindos, obrigada.
— Uma refeição, então. Sente-se. Vamos conversar mais, mas primeiro uma refeição. Espere aqui. — Thoros acendeu o pavio de uma vela inclinada, e desapareceu em um buraco negro sob uma laje de pedra. Brienne se viu sozinha na pequena caverna. Por quanto tempo, porém?
Ela rondava a câmara, à procura de alguma arma. Qualquer tipo de arma teria servido; um bastão, uma clava, um punhal. Ela encontrou apenas pedras. Uma encaixava muito bem sob seu punho... mas ela lembrou-se dos Sussurros, e o que aconteceu quando Shagwell tentou lutar com uma pedra contra uma faca. Quando ela ouviu os passos do padre retornarem, ela deixou a pedra cair no chão da caverna e retomou seu assento. Thoros trouxe pão, queijo e um prato de guisado. — Eu sinto muito, — disse ele. — O último gole de leite tinha azedado, e todo mel foi embora. Alimentos estão escassos. Ainda assim, estes aqui irão enchê-la.
O guisado estava frio e gorduroso, o pão duro, o queijo mais duro ainda. Brienne nunca tinha comido nada tão bom.
— Os meus companheiros estão aqui? — Ela perguntou ao padre, enquanto devorava a última colherada do guisado.
— O septão foi posto em liberdade para seguir seu caminho. Não havia mal nenhum nele. Os outros estão aqui, aguardando julgamento.
— Julgamento? — Ela franziu o cenho. — Podrick Payne é apenas um menino.
— Ele diz que é um escudeiro.
— Você sabe como os meninos se gabão.
— O escudeiro do duende. Ele lutou em batalhas, ele mesmo admitiu. Ele ia morrer, para dizer isso.
— Um menino, — disse ela novamente. — Tenha piedade.
— Minha senhora, — Thoros disse: — Eu não tenho dúvida de que
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bondade, misericórdia e perdão ainda podem ser encontrados em algum lugar nos Sete Reinos, mas não espere por eles aqui. Esta é uma caverna, e não um templo. Quando os homens vivem como ratos no escuro, debaixo da terra, a piedade se acaba tão rápido quanto o leito e o mel.
— E a justiça? Isso pode ser encontrado em cavernas?
— Justiça. — Thoros deu um sorriso pálido. — Lembro-me da justiça. Tinha um sabor agradável. Justiça era o que estávamos prestes a fazer quando Beric nos liderava, ou então nós dizíamos isso a nós mesmos. Éramos homens do rei, cavaleiros e heróis... mas alguns cavaleiros são escuros e cheios de terror, minha senhora. Guerra faz de todos nós monstros.
— Você está dizendo que são monstros?
— Eu estou dizendo que somos humanos. Você não é a única com feridas, Senhora Brienne. Alguns dos meus irmãos eram homens bons quando isso começou. Alguns eram... menos bons, digamos assim? Embora haja quem diga que não importa como um homem começa, mas apenas como ele termina. Suponho que seja assim também com as mulheres. — O sacerdote se levantou. — Nosso tempo juntos está acabando, acredito. Eu ouço os meus irmãos chegando. Nossa senhora os envia para te buscar.
— Brienne ouviu os passos e viu uma lanterna piscando na passagem.
— Você me disse que ela tinha ido para Feirajusta.
— E assim ela foi. Mas voltou, enquanto nós estávamos dormindo. Ela nunca dorme sozinha.
Eu não vou ter medo, ela disse a si mesma, mas era tarde demais para isso. Eu não vou deixá-los verem o meu medo, ela prometeu a si mesma no lugar. Havia quatro deles, homens duros com rostos abatidos, vestindo cota de malha e roupas de couro. Ela reconheceu um deles, o homem com um olho, que ela vira nos sonhos.
O maior dos quatro usava um manto amarelo manchado e rasgado.
— Apreciou a comida? — Perguntou. — Eu espero que sim. Provavelmente foi a última. — Ele tinha cabelos castanhos, era barbudo, musculoso, com um nariz quebrado mal cicatrizado. 
Eu sei quem é este homem, Brienne pensou.
— Você é o Cão de Caça.
Ele sorriu. Seus dentes eram terríveis; tortos, e com listras marrons de podridão.
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— Acho que eu sou. Vendo como minha senhora matou o último. — Virou a cabeça e cuspiu.
Lembrou-se do piscar dos relâmpagos, da lama sob dos seus pés.
— Foi Rorge quem matei. Ele tirou o elmo do túmulo de Clegane, e vocês roubaram seu cadáver.
— Eu não vi nenhuma objeção.
Thoros deixou escapar um suspiro de desânimo.
— Isso é verdade? Tem o elmo de um homem morto? Caímos tanto
assim?
O homem grande fez uma careta para ele.
— O aço é bom.
— Não há nada de bom nesse elmo, nem nos homens que o usaram, — disse o feiticeiro vermelho. — Sandor Clegane era um homem atormentado, e Rorge uma besta em pele humana.
— Eu não sou eles.
— Então, porque mostra ao mundo essa face? Selvagem, rosnando, torcida... é assim que você quer ser, Lem?
— A visão que fará meus adversários terem medo.
— A visão que me faz ter medo.
— Feche os olhos, então. — O homem da capa amarela fez um gesto afiado. — Traga a prostituta.
Brienne não resistiu. Havia quatro deles, e ela estava fraca e ferida, nua sob a pele de lã. Ela teve que dobrar o pescoço para não bater a cabeça enquanto marchavam através da passagem serpenteante. O caminho ficou mais a pique, transformando-se duas vezes antes de emergir em uma caverna muito maior, cheia de bandidos.
A fogueira tinha sido feita no centro, e o ar era azul de fumaça. Homens agruparam-se perto das chamas, aquecendo-se contra o frio da caverna. Outros ficaram ao longo das paredes ou sentados de pernas cruzadas em paletes de palha. Havia mulheres também, e até mesmo algumas crianças espiando por trás das saias de suas mães. O único rosto que Brienne conhecia era o de Heddle Jeyne, a Comprida.
Uma mesa de cavaletes havia sido criada na caverna, em uma fenda na rocha. Atrás dela estava uma mulher toda de cinza, camuflada e
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encapuzada. Em suas mãos estava uma coroa, um colar de bronze cercado por espadas de ferro. Ela foi estudá-la, seus dedos acariciando as lâminas como se para testar a sua nitidez. Seus olhos brilhavam sob o seu capuz.
Cinza é a cor das irmãs silenciosas, as servas do Estranho. Brienne sentiu um arrepio subir sua espinha. Coração de Pedra.
— Minha Senhora, — disse o homem grande. — Aqui está ela.
— Sim, — acrescentou o caolho. — A puta do Regicida.
Ela se encolheu.
— Por que vocês me chamam assim?
— Se eu tivesse um veado de prata para cada vez que você dissesse seu nome, eu seria tão rico quanto seus amigos Lannisters.
— Isso foi só... você não entende...
— Não entendemos? — O homem grande riu. — Eu acho que entendemos. Há um cheiro de leão sobre você, senhora.
— Não é isso.
Outro dos bandidos se aproximou, um homem mais jovem vestindo uma jaqueta de pele de carneiro gordurosa. Em sua mão estava Cumpridora de Promessas.
— Isso diz que é. — Sua voz era fosca com um sotaque nortenho. Ele deslizou a espada da bainha e colocou-a na frente da Senhora Coração de Pedra. À luz da fogueira as ondulações vermelhas e pretas da lâmina quase pareciam se mover, mas a mulher em cinza só tinha olhos para o pomo: uma cabeça de leão de ouro, com olhos de rubi que brilhavam como duas estrelas vermelhas.
— Não é isso também. — Thoros de Myr sacou um pergaminho de sua manga, e colocou-o ao lado da espada. — Tem o selo do menino rei e diz que o portador é seu enviado.
A Senhora Coração de Pedra deixou a espada de lado para ler a
carta.
— A espada me foi dada com um bom propósito, — disse Brienne. — Sor Jaime fez um juramento para Catelyn Stark...
—... antes que seus amigos cortassem a garganta dela, deve ter sido, — disse o grande homem da capa amarela. — Nós todos sabemos sobre o Regicida e seus juramentos.
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Isso não é bom, pensou Brienne. Nenhuma palavra minha vai influenciá-los. Ela seguiu em frente apesar disso.
— Ele prometeu a Senhora Catelyn suas filhas, mas quando chegamos a Porto Real, elas tinham ido embora. Jaime me mandou para procurar a Senhora Sansa...
—...e se você tivesse encontrado a garota, — perguntou o jovem nortenho, — o que você faria com ela?
— A protegeria. A levaria para algum lugar seguro.
O grande homem riu.
— Onde fica isso? Nas masmorras de Cersei?
— Não.
— Negue tudo o que quiser. Essa espada diz que você é uma mentirosa. Devemos acreditar que os Lannisters estão entregando espadas de ouro e rubi aos seus inimigos? Que o Regicida designou a você a tarefa de esconder a menina de sua própria irmã gêmea? Acha que o papel com o selo do menino rei estava apenas para o caso de você precisava limpar a bunda, não? E depois os seus companheiros... — O grande homem se virou e acenou, as fileiras dos bandidos se separaram, e dois cativos apareceram. — O menino foi escudeiro do próprio Duende, minha senhora, — disse ele a Senhora coração de Pedra. — E o outro é um dos bastardos de um cavaleiro da casa do bastardo de Randyll Tarly.
Hyle Hunt tinha sido espancado de tal maneira que seu rosto estava inchado e quase irreconhecível. Ele tropeçou uma vez quando foi empurrado, e quase caiu. Podrick o pegou pelo braço.
— Sor, — o menino disse miseravelmente, quando viu Brienne. — Minha senhora, eu quero dizer. Sinto muito.
— Você não tem do que sentir pena. — Brienne voltou-se para a Senhora Coração de Pedra. — Qualquer que seja a traição que você acha que eu possa ter cometido, minha senhora, Podrick e Sor Hyle não eram parte dela.
— Eles são leões, — disse o homem de um olho só. — Isso é o suficiente. Eu digo que eles devem ser enforcados. Tarly já enforcou alguns dos nossos, está na hora de lhe responder.
Ser Hyle deu a Brienne um leve sorriso.
— Minha senhora, — ele disse, — você deveria aceitado minha oferta de casamento. Agora eu temo que você está condenada a morrer uma
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donzela, e eu um homem pobre.
— Deixe-os ir, — disse Brienne.
A mulher de cinza não deu nenhuma resposta. Ela estudou a espada, o pergaminho, a coroa de bronze e de ferro. Finalmente agarrou seu próprio pescoço, como se estivesse para estrangular a si mesma. Em vez disso, ela falou... Sua voz era hesitante, quebrada, torturante. O som parecia vir de sua garganta, parte grasnido, parte chiado, parte chocalho da morte. A língua dos condenados, pensou Brienne.
— Eu não entendo. O que ela disse?
— Ela perguntou o nome da lâmina de vocês, — disse o jovem nortenho no gibão de pele de carneiro.
— Cumpridora de Promessas, — respondeu Brienne.
A mulher de cinza assobiou por entre os dedos. Seus olhos eram dois poços vermelhos que queimavam nas sombras. Ela falou novamente.
 — Ela disse que não. Disse que se chama Quebradora de Promessas. Que ela foi feita para a traição e para o assassinato. Ela disse que se chama Falsa Amiga. Como você.
— A quem tenho sido falsa?
— A ela, — disse o nortenho. — Será que minha senhora se esqueceu que uma vez jurou servi-la?
Houve apenas uma mulher que a donzela de Tarth já jurara servir.
— Não pode ser, — disse ela. — Ela está morta.
— A morte é como um convidado certo, — murmurou Jeyne Liza, a Comprida. — Eles não significam muito, não como antes.
A Senhora coração de Pedra abaixou seu capuz e desenrolou o cachecol de lã cinza de seu rosto. Seu cabelo estava seco e quebradiço, branco como osso. Sua testa estava manchada de verde e cinza, manchada com as flores marrons da decomposição. A carne de seu rosto se agarravva em tiras irregulares, de seus olhos até a mandíbula. Alguns dos rasgos formaram uma crosta de sangue seco, e outros deixavam o crânio à vista.
Seu rosto, Brienne pensou. Seu rosto era tão forte e bonito, sua pele tão macia e suave.
— Senhora Catelyn? — Lágrimas encheram os olhos. — Eles disseram que... eles disseram que você estava morta.
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— Ela está, — disse Thoros de Myr. — O Frey cortou sua garganta de orelha a orelha. Quando a encontramos à beira do rio, ela esteva morta fazia três dias. Harwin me pediu para lhe dar o beijo da vida, mas tinha se passado muito tempo. Eu não faria isso, então Lorde Beric colocou seus lábios nos dela em vez disso, e a chama da vida passou dele para ela. E... ela se levantou. Que o Senhor da Luz nos proteja. Ela se levantou.
Estou sonhando ainda? Brienne se perguntou. É este outro pesadelo nascido dos dentes de Dentadas?
— Eu nunca a traí. Diga-lhe isso. Eu juro pelos Sete. Eu juro pela minha espada.
A coisa que havia sido Catelyn Stark tomou conta de sua garganta novamente, apertando os dedos no medonho corte ao longo de seu pescoço, e sufocaram os sons ainda mais.
— As palavras são levadas pelo vento, diz ela, — disse o notenho a Brienne. — Ela diz que você deve provar sua fidelidade.
— Como? — Perguntou Brienne.
— Com sua espada. Cumpridora de Promessas, você não a chama assim? Em seguida, mantenha o seu juramento a ela, diz minha senhora.
— O que ela quer de mim?
— Ela quer o seu filho com vida, ou os homens que o mataram mortos, — disse o homem grande. — Ela os quer para alimentar os corvos, como fizeram no casamento Vermelho. Freys e Boltons, sim. Nós vamos dar a ela aqueles que ela quer. Tudo o que ela pede de você é Jaime Lannister.
Jaime. O nome foi uma faca, torcendo em sua barriga.
— Senhora Catelyn, Eu... você não entende, Jaime... ele me salvou de ser estuprada quando um Saltimbanco Sangrento nos atacou, e mais tarde ele voltou para mim, ele pulou arena dos ursos com as mãos vazias... Juro para você, ele não é o homem que ele era. Ele me enviou depois para manter Sansa segura, ele não poderia ter tido um papel no Casamento Vermelho.
Os dedos da Senhora Catelyn escavavam profundamente em sua garganta, e as palavras vieram engasgadas e quebradas, um córrego tão frio como gelo. O homem do norte disse:
— Ela disse que você deve escolher. Pegue a espada e mate o Regicida, ou morra enforcada como traidora. A espada ou a corda, diz ela. Escolha, diz ela. Escolha.
Brienne se lebrou de seu sonho, quanto esperava no salão de seu pai
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o menino com que ia se casar. No sonho, ela tinha mordido a língua. Minha boca estava cheia de sangue, ela pensou. Respirou esfarrapada e disse:
— Eu não vou fazer essa escolha.
Houve um longo silêncio. Então a Senhora Coração de Pedra falou novamente. Desta vez Brienne entendeu suas palavras. Havia apenas duas:
— Enforque eles, — ela resmungou.
— Ao seu comando, minha senhora, — disse o homem grande.
Eles amarraram os pulsos Brienne novamente com corda e levaram-a pela caverna, seguindo um caminho pedregoso que ia para a superfície. Surpreendeu-se com a manhã quando chegaram do lado de fora. Feixes de luz pálida do amanhecer se inclinavam através das árvores. Tantas árvores para escolher, pensou ela. Eles não precisarão nos levar longe.
Foi assim mesmo. Debaixo de um salgueiro torto, os bandidos laçaram uma corda em volta do pescoço, sacudiram-a firmemente, e jogaram a outra ponta da corda sobre um galho. Hyle Hunt e Podrick Payne foram dados a olmos. Ser Hyle estava gritando que iria matar Jaime Lannister, mas Cão de Caça o calou com uma bofetada. Ele tinha posto o elmo de novo.
— Se vocês têm pecados a confessar aos seus deuses, este seria o momento de dizer.
— Podrick nunca fez mal a você. Meu pai vai resgatá-lo. Tarth é chamada a ilha de safira. Envie Podrick com meus ossos ao Entardeecer, e você terá safiras, prata, o que você quiser.
— Quero minha esposa e filha de volta, — disse o Cão de Caça. — Seu pai pode me dar isso? Se não, ele vai ficar arruinado. O menino vai apodrecer ao seu lado. Lobos vão roer seus ossos.
—  Você vai enforcá-la de uma vez, Lem? — Perguntou o homem de um olho só.  — Ou você pretende faze-la falar até a morte?
O Cão arrebatou o fim da corda do homem que a segurava.
— Vamos ver se ela pode dançar, — disse ele, e deu um puxão.
Brienne sentiu o cânhamo se contraindo, cavando em sua pele, puxando o queixo para cima. Sor Hyle os xingou com eloqüência, mas não o menino. Podrick não levantou os olhos, nem mesmo quando seus pés estavam se erguendo do chão. Se este é outro sonho, é hora de despertar. Se isto é real, é hora de morrer. Tudo o que ela podia ver era Podrick, a corda em seu pescoço fino, com as pernas a se mexerem. Sua boca se abriu. Pod estava esperneando, sufocando, morrendo. Brienne sugou o ar
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desesperadamente, até que a corda a estrangulou. Nunca sentira uma dor tão intensa.
Ela gritou uma palavra.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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CERSEI CERSEI CERSEI CERSEI  
 
 
Septã Moelle era uma bruxa de cabelos brancos com o rosto tão afiado como um machado e com os lábios franzidos perpetuamente em um gesto de desaprovação.
 Certeza de que ainda é uma donzela, pensou Cersei.  Ainda que, a essas alturas, tenha a virgindade mais rígida e resistente que o couro endurecido.
 As escoltavam seis cavaleiros do Pássaro Supremo, com a espada arco-íris de sua ordem renascida gravada nos escudos de lágrima.
 — Septã, diga a Sua Altíssima Santidade que isto é um ultraje. Não toleraremos tamanha ousadia. — Cersei estava sentada ao pé do Trono de Ferro, vestida de sedas verdes e renda dourada. As esmeraldas brilhavam em seus dedos e em sua cabeleira dourada. Os olhos da corte e de toda a cidade estavam cravados nela, e queria que vissem a filha de Lorde Tywin. Quando terminasse aquela farsa de saltimbancos, todos saberiam que só tinham uma rainha verdadeira. Mas para isso teremos que bailar sem que se vejam as cordas. — Lady Margaery é a esposa de meu filho, sua abnegada companheira e amiga. Sua Altíssima Santidade não tem motivos para tocar em um fio de cabelo de sua pessoa, nem para confinar a ela e a suas primas, que tanto queremos. Exijo que as libere imediatamente.
A expressão severa da septã Moelle não mudou.
— Transmitirei a Sua Altíssima Santidade as palavras de Vossa Graça, mas me dói ter que dizer que a jovem rainha e suas damas não ficarão em liberdade, a menos que se prove a sua inocência.
— Inocência? Só é necessário olhar para seus rostos, tão doces e jovens, para ver como são inocentes.
— Com frequência, um rosto doce oculta um coração pecador.
— De que ofensa se acusa essas jovens donzelas? — perguntou Lorde Merryweather, que estava sentado à mesa do conselho. — E quem às acusa?
— Megga e Elinor Tyrell estão sendo acusadas de despudor, fornicação e conspiração para cometer traição. — Respondeu a septã. — Alla Tyrell é acusada de presenciar sua desonra e ajuda-las a oculta-la. A rainha Margaery está sendo acusada do mesmo, assim como de adultério e alta traição.
A
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Cersei levou uma mão ao peito.
— Diga-me quem dissemina semelhantes calúnias sobre a minha nora! Não acredito em nenhuma palavra disso. Meu querido filho ama a Senhora Margaery com todo o seu coração; ela jamais teria a crueldade de traí-lo.
— O acusador é um cavaleiro de sua própria casa. Sor Osney Kettleback confessou sua relação carnal com a rainha diante do Alto Septão e diante do altar do Pai.
Na mesa do conselho, Harys Swyft deixou escapar uma exclamação, e o Grande Meistre Pycelle arregalou os olhos. Um murmúrio encheu o ar, como se houvessem soltado milhares de vespas no Salão do Trono. Várias damas nos corredores começaram a se retirar, seguidas por um punhado de senhores menores e cavaleiros situados ao fundo do aposento. Os mantos dourados os deixaram sair, mas a rainha havia dado instruções a Sor Osfryd para que prestasse atenção a todos os fugitivos.
De repente, a rosa Tyrell já não cheira mais tão bem.
— Sor Osney é um jovem luxurioso, não ignoro isso. — Replicou a rainha. —Mas também é um cavaleiro fiel. Se disse que participou desta... Não, não pode ser. Margaery é uma donzela!
— Não. Eu mesma a examinei por ordem de sua Altíssima Santidade. Sua virgindade não está intacta. As septãs Aglantine e Melicent confirmarão isso a vocês, assim como a própria septã da rainha Margaery, Nysterica, que se encontra confinada em um cela de penitência por tomar parte na desonra da rainha. Também examinamos as senhoras Megga e Elinor. Nenhuma das duas estava intacta.
As vespas zumbiam tanto que a rainha quase não podia pensar.
Espero que a pequena rainha e suas primas tenham disfrutado de suas cavalgadas.
Lorde Merryweather deu um soco na mesa.
— A Senhora Margaery prestou juramento solene diante de Sua Alteza, a Rainha, e de seu defunto pai, jurou que era donzela. Muitos foram testemunhas. Lorde Tyrell também testemunhou sobre sua inocência, assim como a Senhora Olenna, cuja reputação é intocável. Quer que acreditemos que todas essas nobres pessoas mentiram para nós?
— Talvez também estivessem enganadas, meu senhor. — Eespondeu a Septã Moelle. — Não poderia dizer nada sobre isso. Só posso dar a certeza do que descobri eu mesma, quando examinei a rainha.
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A imagem daquela velha amarga metendo os dedos enrugados na pequena boceta rosada de Margaery era tão cômica que Cersei esteve a ponto de começar a rir.
— Insistimos que Sua Altíssima Santidade permita que nossos meistres examinem minha nora, para determinar se há algum rastro de verdade nestas injúrias. Grande Meistre Pycelle, acompanhe a septã Moelle ao septo de Baelor, o Abençoado e volte para nos trazer à verdade sobre a virgindade de Margaery.
Pycelle havia adquirido uma cor parecida com leite coalhado.
O velho imbecil não se cala nunca nas reuniões do conselho, e agora que necessito que digo quatro palavras se torna mudo, pensou a rainha.
— Não é necessário que eu examine as suas... partes íntimas. — Disse enfim o ancião, com a voz trêmula. — Me dói ter que dizer isso, mas... a rainha Margaery não é donzela. Tem me pedido que lhe prepare o chá da lua, e não uma vez, mas muitas.
O rugido que seguiu as suas palavras foi maior do que Cersei Lannister havia se atrevido a esperar.
Nem o arauto real que golpeava o solo com o bastão conseguiu calálos. A rainha se deixou banhar pelo som uns instantes, saboreando as palavras que marcavam a caída em desgraça da pequena rainha. Quando calculou que já havia durado o suficiente se levantou e, com rosto pétreo, ordenou aos mantos dourados que saíssem da sala.
É o fim de Margaery Tyrell, pensou cheia de júbilo.
Seus cavaleiros brancos a rodearam quando saiu pela Porta do Rei, situada atrás do Trono de Ferro: Boros Blount, Meryn Trant e Osmund Kettleback, os últimos homens da Guarda Real que continuavam na cidade.
O Rapaz Lua estava junto à porta, com a matraca em uma mão e dois olhos grandes redondos cheios de confusão.
É um bobo, mas um bobo honrado. Maegy, a Rã também deveria ter se vestido como ele, visto que sabia do futuro. Cersei rezava para que a velha vigarista estivesse padecendo no inferno. A jovem rainha cuja chegada havia predito estava acabada; se essa profecia pudesse ser errônea, as demais também poderiam. Nada de mortalhas douradas, nada de valonqar. Enfim estou livre de sua maldade.
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Os que restaram de seu conselho privado a seguiram. Harys Swyft parecia estupefato. Tropeçou na porta e haveria caído se Aurane Waters não o tivesse segurado pelo braço. Até Oston Merryweather parecia nervoso.
— O povo tem carinho pela pequena rainha. — Disse. — Não vão reagir bem. Temo pelo que possa acontecer, Vossa Graça.
— Lorde Merryweather tem razão. — Advertiu Lord Waters. — Se Vossa Graça quiser, botarei o resto dos navios no mar. Quando os verem na Água Negra, com o estandarte do rei Tommen nos mastros, todos recordarão quem governa a cidade, e quem os protegerá se os rebeldes organizarem outra revolta.
Não lhe fez falta acrescentar que enquanto navegassem pela Água Negra, seus navios impediriam que Mace Tyrell chegasse com seu exército pelo rio, assim como Tyrion havia detido Stannis há algum tempo atrás. Naquela região de Westeros, Jardim de Cima não contava com potência naval. Dependiam da frota dos Redwyne, que naquele momento regressavam à Árvore.
— Uma medida muito prudente. — Anunciou a rainha. — Até que essa tormenta passe, quero todos os barcos tripulados e na água.
Sor Harys Swyft estava tão pálido e suado que parecia a ponto de desmaiar.
— Quando Lord Tyrell receber a notícia, sua ira não conhecerá limites. Sangue vai correr pelas ruas...
 O cavaleiro da galinha, pensou Cersei. Seu brasão deveria ser um verme, sor; a galinha é muito valiosa para você. Se Mace Tyrell nem sequer se atreveu a atacar Ponta Tempestade, como pode acreditar que ousará enfrentar os deuses?
— Não deverá correr sangue; eu me encarregarei disso. — Disse quando terminou de tagarelar. — Irei em pessoa ao Septo de Baelor para falar com a rainha Margaery e com o Alto Septão. Sei que Tommen gosta dos dois, e desejará que eu os ajude a fazer as pazes.
— Paz? — Sor Harys secou o suor de sua testa com uma manga de veludo. — Se é possível que haja paz... É muito corajoso de sua parte.
— Nos fará falta algum tipo de julgamento. — Continuou a rainha. — Para refutar essas calúnias e mentiras, e demonstrar ao mundo que nossa querida Margaery é tão inocente como nós todos sabemos.
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— Sim. — Assentiu Merryweather — Mas pode ser que o Alto Septão queira julgar ele mesmo a rainha, como a Fé costumava fazer antigamente.
Assim espero, pensou Cersei. Um tribunal assim não se mostraria magnânimo com as rainhas traidoras que abriam as pernas para os cantores e profanavam os sagrados ritos da Donzela para ocultar sua desonra.
— O importante é averiguar a verdade; estou segura de que todos estamos de acordo. — Disse. — Desculpem-me agora, meus senhores. Tenho que ir ver o rei. Não deveria estar só em um momento como esse.
Quando voltou para perto dele, Tommen estava brincando com os gatos. Tinha atado uma ratazana morta a uma corda, numa velha vara de pescar. Os gatinhos ficavam encantados em persegui-la, e o menino disfrutava o momento sacudindo a animal morto pelo chão, enquanto os gatos corriam atrás dele. Ele se surpreendeu quando Cersei o envolveu em um abraço e lhe deu um beijo na bochecha.
— O que está acontecendo mãe? Porque está chorando?
Porque você está a salvo, queria dizer. Porque nunca te acontecerá nada de mal.
— Está errado. O leão nunca chora. — Ela teria tempo mais tarde para lhe falar sobre Margaery e suas primas. — Trago umas ordens que você deve firmar.
Para não o entristecer, a rainha havia deixado em branco os espaços para nomes nas ordens de detenção. Tommen às firmou tal como estavam e, como sempre, estampou o selo contra o lacre quente com toda a alegria. Depois, Cersei o mandou sair com Sor Jacelyn Swyft.
 Sor Osfryd Kettleback chegou enquanto a rainha estava secando a tinta. A rainha havia escrito os nomes: Sor Tallad Tallo, Jalabhar Xho, Hamish, o harpista, Hugh Clifon, Mark Mullendore, Bayard Norcross, Lambert Turnberry, Horas Redwyne, Hobber Redwyne e um certo tipo desprezível, um tal Wat que se fazia chamar Cantor Azul.
— São muitos. — Sor Osfryd examinou as ordens, contemplando as palavras com tanta desconfiança como se fossem baratas que se arrastavam pelo pergaminho; nenhum Kettleback sabia ler.
— Dez. E temos seiscentos mantos dourados; mais que suficientes para deter dez, acredito eu. Os mais espertos terão fugido, se é que o rumor chegou a tempo. Não tem importância: sua ausência fará com que pareçam muito mais culpados. Sor Tallad é um idiota; pode ser que tente alguma
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resistência. Assegure-se de que ele não morra antes de confessar, e não faça nenhum dano aos demais. Talvez alguns sejam inocentes.
Era importante que se soubesse que a acusação contra os gêmeos Redwyne era falsa. Aquilo demonstraria que o julgamento dos demais era justo.
— Teremos detido todos antes que do por do sol, Alteza. —Sor Osfryd titubeou. — Ah, e uma multidão está se reunindo nas portas do Septo de Baelor.
— Que tipo de multidão? — Desconfiava de tudo aquilo fosse inesperado. Recordou o que havia dito Lord Waters sobre possíveis revoltas. Eu não havia pensado em como o povo reagiria. Margaery era a menina dos seus olhos. — São muitos?
— Mais ou menos uma centena. Estão gritando ao Alto Septão, pedindo para que solte a pequena rainha. Se quiser, podemos dispersá-los.
— Não. Podem gritar até que fiquem roucos; não conseguirão que o Alto Septão mude de ideia. Ele só escuta os deuses. — Havia algo de irônico no fato de Sua Altíssima Santidade ter uma multidão irada diante de seus portões, já que essa mesma multidão havia lhe proporcionado a coroa de cristal. Que não tardou em vender. —Agora a Fé conta com os seus próprios cavaleiros. Que eles defendam o Septo. Ah, e feche as portas da cidade. Enquanto não acabarmos esse assunto, não quero que ninguém entre ou saia de Porto Real sem a minha autorização.
— Como ordena, Vossa Graça. — Sor Osfryd fez uma reverência e saiu em busca de alguém que lesse as ordens para ele.
Antes do pôr-do-sol, todos os acusados de traição já estavam sob sua custódia. Hamish, o Harpista, caiu quando o pegaram, e Sor Tallad feriu três mantos dourados antes que os demais o dominassem. Cersei ordenou que alojassem os gêmeos Redwyne em habitações cômodas na torre. Os demais iriam para as masmorras.
— Hamish tem problemas para respirar. — Informou Qyburn quando foi vê-la naquela noite. — Pede para que um meistre o veja.
— Terá um meistre assim que confesse. — Meditou por um instante. — É demasiado velho para ser um dos amantes, mas com certeza cantou e tocou para Margaery enquanto ela se divertia com outros homens. Necessitamos de detalhes.
— O ajudarei a recordar, Vossa Graça.
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No dia seguinte, A Senhora Merryweather ajudou Cersei a vestir-se para ver a pequena rainha.
— Nada muito opulento ou vistoso. — Lhe disse. — Algo apropriado, devoto e sem graça, adequado para as vistas do Alto Septão. Com certeza ele me fará rezar com ele.
Por fim, optou por um vestido de lã suave que a cobria até os tornozelos, sem mais adorno que umas poucas rendas bordadas com fio de ouro no busto e nas mangas, para aliviar a austeridade da corte. E o melhor era que o marrom esconderia a sujeira, caso tivesse que se ajoelhar.
— Enquanto consolo a minha nora, vá falar com as três primas. — Disse a Taena. — Se for possível, ganhe a confiança de Alla, mas cuidado com o que vá dizer. Pode ser que os deuses não sejam os únicos que estejam escutando.
Jaime sempre lhe disse que o pior de uma batalha era o momento prévio, enquanto se esperava o começo da carnificina. Ao sair, Cersei percebeu que o céu estava cinzento e nublado. Não podia se arriscar a sair debaixo de uma chuva; chegaria ensopada e pingando ao Septo de Baelor. Teria que ir na liteira. Escolheu como escolta dez guardas da Casa Lannister e Boros Blount.
— Pode ser que o povo de Margaery não tenha suficiente senso para diferenciar um Kettleback do outro. — Disse a Sor Osmund. — E eu não quero que você seja obrigado a ferir alguém. É melhor que durante algum tempo, não se veja muito do senhor por aí.
Enquanto cruzavam Porto Real, Taena sentiu uma dúvida repentina.
— Este julgamento... — começou em voz baixa. — O que acontecerá se Margaery exigir que sua culpa ou inocência se determinem por combate?
Um sorriso dançou nos lábios de Cersei.
— Em sua qualidade de rainha, somente um cavaleiro da Guarda Real poderá defender sua honra. Até os meninos de Westeros sabem como o príncipe Aemon, o Cavaleiro de Dragão, defendeu sua irmã, a rainha Naerys, contra as acusações de Sor Morghil. Mas Sor Loras está muito ferido, assim algum de seus Irmãos Juramentados terá que ocupar o posto do príncipe Aemon. — Encolheu os ombros. — Quem poderia se encarregar disso? Sor Aerys e Sor Balon estão muito longe, em Dorne; Sor Jaime marchou até Correrrio, e Sor Osmund é irmão do homem que a acusa, então só lhe restam... Oh, céus.
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— Boros Blount e Meryn Trant. — A Senhora Taena começou a rir.
— Sim, e Sor Meryn não se encontra muito bem ultimamente. Lembre-me de dizer isso a ele quando voltarmos ao castelo.
— Claro querida. — Taena lhe tomou a mão e a beijou. — Espero não te ofender jamais. Quando está zangada é temível.
— Qualquer mãe faria o mesmo para proteger os seus filhos. — Replicou Cersei. — E quando irá trazer o seu para a corte? Se chama Russell, não é verdade? Poderia treinar junto com Tommen.
— Com certeza ele ficaria encantado, mas agora tudo é tão inseguro... Penso que é melhor esperar que o perigo passe.
— Não deve demorar. —Prometeu Cersei. — Envie uma mensagem a Granmesa e diga a Russell que pegue seu melhor casaco e sua espada de madeira. Um novo amigo será exatamente o que Tommen precisará para esquecer sua perda, quando rolar a cabecinha de Margaery.
Desceram da liteira diante da estátua de Baelor, o Abençoado. A rainha se alegrou ao ver que haviam limpado os ossos e a sujeira. O que Sor Osfryd havia dito era verdade: aquela multidão não era tão numerosa nem tão rebelde como a dos mendigos. Estava reunida em pequenos grupos, contemplando com gesto débil a portas do Grande Septo, onde havia uma fileira de septões noviços com lanças nas mãos.
Nada de aço, percebeu Cersei.
Era uma boa ideia, ou uma enorme estupidez; ela não estaria segura.
Ninguém fez algum movimento para detê-la. Tanto o povo como os noviços se afastaram para abrir caminho. Do outro lado das portas, três cavaleiros vestidos com as túnicas de raios de cores dos Filhos do Guerreiro às receberam na Sala das Lâmpadas.
— Venho ver a minha nora. —Disse Cersei.
— Sua Altíssima Santidade está esperando-os. Sou Sor Theodan, o Fiel, antigamente Sor Theodan Wells. Acompanhe-me, Vossa Graça, por favor.
 O Mendigo Supremo estava de joelhos, como sempre. Naquela ocasião estava rezando perante o altar do Pai. Em lugar de interromper as suas orações pela chegada da rainha, a fez aguardar impacientemente até que terminou. Então se levantou e lhe fez uma reverência.
— É um dia amargo, Vossa Graça.
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— Muito. Temos sua permissão para falar com Margaery e suas primas?
 Optou por uns modos humildes e submissos; com aquele homem eram os que melhor resultado lhe daria.
— Se é o que deseja... Quando terminar, volte a mim, minha filha. Temos que rezar juntos.
A pequena rainha estava confinada em uma das esbeltas torres do Grande Septo. Sua cela media doze palmos de largura por seis de comprimento, e não continha mais que um colchão recheado de palha, um oratório para rezar, uma jarra de água, um exemplar de A Estrela de Sete Pontas e uma vela para lê-lo. A única janela era pouco mais larga que uma pia.
Quando Cersei chegou, Margaery estava descalça e trêmula, vestida com a túnica de lã de uma irmã noviça. Tinha os cabelos embaraçados e os pés sujos.
— Levaram as minhas roupas. — Disse a pequena rainha quando ficaram a sós. — Estava vestindo uma túnica marfim com pérolas brancas nas rendas, mas as septãs colocaram as mãos em mim e me despiram. O mesmo fizeram com as minhas primas. Megga deu um empurrão em uma septã, que caiu entre as velas e teve o hábito incendiado. Mas por quem eu mais temo é Alla. Ficou branca como leite; tinha tanto medo que nem sequer chorava.
— Pobre menina. — Não havia cadeiras, de modo que Cersei se sentou no colchão, junto da pequena rainha. — A Senhora Taena foi falar com elas para lhes dizer que não a esquecemos.
— Nem sequer me deixam vê-las. — Disse Margaery, furiosa. — Nos mantêm isoladas. Até esse momento, não tive permissão para receber visitas; somente as septãs podiam entrar. Há uma que vem uma vez por hora, para me perguntar se desejo confessar meus pecados. Nem me deixam dormir! Me despertam para exigir que me confesse. Noite passada, confessei à septã Unella que tinha vontade de arrancar os seus olhos.
Que pena que não os arrancou, pensou Cersei. Se deixasse cega uma pobre septã anciã, terminaria de convencer tua culpa ao Mendigo Supremo.
— Suas primas estão sendo interrogadas da mesma maneira.
— Malditos sejam! — Exclamou Margaery. — Tomara que ardam nos sete infernos. Alla é tão doce e tímida... como podem fazer-lhe isso? E
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Megga... Já sei que tem uma risada mais escandalosa que a de uma prostituta do porto, mas por dentro não é mais do que uma garotinha. As quero tanto como elas a mim. Se esse mendigo acredita que conseguirá que mintam sobre mim...
— Temo que também estejam sendo acusadas. As três.
— Minhas primas? — Margaery empalideceu. — Alla e Megga são pouco mais que meninas. Isto é... Isto é obsceno, Vossa Graça. Vai nos tirar daqui?
— Quem dera se eu pudesse. — Tinha a voz carregada de consolo. — Sua Altíssima Santidade tem seus novos cavaleiros nos vigiando. Para libertá-las eu teria que enviar os mantos dourados e profanar este lugar sagrado com uma matança. — Tomou-lhe a mão entre as suas. — Mas não tenho estado ociosa: reuni todos os homens que Sor Osney mencionou como seus amantes. Dirão a Sua Altíssima Santidade que é inocente, e o farão em julgamento.
— Um julgamento? — Havia medo em sua voz. — Vai acontecer um julgamento?
— Claro. Senão como iremos demonstrar sua inocência? — Cersei apertou sua mão para tranquilizá-la. — E claro, você tem o direito de decidir como quer que a julguem; pelo menos você é a rainha. Os cavaleiros da Guarda Real juraram lhe defender.
Margaery compreendeu imediatamente.
— Um julgamento por combate? Mas Loras está ferido, então...
— Ele tem seis Irmãos.
Margaery parou para observá-la. De repente, retirou a mão.
— Está brincando? Boros é um covarde. Meryn é velho e lento. Seu irmão está mutilado. Os outros dois se encontram em Dorne, e Osmund é um maldito Kettleback. E Loras tem dois irmãos, não seis. Se houver um julgamento por combate, quero que Garlan seja meu campeão.
— Sor Garlan não é um membro da Guarda Real. — Disse Cersei. — Quando se está em jogo a honra de uma rainha, as leis e a tradição exigem que o seu campeão seja um dos sete juramentados do rei. Temo que o Alto Septão se empenhe para que assim ocorra.
Eu me encarregarei disso.
Margaery demorou para responder. Tinha os olhos castanhos carregados de desconfiança.
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— Blount ou Trant. — disse enfim. — Teria que ser um deles. É o que gostaria, não é verdade? Osney Kettleback poderia fazer qualquer um dos dois em pedaços.
Pelos sete infernos. Cersei adquiriu um expressão dolorida.
— Está equivocada, filha. O único que quero...
—...é o seu filho, e somente para você. Ele nunca terá uma esposa que não venha a odiar. E graças aos deuses, não sou sua filha. Vá embora.
— Está se comportando como uma idiota. Só vim aqui para lhe
ajudar.
— Ajudar a me colocar em um caixão. E pedi a você que vá embora. Ou quer que eu chame minhas carcereiras, para que lhe tirem daqui arrastada? Raposa manipuladora!
Cersei levantou-se, ajeitando as saias e recolhendo a dignidade.
— Tenho certeza de que está passando por um momento muito doloroso; perdoarei essas palavras. — Ali, assim como na corte, nunca se sabia quem poderia estar escutando. — E em seu lugar, também estaria assustada. Grande Meistre Pycelle admitiu que lhe proporcionava o chá da lua, e o seu Cantor Azul... Enfim, minha senhora, em seu lugar eu rezaria para a Velha e para a Mãe, pedindo-lhes sabedoria e misericórdia. Temo que logo você vá necessitar dessas duas coisas.
Quatro septãs de rosto enrugado a acompanharam na descida pelas escadarias da torre. Cada uma parecia mais frágil que a anterior. Ao chegarem ao nível do solo, continuaram descendo, adentrando o coração da colina de Visenya. A escadaria terminava à grande profundidade, onde uma fileira de tochas brilhava, iluminando um largo corredor.
O Alto Septão a esperava em sua pequena sala de audiências de sete paredes. O aposento era modesto e simples, com as paredes desnudas, mobiliado apenas com uma mesa de madeira baixa, três cadeiras e um colchão. Os rostos dos Sete estavam entalhados nas paredes. As feições lhe pareciam feias e rudimentares, mas tinham certo poder, sobretudo nos olhos: esferas de ônix, malaquita e feldspato amarelo, que faziam com que as caras parecessem ter vida própria.
— Conversou com a rainha. — Disse o Alto Septão.
 A rainha sou eu, esteve tentada em lhe dizer, mas se conteve.
— Sim.
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— Todos pecamos, inclusive os reis e as rainhas. Eu também pequei, e fui perdoado. Mas sem confissão não pode haver perdão, e a rainha não quer confessar.
— Talvez seja inocente.
— Não. As septãs a examinaram e juraram que sua virgindade está perdida. E que tem bebido o chá da lua para matar em seu ventre o fruto das suas fornicações. Um cavaleiro também jurou sobre sua espada que manteve relações carnais com ela e com duas de suas três primas. E diz que há outros que fizeram o mesmo com ela e menciona muitos homens, tão nobres quanto humildes.
— Meus mantos dourados levaram todos esses às masmorras. — Lhe assegurou Cersei. — Até agora, somente um foi interrogado, o cantor que se faz chamar Cantor Azul. Disse coisas muito perturbadoras. Apesar disso, rezo para que a inocência de minha nora se demonstre em julgamento. — Titubeou. — Tommen gosta muito de sua pequena rainha, Santidade, e acredito que a ele e a seus senhores seria muito custoso julgá-la com justiça. Talvez a Fé deva se encarregar do julgamento...
O Mendigo Supremo juntou os dedos fracos.
— O mesmo havia pensado eu, Vossa Graça. Maegor, o Cruel nos tirou as espadas, e Jaehaerys, o Conciliador nos privou da balança do julgamento, mas quem pode julgar uma rainha senão os Sete desde os céus e quem os servem aqui? Pode haver alguém mais adequado para julgar a maldade das mulheres?
— Isso seria o melhor. Mas claro que Margaery pode exigir que sua culpa ou sua inocência se determine por combate. Em tal caso, seu campeão teria que ser um dos sete de Tommen.
— Os cavaleiros da Guarda Real tem sido os campeões do rei e da rainha desde os tempos de Aegon, o Conquistador. Nesse aspecto, a Coroa e a Fé falam com uma só voz.
Cersei tapou a cara com as mãos, como para ocultar sua dor. Quando voltou a levantar a cabeça, uma lágrima lhe brilhava nos olhos.
— Sem dúvida é um dia amargo. — Disse. — Mas me alegra ver que estamos de acordo. Se Tommen estivesse aqui, lhe daria as graças. Teremos que buscar a verdade juntos, você e eu.
— Assim será.
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— Tenho que voltar ao castelo. Com sua permissão, levarei Osney Kettleback. O Conselho Privado quer interrogá-lo e escutar as acusações de sua própria boca.
— Não. – replicou o Alto Septão.
Foi somente uma palavra, uma breve palavra, mas para Cersei foi como se tivessem lhe atirado um balde de água fria na sua cara. Gaguejou, e sua segurança balançou por um instante.
— Sor Osney será bem custodiado, lhe garanto.
— Já está bem custodiado aqui. Venha, eu lhe mostrarei.
 Cersei sentia os olhos dos Sete cravados nela, olhos de jade, malaquita e ônix, e sentiu um calafrio repentino, frio como gelo.
Sou a rainha, disse a si mesmo. Sou a filha de Lorde Tywin.
 O seguiu de má vontade. Sor Osney não estava muito longe. A câmara era escura e tinha uma porta pesada, de ferro. O Alto Septão sacou a chave que a abria e colheu uma tocha da parede para iluminar o interior.
— Primeiro Vossa Graça.
No interior, Osney Kettleback pendia do teto, atado por um par de algemas de ferro. Havia sido açoitado. Tinha as costas e os ombros quase em carne viva, e as marcas do chicote lhe cruzavam também nas pernas e nas nádegas.
A rainha quase não pôde mirá-lo. Voltou-se para o Alto Septão.
— O que você fez?
— Busquei encarecidamente a verdade.
— Ele lhe disse a verdade. Veio a você por sua própria vontade e confessou seus pecados.
— Sim. Ele fez isso. Mas já escutei muitas confissões, Vossa Graça, e nunca tinha ouvido ninguém tão satisfeito em ser culpado.
— Você o açoitou!
— Não há expiação sem dor. Como disse a Sor Osney, todo homem deveria provar o chicote. Poucas vezes me sinto mais perto dos deuses do que quando me açoito pela minha maldade, ainda que meus pecados mais escuros não sejam tão negros quanto os dele.
— M-mas... — gaguejou. — Você prega a misericórdia da Mãe...
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— Sor Osney provará seu doce leite na outra vida. Tal como está escrito em A Estrela de Sete Pontas, todos os pecados podem ser perdoados, mas nenhum crime deve permanecer sem castigo. Osney Kettleback é culpado de traição e assassinato, e o preço da traição é a morte.
Não é mais que um sacerdote, não pode fazer isto.
— A Fé não pode condenar ninguém à morte, seja qual for o delito.
— Seja qual for o delito. — O Alto Septão repetiu as palavras com lentidão, como se as estivesse pesando. — É curioso que diga isso, Vossa Graça, porque quanto mais diligentes éramos na aplicação do chicote, mais pareciam mudar os delitos de Sor Osney. Agora quer nos fazer acreditar que nunca tocou em Margaery Tyrell. Não é assim, Sor Osney?
Osney Kettleback abriu os olhos. Ao ver a rainha diante dele, passou a língua pelos lábios inchados.
— A Muralha. — Disse. — Me prometeu a Muralha.
— Está louco. — Disse Cersei. — Você o fez enlouquecer.
— Sor Osney Kettleback. — Perguntou o Alto Septão com uma voz firme. — Teve alguma relação carnal com a rainha?
— Sim. — As algemas tilintaram quando Osney se retorceu. — Mas com esta. Essa é a rainha que eu fodi, e a que me enviou para matar o velho Alto Septão. Ele nunca tinha guardas. Só tive que vir enquanto ele dormia e pôr uma almofada em sua cara.
Cersei deu meia volta e começou a correr.
O Alto Septão tentou agarrá-la, mas ele era um mendigo velho, enquanto ela era uma leoa do Rochedo. O afastou com um empurrão, e saiu pela porta, fechando-a com um único golpe.
Os Kettleback, preciso dos Kettleback. Mandarei Osfryd com os mantos dourados, e também Osmund com a Guarda Real. Osney voltará a negar tudo assim que o soltem; e me livrarei deste Alto Septão, assim como me livrei do anterior.
 Quatro velhas septãs lhe bloquearam o caminho e a agarraram com suas mãos enrugadas. Derrubou uma com um empurrão, arranhou outra na cara e conseguiu chegar às escadarias. Na metade do caminho se recordou de Taena Merryweather e se deteve, em dúvida.
 Que os Sete me protejam. Taena sabe de tudo. Se a capturarem e a açoitarem...
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 Conseguiu chegar correndo até o septo, mas não mais além. Ali a aguardavam as mulheres, mais septãs e também irmãs silenciosas, mais jovens que as bruxas de antes.
— Sou a rainha! — Lhes gritou enquanto retrocedia. — Mandarei decapitar todas, cortarei as suas cabeças! Deixem-me passar!
Em vez de obedecer, tentaram agarrá-la. Cersei correu até o altar da Mãe, mas ali a encurralaram. Eram mais de vinte, e a arrastaram enquanto esperneava pelas escadarias da torre. Dentro da cela, três irmãs silenciosas a imobilizaram, enquanto uma septã chamada Scolera tirava suas roupas. Lhe deixou até sem a sua roupa íntima.  Outra septã lhe atirou um vestido de lã.
— Não podem me fazer isso! — Seguiu gritando a rainha. — Sou uma Lannister, soltem-me, meu irmão as matará, Jaime as cortará desde a boceta até a garganta, soltem-me! Sou a rainha!
— A rainha deveria rezar. — disse a Septã Scolera antes de deixá-la nua na cela gelada.
Ela não era a dócil Margaery Tyrell; não poria o vestido, nem se submeteria ao cativeiro.
Ensinarei a eles o que significa colocar o leão em uma jaula, pensou
Cersei.
Rasgou o vestido, fazendo-o em mil pedaços, pegou o jarro de água e o atirou contra a parede, e logo fez o mesmo com o urinol. Ao ver que ninguém aparecia, começou a golpear a porta com os punhos. Sua escolta estava abaixo, na praça: dez guardas da Casa Lannister e Boros Blount.
Quando me ouvirem, virão me libertar; algemaremos o Mendigo Supremo e o levaremos arrastado até a Fortaleza Vermelha.
Gritou, chutou e uivou diante da porta e da janela, até que teve a garganta em carne viva. Ninguém respondeu aos seus gritos; ninguém acudiu em seu resgate. A cela começou a escurecer. Cada vez fazia mais frio. Cersei começou a tremer.
Como podem deixar-me assim, sem sequer um fogo? Sou sua rainha!
Começava a lamentar ter feito o vestido em pedaços. No canto da cela havia uma manta desgastada e fina, de lã marrom. Era velha e raspava a pele, mas não tinha mais nada. Cersei se encolheu embaixo dela, para deixar de tremer, e não demorou para dormir, esgotada como estava.
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A próxima coisa que lembrava era de uma mão que a sacudia. Dentro da cela, a escuridão era absoluta; uma mulher feia e corpulenta havia se ajoelhado junto a ela com uma vela na mão.
— Quem é? — Quis saber a rainha. — Veio me libertar?
— Sou a septã Unella. Vim para escutar a confissão de seus assassinatos e fornicações.
Cersei afastou a mão dela com um golpe.
— Isto lhe custará à cabeça. Não se atreva a me tocar. Fora daqui!
A mulher se levantou.
— Voltarei dentro de uma hora, Vossa Graça. Talvez então esteja preparada para confessar.
Uma hora, e outra, e outra. Assim transcorreu a noite mais longa da vida de Cersei Lannister, com a única exceção da do casamento de Joffrey. Tinha a garganta tão irritada pelos gritos que apenas podia beber. A cela era gélida. Havia destroçado o urinol, de modo que teve que se acocorar num canto e ver como a urina escorria pelo solo. Cada vez que fechava os olhos, Unella voltava a aparecer, para perguntar-lhe se queria confessar seus pecados.
 O dia não chegou acompanhado de alívio algum. Enquanto saía o sol, a Septã Moelle lhe levou uma tigela de aveia acinzentada e aguada e Cersei lhe atirou na cara. Mas quando lhe levaram outro jarro de água, tinha tanta sede, que não teve mais remédio que beber. Levaram para ela outro vestido cinzento e fino que cheirava a mofo, e o pôs para cobrir sua nudez. E aquela tarde, quando voltou Moelle, comeu o pão e o peixe, e exigiu que lhe levassem vinho. O vinho não chegou, mas sim a septã Unella, que a visitava a cada hora para perguntar se estava pronta para confessar.
 Que pode estar acontecendo? Perguntou Cersei a si mesma quando a diminuta porção de céu que via pela janela começou a escurecer outra vez. Porque ninguém veio me tirar daqui? Não podia acreditar que os Kettleback houvessem deixado seu irmão abandonado. E o que estaria fazendo o seu conselho? Covardes, traidores. Quando eu sair daqui, mandarei decapitar todos e buscarei homens de maior valor, para que ocupem o seu lugar.
 Naquele dia ouviu gritos em três ocasiões; era do povo da praça, mas o nome que gritavam era o de Margaery, não o seu.
 Estava a ponto de amanhecer o segundo dia. Cersei lambia os últimos restos de aveia da tigela quando a porta de sua cela se abriu
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inesperadamente, para deixar entrar Lorde Qyburn. Teve que recorrer a todo o seu autocontrole para não se atirar em seus braços.
— Qyburn. — Sussurrou. — Oh, deuses, quanto me alegro de te ver. Me leva pra casa.
— Não me permitiriam isso. Vão julgá-la perante um tribunal sagrado de sete juízes, por assassinato, traição e fornicação.
Cersei estava tão esgotada, que a princípio, não entendeu o que ele
dizia.
— Tommen. Fale-me de meu filho. Continua sendo o rei?
— Sim, Vossa Graça. Está são e salvo, atrás dos muros da Torre de Maegor, protegido pela Guarda Real. Mas se sente só. Tem medo. Pergunta por você e pela pequena rainha. Até agora ninguém lhe falou sobre suas... suas...
— Dificuldades? — Sugeriu. — Que aconteceu com Margaery?
— Também vai ser julgada, no mesmo tribunal que você. Entreguei o Cantor Azul ao Alto Septão, como ordenou Vossa Graça. Ele já o têm aqui, nas masmorras. Meus informantes me disseram que o estão açoitando, mas que até agora ele só tem cantado a doce canção que o ensinamos.
 A doce canção. Tinha a cabeça embotada pela falta de sono. Wat, seu verdadeiro nome é Wat. Se os deuses fossem bondosos, Wat morreria por causa das chicotadas, e Margaery acabaria sem maneira de refutar seu testemunho.
— Onde estão meus cavaleiros? Sor Osfryd... O Alto Septão pretende matar o seu irmão Osney; seus mantos dourados têm que...
— Osfryd Kettleback já não está no comando da Guarda da Cidade. O rei o depôs, e elegeu o capitão da porta do Dragão, um tal Humfrey Waters.
 Cersei estava esgotada, e nada daquilo fazia sentido. Porque Tommen iria fazer semelhante coisa?
— O garoto não tem culpa. Quando o conselho põe um decreto na sua frente, ele o firma e estampa o selo.
— Meu conselho... Quem? Quem iria fazer isso? Você não...
— Infelizmente, me expulsaram do conselho, ainda que, por enquanto, me permitam continuar trabalhando com os passarinhos do eunuco. Nesse intervalo, Harys Swyft e o Grande Meistre Pycelle governam
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o reino.  Enviaram um corvo a Rochedo Casterly para convocar seu tio a voltar imediatamente para a corte e assumir a regência. Se ele pensa em aceitar, é melhor que tenha pressa. Mace Tyrell interrompeu o assédio a Ponta Tempestade e vem até a cidade com um exército, e Randyll Tarly também está descendo pela Lagoa da Donzela.
— Lorde Merryweather aprova tudo isto?
— Merryweather renunciou a sua cadeira no conselho e fugiu para Granmesa com sua esposa, que foi quem nos transmitiu a notícia das... acusações... que havia contra você.
— Então soltaram Taena. — Era a melhor coisa que ouvia desde o “não” do Mendigo Supremo. Taena poderia ter sido a sua perdição. — Que aconteceu com Lorde Waters? Seus barcos... Se desembarcar todos os seus tripulantes, terá homens suficientes para...
— Quando chegou às águas os apuros pelos quais Vossa Graça está passando, Lorde Waters içou as velas, retirou os remos e levou sua frota para mar aberto. Sor Harys teme que ele pretenda se unir a Lorde Stannis. Pycelle crê que se dirige aos Punhos de Pedra para virar pirata.
— Meus formosos navios... — Cersei esteve a ponto de começar a rir. — Meu senhor pai dizia sempre que os bastardos são traiçoeiros por natureza. Quem dera se eu pudesse ter ouvido suas palavras. — Estremeceu. — Estou perdida, Qyburn.
— Não. — Ele lhe estendeu a mão. — Ainda resta esperança. Vossa Graça tem o direito de demonstrar sua inocência por um combate. Seu campeão está preparado, minha rainha. Não há homem nos Sete Reinos que possa enfrentá-lo. Basta que me dê à ordem...
Foi incapaz de seguir contendo o riso. Aquilo era tão divertido, tão horrivelmente divertido...
— Os deuses devem adorar fazer piada com os nossos planos e esperanças. Tenho um campeão que nenhum homem poderia derrotar, mas a lei me proíbe de utilizá-lo. Sou a rainha, Qyburn. Somente um Irmão Juramentado da Guarda Real pode defender minha honra.
— Entendo. — O sorriso se desvaneceu no rosto de Qyburn. — Não sei o que dizer, Alteza. Não sei o que lhe posso aconselhar...
Apesar de seu estado de esgotamento e de terror, a rainha sabia que não podia confiar o seu destino a um tribunal de mendigos. Tampouco podia contar com alguma intervenção de Sor Kevan, depois das palavras que haviam trocado em seu último encontro.
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 Terá que ser um julgamento por combate. Não há outra saída.
— Qyburn, pelo amor que me professa, lhe rogo que envie uma mensagem em meu nome. Se possível, com um corvo; se não, por um cavaleiro. Envie-a a Correrrio, a meu irmão. Diga o que aconteceu, e escreva... escreva...
— Sim, Vossa Graça?
 Umedeceu os lábios, trêmula.
— “Volte agora mesmo. Me ajuda. Me salva. Preciso de você como nunca precisei antes. Te quero. Te quero. Te quero. Volte agora mesmo”.
— Como ordena. “Te quero” três vezes?
— Três vezes. — Tinha que comovê-lo. — Virá. Eu sei que ele virá. Tem que vir. Jaime é a minha única esperança.
— Minha rainha. — Titubeou Qyburn. — Esqueceu? Sor Jaime já não tem a mão da espada. Se ele for seu campeão e perder...
Abandonaremos este mundo juntos, como viemos a ele.
— Não perderá. Jaime não perderá. Não se a minha vida estiver em
jogo.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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JAIME JAIME JAIME JAIME  
 
  
  novo Senhor de Correrrio estava tão zangado que tremia.  
 
— Fomos enganados — disse. — Este homem vigarizounos! — Saliva rosada voava dos seus lábios enquanto apontava um dedo para Edmure Tully. — Quero a sua cabeça! Eu governo em Correrrio, por decreto do próprio rei, eu...
— Emmon. — Disse a esposa. — O Senhor Comandante conhece o decreto do rei. Sor Edmure conhece o decreto do rei. Os moços de estrebaria conhecem o decreto do rei.
— O senhor sou eu, e vou ter a cabeça dele!
— Por qual crime? — Apesar de estar tão magro, Edmure ainda tinha um aspecto mais senhorial do que Emmon Frey. Trazia um gibão acolchoado de lã vermelha com uma truta saltante bordada no peito. As botas eram negras, as bragas azuis. O seu cabelo ruivo fora lavado e cortado, a sua barba vermelha cortada curta. — Fiz tudo aquilo que me foi pedido.
— Ah sim? — Jaime Lannister não dormira desde que Correrrio abrira os portões, e tinha a cabeça latejando. — Não me lembro de te pedir para deixardes Sor Brynden escapar.
— Exigiu que eu entregasse o castelo, não o meu tio. É culpa minha que os seus homens o tenham deixado esgueirar-se através das suas linhas de cerco?
Jaime não estava divertido.
— Onde está ele? — disse, deixando transparecer a irritação que sentia. Os seus homens tinham revirado por três vezes Correrrio, e Brynden Tully não fora encontrado em lado nenhum.
— Ele não chegou a me dizer para onde pretendia ir.
— E você não perguntou. Como foi que ele saiu?
— Os peixes nadam. Até os negros. — Edmure sorriu.
Jaime sentiu-se fortemente tentado a esmurrar sua boca com a mão de ouro. Alguns dentes em falta poriam fim aos seus sorrisos. Para um homem que ia passar o resto da vida como prisioneiro, Edmure estava demasiado contente consigo próprio. 
O
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— Temos masmorras por baixo de Rochedo Casterly que servem tão bem a um homem como uma armadura. Nelas não pode se virar, sentar ou chegar aos pés quando as ratazanas começam a roer os dedos. Gostara de reformular essa resposta?
O sorriso do Lorde Edmure sumiu-se.
— Me deu a sua palavra de que seria tratado com honra, como é próprio do meu estatuto.
— E será — disse Jaime. — Cavaleiros mais nobres do que você morreram a choramingar nessas masmorras, e muitos grandes senhores também. Até um ou dois reis, se bem recordo a história. A sua esposa pode ficar com outra ao lado da sua, se quiser. Não gostaria de os separar.
— Ele nadou mesmo — disse Edmure, carrancudo. Tinha os mesmos olhos azuis da irmã Catelyn, e Jaime viu aí a mesma repugnância que vira um dia nos dela. — Erguemos a porta levadiça do Portão da Água. Não toda, só cerca de um metro. O suficiente para abrir uma frincha debaixo, embora o portão continuasse a parecer estar fechado. O meu tio é um bom nadador. Depois de escurecer enfiou-se por baixo dos espigões.
E da mesma forma se esgueirou por baixo da nossa represa flutuante, sem dúvida. Uma noite sem luar, guardas aborrecidos, um peixe negro num rio negro a flutuar em silêncio, corrente abaixo.
Se Ruttiger, Yew ou qualquer um dos seus homens ouviu um ruído de água, o teria atribuído a uma tartaruga ou a uma truta. Edmure esperara a maior parte do dia antes de arriar o lobo gigante de Stark em sinal de rendição. Na confusão que envolvera a passagem do castelo de umas mãos para as outras, fora só na manhã seguinte que Jaime fora informado de que o Peixe Negro não se encontrava entre os prisioneiros.
Dirigiu-se à janela e estendeu o olhar pelo rio. Estava um luminoso dia de Outono, e o sol brilhava nas águas. Por esta altura, o Peixe Negro pode estar dez léguas para jusante.
— Temos de o encontrar — insistiu Emmon Frey.
— Ele será encontrado. — Jaime falou com uma certeza que não sentia. — tenho cães de caça e caçadores em busca do seu rasto neste preciso instante. — Sor Addam Marbrand liderava as buscas na margem sul do rio, Sor Dermot da Mata de Chuva na margem norte. Pensara em envolver também os senhores do rio, mas era mais provável que Vance, Piper e os da sua laia ajudassem Peixe Negro a escapar do que o pusessem a ferros. Contas feitas, não se sentia esperançoso. — Ele pode fugir durante algum tempo — disse — mas acabará por ter de vir à superfície.
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— E se ele tentar tomar o meu castelo de volta?
— Tem uma guarnição de duzentos homens. — Uma guarnição grande demais, na verdade, mas Lorde Emmon tinha um temperamento ansioso. Pelo menos não teria problemas em alimentá-la; Peixe Negro deixara Correrrio amplamente aprovisionado, tal como dissera. — Depois do esforço que Sor Brynden fez para nos deixar, duvido que volte a aparecer. — A menos que esteja à cabeça de um bando de foras da lei. Não duvidava de que o Peixe Negro pretendia continuar o combate.
— Isto é a sua propriedade — disse a Senhora Genna ao marido. — Cabe a você defendê-la. Se não conseguir fazê-lo, passa-a pelo archote e corre de regresso ao Rochedo.
Lorde Emmon esfregou a boca. A mão veio vermelha e viscosa da folhamarga.
— Com certeza. Correrrio é meu, e nunca ninguém o tirará. — Deitou a Edmure Tully um último olhar desconfiado, enquanto a Senhora Genna o arrastava para fora do aposento privado.
— Há mais alguma coisa que deseja me dizer? — perguntou Jaime a Edmure quando os dois ficaram sós.
— Este é o aposento privado do meu pai — disse o Tully. — Governou as terras fluviais a partir daqui, com sabedoria e competência. Gostava de se sentar junto àquela janela. A luz ali era boa, e sempre que levantava os olhos do seu trabalho via o rio. Quando sentia os olhos cansados, pedia a Cat que lhe lesse em voz alta. O Mindinho e eu construímos uma vez um castelo de blocos de madeira, ali ao lado da porta. Nunca saberá como te ver nesta sala me deixa doente, Regicida. Nunca saberá como te desprezo.
Quanto àquilo, enganava-se.
— Já fui desprezado por homens melhores do que você, Edmure. — Jaime chamou um guarda.
— Leva sua senhoria de volta à sua torre, e assegure-se de que é alimentado.
O Senhor de Correrrio saiu em silêncio. Na manhã seguinte iria para oeste. Sor Forley Prester comandaria a sua escolta; cem homens, incluindo vinte cavaleiros. É melhor duplicar esse número. Lorde Beric pode tentar libertar Edmure antes de chegarem ao Dente Dourado. Jaime não queria ter de capturar o Tully pela terceira vez.
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Regressou à cadeira de Hoster Tully, pegou no mapa do Tridente e alisou-o sob a mão dourada. Para onde iria, se fosse o Peixe Negro?
— Senhor Comandante? — Um guarda estava à porta aberta. — A Senhora Westerling e a filha estão lá fora, conforme ordenaou.
Jaime pôs o mapa de lado.
— Manda-as entrar. — Ao menos a rapariga não desapareceu também. Jeyne Westerling fora a rainha de Robb Stark, a menina que lhe custara tudo. Com um lobo na barriga, podia ter-se mostrado mais perigosa do que o Peixe Negro.
Não parecia perigosa. Jeyne era uma garota esbelta, com não mais que quinze ou dezesseis anos, mais desajeitada do que graciosa. Tinha ancas estreitas, seios do tamanho de maçãs, uma grenha de caracóis castanhos, e os suaves olhos castanhos de uma corça. Bastante bonita para uma criança, decidiu Jaime, mas não é mulher por quem perder um reino. Tinha a cara inchada, e havia uma crosta na sua testa, meio escondida por uma madeixa de cabelo castanho.
— O que aconteceu aí? — perguntou-lhe Jaime.
A menina virou a cabeça para o lado.
— Não é nada — insistiu a mãe, uma mulher de cara severa com um vestido de veludo verde. Um colar de conchas de ouro envolvia-lhe o longo e magro pescoço. — Ela não queria abrir mão da coroazinha que o rebelde a deu, e quando tentei a tirar da cabeça, a teimosa da miúda resistiu.
— Era minha — soluçou Jeyne. — Não tinha esse direito. O Robb mandou fazê-la para mim. Eu amava-o.
A mãe fez tenção de a esbofetear, mas Jaime interpôs-se entre as
duas.
— Não quero saber disso — avisou a Senhora Sybell. — Sentem-se, ambas. — A garota enrolou-se na cadeira como um animal assustado, mas a mãe sentou-se rigidamente, de cabeça erguida. — Querem vinho? — as perguntou. A menina não respondeu.
— Não, obrigada — disse a mãe.
— Como quiserem. — Jaime virou-se para a filha. — Lamento a sua perda. O rapaz tinha coragem, admito. Há uma pergunta que tenho de te fazer. Está à espera de um filho dele, senhora?
Jeyne saltou da cadeira e teria fugido da sala se o guarda que se encontrava à porta não a tivesse segurado pelo braço.
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— Não está — disse a Senhora Sybell, enquanto a filha lutava por se escapar. — Eu assegurei-me disso, como o senhor seu pai me pediu.
Jaime anuiu com a cabeça. Tywin Lannister não era homem para não prestar atenção a esses detalhes.
— Largue a menina — disse — já não preciso dela, por agora. — Enquanto Jeyne fugia, aos soluços, pela escada acima, examinou a mãe. — A Casa Westerling tem o seu perdão, e o seu irmão Rolph foi nomeado Senhor de Castamere. Que mais querem de nós?
— O senhor seu pai prometeu-me casamentos meritórios para Jeyne e para a irmã mais nova. Senhores ou herdeiros, ele jurou, não irmãos mais novos nem cavaleiros domésticos.
Senhores ou herdeiros. Com certeza. Os Westerling eram uma Casa antiga e orgulhosa, mas a própria Senhora Sybell nascera Spicer, numa linhagem de mercadores enobrecidos. A avó fora uma espécie qualquer de bruxa meio louca vinda do leste, segundo julgava recordar. E os Westerling estavam empobrecidos. Filhos mais novos teriam sido o melhor a que as filhas de Sybell Spicer poderiam ter almejado numa situação normal, mas um bom e gordo pote de ouro Lannister faria até a viúva de um rebelde morto parecer atraente aos olhos de algum senhor.
— Tereis os seus casamentos — disse Jaime — mas Jeyne tem de esperar dois anos completos antes de voltar a casar. — Se a menina tomasse outro esposo cedo demais e tivesse um filho dele, surgiriam inevitavelmente rumores de que o pai era o Jovem Lobo.
— Também tenho dois filhos — fez-lhe lembrar a Senhora Westerling. — Rollam está comigo, mas Raynald era cavaleiro e foi com os rebeldes para as Gêmeas. Se eu tivesse sabido o que ia acontecer lá, nunca teria permitido tal coisa. — Havia uma sugestão de censura na sua voz. — Raynald nada sabia de... do entendimento com o senhor seu pai. Ele pode estar cativo nas Gêmeas.
Ou pode estar morto. Walder Frey também não teria sabido do entendimento.
— Irei investigar. Se Sor Raynald ainda estiver cativo, pagaremos o seu resgate em seu nome.
— Foi mencionada a idéia de arranjar uma união também para ele. Uma noiva de Rochedo Casterly. O senhor seu pai disse que Raynald deveria ficar feliz, se tudo decorresse como esperava.
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Mesmo dentro da cova, a mão morta do Lorde Tywin nos move a
todos.
— Felity é filha ilegítima do meu falecido tio Gerion. Um noivado pode ser combinado, se for esse o seu desejo, mas o casamento terá de esperar. Felity tinha nove ou dez anos da última vez que a vi.
— Filha ilegítima? — A Senhora Sybell pareceu ter acabado de engolir um limão. — Quer que um Westerling case com uma bastarda?
— Não o desejo mais do que ver Felity casada com o filho de uma cadela intriguista e traiçoeira. Ela merece melhor. — Jaime teria estrangulado alegremente a mulher com o seu colar de conchas. Felity era uma criança adorável, ainda que solitária; o pai fora o tio preferido de Jaime. — A sua filha vale dez vezes mais do que você, senhora. Amanhã partirá com Edmure e Sor Forley. Até lá faria bem em ficar longe da minha vista. — Gritou por um guarda, e a Senhora Sybell saiu com os lábios firmemente apertados. Jaime teve de perguntar a si próprio quanto saberia Lorde Gawen das intrigas da mulher. Quanto sabemos nós os homens, seja quando for?
Quando Edmure e os Westerling partiram, quatrocentos homens seguiram com eles; Jaime voltara a duplicar a escolta no último instante. Acompanhou-os ao longo de algumas milhas, para conversar com Sor Forley Prester. Embora trouxesse uma cabeça de touro no sobretudo e cornos no elmo, Sor Forley não poderia ser menos bovino. Era um homem baixo, seco e endurecido. Com o seu nariz achatado, a careca e a barba castanha grisalha, parecia-se mais com um estalajadeiro do que com um cavaleiro.
— Não sabemos onde está o Peixe Negro — o fez lembrar Jaime — mas se tiver oportunidade de libertar Edmure, fará.
— Isso não acontecerá, senhor. — Tal como a maioria dos estalajadeiros, Sor Forley não era tolo nenhum. — Batedores e guardasavançados ocultarão a nossa marcha, e fortificaremos os acampamentos durante a noite. Escolhi dez homens para ficar com o Tully de dia e de noite, os meus melhores arqueiros. Se ele sair da estrada nem que seja dez centímetros, dispararão tantas flechas sobre ele que a própria mãe o confundirá com um ganso.
— Ótimo. — Jaime preferiria que o Tully chegasse a salvo em Rochedo Casterly, mas antes morto do que em fuga. — É melhor manter também alguns arqueiros por perto da filha de Lorde Westerling.
Sor Forley pareceu surpreendido.
— A filha de Gavven? Ela é...
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— ... a viúva do Jovem Lobo — concluiu Jaime — e duas vezes mais perigosa do que Edmure, se alguma vez nos fugir.
— Às suas ordens, senhor. Ela será vigiada.
Jaime teve de passar a meio galope pelos Westerling ao percorrer a coluna de regresso a Correrrio. Lorde Gawen acenou-lhe gravemente quando passou, mas a Senhora Sybell olhou através dele com olhos que eram como lascas de gelo. Jeyne não chegou a vê-lo. A viúva seguia de olhos brancos, aninhada sob um manto com capuz. Sob as pesadas dobras do manto, as suas roupas eram finas, mas estavam rasgadas. Ela mesma as rasgou, em sinal de luto, compreendeu Jaime. Isso não pode ter agradado à mãe. Deu por si curioso em saber se Cersei rasgaria o vestido se alguma vez lhe dissessem que ele estava morto.
Em vez de regressar de imediato ao castelo atravessou uma vez mais o Pedregoso para fazer uma visita a Edwyn Frey e discutir a transferência dos prisioneiros do bisavô. A hoste Frey começara a desagregar-se horas depois da rendição de Correrrio, à medida que os vassalos e cavaleiros livres do Lorde Walder iam desmontando os acampamentos para se dirigirem para casa. Os Frey que ainda restavam estavam a se preparando para partir, mas foi encontrar Edwyn com o tio bastardo no pavilhão deste último.
Os dois estavam debruçados sobre um mapa, discutindo acaloradamente, mas calaram-se quando Jaime entrou.
— Senhor Comandante — disse Rivers com fria cortesia, mas Edwyn exclamou:
— O sangue do meu pai está nas vossas mãos, sor.
Aquilo apanhou Jaime de surpresa.
— Como assim?
— Foi você quem o mandou para casa, não fostes?
Alguém tinha de o fazer.
— Aconteceu algum percalço a Sor Ryman?
— Foi enforcado com toda a sua comitiva — disse Walder Rivers. — Os foras da lei apanharam-nos duas léguas a sul de Feirajusta.
— Dondarrion?
— Ou ele ou Thoros, ou aquela mulher, Coração de Pedra.
Jaime franziu a sobrancelha. Ryman Frey fora um idiota, um covarde e um bêbado, e não era provável que alguém sentisse muitas
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saudades do homem, em particular os outros Frey. Se os olhos secos de Edwyn eram indicação de algo, nem mesmo os seus próprios filhos fariam luto por ele durante muito tempo. Mesmo assim... estes foras da lei estão se tornando arrojados, se se atrevem a enforcar o herdeiro de Lorde Walder a menos de um dia a cavalo das Gêmeas.
— Quantos homens tinha Sor Ryman consigo? — perguntou.
— Três cavaleiros e uma dúzia de homens de armas — disse Rivers. — É quase como se soubessem que ele ia regressar às Gêmeas, e com uma escolta pequena.
A boca de Edwyn torceu-se.
— O meu irmão está metido nisto, aposto. Ele deixou os foras da lei escapar depois de terem assassinado Merrett e Petyr, e o motivo é este. Com o nosso pai morto, só resto eu entre o Walder Negro e as Gêmeas.
— Não tem prova nenhuma disso — disse Walder Rivers.
— Não preciso de provas. Conheço o meu irmão.
— O seu irmão está em Guardamar — insistiu Rivers. — Como poderia ele ter sabido que Sor Ryman ia regressar às Gêmeas?
— Alguém lhe disse — disse Edwyn em tom amargo. — Pode ter a certeza de que ele tem espiões seus no nosso acampamento.
E você tem dos seus em Guardamar. Jaime sabia que a inimizade entre Edwyn e Walder Negro era profunda, mas qual deles sucedia ao avô como Senhor da Travessia não lhe interessava a ponta de um corno.
— Se me perdoar por me intrometer na sua dor — disse secamente — temos outros assuntos a ponderar. Quando regressar às Gêmeas, informe, por favor, à Lorde Walder de que o Rei Tommen exige todos os cativos que aprisionou no Casamento Vermelho.
Sor Walder franziu a sobrancelha.
— Esses prisioneiros são valiosos, sor.
— Sua Graça não os pediria se fossem inúteis.
Frey e Rivers trocaram um olhar. Edwyn disse:
— O senhor meu avô esperará uma recompensa por esses prisioneiros.
E terá, assim que me crescer uma nova mão, pensou Jaime.
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— Todos nós temos esperanças — disse com brandura. — Diga-me, Sor Raynald Westerling encontra-se entre esses cativos?
— O cavaleiro das conchas? — Edwyn fez uma expressão de desprezo. — Esse irá encontrar alimentando os peixes no fundo do Ramo Verde.
— Ele estava no pátio quando os nossos homens foram abater o lobo gigante — disse Walder Rivers. — Whalen exigiu-lhe a espada e ele a deu com bastante docilidade, mas quando os besteiros começaram a encher o lobo de penas, pegou no machado de Whalen e libertou o monstro da rede que lhe tinham atirado para cima. Whalen diz que o apanhou com um dardo no ombro e outro nas tripas, mas ainda conseguiu chegar ao adarve e atirarse ao rio.
— Deixou um trilho de sangue nos degraus — disse Edwyn.
— Encontrou o seu cadáver mais tarde? — perguntou Jaime.
— Encontramos mil cadáveres mais tarde. Depois de passarem alguns dias no rio, ficam todos muito parecidos uns com os outros.
— Ouvi dizer que o mesmo acontece com os enforcados — disse Jaime, antes de se retirar.
Na manhã seguinte já pouco restava do acampamento Frey além de moscas, bosta de cavalo e a forca de Sor Ryman, abandonado na margem do Pedregoso. O primo quis saber o que fazer com ele e com o equipamento de cerco que construíra, os aríetes, tartarugas, torres e trabucos. Daven propôs que arrastassem tudo para Corvarbor e o usassem aí. Jaime disse-lhe para passar tudo pelo archote, começando pela forca.
— Pretendo lidar em pessoa com o Lorde Tytos. Não será necessária uma torre de cerco.
Daven trespassou a espessa barba com um sorriso.
— Combate singular, primo? Não parece muito justo. Tytos é um velho grisalho.
Um velho grisalho com duas mãos.
Nessa noite ele e Sor Ilyn lutaram durante três horas. Foi uma das suas melhores noites. Se o combate fosse a sério, Payne só o teria morto por duas vezes. Meia dúzia de mortes eram mais a regra, e havia noites ainda piores.
— Se continuar com isto durante mais um ano, posso me tornar tão bom como Peck —   declarou Jaime, e Sor Ilyn soltou os estalidos que
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queriam dizer que estava divertido. — Venha vamos beber mais um pouco do bom vinho tinto de Hoster Tully.
O vinho tornara-se parte do seu ritual noturno. Sor Ilyn era o companheiro de bebida perfeito.
Nunca interrompia, nem pedia favores, nem contava longas histórias sem importância. Tudo o que fazia era beber e escutar.
— Eu devia mandar arrancar a língua a todos os meus amigos — disse Jaime enquanto enchia as taças — e à minha família também. Uma Cersei silenciosa seria uma delícia. Embora eu fosse sentir falta da sua língua quando nos beijássemos. — E bebeu. O vinho era um tinto forte, doce e pesado. Aquecia-o ao descer. — Não consigo me lembrar de quando começamos a nos beijar. A princípio foi inocente. Até deixar de ser. — Acabou o vinho e pôs a taça de lado. — Tyrion me disse uma vez que a maior parte das rameiras não nos beijam. Fodem-nos até nos deixarem sem forças, disse ele, mas nunca sentimos os lábios delas nos nossos. Acha que a minha irmã beija o Kettleblack?
Sor Ilyn não respondeu.
— Não me parece que seria apropriado que eu mate o meu próprio Irmão Juramentado. O que tenho a fazer é castrá-lo e enviá-lo para a Muralha. Foi isso que fizeram com Lucamore, o Ardente. Sor Osmund pode não aceitar de bom grado a castração, é certo. E há os irmãos a ter em conta. Irmãos podem ser perigosos. Depois de Aegon, o Indigno, condenar Sor Terrence Toyne à morte por dormir com a sua amante, os irmãos de Toyne fizeram o melhor que puderam para o matar. O melhor que puderam não foi suficientemente bom, graças ao Cavaleiro do Dragão, mas não foi por falta de tentar. Está escrito no Livro Branco. Está lá tudo, menos o que fazer com Cersei.
Sor Ilyn passou um dedo pela garganta.
— Não — disse Jaime. — Tommen perdeu um irmão, e o homem em quem pensava como pai. — Se eu fosse matar a sua mãe, me odiaria por isso... e aquela sua querida esposa arranjaria maneira de orientar esse ódio para benefício de Jardim de Cima.
Sor Ilyn sorriu de um modo que não agradou a Jaime. Um sorriso feio. Uma alma feia.
— Fala demasiado — disse ao homem.
No dia seguinte, Sor Dermot da Mata de Chuva regressou ao castelo de mãos vazias. Quando lhe perguntaram o que encontrara, respondeu:
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— Lobos. Milhares dos malditos bichos. — Perdera duas sentinelas para os lobos. Tinham saltado da escuridão para as atacar. — Homens armados revestidos de cota de malha e couro fervido, e mesmo assim as feras não tiveram medo deles. Antes de morrer, Jate disse que a alcateia era liderada por uma loba de um tamanho monstruoso. Um lobo gigante, ajuizando pelas suas palavras. Os lobos também penetraram nas nossas linhas de cavalos. Os malditos bastardos mataram o meu baio preferido.
— Um anel de fogueiras em volta do seu acampamento poderia mantê-los afastados — disse Jaime, embora tivesse dúvidas. Poderia o lobo gigante de Sor Dermot ser o mesmo animal que atacara Joffrey perto do entroncamento?
Lobos ou não, Sor Dermot voltou a sair na manhã seguinte, com cavalos frescos e mais homens, a fim de reatar as buscas por Brynden Tully.
Nessa mesma tarde, os senhores do Tridente vieram ter com Jaime para pedir licença para regressarem às suas terras. Concedeu-a. Lorde Piper também quis saber novidades do filho Marq.
— Todos os cativos serão resgatados — prometeu Jaime. Enquanto os senhores do rio se retiravam, Lorde Karyl Vance deixou-se ficar para trás para dizer:
— Lorde Jaime, tem que ir a Corvarbor. Enquanto for Jonos quem está junto dos seus portões, Tytos nunca se renderá, mas sei que dobrará o joelho perante você. — Jaime agradeceu-lhe o conselho.
O Varrão Forte foi quem partiu em seguida. Queria regressar a Darry, conforme prometera, e dar combate aos foras da lei.
— Atravessamos metade do raio do reino, e para quê? Para que pudesse fazer Edmure Tully mijar-se nas bragas? Não há nisso nenhuma canção. Preciso duma luta. Quero o Cão de Caça, Jaime. Ele ou o senhor das Marcas.
— A cabeça do Cão de Caça é sua se conseguir apanhá-la — disse Jaime — mas Beric Dondarrion deve ser capturado vivo, para poder ser levado para Porto Real. A sua morte tem de ser vista por mil pessoas, senão não ficará morto. — O Varrão Forte respondeu àquilo com um resmungo, mas acabou por concordar. No dia seguinte partiu com o escudeiro e os homens de armas, além do Jon Imberbe Bettley, que decidira que caçar foras da lei era preferível a regressar para junto da esposa, famosa pela sua falta de beleza. Segundo se dizia, ela possuía a barba que faltava a Bettley.
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Jaime ainda tinha de lidar com a guarnição. Até ao último homem, juraram que nada sabiam sobre os planos de Sor Brynden ou para onde ele teria ido.
— Estão mentindo — insistiu Emmon Frey, mas Jaime achava que
não.
— Se não partilhar os seus planos com ninguém, ninguém pode te trair — fez notar. A Senhora Genna sugeriu que alguns dos homens podiam ser levados a interrogatório. Jaime recusou. — Eu dei a Edmure a minha palavra de que se se rendesse, a guarnição poderia partir sem ser incomodada.
— Isso foi cavalheiresco da sua parte — disse a tia — mas o que aqui é necessário é força, não cavalaria.
Pergunte a Edmure se eu sou cavalheiresco, pensou Jaime. Pergunte sobre o trabuco. De algum modo não lhe parecia que fosse provável que os meistres o confundissem com o Príncipe Aemon, o Cavaleiro do Dragão, quando escrevessem as histórias de ambos. Mesmo assim, sentia-se curiosamente satisfeito. A guerra estava praticamente ganha. Pedra do Dragão caíra e não duvidava de que Ponta Tempestade cairia em breve, e não importava que Stannis andasse pela Muralha. Os nortenhos não gostariam mais dele do que os senhores da tempestade. Se Roose Bolton não o destruísse, o inverno o faria.
E ele fizera a sua parte ali em Correrrio sem chegar a pegar em armas contra os Stark e os Tully.
Depois de encontrar o Peixe Negro, ficaria livre para regressar a Porto Real, onde devia estar. O meu lugar é com o meu rei. Com o meu filho. Tommen gostaria de saber disso? A verdade custaria o trono ao rapaz. Prefere ter um pai ou uma cadeira, rapaz? Jaime desejava conhecer a resposta. Ele gosta de por o seu selo em papéis. O rapaz podia nem sequer acreditar nele, certamente. Cersei diria que era mentira. Minha querida irmã, a enganadora. Teria de arranjar alguma forma de arrancar Tommen às suas garras antes que o rapaz se transformasse noutro Joffrey. E, já agora, devia arranjar outro pequeno conselho para o rapaz. Se Cersei puder ser posta de lado, Sor Kevan pode concordar em servir como Mão de Tommen. E se não concordasse, bem, os Sete Reinos não tinham falta de homens capazes. Forley Prester seria uma boa escolha, ou Roland Crakehall. Caso fosse necessário um homem que não fosse oriundo do oeste para aplacar os Tyrell, sempre havia Mathis Rowan... ou até Petyr Baelish. O Mindinho era tão amigável como esperto, mas o seu nascimento era demasiado baixo para
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constituir ameaça para qualquer um dos grandes senhores, dado não possuir contingente próprio.
O perfeito Mão.
A guarnição Tully partiu na manhã seguinte, despida de todas as suas armas e armaduras. Cada homem foi autorizado a levar comida para três dias e a roupa que trazia no corpo, depois de prestar um juramento solene de nunca mais pegar em armas contra Lorde Emmon ou a Casa Lannister.
— Se tiver sorte, um em cada dez homens pode respeitar esse juramento — disse a Senhora Genna.
— Ótimo. Prefiro enfrentar nove homens a enfrentar dez. O décimo podia ser aquele que me mataria.
— Os outros nove te matarão com igual rapidez.
— Antes isso do que morrer na cama. — Ou na latrina.
Dois homens decidiram não partir com os outros. Sor Desmond Grell, o antigo mestre de armas do Lorde Hoster, preferiu vestir o negro. O mesmo decidiu Sor Robin Ryger, o capitão da guarda de Correrrio.
— Este castelo foi o meu lar durante quarenta anos — disse Grell. — Você diz que eu sou livre para partir, mas para onde? Sou velho e corpulento demais para dar em cavaleiro andante. Mas os homens são sempre bem-vindos na Muralha.
— Como quiser — disse Jaime, embora isso fosse um aborrecimento. Permitiu que ficassem com as armas e armaduras e destacou uma dúzia dos homens de Gregor Clegane para os escoltar para Lagoa da Donzela. Entregou o comando a Raff, aquele a quem chamavam o Querido. 
— Assegura-se de que os prisioneiros chegam a Lagoa da Donzela inteiros — disse ao homem — senão aquilo que Sor Gregor fez ao Bode parecerá uma engraçada partida comparada com o que farei a você.
Mais dias se passaram. Lorde Emmon reuniu toda Correrrio no pátio, tanto a gente de Lorde Edmure, quanto a sua, e falou-lhes durante quase três horas sobre o que esperava deles, agora que era Emmon o seu chefe e senhor. De vez em quando brandia o pergaminho, enquanto moços da estrebaria, criadas e ferreiros escutavam num silêncio taciturno e uma ligeira chuva caía sobre todos, O cantor, aquele que Jaime obtivera de Sor Ryman Frey, também estava à escuta. Jaime deu com ele em pé numa portada aberta, onde estava seco.
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— Sua senhoria devia ter sido cantor — disse o homem. — Este discurso é mais longo do que uma balada da Marca, e não me parece que ele tenha parado para respirar.
Jaime foi obrigado a rir.
— Lorde Emmon não precisa de respirar, desde que consiga mastigar. Vai fazer uma canção disto?
— Uma engraçada. Vou chamar-lhe "Falando aos Peixes".
— Desde que não a toque onde a minha tia possa ouvi-la. — Jaime nunca antes prestara muita atenção ao homem. Era um tipo pequeno, vestido com umas bragas verdes esfarrapadas e uma túnica no fio, de um tom mais claro de verde, com remendos castanhos de couro a cobrir os buracos. O nariz era longo e aguçado, o sorriso grande e solto. Fino cabelo castanho caía-lhe até ao colarinho, emaranhado e sujo. Uns cinqüenta anos, pensou Jaime, harpista ambulante e bem gasto pela vida. — Não era de Sor Ryman quando te encontrei? — perguntou.
— Só por quinze dias,
— Estava à espera que partisse com os Frey.
— Aquele ali em cima é um Frey — disse o cantor, indicando Lorde Emmon com a cabeça — E este castelo parece um sítio bem aconchegado pra passar o Inverno. O Wat Sorriso-Branco foi pra casa com o Sor Forley, de modo que eu pensei em ver se conseguia ficar com o lugar dele. O Wat tem aquela voz aguda e doce que gente como eu não pode esperar igualar. Mas eu sei o dobro das canções picantes que ele sabe. Com a sua licença, senhor.
— Deve dar magnificamente bem com a minha tia — disse Jaime. — Se espera passar aqui o inverno assegure-se de que a sua música agrade à Senhora Genna. É ela que importa.
— Você não?
— O meu lugar é junto do rei. Não ficarei aqui por muito tempo.
— Lamento ouvir isso, senhor. Conheço canções melhores do que "As Chuvas de Castamere". Podia ter te  tocado... oh, toda a espécie de coisas.
— Noutra altura qualquer — disse Jaime. — Tem nome?
— Tom de Seterrios, se aprouver ao senhor. — O cantor tirou o chapéu. — Mas a maior parte das pessoas chama-me Tom das Sete.
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— Canta bem, Tom das Sete.
Nessa noite sonhou que estava de regresso ao Grande Septo de Baelor, ainda em vigília sobre o cadáver do pai. O septo estava em silêncio e mergulhado na escuridão, até que uma mulher emergiu das sombras e se dirigiu lentamente para o estrado.
— Irmã? — disse.
Mas não era Cersei. Estava toda vestida de cinzento, uma irmã silenciosa. Um capuz e um véu escondiam-lhe as feições, mas Jaime conseguia ver as velas ardendo nas lagoas verdes dos seus olhos.
— Irmã — disse — que quereis de mim? — Esta última palavra ecoou por todo o septo, mimmimmimmimmimmimmimmimmimmimmimmim.
— Eu não sou sua irmã, Jaime. — A mulher ergueu uma mão suave e pálida e empurrou o capuz para trás. — Esqueceu-se de mim?
Posso esquecer-me de alguém que nunca conheci? As palavras ficaram-lhe presas na garganta.
Ele conhecia-a, mas tinha-se passado tanto tempo...
— Também esquecerá o senhor teu pai? Pergunto a mim mesma se alguma vez o conheceste verdadeiramente. — Os olhos dela eram verdes, o cabelo ouro tecido. Jaime não seria capaz de dizer que idade a mulher tinha. Quinze anos, pensou, ou cinquenta. Subiu os degraus e parou junto do estrado. — Ele nunca conseguiu suportar que se rissem de si. Era isso que mais detestava.
— Quem é você? — Tinha de a ouvir dizê-lo.
— A questão é: quem és você?
— Isto é um sonho.
— É? — Ela fez um sorriso triste. — Conte as mãos, pequeno.
Uma. Uma mão, apertada com força em volta do cabo da espada. Só
uma.
 — Nos meus sonhos, tenho sempre duas mãos. — Ergueu o braço direito e fitou sem compreender a feiura do seu toco.
— Todos sonhamos com coisas que não podemos ter. Tywin sonhava que o filho seria um grande cavaleiro, que a filha seria rainha. Sonhava que seriam tão fortes, corajosos e belos que nunca ninguém se riria deles.
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— Eu sou um cavaleiro — disse-lhe Jaime — e Cersei uma rainha.
Uma lágrima rolou pelo rosto da mulher. Voltou a erguer o capuz e virou-lhe as costas. Jaime gritou-lhe, mas ela já se afastava, com a saia a sussurrar canções de embalar ao raspar no chão. Não me deixe, quis gritar, mas claro que ela já os deixara há muito.
Acordou nas trevas, tremendo. O quarto tornara-se frio como gelo. Jaime afastou as mantas com o toco da mão da espada. Viu que o fogo na lareira se apagara, e a janela fora aberta pelo vento.
Atravessou o aposento negro como breu, para ir lutar com as portinholas, mas quando atingiu a janela, os seus pés nus encontraram algo húmido. Jaime recuou, momentaneamente sobressaltado. O seu primeiro pensamento foi de sangue, mas o sangue não teria sido tão frio.
Era neve, caindo através da janela.
Em vez de fechar as portinholas, escancarou-as. O pátio, em baixo, estava coberto por um fino manto branco, que se ia tornando mais espesso sob os seus olhos. Os merlões das ameias usavam capuzes brancos. Os flocos caíam em silêncio, pairando alguns pela janela para se irem derreter na sua cara. Jaime conseguia ver a sua respiração.
Neve nas terras fluviais. Se estava nevando ali, podia perfeitamente estar também nevando em Lanisporto, e em Porto Real. O inverno marcha para sul, e metade dos nossos celeiros estão vazios.
As sementeiras que ainda se encontrassem nos campos estavam perdidas. Não haveria mais plantações, nenhuma esperança de uma última colheita. Deu por si se perguntando o que pai faria para alimentar o reino, antes de se lembrar que Tywin Lannister estava morto.
Quando rompeu a manhã, a neve chegava ao tornozelo e era mais profunda no bosque sagrado, onde montes de neve tinham sido acumulados pelo vento sob as árvores. Escudeiros, moços de estrebaria e pajens de nascimento elevado tinham-se transformado de novo em crianças sob o seu frio feitiço branco, e travavam uma guerra de bolas de neve pelos pátios e ao longo das ameias. Jaime ouviu-os rir. Tinha havido uma época, não muito tempo antes, em que poderia ter estado lá fora fazendo bolas de neve com os melhores de entre eles, para as atirar em Tyrion quando se bamboleasse por perto, ou para enfiar pelas costas do vestido de Cersei. Mas preciso de duas mãos para fazer uma bola de neve decente.
Ouviu-se um leve toque na sua porta.
— Vá ver quem é, Peck.
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Era o velho meistre de Correrrio, agarrando uma mensagem na mão enrugada e encarquilhada. O rosto de Vyman estava tão branco como a neve acabada de cair.
— Eu sei — disse Jaime — chegou um corvo branco da Cidadela. O inverno chegou.
— Não, senhor. A ave veio de Porto Real. Tomei a liberdade... não sabia... — E estendeu-lhe a carta.
Jaime leu-a no banco de janela, banhado na luz daquela fria manhã branca. As palavras de Qyburn eram sóbrias e objetivas, as de Cersei febris e ferventes.
Venha imediatamente. Me ajude. Me salve. Preciso agora de você como nunca antes precisei. Te amo. Te amo. Te amo. Venha imediatamente.
Vyman pairava perto da porta, à espera, e Jaime sentiu que Peck também estava observando.
— O senhor deseja responder? — perguntou o meistre, após um longo silêncio.
Um floco de neve caiu sobre a carta. Enquanto se derretia, a tinta começou a borrar. Jaime voltou a enrolar o pergaminho, apertando-o tanto quanto uma mão permitia, e entregou-o a Peck.
— Não — disse. — Põe isto no fogo.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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última parte da viagem era a mais perigosa. Os Estreitos Redwyne estavam repletos de Dracares, tal como lhes tinham dito em Tyrosh. Com a maior parte da frota do reino no outro lado do poente, os homens de ferro haviam saqueado Porto Ryan, haviam se apoderado de Villavinha e do Porto Estrela do Mar, e os utilizavam como base desde que começaram a atacar os navios que se dirigiam a Vilavelha.
O vigia avistou três barcos longos, dois estavam a popa à uma boa distancia, e o Vento Canela não tardou a afastar-se  deles. O terceiro apareceu no final do dia para cortar o caminho enquanto fazia um som sussurrante. Quando viu subir e baixar os remos deixando um rastro branco nas águas acobreadas. Kojja Mo enviou seus arqueiros aos castelos com seus grandes arcos, que podiam lançar uma flecha ainda mais longe e com maior precisão que os de Dorne. Esperou até que o barco longo estivesse a duzentos passos antes de dar a ordem de disparar. Sam também disparou e naquela ocasião pareceu que sua flecha chegava ao outro barco. Bastou um disparo e o barco longo virou em direção ao sul em busca de uma presa mais fácil.
O dia já era escuro quando entraram na Enseada dos Murmúrios. Goiva estava na proa com o bebê contemplando o castelo que ficava sobre as falésias.
— Três Torres — lhe disse Sam — a sede da casa Costayne.
O castelo se recortava contra as estrelas e em suas janelas cintilavam as luzes das tochas. Era um espetáculo esplendido, mas entristeceu Sam. A viagem chegava ao fim.
— É muito alto — comentou Goiva.
— Bem, você verá o farol de Torralta.
O bebê de Dalla começou a chorar. Goiva abriu a túnica para dar o peito ao pequeno. Sorriu enquanto o amamentava, e acariciou o suave cabelo castanho.
Acabou por amar tanto este como o que deixou para traz, compreendeu Sam.
Rezava aos deuses para que fossem bondosos com os dois.
Os homens de ferro tinham penetrado até nas águas resguardadas da Enseada dos Murmúrios. Quando chegou a manhã, enquanto o Vento Canela
A
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se dirigia até Vilavelha, o casco começou a tropeçar com cadáveres que flutuavam a deriva. Havia corvos pousados em alguns, e começavam a voar entre grasnos de protesto quando o barco perturbava suas grotescas jangadas. Nas margens se viam campos carbonizados e aldeias queimadas, e sob os bancos de areia tinham barcos destruídos. Os mais comuns eram os botes de pescadores e os barcos mercantes, mas também viram barcos longos abandonados, e os restos de dois grandes dromones. Um havia ardido até a linha de flutuação, enquanto que o outro tinha um enorme buraco no casco; Saltava a vista que o haviam atacado.
— Aqui houve uma batalha — disse Xhondo — não tem muito
tempo.
— Quem pode ter cometido a temeridade de fazer um ataque tão perto de Vilavelha?
Xhondo assinalou um navio semi afundado nas águas baixas. Em sua popa estavam pendurados os restos de um estandarte rasgado e manchado. Sam nunca tinha visto aqueles brasões: um olho vermelho com a pupila negra, embaixo uma coroa de ferro negro segurado por dois corvos.
— De quem é esse estandarte? — Perguntou.
Xhondo encolheu os ombros.
O dia seguinte amanheceu frio e nublado. Quando o Vento Canela passava diante de outra aldeia de pescadores que fora saqueada, um barco de guerra saiu da névoa e avançou para eles. Chamava-se Caçadora, levava o nome escrito atrás de uma figura de proa em forma de uma esbelta donzela vestida com folhas e que carregava uma lança. Em um instante apareceram mais dois barcos, um de cada lado, como um par de cães que seguem seu dono. Para alivio de Sam, levavam o estandarte do rei Tommem, o veado e o leão, encima da torre branca hierarquizada de Vilavelha com sua coroa flamejante.
O capitão da Caçadora era um homem alto que vestia uma capa cinza com uma gola de seda vermelha. Emparelhou seu navio com o Vento Canela, ordenou que levantassem os remos e gritou que ia subir a bordo. Enquanto seus besteiros e os arqueiros de Kojja Mo se olhavam a distância, ele cruzou com meia dezena de cavalheiros, saudou a Quhuru Mo com um gesto de cabeça e solicitaram ver suas adegas. Pai e filha debateram em particular uns segundos e depois consentiram.
— Desculpe — disse o capitão após a inspeção — Lamento que pessoas honradas recebam um tratamento tão descortês, mas tenho que evitar a todo custo que os homens de ferro entrem em Vilavelha. Fazem apenas
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quinze dias, estes cornos de merda capturaram um barco mercante de Tyroshi nos estreitos. Mataram a tripulação e colocaram suas roupas, usaram as tintas que levavam para tingir a barba de várias cores. Tinham intenção de colocar fogo no porto enquanto entravam e abriam uma porta por dentro enquanto combatíamos o fogo. Eles teriam se saído bem, mas encontraram com a Dama da Torre, e a esposa do chefe de remeiros é de Tyoshi. Quando viu tantas barbas violeta e verde os saudou na língua Tyroshi, e nenhum soube responder.
Sam estava escandalizado.
— Não é possível que pretendessem saquear Vilavelha
— Não eram simples saqueadores — O capitão da Caçadora o olhou com curiosidade — os homens de ferro sempre tem se dedicado ao saque. Atacam de repente pelo mar, pegam um pouco de ouro e umas tantas garotas e vão embora, mas raras vezes chegam mais de dois navios, e nunca mais de meia dezena. Agora estão nos atacando com centenas de navios; Saem das Ilhas Escudo e de várias rochas situadas em torno da Árvore. Tomaram o Recife do Caranguejo de Pedra, a ilha dos Porcos e o palácio da Sereia e também tem covil no Rochedo da Ferradura e no Berço do Bastardo. Sem a frota de Lorde Redwyne, não temos barcos suficiente para enfrenta-los.
— E o que fez Lorde Higtower? — perguntou Sam — Meu pai sempre dizia que ele é tão rico como os Lannister, que podia reunir o triplo de espadas que qualquer outra bandeira de Jardim de Cima.
— Mais, se varrer a calçada — replicou o capitão — mas as espadas não valem de nada contra os homens de ferro, a menos que os que as empunhem possam andar sobre a água.
— Hightower tem que estar fazendo algo!
— Com certeza. Lorde Leyton se trancou no alto de sua torre com a donzela louca para consultar livros de feitiços. Pode ser que consiga levantar um exercito vindo das profundezas, ou não. Baleor está construindo barcos; Gunthor tomou o Porto; Garth está treinando novos recrutas, e Hunfrey viajou a Lys para contratar barcos mercenários. Se conseguir uma frota como a da puta da sua irmã, daremos aos homens de ferro um pouco do seu próprio remédio. Até lá o melhor que podemos fazer é defender a enseada e esperar que a raposa da rainha de porto real solte o cinto à Lorde Paxter.
A amargura das ultimas palavras do capitão emocionaram a Sam tanto como seu significado.
Se Porto Real perde Vilavelha e a Árvore, todo reino se fará em pedaços, pensou enquanto via a Caçadora e suas irmãs se afastarem.
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Começava a duvidar que Monte Chifre fosse um lugar seguro. A posse dos Tarly se estendia terra adentro, entre colinas onde cresciam espessos bosques, cem léguas ao nordeste de Vilavelha e muito longe de qualquer coisa. Ali estariam fora do alcance dos homens de ferro e seus barcos longos, ainda que o Senhor seu pai estivesse ausente, lutando nas terras dos rios, e a guarnição do castelo fosse escassa. Sem dúvida o jovem lobo tinha pensado o mesmo de Winterfell até a noite em que Theon viracasaca subiu por seus muros. Sam não suportava pensar que poderia ter levado Goiva e o bebê para deixá-los a salvo e acabaria os abandonando no meio de uma guerra.
Ele passou o resto da viagem debatendo-se em dúvidas, sem saber o que fazer. Podia levar Goiva a Vilavelha. As muralhas da cidade eram muito mais imponentes que as do castelo de seu pai, e havia milhares de homens para defendê-las, em vez do punhado de soldados que devia ter deixado Lorde Randyll em Monte Chifre quando partiu para Jardim de Cima para responder a chamada de seu Senhor. Mas em tal caso teria que a esconder. Na Cidadela não se permitia a um noviço que tivesse esposa nem amante, pelo menos abertamente.
Além do mais se fico muito mais tempo com Goiva como vou ter forças para deixá-la? Porque tinha que deixá-la. Ou deserta. Pronunciei o juramento, se lembrou, se deserto me cortam a cabeça, e de que serviria isso a Goiva?
Pesou a possibilidade de suplicar a Koja Mo e a seu pai que levassem a menina selvagem para as Ilhas de Verão. Mas aquilo também envolvia perigos. Quando saísse de Vilavelha, o Vento Canela teria que cruzar outra vez os Estreitos de Redwyne. Talvez tivessem menos sorte daquela vez. E o vento morresse? E se os ilhéus de verão se encontrassem a deriva? Se o que se dizia era verdade, levariam Goiva como esposa de sal, e o mais provável era que considerassem o bebê um estorvo, e o atirassem ao mar.
Tenho que levá-la a Monte Chifre — decidiu por fim. — Quando chegarmos a Vilavelha, alugarei um carro e uns cavalos, e a levarei eu mesmo. Assim se asseguraria de deixá-la a salvo no castelo e se visse ou ouvisse algo que o fizesse duvidar, sempre podia dar meia volta e voltar para Vilavelha com Goiva.
Chegaram a Vilavelha uma manhã fria e úmida, no meio de uma neblina tão espessa que a única coisa que se via da cidade era o farol de Torralta. O porto estava cruzado por um dique flutuante que ligava duas dezenas de cascos podres. Atrás havia uma fileira de barcos de guerra ancorados junto a três grandes dromones e o carro chefe de Lord Hightower,
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um imponente navio de quatro pavimentos chamado Honra de Vilavelha. O Vento Canela teve que submeter-se a inspeção mais uma vez. Naquela ocasião, quem subiu a bordo foi Gunthor, o filho de Lorde Leyton, que levava uma capa de fio de prata e uma armadura cinza. Sor Gunthor havia estudado vários anos na Cidadela e falava a língua de verão, de maneira que Quhuru Mo e ele se reuniram no camarote do capitão para conversar em particular.
Sam aproveitou o tempo para explicar seus planos a Goiva.
— Primeiro irei à cidadela para entregar as cartas de Jon e informar a morte de Meistre Aemon. Espero que os arquimeistres enviem um carro para recolher o cadáver. Logo conseguirei cavalos e um carro para te levar até minha mãe em Monte chifre. Voltarei assim que puder, mas talvez não seja até amanhã.
— Amanhã — repetiu ela, e lhe deu um beijo para desejar-lhe sorte.
No final, Sor Gunthor voltou a sair e ordenou que abrissem o dique para que o Vento Canela pudesse entrar no porto. Enquanto amarravam o navio cisne, Sam se uniu a Koja Mo e três de seus arqueiros junto à prancha. Os ilhéus de Verão estavam resplandecentes com capas de plumas que somente colocavam para desembarcar. A seu lado se sentia esfarrapado, com a roupa negra larga, a capa desbotada e as botas manchadas de salitre.
— Quanto tempo você vai ficar no porto?
— Dois dias, dez dias, quem sabe? O tempo que esperamos esvaziar as adegas e voltar a enchê-las — Koja sorriu — Depois meu pai tem que visitar os meistres cinzentos. Quer vender uns livros.
— Goiva pode ficar a bordo até que eu volte?
— Goiva pode ficar todo tempo que quiser — cravou um dedo na barriga de Sam — não come tanto como os outros.
— Não estou tão gordo como antes— se defendeu o garoto.
Era um dos resultados da viagem até o sul, com tantos guardas e comendo somente frutas e peixes. Os ilhéus de Verão gostavam muito de frutas e peixes.
Sam desceu pela prancha com os arqueiros, mas ao chegar à margem se separaram e cada um foi para o seu lado. Rezou para lembrar como chegava à cidade, Vilavelha era um labirinto, e não podia perder tempo se perdendo.
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Era um dia úmido, e os paralelepípedos do solo estavam escorregadios e as ruas, envoltas em névoas e mistérios. Sam tratou de evitálos e seguiu o caminho do rio que serpenteava junto à margem de Vinhomel cruzando o coração do casco velho. Era agradável voltar a pisar em terra firme, em vez de um convés que se mexia sem parar, mas apesar de tudo se sentia incomodado. Notava os olhares cravados nele: o espiavam de janelas e balcões, e o observavam desde o portal escuro. A bordo de Vento Canela sabia quem eram todos. Em vez disso, naquela cidade, aonde olhasse, todos eram desconhecidos. E o pior ainda era a possibilidade de ver algum conhecido. Não havia ninguém em Vilavelha que não soubesse quem era Lorde Randyll Tarly, ainda que poucos lhe tivessem afeto. Sam não sabia o que poderia ser pior; que um inimigo de seu pai lhe reconhecesse ou um de seus amigos. Cobriu-se com o capuz e acelerou o passo.
As portas da Cidadela estavam ladeadas por um casal de gigantescas esfinges verdes, com corpo de leão, asas de águia e cauda de serpente. Uma tinha rosto de homem, e a outra de mulher. Do outro lado estava o Lar do Escriba, onde iam os moradores de Vilavelha para que os acólitos escrevessem testamentos e lessem cartas. Havia meia dezena de escribas chatos sentados sobre os estábulos ao ar livre, a espera de clientes. Em outros estábulos se compravam e vendiam livros. Sam se deteve diante de um que vendia mapas e examinou um da cidadela para verificar a forma mais rápida de chegar a Residência do Senescal.
O caminho se dividia no ponto onde se encontrava a estátua do rei Daeron Primeiro montado em um alto cavalo de pedra, com as costas voltadas em direção à Dorne. O Jovem Dragão tinha uma gaivota pousada na cabeça e outras duas na espada. Sam tomou a bifurcação da esquerda, a que seguia o curso do rio. Na Doca Gotejante viu dois alcólitos que ajudavam um ancião a subir em um bote para uma curta viagem até à ilha Sangrenta. Atrás dele subiu uma jovem mãe, da idade de Goiva, com um bebê chorão nos braços. Em baixo do cais, alguns meninos cozinheiros procuravam rãs nas águas. Um grupo de noviços com bochechas coradas passaram correndo em direção ao septo.
Deveria ter vindo quando tinha sua idade, pensou Sam, se eu tivesse fugido e arranjado um nome falso, poderia ter desaparecido entre os outros noviços. Assim meu pai poderia ter fingido que Dickon era seu único filho. Nem sequer teria se incomodado em me buscar, a não ser que eu tivesse levado uma mula, então sim teria me perseguido, mas apenas pela mula.
Diante da Residência do Senescal, os reitores estavam pondo no pelourinho um noviço maior.
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— Roubou comida na cozinha — explicava um deles aos alcólitos que aguardavam para atirar verduras podres no prisioneiro.
Todos olharam para Sam com curiosidade quando passou a seu lado com a capa negra balançando como uma vela.
Do outro lado das portas havia um vestíbulo com solo de pedra e janelas altas arrematadas por arcos. Nos fundos viu um homem com rosto magro, sentado sobre um estrado, que escrevia a caneta em um livro. Vestia uma túnica de meistre, mas não levava corrente ao pescoço. Sam tossiu.
— Bom dia
O homem levantou a vista, e ao que pareceu, não mereceu sua aprovação.
— Você cheira como um noviço.
— Espero ser um em breve. — Sam tirou as cartas que Jon Snow havia lhe dado. — Vinha da Muralha com mestre Aemon, mas ele morreu durante a viagem. Se pudesse falar com o Senescal...
— Seu nome?
— Samwell. Samwell Tarly.
Ele anotou no livro e lhe fez um aceno com a caneta em direção a um banco situado junto à parede.
— Sente-se. Irão te chamar
Sam se sentou no banco.
Chegaram outros homens. Uns entregavam mensagens e partiam; outros falavam com o homem do estrado, que os convidava a atravessar a porta que ficava atrás e subir por uma escada. Outros sentavam com Sam no banco, esperando que os chamassem. Tinha quase certeza que alguns que foram chamados tinham chegado depois dele. Na quarta ou quinta vez que isso aconteceu, se levantou e cruzou a sala.
— Falta muito?
— O Senescal é muito importante
— Venho da Muralha
— Então não se importaras de esperar um pouco mais — acenou com a caneta — nesse banco aí embaixo da janela.
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Sam voltou ao banco. Transcorreu mais uma hora. Chegaram mais visitantes. Todos falavam com o homem do estrado e esperavam um tempo até eram chamados.
Em todo aquele tempo, o porteiro nem se dignou a olhar Sam. No exterior a névoa ia sumindo à medida que o dia ia avançando. A luz brilhante do sol entrava pelas janelas. Sam se distraiu olhando as partículas de poeira que dançavam na luz. Ele deixou escapar um bocejo, e depois outro. Ele mexeu uma bolha rebentada da mão, antes de apoiar a cabeça na parede e fechar os olhos. Devia ter cochilado. Imaginou depois que o homem do estrado tinha gritado seu nome. Sam se levantou, mas voltou a sentar quando se deu conta que não era o seu.
— Tem que dar uma moeda a Loecas; Se não, ficará três dias esperando — disse uma voz ao seu lado. — Que traz a Patrulha da Noite a Cidadela?
Seu interlocutor era um jovem esbelto, constante, atraente, que vestia uns calções de pele de cervo. Tinha a pele da cor de cerveja negra e uma massa de cachos negros apertados que terminava em um pico na raiz do cabelo, em cima dos grandes olhos negros.
— O Senhor Comandante está restaurando os castelos abandonados — explicou Sam — Necessitou mais meistres para os corvos... Falou sobre uma moeda?
— Pode ser uma de cobre. Em troca de um veado de prata, Lorcas te leva nas costas para ver o Senescal. Tem cinqüenta anos de acólito. Detesta os noviços, sobre todos os de nascimento novre.
— Como sabe que sou de nascimento nobre?
— Da mesma forma que você sabe que eu sou meio dornês — disse com um sorriso, e com um suave sotaque de Dorne.
Sam buscou uma moeda.
— Você é noviço?
— Acólito. Alleras, alguns me chamam de Esfinge.
Sam se assustou.
— A esfinge é uma adivinha, não o adivinho — disse atropeladamente — sabe o que significa isso?
— Não. É uma adivinha?
— Isso eu queria saber. Sou Samwell Tarly. Sam.
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— Um prazer. E que assuntos tem que tratar Samwell Tarly com o Arquimestre Theobald?
— Assim se chama o Senescal? — perguntou Sam, confuso — o mestre Aemon disse que era Norren.
— Fazem dois turnos que não. Cada ano se elege um novo Senescal.O cargo é tirado a sorte entre os arquimestres, porque quase todos consideram que é uma tarefa ingrata que os separa de seu verdadeiro trabalho. Esse ano, o arquimestre Walgrave levou a pedra negra, mas as vezes ele é meio louco, Theobald se ofereceu voluntariamente para substituílo . É um pouco brusco, mas uma boa pessoa. Você falou Meistre Aemon?
— Sim.
— Aemon Targaryen?
— Esse foi seu nome, mas todos o chamavam Meistre Aemon. Morreu quando viemos de barco para o sul. Como você o conhece?
— Como não ia conhecê-lo? Não só era o mestre vivo mais velho; também era o homem mais velho do poente. Viveu mais historias do que poderia aprender o Arquimeistre Perestan. Poderia ter nos contado muitas coisas dos reinados de seu pai e de seu tio. Sabes quantos anos tinha?
— Cento e dois.
— E o que fazia embarcado nessa idade?
Sam meditou na pergunta um momento; não sabia ate que ponto podia revelar a verdade.
A Esfinge é uma adivinha. Não o adivinho. Seria possível que mestre Aemon se referisse aquela Esfinge? Não parecia provável.
— O Senhor Comandante Snow o enviou longe para salvar-lhe a vida — começou titubeante.
Falou-lhe do rei Stannis e de Melisandre de Asshai. Não pretendia chegar além, mas uma coisa levou a outra, e acabou falando de Mance Rayder e seus selvagens, do sangue real e dos dragões, e antes de se dar conta saiu o resto todo: os espectros do Punho dos Primeiros Homens, o Outro montado em seu cavalo morto, o assassinato do Velho Urso na Casa de Craster, Goiva e sua fuga, Árvore Branca e Paul, pequeno, Mãos frias e os corvos, como havia chegado Jon à Senhor Comandante, o Pássaro Negro, Dareon, Bravos, os dragões que Xhondo havia visto em Quart, o Vento Canela e o que lhe havia sussurrado mestre Aemon quando estava morrendo.
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Só não falou dos segredos que havia jurado guardar de Bran Stark e seus amigos ,e dos bebês que Jon Snow havia trocado.
— Danenerys é a única esperança — concluiu. — Aemon disse que a Cidadela deveria enviar um meistre a ela sem demora, para que volte ao oeste com ela antes que seja tarde demais.
Alleras escutou com atenção. De vez em quando piscava, mas em nenhum momento riu ou interrompeu. Quando Sam terminou, lhe colocou uma esbelta mão morena no seu braço.
— Salva a moeda Sam, Theobald não vai acreditar nem na metade do que diz, mas a outros que talvez sim. Porque não vem comigo?
— Para onde?
— Falar com arquimestre.
Tens que lhes dizer, Sam. Havia dito o mestre Aemon. Tem que contar aos arquimestres.
— Muito bem. — Sempre poderia voltar a tentar ver o Senescal no dia seguinte, com uma moeda na mão. — Temos que ir muito longe?
— Não muito. A Ilha dos Corvos.
Não lhes fez falta nenhum bote para chegar à Ilha dos Corvos; uma ponte levadiça de madeira em ruínas a unia com a costa.
— A Corvaria é o edifício mais velho da Cidadela — explicou Alleras enquanto cruzavam as lentas águas de Vinhomel. — Dizem na Era dos Heróis era a fortaleza de um senhor pirata que ficava de braços cruzados saqueando os barcos que navegavam rio abaixo.
Sam percebeu que as paredes estavam cobertas de musgo e videiras, e que as ameias estavam patrulhadas por corvos, não por arqueiros. Ninguém se lembrava de ver a ponte levadiça sendo içada.
No interior do castelo estava fresco e reinava a penumbra. Um velho represeiro crescia no pátio, desde que fora construído o edifício. O rosto entalhado no tronco estava coberto de musgo violeta que se pendurava nas ramas embranquecidas. Muitas delas pareciam secas, mas outras ainda tinham algumas folhas vermelhas, e essas eram as favoritas dos corvos. A árvore estava cheia de pássaros, e havia mais nas janelas arrematadas com arcos que davam para o pátio. Os excrementos cobriam todo solo. Enquanto cruzavam o pátio, um começou a voar, e os outros começaram a grasnar.
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— As habitações do arquimestre Walgrave estavam na torre oeste, embaixo do aviário branco, — lhe disse Alleras. — Os corvos brancos e os negros brigam como dorneses e marquenos. Assim temos que separá-los.
— Você acredita que o arquimestre Walgrave entenderá o que vou dizer? — perguntou Sam. — Antes tinha dito que ele é meio louco.
— Tem dias bons e dias ruins — respondeu Alleras —, mas não é Walgrave a quem vai ver.
Abriu a porta da torre norte e começou a subir. Sam subiu as escadas depois dele. Encima se ouvia agitação e murmúrios, e de quando em quando, um grasnido com raiva, como se os corvos se queixaram de que os acordaram.
No topo das escadas havia um jovem pálido e loiro, da idade de Sam, sentado diante de uma porta de carvalho e ferro, olhando atentamente a chama de uma vela com o olho direito. O esquerdo estava tapado com uma mecha de cabelo loiro cinza.
— Que está buscando? — lhe perguntou Alleras. — Seu destino? Sua morte?
O jovem loiro desviou a vista da vela e piscou.
— Mulheres peladas — respondeu. — E este quem é?
— Samwell. Um noviço recém-chegado, que quer ver o Mago.
— A Cidadella já não é o que era — se queixou o loiro. — Hoje em dia aceitam qualquer um. Cachorros morenos, dorneses, guardadores de porco, aleijados, imbecis, e agora, uma baleia vestida de preto. E eu que acreditava que os leviatãs eram cinzentos.
Uma capa curta de listras verdes e douradas cobria um ombro. Era muito bonito, embora tivesse os olhos astutos e aboca cruel. Sam o conhecia.
— Leo Tyrell. — Só ao pronunciar o nome voltou a sentir-se como um garotinho de sete anos ao ponto de molhar os calções — eu sou Sam, de Monte Chifre, o filho de Lorde Randyll Tarly.
— De verdade? — Leo lhe deu outra olhada. — Imagino que sim. Seu pai nos disse que havia morrido. Ou desejava que tivesse morrido? — sorriu. — Continua sendo tão covarde como antes?
— Não — mentiu Sam, como Jon o havia ordenado. — Fui mais além da Muralha e participei de batalhas. Me chamam de Sam, o matador.
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Nunca soube por que havia dito. As palavras escaparam sem mais.
Leo começou a rir, mas antes que pudesse dizer nada, se abriram as portas que estavam as suas costas.
— Entre, Matador — rosnou o homem do umbral. — E você também, Esfinge, venha.
— Esse é o Arquimestre Marwyn, Sam — disse Alleras.
Marwyn levava uma corrente de diversos metais em volta do grosso pescoço. Além disso, parecia mais um vadio portuário do que um meistre. Sua cabeça era desproporcionalmente grande em relação ao corpo, e sua maneira de projetá-la para frente desde os ombros, juntamente com o queixo resistente, fazia que parecesse a ponto de matar alguém. Era baixo e atarracado, mas com o peito e os ombros amplos, e uma barriga de cerveja redonda e dura como uma pedra, que forçava os laços do gibão de couro que usava como túnica. Das orelhas e do nariz saiam mechas de pelo branco. Tinha a frente protuberante, lhe haviam quebrado o nariz em mais de uma ocasião, tinham lhe deixado os dentes cheios de manchas vermelhas, e suas mãos eram as maiores que Sam já havia visto.
O garoto titubeou, e uma daquelas mãos enormes o agarrou pelo braço e o obrigou a cruzar a porta. A sala que havia do outro lado era grande e redonda. Havia livros e pergaminhos por toda parte, espalhados sobre as mesas e amontoados no chão em pilhas de seis palmos de altura. As paredes de pedra estavam cobertas de tapetes desbotados e mapas desgastados. Na lareira ardia um fogo que esquentava um caldeirão de cobre. Fosse o que fosse seu interior, cheirava a queimado. A única luz da sala procedia de uma vela alta e negra situada no centro da habitação.
Tinha um brilho desagradável. Havia algo de estranho nela. A chama não piscava, nem sequer quando o Arquimeistre Marwyn fechou a porta com tanta força que tremularam os papéis de uma mesa próxima. Também, aquela luz fazia um efeito estranho nas cores. No branco era tão brilhante como a neve recém caída, no amarelo brilhava como ouro; no vermelho pareciam chamas, mas nas sombras eram tão negras que pareciam orifícios abertos no mundo. Sam se deu conta de que não podia desviar a vista. A própria vela media uma vara e era esbelta como um junco, retorcida e estriada, de um negro deslumbrante.
— Isso é...?
— Obsidiana? — Terminou um outro homem da sala, um jovem pálido e gordo com os ombros redondos, as mãos macias,os olhos muito juntos e manchas de comida na túnica.
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— Chama-se vidro de dragão — o arquimestre Marwyn contemplou a vela um instante. — Arde, mas não se consome.
— O que alimenta a chama? — Quis saber Sam.
— O que alimenta o fogo de um dragão? — Marwyn se sentou em um tamborete — toda bruxaria de Valíria tinha suas raízes no sangue e no fogo. Com uma dessas velas de cristal, os feiticeiros do Feudo Franco podiam ver através de montanhas, mares e desertos. Eram capazes de entrar no sonho das pessoas e provocar-lhes visões; podiam manter conversas mesmo que estivessem a meio mundo de distância, sentados diante de suas velas. Não te parece que isso seria útil, Matador?
— Assim não fariam falta os corvos.
— Somente depois das batalhas — o arquimestre pegou uma folhamarga de um fardo, meteu na boca e começou a mastigar — Conte-me tudo que disse a nossa Esfinge de Dorne. Já sei boa parte, e também coisas que ignora, mas quem sabe me escapou algum detalhe.
Não era um homem a que se pudesse negar nada. Sam titubeou um momento e voltou a relatar toda sua historia a Marwyn, a Alleras e ao outro noviço.
— Meistre Aemon acreditava que a profecia teria se cumprido em Daenerys Targaryen. Nela, não em Stannis, nem no príncipe Rhaegar, nem no principezinho que estamparam em uma moeda.
— Nascido de sal e fumaça, embaixo de uma estrela que sangra. Eu conheço a profecia. — Marwyn girou a cabeça e cuspiu. — Não digo que me pareça verdadeira, claro. Como escreveu Gorghan do Antigo Ghis, uma profecia é como uma mulher traiçoeira: ela te chupa, geme de prazer, e pensa “que bom, que maravilha, como eu gosto...” e de repente aperta os dentes, e os gemidos se transformam em gritos. Gorghan dizia que esta era a natureza das profecias: arrancam-te o pau com uma mordida quando se descuida. — seguiu mastigando — ainda assim...
Alleras deu um passo para ficar junto de Sam.
— Aemon havia ido com ela se não tivesse lhe faltado forças. Queria que a enviássemos um meistre para que a aconselhe e proteja, para que a traga sã e salva.
— É verdade? — o arquimestre Marwyn encolheu os ombros. — Pois menos mal que morreu antes de chegar a Vilavelha. Se não, poderia o rebanho cinzento ter que matá-lo, e ao pobre velho teria sido fatal.
— Matá-lo?— se escandalizou Sam — Por quê?
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— Se eu te digo, talvez tenham que te matar também — Marwyn lhe deu um sorriso espantoso; os pedaços da folhamarga ficavam entre os dentes — Quem acredita que matou os dragões da ultima vez? Galantes cavaleiros mataram dragões com sua espada? — cuspiu. — O mundo que a Cidadela está  onstruindo não tem lugar para feitiçaria, nem profecias e nem as velas de cristal, e muito menos para dragões. Não se pergunta por que se permitiu que Aemon Targaryan desperdiçasse sua vida na muralha, quando deveria ter sido arquimestre por direito? Pelo seu sangue. Não podia se confiar nele. Nem em mim.
— Que vai fazer? — Quis saber Alleras.
— Irei à Baía dos Escravos no lugar de Aemon. O navio cisne que trouxe Matador me servirá perfeitamente. O rebanho cinzento enviará seu homem em um navio, sem duvida. Se tiver bons ventos, eu chegarei antes. — Marwyn olhou Sam outra vez e franziu a testa — e quanto a você... tem que ficar e forjar uma corrente. Eu em seu lugar teria pressa. Chegará um momento em que fará falta na muralha. — Se voltou até o noviço de rosto gordo — Arranje uma cela seca para o Matador. Dormirá aqui e te ajudará a cuidar dos corvos.
— Mas... mas...mas... — balbuciou Sam, os outros arquimestres — ... o Senescal... que lhes direi?
— Diga que eles são sábios e bondosos. Diga que Aemon te ordenou que te pusesse em suas mãos. Diga que sempre sonhou com o dia em que te permitiriam colocar a corrente e servir, e que o serviço é a honra mais alta, e a obediência, a virtude mais elevada. Mas nunca diga nada sobre profecias de dragões, a menos que você goste de sopa com veneno. — Marwyn vestiu uma capa de couro que estava pendurada em um prego, junto da porta, e a abotoou. Cuide dele, Esfinge.
— Cuidarei — respondeu Alleras, mas o arquimiestre já tinha saído. Ouviram suas pisadas escada a baixo.
— Aonde ele vai? — perguntou Sam, assombrado.
— Para as docas. O mago não perde tempo. — Alleras sorriu — tenho que confessar uma coisa: nosso encontro não foi casual, Sam. O Mago me enviou para te pescar antes que falasse com Theobald. Sabia que vinha.
— Como?
Alleras mostrou a vela de cristal.
Sam contemplou por um momento a estranha chama clara, e depois piscou e afastou os olhos. Do lado de fora da janela começava a escurecer.
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— Tem uma cela desocupada em baixo da minha, na torre oeste, com umas escadas que levam as salas de Walgrave — disse o jovem de rosto gordo. — Se não te incomodam os grasnidos dos corvos, tem uma boa vista do Vinhomel. Te parece bom?
— Imagino que sim.
Em algum lugar teria que dormir.
— Te levarei umas mantas de lã. Por culpa das paredes de pedra faz frio à noite, inclusive aqui.
— Agradeço. — O menino pálido e suave tinha algo que ele não gostava, mas não queria parecer descortês. — De verdade, não me chamo Matador. Sou Sam. Samwell Tarly.
— Eu me chamo Patê — respondeu — como o guardador de porcos.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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ENQUANTO ISSO, NA MURALHA… ENQUANTO ISSO, NA MURALHA… ENQUANTO ISSO, NA MURALHA… ENQUANTO ISSO, NA MURALHA…  
 
 
  i, espere um minuto! alguns de vocês devem estar dizendo isso agora. Espere um pouco, espere um pouco! Onde está Dany e os dragões? Onde está Tyrion? Nós quase não vimos Jon Snow. Não pode ter acabado…  Bem, não. Há mais por vir. Outro livro tão grande quanto este. Eu não esqueci de escrever sobre os outros personagens. Longe disso. Eu tenho escrito muito sobre eles. Páginas e páginas e mais páginas. Capítulos e mais capítulos. Eu ainda estava escrevendo quando me dei conta de que o livro estava ficando realmente muito grande para ser publicado em um único volume… e eu não estava nem perto de terminá-lo ainda.   Para contar toda a história que eu queria contar-lhes eu teria que cortar o livro em dois. O caminho mais simples a ser seguido seria pegar o que eu já tinha e parti-lo ao meio, por volta da metade, e terminar com um “Continua.” Quanto mais eu pensei sobre isso, entretanto, mais eu sentia que os leitores estariam melhor servidos com um livro que contasse toda a história com apenas metade dos personagens, do que metade da história com todos os personagens. Então essa foi a rota que eu escolhi seguir.  Tyrion, Jon, Dany, Stannis e Melisandre, Davos Seaworth e todos os outros personagens que você ama ou ama odiar estarão de volta no próximo ano (eu sinceramente espero) no A Dance with Dragons, quando o foco estará nos eventos que ocorreram na Muralha e do outro lado do mar, do mesmo modo como este livro foi focado nos acontecimentos em Porto Real. 

 

 

                                                                  George R. R. Martin

 

 

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