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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O FILME PERFEITO / Jodi Picoult
O FILME PERFEITO / Jodi Picoult

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Will Cavalo Alado está chegando na Califórnia para trabalhar na Delegacia de Los Angeles como policial. No fundo, está tentando fugir de suas raízes índigenas deixando a Reserva Pine Ridge, em Dakota do Sul, onde nasceu e toda sua  família vive. Will percebeu que nunca teria um lugar na reserva quando tinha apenas dez anos. Ele é um iyeska, mestiço.
Pouco depois de chegar na cidade, encontra uma mulher desmaiada perto de uma igreja.
Will a leva para sua casa, mesmo sabendo que deveria levá-la a delegacia mais próxima. Ao acordar, a mulher não sabe quem é, onde está nem ao menos seu nome. Por isso, Will passa a chamá-la de Jane. Pouco tempo depois, ambos descobrem que Jane realmente é: Cassie Barret, mulher desaparecida do astro de Hollywood Alex Rivers. Jane/Cassie ainda não se lembra de nada, mas resolve voltar para a casa com o marido, pois é o certo a se fazer. Alex é o marido perfeito, próprio de um filme: Mima Cassie, lhe dá presentes, maravilhoso na cama, bonito e rico. Mas não demora muito, Cassie conhece um outro lado de Alex, o lado agressivo e perigoso, resultado de sua infância conturbada e percebe que talvez sua vida não seja um conto de fadas. Aos poucos, Cassie relembra vários acontecimentos.


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Will continua na história, paralelamente, sem nenhum contato com Cassie. Jodi Picoult então, abre uma nova divisão no livro, voltando anos antes, mostrando como Cassie e Alex se conheceram, o início do casamento, a vida de casados e Cassie percebendo os primeiros sinais de que Alex não é assim tão perfeito. Essa divisão Flashback caminha até o dia em que Cassie some, poucos instantes antes de onde começa o livro, com Will a achando. E aí descobrimos que talvez ela não tenha sumido por acaso, e sim com um propósito: Proteger seu filho. Ela está grávida. O livro então, volta ao presente, onde a história realmente começa, com Cassie começando a ter sua memória de volta. Percebe então que precisa da ajuda de Will mais do que nunca.
O livro não mostra só a história de Cassie. Mostra também Will aceitando quem ele é e sua raiz indígena, e Alex, superando os demônios do seu passado e reconhecendo seus erros.
A Jodi é incrível por causa disso: Ela consegue humanizar todas as suas personagens, suas qualidade e defeitos de uma forma sensível. Porque apesar de tudo, Alex realmente ama Cassie.
Os pontos fracos pra mim, é a narrativa meio tediosa no começo do livro, as cenas sobre a cultura indigena, um pouco chatas e alguns lados do livro que não foram muito bem explorados, na minha opinião. O livro é muito bom, mas não chega perto de O Pacto.
Há muito tempo, às margens do Atlântico, vivia um grande guerreiro indígena chamado Vento Forte. Ele possuía um poder mágico - conseguia ficar invisível - e assim conseguia caminhar pelos campos dos inimigos e roubar seus segredos. Sua casa era uma tenda que ficava ao lado do mar em um local de brisa suave e ali ele vivia com sua irmã.
Sua habilidade como guerreiro fez com que ele ficasse muito conhecido e muitas donzelas queriam se casar com ele. Mas Vento Forte não dava atenção aos sorrisos tolos e afetados, aos comentários de que, juntos, eles seriam o casal perfeito. Ele dizia que se casaria com a primeira donzela que o enxergasse voltando para casa à noite. E assim estabeleceu um teste para revelar a sinceridade das donzelas. Muitas delas iam à praia com a irmã de Vento Forte, quando o sol se punha no mar, esperando conquistar seu coração. A irmã de Vento Forte sempre conseguia vê-lo, mesmo quando ele ficava invisível para o resto do mundo. Assim, quando seu irmão se aproximava, ela virava-se para a garota ao seu lado, que olhava para o horizonte. "Você consegue vê-lo?" Todas as donzelas esperançosas respondiam: "Sim, sim, ali está ele". A irmã de Vento Forte perguntava em seguida: "Com o que ele puxa sua prancha?". As respostas eram diversas: Com a pele de um caribu. Com uma vara comprida. Com uma planta resistente. A irmã do índio percebia que as mentiras eram tentativas de acerto e sabia que Vento Forte não escolheria aquela garota que a seguia na areia molhada. No vilarejo, havia um poderoso cacique, um viúvo, pai de três filhas. Uma delas era anos mais nova do que as outras. Seu rosto era belo como a primeira chuva do verão; seu coração abrigava com delicadeza a dor do mundo. Suas irmãs mais velhas, tomadas de inveja, tiravam proveito de sua personalidade. Tentavam tirar sua beleza deixando-a vestir roupas puídas, cortando seu reluzente cabelo preto e queimando seu rosto e pescoço com carvão em brasa. Diziam ao cacique que a garota fazia aquelas coisas consigo mesma. Assim como as outras donzelas do vilarejo, as duas irmãs mais velhas tentaram enxergar Vento Forte chegando em meio à penumbra. Foram para a praia com a irmã do índio, a água do mar lambia suas pernas, e elas esperaram. Como sempre, a irmã de Vento Forte perguntou se elas o enxergavam e, mentindo, elas responderam que sim. Ela perguntou com o que ele puxava sua prancha e, tentando adivinhar, elas disseram que ele o fazia com couro cru. Quando entraram na tenda dele, aporta bateu com o vento. Esperavam ver Vento Forte inclinado sobre seu jantar, mas não viram nada. Vento Forte, percebendo a decepção que sentiam, manteve-se invisível. No dia em que afilha mais jovem do cacique foi procurar Vento Forte, esfregou a terra nas faces para esconder suas cicatrizes e cobriu a roupa com a casca das árvores. Ela passou por outras donzelas enquanto se dirigia à praia, e estas riram e a chamaram de tola. Mas a irmã de Vento Forte estava esperando e, quando sol se pôs, ela levou a garota à praia. Quando Vento Forte se aproximou com sua prancha, a irmã perguntou: "Você consegue vê-lo?". A garota respondeu: "Não" e a irmã de Vento Forte estremeceu ao escutar a verdade. "Consegue enxergá-lo agora?", perguntou novamente. A princípio, a garota nada disse, mas olhou para o céu e seus olhos brilharam. "Oh, sim", ela disse, finalmente, "e ele é maravilhoso. Dança nas nuvens e caminha com a lua sobre seu ombro." A irmã de Vento Forte virou-se para ela e perguntou: "Com o que ele puxa sua prancha?".
"Com o arco-íris." Ela também olhou para o céu. "E de que é feita a corda de seu arco?". A garota sorriu e o luar banhou seu rosto. "Da Via Láctea", ela disse. "E suas setas têm as estrelas mais brilhantes nas pontas." A irmã de Vento Forte sabia que, como a garota havia admitido não tê-lo visto no começo, o índio mostrara-se a ela. Levou a garota para casa, deu-lhe um banho, passando as palmas das mãos sobre a pele marcada até todas as cicatrizes desaparecerem de seu corpo. Cantou enquanto o cabelo da garota crescia, grosso e preto, pelas suas costas. Deu a ela suas roupas novas e a levou à tenda de Vento Forte. No dia seguinte, Vento Forte casou-se com ela, e ela atravessou o céu com ele e olhou para a sua família na Terra. As duas irmãs mais velhas estavam irritadas e ergueram o punho, protestando aos espíritos dos dois, exigindo saber o que havia acontecido. Vento Forte resolveu castigá-las pela dor que tinham causado à sua esposa. Assim, transformou-as em chorões e enterrou suas raízes profundamente na terra. Desde então, as folhas dos chorões tremem de medo com a chegada de Vento Forte. Por mais silenciosamente que ele se aproxime, elas estremecem, porque não conseguem esquecer seu poder e sua ira. - Lenda dos índios algonquinos Um A primeira coisa que o jardineiro viu quando chegou ao pequeno cemitério atrás da igreja de St. Sebastian foi o corpo que alguém havia esquecido de enterrar. Ela estava deitada sobre um túmulo, a cabeça perto da lápide, os braços cruzados sobre o estômago. Era quase tão pálida quanto as sete peças puídas de granito que a cercavam. O jardineiro respirou profundamente, largou sua toalha e benzeu-se. Deu um passo à frente e se inclinou para espiar o corpo, fazendo sombra. Em algum ponto no céu ouviu-se uma gaivota grasnar, e os olhos da mulher se abriram, e o jardineiro virou-se e saiu correndo pelo portão de ferro que levava às ruas agitadas de Losângeles. A mulher olhou para o céu. Não sabia onde estava, mas tudo permanecia em silêncio; ficou feliz por isso, pois sua cabeça latejava. Tentou se lembrar de como havia parado ali. Sentando-se, tocou o túmulo e semicerrou os olhos para conseguir enxergar as letras que sua visão embaçada não conseguia decifrar. Ficou em pé e recostou-se na pedra para não cair. Inclinou-se e sentiu ânsia de vómito, levando as mãos ao estômago e controlando as lágrimas por causa da dor que sentia na cabeça. - Uma igreja - ela disse, assustando-se com o volume da própria voz. - Isso é uma igreja. Caminhou até o portão e analisou os carros e os ônibus que passavam. Havia dado três passos para longe da igreja quando percebeu que não sabia para onde ir. "Pense", ela exigiu de si mesma. Levou a mão à testa e sentiu seu sangue escorrendo.
- Jesus - ela disse. Sua mão tremia. Procurou por um lenço no bolso de sua jaqueta, uma jaqueta puída de couro que ela não se lembrava de ter comprado, mas encontrou apenas um protetor labial e 2,24 dólares trocados. Caminhou de volta ao cemitério e procurou atrás da lápide por uma carteira, uma mochila, uma pista. - Fui assaltada - ela disse, secando a sobrancelha na manga. - Devo ter sido assaltada. - Correu para a porta da igreja e bateu, mas estava trancada. Foi até o portão novamente, pensando em se dirigir até a delegacia de polícia mais próxima e informar o que havia acontecido. Ela daria seu endereço e telefonaria... Para quem telefonaria? Avistou um ônibus no ponto da esquina. Não sabia onde estava. Não sabia onde ficava a delegacia mais próxima. Nem sequer sabia seu nome. Roendo a unha, ela deu um passo para trás, para dentro do cemitério, onde se sentia mais segura. Ajoelhou-se ao lado do túmulo onde acordara e apoiou a cabeça na lápide gelada. Talvez o padre voltasse logo, pensou. Talvez alguém se aproximasse oferecendo ajuda. Talvez apenas ficasse ali. Sua cabeça começou a latejar, dores que ameaçavam dividi-la ao meio. Ela abaixou-se e deitou-se sobre o túmulo mais uma vez, abrigando-se na jaqueta para afastar o frio da terra. Esperaria. Abriu os olhos, esperando obter respostas, mas só viu as nuvens que cobriam o céu. NÃO HAVIA TERRA SUFICIENTE NA CALIFÓRNIA. Ele sentia, insistente como um martelar em sua garganta, a claustrofobia nascida do asfalto quente sob os pneus e as casas tão próximas umas das outras a ponto de dificultar a respiração. Por isso ele continuou dirigindo a leste para encontrar o mar, esperando que isso ocorresse antes do escurecer. Nunca tinha visto o mar. Só o conhecia por fotos e relatos feitos pela sua mãe e por seu pai. Lembrou-se das histórias que seu pai contava, histórias nas quais ele não acreditara à época, de índios encarcerados nos anos 1800 e que morreram no dia seguinte porque não suportaram o confinamento. Pensou nas estatísticas do Departamento de Assuntos Indígenas, que indicavam que 66% dos indígenas que deixavam as reservas retornavam, incapazes de viver nas cidades. É claro, ele não era completamente Sioux. Porém tampouco era totalmente branco. O olfato foi mais rápido do que a visão. O vento carregava o sal das ondas. Ele estacionou a picape enferrujada de segunda mão na beira da estrada e desceu o monte inclinado. Não parou de correr até ver seus tênis submersos, até a água manchar sua calça jeans como lágrimas. Uma gaivota grasnou. William Cavalo Alado ficou ali, com os braços abertos, os olhos fixos no oceano Pacífico, porém vendo as planícies listradas e as montanhas de Dakota que não seriam seu lar. NA RESERVA PINE RIDGE, EM DAKOTA DO SUL, a estrada 18 levava à cidade, e, se quisesse ir a outro lugar, passaria por paisagens naturais ou
veículos há muito abandonados, uma vez que não existiam muitas outras vias. Mas ele havia chegado a Los Angeles três dias antes e ainda precisava se orientar. Alugara uma pequena casa em um conjunto residencial em Reseda, que era próxima o bastante da Delegacia de Los Angeles para que não houvesse a necessidade de percorrer um longo trajeto para chegar ao trabalho, porém suficientemente distante para que ele tivesse a impressão de não estar preso ao serviço. Só teria de se apresentar no dia seguinte - a papelada necessária havia sido providenciada e enviada pelo correio - e ele planejara aproveitar esse tempo para conhecer Los Angeles. Will bateu o punho no volante. Onde estava? Inclinou-se no banco da frente, procurando pelo mapa que havia largado minutos antes. Semicerrou os olhos para enxergar as pequenas estradas em vermelho, mas a luz de dentro da picape tinha sido o primeiro item do veículo a parar de funcionar, por isso ele estacionou rente à calçada, bem debaixo de um poste. Analisou o mapa sob a luz. - Merda - ele disse. - Beverly Hills. Eu estava aqui uma hora atrás. Pela primeira vez em décadas, desejou ter seu lado indígena mais forte. Culpava seu sangue branco pela falta de senso de direção. Durante toda a sua vida, escutara a história do pai de seu avô, que havia encontrado o maldito búfalo apenas observando a mínima mudança do vento. E, quando a mulher que seu pai amava o deixara sem explicações, ele cavalgou por quilômetros usando apenas a intuição para encontrá-la. Em comparação com essas histórias, não seria muito difícil encontrar a Estrada de San Diego. Certa vez, na infância, Will acompanhara sua avó à floresta para pegar raízes e folhas para o preparo de remédios. Ele pegava aquelas para as quais ela apontava, cidreira, acorus verde e alcaçuz selvagem. Ele ficou de costas por um instante e sua avó desaparecera. Durante algum tempo, Will caminhara em círculos, tentando se lembrar das lições de seu pai sobre pegadas deixadas em folhas secas, galhos quebrados, movimento do ar pesado. Passaram-se horas até sua avó encontrá-lo novamente, com frio e enrolado sob um carvalho. Sem dizer uma única palavra, ela o guiou pela mão para casa. Quando a casa de madeira surgiu diante deles, ela virou-se para o neto, segurou seu queixo e disse, suspirando: Você... tão branco. Will tinha apenas dez anos, mas foi quando percebeu que nunca seria como seus avós. Para eles, para todos que conviviam com o garoto, ele sempre seria um iyeska, um mestiço. Passara os 25 anos seguintes agindo ao máximo como um branco, acreditando que, se não pudesse ser como o povo de seu pai, seria como o de sua mãe. Dedicou-se aos estudos para poder frequentar uma faculdade. Falava apenas inglês, até mesmo na casa de seus avós, onde o idioma lakota era o principal. Concordava quando seus chefes brancos descreviam os sioux como alcoólatras preguiçosos e quando sentia as palavras lhe gelarem o sangue; usava sua indiferença o tempo todo. Bem, agora era branco. Estava fora da reserva e planejava ficar na cidade e, para conseguir sair de Beverly Hills, faria o que todos os outros homens brancos fariam: pararia em um posto de gasolina para pedir informação. Mudando de marcha, Will partiu com a picape e desceu a rua novamente. A opulência de Beverly Hills o surpreendia - os portões de ferro forjado e as
fontes de mármore rosado, as luzes brilhando nas grandes janelas palacianas. Em uma das casas estava acontecendo uma festa. Will desacelerou para observar o balé silencioso de garçons e convidados e demorou um momento para perceber as luzes do carro de polícia atrás dele. - Veja o que temos aqui, Joe - disse o policial. - Outro maldito latino. - Escutem - Will disse, e o policial colocou a mão livre entre as omoplatas dele. - Não responda para mim, Pedro - ele disse. - Nós estamos em sua cola há dez minutos. Que tipo de interesse tem em um bairro como este? - Sou policial. - Will respondeu rispidamente. O homem soltou seu pulso, e Will se afastou da picape e o encarou. - Quero ver seu distintivo. Will engoliu em seco e olhou nos olhos do policial: - Ainda não o recebi. Tampouco recebi minha arma. Acabei de chegar; começo a trabalhar amanhã. O policial semicerrou os olhos: - Bem... se não vejo o distintivo, não vejo policial algum. - Ele fez um sinal positivo com a cabeça para seu parceiro, que começou a caminhar de volta para o veículo. - Suma daqui. Will cerrou e descerrou os punhos enquanto observava o policial se afastar. - Sou um de vocês - ele gritou, e, pelo grosso vidro do parabrisas do carro de polícia, pôde ver o policial rindo. Ao caminhar de volta para seu carro, ele olhou para as pessoas da festa, bebendo e rindo como se nada tivesse acontecido. A lua escorregou para trás de uma nuvem como se estivesse com vergonha e nesse momento Will teve certeza de duas verdades: ele não gostava de Los Angeles e não era branco. QUANDO ELA DESPERTOU, o sol havia se posto. Sentou-se e recostouse na lápide que reconheceu. Em algum ponto a leste, a luz de um refletor cortava o céu, e ela pensou que talvez algum evento de premiação estivesse acontecendo naquela noite... eles eram extremamente comuns em Los Angeles. Ficou em pé e começou a caminhar na direção do portão. A cada passo, dizia em voz alta um nome de mulher, na esperança de que um deles lhe fizesse retomar a memória. - Alice - ela disse. - Barbara. Cicely. - Chegara ao Marta quando alcançou a rua - Sunset Boulevard, ela soube assim que a viu e notou que estava progredindo, já que não havia se lembrado anteriormente. Sentou-se na guia, diante da placa com o nome do padre da St. Sebastian e os horários para confissões e missas. Sabia que não fazia parte da congregação - sabia que tampouco era católica -, mas sentia que já havia estado ali. Sentia que havia se escondido ali, na verdade, ou se abrigado. De que ela estaria fugindo? Dando de ombros, afastou o pensamento e olhou ao longe. Do outro lado da rua, um quarteirão à frente, havia um outdoor do filme Taboo, que ela leu em voz alta, tentando descobrir se o assistira, uma vez que o nome lhe parecia tão familiar. O anúncio mostrava um homem meio escondido, mas até mesmo com os traços distorcidos era fácil perceber que o ator era Alex Rivers, o queridinho dos Estados Unidos. Ele atuara com sucesso em todos os tipos de produções, desde filmes de ação a histórias de Shakespeare, e ela havia lido em algum lugar que ele era mais conhecido do que o presidente. Ele sorria para ela. "Em exibição nos cinemas de todo o país", ela leu, percebendo o clichê. MAIS TARDE, QUANDO Will SE LEMBROU do ocorrido, percebeu que tinha sido tudo culpa da coruja. Se ele não houvesse brecado ao escutar o pio da coruja, não teria parado; se não tivesse parado, não teria tomado todas as decisões erradas. Por sorte ele havia encontrado Sunset Boulevard e, apesar de saber que a Sunset Boulevard levava a uma estrada, não tinha certeza de que estava seguindo na direção certa. Passara por dois postos de gasolina fechados, e seu olho direito já estava quase totalmente fechado e ele só queria deitar-se e tentar esquecer o que o fizera mudar-se para a Califórnia. Acabara de passar por um McDonalds quando escutou o grito, alto e forte, como o choro de uma criança. Will já havia escutado o pio de corujas antes, mas não desde que partira de Dakota do Sul. Seus avós, como muitas pessoas da reserva, acreditavam piamente nos presságios anunciados pelas aves. Como elas podiam voar, eram mais próximas do mundo espiritual do que o homem, por isso ignorar a mensagem de que uma ave podia significar não captar um aviso ou promessa de forças maiores do que o homem. Will, tentando manter sua rejeição à cultura sioux, deixara de dar importância a falcões, águias e corvos, mas não conseguia ignorar as corujas, que sua avó dizia trazerem sinais de morte. - Talvez tenha sido o carro - ele disse em voz alta, e quase simultaneamente escutou o pio mais uma vez, um som que o assustou. Brecou. Atrás dele, uma van desviou, e o motorista gritou um palavrão pela janela. Will parou diante de uma igreja católica e estacionou em uma área proibida. Saiu da picape e pisou na calçada, olhando para o céu. - Certo - ele disse. - E agora? A mulher que passou pelo portão ao lado da igreja estava vestida de branco, como um fantasma. Ela viu Will e começou a caminhar um pouco mais rápido, abrindo um sorriso. Surpreso, Will não desviou o olhar dela. Batia em seu ombro e tinha sangue seco na cabeça. Ela se aproximou, parou a centímetros de distância, olhando para o hematoma que ele tinha acima do olho. A mulher desconhecida esticou o braço e passou o dedo em sua pele. Ele nunca havia sentido aquilo: um toque mais sutil que uma respiração. - Você também? - ela sussurrou, então rolou os olhos e começou a cair no chão. Will a segurou e a sentou no banco do passageiro de sua picape. Quando ela começou a retomar a consciência, ele se afastou o quanto pôde, recostando-se na porta do lado do motorista, certo de que ela começaria a gritar quando percebesse que estava dentro do carro de um estranho. Mas seus olhos se abriram e ela sorriu com tanta facilidade que Will retribuiu o sorriso. - Você está bem? - ele perguntou. Ela engoliu em seco e passou a mão pelos cabelos, afastando-os de seu rosto. - Acho que sim - respondeu ela. - Você está esperando há muito tempo?
Ela falava como se o conhecesse muito bem; Will sorriu e respondeu: - Não. Eu estava passando por acaso. - Ele a observou por um momento e disse: - Se você estiver esperando por alguém, posso lhe fazer companhia até a pessoa chegar. A mulher ficou tensa. - Você não me conhece? - Will fez que não com a cabeça. - Ai, meu Deus. Ela esfregou os olhos e repetiu: - Meu Deus. - Ela olhou para ele, chorando. Então somos dois. Will tentou imaginar onde havia se metido, sentado em sua picape com uma mulher maluca e tão drogada que não conseguia pensar com clareza. Ele sorriu brevemente, esperando que ela voltasse à realidade. - Quer dizer que não sabe quem eu sou? - Quero dizer que não sei quem eu sou - a mulher sussurrou. Will olhou atenciosamente para os olhos claros dela, para o corte em sua cabeça. "Amnésia", pensou. - Não sabe seu nome? - Ele passou automaticamente a fazer o interrogatório que havia aprendido como policial em Dakota do Sul. - Você se lembra do que aconteceu? O que a levou à igreja? A mulher desviou o olhar. - Não me lembro de nada - ela disse. - Acho que devo procurar a polícia. A maneira com que ela disse aquilo, como se tivesse cometido um crime grave, fez Will sorrir. Ele pensou em levá-la para o centro da cidade, para a Delegacia de Los Angeles. Apesar de ainda não fazer parte do quadro de funcionários, poderia mexer uns pauzinhos e checar os registros de ocorrência, para saber se havia alguém procurando por ela. Ele se endireitou no banco, fazendo uma careta pela dor que sentiu no olho. Lembrou-se do policial louro de Beverly Hills e tentou imaginar se todos agiriam daquela maneira na segunda-feira. - Eu sou da polícia - ele disse discretamente e, enquanto dizia aquilo, já sabia que não levaria aquela mulher à Delegacia de Los Angeles, não depois do que acontecera com ele, não naquele momento. Ela semicerrou os olhos, desconfiada. - Tem um distintivo? Will negou com um movimento lento de cabeça. - Acabei de me mudar para cá. Vivo em Reseda. Começo a trabalhar amanhã. - Ele olhou para ela e disse: - Vou cuidar de você. Confia em mim? Ela observou os traços definidos de seu rosto, a luz sobre seus cabelos escuros. Ninguém mais havia aparecido. No entanto, quando ele surgiu, ela correra até ele sem hesitar. Certamente para alguém que não estava pensando racionalmente, mas apenas com a intuição, aquilo tinha de significar algo. Ela assentiu. Ele estendeu o braço. - Sou William Cavalo Alado. Will. Ela sorriu. - Jane Ninguém. - Ela colocou os dedos na palma da mão dele, e com aquele toque, a cidade estranha entrou nos eixos. Will pensou na canção da coruja e naquele presente que literalmente caíra em seus braços e, quando olhou para a moça, soube que, de alguma forma, ela agora era dele.
Dois Ela continuava pulando o mês de outubro. Tinha de dizer os nomes dos meses na ordem ao contrário, seguindo as instruções do médico da emergência, mas ela passava de novembro para setembro. Ela corou e olhou para o homem que a examinava. - Sinto muito - disse. - Vou tentar de novo. Do outro lado da sala onde a observava havia dez minutos, Will não se conteve. - Meu Deus! - ele disse, aproximando-se. - Estou perfeitamente bem e não conseguiria fazer isso sem errar. Ele olhou para o médico. Havia levado a moça para o pronto-socorro porque era procedimento comum na polícia, pelo menos em Dakota do Sul, mas já se arrependia. Até onde Will podia ver, aqueles exercícios estúpidos não estavam resolvendo nada, apenas a deixaram mais confusa. - Ela perdeu a consciência pelo menos duas vezes nas últimas horas disse o médico sem se alterar. Segurou uma caneta a alguns centímetros do rosto dela. - O que é isto? Ela demonstrou seu enfado olhando para cima. Já havia respondido perguntas como onde estava, que dia era, quem eram o presidente do país. Já havia contado para trás e para a frente de três em três e decorado uma lista pequena de frutas e legumes. - Uma caneta. - E isto? - Uma tampa de caneta. - Olhou para Will e sorriu. - Ou seria uma vaca? Ao encontrar o olhar do médico sobre ela, riu e disse: - Estou brincando. Foi só uma piada. - Viu? - Will disse. - Ela consegue fazer piadas. Está bem. - Cruzou os braços, inquieto. Sentia-se nervoso em hospitais. Isso acontecia desde os nove anos, quando viu o pai morrer em um deles. Três dias depois do acidente de carro, sua mãe já enterrada, Will sentara-se com seu avô em um hospital, esperando que seu pai recobrasse a consciência. Observara por horas a mão morena do pai em contraste com os lençóis brancos, as luzes claras e as paredes pálidas e sabia que seria apenas uma questão de tempo até que seu pai partisse para onde devia ir. - Tudo bem. - Ao ouvirem a voz do médico, Will e Jane se endireitaram. Parece que você sofreu uma leve concussão, mas parece estar se recuperando. É possível que recobre a memória mais distante antes da mais recente. Talvez nunca se lembre dos momentos que antecederam o golpe na cabeça. - Ele se virou para Will e perguntou: - Você é...? - Policial William Cavalo Alado, Delegacia de Polícia de Los Angeles. O médico fez um movimento afirmativo com a cabeça. - Diga a quem for buscá-la que ela deve ser observada esta noite. É preciso acordá-la a cada duas ou três horas e checar seu nível de atenção; você sabe, perguntar quem ela é, como se sente, coisas assim. ! - Espere - Jane disse. - Quanto tempo vai demorar para eu me lembrar de quem sou? O médico sorriu pela primeira vez durante todo o tempo em que a examinou.
- Não posso dizer ao certo. Talvez demorem horas ou semanas. Mas tenho certeza de que seu marido estará à sua espera no centro da cidade. - Ele colocou a caneta dentro do bolso do jaleco e deu um tapinha no ombro dela. Em breve ele lhe dará todos os detalhes. O médico abriu a porta da sala de exames e saiu, seu jaleco branco em movimento. - Marido? - Jane disse. Olhou para a mão esquerda, observando os diamantes da aliança reluzirem. Olhou para Will e perguntou: - Como posso ter me esquecido disso? Will deu de ombros. Não havia notado. - Consegue se lembrar dele? Jane fechou os olhos e tentou pensar em um rosto, um gesto ou até mesmo em um tom de voz. Balançou a cabeça. - Não me sinto casada. Will riu. - Sendo assim, acho que metade das esposas dos Estados Unidos faria qualquer coisa para levar uma pancada na cabeça. - Caminhou até a porta e a abriu para ela. - Vamos. Ele conseguia sentir a presença dela a um passo dele durante o caminho todo até o estacionamento. Quando chegaram à caminhonete, ele abriu a porta do lado do passageiro e a ajudou a se sentar. Girou a chave no contato e prendeu o cinto de segurança antes de falar. - Veja. Se seu marido estiver à sua procura, pode preencher uma ficha de desaparecido até que passem as primeiras 24 horas. Podemos ir para a delegacia agora se você quiser, ou podemos ir logo de manhã. Ela olhou para ele. - Por que não quer me levar até lá? - Do que está falando? - Está fugindo - Jane disse. - Dá para perceber pela sua voz. Will olhou para a frente e deu a ré na caminhonete. - Então você não está ouvindo direito. - Seu rosto ficou tenso. - É você quem sabe. Ela olhou para ele, um perfil bem-feito. Tentou descobrir o que havia dito para deixá-lo tão nervoso. Naquele momento, pelo menos, ele era seu único amigo. - Talvez eu devesse descansar - ela disse com cuidado. - Vou me lembrar de tudo quando acordar. Talvez tudo esteja diferente. Will virou-se para ela, percebendo o tremor em sua voz e a confiança que ela depositava nele. Aquela mulher sobre quem ele nada sabia, que nada sabia sobre ele, estava se colocando em suas mãos. Era o máximo que já havia recebido. - Talvez - disse. JANE HAVIA ADORMECIDO QUANDO ELES CHEGARAM à casa em Reseda. Will a levou para o quarto, colocando-a sobre o colchão sem lençol e cobrindo-a com o único cobertor que ele havia tirado das malas. Tirou os sapatos dela, mas não faria nada além disso. Ela era esposa de outro homem. No Oglala Community College, em alguma aula de cultura que ele havia sido forçado a frequentar para se formar, Will aprendera sobre o castigo aplicado às mulheres adúlteras sioux no passado. Ele ficara chocado: se a esposa fugisse com outro homem, o marido tinha o direito de cortar a ponta do nariz dela, para que a mulher ficasse marcada pelo resto da vida. Para Will, aquilo parecia contradizer tudo o que ele havia aprendido sobre os sioux.
Afinal, eles não compreendiam a posse de terras. Acreditavam que deviam dar dinheiro, alimentos e roupas a amigos em situação difícil, mesmo que para isso acabassem ficando pobres também. Apesar disso, viam as esposas como propriedade e os maridos como proprietários. Ele observou Jane dormir. De certo modo, sentia inveja dela. Conseguira esquecer seu passado com facilidade, enquanto Will se esforçava para tirar sua história da cabeça. Tocou o colarinho da camisa de Jane, onde o sangue havia secado. Pegaria um pouco de água para remover a mancha. Afastou o cabelo de sua testa e analisou seus traços. Ela tinha cabelo castanho comum, nariz pequeno e queixo empinado. Sardas. Não era a loura arrasadora de seus sonhos adolescentes, mas era bonita de uma maneira simples. Alguém devia estar desesperado com seu sumiço. Afastou a mão de seu pescoço, com a intenção de buscar um pano, mas foi detido quando sua mão se ergueu, os dedos prendendo seu pulso com grande velocidade. "Meu Deus", ele pensou, "reflexos de puma." Ela abriu os olhos e olhou ao redor assustada como se tivesse sido capturada. - Psiu - Will a acalmou e, quando tentou se libertar com delicadeza, Jane o soltou, franzindo a testa como se não entendesse ao certo por que o havia prendido. - Quem é você? - Ela perguntou. Will caminhou para a porta e apagou a luz. Olhou para o outro lado para que ela não conseguisse ver seu rosto. - Você não quer saber - ele disse. A PRIMEIRA LEMBRANÇA DE Will era a da libertação de seu pai da cadeia. Ele tinha três anos e se lembrava de sua mãe em pé na frente do delegado. Ela era alta e decidida e mesmo sob a luz fraca tinha a pele extremamente clara. - Houve um engano - ela disse. - O senhor Cavalo Alado é um de meus funcionários. Will não compreendeu por que a mãe dissera que seu pai trabalhava para ela, pois sabia que ele trabalhava para o senhor Lundt, na fazenda. Não compreendeu a palavra "assalto", mas pensou que "ataque" tivesse a ver com o que faziam os super-heróis das histórias. O delegado, um homem cheio de marcas no rosto, olhou bem para Will e cuspiu perto de seu pé. - Não houve engano algum, senhora - o delegado disse. - A senhora conhece esses malditos índios. A expressão de sua mãe era séria e ela pegou a carteira para poder pagar a fiança. - Solte-o- - ela disse rispidamente, e o delegado virou-se e entrou em um corredor. Will observou o homem ficando cada vez menor, o revólver em seu bolso balançando com o movimento de seu corpo. A mãe de Will ajoelhou-se a seu lado e disse: - Não acredite em nada do que ele diz. Seu pai estava tentando ajudar. Ele soube, anos depois, que Zachary Cavalo Alado estava em um bar, onde ocorreu um problema. Uma mulher estava sendo perturbada por dois homens e, quando ele tentou intervir, teve início uma briga. A mulher havia fugido do bar, e, quando a polícia chegou, a palavra de Zack ficou contra a dos dois brancos da região.
Zachary surgiu no corredor da cadeia atrás do delegado. Não tocou em sua esposa. - Senhora - ele disse solenemente. - Will. - Colocou o filho sobre os ombros e o levou para fora, para o sol escaldante de Dakota. Eles caminharam metade de um quarteirão, e o pai de Will o tirou dos ombros e abraçou a esposa. - Oh, Anne - ele suspirou. - Sinto muito fazê-la passar por isso. Will puxou a ponta da camisa listrada do pai: - O que o senhor fez, pai? Zach segurou a mão de Will e começou a descer a rua novamente. - Eu nasci - respondeu ele. TERIA SIDO IMPOSSÍVEL NÃO VER O BILHETE QUE Will havia deixado a ela, em cima da tampa da privada com uma toalha limpa, pasta de dentes, uma nota de vinte dólares e uma chave. Jane, Saí para trabalhar. Vou tentar obter alguma informação sobre seu marido e tentarei telefonar mais tarde para lhe dar notícias. Não tenho nada na geladeira, por isso, se sentir fome, vá até o mercado (três quarteirões a leste). Espero que esteja se sentindo melhor. Will. Escovou os dentes com o dedo e olhou novamente para o bilhete. Ele não havia dito nada a respeito do que ela deveria fazer se acordasse lembrando perfeitamente de seu nome e endereço - não que isso fosse importante, afinal, ela ainda não se lembrava de nada. Ao menos tivera sorte. As chances de encontrar algum viciado ou um cafetão na Sunset Boulevard tinham sido bem maiores do que encontrar alguém de fora da cidade, alguém que entregaria a uma desconhecida a chave de sua casa e uma nota de vinte dólares sem fazer nenhuma pergunta ou sem esperar algo em troca. Seus olhos brilharam. Ela podia fazer algo em troca; podia desfazer as malas para ele. Seu gosto para decoração podia ser diferente do dele - na verdade, não fazia ideia de qual seria o próprio gosto -, mas certamente seria bom chegar em casa e ver panelas e copos nos armários e toalhas e lençóis no guarda-roupa. Jane entreteve-se com a tarefa de colocar a casa de Will em ordem. Organizou a cozinha, o banheiro e o local onde eram mantidos os produtos e artigos para limpeza, mas não precisou usar a criatividade até começar a arrumar a sala de estar. Ali, dentro de duas caixas, cuidadosamente separadas por folhas de jornal, havia uma série de relíquias dos índios norte-americanos. Ela desembrulhou belos mocassins e um pedaço de pele pintado com a imagem de uma caçada. Havia um cobertor e um leque feito de penas e um medalhão com miçangas circulares. No fundo da caixa havia um pequeno saco de couro com miçangas e penas coloridas, sobre o qual havia o desenho de um cavalo galopando. Estava bem fechada com uma tira de couro e, apesar de tentar, não conseguiu abri-lo para ver o que havia dentro. Não sabia o que era a maioria daqueles objetos, mas lidou com eles da maneira mais cuidadosa possível e começou a descobrir mais sobre Will. Olhou ao redor para as paredes vazias e pensou: "Se eu estivesse em um lugar desconhecido, gostaria de ter alguma coisa que me lembrasse de minha casa."
NINGUÉM HAVIA IDO À DELEGACIA PROCURAR uma mulher desaparecida. Will passou o dia sendo apresentado pelo capitão a outras pessoas na Polícia de Los Angeles, recebeu seu distintivo e suas tarefas. Quando registrou sua arma, o policial que coletou as informações perguntou se ele preferia receber um tacape; seu novo parceiro divertiu-se ao chamá-lo de Cavalo Abilolado. Mas Will já havia enfrentado essas coisas antes. Não encontrou o policial que lhe agredira; no entanto, Beverly Hills era uma jurisdição diferente. Quando secretárias risonhas perguntaram o motivo do hematoma, ele respondeu que alguém havia atravessado seu caminho. Já passava das quatro da tarde quando ele reuniu coragem para bater à porta de seu novo superior e contar-lhe sobre Jane. - Entre - Watkins disse, fazendo um movimento com a mão para que se aproximasse. - Acha que já aprendeu como funcionam as coisas? Will balançou a cabeça em um gesto negativo. - É diferente. Watkins sorriu. - Não é diferente de Dakota do Sul. Algumas violações de trânsito infringidas por celebridades, posse de drogas, as coisas de sempre. Will endireitou-se na cadeira. - Queria conversar com você sobre o caso de uma pessoa desaparecida ele disse. - Na verdade, quero saber se... - Ele parou e passou as mãos sobre as coxas para se recompor. Não havia uma maneira certa de dizer que ele havia ignorado os procedimentos; Jane já deveria ter sido levada à jurisdição para ser fotografada. - Encontrei uma mulher com amnésia ontem à noite. Fomos ao hospital, mas, como já estava tarde, eu não a trouxe para cá. Will olhou para o capitão. - O senhor soube de alguma coisa? O homem mais velho negou com um lento movimento de cabeça. - Como você ainda não estava trabalhando ontem à noite, não contarei isso contra você - ele disse. - Mas ela precisa ser trazida para um interrogatório. Watkins olhou para Will e naquele momento ele soube que, apesar da remissão do capitão, já começaria a relação com um pé atrás. - Pode ser que a perda de memória dela esteja relacionada com um crime. - Watkins olhou para Will. - Acredito que você ainda saiba onde ela está. Sugiro que a traga para cá o mais rápido possível. Will concordou e começou a se dirigir à porta. - E, policial - Watkins disse -, daqui para a frente cumpra as regras. Will PUXAVA O COLARINHO DE SUA CAMISA o caminho todo de volta a Reseda. A maldita camisa o sufocava. Não conseguiria sobreviver por uma semana vestindo-a. Dobrou a esquina de sua rua tentando imaginar se Jane havia se lembrado de seu nome. Se ela ainda estaria ali. Ela o recebeu na porta vestindo uma de suas camisas novas e brancas amarrada na cintura e um short de corrida. - Tem alguém à minha procura? - Ela perguntou. Will balançou a cabeça negativamente e entrou na varanda de sua casa. Ficou parado na entrada, analisando as caixas vazias empilhadas e uma prova de sua história pendurada nas paredes onde todos podiam ver. A fúria chegou com tanta rapidez que ele esqueceu de disfarçá-la. - Quem lhe deu permissão para mexer em minhas coisas? - Ele gritou, pisando forte no carpete, indo para o meio da sala de estar. Ele se virou para
olhar para Jane e a encontrou agachada perto da parede, as mãos na cabeça como para abafar o som de uma explosão. A raiva sumiu. Ele ficou parado, esperando que a fúria deixasse sua visão clara. Não disse nada. Jane abaixou os braços e levantou-se, tensa, mas não encarou Will. - Pensei que estaria ajudando - ela disse. - Queria agradecer-lhe por tudo, e essa me pareceu a melhor maneira. Seus olhos observaram a parede onde o pequeno saco de couro estava pendurado ao lado da imagem da caçada. Posso mudar tudo se você não gostar da maneira como os objetos estão expostos. - Não os quero expostos de maneira alguma - Will disse, tirando os mocassins de cima da lareira. Pegou uma caixa vazia e começou a jogar os objetos dentro. Jane ajoelhou-se ao lado da caixa e tentou organizar as peças frágeis para que não se quebrassem. Ela tinha de fazer isso com cuidado; tinha de fazer tudo direito. Passou os dedos sobre as penas do pequeno saco de couro. - O que é isso? Will mal olhou para o que ela segurava. - Um patuá - ele disse. - O que há dentro dele? Will deu de ombros. - As únicas pessoas que sabem são meu tataravô e seu pajé, e ambos estão mortos. - É lindo - Jane disse. - É inútil - Will respondeu. - Deveria servir de proteção, mas meu tataravô foi morto por um búfalo. Ele se virou e viu Jane tocando o patuá e seu rosto ficou menos tenso quando ela olhou para ele. - Sinto muito - ele disse. - Não queria estourar desse jeito. Só não gosto que essas coisas fiquem penduradas onde eu possa vê-las o tempo todo. - Pensei que você fosse gostar de ter alguma coisa que lhe fizesse lembrar de onde veio - Jane disse. Will sentou-se no chão. - É exatamente disso que quero fugir - ele disse. Suspirou e passou a mão pelos cabelos, procurando mudar de assunto. - Como está se sentindo? Ela olhou para ele, percebendo que usava uma camisa azul de policial, com o símbolo do Departamento de Polícia de Los Angeles em seu braço. - Você está vestindo um uniforme. Will sorriu. - Estava esperando um cocar? Jane levantou-se e esticou o braço para Will, puxando-o para ficar em pé. - Eu me lembrei de como cozinhar - ela disse. - Quer jantar? Ela havia preparado um frango frito, feijão e batata assada. Will levou o prato para o centro do chão da sala de estar e separou um peito para si e outro para ela, colocando a carne nos dois pratos. Contou a ela sobre seu primeiro dia de trabalho, e ela lhe contou que se perdera indo ao mercado. O sol entrava pelas janelas e projetou a sombra dos dois, que fizeram um silêncio confortável. Will pegou os pedaços de frango, chupou a carne dos ossos. De repente, sentiu a mão de Jane sobre a sua.
- Oh, vamos fazer isso - ela disse com os olhos brilhando, e ele percebeu que segurava o osso da sorte. Ele puxou e ela também, os ossos brancos escorregando de seus dedos engordurados, e por fim ele tirou o pedaço maior. Desapontada, Jane se recostou em uma pilha de caixas. - O que você pediu? Will havia pedido que ela recuperasse a memória, mas não contou a verdade. - Quando contamos, o pedido não se realiza - ele disse, surpreendendo-a. Ele sorriu. - Minha mãe dizia isso. Na verdade, ela foi a última pessoa que quebrou um osso de galinha comigo. Jane abraçou as pernas, aproximando-as do peito. - Ela vive em Dakota do Sul? Ele quase não escutou a pergunta, pois estava pensando no contorno do rosto da mãe e do brilho de seu cabelo escuro. Pensou na mão dela e na dele segurando as pontas do osso de galinha e tentou imaginar se os sonhos dela se realizaram. Will olhou para Jane. - Minha mãe morreu quando eu tinha nove anos, em um acidente de carro com meu pai. - Oh, que terrível - Jane disse, e Will ficou surpreso pela maneira com que sua voz parecia carregar tanta dor por um estranho. - Ela era branca - ele disse, sem querer. - Depois do acidente, fui morar com os pais de meu pai na reserva. Quando ele começou a falar, Jane esticou o braço e pegou do prato um monte de ossos que Will havia deixado de lado. Colocou-os no prato e mexeu neles com as mãos, aparentemente sem perceber o que estava fazendo. Ela olhou para ele e sorriu. - Continue. Conte-me sobre como eles se conheceram. Will havia contado essa história muitas vezes antes, porque parecia amolecer o coração de uma mulher, a ponto de ela cair em sua cama. - Minha mãe era professora em Pine Ridge, e meu pai a viu um dia quando estava buscando alimentos para seu chefe no rancho. E por ela ser branca e ele um índio lakota, meu pai não conseguiu entender por que estava se sentindo atraído e o que faria em relação a isso. - Surpreso, ele observou as mãos de Jane formarem uma fila de ossos, um depois do outro. - Mas eles saíram algumas vezes até que vieram as férias de verão e ela achou que as coisas estavam indo rápidas demais, por isso simplesmente partiu sem dizer ao meu pai para onde ia. Jane deitou com cuidado cinco ossos em linhas paralelas na borda de seu prato. - Estou ouvindo - ela disse. - Bem, parece bobagem, mas meu pai disse que simplesmente sabia. Por isso, partiu no meio do dia, em seu cavalo emprestado, e saiu em direção ao norte-nordeste sem a mínima ideia de onde estava indo. Jane olhou para ele, as mãos erguidas. - Ele a encontrou? - Cerca de 56 quilómetros depois, em um restaurante, onde ela estava esperando que uma amiga chegasse para levá-la de volta para casa, em
Seattle. Meu pai a colocou diante dele sobre o cavalo e os envolveu com um cobertor - afirmou Will. Will havia escutado a história tantas vezes quando era criança que até naquele momento conseguia imaginar as palavras na voz de sua mãe. "Anos atrás, era assim que meu povo se apaixonava", seu pai me disse e envolveu o cobertor tão apertado que nosso coração batia em uníssono. "Eu poderia me aproximar de você à noite, e sentaríamos sob o céu nesse casulo e, com todas as estrelas como testemunhas, eu lhe diria que a amo." - Meu Deus - Jane suspirou. - Foi a coisa mais romântica que já ouvi. - Ela pegou outro punhado de ossos da bandeja entre eles. - Sua mãe voltou com ele? Will riu. - Não, ela foi para Seattle. Mas escreveu cartas para ele durante todo o verão e eles se casaram um ano depois. Jane sorriu e limpou as mãos com um guardanapo. - Por que as pessoas não fazem coisas assim hoje em dia? Transam no banco de trás do carro no ensino médio e pensam que estão apaixonadas. Ninguém mais vive uma paixão arrebatadora. - Balançando a cabeça de maneira negativa, ela ficou em pé para limpar os pratos. Pegou a travessa quase vazia e a derrubou, ouvindo o barulho e vendo a gordura se espalhar. Em seu prato, ela havia recriado o esqueleto de uma galinha. Os ossos estavam cuidadosamente estruturados, em alguns casos até encaixados nas articulações. As asas estavam dobradas com cuidado contra as costelas. As pernas fortes estavam dobradas, como se corressem. Ela colocou a mão na testa enquanto muitas imagens inundavam sua mente: o osso fino do braço de um ramapiteco, uma faixa de molares e pedaços de crânios, barracas verdes na Etiópia que cobriam mesas repletas de ossos catalogados. Antropologia física. Ela havia passado meses e mais meses no Quénia, em Budapeste e na Grécia em escavações, construindo a história do homem. Isso tinha sido uma grande parte de sua vida, a ponto de deixá-la chocada por perceber que até um golpe na cabeça podia fazê-la esquecer. Cuidadosamente tocou o fémur da galinha reconstruída. - Will - ela disse, e quando levantou o olhar, seus olhos brilhavam. - Sei com o que trabalho. 33 Três
Will gostava mais de Jane antes de ela se lembrar que era uma antropóloga. Ela não parava de tentar explicar a ele sobre sua ciência. Dizia que a antropologia era o estudo de como as pessoas se encaixavam no mundo. Isso ele conseguia entender, mas a maioria das outras coisas que ela dizia parecia grego. No trajeto até a delegacia na noite de segunda-feira, ela havia descrito os melhores métodos de escavação de fósseis. Quando Watkins perguntou a ela sobre o recado que deveria colocar no L. A. Times, ela dissera que até que alguém a encontrasse, ela ficaria contente se pudesse ajudar na investigação. E agora, na manhã seguinte, enquanto Will saboreava uma tigela de cereais, ela tentava explicar a ele sobre a evolução do homem.
Ela estava fazendo linhas em seu guardanapo, dando nomes a cada parte. Will começava a compreender por que o marido dela ainda não tinha aparecido. - Não consigo acompanhar esse raciocínio - ele disse. - Não consigo sequer fazer contas tão cedo. Jane o ignorou. Quando terminou, recostou-se na cadeira suspirando. - Nossa! Como é bom saber alguma coisa. Will pensou que talvez houvesse outras coisas que valessem mais a pena saber, mas não disse nada. Apontou para um ponto do guardanapo. - Por que eles se tornaram extintos? Jane franziu a testa. - Eles não conseguiram se adaptar ao mundo - respondeu. Will riu. - É, sei... na maior parte do tempo, nem mesmo eu consigo - ele disse. Pegou seu chapéu, preparando-se para sair. Os olhos de Jane brilharam quando ela olhou para ele. - Gostaria de saber se já descobri alguma coisa importante, como o esqueleto de Lucy, ou aquele homem da Idade da Pedra nos alpes tiroleses. Will sorriu. Pensou em Jane agachada no local de escavação no meio de um deserto, fazendo o que a deixava feliz. - Sinta-se à vontade para escavar o quintal - ele disse. NAQUELA TERÇA-FEIRA DE MANHÃ, a Delegacia de Polícia de Los Angeles publicou a foto de Jane no L.A. Times com uma pequena nota pedindo informações sobre ela, e Jane se lembrou de ter descoberto a mão. Depois que Will partiu, Jane foi até a biblioteca da região. Era um local pequeno, mas tinha uma seção organizada de livros sobre antropologia e arqueologia. Ela encontrou o livro mais recente, dirigiu-se até a mesa e começou a ler. Palavras familiares trouxeram imagens à sua mente. Ela se viu na região rural da Inglaterra, agachada ao lado de uma cova aberta na qual havia restos de uma antiga batalha da Idade do Ferro. Lembrava de ter espanado a terra dos ossos; sentindo as depressões em um esterno feitas por lanças e flechas, ou a vértebra claramente cortada que indicava um ato de decapitação. Era assistente de alguém na época, pôde se lembrar, catalogando espécies com tinta nanquim, carregando bandejas de ossos para secarem ao sol. Jane virou a página e foi quando viu a mão. Era exatamente da mesma maneira como a encontrara na Tanzânia, fossilizada em uma pedra sedimentar, segurando com força um cinzel feito de pedra. Centenas de antropólogos haviam vasculhado a Tanzânia procurando por provas da indústria de ferramentas de pedras, pois acreditavam que o homem primitivo tinha um nível de inteligência suficiente para criar. Seguindo o estudo de seus colegas, ela havia passado um ano para reabrir um local esquecido de escavações. Não estava procurando quando encontrou a mão. Ela havia se virado e a visto, à altura do ombro, como se tentasse alcançá-la. Tinha sido uma descoberta extraordinária. Ossos delicados raramente eram preservados. Para que a fossilização ocorresse, os esqueletos precisavam ficar longe de animais, água e mudanças da terra, e as extremidades do esqueleto costumavam se perder. Enquanto trabalhava, já pensava que aquele momento seria sua iniciação na carreira. Havia encontrado o que todos procuravam. Cuidadosamente
catalogou o cinzel, as centenas de pedaços de ossos, limpou-os e os preservou com uma resina sintética. Jane voltou-se ao livro e leu a legenda ao lado da fotografia da mão. Com mais de 2,8 milhões de anos, esta mão de hominídeo e este cinzel são as provas mais antigas conhecidas na indústria das ferramentas de Pedra. (Barrett et al., 1990)." Barrett. Seria aquele seu sobrenome? Ou ela tinha sido apenas assistente de outra pessoa, alguém que tinha levado crédito pela sua descoberta? Ela analisou o índice no livro, mas não havia outras referências a Barrett. Nenhum dos outros livros trazia uma foto da mão; era uma descoberta muito recente. Tremendo um pouco, ela caminhou até o balcão e esperou que a bibliotecária olhasse para ela, desviando sua atenção do computador. - Olá - ela disse, mostrando seu melhor sorriso. - Pensei que talvez você pudesse me ajudar. ELA ENCONTROU Will DEBRUÇADO SOBRE UMA MESA, que parecia pequena demais para ele, analisando alguns documentos. - Relatórios da polícia - ele disse. - Detesto essa merda. - Ele os afastou com o braço e apontou para uma cadeira próxima. - Já viu sua foto? - Will esticou a mão com o jornal. Jane pegou o papel e analisou a foto. - Nossa! Eles me deixaram parecida com uma criança perdida. - Ela jogou o jornal novamente sobre a mesa de Will. - E você recebeu muitos telefonemas? Will negou com um movimento de cabeça. - Tenha paciência. Ainda não é nem meio-dia. - Ele afastou a cadeira e cruzou os pés sobre a mesa. - Além disso, estou me acostumando com você como governanta. - Bem, acho melhor você começar a procurar uma substituta. - Ela deu a ele uma cópia da página do livro que ela havia lido naquela manhã. - Esta mão é minha. Will olhou para a fotografia borrada e assoviou. - Você está muito bem para a sua idade. Jane pegou o papel e o colocou na beira da mesa. - Descobri essa mão na África - ela disse. - Posso muito bem ser essa "Barrett". Will ergueu as sobrancelhas. - Você descobriu isso? - Ele balançou a cabeça, surpreso. - Barrett, não é? Ela deu de ombros. - Ainda não tenho certeza. Talvez Barrett fosse o cientista que liderou a escavação. - Apontou para a referência. - Eu posso ser o et al. Pedi à bibliotecária que obtivesse mais informações - ela disse sorrindo. – Devo saber quem sou amanhã à tarde. Will sorriu para ela. Pensou no que faria quando ela partisse para voltar à sua vida. Tentou imaginar como a casa ficaria vazia com apenas uma pessoa e se ela telefonaria de vez em quando. Bem - ele disse. - Acho que devo começar a chamá-la de Barrett. Ela parou e virou-se para olhar para ele.
- Para dizer a verdade, já me acostumei com Jane - ela disse. ACOSTUMADO A ACORDAR CEDO, Herb SILVER havia tomado o café da manhã ao lado da piscina às seis horas: suco de tomate, toranja e um charuto cubano. Semicerrando os olhos por causa da luz do sol, ele abriu o L. A. Times de terça-feira e olhou para a foto da mulher na página 3 até seu charuto cair, sem que ele percebesse, do canto de sua boca. - Caramba! - Ele disse, procurando o telefone celular no bolso do roupão. Caramba, caramba! ELES NÃO TERIAM INTERROMPIDO AS GRAVAÇÕES por nenhum outro ator do elenco, mas ele era um dos produtores-executivos, além de protagonista, e qualquer dinheiro que fosse gasto sairia de seu bolso. Ele passou o braço pela testa, fazendo uma careta ao ver um borrão de maquiagem na manga de seu blazer de veludo. Fazia -6 graus na Escócia, mas o produtor de cenário havia mandado trazer uma centena de tochas para serem enfileiradas no grande corredor do castelo onde eles estavam filmando Macbeth. Consequentemente, não conseguia passar por uma cena que fosse sem estar coberto de suor. Jennifer, sua assistente de feições comuns, estava em pé segurando o telefone celular perto de uma armadura. Pegando o telefone, ele se afastou discretamente dela e do repórter da People que estava cobrindo as filmagens. - Herb - ele disse, mantendo o sotaque. - É melhor que seja um assunto importante. Sabia que seu agente não telefonaria para ele nas gravações se não fosse um caso de emergência, uma indicação ao Oscar ou um papel que alavancasse sua carreira ainda mais. Mas ele já havia sido indicado ao Oscar deste ano e escolhia os próprios papéis há muito tempo. Segurou o telefone com mais força, esperando que a estática se estabilizasse. - ...jornal de hoje, e ela estava... - ele escutou. - O quê? - Ele gritou, esquecendo-se do elenco e das pessoas a seu redor. - Não consigo escutar nada do que está dizendo! A voz de Herb surgiu clara ao telefone. - A foto de sua esposa está na página 3 do L. A. Times. Ela foi resgatada pela polícia e não se lembra de quem é. - Jesus - ele disse, com o coração acelerado. - O que houve com ela? Está bem? - Acabei de ler a notícia há dois minutos - Herb disse. - Ela parece bem na fotografia. Telefonei para você na mesma hora. Ele suspirou. - Não faça nada. Chegarei em casa amanhã às... - ele checou o relógio - às seis horas, horário daí. - Quando ele voltou a falar, sua voz falhou. - Preciso ser a primeira pessoa a vê-la - ele disse. Ele desligou o telefone sem se despedir e começou a dar instruções a Jennifer. Ele gritou para o coprodutor por cima do ombro da assistente: - Joe, precisamos interromper as filmagens por pelo menos uma semana. - Mas... - Que se dane o orçamento. - Ele virou-se em direção a seu trailer, mas voltou e tocou o ombro de Jennifer. Ela já estava ocupada ao telefone, fazendo reservas em voos, seu cabelo caído sobre seu rosto como se fosse uma cortina. Quando ela olhou para cima, ele a encarou e ela viu algo em seus
olhos que poucas pessoas já tinham visto: um desespero silencioso. - Por favor - ele murmurou. - Se precisar, mova céus e terra. Jennifer precisou de um instante para voltar à realidade e mesmo depois que ele já havia saído, durante alguns segundos, ela sentiu o calor da mão dele em seu ombro; a força de seu pedido. Pegou o telefone de novo e começou a apertar as teclas. O que Alex Rivers precisava, ele conseguia. ÀS SETE HORAS DA QUARTA-FEIRA, O TELEFONE começou a tocar. Will saiu correndo do banheiro e foi para a cozinha, enrolando uma toalha na cintura. - Alô? - É o Watkins. Acabei de receber uma ligação da delegacia. Três tentativas para você descobrir quem apareceu. Will sentou-se no chão da cozinha e deixou o susto tomar conta dele. - Estaremos aí em meia hora - ele disse. - Will? - Ele ouviu a voz de Watkins distante. - Sabe o que tem de fazer. Ele sabia que precisava acordar Jane e contar a ela que seu marido chegara para buscá-la; sabia que tinha de dizer as coisas confortantes que ela esperava que ele dissesse no caminho para a delegacia, mas achava que não seria capaz. Os sentimentos que Jane despertara nele eram mais do que apenas uma coincidência. Ele gostava de saber que ela tentava esconder as sardas com talco de bebê. Gostava da maneira com que ela movia as mãos ao falar. Adorava vê-la em sua cama. Ele dissera a si mesmo que simplesmente usaria a máscara de indiferença que havia usado nos últimos vinte anos e que dentro de uma semana sua vida voltaria ao normal. Disse que era isso o que precisava ser feito. E, ao mesmo tempo, via Jane sair correndo pelo portão do cemitério com o grito da coruja, e sabia que, mesmo quando já estivesse longe, ela continuaria sendo sua responsabilidade. Ela estava dormindo de lado, com o braço sobre a barriga. - Jane - ele disse, tocando seu ombro. Inclinou-se e a balançou levemente, surpreso ao perceber que o travesseiro e o cobertor já não tinham o cheiro dele, mas, sim, o dela. - Jane, acorde. Ela abriu os olhos e rolou na cama. - Está na hora? - Ela perguntou e ele assentiu. Will preparou o café, enquanto ela tomava um banho, para o caso de ela querer comer alguma coisa antes de sair, mas ela quis partir imediatamente. Ele se sentou ao lado dela na picape e dirigiu em silêncio, deixando tudo o que deveria estar dizendo preencher o espaço a seu redor. "Vou sentir sua falta", ele planejara lhe dizer. "Telefone para mim quando puder. Se alguma coisa acontecer, bem, você sabe onde me encontrar." Jane manteve o olhar fixo na estrada, apertando as mãos no colo. Não disse nada até chegarem ao estacionamento da delegacia. No começo, sua voz estava tão contida que Will pensou que não a escutara bem. - Acha que ele vai gostar de mim? Will esperava que ela fosse perguntar se conseguiria se lembrar do marido assim que o visse, ou que fosse tentar imaginar onde ficava a sua casa. Não esperava escutar aquilo.
Não teve a chance de responder. Um bando de repórteres foi em direção à caminhonete, tirando fotos e fazendo perguntas que se confundiam umas com as outras no meio do tumulto. Jane se encolheu no assento. - Vamos lá - Will disse, deslizando o braço por seus ombros. - Ele a puxou pela porta do motorista. - Fique perto de mim. Quem era ela? Mesmo que fosse Barrett, a antropóloga, e mesmo que tivesse mesmo descoberto aquela mão, aquele tipo de cobertura da imprensa parecia um tanto exagerada. Will guiou Jane pelos degraus, até a recepção da delegacia, sentindo sua respiração quente em seu pescoço. Em pé ao lado do capitão Watkins estava Alex Rivers. Will tirou o braço dos ombros de Jane. O próprio Alex Rivers. Todos aqueles jornalistas, todas aquelas máquinas fotográficas não tinham nada que ver com Jane. Will esboçou um sorriso. Jane era esposa do astro número 1 dos Estados Unidos. E havia se esquecido completamente disso. A PRIMEIRA COISA QUE ELA PERCEBEU FOI QUE Will não estava mais a seu lado. Por um momento teve a certeza de que não conseguiria parar em pé sozinha. Estava com medo de olhar para a frente e encarar todas aquelas pessoas, mas alguma coisa a mantinha em pé e precisava ver o que era. Levantou a cabeça e viu os olhos de Alex Rivers. Taboo. - Cassie? - Ele deu um passo adiante, mais um e inconscientemente ela se aproximou de Will. - Sabe quem eu sou? É claro que ela sabia; todo mundo o conhecia, ele era Alex Rivers, pelo amor de Deus. Ela assentiu e foi quando percebeu como sua percepção tinha se tornado falha. O rosto de Alex Rivers ficava embaçado e voltava ao normal, da mesma maneira que a visão fica duplicada por causa do calor subindo do asfalto. Por um momento, Cassie o viu maior do que tudo. No seguinte, ele não era nada além de um homem comum. Um instante antes de ele esticar o braço em sua direção, todos os sentidos de Cassie pareceram virar um só. Conseguia sentir o calor de sua pele, ver a luz refletindo em seu cabelo, escutou os sussurros ao seu redor. Sentiu o cheiro de sua loção pós-barba de sândalo e o cheiro de camisa recém-lavada. Hesitante, ela esticou os braços para abraçá-lo, sabendo exatamente onde seus dedos pousariam sobre os músculos de suas costas. "A antropologia", ela pensou, "é o estudo de como as pessoas se encaixam no mundo." Fechou os olhos e sentiu familiaridade. - Meu Deus, Cassie, eu não sabia o que tinha acontecido. Herb telefonou para mim na Escócia. - Sua respiração alcançou o ouvido dela. - Eu te amo, pichouette. Foi aquela palavra que fez com que ela se afastasse. Ela olhou para ele, para aquele homem com quem todas as mulheres sonhavam, e deu um passo para trás. - Tem alguma foto? - Ela perguntou delicadamente. - Alguma coisa que mostre, você sabe, nós dois juntos em algum lugar? Não questionou por que, dias antes, quando não estava pensando com clareza, confiara com tanta facilidade em Will; no entanto, pedia agora uma prova antes de Alex Rivers a levar embora. Alex franziu o cenho por um
instante, depois pegou a carteira de seu bolso traseiro. Entregou a ela a foto, uma imagem do casamento. Certamente era ele e certamente era ela, e ela parecia feliz, alegre e segura. Ela devolveu a fotografia a Alex. Ele a guardou na carteira e esticou o braço. Ela olhou para a mão dele. Wil! Em algum lugar atrás de si, escutou uma funcionária dizer: - Puxa! Se ela tem dúvidas, eu irei com ele, então. Enroscou os dedos nos de Alex e observou sua expressão mudar completamente. A marca de preocupação entre suas sobrancelhas se suavizou em um sorriso e seus olhos começaram a brilhar. Ele iluminou o ambiente e Cassie prendeu a respiração. "Eu", ela pensou. "Ele me quer." Alex Rivers soltou a mão dela e a envolveu pela cintura. - Se não recuperar sua memória - ele sussurrou -, vou fazê-la se apaixonar por mim novamente. Vou levá-la à Tanzânia, vou misturar todos os seus ossos, você pode jogar uma pá em mim... - Sou uma antropóloga? - Ela perguntou. Alex assentiu. - Foi por isso que nos conhecemos - ele disse. Ela pensou naquilo. Sua mão. Era mesmo a sua mão; e por algum milagre de Deus Alex Rivers parecia apaixonado por ela e... "Will". Ela se virou para olhar ele, em pé a alguns metros de distância e afastou-se do abraço de Alex. - Eu sou uma antropóloga - ela disse, sorrindo. - Escutei - ele respondeu. - Eu e a maioria das pessoas de Los Angeles. Ela sorriu para ele. - Bem... muito obrigada. - Ela ergueu as sobrancelhas. - Não esperava que as coisas fossem terminar assim. - Esticou o braço e impulsivamente abraçou Will. Sobre o ombro dela, ele não pôde deixar de perceber a expressão fria nos olhos de Alex Rivers por uma fração de segundo. Soltou os braços de Jane - Cassie - e colocou-os ao lado do corpo dela, rapidamente colocando na palma de sua mão o pedaço de papel no qual havia anotado seu endereço e número de telefone. Inclinou-se para lhe dar um beijo no rosto. - Se precisar de alguma coisa - ele sussurrou e deu um passo para trás. Cassie colocou o papel no bolso de sua jaqueta e agradeceu mais uma vez. Aparentemente tinha uma vida de contos de fadas. Do que poderia precisar? Alex estava esperando pacientemente na porta da delegacia. Ele segurou o rosto de Cassie com as palmas das mãos. - Você não tem ideia... - disse, com a voz falhando. - Não tem ideia de como foi perdê-la. Cassie olhou para ele, notando o medo em sua voz. Também estava assustada, mas seus sentimentos ficaram em segundo plano por um instante. Sorrindo por instinto, ela disse: - Mas não foi por muito tempo. E eu não estava muito longe.
Cassie observou os ombros de Alex relaxarem. Incrível... quando ele parecia mais calmo, ela se sentia melhor também. Alex olhou para a imprensa aglomerada. - Isso não vai ser agradável - ele disse como se pedisse desculpas, ao trazê-la de volta para perto dele e abrir a porta pesada da entrada. Colocou uma mão diante dos olhos e procurou abrir caminho pela multidão de paparazzi e fotógrafos. Cassie olhou para a frente, confusa, e viu um rosto bem próximo e a explosão de um flash. O susto fez com que ela não soubesse o que fazer e, sem conseguir enxergar, teve de se virar para o peito de Alex. Sentiu que ele apertava seu braço, sentiu as batidas do coração dele contra seu ombro e entregou-se à força daquele marido desconhecido. Quatro
O apartamento de Malibu era famoso por sua luz natural. Havia sido construído com 92 placas de vidros para janelas, estrategicamente localizadas para a exposição a leste, oeste e acima, para que, independentemente da posição da pessoa ali dentro, o sol a atingisse. Alex ficou em pé diante de uma parede de vidro, belamente iluminada, passando o polegar sobre a beira de uma caixa de madeira oval. - Você comprou isso em Lyons, creio eu - ele disse a Cassie. Ela estava sentada em uma poltrona vermelha de dois lugares e, quando ele se abaixou em sua frente, segurando sua mão, ela não conseguiu controlar a surpresa. Era como ter o personagem projetado da tela do cinema, repentinamente em carne e osso. Era esquisito ver um estranho na sua frente e saber que já havia dividido com ele uma tigela de cereais, que já esquentara os pés nas pernas dele, trocado com ele em uma cama macia. Cassie desejou ser capaz de se entregar àquela fantasia, mas não podia. Alex era o ator; não ela, e ela estava bastante consciente a respeito do espaço entre eles, triste e magnético, forçando uma distância entre eles mesmos quando se tocavam. Alex suspirou. - Você não vai começar a agir como se eu fosse de outro mundo, não é? Nunca fez isso antes. Cassie lançou-lhe um sorriso amarelo. Estava quieta de propósito, acreditando que quanto menos falasse menos tola pareceria. - Demora um pouco para uma pessoa se acostumar - ela disse. - Olhou para as cortinas brancas de renda francesa, para a mesa de canto de madeira, a pia de mármore rosa do bar. Alex inclinou-se para beijar sua testa e ela não conseguiu evitar a tensão. Desde que ele a buscara na delegacia hesitara em tocá-la. Era ridículo sentirse tímida como se fosse um primeiro encontro, uma vez que Alex havia dito que eles estavam casados havia três anos. Ainda assim, ela não conseguia se imaginar na rotina diária de um casamento. Continuava pensando em imagens que sabia terem sido mostradas pela imprensa: Alex Rivers de terno em um evento sobre a pesquisa da Aids, Alex Rivers recebendo um Globo de Ouro, Alex Rivers fazendo malabarismos com cocos durante o intervalo das gravações de Robinson Crusoé.
De repente, ele ficou em pé, tomado pela luz do sol e Cassie esqueceu-se de seus pensamentos. Ela não se lembrava de Alex, não se sentia à vontade com sua presença, mas estava fascinada por ele. O brilho de seus olhos, o contorno de sua mandíbula, os músculos de seu pescoço, tudo lhe era familiar. Ela o observou como observaria a Davi, de Michelangelo: fluido, belo, mas enraizado demais em sua perfeição para ser feito para ela. - Que bom que viemos para cá - Alex disse. - Se já está surpresa com o apartamento, imagine com a casa. No caminho para a colónia de Malibu, Alex tentou trazer à tona as lembranças de Cassie fazendo descrições das três residências: a casa de BelAir, o apartamento em Malibu e o rancho perto de Aspen, Colorado. Dissera que ambos passavam a maior parte do tempo na casa, mas que Cassie preferia o apartamento, pois o havia redecorado quando eles se casaram. - Como ela é? - ela perguntou, ansiosa para receber mais detalhes que a fizessem se lembrar do passado. Alex deu de ombros: - É pequena. Mas quando a Range Rover parou diante da enorme construção branca, Cassie olhou para os cantos arredondados, para as torres de princesa, andar depois de andar. O último adjetivo que poderia ser dado àquela casa era pequena. - Parece um castelo - ela disse, e Alex a abraçou. - Foi isso o que você disse na primeira vez em que a viu. - Cassie? - Ela se assustava ao escutar o próprio nome. Não escutara o telefone tocar, mas Alex estava segurando o aparelho, cobrindo o bocal. - Herb disse que não vai conseguir dormir até constatar que você está bem. - Ele se aproximou dela e colocou a palma de sua mão em seu rosto. - Mas eu não estou nem aí - ele disse. - Você tem de descansar. Levou o telefone à orelha. - Não, Herb. Cinco minutos é tempo demais. Não... Cassie ficou em pé e encostou a mão no braço de Alex. Era a primeira vez que ela o tocava, sem que ele a tocasse antes. Ele se virou para ela, esquecendo-se do telefone, com os olhos fixos nos dela. - Tudo bem - ela disse de modo contido. - Diga a ele para vir. Estou bem. Não quero descansar. Ele murmurou alguma coisa ao telefone e ela observou a maneira como seus lábios formavam as palavras. Esperou até que ele desligasse, mas não foi o que fez. Pousou a mão sobre o bocal novamente e se aproximou, até que ambos ficaram extremamente perto um do outro. Cassie não fechou os olhos quando Alex a beijou. Sua mão soltou o braço dele e parou ao lado do próprio corpo, e ela sentiu o gosto de café e baunilha. Quando ele se afastou, ela continuava inclinada para ele, olhos arregalados à espera da enxurrada de lembranças que tinha certeza de que viria. Mas, antes que isso ocorresse, Alex fez um movimento com o telefone na mão. - Preciso conversar com ele. Abandonei as filmagens de Macbeth no meio, você sabe, para poder buscá-la. O coitado do Herb precisa dar um jeito na bagunça que causei. - Ele passou a mão pelos cabelos. - Ande pela casa um pouco. Prometo que não vou demorar mais do que cinco minutos.
Enquanto Alex se virava e fazia perguntas, conversando ao telefone, Cassie desceu as escadas para o andar do meio. Pensou se deveria trocar de roupa antes de Herb chegar. Pensou em quem Herb poderia ser. Caminhou em direção à suite máster, onde Alex havia lhe mostrado, anteriormente, um guarda-roupas repleto de peças coloridas de seda e algodão que pertenciam a ela. Chegou ao corredor abobadado pelo qual havia passado com Alex antes. Dessa vez, parou para olhar para as fotos penduradas nas paredes brancas. Havia uma de Alex na praia, enterrado na areia até o peito. Uma de Cassie, sorrindo, abraçando um esqueleto pelo ombro. Havia uma foto de um cão que ela não reconheceu e outra de Alex montado em um cavalo. Por fim, uma foto de Cassie na cama, com os lençóis brancos cobrindo seus seios, sorrindo tranquilamente. Lembrou da pressão do beijo de Alex. Tentou imaginar a mão dele descendo por sua coluna. Olhou para a foto novamente e tentou imaginar se Alex havia sido o fotógrafo. Herb SILVER tinha um metro e meio de altura, era careca, tinha um bigode fino e orelhas meio pontudas que fizeram Cassie se lembrar de um gatinho. Foi recebido por Alex na porta do apartamento e entregou a ele uma sacola de papel marrom engordurada. - Este é o almoço e vamos ver o que um goi como você tem na cozinha? Ele olhou para trás de Alex, procurando por Cassie, afastando Alex enquanto começava a mexer na sacola. - Tem carne defumada com chucrute para você e três quiches. Pelo amor de Deus, não coma todas as quiches sozinho dessa vez. Ah! - ele esticou os braços na direção de Cassie. - Estava tentando causar meu terceiro ataque cardíaco? Herb Silver era o agente de Alex. Ele havia se mudado para Los Angeles vinte anos antes, mas dizia a todos que, mesmo que fosse possível tirar Herb Silver do Brooklyn, era impossível tirar o Brooklyn de Herb Silver. Cassie esticou os braços e o abraçou, e a cabeça dele encostou embaixo do queixo dela. Herb deu-lhe um selinho nos lábios. Passou as mãos delicadamente sobre os braços dela, como se estivesse procurando por algum osso quebrado. - Então você está bem? Cassie concordou com um movimento de cabeça, e Alex deu um passo à frente, oferecendo a ela a metade de um sanduíche enrolado em um guardanapo. - Ela está perfeita - ele disse com a boca cheia. Herb ergueu uma sobrancelha. - Ela sabe falar? - Estou bem - Cassie disse. - De verdade. - Ela olhou para Alex e Herb e para Alex de novo, agradecendo ao homenzinho, em silêncio, por ter insistido para estar ali naquela tarde. Com Herb em cena, Alex parecia mais familiar. Alex passou o braço por cima dos ombros de Herb e o direcionou para o andar de cima, onde ficava a sala de jantar. - Cassie, pode pegar os pratos? Certo, Herb, conte-me o que Joe está fazendo na Escócia. Cassie caminhou pela cozinha, feliz por ter algo para fazer. De certo modo, as coisas comuns, como encontrar pratos ou cozinhar, ou observar o vapor do
chuveiro tomar conta do banheiro, faziam com que se sentisse à vontade. Alex parecera muito menos assustador naquela manhã enquanto eles estavam fazendo as tarefas juntos - ele servindo o suco nos copos e ela procurando as pedras de gelo, lado a lado cortando os pimentões para fazer uma omelete, pegando os papéis que haviam se espalhado pelo chão. Havia uma intimidade nas tarefas simples, coisas que todos conheciam e faziam, que formavam uma base de conforto e segurança sob dois desconhecidos. Herb e Alex conversavam na sala de jantar e ela escutava uma palavra ou outra de vez em quando. Cassie procurava em um armário e depois em outro, tentando descobrir onde estavam os pratos. Ela abriu a porta mais próxima. Toalhas de mesa e um cesto de pães. A porta ao lado revelou taças de vinho. - Joe gravou seis cenas chatas que não envolvem você - a das bruxas e uma ou outra com Banquo. Ele disse que a Melanie fez um grande trabalho em resolver a situação. - Herb observou Cassie abrir o terceiro e o quarto armários, morder o lábio e procurar embaixo da pia. - O que há com a cabeça dela? - Ele perguntou a Alex. - Ainda está meio doida? Alex deu de ombros. - O médico disse que vai demorar um tempo para que ela se lembre de quem é e o que a deixou fora de órbita. - Ele observou Cassie até que ela finalmente abriu o armário onde estavam os pratos. Enquanto isso, acho que vou mantê-la perto de mim. Em segurança. - Ele sorriu para seu agente. - Que coisa! Se eu não consigo trazer sua memória de volta, não sei o que vai conseguir. Cassie chegou com três pratos e um pacote de guardanapos de papel. Ficou à beira da mesa, um tanto deslocada. - Só consegui encontrar taças de vinho - ela disse. Herb fez sinal para que ela se sentasse. - Sente-se. Podemos beber no gargalo. - Ele abriu um sanduíche que continha uma enorme quantidade de carne entre as duas fatias de pão, e Cassie observou-o abocanhar o alimento. - Espero que tenha agradecido a sua querida esposa, Alex, pela propaganda gratuita. - Herb apertou a bochecha de Cassie. - Uma cobertura nacional de Alex Rivers arrasado, procurando sua esposa, é exatamente o tipo de propaganda pré-Oscar de que precisamos. Ele segurou o sanduíche a poucos centímetros da boca. - Não será nada mal para os homens da academia ver você sendo o homem de família antes de indicarem o escolhido para Melhor Ator e Melhor Diretor. Sabe de uma coisa? Vou telefonar para Michaela hoje à tarde e ver se podemos tirar proveito disso no programa da Oprah. Podemos emendar com o Taboo, talvez possamos colocar Cassie no ar nos últimos cinco minutos... - Não. - ao ouvir aquela palavra, Cassie se assustou. Alex não a dissera em um tom de voz alto, porém batera o punho na mesa com tanta força que trincou um dos azulejos pintados a mão de sua superfície. Cassie observou uma linha de sangue descer pelo pulso de Alex, mas ele não se importou em limpá-la. Estreitou os olhos e inclinou-se sobre a mesa na direção de Herb, derrubando uma garrafa de refrigerante. - Você não vai explorar a minha esposa na TV para aumentar minha chance de ganhar um Oscar. Herb limpou a boca com um guardanapo, como se estivesse acostumado com esse tipo de explosão todos os dias. - Tudo bem, sem problemas - ele disse.
Surpresa, Cassie ficou sentada sem saber o que fazer, observando a mancha de Sprite sobre o carpete. Olhou para Alex. - Não me importo - ela disse. - Se você achar que isso pode ajudá-lo... - Eu disse não - Alex respondeu. Os dedos tensos na beirada da mesa finalmente relaxaram. - Cassie - ele disse com mais delicadeza -, o refrigerante. Cassie afastou a cadeira e correu para a cozinha. Um pano. Ela virou-se abrindo por intuição um dos armários onde havia uma pilha de panos para limpeza. Com eficiência, secou a mesa e depois, ajoelhando-se entre Herb e Alex, apertou o pano no carpete. Esfregou por um minuto. Na verdade, estava tão ocupada limpando a bagunça que não se deu conta do silêncio pesado sobre ela, que a forçou a abaixar a cabeça para não olhar para o marido. - Pronto - Cassie disse a si mesma, ofegante. Voltou a ficar em pé. Alex a puxou para que se sentasse em seu colo. - Sinto muito, Herb – ele disse de maneira tranquila. - Você sabe como reajo quando o assunto é Cassie. - E quem não reagiria da mesma maneira? - Herb pegou a segunda metade de seu sanduíche e começou a tirar a carne, eliminando todas as fatias. - Colesterol desgraçado. Cassie o observou empilhar a carne em um canto do prato. Ajeitou-se desconfortavelmente, sentindo as coxas de Alex sob as suas. Percebeu que estava tremendo e, quase imediatamente, Alex envolveu-a com os braços. Está com frio? - Ele murmurou em seu ouvido e, antes que ela respondesse, ele aumentou a pressão do abraço. - Vou voltar para a Escócia na sexta-feira - ele disse. - Levarei Cassie comigo. - Vai me levar? - Cassie perguntou, virando-se nos braços dele para encará-lo. Herb fez um movimento afirmativo com a cabeça. - A UCLA* vai dar uma licença para ela? - UCLA? - Cassie levantou-se. - O que a UCLA tem que ver com isso? Herb sorriu. - Provavelmente Alex não teve tempo de lhe contar. Você leciona lá. - Pensei que fosse uma antropóloga. - E é. Você leciona antropologia lá - Alex disse. Ele sorriu e acrescentou: Vamos ver se acerto a matéria deste semestre... você está lecionando Práticas de Arqueologia, Os australopitecíneos, e está coordenando um curso da Golden em biologia, sociedade e cultura. Cassie olhou para ele, furiosa, sua raiva suspensa na distância entre eles, fazendo com que ela se esquecesse de seu papel como observadora. Como ele podia ter se esquecido de dizer aquilo? Ela havia contado a ele sobre a mão que encontrara na biblioteca um dia antes, a primeira pista sobre sua identidade. E na delegacia de polícia, quando ele confirmou sua profissão, ela quase gritara de alegria. Por ser alguém tão preocupado com a própria carreira, Alex deveria ter compreendido. - Por que você não me contou isso antes? Preciso telefonar para alguém lá. Posso ter faltado a alguma aula. Eles devem ter visto o jornal... Nota de rodapé: UCLA - Universidade da Califórnia, Los Angeles. Fim da nota de rodapé.
- Cassie - Alex disse -, acalme-se, eu pedi a Jennifer que telefonasse a eles para avisar que você está bem e para dizer que você voltará em algumas semanas. - E quem diabos é Jennifer? - Cassie gritou. - Minha assistente - Alex respondeu. Sua voz, baixa e tranquilizante, tomou conta de Cassie. Ele ficou na frente dela, segurando seus braços e forçando-a a olhar em seus olhos. - Fique tranquila - ele disse. - Só quero que você melhore. - Estou bem - Cassie explodiu. - Estou perfeitamente bem. Posso não lembrar quem sou, Alex, mas isso não me torna uma inválida. Talvez eu me lembrasse de muito mais coisas se você não se empenhasse tanto em tomar todas as decisões por mim e... - De repente, ela parou. A voz de Alex estava tranquila e seus braços pareciam esticados para oferecer conforto, mas seus dedos a apertavam. Cassie olhou para baixo, para um ponto onde um pouco de sangue da mão machucada dele havia manchado a camiseta dela. Ele olhava para ela com tanta intensidade que nem sequer percebera que a estava machucando. Cassie sentiu as faces vermelhas. Ela o acusava, apesar de saber apenas metade da história. Ela gritara com ele, quando ele só estava tentando ajudar. Virou-se de costas, arrasada por ter se descontrolado diante de Alex, diante de seu agente. O que estava pensando? É claro que iria para a Escócia. Tinha o resto de sua vida para lecionar na UCLA. Alex afastou os cabelos dela da testa. Parecia estar esperando que ela retomasse o bom senso. - Sinto muito - Cassie disse. - Só queria que você tivesse dito algo. - Ela se afastou dele, deixando aquela sensação incômoda novamente se colocar entre eles. Sorriu envergonhada para Herb e caminhou para o pátio que levava à praia. - Uau! - Herb disse, ficando em pé e levantando os braços para se alongar. - Acho que nunca vi Cassie desse jeito. Alex observou a esposa caminhar para a areia clara, com o vento desfazendo suas pegadas com quase a mesma rapidez de seus passos. Ele a viu Pegar uma pedra e jogá-la o mais longe que conseguiu, tentando acertar o sol. - Não, nem eu - ele disse. ERA VERÃO DE 1975 e Cassie e Connor estavam deitados de barriga Para cima na doca, raspando os pés na madeira, lançando desafios para ver quem conseguia passar mais tempo olhando para o sol forte. - Você está roubando - ela disse. - Vi você semicerrar os olhos quando pensou que eu não estava olhando. - Não estou, não - Connor respondeu indignado. - Você simplesmente não sabe perder. Ela tinha doze anos e estava com seu melhor amigo, em um daqueles dias absolutamente perfeitos em Moosehead Lake, que passavam muito devagar, dando a impressão de que você estivesse em uma fotografia até que, bum!, de repente terminava. - Nossa! Estou totalmente cega - ela disse. - Eu também - Connor disse. - Estou vendo tudo preto. - Sério?
- Sério. - Cassie sentou-se, esticando o braço além de sua vara de pescar, e a de Connor, segurando o osso frágil do punho dele. Ela puxou até saber que ele também estava sentado. Conhecia Connor desde quando conseguia se lembrar. Ele era seu vizinho e seu pai trabalhava na loja de artigos de pesca na cidade. Eles haviam roubado biscoitos ainda quentes da padaria dos pais de Cassie; estudavam na mesma sala desde a segunda série; haviam aprendido a navegar juntos em um barco Sunfish muito velho comprado com o emprego de entregadores de jornal. Haviam prometido que se casariam, acreditando que qualquer outra pessoa do sexo oposto era uma porcaria; conversavam constantemente sobre fugir para a fronteira do Canadá, só para ver se conseguiriam fazer isso. Seus pais diziam que eles eram a metade um do outro, duas partes de um todo. Cassie gostava muito dessa ideia. Fazia com que ela pensasse em uma foto de seu livro de biologia de um caranguejo-ermitão com uma anêmona-do-mar em suas costas. A anêmona-do-mar, carregada pelo caranguejo, tinha mais chances de encontrar alimentos e o caranguejo ficava mais bem protegido com a picada e a capacidade de camuflagem da anêmona-do-mar. Juntos, eles tinham uma chance muito maior de sobreviver. Connor ficou em pé. - Quer pescar? - De novo? - Cassie disse. - Não. - Quer correr? - Ele apontou para a costa. - E as nossas varas? Connor agachou-se. - Posso lhe ensinar a dar um mergulho de costas. Por um segundo, os olhos de Cassie brilharam - Connor sabia fazer tudo quando o assunto era mergulhar. Ele já havia tentado mostrar o mergulho a ela algumas vezes, mas Cassie não era muito boa naquilo. Mas um mergulho de costas... - Certo - ela disse. - O que devo fazer? Connor a colocou ao lado dele no dique para que ambos ficassem de costas para a água, os dedos dos pés posicionados bem na beirada. Então ele flexionou os joelhos e fez um mergulho perfeito, cortando a água com as mãos antes de seu corpo mergulhar, como a lâmina prateada de uma faca. Ele subiu à tona ao lado do dique e limpou com a mão uma sujeira de seu nariz. - Agora é a sua vez. Cassie respirou fundo. Flexionou as pernas um pouco, pulou e escorregou na madeira molhada. A única coisa de que se lembrou por muito tempo depois daquilo foi o terrível barulho causado pelo choque de sua cabeça contra algo duro. Connor já estava na água quando ela desmaiou, e ele passou um braço pelo peito dela e nadou até a areia. Arrastou Cassie pela areia, e os calcanhares dela deixaram marcas pelo caminho. Quando abriu os olhos, algo bloqueava sua visão do sol, algo escuro e grande. Connor. Passou a mão na nuca. Connor olhava para ela como se ela tivesse ressuscitado dos mortos e não apenas desmaiado por um ou dois minutos. - Você está bem? - Ele perguntou. - Sabe quem eu sou?
Cassie riu; não conseguiu se conter. Como se algum dia ela pudesse esquecer Connor. - Sim - ela disse. - Você é minha metade. Connor olhou para ela, seu rosto tão pálido que mostrava que o susto havia sido grande. Por um momento, os dois permaneceram calados. Connor foi o primeiro a dizer: - Vamos. Precisamos pegar um pouco de gelo para você. Eles abriram a porta da casa de Cassie, deixando pegadas molhadas e areia pelo caminho até a cozinha. - Teria sido um mergulho perfeito - Cassie disse olhando para trás. - Da próxima vez, acho que... - Ela parou na porta de modo tão abrupto que Connor se chocou contra ela e, inconscientemente, ela se inclinou para ele. Sua mãe estava desmaiada no chão da cozinha, em meio a uma poça do próprio vómito. Apertando os lábios, Cassie ajoelhou-se ao lado da mãe com um pano de limpeza úmido, limpando seu rosto, boca e sua camisa. De soslaio, viu Connor retirar, discretamente, a garrafa de gin que havia rolado para baixo do refrigerador. Sua mãe tinha de estar na padaria, uma vez que ainda eram três da tarde. Outra briga devia ter ocorrido. Isso significava que não sabia quando ou se seu pai voltaria para casa. - Mãe? - Cassie sussurrou. - Mãe, vamos. Levante-se. - Passou o braço mole de sua mãe por seu pescoço e tentou levantar o peso morto. Com Connor observando da porta, ela levou a mãe até o sofá da sala de estar e a cobriu com um fino cobertor. - Cassie? - A voz de sua mãe estava calma e suave, parecida com a de Mariiyn Monroe. Esticou o braço à procura da mão da filha. - Minha filha querida. Cassie colocou a mão da mãe sob o cobertor e voltou para a cozinha, tentando pensar no que fazer para o jantar. Se tivesse uma refeição pronta quando - e se - o pai voltasse, ele não ficaria nervoso e, se ele não ficasse nervoso, as chances de sua mãe beber até cair de novo eram menores. Cassie ajeitaria tudo. Connor ficou em pé na cozinha segurando um saco com gelo. - Venha aqui - ele disse. - A última coisa de que você precisa é que sua cabeça inche ainda mais. Ela se sentou em uma cadeira e deixou Connor segurar o saco de gelo sobre a curva de seu pescoço. Não era a primeira vez que Connor presenciava aquela cena - ele sabia tudo sobre Cassie -, mas mesmo na primeira vez, ele havia apenas oferecido ajuda e se mantido calado. Não havia olhado para ela com aqueles olhos grandes que ela sabia que demonstravam pena. A água gelada escorreu entre as omoplatas de Cassie e, apesar do cuidado de Connor, uma dor de cabeça estava começando a surgir. Ela olhou pela janela para o dique flutuante, que parecia tão distante que era difícil de acreditar que ela havia estado ali minutos antes. Cassie suspirou. O problema dos dias absolutamente perfeitos de verão era que eles eram propícios para que coisas ruins acontecessem. ELA ACORDOU COM ALGUÉM PASSANDO UM gel de aloivera frio em suas pernas. - Você vai me pagar por isso depois - Alex disse. - Está tão vermelha que me dói só de olhar para você.
Cassie afastou a perna e tentou virar-se, sentindo-se desconfortável com o toque íntimo das mãos de Alex sobre sua pele. Fez uma careta de dor quando tentou dobrar o joelho. - Eu não queria ter adormecido. Alex olhou para o relógio. - Eu também não pretendia deixá-la dormindo por seis horas - ele disse. Depois que Herb foi embora, fiquei ocupado ao telefone. Cassie sentou-se um pouco afastada de Alex. Ela viu o sol deixar uma faixa de cor diferente no céu. Uma mulher mais velha passeava pela praia com dois weimaraners. - Alex! - Ela gritou acenando. - Cassie! Você está se sentindo bem? Alex sorriu para ela e disse: - Ela está bem. Bom passeio para você, Ella. - Ella? - Cassie perguntou. - Ella Whittaker? - Os olhos dela se arregalaram, tentando ver a mulher alta que, cinquenta anos antes, havia sido uma pinup girl e lenda do cinema. - A Ella Whittaker que fez o filme... - A Ella Whittaker que vive a duas casas abaixo da nossa - Alex disse sorrindo. - Meu Deus! Você precisa recuperar logo a memória, ou vai pedir autógrafos a todos os moradores da colónia. Durante muitos minutos, ele ficou calado e Cassie sentiu o silêncio se estabelecer entre eles. Queria dizer alguma coisa a Alex, qualquer coisa, mas não sabia sobre que tipo de coisas eles conversavam. Ao se virar na direção da linha violeta do horizonte, a voz de Alex a envolveu, leve como seda. - Eu ia lhe contar sobre a UCLA. Puxa vida! Eu nunca a teria conhecido se você não trabalhasse lá, por isso devo muito a eles. Não foi de propósito, apenas me esqueci. - Ele esticou o braço para segurar a mão dela e a levou aos lábios. Seus olhos pareciam pesarosos. - Consegue me perdoar? "Ele está interpretando." O pensamento invadiu a mente de Cassie com tanta força que ela puxou sua mão livre e virou-se, tremendo. "Como eu sei quando ele está interpretando um papel?" - Cassie? Ela olhou para ele, manteve seu olhar e aos poucos amoleceu. Não conseguia pensar na UCLA, sobre quem estava certo e quem estava errado, pelo menos não naquele momento. Ele a estava hipnotizando; ela sabia disso tão bem quanto sabia que havia sido feita para ele, assim como sabia que quaisquer dúvidas que tivesse sobre Alex refletiriam sua falta de bom senso. Cassie começou a ouvir e a sentir o inesperado: uma mistura de violinos mexicanos em uma melodia suave, o vento úmido do pantanal, a música de cem corações batendo. Pensou em fugir, intuindo que ali começava o fim, mas não conseguiu se mexer, assim como não podia voltar no tempo. Seu mundo estava ruindo e o único lugar para onde ir era em direção a Alex. - Você me perdoa? - Ele repetiu. Cassie escutou a própria voz, as palavras nas quais não se lembrava de ter pensado. - É claro. Não é o que eu sempre faço? Uma onda lambeu os tornozelos de Cassie, fria e realista. A mágica foi desfeita e ali estavam apenas os dois, ela e Alex, e a situação começava a parecer normal.
- Vim preparado com um suborno - Alex disse. - Eu mesmo fiz. - Ele estava sorrindo para ela e ela devolveu o sorriso, hesitantemente, pensando: "Ele compreende. Ele sabe que me tem na palma da mão. Ele levantou a parte da frente de sua camisa para revelar um pacote quadrado muito bem embrulhado no cós de sua calça. - Aqui está. Cassie esticou o braço para pegar o pacote, tentando não olhar para os músculos esculpidos e definidos de seu peito. Abriu o embrulho. - Você fez Para mim marshmallows? Eu gosto deles? - Não - Alex riu. - Na verdade, você detesta marshmallows, mas é a única coisa que eu sei fazer na cozinha e pensei que certamente você fosse se lembrar disso e ficar com pena de mim. - Ele pegou o doce da mão dela e deu uma mordida. - Eu cresci comendo isso - ele disse, com a boca cheia. Cassie virou-se para ele, com os olhos brilhando: - Alex, onde eu fui criada? - Maine. - Ela sabia antes mesmo de ele ter dito a resposta. - E quem era Connor? Os olhos de Alex se arregalaram, de modo que ela pôde ver o anel dourado dentro de suas íris. - Seu melhor amigo. Como você... se lembrou de tudo isso? Ela sorriu, animada. - Sonhei o tempo todo que passei dormindo - respondeu. - Lembrei de muitas coisas. Do lago Moosehead, de Connor e... de minha mãe. Nós a visitamos? Eu converso muito com meus pais? Alex engoliu em seco. - Sua mãe faleceu, e, bem, quando eu a conheci, você me disse que o motivo pelo qual frequentou a faculdade foi para ficar cada vez mais distante do Maine. Cassie assentiu com a cabeça, como se já esperasse ouvir tudo aquilo. Tentou imaginar quanto Alex sabia sobre seus pais. Se já tivera a coragem de contar tudo a ele. - Onde estão os seus pais? Alex virou-se para olhar para o mar. Cassie observou seu perfil e teve uma lembrança repentina - era daquele jeito que ele ficava momentos antes de gravar uma cena, quando sua personalidade sumia de seu corpo e era substituída pelo personagem que ele estivesse interpretando. - Estão em New Orleans - Alex disse. - Nós não os visitamos com frequência. - Ele esfregou a mão na nuca e fechou os olhos. Cassie tentou imaginar o que ele sentia, o que o fizera se fechar. Para sua surpresa, sentiu um aperto no peito e soube naquele instante que sentira a dor no lugar dele. Quando Alex olhou para ela, velhos fantasmas ainda encobriam seu olhar. Você não se lembra mesmo de mim, não é? - Ele perguntou. Ele estava a poucos centímetros, mas ela sentia a linha de calor entre eles, como se estivessem se tocando. Cassie o abraçou, tremendo ao sentir ainda mais a dor dele. - Não, não me lembro - ela respondeu. Eles FIZERAM PIPOCA DE MICRO-ONDAS PARA o jantar e assistiram a uma reprise de Monty Python na televisão. Jogaram baralho com cartas que encontraram no quarto de limpeza. Com uma fronha envolvendo sua cabeça, fazendo as vezes de uma touca, Alex interpretou a senhora Macbeth dizendo:
"Fora, mancha maldita!" fazendo reverências quando Cassie sorriu e aplaudiu. Os olhos dela estavam brilhando quando ele desceu da mesa de canto que usara como palco. Ela não conhecia Alex, mas gostava dele. Certamente aquilo já era mais do que muitos casais tinham em seus casamentos. Alex a puxou para que ficasse em pé. - Está cansada? Cassie assentiu, deixando que ele escorregasse os braços ao redor de sua cintura. Enquanto desciam as escadas para o quarto, ela tentou imaginar como dormiriam. Eles eram casados, portanto ele podia dormir onde quisesse; mas ela tivera apenas um dia para se acostumar com ele, e pensou que ele teria a gentileza de ficar em um quarto de hóspedes. Pensou se queria que isso acontecesse. Diante da porta da suite máster, Alex parou de andar. Cassie afastou-se dele, com os braços tensos ao lado do corpo. Não conseguia olhar para Alex, cujas perguntas, mesmo no silêncio, pareciam encher o corredor. Ele ergueu o queixo dela e a beijou com delicadeza. - Boa noite - ele disse e se virou para ir ao quarto de hóspedes algumas portas adiante. Cassie o observou por um momento, depois caminhou para o quarto e fechou a porta. Tirou a camiseta e o short, jogando as peças na cama de quatro postes enquanto caminhava para o banheiro. Tirando a roupa íntima, ficou diante dos espelhos que pontuavam a parede toda ao lado da pia. Cobriu os seios com as mãos e franziu a testa ao ver sua barriga. Não conseguia imaginar o que Alex Rivers vira nela. Pegou os frascos e embalagens sobre o balcão - cremes faciais, esponjas de esfoliação e adstringentes que pareciam pertencer tanto a Alex quanto a ela. Cassie já havia lavado o rosto quando percebeu que não havia pasta de dente ali. Havia duas escovas de dente - uma verde, outra azul - e também não sabia qual era a sua. Procurou nos armários das paredes, mas só encontrou toalhas em tom pastel e dois roupões de banho grossos. Envolveu-se em um deles, passando as mãos pelo algodão pesado. Talvez Alex tivesse pasta de dente no banheiro dele e certamente ia querer sua escova. Cassie não sabia em qual quarto ele havia entrado e estava prestes a bater em qualquer porta quando escutou a voz dele mais adiante. - A vida não passa de uma sombra errante. - A porta estava entreaberta e, no reflexo do espelho do banheiro, ela viu Alex diante da pia, os olhos vazios. - Um pobre ator que se prepara e se aflige sobre o palco, durante sua hora - ele murmurou, sua voz um pouco mais alta que um sussurro. - E que deixa de ser ouvido. Surpresa, Cassie apertou as escovas de dente na mão e se inclinou contra a porta para ver um pouco melhor. Aquele não era Alex. Ele havia se transformado em um homem cansado, um homem que via a vida de acordo com o que se tornaria: uma lembrança na mente de alguém, depois algo esquecido. Cassie conteve a vontade de abrir a porta e envolvê-lo com sua esperança. Não conhecia aquele outro estranho, muito menos do que conhecia Alex, mas compreendia que estava ali para ajudá-lo.
Pensou no que Alex dissera na delegacia, do terror em sua voz: "Não tem ideia de como foi perdê-la". E começou a ver que o famoso Alex Rivers era frágil como qualquer pessoa. Cassie deu um passo adiante e Alex abriu os olhos, vendo o reflexo dela. Era Alex novamente e sorria, mas nos tons mais escuros de seus olhos ela pôde ver o terror e a apatia de Macbeth. Tentou imaginar se ele sempre era daquele jeito, se todos os personagens se tornavam parte dele. Ela sabia que os atores, em alguns papéis, tinham de enriquecer a atuação, e pensar que havia tanto desespero dentro de Alex a deixava arrasada. - De onde você tira tudo isso? Toda essa dor? Ele olhou para ela, surpreso com o comentário. - De dentro de mim. Ela se moveu primeiro, ou ele o fez, mas logo ele a abraçava e abria seu roupão, passando as mãos pelas laterais de seu corpo. As escovas de dente caíram no chão e Cassie envolveu os cabelos dele em seus dedos, escondendo o rosto em seu ombro. Ela deslizou as mãos pelas costas dele, puxando o tecido da camisa até que suas mãos sentiram a pele quente dele na região da cintura. Ele beijava com sofreguidão, encostando-a nas paredes e batentes das portas ao voltar para a suite máster. Cassie deitou-se na cama e ele afastou as laterais do roupão pesado, segurando os braços dela ao observar seu corpo. Ele passou a língua pelo contorno da mandíbula dela, nas curvas dos seios, nas linhas brancas de suas coxas. Cassie abriu os olhos, encantada com a imagem do corpo dele sobre o dela. Alex beijou sua barriga. - Linda - ele disse. "Ele está interpretando." Como acontecera mais cedo naquele dia, o pensamento surgiu do nada e, quando se alojou em sua mente, ela começou a querer afastá-lo. Mas o corpo de Alex estava sobre o dela, pressionando. Ele segurou seu rosto com as mãos e a beijou tão intensamente que ela pensou que fosse parti-la ao meio. E então se lembrou do feitiço que ele aplicara entre eles naquela tarde; o vazio que se abrira como uma ferida em seu ventre quando ela o escutou falar como Macbeth. No momento em que se uniram, Cassie compreendeu por que eles pertenciam um ao outro. Ele a preenchia e ela afastava suas cicatrizes. Cassie abraçou Alex, surpresa com as lágrimas que escaparam dos cantos de seus olhos. Virou o rosto para a janela aberta, inspirando a doce mistura dos cheiros dela, de Alex e do mar infinito. Ela estava quase adormecendo quando Alex disse: - Você não precisa recuperar sua memória, Cass. Sei quem você é. - É? - Ela perguntou sorrindo. Envolveu seu corpo com o braço de Alex. Quem sou eu? Sentiu a tranquilidade de Alex como uma bênção. Ele puxou as costas dela contra seu peito, no lugar exato onde ela se encaixava. - Você é minha metade - ele disse.
Cinco Em outra época e lugar, Will Cavalo Alado teria sido um Sonhador. Ele tinha onze anos quando seus olhos se abriram no meio da noite, enxergando e não enxergando ao mesmo tempo. Era verão, e do lado de fora as cigarras cantavam sob a lua crescente. Mas a cabeça de Will estava tomada pelo trovão e, quando seus avós correram para o lado de sua casa, conseguiram ver os violentos raios azuis refletidos em suas pupilas. Cyrus Cavalo Alado esticou o braço sobre o cobertor de seu neto para segurar a mão da esposa. - Wakan - ele murmurou. - Sagrado. Apesar de muitas coisas terem mudado para os sioux com o passar dos anos, certos hábitos não eram perdidos. Cyrus era um homem criado em reserva, que havia testemunhado o desenvolvimento da televisão e dos automóveis e que, um mês depois, veria um homem caminhar na lua. Mas ele também se lembrava das coisas que seu pai lhe dizia a respeito dos índios sioux que tinham visões. Sonhar com trovão era algo forte. Se o sonho fosse ignorado, a pessoa podia ser atingida pelo raio. E foi por isso que, certa manhã em 1969, o avô de Will Cavalo Alado o levou até o xamã, Joseph Cabanas ao Sol, para falar sobre a possibilidade de o neto se tornar um Sonhador. Joseph Cabanas ao Sol era mais velho do que o mundo, pelo menos era o que diziam. Ele se sentou com Cyrus e Will sobre um banco comprido e baixo que se estendia por toda a cabana de madeira. Enquanto ele falava, ia entalhando, e Will observou a madeira tomando o formato de um cachorro, depois de uma águia, depois de uma menina bonita, mudando a cada movimento das mãos do xamã. - Na época de meu avô -, Joseph disse -, um menino como você procurava por uma visão quando estava pronto para ser tratado como um homem. E, se ele sonhasse com o trovão, se tornaria um heyoka. Joseph olhou para Will e pela primeira vez Will percebeu que os olhos do homem eram diferentes de qualquer outro olho que ele já tinha visto. Não havia íris. Apenas pupilas negras e insondáveis. - Sabe disso, garoto? Will fez um movimento afirmativo com a cabeça; seu avô só falara sobre isso no caminho até a cabana do xamã. Cem anos antes, os heyokas haviam sido "palhaços" tribais, homens que agiam de maneira estranha. Alguns se locomoviam apenas de costas, alguns falavam um idioma diferente. Eles se vestiam com trapos, dormiam sem cobertores no inverno e envolviam-se em peles de búfalo no verão. Mergulhavam as mãos em água fervente e as tiravam sem nenhuma marca, provando que eram mais poderosos do que os outros homens. Às vezes, eles recebiam uma visão dos espíritos, que os alertavam acerca de um perigo ou da morte de alguém. Como heyokas, tinham o poder de evitar que essas coisas acontecessem; mas, por serem heyokas, não recebiam nada em troca de seus esforços. Will escutara pacientemente o seu avô e o tempo todo ficou pensando que estava muito feliz por eles estarem no ano de 1969. - Bem - disse Joseph Cabanas ao Sol -, você não pode ser um heyoka; estamos no século XX. Mas você terá seu sonho de trovão. Três noites mais tarde, Will estava sentado, nu, em uma espécie de sauna na frente de Joseph Stands in Sun. Ele já havia visto um daqueles abrigos
onde se encontrava; às vezes, os adolescentes as construíam e fumavam peiote dentro delas e ficavam tão alucinados que corriam nus pelos campos e mergulhavam em riachos de água congelada. Mas Will nunca antes havia estado dentro de uma. De vez em quando, Joseph remexia nas pedras em brasa que eram usadas para criar calor. Na maior parte do tempo, cantava e entoava sílabas que cresciam e explodiam como foguetes a centímetros dos olhos de Will. Conforme amanhecia do outro lado da planície, Joseph levou Will para o topo de um planalto. Will preferiria estar em qualquer outro lugar que não fosse aquela área rochosa, nu, mas sabia que não deveria contrariar seu avô nem Joseph. Respeite os mais velhos, era o que ele tinha aprendido. Tremendo, Will seguiu as instruções que lhe eram dadas. Encarou o sol com os braços abertos, mantendo-se bem parado e tentando ignorar o mato que assoviava com o movimento de Joseph. Ficou em pé durante quatro horas até que o sol começou a se pôr, até que suas pernas não aguentaram mais e ele caiu. Curvou-se para o lado e começou a chorar. Sentiu o planalto tremer, o céu derreter. No segundo dia, uma águia sobrevoou sua cabeça, vinda do leste. Will observou-a fazendo voos circulares, movendo-se com tanta demora que durante minutos ela parecia estar suspensa ao alcance de um braço. - Ajudeme - ele sussurrou e a águia passou por ele. "Você escolheu uma vida difícil, ela gritou e em seguida desapareceu. Horas devem ter se passado; podem ter sido dias. Will estava com tanta fome e fraqueza que teve de forçar sua respiração. Nos momentos em que sua mente estava lúcida, ele xingava o avô por acreditar naquele tipo de bobagem; xingava a si mesmo por ser tão facilmente influenciado. Pensou nos testes para entrar no time de beisebol da escola da primavera passada, na revista Playboy que ele havia escondido sob seu colchão, no cheiro do creme preparado pela mãe. Pensou em tudo que parecia muito distante de seu estilo de vida sioux. Estamos chegando, estamos chegando. As palavras ressoavam sobre a planície, envolvendo o pescoço de Will e fazendo com que ele se levantasse. Bem acima dele havia uma nuvem escura. Exausto, faminto, delirando, ele jogou a cabeça para trás e abriu os braços, oferecendo-se em sacrifício. Quando começou a trovejar sobre sua cabeça, percebeu que não estava no chão. Mais acima e olhando para baixo, Will viu a menina. Ela era pequena e magra e estava correndo em uma nevasca. De vez em quando os ventos fortes a envolviam, impedindo Will de vê-la. Ele pensou que ela estava fugindo de alguém ou de alguma coisa, mas então a viu parar. Ela ficou no centro da tempestade, com os braços abertos. O tempo todo, ela tentava encontrar o centro. - Ajude-a - Will disse e escutou as palavras ecoarem cem vezes a seu redor. Estava no chão de novo. Sabia que não se lembraria de nada daquilo. Sabia que, mesmo quando já estivesse adulto, aquele seria o pesadelo que se manteria em sua consciência muitos minutos depois de acordar. Quando a chuva começou, Will gritou. Com os olhos arregalados, ele viu um raio dividir o céu, dividindo seu mundo em partes iguais que se quebravam a seus pés. ATÉ MESMO O SOL AMAVA ALEX. CASSIE TOCOU o rosto dele com os dedos, encantada com o fato de o único raio de luz que entrava pela janela ter
ido parar diretamente sobre ele. Sua pele era morena, a barba aparecia e havia uma pequena cicatriz sob seu queixo. Ela tentou se lembrar de como ele havia se ferido. Observou os olhos dele se mexendo, mesmo fechados e se perguntou se ele podia estar sonhando com ela. Saiu da cama, tomando cuidado para não acordá-lo. Sorrindo, envolveu o corpo com os braços, pensando que devia ser alvo da inveja de todas as mulheres dos Estados Unidos. Se ainda lhe restassem dúvidas a respeito da veracidade de seu casamento com Alex, todas haviam sumido na noite anterior. Duas pessoas não fariam amor daquela maneira se não tivessem uma história juntas. Cassie riu. Se seu coração parasse de bater naquele instante, poderia dizer que tinha vivido uma boa vida. "É um bom dia para morrer." As palavras a assustaram e ela sentiu um arrepio antes de perceber que não havia dito aquilo em voz alta. Recuperandose, entrou no banheiro e se olhou no espelho, levando os dedos ao lábio inferior protuberante. Uma palestra. Aquela tinha sido a frase de abertura de uma palestra a que ela assistira, realizada por um colega da UCLA. Cassie apoiou as mãos na pia de mármore, respirando com alívio ao perceber que não havia lhe ocorrido um agouro, mas, sim, uma lembrança verdadeira. Tratava-se de um curso sobre cultura indígena, e aquela frase fazia parte da oração ritualística feita pelos guerreiros tribais das planícies antes de ir para a batalha. Cassie lembrou que disse ao professor que ele sabia como prender a atenção da plateia. Ela tentou imaginar o que Will podia estar fazendo. Era manhã de quintafeira; ele provavelmente estava indo para o trabalho. Will dera-lhe seus números de telefone. Talvez, mais tarde, ela telefonasse para ele na delegacia, para contar que vivia em um castelo em Malibu e que estava de viagem marcada para a Escócia. Cassie escovou os dentes e passou um pente pelos cabelos, posicionando cada item com cuidado sobre o balcão para não perturbar o sono de Alex. Voltou para o quarto na ponta dos pés e sentou-se em uma poltrona em um canto. Alex estava roncando baixo. Ela observou sua respiração por um momento, ficou em pé e caminhou para o armário do outro lado do quarto, onde estavam todas as roupas dele. Abriu a porta e prendeu a respiração. O armário de Alex era vinte vezes mais bem organizado do que o dela. No chão, na parte dos sapatos, havia filas de tênis, sapatos italianos e sapatos de couro preto. Uma parte lateral ostentava blusas, peças de lã shetland e norueguesa de um lado e de algodão do outro. Suas camisas estavam dispostas em cabides de cedro. Uma gaveta de roupas íntimas no canto do closet guardava de modo organizado cuecas de seda dobradas e meias, separadas por divisões. - Meu Deus - Cassie sussurrou. Passou o dedo pela fileira de camisas, escutando o som dos cabides em contato uns com os outros. Era de esperar que o armário fosse organizado, principalmente porque ele contava com os serviços de uma boa faxineira. Mas alguma coisa fazia com que aquele armário cruzasse o limite entre a meticulosidade e a obsessão. As blusas. Elas estavam separadas por material e dobradas com cuidado, mas também estavam organizadas por cores. Como um arco-íris. Até mesmo
as blusas com estampas estavam dispostas na ordem das cores predominantes. Ela deveria rir. Afinal, aquilo era tão estranho que chegava a ser engraçado. Era motivo para piadas. Mas Cassie sentiu os olhos ficarem marejados. Ajoelhou-se diante das fileiras de sapatos, chorando quase em silêncio, puxando uma blusa de seu lugar e colocando-a na boca para abafar o som. Curvou-se, com o estômago embrulhado, e disse a si mesma que estava ficando louca. Era o estresse acumulado dos últimos dias, ela concluiu ao secar o rosto. Caminhou até o banheiro e fechou a porta. Abriu a torneira e deixou que a água ficasse tão fria a ponto de deixar a pele dos pulsos anestesiada e então lavou o rosto, esperando começar de novo. DURANTE DIAS ELES VINHAM FALANDO SOBRE a nevasca. Chegaria depois das quinze horas na sexta-feira. Seria a tempestade do século. Vocês devem encher suas banheiras com água, o meteorologista dissera. Comprem pilhas e lenha. Peguem as lanternas. As coisas só ficariam melhores se a nevasca chegasse no domingo, Cassie pensou, pois assim as aulas de segunda-feira seriam canceladas. Cassie caminhou até a cozinha. Estivera na casa de Connor a tarde toda, mas havia prometido à mãe que voltaria para casa antes que os primeiros flocos de neve caíssem. A mãe de Cassie morria de medo de neve. Havia sido criada no estado da Geórgia e vira neve pela primeira vez depois de sua mudança para o Maine, quando se casou. Em vez de agir para se precaver na ocorrência de uma tempestade de inverno - como a mãe de Connor, que havia separado velas e comprado mais litros de leite no mercado do bairro -, Aurora Barrett ficava sentada à mesa da cozinha com os olhos arregalados, escutando a previsão do tempo em seu rádio e esperando ser enterrada viva. A única coisa que Aurora gostava a respeito da região nordeste do país era o fato de poder acusar o marido de tudo que havia acontecido de ruim em sua vida. Cassie sabia desde pequena que sua mãe detestava o Maine, que não queria ter se mudado para lá, que não queria ser a esposa de um padeiro. Ainda sonhava com uma casa com gramado que se estendesse até um rio, com um banco sob cerejeiras, com o sol escaldante do sul. Enquanto Cassie observava, escondida, sua mãe discutia com Ben e perguntava por quanto tempo eles continuariam ali, pois havia dez anos ele prometia uma mudança. Na maior parte do tempo, seu pai se mantinha impassível, apenas escutando as reclamações de Aurora. Tecnicamente, era culpa dele; ele havia prometido à esposa que, assim que conseguisse vender a padaria por um bom preço, eles voltariam para a terra dela. Mas a padaria dava prejuízo todos os anos e a verdade era que seu pai, no fundo, não tinha intenção de sair de New England. Ben dera apenas um conselho a Cassie na infância: "Antes de decidir o que quer ser, decida onde quer estar." A neve só começou a cair naquela noite, na hora de dormir, e, quando acordou de manhã, o mundo havia mudado. Do lado de fora, um gramado branco se estendia até a janela de seu quarto, e os montes e ladeiras haviam sido encobertos, fazendo com que ela quase perdesse o senso de direção. Pegou uma maçã e a guardou no bolso; em seguida, sentou-se à mesa da cozinha para calçar as botas.
Escutou a discussão claramente, apesar de ela estar ocorrendo no quarto dos pais, no andar de cima. - Venda a padaria - a mãe o ameaçava. - Ou não sei o que sou capaz de fazer. O pai respondeu: - O que mais você pode fazer que ainda não fez? - Cassie se assustou quando uma rajada de vento lançou neve no vidro da janela diante dela. - Por que não volta para a sua casa? Voltar para casa. Cassie arregalou os olhos. Durante um longo momento fez-se silêncio, exceto pelos ruídos da tempestade. Até que ela escutou a mãe dizer: - Não estou me sentindo bem hoje, nada bem. - Em seguida, ela escutou o som inconfundível da garrafa de uísque sendo retirada da prateleira onde Aurora a mantinha. Quanto mais ela bebia, menos o pai de Cassie conseguia tolerá-la. Era um círculo vicioso. - Jesus Cristo - o pai de Cassie disse amargamente e desceu correndo as escadas. Estava vestido pronto para enfrentar a nevasca. Olhou para Cassie e fez um carinho em seu rosto, quase um pedido de desculpas. - Cuide dela, certo, Cassie? - ele disse, mas, antes que ela pudesse responder, partiu. Cassie terminou de calçar as botas e cozinhou um ovo, com a gema mole, do jeito que a mãe gostava. Levou o alimento com uma fatia de pão até o quarto, pensando que, se a mãe estivesse alimentada, a embriaguez não seria tão ruim. Quando Cassie abriu a porta, Aurora estava deitada sobre a cama, com o braço sobre os olhos. - Oh, Cassie - ela sussurrou. - Querida, por favor. A luz. Cassie entrou de maneira obediente, fechando a porta. Sentiu o aroma adocicado do uísque tomando conta do cômodo, com vestígios da raiva do pai. Aurora olhou para a bandeja de café da manhã que Cassie levara e começou a chorar. - Ele te disse aonde ia? Está lá fora, nessa... nessa nevasca... Ela esticou o braço na direção da janela para sustentar seu argumento. Em seguida, apoiou atesta na mão, esfregando a ponta do nariz. - Não sei por que isso acontece. Simplesmente não sei. Cassie olhou para os olhos da mãe, vermelhos e inchados, e colocou as mãos na cintura. - Levante-se. Aurora virou-se para a filha e perguntou: - Como? - Eu disse para você se levantar. - Ela tinha apenas dez anos, mas se tornara adulta havia muito tempo. Cassie tirou a mãe da cama e começou a lhe dar as roupas: uma blusa de lã de gola comprida, outra blusa, meias felpudas. Depois de um momento de incredulidade, Aurora começou a obedecer, silenciosamente aceitando o que lhe era dado. Quando Cassie abriu a porta da casa, Aurora deu um passo para trás. O frio do inverno a acompanhou para dentro de casa.
- Vá - Cassie exigiu. Ela foi para a neve, rindo por um momento ao sentir o vento nas pernas. Virou-se para a mãe disse: - Estou falando sério. Foram precisos quinze minutos para que Aurora caminhasse mais de um metro e meio a partir da varanda. Estava tremendo e seus lábios estavam quase roxos, por não estar acostumada a ficar sob uma tempestade. O vento arrancou o chapéu de Cassie e fez com que ele saísse voando na neve. Ela viu a mãe abaixar-se, como uma criança, e tocar o chão. Cassie pegou um punhado de neve e fez uma bola bem-feita. - Mãe - ela gritou, um momento de alerta, e lançou a bola com o máximo de força que pôde. A neve atingiu Aurora no ombro. Ela ficou em pé, parada, piscando, sem saber o que havia feito para merecer aquilo. Cassie abaixou-se de novo e fez uma pilha de bolas de neve. Jogou uma depois da outra na mãe, deixando marcas no ombro, no seio e na coxa da mãe. Cassie nunca tinha visto nada parecido com aquilo. Parecia que sua mãe não tinha ideia do que se esperava dela. Como se não tivesse ideia do que fazer, Cassie cerrou os punhos do lado do corpo. - Revide! - Ela gritou, com as palavras congeladas no frio. - Que droga! Revide! Ela se abaixou de novo, mais lentamente dessa vez, esperando que a mãe imitasse seus movimentos. Aurora estava meio lenta por causa da bebida e balançou ao ficar ereta, mas tinha uma bola de neve na mão. Cassie observou quando a mãe impulsionou o braço para trás e para a frente e lançou a bola. A neve acertou em cheio o seu rosto. Cassie tirou o gelo de seus cílios. Sua mãe já estava criando um arsenal de bolas de neve. Na neve cegante, os olhos de Aurora não estavam mais tão vermelhos; no frio, seu corpo já estava se movimentando com um pouco mais de ritmo. Cassie apurou os ouvidos e escutou um barulho além do uivo do vento. Era um som claro, o riso de sua mãe, e ficou mais alto e mais leve ao sair de onde estava preso. Sorrindo, Cassie entregou-se à neve, com os braços esticados, oferecendo-se para os golpes leves e gentis. SEMPRE QUE Will ACORDAVA COM OS LENÇÓIS ENROLADOS na cintura e com o peito coberto de suor, sabia que tinha sonhado com o trovão. Mas não pensava nos detalhes; na verdade, com o passar dos anos, apesar de o número de sonhos ter aumentado, ele achava cada vez mais fácil esquecêlos. Ele se levantava e tomava um banho, mandando embora com o suor as lembranças que o ligavam aos sioux. Por ter sido escalado para o turno da quinta-feira à noite, Will dormiu até mais tarde e sonhou com o trovão até que o telefone o acordou. - Aqui é Francês Bean, da biblioteca - a voz disse. - Temos aqui o material que o senhor pediu. - Não pedi material algum - Will começou a dizer, esticando-se para devolver o telefone à sua base. - ...antropologia. A palavra foi tudo o que ele escutou, quase inaudível, e ele levou o telefone de volta à orelha.
A biblioteca era pequena, escura e silenciosa como um túmulo na quintafeira de manhã. Depois de se identificar na mesa da recepção, Will recebeu uma pilha de jornais presos por um elástico. - Obrigado - Will disse à bibliotecária, indo para um local onde pudesse ler as matérias sobre Cassie. Duas delas eram de revistas técnicas. A terceira era da National Geographic e composta por dezenas de fotografias da ilustre doutora Cassandra Barrett no ponto de escavação na Tanzânia, de onde a mão havia sido retirada. Will rapidamente leu a importância da mão para a antropologia e sua ferramenta de pedra, mas não descobriu nada que Cassie já não tivesse mencionado. "A doutora Barrett, jovem o bastante para se passar por uma das alunas da UCLA que ela leva aos pontos de escavações, admite que se sente mais à vontade em um local de escavação do que dentro de uma sala de aula." Will leu as palavras em silêncio, olhando para a foto de Cassie agachada, tirando a Poeira de um osso comprido e amarelo. Will leu a última linha da reportagem: Em uma área dominada por homens, a doutora Barrett é líder, sem dúvida". - Que arrogante - ele murmurou. Olhou a página, procurando outra foto de Cassie. Não encontrando nenhuma, voltou para o início da reportagem. Na página 36 da revista havia uma foto da mão; e, embaixo dela, para fins de comparação, estava a mão de Cassie. Outra foto dela ocupava o restante da página. Ela estava na sombra, com o sol atrás dela, o tipo de foto que os fotógrafos da National Geographic gostavam, e seu queixo estava um pouco levantado. Will tocou a garganta dela com o polegar. A foto estava escura demais para mostrar os olhos. Ele daria tudo o que fosse preciso para vê-los. Tentou imaginar como uma mulher perfeitamente à vontade nas savanas africanas também conseguia se sentir feliz sendo perseguida por paparazzi. Ele tentou descobrir como era escrever um artigo para uma publicação e depois ler o Enquirer e encontrar uma matéria com histórias que difamavam o caráter de seu marido. Tentou imaginar como Alex Rivers tinha conhecido Cassandra Barrett; o que faziam nos domingos de manhã. Sobre o que conversavam à noite, abraçados, quando não havia mais ninguém por perto. Will deixou as matérias sobre a mesa, tudo, exceto a página com a foto de Cassie de lado. Dobrou a foto e, enquanto a bibliotecária se distraiu com o computador, a enfiou no bolso de sua calça jeans. Pensou em voltar para a casa com a foto, e sabia que a imagem ficaria cada vez mais apagada, até que ele não mais conseguiria ver o rosto dela. Seis
Cassie abriu a porta de entrada do apartamento e viu a mulher mais linda do mundo. A princípio, não fez nada além de olhar para o cabelo comprido e reluzente da moça; seus olhos verdes. Ela vestia uma camisa de seda verde, uma boina de caxemira e um grande lenço enrolado duas vezes em seu corpo, servindo de saia. - Consegue acreditar, Cass? - Ela disse com a voz fina e aguda que não combinava nada com ela. Passou por Cassie, segurando o braço direito com o esquerdo, como se quisesse se livrar dele. O braço dela estava preso do pulso ao ombro em um gesso preto.
- O que eu devo fazer a respeito de Clorox? - Ela perguntou. - Clorox? - Cassie murmurou, subindo os degraus atrás da mulher, observando aquela desconhecida pegar um copo de suco de laranja de dentro da geladeira. A mulher disse: - O que houve? Alex manteve você acordada metade da noite falando sobre si mesmo de novo? Cassie ficou em alerta. Não sabia quem era aquela mulher, mas Alex havia sido muito gentil. No dia anterior, enquanto Cassie dormia na praia, ele havia pedido ao motorista, John, que buscasse todos os álbuns de fotos e retratos que pudessem ser encontrados na casa. Quando ela acordou, Alex sentara-se ao seu lado na biblioteca escura e silenciosa. Ele havia dado nomes a rostos familiares, delineado um passado para Cassie de maneira simples. Ele dera longas descrições a respeito dos momentos mais importantes e Cassie recostara-se no ombro dele, fechara os olhos e observara sua vida se revelar em formas e cores. A mulher bebeu todo o suco de laranja, sentou-se em um banquinho de madeira e encaixou as pernas nas barras de apoio da base. Cassie estreitou os olhos, tentando se lembrar de uma foto que Alex mostrara a ela no dia anterior de um álbum que ela havia montado com fotos dos colegas da faculdade. - Você não era loira? - Cassie perguntou. A mulher franziu o nariz. - Há um zilhão de anos. Meu Deus! O que aconteceu com você? Alex chegou tão discretamente por trás de Cassie que ela só percebeu sua chegada pela sombra que projetou na mulher à sua frente. Ele tinha apenas uma toalha enrolada na cintura. - Ophelia - ele disse friamente, abraçando Cassie. - Nada como vê-la logo de manhã. - É - Ophelia respondeu. - O prazer é meu. Fascinada, Cassie olhou para eles, analisando Ophelia de novo. Não era à toa que não se sentira ameaçada. A mulher mais bonita que Cassie já vira havia aparecido em sua casa, mas ela mal prestou atenção a Alex, e este só queria sair dali. Alex apontou para o gesso no braço de Ophelia. - Tendinite? Esforço exagerado? Algum outro acidente de trabalho? - Vá se danar - Ophelia disse. - Escorreguei na calçada. Alex deu de ombros. - Poderia ser pior. - Pior? Vou gravar um comercial na próxima semana, um comercial que será transmitido ao país todo do produto de limpeza Clorox, com meu braço direito despejando alvejante em uma maldita tampa medidora... - Você é atriz também? A pergunta de Cassie fez com que Ophelia interrompesse o que dizia. Olhou para Alex e disse: - O que você fez com ela? Alex sorriu para Cassie, reconfortando-a. - Você lê os jornais, Opie, ou isso está além da sua capacidade intelectual? - Ler dá pés de galinha. Assisto ao noticiário na televisão. Alex recostou-se na ilha de mármore da cozinha, com os braços cruzados.
- A Cassie sofreu algum acidente domingo passado e bateu a cabeça. Foi encontrada por um policial em um cemitério e não se lembrava do próprio nome. Ainda está recuperando a memória aos poucos. Os olhos de Ophelia se arregalaram ao olhar para Cassie. Em seguida, voltou-se para Alex: - Que conveniente para você - ela disse. - Sem dúvida você está se fazendo de santo. Alex ignorou o comentário, inclinou-se e beijou a testa de Cassie. - O nome dela é Ophelia Fox, e não se trata do nome verdadeiro... mas pouca coisa é verdadeira nela atualmente. Ela é modelo de mãos; foi sua melhor amiga na faculdade e dividia um quarto com você quando nos conhecemos e, até onde sei, ela é seu único defeito. - Ele ajeitou a toalha na cintura e caminhou em direção à escada. - E Ophelia - ele disse com um sorriso -, se você ficar bem boazinha, posso autografar seu gesso. Cassie tentou imaginar como uma estudante de antropologia conseguiria conhecer alguém como Ophelia Fox, mas, antes de poder fazer a pergunta, Ophelia se aproximou. Passou os dedos longos no corte em cicatrização da têmpora de Cassie. - Graças a Deus, acho que não vai ficar uma cicatriz. Cassie começou a rir. Aquela era a última de suas preocupações. Deu um passo para trás, observando Ophelia: - Você é linda - ela disse com sinceridade. Ophelia balançou a mão para ignorar o elogio. - Meus olhos são muito próximos um do outro e meu nariz é torto cerca de meio centímetro para a direita. - Ela levantou a mão esquerda, branca, quase sem pelos, com cinco unhas bem pintadas em estilo francesinha. - Mas minhas mãos são lindas. A cada vez eles usam um pouco mais do meu corpo. Da última vez, mostraram até meus ombros, por isso acho que é só uma questão de tempo. Nem mesmo Alex, a quem Cassie considerava um grande astro, não era tão apaixonado por si mesmo quanto Ophelia. Mas ela parecia tão séria mostrando as mãos que Cassie sorriu. - Quer mais suco? - Ela perguntou, apontando para o copo vazio. Ophelia caminhou até um armário e enfiou sua mão ali, procurando e encontrando um muffin. - Eu me viro. Conheço as coisas por aqui. - Ótimo - Cassie disse. - Talvez possa me ensinar. Ophelia afastou-se do forno elétrico, demonstrando ansiedade. - Puxa, Cass! Quanto tempo isso vai demorar? Deve ser terrível. Cassie deu de ombros. - Tenho Alex aqui. - Que grande ajuda - Ophelia disse. Cassie ficou diante de um balcão e começou a cortar um morango em oito finas fatias. Cortou de modo metódico, escutando a faca batendo no mármore a cada corte. - Por que vocês se detestam? - Ela perguntou. Cassie não teve certeza se Ophelia não queria responder à pergunta ou se não a escutara.
- Manteiga? - Ophelia disse. Fechou os olhos como se tentasse adivinhar sua localização e abriu um compartimento da geladeira. Ah! - disse. Tentou segurar o muffin com o braço lesionado enquanto passava a manteiga com o outro, mas o bolinho sempre lhe escapava. - Deixe-me fazer isso - Cassie disse. Ela entregou metade do muffin a Ophelia, que olhava para o braço como se este fosse um objeto desconhecido. - Ainda não posso aplicar pressão com ele. Isso está me deixando maluca. E coça demais! - Como você se feriu? Ela deu de ombros. - Era o fim de um dia horrível. Eu estava em uma sessão de fotos para a revista Parents e havia passado a tarde toda segurando várias crianças de três meses de idade e sem roupa... - Ela esticou os braços para demonstrar. - Bem, eles estavam tirando fotos que pegassem o bumbum do bebê e minhas mãos em suas axilas. Até que uma criança - um menino -, começou a fazer xixi em mim. E eu estava vestindo uma saia de seda que comprei na Versace mês passado... lembra? Eu a mostrei a você... e sei que a mancha não vai sair. - Ela parou, dando uma mordida no muffin. - E eles me disseram que iriam me avisar se - se - decidissem usar as fotos para a edição do próximo mês. Então eu saí do estúdio e estava chovendo muito e, quando vi já estava no chão, no meio de uma poça de lama. Caí em cima do meu braço e fiquei morrendo de dor. - Ela sorriu. - Mas marquei um encontro com o médico de plantão na emergência. - Ela se virou para Cassie: - Você sabia que eles não fazem apenas gessos brancos? Dá para escolher a cor: rosa, verde, até roxo. Escolhi a cor preta, porque combina com a maior parte de minhas roupas de sair à noite. Cassie recostou-se no balcão, cansada de escutar a explicação de Ophelia. - Mas já falei demais sobre mim. - Ela sorriu e Cassie viu que ela estava certa, seu nariz era um pouco torto, mesmo. - Como estão seus ossos? - Ossos? - Meu Deus, Cass, você só tem falado sobre sua viagem a campo deste semestre. Pensei que isso estivesse tão enraizado em sua mente que nem mesmo um coma faria com que você esquecesse. Você vai para... deixe-me pensar... Quênia, creio eu, em maio, com os formandos. - Não tenho ido à UCLA ultimamente. Alex precisa voltar para as gravações de Macbeth, por isso decidimos que eu pediria uma licença para acompanhálo. - Nós decidimos? - Ophelia balançou a cabeça. - Você quer dizer que ele decidiu. Você nunca acompanha Alex nas filmagens. Muito menos durante o ano letivo. Você deve ter perdido mais do que a memória, porque a Cassie que eu conheço não toleraria perder dois dias seguidos de aula sem sofrer uma apoplexia. - Ophelia sorriu. - Talvez eu devesse levá-la para a universidade hoje, trancá-la em seu escritório velho e empoeirado por uma hora ou duas com suas pesquisas e depois disso Alex teria que arrastá-la para a Escócia. Cassie sentiu que apertou a faca que segurava. Não tinha por que acreditar mais em Alex do que em Ophelia, mas acreditava. Engoliu em seco e colocou a
faca sobre o balcão da cozinha, ao lado do morango fatiado. Passou o dedo sobre uma poça vermelha de suco e sementes; a essência da fruta, o sangue. - Por que você e Alex se detestam? - Ela perguntou de novo. Ophelia suspirou e disse: - Porque Alex e eu somos muito parecidos para nos darmos bem. Estamos em níveis diferentes, porém na mesma área. Ambos somos obcecados por trabalho. E ambos queremos você com exclusividade. Cassie riu, mas o som parecia meio forçado. - Que maluquice - ela disse. - Você é minha amiga. Ele, meu marido. Há bastante espaço para os dois em minha vida. Ophelia recostou-se na ilha no meio da cozinha, erguendo a cabeça. - Diga isso ao Alex. Desde o primeiro dia parece que ele quer engoli-la inteira. COMO SE ESTIVESSE ESCUTADO A CONVERSA, ALEX VOLTOU da rua naquela manhã trazendo uma caixa cheia de ossos. Ele fingiu que ela estava pesada ao caminhar em direção a Cassie. Ela estava sentada à mesa da cozinha, observando álbuns de fotos, passando os olhos por uma foto velha de um menino loiro. Ele era esguio, prestes a desenvolver-se fisicamente, e ele abraçava Cassie. Ela tinha treze anos naquela foto, mas não havia aquele distanciamento comum aos adolescentes, entre meninos e meninas. Na verdade, pela foto, era possível ver que eles eram bem próximos. Cassie não olhou para Alex, não percebeu a caixa de madeira com suas etiquetas de nomes científicos. - Alex - ela disse. - Onde Connor vive atualmente? Por que não tenho contato com ele? - Não sei. Ele é a única coisa sobre a qual você se recusa a falar. Cassie passou o dedo sobre uma fina mecha de cabelo que batia no rosto de Connor. - Deve ter sido alguma briga, uma daquelas brigas de criança que nos deixam arrasados por anos, mas que sentimos vergonha de resolver. Alex abriu a caixa. - Duvido. Você é louca para resolver as coisas. - Ele jogou diversos ossos no ar, pesados e amarelados, e Cassie os pegou como uma experiente malabarista. - E aqui - ele disse - estão alguns pedaços para você pegar. Ele espalhou o conteúdo da caixa sobre a mesa de jantar, cobrindo com eles as páginas à mostra dos álbuns. - Não diga que nunca lhe dou nada - ele disse sorrindo. Cassie retirou o pano de algodão macio e o jornal que eram usados para transportar as peças, passando os dedos por cerca de cinquenta fragmentos de ossos. Todas estavam marcadas com tinta nanquim em uma letra de mão deitada para o lado esquerdo, aparentemente feita por alguma pessoa inglesa, marcando o túmulo, o local e a data da descoberta. - Oh, Alex - ela disse. - Onde você conseguiu tudo isso? - Cambridge, Inglaterra - ele disse. - Pela Cornualha, de acordo com o laboratório de onde o comprei. - Você comprou um esqueleto para mim? Alex passou a mão pelos cabelos.
- Você não faz ideia do que tive de fazer para convencê-los a me deixar trazer isso para casa. Precisei conversar com um tal de doutor Bother... - Doutor Botner? - Esse mesmo... precisei fazer uma enorme "contribuição", dizer a ele quem você era e convencê-lo de que eu tinha certeza de que você acabaria enviando o esqueleto de volta para ser exibido em um museu, e não o manteria na casa de um ator qualquer. - Ele pegou um pedaço de algodão e o rasgou distraidamente. - E, para deixar tudo em segredo, tive de fazer a negociação pelo telefone nos seis minutos em que você ficou longe de mim. Cassie olhou para ele: - Você fez isso ontem? Alex deu de ombros. - Eu o comprei na Escócia. Mas apressei o envio ontem. Não sabia quanto tempo você levaria para se sentir normal novamente e queria que aqui você se sentisse à vontade. Cassie sorriu e, como sempre, ele se perguntou por que os fotógrafos sempre se apressavam em registrar uma imagem dele e não dela. Se os traços dele refletiam alguma coisa, era a luz irradiada por Cassie. - É claro que qualquer outra mulher ficaria feliz com um buquê de flores ela disse. Alex observou Cassie começar a separar os ossos do esqueleto por ordem de tamanho. - Eu não trocaria você por nada no mundo - ele disse. Cassie estava desenrolando a mandíbula. Parou, olhou para suas mãos e em seguida ficou em pé e inclinou-se para beijar Alex: - Devo ser a pessoa mais sortuda da Califórnia - ela disse. Alex entregou-se ao momento, aproveitando o que ela dissera e a forte sensação de sentir a pele dela contra a dele. Ele não soube o que dizer a ela; nunca sabia o que dizer; estava acostumado a dizer o que os outros escreviam. Gostaria de ter aprendido, muito tempo antes, como expressar o sentimento de que, se ela fosse embora, se partisse, ele deixaria de existir. Mas não conseguia dizer isso, então fez o que sempre fazia: entrou em um personagem, o primeiro que lhe ocorria, disposto a fazer qualquer coisa, menos encarar seus limites. Ele se afastou e mudou o humor: comédia leve, dessa vez. Olhando para os ossos espalhados, ele ergueu uma sobrancelha e disse: - Você tem mais sorte do que ele teve. Ele deixou Cassie separando os ossos em cinco fileiras, além da mandíbula e desceu as escadas para buscar a segunda metade do presente: a pistola de cola e a plasticina, além de uma caixa de areia que ela usaria para apoiar as peças do esqueleto enquanto o montava. Ele havia pegado tudo aquilo do laboratório que ela tinha na casa. Quando voltou, Cassie já havia separado diversos pedaços de ossos, de uma ponta a outra, e Alex pôde ver como eles se encaixavam com facilidade. - Na embalagem está escrito que ele é da Idade das Trevas. Dei a ele o nome Lancelot - Cassie disse. Ela pegou a caixa que Alex estava segurando, pegou a pistola de cola e passou uma fina camada de cola na borda do osso. Deixando-o de lado na caixa de areia, ela prendeu o segundo pedaço e fez um monte de areia para segurar os pedaços até que o fixador secasse. - Vou fazer
o corpo e depois montar o rosto. Enquanto eles estiverem secando, posso montar os côndilos da mandíbula nas cavidades glenoides para ver se os dentes se ocluem corretamente antes de eu montar o rosto de uma vez. Alex balançou a cabeça negativamente. - E dizem que as pessoas não são capazes de entender Shakespeare. « Cassie sorriu, mas não desviou os olhos de seu trabalho. - Bem, ninguém precisa compreender o que estou dizendo. Ele é minha plateia - ela passou o dedo ao longo da mandíbula de Lancelot - e sua audição não funciona mais. Ela trabalhou durante uma hora, encaixando as peças em um quebracabeça tridimensional. Alex sentou-se diante dela, absolutamente surpreso. Cassie olhou para ele. - Você nunca me viu fazer isso antes? Quando Alex balançou a cabeça, negando, ela sorriu: - Quer me ajudar? Por um instante seus olhos brilharam, mas em seguida ele pegou com delicadeza uma peça do rosto antigo e passou o polegar pela borda acidentada. - Não saberia o que fazer - ele disse. - Acabaria atrapalhando. - É fácil. - As mãos de Cassie levaram as deles a uma segunda peça, e ela uniu as peças de um modo que fazia perfeito sentido. - Você pode colar estas duas para mim. - Ele observou a imagem dos dedos dela envolvendo os dele, as palmas das mãos dela sobre as dele, e depois olhou para os ossos. Ninguém pensaria em unir ele e Cassie ao vê-los separados, mas, juntos, eles também pareciam peças que se encaixavam perfeitamente. Cassie pensou que ele estava calado por estar confuso. - Tente - ela disse. - É como um modelo. Você deve ter montado um quando era criança. Na infância, Alex passara a maior parte de seu tempo sozinho, sonhando acordado e explorando a área rural onde vivia, em New Orleans. Ele preferia manter-se escondido, e passava horas embaixo de cerejeiras lendo livros que havia pegado emprestado da biblioteca da cidade. As Aventuras de tíuckleberry Finn, A glória de um covarde, Os prazeres do sexo. Os pais de Alex detestavam um ao outro, mas se preocupavam demais com o que as pessoas podiam pensar para se divorciarem. Sua mãe se afastara dele porque ele lembrava seu pai; o pai se afastara dele porque Alex não era o filho com o qual Andrew Riveaux sonhara: aquele que se mostrava disposto a caçar com ele; aquele que sairia à caça e depois beberia com os rapazes. No décimo segundo aniversário de Alex, Andrew Riveaux comprou para o filho um modelo de madeira bastante complicado de uma carroça Conestoga, aquela que havia atravessado Oregon, sobre a qual Alex estava aprendendo na escola. - Vou ajudá-lo a montar, garoto - seu pai dissera, e, para Alex, a promessa de passar algum tempo com o pai era melhor do que o presente em si. Alex abriu a caixa e cuidadosamente dispôs as peças de madeira, as partes de metal que serviriam como estrutura da cobertura da carroça. - Não vá tão rápido - o pai lhe dissera, dando um tapa em suas mãos. Você vai ter que conquistar as peças.
A carroça foi construída de acordo com o número de vezes que Alex agia, na opinião do pai, como um homem. Ele matou seu primeiro ganso, levou-o para casa pelos pés e parou para vomitar duas vezes, e em troca seu pai ajudou-a a montar a estrutura do carro. Atravessou o rio à noite com uma canoa, usando apenas o olfato para se direcionar, e encontrou o casebre da velha mulher de quem seu pai comprava uísque, o que lhe garantiu o assento frontal e o arreio dos cavalos. Caiu de uma árvore e quebrou a perna, com fratura exposta, mas não derramou uma lágrima, e naquela mesma noite seu pai se sentou à beira de sua cama para ajudar Alex, com seus dedos trêmulos, a montar as rodas. Quando ele tinha treze anos, conseguiu terminar o modelo. Era delicado e perfeito, centímetro por centímetro de história. Alex, por fim, colocou a cobertura da carroça e uma hora depois levou o modelo para a mata atrás de sua casa e o quebrou completamente com um galho que encontrou no chão. - Alex. Alex. - Ele se assustou com o som da voz de Cassie. Seus olhos estavam arregalados, e ela estava balançando um lenço de papel diante dele. Tome. Você está todo ensanguentado. Ele olhou para seu colo, vendo os pedaços de ossos e o corte na lateral de seu polegar. - Meu Deus. Sinto muito - ele disse. Cassie deu de ombros, segurando o papel úmido à mão dele, aplicando pressão. - São peças frágeis. Eu deveria ter dito isso. - Ela sorriu, hesitante. - Acho que você não teve noção da própria força. Alex se virou. Cassie havia completado o rosto; olhava para ele com olhos vazios dentro da caixa de areia. Ele ficou em silêncio enquanto Cassie montava a parte de trás do crânio. Quase todas as peças estavam ali, ele a observou colocando quatro fragmentos ao redor do lugar onde o osso que ele havia quebrado seria encaixado. Alex ficou em pé, murmurando algo que nem mesmo ele compreendeu. Tudo o que sabia era que precisava sair dali antes que Cassie terminasse. Não mais seria capaz de ver o esqueleto como uma soma de todas aquelas partes; em vez disso, seus olhos veriam o que estava faltando, o que ele havia arruinado. - VAMOS ASSALTAR UM TÚMULO - Cassie anunciara - no Dia das Bruxas. Faltavam duas semanas, e era uma data perfeita e Connor nunca recusava esse tipo de coisa. Ela estava tentando fazer com que Connor esquecesse suas preocupações: seu pai havia perdido o emprego e passava seus dias na garagem bebendo uísque, e estava ficando cada vez mais claro que Connor não conseguiria pagar a faculdade, apesar de estar desesperado para se tornar um veterinário. Cassie havia visto o brilho em seus olhos e sabia que chamara sua atenção. Então, na noite do Dia das Bruxas, eles saíram de casa à meia-noite. lá haviam obtido informações: os alunos mais velhos da escola haviam dito a eles que a polícia ficava protegendo o cemitério St. Joseph todos os anos, mas que o cemitério de animais na Mayfair Place ficava sem vigilância. Eles desceram a rua com discrição, andando pelas sombras e segurando seus sacos distantes do corpo, para que as ferramentas não fizessem barulho. Caminharam até terem certeza de que a noite já havia acabado: árvores com
pedaços de papel higiênico pendurados, caixas de correspondência sujas de ovos. Cassie caminhava na frente e Connor seguia seus passos à luz da lua, tendo o cuidado de pisar exatamente onde ela pisava. O cemitério de animais era uma área pequena cercada, pontuada por pinheiros. Todo mundo na cidade já tinha enterrado alguma coisa ali - um gato, um porquinho-da-índia, um peixinho dourado - apesar de muitas das covas não terem identificação. Connor e Cassie escolheram um dos poucos túmulos do cemitério. Aquele anunciava que ali era o local de descanso de Rufus, um mastim que havia sido a única criatura a se safar dos comentários maldosos da senhora Monahan. Rufus havia morrido seis anos antes, e a senhora Monahan há três, por isso Cassie achou que eles não estariam ofendendo ninguém se escavassem os ossos do animal. - Está pronto? - Connor estava olhando ao redor de maneira nervosa, mas já estava com a pá nas mãos. Cassie fez um movimento afirmativo com a cabeça. Pegou as ferramentas e esperou que Connor desse o Primeiro golpe. O cachorro estava enterrado tão profundamente que Cassie começou a se perguntar se poderia haver um caixão ali. Os Monahan tinham sido a família mais rica do lago, afinal, e Rufus era o único filho. Ela mexeu na terra macia com as mãos, retirando o que Connor já tinha cavado. Ele estava em pé, cerca de um metro e vinte dentro da cova, com as pernas nas laterais do buraco, com medo de pisar em Rufus quando menos esperasse. Inclinou-se e bateu a ponta da pá contra algo duro. - Caramba! - ele disse. Cassie secou o suor de seus olhos. - Encontrou? Connor engoliu em seco. Estava pálido. Cassie esticou o braço para puxá-lo e, quando ele estava no nível do solo novamente, caiu de joelhos e vomitou. Passou a mão na boca. Cassie ficou em pé com as mãos na cintura. - Meu Deus, Connor - ela disse. - Como você vai conseguir costurar os intestinos de um cachorro se não consegue vê-lo já morto? - Chacoalhando a cabeça, ela entrou na cova. Inclinou-se e começou a puxar os ossos, um por um, jogando-os aos pés de Connor. De certo modo, ficou surpresa. Pensou que o esqueleto seria um pedaço inteiro, como nos desenhos, e não algo que o tempo quebrava em pedaços. Por fim, escavou na terra e puxou o crânio do cachorro. Pedaços de pelo ainda cobriam sua cabeça. - Que legal! - Ela disse, colocando-o perto de Connor. Ele estava sentado de costas para a cova, com os olhos bem fechados. - Podemos ir? - Ele perguntou, com a voz rouca. Cassie sorriu. - Puxa, Connor! Se eu não o conhecesse muito bem, poderia dizer que você está morrendo de medo. Connor ficou em pé rapidamente, virou-se e segurou Cassie pelos braços com uma força que quase fez doer. Ele a chacoalhou com tanto vigor que fez a cabeça dela balançar. - Não estou com medo - ele disse. Cassie estreitou os olhos. Connor nunca a tratava daquela maneira. Nunca a feria. Era a única pessoa que não fazia isso. Lágrimas queimaram em seus olhos. - Covarde - ela sussurrou, dizendo qualquer coisa que tocasse o coração dele e fizesse com que ele sentisse a mesma dor que ela sentia.
Eles ficaram daquela maneira durante muito tempo, e Cassie só conseguia sentir as unhas de Connor em sua pele e o calor de seu olhar sobre seu rosto. Uma lágrima surgiu no canto de seu olho, e Connor soltou um de seus ombros para secá-la. Ele também nunca a havia tocado daquele modo. Tão delicadamente que ela teve dúvidas se tinha sido sua imaginação ou se havia sido o ar da noite. - Não sou um covarde - ele sussurrou, aproximando-se dela. Nenhum deles sabia beijar. Ambos viraram para um lado, depois para o outro e finalmente se uniram com um sussurro. O calor subiu pelo corpo de Cassie, queimando as pontas de seus dedos onde eles tocavam os ombros de Connor. Tinha certeza de que deixaria marcas nele. Ela abriu a boca para recebê-lo e, quando a língua dele tocou a sua, ela só conseguiu pensar: "Ele tem o meu gosto". Anos depois, quando Cassie pensava em sua profissão, tentava compreender o que exatamente a fizera optar pela antropologia. Inconscientemente, tomou sua decisão aos quatorze anos, naquela noite no cemitério de animais. Mas nunca soube se era pelo encantamento que os ossos lhe causavam ou se havia sido por causa do primeiro beijo que havia dado sob a luz da lua, ou se havia sido simplesmente uma homenagem a Connor, uma vez que aquela foi a última vez em que o viu com vida. Eles ficaram no cemitério durante uma hora, aprendendo um sobre o outro novamente. A lua os deixou brancos, dois fantasmas perdidos em um beijo, com ossos a seus pés. E então eles caminharam lentamente de volta para a casa de Cassie, de mãos dadas, e Connor guiava dessa vez. Sete Para comemorar a ressurreição de Lancelot da Idade das Trevas, Alex disse a Cassie que a levaria para jantar. - Vamos ao Le Dome - ele disse, teclando um número que havia memorizado. Olhou para Cassie: - Talvez você queira se arrumar. É claro que ela pretendia fazer isso, estivera entretida com areia e plasticina o dia todo; mas era ruim ver que Alex via alguma coisa de errado nela. - Louis? Alex Rivers. Sim, hoje à noite; às nove. Apenas minha esposa e eu. Nos fundos, por favor. - Ele colocou o telefone na base e levantou o crânio que estava sobre a mesa de jantar, mexendo na mandíbula para cima e para baixo: - Tudo bem? - Ele perguntou. Cassie sorriu, não conseguiu se conter. - Tudo bem. Ela envolveu o corpo com os braços, pensando no que encontraria para vestir em seu armário. Mas, para sua surpresa, Alex a seguiu e abriu seu guarda-roupa. Encontrou um terno de seda de três peças, com corte simples, e o colocou sobre a cama. - Aqui está - ele disse, como se fizesse isso o tempo todo. Cassie recostou-se no batente do banheiro e cruzou os braços. - Eu posso escolher suas roupas, também? - ela perguntou. Alex olhou para ela, confuso, como se só naquele momento estivesse percebendo o sentido de sua atitude.
- Você sempre pede que eu escolha - ele disse. - Diz que eu sei o que as pessoas estão vestindo por aí. - Ele começou a colocar a roupa dentro do guarda-roupa. Cassie mordeu o lábio. - Não - ela disse dando um passo adiante. - Gosto disso. Eu não sabia. Tudo bem. Ela esfregou o corpo na hora do banho, até sua pele estar brilhando e seu cabelo tomado pelo cheiro de flores. Cantou Heyjude a plenos pulmões e escreveu seu nome no box embaçado. Quando abriu a porta, Alex estava ali, em pé, lindo entre o vapor e os espelhos. Ele estava nu, e isso a deixou ainda mais envergonhada. Ela cruzou os braços sobre os seios e virou-se. - Não sabia que você estava aqui - ela disse. - Eu teria escutado sua cantoria mesmo que estivesse em San Diego - Alex disse. Ele sorriu e segurou-a pelos punhos, libertando suas mãos. vi tudo isso antes - disse com delicadeza. Ele enrolou a toalha ao redor do quadril dela, puxando-a para perto de seu corpo. - Pensei que íamos sair para jantar - Cassie disse. - Estou abrindo meu apetite - ele respondeu. Circulou o mamilo dela com a língua. - Estou em fase de crescimento. Ele conseguia fazer com que seu corpo doesse de desejo. Cassie se aproximou e o guiou para dentro dela, arranhando seu ombro na tentativa de se aproximar. Em algum momento, os espelhos desembaçaram e sobre a cabeça abaixada de Alex ela o viu triplicado, uma quimera com braços e pernas enrolados, forte. Ela olhou para seu reflexo. "Meu Deus", ela pensou. "Sou eu mesma?" Uma HORA DEPOIS, ELES ESTAVAM NO LE DOME, SEGUINDO para uma mesa mais tranquila na parte dos fundos, entre apertos de mãos, promessas de almoços e acenos. Por ser uma quinta-feira, o restaurante estava lotado. Cassie ficou em pé, nervosa, atrás de Alex, com a mão presa à dele, enquanto ele realizava conversas rápidas e formais nas mesas de outras pessoas. Ela o viu conversar com um executivo da indústria cinematográfica e demorou um tempo para perceber que Alex estava falando sobre o clima na Escócia, enquanto o homem falava sobre as vantagens do sindicato. Hollywood não falava sobre o outro, apenas sobre si. Cassie pensou em crianças de três anos que não sabiam dividir. Enquanto Alex pedia um vinho, Cassie escondia-se com o cardápio, já sabia o que pretendia pedir, mas gostava de ficar escondida. Parecia que em todas as mesas havia ou uma celebridade com cara de tédio ou uma pessoa comum esticando o pescoço para ver o que Alex Rivers jantaria. Alex puxou a parte de cima do cardápio com um dedo. Estava sorrindo para ela. - É por esse motivo - ele disse -, que não saímos muito. Eles haviam acabado de brindar a Lancelot quando uma mulher caminhou em direção à mesa suspirando o nome de Alex. Cassie inclinou-se sem reação. Achara Ophelia bonita, mas não esperava encontrar tamanha beleza, vestida com um longo preto que cobria de seu pescoço aos punhos. Ela abraçou Alex. Havia uma fenda em seu vestido e Cassie percebeu que a mulher não estava vestindo calcinha, apenas uma cinta-liga. - Onde você tem se escondido? - Ela perguntou.
- Miranda - Alex disse, praticamente empurrando a mulher para fora de seu colo -, você se lembra de minha esposa? Cassie, Miranda Adams. Miranda Adams inclinou-se na direção dela, perto o bastante para Cassie sentir o cheiro de álcool. Ela se endireitou e Cassie ficou surpresa ao perceber que o vestido da mulher era transparente. Os mamilos de Miranda eram escuros e triangulares e sobre o seio esquerdo havia uma série de marcas de nascença ou talvez uma tatuagem, no formato da constelação Orion. Cassie acreditava que Alex e Miranda haviam trabalhado juntos, mas era difícil de imaginar. Os únicos filmes que ela se lembrava ter visto Miranda Adams atuando eram aqueles nos quais ela interpretava virgens ousadas. - Estamos jantando - Alex disse, e Miranda fez biquinho. Ela o beijou na boca, deixando uma grande marca de batom vermelho, que Alex limpou antes mesmo de ela se afastar. Cassie tentou imaginar se Alex havia feito amor com ela antes de saírem de casa apenas por causa de cenas como aquela. Ele quis, claro, mas parecia que também queria demonstrar que ela era dele, independentemente do que acontecesse. Ainda conseguia sentir as partes mais quentes de seu corpo, lembranças deixadas por ele. - Ela era aquela que estava dentro de seu trailer, nua? - Cassie quis saber. Alex ficou boquiaberto. - Como soube disso? Ela não sabia ao certo; pensou ter lido aquilo em uma manchete de tablóide no Trancas Market: Anjos se encontram para se divertirem como capetinhas. Ela sorriu, apenas para mostrar a ele que não se incomodava. - Sim - ele disse -, ela estava dentro de meu trailer, nua, mas minha assistente, Jennifer, foi quem a encontrou. - Ele se inclinou na direção de Cassie e a beijou delicadamente, e ambos se viraram na direção de um flash de máquina fotográfica. - Que inferno - Alex murmurou, batendo os punhos na toalha branca da mesa. Cassie pensou no azulejo rachado na mesa da sala de jantar, no sangue que escorregou da mão do marido; pegou-se rezando para que ele não se levantasse e fizesse uma cena naquele momento. Alex empurrou sua cadeira para trás. Ele parou quando Luis, o maitre caminhou na direção da mesa de onde a foto havia sido tirada e colocou o cliente em pé, à força. Não era ninguém que Cassie reconhecia, apesar de isso não significar muita coisa naqueles dias. O homem tinha um prato meio cheio à sua frente e uma bolsa de câmera fotográfica no encosto da cadeira. Louis o levou para a porta e voltou para a mesa de Alex, desculpando-se. - Peço desculpas, senhor Rivers - ele disse. Tirou um filme de máquina de seu bolso e o colocou sobre a mesa. - E, como maneira de nos retratarmos, oferecemos outro petisco. Ela comeu metade do prato de carneiro de Alex, que comeu metade do caranguejo de Cassie. Durante o jantar, eles quase não foram perturbados, exceto por Gabriel McPhee e Ann Hill Swinton, uma dupla de jovens atores felizes e casados que passaram pela mesa quando estavam se retirando. Gabriel carregava sua filhinha no colo, mudando-a de lado enquanto
cumprimentava Alex. Eles conversaram por alguns minutos, até a criança começar a gritar e as pessoas a olhar. Quando saíram, Alex balançou a cabeça de modo negativo, como se precisasse se reacostumar com o silêncio. Pegou uma colher e observou seu reflexo, distorcido e de cabeça para baixo. - Não temos filhos - Cassie disse. Alex olhou para ela. - Pensou que eu estivesse escondendo eles de você? Ela riu. - Eu estava só pensando. Estamos casados há três anos e, não sei, você disse que tenho trinta e... - Meu Deus - Alex disse. - Você tem amnésia e ainda por cima quebrou seu relógio biológico. - Ele sorriu para ela. - Podemos ter filhos, talvez mais para a frente, mas três anos não é tempo suficiente para que duas pessoas se conheçam bem. Além disso, você vai para a África e passa um mês lá todos os verões, o que não seria muito fácil de fazer tendo um filho. Decidimos esperar um pouco até que nossas carreiras estivessem mais estabilizadas. Cassie quis perguntar por que eles tinham dinheiro para manter três casas, mas não podiam contratar uma babá. Queria perguntar o que aconteceria se... Pensou em Ophelia, dizendo naquela manhã: "Você quer dizer que ele decidiu". Ela levantou os olhos, preparando uma discussão, mas foi detida pelo olhar de Alex. Sua mandíbula estava tensa e sua pele estranhamente pálida. - Você tem tomado sua pílula, certo? Não lembrei de lhe mostrar onde elas estão. Cassie não tinha como saber que Alex estava pensando no próprio pai e naquela maldita carroça de montar, além do fato de ter jurado que nunca teria filhos, porque não queria se transformar em um Andrew Riveaux. Ainda assim, do modo que tinha de sentir a dor dele, ela esticou o braço sobre a mesa, pedindo sua mão. - É claro - apesar de não ter visto nenhuma pílula anticoncepcional desde que havia chegado em casa. - Nós decidimos. Alex respirou profundamente. - Graças a Deus. Empurrou a cadeira Para trás e esticou as pernas. - Vou ao banheiro. Acho que ninguém vai Perturbá-la enquanto eu estiver fora. Cassie rolou os olhos. - Acho que sei cuidar de mim. Ele ficou em pé. - Claro. Da última vez que você ficou longe de mim, foi parar na Delegacia de Los Angeles. - Ele caminhou pelas fileiras de mesas, chamando a atenção das pessoas pelas quais passava. Cassie observou os movimentos do corpo dele e a confiança que demonstrava. Estava distraída observando o marido e não percebeu que um homem se sentou à mesa. Ele era bonito, apesar de não chegar aos pés de Alex, um pouco mais baixo e magro. Cassie sorriu timidamente. - Pois não? O homem inclinou-se e segurou a mão dela, passando os lábios em seu punho. - Esperei a noite toda - ele disse, e Cassie se afastou.
- Não me lembro de seu nome. - Cassie sentou-se ereta na cadeira, esperando a aproximação de Alex. Queria que aquele homem fosse embora antes que o marido retornasse. Queria se livrar dele sozinha. - Estou arrasado. Nicholas. Nick LaRue. - Ele tinha um sotaque estranho que ela não conseguia distinguir. Cassie lançou-lhe um belo sorriso. - Nick. Alex e eu estamos de saída. Direi a ele que você deixou seus cumprimentos. Ele segurou o punho de Cassie, apertando sua mão na mesa de modo que retirá-la chamaria a atenção das pessoas. Sua outra mão começou a subir pelo braço dela. - Quem disse que eu vim para ver Alex? - ele disse. - Tire suas malditas mãos de cima da minha mulher - Alex estava em pé atrás dela e Cassie fechou os olhos, instintivamente aproximando-se do calor dele. De repente, ajeitou-se na cadeira. Nick LaRue. Ele trabalhara naquele filme com Alex, Taboo. Seus personagens eram os melhores amigos, parceiros em um roubo a uma joalheria. Mas ela se lembrou que Alex voltava das gravações e percorria a casa como uma pantera, espumando de raiva. "Ele acha que seu trailer deveria ser mais próximo do local das gravações do que o meu"; "Ele está sendo mais divulgado do que eu". E o que ela fazia? Servia uma bebida ao marido todas as noites, prometia a ele que em dez semanas, oito ou seis, ele nunca mais teria de trabalhar com Nick LaRue de novo e entregava-se a ele para ajudá-lo a esquecer. Alex havia tirado seu blazer e Cassie percebeu que a peça estava jogada sobre seu colo, mais quente do que a pele dele. Nick estava diante de Alex, e Cassie olhou dentro de seus olhos e viu duas imagens do marido, tomado pela raiva. Os clientes das outras mesas começaram a sair do salão e, quando o último havia saído, os dois homens se aproximaram. Diante do Le Dome, Louis chamou a polícia. Com certeza ele não interferiria e, mesmo que fosse trinta centímetros mais alto e quinze quilos mais forte, não teria sido capaz de escolher um lado. Tanto Alex Rivers quanto Nick LaRue eram clientes especiais. Cassie recostou-se na parede. Não se lembrava de alguém já ter brigado por ela antes e não sabia se ficaria lisonjeada ou enojada. Viu Alex erguer o punho para o primeiro golpe e fechou os olhos, conhecendo o inconfundível som de osso contra osso. Will GOSTAVA DE PERCORRERA SUNSET. Ele e seu parceiro - um hispânico chamado Ramón Perez, e essa ironia não lhe escapava - dirigiam durante horas descendo e subindo a Sunset, prevendo alguma coisa errada. De vez em quando havia uma denúncia de tráfico, um assalto, mas na maior parte das vezes Will apenas olhava pela janela e esperava algo acontecer. No dia anterior, ele havia ido à igreja de Cassie e acendido uma vela para ela. Sentou-se em um banco do fundo, falando com o Deus dela, basicamente pedindo para que ela estivesse bem. - Ei, Maluco - Ramón disse. - Acorde. Ramon ainda insistia em chamá-lo de Cavalo Maluco, o que Will não achava engraçado e já havia dito ao companheiro, porém sem sucesso. - Eu não estava dormindo - Will disse.
- Ah, tá, então me diga para onde acabamos de ser mandados. Will virou o rosto para olhar pela janela. - Le Dome - Ramón disse. - Le Maldito Dome. Dois atores de primeira estão brigando. Will endireitou-se e puxou seu boné para baixo, enquanto Ramón lia para ele o que devia ser feito em caso de problemas com pessoas famosas. Não se deve destratá-los. Deve-se chamá-los de senhor Fulano de Tal. Não se deve levá-los para a delegacia. Não se deve causar-lhes problemas. O Le Dome era um local simples e pequeno, mas cinquenta pessoas estavam na porta da frente, algumas indo para o estacionamento. Ramón abriu caminho entre os clientes do restaurante, apresentando-se a um homem baixo e nervoso que vestia um paletó. - Sou o policial Pérez - ele disse. - O que está havendo? Will balançou a cabeça de modo negativo. Qualquer idiota conseguiria Perceber os barulhos de vidro quebrado e socos sendo dados, que vinham dos fundos do estabelecimento. Will passou pelo maitre pela área principal do restaurante até avistar Alex Rivers batendo sem parar em seu mais recente colega de filme. Ele afastou Alex Rivers de Nick LaRue assim que Ramón entrou no salão. - Pegue esse - Will disse. Ele empurrou Rivers e o tirou da linha de visão de LaRue, e então viu Cassie. Estava encostada na parede como se pretenndesse desaparecer. Estava bonita, com os cabelos caídos pelos ombros, o sangue de seu marido manchando seu blazer de seda caro. Assim que viu Will, pareceu ganhar vida. Caminhou na direção deles, usando os ombros para ajudar a manter o peso de Alex. Corou. Will sorriu para ela. - Quais as chances de algo assim acontecer? - ele disse, detestando a si mesmo assim que as palavras foram ditas, assim que os olhos de Alex Rivers miraram Cassie, com um brilho de suspeita. - Com licença - Cassie murmurou, guiando Alex para uma cadeira. Ela tirou o blazer que vestia e segurou um guardanapo branco de pano sobre um ferimento no lábio do marido. Will observou os músculos discretos de seu braço. - Você permitiu que ele se sentasse com você - Alex vociferou. - Deixou aquele merda se sentar com você. Cassie apoiou a mão no ombro dele, tentando remediar a situação. - Psiu. Podemos falar sobre isso mais tarde. - Olhou ao redor até encontrar um garçom. - Gelo - ela pediu. Alex olhou para o corpo dela. - Estava pedindo por isso. Vestida como uma maldita prostituta - ele disse. Puxou a saia dela para baixo, pois a peça havia subido em suas pernas durante a confusão, e jogou seu blazer para ela. Lentamente, ela abaixou as mãos nas laterais do corpo. Dobrou o guardanapo e o colocou sobre a mesa, vestindo seu blazer novamente e sentando-se na cadeira ao lado dele. Não se deve destratá-los. Ramón caminhou na direção de Alex Rivers, chamando-o pelo nome e elogiando-o por sua atuação no filme Taboo, como se o estivesse encontrando no camarim. Ajudou Rivers a se levantar e o guiou a Nick LaRue, que Will
pensou que havia concordado em pedir desculpas ou era o maior idiota da Califórnia. Will sentou-se na cadeira deixada por Alex Rivers. Ainda estava quente. Viu que Cassie continuava olhando para a frente, com o semblante confuso como se tentasse montar um quebra-cabeça que só ela via. Will tocou seu joelho. - Ei. Está tudo bem? - ele sussurrou. Cassie assentiu com um movimento de cabeça e engoliu em seco. - Ele estava brigando por minha causa. Will não soube o que dizer. Pensou na cópia da foto dela que trazia em sua carteira, no dia em que devolvera Cassie a Alex Rivers. Pensou que talvez devesse ter brigado por ela também. Will sorriu para ela, deixando o silêncio tomar o espaço entre eles. - Vi fotos da mão - disse, finalmente. Cassie virou a palma de sua mão para cima. Flexionou os dedos, cerrou o punho e abriu a mão e olhou com atenção, como se tentasse ler a própria sorte. O motorista dos Rivers entrou no salão, ajudando Cassie a se levantar e permitindo que ela se escondesse a seu lado. - Eu estava comprando um maço de cigarros em Nicky Blair's - ele disse. Se eu soubesse, senhora, teria vindo. Alex Rivers voltou-se para eles. John olhou para o rosto de seu chefe e depois para o de Nick LaRue. - Parece que o senhor venceu, senhor Rivers - ele disse. Alex aproximou-se e sorriu. Quando ele se inclinou para Cassie, o motorista afastou-se com discrição. Will não fez o mesmo. Pensou que aquele ainda era um caso de polícia, e não se importou. - Sinto muito - ele disse a Cassie. - Não tive a intenção de ofendê-la. Isso não foi sua culpa de maneira alguma. - Ele pigarreou, começou a dizer alguma outra coisa, mas balançou a cabeça e repetiu as primeiras palavras. - Sinto muito. Ele a beijou delicadamente. Quando Alex se afastou, Cassie olhava para ele como se estivesse vendo o inventor do sol. Cassie olhou para Will enquanto Alex a levava para fora do restaurante, mas não arriscou um sorriso. Will compreendeu. Ele os seguiu até a porta, observando como um caminho se abria pela multidão como se fosse mágica. Ele escutou Alex se despedir das pessoas que conhecia como se nada tivesse acontecido. Não se deve causar-lhes problemas. Cassie o observava da janela de trás da Range Rover, enquanto o veículo se afastava; Will tinha certeza disso. Permitira que ela partisse pela segunda vez, mas sabia que novas chances viriam. Sua avó havia lhe ensinado que coincidências não existiam. "Existem milhões de pessoas no mundo, e os espíritos cuidarão para que você nunca encontre a maioria delas. Mas uma ou duas estão ligadas a você e os espíritos sempre vão uni-los, fazendo voltas e até que, finalmente, vocês se acertem", ela disse. Ramón saiu e se posicionou ao lado dele. - Inacreditável - ele disseSe qualquer outro idiota causasse tudo isso, seria levado e preso. Alex Rivers se irrita e o mundo inteiro para por ele.
Will virou-se para seu parceiro. - Que horas são? - Quase onze. Ele tinha mais uma hora de trabalho. - Cubra para mim. - Will disse Sem dar nenhuma explicação e começou a descer a Sunset correndo. Correu quilómetros até chegar à igreja St. Sebastian. As pesadas portas estavam fechadas, mas ele entrou atrás da igreja pelo cemitério familiar. Dessa vez, ele não rezou para o deus cristão, que demorara demais para agir, mas, sim, para os espíritos de sua avó. A distância, escutou o trovão. - Por favor, ajude-a - ele sussurrou. Oito
- Como pôde fazer isso comigo? Cassie escutou os gritos da mulher ao telefone e se assustou. Deixou o aparelho cair entre seu travesseiro e o de Alex, abafando um pouco o som, mas não o suficiente para que Cassie não se perguntasse o que, exatamente, ela havia feito. Parecia que havia areia em seus olhos. Ela os esfregou, mas só piorou. Apesar de Alex ter pedido desculpas no restaurante, em casa ele não quis conversar. Sua atitude ficou bem clara, ele se despiu em silêncio e se trancou no banheiro para tomar banho. Quando foi para a cama, Cassie já tinha apagado as luzes e virado para o lado, querendo chorar. Mas em algum momento, no meio da noite, Alex a procurou, seu inconsciente fazendo o que sua mente consciente se recusava a fazer. Ele a segurou com força contra seu corpo, um abraço que chegava à beira da dor. - Michaela. - A mão de Alex passou pelo ombro de Cassie em uma tentativa de encontrar o telefone. - Michaela, cale a boca. Cassie rolou na cama para olhar para Alex, que estava despertando aos poucos. Ele segurou o telefone na orelha e apertou os lábios, que exibiam um corte que chegava perto do queixo. Perto do olho direito havia um ferimento com a forma de um pequeno pinguim e suas costelas tinham marcas roxas e azuladas. Surpreendentemente, ele sorriu. - Para ser bem sincero, isso foi a última coisa na qual pensei - ele disse ao telefone. Ele se virou para o lado, fechou os olhos e balançou a cabeça. Claro - murmurou. - Sempre faço o que você quer, certo? - Com um sorriso maquiavélico, deixou o telefone cair novamente sobre o travesseiro e esticou o braço na direção da esposa. Sua mão acariciou o seio dela. Cassie olhou para o telefone. Conseguia escutar a mulher gritando de maneira que lembrava o som de um xilofone, ou talvez de um periquito. Alex havia deixado a noite passada para trás da mesma maneira que quem fecha um livro. A briga no Le Dome, as acusações em seguida, a frieza dentro do quarto - ele havia passado por tudo isso ou acreditava que eram coisas tolas que podiam ser deixadas de lado. Cassie pensou que conseguir
agir daquela maneira era um talento. Imagine: um mundo sem mágoas. Um mundo sem culpa. Um mundo no qual não se era condenado pelas consequências das atitudes. Ela havia passado metade da noite tentando descobrir o que, exatamente, deixara Alex tão nervoso com ela, por isso estava disposta a começar do zero. Esticou o braço e tocou Alex na lateral de seu corpo e em seu quadril. De repente, ele rolou para longe dela, pegando o telefone e fazendo sinal para que ela encontrasse uma caneta. Procurou em seu criado-mudo e encontrou um lápis e um recibo de alguma coisa que havia custado 22,49 dólares. Alex virou o recibo e começou a escrever. - Sim. Estarei lá. Sim, você também. Jogou o lápis longe e suspirou, fazendo o pequeno papel parar na beira da cama. Cassie sentou-se e o pegou. - Hospital de Los Angeles? - ela leu. - Sala 1215, sétimo andar? Alex cobriu os olhos e passou as mãos pelo rosto. - Parece que a coluna de Liz Smith começa mencionando meu... desentendimento com Nick LaRue ontem à noite. - Ele se levantou e caminhou nu até a janela, afastando a cortina, de modo que o primeiro raio de luz cor-derosa pousou sobre suas costas em linhas paralelas. - Michaela está tendo um ataque, porque é errado criar confusão um mês antes da cerimónia do Oscar. Está tentando equilibrar a impressão do público fazendo com que eu apareça fazendo boas ações. Só Deus sabe como ela conseguiu fazer isso às seis da manhã, mas ela encontrou uma oportunidade de eu tirar fotos com pacientes que sofrem de leucemia na ala pediátrica do hospital. Alex deu a volta na cama e se sentou ao lado de Cassie. Ela esticou o braço, tocando o ferimento em seu rosto. - Dói? Ele balançou a cabeça. - Nem tanto quanto vai me doer deixá-la almoçar sozinha. - Ele olhou para baixo, desenhando vários círculos no lençol que cobria a coxa dela. - Cassie, quero me desculpar de novo. Não tenho a intenção de... sabe que eu não... Ele cerrou a mão e disse. - Que inferno, às vezes explodo. Cassie segurou o rosto dele com as mãos e o beijou com delicadeza para não machucá-lo. - Eu sei - ela disse. Sentiu algo grande crescendo dentro de si, preso em sua garganta e demorou algum tempo para perceber que não se tratava de amor, mas, sim, de alívio. Quando bateram à porta do quarto, Alex vestiu um short. Ao abri-la, Cassie viu uma mulher baixinha e atarracada que lhe parecia familiar, mas talvez fosse apenas pelos traços dela, uma vez que ela era parecida com uma avó. Seu cabelo castanho era escasso e estava preso, seus olhos eram da cor de madeira escura e seu sorriso era triste. - Escutei o telefone tocar, senhor Rivers, então concluí que o dia começou cedo para o senhor, si? - Ela afastou a luminária para o lado sobre o criadomudo de Alex e pousou ali a bandeja que estava carregando. Havia ali o L.A. Times, café, muffins de maçã e alguma coisa coberta com açúcar cristal que tinha um cheiro maravilhoso. Senhora Alvarez. O nome ecoou na mente de Cassie, até ela dizê-lo em voz alta: - Senhora Alvarez? - Ela se sentou tão rapidamente que o lençol
escorregou para a sua cintura. Aquela era a senhora Alvarez que tomava conta do apartamento quando eles estavam vivendo na casa. Que tinha mais fotos de Jesus em seu quarto do que dos três filhos. Que havia ensinado Cassie a fazer um flan e que, certa vez, quando Alex estava trabalhando, abraçara Cassie naquele mesmo quarto para espantar um pesadelo de sua patroa. - Senhora Alvarez - ela repetiu ansiosa, imensamente orgulhosa de si mesma. Alex riu e sentou-se ao lado da esposa, enrolando o lençol em seu corpo novamente. - Parabéns - Alex disse à senhora Alvarez. - Com apenas um bolinho, você conseguiu o que eu não consegui em dois dias. A empregada corou imediatamente. - No es verdade - ela disse. - Senhora Rivers, quer que eu a ajude a fazer a mala hoje? Cassie voltou-se para Alex. Tentou imaginar como a senhora Alvarez havia se lembrado que devia voltar naquela manhã. Ela mesma havia esquecido a respeito da viagem para a Escócia. - Você decide - Alex disse. - Apesar de eu achar que você vai querer levar roupas mais pesadas do que as que tem aqui. Pedirei a John que venha buscála às três da tarde e iremos para a casa. O voo só sai às nove; será um voo noturno. A senhora Alvarez franziu a testa ao abrir um guardanapo sobre o colo da patroa, tão branco que Cassie não conseguia distinguir o guardanapo do lençol. A empregada serviu duas xícaras de café e acrescentou creme a uma delas, entregando-a a Alex. - Bem, pode gritar se mudar de ideia. - Sorrindo para Cassie, ela saiu do dormitório. Alex serviu um pedaço de muffin a Cassie e a beijou com força nos lábios. - Então sua memória está voltando. - Aos trancos e barrancos - Cassie admitiu. - Talvez, quando chegarmos à casa, eu já seja capaz de encontrar o quarto. Alex passou os olhos pela primeira página do jornal de sexta-feira e o entregou à esposa. - Vou correr um pouco na praia - disse, pondo a mão por dentro do lençol para encontrar a perna dela. - Pode ficar na cama até eu voltar. Ela fingiu ler as notícias do país enquanto o marido se alongava, mas, assim que ele fechou a porta, ela procurou a coluna de Liz Smith. O subtítulo era ta-boo-boo. Alex Rivers e Nick LaRue que interpretam, em seu mais novo filme, amigos inseparáveis, mostraram aos clientes do Le Dome, ontem à noite, que o que mostram na tela é mesmo apenas interpretação. De acordo com fontes confiáveis, os dois se pegaram com socos por causa da esposa de Rivers, Cassandra. Quando a noite do Oscar chegar, as pessoas pensarão na atuação indicada de Rivers no filme A história dele, ou de suas ações na vida real? Tremendo, Cassie virou a página. Fechou os olhos, mas não conseguiu tirar de sua mente a raiva que Alex demonstrara na noite anterior. Nada que Nick LaRue dissera havia dado início à briga. Cassie sabia disso tão bem quanto conhecia Alex. Qualquer outra pessoa teria discutido ou trocado alguns insultos, mas Alex havia perdido o controle. Alguma coisa havia feito com que ele explodisse. Nada relacionado a Cassie - ele mesmo havia
afirmado isso, e parecia contente com ela naquela manhã. Talvez tivesse que ver com a pressão do Oscar. Talvez fosse o fato de ele estar longe das filmagens de Macbeth. Ela olhou para o jornal e notou que o havia dobrado na seção dos filmes em cartaz. Procurou a divulgação de Taboo, chamadas que combinassem com o outdoor que ela havia visto na noite em que Will a encontrara. Viu que o Westwood Community Center estava oferecendo um festival de filmes de um dia inteiro com a exibição de trabalhos de Alex Rivers, como parte de uma homenagem prestada aos indicados ao Oscar. Sorrindo, Cassie passou o dedo pela relação. Um trio de filmes de Alex, começando às nove da manhã. Seriam exibidos António e Cleópatra, de Shakespeare, um filme que provou a capacidade de Alex, e uma das primeiras produções da qual ele havia participado depois do casamento. Malfeitor, um filme de faroeste que havia sido seu primeiro trabalho. E também A história dele, o drama familiar pelo qual Alex havia recebido três indicações ao Oscar. Cassie olhou para seu relógio. Tinha duas horas para chegar ao Westwood. Pulou da cama e tomou um banho rápido, vestiu uma calça jeans e uma blusa de moletom que Alex havia vestido no dia anterior. Ela encontrou John na cozinha com a senhora Alvarez e perguntou se ele poderia levá-la, e eles encontraram Alex na hora de irem. - Aonde você vai? - Ele perguntou ofegante, com suor escorrendo pela lateral de seu pescoço. - Vejo você às três da tarde - Cassie disse, lançando-lhe um sorriso e escapando antes que ele tivesse a chance de fazer outra pergunta. Ela se ajeitou no banco traseiro da Range Rover, feliz como uma adolescente. Fechando os olhos, encostou o rosto nas mangas compridas da blusa de Alex que trazia cheiro de Malibu, de sândalo, o cheiro dele. O WESTWOOD COMMUNITY CENTER NÃO PASSAVA DE UM centro de recreação para cidadãos idosos, que formavam grande parte da plateia na sessão matinal do Festival de Filmes de Alex Rivers. Protegida pelo anonimato, Cassie passou por entre as senhoras na recepção. - Igual a Gary Cooper - uma delas disse. - Ele consegue fazer qualquer coisa nos filmes. Cassie sorriu, percebendo que havia vivido algo diferente de todos ali presentes. Ela queria abrir os braços na frente de todos e gritar: "Eu sou a esposa de Alex Rivers. Tomo café da manhã com ele. Para mim, ele é real". Quando começaram a permitir a entrada das pessoas no anfiteatro, Cassie ficou para trás contando o número de fãs que Alex tinha ali em Westwood. Imaginou-se rindo com ele mais tarde, contando sobre a senhora com o cabelo em forma de bolo que carregava consigo um autógrafo dale de vinte por vinte e cinco centímetros e que o colocou ao seu lado, e sobre o senhor que gritara na bilheteria: - Alex o quê? Ela se sentou na poltrona dos fundos, de onde podia assistir e escutar às pessoas. Malfeitor, o filme de faroeste que todos em Hollywood pensavam que seria um fracasso, foi o primeiro filme a ser mostrado. Cassie não conhecia Alex quando ele fez o filme e, na verdade, ele não era o protagonista. A atriz principal teve maior divulgação - Ava Milan. Ela interpretou uma mulher que havia sido levada como prisioneira por um grupo de índios renegados, quando ainda era criança, e que havia sido criada pela tribo nómade, conhecido o marido e uma vida decente. Alex era seu irmão, que tinha visto a família toda
ser morta a tiros e cresceu jurando vingança. O filme tem seu clímax quando Alex encontra a irmã no acampamento indígena e sai atirando em todos, matando a maioria dos moradores do lugar e o marido do personagem de Ava. Depois de uma dramática cena em que ela diz ao irmão que a vida que ele tirou dela era melhor do que qualquer coisa que poderia ter como mulher branca nos anos 1890 ela corta a própria garganta diante dele. Os críticos ficaram malucos. As pessoas da região oeste não despertavam interesse na época, ao contrário dos índios. Malfeitor tinha sido o primeiro filme a mostrá-los como indivíduos, não como inimigos sem face. Alex Rivers, aos 24 anos, saiu à frente de uma nova safra de jovens atores e se destacou, e seu personagem, Abraham Burrows, tornou-se o primeiro de uma longa linhagem de heróis complexos e imperfeitos. Cassie encolheu-se em seu assento quando os nomes dos atores apareceram na tela. Alex Rivers. Um arrepio correu de seu pescoço às pontas dos dedos. Assim que Alex surgiu na tela, ela prendeu a respiração. Ele parecia muito jovem e seus olhos eram mais leves do que pareciam atualmente. Ele estava em pé com as pernas separadas, as mãos na cintura, e soltou um grito que balançou as paredes de cortinas vermelhas. Nem mesmo uma palavra, apenas uma sílaba que tornava sua presença inegável. Ela percebeu como sua percepção a respeito de Alex havia mudado em apenas alguns dias. Quando ele se aproximara dela na delegacia, ela o vira como ele era na tela: enorme e intocável. Mas conhecia a verdade agora. Sorriu. Teria grande dificuldade para convencer as pessoas daquele cinema a respeito da verdade, mas Alex Rivers era como qualquer outra pessoa. Will ESTAVA ESPERANDO POR UMA ENTREGA DE móveis. Estava cansado de usar o colchão como sala de jantar, de estar e área de recreação. Havia comprado suas coisas na primeira loja que encontrara, um estabelecimento pequeno com preços razoáveis que permitira que o pagamento fosse feito em parcelas mensais. A caminhonete com os móveis chegou exatamente quando disseram que chegaria, às dez horas. Dois homenzarrões levaram as peças até a porta e perguntavam: "Aonde vai esta?". Quando chegaram à sala de estar, Will tirou as caixas do caminho. Desconectou sua televisão nova em folha e o videocassete e esperou que os funcionários trouxessem a estante, que eles chamavam de "centro de entretenimento". Ele havia comprado aquele móvel apenas pelo nome, pois parecia que havia uma festa acontecendo em casa, mesmo quando a pessoa estivesse sozinha. O videocassete foi comprado por impulso. Não via sentido em morar na capital mundial dos filmes e não ter um videocassete. Não sabia acertar o relógio e certamente não procuraria descobrir no manual, por isso o aparelho estava com o número 12:00 piscando sem parar havia um dia inteiro. Era sexta-feira, seu dia de folga. Quando aqueles homens fossem embora, ele faria as seguintes coisas nesta ordem: comer uma tigela de cereal na mesa nova da cozinha, pular em sua cama nova e espalhar-se no sofá e ligar a TV com o controle remoto e, depois, assistir a um filme. Passava do meio-dia quando ele foi para a loja de conveniência para alugar uma fita. Não estava procurando por nada em especial. O coreano, dono da loja, dissera que suas duas primeiras escolhas não estavam disponíveis e
em seguida lhe mostrou uma fita em uma caixa vermelha e velha: - Tente este ele disse. - Vai gostar. Malfeitor. Will não controlou o riso. Era um filme do início dos anos 1980, coestrelado por Alex Rivers. - Merda - ele disse, tirando cinco dólares do bolso.- Vou tentar. - Se Rivers fosse tão novo quanto devia ser, pelas datas na caixa, provavelmente não era muito bom e, depois da noite passada, Will sentiu vontade de rir à custa dele. Comprou um pacote de pipoca e caminhou para a casa. Sentou-se em seu novo sofá e começou o filme com o controle remoto, adiantando as partes de trailers e propagandas. Quando Alex Rivers apareceu na tela e soltou um grito parecido com o grito de guerra de um sioux, Will riu e jogou pipocas na TV. Não sabia qual era o assunto do filme, mas se lembrava da controvérsia a respeito dele. Havia sido discutido em muitos jornais de tribos, com opiniões divergentes: alguns reclamavam das inadequações, outros elogiavam o retrato da vida familiar dos índios e a contratação de atores indígenas. Will assistiu ao filme até que a atriz que interpretava a irmã de Alex Rivers se casou com um guerreiro mandan. Ela era pequena e loira, e seu rosto era bem parecido com aquele que Will vira à noite, quando era adolescente, quando se enfiava sob os lençóis da casa de seu avô. - Que droga - Will disse. Apertou o pequeno botão vermelho de seu controle remoto, sentindo grande satisfação ao ver desaparecer de sua frente a imagem de Alex Rivers quando a fita foi ejetada. Sentou-se, espalhando pipoca entre as almofadas do sofá. - Eles não sabem de nada. Fazem esses filmes horrorosos e não sabem de nada. Will desligou a TV também e ficou olhando para a tela até seus olhos se acostumarem com a tela preta. Olhou para a caixa do filme que estava no chão, a seu lado. Então caminhou até as duas caixas que havia tirado do caminho para a entrega dos móveis. Abrindo a de cima, ele procurou os jornais que Cassie tivera o cuidado de usar para envolver os itens que ele havia jogado de qualquer modo dentro da caixa. Pegou o patuá que pertencera ao tataravô, que - assim como o avô - havia sonhado com o alce, e era disso que o patuá era feito. Will passou os dedos pelas franjas; pela pele do objeto. Os Sonhadores de Alces eram muito reverenciados entre os sioux. As pessoas se voltavam a eles quando estavam à procura da pessoa que deveriam amar. Will havia conhecido um homem no departamento de polícia da reserva que havia se casado com uma moça branca; depois disso, ele se mudou para a cidade de Pine Ridge e foi o técnico de um time infantil de beisebol. Como qualquer policial, ele carregava uma arma e um patuá também. Em 1993, por mais incrível que pareça, ele usava o objeto todos os dias, preso a seu coldre. Segundo ele, aquele objeto lhe dava sorte, e no único dia em que sua filha o pegou emprestado para mostrar aos colegas da escola ele levou um tiro no braço, dado por um drogado. Havia outras pessoas na reserva, pessoas de sua idade que ainda tinham seus patuás. Ninguém duvidava. Will tinha de admitir que havia coisas estranhas envolvidas. Caminhou até a cozinha e encontrou um martelo e um gancho. Durante um momento, ficou sentado com o patuá, passando-o no rosto e sentindo o contato
suave das penas. Não era o seu patuá, por isso não lhe traria nada de bom, mas também nada de ruim. Will tentou se lembrar do local onde Cassie o pendurara naquele dia e colocou o patuá entre os dentes para subir no sofá. Manteve as palmas das mãos na parede lisa e branca, na esperança de sentir um pouco do calor das mãos dela. ASSIM COMO TODAS AS OUTRAS PESSOAS DO Westwood Community Center, Cassie chorou ao final de A história dele. Era fácil perceber por que Alex havia recebido sua primeira indicação como Melhor Diretor, apesar de a indicação para Melhor Ator ter causado certa controvérsia, a respeito do por que de Alex Rivers, e não Jack Green, que interpretava seu pai, ter sido indicado. Jack havia sido indicado para Melhor Ator Coadjuvante; poderia ter sido de qualquer modo. Os especialistas de Los Angeles diziam que Alex era favorito em suas duas categorias, que Jack levaria a dele, com certeza, e que a produção seria a vencedora da categoria de Melhor Filme. Muitos dos idosos partiram depois do filme, pois tinham ido até ali para assistir principalmente à produção que atraíra todas as especulações. Mas Cassie não conseguiu sair do cinema. Concluiu que o motivo principal de sua ida ao festival era para assistir a António e Cleópatra, o filme épico que Alex havia feito logo depois de se casar. Os créditos começaram a surgir na tela, acompanhados pelas tristes notas de uma cítara. Cassie soltou o rabo de cavalo e jogou o cabelo sobre o encosto de seu assento. Fechou os olhos um pouco antes de Alex proferir a primeira fala de António e procurou lembrar. ERA O PRIMEIRO INDÍCIO QUE ELA TINHA DE QUE Alex não era o homem com quem havia se casado. Ele voltou para casa, vindo do escritório de Herb Silver, segurando um roteiro. Ela estava em seu laboratório na casa, analisando o itinerário para a viagem para a Tanzânia, quando Alex apareceu na porta e colocou-se diante dela. - Este foi o papel para o qual nasci - ele disse. Mais tarde, Cassie pensou no que ele havia dito: teria feito mais sentido dizer "Este papel foi feito para mim", e não o contrário. Mas, assim como António, desde o primeiro instante em que havia tocado naquele roteiro, Alex se tornou um megalomaníaco. As falas eram ditas com facilidade por ele, como se ele nunca as tivesse decorado, e, apesar de saber que o marido tinha uma memória fotográfica, Cassie nunca o vira abrir o roteiro. - Sou António - ele dizia a ela simplesmente, e não lhe restava opção a não ser acreditar. Ele não era o ator favorito para o papel. Nem sequer havia sido chamado para testes, até ele pedir a Herb que enviasse seu nome. Cassie sabia que Alex estava nervoso. Por isso, na manhã em que ele se encontraria com o diretor de elenco, ela dispensou a cozinheira e preparou para ele uma omelete. Acrescentou pimentão, presunto, cebolas vidália, queijos cheddar e colby e uma pitada de páprica. - Do jeito que você gosta - ela disse, com uma reverência. Colocou o prato diante dele na mesa. - Para lhe dar boa sorte. Alex teria olhado para ela, talvez a puxado pelo quadril, colocando-a em seu colo para beijá-la. Teria oferecido metade de sua omelete e a daria a Cassie com o próprio garfo. Mas, naquela manhã, seus olhos estavam mais escuros, como se ele houvesse engolido algo inteiro que agora se consumia.
Jogou o prato para longe com o braço, sem olhar para os cacos no chão de mármore claro. - Traga-me uvas - ele disse, adotando um sotaque diferente. - Ameixas e timo de vitela. Ambrósia. - Ele deu as costas a Cassie, que estava paralisada a seu lado. Olhou para a mesa, para algo que ela não via. - Traga um banquete para um deus - ele disse. Cassie saiu correndo. Do quarto, ela telefonou para a universidade, explicando que faltaria devido a uma indisposição, de fato acreditando que estava prestes a vomitar. Escutou quando John buscou Alex e, quando a porta se fechou, ela se enrolou sobre o colchão, tentando ficar bem pequena. Alex chegou em casa depois do jantar. Ela ainda estava no quarto, olhando pela janela e observando o horizonte engolir o sol. Manteve-se de costas para Alex quando ele abriu a porta, esperando por um pedido de desculpas. Ele não disse nada. Ajoelhou-se atrás dela e passou os dedos de sua mandíbula ao pescoço, acariciando-a gentilmente. Deixou os lábios passarem por suas mãos e, quando levantou o queixo dela para beijá-la, ela se entregou. Ele fez amor como nunca. Foi rude até ela gemer, e em seguida passou a ser tão delicado que Cassie teve de apertar as mãos dele contra o corpo dela, pedindo mais. Não se tratava de um ato de paixão, mas, sim, de voracidade, e todas as vezes em que Cassie tentava se afastar um centímetro que Fosse, Alex a aproximava ainda mais. Ele se controlou até senti-la atingir O clímax e, ao deitá-la na cama, sussurrou em seu ouvido: - Você soube como foi minha conquistadora. Quando ele estava com a respiração normalizada, adormecido, Cassie saiu da cama e pegou o roteiro que ele havia deixado perto da janela. Foi para o banheiro e sentou-se sobre a tampa do vaso sanitário, vendo a peça que lera, pela última vez, no colégio. Chorou quando António, apaixonado por Cleópatra, casou-se com Octavia pela paz. Leu em voz alta a cena em que António, ao descobrir que Cleópatra não o havia traído, implora a um soldado que o mate com a própria espada. Fechou os olhos e viu António morrer nos braços de Cleópatra; Cleópatra deixando-se envenenar pela picada de uma víbora. No Ato III, ela encontrou: a fala que Alex havia murmurado em seu ouvido depois de fazerem amor. Mas ela não havia feito amor com Alex. Era António quem a tocara, obcecado por ela, preenchendo-a. UMA MULHER QUE ESTAVA SENTADA À ESQUERDA DE Cassie começou a tossir muito, e Cassie abriu os olhos e percebeu que havia perdido grande parte do filme. Alex já não estava mais na tela. A atriz que contracenara com ele, uma mulher muito bonita que não havia feito mais nenhum outro trabalho que merecesse mérito, estava entoando frases a António. Cassie sussurrou as frases com ela: "Abarcava com as pernas o oceano; seu braço, levantado, servia ao mundo. Sua voz tinha a harmonia das esferas". Aquele tinha sido um papel importantíssimo para Alex, aquele que abrira os olhos de Hollywood o suficiente para que se percebesse que ele era um ator que podia fazer qualquer coisa, que conseguiria vender areia no deserto. Era de surpreender? Um homem que comandava o mundo. Ambição sem precedentes. Havia tantas semelhanças entre António e Alex que ficava difícil dizer se ele havia interpretado ou simplesmente agido como realmente era. Ela queria vê-lo. Não como se mostrava na tela, tomado pelos pensamentos e atos de um personagem, mas como ele mesmo. Ela queria
conversar com o homem que lhe dizia que a havia ameaçado com um sequestro para que ela aceitasse se casar, aquele cujas covinhas seus filhos teriam, aquele que comprava para ela esqueletos antigos e plasticina. Queria ir à Escócia com ele, abraçada a ele, com os batimentos cardíacos em sintonia. Sem esperar pelo final do filme, ela envolveu-se ainda mais na blusa de Alex e começou a subir o corredor do anfiteatro. Ela o encontraria no hospital, onde ele cumpria seu compromisso, e eles iriam juntos para Bel-Air, e ela contaria a respeito dos 42 idosos que haviam ido assisti-lo naquela manhã. Ele beijaria sua cabeça e ela se recostaria nele, deixando todos observarem os dois juntos. As palavras de Cleópatra a seguiram como um véu de noiva quando sentiu o clima úmido da tarde. "Crês que houve, ou há, tal homem com o qual sonhei? Nove Michaela Snow, relações-públicas de Alex Rivers, o encontrou no estacionamento do hospital. - Alex, Alex, Alex - ela disse, os braços grossos abertos para abraçar o ator. - Se eu não o amasse, eu o mataria. Alex deu-lhe um beijo no rosto e a abraçou como pôde - ela pesava muito mais do que ele, por isso seus braços não conseguiam dar a volta em seu corpo. - Você só me ama porque eu faço você ganhar muito dinheiro - ele disse. - Tem razão nesse ponto - ela respondeu. Ela estalou os dedos e um homem baixinho e magro saiu da parte de trás da van. Ele segurava três pincéis entre os dedos de uma mão e uma esponja com pancake na outra. Este é Flaubert Halloran - Michaela disse. - Maquiador freelance. - Flaubert - o homem repetiu, com uma voz que fez com que Alex pensasse no miado de um gato. - Como o escritor. - Ele colocou os cabos dos pincéis na boca e começou a cobrir o machucado no canto do olho de Alex. - Horrível, horrível - ele disse. Michaela não parava de olhar para o relógio. - Ótimo, Fio, está bom. - Ela puxou Alex pelo pulso, levando-o com ela na direção do hospital. - Consegui atrair a atenção de três grandes veículos, People, Vanity Fair e Times. A história é que você participa desses eventos de caridade todos os anos, mas foi graças a uma notícia vazada - muito obrigada - que houve cobertura este ano. Invente uma história sobre um primo que há muito morreu de leucemia. Alex sorriu para ela: - Ou sobre um filho bastardo? Michaela o direcionou através das portas de vidro do hospital. - Eu lhe mataria se fizesse isso - ela disse. Ela entregou a Alex uma pilha de fotos para publicidade do filme Taboo e muitos balões azuis e dourados e o guiou a um elevador. Michaela apertou o botão do sétimo andar. - Lembre-se, finja estar chocado ao ver todas as câmeras, mas recupere-se logo e conte uma história emocionante que lhe garanta outra indicação ao Oscar. - Ela piscou para ele e acenou, com as pequenas unhas vermelhas aproximando-se da palma da mão.
- Tchao - ela disse. “Fingir?", ele pensou, seu sorriso desaparecendo quando as portas do elevador se fecharam em sua frente. Ele já estava fingindo. Tivera de usar quase todas as suas habilidades criativas para encontrar Michaela no estacionamento e fingir que aquilo se tratava de apenas mais uma ocasião de divulgação de sua imagem. Durante anos Alex evitou hospitais, havia anos que mantinha enterradas as lembranças de uma ala pediátrica de New Orleans. Conforme caminhava pelos corredores, o cheiro familiar de amónia e as paredes brancas começaram a sufocá-lo. Os músculos de seus braços ficaram rígidos, esperando sentir a pontada de uma agulha, a entrada de um soro. Ele havia nascido com um buraco em seu coração, uma doença que lhe condenou a uma infância sem emoções. Um clínico geral que havia detectado o sopro havia indicado à mãe de Alex o centro de caridade da cidade, onde um especialista poderia checar a gravidade do defeito, mas quando se esqueceu da consulta - o que ocorreu mais de uma vez - o médico disse a ela que seu filho teria de ter cuidado. "Não corra", diziam a ele. "Não se canse." Ele se lembrava de ver outras crianças correndo pelo parquinho molhado. Conseguia se lembrar de quando fechava os olhos e costurava seu coração - um coração vermelho, costurado, de desenho de criança. Quando tinha cinco anos e ainda não podia brincar fora de casa, escutava as radionovelas durante as tardes com a mãe, que não parecia notar ou se importar com sua presença ou ausência. Certa vez, na televisão, uma mulher de cabelo claro como uma fada apertara o rosto ao peito nu de um homem e dissera: "Eu te amo do fundo do meu coração". Depois daquilo, quando Alex imaginava seu coração, não imaginava apenas o furo. Via também a extensão do dano: todo o amor que ele havia reunido para e das pessoas vazava, uma torneira impossível de fechar. Não é à toa, Alex percebeu, culpando a si mesmo pela indiferença dos Pais, do mesmo modo que as crianças pequenas têm de distorcer resultados e acontecimentos. Foi a primeira vez em que ele decidiu ser outra pessoa. Em vez de enfrentar seus defeitos, fingia ser um pirata malvado, um escalador de montanhas, o presidente. Fingia fazer parte de uma família normal, na qual, durante o jantar, perguntavam a ele: "Como foi seu dia?", e não diziam Palavras duras em francês cajun. Aos oito anos, quando recebeu alta, levou quelas fantasias para a vida real, preferindo alguém forte e esperto no lugar do menino assustado que havia sido. Convenceu a si mesmo de que era alheio à dor, em proporções supereroicas. Lembrava-se de manter a palma da mão sobre uma vela acesa, sentindo a pele queimar e arder, dizendo a si mesmo que qualquer um que sobrevivesse àquilo não se sentiria afetado pela indiferença da mãe, pelos insultos do pai. Ele ficou muito bom em acreditar no que se forçasse a acreditar. Na verdade, trinta anos depois, Alex tinha adquirido tanta prática em dissimular, que não se lembrava muito bem do que restaria se todas as suas máscaras cuidadosas ruíssem. Com o autocontrole pelo qual se tornara famoso, Alex livrou-se de suas lembranças e se concentrou na situação presente. Aquilo era um hospital,
certo, mas nada tinha que ver com ele; não significava nada para ele. Faria seu trabalho, fingiria gostar de estar ali e iria embora. Ele não ficou surpreso ao ter de passar por vários médicos e enfermeiras antes de chegar às crianças. Sorriu educadamente, olhando por cima das cabeças para encontrar o caminho mais rápido à ala dos pacientes, para que passasse a impressão de ter estado ali muitas vezes antes. As pessoas puxavam seu casaco, dizendo como haviam adorado sua atuação em um filme ou outro. Todos o chamavam de Alex, como se o fato de terem passado duas horas em um cinema escuro, vendo sua imagem na tela, desse a eles a ideia de que o conheciam desde sempre. - Obrigado - ele murmurou. - Sim, obrigado. - conseguiu descer o corredor para a ala pediátrica de câncer, quando fotógrafos surgiram em sua frente. Ele olhou para a frente tempo suficiente para demonstrar leve desaprovação, talvez um vestígio de surpresa, mas recuperou-se e sorriu com educação e disse que algumas crianças esperavam por ele. Michaela não o havia preparado para ver aquelas crianças. Com apenas um olhar, ele voltou a ter cinco anos, tremendo em uma camisola de hospital enquanto esperava que os médicos lessem seu futuro. Ele tinha aquela mesma aparência? As crianças vestiam pijamas, algumas roupões abertos. Seus olhos eram grandes demais em comparação com as cabeças. Eram cópias umas das outras: magras, assustadas, carecas; imagens parecidas com as dos campos de concentração. Alex só conseguia distinguir os meninos das meninas pela voz. - Senhor Rivers - uma garotinha o chamou. Não devia ter mais do que quatro anos, apesar de Alex não ser muito bom para fazer esses cálculos, e ele se abaixou para que ela subisse em suas costas. Exalava um cheiro de remédio, urina e entrega. - Aqui está - ela disse, colocando um biscoito molhado no bolso do casaco de lã dele. - Guardei um para você. Alex pensou que aquelas crianças eram pequenas demais para conhecer seus filmes, mas quase todas haviam assistido a Speed, o filme sobre o piloto de testes. Os meninos quiseram saber se ele havia, de fato, pilotado aquele F14, e um deles chegou a perguntar se a bela atriz que interpretara sua namorada beijava bem. Ele distribuiu balões para as crianças menores e autografou as fotos de todos que pediram. Quando uma garota de treze anos, chamada Sally, aproximou-se para pegar seu autógrafo, ele se inclinou a ela e disse: - Sabe de uma coisa? A melhor maneira de se lembrar dos lugares onde você esteve é beijar uma menina bonita em cada um deles - afirmou alto o suficiente para que os gravadores registrassem aquele momento. - Acha que pode me ajudar? Ela corou na mesma hora e ofereceu seu rosto, mas quando Alex ia beijála, ela se virou e pousou os lábios nos dele. - Uau! - Ela disse, levando os dedos à boca. - Preciso ligar para a minha mãe. Alex percebeu no instante em que os flashes terminaram que ele não havia dado o primeiro beijo em Sally, mas também, provavelmente, o último. Ele sentiu que começava a suar quando o quarto girou e precisou respirar profundamente várias vezes para se acalmar. Fisicamente, estava melhor; fisicamente, tivera sorte. Mas havia muitas coisas escondidas na infância, coisas que roubavam a inocência antes de a criança ser grande o bastante
para se defender. Tentou decidir o que era pior: uma criança cujo espírito não sobrevivia a um corpo doente ou, como ele mesmo, um homem cuja aparente saúde escondia uma alma que havia morrido anos antes. JESUS CRISTO, John - ALEX DISSE, ESTICANDO OS braços na poltrona de trás do Range Rover. - A menos que ela tenha ido se encontrar com outro homem, qual é o problema? John olhou para ele do espelho retrovisor. - Não sei, senhor Rivers - ele disse. - Eu prometi a ela. Alex inclinou-se para a frente e sorriu: - Dez dólares a mais por semana se você me disser a cidade onde a deixou. Vinte dólares por semana se me contar tudo. John mordiscou o lábio superior: - O senhor não vai dizer que eu contei: Alex cruzou os dedos sobre o peito. - Juro. - Ela foi ao cinema. - E qual o segredo nisso? John sorriu para ele. - Ela foi assistir aos seus filmes. Foi a um festival que está acontecendo em Westwood. Alex começou a rir. Ela poderia assistir a qualquer um de seus trabalhos desde os filmes normais às cópias sem cortes - na privacidade de sua casa. Mas talvez por isso ela não quisesse que ele soubesse. Talvez a graça estivesse em ver as reações das pessoas a Alex na tela. - Tem uma cópia do jornal de hoje, John? - Alex pegou o Times pela abertura do vidro que separava o banco do motorista do restante do veículo. Analisou a seção de entretenimento até encontrar a relação dos cinemas. Malfeitor, António e Cleópatra e, é claro, A história dele. Sorriu. Se Cassie queria vê-lo trabalhando, ele tornaria tudo bem mais fácil. Pediu a John que desligasse o rádio e fechou os olhos, desligando-se do mundo e ligando-se a seus sentidos. Antes de gravar, ele sempre encontrava um local tranquilo onde pudesse entrar no personagem. Era uma questão de saber respirar direito; de se concentrar na maneira de agir e alterá-la o suficiente para se encaixar no papel. Quando a respiração começava, a vida tinha início. António inspirou, como se sugasse o mundo todo com apenas uma respiração. Ao abrir os olhos, viu um mundo de tons verdes e dourados que se espalhava a seus pés. Disse os nomes das saídas na estrada com um sotaque britânico preciso. Não se preocupava em olhar para John; não olhava para seus servos. Abaixou o vidro e deixou o vento bater em seu rosto, soprando seus cabelos e atingindo seus olhos. Tocou o couro macio do banco e pensou nas curvas de sua rainha. No apartamento, quando Alex não saiu do carro, John deu de ombros e correu para dentro para buscar a senhora Rivers. Estava acostumado àquele tipo de coisa vinda de seu empregador. Não era de sua natureza comentar, mas às vezes ele buscava o senhor Rivers e do carro saía um homem completamente diferente. Cassie estava rindo quando entrou no carro. - Vá mais para lá - ela disse. - Está ocupando o banco todo. - Alex estava sentado no centro e olhou para ela, mas não fez nenhum esforço para se
mexer. Pensando se tratar de uma brincadeira, ela o empurrou, sentando-se com a coxa sobre seu colo. Ela sentiu a mão dele em sua nuca, delicada e tensa ao mesmo tempo, como se o carinho servisse para que ela se lembrasse de que ele podia facilmente vencê-la. Ela estreitou os olhos e virou-se para ele. - O que eles fizeram com você no hospital, pelo amor de Deus? Os dedos dele a apertaram quase a ponto de causar dor e ela reclamou, sem conseguir se controlar. Ele estava olhando diretamente em seu rosto, mas ela tinha a impressão de que Alex estava vendo outra pessoa. Assustada, apertou o pulso do marido. - Pare com isso - sussurrou e, antes que pudesse perguntar de novo o que estava acontecendo, ele se inclinou sobre ela e cobriu sua boca com um beijo. Aquele não era Alex. "Ele está interpretando." Ela apertou as unhas no braço dele e mordeu seu lábio até conseguir afastar-se dele. - Pare com isso. Pare agora mesmo - ela disse. Durante um momento ele ficou paralisado, os olhos frios que lentamente perderam a intensidade, até que o corpo ao lado de Cassie fosse apenas uma concha vazia. E então seu corpo ganhou vida de novo, seu rosto ficou corado e seus olhos brilharam. Era Alex mais uma vez e ele deu de ombros: Você não precisava me morder - ele disse. - Apenas pensei que você quisesse ver uma performance ao vivo também. Ainda cautelosa, Cassie recostou-se no canto do banco, longe dele. - Quem lhe contou aonde eu fui? - Ela perguntou, olhando para John no banco da frente. Alex segurou sua mão e envolveu seus dedos nos dela. - Sei tudo sobre você - ele disse sorrindo. Cassie começava a pensar que ele sabia mesmo. Ele voltara a ser o Alex com quem ela havia se acostumado nos últimos dias, engraçado, delicado e confortável. Ela tentou imaginar se aquele era apenas outro personagem que ele mantinha por perto, no qual entrava na maior parte do tempo. Ela balançou a cabeça para afastar o pensamento. O que estava pensando? Já vira Alex em seus momentos vulneráveis, quando falava sobre os pais, quando tentava ensinar a ela golpes de caratê na praia, quando a abraçava e sussurrava seu nome enquanto dormira. Era impossível interpretar o tempo todo; era ridículo pensar que o que ela via não era real. Ela apertou a mão dele. - Sinto muito, não costumo morder. - Ele se virou um pouco, batendo levemente no banco a seu lado, e ela se aproximou. - Mas por que você escolheu António, afinal? Alex sorriu. - Você adorava António quando nos casamos - ele disse. Cassie pensou em contra-argumentar, mas mudou de ideia. Alex tinha razão. Ele sabia tudo sobre ela, e naquele momento ela não sabia muita coisa, por isso só podia acreditar nele. Eles ficaram por cerca de quinze minutos em silêncio, e então Cassie sentiu Alex beijar o topo de sua cabeça.
- Você provavelmente só está nervosa porque vai encontrar toda a equipe de novo - ele disse. Cassie olhou pela janela. Sabia que estava passando por árvores, estradas e canteiros, mas o carro se movia com tanta pressa que o mundo parecia apenas uma grande mistura de cores; ela não podia escolher uma delas apenas: - Sim, deve ser isso - ela respondeu. A CASA FICAVA NO FIM DE UM CAMINHO de um quilómetro e meio no topo de um monte em Bel-Air, uma mansão branca com portões de ferro forjado e telhado de ardósia. O terraço apoiava uma varanda no segundo andar onde cortinas de renda que iam até o chão balançavam através das janelas francesas abertas. Havia rosas do lado esquerdo da casa; heliotrópios do lado direito. A distância, Cassie conseguiu ver jardins e duas casas como réplicas da construção principal. - Meu Deus - ela sussurrou, escutando o barulho das pedras sobre seus tênis ao sair do carro. - Não pode ser verdade que eu moro aqui. Alex a segurou pelo cotovelo e a guiou degraus acima. John abriu a porta da frente, uma peça maravilhosa de carvalho entalhada com a cabeça de um leão. A sala era um cômodo enorme com teto abobadado, com duas escadas e pisos de mármore cor-de-rosa. Cassie olhou para seus pés, banhados pela luz de uma janela de vitrais perto da porta. As iniciais de Alex se espalharam como uma mancha sobre seu pé e tornozelo esquerdos. - Cassie - ele disse, e ela olhou para cima. - John já contou a todos sobre o seu... probleminha, e eles procurarão ajudá-la hoje antes de nossa viagem para a Escócia. Cassie passou os olhos pelas pessoas que estavam ao pé da escada, no lado esquerdo, como uma fileira de soldados de brinquedo. Ali estava John, claro, que era não só motorista e guarda-costas, mas também um tipo de mordomo. Havia um homem com um avental amarrado a seu corpanzil, uma jovem vestindo um uniforme simples de empregada, preto e branco. Outro homem estava mais ao lado, como se não quisesse ser relacionado aos funcionários da residência. Ele deu um passo à frente com o braço estendido: - Sou Jack Arbuster - ele disse, sorrindo. - O secretário de seu marido. Ela tentou imaginar para que Alex precisaria de um secretário se já contava com a ajuda de um agente, uma publicista e uma assistente pessoal. Pensou que, talvez, ele fosse a pessoa responsável por responder às cartas de fãs ou de pagar as contas. - Preciso conversar com você antes de sua viagem - ele piscou para Cassie, como se pedisse desculpas. Alex passou o braço ao redor da cintura da esposa. - Dê-me uma hora - ele disse a Jack. Vou encontrá-lo na biblioteca. Quando Jack se retirou, Cassie o seguiu com os olhos, tentando ver o que havia na primeira entrada. Levando-a consigo, Alex passou pela empregada, pelo cozinheiro e por John. - Vamos - ele disse. - Vou lhe mostrar o máximo que der e, na pior das hipóteses, vou lhe entregar a planta da casa até você conseguir se encontrar aqui dentro. Ele a levou para a biblioteca com estantes de cerejeira repletas das primeiras edições de centenas de clássicos ingleses e americanos, mostrando
uma estante toda tomada por cópias de matérias de jornais e revistas que Cassie havia escrito. Ele a levou pela sala de jantar, cuja mesa tinha espaço para trinta pessoas, uma sala de projeção com uma grande tela e dez sofás bem macios. Na cozinha, ela abriu a geladeira de aço inoxidável e contou os potes de cobre sobre o balcão de mármore e recebeu uma maçã do cozinheiro. Havia seis banheiros e dez quartos na casa, todos decorados com papel de parede claro e cortinas de renda francesa. Havia três salas de descanso e um centro de recreação com máquinas de pebolim, uma pista de boliche, mesas de bilhar e uma TV de tela grande. Ainda restava uma ala toda a ser vista quando Alex a levou para a suite máster, no andar de cima. Ele abriu as portas duplas que davam para um quarto de casal, confortavelmente mobiliado com sofás listrados e tapetes persas. Havia um rádio no canto da parede, além de uma televisão e um videocassete. Havia flores dentro de vasos sobre diversas mesas, belas flores que acentuavam os tons azuis e roxos da sala e que, Cassie sabia, não eram espécies nativas da Califórnia. - Provavelmente passamos muito tempo aqui - Cassie disse, parando atrás de Alex ao atravessar uma porta que revelava uma enorme cama de cedro. Alex sorriu para ela: - Bem, nós tentamos. Cassie aproximou-se da cama e passou o dedo pelos entalhes da madeira. - É maior do que uma king-size, certo? Alex mergulhou na cama de barriga. - Eu a encomendei em um tamanho especial. Tenho uma teoria sobre camas: elas são como peixinhos dourados. Você sabia que se mantiver um peixinho dentro de um aquário pequeno e redondo ele ficará do tamanho de seu polegar? Mas se você o colocar em um lago, como aquele que temos nos fundos, ele vai crescer dez vezes mais. Então acho que quanto maior for a cama, menos comprometerei meu crescimento. Cassie riu. - Acho que você já passou da puberdade. Alex segurou os punhos dela e a puxou para que se deitasse a seu lado. - Então você percebeu? Ela rolou na direção dele, olhando para a barba rala que já aparecia em seu rosto. - Onde fica meu laboratório? - Nos fundos. A pequena casa branca - a segunda que encontrar. A primeira é onde John vive. Cassie franziu o cenho. - Ele não fica dentro da casa como a senhora Alvarez? Alex sentou-se. - Gostamos de ter privacidade à noite - ele disse simplesmente. Cassie caminhou até a lareira que ficava na frente da cama e passou a mão sobre a garrafa de uísque sobre o console. "Aurora", ela pensou e sentiu as mãos do marido sobre seus ombros. - É só para enfeitar - ele disse, como se tivesse lido seus pensamentos. Cassie virou-se.
- Vá cuidar de suas coisas - ela disse sorrindo. - Se eu não estiver de volta em uma hora, envie a Guarda Nacional à minha procura. Quando Alex saiu, Cassie ficou em pé diante das portas francesas, olhando para os bairros ricos de Los Angeles e para os montes azulados das montanhas. Um jardineiro a quem ela não havia sido apresentada estava cuidando de um canteiro de lírios delicados, e, no caminho que dava para a garagem, John estava polindo o para-lama traseiro do Range Rover. Ela localizou seu laboratório, logo à esquerda de um arbusto de flores no formato de uma flor-de-lis. Além do jardim havia um caminho de pedra calcária branca que descia por um monte em direção a algo que ela não conseguia ver. Ela desceu correndo a escada por onde não havia subido, apenas para ver se havia alguma diferença. Saiu pela porta e testou uma cadeira de balanço e um banco de balanço na varanda antes de sair correndo pelo caminho de pedra calcária, como se fosse uma criança. Quando estava longe o bastante da casa, certa de que ninguém a observava, ela abriu os braços para o sol e girou, rindo, sorrindo e dando pulos. Havia uma piscina com ornamentos, com uma queda-d'água artificial sobre a qual Alex esquecera de comentar com Cassie e um verdadeiro labirinto feito com arbustos densos. Ela entrou, tentando imaginar se saberia chegar ao centro e encontrar a saída de novo. Os cantos mais afiados do labirinto surgiram rapidamente enquanto ela corria pelos corredores estreitos, raspando os braços em galhos recém-podados. Tonta, ela sentou-se na grama fria. Deitou-se de costas, maravilhada com a casa e a propriedade de Alex. Se um inseto não tivesse subido por seu braço, ela não teria visto a pedra. Ela rolou de bruços, olhando para os talhos dos arbustos. Bem escondida ali dentro estava uma pedra rosada pequena. Não era exatamente oval; era muito áspera e torta para ser oval. Cassie esticou a mão dentro da vegetação, sentindo os galhos envolverem seus pulsos como pulseiras. Era um quartzo rosa, e ela o havia trazido da Costa Leste. Entalhadas de qualquer modo na parte mais lisa da pedra, estavam as letras CCM e o ano, 1976. Não conseguia se lembrar do porquê de ter escondido aquela peça no meio do labirinto de Alex. Não se lembrava se já havia dito a Alex que ela estava ali. Mas percebeu que aquela era a primeira prova na qual acreditava; a primeira coisa que via desde que perdera a memória e que a convenceu de que ela já havia vivido ali. Cassie deitou-se de costas e segurou a pedra contra o peito. Manteve o olhar fixo no sol até que aquele mundo lindo que Alex oferecia a ela ficasse preto, e então ela sussurrou o nome de Connor. NO DIA 1° DE NOVEMBRO DE 1976, UM POUCO DEPOIS DAS sete horas, o pai de Connor entrou na cozinha onde ele e sua mãe tomavam mingau de trigo e matou ambos com um revólver calibre 12. Entre o tempo que Cassie levou para ligar para a polícia para falar sobre os disparos e correr até a casa de Connor, o senhor Murtaugh teve tempo de atirar em si mesmo também. O pai de Connor havia se matado na sala de estar, mas a senhora Murtaugh estava deitada no chão. Estava sem a parte de trás da cabeça. Connor havia caído quase em cima dela e havia um grande buraco em seu peito.
Com uma calma resultante do choque, Cassie sentou-se ao lado de Connor e o colocou em seu colo. Tocou com os dedos os lábios dele, ainda quentes. Pensou em beijá-lo, como fizera na noite anterior, no cemitério, mas não conseguiu. A polícia e os paramédicos afastaram a menina do corpo de Connor. Ela ficou sentada em um canto da cozinha com um cobertor de lã enrolado em seus ombros, respondendo às mesmas perguntas sem parar. Não, não havia presenciado o crime. Não, não havia visto o senhor Murtaugh naquela manhã. Não, não, não. Todos sabiam como Cassie e Connor eram próximos, e ela foi dispensada da escola até o funeral, mas não foi poupada dos comentários. "Dizem que ele se matou. Não conseguiu encontrar emprego, então passou a beber. Matou um menino inocente como aquele, na flor da idade." Pelo menos ela conseguia prever os problemas em sua casa. A família de Connor apodreceu sob sua fachada colorida, sem que ninguém percebesse. No dia do enterro, choveu. Connor não tinha um testamento, por isso seu corpo foi cremado, assim como o de seus pais. As cinzas foram jogadas sobre o lago Moosehead. Cassie observou quando foi aberta a urna com as cinzas da senhora Murtaugh e depois a urna com as cinzas do marido. Quando espalharam as cinzas de Connor, Cassie começou a gritar. Ninguém conseguiu controlá-la. Nem mesmo quando seu pai pôs a mão sobre sua boca conseguiu abafar o som. Não era certo que, para sempre, Connor e seu pai ficassem misturados. Queria que começassem de novo. Queria que entregassem Connor a ela. Ela sentiu a neve gelar seus olhos quando o que restara de Connor foi levado pelo vento. Uma nuvem cinza, fraca como fumaça, escureceu o céu E desapareceu rapidamente. Era como se Connor tivesse sido uma parte da imaginação de Cassie. Como se nunca houvesse existido. Ela se afastou das outras pessoas que estavam prestando seu respeito e, com seu vestido mais novo e as botas de neve, começou a correr ao redor do lago Moosehead. Era enorme, e ela sabia que não conseguiria chegar muito longe, mas quando caiu de joelhos na neve, ofegante, estava a um quilómetro e meio de distância do local do funeral. Deixou a neve derreter pelo tecido fino de sua saia, fria o bastante para paralisá-la. Cavou o chão congelado com os dedos até suas unhas estarem quebradas e sangrando. Percebeu que apesar de ter tentado, durante anos, aliviar a dor da mãe nunca conseguiria aliviar a dor de Connor. Assim, faria o que poderia compensar esse fato: sentiria a dor por ele. Levou o pedaço de quartzo rosa com ela e trabalhou na garagem perto da caixa de ferramentas do pai, usando um martelo e uma sovela para fazer a lápide que Connor não havia recebido. Trabalhou até suas mãos ficarem doloridas. E então abraçou os joelhos e balançou-se para a frente e para trás, tentando imaginar por que, uma vez que os corações de ambos tinham sido arrancados, ela não estava morrendo. NA NOITE DE SEXTA-FEIRA, Will Cavalo Alado estava sentado em seu novo sofá verde, assistindo a um game show na TV e comendo comida prépronta quando acabou a eletricidade. - Merda! - ele disse, observando o relógio do vídeo cassete, que piscava sem parar, desaparecer. Colocou o prato ao lado dele sobre o sofá e tentou se lembrar onde ficava a caixa de dijuntores.
Não tinha sido tão ruim; era horário da janta, por isso havia iluminação suficiente do lado de fora para que ele conseguisse ir ao porão. O mais estranho é que nenhum dijuntor havia sido desarmado. Ele subiu as escadas e saiu na varanda da casa. Pelas janelas da casa vizinha e daquelas do outro lado da rua, ele conseguiu ver que as luzes estavam acesas, que as TVs estavam ligadas. O problema era só em sua casa. Ele telefonou para a companhia de eletricidade, mas só pôde deixar registrado seu endereço e o problema em questão em um sistema de gravação de mensagens. Só Deus sabia quanto tempo levaria para que os funcionários pegassem a mensagem. Assim, ele começou a pegar velas de dentro dos armários, velas vermelhas e feias, em formato de ovo, que uma ex-namorada lhe dera de aniversário. Levou quatro delas para a sala de estar e acendeu-as com um palito de fósforo que tinha em seu bolso. Conforme o sol se pôs, uma sombra ficou evidente. As franjas do patuá acima de sua cabeça se mexiam sem parar no silêncio. Will escutou o ritmo de seus batimentos cardíacos. Não havia nada a fazer além de esperar. ELIZABETH, A EMPREGADA, LEVOU PARA O QUARTO uma mala maior do que ela própria. - A senhora também vai precisar de uma mala de mão? Cassie não sabia. - Acho que sim - ela disse, e a empregada já ia se retirando. - Espere - ela disse, franzindo o cenho. - Não consigo encontrar os armários. Elizabeth sorriu. Atravessou a suite e o quarto, entrando no pequeno corredor que levava ao banheiro de mármore verde. Quando encostou seu ombro contra a parede, Cassie ficou encantada ao ver o papel de parede se abrir e revelar um armário escondido. - Este é o seu - Elizabeth disse, e em seguida fez a mesma coisa do outro lado. - E este é o do senhor Rivers. Ela saiu do quarto, deixando Cassie olhando as fileiras de blusas e suéteres que pertenciam a ela. O closet era maior do que as dependências de empregada no apartamento. Cassie nunca tinha visto tantas roupas em um só lugar. Começou a pegar peças das gavetas - blusas confortáveis de gola olímpica e casacos de algodão, roupas íntimas e sutiãs e uma pequena bolsa para a maquiagem. Queria pegar um par de sapatos que estava na parte de baixo da pilha de caixas, mas pensou que poderia chegar a eles sem retirar as caixas de cima. Escorregou a caixa pela metade, tentando tirar os sapatos pela tampa entreaberta, mas a base cedeu e o conteúdo do armário caiu. Cercada pela confusão de lingeries, sapatos de salto e casacos, ela quase não viu o pequeno compartimento. Empurrou a parte da frente e ele se abriu. Era mais um buraco escondido que funcionava com o mesmo princípio de seu armário. Era minúsculo, do tamanho de uma forma de pão. Cassie tentou imaginar se era ali que guardava suas jóias. Ali dentro havia uma pilha de romances de bolso, daqueles com uma mulher seminua inclinada sobre um pirata estampados na capa, o tipo de livro que nunca seria lido por uma antropóloga. Cassie riu. Aquele era seu grande segredo? O que Alex guardava em seu compartimento? Revistas de mulher pelada?
Ela pegou alguns e olhou os títulos. Salve-me de novo, O fogo e a flor, As chamas ardentes do amor. Talvez Alex pedira que ela os escondesse. Não seria muito bacana que viesse a público o fato de a esposa do maior ator dos estados Unidos ler aquelas coisas em seu tempo livre. Havia uma caixa presa, atrás da pilha de livros. Cassie a identificou só de ver sua embalagem cor-de-rosa. Um teste que identificaria a gravidez logo no primeiro dia de atraso da menstruação. Ela olhou para o belo banheiro verde. Conseguia ver-se claramente ali, inclinada sobre a pia, esperando que os três minutos se passassem. Lembrou da maneira com que o círculo pequeno e rosa havia surgido. Rosa, positivo. Branco, negativo. Ela havia chorado sobre a pia, com as mãos sobre as torneiras. Cassie sentou-se novamente sobre a pilha de roupas, peças que Alex havia comprado para ela, roupas que combinavam com todas as armadilhas de uma vida assim. Ela apertou as palmas das mãos contra os olhos, tentando tirar da cabeça a imagem do cemitério St. Sebastian e do que a havia levado até ali. ERA A NOITE EM QUE ALEX VOARIA PARA A ESCÓCIA para suas gravações e ele estava com o humor alterado. Cassie havia aprendido a avaliálo pelos olhos: quanto mais escuros ficavam, mais distante ela se mantinha. Havia se passado meses desde a última vez. Ela deveria ter percebido. Na hora do jantar, Alex ficou batendo a faca na beirada da mesa. Fazia um barulho seco e insistente contra a toalha de mesa e o coração de Cassie acompanhava o ritmo. - Como foi hoje? - ela perguntou. Alex descansou a faca na beirada do prato. - O filme está com o orçamento estourado; está sendo dirigido por um idiota. Faz apenas uma semana que o estamos produzindo. - Ele passou as mãos pelos cabelos. - Muito obrigado por tocar no assunto. Cassie ajeitou-se na cadeira e concentrou-se em manter a boca fechada e comer fazendo o mínimo de barulho. Havia descoberto naquele dia sobre a gravidez e queria contar a Alex antes de ele viajar, mas talvez não fosse o momento. Precisava ser na hora certa. Precisava mostrar a ele que a gravidez não tinha ocorrido em um momento ruim; mudaria a vida dos dois. Seria uma segunda chance. Alex empurrou a cadeira para trás. - Preciso fazer minha mala. Tenho menos de uma hora. Cassie olhou para o prato dele, cheio de comida que ele havia deixado sem quase tocá-la. - Farei um sanduíche para você levar - ela disse, mas Alex já havia saído da sala. Desde o início, três anos antes, Cassie havia se tornado muito boa em se manter longe do caminho do marido. Afinal, a casa era grande e, com os funcionários dispensados à noite, ninguém acharia estranho o fato de ela descer para seu laboratório às três da manhã ou se decidisse terminar a leitura de um livro na biblioteca até o sol raiar. Mas sua intuição não estava muito aguçada naquela noite; passara muito tempo durante o dia sonhando com um menininho de olhos brilhantes como os de Alex. Caminhou até o quarto e
sentou-se no meio da cama, onde observou o marido fazer sua mala. Olhar para ele era como ver seu bebê. - Quer que eu arrume seu kit de barbear? - Alex negou com um movimento de cabeça. Ela pegou uma blusa que ele havia jogado no quarto. - Vou dobrá-la para você - ela disse, e começou, braço por braço, mas Alex segurou seu punho. - Eu disse que vou fazer isso - ele murmurou. Alguma coisa estava consumindo Alex por dentro, algo que fazia parte dele muito antes de Cassie tê-lo conhecido. Era o que fazia dele um ótimo ator, apesar de ninguém mais saber disso. As pessoas viam a dor, mas apenas depois que Alex a passava para um personagem. Apenas Cassie já tinha olhado para ele quando seus olhos ficavam cegos; apenas Cassie havia sentido com as mãos em seu peito o ponto onde batia um coração com ódio. Ela o amava acima de tudo no mundo. Até mesmo mais do que a si mesma. Já não havia provado isso? Sabia que, mesmo que não pudesse curálo dessa vez, da próxima vez que ele sentisse dor ela conseguiria. Por isso Alex se voltava para ela. Cassie era a única pessoa que conseguia melhorar as coisas. Mas era uma faca de dois gumes. Ela era a única próxima o bastante de Alex para ajudar, mas isso a deixava em uma posição vulnerável. Não era culpa dele se ela entrava em seu caminho. Quando isso acontecia, ela só podia culpar a si mesma e perdoá-lo. Alex sentou-se ao lado dela na cama. - Não quero ir para a maldita Escócia - ele disse com a voz grave. - Quero tirar um tempo de férias. Quero que essa maldita divulgação do Oscar termine e quero sumir da face da Terra. - Então faça isso - Cassie disse, massageando os músculos dos ombros dele. - Dê uma pausa em Macbeth e vá para o Quênia comigo. Alex riu com ironia. - E o que vou fazer enquanto você estiver brincando em sua caixa de areia? Cassie sentiu um aperto por dentro. - Ler roteiros. Pegar um bronzeado - ela sugeriu. Alex começou a jogar as roupas nas malas que havia colocado no chão. Hoje fiquei sabendo da entrevista antes do Oscar que gravamos com Barbara Walters. - Ele suspirou. - Ela vai me apresentar com um comediante e Noah Fallon. - Cassie olhou para ele sem entender. - Pelo amor de Deus! Noah Fallon. Ele está concorrendo como Melhor Ator também. Alex sentou-se no chão, com os joelhos encolhidos contra o peito. - Vou aparecer no programa em segundo lugar. Segundo, que merda! Fallon será apresentado por último. Cassie sorriu para ele: - Pelo menos você estará no programa. Alex ficou de costas para ela. - Nos últimos três anos, quando o especial de Oscar de Barbara Walters apresentou um indicado na terceira parte do programa, esse indicado levou o Oscar. É um maldito termómetro de como serão os votos da Academia. Sem saber o que dizer, Cassie saiu da cama e abraçou o marido. - Não vou vencer - Alex disse, encostado no ombro da esposa. - Você vai vencer - ela suspirou. - Vai vencer.
Da maneira como costumava acontecer, Alex mudou em um instante. Ficou em pé, agarrando Cassie pelos punhos e a chacoalhou com tanta força que o cabelo dela balançava sem parar. - Como você sabe? - Ele perguntou, seu hálito quente em contato com o rosto dela. - Como sabe? As palavras ficaram presas na garganta de Cassie, aquelas com as quais ela sempre queria se defender, mas que nunca eram expressas. Alex a chacoalhou de novo e dessa vez a empurrou, jogando-a ao chão. Ela tropeçou na mala ao cair e bateu a cabeça na porta do closet, sentindo uma ferida se abrir, mas que não doeu tanto quanto a vergonha que tomou conta de seu ser. Ela teve tempo de ver Alex erguendo o pé, e, em vez de se curvar como sempre fazia, rolou de modo que ele a acertou em cheio nas costas, com a dor correndo por sua coluna, mas poupando seu ventre. - Meu bebê - ela disse e levou as mãos à boca imediatamente, rezando para que Alex não a tivesse escutado. Mas ele já estava de costas, com as mãos na cabeça. Ajoelhou-se ao lado dela, amparando-a como sempre fazia quando a dor sumia, com as mãos passando sobre ela com a delicadeza de um gato. - Sinto muito - ele disse. - Não era a minha intenção. - Não é sua culpa - ela disse, porque conhecia suas falas, mas pela primeira vez não acreditou nas próprias palavras. A raiva começou a vazar de uma rachadura bem funda que havia sido consertada vezes demais para manter-se firme. "Seu filho da mãe", ela pensou. Sabia que Alex precisava dela, mas também se deu conta de que não podia permanecer ali. Não podia pôr em risco a segurança de seu filho com Alex. ela faria para seu bebê o que não fizera para si mesma em três anos. Quando John tocou o interfone, Alex saiu do lado de Cassie e jogou todas as suas roupas, até os ternos, dentro das malas. Arrastou a bagagem para fora do quarto e voltou para beijá-la. - Eu te amo - ele disse, as palavras exageradas. Colocou a mão sobre a dela, que estava posicionada em sua barriga. Ela esperou até escutar o carro se afastar e então pegou seu casaco e saiu da casa de Alex. O mundo se abriu, e ela teve de se concentrar a cada passo para se convencer de que estava fazendo o que precisava ser feito. Disse a si mesma que se fosse embora naquele momento, enquanto Alex estava fora da cidade, talvez não o magoasse tanto. Desceu a rua sem saber para onde ir. Pensou em ir para a casa de Ophelia, mas era ali que Alex a procuraria assim que tomasse conhecimento de seu sumiço; e não havia ninguém a quem pudesse recorrer. Era a palavra de Cassie contra a imagem pública de ouro de Alex, e ninguém acreditaria nela quando contasse a verdade. CASSIE HAVIA CHEGADO MUITO PERTO. OS PUNHOS estavam fechados sobre seu corpo, ela chorava e percebeu que havia traído a si mesma ao perder a memória. Caso contrário, teria conseguido se manter à frente de Alex. Ele havia sido gentil e compreensivo, provavelmente porque ela não havia começado a gritar acusações assim que o viu na delegacia. Não que ela fosse capaz de fazer algo desse tipo; Alex devia saber. Ela não tinha intenção de
magoá-lo - nunca tivera -, apenas queria proteger-se. Nunca pensara que os dois eram exclusivos um para o outro. Mas Alex pensava dessa forma, por isso a buscara. Mas a vida que ele mostrou não era como parecia. Ela podia viver nas mansões, sorrir diante das câmeras, passar a noite sendo tocada por ele e, ainda assim, tudo acontecer de novo. No passado, as promessas de Alex não haviam impedido os acontecimentos. Ela não tinha escolha. Desejou que tivesse visto as coisas com tanta clareza antes. Ele entraria no quarto a qualquer momento para fazer a mala para o voo da sexta-feira à noite, mas ela não ia para a Escócia. Cassie ficou em pé e pegou uma bolsa velha de lona com o nome de uma emissora pública de TV. Jogou dentro dela muitas peças de roupa e pegou peças íntimas e as colocou nos espaços vazios. Colocou um boné com o nome da empresa de produção de Alex e saiu do quarto. Ali não era uma prisão, pelo menos não literalmente, então as pessoas pelas quais Cassie passou ao sair não a detiveram e não perguntaram aonde ela ia. Ela passou pela piscina, pelo labirinto e pelos jardins floridos. Saiu por um portão dos fundos e cortou caminho pelo quintal bem-feito de um vizinho até chegar à rua. Caminhou cada vez mais rapidamente, com medo de estar sendo seguida. Depois de um tempo, começou a correr. Horas depois, quando pensou que estava em segurança, caiu de joelhos e se forçou a lembrar. 1989-1993
Os petréis, aves do Ártico, vivem nas partes mais altas dos montes. De seus pontos privilegiados, eles podem ganhar mais destaque entre aves que não são tão autoconfiantes, entoando canções a respeito de sua magnificência sobre os mares congelados. Certa vez, existiu um petrel tão arrogante que não conseguiu encontrar uma parceira em seu bando. Decidiu que se casaria com um ser humano e fez um feitiço para dar a si mesmo a forma de um homem. Costurou peles grossas de foca para fazer uma bela parca e se enfeitou até ficar muito bonito. É claro que seus olhos continuavam sendo de petrel, por isso ele fez óculos escuros para dar um toque final a seu disfarce e, dessa forma, colocou seu caiaque na água e partiu à procura de uma esposa. Na mesma época, um viúvo vivia na costa tranquila com sua filha Sedna, uma garota tão bonita que comentários sobre sua forma e seus traços já se espalhavam para além da tribo. Muitos homens vinham para admirá-la, mas Sedna não se casava. Nenhum dos pedidos conseguia chegar ao coração dela. Certo dia, um homem bonito chegou em uma bela parca de pele de foca. Ele não arrastou seu caiaque para a praia, mas sobrevoou as ondas que se quebravam e chamou Sedna. Começou a cantar para ela. "Venha, amor", ele entoava, "para a terra dos pássaros, onde você nunca sentirá fome, onde vai descansar em peles de ursos, onde terá penas para cobri-la e colares de marfim, onde suas lamparinas sempre terão óleo e onde seu prato será cheio de carne."
A canção se enrolou na alma de Sedna e a levou para mais perto do caiaque. Ela navegou com o estranho pelo mar, longe da casa e de seu pai. Durante um tempo, foi feliz. O petrel fez a casa deles em um monte rochoso e buscava peixes para ela todos os dias, e Sedna estava tão encantada com o marido que nunca pensou em olhar ao redor. Mas, um dia, os óculos do petrel escorregaram de seu nariz e Sedna pôde ver seus olhos. Desviou o olhar e viu uma casa construída não com couro, mas, sim, com pele de peixe podre. Não dormia sobre a pele de um urso, mas no pelo duro de uma morsa. Sentiu as gotas pontiagudas do mar e percebeu que havia se casado com um homem que não era o que ela pensava. Sedna chorou de tristeza e, apesar de o petrel a amar, não conseguia parar seu choro. Um ano se passou e o pai de Sedna foi visitá-la. Quando chegou ao monte onde ela vivia, o petrel estava caçando peixes, e Sedna implorou ao pai que a levasse de volta para casa. Eles correram de volta para o caiaque e se puseram a navegar. Eles não estavam muito longe quando o petrel voltou a seu ninho. Ele gritou por Sedna, mas seu choro de dor foi engolido pelo barulho do vento e do mar. Outros petréis foram a seu encontro e contaram onde Sedna estava. Ele abriu as asas, sua envergadura bloqueando o sol, e voou na direção do barco onde estavam Sedna e seu pai. Ao vê-los remando cada vez com mais fúria, o petrel ficou nervoso. Bateu as asas ao vento, criando correntes, forçando a violência das ondas congelantes. Uma tempestade se deu por seus gritos e o mar ficou tão revolto que o barco balançava sem parar. O pai de Sedna percebeu que a ave era tão poderosa que até o mar estava furioso com a perda da esposa do petrel. Sabia que para salvar a si mesmo teria de sacrificar a filha. Jogou Sedna na água gelada. Ela se debateu, a pele roxa de frio. Conseguiu se segurar na lateral do barco, mas seu pai, assustado pelo bater forte das asas do petrel acima de sua cabeça, bateu nos dedos da filha com o remo do caiaque. Os dedos de Sedna se quebraram e caíram no mar, onde se transformaram em baleias e nadaram para longe. Ressurgindo, Sedna segurou-se na lateral de novo, mas seu pai a atacou pela segunda vez. As falanges de seus dedos se quebraram como pedras de gelo e caíram no mar e se tornaram focas. Mais uma vez ela alcançou o barco, mas seu pai bateu em suas mãos até partes de seus dedos se quebrarem e se transformarem em morsas, e Sedna afundou. Sedna se tornou um espírito poderoso que controla as criaturas do mar que nasceram de seus dedos. Às vezes ela causa tempestades e faz com que caiaques batam contra as rochas. Às vezes causa fome afastando as focas de seus caçadores. Nunca sobe à tona, onde pode reencontrar o petrel. - Lenda dos esquimós Dez
Vou contar a verdade.
Mas a história começa muito antes de eu tê-lo conhecido, bem antes de qualquer pessoa ter ouvido o nome de Alex Rivers. Começa no dia em que Connor Murtaugh se mudou para a casa ao lado da minha - o mesmo dia em que voltei para casa para o jantar e disse à minha mãe que quando eu crescesse queria ser menino. Eu tinha cinco anos, uma menininha certinha treinando para ser uma moça do Sul. O fato de morarmos no Maine não impedia minha mãe de me ensinar os modos de uma garota primorosa do estado da Geórgia. Já sabia ler um pouco e, por necessidade, sabia até preparar pratos simples, como sopa e queijo grelhado e, é claro, café forte. Havia dominado a arte de jogar meus cabelos por sobre o ombro e de baixar o olhar para conseguir o que queria. Sorria sem mostrar os dentes. A maioria dos adultos me achava uma gracinha, mas eu não tinha amigos de minha idade. Levá-los para casa para brincar era inimaginável, você pode imaginar, o que fazia com que muitas crianças da escola pensassem que eu era estranha ou fresca. Até que a família de Connor se mudou de um apartamento do outro lado do lago para a casa ao lado da minha. Passei aquele primeiro dia ajudando-o a carregar caixas e luminárias, respondendo a suas perguntas sobre a data de meu aniversário, a comida de que menos gostava e onde era possível encontrar iscas gordas. Ele me surpreendeu e, pela primeira vez, vi que o mundo era mais do que se sentar com as pernas fechadas em uma cadeira e passar a escova cem vezes nos cabelos todas as noites. Assim, troquei minhas sapatilhas por um par de tênis velhos que me serviam quando eu colocava meias enroladas nas pontas. Aprendi as finas artes de jogar sal sobre lesmas para secá-las e escorregar de barriga em chãos cheios de lama. Atribuo a Connor muitos dos motivos pelos quais decidi me tornar uma antropóloga, mas principalmente porque ele foi a primeira pessoa a me Mostrar como é bom sentir a terra entre os dedos. Atualmente, minhas mãos quase sempre estão secas e, apesar de Connor ter morrido há dezessete anos, ele continua em minha mente. Não acredito em OVNIs, reencarnação, fantasmas, mas acredito em Connor. Tudo que posso dizer é que de vez em quando eu o sinto. Ele aparece sempre que as coisas estão erradas. Acredito que é por minha causa que ele nunca voou para o paraíso, ou seja lá para onde as almas vão, uma vez que ele passou a infância cuidando de mim e aparentemente ainda se sente na obrigação de fazê-lo. Então, você entende, eu estava esperando por ele naquela segunda-feira quente do mês de agosto enquanto atravessava os corredores do departamento de antropologia, esperando para obter a resposta da universidade. Eu vinha trabalhando como professora-assistente na UCLA havia dois anos e queria estabilidade. Havia pessoas ali com menos tempo de serviço do que eu que tinham alcançado. Consegui ameaçar Archibald Custer, o diretor do departamento, com uma história esfarrapada, dizendo ter recebido outras propostas de uma universidade do leste. Eu não estava esperando ser contratada permanentemente, porque aos 27 anos eu ainda era mais jovem até do que os professores adjuntos. Mas não era minha culpa que eles tinham demorado mais tempo para chegarem onde eu
estava. Eu sentia orgulho do fato de ter decidido, treze anos antes, o que faria da vida e me mantive com o plano original. Eu estava encostada no bebedouro que ficava do lado de fora do escritório da secretária do departamento quando senti a leve pressão em minha espinha que era um indício de que Connor estava observando. Se ele estava ali, pensei, as respostas não seriam muito boas. - Eles vão me deixar para trás sussurrei. Pronto. Eu havia admitido a minha falta de sucesso, as palavras caíram ao chão na minha frente, pesadas como o fracasso costuma ser. - Detesto estar ligada a uma universidade - eu disse em silêncio, passando a mão pela parede. Não era verdade. Eu detestava o lado político, mas adorava o dinheiro e os benefícios. Adorava a maneira com que a fita vermelha desaparecia como mágica quando eu tentava abrir uma escavação em outro país. E eu sabia que em uma semana eu perdoaria Custer e todas as pessoas que receberam promoções. Perdoaria todas as pessoas que não haviam me aprovado. Naquele ano, eu precisaria entender o que estava fazendo de errado e me esforçar um pouco mais. - Sabe o que eu queria? - eu disse. - Queria que todas as coisas boas da vida não fossem todas reunidas na infância. Não era o que ocorria para a maioria das pessoas. Quando tinha sido a última vez que eu havia percorrido o campus descalça? Ou quando tinha sido a última aula perdida por ter dormido demais? Quando tinha sido a última vez em que eu havia me embriagado e acordado na cama de um estranho ou ficado sem dinheiro no caixa do supermercado? Nunca. Eu não me permitia chegar aos limites, apesar de não pensar que estava perdendo alguma coisa. A espontaneidade me deixava desconfortável. Minha mente firme era o que me daria uma promoção. Algum dia. Mas eu tinha a sensação de que se Connor estivesse vivo ele ficaria chateado comigo. Ele desejaria que eu fizesse as coisas sobre as quais conversávamos: viver no Taiti durante alguns meses, escalar montanhas ou cuidar de um bonsai. Tentei tirar Connor de minha mente enquanto me preparava para a reunião com Archibald Custer. Ele estava em pé na porta de seu escritório, monolítico, como se esperasse invocar quem quisesse com a força de sua posição. Ele era argumentador, mente pequena e sexista. Eu não gostava muito dele, mas sabia como fazer seu jogo. - Ah, senhorita Barrett - ele disse. Ele falava segurando um transmissor a uma caixa dentro de sua garganta, pois suas cordas vocais haviam sido retiradas devido a um câncer de garganta anos antes. Os alunos o achavam assustador e eu tinha de concordar. Exceto por sua altura, ele sempre me lembrava um pouco os desenhos feitos dos Homo habilis, e eu tinha de aplaudi-lo por ter escolhido uma profissão tão adequada. Ele também não gostava de mim, não apenas por eu ser mulher e jovem, mas também por eu ser uma antropóloga física. Ele era um antropólogo cultural - construíra seu nome muitos anos antes, envolvendo-se com os yanomamis. Sempre houve uma rivalidade sadia entre os dois campos da antropologia, mas eu não conseguia perdoá-lo pelo que havia feito depois de eu ter defendido minha dissertação. Eu havia escrito um texto a respeito da violência, se ela era nata ou adquirida, um debate antigo entre antropólogos físicos e culturais. A
crença popular tendia a uma abordagem cultural, dizendo que, apesar de a agressão ser nata, a agressão planejada - como a guerra - era causada pela pressão de se viver em sociedade, não por nosso histórico evolucionário. Eu rebati, dizendo que isso podia ser verdade, mas que a sociedade em si não teria surgido a menos que a natureza territorial aumentada em nossos genes exigisse que o homem criasse regras. De modo geral, era uma incoerência para os antropólogos culturais, e isso deixava Custer maluco. Em meu primeiro ano como palestrante) ele havia me inscrito em cursos que tinham a ver com antropologia cultural e, quando reclamei e pedi para ir a campo, ele simplesmente ergueu as sobrancelhas e disse que pensava que seria bom se eu me tornasse mais bem informada. Agora ele fazia um sinal para que eu entrasse em seu escritório e me mostrou a cadeira, onde eu pudesse sentar e ficasse de frente para sua enorme mesa. Ele estava sorrindo, o filho da mãe, quando começou a falar. - Sinto muito em dizer... Eu levantei da cadeira, incapaz de escutar mais nada. - Então não diga nada - eu disse, sorrindo de maneira nervosa. - Presumo que fui deixada de lado, muito obrigada, e vou poupar seu esforço. Dei um passo na direção da porta. - Miss Barrett. Eu parei com a mão na maçaneta e me virei. - Sente-se. Eu me sentei novamente, pensando sobre quantos pontos havia regredido no conceito dele. - Você terá uma tarefa incomum no primeiro trimestre - ele continuou. - De fato, você sempre insiste para ir a campo. Eu me inclinei para a frente. Estariam eles dando início a uma nova aula prática durante o semestre do outono? Minha mente se apressou a pensar nos possíveis pontos: Quênia, Sudão, as ilhas da Sicília. Eu comandaria o grupo ou trabalharia para alguém? - Temo que não seja possível dar-lhe uma posição entre os professores adjuntos este semestre - disse Custer. - Mas nós a indicamos para uma licença. Apertei o braço da cadeira. Não havia pedido uma licença. - Com licença, Archibald, mas preciso dizer em minha defesa que nos últimos três anos... - Você tem sido exemplar. Sim, eu sei. Todos sabemos. Mas às vezes... - ele titubeou nesse ponto -, às vezes apenas isso não é o bastante. "Explique melhor", eu pensei; - Escolhemos você para reabrir o antigo ponto de escavação da UCLA na Garganta de Olduvai. Prepare-se para uma viagem de campo com os alunos do primeiro ano - Custer disse, recostando-se em sua cadeira. Eu fiquei boquiaberta. Eles queriam que eu fosse um tipo de office boy cuidar de uma aula que eu não era valiosa o bastante para lecionar. Não era para aquilo que tinha me esforçado tanto, que havia escrito minha dissertação. Não era o que eu havia planejado na escalada de minha carreira. - Certamente não sou a pessoa mais bem treinada para esse emprego - eu disse. Custer deu de ombros.
- É a única pessoa da universidade que não recebeu... aulas para o próximo semestre - ele disse. Escutei o que ele disse, mas escutei a verdade. Ele estava me dizendo que eu era a única supérflua. MENOS DE TRINTA E SEIS HORAS DEPOIS, eu ESTAVA NA TANZÂNIA, sentada à sombra de uma cobertura improvisada na pequena área da Garganta de Olduvai que a UCLA havia separado para suas aulas de campo. Eu ainda estava nervosa por ter sido descartada, mas não havia discutido com Custer. Teria sido um erro. Afinal de contas, eu teria de voltar em dez semanas e implorar por aulas. Eu tentara me convencer de que aquela viagem seria melhor do que o esperado. Afinal de contas, a Garganta de Olduvai havia sido o primeiro ponto de escavação do arqueólogo Louis Leakey no leste da África. Talvez eu fizesse algo grande também: descobrisse o elo perdido ou outra coisa que fizesse com que meus colegas mudassem sua visão a respeito da evolução humana. Era pouco provável, mas eu ainda era jovem e havia milhões de anos de história para desenterrar. No entanto, pela análise que eu havia feito de manhã, estava convencida de que, como os outros antropólogos que vasculharam a área por décadas depois das descobertas de Leakey, eu não ia encontrar nada novo. Não fazia a menor ideia de como me manteria ocupada por dez semanas. Arrumar a área para a aula prática significa apontar os locais onde uma escavação poderia encontrar fósseis, mas parecia que a classe podia escavar a garagem de suas casas e ter a mesma sorte que teriam ali. Conforme o sol subia, eu caminhei casualmente pelo local, procurando em minha grande bolsa de palha o livro que eu havia começado a ler no avião. Olhei para os lados, checando se estava sozinha antes de pegá-lo. Ridículo. Meu coração estava acelerado, como se eu estivesse prestes a ser flagrada com um grama de cocaína. Era apenas um romance de banca de jornal, meu único vício. Eu não fumava, raramente bebia, nunca havia usado drogas, mas estava completamente viciada nesses livros idiotas, cuja capa mostrava uma mulher presa aos braços de um homem. Eu sentia tanta vergonha que os encapava em papel pardo, como fazia com meus livros no ensino fundamental. Eu os lia no ônibus e nos bancos do lado de fora da UCLA, fingindo que eles eram textos de antropologia ou um livro vencedor do prémio Pulitzer. Não conseguia me controlar. Sabia que a explicação psicológica para isso tinha que ver com o que faltava em minha vida, mas eu dizia a mim mesma que não importava. Eu havia começado alguns anos atrás, depois que minha colega de quarto, Ophelia, havia posado para a capa de um livro nos braços de um homem glorioso. Eu havia lido aquele primeiro livro e depois não consegui parar. Encontrava conforto em saber que em nenhuma tribo ou raça antiga as pessoas existiam daquela maneira. Fazia com que eu me sentisse mais normal. Mas isso não me impedia de ter esperança, acredito. Mas se um romance fosse ganhar vida, aconteceria com alguém como Ophelia e seu papel no título. Ela era bonita, de corpo bem feito e sensual - não apenas simples e prática, como eu. Seria bom ser o tipo de mulher por quem guerras eram travadas, mas eu não esperava por isso. Até então nenhum cavaleiro lutara por
mim, nenhum aventureiro havia me procurado, vencendo o tempo e a distância. Eu escolhi viver em Los Angeles, onde encontrar mulheres bonitas era a norma, não a exceção. Por outro lado, nesses livros não havia cirurgia plástica, cosméticos "mágicos" ou aulas de aeróbica. Pensei em Helena de Tróia, em Laura, de Petrarca, e tentava imaginar se, de fato, elas eram tão diferentes de mim. - Com licença - alguém disse. - Sua tenda está no caminho. Eu me assustei com o som pouco familiar e instintivamente enfiei o livro na areia fofa e vermelha. Levantei a cabeça e vi dois homens, com os rostos contra a luz do sol. - Pois não? - Eu disse, ficando em pé. Os homens não eram dali, dava para ver. Suas testas estavam queimadas e descascando, e eles não tiveram o bom senso de usar bonés. - Minha mira - o homem mais alto disse. - Você vai ter de sair daqui. Eu me enfureci. - Sinto muito, mas você está errado - eu disse. - Este local pertence à Universidade da Califórnia. Os homens ergueram as mãos, contrariados, e deram as costas para mim. O segundo homem estendeu a mão. - Sou George Farley. Sou um A.D. - Ele fez um gesto sobre o ombro. Edward é nosso D.P. Sorri para eles. - A.D.,D.P, Cassandra Barrett - eu disse, esperando que essa fosse a resposta apropriada. George apontou para o desfiladeiro. - Estamos gravando um filme aqui e, quando Edward estava fazendo filmagens amplas, filmou sua tenda. Sabe, pensávamos que seríamos os únicos aqui nessa época do ano. Um filme? Não conseguia imaginar como eles haviam conseguido permissão para filmar na Tanzânia, mas percebi que os locais já escavados na beira da planície Serengeti faria com que a produção não precisasse fazer a limpeza da área. - Bem, sinto muito em desapontá-lo. Mas também estou trabalhando aqui - eu disse. - Diga a ela para desfazer a tenda. O cinematografista - o D.P. - nem sequer se importara em virar para mim ao falar, e fiquei nervosa. - Está quente demais para trabalhar sem armação. - Trabalhar? O cinematografista disse e sorriu. Os olhos de George Farley brilharam como se ele tivesse descoberto ouro. - Você é antropóloga? Contra o bom senso, assenti. - Ah - Edward suspirou. - Deus existe. George me levou de volta para a armação. - Você é antropóloga da UCLA? Está aqui fazendo escavações? - Pode acreditar que este não é exatamente um local de escavação. Expliquei o programa da universidade; os vários campos usados por todos os lados da África para ensinar as práticas de escavação. - Então você não está trabalhando de fato. - George disse. - Talvez tenha um pouco de... tempo livre. - Pode ser - respondi.
- Trezentos dólares por dia - George disse. - São seus, se concordar em ser consultora técnica. Era mais do que eu recebia na UCLA. Proposta tentadora. Sem saber nada sobre o filme, pensei em como seria tentador lucrar com a licença forçada por Custer. Pensei na satisfação que sentiria ao ferrar com Custer de uma maneira que não prejudicasse meu futuro na universidade. Quando eu não respondi, George se apressou em quebrar o silêncio. - É um filme sobre um antropólogo, e o astro, Alex Rivers, insiste para que possa aprender sobre as escavações para compor o personagem. - Insiste? - Edward interrompeu, sorrindo. - Exige. Eu ergui a sobrancelha. - Vocês ainda não fizeram isso? Pensei que pensassem nisso antes de virem para cá. George pigarreou. - Tem razão, e foi o que fizemos, mas ele teve de ir embora inesperadamente uma semana atrás. - No meio da noite - Edward completou. - Provavelmente à força. George olhou para ele com reprovação. - O Alex não é tão mau assim - ele disse, virando-se para mim. - Entramos em contato com o pessoal que está nos Estados Unidos, mas demoraria um tempo que não temos até encontrarmos alguém e você... bem, você... - Entrei em sua mira - eu disse. - Trezentos e cinquenta - George disse. - E um quarto na cidade. Não era ético; não seria algo que Custer perdoaria. Significaria passar meu tempo livre servindo de babá de um astro de cinema mimado que já havia despedido alguém, em vez de cuidar de meu local de escavação para a minha pesquisa. Abri a boca, preparada para declinar da oferta, quando pensei em Connor. "Você nunca se pergunta o que está perdendo?" - Bem - eu disse, sorrindo. - Quando começamos? GEORGE HAVIA ME DEIXADO COM UM CONTRATO improvisado rabiscado na contracapa do romance que eu estava lendo e, quase no mesmo instante, peguei minha armação e fui para a cidade para telefonar para Ophelia. Eu, nas gravações de um filme com Alex Rivers. Pessoalmente, não esperava muito de uma celebridade - por viver em Los Angeles, já havia percebido como seus mundos eram rasos e egocêntricos -, mas eu sabia que Ophelia consideraria aquilo uma grande sorte. Ela devorava as revistas de fofoca, sempre sabia qual produtor estava namorando qual diretor ou qual estrela; ela olhava extasiada para os cenários quando passávamos por locações de filmes que estavam sendo gravados nas ruas de Los Angeles. Eu conseguia imaginar sua reação: morreria ou pelo menos diria que iria, porque essa era a sua resposta para a maioria das coisas, desde aceitar um papel como coadjuvante para um comercial de TV a ficar de alface quando fazia uma salada. Ophelia Fox tinha sido minha colega de quarto desde que havíamos sido escaladas para dividir o dormitório em nosso primeiro ano na UCLA. Na época, ela tinha o nome estranho de Olivera Frug e ainda tinha seios singelos e cabelos loiros. Eu trazia Ophelia para o mundo real e em troca, bem, acho que ela me fazia rir.
Eu também sabia mais sobre ela do que qualquer outra pessoa. Quando fiquei na UCLA na época de Natal por não haver nada de interessante para mim no Maine, fiquei surpresa com a notícia de que Ophelia também ficaria por lá. A seu modo extrovertido, ela dizia a todos que era uma maneira de reforçar seu bronzeado. Mas na noite de Natal, quando nos embebedamos com uma garrafa de Glenfiddich e, quando Ophelia pensou que eu estava dormindo, começou a falar. Contou do padrasto que a molestava desde os doze anos. Contou do cheiro de sua loção pós-barba. Contou da insónia que passou a sofrer para poder escutar o menor barulho que fosse na porta de seu quarto. Quando o sol nasceu, não abrimos presentes, mas guardamos esse presente que dividimos. Éramos diferentes demais para sermos amigas, mas éramos inseparáveis. Quando Ophelia começou a mudar sua imagem, eu a apoiei. Afinal, eu compreendia o que ela estava tentando disfarçar a todo custo. Comprou suas próteses de silicone como presente de formatura e mudou seu nome; e, quando comecei a cuidar de meu mestrado, ela se lançou na tarefa de encontrar para nós duas um apartamento perto o suficiente dos estúdios para ela e da UCLA para mim. Era um local pequeno, mas o aluguel era baixo e estávamos ali havia quase sete anos. - Vá em frente - o operador disse. - Ophelia? Escutei seu suspiro. - Graças a Deus você telefonou - ela disse, como se eu estivesse por perto. - Estou tendo uma crise. Eu sorri. - Você está sempre tendo crises. O que houve hoje? - Tenho consulta com meu terapeuta às dezesseis horas, sabe? - Ophelia encontrara alguém para melhorar sua assertividade desde que decidira que as sessões com o psicólogo não estavam dando certo. - No momento, nossas sessões acontecem duas vezes por semana, mas eu gostaria de passar para apenas uma, mas não sei como dizer isso a ele. Eu não queria rir, não tinha a intenção, mas o som vazou. Tentei encobri-lo com uma tossida. - Acho que não vou aparecer - ela suspirou. - Conversarei com ele na quinta-feira. - Ela ficou em silêncio por um momento e em seguida pareceu se lembrar de onde eu estava. - E como estão as coisas na África? Ophelia não compreendia minha atração pela antropologia - para ela, era uma maneira digna de se sujar -, mas sabia como era importante para mim. Muito mais interessante do que eu esperava. - Estou fazendo um "bico". - Como guia de safari? - Como consultora técnica do novo filme de Alex Rivers. Escutei um suspiro de surpresa do outro lado. - Ai meu Deus, ai meu Deus, ai meu Deus - Ophelia disse. - Como isso aconteceu? Ao relatar a história a ela, minhas dúvidas retornaram. - Sei que vou me arrepender disso - eu disse. - Se não fosse pelo dinheiro e pela chance de ferrar a UCLA -, eu não teria aceito. Fiz uma careta. - Aposto que ele não vai nem querer sujar as mãos. - Suspirei lentamente, pensando
nas consequências de uma decisão precipitada. Eu não gostava de Custer, mas podia evitá-lo quando estava na universidade. Eu não ia gostar de Alex Rivers, mas concordara em passar dez horas por dia com ele. - Vou enviar roupas para você - Ophelia disse. - Meu vestido preto tubinho, o sutiã de seda cor-de-rosa e... - Ophelia - eu a interrompi. - Vou ser consultora técnica, não a amante dele. - Mas nunca se sabe. Receba o maldito pacote, coloque-o em sua mala e pronto. - Ela suspirou. - Não acredito nisso. Simplesmente não consigo acreditar. Sabia que devia ter me formado em antropologia. - Ela Se atrapalhou com as palavras, demonstrando sua excitação. - Uau, Cass - ela disse. - Alex Rivers! sorri. Mesmo que eu vestisse seu sutiã a vinte metros de Alex Rivers, ainda assim ela o colocaria em um quadro quando eu voltasse para casa. - Ele é só uma pessoa - disse a ela. - Certo - Ophelia disse. - Uma pessoa que ganha quatro milhões de dólares por filme e com quem a população feminina inteira do mundo sonha. Pensei nisso: Eu não sonhava com Alex Rivers, mas a maioria de meus sonhos tinha que ver com escavações de homens que haviam vivido milhões de anos antes. Tentei lembrar de algum filme dele. Devia ter visto algum deles com Ophelia, pois era com ela que eu passava meu tempo livre, e ela costumava me forçar a assistir às estreias. Lembrei-me vagamente de Malfeitor, um filme de faroeste da época em que estávamos na faculdade, e Luzes e sombras, que tinha sido uma das principais produções sobre o Vietnã de 1987. Havia alguns filmes de ação cujos títulos eu não lembrava, e o último que eu havia assistido, cerca de seis meses antes, era aquela história de amor Selvagem. Havia me esquecido desse. O filme havia me surpreendido, pois eu nunca pensara em Alex Rivers como um herói romântico e ele foi convincente no papel. A mensagem do filme me acompanhou durante todo o trajeto de volta para casa: melhor ter amado e perdido do que nunca ter amado. Tentei imaginar se aquilo era verdade. O amor, até onde eu sabia, não passava de uma sedução planejada. Na faculdade, eu havia perdido minha virgindade com um estudante, apenas por querer saber como era transar. Não senti nenhuma grande dor no coração, nem nenhuma conexão com os espíritos. Houvera minha excitação, a mistura de nossos hálitos e a simplicidade do sexo. Não tinha namorado muito desde então, mas não achava que estava perdendo alguma coisa. Na maior parte das vezes, eu estava ocupada demais para notar. Talvez quisesse ter filhos, um dia, mas só criaria uma criança com alguém por quem eu realmente tivesse sentimentos e, até aquele momento, a única pessoa por quem me imaginava apaixonada era Connor. - Preciso ir - eu disse. - Esta ligação vai me custar uma fortuna. - Telefone na quinta-feira depois de conhecê-lo. - Ophelia... - Na quinta-feira. Fechei os olhos. - Vamos ver. Não prometo. Eu NUNCA TINHA VISTO TANTAS PESSOAS PAGAS para não fazer nada. Havia pessoas sentadas no chão, dobrando cadeiras, sobre rochas. Havia armações com enormes câmeras e fios por todos os lados. Um homem
com fones de ouvido estava sentado na frente de um sistema de som com botões e alavancas coloridas. Todos falavam, não vi George e Edward e ninguém parecia estar controlando tudo aquilo. Eu estava acostumada a ser mandada para lugares nos quais não conhecia ninguém, mas estava meio deslocada ali. Parecia que em todas as partes em que pisava ficava enrolada em algum fio e dei de encontro com um homem que carregava muitas perucas e chapéus, e o derrubei no chão. - Meu Deus - eu disse. - Deixe-me ajudá-lo. - Mas ele me olhou com raiva, juntou suas coisas e foi embora. Caminhei até uma mulher sentada em uma cadeira alta de lona onde se lia “roteiro”. - Com licença - eu disse. - Estou procurando o diretor. Ela suspirou, mas não desviou o olhar de uma pasta que estava aberta sobre seu colo. - Eu e você estamos procurando por ele, querida. - Rabiscou um bilhete com uma caneta vermelha e gritou o nome de alguém, chamando-o com um movimento de mão. Passei por pessoas com walkie-talkies presos a seus cintos. Sobre a mesa, havia uma pilha de roteiros. - "À imagem dele" - li em voz alta, passando a mão sobre o logotipo da Warner Brothers no rodapé da página. - Posso ajudar? - Um homem com cara de impaciente ficou na minha frente, batendo o pé no chão. Tirou o roteiro de minha mão. - Estou à procura de Bernie Roth - eu disse. - O diretor. - Como se eu não soubesse quem ele é. - Ele estalou os dedos quando dois homens se aproximaram trazendo uma corda grossa e preta. - Ei, ei... aonde estão indo com isso? Eu disse que era para levá-la para atrás da tenda. - Espere - eu disse. - Bernie Roth? - Um minuto - ele respondeu. Ele gritou para os dois homens que carregavam a corda: - Atrás da tenda! Coloquei minha bolsa sobre a mesa e vesti meu boné caqui. Se Maomé não vai até a montanha, pensei, a montanha vai a Maomé. Mais cedo ou mais tarde, alguém tentaria me encontrar. Sentei-me encostada em uma árvore alta e abracei minhas pernas perto do peito. Tentei pensar em Alex Rivers. Sabia como ele era, é claro - ele estava na capa das revistas todos os meses. Ele era maravilhoso, em uma palavra. Seu cabelo castanho tinha mechas douradas; sua mandíbula era em definida e marcada por seu queixo bem-feito. Ele tinha lábios cardos, que davam a impressão de que ele sempre guardava um segredo, seus olhos, o motivo de sua fama, eram lindos. Pareciam um espelho e, mortal, quem os via em uma foto de publicidade conseguia enxergar a própria alma. Não seria ruim ter de olhar para ele todos os dias. Fiquei surpresa com o silêncio. Não havia câmeras por todos os lados, ninguém estava correndo e gritando "ação", ninguém dizia nada que lembrasse uma fala. Uma capa de poeira vermelha cobria todo o equipamento de fotografia, como se não tivesse sido usado recentemente. Não era à toa que eram necessárias doze semanas para se fazer um filme de duas horas.
O set, pelo que eu via, era dividido em três partes. A primeira era o local de escavação da Garganta de Olduvai, bem diferente do ponto ocupado pela UCLA a menos de mil metros dali. A segunda parte era uma série de tendas, e diante de uma delas estava uma atriz que eu já havia visto antes, mas cujo nome não lembrava. Ela usava um short caqui e um casaco de Kalahari, e eu decidi que meu primeiro conselho técnico seria dizer à responsável pelos figurinos que o look National Geographic não estava nem um pouco de acordo e que seria melhor optar por uma boa e confortável camiseta. A terceira parte ficava em uma plataforma elevada, feita para parecer o interior de uma barraca. Havia uma cama portátil e uma coleção de caixas vazias muito bem organizadas e uma mesa baixa. Em uma estante, havia uma vasilha de porcelana com desenhos e um jarro, e não consegui me conter. Porcelana? Depois de alguns minutos, uma garota veio se sentar ao meu lado. Ela sorriu, o primeiro sorriso de verdade que eu via desde minha chegada. - Com quem você está aqui? - Comigo apenas - eu disse, surpresa pela pergunta, como se eu tivesse que ter levado uma companhia. - Sou a consultora técnica sobre antropologia. - Nossa! - A menina disse. - Quer dizer que ganha a vida assim? Eu sorri. - Pensei que tivesse de ser o contrário. - Eu me impressionar por você trabalhar nos filmes. - Mas não trabalho com filmes, exatamente. Sou assistente da Janet. - Ela apontou para a mulher com o casaco de Kalahari que estava lendo um roteiro. Meu nome é LeAnne. Eu me apresentei e apertei a mão dela e fiz um gesto para a multidão de funcionários. - Por que ninguém está fazendo nada? - perguntei. Leanne sorriu, levantando-se. - É assim que funciona. Muita correria e espera. Venha, aposto que não sabe onde fica o oásis. Quando ela começou a se afastar, eu a segui. Dentro de uma tenda grande e baixa, havia um banquete. Corri os olhos de uma ponta da mesa à outra, vendo jarros de suco de manga e limonada, cachos de bananas e montes de kiwi, sanduíches pequenos recheados com salpicão de frango e alguma coisa parecida com ovo fatiado, pratos cobertos com salada de repolho e macarrão. - Isto é o almoço? - perguntei. Leanne balançou a cabeça, negando. - O senhor Rivers gosta de saber que há o que comer entre as gravações. Ele organiza tudo, ou melhor, sua assistente, Jennifer. Ela faz para ele o que eu faço pela Janet. Se está achando muito tudo isso, espere até ver o almoço. Ontem, serviram caranguejo. Acredita? Caranguejo, na África. Hesitante peguei uma banana, descasquei-a e saí da barraca para o sol quente. Levantei o rosto, protegendo os olhos. - Do que se trata esse filme? Leanne ficou chocada por ninguém ter me contado. Era um tipo de filme de ficção científica. Alex Rivers estava interpretando um antropólogo que escava parcialmente um esqueleto que parece, à primeira vista, mais velho do que todos os outros já encontrados. Mas, quando ele avalia os ossos, descobre que eles são dos anos 1960. Descobre, então, que a composição química dos
ossos não é a que deveria ser, mesmo que se tratasse de um esqueleto muito antigo. Depois, descobre-se que se trata de um alienígena, e isso faz com que ele se pergunte a respeito da origem do homem. Balancei a cabeça de modo afirmativo quando Leanne terminou a explicação. Não era o tipo de filme que eu gostaria de assistir, mas certamente venderia bem. Eu a segui para o pequeno aglomerado de pessoas, às quais fui apresentada e cujos nomes esqueci rapidamente. A maioria dos funcionários estava sentada no chão. Leanne começou a conversar com outra mulher a respeito do estado dos banheiros dali, e eu me sentei em uma cadeira de lona. Era igual àquela na qual estava sentada a mulher dos roteiros, a diferença era que trazia o nome Alex Rivers na parte de trás. Mas estava vazia e Alex Rivers não estava por perto, por isso eu me sentei. Leanne levou um susto e segurou meu pulso. - Saia daí - ela disse. Assustada, eu caí, formando uma nuvem de poeira que fez com que todos sentados no chão tossissem. - É só uma cadeira - eu disse. - Não tem ninguém sentado aqui. - É a cadeira do senhor Rivers. - Eu fiquei olhando para ela, esperando uma explicação. - Ninguém se senta na cadeira dele. Pelo amor de Deus! Aquilo seria pior do que eu esperava. Tentei convencer a mim mesma de que 350 dólares por dia era mais do que suficiente para explicar o básico da escavação de fósseis a um homem que Pensava que jarros de porcelana podiam ser usados em um acampamento que era tão prepotente que apenas seu precioso traseiro podia encostar na cadeira de lona. Sabia que alguma coisa estava para acontecer quando senti o vento frio que soprou tão rápido quanto os comentários se espalharam. A equipe começou a ficar em pé, batendo as mãos em suas roupas e voltando para suas posições no set. Três homens subiram na armação que levava até a câmera; o técnico de som segurou o fone de ouvido para escutar melhor e voltou uma parte da fita. O homem que cuidara da corda gritou o nome de uma mulher chamada Suki. - Atriz em cena - ele gritou. - Suki, precisamos de sua iluminação. - Uma mulher que não era Janet, a atriz, passou por entre as tendas e imediatamente uma série de luzes foram viradas para ele e colocadas nessa posição. Eu olhei diretamente para um feixe de luz e por isso só o vi quando ele já estava perto de mim. Alex Rivers jogou o casaco na cadeira onde eu havia ousado me sentar, sem olhar para mim, assim como não parecia perceber o ar que o rodeava. Estava conversando em voz baixa com alguém que acreditei ser Bernie Roth, já que ele tinha a mesma pose de importante e também não estava prestando atenção a ninguém. Alex Rivers estava dizendo alguma coisa a respeito da corda preta que eu havia visto antes. Ele resvalou em meu braço ao passar por mim e eu dei um passo para trás, assustada. Não foi por causa do choque; foi o calor de sua pele. Esfreguei meu ombro, certa de que veria uma marca vermelha ou vergão, uma prova qualquer do que eu havia sentido. Observei quando ele se afastou, surpresa por minha noção de espaço estar fora dos eixos, pois, em vez de ver Alex Rivers cada vez
menor à medida que se afastava, ele parecia preencher todo o meu campo de visão. Sem perceber o que estava fazendo, caminhei atrás das tendas, mantendo-me longe de onde ele estava, mas perto o bastante para conseguir escutar. Ele, Bernie Roth e um homem alto e musculoso estavam mexendo na corda preta que havia sido colocada ali antes. Um quarto homem estava sendo alvo da raiva de Alex Rivers. - Escute bem - ele disse -, interrompendo o que o homem estava falando. Escute bem mesmo. Sven pode pular com essa corda, mas ela e diferente do que pedi. Você tem duas opções: pode ir à cidade procurar uma corda que seja branca e com a qual ele possa pular ou pode usar essa corda preta e me deixar fulo da vida com você pelas próximas onze semanas. - Ele passou a mão pelo rosto como se estivesse muito cansado. - Estou falando de segurança. O principal é sabermos se Sven pode ou não usar a corda para a cena em que será o dublê. Em segundo lugar, vem a cor da corda que será mostrada em contraste com o pano de fundo. O homem musculoso e o figurinista assustado saíram para a esquerda, deixando-me em contato visual com Alex Rivers. Observei seu perfil, sua mandíbula bem desenhada, os cabelos eriçados pelo vento. Que idiota! Eu não entendia muito sobre filmes, mas já conhecera a burocracia na UCLA, e Alex Rivers não era muito diferente de Archibald Custer. Ele aproveitava a vantagem de estar em sua posição e da maneira com que as pessoas se portavam diante dele. Se eu havia aprendido alguma coisa no departamento de antropologia, era que não se devia deixar que as pessoas que tomavam decisões fizessem o que queriam. Era preciso imporse para que elas o aceitassem ali. Eu engoli em seco e dei um passo adiante. Pretendia me apresentar a ele e a Roth, falar sobre o casaco da atriz e sobre a jarra de cerâmica e então poderia dizer o que pensava a Alex Rivers. Mas, assim que entrei no seu campo de visão, fiquei paralisada. Ele me tirou de sintonia, e eu não sabia ao certo se estava em Serengeti, na Bélgica ou em Marte. Não tinha nada que ver com a beleza dele, mesmo sendo hipnotizante. Tinha a ver com seu poder. Alguma coisa em seu olhar me impedia de parar de observá-lo. Os olhos dele brilharam, tomando a luz como a superfície de um lago. Em seguida, ele desviou o olhar, como se procurasse por alguma coisa. Quando olhou para mim de novo, estava sorrindo. Resplandecente. Pensei nessa palavra e tentei imaginar como conseguia passar horas sob o sol africano sem me deixar abater, mas ficava paralisada diante de um homem. - Querida - Alex Rivers disse -, você pode me trazer alguma coisa para beber? Eu o encarei, mas ele já estava se afastando com o diretor a seu lado. Quem ele pensava que era? Quem ele pensava que eu era? Sua assistente. Ou melhor, ele estava procurando pela assistente e não conseguiu encontrá-la, por isso pensou que eu estava ali para servi-lo, obviamente. Como todas as outras pessoas. Eu o observei sentar-se em sua cadeira, com o encosto e o assento tomando a forma de seu corpo. Eu não gostava de nada nele. Pensei no que diria quando telefonasse para Ophelia. "Adivinhe! Alex Rivers é um idiota prepotente que manda em todo
mundo. É tão envolvido em si mesmo que não consegue enxergar um palmo na frente do nariz." E, enquanto pensava nisso, caminhei até a tenda onde estava o banquete. Eu o detestei por ter me feito esquecer o que estava prestes a dizer; eu o detestei por ter me feito estar ali; e o detestei ainda mais por fazer meu coração acelerar de repente, batendo como os tambores dos índios que às vezes eu escutava a distância enquanto fazia escavações. Peguei um copo de plástico vermelho de uma pilha sobre a mesa e o enchi até a boca com gelo, sabendo que levaria apenas alguns minutos para derreter. Em seguida, acrescentei suco - de mamão, creio - e mexi com uma faca descartável, esperando até o copo começar a suar e o líquido estar na mesma temperatura do gelo. Alex Rivers ainda estava sentado em seu trono real, inclinando-se na direção de uma mulher que passava base em seu rosto. Quando me viu, esticou o braço para pegar a bebida e lançou um segundo sorriso em minha direção. - Ah - ele disse. - Pensei que não a veria de novo. Eu sorri para ele e derrubei o suco e o gelo, até o copo, em seu colo. Por um momento, observei a mancha se espalhar em sua calça. - Você não está com sorte - eu disse e fui embora. Onze
Eu esperava que Alex Rivers reclamasse, quisesse saber meu nome, exigisse que eu fosse demitida. Quanto a mim, continuei andando, pensando em sair do set, até mesmo da Tanzânia. Mas Alex Rivers fez a única coisa capaz de me fazer voltar: ele riu. Sua risada era forte e profunda, do tipo que esquentava. Ele chamou minha atenção assim que me virei. E disse: - Então, acredito que você sentiu que precisava esfriar minha raiva? Provavelmente eu teria enfrentado sua ira, mas a compreensão que ele demonstrou me desarmou. Meus joelhos começaram a tremer e eu me segurei a um equipamento de iluminação apenas para me manter em pé. Fiquei transtornada pela força do que eu fizera. Não tinha derramado uma bebida gelada em algum assistente ou figurinista. Tinha enfrentado o homem com quem deveria estar trabalhando. O homem que estava me pagando 350 dólares por dia apenas para ser solícita. Ele ficou em pé e caminhou na minha direção, esticando o braço como se soubesse que eu estava prestes a cair. - Alex River - ele disse. - Acho que ainda não nos conhecemos. De soslaio, percebi a equipe fingindo estar ocupada com outras coisas enquanto observavam a cena se desenrolar. - Cassandra Barrett - eu disse. - Da UCLA. Os olhos dele brilharam com um tom prateado que eu nunca tinha visto antes. - Minha antropóloga - ele disse. - Prazer em conhecê-la. Olhei para a calça dele molhada, encharcada com uma mancha no formato de uma borboleta. Sorri. - O prazer foi todo meu - eu disse.
Ele riu de novo e eu fiquei pensando naquele som para me lembrar dele mais tarde quando estivesse no quarto do acampamento, com o ventilador de teto girando sobre minha cabeça. Ele segurou meu braço: - Pode me chamar de Alex. E vou pegar um roteiro para você saber o que está acontecendo. Bernie! - ele gritou. - Venha aqui e conheça nossa consultora técnica. O diretor do filme, que parecia uma sombra pronta para obedecer aos comandos de Alex, apertou minha mão com educação e pediu licença, dizendo que precisava encontrar alguém do elenco. Era fácil perceber que aquele era o show de Alex. Ele começou a conversar comigo antes que eu percebesse a importância de suas palavras. - Quer que eu desenterre alguma coisa? Agora? Ele assentiu. - A cena que vamos gravar hoje é de meu personagem descobrindo o esqueleto. Eu poderia seguir minha intuição, mas não estaria correto. Precisa haver um método, certo? Não é simplesmente cavar e puxar o osso. Fiz uma careta. - Não. Com certeza não. Ele havia segurado meu braço e estava me levando na direção da grande escavação, onde a maioria dos fósseis da Garganta de Olduvai havia sido descoberta. - Só quero observá-la um pouco. Quero ver seus movimentos e sua concentração, esse tipo de coisa. É o que preciso. - Você precisa de uma lona - eu disse. - Se estivesse procurando alguma coisa de valor, teria de fazer uma armação de lona sobre o local para que os fósseis encontrados não sejam manchados pelo sol. Alex sorriu. - Era exatamente para isso que contava com sua presença aqui - ele disse. Fez um gesto para dois homens que estavam ao lado, arrumando a perna de uma das armações. - Joe, Ken, vocês podem encontrar uma lona para colocar aqui? Precisa ser... - Ele olhou para mim. - Tem de ser preta? Dei de ombros. - As minhas costumam ser. - Preta, então. - Quando os homens começaram a se afastar, Alex chamou o que se chamava Ken: - Parabéns pela sua filhinha - ele disse. - Fiquei sabendo que você recebeu a notícia ontem à noite. Se ela se parecer com Janine, será linda. Ken abriu um largo sorriso e correu para acompanhar o outro rapaz. Olhei para Alex: - Ele é seu amigo? - Não exatamente - Alex respondeu. - Mas faz parte da equipe. É meu dever saber alguma coisa sobre todos daqui. Eu me agachei na beira do local de escavação e mexi na terra. Se ele estava tentando me impressionar, não estava indo longe demais. - Isso é impossível - eu disse -, afinal, deve haver pelo menos cem pessoas aqui. Alex olhou com tanta intensidade para mim que olhei para ele antes de querer. Sua voz era controlada.
- Sei o nome de todos os funcionários e de seus cônjuges. Quando eu trabalhava como bartender, aprendi que, se as pessoas pensarem que você está prestando atenção nelas, tornam-se mais extrovertidas. Para mim, é fácil lembrar, eles se sentem importantes e as coisas passam a ser feitas com o dobro da rapidez por causa disso. Ele falava como se estivesse se defendendo, como se eu o tivesse desafiado, quando não tinha sido minha intenção, de forma alguma. Na verdade, eu estava chocada. Era difícil ligar a uma mesma pessoa o homem que fizera um escândalo por causa de uma corda e o homem que fazia questão de saber os nomes de todos que trabalhavam para ele. - Você não sabia meu nome - eu disse. - Não - ele disse, sorrindo. - Mas você cuidou para que nunca mais o esqueça. Começamos a trabalhar, agachados na área de escavação. Mostrei a Alex as diferentes ferramentas para cavar, os pincéis macios usados para tirar o excesso de terra. Tentei explicar as marcas no terreno que indicariam a existência de fósseis, mas era algo difícil de entender, a menos que a pessoa fizesse um treinamento. - Pronto - eu disse, encostando meu traseiro nos calcanhares. - É tudo o que posso lhe mostrar. - Mas ainda não me mostrou nada - Alex reclamou. - Preciso vê-la escavando um crânio ou algo assim. Eu ri para ele. - Não deste local. Tudo já foi tirado. - Finja - ele pediu. E sorriu. - É fácil. Eu construí uma carreira fazendo isso. Suspirei e inclinei-me para o fosso novamente, tentando imaginar um fragmento de osso que não estava ali. Comecei a perceber por que meu antecessor havia desistido. Talvez Alex Rivers tivesse facilidade em fingir, mas - como ele dissera - era a carreira dele. A minha era baseada em evidências e provas físicas, não apenas em imaginação fértil. Sentindo-me uma idiota, passei a mão sobre uma camada de areia vermelha e corri os dedos sobre uma parte tortuosa do solo. Peguei uma picareta e comecei a escavar em círculo ao redor do crânio inexistente. Afastei a terra com meus dedos e limpei o suor de minha testa em meu ombro. Fechei os olhos e tentei imaginar o tamanho do crânio invisível. Não consegui imaginá-lo; era ridículo tentar. Eu era treinada demais na parte literal para pensar na figurativa. - Olha... - eu disse, pensando em dizer a Alex que não gostava daquilo. Mas antes que eu pudesse concluir minha frase, Alex Rivers agachou-se atrás de mim. Colocou os braços ao redor de meus ombros, quase como num abraço e cobriu as minhas mãos com as dele. - Não, olha você - ele disse, e fez um gesto com a cabeça para o local onde eu estava escavando. Eu pisquei, e o que era apenas terra agora parecia osso. Um truque de luz, pensei, ou ilusão. Ou talvez apenas a força da imaginação de Alex Rivers. ELE ERA DIFERENTE DE TODAS AS PESSOAS QUE eu conhecia. Sabia os nomes de todos; isso ficava claro assim que o set era preparado para as gravações. Educadamente, deixou-me sentada ao lado de sua assistente,
Jennifer. Quando se agachou atrás da câmera para conversar com Bernie Roth a respeito da melhor maneira de fazer uma determinada filmagem, brincou com o rapaz da iluminação que tinha de tolerar o sol forte enquanto as luzes e os painéis refletores ficavam ao redor dele. Ele estava sempre em cem lugares de uma só vez; eu ficava cansada só de tentar acompanhá-lo com os olhos. Mas, todas as vezes que eu olhava para o roteiro em meu colo e caminhava na direção da mesa onde estavam as storyboards, sentia os olhos dele em mim. Eu me virava e ali estava Alex Rivers, a quinze metros, olhando para mim como se eu fosse a única pessoa no local. A cena que eles estavam gravando foi exatamente como Alex dissera que seria: seu personagem, um tal de doutor Rob Paley, encontrando os ossos do que ele pensava ser um hominídeo fossilizado. Bernie havia subido na armação que mantinha a câmera Panavision e conversava com Alex durante a cena. - Quero que entre... isso mesmo, um pouco mais devagar... e agache-se, ótimo, assim mesmo. E agora, o que fará com as mãos? Tente se lembrar de que não encontra nada há três semanas e, agora, de repente encontra o ouro. Alex ficou em pé e gritou fazendo uma pergunta a Bernie, mas não consegui escutar o que era. Quando eles estavam prontos para filmar, todas as pessoas segurando seus walkie talkies estavam em pé em uma fileira espaçada, gritando "Silêncio!" uma depois da outra, um eco humano. O cinegrafista murmurou: "Gravando" e o técnico de som, inclinado sobre sua ilha, disse: "Velocidade". Um segundo antes de Bernie pedir que começassem, observei Alex entrar em seu personagem. Seus olhos perderam o brilho e seu corpo relaxou tanto que parecia que ele havia sido puxado para fora de seu corpo. Então, um segundo depois, a energia voltou a seu corpo, endireitando sua coluna e fazendo seus olhos brilharem. Mas não tinha o mesmo rosto. Na verdade, se eu passasse por ele na rua, com aquela expressão, não o reconheceria. Ele se mexia de maneira diferente. Falava de maneira diferente. Chegava a respirar de maneira diferente. Como um velho cansado, atravessou a faixa de terra amarela, abaixando-se cuidadosamente diante do local de escavação. Pegou uma picareta e um pincel de seu bolso e começou a cavar. Sorri, observando meus gestos sendo reproduzidos diante da câmera: o hábito que eu tinha de começar da esquerda para a direita, o varrer metódico do pincel, como um jogador que passa a mão no gramado para posicionar a bola. Até que chega o momento em que seu personagem descobre o esqueleto, começando pelo crânio. As mãos de Alex passaram pelo ponto que ele havia limpado e ele parou. Movendo-se com mais pressa agora, ele começou a afastar a terra com um cinzel. Um pedaço de osso apareceu, colocado ali minutos antes por um cenógrafo. Era amarelado e rachado e inclinei para a frente para ver melhor. Alex Rivers levantou o rosto e olhou diretamente para mim, e em seus olhos eu me vi. Sua expressão era a mesma que eu demonstrara no momento surpreendente em que ele me abraçou por trás e, de repente, eu vi um crânio. Reconheci minha surpresa, minha dedicação e meu encantamento.
Comecei a sentir calor. Puxei a gola larga de minha camiseta de algodão e levantei meu cabelo. Tirei meu boné e me abanei com ele, torcendo para ele desviar o olhar. Ele jogou a cabeça para trás e olhou para o sol. - Meu Deus! - Suspirou. Parecia qualquer cientista que, no fundo de seu coração, sabia que havia feito a descoberta de sua vida. Parecia que fazia isso havia séculos. Ele se parecia comigo. Eu havia passado anos trabalhando na descoberta antropológica que aumentaria meu status entre meus colegas. Imaginara o momento mil vezes em minha mente da mesma maneira que a maioria das mulheres imagina o próprio casamento: a sensação do sol em minha pele, como minhas mãos se espalhariam pela terra, como sentiria o osso nas palmas das mãos. Imaginara meu rosto voltado para o sol, minhas orações oferecidas em troca daquele presente. Apesar de eu nunca ter falado sobre isso com ninguém, muito menos com Alex Rivers, ele havia feito a cena exatamente da mesma maneira que eu imaginara a minha. Ele tinha roubado o momento mais importante de minha vida, que ainda não havia acontecido. Foi essa injustiça que me fez levantar da cadeira no momento em que o diretor gritou: "Corta!" Mal conseguia escutar o barulho da equipe dentro de minha cabeça. "Como ele ousa?", pensei. Ele disse que só queria me observar escavar. Não disse nada sobre imitar minhas expressões e meus instintos. Era como se ele tivesse entrado em mim e percorrido minha mente. Corri para a tenda de equipamentos, onde havia camas e ventiladores elétricos e jarras de água gelada. Depois de mergulhar uma toalha de papel na tigela, deixei a água escorrer por meu pescoço. Deixei que ela corresse entre meus seios, pela minha barriga, no cós de meu short. Eu me inclinei sobre a tigela e lavei meu rosto. "Ele me conhecia muito bem. Ele me conhecia melhor do que eu mesma." A distância, escutei Bernie Roth tomar a decisão de usar aquela única tomada, uma vez que Alex tinha sido perfeito. Resmunguei e me sentei em uma das camas. Eu havia feito um compromisso contratual; ia cumpri-lo. Mostraria a Alex Rivers os detalhes técnicos que ele quisesse; mostraria os movimentos que precisava fazer e diria o que era inadequado no roteiro. Mas não permitiria que ele se aproximasse e nunca mostraria meu coração a ele. Eu havia feito isso uma vez, por ter sido pega de surpresa, mas não ia acontecer de novo. Adormeci durante um tempo e, quando acordei, meu corpo estava coberto por uma fina camada de suor. Sentando-me, procurei pelo papel-toalha que havia usado antes. Eu o molhei de novo e o coloquei atrás de meu pescoço. A parte da tenda que servia como porta foi aberta e por ela apareceu um jovem com rabo de cavalo de cabelos ruivos. Seu nome era Charlie, era uma espécie de camponês, como havia me dito; eu havia conversado com ele antes. - senhorita Barrett - ele disse -, tenho procurado por você em todos os lugares. Sorri para ele. - E eu pensei que ninguém se importava. Sua pele clara corou e ele desviou o olhar. Ele trabalhava com iluminação.
- Tenho uma mensagem para você - ele disse, mas não me olhava nos olhos. Para diminuir sua angústia, eu peguei o bilhete que ele estava segurando. Era um pedaço simples de papel pardo, do tipo que envolvia os equipamentos para transporte. Por favor, jante comigo. Alex. Sua letra era bem bonita, como se passasse horas praticando. Tentei imaginar se ele autografava com a mesma letra cuidadosa. Amassei o papel com a mão e olhei para Charlie, que estava esperando por uma resposta. - E se eu disser não? – perguntei. Charlie deu de ombros, afastando-se. - Alex vai encontrá-la e vai fazê-la mudar de ideia. ELE CONSEGUIA OPERAR MILAGRES. FIQUEI EM PÉ NA PORTA do que tinha sido um set de gravação horas antes - o interior da tenda de seu personagem - e observei a toalha de mesa de linho branco, as compridas velas nos castiçais de marfim, o champanhe esfriando em um balde prateado. Alex estava em pé do outro lado da tenda, vestindo um casaco, calça preta e gravata-borboleta branca. Pisquei. Estávamos na África, Deus do céu! Não estávamos nem mesmo em um hotel, mas, sim, em um acampamento a 35 quilómetros da Garganta de Olduvai. Como ele conseguira tudo aquilo? - É só, John. - Alex disse, sorrindo para o homem que havia me levado de volta ao set em um jipe. Era um homem simpático, alto como uma sequoia. - Ele é muito gentil - Eu disse educadamente, observando John se afastar à luz vermelha emitida pelas tochas do lado de fora da tenda. - Ele me contou que trabalha para você. Alex assentiu, mas não se aproximou. - Ele daria a vida por mim - ele disse de maneira séria, e fiquei pensando em quantas outras pessoas fariam o mesmo. Eu estava vestindo um tubinho preto, que havia chegado no pacote que Ophelia enviara aquela tarde, e sapatos baixos e pretos com pelo menos meio quilo de areia em cada. Eu havia passado três horas tomando banho e secando meus cabelos, hidratando minha pele com uma loção pós-banho de limão, enquanto imaginava diferentes conversas com Alex Rivers. Mas não esperava vê-lo vestindo aquelas roupas. Não conseguia tirar os olhos dele. - Você está lindo - eu disse discretamente, sentindo raiva de mim mesma por dizer aquilo. Alex riu. - Acho que eu deveria dizer isso. Mas obrigado. E, agora que viu o efeito, posso me livrar disso antes que derreta? Sem esperar minha resposta, ele tirou o casaco, desfez a gravata e enrolou as mangas até os cotovelos. Puxou uma cadeira para mim e levantou uma tampa prateada arredondada de cima de um prato de crudítés. - E então? - Ele perguntou. - O que achou de seu primeiro dia em um set de filmagem? Estreitei os olhos, reconhecendo a oportunidade. - Acho que nunca vi tamanha perda de tempo em minha vida - eu disse simplesmente. - E acho vergonhoso roubar as emoções de outra pessoa para realizar a sua performance.
Alex ficou boquiaberto, mas conseguiu se recompor rapidamente. Levantou a travessa de porcelana. - Cenoura? - Disse com calma. Olhei para ele. - Não tem nada a dizer? - Sim - ele respondeu, pensativo. - Por que sempre começamos errado? Você só odeia a mim ou é assim com todos os atores? - Não odeio ninguém - eu disse. Olhei para os guardanapos e copos de cristal delicados, pensando nos problemas que ele havia enfrentado. Aquela era, obviamente, uma tentativa de se desculpar. - Só me senti usada. Alex olhou para mim: - Não era a minha intenção magoá-la - ele disse. - Estava tentando... bem, não interessa o que eu estava tentando fazer. - Interessa para mim - eu disse. Alex não disse nada. Olhou por cima de meu ombro e balançou a cabeça. Quando falou, sua voz saiu tão baixa que precisei me inclinar para escutar. - O problema em ser um dos melhores é que ainda é preciso melhorar. Mas você compete consigo mesma. - Ele olhou para mim. - Sabe o que é fazer uma cena, ver todos lhe darem tapinhas nas costas e dizer que você é ótimo, mas perceber que precisa ser tão bom da próxima vez e da próxima depois da próxima? - Os olhos dele brilharam com a luz da vela. - E se não der? E se da próxima vez não funcionar? Apertei minhas mãos em meu colo, sem saber o que deveria dizer. Estava claro que eu havia tocado em um ponto fraco - Alex Rivers não estava se exibindo; na verdade, ele parecia assustado por não se achar capaz de manter a imagem que havia criado. - Roubo as reações das pessoas... você tem razão. Assim, não preciso cavar mais fundo em mim mesmo. Acho que tenho medo de que, se me mantiver atrelado às minhas experiências, um dia estarei procurando por alguma coisa na qual me apoiar e perceber que sequei. - Ele sorriu levemente. - Na verdade, não vou tolerar que isso aconteça. Interpretar é a única coisa na qual sou bom. Não sei o que mais poderia fazer. - Ele olhou para mim. - Sinto muito que tenha sido com você. Ergui minha mão como se fosse tocá-lo, mas mudei de ideia. Alex corou levemente ao perceber o que havia admitido para mim. Eu desviei o olhar, tentando entender por que ele havia se exposto, mas eu me sentia tão vulnerável. A HISTÓRIA DE ALEX Rivers EM HOLLWYOOD, de acordo com Michaela Snow, era de que ele havia se formado na escola de atores na Tulane, havia ido para Los Angeles e trabalhava como bartender em um bar num ponto muito frequentado, quando um grande produtor ficou embriagado. Alex levara o homem para casa, e um dia depois o homem o chamara para um teste. O filme era Malfeitor; ele havia ganhado o papel e roubado o filme. As pessoas da área acreditavam que tudo tinha sido fácil para Alex Rivers. Que se ele não estivesse no lugar certo e na hora certa teria ocorrido uma segunda coincidência, ou uma terceira. Era difícil separar o fato da ficção, por isso, na maior parte do tempo, Alex não tentava. Deixara sua infância em uma poça nos fundos da Paramount e recriara a si mesmo para se encaixar nas proporções míticas da imprensa. A
verdade é que ele havia se tornado um workaholic, não por causa do dinheiro ou da fama, mas, sim, porque não gostava de si mesmo tanto quanto gostava dos personagens aos quais dava vida. Não se permitia acreditar que havia algum traço ainda existente do menino vulnerável que já tinha sido. A outra verdade é que o mais próximo que havia chegado de um palco em Tulane tinha sido como faxineiro. Sua chegada a Los Angeles havia sido como uma carona bem-vinda. E nunca teria deixado Louisiana se não acreditasse ter matado o próprio pai. Tinha sido uma daquelas semanas de clima úmido e desagradável em New Orleans. Andrew Riveaux estava apostando havia três dias e três noites em um local nos fundos da Bourbon Street, apesar de sua família não ter percebido no começo. Alex estava ocupado demais trabalhando na universidade, tentando economizar dinheiro suficiente para ajudar a mãe e conseguir um lugar para si. Ele quase não vivia na casa da família; passava quase todas as noites nas camas estreitas dos quartos da universidade, a convite das filhinhas de papai que o achavam durão e destemperado, uma aventura diferente. Da mesma maneira, Lisa Riveaux não sentia falta de seu marido. Dormia a maior parte do tempo, dopada por Valium, tão drogada que não distinguia os dias da semana, muito menos aqueles nos quais Andrew resolvia aparecer. Naquela tarde, quando Alex entrou para vê-la, ela estava tão pálida que ele decidiu checar sua pulsação. Alex estava na cozinha, cortando legumes para fazer um ensopado para o jantar quando escutou o pai rindo do lado de fora. Seu pai tinha duas risadas: uma malvada, usada para a degradação, e outra falsa, usada para a bajulação. Aquela era do segundo tipo, e depois de uma breve pausa, durante a qual Alex cortou o próprio dedo, ele voltou para a sua tarefa. Andrew Riveaux havia levado alguém para a casa. Alex escutou os passos pesados, a voz diferente. Escutou o pai abrir a porta que dava para o único quarto e gritar o nome da esposa. Alex saiu da cozinha a tempo de ver o pai levando aquele homem gordo e avermelhado na direção de Lila, inconsciente na cama. Percebeu que o pai estava sem a corrente e o crucifixo de ouro e que sua pele estava amarelada por causa do álcool. Observou o desconhecido passar as mãos sobre a barriga e perguntar a Andrew: "Ela vai acordar?" e foi então que Alex percebeu quanto o pai perdera na jogatina. Alex ficou ali como testemunha de um grande incêndio, assustado e imobilizado pelo choque sabendo que precisava se mexer ou chamar a atenção, compreendendo ao mesmo tempo que tais ações simples estavam além de seu controle. Ele ficou ofegante e a faca que segurava caiu no chão. Andrew parou enquanto fechava a porta do quarto. Olhou para Alex e disse: "Ela não vai saber", como se tudo ficasse bem. Seu primeiro golpe fez o pai se curvar. O segundo quebrou o seu nariz. A porta do quarto se abriu e o estranho apareceu arrumando a calça. Olhou para Alex, para o pai e para Alex de novo. Apontou um dedo para Andrew e disse: "Está me devendo, seu filho da puta" e, fechando a braguilha, bateu a porta do trailer. O terceiro golpe de Alex fez seu pai cair sobre um armário antigo que era o orgulho de Lila. Andrew Riveaux bateu a nuca em uma ponta, abrindo
uma cascata de sangue que escorria por entre seus dedos. Ele caiu inconsciente, mas não sem antes sorrir – sorrir - para o filho. Não disse nada, mas Alex escutou suas palavras mesmo assim: "Merda. Você sabe brigar". Pela abertura do quarto, Alex conseguiu ver a mãe. Sua blusa estava aberta, com o sutiã puxado para cima, os mamilos vermelhos, expostos, obscenos. Dormira o tempo todo. Pegou de volta o dinheiro que havia deixado sobre a mesa da cozinha para a mãe e o colocou no bolso. Em seguida, olhou para o corpo do pai até que o sangue que vazava de seu crânio chegasse à ponta do sapato de Alex. Esperou sentir alguma emoção: arrependimento, choque, alívio; mas não sentiu absolutamente nada, como se o homem que cometera aquele ato não tivesse nada que ver com ele. E, mesmo depois de saber que seu pai desgraçado não havia morrido naquele dia, Alex não admitiu durante anos que o que ficara com ele o tempo todo não tinha sido o som da cabeça de seu pai se abrindo, nem o cheiro de seu sangue sobre o carpete, mas o fato de que, quando menos tentou, por um momento havia se tornado o tipo de filho que Andrew Riveaux queria que ele fosse. ALEX LEVANTOU E COMEÇOU A MEXER NA TAMPA da garrafa de champanhe. Enquanto ele se mexia, pude vê-lo fechando a parte de si mesmo que eu acabara de ver, transformando-se novamente em uma celebridade. - Sou ator há sete anos, roubando expressões e experiências de meus amigos, familiares e pessoas que encontro na rua. Se eles pudessem perceber isso, ficariam lisonjeados. Nunca ninguém teve a coragem de me dizer o que você disse. - Ele suavizou a voz, e eu esperei para ver onde tudo aquilo levaria. - Você me surpreende. Poucas pessoas me surpreendem. Olhei para ele até a pompa e o glamour desaparecerem, deixando apenas o homem. - Bem - admiti -, você também me surpreendeu. A tampa voou da garrafa, explodindo no teto da tenda e caindo em meu colo. O champanhe escorregou nas laterais da mão de Alex, caindo em sua calça. - Estou fazendo você gastar uma nota preta na lavanderia - eu disse. Alex sorriu e encheu minha taça. - Champanhe não mancha tanto quanto mamão - ele disse. Ergueu sua taça e a encostou na minha. O som, como o dos sinos mais suaves, foi levado pelo vento. - Acho que deveríamos fazer um brinde ao filme - eu sugeri. - Não. - Alex inclinou-se tanto que consegui sentir o perfume apimentado de sua loção pós-barba. - Acho que devemos brindar a você. Observei a flute sendo levada aos lábios dele e me virei para olhar as velas acesas. Nossas entradas estavam dispostas em travessas cobertas com tampas de prata em cima da mesa, sob a tenda. Dispostas em uma base mais fraca, estavam duas tortas individuais de frutas. - Você está tornando difícil eu ficar brava - disse. - Bem, pelo menos estou fazendo alguma coisa certa, finalmente - ele disse. Corei, olhando para meu prato. Queria que ele servisse minha comida. Cantasse. Gritasse. Qualquer coisa, menos olhar para mim daquela maneira.
Eu conseguia me localizar em um deserto observando a posição do sol. Sabia como montar um esqueleto mesmo quando este estava separado em cinquenta pedaços. Conseguia realizar análises complicadas de computador que explicavam o significado das dimensões de um osso. Mas não conseguia me sentar a uma mesa com um homem e ficar à vontade. Simplesmente não tinha muita experiência prática com aquilo. E as fantasias que eu cultivava não escondiam as ciladas que surgiam na realidade: os momentos em que não havia nada a ser dito, o eco horrível de uma colher largada no prato, a maneira com que Alex olhava fixamente para mim, como se me visse por dentro. Pensei nas heroínas daqueles livros que eu lera durante o voo para a Tanzânia. A maioria delas teria jogado os longos cabelos sobre os ombros, entreaberto os lábios carnudos e inclinado-se para a frente, de maneira convidativa. Todas sabiam provocar e flertar. No mínimo, elas conseguiriam manter uma conversa sem parecerem tolas. Mas Alex não sabia nada sobre antropologia, e eu não sabia nada sobre os filmes. Falar sobre o clima da Tanzânia não fazia muito sentido, uma vez que se mantinha estável durante meses. Ele não queria saber sobre minha viagem até ali. Sem o escudo de raiva que havia usado na tenda como proteção, eu tinha muito pouco a dizer a Alex Rivers. Ele provavelmente estava se Perguntando por que havia me convidado para jantar. - Diga-me, Cassandra Barrett... - Cassie - Eu disse automaticamente. Olhei para ele. - Pode me chamar de Cassie. - Cassie, então. Conte-me como você acabou vindo escavar no deserto africano. Aceitei a conversa, feliz pela chance de fazer alguma coisa. - Eu era uma moleca na infância. Gostava de brincar na terra - expliquei. Ele caminhou na direção de uma caixa de madeira que eu não tinha visto e tirou duas tigelas pequenas envolvidas em gelo. - Coquetel de camarão? - ele perguntou. Eu sorri quando ele colocou a tigela na minha frente. - Como você fez isso? - eu perguntei, sem entender. Alex levantou um camarão com um pequeno garfo. - Se eu lhe contasse, deixaria de ser mágico. Comemos em silêncio, e eu observei as velas criarem sombras inconstantes no rosto dele e iluminarem seu cabelo. Ele era dourado, era essa a palavra. Eu olhava para ele num momento e via um homem perguntando sobre meus cursos na UCLA e então respirava e via Apolo na minha frente. Durante a refeição principal, Alex me contou que havia nascido perto de New Orleans. - Meu pai era médico e minha maman, bem, ela é a mulher mais linda que já vi. - Ele sorriu. Lembro que eu a observava no jardim quando ela pensava que ninguém estava olhando. Ela tirava o chapéu de palha e virava o rosto para o céu, rindo como se fosse a mulher mais feliz do mundo. Olhei para meu prato, pensando em minha mãe, que teria trocado tudo o que tinha para voltar para o Sul. Pensei em como eu a observava quando ela pensava que ninguém estava olhando, inclinada sobre sua garrafa de uísque, brindando a si mesma. Fechei os olhos, tentando imaginar como teria sido a infância de Alex Rivers com sua família.
- Meu pai não ligava muito para a interpretação - Alex disse. - Mas até que ele me viu em uma peça na faculdade - Tulane - e se tornou meu fã número 1. Até sua morte, alguns anos atrás, ele mantinha os pósteres promocionais de todos os filmes nos quais eu atuava e os pendurava na parede de seu escritório. - E sua mãe ainda vive em New Orleans? - perguntei. - Tentei levá-la para Los Angeles, mas ela não quis. Disse que suas raízes estavam profundas demais ali. Tentei pensar nas imagens do Sul que minha mãe pintara em minha mente, uma terra de graça e de pinheiros de folhas azuis, além de bebidas geladas com menta. Parecia tão diferente de Los Angeles quanto eu de Alex Rivers. - Você deve sentir saudade de New Orleans - eu disse. - Hollywood deve ser um mundo diferente. Ele deu de ombros. - Cresci em uma daquelas mansões francesas ele disse. - Janelas pretas, roseiras trepadeiras e bancos de ferro. Quando cheguei em Los Angeles e ganhei fama, construí uma casa como aquela em Bel-Air. Se você já fez um daqueles passeios guiados pelas casas dos artistas, provavelmente já viu a caixa de correspondência. Sorri para ele. - E como você soube que havia conquistado fama? Alex riu. - Certo dia, eu estava em um supermercado. Foi logo depois de Luzes e sombras ter sido lançado - o filme sobre o Vietnã. Eu estava na seção dos produtos frescos, escolhendo melões, da mesma maneira que minha mãe me ensinara quando eu estava na faculdade, checando quais estavam maduros. Finalmente escolhi dois e segui em direção às cebolinhas e, quando olhei para trás, vi muitas mulheres ao redor dos melões. Todas elas estavam pegando as frutas que eu havia pegado, mas não levado - os verdes - dizendo umas às outras que haviam pegado uma fruta tocada por Alex Rivers. - Ele sorriu. - Essa é a pior parte. Não posso ir a lugar algum. Não posso fazer nada. Não tenho privacidade alguma. Aquele dia, em 1987, foi a última vez em que saí para fazer compras no mercado. - Como faz para conseguir comida? - perguntei, horrorizada. - Contrato pessoas. Tenho alguém que compra minha comida, minhas roupas, que faz meus telefonemas, que me leva de um lado a outro. Nossa! Provavelmente poderia contratar alguém para ir ao banheiro por mim se quisesse. - Ah - eu disse, sorrindo. - As vantagens de estar em uma posição de poder. - Fiquei em pé e tirei os dois pratos - um delicioso ganso com molho de ameixa com recheio de arroz adocicado. - Então o que você faz o dia todo? Alex riu. - Pensando bem, muito pouco - ele disse. Ele voltou a encher as taças de champanhe enquanto eu levava a sobremesa para a mesa. - Mirtilo - eu disse. - Gosto muito. Eu não estava dizendo aquilo apenas para ser gentil. Não havia maneira de uma pessoa ser criada no Maine e não gostar de mirtilos; os arbustos que
havia entre a minha casa e a de Connor. Aquelas não eram tão boas quanto as do Maine - mas não disse isso a Alex -, mas elas me lembravam do verão de uma vida que eu havia vivido cem anos antes. Levei o garfo à boca e comi mais um pedaço. - Costumávamos colher mirtilos no Maine - eu disse a Alex. - Eles crescem em todos os lugares, e comíamos as frutas diretamente tiradas do pé - sorri. As mais vermelhas eram as melhores, porque tinham gosto de sol e deixavam manchas roxas em nossos dedos. Alex esticou o braço para segurar minha mão. Ele a virou, acariciando levemente os meus dedos com as pontas dos dele. - Aqui - ele disse, tocando a palma de minha mão como se pudesse ver as marcas. E aqui. - Ele olhou para mim. - Gostaria de estar com você. Eu puxei minha mão. Senti uma onda de calor revelando-se em minha Pele. - Acho melhor ir embora - disse rapidamente. - Obrigada pelo maravilhoso jantar. - Fiquei em pé antes que mudasse de ideia; antes que ele a Mudasse por mim. Alex olhou para mim por muito tempo e então se levantou e desenrolou as mangas da camisa. Vestiu seu casaco e me acompanhou para fora da tenda. As duas tochas acesas na entrada para o set deixavam a terra com sombras avermelhadas que pareciam queimar. - Eu disse a John que a levaria de volta - Alex disse delicadamente. Espero que não se importe. - Não quero incomodá-lo - eu disse, mas, mesmo que quisesse, sabia que não havia alternativa. Eu teria morrido de medo se tivesse de dirigir para o acampamento tão tarde; e não podia simplesmente chamar um táxi. Ele me ajudou a entrar no jipe e acomodou-se no banco do motorista. Acendeu um cigarro e isso me surpreendeu - não pensei que ele fosse fumante. Mas tragou poucas vezes e jogou o cigarro pela janela, e eu fiquei sem a ponta avermelhada e brilhante do cigarro para observar os desenhos do rosto de Alex. Ele ficou calado durante todo o trajeto de volta para o acampamento. Eu sabia que o ofendera, e tentei repassar a noite em minha mente, mas, além de nossa primeira discussão, a única coisa que poderia ter sido mal vista tinha sido minha atitude de afastar minha mão. Eu não conhecia o tipo de jogos casuais que alguém como Alex Rivers conhecia. "Ele vai se acostumar", eu disse a mim mesma. "Só que ainda não está acostumado a escutar um não." Quando ele parou o jipe no estacionamento do acampamento e abriu minha porta, tentei pensar na maneira mais graciosa de dizer boa noite sem estragar o momento assim que pisasse no chão. E então ri. Ele era apenas um homem. Um ator. Do que eu sentia medo? "De mim mesma." Soube a resposta antes mesmo de Alex fechar a porta do carro, prendendo-me entre seus braços. Eu sentia medo do que mais ele podia fazer comigo, desde que o vira interpretar meus sonhos no filme, aquela tarde. Dei um passo para trás, encostando na lateral do jipe. Alex olhou para mim, mas estava em pé nas sombras e eu só consegui ver o brilho de seus olhos. - Você é linda - ele disse simplesmente. Eu me virei.
- Não minta - eu disse. - Não interprete. - As pessoas já haviam me descrito como inteligente, ambiciosa - mas ninguém, em toda a minha vida, havia dito que eu era bonita. Sempre pensei que Connor poderia fazer isso, mas ele nunca teve a chance. Eu fiquei nervosa novamente, irritada da mesma maneira que me sentia no início da noite, porque Alex Rivers havia arruinado uma noite perfeitamente boa. Antes de ele abrir a boca, eu poderia ter olhado para ele e sorrido, lembrando do jantar à luz de velas em Serengeti. Poderia ter ido para a cama aquela noite, fechado os olhos e retomado os pensamentos com conversas interessantes que eu quisesse inventar. Mas Alex havia ultrapassado o limite com uma mentira deslavada e de repente a noite toda pareceu ter sido uma grande piada à minha custa. Alex segurou meus ombros. - Não estou mentindo - ele disse. - Certamente não estou interpretando. Ele me chacoalhou delicadamente. - Qual é o problema em dizer que você é bonita? - Porque não sou - eu disse da maneira mais simples que pude, esperando que aquilo doesse um pouco menos. - Olhe ao seu redor. Olhe para a tal da Janet ou qualquer outra atriz com quem tenha trabalhado. Ele segurou meu rosto com suas mãos. - Você traz um tubinho preto sensual para o meio do nada. Escuta o que tenho a dizer com tanto cuidado que parece que estou contando os segredos do universo. Não tem medo de dizer que estou sendo um idiota quando é o caso. E - ele disse - você fala sobre colher mirtilos como se estivesse fazendo isso horas atrás, de modo que eu consiga ver as manchas roxas da fruta em seus dedos e lábios. Cassie, se isso não é beleza, não sei o que pode ser. Ele começou a se inclinar para mim, e eu mantive os olhos abertos enquanto ele me beijava, porque queria ver se eu o afetava da maneira que ele me afetava. Consegui sentir a lua branca em seus ombros, puxando-me para mais perto de Alex. Escutei os batimentos estáveis de seu coração, o barulho suave dos ventiladores no acampamento e comecei a acreditar que aquilo era verdadeiro. Quando ele se afastou de mim, seus dedos ainda descansavam em meu pescoço e tremiam. Eu sorri para ele. - Não disse nada sobre manchas de mirtilo em meus lábios. Alex envolveu minha cintura com os braços. - Estou começando a achar que é o melhor filme de minha vida - ele disse. Ajudou-me a subir os degraus para o acampamento, até a entrada principal. Estava escuro, e a maioria dos outros membros do elenco e da equipe tinha ido para a cama, preparando-se para acordar cedo. Ele subiu os degraus ao meu lado e me levou até minha porta. A cada passo eu o sentia se afastando. Quando chegamos diante de meu quarto, tentei descobrir se eu havia imaginado tudo aquilo. Alex se virou para mim, como se pretendesse me beijar de novo, mas, em vez disso, começou a falar de maneira rápida e furiosa. - Meu pai não era médico - ele disse. Percebi que sua voz estava mais grave, gutural, que seus olhos queimavam como antes, quando ele falara sobre fracasso e sucesso. O mais perto que ele chegou de um médico foi quando deu um tiro no próprio pé depois de se embebedar com uísque. Fui sua maior
decepção, Porque acabei sendo bem diferente do filho da puta, e ele costumava me espancar de vez em quando apenas para me lembrar de como era melhor. Minha maman não sabia a diferença entre flores reais e artificiais. Cheguei ao mundo causando dor e ela nunca me deixou esquecer esse fato. Passei a infância toda me escondendo dos dois e procurando me distrair, fingindo ser outra pessoa. E a casa que construí em Los Angeles não existe em New Orleans - mas o mais perto que cheguei dela foi espiando atrás de uma árvore na mata que havia diante dela, observando meninas que viviam ali darem cambalhotas no gramado e deixando suas saias se levantarem. - Ele suspirou profundamente. - Aquela história que lhe contei foi o que minha relaçõespúblicas inventou quando eu disse a ela que precisava de uma história. Mas não vou mentir para você e não vou interpretar. Fiquei boquiaberta. Queria que ele soubesse que gostava mais daquilo - a verdade nua e crua - do que de seu alter ego. Quis conversar com ele sobre minha mãe e minha família. Acariciei seus cabelos nas têmporas. Duas vezes na mesma noite ele havia confiado em mim para dizer a verdade e, por isso, eu o ajudaria. Eu era mais capacitada para isso do que ele podia imaginar. Ele sussurrou meu nome e eu me recostei a ele, passando as mãos em suas costas e me surpreendendo com a maneira com que nos encaixávamos confortavelmente. A única coisa em que pensei antes de ele me beijar foi que Alex Rivers era um ator muito melhor do que as pessoas imaginavam. Doze
Uma semana depois de ter começado a passar todo o meu tempo livre com Alex Rivers, comecei a sonhar com Connor todas as noites. Era sempre o mesmo sonho. Nele, Connor e eu éramos adultos, mas estávamos deitados de costas perto do lago Moosehead. Connor ficava apontando para o céu, comentando sobre as formas das nuvens. - O que você acha? - ele perguntava diversas vezes, mas, para mim, todas as nuvens tinham a forma de Alex - seu perfil, seu cabelo esvoaçado pelo vento, sua mandíbula bem desenhada. Eu dizia isso a Connor, gesticulando, com minha palma pálida contra o céu azul e claro de verão. Mas, por mais que tentasse, não conseguia mostrar a Connor. Eu havia passado seis dias observando Alex interpretar Rob, desenterrando seu esqueleto e enfrentando uma crise de fé. Ele percebe que a evolução humana está seguindo o mesmo caminho da evolução das espécies alienígenas que encontrou: uma corrida desenfreada para a extinção. Ele decide enterrar o que sabe, em vez de reescrever a história. Fiquei surpresa ao saber que as filmagens não eram feitas na ordem, apesar de compreender as vantagens financeiras de gravar todas as cenas em uma determinada locação de uma só vez. - Como você faz isso? - Eu perguntara a ele. - Como consegue reunir a emoção necessária para a última cena e depois voltar e fingir que nunca aconteceu? - E Alex apenas sorriu e me disse que ele era pago para fazer aquilo.
Ele se envolvia emocionalmente; apesar do que dizia, não conseguia se conter. Deixava vazar à noite, quando era apenas ele mesmo. Certa noite, estávamos sentados perto da Garganta de Olduvai e Alex me contou sobre quando ele tinha quatorze anos, quando seu pai o perseguira na sala de estar, batendo em seu rosto e em seu corpo esperando que ele revidasse. Quando revidou, arrancando vários dentes do pai, Andrew Riveaux sorrira com a boca cheia de sangue. Disse: "Cara, é assim mesmo que um homem briga". Depois de um longo silêncio, Alex olhou para mim. - Às vezes acho que se eu realizasse uma coletiva de imprensa e contasse ao mundo que Alex Rivers teve um pai bêbado e agressivo e uma mãe alienada ninguém se importaria em publicar essa notícia. Todos têm uma imagem de mim que não vai mudar, e o mais engraçado é que acho que o homem que eles criaram em suas mentes vai continuar vivendo quando eu morrer. Eu segurei sua mão, porque não sabia o que devia dizer, mas ele me afastou com delicadeza. - Foi por isso que gostei do roteiro desse filme - ele disse. - É um dilema moral: devemos dizer ao público algo que eles achem interessante? Ou seguir fazendo com que as pessoas acreditem no que precisam acreditar? - Ele balançou a cabeça. - Faz com que pensemos em Darwin. Mas, por mais tempo que eu passasse com Alex, Connor era sempre o tema de meus sonhos à noite. Eu havia relacionado os dois em minha mente. Eu adormecia pensando em Alex e acordava chamando por Connor, como se este, com ciúmes, tivesse começado a entrar em meu subconsciente. Certa noite, meu sonho foi tão vívido que quando acordei ainda conseguia sentir o hálito de Connor em meu rosto, e isso me deixou preocupada. Na maior parte das vezes, Connor me deixava sozinha. Mas, quando ele pensava que eu estava com problemas, era mais difícil afastá-lo. ESTÁVAMOS DANÇANDO VALSA ao REDOR DE UM LAGO atrás do acampamento, escutando os sons da noite africana. - Não consigo acompanhar você. Está indo rápido demais. - Você está indo muito devagar. - Alex virou meu corpo em uma curva, erguendo-me do chão frio e escuro. Quando me apoiou no chão novamente, torci o tornozelo e o puxei para rolar comigo por um montículo. A cada virada de seu corpo sobre o meu, e do meu sobre o dele, sentia uma forte onda de poder. Paramos com os dedos perto da água enlamaçada, com Alex embaixo de mim. Recostei minha cabeça em seu peito. Com exceção daquele primeiro beijo de boa noite, aquele era o contato mais físico que eu e Alex tivemos. Era difícil saber o que ele queria de mim. Ele era simpático, extrovertido, mas não mantinha contato físico. Eu não sabia se ele estava indo com calma. Não sabia se estava indo a algum lugar. Quanto a mim, bem, eu esperava por mais. Na verdade, eu havia me preparado para uma única noite de sexo e, durante a última semana, quase havia me convencido de que não haveria problemas, mas Alex não tentava me seduzir. Com frequência, eu o tocava sempre que podia, tentando impedi-lo de se manter distante. Senti o cheiro do sabonete em sua pele e de seu suor. - Sinto muito. Dança de salão nunca foi meu forte - eu disse. Alex riu, um som profundo em meu ouvido.
- Trata-se de um talento adquirido - ele disse. - Minha mãe me obrigava a fazer aulas duas vezes por semana. Eu detestava - aquelas meninas gordas com luvas brancas e perfume em excesso que pisavam em meu pé -, mas nunca mais esqueci os passos aprendidos. Eu sorri. - Você devia ter um desejo inconsciente de guiar uma debutante. Ou de ser Arthur Murray. Alex riu. - Não acho. - Ele acariciou meu cabelo com carinho e eu aproveitei o contato. - Acho que meu corpo gostava dos exercícios. Ele havia me contado várias noites antes a respeito de seu problema no coração e o fato de não ter podido correr e brincar até perto dos oito anos. - Imagine - ele dissera. - Um herói romântico de coração estragado. Percebi o desgaste em sua voz, a dor de um menininho que se sentia defeituoso e fazia tudo o que podia para compensar sua fraqueza. Tentei entender por que ele havia me contado aquilo. Deixei-me enganar fingindo que era por ele pensar que eu compreenderia. Quando fechei os olhos e encostei em seu peito, lembrando, Alex ficou tenso e se sentou. Desviei o olhar, envergonhada por tê-lo deixado desconfortável ao abraçá-lo. Balancei a cabeça, relacionando os motivos pelos quais Alex Rivers não queria - não precisava - de alguém inexperiente como eu. Alex se virou para mim e disse: - Já conheci muitas mulheres, mas não deixo ninguém se aproximar. Você precisa entender isso. Na verdade, não quero me desapontar de novo. Não com os defeitos de outra pessoa e, principalmente, com os meus. Então, costumo agir como se não tivesse importância. - Ele balançou a cabeça. Cassie, estou tão cansado de interpretar! Agindo com minha intuição, inclinei-me na direção de Alex e escorreguei a mão por dentro de sua camisa. Ele estava me dizendo o que eu não podia esperar, apesar de eu saber que já era tarde demais. Eu não havia vivido muitos relacionamentos, mas tivera Connor e sabia que era assim que tudo começava. As pessoas se apaixonavam por causa de um sorriso ou por serem capazes de fazer o ser amado rir ou, nesse caso, porque o ser amado fazia com que você acreditasse ser a única pessoa capaz de salvá-lo. Quando finalmente acontecesse, podia ser apenas uma noite de sexo para Alex, mas não para mim. Naquele momento, eu já teria dado muito de mim a ele. Escutei a respiração de Alex quando ele se ajeitou sobre meu corpo, e a palma de minha mão ficou apoiada em seu peito. Eu sorri para ele enquanto segurava seu coração com a mão. DOMINGO ERA O DIA DE FOLGA PARA O ELENCO E A EQUIPE, apesar de não haver muitas opções de lazer na Tanzânia. Eu estava sentada em um balanço à sombra de uma árvore quando Alex passou um braço por minha cintura como se fosse a coisa mais natural do mundo. E estava começando a ser natural. Eu quase havia abandonado o ponto de escavação da UCLA. Depois daquela noite à beira da lagoa, quando Alex havia estabelecido nosso relacionamento, nós nos tornamos inseparáveis. Na
verdade, Alex e eu éramos vistos juntos com tanta frequência que quando ele não estava por perto as pessoas da equipe me perguntavam onde ele estava. Eu me sentira um pouco desconfortável com isso no início, a maneira como ele me abraçava quando eu estava demonstrando como limpar um fragmento; ou a maneira, na frente de todos, que ele me pedia para encontrá-lo para jantar. Ele me lembrava de meus antigos estudos sobre territorialidade: os machos sempre deixam sua marca para avisar aos outros onde eles não são bemvindos. Mas, por outro lado, ninguém havia sentido esse tipo de possessividade por mim, mesmo que fosse temporária. E era bom. Eu gostava de saber que, de manhã, eu era a primeira pessoa a quem Alex procurava. Eu gostava de dar-lhe beijos de boa noite e perceber que alguém que passava pelo corredor nos vira. Estava agindo como uma adolescente pela primeira vez na vida. Alex me puxou para mais perto dele. - Tenho uma surpresa - ele disse, sussurrando em meu ouvido. - Vamos fazer um safari. Imediatamente me afastei e olhei para ele. - O que vamos fazer? Ele sorriu. - Um safari. Aquela coisa de leões, tigres, ursos, caça a marfim - ele disse. - Ninguém mais pode pegar marfim - eu disse. - A única coisa permitida é tirar fotos. Alex ficou em pé, puxando-me. - Bem, eu estou cansado de fotos. Quero registrar tudo com os olhos. Eu o segui, já imaginando o Serengeti, os grupos de animais caminhando lentamente. Um único jipe preto esperava por nós e um nativo com um sorriso branco e brilhante me ofereceu sua mão para me ajudar a subir. - Cassie - Alex disse. - Este é Juma. Juma nos guiou pelo coração da Tanzânia por mais de uma hora, passando por caminhos de arbustos que não serviam como estrada. Ele parou à sombra de um pequeno bosque. - Nós esperamos aqui - ele disse, e pegou um cobertor xadrez azul do jipe, estendeu-o no chão para que nos sentássemos. As planícies ficavam roxas no horizonte, e o céu acima era de um azul puro. Deitei-me de costas. Ao meu lado, Alex se apoiou em um cotovelo para me observar. Aquela era outra coisa com qual eu tive de me acostumar em sua presença: com a atenção concentrada. Ele me olhava como se observasse todos os movimentos, cada mudança sutil. Quando eu disse que aquilo me deixava pouco à vontade, ele deu de ombros. - Pode me dizer que não percebe minha aparência? - ele disse e eu, é claro, ri daquilo. - Bem, não consigo deixar de olhar para você. Seus olhos começaram em meus cabelos e desceram para o meu nariz, faces, pescoço e ombros. Ele passava uma sensação quente com o olhar, como se houvesse me tocado. - Você sente saudade do Maine? - perguntou. Semicerrei meus olhos por causa do sol. - Não muita. Estou na UCLA desde os dezessete anos. - Parei, pensando em quanto da explicação eu havia evitado. Apesar de Alex ter me contado a verdade sobre sua família, eu precisava revelar meus segredos. Nas últimas semanas, eu havia pensado em
contar a ele várias vezes, mas duas coisas me impediram. Em primeiro lugar, porque o momento nunca era o certo. Em segundo, eu ainda temia assustá-lo. O sol passou por entre as folhas pequeninas da árvore sob a qual estávamos, deixando uma sombra parecida com renda sobre as pernas de Alex. Se eu contasse e ele se afastasse, tudo bem. Eu tentava me convencer de que nosso relacionamento não tinha futuro. Afinal, o que ele faria quando as filmagens terminassem? Voltaria para Los Angeles com alguém como eu ao seu lado, anunciando a todos que eu era a mulher de seus sonhos? - Alex... - eu disse de maneira hesitante. - Você se lembra quando eu disse que meus pais eram donos de uma padaria? Aquilo era tudo que eu havia dito quando ele me pressionou a falar sobre mim. Era a única coisa segura que eu podia contar. Alex assentiu, virando o rosto para o sol. - Você ajudava a preparar os merengues - ele disse. Eu engoli em seco. - Eu também ajudava a levantar minha mãe do chão todas as vezes em que ela se embriagava. - Mantive meus olhos no rosto de Alex, para saber exatamente quando minhas palavras causassem um efeito. - Ela era alcoólatra - eu disse. - Uma bela mulher do Sul, mas alcoólatra. Ele estava olhando para mim, mas não decifrei sua expressão. - E seu pai? Dei de ombros. - Ele me pedia para cuidar dela. Ele se aproximou de mim lentamente e pousou a mão sobre meu rosto e a pele dele estava mais quente do que a minha vergonha. - Por que está me contando isso? - Ele perguntou. - Por que você me contou tudo aquilo? - Perguntei. Alex me pegou com seus braços e me abraçou forte de modo que seu coração ficasse perto do meu. - Porque somos iguais - ele disse. - Você nasceu para cuidar de mim, e eu vou cuidar de você. Não pensei muito naquilo, mas aceitei o conforto oferecido. Era bom não ter de ser a pessoa no controle. Era bom ser a pessoa que era protegida, em vez de ser aquela que protege a todos. Nós nos sentamos rapidamente quando escutamos o barulho de um trovão. Mas o céu estava limpo e de repente Juma apareceu com dois binóculos. - Ali - ele disse, apontando, e o que era uma nuvem cinza no horizonte se tornou carne e osso. Os elefantes se moviam tranquilamente, com passos pesados. A pele deles parecia mais velha do que pergaminho, eles piscavam os olhos cansados na poeira. De vez em quando um deles erguia a tromba e emitia um som forte. Minutos depois, aproximou-se um bando de girafas, resvalando as orelhas nas nuvens brancas mais baixas. Percebi que Alex prendeu a respiração quando uma delas se desgarrou do grupo e caminhou em nossa direção, flexionando e esticando as pernas levemente, como se mancasse. O animal tinha a cor da areia do Caribe, com manchas nas costas e no pescoço. Ela esticou o pescoço para a árvore acima de nós e começou a experimentar as folhas.
Então os elefantes começaram a se aproximar com força e unidos; as girafas marcharam pela planície. Quando a única coisa que consegui ver foi a grama alta, escutei o rugido inconfundível de um leão. Ele se movia com a graça tranquila de um vencedor, e sua juba se destacava de sua cara como um círculo de fogo. Metros atrás dele estava uma leoa, mais magra, mais esguia, escondida na sombra. Ela ergueu os olhos, cor verde-água e mostrou os dentes sem emitir nenhum som. Alex apertou minha mão. Os leões ficaram ali tempo suficiente para farejarem o ar. Moveram-se silenciosamente pela planície, agora lado a lado. Eu tentei imaginar se aqueles animais se reproduziam para sobreviver. O vento soprou e eles desapareceram tão tranquilamente como haviam chegado. Olhei por um momento para o ponto que eles haviam ocupado, tentando imaginar como uma criatura tão linda conseguia, em um instante, fazer sangrar. - Vamos ficar aqui - Alex disse com a voz baixa. - Vamos construir uma cabana à beira da planície e observar os leões atravessando nosso quintal. Eu sorri para ele. - Tudo bem. Pode aceitar seu Oscar via satélite. Pegamos nosso cobertor e voltamos para a parte traseira do jipe. A perna de Alex tocava a minha do quadril ao tornozelo. Juma deu a partida no veículo e nós começamos a atravessar o terreno para ir para casa. NO SET, John HAVIA DEIXADO UMA CESTA DE piquenique com frango frito e pão fresco para nós. Alex e eu nos sentamos em silêncio durante meia hora do lado de fora da tenda com o sol quente batendo em nossas costas e aquecendo o chão entre nós. Era início do mês de setembro e estava muito quente. - Sabe do que sinto falta do Maine? - Perguntei. Alex balançou a cabeça, negando. - Sinto falta das estações. Da neve. - Fechei os olhos, tentando, naquele calor escaldante, imaginar as pontas de meus dedos roxas de frio, meus cílios sentindo os primeiros flocos de neve. - Uma de minhas casas fica no Colorado - Alex disse. - Perto de Aspen. Vamos para lá no inverno. Vou levá-la para ver a neve. Eu me virei para ele. Tentei imaginar se estaria com ele no inverno. Pensei no leão, caminhando na planície, seguido pela leoa. - Sim - respondi. - Seria ótimo. Sabia que ele estava pensando nos leões também e nos outros animais que haviam feito o chão tremer com seus passos. Enquanto o sol se punha atrás dos montes distantes, ele se inclinou e me beijou. Não foi da maneira como havia me beijado antes - não foi tranquilo, delicado. Ele beijou meus lábios e encostou o corpo no meu, selvagem, primitivo, proibido. Desabotoou a frente de minha camisa e escorregou a mão para dentro. Sua palma afastou meu sutiã, envolvendo meu seio. - Tudo bem? - ele perguntou. Eu sabia que as coisas caminhariam até ali; soube no momento em que ele me deixou na porta do acampamento aquela primeira noite. E, apesar de não ter experiência, sabia que ele esperaria. Eu não podia mais detê-lo. Assenti e senti quando ele tirou minha camisa por cima, mas suas mãos continuavam em mim, percorrendo minhas costas, desabotoando meu sutiã e afastando meu cabelo do rosto. Ele me pegou e me carregou desajeitadamente
para dentro da tenda do set, deitando-me sobre a cama estreita. Ajoelhando no chão de madeira, ele tirou meus ténis e meias e abaixou meu short e minha calcinha. Minhas faces ardiam e eu procurei por um lençol com o qual pudesse me cobrir, mas aquele era um set de gravação e não havia lençol algum. Tentei cruzar meus braços sobre mim, mas Alex os colocou ao redor de seu pescoço e voltou a me beijar. - Você é linda - ele disse. Correu as pontas dos dedos delicadamente sobre meu corpo, da mesma maneira com que um cego conhece o rosto de alguém e, quando me abri para seu toque, comecei a pensar que talvez fosse tão bonita quanto ele dizia. Eu não sabia como tocá-lo ou exatamente o que fazer, mas Alex não Parecia se importar. Ficou em pé para tirar suas roupas e eu observei as linhas de seu corpo. Percebi que era como olhar para o sol - você não devia fazêlo, pois não conseguiria enxergar mais nada. Quando ele aproximou a boca de meu seio, escutei o som de minha voz, ou talvez o vento. A escuridão entrou na tenda conosco, cobrindo nossos corpos aos poucos até eu conseguir enxergar apenas partes de Alex aqui e ali, iluminado pela luz da lua e sentir sua pele grudando na minha. Sua mão moveu-se entre minhas pernas e as palavras pousaram em minhas têmporas quando fechei os olhos. Vi o Serengeti, repleto de animais, como tinha sido séculos antes. Eles faziam seus ruídos à noite, moviam-se de maneira calculada. Acima de mim havia um quadro de estrelas que escorregavam para dentro de minha pele, desejando libertar-se, uma liberdade que só veio quando Alex me penetrou. Quando parei de tremer, Alex começou. Ele chamou meu nome e se deitou sobre meu corpo. Olhou para mim com olhos de leão. - É a primeira vez que você... sabe? - Ele susssurrou. Eu me virei assustada. - Como soube? Alex sorriu. - Foi pela maneira como você olhou para mim. Como se eu tivesse acabado de criar o mundo. Tentei empurrá-lo um pouco, abrir espaço entre nós. Depois de terminado, eu não tinha certeza se deveria ter acontecido. - Sinto muito - sussurrei. - Não faço isso com muitos homens. Alex posicionou nossos corpos de lado. - Eu sei. - Voltei a corar, pensando em todas as mulheres com quem ele já devia ter dormido, de como elas sabiam fazer aquilo de modo muito mais instintivo. Ele segurou meu queixo, fazendo com que eu olhasse para ele. - Não foi isso que eu quis dizer. Quis dizer que gosto de sentir que você é minha. - Ele me beijou delicadamente. - Porque você não vai fazer isso com muitos homens. Ele sorriu ao dizer isso, mas apertou-me de maneira possessiva, como se eu de fato planejasse ir embora. Hesitante, passei meu dedo ao redor dos músculos do peito dele e o senti tremer dentro de mim. Empurrei meu quadril mais para perto dele e o escutei gemer. - Jesus - ele disse. - O que você faz comigo... Fingi controlá-lo.
- Como posso saber que você não está interpretando? - perguntei. Alex sorriu. - Cassie, quando estou interpretando, nunca sou tão bom assim. SE Sven, o dublê, NÃO TIVESSE PEGADO UMA GRIPE, Alex e eu não teríamos brigado. Mas na manhã daquela segunda-feira - a manhã seguinte - eu cheguei ao set, tentando agir da maneira mais casual possível, e descobri que a cena marcada para ser gravada tinha sido mudada. Em vez de Sven pular de um penhasco com uma corda preta ruim, Alex e Janet Eggar filmariam a cena de amor do filme. Janet Eggar era uma atriz jovem que, Alex dissera, estava fazendo sua primeira CGA - cena gratuita de amor. Bernie me contara que o papel de Janet era completamente sem conteúdo; só havia sido criado porque se ela mostrasse os seios as pessoas pagariam para ver o filme. Eu a observei passar desajeitadamente do figurinista ao pessoal da maquiagem. Ela ficou em pé de costas para mim e abriu seu roupão para que a base pudesse ser aplicada em seu corpo. Eu estava tentando chamar a atenção de Alex. Ele havia chegado ao set bem antes de mim naquela manhã para tomar conhecimento das mudanças do roteiro, por isso eu ainda não sabia como ele reagiria depois da noite anterior. Ele havia me levado para o acampamento e se despedido com um beijo de boa noite que me fez arder por dentro. Mas, pensando nas fofocas, ele voltou para o seu quarto e me deixou acordada a noite toda, nua sob o ventilador do quarto, tocando nos pontos onde ele havia tocado horas antes. Quando o sol nasceu, eu disse a mim mesma mais uma vez que não esperaria por nada. Para mim, ele fazia aquilo com algum membro do elenco ou da equipe em todos os filmes. Eu podia pensar o que quisesse, mas percebi que quaisquer promessas que fizesse a mim mesma estavam destinadas a não serem cumpridas. Alex estava vestindo uma calça jeans e estava sem camisa, e não estava se sentindo muito bem; gritou com Charlie, por atrapalhá-lo. Quando Jennifer levou a ele uma cópia de seu roteiro, pedindo desculpas pela mancha de café espalhada em uma página, pensei que ele fosse arrancar a cabeça dela. Mas quando ele olhou para Jennifer, pálido e tremendo diante da câmera, pareceu ficar mais tranquilo. Observei seus olhos percorrerem a extensão do roupão dela e voltarem para seu rosto. Ele se aproximou de Bernie e murmurou alguma coisa, e o diretor levantou as mãos para que ele ficasse em silêncio. - Este será um set fechado - ele anunciou. - As pessoas que não estiverem diretamente envolvidas com a filmagem da cena podem voltar para o acampamento e se reunirem aqui depois do almoço. Observei Bernie levar Janet para a tenda, para a cama onde Alex e eu havíamos feito amor na noite anterior. Ele conversou com ela e fez gestos com as mãos, e ela concordou e fez algumas perguntas. A distância, escutei os últimos jipes se afastando e percebi que restavam apenas algumas pessoas. Eu não estava envolvida com as filmagens da cena - qualquer auxílio técnico que eu pudesse oferecer não ajudaria ninguém como Janet Eggar. Mas eu a vi reclinar-se na cama estreita, e seus traços mudaram, como se fossem os meus, e eu percebi que não iria embora de maneira alguma. Bernie se aproximou de mim.
- Ainda está aqui? Ele perguntou. - Não escutou o que eu disse? Antes que eu pudesse responder, Alex ficou em pé ao meu lado, com a mão em meu ombro. - Ela fica - ele disse apenas. Bernie assumiu sua posição ao lado da câmera e fez com que Alex e Janet passassem por um ensaio geral da cena. Se eu não estivesse me sentido tão envergonhada a respeito da locação, provavelmente teria rido: não imaginava o diretor instruindo os atores sobre o lado para o qual virar na hora do beijo, onde se podia ou não colocar as mãos, como respirar. Janet e Alex tinham um pequeno spray de antisséptico bucal sob o travesseiro e, quando Bernie colocou o cenário do jeito que queria, eles espirraram um pouco do líquido na boca e se voltaram profissionalmente para a cama. Janet tirou seu roupão sob o lençol branco com Alex protegendo-a com cavalheirismo da visão das câmeras. Em seguida, como se fizesse aquilo o tempo todo, Alex tirou a calça jeans e subiu completamente nu na cama. Foi uma cena horrível. A voz de Janet falhou no meio de sua fala; ela beijou Alex como se estivesse na cama com um cadáver. Quando Alex puxou o lençol para seu quadril, seguindo a orientação de Bernie, Janet ficou tensa e sentouse ereta, cruzando os braços sobre o peito. - Sinto muito - ela disse de maneira tranquila. - Podemos tentar de novo? Mas depois de mais dois desastres, Alex passou a mão no rosto e ficou em pé. Ele se virou, mas todos do set perceberam que ele havia ficado excitado. Olhei para baixo e mexi na barra de meu short. Ele dissera que não estava interpretando comigo. Devia ter interpretado com ela. - Certo - Alex disse. - Todo mundo deve tirar a roupa. Bernie começou a murmurar em iídiche, mas Alex continuou falando, abafando a voz do diretor. - O mais justo é que, se eu e Janet estamos nus, o mínimo que podem fazer é tirar suas roupas. - Ele olhou para trás, onde Jane estava começando a sorrir. Um dos câmeras foi o primeiro a fazer o que Alex pedira, tirando a camiseta e as calças, revelando uma enorme barriga que caía por cima de sua bermuda. Leanne, assistente de Janet, tirou as roupas até ficar apenas de calcinha e sutiã. - É como se fosse um biquini - ela disse para ninguém em especial. As roupas voaram e formaram montes no canto do set e naquele momento Janet Eggar estava dando gargalhadas. Alex sentou-se na cama, conversando com ela. Suspirando, Bernie tirou o short e revelou uma cueca de seda roxa, e só ficou restando eu mesma. Todos estavam olhando para mim, tentando entender por que eu merecia tratamento especial, por isso, sem pensar duas vezes segurei a ponta de minha camisa. Alex olhou para mim e balançou a cabeça levemente, mas eu sorri para ele. Tirei minha camisa e meu short, sabendo que toda a equipe me observava. Quando a gravação terminou, Janet parecia bem melhor. Eu a observei recostar-se na cama, com o cabelo espalhado sobre o travesseiro. Observei a respiração de Alex sobre ela. Tentei imaginar quanto de seu corpo ele estava tocando; quantas vezes aquela cena teria de ser gravada; se os lençóis ainda tinham nosso cheiro.
Depois da sexta tomada, quando Janet e Alex estavam rindo como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo, vi como havia arranhado, com as unhas, os descansos de braço de madeira de minha cadeira. No calor escaldante, a cena que estava sendo realizada na minha frente não parava de se transformar naquela que eu vivera na noite anterior. Minha garganta ficou tão seca que eu não conseguia engolir. Observei Alex com outra mulher, abraçando-a da maneira que deveria me abraçar, e foi quando percebi que estava apaixonada. Sabia que ele me procuraria quando terminasse, mas eu não queria vê-lo. Nunca mais queria vê-lo. Eu tentara - de verdade -, mas não queria um romance qualquer. Eu havia passado a noite anterior toda preparando-me para encarar a verdade, mas isso não me impediu de sentir a dor. Alex não havia sentido um mundo novo se abrir ao meu toque. Alex não havia ficado deitado sob um ventilador, rezando para o tempo parar antes que tudo fosse por água abaixo de novo. Para Alex, eu não tinha passado de um ensaio. Eu estava indo na direção dos jipes, planejando entrar em um deles e dirigir para bem longe daquela produção, quando Alex me alcançou e segurou meu braço. - Espere - ele disse. - Você tem que me dar uma chance. Eu me virei e o encarei. - Você tem um minuto - eu disse. - Não sabia que íamos filmar isso hoje, Cassie. Foi em uma hora ruim. Se eu soubesse, eu nunca a teria levado para lá ontem à noite. Não queria que você visse aquilo, mas também não queria que pensasse que eu a estava expulsando. - Você gostou. Eu vi - eu disse. - Não gostei - ele gritou. - É meu trabalho. - Bem, e o que lhe importa? - Eu gritei também. - Você já fez comigo. E agora tem Janet Eggar babando. Por que não termina o que começou enquanto todo mundo almoça? Alex deu um passo para trás. - É isso o que pensa de mim? - ele perguntou laconicamente. Ele estava com os punhos cerrados, pálido de raiva. Seus olhos queimaram e por um instante pensei que ele me agrediria ou me empurraria ao voltar correndo para o sete. Eu não disse nada durante algum tempo, silenciada pela força da ira de Alex. - Gostaria de saber o que pensar sobre você - sussurrei. - Eu vi a nós dois. A mesma tenda, Alex. A mesma cama. O mesmo tudo, mas dessa vez não era eu ali. - Quando meus olhos ficaram marejados, eu me virei. - Por favor, não me faça assistir àquilo de novo - eu disse. Passei por ele correndo, até não mais escutar sua voz. E disse a mim mesma que deveria ter sabido que uma pessoa que podia amar com tanta intensidade e tão bem também podia odiar e ferir com a mesma intensidade. ELE TINHA DOZE ANOS E VINHA PRATICANDO roubos em lojas havia alguns anos, por isso, na teoria, não devia ter sido tolo o bastante para ser flagrado. Mas ultimamente as meninas olhavam para ele com intensidade, e a loira do caixa com seios do tamanho de mangas estava lhe lançando olhares,
por isso, antes que pudesse colocar a lata de Pepsi em seu bolso, uma mão forte segurou seu braço e o virou. Alex viu-se olhando para o segurança pela segunda vez naquela mesma semana e, quando olhou de soslaio, percebeu que a menina do caixa não estava olhando para ele. - Você é só um idiota completo - o segurança perguntou -, ou tem algum outro motivo para ter voltado a esta loja? - Alex abriu a boca para responder, mas, antes que pudesse falar, foi expulso pela porta automática e levado à delegacia. O local estava repleto de cafetões, traficantes e criminosos, e o atendente estava com pouca paciência para receber um moleque que havia sido pego roubando mercadorias num mercado. O sargento olhou para Alex e depois para o segurança. - Não vou desperdiçar uma vaga - ele disse. Algemou Alex à cadeira diante da mesa de ocorrências. Tiraram suas impressões digitais e coletaram diversas informações, mas até mesmo Alex sabia que tudo aquilo era apenas para assustá-lo; ele era menor de idade, e em New Orleans roubar produtos em lojas só causava um tapinha na mão. O sargento prendeu a algema na cadeira novamente e Alex ficou sentado em silêncio, com os joelhos recolhidos ao peito e seu braço livre segurando os tornozelos. Fechou os olhos e fingiu que estava no corredor da morte, quase na hora da execução. Algum tempo depois, o sargento notou sua presença. - Merda - ele disse. - Ninguém veio buscá-lo ainda? Alex balançou a cabeça, negando. O sargento perguntou qual era seu número de telefone e o discou, inclinando-se na mesa e olhando para um relatório de detenções. Olhou para Alex: "Sua mãe e seu pai trabalham?" ele perguntou. Alex deu de ombros. - Alguém devia estar em casa - ele disse. - Pois é, mas alguém não está - o policial disse. Uma hora depois, o sargento tentou de novo. Dessa vez, conseguiu conversar com Andrew Riveaux. Alex sabia disso pela maneira com que o policial segurava o telefone muitos centímetros longe da orelha, como se o que seu pai estivesse dizendo fosse contagioso. Depois de um minuto, o sargento entregou o telefone a Alex. O fio do telefone ficou completamente esticado. Alex encostou o telefone na orelha. Não sabia o que dizer; "alô" não parecia muito adequado. Seu pai começou a gritar um monte de palavrões em francês cajun e terminou dizendo que acabaria com a raça do filho. - Estarei aí em quinze minutos - ele disse, e desligou o telefone. Mas Andrew Riveaux não chegou em quinze minutos, nem mesmo em uma hora. De sua posição na cadeira, Alex observou o sol se pôr e a lua subir no céu como um rosto branco e enrugado. Ele sabia que fazia parte da punição - o fato de policiais e secretárias que passassem ali e fingissem não notá-lo sentirem pena dele. Ele mudou de posição desconfortavelmente, precisando urinar, mas sem vontade de chamar atenção ao pedir para ser solto. O sargento o viu quando estava indo para casa ao final de seu turno. - Não telefonou para a sua casa? - ele perguntou, curioso. Alex assentiu.
- Meu pai está vindo - ele disse. O policial se ofereceu para telefonar de novo, mas Alex recusou. Não queria que o sargento, a quem já estava considerando um aliado, soubesse que o problema não era que seu pai não podia ir buscá-lo, mas, simplesmente, não queria. Tentou imaginar se seu pai havia decidido deixar Alex ali de propósito ou se havia encontrado alguma coisa melhor para fazer - arrumar suas redes para pesca, beber, ser o quinto jogador em uma mesa de pôquer. Talvez sua mãe fosse até ele - Alex tentava acreditar que sim -, mas, se a mãe estivesse sóbria o bastante para compreender que seu filho estava em uma delegacia, teria sido impedida pelo marido de ir até lá. Alex encostou a cabeça no braço da cadeira e fechou os olhos. Depois das três da manhã, ele foi acordado por um perfume forte. Uma prostituta estava sentada na cadeira ao lado dele. Tinha cabelo vermelho e pele cor de mogno, além de cílios compridos. Usava um colar comprido de contas que lhe caíam pelos seios, como se para delineá-los. Mascava chiclete - de uva - e estava com a mão cheia de dinheiro. Era a mulher mais linda que ele já tinha visto. - Olá - ela disse a Alex. - Oi. - Vim buscar minha amiga - ela disse, como se precisasse de justificativa por estar em uma delegacia. - Por que está algemado à cadeira? - Tive um surto e estrangulei minha família inteira - Alex disse, sem pestanejar. - E não tem vaga lá dentro. A prostituta riu. Tinha dentes grandes e brancos, como os de um cavalo. - Você é bonitinho - ela disse. - Quantos anos tem? Dez? Onze? - Quinze - Alex mentiu. A mulher sorriu. - E eu sou Pat Nixon - ela disse. - O que você fez hoje? - Roubei coisas de um mercado. - E eles vão deixá-lo aqui a noite toda? - Ela pareceu surpresa. - Não - Alex admitiu. - Estou esperando que me busquem. A prostituta sorriu. - É a história da minha vida, querido - ela disse. Ele não havia dito nada a ela, na verdade; nada sobre sua família ou sobre quanto tempo estava ali, ou sobre como preferiria passar um ano algemado a ter de enfrentar o fato de que o homem que entraria na delegacia no dia seguinte, ao meio-dia para buscá-lo, era seu pai. Alex sabia sobre as prostitutas; conhecia que parte da atração que exerciam estava no fato de aceitarem qualquer coisa que viesse com um cliente e fazê-lo acreditar que ele era mais importante do que era na realidade. Sabia que elas ganhavam a vida fingindo sentir coisas que não sentiam. De qualquer modo, pareceu natural quando ela abraçou Alex e o puxou mais para perto, como se as cadeiras separadas não fossem problema. Alex recostou o rosto nos seios da prostituta, pensando na moça loira do caixa e deixando seu braço algemado doer, preso no espaço entre eles. Apenas quinze minutos depois, a amiga foi liberada das celas do andar de baixo e chegou assoviando e rebolando como um gato ao caminhar ao lado do carcereiro. Mas, durante aqueles minutos, Alex manteve os olhos fechados e
sentiu o cheiro forte do laquê da prostituta e do perfume barato, deixando-a entoar canções religiosas dos negros para ele até o mundo desaparecer, até ele acreditar que o carinho era um direito de nascença. AS FILMAGENS PARARAM INESPERADAMENTE por três dias e Alex desapareceu. Eu estava envergonhada demais para mostrar minha cara Para o restante da equipe e não tinha passado muito tempo com os outros, por isso não tinha com quem conversar. Fiquei dentro de meu quarto no acampamento, saindo apenas para fazer refeições e comendo sozinha. Pensei em romper meu contrato e retornar para Los Angeles antes que Alex pudesse voltar. Mas, em vez disso, fiquei sentada em minha cama e li todos os romances que havia comprado, imaginando-me como a heroína e Alex, como meu amante. Eu escutava os diálogos no tom e no ritmo de sua voz. Fingi e fingi até não conseguir distinguir o que havia acontecido de fato e o que eu tinha imaginado enquanto lia nos cantos frios e escuros da noite. Certa noite, quando a lua aparecia no céu, alguém girou a maçaneta de minha porta. Não havia trincos. O acampamento era velho demais para isso. Vi a porta sendo aberta e me levantei, bastante calma prestes a ver um desconhecido. Intuitivamente devo ter sabido que era Alex. Eu o observei entrar em meu quarto e fechar a porta. Estava escuro, mas meus olhos haviam se acostumado, então eu podia ver com facilidade as olheiras dele e os vincos em suas roupas, a barba crescida de dois dias. Comecei a me alegrar, pensando que talvez ele tivesse ficado tão triste quanto eu. Só percebi o frasco em sua mão quando ele o colocou sobre a cômoda diante da cama. - Comprei para você - ele disse simplesmente. Era apenas um pote de geleia, do tipo que a mãe de Connor usava todos os verões para guardar a geleia de uva que fazia. Estava cheia pela metade com um líquido cristalino que não parecia nada além de água. Alex deu um passo à frente e tocou o vidro. - Não está frio - disse. Sentou-se na beirada da cama. - Voei para Nova York e peguei um teco-teco para Bangor, no Maine, mas não tem montanhas muito frias por lá em setembro. E não podia voltar para cá de mãos vazias, por isso peguei um avião para o único lugar onde eu tinha certeza de que encontraria o que procurava - conheço pessoas que esquiaram nas montanhas canadenses em agosto. - Ele apoiou os cotovelos nos joelhos e descansou o rosto nas mãos. - Alex - eu disse com a voz baixa. - O que, exatamente, você trouxe Para mim? Ele olhou para mim e respondeu: - Neve. Trouxe um pouco de neve. Peguei o vidro e o virei em minhas mãos, imaginando Alex no topo de uma montanha coberta por neve, reunindo um punhado de neve em um vidro e trazendo-a para mim, a centenas de milhas de distância. Senti uma alegria por dentro. - Você viajou metade do mundo para buscar um vidro de neve. Mais ou menos. Não consegui pensar em nada que a fizesse compreender os acontecimentos daquele dia. Eu não quis... eu não... - Ele parou e respirou
fundo, pensando no que diria. - Nunca conheci ninguém como você, mas não pude lhe dizer isso antes de gravar aquela maldita cena de amor. Eu não estava morrendo de vontade de ir embora como fui, mas você não me escutaria. Assim, pensei que as ações falariam mais alto do que as palavras. Eu me sentei ao lado dele na beirada da cama, ainda segurando o vidro de água. Inclinei-me e o beijei no rosto, tentando pensar no que fazer a partir daquele momento. Apertei as mãos em meu colo. - Obrigada - eu disse. Alex virou-se para mim e sorriu. - É apenas metade de seu presente - ele disse. - Além disso, queria lhe dar algo que não derretesse. - Ele procurou no bolso e tirou de dentro dele um presente que eu não consegui ver direito por causa da pouca luz. Mas naquele momento o sol apareceu no horizonte e seus raios refletiram na aliança com um diamante. Alex esticou o braço para acariciar minha nuca. Ele me puxou para a frente até nossas testas se unirem, inclinados sobre aquela aliança que era mais brilhante que os olhos dele. Escutei as palavras do pedido, procurando por um sinal de meu futuro, mas, quando ele falou, parecia que sua vida dependia daquela frase. - Meu Deus! - Ele disse com a voz rouca. - Por favor, aceite. Treze Em vez de uma festa para comemorar o fim das filmagens, fizemos uma festa de casamento. Depois de treze semanas de gravações, Alex ficou em pé em uma plataforma onde antes ficava um pequeno set e anunciou ao elenco e à equipe o segredo que havíamos guardado durante semanas. Até mesmo Bernie, o diretor, ficou chocado. Ele rompeu o silêncio de surpresa subindo na plataforma e cumprimentando Alex. - Caramba! - ele disse sorrindo. - Por que não me contou? Alex respondeu: - Porque você, Bernie, era a primeira pessoa que eu esperava que fosse contatar os tablóides. Todos sabiam que nós estávamos nos relacionando; era óbvio pela maneira com que Alex me tratava. Mas acho que as pessoas se surpreenderam quando viram que eu era mais do que parecia. Eu precisava acreditar que namoros entre atores e pessoas comuns eram coisas normais. Mas casamento era outra história. Eu acreditara em Alex quando ele me disse que qualquer imprevisto que uma cerimónia simples na Tanzânia tivesse compensaria e muito o pesadelo de tentar manter afastados jornalistas e fãs enlouquecidos de um casamento nos Estados Unidos. Além disso, as únicas pessoas a quem eu convidaria teriam sido Ophelia, alguns colegas de trabalho e, talvez, apenas por obrigação, meu pai. Nunca havia passado horas sonhando estar em um vestido de noiva, indo ao altar por um corredor coberto de pétalas de rosas. Eu não me importava, e disse a Alex, se ele quisesse encontrar um juiz de paz. Mas na África, você sabe, é mais fácil encontrar missionários do que juízes. - Quero que você se case em uma igreja - Alex insistira. - E você não vai usar as roupas do deserto. - Tentei dizer para ele que eu não me importava. Mas alguma coisa me impediu de defender minha opinião. Eu estava me casando
com o príncipe de Hollywood, e, como todas as outras Pessoas, ele esperava uma Cinderela. E, pensando bem, o que eu mais queria era simplesmente fazer o que Alex quisesse que eu fizesse. As seis semanas entre o dia em que aceitei o pedido de Alex e quando ele anunciou o casamento foram as melhores de minha vida. Em parte, a mágica estava no fato de estarmos fazendo algo ilícito. Alex me esperava na tenda onde ficavam as mesas com alimentos, fugindo das câmeras e criando uma grande comoção com seu desaparecimento para garantir tempo para um beijo intenso e rápido. Passamos três dias de chuva torrencial trancados em meu quarto no acampamento, fazendo amor e jogando gamão. Tomávamos banho juntos antes de o sol nascer. Falávamos sobre cinematografia, dos elementos dos ossos. Numa noite fria, no quarto de Bernie, enquanto eu estava sentada entre as pernas abertas de Alex e observava os procedimentos do dia, ele envolveu nossos corpos em um cobertor fino e, com todo mundo por perto, escorregou as mãos para dentro de meu short e me deixou maluca. Alex fazia com que eu me sentisse como alguém que nunca tinha sido, e até mesmo a promessa de um casamento não me impedia de pensar que uma manhã eu acordaria e descobriria que tudo aquilo não havia acontecido. Assim, da mesma maneira que eu catalogava minhas amostras antropológicas com tinta nanquim, eu me peguei mentalmente relacionando cada lembrança que eu tinha com Alex, até elas se enrolarem em minha mente como um rosário, esperando para oferecer conforto. Um flash fez com que eu voltasse para a cena presente. Joey, o fotógrafo do local, havia acabado de tirar nossa foto. Ele entregou a Polaroid a Alex, mas antes eu vi meu rosto pálido, lentamente ganhando cor conforme as químicas agiam. O rosto de Alex estava demorando mais para aparecer. - Uma lembrança - Joey disse e se inclinou para a frente e me beijou nos lábios. Passei a maior parte da hora seguinte deixando Alex conversar com todas as pessoas que nos parabenizavam. Enquanto isso, eu o observei. O sol iluminava seus cabelos e delineava a curva familiar de seus ombros. A maioria das mulheres estreitava os olhos para me ver, tentando imaginar o que eu tinha que poderia ter atraído Alex e que elas não tinham. Pessoas cujos nomes eu não conseguia lembrar faziam comentários maldosos sobre as camas estreitas do acampamento e olhavam para minha barriga quando pensavam que eu estava distraída. Mas elas olhavam para mim - para ver o que tinham perdido à primeira vista. De repente, ganhei status. O poder e o prestígio de Alex se estendiam a mim. - Na próxima quarta-feira, nós daremos os detalhes - Alex estava dizendo. Senti um cutucão em meu ombro e, quando me virei, vi Jennifer, a assistente de Alex. - Só queria lhe dizer que se você precisar de alguma coisa, para o casamento ou o que seja, ficarei feliz em ajudar. Sorri para ela da maneira mais simpática que pude. - Obrigada. Eu a chamarei se precisar. Ela desviou o olhar antes mesmo de eu terminar minha frase e eu vi Alex olhando para ela.
- Exatamente quem eu queria encontrar - ele disse, e Jennifer correu para seu lado. Ele apoiou a mão nas costas dela e a empurrou alguns metros longe de mim. - Sinto muito - ele disse para mim, sorrindo -, mas, se você escutar, vai estragar a surpresa. Observei Jennifer pegar um caderno e tirar um lápis de seu cabelo longo e preto. Ela escrevia sem parar enquanto Alex dava ordens que eu não conseguia escutar. Uma vez, quando ela fez uma pergunta, Alex olhou para mim, correu o olhar de meus pés à cabeça e voltou-se para ela de novo. Tentei observá-los, mas as pessoas se aglomeraram entre nós, segurando minha mão e dizendo coisas que pareciam em outra língua. Perdi Alex de vista no meio de rostos bronzeados. Pensei que pudesse desmaiar, apesar de isso nunca ter acontecido comigo e, de repente, Alex estava a meu lado de novo e eu percebi que não estava doente; era apenas a minha metade que estava faltando. Várias SEMANAS ANTES DO CASAMENTO SONHEI QUE Connor me encontrava no Serengeti ao anoitecer e me dizia que eu estava cometendo o maior erro de minha vida. - Não é como você pensa - eu dizia a ele em meu sonho. - Não estou apaixonada só porque ele é ator... - Eu sei - Connor me interrompeu. - Isso é o pior. Parece que você não percebe as coisas que o resto do mundo vê porque está ocupada demais vendo-o como uma ave ferida cuja asa você pode consertar... - Como assim? - explodi. - Ele não é um coitado. - Procurei ver as coisas como Connor via. Eu não estava tentando substituí-lo, mas havia muitas semelhanças entre o meu relacionamento com ele na infância e meu relacionamento com Alex agora para me fazer perceber que eu não podia deixar de comparar os dois. Assim como Connor, Alex me protegia - e era a única pessoa que eu deixava se aproximar o bastante para isso. Assim como Connor, Alex completava minhas frases antes de mim. Mas diferentemente de Connor, para quem eu havia chegado tarde demais, eu estava no momento certo para cuidar de Alex. No sonho, um grupo de zebras caminhavam pela beira da planície e, quando elas me distraíram, Connor chamou minha atenção de novo. - Você é a pessoa que melhora tudo, Cassie, não vê isso? É o que faz de melhor. Tomou conta de sua mãe, de seu pai, de mim e de Ophelia. Você coleciona os problemas das outras pessoas como algumas pessoas colecionam moedas raras. Nesse momento do sonho, eu quis acordar. Não queria acreditar em Connor; não queria escutar. - Existe um problema com aves feridas, Cassie - Connor disse. - Ou elas voam para longe um dia ou nunca melhoram. Continuam feridas independentemente de seus esforços. Depois disso, eu me senti recobrar a consciência. Continuei olhando para Connor quando ele começou a desaparecer. Olhei em seus olhos. - Eu amo o Alex - eu disse. Connor andou para trás como se tivesse levado um golpe. Esticou um braço em minha direção, mas, como as coisas costumam ser em meus sonhos, não conseguiu me alcançar, e eu percebi que as coisas tinham sido daquela maneira entre nós durante um tempo. - Que Deus nos ajude - ele disse.
TRÊS DIAS ANTES DE NOSSO CASAMENTO, ALEX E eu dirigimos até um dos muitos lagos pequenos que pontuavam a área do acampamento. Em nosso jipe havíamos colocado dois sacos de dormir, uma barraca de náilon, várias panelas e vasilhas. Não perguntei a Alex como ele havia conseguido tudo aquilo - já tinha percebido que Alex era capaz de arrancar sangue de pedra se quisesse. Ele abriu nossa bagagem à sombra de uma árvore baixa e de folhas lisas e começou a montar a barraca de dois lugares com a graça de um aventureiro. Fiquei sentada no solo macio, surpresa. - Você sabe fazer isso? - perguntei. Alex sorriu para mim. - Você se esqueceu de que eu cresci no mato? Sempre fiz atividades ao ar livre. Eu me esquecera. Mas era fácil esquecer ao ver Alex Rivers, polido e urbano. Era difícil conciliar em uma só pessoa o homem que se vestia com roupas chiques na Garganta de Olduvai com o homem que se agachava diante de uma armação de barraca. - O senhor é um estudo de contrastes, senhor Rivers - eu disse. - Ótimo - Alex disse. Ele chegou por trás de mim e passou seus dedos pelas minhas costelas. - Então não vai se cansar logo de mim. Sorri com o comentário. Quando me virei para ajudar com o restante das coisas do jipe, Alex me puxou para baixo com gentileza para que eu me sentasse à sombra. - Descanse, pichouette - ele disse. - Posso cuidar disso. Alex me chamava de pichouette, uma palavra que eu não compreendia, mas gostava do som, que ele pronunciava com facilidade. Às vezes, na cama, ele usava seu francês cajun, e eu gostava. Um dos motivos era porque, quando usava o idioma, estava esquecendo de si mesmo, estava baixando a guarda. E eu gostava do ritmo das palavras. Eu escutava os sussurros em meu pescoço e fingia que ele estava me dizendo que minha pele era deliciosa, que meus olhos eram bonitos e que nunca seria capaz de me deixar. Quando Alex terminou de montar o acampamento, eu pus a mão no chão ao meu lado, sinalizando para que ele se sentasse. Mas, em vez de se sentar, ele vasculhou uma mochila e tirou dela uma vara de pescar de três peças, que ele montou, colocou linha e isca. Durante meia hora eu o observei com água até os joelhos, puxando a linha e a lançando de novo, e a linha com o anzol voava como se fosse a trajetória de um míssil. - Incrível - eu disse. - Você se sente à vontade aqui. Como aguenta Los Angeles? Alex riu. - Gosto um pouco de lá, chère - ele disse. - Mas fujo de lá quando posso. O rancho no Colorado tem 121 hectares de paraíso e posso pescar e fazer o que quiser. Eu poderia até sair correndo nu se quisesse, sem correr o risco de encontrar alguém. - Ele disse um palavrão por sua falta de sorte e lançou a linha de novo. - Nunca aprendi muito bem a lidar com essas coisas - ele disse. Virou-se para mim, um sorriso lento surgindo em seu rosto. - Sou muito melhor com minhas mãos. Ele saiu do lago, vindo em minha direção com os dedos esticados, mas fugiu para o lado no último minuto para desaparecer na mata, à beira da costa. Quando voltou, estava segurando um galho fino e comprido e uma faca afiada.
Agachou-se e colocou o galho sobre um joelho, afiando a ponta. Em seguida, voltou para a água. Alex ficou parado, com sua sombra aparecendo na superfície, o braço posicionado com a lança improvisada. Rapidamente, ele lançou a lança na água e a ergueu com um peixe na ponta. Triunfante, Alex voltou-se para mim e disse: - Quando estiver na Tanzânia, faça como os tanzanianos. Fiquei impressionada. - Como... como soube fazer isso? Alex deu de ombros. - É só uma questão de paciência e reflexos - ele disse. - Estou acostumado a fazer isso sem o galho. - Caminhou para longe para que eu não visse seu rosto e colocou o peixe na bolsa de lona. - Pode-se dizer que meu pai me ensinou. Comemos muito peixe frito no jantar e depois fizemos amor e nos enrolamos no cobertor, e eu fiquei com as costas pressionadas contra o seu peito. Quando ele adormeceu, eu me virei para ele, observando seu rosto à sombra da lua prateada. Um uivo forte fez Alex se assustar, jogando-me no chão. Acordou e se apressou para ver se eu estava bem. - É longe - eu disse a ele. - Mas parece que é aqui do lado. Alex voltou a se deitar, mas seu coração batia muito apressadamente. - Não preste atenção a esses sons - eu o acalmei, lembrando da primeira vez em que dormi ao ar livre na noite africana. - Escute o vento. Conte as estrelas. - Você sabia que detesto acampar? - Ele me perguntou. Eu me sentei e olhei para ele. - Então por que estamos aqui? Ele tocou minha cabeça com suas mãos. Pensei que você fosse gostar. Quis fazer isso por você. Rolei os olhos. - Passo tempo suficiente em cabanas improvisadas para valorizar lençóis limpos e uma cama firme - eu disse. - Você deveria ter me dito. Quando olhei para Alex, seu rosto estava voltado para o céu, mas seus olhos iam além da lua. Tentei pensar no que eu havia dito para chateá-lo. Toquei o lado de dentro de seu antebraço. - Para alguém que detesta acampar, você é profissional - eu disse. Alex respondeu: - Fiz muito treinamento sem querer. Já esteve em Louisiana no verão? - Eu neguei. - É o inferno na Terra - ele disse. - É tão quente que o ar faz você suar completamente, e a atmosfera é tão pesada que não dá para respirar direito. Há pernilongos do tamanho de moedas de 25 centavos. E tem cara de inferno, também, pelo menos dentro da mata. Só pântano, escuro e lamoso, repleto de ciprestes e salgueiros, barba-de-velho e vinhas penduradas como cortina sobre os galhos. Quando eu era criança, subia nos choupos-do-canadá à beira da água e escutava os sapos, pensando se tratar do diabo arrotando uísque. Alex deu um sorriso, mas à luz fraca, poderia ter sido uma careta. - Meu pai costumava me levar nessa mata quase todas as noites, então eu conhecia o lugar. Ele recolhia as redes de caranguejo e as levava ao Deveraux, um restaurante que toma metade do pântano nesse bosque enorme de velhos
ciprestes. Ele entregava os caranguejos a Beau, que é a dona do lugar ninguém prepara camarões como ela -, e então ele saía por uma hora para beber o que recebera. - O que você fazia? - Eu ficava do lado de fora, na maior parte das vezes, e observava as crianças mais velhas pegando os peixes-gato. É incrível de ver - sem varas, sem linhas -, elas simplesmente abaixavam e esperavam, e em seguida surgiam com peixes de dez quilos nos braços. - Ele suspirou e passou a mão pelo rosto. - Mas, uma noite, em vez de parar na Beau, meu pai levou o barco mais adiante, dizendo que estava na hora de acamparmos. Eu devia ter nove ou dez anos e perguntei por que ele queria acampar no pântano se havia aqueles belos acampamentos para turistas no Lago Pontchartrain. Ele me disse que aqueles acampamentos eram para maricas e me levou para a costa. Ele tirou do fundo do barco uma barraca que eu não tinha visto antes e a entregou a mim. "Volto daqui a pouco", ele disse. "Consiga nosso jantar, e vou cuidar da lenha." Alex abraçou as pernas contra o peito conforme a noite se tornou bem mais fria. - Bem, não preciso dizer que ele não voltou. Deixou-me ali, com o sol se pondo, tendo de descobrir como faria para comer e como poderia montar a barraca sem me preocupar em dormir e ficar molhado. Entrei em tamanho estado de pânico que tive certeza de que meu coração congelaria. Não seria um bom castigo depois de descobrir que eu tinha o coração saudável? - Eu esperei a noite toda, assustado demais para me mexer no caso de meu pai voltar e não me encontrar. Observei a neblina e pensei, a cada sombra que via, que ele havia voltado. Às vinte e duas horas, mais ou menos, eu estava faminto, por isso tirei meus tênis e entrei no pântano, pensando no que eu vira as crianças fazerem todas aquelas noites do lado de fora do estabelecimento da Beau. Abaixei-me, sentindo a movimentação sob a lama. Demorei duas horas, mas aprendi, e, quando a água se moveu ao meu redor e o frio lambeu minhas pernas, eu peguei com toda a minha força e puxei um peixe-gato para fora. Foi a menor coisa que peguei, e a mais deliciosa. Pensei em Alex, com nove anos de idade, em pé no escuro, dando formas às sombras com seu medo. Pensei nele dentro de um lago na África com uma lança na mão. Lembrei-me de como ele havia se assustado com o grito daquele animal. - Quando seu pai voltou? - eu perguntei. - Na manhã seguinte. Ele me encontrou com o esqueleto do peixe e com as cinzas de uma fogueira e disse que eu o deixara orgulhoso. Eu comecei a chorar. Arregalei meus olhos. - O que ele fez? Alex sorriu. - Levou-me à Beau às sete horas e comprou meu primeiro uísque. E continuou me levando para a mata, uma vez a cada dois meses, até eu poder olhar em seus olhos quando ele voltava na manhã seguinte e passar a impressão de que eu havia adorado cada segundo. - Ele suspirou. - Então, é por isso que não gosto de acampar.
- E porque se tornou o ator perfeito. - Peguei as mãos dele e beijei as pontas de seus dedos. Seus olhos estavam quase escurecidos de dor, e pude ver que ele tremia levemente, a única coisa que não conseguia controlar. Meu rosto estava pressionado contra o peito dele. Compreendi do que ele precisava. Eu já tinha passado por aquilo, afinal. Eu quis falar, mas tive o cuidado de não demonstrar pena, por isso escolhi as palavras que poderiam encerrar o assunto ou oferecer algo a que Alex pudesse se agarrar. - Não sei como conseguiu passar por tudo isso - sussurrei. Alex beijou minha cabeça com delicadeza, suavemente. "Ele não quer mais falar sobre isso", percebi, e, como se a frase não dita tivesse surtido efeito, a tensão saiu dos ombros de Alex. Tentei imaginar se ele abordaria outro assunto, talvez o casamento ou se simplesmente me puxaria para perto e tentaria dormir. A voz de Alex tirou-me de meus pensamentos. - Foi fácil passar por isso - ele disse baixinho. Suas mãos subiram para minha omoplata, um toque de amor, como se ele não tivesse ideia de que suas palavras e ações não coincidiam. - Eu passava as noites acordado pensando em meu maldito pai. Pensando em minhas mãos ao redor de seu pescoço, estrangulando-o até a morte. PELA SEGUNDA VEZ NAQUELA NOITE, ALEX CAÍRA EM UM sono profundo, mas estava tendo pesadelos. Ele se mexeu, acertando o braço em minha barriga, fazendo com que eu despertasse. Ele estava falando francês, mas tão baixinho que, mesmo que eu compreendesse o idioma, não teria como saber o que ele dizia. Eu me sentei e afastei o cabelo dele de suas têmporas, sentindo a febre que lhe acometia. - Alex - eu sussurrei, pensando que era melhor acordá-lo. - Alex. Ele se sentou e saltou para o lado, prendendo meu corpo no chão com o dele por cima, antes que eu pudesse reagir. Ele estava olhando através de mim, com seus olhos pálidos e brilhantes. Um braço prendia meus ombros, mantendo-me parada, e o outro pressionava meu pescoço ao chão, com os dedos em minha jugular. Tentei falar, mas não foi possível com a palma de sua mão sobre minha traqueia. Em pânico, comecei a me debater. "Ele não sabe o que está fazendo. Não sabe quem eu sou." Suas mãos apertaram ainda mais e meus olhos ficaram marejados. Batendo as pernas, consegui acertar meu joelho em sua região genital. Alex gritou de dor e se afastou de mim, deixando-me de costas no chão, até que o mundo voltasse ao lugar, para que eu conseguisse puxar o ar para dentro de meus pulmões. Alex sentou-se, mantendo a mão entre as pernas. Tentei falar, mas nada saiu de minha boca, e, em vez de continuar tentando, passei a mão pela extensão de meu pescoço. Tentei não pensar no que Alex teria feito se eu não tivesse conseguido libertar minhas pernas. - O que houve? - Ele perguntou, ainda um pouco sonolento. Eu levantei, apoiando-me nos cotovelos. - Você teve um pesadelo - eu disse. Engoli minha dor. Talvez tenha sido a luz que incidiu sobre mim quando me sentei, mas Alex pareceu tomar consciência. Passou um dedo na curva de meu pescoço, tocando as cinco marcas vermelhas que amanhã se tornariam hematomas.
- Oh, Deus! - ele disse, abraçando-me. - Oh, Cassie. Meu Deus! Foi então que comecei a chorar. - Você não fez porque quis - solucei, e senti que Alex balançava a cabeça, incrédulo. - Não sabia que era eu quem estava aqui. Alex me segurou um pouco distante dele, para poder olhar-me nos olhos, tomados de vergonha. - Sinto muito - ele disse. - Sinto muitíssimo. - Sem dizer mais nada, ele ficou em pé e caminhou para o outro lado do acampamento, deitando-se de lado, com o rosto virado. Eu o observei e, esperando alguns segundos, peguei o cobertor e me deitei ao lado dele. Percebendo ou não, ele precisava de mim. O pior para ele seria dormir sozinho. - Não - Alex disse. Ele se virou para mim, revelando ainda mais medo e raiva em seus olhos do que quando estava apertando minha garganta, mas percebi que, dessa vez, aqueles sentimentos estavam voltados para ele mesmo. - E se eu fizer isso de novo? - Você não vai fazer - eu disse, e acreditei em minhas palavras. Alex rolou para o lado e me beijou, tocando as marcas em minha mandíbula e na garganta, como se dessa vez seus dedos pudessem apagar a dor. Ele olhou para mim até perceber que eu tinha certeza do que queria. Cassandra Barrett - ele disse delicadamente -, você não existe. MEU VESTIDO DE NOIVA ERA DA BIANCHI FACTORY, em Boston; meus sapatos sedosos tinham sido enviados de um centro de lojas de vestidos de noiva da cidade de Nova York; rosas brancas e jasmins-de-Madagascar haviam sido enviados da França para formarem meu buquê. As caixas e containeres viajaram a África de trem e depois de Land Rover, acompanhados por uma costureira pequena e negra que pedia para ser chamada de senhora Szabo e que estava responsável por todas as alterações de última hora que tornariam o lugar perfeito, como se tivesse sido construído para mim. Ela se ajoelhou aos meus pés enquanto eu passava os dedos pelos detalhes parecidos com sementes perolizadas em minha cintura e observava Jennifer checar a lista dos itens do casamento pela décima terceira vez aquela manhã. - Senhorita Barrett - a costureira disse. - Fique parada. Eu prestei atenção, algo muito fácil de fazer no grande vestido de cetim branco e montes de saiotes. Tentei imaginar como tudo continuaria branco na viagem de jipe do acampamento para a pequena capela de madeira. Tentei imaginar como evitaria rasgar meu véu e impedir que ele voasse com o vento; livrando-me de meus sapatos e levantando minhas saias pesadas para correr Pela areia quente e familiar. - Pronto - a senhora Szabo disse. Ela ficou em pé, seus joelhos estalaram e bateu palmas. - Si, bella - murmurou. Caminhou até a cama estreita e chamou Jennifer para a porta. - Venha, venha - ela disse. - A noiva precisa de um minuto sozinha. Jennifer checou seu relógio. - Estamos adiantadas - ela disse. - Podemos esperar cinco minutos. Eu não queria ficar sozinha, tampouco queria ficar com elas. Fiquei em pé na frente do espelho que tinha uma rachadura bem no meio, olhando para meu rosto dividido em duas partes que não se alinhavam.
Com exceção do anel de noivado de Alex, eu não usava nenhuma jóia. Mas minha garganta ostentava a prova do pesadelo de Alex, um colar de hematomas ametistas. Eu havia pegado um pouco de pancake do trailer de maquiadores emprestado e o apliquei antes de a senhora Szabo chegar, mas não deixei de saber o que havia por baixo. Fechei os olhos e pensei em Connor. Houvera um tempo, não muito distante, em que eu acreditava que ele seria o homem com quem me casaria, se ainda estivesse vivo. E, se ele estivesse ali - mesmo que não fosse o noivo -, teria me dito para fazer Alex esperar. Para esperar um pouco mais antes de tomar uma decisão. Mas eu não queria mais tempo. Queria Alex. Com aquela conclusão, percebi por que, ultimamente, eu não sonhava mais com Connor; por que vinha ficando cada vez mais difícil ver seu rosto. Ele estava me deixando. Eu havia tomado uma decisão; Connor a aceitara. Ele deixaria de fazer o papel de advogado do diabo; não mais se intrometeria em minhas noites de sono; não mais cuidaria de mim. Sentei-me na beira da cama, encostando um lenço sob meus olhos para manter a maquiagem e tentar retomar o controle. Senti a mesma dor no peito que havia sentido anos antes quando Connor morrera aos poucos em meus braços. Por um momento, eu me lembrei de nós dois como tínhamos sido, sentados lado a lado sob o pôr do sol do verão, construindo nossa infância com palitos de sorvete e sonhos quentes e suspirados. E então permiti que ele se fosse. - PARE. Mal consegui escutar minha voz, mas o chofer da limusine - só Deus sabia como Alex conseguira encontrar um deles na Tanzânia - imediatamente pisou no freio. Antes que ele pudesse olhar para o lado e perguntar o que eu queria, abri a porta e comecei a correr. Imaginei que alguém iria atrás de mim. E me pegaria também, pois eu não podia ganhar velocidade com um vestido de dez quilos, com um espartilho de renda preso ao redor de minha cintura. Fui mais devagar apenas para chutar longe meus sapatos de salto, pensando que seria melhor correr descalça. Meu véu voava atrás de mim, como uma nuvem de névoa e comecei a suar no pescoço e nas laterais do vestido, mas ninguém estava me seguindo. Quando percebi isso, passei a ir mais devagar, pulando, apertando minha mão nos pontos da lateral do meu vestido. Não podia levar o casamento adiante. Nossa relação, nossa atração, não era baseada no mundo real. Eu tinha de acreditar que algumas semanas mágicas sob o sol africano apagariam as diferenças de nossos estilos de vida, que eu podia ir para casa e entrar na resplandecência da vida de Hollywood de Alex sem sentir nenhuma diferença. Tudo o que eu sempre quisera era ser professora de uma universidade, construir uma carreira lecionando e realizando pesquisas. Nunca sequer pensara em alguém como Alex, então como poderia colocá-lo em meus planos. Sentei-me na grama alta no meio do nada e as saias formaram uma nuvem ao meu redor. Horas devem ter se passado; a única maneira de calcular o tempo era pelo fato de eu ter me perdido e de minha maquiagem com pancake ter se tornado
um borrão ao redor da gola de meu vestido de noiva, certamente revelando meus hematomas. Os passos de Alex passaram pela grama alta e ele se agachou ao meu lado. - Oi - ele disse. Segurou meu queixo e puxou minha cabeça para cima até eu poder vê-lo, lindo de morrer com seu terno preto e camisa branca. - Nervosismo? - ele perguntou. Dei de ombros. - Poderia dizer que sim. Ele olhou para a minha garganta. Culpada, eu estiquei o braço procurando a mão dele. - Alex - eu disse, respirando fundo. - Talvez não seja a melhor ideia. - Tem razão. Surpresa, olhei para ele, imaginando se ele havia saído de sua limusine e, por coincidência, havia parado no mesmo ponto da planície onde eu estava. Ele semicerrou os olhos por causa da luz do sol. - Não deveria ter planejado tamanho fais-dodo. Uma festa tão grande. Teria sido melhor fazer as coisas discretamente, apenas eu e você, sem todas as pessoas ao redor. - Ele se virou Para mim. - Pensei que fosse o tipo de casamento com que qualquer mulher sonhasse. Mas me esqueci temporariamente de que você não é qualquer mulher. - Estava pensando mais em cancelar tudo. - Pronto, eu tinha dito o que pensava. Eu me inclinei, esperando que Alex gritasse ou começasse a Pular para me contradizer. - Por quê? - ele perguntou com delicadeza, e fiquei desarmada. Eu sabia que ele estava pensando no que havia acontecido na noite em que acampamos, mas aquilo era apenas parte de minha dúvida... eu não o culpava; eu estava no lugar errado e na hora errada. Os problemas eram mais profundos do que aquilo. Não sabia que ele era perseguido por pesadelos. Não sabia o quanto ele tinha sido forçado a sobreviver sozinho. Percebi que o Alex Rivers que eu conhecia era apenas a ponta do iceberg, que correntes estranhas e paixões obscuras existiam sob a superfície. - Não sei nada sobre você. E se o Alex Rivers que me dá metade de seu café da manhã e brinca de ser Marco Polo na lagoa trás do acampamento for apenas mais um personagem? A frase não dita pairou sobre nós. "E se o verdadeiro Alex for a pessoa que vi naquela noite?" Alex desviou o olhar. - Acho que a frase é: na alegria e na tristeza. - Ele ficou em pé e deu as costas para mim. - Já lhe disse antes que não estava fingindo estar atraído por você, Cassie - ele disse. - E acho que você terá de acreditar em mim. Quanto ao resto, como todo mundo, sou muitas pessoas em uma só. - Ele se virou para mim, colocando-me em pé: - Algumas melhores, outras piores, temo eu. Olhei para o lindo vestido de noiva, que havia percorrido metade do mundo, a pedido de Alex, para estar ali. Uma parte da renda estava pendurada para um lado e uma fileira de contas havia se soltado do espartilho. Na parte de trás havia listras de terra, contrastando com o cetim, parecendo manchas de sangue. Imaginei Alex entrando em um personagem diante de uma câmera. Alex brincando com as crianças de barrigas arredondadas da região entre as poças de lama atrás do acampamento. Alex inclinando-se para mim à noite, assustando-me com seu medo.
- Quem é você? - perguntei. Ele me sorriu de um modo que me tirou as defesas, um amuleto que eu carregaria comigo pelo dia todo. Ele respondeu: - Sou o homem que tem esperado por você a vida toda. Alex esticou o braço em minha direção e sem hesitar eu caminhei até ele. Estávamos atrasados para o nosso casamento. A cada passo de volta para a limusine que me aguardava, minhas dúvidas desapareceram. Eu só conseguia pensar que amava Alex. Eu o amava tanto que doía. QUATORZE
Alex tentava calcular os horários de chegada dos voos ao aeroporto de Los Angeles, de modo que ocorressem de madrugada, duas ou três da manhã, quando apenas os jornalistas incansáveis ficavam diante do portão de desembarque e da área de esteiras. No dia em que partimos para o Quênia, onde passaríamos nossa lua de mel, Alex me acordou pousando a palma de sua mão em meu rosto. - Cassie, chère - ele disse, beijando-me até me acordar. - Cassie. Eu me sentei, notando as pilhas de roupas organizadas, os sapatos e itens de higiene de Alex todos enfileirados, tudo esperando para ser colocado dentro da mala. Eu nunca conseguiria fazer uma mala tão bem quanto ele, e isso me surpreendia, pois eu sabia que ele tinha três ou quatro empregados que poderiam fazer sua mala. Esfreguei os olhos com a mão. - Está na hora de ir? - eu perguntei. - Em um minuto. - ele olhou pela janela para a lua que se escondia, que delineava os montes Ngong em prata. - Preciso lhe contar uma coisa - Alex disse. Meu corpo todo ficou tenso. Eu estava esperando por aquilo, não estava? A conclusão, a percepção de que eu vinha vivendo uma mentira. "Surpresa", ele diria, "nosso casamento foi uma farsa. O padre que o celebrou era um ator". Eu desviei o olhar, sem querer que Alex soubesse que eu sempre havia esperado por aquelas palavras. - Independentemente do que aconteça, quando nós voltarmos eu quero que você compreenda uma coisa. - Ele segurou minha mão e a apertou contra seu peito, onde seus batimentos eram fortes e lentos. - Este sou eu. Posso dizer coisas e agir de maneira diferente do que você já tenha visto, mas isso se deve ao fato de eu ter de ser o que as pessoas esperam que eu seja. Não é real. - Ele me beijou delicadamente. - Isto é real. Surpresa, não consegui dizer nada a princípio. Os olhos de Alex ficaram da cor da chuva. Seus lábios se apertaram de uma maneira tão sutil que Uma pessoa que não o conhecesse tão bem quanto eu não perceberia. Sob a Palma de minha mão, o coração dele acelerou-se. Ele estava assustado. Pensou que eu chegaria em casa, o veria como ele realmente era e iria embora. Ele não pretendia me deixar partir; simplesmente tinha medo de que eu quisesse. Mas Alex não tinha como saber que a última vez em que eu estivera em Los Angeles, os dias voaram, um indistinguível do outro. Ele não tinha como saber que minha pele parecia cantar quando ele me tocava; que eu nunca tinha pensado que era bonita até me ver pelos olhos dele. Ele não sabia, como eu
sabia, que eu era o antídoto para sua dor; que ele me acalmava como um bálsamo. Eu sorri e ofereci o conforto que acreditei precisar. - Você vai ver - eu disse. - Tudo vai ficar bem. ALEX ME PROTEGEU SOB SEU BRAÇO E eu VIREI MEU ROSTO para o peito dele, mas mesmo fechando os olhos eu não conseguia bloquear a imagem de mais de sessenta pessoas empurrando umas às outras no portão do aeroporto para tocar a manga da blusa de Alex, gritar perguntas e tirar fotos dos recém-casados. Eu respirei profundamente, sentindo o cheiro do sabonete usado no Quênia e o cheiro apimentado da pele de Alex, e, quando eu apertei meus dedos na lateral de seu corpo, ele me abraçou com um pouco mais de força. - Mais dez minutos - ele disse, passando os lábios sobre a minha cabeça. Mais dez minutos e você estará segura dentro do carro. Eu respirei fundo mais uma vez e me endireitei, tentando, no mínimo, agir da maneira que acreditava que a esposa de Alex Rivers deveria agir: de modo tranquilo e inabalável, não como uma flor delicada. Mas ao me afastar do braço protetor de Alex eu estava dando aos jornalistas a chance de tirarem uma foto de meu rosto pela primeira vez. Os flashes explodiram até que eu só conseguisse enxergar pontinhos dançando em meu campo de visão e Alex precisava parar ou eu poderia cair. - Quando você se casou, Alex? - O que ela tem que nenhuma outra tem? - Ela sabe sobre você e Marti LeDoux? Eu me surpreendi. - Marti LeDoux? - perguntei, sorrindo. Alex gemeu. - Nem queira saber. Minha visão voltou ao normal e vi um jornalista esticando-se atrás da corda de veludo que o mantinha afastado. Ele apontou para a minha barriga e perguntou: - Podemos esperar um herdeiro em breve? Alex se mexeu com tanta rapidez que nem mesmo as câmeras puderam flagrá-lo partindo para cima do jornalista, agarrando a gola de sua camisa. Eu estiquei o braço na direção de Alex, tentando dar ao profissional o benefício da dúvida pelo que podia ter sido uma pergunta completamente inofensiva. Mas, antes que eu pudesse dizer qualquer coisa a Alex, vi uma pessoa de corpo bastante avantajado passar por mim, deixando para trás uma nuvem pesada de perfume floral e uma confusão de cabelos ruivos. A mulher tirou Alex de perto do repórter e o prendeu a seu lado com um braço ao redor de sua cintura e em seguida ficou ao meu lado e me envolveu com um braço também. - Seja bonzinho com as outras crianças, Alex, ou você não vai brincar - ela disse. Os olhos de Alex queimavam quando ele olhou para ela, mas conseguiu sorrir para a multidão de curiosos. - Pensei que você fosse avisar a imprensa, Michaela - ele disse, nervoso. Não pensei que fosse distribuir convites. A mulher rolou os olhos.
- Tenho culpa de que você chama mais a atenção do que Deus? - Ela piscou para mim. - Como Alex não parece disposto a fazer as honras, sou Michaela Snow. Sou relações-públicas dele. Apesar de você estar percebendo que Alex não se dá muito bem com o público. - Ela voltou a atenção a Alex. - E, para sua informação, enviei a nota para a imprensa -, mas você precisa admitir que o fato de o solteiro mais badalado de Hollywood ter se casado com uma antropóloga causa um certo interesse. Os tablóides estão aproveitando. John tem todos eles no carro para o caso de você querer rir um pouco. Michaela olhou para mim: - De acordo com a Star, você é uma rainha marciana que laçou Alex com uma poção mágica extraterrestre. - Ela empurrou Alex para a frente. - Vamos lá - ela disse. - Quanto antes fizer isso, mais rápido vai terminar. Observei Alex caminhar na direção dos jornalistas e das câmeras, e escutei o barulho de fita sendo ajustada na máquina para gravar o grande anúncio. Michaela me abraçou. - Você vai se acostumar com isso - ela disse. Eu duvidei. Não compreendia por que aquelas pessoas haviam acordado no meio da noite para fazer anotações e fazer perguntas sobre coisas que não eram de sua conta. De repente, desejei estar de volta em meu escritório empoeirado na UCLA, onde eu podia ficar sentada por dias sem um aluno para me interromper ou um telefone tocando, e onde eu era apenas uma entre várias pessoas. Fiquei abismada ao pensar que, apenas por estar associada a Alex, teria de andar por ruas afastadas, usar óculos escuros e receber prescrições médicas com o nome de outra pessoa. Eu podia ter Alex Pelo resto de minha vida, mas minha vida não seria como antes, e esse era o preço a pagar. Alex estava fazendo amor com as câmeras. Adotava o mesmo olhar de quando estávamos juntos na cama; fazia o mesmo olhar tranquilo e o sorriso relaxado para as câmeras diante dele. - O lugar mais quente onde já estive ele estava dizendo, em resposta a uma pergunta sobre a Tanzânia. Ele olhou para mim, de cima a baixo, até eu corar. - Obviamente alguns dias eram mais quentes do que outros. - Permita-nos conhecê-la, Alex - alguém pediu. E outra voz: - Vocês estão casados no papel? Alex riu, começando a caminhar na minha direção. - Bem, a cerimónia não foi realizada por um chefe zulu, se é o que quer saber. Você vai ter que acreditar em minha palavra, uma vez que a certidão de casamento já foi enviada a meu advogado para que fique bem guardada. - Ele segurou minha mão e a apertou levemente. - Permitam-me apresentar minha esposa: Cassandra Barrett Rivers. Os flashes recomeçaram, mas dessa vez eu estava preparada para eles. Sorri, sem saber exatamente qual era a regra de etiqueta para coletivas de imprensa improvisadas às três da manhã. Começaram a me fazer perguntas, as palavras se unindo umas às outras: - Como vocês se conheceram? - Você era fã dele? - Ele é um bom amante?
Alex inclinou a cabeça na direção da minha. - Vou beijá-la agora - ele disse. - Vire sua cabeça para a direita. Assustada, tentando entender por que ele estava me dando instruções para algo que, até aquele ponto, tinha sido natural para nós dois, perguntei: - Por quê? Alex sorriu, fingindo brincar com minha orelha. - Porque assim eu vou aparecer mais. O trabalho de relações-públicas é mais importante para mim do que para você. Ele se virou para mim para que as câmeras pegassem a melhor vista de nossos perfis, com as mãos dele firmes em meus antebraços. - Esta é a última chance para as fotos. Não se esqueçam de que ainda estou em lua de mel. Ele se inclinou em minha direção, e eu observei seus lábios formarem duas palavras antes de tocarem os meus. "Seja corajosa". Fechei meus olhos e fingi não escutar as palmas e deixei meus braços envolverem o pescoço de Alex e o abracei. Quando ele se afastou de mim, eu me surpreendi, tentando lembrar quando ele havia me tirado do chão, quando sua perna havia escorregado entre as minhas. - Linda - ele sussurrou, afastando-me dos jornalistas. - Hepburn não teria feito melhor. Sem ter o que dizer, olhei para ele. Estaria ele pensando que eu estava interpretando? Michaela citou uma lista de coisas que aparentemente precisavam da atenção imediata de Alex e que não podiam esperar até o dia seguinte. Eu me movimentei como um robô ao lado de Alex, carregando minha bolsa listrada diante de meu corpo, como se fosse um escudo. Os jornalistas pegaram suas bolsas e casacos, carregando com eles cinegrafistas e fotógrafos. Parecia que o aeroporto todo estava sendo esvaziado, agora que Alex dera a ordem de retirada. Caminhamos pelos corredores silenciosos atrás de Michaela, na direção de uma saída, indo para o carro que me levaria para a casa onde eu nunca tinha ido. Apenas por Michaela ser duas vezes maior que a maioria das pessoas, não percebi imediatamente a pessoa que estava em nosso caminho. Ophelia estava em pé, seus olhos fixos não em mim, mas na celebridade ao meu lado. Eu não havia telefonado a ela para contar que ia me casar, porque me senti culpada por realizar uma cerimónia à qual ela não pudesse comparecer. Por isso, havia enviado um telegrama, pedindo desculpas por ter dado a notícia apenas depois do acontecimento. Ao ditar a mensagem para o operador, imaginei seus olhos arregalados, seus lábios se abrindo um sorriso perfeito. Eu senti vontade de lhe contar que havia usado seu tubinho preto na primeira vez em que havia saído com Alex; que ele havia removido o sutiã de renda que ela me enviara. Mas, em vez disso, optei pela ambiguidade: casei-me com Alex Rivers ponto voltarei 14 de novembro ponto fique feliz por mim. Eu esperava que Ophelia fizesse jus às histórias que eu havia contado a Alex sobre ela e fizesse algo ousado quando o visse pela primeira vez. Conhecendo-a, pensei que ela pudesse agarrar-se a ele com braços e pernas, acreditando que seria sua única chance de fazer aquilo. Talvez implorasse a ele que conseguisse marcar uma reunião entre ela e o agente dele da Associação dos Atores, ou perturbá-lo até que ele lhe desse um papel em um
de seus filmes. Quando o assunto era coisas ousadas, Ophelia não tinha nenhum pudor, eu dissera a Alex. Mas ela ficou parada sem se mexer, sem ao menos me cumprimentar. Olhava fixamente para Alex, não com a adoração que eu esperara, mas como se o estivesse analisando. Meu rosto demonstrava meu orgulho - ali estava a primeira pessoa que questionaria se Alex era bom o suficiente para mim, e não o contrário. Afastei-me de Alex e corri em direção a Ophelia, abraçando-a com força. - Estou tão feliz por vê-la - eu disse, segurando suas mãos. Ophelia, paralisada, ainda olhava para Alex. Sorri - um dia, quando ela soubesse que Alex era meu marido, e não uma celebridade, pensaríamos em tudo aquilo e daríamos risada. Mas conforme ela continuava ali, em silêncio, percebi que havia algo no ar entre Ophelia e Alex que deixava o ambiente pesado e me dava medo de andar. Nos dez anos em que conhecia Ophelia, nunca antes a vira assim. Procurei por algum sinal da mulher que havia perdido o emprego de assistente em um escritório por abrir a blusa e copiar os próprios seios na máquina copiadora, aceitando o desafio de um colega; a mulher que havia pintado um biquini em seu corpo usando apenas catchup, mostrando-o em um teste, na esperança de chocar um diretor e conseguir uma vaga no comercial do catchup Hunte. A Ophelia com a qual eu morara não conhecia o significado da palavra "serenidade" e nunca havia se curvado a ninguém. Ophelia olhou para o meu pescoço, e eu soube o que a estava mantendo em silêncio. Por baixo da base cuidadosamente aplicada, ela havia visto o que nenhuma pessoa da imprensa vira - as marcas fracas de dedos que ainda estavam em meu pescoço. Sem querer que ela tirasse conclusões precipitadas, puxei Alex para mais perto. - Este é Alex Rivers - eu disse delicadamente. - Alex, Ophelia Fox, minha colega de quarto. Alex abriu um amplo sorriso para ela: - Ex-colega de quarto - ele corrigiu-me, esticando o braço para um aperto de mão. Ophelia apertou-lhe a mão sem entusiasmo e virou-se para mim, sussurrando de modo que apenas eu conseguisse escutá-la: - Não, se eu puder mudar isso. ELA NÃO FALOU SOBRE OS HEMATOMAS. NÃO PRECISAVA. A VERDADE é que já tinha suas dúvidas antes mesmo de o avião aterrissar e tinha preparado sua argumentação. Era simples: Ophelia acreditava que Alex estava preparando uma grande queda para mim, pois, caso contrário, não teria motivos para ter insistido em se casar com tamanha rapidez no meio do nada, em vez de realizar um grande casamento em Hollywood do qual todos se lembrariam durante anos. - Além disso - ela sussurrou quando deixamos Alex e John perto da esteira de bagagens -, eu vi aquele beijo para as câmeras. Ele fez sombra a você, Cassie. Todo mundo sabe que é a mulher que fica de frente para a câmera. Eu dei risada. De todas as pessoas que haviam visto a cena, Ophelia provavelmente tinha sido a única a perceber. - E todos aqueles astros que fogem para Las Vegas? - contra-argumentei. Lembre-se de quantos jornalistas apareceram aqui às três horas apenas para
verem meu rosto... já pensou em como seria tentar realizar um casamento discreto aqui? Ophelia pôs o dedo em meu peito. - É exatamente o que quero dizer - ela disse, deixando para mim a função de entender a lógica daquilo Nervosa, ela rolou os olhos. - Não deveria ter sido um casamento discreto. Deveria ter sido o evento do ano. Toda mulher deste país quer saber com quem Alex Rivers se casou. Então por que ele realiza uma cerimónia na maldita Tanzânia e foge para o aeroporto no meio da madrugada como se não quisesse que ninguém a visse? - Talvez porque ele me ama? A última coisa que eu desejaria seria um casamento no estacionamento de uma grande empresa de filmes. Ophelia balançou a cabeça, de maneira negativa. - Mas não é assim que as coisas são feitas, não em Hollywood. Tem alguma coisa errada. - Ela olhou para mim depois de baixar o olhar e de repente compreendi exatamente o que Ophelia acreditava estar errado: na ordem natural da indústria cinematográfica, Alex Rivers deveria se unir a uma mulher que fosse linda, voluptuosa e ostentosa; uma mulher que nunca teria concordado com uma cerimónia discreta; uma mulher que soubesse que um beijo era também uma oportunidade de foto. Alex Rivers deveria ter se casado com alguém como Ophelia. Nunca antes eu havia tido algo que Ophelia quisesse. Nós saíamos, era ela quem atraía os olhares, aquela que virava assunto. No máximo, eu era o papel laminado que envolvia sua beleza. Mas enquanto esperávamos que Alex e John trouxessem as bagagens, vi Ophelia olhando ao redor para os outros carros e limusines, esperando encontrar alguém que reconhecesse um carro com chofer de alguma celebridade e que a estivesse observando. Provavelmente aquela era a primeira vez em que ela não era o centro das atenções ao sair comigo, e a verdade era que, a partir de então, ela nunca mais seria. Eu havia interpretado mal a reação de Ophelia a Alex. Sim, ela o estava analisando, e as marcas de hematomas em meu pescoço a haviam assustado, mas sua objeção a ele era a escolha que ele fizera. Ophelia não tinha a intenção de me diminuir - não havia pensado nisso. Simplesmente não conseguia compreender por que uma pessoa que poderia escolher o que quisesse optara por algo tão simples. Fiquei irritada. Parecia que meu mundo todo havia sido virado. Ophelia, que eu considerava como minha melhor amiga, estava sentindo inveja de meu casamento. Alex, que eu pensava ser um megalomaníaco convencido, havia me protegido, revelado seus segredos e entrado em meu coração de um modo tão profundo que abandoná-lo seria uma dor enorme. Como se meus pensamentos o tivessem atraído, Alex apareceu com John a seu lado, ambos carregando uma mala. Imediatamente, seus olhos encontraram os meus, e os músculos de seus ombros pareceram relaxar. Ele estava procurando por mim. Mantive meus olhos em Alex enquanto respondia a Ophelia. - Não tem nada errado - eu disse. - E ele não é o que você está esperando. - Olhei novamente para ela para perceber sua reação. - Temos muito em
comum - acrescentei, mas só diria aquilo, pois não queria trair a confiança de Alex. - Espero que sim - Ophelia disse. Ela esticou o braço para tocar os pontos em meu pescoço sobre os quais ela sabia que eu não podia falar. - Por que você entrou em um mundo completamente diferente, no qual ele é a única pessoa que você conhece. A CASA DE ALEX EM BEL-AIR SE ESTENDIA POR cinco hectares cercados por portões e era exatamente como as plantações que eu imaginava quando minha mãe me contava sobre sua infância no Sul. Era quase cinco horas quando chegamos, e eu me ajeitei ao lado de Alex, conforme o carro descia o longo caminho de cascalho, e desejei que minha mãe pudesse ver onde eu havia chegado. Não era o tipo de casa que a maioria dos atores tinha em Los Angeles. A simplicidade havia substituído a grandeza da Idade de Ouro de Hollywood, simplesmente por oferecer às celebridades um pouco de isolamento. Mas Alex, que havia crescido em um trailer, desejaria uma casa como aquela. Senti um nó na garganta quando percebi que ele, que dava tanto valor à sua privacidade, estava disposto a trocar tudo pela opulência que não tivera na infância. Tentei imaginar se era o melhor para ele; se, ao passar aquela imagem ao público, as lembranças eram apagadas. Apesar de ser cedo, havia uma grande movimentação na casa. Um jardineiro estava fazendo a poda de uma cerca-viva que se estendia pelo lado esquerdo da casa, e uma fina camada de fumaça saía de um dos pequenos prédios brancos do fundo. - O que você acha? Respirei fundo. - É linda. - Nunca havia visto uma casa como aquela em minha vida; e percebi que faria o que estivesse a meu alcance para impedir que Alex conhecesse o pequeno apartamento onde eu havia morado com Ophelia, apenas para que eu não me sentisse envergonhada. Alex me ajudou a sair do carro. - Vou fazer o grande tour guiado mais tarde - ele disse. - Acredito que você não quer nada mais do que um colchão macio. Sorri só de pensar: Alex e eu deitados sob os lençóis de uma cama mais ampla do que o corpo de apenas um de nós. Eu o segui subindo os degraus de mármore, sorrindo enquanto John abria a porta. - Prontinho, senhora Rivers - ele disse e eu corei. Alex passou por John e me direcionou para uma escada gloriosa e enorme que poderia ser aquela do filme E o vento levou... - Vou apresentá-la a todos mais tarde. Estão loucos para conhecê-la. Pensei: "O que será que eles sabem de mim?" Mas antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, Alex abriu a porta para uma sala de descanso oval que tinha cheiro de ar fresco e limões. Ele atravessou o quarto e fechou uma grande janela, fazendo as cortinas de renda ficarem paradas. - Este é o quarto - ele disse. Eu olhei ao redor: - Não tem uma cama? Alex riu, apontando para uma porta que eu não havia notado, misturada entre as faixas azuis e brancas do papel de parede.
- Por aqui. Era a maior cama que eu já tinha visto, sobre uma plataforma e coberta por um enorme edredom. Sentei-me na beirada, testando-a, e então abri a bolsa que carregava desde que saíramos do Quênia e tirei as coisas que sempre levava comigo em viagens de avião: minha escova de dentes, meu kit de higiene, outra camiseta. Enrolada na camiseta estava o vidro de neve que Alex levara a mim na Tanzânia, algo que eu não queria que se quebrasse no compartimento de bagagem. Coloquei-o sobre a cômoda de bordo ao lado da escova de Alex e de uma pilha alta de roteiros fotocopiados. Alex me abraçou por trás e tirou minha camiseta. - Bem-vinda ao lar - ele disse. Eu me virei em seu abraço. - Obrigada. Permiti que ele abrisse o zíper de minha calça de linho e tirasse meus sapatos e me colocasse sob as cobertas. Pressionei meus braços no edredom e esperei que Alex viesse para a cama. Ele se virou e seguiu na direção da porta para a sala de descanso, e eu me sentei. - Aonde vai? - perguntei, aumentando minha voz por causa do pânico. Alex sorriu. - Acho que não vou conseguir voltar a dormir - ele disse. - Vou acertar algumas coisas lá embaixo, estarei de volta quando você se levantar. Pensei em como queria que ele ficasse ali comigo, para tornar aquele quarto desconhecido um lugar confortável. Passei as mãos sob os lençóis, no lugar onde ele deveria estar. Imaginei o sol do final da manhã no Quênia e de como ficávamos por horas na cama sem que o mundo real batesse à nossa porta. Mas o que eu poderia dizer a Alex? "Tenho medo de ficar sozinha nesta casa. Não conheço ninguém. Preciso de você ao meu lado, para entender onde me encaixo." Ou a verdade mais profunda: "Não me reconheço. Não reconheço você." Alex fechou a porta cuidadosamente, deixando-me perdida. Disse a mim mesma para parar de agir como uma tola e fixei o olhar no vidro de neve sobre a cômoda, a única coisa até então dentro daquela casa que eu podia dizer que era minha. O sol entrou pelas portas francesas do quarto como um incêndio se alastrando, uma acusação. "Então", eu pensei, "é assim que as coisas começam." Quinze
- Finlândia. - Dinamarca. Alex passou os dedos sobre minhas costelas. - Você já usou Dinamarca. Peguei as mãos dele e as pressionei contra meu corpo. - República Dominicana, então. Alex balançou a cabeça. - Eu já usei isso. Pode admitir: você perdeu. Só existem dois países que começam com D. Ergui as sobrancelhas:
- É mesmo? - perguntei. Estávamos brincando de um jogo chamado Geografia em uma quinta-feira de manhã e, apenas para dificultar, havíamos limitado a brincadeira aos nomes de países. - Prove. Alex riu. - Com prazer. Mas você pega o mapa. Eu queria me mexer, mas Alex manteve o braço ao redor de meu corpo, indicando que não pretendia me deixar sair dali. Estava deitado sobre uma espreguiçadeira verde-oliva com listras, e eu estava entre suas pernas, recostada em seu peito. Olhei para o sol quando ele iluminou as pontas de uma nuvem atrás da qual se escondia. - Você memoriza o mapa-múndi em seu tempo livre? - provoquei, já sabendo a resposta: Alex aprendera geografia na infância, sozinho, dizendo os nomes dos lugares exóticos que gostaria de conhecer. Ele beijou minha cabeça e, como se os acontecimentos estivessem relacionados, o sol se mostrou. - Sou um homem de raros talentos e sensibilidade - ele disse de modo sexy, e eu tentei imaginar se ele sabia que aquela frase era mesmo verdadeira. Sabe, apesar do que já lhe contei sobre nossa chegada a Los Angeles, todas as minhas dúvidas sobre Alex haviam desaparecido. Na semana em que voltamos para casa, ele não começou a trabalhar imediatamente, deixando-me sozinha. Nós passamos tempo na piscina, brincamos no labirinto de arbustos e dançamos descalços, sem música, na varanda do lado de fora do quarto. Depois do jantar, Alex dispensava os funcionários e nós fazíamos amor em um cômodo diferente por noite; sobre a mesa de mogno na biblioteca, sobre o tapete persa da sala, na cadeira branca de balanço na varanda de trás. "Assim", ele disse, - você não vai conseguir ir a lugar nenhum sem se lembrar de mim." Por minha vez, eu o levei à UCLA, a meu escritório e mostrei a ele meus trabalhos em andamento no laboratório, um fémur reconstruído de um australopitecino. Eu o apresentei a Archibald Custer, e Alex disse que poderia dar ao departamento uma doação generosa se eles atualizassem o grupo de professores da universidade. Essa sugestão - sobre a qual não havíamos conversado - me deixou desconfortável. Depois disso, ofereceram-me uma vaga de professora adjunta e uma grande variedade de cursos de janeiro para eu escolher, que eu nunca teria aceitado se Alex não tivesse me pedido, como um favor. "Você mudou a minha vida; deixe-me mudar a sua", ele dissera. Alex passou tanto tempo ao meu lado - apresentando-me a seu agente, funcionários e amigos - que em determinado momento tentei imaginar se eu teria de nos sustentar. Não que isso fosse um problema de verdade. Ophelia estava certa - Alex recebia entre quatro e seis milhões de dólares por filme, e a maior parte do dinheiro ia para a sua empresa de produção, a Pontchartrain Productions, para pagar impostos. Ele pagava a si mesmo um salário, mas havia tantas mais coisas a pagar que até mesmo a parte de sua renda que ia para diversas instituições de caridade chegava a mais de um milhão por ano. Eu estava rica. Na Tanzânia, Alex havia recusado minha sugestão de fazermos um acordo pré-nupcial, dizendo que queria que nosso casamento durasse a vida toda. Eu agora possuía metade de um rancho no Colorado; metade de um Monet, de um Kandinsky e dois van Goghs; metade de um conjunto de sala de jantar entalhado em cerejeira que tinha lugar para trinta
pessoas e custara mais do que eu havia pago em todos os meus anos de faculdade. Mas nem mesmo a mobília mais linda do mundo não me impedia de sentir falta de minha velha cadeira de couro vermelho, a primeira peça que eu havia comprado na Califórnia; ou de pensar na escrivaninha do Exército da Salvação que Ophelia havia me dado de presente de Natal há um ano, pintada com símbolos de paz e margaridas. Minha mobília antiga não valia nada, não se encaixava naquela casa; mas, quando um caminhão de uma entidade que aceitava doações foi buscá-la, eu chorei. Mas eu gostava tanto de estar com Alex que pela primeira vez em anos não fiquei ansiosa com o semestre que se iniciava na UCLA; eu via meu trabalho como algo que me afastaria de meu marido. Apesar disso, demorei um pouco para me acostumar com aquela vida. Eu passei a esperar escutar o assovio de Elizabeth, a empregada, ao descer o corredor para encontrar Alex de manhã. Havia me acostumado a anotar que precisava de abacates e sabonete Neutrogena do mercado e apenas deixar a lista com a secretária de Alex. Quando um paparazzo ousado entrava na propriedade e eu o via pela janela do banheiro, não gritava. Contava o ocorrido calmamente a Alex, como se fosse algo com que eu lidasse todos os dias e o observava telefonando para a polícia. Mas nós não saíamos. Alex dizia que era para o meu bem, que deveríamos deixar a novidade do casamento passar um pouco antes de encararmos o público de novo. Ele me dizia sorrindo que me queria inteira para ele. Mas, quanto mais tempo passava dentro de minha gaiola de ouro, mais me lembrava das palavras ditas por Ophelia no aeroporto. E eu sabia que, por mais fantástica que minha vida estivesse sendo no momento, nunca ficaria totalmente feliz se não conseguisse construir uma ponte que ligasse a vida que eu levava em Westwood para essa nova em Bel-Air. Alex estava mergulhando o dedo do pé na beira da piscina e tentava escrever meu nome com as gotas. - C - ele disse. - A-S-S-... - Franziu o cenho e olhou para mim. - Por que não gosta do nome Cassandra? Dei de ombros. - Nunca disse que não gostava - expliquei. - Era assim que minha mãe tentava me chamar até meu pai convencê-la de que era um nome grande demais para uma menininha. E na sétima série fizemos um trabalho sobre mitologia grega e minha professora pediu que eu pesquisasse o sentido de meu nome. - Contei a explicação a Alex da mesma maneira que fizera na sala de aula: - Cassandra era a bela filha do rei Príamo e de Hécuba. Ela recebeu o poder da profecia de Apolo, mas, quando ele se apaixonou por ela e não foi correspondido, ele a amaldiçoou para que ninguém acreditasse que ela tinha o poder de prever o futuro, apesar de ser verdade. Aos doze anos, eu tinha gostado do fato de Cassandra ser bela o bastante para fazer Apolo se apaixonar, mas a maneira com que ela tinha sido forçada a viver sua vida me deixara chateada. Sem credibilidade, ela se tornou uma escrava e depois foi assassinada. Continuei: - Depois que terminamos aquela unidade, contei a todos os professores que queria ser chamada de Cassie, e todos concordaram. Alex me levantou e me virou para que pudéssemos ficar frente a frente.
- Sorte sua, Cassandra, que você corresponde aos meus sentimentos. Seu hálito passou por meu pescoço e eu escorreguei minhas mãos Por dentro de seu calção de banho, sentindo seu calor. Alex segurou minha nuca e me aproximou dele, deitando-me até rolarmos para o gramado ao lado da piscina. - Puxa! E pensei que eu havia vindo em um momento inoportuno alguém disse. Eu me afastei de Alex e tirei os cabelos de meu rosto e vi Ophelia, sendo segurada por John. Seu cabelo estava despenteado, seu short estava torto e de vez em quando ela se afastava de John como se o julgasse completamente repugnante. John olhou para mim e depois para Alex. - Ela contou ao Juarez, no portão, que era amiga da senhora Rivers, mas não deixou que interfonássemos, por isso a mandamos embora. E depois ela foi detectada pelo monitor tentando pular o portão. - Por falar nisso - Ophelia disse a Alex. - Vou mandar a conta deste short a você. - E se voltou para mim: - E foi uma vergonha você não ter me passado a senha do dia. - Ophelia - eu disse, balançando a cabeça. - Por que simplesmente não deu seu nome no portão de entrada? Ophelia parecia cansada e decepcionada. - Queria lhe fazer uma surpresa. Se eu tivesse dado meu nome, eles teriam estragado a surpresa. Ergui minhas sobrancelhas. Ela era a última pessoa que eu esperava ver pulando a cerca da casa. Durante a última semana, eu tentara fazer com que ela aceitasse minha nova vida. Eu sabia que, em determinados aspectos, Ophelia e Alex eram muito iguais para se darem bem. Suas carreiras giravam de maneira parecida: eles mediam seu sucesso pelo número de pessoas que os conheciam; ambos precisavam de mim. Sabia que, no fundo, Ophelia acreditava que Alex estava tentando me afastar dela, mas eu também sabia que podia mudar isso. Em vez de ver Alex como uma ameaça, eu estava determinada a fazer com que ela o visse como um benefício - como uma espécie de irmão mais velho em sua área. Disse isso a ela várias vezes ao telefone. E, obviamente, também queria que Alex gostasse de Ophelia. Ela era minha única e melhor amiga. Alex enrolara uma toalha em sua cintura para esconder o que não havíamos tido a chance de terminar e rapidamente dispensou John e pegou uma cadeira para Ophelia, entretendo-a com tanta facilidade que quase acreditei que ele estava acostumado com mulheres pulando os portões de sua casa. - A culpa é minha - ele disse. - Sempre me esqueço de dar os nomes dos amigos de Cassie para que eles não sejam retidos no portão. Arregalei os olhos. Nós nunca havíamos conversado sobre o assunto. Eu o vi sorrir para ela, e Ophelia desfazer a carranca e percebi que Alex usava o charme como arte. - Oh! - Ophelia gritou e abriu a bolsa de lona com motivos florais que estava desbotada e molhada na parte de baixo. Pegou um embrulho e o entregou a mim. Do lado de dentro, havia pedaços de vidro; abri o embrulho
e vi o vidro verde de uma garrafa de champanhe e senti o cheiro da bebida. - Caiu no chão antes de mim quando pulei o portão - ela disse, como maneira de se desculpar. - Era um presente por sua casa nova. Passei o dedo pelos cacos. - Obrigada. Mas Alex vive aqui há algum tempo - eu disse. Ophelia sorriu. - Era mais para preparar a casa para a minha presença - ela disse. - Tenho sido uma idiota. Estava pensando se, talvez, podemos começar de novo. - Ela olhou para Alex, que estava sentado ao meu lado. - Mas é que depois de conhecer Cassie por tantos anos, quando ela disse que havia trazido algo da Tanzânia, pensei que se tratava de febre amarela, e não de um marido. Ela já demorou mais tempo para escolher uma bebida em um bar do que para se comprometer com você. Mas - ela admitiu -, quando ela decide tomar uma decisão, costuma ser sempre a melhor. Alex olhou para Ophelia por muito tempo, um ator observando as habilidades de outro, e lentamente balançou a cabeça. - Bem, ela escolheu você como colega de quarto. Ophelia jogou os cabelos por sobre o ombro e sorriu. Eu olhei para ela, e depois para Alex e me lembrei da sensação de quando me mudei para Los Angeles: de que as pessoas aqui faziam parte de um enorme cenário, saudáveis, bronzeadas e desproporcionalmente bonitas. - Sinto muito pelo champanhe - Ophelia disse. - Sinto muito pelo seu short. - Eu me virei para poder ver o rasgo. Ophelia riu. - Na verdade, ele é seu. Você o deixou lá em casa. - Impulsivamente, ela se jogou para a frente e me abraçou. - Vai me perdoar, não é, Cassie? - ela perguntou. Sorri. - Por Alex, sim. Pelo short, nunca. VOCÊ SABE QUE eu NÃO FARIA ISSO POR MAIS NINGUÉM. Ao escutar a voz de Alex, eu desviei o olhar do espelho na frente do qual estava me maquiando. Ele estava arrumando sua gravata preparando-se para uma noite na cidade, algo que ele não queria fazer. Ophelia implorara Para se desculpar levando-nos para jantar no Nicky Blair's e disse que pagaria a conta se Alex usasse sua influência para fazer as reservas em cima da hora. Alex concordara de maneira simpática, mas quando estávamos sozinhos no quarto escutei suas objeções: - Deveríamos jantar aqui. Seria melhor deixar que o nosso casamento deixasse de ser novidade. Podemos fazer isso em outra ocasião. - Não será tão ruim - eu disse delicadamente -, estará terminado antes que você se dê conta. - Soltei a base que segurava e caminhei pelo quarto com minha roupa íntima e chinelos, parando diante de Alex. Desfiz o nó de sua gravata e voltei a fazê-lo, passando a mão por ela ao terminar. Inclinei-me para beijar seu rosto. - Obrigada - eu disse. Alex passou as mãos pelos meus braços. - Não será tão ruim quanto espero - ele disse. - É o meu truque. Se eu imaginar o pior, ficarei alegre. - Ele caminhou até meu closet e pegou uma das roupas que magicamente haviam aparecido poucos dias depois de minha chegada a Los Angeles, um vestido vermelho e longo diferente de tudo que eu possuía antes. Na verdade, a maioria de minhas roupas era bem diferente das
que eu tinha antes. Mas Alex sabia mais sobre essas coisas - aonde eu iria e do que precisaria - por isso simplesmente aceitava o que ele escolhia. - Hoje é quinta-feira - ele pensou, observando enquanto eu entrava no vestido e subindo o zíper na parte de trás para mim. - Assim, não haverá ninguém da indústria cinematográfica por perto. Não estão acontecendo estreias, e os jornalistas devem estar descansando. - Ele me virou pelos ombros e sorriu para mim: - Se tivermos sorte, será uma noite tranquila. Quase disse o que me veio à mente. "Ophelia ficará muito triste." Ela estava no quarto de hóspedes, pegando emprestado um de meus novos vestidos e um par de sapatos. Quando Alex fizera a reserva no Nicky Blair's, um local badalado pelas celebridades, Ophelia não se conteve. Era bom vê-la pensando em Alex como um aliado, e não como inimigo, mas tentei imaginar se sua mudança de comportamento se devia ao fato de sentir saudades de mim ou de ter percebido as conexões que Alex poderia lhe oferecer. Afastei aquele pensamento. Era claro que ela estava ali por mim; mal conhecia Alex. E havíamos passado uma tarde excelente. Eu havia lhe mostrado a casa, rindo de seus comentários; ela havia dito que as banheiras eram grandes o bastante para abrigar uma festa de elenco e que talvez Elizabeth, a empregada, vendesse os lençóis sujos de Alex para as fãs incansáveis reunidas nos portões. Um pouco depois das dezesseis horas, havíamos assaltado a geladeira, pegando chocolates e um pouco de salada de frango para o labirinto de arbustos, onde nos deitamos de barriga para cima e deixamos os raios de sol incidindo sobre nossos corpos. E, da mesma maneira como quando vivíamos em Westwood, conversamos sobre sexo - mas, dessa vez, não fiquei apenas escutando. Nunca tive facilidade para abordar o assunto e Ophelia riria de mim se eu dissesse o que realmente queria. Por isso, resolvi lhe falar sobre os lugares exóticos onde eu e Alex havíamos transado; no local de escavação na Tanzânia, no último banco de uma igreja católica no Quênia, dentro do armário de produtos de limpeza enquanto Elizabeth dobrava as roupas do lado de fora. Eu lhe contei sobre como o corpo de Alex era bonito e sobre quantas vezes nos amávamos à noite. Não lhe disse que às vezes ele era tão delicado que me fazia chorar. Não lhe contei que, depois, ele me abraçava com força a ponto de me tirar a respiração, como se temesse que eu sumisse. Não lhe contei que de vez em quando, quando ele conversava comigo com suas mãos, coração e boca, eu me sentia valorizada e abençoada como uma santa. Não disse essas coisas a Ophelia, mas isso não a impediu de ver todas elas em mim. - Jesus! - ela disse. - Você está mesmo apaixonada. - Eu apenas assentira. Não acreditava que existissem palavras que explicassem as conexões e dependência que existia entre Alex e mim. Ophelia sorriu: - Nenhuma doença, sexo quatro vezes por noite e nada de traição ainda. Até agora, o homem só tem um defeito. Eu estava apoiada em meu cotovelo. - E qual é? Ele escolheu a você, e não a mim. A voz de Alex me trouxe de volta à realidade. Ele havia buscado Ophelia, e agora os dois me observavam da porta. Ophelia estava vestindo um vestido
meu que eu não havia visto no closet, uma peça verde que envolvia seu corpo e iluminava seus olhos. Ela estava muito ansiosa para passar a noite em um restaurante exclusivo. De braços dados com Alex, eles pareciam um lindo casal. Ophelia olhou para mim dos pés à cabeça. - Meu Deus! Você está linda! Apertei minhas mãos diante de meu corpo. Ainda não sabia como reagir àqueles comentários. - Você também - eu disse. Ophelia sorriu e virou-se para Alex. - Qual de nós dois? Eu ri. - Os dois. John estava à nossa espera na porta e ofereceu o braço a Ophelia para que ela descesse as escadas, como se não tivesse sido ele a agarrá-la por ter invadido a propriedade horas antes. Ele abriu a porta traseira da Land Rover e ajudou Ophelia a entrar e depois me ajudou. Ophelia me perguntou: - Ele a leva ao banheiro quando você precisa ir? Alex entrou ao nosso lado. - Bem, meninas, espero que já tenham comido alguma coisa. Olhei para Ophelia, que estava com as sobrancelhas levantadas. - Pensei que estávamos saindo para jantar - eu disse. - Estamos - ele respondeu. - Mas isso não quer dizer que teremos a chance de comer. - Ele se virou para Ophelia, como se quisesse alertá-la sobre onde ela havia se metido. - Infelizmente, você me convidou e quando estou em uma mesa de restaurante, costuma ocorrer um evento, e não uma refeição. Ophelia ergueu a cabeça e sorriu para Alex: - É exatamente isso que estou esperando que aconteça - disse. PARA A SURPRESA E ALEGRIA DE ALEX, CONSEGUIMOS comer os aperitivos antes de alguém se aproximar para cumprimentá-lo pelo nosso casamento. - Obrigado, Pete - ele disse. - Deixe-me apresentá-lo à minha esposa, Cassie - ele tocou meu ombro -, e à amiga dela, Ophelia Fox. Ophelia está entrando na área. - Alex fez uma pausa. - E Pete é um dos mandachuvas da Touchstone. Sob a mesa, apertei a perna de Alex, indicando que eu estava feliz por ele ter se esforçado para ajudar Ophelia depois de tudo que ela havia feito. Ele se inclinou e beijou meu pescoço. - Não comece o que não pode ser terminado em público - ele sussurrou. Ophelia não parava de falar sozinha sobre quais celebridades haviam entrado no restaurante e quem havia pedido o que de sobremesa. - Posso lhe dizer que, se é para ser descoberta, posso simplesmente me colar na cadeira e esperar as pessoas virem e irem. Alex comeu os três camarões que restavam em meu prato. - Sem querer desanimá-la, mas nunca vi o Nicky Blair's tão vazio. - Como se fosse sua culpa, ele sorriu para Ophelia. - Podemos voltar aqui outro dia. Sempre que Ophelia falava sobre as políticas de Hollywood e mostrava outro executivo de alguma empresa de produção, Alex mudava o rumo da conversa para mim. Dizia que se impressionou com meu conhecimento técnico
no set, e Ophelia apenas levantava a sobrancelha e perguntava: Conhecimento técnico sobre o que, exatamente? Ele contou a ela que eu havia me tornado professora adjunta, algo que eu havia lhe contado três dias antes, mas a que ela não dera atenção. Mas, naquele momento, pulou para me abraçar e chamou o garçom, pedindo mais uma garrafa de champanhe. Talvez fosse interesse verdadeiro o que ela demonstrava por minha promoção; talvez fosse o fato de o jantar não ter se tornado um grande sofrimento, como Alex previra. Mas, para o meu alívio, quando a refeição terminou, Alex e Ophelia contavam piadas, davam tapinhas nas costas um do outro e faziam imitações de lendários personagens dos filmes. Alex insistiu para pagar a conta, o que eu sabia que ele faria, e que - acredito eu - Ophelia também sabia. Ela ficou em pé e segurou-se no encosto da cadeira. - Nossa. Aquela segunda garrafa foi direto para a minha cabeça. Não me surpreendeu o fato de Ophelia estar um pouco embriagada - eu havia tomado quase duas taças de Cristal e Alex bebera apenas água. Alex passou o braço pela cintura dela para lhe dar suporte e sorriu para mim, enroscando seus dedos nos meus. Quando ele saiu pela porta de entrada, estava abraçando uma mulher espetacular e eu estava logo atrás. Foi por isso que, por um segundo, não notei a comoção dos fotógrafos, os flashes atrás de nós. - Maldição - Alex disse, segurando meu braço mais perto dele, de modo que tive de encarar as luzes, incapaz de me esconder como pretendia. Ele soltou a cintura de Ophelia, mas sua imagem já tinha sido registrada, com ele abraçando uma mulher que não era sua esposa. - Esse era o tipo de porcaria que eu não queria - ele disse a ninguém em particular. Sabia o que ele estava pensando, que todas as colunas de fofocas do país comentariam sobre aquele ménage à trois. Eu sabia o que aquilo poderia causar à sua imagem imaculada. A LUA DE MEL TERMINOU. A VIDA AMOROSA SECRETA DE ALEX Rivers. Duas pelo preço de uma. Eu imaginava as manchetes e apertei os dedos contra meus olhos, tentando bloquear os flashes das câmeras e o fato de que meu nome seria arrastado pela lama apenas três semanas depois de meu casamento. Consegui sentir o braço de Alex tenso sob meus dedos e acariciei seu pulso. "Foi um acidente", queria dizer. "Ninguém imaginaria que isso pudesse acontecer." Eu me lembrei de Ophelia, que um minuto antes estava tonta demais para ficar em pé. Olhei para o chão, esperando encontrá-la caída, mas ela estava ao lado de Alex, em pé, firme e sorrindo lindamente, segurando-se ao braço dele enquanto ele tentava se livrar. E foi então que percebi que ela havia planejado tudo. Eu havia perdoado Ophelia quando ela pegou meu colar de pérolas para ir a uma festa e o perdeu no banco de trás da limusine de um diretor. Eu a havia perdoado quando ela me deixou sozinha no consultório de um dentista depois de tratado um canal, porque tinha ido a um teste no qual nem sequer passou. Eu a havia perdoado por usar o dinheiro de nosso aluguel para se matricular em um curso de ioga transcendental para controle do estresse, por ter me dito que eu era careta demais para ir à discoteca com alguns atores, amigos dela, por ter se esquecido do dia de meu aniversário quase todos os anos em que
vivemos juntas. Mas quando vi Alex em apuros, protegendo-me com um braço de uma acusação inevitável, percebi que nunca a perdoaria por aquilo. Alex disse alguma coisa sobre encontrar John e o carro e, quando ele se afastou, eu agarrei Ophelia por trás, girando-a. Enquanto girava, continuava observando os jornalistas que ainda seguiam Alex. Aquela tinha sido sua chance de ser fotografada. - Como pôde? - eu perguntei. Ophelia ergueu a sobrancelha. - Como eu pude o quê? Estreitei meus olhos. Nos dez anos em que nos conhecíamos, sempre tinha sido sua muleta, e nunca reclamara. Mas isso tinha sido antes de ela me magoar intencionalmente e prejudicado meu marido. - Você contou a eles que viria aqui. Armou para o Alex. Ophelia apertou os lábios: - Não é isso o que você tem me dito para fazer, Cassie? As palavras dela interromperam a minha raiva. "Sim, mas", eu queria dizer, "você não devia ter feito as coisas desse jeito. Não podia tê-lo enganado. Não podia ter me usado." - Ele estava começando a gostar de você - eu disse. Ophelia rolou os olhos. - Se os papéis estivessem invertidos, ele teria feito a mesma coisa. Provavelmente já fez. - Não - eu disse com firmeza. - Não fez. Virei minha cabeça e vi Alex voltando, irritado. Pegou meu braço e, sem olhar para Ophelia, me tirou do restaurante. Deixei Alex abrir a porta do carro e recostei minha cabeça no banco, olhando as estrelas brilhando enquanto ele se sentava ao meu lado e dizia a John que estávamos prontos para partir. - Bem - ele disse com cuidado -, amanhã cedo serei visto como o maior filho da puta de todos os tempos, e os mais atentos perceberão a perversidade de meus atos, agarrando a melhor amiga de minha esposa. - Ele olhou pela janela, longe de mim. - Saiba que, pelo ângulo da câmera, você provavelmente não vai aparecer na foto. Sua mão talvez, mas será apagada da foto. É claro que, conforme o planejado, sua amiga Ophelia aparecerá em destaque com meu braço ao redor de sua cintura. Toquei a perna dele delicadamente. - Sinto muito, Alex. Não sabia que ela faria uma coisa dessas. Ela não costuma ser assim. - Você é uma atriz quase tão boa quanto ela - Alex disse. - Quase estou acreditando em você. - Ele se virou para mim, com os olhos nervosos. - Vou dizer apenas uma vez, por isso não se esqueça. Não gosto de me sentir acuado como um animal de circo. Já é ruim demais eu ter que pensar duas vezes antes de sair de casa, simplesmente porque sou bom no que faço e tenho de viver em um aquário. Mas não serei usado, Cassie, nem mesmo por você. O fiasco todo tinha sido minha culpa, indiretamente, e, por causa disso, deixei que ele descontasse sua raiva em mim. - Compreendo - sussurrei e me concentrei nas sombras da noite. PASSAVA DAS TRÊS HORAS QUANDO ACORDEI E PERCEBI QUE Alex não havia se deitado. Havíamos chegado em casa e depois de dizer boa-noite
a John, Alex tinha entrado na biblioteca, fechado a porta e deixado perfeitamente claro que não queria ficar comigo. Eu subia a escada e fui para o meu quarto, sentindo meus pés afundando no carpete. Tirei toda a minha roupa, mantendo as esperanças. Deitei na cama e disse a mim mesma que conversaríamos em algum momento. Adormeci imaginando as mãos dele percorrendo meu corpo. Ao perceber que a cama do lado dele continuava vazia no meio da noite, comecei a entrar em pânico. Peguei um robe de seda branco de dentro do guarda-roupa, uma peça que estava no quarto de Alex antes mesmo de minha chegada. Não acreditava que ele pudesse ter saído de carro sem me dizer; não queria acreditar que ele estava com outra pessoa. Atravessando o corredor na ponta dos pés, abria as portas dos quartos de hóspedes, suspirando aliviada ao ver a cama feita. Ele também não estava na biblioteca, nem na cozinha, nem no escritório. Hesitante, eu abri a pesada porta da frente, deixando-a entreaberta para que não se trancasse por dentro, e desci os degraus de mármore. A propriedade estava bem iluminada para facilitar a vigilância das câmeras escondidas, por isso não foi difícil encontrar o caminho que levava para a parte de trás da casa, entre as construções, na direção do labirinto. Eu estava na metade dos jardins quando escutei o barulho na piscina. Além do cheiro do cloro, senti o odor do uísque, e não sabia se Alex havia bebido muito ou se aquele cheiro já me era naturalmente familiar, por causa da lembrança de minha mãe. O odor forte e adocicado fez arder meus olhos, como acontecia vinte anos antes. Certa vez, quando eu tinha 13 anos e já detestava o cheiro do uísque que parecia estar entranhado no papel de parede de nossa casa e nas saídas de ventilação, esvaziei todas as garrafas na pia. Minha mãe ficou irada quando descobriu. Rasgou minha camisa pela manga e me deu um tapa no rosto antes de se abraçar a mim, chorando como uma criança. Ela dissera: "Se você me amasse, não faria isso comigo". E por eu não saber se estava certa, jurei que nunca mais faria aquilo. Sentei-me à mesa da cozinha observando-a tomar uma pequena garrafa de Cointreau que ela mantinha para cozinhar. Quando suas mãos pararam de tremer, ela olhou para mim, sorrindo como se dissesse:"Está vendo?" E pela primeira vez percebi que eu estava crescendo e me tornando como ela. Havia uma garrafa de uísque do lado dele, formando uma poça de bebida que ia até o final da piscina. Alex segurava uma segunda garrafa pelo pescoço. Ele estava sentado no banco liso que se estendia por uma lateral do lado de dentro da piscina, e, quando ele me viu, ergueu a garrafa: - Quer uma bebida, chère? - ele perguntou e, quando neguei, ele riu. Vamos, pichouette. Você e eu sabemos que está em nosso sangue. Fiquei em pé da maneira mais ereta que pude. - Vamos para a cama, Alex - eu disse, tentando esconder o tremor de minha voz. - Acho que não - ele disse. - Preciso nadar primeiro. Ele ficou em pé e estava completamente nu. Sob o brilho pálido das luzes de fora, ele parecia um deus grego. Todos os músculos de seu peito eram
muito bem esculpidos, e a água que escorria entre suas pernas e por suas coxas dava a ilusão de que ele era feito de mármore. Ele abriu os braços, com as palmas das mãos para cima. - Gosta do que vê, chère? Todo mundo parece gostar. Alex saiu da piscina, vindo em minha direção. Prendi a respiração quando ele parou a centímetros de mim, molhando a barra de meu robe. Ele me puxou contra seu corpo, mantendo uma mão envolvendo minha cintura e a outra segurando meu queixo. Segurava minha mandíbula apertando tanto que minha pele começou a arder. Seus olhos estavam quase pretos e eu não conseguia mexer a boca o suficiente para falar e estava cada vez mais difícil respirar. Ele tinha o dobro de meu tamanho, estava embriagado e eu não sabia ao certo se ele tinha consciência de quem eu era. Senti medo e foi então que percebi Alex começar a tremer. Não era apenas um arrepio causado pelo sereno da noite em seu corpo molhado; era algo que vinha de seus ossos. O tremor subiu para seus joelhos, quadril e braços, e percebi que ele não conseguia se controlar, porque de repente pareceu tão assustado quanto eu. Olhou para mim fixamente, como se eu soubesse o que fazer. Sem pensar, abri o robe com as mãos. Apertei meu corpo contra o de Alex, minha pele esquentando a dele, absorvendo seu frio até seu corpo parar de tremer e Alex ficar calmo e quente. Ele soltou minha mandíbula e eu esfreguei meu rosto de um lado a outro de seu peito, sentindo o sangue corar minhas faces. Quando ele se afastou de mim, seus olhos brilhavam e estavam bem vivos. Suspirando, relaxei. Conhecia aquele estágio. Alex permitiu que eu pegasse a garrafa de uísque e não disse nada quando eu derramei todo o líquido de dentro dela na grama a nossos pés. Ele observou a bebida vazar e então pegou o copo vazio de minha mão e olhou para ele como se não tivesse ideia de como ele havia ido parar ali. Era muito fácil vê-lo como um garotinho quando suas defesas ruíam. Pensei nos amigos de infância sobre os quais ele havia me contado, retirados de livros e enfeitados, levando-os em aventuras que faziam com que se esquecesse de onde estava. Eu o via pegando redes de camarão quando seu pai estava bêbado demais para puxá-las; vestindo uma camisa branca dois números menores para ir ao enterro de um tio, porque sua mãe não se importara em comprar outra. Delicadamente o levei para se sentar na espreguiçadeira listrada onde havíamos sentado naquela tarde e afastei as pontas molhadas de seus cabelos de seus olhos. Ele se inclinou para a frente um pouco, inconscientemente desejando um gesto que deveria ter sido feito anos antes. - Sabe, eu nunca tive um momento de transição - Alex disse. - Minha maman e meu pai não se importavam comigo e passei da vida que levava com eles diretamente para esta vida, com pessoas que recolhem meu lixo e perguntam o que quero para o café da manhã. - Ele me puxou para seu colo, escondendo o rosto entre meus cabelos. - Sabe o que eu gostaria de fazer? Gostaria de encontrar o alfaiate que faz meus ternos em vez de tê-lo aqui, gostaria de comprar margaridas para você de uma vendedora que não tenha
assistido aos meus três últimos filmes. Gostaria de sair para jantar com você e sua amiga como um anónimo. Ele ergueu a mão para cobrir meu seio, que descansou em sua mão como uma verdade simples e sólida. - Quando era criança, deitava na cama desejando que alguém se importasse com o fato de eu acordar no dia seguinte, não apenas para me chutar. - Ele beijou minha cabeça e me apertou contra seu peito, como se pudesse me proteger de seu passado. - Cuidado com o que você deseja, Cassie - ele disse delicadamente. - Seus desejos podem se tornar realidade. Dezesseis
- Trouxe isto para você. A voz de Alex veio por trás de mim e, sem querer, meus dedos seguraram com força os braços da poltrona branca. Não me virei, olhando para a varanda acima, contando os passos que Alex teve de dar para caminhar da porta do quarto até mim. Ele colocou a xícara de chá com leite ao meu lado, centralizada sobre um pires simples, o que indicava que ele tomara o cuidado de preparar tudo, em vez de pedir à cozinheira. Ao longe, eu conseguia escutar os sons do tráfego do final da tarde e os grasnados das gaivotas, como se aquele dia fosse como qualquer outro. Alex ajoelhou-se na minha frente e descansou os braços dobrados sobre meus joelhos. Olhei para ele como se estivesse em choque e acredito que de fato estava. Minha mente registrou a simetria perfeita de seus traços como se os visse pela primeira vez. - Cassie - ele sussurrou. - Sinto muito. Eu assenti. Eu acreditava; tinha de acreditar. - Não vai acontecer de novo - ele disse. Encostou a cabeça em meu colo e minhas mãos começaram a acariciar seus cabelos, sua orelha, a linha de sua mandíbula que eu conhecia tão bem. - Eu sei - eu disse. Mas quando as palavras foram ditas, vi, com os olhos fechados, a imagem daquelas tempestades do Centro Oeste que acabavam com tudo e deixavam, como um sacrifício, um arco-íris para que você se esquecesse do que havia ocorrido antes. O IMPORTANTE A SE LEMBRAR A RESPEITO DO OSSO é que ele nem sempre é como imaginamos que seja - eu disse aos rostos no salão onde ministrava a palestra. Saí de trás do tablado e me posicionei ao lado de uma pequena mesa de demonstração que eu havia montado antes de minha aula prática de antropologia. O curso já ocorria havia quase dois meses, e eu estava me esforçando para dar aos alunos o conhecimento de que precisariam para a escavação que faríamos no final do semestre. - Quando desenterramos um osso, acreditamos que ele é sólido e estático, quando na verdade ele costuma ser tão vivo quanto os outros tecidos do corpo. Eu escutei o movimento das canetas nos cadernos ao relacionar as propriedades do osso em um organismo vivo. - Ele pode crescer, pode ser atacado por uma doença, pode se curar. E sempre se adapta às necessidades da pessoa. - Levantei dois fémures da mesa de demonstração. - Por exemplo, os ossos se tornam mais fortes quando necessário. Este fémur era de uma
garota de treze anos. Compare sua largura com a largura do outro osso que pertenceu a um levantador de pesos olímpico. Eu gostava de dar aquela aula. Em parte, havia o sensacionalismo das demonstrações, e em parte porque desfazíamos a maioria das preconcepções que os alunos tinham a respeito dos ossos em geral. - Os ossos não são feitos de material inorgânico, como o giz. É uma rede orgânica de fibras e células que contém material inorgânico, como fosfato de cálcio. É a combinação dos dois que dá ao osso sua resistência e também sua firmeza. De soslaio, observei Archibal Custer encostado no batente da porta. No último ano, ele havia me dito que eu tratava a ciência como uma história de uma revista de fofocas. E eu havia respondido que uma dissertação sobre a natureza dos ossos era chata demais para manter os alunos acordados durante uma hora, muito mais para mantê-los interessados na antropologia. Desde a doação de Alex, Custer não havia tido a coragem de criticar meus métodos de ensino, nem de me mandar para um curso diferente. Eu provavelmente poderia ter dado aulas nua sem que ninguém se intrometesse. Meus olhos foram parar no fundo da sala, perto de onde Custer estava com os braços cruzados. Um garoto usava fones de ouvido, duas garotas cochichavam, eAlex estava ali. Às vezes, ele vinha para me ver lecionar; dizia que ficava surpreso ao ver quanto eu sabia. Sempre entrava na sala depois que a aula já tinha começado, para não distrair os alunos. Geralmente, usava óculos escuros, como se eles bastassem para escondê-lo. A maioria de meus alunos sabia que eu era casada com ele - acredito que alguns deles assistiam àaula apenas para descobrir como eu era, ou com a esperança de encontrar Alex. Eu sorri para ele, que tirou os óculos escuros e me deu uma piscadela. Quando Alex estava ali, eu sempre fazia meu melhor. Acredito nisso, de certa forma. Eu interpretava para ele. - Vocês podem ver como um osso é orgânico se mergulhá-lo em ácido durante um tempo. Isso removerá os sais, deixando a matéria orgânica para trás na forma que tinha antes de ser colocado no ácido. Mas - eu disse, tirando uma fíbula de uma tigela de vidro onde estava mergulhada -, ao remover os sais, ele fica completamente maleável. - Segurei as duas pontas do osso comprido, deixando-as soltas por um instante ao segurar a peça no meio antes de dar-lhe um nó. Caramba! - disse um aluno do primeiro ano da primeira fila. Eu sorri para ele. - É isso o que eu penso - eu disse. Olhando para meu relógio, voltei para o tablado e comecei ajuntar meus papéis. - Não se esqueçam da prova da próxima quinta-feira. Custer saíra, e os alunos começaram a descer pelos corredores do salão. Geralmente depois dessa palestra, um grupo se reunia ao redor da mesa de exposição, tocando o osso mole, desfazendo o nó, passando os dedos pelas beiradas. Eu respondia às suas perguntas e permitia que ficassem ali durante quanto tempo quisessem. Afinal de contas, a antropologia era uma disciplina prática. Mas naquele ano, apesar da atenção que a sala havia me dado e do fato de minha aula não ter mudado, ninguém parecia interessado. Rapidamente,
comecei a organizar a mesa, guardando os ossos em camadas de algodão. Tentei imaginar se estava perdendo meu talento. Olhei para cima, lembrando que Alex provavelmente estava me esperando, e vi um grupo de alunos reunidos ao redor dele no corredor, pedindo autógrafos em seus cadernos de antropologia. Fiquei lívida. Espere, eu queria dizer, eles pertencem a mim. Mas as palavras ficaram presas em minha garganta e apesar da raiva que senti percebi que eu não precisava ter ciúme. Alex não havia feito de propósito e, mesmo que ele não estivesse ali na sala, nada me garantia que qualquer um dos alunos se aproximasse para ver minha mesa. Ele passou pelos estudantes e ficou com as mãos no bolso, olhando sobre a mesa os ossos organizados dentro das caixas de transporte. - Alguns sais não passam para o solo quando um osso é fossilizado?- Alex perguntou em voz alta. Eu ri; apesar de seu interesse, eu sabia exatamente o que ele estava fazendo. - Claro - eu disse. - Então por que você nunca escava nada parecido com isso? - ele apontou para o osso, ainda em nó, nadando dentro da solução ácida. Dois alunos desceram pelo corredor do salão, ficando ao lado de Alex e tocando os fémures nos pontos onde os dedos de Alex haviam passado segundos antes. Vários outros alunos se aproximaram. - Em primeiro lugar, isso demora séculos para acontecer. Mas mesmo quando o conteúdo de cálcio é reduzido, não é tão drástico, por isso os ossos geralmente mantêm seu formato. É claro, às vezes o clima e o solo são certos eu procurei em uma caixa já meio feita - e você consegue algo assim. Segurei uma mandíbula da Idade de Ferro que havia sido escavada de uma turfeira irlandesa, que estava retorcida, parecendo uma rosca. - A maneira com que os outros ossos estavam deitados sobre este foi o que o fez tomar essa forma. Durante um tempo, as partes macias de uma dezena de mãos passaram sobre as amostras de ossos que eu havia trazido e, acima das cabeças dos alunos, eu vi os olhos de Alex. Ele sabia fazer as perguntas certas. Na verdade, se não fosse um bom ator, teria sido um excelente antropólogo. Ele caminhou para trás da mesa e escorregou o braço ao redor de minha cintura. Como se os alunos percebessem, olharam para nós e saíram da sala, conversando. - Feliz aniversário de casamento - Alex disse, beijando-me com delicadeza. Mantive os olhos abertos. Ao nosso redor, as partículas de pó dançavam na luz que entrava pela janela. - Feliz aniversário de casamento - eu disse. Saí de seu abraço e cuidadosamente embrulhei as amostras que os alunos haviam examinado. Deixe-me arrumar as coisas e poderemos sair daqui. Ele me pegou pelos ombros e me puxou para entre suas pernas. - Quero fazer um experimento - ele disse. - Quer participar? Eu assenti, vendo sua cabeça inclinando-se para me beijar de novo. Os lábios dele passaram contra os meus, fazendo com que eu sussurrasse com ele, e ele aprofundou o beijo, segurando minha cabeça, impedindo que eu me afastasse. Quando ele levantou a cabeça, eu estava deitada sobre ele, sem saber exatamente onde eu estava.
- Como eu pensava - ele disse. - Queria ver se os ossos podem ficar moles sem o ácido. Sorri encostada em seu peito. - Com certeza - eu disse. TINHA SIDO UM MOMENTO, UM ERRO E, COMO ALEX dissera, não aconteceria de novo. Sussurrei aquelas palavras sem parar, pensando que essas coisas aconteciam a outras pessoas, aquelas que viravam notícia nos jornais, mas certamente não com Alex e eu. - Cassie? Ao som da voz de Ophelia, peguei a manta que estava sob a outra cadeira de balanço e a enrolei em meus ombros. Não estava frio, mas esconderia o que havia acontecido. Depois da desastrosa noite no Nicky Blair's, havia mais de um ano, Ophelia e eu havíamos retomado contato aos poucos. Eu precisava dela; além de Alex, eu não tinha ninguém com quem conversar. Não sei se ela se retratou, mas parei de pedir desculpas por ter me casado com Alex, e mostrei que eu era leal a ele. Desde que ambos não se encontrassem quando Ophelia me visitava, não havia problemas. Na verdade, nosso relacionamento assumiu o curso de sempre: Ophelia me visitava e falava sobre ela, e como minha vida envolvia Alex, eu me sentava em silêncio e só escutava. Ophelia apareceu nas portas francesas que levavam para o quarto. - Aí está você - ela disse. - E eu já estava pensando que você havia se mudado sem avisar John. Eu tentei sorrir para ela. - Agora não é uma boa hora. Ophelia balançou a mão no ar. - Sei, sei. Os ilustres Rivers têm uma première para ir hoje à noite. Queria saber se posso pegar emprestado seu vestido vermelho. Eu franzi a testa. Não conseguia me lembrar se possuía um vestido vermelho, mas Ophelia conhecia minhas roupas melhor do que eu. - Para quê? - Vou cantar em um blues club esta noite. - Ela se recostou no batente da varanda, colocando a mão acima da cabeça, em pose de mulher fatal. - Você não sabe cantar - eu disse. Ophelia deu de ombros. - É, mas os donos ainda não sabem disso e só vão descobrir quando eu estiver no palco. E nunca se sabe quem estará na plateia. - Ela sorriu. - Além disso, eles me pagaram adiantado. Eu não consegui controlar o riso. - Ophelia era mesmo o melhor remédio. - Como, pelo amor de Deus, você conseguiu convencê-los de que canta blues? Ophelia seguiu na direção do quarto, tentando encontrar o vestido vermelho. - Eu menti - ela gritou. Enrolei o cobertor ainda mais em meus ombros, guardando meu segredo. - Como pode fazer isso? Nunca cai em contradição? Ophelia dançou na varanda com o vestido sobre seus ombros.
- Seu problema é que sempre foi honesta. Quando começar... - ela disse com tranquilidade - mentir é mais fácil do que respirar. - Ela segurou o vestido até seu queixo e rodou para mim. - Billie Holiday deve estar com inveja - eu disse. Mudei de posição, fazendo uma careta quando a lateral de meu corpo raspou no braço da cadeira. Ophelia olhou para mim, com os olhos preocupados: - Não está ficando doente, não é? - Ela segurou a beirada do cobertor. Está pegando uma gripe? Deixei que ela colocasse a palma de sua mão sobre minha testa como eu havia lhe ensinado a fazer anos antes e enrolei o cobertor com mais força ao redor de meus ombros. Odiei Alex por me submeter àquilo. - Na verdade - eu disse -, devo estar pegando alguma coisa. APÓS PASSAR UM ANO INTEIRO COM ALEX, COMECEI A perceber que havia me casado com muitos homens diferentes e Alex era o personagem principal quando nenhum outro estava por perto. Ele não podia deixar seu trabalho no escritório, por isso todos os personagens que ele interpretava iam para a minha cama, ou se sentavam diante de mim na mesa do café da manhã. Durante as oito semanas que passou gravando Velocidade, um filme de ação sobre um piloto, ele agira de maneira ostensiva, ativa e cheia de energia. Quando participou de uma temporada de verão atuando como Romeu para um grupo de teatro profissional, ele mesmo procurava à noite com todo o desejo de um jovem apaixonado por estar amando. Eu não havia gostado do personagem do piloto, mas ele era tolerável. E Romeu me deixava um pouco nervosa, fazendo com que eu me olhasse com mais frequência no espelho procurando por novas rugas e tentando imaginar por que eu ficava tão cansada em um dia normal enquanto Alex parecia não se cansar nunca. Mas naquele momento Alex estava filmando António e Cleópatra, e deparei com o primeiro personagem que eu não queria perto de mim. Em meu calendário sobre a mesa da universidade, eu fazia as contas para saber quantos dias faltavam para o final da produção, quantos dias mais teria de esperar para que Alex se transformasse em Alex novamente. Sob muitos aspectos, interpretar António não era muito diferente da pessoa Alex, por isso acredito que o papel foi tão atraente para ele a princípio. António era movido pelo poder e pela ambição, um homem que escolhera uma rainha; um homem que, nas palavras de Shakespeare, podia "ser incomparável". Mas António era também obsessivo, crítico e paranóico. Foi sua obsessão por Cleópatra que causou uma fraqueza em seu caráter - o ciúme -, o que facilitou para seus inimigos derrotá-lo. Convença António de que Cleópatra o traiu com César e seu mundo desabará. É claro, é também uma boa história de amor: quando António acredita que Cleópatra se envolveu com César, ele a acusa e, temendo por sua vida, ela manda a notícia de que já se matou. Quando o mensageiro conta a António que ela morreu sussurrando seu nome, ele fica tomado pela culpa e se mata com a própria espada, morrendo nos braços de Cleópatra que continuava muito viva. Ela, então, em vez de procurar César, resolve se matar com uma cobra venenosa. É uma história de mal-entendidos e de mentiras descobertas; de um casal de amantes que só pode ser feliz em um mundo onde não há ninguém para tentá-los.
Eu não estava pronta para procurar uma cobra venenosa, mas compreendia a afirmação de Cleópatra de que António era um homem louco. Às vezes, quando estávamos sozinhos, Alex falava com sotaque shakespeariano. Passava horas me ignorando e de repente me levava para o quarto, onde me tocava com uma necessidade que beirava a violência. Chegou a ponto de Alex entrar pela porta e eu esperar em silêncio, sem nem cumprimentá-lo, até que pudesse perceber se daquela vez ele me convidaria para jantar à luz de velas ou se gritaria comigo por eu ter trocado de lugar um pedaço de papel no qual ele havia escrito alguma coisa. Ele estava dirigindo a Range Rover naquela noite e eu estava sentada no banco da frente - um lugar que eu não ocupei durante o nosso primeiro ano de casamento. John ficara na casa para ajudar a proteger as janelas e a vegetação tomando medidas preventivas para as chuvas fortes que estavam atingindo a costa da Califórnia. Alex olhou para o relógio no painel e depois para as nuvens no céu. - Vai ser difícil - ele disse. íamos colocar sacos de areia no apartamento de Malibu, e eu sabia que aquela era a última coisa do mundo que Alex queria estar fazendo. Naquela semana, Brianne Nolan - a Cleópatra - havia desistido de seu contrato com a justificativa de que estava exausta. Mas, dois dias depois, Herb Silver contou a Alex que ele havia escutado que Nolan quisera sair da produção porque contracenar com a Alex não era tão lucrativo profissionalmente quanto outro acordo que seu agente acabara de fechar. Encontrei Alex em seu escritório às três horas, fazendo contas na calculadora para tentar descobrir quanto dinheiro havia sido gasto, quanto dinheiro havia sido perdido. A empresa de produções processaria a atriz pela quebra de contrato, e Alex passou a maior parte do dia em reuniões com seus advogados. Assim que saiu, ele me disse para pegar capas de chuva e encontrá-lo na garagem. Não se tratava apenas de uma erosão na praia, mas de danos que poderiam ser causados ao apartamento. - Você acha que conseguiremos voltar para Bel-Air hoje à noite? - perguntei discretamente, observando sua reação. Alex não olhou para mim, mas um músculo saltou de seu rosto. - Como é que eu vou saber? - ele respondeu. A praia em Colony mostrava uma reunião de celebridades com capas de chuva amarelas, recorrendo ao trabalho braçal para conter a crueldade da natureza. Alex fez um sinal para um produtor que morava várias construções abaixo da nossa, e entregou a mim dois rolos de fita adesiva que havia guardado em seu bolso. - Comece pelo lado de dentro - ele disse.- Depois, encontre-me aqui fora. Eu entrei no apartamento e chamei pela senhora Alvarez, que estava no andar de cima, na cozinha, organizando velas e alimentos sobre a mesa. - Oh, senhora Rivers - a governanta disse, descendo as escadas com bastante rigor. - Estão dizendo que a tempestade causará um grande desastre na costa. - Ela esfregou as mãos no avental branco em seu colo. Eu franzi a testa.
- Talvez a senhora devesse voltar para casa conosco hoje à noite - sugeri. Não gostava de pensar em uma senhora de cinquenta anos sozinha dentro de casa durante uma violenta tempestade. - Não, não - ela respondeu. - Se o senhor Rivers concordar, meu Luis pode vir me buscar e me levar para a casa dele. - É claro que ele vai concordar - eu disse. - Saia daqui o mais rápido que puder. Quando subi correndo as escadas para passar a fita nas janelas de vidro que ficavam de frente para o mar, a chuva começou. Não aumentou gradualmente, começou torrencial. Fiquei em pé com minhas mãos pressionadas contra as janelas observando Alex trabalhando lá embaixo, empilhando os sacos em um ritmo graciosamente natural. A senhora Alvarez foi embora com seu filho assim que terminamos de fazer tudo o que podíamos do lado de dentro. Vestindo minha capa de chuva, passei pelas portas de correr que eu havia protegido com a fita e corri para perto de Alex. Sem nada dizer, arrastei um saco pesado de areia na direção da barricada que ele havia começado. Meus músculos doeram com o esforço e o suor escorreu atrás de meu pescoço, para dentro de minha capa. Fiz uma pilha bem alta, colocando os sacos uns sobre os outros. A chuva começou a nos atingir, soprando areia molhada da beira do mar em nossos olhos, fazendo a maré chegar a nossos quadris. Acima de mim, na casa ao lado da nossa, escutei um vidro se quebrando. Eu estava olhando para cima, tentando perceber qual janela havia se quebrada e por que, quando Alex me agarrou pelos ombros. Ele me chacoalhou com tanta força que minha cabeça foi para trás. - Meu deus! - ele gritou, sua voz praticamente perdida ao vento. - Você não sabe fazer nada direito? - ele chutou as pilhas de sacos de areia que eu havia feito meticulosamente e, quando elas não caíram, ele jogou o peso de seu corpo nelas, derrubando-as na água. - Não é assim - ele disse. - devem ser como as minhas. - Ele apontou para a barreira que havia formado, uma pilha bem-feita como se fosse uma parede de tijolos. De qualquer modo, ele me empurrou para o lado e começou a formar uma parede com os sacos que havia derrubado de minhas pilhas. Protegi meus olhos e olhei para os dois lados, tentando imaginar se os vizinhos haviam escutado ou visto Alex gritando comigo. Olhei por um momento para o trabalho que havia demorado uma hora para realizar, e que agora estava dentro do mar. Tinha sido minha culpa; eu não pensei. Uma onda mais forte facilmente derrubaria as pilhas, mas com sacos encaixados uns aos outros, como a pilha formada por Alex, a proteção se tornava muito mais forte. Sem nada dizer, eu fiquei do lado dele, prestando atenção em seus movimentos e fazendo tudo igual, para que ele não achasse defeito algum em mim. Ignorei a dor em meu ombro e costas, determinada a fazer tudo certo. ALEX ENTROU NA VARANDA, OBSERVANDO OPHELIA com a mão em minha testa. - Fria como um pepino - ela disse, mas estava olhando para Alex. Ela colocou as mãos no quadril. - Cassie não está se sentindo muito bem - ela disse. - Talvez você devesse deixá-la em casa hoje à noite.
Alex riu. - E levar você no lugar dela? Ophelia ficou vermelha de raiva e desviou o olhar. Ela apertou meu ombro, despedindo-se. - Eu estava de saída - ela disse e propositalmente empurrou Alex ao sair. Eu a observei partir, fingindo que ainda a via muito tempo depois de ela ter desaparecido pelas cortinas do quarto. Olhei para os desenhos na renda. Não queria olhar para Alex. - Você contou a ela? - O que você acha? - Virei meu rosto para ele, percebendo a expressão de dor que tomava seus olhos, e percebi que eu não poderia feri-lo mais do que ele se feria. Engoli em seco e desviei o olhar. De repente, Alex estava me abraçando, e o cobertor caiu e revelou as marcas vermelhas em meus braços e o inchaço perto de minhas costelas. Ele me carregou para o quarto e me deitou com delicadeza sobre a cama, com muito cuidado. Abriu minha blusa. Passou os lábios sobre cada ponto, cada dor, tirando a dor e deixando para trás um rio de lágrimas. Eu segurei sua cabeça contra meu peito, pensando que aquela sensibilidade feria ainda mais. - Psiu - eu disse, acariciando sua testa. - Está tudo bem. O QUE ME IMPRESSIONOU A PRINCÍPIO A RESPEITO DA mão foi o fato de os ossos estarem esticados em minha direção, como se quisessem me pegar se eu tentasse ir embora. Peguei um pincel pequeno e comecei a limpar pequenos pedaços de madeira e fragmentos de terra, revelando um pulso praticamente intacto, e dedos ainda envolvendo uma ferramenta de pedra. Passei meus dedos sobre os fragmentos, o pequeno cinzel e sorri. Talvez não tivesse me puxado de volta. Talvez tivesse me atacado. A mão estava posicionada em rocha sedimentar na altura de meu ombro e estava notável suficientemente para que eu tentasse imaginar como havia passado tanto tempo sem ser descoberta. O local de escavação não era novo na Tanzânia; havia décadas ele vinha sendo explorado pelos antropólogos. Eu estava tonta. Sabia intuitivamente que aquilo era algo grande, antes mesmo de enviar as amostras para que fosse calculada a data. Meu coração acelerou quando percebi que essa descoberta provaria que os hominídeos tinham a capacidade mental de criar as próprias ferramentas em vez de usar aquelas naturalmente moldadas pela água ou pela fossilização. Eu iria para casa como uma heroína. Mandaria Archibald Custer se ferrar. Eu seria tão famosa quanto Alex. Estava morrendo de vontade de contar para ele. Uma vez que a base do acampamento não tinha telefone, eu dirigiria para a cidade à noite e telefonaria para casa. Não havia gostado da ideia de ficar longe dele durante um mês inteiro, mas estava fazendo meu estudo de campo durante a interseção da universidade, eAlex estava filmando doze horas por dia. Eu conversava com ele aos domingos e às quartas-feiras, sentada no chão de terra da loja da cidade. Segurava o telefone com um ombro e escrevia o nome dele no chão de terra com um pedaço de madeira; prestava atenção ao som de sua voz para poder relembrar à noite e fingir que ele estava deitado ao meu lado.
Semicerrei os olhos por causa da luz do sol do meio-dia, tocando as áreas cinzas estriadas do lado esquerdo da mão. A distância eu consegui escutar o bater de picaretas e o barulho dos risos carregados pelo vento. Havia diversos alunos trabalhando comigo, e um deles havia encontrado uma mandíbula alguns dias antes, mas, tirando isso, não haviam sido feitas descobertas alarmantes. Eu sorri e caminhei ao redor do monte, onde eu podia ser vista por eles. - Wally - eu disse -, traga uma lona. O restante do dia foi gasto com cansativa escavação, pois era muito raro encontrar algo tão frágil quanto uma mão fossilizada que não dava para pensar em arriscar quebrar nem mesmo a pontinha de um dedo. Trabalhei com dois de meus alunos, um deles me ajudando a fazer a remoção e a limpeza, catalogando os ossos com tinta nanquim para a reconstrução posterior. Outro aluno foi mandado para a cidade para avisar a UCLA a respeito de nossas primeiras descobertas e para levar uma amostra ao correio para que fosse enviada para análise. O jantar, uma celebração, foi espaguete congelado e três garrafas de vinho da região. Observei os alunos armarem uma fogueira e inventarem situações nas quais eu me tornava uma guru em antropologia física e eles se tornavam meus discípulos. Quando uma das brincadeiras envolveu enterrar o professor Custer vivo para que algum pobre universitário o desenterrasse depois de um milênio, eu ri com eles, mas na maior parte do tempo observei as chamas que pareciam o sangue que corria dentro de mim. Eu me sentia viva com as escavações. Não tinha sido apenas a descoberta da mão, apesar de isso ter despertado os meus sentidos. Foi a alegria de procurar o desconhecido, como encontrar um tesouro enterrado ou procurar entre os presentes de Natal e encontrar aquele que você esperava ganhar. Quando o filme de Alex estreou quando eu e ele nos conhecemos, aquele era o traço de personalidade que seu personagem demonstrara. Lembro-me de ter assistido às gravações e de comentar com Alex que estava muito impressionada, e ele me dizia que havia copiado aquele traço de mim. A telefonista demorou dez minutos para conseguir uma ligação para os Estados Unidos, eu tinha poucas chances de conseguir encontrar Alex em casa. Quando ele atendeu com a voz grossa de quem estava dormindo, percebi que devia ser madrugada. - Adivinhe o que aconteceu? - eu disse, escutando minha voz no eco (Cassie, Está tudo bem? Eu consegui imaginá-lo sentado na cama, acendendo a luz. - Eu encontrei uma coisa. Eu encontrei uma mão e uma ferramenta. - Sem deixá-lo interromper nem fazer perguntas, comecei a falar sobre como era raro uma descoberta daquela e o que aquilo significaria na minha carreira. - Tem o mesmo peso de um Oscar para você - eu disse. - Isso vai me colocar no topo. Quando Alex não disse nada a princípio, pensei que a conexão havia sido desfeita e que eu estava ocupada demais falando para poder escutar. - Alex? - Estou aqui. - a resignação e o desânimo em sua voz fizeram com que eu me surpreendesse. Talvez estivesse pensando que a minha descoberta me
colocaria mais distante dele. Talvez estivesse pensando que eu colocaria minha carreira em primeiro lugar, antes dele. Seria uma ideia completamente ridícula, e se alguém devia saber disso esse alguém era Alex. As duas coisas tinham igual importância em minha vida. Eu precisava das duas. Não podia viver sem ambas. Eu me lembrei de António e Cleópatra. O filme parecia ser amaldiçoado. Apesar de Brianr Nolan ter sido substituída por outra atriz, no domingo anterior Alex havia mencionado alguma coisa a respeito da desistência do diretor devido a uma discussão com o cinegrafista. Fechando os olhos, pensando em minha tolice e em minha insensibilidade, segurei o telefone com mais força. Engoli em seco, tentando demonstrar alegria em minha voz. - Estou aqui falando sem parar e ainda não perguntei sobre o filme. Fez-se um instante de silêncio. - Está muito tarde - Alex disse. melhor desligar. Quando ele desligou, fiquei escutando o barulho da conexão desfeita até a telefonista tanzaniana perguntar com sua voz musical se eu desejava realizar outro telifonema. Em seguida, dirigi para o acampamento e entrei em uma das tendas de trabalho, acendendo a lâmpada acima da mesa para iluminar a área. Minhas mãos estavam desajeitadas quando toquei os ossos finos que iriam mudar a minha vida. Eu os coloquei em fila, enumerados, com metade da mão que havia sido escavada, e tentei compreender por que Alex não dissera nem mesmo "parabéns". TRÊS DIAS DEPOIS eu HAVIA RECEBIDO telefonemas de Archibald Custer e de dois museus expressando interesse, mas não havia recebido contato de meu marido. A mão aproveitava sua glória, catalogada e registrada para a posteridade, reconstruída em uma cama de algodão. Estávamos tirando as fotografias obrigatórias, aquelas que podíamos enviar antes de os ossos seguirem para exibição. Eu estava em pé com as mãos na beira da mesa, com o suor escorrendo pelas minhas costas. Wally, um universitário que estava escrevendo sua tese com a minha coordenação, estava guardando a máquina fotográfica e as lentes. - Então, o que acha, professora Barrett? - ele perguntou, sorrindo. Seremos recebidos por uma multidão no aeroporto? Sairíamos da Tanzânia duas semanas depois e eu sabia que Wally estava brincando, uma vez que a comunidade antropológica era pequena demais para gerar mais do que uma reportagem no The Wall Street Journal. Uma lembrança de minha chegada ao aeroporto de Los Angeles com Alex veio à minha mente. Imaginei aquele circo da imprensa para um grupo de cientistas cansados e sujos segurando uma caixa cheia de ossos. - Duvido - respondi. Wally ficou em pé, tirando a terra vermelha de seu short. - Vou levar isso de volta para Susie antes que ela tenha outro ataque - ele disse, e moveu-se para a entrada da tenda. Ele chegou a levantar o pano de entrada e o deixou cair como se tivesse visto uma miragem grande demais para ser observada. Ele ficou surpreso e afastou a lona de novo. No meio do acampamento havia um caminhão, e Koji, um de nossos escoteiros, estava descarregando as caixas com o selo de Les Deux Magots, o restaurante parisiense. Meu pequeno grupo de assistentes ficou impressionado, observando caixas de camarões e frutas frescas e queijo brie sendo colocados
no chão. Eu tinha visto isso apenas uma vez. Wally foi para fora, deixando-me com a visão desobstruída. - Agora eu sei - ele disse - que Deus existe. - Deus seria um pouco de mais - alguém disse -, mas me contentarei com a santidade. Quando me virei, ali estava Alex. Ele estava alguns metros atrás de mim, tendo entrado pela parte de trás da tenda. Suas mãos se moviam sem parar e eu percebi que ele estava mais nervoso do que queria que eu soubesse. - Pensei: "O que posso levar a uma mulher que está prestes a mudar o rumo da evolução humana?" E flores não pareciam bastar. Mas eu lembrava, de minha última vez na Tanzânia, que a culinária local deixa um pouco a desejar... Oh, Alex - eu disse e me joguei nos braços dele. Suas mãos passaram por minhas costas, reaprendendo o caminho de meu corpo. Eu senti o cheiro familiar de sua pele e alisei os vincos de suas roupas. - Pensei que estivesse bravo comigo - eu disse. - Bravo comigo - Alex admitiu. - Até eu perceber que havia agido como um idiota e gostaria que nos beijássemos e fizéssemos as pazes. Eu segurei seu rosto com as mãos. Estava muito feliz com ele à minha frente e me perguntava como não havia percebido como me sentia vazia. - Eu o perdoo - eu disse. - Ainda não pedi desculpas. Encostei minha testa em seu queixo. - Não interessa. Gentilmente, ele levantou meu rosto para olhar para ele. Do lado de fora, eu escutei uma caixa sendo aberta e os gritos de alegria dos meus estudantes ao verem o que havia dentro dela. - Se isso realmente é como ganhar um Oscar - Alex disse -, então estou mais orgulhoso de você do que pode imaginar. Eu me recostei nele, pensando que todos os elogios que eu havia recebido de Archibald Custer e todos os títulos que a mão me traria não se comparavam às palavras de Alex. A opinião dele era a única que importava. Fizemos uma refeição deliciosa naquela noite, apesar de a fumaça da fogueira ter mudado um pouco o sabor da comida. Alex conversou alegremente com meus assistentes, fazendo todos eles rirem com as histórias a respeito dos erros que ele cometera enquanto interpretava um antropólogo no filme antes de me conhecer. Quando cinco alunos pegaram algumas garrafas de Bordeaux e sugeriram passar a festa para uma área perto do local de escavação, Alex recusou o convite. Ele pegou a última garrafa de vinho e esticou o braço para me ajudar a levantar, como se tudo já estivesse programado. Ele fechou a entrada de minha tenda e fiquei em pé de costas para ele, olhando para minhas escovas de dente e de cabelo e o tubo de Creme ao lado da pia. Franzi a testa. Havia alguma coisa que eu precisava contar a Alex, que não conseguia lembrar. As mãos dele descansaram em minha cintura. - Por que sempre estamos envolvidos com tendas e com a Tanzânia? - ele perguntou.
Foi impossível não pensar na primeira noite em que havíamos feito amor não com o fogo dançando laranja sobre a lona, ou o vento soprando pelos montes e o céu escuro da noite africana nos aproximando ainda mais. Nós nos reunimos da mesma maneira que a chuva chega na África central: rapidamente, sem aviso, trazendo uma fúria tão intensa que, pelos dias que ela dura, é possível olhar pela janela e imaginar se o mundo já foi de outra forma. Quando terminamos, caímos nos braços um do outro, seminus e cobertos de suor, com os dedos passando pela pele nua apenas para mantermos o contato. Bebemos o vinho diretamente da garrafa, observando as sombras projetadas pelo fogo com uma satisfação tranquila de saber que haveria uma próxima vez mais lenta e mais doce. Passei meus dedos distraidamente pelos pulsos de Alex. - Significa muito para mim a sua presença - eu disse. Alex beijou minha orelha. - O que a faz pensar que fiz isso por você? - ele perguntou. - Três semanas de abstinência é um inferno. Sorri e fechei meus olhos e então fiquei tensa e me sentei. Abstinência. Repentinamente, lembrei o que havia esquecido de contar a Alex. Quando desfiz minha mala na Tanzânia, percebi que havia esquecido minhas pílulas anticoncepcionais em casa. A princípio, pensei em conseguir uma receita para comprar o remédio ali, isso se eles vendessem anticoncepcionais na farmácia; então pensei que, a meio mundo distante de Alex, minhas chances de engravidar eram nulas. Mas agora Alex estava ali, e nós havíamos feito amor, e não havia garantias. - Só por curiosidade - eu disse, virando-me para ele. - O que você pensa sobre ter filhos? Os olhos dele ficaram escuros e ele se fechou. - Que diabos está tentando me dizer? - ele perguntou, pronunciando cada palavra com clareza. Coloquei a mão em seu ombro, percebendo que aquilo parecia muito pior do que realmente era. - Deixei minhas pílulas em casa. Não estou tomando nada há semanas sorri para ele. - Tenho certeza de que nada aconteceu. Tenho certeza de que tudo está bem. - Cassie - ele disse lentamente. - Não pretendo ter filhos. Não sei por que não havíamos discutido aquilo antes; eu imaginara que ele quisesse esperar um pouco, mas que, um dia, desejaria constituir uma família. - Nunca? - perguntei, levemente chocada. - Nunca - ele respondeu passando a mão no rosto. - Não tenho a menor intenção de ser como meu pai e minha mãe. Relaxei; eu conhecia Alex, e não haveria como aquilo acontecer. - Meus pais também não eram os melhores do mundo - eu disse -, mas isso não me impediria de ter meus filhos. Fechei os olhos, imaginando um lindo menininho correndo pelos gramados da casa, o vento soprando em seus pezinhos. Eu o imaginei ali na Tanzânia, cavando ao meu lado com uma pá de plástico e um baldinho. Sabia que, com o tempo, faria Alex mudar de ideia. Ele me deitou em seus braços, acreditando que meu silêncio indicava contrariedade.
- Além disso - ele explicou - como vai se tornar uma grande exploradora se estiver prestes a dar à luz? Não vai poder dar palestras pelo mundo com um filho. Questionei a razão por trás daquilo, mas em alguns aspectos Alex tinha razão. Talvez logo, mas não naquele momento. Eu me virei e o encarei na cama estreita. - Então, qual de nós vai dormir no chão? Alex riu. - Chère - ele disse -, já ouviu falar em roleta-russa? QUANDO VOLTEI PARA OS ESTADOS UNIDOS, REALIZEI uma série de palestras em diversas universidades, discutindo as implicações da mão e da ferramenta na evolução da mente humana. Eu não gostava de passar tanto tempo longe de Alex, mas ele estava ocupado gravando António e Cleópatra. Pouco importaria se eu estivesse em Boston, em Chicago ou Baltimore. Alex trabalhava 24 horas por dia, por isso, mesmo que eu estivesse em Los Angeles, não poderia estar com ele. Escutei a voz de Alex do quarto no andar de cima. "Às vezes contemplamos uma nuvem que parece um dragão; um vapor às vezes parece um leão ou um urso feroz, de cidade com torres, pedra ingente de promontório azul coroado de árvores, que oscila sobre o mundo, e nossa vista deixa atemorizada." Eu suspirei aliviada quando o motorista do táxi colocou minha bolsa do lado de dentro da casa. Eu não o deixara esperando acordado: ele estava fazendo o que costumava fazer uma noite antes de filmar uma cena importante: ensaiando. Eu sabia que o encontraria andando pelo quarto, vestindo uma camiseta velha de Tulane e sua cueca samba-canção e sorri pelo conforto familiar. Meu voo havia saído atrasado de Chicago devido às tempestades e às nove horas da noite telefonei para dizer a Alex que não sabia se conseguiria chegar em Los Angeles naquela noite. - Vá dormir - eu disse. - Se eu conseguir chegar, pegarei um táxi. - Eu sabia que ele teria um dia exaustivo no dia seguinte, filmando as cenas em que António percebe a traição de Cleópatra e depois fica sabendo de seu suposto suicídio. Além disso, mais problemas haviam ocorrido com o filme. Algumas divulgações usadas como trailers haviam recebido uma reação negativa do público. Alex me contara ao telefone: - Eles riram - disse ele, chocado. - Eles me viram correr com uma espada e riram. Desejei que estivesse ali para ajudá-lo e para mostrar o lado bom que todas as notícias ruins a respeito do filme estavam tendo nos programas de entretenimento e nas colunas de fofocas. Até mesmo em Chicago havia sido publicada uma nota no Tribune dizendo que António e Cleópatra era um dos fracassos mais caros de Hollywood. Ao ler isso em um hotel, tive de lutar contra a vontade de telefonar para Alex no mesmo momento. Eu sabia que em uma semana os primeiros boatos estariam esquecidos. Seria melhor acalmar Alex pessoalmente, eu pensei, em vez de tentar ao telefone. Além disso, eu tinha uma notícia que afastaria sua preocupação com o filme. Eu ainda não tinha certeza absoluta, uma vez que não tivera tempo de ir
ao médico, mas estava com a menstruação atrasada havia uma semana. Porém estava temerosa. Havia pensado na situação na viagem de volta para casa, imaginando que Alex teria um ataque quando eu contasse a ele a respeito do bebê, mas havia pensado em várias possibilidades. Em uma delas, ele ficava sem saber o que falar. Em outra, eu dizia que os melhores planos nem sempre funcionam como queremos. Em uma terceira, pacientemente fiz com que se lembrasse que ele mesmo havia decidido brincar com o fogo. Todos os cenários terminavam da mesma maneira: com nós dois sentados perto da janela, Alex com a mão pousada sobre meu ventre, como se pudesse me ajudar a carregar nosso filho. Eu olhei para a minha mala, decidindo deixá-la na sala, porque, afinal, não podia carregar coisas pesadas. A cada passo que eu dava, escutava Alex ensaiando outra fala, algumas vezes repetindo-a com a ênfase em diferentes palavras: "Realizei essas guerras pelo Egito... Ela roubou minha espada". Sorri, pensando na crise de masculinidade de António, e nas notícias que eu tinha para Alex. Respirando fundo, entrei na suite. - Olá - eu disse. Alex virou para mim, com os olhos tomados de raiva. - Ela roubou - ele disse mais lentamente - a minha espada. - Ele deu dois passos em minha direção, parando a alguns centímetros de meu rosto. - Bem ele disse - acredito que vai tentar se explicar. Fiquei boquiaberta e magoada, esperando pela recepção que não se materializou. - Eu avisei que chegaria tarde - eu disse. - Telefonei assim que soube. Passando cuidadosamente por Alex, coloquei meu casaco em uma cadeira. Pensei que fosse ficar feliz por eu ter chegado em casa hoje. Alex virou-me segurando meus ombros. - Seu avião não estava atrasado - ele disse. - Eu telefonei para o aeroporto. - É claro que estava - respondi. - Quem lhe passou informações, disse coisa errada. Por que eu mentiria para você? Alex apertou os lábios. - Isso é você quem pode me dizer. Esfreguei minhas têmporas, tentando imaginar por qual tipo de estresse Alex estava passando para imaginar aquelas maluquices. - Não acredito que tentou me vigiar - eu disse. Alex esboçou um sorriso. - Pois é, eu não confio em você. Aquela frase fez com que eu me descontrolasse. O estresse de uma semana de palestras me abateu. Meus olhos ficaram marejados. Aquela não era a noite que eu tinha planejado; não haveria lanchinho na cama no final da noite, canetas, comentários admirados sobre a vida que havíamos criado. Olhei para Alex e tentei descobrir o que tinha acontecido com o homem que eu conhecia. Assim que as primeiras lágrimas escorreram de meu rosto, Alex começou a sorrir. Ele me agarrou pelos ombros com força. - O que houve, pichouette? - ele disse, com gentileza. - Você veio da cama de outro homem? Alguém que escolheu em Chicago? Ou estava apenas andando pelas ruas, aproveitando sua semanazinha de glória, para o caso de o fracasso estar próximo?
Escutei em suas palavras o quanto ele odiava a si mesmo e, enquanto balançava minha cabeça de maneira negativa, eu fui até ele, oferecendo a única coisa que eu tinha. Alex segurou meus pulsos com uma mão e bateu na lateral de meu corpo, com grande esforço. Eu não me mexi; nem mesmo respirei. Simplesmente não acreditava que aquilo estava acontecendo, sentindo acontecer comigo. Não, eu pensei, mas não havia palavras. Quando me empurrou para longe dele, bati na beira de uma estante de livros e quando caí uma chuva de livros de capa dura e de pesos de papel de vidro caiu sobre mim. Tentei me afastar, mas, quando ele me chutou, acertou meu abdome, e então rolei para o lado. Cobri meu rosto e tentei desaparecer a ponto de Alex não me ver mais, a ponto de eu me esquecer. Percebi que tinha terminado apenas porque escutei Alex chorar sobre meu corpo dolorido. Tocou meu ombro e virei para ele, escondendo meu rosto em seu peito e soluçando, procurando conforto com a pessoa que causara a dor. Ele me embalou em seu colo; disse que sentia muito. Quando não havia mais nada dentro de mim, Alex ficou em pé e foi para o banheiro. Voltou com uma toalha e limpou meu rosto, meu nariz, meu pescoço. Colocou-me sob as cobertas e se sentou na beira da cama. Quando pensou que eu estava dormindo, voltou a falar. - Não quis fazer isso. - Começou a chorar de novo. Então, caminhou até a sala de descanso e deu um soco na parede. QUANDO O SANGRAMENTO COMEÇOU MAIS TARDE, eu disse a mim mesma que era a minha menstruação, fechei meus olhos e sussurrei aquela frase como se fosse uma oração, até acreditar que era verdade. E talvez fosse: não sabia nada sobre abortos, mas não sentia muita dor - apesar de isso ter acontecido porque eu simplesmente havia ficado entorpecida. Pensei no que poderia ter sido um bebê apenas uma vez, quando ainda não havia amanhecido. Decidi não contar a Alex. Não havia necessidade; ele se sentia mal o bastante. Quando ele acordou, levantou os lençóis e olhou para o inchaço em meus braços e os hematomas em minha barriga. - Não - eu disse a ele com delicadeza, tocando seu rosto, e o observei ir para o estúdio sob o peso de sua culpa. Mas agora ele estava em casa novamente e íamos a uma première. Eu me virei para Alex, deitado na cama ao meu lado, onde havíamos adormecido depois que Ophelia saíra, com seu braço caído de modo possessivo sobre minha cintura. Cuidadosamente levantei sua mão, escapando e entrei na sala de descanso. Eu havia arrumado os livros e os pesos de papel de manhã, mas ainda conseguia vê-los espalhados pelo chão de madeira. Distraidamente, eu me sentei em uma poltrona dupla e peguei o controle remoto da televisão, ligandoa. Na tela havia dois animais sem forma, um desenho. Um deles batia na cabeça do outro com uma bigorna. O segundo sorriu, e seu corpo se espatifou e se desfez, restando apenas o esqueleto. "Então", eu pensei, "é assim em todos os lugares" Alex saiu alguns minutos depois e sentou-se ao meu lado. Ele me beijou com tanta delicadeza que imaginei meu coração como aquele animal do desenho, despedaçando-se e deixando apenas a dor, a essência. - Você vai comigo? - ele perguntou.
Assenti. Eu caminharia sobre brasas se Alex me pedisse. Eu abriria mão de minha alma. Eu o amava. É difícil para você entender, mas eu sabia que não aconteceria uma segunda vez, porque percebi que tinha uma parcela de culpa. Era minha obrigação manter Alex feliz. Era isso o que havia prometido um ano antes. Mas eu havia feito algo errado, algo que prejudicara o equilíbrio e o levara ao limite. Eu descobriria o que tinha sido, para que nunca mais ele se sentisse daquela maneira, para que nunca mais as coisas acontecessem daquele jeito. Alex me levou para o quarto e me ajudou a colocar um vestido preto colado que deixava os ombros à mostra, mas escondia quase todas as outras partes do meu corpo, do pescoço aos tornozelos. - Você está linda - ele disse, levando-me para a frente de um espelho. Olhei para meus pés descalços, para as minhas mãos e para os olhos de Alex, que ainda pareciam magoados. Não dava para ver os meus hematomas. - Sim - eu disse. - Este está ótimo. Chegamos à festa com outros vinte carros dirigidos por motoristas e esperamos para chegar ao lugar onde todos estavam descendo. Fãs e paparazzi haviam formado duas filas que levavam à porta do teatro, e dois jornalistas estavam posicionados bem na esquina, para poderem registrar o momento em que as celebridades saíssem de seus carros. Não havia nada de novo; Alex e eu havíamos ido a muitas premières no ano anterior. Ele saiu do carro antes, vestindo sua camisa branca e uma gravata. Acenou para a multidão e o sol se refletiu em sua aliança de casamento, emitindo um raio que temporariamente me cegou. Depois, delicadamente, ele me ajudou a sair do banco de trás, envolvendo minha cintura com seu braço, tomando cuidado para apoiar sua mão numa parte mais baixa de meu quadril, onde eu não sentiria dor. Era um procedimento comum ficar em pé ali por um momento, como um rei e uma rainha, para que as pessoas pudessem tirar fotos e observar bem. A jornalista ao meu lado praticamente gritava mais do que a multidão que urrava o nome de Alex. "Aqui estão Alex Rivers e sua esposa, Cassandra. Andam dizendo que o novo filme de Rivers, António e Cleópatra, está mal das pernas", ela disse. "Mas, como podem ver, os fãs não duvidam de que, independentemente dos problemas que a produção encontrar, Alex encontrará uma maneira de sair deles." Ela lançou um olhar cheio de significado para trás e pretendia que fosse captado pela câmera. "Parece que tudo que Alex Rivers toca vira ouro." Alex me guiou adiante, com a mão delicadamente pousada em minhas costas. Olhei mais uma vez para a jornalista e então joguei a cabeça para trás e ri. Dezessete
Escutei os passos na escada do apartamento e agora, completamente acordada, eu saí da cama onde estava tirando um cochilo. Com o coração aos pulos, estiquei o edredom, tirando a forma de meu corpo para que ele nunca soubesse.
Era o mês de abril, e eu estava de licença da UCLA, mas Alex não gostava de me ver sem nada para fazer. Ele já havia me dito aquilo mais de uma vez, às vezes brincando, às vezes de maneira tão séria que me fazia procurar coisas com as quais me mantivesse ocupada: limpar candelabros de cristal, fazer aulas de aeróbica que eu detestava, redecorar o apartamento, que havia sido lindamente mobiliado. A verdade é que o ano anterior havia sido desgastante, entre ser professora na universidade e equilibrar aqueles compromissos com palestras aqui e acolá sobre a mão, que estava em exposição em um museu de Londres. Naquele ano eu queria descansar. Mas também não queria chatear Alex. Fiquei em pé e passei a mão sobre meu cabelo, verificando se nenhuma mecha havia escapado do grampo enquanto eu dormia. Meu coração acelerou e eu contei os segundos que restavam antes de Alex abrir a porta. Rapidamente olhei ao redor procurando por alguma coisa que desse a impressão de que eu estava ocupada e peguei um bloco de anotações e uma caneta. Senteime à escrivaninha e escrevi a primeira coisa que me veio à mente: uma árvore linear da evolução do homem. Um minuto se passou; dois. Empurrei a cadeira para trás e atravessei o quarto para abrir a porta. Meu rosto estava corado quando girei a maçaneta e senti um certo receio, sem saber o que me esperava do outro lado. Havia uma cortina esvoaçando com as ondas de calor. A senhora Alvarez abrira as janelas antes de sair para ir ao Mercado. Mas a casa estava silenciosa, o que significava que ela ainda não havia retornado. Desci a escada e abri a porta da frente, colocando a cabeça para fora. Chamei, esperando uma resposta, e procurei nos banheiros, no escritório e na varanda antes de perceber que havia ficado nervosa por nada. Eu havia apenas imaginado os passos. Alex não estava em casa. DURANTE SEIS MESES DEPOIS DAQUELA PRIMEIRA VEZ, Alex foi o marido ideal. Nunca deixava de me perguntar o que estava acontecendo na universidade. Construíra meu próprio laboratório no terreno da casa como presente de aniversário. Contratara um artista para pintar um quadro com minha imagem e o pendurou em seu escritório na frente de sua mesa, onde ele dizia que sempre poderia ficar de olho em mim. Quando eu ministrava palestras a respeito da mão, ele participava e aplaudia mais alto do que as outras pessoas. Durante alguns meses, ele chegou a contratar uma secretária completamente dispensável para gravar o que eu dizia e para organizar as folhas a respeito da minha descoberta em um tipo de livro de recortes. À noite, ele me tocava com reverência e me abraçava forte quando eu dormia, como se ainda pensasse que eu podia fugir. Tudo isso nos deixou mais próximos. Eu sei que você não compreende e não posso explicar melhor: eu amava Alex de tal forma que era mais fácil permitir que ele me machucasse do que assisti-lo machucando a si mesmo. A dor física não era nada em comparação com o olhar de Alex quando ele não conseguia satisfazer suas expectativas. Eu não tinha medo dele, porque o compreendia. Eu tentava manter tudo constante e organizado em casa, como se isso pudesse lhe dar uma base sobre a qual trabalhar. Às vezes isso dava errado - o que servia de desculpa para que ele explodisse. Quando retirei uma pilha de roteiros de cima de sua mesa para que a empregada pudesse limpar, ele gritou comigo durante mais
de uma hora. Mas não me tocava, não quando estava com raiva, durante um tempo. Ele estava filmando Argumentos insuficientes - um filme sobre o qual eu nada sabia porque não tivera tempo de ler o roteiro. Era a segunda vez que isso acontecia. Estávamos morando no apartamento, por que o papel de parede estava sendo trocado, e era mais fácil dormir ali do que ir todos os dias de manhã para supervisionar a decoração. Alex chegou em casa perto da hora do jantar, quando a senhora Alvarez já havia guardado a refeição e ido para a casa de seu filho para passar o final de semana. Eu estava em pé diante da mesa quando escutei John chegar com o carro. Checando os detalhes de última hora, eu estiquei meu braço para realinhar a faca, o garfo e a colher de Alex, para que todas as pontas estivessem no mesmo nível. - Oi - Alex disse, chegando por trás de mim e me abraçando pela cintura. Seu cheiro era da loção fria usada para retirar a maquiagem no final do dia. Ele ainda estava usando os óculos escuros. - O que tem para jantar? Eu me virei em seus braços. - O que você queria? Alex sorriu. - Você precisa perguntar? - lentamente ele começou a desabotoar minha blusa. - Não está com calor? - Não - eu ri. - Estou com fome. - Levantei a tampa de uma travessa, deixando que o aroma de ervilhas frescas cozidas e frango seduzisse Alex. Por que não troca de roupa? Alex desceu as escadas para o nosso quarto e eu servi arroz, frango e vegetais em nossos pratos. Sentei-me pacientemente com o guardanapo em meu colo até Alex retornar, vestindo um short e uma camisa azul-clara que realçava a cor de seus olhos. - Viu meus tênis, pichouette? - ele perguntou. Franzi a testa, tentando me lembrar de onde eles estavam. Em algum momento do dia eu os vira, entre papéis, tubos e cola de papel de parede. - Oh! - exclamei, lembrando. - Eles estão na varanda. A varanda do apartamento ficava de frente para o deque no nível da praia. Deixávamos nossas plantas lá, além de uma estátua indiana feia que Alex não lembrava ter comprado. Ele se dirigiu às portas de correr e saiu na varanda, encontrando seus tênis e calçando-os. Imediatamente ele os tirou, dizendo um palavrão em francês. Levou um deles ao nariz e fez uma careta, jogando-o o mais longe que pôde na sala de estar. O tênis acertou o novo papel de parede branco, deixando uma mancha escura de lama. Alex fechou a porta de correr e caminhou pelo apartamento, fechando as janelas que eu abrira para deixar entrar a brisa do mar. Quando ele havia nos isolado de todas as outras pessoas lá fora, começou a falar. - Algum gato maldito fez xixi dentro deles - ele disse. - O que eu quero saber é por que eles estavam lá fora, para começo de conversa. Pousei meu garfo na beirada do prato, tomando cuidado para não fazer nenhum barulho. - Você os deixou lá fora? - perguntei. - Você ficou aqui o dia inteiro, porra - Alex gritou. - Não pensou em trazê-los para dentro?
Eu não entendi por que aquilo era motivo de crise. Sabia que Alex tinha outro par de tênis, mais velhos, dentro do closet, no andar de baixo. Na casa, havia pelo menos mais três pares. Sem saber o que ele queria escutar, olhei para o meu prato, para o frango que esfriava. Alex segurou meu queixo e me forçou a olhar para cima. - Olhe para mim quando estiver conversando com você - ele disse. Então, segurou meus ombros e me empurrou para o lado, derrubando a cadeira para que eu caísse. Fechei os olhos e me enrolei, esperando pelo que viria em seguida, mas escutei a chave virando na porta de entrada. - Aonde você vai? - sussurrei, com a voz tão baixa que pensei que ele não fosse me escutar. - Vou correr - ele respondeu. Fiz um esforço para me sentar. - Você está sem seus tênis - eu disse. - Eu já tinha percebido - ele respondeu e bateu a porta. Fiquei sentada por alguns momentos com os joelhos encostados em meu peito, e então me levantei e comecei a limpar os pratos. Deixei o de Alex no micro-ondas, mas joguei minha comida no lixo. Em seguida, caminhei pelo apartamento abrindo as janelas que Alex fechara. Escutei latidos de cães lá fora, além de uma partida de vôlei em andamento. Esperei para escutar Alex correndo de volta para mim. Convenci a mim mesma que nada havia acontecido, para que quando ele voltasse não houvesse nada a ser perdoado. Herb SILVER ENTREGOU UMA SEGUNDA taça de champanhe para mim. Ele estava em pé comigo em um canto do salão lotado, comendo enroladinhos de salsicha. - Você sabia que Alex providencia esses enroladinhos por minha causa? Ele sabe que eu não como esses outros aperitivos como ostras e outras coisas. - Quiche - eu disse. - Sei lá. - ele pousou o braço sobre meus ombros. - Respire fundo, querida. Ele volta logo. Sorri como se pedisse desculpas, desejando não ser tão óbvia. Eu gostava da companhia de Herb e ficava feliz em saber que Alex cuidava para que eu estivesse bem, mas eu preferia estar com meu marido. E nós estaríamos juntos se estivéssemos em uma première de qualquer coisa que não fosse um filme dele. Mas, naquela noite, ele tinha obrigações e entrevistas a cumprir; pessoas com quem precisava conversar a respeito do patrocínio de seu novo filme. Eu só atrapalharia. Esticando o pescoço, tentei enxergá-lo no meio da multidão. Eu não o encontrei. Conformada, voltei-me a Herb. Ele estava ali com Ophelia, não porque era seu agente, mas, sim, porque não perderia a oportunidade de levar uma mulher bonita para um evento da imprensa. Pedi a ele que fizesse isso como um favor pessoal, assim como havia pedido a Alex um convite para ela. Eu a vi do outro lado do salão, usando um de meus vestidos, conversando com um ator que estava prestes a estourar na imprensa. - Parece que Ophelia está se divertindo - eu disse, retomando a conversa. Herb deu de ombros.
- Ophelia seria capaz de se divertir em um funeral se este estivesse repleto de pessoas da indústria do cinema. - Ele ficou pálido, como se acabasse de perceber que havia insultado minha amiga. - Não estou criticando - ele diz. - Mas acontece que Ophelia é bem diferente de você. Eu sorri para ele. - É mesmo? E como eu sou? Ele sorriu, mostrando as obturações douradas de seus dentes do fundo. - Você? Você é boa para o meu Alex. As luzes piscaram e os convidados começaram a entrar no cinema. Os críticos abriram seus cadernos e suas canetas. Herb olhou ansioso para os lados, esperando que Alex me encontrasse antes de entrar. - Pode ir - eu disse. - Sou perfeitamente capaz de cuidar de mim mesma. - Sei... - Herb disse. - Já conheço a história. Qual é o problema em perder um ou dois minutos do início? - Ele dobrou os braços e recostou-se na parede. Observei o fluxo de pessoas, tentando descobrir se Alex havia me esquecido. - Não sei nem do que se trata a história - confessei. - Estive ocupada demais para ler o roteiro dessa vez. Herb ergueu as sobrancelhas. - digamos que é uma virada para Alex. Duvido que você já tenha visto ele assim. - Herb começou a sorrir. - Falando no diabo... - ele disse. Alex envolveu meu braço no dele. - Sinto muito - ele disse. - Até mesmo os astros de cinema precisam ir ao banheiro de vez em quando. - Ele agradeceu a Herb por ter cuidado de mim e caminhou comigo para dentro do cinema escuro. Eu me inclinei para Alex quando os créditos começaram a aparecer na tela. - Herb me disse que eu não vou conseguir reconhecê-lo. Alex respirou fundo, segurando minha mão. - Cassie - ele disse delicadamente -, prometa-me que vai se lembrar de que eu estou atuando. - Ele envolveu seus dedos nos meus e os apertou, colocando nossas mãos sobre o braço da poltrona entre nós, e não a largou. O que tornava aquele filme diferente dos outros nos quais Alex atuara era o fato de ele ser um vilão. Seus outros personagens tinham defeitos de algum tipo, mas não grandes o bastante para o tornarem um vilão. Demorei Pouco tempo para perceber do que se tratava o filme. Alex estava interpretando um homem que espancava a sua mulher. Não percebi que estava apertando os dedos dele e que me sentia tão tonta que se tivesse me levantado e saído correndo do cinema teria caído. Observei a primeira cena ocorrendo em um banheiro branco, onde as louças eram brancas e sem manchas e as toalhas estavam dobradas em seus ganchos. Alex afastava a cortina do chuveiro e atrás dela apareceram às torneiras de água fria e água quente, e uma delas não estava posicionada em um ângulo de noventa graus em relação ao teto. Alex arrastou uma mulher que não era eu para dentro do banheiro, forçou-a a ver seu erro e a jogou no chão. Eu estava assistindo à história de minha vida.
Mas nos sets de gravação havia dublês; eles ensinavam os atores a coreografar falsos golpes. Eu tentei me lembrar de que a atriz não havia se machucado. Quando me voltei para Alex, ele estava olhando para mim e não para o filme. Seus olhos refletiam os personagens que estavam passando pelo que nós passávamos. "Prometa-me que vai se lembrar de que eu estou atuando." - Por quê? - eu perguntei, mas Alex apenas inclinou sua cabeça na direção da minha e pediu desculpas. DEPOIS DE O FILME ESTREAR PARA O GRANDE PÚBLICO e de Alex ter recebido ótimas críticas por aceitar um papel que alterava sua imagem como ator, nós fomos para o rancho no Colorado. Das três residências de Alex, aquela era a minha favorita. Espalhada em 121 hectares de amplos pastos, seus limites eram as montanhas. A propriedade era atravessada por um riacho comprido e tão frio que chegava a entorpecer os tornozelos. Eu sabia sobre a altitude no Colorado, mas, assim que cheguei no rancho, ficou muito mais fácil respirar. Até mesmo os estábulos e a casa principal eram construídos em linhas diferentes daquelas das residências de Los Angeles. Eram em estilo espanhol, coberturas de telhas vermelhas e estuque, e gerânios podiam ser encontrados nas jardineiras. Os funcionários que cuidavam dos cavalos e do rancho quando Alex estava na Califórnia pareciam se esconder pelos montes quando chegávamos para passar alguns dias, fazendo com que eu tivesse a impressão de que apenas Alex e eu tínhamos acesso àquele pedaço do paraíso. Nas primeiras vezes em que fomos ao rancho, Alex havia me ensinado a montar. Era algo que ele havia aprendido anos antes para o filme Malfeitor. Eu era boa naquilo e gostava. Alex comprara para mim uma égua chamada Annie, que tinha dez anos de vida, mas agia como uma moleca. A cada três vezes que eu a montava, ela tentava me derrubar. Apesar disso, ela não era nada em comparação com os cavalos que Alex preferia. Parecia ter um novo a cada vez, arredio, e grande parte da emoção para Alex era manter-se na sela. - Eu o desafio para uma corrida - eu disse, observando Alex puxar as rédeas para manter Kongo controlado. Dancei com Annie em um círculo restrito. - Ou está com medo de não ser capaz de controlá-lo? Eu estava provocando Alex; sabia que, se ele se sentisse confiante o suficiente para montar o animal, conseguiria fazer com que o cavalo o obedecesse. Mas Kongo era um garanhão enorme, forte e preto como piche e não mostrava vontade de fazer o que Alex queria. - Acredito que se fizesse isso acabaria aleijado. - Alex sorriu e, como se compreendesse o que havia sido dito, Kongo virou-se e começou a trotar na direção errada. - Não vou deixar - eu disse, e enterrei meus calcanhares nos flancos de Annie, passando pelos portões que levavam ao vale, onde o riacho dava três voltas para um pequeno bosque sombreado por álamos, cujas folhas prateadas balançavam ao vento. Alex correu pelo bosque bem na minha frente e depois passou a trotar, fazendo círculos para tranquilizar o cavalo. Ele apeou de Kongo e o amarrou a um galho baixo de uma árvore e depois me ajudou a apear de Annie. Ele me colocou no chão grudada em seu corpo, e eu envolvi seu pescoço e o beijei. - O que eu gosto em você - ele disse, sorrindo - é que você sabe perder.
Deixamos os cavalos pastando e nos sentamos à beira do riacho, molhando nossos pés descalços na água gelada. Eu estiquei-me para trás, encostando minha cabeça no colo de Alex. Acordei quando minha cabeça bateu nas pedras da beira da água. Alex estava em cima de Kongo de novo. - Annie acabou de escapar - ele disse. Estou indo atrás dela. Eu sabia que Alex conseguiria recuperar Annie. Tentei imaginar como ela havia se soltado. Era possível que tivesse mordido as rédeas; com seu temperamento, não seria difícil. Mas podia ser que eu a tivesse amarrado mal e, se fosse o caso, quando Alex voltasse, seria um inferno. Quando Alex voltou irado em minha direção, eu estava sentada bem quieta. Ele parou os cavalos a um metro de mim, ofegante, sem me encarar. Ele se virou, mas não consegui decifrar sua expressão. Quando ele se aproximou, instintivamente me afastei. Alex arregalou os olhos. Então ele esticou a mão, da maneira que fazemos para um cachorro que está inseguro a respeito de seu odor. Ele esperou até que eu colocasse a palma de minha mão contra a dele e me puxou para seus braços. - Jesus - ele disse, alisando meus cabelos. - Você está tremendo. - Ele acariciou a lateral de meu pescoço. - Mesmo que eu não a tivesse Pegado, ela teria voltado ao estábulo. Não precisava se preocupar. - Mas eu não conseguia parar de tremer e, depois de um momento, ele me afastou delicadamente, ainda me abraçando. - Meu Deus - ele disse lentamente. Você estava com medo de mim. Levantei a cabeça e neguei, mas eu estava tremendo, o que não condizia com minha resposta. Alex sentou-se no chão e abaixou a cabeça. Eu me sentei ao lado dele, arrasada por ter estragado o que seria uma tarde perfeita. Percebi que dependia de mim fazer com que voltássemos ao normal, por isso respirei profundamente. Levantei-me e fui para ao riacho, inclinando-me e colocando os dedos na água. - Dizem que há trutas nesse riacho. Alex levantou a cabeça e sorriu para mim de maneira agradecida, olhandome desde meus cabelos até meus pés descalços. - Sim - ele disse. - Fiquei sabendo. - E dizem - eu continuei - que dá para pegar um peixe com as mãos. Enquanto eu falava, uma truta lisa escorregou entre as palmas de minhas mãos, fazendo com que eu me assustasse e pulasse para trás. Alex ficou em pé, entrando na água atrás de mim. - Se você quisesse aprender - ele disse, encaixando suas coxas atrás das minhas -, a primeira coisa a fazer seria parar de se mexer tanto. - Ele se inclinou sobre mim, tão perto que seus lábios roçaram minha orelha. Seus braços envolveram os meus, dentro d'água, onde minhas mãos repousaram nas dele. - A próxima coisa a se fazer seria ficar parada. Não respire. Uma truta fugirá se imaginar que você está aqui. E agora feche os olhos. Eu me virei em seus braços. - Você fecha? - Assim você pode sentir o peixe.
Obedientemente eu fechei meus olhos, deixando o ar gelado preencher meus pulmões, aproveitando a sensação de ter o corpo de Alex perto do meu em tantos pontos diferentes. Quando a truta escorregou pela palma de minha mão, um raio prateado, Alex apertou os dedos. Ele lançou nossos braços para trás e o peixe bateu contra meu peito, entrando no espaço entre meus seios. Juntos, caímos para trás, dando risada. Olhamos um para o outro, a centímetros de distância, com as mãos de Alex ainda sobre as minhas. No ponto em que seus pulsos ficaram pressionados contra mim, consegui sentir sua pulsação, combinando com a minha. Não tentamos desfazer o nó que nossos corpos haviam formado, nem mesmo quando Alex se inclinou para a frente para colocar a truta no riacho novamente. Juntos, observamos o peixe passar pela água, desaparecendo rapidamente. O QUE eu ME LEMBRO A RESPEITO DESSA BRIGA EM particular não foi o que a causou nem como Alex veio atrás de mim. Só sei que aconteceu no quarto grande da casa, e que um de nós bateu na cômoda durante a briga. Por isso, a imagem que guardei não foi das palavras de Alex ou de suas mãos em meus ombros; foi o momento em que o vidro de neve que Alex havia levado para mim na Tanzânia rolou e se espatifou no piso de madeira. Foi um acidente que poderia ter acontecido muito antes, caso uma empregada tivesse sido descuidada ou se eu tivesse me virado rapidamente ao me trocar. Mas não tinha acontecido. Durante dois anos e meio o pequeno vidro permanecera, muito bem fechado, entre a minha escova de cabelo e a de Alex, como se fosse um elo que as mantivessem juntas. Alex ficou em pé, ofegante, observando a água se espalhar no chão. Eu tentei imaginar se ela deixaria uma mancha e fiquei torcendo para que deixasse, assim restaria alguma coisa. Em vez de pedir desculpas ou me abraçar, Alex ajoelhou-se e começou a recolher os fragmentos maiores do vidro. Um deles cortou seu polegar e eu observei fascinada seu sangue misturar-se na poça d'água. Acredito que foi isso que me colocou no limite. - Se você voltar a me tocar dessa maneira - eu disse delicadamente, olhando para a água -, irei embora. Alex não parou o que estava fazendo. Ele recolheu aqueles pedaços como se realmente pensasse que seria capaz de reuni-los novamente. Ele disse: - Isso acabaria comigo. Peguei minha bolsa e um casaco e desci as escadas, balançando a cabeça, em negativa, quando John perguntou se eu precisava de uma carona. Eu caminhei pelas ruas do bairro, respirando o ar processado. Quando cheguei à igreja St. Sebastian - sim, a nossa igreja -, o primeiro pensamento que tive foi que poderia conseguir refúgio. Eu poderia me esconder lá dentro e nunca mais sair. Talvez se ficasse sentada durante bastante tempo nos bancos frios e escuros, observando as sombras produzidas pelos vitrais, o mundo voltaria a ser como era. Eu queria desesperadamente ser uma católica, ou ter qualquer definição mas eu não podia dizer com honestidade que acreditava em alguma coisa. Tinha minhas dúvidas a respeito de um Deus misericordioso. Fechei meus olhos e em vez de rezar para Jesus, rezei para Connor.
- Gostaria que você estivesse aqui - eu sussurrei. - Não faz ideia de quanto eu preciso de você. Fiquei sentada no banco até sentir a madeira presa na parte de trás de minhas coxas, e nesse momento a única luz da pequena igreja vinha das velas brancas e brilhantes que ficavam sobre uma mesa no fundo do lugar. Eu fiquei em pé, tonta, e compreendi que ainda acreditava em algumas coisas. Acreditava em Alex e em mim. Apesar desse ciclo, eu acreditava em nós dois juntos. Saí pelas portas pesadas da igreja e chamei um táxi para me levar para casa. Quando toquei a porta da frente, ela se abriu. A sala estava escura. Alex estava sentado no último degrau da escada, segurando a cabeça nas mãos. Percebi duas coisas naquela noite: que Alex pensara que eu havia ido embora para sempre e que, independentemente do que eu havia dito no calor do momento, tinha sido apenas uma ameaça vazia. Desde o primeiro segundo que eu passei fora de casa, estava simplesmente fazendo meu caminho de volta. Dezoito
Ao meu lado havia um monte de roteiros. Não era minha responsabilidade, mas eu gostava de lê-los. Eu fechava os olhos e tentava imaginar Alex seguindo as direções escritas, falando as palavras da página. A maioria dos roteiros eu abandonava depois de ler algumas páginas, mas aqueles que pareciam mais promissores eu passava adiante. Eu estava no escritório de Alex na Warner Brothers. Nos dias em que não estava lecionando ou quando não queria fazer pesquisa, eu me acomodava no sofá macio, esperando que ele terminasse o que estivesse fazendo naquele dia para que pudéssemos ir juntos para casa. Naquele dia, Alex estava no estúdio de som, dublando seu último filme. Ele só voltaria depois de várias horas. Suspirando, peguei o roteiro em cima da pilha e comecei a ler. Duas horas depois, larguei os papéis e corri pelo estacionamento da Warner Brothers. Eu tinha uma vaga ideia de onde era feita a mixagem de som, mas entrei em três salas diferentes antes de encontrar aquela na qual Alex estava trabalhando. Ele estava inclinado sobre uma mesa de som eletrônica com técnico e, quando ele me viu, tirou os fones de ouvidos. Eu ignorei sua insatisfação por eu o ter interrompido, o olhar me indicava que eu receberia uma bronca depois. - Você precisa vir comigo - eu disse, em um tom de voz que não dava espaço a discussões. - Tenho um filme para você. A PRIMEIRA IMAGEM DE A HISTÓRIA DELE ERA DE um homem vendo o pai morrer. Em um quarto de hospital, entre tubos, fios e máquinas barulhentas, ele se inclinava sobre o rosto frágil e sussurrava: "Eu te amo". A história era sobre um pai e um filho que nunca haviam se comunicado, pois essa era a definição pessoal de ambos do que significava ser um homem. Ao perder contato com o pai, que sempre fora exagerado e crítico, o filho volta para casa quando a mãe morre em um acidente de carro. Ele é agora um fotojornalista muito viajado; seu pai continua sendo o que sempre foi: um agricultor de Iowa simples e sem educação. O filho logo vê que tem
muito pouco em comum com o pai, percebe que seu pai envelheceu e vê como é difícil viver na mesma casa quando a mulher que servia de intermediária entre eles não existe mais. Por motivos complexos, o filho começa a fazer uma exposição de seu pai, retratando-o como um agricultor independente, vítima de preços e incapaz de sobreviver com suas plantações. Flashes mostram os eventos que formam a parede entre pai e filho; o restante do filme mostra a gradual destruição dessa parede, quando o filho abandona a câmera e trabalha ao lado do pai nos campos, começando a compreendê-lo por experiência, não apenas como observador. O clímax da história envolve uma cena forte entre pai e filho. O filho, que sempre procurou o pai, continua sendo deixado um pouco distante; na verdade, os únicos momentos em que eles parecem se relacionar são quando caminham lado a lado pelas plantações de milho. Ressentido pelas críticas de seu pai a respeito do que ele se tornou, o filho explode. Grita dizendo que deu ao velho todas as chances de enxergá-lo como realmente é; que qualquer outro pai sentiria orgulho das conquistas do filho; que ele nunca precisaria ter percorrido o mundo para encontrar seu lugar se tivesse sido aceito em sua casa. O pai balança a cabeça e vai embora. Quando o velho não está por perto, o filho percebe a vista: uma extensão de terra que sua família possui. Ele percebe que quando era pequeno ficava ali e via os campos apenas em seus limites, apenas pelo que existia do outro lado. Mas ele também percebe que o motivo pelo qual seu pai o feria na infância era porque era mais fácil deixar seu filho vê-lo como um tirano exigente e mandão do que vê-lo pelo que de fato é: um agricultor que nunca fez nada de importante. Até mesmo ser visto como um cafajeste era melhor, em seu ponto de vista, do que ser visto como um fracasso. Acontece uma reconciliação discreta no filme que ocorre na colheita, sem nenhuma palavra, pois no passado as palavras apenas os afastaram. E então, no fim do roteiro, o filho publica o ensaio com fotos, que ele espalha ao redor da cama do pai no hospital: imagens sensíveis não de uma vítima ou de um fracasso, mas, sim, de um herói. A tela fica branca e vem a cena final na qual o pai, décadas mais jovem, ergue uma criança sorridente em seus braços. Voltamos para o início. "Eu te amo", ele diz, e a história termina. Eu soube, quando li o roteiro, que Alex tinha de fazer aquele filme. Também soube que eu estava brincando com fogo. Interpretar o papel do filho traria ainda mais raiva à tona. Trabalhar com as cenas de confronto significaria enfrentar sua raiva. E Alex deixaria o set e voltaria para casa para aliviar a nova e crua dor me espancando. Mas eu sabia que ele não tinha a intenção de me ferir. E eu sabia que tudo apontava para a parte de Alex que ainda acreditava que ele não era bom o bastante. Se Alex fosse forçado a analisar esse seu lado, talvez ele fosse exorcizado para sempre. PENSEI QUE ELE FOSSE ME MATAR. Ele estava em pé no banheiro, chutando-me várias vezes, seu rosto tremendo de fúria. Ele me colocou em pé me puxando pelos cabelos e, quando tentei imaginar o que mais ele poderia fazer, fui jogada contra o vaso sanitário e ele se afastou. Tremendo, fiquei em pé e joguei água em meu rosto. Dessa vez, ele havia batido em minha boca, o que era surpreendente - era mais difícil esconder os
hematomas em meu rosto, e ele não costumava perder o controle e me ferir no rosto. Apertei um pedaço de papel higiênico contra o sangue no canto de meus lábios e tentei reconhecer a mulher que me encarava no espelho. Eu não sabia aonde Alex ia e não me importava. Eu estava esperando aquilo. Alex havia terminado de ler A história dele e eu sabia que ele se sentiria dessa maneira depois. Era o primeiro passo que ele teria de tomar para se curar; o segundo seria seu comprometimento em fazer o filme. Vesti uma camisola e entrei debaixo das cobertas, virando-me de costas para o lado de Alex na cama. Um pouco depois, ele entrou sem fazer barulho no quarto e começou a tirar suas roupas. Ele foi para a cama, prendeume em seus braços e olhou pela janela para as mesmas estrelas que eu estava tentando decifrar. - Eu não fui ao enterro de meu pai - Alex disse, e eu me assustei um pouco com o timbre de sua voz. É verdade que não havia ninguém na casa àquela hora, mas algumas coisas era melhor sussurrar. - Minha maman telefonou e me disse que ele era um filho da puta infeliz, mas que ir ao enterro seria o mais cristão a se fazer. Fechei os olhos, imaginando aquela cena da história mais difícil de esquecer, aquela do pai erguendo seu filho. Imaginei Alex sentando ao lado da cama do pai no hospital. Vi as câmeras gravando quando ele teve sua segunda chance. - Claro, foi o que pensei, uma vez que ele era o diabo em pessoa, a caridade cristã não se aplicava a ele. - As mãos de Alex subiram e desceram sobre minhas costelas, sobre lugares que ele havia ferido horas antes. - Vou dirigi-lo e coproduzi-lo. Dessa vez, quero ser a pessoa no controle Jack GREEN SENTOU-SE PERTO DE MIM enquanto um funcionário aproximadamente do mesmo tamanho dele estava arrumando câmeras e luzes. Ele era um ator veterano, que já fizera de tudo, desde comédia com Marilyn Monroe até o retrato dramático de um alcoólatra que o rendeu um Oscar em 1963. Mas ele também era capaz de fazer sons de assovio com as axilas e embaralhar um monte de cartas com mais pose do que um apostador em Las Vegas e sabia cortar as táboas que cresciam nos campos de Iowa. Depois de Alex, ele era a pessoa do set de quem eu mais gostava. Ele interpretaria o papel do pai, em grande parte pela insistência de Alex, uma vez que Jack não filmava desde 1975. A princípio, havia sido divertido ver as pessoas passando pelo set, sem saber ao certo se deveriam procurar Jack, a lenda, o Alex, o deus. E ninguém sabia como Jack aceitaria a direção de Alex. Mas, depois de ver as primeiras cenas, Jack levantou-se e virou-se para Alex: - Rapaz, quando você chegar à minha idade, pode ser tão bom quanto eu. Jack ergueu as sobrancelhas, perguntando a mim se eu queria outra carta. Nós estávamos jogando vinte e um, e ele dava as cartas. - pode me dar - eu disse, batendo em cima do livro que estávamos usando como mesa. Jack virou o dez de ouros e sorriu. - Vinte e um - ele disse. Balançou a cabeça de maneira apreciativa. Cassie, você tem mais sorte do que uma prostituta de três tetas. Eu ri e saí da cadeira de Alex. - Você não precisa se preparar?
Jack levantou a cabeça e olhou ao redor. - Bem - ele disse -, acho que posso dar uma volta para conhecer o terreno. - Ele sorriu e me jogou o roteiro, que até onde eu sabia ele não havia lido desde que entrara no set dez semanas antes, apesar de não ter errado uma fala. Ele se dirigiu na direção de Alex, que estava fazendo gestos para o diretor de fotografia. Eu não havia conversado com Alex o dia todo, apesar de isso não ser incomum. Durante as semanas que ele passou filmando A história dele, em Iowa, Alex se mantivera mais ocupado do que eu já tinha visto. Sempre havia uma fila de pessoas esperando para pedir a opinião técnica sobre alguma coisa; havia jornalistas tentando conseguir entrevistas; havia patrocinadores com os quais conversar sobre dinheiro. De certa maneira, Alex vencia o estresse. Sua carreira estava em jogo: apesar de estar em um filme no qual não seria visto como protagonista romântico tradicional, ele estava dirigindo pela primeira vez. Mas toda a pressão parecia tirar sua mente do fato de que o filme que estava fazendo e as emoções que estava trazendo à tona eram coisas próximas de sua realidade. Alex insistira para filmar a cena de confronto entre pai e filho por último. Ele havia reservado dois dias de filmagem para ela, e aquele dia seria o primeiro, porque ele queria que a cena fosse gravada ao crepúsculo, quando os montes e plantações de milho a distância estivessem arroxeados pelo sol. Eu observei um maquiador aproximar-se de Jack e molhar seu rosto com suor artificial, sujando seu pescoço com algo que parecia terra. Olhou para mim e piscou. - Que bom que ele tem quarenta anos a mais do que você - Alex disse atrás de mim -, ou eu estaria morrendo de ciúme. Sorri e me virei, sem saber ao certo o que encontraria nos olhos de Alex. Acredito que eu estava mais nervosa em relação àquela cena do que ele. Afinal de contas, eu tinha tanto interesse nela quanto ele. Se fosse um sucesso, tornaria aquele filme uma obra-prima para Alex. Mas também mudaria a minha vida. Eu o abracei e o beijei delicadamente. - Está pronto? - perguntei. Alex olhou para mim por um momento e tudo o que eu pude ver foram os seus medos refletidos em mim. - Você está? - ele perguntou com gentileza. Quando o diretor-assistente pediu silêncio e tudo começou, prendi a respiração. Alex e Jack estavam em pé no meio de um campo alugado de um fazendeiro da região. Atrás deles havia um milharal que era muito mais alto do que deveria ser naquela época do ano, mas tinha sido daquela maneira que o departamento de produção transformara a realidade do mês de abril na ilusão do mês de setembro. O primeiro diretor assistente pediu ação e eu observei quando uma máscara escondeu os traços de Alex, transformando-o em alguém vagamente familiar. O vento passou pela grama alta como se tivesse ensaiado, e Jack deu as costas a Alex e inclinou-se para pegar uma pá. Observei o rosto de Alex transfigurado pela raiva e percebi que ele engasgava em sua fúria até que disse: - Vire-se, maldito - ele gritou, pousando uma mão no ombro de Jack.
Como havia sido ensaiado, Jack lentamente virou-se na direção de Alex. Eu me inclinei para a frente esperando a próxima fala, mas nada foi dito. Alex ficou pálido e sussurrou: - Corta - e eu soube que no rosto de Jack ele havia visto o próprio pai. A equipe relaxou, voltando e reposicionando-se enquanto Alex dava de ombros e pedia desculpas a Jack. Eu me aproximei para olhar, até estar perto do cameraman. Quando o filme voltou a ser gravado, o sol já havia se posto, amparado pelo céu antes de a noite cair. Foi um cenário bonito: o ressentimento vívido no rosto de Alex e Jack diante da luz que ia se apagando, parecendo mais uma lembrança do que um homem. - Diga-me o que devo fazer - Alex gritou e de repente sua voz falhou, fazendo com que ele parecesse o adolescente repreendido pelo pai nos flashbacks já filmados. Durante o ensaio, Alex fizera com que seu personagem gritasse a cena toda, esperando provocar o pai. Mas agora sua voz afinara até se tornar um sussurro. - Durante anos eu pensei que, quanto maior eu fosse, melhor as coisas ficariam. Eu dizia a mim mesmo que você me notaria - a voz de Alex falhou. - Eu já não fazia isso por mim, depois de um tempo. Estava fazendo por você. Mas você não liga, não é, Pai? O que queria de mim? - Alex engoliu em seco. - Quem diabos pensa que é? Alex esticou a mão e agarrou Jack, outro movimento que não havia sido ensaiado. Prendi a respiração, observando as lágrimas de Alex, percebendo a maneira com que seus dedos se flexionavam nos ombros de Jack. Não dava para saber se Alex pretendia jogar Jack ao chão ou se estava se prendendo a ele para não cair. E Jack, surpreso com a reação de Alex, simplesmente olhou para seu rosto, parecendo desafiá-lo por um segundo. Mas então se afastou de Alex. Ninguém - a resposta do roteiro, e então se virou para fora da mira da câmera. Eu saí do caminho quando a base alta sobre a qual a câmera estava apoiada de repente foi para a esquerda para pegar Alex de perfil. Ele olhou para o milharal, vendo, eu sabia, um pântano com vinhas, uma rede de camarão na entrada de um restaurante decadente e o rosto duro de seu pai uma cópia mais dissoluta do rosto dele - a imagem contra a qual ele lutara e, ironicamente, carregava consigo. O sol escorregou atrás da cerca que nesse momento parecia estar amparando Alex. Ele fechou os olhos; abaixou a cabeça. As câmeras continuaram registrando aqueles momentos, porque ninguém pensou em pedir para cortar. Por fim, Jack Green interrompeu. - Corta, caramba - ele gritou. Depois de um segundo de silêncio, a equipe começou a aplaudir, reconhecendo que haviam acabado de ver algo raro e bonito. - É melhor aproveitar isso - Jack disse a Alex -, porque eu não faço melhor. Algumas pessoas riram, mas Alex não pareceu ter escutado. Ele foi direto da cerca para a escuridão, passando pelas pessoas do caminho. Ele foi de encontro aos meus braços e, com todos observando, disse que me amava.
EM FEVEREIRO, ALEX E eu ESTÁVAMOS NA CAMA DO apartamento, assistindo pela televisão quando o presidente da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas e a vencedora do prémio de Melhor Atriz Coadjuvante do ano passado leram os nomes dos indicados para as cinco maiores categorias do Oscar de 1993. Era um pouco antes das seis horas, uma vez que tudo precisava ser feito no horário da Costa Leste. Alex fingiu que não estava muito preocupado, mas sob os lençóis seus pés estavam frios e inquietos. Alex foi indicado para Melhor Ator e Melhor Diretor. Jack Green foi indicado para Melhor Ator Coadjuvante. O filme A história dele foi indicado para Melhor Filme; no total, havia recebido onze indicações em diferentes categorias. Alex balançou a cabeça, rindo de orelha a orelha. - Não acredito nisso - ele disse. - Simplesmente não acredito. - Rolou para o criado-mudo e desligou o telefone. - Por que isso? - eu perguntei. - Herb vai ligar, depois Michaela e sabe-se Deus quem tem o número daqui. Jesus, vou ficar atolado até ir para a Escócia. - Ele ia começar a filmar Macbeth em algumas semanas. Ele voltou-se para mim, com os olhos brilhando. - Diga-me que não estou sonhando. Eu estiquei o braço. - Venha aqui, vou beliscá-lo. Alex riu e pressionou minhas costas contra a cama. - Conheço maneiras melhores - ele disse. Antes do café da manhã, Alex havia marcado uma entrevista pré-Oscar no programa de Barbara Walters. John se aproximou e disse que uma multidão de fãs e jornalistas havia montado acampamento do lado de fora da casa. E, naquela tarde, quando eu fui ao ginecologista e obstetra para confirmar minha gravidez de doze semanas, o médico me deu os parabéns e disse que Alex teria dificuldades para decidir qual notícia do dia havia sido mais maravilhosa. ESPEREI DUAS SEMANAS ANTES DE CONTAR A ALEX sobre o bebê, planejando mencionar a notícia um dia antes de sua entrevista com Barbara Walters, que nos entrevistaria da sala de estar de nossa casa. Não havia contado assim que soube, porque não queria roubar seu momento. E levou duas semanas para que toda a comoção e as entrevistas terminassem. Eu dizia a mim mesma que havia sido por esses motivos que eu mantivera o assunto em segredo; que não tinha nada a ver com o fato de que amanhã ele poderia contar ao mundo e dar a Barbara Walters o "furo" do ano. Não estávamos tentando, mas aparentemente eu me encaixava naqueles 2% de mulheres que tomam pílulas e a quem os acidentes acontecem. Nunca me ocorreu que Alex se sentia da mesma maneira que três anos antes em relação a ser pai. Até onde eu sabia, ele havia deixado o fantasma de seu pai no passado, onde deveria ficar. Nos dez meses desde A história dele ter começado, ele não havia perdido o controle. Havia terminado um papel de protagonista em uma comédia romântica sem incidentes. E mesmo durante as duas semanas, quando a tensão estava aumentando ao seu redor, ele não havia demonstrado sinais de que descontaria em mim. Já havia muito tempo desde a última agressão, a ponto de ser difícil lembrar que elas já tinham acontecido.
Eu estava nervosa para contar a Alex que teríamos um bebê, por isso peguei o caminho da covardia e decidi deixar que alguém falasse por mim. Pedi a John que me levasse a Rodeo Drive, apesar de nunca fazer compras ali. Ele me deixou a alguns quarteirões de meu destino desejado. Coloquei óculos de sol e entrei em uma loja estreita chamada Waddlepotamus, repleta de móbiles e ursinhos de pelúcia. Escolhi um macacão de algodão tão pequenino que não consegui acreditar que algum ser com vida coubesse nele. Tinha um dinossauro bordado, e eu me imaginei dizendo a Alex que havia tentado encontrar um bordado com a imagem de um Homo erectus, mas não tivera sucesso. Estava tão animada quando cheguei em casa que subi correndo as escadas. Abri a porta da sala de descanso e dei de cara com Alex. - Você está atrasada - ele disse de maneira seca. Eu sorri. - Você está adiantado. - Segurei a caixa atrás de mim, esperando que ele não tivesse visto. Um músculo ficou aparente no rosto dele. - Você disse que estaria aqui quando eu chegasse. Não contou a ninguém que ia sair. Dei de ombros. - Eu disse a John. Tinha uma coisa a fazer. Alex me bateu tão rapidamente no peito que eu não tive tempo de me preparar. Surpresa, olhei para ele, caída no chão, amassando a caixa e seus fitilhos. Fiz algo que não fizera nos três anos em que aquilo vinha acontecendo: chorei. Não consegui controlar. Eu havia acreditado que havíamos começado do zero e agora Alex, que nunca havia me decepcionado, nos levava de volta à maneira como tudo era antes. Quando ele começou a me chutar, eu rolei para longe dele, sentindo seu sapato me atingir nas costas, nos rins e nas costelas. Dobrei os braços de maneira protetora sobre a barriga e, quando Alex voltou a si, ajoelhou-se ao meu lado e eu não olhei para ele. Esfreguei as palmas de minhas mãos sobre aquela vida que carregava como se ela fosse um amuleto. Escutei os pedidos de desculpa e pensei: "Espero que este bebê odeie você". BARBARA WALTERS ERA MUITO MAIS BONITA pessoalmente do que pela televisão, e ela entrou em nossa casa com a autoconfiança de um general, estrategicamente reposicionando móveis e vasos de flores para dar espaço às luzes e às câmeras. Planejava entrevistar Alex por cerca de uma hora, e depois queria que eu participasse para poder me perguntar algumas coisas também. Durante a entrevista com Alex, eu fiquei sentada ao lado do produtor de segmento, tentando ignorar a dor nas minhas costas e na lateral do meu corpo. Quando a câmera começou a funcionar, estava voltada diretamente para a apresentadora, enquanto ela fazia um resumo e uma apresentação da carreira de Alex, começando com Malfeitor e terminando com a produção que ainda estava em andamento Macbeth. - Alex Rivers - ela disse gentilmente - mostrou ser mais do que mais um rosto bonito. Desde seu primeiro filme, e em quase todas as produções depois, ele procurou escapar de papéis românticos tradicionais para viver homens assustados e imperfeitos. Isso o diferencia de
outros talentosos atores, assim como suas indicações recentes ao Oscar com sua primeira tentativa de direção, A história dele. Conversei com Alex em sua casa em Bel-Air. Depois disso, as câmeras se moveram para incluir Alex na filmagem. - Muitas pessoas usam o seu nome para definir a palavra "astro". O que você diria que caracteriza um astro? Alex recostou-se no sofá. Cruzou uma perna sobre a outra. - Charme - ele disse. E sorriu. - E o fato de você conseguir ou não participar das decisões em um filme. - Ele se ajeitou. - Mas prefiro ser visto mais como um ator do que como um astro - ele disse lentamente. - Não pode ser os dois? - Barbara pressionou. Alex inclinou sua cabeça. - É claro - ele disse. - Mas um é uma vocação séria, e o outro é coisa passageira, e é difícil ser considerado um profissional dedicado quando se é chamado de "astro". Nunca pedi nada disso. Mas gosto de fazer o que faço. - Mas, diferentemente de muitos atores, você não passou dez anos trabalhando como garçom antes de entrar para o ramo. Alex sorriu. - Dois anos. E eu era bartender, não garçom. Ainda consigo fazer bons drinques. Mas tive muita sorte. Eu estava no lugar certo e na hora certa. - Ele olhou para mim. - Na verdade, isso tem sido a história de minha vida. Barbara sorriu. - Vamos falar sobre isso. A história dele é muito autobiográfico? Por um breve momento, Alex ficou nervoso. - Bem - ele disse lentamente. - Eu tive um pai, mas a familiaridade termina aí. - Eu desviei o olhar, olhando pela janela para a tempestade que estava se formando. Íamos gravar a entrevista ao lado da piscina, mas o tempo estava incerto. Em minha mente, eu estava ciente de Alex dizendo a Barbara Walters as mesmas coisas que havia dito a mim na Tanzânia a respeito de sua infância antes de me contar a verdade. Eu olhei para um raio e pensei no quão cansada estava. - Alguns críticos dizem que você deixou de lado o símbolo sexual e que usa sua aparência para chegar às falhas de caráter, digamos assim... para expor o que existe embaixo do personagem. - Barbara inclinou-se para a frente. - Quais tipos de falha existem em seu caráter? Alex esboçou um sorriso que faria com que um milhão de mulheres ficassem sem fôlego quando assistissem ao Oscar e que, naquele momento, fazia meu coração acelerar. - O que faz com que você pense que eu tenho alguma? Barbara riu e disse que seria o momento ideal de me apresentar, Cassandra Barrett Rivers, esposa de Alex havia três anos. Ela esperou até que eu me sentasse no sofá ao lado de Alex como eu havia sido instruída a fazer e então deixou as câmeras começarem de novo. - Vocês dois certamente enfrentaram muitas fofocas que acometem os casais em Hollywood. - Ela se virou para Alex: - É, mais uma vez, uma questão de estar no lugar certo e na hora certa. Eu fiquei parada como uma pedra, sorrindo para Alex como uma idiota.
- Tem mais a ver com não estar no lugar errado na hora errada - ele disse. Mas somos pessoas muito comuns. Passamos muito tempo em casa. Acho que não damos muitos motivos para as pessoas falarem de nós. - Acha que os telespectadores acreditam que vocês dois comem biscoitos na cama e assistem desenhos nas manhãs de sábado e correm na praia? Alex e eu nos entreolhamos e rimos: - Isso mesmo - ele disse. - A única coisa é que Cassie não corre. - Você é uma antropóloga - Barbara disse para mim, mudando o II rumo da conversa. - O que a atraiu em uma celebridade tão "grande" quanto Alex Rivers? - Eu não fiquei atraída por ele - respondi. - Na primeira vez em que nos encontramos, eu derrubei, de propósito, um copo de suco em seu colo. - Eu contei a história de minha chegada ao set do filme na Tanzânia e, enquanto Alex ajeitava-se inquieto no sofá, a maioria das pessoas da equipe de Barbara Walters riu. Quando a gravação mostrou a todos nós de novo, eu me inclinei imperceptivelmente para mais perto de Alex, uma demonstração de apoio. Acho que não o vejo como muitas mulheres o vêem - eu disse com cuidado. Para mim, ele não é uma celebridade; nunca foi. Não me importaria se ele fosse vendedor de carros usados ou se trabalhasse em uma mina de carvão. Ele é simplesmente alguém que amo Barbara virou-se para Alex. - Por que Cassie? De todas as mulheres do mundo, por que ela? Alex me puxou para mais perto e meus olhos se fecharam rapidamente quando encostei a lateral de meu corpo, que estava dolorido, nele. - Ela foi feita para mim - ele disse simplesmente. - É a única maneira de explicar. Do lado de fora, trovejava. - Uma última pergunta - Barbara disse -, e é para Cassie. Diga-nos o que os Estados Unidos não sabem sobre Alex Rivers e você acha que deveriam saber. Chocada, eu olhei para ela, com a boca entreaberta. O ar na sala ficou mais pesado, e a chuva caía como pedra contra as portas francesas. Consegui sentir os dedos de Alex mais tensos em meu ombro e senti uma breve dor nas costelas. "Bem, Barbara", eu poderia dizer, "ele me espanca. E seu pai era terrivelmente agressivo. E ele será pai, mas ainda não sabe porque estou temerosa demais da reação dele para dizer a verdade." Forcei-me a relaxar no abraço de Alex. - Nada - eu disse, minha voz um pouco mais alta do que um suspiro. Nada em que você acreditaria. Dezenove
Eu pensava que minha nota de suicídio seria Você venceu. Não que tivesse sido um jogo, mas nos piores momentos eu sabia que Alex sabia interpretar melhor do que eu; que, quando eu não mais resistisse à pressão e revelasse a verdade a alguém, ele ainda assim conseguiria se safar. E em Los Angeles, uma cidade que ele comandava, em quem as pessoas acreditariam? Mas o verdadeiro motivo pelo qual eu nunca pude contar a ninguém a verdade sobre o nosso casamento tinha menos a ver com medo de não ser
levada a sério do que com Alex mesmo. Eu simplesmente não queria feri-lo. Quando eu pensava nele, não era me agredindo. Eu o via dançando comigo na varanda, fechando um colar de esmeraldas que acabara de me dar, penetrando-me maravilhado. Aquele, para mim, era Alex. Aquele era o homem com quem ainda queria passar a minha vida. Eu nunca o teria abandonado se não houvesse outra pessoa envolvida. Mas eu me forçara a estabelecer um ultimato em minha mente. "Mais uma vez", eu pensei, "mais uma ameaça a esta vida dentro de mim e eu irei embora." Tentava não pensar naquilo como abandonar Alex; eu imaginava aquilo como salvar meu filho. Não me permitia pensar além, pois uma grande parte de mim desejava que aquilo não acontecesse. Até que Alex soube, no dia em que viajaria para a Escócia, que seria apresentado em segundo lugar no programa de Barbara Walters, e não em terceiro. E ele tinha uma certeza supersticiosa de que aquilo significava o que o esperava na festa do Oscar em março. Não seria vencedor; seria um fracasso. Ele me dissera essas coisas e então descontara sua raiva em mim. Bem, você sabe o resto. Devo ter desmaiado devido ao ferimento na cabeça um tempo depois de sair da casa. Eu o encontrei por puro acaso no cemitério de St. Sebastian e você cuidou de mim até Alex voltar da Escócia e me levar para casa. E me lembrei de tudo: no final de fevereiro, vários dias depois de você ter me devolvido a Alex na delegacia, eu estava em pé diante do closet do quarto preparando-me para fazer a mala para voltar para a Escócia com Alex. Encontrei a caixa com o teste de gravidez extra. E tentei acreditar que eu levaria uma parte de Alex comigo quando fugi correndo. UMA HORA DEPOIS DE TER DEIXADO A CASA, eu estava bem longe de Bel-Air, mas não tinha para onde ir. Os bancos estavam fechados e eu tinha menos de vinte dólares na carteira. Não pensei em você, não num primeiro momento. Mais uma vez pensei em correr para Ophelia; e mais uma vez não pude, porque era ali que Alex esperaria que eu estivesse. Não me senti à vontade para procurar ajuda com uma colega da UCLA, e não podia me esconder em meu escritório, pois ali seria o segundo lugar onde Alex procuraria. E então me lembrei do que você me dissera na quartafeira de manhã, e da maneira que olhou para mim depois da briga de Alex no Le Dome. Sabia que você me receberia; talvez soubesse antes mesmo de sair da casa, por isso esperei na esquina por um ônibus que me levasse a Reseda. Sua casa caberia em um canto da nossa, e as árvores em seu gramado estão todas em variados estágios de morte, mas nunca vi nenhum lugar tão convidativo. Uma luz amarela inunda a varanda e quando eu piso nela, sintome protegida, não à mostra. Você abriu a porta antes de eu bater. Não se mostrou surpreso ao me ver; é como se estivesse esperando o tempo todo. Você me coloca em uma saleta no corredor de entrada e fecha a porta. Pareceu perfeitamente natural o fato de você nada ter dito quando começou a passar as mãos delicadamente sobre meu corpo, minhas costelas, quadril. Hesitando nos pontos onde tenho hematomas. Fui ferida. Você sentiu os lugares pelo algodão de minha camisa, como se estivesse percebendo a mudança de temperatura que a dor traz.
E, Will, quando você terminou, olhou para mim. Seus olhos estavam mais escuros do que os de Alex durante um acesso de raiva. Eu olhei para você, sem saber como ou por onde devia começar. Não precisei. Você me abraçou e me deu as simples batidas de seu coração para medir o tempo. Mantive as mãos soltas nas laterais do corpo, tensa por ser abraçada por outro homem. - Cassie - você sussurrou sobre meu cabelo -, eu acredito em você. - Do lado de fora, uma coruja grita. Fecho meus olhos, apoio-me em sua fé e me entrego. Há muito tempo, quando o mundo acabara de começar, seis moças viviam em um vilarejo ao lado de um enorme penedo. Como costumavam fazer, um dia, quando seus maridos estavam fora caçando, elas foram procurar ervas. Algum tempo se passou, cada mulher com seu galho para cavar, até que uma delas encontrou algo novo para comer. - Venham experimentar isso - ela disse às amigas. - Esta planta é deliciosa! Poucos minutos depois, as seis mulheres estavam comendo cebolas. Elas eram tão deliciosas que as jovens comeram até o sol se pôr. Uma das esposas olhou para o céu escuro. - É melhor voltarmos para casa para cozinharmos para os nossos maridos ela disse e todas foram embora. Quando os maridos voltaram para casa naquela noite, estavam exaustos, porém felizes, porque cada um deles havia caçado um puma. - Que cheiro horrível é esse? - um dos homens perguntou ao parar na porta de sua cabana. - Talvez alguma comida que estragou - outro marido disse. Mas, quando eles beijaram suas esposas, perceberam que o odor vinha delas. - Encontramos algo novo para comer - as esposas disseram, totalmente animadas. Elas ofereceram as cebolas. - Aqui, provem-nas. - Tem um cheiro horrível - os maridos disseram. - Não vamos comê-las. E vocês não ficarão na mesma cabana que nós, não com esse cheiro. Terão de dormir do lado de fora hoje. - Assim, as esposas juntaram suas coisas e dormiram sob as estrelas. Quando os maridos saíram para caçar no dia seguinte, as esposas retornaram para o lugar de onde haviam tirado as cebolas. Sabiam que os maridos não gostavam do odor, mas as cebolas eram tão deliciosas que as esposas não pararam de comê-las. Encheram a barriga e se deitaram sobre a terra macia e vermelha. Os maridos chegaram em casa aquela noite irritados. Eles não haviam caçado pumas. - Estávamos cheirando a cebola - acusaram -, por isso os animais fugiram. Foi culpa de vocês. As esposas não acreditaram neles. Dormiram fora de casa mais uma vez, três, quatro noites, até uma semana ter se passado. As esposas continuaram comendo as cebolas que estavam deliciosas, e os homens não conseguiram pegar pumas. Frustrados, os homens gritaram com as esposas: - Vocês devem ir embora! Não aguentamos seu cheiro de cebola! - Bem, não conseguimos dormir ali fora - as esposas contra-argumentaram.
No sétimo dia, as mulheres levaram suas cordas quando foram pegar as cebolas. Uma das esposas carregava sua filha pequena. Escalaram o grande penedo ao lado do vilarejo e viraram seus rostos para o sol forte que se punha. - Vamos deixar nossos maridos - uma esposa sugeriu. Não quero mais viver com o meu. - Todas as esposas concordaram. A esposa mais velha ficou sobre o penedo e entoou uma palavra mágica. Jogou a corda para o céu, que se prendeu em uma nuvem, deixando aponta solta. As outras esposas amarraram suas cordas àquela com aponta solta e se seguraram. Lentamente, começaram a subir, rodando como passarinhos. Elas se moviam em círculos e passavam umas pelas outras, subindo cada vez mais. Os outros moradores do vilarejo viram as esposas subindo no céu. - Voltem! - as pessoas gritavam conforme as mulheres subiam. Mas as esposas e a menininha continuaram subindo. Quando os maridos retornaram naquela noite, estavam famintos e solitários. Desejaram não ter mandado as esposas para longe. Um deles teve a ideia de ir atrás das mulheres, usando o mesmo tipo de mágica delas. Correram para as cabanas, pegaram as cordas e logo estavam indo atrás delas. - Devemos esperar por eles?- uma mulher perguntou com calma. As outras gritaram e negaram. - Não! Eles nos mandaram embora. Não permitiremos que nos peguem. Elas dançaram e penduraram-se em suas cordas. - Ficaremos mais felizes no céu. Quando os maridos estavam perto o bastante para ouvir, as mulheres gritaram para que parassem e eles ficaram exatamente onde estavam, um pouco atrás das esposas. Assim, as mulheres que adoravam cebolas ficaram no País do Céu. Ainda estão ali, sete estrelas chamadas Plêiades. A mais fraca delas é a menininha. E os maridos, que não irão para a casa até suas esposas mandarem, continuam a uma curta distância, seis estrelas na constelação de Touro. É possível encontrá-los brilhando para as esposas, desejando que as coisas tivessem acontecido de outra forma. - Lenda dos monges indianos VINTE No escuro, com um saco de remédios, Cassie contou a Will a história de sua vida. Ela falou a noite toda. Às vezes, Will apenas a observava; às vezes a abraçava enquanto ela chorava. E, quando ficou em silêncio, Will suspirou e recostou-se em seu sofá novo, consciente do silêncio estranho e sufocado. Cassie estava sentada com a cabeça baixa, as mãos entre os joelhos. Will não saberia dizer como sabia que Cassie ia aparecer na porta de sua casa. Soubera antes de ela mostrar sua barriga que estava grávida. Soubera que dependia dele cuidar dela. O que ele não compreendia era como, mesmo depois de tudo, ela continuava preocupada em magoar Alex. - Só preciso me afastar por um tempo - ela disse de repente, assustando Will. Ela assentiu com um movimento de cabeça, como se ainda estivesse tentando convencer a si mesma. - Estamos no final de fevereiro agora, e eu terei o bebê em agosto.
- Posso estar errado - Will disse cuidadosamente, suas primeiras palavras depois de horas. - Mas não acho que Alex vai esperar seis meses. Cassie virou-se para ele. - De que lado você está? - perguntou. O problema era que Alex Rivers tinha o dinheiro e os recursos para encontrá-la em qualquer lugar. - Preciso - Cassie disse - de um lugar onde ele nem pense em me procurar. E foi então que Will compreendeu por que os espíritos haviam levado Cassie até ele uma semana antes, na igreja St. Sebastian. Pensou nas casas de papelão de Pine Ridge, nos salgueiros que pontuavam as planícies como carcaças de animais místicos. Como todo mundo, o governo havia se esquecido dos sioux; a maioria dos americanos não tinha conhecimento de que condições de vida como as deles ainda existiam. A reserva podia, para muitos, ser coisa de outro planeta. Will escutou a respiração de Cassie e virou a mão dela sobre a sua, com a palma para cima, como se pudesse ler seu futuro. - Acho que conheço o lugar que você procura - ele disse. 249 ASSIM, DEPOIS DE PASSAR DUAS SEMANAS EM Los Angeles, Will Cavalo Alado entrou em um avião e foi para o lugar que mais detestava no mundo. Quando chegou em Denver para fazer o voo de conexão, sentiu um nó na garganta e a cabeça girar. Já imaginava a terra vermelha da Reserva de Pine Ridge; os lakotas de olhos vagos, que esperavam suas vidas passarem por eles. Olhou pela janela do avião, sabendo que demoraria pelo menos uma hora, mas ainda esperando ver as pontas rochosas e finas da região de Black Hills. Imaginou os picos rasgando a barriga do avião, espalhando malas cinza e cor de vinho. Ao lado dele, Cassie dormia. Queria acordá-la, apenas para se lembrar exatamente por que havia voltado para trás depois de andar tanto tempo para a frente. Mas ela havia descansado tão pouco na noite anterior que a pele sob seus olhos estava azulada. Ele a invejava - não sua exaustão, certamente não a sua vida, mas sua capacidade de ver aquela viagem como um novo começo, e não como um retrocesso. Ele a deixaria com seus avós, mas ali terminaria sua obrigação. Voltaria para Los Angeles e retomaria de onde havia parado: dias repletos de detalhes sobre o tráfego e violações de velocidade e noites silenciosas e sufocantes. Poderia se tornar detetive no ano seguinte e, se saísse mais com os caras, poderia encontrar alguma mulher para deitar-se do outro lado de sua cama. A verdade é que não compreendia aquela cidade recém-adotada. Não conseguia se lembrar das regras especiais da Delegacia de Polícia de Los Angeles a respeito da prisão de políticos e celebridades. Não sabia o que dizer nos bares quando mulheres perfeitas lhe diziam que liam cristais ou que faziam a dieta da água. Ficava atento sempre que ia para a estrada e via um enorme fluxo de carros, mais pessoas concentradas em uma pequena área do que na cidade onde ele crescera. Mas, independentemente do que ele admitia a si mesmo, era isso o que ele diria ao povo lakota que visse durante o final de semana: "O mundo é grande lá fora; estou no meio de um turbilhão; não trocaria isso por nada no mundo."
Dormindo, a cabeça de Cassie pendeu para a direita, repousando em seu ombro. Ela descansou o braço sobre sua barriga, protegendo seu filho. Aquilo era algo que Will conseguia compreender. Não a atitude egoísta de Los Angeles, mas o conceito de família. Seus pais haviam morrido, mas sempre houvera pessoas para cuidar dele, mesmo que precisassem abrir mão de algo em suas vidas. Will sentiu o cheiro adocicado do cabelo de Cassie, chocado ao sentir o perfume de seu xampu. Descansou o rosto em seus cachos, acalmado pela maravilhosa responsabilidade de ser sua salvação. DURANTE SEUS 81 ANOS DE VIDA, Cyrus CAVALO Alado havia feito cercas, tomado conta de gado, colhido batatas, domado cavalos. Já tinha sido palhaço de rodeio, já havia consertado estradas, matado cobras. Até três anos antes, trabalhara em uma fábrica que produzia anzóis de pesca, mas agora ele fazia os anzóis apenas por fazer; estava tecnicamente aposentado, e até onde ele sabia isso significava nunca ter dinheiro suficiente para as despesas. E isso apesar de Dorothea trabalhar três dias por semana em uma cafeteria da cidade. Ela trazia para casa um salário mínimo, um cheiro de suor e trabalho e sobras de peixe frito e almôndegas. Mas Cyrus se preocupava mais em preencher seu dia com atividades do que com a falta de dinheiro. Ele tinha parentes e era assim que as coisas funcionavam entre os lakota - cada um cuidava de si, mesmo que não tivesse onde cair morto. Ele se sentou em um pedaço de tronco do lado de fora do prédio do governo, onde a madeira estava lisa sob seu traseiro depois de todo aquele tempo. A neve estava derretendo; ainda estava frio, mas o tempo estava agradável o suficiente para se esquecer do inverno se ficasse bastante tempo sob o sol. Naquele dia, ele estava fazendo palavras cruzadas. Não era exatamente um desafio mental; havia conseguido aquela revista com Arthur Dois Pássaros, que apagara todas as respostas a lápis, de modo que quando Cyrus não sabia a resposta, podia pegar seus óculos e olhar a sombra das palavras de que não se lembrava. Sua pele era enrugada, como a paisagem das terras áridas das áreas estranhas da região de Black Hills, onde, na infância, ele acreditava que era onde os espíritos do mal viviam. É claro que agora ele sabia que o mal não se assentava em rochas. Na verdade, entrava nas pessoas, tornando-se parte delas, assim como seu cheiro ou impressão digital. Ele havia visto o mal nos olhos azuis brilhantes da atendente wasicun, no Centro de Assuntos Indígenas? Na expressão cansada do banqueiro que tomara o primeiro caminhão que ele comprou? No olhar perdido e embriagado do vendedor ambulante cujo carro desgovernado matara seu único filho cem anos antes? Cyrus suspirou e inclinou a cabeça para o papel amassado. Algumas das palavras ele não sabia: o marido de Maria fora preenchido como Trump; e aparentemente O amigo de Bert fora preenchido com Ernie. Ficava muito contente quando conseguia completar uma palavra sem ter que olhar as letras de Arthur. Gritos dos necessitados, ele leu em voz alta, batendo o lápis em sua têmpora. Curvou-se, cuidadosamente formando as letras na linha de quatro espaços. D-E-U-S. Ele manda em tudo - Cyrus disse, virando a frase várias vezes, dando ênfase a diferentes palavras na esperança de que a resposta se materializasse.
"Chef" - disse alguém atrás dele, dando uma leve risada em seguida. Ele não havia percebido a aproximação de Dorothea, mas assentiu e preencheu o que agora lhe parecia claro. Colocou o lápis dentro da revista e ficou em pé, pisando na neve derretida com suas botas. Seguiu a esposa para a casa de um cômodo. Dorothea tirou seu casaco e começou a tirar das sacolas salada de repolho e bolo de peru, o prato especial do dia. Suas mãos se mexiam nervosamente sobre a toalha de plástico da mesa, como dois passarinhos voando. Finalmente, ela se sentou e virou os olhos pretos brilhantes para seu marido. - Hoje - ela disse a ele. - Úyelo. Ele está vindo. Cyrus olhou para a curva de seu quadril, a trança pesada de cabelos brancos que descia por suas costas largas. Ela sempre mantivera contato com os espíritos. Ele se sentou pesadamente em uma cadeira diante de Dorothea, fingindo estar aborrecido com suas premonições místicas. Era um jogo que eles faziam, que existia há sessenta anos. Ele pegou um pedaço de bolo de peru com o garfo. - Você está louca, mulher - ele disse como se reclamasse, quando o que queria dizer era "Você é a minha vida." - Como sabe disso? - ele disse. "Você ainda me surpreende." Dorothea gemeu sem explicar. Virou a cabeça e fungou, como se as respostas viessem a ela pelo vento. Ela olhou para ele, séria, e apontou um dedo curvado e com nós grandes. - Pode esperar - ela disse, esboçando um sorriso atrás do aviso. Esticou o braço e apertou a mão de Cyrus com uma força e uma convicção que aceleraram os batimentos dele. Ele olhou para ela. "Eu te amo", ela estava dizendo de modo claro no espaço entre eles onde não existiam palavras. "Caminhe ao meu lado para sempre." ALEX FEZ DOIS TELEFONEMAS. O PRIMEIRO FOI para Herb Silver, pedindo que ele cancelasse a produção de Macbeth por tempo indeterminado; para guardar todos os cenários e itens de produção na Escócia e mandar todos para casa até que ele enviasse mais orientações. O segundo foi para Michaela, avisando-a para se preparar para a grande repercussão que uma mudança tão abrupta causaria. - Não me importa o que você disser para a imprensa - Alex disse com nervosismo. - Dê alguma desculpa de modo que não pareça que eu vou passar uma temporada internado em uma clínica de reabilitação para viciados em droga. - O que está acontecendo, de fato, Alex? - Michaela exigiu saber, mas Alex não conseguia vencer o nó em sua garganta. Desligou o telefone repentinamente antes que fosse forçado a contar mais uma vez o que havia acontecido. Cassie o deixara. De novo. Mas dessa vez era diferente. Não havia ocorrido uma briga, um motivo. Ela havia simplesmente desaparecido como se tivesse premeditado. Alex deitou-se na cama de barriga para cima e tocou a pilha de roupas que ela estava colocando na mala para a viagem para a Escócia, roupas que não fariam diferença agora. Maldição. A última semana havia sido perfeita. Ele vinha se mantendo sob controle, impedindo que tudo começasse de novo. E estava funcionando: ao tocar Cassie, ele vinha sendo gentil e carinhoso, e tudo
o que ela merecia. Ele observara Cassie, por sua vez, dando-lhe pequenas partes de si - um beijo aqui, uma pergunta ali, uma lembrança. Alex vinha colecionando essas partes como flores selvagens, esperando pelo momento em que ela voltaria por completo, um buquê todo diante dele. Ele lhe devolvera seu passado, com alguns detalhes não revelados que ela obviamente descobriria sozinha. Ele nunca quis machucar Cassie, não Cassie, e, todas as vezes em que a agredia, jurava que não aconteceria de novo. Não era da boca para fora; era o que sentia. Se tivesse encontrado uma maneira de voltar seu ódio para dentro de si mesmo e não para ela, teria feito isso sem pestanejar. Alex sentou-se e olhou para a chuva da manhã. Ele havia passado a maior parte da noite anterior com John, percorrendo os bairros que cercavam Bel-Air. John tinha ido até a delegacia discretamente. Nenhuma das companhias aéreas ou terminais de ônibus havia recebido uma passageira com seu nome, casada ou solteira. Por fim, Alex desistiu. Tinha ido sentar-se no quarto, não dormir, apenas esperando que ela voltasse para ele. Ela precisava voltar. Assim que descobrissem que Cassie o abandonara, ou mesmo que estava sumida, começariam a surgir todos os tipos de rumores: infidelidade, divórcio, talvez até a triste verdade. Independentemente da forma que tomasse, a publicidade gerada diminuiria as chances do Oscar. Ele sempre havia podido contar com sua reputação impecável. Alex passou a mão no queixo, sobre a barba por fazer. Ela tinha que voltar. Ele não podia viver sem ela. Cassie tinha sido a única pessoa em sua vida toda que o olhara por dentro e trouxera à tona a alma brilhante e que dizia sem parar sim, você é bom. Ele se lembrou de que certa vez, nas florestas de sequoias, os dois haviam visto duas enormes sequoias separadas que se uniram, inclinando-se para os mesmos raios de sol, até se tornarem uma só árvore. Ele não admitia isso a ninguém, apenas a si mesmo, mas Cassie era, simplesmente, o ponto onde Alexander Riveaux terminava e Alex Rivers começava. 9 EXATAMENTE ÀS NOVE HORAS, UM FUNCIONÁRIO da manutenção destrancou o escritório de Cassie na UCLA para Alex. - Obrigado - ele disse, olhando para o homem sem saber se devia ou não lhe dar uma gorjeta. Alex fechou a porta, olhando para a cadeira de couro com a forma de Cassie, procurando por pistas que sugerissem que ela havia estado ali pouco tempo atrás. Ele estava mexendo na pesquisa sobre sua mesa quando a porta foi aberta. - Bom dia - uma voz eletrônica disse, e Alex olhou para a frente e viu Archibald Custer olhando para ele, com a mão no microfone de voz em sua garganta. - Oh - ele olhou para a sala, procurando por Cassie. - Fiquei sabendo que sua esposa estava doente. Quando vi a luz acesa, pensei... bem, eu estava procurando por ela. - Ela não está aqui - Alex disse, fazendo gestos. - Você provavelmente percebeu. Archibald Custer olhou para ele de maneira estranha.
- Mas você está. Alex olhou para seus dedos, segurando uma pasta de papel manilha onde se lia Pessoal e Confidencial. Os pensamentos dele se confundiram: Cassie não estava ali. Cassie não havia dito a Archibald Custer onde estava, ou ele não estaria procurando por ela. - Ela me pediu para lhe enviar algumas coisas - Alex disse, fingindo surpresa quando Custer ergueu as sobrancelhas quando sugeriu que Cassie estava em outro lugar que não fosse Los Angeles. - Acho que ela ainda não teve a chance de entrar em contato com o senhor ainda. O pai dela está hospitalizado, no Maine, e ela foi chamada para cuidar dele. Ele olhou para seu relógio. - Tenho certeza de que logo ela entrará em contato. Emergências familiares, você entende. - Ele bateu o arquivo na beirada da mesa. - Quer que eu pergunte alguma coisa a ela? Ou quer que eu envie algo a ela com essas coisas? Custer pensou por um momento, olhando para os arquivos cuidadosãmente organizados e os objetos que definiam o pequeno escritório. Convencido de que de fato ela havia ido embora de repente, ele balançou a cabeça, negando: - Vamos conseguir alguém do departamento para colocar no lugar dela até que a situação se ajeite - ele disse com simpatia. - Diga a ela para não se preocupar. - Não - Alex disse. - Tenho certeza de que ela não vai se preocupar. - Ele observou Custer sair e sentou-se na cadeira atrás da mesa. Cristo! Ele estava ajudando Cassie. Havia ajudado a esconder sua fuga. Olhou para a pasta, para as fotos em preto e branco espalhadas sobre a mesa. Osso, uma pelve e uma série de ossos que podiam já ter sido dedos. Nada de estranho para Cassie. Ela estudava coisas como aquelas desde que ele a conhecera. Ele levantou-se e saiu antes de decidir para onde ir. Passando pelos largos caminhos do campus da UCLA, ele chegou à estrada, em Westwood. Ele se lembrou de qual era o apartamento de Ophelia apenas por causa de uma palmeira recurvada que Cassie dizia que lembrava um idoso. Alex bateu à porta. - Merda! Abra, Ophelia. Sei que ela está aí! - Ele respirou fundo, pronto para arrombar a porta com o ombro, da mesma maneira que faziam seus dublês. Ophelia abriu uma fresta da porta, e por dentro o apartamento estava escuro. A fumaça de seu cigarro saiu pela estreita abertura. - Jesus! - ela murmurou. - Parece que ganhei uma grande plateia. Ela soltou a corrente e abriu a porta, ficando em frente de Alex vestindo um roupão salmão de chiffon quase transparente. Por baixo, estava nua. Alex percebeu, sem interesse, que a sombra entre suas pernas não combinava com o tom de seus cabelos. Ela soprou a fumaça nos olhos de Alex. - A que devo a honra? - ela disse, passando a mão pelo nariz. - Vim buscar a Cassie - Alex disse, passando por Ophelia e entrando na minúscula sala do apartamento. Ele sentiu mãos puxando sua camisa por trás, sem conseguir detê-lo. - Bem, você pode querer começar a procurar em um lugar onde ela esteja Ophelia disse. - Não converso com ela desde aquele dia no apartamento. Pensei que ela tivesse ido para a Escócia com você.
Alex olhou atrás das cortinas que iam até o chão e olhou dentro dos armários. - Você mente mal, Ophelia. Conte-me onde ela está escondida. - Ele foi para a cozinha, procurando nos armários, derrubando uma garrafa pela metade de vinho tinto. Ao voltar para Ophelia, ela estava com os olhos arregalados. Ótimo, ela estava assustada. Alex a segurou pelos ombros, chacoalhando-a. - Você a escondeu ontem à noite? Ela lhe contou para onde ia? Ophelia gritou e a porta do quarto se abriu. Alex a soltou abruptamente, correndo na direção do quarto e dando de encontro com um homem em um robe de seda florida, ainda sonolento. - Alex, Yuri. Yuri, Alex. - Ophelia apagou o cigarro na metade de uma laranja em cima do balcão da cozinha. - Viu, Alex? Eu não estava escondendo a Cassie. Estava ocupada fazendo outra coisa. Alex não olhou para ela. - Saia - ele disse a Yuri. Yuri percebeu com quem estava falando. - Ei - ele disse. - Você não é...? - Saia - Alex gritou. Ele empurrou Yuri para a porta e o trancou do lado de fora, e o rapaz ainda usava o robe florido. Ophelia lançou-se a Alex, gritando e o arranhando. - Como você ousa? Entra no meu apartamento como se fosse o dono do mundo... - Ophelia - Alex disse suavemente, com a voz falhando. - Não consigo encontrá-la. Procurei por todos os lados. Não consigo encontrar Cassie. Ophelia passou a mão sem perceber pelo gesso preto de seu braço, observando Alex Rivers sentar-se em seu sofá manchado. Ela pensou em diversas possibilidades e lugares onde tinha certeza de que Alex já havia procurado. O que teria feito Cassie ir embora de repente? Se tivesse a ver com Alex, será que Cassie não sabia que ela faria o que pudesse para ajudar? Ela endireitou as costas e caminhou na direção de Alex até estar em pé diante dele. - O que você fez com ela? - ela perguntou, a voz contida e fria. Alex escondeu o rosto nas mãos. - Deus - ele disse -, eu não sei. O TRAJETO DO AEROPORTO RAPID CITY PARA Pine Ridge durava duas horas, e enquanto Cassie sacolejava dentro da caminhonete alugada percebeu duas coisas: que a terra se estendia sem limites, como se fosse o mar, e que, quanto mais se embrenhavam na região de terra vermelha, mais nervoso Will ficava. Havia um policial na beira da reserva, um cara que cumprimentou Will e olhou para Cassie no banco do passageiro. - Hau, kóla - ele disse. Começou a falar um idioma que Cassie não compreendia. Para sua surpresa, Will tirou os óculos de sol e começou a conversar com o policial no mesmo dialeto e levou o carro para um caminho de grama. - O que ele disse? - Cassie perguntou. - Ele disse oi - Will respondeu. - Em lakota. - Lakota? - A língua do povo. Cassie afastou uma mecha de cabelo da boca.
- Seu nome em sioux é Kóla? Will não conteve o riso. - Não - respondeu. - Quer dizer "amigo". Cassie relaxou. Se eles estavam na reserva e Will já havia encontrado alguém que conhecia bem, era um bom sinal. - Então ele é seu amigo - ela disse, puxando assunto. - Não - Will disse. - Não é. - Passou a mão sobre o volante, dizendo a si mesmo que Cassie não tinha direito de exigir explicações sobre sua vida, mas sabendo que ela não se calaria enquanto não soubesse mais. - Ele é policial da tribo. Estudamos juntos. Certa vez, ele fez com que três crianças me segurassem e esfregou cocô de cachorro em meu rosto. - Assustada, Cassie olhou para ele. - Ele disse que, fazendo aquilo, minha pele ficaria menos branca. - As crianças são cruéis - Cassie disse, sentindo que precisava fazer um comentário. Will disse: - Os índios também. Cassie virou o rosto para a janela, tentando imaginar como Will sabia para onde dirigir. Não havia estradas, apenas caminhos de terra pela neve, ou rastros como aqueles deixados por esquis. De vez em quando, Will virava para a esquerda ou a direita. Nunca desviava os olhos do caminho à sua frente. - Sabe de uma coisa? - Cassie disse. - Talvez você devesse tentar em vez de dizer a si mesmo o quanto detesta. Will pisou nos freios até a caminhonete parar. Cassie sentiu seu corpo prender-se no cinto de segurança e depois voltar para trás. No mesmo instante, levou as mãos ao ventre. Will olhou para ela, incrédulo, e então com um olhar de desgosto virou-se para a frente e começou a dirigir novamente. Ela percebeu a realidade. Afinal de contas, Will - que não a conhecia muito bem -, estava fazendo mais do que podia para ajudá-la. Ela não tinha o direito de se intrometer em sua vida, muito menos criticar a maneira como ele vivia. - Sinto muito - Cassie disse. Will não respondeu, mas assentiu com a cabeça. Alguns momentos depois, a planície vazia deu espaço a um pequeno amontoado de cabanas, algumas feitas de madeira e outras de papelão. Três crianças estavam correndo pela neve com tênis e camisas de manga curta, brincando com galhos de pinheiros. - Estes são os nossos vizinhos mais próximos - Will disse, diminuindo a velocidade e apontando para as casas. - Charlie e Linda Cachorro Risonho, Bernie Mineiro, Rydell e Marjorie Dois Punhos. Abel Sabão vive naquele monte, naquele ônibus. Cassie tentou controlar a vontade de rir que lhe afligiu. Um dia atrás, ela havia tomado banho em uma banheira de mármore verde com detalhes em ouro. Havia caminhado em carpetes macios e usado um roupão de seda chinesa. Sentira-se um pouco desconfortável com o luxo na casa de Alex, mas aquilo era o outro extremo. Estava no meio do nada, escondida entre pessoas que não sabiam nada sobre água encanada, que viviam em ônibus escolares quebrados. Ela apertou as mãos para não agarrar Will pelo casaco e pedir Para que ele a levasse para casa. Cassie mordeu o lábio e voltou a olhar para Will, consciente da dor que ele carregava, o fracasso que deixava seu rosto triste. Como seria sair dali,
finalmente, mas voltar algumas semanas depois, por causa de problemas alheios? Quando Cassie esticou o braço e apertou a mão dele, Will retribuiu o gesto, mas não sem que antes ela percebesse a surpresa em seus olhos. Ele parou o caminhão no quintal da frente de uma casa pequena de cimento. Imediatamente, um vira-lata preto que estava preso a uma cerca começou a uivar. - Ei, Wheezer - ele disse. - O cão abanava o rabo com força. - Sentiu minha falta? Cassie ficou sentada por um momento dentro do veículo, respirando e pensando. Quando saiu, afundou até os joelhos na neve. Caminhou com dificuldade até Will e o cachorro. - Sempre neva tanto assim? Will se assustou com o som de sua voz, como se tivesse esquecido de que ela estava ali. - Na verdade - ele disse, virando-se na direção dela -, grande parte está derretida. Na maior parte dos invernos, a neve ultrapassa a sua altura. Wheezer pulou e colocou as patas no peito de Will. Abaixou as orelhas; começou a chorar. Will olhou por cima da cabeça do cachorro para a porta de entrada da cabana, que lentamente se abria. Cassie observou um homem sair pela porta. Tinha a mesma altura que Will, mas sua pele parecia estar solta de seu rosto. Seu rosto era cor de castanha e tinha muitas rugas. Desceu as escadas e ficou diante de Will, murmurou alguma coisa em lakota e o abraçou. Cassie se mexeu com nervosismo, batendo um pé no outro para afastar um pouco da neve. Wheezer cheirou sua mão, procurando comida. - Sinto muito - ela disse. - Não tenho nada. Ao escutarem a voz dela, Will e o avô olharam para ela. Mas, antes que Will pudesse apresentá-la, uma mulher apareceu na porta. Tinha uma longa trança branca jogada sobre um ombro; seus olhos eram intensos. Seus pulsos cerrados estavam plantados no quadril, prontos para um confronto, e quando falou com a voz baixa, não falou no dialeto indígena: - Então - ela disse a Will, apesar de não ter desviado o olhar de Cassie. Ela olhou dos cabelos de Cassie para seus joelhos cobertos de neve e continuou -, você volta da cidade grande, e é isso o que nos traz de lá? A CASA DE Cyrus E DOROTHEA CAVALO ALADO era uma de cerca de cem residências subsidiadas pelo governo para os cidadãos sioux idosos. Eles haviam se mudado para lá havia cerca de dez anos, apenas; Will passara grande parte de sua infância vivendo em uma cabana de madeira como aquelas pelas quais eles haviam passado no caminho de entrada na reserva. Mas as casas do governo eram consideradas chiques para os padrões lakotas. Contavam com água encanada, eletricidade e descarga que funcionava na maior parte do tempo. Com exceção do pequeno banheiro em um dos cantos da residência, o resto da construção era um único cômodo. A área da cozinha, onde Cassie estava sentada, era muito limpa e parecia ter sido feita com fórmica dos anos 1950. A parte de cima era verdeabacate com pequenos detalhes dourados, e a mesa que partia de uma parede era de mármore rosa falso. Havia uma fileira de armários pendurados sem pintura e
sem portas, mas a maioria das latas e dos jarros de vidro ficava embaixo da pia e nas prateleiras feitas de tábuas e blocos de concreto cinza. Havia uma geladeira - bem antiga, com um grande ventilador em cima - que engasgava e tremia a cada poucos segundos. O restante da casa era formado pela grande área de estar e o "quarto", separado do resto do espaço por uma cortina de algodão. Havia um sofá e uma poltrona que não combinavam sobre um tapete vermelho. Em um canto do sofá havia uma bola de fios, atravessada por agulhas de tricô, do outro lado, uma bolsa de couro meio bordada com miçangas azuis. Um grande cilindro de madeira, do tipo usado por eletricistas para enrolar fios elétricos, era agora uma mesa de canto, e estava repleta de revistas de três ou quatro anos atrás. Cassie não havia visto o quarto, onde Will entrara com seus avós para poder conversar com eles a sós. Ela os escutou sussurrar, bem baixinho, mas não fazia muita diferença, já que eles falavam em lakota. Ela passou os dedos sobre a mesa de fórmica e contou até dez. Esfregou as costas da mão sobre a leve protuberância em sua barriga. E pensou: "Saiba que eu estou fazendo isso por você". Will foi o primeiro a sair de trás da cortina, com o rosto sério. Em seguida, saiu sua avó, com os braços cruzados e, por fim, seu avô. Havia sido mais difícil do que ele imaginava, uma vez que Cyrus e Dorothea nunca haviam escutado falar de Alex Rivers, por isso não podiam entender por que Will tivera de levar Cassie a Pine Ridge. Ele havia contado tudo aos avós, incluindo a agressão física que Cassie sofrera, e de sua gravidez, mas eles estavam em pé, olhando para Cassie como se ela fosse uma mulher má que havia causado tudo o que lhe ocorrera. - Cassie Barrett - Will disse, intencionalmente, deixando de mencionar seu nome de casada -, estes são meus avós, Cyrus e Dorothea Cavalo Alado. Eles ficarão satisfeitos de mantê-la aqui até o nascimento do bebê. Cassie não conseguiu conter o calor que lhe subiu pela barriga, pelos seios e fez seu rosto corar. Disse a si mesma que não se tratava de vergonha, mas, alívio. - Obrigada - ela disse discretamente, esticando a mão. - Vocês não sabem o que isso significa para mim. Nem Cyrus nem Dorothea apertaram a mão de Cassie. Ela esperou por um momento e passou a mão em seu casaco e deixou que ela descansasse ao lado de seu corpo. Will aproximou-se dela e inclinou-se para dizer: - Vou inventar uma história para deixá-la sozinha com eles - ele disse. - Acredite: eles só precisam de tempo para conhecê-la melhor. - Ele apertou o ombro de Cassie e voltou-se para seus avós. Dorothea já tinha ido para a cozinha para começar a lavar os pratos. - Vou até Abel Sabão para saber se ele continua vivo - Will disse tranquilamente. - Ele me deve cinquenta pratas. Caminhou em direção à porta, onde Wheezer já o esperava. - Lembrem-se: nada de falarem em lakota. Vocês prometeram. Will fechou a porta e Cassie olhou para ela por diversos segundos. Apesar do barulho da água, pôde escutar Dorothea murmurando em lakota. Às vezes ela olhava para trás, como se quisesse ver se Cassie tinha saído. Era óbvio
que a idosa falava a sua língua; poderia lhe dar uma chance de aproximação. Endireitando-se, Cassie virou-se para Cyrus e perguntou: - O senhor pode me dizer o que ela está dizendo? Cyrus deu de ombros e caminhou em direção ao sofá. - Ela gostaria que Will tivesse levado você com ele. Durante alguns minutos Cassie ficou em pé no meio da sala de estar, decidindo se choraria ou se sairia pela porta e continuaria até chegar a Rapid City. Cyrus acomodou-se na almofada do meio do sofá e pegou a linha e as agulhas. Envolveu os dedos com o fio e mexeu as agulhas cada vez mais com rapidez, até que elas batessem como dentes. Dorothea terminou de lavar os pratos e começou a varrer o chão sem manchas da cozinha. Na verdade, os avós de Will não demonstraram a menor vontade de deixar Cassie mais à vontade, ou conversar com ela de maneira civilizada e nenhum deles achava que aquele comportamento era grosseiro. Cassie se lembrou de um colega que fizera sua dissertação a respeito do que chamou de etiqueta da tapera: como os índios das planícies do século XIX viviam. Cassie se lembrava de algo sobre as mulheres ficarem de um lado e os homens de outro, a respeito de os guerreiros comerem antes que todas as outras pessoas, sobre a falta de educação de caminhar entre uma pessoa e a fogueira central. Cassie não sabia se aqueles costumes continuavam válidos, mas sentia que existia um conjunto de regras sobre as quais não havia sido informada, regras que ela teria de aprender sozinha. Começou organizando as revistas. Cyrus olhou por cima de suas agulhas uma vez, reclamou e continuou tricotando. Quando Cassie havia formado duas pilhas organizadas, foi para a área da cozinha. Procurou pelos armários até encontrar uma pilha de panos limpos e molhou um deles com água e sabão e começou a esfregar a parte da frente da geladeira. Dorothea não olhou para Cassie, nem mesmo pareceu perceber que ela estava a menos de um metro dela. - Sabe - Cassie começou, a voz alegre e alta demais para a pequena casa -, tenho um amigo na UCLA que é especialista em antropologia dos índios americanos. Ela não disse que o homem era antropólogo cultural, pois mal o vira nos últimos três anos. Mas procurou lembrar de seu curso e do próprio trabalho de graduação. - A verdade é que não sei nada sobre índios - ela disse. - Não sei o que Will disse, mas minha especialidade é sobre povos mais antigos. Ela lavou o pano na pia. - E armas - ela disse. - Sou muito boa quando o assunto é armas. Fiz minha dissertação a respeito de violência, se ela era aprendida ou adquirida... Cassie parou, pensando na ironia daquilo, dado o resultado de seu casamento. Sem receber resposta ela continuou falando. - Vejamos... consigo me lembrar de um grupo do Novo México chamado cultura Clóvis que inventou uma lança de pedra que poderia ser lançada com um arco, o que obviamente facilitava a caça de mamutes... - A voz de Cassie falhou ao pensar nesse grupo de nómades de quarenta mil anos antes matando uma enorme fera; e então pensou no avô de Cyrus, que devia caçar búfalos mais ou menos da mesma maneira cerca de cinquenta anos antes. Ela parou, percebendo que parecia estar dando uma palestra. Sobre sua cabeça, Cyrus e Dorothea trocavam olhares como se dissessem: "Ela é sempre assim?".
- Bem - Cassie disse, mais contida. - Vocês provavelmente sabem disso. Ela balançou a cabeça, chamando-se de tola por ter chegado como uma locomotiva quando deveria ter sido mais tranquila. Dorothea se aproximou dela e torceu o pano de limpeza, esticando-o sobre a pia e fazendo um gesto com as mãos para que Cassie compreendesse que era assim que ela gostava que fosse feito. Dorothea olhou ao redor, na cozinha brilhando, fez um movimento positivo com a cabeça e vestiu seu casaco. Atravessou na frente de Cassie, segurando seu queixo com os dedos fortes e virando o rosto dela para cima. E disse algo em lakota, uma estranha coleção de sons e sílabas que Cassie achou mais suave do que uma canção de ninar. Depois que Dorothea saiu pela porta, Cyrus ficou perto da janela, observando-a voltar para o trabalho para o turno da tarde. Sabia o que Cassie estava prestes a perguntar. - Ela disse que você deve se lembrar de algo quando estiver com os índios - ele traduziu. - O que você considera espécies da história ainda são nossos tataravós. Ele não se virou, mas gesticulou, chamando Cassie. Ela ficou e caminhou até Cyrus, e ele pousou o braço sobre seu ombro, em um gesto que não era bem um abraço, mas uma maneira de chamar à realidade. Seus dedos longos e retos descansaram em sua clavícula. Cassie observou a vasta paisagem com Cyrus, sabendo que ele não percebia os mares de neve, as carcaças de caminhões abandonados e as lonas rasgadas da cabana de um vizinho. Em vez disso, ele via o lugar onde os passos de seus ancestrais estavam sob os dele, o lugar que - por esse motivo - ele chamaria de lar. Will SENTOU-SE NA PILHA DE TRAVESSEIROS que estava usando como cama e olhou para Cassie, adormecida no sofá-cama. Quando vivia com os avós, aquela era a sua cama e ele observou o corpo dela pressionar as marcas do colchão que ele havia feito. Ele estava banhado em suor; estava sonhando com ela. Por mais maluquice que fosse, ela era uma raposa, membro de uma das sociedades antigas de guerreiros. Todo garoto sioux crescera ouvindo falar sobre os raposas e os Corações Valentes, desejando que o povo ainda estivesse em guerra com os ojibuas para que também pudessem ganhar prestígio e provar sua valentia. Os raposas eram os mais drásticos. Vestiam faixas vermelhas que colocavam no chão, mostrando que brigariam naquele ponto até que vencessem, mortos ou libertados por um amigo. Will lembrava que brincava disso atrás da escola durante o recreio; lembrou que um dia pegou o lenço de sua avó para usar como faixa e ficou de castigo durante um mês. No sonho, a barriga de Cassie estava maior, e ela usava a faixa alta, um pouco abaixo dos seios. A distância, Will a vira na terra macia, começando a cantar: Sou uma raposa. Tenho que morrer. Se há alguma coisa difícil Se há alguma coisa perigosa sou eu quem tem que fazer. De repente, Alex Rivers reaparecia, andando ao redor dela, aproximandose cada vez mais. Bateu na cabeça de Cassie e, de onde ele estava, Will
tentou alertá-la, mas ela não se moveu. Manteve-se em pé, mesmo quando os golpes deixaram seus olhos marejados. Will sonhou que ele gritava a plenos pulmões e começava a se mexer, correndo na direção do lugar onde Cassie estava. Sem perder velocidade, ele se abaixou e pulou onde ela estava, passando o braço ao redor de seu quadril e forçando-a a correr o máximo que pudesse. Ele acordou ofegante, nervoso e surpreso por Cassie estar a um metro dele, encolhendo e esticando os dedos enquanto dormia. Ele se moveu em silêncio, em ritmo com o som da respiração de seu avô vindo de trás da cortina do quarto e sentou-se na beirada do colchão. Cassie acordara antes de ele apoiar todo o peso de seu corpo. Will colocou um dedo sobre os lábios dela e então apontou na direção da cortina. - Vou embora amanhã - ele sussurrou. Cassie se esforçou para sentar, mas Will colocou a mão sobre seu ombro, pressionando-a para que se mantivesse deitada. - Por quê? - Porque tenho um emprego em Los Angeles. Porque detesto aqui. - Will sorriu. - Faça sua escolha. Ela sabia que as coisas chegariam àquele ponto; ele havia dito claramente. Mas, para seu horror, Cassie ficou triste. - Não pode me deixar aqui sozinha - ela sussurrou, sabendo muito bem que ele podia e que iria. Quando ela deu as costas para ele, ele passou a mão sobre a sobrancelha dela, sentindo-se culpado. Cassie era pequena e simples, uma mulher comum; ele havia visto centenas de mulheres mais bonitas que ela. Tentou descobrir o que aquela mulher tinha que tirava sua razão, que podia fazer um astro de cinema querer se casar. Will olhou para a nuca de Cassie, forçando-se a se lembrar de como mantinha o polegar sobre seu boletim escolar quando o carregava para casa, pois os alunos eram relacionados não apenas pelo sobrenome, mas também pela porcentagem de sangue indígena em suas veias. Tentou pensar no inverno em que ele seus avós haviam sobrevivido comendo carne-seca e abóbora, porque o programa de racionamento do governo estava fora de controle. "Sim", ele pensou, "preciso me distanciar." Mas mesmo depois de pensar isso ele se deitou atrás de Cassie até suas costas trêmulas ficarem grudadas em seu peito. Ele não se mexeu atrás dela, não quis transformar aquilo em algo que não era. Em vez disso, escutou o coração dela e o ronco suave dos avós, entrelaçados. Delicadamente, pousou a mão sobre o ventre de Cassie. - Você não estará sozinha - ele disse. Vinte e um Durante o mês de março, enquanto a neve em Pine Ridge derretia e se formavam poças presas entre os choupos, Cassie se acostumou com a reserva. Por ser seu porto seguro, ela não via o local como era: um lugar com índice de assassinatos maior do que qualquer outro nos Estados Unidos, um povo arrasado pela pobreza e pela indiferença. Em vez disso, ela preferia perceber a beleza dos bebês, como as poças de lama refletiam sua barriga em
crescimento, como o sol se enroscava nos galhos das árvores e como o silêncio tinha um barulho todo seu. - Você vem ou não vem, wasicun wínyan? A voz de Dorothea assustou Cassie, que estava debruçada na janela. Ela ainda não se sentia confortável com a avó de Will, mas queria sair da casa. - Adoraria - ela disse, colocando seu casaco e se esforçando para fechar os botões na barriga. Dorothea estava de folga da cafeteria naquele dia e, como o solo estava começando a melhorar, ela sairia para buscar mais raízes e ervas. Durante as semanas passadas com os Cavalo Alado, Cassie passara a compreendê-los melhor. E, apesar de Cyrus e Dorothea não serem exatamente amigáveis, tampouco a ignoravam; na verdade, paravam para apresentá-la quando alguma pessoa da vila olhava para ela com curiosidade. Cassie começava a perceber que as coisas eram diferentes ali - que um homem podia vestir a mesma camisa cinco dias seguidos simplesmente por não ter outra; que uma mãe costumava dar mais salgadinhos e refrigerante a seu filho do que grãos e leite. Ela havia alterado seu conceito de tempo, o que significava que as pessoas comiam quando tinham fome e descansavam quando sentiam necessidade. E estava se acostumando com a economia de palavras dos lakotas. Ela percebia que diferentemente das pessoas brancas, que conversam para preencher os espaços nas conversas, os lakotas acreditam ser completamente normal não dizer nada. Assim, Cassie caminhava pela mata com Dorothea sem nada dizer, escutando o vento e a grama sendo pisada. - Wanláka he? Está vendo aquilo? - Ela estava apontando para uma árvore familiar, ainda nua. Cedro? - Cassie perguntou, percebendo que estava sendo testada. Dorothea assentiu, impressionada. - Ainda está cedo, mas nós fervemos os frutos e as folhas e bebemos o remédio para curar tosse. Durante uma hora e meia Cassie escutou Dorothea descrever uma antiga arte de cura. Alguns dos itens ainda não estavam bons por causa do inverno: taboa, que era usada como gaze; cálamo para febre e dor de dente; olmo americano como laxante; verbena selvagem para dor de estômago. Dorothea afastou as raízes do malvavisco, que se tornaria um remédio para queimaduras de sol e feridas abertas. Ela pegou goji, porque melhorava a vista cansada de Cyrus. Quando ela se sentou encostada em um choupo, sem ligar para a terra molhada que umedecia sua calça de poliéster, Cassie fez o mesmo. - Não sabia que a senhora era uma curandeira. Dorothea balançou a cabeça, negando. - Não sou - ela disse. - Apenas sei algumas coisas. - Ela deu de ombros. Além disso, tem muitas coisas sobre as quais não posso fazer nada. É para isso que serve um curandeiro. Temos Joseph Cabanas ao Sol - Cyrus apresentou você a ele na cidade na semana passada. Existem algumas doenças que vivem aqui - ela apontou para o coração - e existem algumas doenças que não podem ser curadas. - Está se referindo a algo como o câncer - Cassie disse. - Hiyá. Dorothea respondeu, negando. - Isso é apenas algo ruim no corpo. Marjorie Dois Punhos foi para Rapid City e teve o câncer removido de seu seio e está bem há anos. Estou falando sobre algo ruim. Na ton. A alma. - Ela olhou
fixamente para Cassie. - Os índios acreditam que um bebê nasce bom ou mau. E pronto. Você pode fazer mudanças até o nascimento, mas depois dele não adianta. E um bebê mau se transforma em um homem mau. Os olhos de Dorothea mantiveram o olhar de Cassie e ela se virou. Em uma sociedade em que os filhos de alguém eram um presente que poderia deixar feliz uma casa, como Dorothea via um homem que humilhava o filho? Uma mãe que se esquecia da existência dele. Cassie queria dizer a Dorothea que seu marido não havia nascido mau; que ele simplesmente havia sido convencido disso tantas vezes que assumira o papel. Um vento frio bateu, tirando Cassie de seus pensamentos. Ela olhou para o avental cheio de ervas de Dorothea. - A senhora e Joseph Cabanas ao Sol devem roubar muitos clientes dos médicos da cidade - ela disse. Dorothea pegou um galho, quebrando a madeira e revelando um pequeno botão verde. - Às vezes é mais fácil para as pessoas virem até mim do que ir ao médico; algumas pessoas não acreditam em médicos. Por quê? - Porque sempre tivemos curandeiros, mas nem sempre existiram médicos wasicun. - Wasicun. O que quer dizer? - Cassie perguntou rapidamente, reconhecendo a palavra lakota. - Parece com o que vocês me chamam. Como todos me chamam. Dorothea pareceu surpresa, como se qualquer idiota pudesse ter percebido antes. - Significa "branco" - ela disse. Cassie disse a palavra de novo, testando-a. - É bonita. Dorothea ficou em pé e olhou para Cassie. Com sua sinceridade típica de um sioux, ela disse: - Tem origem em três palavras lakotas que podem ser traduzidas como: "pessoa gorda e gananciosa". Cassie passou lentamente pela lama, forçando-se a ficar calada. Ninguém se interessara por ela ali, ninguém gostara dela. Durante toda a sua vida, desempenhou papéis para agradar às pessoas e sempre falhava, simplesmente por causa de quem ela era: uma criança carente, esposa de Alex, uma mulher branca. Tentou imaginar se, como Dorothea havia dito, isso era algo que havia nascido com ela, um defeito de seu espírito. Quase deu um encontrão em Dorothea, pois não percebeu que a mulher havia parado. - Quando eu era criança, eu tinha sete irmãs. Vivíamos um pouco mais próximos da cidade de Pine Ridge. É claro que meus pais não tinham dinheiro, comida ou roupas suficientes para nós, muito menos brinquedos, por isso só podíamos brincar com botões velhos e ursinhos de pelúcia do Exército da Salvação no Natal, e com coisas que nós podíamos fazer. Minha irmã mais velha nos ensinou a fazer bonecas com abóboras, com trapos que conseguíamos encontrar no lixo. Enrolávamos os trapos ao redor da cabaça da abóbora, como se fosse lenço, e amarrávamos os tecidos para fazer braços e pernas.
- Elas eram ótimas, aquelas bonecas. E o que eu me lembro era que todos os anos, enquanto minhas irmãs tentavam encontrar abóboras verdes e lisas sem furos, eu procurava por aquelas com duas cores, amarela e verde, meio a meio. - Dorothea, de repente agarrou a mão de Cassie, que ficou surpresa com a força de seus dedos morenos. - As híbridas são fortes, sabia? Elas duram mais tempo. E são bonitas à sua maneira, Cassie, han? As mulheres caminharam cuidadosamente, ambas sem querer quebrar o tênue elo que Dorothea havia tecido entre elas chamando Cassie, pela primeira vez, por seu nome. QUANDO ALEX Rivers ESTAVA FAZENDO O NÓ DE SUA gravata borboleta preta, pensou a respeito de Macbeth, o personagem que ele havia deixado parado por um mês antes de retomar a produção na semana anterior. Ele estava começando a entender a personalidade do personagem, muito mais do que havia compreendido ao começar o filme. Havia um terror no casamento de Macbeth - uma percepção de que a mulher diante dele não era a mesma mulher com quem ele havia se casado; que ela tinha uma capacidade de agir de certa maneira que ele não acreditava ser possível existir. Sua situação pessoal era claramente diferente, mas ainda familiar. Certamente havia cometido erros, mas nunca imaginara que as coisas chegariam àquele ponto. Quando voltou para casa e não encontrou Cassie, ficou tentando procurá-la nos quartos duas vezes, nos armários e no sótão. Era difícil aceitar que ela tinha ido embora. Acontecia com outras pessoas, especialmente em Hollywood, onde os casamentos eram mais uma confecção de publicidade do que o fruto de um amor. Mas as coisas nunca tinham sido daquela forma entre ele e Cassie. Ele não havia acreditado que ela poderia ir embora, em grande parte porque não conseguia admitir para si mesmo que talvez ele precisasse mais dela do que ela dele. Alex passou um pente pelo cabelo e ajeitou o colarinho de sua camisa. Em cinco minutos sairia para ir à casa de Melanie Grayson. Ela era a sua senhora Macbeth; eles iriam juntos para o Dorothy Chandler Pavilion, onde a cerimónia do Oscar seria realizada. Ele olhou para o espelho, sem reconhecer muito bem a pessoa que viu. Sabia que seu maior trabalho de atuação não seria aquele pelo qual talvez recebesse um Oscar, mas, sim, a interpretação que faria naquela noite quando ficasse diante de milhares de pessoas, fingindo que se importava se ganhasse ou não. Herb estava esperando lá embaixo com uma limusine Mercedes. - Hoje estou com azia - ele disse. Sorriu para Alex. - Conversou com Cassie? - Acabei de falar com ela ao telefone. Ela me desejou sorte. - Argh, sorte. - Herb disse. - Você é um engraçadinho. Que pena que ela não pôde vir, ao menos hoje. Mas eu sei como as coisas são nessas situações extremas, quando não queremos sair de perto da pessoa doente nem por um minuto. Alex concordou. - Ela disse que, se eu ganhar o prêmio hoje à noite, seu pai terá uma repentina melhora. - Que Deus o ouça - Herb murmurou e empurrou Alex em direção à porta. Vamos buscar Melanie e depois poderemos ir.
Alex não saiu da limusine quando chegaram à casa de Melanie. Ele sabia que aquilo estava longe de ser um encontro romântico e não planejava passar a impressão errada. Ele deixou o Herb levar a atriz da porta de sua casa para o banco traseiro da limusine, onde já havia lhe servido uma taça de champanhe. - Você está adorável - Alex disse, sabendo que era o esperado. Melanie passou a mão em sua saia de cetim branco que estava grudada em seu corpo como a pele de uma cobra. - Esta coisa velha? - ela disse sorrindo. Todos sabiam que ela havia gastado uma quantia exorbitante no vestido ostentoso e que havia tentado incluí-lo no orçamento de Macbeth. Ela disse que não teria que ser tão cuidadosa com sua aparência se não fosse se sentar ao lado de Alex, sobre quem todos os refletores ficariam pelo menos três vezes na noite. Ele olhou pela janela quando o tráfego começou a ficar pesado vários quarteirões antes do prédio. Cassie nunca teria vestido uma roupa como aquela. Escolheria alguma coisa original, é claro, porém simples e bonita. Assim como ela. Ele foi ficando cada vez mais irritado com Melanie. Sua coxa estava pressionada muito perto da dele; seu cabelo era da cor errada; e seu perfume não era o de Cassie. - Está nervoso? - ela ronronou, esfregando seu braço. Alex não respondeu. Olhou para a mão na manga de seu casaco como se fosse uma tarântula. - Crianças, crianças - Herb falou do assento diante deles. - Vamos nos beijar e fazer as pazes. Lembrem-se de que é para o bem da divulgação. Alex sabia que Herb tinha razão; havia muitos rumores acerca da última interrupção na produção de Macbeth, tantos que Alex estava começando a lembrar do inferno que havia passado com António e Cleópatra. Talvez tivesse azar com Shakespeare. - Isso mesmo, Alex - Melanie disse, a centímetros de seu rosto. - Vamos nos beijar e fazer as pazes. Alex rodou a aliança de casamento em seu dedo, um hábito que passara a ter nos últimos tempos, como se fosse um lembrete necessário. "Se você ganhar", ele pensou, "independentemente do que fizer, não a abrace." Herb deu um tapinha no joelho de Melanie. - Deixe-o em paz. Ele é sério. - Eu sei - Melanie disse. - É isso o que todos amamos nele. Alex ignorou a conversa dos dois até a limusine ser a próxima da fila. - Está pronto para os urubus, querido? - Melanie perguntou, fechando sua embalagem de pó compacto. Alex saiu no sol da tarde primeiro, semicerrando os olhos e levantando a mão em um meio aceno, protegendo os olhos da luz. Ele voltou-se para a limusine para ajudar Melanie a sair, vendo-a abrir um amplo sorriso forçado. Ela colocou a mão sobre o braço dele e, quando ele reclamou levemente, soltou-o. Havia muitos gritos e apelos do público ao redor para que ele escutasse os jornalistas, percebesse os flashes ou as câmeras gravando-os. Ele caminhou
ao lado de Melanie, mexendo a cabeça e sorrindo, tentando fazer uma cara que mostrasse que não tinha muita convicção a respeito de suas chances. O homem que caminhava na frente dele era um produtor da Fox, e, apesar de Alex não lembrar seu nome, sua maneira recurvada de caminhar e manchas na testa eram familiares. Ele e sua esposa eram corcundas e pequenos, e Alex tentou imaginar se aquela condição devia-se à idade ou simplesmente pelo casamento longo em Hollywood. Eles caminhavam tão vagarosamente pelo tapete vermelho que várias vezes Alex havia sido forçado a parar e simplesmente ficar em pé esperando, sorrindo como um idiota. O homem se virou e percebeu pela primeira vez que Alex estava atrás dele. Ele parou, esticando o braço. Alex apertou sua mão. - Nó na garganta - o homem disse. - Desculpe? - Nó na garganta. Quando vi seu filme, fiquei com um nó na garganta. Mexeu muito comigo. - Ele esticou o braço e apertou o ombro de Alex. - O melhor dos melhores hoje à noite, certo? Alex já escutara aquele tipo de comentário a respeito do filme. Todos tinham um pai, uma irmã ou amigo com quem não se davam, e o papel de Alex havia incentivado todos a fazerem as pazes. Alex Rivers, rei das reconciliações. Sultão da reaproximação. Com um grande segredo: a esposa que o abandonara. Enquanto esperava no tapete vermelho, ele escutou as palavras "levar todas" e percebeu que as pessoas estavam falando sobre o potencial do filme A história dele de sair com um prêmio para cada uma de suas indicações, incluindo a trinca de ouro de Melhor Ator, Melhor Diretor e Melhor Filme. Levar, levar, levar. A palavra não saía de sua mente, fazendo com que Alex imaginasse como teria sido ter Cassie a seu lado, o que os jornalistas diriam quando ele a abraçasse e a levasse pelo corredor dançando uma valsa, como se nada naquela noite fosse mais importante do que ela. Eles ESTAVAM NA MESMA CASA DE UM cômodo havia três dias, mas Cassie ainda se sentia constrangida por estar vestindo uma camisa velha de Cyrus e uma calça de poliéster verde amarelada com elástico na cintura de Dorothea. Will bateu na porta da frente como se não estivesse vivendo ali temporariamente. Quando Cassie abriu a porta, ele olhou para seu cabelo preso em uma trança e para as roupas largas. - Uau - ele disse -, você está linda de morrer. - Dá um tempo - Cassie disse, dando risada. - Não tenho cintura e nunca vesti nada dessa cor antes. Era a primeira vez que Will havia voltado para Pine Ridge desde que partira, um mês antes. Dissera aos supervisores que um familiar havia falecido, o que lhe rendeu uma semana de licença. Queria acreditar que nada além de um enterro o faria voltar para Pine Ridge, mas, na verdade, ele só queria levar Cassie ao Oscar. A TV mais próxima ficava a trinta e cinco quilómetros, em um bar, e ele sabia que ela nunca iria até lá sozinha. - Então - ela disse, entrando na caminhonete alugada de Will. - O que estou perdendo em Los Angeles? Will deu de ombros. - O de sempre: muita poluição, algumas chuvas torrenciais, o burburinho de Hollywood. - Ele olhou para ela rapidamente, esperando que compreendesse
que ele não pretendia incluí-la no final daquela lista. Na verdade, ele estava acompanhando aqueles programas ridículos de entretenimento, mas nada havia sido dito a respeito do desaparecimento de Cassie Rivers. O prédio não tinha nome nem número, porque todos sabiam onde ficava e o que era. Estava bem cheio, uma vez que era o local mais próximo da reserva onde era possível tomar uma bebida, e Will esperava que não houvesse problemas. Ele não havia dito a Cassie, mas era sabido que ocorriam esfaqueamentos e estupros no estacionamento e que a polícia procurava se afastar em vez de fazer perguntas. Atrás do bar descuidado existia uma placa velha e desbotada onde se lia Lei Lakota Kin Iyokipisni, "Não é permitida a entrada de sioux". Estava rachada ao meio por um tacape, preso na viga atrás dele. Cassie era a única pessoa branca do bar, e uma das poucas mulheres. Ela estava um pouco nervosa atrás de Will, tentando ignorar os olhares lançados a ela como desafios. Ela o seguiu para uma mesa de canto de onde dava para ver a televisão sem obstruções. Sua cadeira estava pressionada atrás da jukebox e, enquanto Loretta Lynn cantava, Cassie levantou as mãos para a caixa de seleção com as luzes acesas e ficou vendo as pontas de seus dedos brilharem com a luz rosada. - Eles estão assistindo ao jogo de hóquei - Cassie disse. Não lhe ocorrera que poderiam estar assistindo a outra coisa que não fosse a cerimónia do Oscar. Talvez em Los Angeles, mas não em Pine Ridge, onde o cinema mais próximo ficava a uma hora de distância. Will olhou sem prestar atenção para a tela, observando os golpes no gelo. - Deixe comigo - ele disse. Ele ficou em pé e ergueu uma perna pelas costas da cadeira, como um caubói apeando do cavalo. Caminhando para o bar, apoiou os cotovelos sobre o balcão grudento. - Hau, kóla - ele disse, tentando chamar a atenção do bartender. O homem era obeso e tinha o cabelo separado em duas tranças pretas e compridas, amarradas com cadarços de sapato nas pontas. Estava secando um copo. - Em que posso ajudar? - ele perguntou desanimado. - Preciso de um Rolling Rock e de um copo com água - Will disse. - E a moça gostaria de mudar de canal. - De jeito nenhum - o bartender disse, abrindo uma garrafa gelada. - Três pratas. Will esperava por aquilo. Entregou ao bartender uma nota de cinquenta dólares que havia retirado do envelope de seu pagamento, e ele apostava que o homem nunca havia visto uma daquela em sua vida. - Se colocar no canal ABC às nove da noite - Will disse -, pode ficar com o maldito troco. Quando ele entregou a água a Cassie, ela estava sentada na ponta da cadeira. - Eles vão mudar? - ela perguntou, com a voz fina e ansiosa. - Sem problemas - Will disse. Ele bateu o gargalo de sua garrafa de cerveja no copo de Cassie, fazendo um brinde, pensando que, milagrosamente, aquele canto de Dakota do Sul concordava com ela. - Há rumores de que você se tornou uma grande índia - ele disse. Cassie corou.
- Obrigada. Will riu. - Para muitos lakotas isso é um insulto que vale uma briga - ele disse. Não foi um elogio. Rolando o copo entre as palmas das mãos, Cassie olhou para Will. - Pelo menos estou tentando me encaixar - ela disse. Como se nunca tivesse feito isso. A brincadeira ficou entre eles, e, apesar de Will acreditar que podia se proteger com a atitude fria que cultivava, ficou chocado ao ver quanto as coisas que Cassie não havia dito ainda podiam ferir. Seu avô estava encantado com ela; sua avó não conseguia parar de falar sobre ela. Doía saber que alguém sem sangue sioux correndo em suas veias conseguia um espaço para si, sendo que ele nunca havia conseguido nada. Estreitando os olhos, Will fez o que havia se tornado natural durante os anos em que ele havia vivido em Pine Ridge: rebateu. Ele balançou a cabeça de maneira positiva lentamente, como se estivesse pensando na rotina diária de Cassie havia algum tempo. - Você fez com que os velhos desejassem que todos os wasicun fossem iguais a você. Passeando com Cyrus; perguntando ao curandeiro sobre frutos e raízes. A própria indiazinha. Cassie ergueu a cabeça, indisposta a defender suas ações para a pessoa que a havia levado ali. - O que devo fazer o dia todo? Deitar no sofá e ver minha cintura sumir? Além disso, parece um acampamento de escoteiros. Ter de sobreviver na floresta à noite e tudo o mais. É bom saber essas coisas. Imagine se eu me perdesse na mata e torcesse meu tornozelo... - Imagine se existisse mata em Los Angeles e que todas as farmácias abertas 24 horas estivessem fechadas? - Will riu e tomou um grande gole de sua cerveja, terminando-a. - Você pretende voltar, não é? O rosto de Cassie ficou sério, e por um instante terrível Will pensou que ela fosse chorar. De repente, ele se lembrou de quando estava na segunda série, quando um aluno novo entrou na escola. Horace era apenas 25% índio, e Will havia feito amizade com ele, pensando que devesse alguma coisa a alguém que o tirasse da condição de bode expiatório. Deu certo: os mesmos valentões que haviam pisado em seus sanduíches na hora do almoço e quebrado seus lápis agora pediam para ele jogar beisebol com eles e os convidava para ir à casa deles aos finais de semana. Will se lembrava da sensação boa que sentiu quando percebeu que estava sendo aceito e, sem perceber, passou a agir como eles. Só se deu conta disso quando, certo dia depois da aula, ficou escondido atrás de algumas árvores, esperando que Horace se aproximasse, e com todos os outros meninos lançou pedras e galhos no garoto, até que este saísse correndo. Mas, antes de correr, viu o rosto de Horace. Ele estava olhando para Will, e para mais ninguém, como se dissesse: "Você também, não." Will balançou a cabeça para afastar a imagem, sem saber ao certo o que ela tinha de ver com Cassie, exceto pela horrível sensação que o tomara quando percebeu quanto havia magoado alguém que nada fizera a ele. - Ei ele disse, tentando deixar a situação mais leve. Apontou com a cabeça na direção da televisão. - Você vai perder seu programa.
Conforme ele havia pedido, o bartender mudara de canal quinze minutos antes da transmissão do Oscar. Will não fazia ideia do que passava antes; concluiu que devia ser algum seriado idiota. Mas acima dele estava Alex Rivers e sentada ao lado dele, em um sofá, estava Cassie. - A entrevista com Barbara Walters - Cassie disse. Estava segurando um guardanapo com tanta força que o rasgou. Em seguida, começou a rir com histeria. - Ele ia aparecer em segundo lugar. Não em último. Segundo. Mil coisas passaram por sua mente: e se ele soubesse, desde o começo, que seria apresentado por último? Eles nunca teriam brigado? Ela não teria fugido? Olhou para as cortinas familiares de sua sala de estar, para a tempestade que atingia os arbustos de azaleia do lado de fora. Viu o buquê de lírios que alguém da produção de Barbara Walters havia colocado sobre a mesa de canto, onde costumava ficar um grande livro com capas da revista New Yorker. Mas, acima de tudo, olhou para Alex, que estava sentado perto daquela sombra que parecia ela, limpo e recém-barbeado e exatamente como aparecia todas as manhãs, quando saía do banheiro e a deixava sem fôlego. Na televisão, as mãos dele não paravam quietas sobre o ombro dela. Ele estava dizendo ao mundo que Alex Rivers e sua esposa assistiam a desenhos na cama aos sábados pela manhã. Meu Deus, Alex. Cassie lutou contra a vontade de chorar, de ficar em pé e tocar a televisão como se pudesse sentir a pele quente. Até vê-lo novamente, não havia percebido o que estava perdendo. E então escutou a própria voz. Assustou-se, forçando-se para se afastar das reações de Alex e observar sua boca formando as palavras. Ela se mexeu desconfortavelmente na cadeira, percebendo que sua voz estava estranha, diferente da realidade. - Pensei que ele fosse uma celebridade cheia de si impondo-se para mostrar quem estava no controle - Cassie escutou-se dizer -, e sinto em dizer que, a princípio, foi isso mesmo o que encontrei. Ela viu os olhos de Alex brilharem na mudança daquela frase, que de fato fazia com que ele parecesse um tolo. Apesar de ter acontecido semanas antes, Cassie sofreu. Tentou imaginar se o resto do mundo tinha podido ver aquela breve raiva sob a superfície; se haviam percebido que ela ficava um pouco inclinada para o lado esquerdo, longe de seu lado ferido; se eles viam o ferimento embaixo da manga de sua blusa. Eles cortaram grande parte da entrevista, a parte em que Cassie falou. Na verdade, Barbara Walters terminava com um "Felizes para sempre" ao perguntar a Alex: "Por que Cassie?" e Alex havia olhado para a câmera e dito: "Ela foi feita para mim". Corte e o beijo rápido que Alex lhe dera ao final da entrevista, que algum editor havia congelado de modo que os lábios de Alex ficassem presos aos dela para sempre, mesmo quando Barbara Walters começou a encerrar para chamar o comercial. Will olhou para Cassie. Ela estava olhando para o comercial de fraldas Pampers como se não conseguisse entender o fato de Alex ter desaparecido da tela e ainda estivesse pensando em como fazê-lo voltar. Ele ficou em pé e caminhou para o bar, pedindo outra cerveja. - E batatas ou qualquer coisa - Will disse. - A noite será bem longa hoje.
NÃO ACREDITO QUE ELE LEVOU OUTRA PESSOA. Cassie estava dizendo aquilo desde a montagem no início do Oscar, quando uma tal de Melanie saíra da mesma limusine que Alex. Ela havia bebido o segundo copo de água antes de Alex atravessar as portas do Dorothy Chandler Pavillion. - Que vaca! - ela sussurrou, enquanto acompanhava Alex, e apenas ele. Parecia promissor: no primeiro grande prémio da noite, Jack Green havia ganhado o prémio de Melhor Ator Coadjuvante, e metaforicamente fez um brinde a Alex levantando sua pequena estátua dourada. A partir de então, por duas horas e meia, o nome do filme aparecia de vez em quando - fotografia, edição, trilha sonora. Will havia perdido as contas do número de Oscars que já haviam sido entregues na última hora, quando terminou sua sexta e última cerveja. Não sabia como Cassie continuava sentada, e ainda mais assistindo. Ele abaixou a cabeça na mesa diante dela. - Acorde-me nos últimos quinze minutos se ele ganhar alguma coisa interessante - Will disse. Cassie assentiu. Passou o dedo pelo sal no fundo da tigela de amendoim. - Sabe por que se chama Oscar? - ela disse algum tempo depois, para ninguém em especial. Uma secretária que trabalhava na Academia de Artes e Ciências Cinematográficas disse que ela se lembrava de seu tio Oscar. Não é a coisa mais idiota que já ouviu? Por ter escutado o lamento em sua voz, Will abriu um olho. Lágrimas rolavam pelo rosto de Cassie; apesar de sua aparente força, estava sofrendo. Ele puxou a cadeira dela pelo chão cheio de serragem até tocar a lateral de seu corpo, e a abraçou. - Tudo bem - tentando imaginar por quanto tempo havia dormido, se Alex já havia perdido, se ele tinha perdido o grande momento. - Não está tudo bem - Cassie disse. - Nunca vai ficar tudo bem. Eu devia estar sentada na segunda fileira ali. Eu devia ser aquela que seria mostrada sempre que a câmera corresse pela fileira. - Veja pelo lado positivo - Will disse. - Você provavelmente estaria dormindo agora. - Mas eu estaria dormindo lá - Cassie disse. - É a noite mais importante da vida dele e eu estou a milhares de quilómetros de distância. Mas você não está lá - Will quis dizer. Você está aqui comigo. - Ele olhou para ela com tanta intensidade que ela parou de chorar e simplesmente olhou para ele. E então eles anunciaram os indicados para Melhor Ator. Com facilidade, Cassie distanciou-se de Will. Afastou o braço dele e debruçou os cotovelos na mesa, centímetros mais perto de seu marido. Quando a televisão mostrou uma cena de A história dele, o reflexo de Alex foi observado por Cassie entre as palmas abertas de suas mãos. E o Oscar de Melhor Ator vai para... Cassie parou de respirar. A luz da televisão banhou seu rosto, fazendo seus ângulos brilharem. Alex Rivers. Os olhos de Cassie brilharam, e com grande interesse ela observou Alex subir o corredor até o palco, onde aceitaria a estatueta. Will tentou imaginar se
ela tinha consciência de que seu braço direito estava estendido na direção da televisão, como se ela fosse capaz de tocá-lo. Ele não se importava nem um pouco com o Oscar de Alex Rivers, mas não conseguia desviar o olhar de Cassie. Achara que ela estava bonita quando chegou com sua caminhonete na casa de seus avós; mas, diante de seus olhos, ela havia se transformado em uma criatura de graça e brilho. Quando Alex apareceu na tela, ela ganhou vida. Will nunca sentira tanta raiva em sua vida. Quatro semanas antes, quando Cassie aparecera na porta de sua casa, ele havia visto evidências da raiva do ilustre Alex Rivers; compreendera o peso que ela tinha de carregar. Mas, até aquele momento, Will não fazia ideia de quanto dela Alex havia tomado. O cabelo dourado de Alex era mais luminoso do que o Oscar, e Cassie observou seus dedos envolverem o corpo da estatueta. Ele estava olhando bem para ela. - Gostaria de agradecer Herb Silver e a Warner Brothers, além de Jack Green e... - Cassie não se ateve ao que ele dizia, mas voltou sua atenção para as linhas de sua boca, rosada e bem desenhada e imaginou aqueles lábios sobre seu corpo. - Mas este prêmio é para a minha esposa, Cassie, que encontrou o roteiro e me convenceu de que a história seria algo que o público gostaria de ver, além de ser algo que eu precisava fazer. Ela está com seu pai hoje à noite, porque ele está doente e, quando conversei com ela algumas horas atrás, ela demonstrou tristeza por não poder estar aqui. Bem, eu estava um pouco nervoso, por isso não consegui dizer tudo o que queria antes de desligar. Eu queria dizer que Você poderia estar do outro lado do mundo, Cassie, e eu ainda assim estaria com você. - Ele olhou para a frente, para a multidão de rostos que o observavam. - Obrigado - ele disse e, de repente, foi embora. Cassie o observou receber seus outros dois Oscars. Era, claramente, a noite de Alex Rivers, mas ele não deixara de mencionar o nome dela. Na segunda vez, ele disse ao mundo que a amava. Na terceira, ele sussurrou "Venha logo para casa" tão baixinho que Cassie tentou imaginar se mais alguém que assistia havia percebido. Quando Will a levantou e a ajudou a sair do bar, ela tentou visualizar como sua noite teria sido se não estivesse ali. Teria vestido uma bela roupa - Alex teria cuidado disso - e, sempre que seu nome fosse chamado, ele teria se virado para ela e a tirado da cadeira com um abraço. Ela podia sentir a força de seu braço, a sensação de tocar seu terno, ao entrar no Spago e no The Gate com ele, circulando nas festas pós-Oscar. Ela seguraria duas estatuetas, ainda quentes pelo toque de Alex. Depois, eles iriam para casa e deixariam os prêmios no carpete e Alex a penetraria, quente, urgente, a essência do sucesso. Mas, em vez disso, Cassie andou na noite fria de março, tonta pela exposição de estrelas acima e lembrou-se do que havia feito com sua vida. Will observou sua expressão de tristeza. Ela havia chorado durante toda a transmissão, apesar de o esperto Alex ter dito aos vinte milhões de pessoas que o assistiam que sua vida girava ao redor da esposa. Caramba, ele admitira até que ela estava fora da cidade, apesar de ter enfeitado os fatos. Ele não era tolo, e sabia que ela estaria assistindo. Will teria dito que o discurso todo havia
sido bem calculado, se não tivesse visto com os próprios olhos que Alex colocara em palavras a exata maneira como Cassie olhava para a televisão. Alex provavelmente a amava, seja lá como, e Cassie parecia acreditar que isso tinha valor considerável. Mas Will pensou que morreria por dentro se visse os dois juntos de novo. Ela provavelmente se prenderia a Alex como se suas pernas não tivessem vida própria e Alex olharia para ela como, bem, como Will a observara a noite inteira. - Aquilo foi bacana - Will disse de modo neutro, abrindo a porta do passageiro da caminhonete. - É - Cassie disse. Estava muito triste. - Seu marido levou todos os Oscars. É normal que você demonstre emoção. - Ele segurou os ombros dela, chacoalhando-a levemente. - Ele sente sua falta. É louco por você. Que diabos você tem? Cassie deu de ombros, um tremor delicado que atingiu as palmas de Will. - Acho que ainda gostaria de ter presenciado tudo aquilo de perto - ela admitiu. Will explodiu. - Há quatro semanas você não conseguia pensar em mais nada além de fugir. Você me mostrou os ferimentos que ele lhe causou nas costelas e no pescoço. Ou será que você se esqueceu desse lado de seu charmoso marido, exatamente como ele devia estar esperando que acontecesse quando você o assistisse hoje, para voltar se rastejando? - Ele olhou para Cassie, que estava em pé sem nada dizer, com os lábios levemente parados. - Pode acreditar em mim - ele disse. - Eu sei melhor do que niguém. Não dá para ter tudo o que se quer. Ela olhou para ele como se nunca o tivesse visto antes e tentou dar um passo para trás. Mas Will não queria soltá-la. Queria que ela percebesse que ele tinha razão. Queria que Cassie fosse capaz de enxergar por baixo das belas embalagens que Alex lhe havia dado naquela noite por meio da televisão, que conseguisse vê-lo como ele de fato era. Queria que ela olhasse para ele Will - da mesma maneira como olhava para Alex. Will apertou os dedos no ombro de Cassie e pressionou seus lábios contra os dela. Frustrado, ele continuou, forçando a entrada de sua língua dentro de sua boca, até que, com a delicadeza de uma santa, ela permitiu seu toque. Ela o abraçou lentamente pela cintura, uma bandeira branca, huma entrega abnegada que tocou sua consciência. Ele se afastou abruptamente, nervoso consigo mesmo pela falta de controle, nervoso com Cassie por simplesmente estar no lugar errado e na hora errada. A esposa de outro homem. Grávida. Caminhando a seu lado na caminhonete, acomodou-se diante do volante e girou a chave na ignição. Acendeu os faróis, que iluminaram Cassie. Ela estava paralisada. A mão pressionava os lábios; a aliança de casamento brilhava como uma profecia. A distância, Will não tinha certeza se ela tentava se livrar do gosto dele ou se tentava mantê-lo. ALEX Rivers - O ATOR/diretor MAIS REQUISITADO de Hollywood no momento, um pouco depois das quatro horas - estava sentado em seu escritório na casa de Bel-Air. Olhou para as três estatuetas que havia disposto diante de si como alvos em um galpão de tiro. Que noite! Que grande noite!
Nunca desejara tanto estar bêbado, mas, por mais champanhe que tivesse consumido em homenagem a si mesmo, a embriaguez não o havia atingido. Havia saído da última festa há pouco mais de uma hora. Quando saíra, Melanie estava indo ao banheiro para cheirar cocaína com um estilista e Herb estava negociando o salário maior de Alex com um grupo de produtores. Os problemas com Macbeth foram repentinamente esquecidos; Alex voltava a ser um garoto de ouro. Quando parou na porta, todos estavam dizendo seu nome, mas ninguém percebera sua partida. Tentou imaginar se Cassie o assistira e se repreendeu por pensar. Aquela era a noite dele. Pelo amor de Deus, havia quanto tempo que ele trabalhava para aquilo acontecer? Por quanto tempo ficou provando a si mesmo? Ele passou as mãos pelas cabeças carecas das estátuas, impressionado pela maneira como elas pareciam reter o calor de seu toque humano. Ele pegou seu primeiro Oscar, sentindo o peso em sua mão como faria com uma bola. Em seguida, envolveu a estatueta com os dedos. - Este é para você, maman - ele disse, e jogou o objeto pelo escritório com tamanha força que cortou o papel de parede e marcou o gesso com o impacto. Ele pegou o segundo, que era para seu pai, e o lançou na mesma direção, gemendo de satisfação quando seus dedos soltaram o metal liso. Ele pressionou os lábios, esboçando um sorriso, ao pegar o terceiro Oscar. O melhor para o final. Pegou o corpo estreito, pensando em sua esposa querida e dedicada, e impulsionou o braço para trás. Não podia fazer aquilo. Com um som estranho, Alex caiu pesadamente em sua cadeira. Passou os dedos sobre a estatueta como se pedisse desculpas, como se estivesse sentindo a suave curva do pescoço de Cassie e de seus cabelos. Apertou as palmas das mãos nos olhos quando começaram a arder; abaixou a cabeça na mesa. Melhor Filme, Melhor Ator, Melhor Diretor, Pior Marido. Alex já havia pensado que a arte imitava a vida, mas nunca sentira aquilo tão forte em sua alma. Seus discursos de agradecimento haviam sido cuidadosamente escritos, planejados palavra por palavra para pegar Cassie, onde quer que ela estivesse, para que voltasse para ele. Estava começando a perceber como sentia o que havia dito. Ele acordaria no dia seguinte com centenas de ofertas de filmes e um salário de vinte milhões por cada um deles, mas não seria o suficiente. Nunca seria o suficiente. Ele trocaria tudo e viveria em uma caixa de papelão na praia se pudesse se livrar da parte de seu ser que causava tanto sofrimento a Cassie. Nas sombras de seu escritório, Alex Rivers disse em voz alta o segredo que nenhuma das pessoas que ainda estavam aproveitando a festa na Sunset Boulevard sabia: ele não era ninguém. Até que ela o tornasse completo. Quando o telefone tocou ao seu lado, ele sabia que era ela. Pegou o telefone e esperou para escutar a voz de Cassie. Não havia como ele saber a dificuldade que ela havia enfrentado para encontrar um telefone. Ela teve de passar por Will, que fingia estar dormindo no chão, mas que a deixara sair sem nada dizer. Teve de dirigir a caminhonete dele, sem permissão, até a igreja católica e acordar o padre, esperando que
sua pele branca o convencesse de uma emergência inventada. Teve de esperar na linha com a telefonista, ansiosa, até finalmente conseguir entrar em contato com Bel-Air. - Alex - ela sussurrou. Sua palavra foi um bálsamo. - Parabéns. Já fazia tanto tempo, e ele estava tão chocado por seu discurso televisivo ter conseguido levá-la de volta a ele que ficou um tempo sem conseguir falar. Então, colocou os ombros para a frente, como se pudesse segurar a voz da esposa com seu corpo. - Onde você está? - ele perguntou. Ela estava esperando aquela pergunta. Não queria revelar nada; só queria escutar Alex. - Não vou lhe dizer. Não posso. Mas estou bem. E muito orgulhosa de você. Alex percebeu que estava sorvendo a voz dela, guardando-a dentro de si para relembrar muitas vezes. - Quando vai voltar? O que a fez ir embora? - Ele controlou as emoções. - Eu conseguiria encontrá-la, você sabia? - ele perguntou cuidadosamente. - Poderia fazer isso se quisesse. Cassie respirou fundo. - Você poderia - ela disse -, mas não vai. - Esperou que ele a contradissesse e, quando ele ficou em silêncio, ela disse o que ele já sabia. - Não vou voltar porque você quer, Alex. Só vou voltar porque eu quero. Era mentira; se ele tivesse chorado e implorado, ela pegaria o próximo avião de volta para Los Angeles. Estava blefando, e Alex sabia disso também, mas sabia o quanto estava em jogo. Cassie nunca havia se escondido dele antes, de maneira alguma. E, se para garantir um final feliz ele tivesse de aceitar as regras dela, faria o que ela pedisse. Então ele engoliu o orgulho e o fracasso. - Está mesmo bem? - perguntou delicadamente. Cassie enrolou o fio do telefone em seu pulso como se fosse uma pulseira. - Estou bem - ela disse. Olhou para cima para a sombra do padre na porta. - Preciso ir agora. Alex entrou em pânico, segurando o telefone com mais força. - Vai ligar de novo? Logo? Cassie pensou. - Vou ligar de novo - ela disse, pensando no bebê e no que Alex tinha o direito de saber. - Telefonarei de novo quando quiser que venha me buscar. Ela queria que ele fosse. Ela o queria. - Estamos falando em dias? Semanas? - Alex perguntou. E sorriu: - Por que depois de hoje à noite minha agenda está lotada. Cassie sorriu. - Tenho certeza de que você vai saber o que é prioridade - ela disse. Hesitou antes de dar a Alex um presente para os meses que se estenderiam. Sinto sua falta - ela sussurrou, sem sorrir. - Sinto muito a sua falta. - E desligou o telefone antes que ele conseguisse escutá-la chorando. Alex olhou para seus Oscars. As provas de seu sucesso jogadas no chão, ferindo a madeira. A última estatueta estava ao lado do telefone. Cassie interrompera
a ligação; tudo o que restara tinha sido um som seco. Alex não percebeu quando começou a chorar. Durante uma hora, segurou o telefone como se fosse um amuleto, mesmo quando a gravação lhe dizia sem parar para desligar e tentar de novo. Vinte e dois
Cyrus havia repetido a terceira série oito anos, não por causa de sua inteligência limitada, mas porque nos anos 1920 as escolas da reserva não iam além disso. Ele tinha parcos conhecimentos de leitura e escrita, só sabia fazer contas de adição e subtração e não sabia soletrar as palavras. Sua especialidade era história - não a história do homem branco, como disse a Cassie, que as professoras missionárias tentavam fazê-los engolir com seus livros, mas a verdadeira história. Como Dorothea passava muito tempo na cafeteria, Cassie sempre ficava sozinha com Cyrus. Tinha a sensação de que ele gostava da companhia; ele deixava de lado suas agulhas e às vezes ficava em silêncio quando caminhavam juntos, mas, na maior parte do tempo, ele conversava. Contava a ela histórias que haviam sido passadas a ele por seu pai - mitos indígenas, histórias de criança a respeito do Cavalo Louco, relatos quase testemunhais da Batalha de Little Bighorn e a tragédia em Wounded Knee, onde ocorreu a batalha entre índios e colonizadores que deixou muitos sioux mortos. No dia anterior, Cassie havia pedido a Cyrus que a levasse a Paha Sapa, as Black Hills. Ela sabia que fósseis já haviam sido encontrados ali e que houvera controvérsias a respeito de retirá-los das terras sagradas da reserva. Não que ela planejasse começar uma enorme escavação, que o conselho tribal certamente impediria, mas queria, pelo menos, encontrar pistas que a levassem a acreditar que existia alguma coisa sob a superfície - as rochas erguidas, a vegetação crescida. Sentiu vontade de tirar vantagem do fato de viver entre os sioux, a poucos quilómetros de onde haviam sido enterrados seus ancestrais. Durante anos seus colegas tentavam obter acesso a lugares assim, e repetidamente eram proibidos. Naquele dia, ela havia pegado emprestado o jipe de Abel Sabão e preparado um piquenique. Só por precaução, ela colocou dentro do veículo uma picareta e uma pá que Abel lhe oferecera. Cyrus entrara no jipe como um homem muito mais jovem. - Sabia que as crianças sioux acreditam que o bicho-papão vive em Badlands? - ele perguntou. Cassie sorriu. - Vou tomar cuidado. Mas várias horas depois, com a estranha paisagem de rochas diante deles, ficou fácil perceber por que as crianças acreditam em algo assim. Diferentemente dos picos e ápices da maioria das Black Hills, o Badlands, era como enormes rochas que com o tempo haviam se unido. O vento soprava pelos esparsos pinheiros que pontuavam a parte de cima da cadeia de montanhas e iam para dentro do vale como um redemoinho. - Você vai descer? - Cyrus quis saber, ficando ao lado de Cassie, na beirada.
Cassie olhou para ele. - Por quê? O senhor vai? - Claro que não - Cyrus respondeu. - Consigo pensar em lugares melhores para morrer. Ela sentiu um frio percorrer-lhe a espinha quando ele disse aquilo. - O que quer dizer com isso? - ela perguntou, mas Cyrus já havia se afastado, indo para a parte de trás do jipe. Ele voltou com a picareta e a pá e perguntou: - Quer estas coisas? Cassie assentiu e as colocou no cinto que pegara emprestado de Cyrus. Passara a precisar vestir as roupas de outras pessoas, uma vez que as suas não lhe serviam mais. Ela viu Cyrus pegar um pedaço de bolo de carne frio de dentro da cesta e se sentar com as pernas cruzadas diante dela. Ela pisou na beirada, firmando-se em uma rocha e sentindo se estava firme para começar a descer para dentro do vale. Passou as mãos sobre as paredes de pedra, suaves como mármore e tomadas por liquens. - Deveria ter trazido uma camisa da Dança dos Fantasmas - Cyrus disse de algum ponto acima dela. - Assim, os espíritos do md não poderiam pegá-la. - Boa ideia - Cassie disse, ofegante, sem entender sobre o que ele estava falando. - E depois que eu encontrar uma, vou ganhar uma nota preta vendendo-as para os pregadores do dia do juízo final na avenida das Estrelas, em Los Angeles. - Ela escorregou o pé em outra falha da escada natural, quase torcendo o tornozelo na superfície arredondada das rochas que formavam o chão do vale. - Não ria - Cyrus disse. - Eram camisetas que os índios acreditavam que os tornariam invencíveis. Meu bisavô tinha uma. Elas foram moda nos anos 1880, parte de uma nova dança que trazia de volta guerreiros mortos e o búfalo, um mundo completamente novo sem o homem branco. - Cyrus ficou em pé e inclinou-se sobre a entrada do vale. - Você vai comer o bolo de carne? - ele perguntou. - Não - Cassie respondeu. Protegeu os olhos com as mãos. Ele estava a seis metros acima dela, olhando para baixo, como se seu interesse pudesse garantir a segurança dela. - Pode comer. - Como eu estava dizendo, meu bisavô trouxe a Dança dos Fantasmas de um curandeiro paiute para os sioux. Ele tinha uma camiseta, pintada com o sol, a lua, as estrelas e as aves pega-rabudas. Dorothea a tem guardada em algum lugar. Se você estivesse vestindo a camisa, nenhum mal poderia lhe atormentar. - Como um pé de coelho - Cassie disse, cavando com a picareta em um ponto elevado da rocha. Mesmo que encontrasse alguma coisa, ela pensou, provavelmente seria um mastodonte, não uma pessoa. - É - Cyrus disse -, mas não funcionava como deveria. O exército branco pensava que não fosse grande coisa; os sioux deveriam estar planejando algum tipo de ataque contra eles. Por isso diziam ao povo que não sabiam fazer a Dança dos Fantasmas. Cassie sentiu o sol atingir a parte de cima de sua cabeça e se lembrou de seus primeiros dias na Tanzânia com Alex, quando acreditara que nada poderia dar errado; que, verdadeiramente, eles eram invencíveis. Quem era ela para
criticar uma camisa da Dança dos Fantasmas? O amor, pelo menos no início, podia ser um amuleto muito forte. - Já ouviu falar de Touro Sentado? - Cyrus perguntou. - Foi assim que ele morreu. Ele defendia a Dança dos Fantasmas em Standing Rock, e os agentes do governo fizeram com que a polícia tribal o prendesse por isso. Seu próprio povo. - Cyrus balançou a cabeça. - Quando ele reagiu, começaram a atirar. Touro Sentado morreu e a maioria dos sioux que estavam com ele também. Cassie virou o rosto quando Cyrus começou a rir; era o último som que ela esperava escutar em sua história. Ela interrompeu os golpes com a picareta. - Agora, imagine só - Cyrus disse. - Todo mundo olhando ao redor, tentando entender o que havia acontecido, e de repente um cavalo aparece e começa a correr em círculo. - O cavalo de Touro Sentado? - Cassie perguntou, curiosa. Cyrus assentiu. - Antes de ele vir para a reserva, Touro Sentado viajou com o show Wild West de Buffalo Bill Cody, e aquele pónei de circo havia sido um presente. Então, quando os tiros que mataram Touro Sentado foram dados, o cavalo começou a fazer isso. Parece que foi assim que eles começaram o show. Cassie abaixara as mãos. Pegou-se escutando apenas a Cyrus, a sua história e o grito de um falcão a distância. Ela lentamente colocou sua picareta dentro do cinto, começando a subir o vale. Lá em cima, sentou-se ao lado de Cyrus, esfregando os braços, tentando se lembrar de uma história que sua mãe pudesse ter lhe contado que tivesse ficado em sua mente. Mas tudo de que se lembrou foram histórias de uma graciosidade sulista que Cassie posteriormente descobriu que não havia existido, e a voz de sua mãe parando no meio de uma frase. - Foi seu avô quem lhe contou isso? - Cassie perguntou. Cyrus assentiu. - Assim como eu contei a Will. E a você. Cassie fez uma careta ao sentir uma dor na lateral da barriga. Seu corpo não era mais como tinha sido. Aquela criança começava a fazer suas exigências. Ela sorriu, apesar da dor, e ficou em pé. - Podemos ir agora. Cyrus olhou para ela com cuidado. - Encontrou alguma coisa? - ele perguntou, procurando nos bolsos vazios dela a pá intocada. No passado, para Cassie, a antropologia significava afastar algo fisicamente, mas agora a ideia de escavar nas Black Hills lhe dava um certo mal-estar. Começava a se perguntar se a escavação de uma cultura tinha de envolver a abertura da terra. Imaginou o bisavô de Cyrus girando em sua Dança dos Fantasmas; Touro Sentado sangrando no chão frio enquanto apenas um pónei de circo lhe homenageava; Will sentado no chão escutando aquela história pela voz de seu avô. Havia uma certa frase que os sioux usavam como um tipo de oração quando terminavam um ritual. Dorothea dizia essa frase da mesma maneira que casualmente dizia "saúde" depois de espirrar. Cassie franziu a testa, até se lembrar: Mitakuye ouasín. "Todos os meus parentes." Cassie fechou os olhos e pensou nas histórias de Cyrus; mais uma vez pensou no cavalo dançando.
- Sim - ela disse. - Encontrei exatamente o que precisava. ALEX PENSOU QUE O HOMEM PARECIA UM FURÃO. Tinha olhos castanhos pequenos e brilhantes e um nariz afilado que caía bem para Cassie, mas o deixava com cara de roedor. Ben Barrett. Ele estava dizendo ao repórter do Hard Copy que não havia chegado perto nem mesmo de uma gripe comum, muito menos do leito de morte em algum hospital de Alberta como dissera aquele mentiroso do Alex Rivers. - Além disso - seu sogro dizia -, não recebi notícias de minha filhinha este ano. - Alguma parte havia sido editada, pois quando ele voltou para a tela, estava com os olhos vermelhos. Assentiu: - Ele está escondendo alguma coisa. Alex respirou fundo e afundou-se o máximo que conseguiu na poltrona do escritório de Michaela. A alguns metros dele, Herb caminhava de um lado a outro, revirando todos os tablóides de supermercado, cada um deles com uma sugestão diferente acerca do que poderia ter ocorrido com Cassie, ideias que iam desde sequestro a assassinato, envolvendo Alex Rivers. Não era grande novidade - Alex já tinha sido acusado de barbaridades antes -, mas Cassie estava longe havia dois meses, e aquele era seu pai. Quanto mais os rumores aumentavam, mais as revistas questionavam a calma e o silêncio de Alex. Um dos tablóides tinha até conseguido uma declaração do último investigador particular que Alex contratara, algo evasivo, mas Alex o despedira no mesmo instante por ter falado. Cassie telefonara para ele uma vez, mas Alex não havia dito nada a ninguém. Havia aliviado o medo que ele estava sentindo pela segurança dela, mas não alterara seu plano de ação. Ele continuava com detetives procurando informações. Cassie dissera que telefonaria de novo, e talvez telefonasse, mas, se no meio do caminho Alex descobrisse seu paradeiro, iria atrás dela. Afinal, se ela tinha o direito de ir embora, ele também tinha o direito de convencê-la a voltar. Michaela tinha sido a primeira a espalhar a desculpa que Cassie estava com o pai e, na época, por causa da pressão com o Oscar, parecia uma boa história. Quando os primeiros detetives não conseguiram pistas sobre onde ela estava, Alex começara a acreditar na própria mentira. A fita com a gravação do Hard Copy foi pausada, e Michaela levantou de sua cadeira e desligou o videocassete. - Pois é... - ela disse. - A merda bateu no ventilador. Alex passou o dedo sobre o lábio superior, tentando não se sentir acuado. Herb inclinou-se em sua direção, tão perto que, quando gritou, Alex pôde ver gotículas de saliva na ponta de seu bigode. - Tem ideia do que isso poderia lhe causar? - Herb - eu disse com calma. - Acabei de ganhar três Oscars. As pessoas não vão se esquecer disso tão rapidamente. Herb olhou para Alex, balançando a cabeça. - Eles se lembram do que é ruim, do que é sensacionalista. Como, por exemplo, se o Melhor Ator cortou a esposa em pedacinhos e a enterrou no porão. Alex ficou tenso. - Dá um tempo - ele disse. Mas sua mente já estava a toda. Herb e Michaela o apoiariam, mas queriam a verdade. Iam querer saber por que Alex escondera a verdade deles.
Ele teria de fazer uma interpretação perfeita diante das duas pessoas que ele confiava o suficiente para permitir que o vissem sem proteção. Michaela sentou-se na cadeira na frente dele como se tivesse todo o tempo do mundo. Acima dela, o ventilador de teto funcionava. - Certo - ela disse, tamborilando os dedos na barriga. - Que porra está acontecendo? Alex baixou o olhar, sem querer revelar toda a verdade, mas usando uma frase que eles nunca esperariam ouvir. - A Cassie me deixou - ele disse, e permitiu que toda a dor que sentia e mantinha escondida fosse à tona novamente. A ESTRUTURA DA TENDA DO SUOR FAZIA COM que Cassie se lembrasse de um mamute lanoso. Havia alguma coisa nas barras curvadas de madeira que faziam com que parecessem costelas, como se uma criatura houvesse entrado no meio da planície para morrer. Sentou-se no chão frio, abriu o caderno que trouxera no mês anterior e tirou um lápis do bolso de seu casaco. Procurando uma página em branco, ela observou os rabiscos que fizera para passar o tempo quando chegou: dimensões de crânios, imagens em 3D da mão, um desenho de um modelo de australopitecino que ela queria usar como cortesia em um de seus cursos. Mas, nas semanas que havia passado na reserva, seus desenhos haviam mudado. Não estava fazendo desenhos de esqueletos de sua pesquisa. Ali estava um desenho de Dorothea, dormindo na cadeira de balanço; e uma de um rebanho de búfalos que ela recriara das histórias de Cyrus; e outro, uma lembrança de um sonho no qual havia visto o rosto de seu bebê. Talvez fosse a atmosfera simples de Pine Ridge que havia mudado sua maneira de desenhar. Em Los Angeles, havia tanto brilho por todos os lados que voltar ao básico era revigorante. Mas ali, onde havia pouca coisa além das terras e do céu, todas as palavras ditas, os relacionamentos desenvolvidos e desenhos feitos se transformavam em algo substancioso. Cassie colocou o lápis atrás da orelha e analisou criticamente seu mamute e depois olhou para a estrutura de salgueiro que o inspirara. Era estranho olhar para as coisas e - em vez de reduzi-los a elementos de esqueletos, como ela havia aprendido - ver muito mais do que estava diante de seus olhos. Estava tão distraída com seu mamute que não percebeu os passos atrás dela. - Se isso for um ta-tánka - Cyrus disse -, está todo errado. Cassie olhou para ele. - É um mamute - ela explicou. - Não um búfalo. Cyrus estreitou os olhos. - Mamute - ele murmurou. - Seja lá o que você disser. - Ele balançou sua revista de palavras cruzadas diante dela. - Vai devolver meu lápis? Cassie corou. - Não queria roubá-lo. Não encontrei outros. Cyrus fez um barulho e esticou a mão em direção a Cassie. - Levante-se - ele suspirou. - Você vai congelar esse bebê. Ela balançou a mão. - Deixe-me fazer os marfins. Estou quase terminando. - Ela desenhou por mais um momento. - Pronto - Cassie disse,
virando seu caderno para Cyrus. Ele olhou para o desenho da tenda que tinha um tronco e marfins saindo pela porta. - O que acha? - ela perguntou. Cyrus passou a mão sobre o rosto para esconder um sorriso. - Acho que parece uma tenda - ele disse. Esticou a mão para Cassie e a ajudou a ficar em pé. - Sem imaginação - Cassie disse. - Não é isso - Cyrus disse. - Por que as pessoas brancas olham para uma poça e tentam dizer que é o mar? Cassie caminhou atrás dele. - Talvez eu devesse assistir a uma cerimónia - ela sugeriu, acreditando que se parecesse não se importar, Cyrus concordaria com mais facilidade. Por ser uma antropóloga, havia convencido a si mesma de que seu interesse era puramente natural. Adoraria saber o que ocorria dentro daquelas estruturas, que eram provas para garotos que jejuavam sob os cuidados de curandeiros em um esforço de compreenderem a si mesmos. Ela havia visto a seriedade com que o filho mais velho de Linda Cachorro Risonho havia se preparado para o ritual. Ele havia voltado esgotado e exausto, mas muito feliz por dentro como se agora soubesse como unir os pedaços que formavam sua vida. As coisas poderiam ser fáceis assim. - Ecún picásni yeló - Cyrus disse. - É impossível. - Seria uma pesquisa interessante... - Não - Cyrus disse. - Eu poderia ficar sentada... - Não. Cassie lançou-lhe um sorriso e por um momento Cyrus esqueceu que ela via animais pré-históricos em estruturas de tendas de suor, que ela estava usando todos os truques para entrar no círculo de um rito de passagem lakota. Ele pensou - não pela primeira vez - como era estranho que Cassie, que havia entrado em sua família, havia chegado até eles por meio de Will, que sempre quis sair dela. Balançando a cabeça, Cyrus esticou os braços acima da cabeça. Deixou a revista de palavras cruzadas sobre a estrutura da tenda de suor e começou a caminhar para a encosta que se estendia a leste da casa. - Léci uwo - ele disse. - Venha aqui. - Quando ele chegou a um pequeno aglomerado de árvores que descansavam à base de uma montanha maior, parou. - Foi aqui que Will construiu sua tenda de suor - ele disse. - Will? - Cassie perguntou, surpresa. - Não pensei que ele gostasse dessas coisas. Cyrus deu de ombros. - Ele era jovem na época. Ele nunca me contou - Cassie disse, e percebeu que apesar de Will conhecer detalhes íntimos da vida pessoal dela havia muita coisa sobre ele, Will Cavalo Alado, que ela não sabia. Ela tentou imaginar Will com a mesma idade do filho mais velho de Linda Cachorro Risonho, com seu cabelo preto e espesso solto pelas costas e seus músculos começando a tomar contornos masculinos. - Deu certo? Cyrus assentiu.
- Mas ele nunca vai admitir - ele disse. - Na cabeça de meu neto, ser um índio é algo que pode ser descartado, como um casaco velho. - Ele estava em pé com o rosto virado ao vento, e Cassie observou quando ele ergueu as mãos como se precisasse impedir que o vento passasse depressa demais. - Foi por isso que ele foi embora? Cyrus virou-se para ela, seus olhos escuros alertas e críticos. - Não acha que isso Will é quem deve lhe contar? - Acho que é algo que Will tentaria não me contar - Cassie disse cuidadosamente. Cyrus balançou a cabeça de maneira afirmativa, admitindo a verdade na frase de Cassie. - Você sabe que a mãe de Will era wasicun wínyan como você - ele disse. Sabe que Will trabalhou na polícia tribal antes de se mudar. - Ele deu um passo adiante, disposto a contar os segredos de seu neto a Cassie, porém sem querer olhar em seus olhos ao fazê-lo. - A polícia tribal é como qualquer outra polícia, acredito. Fazem as coisas de sempre - desfazem brigas domésticas, levam os bêbados para casa, impedem que os jovens fiquem bebendo cerveja no lago. E eles fecham os olhos para algumas coisas, se puderem - não querem que um deles tenha problema, por isso costumam dar mais avisos do que punições. Ele continuou: - Will era um bom policial. Estava trabalhando ali havia cinco anos, mais ou menos. Todos gostavam dele, e esse tipo de coisa era importante para Will. Cassie assentiu; ela compreendia. - Cerca de cinco meses atrás houve um grande acidente na cidade de Pine Ridge. Motorista bêbado. Alguém perdeu o controle do carro, saiu da estrada, matou uma família de quatro pessoas e meteu o veículo em um poste de telefone na frente da loja geral. É claro que ele saiu ileso de dentro do carro. Cyrus fechou os olhos, lembrando das sirenes dos carros da polícia que ele não conseguia esquecer; o sangue escuro na frente da camisa do neto quando ele voltara para a casa naquela noite. - Há muito tempo os pais de Will foram mortos em um acidente de carro causado por um vendedor louco, wasicun e bêbado; por esse motivo ele foi criado por nós. Então, acho que ele sentiu alguma coisa muito forte quando viu aquele homem saindo de seu carro. Ele se aproximou do homem e começou a espancá-lo. Foram necessários mais três outros policiais para segurá-lo. Will foi despedido uma semana depois. Indignada, Cassie virou-se para Cyrus. - Isso é ridículo. Ele poderia ter processado a polícia. Cyrus balançou a cabeça. - Muitas pessoas queriam que Will fosse embora. A família que morreu pertencia ao irmão de uma das professoras de ensino fundamental. Branca. E o motorista bêbado que Will quase matou era lakota. - Cyrus assoviou por entre os dentes da frente. - Uma família branca ser morta foi uma tragédia, com certeza, e não havia dúvidas de que o motorista embriagado, índio, branco ou de qualquer raça, iria para julgamento. Mas o que Will fez - perder o controle desse jeito - foi um erro. Ele não parecia ter um bom senso de prioridade. De repente, todos se lembraram de que ele é iyeska, metade branco, e parecia ter
sido essa a metade no controle, uma vez que um índio sem misturas no sangue teria facilitado um pouco as coisas para o assassino. - Como puderam ver isso como uma questão racial? - Cassie perguntou, cruzando os braços. - O que seus vizinhos devem pensar de mim? - Eles gostam de você - Cyrus respondeu. - Você se mistura com o povo. Não porque tenta, mas porque não tenta não se misturar. Will sempre construiu muros, sempre ficava desconfiado. Cassie pensou em Will em Los Angeles, destacando-se da mesma maneira que fazia em Pine Ridge. Ela pensou nos belos objetos indígenas dentro de caixas em sua casa em Reseda. Pensou nele batendo no motorista embriagado até ferir as mãos, até ficar com sangue no uniforme, até ficar impossível dizer se o homem era lakota ou branco. Pensou no que poderia ter dito a ele se soubesse de tudo aquilo antes: que ela agora sabia, por experiência própria, que não se pode simplesmente fechar os olhos e fingir que uma parte de sua vida não existiu. Sem pensar, Cassie abaixou-se e pegou um galho de salgueiro que havia se quebrado durante uma tempestade. Flexionou o galho em suas mãos, dobrando-o ao meio, testando sua resistência, pensando no que Cyrus lhe dissera. E quando o galho se quebrou, ela não se surpreendeu. Will NÃO CONSEGUIA ESCAPAR DE Alex Rivers. Seu nome estava em todos os jornais, revistas, espalhado na área de revistas do supermercado. Já tinha visto seu rosto tantas vezes que apostava que conhecia os traços dele melhor do que Cassie. Já estava até começando a sentir pena do homem. Por causa de uma declaração feita pelo pai de Cassie, os rumores começaram a se espalhar. Cassie havia se tornado um grande caso de mistério e Alex sofria as consequências. A matéria que estava lendo explicava que as empresas japonesas que estavam patrocinando o filme Macbeth haviam saído do negócio, deixando Alex como o único credor para o fracasso de quarenta milhões. Supostamente, seu apartamento de Malibu estava à venda. Os outros dois acordos que ele havia firmado para fazer outros filmes haviam sido desfeitos; seu silêncio a respeito do desaparecimento de Cassie estava sendo prejudicial, atribuído à sua culpa ou à doentia obsessão com sua carreira, que o cegava para todas as outras coisas. Havia até a fofoca de que o motivo pelo qual Alex Rivers, vencedor de vários Oscars, não tinha mais nada na cabeça se devia ao fato de ele beber demais e não conseguir encontrar um bom roteiro. Will dobrou a revista pela metade e a colocou atrás do visor no carro da polícia. - Quanto tempo falta? - ele perguntou, virando-se para Ramón, ainda seu parceiro. Ramón enfiou o resto de seu sanduíche de ovo frito na boca e verificou seu relógio. - Dez minutos - ele disse. - E estará na hora do show. Naquela noite, ele havia sido mandado para um baile beneficente. Estava sendo realizado por uma organização cujo nome ele havia esquecido, e patrocinava uma causa muito válida: um rancho para crianças com deficiência no sul da Califórnia. Apesar disso, Will não acreditava que tinha de ganhar a vida daquele jeito.
O destaque da noite envolvia sete senhoras conhecidas da sociedade trajando vestidos cheios de contas e arranjos de cabeça de um metro e meio criados por diversos floristas do desfile do Concurso de Rosas. As mulheres desciam por uma passarela, sorriam, apesar das hastes de aço que o pescoço delas suportava e, supostamente, conseguiam muito dinheiro. Will e Ramón estavam ali para manter a ordem. O mais chocante era o fato de a presença deles ser necessária. Três horas antes de a confusão ter começado, um rapaz bem magro, com um crachá onde se lia Maurice, havia acusado outro florista de roubar suas aves-do-paraíso. Will teve de tirá-lo das costas do ladrão, depois de ele já ter destruído a armação de lírios. - Vamos lá - Ramón disse, saindo do carro. Will colocou seu boné bem abaixado diante dos olhos e caminhou em direção ao Beverly Wilshire Hotel. Disse a si mesmo que aquele não era apenas um trabalho como segurança. Pensou que logo se tornaria um detetive. Ramón pegou uma das entradas e Will, a outra. As luzes foram diminuídas, a música tocou mais alto e então a primeira modelo surgiu. Seu arranjo de cabeça era feito com cravos e trazia o ano 1993. Dava para ver como ela tinha dificuldade para caminhar. Atrás dela, em uma enorme tela, estavam os sorrisos banguelas de crianças carecas sobre cavalos; adolescentes com aparência doente. Uma mulher, a mestre de cerimónias, surgiu atrás de Will, entregando a ele uma sacola repleta de pequenos pacotes embrulhados. - Aqui está sua sacola de produtos - ela disse. Ela sorriu para o palco. - Sempre espero que no ano seguinte serei escolhida. Como manequim, sabe? Uma segunda modelo apareceu na passarela. Ela estava cantando Hoorayfor Hollywood, e as violetas saindo de seus cabelos formavam uma câmera Panavision, com um rolo de filme de hera caindo por seus ombros. Will pensou em Cassie. Tentou imaginar se ela já tinha ido a eventos daquele tipo com Alex; se já se sentira tão deslocada quanto ele. Silenciosamente, ao som da música, ele desembrulhou três dos pequenos presentes. Um vidro de perfume famoso, um par de óculos de sol estilo aviador e óleo de massagem comestível. Do outro lado, Ramón aplaudia sem parar. Will olhou para os rostos dos que trajavam vestidos de cetim e ternos. Todas aquelas pessoas haviam sido moldadas, esculpidas, entalhadas, arrumadas, decoradas e coloridas. Eram belas e impecáveis embalagens; faziam um esforço descomunal para parecerem naturais. Eram como todas as pessoas em Los Angeles. Naquele rápido momento de clareza que acontece uma ou duas vezes na vida de uma pessoa, Will compreendeu que não devia estar ali. Lembrou-se de seus dias na polícia da tribo, onde havia prendido maridos agressivos e confiscado cerveja de adolescentes, pensando que a vida podia ser mais do que aquilo. E talvez fosse. Mas ali onde estava as coisas não eram muito diferentes do que em Dakota do Sul. Estava tão ocupado observando a plateia que não soube o que o havia atingido. Mas a quarta modelo havia prendido seu salto em uma brecha na passarela e sem querer mexera a cabeça, soltando os grampos e a cola que prendiam uma fonte de flores a seu couro cabeludo. Will ficou enterrado sob
um monte de rosas, lírios, papoulas e jasmins-de-madagascar. Ele escorregou nas pétalas e caiu de costas no chão. Um grupo de médicos que trabalhavam no sul da Califórnia correram de suas mesas para saber se ele estava bem, mas não antes da modelo, que caiu da passarela sobre ele. Ficou esparramada sobre seu corpo, uma grande dama de cinquenta e poucos anos com lágrimas de fracasso nos olhos e um vestido curto demais. - A senhora está bem? - Will perguntou com educação. A mulher fungou delicadamente e então pareceu notá-lo. Ela sorriu sedutoramente, esticando a pele de seu rosto já repuxado. - Oi, olá - ela disse, esfregando de propósito sua coxa entre as pernas dele. E foi então que Will soube que estava voltando para casa. TRÊS - DOIS - UM - BRANCO. A PROJEÇÃO DO filme na sala de exibição de Alex chegou ao fim, deixando ali, olhando para o nada. Ele apertou um botão de seu controle remoto e suspirou quando a sala ficou escura. Melhor dessa maneira, mais fácil. Ele pegou a garrafa de J&B que estava ao lado dele e a virou, apenas para perceber que estava vazia; tinha terminado de beber o líquido em algum momento durante o ato III de Macbeth, quando percebera que os críticos tinham razão: o filme era horrível. Eles não poderiam nem mesmo distribuir cópias do filme para professoras de inglês. Ele havia terminado a produção várias semanas antes; aquela era a primeira versão completa do filme. E não podia culpar os problemas de edição ruim; sabia que deveria ter cortado suas perdas meses antes. Mas, em Hollywood, isso significava admitir o fracasso e nenhum produtor que tivesse o olho no futuro poderia arcar com esse estigma. Por isso ele havia continuado com as gravações, rezando para que ficasse melhor do que ficara cena a cena. Parecia, naqueles dias, que ninguém estava escutando as preces de Alex. Ele esfregou os olhos, que ardiam constantemente. - Todo mundo tem seus momentos ruins - ele disse em voz alta, experimentando as palavras. Há muito já devia ter tido a sua fase ruim. Não havia como ter sucesso durante dez anos sem sofrer nenhum desastre. É claro que nem todos sofriam perdas em suas vidas pessoais e na carreira ao mesmo tempo. Ele fechou os olhos e descansou a cabeça no encosto da cadeira. Voltou a ter oito anos, sentado fora do Deveraux, esperando que seu pai terminasse seu jogo de baralho. O dia estava muito quente, mas não era novidade. Todas as janelas do Beau estavam abertas, e ele conseguiu escutar o tilintar das garrafas de cerveja sendo colocadas sobre as mesas de madeira. As palmas e as risadas da garçonete ruiva quando Beau a beliscava; o bater das garras de caranguejos quando as pessoas limpavam seus pratos. O ritmo alegre do zydeco que vinha dos alto-falantes do lado de dentro e entrava na cabeça de Alex. Não te sobrou nada para poupar seu filhinho - Alex escutou -, e ele não vale nada. Ele ficou em pé e subiu os galhos baixos da árvore que ficava mais perto do Deveraux, molhando os pés descalços no pântano e esticou-se em um
galho comprido. Seu pai devia ter perdido de novo, talvez até usado mais do que apenas o dinheiro que ele havia recebido com a pesca do camarão. - Veja só, Lucien - seu pai disse. - Eu sou bom pra isso. Atrás de seu pai, ele viu Beau balançar a cabeça levemente a Lucien, mas o homem gordo e careca simplesmente cruzou os braços sobre o peito e riu. - Vai perder de novo, cher - ele disse -, mas não diga que sou mau perdedor. - Ele tirou um rolo de notas do bolso de sua camisa e deu algumas para o pai de Alex. Mas, antes que Andrew Riveaux pudesse pegar o dinheiro, Lucien o tirou de seu alcance. - Espere um pouco - ele disse. - Acho que se vou te pagar, você tem que se exibir para mim. Com o restaurante todo rindo, Andrew Riveaux ficou em pé e balançou o traseiro na mesa de baralho. Ele rebolou, fez biquinho e agiu como uma prostituta até Lucien ficar com pena e entregar a ele o dinheiro. O rosto de Alex estava pressionado contra a janela o tempo todo. Sentiu ânsia de vómito, mas, mesmo assim, não conseguiu desviar o olhar. Alex abriu os olhos. Ficou em pé e afastou as cortinas, acendendo todas as luzes da sala de projeção. Em seguida, pegou o telefone sem fio e ligou para o serviço de auxílio à lista no Maine. Pediu uma ligação a Benjamin Barrett. - Alô? Alex engoliu em seco. - Senhor Barrett? - Sim? - Meu nome é Alex Rivers. Marido de Cassie. Houve uma inspiração longa e então silêncio, que Alex decidiu usar a seu favor. - Fiquei sabendo sobre o que o senhor disse e eu queria... bem, pedir desculpas por ter usado o senhor como desculpa alguns meses atrás. - Você não sabe onde sua esposa está, não é? Uma raiva repentina tomou conta de Alex com aquela demonstração paternal, uma vez que, em três anos de casados, o homem nunca os visitara, nunca os convidara para irem ao Maine, nunca telefonara nem mesmo para dizer oi. - Não - ele disse, mantendo a voz em um tom normal. - Mas estou tentando. - Esfregou a mão pelo rosto. - Não faz ideia do quanto estou tentando. O QUE eu NÃO ENTENDO - CASSIE DISSE OLHANDO para a coluna de fofocas que Will havia levado a ela - é por que meu pai mentiria e admitiria que me viu. Isso faz sentido para Alex, porque as pessoas vão perguntar, mas meu pai não tem nada a perder. Exceto você - Will disse. - Você não faz ideia de como as coisas ficaram feias; do que as pessoas estão acusando Alex. Conivência. Assassinato, Até mesmo você - uma revista disse que você tinha um príncipe europeu como amante e que teria fugido com ele para a selva da África ou alguma coisa assim. Cassie riu, esfregando a mão sobre sua barriga. - Claro, claro. Will não disse a ela o que queria dizer, que ela era bonita, mesmo estando fora de forma por estar grávida do filho de Alex. - Eu pensei que Alex poderia ter dado dinheiro a seu pai - Ele disse. Ela balançou a cabeça no mesmo instante.
- Ele não faria isso. - seu rosto ficou iluminado. - Ele provavelmente pensou que eu ficaria sabendo o que os jornais estavam dizendo sobre mim e não ia querer que eu me magoasse. Deve ter dito isso a meu pai, que voltou atrás em tudo o que disse sobre mim. - ela sorriu. - Não acha? Will não achava, mas não conseguia fazer Cassie compreender aquilo. - O mais engraçado é que de todas as histórias a respeito de vocês em Hollywood nenhuma conta a verdade. Cassie começou a desenterrar uma pedrinha no chão. - Isso porque ninguém quer acreditar - ela disse. Eles estavam sentados fora da tenda de suor, dentro da qual estava acontecendo um casamento sioux. Will estava de volta havia uma semana, depois de pedir demissão em Los Angeles. Disse a Cassie que não pretendia ficar em Pine Ridge, mas que também não voltaria para Los Angeles. Acreditava que esperaria até que o bebê nascesse e, quando ela fosse embora, ele iria também. Às vezes ele se permitia pensar que ela iria com ele. Ele havia chegado a tempo de ver seu velho amigo traído, Horace, se casar. Havia muito tempo se desculpado, mas ficou surpreso ao descobrir que Horace nunca havia deixado a reserva. Na verdade, a mulher com quem ele estava se casando era uma sioux genuína. Horace conhecera Cassie na cidade, no supermercado, que ele agora gerenciava. Ela tinha ido comprar ração para Wheezer, e precisou de ajuda para levar o saco para a caminhonete, onde Wheezer pulava sem parar na caçamba. - Conheço esse cachorro - Horace dissera, e foi assim que eles perceberam que ambos conheciam Will. Horace e Glenda estavam sentados dentro da tenda de suor com Joseph Cabanas ao Sol, o curandeiro. Ninguém além do padrinho estava por perto - os convidados chegariam depois para a cerimónia civil -, mas Ho Orace havia convidado Cassie e Will. Este recebera a solicitação de manter os carvões em chamas no monte para que as pedras estivessem prontas quando Joseph as passasse dentro da aba de lona. - Acho que eles estão saindo - Cassie sussurrou. Estava tentando não admitir, mas estava encantada. Aquilo era o mais próximo que ela havia chegado de um ritual lakota. A antropóloga física dentro dela ria do interesse; a antropóloga cultural dentro dela que ela havia enterrado dentro de si dizia que devia fazer anotações; mas a mulher dentro dela tinha visto apenas duas pessoas muito apaixonadas que haviam entrado na tenda do suor para selar seu compromisso. Will havia passado as quatro últimas pedras a Joseph vinte minutos antes; eles haviam observado o vapor subir das beiradas da lona costurada. A aba foi aberta, e Joseph ficou em pé, idoso, curvado e completamente nu. Ele sorriu para Will e desceu o caminho que levava a um pequeno riacho. Glenda foi a próxima e, depois, Horace. Nenhum dos dois parecia se importar por não estarem vestindo nada além de colares com fitas de cores vivas, cada uma significando um aspecto diferente do casamento - o relacionamento deles um com o outro, com Deus, com o planeta, com os filhos, com a sociedade. - Ei - Will chamou, sorrindo. - Não vai beijar a noiva?
Mas Horace apenas deu um tapa no traseiro de Glenda e correu atrás dela em direção ao riacho. Suas fitas brilhavam como arco-íris na água. Ao lado de Will, Cassie fungou. Ele virou o rosto dela de modo a ficar de frente para ele. - Está chorando? - ele perguntou. Cassie deu de ombros. - Não consigo me controlar. Tenho chorado por qualquer coisa. - Ela olhou para a entrada aberta da tenda do suor, ainda com o vapor. - Todo casamento deveria ser assim - ela disse. - O noivo, a noiva e mais ninguém. E não há nada para esconder. - Ela se esforçou para ficar de joelhos e depois em pé, apertando a mão na parte baixa das costas. - Eu gostaria de me casar assim ela disse suavemente. A distância, Glenda ria, sua voz misturada com a do novo marido. Will ficou em pé ao lado de Cassie e olhou para onde ela olhava, tentando ver o que ela via. - Certo - ele disse. - Quando? Cassie virou-se para ele e sorriu. - Ah, não sei. Na próxima terça-feira. Will não disse nada, nem mesmo quando Cassie pegou em sua mão e o puxou para se sentar na barranca do riacho. - Tanyan yahíyélo - ela disse hesitante. - Estou feliz por você ter vindo. E, apesar de não ter conseguido dizer, sabia que também estava. NAQUELE DIA, FAZIA QUATRO MESES COMPLETOS que Cassie havia desaparecido, três meses e seis dias desde sua ligação. Alex sentou-se na varanda do lado de fora do quarto, bebendo mais um drinque, tentando não sentir pena de si mesmo. Ele já tinha estabelecido uma rotina, que envolvia repensar todas as lembranças que tinha de Cassie para que ela se tornasse quase real: Cassie debruçada sobre um osso em seu laboratório; Cassie fazendo piada da dança em estilo Elvis de um produtor, ou da mania de uma atriz anoréxica de estalar os dedos; os cabelos de Cassie espalhados sobre seus ombros enquanto ele beijava seu corpo até a sua barriga; e, sim, aquela que ele se forçava lembrar, Cassie enrolada seus pés, sangrando e ferida, mas ainda assim tentando acalmá-lo. Havia feito uma promessa. Faria qualquer coisa para tê-la de volta. Procuraria um psicólogo. Procuraria fazer terapia em grupo. Ele até abriria seu coração no programa Entertainment Tonight. Sua reputação não poderia ficar mais manchada do que já estava e, por pior que fosse o escândalo da revelação da verdade, ainda assim não se compararia com a dor que Cassie havia tolerado durante anos. Ele dizia isso a si mesmo todas as vezes em que levava seu copo aos lábios, mas, é claro, era um brinde vazio. A pessoa que mais precisava ouvir aquilo ainda estava longe. Ele escutou uma batida na porta do quarto e resmungou. Não estava com paciência para nenhum de seus funcionários. Eles faziam perguntas pelas quais Alex não se interessava nem um pouco, como o que ele queria para jantar e se seu compromisso com o senhor Silver ainda estava marcado. - Vá embora - ele gritou. - estou trabalhando. - Até parece - disse uma voz de mulher seguida por passos de sapatos de salto alto. Alex recostou a cabeça no encosto da cadeira e fechou os olhos,
desejando que não tivesse reconhecido a voz. - Na verdade, tenho trabalhado mais do que você. Ophelia ficou parada na frente dele, vestida com um terninho bege de linho e um chapéu de abas largas mais adequado para Ascot do que para Los Angeles. Ela se curvou e tirou o copo da mão de Alex e passou os dedos na barba por fazer de seu queixo. - você está péssimo, Alex. Apesar de imaginar que você não tem recebido muitas visitas. - Ophelia - ele suspirou. - O que diabos você quer comigo? Ophelia abaixou-se na frente de Alex para que pudessem se olhar no mesmo nível. Eles se entreolharam e nenhum dos dois desviou o olhar. - Digamos que é de meu interesse saber como andam as coisas - ela disse. - Já faz quatro meses e Cassie ainda não entrou em contato comigo nem com você... Antes que conseguisse lembrar de interpretar, Alex virou o rosto. - Caramba! - Ophelia disse, boquiaberta. - Você recebeu notícias dela. Alex balançou a cabeça e começou a cobrir seu erro com palavras. - Alex - Ophelia interrompeu -, dá um tempo. - Ela ficou em pé e bateu as mãos com luvas brancas na coxa. - Eu vim aqui para reunir forças, mas você já encontrou Cassie. - Ela olhou para ele. - Então por que não está com ela? - Ela não me disse onde estava - Alex admitiu. - Apenas que estava bem. E que vai voltar a ligar quando quiser voltar para casa. - E você tem tentado localizá-la desde então? - ela inclinou a cabeça. Claro que sim. Se você não estivesse preocupado com ela, poderia ter percebido que sua carreira toda está fadada ao fracasso. - Ela riu: um som claro e alto. - Ela telefonou para você. Certo. Talvez eu não estivesse dando crédito a quem deveria dar. Posso não gostar muito de você, mas Cassie parece gostar. Apesar de tudo. Por isso, posso acreditar que você também se importa com ela. Alex baixou o olhar. - Jesus Cristo - ele murmurou. - Diga logo o que quer. Ophelia agachou-se ao lado de Alex e tirou o copo da mão dele. - O que eu quero dizer é que você não merece Cassie, mas aparentemente ela não foi embora para sempre. E ela certamente não merece ver você assim quando voltar pela porta da frente. - Ela esvaziou o copo na ampla varanda e puxou Alex, arrastando-o para o quarto, diante do espelho que ficava acima de sua cômoda. Ela ficou atrás dele enquanto ele observava seus olhos vermelhos e pele amarelada e sentia os odores amargos do uísque e da autopiedade que tomavam suas roupas. - Alex - Ophelia disse, endireitando seus ombros e forçando-o a ficar em pé ereto. - Hoje é seu dia de sorte. Will sentou-se em um canto escuro da tenda de Joseph Cabanas ao Sol, tentando imaginar onde um curandeiro de oitenta e sete anos poderia estar tão tarde da noite. Ele estava ali havia mais de uma hora; não sabia exatamente por que, mas queria conversar com o velho e sabia que tinha de ser logo. Havia belos artefatos de contas pendurados na parede e uma peça comprida de pele de veado com um mural sobre o assassinato de um tal de Chippewa por um grupo sioux de caça. Havia montes de tabaco seco
enrolado e sálvia nas dobradiças da porta. Um chalé de estrelas, que Joseph usava para as cerimónias de cura, estava jogado sobre uma cadeira de balanço Adirondack. Era nela que Will estava sentado naquele momento, segurando a Grande Flauta Torcida que Joseph havia entalhado antes de Will nascer. Era um tubo retorcido de cedro, longo e grosso, pintado com a imagem de um cavalo. Tinha o poder de dar a um homem jovem poder sobre uma mulher jovem, e Will lembrou-se de Joseph contar a ele a história de como seduziu sua esposa. - Eu sonhei com a música - Joseph dissera - que vinha da alma dela. E, quando ela a escutou, deixou a tenda de seus pais e seguiu a melodia até perceber que estava apenas me seguindo. Will passou os dedos pelos furos da flauta, pelo bocal e o levou à boca e assoprou uma vez, fazendo um som que lembrava o choro de um bezerro desmamado. Então, balançou-se, para a frente e para trás, batendo a flauta contra seu pulso, observando a lua escorregar pelas aberturas da porta da frente de Joseph. Lembrou-se de um sonho que começava com trovão. Estava no meio de uma tempestade, a chuva batendo em seus ombros e costas nus, e gritava para que a corça se movesse. Ele sabia que o raio estava vindo, que atingiria o local onde ela estava, mas o animal estava parado, como se não tivesse notado a chuva. Ela era a criatura mais impressionante que Will já vira, com costas curvadas e correntes de dentes-de-leão ao redor de seus tornozelos. Uma estrada se abriu diante dele; ele viu que poderia caminhar para onde a corça estava ou ir para a direita, onde não chovia. Seria mais fácil virar-se e sair, e ele não queria ser levado pela chuva. Começou a ir na direção da corça. Gritou, empurrou a criatura com os punhos e finalmente ela foi para o outro lado, ao sol. Will tentou seguir, mas naquele momento o raio que ele sabia que estava vindo caiu em suas costas, queimando-o e quebrando seus ossos. Ele caiu ao chão, surpreso de que pudesse haver tamanha dor no mundo, e sabia que a havia salvado. Parou de chover, e ele levantou a cabeça - a única parte do corpo que ainda conseguia mexer - e encontrou a corça perto dele, cheirando a palma de sua mão. Então, a corça foi embora e Cassie estava ali, tocando-o, curando-o; e salva, por causa dele. Will olhou para cima quando a porta se abriu. Joseph Cabanas ao Sol tirou o casaco e se sentou na beira de um banco de piquenique. Esperou que Will dissesse alguma coisa. Will balançou a cabeça para apagar os pensamentos. Aquilo significaria voltar para Pine Ridge - não apenas fisicamente, mas em sua ton, sua alma. Então, mais uma vez, ele percebeu que não havia se encaixado melhor na Califórnia do que entre os sioux; talvez fosse seu destino ficar entre dois mundos pelo resto da vida, até que encontrasse algum oásis híbrido, como a casa que seus pais haviam criado. Ele entregou a Joseph sua Grande Flauta Torcida. Havia apenas uma melodia que Cassie escutaria, porque ela a tocara milhares de vezes. Com os olhos brilhando, Will se inclinou na direção do curandeiro e perguntou como ele poderia tirar a dor dela.
Marjorie Dois Punhos desviou os olhos de um par de mocassins infantis que ela estava adornando e viu Cassie cometer outro erro. - Hiyá - ela disse, apontando. - Se não se concentrar, terá de jogar tudo fora. Cassie empurrou a agulha pelo couro macio, sabendo que não tinha facilidade com aquilo que aquelas mulheres idosas faziam com tanta habilidade, apesar da perda de visão e da artrite. - Sinto muito - ela disse. Rosalynn Estrela Branca olhou por cima de seus óculos. - Ela sempre sente muito - ela disse. Ao ouvir isso, Dorothea levantou a cabeça. - Melhor sentir muito do que ser estúpida - ela disse diretamente a Rosalynn. - Ela tem outras coisas nas quais pensar. Cassie escutou o que Dorothea dissera, mas não prestou muita atenção. Era o final da Lua do Amadurecimento da Cereja, o mês que ela chamava de julho, e seu bebê nasceria em questão de semanas. Estava pesada demais para andar, apesar de o peso do corpo não ser comparado ao peso da mente. A cada chute e movimento estranho dentro dela, Cassie se lembrava de Alex, de que ele ainda não sabia. Ainda sentia saudades dele. Em seus sonhos, imaginava Alex perdoandoa, puxando-a para mais perto dele. Via o rosto dele na fila de depósito do banco em Rapid City; em um ponto de luz acima das Black Hills; refletido em uma poça de chuva. Tentava pensar nas coisas que ele diria quando ela mostrasse a ele seu filho ou sua filha, mas isso significava imaginar-se de volta a Los Angeles, longe das planícies, e isso ela não conseguia imaginar de forma alguma. As coisas estavam mais confortáveis em casa. Não podia negar que ainda amava Alex e sempre amaria, mas tampouco podia esquecer que nos cinco meses passados em Pine Ridge tinha sido livre. Não passara suas tardes pensando no temperamento de Alex e agindo de acordo com seu humor. Não acordara no meio da noite, mais uma vez assustada por ter feito algo errado. Não fora agredida, ferida, marcada. Certa vez, na cidade de Pine Ridge, ela havia visto um adolescente chutar um cachorro de rua que havia corrido com seu maço de cigarros depois de tirálo do bolso de trás de sua calça. O cachorro era velho e meio cego, provavelmente tinha sarna, mas Cassie havia corrido para se colocar entre o garoto e o vira-lata. Algumas pessoas da rua haviam rido, apontando para a moça grávida curvada sobre um cachorro sem raça, com a barriga perto do chão, sua voz repreendendo o garoto que havia causado a agressão. - Witkowan - eles a haviam chamado. Mulher louca. Mas para Cassie tinha sido instinto. Ela havia recriado a reserva como um tipo de espaço neutro, onde a segurança estava garantida. Ela não estava disposta a deixar sua imagem ser ameaçada. Naqueles dias, Will nunca estava por perto - Cassie sentia que o Via ainda menos agora que ele havia se mudado temporariamente para Pine Ridge. Ele passava muito tempo com Joseph Cabanas ao Sol e não dizia nada a Cassie, exceto que ele estava finalmente aprendendo sobre o povo. Vinte e três
Cyrus, Dorothea e todos os outros estavam ocupados se preparando para o wacipi, uma grande cerimónia indígena no início do mês de agosto. Com alguns dos outros idosos, Cyrus saiu para procurar pelo choupo ramificado que seria usado como vara durante a Dança do Sol. Dorothea passava todo o seu tempo livre enlatando amoras silvestres em conserva e tónicos feitos com raízes, que ela planejava trocar na festividade pelas belas mantas e tapetes que outros faziam. Quando havia terminado de guardar suas mercadorias em uma grande caixa, disse a Cassie que estava indo para a cabana de Marjorie Dois Punhos para fazer bordados e pediu a Cassie que a acompanhasse para poder esquecer seus problemas. Assim, Cassie reuniu-se pela terceira tarde seguida com um grupo de senhoras, sentindo-se cada vez mais deslocada sempre que estragava os bordados com contas sobre pulseiras, casacos e mocassins. Dorothea deixou de lado o saco que ela estava bordando e pegou a barra da manta de Rosalynn. - Isso será um bom produto para troca - ela disse. - É a melhor parte do final de semana. - Oh, eu não sei - Marjorie disse. - Apesar de estar velha demais para dançar, gosto de ver os jovens com suas fantasias. Gosto de escutar os tambores. Tão altos. Dorothea riu. - Talvez se Cassie ficar bem próxima de onde a música estiver sendo tocada, seu bebê venha antes. Era a última coisa que Cassie queria que acontecesse. Não sabia nada sobre crianças; não pensara na realidade, como troca de fraldas, arrotos e aleitamento. Estava pensando no bebê mais como um meio para um fim, mas havia alguma coisa a respeito desse fim - a finalidade dele - que ela não queria ver. A porta se abriu e, ali, moldado pela luz clara da chuva de verão, estava Will. Sem perceber o que estava fazendo, Cassie ficou em pé, deixando o mocassim que estava bordando cair ao chão, o que fez as contas se espalharem e entrarem entre as tábuas lisas de pinheiros. - Oh! - Ela disse, abaixando-se como pôde para pegar o que havia caído. - Já sei, já sei - Marjorie murmurou. - Você sente muito. - Boa tarde, meninas - Will disse, sorrindo. - Como está indo? Dorothea deu de ombros. - Vai acabar quando estiver pronto - ela disse. Will sorriu: aquilo resumia sua filosofia de vida. Ele olhou para Cassie. Pensei que você quisesse dar uma volta. Marjorie ficou em pé e pegou as contas da mão de Cassie. - Ótima ideia - ela disse. - Leve-a antes que ela destrua mais alguma coisa. Dorothea olhou do neto para Cassie e de volta para o neto. - Ela está temperamental - Dorothea avisou. - Talvez você possa ajudá-la a melhorar. Era exatamente isso que Will planejara fazer. Imaginou que Cassie fosse ficar cada vez mais feliz por aqueles dias, sabendo que logo ficaria cerca de quinze quilos mais leve, mas ela parecia cada vez mais introspectiva. Quase como se, Will admitiu, ela já estivesse se separando deles.
Ele tinha uma chance, e estava chegando. No dia da grande cerimónia indígena, ele faria com que ela compreendesse. Mas enquanto isso não seria ruim fazê-la sorrir. - O que me diz - ele insistiu. Cassie apoiou o peso do corpo no outro pé. Há dias queria ver Will; estava inquieta; deveria estar pulando de alegria pela chance de se afastar daquele grupo maluco. - Qual era seu problema? - Vamos nos molhar - ela disse. - Não podemos sair. Os olhos de Will começaram a brilhar. - Tudo bem - ele disse. - Vamos fazer outra coisa. - De repente, ele estava em pé no círculo de mulheres, tentando, desajeitadamente, abraçar Cassie. Ele começou a cantarolar e a girar Cassie em uma dança fora de ritmo de dois passos, pisando em mocassins e kits de costura com suas botas de caubói. Rosalynn, encantada, começou a cantar de maneira doce. Cassie corou. Sem nenhum equilíbrio, ela se viu segurando-se aos ombros de Will para se apoiar. Mal viu Marjorie ficar em pé, sorrindo, para tirar sua cadeira do caminho quando Will a direcionou para a porta aberta. Dorothea, Marjorie e Rosalynn ficaram reunidas na janela, observando o casal e batendo palmas, lembrando do passado, quando namoravam sob um cobertor ou quando chacoalhavam seus pacotes do futuro para tentar vê-los por dentro; talvez até já tivessem dançado na chuva. Cassie escutou o riso das mulheres idosas, um tipo totalmente distinto de música, que pareciam tão jovens quanto as gargalhadas de garotas. Ela olhou nos olhos de Will enquanto eles passavam pela porta, indo para a tempestade. Pisando nas poças, ela pisava nos pés dele, sentia o bebê mexer em seu ventre, sentia a chuva fria secar em seu rosto. A chuva levava tudo embora. Por um momento adorável e molhado, Cassie de fato acreditou que tudo poderia continuar daquela maneira. ENTRE A CASA DE MARJORIE DOIS PUNHOS e a sua, Dorothea sentouse para pensar nas maneiras como a história se repetia. Não era que ela estava cansada, ou que a bolsa com seus bordados havia, de repente, ficado pesada demais. Era que, sem esperar, o espírito de Anne, sua falecida nora, passou a caminhar ao lado dela e sua respiração no pescoço de Dorothea a impedia de seguir adiante. Zachary, o único filho de Dorothea, havia se apaixonado pela professora branca 36 anos antes, e apesar de nunca ter tido a intenção de magoar seu filho, Dorothea fizera tudo que estava a seu alcance para desfazer aquela atração. Deixara as raízes e folhas secas certas sob o colchão de Zachary; orara a seus espíritos; chegara até a consultar Joseph Cabanas ao Sol. Mas o relacionamento tinha de acontecer. Na verdade, no dia em que Anne deixara Pine Ridge para se distanciar de Zachary, no dia em que Zachary selara um cavalo e percorrera quilómetros atrás dela, Dorothea estava a apenas alguns metros, observando tudo e balançando a cabeça de maneira negativa. Dorothea nunca teria admitido naquela época, mas Anne se tornou sua obsessão. Quando ficou claro que seu filho se casaria com ela independentemente do que ocorresse, Dorothea lhe dissera para não contar com sua presença no casamento. Mas fizera questão de observar com mais atenção a mulher que seria sua filha. Ficava do lado de fora da sala onde Anne lecionava para poder se familiarizar com sua voz e sua maneira de falar. Ela
seguia a futura nora no mercado e observava os itens que ela comprava: talco, balas de gengibre, sombra azul. Ela ia aos órgãos governamentais e memorizava seus títulos, seu tipo sanguíneo, seu número de identidade. Três dias antes do casamento, Anne adormecera sob um choupo do lado de fora da casa de Dorothea, enquanto esperava por Zachary. Dorothea se ajoelhou ao lado dela e tocou sua pele incrivelmente clara. Encantada, ficou ali por quase dez minutos, memorizando o mapa de veias claras que atravessavam o pescoço branco de Anne. - O que está fazendo aqui? - Anne perguntou em inglês quando acordou. - Posso fazer a mesma pergunta a você - Dorothea disse, falando lakota. Anne esforçou-se para sentar, ciente de que a resposta "Esperando por Zack" não bastaria para a sogra. - Eu o amo tanto quanto você - Anne respondeu. - Esse poderia ser o problema - Dorothea rebateu. Ela ficou em pé, pronta para voltar para a casa quando Anne disse em lakota: - Gostaria que a senhora fosse ao casamento. Dorothea, no mesmo instante, usou o inglês para dizer: - Não colocaria meus pés em uma igreja de brancos. - Mesmo assim - Anne disse casualmente: - Vou vê-la lá. Dorothea se virou para perguntar: - E como sabe disso? - Porque nada a manteria afastada - Anne respondeu, sorrindo. No dia do casamento, Cyrus havia implorado a Dorothea que reconsiderasse, mesmo que fosse apenas por Zach, mas ela continuou vestida com suas roupas de ficar em casa, sentada na velha poltrona. Assim que ele saiu, no entanto, ela se vestiu e caminhou para a estrada mais próxima, conseguindo uma carona para a cidade. Chegou à igreja e, como dissera, manteve-se do lado de fora, espiando por uma fresta nas paredes malfeitas de madeira. O ministro fazia a bênção final, depois que o estrago estava feito. Murmurando a si mesma, Dorothea observou a mão morena de Zachary apertar delicadamente a de sua nova esposa. Quando Dorothea olhou para cima, Anne não estava olhando para o marido nem mesmo prestando atenção ao ministro. Estava meio virada para os fundos da igreja, olhando diretamente pela fresta na parede, para a sogra. Piscou. Dorothea deu um passo para trás na rua de terra e então riu. Era a primeira de muitas vezes em que sua nora excedera suas expectativas. A primeira de muitas vezes em que Dorothea havia admitido a si mesma que gostava de Anne, que a respeitava muito e - agora que ela estava morta - quanto sentia sua falta. - Você sabe que, depois do acidente, Zach desistiu por sua causa Dorothea disse em voz alta. - Ele não saberia viver sem você. - Ela sabia que as coisas seriam da mesma forma entre ela e Cyrus: assim que um deles entrasse no mundo espiritual, o outro morreria logo para que eles pudessem ficar juntos de novo. Dorothea levara anos para compreender, mas agora estava convicta: o amor era daquela forma. Não havia como separá-lo em preto e branco. Sempre voltava para o tom estranho e misturado de cinza.
CASSIE SENTOU-SE ao LADO DE Cyrus EM uma cadeira de praia dobrável na sombra, esperando pelo início da Dança do Sol. As quatro bandeiras no topo da vara sagrada balançavam ao vento: branca, amarela, vermelha e preta, como as quatro raças do homem. Uma águia sobrevoou tranquilamente a área, o que deixou os observadores animados. - Bom presságio - Cyrus disse a Cassie. Era o último dia da celebração indígena e Cassie estava encantada. Havia caminhado com Dorothea entre as pesadas mesas de negociação, escolhendo uma pulseira larga para si e um cobertor para seu bebê. Havia olhado dentro das barracas de lona montadas pelas famílias que viviam longe, surpresa pela justaposição de cocares de penas de águia e calças jeans Levfs, colocados lado a lado em cabides. Aquele era o último dia da Dança do Sol, a dança mais sagrada das festividades, a única que exigia meses de preparação e treinamento dos participantes. Cyrus não havia lhe contado muito sobre aquilo, apenas que era uma cerimónia em louvor ao sol, um ritual para o crescimento e para a renovação. Durante os últimos três dias, Will havia sido um dos dançarinos, para surpresa e alegria de Cassie. Ela gostava de vê-lo vestido como os outros e girando ao redor da vara como seus ancestrais vinham fazendo havia anos. - Não sei o que fez você fazer isso - ela disse a ele depois do primeiro dia de danças -, mas você é um ótimo índio quando quer. - E Will sorrira para ela, quase orgulhoso por se ver pelos olhos dela. Cassie inclinou-se para a frente quando os homens preencheram o acampamento sagrado, liderados por Joseph Cabanas ao Sol. Assim como ele, todos vestiam longos kilts vermelhos compridos, os peitos pintados com tinta azul. Usavam coroas de sálvia na cabeça e carregavam apitos de ossos de águia. Cassie tentou chamar a atenção de Will quando ele passou por ela, para desejar-lhe sorte, mas ele manteve o rosto voltado para o céu. Joseph Cabanas ao Sol caminhou até Will, esperando sob o galho ramificado de choupo. Ele murmurou alguma coisa em lakota e então ergueu um florete prateado. Por um momento, ele o manteve levantado e Cassie viu o sol refletir sua ponta polida e pontiaguda. Joseph inclinou-se mais perto de Will, cujas costas ficaram tensas. Apenas quando Joseph mostrou um segundo florete Cassie percebeu que o curandeiro havia rasgado a pele do peito de Will, e o sangue estava escorrendo por sua barriga. Assim como os outros dançarinos, os dois floretes de Will estavam amarrados a pedaços de couro cru, que ficavam soltos do topo da vara sagrada. Com Joseph liderando todos eles, os homens começaram a dançar, de maneira muito parecida com que haviam feito nos outros três dias. Os tambores tocavam, mas o coração de Cassie batia mais forte. Ela estava tensa, segurando-se nos braços da cadeira, lívida. - O senhor sabia - ela sussurrou a Cyrus, apesar de não tirar os olhos de Will. - O senhor sabia e não me contou. Will rodou e cantou. Seu peito estava tomado de sangue, uma vez que sempre que rodavam, abriram as feridas. Cassie olhava horrorizada ao ver a pele se esticar ao máximo. Cassie segurou no braço de Cyrus. - Por favor - ela implorou. - Ele está se ferindo. O senhor tem que fazer alguma coisa.
- Não posso fazer nada - Cyrus disse. - Ele tem que fazer isso sozinho. Cassie deixou as lágrimas escorrerem de seu rosto e se arrependeu de ter incentivado Will a aceitar seu lado lakota. Aquilo era bárbaro. Pensou nele em seu uniforme da Polícia de Los Angeles, com o boné enterrado na testa. Lembrou dele no pronto-socorro com ela, no dia em que a encontrara, os braços cruzados de preocupação. Pensou nele dançando com ela no dia da chuva, de seu bebê chutando entre eles. - Por que essa dança? - ela sussurrou, pensando nas outras cerimónias a que assistira; aquelas que não envolviam automutilação. Virou a cabeça, chocada ao ver as pessoas ao redor sorrindo, gostando de ver o sofrimento alheio. - Ele não está sofrendo - Cyrus murmurou. - Não por ele. - Apontou para o dançarino ao lado de Will. - Louis está fazendo a Dança do Sol para que sua filha sobreviva, apesar de seus rins estarem morrendo. Arthur Casca, à direita, tem um irmão que continua desaparecido em ação no Vietnã. - Virou-se para olhar para Cassie. - Os dançarinos sentem a dor para que alguém próximo a eles não tenha de senti-la. Quando a dança terminou, Joseph Cabanas ao Sol saiu do círculo. Os homens começaram a girar e a puxar, lutando para se libertarem. Cassie ficou em pé, impotente, e sentiu a mão de Dorothea em sua perna. - Não faça nada - disse Dorothea. "Sofrer para que alguém não precisasse sofrer. Sacrificar seu corpo para o bem-estar de outra pessoa." Cassie viu o florete abrir mais uma ferida na pele de Will, viu o sangue escorrer pelo peito dele. Ele olhava para ela. Cassie olhou para os olhos dele. A imagem dele sumiu e ela imaginou o próprio corpo sangrando e caído aos pés de Alex, uma válvula de escape para a raiva que nada tinha de ver com ela. Will estava apenas fazendo por Cassie o que ela passara anos fazendo por Alex. Quando a pele do peito de Will soltou-se dos floretes, Cassie gritou. Correu e ajoelhou-se ao lado dele, apertando as feridas em seu peito com a sálvia de sua coroa e depois com a barra de sua camisa. Os olhos dele estavam fechados e sua respiração estava rápida e rasa. - Continua doendo - ela sussurrou. - Mesmo quando você faz isso por alguém, não impede que suas costelas se rachem ou que seus pulsos inchem, nem que seus cortes sangrem. Will abriu os olhos. Ele esticou o braço para secar as lágrimas do rosto de Cassie. - Você fez isso por mim - ela disse. - Fez isso para que doesse menos quando eu fizesse isso por ele. Will assentiu. ! I, Entre lágrimas, Cassie riu. - Se eu não o conhecesse bem, Will Cavalo Alado, eu diria que você está agindo como um grande índio. Will sorriu para ela de maneira fraca. - Vai entender - ele disse. Cassie afastou o cabelo do rosto dele. Passou os dedos com delicadeza perto de suas feridas. Nem mesmo Alex, que havia lhe oferecido o mundo, lhe dera tanto quanto Will. DUAS SEMANAS DEPOIS DA DANÇA DO SOL, Cassie entrou em trabalho de parto. Teria tido tempo de se internar na clínica da cidade, mas queria ter seu filho em um local mais familiar. E então, dez horas depois,
deitada na cama onde Cyrus, Zachary e Will haviam nascido, ela estava gritando a plenos pulmões. Dorothea manteve-se aos pés da cama, medindo o progresso de Cassie. Will estava ao lado de Cassie, sentindo ela apertar sua mão. - Menos de uma hora agora - Dorothea disse com orgulho. - O bebê está coroado. - Vou sair - Will disse, tentando se soltar, mas Cassie não o deixou partir. Ele se sentira pouco à vontade, mas Cassie havia implorado. Ele talvez continuasse se recusando a ficar se Cassie não tivesse sofrido uma contração naquele exato momento, uma dor que quase a partira ao meio nos braços dele. - Por favor - Cassie disse ofegante. - Não me deixe passar por tudo isso sozinha. - Ela agarrou a camisa de Will. Mas então ela não mais conseguiu falar, porque sua barriga endureceu e a pressão extremamente potente forçava seu caminho para a metade inferior de seu corpo. Não seria ridículo se tivesse fugido para salvar a vida do bebê, e ela mesma morresse no final? Respirou profundamente e recostou-se novamente nos travesseiros de novo. "Eu compreendo você"- ela disse silenciosamente ao bebê. "Eu sei como é difícil passar de um mundo a outro." Lá vem ele - Dorothea disse. Cassie conseguia sentir a pressão fria das pontas dos dedos de Dorothea rompendo a carne ao redor da cabeça do bebé. Lutou, enterrou as unhas na mão de Will e fez força. Dez minutos depois, Cassie sentiu algo comprido e úmido escorregar entre suas coxas. Dorothea ergueu uma criança chorando. - Hoksíla lubál Um menino! - ela disse. - Grande e saudável, apesar de ser um pouco demais para o meu gosto. Cassie riu, esticando as mãos, percebendo, em primeiro lugar, as lágrimas nos cantos de seus olhos. Ela segurou o bebê, tentando encontrar uma posição confortável, sem saber exatamente como. O bebê abriu a boca e gritou. - O som é o mesmo que você faz - Will murmurou e Cassie lembrou-se de que ele estava ali. Ele acariciou a nuca dela, levemente, encantado e sem saber se ela permitiria o carinho. - Como se sente? - Will perguntou. Cassie olhou para ele, procurando a palavra certa: - Cheia. - Bem, mas você parece bem mais vazia. Cassie balançou a cabeça. Como poderia explicar? Depois de toda a saudade de Alex, não estava mais sozinha. Aquela coisinha chorosa a completava também, de uma maneira diferente. Um menino. Um filho. Filho de Alex. Cassie pensou em nomes, tentando encontrar um que combinasse melhor com o bebê em seus braços. Ele havia virado o rosto para o seio dela, como se já soubesse o que queria. - Você é igual ao seu pai - ela disse, mas logo percebeu que não era verdade. O rosto da criança era uma réplica em miniatura do seu, exceto pelos olhos, que eram, certamente, como os de Alex. Claros, com um brilho prateado. Não havia nada de Alex na boca, no formato dos dedos e pés, no comprimento do tronco. Era quase como se a falta de contato houvesse diminuído as marcas de Alex em seu filho. O bebê se aconchegou ainda mais a Cassie, exigindo seu calor. E ela pensou sobre como era seu único apoio - para ser alimentado e protegido
agora e, mais tarde, para receber amor. Ele a procuraria quando fizesse seu primeiro desenho com giz de cera, pintando metade da mesa da cozinha também. Mostraria o cotovelo machucado acreditando que um beijo acabava com a dor. Abriria os olhos todas as manhãs e saberia, com aquela alegre certeza infantil, que Cassie estaria ali. Ele precisava dela, e isso, Cassie percebeu, era a maneira pela qual ele mais se parecia com Alex. Mas, dessa vez, precisar não seria sinónimo de ferir. Aquela era a sua segunda chance na vida. Ela e o bebê cresceriam juntos. Will tocou a mão do bebê e observou seus dedinhos se fecharem como uma rosa de verão. - Como ele vai se chamar? A resposta ocorreu a Cassie tão rapidamente que ela logo percebeu que sempre a carregara consigo. Pensou na primeira vez em que havia sido amada por alguém que nada queria em troca. Alguém que lhe dera esperança suficiente para acreditar, anos depois, que Alex ainda podia mudar, que poderia existir alguém como Will, que um filho poderia vê-la como o seu mundo. - Connor - ela disse. - O nome dele é Connor. DUAS SEMANAS DEPOIS, CASSIE ESTAVA DE PÉ, alegre após carregar tanto peso extra por tanto tempo, não se acostumava com a leveza de seus passos. Mas também sabia que parte disso se dera graças à decisão que tomou horas depois do parto. Não tinha a intenção de ir embora, não imediatamente. Talvez depois de três meses, seis meses, talvez mais. Disse a si mesma que queria que Connor estivesse forte antes de fazer a viagem, e nenhum dos Cavalo Alado havia se contraposto à sua escolha. Na verdade, Cyrus havia lhe dado um cesto de bebê tradicional de presente e, quando passou pela sua cama, olhou em seus olhos e disse: - Vai ser bom levá-lo ao evento indígena do ano que vem. Ela ia entrar em contato com Alex como havia prometido; devia isso a ele, mas havia protelado por uma semana; depois, a caminhonete de Will havia quebrado e ela não teve como ir a Rapid City. Assim, livre de suas obrigações, sentou-se na porta da casa com Dorothea, debulhando ervilhas para o jantar. Connor estava em seu cesto, protegido, acordado. Ele dormia a maior parte do dia, por isso Cassie ficou surpresa - ela acabara de amamentá-lo e ele continuava alerta, com os olhos claros observando a paisagem. - Não quer dormir? - ela perguntou. Colocou uma ervilha na própria boca. - Você - Dorothea a repreendeu. - Não teremos o suficiente para o jantar. Cassie deixou sua tigela de lado e se esticou, deitando sobre as tábuas de pinheiros, olhando para o sol. Não conseguia olhar para ele sem pensar em Will, das cicatrizes rosadas que ainda podiam ser vistas em seu peito. Connor começou a chorar, mas, antes que Cassie pudesse se sentar, Dorothea deu-lhe um tapinha na boca. Assustado, Connor arregalou os olhos e ficou em silêncio. Dorothea tirou sua mão e olhou para Cassie, que a encarava, furiosa. - Que diabos pensa que está fazendo? - Cassie disse. Era estranho ficar tão irritada por outra pessoa, principalmente quando a maternidade era algo tão novo, como um vestido de festa bonito que se tira do
guarda-roupa para provar, mas que não se sente à vontade para vesti-lo o dia inteiro. - Ele estava chorando - Dorothea disse, como se aquilo explicasse tudo. - Sim, estava - Cassie disse. - Os bebês choram. - Não os bebês lakota - Dorothea respondeu. - Nós os ensinamos desde cedo. Cassie pensou em todos os valores familiares arcaicos que encontrara na antropologia cultural, incluindo o princípio vitoriano de que as crianças devem ser vistas e não ouvidas. Ela balançou a cabeça. Dorothea mostrou-se surpresa. - Sei que isso costumava ser feito na época do búfalo, porque se um bebê assustasse um rebanho a tribo toda passaria fome. Não sei por que continuamos fazendo isso. - Gostaria que não fizessem - Cassie disse, tensa. Mas estava pensando em todas as vezes em que havia ficado deitada ao lado de Alex no escuro, derramando lágrimas de dor. Ela se lembrava do som da mão dele ferindo-a e o ar que puxava para os pulmões, mas nunca do barulho do choro. Pensou na lição que havia aprendido em seu casamento: que, se você se mantivesse quieto e misturado ao pano de fundo, tinha menos chances de causar problemas. Olhou para Connor, tranquilo, quieto. Um dia, a longo prazo, aquela seria uma habilidade de que ele poderia precisar. A verdade daquele pensamento deixou Cassie arrasada. CASSIE SENTOU-SE NO BANCO DO MOTORISTA do jipe de Abel Sabão, inclinada para a frente como se tivesse levado um murro no estômago. Ela havia pegado o veículo emprestado para ir ao mercado da cidade, que abrigava o telefone mais próximo. Ao conversar com Dorothea, ela percebeu que não mais podia postergar o inevitável. Telefonaria para Alex e contaria onde passara todo aquele tempo. Contaria a verdade e confiaria nele. Pensando nisso, sentiu um pouco de insegurança. Não havia provas de que Alex havia mudado durante os últimos seis meses, nada que indicasse que ele não a atacaria - ou a Connor - durante um ataque de fúria. Ela havia deixado o marido para que seu bebê não sofresse antes de nascer. Como poderia pensar em levar o filho de volta agora? Sua mente ficou confusa. Poderia deixar Connor com Dorothea e Cyrus e voltar sozinha para Alex, durante algum tempo, apenas até que visse que tudo havia mudado. Se fizesse isso logo, nos primeiros meses, talvez a criança nunca notasse a diferença. Mas não podia deixar seu filho. Não conseguiria se separar dele. Ela saiu da caminhonete e caminhou para dentro da loja. Horace acenou enquanto ela passava pelos corredores cheios de mercadorias em direção ao telefone público. Durante vários minutos ela ficou parada, segurando o aparelho, como se ele tivesse o mesmo poder e impacto de uma arma carregada. Quando escutou a voz de Alex do outro lado da linha, seu leite vazou. Cassie viu as manchas escuras se espalharem pela camiseta e desligou. Alguns minutos depois, ela tentou de novo. - Alô? - Alex disse, irritado. - Sou eu - Cassie disse baixinho.
Ela escutou o barulho ao fundo - uma torneira sendo fechada ou talvez o rádio sendo desligado. - Cassie. Deus. Foi você quem ligou agora há pouco? - A voz de Alex parecia chocada, alegre e aliviada, e ela percebeu outras emoções que não conseguiu decifrar. - Não - ela disse. Dessa vez, não deixou que ele percebesse sua indecisão. - Você está bem? - Cassie. - Alex disse. - Diga-me onde você está. - Fez-se um breve silêncio. - Por favor. Ela passou o dedo pela fria cobra de metal que ligava o telefone ao aparelho. - Preciso que me prometa algo, Alex. - Cassie - ele disse em um tom de voz urgente. - Volte para casa. Não vai mais acontecer. Eu juro. Enviarei quem você quiser que a busque. Farei qualquer coisa. - Essa não é a promessa de que preciso agora - Cassie disse, surpresa com os sacrifícios que ele parecia disposto a fazer a seu orgulho apenas para que ela retornasse. - Vou lhe dizer onde estou, porque não quero que se preocupe, mas quero ficar aqui mais um mês. Quero que jure para mim que não virá antes disso. Ele tentou imaginar o que ela poderia estar fazendo que exigiria mais um mês: alguma atividade ilegal, um atraso em seu visto ou um adeus programado a um amante. Mas obrigou-se a escutar. - Eu juro - ele disse, procurando por uma caneta. - Onde você está? - Pine Ridge, Dakota do Sul - Cassie explicou. - Na reserva indígena. - Na o quê? Cassie, como... - É isso, Alex. Vou desligar agora. Voltarei a telefonar em um mês e veremos como e quando voltarei. Tudo bem? "Não", ela conseguiu escutá-lo pensar. "Não está bem. Quero você aqui, agora, minha." Mas ele não disse nada e ela viu aquilo como um sinal de esperança. - Não vai quebrar sua promessa? Ela o sentiu sorrir tristemente a tantos quilómetros distante. - Chère - disse suavemente. - Dou minha palavra. Vinte e quatro Cassie apertou-se contra o corpo quente e inquieto de Connor, colocando-o sobre a mesa de exames enquanto duas enfermeiras brancas esticavam os bracinhos dele para tirar sangue. Ela mantinha a cabeça abaixo da boca de Connor, que gritava sem parar, seu peito subindo e descendo em exageradas inspirações. Antes de começarem, as enfermeiras haviam perguntado se Cassie desejava sair da sala. - Alguns pais não aguentam ver essas coisas - uma delas disse. - Mas Cassie apenas olhara para elas, incrédula. Mesmo que acabasse desmaiando em cima de seu filho, ficaria. - Sou tudo que ele tem - ela disse, a melhor explicação que poderia dar. Aquilo a estava matando. Não suportava ver seu pequeno ardendo em febre; não podia escutar os gritos que - mesmo depois de três semanas desde
o nascimento dele - pareciam sair de dentro dela. Cassie observou as ampolas sendo enchidas com sangue, uma depois da outra. - Está tirando demais - ela disse a ninguém. Não disse o que realmente estava pensando: "Tire o meu no lugar do dele". O clínico-geral de Pine Ridge havia enviado os dois para o hospital em Rapid City. - Pequeno demais, ele dissera. Alguma bactéria. Talvez pneumonia. As enfermeiras estavam pedindo ao laboratório que fosse realizado um hemograma completo. Em seguida, seriam tirados raios X. Eles manteriam Connor internado aquela noite, ou enquanto fosse preciso para baixar sua temperatura. Cyrus, que a levara a Rapid City, estava esperando no piso inferior, na recepção, sem querer entrar ainda mais no hospital onde viu seu filho morrer. Por isso, quando o laboratório mandou resultados, Cassie se sentou em uma cadeira de metal, sozinha com Connor, com o bracinho furado pelo soro. Estava tomando antibiótico por via intravenal também. O médico havia dito que ele estava desidratado, e isso Cassie sabia ser verdade, uma vez que suas mamas estavam cheias e o leite já havia vazado em sua camisa. Connor havia adormecido exausto alguns minutos antes, e Cassie desejou que pudesse fazer a mesma coisa. Pensou em todas as vezes em que havia oferecido seu corpo a Alex para não vê-lo sofrer e balançou a cabeça negativamente ao pensar que, naquele momento, tiraria a dor do filho, se pudesse. A porta da saleta se abriu e Cassie virou a cabeça com um olhar de cansaço e encontrou Will em pé sob o batente, os olhos arregalados e intensos, com a respiração ofegante. - Meu avô telefonou - ele disse, - Eu vim assim que pude. Ele viu Cassie, ereta, com os pés enrolados nas pernas da cadeira, abraçando Connor com força contra a barriga. Viu o soro na criança, a ponta da agulha que entrava na veia, a mancha de sangue no bracinho. Cassie olhou para ele. Will tirou o chapéu e ajoelhou-se a seu lado, virando o rosto dela contra seu pescoço e escorregando os braços por baixo dela, num esforço de proteger Connor. - Céye sni yo - ele disse. - Não chore. Está tudo bem. - Ele acariciou o cabelo dela e sentiu suas lágrimas encharcando a gola de sua camisa. Os dedos de Cassie apertaram e soltaram sua camisa de cambraia. Will beijou o topo de sua cabeça, forçando-se a não lembrar do pai deitado ali, pálido e fraco em uma cama de hospital alguns andares abaixo. Ele passou os dedos nas dobras do pescoço de Connor, procurando sentir sua pulsação, e tentou agir como pensou que deveria em uma situação da qual nada sabia. VOCÊ CONFIA EM MIM? - Will PERGUNTOU pela segunda vez. Cassie olhou para ele do outro lado da proteção para isolamento do hospital, um tipo de bolha plástica que mantivera Cassie afastada de seu filho nos últimos dois dias. Apesar do Tylenol e do ibuprofeno, e dos banhos de esponja, a febre de Connor continuava muito alta. O médico chegou a dizer que não sabia o que fazer. Cassie assentiu e observou o rosto de Will se abrir em um belo sorriso. Ele deu a volta, chegando ao lado de Cassie e ergueu as mãos sobre o plástico quente. Daquele ângulo, seus dedos bloquearam a visão de Cassie dos fios e
tubos que invadiam o corpo de seu bebê. Ela olhou para Will como se ele já tivesse feito mágica. - Faça o que tiver de ser feito - ela disse suavemente. - Qualquer coisa que acredite que vai ajudar. O médico foi chamado e disse a Cassie que aquela não era uma boa ideia, mas ela simplesmente balançou a cabeça e foi um pouco para trás, procurando apoio, onde Will estava em pé. Ela observou as enfermeiras retirarem o soro de Connor. Quando ela segurou seu filho mais uma vez, ele abriu os olhos pela primeira vez em 48 horas. Pelo menos leve isso - o médico disse, colocando na mão livre de Cassie um pequeno frasco de Tylenol para crianças. Ela assentiu, virou-se e saiu com Will do hospital que nada fizera pelo seu filho. Cuidadosamente entrou na caminhonete, tomando o cuidado de não perturbar a criança. E, assim que eles estavam na estrada, ela jogou o frasco do remédio pela janela. NO MEIO DA NOITE, NA SALA DE ESTAR DOS CAVALO ALADO, eles aliviavam a febre do bebé com esponjas. Então, Cassie puxou sua camisola para o lado para que o bebé pudesse mamar. Will sentou-se diante dela, seus dedos acariciando a pele macia e quente das perninhas de Connor. Eles colocaram o bebê no meio do sofá-cama quando ele caiu em um sono intranquilo e se sentaram, com as pernas encolhidas, cada um de um lado. Lá fora, soprou um vento frio e ouviu-se o barulho de um caminhão na escuridão. - Está tudo pronto? - Cassie perguntou. Will assentiu, passando a mão na nuca. - Minha avó disse que está cuidando de tudo. - Começou a falar, mas hesitou e olhou para Cassie. - Não tenho o direito de lhe dizer o que fazer. Não sou o pai dele. Se não der certo, nunca vou me perdoar. Estava tão concentrado em seus pensamentos que não notou Cassie saindo da cama, indo parar atrás dele. Sentiu que ela o tocava na nuca, incerta, passando os dedos por seus cabelos. E ficou tenso ao notar que Cassie tivera a iniciativa de tocá-lo. Ele não se virou para olhar. - O que está fazendo - ele disse, bravo por parecer irritado. Quase imediatamente Cassie afastou sua mão e Will virou-se. Ela passou os braços ao redor do próprio corpo. - Eu... eu precisava... - sua voz falhou e ela olhou para Will. - Só queria que alguém me abraçasse - ela disse. - Por favor. O simples fato de Cassie ter pedido tal favor a ele quase fez com que Will caísse de joelhos, mas aquele "Por favor" no final da frase o deixou sem reação. Ficou em pé e a abraçou rapidamente, colocando-a contra seu quadril. Depois de alguns minutos, Will deu um passo para trás, empurrando Cassie contra a beirada da cama. Ele deixou que ela se deitasse, de frente para o bebê, e então se deitou atrás dela. Deu suporte à sua cabeça com o braço e juntos eles observaram a respiração de Connor, irregular. Ele sussurrou palavras em lakota que sabia que Cassie não conseguiria entender, frases que ele pensou que havia esquecido muito tempo antes. Adormeceu dizendo waste cilake, "eu te amo" em sioux, e não escutou a última coisa que Cassie disse
antes de adormecer. Ela estava olhando para Connor, para a ponta curvada de seu nariz e para a perfeição de suas unhazinhas e sentindo atrás de si o calor do corpo de Will, como uma rede de proteção. - Não - ela murmurara apesar do nó na garganta -, você não é o pai dele. Joseph CABANAS ao SOL ESTAVA DEITADO no chão coberto por sálvia na sala de estar de Cyrus e Dorothea, enrolado em um cobertor de estrelas, fingindo estar morto. A mobília estava no quintal da frente, por isso havia muito espaço para os observadores até mesmo do lado de fora do quadrado sagrado delimitado por barbante. Eles se sentaram no chão, com as costas para as quatro paredes. Algumas das pessoas, Cassie conseguiu reconhecer como vizinhos; outras estavam ali simplesmente para oferecer apoio durante a cerimónia yuwipi, identificar e curar doenças. Ao lado dela, Will apertou sua mão. Connor estava deitado em seu cesto e não havia melhorado desde que saíra do hospital de Rapid City. Já fazia quatro dias, quatro dias de febre forte e convulsões assustadoras e choros intermináveis. Quando Will dirigira para a casa de seus avós no final da noite passada, Dorothea o esperava na porta. Aproximou-se da caminhonete e esticou os braços para Connor, para que Cassie pudesse descer com facilidade. Ela estalou a língua e fez um gesto negativo com a cabeça. - Pudera - ela disse. - Esse não é o tipo de doença que os remédios brancos conseguem curar. O neto de Joseph, que às vezes cantava, estava entoando canções yuwipi e tocando o tambor cerimonial. Ficou diante do altar improvisado, sobre o qual estava o crânio de um búfalo, um bastão vermelho e preto, uma pena de águia e um rabo de veado. Não havia luz na sala, a menos que fossem consideradas as faixas de lua que entravam. Cassie estava tonta e não sabia se era apenas por exaustão ou pelo cheiro da sálvia, que cobria o chão e era usada por todos os observadores em seus cabelos. Will, que fizera o melhor que podia para explicar a cerimónia a Cassie antes do começo, havia dito que a sálvia era a planta sagrada dos espíritos. Quaisquer mensagens que eles levassem a Joseph, o representante dos "mortos", seriam carregadas pela sálvia. No vento inconstante da noite, sombras e sons preenchiam a sala de estar. Os barulhos eram altos e tensos, não humanos, urgentes. - Os espíritos estão aqui - alguém disse, uma voz que Cassie nunca havia escutado, mas que poderia ter sido familiar, poderia até ser dela mesma. Assustou-se com o grito de uma águia e, apesar de ter semicerrado os olhos para ver melhor, não conseguia definir quem havia espalhado uma corrente de estrelas pelo teto. Manteve-se de braço dado a Will, com o outro braço envolvendo o cesto do bebê, como se temesse que alguma coisa o pudesse levar. Mas conseguiu escutar as risadinhas dele e, quando se virou, viu seu rosto claro e brilhante sendo acariciado por asas macias. Quando a cerimónia terminou, as luzes foram acesas e Joseph Cabanas ao Sol estava se desenrolando de seu cobertor de estrelas. Ele afastou a sálvia da área de madeira, tomando o cuidado de dobrar o cobertor e reorganizar a coleção sobre o altar antes de partir em direção a Cassie. Mas, em vez de falar com ela, ele caminhou até o cesto de Connor e agachou-se diante dele.
Apertou a mão contra a testa do bebê, em seguida pegou o pulso de Cassie e fez com que ela fizesse o mesmo. Connor estava vermelho e suava, mas emitia sons suaves e felizes que acalmaram o coração de sua mãe. Sua febre havia desaparecido. Impressionada, Cassie virou-se para Joseph. - Úyelo. - O pai dele está vindo. - Joseph disse simplesmente. - Assim como você, o corpo dele queimava de medo do desconhecido. ATRÁS DA CORTINA FRANZIDA QUE SEPARAVA o quarto deles do restante da casa, Cyrus e Dorothea ainda estavam acordados. Eles estavam deitados de costas, olhando para o teto, com os dedos ossudos entrelaçados entre seus corpos. - No que está pensando? - Dorothea sussurrou, tomando o cuidado para manter a voz baixa para não atrapalhar Cassie, Connor e Will, que dormiam na sala de estar. Ela passou os dedos sobre o braço de Cyrus, sentindo não a pele enrugada e flácida de idoso, mas o músculo forte de que ela se lembrava de sua juventude. - Estou pensando na primeira vez em que a toquei - Cyrus disse. Dorothea corou e olhou para ele, surpresa, mas ele estava sorrindo. Seu velho maluco - ela disse. - Eu costumava passar as noites acordado pensando em maneiras de me livrar de sua avó - Cyrus disse. - Ela ia a todos os lugares onde você estava. - Bem - Dorothea comentou. - Isso mantinha você afastado. De repente, Cyrus riu. Dorothea rolou na direção dele, com o cabelo espalhando-se por seu peito e colocou a mão sobre a boca do marido. - Quer acordá-los? - sussurrou, mas Cyrus continuou rindo. - É que eu me lembro do que a idosa disse quando eu pedi seu conselho sobre como fazer você prestar atenção em mim. - Ele se apoiou em um cotovelo. - Ela me disse que o marido dela havia matado um búfalo em sua homenagem. Não havia mais búfalos nos anos 1930 - Dorothea disse, sorrindo. Cyrus sorriu. - Sua mãe disse que aquele era um problema meu, não dela. - Ambos riram. - Pelo menos ela teve o bom senso de cochilar tempo suficiente para que pudesse dar um beijo em você - o velho disse. Ele se inclinou sobre Dorothea, tirando seu cabelo branco de sua testa, de forma parecida com que fizera da primeira vez. Aproximando-se, encostou seus lábios nos dela. - Ela não estava dormindo - Dorothea murmurou contra a boca do marido. Ela me contou no dia seguinte. Disse que estava cansada de ver você por perto o tempo todo, por isso pensou que seria melhor apressar as coisas. Os olhos de Cyrus se arregalaram. - Pensei que ela me detestasse. Dorothea respondeu: - Detestava também. Ambos se deitaram de costas de novo, olhando para o teto e escutando o canto das corujas do lado de fora. A mão de Dorothea passeou por entre eles, procurando a do marido, e ela entrelaçou seus dedos nos dele. Pensou em Cassie deitada no sofá-cama, com o tempo passando diante dela como uma sentença de morte, enquanto esperava a chegada do marido. Pensou em como a vida da menina branca poderia ter sido se ela tivesse nascido cem anos
antes, como a avó de Dorothea; se aquele Alex a tivera cortejado sob a proteção de um cobertor de pele de búfalo; se a agressão nunca tivesse ocorrido, porque ia contra a essência da tribo. Cyrus apertou a mão dela, lendo sua mente. - As coisas eram mais fáceis no passado. Dorothea rolou em direção ao marido, escondendo o rosto contra os ossos de seu ombro para que ele não soubesse que ela estava prestes a chorar. - Eram, sim - sussurrou. DOROTHEA NÃO DISSE POR QUE NÃO FOI trabalhar no dia seguinte, mas Cassie sabia simplesmente pela maneira como ela ficou sentada em sua cadeira de balanço ao lado dela na varanda e esperou, sem se mexer, em uma silenciosa demonstração de apoio. Ela também sabia que o momento havia chegado quando, logo depois do meio-dia, Dorothea disse, suavemente: - uKoképe sni yo" - Não tema - e ficou em pé. O vento balançou sua saia ao redor dos tornozelos quando ela se posicionou ao lado da cadeira de Cassie, mas, quando o desconhecido Ford Bronco preto de Alex parou na frente da casa dos Cavalo Alado, ela já havia entrado. Cassie sabia que ninguém sairia da casa e a perturbaria enquanto estivesse conversando com Alex. Nem Cyrus nem Dorothea, que acreditavam que isso era algo que ela tinha de fazer sozinha, nem Will, que estava sentado com Connor. Mas, por enquanto, era assim que Cassie preferia. As palmas de suas mãos estavam molhadas e ela as secou na parte da frente de seu vestido ao ficar em pé e caminhar na direção da cerca, tentando controlarse. Alex desligou o veículo e tirou os óculos de sol. Era Cassie. Era mesmo Cassie. Depois de meses de agonia, ele estava a três metros de sua esposa. Ele saiu do carro e olhou para ela, que parecia ser melhor do que ele se lembrava. A imaginação que havia lhe servido tão bem como diretor começou a funcionar: ele imaginou o vento soprando os cabelos dela ao redor de seu rosto, com seus lábios se abrindo em um sorriso satisfeito, e seus pés se apressando pelos degraus de madeira abaixo. Imaginou sua pele macia contra as linhas do corpo dele; imaginou a si mesmo carregando-a para dentro da cabana e deitando-a nos lençóis mais brancos, penetrando-a. - Alex - Cassie disse. Por ter sido avisada por Joseph Cabanas ao Sol a respeito da chegada de Alex, ela havia planejado a noite toda confrontá-lo. "Você mentiu", ela acusaria. "Você me deu a sua palavra." Mas fazia tanto tempo que eles não se viam que ela percebeu que sua raiva havia passado e olhou para ele da maneira que fazia assim que via o início de seus filmes surpresa e tomada pela beleza dele, por sua imponência. Ele parou diante da entrada, do outro lado da cerca onde ela estava, como se fosse o Romeu de sua Julieta. Então, ele esticou o braço, olhando para as suas mãos como se nunca tivesse visto nada parecido, e tocou sua pele com as pontas dos dedos. Foi o contato físico, a entrada do ídolo na tela, que fez com que Cassie ficasse sobressaltada. Deu um pulo para trás como se tivesse levado um choque e deixou as lágrimas escorrerem por seu rosto. Pensou em Alex vestindo seu casaco e servindo vinho a ela na Tanzânia. Pensou nele usando uma fronha na cabeça para interpretar a senhora Macbeth em cima da mesa
de canto. Pensou em Connor, prova viva de que a doce dor da união podia criar algo perfeito. E não se lembrou do motivo pelo qual deveria estar contrariada; ou por que, exatamente, ela havia ido embora. E então Alex estava ao lado dela, abraçando-a. - Não chore - ele implorou. - Por favor, Cassie, não chore. - Não consigo controlar - ela disse, mas já com o rosto seco das lágrimas, pronta para fazer qualquer coisa para manter aquele tom lúgubre da voz dele. Ele passava os dedos sobre o rosto dela, lembrando de seus traços. Em seguida sorriu e sentou-se no primeiro degrau da entrada, puxando-a para se sentar ao lado dele. Envolveu sua nuca e a beijou de maneira tão gentil que ela sentiu sua resistência se despedaçar como vidro; as mãos dele repousaram em pontos familiares, nas laterais de seus seios. A respiração dele era como uma canção antiga e lenta. Cassie descansou a testa contra a dele, reprimindo o medo que ela havia começado a associar com o mais leve toque dele, tranquilizando-se para pensar que as coisas seriam diferentes agora. - Eu ainda tinha mais duas semanas - ela disse. Alex apertou sua cintura. - Foi mais difícil saber onde você estava e não poder vir do que não saber de nada. - Ele a beijou de novo. - Pensei que se viesse pessoalmente poderia argumentar. - E se eu decidir continuar aqui? - ela perguntou. Alex olhou para a planície. - Então vou aprender a gostar de Dakota do Sul. Cassie balançou a cabeça de maneira negativa. Não fazia sentido discutir algo que já estava feito; algo que ela sabia, bem no fundo, que havia desejado. Além disso, ela não podia exigir nada pela quebra de confiança, afinal, tinha Connor dentro da casa. - E então? - Alex perguntou sorrindo. - O que fazemos agora? Cassie sorriu de volta, aliviada, mais do que disposta a deixar as explicações para depois. - Não sei. É você que lê todos os bons roteiros. O que acontece nos filmes? Alex passou o solado da bota no degrau e olhou para baixo, mas não parou de esfregar o polegar sobre as costas da mão dela, como se quisesse lembrar que Cassie era de carne e osso. - Geralmente, o herói e a heroína fogem juntos em direção ao pôr do sol. Cassie mordeu o lábio inferior, como se estivesse pensando na possibilidade. - Então ainda temos cerca de sete horas para ficar aqui na porta - ela disse. Os olhos de Alex ficaram mais escuros: - Talvez pudéssemos ir para dentro. Cassie sabia exatamente o que ele estava pensando e riu em voz alta ao pensar em Alex entrando na sala de estar, esperando fazer amor, e encontrar Cyrus, Dorothea, Will e Connor encarando-o. - Não acho que você vai querer fazer isso - ela disse. - Está um pouco lotado demais. Alex franziu a testa, pensando nos malditos tablóides que acabaram com a reputação de Cassie quando ela partiu, relacionando-a a todos os homens,
desde o xá do Irã a JKF Jr. Ele dizia a si mesmo que ela não estava vivendo com outro homem. Não poderia estar tão relaxada. Não o teria beijado daquela maneira. Não poderia ter feito aquilo. - Você não vive sozinha? - ele perguntou delicadamente, mantendo a emoção fora de seu tom de voz. Cassie negou. Foi um pesadelo - ele disse. - Uma reserva é um lugar grande. Pensei que nunca fosse encontrá-la. Quando cheguei aqui ontem, ninguém queria me dizer onde você estava. Todos olhavam para mim e fingiam não falar meu idioma, ou então diziam que não era da minha conta. Qual é o problema dessas pessoas? Cassie apenas balançou a cabeça. Pine Ridge era provavelmente o único lugar no mundo onde o grupo de defensores dela era mais do que o fã clube de Alex Rivers. - Até que, por fim, acabei subornando um adolescente oferecendo a ele uma dose de uísque, e ele me ensinou o caminho até aqui. - Alex olhou ao redor. - Onde quer que "aqui" seja, exatamente. - É a casa dos Cavalo Alado - Cassie disse, mas só quis dizer aquilo. Bateu as mãos sobre as coxas e abriu um largo sorriso. - E então - ela disse -, afastando-se de Alex. - O que tem feito desde a festa do Oscar? Ela se virou para esperar sua resposta e deu de encontro com ele, que estava em pé a poucos centímetros dela. - Não quero falar sobre mim - ele disse delicadamente, segurando seus ombros. - Sei muito bem o que fiz nos últimos seis meses - estava tentando me matar, da maneira lenta e venenosa: deixando minha carreira se perder e bebendo até cair porque você não estava por perto. - Suas mãos se abaixaram nas laterais do corpo e sua voz ficou tão baixa que Cassie precisou se inclinar para a frente. - Não sei exatamente o que a fez partir aquele dia - Alex disse -, mas faço ideia. E quero que saiba que eu farei tudo o que você quiser - vou até dormir em outro quarto. Mas, pelo amor de Deus, Cassie, diga que vai voltar para casa. - Ele olhou para ela, com os olhos marejados. - Você é uma grande parte de mim - ele disse. - Se for embora, pichouette, vou sangrar até morrer. Cassie olhou para Alex, sentindo o mundo sair do eixo sob seus pés. Passara três anos com medo das maneiras com que Alex reagia a ela; agora, sentia medo de como reagiria a ele. Fizera um grande esforço para deixá-lo feliz; agora, ele estava oferecendo o mesmo a ela: terapia, aconselhamento, até celibato, porque pensava que isso a deixaria contente. Figurativamente, ele estava de joelhos diante dela - assim como ficara inúmeras vezes no passado. Ela sentiu uma pontada de otimismo dentro de si, que lhe percorreu o corpo até ficar palpável. Colocou a mão no rosto de Alex, pensando em todas as vezes em que imaginara aquele momento: quando Alex começaria a cumprir suas promessas; quando começaria a mudar a vida deles; quando ele nunca arriscaria perdê-la outra vez. Cassie secou as lágrimas de Alex, lisonjeada pelo fato de, aquele homem, que nunca chorava por ninguém, estar chorando por ela. Era diferente daquela vez. Ele percebera que ela tinha o poder de ir embora e, por causa disso, ela se tornara uma igual. Ele havia admitido que existia algo de errado entre eles. Estava dependendo dela para ser ajudado de novo, mas dessa vez o envolvimento dela não seria como vítima, mas, sim, como salvadora.
Ela sorriu para Alex. - Quero lhe mostrar o que tenho feito desde minha partida - ela disse. Virando-se, abriu a porta da pequena casa, ignorando os olhares questionadores de Dorothea e Cyrus. Ela olhou para Will, mas apenas porque ele estava segurando o bebê. Seus olhos estavam sérios, seus lábios, tensos. Cassie respirou profundamente e tirou Connor do ombro de Will. Saiu e fechou a porta, fazendo o bebê pular em seu colo para deixá-lo feliz. E então segurou Connor em seus braços, oferecendo-o. - Este é Connor - ela disse. - O seu filho. Alex deu um passo para trás. Não fez nenhum gesto para tocar a criança. - Meu o quê? Cassie puxou Connor para mais perto de seu peito. - Seu filho - ela disse mais uma vez, tentando imaginar o que havia dado errado quando tudo começava a parecer ideal. - Eu estava grávida quando parti. A última vez que você... a última vez, percebi que precisava manter o bebê em segurança. Mas então veio a amnésia, voltando para onde eu tinha começado. Por isso precisei fugir de novo. - Ela olhou para o filho. - Eu nunca iria embora por sua causa, Alex. Só fui embora por causa do bebê. O rosto de Alex ficou tenso. Seus sentidos estavam confusos, seus joelhos mal conseguiam manter seu peso. Um filho? Dele? Ele imaginou seu pai, olhando para ele quando um galho baixo de um cipreste o havia derrubado do barco, para dentro da lama do pântano. Lembrou-se daquele sorriso branco, do som amargo de seu riso ao esticar o braço para puxar Alex de volta para dentro da embarcação. Lembrou de ter detestado o fato de precisar segurar-se na mão do pai, por não haver outra alternativa. - Não pense nisso, Alex - Cassie disse delicadamente. - Você não é como ele. Eu posso provar. Alex olhou para cima quando Cassie colocava a criança em seus braços. Por reflexo, segurou Connor sob suas nádegas e ao redor dos ombros, balançando-o para cima e para baixo para evitar que chorasse. Seus dedos, aos poucos, envolveram a pele do bebê, acariciando-o. Conseguiu sentir o cheiro de sabão em pó da fralda, e talco, e algo que não soube decifrar, mas que seria o cheiro do cor-de-rosa, se a cor tivesse cheiro. Connor abriu os olhos brilhantes. Completamente assustado com a imagem daqueles espelhos, Alex riu. Tentou imaginar se já tinha sido segurado daquela maneira por seu pai, ou sua mãe, ou por qualquer outra pessoa. Tentou imaginar se, fazendo tudo direito desde o primeiro dia, era possível fazer toda a diferença do mundo. ALEX QUERIA TER IDO PARA RAPID CITY NAQUELE mesmo instante para pegar o próximo avião para Los Angeles, mas Cassie havia dito que era impossível. - Eu tenho amigos aqui, "responsabilidades". - Ela pousou a mão no braço dele ao dizer: - Se eu não posso ficar mais duas semanas, então espere até amanhã de manhã. - Ela percebeu o desapontamento nos olhos dele quando disse que não o acompanharia para o hotel na cidade, planejando, em vez disso, passar a noite na casa dos Cavalo Alado. Mas cumprindo sua nova promessa, Alex simplesmente assentiu, deu-lhe um beijo de despedida e prometeu que a encontraria, na manhã seguinte, na frente da escola de ensino fundamental.
Durante alguns minutos, Cassie ficou com Connor sobre seu ombro, observando o Ford Bronco de Alex desaparecer em uma nuvem de terra vermelha de Dakota. Depois, com o maior sorriso que conseguia, abriu a porta da casa. Cyrus estava tricotando de novo, enquanto Dorothea fatiava um gengibre para usar no ensopado que faria no jantar. Will não estava por perto, o que a deixou surpresa, uma vez que a casa tinha apenas uma porta e ela e Alex haviam ficado diante dela o tempo todo. Dorothea levantou os olhos ao escutar a porta sendo fechada. - Então você vai voltar para a cidade com ele - ela disse. Cassie colocou Connor em seu cesto e sentou-se ao lado de Cyrus no sofá. - Eu preciso ir - ela disse. - Não seria justo com ele se não fizesse isso. Dorothea apontou a faca que segurava na direção de Cassie. - Não me parece que ele tenha sido muito justo com você. Cassie ignorou o comentário. No dia seguinte ela estaria de volta a Los Angeles. Iria para o seu escritório, antes de mais nada, e conversaria com Custer; depois, visitaria Ophelia. Discretamente telefonaria para uma central de informações ou um abrigo onde pudesse pedir nomes de terapeutas de renome na região. Teria de encontrar alguém que cuidasse de Connor... Naquele momento interrompeu seus pensamentos, rindo. Certamente alguém da equipe de Alex seria capaz de cuidar do bebê durante uma ou duas horas. Mas a verdade era que ela não conhecia ninguém da equipe, naqueles três anos, como pudera conhecer Dorothea e Cyrus em apenas seis meses. E Will, bem, ela tentaria fazer com que ele compreendesse, mas sabia quão nervoso ele ficaria. Ela pensou nele levando-a por um curral em cima de um pónei de seis anos de idade, que pertencia a um primo, quando ela estava grávida, nele sentado ao lado dela no sofá quando sua bolsa estourou e encharcou sua calça jeans, de quando ele a fazia rir com suas histórias a respeito de ter multado Clint Eastwood por excesso de velocidade na Hollywood Boulevard. Às vezes, quando Connor ficava muito inquieto antes do jantar, Will era a única pessoa que conseguia fazer com que ele se acalmasse. Cassie tentou imaginar como ficaria sem Will e, de repente, as palavras dele vieram à sua cabeça: "Não dá para ter tudo o que se quer". - Onde Will está? - ela perguntou. - Saiu para correr - Cyrus disse. - Saiu pela janela porque não queria incomodá-los. Cassie fez uma careta. - O senhor pode cuidar um pouco de Connor? - ela pediu a Cyrus. - Vou tentar encontrá-lo. - Já havia caminhado com ele antes e conhecia todos os seus lugares favoritos. Ela encontrou Will na floresta, em uma clareira à beira de um riacho. Ele estava sentado com os joelhos encolhidos ao peito, respirando profundamente. - Oi - Cassie disse. Sentou-se ao lado dele, mas ele não se virou para olhála, nem demonstrou que a havia escutado. - Alex foi embora - ela disse hesitantemente e com isso Will virou a cabeça na direção dela. - Ele foi para Los Angeles? Cassie negou com a cabeça, envergonhada por tê-lo feito pensar aquilo pela maneira como falara.
- Voltou para Rapid City. Vai nos pegar amanhã cedo na cidade para irmos para o aeroporto. Will tentou sorrir, mas seus olhos não se iluminaram. - Então a que horas vamos encontrá-lo? Cassie riu. - Eu estava falando sobre mim e Connor. Até onde Alex sabe, você não existe. Will virou a cabeça para a água e ficou sério. - Por que não contou a ele? Talvez ele ficasse com ciúmes e viesse atrás de mim. Talvez eu pudesse lhe poupar de algumas costelas quebradas, outra briga... - Pare - Cassie disse delicadamente, tocando o braço de Will. - Ele não é mais assim. Will riu com ironia. - Claro que não. O saco de pancadas dele está fora da cidade. - Ele vai procurar ajuda. Admitiu que existe algo errado. Só preciso encontrar um terapeuta. Will pegou um fio de grama. - Não existem garantias - ele disse de modo seco. - Cachorro velho não aprende truques novos... você sabe como é. eO que você vai fazer quando ele começar a agredir o bebê? Ele observou o rosto de Cassie paralisado pela ideia, algo que imaginou que ela vinha tentando evitar pensar. "ótimo", ele pensou, observando-a tentar manter os sentimentos sob controle, "deixe-me estragar as ilusões dela." Queria magoá-la. Queria vê-la chorar exatamente como ele por dentro. - Ele não vai encostar em Connor - Cassie disse enfaticamente. - Isso seria muito parecido com o que ele viveu. Will demonstrou sua contrariedade em silêncio. Cassie ficou em pé, jogando sobre Will os pedaços de grama que estava arrancando e colocando no colo. - O que há com você? - ela perguntou, com a voz embargada. - Pensei que você fosse meu amigo. Pensei que gostaria de me ver feliz. "Eu quero", Will pensou. "Quero que seja feliz comigo." - É engraçado - ele disse. - Você achava que a única maneira com a qual eu ficaria feliz seria se fizesse as coisas que você julgava serem as melhores para mim. Cassie o encarou. - O que quer dizer com isso? - Você sabe. "Não dê as costas para seu lado sioux, Will." E pendurou meu patuá na parede de minha casa em Los Angeles para que eu tivesse de olhar para ele sempre que passasse. - Você o tirou da parede - Cassie disse. - Como eu ia saber? - Ela mexeu em uma pedra com o dedo de seu pé. - Além disso, eu estava certa. Veja quanto você mudou desde que voltou para Pine Ridge - é óbvio que a única pessoa que se importa com o fato de você ser meio branco é você. Will ficou em pé, olhando para Cassie. - O que quero saber é por que eu não posso esquecer minha história, mas você esquece a sua? Cassie deu um passo para trás.
- Não sei do que está falando. Will segurou seus ombros. - Sabe, sim. Sabe que ele vai fazer o que fez antes, sabe que ele vai fazer de novo. Não pude fugir de meu passado, por mais que tenha tentado. Alex não pode, nem você. Cassie sabia que o conselho que havia dado a Will podia ser aplicado à sua situação. Não existia nada que pudesse ser usado como guia para a sua vida, exceto seu passado. Não havia nova chance. Havia apenas a possibilidade de pegar os pedaços que alguém havia deixado. - É exatamente para o meu passado que preciso voltar agora - Cassie disse, com a voz falhando. DEPOIS DE PASSAR A MANHÃ DESPEDINDO-SE de Cyrus e Dorothea, Will levou Cassie e Connor para a cidade para que encontrassem Alex. Connor estava irrequieto no carro, e Cassie o entregou a Will, sabendo que Alex os observava do outro lado da rua e ficou feliz porque os choros de Connor haviam lhe dado uma desculpa para aquilo. Depois de tudo o que Will havia feito por ela e pela criança, sem nenhum egoísmo, ela não podia ir embora sem permitir que ele segurasse o menino uma última vez. Eles haviam feito as pazes, mesmo que superficialmente. Cassie remexia no porta-luvas, fingindo procurar ali dentro alguma coisa sua. No outro assento, Will passava a mão nas costas frágeis de Connor. - Cassie sorriu alegremente. - Bem... espero que me escreva e me diga onde está. Will olhou para ela. - Eu disse que vou fazer isso. Cassie assentiu. - Sim, você disse. - Ela esticou os braços e Will colocou o bebê no colo dela, com as mãos deles em contato. Em seguida, ela olhou para fora pela janela da frente do veículo, tentando guardar na lembrança o poste da bandeira na frente da escola, a terra vermelha nos pneus da caminhonete, o chapéu de Will torto em sua cabeça. - Vou sentir saudade deste lugar - ela disse. Will riu. - Espere dez minutos - ele disse. - É bem fácil de esquecer. Cassie pegou a bolsa de fraldas de Connor pelas alças. - Bem, então, vou sentir saudade de você. Will disse sorrindo: - Bem, isso vai levar mais de dez minutos. Cassie inclinou-se para a frente no assento, abraçando Will. Ele retribuiu o abraço, tentando guardar na memória o leve cheiro de grama dos cabelos dela, a curva macia de seu ombro nu, o timbre de sua voz. Connor ficou pressionado entre os dois, como o coração dividido por dois irmãos siameses. Foi Alex quem os afastou. Cassie escutou a voz grave dele pela janela aberta, onde ele estava agora. - Sinto muito, mas não quero perder o voo - ele disse. Will soltou Cassie. Olhou para Alex, assentindo. Tocou a bochecha do bebê. - Obrigado - Alex disse graciosamente. Levantou o bebê dos braços de Cassie pela janela, como se soubesse que dessa maneira ela certamente sairia do carro. - Muito obrigado por tomar conta de minha família. Minha família. Will estreitou os olhos. Não conseguiu dizer nada.
Alex colocou Connor em seu ombro e voltou a olhar para Will. - Conheço você - disse simplesmente. Will abriu um largo sorriso. - Eu separei uma briga sua, certa vez. Eu trabalhava na Polícia de Los Angeles. - Bem - Cassie disse entre eles, e Will olhou para ela. - Sempre pacificadora. Ela não disse nada, mas também não saiu do veículo imediatamente. Em vez disso, eles ficaram naquele estado em que não precisava haver palavras. Eles se entreolharam. "Eu te amo", Will pensou. "Eu sei", Cassie respondeu. Mas, enquanto ele ainda saboreava aquele pequeno triunfo, ela saiu da caminhonete e de sua vida. QUANDO O VOO DOS Rivers LEVANTOU VOO DE Rapid City, Will estava mais bêbado do que nunca. Planejava estar inconsciente quando Cassie aterrissasse em Los Angeles com o marido e o filho. Ele xingou a si mesmo por ter ajudado Cassie após ela sair daquele maldito cemitério. Xingou-se por ter largado o emprego na Polícia de Los Angeles, onde poderia ficar de olho nela. Na situação atual, ela tinha morrido para ele. Ou quase isso. Foi isso que fez com que ele começasse a pensar. Havia uma prática comum entre o povo, a entrega, que ocorria no aniversário de morte de um parente. A família pesarosa demonstrava seu respeito pela pessoa falecida fazendo presentes e guardando alimentos e oferecendo-os como presente para o máximo de pessoas possível. Will se lembrava vagamente do ano em que seu pai morrera, como seus avós haviam economizado para fazer uma boa demonstração que provasse o quanto eles haviam amado o filho. Ele se lembrou de que quando seu pai morreu, Joseph Cabanas ao Sol havia lhe dito a respeito da posse do fantasma, a maior cerimónia de entrega que surgira na época do búfalo. Para uma família que perdia um filho, apenas comida, peles e utensílios não bastavam. Além de tudo isso, o casal tinha de dar a outros membros da tribo seus cavalos, até mesmo as roupas do corpo, tudo como homenagem ao ente querido. - Você deve entregar até doer - Joseph dissera. Disposto, Will começou a procurar na caçamba de sua caminhonete, tirando coisas de pouco valor; apenas uma velha espingarda e um casaco de couro de carneiro que havia pertencido a seu pai. Dirigiu pela cidade como um louco, parando na casa de Bernie Colher, um vizinho de quem nunca gostou. Ele bateu na porta até ela abrir. - Will - Bernie disse cuidadosamente, observando o cabelo desgrenhado de Will e as pontas soltas de sua camisa. - Tenho algo para lhe dar, Bernie - Will disse, colocando a espingarda nas mãos do homem. - Sem segundas intenções. Ele se virou antes de Bernie poder chamá-lo de volta, entrou na caminhonete e seguiu para a casa dos Cachorro Risonho. Linda Cachorro Risonho sorriu quando o viu e balançou a mão diante de seu rosto, tentando afastar o cheiro do uísque. - Venha, Will. Vou lhe dar um pouco de café.
- Não quero café - Will disse. - Estou aqui para lhe dar algo. - Ele ergueu o casaco de pele de carneiro. - Pense em quantas crianças atravessarão o inverno com este casaco. É seu. Faça o que quiser com ele. Rydell Dois Punhos recusou-se a ficar com a caminhonete, e Will se sentou em um pedaço de tronco diante da cabana de madeira e gritou como uma criança antes de decidir o que poderia fazer com as chaves. Deu a volta na casa até o espaço onde Rydell e Marjorie Dois Punhos deixavam seu vira-lata preso e passou o anel da chave pela coleira do cachorro sem nem mesmo acordá-lo. A entrega havia sido bem-sucedida; ele estava começando a perceber. Correu pelas matas até a cabana de Joseph Cabanas ao Sol, sentindo-se mais leve do que nunca, em meses. Tirou o casaco enquanto corria. Deixou o chapéu em um varal, suas botas na frente da cabana de um desconhecido. Deu sua camisa a uma garotinha que estava arrastando um balde de água para a casa de seus pais. Quando chegou à cabana de Joseph, estava vestindo apenas sua calça jeans, e tremia de frio. Pensou que, obviamente, não havia bebido o suficiente se continuava capaz de sentir a temperatura e se estava envergonhado demais para bater à porta do curandeiro e lhe entregar as últimas peças de roupa. Em vez disso, tirou as roupas, dobrando a calça jeans e o short, deixando-os bem dobrados diante da porta de Joseph. Começou a correr para onde suas pernas o levavam. Ao pisar em galhos e pinhas, seus pés começaram a sangrar; ainda assim, ele continuou correndo. Era um animal. Era primitivo. Não conseguia pensar e não conseguia sentir. Chegou a um monte isolado que não reconheceu, jogou a cabeça para trás e chorou de dor. Tinha apenas mais uma coisa para entregar, algo que sabia ser inútil, mas era alguma coisa mesmo assim. Will gritou as palavras em inglês e em lakota, várias vezes, soluçando e arranhando a própria pele quando precisava se lembrar quanto doía estar ali quando ela não estava. - Imacu yo - ele gritou aos espíritos. - Levem-me! Vinte e cinco
Os jornalistas e fotógrafos que esperavam na área de segurança do Aeroporto de Los Angeles estavam fazendo apostas. - Ainda acho que ele se livrou dela - um homem do National Enquirer disse. - Debaixo de sete palmos de terra. O jornalista da People fungou. - Então para que fazer todo esse estardalhaço para anunciar a chegada deles em Los Angeles? - Se querem saber - um cinegrafista disse -, acho que eles estão voltando juntos, mas ela não vai se mostrar muito feliz com isso. Acho que ele lhe ofereceu dinheiro. O que são alguns milhões se você tem a chance de voltar ao topo das bilheterias? Uma repórter de entretenimento da NBC verificou seu batom, procurando borrões nas lentes refletivas de uma câmera. - Escrevam o que digo - ela disse enfaticamente. - Alex Rivers já era. - Ela se virou para seus colegas, que se empurravam como animais no portão quando os alto-falantes anunciaram o pouso do voo
658 de Denver. - Não há nada que um homem possa fazer para deixar a mulher babando por ele de novo. Na verdade, independentemente da situação, ela o deixou, por que provavelmente ele não é o símbolo sexual que todos imaginávamos. No salão da primeira classe, Cassie terminava de trocar a fralda de Connor. Alex sentou-se de frente para ela, com uma perna cruzada sobre o joelho. Segurava uma caneca de café. - Vou ter de aprender a fazer isso - ele disse. Cassie olhou para ele. Não conseguia imaginar as mãos de Alex fazendo algo tão comum quanto trocar as fraldas do filho. - Isso, sim, seria um bom assunto para uma coletiva de imprensa - ela disse. Ajeitando-se, Alex pousou a caneca na mesa. - Você não se importa, certo? Ele falava sobre os jornalistas que estavam aglomerados como urubus à espera de carniça. Alex a alertara a respeito da explicação que dariam à imprensa quando eles sobrevoavam as Montanhas Rochosas. E obviamente ela havia dito que compreendia - se era sua culpa, indiretamente, Alex estar perdendo popularidade em Hollywood, era sua obrigação melhorar sua imagem o máximo que pudesse. Ainda assim, ela não deixou de lembrar da última vez em que aterrissara no LAX com Alex, quase quatro anos antes, a primeira vez em que tivera uma leve noção de uma vida sem privacidade. Depois de tantos meses em Pine Ridge, era uma adaptação difícil de fazer. - Não me importo - Cassie disse suavemente. Entregou o bebê a Alex. - Só gostaria que Connor não estivesse sendo usado. - Não deixarei que os flashes das câmeras atinjam os olhos dele, e não permitirei que façam muitas perguntas. Prometo - Alex sorriu. - Encare isso como se fosse o primeiro teste de vídeo dele. A porta da sala reservada foi aberta, e o corpanzil de Michaela Snow preencheu o espaço. Ela deu um brilhante sorriso a Alex, e então se virou para Cassie, analisando-a dos pés à cabeça - Bom ver você de novo - ela disse de maneira fria e Cassie parou enquanto colocava as fraldas dentro da bolsa novamente. - Michaela - ela disse, levantando o rosto com um sorriso verdadeiramente simpático. Michaela olhou para ela por um instante, longo o suficiente para que Cassie percebesse, com constrangimento, seu vestido marrom velho e os tênis surrados - algo muito distante do que se esperava da esposa de Alex Rivers. Michaela se voltou a Alex novamente. - Está quase pronto? Cassie sentiu um frio na espinha ao perceber que a atitude de Michaela era uma prévia da recepção que ela receberia em Los Angeles, onde a maioria das pessoas que ela conhecia eram amigos e colegas de Alex. Aos olhos deles, Cassie havia abandonado Alex. Eles não conheciam a história toda, obviamente, e era nesse ponto que Cassie ficava de mãos atadas. Se defendesse suas ações revelando o fato de que Alex espancava sua esposa, faria com que a reputação dele mais uma vez fosse arrastada na lama. Mesmo que mencionasse isso e explicasse dizendo que ele estava disposto a
conseguir ajuda profissional, ainda assim magoaria Alex, e se recusava a fazer isso novamente. Olhou para Alex, que confundiu seu olhar assustado com medo de aparecer diante das câmeras e cuidadosamente a colocou em pé. - Com certeza, a mulher que deu à luz sozinha no meio do nada não vai se deixar intimidar por um bando de repórteres curiosos. - Eu não estava sozinha - ela disse de maneira defensiva. - Pegou Connor e começou a colocá-lo em seu cesto. Alex virou-se para Michaela. - Vamos encontrá-la lá fora em dez minutos. Quando a relações-públicas saiu, ele se virou para Cassie. - Por que não me deixa carregar isso e você segura o bebê? - sugeriu com gentileza. Cassie olhou para a porta por onde Michaela acabara de sair. De maneira protetora, cruzou os braços. Estaria Alex com vergonha de suas roupas velhas? Ou por mostrar seu filho em um cesto de bebê sioux? - Connor gosta do cesto - ela disse, hesitante, prendendo-se ao que havia lhe tornado familiar. - Connor ama a mãe dele - Alex disse. Ele olhou para Cassie, seus olhos dizendo as palavras não expressadas: "E quero que todos o vejam com você." Ele esperou até que Cassie assentisse e deu um suspiro. Estava pisando em ovos, sabia disso, mas certamente Cassie sabia a importância de uma primeira impressão. Alex reuniu o restante de suas bolsas e as pegou, passando as alças pelo ombro. Ele parou na porta e virou-se para Cassie. - Obrigado. - Pelo quê? - ela quis saber. - Pelo que está prestes a fazer por mim. Por ter voltado. Foi a emoção nos olhos dele que fez Cassie deixar seu medo de lado. Ela segurou a mão de Alex e suspirou. AS FILEIRAS DE PONTOS PRETOS SE ESPALHAVAM diante dela, mas enquanto os jornalistas tiravam fotos e faziam suas gravações, Cassie manteve um sorriso preso ao rosto e os olhos grudados em Alex, como se estivesse se apaixonando por ele novamente. - Reconheço - Alex estava dizendo de modo frio - que tem havido muita especulação a respeito do desaparecimento de minha esposa. - Ele a envolveu pela cintura. - Como podem ver, ela está viva, o que descarta uma das teorias de mau gosto que levantaram a meu respeito. E, como também podem ver, ela tem estado ocupada. Nosso filho, Connor, nasceu no dia 18 de agosto. O jornalista do Enquirer mexeu a caneta no ar. - Ele é seu? Alex ficou sério: - Não responderei a essa pergunta - ele disse. - Então por que sua esposa fugiu? - um correspondente da Vanity perguntou. - Ela não fugiu, eu a mandei embora. Queríamos ter um bebê em paz, sem que o mundo estivesse nos analisando. Alex diminuiu o tom de voz. - Vocês esperam como animais e fazem com que rumores se espalhem de tal maneira até começarem a ser mais importantes do que a verdade. Já pensaram nas vidas das pessoas que estão arruinando? Já pensaram no prejuízo que estão causando quando, para garantir a privacidade, forçam alguém a mandar a
própria família para longe? Minha carreira já me torna uma pessoa pública. Vocês não precisam fazer isso. - Alex deu um passo na direção do grupo silencioso de jornalistas. - Antes de pensarem em destruir a vida de alguém, pensem em todos nós que estamos tentando construir a nossa. Alex virou-se para Cassie, que se recuperou do choque da veemência do discurso dele e lançou-lhe um sorriso de apoio. Escorregou o braço pela sua cintura e eles desceram o salão, seguidos apenas pelos sons das câmeras distantes. Bem depois de eles terem desaparecido de vista, os jornalistas continuaram boquiabertos, surpresos e abismados. Em vez de quebrar câmeras e puxar rolos de fotos, como alguns astros sabiam fazer, Alex Rivers conseguira envergonhar a todos eles com um tapa de pelica eficiente. Estava claro que ele não havia feito nada de mal à sua esposa. Era óbvio que ela continuava louca por ele. E bem diante deles estava a prova: um belo menininho com os olhos brilhantes de Alex Rivers. A repórter da NBC fez um gesto para o cinegrafista e encontrou um lugar silencioso para poder gravar seus comentários. Tirou o pó compacto do bolso e arrumou o cabelo, virando-se para um representante da agência de notícias UPI ao lado dela, que ainda anotava informações sem parar. - Não acredito - ela disse. - Ele se tornou um herói de novo. Cem milhões de pessoas passarão a nos ver como um grupo terrível, enquanto Alex Rivers e sua família saem como campeões, tentando ser pessoas normais e comuns. Ela balançou a cabeça, confortando-se com o fato de que toda rede de notícias levaria uma lição de moral naquele dia, e levantou a mão para sinalizar que estava pronta para iniciar a gravação. Ajeitou os ombros. - Hoje à noite, no LAX, a celebridade Alex Rivers revelou a resposta para o mistério envolvendo o desaparecimento de sua esposa, vários meses atrás. Apesar dos terríveis rumores espalhados pela imprensa, que afetavam de maneira negativa sua carreira em Hollywood, Rivers não revelou o paradeiro da esposa que, aparentemente, ele sempre soube. Cassandra Barrett Rivers retornou para Los Angeles hoje à noite escoltada pelo marido, trazendo consigo o filho recém-nascido de Rivers. Aqui, a repórter fez uma pausa significativa. É triste perceber que no mundo de hoje um astro como Alex Rivers tem de enfrentar um falso escândalo simplesmente para garantir a privacidade de sua família - ela disse, cuidadosamente eximindo-se de culpa. - Só podemos esperar que, se Connor Rivers decidir seguir a carreira de seu ilustre pai, as coisas serão diferentes. Eu sou Marisa Thompson, da NBC News. CASSIE FICOU NA FRENTE DO ESPELHO DO banheiro, passando os dedos sobre a pia de mármore verde e pelas torneiras douradas. Não conseguia entender qual era o sentido de tudo aquilo. O que lhe parecia luxuoso antes agora parecia completamente exagerado. Ela entrou no quarto, aumentando o volume do monitor portátil da babá eletrônica que estava no quarto novo de Connor. Cassie ficara impressionada: nas horas em que ele passou fora para buscá-la, ele havia provindenciado que um dos quartos de hóspedes fosse decorado com papel de parede de carneiros gorduchos e vaquinhas, com portas e batentes pintados de um tom azul-vivo e cortinas azuis, da cor do céu, com nuvens nas janelas. Connor dormia em um berço branco.
Ela escutou o ritmo estável da respiração do pequeno. Não deveria se sentir surpreendida: Alex sempre era capaz de fazer o impossível. A casa estava silenciosa; os funcionários haviam se retirado para dormir. Parecia haver menos pessoas e aquelas a quem ela reconhecera - como John e a secretária de Alex - foram educadas com ela, respeitando suaposição na casa, porém se esforçou para ser simpática. Ela ficou esperando que alguma empregada dissesse: "Que bom que a senhora voltou", ou que o chef tocasse seu braço e dissesse que havia sentido sua falta, mas essas coisas não aconteceram, e Cassie percebeu que se quisesse ganhar a todos novamente o primeiro amigo que teria de conquistar seria Alex. Ela o encontrou no andar de baixo, em seu escritório, sentado em uma grande poltrona de couro, o corpo inclinado sobre uma lista de investimentos sobre a mesa. Em cima da mesa estavam os três Oscars que ele havia ganhado quando ela estava em Pine Ridge. Ela entrou na sala, fechando a porta. Alex olhou para ela: - Ele dormiu de novo? Cassie assentiu. - Pelas próximas horas. Ela esticou o braço e pegou o Oscar no canto, passando os dedos sobre as costas e os braços cruzados da estatueta. Era muito mais pesado do que ela esperava. - Eu fiquei muito orgulhosa de você. Desejei estar lá - ela disse. - Também desejei que você estivesse lá. Eles se olharam por muito tempo e então a mão de Alex envolveu a dela sobre o Oscar e o colocou na mesa. Ele a puxou para que se sentasse em seu colo. Sentindo-se nervosa repentinamente, ela colocou a mão sobre os papéis da mesa. - Quanto você vale? - perguntou brincando. Alex desviou o olhar. - Não tanto quanto valia quando você foi embora - ele disse. - Você deve ter percebido que nosso quadro de funcionários foi reduzido, e devo avisá-la de que nosso apartamento está à venda há alguns meses. Eu... eu perdi muito dinheiro produzindo Macbeth. Mais uma vez Cassie se compadeceu do sofrimento pelo qual ele havia passado por resultado de seu desaparecimento. Tentando sorrir, ela segurou o queixo do marido para fazê-lo erguer a cabeça. - O lado bom Ela disse - é que aprendi muito sobre raízes e frutos. Não corremos o risco de morrer de fome. Alex esboçou um sorriso. - Não acho que estamos à beira da falência ainda. Mas eu me divertiria muito vendo você explorar Bel-Air. Cassie abraçou Alex e pressionou o rosto contra o coração dele. - Senti muito a sua falta - ela disse. Desejou que ele deixasse seus arquivos de lado e a levasse para o andar de cima. Desejou, no mínimo, que ele a beijasse. - Tenho que lhe pedir um favor - Alex disse.
Cassie olhou para ele e sorriu, percebendo que ele estava lhe dando escolhas. Não havia dito que dormiria em outro quarto se ela quisesse? Obviamente ele só estava esperando por uma dica, uma pista, um carinho. - Sei que você vai procurar... alguém. Um psiquiatra ou coisa assim. Só gostaria que você não saísse mencionando os fatos precipitadamente. Para alguém como Ophelia, ou o seu amigo policial de Dakota do Sul. - Ele baixou os olhos. - Só isso. Cassie sentiu-se incomodada com aquelas palavras. Seria ele capaz de pensar que, depois de tudo que se mostrara disposto a fazer para conquistá-la novamente, ela pudesse feri-lo intencionalmente? - Alex - Cassie murmurou. - Nunca contei nada a ninguém antes. Não é agora que o farei. - Ela acariciou o pescoço dele. - Também tenho um favor a lhe pedir. - Alex olhou para ela, com os olhos brilhando. - Queria saber se podemos ir para a cama. Alex suspirou longamente. Encostou a cabeça de Cassie contra seu peito. - Pensei que nunca fosse pedir. ELE ESTAVA TÃO NERVOSO QUANTO um adolescente. Caminhando nu diante do espelho, pensou em Cassie deitada sob as cobertas a alguns metros dali, a uma distância curta do banheiro. Tentou imaginar se seu corpo havia mudado depois do nascimento de Connor. Tentou imaginar o que ela poderia estar vestindo, se não estivesse nua, e pensou que talvez devesse enrolar uma toalha na cintura. Talvez ela quisesse conversar antes. Na verdade, nem sabia se era possível fazer sexo tão pouco depois do nascimento do bebê. Apoiando as mãos nos dois lados da pia, ele se inclinou para a frente, em direção ao espelho. - Controle-se - disse em voz alta. Fechou os olhos e pensou em todas as cenas de amor que fizera ao longo dos anos, gravações e regravações com as mãos sobre os seios de belas mulheres e sua boca passando pela pele corrigida por maquiagem de todas elas. Ele conseguia agir naturalmente diante de uma plateia de cameramen, diretores, produtores, membros de apoio; mas com sua esposa e ninguém da produção por perto estava morrendo de medo de fazer alguma coisa errada. A verdade era que não existia mulher no mundo que o fizesse se sentir como se sentia com Cassie. Ela o tocava sem segundas intenções; ela dava tudo de si; ela o amava simplesmente por ele ser quem era. Ele suspirou profundamente e abriu a porta do banheiro. Cassie estava sentada na cama, com os lençóis até seus ombros nus. Afastou os cobertores com um movimento de seus pés. Alex se sentou na beirada da cama. - O que eu fiz para merecê-la? Cassie sorriu para ele. - Tornou-se muito, muito sortudo. - Esticou um braço a ele para puxá-lo mais para perto, e o lençol caiu de seus seios. Alex viu rapidamente a pele macia, os mamilos escuros e amplos, antes de abraçá-la contra seu corpo. - Nossa, é ótimo senti-la - ele sussurrou. Enterrou os dedos nos cabelos dela e a beijou, tentando se controlar para que tudo não acabasse rápido demais. Mas as mãos de Cassie pararam em sua cintura e abriram a toalha e, antes que ele conseguisse se conter, havia se posicionado entre suas pernas e a penetrado, gemendo.
Ele caiu sobre o peito dela, arrasado. - Sinto muito. Estou me sentindo com quinze anos de novo - ele disse. Cassie acariciou os cabelos dele. - É bom saber que você estava ainda mais nervoso do que eu. - Ela ajeitou o quadril sob ele, e ele rolou para o lado para que ela não precisasse suportar o peso de seu corpo. Ele olhou para o corpo da esposa, ainda com as marcas da gravidez, maior na cintura e na barriga. - Estou gorda - ela disse. - Está linda - Alex disse. Passou os dedos sobre uma estria em seu quadril. Podemos... fazer isso? Cassie riu. - É um pouco tarde para perguntar, não acha? Alex balançou a cabeça. - Não... quero dizer... eu a machuquei? Cassie olhou para ele, que percebeu que a frase tinha um sentido muito mais amplo do que ele pretendera. - Não - ela disse. - E não vai me machucar. Ela sentiu Alex se mexendo a seu lado mais uma vez e esticou o braço para procurá-lo, mas ele colocou os braços de Cassie delicadamente ao lado da cabeça dela. - Não - ele disse. - Deixe-me fazer isso. Ele começou a amá-la, centímetro por centímetro, e dessa vez queimou embaixo de sua pele. Quando ele a penetrou, Cassie viu por apenas um instante a essência de sua vida. Não havia casa, Oscar, Connor. Não existiam antigos segredos nem dor. Havia apenas Alex e Cassie. Lembrou como Alex Rivers havia mexido com as coisas dentro dela como ela nunca imaginara; como ela sempre o amaria. E, com aquele começo brilhando com tanta força de novo, era difícil imaginar que durante meses ela o havia dispensado sem olhar para trás. Vinte e seis Acima de qualquer coisa, Hollywood sempre tinha sido inconstante, por isso foram necessários apenas alguns dias para que Alex fosse considerado, de novo, a propriedade mais badalada da cidade. Seu relacionamento de conto de fadas com Cassie havia amadurecido - ele agora era um astro de filmes com valores familiares, alguém disposto a sacrificar o sucesso de bilheteria e cancelar produções se elas interferissem no tempo que ele precisava passar com a esposa. De repente, o pária que aparentemente havia acabado com sua vida se transformou na celebridade com quem todas as pessoas dos Estados Unidos se identificavam, uma figura pública que só queria ser um cara comum. A casa e o escritório de produção de Alex estavam abarrotados de presentes para Connor - bonés de times de beisebol, chocalhos e roupas dadas por fãs, talheres e conjuntos de papinha da Tiffany dadas pelos executivos dos estúdios, que incluíam bilhetes a Alex dizendo que andavam atrás dele fazia muito tempo. Roteiros eram enviados a ele aos montes; Herb Silver telefonava quatro vezes por dia para oferecer a ele produções para as quais estava sendo convidado para atuar e dirigir. Alex aceitava os presentes
para o bebê - gostava de observar Cassie abrindo todos eles - e analisava rapidamente os roteiros, mas pretendia esperar antes de fechar outros acordos. Tinha coisas mais importantes para fazer antes. - Ele sorriu - Alex disse certa manhã, segurando Connor como se fosse um troféu. Cassie sorriu e continuou caminhando na sala de jantar. - Espere. Posso fazer ele sorrir de novo. Cassie rolou os olhos e tomou um gole de café. - Talvez já esteja conseguindo fazer com que ele role quando eu chegar em casa. Alex colocou o bebê em seu ombro e sorriu. - Talvez eu consiga mesmo. Estava começando a pensar que Cassie tivera razão. Ele vinha querendo contratar uma babá - afinal, era o que a maioria dos casais em sua posição fazia quando tinham filhos -, mas Cassie não queria saber desse assunto. - Não quero que outra pessoa passe mais tempo com Connor do que eu dissera com firmeza -, e esse assunto não é negociável. Combinara com Archibald Custer que tiraria um ano de licença. Seu coração não estava voltado para o trabalho de pesquisa, pois ela tinha Connor para lhe distrair e, além disso, outra pessoa vinha dando as suas aulas na faculdade. Alex dissera que ela ficaria maluca de vontade de sair de casa depois de uma semana. - Você vai ver - Cassie dissera. - Vou conhecer mais do que qualquer pessoa sobre os parques do bairro. Até então, estava certa. Passava a maior parte do dia sentada com Connor, fazendo caretas para ele, mostrando a língua e contando historinhas que inventava. O único problema era que, observando os dois, Alex não sentia vontade de sair de casa. Começara a levar roteiros para casa e os lia na presença de sua esposa e de seu filho. - A que horas vai voltar para casa? - Alex quis saber. Cassie riu e pegou seu casaco. - Por quê? Para você poder preparar o jantar? - Ela balançou a cabeça e o beijou no rosto. - Você está se transformando em um marido-doméstico, Alex. Ele sorriu. - Ninguém nunca me disse como era muito mais gratificante. - Mas paga menos também - Cassie disse beijando a cabeça de Connor. - Divirta-se com Ophelia - Alex disse. - Ela vai me alugar pelas próximas três horas. Acredita que ela me perguntou se estar em Pine Ridge foi mais ou menos como a situação pela qual passou aquela mulher branca no filme Dança com lobos? Alex riu. - O que você disse a ela? - Sem búfalo, mais neve e roupas piores. - Ela balançou a cabeça e atravessou a sala, desviando de uma empregada que trazia uma pilha de toalhas de mesa. Ao chegar à porta, voltou-se, mordeu o lábio e, conferindo para ver se o corredor estava vazio, perguntou: - Não se esqueceu de hoje à noite, não é? Alex olhou para ela da maneira como sempre fazia ultimamente, como se não acreditasse que ela estava ali e que não voltaria algumas horas depois quando resolvesse sair.
- Não me esqueci - ele disse. A DOUTORA JUNE TINHA SIDO A ÚNICA TERAPEUTA com quem Cassie conversara que não insistira que a única maneira com que uma esposa agredida podia mudar sua circunstância era se afastando fisicamente do marido. Ela contou a Cassie algo chamado síndrome da esposa espancada e disse que era uma doença, como o alcoolismo. E assim como com o alcoolismo, por meio de certos tipos de terapia, tanto os agressores quanto as vítimas podiam compreender seus problemas e as melhores maneiras de lidar com eles. - Se você é um alcoólatra, precisa entender que nunca poderá beber novamente. Nem para comemorar o casamento de seu irmão, nem para se encaixar em um almoço de enegócios, nunca. Se você está sendo espancada a doutora June disse, olhando para Cassie e depois para Alex -, ou agredindo, precisa compreender que os impulsos que permitiram que você entrasse nessas situações terão de ser canalizados para outro lugar se vocês pretendem continuar juntos. Alex passou os dedos entre os de Cassie e apertou sua mão. A doutora June respirou profundamente. - Também devem compreender que as possibilidades estão contra vocês. Mas mesmo que resolvessem se divorciar, sem terapia, é quase certo que Alex encontraria uma mulher com um tipo de personalidade como o de Cassie e descontaria sua fúria nela, e que Cassie procuraria alguém como Alex, que, por sua vez, a agrediria de novo. Independentemente do que acontecer, vocês estão dando um passo na direção certa. A primeira parte da terapia para vocês será conhecer outras pessoas como vocês, na mesma situação em que estiveram. Cassie olhou para Alex, que estava olhando com um olhar calmo e claro à terapeuta que mudaria a vida deles. Ele não parecia nada nervoso - não por estar naquele consultório de móveis de carvalho e, agora, nem mesmo a respeito de admitir a um grupo de desconhecidos que agredia Cassie. Ela não gostou daquilo, pensando no futuro. Sabia que existia confidencialidade entre médico e paciente, mas não tinha certeza de que o mesmo fosse aplicado a membros dos grupos de apoio. E, obviamente, aquilo seria essencial para Alex. - Está claro que vocês selaram um compromisso, o que acho ótimo - a doutora June disse. Ela checou uma prancha, e então olhou para Cassie. - Posso colocá-la em um grupo de mulheres na quarta-feira à noite - ela disse. - E nosso grupo de homens se reúne aos domingos. Não há problema - Alex disse. GOSTEI DELA - CASSIE DISSE QUANDO ELES estavam indo dormir. - O que você achou? Alex bocejou e apagou as luzes. - Ela parece ser boa - ele disse. - Ela não ficou surpresa quando você entrou no consultório - Cassie disse. Não pediu autógrafo. Alex deu de ombros. - Ela vai ter meu autógrafo umas dez vezes - ele disse. - Sempre que eu enviar um cheque a ela. No escuro, Cassie virou-se para Alex e pressionou as palmas de suas mãos contra o peito dele.
- Não se importa em falar sobre nós diante de outras pessoas? Alex balançou a cabeça e curvou-se para beijar o seio da esposa. Conseguiu sentir o gosto de leite que seu filho deixara e sugou delicadamente, adorando a ideia de que ela pudesse alimentar os dois. - E o restante das coisas que ela disse? - Cassie perguntou. Alex afastouse dela, percebendo o medo em seu tom de voz. - E se fizermos parte da maioria e não conseguirmos ficar juntos? Alex a abraçou e esfregou as mãos por suas costas. - Não precisa se preocupar - ele disse simplesmente, porque nunca vou deixá-la. ASSIM COMO AS OUTRAS SETE MULHERES EM seu grupo de terapia, Cassie era casada com um homem que agia maravilhosamente bem em 97% do tempo. Assim como as outras mulheres, Cassie havia passado mais tempo de sua infância tomando conta dos pais do que o contrário, mas nunca tinha sido valorizada por isso. E então havia conhecido seu marido. Ele tinha sido a primeira pessoa que fez com que ela se sentisse especial. Dizia que a amava, chorava quando a feria. Dizia que ela era capaz de cuidar dele e diminuir sua dor como nenhuma outra pessoa. Assim como as outras sete mulheres, Cassie não queria que Alex a agredisse, mas sabia que não podia impedi-lo. Acreditava que, de certa forma, tinha culpa por não ser capaz de impedir aquilo. Sentiu pena dele. Conseguia convencer a si mesma de que aquilo nunca mais aconteceria, pois vinha resolvendo problemas havia tanto tempo em sua vida que, para seu bem-estar, simplesmente tinha de acreditar em sua capacidade de acertar tudo. E havia recompensas. Flores, carinho e sorrisos apenas para ela. Quando ela acertava - quando não o irritava -, sua vida era melhor do que a de qualquer outra pessoa. Mas assim como as outras mulheres, Cassie compreendia que não era normal ficar paralisada quando seu marido lhe tocava o ombro, já que não sabia se receberia um beijo ou um chute nas costelas. Compreendia que nem sempre era sua culpa. Que não tinha de ser mais infeliz do que feliz. A doutora June sentou-se no círculo com as mulheres, muitas das quais, Cassie ficou surpresa ao perceber, eram bem vestidas e falavam bem. Esperava encontrar esposas de caminhoneiros, de pessoas que contavam com a ajuda do governo. Durante os primeiros minutos, ela ficou sentada em silêncio, dizendo apenas seu primeiro nome para se apresentar e observou os hematomas na clavícula da mulher diante dela. A sessão daquela noite envolvia trocas de histórias. A doutora June queria que todas pensassem na primeira vez em que uma agressão havia ocorrido. Cassie escutou uma advogada contar a respeito de seu namorado, com quem vivia, que a mantivera trancada dentro do banheiro por 48 horas para impedi-la de sair com suas amigas. Outra mulher chorou quando descreveu o marido a arrastando de uma festa, onde a acusou de conversar demais com um vizinho, e então bateu nela na boca, até quebrar dois dentes e o sangue jorrar, de modo que ela não conseguisse mais falar. Outras contaram sobre objetos sendo atirados nelas, de ossos sendo quebrados, de socos em janelas de vidro.
Cassie foi a última, e olhou timidamente para a doutora June e começou a descrever a ocasião em que havia voltado de sua palestra em Chicago a respeito da mão. Falou lentamente sobre o atraso do avião, sobre as acusações do marido, perguntando onde ela estava, cuidadosamente omitindo qualquer informação que apontasse claramente para a carreira e real identidade de Alex. Sentia-se mais leve a cada palavra dita, como se estivesse carregando pedras em seu coração durante todos aqueles anos e estivesse, naquele momento, pronta para jogá-las fora. Quando terminou, depois de falar do bebê que perdera, ela estava chorando e a doutora June a abraçava. Chocada com sua falta de controle, Cassie endireitou-se rapidamente. Secou o rosto e disse: - Tenho um filho agora. - E completou, com mais suavidade, absolvendo Alex: - Da primeira vez, ele não soube. Enquanto o grupo se separava, com cada mulher pegando suas coisas para ir para casa, Cassie esperou ficar sozinha com a doutora June e então tocou-lhe o ombro. - Obrigada - Cassie disse, dando de ombros. - Não sei bem pelo que, mas... obrigada. A psicoterapeuta sorriu. - Vai ficar cada vez mais fácil à medida que você vier. Cassie assentiu. - Acho que esperava me sentir como se tivesse que me defender. Como se ninguém compreendesse como ainda consigo amar Alex depois do que ele fez. Pensei que fossem olhar para mim como se me julgassem uma maluca por estar aguentando isso há tanto tempo. A doutora June assentiu. - Todas já passamos por isso. Cassie ficou surpresa. - Você também? - Fiquei casada com um homem que me espancou por dez anos - ela disse. - Por isso serei a última pessoa a julgar sua decisão de ficar. - Ela abriu a porta para que Cassie pudesse passar. Cassie continuou olhando para a terapeuta. - Eu... eu sinto muito. Nunca teria imaginado. - Não é algo que fica claro em nossa testa, não é? - ela disse delicadamente. Cassie concordou. - Mas as coisas estão melhores agora? - perguntou, tentando obter o máximo de esperança que conseguisse para ela e Alex. - Sim - a doutora June disse, suspirando. Olhou para Cassie por muito tempo. - Agora que estamos divorciados. ALEX ESTAVA MEXENDO O QUADRIL, penetrando-a profundamente, beijando a curva do pescoço de Cassie, quando Connor começou a gritar pelo monitor ao lado da cama. Os seios de Cassie estavam cheios e ela sentiu o leite escorrer pelas laterais quando Alex saiu de cima dela pela segunda vez naquela noite. Ele ficou deitado de barriga para cima, olhando para o teto, com a expressão séria. - Pelo amor de Deus, Cassie, não consegue fazer com que ele se cale?
Mas ela já estava se enrolando em um robe de cetim salmão e indo em direção à porta. - Volto em um minuto - ela disse. Não havia acontecido nada; o bebê apenas havia perdido sua chupeta no berço. Ela esfregou as costas dele e observou seus gritos se transformarem em soluços, pensando em como ele era totalmente dependente. Saindo do quarto na ponta dos pés, atravessou o corredor e voltou para o quarto. Alex estava parado, de costas para Cassie. Quando ela fechou a porta, ele não se mexeu. Cassie entrou sob as cobertas e aconchegou-se no corpo de Alex. - Onde estávamos? - Meu Deus, Cassie! Não consigo começar e parar dessa maneira. Não consigo fazer uma refeição completa, não consigo dormir uma noite inteira, não consigo nem mesmo terminar de fazer amor com você sem ser interrompido por aquela criança. Cassie disse: - Aquela criança não está fazendo nada disso de propósito, Alex. Você não é o único pai do mundo. A vida de todo mundo muda com a chegada dos filhos. - Nunca pedi para tê-lo. A mão de Cassie parou sobre o quadril de Alex. - Não pode estar falando sério. Alex virou a cabeça para dizer: - Se não quer contratar uma babá, então é melhor encontrar uma pessoa que cuide dele à noite. Não vou tolerar isso. Ou você contrata alguém ou vou para outro quarto. - Ele colocou um travesseiro sobre a cabeça. Cassie pensou em algo que a doutora June havia dito na noite anterior, na sessão de grupo, algo a respeito dos traços de personalidade do agressor. Os maridos não querem que as esposas tenham amigas próximas. Não gostam da ideia de outra pessoa dividir a atenção da esposa, pois acreditam que elas são inteiramente deles. Na sessão, Cassie havia pensado em Ophelia e na incapacidade de Alex de perdoá-la pelo único erro que ela havia cometido em relação a ele. Mas agora começava a analisar a explicação da doutora June de outra maneira. Olhou para as mãos de Alex, segurando o travesseiro sobre a cabeça. Ele não tolerava ver alguém que precisava de Cassie tanto quanto ele. Nem mesmo o próprio filho. - Alex - Cassie sussurrou. - Sei que ainda não dormiu. - Ela deu um tapinha em seu ombro e puxou o travesseiro de sua orelha. Alex reclamou e deitou de bruços. - Vou contratar alguém. Começarei a procurar amanhã. Alex abriu os olhos e apoiou-se nos cotovelos. Abriu um amplo sorriso para ela e com os cabelos despenteados parecia uma criança. - É sério? - Cassie assentiu e engoliu o nó de sua garganta. Escutou o som da respiração de Connor ao fundo, pelo monitor. - Ótimo - Alex disse, abraçando-a. - Eu estava começando a me sentir sendo deixado de lado. Ele a beijou intensamente, tirando seu fôlego e sua razão. - Não - ela sussurrou, ignorando as lágrimas nos cantos de seus olhos. Nunca. Querida Cassie,
Espero que você e Connor estejam bem e que você esteja feliz de volta a Los Angeles. Pine Ridge não é a mesma sem vocês dois. Na verdade, acho que o único motivo que estava me fazendo começar a gostar daqui era porque parecia diferente com a presença de vocês. Mais alegre, acredito. Não tão chato e sem graça. Estou escrevendo porque prometi avisar quando tivesse conseguido um novo emprego. Dentro de uma semana eu me mudarei para Tacoma, Washington, e começarei a trabalhar no departamento de lá. Um dia desses, quando eu colocar juízo em minha cabeça, talvez fique em um lugar tempo suficiente para ser promovido. Se você não estiver completamente chocada por Los Angeles, como fiquei quando fui morar aí, talvez pense em nós de vez em quando. Sinto saudade do bebê. Sinto sua falta. É o pior tipo de dor. Cuide-se, wasicun wínyan. Will Alex desligou o telefone e olhou para o relógio. Acabara de marcar um compromisso para se encontrar com Phil Kaplan dentro de uma hora para finalizar um acordo verbal para produzir o próximo filme que pretendia fazer. Havia encontrado o roteiro sem querer em uma pilha de materiais descartados; era muito valioso, mas tinha erros graves que ele pedira a um roteirista vencedor de um Oscar para consertar. Já estava sonhando com as cenas, dirigindo-as sem parar em sua mente. Havia anotado o nome de suas primeiras opções para os papéis principais em uma lista em seu bolso, para que discutisse o assunto com Phil. É claro que se ele jantasse com Phil, perderia aquela terapia em grupo pela segunda semana seguida. Cassie havia levado Connor para a praia com Ophelia e vários guarda-sóis; ela não ficaria sabendo imediatamente. Alex pegou o telefone para telefonar para a doutora June, mas desistiu. Havia prometido a Cassie. Poderia remarcar com Phil. Que, sem dúvida, já teria se comprometido com alguém amanhã de manhã. Ele disse a si mesmo que nem sequer estaria pensando em faltar à terapia se não sentisse que aquele filme pudesse ser ainda mais bem-sucedido do que A história dele. E infelizmente tudo havia coincidido e estava acontecendo no mesmo dia, naquela tarde de domingo. Disse a si mesmo que dali a um ano, quando ganhasse o Oscar novamente, Cassie nem se lembraria do ocorrido. Pegou o telefone de novo. Haveria outra sessão na semana seguinte e Cassie compreenderia. Ela sempre compreendia. NA QUARTA-FEIRA SEGUINTE, A DOUTORA JUNE chamou Cassie de lado na sessão em grupo das mulheres. - Você deve perguntar a Alex se ele de fato está disposto a conseguir ajuda. Cassie olhou para a terapeuta.
- É claro que está - ela disse, tentando imaginar o que o marido poderia ter dito durante as sessões que faria com que ela o criticasse. Quando ela havia perguntado a ele sobre as sessões, ele respondeu que estava tudo bem. - Eu sei que você está - a doutora June disse. - Mas não é a mesma coisa. Compreeendo que ele tenha precisado faltar a uma sessão por compromissos de trabalho, mas duas na sequência eu acho um tanto exagerado. Se ele quer salvar o casamento com a terapia, deveria começar a comparecer. - Ele não estava lá no domingo - Cassie disse lentamente, de repente compreendendo. Virou as palavras em sua mente, tentando imaginar onde Alex poderia ter ido, por que havia mentido. Olhando para cima, sorriu de maneira a se desculpar. - Ele acabou de fechar um trabalho muito importante. Tenho certeza de que as coisas serão diferentes agora. - Cassie - dissse a doutora delicadamente -, você não precisa mais dar desculpas pelo comportamento dele. Durante o longo trajeto para casa, ela conversou com John como sempre fazia. Entrou correndo na casa, chamando Alex com a voz tão alterada que encheu todos os cantos da sala com sua raiva. Aqui - Alex disse. Cassie abriu a porta do quarto e viu Alex sentado no sofá com um jornal aberto sobre seu colo. Havia uma garrafa de uísque entre as almofadas à sua direita. - Está bebendo de novo - ela disse, tirando a garrafa dele e colocando-a no bar do outro lado do quarto. Ficou em pé com os braços cruzados, ao lado do chiqueirinho onde Connor estava. Alex sorriu de maneira preguiçosa. - Connor tomou sua mamadeira - ele disse. - Pensei que eu merecia uma também. - Você não foi à sessão em grupo no último domingo - ela disse sem rodeios. - Não - Alex admitiu, exagerando na pronúncia da palavra. - Estava ocupado reconstruindo minha carreira. Minha reputação. Aquela que você derrubou com tanta facilidade. - Ele ficou em pé e colocou o jornal nas mãos dela. - Este é o Informer de amanhã, pichouette. Chegou na porta de nossa casa em um envelope marrom. E não para nas manchetes. A história está na página 3, e é muito boa. Cassie dobrou o jornal pela metade, olhando a primeira página, alex rivers enganado pelo filho fruto de traição de sua esposa. Havia uma foto tirada no aeroporto de Alex abraçando Cassie; e outra de Cassie com Will, entrando na delegacia meses antes, o dia em que Alex a buscara. - Isso é ridículo - ela disse, começando a rir. - Não é possível que você acreditou nisso. Alex voltou-se para ela com tanta rapidez que ela derrubou o jornal. - Não interessa o que eu acredito. Interessa o que todos vão ler. - Isto aqui não é a revista Time - Cassie disse. - Qualquer um que vir esta porcaria sabe que as histórias são absurdas. - Ela fez uma pausa. - Vamos processá-los e colocar o dinheiro no fundo de previdência de Connor. Alex deu um passo à frente, segurando-a com força pelo braço. - Eles estão citando a carta que ele escreveu para você, aquela que está lá em cima. Disseram que você vai encontrá-lo em Washington.
Por um momento ela pensou em como o bilhete de Will, que estava dentro de sua gaveta de roupas íntimas, havia se tornado algo de conhecimento público. Estava desapontada por alguém entre os funcionários ter divulgado seus assuntos pessoais, mas estava absolutamente chocada por Alex ter mexido em suas coisas. - Não acha que vou embora, acha? - Não - ele disse simplesmente -, porque eu a mataria antes. Cassie sentiu o clima pesar no quarto, pressionando suas têmporas e fazendo seus membros se mexerem lentamente. Encostou-se contra uma parede. - Alex - ela disse com delicadeza -, escute o que digo. Olhe para Connor. Ela esticou o braço para tocá-lo. - Eu te amo, eu voltei com você. - Que merda! - Alex explodiu, seus olhos ficaram escuros. - Essa merda vai me seguir para sempre. Eu poderia ganhar qualquer prêmio do mundo e eles ainda assim arrastariam meu nome na lama com nossa vida particular. Vai ter sempre alguém olhando para aquele bebê com mais atenção do que deveria. Ele agarrou Cassie pelos ombros e a jogou com força ao chão e depois passou a mão pelos cabelos. - Isso nunca teria acontecido se você não tivesse ido embora - ele disse e, apesar de Cassie ter rolado para longe dele, sentiu os chutes dele nas laterais de seu corpo e em suas costas, os punhos dele batendo em seus ombros e cabeça. Quando tudo acabou e Cassie abriu os olhos, estava olhando para dentro do chiqueirinho de Connor. O bebê gritava assim como o corpo todo de Cassie. Seu rosto estava virado para o da mãe; para o de seu pai, que estava inclinado sobre o corpo de Cassie, chorando. Quando Alex a tocou, Cassie ficou branca. O sangue escorria de sua orelha direita e ela percebeu que não estava escutando com aquele ouvido. Tirou Connor de seu cercadinho, acalmando-o, sussurrando para ele as coisas que costumava sussurrar a Alex. Olhou para o corpo do marido, bêbado e ajoelhado ao chão e começou a entender. Entendeu que pela primeira vez a raiva de Alex não havia sido desviada e dirigida a ela - tinha sido causada por ela. Que o resto de sua vida seria vivido com medo. Que seu filho veria Alex machucá-la várias e várias vezes e, sem querer, poderia crescer e se tornar como o pai. Que Alex, mesmo sem ter culpa, não conseguia cumprir suas promessas. Ela atravessou o quarto e abriu a porta, olhando para John, que olhou por um instante prolongado para o sangue que escorria do rosto dela. Ela virou o rosto de Connor contra seu peito para que o bebê não visse, mas olhou mais uma vez para Alex, encurvado pela própria dor. E, da maneira com que as coisas mais comuns mudavam, Alex deixou de ser uma vítima. Tornou-se apenas patético. CASSIE NÃO SOUBE DIZER SE ELE SABIA que ela estava chorando. Antes, quando aquilo acontecia, ela esperava ter a certeza de que o marido dormia para deixar as lágrimas escorrerem por seu rosto, em silêncio. Nunca fazia barulho, mas Alex conseguia escutar mesmo assim. Ele queria tocá-la, mas sempre que tentava atravessar os intermináveis oito centímetros que os separavam não conseguia ir até o fim. Ele tinha sido o causador da dor. E se ela se afastasse dele, porque, afinal, sempre havia uma primeira vez, ele acreditava que ficaria arrasado.
Cassie - ele sussurrou. Silêncio. - Diga que não vai embora. Ela não respondeu. Alex engoliu em seco. - Vou à doutora June amanhã de manhã. Vou cancelar o filme. Deus, você sabe que eu faria qualquer coisa. - Eu sei. Ele virou a cabeça na direção da voz dela, prendendo-se àquelas duas palavras como se delas dependesse a sua vida, sem conseguir enxergar Cassie, exceto pelas marcas de lágrimas em sua pele. - Não posso perdê-la - ele disse, a voz embargada. Cassie olhou para ele, seus olhos brilhando como os de um fantasma. - Não, não pode - disse calmamente. Ela segurou a mão dele, unindo-os. E naquele momento Alex deixou seu choro acontecer de novo, silenciosamente, assim como o de Cassie. Disse a si mesmo que era reconfortante saber que ele detestava a si mesmo ainda mais do que Cassie o detestava. Como castigo, tentou dormir, imaginando, em sequência, os rostos irados de seu pai, sua mãe, sua esposa e seu filho - todas as pessoas a quem ele havia decepcionado. DESSA VEZ, ELA NÃO SE CONTEVE. MESMO SABENDO que Alex estava acordado a seu lado, Cassie chorou. Não se tratava apenas de ir embora, como Alex pensava. Tratava-se de liberdade. Ela poderia deixar Alex e nunca ser livre; era só lembrar do que havia acontecido quando ela partira para Dakota do Sul para ter Connor. Para de fato se separar, ela teria de fazer Alex sofrer tanto quanto ela sofria. Ele não a deixaria livre - de jeito nenhum - a menos que ela tomasse uma atitude que fizesse com que ele a odiasse. Portanto, teria de fazer o que vinha evitando escrupulosamente havia quatro anos: tornar-se uma das pessoas que o magoaram. Tentou se convencer de que, se realmente se importasse com Alex, teria de forçar a ruptura, uma vez que usá-la como desculpa para a sua fúria só faria mal para ele a longo prazo. Não significaria que ela não precisava mais dele. E certamente não significaria que não o amava. Alex estava certo quando dizia que ambos eram feitos um para o outro: porém de uma maneira incompleta e doente. Lembrou-se de Alex em pé na porta dos Cavalo Alado em Pine Ridge, dizendo que ela era parte dele. Lembrou-se dele com as mãos sobre as dela enquanto pescavam sem vara em um riacho frio do Colorado. Lembrou-se de quando se sentara ao lado dele, observando leões no Serengeti. Lembrou-se do gosto e do tato dele e do peso de sua pele contra a dela. Não compreendia como havia chegado àquele ponto, no qual amava tanto a Alex que, literalmente, estava sendo morta. Cassie observou a noite passar enquanto analisava as opções. Fechou os olhos e, para sua surpresa, viu Will e não Alex, amarrado a um varão sagrado durante a Dança do Sol. Sentiu o calor subindo da planície, escutou os tambores e os apitos. Pensou no momento em que Will se soltou, com as feridas na pele. Aquilo tinha sido extremamente doloroso, mas era a única maneira de ele se libertar.
O dano era permanente; sempre existiriam cicatrizes. Mas até mesmo as maiores marcas desapareciam com o tempo, até que ficasse difícil vê-las na pele, e a única coisa que restava era a lembrança de como havia sido dolorido. Cassie segurou a mão de Alex, tentando memorizar a temperatura de sua pele, o cheiro e a sensação de tê-lo deitado a seu lado à noite. Aquelas eram as coisas que se permitiria guardar. Passou o polegar sobre as linhas suaves da palma da mão dele, acariciando uma desculpa pelo que estava prestes a fazer, e marcando sua despedida. Vinte e sete
Por um terrível momento, Cassie olhou para os rostos ansiosos diante dela e pensou: "Eles não vão acreditar em mim." Pensou que apenas ririam. "Alex Rivers? Você só pode estar brincando", eles diriam. E então fechariam seus cadernos, rebobinariam as fitas das câmeras e a deixariam sozinha e envergonhada. Engolindo o medo e o orgulho, ela se ajeitou na cadeira de metal do hotel que o concierge havia colocado ali para preparar a coletiva de imprensa. Ela passou a mão pelas pregas de sua saia azul-marinho. Parece uma estudante, haviam dito. Nada ousada, nada sensual. Como se tivesse atraído a atenção, a agressão. Ao lado dela, em uma cadeira parecida, Ophelia estava segurando o bebê. Connor estava com soluços, sons curtos que faziam Cassie se lembrar de choro. Ela sabia que, com quase dois meses de idade, ele não podia entender e não se lembraria. Assim como sabia que sempre que ele a procurasse ela se lembraria do pai dele, ao ver aqueles olhos brilhantes. Pigarreando, ela ficou em pé. Quase imediatamente a massa de jornalistas silenciou, prestando atenção como se fossem os soldados de um batalhão. - Bom dia - Cassie disse, inclinando-se na direção do microfone, tocando-o levemente. Fez-se um som alto. Cassie deu um passo para trás, assustada. - Desculpem-me - ela disse, um pouco mais delicadamente. - Obrigada pela presença. Pensou no absurdo que dissera, como se tivesse reunindo um grupo de amigas para um chá da tarde. Pensou em como teria sido muito mais fácil realizar uma reunião de amigos, em vez de estar se entregando incondicionalmente àquela matilha de cães famintos. Não tinha mais ilusões; Alex as destruirá duas noites antes. Aquelas pessoas não eram suas amigas, nunca tinham sido. Elas só a conheciam por causa de Alex; haviam concordado em estar ali apenas porque pensavam que ela diria algo sobre ele. Cassie era algo secundário para eles. Se os jornalistas chegassem a mencionar seu nome depois que tivessem conhecimento da história, ela seria pintada como um tipo de maluca lastimável, ou como uma idiota incapaz de ter se defendido durante todos aqueles anos. Cassie abriu o pequeno pedaço de papel que havia lido centenas de vezes desde o café da manhã, sua declaração preparada para a coletiva. Ophelia a orientara a olhar nos olhos das pessoas, a modular a voz para um tom baixo e regular - truques de atores para parecerem mais simpáticos para uma plateia. Mas quando seus dedos se congelaram ao redor da folha com rebarbas,
tremendo visivelmente, não conseguiu se lembrar de nada do que havia ensaiado. Então, começou a ler, dizendo cada palavra com um tom de insegurança, como uma criança de oito anos, ocupada demais em pronunciar os sons e não dando sentido ao que dizia. - Meu nome é Cassandra Barrett. A maioria de vocês me conhece como esposa de Alex Rivers. Nós nos casamos no dia 30 de outubro de 1989, e nosso casamento tem sido alvo da atenção da imprensa em diversas ocasiões, e a mais recente delas foi no nascimento de nosso filho. No entanto, ontem, eu pedi o divórcio de Alex Rivers alegando extrema crueldade. A afirmação, que acontecia menos de um mês depois da demonstração de felicidade que Alex e Cassie haviam feito no LAX, quando chegaram com Connor, gerou uma onda de sussurros entre os jornalistas, fazendo com que Cassie se sentisse sufocada. Ela se segurou no canto da mesa, atrapalhandose com as últimas frases da folha. - Depois desta coletiva de imprensa, quaisquer perguntas podem ser feitas à minha advogada, Carla Bonanno, ou ao senhor Rivers. - Ela respirou profundamente. - Mas, para promover a verdade, estou disposta a responder a algumas das perguntas agora. Várias pessoas ergueram as mãos diante de Cassie, tirando sua visão da câmera. Vozes se misturaram. - senhora Barrett - um jornalista perguntou -, ainda está morando com Alex Rivers? - Não - Cassie disse. - Ele concordou com o divórcio? Cassie olhou para sua advogada, sentada à esquerda. - Os papéis serão apresentados hoje. Não espero que ele os conteste. Outro jornalista tentou abrir caminho para a frente da multidão, balançando um microfone sob o tablado. - Crueldade extrema não é justificativa para um divórcio - senhora Barrett. Está exagerando as desculpas para pedir o divórcio e pôr as mãos no dinheiro? Cassie arregalou os olhos ao tom depreciativo do jornalista, por sua audácia em fazer uma pergunta tão pessoal. Pelo amor de Deus, aquele era o casamento dela. O marido dela. - Não pretendo tirar nada de Alex. "Apenas eu mesma", ela pensou. - E não estou exagerando nas acusações. - Ela baixou o olhar, pensando que estava em um caminho sem volta. Cuidadosamente tirou as emoções de seu rosto e ergueu a cabeça de novo, olhando para tudo e para o nada ao mesmo tempo. - Fui agredida por Alex Rivers nos últimos três anos. Sinto muito, sinto muito, sinto muito. As palavras passavam por sua mente e ela não sabia se o que pensava era para Deus, para Alex ou para si mesma. Sentiu o coração bater com tanta força que parecia estar levantando o tecido de sua blusa. - Pode provar? A pergunta tinha sido feita por uma mulher, e era mais suave do que a maioria das outras tinham sido, e talvez tenha sido por isso que Cassie fez o que decidiu fazer. Mantendo os olhos voltados para a porta no fundo da sala de conferência, lentamente ela abriu os três primeiros botões de sua blusa e afastou para o lado a tira do sutiã para revelar um hematoma grande e arroxeado. Tirou a blusa do cós da saia e a levantou até o estômago, virando
se levemente para que as costelas inchadas e cheias de marcas pudessem ser vistas. A sala de conferência ficou tomada por flashes e por sons cacofônicos. Cassie ficou em pé, parada, controlando-se para não tremer, desejando estar em qualquer lugar, menos ali. QUANDO ACORDOU NA MANHÃ SEGUINTE ao DIA EM QUE Alex a agredira, o lado dele da cama estava frio e as cobertas haviam sido esticadas. Por um momento, Cassie olhou para elas, para os travesseiros bem organizados. Talvez não tivesse acontecido. Talvez Alex não tivesse dormido ali. Ela tomou um banho, deixando a água quente suavizar os pontos mais doloridos e foi ver Connor. A enfermeira da noite pegou o bebê para que Cassie pudesse amamentá-lo. Sentada na grande cadeira de balanço, ela olhou pela janela ao que prometia ser um belo dia na Califórnia. - Vamos embora de novo - ela sussurrou ao filho. Em seguida, ficou em pé e o carregou para o trocador, abrindo as abas plásticas da fralda descartável e colocando uma limpa sob as nádegas da criança. Ela olhou para o corpinho dele: as pernas compridas e fortes; a barriga gordinha; as gordurinhas em seus braços que quase pareciam com os músculos de um homem adulto. Quando a enfermeira voltou, Cassie sorriu para ela. - Pode me fazer um favor? - ela pediu, instruindo a funcionária a encher uma bolsa com fraldas e diversas trocas de roupa, além de pijamas para Connor. E então, deixando Connor no moisés, desceu as escadas. Não parou para tomar café na sala de jantar; não procurou por Alex na biblioteca nem no escritório. A verdade era que não se importava. Havia tomado sua decisão na noite anterior. O plano que ela havia feito envolvia sua imagem pública. Afinal, era o que havia causado a briga na noite anterior. E, Cassie precisava admitir, sua imagem pública fazia tanto parte da vida dele como da dela, a esposa. Quando o garoto de ouro não mais parecesse tão dourado e quando ele descobrisse quem havia causado toda a comoção, ela estaria livre. Ou Alex teria de admitir suas acusações e ganhar a simpatia das pessoas ao pedir ajuda, ou teria de contra-atacar e desmentir a história dela, dizendo calúnias. Não importava o rumo que as coisas tomariam. De qualquer modo, o resultado arruinaria a vida de Alex; de qualquer modo, o resultado mataria Cassie. Por que ela estava forçando Alex a deixar de amá-la, mas não conseguia deixar de amá-lo. Ela abriu a porta da frente, caminhando descalça pelas escadas de mármore e pelo caminho comprido que levava às piscinas e às outras construções. Um dia, ela mostraria a Connor fotos daquele castelo e diria que por pouco ele não havia crescido como o príncipe de Hollywood. Ela caminhou para a segunda construção baixa e branca, o laboratório que Alex havia construído para ela logo depois do casamento. Estava escuro e com cheiro de mofo; ela estivera ali durante alguns minutos desde que voltara para a residência, mas tinha muito o que fazer para Connor e não o deixava sozinho durante o dia dentro da casa. Acendendo a luz, ela viu o espaço cavernoso tomado pelas cores do passado: ossos amarelados e mesas metálicas brilhantes, instrumentos prateados e a terra vermelha.
Tentou imaginar como eram as paisagens de onde aqueles ossos haviam sido retirados. E o que as pessoas, donas daqueles esqueletos, faziam durante o dia. Percebeu que para alguém para quem a antropologia cultural tinha sido uma anátema, suas perguntas eram estranhas e desconhecidas. Parecia, de certa maneira, que a antropologia para Cassie havia sido uma exploração em uma sala pequena e fascinante, e ela puxou uma cortina, acreditando ser um armário, mas viu que se tratava de uma nova sala, duas vezes maior do que a primeira. Ela sempre teria seu trabalho quando deixasse Alex - ele já existia antes e era parte dela, assim como Connor -, mas sua pesquisa nunca seria a mesma. Ela havia visto as possibilidades e, depois de Pine Ridge, não acreditava que poderia continuar olhando para os ossos soltos. Havia aprendido com os lakota que, apesar de uma pessoa ser feita de músculos, ossos e tecidos, era igualmente formada por seus hábitos na vida e pelas escolhas que fazia e as lembranças que deixava a seus filhos. Antes de Cassie partir para Pine Ridge, estava estudando um crânio do Peru, enviado por um colega, no qual um disco claro de osso havia sido removido. O cientista que o enviara a ela queria sua opinião acerca da natureza do dano. Seria uma perfuração causada por uma pessoa - realizada durante uma operação para retirar parte como amuleto, ou para aliviar dores de cabeça - ou seria causado por algo natural? Cassie sentou-se à mesa de exame, analisando suas anotações para obter outras explicações. Feito por uma picareta durante a escavação. Pressão contínua de um objeto pontiagudo na cova. Erosão. Defeito congênito. Reação sifilítica. Segurando a cabeça com as mãos, ela tentou imaginar o que um cientista pensaria a respeito do esqueleto dela, se fosse desenterrado daqui a milhões de anos. Será que ele passaria seus instrumentos sobre as costelas dela, trincadas, prejudicadas, mutiladas? Atribuiria o prejuízo aos ossos a algum escavador descuidado? À erosão? A seu marido? Cassie enrolou o crânio em algodão e o colocou de volta na caixa. Usou serragem e jornal rasgado para fazer mais uma camada de proteção, com cuidado, como se o crânio ainda sentisse a dor do estrago causado. Sem imprimir uma carta formal, ela dobrou sua lista de observações. Não era a pessoa mais adequada para analisar aquilo. Não mais. Por isso, escreveu um bilhete do lado de fora, dizendo que não tinha tempo de estudar mais a espécie, desculpando-se pelos meses em que deixara o cientista esperando. Em seguida, colocou o bilhete e o crânio dentro da caixa e fechou a tampa com um grampeador. Cassie levou a caixa para dentro da casa para enviá-la pelo correio, sentindo seu peso aumentar a cada passo. Tentou imaginar por que. Cassie ficou confusa com tantas perguntas, pensando que mesmo se soubesse para onde iria a última coisa que faria seria deixar marcas para que a imprensa a seguisse. - Estou de licença-maternidade de meu trabalho - ela disse lentamente. Quanto a voltar ou não para a UCLA quando essa licença acabar, é uma decisão que tomarei mais adiante. Um homem de casaco verde-oliva tirou seu chapéu: - Vai permanecer em uma de suas outras residências?
Cassie negou com um movimento de cabeça. Mesmo que quisesse metade da riqueza e dos bens de Alex, como a lei da Califórnia lhe permitia ter, não permaneceria em nenhum lugar onde havia vivido com ele. No rancho, no apartamento e talvez até na Tanzânia, os ambientes estavam marcados pela imagem dos dois juntos. Ela hesitou, depois mordeu o lábio inferior. - Tenho diversas opções - ela mentiu. HAVIA LEVADO CONNOR PARA A CASA DE OPHELIA. - Jesus - Ophelia disse quando abriu a porta. - Que diabos aconteceu com você? Cassie não havia se preocupado em pentear o cabelo ou colocar maquiagem. Havia pegado as primeiras peças de roupa que pôde encontrar naquela manhã, que tinham sido uma camisa polo roxa e short de algodão com listras verdes e brancas. - Ophelia, preciso de sua ajuda - ela disse simplesmente. Durante todo o tempo em que explicou à amiga as partes sombrias de seus últimos três anos com Alex, e durante a meia hora que passou mostrando os ferimentos inchados de seu corpo, Cassie não chorou. Com o pé esquerdo, balançava o carrinho de Connor e respondia às perguntas de Ophelia. No final, Ophelia chorou por ela e telefonou para a amiga de uma amiga que tinha contato com uma boa advogada para cuidar do divórcio. Quando Cassie tentou recusar, Ophelia olhou para ela com desapontamento. - Você pode não querer nem um centavo dele, mas tem algo que ele quer desesperadamente. Seu filho. Ophelia foi aos cinco bancos onde Cassie e Alex tinham contas conjuntas e, usando os cartões nos caixas automáticos, havia sacado uma generosa quantia de cada um deles. Comprou fraldas e mamadeiras para Connor, uma vez que Cassie havia saído de casa deixando quase tudo. Enquanto Ophelia estava fora, Cassie embalou Connor para que dormisse e o colocou sobre a cama que tinha sido dela quatro anos antes. Em seguida, foi para a sala de estar e fechou as cortinas, como se as pessoas já pudessem estar espiando. Pegou o telefone e discou o número do telefone público do mercado em Pine Ridge; o local administrado por Horace; o local de onde havia telefonado para Alex um mês e meio antes. - Cassie! - Horace disse, e no fundo ela pôde escutar o barulho do trabalho dos idosos lakota encurvados sobre barris de grãos. Escutou os gritos das crianças correndo até o balcão, pedindo pelos chicletes gratuitos. - Toníktuka hwo? Como você está? Pela primeira vez desde que pegara um táxi para sair da casa de Alex, Cassie deixou-se desanimar por um instante. - Já estive melhor - ela admitiu com a voz fraca. - Horace, preciso de um favor. UM POUCO DEPOIS DAS DEZESSEIS HORAS, quando Ophelia estava no parque com Connor, o telefone tocou. Cassie o atendeu com a mão trêmula. - Alô? - ela disse, um pouco mais alto do que pretendera, pensando no que faria se escutasse a voz de Alex. Mas escutou a voz de Will, hesitante e distante em uma ligação ruim, dizendo o nome dela. Ela se curvou, suspirando de alívio. - Cassie? - Will repetiu. - Estou aqui. - Fez uma pausa, tentando reunir as palavras.
- O que ele fez? Vou matá-lo. - Não - Cassie disse. - Não vai. Em Pine Ridge, com um adolescente empilhando sacos de grãos à sua esquerda, Will bateu o punho contra a parede. Sabia, mesmo sem ter sido informado, que Alex a agredira de novo. Ele havia percebido que o número de telefone que Horace havia lhe passado não era o de Cassie. Estava impotente, a centenas de quilómetros de distância, e esperou para saber o que ela queria, exatamente. Não se permitiu ter esperanças e não se permitiria fazer qualquer oferta, mas sabia que se ela pedisse ele a buscaria e a esconderia para sempre. - Estou me divorciando - Cassie disse. - Vou realizar uma coletiva de imprensa. Will encostou a testa no canto do telefone público. A imprensa de Hollywood a comeria viva quando ela destruísse Alex. - Esqueça isso - ele disse. - Venha comigo para Tacoma. - Não posso continuar fugindo. E não quero que você venha me salvar. Cassie suspirou. - Acho que está mais do que na hora de eu salvar a mim mesma. Mas, mesmo depois de dizer aquilo, seus ombros começaram a balançar e ela se afundou ainda mais entre as almofadas do sofá, como se não aguentasse mais ficar ereta. - Cassie, querida, por que ligou para mim? Estava soluçando tanto que não pensava que conseguiria falar. - Porque estou com medo - ela sussurrou. - Estou com muito medo. Will pensou em dizer que ela não estava sozinha; pensou em pegar um avião para Los Angeles e dirigir até onde ela estivesse e beijá-la até que seu medo desaparecesse e unisse seu corpo ao dele. Tentou imaginar como podia ser tão tolo de entregar seu coração a uma mulher que provavelmente amaria outro homem pelo resto de sua vida. Mas, em vez disso, manteve a voz firme e clara. - Cassie, tem um espelho por aí? Ela sorriu. - Ophelia tem três só no corredor. - Bem... fique em pé diante de um deles. Cassie fez uma careta. - Isso é bobagem. Preciso de mais do que um exercício dramático idiota. Mas obedeceu e parou diante de um espelho, analisando suas pálpebras inchadas, a mandíbula ferida. - E então? - Estou horrível - Cassie disse, esfregando os olhos e o nariz. - O que deveria estar vendo. - A pessoa mais corajosa que conheço - Will disse. Cassie aproximou o telefone da orelha, registrando a afirmação de Will. Lembrou-se de que, logo depois de se casar com Alex, ele telefonava para ela no escritório e, como adolescentes, eles conversavam durante horas a portas fechadas, discutindo como seria o futuro e falando sobre a sorte que haviam tido por terem se encontrado. Cassie olhou para seu rosto no espelho. - Nunca estive em Tacoma - ela disse e tentando sorrir, guardou as palavras de Will dentro de ssi e tirou delas a força dele.
- QUANDO AS AGRESSÕES TIVERAM INÍCIO? - Você sabia que ele era violento antes de se casar? Cassie deixou que as perguntas fossem feitas. Olhou para trás, para Ophelia e Connor, procurando apoio. - Você o ama? Não tinha de responder. Sabia disso. Mas queria. Se ia fazer o mundo ver Alex como um monstro, dependia dela também fazer com que o mundo o visse como um homem maravilhoso, gentil e carinhoso que a fizera se sentir completa. A melhor saída, ela pensou, seria fazer piada da pergunta, como se tivesse sido absurda. - Você pode perguntar isso a quase qualquer mulher deste país - Cassie disse delicadamente. E continuou: - Quem não o ama? Ela olhou para a frente, procurando pelas fileiras de jornalistas como se estivesse procurando por alguém em especial, até que viu o homem nos fundos. Não percebera a presença dele antes, mas não estava prestando atenção. Ele vestia um casaco de lã com a gola puxada para cima, algo bem quente para aquele dia. O rosto dele estava bem enterrado perto do peito, e os olhos estavam escondidos por óculos de sol modelo aviador. Alex olhou diretamente para Cassie e tirou os óculos. Colocou-os no bolso da frente do casaco. Cassie não desviou o olhar dele. Ele não estava bravo. Nem um pouco. Era como se compreendesse. Ela prendeu a respiração, procurando novamente para ver o que havia perdido, o que ele estava tentando lhe dizer. - Mais uma pergunta - ela disse, olhando fixamente para o ponto onde Alex estava. "Por que dessa maneira? Por que agora? Por que nós?" Ela apontou para um homem na fileira da frente na sala de conferência. - Se pudesse dizer qualquer coisa a ele neste momento - o jornalista perguntou -, sem medo de retaliação da parte dele, o que diria? Ela pensou ter visto lágrimas brilhando nos olhos de Alex, e ele ergueu a mão como se fosse tocá-la. "Não" Cassie pediu silenciosamente. "Se você fizer isso, posso aceitar." E dessa maneira, ele voltou a abaixar o braço, seus dedos passando pela lã grossa do casaco. - Eu diria o que ele sempre me dizia - Cassie sussurrou a ele. - Eu não tive a intenção de magoá-lo. Ela fechou os olhos para se recompor antes de dispensar as pessoas da imprensa que haviam se reunido a seu pedido. Quando os abriu novamente, ainda estava olhando para o ponto onde, segundos antes, Alex estivera, mas ele não estava mais lá. Ela balançou a cabeça como se quisesse limpá-la, e tentou imaginar se ele de fato estivera ali. Sem mais nada dizer, ela se virou para a plateia, cuidadosamente colocando a blusa para dentro da saia. Os jornalistas continuaram tirando fotos e fazendo gravações dela saindo da sala de conferências do hotel: pegando seu bebê, passando a alça da bolsa pelo ombro, caminhando adiante. Passou pelo salão de veludo vermelho com as pessoas começando a encará-la. Atravessando a porta giratória, ela saiu na calçada, puxando o ar com grandes inspirações.
Consegui, consegui, consegui. Os sapatos de Cassie pareciam ecoar essas palavras contra o concreto da calçada enquanto ela caminhava até o fim do quarteirão. Ela se movia com pressa, como se estivesse atrasada para um compromisso. O centro de Los Angeles era movimentado na hora do almoço. Parada na esquina, Cassie prendeu Connor ao peito enquanto passavam por homens de negócios, mensageiros com bicicletas e belas mulheres carregando sacolas de lojas. Não foi nada específico que fez com que ela olhasse para cima. Nenhum barulho, nenhuma luz forte, nenhuma inspiração. Mas, naquele momento, passando pelo calor e pela fumaça no céu, havia uma águia voando em círculos. Ela esperou que alguém apontasse para o céu e percebesse, mas as pessoas apenas passavam rapidamente, concentradas em suas vidas. Ela virou o rosto de Connor, para que ele também pudesse ver. Cassie protegeu os olhos da luz do sol, observando a ave voar a leste. Muito tempo depois de a águia ter desaparecido, ela olhou para o céu sem limite; e apesar de o fluxo de pessoas ter aumentado ao seu redor, ela não perdeu o equilíbrio.

 

 

                                                                  Jod Picoult

 

 

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