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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O GARANHÃO / Harold Robbins
O GARANHÃO / Harold Robbins

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Eu estava sentado na cama, tomando café quente, quando a enfermeira entrou no quarto. Era a inglesa de peitos grandes. Foi logo cuidar das cortinas da janela, abrindo-as para que entrasse mais luz. —  Bom dia, Sr. Perino — disse ela. —  Bom dia, irmã. —  Hoje é o grande dia, hein? — disse ela, com um sorriso. — É. —  O Dr. Hans não tarda a chegar. Senti então vontade de urinar. Botei os pés para fora da cama. Ela me tomou das mãos a xícara de café. Fui ao banheiro. Não tive o cuidado de fechar a porta. Ao fim de um mês, tudo o que era intimidade tinha-se acabado. O jato de urina irrompeu com força tranqüilizadora. Quando acabei, virei-me para a pia a fim de lavar as mãos. As bandagens brancas que me cobriam o rosto surgiram diante de mim no espelho. Qual seria minha cara por baixo delas? Isso eu iria saber dentro em breve. Ocorreu-me então uma idéia engraçada: se o traseiro me cocasse, iria eu passar as unhas pelo rosto? Quando voltei ao quarto, a enfermeira estava à minha espera com uma seringa pronta. —  Para que isso? —  Foi o Dr. Hans que mandou. Ele gosta dos pacientes bem calmos quando se tiram as bandagens. —  Estou calmo. —  Eu sei, mas vamos tomar a injeção, que assim se sentirá muito melhor. Passe para cá o braço, Ela era ótima. Quase não senti a picada. Levou-me depois para a cadeira perto da janela. — Agora, sente-se que eu vou ajeitá-lo direitinho.
Sentei-me e ela me enrolou nas pernas um cobertor leve e afofou um travesseiro sob minha cabeça. — Descanse um pouco agora — disse ela, encaminhandose para a porta. — Daqui a pouco, estaremos de volta. Fiz um sinal de assentimento e ela saiu. Olhei pela janela. O sol brilhava sobre a neve do verão no alto dos Alpes. Um homem passou, vestido com calções de tirolês. Um pensamento maluco me ocorreu. "Você sabe gritar como um tirolês, Ângelo?" "Claro que sim, Ângelo", respondi a mim mesmo. "Não é uma coisa que todos os italianos sabem fazer?" Adormeci.

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Tinha oito anos quando o conheci. Era em 1939 e num parquezinho aonde minha babá costumava levar-me. Eu estava pedalando no carro de corrida em miniatura que meu avô me havia dado como presente de aniversário. Tinha mandado fazêlo na Itália especialmente para mim. Com as correias de couro que passavam pelo capô e os faróis elétricos que funcionavam, era uma cópia exata da Bugatti modelo 59 que batera o recorde em 1936 em Brooklands, não faltando nem a insígnia oval da Bugatti no radiador. Eu estava pedalando com vontade pelo caminho quando os vi à minha frente. Era uma enfermeira alta que empurrava um homem numa cadeira de rodas. Diminuí a marcha e toquei a buzina. A enfermeira olhou um instante para trás e levou a cadeira um pouco para a direita do caminho. Virei para a esquerda e comecei a ultrapassá-la, mas aí apareceu uma subida e, por mais que eu pedalasse, só consegui ficar emparelhado com eles. Foi o homem da cadeira de rodas quem falou primeiro. —  É uma boa máquina a sua, meu filho. Olhei para ele, pedalando ainda tanto quanto podia. Tinham-me recomendado que não falasse com estranhos, mas aquele ali parecia direito. —  Não é máquina — disse eu. — É uma Bugatti. —  Estou vendo. —  O carro mais ligeiro numa estrada — disse eu. —  Mas não tem aceleração. Eu ainda pedalava com toda a minha força, mas já começava a ficar sem fôlego.
—  Estamos numa ladeira. —  É isso mesmo que eu quero dizer — murmurou o homem. — Esses carros são muito bons em terreno plano, mas, logo que pegam uma ladeirinha, não têm nada de reserva. Não disse nada. Tinha de poupar as forças para continuar a pedalar. —  Há um banco logo ali em frente — disse o homem. — Saia da estrada que eu quero ver sua máquina. Quem sabe se não poderemos dar um jeito? Fiz com satisfação o que ele disse, pois já estava que não agüentava mais. Consegui parar junto ao banco antes dele. A enfermeira virou de lado a cadeira de rodas e eu saí do carro. Gianno, que sempre nos acompanhava quando a babá e eu íamos ao parque, apareceu correndo. —  Tudo bem, Ângelo?  Fiz um sinal afirmativo. Gianno olhou para o homem da cadeira de rodas. Não se falaram, mas parece que houve alguma espécie de comunicação entre eles, e Gianno sorriu, ao mesmo tempo que murmurava: —  Está bem. O homem se debruçou da cadeira de rodas e olhou para o carro. Estendeu a mão e levantou o assento, deixando à mostra a engrenagem e a corrente. —  Quer olhar embaixo do capô? — perguntei. —  Não é preciso — disse ele, deixando o assento voltar ao seu lugar. — O senhor é mecânico? — perguntei.  Havia uma expressão de espanto no rosto dele quando olhou para mim. —  Acho que pode chamar-me disso, sim. É pelo menos o  que eu era. —  Pode dar um jeito? A enfermeira entregou-lhe então um caderno simples de capa de papelão, muito parecido com o que eu levava para a escola. Tirou uma caneta do bolso e começou a desenhar rapidamente, olhando para a Bugatti. Dei a volta em torno da cadeira e olhei para o caderno. Parecia uma estranha combinação de rodas, correntes e linhas. —  Que é isso? — perguntei. —  Mudanças variáveis — disse ele e, vendo pela expressão vazia de meu rosto que eu não havia compreendido, acrescentou: — Não tem importância. Você vai ver que dá resultado.
Terminou o desenho e entregou o caderno de novo à enfermeira. —  Como é seu nome? —  Ângelo. —  Muito bem, Ângelo. Se se encontrar comigo aqui depois de amanhã mais ou menos a esta hora, vai ter uma surpresa. Olhei para Gianno, que fez em silêncio um gesto de assentimento. —  Está muito bem — disse eu. —  Ótimo — disse ele e voltou-se para a enfermeira. — Vamos para casa, Srta. Hamilton, que temos o que fazer.
 
Cheguei cedo. Ele também. Sorriu quando me viu. —  Bom dia, Ângelo. —  Bom dia, senhor. Bom dia, Srta. Hamilton. —  Bom dia — disse ela, fungando, e eu tive a impressão de que não gostava de mim. Voltei-me para ele. —  Não disse que tinha uma surpresa para mim? —  Paciência, meu jovem. Já está chegando. Segui a direção do olhar dele. Dois homens de macacão branco vinham carregando pelo caminho uma grande caixa de madeira, seguidos por outro homem com uma caixa de ferramentas. —  Aqui — disse meu amigo da cadeira de rodas. A grande caixa foi depositada à frente dele. — Tudo pronto? — perguntou ao homem da caixa de ferramentas. —  De acordo com suas ordens — respondeu o homem. — Tomei apenas a liberdade de dar uma folga de dez milímetros para a colocação do eixo, se houver necessidade de fazer reajustamentos. Meu amigo riu. —  Ainda não confia em meu olho, não é, Duncan? — É melhor não facilitar, Sr. Hardeman — respondeu Duncan. — Onde está o carro com o qual temos de trabalhar? —  Aqui — disse eu, empurrando-o para diante deles.  Duncan olhou-o e disse: —  É um bonito automóvel. —  É uma Bugatti — disse eu. — Meu avô mandou fazêla especialmente para mim na Itália. —  Os italianos são muito bons em matéria de carroçaria — disse Duncan. — Mas não entendem nada de engenharia. — Disse então aos outros dois homens: — Está bem, rapazes. Vamos trabalhar. Pela primeira vez, vi as letras nas costas dos macacões: "BETHLEHEM MOTORS". Trabalharam rapidamente com prática e eficiência. Dois parafusos foram tirados e soltaram os lados e a parte de cima da caixa da sua parte inferior, que então se tornou um banco de trabalho em cima do qual colocaram meu carro. Os dois mecânicos entraram em ação. Olhei então para o chão, onde a caixa aberta revelava um quadro retangular de aço cheio de engrenagens, correntes e rodas. — Que é isso? — perguntei. — Um novo chassi — respondeu meu amigo. — Era muito mais simples fazer o chassi na oficina com tudo incluído do que desmontar o seu carro. Fiquei calado. Já então, os homens tinham levantado a carroçaria de meu carro de seu chassi e começavam a trabalhar nas rodas. Poucos minutos depois, estavam com o novo chassi no banco e montavam nele minhas rodas e em menos de dez minutos tinham a carroçaria da Bugatti montada no novo chassi. Afastaram-se em seguida. Duncan se aproximou e olhou para dentro. Fez ajustamentos, mexendo numa coisa e noutra. Pouco depois, afastouse também. —  Parece que está em ordem, Sr. Hardeman.  Meu amigo riu. —  Precisou dos dez milímetros? —  Não, senhor — disse Duncan, fazendo sinal aos dois homens que pegaram o carro e o puseram no chão. Olhei-o e olhei então para meu amigo. —  Pronto, Ângelo. Pode embarcar. Entrei no carro, enquanto ele movimentava a cadeira para ficar ao meu lado. —  Há algumas coisas novas que lhe quero mostrar antes que você comece a andar — disse ele. — Está vendo essa alavanca de mudança aí perto de sua mão direita? —  Estou, sim. —  Bote a mão nela. Move-se para a frente e para trás e, quando está no centro, pode mover-se para o lado e de novo para a frente. Experimente. Movi-a para a frente e para trás, depois para o centro e de lado para a frente. Olhei para a cadeira de rodas. Alguma coisa do que ele tinha feito começou de repente a ter sentido para mim. Ele viu isso nos meus olhos e perguntou: —  Sabe para que serve isso, Ângelo? —  Sei, sim. Primeira, segunda e marcha à ré. —  Muito bem. Mas fiz outra coisa ainda. Coloquei freios de contrapedal nas suas rodas traseiras. Para diminuir a marcha ou parar, basta mover os pedais em sentido contrário, como se faz numa bicicleta. Entendeu? Fiz um sinal afirmativo. —  Está bem — disse ele, — Experimente, mas tenha cuidado. O carro está agora bem mais rápido do que era. Desci cautelosamente a ladeirinha, sentindo o jeito do carro e experimentando os freios. De cada vez que afrouxava os freios, o carro ia um pouco mais depressa e eu então aplicava os freios de novo e reduzia a marcha. No fim da ladeira, virei o carro, dando marcha à ré e indo em frente. Subi a ladeira quase com a mesma facilidade com que a havia descido. Parei diante deles. —  Está formidável! Saltei do carro e fui até onde estava meu amigo, estendendo-lhe a mão. —  Muito, muito obrigado.  Ele me apertou a mão e sorriu. — Não há de quê,   Ângelo.   Mas tenha muita cuidado. Você agora está com um carro muito ligeiro. —  Está certo — disse eu. — Quando crescer, vou dirigir carros de corrida. Os homens estavam tratando de guardar tudo dentro da caixa. Saíram pelo caminho do parque e Duncan se aproximou de nós. Estendeu uma folha de papel para meu amigo. —  Desculpe, mas vou precisar de sua assinatura nisto.  Meu amigo tomou o papel e perguntou: —  Que quer dizer isto? —  É um novo sistema que L. H. II introduziu. É uma ordem de trabalho. Pediu-me também que lhe perguntasse qual o departamento pelo qual deve correr. Meu amigo riu quase como eu deveria rir. —  Carros experimentais.  Duncan riu. —  Está bem, Sr. Hardeman. Meu amigo assinou o papel e Duncan já ia saindo quando eu o chamei.
— Muito obrigado, Sr. Duncan. Ele me olhou de cara fechada e disse: —_Não há de quê, garoto. Mas não se esqueça de que poderá estar dirigindo uma Bugatti, mas com máquina da Bethlehem Motors, graças ao Sr. Hardeman. — Não me esquecerei — disse eu. Vi-o apressar-se pelo caminho do parque a fim de juntar-se aos outros homens, e então voltei-me para meu amigo. — Seu nome é Hardeman? Ele fez um sinal afirmativo. —  O senhor é formidável. —  Há muita gente que não pensa assim. —  Eu, por mim, nem ligava a essa gente, sabe? Muitas pessoas não gostam de meu avô, mas ele é um sujeito bom e eu gosto dele. Ele ficou calado. A voz da enfermeira fez-se ouvir atrás de mim. —  Já está na hora de irmos, Sr. Hardeman. —  Um momento, Srta. Hamilton — disse ele. — Quantos anos tem você, Ângelo? —  Oito. —  Tenho um neto apenas dois anos mais velho do que você. Tem dez anos. —  Talvez eu possa brincar um dia com ele. Posso deixar que ele dirija meu carro. —  Acho um pouco difícil — disse o Sr. Hardeman. — Ele está fora, na escola. Ouvi de novo a voz da enfermeira. —  Já está ficando tarde, Sr. Hardeman.  Ele fez uma careta. —  Elas todas são sempre assim, Sr. Hardeman — disse eu. — Minha babá está sempre brigando por isto ou por aquilo. —  É isso mesmo. — Já me disseram em casa que no ano que vem não vou ter mais babá Por que é que o senhor precisa de uma enfermeira? —  Não posso caminhar. Preciso de alguém que me ajude. —  Sofreu algum acidente? —  Não — disse ele sacudindo a cabeça. — Foi doença. —  Quando é que vai melhorar? —  Nunca mais vou poder caminhar. Fiquei em silêncio por um momento. —  Como é que sabe? Meu pai diz que milagres acontecem todos os dias. E ele deve saber porque é médico. Quem sabe se ele não pode ver o senhor? É um médico muito bom. —  Não   tenho dúvida   disso, Ângelo — disse delicadamente o Sr. Hardeman. — Mas já fiz todos os tratamentos possíveis. Além disso, vou para a Flórida no fim da semana e ficarei por lá durante muito tempo. — Estendeu-me a mão. — Adeus, Ângelo. Apertei a mão dele, sem querer mais largá-la. Todas as pessoas de quem eu gostava tinham de ir-se embora. Primeiro, vovô e, agora, o Sr. Hardeman. —  Quando voltar, a gente vai se ver de novo? Ele fez um sinal afirmativo. Ainda segurando a mão dele, eu disse: —  Estarei no parque todos os domingos a esta hora e vou ficar esperando. — No primeiro domingo depois que eu voltar, virei até aqui. —  Está prometido, hein? — disse eu, largando a mão dele. Fiquei vendo a enfermeira empurrá-lo pelo caminho do parque até desaparecerem de vista. Só quase vinte anos depois, vim a saber do trabalho que L. H. I tivera para me proporcionar aquela surpresa. Eu estava no escritório de Duncan, no Departamento de Engenharia de Projetos, colhendo informações sobre o novo carro que ia testar no dia seguinte, quando de repente o velho engenheiro se voltou para mim. —  Lembra-se daquela Bugatti que o velho L. H. I mandou ajeitar para você quando você era garotinho? —  Acha que posso me esquecer? — perguntei. E era verdade. Daquele momento em diante, só os automóveis existiram para mim. Nada mais teve uma chance. —  Já pensou algum dia em quanto custou aquilo? —  Palavra que não. —  Ainda tenho a ordem de trabalho que ele assinou naquela época. Guardo-a como lembrança. — Abriu a gaveta do centro da mesa, tirou o papel e me entregou. — Sabe que ele mandou parar todo o pessoal de Engenharia de Projetos e de Fabricação durante vinte e quatro horas para trabalhar em seu carro? —  Não sabia — disse eu. Olhei para o papel em minha mão. Dizia: "Chassi experimental". E mais:   "Encomendado por L.H.I. Preço:  US$ 11.347,51".
 
Senti um leve toque no ombro e abri os olhos. Era a enfermeira inglesa. — O Dr. Hans está aqui. Virei-me na cadeira. O homem ali estava com os óculos rebrilhantes e, como de costume, seus seis ajudantes vinham atrás dele. —  Bom dia, Sr. Perino — disse ele. — Como se sente hoje? Alguma dor? —  Não, doutor. Só dói quando eu rio. Ele não quis sorrir. Fez um gesto para a enfermeira e ela empurrou uma mesa em que havia vários instrumentos cintilantes de aço. —  Vamos ver agora que tal saiu o trabalho — disse ele com sua voz habitualmente baixa. Olhei, fascinado, para a mesa. Sentia-me quase hipnotizado pelos instrumentos cintilantes. Vi-o pegar uma cureta de lâmina curta. Era a hora. Quantos homens em sua vida têm a chance de conseguir um rosto novo?
 
Capítulo 2
Tudo começou em maio, depois das Quinhentas Milhas de Indianápolis. Meu carro se incendiou na quadragésima segunda volta. Não precisei ver o olhar do fiscal da pista para saber que não havia mais jeito. Saí do autódromo sem esperar sequer pelo fim da corrida. Só depois de abrir a porta de meu quarto no motel foi que me lembrei de que tinha deixado Cindy no autódromo. Tinhame esquecido por completo dela. Abri a pequena geladeira, tirei um pouco de gelo e derramei sobre ele uma dose de uísque canadense. Tomando o uísque em pequenos goles, fui até o banheiro e abri a água quente na banheira. Voltei depois para o quarto e liguei o rádio. Rodei o botão à procura da estação que estivesse irradiando a corrida. A televisão estava proibida de transmitir a corrida num raio de oitenta quilômetros. Ouvi a voz do locutor: "Andretti em primeiro e Gurney em segundo na volta 84. Uma verdadeira luta de gigantes. . ." Desliguei. Tinha sido assim desde o início da corrida. Acabei o uísque, deixei o copo em cima da geladeira e voltei ao banheiro. Abri a água fria e coloquei na tomada a bomba portátil, vendo as nuvens de fumaça se elevarem da água revolvida pela bomba enquanto me despia. O banheiro estava cheio de fumaça quando entrei na água. Recostei a cabeça na banheira e deixei a água quente batida pela bomba lavar-me os ossos machucados e as dores. Enchi-me de coragem e fechei os olhos. Aconteceu mais uma vez. Aquilo sucedia sempre que eu fechava os olhos, há cinco anos. Vi as primeiras línguas de fogo subirem do motor contra o pára-brisa. Fiz a curva em luta com o volante. O muro alto apareceu à minha frente e fomos chocar-nos com ele à velocidade de duzentos e vinte quilômetros por hora. O animal subiu com o nariz para cima e ficou ali suspenso por um momento enquanto eu olhava para as arquibancadas apinhadas de gente que gritava. Depois, as labaredas cresceram e subimos o muro com elas. Chegou-me ao nariz o cheiro adocicado e enjoativo de minha carne queimada e dos cabelos chamuscados. Ouvi meus gritos ao longe. Abri os olhos e tudo desapareceu. Vi-me de novo na banheira com a bomba a entoar sua cantiga repousante. Tornei a fechar lentamente os olhos. Não houve nada dessa vez. Flutuei na água. O telefone começou a tocar. Os motéis modernos têm tudo. Estendi a mão por cima do vaso e peguei o telefone na parede. —  Sr.  Perino?   — perguntou  com   sua  voz  cantante  a telefonista do interurbano. —  Ele mesmo. —  O Sr. Loren Hardeman quer falar. Um momento.  Ouvi um estalo e a voz dele apareceu. —  Você está bem, Ângelo? — perguntou ele, com sincera ansiedade na voz. —  Estou bem, Número 1. E você?
— Muito bem — disse ele, rindo. — Sinto-me como um garoto de oitenta e cinco anos. Ri. Ele tinha completado noventa e um em seu ultimo aniversário. — Que diabo de barulho é esse?  Parece ate que você está descendo a catarata do Niágara dentro de uma barrica. Quase não estou ouvindo o que você diz. Estendi a mão e desliguei a bomba. O ronco se extinguiu. —  Está melhor assim? —  Muito melhor. Eu estava assistindo à corrida pela televisão e vi você sair da pista. Que foi que houve? —  As válvulas pegaram fogo.  — Para onde vai agora? — Não sei ainda. Só estou comprometido de verdade é com Watkins Glen. Mas isso é só no outono. — Ouvi a porta da rua se abrir e os passos de Cindy se encaminharem para o banheiro. Levantei os olhos e vi-a à porta. — Pensei em ir para a Europa e tentar alguma coisa lá.. Não havia expressão alguma no rosto de Cindy. Virou-se e foi para a sala. —  Não faça uma coisa dessas, Ângelo. Não vale a pena. Você vai acabar se matando. Ouvi a porta da geladeira ser batida e o tilintar do gelo nos copos. Ela voltou com dois uísques canadenses com gelo. Peguei um dos copos e ela baixou a tampa do vaso e sentou-se. Tomou um gole de uísque. —  Não vou me matar, Número 1. — Desista agora e abandone essa vida. Você não tem mais a velha disposição. —  Estou apenas atravessando uma fase de pouca sorte. — Não me venha com essa conversa. Vi tudo pela televisão. Ainda me lembro do tempo em que você não dava vantagem numa volta nem a Deus. Naquela última volta antes de você sair da pista, a distância era tão grande que dava para a passagem de um exército. Fiquei calado e tomei um gole de uísque. —  Escute — disse ele com voz mais branda.—, as coisas não são tão ruins assim. Você teve alguns anos muito bons. Em 1963, você estava em segundo lugar no automobilismo mundial. Poderia passar para o primeiro lugar em  1964  se não tivesse subido aquele muro em Sebring e não tivesse de ficar um ano de molho.
Eu sabia de que era que ele estava falando e ainda tinha meus pesadelos como prova. —  Creio que cinco anos são tempo de sobra para você se convencer de que não é mais o que era. —  E que acha que eu devo fazer? Vou ser cronista esportivo por acaso? Uma nota de aspereza apareceu na voz dele. —  Veja lá com quem está falando, ouviu? O mal com você é que não chegou a crescer. Eu nunca devia ter mexido naquele seu automovelzinho de brinquedo. Você nunca mais parou de brincar com ele. —  Desculpe. Eu não tinha o direito de passar para ele a frustração que sentia. —  Estou em Palm Beach, Ângelo. Quero que venha passar uns dias comigo. —  Para quê? —  Não sei. . . — Pelo modo como falou, entre dentes, percebi que estava mentindo. Ou talvez não fosse propriamente entre dentes. — Podemos conversar. . . Pensei por um momento e respondi: —  Está bem. —  Ótimo! Vem sozinho? Tenho de saber para dar ordens à governanta. Olhei para Cindy e respondi: —  Ainda não sei.  Ele riu. —  Se for bonita, pode trazer. Já estou cansado de ver tanta areia e tanto mar. Desligou e Cindy tomou o telefone de minha mão e colocou-o no seu lugar na parede. Levantei-me e ela me entregou uma toalha. Pegou o meu uísque e levou-o para o quarto. Enxuguei-me e, prendendo a toalha em torno da cintura, segui-a. Meu copo estava em cima da mesa e ela estava abaixada no chão mexendo com o seu gravador de quatro altofalantes. Tomei outro gole de uísque e observei-a. Ela estava guardando os pequenos carretéis de fitas em caixas, que marcava. Era fanática por barulhos de automóvel. Havia alguma coisa no ronco de um motor que a alucinava. Algumas garotas gostam de vibradores elétricos; aquela só precisava era de barulho. Bastava levá-la num carro, acelerar o motor e acariciá-la, que ela virava um doce. —  Conseguiu algum som legal? — perguntei.
— Alguma coisa, sim — disse ela sem olhar para mim. __Está tudo acabado? — Por quê? Só porque me esqueci de apanhar você? Ela se voltou e disse sem qualquer inflexão na voz: —_Não é isso que eu estou perguntando. Fearless me disse que todo mundo na pista está certo de que você vai desistir. Fearless Peerless era um dos corredores na turma de J. C. Corria principalmente nas pistas de terra à espera de uma oportunidade de subir para a primeira turma. Tentei disfarçar a ponta de ciúme em minha voz. — Foi Fearless quem trouxe você para casa? — Foi. — Você está de olho nele? — Ele é que está de olho em mim. Era um fato. Fearless não era o único e eu sabia disso. Cindy era fora de série. Senti um calor no meio do corpo. —  Ligue o gravador. Ela me encarou por um momento e então, sem nada dizer, colocou o gravador numa mesinha aos pés da cama. Instalou habilmente os quatro alto-falantes, dois de cada lado da cama. Em seguida, ligou tudo na tomada e olhou para mim. —  Bote o carretel grande, que você gravou em Daytona no ano passado. Ela tirou o carretel da caixa e ajustou-o no gravador. Depois, tornou a olhar para mim. Já então a toalha que me cobria estava levantada como se fosse uma tenda.           
Tire a roupa. Ela se despiu e estendeu-se na cama, com os olhos voltados para mim. Não dissera ainda uma só palavra. Estendi a mão e liguei o gravador. Houve alguns chiados e então começaram a se ouvir os murmúrios do público. De repente, houve uma explosão de som e os motores roncaram. A corrida tinha começado. Fui para a cama e olhei-a. Os lábios estavam entreabertos e ela quase não parecia respirar enquanto a ponta rosada da língua aparecia entre os dentes brancos. Era toda mel e ouro, salvo na estreita faixa branca em torno dos pequenos seios túrgidos e no triângulo dos quadris e das pernas. O rosa-coral dos bicos dos seios desabrochava para mim e a doce pelúcia entre as pernas começava a rebrilhar em minúsculos brilhantes.
Movi o corpo na cama e coloquei os pés sob suas axilas até que os ombros descansassem neles. Tirei então a toalha. A rijeza me bateu na barriga. Fiquei ali sobre o rosto dela e Cindy me olhava. Não me movi. De repente, ela gemeu, estendeu a mão e segurou meu pênis: Colocou-o na boca, com ruídos que lhe vinham do fundo da garganta. Fiquei de joelhos sobre o rosto dela, movendome com o mesmo ritmo de seus quadris atrás de mim. Senti-lhe a língua a explorar-me os recantos secretos do corpo ao mesmo tempo que me pegava a cabeça para colocarme em posição, como se fosse uma alavanca de mudança. —  Deixe-me ficar por cima de você — disse ela, num sussurro abafado. Rolei para o lado e deitei-me de costas. Ainda a segurar- me. ela subiu sobre mim e, por fim, deixou-se cair lentamente. Era como se eu estivesse mergulhando num caldeirão de azeite a ferver. Ela gemia, balançando-se em movimentos lentos para a frente e para trás. O barulho dos motores começou a correr de um altofalante para outro em torno da cama, enchendo o quarto d uma violência explosiva de barulho, que fazia mover-se e chegar a paroxismos em cada volta pela pista. Sentia gotejar-me pelo corpo o combustível de sua excitação. Começou a dar gritos que eram também gemidos no delírio de sua paixão. Sacudia desvairadamente a cabeça de um lado para outro, espalhando os longos cabelos às costas como um grande leque. Começou a atacar-me cada vez mais impetuosamente e eu procurava corresponder-lhe à fúria. —  Tão bom — murmurou ela. — Tão bom. Abri os braços por trás dela. Quando ela desceu sobre mim, dei-lhes duas palmadas bem fortes, uma de cada lado. Ela tornou a levantar o corpo e a descer. Repeti as palmadas e continuei a fazer isso no ritmo de seus movimentos. Começou a subir pelas paredes e seus gemidos se tornaram gritos de dor e de êxtase. O ronco dos motores quando se precipitavam para a linha de chegada cresceu, quase afogando a voz dela. De repente, Carl Yarborough atravessou a linha de chegada no seu Merc 68 numa velocidade de duzentos e trinta quilômetros por hora e ela conseguiu o seu orgasmo final, inundando-me com os seus fluidos. Ficou ainda equilibrada na mesma posição por um momento, com os olhos vidrados e distantes, depois do que se afastou vagarosamente de mim. Descansou quietamente. A respiração se normalizou lentamente e ela abriu os olhos, voltando-se para mim. — Foi formidável — disse ela num sussurro. Limitei-me a olhar para ela. Ela pousou a mão no meu pênis e arregalou os olhos de surpresa, começando a acariciar-me delicadamente. — Ainda está firme! — murmurou ela. — Você é fantástico! Continuei calado. Não adiantava dizer-lhe que eu não havia chegado ao fim. Ela se inclinou, beijou-me e tomou-me na boca. Ao fim de algum tempo, levantou a cabeça e disse: —  Você está todo coberto de mim. Beijou meu pênis e, depois, encostando-se ao meu rosto, disse com voz enternecida: —  Onde é que vou encontrar outro homem que se compare a você? Peguei-a pelos cabelos e a fiz olhar para mim. — Você vai ficar com Fearless? — Responda primeiro à minha pergunta — disse ela. — Vai abandonar as corridas? Não hesitei. —  Vou, sim. Ela hesitou. Pelo menos isso posso dizer em favor dela. —  Vou então ficar com Fearless.  E acabou. Desse jeito.
 
Capítulo 3
O calor úmido no aeroporto de West Palm Beach me entrou pela camisa quando cheguei ao balcão da Hertz, a companhia que alugava carros. Tirei meu cartão de crédito e coloquei-o diante da mocinha.
Ela olhou para o cartão antes de olhar para mim, e sua expressão mudou no mesmo instante. — É mesmo Ângelo Perino? — perguntou, cheia de respeito. Fiz um sinal afirmativo. —  Eu o vi pela televisão outro dia. Senti muito que seu carro tivesse pegado fogo. —  São coisas que acontecem, minha filha, —  Eu ainda era garotinha quando meu pai me levou com meu irmão a Sebring daquela vez em que o senhor subiu pelo muro. Chorei muito e passei a semana toda rezando até saber que estava salvo. Tinha um jeito todo americano. —  Que idade tem você, menina? —  Dezesseis anos. Tornei a olhá-la. Era bronzeada pela terra das laranjas e do sol e passava da idade legal. —  Quer dizer que eu lhe devo alguma coisa por essas orações. Quem sabe se não podemos jantar juntos? —  Tenho um encontro marcado para esta noite — disse ela. — Mas posso desmarcar. —  Não, nada disso. Não quero atrapalhar seus planos. Vamos deixar para amanhã à noite. —  Certo — disse ela. Escreveu alguma coisa num pedaço de papel, que me entregou. — Meu nome e meu telefone. Estou aqui até as cinco horas e lá depois das cinco. Olhei para o papel. Podia ter adivinhado. Até o nome dela era da terra do sol e das laranjas. —  Está muito bem, Melissa. Vou lhe telefonar amanhã. Como é? Posso ver um carro? —  Temos um Mustang Shelby GT e um Mach One. —  Não vou correr — disse eu, rindo. — Você tem alguma coisa com a capota arriada? Quero receber o sol na cara. Ela consultou sua lista. —  Serve um LTD conversível? —  Ótimo. Ela começou a preencher o formulário. —  Onde vai se hospedar? —  Na casa de Hardeman. —  Por quanto tempo vai precisar do carro? —  Durante alguns dias. Não sei ao certo. —  Não  vou  marcar  prazo  então.  — Olhou   para  mim toda confusa. —_ Posso ver sua carteira de motorista? É só para anotar no formulário. Ri e entreguei-lhe a carteira. Ela anotou o numero e devolveu-a. Pegou o telefone ao lado e disse:                — LTD conversível, Jack. Capriche, veja lá. É para uma pessoa muito importante. — Desligou e me disse: — Dez minutos só, sim? — Não há pressa, Melissa. Outro freguês apareceu. Fui até o passeio e acendi um cigarro. Tirei o paletó e joguei-o dobrado no braço. Estava bem quente.   Voltei-me e olhei para a garota. Gostava do jeito dela, do modo como os seios apontavam no uniforme justo. Havia mais coisas para ver ali do que o velho pensava. O mal era que ele não saía de casa para ir olhar onde devia. Afinal de contas, na Hertz não se aluga apenas um carro. Aluga-se toda uma companhia. Pelo menos é o que dizem os anúncios.
 
Parei diante do portão eletrificado e apertei o botão do sinal. Enquanto esperava a resposta, li o cartaz no portão:
 
" PROPRIEDADE PARTICULAR PROIBIDA A ENTRADA PERIGO! CACHORROS SOLTOS! OS SOBREVIVENTES SERÃO PROCESSADOS!"
 
Ri. Aquilo não me parecia nada convincente. Mas bem depressa mudei de idéia. Quando acabei de ler o cartaz, vi os gigantescos pastores belgas do lado de dentro do portão, abanando o rabo enganosamente para mim. Ouvi a voz que vinha do alto-falante ao lado do botão. —  Quem é? —  Ângelo Perino. Houve um momento de pausa. — Está sendo esperado, Sr. Perino. Passe com o carro pelo portão. Não saia do carro para fechá-lo, pois ele se abre e fecha automaticamente. Torno a dizer, não saia do carro até chegar a frente da casa e não deixe o braço pendurado para fora da porta do carro. A voz se calou e o portão começou a se abrir. Os cachorros recuaram um pouco esperando por mim. Entrei com o carro devagar e eles se afastaram, deixando-me passar. Depois, começaram a correr  ao  lado  do carro enquanto  eu  subia a alameda. De vez em quando, eu olhava para eles e eles olhavam para mim. Continuei a dirigir. Dobrei uma curva e ali, escondida entre as árvores, estava a frente da casa. Um homem e uma mulher me esperavam nos degraus da entrada. Parei o carro. O homem levou à boca um apito sônico e tocou-o. Não ouvi nada, mas os cachorros ouviram. Ficaram parados e me olharam enquanto eu saltava do carro. —  Por favor, Sr. Perino, fique aí um momento e deixe que eles o cheirem — disse o homem. — Depois disso, eles o reconhecerão e não lhe darão mais trabalho. Fiquei parado enquanto ele tocava de novo o apito sônico. Os cachorros vieram correndo para mim, balançando o: rabo. Cheiraram-me os sapatos e depois as mãos. Um momento depois, deixaram-me e foram para o carro. Em menos de um minuto, urinaram nos quatro pneus e saíram correndo muito contentes. O homem se aproximou de mim. —  Sou Donald. Vou pegar suas malas. —  Há uma apenas. No banco de trás.                     A mulher sorriu para mim. Parecia ter cinqüenta anos. Os cabelos meio grisalhos estavam severamente penteados para trás e a maquilagem era muito pouca. Usava um vestido preto muito simples. —  Sou a Sra. Craddock, secretária do Sr. Hardeman — disse ela. —  Muito prazer. —  O Sr. Hardeman pede desculpas por não ter vindo recebê-lo. É que está na hora da sesta dele. Pergunta se o senhor quer tomar um drinque com ele às cinco horas, na biblioteca. O jantar será servido às seis e meia. É cedo assim porque o Sr. Hardeman sempre vai se deitar às nove horas. —  Para mim, está bem. —  Donald irá levá-lo até seu quarto — disse ela, entrando comigo na casa. — Poderá descansar. Se quiser nadar um pouco, há uma piscina do lado do mar e um verdadeiro sortimento de calções de banho nas cabanas. — Muito obrigado. Mas acho que vou seguir o exemplo do Número 1. Estou um pouquinho cansado. Segui Donald pelas escadas acima até meu quarto. Fui ao banheiro para lavar o rosto e, quando saí de lá, minha mala tinha sido aberta e tudo arrumado no armário, a cama estava com a colcha levantada, as cortinas estavam corridas e um pijama meu estava estendido em cima da cama. Aceitei a sugestão e tirei a roupa. Dez minutos depois, estava dormindo.
 
Ele estava esperando na biblioteca quando desci as escadas. Estendeu-me a mão. —  Ângelo! Apertamo-nos as mãos. A mão dele estava bem firme. —  Número 1! Ele sorriu e na sua voz havia um tom de censura. — Não sei se gosto mesmo de você me chamar assim. Parece até que sou um velho chefe da Máfia. — Não é nada disso — disse eu, rindo. — Se metade das histórias que ouvi contar de meu avô são verdadeiras, ele era um chefe da Máfia e eu nunca ouvi ninguém chamá-lo de Número 1. —  Vamos para a janela que eu quero olhar bem para você. Segui a cadeira de rodas dele até a grande porta envidraçada que dava para o terraço sobre o mar e voltei-me para ele. Olhou-me demoradamente o rosto. —  Vamos dizer a verdade. Você não está nada bonito. — — Nunca disse que estava. — Vamos ter que dar um jeito nessas marcas de queimaduras se você vai trabalhar comigo, Não quero você por aí assustando as crianças. —  Espere um pouco, Número  1. Quem foi que disse que eu ia trabalhar para o senhor? Ele me olhou apertando os olhos. — Você está aqui, não está? Ou acha que só o convidei para passar uns tempos?  Não respondi. —  Estou muito velho. Tenho meus planos e o tempo que me sobra é muito pouco. — Dirigiu a cadeira de novo para dentro da sala. — Prepare um drinque para você e sente-se, senão vou acabar com torcicolo de tanto olhar para cima. Fui até o bufê e me servi de um Crown Royal com gelo. Ele me olhou ansiosamente enquanto eu me sentava e provava o uísque.
—  Diabo! — exclamou. :— Bem que eu gostaria de ter um também. — Deu um riso breve. — Ainda me lembro do dia, em 1903 ou 1904, em que Charlie Sorensen tinha acabado de me dar um emprego na Companhia Ford para trabalhar no modelo K e o Sr. Ford chegou perto de mim porque ele fazia questão naquela época de conversar pessoalmente com cada empregado novo. "Você fuma?", perguntou ele. "Fumo" respondi.   "Você bebe?"   "Bebo."  O  Sr.  Ford  ficou calado então, olhando para mim. Comecei a me sentir desconcertado e achei que tinha que dizer alguma coisa. "Mas não ando com mulheres, Sr. Ford", balbuciei. "Sou casado." "Ele me olhou por um momento e então me deu as costas e saiu sem dizer mais uma palavra. Dez minutos depois, Charlie apareceu e me despediu. Tinha me empregado naquela manhã. "Acho que ele olhou para minha cara e teve pena. Eu estava atordoado. Com a mulher e um filho a caminho, não era para menos. '"Vá procurar os irmãos Dodge e diga que fui eu que mandei. Eles lhe darão emprego. Já ia saindo quando se voltou para mim e disse: 'Compreenda, Hardeman. O Sr. Ford não tem vícios. Nenhum mesmo'. "Mas ele estava errado. Ford tinha um vício imperdoável. Era intolerante." Tomei outro gole de meu uísque e não disse nada. —  Quero que você venha trabalhar comigo, Ângelo! —  Para fazer o quê? Não sentiria mais o menor prazer testando carros. —  Não falei nada disso. Tenho outros planos, grandes planos! — A voz dele baixou até ser apenas um murmúrio confidencial. — Quero fazer um novo carro! Creio que abri a boca de espanto. —  Vai fazer o quê? —  Ouviu muito bem o que eu disse! Um novo carro. Todo novo de alto a baixo. Diferente de tudo o que já se fez! —  Já falou com alguém sobre isso? L. H. III já sabe? —  Não tenho de falar com ninguém quando quero fazer as coisas! Possuo oitenta por cento das ações da companhia. — Chegou a cadeira para mais perto de mim. — E muito menos tenho de falar com meu neto! —  E o que quer que eu faça? —  Tirar-me desta maldita cadeira! Espero que você seja minhas pernas!
 
Capítulo 4
Estava falando ainda quando fomos jantar. Sentamo-nos a uma pequena mesa e a refeição foi muito simples. Salada, costeletas de carneiro, verduras, vinho para mim e um copo de leite para ele. O vinho era bom, um Mouton Rothschild de 1951. E o leite também. Walker Gordon integral. —  O prazo que temos é a Exposição de Automóveis de Nova York na primavera de 1972. Temos, pois, três anos para trabalhar. Olhei para ele e ele riu. —  Sei o que está pensando. Tenho noventa e um anos. Mas não se preocupe. Vou viver até os cem. —  Não vai ser fácil. —  Nada é. Mas já cheguei até aqui, não foi? —  Não é disso que estou falando, Número 1 — disse eu, rindo. — Estou convencido de que vai viver até completar cento e cinqüenta anos. Estou falando é de um novo carro. —  Há muito tempo que eu penso nisso. Há trinta anos, deixo que me prendam em cima desta cadeira. E tudo está errado. Eu nunca devia tê-los deixado soltos. "Antes da guerra, tínhamos quase quinze por cento do mercado. Hoje em dia, temos apenas dois por cento. Até o pequeno e insignificante Volkswagen vende mais do que nós. E não é só. Os japoneses estão entrando e vão botar de lado a todos nós. Os patifes vão tomar conta do mundo. Já vendem hoje mais barato e mais do que todos nós juntos. "Neste ano e no ano que vem, as companhias americanas vão lançar os seus carros pequenos. Não adiantará nada. É claro que vão vender carros. Mas não roubarão as vendas dos carros estrangeiros. Vão roubar vendas umas das outras e reduzirão o seu volume total de preço por unidade. "A única solução é um carro completamente novo. Fabricado de maneira nova numa linha de produção inteiramente automatizada e eletrônica. Ainda me lembro de quando Ford lançou o seu modelo T. Foi uma revolução no mundo e por uma única razão, Ford tinha uma idéia melhor. Mas foi a única idéia que tiveram. Desde então, vêm servindo de cauda ao papagaio da General Motors. O resto da indústria também. Até nós." —  É uma pedida bem grande. —  Mas pode-se fazer. Não gosto de perder dinheiro. Sou um vitorioso. Sempre fui. —  Tenho lido os relatórios anuais, Número 1. A Bethlehem faz dinheiro. Sempre fez. —  Mas não faz automóveis, Ângelo! Os automóveis representam apenas trinta por cento de nossa receita bruta. A divisão de eletrodomésticos concorre com cinqüenta e sete por cento e o resto vem da fabricação de peças para as outras companhias. É a maneira que eles têm de se manter em produção. Têm medo das leis antitrustes e antimonopólios. Agora mesmo, mais de setenta por cento de nosso espaço de produção é usado para essas coisas e não para automóveis. —  Não sabia disso. . . —  Pouca gente sabe. Tudo começou durante a guerra. A gm, a Ford e a Chrysler pegaram as grandes encomendas. L. H. II concentrou-se nessas outras áreas. Quando a guerra acabou, os outros estavam prontos para voltar à grande produção;   nós, não.  Mas estávamos  equipados para  entrar no campo dos eletrodomésticos e devo dizer que ele fez um trabalho fantástico. Está faturando mais de quarenta milhões de dólares por ano. Mas isso pouco me interessa. Não são automóveis. Recostei-me em minha cadeira e perguntei: —  Que tal é Número 3? —  É um bom menino — respondeu Número 1. — Mas só está interessado em lucros. Pouco lhe importa de onde venham — aparelhos de televisão, geladeiras ou carros. Para ele, é tudo a mesma coisa. Chego às vezes a pensar que ele já teria acabado com o ramo de automóveis se não tivesse receio de me aborrecer. —  Como é que vai dizer a ele? —  Não direi nada. Só quando tudo estiver em marcha.  — Não é possível guardar segredo sobre essas coisas no negócio de automóveis. Vão saber de tudo no momento em que eu começar a trabalhar.
—  Se falarmos em outra coisa, não vão saber de que se trata. —  Outra coisa como? —  Todos sabem o que você é, um corredor de automóveis. Não sabem o que eu sei, isto é, que você é diplomado pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts, com um curso de engenharia e projetos de automóveis. Também não sabem que há alguns anos John Duncan queria que você fosse dirigir o departamento quando ele se aposentou. Nós lhe daremos um título, o de vice-presidente de Projetos Especiais, e faremos saber que você vai cuidar de carros de corridas e de equipes de automobilismo sob o patrocínio da fábrica. Deve ser fumaça bastante para servir de cortina. Donald entrou na sala. —  Está na hora, Sr. Hardeman. Número 1 olhou para mim depois de consultar o relógio. —  Conversaremos mais amanhã na hora do café.  Levantei-me e disse: . —  Está bem, Número 1. —  Boa noite — disse ele. Vi Donald levar a cadeira para fora da sala e tornei a sentar-me. Acendi um cigarro e olhei para o relógio. Eram oito e meia e eu estava sem um pingo de sono. Aquele soninho da tarde me enchera as medidas. De puro palpite, telefonei para a moça da Hertz. Foi uma voz de homem que atendeu. —  Melissa está? —  Quem quer falar com ela? — disse o homem, com uma nota defensiva evidentemente paterna. —  Ângelo Perino. Ele pareceu impressionado. —  Vou chamá-la, Sr. Perino. — Afastou-se do fone e eu o ouvi gritar: "Melissa!" A voz dele se fez ouvir de novo. — Melissa já me havia dito que o senhor está na cidade. Espero ter oportunidade de conhecê-lo pessoalmente. Sou um grande admirador seu, Sr. Perino! —  Muito obrigado. Desejo também conhecê-lo. Ouvi o ruído do fone passando para outras mãos. Havia bastante sotaque sulista na voz dela para ocupar todos os cabos. — Que surpresa, Sr. Perino! — Tive um palpite. E seu encontro? — Desmarquei. O camarada era mesmo chato. — Quer dar um passeio?
—  Seria bom — disse ela e eu compreendi que o pai andava ainda por perto. —  Onde é que podemos nos encontrar? —  Conhece Palm Beach? —  Quase nada. Sei vir do aeroporto até aqui. Fora disso, não. — Então talvez seja melhor eu ir até aí pegá-lo. — Boa idéia. Vai demorar muito? — Meia hora, está bem? — Para mim, ótimo. Quando desliguei o telefone, Donald estava de pé a uma distância respeitável. —  Deseja alguma coisa, Sr. Perino? —  Há algum conhaque aí? —  É claro — disse ele com um tom de censura na voz. — Quer o conhaque na biblioteca? Fiz um sinal afirmativo e ele me seguiu até a biblioteca. Serviu o conhaque num copo bojudo e, rodando-o delicadamente, passou-o às minhas mãos. —  Obrigado, Donald — disse eu e lembrei-me então dos cachorros. — Alguém vem pegar-me aqui dentro de meia hora. Pode tomar alguma providência quanto aos cachorros? —  Pode deixar. Vai precisar de seu carro? —  Acho que não. Ele tirou uma chave do bolso. —  Isto aqui abrirá o portão e a porta da frente. Quando voltar, basta deixá-la na mesinha do hall. —  Muito obrigado, Donald. —  De nada, Sr. Perino — disse ele e saiu da sala. Deixei-me cair numa das velhas poltronas de couro e beberiquei o conhaque até ouvir o barulho do carro dela pela alameda. Cheguei à porta no momento em que ela parava. É claro que estava com o Mach One. Desci os degraus e abri a porta do carro. —  Veio depressa. —  Superserviço — disse ela, sorrindo. — Quer dirigir?  Sacudi a cabeça e me sentei ao lado dela. Beijei-lhe o rosto e depois apertei o cinto de segurança. —  Está nervoso? —  Não. Hábito apenas. —  Que é que gostaria de fazer?
Olhei-a e disse: —  Ir para a cama com você. —  Oh, Sr. Perino! A voz dela estava cheia de censuras com cheiro de madressilva. — Está bem, se vamos ter cerimônias um com o outro, eu é que lhe pergunto: que é que gostaria de fazer? —  Conheço um lugar bem romântico na praia, onde podemos beber, conversar e dançar. —  Para mim, está bom. —  Melhorou muito, Ângelo — disse ela com um sorriso.  Retribuí o sorriso e disse: —  Depois disso, poderemos ir para a cama em algum lugar. Ela engrenou o carro e seguimos pela estrada como se estivéssemos disputando um grande prêmio. Por que é que, sempre que eu entrava num carro, a pessoa tinha de provar que sabia correr? Fechei os olhos e rezei.
 
Capítulo 5
Acordei com a campainha, do telefone. Gemi ao sentir a cabeça latejar. O tal lugar romântico para o qual ela me havia levado naquela noite não era exatamente romântico. As bebidas eram todas batizadas com água, não se podia conversar, com um rock estridente que não parava nunca, e a pista de danças tinha mais gente do que a Via Expressa Edsel Ford na hora do rush. —  O Sr. Hardeman quer falar com o senhor — disse-me Donald pelo telefone. —  Já vou descer. —  Não — disse ele prontamente. — É o jovem Sr. Hardeman. Está telefonando de Detroit. Senti-me de repente plenamente acordado. E Número 1 pensara que podia haver segredos. Quem teria falado? Donald ou a secretária? —  Pode ligar. —  Sr. Perino? — murmurou uma voz de mulher. —  Sim. —  Um momento. O Sr. Hardeman vai falar. Olhei um momento para meu relógio. Oito e meia. Em Detroit era uma hora mais cedo e ele já estava no escritório. —  Ângelo — disse ele com voz muito amável. — Há quanto tempo! —  É verdade. . . —  Fiquei muito contente quando soube que você estava aí fazendo uma visita a vovô. Número 1 sempre gostou muito de você. —  Gosto muito dele. —  Acho às vezes que ele passa muito tempo sozinho aí. Como vai ele? — perguntou com uma nota de preocupação na voz. —  Rabugento como sempre. Creio que não mudou nestes trinta anos que o conheço. —  Ótimo. Fico satisfeito de ouvi-lo dizer isso. De vez em quando ouvimos aqui as mais estranhas histórias sobre ele. —  Estranhas como? —  Sabe como é. A mesma coisa de sempre. Coisas da velhice. . . —  Pois não tem motivo algum para se preocupar. Está aqui firme e são como sempre. — Não sabe que peso tirou de cima de mim. Sempre faço menção de ir até aí, mas sabe como é. As pressões são muitas. — Compreendo. — Estão dizendo que você pretende abandonar as corridas. — Número 1 está tentando me convencer a fazer isso mesmo. — Por que não o ouve? E, se tomar alguma decisão, venha falar comigo. Há sempre um lugar aqui para você. Sorri para mim mesmo. Ele me fizera saber com muita eficiência quem era que mandava. — Muito obrigado — disse eu. — Não há de quê. Missão cumprida. Até qualquer dia. — Até qualquer dia. Desliguei o telefone e estendi a mão para pegar um cigarro. Bateram então na porta.
—  Entre — disse eu. A porta se abriu e Número 1 entrou, fazendo rolar a cadeira e seguido por Donald com uma bandeja, que colocou em cima da cama. Havia suco de laranja, torradas e café. —  Como é que gosta dos ovos, Sr. Perino? —  Nada mais, Donald. Isto chega. Muito obrigado.  Donald saiu do quarto e Número 1 dirigiu a cadeira para perto da cama. Peguei a xícara de café e tomei um gole. Sentime um pouco melhor. —  Então? — perguntou ele. —  Bom café esse. —  Sei que o café é bom — disse ele, irritado. — Que foi que meu neto tinha para lhe dizer? Tomei outro gole de café. —  Disse que estava muito satisfeito de que eu estivesse aqui e acrescentou que, se eu estava pensando seriamente em abandonar as corridas, fosse falar com ele, que me daria um lugar. —  Que mais ele disse? —  Disse que achava que o senhor vivia muito sozinho aqui e queria saber como o senhor estava. —  Que foi que você disse a ele? —  Disse que o senhor estava inteiramente maluco e tinha umas idéias birutas a respeito de um novo carro. Ele começou a querer ficar zangado, mas de repente deu uma gargalhada. Ri também e dentro em pouco parecíamos dois garotos muito contentes por terem pregado uma peça à professora. — Seria até bom que você tivesse falado, Ângelo. Daria tudo para ver a cara dele. —  Iria chiar com toda a certeza.  Número 1 parou de rir e perguntou: —  Que é que você acha? —  Que é que eu acho de quê? —  De mim — disse ele com relutância e cautela, quase como se estivesse com medo de receber uma resposta. — Acha que o que eu quero fazer não passa de um sonho maluco de velho? —  Escute aqui: se é assim, o mundo inteiro está maluco. A indústria também. Um carro melhor não pode deixar de ser o sonho de todos.
—  Pensei muito esta noite no que você disse. Não vai ser fácil. Tomei em silêncio mais um gole de café. —  Vai haver necessidade de muito dinheiro. A GM está gastando no mínimo trezentos milhões de dólares com seu novo carro pequeno. A Ford vai gastar muito menos porque está apenas projetando de novo o carro que faz na Inglaterra a fim de adaptá-lo ao mercado americano e importará os motores da Inglaterra e da Alemanha. E, ainda assim, vai gastar perto de duzentos milhões. Calculo que seja isso o mínimo de que vamos precisar. —  E a Bethlehem dispõe de tanto dinheiro assim? —  Ainda que houvesse esse dinheiro, sei que jamais conseguiria o apoio de meu neto. E ele tem a diretoria toda dentro da gaveta. Ficamos durante muito tempo em silêncio. Servi-me de mais café. Ele deu um suspiro fundo. —  Talvez seja mesmo melhor não pensarmos mais nisso. Talvez seja mesmo o sonho de um velho maluco. Ele parecia estar se encolhendo diante de meus olhos. Creio que foi só nesse momento que percebi até que ponto a idéia me havia empolgado. —  Há um jeito — disse eu. —  Qual é? —  Não vai ser agradável e o senhor terá de lutar com os outros passo a passo. —  Não tenho feito outra coisa durante toda a minha vida, Ângelo! —  Para isso será preciso sair de Detroit. —  Não estou entendendo. —  Pode reorganizar a estrutura da companhia vendendo a divisão de eletrodomésticos. Disse que ela fatura quarenta milhões por ano. Poderia, portanto, conseguir dez vezes mais por ela. Quatrocentos milhões. Só com os seus oitenta por cento das ações, são trezentos e vinte milhões. —  Eu tenho oitenta por cento dos votos — disse ele. — Mas só possuo mesmo quarenta e um, pois trinta e nove por cento pertencem à Fundação Hardeman. —  Quarenta e um por cento são cento e sessenta e quatro milhões. Não seria tão difícil assim conseguir o resto. Mudaria então a divisão de automóveis. —  Para onde? — Para a Califórnia ou para o Estado de Washington. Existem ali grandes instalações de montagem de aparelhos espaciais que vão dar em nada com as reduções propostas para os programas espaciais nos próximos anos. Não custaria muito transformá-las em linhas de montagem de automóveis. Ali existem o espaço e o pessoal especializado necessários. Ele olhou para mim e disse: — Sabe que pode dar resultado? — Sei que vai dar — disse eu, cheio de confiança. — Quem compraria a companhia de eletrodomésticos? — Sei de uma porção de companhias que a agarrariam com as duas mãos, mas o senhor acabaria com pouco dinheiro e muitos títulos. Só há um meio de fazer dinheiro com ela. Vendê-la ao público. E talvez também vender um pouco das ações da companhia de automóveis para conseguir o resto do dinheiro de que precisamos. —  Isso significa ir à Wall Street — disse ele. —  Sem dúvida. —  Nunca pude confiar naquela gente. Querem se meter em tudo que a gente faz. —  Mas é lá que o dinheiro está, Número 1. —  Não sei tratar com eles. Não falamos a mesma língua. —  Foi para isso que me chamou. Traduzirei tudo para o senhor. Ele me olhou por um longo momento. Por fim, começou a sorrir. —  Não sei por que estou tão preocupado — disse ele. — Comecei pobre. E, seja qual for o resultado, serei menos pobre no fim do que fui no princípio. Fez rolar a cadeira e eu saltei da cama para abrir a porta. — Como foi que meu neto soube que você estava aqui, Ângelo? —  Não sei. O seu pessoal é muito grande. —  E essa garota com quem você saiu ontem à noite? —  Da Hertz. Alugam um carro e uma garota. —  Você ainda é mais maluco do que eu — disse ele, dirigindo a cadeira para o corredor.
Capítulo 6
O avião me deixou em Detroit às seis horas da tarde. Às sete, eu estava em casa. Gianno abriu a porta e me estreitou ao peito num longo abraço de urso. —  Signora! Signora! — gritou ele, esquecendo-se do inglês. — O Dottore Ângelo está aqui! Minha mãe desceu as escadas na carreira. Estava chorando antes de chegar ao patamar do meio. Subi os degraus ao encontro dela e abracei-a. —  Mamma! —  Ângelo! Ângelo! Você está bem? —  Muito bem, mamma! Estou ótimo! —  Vi a fumaça saindo de seu carro. —  Aquilo não foi nada. —  Tem certeza? —  Tenho — disse eu, beijando-a. — A senhora está tão bonita como sempre. —  Não diga tolices, meu Ângelo! Como é que uma mulher de sessenta anos pode ser bonita? Estava começando a sorrir. —  Sessenta e um! E ainda bonita. Afinal de contas, eu devo saber. A mãe é a melhor amiga que um rapaz pode ter. . — Deixe de troça, Ângelo. Um dia, você vai encontrar uma moça bonita de verdade. — Nunca. Não fazem mais moças como a senhora. —  Ângelo! Era a voz de meu pai da porta do escritório embaixo. Voltei-me para vê-lo. Os cabelos grisalhos sobre o rosto nobre eram a única coisa que mudara nele desde os meus tempos de garoto. Desci a escada. Ele me esperou com sua velha tranqüilidade e com a mão estendida. Abracei-o.
—  Papa. Ele me abraçou também e nós nos beijamos. Havia lágrimas também nos olhos dele. —  Como vai, Ângelo? —  Muito bem, papa, muito bem. — Olhei para seus olhos e ele me pareceu cansado. — Está trabalhando demais. —  Não, meu filho. Estou reduzindo tudo ao mínimo desde que tive o ataque. —  Deve fazer isso mesmo. Mas quem foi que já ouviu falar de um médico de Grosse Pointe que não estivesse disposto a atender a um chamado a qualquer hora da noite? —  Não faço mais isso. Tenho um jovem assistente que atende a todos os meus chamados noturnos. Ficamos em silêncio por um momento. Eu sabia o que ele estava pensando. Eu devia ter sido esse assistente. Ele sempre acalentara o sonho de que eu também me tornasse médico e o substituísse na clínica. Mas isso não havia acontecido. Minha cabeça estava virada para outros rumos. Ele nunca mencionou a sua decepção, mas eu sabia que ela existia. —  Devia ter-nos avisado de sua vinda, Ângelo — disse a mãe. — Eu teria feito um jantar especial para você. —  Quer dizer que não há nada para se comer dentro desta casa? — perguntei, rindo. —  Bem, sempre se dá um jeito. Dei a notícia na hora do jantar. Gianno tinha levado o café. Expresso. Quente, preto e forte. Botei duas colheres de açúcar e tomei um gole.    —  Vou deixar de correr. Houve completo silêncio por um momento e então minha mãe começou a chorar. —  Por que é que está chorando, mamãe? Pensei que fosse ficar contente. Não desejou sempre que eu abandonasse as corridas de automóvel? —  É por isso mesmo que estou chorando.  Meu pai foi mais prático. —  Que é que vai fazer agora? —  Vou trabalhar para a Bethlehem Motors. Número  1 quer  que  eu  seja  vice-presidente   encarregado   dos   Projetos Especiais. —  Isso quer dizer o quê? — perguntou minha mãe.
—  Sabem como é, resolver problemas e coisas assim. —  Isso significa que vai morar aqui em Defroít? — perguntou minha mãe. —  Parte do tempo — respondi. — Meu novo emprego me obrigará a viajar muito. —  Vou mandar decorar de novo seu quarto — disse ela. —  Calma, mamma — disse meu pai. — Talvez Ângelo queira morar num apartamento sozinho. Não é mais um garoto. — Quer morar sozinho, Ângelo?  Não pude agüentar o olhar dela. —  Por que é que vou morar sozinho, se meu lar é aqui? —  Vou chamar o pintor amanhã — disse ela. — Você tem de me dizer que cores prefere, Ângelo. —  Pode escolher as cores ao seu gosto, mamma, — Virei-me para meu pai. — Quero dar um jeito no meu rosto. Vou estar em contato com uma porção de gente e não quero ter de me preocupar com isso. Lembro-me de que o senhor me falou um dia num médico que era o melhor do mundo nessa espécie de cirurgia. —  Ernest Hans, na Suíça. —  Esse mesmo. Acha que ele pode dar um jeito?  Meu pai olhou para mim e disse: —  Não é fácil. Mas, se alguém pode fazer isso, é ele.  Eu sabia o que ele queria dizer. Não era apenas a narina esquerda que se quebrara várias vezes ou mesmo o malar esquerdo que fora afundado e despedaçado. Era a mancha branca das marcas de queimaduras na face e na testa. —  Pode tomar as providências para mim, papa? —  Quando é que você quer ir? —  Logo que ele me puder operar. Dois dias depois, eu estava no avião a caminho de Genebra.
O Dr. Hans tirou o último chumaço de gaze de meu rosto e colocou-o na bandeja. —  Vire a cabeça de um lado para outro. Fiz o que ele estava mandando. Primeiro para a direita, depois para a esquerda. —  Sorria. Sorri, sentindo o rosto rígido. —  Não está mau. Afinal de contas, o serviço não foi de todo mau.
—  Parabéns. —  Muito obrigado — disse ele, muito sério. Levantou-se da cadeira em que estava sentado diante de mim. — Terá de ficar aqui mais uma semana ainda até que a vermelhidão desapareça. Não é nada de causar preocupação. Perfeitamente normal. Tive de lixar a pele velha de seu rosto a fim de que não fizesse muita diferença com a pele enxertada. Fiz um sinal de assentimento. Depois de quatro operações em dez semanas, uma semana a mais ou a menos não tinha a menor importância. Já ia saindo, mas se voltou da porta e disse, como se só no momento se lembrasse disso: —  É claro que pode se olhar no espelho, se quiser. —  Está bem — disse eu. — Muito obrigado. Mas não fiz a menor menção de levantar-me da cadeira. Era curioso, mas eu não estava com pressa alguma de ver como eu tinha ficado. O médico ficou por ali ainda um momento e por fim, quando viu que eu não ia sair da cadeira, cumprimentou-me e retirou-se, acompanhado de seus seis assistentes. Fiquei olhando a enfermeira inglesa que limpava tudo e colocava as bandagens numa lata de lixo. Não olhava diretamente para mim, mas notei que, de vez em quando, me olhava pelos cantos dos olhos. Peguei-lhe a mão na primeira vez em que ela passou por mim e a fiz voltar-se para mim. —  Que é que acha, irmã? Está tão ruim assim? —  De modo algum, Sr. Perino. O que acontece é que não o conheci antes de seus acidentes. Vi-o quando chegou aqui e só lhe posso dizer é que a transformação é notável. Está agora com um rosto bem interessante, bonito mesmo. —  Nunca fui bonito — disse eu, rindo. —  Veja por si mesmo — disse ela. Levantei-me da cadeira e fui até o banheiro. Havia um espelho acima da pia e eu me olhei. Fiquei sabendo num momento o que era ser como o Dorian Gray, de Oscar Wilde, e nunca envelhecer. Estava quase com o mesmo rosto que tinha aos vinte e cinco anos. Quase. Mas havia diferenças sutis. O nariz estava mais fino, mais aquilino. O médico tirara dele o seu jeito italiano original. Os malares estavam ligeiramente mais altos, o que me tornava o rosto mais magro e mais comprido e meu queixo mais quadrado. As cristas de carne, que se tinham estufado sob minhas sobrancelhas depois que elas se partiram, tinham desaparecido. Desaparecidas estavam também as cicatrizes brancas das queimaduras e minha pele estava toda rosada, nova e brilhante como a de um bebê. Só os olhos pareciam deslocados naquele rosto. Eram olhos velhos. Eram olhos de trinta e oito anos. Não tinham mudado. O médico não os remoçara para combinar com o resto do rosto. Ainda guardavam a dor, a claridade do sol e as luzes de mil pistas diferentes. Pelo espelho, eu via a enfermeira de pé à porta, atrás de mim. Virei-me para ela e estendi-lhe a mão. —  Irmã. Ela se aproximou imediatamente de mim. Havia preocupação em sua voz quando me perguntou: —  Está bem, Sr. Perino?  —  Poderia ter a bondade de me beijar? Ela me encarou nos olhos por um instante e, então, fez um gesto de assentimento. Aproximou-se de mim e, tomandome o rosto nas mãos, beijou-me. Primeiro, na testa, depois em cada maçã do rosto, em seguida em cada face e, por fim, na boca. Eu sentia a bondade e a gentileza que se derramava dela. Levantei o rosto. Havia lágrimas nos cantos dos olhos dela e os lábios lhe tremiam. —  Fui bem-sucedida, Sr. Perino? — perguntou ela delicadamente. —  Sim, irmã — disse eu. — Muito obrigado.  E ela de fato fora.
 
Capítulo 7
— Vai sair caro — disse Loren Hardeman III com voz carregada. Sentei-me do outro lado da mesa e olhei para ele. Tinha dois anos mais do que eu, mas parecia mais velho. Talvez fosse a vida no escritório. Este era antiquado, com lambris grossos de madeira escura, as poltronas e os sofás de couro negro e as gravuras de corridas de cavalos e de automóveis nas paredes antigas e desbotadas. Mas era o Escritório. Tinha sido de seu avô, depois de seu pai e agora era dele. Era o escritório do homem que dirigia a Bethlehem Motors. Ele tinha o aspecto de um homem que estava engordando, mas resistia. Tinha a gravidade de um homem moço a cujos ombros as responsabilidades tinham subido muito cedo. Não havia espontaneidade nem no seu olhar, nem no seu sorriso. Talvez ele nunca tivesse tido oportunidade de ser espontâneo. Aos vinte e um anos, fora eleito vice-presidente da Bethlehem Motors, no mesmo ano em que se casara com a moça certa, Alicia Grinwold, filha do Sr. e Sra. Randall Grinwold, de Grosse Pointe, Southampton, e Palm Beach. Grinwold era nessa época vice-presidente da Divisão de Compras da General Motors. Tudo seguiu a marcha normal. Alicia teve uma filha, Número 2 morreu, ele foi eleito presidente em substituição ao pai, a Bethlehem Motors conseguiu o maior contrato já concedido pela GM para o fornecimento de peças a um empreiteiro concorrente e ele completou vinte e três anos. Isso acontecera dezessete anos antes e os jornais de Detroit manifestaram o orgulho da cidade pela sua terceira geração. Escreveram-se muitos artigos sobre os dois brilhantes jovens, Henry Ford II e Loren Hardeman III. Tinham saído em campo como cavaleiros revestidos de aço cromado para lutar pelo seu suserano de quatro rodas. —  Muito caro — acrescentou Loren no pesado silêncio do escritório. Não dei resposta. Tirei um cigarro e acendi-o. A fumaça subiu em espiral no ar parado. Loren apertou um botão no interfone da mesa. —  Peça a Bancroft e Weyman que venham até aqui, se não estiverem ocupados — disse ele. Isso não me ia facilitar as coisas. John Bancroft não seria problema. Era das Vendas e meu plano só poderia fazer-lhe bem. O caso era diferente com Dan Weyman. Era das Finanças e qualquer coisa que pudesse custar dinheiro era anátema para ele. Pouco importava que houvesse algum valor em jogo ou não. Weyman só deixava sair o dinheiro depois de muito tempo e, ainda assim, sob pressão. Os dois chegaram ao escritório e vieram com o papo furado dos cumprimentos. Depois, acomodaram-se nas cadeiras e olharam para o chefe, à espera. Loren não gastou muitas palavras. —  Vovô quer meter-nos nas corridas. Sugeriu que Ângelo dirigisse o projeto. Os dois esperaram instruções e Loren não os decepcionou. —  Não sei se o tempo para essa espécie de coisa já passou ou não. Desde que a segurança e a ecologia se tornaram fatores de pressão cada vez maiores, creio que o interesse na potência dos carros vai diminuir. Depois, há o fator custo. É bem alto atualmente. A Ford já anunciou o seu afastamento das corridas. A Chevy está reduzindo as verbas. A Dodge ainda está no campo, mas só até o fim dos compromissos já assumidos. Estou reunindo vocês aqui para debatermos o assunto. Bancroft foi o primeiro a falar. O seu vozeirão de vendedor ressoou pela sala. —  Não sei que mal haveria nisso. Seria bom para nós qualquer promoção. Todos os revendedores se queixam de que não temos prestígio suficiente. Calou-se de repente ao perceber que talvez estivesse no caminho errado. Dan Weyman tomou calmamente a palavra. —  O problema tem evidentemente duas faces. Sem dúvida, um bom esforço nas pistas de corrida poderia ajudar-nos. Mas temos de levar em conta o custo contra os benefícios. — Olhou para mim. — Qual é o seu cálculo? —  O mínimo que poderíamos ter em campo seriam três carros. Fórmula 3. Não adiantaria nada a Fórmula 1 ou a Fórmula 2. Não temos um carro padrão capaz de enfrentar a competição e devemos, portanto, recorrer ao protótipo. Calculo que, com pessoal, projetos e engenharia, cerca de cem mil dólares por carro. Isso custariam os primeiros três carros, depois do que custariam progressivamente menos. —  Muito bem — disse Weyman. — Estamos vendendo agora pouco mais de duzentos mil carros por ano e estamos sofrendo um prejuízo de cento e quarenta dólares por unidade. O seu projeto adicionaria um dólar e meio por unidade a esse prejuízo.  —  Olhou  para  Bancroft.  —  Isso  quer  dizer  que você teria de vender no mínimo trinta mil carros a mais apenas para manter o prejuízo por unidade no seu nível atual. Acha que pode fazer isso? Bancroft tinha tal fome de vendas que se podia quase sentir que as saboreava. —  Acho que temos uma chance! — exclamou. Acrescentou, porém, a frase corrente em Detroit: — Desde que a economia não se desmorone. Olhei para Weyman. —  Quantos carros é preciso vender para não ter prejuízo? —  Trezentos mil — disse ele prontamente. — Será um aumento de cinqüenta por cento sobre o nosso nível atual. A partir daí, entraremos na coluna dos lucros. —  Isso deve ser fácil — disse eu, provocando-o. — A Volkswagen vende mais que isso. —  A Volks não tem uma linha de venda completa — disse ele. — Nós temos de cobrir todo o mercado americano para enfrentar a concorrência. Não respondi. Todos nós sabíamos que isso era pura conversa fiada. O único motivo para uma linha completa era a proteção da divisão de peças da companhia. Loren tinha ficado em silêncio enquanto discutíamos. Quando começou a falar, vi que havia chegado a uma decisão. —  Acho que devemos tentar. Tenho muito respeito por meu avô. Além disso, não faz muita diferença perder mais um dólar por unidade a esta altura do jogo. E talvez, com a Ford e a GM fora do campo, possamos conseguir alguns troféus. Levantou-se e disse: —  Tome conta dos detalhes, Dan. Instale Ângelo num escritório e providencie para que ele tenha toda a assistência de que necessitar. E você, Ângelo, entenda-se com Dan a respeito das despesas e comigo a respeito de tudo mais. —  Obrigado, Loren — disse eu.  A reunião tinha terminado.
 
Descemos o corredor e Bancroft me perguntou: —  Como vai Número 1 ? —  Muito bem. —  Tem-se  falado  muito por aqui dele, dizendo que já não é o mesmo. Coisas da velhice, sabe?
—  Se é verdade, então todos nós estamos caducos. Ele está tão vivo como sempre. —  Fico muito contente em saber disso — disse Bancroft, e era evidente que estava sendo sincero. — Ele era um verdadeiro homem de automóveis. —  Ainda é. — Meu escritório é aqui — disse Dan. — Vamos entrar e discutir os detalhes. Combinei almoçar um dia com Bancroft no começo da semana seguinte e entrei no escritório de Dan. Era simples, funcional e moderno, como convinha ao vice-presidente financeiro. Dan sentou-se à sua mesa. Sentei-me diante dele. — Se não me falha a memória, você já trabalhou para nós.  Fiz um sinal afirmativo. Ele sabia muito bem disso. Pegou o telefone e pediu minha ficha. Comandava um navio disciplinado. Dois minutos depois, a ficha estava em cima da mesa dele, muito embora o meu último emprego ali tivesse sido havia mais de onze anos. Pegou a ficha, olhou-a e disse com surpresa na voz: —  Sabe que ainda tem um saldo aqui do seu fundo de pensões ? Não sabia, mas fiz um gesto afirmativo. —  Não precisava muito do dinheiro, sabe? E aqui era um lugar mais seguro para deixá-lo do que qualquer outro. —  Chegou a discutir a sua indenização? —  Não, nem tratamos disso. —  Vou conversar com Loren. Tem alguma sugestão? —  Nenhuma. O que ele disser estará bem para mim. —  Já discutiu o seu título? —  Número 1   sugeriu   vice-presidente  de   Projetos   Especiais. —  Terei de combinar isso com Loren.  Manifestei por um gesto a minha aquiescência. Ele estudou minha ficha durante alguns momentos e depois levantou os olhos para mim. —  Acho que é só do que eu preciso. — Levantou-se. — Agora, vamos a Projetos e Engenharia ver se encontramos um bom escritório para você. —  Não se preocupe muito com isso — disse eu. — Não pretendo passar muito tempo nele.
 
Capítulo 8
As frustrações começaram a se amontoar. Eu não precisava de um sexto sentido para saber que havia uma guerra surda contra mim. Conseguia toda a cooperação que eu queria, mas tudo levava o dobro do tempo necessário. Seis semanas depois, eu ainda estava em meu escritório tentando conseguir que a Engenharia me arranjasse três motores Sundancer. O Sundancer era o melhor de sua classe. Por fim, peguei o telefone e liguei para Número 1. —  Estou bloqueado — disse eu.  Ele riu. —  Você está lidando com profissionais de verdade, meu filho. Diante deles, esses corredores de carros que conheceu até agora são amadores sem nenhuma categoria. Tive de rir. Ele tinha toda a razão. —  Que é que vai fazer agora? — perguntou ele. —  Só quero sua autorização para tocar as coisas à minha maneira. —  Vá em frente. Foi para isso que o chamei.  Em seguida, telefonei para Weyman. — Vou amanhã para a Califórnia.  Mostrou-se perplexo. —  Mas os motores ainda não chegaram. —  Não posso mais esperar por eles. Se eu não começar desde já a arranjar corredores e mecânicos para o ano que vem, teremos os carros e nada mais do que isso. —  E as modificações? — Carradine, da Engenharia, já está com tudo pronto. Começará a trabalhar no momento em que receber os motores. —  E a carroçaria? —  O pessoal dos Projetos já está tratando disso. Já aprovei os planos, mas me disseram que estão esperando a aprovação dos Custos.
Era uma farpa direta nele. —  Ainda não chegaram à minha mesa. —  Mas vão chegar. —  Quanto tempo vai se demorar? —  Duas, três semanas no máximo. Procuro-o logo que voltar. Desliguei o telefone e esperei. Dentro de exatamente dois minutos, o telefone tocou. Era Loren III. Era a primeira vez que falava comigo desde o dia em que eu começara a trabalhar. Estava sempre em alguma reunião e tão ocupado que não se lembrava de telefonar para mim depois. —  Estou sempre com vontade de ligar para você — disse ele —, mas nunca tenho tempo. Como vão as coisas? —  Não me posso queixar. Com um pouco de sorte, teremos nosso primeiro carro pronto na primavera. —  Ótimo. — Houve uma pausa. — Escute aqui, vamos oferecer um pequeno jantar esta noite e Alicia pensou que seria muito bom se você aparecesse. —  Para mim, seria ótimo. A que horas? —  Coquetéis às sete, jantar às oito e meia. Traje a rigor. —  Não tenho. —  Terno escuro então.  Alicia  gosta de compor bem a mesa. O telefonema seguinte foi de Carradine, da Engenharia. Estava todo nervoso. —  Que foi que você fez com eles? Acabei de ser avisado de que teremos os motores amanhã. Vão fazer trabalho extra para entregá-los. —  Quando os  receber, comece  a trabalhar.  Vou  viajar pata a Califórnia e falarei com você de lá no fim da semana. Depois, veio o telefonema dos Projetos. —  Acabamos de receber a aprovação dos Custos, mas fizeram uma redução de vinte por cento. —  Fabrique-os de qualquer modo.  A voz de Joe Huff era de desânimo. —  Que é que está me dizendo, Ângelo? Você sabe muito bem que não é possível executar o projeto com uma redução de vinte por cento. —  Nunca  ouviu  falar  de  orçamento  estourado?   Toque o serviço para a frente que eu assumo a responsabilidade. Saí do escritório, sentindo-me melhor do que me sentia havia semanas. A cortina de fumaça estava levantada e dava resultado. Já podia tratar do trabalho de verdade.
Fui o primeiro a chegar. A casa de Hardeman ficava a quatro ruas apenas da minha. O mordomo me fez entrar para o living e colocou-me um drinque na mão. Estava tratando de me sentar quando uma garota alta apareceu à porta. —  Alô — disse ela. — Cheguei cedo? —  Para mim, não — disse eu, levantando-me. Ela riu e entrou na sala. Seu riso tinha um tom quente e cheio. Estendeu-me a mão. —  Sou Roberta Ayres, convidada de Alicia. —  Ângelo Perino. Ela conservou a mão por um momento na minha. —  O corredor? — perguntou com voz surpresa. —  Não sou mais. —  Mas. . . Lembrou-se então da mão e tirou-a.  Sorri. Já estava me habituando. —  Um médico me juntou os pedaços do rosto. —  Perdão — apressou-se ela em dizer. — Não tive intenção de ser indelicada. Mas já o vi correr muitas vezes. —  Tudo bem — disse eu.  O mordomo chegou à sala. —  Que deseja, Lady Ayres? O nome me despertou afinal a memória. O marido dela tinha sido um bom automobilista amador que morrera ao sair de uma curva alguns anos antes em Nurburgring. —  Um martíni bem seco — disse ela. —  Perdoe-me — disse eu. — Devia ter reconhecido o nome. Seu marido foi um excelente corredor, Lady Ayres. —  É muita bondade sua dizer isso. Mas na verdade ele não era tão bom automobilista quanto pensava. —  Quem é? Ela riu e, recebendo o drinque das mãos do mordomo, levantou o copo. —  Aos carros velozes. —  Muito bem.  Bebemos. —  Que está fazendo agora? —  Levando a Bethlehem para as corridas. — Deve ser interessante — disse ela, polidamente. — E é. Ela me olhou com curiosidade. —  Não gosta muito de falar, não é?  Sorri e disse:
—  Isso depende. —  Está vendo o que eu quero dizer? — disse ela, rindo. — Responde a quase todas as minhas perguntas com duas palavras. —  Não tinha notado — disse eu e comecei a rir. — Foram três palavras desta vez. Loren chegou quando ainda estávamos rindo. —  Estou vendo que os dois já se conhecem. —  Já somos velhos amigos — disse ela. Uma estranha expressão passou pelos olhos dele. Desapareceu quase antes que eu pudesse compreendê-la. Ele se inclinou e beijou o rosto dela. —  Está muito bonita hoje, Bobbie. —  Obrigada, Loren — disse ela, roçando de leve a mão pela mão dele. — Devo dizer que está muito elegante. —  Gostou? — disse ele, sorrindo de prazer. — Mandei fazer no alfaiate de Londres de que você me falou. —  Absolutamente alinhado — disse ela. Juntei tudo então. Talvez ainda houvesse esperança para Loren. Ao menos, estava provado que ele tinha outras coisas na cabeça além de negócios. Alicia desceu e eu me aproximei dela e beijei-lhe o rosto. —  Oi — disse eu. —  Oi — disse ela e nós dois rimos. Loren e Lady Ayres nos olhavam um tanto espantados. —  Pilhéria particular — disse eu. —  Ângelo e eu fizemos o curso secundário juntos — explicou Alicia. — Era assim que ele falava com todos e eu disse que não responderia se ele não me chamasse pelo nome —  E como foi então que ele passou a falar com você? — perguntou Lady Ayres. — Oi, Alicia — respondeu ela. Todos rimos. — Parece que já foi há tanto tempo! —  Sabe que não mudou quase nada, Alicia? — disse eu. —  Não é obrigado a me fazer elogios, Ângelo. Já tenho uma filha de dezessete anos. Os outros convidados começaram a chegar e tudo se transformou num jantar tipicamente íntimo de Grosse Pointe para dez pessoas, do tipo de jovens líderes da sociedade de Detroit. As conversas foram típicas também. Impostos. A interferência do governo na produção. A nova pressão da segurança e da ecologia e seu apóstolo, Ralph Nader, foram mencionados para receber o seu quinhão de execração.
—  Não negamos a necessidade — disse Loren. — Mas não concordamos com o papel que nos querem dar de vilões. O público esquece com muita facilidade que desejou motores mais possantes e mais velocidade. A única coisa que fizemos foi atender a esse desejo. Ainda agora, com toda essa grita que anda por aí, se o público puder escolher entre um carro possante e um carro mais lento, mais de acordo com as exigências ecológicas, se a escala de preço for a mesma, ninguém deixará de escolher o mais possante. —  Que é que vai acontecer? — perguntou alguém. —  Mais regulamentos do governo — respondeu Loren. — Mais problemas para nós. O custo de produção será tremendo e, se não conseguirmos transferi-lo para o consumidor, seremos forçados a abandonar a indústria automobilística. Mas ele não parecia muito preocupado com isso e a conversa girou para o abismo entre as gerações e para o uso de entorpecentes nas escolas. Depois, cada um teve oportunidade de contar sua história favorita sobre seus filhos. Eu não podia fazer qualquer contribuição nesse particular, de modo que me limitei a fazer sinais de assentimento e escutar. Em dado momento, quando olhei para Lady Ayres, surpreendi-a a olhar-me, com um ar de secreto divertimento. Era uma mulher muito viva. Só percebi mesmo até que ponto era viva quando ela parou ao lado do meu lugar no avião na manhã seguinte. Eu tinha comprado as passagens das cadeiras em torno de mim para poder abrir meus papéis na mesa e trabalhar durante a viagem. Levantei-me. —  Lady Ayres! Que agradável surpresa! O mesmo brilho de divertimento que eu lhe vira nos olhos na noite anterior reapareceu. —  É surpresa mesmo, Sr. Perino? — perguntou ela, sentando-se na cadeira ao meu lado. — Por que então fez tanta questão de me dizer exatamente o número do vôo em que ia viajar hoje? Eu ri. — Lady ou não, calculei que devia haver um limite para a sua capacidade de tolerância. Não podia deixar de ser humana. Estendi a mão para trás da cadeira dela e tirei o cartão de reserva que ali estava com o seu nome. Entreguei-o nas suas mãos. Leu o nome dela ali escrito e levantou os olhos para mim. —  Tem muita confiança em si mesmo, não é, Sr. Perino?
—  Já está em tempo de me chamar de Ângelo. —  Ângelo — disse ela vagarosamente, experimentando o nome na língua. — Ângelo. É um bonito nome. —  Ladeira abaixo o tempo todo — disse eu, segurandolhe a mão. As portas se fecharam e o avião começou a se afastar do portão. Poucos minutos depois, rolávamos pela pista e decolávamos. Ela olhou pela janela para Detroit por um momento e se voltou para mim: — É como se eu estivesse saindo de uma cadeia. Como é que se pode viver numa cidade chata como essa?
 
Capítulo 9
Havia um telex à minha espera no Hotel Fairmont quando fui registrar-me na portaria. Era de Loren e dizia:
 
"Soube que Lady Ayres viajou no mesmo avião que você para San Francisco. Agradeceria muito toda gentileza e assistência que você pudesse dispensar a ela. Abraços. L. H.III".
 
Sorri com a boca torcida e passei o telex a ela. Virei-me então para a portaria e assinei o livro de registro. O empregado olhou para a assinatura e, depois, para a planta dos quartos. —  O seu apartamento já está pronto, Sr. Perino. É na ala nova, na torre. —  Muito obrigado. Ele fez sinal a um boy. —  Quer fazer o favor de levar o Sr. e Sra. Perino ao 2112? — Sorriu para mim. — Boa estada, Sr. Perino. Seguimos o boy pelo comprido corredor até os elevadores da torre. Ela ainda tinha o telex nas mãos e devolveu-o em silêncio quando entramos no elevador.
Só falou depois que ficamos sozinhos no quarto. —  Como acha que ele descobriu? —  A Gestapo de Detroit — disse eu. — Todas as companhias de automóveis têm uma. Não gostam de segredos. —  Pois isso não me agrada! Não é da conta dele para onde eu vou ou o que eu faço. —  Devia sentir-se lisonjeada. Essa espécie de tratamento em geral só é reservada às pessoas importantes para a indústria. —  E que é que eu tenho com isso? —  Calma, Bobbie. Vi a maneira pela qual Loren a olhou. Ele está interessado. —  Todos os homens americanos estão interessados. Jovem viúva loura e toda essa bobagem. Por que iria ele ser diferente dos outros? —  Apenas porque ele é Loren Hardeman III. E teoricamente os reis estão acima dessas fraquezas. —  Só se forem os reis americanos. Nós, na Inglaterra, é que sabemos. Fui até a escrivaninha e peguei uma fórmula de telegrama. O boy chegou com a bagagem enquanto eu estava escrevendo. Fiz-lhe sinal que esperasse. — Veja — disse eu a ela, entregando-lhe a fórmula. Dizia:
 
"Hardeman III, Bethmo, Detroit.  Instruções recebidas. Tudo providenciado. Abraços. Perino".
 
Ela estava sorrindo quando devolveu o telegrama. Entreguei-o ao boy juntamente com a gorjeta. Ele saiu e fechou a porta. No momento em que ele saiu, o telefone tocou. Atendi. Era Arnold Zicker, também conhecido como o tubarão das fusões. Tinha funcionado em mais fusões e aquisições de empresas do que qualquer homem dos Estados Unidos. —  Consegui Tony Rourke para jantar — disse ele. — As oito e meia, está bem? —  Está bem, sim. Oito e meia. Onde? —  Aí no hotel mesmo. Será mais fácil. Zicker era também um dos homens mais baratos do mundo. Se comêssemos no hotel, eu poderia muito naturalmente incluir o jantar na minha conta. —  Certo — disse eu. Desliguei o telefone e olhei para ela. — Jantar às oito e meia, está bem?
—  Perfeito. Você tem alguma coisa especial para fazer daqui até lá? —  Não. . . —  Então vamos para a cama. Ou você pensa que eu andei tanto de avião só para jantar?
 
Foi belo. Verdadeiramente belo. Creio que ambos ficamos surpresos e, depois, um pouco abalados pelo profundo impacto emocional. Continuamos enlaçados depois de passada a febre. Não queria deixá-la. Sentia-a tremer. A carne dela era a minha carne. —  Ei, você — disse eu, tentando ainda compreender. — Que foi que aconteceu ? Ela me passou os braços pelo pescoço, encostando o rosto ao meu. —  As estrelas caíram — murmurou ela.  Fiquei calado. —  Eu precisava de você — disse ela. — Não pode saber quanto. Toquei-lhe os lábios com o dedo. —  Você fala demais.  Ela me mordeu o dedo. — Isso acontece sempre com as mulheres. É por isso que nunca sabem o que vão dizer depois. Pousei o rosto no ombro dela. Ela voltou a cabeça para me olhar. —  Eu sabia que seria assim conosco. — Não seja sentimental, menina. Isso não tem nada de inglês. — Que preciso dizer para que compreenda que não é sempre assim comigo?  Sorri para ela. —  E acha que não sei disso? Estou ainda em você, não estou? Em geral, a estas horas, já estou debaixo do chuveiro. Nesse momento, o telefone tocou. Estendi a mão e atendi. Era Loren. —  Acabo de receber seu telegrama — disse ele. —  Ótimo. — Tudo certo? Onde está ela? —  Aqui comigo. Vai falar com você.  Passei-lhe o fone. —  Estou bem, Loren — disse ela. — Não, é sério, tudo está bem. . . Foi ótimo, mas eu já estava há muito me tornando importuna. . . Sim, muito obrigada. . . Vou ficar na Califórnia ainda algumas semanas. Depois, irei para Londres num vôo sobre o pólo. . . Sim, telefonarei antes de ir. . . Vamos agora mesmo sair para jantar. . . Lembranças a Alicia. . . Adeus. Ela colocou o telefone no gancho e então me afastou dela. Rolei pela cama e fiquei deitado de costas. Ela se sentou na cama e olhou para mim, dizendo: — Você é mesmo um patife! E então começamos os dois a rir.
 
Estavam sentados no bar quando chegamos. Os olhos dos dois se arregalaram quando a viram. Ninguém usa uma microminissaia como uma inglesa. As pernas dela não acabavam mais. Arnold levantou-se do banco do bar e fez as apresentações. —  Tony Rourke. Ângelo Perino. Rourke era um grande irlandês moreno com uma cara vesga de chofer. Simpatizei imediatamente com ele. Apertamo-nos as mãos. Apresentei-a e os dois arrumaram lugar para ela. Toda a conversação cessou por um momento enquanto ela subia para o banco do bar. Era uma coisa digna de ser vista. Pedimos drinques então. Concedi exatamente cinco minutos para as habituais gentilezas e então entrei diretamente no assunto. Olhei para Rourke e disse: —  Arnold me diz que você tem o conjunto em que estou interessado. —  É o que parece — disse ele cautelosamente. —  É verdade — disse Arnold, continuando entusiasticamente. — Sete mil hectares de local industrial privilegiado. Há oitocentos hectares com hangares construídos que podem servir justamente aos seus propósitos. O resto pode ser desenvolvido de acordo com as suas necessidades. O conjunto abrange dois quilômetros de cais e os trilhos da estrada de ferro que passa por lá. Não tomei conhecimento dele. Estava vendendo. —  Não compreendo — disse eu a Rourke. — Por que está vendendo? —  Honestamente? Fiz um sinal afirmativo. —  Não há futuro — disse ele.
Fiquei calado. —  Estamos condenados.  Com os cortes anunciados nas verbas da defesa seremos os primeiros sacrificados. —  Por que pensa assim? — disse eu. — Ainda há necessidade de helicópteros. Os helicópteros eram a principal linha dele. —  Nada feito — disse ele. — Tudo está bem para nós enquanto os grandes estão ocupados com outros projetos, a Boeing com os seus 747, a Lockheed com os 1011. O transporte supersônico nunca será aprovado pelo Congresso. Será muito fácil tirar-nos as encomendas para dá-las a eles e têm de fazer isso porque há mais o que proteger com eles do que conosco. Mais pessoal e mais capital. —  E quanto à aplicação comercial de seus aparelhos? —  Nem pense nisso. O mercado já está saturado. Além disso, nosso helicóptero não é adaptável. Foi projetado como uma máquina de guerra. — Tomou outro gole de bebida. — Já fomos notificados de que o contrato não será renovado no ano que vem. —  Agradeço a franqueza — disse eu, olhando-o bem nos olhos. — Está sendo muito honesto. Ele sorriu. —  Foi o que pediu e eu não podia proceder de outra forma. Além disso, se eu nada lhe dissesse, poderia descobrir tudo logo que começasse a fazer as suas investigações. —  De qualquer maneira, obrigado — disse eu. — Poupou-me muito tempo e muita conversa fiada. Trouxe todos os planos e informações? —  Estão aqui — disse ele, apontando para uma pasta no chão perto de seus pés. — Muito bem. Neste caso, podemos jantar e depois subir e examinar tudo. Já passava das três da manhã quando afinal saíram do apartamento. —  Tenho um avião no aeroporto para levá-lo até a fábrica quando quiser — disse Rourke. —  Muito obrigado. Comunicar-me-ei com você amanhã.  John Duncan devia chegar num vôo da manhã. Tinha-se aposentado na Bethlehem, quatro anos antes, ao completar sessenta anos, Era o único homem em quem Número 1 tinha confiança, —  John Duncan é para mim o que Charlie Sorensen foi para Henry Ford — tinha dito ele. — Não existe nada que ele não possa fazer na Produção. —  Mas ele está aposentado — disse eu. —  Vai voltar, tenho certeza. Conhecendo John como conheço, sei que está se sentindo muito infeliz por estar trabalhando sozinho naquele seu motor de turbina na garagem dos fundos da casa. E Número 1 tinha razão. A única pergunta que John Duncan fez foi quando íamos começar. Fechei a porta depois que eles saíram. Voltei para a sala e preparei um drinque. Empurrei para o lado uma pilha de papéis e me deixei cair no sofá. —  Já foram? A voz dela vinha da porta do quarto. Olhei-a. Estava vestindo um cafetã de algodão lustroso que moldava todas as promessas que havia por baixo dele. —  Peguei no sono — disse ela. — Mas continuei a ouvir o murmúrio das conversas. Que horas são? Olhei para meu relógio. —  Três e vinte. —  Você deve estar esgotado. —  Nem tanto, minha filha. Em Detroit ainda é uma e vinte. Ela preparou um gim-tônica e se sentou numa cadeira diante de mim. Provou a bebida. —  Não estou entendendo. Você não precisa ter esse trabalho todo só para fazer carros de corrida, não é? Sacudi a cabeça. —  Deve estar querendo outra coisa. . .  Fiz um sinal de assentimento. —  Loren sabe o que você está querendo fazer? —  Não. Ela ficou em silêncio por um instante enquanto tomava outro gole do gim, —  E não está preocupado? —  Com quê? —  Comigo. Afinal de contas, eu posso dizer alguma coisa a ele. —  Não. —  Por quê? Você não sabe de nada a meu respeito. —  Sei de sobra — disse eu, levantando-me e pondo um pouco mais de uísque no meu copo. — Além de saber que você numa cama é uma das grandes mulheres que existem no mundo também sei que é uma lady, uma senhora muito digna. Ela ficou em silêncio alguns instantes. Depois, passou língua nos lábios e murmurou: —  Gosto de você. —  É outra coisa que eu sei — disse eu, rindo. Ela jogou o drinque em cima de mim e nós fomos para cama. Foi ainda mais belo.
 
Capítulo 10
Ela se aproximou por trás de mim quando eu estava fazendo a barba. Ouvi-a apesar do zumbido do barbeador elétrico. —  Você gritou no sonho esta noite — disse ela. — Sentou-se na cama, cobriu o rosto com as mãos e gritou. Olhei para ela pelo espelho e disse:  — Desculpe. — A princípio, fiquei sem saber o que devia fazer. Depois, tomei-o nos braços e você voltou a dormir tranqüilamente. —  Não me lembro de nada disso — disse eu, largando o barbeador. Mas não era verdade. Acordado ou adormecido, o sonho nunca me deixava. Passei um pouco de loção no rosto. —  Que é, Ângelo? É por isso que seus olhos estão sempre tristes? — Eu morri num desastre — disse eu. — Os felizes ficam mortos quando acontece isso. Eu, não. O rosto dela desapareceu de repente do espelho. Só me lembrei do marido dela tarde demais. Segui-a até o quarto. Ela estava à janela olhando para San Francisco. Passei os braços pelo seu corpo e voltei-a para mim. —  Não tive qualquer intenção. . . Ela encostou a cabeça ao meu peito e eu lhe senti a face molhada. —  Sim — disse ela numa voz mansa. — Você teve a intenção de dizer exatamente o que disse. E o pior é que eu compreendo tudo e nada posso fazer.
—  Sim, você está fazendo muito e é linda. De repente, ela perdeu a serenidade. Afastou-se de mim e exclamou: —  O que é que há com vocês todos? John era a mesma coisa. Será possível que nunca ninguém ou nada possa atingilos? Será que não têm dentro da cabeça senão esse desejo maluco de se espatifarem de encontro a um muro? —  OK, —  OK O quê? —  Isso eu já fiz. E agora? Ela me olhou por um momento e, então, sua raiva se dissolveu e ela voltou aos meus braços. Podia sentir-lhe o corpo tremer de encontro ao meu. —  Desculpe, Ângelo. Eu não tinha o direito de. . . —  Tem todo o direito, minha filha. Ao menos, enquanto se interessar. . .
 
O Falcon estava na pista entre os 774 e os 707 esperando autorização para decolar, como um pardal no meio de um bando de águias. O piloto se voltou para nós. —  Não vai demorar muito. Estamos em quarto lugar.  Olhei para John Duncan. Estava carrancudo e calado. Não gostava nada de andar de avião e, ao ver o aparelho, quase chamou um táxi. Sorri para Bobbie e perguntei a John: —  Tudo bem? Ele não sorriu, nem respondeu. Não seria qualquer conversa que lhe iria melhorar o ânimo. Não disse uma só palavra até irmos para a pista e tomarmos posição para a decolagem. Olhou então para mim e disse: —  Não leve a mal, Ângelo, mas vou voltar de trem. Ri com vontade. O tempo não o havia mudado. Talvez a cabeça tivesse menos cabelos, mas as mãos e os olhos continuavam rápidos e seguros. Parecia ainda o mesmo homem que reformara meu automóvel no parque, havia mais de trinta anos. O avião pousou na pista da fábrica. Tony Rourke estava à nossa espera e eu apresentei os dois. —  Tomei a liberdade de reservar-lhes quartos num hotel perto daqui — disse ele. — Acho que vão precisar no mínimo de dois dias para uma visita completa à fábrica. Pecou por modéstia de cálculo. Passamos quase uma semana por lá. E, se não fosse John Duncan, eu me sentiria inteiramente perdido. Comecei a compreender por que Número 1 tinha tanta confiança nele. Nenhum detalhe lhe escapou à atenção. Quis saber até a profundidade do rio que passava pelo cais, na hipótese de que quiséssemos levar até ali navios de grande calado. No fim da semana, estava sentado com ele no quarto do hotel com as plantas da fábrica diante de nós. Bobbie nos preparou dois uísques e foi para o quarto. —  Que é que acha, Duncan? —  Pode servir. A linha de montagem principal terá de ser   consideravelmente ampliada para haver o máximo de eficiência na produção, mas não há razão alguma para que isso não possa ser feito. Há espaço bastante. Os edifícios de prémontagem estão em boa posição e não teríamos de construir mais que algumas centenas de metros quadrados para que tudo fosse perfeito. Só uma coisa me preocupa. —  Que é? —  Aço. Não conheço as usinas daqui da costa do Pacífico. Podem não ter capacidade de abastecer-nos. Neste caso, teríamos de receber o aço do leste e estaríamos arruinados antes mesmo de começarmos. Ficaria mais tranqüilo se tivéssemos    a nossa usina. Foi nesse ponto que a GM e a Ford sempre nos bateram. Produziam carros enquanto nós ficávamos à espera do aço. —  Vamos cuidar disso. Mais alguma coisa? —  Não, nada de que eu me lembre no momento. —  Faz alguma idéia do que vamos gastar com a conversão da fábrica? —  Sem saber qual é o carro que vamos produzir? Não é possível. —  Soube que a Ford está construindo uma nova fábrica para produzir os seus carros pequenos. Sabe quanto estão gastando com ela? —  Ouvi falar em cem milhões de dólares. —  Vamos precisar de tanto assim, Duncan? —  Talvez. Eu gostaria de pôr em ação uma turma de engenharia de custo. Não gosto de palpites. — Quanto tempo essa turma levaria trabalhando? —  De três a quatro meses. —  Muito tempo. Se resolvermos comprar esta fábrica, temos de tomar a decisão já. Não posso fazê-los esperar tanto tempo. —  Isso é com você — disse ele e começou a sorrir. — Lembrei-me agora de Número 1. Ele também não tinha paciência de esperar pelos cálculos. —  Acha que vale os seis milhões que Rourke está pedindo? —  Já mandou fazer a avaliação? —  Já. Duas vezes. Uma das avaliações foi de dez milhões; a outra, de nove milhões e seiscentos. —  Que é que Rourke pretende fazer com a fábrica quando o seu contrato tiver terminado? —  Vender.  —  Não vai encontrar comprador para tudo. Terá que dividir a coisa em lotes e levará a vida toda. — Pensou por um momento e acrescentou: — Depende de como ele estiver precisado de dinheiro. —  Não sei. Mas tenho a impressão de que está em boas condições. —  Estive olhando bem a fábrica, Ângelo, e senti muito respeito por ele. Seria um ótimo homem de produção na indústria de automóveis, se estivesse interessado. —  Que conversa é essa, John Duncan? —  Você   bem   poderia   experimentá-lo   nessa   atividade. Dois anos comigo e ele seria o melhor homem da indústria. Você bem sabe que eu não estou ficando mais moço.
 
O encontro fora marcado para as três da tarde. Entrei no escritório dele. Gostei do aspecto. Não havia enfeites. Era um escritório de trabalho. Das janelas, podia-se ver a fábrica. Apontou-me uma cadeira e perguntou: —  Aceita um drinque? —  Não, muito obrigado.  Ele acendeu um cigarro. —  Que é que acha? —  Acho que lhe poderia dar uma longa lista dos motivos pelos quais não vou comprar sua fábrica. Mas isso não é importante, não é mesmo? Ele ficou em silêncio durante algum tempo e por fim disse: —  Estou de acordo. Os motivos não têm importância. De certo modo, estou satisfeito. Posso dizer que levantei esta fábrica sozinho com minhas mãos. É muito justo que fique com ela. O comandante deve ir para o fundo com o seu navio. —  Nada disso. Não conheço tolice mais romântica do que essa. Um comandante inteligente passa para outro navio.
—  Para onde é que eu posso ir? Trabalhar de novo na Bell? Na Sikorsky? Nada feito. Já vivi muito por conta própria. Além disso, não se pode fazer mais nada com o helicóptero. Está especializado demais. —  Já pensou em automóveis? Estão por toda parte. —  Deve estar brincando!   Não  entendo nada de  automóveis . —  Não há muita diferença entre fabricar carros e aviões — disse eu. — Só que é preciso produzir automóveis em muito maior quantidade. Ele ficou calado. —  John Duncan diz que em dois anos pode fazer de você o melhor homem da indústria. E, se conhecesse aquele escocês manhoso como eu, acreditaria nele. Se ele acha que você dá para a coisa é porque dá mesmo. E estamos conversados. —  Mas o que é que eu ia fazer com isso? — disse ele, com um gesto circular na direção das janelas. —  Vender. —  A quem? Eu levaria uns cinco anos para me livrar disso aos poucos. —  Não estou falando na fábrica. Venda sua companhia. —  Quem iria comprá-la? Uma companhia que está a pique de fechar as portas? Quando todo o ativo fosse liquidado, eles se dariam por muito felizes se ficassem com um milhão de dólares. — É exatamente essa a importância em que estou pensando. Desde que queira trabalhar para nós mediante um contrato de sete anos. Ele começou a rir e estendeu a mão. —  Sabe de uma coisa? Acho que vou gostar de trabalhar com você. Apertei-lhe a mão e perguntei: —  Por quê? —  Porque você é um malandro da pior espécie. —  De que é que está se queixando? — disse eu, rindo. —  Acabo de fazer de você um milionário! —  Quem é que está se queixando? — perguntou, tirando uma garrafa da gaveta. — Que é que vamos fazer agora? —  John Duncan já está de volta a Detroit para contratar uma turma de engenheiros de custo. Voltará dentro de uma semana. —  Muito justo — disse ele passando-me um uísque. — Agora que você é o dono da companhia, não se esqueça de que precisa de algum capital de giro. É preciso pagar duzentos mil dólares nos bancos até o fim do mês. —  Já mandei seu balanço para nossos contabilistas com instruções para tomarem providências e organizarem as coisas. —  Parece que pensou em tudo, mas se esqueceu de uma coisa — disse ele. — Que é que eu vou fazer enquanto tudo isso está acontecendo? —  Vai comprar-nos uma usina siderúrgica, de tamanho suficiente para nos abastecer de aço para um mínimo de produção de duzentos e cinqüenta mil carros no primeiro ano e bastante próxima para não nos arruinarmos com o transporte do aço para cá. E mais uma coisa. Trate de comprar uma partida de uísque canadense. Você está agora na indústria de automóveis.
 
Capítulo 11
Arnold irrompeu impetuosamente pelo meu apartamento no Fairmont com os olhos injetados de sangue. —  Você me roubou uma comissão de novecentos mil dólares! — exclamou. — Apunhalou-me pelas costas e fechou o negócio pessoalmente! Sorri para ele. —  Acalme-se, senão pode ter um enfarte. —  Vou levá-lo aos tribunais! Arrancarei o último centavo que você tiver nos bolsos! —  Seria mesmo bom que você fizesse isso — disse eu. — Gostaria muito de vê-lo dizer em juízo com suas próprias palavras como foi que tentou arrancar de mim seis milhões de dólares sabendo que a companhia estava praticamente falida. —  Seria mesmo capaz de fazer isso? — perguntou ele, escandalizado. —  Por que não? Você vem se dando tão bem até hoje com suas malandragens que deve ter metido na cabeça que todas as outras pessoas são imbecis. Creio que não seria muito difícil conseguir que a Comissão de Títulos e Câmbio e o Congresso iniciassem um inquérito para saber quanto dinheiro você arrancou de várias empresas e de seus acionistas. Ele ficou em silêncio durante alguns momentos. Quando falou, a voz tinha baixado duas oitavas. —  Que deseja que eu faça? Que entre em acordo para receber uma mísera comissão de quinze por cento sobre um milhão de dólares? —  Não. —  Eu sabia que iria compreender o meu ponto de vista. Não seria justo. —  De fato. —  Que seria justo na sua opinião?  — Cinco por cento. Ficou vermelho e sem fala. Só ao fim de alguns instantes recuperou a fala. —  Isso é titica. Eu nem atravessaria a rua para receber isso. Seria melhor até não ganhar nada. —  Também acho. Seria muito melhor. —  Eu não faço negócios assim, fique sabendo! Tenho uma reputação a zelar. Eu ri. —  Que é que eu vou fazer? Mas estou apenas começando. Pode haver outras coisas em que seria possível trabalharmos juntos, mas se prefere assim. . . Ele não me deu nem oportunidade de acabar. —  Eu não disse que não ia receber. Afinal de contas, há coisas  mais importantes do que dinheiro.  Relações, por exemplo. . . —  Tem toda a razão, Arnold. —  É com prazer que vejo que concordamos. Como é que eu faço? Mando a fatura para Weyman na Bethlehem para que ele me pague? —  Não. Mande-a para mim, aos cuidados do Banco Nacional de Detroit. —  Por quê? Não está agindo em nome da Bethlehem? —  Quem foi que lhe disse isso? Estou metido nessa coisa por conta própria. A única coisa que tenho de fazer para a Bethlehem é procurar uma equipe de corridas. Pensou no caso e era evidente que não acreditava em mim. —  Está bem — disse ele. — Vou continuar com o jogo. Que mais tem em vista? —  Quero uma usina siderúrgica na costa do Pacífico. Entre em contato com Tony Rourke. Vai trabalhar comigo e lhe dará todas as informações necessárias. Pedi uma ligação para Número 1  no momento em que Arnold saiu. —  Por onde é que você tem andado? — disse ele, e sua voz na ligação interurbana não era mais que um leve murmúrio. — Há uma semana que não tenho notícias suas. Inteirei-o de todos os fatos. —  Você anda depressa — disse ele quando eu terminei. —  Tive com quem aprender. —  Já teve alguma notícia de Detroit? —  Nem uma palavra. Mas não espero que isso dure muito. Arnold Zicker acaba de sair daqui. Estava com a idéia de que estou agindo em nome da Bethlehem. Tive de corrigi-lo, dizendo que estava agindo por conta própria. —  Acha que ele acreditou? —  Não. É por isso que espero alguma novidade. Com toda a certeza, vai fazer algumas investigações em Detroit. Não é homem para querer ficar por fora das coisas. —  Como está se arranjando em matéria de finanças? —: perguntou Número 1. —  Estou sacando de minha conta pessoal. Afinal de contas, o senhor não foi o único avô rico de Grosse Pointe. Ele riu. —  Não é bom negócio para você. E se eu não entrar com o dinheiro? —  É um risco que eu corro. Meu avô dizia que o senhor era o melhor risco de crédito de Detroit. Era o único homem que pagava o uísque clandestino como se fosse legítimo. —  Isso ainda me dá vergonha — disse ele, rindo. — Quanto você já gastou de seu dinheiro? —  Cerca de dois milhões até agora. Um milhão para a aquisição da fábrica e um milhão para despesas operacionais nos próximos meses. —  Aceita um milhão em dinheiro e um milhão em certificados de ações da Bethlehem? —  Feito. —  Estará tudo em seu banco de manhã. Para onde você vai daí? —  Riverside, Califórnia. Vou contratar alguns corredores. Depois para Nova York. Tenho um encontro marcado com Len Forman para ver o que se pode fazer em matéria de emissão de títulos.
—  Escute, desista de Riverside. Acho que já fomos muito longe para ainda nos preocuparmos com cobertura. É melhor ir direto para Nova York. Quero tanta preparação quanto for possível antes que descubram. —  Está muito bem. Mas ainda acho que devo telefonar para Loren e dizer-lhe que vou sair do combinado. Não me incomodo com um bom jogo, mas a traição deslavada não é de meu feitio. Disse a ele que vinha contratar uma equipe de corridas. —  Não vai fazer nada disso! Deixe Loren comigo. Além disso, acha que ele acreditou, um momento que fosse, no que você disse? Não disse nada. —  Cale essa boca e vá para Nova York! —  Está bem. Ele pode ser seu neto, mas fique sabendo que não gosto disso! —  Não estou lhe pedindo que goste ou deixe de gostar! Trate de seu serviço! Bateu-me o telefone e eu desliguei. Preparei um drinque e fui para o quarto. Ela estava deitada na cama, lendo uma revista. —  Acabou a reunião? —  Acabou. —  Tudo em ordem? —  Tudo — disse eu, tomando um gole do uísque, que estava muito bom. — Mas houve uma alteração dos planos. —  Como assim? —  Não vamos mais para Riverside. —  Para mim, tanto faz — disse ela. — Se pudesse, não veria nunca mais um carro de corrida. —  Vamos para Nova York. —  Quando? —  Se arrumarmos as malas agora, poderemos pegar o vôo noturno que sai às dez e quarenta e cinco e iremos amanhecer em Nova York. —  E se não pegarmos o vôo noturno? —  Pegaremos o da manhã. Mas vou perder um dia inteiro. —  E isso tem importância? —  Pode ter. —  Então vamos pegar o vôo noturno — disse ela, levantando-se da cama. Tirou o robe e foi nua até o armário para pegar as roupas.
— Deixe para lá — disse eu. — Volte para a cama. Não podia haver nada mais absurdo do que passar a noite a bordo de um avião.
 
Capítulo 12
Uma coisa posso dizer dela. Lady ou não, comia como um estivador. Via-a devorar o café da manhã: suco de laranja, panquecas, ovos, salsichas, torradas, geléia de laranja e chá. Enquanto isso, eu tomava café a fim de preparar-me para o dia que tinha diante de mim. — Vocês, americanos, gostam de cafés da manhã imensos — disse ela entre dois bocados. — E eu acho isso maravilhoso. Concordei com ela, ao mesmo tempo que me servia da quarta xícara de café. O telefone tocou e eu atendi. — Quem fala é Carroll, da portaria do hotel, Sr. Perino. Desculpe incomodá-lo. —  Não tem importância, Sr. Carroll. Que é que há?  A voz dele ficou mais baixa. —  Há um telefonema interurbano para Lady Ayres. É de Detroit e eu achei melhor falar com o senhor antes de fazer a ligação. Cobri o fone com a mão. —  Quem é em Detroit que sabe que você está aqui? —  A única pessoa a quem eu disse foi Loren — respondeu ela. Desde que o nome dela não constava do registro do hotel, a segurança parecera suficiente. —  Escute, Sr. Carroll — disse eu ao telefone —, sei que o senhor é um homem inteligente e discreto. Pode completar a ligação. — Obrigado, Sr. Perino — disse ele com uma voz em que transparecia satisfação. — Se quiser fazer o favor de desligar, darei instruções à telefonista. Desliguei o telefone e passei-o a ela. Um momento depois, a campainha tocou.
—  Alô — disse ela. Houve um pequeno estalo no receptor. — Oh, Loren, como foi gentil em telefonar para mim. . . Não, não é cedo demais. Estava agora mesmo tomando o meu café da manhã. . . A voz dele ressoava levemente no telefone. Ela escutou um momento. Cobriu então o fone com a mão e me disse num sussurro: —  Ele está dizendo que vai passar em Palm Springs um longo fim de semana de sol e de golfe e quer que eu vá para lá com ele. Sorri. Loren tinha sexo, afinal de contas. Só não sabia era se o estava descobrindo naquele momento. —  Diga a ele que vai partir hoje mesmo para o Havaí.  Ela fez um sinal afirmativo. —  Que azar, Loren!... Eu adoraria ir com você, mas já fiz planos para ir ao Havaí. Nunca estive lá e tenho muita vontade de conhecer o lugar. A voz dele ecoou no telefone e ela cobriu de novo o fone com a mão. —  Ele disse que isso é melhor ainda. Diz que conhece alguns lugares maravilhosos por lá. E agora? Pensei por um momento. Não era a pior coisa do mundo. Ao menos, isso o afastaria de Detroit, e, quanto mais tempo ficasse longe, melhor seria para nós. Sorri para ela. —  Acho que você vai para o Havaí. Ela falou mais alguns momentos ao telefone e então desligou. Pegou um cigarro em silêncio. Aspirou profundamente a fumaça, sem tirar os olhos de cima de mim. —  Não sei se estou de acordo com isso — disse por fim. —  Por quê? Não é sempre que se tem oportunidade de dar um passeio até o Havaí. —  Não é disso que estou falando e você sabe muito bem. Não estou de acordo é com sua atitude. Está me mandando embora como se eu fosse alguma prostituta que você tivesse pegado no meio da rua. Sorri para ela. —  Parece que li alguma coisa de um inglês que dizia que era essa a única maneira de tratar uma lady. Ela não sorriu. —  Você de fato não tem o menor interesse por mim. —  Não diga isso. Eu não a amaria tanto, querida, se não amasse mais a honra.
—  Deixe de me citar — disse ela, aborrecida. — Que é que a honra tem a ver com isso? —  Não diga isso. Afinal de contas, estou me sacrificando por um amigo. Noblesse oblige. A verdade é que contraí uma dívida para com ele. Se não fosse ele, nunca nos teríamos conhecido. Ela me encarou firmemente. —  Você quer afastá-lo do caminho, não é? —  Quero — disse eu simplesmente. —  E se ele acabar gostando de mim? —  O problema é dele. —  E se eu acabar gostando dele? —  O problema é seu. —  Você é mesmo um cachorro — disse ela e eu me levantei. — Um momento. Para onde é que você vai? —  Vou me vestir. Tenho um avião para pegar às dez horas. —  Você não vai para lugar algum agora — disse ela, firmemente. — Só vou me encontrar com ele no aeroporto às sete horas da noite. Agora que você sabe que ele está fora do caminho, um dia a mais ou a menos não tem importância. —  E daí? —  Daí que vamos passar o dia na cama. Você nem sabe o que o espera. Depois de passar um dia em minhas mãos, vai ficar tão esgotado que passará um mês sem sequer poder olhar para outra mulher. Ri, sentei-me na cadeira e estendi a mão para o telefone. —  Vai falar com quem? — perguntou ela, desconfiada. —  Com o restaurante. Tinha a impressão de que ia precisar comer muito para resistir.
 
Fui até o aeroporto com ela, muito embora meu avião só fosse sair duas horas depois. Levei minhas malas para serem despachadas e fui com ela para a área de espera do vôo da United que vinha de Detroit. Tínhamos cerca de quinze minutos até a chegada dele. —  Temos tempo para um drinque rápido — disse eu, levando-a para o bar mais próximo. A garçonete deixou os drinques à nossa frente e foi-se embora. Ergui o copo. —  Viva!
Ela mal provou o martíni. Olhei para ela. Tinha estado em silêncio desde que havíamos saído do hotel. —  Coragem! — disse eu. — Não é tão ruim assim. À luz fraca, eu mal podia ver-lhe os olhos sob as abas caídas do chapéu de feltro. —  Estou preocupada com você — disse ela. —  Estarei bem. —  Tem certeza? —  Claro. Levou o copo aos lábios e tornou a colocá-lo em cima da mesa sem provar o drinque. —  Tornarei a vê-lo?  Fiz um sinal afirmativo. —  Quando? —  Quando você voltar. —  Onde poderei encontrá-lo? —  Estarei por aí. Eu é que a encontrarei. A voz mecânica chegou dos alto-falantes embutidos no teto. —  United Airlines, vôo 271 de Detroit, está chegando ao portão 72. —  É o seu — disse eu. Acabei meu drinque e nos levantamos. Ela não havia tocado no drinque. Deixamos a semi-escuridão e entramos nas luzes fluorescentes de milhões de watts da terminal. Parei ali e disse:  — Divirta-se nas suas férias.  Ela olhou para meu rosto e disse com voz branda: —  Cuide-se. Há outras maneiras de morrer sem ser preciso subir pelas paredes. —  Fique descansada — disse eu e beijei-a de leve nos lábios. — Adeus. Quase não lhe senti os lábios moverem-se sob os meus. —  Adeus. . . Afastou-se três passos e de repente voltou e se jogou em meus braços. A boca procurou avidamente a minha. —  Não me deixe ir, Ângelo! Eu o amo! Por um momento, quase ouvi a música, mas o rufar dos tambores foi mais forte. —  Não a estou deixando ir — disse eu e desprendi-lhe delicadamente os braços de meu pescoço. Ela não disse mais uma palavra. Não olhou para trás e eu fiquei ali olhando-a até ela chegar ao portão.
 
Os passageiros já vinham saindo. Ele foi um dos primeiros que saltaram do avião. Era um homem grande e sobressaía acima dos outros com o seu chapéu de feltro cinza de Detroit. Um sorriso lhe fendeu o rosto ao vê-la. Correu para ela, tirando o chapéu com uma das mãos e estendendo a outra. Apertaram-se as mãos quase cerimoniosamente e, então, ele se curvou desajeitadamente e beijou o rosto dela. Virei-me e segui pelo passeio rolante que levava à terminal central e ao meu vôo. Só olhei para trás uma vez. Estavam entrando no bar de onde havíamos saído pouco antes. Ele tinha a mão sobre o braço dela como se estivesse carregando uma cesta de ovos. Olhava para o rosto dela e falava. As luzes fluorescentes fizeram arder-me os olhos e eu deixei de olhar. Segui então para o bar mais próximo. Tinha duas horas para esperar pelo meu vôo e, quando afinal embarquei, estava arrasado. Não arrasado externamente de cansaço e bebida, mas arrasado internamente de tristeza e vazio. Sentei-me no meu lugar e apertei o cinto. Recostei-me e fechei os olhos. —  Está bem? — perguntou-me a aeromoça. — Deseja alguma coisa? Abri os olhos e olhei-lhe o rosto profissionalmente sorridente. —  Quero, sim — disse-lhe. — Dê-me um uísque canadense só com gelo logo que levantarmos vôo e uma venda para os olhos. Depois, não me chame para nada. Nem hors d'oeuvres, nem jantar, nem cinema, nada. Quero dormir até chegar a Nova York. Mas não deu resultado. Nem o uísque, nem a venda nos olhos. Apesar dela, e embora ficasse de olhos fechados pelo resto da noite, não dormi. Só ouvia a voz dela aos meus ouvidos e só via a expressão que tinha no rosto quando me deixou. Fiquei satisfeito quando o avião desceu afinal em Nova York e eu pude abrir os olhos. Tudo aquilo tinha sido pesado demais.
 
Capítulo 13
Três dias depois, estávamos sentados no gramado acima da piscina e da praia particular com sua areia branca que descia para o mar. Uma leve brisa de princípios de setembro agitava as folhas das palmeiras acima de nossas cabeças. Fechei os olhos e voltei o rosto para o sol. —  O inverno está chegando — disse Número 1. —  Ainda está quente — disse eu. —  Para mim, não. Todos os anos, penso em ir cada vez mais para o sul. Talvez para Nassau ou para as ilhas Virgens. À medida que fico mais velho, mais meus ossos parecem dar sinal da chegada do frio. Voltei a cabeça para olhá-lo. Estava sentado na sua cadeira de rodas, com as pernas envoltas no perene cobertor, e olhava para o mar. —  Que tal é a velhice, Número 1? — perguntei. Ele não tirou os olhos da água salpicada de espumas brancas. —  Odeio a velhice — disse ele, sem dar ênfase especial às suas palavras. — Principalmente porque é chata. Tudo parece estar passando pela gente sem dar a mínima atenção e se descobre então que não se é tão importante quanto se julgava. O mundo e a vida continuam e no fim a gente fica absorvido no único jogo que resta, na última ambição estúpida: 01! —  Zero-um?! Que quer dizer isso? —  O primeiro minuto do dia seguinte, a prova de que se venceu mais um dia. É o jogo da sobrevivência. Só que a gente não sabe que está no jogo. O amanhã não é outro senão o mesmo dia de hoje, em que se começa, talvez com mais ansiedade, a esperar o primeiro minuto do dia seguinte. —  Se é assim, por que está se metendo em tudo isso? —  Apenas porque mais uma vez, antes que eu morra, quero que alguma coisa tenha mais valor para mim do que esperar o primeiro minuto do dia seguinte. — Olhou de novo para o mar e continuou: — Acho que nunca me incomodei muito com o que estava me acontecendo até quando no ano passado Elizabeth veio passar uns dias comigo. Você a conhece? Elizabeth era a filha de Loren. —  Não, nunca a vi. —  Tinha dezesseis anos quando esteve aqui. E, de repente, atrasou o relógio para mim. No verão passado, Betsy tinha exatamente a idade que a bisavó dela tinha quando nos conhecemos. O tempo faz pilhérias engraçadas e dá saltos de gerações para se criar de novo. Naqueles dias, voltei a ser moço.  Eu não disse nada. — Levantava-me bem cedo e olhava de minha janela para vê-la nadando na piscina. Uma manhã, tudo foi belíssimo: ela deixou o maiô na beira da piscina e mergulhou na água. Fiquei a olhá-la até que a mocidade e a exuberância dela me fizeram chegar as lágrimas aos olhos. Compreendi então o que me havia acontecido. Deixara os anos passarem sem que tivesse alguma coisa pela qual me interessasse ao ponto de fazer-me chorar. "Meu mundo tinha se tornado meu corpo, minha casca, minha prisão, na qual eu cumpria minha sentença. E isso era muito errado. Uma prisão é uma coisa de que se deve tentar sair. Eu estava fazendo exatamente o contrário, Minha única preocupação era achar meios e cada vez mais tempo de ficar dentro de mim mesmo. Naquele exato momento, soube o que tinha de fazer. "Tinha de tirar as roupas e pular mais uma vez dentro da piscina. Durante mais de trinta anos eu tinha ficado sentado nesta cadeira pensando que estava vivo, quando na realidade estava morto. Mas eu não queria continuar morto. Havia ainda alguma coisa que eu podia fazer. Faria um carro para Betsy como tinha feito para a bisavó dela. "Quando ela saiu da piscina e nós nos sentamos à mesa para tomar o café da manhã, disse-lhe o que pretendia fazer. Ela deu pulos de alegria e me abraçou toda contente. E sabe o que foi que ela me disse?" Sacudi a cabeça. —  "Meu bisavô, isso seria a coisa mais legal que alguém poderia fazer para mim!" Ficou alguns instantes em silêncio e continuou: —  Depois que ela foi embora, telefonei para Loren. Ele me disse que era um belo sentimento de minha parte, mas pouco prático. Economicamente, a nossa estrutura de lucros tinha se estabilizado, e poderia ser irremediavelmente perturbada pela construção de um novo carro. Materialmente, não dispúnhamos de espaço, pois mais de setenta por cento eram empregados em outras espécies de manufatura. Mas me prometeu que ia estudar o assunto. —  E estudou? —  Não sei. Se estudou, nada me disse. Ao fim de algum tempo cheguei à conclusão de que, se queria fazer o carro, tinha de encontrar alguém que o fizesse para mim. Foi por isso que o chamei. —  Por que a mim? —  Porque os automóveis são sua vida como são a minha. Sei disso desde aquele dia no parque e percebi que era apenas uma questão de tempo você deixar de lado os brinquedos e entrar a sério naquilo para que você sempre teve queda.  E soube que tinha tido razão desde o momento em que ouvi sua voz pelo telefone depois da corrida de Indianápolis. —  Está bem, o senhor me recrutou. Mas ainda há Loren.  A perplexidade se estampou no seu rosto. —  Palavra que não estou compreendendo. Eu sei que Loren não é imbecil. Já devia ter descoberto há muito tempo o que estamos querendo fazer. E ainda não me disse uma só palavra. —  Loren está com outras coisas na cabeça. — Isso não! Uma coisa que ele nunca faz é desviar-se dos negócios por um momento que seja. —  Pois desta vez se desviou. —  Deixe de mistérios. Se sabe alguma coisa que eu não sei, diga logo. —  Loren está com a cabeça cheia de idéias românticas. Agora mesmo, está no Havaí.    —  Como é que sabe disso? Telefonei várias vezes para a casa e para o escritório dele. Ninguém sabe onde ele está. —  Pois eu fiz quase tudo menos embarcar a garota no avião com ele. Contei-lhe resumidamente a história e, no fim, ele começou a sorrir. —  Ótimo — disse ele. — Estava começando a duvidar de que ele fosse humano. Talvez ainda haja  alguma esperança para ele. Levantei-me. — Vou até lá dentro para ver como os rapazes estão se arrumando com as suas contas. Deixei-o sentado ali olhando para o mar e voltei para a casa, indo até a biblioteca. Apesar das janelas abertas, havia camadas de fumaça azul de cigarro pairando no ar acima da mesa em torno da qual os homens estavam reunidos. Numa ponta da mesa, estava Len Forman, sócio de Danville, Reynolds e Firestone, representando um consórcio de corretores, e, na outra ponta da mesa, Arthur Roberts, preeminente advogado comercial de Nova York, que nos estava representando. O que me agradava em Artie era que ele não tinha receio de uma luta e todos nós sabíamos que aquilo não ia ser um piquenique. —  Onde estamos? — perguntei. —  Quase no fim — disse Artie. — Penso que podemos começar a conversar. —  Vou chamar Número 1 — disse eu. —  Não faça isso — disse Artie prontamente. — Iremos com você. Depois de três dias dentro desta sala, um pouco de ar puro não nos fará mal algum. —  Ainda tenho algumas coisas para ajeitar aqui — disse Len. — Pode ir que eu já vou. Fomos para a piscina. Número 1 ainda estava olhando para o mar. Voltou a cabeça quando ouviu nossos passos. Entrou diretamente no assunto. —  Que é que acha, Sr. Roberts? É possível? —  É, sim, Sr. Hardeman — disse Artie. — Mas acho que devemos examinar os vários meios que temos de conseguir os nossos fins. —  Explique-os — disse Número 1. — Mas de uma maneira simples. Sou mecânico e não advogado ou contabilista. —  Vou tentar — disse Artie, sorrindo. Sabia tão bem quanto eu que Número 1 tinha pensado em tudo muito antes que qualquer um de nós entrasse em ação. — Há vários meios. Um deles é oferecer ao público ações da companhia toda. Creio que isso pode ser conseguido sem sérias desvantagens fiscais. O segundo é separar a divisão de eletrodomésticos do corpo central da empresa e vendê-la ou oferecer ao público as ações. Terceiro, o contrário do segundo, isto é, separar a divisão de automóveis e vender os títulos publicamente. Em vista da sua estrutura sem lucros, creio que esse meio seria o menos interessante. —  Acha que poderemos levantar o capital de que precisamos? — perguntou Número 1. —  Não vejo razão alguma para que não — disse Artie. — Seja qual for o plano que adotarmos. — Voltou-se para Forman, que tinha chegado no momento em que a pergunta era feita. — Que é que acha, Len? —  Não haverá problema — disse Forman. — Deverá ser a emissão mais vendável já oferecida desde que a Ford vendeu ações ao público.
—  Qual é o plano que recomendam? —  O primeiro plano — disse prontamente Artie. — Vender ações da companhia toda. —  Concorda? — perguntou Número 1 a Forman. —  Sem dúvida alguma. É o plano mais interessante para o público. —  É esse também o seu motivo? — perguntou Número 1 a Artie. —  Na verdade, não — disse Artie. — Não sei por que terá de abrir mão de seu ativo nas seções mais rendosas de sua companhia a fim de fazer o que deseja. Penso que, se seguirmos a fórmula da Ford, poderá, como se diz, comer o seu bolo e ainda guardá-lo intato. Número 1 voltou a cabeça e olhou de novo para o mar. Ficou em silêncio durante muito tempo, depois respirou fundo e voltou-se para mim. —  Quando acha que meu neto estará de volta a Detroit? —  Na próxima semana. —  Temos de ir até lá falar com ele. Talvez eu esteja errado no conceito que faço dele. De qualquer maneira, acho que ele deve ter uma oportunidade de tomar uma decisão. —  Nada mais justo — disse eu. —  Vou mandar a Sra. Craddock telefonar para o escritório dele e combinar uma reunião em minha casa em Grosse Pointe na quarta-feira à noite. Fez rolar a sua cadeira em direção à casa. Donald apareceu misteriosamente e começou a empurrá-lo. Número 1 olhou para nós e disse: —  Venham, que eu quero oferecer-lhes um drinque.  Começamos a caminhar ao lado da cadeira. Forman perguntou: —  Já pensou no tipo de carro que está querendo produzir, Sr. Hardeman? —  Posso lhe garantir que vai ter rodas e andar.  Forman disse com muita polidez: —  Quero dizer o feitio. —  Estamos começando a pensar nisso — disse Número 1. — Projetar automóveis é uma arte muito complexa. Mas é exatamente uma arte. Arte moderna, funcional. Uma colagem primária de nossa sociedade tecnocrática. Essa é que é a verdade. O modelo T de Henry Ford não deve estar na Instituição Smithsoniana. O seu lugar mais próprio seria o Museu Metropolitano de Arte. —  Já escolheu um nome para o carro, Sr. Hardeman? — perguntou Artie. — Sei que os nomes são muito importantes. —  São mesmo e eu já escolhi o nome. — Olhou para mim e sorriu particularmente. — Betsy. Assim é que vamos chamar-lhe. O Betsy.
 
Capítulo 14
Deixei Artie e Len no aeroporto, onde pegaram o avião da tardinha para Nova York. Quando saí do terminal, a garota da Hertz estava esperando ao lado de meu carro. —  Estou muito decepcionada com você, Ângelo — disse ela com sua voz de mel e laranja. — Você já está há três dias na cidade e ainda não me telefonou. —  Desculpe, Melissa, mas tenho andado muito ocupado. — E eu que pensei que você estivesse interessado em mim — disse ela, fazendo uma boquinha de amuo. —  E estou, Melissa. Pode crer. —  Esta   noite,   então?   Isto   é,   se   não   estiver   muito ocupado. . . —  Esta noite está ótimo. Mas nada de irmos a lugares como o da última vez. Levei três dias para que meu ouvido voltasse ao normal. Não sabe de um bom motel onde possamos ficar juntos, sossegados e sozinhos? Ela me veio de novo com a conversa de "Sr. Perino!" —  Sr. Perino, estamos numa cidade pequena e uma moça como eu tem de zelar pela sua reputação. Quem sabe se não podemos dar um passeio de carro bem longo? Lembrei-me de seu modo de guiar e sacudi a cabeça. —  Não, minha filha, muito obrigado. Já estou velho demais para fazer certas coisas dentro de um carro. Dei a volta ao conversível e sentei-me à direção. Rodei a chave para ligar o motor. — Até à vista, Melissa.
— Não, Ângelo. Espere um pouco. — A voz dela baixou, enquanto ela se inclinava da porta do carro, dando-me uma boa visão dos seios maduros comprimidos dentro da blusa. — Terei de tomar algumas providências. Direi em casa que vou passar a noite em casa de uma amiga que mora um pouco ao norte da cidade. Na verdade, ela está fora e deixou a chave comigo.  — Agora, sim, você está agindo com juízo.
 
Ela estava com o Mach One de novo quando apareceu para me pegar. Saiu do carro quando desci a escada. —  Quem vai dirigir é você. —  Está bem.  Sentei-me à direção. Apertei o cinto de segurança e olhei para ela. Apertou também o cinto. Saímos pela estrada. —  Vire à direita — disse ela. — Há uma casa de bebidas a cerca de um quilômetro. Virei o carro e freei diante da casa de bebidas. Olhei para ela. Estava com os olhos semicerrados e a boca aberta como se estivesse com falta de ar. As pernas estavam também abertas. Estendi a mão por baixo da saia e encontrei tudo molhado. O corpo todo tremia. —  Que é que você quer beber? Ela fechou os joelhos em minha mão e disse: —  Champanha. Champanha francês. —  Está certo. Solte minha mão para eu ir buscar.  Voltei com três garrafas de Cordon Rouge. Entrei no carro e saímos de novo para a estrada. —  Você sabe mesmo guiar um carro, não sabe? — perguntou ela com voz amortecida. —  Claro que sei. Pisei no acelerador. Sabia muito bem o que ela queria. Felizmente, não havia guardas na estrada. Creio que fizemos os quinze quilômetros até a casa da amiga dela em pouco mais de cinco minutos. A casa era igual a muitas outras e ficava a cerca de um quilômetro da estrada. Entrei no caminho que ela me indicou e parei diante da casa. Desliguei o motor e olhei para ela. Os olhos dela brilhavam. —  Fiquei quase sem fôlego.  Eu não disse nada. —  Lembra-se daquele momento em que você passou três carros e outro saiu de uma estrada em cima de nós?
— Lembro-me. — Olhei para o velocímetro nessa ocasião. Você ia a mais de cento e cinqüenta. Quando entrou aqui no caminho da casa, eu estava tão emocionada que quase me urinei toda. Saímos do carro. Ela pegou uma sacola atrás. Apanhei o champanha e segui-a para dentro da casa. Ela correu a casa toda, fechando as venezianas e as cortinas antes de me permitir acender uma só luz. —  Minha amiga vive se queixando da curiosidade dos vizinhos, que são intrometidos — disse ela. —  Ao menos, é bom saber que não se está sozinho no mundo. Ela abriu a sacola. — Tenho de pendurar meu vestido, senão amanhã estará todo amarrotado. — Guardou o vestido no armário e voltou. — Gosta de puxar fumo? — Às vezes. — Ótimo. Tenho aqui uma boa erva. — Tirou um saquinho de celofane e um maço de mortalhas e colocou tudo em cima da mesa. — Gosta de bolinhas? — Pode ser divertido. — Um vendedor de drogas meu amigo me dá uns vidros sempre que passa aqui pela cidade. Deu-me alguns hoje mesmo. —  Que sorte a minha! — disse eu, estendendo as mãos para ela, que se esquivou. —  Calma! Abra uma garrafa de champanha enquanto eu tomo um banho rápido. Tirou um saco de papel da sacola e passou-o às minhas mãos. Estava gelado e eu olhei para ela. —  Bifes. Se tivermos fome depois.  Ri e dei-lhe uma palmada. —  Vá tomar seu banho.    Ela pensava em tudo. Foi uma noite inteiramente alucinada. Além de tudo, ela era das que gritam. E isso prova que a amiga dela era uma grande mentirosa. Se os vizinhos fossem realmente curiosos e intrometidos, teriam chamado a polícia.
 
Eram sete horas da manhã quando ela me deixou diante da casa. Estendeu-me a mão quase cerimoniosamente. — Muito obrigada, Ângelo. Foi a noite mais bela e mais romântica de minha vida!
Não podia deixar de concordar com ela. Depois que o carro se afastou, entrei na casa. Donald me esperava à porta. —  Uma senhora, que deu o nome de Lady Ayres, tentou falar com o senhor várias vezes esta noite. Deixou o número do telefone dela. Pede que o senhor ligue logo que chegar porque é muito importante. —  De onde foi que ela telefonou, Donald? —  De Nova York. Quer que eu faça a ligação?  — Tenha a bondade. Acompanhei-o até a biblioteca. Havia um bule de café em cima da mesa. Enchi uma xícara enquanto esperava. Alguns minutos depois, ele me fez sinal. Peguei a extensão que estava perto de mim. —  Alô. —  Ângelo? Tenho de ver você. . . Imediatamente! —  Que é que está fazendo em Nova York? Pensei que estivesse. . . —  Alicia sabe de minha viagem em companhia de Loren. O escritório estava à procura dele e cometeram a asneira de contar tudo a Alicia. —  Que era que o escritório queria com ele? —  Era alguma coisa que tinha relação com você. Ele não me disse muita coisa, mas está furioso e disse que você vai acabar na cadeia. Alicia telefonou então e ele contou tudo a ela. —  Que grande imbecil! —  Imbecil não, mas primário e sem complexidade. Para ele, tudo é uma questão de honra. Está dizendo agora que vai casar-se comigo. — Onde está ele? — Em Detroit. Tenho de ver você. Posso ir até aí? — Não. Vou até Nova York. Onde é que você está hospedada? — No Waldorf. — Estarei aí hoje à tarde.  Pareceu haver alívio em sua voz. — Amo você, Ângelo. — Até mais, querida. Número 1 estava à porta e perguntou: — Quem foi? — A garota de quem lhe falei. O ventilador espalhou a bosta. Loren está de volta.
— Eu sei. Já falei com ele. Mas houve mais alguma coisa. — Houve, sim. Alicia soube de tudo entre ele e a garota. Ele agora quer divorciar-se. — Meu Deus! — exclamou Número 1. Será que aquele rapaz nunca vai crescer?
 
Capítulo 15
—  Palavra que não sei o que estou fazendo aqui — disse ela, passeando de um lado para outro no grande living do apartamento da Bethlehem Motors no Waldorf. — Tudo aconteceu tão depressa! Eu estava sentado na poltrona olhando para ela. Tomei um gole de bebida sem dizer uma palavra. —  Ele me disse: "Vá para o apartamento da companhia no Waldorf e espere notícias minhas lá. E não se preocupe". Só depois de embarcar no avião para Nova York foi que pensei no que ele havia dito. Nada havia para me preocupar. Nada havia acontecido entre nós. Continuei calado. —  Não está acreditando em  mim, não é?  — perguntou ela. —  Claro que acredito em você. —  Pois não parece. —  Venha cá. Ela atravessou a sala e ficou diante de mim. Inclinei-me para a frente na cadeira e beijei-a entre as pernas. Levantei a cabeça. —  Acredita agora que eu acredito em você?  Ela esboçou um sorriso. —  É uma pergunta muito complexa essa. Você é doido. —  Sem dúvida alguma que sou. Agora, minha filha, acalme-se e me conte exatamente o que aconteceu. O que pode não ser nada para você talvez seja muito importante para ele. Lembre-se de que estamos tratando com um camarada muito quadrado.
—  É verdade — disse ela. — Há nele uma ingenuidade juvenil que pensei a princípio que fosse fingimento. Mas não. Ele é assim mesmo. —  Estavam no mesmo apartamento? —  Não. Nossos apartamentos eram vizinhos. —  Com porta de comunicação? —  Sim. Mas ele nunca entrava sem bater, ainda que a porta estivesse aberta. Nunca me beijou, ao despedir-se de mim à noite, sem pedir licença. E nunca me disse que me amava senão depois que falou pelo telefone com Alicia. —  Ele deve ter dado alguma demonstração. —  É claro que deu. Houve todos os sinais. Flores todos os dias, o jeito de me olhar com os olhos compridos, os constantes toques acidentais em minha mão. Achei tudo isso encantador, mas não levei muito, a sério. Podia agir de outro modo? Era tudo tão vitoriano. —  Se tudo foi assim tão correto, como foi que Alicia descobriu? — Justamente porque tudo foi correto demais e é o que há de mais irritante em todo o caso. O telefonema de Alicia chegou quando estávamos tomando um drinque em meu apartamento. Se estivéssemos juntos no mesmo apartamento, eu nunca teria atendido. Sendo as coisas como eram, não dei a menor importância ao fato. Ela reconheceu no mesmo instante a minha voz. — Isso foi antes ou depois de ele ter telefonado para o escritório? —  Antes. Na verdade, ela estava telefonando para saber se ele queria que ela dissesse ao escritório onde poderia encontrá-lo. — Epa! Isso não é mais ser quadrado, é ser cretino de fato. É preciso ter uma couraça de burrice na cabeça para um homem dizer à mulher para onde vai, especialmente se vai em companhia de outra mulher. Estava mesmo pedindo para ser pilhado. —  Você acha? — Não é possível pensar de outra maneira. Eu soube que ele estava interessado em você desde a noite em que nos conhecemos no jantar em casa dele. Alicia não é cega. Deve ter percebido também. Ela pensou por um momento. —  É claro, tinha de ser isso! Como é que pude ser tão cega? Sorri para ela.
—  Você está muito habituada a crer que todos os homens caem aos seus pés. —  Mas por que ele não me disse alguma coisa? —  Talvez tivesse medo de que você o rejeitasse. Quem sabe lá? —  Mas que é que eu devo fazer? Não preciso de toda essa merde. Alguma coisa acionou um sinal no fundo de minha cabeça. Por que essa mudança súbita de linguagem? Nunca hesitara antes era empregar a palavra em inglês. —  Qual é a merda? — perguntei. —  Você sabe — disse ela, mostrando-se vaga pela primeira vez. — Tudo isso. O divórcio dele no ano que vem. —  Por que no ano que vem? —  Ele não quer se divorciar antes da apresentação de Elizabeth à sociedade em setembro do próximo ano. Não quer que coisa alguma perturbe o début da filha. —  Ele parece ter pensado em tudo muito cuidadosamente — disse. eu. — E quer que você espere? Ela fez um sinal afirmativo. Senti as engrenagens arranharem. E, de repente, pisei na embreagem. —  Muito bem, Bobbie, vamos deixar de brincadeira! Jogo franco com o papai, ouviu? Há quanto tempo está dando em cima dele? Ela me encarou por um momento e murmurou: —  Você só pensa em coisas sujas. . . —  É o resultado de muito treino, minha filha. Chegou a hora da verdade. Há quanto tempo? Ela hesitou e respondeu: —  Dois anos. —  Por que levou tanto tempo? Se agarrasse o membro dele, teria andado mais depressa. —  Isso o teria assustado. Eu tinha de bancar a lady. —  —  Nisso talvez tenha razão. —  Não está zangado comigo? —  Que motivo tenho para isso? Só a conheço há bem pouco tempo. — Acendi um cigarro. — O que não entendo é onde está seu problema. Não conseguiu o que queria? Ela me olhou bem nos olhos. —  Eu não calculava que iria gostar de você. —  Que diferença faz isso?
—  Não quero perdê-lo. —  E não vai me perder. Não me incomodo com um pouquinho de adultério. É até mais interessante. —  Podia ao menos falar-me em casamento, cachorro. Apenas por gentileza. —  Nada feito, minha filha. Você podia pegar-me na palavra e onde estaríamos então? Num lugar que não seria desejado por nenhum de nós. —  Que é que eu faço, então? Vou ficar esperando aqui por ele? —  Não, isso seria errado. Você tem de fazer com que ele a procure. Não lhe dê a impressão de que ele a retirou de circulação para servir aos seus interesses. Tome o avião para Londres esta noite. — Acho que você tem razão — disse ela pensativamente. —  Que é que eu digo a ele? —  Seja nobre. Diga-lhe que vai sair do país para não lhe criar problemas, pois você o respeita tanto que não pode permitir que isso aconteça. Isso deve provocar nele sentimentos de culpa muito convenientes. Ela olhou para mim e disse: —  Última chance. Já que você não me faz a pergunta, vou eu fazê-la a você. Quer casar-se comigo? —  Não. As lágrimas lhe vieram aos olhos. Abri-lhe os braços e ela se aninhou entre eles. —  Eu sabia que isso ia acontecer — disse ela, chorando. —  Foi o que lhe tentei dizer no aeroporto de San Francisco. Por que me deixou ir? —  Não havia outro jeito. Nós dois já estávamos comprometidos e tínhamos tomado a nossa decisão. —  Leve-me para a cama, sim? Nada disso fazia mais qualquer sentido. Tudo tinha mudado, mas, apesar disso, continuava o mesmo. Foi ainda muito belo. Fomos diretamente da cama para o aeroporto. Embarqueia no avião de Londres e, em seguida, fui para Detroit no último vôo da noite. Estávamos no escritório da mansão Hardeman em Grosse Pointe, em torno de uma pequena e velha mesa cuja superfície mostrava as marcas de queimadura de muitas reuniões como aquela. Éramos quatro: Loren, Dan Weyman, Número 1 e eu.
Os dois tinham ficado em silêncio enquanto Número 1 explicava os seus planos. Quando terminou, ficamos esperando a reação deles. Não tardou a chegar. —  Sinto muito, vovô — disse Loren. — Não podemos concordar com isso. Os riscos são muito grandes. Não podemos jogar o futuro de nossa companhia em um carro apenas. —  Escute aqui, Loren — disse Número 1. — Como é que você pensa que a companhia foi construída? Pois foi justamente sobre uma idéia, o futuro de um carro. —  As coisas agora são muito diferentes. A economia é diferente. Foi a diversificação que salvou a nossa companhia. —  Não estou pondo em dúvida o valor das outras divisões, Loren. Mas não concordo em que tenham salvo a companhia. Ao contrário, acho que quase nos fizeram perdê-la. Quase não produzimos mais automóveis. O carro está agora adiante dos bois. —- As condições mudaram muito desde o tempo em que a companhia estava sob sua direção, há trinta anos — disse obstinadamente Loren. — Os últimos carros americanos novos lançados no mercado foram o Henry J. e o Edsel. E sabe o que aconteceu? Kaiser afastou-se da indústria e o Edsel quase levou a Ford à ruína. —  Kaiser teria vencido se tivesse insistido, mas ele não era um homem de automóveis — disse Número 1. — O Edsel não parou a Ford. A companhia deles está mais sólida do que nunca. No ano que vem, vão lançar os carros pequenos. Acha que iriam fazer isso se julgassem que iriam perder dinheiro? —  Estão sendo forçados a isso — disse Loren. — Têm de enfrentar a concorrência estrangeira. Nós, não. Estamos satisfeitos na posição em que estamos. —  Você pode estar, mas eu não estou. Não me agrada a idéia de ser um primo afastado numa indústria em que pertencíamos à família principal. Se é essa a sua atitude, não vejo motivo algum para continuarmos produzindo automóveis. — É talvez o que vai acontecer no ano que vem — disse Loren calmamente. — Não temos mais condições de continuar. —  Para deixarem de fabricar automóveis terão de passar por cima de meu cadáver! — disse Número 1, com voz fria e decidida. Loren ficou calado. O aspecto dele não era bom. Tinha olheiras e o rosto pálido demonstrava fadiga. Cheguei por um momento a ter pena dele. Estava levando pancada de todos os lados. Em casa e no escritório. O que ele disse em seguida dissipou toda a minha pena. Olhou diretamente para o avô e falou com voz igualmente fria. Era como se só os dois estivessem presentes na sala. —  Numa reunião extraordinária da diretoria realizada ontem, foram aprovadas três propostas. "A primeira determinou a demissão imediata de Ângelo Perino como vice-presidente da companhia. "A segunda recomendou a instauração de ação penal contra o Sr. Perino por ter empenhado a empresa em certas despesas sem ter para isso autorização expressa e legal. "Terceira, foi decidido requerer à justiça do Estado de Michigan a nomeação de um curador para administrar as suas ações na companhia até ficar apurado se o senhor tem capacidade integral e plena responsabilidade pelos seus atos." Número 1 continuou a olhar para Loren e deu um suspiro. —  É então assim que você quer? Loren fez um sinal afirmativo. Levantou-se e disse: — Vamos, Dan. A reunião já terminou. — Ainda não — disse Número 1 com voz muito calma. Empurrou um papel para Loren por cima da mesa. — Leia isso. Loren olhou para o papel. O rosto dele ficou ainda mais pálido e abatido. —  Não pode fazer isso! —  Não posso não, já fiz — disse Número 1. — Tudo legalizado e em ordem. Pode ver aí o selo do Conselho Corporativo do Estado de Michigan legalizando tudo. Na condição de maior acionista e como representante de voto de oitenta por cento das ações da companhia, tenho o direito de demitir qualquer diretor ou todos eles, com ou sem justa causa. Foi o que fiz. A reunião de diretoria que você realizou ontem não teve o menor valor. Todos tinham sido demitidos desde a segundafeira. Loren ficou parado no meio da sala. — É melhor sentar-se, meu filho — disse gentilmente Número 1. Loren não se moveu.  Número 1 continuou a falar com voz gentil. —  Você tem dois caminhos: sair da companhia ou ficar. Seu pai e eu nem sempre estávamos de acordo, mas nunca nos separamos. Loren se sentou com movimentos lentos, mas ainda não disse uma palavra. —  É melhor assim — disse Número 1. — Agora, podemos tratar do verdadeiro motivo desta reunião, a fabricação de um novo carro. Prometi a sua filha que faria um carro novo, e palavra de honra que vou cumprir essa promessa! Olhei para Loren do outro lado da mesa. Sentir-me-ia melhor se ele dissesse alguma coisa. Vi-lhe então os olhos e compreendi que eu tinha razão. Não sabia o que era que Número 1 pensava, mas a guerra tinha apenas começado.
 
Livro dois, 1970
Capítulo 1
Acordou, como de costume, alguns minutos antes que o despertador tocasse. Continuou na cama, olhando o mostrador iluminado do relógio e os ponteiros que se moviam inexoravelmente para o ponto em que começaria a música. Como de costume, apertou o botão da trava um momento antes de começar o som. Eram seis horas da manhã. Levantou-se em silêncio, procurando com os pés os chinelos no chão. Vestindo o robe, encaminhou-se ainda em silêncio para o banheiro. Fechou a porta antes de acender a luz para não acordar a mulher. Pegou os cigarros na prateleira abaixo do espelho, acendeu um e sentou-se no vaso. Três cigarros depois, nada tinha ainda acontecido e ele já estava pensando em acender a luz quando ouviu a voz da mulher do outro lado da porta. —  Dan? —  Que é? —  Que tal? —  Nada — resmungou ele, levantando-se e amarrando a calça do pijama. Abriu a porta. — Aquele médico não sabe nada de nada. —  Sabe, sim — disse ela, estendendo a mão para um telefone e apertando um botão. — Já acordamos, Mamie. — Virou-se para o marido. — Você está é muito preocupado. Procure relaxar. —  Estou relaxado. Minhas preocupações nada têm que ver com o caso. Estou apenas com prisão de ventre. Sempre sofri de prisão de ventre desde que era garoto. Só que naquele tempo não havia charlatães que tratavam a gente pela psicanálise. Davam um bom laxante e saíam da frente enquanto a gente corria para a primeira latrina. —  Deixe de ser vulgar, ouviu? —  Não estou sendo vulgar. Só quero é que as tripas se mexam. Onde é que está o laxante?
—  Joguei fora, Tomar laxante todos os dias é a pior coisa que você pode fazer. Impede que seu organismo funcione naturalmente. —  Veja se ainda ficou algum por aí. Meu organismo não funciona naturalmente e, nestes vinte e um anos em que estamos casados, você já devia saber disso. Voltou para o banheiro e fechou a porta. Mamie entrou no quarto com a bandeja do café da manhã. Colocou-a cuidadosamente na cama sobre as pernas de Jane Weyman. —  Bom dia, Dona Jane — disse ela, num sorriso que lhe abriu de lado a lado o rosto escuro. Olhou para a porta do banheiro fechada e perguntou: — Como está o patrão hoje? Jane encolheu os ombros, tirando o guardanapo que cobria as torradas. —  A mesma coisa de sempre. —  Coitado. . . Por que não me deixa preparar canjica para ele todo dia de manhã? É um santo remédio para fazer tudo andar direito. —  Você sabe como ele é — disse Jane, passando geléia à vontade na torrada. — Só toma café. —  Não há nada pior para embrulhar o estômago do que café puro de manhã — disse Mamie, dirigindo-se para a porta. — Veja se convence o patrão a comer um pouco de canjica. No momento em que ela saiu, o telefone tocou. Jane atendeu. —  Alô — disse, aborrecida. Mudou de voz no mesmo instante. — Não, Loren, incômodo nenhum, que idéia! Já estou acordada e tomando café. Vou chamar Dan. Não foi preciso chamar. Ele já abrira a porta e olhava para ela com metade do rosto ensaboada. —  Quem é? — Loren — disse ela, cobrindo o fone com a mão. — Por que será que está telefonando tão cedo? Ele não respondeu. Atravessou o quarto e tomou o fone da mão dela. Um pouco de espuma aderiu ao receptor. —  Bom dia, Loren — disse ele, tirando a espuma rapidamente com a outra mão. — Como foi de viagem? — Bem — disse Loren com voz calma. — Mas cheguei com três horas de atraso. Será que você podia vir até aqui para tomar o café e conversar comigo antes da reunião desta manhã? —  Estarei aí dentro de vinte minutos — disse Dan, desligando o telefone. — Jane, Loren quer que eu vá tomar o café com ele. Há uma reunião de diretoria hoje de manhã e ele precisa de algumas informações minhas. —  Se ele ficasse em casa tratando dos negócios em vez de correr a Europa atrás daquela vigarista inglesa, talvez não tivesse de aborrecer você às seis horas da manhã. —  É melhor você deixar de falar assim. Um dia poderá ter de aceitá-la como a Sra. Hardeman. Que é que vai fazer então? — O mesmo que estou fazendo agora. Não tomarei conhecimento dela. Pobre Alicia. . . Depois de tudo o que fez por ele! —  Pobre Alicia coisa nenhuma! A pobre Alicia vai receber seis milhões de dólares no acordo de divórcio. Não tenho a menor pena dela. —  Pois eu tenho. Não há dinheiro no mundo que compense o que ela está passando. —  Ao menos, não terei mais de vestir smoking para ir jantar em casa dela — disse ele, voltando para o banheiro. Acabou de fazer a barba rapidamente, saiu e começou a vestirse. — Ligue o rádio, que eu quero ver como está o trânsito. Jane inclinou-se para a mesinha-de-cabeceira e ligou o rádio. A música pesada de rock encheu o quarto e ela baixou o volume, dizendo: —  Às vezes, acho que você nunca devia ter deixado a Ford quando Mac foi para Washington. Pelo menos, ali ninguém o aborrecia às seis horas da manhã e naquele tempo você não sofria tanto assim de prisão de ventre. Ele não respondeu. Estava tratando de enfiar a camisa para dentro das calças e o zíper se prendeu no pano. —  Diabo! — exclamou, lutando para soltar o zíper. —  Quem sabe?  Talvez agora você fosse presidente da Ford. —  Não havia a menor chance. Nunca fui simpático a Arjay e ele sempre me manteve num ponto muito baixo da escala. Nem mesmo ele conseguiu ser presidente. Na Ford, só quem tem vez é quem entende de automóveis. Por isso é que Knudsen está lá agora. —  Você nunca será presidente aqui também, apesar das promessas de Loren. Principalmente agora que a Máfia botou o pé na companhia. —  Você fala demais, Jane. Quantas vezes quer que eu lhe diga que Perino não tem qualquer ligação com a Máfia? —  Não há quem não saiba que o avô dele era da Máfia.
Era meu avô quem vendia os caminhões em que ele trazia uísque do Canadá. —  Seu avô era também um dos melhores fregueses dele. Do jeito que ele bebia, sou capaz de apostar que o velho Perino nunca teve de pagar um centavo pelos caminhões, Além disso, Perino nada tem que ver com isso. —  Você o está defendendo!  E ele é o homem que se tornou vice-presidente em seu lugar! —  Não o estou defendendo, Jane. E saiba que ele é vicepresidente executivo da divisão de automóveis apenas e não de toda a companhia. E eu ainda sou o vice-presidente mais importante. —  Mas ele não está subordinado a você como os outros, não é? —  Não. Está subordinado apenas à diretoria. Não tem de prestar contas nem a Loren. —  Tudo isso por culpa daquele velho horroroso! — exclamou Jane. — Por que ele não ficou na Flórida, como devia ficar? Dan já ia responder quando o boletim do trânsito começou a ser transmitido: "Atenção para o boletim do trânsito das seis e trinta". A voz do locutor era tão sincopada e áspera como tinha sido a música. "Trânsito em todas as estradas de moderado a bom em todas as direções, salvo na Industrial Expressway perto de River Rouge, onde há um pequeno engarrafamento resultante da mudança de turno nas fábricas. Estrada US 10, Woodward Avenue, tráfego normal até o centro de Detroit." —  Pode desligar — disse ele.  Ela desligou o rádio e perguntou: —  Que é que acha que vai acontecer? Já ouvi dizer que o velho vai fazer Perino presidente da companhia. —  É bem possível, mas não agora. Perino ainda tem de provar a sua competência, especialmente agora que a companhia vai deixar de ser exclusivamente particular. Até o velho sabe disso. Enquanto isso, Loren e eu ainda dirigimos a única parte da companhia que dá lucros e vamos cada vez melhor. Acabou de dar o laço na gravata e enfiou o paletó. —  Já vou. Até a noite. Curvou-se para a cama e beijou-a no rosto. —  Procure chegar antes das oito horas. Vou mandar fazer um rosbife e não quero que fique assado demais. Ele fez um sinal de assentimento e encaminhou-se para a porta. Antes de sair, voltou-se para ela e disse:
—  Não se esqueça de mandar comprar o laxante. Creio que  três dias é  tempo de  sobra para a psicologia  ter dado resultado. Ela esperou até ouvir o carro sair e colocou a bandeja no chão. Em seguida, apertou o botão do interfone.  Mamie atendeu. —  Pronto, madame. — Vou dormir mais um pouco. Acorde-me às nove horas. Não quero chegar atrasada para minha aula de tênis. Apagou a luz. Sorriu encostando a cabeça no travesseiro. O novo treinador de tênis do clube era maravilhoso. Quando encostava o corpo esbelto ao dela por trás para afirmar-lhe o braço na posição correta, ela sentia arrepios pelo corpo todo.
 
O barulho tranqüilo do motor de duzentos e setenta e cinco cavalos sob o capô do Sundancer conservador todo preto acalmou-o quando saiu pela pequena rua para pegar a US 10. Olhou nos dois sentidos quando se aproximou da estrada. Não havia tráfego. Seguiu rumo ao centro de Detroit. Seguiria a Woodward Avenue até a Via Expressa Edsel Ford e dali para Grosse Pointe. Com um pouco de sorte, não levaria mais de vinte minutos na viagem. O Sundancer respondia à pressão do pé no acelerador com  um  aumento de potência  satisfatório. Loren o esperava na sala de jantar. —  Desculpe o atraso — disse Dan logo que entrou. — Não tem importância. Deu-me uma oportunidade de procurar saber o que tem acontecido na cidade. Apontou para um montão de números atrasados de Notícias Automobilísticas no chão, ao lado dele. —  Não há novidade alguma — disse Dan. — Todo mundo está à espera dos carros pequenos que vão ser lançados no outono. Estão observando o Gremlin, mas só esperam alguma ação depois que aparecerem o Pinto e o Vega. Olhou atentamente para Loren. Estava com ótima aparência. Há alguns meses atrás parecia um homem arrasado. Mas isso passara. Agora, era um homem pacientemente à espera das coisas que sabia que iam acontecer. Sentou-se. — Tenho boas notícias — disse Loren. — Fechei o negócio na Alemanha Ocidental. — Parabéns! — disse Dan, sorrindo. — Estão  prontos  a  iniciar  a  fabricação  imediatamente.
Toda a linha:  geladeiras, fogões, televisões. Isso nos abre o Mercado Comum numa boa base de competição. —  Vai representar para nós um lucro adicional de mais de dois milhões de dólares este ano — disse Dan entusiastícamente. — Em três anos, poderemos fazer esse lucro subir para quinze milhões. Loren sorriu. —  Isso significa que você terá de ir até lá no mês que vem para acertar os detalhes. Prometi mandar também uma turma de engenharia completa para o adestramento do pessoal deles. —  Não há problema — disse Dan, esfregando as mãos. — Será uma boa notícia para darmos na reunião da diretoria de hoje. Até agora, os diretores só estão recebendo pedidos de verbas. O dinheiro está correndo como num vôo para a Lua! —  A diretoria não parece muito preocupada com isso — disse Loren. Dan assentiu. Sabia o que Loren queria dizer. Os novos diretores representavam os bancos e corretores que tinham dado dinheiro adiantado à companhia e concordavam com qualquer sugestão que Número 1 fizesse. —  Acho tudo isso muito estranho — disse Loren. — Nós é que ganhamos dinheiro, mas eles só pensam num carro novo que, na melhor das hipóteses, é um jogo e um risco. Quer saber de uma coisa? Até na Europa, era o que quase todos queriam saber. O novo carro. Pareciam realmente fascinados. —  E que foi que disse a eles? —  Procurei fazer-me misterioso e disse que só poderia falar na ocasião oportuna. Seria uma desmoralização se eu dissesse a verdade e que sei tanto a respeito do nosso carro quanto eles, Por falar nisso, que é mesmo que está acontecendo? —  Ele completou as modificações nos três carros de corrida. Mas isso foi há algumas semanas. Desde então, não soube de mais nada. — E o novo carro? —  Nem uma palavra. Talvez saibamos alguma coisa na reunião de hoje. Querem nossa aprovação para a transferência de Projetos e Engenharia para a costa do Pacífico. —  Quando é que ele quer fazer isso? —  No mês que vem. Diz ele que nessa ocasião a nova fábrica estará pronta para recebê-lo. —  Meu avô estará presente à reunião? — Está sendo esperado. Sempre comparece quando se vai tratar de alguma coisa referente ao novo carro.
Uma voz vinda da porta interrompeu-os. —  Posso entrar, papai? Loren levantou a vista e seu rosto, que estava muito sério, se descontraiu. —  É claro, Betsy! Ela entrou na sala, aproximou-se da cadeira do pai e beijou-lhe o rosto. —  Fez boa viagem? — Voltou-se então para Dan e disse: — Bom dia, Sr. Weyman. Olhou em seguida para o pai e disse com um curioso tom de censura: — Por que não me disse que íamos lançar um Super Sport Sundancer? —  O quê? — perguntou Loren. —  Um novo carro formidável. Loren olhou para Dan como a interrogá-lo. —  Não é preciso fazer mistério comigo. Afinal de contas, sou da família e nunca iria dizer coisa alguma a ninguém. Os dois homens continuavam calados. Betsy estendeu a mão para a mesa e se serviu de café. Dirigiu-se então para a porta com a xícara na mão. —  Está bem, se não querem falar, não falem. Mas eu vi um na Woodward Avenue ontem à noite. E quer saber de uma coisa, papai? Loren fez um gesto de assentimento. Ela sorriu orgulhosamente e disse: —  O tal carro deixou para trás todos os outros!
 
Capítulo 2
Loren olhou para o relatório e perguntou: —  Tem certeza de que estes dados representam a verdade?
—  Sem dúvida alguma! — exclamou Bancroft. — Tudo foi verificado pela contabilidade. Dan acha que não podemos falhar. Tenho encomendas em conta firme de três mil carros.
São dois milhões de lucro líquido logo de saída. Os revendedores estão ansiosos pelo carro. —  As notícias se espalham depressa nesta indústria — disse Loren. —  O carro vem aparecendo todas as noites há três semanas na Woodward Avenue. A esta altura, quase todos os que gostam de automóveis nos Estados Unidos estão ansiosos por apanhar um deles. —  Que é que Ângelo diz? —  Diz que não fez esses carros para o mercado. São carros de prova e nada mais. — Bancroft deu um profundo, suspiro. — Mas, meu Deus, esta é a primeira vez em dez anos em que os revendedores me pedem alguma coisa em vez de eu pedir a eles. Até o Sr. Insid, de Grand Spaulding, em Chicago, me telefonou. Está disposto a aceitar todos os que eu lhe puder mandar. Quer apenas que já lhe cheguem às mãos com cem quilômetros rodados para não quebrar o contrato de exclusividade que ele tem com a Dodge. Isso mostra o sucesso do carro! —  Gostaria de ver um — disse Loren. — Até hoje, só vi os projetos. — É fácil — disse Bancroft. — Um deles está agora mesmo na pista de provas completando os oitenta mil quilômetros. Loren levantou-se e disse: —  Vamos até lá. — Apertou o botão do interfone e disse a sua secretária: — Telefone para Dan Weyman e diga-lhe que venha encontrar-se conosco.
 
O dia estava nublado, com nuvens carregadas e pancadas intermitentes de vento e chuva. A pista de provas ficava depois do aeroporto de Willow Run, a sudoeste da cidade, e eles levaram quarenta e cinco minutos para chegar lá pela Industrial Expressway. Saíram da estrada e seguiram durante cinco minutos por um caminho cheio de curvas até pararem diante de uma cerca alta atrás da qual uma cerrada massa de ciprestes ocultava tudo. O guarda de segurança saiu de sua pequena guarita ao lado do portão. Outro guarda olhou-os com muita atenção de outra guarita além do portão. —  Que desejam, senhores? — perguntou o guarda com voz amável. Bancroft desceu o vidro e falou do lado da direção.
—  Sou o Sr. Bancroft. Estes são o Sr. Hardeman e o Sr. Weyman. —  Muito prazer — disse o guarda polidamente, mas não se moveu. Bancroft olhou-o e disse irritadamente: —  Bem, não fique aí parado! Abra o portão e deixe-nos passar! O guarda olhou-os imperturbavelmente: —  Têm um passe? Bancroft ultrapassou logo o seu ponto de ebulição, que era em geral muito baixo. —  Para que diabo vamos precisar de passe? O Sr. Hardeman é o presidente da companhia e nós somos vicepresidentes! —  Sinto muito, senhores — disse o guarda com voz muito calma. — Ainda que fossem Deus, Jesus Cristo e Moisés, não entrariam aqui sem mostrar um passe assinado pelo Sr. Perino ou pelo Sr. Duncan. São essas as ordens que me deram. Depois de dizer isso, voltou calmamente para a sua guarita. Loren saltou do carro e chamou-o: — Guarda! — Às suas ordens — disse o guarda, voltando-se para ele. — O Sr. Duncan ou o Sr. Perino estão aqui? — O Sr. Duncan está. — Quer ter a bondade de telefonar para ele e dizer-lhe que nós estamos aqui e queremos entrar? A voz de Loren era delicada, mas tinha um tom de comando. O guarda olhou-o por um momento e, sem dizer uma palavra, voltou para a sua guarita e falou ao telefone. Depois disso, continuou lá dentro, olhando-os pelos vidros da janela. Loren acendeu um cigarro. Bancroft e Dan saíram do carro e ficaram ao lado dele. —  Esses guardas não pertencem ao pessoal de segurança da companhia. São de fora. Por quê? — perguntou Loren a Dan. —  Ângelo não confia no pessoal daqui. Diz que se lembra muito bem de que, quando estava testando os seis cilindros refrigerados a ar para nós, a Chevy teve os planos quase antes de nós. —  Ângelo só confia nos engenheiros, nos mecânicos e nos motoristas — acrescentou Bancroft. — Por onde andará Duncan? Foi até a guarita e perguntou ao guarda:
—  Falou com ele? —  Não. Estava no carro com o motorista. Mas me disseram que vão levar o recado a ele. —  Que coisa! — exclamou Bancroft, tirando um charuto do bolso e colocando-o na boca sem acendê-lo. Voltou então para junto dos outros. Começou a cair uma chuva fina e eles entraram no carro para esperar em silêncio. Dez minutos depois, um carro chegou pela estrada do outro lado do portão e John Duncan saltou dele. Fez sinal ao guarda que estava do lado de dentro e o portão se abriu. Foi então até o carro onde estavam os três homens. — Desculpem a demora. Mas não sabíamos que viriam. — Não tem importância, John — disse Loren. — Ouvi falar tanto no carro que resolvi na última hora vir vê-lo. Duncan sorriu. — Fico muito satisfeito com isso. Venham comigo.  Seguiram-no pela estrada até a pista de provas. Duncan deixou o seu carro num local de estacionamento e os três pararam ao lado dele. — Vamos para a garagem — disse Duncan. — Assim, não tomarão chuva. Foram com ele sob a chuva até a garagem situada no interior da pista oval. Alguns homens estavam sentados a uma mesa jogando cartas e uma moça, deitada num sofá, lia uma revista. —  Os homens são mecânicos — disse Duncan. — A moça é motorista de provas. Bancroft olhou a moça com admiração e disse: —  Eu sabia que Ângelo encontraria uma maneira melhor de fazer as coisas. —  As mulheres — disse Duncan — se encarregam de cerca de cinqüenta por cento da direção e poucos carros são comprados sem a aprovação delas. A idéia de Ângelo é colher o ponto de vista feminino. —  Essa moça é por si mesma um bom argumento — disse Bancroft. —  E é uma motorista de primeira classe — disse Duncan. —  Onde está o carro? — perguntou Loren. Duncan se dirigiu para o quadro eletrônico da pista e apertou um botão. As luzes movidas por fitas de gravação brilharam no quadro.
—  Está nesse momento chegando ao controle número 3 no extremo da pista de provas. Apertou outro botão e números começaram a surgir rapidamente na tela. —  Está fazendo a curva fechada a cento e catorze quilômetros. — Os números começaram a cair velozmente. — Está agora a oitenta e três, agora a setenta e cinco no saca-rolhas. Voltou-se para eles. — Observem a tela. Quando passar por aqui na reta, deverá estar desenvolvendo duzentos e cinqüenta e cinco quilômetros por hora. Olharam a tela, fascinados. De repente, os números começaram a subir rapidamente. Em questão de segundos, chegaram a duzentos e vinte e continuaram. Podia-se ouvir ao longe o ronco do motor. O barulho aumentou e todos foram para a porta da garagem a fim de ver melhor. Ao longe, a luz dos faróis cintilava através da chuva. Quase antes que o percebesse, os faróis se tornaram uma claridade ofuscante e o carro passou por eles, como uma sombra cinzenta no rastro da luz, e desapareceu na pista. —  Duzentos e sessenta e nove vírgula novecentos e quarenta e quatro — anunciou Duncan de perto do quadro eletrônico. —  Qual é o máximo de velocidade do carro? — perguntou-lhe Loren. —  Podemos chegar a trezentos — disse Duncan. — Mas a pista está molhada e eu recomendei que não passassem de duzentos e cinqüenta. —  Quantos quilômetros o carro já fez? —  Sessenta mil. Quando chegar a setenta mil, será retirado, passará por uma revisão completa e voltará à pista. —  E a resistência do motor? —  Notável. Só alterações normais apesar de ser superalimentado. Melhor do que eu esperava. Perfeito em todos os aspectos. —  Gostaria de ver o carro — disse Loren. —  Vou chamá-lo — disse Duncan. Apertou outro botão no quadro. Uma luz amarela se acendeu numa torre do lado de fora da garagem e começou a girar, lançando sombras douradas nas janelas. Duncan aproximou-se do microfone embutido no quadro e disse: — Duncan a Peerless. Duncan a Peerless. Câmbio.
Houve um pequeno estalo de estática. —  Peerless a Duncan. Pronto. Câmbio. —  Esfrie o motor e traga o carro para cá. Câmbio. —  Por quê? Daqui tudo parece em ordem. Câmbio. — Nada de mais — disse Duncan. — Basta trazê-lo. Câmbio e apaga. —  OK. Câmbio e apaga. Houve um estalo e o alto-falante ficou mudo. Duncan apertou outro botão e o quadro se apagou. Encaminhou-se então para a porta da garagem acompanhado pelos outros. O carro passou. Já estava em marcha mais lenta. — Vai parar na próxima volta — disse Duncan. Loren apontou para o quadro eletrônico e disse: —  Não sabia que tinham isso aqui. —  Foi uma idéia de Ângelo — disse Duncan. — Inspirou-se no quadro dos lançamentos espaciais e mandou fazê-lo pelo pessoal de Rourke na Califórnia. Deu tão bom resultado que já estamos fazendo quadros iguais para a GM, a Ford e a Chrysler e temos encomendas de vários países. O carro parou. A chuva havia cessado e todos saíram para vê-lo. Loren olhou atentamente o carro. Era o Sundancer padrão de duas portas. Disso não havia dúvida. Mas notavam-se diferenças sutis. O capô descia ligeiramente até os faróis, e a janelinha traseira quase quadrada fora suavizada e arredondada, combinando harmoniosamente com a cauda aerodinâmica sobre a mala e dando ao carro um aspecto decididamente europeu. O motorista desembarcou. Moveu-se com dificuldade metido no seu macacão à prova de fogo e desapertou a correia do queixo do capacete ao encaminhar-se para o grupo. —  Está bem — disse ele belicosamente. — Que foi que eu fiz de errado? —  Nada — disse Duncan. — É que o Sr. Hardeman queria ver o carro de perto. O motorista deu um suspiro de alívio. Tirou um maço de cigarros do bolso e perguntou: —  Posso então ir tomar um pouco de café? Duncan fez um sinal afirmativo e o motorista se dirigiu para a garagem. Loren olhou para o carro. No painel havia toda espécie de mostradores e instrumentos. Olhou para Duncan e perguntou: —  Que foi que fizeram com o carro?  Duncan se aproximou dele.
—  Os instrumentos especiais que está vendo são indicadores embutidos que transmitem dados e impulsos ao nosso quadro de controle. Instalamos dois Webers de quatro canos e grande alcance, um novo tubo de distribuição e abrimos o orifício dos cilindros, o que nos dá uma proporção de compressão de onze por um e pode ir até trezentos e quarenta cavalos. A carroçaria é de fibra de vidro revestida de uma rede de fios de aço suspensa na frente e atrás de barras de rolamento sobre um chassi tubular com base num princípio de absorção dos impactos. —  Que é que significa exatamente isso? — perguntou Loren. — Quanto mais forte é a pancada, maior é a resistência ao impacto. É o mesmo princípio das pontes penseis: quanto maior é o peso, maior é a resistência. Combina a segurança com o peso reduzido e a economia. Este carro pesa trezentos quilos menos do que o Sundancer padrão com o mesmo equipamento, e a carroçaria tem um custo de fabricação quarenta por cento menor. É claro que o carro poderia ser ainda mais leve, mas tivemos de reforçar o eixo e a barra de direção a fim de receber a força. —  Que tal é a direção? —  Por que não dá uma volta pela pista e apura isso pessoalmente?
 
Loren correu os olhos em torno da mesa. A reunião da diretoria estava quase terminada e decorrera calmamente, quase dentro da rotina. Tinha havido muita satisfação com o negócio fechado na Alemanha Ocidental e ele se sentia banhado de um resplendor de aprovação. Até Número 1, sentado na sua cadeira de rodas na outra ponta da mesa, parecera impressionado. O último assunto da agenda estava em discussão. Tratavase da aprovação da transferência de Projetos e Engenharia para a Califórnia. Loren virou a página. — Senhores, chegamos ao ponto 21 da agenda, mas, antes de passarmos a discuti-lo, eu gostaria de dizer algumas palavras. Esperou o tácito consentimento deles antes de continuar: —  Em primeiro lugar, penso que os diretores devem felicitar o Sr. Perino pelo trabalho fantástico por ele realizado com os carros experimentais. Como já sabem, ele transformou três Sundancers padrões de teto metálico em máquinas de alto rendimento. O que talvez não saibam porque ele nunca disse isso, sem dúvida por modéstia, é que ele elaborou um dos carros mais sensacionais que a Bethlehem já teve a boa sorte de produzir. E sei o que estou dizendo, senhores, porque hoje de manhã tive o prazer de andar num desses carros. Meus parabéns ao Sr. Perino. —  Muito obrigado, Sr. Hardeman — disse Ângelo polidamente, mas sem efusão. Loren esperou que o murmúrio cessasse em torno da mesa e continuou: —  Talvez nenhum de nós, aqui presente, tenha compreendido as possibilidades desse carro. É curioso, mas quem me chamou a atenção para ele hoje de manhã foi minha filha, que viu um dos carros ontem à noite na Woodward Avenue e, como me disse, "ele deixou todos os outros carros para trás!" Esperou de novo que o murmúrio cessasse. —  Outra notícia interessante vem da parte do Sr. Bancroft, Informa ele que vem sendo cercado pelos revendedores que querem remessas imediatas do carro. Já há encomendas em conta firme de três mil carros, o que nos pode trazer dois milhões de dólares adicionais de lucro líquido, e ele julga que pode sem muita dificuldade vender dez mil carros desse modelo especial no corrente ano. Houve sorrisos gerais em volta da mesa e Loren prosseguiu. —  Proponho, portanto, que se inclua na agenda, com o ponto em discussão, a aprovação para a produção imediata do Sundancer ss para aproveitarmos o alto interesse despertado pelo carro. Houve  quase  imediatamente  gestos  de  inteiro  assentimento, —  Um momento, senhores — disse Ângelo. — Não acho que devamos lançar no mercado esses carros. Os diretores pareceram perplexos e um deles, presidente de um banco de Detroit, perguntou: —  Por quê, Sr. Perino? Sei que o mercado de supercarros é atualmente muito lucrativo para a Dodge, a Chevy e a American Motors. —  Há várias razões — disse Ângelo. — Em primeiro lugar, o carro de prova, como está, não pode ser lançado no mercado porque ultrapassa os níveis de emissão. Se fôssemos respeitar esses níveis, teríamos como resultado uma perda de força considerável, de modo que o seu rendimento não chegaria à altura do apresentado pelo carro experimental.
—  Neste caso — disse Weyman —, o carro cairia abaixo dos padrões normalmente aceitos para os supercarros? —  Não há padrões para supercarros, Sr. Weyman. Em resposta à sua pergunta, só posso dizer sim e não. Sim, terá um rendimento superior ao do Sundancer padrão; não, não alcançará o rendimento do hemi e do Mopar. Mas não é nem isso o ponto mais importante que devemos levar em conta. Estamos empenhados em produzir um novo carro, um carro que restaure solidamente a nossa posição na indústria automobilística. Um carro especializado, um supercarro, por mais interessante que seja, não é a. solução para o nosso objetivo fundamental. O mercado é limitado e minha impressão pessoal é que se restringirá rapidamente em vista das pressões consideráveis das medidas ecológicas que estão se transformando em lei. Creio que em troca de alguns dólares de lucro, meus senhores, não devemos correr o risco de perder a boa vontade do mercado futuro ao qual estamos visando. "Eu, talvez mais que qualquer pessoa aqui presente, gosto de um carro possante. Mas não é isso o que estamos fazendo. Queremos fazer um carro para as massas e não apenas para os fanáticos da velocidade. Creio que procurarmos neste momento criar a imagem de um carro possante é um erro. Isso é uma coisa que poderia ser feita há sete anos. Atualmente, está inteiramente superada." O banqueiro tornou a falar. Voltou-se para Número 1 e perguntou: —  Pode nos dar a sua opinião a esse respeito, Sr. Hardeman? O rosto de Número 1 nada deixava transparecer. Tinha garatujado um bloco de papel enquanto Loren e Ângelo falavam. Nesse momento, levantou o olhar e disse calmamente: —  Acho que devemos produzir o carro. A votação da diretoria foi de dezesseis votos a favor da proposta e um contra. A reunião foi encerrada alguns minutos depois e os presentes começaram a sair da sala em grupos. Ângelo estava acabando de guardar os seus papéis quando Número 1 o chamou. —  Pronto! —  Espere um pouco — disse o velho.  Ângelo assentiu em silêncio. Quando afinal ficaram sozinhos na sala, Número 1 levou a sua cadeira para perto de Ângelo. —  Sabe que estou de inteiro acordo com você?
—  Foi o que pensei — disse Ângelo. — Devo-lhe uma explicação do voto que dei -contra sua opinião — disse o velho. —  O senhor não me deve nada. É o chefe e pronto! —  Houve uma época — disse o  velho  com  voz quase sumida — em que diziam que eu  havia destruído o  pai  de Loren porque contrariava todas as decisões dele. Chegaram a dizer que fui a causa da morte dele. Ângelo ficou em silêncio. Tinha ouvido dizer essas coisas. O velho olhou para Ângelo e disse: —  Não  posso  deixar  que   toda   essa   história   se   repita, não é mesmo? Ângelo deu um profundo suspiro. —  Acho que não pode mesmo. Mas depois, quando voltou para o seu escritório, duvidou de que Número 1 lhe tivesse dito a verdade.
 
Capítulo 3
Acordou em sobressalto. Os sons amortecidos da orquestra que tocava no salão de baile embaixo flutuavam através da janela aberta com o vento quente da noite de junho. Sentou-se na cama e sentiu imediatamente uma dor aguda nas têmporas. — Epa! — exclamou ele, embora estivesse sozinho. — Não bebi tanto assim e Perino me garantiu que o uísque era legítimo. Levantou-se da cama e se dirigiu descalço para o banheiro. O mármore do chão estava frio e ele voltou para calçar os chinelos. Abriu a torneira e jogou água fria no rosto. A dor de cabeça melhorou um pouco e ele se olhou no espelho. Pouco a pouco, os acontecimentos do dia lhe voltaram à memória. Tinha começado com o casamento em St. Stephens ao meio-dia, seguido da recepção nos jardins da mansão Hardeman, das duas às cinco da tarde. Todos começaram então a sair. Mas a festa ainda não tinha acabado. Estavam apenas indo para casa a fim de descansar e trocar de roupa. O grande baile do casamento ia começar às oito horas da noite. Lembrava-se de que tinha subido e tirado o paletó. Mas era só. Não se lembrava de haver tirado a roupa, mas fizera evidentemente isso porque estava de pijamas e toda uma muda nova de roupa estava arrumada para ele. Esfregou o queixo pensativamente. Fazer outra vez a barba não faria mal algum. Pegou a caneca de barba em que estava gravado em ouro o primeiro automóvel Sundancer que ele fizera em 1911 e começou a fazer espuma nela com o pincel. Passou lentamente a espuma pelo rosto e então massageou-a na pele com os dedos fortes e firmes. Em seguida, outra camada de espuma quente sobre a primeira, depois do que tirou do estojo a navalha de cabo de marfim e a afiou na tira de couro pendente da parede ao lado do espelho. Alguns momentos depois, estava pronto para fazer a barba. Começou por baixo do queixo. Passadas curtas e leves do pescoço para cima. Sorriu satisfeito. A navalha estava perfeita. Desceu então cuidadosamente das costeletas para o queixo, então, de lado, sobre o lábio superior para a face. Correu os dedos pelo rosto. Bem macio. Tão cuidadosamente quanto afiara a navalha, lavou-a, secou-a e tornou a guardá-la na caixa. Foi depois para baixo do chuveiro e abriu a torneira toda. Primeiro, água quente, e depois água fria, até que se sentiu perfeitamente acordado e vibrante. Saiu do chuveiro e se enxugou, esfregando-se vigorosamente com uma toalha felpuda. Começou a pensar em Loren Júnior e em sua noiva. Lembrou-se de que os dois tinham subido também para trocar de roupa. Gostaria de saber se tinham esperado. Pensou então no filho, um rapaz tão meticuloso, sossegado e delicado, tão diferente dele que às vezes se admirava de ter tido um filho assim. É claro que Júnior esperaria. A noiva é que ele não sabia. Era uma mórmon. E ele sabia dos costumes dos mórmons. Não se incomodavam com o fato de um marido ser repartido entre várias mulheres e as únicas vezes em que brigavam era quando uma delas perdia sua vez na cama. Não gostavam de ser privadas da parte que lhes cabia. Não podia censurá-las. Também ele não gostava de ser privado do que lhe pertencia. Elizabeth sempre fora uma mulher muito delicada, principalmente depois do nascimento de Loren. Ele sabia que era um homem muito grande e tentava ser gentil com ela, mas ela era tão pequena que ele compreendia que a machucava, ainda que ela mordesse os lábios para não chorar quando ele a penetrava. Os olhos dela mostravam a dor que sentia. Era de certo modo bom que Júnior não fosse tão grande quanto ele, embora ele achasse que isso tivesse importância para a mulher de Júnior, Sally. Era uma moça de constituição robusta, ainda que fosse um pouco magra ao jeito moderno da garota petulante. Mas tinha um busto bem grande e quadris largos, apesar de todos os regimes que fazia para não engordar. Com toda a certeza, receberia tudo o que Júnior pudesse dar a ela e pediria mais. Só esperava era que Júnior fosse homem bastante para ela. Sentiu então um calor pelo meio do corpo e riu alto. Era mesmo um velho sujo, capaz de ter idéias assim a respeito de sua nora. Mas, por outro lado, não era tão velho assim. Naquele dia 20 de junho de 1925, estava com quarenta e sete anos. Jogou a toalha displicentemente no chão e entrou no quarto. Tirou da gaveta uma combinação de cueca e camiseta, vestiu-a e abotoou-a logo que enfiou os braços nas mangas. Um par de meias de seda preta estava cuidadosamente dobrado em cima dos sapatos de verniz. Calçou-as, prendeu as ligas e estendeu a mão para a camisa engomada no cabide ao lado do armário. O linho estalou fortemente quando ele vestiu a camisa. Foi então até a cômoda e pegou os botões de brilhantes, passando então a colocá-los na camisa. Colocou os botões de punhos e pegou o botão de ouro do colarinho. Não foi fácil. Daí a menos de um minuto, estava com o rosto todo vermelho e com o colarinho todo amarrotado. Jogou-o de lado raivosamente e pegou outro na gaveta. Levando-o na mão, entrou no quarto de Elizabeth. Parou ao chegar à porta. Sua mulher não estava lá. Só viu a jovem modista que tinha vindo de Paris para fazer os vestidos do casamento. Estava de costas para ele, ajoelhada no chão em frente de um manequim de modista, prendendo com alfinetes as pregas de uma saía. Cantarolava baixinho enquanto trabalhava. Tomou conhecimento de súbito da presença dele e parou de cantar. Olhou para trás e se levantou rapidamente, olhando para ele. Tinha olhos de um azul escuro, quase violeta, em contraste com a pele branca cercada pelos cabelos pretos presos num coque na nuca. Ele a olhou como se fosse pela primeira vez. Os olhos dela eram límpidos e parecia haver no fundo dos mesmos uma luz oculta.
Ao final de um momento, ele conseguiu falar. A voz lhe pareceu áspera e estranha. —  Onde está a Sra. Hardeman? —  Lá embaixo, monsieur — disse ela, baixando os olhos e com uma voz em que havia um leve sotaque. — Está recebendo os convidados. —  Que horas são? — Quase nove horas, monsieur. —  Diabo! Por que não me acordaram? —  Creio que madame tentou — disse ela, levantando de novo os olhos. — Mas parece que não conseguiu. Ele começou a voltar para o quarto, lutando de novo com o botão do colarinho. Voltou-se de repente para ela. —  Não consigo colocar esta maldita coisa. —  Talvez eu possa ajudá-lo, monsieur — disse ela, aproximando-se dele. Ele colocou os botões na mão aberta dela. —  É bem alto, monsieur. Terá de baixar um pouco o corpo. Ele se inclinou um pouco. Por um momento, os olhos dela se fixaram nos dele e se afastaram. Os dedos eram leves e seguros quando prenderam o botão na parte posterior do colarinho. Tentou então prender o colarinho na camisa e não conseguiu. Olhou mais de perto e riu. —  Não admira que não tivesse acertado. Não colocou os botões nas casas certas. Ele passou os dedos pela camisa e viu que ela tinha razão. —  Desculpe — disse ele e começou a desabotoar a camisa. —  Pode deixar, monsieur — disse ela. Ele lhe sentiu o perfume, enquanto ela ajeitava de novo os botões. Sentiu outra vez o calor nos órgãos genitais quando os dedos dela chegaram aos botões de baixo. Devia estar com o rosto todo vermelho. Ela não podia deixar de ter consciência do que lhe estava acontecendo, embora não desse o menor sinal disso. Achou que tinha de dizer alguma coisa. —  Como é seu nome? —  Roxanne, monsieur — respondeu ela, sem levantar a vista. Ela estava no antepenúltimo botão da camisa e ia passar ao penúltimo. Ele sentiu a pressão crescer na sua roupa de baixo. Olhou e seus receios se confirmaram. O volume era inconfundível. Ele curvou os quadris para trás, tentando afastar-se dela. A posição era difícil e instável. Quando os dedos dela chegaram ao último botão, o membro já estava encostado à camisa. Ela parou de repente e levantou a vista para os olhos dele. Não levantou as mãos, mas os olhos estavam arregalados. Entreabriu ligeiramente os lábios, como se estivesse procurando tomar fôlego, mas nada disse. Ele a olhou bem nos olhos e perguntou: —  Quanto? Os olhos dela não se afastaram. —  Gostaria  de ficar  aqui  e  abrir  uma  pequena  loja, monsieur. Não há nada para mim em Paris. —  Feito — disse ele com voz áspera. Ela pareceu fazer um gesto de assentimento e deixou-se cair lentamente de joelhos diante dele. Abriu-lhe delicadamente a roupa de baixo e o falo saltou para ela como um leão furioso que sai da jaula. Ela o segurou cuidadosamente, a mão direita atrás da esquerda, como quem maneja um taco de golfe. Olhou-o cheia de admiração. —  C'est formidable. Un vrai canon.1 Ele riu. Não compreendia o sentido, das palavras, mas reconhecia o tom. Não era a primeira vez que o ouvia na voz de uma mulher que o via pela primeira vez. —  Você é francesa, não é?  Ela fez um sinal afirmativo. —  Mostre então que é. Ela abriu a boca e segurou-o nela. Ele lhe sentiu os dentes afiados na carne e, na sua exaltação, enterrou as mãos por trás do coque e puxou-a para ele. Ela começou a tossir e a sufocar. Ele a segurou por um instante e deixou-a então afastar-se. Ela o olhou, já sem muita segurança e com a respiração entrecortada. —  Tire o vestido — disse ele. Os olhos dela se voltaram do rosto dele para o falo. Ela não se moveu. —  Tire o vestido! — disse ele irritadamente. — Tire, senão eu vou rasgar! Ela se moveu lentamente, quase como se estivesse hipnotizada, sem tirar os olhos do corpo dele. O vestido lhe caiu dos
1 "É formidável. Um verdadeiro canhão." Em francês no original, (N. do E.)
ombros revelando seios redondos e cheios, com grande bicos cor de ameixa. Quase indolentemente, ela começou a emergir do vestido. Ele puxou impetuosamente a camisa. Os botões se soltaram, voando através do quarto. Depois da camisa, arrancou o conjunto de cueca e camiseta. Assim nu, parecia ainda mais um animal, com os ombros, o peito e a barriga cobertos de densos pêlos, dos quais brotava a agressiva ereção. Ela sentiu uma fraqueza nos joelhos quando procurou equilibrar-se para tirar as meias. Teria caído se ele não estendesse de repente a mão para ampará-la. O seu contato foi quente no braço dela e ele sentiu o fogo propagar-se por todo o seu corpo. Ele colocou as mãos sob as axilas dela e suspendeu-a num dos sapatos, erguendo-a no ar acima dele. Ele riu, com a exultação a subir-lhe do fundo do ser. Ela quase desmaiou olhando do alto para ele. Pouco a pouco, ele começou a baixá-la para ele. As pernas dela subiram, em torno da cintura dele, quando ele começou a penetrála. Ela sentiu o fôlego preso na garganta. Era como se uma gigantesca haste de aço incandescente a invadisse. Começou a gemer ao. sentir aquilo abri-la e subir-lhe pelo corpo, passando o útero, o estômago, o coração, a garganta. Estava arquejando como uma cadela no cio. Mas não havia para ela outra maneira de respirar. Apegou-se a ele em súbita fraqueza. Como se ela não tivesse peso, ele atravessou o quarto com a mulher envolta em seu corpo. Parou ao lado da cama da mulher e com uma das mãos jogou no chão a colcha de cetim. Ficou ali em pé um momento e então afastou-a dele e jogou-a em cima da cama. Ela olhou para ele em estado de choque, com as pernas ainda abertas e levantadas, os joelhos quase a tocarem-lhe a barriga. Sentia-se vazia. Era quase como se ele lhe tivesse arrancado todas as entranhas. Então ele surgiu por sobre ela como um gigantesco animal que lhe bloqueava a luz até que ela não pôde ver nada senão ele. Ele estendeu as mãos e agarrou-lhe os seios como se quisesse arrancá-los. Ela gemeu de dor e se contorceu com a pelve subitamente arqueando-se para ele. Então ele a penetrou de novo. — Mon Dieul — gritou ela, com as lágrimas jorrando-lhe dos olhos. Começou a ter orgasmos antes mesmo que ele entrasse inteiramente nela. Depois, não pôde mais contê-los. Sucediam-se vertiginosamente enquanto ele a acometia com a força de uma máquina gigantesca que vira em ação numa visita a uma fábrica no dia anterior. Sentiu-se de algum modo confusa, o homem e a máquina passavam a ser a mesma coisa e a força era alguma coisa que ela nunca havia conhecido. E, finalmente, quando um orgasmo após outro lhe sacudiam o corpo numa cortina escaldante de fogo e ela não podia agüentar mais, gritou em francês: —  Sinta logo o seu prazer comigo! Sinta logo! Depressa, antes que eu morra! Um rugido irrompeu do fundo da garganta dele e as mãos se crisparam em torno dos seios dela. Ela gritou e agarrou-se aos cabelos do peito que a cobria. Então, todo o peso do homem pareceu desabar sobre ela, tirando-lhe o fôlego, e ela sentiu a torrente impetuosa do seu sêmen derramar-se por ela como uma lava vistosa. Percebeu então que estava tendo mais um orgasmo. —  C'est pas possible!1 — murmurou ela ao ouvido dele, vendo-o calmamente deitado sobre ela. Fechou os olhos, sentindo-o ficar menor. Começou a sorrir dentro de si mesma. A mulher era sempre vitoriosa. O homem só era mais forte por um momento. Ele se levantou e disse: —  Tenho de me vestir antes que alguém venha lá de baixo procurar-me. —  Venha que eu vou ajudá-lo — disse ela. Mas o que nenhum dos dois sabia era que tinham sido vistos. Quem os vira tinha sido a recém-casada, que achou que seria muito interessante que só ela pudesse acordar o sogro e levá-lo para a festa dela lá embaixo.
 
Capítulo 4
Sally Hardeman fechou em silêncio a porta e saiu para o corredor. Sentia de repente as pernas muito fracas e tinha de encostár-se à parede pa$a que o tremor que lhe sacudia todo o corpo não a fizesse ir ao chão. Respirou fundo e abriu a bolsi                                                       
1 "Não é possível!" Em francês no original. (N. do E.
nha à procura de um cigarro. Acendeu-o e aspirou profundamente a fumaça. Não fazia mal que alguém a visse fumando. Isso não lhe parecia mais ter qualquer importância depois do que tinha visto. Eram verdade as histórias que lhe tinham contado. Todas elas. Acreditava em todas agora. Até na que sua amiga mais íntima lhe tinha contado de como, uma noite, num jantar de cerimônia na mansão Hardeman, sentira a mão de alguém escorregar-lhe pelas costas por baixo de sua blusa frouxa. Quase antes que ela tivesse consciência do contato, tinham-lhe desabotoado o sutiã e a mão ávida se fechara em torno de seu seio nu e começara a acariciá-lo. Quase dera um grito e se voltara indignada para o homem sentado ao seu lado, mas se lembrara a tempo de quem era. Loren Hardeman! Nem estava olhando para ela. Tinha o rosto voltado para o lado e falava com a mulher à sua esquerda. Só o braço direito estava presente, atrás de sua cadeira e sob sua blusa. Ela correu os olhos em torno da mesa. Todos pareciam muito empenhados nas suas conversas. A própria Sra. Hardeman quase em diagonal do outro lado da mesa conversava com o seu vizinho. Foi com espanto que ela compreendeu que ninguém parecia notar o leve movimento por baixo da blusa dela enquanto a mão do dono da casa lhe acariciava o seio. —  Que foi que você fez? — tinha perguntado Sally. A amiga a olhara com uma súbita expressão de divertimento. —  Nada. Se ninguém via o que estava acontecendo ou fingia não ver, quem era eu para fazer escândalo? Afinal de contas, tratava-se de Loren Hardeman. — Deu uma risada. — Depois, quando olhei para a mesa e vi que ninguém mesmo estava olhando, comecei a gostar. —  Não é possível! — exclamara Sally. —  É como lhe estou dizendo! Havia no contato dele alguma coisa que era muito agradável. —  Que foi que você fez então? —  Quando o jantar acabou, fui ao banheiro e tornei a abotoar o sutiã. Era apenas uma das histórias, mas havia outras. Agora, Sally acreditava em todas elas. Continuou a fumar o cigarro, mas as pernas ainda estavam trêmulas. Só esperava é que ninguém aparecesse no corredor para vê-la naquele estado. Havia batido de leve na porta quando subira. —  Papai Hardeman — chamara em voz baixa.
Ninguém respondera. Tornara a bater e a chamar e então, pensando que ele ainda estivesse dormindo, tentara a porta. Esta se abrira sem fazer barulho e ela havia entrado. Chamara de novo o sogro, mas viu que a cama estava vazia e havia luz no banheiro. Já ia saindo quando alguma coisa a fez estacar no grande espelho acima da cômoda. Via pelo espelho a porta aberta do quarto da sogra e nele duas pessoas nuas. Vira que o sogro carregava uma mulher nua no ar acima dele. Ele começara a rir e o riso ressoava no quarto enquanto ele baixava a mulher para ele. A mulher deu um grito e começou a gemer quando ele desapareceu dentro dela. Só depois que ele atravessara o quarto com as pernas da mulher trançadas em torno da cintura e desaparecera do espelho é que Sally conseguira mover-se. As molas da cama rangeram, a mulher deu um grito quase de dor e o espelho ficara vazio. Sally saíra bem depressa do quarto. O cigarro estava quase no fim e ela reassumia o domínio de si mesma. Começou a sentir um assomo de raiva. Era quase como se ela tivesse sofrido uma estranha forma de violação pessoal e uma dor quente e vibrante se lhe espalhou pelo corpo. O sogro não era absolutamente um homem. Era um animal não só no seu aspecto, todo coberto de pêlos e com aquelas partes gigantescas, mas também na sua maneira brutal, despida de qualquer sensibilidade. Começou a sentir-se melhor. A raiva a havia ajudado. Era uma felicidade para ela que Loren não fosse parecido em nada com o pai. Era bom, atencioso e delicado. Ainda naquele mesmo dia, ele assim se mostrara quando tinham subido para o quarto a fim de descansarem para o baile. Ela não sabia ao certo o que devia esperar. Mas ele se limitara a beijá-la mansamente e dizer-lhe que se deitasse na cama até que chegasse a hora de se prepararem. Depois, deitara-se ao lado dela e fechara os olhos. Dentro de um momento, o ritmo calmo de sua respiração mostrava que ele havia adormecido. Ela não pudera dormir logo. Ficara ali a olhá-lo durante muito tempo até adormecer também. Jogou o cigarro numa urna alta que havia no corredor e se encaminhou para as escadas, no momento em que a porta do quarto do sogro se abriu e ele apareceu. — Sally! — exclamou com a voz muito calma, como se nada tivesse acontecido. — Por que é que não está na festa? Afinal, ela é dada em sua honra.
Ela sentiu o rosto ficar vermelho e murmurou: —  A verdade é que subi para vir buscá-lo. Os convidados já estão perguntando para onde é que o senhor foi. Ele a olhou em silêncio por um momento e então sorriu. —  Muito gentil de sua  parte — disse,  tomando-lhe  o braço.   —   Neste   caso,   não   podemos   decepcioná-los,   não   é mesmo? As pernas dela começaram a tremer de novo ao contato dele e os passos dela foram um pouco trôpegos quando se dirigiram para a escada. Ele parou e olhou para ela. —  Está tremendo. Está sentindo alguma coisa? Sentiu de novo aquela dor quente e vibrante dentro dela. Fosse como fosse, não tinha coragem de olhar diretamente para ele. Conseguiu rir e dizer: —  Estou bem. O que acontece é que não é todos os dias que uma moça se casa. Elizabeth, levantando a vista, viu-os descer a escadaria. Os cabelos ruivos de Loren estavam começando a ficar salpicados de branco, mas o rosto era ainda forte e moço como no dia em que se tinham conhecido. Ela sentiu uma pontada no coração quando viu a cabeça loura de Sally voltar-se para Loren. Loren e ela eram assim no princípio. Parecia que viviam sempre rindo. Mas isso havia mudado logo que chegaram a Detroit. Quando estavam em Bethlehem, Loren tinha sido sempre divertido e engraçado, fazendo uma pilhéria a cada instante e tendo uma palavra gentil para todo mundo. Entrara então para a indústria de automóveis e tudo tinha mudado. Tinha havido os primeiros empregos na Peerless e na Maxwell, depois na Ford, que terminara quase antes de ter começado, e, por fim, com os irmãos Dodge, onde Júnior nascera em 1901, o primeiro ano em que Loren trabalhara ali. Ele tinha ficado com os Dodge durante quase nove anos até que tiveram uma divergência. O problema era que Loren queria fabricar um carro melhor que custasse um pouco mais do que o carro de preço médio da época e os irmãos Dodge não estavam absolutamente interessados nisso. Ainda estavam zangados com Ford e só queriam competir com ele. Loren tinha discutido inutilmente com eles. O modelo T era inatingível. Nada se podia fazer em condições de competir com ele. Previu com acerto que o modelo T, que foi lançado no mercado em 1908, dominaria o país. E foi o que aconteceu. Em menos de dois anos, Ford estava produzindo quase cinqüenta por cento dos carros nos Estados Unidos e Loren deixou os irmãos Dodge. Havia mercado para um bom carro de preço médio e Loren tratou de produzi-lo. Em 1911, o primeiro Sundancer aparecera nas ruas de Detroit. Daí por diante, nenhum dos outros carros de preço médio pôde comparar-se com ele em popularidade. Nem o Buick, nem o Leland, nem o Oldsmobile. Não eram nem da mesma classe e, quase da noite para o dia, a Bethlehem Motors se tornara uma grande empresa e Loren tinha perdido o dom do riso. Mas naquela noite estava sorrindo e havia nele alguma coisa que o fazia parecer jovem de novo. A orquestra tocou uma valsa e Loren abriu os braços. Sally se aproximou deles e os dois começaram a dançar. As lágrimas encheram os olhos de Elizabeth. Parecia tão moço, tão forte e tão cheio de vida que quem não soubesse poderia até pensar que o noivo era ele e não o filho. Júnior se aproximou do par e, com uma reverência, Loren entregou Sally ao marido. Veio então para onde ela estava e beijou-lhe o rosto. —  A festa está ótima, mãe. —  Como está se sentindo, pai?  Ele sorriu. —  Acho que um pouco de ressaca. Tenho de aprender a beber um pouco melhor esse uísque clandestino. O mordomo se aproximou deles e disse, baixando discretamente a voz: —  Tudo pronto, Sr. Hardeman. Loren fez um gesto de assentimento e voltou-se para Elizabeth: —  Acha que está bem agora, mãe? Ela fez um sinal afirmativo e ele tomou-a pelo braço e levou-a para o centro do salão de baile. Levantou as mãos e a orquestra parou de tocar. —  Senhoras e senhores! — a voz dele ressoou por todos os cantos do grande salão. — Como todos sabem, o dia de hoje é muito especial para minha mulher e para mim. Não é todos os dias que nosso filho se casa, especialmente com uma noiva tão bonita. Houve risos e aplausos através do salão. —  Loren e Sally — disse ele. — Venham até aqui ao centro do salão para que todos possam vê-los bem.
Júnior sorria e ela estava um pouco vermelha quando se colocaram ao lado dos dois. Júnior estava junto do pai. Era tão alto quanto ele, mas não era tão robusto, nem tão grande. Loren continuou na sua voz forte: —  Estamos em Detroit. E que melhor presente se pode dar em Detroit a um casal de noivos senão um carro novo em folha? É assim que fazemos as coisas em Detroit, não é? Um murmúrio de aprovação se elevou dos convidados. Loren ergueu as mãos pedindo silêncio. Voltou-se para o filho. —  Em vista disso, Loren, aqui está a surpresa que temos para você e sua noiva: um carro novo em folha. Novo de párachoque a pára-choque, do alto da capota à base dos pneus. O seu carro. Vamos chamá-lo de Loren  II e, no ano que vem, estará à venda em todos os revendedores da Bethlehem através do país! A orquestra começou a tocar uma marcha de Sousa enquanto as portas envidraçadas que davam para o jardim se abriram. Ouviu-se o barulho de um motor possante e o automóvel entrou no salão de baile. A multidão abriu espaço e o motorista levou o carro cuidadosamente até o centro do salão, parando diante dos Hardeman. Houve um murmúrio de aprovação e todos se comprimiram para a frente a fim de ver melhor o novo carro. Eram de Detroit e para eles nada podia haver de mais importante. E aquele carro era importante. Não havia dúvida a esse respeito. O sedã cor de vinho e preto era decerto um dos carros mais importantes já vistos naquela cidade de mentalidade automobilística. Todos pararam, percebendo de repente que a parte de trás do carro estava completamente cheia de uma porção de papéis verde e ouro. Loren levantou a mão e todos olharam para ele. —  Com toda a certeza, querem saber o que está dentro do carro, não é mesmo? Não esperou pela resposta. Foi até a porta do carro e abriu-a. Os papéis rolaram e se espalharam pelo chão. Apanhou um deles. Mostrou-o aos convidados e em seguida falou no súbito silêncio. —  Cada um destes pedaços de papel representa uma ação da Companhia Automobilística Bethlehem e há cem mil delas dentro deste carro. Cada uma delas traz o nome de meu filho, Loren Hardeman Júnior. Essas cem mil ações equivalem a dez por cento de minha companhia e meu Departamento de Contabilidade afirma que têm um valor entre vinte e cinco e trinta milhões de dólares.
Voltou-se então para o filho e disse: — E isso, Loren, é apenas um pequeno sinal do amor e do carinho que sua mãe e eu temos por você. Júnior ficou parado por um momento, com o rosto muito pálido. Quis falar, mas as palavras não lhe chegaram aos lábios. Por fim, apertou em silêncio a mão do pai. Depois, voltou-se para a mãe e beijou-a. No mesmo instante, Loren curvou-se e beijou a nora. Os olhos dela se arregalaram em sobressalto, ao mesmo tempo que o tremor lhe voltava subitamente às pernas. Apoiou a mão no braço do sogro para firmar-se e, em seguida, beijou a sogra. Os convidados bateram palmas e começaram a cercá-los para dar-lhes parabéns e desejar-lhes felicidades. No fundo do salão, um repórter do Detroit Free Press tomava notas apressadamente. O título que seu jornal publicou no dia seguinte foi ao mesmo tempo uma pergunta e uma afirmação. Dizia: "Quando Henry Ford deu a Edsel um milhão em ouro como presente de casamento pensou que isso representasse alguma coisa? "
 
Capítulo 5
Os acordes amortecidos de Às três da manhã do salão de baile eram ouvidos na biblioteca da mansão Hardeman, onde fora instalado um bar para os homens que quisessem beber alguma coisa forte, longe do salão de baile, onde só se servia champanha. Loren estava de pé junto ao bar com um copo de uísque na mão. Estava com o rosto afogueado e transpirava muito no centro de um pequeno círculo de homens. — O sedã, o carro fechado, é o carro do futuro — dizia ele. — Tomem nota do que eu estou dizendo. Daqui a dez ou quinze anos, o carro aberto de turismo que nós conhecemos estará inteiramente desaparecido. As pessoas já estarão cansadas de ticar geladas no inverno, encharcadas quando chove e assadas quando faz calor. Algum dia. os carros terão condicionamento de ar, como ]á começa hoje em dia a haver aquecimento nas casas. —  Não sei se vai ser a mesma coisa dirigir carros assim —  disse um dos homens. —  Que tem isso? A idéia é viajar confortavelmente. Nisso é que se  resume tudo.  Quanto  mais  tranqüila  for a viagem, mais fregueses haverá para o carro. Esperem até o Loren II ser lançado a venda no ano que vem e compreenderão o que estou dizendo. O mesmo homem disse, cheio de dúvidas: — Mil e setecentos dólares é um bocado de dinheiro. — Mas todos vão pagar — disse Loren com convicção. — O publico americano sabe o que quer. A qualquer tempo, pagará mais para obter qualidade. — Fez alguma proposta para a compra dos irmãos Dodge? —  perguntou outro homem. Loren sacudiu a cabeça. — Não. Isso não é para mim. Não estou disposto a lutar com a Ford e com a Chevy. Sou rigorosamente da classe média. — Ouvi dizer que a GM ofereceu cento e quarenta e seis milhões — disse o primeiro homem. —  São uns insensatos — murmurou Loren. —  Acha então a proposta exagerada? —  Não, acho modesta demais. Não vão conseguir nada. Conheço uma firma de Wall Street que fez uma oferta maior. —  Voltou-se para dois homens que estavam atrás dele e disse ao mais alto: — Escute, Walter. Quem devia comprar os Dodges era você. Isso preencheria uma lacuna em sua linha e você então poderia dar a GM um valor real pelo dinheiro dela. Walter Chrysler sorriu. —   Já examinei o assunto. Mas ainda não estou em condições. Ainda estou com o Maxwell atravessado nas mãos. Talvez daqui a alguns anos. —  Depois que a Wall Street puser as mãos em alguma coisa, vai ser muito tarde. Você bem sabe como aquela gente costuma agir. —  Posso esperar, Loren — disse Chrysler. — A Wall Street entende muito de vender títulos e ações, mas dirigir uma companhia de automóveis é outra conversa.  Eles vão acabar descobrindo isso. E, quando descobrirem, estarei pronto. Um criado abriu as duas portas da biblioteca que os havia isolado do resto da casa e ouviram-se então os rumores do fim da festa. Os homens acabaram de tomar os seus drinques e saíram para pegar as esposas e partir. Dentro em pouco, Loren se viu sozinho, na companhia apenas do homem do bar. No momento em que se serviu de outro drinque, Júnior e Sally entraram. Levantou o copo. —  À noiva e ao noivo. — Bebeu o uísque puro e disse: — Foi uma grande festa. — Foi mesmo, pai — disse Júnior, rindo.  Loren olhou para ele. —  Onde está sua mãe? —  Já subiu, pai. Pediu-nos que lhe disséssemos. Estava se sentindo muito cansada. Loren fez sinal ao homem do bar pedindo outro drinque. —  Tome um uísque comigo. —  Não, pai, muito obrigado. Acho que vamos subir também. O dia foi muito cansativo. Loren deu um risinho malicioso. —  Não podem mais esperar, não é? Pensei que já estivessem agarrados hoje à tarde. Uma visão rápida do corpo nu e cabeludo que vira pelo espelho passou pelo espírito de Sally. Exclamou com voz indignada: —  Como pode dizer uma coisa dessas, papai Hardeman?  Loren riu satisfeito. —  Não sou tão velho assim que não saiba o que é que os moços têm na cabeça. — Pôs as mãos nos ombros dela e viroulhe o corpo, empurrando-a para a porta, depois deu-lhe uma palmada. — Suba e se prepare para seu marido. Quero falar ainda um minuto com ele. Prometo que não vou fazê-lo demorar muito. Sally saiu da biblioteca, com o nariz desdenhosamente levantado. Loren olhou-a com admiração e se voltou para o filho. —  Foi um pedaço de mulher que você conseguiu, Júnior. Espero que saiba disso. —  Sei, sim, meu pai — disse Júnior, calmamente.  Hesitou por um momento e disse ao homem do bar: —  Quero um conhaque. —  Conhaque? — exclamou Loren. — Isso é bebida para mulher. Dê-lhe um uísque reforçado! O copo foi colocado diante de Júnior e ele disse:
—  Que queria falar comigo, pai? —  Sua mãe me disse que você e Sally estão pensando em comprar uma casa em Ann Arbor. —  É verdade. Gostamos muito de Ann Arbor. —  Qual é o defeito que vêem em Grosse Pointe? Posso conseguir-lhe a casa de Sanders. Ou, se não gostarem dela, qualquer outra que escolherem. —  Sally e eu gostamos do campo, meu pai. Pensamos em comprar uma casa com algum terreno onde pudéssemos ter cavalos e coisas assim. —  Cavalos? Para que diabo você quer cavalos? Nós estamos é na indústria de automóveis! —  Sally e eu gostamos de passear a cavalo — disse Júnior, com uma voz levemente defensiva. — Não creio que ninguém nos vá censurar por isso. — Está certo, está certo — apressou-se Loren em dizer. — Mas Ann Arbor fica no fim do mundo. Vocês não terão ninguém com quem conversar nos fins de semana. Não há ninguém da indústria de automóveis que more por lá. Por que não vão para Bloomfield Hills? Ao menos, por lá há gente conhecida. —  É justamente isso, pai — explicou Júnior obstinadamente. — Queremos viver para nós mesmos. Loren acabou de tomar o uísque e pediu outro. —  Escute o que lhe vou dizer. A partir do princípio do ano, você será o vice-presidente executivo da companhia e, daqui a alguns anos, será o presidente. Não estou disposto a trabalhar para sempre e creio que sua mãe e eu temos direito a descansar um pouco. Quando se tem as responsabilidades que você vai assumir, é preciso estar num lugar onde se possa ser encontrado com rapidez. Você não pode viver num ermo onde ninguém o possa encontrar. —  Ann Arbor não é um ermo, meu pai. Fica a pouco mais de uma hora de distância daqui. Loren ficou em silêncio por um momento. Correu os olhos pela sala e disse: —  Sabe de uma coisa, meu filho? Se não fosse sua mãe, eu não moraria nem aqui. Talvez algum dia eu mande fazer um edifício de escritórios lá na fábrica e o último andar será o meu apartamento. Júnior sorriu e disse: —  Será uma maneira de viver acima de todos.  Loren olhou para ele e então riu, dizendo: —  Está bem, meu filho, faça o que você quiser. Mas ouça bem o que lhe estou dizendo: dentro de muito pouco tempo, estarão procurando um lugar aqui para morar. —  Vamos ver, pai. O pai pegou-o pelo ombro e empurrou-o. —  Está bem, Loren, pode subir. Não é bom fazer a noiva esperar muito na noite do casamento. Júnior deu alguns passos para sair da sala e, então, voltouse e disse: —  Pai. —  Sim, Loren? O jovem sorriu e Loren sentiu alguma coisa no coração. Tinha visto a mulher naquele sorriso. Quase a mesma delicadeza. —  Muito obrigado, pai. Obrigado por tudo. —  Vá indo, vá indo, rapaz. Não vê que sua noiva está esperando? Voltou-se então para o bar a fim de que o filho não lhe visse a súbita vermelhidão dos olhos. —  Boa noite, pai. —  Boa noite, meu filho. Ouviu os passos que se afastavam e, quando deixou de ouvi-los, acabou o seu uísque. O copo de Júnior ainda estava em cima do bar, intato. Tirou então o grande relógio de ouro do bolso e abriu-o. O retrato de Elizabeth e de Júnior tirado havia tantos anos apareceu na tampa. Eram quatro horas da manhã. Deu um suspiro. Fechou o relógio e guardou-o. Deixou em passos lentos a biblioteca e vagueou pela casa até o salão de baile. Parecia estranhamente vazio e silencioso depois que todos tinham saído e havia apenas alguns empregados arrumando tudo. Foi até as portas envidraçadas que davam para o jardim. O Loren II estava ali no terraço, sombrio e belo à luz pálida da lua. Aproximou-se e deu a volta, admirando-o. Era pura beleza, fosse qual fosse o ângulo de que se olhasse. Abriu a porta do lado da direção e entrou. Acomodou-se confortavelmente no banco e colocou as mãos no volante. Mesmo com o motor parado, o carro parecia-lhe vivo e forte. Não sabia se Júnior tinha pelo carro os mesmos sentimentos que ele.  Mas já sabia qual era a verdade. Para Júnior, não era a mesma coisa. Um carro para ele não significava alguma coisa por si mesmo. Era apenas um produto de uma indústria na qual ele por acaso nascera. Talvez um dia Júnior viesse a sentir o mesmo que ele. Júnior nunca fizera um carro com as próprias mãos. Toda a diferença estava nisso. Descansou a cabeça sobre os braços na direção e fechou os olhos. Sentiu-se tomado de um cansaço muito peculiar. "Loren", murmurou. "Será que não pôde ver? Não foram as ações, não foi o dinheiro. Foi o carro. Foi isso que eu lhe quis dar. Foi por isso que lhe dei o nome de Loren II." Adormeceu.
 
Sally estava nua debaixo das cobertas no quarto às escuras quando ele saiu do banheiro. Ficou de pé ao lado da cama, olhando para ela, enquanto abotoava o paletó do pijama. —  Sally — disse ele num sussurro. —  Hein, Loren? Ele se ajoelhou ao lado da cama, com o rosto no mesmo plano do dela. —  Eu te amo, Sally. Ela passou os braços pelo pescoço dele e disse: —  Eu também te amo. Ele a beijou delicadamente. —  Sempre a amarei. Ela fechou os olhos, abraçou-o com mais força e puxou-o para junto dela. Tornaram a beijar-se. Ele levantou a cabeça. —  Sei que você deve estar muito cansada. . . Ela colocou o dedo nos lábios dele e puxou-lhe a cabeça para o seio, deixando-o sentir a sua nudez. Ele respirou profundamente e fechou a boca em torno de um bico de seio. Ela sentiu o calor começar a correr-lhe pelo corpo e fechou os olhos. Apareceu-lhe então uma visão de um gigantesco corpo cabeludo e nu e ela sentiu um orgasmo antes mesmo que o marido entrasse nela. Foi nesse momento que ela soube que o sogro tomara posse de seu corpo interferindo entre marido e mulher na noite de núpcias.
 
Capítulo 6
Ela conseguiu romper caminho através das dores que a dominavam e abriu os olhos. A visão era turva, mas melhorou ao focalizar o rosto do médico inclinado sobre ela. Quando ele levantou o corpo, ela viu a enfermeira e, depois, Loren. Loren parecia cansado como se tivesse passado a noite sem dormir. Parecia muito alto ali aos pés da cama. Alto e forte. Tentou sorrir. —  Loren. . . A voz dele era cheia de ternura. —  Elizabeth. . . —  Que férias estas nossas, hein?  Ele lhe segurou a mão. —  Podemos ter férias a qualquer tempo. Logo que você ficar boa. Ela ficou calada. Não haveria mais férias. Ao menos, para ela. Mas não era preciso dizer isso. Ele sabia tão bem quanto ela. —  Teve notícias de nossos filhos? — perguntou ela. —  Falei com Júnior pelo telefone. Ele queria vir até aqui, mas eu disse que não viesse. Sally está esperando a qualquer hora. —  Está certo. Ele deve ficar com a mulher, especialmente depois de terem esperado tanto tempo pelo primeiro filho. —  Não esperaram tanto assim. —  Já estão casados há quase quatro anos. Já estava começando a pensar que nunca seria avó. —  E que importância tem isso? Não me sinto absolutamente avô! Ela sorriu. Não parecia mesmo avô. Aos cinqüenta e um anos, era ainda um homem moço. Alto, forte e viril, vibrando com as forças da vida. Voltou os olhos para a.janela. Lá fora, o sol da Flórida caía de um céu azul e límpido, enquanto o vento agitava mansamente as folhas das palmeiras. —  Está um belo dia lá fora. . . —   Sim — respondeu ele. — O dia está lindo. —  Gosto   disto   aqui,   Loren.   Não   quero   voltar   para Detroit. —  Não há pressa. Trate de ficar boa primeiro. . .
—  Você sabe  o que eu quero dizer, Loren. . .   Depois quero ficar aqui. Ele ficou calado e ela lhe apertou a mão. —  Desculpe, Loren. . . —  Não há nada de que pedir desculpas. —  Há, sim. — Havia tanta coisa que ela sempre tinha querido dizer e nunca pudera dizer até aquele momento. Mas tudo se tornara muito claro. Os triunfos, os insucessos, os risos, os sofrimentos. Tanta coisa que tinham passado juntos e tanta coisa que poderiam ter passado, mas não tinha sido possível. Agora, estava vendo perfeitamente tudo. — Nunca fui mulher para você, Loren. Não que eu não quisesse ser. Mas não pude. Sabe que eu queria ser, não sabe? —  Você está falando como uma bobinha. Você sempre foi uma boa mulher, a única mulher que eu sempre quis. —  Sei que fui uma boa esposa para você, Loren. Mas não é disso que estou falando. . . Ele nada disse. —  Quero que saiba que nunca o reprovei. . . pelas outras. Sabia muito bem de que era que você precisava e de certo modo me sentia contente de que você pudesse consegui-lo. Meu único pesar era que eu, que lhe queria dar tudo, não pudesse. —  Você me deu mais do que qualquer mulher já deu a qualquer homem, muito mais do que qualquer outra mulher já me deu. Acho que eu é que falhei a você. Mas amo você e sempre amei. Você acredita em mim, não acredita, Elizabeth? Ela o olhou nos olhos por um longo momento e então disse; —  Sei disso e também sempre o amei, Loren. Desde o momento em que entrei em sua bicicletaria faz tanto tempo já, em Bethlehem. As mãos se apertaram e as recordações fluíram vivas e presentes entre eles.
Tinha sido um domingo quente de verão em Bethlehem. As grandes usinas siderúrgicas tinham fechado os fornos no sábado à noite e só uns penachos tênues de fumaça cinzenta subiam das chaminés. O sol brilhava forte no céu quando Elizabeth levou sua bicicleta para a porta lateral da casa a fim de encontrar-se com sua amiga. A cesta presa ao guidom estava cheia, de sanduíches e outras coisas  para o piquenique que  tinham  planejado.  Não tinha dito à mãe que dois rapazes estariam também presentes. A mãe dela era muito rigorosa a respeito dessas coisas. Antes que ela deixasse Elizabeth olhar para qualquer rapaz, este tinha primeiro de fazer uma visita à casa para ser submetido a uma inspeção. Quando isso terminava, o rapaz se sentia tão mal que ela nunca mais punha os olhos em cima dele. Agora, a sua maneira de agir era outra. Os rapazes iam encontrar-se com ela nos arredores da cidade, onde não havia possibilidade de que os pais dela os vissem. A amiga já estava esperando, também com uma cesta bem cheia presa ao guidom. Partiram então, com as abas largas dos chapéus batidas pelo vento, que repuxava as fitas amarradas por baixo dos queixos. Conversaram enquanto pedalavam pelas ruas tranqüilas. Era bem cedo ainda e não havia muito movimento. As carruagens começariam a passar depois, quando estivesse na hora de ir à igreja. As ruas então ficariam cheias e seria difícil passar, pois cada cocheiro procuraria tocar o seu cavalo mais depressa. A dificuldade surgiu a dois quarteirões da casa dela, quando passaram da rua calçada de pedras para uma estrada de terra. Elizabeth não viu um sulco profundo aberto pelas rodas de uma carreta na beira da estrada e caiu com a bicicleta, espalhando o farnel do piquenique em torno dela. —  Machucou-se? — perguntou a amiga, parando. —  Não — disse Elizabeth, sacudindo a cabeça. Levantou-se e começou a limpar o vestido. — Quer me ajudar a apanhar as coisas? Tinha começado a arrumar tudo de novo na cesta de arame quando viu a roda. —  Oh, não! — exclamou, desanimada. A roda da frente da bicicleta se entortara toda e não podia mais girar. —  Que é que vamos fazer agora? — perguntou ela. Era domingo e todas as oficinas de consertos deviam estar fechadas. — Bem, acabou-se o piquenique para mim. O melhor é voltar para casa. —  Eu sei onde você pode consertar a bicicleta — disse a amiga. — Meu primo alugou um velho barracão nos fundos da casa dele a um homem que conserta bicicletas. Passa todo o tempo lá, mesmo aos domingos. Está trabalhando em alguma invenção. Vinte minutos depois, estavam diante do barracão nos fundos da casa. A porta estava aberta e lá dentro um homem cantava em voz alta e desafinada. O canto se misturava ao barulho de marteladas em metal. Bateram na porta aberta do barracão. Decerto não foram ouvidas, pois o canto e as marteladas não se interromperam. —  Alô! — gritou Elizabeth. — Há alguém aí? O canto parou e as marteladas também. Um momento depois, uma voz fez-se ouvir no interior sombrio: —  Não. Aqui só há ratos. —  E algum desses  ratos  sabe consertar  bicicletas?  — perguntou Elizabeth. Houve silêncio e então um homem moço apareceu. Era alto e de ombros largos. Não usava camisa _e mostrava o peito coberto de cabelos entre vermelhos e dourados. Ficou ali piscando os olhos para elas, ofuscado pela claridade. Sorriu então. Foi um sorriso quente, cheio de grande encanto masculino. —  Que desejam, moças? —  Em primeiro lugar, pode vestir uma camisa — disse Elizabeth. — Depois, quando estiver decentemente  vestido, pode consertar a roda de minha bicicleta. Loren olhou para a bicicleta por um momento e depois voltou os olhos para ela. Ficou então parado e em silêncio a olhá-la. Elizabeth começou a sentir o rosto ficar vermelho. —  Não fique parado aí o dia todo! — disse ela, irritada. — Não está vendo que vamos a um piquenique? Ele sorriu, quase consigo mesmo, e voltou para o interior do barracão. Um instante depois, o canto desafinado e as marteladas recomeçaram. Cinco minutos depois de esperar inutilmente o reaparecimento do homem, ela entrou pela porta do barracão e espiou. Nos fundos do barracão, havia uma forja acesa e o homem estava diante dela, a bater com o martelo num pedaço de metal sobre uma bigorna. —  Moço! — chamou ela. O martelo parou no meio do caminho. O homem se voltou e disse: —  Que é? —  Não vai consertar minha bicicleta? —  Não. —  Por quê? —  Porque não me disse com quem é que vai a esse piquenique.
—  Que atrevimento! — exclamou ela. — É por acaso da sua conta com quem eu vou ao piquenique? Ele deixou o martelo cuidadosamente em cima de um banco e se aproximou dela. —  Creio que o homem com quem você vai se casar tem todo o direito de saber com quem você vai ao piquenique. Ela olhou para o rosto dele e viu em sua expressão alguma coisa que lhe fez enfraquecerem as pernas. Teve de encostar a mão na porta para firmar-se. —  Você? — exclamou ela sem fôlego. — Muito engraçado, mas eu não sei nem seu nome. —  Loren Hardeman — disse ele, sorrindo. — E o seu? — Elizabeth Frazer — disse ela e sentiu que o simples fato de dizer seu nome lhe dera mais força. — E agora, vai consertar minha bicicleta? — Não, Elizabeth — disse ele calmamente. — Que espécie de homem seria eu se fosse consertar a bicicleta de minha garota para que ela pudesse ir fazer um piquenique com outro homem? —  Mas eu não sou sua garota! —  Se ainda não é, vai ser — disse ele, segurando-lhe a mão. Ela sentiu novamente a fraqueza e murmurou com voz confusa: — Mas meus pais. . . Você não. . . eles não o conhecem. Ele não respondeu. Continuou a segurar-lhe a mão e a olhar para ela. Ela baixou os olhos e disse com voz quase sumida: —  Agora, Sr. Hardeman, quer fazer o favor de consertar minha bicicleta? Ele continuou calado. Ela não levantou os olhos do chão e disse com voz ainda mais baixa: —  Desculpe ter sido grosseira logo que cheguei, Sr. Hardeman. —  Sr. Hardeman, não. Loren — disse ele. — Pode ir desde já se acostumando com o nome. Não sou um desses sujeitos antiquados que acham que as mulheres devem tratar os maridos de "senhor". Ela olhou para ele e de repente sorriu. —  Loren — murmurou, como se estivesse experimentando o som na língua.
—  Assim, sim — disse ele, sorrindo também. Largou-lhe a mão e acrescentou: — Agora espere um pouco aí. Dirigiu-se para o interior do barracão e ela perguntou: —  Aonde é que vai? — Vou me lavar e vestir uma camisa limpa. Afinal de contas, um homem deve ter boa aparência quando vai conhecer os futuros sogros, não acha? —  Agora?   —  perguntou   ela  sem   acreditar.  —  Agora mesmo? —  É claro — disse ele, falando por cima do ombro. — Não sou do tipo que acredita em noivados compridos. Mas ainda teve de esperar dois anos até se casarem. O casamento só se realizou em maio de 1900 porque os pais dela não a deixaram casar-se antes de completar dezoito anos. E, durante esse tempo, esperaram que ele construísse o seu primeiro automóvel. Não era propriamente um automóvel. Era mais uma espécie de quadriciclo com suas estranhas rodas de bicicleta com pneus e a sua estrutura alta e esguia. Funcionou suficientemente bem para ser banido das ruas de Bethlehem em virtude da perturbação que causava, mas não o bastante para que ele se sentisse satisfeito. Ficou ciente de que tinha de aprender muito mais. E só havia um lugar onde era possível aprender: Detroit. Havia ali mais fabricantes de automóveis do que em qualquer outro lugar dos Estados Unidos. Henry Ford. Hanson E. Olds. Billy Durant. Charles Nash. Walter Chrysler. Henry Leland. Os irmãos Dodge. Esses homens eram seus heróis e seus deuses. Foi para sentar-se aos pés deles e aprender que, uma semana depois do casamento, ele e a mulher, já grávida mas sem saber disso, se mudaram para Detroit.
 
A lembrança ainda estava viva dentro dele. Olhou pela janela para o sol e para as palmeiras ondulantes. —  Foi num dia assim — disse ele. — Era um belo domingo. —  Sim — sussurrou ela. — Sou grata por isso. Foi o primeiro de muitos belos domingos que passamos juntos. —  E ainda vamos passar muitos outros — disse ele, voltando-se para  fitá-la. — Fique boa e. . .   — A voz dele de repente se alterou: — Elizabeth! Não haveria mais belos domingos para ela...
Capítulo 7
A voz de Júnior era fria e sem emoção. As cifras lhe escorregavam da língua como se ele fosse uma máquina de calcular. —  O relatório de 1928 parece bom — disse ele. — Os carros de passageiros Sundancer de todos os modelos foram vendidos num total de quatrocentas e vinte mil unidades, com oitenta por cento de todas as vendas, na sua maioria sedãs. Acessórios e extras foram vendidos num total de mais de sessenta por cento das unidades. A divisão de caminhões  teve também um aumento substancial, cerca de vinte e um por cento sobre o ano anterior, num total de quarenta e uma mil unidades. A única linha que não acusou aumento foi o Loren II. Nesse ponto, tivemos dificuldade em manter a nossa posição e, se não fosse a liberalização das facilidades de crédito concedidas aos consumidores e as garantias que damos aos revendedores, teríamos perdido terreno. Ainda assim, mantivemos um total de trinta e quatro mil unidades. É a única divisão em que estamos perdendo dinheiro. Na ocasião em que o carro é entregue ao consumidor, o nosso prejuízo é de quase quatrocentos e dez dólares por unidade. Loren apanhou um havana em cima da mesa e brincou alguns instantes com ele entre os dedos. Depois, cortou-lhe a ponta e cheirou-o. Cheirava bem. Riscou um fósforo e queimou a ponta cuidadosamente. Depois, colocou o charuto na boca, mantendo ainda a chama do fósforo encostada a ele. Um momento depois, soprou uma baforada de fumaça azul que pairou como uma nuvem acima de sua cabeça, subindo então lentamente para o teto. Empurrou a caixa para o filho. —  Fume um charuto. Júnior sacudiu a cabeça. Loren soltou outra baforada e disse: —  Só há duas ocasiões em que um homem deve usar perfume. Uma é quando o perfume é de um bom havana; e a outra é quando o perfume o faz lembrar-se de uma boa mulher. Júnior não sorriu e continuou: —  Os revendedores também não gostam do Loren II. A maior queixa deles é que o carro quase não precisa mais de serviço depois de vendido.
—  Em outras palavras, estão reclamando porque o carro é bom demais. —  Não é isso que eu estou dizendo. Mas talvez seja isso mesmo. Quase todos os carros precisam mudar o óleo depois de mil e quinhentos quilômetros rodados. O Loren II só precisa mudar o óleo depois de seis mil quilômetros. O mesmo acontece com a revisão dos freios. Neste momento, o Loren é o único carro que tem freios auto-ajustáveis. —  Sugere então que devemos  rebaixar  a  qualidade  do carro? — perguntou o pai. —  Não sugiro coisa alguma. Estou apenas chamando a sua atenção para o fato porque acho que devemos tomar uma providência. Estamos tendo com ele um prejuízo anual de quase catorze milhões. Loren olhou para a cinza na ponta do seu havana. —  É o melhor carro que já fiz. Em peso e em dólar, é o melhor carro que roda por aí. —  Ninguém está discutindo isso — disse Júnior calmamente. — Estamos falando é de dinheiro. O público prefere comprar preço a qualidade. Entre um carro grande de qualidade média por um preço médio e um carro de tamanho médio de alta qualidade pelo mesmo preço, o público prefere infalivelmente o carro grande. O Buick, o Olds, o Chrysler e o Hudson são uma prova disso todos os dias, Todos eles estão se distanciando de nós. Loren tornou a olhar para o charuto e perguntou: —  Que é que você sugere? — O mercado de geladeiras e fogões elétricos se expande de dia para dia — disse Júnior. — Tenho uma boa oportunidade de comprar uma pequena companhia de geladeiras que está produzindo uma linha muito comercial e se vê no momento em dificuldades. Precisam de capital para expansão e não o podem conseguir. Calculei que, se pudesse transferi-los para a fábrica do Loren, acabaríamos ganhando muito dinheiro. — Nada substituirá a velha geladeira de barras de gelo — disse Loren. — Já sentiu o cheiro que sai de uma dessas geladeiras elétricas? —  Isso foi no começo. Agora, tudo está muito diferente. A General Electric, a Nash, até a General Motors, estão todas produzindo geladeiras. É a linha do futuro. —  E que é que vamos fazer com o Loren II? —  Encerrar a produção. Fomos derrotados e é muito bom reconhecermos o fato.
Loren colocou o charuto cuidadosamente num cinzeiro em cima da mesa. Levantou-se da cadeira e foi até a janela de seu escritório. Por toda parte havia atividade. Longe, no fundo da fábrica, um trem começava a moverse lentamente, arrastando vagões cheios de automóveis. Do lado do rio, um cargueiro estava descarregando carvão para abastecer as fornalhas da refinaria perto do cais. As linhas de montagens compridas como túneis fervilhavam de atividade, recebendo a matéria-prima de um lado e deixando sair do outro os automóveis já prontos. E sobre tudo pairava o grande pálio cinzento da fumaça que se chamava indústria. —  Não! — disse ele por fim, sem se voltar, — Continuaremos a produzir o Loren II. Encontraremos um meio de tornálo rentável. Não posso crer que, no auge da maior fase de prosperidade que este país já conheceu, não se possa vender um carro de qualidade. Lembre-se do que o presidente disse: dois carros  em cada garagem, duas  galinhas  em cada panela.  E Hoover sabe o que está dizendo. Cabe a nós tomar providências para que neste ano da graça de 1929 um dos dois carros que estarão em cada garagem seja nosso. Júnior ficou em silêncio por alguns instantes e então disse: — Teremos então de reduzir o custo de produção. Nas circunstâncias atuais, quanto mais carros vendermos, mais prejuízos teremos. Loren voltou-se da janela. —  Trataremos disso imediatamente. Diga àquele moço da engenharia de produção, não sei como é que se chama, que venha falar comigo. Gosto muito do jeito dele. —  John Duncan? — Esse mesmo. Contratei-o quando trabalhava para Charlie Sorensen na Ford. Vamos soltá-lo na linha da produção do Loren para ver o que ele pode arranjar. —  Bannigan vai se aborrecer — disse Júnior.  Bannigan era o principal engenheiro de produção e chefe do departamento. —  Será uma pena — disse Loren. — Nós aqui pagamos é trabalho e não explosões de temperamento. —  Pode até demitir-se. Recebeu um convite para ir trabalhar na Chrysler. —  Ótimo. Neste caso, não o faça hesitar. Diga-lhe que aceite o convite. —  E se ele não sair? —  Você não é o presidente da companhia? Demita-o de qualquer jeito. Já estou cansado de ouvi-lo dizer que isto e aquilo não pode ser feito. Quero agora alguém que faça. —  Está muito bem — disse Júnior. — É só? —  Por ora — disse Loren e então o seu tom de voz mudou: — Como vai meu neto? Júnior sorriu pela primeira vez na reunião. —  Está bem crescido. Precisa ir vê-lo. Está com quase cinco quilos e tem apenas dois meses e meio. Parece que vai ser grande como o senhor. Loren sorriu também. —  Ótimo. Talvez eu apareça por lá um dia destes. —  Faça isso, sim. Sally vai ficar muito contente. —  Como vai ela? —  Muito bem. Está de novo como era antes da gravidez, mas vive se queixando de que está engordando. —  Não a deixe ficar parada para pensar — disse Loren, rindo. — Dê-lhe outro filho rápido. E veja se dessa vez consegue uma menina. Seria muito bom que ela tivesse o mesmo nome de sua mãe. — Isso é que eu não sei. Sally teve um parto muito difícil. — Mas está bem, não está? Há alguma coisa com ela? — Não, está perfeita. — Então não ligue a ela e vá em frente. As mulheres querem sempre algum motivo para reclamar. Faça o serviço e você acabará vendo que ela não terá motivo de queixas. — Vamos ver — disse Júnior. Já ia saindo quando o pai o chamou. — Sim? —  A companhia de geladeiras de que você falou. Acha que é mesmo um bom negócio? —  Acho. —  Então compre-a. —  Mas onde é que a vamos colocar? Estava contando com a fábrica Loren. —  Venha cá — disse Loren. Foi até a janela e abriu-a. O rumor da fábrica se espalhou pela sala. Loren se debruçou na janela e apontou: —  E aquilo ali?  Júnior olhou e exclamou: —  Mas é o velho depósito. —  Sim. E são também cem mil metros quadrados de espaço de produção que só servem para juntar ferrugem e poeira. —  É também o lugar onde guardamos peças e sobressalentes.
—  Livre-se disso. Para que temos depósitos de peças regionais se ainda precisamos ficar com esse lixo em nosso quintal? Remeta isso para todos os depósitos e insista em dizer que é um grande favor que nós lhe estamos fazendo. Para dourar a pílula, em vez do prazo usual de dez dias ou até o dia 10 de cada mês, dê-lhes um prazo de noventa dias. — Mas não é justo, pai, e o senhor sabe muito bem disso. Nunca vão vender nem cinqüenta por cento desse material. —  Quem foi que disse que devemos ser justos? Empurre essas coisas em cima deles como eles nos empurram tudo o que podem sempre que encontram uma oportunidade. Uma coisa você tem de aprender e aprender de verdade. Não existe um só revendedor de carros honesto. São os descendentes diretos dos velhos ladrões de cavalos. Roubam de quem lhes der alguma chance, por menor que seja. Roubam de você, de mim, dos fregueses e até das mães deles. Você não viu nenhum deles chorar quando nos debitavam duzentos dólares a mais em cada Loren II numa época em que sabiam que estávamos perdendo mais de duzentos dólares por unidade. Cobravam-nos isso a título de bonificação aos fregueses para promover as vendas. Mas nós sabemos muito bem que metiam esse dinheirinho no bolso. Por isso, não tenha pena deles. Reserve as suas simpatias para quem as merece, isto é, para nós. —  Escute, pai. Não posso acreditar nisso. Nem todos podem ser tão ruins assim. Loren riu. — Já ouviu falar de um revendedor de automóveis pobre? Júnior não respondeu. — Escute, vou lhe fazer uma proposta. Pegue uma lâmpada e saia como Diógenes à procura de um revendedor honesto. Basta um. Quando o encontrar, traga-o até aqui e eu lhe darei o resto de minhas ações na companhia e abandonarei a indústria! —  Mais alguma coisa, Sr. Hardeman? — perguntou-lhe a secretária. Júnior sacudiu a cabeça num gesto cansado. —  Creio que não, Srta. Fisher. Viu-a reunir os papéis e deixar o escritório. Fechou a porta em silêncio e com respeito. Júnior recostou-se na cadeira e fechou os olhos. Parecia que os detalhes nunca terminavam. Era sempre uma surpresa para ele ver como o pai sabia de tudo o que estava acontecendo na indústria sem parecer fazer qualquer esforço. Já ele tinha de esgotar-se para ficar a par dos pequenos assuntos cotidianos e, mais ainda, dos relativos à direção geral da companhia. Naquele momento mesmo, estava precisando de um vicepresidente administrativo só para manter a organização em bom funcionamento. Mas o pai dele era contra. — A única maneira de dirigir uma indústria é dirigi-la pessoalmente — disse ele quando Júnior pedira permissão para nomear um assistente. — Assim, todo mundo sabe quem é que manda. Fiz isso toda a minha vida e deu resultado. Não adiantava muito Júnior explicar que os tempos estavam mudados e que as exigências eram maiores. A palavra decisiva do pai sobre o assunto fora que não tinha feito dele presidente da companhia para que ele passasse adiante as suas responsabilidades. Não estava disposto a afastar-se e deixar a sua indústria nas mãos de estranhos. E só se sentiria em segurança quando partisse para a Europa em maio para as primeiras férias que ia gozar na vida, porque deixava o filho à testa de tudo. Júnior o tinha ouvido com uma certa descrença. Não era a primeira vez que ouvia essas histórias. Só principiaria a acreditar quando visse o pai embarcar no navio. Tirou o relógio e olhou-o. Eram nove e quarenta e cinco. Pegou o telefone. A secretária atendeu. —  Quer ligar para a Sra. Hardeman? Houve um zumbido na linha e, um momento depois, Sally atendeu. —  Alô. —  Alô, querida. Desculpe, mas só agora é que vi que era tão tarde. Espero que não me tenha esperado para jantar. A voz dela era fria. —  Como não tive notícias suas até as oito horas, calculei que estivesse muito ocupado e comi alguma coisa. —  Muito bem — disse ele. — Como vai o garoto? —  Ótimo.   —  Escute aqui, já é tarde. Não estou com nenhuma disposição de guiar o carro durante uma hora para chegar em casa esta noite, principalmente quando tenho uma reunião marcada aqui amanhã às sete horas. Você se incomoda se eu for dormir no clube? Houve uma leve hesitação na voz dela. —  Não, se você está tão cansado assim. . . —  Chegarei mais cedo amanhã à noite, está bem?
—  Está bem. Bom descanso para você. — Para você também. Boa noite, querida. Um estalo na linha mostrou que ela havia desligado. Colocou vagarosamente o fone no gancho. Ela tinha ficado zangada. Tinha certeza disso. Era a segunda vez naquela semana que ele ficava na cidade. Seu pai estava certo. Fora um grande erro ir morar em Ann Arbor. Naquele fim de semana, teria uma conversa com Sally a respeito da necessidade de se mudarem para Grosse Pointe. Tornou a pegar o telefone e disse à secretária: —  Ligue para o clube. Diga que vou dormir lá e que reservem Samuel para me fazer uma massagem. Começou a sentir-se melhor quase antes de desligar o telefone. Aquele era o caminho certo. Um jantar muito leve, depois um banho quente, bem repousante. Então iria nu para a cama e Samuel chegaria com a sua mistura de óleos suaves e álcool. As tensões o abandonariam quase ao primeiro contato das mãos dele e um agradável torpor o dominaria. Estaria adormecido quando o massagista saísse. Seria um sono profundo, seguro, sem sonhos.
 
Sally desligou o telefone e voltou para a sala de estar. Loren olhou-a do sofá onde estava sentado e perguntou: —  Aconteceu alguma coisa? —  Não. Era Júnior. Vai passar a noite no clube. Diz que está muito cansado para guiar o carro até aqui esta noite. —  Disse a ele que eu estava aqui? —  Não. Isso não teria feito qualquer diferença. Vou lhe preparar outro drinque. —  Prepare um para você também — disse Loren. — Parece que está precisando. —  Não posso beber enquanto não desmamar o garoto. Está aqui seu drinque. Descanse um pouco e fique à vontade enquanto eu dou a seu neto a mamada das dez horas. Não vou demorar. Loren levantou-se. —  Vou com você. Ela o olhou com estranheza, mas nada disse. Ele a seguiu subindo os degraus para o quarto da criança. Uma lâmpada fraca brilhava num canto do quarto, lançando uma leve luz amarelada atrás do berço. Caminharam em silêncio e olharam para o menino. Estava dormindo,  mas,  quando  a  mãe  o  pegou,  começou  a chorar quase imediatamente. —  Está com fome — disse ela, num sussurro, indo sentar-se numa cadeira. Estava na sombra, de costas para a luz. Loren ouviu o farfalhar suave do vestido. De repente, o choro cessou e a criança começou a mamar. Ela olhou para ele. Os olhos brilharam como os de um animal na luz amarela refletida. Havia no rosto dele uma expressão estranhamente intensa. —  Não posso ver — disse ele. Ela se virou lentamente na cadeira até que ela e o bebê foram banhados pela suave claridade. Ela lhe ouviu os passos e, quando levantou os olhos, ele estava diante deles. —  Meu Deus! — exclamou ele em voz baixa  — Como é belo! Um calor percorreu o corpo dela e ela ficou subitamente zangada. —  Pode dizer isso a seu filho! Ele não falou. Levou a mão aos ombros nus de Sally e apertou-os para tranqüilizá-la. Assustada, ela olhou para o rosto dele por um momento e então voltou-se e beijou-lhe a mão. As lágrimas lhe vieram aos olhos e correram pelas faces, indo molhar a mão dele. Ela encostou o rosto nele e murmurou: —  Desculpe, papai Hardeman. A mão livre dele afagou-lhe os cabelos. —  Tudo está bem, minha filha — disse ele afetuosamente. — Eu compreendo. —  Compreende mesmo? — retrucou ela, quase irritadamente. — Ele não é como o senhor. É frio e guarda tudo dentro de si, trancado aonde ninguém pode chegar. E eu não sou assim. Eu. . . Ele colocou o dedo nos lábios dela para fazê-la calar-se. —  Já lhe disse que compreendo. Ela o olhou sem falar. Sentia a força que vinha dele envolvê-la e percebeu que ele compreendia mesmo tudo o que ela sentia. —  Acha tão errado assim?  Ele abanou a cabeça. — Eu o vi com aquela mulher na noite de meu casamento. — Sei disso. Percebi tudo pelos seus olhos. — Que é que faz aquilo certo e isto errado? — A ocasião. Não é esta a ocasião — disse ele, olhando para a criança que mamava. — Você tem coisas mais importantes para fazer. A velha cólera  irracional empolgou-a de  novo.  Por que tinha ele sempre de ter tanta segurança, de estar sempre tão certo? —  Sou uma idiota! — exclamou ela. — Idiota e imbecil! —  Não é nada disso — disse ele com um sorriso. — Você é apenas uma mulher jovem, normal e sadia, cujo marido merece um pontapé no rabo por não cumprir os seus deveres em casa. — Encaminhou-se para a porta e acrescentou: — E justamente quem deve dar esse pontapé sou eu. —  Não — disse ela. — Não se meta nisso. Só há uma coisa que eu quero do senhor. —  Que é? Ela se levantou da cadeira e deitou de novo a criança no berço. Ajeitou cuidadosamente as cobertas em torno do menino que dormia e voltou-se para ele. Aproximou-se dele, abotoando a blusa. Parou diante dele e levantou os olhos. —  Quero que me diga quando for a ocasião. Os músculos do rosto dele pareceram agrupar-se em linhas angulosas. Ela podia ver que as têmporas dele latejavam. Estendeu as mãos de repente a agarrou-lhe os seios. Ela sentiu o leite escorrer através da blusa nas mãos dele. —  Cachorra! — exclamou ele, exasperado. — Não podia esperar? — Não — disse ela, quase calmamente. Encostou as mãos nele e sentiu-lhe a força impetuosa. Sentiu dissolver-se toda por dentro. As pernas se enfraqueceram e ela se apoiou nele. — Meu quarto é naquela porta — conseguiu murmurar.  Ele a pegou nos braços e levou-a para o outro quarto. Fechou a porta com uma das mãos e levou-a para a cama. Ela se deixou cair na cama e ficou a olhá-lo enquanto ele se despia. Ela estendeu a mão e acendeu o pequeno abajur da mesinhade-cabeceira. Ele já estava quase nu e perguntou rudemente: —  Que é que está esperando? Tire o vestido! Ela sacudiu a cabeça em silêncio, sem tirar os olhos dele até o momento em que ele tirou a última peça de roupa e se encaminhou para ela. Olhou então para ele e disse: —  Rasgue-me as roupas! Como fez com aquela mulher!  Num instante, o vestido ficou em tiras e ele se colocou de joelhos diante dela. Empurrou-lhe para trás as pernas abertas e desceu sobre ela.
Ela meteu na boca o punho fechado para não gritar. Foi tomada por sucessivos paroxismos de orgasmo e febre. Fechou bem os olhos e dessa vez foi a mulher que tinha visto no espelho.
 
Capítulo 8
Acordou alguns minutos antes da mamada das duas horas do garoto. Loren estava dormindo de bruços, com um braço estendido por cima do travesseiro para proteger os olhos da luz do abajur, as longas pernas estendidas pela cama e os pés desajeitadamente sobrando do lado de fora. Visto assim de perto, ele não parecia tão cabeludo quanto ela havia pensado. O corpo era coberto de pêlos sedosos entre ruivos e dourados, através dos quais se mostrava a brancura da pele. Saiu da cama com muito cuidado para não acordá-lo. Teve então consciência do próprio corpo. Todas as suas células estavam estuantes, vivas, ricas e satisfeitas. "É assim então!", pensou ela, maravilhada. Em silêncio, vestiu um robe e foi para o quarto do garoto, fechando a porta depois de passar. Aproximou-se do berço e olhou para o menino que dormia. Pela primeira vez, tudo fazia sentido para ela. Não era mais um bebê. Era um homenzinho e algum dia seria grande e forte, capaz de satisfazer uma mulher, como ela se sentia satisfeita. Os seios começaram a doer e ela tocou neles. Foi depois até a cômoda e tirou a mamadeira quente já preparada dentro de uma caixa térmica. Experimentou a temperatura do leite nas costas da mão. Estava no ponto. Tirou a criança do berço, sentou-se na cadeira e deu-lhe o bico de borracha da mamadeira. O bebê deu uma mamada e afastou o rosto, começando a chorar em protesto. — Calma — disse ela, tornando a dar-lhe o bico da mamadeira. — Você tem de se habituar a isso de vez em quando. O menino pareceu compreender porque de repente começou a mamar gulosamente. Ela se inclinou e beijou-lhe o rosto subitamente suado. —  Homenzinho — murmurou ela. Nunca sentira tanto amor por ele quanto naquele momento. Ouviu a porta se abrir e, quando olhou, Loren apareceu diante deles. Estava nu à luz amarelada e o seu forte cheiro masculino lhe chegou pungentemente ao nariz. —  Mamadeira? — perguntou ele um momento depois. —  Você não deixou nada para ele — respondeu ela simplesmente. Ele nada disse. — Está certo — disse ela. — Já está mesmo em tempo de começar a desmamá-lo. Ele assentiu sem falar e voltou para o outro quarto. Ela olhou para o menino. A mamadeira estava quase vazia. Estava na hora de fazê-lo arrotar. Quando voltou ao quarto, ele estava sentado na cama fumando um cigarro. Olhou-a com uma interrogação quando ela fechou a porta. — Está dormindo de novo. — Boa vida — disse ele, sorrindo. — É só comer e dormir. — Levantou-se. — Tenho de ir-me embora. — Não. — Escute aqui — disse ele. — Já fomos loucos de sobra. O que tenho de fazer agora é ir-me embora e tomar providências para que isso nunca mais se repita. — Quero que fique. — Você ainda é mais maluca do que eu. — Não, não sou. Acha que eu posso deixá-lo ir agora que me mostrou o que é de fato ser uma mulher? O que é de fato ser amada? — Amada não, possuída. Não é a mesma coisa. — Talvez para você não seja. Mas para mim é. Eu o amo! — Uma boa hora na cama e você já me ama? — E não é um motivo suficiente? Eu poderia ter ido até o fim de minha vida sem saber o que era realmente sentir como uma mulher. Ele ficou em silêncio. — Veja — disse ela precipitadamente, com as palavras quase atropeladas umas nas outras. — Eu sei muito bem que depois desta noite tudo estará terminado. É claro que isso nunca mais vai acontecer. Mas não é amanhã ainda. Ainda é esta noite e eu não quero perder um só momento dela.
Ele sentiu a vibração em seus órgãos e percebeu pela expressão dos olhos dela que ela tinha conhecimento disso. Sentiu uma súbita raiva da traição que estava fazendo a si mesmo. —  Não podemos ficar neste quarto — disse ele asperamente. — Os empregados. . . —  Vá para o quarto de Loren. Ali por aquela porta. Ele começou a apanhar as roupas e perguntou: —   Que é que vai dizer a eles? —  A verdade.  Veio me fazer uma visita e demorou-se tanto que já era muito tarde para voltar para casa. Afinal de contas, que é que os empregados podem dizer? É meu sogro, não é? Uma coisa apenas e está preocupando. Como é que vou chamá-lo agora?  "Papai Hardeman" parece bem ridículo depois do que aconteceu. —  Por que não me chama  de  Loren?  Não deverá  ser muito difícil. — Seguiu-a até o outro quarto e perguntou: — Desde quando vivem em quartos separados? —  Desde  o  princípio.   Escute,  deixe-me  pendurar   suas roupas, senão amanhã não poderá usá-las. —  Pensei que dormissem no mesmo quarto. —  Nunca dormimos. Loren disse que nunca dormia, bem e me iria incomodar. Além disso, me disse que você e  sua mulher dormiam em quartos separados. —  Mas isso só aconteceu depois  que ela ficou doente. Dormimos na mesma cama nos primeiros vinte anos de nossa vida de casados. —  Eu não sabia disso — murmurou ela, pendurando-lhe a camisa num cabide. —  Vocês dois são muito moços para ter quartos separados. Sei agora que não há nada de errado com você. Há alguma coisa de errado com Loren? —  Não sei. . . Ele é diferente. Não é como você. —  Diferente como? —  Nunca parece querer muita coisa de mim. Pensando bem, ele só me ama quando eu falo nisso. Até na noite de nosso casamento, eu queria tanto que o esperei nua na cama, mas o que ele me perguntou em primeiro lugar foi se eu não estava muito cansada. — Ele nunca foi muito forte. Desde menino, era frágil e delicado. A mãe dele se preocupava muito com isso. Eu a achava muito exagerada, mas ela era assim mesmo. Afinal de contas, ele era filho único e ela sabia que nunca mais teria outro. —  Eu gostaria de lhe dar um filho.
— Já me deu. Um neto. — Mais do que isso. Gostaria de ter um filho que fosse seu mesmo. É um homem que deveria ter muitos filhos. — É tarde para isso agora. — É mesmo, Loren? — perguntou ela, aproximando-se dele. — É tarde demais? Ele olhou para ela sem responder. —  Você nunca me beijou, Loren. . . Ele colocou as mãos nos ombros dela e levantou-a para ele. Ela lhe sentiu os polegares nas axilas e os fortes dedos comprimindo-lhe as costas, esmagando-lhe os seios de encontro ao corpo. A boca desceu com força contra os lábios dela e Sally sentiu o fogo líquido escorrer-lhe por dentro do corpo. Afastou a boca e encostou a cabeça no peito dele. Fechou os olhos, roçou os lábios pelos ombros dele e Loren mal pôde ouvir-lhe o suave sussurro: —  Tomara que esta noite nunca chegue ao fim. . .  Abraçou-a ainda com mais força. Ambos sabiam que a manhã estava a apenas algumas horas de distância.
 
—  Mais café, Sr. Hardeman? Loren fez um sinal afirmativo. Olhou para Sally do outro lado da mesa do café e esperou até que o impassível mordomo lhe enchesse a xícara e saísse da sala. —  Você não comeu nada. —  Não estou com fome — disse ela. — Além disso, tenho de emagrecer quatro quilos e meio até voltar ao peso que eu tinha antes do nascimento do garoto. Ele pegou a xícara e tomou um gole do café forte. Pensou nela como a tinha visto às seis horas da manhã. Acordara no momento em que ela saíra da cama para amamentar o filho, mas fechara deliberadamente os olhos para que ela pensasse que ele ainda estava dormindo. Sentiu-a de pé ao lado da cama, olhando para ele. Ao fim de um momento, afastou-se e ele olhou através das pálpebras entreabertas. Estava nua e à luz cinzenta do amanhecer podia ver as leves manchas azuis e roxas que deixara com sua paixão na pele clara dela. Parecia andar pelo quarto sem um objetivo certo. Parou diante da cômoda e de repente eram duas, uma no espelho. Mas não olhou a si mesma. Pegou o pesado relógio dele, olhou-o por um momento e largou-o. Apanhou então as abotoaduras de ouro numa reprodução do primeiro Sundancer que tinha feito. Olhou-as demoradamente. Depois de deixá-las de novo em cima da cômoda, voltou-se para olhá-lo. Loren fechou prontamente os olhos. Ouviu-a andar pelo quarto. Depois, uma porta se fechou e, um momento depois, ouviu o barulho da água no banheiro. Rolou então na cama e abriu os olhos. Estava na cama de seu filho, no quarto de seu filho e o cheiro da mulher de seu filho ainda estava no travesseiro ao lado dele. Correu os olhos pelo quarto. Tudo nele refletia a predileção do filho por móveis antigos. A cômoda, o espelho, as cadeiras e até a frágil escrivaninha num canto ao lado da janela, tudo era do gosto de seu filho. Uma tristeza peculiar desceu sobre ele. Elizabeth tinha dito muitas vezes que a vida dele tinha sido uma série de insucessos no que se referia ao filho. Nunca pudera admitir as diferenças entre eles e, por mais que se tivesse esforçado, jamais conseguira moldar Júnior à sua imagem e semelhança. Fechou os olhos, cansado. Se tinha havido insucessos, que era aquilo que ele tinha feito? Outro insucesso? Ou uma traição? Pior ainda, uma usurpação definitiva da vida e do lugar de seu filho? Deslizou para um sono agitado. Quando abriu os olhos de novo, já passava das oito horas e ela estava de pé ao lado da cama. Estava com um vestido simples, com o rosto lavado, sem pintura, os olhos claros e os cabelos penteados para trás. —  Júnior está lhe telefonando do escritório — disse ela com voz calma. —  Que horas são? — disse ele, pondo os pés no chão. —  Quase oito e quarenta. —  Como foi que ele soube que eu estava aqui? —  Uma vez que você não apareceu na reunião desta manhã, ligou para sua casa. Disseram lá que você tinha dito que talvez viesse até aqui. — Que foi que você disse a ele? —  Que você tinha ficado até tarde e que eu achara que era melhor você dormir aqui do que dirigir o carro à noite até Grosse Pointe. —  Está bem — disse ele, levantando-se. Sentiu no mesmo instante uma dor aguda nas têmporas. — Pode arranjar-me um pouco de aspirina? — Foi até a pequena escrivaninha e pegou o fone. — Alô! —  Pai? — disse Júnior, com uma voz que parecia fina e metálica ao  telefone. — Desculpe, mas eu não sabia que o senhor estava aí, senão teria ido para casa. —  Não tem importância. Decidi na última hora. Sally voltou ao quarto com dois comprimidos de aspirina e um copo de água. Loren tomou logo os comprimidos. —  Duncan completou os planos para a nova linha de montagem do Loren II — disse Júnior. — Queremos a sua aprovação. —  Que tal? — Parece muito bem. Deveremos economizar cerca de duzentos e dez dólares por unidade até a montagem final. — Aprove então e toque para a frente.  — Sem o senhor ver? —  Que é que tem isso? Pode desde já ir assumindo plena responsabilidade. Você é o presidente da companhia. Quem tomará as decisões será você. —  Mas. . . que é que vai fazer? —  Vou tirar as férias de que estou falando há tanto tempo. Vou passar um ano na Europa e partirei amanhã mesmo. — Pensei que só fosse no mês que vem. — Mudei de idéia — disse Loren, olhando para Sally.  Ela olhou para ele por um momento e em seguida saiu em silêncio do quarto. Tornou a falar ao telefone e disse ao filho: — Vou passar em casa para trocar de roupa e falarei à tarde com você. Sentou-se cansadamente na frágil cadeira da escrivaninha e esperou que a aspirina acabasse com a sua dor de cabeça. Naquele momento, ela o olhou quando ele acabou de tomar a xícara de café e disse com voz controlada: —  Vai fugir. —  É verdade. —  Acha que isso fará qualquer diferença? —  Talvez não. Mas cinco mil milhas de mar podem poupar muitos problemas. Ela não replicou e ele continuou, olhando-a firmemente: —  Não tenho o menor arrependimento do que aconteceu. Mas tivemos sorte. Ninguém se machucou, ao menos desta vez. Mas eu me conheço. Se ficasse, não conseguiria afastarme de você. E, no fim, acabaríamos destruindo e magoando pessoas e coisas que não queremos magoar. —  Amo-o — disse ela, sem sair da cadeira. —  E eu acho que também a amo — disse ele ao fim de algum tempo e com uma nota de sofrimento na voz. — Mas isso não importa. É tarde demais. Para nós dois.
 
Capítulo 9
—  Cadela! Prostituta da pior espécie! — exclamava Júnior com voz estridente. — Quem foi? Ela observava assombrada a súbita transformação que se operara nele. Era como se o corpo dele tivesse sido ocupado por um virulento espírito feminino. Pela primeira vez, notava as características femininas reprimidas do marido. Diante desse conhecimento, o medo desapareceu. —  Baixe a voz — disse ela calmamente. — Assim, vai acabar acordando o garoto. Ele bateu com a mão aberta no rosto dela e ela rolou pelo chão com a cadeira em que estava sentada. A dor apareceu como uma queimadura um momento depois, quando ela o olhava com os olhos arregalados de espanto. Ele continuou acima dela, com a mão levantada, como se fosse bater de novo. —  Quem foi? Ela ficou por um momento sem se mover. Depois, empurrou a cadeira com as pernas. Levantou-se vagarosamente, com a marca branca da mão bem visível na vermelhidão da face. Recuou até sentir a cômoda às suas costas. Ele a seguiu, ameaçador. Ela colocou as mãos em cima da cômoda para trás, sem tirar os olhos do rosto dele. A mão dele começou a descer. Ela se moveu com maior rapidez ainda. Ele sentiu a ponta acerada mesmo através da fazenda grossa do colete. —  Não faça isso! — disse ela. A mão dele parou no ar, ao mesmo tempo que os olhos desceram para a sua cintura. O cabo de prata da longa lima de unhas brilhava na mão dela. Olhou-a então incredulamente. —  Se tocar de novo em mim, eu o matarei — disse ela calmamente.
Ele pareceu de repente desarmar-se. A mão caiu ao longo do corpo e as lágrimas lhe chegaram aos olhos. —  Vá para ali e sente-se — disse ela. — Depois disso, poderemos conversar. Como em transe, ele se dirigiu para a poltrona num canto do quarto dela e sentou-se. Cobriu o rosto com as mãos e começou a chorar. A explosão de cólera que a havia dominado evaporou-se com a mesma rapidez com que surgira. Nada restava dentro dela senão pena. Não era um homem e não era mais uma criança. Colocou de novo a lima de unhas em cima da cômoda e se aproximou dele. Disse então: —  Vou-me embora. Pode pedir o divórcio. Ele olhou para ela por entre os dedos que lhe cobriam o rosto. —  Para você, é muito fácil — disse, quase soluçando. — E para mim? Todos vão saber do que aconteceu e farão comentários e rirão de mim pelas minhas costas. —  Ninguém vai saber. Irei para tão longe que nunca mais terão notícias minhas em Detroit! —  Não estou me sentindo bem! — disse ele de repente, levantando-se e correndo para o banheiro. Através da porta aberta, ela o ouviu vomitar no vaso. Seguiu-o e viu-o com o corpo todo curvado a vomitar. Todo o corpo lhe tremia e ele parecia a ponto de cair. Ela se aproximou prontamente por trás dele e lhe sustentou a testa com a palma da mão. Ele encostou nela o corpo dobrado enquanto arquejava espasmodicamente. Mas o estômago estava vazio e os vômitos não vinham mais. Um momento depois, parou de tremer. Sally abriu a torneira de água fria da pia. Pegou uma toalha e, depois de molhá-la, colocou-a na testa dele. Ele levantou o corpo e ela, com outra toalha molhada, lhe limpou da boca e do queixo os vestígios dos vômitos. —  Que sujeira que eu fiz! — murmurou ele desconsoladamente, olhando para o vômito no chão, nas bordas e na tampa levantada do vaso. —  Não faz mal — disse ela. — Pode deixar que eu limpo tudo. Vá lá para dentro e deite-se. Ele deixou o banheiro e ela tratou de limpar e arrumar tudo. Quando acabou, alguns minutos depois, o quarto dela estava vazio, mas a porta do quarto dele estava aberta.
Estava deitado por cima da colcha da cama, com os olhos cobertos pelo braço. —  Como se sente? — perguntou ela. Ele não respondeu. Ela se voltou e encaminhou-se para o quarto dela. — Não vá embora — disse ele. — Ainda não estou bem. Estou sentindo o quarto todo rodar. Ela voltou para junto da cama. O rosto dele estava pálido e cheio de suor. —  Você precisa botar alguma coisa no estômago. Vou pedir chá e leite piara você. Puxou a faixa da campainha na parede. Um momento depois, o mordomo chegou à porta. —  Um pouco de chá fraco e de leite para o Sr. Hardeman — disse ela. Fechou a porta e voltou para junto da cama. —  Vou ajudá-lo a trocar de roupa. Assim, você se sentirá mais à vontade. Como se fosse uma criança, ele deixou que ela o despisse e lhe vestisse o pijama. Depois, saiu da cama e esperou pacientemente enquanto ela arrumava as cobertas. Voltou para a cama, deitou-se e se cobriu. O criado chegou com o chá, deixou a bandeja em cima da cama e saiu. Ela encheu a xícara com o chá e o leite quente, meio a meio. —  Beba isto que vai lhe fazer bem. Ele bebeu em goles vagarosos e a cor começou a voltarlhe ao rosto. Quando a xícara ficou vazia, ela tornou a enchêla. Olhou então para ele e perguntou: —  Posso fumar? Ele fez um sinal de assentimento e ela foi até seu quarto, voltando de lá com um cigarro aceso. —  Melhor?  Ele assentiu. Ela aspirou fortemente o cigarro e sentiu a fumaça acre arder-lhe na boca e no nariz. Disse então: —  Desculpe. Não queria magoá-lo.  Ele nada disse. —  Estava decidida a ir-me embora e deixar uma carta para você. Não queria que você soubesse de nada. O médico me prometeu que não diria nada a ninguém. —  Você se esqueceu de dizer a ele que isso abrangia seu marido. Fiquei sem saber o que estava dizendo quando me encontrei com ele no clube e ele me deu os parabéns. —  Isso já passou e não tem mais importância — disse ela. — Vou-me embora amanhã e você poderá tratar do divórcio como quiser. Não quero coisa alguma. —  Não! Você não vai embora. —  Mas. . . —  Vai ficar aqui e ter a criança. Como se nada tivesse acontecido. . . Ela ficou em silêncio e ele continuou. —  Um escândalo  agora poderia  arruinar a companhia. Estamos negociando empréstimos no total de cinqüenta milhões de dólares para nos reaparelharmos para os novos carros de 1930. Acha que algum banco nos iria dar dinheiro se isso se tornasse público? Nunca! Por outro lado, meu pai seria capaz de me matar se acontecesse alguma coisa que nos impedisse de receber esse dinheiro. Permaneceram num pesado silêncio que pareceu durar um tempo enorme. Ela apagou um cigarro e acendeu outro. —  Por que não tomou alguma providência? — perguntou ele afinal. — Por que demorou tanto? —  Só descobri quando já era tarde demais. Nessa ocasião, nenhum médico queria mais tocar em mim. Atrapalhei-me com a suspensão das regras depois do nascimento do garoto. —  Não vai me dizer quem é o pai? —  Não. —  Não é preciso dizer. Eu sei quem é.  Ela ficou calada. —  Foi ele. Não havia necessidade de que ele dissesse o nome do pai para ela saber a quem ele estava se referindo. — Não seja louco! — exclamou ela, esperando que ele não notasse o tremor súbito da mão que segurava o cigarro. — Não sou tão idiota quanto você julga — disse ele, mostrando subitamente no rosto uma malícia bem feminina. — Ele passou a noite aqui e, na manhã seguinte, resolveu partir para a Europa, um mês antes da data marcada. —  Isso não quer dizer nada — disse ela com um riso forçado. —  Talvez outra coisa tenha algum significado! — exclamou ele, saindo da cama. Atravessou o quarto em direção ao armário onde guardava meias e cuecas. Abriu a última gaveta, tirou de lá alguma coisa e mostrou-a. Era um lençol que ele abriu no chão diante dela. — Reconhece isto?  Ela sacudiu a cabeça. — Pois devia reconhecer! É o lençol que estava em minha cama naquela noite, na noite em que ele dormiu aqui. Sabe o que são essas manchas amareladas? Ela ficou calada. — Manchas de esperma. Qualquer rapaz pode reconhecer isso. E não me consta que ele seja do tipo capaz de ter sonhos molhados. —  Isso ainda não prova coisa alguma — disse ela. —  Não? E isto? — perguntou ele, jogando alguma coisa para ela. Caiu-lhe no colo e ela apanhou. Era o sutiã especial para amamentação que ela estava usando naquela noite. Estava ali em pedaços entre os seus dedos e ela nem dera por falta dele. —  Onde foi que encontrou isto? — perguntou ela. —  Na cesta de roupa suja de meu banheiro. Tinha jogado na cesta uma camisa sem tirar as abotoaduras, e, quando abri a cesta para procurá-la, encontrei o lençol com o sutiã enrolado nele. Ela ficou em silêncio. —  Ele a violentou, não foi? Parecia mais uma afirmação do que uma pergunta. Ela não respondeu. —  Velho imundo, doente! Não sei como minha pobre mãe pôde suportá-lo tantos anos! O lugar dele é dentro de um asilo. Não é a primeira vez que ele faz coisas assim. Rasgou suas roupas, não foi? Ela olhou para o sutiã e respondeu quase num sussurro: —  Foi. —  Por que você não fez alguma coisa?   Por que não gritou? Ela respirou fundo, olhou para ele e disse com voz firme e clara: —  Porque queria mesmo que ele fizesse isso. Os ombros dele descaíram de súbito e o seu corpo como que murchou, parecendo ficar, aos olhos dela, vinte anos mais velho. Ficou extremamente pálido. Estendeu a mão como se tivesse ficado cego e sentou-se na cama. —  Ele me odeia — murmurou, como se estivesse falando consigo mesmo. — Sempre me odiou. Desde o momento em que eu nasci, porque me atravessei entre minha mãe e ele.
Desde que eu era garotinho, ele sempre tirava as coisas de mim. Uma vez, tive uma boneca. Ele a tomou e me deu um carro de brinquedo. Depois, tomou o carro também. Estendeu-se na cama de bruços, escondendo o rosto no cotovelo dobrado. Recomeçou a chorar. Ela se levantou e dirigiu-se a seu. quarto.  — Sally! Ela se voltou e olhou para ele. Estava sentado na cama com as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto. —  Você vai deixar que ele a tome também de mim?  Ela ficou parada sem responder. —  Vamos esquecer tudo o que aconteceu. Vou ser muito bom para você, Sally. Nunca  mais direi  uma palavra sobre nada disso. Ele saiu da cama e caiu de joelhos aos pés dela, abraçando-lhe as pernas e com o rosto encostado às coxas dela. —  Por favor, Sally! Não me deixe! Eu não poderia resistir se você me deixasse! Ela deixou a mão cair na cabeça dele. Teve por um momento a impressão de que era seu filho. E talvez de certo modo fosse. —  Levante-se e vá para a cama, Júnior — disse ela, gentilmente. — Não vou deixá-lo. Foi então para seu quarto e fechou a porta.
 
No dia que foi depois conhecido na história econômica do mundo como a Sexta-Feira Negra, a Bolsa de Valores de Nova York caiu vertiginosamente, lançando a nação e o mundo nos abismos de uma depressão econômica inédita até então. Quatro meses depois, em meados de janeiro de 1930, a campainha tocou no apartamento do Hotel George V, em Paris, onde Loren estava hospedado. —  Roxanne — disse ele do banheiro —, quer ver quem é que está aí? Alguns minutos depois, ela entrava no banheiro. —  Telegrama dos Estados Unidos para você. —  Abra e leia que eu estou com as mãos molhadas. Ela abriu e leu com voz igual, tropeçando aqui e ali em alguma palavra inglesa:
 
"Loren Hardeman  Hotel George V
Paris, França Acabo ordenar interrupção produção bem como cancelamento Loren II diante insistência banco para reduzir prejuízos decorrentes falta vendas pt Outras economias processadas pt Será informado quanto decisões tomadas pt Desejo também informar minha esposa teve uma filha Anne Elizabeth ontem oito horas manhã pt
Loren Hardeman II"
 
Capítulo 10
Ângelo olhou pela janela quando o avião iniciou o seu plano final de vôo descrevendo um gigantesco arco sobre a fábrica de River Rouge da Ford. O monstruoso conjunto industrial se estendia como uma hidra abaixo dele, com a nuvem do seu hálito subindo para os céus, os seus detritos líquidos a se derramarem nas águas cinzentas do rio Detroit e os grupos multicores dos diminutos carros espalhados como bandos de formigas nos espaços entre as construções. O sinal de "não fumar" se acendeu no momento em que o sol da tarde iluminava as vidraças e a fachada do longo Edifício Central de Administração da Ford. Apagou o cigarro no cinzeiro e começou a guardar na pasta os papéis espalhados em cima da mesa. Quando terminou, empurrou a mesa para dentro do banco e depositou a pasta no chão. A aeromoça passou e olhou para ele. — Cinto de segurança apertado? Ele fez um sinal afirmativo e tirou as mãos para que ela pudesse ver. Ela sorriu e continuou. Ângelo olhou para o relógio de pulso. Quatro e meia da tarde. Exatamente na hora. Tornou a olhar pela janela. O avião tinha deixado River Rouge para trás. Pela primeira vez, começou a sentir um assomo de admiração pelos homens que tinham concebido aquilo. Devia ter parecido uma tarefa quase impossível. Sabia disso agora. Durante o ano transcorrido desde que começara a trabalhar na fábrica da costa do Pacífico, os problemas se tinham sucedido a tal ponto que muitas vezes ele tinha pensado que ia ficar louco. E sua fábrica não era nem a décima parte de River Rouge. Mas havia duas coisas que faziam tudo funcionar: o conhecimento, experiência e bom senso de John Duncan e a energia e o entusiasmo infatigáveis de Tony Rourke, que se tornara parte de tudo como se tivesse nascido na indústria de automóveis. Isso e o uso e adaptação por ele das novas tecnologias que aprendera nas atividades espaciais os haviam ajudado a transpor os primeiros e talvez mais difíceis obstáculos. A divisão de Projetos e Engenharia tinha sido transferida com êxito de Detroit e já estava em funcionamento havia mais de seis meses. A usina siderúrgica que tinham comprado em Fontana estava em processo de reconversão para atender às exigências da produção, e a refinaria que tinham construído na fábrica poderia entrar em atividade no verão do ano seguinte. A divisão de moldagem ficaria pronta alguns meses depois e a linha de montagem final poderia entrar em ação em setembro de 1971, se fosse necessário. Os problemas de pessoal estavam sendo analisados, os planos de abastecimento estavam sendo traçados e mais mil e um detalhes estavam sendo atacados. Só faltava uma decisão final sobre a espécie de carro que se devia produzir. Esse era o único problema em que parecia haver total desacordo. Talvez isso resultasse do estado da própria indústria. Nos anos anteriores, uma tempestade se viera acumulando e, naquele momento, o centro do furacão estava sobre eles e toda a indústria procurava desesperadamente segurança, sem saber ao certo onde poderia abrigar-se. Em resposta a múltiplas pressões, os governos locais e o federal estavam impondo regulamentos rígidos que afetavam o rendimento e a produção dos automóveis. Os fatores ecológicos e ambientais eram sujeitos a novos controles e a padrões mais rígidos. Havia um plano de cinco anos que a indústria tinha de observar para reduzir as emissões de gasolina dos motores a certos níveis aceitáveis até 1975. Eram também objeto de regulamentação outros fatores de segurança a fim de proteger o motorista e os passageiros até dos próprios erros. Tudo isso era uma refutação direta da orientação que tinha sido um privilégio da indústria através de tantos anos. Não eram mais deixados ao seu critério e arbítrio as decisões relacionadas com a segurança e o bem-estar do público.
Apesar dos clamores de ruína econômica e das alegações de que os acréscimos de custo seriam transferidos para o consumidor, os padrões tinham de ser observados ou os carros não poderiam trafegar, O problema tinha ainda outro aspecto. E este parecia ser a mudança de gosto dos compradores de carros nos Estados Unidos. Havia poucos anos ainda, o pequeno Volkswagen era apenas um tema de trocadilhos e piadas. Mas isso tinha sido vinte anos antes. Detroit abrira de repente os olhos e vira que o carrinho estava em quarto lugar em vendas nos Estados Unidos em 1969, e em 1970 a indústria já admitia que ele desalojaria o Plymouth da Chrysler do terceiro lugar nas vendas que há muitos anos mantinha. Para agravar a situação, começou em 1967 outra invasão, partida dessa vez do outro lado do mundo, do Japão. Em apenas quatro anos, os japoneses tinham se apoderado, com os seus produtos, de uma parte gigantesca do mercado americano. O Datsun, o Toyota e os outros tinham passado a fazer parte do cenário americano. Os seus índices de crescimento e penetração do mercado tinham sido rápidos e completos e, o que era ainda mais notável, não mostravam sinal de declínio. Pela primeira vez, não era apenas Detroit que demonstrava preocupação, mas também a própria Volkswagen, que via ameaçada a sua posição de destaque no mercado americano. O Volkswagen, como o famoso modelo T da Ford, viase ameaçado de ser ultrapassado em estilo e melhoramentos, e a fábrica estava estudando um novo carro que substituísse o seu modelo até então vitorioso. Mas isso ainda se projetava para o futuro. Por enquanto, as companhias americanas tinham apresentado as suas versões do carro pequeno e econômico, o Vega, o Pinto e o Gremlin. A Chrysler ainda se esquivava da produção interna, mas dois de seus carros produzidos no exterior tinham sido importados nos Estados Unidos e vendidos com os seus próprios nomes, o Colt Dodge e o Cricket Plymouth. Mas tudo isso eram paliativos e a própria Detroit não tinha dúvida em reconhecê-lo. Os primeiros relatórios das vendas dos carros pequenos americanos indicavam que o seu mercado era tirado das vendas dos carros americanos maiores e não afetava absolutamente as vendas dos carros importados, os quais continuavam a apresentar um ritmo apreciável de aumento. Todos esses fatores, além dos investimentos e custos adicionados às vendas e dos encargos de fabricação decorrentes dos decretos governamentais, faziam a indústria voltar os olhos para si mesma. Cortes, reduções e aparas na extensão em que queriam ou podiam não seriam por si uma solução. A solução só poderia ser um carro totalmente novo, nascido da tecnologia da demanda, um novo carro produzido para atender a todas as exigências tanto do governo quanto do consumidor. E era isso que Detroit ainda não estava disposta a levar em consideração. E assim era porque isso importava em encerrar o velho jogo e começar uma partida nova. Ainda havia muitos fãs no velho estádio. As rodas do avião tocaram a pista, arrancando Ângelo dos seus pensamentos. Tinham de dar o salto. Era a única chance que tinham. Na reunião da diretoria do dia seguinte, defenderia essa posição. O Sundancer era o carro de ontem. Tinha de desaparecer. Se iam produzir um novo carro, só podia ser com o empenho total da companhia. Qualquer tentativa de continuação do Sundancer seria considerada uma evasiva e, na sua opinião, diminuiria as chances de sucesso do novo carro. O avião parou. Pegou a pasta e levantou-se. Mas isso seria no dia seguinte. Naquela noite, havia outro assunto que tinha quase igual importância no mundo de Detroit. Era um acontecimento que tinha sido anunciado nos jornais de Detroit como o grande assunto social do ano, cujos preparativos tinham sido tão meticulosamente divulgados como se se tratasse dos preparativos para a posse de um presidente dos Estados Unidos. O début de Elizabeth Hardeman. Tinha dezoito anos e estava pronta a assumir o seu lugar no mundo.
 
—  Está com uma aparência ótima, vovô — disse a princesa. Número 1 sorriu. —  Sinto-me bem, Anne. Melhor do que há muitos anos. — Fico contente com isso — disse ela, simplesmente. Aproximou-se da cadeira de rodas e beijou-lhe o rosto. — Sabe disso, não sabe? Ele sentiu o leve odor de seu perfume e tomou-lhe a mão, que afagou. —  Sei disso, sim. E você? É feliz? —  Sim, tão feliz quanto posso ser. Há muito que abandonei os sonhos de felicidade da. infância. Agora, vivo contente. Igor é muito bom para mim. Cuida de mim. Sabe o que eu quero dizer.
Ele fez um sinal de assentimento. Julgava compreender, mas nunca podia ter certeza. O problema de ser uma herdeira havia destruído a vida de muitas garotas. Ser uma moça rica era uma situação que tinha os seus riscos especiais. Mas ela parecia ser uma das felizes. Tinha dificuldade em compreender que ela era já uma mulher de quarenta anos. Para ele, era ainda uma criança. — Onde está Igor? — perguntou ele. — Não o tenho visto. — Está lá embaixo na biblioteca junto com Loren — disse ela. — Sabe como é Igor. Não perde uma oportunidade de falar de negócios de homem para homem. E, se houver uma garrafa de uísque por perto, melhor ainda. —  Como vão os negócios na Europa?                   — Igor anda muito preocupado — disse ela. Igor tinha assumido a direção da filial da Bethlehem na França logo que se tinham casado e, para surpresa geral, tinhase revelado um excelente homem de negócios. —  Sabe como ele adora carros — continuou ela. — Ficou desolado quando as vendas caíram, embora as outras divisões estivessem prosperando. Agora, está de novo todo entusiasmado. Estava ansioso por encontrar-se com Loren e conversar sobre o novo carro. —  Vou convidá-lo para  assistir à reunião da diretoria amanhã — disse Número 1. — Creio que vai gostar. —  Gostar? — disse Anne, rindo. — Vai adorar. Sempre sonhou com isso. Estar onde ele sempre sonhou. Estar onde as grandes decisões são tomadas. Vai se sentir no paraíso. —  Ótimo. —  Que horas são? — perguntou ela.  Ele olhou o relógio de pulso. —  Sete e meia. —  Acho que vou começar a me vestir. —  Que pressa é essa? A festa só vai começar lá pelas dez horas. — Mas eu já não sou tão moça quanto era — disse ela, sorrindo. — E.parecer uma princesa dá ainda mais trabalho. —  Você sempre me pareceu uma princesa. —  Lembra-se, vovô? Era assim que costumava chamarme quando eu era menina. E papai ficava tão zangado. . . Dizia que isso era pouco americano. —  Seu pai tinha algumas idéias muito peculiares. —  É verdade — disse ela pensativamente. — Tive sempre a impressão de que ele não gostava de nenhum de nós. Era uma coisa que me causava muita estranheza. —  E isso tem alguma importância? —  Não tem mais. Nenhuma. — Olhou para ele e sorriu. — Estou muito contente de estar aqui. E muito contente de que tenha resolvido abrir a mansão para a festa. Sempre ouvi falar nas grandes festas dadas aqui. —  Algumas delas foram de fato muito boas. —  Há quanto tempo, vovô? — perguntou ela. — Quando foi a última festa? Ele pensou por um momento. O tempo passava por ele como as ondas do mar. Fechou os olhos e houve um instante em que tudo foi ontem. Abriu-os de novo e disse lentamente: —  Foi há quarenta e cinco anos. Quando seu pai e sua mãe se casaram.
 
Capítulo 11
Eram realmente duas festas e não uma. No salão de baile principal, realizava-se a festa formal. Ali, uma das orquestras de Meyer Davis fornecia o que os amigos de Elizabeth chamavam de "música para os velhotes". A outra festa se realizava no gigantesco salão de jogos da casa dos bilhares. Fora transformado numa discoteca e a música era eletronicamente trovejada por dois grupos de rock que se revezavam. Ambas as festas regurgitavam de gente e até um lugar para ficar em pé tinha de ser medido em centímetros. Nunca se vira nada de parecido em Detroit. Era um Juízo Final de som e confusão. Os jardins naquele quente fim de setembro estavam também repletos de gente que andava de um lado para outro entre as duas festas, numa ansiedade de tudo ver e de estar em toda a parte ao mesmo tempo. Era quase meia-noite quando o engarrafamento de carros que tomava toda a longa alameda da mansão e se estendia às ruas vizinhas melhorou e Ângelo pôde afinal passar pelas grandes portas. A linha de recepção aos convidados há muito estava desfeita. Loren, arrasado antes mesmo que a festa começasse, tinha desaparecido e Betsy tinha ido para a discoteca em companhia das amigas. Só Alicia, esfalfada e naturalmente pior de instante a instante, estava ainda perto da porta. Pela terceira vez, Ângelo teve de exibir o seu convite. As duas primeiras vezes tinham sido no portão e na alameda perto da casa. Dessa vez, um criado de libre ficou com ele. — Sr. Ângelo Perino! — anunciou ele em tons sepulcrais que se perderam por completo na algazarra geral.   Ângelo aproximou-se de Alicia e beijou-lhe o rosto. —  Você está linda. —  Não minta. Estou horrorosa. —  Bela festa! — disse ele, correndo os olhos em torno. —  Talvez. Mas eu gostaria de que nunca a tivéssemos dado. Acho isso um tremendo desperdício. Mas Loren insistiu. — Parece muito animada. — Sim. Espero que ele esteja se divertindo. — Onde está a debutante? Tenho de procurá-la para darlhe parabéns? Não sei exatamente o que se faz nessas ocasiões.  Alicia riu pela primeira vez naquela noite. — Você é maravilhoso, Ângelo! Acho que é a única pessoa honesta que resta em Detroit. Não a estou vendo. Deve ter ido para o salão de jogos com as amigas. — Bem, depois me encontrarei com ela. — Venha comigo — disse ela, tomando-lhe o braço. — Vou procurar uma coisínha bonita com quem você possa dançar. —  Não pode ser você? —  Eu? — exclamou ela com uma nota de surpresa na voz. — Não sei. Tenho de ficar aqui. É preciso haver alguém. —  Por quê? Ela o olhou por um momento e exclamou: —  Sabe de uma coisa? Você tem toda a razão. Não há motivo algum para que eu fique aqui. Ângelo levou-a para o salão de baile e começaram a dançar. A princípio, Alicia dançou com o corpo muito rígido. —  Assim não, menina — disse ele, sorrindo. — Chegue mais para perto de mim e descontraia-se. Ninguém a proíbe de divertir-se em sua festa. Ela riu e dançou mais desembaraçadamente. Ao fim de algum tempo, voltou os olhos para ele e disse:
—  Muito obrigada, Ângelo. —  Obrigada de quê? —  Você me fez sentir que eu estava realmente presente. Até agora, tive a estranha impressão de que estava muito longe daqui. —  Não compreendo. —  Você sabe o que está acontecendo? Não há quem não saiba. É um segredo de polichinelo que Loren vive com a tal mulher no último andar do edifício de administração na fábrica e que eu vou para Reno depois de amanhã a fim de me divorciar. Todos estão me olhando como se dissessem: "A rainha está morta, viva a rainha". É uma coisa muito estranha. Mas todos têm sido tão gentis comigo quanto é possível. —  Você está imaginando coisas, Alicia. Você se criou aqui e todos a conhecem e sempre foram seus amigos. O fato de você estar casada com Loren é ou não é absolutamente indiferente? —  Houve um tempo em que eu pensei que fosse. Agora, não tenho tanta certeza assim. A música parou e eles ficaram no centro do salão. Ouviram então uma voz de mulher às suas costas. —  Alicia, minha querida! Onde é que arranjou esse homem tão encantador? Voltaram-se e Ângelo viu um casal elegantemente vestido. O rosto da mulher tinha um jeito vagamente conhecido. —  Ângelo Perino. Minha cunhada e seu marido, Príncipe e Princesa Alekhine. A princesa estendeu a mão e Ângelo perguntou sorrindo: —  É para beijar ou apertar? —  Pode fazer as duas coisas — respondeu ela, sorrindo. — E meu nome é Anne. Acho que você foi colega de escola de meu irmão, mas nós nunca chegamos a nos conhecer. —  Falta de sorte a minha. Beijou-lhe a mão e voltou-se para apertar a mão do marido. O príncipe era mais alto do que Ângelo, com fartos cabelos pretos tocados de branco e olhos pretos brilhantes no rosto forte e queimado de sol.                     —  Chame-me de Igor, sim? — disse ele com uma voz profunda e cordial. — Estava ansioso por conhecê-lo. Temos muito que conversar. Quero que me diga tudo sobre o novo carro. —  Isso pode ficar para depois — disse Anne. — Conversem à vontade de negócios amanhã. Igor, vá dançar com Alicia. Vou dançar com Ângelo. Quero saber tudo sobre a nova personalidade de Detroit. Ela lhe caiu nos braços com a segurança de uma mulher que já tivesse estado muitas vezes entre eles. Ele olhou para ela e disse: —  Vejo que tem lido revistas demais. —  É claro. Como é que você acha que os americanos na Europa passam o tempo?  Lêem revistas e esperam com isso ficar em dia. Sentem-se como participantes. —  A melhor maneira de participar é voltar para cá. —  Que é isso? Está mudando de assunto? Mas não vai se livrar de mim com tanta facilidade assim. Li o artigo de Life, que fala sobre DeLorean na Chevy, Iacocca na Ford, e você. É verdade o que disseram sobre seu avô?  Foi o negociante de bebidas que forneceu o uísque para a festa do casamento de meus pais nesta casa? —  Não é verdade. Meu avô nunca foi negociante de bebidas. Era contrabandista e gângster. Ela começou a rir. —  Acho  que  vou  gostar de  você.  Estou  começando   a descobrir o que é que vovô vê em você.
 
À uma hora da manhã, as grandes portas do salão de jantar foram corridas, mostrando um suntuoso bufê e as mesinhas alegremente decoradas. Meia hora depois, o jantar começou. O regente da orquestra falou ao microfone, mas, mesmo com a amplificação, as suas palavras não foram ouvidas na grande algazarra formada em torno das mesas. Virou-se finalmente e fez um gesto na direção do pequeno palco temporário. A moça que tomou posição em frente ao microfone foi reconhecida por todos os presentes. Havia anos, viam-lhe o rosto todas as semanas na televisão e durante muito tempo ela fora exclusiva de uma das grandes companhias de automóveis. Naquele momento, abriu a boca para cantar, mas ninguém ouviu nada, nem quis ouvir. Estavam todos muito ocupados com a conversa e com a comida. Loren estava ao lado do palco, balançando ligeiramente o corpo. Tentava escutá-la, mas não conseguia. Aproximou-se mais do palco até ficar bem abaixo dela. Ainda nada. De repente, ficou furioso. Subiu rapidamente para o palco e se aproximou do microfone. A cantora olhou-o, muito espantada. Loren levantou a mão e a orquestra parou de tocar. Voltou-se então para os convidados. Ninguém havia sequer notado o que estava acontecendo no palco. Loren se abaixou, apanhou uma colher numa mesa perto do palco e bateu com ela no microfone até atrair a atenção geral. Pouco a pouco, a sala foi ficando em silêncio. Loren olhou para todos, com o rosto vermelho e irritado. O colarinho estava amassado e encharcado de suor. —  Agora escutem, comilões! — gritou ele ao microfone, sendo suas palavras meio desarticuladas levadas com exagero a todos os cantos dos enormes salões. — Paguei quinze mil dólares para trazer esta senhorita de Hollywood para cantar para vocês. Portanto, vejam se fazem silêncio e escutem! De repente a sala ficou silenciosa, não se ouvindo sequer o tilintar dos talheres. Ele se voltou para a cantora e fez-lhe uma reverência exagerada. —  Tudo em ordem, moça! Pode cantar agora! A orquestra voltou a tocar e, quando a voz suave da mulher se espalhou pela sala, Loren tratou de sair do palco. Tropeçou no último degrau, mas recuperou o equilíbrio e tomou a direção do bar. Ângelo estava no bar quando Loren chegou. Estendeu a mão para ampará-lo. Loren afastou-lhe a mão. —  Estou bem. — Virou-se para o homem do bar. — Scotch com gelo. — Olhou para Ângelo como se o estivesse vendo pela primeira vez e murmurou: — São uns ingratos! Não agradecem nada que se faça por eles! Loren pegou o copo e provou-o. —  Scotch é bom. . . Não dá a ressaca que se tem com o canadense. Você devia experimentá-lo de vez em quando. . . —  Comigo não — disse Ângelo, rindo. — Tudo me dá ressaca, até Coca-Cola! —  São uns ingratos! -— tornou a dizer Loren, olhando para a multidão que enchia a casa. Firmou a vista em Ângelo. — Quando foi que chegou à cidade?. —  Hoje à tarde. —  Não me telefonou. — Telefonei, sim, mas não o encontrei mais no escritório. — Quero conversar com você antes da reunião de amanhã. Temos alguns assuntos importantes para tratar. —  Estou às suas ordens. —  Eu lhe telefonarei — disse Loren. Colocou o copo vazio em cima do balcão e já ia se afastando, mas voltou-se de repente.__Não, não haverá tempo amanhã de manhã. Venha encontrar-se comigo aqui no bar quando a festa acabar. Por volta das três horas. — Ainda há muita gente. Tem certeza que a festa não ira até amanhecer o dia? — Pensa que eu não sei o que estou fazendo? — perguntou Loren, zangado. — Não sabe mesmo — disse Ângelo, sorrindo. Loren apertou os olhos, ficou com o rosto ainda mais vermelho e deu um passo na direção de Ângelo. — Não faça isso — disse Ângelo calmamente. — Não vá estragar a festa de sua filha. Loren ficou a olhá-lo por um momento e terminou descontraindo-se. Chegou a sorrir. —  Tem razão. Obrigado. —  Para isso é que são os amigos. —  Quer me fazer um favor? — perguntou Loren. —  É claro. —  Encontre-se comigo aqui às três e quinze e leve-me de carro para a fábrica, sim? Creio que não estarei em condições de dirigir. —  Fique descansado.
 
Ângelo passou pelas grandes portas envidraçadas e chegou ao jardim. As lanternas coloridas espalhadas pelos caminhos balançavam ao vento da madrugada. Acendeu um cigarro e desceu para a casa dos bilhares. A batida pesada do grupo do rock ficava mais forte de instante a instante. Através das grandes janelas, olhou para a discoteca. Estava cheia de dançarinos que pareciam estranhamente imobilizados no meio da luz colorida. Foi até a porta e abriu caminho para o bar. Pediu um drinque e o homem do bar atendeu-o prontamente. Bebeu, sentindo chegar-lhe às narinas o odor agridoce da maconha. Olhou em torno. Na penumbra reinante, não podia saber quem estava fumando maconha ou não. As brasas dos cigarros enchiam a sala como vaga-lumes. — Conheço-o? — perguntou uma voz feminina atrás dele. Voltou-se. Era jovem sem dúvida alguma, mas todas as outras pessoas ali na sala também eram. Os olhos eram de um azul bem claro e os longos cabelos louros caíam pelos ombros. Havia na boca e no queixo alguma coisa que não lhe era estranha. — Acho que não — disse ele, sorrindo. — Mas eu também não a conheço, de modo que estamos empatados. — Sou Elizabeth Hardeman — disse ela, arrogantemente. — É claro. — Que quer dizer com isso? — Quem mais poderia ser? — disse ele, sorrindo. — É correto eu lhe dar parabéns, Srta. Elizabeth Hardeman? —  Você está fazendo troça de mim. —  Palavra que não estou. A questão é que eu não sei ao certo o que se deve fazer numa ocasião destas. —  Não está brincando comigo? —  Palavra de honra.  Ela sorriu de repente. —  Posso dizer a verdade? —  Claro que pode! —  Eu também não sei o que se deve fazer. —  Neste caso, vou lhe dar os parabéns de qualquer maneira. —  Muito obrigada. Ah, já sei! Sua cara não me era desconhecida mesmo. Você é o homem que estava dirigindo o Sundancer ss na primeira vez em que o vi na Woodward Avenue, uma noite, no inverno passado. Você estava com aquela moça que. . . —  Chega. Culpado! —  Você trabalha para meu pai? É um dos motoristas de prova? —  De certo modo sou. Pode dizer que sou. —  Ah, não! Vi seu retrato em Life. Você é Ângelo Perino! —  É verdade. Mas preferia que me considerasse seu admirador desconhecido. —  Perdão, Sr. Perino. —  Só será perdoada se dançar comigo. —  Aqui? — perguntou ela com voz incerta. — Ou lá na casa grande? —  Aqui mesmo. Vai ver que não sou tão velho quanto pareço.
 
Capítulo 12
A orquestra de Meyer Davis começou a tocar Às três da manhã e os sons se coavam através da meia sonolência até a cama de Número 1. Vagas recordações se agitaram em seu espírito e ele ergueu o corpo na cama, colocando o travesseiro nas suas costas. Ficou um momento sentado pensativamente e então apertou a campainha na mesa-de-cabeceira ao lado dele. Um instante depois, Donald apareceu no quarto. Como de costume, estava vestido e dava a impressão de que nunca ia para a cama. — Vá dizer a Roxanne que eu quero falar com ela — disse Número 1. —  Roxanne? — murmurou Donald, sem compreender.  Número 1 olhou para ele e se lembrou então. Roxanne se fora. Havia muitos anos. O mal da memória era esse. Nunca abandonava a gente. As pessoas podiam abandonar, mas ela, não. —  Vista-me que eu quero descer. —  Mas a festa está quase acabando — disse Donald respeitosamente. —  Não faz mal — disse Número 1 aborrecido. — Vista-me. Vinte minutos depois, Donald saía com a cadeira de rodas do quarto e a empurrava pelo comprido corredor. Número 1 levantou a mão quando chegaram à balaustrada que dominava a grande escadaria e o vestíbulo de entrada. Donald parou e os dois olharam para baixo. Os convidados ainda estavam agrupados na entrada enquanto esperavam que os encarregados do estacionamento chegassem com os seus carros. Ainda conversavam muito e não pareciam com muita vontade de partir. —  Deve ter sido uma grande festa — disse Número 1.  — É verdade. — Quantas pessoas você calcula? — Entre quatrocentas e cinqüenta e quinhentas — respondeu Donald. Número 1 olhou para a multidão em silêncio. As pessoas nunca mudavam. Não eram muito diferentes das que apareciam nas festas que ele dava havia tantos anos. Olhou para Donald e disse: — Não quero ficar no meio dessa gente. Leve-me para o elevador da biblioteca. Donald virou a cadeira e voltou pelo corredor. No fim, entraram por outro corredor que os levou a outra ala da casa. Pararam diante da porta do elevador e Donald apertou o botão. O relógio na parede perto da porta do elevador marcava quatro horas menos dez minutos.
 
A discoteca estava em silêncio, mas os músicos andavam por ali desligando os amplificadores e guardando os seus instrumentos. Tendo deixado de tocar, pareciam estranhamente desajeitados e as instruções lacônicas que davam uns aos outros eram curiosamente formais e arcaicas. Ângelo deixou o seu copo em cima do bar e olhou para Elizabeth, que parecia surpreendentemente pensativa. —  Acho que somos os últimos — disse ele. Ela correu os olhos pela sala em penumbra e murmurou: —  É o que parece. . . —  Você está deprimida. Ela ficou calada e Ângelo disse: —  É sempre o que acontece quando se espera muito uma coisa. A gente se engrena e, enquanto está acontecendo, tudo vai bem. Mas, no momento em que tudo acaba, a fossa é quase fatal. —  Estou precisando é de tomar alguma coisa.  Ângelo fez sinal para o homem do bar. —  Não — disse ela, prontamente. — Preciso é de puxar um fumo. Bebida não liga muito. O gosto não me agrada. —  Só tenho aqui cigarros. —  Não, eu tenho — disse ela, tirando da pequena bolsa de noite o que parecia um maço comum de cigarros. Abriu o maço, tirou um cigarro de filtro com ponta de cortiça e colocou-o na boca. Ângelo deu-lhe fogo com o isqueiro e disse: —  Muito curioso! Parecem cigarros comuns. Nunca os vi assim. —  Há um fornecedor que os traz do Canadá. Pode-se pedir a marca que se quiser, Kent, Winston, L & M, Marlboro, qualquer uma. Mas é preciso ter cuidado para não passá-los aos outros por engano. Ele sorriu e ela olhou para ele:
—  Você não puxa? — Às vezes. Mas não quando estou bebendo. As duas coisas não se misturam. Ela inalou outra vez a fumaça. Reteve-a por muito tempo antes de soprá-la para o teto. — Já estou me sentindo melhor. — Ótimo. Ela riu. — Para dizer a verdade, estou um pouco alta. Mas acho que tenho direito. Não fumei durante a noite inteira, enquanto quase todo mundo por aqui estava puxando. —  Foi o que eu notei. Ela deu outra tragada, apagou o cigarro num cinzeiro do bar e levantou-se. Havia de novo um sorriso em seus olhos. — Muito bem, Sr. Perino — disse ela. — Estou pronta a voltar para a casa grande e enfrentar minha família. — Deu um riso sem graça e acrescentou: — Isto é, o que resta dela. Ele lhe tomou o braço e saiu com ela para o jardim. As alegres lanternas se apagavam, mergulhando os caminhos em escuridão. Ela parou de repente e se voltou para ele. —  Foi de fato uma farsa, não foi?  Ele não respondeu. —  Sabe que minha mãe vai para Reno a fim de conseguir o divórcio, não sabe? Ele fez um sinal afirmativo. —  Por que foi então que me fizeram passar por tudo isso? Desatou de repente a chorar, com os soluços amargos e duros de uma criança. Ângelo tirou um lenço do bolso e entregou-o a ela. Elizabeth enxugou os olhos e se aproximou dele, encostando o rosto ao seu peito. —  O que estavam querendo provar? Ele a abraçava de leve, quase impessoalmente. —  Talvez não a quisessem privar de coisa alguma. —  Podiam ter me perguntado, não acha? —  Se há uma coisa que eu aprendi a respeito de pais, Srta. Elizabeth, é que perguntam sempre quando não devem e, quando devem perguntar, não perguntam. Ela parou de chorar e levantou os olhos para ele. —  Por que me chama de Srta. Elizabeth? Ele riu e os seus dentes brilharam na escuridão. —  Porque é seu nome e eu gosto dele.
—  Mas quase todos me chamam Betsv. —  Eu sei. Ela tocou os olhos com o lenço e perguntou: —  Estou bem? —  Sim, para mim, está bem. —  Espero que minha maquilagem não tenha manchado. Não quero que ninguém saiba que eu chorei. —  Não manchou, não. —  Ótimo — disse ela, devolvendo o lenço. — Muito obrigada. —  De nada — disse ele, guardando o lenço no bolso.  Caminharam em silêncio durante algum tempo, de mãos dadas. De repente, ela parou e perguntou: —  Você acredita em astrologia? —  Não tenho ainda opinião formada. —  Pois eu acredito. Mandei fazer ainda há pouco o meu horóscopo. Você é Touro, não é? —  Como foi que descobriu? — perguntou ele, sorrindo. Não era verdade. O signo dele era Leão. —  Não podia deixar de ser! — exclamou ela, entusiasticamente. — Está em meu horóscopo! Lá diz que eu vou conhecer um homem mais velho, que é de Touro, e que vou gostar muito dele. Ele riu. —  E gosta mesmo? Ela perguntou com um sorriso malicioso: —  Acha que eu posso ser infiel ao meu horóscopo? —  Isso é a última coisa que eu queria que fizesse, Srta. Elizabeth! De repente, ela tomou o rosto dele nas mãos e, ficando na ponta dos pés, beijou-o. Abriu então a boca ardente e colou o corpo ao dele. Ele a abraçou, tirando-lhe quase a respiração. Depois, largou-a tão subitamente quanto a agarrara. Ele a olhou, surpreso com a inesperada reação que tivera. —  Por que foi que fez isso? Ela deu um sorriso secreto e, nesse momento, não era mais uma criança. —  Vamos ver se agora deixa de me chamar de Srta. Elizabeth!
 
Número 1 saiu do elevador para a biblioteca. Um homem estava sozinho no bar, arrumando os restos da festa. Levantou os olhos quando os viu. — Não guarde já o uísque — disse Número 1. — Está bem, Sr. Hardeman — disse o homem, colocando em cima do balcão uma garrafa de uísque canadense.  Número 1 voltou-se para Donald. —  Vá procurar meus netos e traga-os aqui. Todos eles. Betsy também. Donald hesitou. — Não vai beber, não é, Sr. Hardeman? — Claro que não! — gritou Número 1. — Acha que eu sou maluco? Vá chamá-los e traga-os aqui! —  Está bem. Alicia foi a primeira que entrou na biblioteca. — Não sabia que ainda estava acordado, vovô. — Não consegui dormir — disse ele. — E achei que, pelo menos uma vez na noite, devíamos todos nos reunir. Onde está Loren? —  Não sei. Já faz algumas horas que não o vejo. —  Donald o encontrará. Igor e Anne chegaram logo depois. —  Vovô! — disse Anne, começando a atravessar a sala em direção a ele. Número 1 levantou a mão, fazendo-a parar. —  Já sei. Você não sabia que eu ainda estava acordado. —  Está passando bem? —  Nunca estive melhor! — exclamou o velho. — Levantou os olhos quando Elizabeth e Ângelo apareceram na porta. Chamou-a com um gesto. — Entre, minha filha. Betsy atravessou a sala correndo. — Nunca esperei que ainda fosse vê-lo esta noite, bisavô!  Havia um sincero prazer na voz dela. Ele lhe sorriu. — E eu não queria deixar de ver você. Especialmente esta noite! —  O senhor é um amor, bisavô! — disse ela, beijandolhe o rosto. Viu que Ângelo ia saindo e chamou: —  Ângelo! FaÇa o favor de ficar conosco.  Ângelo hesitou. —  Fique, por favor, Ângelo! — disse Betsy. — Sei que o bisavô o considera uma pessoa da família. Número 1 olhou para ela, depois para Ângelo e sorriu. —  Bem, isto é um convite oficial.
Ângelo entrou na sala. Donald apareceu à porta atrás dele. —  Não consegui encontrar o Sr. Loren em lugar algum, Sr. Hardeman. —  Deve estar por perto — disse Ângelo. — Combinamos encontrar-nos aqui depois da festa. Vou procurá-lo. —  Não se incomode com isso — disse Loren da porta aberta do terraço. — Você está com meia hora de atraso, Ângelo. Marcamos encontro aqui para as três e quinze. —  Desculpe — disse Ângelo. — Creio que perdi a noção do tempo. Loren o olhou sem sorrir e voltou-se então para o avô. —  Agora que estamos todos aqui, vovô, qual é a sua idéia? Número 1 olhou para ele. —  Pensei que, desde que talvez seja esta a última vez que estamos todos juntos nesta casa, seria muito interessante tomarmos um drinque final juntos. —  É um belo gesto sentimental — disse Loren, voltandose então para Alicia. — Aposto que nunca pensou que meu avô gostasse tanto de você a ponto de oferecer-lhe um brinde de despedida. A voz de Número 1 se tornou de repente gelada. —  O fato de você ser meu neto não justifica a sua grosseria. Creio que deve desculpas a Alicia. —  Não devo nada a ela! — exclamou Loren. — De mim, ela já recebeu tudo o que tinha para receber! A voz do velho se tornou ainda mais fria. —  Não posso permitir que uma mulher da família Hardeman seja tratada dessa maneira! —  Daqui a algumas semanas, ela não será mais da família. . . —  Mas neste momento ainda é sua mulher — retrucou Número 1. — E você tem de tratá-la com respeito, senão. . . —  Senão o quê,  vovô?   Vai me excluir de  seu  testamento? —  Não, farei coisa ainda melhor. Vou excluí-lo de minha vida! Houve um longo silêncio na sala e durante ele os dois homens se encararam. Por fim, Loren baixou os olhos. —  Peço desculpas — murmurou ele com voz baixa. —  Barman — disse Número 1, virando a sua cadeira. — Um drinque para todos! Ficaram em silêncio enquanto o homem enchia e distribuía os copos. Voltaram-se então para Número 1. Ele ergueu o copo. — Em primeiro lugar, um brinde à debutante. Possa ela ter muitos e muitos anos de felicidade. Levou o uísque aos lábios enquanto todos bebiam. Depois, levantou o copo de novo. — Há outra coisa que lhes quero dizer — disse ele. — Foi esta a última festa realizada na mansão Hardeman. Quando a avó de vocês e eu construímos esta casa, sonhávamos vê-la cheia dos risos e da barulhada de nossa família. Mas não foi bem assim que aconteceu. Creio que nenhum de nós jamais pensou que nossos filhos nos abandonariam para viver a sua própria vida. Talvez nossos sonhos fossem delirantes, mas, de qualquer maneira, agora que os sonhos se dissiparam, a casa não serve mais para nada. "Amanhã, a mansão Hardeman será fechada. Dentro das próximas semanas, alguns objetos pessoais serão levados para Palm Beach e, no mês que vem, o Estado de Michigan tomará posse da casa para fazer dela o que bem quiser. Foi por isso que eu quis que a última festa fosse realizada aqui. Queria ver mais uma vez esta casa viva e cheia de gente." Número 1 correu os olhos em torno da sala e ergueu o copo. —  À mansão Hardeman, à minha mulher, a todos os meus filhos, a todos vocês. Levou o copo aos lábios, hesitou e então bebeu todo o uísque. Tossiu, as lágrimas lhe chegaram aos olhos e então sorriu. —  Não fiquem com essa cara triste! Vejam a que extremos um velho tem de chegar para poder tomar um gole de uísque!
 
Capítulo 13
A voz de Dan Weyman era direta e firme.
— O que está querendo, Ângelo, é que joguemos, fora a água do banho antes de estarmos suficientemente limpos. Não me parece muito comercial isso. —  Podemos acabar sem água nenhuma — disse Ângelo, — Mas tenho certeza de que é disso que precisamos. —  Certeza? — perguntou Weyman sem alterar a voz. — Entre a nova fábrica na Califórnia e a pesquisa, já investimos mais de sessenta milhões de dólares e ainda não fazemos uma idéia do que será o novo carro. —  Talvez — replicou Ângelo. — Mas já sabemos o que ele não será. É um passo no rumo certo. —  Mas um passo negativo — disse Dan. — O que é preciso apresentar à diretoria é alguma coisa positiva. — Olhou do outro lado da mesa para Loren, que até então não tinha falado. — Eu, pessoalmente, não concordo com a idéia de Ângelo de pôr de lado o Sundancer em troca de um carro que ninguém conhece e que talvez nunca venha a ser produzido. Um pão com um pedaço é um pão e meio, mas se ficarmos um ano sem uma coisa e sem outra pode ser que nunca mais consigamos recuperar o mercado. —  De acordo com os dados que me forneceu — disse Ângelo —, esse pão ou esse pedaço de pão, não sei bem, o Sundancer, enfim, nos custou no ano passado quase quarenta e um milhões de dólares de prejuízo. Se isso é verdade, o cancelamento da produção do carro compensará num ano o investimento de capital original na nova fábrica. —  Assinalei que isso constituiu um prejuízo fora do comum — disse Dan. — Quase a metade decorreu da falta de vendas do Sundancer Super Sport. Ângelo se absteve de observar que ele fora na diretoria o único voto contrário ao supercarro e que previra com exatidão a transformação do mercado. — Permita-me passar em revista as suas propostas para que eu possa compreendê-las com mais clareza — disse Loren. Espalmou as mãos na mesa à sua frente e olhou-as. — Propõe então que a linha do Sundancer seja convertida numa linha de produção para o motor e a transmissão do novo carro a fim de criar maior espaço na Califórnia para a montagem final. É isso? Ângelo fez um sinal afirmativo. —  Já levou em conta o custo do embarque para a Califórnia dessas partes e depois do transporte para leste dessas mesmas partes nos carros prontos para serem vendidos? Não seria um custo adicional dispensável? —  É possível — disse Ângelo. —: Talvez fosse melhor remeter as carroçarias para Detroit a fim de serem montadas aqui se houver espaço na linha para isso Não sei ainda e não saberei enquanto o carro não for projetado e aprovado. Depois disso poderemos aperfeiçoar os processos de fabricação. 1_ Não consigo compreender o porque da pressa em cancelar o Sundancer — disse Loren. Ângelo olhou para ele e disse: — Talvez seja porque o Sundancer é o carro de ontem e eu desejo criar uma imagem inteiramente nova. É um ponto de vista que reflete as atitudes e os interesses do mercado atual. — Já conversou com Número 1 sobre isso? — perguntou Loren. —  Ainda não. — Acha que ele vai gostar da idéia de interromper a produção do Sundancer? — perguntou Loren. — Afinal de contas, foi o carro que fez esta companhia. —  Não creio que ele vá gostar da idéia — disse Ângelo. — Por que então não adota uma solução conciliatória, um meio-termo que facilite a aceitação por parte dele? —  Porque não foi isso que ele me pediu que fizesse. Pediu-me que fizesse um novo carro que restaurasse a posição da companhia na indústria. Foi o que ele me pediu que fizesse e é o que eu vou tentar fazer. Não me pediu que fizesse alguma coisa de que ele fosse gostar. —  Conheço bem meu avô — disse Loren. — E sugiro que converse com ele antes da reunião da diretoria. — É o que eu pretendo fazer — disse Ângelo, levantando-se. — Muito obrigado. Até a tarde. Depois que ele saiu, os dois se entreolharam. —  Que é que acha? — perguntou Dan. — Será que está escondendo alguma coisa? Talvez os planos do novo carro? —   Não sei — disse Loren, pensativamente. — Não sei mesmo. —  A atitude dele é positiva demais para que ele não saiba o que está fazendo. Loren olhou para o amigo e disse: — Não incorra no mesmo erro em que já incorri uma vez. —  Como assim? — perguntou Dan. —  Certa vez pensei que ele não sabia o que estava fazendo e você sabe o que aconteceu. Ao seu jeito calmo e maquiavélico, ele quase nos destruiu. Não estou absolutamente com disposição de dar-lhe outra oportunidade. — Que devemos fazer então? — perguntou Dan. — Esperar calmamente. Ele é que é o homem de ação e tem que dar provas de suas intenções. Nós não temos de provar coisa alguma. A nossa posição é custear as despesas para todos nós.
 
Quando voltou ao escritório, encontrou em cima da mesa um recado para que telefonasse para John Duncan na Califórnia. Pegou o telefone e esperou enquanto a telefonista completava a ligação. A voz do velho escocês se fez ouvir através das linhas. —  Como foi de festa, rapaz? —  Muito bem. Mas não foi para perguntar isso que me telefonou. Duncan riu. — Que foi que houve com o seu senso de humor, Ângelo? — Evaporou-se juntamente com oito horas de sono que perdi. Que é que há? — Quero sua aprovação para algumas coisas que quero fazer com o meu motor de turbina. — Já terminou os testes com o Wankel japonês? — Ainda não. Mas já sabemos que é bom. Muito bom mesmo. — Neste caso, talvez possamos fazer negócio. — Não há chance, rapaz. Em primeiro lugar, eles têm planos para entrar com tudo nos Estados Unidos no ano que vem. Depois, a Ford já está em negociações para uma participação na Toyo Kogyo e já está em vantagem. E, desde que a GM está em entendimento com os alemães, podemos igualmente desistir disso. Eles nos tirariam do mercado com a cobrança de royalties. Ângelo ficou calado. — Estive conversando com Rourke sobre a turbina e gostaríamos de fazer algumas experiências com moldes de titânio e aço. Temos a impressão de que poderemos fazê-los resistir ao calor e às tensões tão bem quanto às ligas de níquel e carbono. Se tivermos êxito, será uma boa maneira de reduzir o custo. —  Está bem — disse Ângelo. — Vá em frente. Já tem o relatório sobre os testes aerodinâmicos do projeto? —  Ainda não — disse Duncan. — Os modelos já estão no túnel, mas ainda não nos comunicaram coisa alguma. —  Informe-me do que houver.
—  Fique descansado — disse Duncan e acrescentou depois de um momento de pausa: — Como vai Número 1? — Bem. — Já falou com ele a respeito do Sundancer?   __  — Não. Vou ver se falo com ele antes da reunião. _  — Felicidades, Ângelo. — Muito obrigado. Para você também, Duncan  Desligou o telefone. Quase no mesmo instante, ele tornou a tocar. Atendeu. — Lady Ayres ao telefone — disse sua secretária. — Alô, Bobbie! — disse ele, depois de feita a ligação. — Por que não me telefonou, Ângelo? — Não faça pouco de mim. Simples vice-presidentes não telefonam para a noiva do patrão. —  Quem está fazendo pouco de mim e você. Estou telefonando para convidá-lo para almoçar comigo. — Seria ótimo, Bobbie. Mas tenho de enfrentar uma tarde agitadíssima. Vou comer um sanduíche aqui mesmo no escritório. — Engraçado — disse ela. — Foi exatamente isso o que Loren me disse. Isso é comum entre os executivos americanos? É sinal de eficiência ou de quê? —  Na verdade, não sei. — Venha então até aqui em cima. Prometo que lhe servirei a minha última descoberta para um almoço americano. —  Qual é? —  Um sanduíche de herói. —  Neste caso, vou subir. Você conhece decerto o caminho para o coração de um italiano. —  Suba no último elevador — disse ela. — Vou manobrar o botão para que ele suba direto até aqui. Ela o estava esperando à porta quando ele saiu do elevador. A porta se fechou atrás dele e os dois ficaram em silêncio por um momento, olhando apenas um para o outro. — Sou apenas um passarinho numa gaiola dourada — disse ela com voz estrangulada. Tentou sorrir mas não pôde. Caiu então nos braços dele e os dois ficaram assim e em silêncio por muito tempo. Por fim, ela se afastou e olhou para ele. —  Você emagreceu. —  Um pouco. —  Tenho tido saudades de você.  Ele nada disse.
—  Estou dizendo a verdade.  Ângelo continuou calado. —  Você não faz idéia do que é viver aqui em cima. Tem havido ocasiões em que penso que vou enlouquecer. —  Poderia ter saído a qualquer tempo. Não há correntes aqui para prendê-la. Virou-se e apertou o botão para chamar o elevador. —  Aonde é que vai? — perguntou ela. —  Vou descer. Errei em vir até aqui. As portas se abriram e ele entrou no elevador.  Ela colocou a mão na porta para impedi-la de fechar-se e disse: —  Fique. Ele sacudiu a cabeça. —  Se ficar, poderei estragar tudo para você. É isso mesmo o que você quer? Ela o olhou. —  É isso mesmo o que você quer? — repetiu ele. Ela tirou a mão da porta. Ângelo viu-a dar as costas e afastar-se enquanto as portas se fechavam. O elevador começou então a descer.
 
Número 1 usou da palavra da cabeceira da longa mesa da diretoria. —  Estamos  então de acordo,  senhores.  Aprovaremos  a produção do Sundancer até abril de   1971   e,  se nessa época o Sr. Perino tiver completado os planos do novo carro, discutiremos a proposta de conversão. Voltou-se para Ângelo e perguntou: —  Acha isso aceitável? —  De modo algum — disse Ângelo firmemente. — Mas tenho alguma alternativa? —  Não, não tem — disse Número 1. —  Então, há ainda um ponto para o qual quero chamar a atenção da diretoria. Estabeleci como alvo da produção e das vendas do novo carro quinhentas mil unidades no primeiro ano. A decisão que acabam de tomar torna simplesmente impossível o cumprimento desses objetivos e os reduz a metade em vista do tempo que será necessário para desarmar a velha linha de montagem. — Essa sua observação constará da ata — disse Número 1. — Neste caso, desde que não há outros assuntos a considerar pela diretoria, declaro encerrada a sessão. O carrilhão da porta conseguiu chegar afinal ao seu sono. Ângelo abriu os olhos e levou alguns minutos para compreender que estava no seu apartamento no Pontchartrain. Levantouse da cama, atravessou meio às tontas a sala e, chegando à porta, abriu-a. Era Betsy. Ele não podia dizer qual dos dois havia ficado mais surpreso. — Desculpe — disse ela. — Nunca pensei que já estivesse dormindo a uma hora destas. — Eu estava exausto. Não tive mais de quatro horas de sono nos últimos três dias. —  Desculpe. — Chega de pedir desculpas. Assim, você fará com que me sinta culpado. Entre. Levou-a até a sala e perguntou: —  Que horas são? — Dez e meia, mais ou menos.     Ele apontou para o bar. — Sirva-se de um drinque enquanto eu visto um robe.  Encaminhou-se para o quarto, com as calças do pijama a lhe baterem em torno das pernas. Quando voltou, ela estava bebendo um refrigerante num copo grande, cheio de gelo até a borda. Foi até o bar e preparou um canadense com água. Voltou-se para ela, ao mesmo tempo que tomava um grande gole da bebida. —  E agora, Srta. Elizabeth, que deseja de mim? Ela o olhou por um momento e, depois, baixou os olhos. —  Preciso de um favor seu — disse ela. — De um favor muito importante. —  Qual é? —  Com certeza, vai pensar que é tolice minha, ou que eu estou alta ou alguma coisa assim. —  Não vou pensar nada disso. — Ângelo — murmurou ela numa voz muito baixa. —  Hein? — disse ele, começando a sentir-se aborrecido.  Ela hesitou por um momento. —  Pode dizer. . . — Meu horóscopo diz que vai dar certo. . . —  Que é que vai dar certo? —  Você sabe. . . Eu e você. . . Virgem e Touro. 
— Ah  sim — disse ele, completamente perplexo. — Tudo resolvido então — disse ela, sorrindo. Deixou o copo no bar e passou os braços pelo pescoço dele. — Já podemos ir para a cama. —  Espere aí! E eu não tenho nada que dizer quanto a isso? —  Não, porque você não pode fazer nada. Está escrito nas estrelas. —  Mas eu não sou Touro. Sou Leão! Uma expressão de sofrimento passou pelos olhos dela. —  Que importância tem isso, Ângelo? Não quer casar-se comigo?
 
Livro três, 1971
Capítulo 1
O silêncio caiu sobre a pequena sala de audiências no velho edifício de madeira que servia de fórum à cidadezinha entre Seattle e Spokane. O júri do coroner, encarregado das investigações criminais, tomou assento nas cadeiras colocadas em volta da mesa. O coroner, um homem alto com um rosto curtido pelo tempo, dirigiu-se para a sua cadeira e sentou-se. Fez então sinal ao escrivão. O escrivão voltou-se para a sala. —  O júri do coroner está em sessão a fim de apurar provas em torno da morte de Sylvester Peerless quando dirigia um carro de provas a serviço da Companhia Automobilística Bethlehem. — Olhou para um papel que tinha na mão e acrescentou: — Este tribunal convoca a Srta. Cindy Morris como testemunha. Cindy voltou-se na sua cadeira e olhou para Ângelo. —  Estou tão nervosa! Que é que eu vou dizer?  Ângelo tranqüilizou-a. —  Diga a verdade. Dessa maneira, não poderá errar. Ela se levantou. Um murmúrio de admiração a seguiu enquanto ela se dirigia para a cadeira das testemunhas. O macacão com as palavras "BETHLEHEM MOTORS" nas costas não permitia a ninguém a ilusão de que ela não fosse uma mulher. O escrivão fê-la prestar o juramento rapidamente e perguntou-lhe o nome.  — Cindy Morris. — Faça o favor de sentar-se — disse ele e voltou para sua cadeira. Ela se sentou, enquanto o promotor do condado se levantava. Como todos os homens da região, era muito alto, mas isso não dissimulava a aguda inteligência de seus olhos cinzentos. Ficou diante dela. A voz era calma, com uma enganosa ponta de sotaque do oeste.
—  Que idade tem, Srta. Morris? —  Vinte e quatro anos. — Vinte e quatro anos? —  Sim. —  Trabalha para a Bethlehem Motors? —  Trabalho, sim. —  Quais são as suas funções? —  Motorista de provas e consultora de projetos. —  Quer fazer o favor de explicar os seus deveres? —  Dirijo os carros e comunico ao chefe de Projetos e Engenharia o ponto de vista feminino sobre os carros. —  Há quanto tempo trabalha nessas funções para a Bethlehem Motors? —  Há coisa de um ano e meio. —  Quantos carros já dirigiu e testou durante esse tempo? —  Aproximadamente dezenove. —  Considera perigoso o seu trabalho? —  Na verdade, não.. O promotor encarou-a e disse: —  A sua resposta é curiosa. Que quis dizer com ela? — Sinto-me mais em segurança dirigindo um carro numa pista de provas, onde se tomam todas as precauções de segurança possíveis, do que quando dirijo no trânsito comum de todos os dias. O homem ficou em silêncio por um momento e disse por fim: —  Compreendo. — Foi até sua mesa e pegou um papel. Voltou com ele e perguntou: — Conhecia Sylvester Peerless, o motorista morto? —  Conhecia, sim. —  De que maneira? —  Éramos bons amigos. O promotor olhou para o papel que tinha na mão e disse: —  Tenho aqui uma cópia do cartão de registro de hóspedes no Motel Starlight. Diz o seguinte: "Sr. e Sra. Sylvester Peerless, Tarzana, Califórnia". Depois disso, vem entre parênteses o nome "Cindy Morris". Era casada com o Sr. Peerless? —  Não. —  Como explica então o cartão de registro? —  Já disse que éramos bons amigos. Vivíamos no mesmo quarto. Não tive conhecimento de como Peerless preencheu o cartão de registro. O promotor sorriu.
— Quer dizer então que eram companheiros de quarto e tudo mais?  Cindy sorriu para ele. O nervosismo desaparecera por completo. Aquela espécie de conversa ela dominava. —  Eu não disse isso. Quem disse foi o senhor. Se está interessado em saber se tínhamos relações sexuais, por que não pergunta? —  Tinham? —  De vez em quando — disse ela calmamente. — Quando tínhamos vontade. O promotor ficou em silêncio. Depois, encolheu os ombros e voltou para sua mesa. Deixou ali o papel e voltou-se para ela. — Esteve na pista de provas no dia em que o falecido encontrou a morte? —  Estive. —  Houve alguma coisa fora do comum em torno das circunstâncias naquele dia? —  Houve. —  Quais foram? —  Peerless morreu. Houve um breve murmúrio de riso na sala. O promotor fechou a cara e esperou que ele passasse. —  Houve mais alguma coisa? Ela pensou por um momento e respondeu: —  Acho que não. E isso era bastante fora do comum.  Houve de novo risos e o promotor esperou de novo que passassem. — O que eu quero saber — disse ele — é se havia alguma coisa fora do comum no funcionamento do carro que ele estava testando. —  Acho que não — respondeu ela. — Entreguei-lhe o carro depois do meu período de duas horas e ele estava funcionando perfeitamente. —  Ele lhe disse alguma coisa que poderia ter indicado a preocupação que sentia com o funcionamento do automóvel? —  Não. —  Ele lhe disse alguma coisa nessa ocasião? —  Disse, sim. —  Que foi que ele disse? —  Fez uma observação, uma pilhéria, sabe como é. —  Não, não sei. —  Foi uma pilhéria muito pessoal — disse ela, um pouco nervosa. Correu os olhos pela sala e murmurou: — Foi uma dessas coisas que não se podem dizer em público. —  Que foi que ele disse? Ela ficou muito vermelha, baixou os olhos para o chão e murmurou em voz baixa: —  Disse que estava com tanto desejo por mim que tinha até receio de que o membro se embaraçasse no volante. O rosto do promotor ficou vermelho ao mesmo tempo que um murmúrio percorria a sala. — Disse alguma coisa a ele? — Só o que costumo dizer. — Que foi? — Tenha cuidado. — Que foi que quis dizer com isso? — Nada de mais. Sempre digo isso quando vejo alguém entrar num carro para dirigir. — Não quis indicar com isso alguma coisa anormal no carro que tinha dirigido? — Não. Sempre digo isso. — Viu o acidente acontecer? — Não, não vi. Voltei para o motel e fui dormir. O promotor olhou-a ainda por um momento e voltou para a sua mesa. — Não tenho mais perguntas a fazer. O coroner inclinou-se de sua mesa e perguntou a Cindy: — Tem alguma idéia ou opinião a respeito do que poderia ter causado o acidente de que resultou a morte do Sr. Peerless? — Não, não tenho — respondeu ela. — Tenho conhecimento de que o carro era propulsionado por uma nova espécie de motor — disse o coroner. — Um motor de turbina a gás. Fui informado também de que os motores dessa espécie podem explodir dentro de determinadas condições. Alguma coisa assim poderia ter acontecido, causando o acidente? —  Poderia, mas eu duvido muito. Aquele motor já havia rodado no carro mais de cinqüenta mil quilômetros e, se tivesse de explodir, isso teria acontecido muito tempo antes. —  Mas poderia ter acontecido? — insistiu o coroner.  A voz de Cindy estava muito calma. —  Não sei. Mas não é para isso mesmo que este tribunal está reunido? Para apurar o que aconteceu? O coroner encarou-a e disse com voz fria: —  Estamos procurando ser justos, moça. — Voltou-se então para o júri e perguntou: — Querem fazer mais alguma pergunta? Os jurados responderam negativamente e ele se voltou para Cindy. — É só, Srta. Morris. Muito obrigado. Pode retirar-se. A sala estava em silêncio enquanto Cindy voltava para sua cadeira. Ela olhou para Ângelo. —  Que tal me saí? —  Maravilhosamente — disse ele, batendo-lhe na mão. —  Que patife! — murmurou ela. — Não tinha de me fazer todas aquelas perguntas. —  Você disse a verdade — disse Ângelo. — Não se preocupe. A voz do escrivão fez-se ouvir através da sala. —  Este tribunal chama a depor o Sr. John Duncan. O escocês levantou-se. Não aparentava ter os seus sessenta e cinco anos quando se levantou e marchou com passo firme para prestar juramento. — Nome, por favor? — perguntou o escrivão. — John Angus Duncan — respondeu ele e sentou-se.  O promotor levantou-se e aproximou-se dele. — Quer fazer o favor de declarar o cargo que ocupa na Bethlehem Motors? — Vice-presidente, Engenharia. — Há quanto tempo exerce esse cargo? — Há um ano e meio. — E antes disso? — Fui durante vinte anos vice-presidente da produção automobilística na mesma companhia. Ao completar sessenta anos, aposentei-me. Dois anos depois, voltei nas funções atuais. — Poderia definir os seus deveres atuais? — Estou encarregado da parte de engenharia do Projeto Betsy. — Que é o Projeto Betsy? — É a construção e desenvolvimento de um novo carro que está presentemente nas cogitações da companhia. —  Pode ser mais explícito a esse respeito? —  Não, pois isso importaria em revelar informações confidenciais em detrimento de meu empregador. O promotor consultou as suas notas. — Tenho conhecimento de que possui certas patentes relativas a um motor de turbina. É verdade? — É, sim — respondeu Duncan. — Posso acrescentar que sou detentor dessas patentes juntamente com meu empregador. — Foi esse o motor empregado no carro em que o Sr. Peerless encontrou a morte? —  Foi usada uma variante do motor. —  Pode descrever o motor? —  Não — disse Duncan com firmeza. — Pelas mesmas razões mencionadas anteriormente e também pelo fato de que certas patentes ainda estão em fase de processamento e a revelação daria informação aos nossos concorrentes. O promotor voltou para sua mesa. —  Estava presente no local na ocasião em  que o Sr. Peerless encontrou a morte? —  Estava, sim. —  Pode falar-nos sobre isso? —  O Sr. Peerless entrou na curva número 4 a uma velocidade de duzentos e setenta e três quilômetros por hora, apesar da advertência que lhe fizemos, e saiu da pista, indo chocar-se com o muro. — Diz que houve uma advertência. Como foi feita? — Mantemos comunicação constante pelo rádio com o motorista do carro. —  Podiam avaliar a velocidade do veículo? —  Perfeitamente. Nossos carros de prova são equipados com dispositivos de rádio que transmitem informações permanentemente a um computador de controle que registra o funcionamento de todas as partes do automóvel. —  Poderíamos ver esses registros? —  Não. Por todas as razões que já mencionei. —  Os seus dispositivos não indicaram que havia alguma irregularidade mecânica no carro? —  O carro estava funcionando perfeitamente. —  Existe o registro de sua advertência ao Sr. Peerless?  —  Sim. Temos uma gravação em fita dessa comunicação —  Poderíamos ouvi-la? Duncan olhou através da sala para Ângelo, que se voltou para Roberts, sentado ao lado dele. O advogado fez,um sinal de assentimento. —  Sim — disse Duncan. — Tenho um gravador na pasta que deixei em minha cadeira, e posso tocar a fita. O coroner falou de sua mesa. — O  senhor  escrivão  quer  ir  buscar  a  pasta  do   Sr. Duncan? O escrivão levou a pasta a Duncan. O escocês abriu-a e tirou um minicassete. Olhou então para o coroner. — Está certo, Sr. Duncan. Pode colocar tudo em minha mesa diante de mim. Duncan levantou-se e colocou a pequena máquina em cima da mesa. Apertou o botão. Um leve sussurro encheu a sala. Aumentou o volume e o sussurro foi mais forte. — Não estou ouvindo o barulho do motor — disse o coroner. — O barulho é muito pequeno — disse Duncan. — Tratase de um motor de turbina e o barulho é insignificante em comparação com um motor normal de combustão interna. O único som de fundo que se pode ouvir é o do vento e o dos pneus. Uma voz de homem fez-se ouvir na fita: "Estou lendo no velocímetro 281,593 quilômetros. Verifique. Câmbio". — A voz de Duncan apareceu na fita: "279,993. Verificado. Convém ir reduzindo a velocidade. Você está perto da número 4. Câmbio". Durante algum tempo, não houve na fita senão o murmúrio de fundo. Ouviu-se então de novo a voz de Duncan: "Estamos lendo sua velocidade a 277,000. Reduza. Quase já não tem tempo. Câmbio". Silêncio outra vez e então a voz de Duncan, mas com uma nota de urgência: "Duncan a Peerless. Sua velocidade é 273,606. Reduza! É uma ordem! Câmbio". Silêncio. E a voz de Duncan, áspera e irritada: "Está louco, Peerless? Reduza a velocidade antes que se arrebente todo! Câmbio". Ouviu-se então a voz de Peerless. Ele ria. "Deixe de nervosismo, ouviu? Confie em mim!" A voz de Duncan dominou a dele. "Você tem uma rampa de apenas quatro por cento! Não vai conseguir!" "Não tem confiança em sua máquina, velho?", perguntou Peerless, rindo. "Deixe comigo que eu sei o que estou fazendo. Dirijo com os anjos." Por um momento, não se ouviu senão o leve sussurro, depois um pequeno espocar e, por fim, nada. Silêncio completo.
Havia também silêncio completo na sala quando Duncan estendeu a mão e desligou o aparelho. Olhou para o coroner este se dirigiu ao júri: —  Ouviram bem? O chefe dos jurados levantou-se e disse: —  Ouvimos. O coroner voltou-se para Duncan. —  Mencionou uma rampa de quatro por cento naquela curva. Qual a velocidade que considera segura nesse ponto? Isto é, a velocidade máxima? —  Cento e sessenta e cinco quilômetros. —  Havia cartazes de advertência nesse sentido? —  Sim, de duzentos em duzentos metros, a partir de três quilômetros antes da curva. —  Calcula então que o Sr. Peerless entrou naquela curva com um excesso de velocidade de cem quilômetros sobre o máximo permissível? —  Exatamente. —  Poderia dizer então em que ponto o motor explodiu? —  O motor não explodiu — disse Duncan.  O promotor disse então: — Mas testemunhas anteriores afirmaram que houve uma explosão seguida de fogo. Como explica isso, Sr. Duncan? O escocês voltou-se para ele. —  A explosão não se verificou no motor, mas, sim, no tanque de combustível, provocada por uma faísca eletrostática quando o tanque se quebrou. — È possível então que tenha havido uma falha no tanque de combustível? —  Não houve falha no tanque de combustível. Este era equipado e foi feito com todas as precauções de segurança conhecidas pelo homem. Mas não existe nada na tecnologia atual que nos permita fazer um tanque capaz de resistir a um impacto a duzentos e setenta quilômetros por hora. —  Como pode ter certeza de que foi o tanque de combustível e não o motor? —  Porque temos o motor. Está esmagado a ponto de não ser possível repará-lo, mas está inteiro. Se tivesse explodido, os seus fragmentos se teriam espalhado por toda parte. O promotor assentiu e voltou para sua cadeira. O coroner perguntou ao júri: —  Querem fazer ainda alguma pergunta?  O chefe dos jurados levantou-se.
—  Dirijo um carro, Sr. Duncan. E, em vista da grande potência de seu motor, creio que teve de usar uma gasolina de alta octanagem. Foi assim mesmo? — Não, senhor — disse Duncan. — É essa uma das vantagens de um motor de turbina. Não exige gasolina de alta octanagem ou reforçada para conseguir o máximo de eficiência. — Que espécie de gasolina foi então usada? — perguntou o chefe dos jurados. — Não usamos gasolina. — Que foi que usaram? — Querosene. — Obrigado — disse o chefe dos jurados, sentando-se. O coroner falou então: — Sr. Duncan, acha que, se usasse gasolina em vez de querosene, a explosão e o incêndio que se seguiu poderiam ter sido evitados? —  Nas circunstâncias, não — disse Duncan, com muita segurança. — Ao contrário, com a gasolina, haveria maior suscetibilidade à explosão e ao fogo. O teor de octana da gasolina é uma medida de sua combustibilidade. Portanto, quanto mais alta é a octanagem, mais combustível é a gasolina. O coroner correu os olhos pela sala e voltou-se para o escocês. — Parece que não há mais perguntas. Muito obrigado, Sr. Duncan. Pode retirar-se. A sala estava em silêncio quando o escocês voltou para a sua cadeira. Ângelo apertou-lhe a mão e Cindy beijou o rosto do velho. —  Você foi formidável — disse ela. O escocês sorriu satisfeito, mas murmurou: —  Escutem aqui, uma coisa me inquieta. Quem foi que os industriou em tudo isso? —  Isso saberemos depois — disse calmamente Ângelo. — Vamos ver primeiro o que acontecerá aqui. O coroner e o promotor conferenciavam em voz baixa, Um momento depois, o promotor voltou ao seu lugar e o coroner usou da palavra. —  Não serão ouvidas outras testemunhas. Senhores jurados, ouviram o depoimento do médico que procedeu à autópsia nos restos do Sr. Peerless, segundo o qual a morte resultou diretamente das lesões recebidas com o impacto, e as queimaduras foram posteriores à morte. Ouviram também o depoimento de outras testemunhas que deram informações relativas às circunstâncias que cercaram a morte do Sr. Peerless. Têm mais algumas perguntas a fazer a respeito do caso? —  Não — disse o chefe dos jurados. —  Muito bem — disse o coroner. — Têm agora de chegar a uma decisão quanto à causa da morte do Sr. Peerless e à responsabilidade por ela. Há  várias decisões possíveis e vou relacionar algumas delas. "Primeira, se julgarem que a morte do Sr. Peerless foi culpa de qualquer outra pessoa e não dele, poderão assim declarar. Não será necessário neste caso mencionar o nome da pessoa ou das pessoas responsáveis, embora possam fazê-lo, se assim o desejarem. "Segundo, caso julguem que a morte do Sr. Peerless foi decorrente de culpa dele mesmo, poderão assim declarar. Neste caso, poderão afirmar simplesmente que a causa da morte, foi devida a erro do motorista." Fez uma pausa e olhou para os jurados, que se conservavam calados. —  Desejam retirar-se para debater o veredicto? O chefe dos jurados inclinou-se para os seus companheiros. Houve alguns momentos de conversa em voz baixa e ele então se levantou e disse: —  Não, senhor. O coroner perguntou: —  Desejam apresentar o veredicto, senhores jurados? —  Sim, senhor. —  Qual é ele? O chefe dos jurados disse então: —  Este júri chega à conclusão de que, no caso do Sr. Peerless, a morte resultou de culpa dele, erro de motorista e evidente imprudência. Houve imediato rebuliço na sala enquanto os repórteres corriam para a porta. O coroner bateu na mesa com o seu martelo, pedindo ordem. A voz dele mal pôde ser ouvida na algazarra. —  Em vista da decisão do júri que acaba de ser ouvida, o inquérito do coroner sobre a morte de Sylvester Peerless está encerrado.
 
Capítulo 2
Num canto do bar quase às escuras do Motel Starlight, um pianista preto de barbicha tocava despreocupadamente músicas suaves como pano de fundo para o murmúrio das conversas na sala repleta. O grupo estava apertado num pequeno compartimento dos fundos. Artie Roberts perguntou a Ângelo do outro lado da mesa: — Onde é melhor  tomar o  avião  amanhã  para  Nova York? Spokane ou Seattle? Ângelo encolheu os ombros. —  Acho que Seattle tem mais vôos, mas Spokane fica cem quilômetros mais perto. É melhor se informar na portaria. Artie levantou-se. —  Vou tratar disso agora mesmo. Não demoro.  Cindy pegou o copo, olhou para ele e murmurou: —  Foi a vontade de morrer. Não foi outra coisa. —  Que foi que você disse? — perguntou Ângelo.  Ela não desviou o olhar do copo. —  Creio que foi isso. No fundo, o que vocês todos querem é morrer. Ângelo nada disse. — Sabe de uma coisa? Compreendi que ele ia se matar no momento em que entrou naquele carro. Foi por isso que vim para o motel em vez de ficar por lá à espera dele. Não queria estar presente quando ele morresse. —  Se foi essa a sua impressão, por que não o impediu de sair com o carro? —  Para quê? Se não fosse daquela vez, seria de outra. Eu não poderia tomar conta dele a vida toda. Ângelo pediu outra rodada. Ela pegou o novo copo e provou-o. —  Estou com vontade de ir embora amanhã — disse ela. —  Por quê? Tem alguma coisa melhor para fazer?  Ela sacudiu a cabeça. —  Não, mas meu time não é esse. Você sabe muito bem disso. Esses carros não fazem barulho. — Algum dia, não haverá carros que façam barulho, Cindy. Quando chegar esse tempo, que é que você vai fazer? — Talvez nesse tempo eu já esteja tão velha que isso não me interesse mais.
—  Você é uma boa motorista e eu sei que Duncan não gostará de perdê-la. Disse-me que sua opinião é sempre muito acertada. —  Eu gosto do velho. Mas só aceitei o lugar para ficar junto de Peerless. Ele pensou que vocês fossem tratar de corridas. —  Nós também pensávamos — disse Ângelo. — Mas não estamos mais tratando disso. Ao menos, não é o que estamos querendo fazer. —  Sei disso. Quando foi que você deixou de ser maluco? —  Como assim? —  Você já foi como todos os outros. Estava pronto a enfrentar a morte a qualquer hora, em qualquer lugar. De repente, num dia inteiramente maluco, isso acabou e você não foi mais à tarde o mesmo homem que era de manhã. Compreendi isso quando cheguei e o encontrei na banheira. —  Um dia, todos nós temos de criar juízo — disse Ângelo. — Talvez fosse essa a minha vez. —  Talvez seja isso. Não quero ter juízo. Quem tem juízo não precisa de mim. Pode-se arranjar muito bem sozinho. Mas sujeitos como Peerless, como você em outros tempos, precisam de alguém em que se apóiem quando não estão atrás de um volante. Precisam de alguém que os faça se sentirem vivos quando não estão empenhados no seu jogo alucinado com a morte — Levantou-se e disse: — Pedi que me mudassem para outro quarto. —  Foi uma boa idéia. —  Tenho algumas fitas novas. Não quer aparecer depois do jantar para ouvi-las? —  Vamos ver. Telefonarei para você às oito horas, quando estivermos prontos para jantar. —  É melhor telefonar por volta das sete, se quer encontrar alguma coisa para comer. O pessoal come cedo aqui. —  Está certo. Ficou a observá-la enquanto ela se afastava pelo bar repleto. Havia em seu andar uma mistura de solidão, mocidade e malícia. Um garçom apareceu ao lado dele e disse: —  Telefonema interurbano, Sr. Perino.  Acompanhou o garçom até uma cabina no canto da sala. Fechou a porta e os rumores do bar se dissiparam. —  Sr. Perino? — perguntou a telefonista. —  É, quem fala?
Ouviu então a voz de Número 1. —  Arre que você é um homem difícil de ser encontrado! —  Ao contrário — disse Ângelo. — Este é o único bar que existe na cidade. —  Acabo de ouvir pelo rádio o resultado do inquérito do coroner. Pensei que você fosse telefonar-me. —  Quando tudo terminou, achei que era muito tarde aí para eu telefonar. Mas deu tudo certo. —  Tivemos sorte.  Poderíamos estar bem enrolados — disse o velho. —  Eu ainda gostaria de saber quem foi que nos arranjou isso — disse Ângelo. — Tenho certeza de que o tal coroner e o promotor não iriam arquitetar tudo isso sozinhos,. —  Você cada dia se parece mais com seu avô — disse Número 1. — Vivia convencido de que havia uma trama por trás  de  tudo.  Para  ele,  as  coisas  nunca  aconteciam  por  si mesmas. —  Talvez ele tivesse razão — disse Ângelo. — O senhor sabe muito bem que fomos colhidos desprevenidos e a publicidade poderia ter destruído todo o projeto na raiz. Não lhe pareceu um pouco estranho que as agências telegráficas divulgassem a notícia do inquérito antes mesmo que fôssemos intimados? —  Estamos fazendo um novo carro — disse Número 1. — É uma grande notícia. Vá se habituando a isso. Você será espionado a cada instante. —  Já sei disso. Os fotógrafos não saem daqui, ansiosos por baterem flagrantes do carro. Têm até sobrevoado a pista de provas em helicópteros com câmaras telescópicas. —  Conseguiram alguma coisa? —  De nosso modelo, não. Mas devem ter muitas fotos de Vegas, Pintos, Gremlins e até de um Maverick ou Nova ou ambos. Número 1 riu. —  Devem estar danados da vida. Quantos carros você tem em circulação? —  Trinta e um pelas estradas do oeste e sudoeste. Oito nos campos de prova e mais seis sem camuflagem que só fazemos correr à noite. —  Está tudo muito bem. Quando é que você acha que o projeto estará pronto? —  Mais sete ou oito meses, setembro ou outubro — respondeu Ângelo.
— Não pegaremos as exposições do outono. . .  — E verdade.  Mas poderemos  alcançar a exposição de Nova York na primavera. Poderá ser até uma vantagem para nós. Todos os outros apresentarão modelos de 72, já conhecidos. Poderemos ser os primeiros com um modelo de 73. — Gosto disso — murmurou Número 1. Em seguida, mudou de tom: — Está aqui uma pessoa que quer falar com você. Ângelo ouviu o telefone mudar de mãos e a voz de Betsy se fez ouvir no fio. Parecia fraca e ofegante. —  Quando vai deixar que eu dirija um desses carros? —  Quando acabarmos os nossos testes, Srta. Elizabeth. —  Não é preciso ser tão cerímonioso, Ângelo. Já contei a Número 1 tudo sobre a noite em que fui ao seu quarto no hotel. Ele riu. —  Espero que você tenha dito também que eu levei você para casa. —  Disse isso também e ele quis saber por quê. —  Talvez porque você tivesse acabado de fazer dezoito anos. —  Era a idade que minha bisavó tinha quando se casou com ele. Acho melhor você se decidir logo. Garotas como eu não ficam livres por muito tempo. —  Talvez eu não seja do tipo de homem que se casa, Srta. Elizabeth. —  Vou para a Europa visitar minha tia depois que meu pai se casar de novo. Você sabe como os homens de lá são. —  Eu sei — disse ele, sorrindo. — Espero que você saiba também. —  Você ainda pensa que eu sou uma criança? O fato de você ter ido à escola com minha mãe não quer dizer que eu não tenha idade bastante para você. —  Não duvido disso nem por um minuto. Mas talvez eu seja antiquado. Acho que é o homem quem deve tomar a iniciativa. —  Está certo — disse ela. — Tome então a iniciativa. —  Agora não — disse ele, rindo. — Tenho um carro para aprontar. — Bateram na porta da cabina. Era um xerife, como se via pela estrela. — Espere um momento — disse ele a Betsy e abriu a porta. —  Sr. Perino? — perguntou o xerife. —  Que deseja? —  Entregar-lhe isso.
Parecia um mandado judicial comum. Na capa, estava datilografado o nome dele, o de Duncan e o da Bethlehem. Abriu o documento e leu-o. Era um mandado assinado por um juiz que os proibia de trafegar com os seus carros de prova impulsionados por um motor de turbina a gás em qualquer estrada do Estado de Washington. Procurou o xerife, mas ele já ia saindo. Voltou ao telefone. —  Passe de novo o fone a Número 1. —  Houve alguma coisa? — perguntou Betsy com uma nota de preocupação na voz. —  Muita coisa. Quero falar com ele. —  Que foi? — perguntou Número 1. —  Acabei de receber um mandado que nos intima a não dirigir qualquer de nossos carros nas estradas públicas deste Estado. —  Não me diga! — exclamou Número 1. — Como podem fazer uma coisa dessas? —  Como podem, não sei, mas fizeram. Não sei se ainda acha que não há ninguém por trás disso. —  Que é que você vai fazer? —  Artie Roberts ainda está aqui. Ia tomar o primeiro avião para Nova York, mas não vai mais. Vai lutar contra isso nos tribunais. —  Isso pode levar muito tempo, Ângelo. —  Se fosse só o tempo, eu não me incomodaria. Se não conseguirmos cancelar essa proibição, pode ser que o Betsy nunca venha a sair!
 
Capítulo 3
—  Só trinta dias mais e o divórcio será definitivo — disse Loren III. Bobbie pôs de lado o copo vazio de martíni. —  Quando isso acontecer, não terá mais importância nenhuma. Mais um mês aqui e eu acabarei doida. Não estou habituada a viver como prisioneira.
—  Mas você não é uma prisioneira, querida — disse ele pacientemente. — Você sabe como é a gente daqui. Depois que nos casarmos, tudo será diferente. Nós nos mudaremos para nossa casa e a vida se normalizará. —  Por que é que pensa assim? Nas poucas vezes em que saímos juntos, o povo de Detroit conseguiu com muita eficiência não tomar conhecimento de minha presença. —  Essas mulheres são umas idiotas — disse Loren. — Mas isso vai mudar. Acredite em mim que eu sei. —  Quero que elas todas vão para o inferno! — exclamou ela, furiosamente. — Não preciso delas, nem da aprovação delas. Mas tenho de sair daqui durante algum tempo. —  Para onde é que você quer ir? —  Não sei. Para qualquer lugar. Não posso mais é ficar aqui. — Foi ao bar e se serviu de outro martíni. — Juro que estou ficando até alcoólatra. — Não posso sair daqui neste momento. —  Sei disso. — Ela foi até a janela e olhou. As luzes da fábrica brilhavam dentro da noite e as chaminés vomitavam para o céu chamas coloridas de rosa. — Olhe para esta vista! — disse ela com amargura. — Há quase um ano, olho desta janela sem ver uma árvore ou um retalho de grama. Acho até que já me esqueci de como é uma árvore. Loren se levantou e se aproximou dela. Passou os braços pelo seu corpo. Bobbie descansou a cabeça no ombro dele. — Sei que não tem sido fácil — disse ele. — Mas nós esperávamos isso. —  Desculpe — disse ela. — Eu sei que também não tem sido fácil para você. Mas, pelo menos, você tem seu trabalho para tomar-lhe o tempo. Eu não tenho nada para fazer a não ser perder o juízo. —  Escute. Espere mais alguns dias enquanto eu ajeito as coisas por aqui e nós poderemos ir para o oeste para ver como vão as coisas por lá com os carros de prova. De qualquer maneira, já está em tempo de eu ir até lá. —  Está aí uma coisa de que eu gostaria. Tenho a impressão de que o novo carro vai ser formidável.    —  É o que eu espero — disse ele, sem entusiasmo. —  Você não está preocupado com esse carro, está? —  É verdade. . . —  Por quê, se todos na indústria se mostram tão ansiosos por ele?
— Os outros podem estar ansiosos. O dinheiro deles não está em jogo. Se o carro não der certo, toda a companhia irá para o buraco junto com ele. Se der certo, tudo estará muito bem a princípio, mas, dentro de poucos anos, a Ford e a GM tomarão conta do mercado, de modo que na realidade estamos arriscando nosso capital em benefício dos outros. Fez uma pausa e continuou: —  Ainda me lembro do ano em que passei a ser presidente da companhia. Foi em 1953, o ano em que a companhia Kaiser-Frazer deu afinal o último suspiro e entrou pelo cano. Tinham um bom carro, mas não conseguiram superar o sistema. Com a concorrência e com a Guerra da Coréia, que lhes cortou as fontes de abastecimento, foram derrotados. Firmei então o propósito de não lutar contra o sistema. Aceitaria a parte do mercado de automóveis que pudéssemos conseguir e me concentraria nas outras áreas de lucro. E não estava errado. Ainda não houve um ano depois disso em que a companhia faturasse menos de seis milhões de dólares de lucros, descontados os impostos. Agora, um fantasma do passado ameaça fazer voar toda a companhia pelos ares. Talvez nunca em sua vida tivesse falado tanto. Ela o olhou pensativamente e perguntou: —  Já disse essas coisas a Número 1? —  Meu avô não ouve a ninguém neste mundo, talvez com exceção de Ângelo, e, ainda assim, quando Ângelo diz o que ele quer ouvir. —  E você? — perguntou ela. — Não gostaria de fabricar um carro novo, um carro que todos quisessem? — Claro que sim. É esse o sonho de todos os que vivem nesta indústria. Mas, quando eu era garoto, queria ser o primeiro homem a chegar à Lua. Isso não aconteceu também. —  Por que então não abandonou de vez a indústria de automóveis? —  Era o que eu devia ter feito. Sei disso agora. — Olhou para dentro de seu drinque cor de âmbar. — Mas eu sabia que se fizesse isso mataria meu avô de desgosto. Era sua única razão para viver e a única preocupação. Bobbie ficou em silêncio por um momento. Depois, largou o seu martíni e tocou o dele. Colocou os dois copos lado a lado e disse: —  Vamos para a cama.
— O grande problema do motor de turbina sempre foi a reação à aceleração e a falta de freagem do motor — disse Tony Rourke. — Mas acho que afinal superamos isso. — Apontou as plantas abertas em cima da mesa de Loren III. — Acrescentando um contra-rotor ao rotor propulsor que seria ativado por uma ventoinha de estator desviando a pressão da tração quando o acelerador diminuísse, criamos artificialmente o equivalente ao freio normal de um motor de combustão interna. Serve também para sustentar o carro engrenado e a baixa rotação nas velocidades normais. E, em sentido contrário, elimina o intervalo de reação em geral presente numa turbina, de modo que há sempre velocidade para pegar e acelerar. —  E isso já foi testado? — perguntou Loren. —  Por completo — disse Rourke. — Tem sido usado em todos os carros de prova desde dezembro último e até agora tem totalizado em média trinta mil quilômetros de uso em cada carro. —  É dispendioso — murmurou Loren. Voltou-se para Weyman. — Já tem os dados? — Tenho, sim. Aumentará em cerca de cento e trinta e um dólares o custo de cada motor e se os fabricarmos aqui em quantidades de duzentos mil ou mais: Rourke voltou-se para ele. —  E isso abrange a economia resultante do fato de que não teremos de construir uma fonte de energia auxiliar para fazer funcionar os acessórios em baixas rotações? — Levamos isso em consideração — disse Weyman, com a sua voz precisa de contabilista. — O fator principal é o custo do pessoal aqui em Detroit. No momento, as rigorosas margens de tolerância implicada na fabricação desses rotores só permitem a utilização de mecânicos especializados. — Não é possível!  — exclamou Rourke. — A Toyo Kogyo está fabricando rotores e vendendo-os em carros baratos! —  É a vantagem que os japoneses têm sobre nós — disse Weyman. — O operário no Japão é controlado. — Posso fabricá-los por menos na Califórnia — disse Rourke. — Tenho certeza disso. Mas é absurdo fabricar os rotores lá, mandá-los para cá a fim de serem incorporados aos motores e, depois, mandar tudo de novo para lá para a montagem final do carro. —  De fato, ao fim de tudo isso, não se poderia falar mais em economia — disse Weyman.
—  Qual é o custo do carro neste momento? — perguntou Loren. —  Importa em mil novecentos ,e cinqüenta e um dólares antes do acréscimo dos novos rotores. Com eles, vamos chegar quase aos dois mil e cem dólares. —  Para mim, isso não faz sentido — disse Rourke. — Tenho certeza de que o Gremlin não custa à American Motors muito mais de mil e setecentos dólares para ser fabricado. — Custa menos — disse Weyman. — Isso é o que a companhia cobra em média aos revendedores, incluindo os impostos federais. Mas esse é o preço do carro no osso. A companhia não acrescenta acessórios de energia e ar-condicionado para aproveitar a força disponível do motor. Há no carro deles quase setecentos dólares de extras que já teremos em nosso carro e que não poderão deixar de ser incluídos no custo. —  Sendo assim, o Betsy teria de ser vendido ao público a dois mil e quinhentos dólares — disse Rourke. —  Os cálculos do Departamento de Vendas indicam o preço de dois mil quatrocentos e noventa e nove dólares — disse Loren. —  É muito alto em comparação com os outros. O Pinto custa mil e novecentos, e o Vega, dois mil e cem, para não falarmos nos importados. Não haverá condição. —  Bem, agora você tem uma idéia daquilo com que temos de lutar — disse Weyman. —  Não é tanto assim — disse Loren. — Com acessórios e opções, podemos acrescentar quatrocentos dólares ao preço médio da venda dos outros carros. Numa base líquida, não estaremos tão distanciados assim. —  Acha  então que  temos uma chance?  — perguntou Rourke. Loren nem piscou os olhos. —  Bem, será a mesma chance de uma bola de neve no inferno. Não é possível esperar outra coisa do jeito que os custos estão subindo. Haverá necessidade de um carro miraculoso para convencer o público de que, pagando mais, estará neste caso pagando menos. Teremos de fixar um preço adaptado às condições do mercado e estaremos justamente no ponto em que estamos agora. A única diferença será que teremos um prejuízo de trezentos milhões de dólares. Acho que meu avô ainda está vivendo no passado, quando Henry Ford mostrou ao mundo que a linha de produção americana podia baixar o custo por unidade. Mas, de lá para cá, o mundo nos alcançou e, no caso da Alemanha e do Japão, nos ultrapassou em matéria de novo equipamento e de automação. E têm uma vantagem fantástica sobre nós. Os custos de pessoal na Alemanha são sessenta por cento dos nossos e, no Japão, cerca de quarenta por cento. Acendeu um cigarro, deu uma baforada e disse: — Na minha opinião, Ângelo cometeu um erro fundamental. Ele devia ter construído a sua fábrica no Japão e não na Califórnia. Era a única maneira de ter um custo competitivo. — Seu avô queria um carro fabricado nos Estados Unidos. — Eu sei disso — replicou Loren. — Mas isso não quer dizer que ele tivesse razão. Hoje em dia, ninguém quer mais saber onde um produto foi fabricado. Só interessa saber é se é bom e tem um preço conveniente. — Eu gostaria de examinar esses dados — disse Rourke. — Talvez possa dar alguma sugestão. — Seria ótimo! — exclamou Loren. — Estamos precisando mesmo de toda a ajuda possível. — Não posso prometer nada — disse Rourke. — O pessoal de vocês aqui é muito bom. —  Como vão as coisas por lá? — perguntou Loren. —  Agora, vão bem. Aquele mandado na semana passada nos desarvorou um pouco. Mas, depois que nós provamos que a Chrysler tem motores de turbina em trânsito desde 1963 e que a Ford e a GM OS estão usando em caminhões, a proibição foi suspensa. Ângelo ainda acha que isso é obra de alguém que está querendo nos prejudicar. Loren sorriu. — É um absurdo. As outras companhias sabem que lhes estamos fazendo um favor com as nossas experiências. Não estão arriscando um centavo de seu dinheiro e, enquanto nós fazemos as coisas, elas, como de costume, as anotam e aproveitam. —  Mas é preciso reconhecer que há mais que uma simples coincidência. O inquérito e, logo depois, o mandado. —  Deve ser algum sujeito de lá mesmo com espírito de cruzado e desejoso de publicidade — disse Weyman. —  Neste caso, por que ainda não apareceu? — perguntou Rourke. — Já vivo há dez anos por lá e tenho muitos amigos, mas ninguém parece saber de onde partiu a coisa. — Vai falar com Ângelo mais tarde? — perguntou Loren. — Vou, sim. — Quer pedir a ele que me reserve um apartamento com dois quartos a mais, de sexta que vem até terça-feira? Estou com vontade de ir até lá com minha filha e minha noiva.
Rourke olhou-o de maneira estranha. Ia dizer que já conhecia Lady Ayres, mas achou melhor ficar calado. —  Darei o recado a Ângelo. Mas, se quiser ficar perto dos campos de prova, não creio que o Motel Starlight tenha apartamentos. — Neste caso, nós nos  arranjaremos com três quartos grandes. —  Está bem — disse Rourke, levantando-se. — Muito obrigado pelo tempo que me concedeu, Sr. Hardeman. —  Não tem que me agradecer. Às vezes, pode não parecer, mas quero que nunca se esqueça de uma coisa: estamos todos no mesmo time. —  Nunca duvidei um só instante disso, Sr. Hardeman, — disse Rourke e voltou-se para Weyman. — Se precisar de mim, Dan, estarei na seção de Cálculo da Produção. Depois que ele saiu, Dan perguntou: —  Que é que acha, Loren? —  Acho que Ângelo tirou a sorte grande com ele. Rourke é um homem excelente. —  Não é disso que estou falando. Acha que vão descobrir quem lhes está criando dificuldades por lá? —  Isso depende exclusivamente da habilidade de seu homem em esconder todos os vestígios — disse Loren. —  Disseram-me que é muito bom, e, pelo dinheiro que nos está custando, deve ser mesmo. —  Então não se preocupe com isso — disse Loren, levantando-se. — De qualquer maneira, acho que não podemos fazer mais nada. Só nos resta ficar vendo o Betsy arrastar-nos pela estrada da ruína. —  Você ainda é presidente da companhia. Poderá fazer alguma coisa, se quiser. Loren falou então com voz fria, parecendo quase o avô. — Deixe isso para lá. — Está bem, quem manda é você. Mas não se esqueça de que o tempo está contra nós. Em menos de sessenta dias, teremos de decidir se entregamos ou não a Ângelo a fábrica de Sundancer. — Não está confundindo um pouco as coisas, Dan? O que teremos de decidir não será a entrega da fábrica a Ângelo, mas, sim, se encerraremos a produção do Sundancer e prosseguiremos com a do Betsy. —  No fundo, é a mesma coisa — disse Dan. — O que eu não posso fazer você compreender é que, aos olhos de toda a indústria, o homem que produz o carro é quem dirige a companhia. — Levantou-se de sua cadeira e se dirigiu para a porta. Ao chegar ali, voltou-se e olhou para Loren. — Mas o homem que será considerado responsável pelos prejuízos será o presidente da companhia. E o presidente é você!
 
Capítulo 4
O interior da enorme garagem, que mais parecia um hangar de aviação, fervilhava de atividade. Mecânicos de macacão branco tendo nas costas em letras vermelhas as palavras "BETHLEHEM MOTORS" se agrupavam como enxames de abelhas em torno de vários carros, cada um deles sobre um poço, com a carroçaria levantada por macacos na frente, de modo que o motor e o chassi ficavam completamente expostos. —  Estes aí são os camaleões — explicou Ângelo enquanto os levava para os fundos da garagem. —  Camaleões? — perguntou Bobbie. — Carros camuflados. Usamos as carroçadas de carros de outras companhias para que não possam saber qual é o nosso modelo. Isso nos permite testar o carro na estrada sem chamar a atenção. Ângelo parou diante de portas gigantescas no fundo do hangar. Via-se ali um cartaz que dizia:
 
"EXCLUSIVO DO PESSOAL! ENTRADA PROIBIDA A TODAS AS OUTRAS PESSOAS.1"
 
Tirou da lapela o cartão de identificação de plástico e colocou-o na ranhura de uma fechadura elétrica. As portas começaram a se abrir. Ângelo tirou o cartão de identificação e entrou com os outros. Depois que passaram, as portas se fecharam automaticamente. Logo depois das portas, havia uma grande parede que servia de biombo, de modo que ninguém de fora poderia ver coisa alguma enquanto as portas se abrissem. Ângelo levou-os além da parede. Chegaram a uma grande área aberta no centro da garagem. Os carros ali não eram expostos à vista. Estavam dentro de grandes compartimentos fechados encostados às paredes. De vez em quando, um mecânico saía de um compartimento e entrava em outro. Um guarda de segurança armado aproximouse deles. Reconheceu Ângelo e cumprimentou-o. —  Boa tarde, Sr. Perino. Ângelo entregou-lhe o seu cartão de identidade e disse aos outros: — Entreguem-lhe os seus cartões de identidade. Serão restituídos quando saírem. Loren tirou o seu cartão e entregou-o ao guarda. Este olhou cuidadosamente para a fotografia de Loren no cartão e depois para Loren. Depois, recolheu os cartões de Bobbie e Elizabeth e afastou-se. —  A razão para as medidas rigorosas de segurança nesta sala é que aqui temos nossos protótipos de modelos de produção. John Duncan saiu de um dos compartimentos. Aproximou-se do grupo com um sorriso no rosto. — Loren! — exclamou ele com evidente prazer. — John! — disse Loren, apertando-lhe a mão. — Você parece quinze anos mais moço! —  E é assim que me sinto — disse Duncan. — Bem, aqui estamos de novo fazendo o que devemos fazer. —  Quero que conheça minha noiva, Roberta Ayres. Bobbie, este aqui é John Duncan, de quem já lhe falei tanto. O rosto do escocês não deu o menor sinal de que já se tivessem visto, quando apertou a mão de Bobbie. —  Muito prazer, Srta. Ayres. —  O prazer é todo meu, Sr. Duncan.  — E já conhece minha filha Betsy?  Duncan sorriu. —  Bem, ela cresceu um pouco desde que a vi pela última vez. Muito prazer, Srta. Hardeman. —  Muito prazer — disse ela e se voltou para Ângelo. — Vamos ver o carro agora? Estou ansiosa! Ângelo perguntou a Duncan: — Podemos tirar para cá a Fada de Prata? — Acho que sim — disse o escocês, dirigindo-se para um dos compartimentos. —  A Fada de Prata é o protótipo de um carro esporte de alto rendimento. Só pretendemos lançá-lo no mercado depois de estabelecermos a nossa linha de produção. Queremos usá-lo em exposições de automóveis e talvez em uma ou duas corridas, se conseguirmos qualificá-lo. Ângelo ergueu a vista. As portas de um dos compartimentos estavam se abrindo. O carro apareceu, empurrado por quatro homens, enquanto Duncan, sentado à direção, o guiava. Parou no centro do hangar e as luzes fluorescentes do alto brilhavam na sua carroçaria prateada de alumínio. —  Que beleza! — exclamou Betsy, com a surpresa estampada na voz. — Mas é lindo, Ângelo! —  Que é que você esperava? Um carro feio? —  Não sei o que é que eu esperava — disse ela. — Pensei que, desde que se falava tanto de um carro popular, fosse mais ou menos como um Volks. —  Com um nome como Betsy? Acha que seu pai ou seu bisavô iriam permitir que eu fizesse uma coisa dessas? Ela se voltou para o pai. —  Já o tinha visto? — Não — disse Loren. — Já tinha visto modelos e desenhos. Mas é a primeira vez que vejo mesmo o carro. — Olhou para Ângelo e acrescentou: — É um grande modelo. —  Obrigado, Loren. Esperava mesmo que fosse gostar dele. Foram até a frente do carro, examinando-o. A capota inclinada descia para uma concavidade oval, maior no alto que na base, parecendo a concavidade do motor a jato do 707. Outra concavidade subia do capô e havia outra sob o nariz. O efeito geral era que o carro parecia correr ao encontro da pessoa mesmo quando estava parado. —  Essas cavidades são todas funcionais — explicou Ângelo. — A do nariz dirige todo o ar para a câmara de combustão central; a do capô encaminha o ar para o queimador posterior e a de baixo encaminha o ar fresco entre a parede de calor e o painel interno anterior, assegurando ao compartimento de passageiro maior conforto em vista do grande calor de combustão da turbina. Duncan saiu do carro, deixando a porta aberta. —  Querem sentar-se ao volante? — perguntou ele.  Elizabeth não esperou outro convite. Entrou imediatamente no carro e perguntou: —  Quando é que eu posso dirigi-lo? —  Antes disso, terei de levá-la para dar uma volta comigo — disse Ângelo. — Nessa ocasião, poderei explicar-lhe algumas coisas que terá de saber para poder dirigir este carro. Uma turbina é um pouco diferente de um motor de combustão interna convencional. —  Estou pronta — disse Betsy. —  Vai ter de esperar até escurecer — disse Ângelo. — Não saímos com qualquer desses modelos durante o dia. Um sistema de alto-falantes fez-se ouvir neste momento. —  Sr. Perino, telefone! Sr. Perino, telefone! —  Com licença, sim? — disse Ângelo. Voltou-se então para Duncan: — Quer encarregar-se de tudo por mim? Voltarei logo que puder. Enquanto se afastava, ouviu a voz do escocês. —  A primeira coisa que você tem de aprender, menina, é que não basta rodar a chave neste carro para dar a partida. Uma turbina não funciona assim. Há dois comutadores de ignição e um comutador de gerador de partida que funcionam eletronicamente quando se roda a chave para a posição 1. Repare que, quando se faz isso, uma luz vermelha aparece no painel em frente. Dez segundos depois, a luz vermelha se apaga e aparece uma luz amarela. Vira-se então a chave para a posição 2. Isso acende a turbina. Em cerca de cinco segundos, a luz amarela deve ser substituída por uma luz verde.. Isso significa que o motor está funcionando em baixa rotação e que se pode partir. Desde que o calor da turbina é muito grande, pode acontecer que, ao acender-se, ela se aqueça demais. Neste caso, a luz verde não aparece e a luz vermelha volta, dessa vez piscando. Assim sendo, é preciso desligar tudo e começar de novo. Mais uma coisa. O carro não dará partida se não estiver engrenado e freado. Vamos agora à segunda lição, que também é importante. . . A essa altura, Ângelo já havia chegado ao pequeno escritório e deixou de ouvir a voz do escocês depois de fechar a porta. O guarda se levantou da mesa. —  Posso falar ao telefone? — perguntou Ângelo, tirando o fone do gancho. Quando a telefonista atendeu, disse:  — Pronto, Perino. —  Um momento, Sr. Perino. Tenho uma ligação do Sr. Rourke na linha de seu escritório. Vou transferir para aí. — Escute, Perino, acha que vale mil dólares saber o nome da pessoa que conseguiu aquele mandado contra nós? Tenho um amigo em Olympia que pode conseguir-nos a informação. —  Pode pagar.
—  Onde você estará esta noite? — perguntou Rourke. — Espere meu telefonema. —  Estarei no Starlight. Desligou o telefone e olhou pela janela de observação aberta sobre o hangar. Era Loren quem estava sentado ao volante e Duncan ainda falava, enquanto Bobbie e Elizabeth estavam de pé ao lado. Vistas da janela, quase pareciam irmãs. A porta se abriu. Cindy entrou e foi até a janela, ao lado dele. Um momento depois, estendeu a mão, tirou o cigarro que ele fumava, deu uma tragada e devolveu-o. —  É mais moço do que eu pensava — disse ela. — Os retratos fazem-no parecer muito mais velho. —  É, sim. —  Qual é a filha dele? —  A que está à direita. Ela tornou a tirar o cigarro dele e ficou observando-os. —  Ela gosta de carros. Mais do que o pai. —  Por que diz isso? —  Vi a reação dela quando tiraram o carro. Dos três, foi ela a única que realmente se interessou. Ângelo desistiu de esperar que ela devolvesse seu cigarro e acendeu outro. Tornou a olhar. Duncan tinha levantado o capô e estava explicando o funcionamento do motor. —  Vai casar mesmo? — perguntou Cindy de repente. —  Sim, parece que vai se casar com ela na semana que vem — respondeu ele, mas percebeu que não era de Loren e Bobbie que ela estava falando. — Ah, é comigo? —  É o que andam dizendo. — Você devia conhecer-me melhor. Não sou muito de casamento. — Mas ela é de casamento — disse Cindy. — E acho que se parece com Número  1  o bastante para conseguir o que deseja. —  Ainda é uma menina. —  Tem a mesma idade que eu tinha quando entrei na pista pela primeira vez. E não é tão menina quanto finge ser. Ângelo não disse nada. —  E a outra? —  Que é que há com a outra? —  Estava também cheia de olhos para você. E não o estava olhando como uma futura sogra. —  Nem pense nisso, minha filha. Ela não passa de uma vigarista e pode-se dizer que deu o golpe do baú. —  Isso não a impede de querer divertir-se por fora de vez em quando. Ela não olhou uma só vez para o carro. Não fez outra coisa senão olhar para você. Ângelo olhou pela janela. Bobbie estava quase sozinha, pois Betsy e Loren estavam debruçados sobre o capô aberto do carro. Uma nota de surpresa apareceu na voz de Cindy. —  Você já dormiu com ela, não foi? Isso explica tudo e eu devia ter visto logo. —  Por que é que está dizendo isso? —  Escute aqui, meu filho. Não sou boba e também já andei por lá. Conheço os sinais e a mim ninguém consegue enganar.
 
Capítulo 5
A lâmpada de braço flexível estava acesa sobre o projeto aberto em cima da mesa e Ângelo a olhava. Espaço, o problema era sempre o espaço. Dessa vez, era o porta-malas do carro. Em vista do avantajado escapamento necessário para a turbina, o porta-malas tinha menos da metade do espaço considerado normal no carro americano comum, e, com o pneu sobressalente, não havia quase lugar para a bagagem. Moveu a régua a esmo sobre o desenho. Se houvesse qualquer outro meio de tirar espaço do compartimento do motor e transferi-lo para o porta-malas, o problema estaria resolvido. Apesar de todo o equipamento de força, havia espaço para poupar sob o capô graças ao menor tamanho do motor de turbina. Olhou para o modelo da roda e do pneu sobressalente. Era uma pena que não fosse possível montá-los ao lado do carro, como se fazia antigamente. Isso também resolveria o problema. Lembrava-se do Oldsmobile Viking de 1929, que seu pai tinha quando ele era garoto, e do Dusenberg de 1931 de seu avô. Havia algum sentido nas rodas montadas de lado. Davam ao carro um aspecto esportivo. A economia e os novos desenhos tinham acabado com isso. Uma roda e um pneu sobressalente custavam menos que dois. Colocou o modelo no desenho e moveu-o até chegar a um ponto ao lado do pára-lama direito dianteiro sob o capô. Era possível colocar ali a roda sobressalente. Mas havia outros problemas. A temperatura da turbina em funcionamento normal era em média de oitocentos graus centígrados. Não havia um pneu capaz de resistir constantemente a uma temperatura assim Seria preciso cuidar de isolamento, ventilação e talvez refrigeração adicional. Tomou algumas notas para que a divisão de Projetos e Engenharia estudasse o assunto e apresentasse um relatório sobre a viabilidade e as despesas. O telefone tocou. —  Alô? Ouviu a conhecida voz inglesa. —  Ângelo? —  Sim, Bobbie. —  Que é que está fazendo? —  Trabalhando. —  Gostaria de tomar um drinque? —  Onde é que você está? — perguntou ele, surpreso. — Pensei que tivesse ido para a pista de provas com os outros. —  Não me deu vontade de ir. . . —  Houve alguma coisa? Sua voz parece estranha. . . — Não, nada. . . Não sei. . . De qualquer maneira, não tem importância. Desculpe tê-lo incomodado. . . Ela desligou abruptamente. Ângelo olhou o fone por um momento e, depois, o repôs no gancho. Pensou em ligar para ela, mas desistiu quase imediatamente da idéia e resolveu preparar um drinque. O telefone tocou de novo quando ele voltava para a mesa, com o gelo a tilintar no copo. Atendeu. —  Sim, Bob. . . A voz de Rourke interrompeu-o. —  Já sei o nome do homem, Ângelo. Chama-se Mark Simpson. Ele trabalha para uma sociedade chamada Organização Independente de Segurança Automobilística, OISA. É de Detroit. Sabe alguma coisa sobre essa gente? —  Sobre a organização, nada. Mas já ouvi falar do homem. . . — A campainha da porta tocou. — Espere um instante. Estão batendo na porta. Largou o telefone e atravessou a sala. A campainha tornou a tocar. Abriu a porta. Era Bobbie. —  Alô. Estou interrompendo alguma coisa? —  Não — disse ele. — Pode entrar. Estou falando ao telefone. Sirva-se de um drinque. Voltou ao telefone, enquanto ela entrava e fechava a porta. —  Tony, esse sujeito é um chantagista. Faz-se passar por um cruzado, mas isso é conversa fiada. Publica uma carta noticiosa semanal aparentemente para dar informações sobre carros novos. Afirma-se que está a serviço de alguém, mas não se sabe ao certo de quem. —  Que é que ele pode ter contra nós, Ângelo? —  É isso que eu não sei. Não me consta que já tivesse andado por aqui. Com toda a certeza, é financiado por alguém. —  Bem, fiz o que podia — disse Tony. — Detroit é campo seu. —  Vou tomar providências, Obrigado pela informação.  Desligou o telefone e olhou para o outro lado da sala. Bobbie ainda não tinha saído de junto da porta. —  Bem, já que veio até aqui, pode entrar — disse ele.  Ela se aproximou dele com os olhos voltados para a pilha de papéis em cima da mesa e os fichários encostados à parede. —  Você estava trabalhando mesmo — murmurou ela. —  Que foi que pensou que eu estivesse fazendo? Ela não respondeu. Atravessou a sala até a mesa em que estavam a garrafa de uísque e o gelo. Serviu-se de um pouco de uísque e disse: —  Não sabia que você tinha um quarto preparado como um escritório. —  Trabalho muito aqui e nem sempre me sobra tempo para ir dormir em outro lugar. —  Desculpe tê-lo incomodado. . . —  Isso você já disse. —  Eu sei — disse ela, deixando em cima da mesa o uísque que não havia provado. — Vou-me embora. —  Que foi que veio fazer aqui? —  Estava com ciúmes, entendeu?   Pensei  que estivesse com alguma mulher aqui. Foi uma asneira de minha parte. Ele não respondeu. —  Eu te amo e pensei. . . —  Não pense — disse ele com voz áspera. — Já passamos por tudo isso. —  Cometi um erro — disse ela. — Pensei que soubesse o que queria. Mas não é tarde demais. —  É tarde demais, sim. Você vai se casar na semana que vem. Ou já se esqueceu disso? —  Não, não me esqueci — disse ela. Aproximou-se lentamente dele, encarando-o bem nos olhos. — Mas teremos oportunidades. Poderemos encontrar-nos de vez em quando. Ele não se moveu. Sentia o sangue pulsar-lhe no pescoço. —  Agora você está pensando com a vagina. Achava melhor quando você pensava com a cabeça. Ela passou os braços pelo pescoço dele e colou o corpo ao seu. —  Diga que não me quer! Diga!  Ele a olhou sem responder. —  Diga! — repetiu ela com uma nota de triunfo na voz. Baixou a mão e abriu o fecho das calças dele. — Diga que não me quer, enquanto eu tenho você aqui em minha mão, quente e ansioso por mim! Começou a baixar o corpo para ele e estava quase de joelhos quando bateram na porta e esta se abriu. —  O carro é fantástico, Ângelo! — exclamou Betsy, que entrou na sala e parou logo, estarrecida, ao vê-los. Olharam para ela. Bobbie perdeu o equilíbrio e quase caiu quando tentou levantar-se. Ângelo virou-se de costas por um instante para fechar as calças. Quando se voltou para encará-la, ela já estava dentro da sala, muito pálida e muito jovem. — Sei que é difícil compreender. . . — murmurou Ângelo. — Por favor, não diga nada — disse ela, com voz estrangulada. Olhou então para Bobbie. — Papai está a caminho de seu quarto para ir buscá-la. É melhor ir para o bar e dizer que estava à espera dele lá. Ele vinha trazê-la até aqui para brindarem o novo carro. Bobbie saiu em silêncio da sala e os dois ouviram-lhe os passos ecoarem pelo corredor. Ângelo pegou o seu drinque em cima da mesa. —  Acho que todas as histórias que ouvi a seu respeito eram verdadeiras, Sr. Perino. Não é um homem decente! Ele continuou com o copo na mão em silêncio a olhar para ela. —  Não pense que fiz isso por qualquer de vocês — disse Betsy. — Foi por meu pai. Está apaixonado por ela e isso para ele seria a morte. Acontece que ele não é como você. É um homem realmente ingênuo. Ângelo continuou calado.
— Você poderia ter sido sincero comigo — disse ela, contendo os soluços. — Não era preciso vir com aquele papofurado de virtude e de vamos nos conhecer melhor. —  E eu fui sincero. . . —  Não, não foi! E nunca me fará acreditar em você! Por que não foi para a cama comigo quando eu queria ir? Ele não respondeu. — Foi porque pensou que eu não tivesse experiência suficiente para satisfazer ao grande Ângelo Perino? —  Agora, você está falando como uma criança. . . Ela se aproximou dele e começou a bater-lhe no peito com os punho fechados. —  Eu o odeio, Sr. Perino! Odeio! Ele lhe agarrou os pulsos e a imobilizou. Ela olhou para ele e, de repente, derreou o corpo de encontro ao dele, chorando. —  Desculpe, Srta. Elizabeth! Desculpe! —  Sinto-me uma idiota tão grande. . . — murmurou ela, chorando. —  Não diga isso. . . —  Deixe-me! — disse ela, afastando-se dele. — Não tem de me falar nesse tom superior. . . —  Não estou. . . —  Adeus, Sr. Perino! — disse ela friamente. Ele a olhou em silêncio por um momento e murmurou: —  Adeus, Srta. Elizabeth. Ela recomeçou a chorar e, dando-lhe as costas de repente, saiu correndo e quase foi cair em cima da cadeira de rodas de Número 1, que vinha chegando. —  Betsy! — gritou Número 1.  Ela não se voltou. —  Agora não, bisavô! Número 1 entrou com a cadeira de rodas pela porta aberta e olhou para Ângelo. —  Que diabo está havendo por aqui? — perguntou ele, irascivelmente. — Quando chego ao elevador lá embaixo, a garota de Loren sai toda esbaforida. Quando chego quase em cima, Betsy sai de sua porta impetuosamente, chorando como uma criança. Ângelo olhou para ele e exclamou: —  Isso só acontece comigo! Número 1 olhou para ele e começou a sorrir. Virou a cadeira, bateu a porta e exclamou: —  Você está com cara de quem foi surpreendido com o membro de fora! Ângelo engoliu de vez o resto do drinque e exclamou: —  Merda! Número 1 deu uma gargalhada. Quanto mais as coisas mudavam, mais eram a mesma coisa. Ainda se lembrava da última vez em que lhe sucedera uma coisa assim. Havia mais de trinta anos.
 
Capítulo 6
O motor do grande seda preto Sundancer de 1933 com a placa LH 1 sussurrava baixinho quando o chofer saiu da Woodward Avenue e entrou na Factory Road, a três quarteirões e meio dos portões da fábrica. Os passeios dos dois lados da rua estavam cheios de homens, que esperavam pacientemente sob a chuva fria de março. —  Que é que está acontecendo? — perguntou Loren ao chofer.    —  Não sei, Sr. Hardeman. Nunca vi nada de parecido com isso. Começou a diminuir a marcha do carro. Quando se aproximaram do portão, as filas de homens se tornaram mais densas, espalhando-se pelo meio da rua. —  Ligue o rádio — disse Loren. — Talvez o noticiário diga alguma coisa. A conhecida voz do locutor H. V. Kaltenborn encheu o carro: "Para terminar, gostaria de repetir as palavras que o Presidente E.oosevelt pronunciou no seu discurso de posse, ontem, emn Washington: 'A única coisa de que devemos ter medo é o próprio medo'. "São palavras que não devem ser esquecidas. Fala H. V. Kaltenborn, de Nova York." Outra voz se fez ouvir pelo rádio: "E assim está encerrado o nosso boletim de notícias da manhã. Novo boletim às doze horas". Estavam quase chegando ao portão e Loren disse: —  Pode desligar. O carro seguiu em marcha lenta para o portão por entre os homens agrupados diante dele. O chofer tocou a buzina. Os homens olharam para trás e abriram caminho lentamente para que o carro pudesse passar. Dois guardas da fábrica abriram o portão e tornaram a fechá-lo depois que o carro passou. Loren desceu o vidro da janela e perguntou: —  Que quer dizer isso, Fred?  O guarda olhou para ele e disse: —  Botamos anúncio nos jornais dizendo que precisávamos de seis maquinistas, Sr. Hardeman. —  Seis maquinistas? — exclamou Loren, olhando para a multidão. — Mas aí fora deve haver pelo menos uns duzentos homens. — Desculpe, Sr. Hardeman, mas pela minha conta há mais de mil pessoas lá fora. —  Já contratamos os homens que queríamos? —  Não, senhor. A Seção de Pessoal só vai começar a tratar disso às nove horas. Loren olhou para o seu relógio. Passavam poucos minutos das sete. —  Isso quer dizer que essa gente vai passar mais de duas horas debaixo dessa chuva gelada! —  É sim, Sr. Hardeman. Muitos deles passaram a noite aí. Chegaram logo que os jornais saíram com o anúncio, ontem à tarde. Loren olhou para a multidão. Alguns dos homens tinham jornais abertos sobre a cabeça para protegerem-se da chuva. Outros tinham a gola levantada por cima da aba do chapéu. O rosto de todos tinha a mesma tonalidade cinzenta da manhã. Virou-se para o guarda e disse: — Fale com a cantina e diga que tragam um caminhão com café quente e roscas para essa gente. —  Não posso fazer isso, Sr. Hardeman — disse o guarda. —  É contra a ordem. — Que ordem? — perguntou Loren tão surpreso que nem se zangou. — Foi baixada pela Seção de Pessoal — disse o guarda, com voz nervosa. — Disseram que, se fizéssemos isso, teríamos todos  os dias  aqui uma fila enorme, quer precisássemos  de gente, quer não, só para tomar café de graça.
—  Quem deu essa ordem? —  Disseram que tinha vindo diretamente do gabinete do presidente — disse o guarda, com muito cuidado para nãofalar no nome de Júnior. —  Compreendo — disse Loren, entrando de novo e dizendo ao chofer: — Vamos. O carro passou por trás do edifício da administração para estacionar perto da entrada particular de Loren. Este saiu do carro sem esperar que o chofer abrisse a porta. O pequeno elevador estava em cima, de modo que ele subiu pelas escadas até o segundo andar e desceu pelo comprido corredor. Empurrou a porta e, passando pelas secretárias espantadas, entrou no escritório de Júnior. O filho estava acabando de falar ao telefone e exclamou, muito agitado: —  Estava falando com Washington. Todos estão esperando que o novo presidente vá decretar imediatamente um feriado bancário prolongado! Loren olhou para ele e perguntou: —  Você já tomou café?  Junior ficou espantado. —  Ouviu bem o que eu disse? O presidente vai fechar os bancos. Sabe o que significa isso? —  E eu lhe perguntei se tinha tomado café — repetiu Loren. —  É claro que tomei café. Mas que relação tem isso com o que acabei de dizer? Se ele fechar os bancos, a anarquia será completa, uma revolução poderá estourar a qualquer instante e os comunistas tomarão conta do país! —  Merda! — gritou Loren. — Venha até aqui à janela!  Junior levantou-se da cadeira e foi até lá. Loren apontou os homens amontoados diante do portão. — Está vendo aqueles homens? — Estou. — Você assinou uma ordem proibindo a cantina de dar café e roscas a essa gente? — Não. A ordem deve ter partido do escritório de Warren. — Se partiu do escritório de Joe Warren, você deve ter aprovado. Ele é seu homem de confiança. —  Pai — disse Junior, com uma voz em que era visível o esforço de ser paciente e conciliatório —, quantas vezes quer que lhe diga que Joe não pensa senão em nosso interesse? Se não fosse ele, os raptores poderiam ter posto as mãos imundas em Anne e Loren III. E é preciso reconhecer que desde que ele assumiu o cargo não houve mais problemas com os operários. "É claro que aprovei a ordem, mas não somos os únicos que seguimos essa orientação. Quase todas as companhias de Detroit a adotaram. Bennett, da Ford, diz que, se não tivermos pulso firme, eles tomarão conta de tudo." —  Quem é que vai tomar conta? — perguntou Loren sarcasticamente. — E desde quando Bennett é técnico nesses assuntos? Não passa de um ex-marinheiro! — Joe diz que Bennett é agora o primeiro homem da Ford. O Sr. Ford confia cegamente nele e só conserva Edsel na companhia como figura de proa. — Isso mostra então que o velho está caducando. Edsel tem mais cabeça do que todos eles juntos. Quero que mandem dar café e roscas àqueles homens. — Não, pai. Vou ter de contrariá-lo neste caso. Acredite que eu sei o que estou fazendo. — Cretino de merda! Se quiser continuar como presidente da companhia, chame aquele patife do Warren agora mesmo e mande dar café àquela gente! O rosto de Junior estava muito pálido e ele disse: —  Não, pai. Loren disse então com voz dura e fria: —  Neste caso, espero o seu pedido de demissão em cima de minha mesa dentro de dez minutos! Deu-lhe as costas e começou a sair do escritório. — Pai — disse Junior, fazendo-o voltar-se —, não vou pedir demissão. — Está despedido, então! — Também não pode fazer isso, pai — disse Junior e havia em sua voz uma nota de amargo triunfo. — Juntamente com as notas que assinou para obter aqueles empréstimos, transferiu o seu controle acionário para um comitê formado pelos bancos até que os empréstimos sejam resgatados. E o comitê de bancos está muito satisfeito com a orientação que venho dando à companhia. Loren o olhou sem ter o que dizer. —  Assim sendo, a menos que tenha trinta milhões de dólares em dinheiro para resgatar os empréstimos, convém ir-se habituando à idéia de que sou eu quem está dirigindo esta companhia. Loren continuou calado. —  Se a idéia não lhe agrada, sugiro que talvez lhe fosse muito agradável voltar para a Europa com sua prostituta francesa. —  É tudo o que você tem para me dizer? — perguntou Loren.  —  Não — disse Júnior, cada vez mais seguro de si mesmo. — Não pretendia levantar desde já essa questão, mas, já que estamos falando com franqueza, podemos enfrentar logo o assunto. "Conseguimos dirigir tudo muito bem durante os três anos em que o senhor esteve ausente. Agora que voltou com uma idéia alucinada de rejuvenescer a indústria de automóveis com a produção de um novo carro barato, devo informar-lhe que o assunto foi submetido à consideração tanto da diretoria quanto dos bancos. Há uma decisão unânime de rejeitar seus planos. Não têm a menor intenção de comprometer mais vinte milhões de dólares numa experiência com essa espécie de mercado quando as vendas da indústria estão chegando neste ano a um máximo de um milhão e meio de carros.     "Agora que temos sob controle a divisão de automóveis, pretendemos eliminar maiores prejuízos nesse particular com a fabricação de carroçarias para a Ford sob o regime de subempreitada. Bennett teve a bondade de nos conceder um contrato de cem mil unidades desde que está tendo problemas com Briggs. Pela primeira vez em dois anos, vamos ter lucro e todos estão muito satisfeitos com isso." —  Você não mudou nada, hein? Quando era garotinho, escondia-se atrás das saias de sua mãe. Agora, se esconde atrás de Harry Bennett. —  Estou apenas fazendo um bom negócio — disse Júnior. — Temos um lucro garantido sem gastar um tostão de nosso dinheiro. — E está entregando também a sua companhia nas mãos de Bennett. Dentro em pouco, ele estará em condições de lhe impor tudo o que quiser, e para impedir qualquer resistência de sua parte bastará ameaçar o cancelamento do contrato. Até você pode ver isso. A única maneira que você tem de continuar vivo é ser independente. Júnior riu. — Creio que perdeu o contato com a realidade, pai. Está vendo aquelas filas lá fora? Há três anos que as vejo crescerem.
Acha que qualquer desses homens pode comprar nossos carros? —  Sinto muito, Júnior — disse Loren, começando a tirar o cinto —, mas você está procedendo como uma criança e terá de ser tratado como tal. Encaminhou-se para Júnior com o cinto na mão. —  Não vai ter coragem de fazer uma coisa dessas!  — exclamou Júnior, horrorizado. —  Não? Então veja — disse Loren, sorrindo, ao mesmo tempo que levantava o braço. —  Não!  Não pode me bater!  Eu sou o presidente da companhia! — gritou Júnior, correndo para a mesa e apertando freneticamente um botão. —  Ainda assim, é meu filho — disse Loren friamente, avançando para a mesa. Nesse momento, a porta de ligação com o outro escritório se abriu e Joe Warren apareceu. —  Pronto, Júnior! Júnior correu para trás dele e gritou, quase alucinadamente: —  Não deixe que ele me bata, Joe! Ele está louco! — Calma, Sr. Hardeman — disse Warren a Loren. — Não sei qual é o problema, mas tenho certeza de que podemos resolver tudo como homens sensatos! Alguma coisa na voz dele fez Loren desconfiar de que ele sabia exatamente qual era o problema. Olhou para a mesa de Júnior e viu que o botão do interfone com o nome de Warren estava ligado. O homem tinha ouvido tudo o que fora dito na sala. Olhou para o outro e disse friamente: —  Não se meta nisso! É uma questão de família!  Prosseguiu, mas de súbito se imobilizou. Warren havia puxado um revólver e dizia: —  E agora? Vamos resolver isso com calma ou não?  Loren olhou para os olhos dos homens. Brilhavam com uma certa expressão de triunfo. Murmurou calmamente, avançando para ele: — Você não vai puxar esse gatilho, Warren!  Do contrário, vai se arrepender pelo resto da vida! — Então não me obrigue a isso, Sr. Hardeman. Fique onde está! Loren entrou em ação quase com mais rapidez do que a vista poderia acompanhar. O cinto dobrado pegou o pulso de Warren, arrancando-lhe o revólver da mão e fazendo a arma cair ruidosamente. Warren se abaixou para apanhar o revólver enquanto Júnior corria gritando para a outra sala. Warren já estava com a mão sobre o revólver quando Loren lhe deu um tremendo pontapé no braço esticado. O homem deu um grito de dor, sentindo o braço quebrar-se como um palito de fósforo. Olhou para Loren com uma espécie de horror petrificado. —  Isso é para você aprender a não se meter em assuntos de família! — disse Loren calmamente. Warren viu o pé de Loren aproximar-se de sua cabeça, mas nada pôde fazer para evitá-lo. O mundo explodiu num terrível fogo de artifício de dor. Depois, a escuridão caiu. Loren olhou para o homem estendido aos seus pés. A cabeça de Warren estava encostada ao canto da mesa de Júnior e o sangue lhe escorria do nariz e da boca. Dirigiu-se então para a porta de comunicação com a outra sala. Estava fechada e trancada. Recuou um passo e deu um pontapé. A porta se abriu, meio solta das dobradiças, e ele a transpôs. A outra sala estava vazia. A porta escancarada do outro lado mostrava que Júnior tinha fugido. Loren voltou ao escritório de Júnior. Warren gemia e tentava sentar-se. Loren atravessou o escritório até a porta e abriu-a. As duas secretárias, que tinham os ouvidos colados à parede, quase caíram para trás. — Arrumem tudo — disse ele friamente e passou por elas.
 
Capítulo 7
Subiu as escadas para o seu escritório no terceiro andar e entrou por sua porta particular. A sala estava bem escura à luz incerta da manhã. Apertou um interruptor na parede e as luzes se acenderam. Foi para sua mesa e apertou o botão do interfone. Ouviu a voz de sua secretária. —  Pronto, Sr. Hardeman! —  Quero que dois caminhões de cantina vão imediatamente para o portão 3 levando café e roscas para distribuir entre os homens que estão lá. — Está bem, Sr. Hardeman. — Depois, mande Coburn e Edgerton falarem comigo. —  Está bem, Sr. Hardeman. Desligou o interfone e foi até a janela. Sob a chuva, os homens amontoados diante do portão pareciam animais em busca de abrigo. Ficou ali por um momento a olhá-los e, então, voltou-se para a sua mesa e sentou-se. Sentiu as têmporas doerem e começarem a latejar. Gemeu intimamente. Era só o que lhe faltava naquele momento, uma enxaqueca. Os médicos eram incompetentes. Tinham-lhe dito que nada podiam fazer para curá-lo daquelas incríveis dores de cabeça. Só lhe recomendavam que evitasse aborrecer-se e tomasse aspirina. Tornou a ligar o interfone e pediu: —  Traga-me três comprimidos de aspirina e uma xícara de café bem quente. —  Neste momento, Sr. Hardeman. Recostou-se na cadeira. A aspirina atenuaria a dor de cabeça e o médico na Suíça tinha dito que a cafeína do café faria a aspirina agir mais depressa. A porta se abriu e uma moça entrou. Trazia uma bandeja de prata com uma xícara e um bule. Depositou-a na mesa diante dele. Havia creme e açúcar em pequenos vasos de prata. Havia também um vidro de aspirina e um copo de água. A moça fez cair na palma da mão três comprimidos de aspirina. Ele a olhou enquanto recebia os comprimidos. —  Você é nova aqui, não é? —  Sim, Sr. Hardeman — respondeu ela, passando-lhe às mãos o copo de água. Ele tomou os comprimidos com um gole de água e devolveu o copo, perguntando: —  Como é seu nome? —  Melanie Walker — disse ela, pegando o bule de café. — Simples? —  Sim, sem creme e sem açúcar.  Provou o café. —  Está bom? —  Muito bom. Que foi que aconteceu à moça que estava aqui na semana passada? —  Mary Harriman? —  Nunca soube o nome dela. —  Voltou para o serviço regular na Seção de Pessoal. —  Ah, sim — disse ele, tomando outro gole de café. — E você, de que seção é? —  Pessoal. —  Tem também um serviço regular lá? —  Tenho, Sr. Hardeman. Sou da Mecanografia. Substituímos qualquer moça ausente. —  Quanto lhe pagam por isso? —  Vinte e dois dólares e cinqüenta por semana.  Ele lhe entregou a xícara de café vazia e disse:  — Muito obrigado. —  De nada, Sr. Hardeman — disse ela, pegando a bandeja e dirigindo-se para a porta. —  Quer pedir ao Sr. Duncan que venha também falar comigo? —  Pois não, Sr. Hardeman. Viu-a sair e fechar a porta. Warren tinha organizado tudo. A Mecanografia era um núcleo perfeito para uma rede de espionagem que tomava conhecimento de tudo o que todos estavam fazendo. Duncan foi o primeiro a chegar. —  Sente-se, escocês — disse Loren. — Estou esperando Coburn e Edgerton. Mal Duncan se sentou, os outros dois chegaram. Loren convidou-os a sentarem-se e olhou-os em silêncio. Abriu a cigarreira em cima da mesa e tirou um cigarro. Ouvia-se lá fora o som abafado de uma sirene de ambulância. O silêncio se tornou desagradável. Os três homens se entreolharam, inquietos, e então olharam para Loren, que fumava calmamente. O silvo da sirene aumentou e então parou de súbito. Loren foi até a janela. A ambulância estava parada diante da porta principal do edifício e dela saíram dois homens vestidos de branco levando uma maça. Voltou então para a mesa e disse: —  Está bem. Quero que me digam que diabo está acontecendo aqui dentro. —  Não sei o que está querendo dizer — respondeu prontamente Coburn. —  Não me venha com sua conversa mole de advogado! Você sabe muito bem o que eu quero dizer, Ted! Todos ficaram calados. —  De que é que vocês têm medo? — perguntou Loren. — Vocês todos me conhecem há muitos anos e nunca tiveram receio de me dizer o que pensavam. Isto aqui não é uma prisão! — Não compreende, Sr. Hardeman — disse Edgerton, um homem grande, quase do tamanho de Loren, que não parecia absolutamente o contabilista que era. — Não compreendo mesmo, Walt — disse Loren. — E foi por isso mesmo que pedi que viessem até aqui. Houve um momento de silêncio enquanto os três homens trocavam de novo olhares inquietos. Por fim, Coburn levantouse. Deu a volta pela mesa de Loren e se curvou sobre o interfone. Conferiu todos os botões, certificando-se de que estavam desligados. — Com que é que está preocupado? — perguntou Loren. — Ninguém nos pode ouvir. Coburn não respondeu. Abaixou-se e tirou da tomada o fio do interfone. —  Não podemos facilitar — disse ele quando se levantou. Voltou-se para Loren e disse: —Agora, mande sua secretária sair do escritório para fazer qualquer coisa. —  Por que isso? Parece uma boa moça. —  É uma boa moça, sim. Boa demais — disse Coburn. — Mas é também uma das espiãs de Joe Warren. Sem replicar, Loren foi até a porta da secretária e abriu-a.  A moça olhou para ele. —  Alguma coisa, Sr. Hardeman? —  Vá até a cantina e tome café. Só venha de lá quando eu telefonar chamando. —  Não posso fazer isso, Sr. Hardeman. Tenho ordem de não sair daqui sem ter quem me substitua. —  Estou dando uma ordem nova. —  E quem é que vai atender os telefones? —  Eu mesmo atenderei. Ela continuou sentada e por fim disse: —  Vou perder meu emprego. . . —  Já perdeu! E só poderá segurá-lo se tirar o rabo dessa cadeira o mais depressa possível. Ela o olhou um momento e então pegou a bolsa e saiu. A voz de Coburn fez-se ouvir por trás dele. —  Tranque aquela porta enquanto eu vou trancar a sua porta particular, Loren trancou a porta e voltou para o seu escritório. Sentou-se à sua mesa e disse: —  Agora, quero explicações e bem rápidas! —  Quer explicações rápidas, Sr. Hardeman? — exclamou Coburn.  — Pois  vou dá-las  em  duas  palavras  apenas:   Joe Warren. Não é possível serem mais rápidas. Loren levantou-se e foi até a janela. A ambulância ainda estava parada à porta. Os atendentes saíram levando um homem na maca. Loren fez um gesto chamando os homens que estavam na sala com ele. Chegaram todos à janela e ele apontou a maca que estava-sendo embarcada na ambulância.  — Quem vai ali é justamente o tal Joe Warren.  Um atendente correu para o volante, a sirene voltou a tocar e a ambulância saiu pelo portão. Loren voltou para a mesa e sentou-se. —  Agora talvez possamos voltar ao nosso trabalho de fabricar automóveis. —  Não vai ser muito fácil — disse Edgerton. — Warren e seu filho têm nas mãos a diretoria e o comitê de bancos. — Deixe-os comigo — disse Loren. — Estamos aqui reunidos para falar da fabricação de um carro barato para competir com o Ford, o Chevy e o novo Plymouth de Walter Chrysler. — Não temos o dinheiro necessário para o reaparelhamento — disse Edgerton. — Haverá necessidade de uns quinze milhões de dólares e os bancos não nos darão isso. —  Quanto é que temos? —  Cerca de um milhão e meio em dinheiro e mais três milhões em títulos a vencer. —  Não será possível descontar esses títulos? —  Com vinte por cento de comissão. Loren voltou-se para Duncan, que tinha estado em silêncio até então, e disse: —  Pode botar um novo carro na linha de produção com quatro milhões de dólares? —  Impossível — respondeu Duncan. —  Nada é impossível — disse Loren. — Você ainda tem o material do Loren II? Duncan assentiu. —  Não poderíamos reduzir o carro em cerca de meio metro, com duas portas em vez de quatro? O reaparelhamento seria ainda muito dispendioso? Duncan estava pensativo. — Não deve ser. Mas há outro problema. Teríamos de projetar para o carro um motor inteiramente novo.
 
— Por quê? Não poderíamos adaptar o pequeno Sundancer de noventa cavalos? Duncan sorriu. —  Acho que sim. Isso reduziria também nosso inventário. Produzimos no ano passado quase cinqüenta mil unidades desse motor a mais. —  Está melhorando — disse Loren. — Vá para seu escritório e comece a trabalhar nisso. Entenda-se a respeito do custo com Walt. Quero os cálculos prontos dentro de dois dias. — Voltou-se então para o advogado. — Agora, quero alguns esclarecimentos seus, Ted. Há alguma coisa que me impeça de fazer isso? Coburn pensou por um momento e disse: —  Não, desde que alguém não crie dificuldades. —  E se alguém criar? —  Só há duas pessoas que podem fazer isso. Seu filho e talvez Warren. Não tenho certeza, mas ele é vice-presidente executivo, e os poderes dele talvez se estendam a essa área. — E a diretoria e os bancos não podem fazer alguma coisa ? —  Podem, mas só na próxima reunião, que só se realizará daqui a quase um mês. É claro que seu filho pode convocar a qualquer momento uma reunião extraordinária. —  Compreendo. . . —  Mais uma coisa — disse Coburn. — Tome cuidado para não ditar coisa alguma sobre os seus planos. Todas as datilógrafas têm ordem de tirar cópia a mais de tudo o que batem. É assim que Warren fica a par de tudo o que acontece. —  Meu filho sabe disso também? —  Não sei. Nenhum de nós pode falar com ele a não ser por intermédio de Warren. Eu, por exemplo, há mais de um ano que não o vejo senão nas reuniões da diretoria. —  E você, Edgerton? —  A mesma coisa. —  Que é que me diz, escocês? —  A última vez que falei com ele foi quando me deu ordem de cessar a produção do Loren II. Isso aconteceu há três anos. Loren ficou em silêncio por um momento e depois se levantou. —  Muito bem. Vão trabalhar. Já iam chegando à porta quando Loren os fez parar. — Algum de vocês pode ligar de novo essa coisa? — perguntou ele sorridente e olhando para o interfone. — Posso precisar dele para algum fim legítimo.
 
Capítulo 8
O telefone começou a tocar no instante em que ela saía  da cozinha depois de conversar com a cozinheira sobre o almoço das crianças. Atendeu na sala de estar. —  Alô. Uma voz conhecida lhe ressoou aos ouvidos. —  Sally? Ela se sentou na cadeira mais próxima. —  Sim. —  É Loren quem fala. —  Eu sei, como vai? —  Muito bem — respondeu ele. Houve uma pausa constrangida. — Tenho tido muita vontade de ir aí ver você e as crianças, mas ando terrivelmente ocupado. —  Compreendo — disse ela. —  Júnior está em casa? —  Não. Não está no escritório? —  Não. . . —  Saiu então cedo, como de costume. Ou o carro teve algum desarranjo no caminho. —  Não — disse ele com alguma hesitação na voz. — Ele estava no escritório, mas tivemos uma discussão e ele saiu. Quero falar com ele. Tem alguma idéia do lugar onde eu poderia encontrá-lo? —  Às vezes, ele vai ao Clube Atlético para fazer sauna massagem. —  Obrigado. Vou ver se o encontro lá. Adeus. —  Loren? —  Sim? —  Não vamos vê-lo? Loren III já está um rapazinho e você ainda não conhece sua neta. Dominou-se a tempo para não dizer "filha". —  Passarei por aí ainda nesta semana. — Hesitou um momento e acrescentou: — Você está bem? —  Estou. —  Se Júnior chegar em casa, diga-lhe que me telefone. —  Direi, sim. —  Adeus. —  Ainda o amo, Loren — disse ela rapidamente. Mas o estalo na linha mostrou que ele já havia desligado o telefone e não a ouvira. Ela desligou o telefone e continuou sentada. Sentia ainda o coração bater e pensou que talvez nunca se livrasse do sentimento que tinha por ele. A porta da rua se abriu de repente e Júnior entrou impetuosamente. Viu-a sentada na sala e se aproximou dela. Cheia ainda de seus pensamentos, ela disse: —  Seu pai acaba de telefonar. Quer falar com você. —  Ele está louco! Foi então que ela viu como ele estava abalado, com o rosto muito pálido. —  Que foi que aconteceu? —  Ele tentou matar-me! Joe Warren está no hospital com o braço quebrado e suspeita de fraturas no crânio! Está louco, fique sabendo! — Por que foi isso? —  Por nada. Eu só disse a ele que não poderia fabricar um novo carro e ele perdeu a cabeça. Avançou para mim e, se não fosse o pobre Joe, quem estaria agora no hospital seria eu e não ele! —  Não estou entendendo nada. Tinha de haver um motivo. Ele me pareceu perfeitamente calmo quando falou comigo ainda agora pelo telefone. Ele olhou para ela e disse com voz alterada: —  Suba e vá arrumar as malas. Vamos ficar longe daqui durante algum tempo e levar as crianças. —  Acalme-se — disse ela, levantando-se. — Primeiro, vou lhe preparar um drinque. —  Não quero drinque nenhum!  — disse ele, irritadamente. — Faça o que estou mandando! Vamos para o Canadá, para a casa de campo que eu tenho em Ontário. Ela o olhou firmemente e disse: —  Não vou levar as crianças para lugar algum! Só depois que souber de que é que você está fugindo! —  Já sei! Está do lado dele! —  Não estou do lado de ninguém. Tenho dois filhos pequenos e não vou andar com eles de um lado para outro como se fossem bagagens! — Entreguei tudo aos meus advogados e eles me aconselharam a ficar ausente por algum tempo. Ele não pode tomar a companhia de mim! —  Isso não seria possível — exclamou ela. — Afinal de contas, a companhia é dele e não sua! —  Não me venha dizer de quem é a companhia! — disse ele, quase gritando. — O principal diretor executivo sou eu! Ela não disse nada. —  Vou metê-lo na cadeia! — exclamou Júnior. — Joe já apresentou queixa-crime por agressão e tentativa de morte e agora mesmo a polícia deve andar à procura dele. Sou a principal testemunha! —  Joe não podia deixar de ter feito alguma coisa para que ele reagisse assim. Não acredito que seu pai fosse. . . —  Eu sei que você não acredita! Ainda está apaixonada por ele! Ela achou melhor ficar calada. —  Escute aqui. A única coisa que Joe fez quando meu pai avançou para mim foi ficar na frente para me proteger! Mas não adiantou nada! Nem o revólver de Joe fez meu pai parar. . .    —  Ah! Joe estava armado? — perguntou ela, admirada. —  Sim, e que é que tem isso? Estava procurando apenas proteger-me! —  Vai dizer isso em seu depoimento?  Júnior não respondeu. —  É por isso que seus advogados querem que você saia daqui? Para não ter de responder a certas perguntas? —  Que diferença faz isso? Já é tempo de alguém mostrar a meu pai que ele não é o dono do mundo! —  E você deixou aquele bandido barato puxar um revólver para seu pai? Você é mesmo um doente — disse ela, com uma voz repassada de ódio. —  Você está é com ciúmes! — exclamou ele de repente. — Você sempre teve ciúmes de minha amizade com Joe desde o momento em que eu o conheci! Tem ciúmes dele porque ele é um homem de verdade, é isso aí! —  Ele não passa de um gângster de baixa categoria que não sabe senão intimidar e ameaçar quem é mais fraco do que ele! Você é que, se fosse um homem de verdade, não precisaria de amigos dessa espécie!
Ele avançou para ela com a mão levantada. —  Não faça isso!  — disse ela, ao mesmo tempo que pegava o telefone. — E, se quiser ir a algum lugar, suba logo e vá arrumar suas malas porque eu vou telefonar para seu pai e dizer que você está aqui. Ele ficou parado um momento enquanto ela começava a discar. Dirigiu-se então para a porta, mas parou de repente, todo encurvado e com as mãos no estômago. —  Vou vomitar! — disse ele numa voz sumida e assustada. Ela largou o telefone e foi para junto dele. Ele começou a ter engulhos secos. Ela passou o braço pelos ombros dele e Júnior se apoiou nela, deixando que ela o levasse para o banheiro de hóspedes, perto do bali. Começou a vomitar no vaso. — Você tem de me ajudar — murmurou fracamente. —  E estou ajudando. Será que não vê que, destruindo seu pai, você está se destruindo a si mesmo? Se você não fosse filho dele, acha que alguém iria se importar de que você vivesse ou morresse? — Tenho de ir-me embora — disse ele, torcendo as mãos. — Não sei o que vai ser de mim se aconteceu alguma coisa a Joe! —  Se quiser ir, pode ir — disse ela, calmamente. — Mas se for, será sem mim e sem as crianças. E, quando voltar, não estaremos mais aqui.
 
A mansão Hardeman parecia estranhamente sombria e deserta quando ela entrou de carro pela comprida alameda e foi parar diante da porta. Até a luz da entrada estava apagada. Desligou o motor e saltou do carro. O luar lançava sombras pálidas quando ela subiu os degraus da entrada e tocou a campainha. Ouviu o som do fundo da casa, ecoando no silêncio da noite. Esperou calmamente. Ao fim de algum tempo, tornou a tocar a campainha. Não houve ainda resposta alguma. Tirou um cigarro da bolsa e acendeu-o. O fósforo brilhou um instante em suas mãos, mostrando-lhe o rosto no vidro da porta, fechado pelo lado de dentro por uma cortina. Então, o fósforo se apagou e só a brasa do cigarro se refletiu no vidro. Ela desceu os degraus da entrada e olhou para a casa. Estava em silêncio e às escuras, sem luz em qualquer das janelas da frente. Caminhou pelos lados da casa, esmagando com os saltos altos o cascalho da alameda. Era o único som que se ouvia dentro da noite. Dobrou o canto da casa e viu uma luz brilhante numa janela do segundo andar. Ela sabia onde era que a luz estava acesa. Era uma saleta ao lado do quarto de Loren, onde ele costumava tomar café de manhã e ler os jornais e a correspondência. Hesitou um momento, olhando para cima. A luz mostrava que ele estava em casa, mas essa certeza provocou nela uma estranha relutância ao vê-lo. Por fim, abaixou-se, apanhou um punhado de cascalho e jogou-o na janela. Um momento depois, as portas envidraçadas do terraço se abriram e ele apareceu, silhuetado pela luz do quarto às suas costas. Ficou ali em silêncio, olhando para fora. Do ângulo em que ela estava, parecia ainda mais alto e maior. Compreendeu afinal que ele não podia vê-la porque ela estava nas sombras. Sentiu o coração bater descompassadamen-te no peito e teve vontade de esconder-se e fugir. Que poderia dizer para explicar a sua presença ali? A voz dele ecoou dentro da noite. —  Quem é? De algum modo, a energia que havia na voz dele a fez mover-se e ela foi para um lugar onde o luar lhe bateu no rosto. De repente, ela riu, dominada por um leve sentimento de ridículo, e murmurou: "Romeu! Por que és tu, Romeu?" Ele ficou em silêncio um momento olhando para ela e então riu. —  Espere aí que eu já vou descer! Recuou um ou dois passos e então pulou a balaustrada do terraço. —  Loren! — exclamou ela, cheia de medo. Ele tocou o chão, baixando o corpo até os joelhos e amortecendo a queda com as mãos. Já estava se levantando no momento em que ela chegou junto dele. Ele riu para ela, limpando as mãos nas calças como um garoto, e perguntou: —  Pensa que é só Douglas Fairbanks que pode fazer essas coisas? — Você é louco! — exclamou ela. — Poderia ter morrido!  Ele olhou para a altura da balaustrada, e disse rindo: —  Sabe de uma coisa? Você tem toda a razão! Mas sempre tive vontade de fazer isso desde o dia em que esta casa ficou pronta. Só hoje é que tive um pretexto. 
Começou a esfregar as mãos e ela disse: —  Deixe ver. — Tomou-lhe as mãos, que estavam arranhadas e sujas. — Você se machucou! —  Não é nada — disse ele, segurando-lhe o braço e levando-a para a frente da casa. — Vamos entrar. —  Como?  Toquei  a campainha duas vezes e ninguém veio abrir. —  Os empregados não voltaram ainda. E o mordomo saiu logo depois do jantar. Subiram os degraus da entrada. —  E como é que vamos entrar? —  É fácil — disse ele. Rodou a maçaneta e a porta se abriu. — Não estava trancada. Entraram na casa e ele acendeu as luzes. —  Deixe-me ver suas mãos de novo — disse ela. Loren estendeu as mãos com as palmas para cima. Havia traços de sangue entre os arranhões. —  Convém lavar logo essas mãos. E passe alguma coisa nelas para não infeccionarem. —  Está bem. Tenho água oxigenada no banheiro. Ela subiu a escada com ele até o banheiro. Abriu a torneira da pia e disse: — Deixe-me tratar disso para você. Ele estendeu as mãos sob a água e ela as lavou cuidadosamente com sabonete. Depois, enxugou-as e limpou-as ainda mais com uma toalha. —  Onde está a água oxigenada? Ele apontou o armário dos remédios e ela apanhou o vidro. — Estenda as mãos na pia. Loren estendeu as mãos e ela derramou água oxigenada. Ele contraiu o rosto de dor e tirou as mãos.    —  Está ardendo. . . —  Deixe de ser criança. Agüente firme. Esvaziou então o vidro e o líquido borbulhou e ferveu sobre as mãos dele. Ela tomou então uma toalha limpa e bateulhe as mãos delicadamente até secá-las. —  Não está melhor assim? —  Estou, sim — disse ele, olhando-a. Ela sentiu o rosto vermelho e baixou os olhos. —  Eu tinha de vir vê-lo. . . —  Venha — disse ele. — Vamos tomar um drinque. Desceram para a biblioteca e ele abriu  um armário de onde tirou uma garrafa de uísque canadense e dois cálices.
—  Posso ir buscar gelo, se quiser. Ela sacudiu a cabeça e ele serviu o uísque, dando um cálice a ela. —  Saúde! Ela tomou um gole e o uísque desceu queimando-lhe a garganta. Ele bebeu o seu cálice e tornou a enchê-lo, dizendo: —  Sente-se. Ela se sentou no sofá de couro e ajeitou a saia sobre os joelhos enquanto ele se sentava numa cadeira em frente. —  Júnior foi para a casa de campo em Ontário.  Ele nada disse. —  Neguei-me a acompanhá-lo.  Ele continuou calado. —  Vou separar-me dele. —  E as crianças? —  Vou levá-las comigo. —  Para onde é que vai? —  Foi coisa em que ainda não pensei. Vou ver. Ele tomou o uísque e tornou a encher o cálice. Voltou-se então para ela e disse: —  Sinto muito. —  Tinha de acontecer mais cedo ou mais tarde. —  Talvez. Mas eu não queria que acontecesse por minha causa. —  Eu sei, Loren. Mas não foi essa a razão. Creio que há muito tempo isso está resolvido em meu espírito. E, do momento em que ele conheceu Joe Warren em diante, as coisas foram de mal a pior. —  Joe Warren. . .  — murmurou ele amargamente. — Para todo o lugar que me volte, ouço esse nome. —  Júnior me disse que Warren apresentou queixa-crime contra você e que o  escritório do  xerife ia  procurá-lo  para prendê-lo. —  Já soube disso. Mas tenho bons amigos na cidade. Vão botar uma pedra em cima disso. —  Felizmente — disse ela. — Mas não pense que o caso vai ficar nisso. Joe não vale nada e não vai desistir. Faz de Júnior o que quer. —  Está aí uma  coisa  que  eu  não  compreendo,  Sally. Como é que Júnior pode se deixar dominar assim por ele? —  Então não sabe? — perguntou ela, encarando-o bem nos olhos.
—  Não. —  Joe Warren é o homem de Júnior. —  O homem de Júnior? De repente, a ingenuidade daquele gigante, a cegueira em que vivia a respeito do filho se evidenciaram para ela e comoveram-na. —  Pensei que soubesse — disse ela. — Todos em Detroit sabem. Desde o dia em que se conheceram na sauna do Clube Atlético. O choque da revelação era visível em Loren. A mão começou a tremer, derramando o uísque. Deixou o copo numa mesa ao lado. Ela podia ver o inverno cinzento da velhice vincar-lhe o rosto. De repente, ele levou as mãos ao rosto e soluços violentos sacudiram-lhe o corpo. Ela ficou parada um instante. Depois, ajoelhou-se diante da cadeira dele. Fez-lhe a cabeça repousar no ombro dela e abraçou-o com força, murmurando: —  Desculpe, desculpe. ..
 
Capítulo 9
Passavam poucos minutos das sete horas da noite quando Melanie Walker saltou do bonde e começou a percorrer as quatro ruas que ainda faltavam para chegar a casa. Tinha feito frio durante o dia, depois que a chuva da manhã passara, e, naquele momento, o vento da noite fazia-a tremer sob o casaco fino. Apertou-o em torno do corpo ao dobrar a esquina e seguiu pela rua. —  Veio tarde — disse a mãe logo que ela chegou à porta. — Já jantamos. Terá de se arranjar com o que sobrou. —  Não faz mal — disse Melanie. — Não estou mesmo com fome. —  Pensamos. . . — começou a dizer a mãe. —  Silêncio! — gritou o pai da cadeira em que estava sentado diante do rádio num canto da cozinha. — Não vêem que estou escutando rádio?
Melanie tirou o casaco e foi para o seu quarto. Pendurouo num cabide atrás da porta. Depois, tirou o vestido e a combinação e estendeu-os em cima da cama. Depois do jantar, passaria tudo a ferro para poder usar na manhã seguinte. Vestiu um robe de algodão e, amarrando o cinto, voltou para a cozinha. A mãe serviu-lhe num prato alguns pedaços de carne fria com um pouco de alface e de rodelas de tomate, ao lado de um prato com pão e manteiga. —  Não há patê, nem mortadela?  A mãe sacudiu a cabeça. —  Acabou tudo. Você devia ter chegado na hora para o jantar. —  Tive de trabalhar até tarde — disse Melanie. — Fiquei hoje no escritório do Sr. Hardeman. —  Por que não telefonou? — Não tive tempo. Além disso, sabe muito bem que o Sr. McManus não gosta de ser incomodado. MçManus era o vizinho do andar de baixo. Era o único inquilino da casa que tinha telefone. Trabalhava na polícia local. — Até que nós não o incomodamos muito. O pai deu uma gargalhada com alguma coisa que ouvira no rádio. Ainda rindo, levantou-se, foi até a geladeira e tirou uma garrafa de cerveja. Abriu-a com um gesto fácil, produto de longa prática, e levou a garrafa à boca antes que a espuma se derramasse. Tomou um grande gole, manteve a garrafa diante da barriga e começou a comentar o programa que acabara de ouvir. Nenhuma das mulheres riu. Ele as olhou por um instante e fixou-se em Melanie, que estava passando manteiga no pão. — Por que chegou tão tarde? — Tive de trabalhar até tarde no escritório do Sr. Hardeman. O pai sorriu. — Bem, pelo menos, com ele trabalhou descansada, sem que ele tentasse passar a mão em você. —  Não foi com esse, não. Foi com o pai dele. —  Ah, Número 1! Já está de volta? —  Já, sim. —  Seu namorado não vai gostar disso. —  Quantas vezes tenho de lhe dizer que o Sr. Warren não é meu namorado? Convidou-me uma vez para jantar com ele, mas isso não quer dizer nada.
—  Está bem, está bem. . . Não está mais aqui quem falou. Mas, ainda assim, ele não vai gostar disso. Ele domina Número 2. Mas o velho é muito diferente. Aquele ninguém passa para trás. Melanie empurrou o prato. —  Chega, que eu não estou mais com fome. Pode me dar um pouco de café, mamãe? —  Você não quer dois ovos? —  Não, mamãe, obrigada. Só café. — Voltou-se para o pai e perguntou: — Saiu hoje para procurar emprego? —  Para que perder tempo? Não há nada mesmo. . . —  Havia vaga para seis maquinistas lá na fábrica hoje. Apareceram mais de oitocentos homens. —  E você queria que eu fosse entrar na fila no meio de sujeitos do interior, polacos e negros? Não se esqueça de que eu fui capataz na Chrysler. —  Pode ser, mas no momento você não é nada — disse a mãe. — Já está desempregado há três anos. Se Melanie não estivesse trabalhando, a gente estaria era passando fome no meio da rua. —  Não se meta em minha vida, ouviu? — replicou o pai iradamente, voltando-se então para Meíanie: — Escute, seu namorado não me prometeu a primeira vaga que aparecesse? Melanie fez um gesto afirmativo. —  Mas foi uma vaga de capataz — disse a mãe. — Nenhuma das fábricas está empregando capatazes. Você vai ficar parado a vida toda esperando uma vaga de capataz? — Já lhe disse que não se meta em minha vida! Que é que você quer que eu faça? Que passe de cavalo a burro? — Quero apenas que você arranje emprego — disse a mãe, obstinadamente. —  Fique descansada que eu vou conseguir um emprego. Basta nos livrarmos de todos esses estrangeiros e negros que vieram para cá depois da guerra na ilusão de que podiam ganhar dinheiro sem fazer força. —  E não pense que vão sair daqui — disse a mãe. — A guerra já acabou há quinze anos e ainda não saíram. —  Não se incomode, que vamos dar um jeito neles. Ninguém pode botar os americanos de verdade para trás. — Ouviu-se então uma música no rádio e ele voltou para sua cadeira. — Vejam agora se falam mais baixo. Está na hora de meu programa favorito.
—  Há água quente para eu tomar um banho? — perguntou Melanie. — Estou tão cansada que não poderei dormir sem tomar um banho. Já ia entrar no banho quando a mãe bateu na porta do banheiro. —  Telefone para você do Sr. Warren, lá embaixo, na casa de McManus. —  Vou já — disse ela, vestindo o robe. Desceu as escadas. A porta dos McManus estava entreaberta. Bateu antes de entrar. O dono da casa estava sentado diante do rádio na mesma posição do pai no andar de cima. A Sra. McManus chegou à porta. —  Desculpe incomodá-los — disse Melanie. —  Não tem importância. Melanie entrou na saleta entre a cozinha e o quarto. O telefone estava em cima de uma mesinha. —  Alô? — disse ela. —  Melanie? — perguntou a voz conhecida. —  Sou eu. —  Quero que venha aqui agora mesmo. Estou no Hospital St. Joseph. —  Eu sei — disse ela, que tinha ouvido todos os boatos que circulavam pela fábrica. — Está bem? —  Otimamente. Mas os médicos são teimosos e não querem me deixar sair. Acham que eu tenho de ficar em observação. —  Talvez seja bom você descansar. . . —  Quero ver você. —  Ia tomar banho agora mesmo. Além disso, vou levar quase duas horas para chegar aí de ônibus. —  Vou mandar um carro buscá-la. Desça e esteja diante da porta de sua casa daqui a meia hora. O telefone foi então abruptamente desligado e ela o colocou no gancho. Voltou à cozinha e disse à dona da casa: —  Muito obrigada. McManus voltou a cabeça e olhou para ela. Um certo brilho nos seus olhos de polícia mostrou a Melanie que ele sabia que ela estava nua por baixo do robe. Inconscientemente, apertou o robe de encontro ao peito. —  Seu pai já está trabalhando? — perguntou ele. —  Ainda não, Sr. McManus — respondeu ela, encaminhando-se para a porta.
—  A situação está muito ruim — disse ele com sua voz pesada. — Ninguém sabe o que vai acontecer. Quase chegando à porta, ela disse: —  Muito obrigada por ter-me deixado falar no seu telefone, Sr. McManus. —  Não há de quê. Você não abusa como outras pessoas que eu conheço. —  Boa noite — disse ela, saindo e fechando a porta.  Meia hora depois, saiu do quarto, vestida. A mãe olhou-a, surpresa. —  Aonde é que vai a estas horas da noite? São quase nove horas. —  Vou ver o Sr. Warren. Está no Hospital St. Joseph. —  Que foi que houve com ele? — perguntou o pai, voltando-se do rádio. —  Sofreu um acidente. Diz que não é nada de grave. —  Você vai levar quase duas horas para chegar lá a estas horas da noite — disse a mãe. — É perigoso para uma moça sair sozinha neste bairro, principalmente agora que há negros morando por aqui. —  Ele vai mandar-me buscar de carro.  O pai levantou-se. —  Deve então estar com muita vontade de ver você. Que é que ele quer? —  Não sei. Mas ele é meu chefe. Deve ser alguma ordem para o escritório. —  Eu sei quais são as ordens — disse o pai, rindo. —  Não sabe pensar em outra coisa senão em sujeira? Conheço minha Melanie e sei que ela é uma boa moça. —  Voltarei logo que puder — disse Melanie, saindo. O pai chegou à porta enquanto ela descia as escadas e disse: —  Não se esqueça de lembrá-lo da promessa que ele fez a seu pai.
 
Ele estava sentado na cama com o braço direito na tipóia, a cabeça envolta em gaze e vários curativos no lado direito do rosto. Foi falando logo que ela entrou no quarto. — Soube do pessoal pelo telefone que não receberam de você hoje as cópias de costume. —  Não houve cópias — disse ela. — O Sr. Hardeman não me ditou coisa alguma.
—  É muito estranho. Ele esteve lá três dias na semana passada e não fez outra coisa senão escrever memorandos. —  Não houve nada hoje. Dizem na fábrica que o Sr. Hardeman lhe deu uma surra. Que foi que houve? —  Tropecei num tapete e caí batendo com a cabeça na quina da mesa. Foi só isso. . . Ela o olhou pensativamente. Se tudo tinha acontecido no escritório de Número 2, como se dizia, era melhor que ele inventasse outra história, pois todo mundo sabia que no escritório de Hardeman Júnior não havia tapetes. —  Você também não mandou para a Seção de Pessoal a sua lista de telefonemas. —  O Sr. Hardeman, no fim do dia, tomou a lista de minha mão. E não foi só isso. Deu todos os telefonemas para fora pelo telefone direto. Não passaram por minha mesa. —  E as conferências? Quem foi falar com ele? —  Logo cedo de manhã, ele chamou o Sr. Coburn, o Sr. Edgerton e o Sr. Duncan. —  Que foi que conversaram?     —  Não sei. Ele me mandou para a cantina. Quando me chamou de volta, os três não estavam mais lá. —  Quem mais foi falar com ele? Ela pensou um momento e respondeu: —  Ainda de manhã, o Sr. Williams, das Vendas, e o Sr. Conrad, das Compras. —  Que foi que disseram? —  Não sei. —  Escute aqui, não recebeu ordem de deixar seu interfone ligado sempre que houvesse uma reunião no escritório dele para que você pudesse ouvir tudo e tomar notas? —  Fiz isso mesmo, mas não ouvi nada. Ele tirava o interfone da tomada sempre que entrava alguém no escritório. —  Alguém mais foi falar com ele? —  À tarde, ninguém da fábrica. —  Alguém de fora? —  Sim, um tal Frank Perino. —  Ah, eu sei o que foi que disseram — disse Warren. — Perino é contrabandista de bebidas. Número 1 deve gostar do uísque dele. —  Não foi nada disso.  Quem esteve lá foi o filho de Perino, Frank, que é médico e foi pedir ao Sr. Hardeman que lhe arranjasse uma colocação num hospital de Detroit. Parece que ele estava encontrando dificuldades por causa do pai. O Sr. Hardeman resolveu o caso. —  Como é que soube disso? —  O Sr. Hardeman me pediu que fosse lhe levar café e aspirina. Eu estive todo o tempo ali com o Sr. Perino. Nunca vi ninguém tomar aspirina como o Sr. Hardeman! Deve ter tomado no mínimo uns doze comprimidos hoje. —  Está bem. Fique de olhos e ouvidos bem abertos. Descubra o mais que puder e me telefone todas as noites. —  Fique tranqüilo. Quanto tempo acha que ainda vai ficar aqui? — Os médicos dizem que vão me deixar sair daqui a dois ou três dias. —  Sinto muito o que lhe aconteceu — disse ela. —  Escute aqui, sabe por que foi que escolhi você para trabalhar no escritório de Número 1? Ela sacudiu a cabeça. —  Foi porque você é uma mulher alta e ele gosta de mulheres altas. —  Não compreendo. . . — Não seja burra. A reputação do velho é conhecida. Mais cedo ou mais tarde, ele vai dar em cima de você. —  E que é que eu faço? —  Finja que está topando. Ganhe a confiança dele. Depois disso, ele estará em nossas mãos. —  E se eu não topar? —  Há uma porção de garotas que gostariam de tomar seu lugar. Ela baixou os olhos e ficou calada. Warren riu e mudou o tom de voz. —  Você disse que ia tomar banho. Como estava vestida quando falou comigo pelo telefone? Ela não levantou a vista, lembrando-se do brilho no olhar de McManus. —  Estava com um robe. —  Alguma coisa por baixo? —  Não. —  Chegue aqui para perto da cama. Ela levantou a cabeça e olhou para ele e, depois, para o homem que a tinha ido buscar de carro e que estava encostado à porta a olhá-los ímpassivelmente. —  Não ligue a Mike. Ele é meu guarda-costas e na verdade não vê nada. Ela não se moveu. —  Mandei que viesse até aqui! Ela se aproximou com relutância da cama. Ele lhe pegou a mão e a colocou debaixo do cobertor entre as suas pernas. —  Fiquei excitado só de pensar em você com o robe em cima da pele. Ela nada disse. —  Puxe o cobertor. Ela começou a puxar o cobertor e ele deu um grito de dor. —  Cuidado, besta! Ela puxou o cobertor devagar até que por baixo do camisolão do hospital lhe apareceram as pernas magras e cabeludas. A frente do camisolão estava levantada como uma pequena tenda sobre o falo ereto. —  Levante o camisolão e me faça um carinho. Mas não balance a cama, senão o braço vai doer! Ela levantou cuidadosamente a roupa do hospital. O órgão estava firme. Começou lentamente a massageá-lo. Dentro em pouco, tinha as mãos molhadas do fluido que vinha dele. — Como é bom! — exclamou ele, recostando a cabeça nos travesseiros e fechando os olhos. — Acaricie-me também com a outra mão. Os testículos pareciam dois pedaços de pedra. —  Mais depressa! Mais depressa! Ela começou a passar a mão rapidamente por ele. Com a boca aberta e com a respiração, ele parecia acompanhar os movimentos dela. —  Assim, assim. . . — murmurou ele.  Um momento depois, disse de repente: —  Na boca, na boca! Já vou. . . Ela hesitou, olhando para o homem que estava encostado à porta. Ele a olhava sem o menor interesse. Warren agarrou-a então pelos cabelos, puxando-lhe a cabeça para ele. Ela abriu automaticamente a boca. Ele já havia começado o seu orgasmo e as primeiras gotas quentes do sêmen viscoso lhe espirraram no rosto e, então, ela recebeu tudo na boca. Um momento depois, tudo terminou. Ele se recostou de novo nos travesseiros e disse: —  Você é tão boa nisso como alguns frescos que eu conheço. Olhou então para o guarda-costas e perguntou: —  Que é que acha, Mike? Ela é tão boa como nosso amiguinho? —  Não   sei, patrão.   Ele  parece  gostar  mais  disso  do que ela. Warren riu. —  Talvez quando sairmos daqui possamos dar algumas lições a ela. Pela primeira vez, a voz do guarda-costas mostrou repulsa. — Sabe muito bem que eu não gosto de mulheres!  Warren riu de novo. —  Não é disso que eu estou falando. O que acho é que podemos mostrar a ela como é que se faz. — Voltou-se para ela e disse com voz fria: — Vá buscar uma toalha e um pano molhado e me limpe. Ela entrou no pequeno banheiro. Viu no espelho o rosto molhado e sujo. Lavou o rosto e voltou para o quarto. Alguns momentos depois, estava tudo em ordem e o cobertor estava estendido de novo. —  Assim está bem. A enfermeira não vai desconfiar de nada. Ela não falou. Era sempre isso que acontecia toda vez que ela estava com ele. Nunca tinham feito nada juntos e ele nem falava nisso. Se ela ainda fosse virgem, seu hímen ainda estaria intato se dependesse dele. —  Dê-lhe cinco dólares e mande-a para casa num táxi — disse ele ao guarda-costas. Mike se aproximou dela com uma nota de cinco dólares na mão. Ela pegou a nota e se encaminhou para a porta. Voltou-se para a cama. —  Telefone-me  depois   do   trabalho,   amanhã  —  disse Warren. —  Está bem. Boa noite. —  Boa noite. Mike abriu a porta e afastou-se para o lado a fim de deixá-la passar. Ela ouviu a porta fechar-se e desceu o comprido corredor do hospital. Chegou à rua ainda com a nota de cinco dólares na mão. Um bonde passou ruidosamente. Olhou para a fila de táxis e, então, saiu correndo para o ponto do bonde. Talvez levasse mais de duas horas para chegar em casa. Mas cinco dólares eram mais do que ela ganhava por todo um dia de trabalho.
Capítulo 10
Edgerton passeava no escritório de um lado para outro e dizia: —  Estou muito preocupado, Sr. Hardeman. É este o segundo dia de pagamento com os bancos fechados e estamos recebendo muitas queixas dos empregados. O comércio não quer aceitar nossos cheques. —  Mas nossos cheques são garantidos — disse Loren. —  Não somos somente nós — disse Edgerton. — São os bancos. São muitos os que já fecharam definitivamente. Soube que há um movimento para que os homens não venham mais trabalhar enquanto não receberem em dinheiro. —  Pague então em dinheiro — disse Loren. —  Como? Nossa folha semanal anda em cento e quarenta mil dólares. Ninguém tem tanto dinheiro assim na mão. —  Consiga-o. — Onde? Os bancos estão fechados para todos.  Loren pensou por um momento e perguntou: —  Que é que a Seção de Pessoal diz a isso? —  Warren me passou a bola. Diz ele que é obrigação da Tesouraria ter o dinheiro para a folha de pagamento. —  Ele explicou a situação aos empregados? —  Diz ele que explicou. —  Não é isso que estou perguntando. Explicou mesmo? —  Não sei. Soube que um grupo de homens foi falar com ele sobre isso e ele os despediu a todos. —  Por quê? —  Diz que eram agitadores. Queriam sindicalizar a fábrica e estavam aproveitando o pretexto. —  Que é que você acha disso? —  Conheço alguns dos homens. São velhos empregados e não me parece que sejam agitadores. —  Ainda que fossem, que diferença faria? Trabalharam e tinham direito a receber. —  Sem dúvida — disse Edgerton. Loren ligou o interfone. A voz de Melanie respondeu. —  Pronto, Sr. Hardeman. — Peça ao Sr. Warren que venha imediatamente aqui.  Alguns minutos depois, Joe Warren entrou na sala. Tinha o braço ainda na tipóia e os seus olhos estavam cautelosos. — Warren, soube que estamos tendo problemas com o fato de alguns empregados não conseguirem descontar o seus cheques de pagamento. —  Deve reconhecer o fato, Sr. Hardeman, de que, durante os últimos anos, a fábrica tem sofrido a infiltração de socialistas, comunistas e organizadores sindicais. São esses homens que estão fazendo a agitação. Só eles. —  Quer dizer então que os nossos homens podem descontar os seus cheques? —  Não — disse Warren. — Mas nossos homens não estão se queixando. —  Como é que sabe disso? —  Sei quais são os que prestam e os que não prestam. —  E só os que não prestam é que estão se queixando, não é? —  É, Sr. Hardeman. —  Explicou-lhes a situação? —  Não há nada que explicar. Todas as outras companhias da cidade estão na mesma situação e eles sabem disso. —  Mas, se não podem descontar os cheques e não podem conseguir crédito do comércio, como é que vão comer? —  O problema não é nosso. Não podemos controlar o dinheiro de nossos empregados. Se eles não podem estabelecer o seu crédito pessoal, é uma pena, mas nada podemos fazer. —  Se as casas de comércio não aceitam nossos cheques, é nosso crédito que está sendo posto em dúvida e não o deles, não acha? — perguntou Loren. Warren não respondeu. —  Já tomou qualquer providência para assegurar aos negociantes locais que a Bethlehem Motors garantirá os cheques, sejam quais forem os bancos contra os quais forem sacados? —  Isso não me pareceu necessário — disse Warren.  Loren ficou em silêncio. Olhou bem para o homem sentado diante dele. Warren tinha uma característica selvagem e dava uma impressão de fria crueldade que nenhuma cortesia superficial conseguia dissipar. — Não sei por que está se preocupando com esses pequenos detalhes, Sr. Hardeman — disse ele. — Posso controlar a situação. Enquanto isso, podemos aproveitar as circunstâncias para descobrir e expulsar da fábrica os maus empregados. Já nos livramos de mais de vinte agitadores. E estamos de olho em mais alguns. Loren nada disse e Warren levantou-se. —  Deixe tudo comigo, Sr. Hardeman. Verá que tudo vai dar certo.
— Sente-se, Warren! — disse Loren rispidamente. — Não lhe dei permissão para retirar-se! Warren hesitou um momento e tornou a sentar-se. Descansou cuidadosamente na cadeira o braço machucado. —  Quero que mande uma carta para todos os negociantes da área dizendo que a Bethlehem Motors garantirá todos os cheques de pagamento por nós emitidos sejam quais forem os bancos. Warren sacudiu a cabeça. —  Não posso fazer isso, Sr. Hardeman. Uma carta dessas teria de ser assinada pelo presidente da companhia ou pela diretoria. —  Então faça o presidente assiná-la. —  Não sei onde ele está. O senhor sabe? Há duas semanas que não o vejo. Loren olhou para ele com raiva. Warren sabia muito bem que ele não via o filho desde o dia da briga no escritório. —  Mande fazer a carta que eu a assinarei. —  Desculpe, mas não tem autoridade para isso. Não pode comprometer a companhia num prejuízo dessa espécie, caso os bancos falhem. —  Há alguma coisa nos regulamentos da companhia que me proíba de garantir pessoalmente esses cheques? —  Nada temos com o que o senhor faz pessoalmente — disse Warren. —  Prepare então a carta dessa maneira para ser assinada por mim. —  Se é assim que quer, está bem. Mais alguma coisa? —  Sim. Informe também os empregados de que o próximo pagamento será feito em dinheiro. —  Vou tratar disso, Sr. Hardeman. Mas não queira nem saber o que vai acontecer se o dinheiro não estiver aqui no dia do pagamento. —  O problema é meu — disse Loren. — Agora, pode ir.  Ficaram em silêncio até que Warren saiu e a porta se fechou. Edgerton perguntou então a Loren: —  Onde é que vai arranjar o dinheiro? —  Sei que vou arranjar. Quais são as últimas notícias de Duncan? —  Tudo estará pronto numa semana. Os novos carros deverão estar rodando dentro de um mês. —  Ótimo — disse Loren, sorrindo de satisfação. — Isso reduz exatamente à metade o tempo gasto por Charles Sorensen na Ford para arranjar um novo modelo. Seis semanas em vez de noventa dias. Acha que ele sabe alguma coisa? —  Com a rede de espionagem que tem? Claro que sabe. —  Por que foi então que ainda não tomaram providências? Que é que acha que eles estão esperando? —  Na realidade, há bem pouco que eles possam fazer no momento. O fechamento dos bancos nos foi favorável neste caso. Os banqueiros estão muito atarefados com os seus problemas para pensar em nós. E falta ainda mais de uma semana para a reunião da diretoria. Loren pensou por um momento e disse: — Vá conversar com Duncan e diga-lhe que quero a linha de produção em marcha esta semana. Não me interessa saber como é que ele vai conseguir isso, mas quero o primeiro carro saindo da linha de montagem antes da reunião da diretoria. —  Isso significa o cancelamento do contrato com a Ford para o fornecimento de carroçarias. —  Cancela-se. —  Bennett não vai gostar. É capaz de nos acionar por perdas e danos. —  Não, não vai fazer isso — disse Loren. — Vou me entender com Edsel e Charles Sorensen. Escute aqui, haverá alguma ligação entre Bennett e Warren? —  Sei que são muito amigos — disse Edgerton. — Warren acaba de construir uma casa em Grosse Pointe Isles, perto da de Bennett.  Loren olhou para ele e disse: — Pelo que sei, todas as compras foram concentradas no departamento de Warren. . . —  A idéia não é má — disse Edgerton. — Controle central. É possível conseguir melhores preços do que nas compras de cada departamento isoladamente. — Não estou dizendo que não seja. Estou apenas pensando que talvez fosse interessante olhar mais de perto as compras. — Não vejo mal nenhum nisso — disse Edgerton, sorrindo. —  Você poderia dar uma olhada sem que ele soubesse o que está acontecendo? —  Acho que sim. Está quase em tempo de fazer o balanço anual. Poderei recomendar aos rapazes que examinem com mais cuidado os contratos de compra. — Faça isso e me informe — disse Loren, levantando-se.  Edgerton se levantou também e olhou para Loren.
—  Sr. Hardeman. . . —  Sim, Walt? —  Estou muito contente com a sua volta.
—  Vovô! Vovô! As vozes das crianças receberam-no à porta. Abriu os braços e elas correram para ele. Beijou primeiro o rosto de Anne e, depois, o de Loren III. —  Você foi um bom menino hoje? — perguntou ele ao neto. —  Ele foi um menino muito bom — disse Anne, na sua voz de três anos. — Só bateu em mim uma vez. —  Só uma vez? — exclamou Loren, fingindo surpresa. Olhou para o menino e perguntou: — Por que fez isso? —  Eu mereci — disse Anne. — Bati nele primeiro. —  Não se esqueçam das regras — disse Loren severamente. — Eu disse que não queria mais brigas. —  A gente lembra, vovô — disse o garoto. — Mas às vezes esquece. —  Então não se esqueçam! —  Cavalinho! Cavalinho! — gritou Anne. —  Sim, cavalinho! — gritou o garoto. Loren se abaixou e ficou de quatro pés. As crianças montaram-lhe nas costas, Anne na frente, segurando-lhe os cabelos com as mãozinhas, e Loren III atrás, agarrado ao cinto do avô. —  Mais depressa! — gritou o garoto, dando uma palmada no avô. —  Depressa! Depressa! — gritava Anne, toda feliz.  Loren correu de quatro pés para a biblioteca, enquanto as crianças subiam e desciam nas suas costas. Parou diante de duas pernas vestidas de meias de seda e de pés calçados com sapatos de salto alto. —  Que é exatamente que vocês pensam que estão fazendo? — perguntou Sally, esforçando-se por manter seriedade na voz. —  Cuidado! — disse Loren. — Somos o Expresso do Oeste! Saiu num rápido trote em torno da sala e voltou a parar diante de Sally. —  Muito bem, crianças! — disse Sally com firmeza. — Chega! Já aborreceram demais seu avô. Está na hora do jantar.
—  Mas nós queremos brincar! — disse Loren III. —  Seu avô está cansado. Trabalhou muito durante o dia — disse Sally, tirando-o das costas de Loren. Anne escorregou para o chão. — Agora, dêem um beijo no vovô e vão jantar. —  Podemos brincar mais um pouco depois do jantar? — perguntou Anne. —  Não. Depois do jantar vocês dois vão para a cama, mas, se jantarem direitinho, vovô subirá para o quarto de vocês e lhes contará uma história bem bonita. —  Conta mesmo, vovô? — perguntou Loren III. —  Batata! — disse Loren, levantando-se. —  Batata!  Batata! — gritaram alegremente as crianças saindo da sala. —  Bela coisa ensinar gíria a seus netos — disse ela, sorrindo. — É ainda mais criança do que eles. —  Que mal faz isso a eles? —  Tenho gelo e uísque no bar — disse ela. — Quer que eu lhe prepare um drinque? Ele assentiu e ficou olhando para ela enquanto preparava o drinque e, depois, lhe entregava o copo. — Sempre achei que uma casa precisa de um toque feminino, Sally. Ela o olhou sem falar. Depois, foi ao bar e preparou um uísque para si. Quando voltou, disse sem se sentar: —  Falei com Júnior hoje. —  E então? —  Quer que eu volte para casa. Disse que voltaria se eu voltasse também. Loren bebeu o uísque sem nada dizer. —  Disse a ele que nunca mais ia voltar. —  Que foi que ele disse então? —  Aborreceu-se e disse uma porção de coisas horríveis. —  Que coisas? —  Disse que sabia o que nós estávamos fazendo e que não enganávamos nem ele, nem ninguém. Disse que tinha provas de que nós estávamos dormindo juntos e que não hesitaria em apresentá-las em juízo para me tomar as crianças. Loren sacudiu tristemente a cabeça e perguntou: — Que é que você vai fazer? — Não posso ficar aqui. Não sei o que adianta envolver você nesse escândalo. Estive pensando em ir para a  Inglaterra.
—  Pediria divórcio primeiro? —  Claro. Se ele quiser, poderei ir para Reno. —  Que faria depois do divórcio? —  Iria para a Inglaterra com as crianças. As escolas lá são muito boas e não haveria a diferença de línguas. —  Quando foi que Júnior disse que ia voltar? —  Na semana que vem. Disse que precisa estar presente numa reunião da diretoria. Tudo se articulava. Isso explicava por que Warren estava de braços cruzados. Davam-lhe corda para que ele se enforcasse. —  Escute, Sally, você sabe muito bem que não tem de ir para lugar algum. Pode ficar perfeitamente aqui na mansão Hardeman. As crianças estão contentes e a mim pouco me interessa o que ele faça ou deixe de fazer. —  De fato. As crianças nunca se sentiram mais felizes. Você tem brincado mais com elas nestas duas semanas do que o pai desde que elas nasceram. Mas não é justo para você. Já tem problemas de sobra. —  Acho melhor pensar mais um pouco, Sally, e não tomar logo uma decisão. Ela fez um gesto de assentimento. —  Vou subir para descansar um pouco antes do jantar. Chame-me quando estiver na hora. —  Está outra vez com dor de cabeça? —  Estou. —  Quer que eu lhe veja uma aspirina? —  Não. Já tomei aspirina demais hoje. Vou ver se passo sem isso. Talvez eu melhore depois de descansar um pouco. Ela o ouviu sair da sala e subir a escada. Jogou-se numa poltrona. Sentiu virem-lhe as lágrimas aos olhos. Não era justo para ele. Não era absolutamente justo. Teve subitamente uma idéia. Subiu as escadas e entrou no quarto dele sem bater na porta. Ele estava saindo do banheiro com a camisa já desabotoada. —  Em tudo isso, nunca pensei em você — disse ela. — Ou no que você pode querer. Loren ficou calado. —  Voltarei a morar com ele se isso facilitar as coisas para você. Ele respirou fundo e então abriu os braços para ela. — Não quero que vá para lugar algum que não seja esta casa!
 
Capítulo 11
A voz de Melanie pelo interfone estava nervosa e emocionada. —  Telefonema da Casa Branca, Sr. Hardeman.  Loren desligou o botão e pegou o telefone. —  Alô. Uma voz de homem se fez ouvir: —  Sr. Hardeman? —  É ele mesmo. — Tenha a bondade de esperar um momento para falar com o presidente dos Estados Unidos. Houve um estalo na linha. —  Sr. Hardeman? A voz era inconfundível. Já a ouvira muitas vezes pelo rádio. —  Sim, senhor presidente. —  Sinto muito não conhecê-lo pessoalmente, mas quero que saiba que lhe sou muito grato, falando em meu nome pessoal, pela contribuição que fez para o fundo da campanha do Partido Democrata. —  Muito obrigado pela sua gentileza, senhor presidente. —  Agora, Sr. Hardeman, vou lhe pedir um grande favor, para o qual solicito a sua atenção. — O presidente entrou diretamente no assunto. — Como sabe, considero a Depressão e o desemprego dela decorrente o mais grave problema que este País enfrenta. Por isso, propus ao Congresso uma lei a que dei o nome de Ato de Recuperação Nacional. Há nessa lei a estrutura para a reconstrução e a recuperação de nossas indústrias graças à adoção de práticas mútuas que serão efetivadas por meio de auto-ajuda e da regulamentação do governo. —  Já tenho lido alguma coisa a esse respeito, senhor presidente — disse Loren. Os jornais de Detroit já andavam cheios de comentários sobre o projeto, quase sempre para combatê-lo como uma tentativa de socialização e de sujeição da indústria automobilística ao controle do governo. —  Sei que tem lido muita coisa a esse respeito, Sr. Hardeman — disse o presidente e fez uma pausa. — E sei também que não tem lido nada de favorável. —  Não é o que eu penso, senhor presidente. Há na lei algumas propostas práticas que merecem maior consideração. —  Chegamos então ao favor que lhe quero pedir — disse o presidente. — Gostaria de que viesse a Washington e ajudasse a desenvolver a parte do Ato de Recuperação Nacional (NRA) que se refere a sua indústria. É claro que irá trabalhar subordinado diretamente ao General Hugh Johnson, que aceitou a posição de responsabilidade geral. Desde que nós consideramos a indústria automobilística a pedra fundamental de nossa economia, bem pode avaliar a importância da contribuição que está em suas mãos fazer a seu país. — Estou muito lisonjeado e honrado, senhor presidente — disse Loren. — Mas tenho certeza de que há outros mais dignos e mais capazes para a tarefa. — Está sendo muito modesto, Sr. Hardeman — disse o presidente. — E isso não está de acordo com o que eu tenho sabido a seu respeito. Mas foi no seu nome que pensamos em primeiro lugar e eu espero que pense bem no caso. — Pensarei, senhor presidente, mas minha companhia está atravessando graves dificuldades e eu não sei se poderei deixá-la no momento. — Sr. Hardeman — disse o presidente —, todo o país está atravessando graves dificuldades. Tenho certeza de que um cidadão responsável como é o senhor não poderá deixar de ver que, se o país não se recuperar do seu mal-estar, a sua companhia não se recuperará também. — Fez uma breve pausa e acrescentou: — Gostaria que me comunicasse sua decisão ainda nesta semana, Sr. Hardeman, e espero que seja favorável. —  Comunicar-lhe-ei o que decidir, senhor presidente. —  Adeus, Sr. Hardeman. —  Adeus, senhor presidente. Loren desligou o telefone. Pegou um cigarro e acendeu-o. O Presidente Roosevelt não perdia tempo. Tinha prometido movimentar o país e era exatamente o que estava acontecendo. O interfone tocou novamente. Loren apertou o botão. —  Sim, Srta. Walker? — Está quase na hora da reunião da diretoria, Sr. Hardeman. — Muito obrigado, Srta. Walker. Quer trazer minha pasta? — Neste momento. Quase no mesmo instante, ela entrou no escritório e colocou a pasta em cima da mesa. Em lugar de sair logo, como costumava fazer, ficou ao lado da mesa. —  Alguma coisa, Srta. Walker?  Ela ruborizou-se e perguntou: — Foi mesmo o Presidente Roosevelt quem falou ao telefone? —  Foi, sim. —  Votei nele — disse ela. — Foi a primeira vez que votei. —  Eu também — disse ele, sorrindo. —  Gosto da voz dele no rádio. É tão simpática, tão amistosa. Parece que está mesmo falando com a gente. Era a primeira vez que ele a via sorrir. Olhou para ela e disse: —  Sabe que é uma moça muito bonita, Srta. Walker? Deve sorrir mais vezes. Ela enrubesceu de novo e disse: —  Obrigada, Sr. Hardeman. Viu-a caminhar até a porta. Era estranho que até então nunca tivesse olhado realmente para ela. Era de fato uma moça bonita. Ela saiu fechando a porta e ele olhou para a pasta.
 
Chegou de propósito com alguns minutos de atraso. Os outros elementos da diretoria já estavam na sala, reunidos em pequenos grupos e empenhados em animada conversa. Ficaram todos em silêncio quando ele entrou. Não perdeu tempo com os cumprimentos de costume. Em lugar disso, bateu na mesa com os nós dos dedos e disse: — Querem ter a bondade de tomar seus lugares? Sentaram-se em silêncio em volta da longa mesa retangular. Júnior se sentou diante dele, na outra cabeceira da mesa. Warren sentou-se à direita de Júnior. Havia mais onze pessoas sentadas à mesa além deles. Coburn e Edgerton eram os únicos outros empregados da companhia que faziam parte da diretoria. Os outros eram representantes dos bancos e das companhias de seguros de que eram devedores e havia ainda alguns elementos decorativos, pertencentes a outras empresas que não eram concorrentes.
—  A presidência declara aberta a reunião e espera uma proposta para que seja dispensada a leitura da ata da reunião anterior, da qual há uma cópia na pasta à frente de cada um dos presentes. Coburn apresentou a proposta, que foi apoiada por Edgerton e unanimemente aprovada. Depois disso, Loren esperou uma proposta para que a agenda fosse posta em discussão. —  Peço a palavra! — disse Júnior. — Tem a palavra o senhor presidente da companhia — disse formalmente Loren. —  Desejo apresentar uma proposta para que seja adiada a discussão da agenda em favor de outros assuntos mais importantes. —  Esta presidência não tem objeções à proposta, mas se absterá de votar. Está, portanto, em votação a proposta do presidente da companhia. Os que a aprovam queiram dizer "sim". Onze pessoas disseram "sim" e apenas duas, Edgerton e Coburn, "não", —  Está aprovada a proposta — disse Loren, sorrindo.  Tirou um cigarro da caixa que estava em cima da mesa, acendeu-o e recostou-se na cadeira. Júnior se levantou antes mesmo que Loren pudesse soltar a primeira baforada. — Acuso o presidente da diretoria de exorbitar de sua autoridade no exercício de sua funções e de outras graves inconveniências prejudiciais à companhia, em vista do que peço a sua renúncia! Houve na sala um silêncio sepulcral. Ainda sorrindo, Loren colocou cuidadosamente o cigarro num cinzeiro e disse: — Esta presidência terá prazer em tomar em consideração o pedido do senhor presidente da companhia desde que seja apresentado regularmente como uma proposta. — Fez uma breve pausa, mas não deu tempo a Júnior de falar de novo. — Esta presidência terá também prazer em considerar uma proposta para que a diretoria visite a linha de montagem número 3 antes de tomar conhecimento de qualquer outro assunto. Coburn apresentou imediatamente a proposta com o apoio de Edgerton. A diretoria aprovou-a. Só houve dois votos contrários, os de Júnior e de Warren. —  A proposta está aprovada — disse Loren, levantandose. — A reunião fica adiada até depois da visita à linha de montagem número 3. Tenham a bondade de acompanhar-me, senhores.
 
Duncan chegou ao lado dele logo que saíram do edifício da administração. —  Não tenha muita pressa — disse o escocês, falando pelo canto da boca. — O primeiro carro só deverá chegar ao fim da linha de montagem daqui a dez minutos. Loren fez um sinal de assentimento e levou deliberadamente os outros por um longo giro na fábrica, Nove minutos exatamente depois, chegaram ao fim da linha de produção na linha de montagem número 3. Loren voltou-se para os homens da diretoria. —  Presumo que  todos os  senhores  saibam dirigir um carro. Houve gestos afirmativos de todos. —  Muito bem, então — disse Loren, sorrindo. Olhou para a linha de produção. Um carro se aproximava deles. — Desde que devem estar ansiosos por saber por que os trouxe até aqui, quero mostrar-lhes a razão. O carro passou pelo compartimento de inspeção final e chegou diante deles, azul-escuro e cintilante. —  Este é o primeiro Baby Sundancer que sai da linha de produção. Será vendido por menos de quinhentos dólares e nos colocará firmemente no mercado dos carros baratos ao lado do Ford, do Chrysler, do Plymouth e do Chevrolet! Fez uma breve pausa e continuou: —  O Sr. John Duncan, nosso principal engenheiro e projetista, vai guiar o primeiro carro até o pátio de carga, onde ele será embarcado num trem e iniciará a sua jornada para o revendedor. Se cada um dos senhores tomar um carro quando ele sair da linha de produção, seguindo o Sr. Duncan, poderá ver por si mesmo como o carro funciona bem e pode ser manejado com facilidade. Um ônibus os esperará para trazê-los de volta ao edifício da administração quando acabarem de dirigir. Duncan entrou no carro e ligou o motor. Saiu em marcha tenta no momento em que o segundo carro chegava. Este era cor de vinho-escuro. Loren pegou um dos diretores pelo braço e disse: —  Entre. Pode dirigir. O homem entrou no carro e ligou o motor. A partir daí, não houve problemas. Os homens estavam ansiosos por que lhes chegasse a vez. Eram como crianças com um brinquedo novo. Foram saindo nos carros até que só ficaram Loren, Júnior e Warren. —  Não pense que vai conseguir alguma coisa com isso! — exclamou Júnior. —  Já consegui, meu filho — disse Loren, sorrindo e tirando um maço de cigarros do bolso. — Encare a realidade. Você perdeu a luta no momento em que o primeiro daqueles homens entrou no automóvel. Acendeu o cigarro e acrescentou: —  Minha opinião é que você deve embarcar no primeiro carro e ir até o pátio de embarque para receber as felicitações da diretoria. Não há ninguém para se opor a isso. Júnior hesitou e olhou para Warren. —  É bom que se decida logo — disse Loren. — O carro seguinte está chegando. Se você não embarcar nele, quem vai embarcar sou eu. O carro, de um amarelo vistoso, chegou e parou. Sem dizer uma só palavra, Júnior embarcou e saiu nele. O carro que veio depois era preto e brilhava. Warren olhou interrogativamente para Loren. Este hesitou por um momento e disse: —  Não sei. . . Este é o carro número 13 que sai da linha de produção. —  Eu não sou supersticioso — murmurou Warren.  Loren encolheu os ombros. Viu Warren correr para o carro e sair guiando, todo satisfeito. O carro estava a uns quinhentos metros de distância quando houve a explosão. O estrondo ecoou através da fábrica fazendo as pessoas acorrerem dos escritórios e da linha de produção. Uma nuvem de poeira e fumaça se elevou no ar e, quando assentou, nada mais se viu do automóvel além de pedaços retorcidos de metal. Loren voltou-se e começou a caminhar para o edifício da administração por entre a gente que passava por ele. Três mecânicos de macacão branco com as letras BMC em azul nas costas dirigiam-se para o portão. O menor dos três reduziu um pouco a marcha e se aproximou de Loren. Caminharam em silêncio até chegarem à porta do edifício da administração. Loren voltou-se então para o homem e disse: —  Eu disse que era o carro número 13. Mas ele me disse que não era supersticioso.
Os olhos castanhos do homem voltaram-se para ele sob as espessas sobrancelhas pretas. —  Um homem que não tem superstição não tem alma — disse ele convictamente. —  Não sei o que seria de mim a estas horas se tivesse entrado naquele carro — murmurou Loren. O homem o olhou como se tivesse sido insultado. —  Meus homens são profissionais, Sr. Hardeman! Nunca iriam deixá-lo entrar naquele carro! Loren deu um breve sorriso. —  Desculpe essa idéia ter me passado pela cabeça. Passe bem, Sr. Perino. —  Passe bem, Sr. Hardeman. Loren ficou olhando o homem que se afastava, estugando o passo para alcançar os seus dois companheiros. Viu o guarda de segurança no portão voltar cuidadosamente as costas para não ver os três homens que saíam. A recepcionista no hall do edifício da administração estava acabando de falar ao telefone quando ele chegou. — Sr. Hardeman! — exclamou ela, toda nervosa. — Um carro acaba de explodir ao sair da linha da montagem número 3. — Já soube — disse ele, dirigindo-se para o elevador e apertando o botão. —  Quem teria sido? — perguntou ela, enquanto as portas do elevador se abriam. —  Algum filho da puta sem sorte — disse ele, entrando no elevador.
 
Capítulo 12
A neve que caía em suaves flocos brancos adornava a cúpula do Capitólio quando ela olhou da janela da casa em Washington onde já estavam havia um ano e meio. Passava das nove horas. Mais uma noite em que ele ia chegar tarde. Voltou para o sofá diante da lareira acesa. As chamas crepitantes envolveram-na em seu calor, dando-lhe um habitual e grato conforto. Muitas noites tinha esperado por ele naquele sofá, diante daquela lareira. Parecia haver sempre um caso de emergência em Washington. —  Governo em estado de crise permanente — dissera ele numa noite em que chegara tarde além de todos os limites. —  Não deve ser muito divertido para você. —  E eu por acaso estou me queixando? — disse ela. E era sincera. Detroit parecia muito distante e em outro mundo, um mundo fechado dentro de si mesmo cujos horizontes começavam num pára-choque dianteiro e terminavam num párachoque traseiro. — Nunca mais quero voltar. Ele a tinha olhado com um ar de surpresa, mas sem falar. —  As crianças gostam muito daqui também — disse ela. —  A babá leva-as todos os dias a algum lugar novo, interessante e cheio de importância histórica. Têm aprendido muito desde que estão aqui. É como se crescessem vendo diante dos olhos tudo o que acontece no mundo. —  E não se sente muito sozinha? — perguntou ele. Longe de suas amigas? —  Amigas? Lá em Detroit, as únicas amigas que eu tinha eram mulheres dos homens que trabalhavam ou queriam trabalhar para a Bethlehem. Vivia mais sozinha lá do que vivo. aqui. Ao menos, aqui, quando vamos a uma festa, não é só para conversar sobre automóveis. O barulho da chave na porta da rua interrompeu-lhe os pensamentos. Levantou-se do sofá e foi para o vestíbulo. O mordomo já tomara o chapéu e o casaco de Loren cobertos de neve e os estava pendurando no armário embutido quando ele chegou. —  Desculpe ter chegado tarde — disse ele, beijando-lhe o rosto. Ela lhe sentiu os lábios frios e disse: —  Não faz mal. Venha para junto da lareira aquecer-se um pouco. Ele se deixou cair cansadamente no sofá e estendeu as mãos para o fogo. Ela o olhou, cheia de preocupação. Nunca o vira tão cansado assim, com a fronte contraída pela dor de cabeça que tinha passado a ser quase constante. —  Vou preparar-lhe uma bebida. Foi ao bufê e preparou o uísque rapidamente. Quando voltou, ele estava com a cabeça no encosto do sofá e os olhos fechados. Sentou-se ao seu lado. Tomou o copo e começou a beber. —  Bem, acabou-se — murmurou ele numa voz cansada.
—  Que está querendo dizer? —  Não soube das notícias? —  Não. Estava lendo e não ouvi o rádio esta noite. —  A Corte Suprema decidiu hoje que o NRA é inconstitucional. —  Que significa iso? —  Em primeiro lugar — disse ele com a sombra de um sorriso —, significa que eu estou desempregado. Estou sem emprego como uma porção de gente. Quanto será que pagam de indenização a um homem que só ganha um dólar por ano? —  Dois dólares no mínimo.  Ele riu. —  De qualquer maneira, o presidente nunca me disse que o lugar seria permanente.  —  Falou com ele? —  Não. Mas falei com Hugh Johnson. O general estava em forma como nunca o vi, esbravejando e dizendo impropérios, convencido de que o país se arruinará agora que ele não está mais ao leme. —  Que é que vai acontecer agora? —  Não sei — disse ele, encolhendo os ombros. — Tanto quanto entendo disso, quando se perde no mundo da política, nada mais resta a fazer senão levantar acampamento e desaparecer sem fazer barulho. —  É uma coisa tão repentina que nem posso acreditar. — Você acreditaria se tivesse visto, como eu, funcionários e secretárias limpando às pressas as gavetas e guardando nas pastas e nas bolsas clipes e todo o material que era possível. —  Quando foi que soube? —  Hoje de manhã quando a Corte Suprema se reuniu. Tudo ficou logo desorientado. Todos corriam de um lado para outro sem fazer coisa alguma senão aumentar a confusão geral. O pior de tudo foram as notícias que tivemos de Detroit. Fizeram tudo menos decretar férias coletivas. São uns completos imbecis! Tomou um gole do uísque e continuou: —  O que nenhum deles parece compreender é que, sem o NRA, podem desde já entregar a indústria às Três Grandes. A Nash, a Studebaker, a Willys, a Hudson e a Packard estão todas condenadas. É apenas uma questão de tempo para que todos os industriais de automóveis independentes tenham de fechar as portas. —  É claro que devem ver isso — disse ela.
—  Não enxergam nem a ponta do nariz, quanto mais. . . Pensam que podem competir com a Ford, a GM e a Chrysler agora que os controles foram suspensos. Não têm a menor chance. As grandes companhias produzirão e venderão mais barato. —  A Bethlehem está também nesse caso? —  Está, sim. —  E não se pode fazer nada? — Claro que se pode. Temos de concentrar-nos na faixa inferior do preço médio. Um carro de preço entre o Chevy e o Pontiac deve ser o mercado do Sundancer nos próximos dois anos, pelo menos. —  E o Baby Sundancer? — perguntou ela. —  Cumpriu o seu objetivo. Permitiu que continuássemos quando o único mercado era o do carro de baixo preço. Mas agora o custo de produção está subindo e não podemos competir com os outros. Calculo que, no ano que vem, as coisas melhorarão tanto que nos permitam encerrar a sua fabricação, Ela pensou por um momento e disse: —  Está aí uma coisa que não me agrada. Eu gostava do carrinho. —  Era um verdadeiro cachorro — disse ele afetuosamente. — Era feito com os restos de outros carros, mas tinha um jeito todo dele. O mordomo bateu discretamente antes de entrar na sala e disse: —  O jantar está na mesa, madame.
 
Já passava da meia-noite quando ele concluiu o trabalho e levantou a vista da mesa no pequeno escritório. Juntou os papéis e guardou-os na pasta. Fechou depois a pasta com um gesto decisivo. Estava tudo acabado. Aquilo já fazia parte de seu passado. Nada mais tinha que fazer ali depois que mandasse levar os papéis para a repartição no dia seguinte. Levantou-se e, depois de apagar a luz, saiu do escritório. Desceu em silêncio a escada às escuras e foi pelo corredor ate seu quarto. Já ia acender a luz quando a voz dela se fez ouvir da cama — Não, Loren! Não acenda a luz! Ele ficou parado um momento. Depois, fechou a porta e perguntou: —  Por quê?
—  Estava  chorando  e  sei  que  estou  com  um  aspecto horrível. Loren atravessou o quarto. Ela estava sentada na cama, com os travesseiros nas costas. —  Chorar não adianta — disse ele. — Nunca adianta. —  Eu sei. Mas fomos felizes aqui. Ele acendeu um cigarro e ela estendeu a mão. Loren entregou-lhe o cigarro e a brasa vermelha lhe iluminou de leve o rosto. Na escuridão, os olhos eram quase luminosos. —  Loren? —  Sim? — Não vou voltar. Você sabia disso, não? —  Sabia, sim. —  Mas quero ficar com você. —  Volte então. A mansão Hardeman é bem grande. Nós podemos. . . — Não, Loren, não será a mesma coisa. Detroit não é Washington. Aqui eu sou aceita. Sou sua nora, que toma conta da casa do sogro viúvo. Em Detroit, serei ainda a mulher de seu filho, que vive com você enquanto o marido vive a alguns quilômetros de distância. Não vai dar certo. — Divorcie-se dele então e poderemos casar-nos! — Não. Se aprendi alguma coisa em Detroit foi que ali se pode ter êxito com um crime de morte, mas não com um divórcio. Você ainda deve aos bancos vinte milhões de dólares. Um escândalo agora poderá fazê-lo perder tudo o que você levou a vida toda para construir. Ele nada disse. — Você sabe que eu tenho razão, Loren. Poderia pedir-lhe que ficasse comigo, mas sei que você tem de continuar sua vida. A sua vida é produzir automóveis, Loren. Se parar, morrerá. Ele foi até a janela. A neve tinha parado e a noite estava clara, com as estrelas cintilando no azul-escuro do céu.  — Que é que você vai fazer? —  Vou ficar aqui durante algum tempo. Mais tarde, talvez me mude para Nova York. Em breve, as crianças vão precisar de escola. Lá há boas escolas. — Vou ter muita saudade dos dois. — Vão ter ainda mais saudade de você. Já lhe querem muito bem. Ele sentiu as lágrimas virem-lhe aos olhos. —  Poderei fazer-lhes uma visita de vez em quando? —  Claro que pode. E espero que faça.
Ele começou a despir-se. Colocou as roupas em cima de uma cadeira e se dirigiu para o banheiro. —  Loren, não vista o pijama esta noite. Quero dormir nua com você. —  Posso escovar os dentes? — Pode, mas não demore. Quero você logo dentro de mim. — Para que esperar então? — perguntou ele, aproximando-se da cama. As mãos grandes e fortes agarraram-na pelas nádegas enquanto ele a penetrava. —  Oh! — exclamou ela, com a voz repassada de desespero. — Como é que eu vou viver sem você?
 
Capítulo 13
Melanie estava esperando sentada à mesa da cozinha e lia o jornal da tarde quando o pai entrou em casa e olhou por sobre o ombro dela para os títulos: "Esperam-se perturbações hoje na Ford — Dearborn dá permissão ao sindicato de distribuir prospectos fora de River Rouge". Começou a desabotoar a sua túnica cinzenta da Polícia de Segurança da Ford e se dirigiu para a geladeira. Tirou uma garrafa de cerveja e abriu-a. Levou a garrafa à boca e bebeu até deixá-la quase pela metade. Depois, colocou-a em cima da mesa e arrotou. Melanie não levantou a vista. Continuou a folhear o jornal até chegar à seção feminina. — Pode dizer a seu patrão amigo dos comunas que preste atenção amanhã e veja como é que uma companhia de verdade se entende com o sindicato — disse o pai, tirando a túnica. Afrouxou depois o laço da gravata e pegou de novo a garrafa de cerveja. —  Que quer dizer com isso? —  Você vai saber amanhã. Só lhe posso dizer é que estamos esperando os patifes comunistas. Vão se arrepender da licença que conseguiram na prefeitura de Dearborn. —  Não há nada que possam fazer — disse ela, voltando os olhos para o jornal. — Eles têm a lei do lado deles. —  A Ford tem o direito de proteger o que lhe pertence. Só porque seu patrão baixou a cabeça e cedeu ao sindicato, isso não quer dizer que tenhamos de fazer a mesma coisa. —  O Sr. Hardeman diz que é apenas uma questão de tempo até que toda a indústria esteja sindicalizada. —  Isso é o que ele pensa — disse o pai. — Amanhã, vai pensar de outra maneira. — Acabou de tomar a cerveja e perguntou: — Por que é que ainda está vestida assim? —  Vou trabalhar esta noite. O Sr. Hardeman vai ter uma reunião confidencial esta noite em casa dele depois do jantar e quer que eu tome nota de tudo. —  Não admira que ele deixe você usar um carro da companhia. Você tem feito ultimamente muito trabalho à noite. Ela ficou calada. — Onde está sua mãe? — perguntou ele de repente. — Já vai subir. Está lá embaixo com a Sra. McManus.  Ele pegou outra garrafa de cerveja e se sentou na cadeira à frente dela. A voz dele tomou um tom confidencial. —  Pode falar de coração aberto com seu pai. Eu não nasci ontem. Que é que há entre você e Número 1? — Nada. — Nada? Você é uma moça inteligente e não vai querer que seu pai acredite nisso, não é? Não havia nada também entre você e Joe Warren, não era? Ela não respondeu. —  Sei de tudo, minha filha. E não a culpo por fazer isso. Se não fosse você, apareceriam mais de cem garotas para aproveitar a oportunidade. Ela sentiu que o rosto estava começando a ficar vermelho e levantou-se da cadeira. —  Não sabe pensar senão em coisas sujas?  Ele sorriu. — Há um sujeito que está trabalhando agora na Ford comigo. Era guarda-costas de Warren. Chama-se Mike. Lembrase dele? Ela sentia o rosto em fogo, mas não se moveu. — Ele não sabe que você é minha filha. Os nomes não querem dizer nada para ele, tantas eram as garotas, Mas ele se lembra de ter apanhado uma moça certa noite e a ter levado para Joe Warren no hospital. Lembra-se também de tudo o que ela fez. Não se faça, portanto, de inocente comigo e não ache que vou acreditar que você não está fazendo o mesmo com Número 1 e talvez mais. Garotas como você não andam de carro para cima e para baixo e não ganham cinqüenta dólares por semana só para bater à máquina. Ela tentou dizer alguma coisa, mas as palavras lhe ficaram presas na garganta. Ele começou a rir. —  Só acho é que você está se dando muito barato. Número 1  sempre gastou uma nota com as garotas dele. Mike diz que ele estava andando com a própria nora e acabou dando a ela um milhão de dólares limpo e seco para ficar caladinha e se divorciar no ano passado, com muito cuidado para que o ventilador não espalhasse a merda. Ela de repente correu para o quarto. Bateu a porta e começou a chorar. Através das paredes finas, podia ainda ouvir o riso obscenamente irônico do pai.
 
Quando Loren chegou a casa, encontrou a carta em cima da mesa da biblioteca. Reconheceu imediatamente a letra no envelope e a linha particularmente tremida com que ela sublinhara a palavra "pessoal". O carimbo era de Nova York e do dia 23 de maio. Apanhou a espátula de prata e abriu cuidadosamente, o envelope. Já fazia mais de um ano que não tinha notícias dela. Tinham decidido que nunca mais se veriam. Tinha um estranho pressentimento a respeito do conteúdo da carta. E não estava enganado. Dizia o seguinte:
 
"Caro Loren: Há muito tempo, quando você me disse que eu não era o tipo de mulher que pudesse viver sozinha e que um dia havia de encontrar um homem a quem pudesse amar, não acreditei em você. Se está lembrado, disse-lhe nessa ocasião que era fácil para você falar. Você era homem e tinha conhecido muitas mulheres, amando talvez algumas delas à sua maneira particular. Disse-lhe também que comigo não podia ser assim e que eu jamais amaria outro homem. Estava errada, como você decerto sempre soube. Vou me casar na terça-feira com o Comandante Hugh Scott, da Marinha. Comanda um porta-aviões com base em Pensacola, na Flórida, onde nós vamos morar. A única razão que tenho para lhe escrever esta carta é querer que você saiba disso por mim e não pelos jornais. As crianças estão bem e felizes e eu também. Se tem alguma coisa para me desejar, deseje-me. Amor,  Sally".
 
Ele dobrou a carta cuidadosamente e tornou a guardá-la no envelope. Por um momento, pensou pegar o telefone e ligar para ela em Nova York. Mas isso não alteraria nada. Tudo estava acabado. Lentamente, rasgou carta e envelope em pedacinhos e jogou tudo na cesta de papéis.
 
Melanie chegou no momento em que estava acabando de jantar. Ergueu a vista para ela ao vê-la entrar e perguntou: —  Já jantou? —  Já, sim. Venho de casa. —  Sente-se então e tome café comigo. O mordomo puxou uma cadeira para ela e, em seguida, colocou uma xícara de café na mesa à sua frente. Depois, saiu da sala e ela começou a tomar o café em silêncio. Ao fim de algum tempo, Loren sorriu para ela. —  Está muito calada e muito séria esta noite, Melanie. —  Acho que meu pai sabe de nós. —  Sabe ou suspeita? Há muita diferença entre uma coisa e outra. —  Para meu pai, não. É tudo a mesma coisa. —  E que tem isso? — disse Loren. — Não há nada que ele possa fazer. —  Para você, não. Mas ele poderá infernizar minha vida lá em casa. —  Por que então não se muda e vai morar num apartamento seu? Ele está trabalhando agora e já é tempo de deixar você usar o seu dinheiro com você mesma. —  Eu não poderia fazer isso a minha mãe. Não sabe quem é meu pai. Só pensa em si mesmo. Se eu não estivesse em casa, minha mãe iria sofrer muito. —  Eu lhe darei um aumento e você poderá dar em casa o mesmo dinheiro que está dando. —  Não é só o dinheiro. É ele. É meu pai, mas não vale nada. E está muito pior depois que foi trabalhar para Bennett, na Ford. —  E que é que tem isso? —  Sabe muito bem o que está acontecendo ali. Toda a fábrica de River Rouge está sendo mantida em regime de terror por Bennett e sua turma. Pois bem, meu pai está adorando fazer parte das tropas de choque de Bennett. —  Não estou compreendendo isso — disse Loren. — Edsel não é homem para tolerar uma coisa assim dentro da fábrica. —  Edsel nada tem que ver com isso. Meu pai me disse que Bennett tem toda a confiança do velho e que Edsel é simplesmente posto de lado. —  O velho ainda vai se arrepender disso — murmurou Loren. — Um dia, toda a fábrica dele poderá ir pelos ares. —  Esse dia poderá ser amanhã. —  Como assim? — perguntou Loren. —  Leu os jornais da tarde? —  Li, sim. —  Meu pai diz que Bennett está preparando uma surpresa para o sindicato. Todos os desordeiros de Bennett estarão à espera quando os organizadores sindicais aparecerem. —  Mas  não  poderão  fazer  coisa  alguma enquanto  os homens do sindicato não entrarem na propriedade da Ford. —  E se subirem à ponte da Miller Street defronte do portão 4? —  Ainda assim, nada poderão fazer. A ponte é uma passagem pública. Ali há sempre vendedores e sorveteiros esperando os operários na hora das mudanças de turno. —  Meu pai me disse que Bennett acha que a ponte é de propriedade da Ford porque foi a companhia que a construiu. Loren pensou por um momento e disse: —  Sim, isso poderia ser um problema. Telefone para Richard Frankensteen ou para um dos irmãos Reuther. Não quero que haja distúrbios. Seria um desastre para toda a indústria. Vou avisar-lhes que se afastem da ponte. Ela foi até o telefone e discou um número. Depois de uma breve conversa, cobriu o fone com a mão e disse a Loren: —  Estão todos em reuniões. E ninguém sabe a que horas vão voltar. —  Peça que o primeiro que voltar telefone imediatamente para mim. Diga que é muito urgente e importante. Ela transmitiu a mensagem e voltou para a mesa. Já ia se sentar quando mudou de idéia. Aproximou-se dele e beijou-o. —  Não me consta que isso seja um procedimento correto para uma secretária — disse ele, sorrindo. —  Pouco me importa. Gosto de você. Ele estendeu a mão e tocou-lhe com o dedo a ponta do nariz. —  Vai ter uma chance de provar isso logo que a reunião acabar. Ela segurou a mão dele e beijou-a, lambendo o centro da palma. —  Não posso esperar.
 
—  Sente-se aqui junto de mim, Júnior — disse Loren. — Walt, Ted e o escocês, sentem-se diante de mim. Todos se sentaram em silêncio. Melanie sentou-se na outra ponta da mesa retangular da biblioteca e abriu o seu caderno de notas. Loren olhou para ela. —  Não é preciso tomar nota, Srta. Walker. Esta reunião não é oficial. Ela fechou o caderno e perguntou: —  Quer que eu continue na sala, Sr. Hardeman? —  Faça o favor. Ela se recostou na cadeira enquanto Loren falava aos outros: —  Não é preciso ficarem com essa seriedade toda. Nada de terrível vai acontecer. A tensão na sala diminuiu um pouco e ele continuou: —  Serei simples e breve. O que vou dizer se refere à direção e às atividades da companhia no futuro. Fez uma pausa. —  Começarei por dizer uma coisa que sem dúvida todos já sabem. Com o resgate dos últimos títulos no valor de dois milhões e cem mil dólares de nossos empréstimos bancários, recebi a posse plena das ações que possuo na companhia. —  Muito bem! — exclamou Duncan.  Loren sorriu para ele. —  Compreendo  e partilho  seus   sentimentos.  Também não gosto de banqueiros. Ao mesmo tempo, recebi a renúncia dos quatro representantes que os bancos tinham em nossa diretoria. —  Muito bem! — exclamou de novo o escocês e, dessa vez, não pôde se conter e bateu palmas. Um momento depois, os outros fizeram o mesmo. Loren fez um gesto e eles pararam. —  Ouçam agora meus planos. Os homens se acomodaram nas cadeiras à espera. —  Possuo noventa por cento da companhia; dez por cento são de meu filho. Tenho cinqüenta e nove anos de idade e no ano que vem, quando completar sessenta anos, pretendo afastar-me da participação ativa nos assuntos da companhia. Fez uma pausa e o silêncio em torno da mesa se tornou mais profundo. —  Em vista disso, tomei as seguintes decisões a respeito de minhas ações. "A meus netos, Loren III e Anne Elizabeth, caberão cinco por cento para cada um, um total de dez por cento para os dois. Essas ações ficarão em poder do pai deles com direito de voto, como curador, até a maioridade deles. Tomei ainda outras disposições para proteger os sobreviventes e a companhia na hipótese de morte de qualquer das partes interessadas." Olhou então para Melanie e disse: —  Pode fazer o favor de me dar um copo de água e dois comprimidos de aspirina, Srta. Walker? Ela se levantou e foi em silêncio até o bar, trazendo a água e os comprimidos. Ninguém falou enquanto ele tomava o remédio. Estavam habituados a vê-lo consumir aspirina em profusão. —  Ao mesmo tempo — disse ele, continuando —, dotei uma fundação de caridade, que será chamada Fundação Hardeman, com trinta e nove por cento de minhas ações. Essa fundação terá a finalidade de empregar os fundos que assim adquirir em benefício do público. Os direitos de voto relativos às ações da fundação pertencer-me-ão como seu representante pelo resto de minha vida. Depois de minha morte, os direitos de voto serão exercidos pelos curadores da fundação, a serem escolhidos entre preeminentes educadores e cidadãos de espírito público do país. Meu filho e eu seremos curadores natos da fundação enquanto vivermos. Júnior não pôde dissimular a sua surpresa e murmurou: —  Eu não. . . Loren levantou a mão e disse amavelmente: —  Deixe-me acabar antes que diga alguma coisa. Júnior fez um sinal de assentimento, com a surpresa ainda estampada no rosto. —  Possuirei ainda pessoalmente quarenta e um por cento das ações — continuou Loren. — Essas ações serão distribuídas, depois de minha morte e de acordo com o meu testamento, entre pessoas de minha família, a fundação e outras pessoas ou projetos de caridade por mim determinados. Tomou um gole de água e continuou: —  A partir da próxima reunião da diretoria, apresentarei uma proposta segundo a qual o controle da companhia passará das mãos de um homem, eu ou meu filho, para o comitê executivo de cinco homens, atualmente presidido por mim e que será depois presidido, quando do meu afastamento, pelo meu filho. O presidente do comitê não terá direito de voto em assuntos relativos à orientação da companhia a não ser que haja empate entre os outros componentes, dando, nesse caso, o voto decisivo. "Até o meu afastamento, serei diretor e presidente da diretoria, enquanto meu filho continuará a ser presidente e principal diretor executivo da companhia, com o dever de executar as medidas assentadas pelo comitê executivo e pela diretoria. Depois de meu afastamento, meu filho assumirá as funções de presidente da diretoria além das outras que já exerce." Ficou em silêncio por um momento olhando para as mãos e então continuou: —  Muitas outras coisas constam da proposta que vou apresentar, mas prefiro não discorrer sobre elas neste momento. Outros pontos cobrem assuntos como pensões de aposentadoria e participação nos lucros para os diretores, bem como seguros especiais e outros benefícios para os empregados da companhia. Antes que saiam, a Srta. Walker lhes entregará uma pasta com os detalhes dessas propostas e dos outros assuntos a que me referi. Levantou-se e disse: —  Creio que isso é tudo o que tenho para dizer no momento. Muito obrigado pela presença de todos. Os outros se levantaram também. Melanie distribuiu rapidamente as pastas. Dentro de alguns minutos, todos tinham saído, à exceção de Júnior, que continuou sentado na sua cadeira e olhou para o pai. —  Podemos conversar um instante? — perguntou ele.  Melanie se retirou discretamente da sala. —  Vamos tomar um drinque — disse Loren. Júnior foi com ele até o bar. Loren serviu-se de um copo de uísque canadense e perguntou ao filho: —  Ainda bebe conhaque?
—  Vou tomar uísque. Loren serviu uma boa dose no copo de Júnior. —  Gelo? Júnior fez um sinal afirmativo. Loren foi para trás do balcão e tirou um pouco de gelo do balde na prateleira. O gelo tilintou no copo que ele passou às mãos de Júnior. Continuou do outro lado do balcão e levantou o copo. —  Saúde! — disse ele. Tomou o uísque de um gole e já estava pegando a garrafa para repetir a dose enquanto Júnior ainda provava o seu drinque. Serviu a outra dose. Dessa vez, tomou o uísque devagar, olhando para o filho. O rosto de Júnior estava magro, cansado e com olheiras fundas. Ficou esperando que o filho falasse. Ao fim de algum tempo, Júnior meteu a mão no bolso e tirou um envelope que colocou em cima do balcão do bar sem dizer uma palavra. —  Que é isso? — perguntou Loren. —  Abra e veja — disse Júnior. Loren tirou o papel do envelope. Estava datilografado no papel de cartas pessoal de Júnior e dizia:
 
"Ao presidente da diretoria e aos diretores da Bethlehem Motors Company, Inc. Senhores: Pela presente, apresento minha renúncia ao cargo de presidente e principal diretor executivo da Bethlehem Motors Company, Inc. Apresento igualmente a minha renúncia como diretor da companhia e de todas as companhias subsidiárias. Essas renúncias devem entrar imediatamente em vigor. Atenciosamente,  Loren Hardeman II".
 
—  Para que você vai fazer uma coisa dessas? — perguntou Loren, depois de ler a carta. — Bem — disse Júnior —, quando me convocou para a reunião desta noite, pensei que a sua intenção fosse demitir-me. —  O que o fez pensar assim? —  Duas coisas. Em primeiro lugar, recuperou  as suas ações e, portanto, pleno controle da companhia. Depois, eu lhe dei motivos de sobra e não me poderia queixar de nada se assim procedesse.
—  O seu raciocínio é lógico, exceto num ponto — disse Loren pausadamente. — Parece muito fácil demitir um empregado, mas como é que se pode demitir um filho da posição de filho? —  Fiz-lhe guerra quando não havia guerra — disse Júnior firmemente. —  Já nos prejudicamos  muito  um  ao  outro — disse Loren, começando a rasgar a carta. — Há muito tempo, quando eu disse que tudo isso seria seu um dia, fui sincero. Ainda não mudei de idéia. Você ainda é meu filho. Colocou os pedaços da carta dentro do envelope e devolveu-o a Júnior. —  Procurarei não lhe falhar de novo. Farei o máximo que me for possível. —  Ninguém pode fazer mais do que isso — disse Loren.  Ficaram em silêncio por um momento e então Loren saiu de trás do bar e foi abraçar o filho. —  Agora, vá para casa e procure dormir bem, meu filho. Parece que você anda precisando disso. —  Vai ser como nos velhos tempos, pai?  Loren sorriu. —  Sim, meu filho, será como nos velhos tempos. —  Boa noite, pai. — Boa noite, meu filho. Loren esperou que o filho saísse e voltou ao bar para servir-se de outro uísque. Melanie entrou na sala e disse: —  Deixe isso comigo. — Tomou-lhe o copo da mão, acrescentou gelo e passou-o de novo às mãos dele. — Tudo bem? —  Sim — disse ele cansadamente, provando o uísque. — Foi um dia muito cansativo para mim o de hoje. —  Vou subir e preparar-lhe um banho quente. Depois vai se sentir melhor. —  Está bem, mas não jogue tanto perfume dentro da banheira, ouviu? Depois, fico cheiroso como se fosse uma prostituta francesa. Ela sorriu para ele já da porta. —  Vamos  deixar  de  queixas,  sim?   Eu   sei  que  você gosta. . . Ele saiu do banheiro com a toalha enrolada na cintura e com o peito e os ombros cabeludos destacados em preto contra a brancura da toalha.
—  Estou me sentindo melhor. —  Faça o que eu lhe estou dizendo — disse Melanie. — Eu é que sei como você trabalhou hoje. Obedientemente, ele foi para a cama e se estendeu de bruços. Os dedos fortes de Melanie lhe massagearam o pescoço, passando depois aos ombros e às costas. Pouco a pouco, os músculos se relaxaram sob as mãos dela. —  Que tal? — perguntou ela. —  Ótimo — disse ele, ficando de lado. — Mas estou começando a ficar de pau duro. —  Eu sei — disse ela, olhando para ele. — Isso sempre lhe acontece. —  E o que é que você vai fazer? — perguntou ele, rindo. —  Ora, trata-se de um músculo como outro qualquer — disse ela, sorrindo maliciosamente. — Dá-se um jeito nisso. Pegou o pênis na mão. Ao seu contato, a ereção se completou. Segurando o falo com um das mãos, ela começou a acariciar delicadamente os testículos com a outra. Depois, começou a mover lentamente a mão para cima e para baixo. —  Como ele é bonito! — exclamou ela, fascinada pela sua força gigantesca. Curvou-se para ele e tocou-o de leve com a língua. Empurrou o falo contra a barriga dele, tomou na boca um dos testículos e, depois, o outro. Por fim, deixou a boca aberta deslizar por toda a extensão do pênis até cobrir-lhe a cabeça com os lábios. Ele a pegou pelos cabelos e virou-lhe o rosto para ele. —  Assim não! Dentro de você! Ela se levantou e começou a tirar a roupa. Os seios saltaram do sutiã em liberdade e ela tirou a calcinha, mostrando os quadris cheios e o triângulo preto abaixo da barriga. Ele a puxou para a cama e começou a rolar o corpo sobre ela. —  Não! — disse ela prontamente. — Fique aí quietinho. Quem vai fazer tudo sou eu.    Ele tornou a se deitar e ela ficou de joelhos sobre ele. Segurando-lhe o pênis com uma das mãos e equilibrando-se com a outra, baixou lentamente para ele, guiando-o para dentro dela. Impaciente, ele a agarrou pelas nádegas e puxou-a para si.Ela perdeu momentaneamente o fôlego e exclamou: —  Ih! Assim você me sufoca! A princípio lentamente e depois com mais rapidez, ela começou a mover-se sobre ele. Loren estendeu as mãos, agarrou-lhe os seios e puxou-os para o rosto. Tomou os bicos na boca e sugou-os até que ficaram vermelhos e crescidos. Ela recuou um pouco o corpo e estendeu a mão por baixo até encontrar-lhe os testículos. Estavam duros e rigidamente embolotados na base do membro. Ela sentiu que os orgasmos se aproximavam e começou a tremer. Os testículos lhe cresceram na mão ao iniciar-se a ejaculação. O calor líquido começou a queimar-lhe as entranhas. —  Loren!  Loren! — gritou ela, caindo contra ele nos paroxismos de um orgasmo simultâneo. Ela se abraçou a ele até cessar o seu doloroso tremor e sentir a umidade dele escorrer de dentro dela pelas coxas, indo cair nele. Sentiu-o relaxar-se lentamente dentro dela e se afastou dele num repelão. Com a mão em concha por baixo dela para não sujar o tapete, correu para o banheiro. —  Não saía daí! — disse ela. — Já vou voltar para limpá-lo. Quero que você descanse. —  Traga um pouco de aspirina quando vier. Estou sentindo a cabeça como se estivesse dentro de um torno. — Está bem — disse ela. Quando voltou, alguns minutos depois, ele parecia estar dormindo tranqüilamente, com a cabeça recostada no travesseiro voltada para o outro lado. Ela se ajoelhou no chão ao lado da cama, limpou-o com um pano molhado em água quente e passou depois uma toalha para secar. Ele estendeu a mão para ela quando ela fez menção de levantar-se. —  Durma — disse ela baixinho. — Você precisa descansar. Voltou para a cadeira e pegou o sutiã. —  Melanie! A voz dele estava rouca e estranha. —  Procure dormir, Loren — disse ela ternamente, prendendo o sutiã, e apanhando a calcinha. —  Não, Melanie! Alguma coisa na voz dele fê-la parar e olhá-lo quando já estava com um pé dentro da calcinha. Ele estava se virando para ela. Mas havia alguma coisa de anormal no movimento. Era como num filme em câmara lenta e parecia que ele estava empregando toda a sua energia só para conseguir aquele esforço mínimo. Por fim, ficou quase sentado na cama, com os olhos esgazeados voltados para ela. As palavras saíram com dificuldade dos lábios.
—  Melanie! Estou passando mal! Chame o médico! Depois, lentamente, como se as palavras lhe tivessem tirado toda a força, começou a cair para a frente. Ela correu para ampará-lo, mas o peso era grande demais para ela e ele lhe escorregou dos braços e rolou para o chão. —  Loren! — gritou ela. Os jornais vespertinos de Detroit publicaram no dia seguinte uma profusão de manchetes e clichês sobre os acontecimentos que vieram a ser conhecidos como a Batalha de River Rouge. O esquadrão de choque de Bennett havia atacado impetuosamente os organizadores sindicais desprevenidos. Frankensteen e Walter Reuther estavam no hospital, o primeiro com três fraturas, depois de ter sido arrastado por uma escada de trinta e seis degraus. Várias outras pessoas estavam hospitalizadas, entre elas uma mulher grávida que fora atacada a pontapés na barriga. Mas talvez o que mais indignasse os jornais era o fato de que os homens de Bennett, depois de acabarem o seu ataque ao pessoal do sindicato, se haviam voltado contra os repórteres e os fotógrafos, espancando-os e quebrando máquinas. O episódio foi considerado por eles um dos mais vergonhosos da história das relações trabalhistas nos Estados Unidos. Em vista do tremendo impacto jornalístico dos acontecimentos de River Rouge, a notícia sobre Loren Hardeman foi relegada para as páginas internas. Havia na quarta coluna da segunda página do New York Times de 27 de maio de 1937 a seguinte notícia sem qualquer destaque:
 
"LOREN HARDEMAN ENFERMO
 
Detroit, 26 — Loren Hardeman I, presidente da diretoria e fundador da Bethlehem Motors, está convalescendo num hospital desta cidade, depois da extração de um tumor cerebral benigno que vinha afligindo há alguns anos o industrial".
 
Capítulo 14
John Bancroft, vice-presidente de Vendas da Bethlehem Motors, levantou-se de sua cadeira quando Ângelo entrou no escritório. Estendeu a mão com um sorriso de vendedor aberto no rosto. —  Ângelo! Muito prazer em vê-lo! O aperto de mão era também de vendedor. Firme, cordial e impessoal. Ângelo retribuiu o sorriso. —  Prazer em vê-lo também, John. —  Sente-se — disse Bancroft, voltando para sua cadeira atrás da mesa. Ângelo sentou-se e acendeu um cigarro. — Recebi o seu recado e é por isso que estou aqui. — Foi muito bom você ter vindo. Estamos com problemas. — Sei disso. Há alguma coisa de especial? — Estamos começando a perder revendedores. — Por quê? — perguntou Ângelo com surpresa. — Pensei que tínhamos mais candidatos a revendedores do que nunca. —  E temos. Mas são todos elementos que podemos chamar de marginais. São vendedores de carros usados que procuram melhorar de ramo, revendedores de carros estrangeiros que não estão fazendo bons negócios com suas linhas e querem tentar alguma coisa nova. O grande problema é que na sua grande maioria não têm dinheiro suficiente para apoiar as suas vendas com um departamento de serviço adequado. O restante, cerca de dez por cento, tem condições financeiras boas, mas quase sempre estão situados em áreas nas quais já estamos representados. —  Isso ainda não significa que estejamos perdendo revendedores — disse Ângelo. —  Escute aqui. Nestes últimos dois meses, tenho recebido cartas dos nossos revendedores estabelecidos. Alguns deles estão conosco desde que a companhia começou. Estão começando a ficar preocupados com o desaparecimento do Sundancer. Têm receio de que o Betsy não lhes assegure a mesma posição no mercado. Já recebi perto de quatrocentas cartas nesse sentido. Pior ainda é que recebemos aviso de cancelamento de noventa revendedores. Chrysler, Dodge e Plymouth ficaram com a metade, Pontiac e Buick com cerca de trinta, a American Motors com uns dez, Mercury com quatro e Olds com um. Tinham todos muito boa produção. Duvido muito que os novos possam chegar aos pés deles. Ângelo pensou um momento e disse: — Não consigo compreender. O Mazda Rotary com o motor Wankel tem os revendedores ansiosos por ele de costa a costa e nós estamos tendo problemas. Por quê? —  Muitos desses revendedores devem ser os mesmos marginais que nos estão procurando. Além disso, o Mazda está tentando tomar de assalto o mercado americano. A companhia está financiando os departamentos de serviço. Se fôssemos fazer a mesma coisa, teríamos de espalhar pelo menos cinqüenta milhões de dólares por toda a nação. Nem a Mazda está fazendo isso. Por ora, concentra-se na Califórnia e na Flórida. Se puder dominar esses mercados criando uma boa procura, talvez não tenha necessidade de financiar o resto do país. —  E nós não podemos proceder assim — disse Ângelo. — Teremos de financiar todo o país de vez porque já estamos espalhados por todo ele. —  É exatamente isso — disse Bancroft. —  E agora? Que vamos fazer? —  Só lhe posso dar uma resposta do ponto de vista das vendas. Não posso dizer nada sobre os seus problemas de produção. —  Vá em frente — disse Ângelo. —  Em primeiro lugar, é preciso continuar com o Sundancer. Isso fará com que os revendedores deixem de se preocupar. Depois, é preciso adotar o plano japonês de infiltração do mercado, concentrando a distribuição em áreas experimentais limitadas e criando a procura pelo novo carro. Se der certo, poderá expandir pouco a pouco a sua produção e dentro de dois ou três anos, quando a posição for de fato firme, será possível abandonar o Sundancer. —  E se abandonarmos o Sundancer agora? —  Calculo que perderemos cerca de seiscentos revendedores depois de admitirmos os novos. —  Mas eu preciso da fábrica do Sundancer para produzir os motores do Betsy. —  Sei disso — exclamou Bancroft. — Mas sei também que, se ficarmos apenas com setecentos revendedores através do país, estaremos com as portas fechadas antes mesmo que o novo carro seja lançado no mercado. Ângelo compreendia o que ele queria dizer. Cada revendedor vendia em média quatro carros novos por semana e havia mil e quinhentos revendedores. Isso representava seis mil carros por semana e trezentos mil por ano. Vendendo duzentos e vinte mil carros, não tinham nem lucro nem prejuízo. Setecentos revendedores só venderiam cento e quarenta mil carros e isso seria a ruína. Representaria um prejuízo de cento e sessenta milhões de dólares no primeiro ano. — Com quem mais você falou a esse respeito? — perguntou ele a Bancroft. —  Com mais ninguém. Acabo de coligir os dados e você é a primeira pessoa com quem falo. Mas Loren III vai voltar de sua lua-de-mel amanhã e eu terei de alertá-lo antes da reunião da diretoria na sexta-feira. Ângelo sabia que a reunião da sexta-feira se destinava a tomar uma decisão a respeito do Sundancer. —  Foi muita camaradagem sua ter me contado, John.  O vendedor sorriu. —  Escute, Ângelo, acredito no Betsy tanto quanto você, mas não posso torcer os fatos. — Compreendo. Vou pensar nisso. Muito obrigado, John.  Quando já ia pelo corredor a caminho de seu escritório, teve de súbito a idéia. Voltou ao escritório do gerente de Vendas. Bancroft estava falando ao telefone. Levantou os olhos, surpreso, ao ver Ângelo voltar. Acabou o telefonema e colocou o fone no gancho. —  Não lhe parece estranho, John, que de repente nos últimos dois meses você começasse a receber cartas de revendedores, todas dizendo a mesma coisa? —  Não sei. Para dizer a verdade, ainda não havia pensado nisso. É normal recebermos cartas assim ao fim de cada ano de vendas. —  Quantas cartas são um número normal? —  Em geral, de vinte a quarenta ou cinqüenta. São quase sempre revendedores que estouraram as suas cotas e estão querendo fazer pressão sobre nós. Acontece o mesmo em todas as companhias. —  Leu todas as cartas? —  Tinha de ler. É minha obrigação. —  Houve alguma coisa que lhe tenha dado a impressão de que a redação é a mesma em todas as cartas? Bancroft pensou um momento e ligou o interfone para sua secretária, dizendo:
—  Traga a pasta com as últimas cartas de revendedores.  Um momento depois, a secretária chegou com várias pastas. Colocou-as em cima da mesa e saiu. John abriu as pastas e começou a examiná-las. Ângelo esperou em silêncio enquanto o outro repassava as cartas. Ao fim de cerca de dez minutos, Bancroft olhou para ele. Pegou um lápis vermelho e assinalou várias linhas nas cartas. Em seguida, passou-as às mãos de Ângelo. —  Leia as linhas que eu marquei. A linguagem era diferente em cada uma das cartas, mas a idéia era basicamente a mesma. Todos externavam a preocupação com o motor de turbina que, segundo diziam, podia explodir em altas velocidades. John ainda estava marcando as cartas quando Ângelo lhe disse: — Isso está começando a fazer sentido. — Como assim? — perguntou Bancroft, largando o lápis vermelho. —  Já ouviu falar num grupo que se chama Organização Independente de Segurança Automobilística? —  Já, sim.  É dirigida por um sujeito chamado Mark Simpson. Já o botei para fora de minha sala uma meia dúzia de vezes, mas todos os anos ele torna a aparecer aqui. —  Que é que ele quer com você? —  No fundo, é chantagem. Mas ele é muito sabido. Procura tirar partido da larga difusão da carta noticiosa que publica. Apresenta uma avaliação incorreta dos carros e faz questão de proclamar a sua honestidade, baseado no fato de não aceitar anúncios. —  De que é que vive então? —  Não sei bem — disse Bancroft. — Nunca investiguei muito o assunto. Tenho, porém, a impressão de que possui ou é sócio de alguns postos de venda de carros usados através do país. Sabe como é. Não se trata de carros usados propriamente, mas de carros com cem ou cento e cinqüenta quilômetros rodados. Insinuou que, se cem Sundancers com tão poucos quilômetros rodados lhe fossem cedidos, o carro teria uma boa cotação na sua carta. Foi nessa ocasião que eu o botei para fora de meu escritório. —  Sabe se qualquer das outras companhias faz negócio com ele? —  Nenhuma. Gostam dele tanto quanto nós. —  Como é então que ele se mantém no negócio?
—  Fazendo pressão sobre os revendedores em nível local — respondeu Bancroft. — Os revendedores vivem sempre assustados. Calculam que dar alguns carros a ele não os prejudica e ainda os ajuda a completar a sua cota. —  Tenho a impressão de que ele é o responsável por essas cartas — disse Ângelo. — Apuramos que foi ele quem nos criou dificuldades no oeste. —  Não estou  entendendo  nada, Ângelo!   Simpson não dá ponto sem nó. Que, interesse pode ter ele em afastar o Betsy do mercado? —  Isso é que eu gostaria de saber — respondeu Ângelo. — A espécie de campanha em que ele está empenhado deve custar um bocado de dinheiro. Pelo jeito, deve estender-se a todo o país. —  De onde é que ele está tirando o dinheiro? — perguntou Bancroft. — Do bolso dele é que não deve ser. — Não sei. Mas quem o está financiando não quer decerto ver o Betsy na rua. —  As outras companhias não são — disse Bancroft. — Disso eu tenho certeza. Ao contrário, vêem com satisfação nós tomarmos a dianteira, facilítando-lhes o caminho. Acha que podem ser as companhias de gasolina? —  Não — disse Ângelo, sacudindo a cabeça. — Já entramos em entendimento com as cadeias nacionais de gasolina. Concordaram em instalar bombas de querosene em todos os seus postos logo que entrarmos rio mercado. Ângelo foi até a janela. Um trem de carga estava saindo do pátio cheio de automóveis cujas cores rebrilhavam ao sol. Voltou então à mesa de Bancroft e disse: —  Pegue o telefone e fale com cada um desses revendedores. Apure se Simpson ou alguém relacionado com ele os procurou. —  Qual é o resultado que você espera disso? —  Não pode deixar de ser ilegal o que ele está fazendo e talvez consigamos provas. Calúnia, perdas e danos, não sei bem. Vou entregar isso aos nossos advogados e eles que vejam o que se pode fazer. Quando falar com eles, tranqüilize-os a respeito do novo carro. Fale dos nossos testes. —  Vão pensar que eu estou querendo embrulhá-los. A insinuação de Simpson parece confirmar as suspeitas geradas Por ocasião do acidente em que Peerless morreu. Todos os jornais noticiaram o caso. —  Convide-os então a irem aos nossos campos de prova à nossa custa para verem com os próprios olhos o funcionamento do carro. Isso deverá convencê-los. —  Não sei se ficarão convencidos — disse Bancroft —, mas irão. Ainda não conheci um revendedor que recusasse uma viagem com todas as despesas pagas, mesmo que fosse para o outro lado da cidade. Ângelo riu. —  Muito bem, trate disso então. Enquanto isso, vou ver o que posso saber de meu lado. Ainda não estamos derrotados. —  Já estou me sentindo melhor — disse Bancroft. — Ao menos, estamos fazendo alguma coisa em vez de cruzar os braços e baixar a cabeça. Não podemos é fechar os olhos a essas coisas. —  Não tenho absolutamente essa intenção! Não aceitei essa incumbência para destruir a companhia, sejam quais forem as minhas preferências pessoais.
 
Capítulo 15
O Príncipe Igor Alekhine despertou com a luz do sol que se derramava pelas janelas do seu quarto acima das águas azuis do Mediterrâneo. Saltou da cama, sorridente, e abriu as janelas, respirando profundamente o ar suave da manhã. Puxou o cordão da campainha para que o criado lhe levasse o seu café e começou a fazer a sua ginástica matinal. Fazia aquilo religiosamente todas as manhãs diante da janela. Aspirar, dois, três, quatro. Expirar, dois, três, quatro. De cada vez, abrindo e fechando os braços. Vinte vezes. Depois, as flexões do corpo sobre os braços no chão. Para cima, dois, três, quatro. Para baixo, dois, três, quatro. Vinte vezes também. Quando ia acabando, o criado apareceu com o café e com os jornais da manhã, o Matin de Nice e o Herald Tribune de Paris. O criado deixou a bandeja na mesinha perto da janela. — Mais alguma coisa, senhor? — perguntou ele, como já havia feito mil vezes antes. — Vinte — disse Igor levantando-se, com a respiração um pouco ofegante do esforço feito. Olhou para a barriga. Sumida e firme. Nada mau para um homem de cinqüenta anos. Sorriu para o criado. — Acho que não, James. Pouco importava que o nome do criado fosse François. Desde que entravam para o serviço do príncipe, todos eles passavam a ser James. —  Com licença, senhor — disse o criado, encaminhando-se para a porta. —  Escute, a princesa já acordou? —  Creio que não. Pelo menos, ainda não recebemos o chamado dela na cozinha. —  Logo que tiver notícia dela, venha me dizer. —  Está bem, senhor. O criado saiu do quarto. Igor foi até a mesa e, ainda de pé, serviu-se de uma xícara de café. Levou a xícara aos lábios ao mesmo tempo que abria o Herald Tribune na página com as cotações da Bolsa. O olhar treinado percorreu as colunas rapidamente. Automóveis, mercado firme. Metalúrgicas, idem. AT&T e Eastman Kodak relativamente inalterados. Dow Jones, índice de alta de 0,09. Largou o jornal e foi tomar o café à janela. Tudo estava bem no mundo.
 
Um iate ia no rumo de Monte Cario, deslizando pelas águas azuis com as velas brancas enfunadas ao vento. Outro iate, este a vapor, estava indo para o seu ancoradouro em Beaulieu-sur-Mer. Parecia um bom dia para um passeio no mar. Quando Anne acordasse, perguntaria se ela gostaria de almoçar no iate. Até lá, nadaria um pouco e tomaria um banho de sol. Anne raramente acordava antes das onze e meia. Tomou o elevador e desceu para a praia particular. Saiu do prédio, piscando os olhos à luz do sol. Olhou para a vila. Erguia-se à altura de cinco andares. Era feita de pedra dos Pireneus num grupo de construções com torreões na encosta do penhasco que descia da Bas Corniche para o mar. Dentro da casa, os aposentos ficavam em níveis diferentes e cada torreão era ligado ao outro por uma arcada interna. Era uma casa maluca, mas ele gostava dela. Era o que se podia construir na propriedade de mais parecido com um castelo. Foi até a beira do pequeno cais e entrou na água. O frio lhe cortou a respiração. Tirou a cabeça da água, resfolegante. Era junho e a água ainda estava gelada. Começou a nadar vigorosamente e, quando voltou ao cais vinte minutos depois, sentia-se aquecido e satisfeito. Subiu a pequena escada para o terraço da piscina e pegou uma toalha. Enquanto se esfregava energicamente, foi até o bar e apertou o botão do interfone para falar com a cozinha. —  Pronto, patrão! — disse a voz do criado, ressoando na caixa. —  Traga um pouco de café à piscina, James.  Desligou o botão e saiu do bar. Dirigiu-se para a piscina e foi só então que a viu. Um amplo sorriso lhe distendeu os lábios, pois ele gostava da sobrinha. —  Bom dia, Betsy — disse cordialmente. — Acordou cedo. Betsy levantou o corpo e sentou-se no matelas, prendendo com as mãos, de encontro aos seios, as alças do sutiã. —  Bom dia, tio Igor.  Ele riu. —  Esse biquíni a veste tão pouco que você não tem necessidade alguma de ficar tão nervosa. Ela não sorriu e tratou de prender as alças. Ele se virou e olhou para o mar, abrindo os braços. —  Outro lindo dia na Riviera. É difícil às vezes acreditar que haja algum problema no mundo quando o sol brilha assim aqui. Ela nada disse e ele se voltou, cheio de estranheza. Não era da natureza dela ficar tão calada assim. —  Que é que há? Você não ia passear de barco hoje de manhã? —  Não estava com disposição. —  Por quê? Ela olhou para ele, apertando os olhos por causa do sol. —  Porque me senti enjoada a manhã toda. —  Vou telefonar para o Dr. Guillemin — disse ele, imediatamente preocupado. — Também achei aquela bouillabaisse da noite passada temperada demais. —  Não é a bouillabaisse. —  Que é então? —  Acho que estou grávida — disse ela, muito calma.  Ele a olhou, com o espanto visível no rosto simpático e queimado de sol. —  Como foi isso?  Ela riu. —  Tio Igor, para um homem que já foi um dos mais famosos playboys do mundo, está sendo incrivelmente ingênuo. Tudo é muito simples. Trouxe tudo para a Riviera, mas me esqueci das pílulas. —  A França é um país civilizado, Betsy. Poderia comprá-las aqui. —  Mas não comprei e não adianta mais falar nisso. —  Tem certeza de que está grávida? —  O meu incômodo deixou de vir duas vezes — disse ela sem rodeios. — É a primeira vez que me acontece isso. —  É melhor termos certeza. Vou marcar hora para você esta tarde em Cannes com Pierre Guillemin. —  Não se dê a esse trabalho. Vou partir para os Estados Unidos hoje à tarde. Os abortos são legais em Nova York e Max já tomou todas as providências. Ele disse que conseguirá os melhores médicos para mim. —  Max van Ludwige? — perguntou ele com incredulidade na voz. — Foi ele? Mas sempre se supôs que ele fosse tão feliz no casamento! Tem uma filha quase de sua idade. —  Ele é feliz no casamento, sim — disse ela. — Mas às vezes acontecem coisas assim. Ficamos três dias sozinhos no barco enquanto ia buscar a família. —  E se os médicos acharem que já é tarde para fazer o aborto? —  Neste caso, Max se divorciará para casar-se comigo. Depois do nascimento do bebê, conceder-lhe-ei divórcio e ele se casará de novo com a esposa. —  Você parece muito segura de si mesma. —  Pareço e estou. Nós três já combinamos tudo. —  Três? Quem mais está metido nisso? —  Rita, a mulher de Max. A coisa mais certa era dizer tudo a ela. Nenhum de nós queria magoá-la. Ela se mostrou muito distinta e compreensiva. Está certa de que isso foi apenas um episódio sem conseqüências e que é a ela que Max realmente ama. O criado apareceu com a bandeja do café. —  Onde vai tomar o café, patrão? Igor olhou para ele sem poder falar. Apontou uma mesinha próxima e o criado deixou ali a bandeja. Igor conseguiu afinal falar. — Quero um conhaque, James. Duplo, ouviu?
 
Loren III olhou para o alto e simpático holandês. Max van Ludwige era mais ou menos da idade dele, mas os cabelos louros e os olhos azuis no rosto queimado de sol faziam-no parecer muito mais moço. —  Essas situações são sempre embaraçosas — disse o homem num inglês excessivamente correto. — Nunca se sabe o que dizer. —  Não sei também — disse Loren constrangidamente. — Nunca estive numa situação assim. —  Nós dois sentimos muito tudo — disse Van Ludwige. —  Onde está Betsy agora? —  Já vai descer — disse Max. Olhou para o criado que entrou na sala de estar da casa da Sutton Place que era, havia muitos anos, de propriedade da família dele em Nova York. — Que desejam beber? —  Scotch e água — disse Loren automaticamente. —  Um martíni seco — disse Bobbie.  Van Ludwige olhou para o criado e disse: —  Meu scotch de costume. O criado deixou a sala e um silêncio um tanto desagradável caiu sobre eles. Van Ludwige tentou quebrá-lo. —  Há quanto tempo não a vejo, Bobbie!  Creio que a última vez foi em Le Mans em 1967, não foi? —  Creio que sim — disse ela. — Se não estou enganada, você inscreveu dois Porsches na corrida. —  É verdade, Mas não tive sorte. Nenhum dos dois completou a corrida.. O criado trouxe as bebidas. Depois que ele saiu, Max levantou o copo. —  Senti muito o que aconteceu a Lorde Ayres, mas vejo com prazer que você é feliz de novo. Acha que já está um pouco tarde para dar parabéns aos dois? —  Obrigada — disse Bobbie e olhou para Loren. — Hoje é justamente nosso aniversário. —  É mesmo? — perguntou Loren, surpreso. —  Faz três meses hoje que nos casamos. —  Um brinde então a isso — disse Max. — A muitos outros felizes aniversários. Beberam e o silêncio se restabeleceu desagradavelmente. Max tentou de novo puxar conversa. —  Há muito interesse na Europa pelo seu novo carro. Vai ter motor de turbina, não é? — É, sim. —  Espera lançá-lo no mercado no ano que vem?
—  Não sei ainda — disse Loren. — Passamos os últimos dois meses em lua-de-mel. Na verdade, eu devia estar em Detroit ontem para uma reunião em que se tomariam as últimas decisões. Mas. houve isso e eu tive de adiar a reunião. Max se levantou quando Betsy apareceu à porta. Ela hesitou um momento e então se encaminhou para eles. —  Alô, Bobbie. Bobbie olhou para ela e viu as fundas olheiras devido à falta de sono no rosto da moça. Levantou-se impulsivamente e beijou-a. —  Alô, Betsy. Betsy deu um sorriso leve e se voltou para o pai, que estava de pé a olhá-las. Disse, sem sair do lugar: — Alô, papai. Ele fez um gesto vago com a mão. Ela então correu para os braços dele. —  Papai, papai! Espero que não esteja zangado comigo! —  Não estou zangado com você, minha filha — disse ele, beijando-a. —  Que confusão que eu fiz, não foi? —  Tudo vai acabar bem. Vamos ajeitar tudo.  Ela respirou fundo e se controlou. —  A princípio, fiquei muito aborrecida com ele, mas agora estou contente por tio Igor lhe ter telefonado. —  Ele fez bem, pois estava muito preocupado. —  Sei disso. Está vendo, Max? Não lhe disse que papai ia compreender? O holandês inclinou a cabeça. —  Fico muito contente com isso por sua causa.  Loren olhou para ele e disse: —  Agora que minha filha está aqui. creio que podemos discutir os nossos planos. —  É claro — disse Max, levantando-se. Foi até a porta e fechou-a. — Os criados têm orelhas muito compridas. Loren assentiu e tornou a sentar-se. Betsy estava ao lado dele no grande sofá. Loren pegou o copo de uísque e olhou para Max, que começou a falar. —  Já tomei as providências necessárias para ir de avião para Nassau na semana que vem, em companhia de Betsy. Já estão se fazendo preparativos para a concessão rápida do divórcio seguido da celebração do casamento. Não haverá problemas. Loren se voltou para a filha.
—  É isso que você quer? Betsy correu os olhos para o pai, para Max e de novo para o pai, dizendo então com voz firme: —  Não! Durante alguns momentos, houve um espantado silêncio e, então, todos começaram a falar ao mesmo tempo. —  Eu pensei. . . — disse Max. —  Que quer dizer com isso? — perguntou Loren à filha.  Betsy olhou para Bobbie. Houve entre elas um olhar de compreensão. Ela se voltou para os homens. —  Tudo isso é uma farsa e não sei por que temos de sujeitar-nos a ela. Max não quer se casar comigo e eu não quero me casar com ele. Max está apenas sendo um cavalheiro. Não sei por que Rita e ele têm de passar por tudo isso só porque eu me descuidei e fiquei grávida. —  Que é que você quer fazer então? —  Por que é que não posso ter calmamente meu filho, sem necessidade de nada disso? Loren ficou zangado de repente e exclamou: —  Não quero filhos ilegítimos em minha família! — Não seja tão antiquado, papai! — disse ela. — Há muitas mulheres que têm filhos sem a menor idéia de se casarem. De qualquer maneira, o que pretendemos fazer é um absurdo. Casar só para ter o filhote então divorciar-me de novo. Por que não posso ir para algum lugar sossegado e ter meu filho lá? — Porque já circulam muitos rumores de que você está grávida e até os jornais já falaram nisso — disse Loren. — Não há nenhum lugar sossegado onde você possa se esconder. —  Os jornais que falem à vontade! — exclamou Betsy. — Pouco me importa! —  Escute, Betsy — disse Max. —  Não, Max, não vou deixar você passar por toda essa embrulhada. —  Quero me casar com você, Betsy!  —  Para quê? Você não me ama! —  E se tivermos um menino, Betsy? —  Que é que tem isso? —  Compreenda o que isso representaria para minha família. Tenho três filhas, sem nenhum filho para continuar meu nome. Meu pai ficaria radiante! —  Na verdade, é uma grande razão — disse Betsy, ironicamente. — E se eu tiver uma filha ou um aborto natural? Neste caso, você me daria outra chance? —  Betsy, você está procedendo desajuizadamente — disse Max. —  Não, ela não está procedendo  desajuizadamente — disse Bobbie de repente. Todos a olharam, surpresos. Ela deixou os homens de lado e falou diretamente com Betsy. — Você está certa e, em circunstâncias comuns, eu concordaria com você e até a ajudaria a fazer o que deseja. Mas você não está sendo justa. —  Estou, sim — retrucou Betsy, perdendo a calma. — Com Max, com Rita e comigo. —  Certo, mas não está sendo justa com seu filho. Não é preciso dizer-lhe que Max é um excelente homem, pois isso você já sabe. Mas você tem obrigação de fazer com que seu filho conheça o pai e de não privá-lo de um nome e de uma tradição. Betsy olhou-a demoradamente e afinal disse: —  Pelo menos, você é honesta. Diz as coisas exatamente como elas são. — É o que procuro fazer. Você estava cometendo um erro. Betsy compreendeu de súbito que Bobbie conhecia perfeitamente a razão de sua atitude. Era Ângelo. Queria mostrar a ele que ela também podia fazer o que quisesse. E isso era sem dúvida alguma um erro. —  Não incorra em outro erro — disse Bobbie, calmamente. —  Está bem, estou de acordo — disse Betsy, sentindo as lágrimas lhe chegarem aos olhos. As coisas nunca se passavam como se queria.
 
Capítulo 16
—  Estamos em dificuldades — disse Ângelo. — Grandes dificuldades. —  Tirando isso, que há de novo? — perguntou Rourke.  Duncan sorriu. —  Gastei quarenta e cinco anos de minha vida nesta indústria e não me lembro de um tempo em que não houvesse problemas. —  Mas desta vez são muito piores — disse Ângelo.  Levantou-se e percorreu a sala em toda a sua extensão. Parou às janelas do Pontchartrain e olhou para fora. Do outro lado da rua, a marquise de Cobo Hall anunciava os próximos acontecimentos. A grande atração iminente era uma convenção de fabricantes de sutiãs. Sorriu intimamente do ridículo de tudo isso. Esses homens não podiam dispensar um baile e tudo em que tinham de pensar era em peitos.  Voltou-se para os outros e disse: —  Eu não os faria vir da Califórnia se não estivesse preocupado. Os dois homens assentiram atentamente sem falar. —  Na semana passada, Bancroft me disse que estávamos perdendo revendedores e que era muito provável que deixássemos de ter uma rede decente de revendedores se suspendêssemos a produção do Sundancer. Já apuramos que isso também é obra de nosso amigo Simpson e de sua organização. Há toda uma campanha montada contra nós e, neste momento, estão de tal maneira à nossa frente que não sei se ainda conseguiremos alcançá-los. — Que é que esse camarada tem contra nós? — perguntou Duncan. — Que eu saiba, nunca fizemos nenhum mal a ele. — Não sei, mas estou procurando tirar isso a limpo — disse Ângelo. — O dinheiro tem de vir de algum lugar. Ele não tem recursos suficientes para empreender uma coisa em grande escala como essa. Foi até o bar e preparou bebidas para todos. Voltou com elas para a mesa. —  Que é que vai acontecer agora? — perguntou Tony. —  Quem pode lá saber? — respondeu Ângelo. — Tenho a impressão de que a diretoria vai cancelar o programa do Betsy na reunião de sexta-feira, votando pela continuação do Sundancer. —  Mas eu estou comprometido em cerca de setenta milhões de material — retorquiu Rourke. —  Sei disso — falou Ângelo. — Grande parte desse material será absorvida se continuarmos com a produção do Sundancer. Mas não é essa a questão. É preciso comparar o prejuízo material com o prejuízo de toda a companhia. —  Você fala como se já estivéssemos derrotados — disse Duncan.
—  Ainda não — disse Ângelo. — Tenho várias idéias, mas não sei até que ponto são práticas. —  Vamos discuti-las então — propôs Rourke. —  Então me diga quais são as chances de fazermos o motor do Betsy Grande em nossa fábrica da costa do Pacífico em lugar do motor do Betsy Mini. —  Nenhuma chance — respondeu Rourke categoricamente. — Levaríamos mais um ano para o reaparelhamento e, ainda assim, só teríamos capacidade para cinqüenta mil unidades por ano no máximo. —  Quantos Mínis estão planejando fazer? —  Cem mil. Ângelo pensou cuidadosamente. O Betsy Mini era a solução que tinham para os carros pequenos. Competiriam com ele o Volks, o Pinto, o Vega e o Gremlin. Tinha um estilo simples, como o dos carros pequenos ingleses, imitados com tanto êxito pelo Honda japonês, mas era mais potente e tinha melhor rendimento. O seu preço, para fins de competição, era de mil oitocentos e noventa e nove dólares. —  E quantos Fadas de Prata? —  De sete a dez mil — respondeu Rourke. O Betsy Fada de Prata era o carro esporte da linha, como o Corvette em relação ao Chevrolet. Era o único carro da linha em que tudo concorria para um alto rendimento. Eixo, suspensão, chassi reforçado. O velocímetro parava em trezentos e cinqüenta quilômetros, mas nos testes em retas o carro tinha passado de quatrocentos. Ângelo acendeu um cigarro. —  Dentro de quanto tempo podem iniciar a produção?  Rourke e Duncan se olharam. Foi Duncan quem falou. —  Se tivermos a ordem agora, poderemos fazer os primeiros carros saírem da linha de produção em novembro. Estavam no começo de julho. Para novembro, faltavam cinco meses. —  Não pode ser mais cedo? — Não, rapaz. E já será puxado. Vamos ter muita sorte se conseguirmos. Restava então o Betsy StarJet, o sustentáculo principal de toda a linha. Havia dois modelos básicos, o menor dos quais correspondia ao Nova e ao Maverick, e o outro, embora fosse um pouco maior do que o Chevelle e o Torino, teria a mesma faixa de preço. Era para esse carro que a fábrica do Sundancer era necessária. Era a única que tinha capacidade de produzir duzentas mil unidades por ano ou mais. —  Isso só nos deixa uma possibilidade: fabricar os nossos motores no estrangeiro. —  Número 1 não vai gostar disso — disse Duncan. — Ele queria que o carro fosse inteiramente americano. — Pois não terá outro jeito se quiser lançar o carro no mercado — disse Ângelo. — Até ele tem de compreender que não se pode vender um carro sem uma boa rede de revendedores. — É tarde demais para instalar em outro lugar uma fábrica que tenha a capacidade de que necessitamos — disse Rourke. —  Temos  duas  possibilidades — disse Ângelo.  — A Matsuaka no Japão e a Waggoner Fabrik na Alemanha Ocidental. Ambas têm capacidade industrial e já manifestaram interesse em fabricar o motor sob regime de licença para seu uso próprio. —  Se lhes dermos a licença — disse Duncan —, estaremos criando concorrentes para nós mesmos. —  Se tivermos êxito, não conseguiremos afastar a concorrência — disse Ângelo. — Vejam o que aconteceu com o Wankel. A GM tem os direitos dele aqui e a Toyo Kogyo já tem a sua versão no mercado. Pode ser até uma vantagem para nós. Se tiverem muito interesse, poderemos até formar empresas mistas com eles. —  Isso poderia representar um bocado de dinheiro para nós — disse Rourke. —  Vamos deixar o dinheiro de lado — disse Ângelo. — O importante é que eles nos garantam um mínimo de cento e cinqüenta mil motores no ano que vem. —  Não vai ser fácil — disse Rourke. — Essa gente é muito atilada em matéria de negócios e, se sentirem que estamos em dificuldades, pior ainda. —  Cabe a vocês convencê-los de que não é esse o caso — disse Ângelo, levantando-se. — Tony, você vai se entender com os japoneses; Duncan, com os alemães. —  Muito bem — disse Rourke. — Quando é que devemos partir? —  Imediatamente. —  Já estou muito velho para essas violências — resmungou Duncan, levantando-se. —  Deixe disso — murmurou Ângelo, rindo. — Você bem sabe que vai gostar do passeio. Todas aquelas grandes fräulein1 louras. —  Meu filho: na minha idade, só posso é olhar — disse o escocês. — E, se não tiver os óculos, nem isso. Ângelo riu. —  Você dará um jeito. —  Escute — disse Duncan —, que é que resolve sobre o Mini e o Fada de Prata? Quer que entrem logo na linha de produção? —  Ainda não. Teremos de esperar a reunião de sextafeira. A decisão tem de partir deles.
 
A sala da diretoria estava cheia de fumaça e tensão. John Bancroft fizera a sua exposição com simplicidade, sem nenhum sentido de drama. Mas as conseqüências implícitas eram claras para todos. Sem uma rede de revendedores completa, o Betsy não teria chances. Ângelo cortou a torrente de comentários inúteis. —  Trataremos do caso de Simpson posteriormente. Não é essa a questão mais premente. O nosso problema é conseguir as duas coisas, lançar o Betsy no mercado e, ao mesmo tempo, entregar o Sundancer aos revendedores para que eles fiquem satisfeitos. Todos se voltaram para ele e Ângelo continuou: —  Todos sabem que, se não tivermos a fábrica do Sundancer à nossa disposição, não conseguiremos produzir o Betsy StarJet em quantidades suficientes para que o nosso empreendimento seja rendoso e viável. Há, entretanto, certas soluções possíveis, que estão sendo exploradas neste momento. "Tony Rourke está no Japão em conferência com as Indústrias Pesadas Matsuaka e John Duncan está na Alemanha Ocidental em entendimentos com a Waggoner Fabrik para que fabriquem motores Starjet para nós. Se pudermos concluir um acordo satisfatório com essas firmas, será possível produzir o Starjet na terceira e na quarta linhas de montagem da fábrica do Sundancer. Haveria necessidade de um investimento adicional para colocar essas linhas em condições de funcionamento porque estão em desuso há muitos anos, mas creio que o investimento se justifica plenamente em face de nosso programa geral." Ficou em silêncio enquanto havia um murmúrio de apro                                                       
1 "Moças." Em alemão no original. (N. do E.)
vação em torno da mesa e disse: —  É claro que todos compreendem que não há outra solução senão adiar e rever o projeto Betsy. —  Nada disso! — exclamou Número 1, dando um murro na mesa. — Não concordo absolutamente! O Betsy é um carro americano e tem de ser fabricado todo ele aqui! Não pretendo pedir aos estrangeiros que nos ajudem a fazer o que eles aprenderam conosco! Em contraste com a veemência de Número 1, a voz de Loren III era calma, quase fria. —  Não está se mostrando muito lógico, avô. Creio que Ângelo expôs a nossa situação com muita clareza e objetividade. Não temos outro remédio senão seguir esse caminho. —  Nenhum estrangeiro vai meter a mão nesse carro enquanto eu for vivo! — gritou Número 1. — A companhia é minha, o dinheiro é meu e o que tem de ser feito é o que eu digo! Loren olhou para o avô firmemente e disse com voz calma e quase paciente: —  Não pode mais agir assim. Já se foi o tempo em que uma companhia era dirigida pelo capricho de um homem que ditava a sua política de vida e de morte. Homens como o senhor, Henry Ford e Walter Chrysler pertencem ao passado. O senhor não pode mais tomar decisões baseado nas ações que possui e na sua vaidade egoísta. Esta companhia tem trinta mil empregados, muitos dos quais dedicaram a ela sua vida, e o senhor não tem o direito de jogar roleta-russa com o bem-estar e o futuro dessa gente. Têm tanto direito a esta companhia quanto o senhor e merecem toda a consideração que o senhor espera. Não temos outro caminho senão continuar com o Sundancer.      —  Não! Nunca! — trovejou Número 1. Em gestos rápidos, puxou para fora os punhos da camisa. Tirou as abotoaduras e mostrou-as. Eram de ouro e brilhavam na palma de sua mão. —  Olhem para estas abotoaduras! São modelos do primeiro Sundancer que eu produzi! Isso aconteceu há cinqüenta anos. Você fala de viver no passado quando só quer é agarrarse a ele! Jogou com força as abotoaduras e as pesadas peças de ouro quebraram a vidraça e desapareceram do lado de fora. Voltou-se para a sala em silêncio e disse, com voz já então calma: — O Sundancer morreu, senhores. Está encerrada a sessão.  Os outros saíram em silêncio da sala, até que nela só ficaram Ângelo, Loren III e Número 1. Ao fim de um momento, Loren III levantou-se e olhou para Número 1. —  Fique sabendo que não pretendo deixá-lo ir avante com isso. Pode intimidar os outros, mas não a mim. Vou combatê-lo com toda a energia que eu tenho. Número 1 sorriu e disse com uma voz quase amável: —  Faça o que quiser. Mas não me venha chorando quando levar uns pontapés no traseiro. —  Não tenho a menor intenção de perder — disse Loren III, que nesse momento se parecia muito com o avô. — Alguém tem de pensar nas responsabilidades assumidas pela companhia em relação aos seus empregados através dos anos. E há uma coisa de que o senhor parece esquecer-se. Número 1 não falou. —  De acordo com a lei, os acionistas em minoria têm alguns direitos. Minha irmã e eu possuímos vinte por cento desta companhia. E Anne me deu procuração. Nenhum de nós pretende deixar que o senhor destrua esta companhia. —  E eu possuo oitenta por cento — disse Número 1. — Não — respondeu Loren calmamente. — O senhor tem direito a oitenta por cento dos votos. O senhor só possui quarenta e um por cento. É uma grande diferença. Depois disso, virou-se e saiu da sala.  Número 1 viu o neto sair e voltou-se para Ângelo, dizendo quase respeitosamente: —  O garoto está tomando jeito, sabe? —  E não está inteiramente errado, sabe disso? O senhor está entrando numa curva em "S" a trezentos e cinqüenta quilômetros por hora. —  Escute aqui — disse Número 1. — De que lado você está, afinal de contas? Ângelo não respondeu. O telefone na mesa diante dele começou a tocar e ele atendeu. —  Telefonema das Bahamas para o Sr. Perino — disse a telefonista. —  Quem é que quer falar comigo? — perguntou ele surpreso. Houve um estalo na linha, um momento de silêncio e a telefonista voltou a falar. —  A Srta. Elizabeth Hardeman. Ele olhou para Número 1 e disse à telefonista: —  Pode ligar. —  Ângelo? — disse Betsy dó outro lado da linha. —  Eu — disse ele. Havia um leve sussurro no telefone como se o mar estivesse arrebentando perto dela. —  Ângelo — disse ela, com a voz cheia de tensão como se tivesse chorado. — É a última vez que vou lhe perguntar. Quer se casar comigo? Ele tentou fazer pilhéria. —  Quando? —  Não  estou  brincando, Ângelo.  Estou  falando  sério. Agora mesmo. Neste minuto. É a última vez. —  Já lhe disse, Srta. Elizabeth. Não sou de casamento. O telefone foi abruptamente desligado e ele colocou vagarosamente o fone no gancho. Ela parecera exaltada, quase como se não estivesse no seu juízo perfeito. Ângelo olhou para Número 1 do outro lado da mesa. —  Foi Betsy. Pensei que ela estava na França. Que será que está fazendo nas Bahamas? —  Não sabe então? — perguntou Número 1. — Todos os jornais publicaram. —  Há semanas que não pego num jornal. —  É uma pena — disse Número  1, com uma nota de tristeza na voz. — Minha bisneta vai se casar lá esta noite. Número 1 fez rolar a sua cadeira até a porta. Abriu-a e olhou para Ângelo, que ainda estava sentado à mesa. —  Até amanhã de manhã. Ângelo acendeu um cigarro e continuou na sala vazia. Só quando o cigarro queimou até quase chegar-lhe às pontas dos dedos foi que ele o jogou num cinzeiro e se levantou. Saiu do edifício quando os raios dourados do sol poente se coavam através da neblina de Detroit. Olhou para o edifício às suas costas. Era bem visível a vidraça quebrada da sala da diretoria. Impulsivamente, saiu do caminho para o gramado sob a janela e procurou ansiosamente com os olhos. Encontrou a primeira abotoadura quase imediatamente, logo abaixo da janela, entre alguns cacos de vidro. Levou quase quinze minutos para encontrar a outra. Estava escondida sob uma sebe. Apanhou-a e voltou ao caminho cimentado. Olhou para as abotoaduras. A luz do sol realçava todos os detalhes do trabalho do artista. A pequena reprodução do Sundancer era tão perfeita que bastava um pouco de imaginação para dar-lhe vida e fazê-lo funcionar. Apertou as abotoaduras com tanta força que quase lhe machucaram a mão. Dirigiu-se para o seu carro.
 
Livro quatro, 1972
Capítulo 1
 
O sol branco de janeiro batia nas planícies salgadas, transformando os quilômetros à nossa frente em diamantes cintilantes que nos teriam ofuscado se não fosse o vidro enfumaçado da viseira de nossos capacetes. Os únicos sons eram o gemido da turbina, o guincho do vento e o ronco dos pneus avantajados correndo pela terra entre nós. Eu mantinha o volante firmemente nas mãos, levando o carro para o horizonte, onde a areia branca e o céu azul de inverno se juntavam. A voz de Cindy me chegava aos fones tão calma e tranqüila como se estivéssemos atravessando em marcha lenta uma estrada rural: —  Linha vermelha, sessenta e oito mil rotações por minuto; velocidade, quinhentos e oito quilômetros por hora; temperatura do reator da turbina firme a  mil e duzentos graus centígrados. O controle pelo rádio entrou na voz dela. A voz de Duncan em nossos fones estava mais carregada do que de costume. —  Linha vermelha a sessenta e oito mil, rapaz. —  Já estamos lá — disse eu. —  Todos os sistemas normais — disse ele. — Leve a setenta mil e mantenha por um minuto, Vou dar-lhe o tempo. Cindy, acerte seu relógio para conferir se o rádio falhar. —  Certo — disse Cindy. Vi sua mão com o cronômetro à minha frente. Abri o acelerador. Uma fração de instante depois, Duncan voltou. —  Comece por um minuto. Linha vermelha, setenta mil.  Cindy apertou o botão. Vi de relance o ponteiro dos segundos começar o seu giro em torno do mostrador. Então, a mão dela desapareceu. A voz era firme e direta. — Linha vermelha, setenta; velocidade, quinhentos e vinte e três quilômetros; temperatura, mil e duzentos; tempo, quinze segundos. Houve uma pausa; então ela recomeçou: —  Linha vermelha, setenta; velocidade, quinhentos e cinqüenta e cinco quilômetros; temperatura, mil e duzentos; tempo, quarenta e cinco segundos. Pouco depois: —  Sessenta segundos. O rádio interveio de novo: —  Sessenta segundos! Basta, rapaz. Devagar agora. Eu já estava soltando o acelerador. Só quando já estávamos a menos de cento e dez por hora foi que olhei para ela. Apesar da cabina com ar-condicionado, seu rosto estava afogueado e havia uma leve sombra de transpiração no lábio superior. A voz era ofegante. —  Sabe a que velocidade nós chegamos?  —  Não. —  Seiscentos e vinte e nove quilômetros — disse ela. — Gozei duas vezes. Ri e disse: —  Bem, isso só não me aconteceu porque eu estava muito ocupado. A voz de Duncan fez-se ouvir secamente nos fones: —  Lembrem-se de que o rádio está ligado. Cuidado com o que estão dizendo. Rimos. A mão dela procurou a minha sobre o volante. —  Que carro, menino! — exclamou ela. — Que carro! —  Já imaginou o que poderíamos ter feito com um carro assim em Indianápolis? O fim da pista chegou cerca de dois quilômetros à minha frente. Toquei o pedal do freio. Não era preciso mais nada. O sistema eletrônico de freios fez o resto.
 
Quando saí do chuveiro e me vesti, já estavam tirando o protótipo do Betsy Fórmula 1 da pista para o caminhão com arcondicionado em que seria transportado para os nossos campos de prova. Duncan voltou-se para mim quando eu saí e disse: —  Foi uma boa arrancada, rapaz. —  Obrigado. Tudo correu bem? —  Perfeitamente. O diretor me disse que as filmagens do helicóptero vão sair bem nítidas e todas as outras câmaras funcionaram otimamente. —  E tivemos muita sorte com o tempo. —  De fato, Ângelo. Bem, o pessoal da televisão comercial não tem razão de queixa. Fizemos tudo o que eles pediram. Olhei para Duncan e perguntei: —  Era mais fácil no tempo em que não havia televisão, não era? Quando para apresentar um novo carro bastava leválo para uma exposição. Ele sorriu. —  Pelo menos, não era preciso perder tanto tempo fazendo essas coisas. Quer saber o atrevimento daquele diretor? Pediu que eu desse um tom mais dramático a minha voz quando falasse pelo rádio. — Ah! — exclamei, rindo. — Já sei por que você me pareceu tão afetado. Cindy se aproximou de nós com os cabelos soltos e brilhando ao sol. — Número 1 está chamando pelo telefone de Palm Beach. Entrei de novo e peguei o telefone. — Ia mesmo telefonar-lhe — disse eu. — O Fórmula 1 acaba de fazer seiscentos e vinte e nove quilômetros brincando. — Quem estava dirigindo? — perguntou ele, com voz irritada. —  Eu. Ele não falou logo e eu senti que a explosão estava se formando. Afastei um pouco o receptor do ouvido. —  Sujeito imbecil, cretino, burro! Quem foi que já viu um vice-presidente dirigir carros em testes? Quando é que vai deixar de brincar com automóveis? —  Tenho direito a divertir-me um pouco. . . —  Mas não com meu dinheiro! Para que acha que lhe dei opção sobre duzentas mil de minhas ações? Não foi decerto para que você se mate e nos deixe fora dos negócios. Não respondi. A única razão daquelas opções foi ele não me querer devolver o milhão de dólares que eu tinha adiantado para a compra da fábrica alguns anos antes. —  Afaste-se desse carros, está ouvindo? —  Estou, sim. Mas acho que vai ficar muito satisfeito com os comerciais. Mandarei levá-los para aí logo que ficarem prontos. —  Posso esperar até vê-los na televisão. Temos outros problemas.
Era a grande novidade do ano, mesmo porque o ano mal começara. —  A que problema particular está se referindo? — Meu neto. Deu afinal o ar de sua graça. —  Sério? Loren III tinha ficado particularmente quieto naqueles últimos meses e eu vivia imaginando o que iria fazer. —  Não quero falar sobre isso pelo telefone — disse Número 1. — Venha imediatamente até aqui. —  Mas eu tenho de ir a Detroit para aprovar as novas linhas de montagem. —  Encarregue Duncan disso. Venha para cá ligeiro como um ladrão! Bateu o telefone depois de dizer isso e eu tive de desligar. Duncan e Cindy apareceram na sala. —  Número   1   está satisfeito com tudo?  — perguntou Duncan. —  Que esperança! Ele quer que eu vá até lá o mais depressa possível. —  Algum problema? — perguntou Duncan. —  Não sei ainda. Ele não quis dizer pelo telefone. —  Será que ele descobriu? — perguntou o escocês, depois de pensar um pouco, —  Descobriu o quê? — perguntei, com a cabeça em outro lugar. —  O projeto do Sundancer. —  Não, acho que não. Ao menos, não falou nisso. É alguma coisa relacionada com Loren III. Quer me fazer um favor, Cindy? Vá para o telefone e fale com as companhias de aviação. Veja qual é a conexão mais rápida que eu posso conseguir para Palm Beach. Você, Duncan, tem de ir para Detroit e aprovar em meu nome as linhas de montagem. Quero tudo pronto para começar no dia 20. Cindy cobriu o fone com a mão e disse: —  Já é muito tarde para um vôo direto. A melhor conexão parte de Salt Lake às seis horas da noite, com escala em Chicago para Fort Lauderdale. De lá, você fará o resto da viagem de carro. —  Está certo. Pode confirmar. —  Não há mudança de planos? — perguntou Duncan. — Linhas 1 e 2, Sundancer padrão, linhas 3 e 4, Starjet?
—  Isso mesmo. Entenda-se com Tony e veja se ele acertou tudo por lá. Quero que tudo marche bem azeitado. —  E vai marchar. Mas. . . —  Mas o quê? —  Número 1 não vai ficar nada contente quando souber o que você fez. —  Não faz mal. No momento em que ele apertar o botão de partida, não poderá fazer mais nada. Tudo tinha sido bem planejado: às onze horas da manhã na Flórida eram dez horas em Detroit e oito horas no Estado de Washington. O manipulador telegráfico de ouro já estava instalado na casa de Palm Beach. Os cinegrafistas, fotógrafos e repórteres estavam todos avisados e prontos para cobrirem a cerimônia. Exatamente às onze horas, Número 1 acionaria o manipulador de ouro em sua mesa, pondo em funcionamento as linhas de montagem em Detroit e Washington exatamente no mesmo instante. Cinqüenta e cinco minutos depois, o primeiro carro rolaria de cada uma das linhas de montagem, seguindo-se os outros, à razão de um carro a cada três minutos. Menos de um mês depois, no aniversário de Lincoln, a 12 de fevereiro, todos os revendedores da Bethlehem nos Estados Unidos apresentariam os novos carros. Cindy desligou o telefone. —  Você está confirmado em todos os vôos até a Flórida. —  Ótimo. Muito obrigado, Cindy. —  Que é que você quer que eu faça? — perguntou ela. — Quer que eu volte para a pista de provas? —  Nada disso. Vá para Detroit. Você vai chefiar o grupo que verificará os carros na linha de produção. —  E Stanforth? Stanforth era o principal motorista de provas. —  Vai ficar na costa do Pacífico e chefiar o grupo de provas lá. —  Vou ter aumento? — perguntou ela com um sorriso. —  Quanto é que Stanforth ganha? —  Trinta mil dólares. —  É quanto você vai ganhar. —  Ele não vai gostar de saber que uma mulher ganha o mesmo que ele. —  Azar dele. Será que nunca ouviu falar na igualdade entre os sexos?
 
Ela estava mexendo no seu toca-fitas estéreo quando saí do quarto. —  A mala já está arrumada — disse eu. —  Escute aqui — disse ela. — Não acha que seria bom dar uma despedida antes de você ir para o aeroporto? Isso o ajudaria a dormir no avião. —  Desde quando você se preocupa com meu sono a bordo dos aviões? — perguntei, rindo. —  Escute só isto — disse ela, ligando a máquina. O som trovejante do deslocamento de ar misturado com o gemido particularmente alto de uma turbina saiu do altofalante mais afastado e veio ao meu encontro, correndo de um alto-falante para outro. De repente, ouviu-se a voz dela nos alto-falantes do centro. — Temperatura do reator da turbina, oitocentos graus centígrados. A voz de Duncan se fez ouvir fina e esganiçada nos altofalantes afastados. —  Começar no sinal. Dez segundos. . . nove. . . oito. . . se. . . Ela desligou e me perguntou: —  Como é? Gostou? Cindy nunca deixava de me assombrar. Eu seria capaz de jurar que não lhe sobrava tempo para essas coisas. —  Como foi que você conseguiu? —  Mandei fazer duplicatas das fitas do computador e das fitas da câmara — disse ela com um sorriso secreto. — Limitei-me a misturá-las. Fiquei em silêncio. —  Então? — perguntou ela. —  Está bem. Vamos para o quarto. —  Não, não, que não há tempo. Se eu for instalar tudo lá, você acabará perdendo o avião. Vai ser aqui mesmo no chão. Tornou a ligar o aparelho. O som encheu tudo e ela se aproximou de mim de joelhos. O gemido da turbina e a voz de Duncan vinham dos alto-falantes. —   ...  te...  seis. . . cinco. . .  quatro. . . No momento em que ele disse "Um! Começar!" ela já me abrira a braguilha e estava com o meu pau dentro da boca.
 
Capítulo 2
Os gigantescos cães de guarda me conheciam, mas não conheciam o carro e o seguiram desconfiadamente pela alameda até que saltei. Nesse momento, correram para mim, batendo o rabo, ansiosos por que eu lhes fizesse festas. Afaguei-lhes a cabeça antes que me derrubassem. —  Alô, Donner! Alô, Blitzen! O chamado silencioso do apito sônico afastou-os de mim. Vi então o criado de Número 1 no alto da escada. —  Bom dia, Sr. Perino. —  Bom dia, Donald. —  Posso ir pegar sua bagagem no carro? —  Não há bagagem. Só esta maleta aqui em minha mão.  Ele me tomou a maleta e eu o segui, entrando na casa. —  O Sr. Hardeman já está acordado? —  Está na sala do café com o Sr. Roberts. Continuei pelo vestíbulo em direção aos fundos da casa, onde a saleta do café se abria para o terraço que dominava a praia e o mar. Número 1 e Artie estavam sentados à mesa e levantaram a vista ao ver-me entrar. —  Bom dia, Número 1 — disse eu. — Bom dia, Artie. Artie se levantou e me deu o seu aperto de mão tranqüilizador de advogado. Era como se me dissesse que deixasse de preocupações, pois ele tomaria conta de tudo. —  Bom dia, Ângelo. Número 1 teve de resmungar. —  Por que demorou tanto a chegar aqui? —  Cheguei a Fort Lauderdale à uma e meia da manhã e achei que não iria gostar de que eu viesse acordar a casa toda de madrugada. — Puxei uma cadeira, sentei-me, servi-me de uma xícara de café e acrescentei: — Está um dia lindo! —  Não vai achar tão lindo assim depois que ler isto —disse Número 1, jogando para mim um exemplar do Miami Herald daquele dia. Peguei o jornal. Estava dobrado na segunda página com um título em duas colunas marcado a lápis vermelho num canto da página. Li a seguinte notícia:
 
"LOREN  HARDEMAN   I  ACIONADO  PELO  CONTROLE DA FUNDAÇÃO POR SEUS NETOS
Loren Hardeman III e sua irmã, a Princesa Anne Elizabeth Alekhine, curadores da Fundação Hardeman, requereram à justiça do Estado de Michigan a revogação do artigo dos estatutos da fundação que deu, ao avô deles, direito de voto por toda a vida sobre as ações da Bethlehem Motors Company pertencentes à fundação. Sob a alegação de que esse artigo foi ilegal, nulo de pleno direito e contrário ao interesse público, que é a principal finalidade da fundação, declararam ainda que esse direito de voto deu ao Sr. Hardeman o controle acionário da Bethlehem Motors, que constitui o principal ativo da fundação, e que o controle do Sr. Hardeman prejudica esse ativo e, como tal, ameaça as atividades, a prosperidade e as finalidades da fundação. A petição teve a associação do procurador-geral do Estado de Michigan, em nome do povo do Estado de Michigan, que disse por sua vez que, na sua opinião, a perda ou desvalorização do ativo da fundação afetaria negativamente os projetos empreendidos conjuntamente, em benefício do povo de Michigan, pela fundação e pelo governo do Estado. O presidente do Tribunal de Justiça, Paul Gitlin, recebeu a petição e marcou a data de 17 de janeiro para a audiência de julgamento, dando prazo até essa data à fundação e ao Sr. Hardeman I para contestar as alegações".
Larguei o jornal e perguntei a Número 1: —  Quer me dizer exatamente o que significa isso? —  Significa apenas que estamos fritos e mal pagos! —  Espere um pouco. Sempre soube que eram cinco os curadores. Isso quer dizer que há mais dois além de seus netos e do senhor. — E daí? Faz muitos anos que não procuro nenhum deles. O mesmo tem acontecido com Anne. Mas Loren sempre esteve em estreito contato com os outros dois e os tem agora no bolso. — Já falou com eles, Número 1? — Tentei falar pelo telefone, sem resultado. Desapareceram misteriosamente. Loren trabalhou muito bem. — Quais são nossas chances? — perguntei a Artie. — Quer uma opinião jurídica ou a verdade pura e simples. — A verdade. — Vamos perder. — Por quê? — A doação é condicional. Quando o Sr. Hardeman deu as ações à fundação, reservou ou exigiu os direitos de voto sobre essas ações como uma condição essencial da doação. O tribunal terá de decidir que essa doação foi incompleta, e, desde que a validade da fundação não está em discussão no caso, o Sr. Hardeman terá de ceder à fundação os direitos de voto. — E se a validade da fundação for discutida? — Neste caso, as ações voltariam a ser propriedade do Sr. Hardeman, com efeito retroativo. E, evidentemente, ele seria responsável pela renda recebida pela fundação em virtude dos dividendos das ações. Um cálculo aproximado feito por mim mostra que cerca de cem milhões de dólares foram recebidos a esse título de 1937 até hoje. Presumindo que os impostos federais e municipais tenham andado em sessenta e cinco por cento dessa quantia, isso implica para o Sr. Hardeman um ônus fiscal pessoal de sessenta e cinco milhões de dólares, os quais, com juros de seis por cento ao ano pelo não-recolhimento dos impostos desde aquela data, poderão elevar o ônus fiscal ao dobro, ou seja, a cento e trinta milhões de dólares. Olhei para Número 1 e disse: — Tem razão. Estamos fritos, — Não lhe disse? Ficamos durante alguns minutos em silêncio. Tomei o café sem achar gosto algum nele. A beleza da manhã havia também desaparecido. Olhei para o jornal e alguma coisa na notícia me chamou a atenção. Apontei o trecho e li em voz alta: —  "... esse direito de voto deu ao Sr. Hardeman o controle acionário da Bethlehem Motors, que constitui o principal ativo da fundação, e que o controle do Sr. Hardeman prejudica esse ativo". Eles não têm de provar isso para que possam ter ganho de causa? —  Não — disse Artie. — A simples alegação de que todo o capital da companhia está sendo arriscado para fabricação e venda de um novo carro seria suficiente para o tribunal. Em geral, os homens de negócios prudentes não assumem compromissos dessa espécie. Parte do capital, sim. Todo ele, não. — Mas, se o carro for um sucesso, a companhia fará mais dinheiro do que nunca em sua história. Artie pareceu interessado e perguntou: —  Quando é que se poderá saber disso? —  De seis meses a um ano depois que o carro for lançado no mercado. —  Não adiantará nada. Não posso fazer o processo prolongar-se tanto tempo assim. —  Se Loren assumir o controle da companhia, o Betsy estará perdido — disse eu. — E, com isso, a companhia perderá cem milhões de dólares. —  Mas não perderá tudo — disse Artie. — Isso é menos da metade do prejuízo que haveria se não pudessem vender no mínimo duzentos mil carros novos. —  Eu teria mais certeza de vender Betsys em número suficiente se não tivéssemos tantos problemas com os revendedores —: disse eu. —  É isso! — exclamou Número 1, que pela primeira vez tinha uma nota de animação na voz. Olhamos para ele. —  Aquele patife do Simpson! Todos nós sabíamos que ele não tinha dinheiro para se meter numa campanha assim. Alguém devia financiá-lo. —  Fizemos uma verificação, sem qualquer resultado — disse eu.                     —  Quem fez as verificações? — perguntou Número 1. —  Dan Weyman, é claro. Isso compete ao departamento dele. —  Está aí. . . E você acreditou em Dan Weyman? —  Por que não? —  Dan Weyman é unha e carne com Loren — disse Número 1. —  Quer dizer então que seu neto é que está promovendo essa campanha? — perguntou Artíe. — Não posso acreditar nisso. Por que havia ele de querer destruir a companhia de que é presidente? — Não digo que sim nem que não — murmurou Número 1. — Mas a verdade é que meu neto dia a dia se parece mais comigo. Se eu estivesse na posição dele, faria o mesmo que ele fez. Só está errado numa coisa. Nós não nos assustamos com facilidade. — Se ligássemos Simpson a Loren, isso nos ajudaria no tribunal? — perguntei a Artie. Ele pensou por um momento. — Acho que não. O tribunal talvez afastasse Loren da posição de curador da fundação em vista da violação das suas responsabilidades fiduciárias, mas isso não alteraria o direito de voto dos outros curadores. —  Mas, se surpreendermos Loren com as calças na mão. os  outros curadores votarão de acordo com Número   1  — disse eu.
—  Se surpreendermos Loren — disse Número 1 —, não precisaremos dos votos da fundação. —  Não estou entendendo — disse eu. —  Tenho quarenta e um por cento das ações, não é? — Não, tem quarenta por cento — disse eu. — Decidi exercer meus direitos. —  Por que agora? — perguntou ele, sorrindo. — Porque acho que pode precisar de um milhão em dinheiro com  todos  os  seus  problemas  — disse  eu,   sorrindo também. Ele riu. — Está bem. Quarenta por cento. Você tem um por cento. Minha neta Anne tem dez por cento. Isso perfaz cinqüenta e um por cento. Não preciso de mais. — Mas como pode saber se ela vai ficar de seu lado? — Conheço minha neta. Se perder a fé no irmão, voltarse-á para mim. O marido dela tratará disso. Ele vai para onde está o dinheiro. — Só temos então um problema — disse eu. — É ligar Simpson e Loren. — Esse problema é com você — disse-me Número 1. — Trate disso e não se esqueça de que só tem oito dias para agir. — Como é que posso fazer uma coisa dessas? — Não me interessa! Faça o que tem de fazer. Foi o dinheiro que comprou Simpson. Mais dinheiro ainda poderá comprá-lo de novo. —  E se não der resultado? Se Loren não tiver mesmo culpa? —  Arranje um jeito de falsificar provas contra ele! Não estamos numa brincadeira de crianças!
 
Capítulo 3
Quando voltei ao Pontchartrain, de regresso a Detroit, naquela noite, encontrei um recado telefônico em meu escaninho, que li quando subia no elevador para meu apartamento. Dizia: "Favor telefonar para a Sra. Hardeman". Havia um número de telefone em Nova York e a hora em que eu fora procurado, sete horas e dez minutos da noite. Olhei para meu relógio, sem saber o que Bobbie poderia estar fazendo em Nova York. Eram quase nove horas. O leve murmúrio da música da boate no andar acima do meu ecoou através do teto quando entrei. Peguei o telefone no fundo da sala e olhei pela janela para Cobo Hall, enquanto esperava que se completasse a ligação. A convenção daquela semana era de agentes funerários. Devia ser uma coisa muito engraçada. Ouvi a voz da telefonista: —  A Sra. Hardeman está na linha. —  Alô, Ângelo! Não era a voz de Bobbie. Era Alicia. Dissimulei a minha surpresa e disse: —  Oi! Ela riu e disse: —  Oi! — Hesitou um momento e acrescentou: — Está muito admirado de eu lhe ter telefonado? —  Sinceramente, sim. —  Sei que você deve estar muito ocupado e, por isso, não lhe tomarei muito tempo. —  Não tem necessidade alguma de ter cerimônias comigo, Alicia. Já nos conhecemos há um bocado de tempo. —  Desculpe, Ângelo. Mas acontece que, depois de meu divórcio, não sei mais como serei tratada por pessoas que conheci quando era casada. —  Conheci você antes de ser casada. —  Está certo. Vou ser muito direta. Como parte de meu acordo  de  divórcio,  recebi metade das  ações  de  Loren  na Bethlehem. —  Não sabia disso, Alicia. —  Poucas pessoas sabem. Loren não quis que houvesse qualquer publicidade a esse respeito. Foi por isso que lhe dei procuração para votar. —  Compreendo... Isso significava que Loren possuía apenas cinco por cento das ações da companhia e não dez por cento, como pensávamos. —  Soube pelos jornais da ação intentada por ele. Ouvi Loren e Dan Weyman conversarem sobre isso muitas vezes, mas nunca pensei que chegassem a esse ponto. E eu não quero que eles tenham o controle da companhia.
—  Somos dois então. —  Falei com meu advogado e ele me redigiu uma nova procuração em favor do avô. Quero que você diga isso a ele. —  Por que não telefona diretamente para ele? Posso assegurar-lhe que vai ficar muito satisfeito. —  Não. A secretária dele, a tal Sra. Craddock, comunica tudo a Loren e eu não quero que ele saiba disso. Eu estava certo e, ao mesmo tempo, errado. Sabia que havia um espião, mas tinha pensado que era Donald. —  Fique descansada que farei Número 1 saber disso. —  Vou mandar a procuração para você aí em seu hotel. Diga ao avô que vote por mim com bem quiser. —  Direi, sim. Escute aqui, Alicia. Você disse que Loren e Dan falaram sobre isso muitas vezes? —  Claro. Não era nada de novo. Todas as vezes que Loren se aborrecia com o avô, o assunto vinha à baila. Especialmente depois que souberam do projeto do Betsy. Dei um tiro no escuro. —  Você os ouviu falar alguma coisa sobre um homem chamado Simpson? — Mark Simpson? —  Esse mesmo. — É amigo de Dan Weyman — disse Alicia. — Dan levou-o várias vezes lá em casa a fim de conversar com Loren. Estavam trabalhando juntos em alguma coisa, relacionada, se não me engano, com a segurança nos automóveis. Bem no alvo! Procurei deliberadamente dissimular a exaltação em minha voz. —  Quer me fazer um favor, Alicia?  Pode escrever-me uma carta mencionando as ocasiões em que se lembra de tê-los encontrado em sua casa? —  Sem dúvida. Acha que isso vai ajudar? —  É bem possível — respondi cautelosamente. Olhei para o papel em minha mão e perguntei: — Se quiser falar de novo com você, posso encontrá-la nesse telefone? —  Não. Vou partir amanhã à noite para Gstaad. —  Não sabia que gostava de esquiar.  Ela riu. —  Não vou esquiar coisa nenhuma. Betsy vai ter o filho a qualquer dia agora e eu quero estar ao lado dela. —  Como vai ela? —  Está muito calma em relação a tudo. O marido, Max, está muito mais nervoso do que ela. Sabe que ainda não posso acreditar que vou ser avó? —  Cada dia as avós são mais jovens. É preciso agradecer por isso à nova geração. Dê lembranças minhas a Betsy. —  Darei, sim. Adeus, Ângelo. —  Adeus, Alicia. Deixei o telefone e fui até o bar. Peguei uma bandeja de gelo, abri uma garrafa de Crown Royal e preparei um drinque bem forte. Estava precisando dele. Número 1 tinha razão na sua idéia de que Weyman estava agindo deslealmente. Mas talvez não pensasse que Weyman e Loren estivessem envolvidos com Simpson. Era uma coisa que não fazia sentido. Até aquele momento. A música da boate estava mais forte. Isso me aborreceu. Voltei ao telefone e falei com o gerente do hotel. — E preciso tomar alguma providência com os amplificadores da boate do andar de cima. Não tolero mais esse barulho! —  Deve estar enganado, Sr. Perino — respondeu-me ele delicadamente. — A boate não está funcionando esta noite. Talvez algum dos hóspedes tenha ligado o rádio muito alto. Vou averiguar. —  Fico-lhe muito grato. Desliguei o telefone e fui para o quarto, ouvindo a música mais forte ainda. Eu já tinha problemas de sobra para me darem dor de cabeça e dispensaria de bom grado a ajuda alheia. Abri a porta do quarto. A explosão de música dos oito altofalantes quase me fez ir ao chão. Cindy estava sentada na cama, com os cabelos soltos sobre os ombros e os seios nus e um lençol estendido sobre as pernas, completamente fascinada pelo som. Virou-se para mim, batendo ainda o compasso com a cabeça. Um sorriso de felicidade lhe apareceu nos lábios. —  Prazer em vê-lo, Ângelo! Não é uma beleza? —  Desligue isso! — gritei, para fazer-me ouvido apesar do barulho. — Quer que me expulsem do hotel? Ela apanhou um dispositivo de controle remoto e acionou a máquina instalada no outro lado do quarto. O volume desceu a um nível respeitável. —  A última palavra! — exclamou ela. — Não pude resistir! —  Como foi que você entrou aqui?  Ela arregalou os olhos.
—  Sabe que não havia um único quarto de hotel vago nesta cidade quando eu cheguei aqui ontem? —  Você não respondeu à minha pergunta.  Ela ficou de joelhos em cima da cama. —  Chegue aqui, sim? Aproximei-me e ela passou os braços pelo meu pescoço e me puxou para ela. Os seus lábios eram quentes e macios. Afastei a boca e disse: —  Você ainda não respondeu ao que eu lhe perguntei. —  Até que não foi muito difícil, querido — disse ela, com os olhos sorridentes fitos nos meus. — Disse apenas ao gerente que ia instalar o novo sistema de som que você tinha encomendado. —  Mas isso foi ontem. Como foi que deixaram você ficar aqui todo esse tempo? —  Todos sabem que não se pode fazer uma instalação como essa num dia só — disse ela, inocentemente. — Além disso, procurei ficar muito quieta. Mas tudo mudou quando você chegou ainda há pouco e foi logo telefonar para outra mulher. — Meteu a mão por baixo do travesseiro e pegou um recado telefônico que me passou às mãos, — Especialmente para ela! Era a cópia, que tinham deixado debaixo da porta, do recado que eu pegara lá embaixo. Quando olhei de novo, ela estava com o rosto tão zangado que eu não pude deixar de rir. —  Está com ciúmes, Cindy! Não posso acreditar. Sempre pensei que você fosse fria demais para ter ciúmes. —  Não estou com ciúmes! — exclamou ela exaltadamente. — Mas o que eu gostaria de saber é se você ficaria satisfeito se passasse dois dias na cama esperando por mim e, quando eu chegasse, corresse logo para o telefone para falar com outro homem. —  Mas eu não sabia que você estava esperando! —  Isso não quer dizer nada! Não foi muito distinto o que você fez. Poderia ao menos ter olhado antes para o quarto! —  Mas eu estava tratando de negócios. . . —  Conheço bem esses negócios... —  Foi, sim. Você se enganou com a Sra. Hardeman. Falei com a primeira e não com a atual. —  Será possível? — exclamou ela numa voz escandalizada. — Não me diga que andou por lá também!
Duncan estava esperando no meu escritório quando cheguei à fábrica na manhã seguinte. Carradine, da Engenharia, e Joe Huff, dos Projetos, estavam com ele. Não precisei olhar pela segunda vez para saber que não estavam ali para me dar boas notícias. Sentei-me à minha mesa e disse: —  Muito bem, podem massacrar-me! —  Como é que prefere, rapaz? — perguntou Duncan. — Uma de cada vez ou tudo junto? —  Uma de cada vez. Hoje é segunda-feira de manhã e eu não estou em muito boa forma. — Está bem — disse ele. — Na sexta-feira, todo o trabalho na linha de produção foi paralisado por ordem do presidente. — Ele não pode fazer isso. Não tem essa autoridade. Número 1 ainda é presidente da diretoria e principal diretor executivo. —  Mas fez — disse Duncan. —  Vão até lá e ponham tudo para funcionar de novo. —  Não podemos — disse Duncan. — Fomos barrados da fábrica. Não podemos nem entrar em nossas salas. O único lugar onde nos deixaram vir foi aqui. Eu pensei que Loren não estava mais esperando por coisa alguma. Talvez estivesse até adiante de si mesmo. —  Esta é uma notícia — disse eu. — Qual é a outra? — Problemas com o sindicato — disse Duncan. — O Sindicato dos Automobilístas diz que não permitirá o trabalho ha linha de montagem até que todas as reclassificações de cargos sejam aprovadas. Alega que muitos empregados foram rebaixados. —  Mas nós não aprovamos uma tabela que o sindicato considerou satisfatória? —  Você a aprovou — disse Duncan. — Mas Weyman, não. Outra vez Weyman. Estava atrapalhando muito e eu começava a antipatizar de fato com ele. —  Mas ele só podia agir dentro da base que nós lhe enviamos — disse eu. — Não tinha o direito de alterar ou afastar nossas propostas. —  Mas foi exatamente o que ele fez — disse Duncan. — É claro que tinha ordens diretas do presidente. —  É só, Duncan? —  Não. Já leu o Wall Street Journal de hoje?
—  Não. —  Então leia — disse ele, entregando-me o jornal. Era a notícia de abertura do jornal num título em duas colunas na primeira página. Dizia:
 
"JÁ É UM DESASTRE O NOVO CARRO DE CENTO E CINQÜENTA MILHÕES DA BETHLEHEM MOTORS?
 
Detroit (especial para o Wall Street Journal). Fontes beminformadas da companhia na Bethlehem Motors mostraram hoje sérias dúvidas quanto às possibilidades de sucesso do novo carro, o Betsy, que deverá ser lançado ainda no corrente ano. Essas dúvidas transpareceram em virtude de uma ação judicial intentada por Loren Hardeman III e sua irmã, a Princesa Alekhine, contra o avô de ambos, Loren Hardeman I, e a Fundação Hardeman, a fim de obterem o que representa basicamente o controle da grande companhia automobilística. As fontes da companhia revelaram ainda que o Sr. Hardeman III começou a sentir-se preocupado com as despesas cada vez maiores do projeto bem como com os relatórios recebidos com respeito à segurança do próprio carro, e que só recorreu aos tribunais a contragosto, depois de ter procurado em vão convencer o avô a abandonar o projeto no interesse do público".
 
Havia mais coisas, mas o que eu tinha lido já chegava. Larguei o jornal. Não tinha a menor dúvida de que as "fontes bem-informadas da companhia" eram Weyman. Como vicepresidente executivo, tinha contato direto com o jornal. Eu tinha a impressão de que aquilo era apenas o começo e de que mais artigos como aquele iriam circular pelos jornais de todo o país. Se queriam matar o Betsy antes que este chegasse ao mercado, não poderiam encontrar um meio melhor. Mais artigos como aquele e o público não compraria o carro nem que este viesse numa bandeja de prata. —  Esperem aqui — disse eu. E desci o corredor a caminho do escritório de Loren.
Capítulo 4
—  O Sr. Hardeman está em reunião — disse a secretária, levantando a mão para me barrar quando cheguei à porta dele. —  Lindo — disse eu, passando por ela. Loren III estava sentado à sua mesa. Weyman e um homem que eu não conhecia estavam sentados diante dele quando eu entrei. Loren foi o único que não pareceu surpreso. —  Já o estava esperando — disse ele. —  Não tenho a menor dúvida disso — repliquei. O outro homem e Weyman levantaram-se imediatamente. —  Estaremos em minha sala quando ficar desocupado — disse Weyman. —  Não, espere — disse-lhe eu. — O que vou dizer interessa a você também. Weyman lançou um olhar interrogativo a Loren. Este fez um sinal de assentimento e ele se deixou cair na sua cadeira. — Espere na minha sala, Mark — disse ele ao outro homem. O homem saiu. Não esperei nem que a porta se fechasse e perguntei: —  Esse é o tal Mark Simpson? Weyman hesitou e Loren fez de novo um sinal de assentimento. —  É, sim — respondeu Weyman. —  Foi o que eu imaginei — disse eu. — A borra começa a subir à superfície. Não me disseram nada. —  Tratarei dele depois — disse eu. Fui sentar-me do lado da mesa de Loren, de onde podia olhar para ambos. — Leu o que o Wall Street Journal publicou hoje? —  Li, sim — respondeu Loren. —  Não acha que passou dos limites desta vez? —  Não. O que acho é que o artigo é a expressão da verdade. —  Como você a vê? —  Como eu a vejo. —  Já pensou no que poderá acontecer à companhia se você perder? —  Não vou perder.
—  Ainda que ganhe, vai perder. Mais alguns artigos assim e você controlará uma companhia falida. Não haverá no mundo uma só pessoa que compre qualquer carro produzido por esta companhia. —  O que acontecer a esta companhia não é coisa que absolutamente lhe diga respeito. — É aí que está enganado. Diz-me respeito, sim. Acontece que sou possuidor de duzentas mil ações desta companhia que comprei a seu avô por dois milhões de dólares em dinheiro. Pela primeira vez, houve surpresa no rosto de Loren. —  Não acredito. Meu avô não iria vender uma só de suas ações a um estranho. —  É muito fácil verificar — disse eu. — Por que não pega o telefone e pergunta a ele? Loren não se moveu. —  Como acionista, tenho certos direitos. Se tivesse lido os estatutos da companhia tão atentamente quanto eu, compreenderia muito bem o que eu estou dizendo. Tenho o direito de exigir indenização e ressarcimento de qualquer diretor desta companhia que interfira com qualquer trabalho em andamento, desde que essa interferência implique prejuízos que lhe possam ser diretamente atribuídos. Loren estendeu a mão para o telefone. Falou rapidamente com Jim Ellison, chefe dos advogados da companhia. Desligou o telefone e olhou para mim. —  Teria primeiramente de provar isso.  Sorri. —  Não sou advogado, mas provaria isso com o pé nas costas. Se suspender a produção do Betsy agora, haverá um prejuízo certo de cento e cinqüenta milhões de dólares. Ele ficou calado. —  Vou lhe facilitar as coisas — disse eu. — Vou lhe dar o tempo que levarei para voltar daqui para a minha sala. Se, quando eu chegar lá, não tiver um aviso seu de que o trabalho foi reiniciado na linha de produção e que meus homens podem tratar de suas tarefas normais sem interferência, vou arrasá-lo e a seu amigo aqui presente com uma ação judicial que envolverá a maior  indenização de que  qualquer dos dois já ouviu falar. Serão cento e cinqüenta milhões de dólares. Levantei-me para sair. Antes de chegar à porta, voltei-me e olhei para Weyman: —  E você tem exatamente uma hora para estar em minha sala com o pessoal do sindicato para resolver o caso do contrato de trabalho. Quase sorri ao ver a cara dele. Os seus problemas intestinais eram um tema permanente de pilhérias na fábrica. Parecia que naquele dia ele não ia precisar de laxantes. Virei-me para Loren e disse com voz quase conciliatória: —  Se eu fosse você, trataria de encontrar um meio de desmentir ou anular aquele artigo de hoje antes que lhe faça mais mal do que bem. Voltei para minha sala por um caminho comprido, pois eles poderiam precisar de tempo para pensar no caso. Passei pela sala de Weyman e, num impulso, entrei. — O Sr. Simpson está aqui? — perguntei à secretária. —  Acaba de sair, Sr. Perino. Pediu que dissesse ao Sr. Weyman que estava com hora marcada e não podia esperar. Telefonará mais tarde. Agradeci e saí. O homem tinha todos os bons instintos de um chacal. Pressentira dificuldades e não quisera estar presente quando alguma coisa acontecesse. Resolvi procurá-lo mais tarde naquele mesmo dia, se as coisas ali estivessem em ordem. Encostei-me à janela junto à porta de minha sala e fumei um cigarro antes de entrar. Não queria me arriscar. Deixá-losia tomar todo o tempo de que necessitassem. Quando apareci à porta, minha secretária levantou a vista. —  Sr. Perino! —  Sim? — disse eu, parando junto à mesa dela. —  Acabo de receber um recado para o senhor do escritório do Sr. Hardeman. Não compreendi, mas ele me disse que o senhor compreenderia. —  Leia para mim. Ela pegou o seu caderno de notas e leu: "Pediu que lhe dissesse que tudo foi feito como o senhor queria, mas que, na semana que vem, virá aqui pessoalmente dar-lhe adeus". Sorri. Sabia muito bem o que ele queria dizer. Entrei na minha sala. —  Tudo resolvido. Podem ir trabalhar. Não se esqueçam de que já perdemos quatro dias. — Como foi que conseguiu que eles voltassem atrás tão depressa? — perguntou Duncan. —  Botei meu encanto italiano para funcionar — disse eu, rindo. — Ameacei cantar O sole mio para eles ouvirem.
Só terminamos a reunião com os representantes do sindicato às nove horas da noite e aí já era tarde para ir procurar Simpson. Para produzir um carro era preciso muito mais do que simplesmente tirá-lo da prancheta de desenho para a linha de montagem. Era a primeira vez que eu me envolvia em negociações sindicais e, se dependesse exclusivamente de mim, seria a última. Mas, por menos que gostasse do patife, tinha de reconhecer que Dan Weyman era bom naquela espécie de coisa. Era profissional e preciso. Eu não tinha compreendido até então o número de classificações de cargos diferentes que pode haver dentro da estrutura de uma linha de montagem. Weyman compreendia e sabia, ainda mais, a definição exata das responsabilidades de trabalho de cada cargo. Fiquei fascinado com a eficiência e a sutileza com que ele trabalhava. Só desejava que ele estivesse do nosso lado e não do de Loren, mas isso não o impedia de fazer um bom trabalho para a companhia. Houve um ponto em que as coisas se tornaram um pouco difíceis, e ele contornou o ponto controvertido e apresentou a questão nos seus termos básicos. — Cederemos um pouco, mas vocês têm de fazer o mesmo. — A sua voz era calma como se estivesse dando uma aula numa universidade, coisa que realmente fazia antes que ele fosse trabalhar na Ford. — Estamos trabalhando como loucos para impedir que os japoneses e os alemães nos expulsem do mercado, não apenas em matéria de vendas, mas também de fabricação. Teria sido relativamente fácil para a gerência da Bethlehem fabricar este carro no exterior, pois custaria muito menos. Vocês sabem disso e eu sei também. No ano passado, a nossa média de pagamento por hora foi de seis dólares e sessenta e seis cents, consideravelmente mais alta do que a de quase todas as outras companhias da indústria. Tivemos um prejuízo de vinte milhões de dólares na nossa divisão de automóveis. Tínhamos toda a justificação possível para ir construir o novo carro no exterior. Mas não procedemos assim. Por quê? Porque respeitamos as obrigações que temos para com os nossos empregados, e, se assim fizéssemos, iríamos criar muitas dificuldades a eles. Só pedimos em troca um pouco de cooperação, desejamos apenas que nossos empregados aumentem a sua produtividade juntamente com a nossa. Cedemos um pouco, vocês cedem um pouco. Talvez possamos juntos fazer esta indústria voltar ao lugar que de direito lhe pertence. Observei os representantes do sindicato enquanto ele fazia esse pequeno discurso. As fisionomias não me diziam muito porque eles também eram profissionais e peritos nas suas profissões. Desse ponto em diante, as negociações se prolongaram durante horas. Mas, no fim, tudo foi resolvido. Depois que os outros saíram, olhei para Dan Weyman, que estava juntando os seus papéis. —  Saiu-se muito bem — disse eu.  Ele não me respondeu. —  Poderia ter-nos poupado muitos problemas se tivesse feito isso logo que lhe pedimos. Ele fechou a pasta. Olhou para mim como se fosse dizer alguma coisa, mas deu-me as costas de repente e saiu da sala sem falar.
 
Cindy estava à minha espera, à porta de meu apartamento, quando eu cheguei, às dez horas. Entregou-me um papel com um bilhete, dizendo: —  Veja se vai dizer que também se trata de negócios.  Olhei o bilhete:   "Estou no bar do hotel. Preciso vê-lo imediatamente. B. H." Olhei para Cindy e disse: —  Talvez seja. —  Claro que é. Ela telefonou antes de mandar o bilhete. Atendi e seria capaz de reconhecer aquele sotaque inglês de longe. Mas ela desligou antes que eu pudesse perguntar quem estava falando e, então, um boy subiu com o bilhete. —  Há quanto tempo foi isso, Cindy? —  Há uma meia hora, se tanto. Pensei por um momento. O bar de um hotel não era lugar prudente para um encontro. Bobbie estava se expondo muito. —  Vá até lá embaixo e diga a ela que suba, Cindy. Depois, desapareça durante uma hora. —  Que é que vou fazer durante esse tempo? —  Vá a um cinema, tome alguma coisa no bar, o que você quiser. —  Não posso voltar e ficar aqui escondida? — perguntou ela com um sorriso canalha. — Vocês dois nem desconfiarão de minha presença. —  Negativo, Cindy! —  Então deixe-me ao menos instalar um microfone. Talvez assim eu possa aprender alguma coisa. Sempre tive curiosidade de saber como é que as inglesas fazem isso.
—  Escute, Cindy, tive um dia hoje que não foi brincadeira. Faça o que estou mandando ou vai levar uma surra de cinta. —  Agora, não. Deixe para quando eu voltar — disse ela, saindo.
 
Capítulo 5
Preparei o martíni muito seco e muito gelado e fiquei à espera dela. Logo que ela chegou, entreguei-lhe o copo. —  Não se esqueceu, hein, Ângelo? —  Como os elefantes, Ângelo nunca se esquece — disse eu, erguendo o copo. Bebemos em silêncio. Ela acabou o drinque de um gole. Lembrava-me disso também. Tornei a encher-lhe o copo e continuei calado. Ela atravessou a sala e olhou para as luzes cintilantes de Ontário. —  Você tem uma vista bem bonita daqui, à noite. —  Quando não há neblina — murmurei. Ela tomou outro gole do martíni e disse, ainda à janela, de costas para mim: —  Vou deixá-lo. Foi um erro o que fiz. Agora é que sei disso. Fiquei calado. Ela se voltou e olhou para mim. —  Ouviu o que eu disse? —  Ouvi. —  Não tem qualquer comentário a fazer? —  Não. —  Nada? Nem mesmo "eu bem que lhe disse"? —  Nada. Ela se voltou de novo para a janela e perguntou: —  Aquela moça que foi me chamar lá embaixo. . . —  Somos apenas velhos amigos. Ficamos de novo em silêncio. Ela acabou de tomar o martini e entregou-me o copo. Tornei a enchê-lo e devolvi-o. —  Obrigada — disse ela. 
Respondi com um gesto.  —  Ainda não é de falar muito, hein? —  Só gosto  de  falar quando  tenho  alguma coisa  para dizer. . . —  Diga então alguma coisa. —  Por quê? Ela não olhou para mim. —  Porque não foi absolutamente assim que eu imaginei que seria. Ele não se interessa senão pela companhia. Vive exclusivamente para ela. E também para a determinação que tem de vingar a morte do pai. —  Vingar a morte do pai como? —  Ele é um homem dividido entre o respeito que sente pelo avô em vista de suas realizações e o ódio que tem dele por ter levado o pai ao suicídio. —  Ele culpa Número 1 disso? — Sim. Diz que o velho nunca deixou de dominar o pai do mesmo modo que procura dominá-lo. —  É difícil acreditar nisso. —  Eu também achava, até que uma noite ele me mostrou uma carta que guarda num cofre em casa. Foi a primeira vez que ele mostrou a carta a alguém. Alicia a viu. — Que carta é essa? — A carta que o pai dele deixou quando cometeu suicídio. — Mas não houve carta alguma — disse eu, lembrandome do que os jornais tinham publicado na ocasião. — A polícia não encontrou nada. — Loren encontrou a carta. Foi ele quem descobriu o corpo do pai. Encontrou a carta e guardou-a. Já então, teve receio de que, se o conteúdo da carta fosse conhecido, a companhia estaria liquidada. —  Que dizia a carta? —  Só a vi uma vez mas nunca me esqueci. Não era endereçada a ninguém. Era apenas uma nota escrita pelo pai. Dizia assim: "Não agüento mais. Ele nunca me deixará em paz. Não tenho mais um dia de sossego, pois não se passa um dia sem que ele me faça exigências absurdas. Venho tentando há anos fazê-lo deixar-me, mas sei agora que isso nunca vai acontecer. E não tenho mais forças para lutar contra ele. A única saída e esta. Acreditem. Perdoem-me". Estava assinada simplesmente: "L. H. II". Não fiz qualquer comentário e ela disse: —  Loren me disse que era exatamente assim que o avô o tratava. Mas que ele era mais forte do que o pai. Podia lutar e ia lutar. Enchi meu copo, provei-o e disse: —  Por que foi que ele não fez alguma coisa naquela ocasião? —  Não só para proteger a companhia, como eu já disse, mas também porque tinha receio de que, se tomasse alguma atitude, o avô não o faria presidente da companhia. Ela me estendeu mais uma vez o copo vazio e mais uma vez eu o enchi e entreguei-o a ela. —  Vou acabar ficando alta — disse ela. — Acho ate que já estou. Tomei dois duplos enquanto estava esperando lá embaixo. Os olhos dela estavam límpidos e ela parecia resistir bem à bebida. —  Na minha opinião, você está muito bem, Bobbie, —  Mas não estou. Eu me conheço. . .  Fiquei calado. —  Como vê, já naquele tempo ele só se interessava pela companhia. E nada mudou. Na verdade, ele não precisa de uma esposa e nem mesmo de uma mulher. Ele não precisa de ninguém. — Por que foi então que se casou com você? Poderia ter tido você sem perder Alicia. Economizaria com isso uma fortuna. Ela riu. —  Mas ele não sabia disso. Você sabia e eu sabia, mas ele não. Lembro-me de você ter dito uma vez que ele era quadrado. E é mesmo, você nem sabe a que ponto. Continuei a beber em silêncio. — Sabe que, sempre que nos amamos, ele me pergunta se eu já gozei antes que ele tenha seu orgasmo? — Riu. — Às vezes, digo que não só para fazê-lo esperar. Fica quase alucinado. —  Acho que você está alta mesmo — disse eu. —  Que é que há, Ângelo? Não gosta de me ouvir falar de minha vida sexual? —  Se quer saber da verdade, não. — Você está ficando muito decente, não é, Ângelo? Como naquela vez perto da pista de provas no Estado de Washington. E agora, piorou muito porque não quer nem que se fale nisso. Fiquei calado. —  Lembra-se do que houve entre nós em San Francisco?
Lembra-se, Ângelo? Foi muito belo! —  Lembro-me, sim. Lembrava-me também da dor que sentira quando ela me havia deixado no aeroporto. Era estranho, mas já não sentia nada. Ela se aproximou de mim, tanto que pude sentir o cheiro dela em minha boca. —  Pode acontecer o mesmo outra vez. —  Não. Ela largou o martíni e passou os braços pelo. meu pescoço. Colou a boca avidamente na minha com a língua a provocar-me. Nada. Afastei-a de mim, segurando-lhe os braços. — Não. —  Dê-me uma chance, Ângelo! — exclamou ela com os olhos fitos nos meus. — Pode ser de novo como já foi! —  Não, Bobbie. Não pode ser nunca mais. —  Por que diz isso, Ângelo? Amo você! Sempre amei! Dessa vez, abracei-a e beijei-a. Beijei-a durante muito tempo, até que os braços dela caíram e ela recuou, encarandome com um estranho olhar de solidão e abandono. —  Você estava apenas cometendo outro erro — disse eu. — Fugir dele para mim não é a solução. Ela perguntou com uma voz clara de quem não estava de modo algum alta. —  Como é que soube? —  Não ouvi a música — disse eu, tomando-lhe a mão.  Ela ficou por um momento em silêncio olhando para as nossas mãos e então se afastou e perguntou: — Ainda resta algum martíni aí? Enchi-lhe o copo. Bebeu bem metade antes de parar. —  Vou sentir saudades suas. Que bom martíni você faz! —  Vou lhe dar a receita. Gim puro. Muito gelo. Nada de vermute. Ela sorriu. —  É um truque sujo esse seu. —  Mas é também um grande martíni. —  Minhas malas estão lá embaixo. Vou daqui para o aeroporto. Não voltarei para ele. Eu nada disse. —  Vou pegar um avião para Chicago. E partir amanhã cedo para Londres. —  Ele sabe de sua partida?
—  Não. Vou telefonar-lhe do aeroporto momentos antes de embarcar. —  Será que ele não vai dar por falta de você antes disso?  Ela riu. —  Ele estava numa reunião com Dan, um camarada chamado Mark Simpson e alguns homens que eu nunca vi antes, quando saí de casa. Os homens eram mal-encarados, de um tipo muito diferente dos que costumam aparecer por lá. Tudo indica que a reunião deles se prolongará até de madrugada. Pensando bem, agora me lembro de que estavam falando de você quando passei pela porta. —  Sério? Com certeza, falavam bem de mim. —  Muito ao contrário. Parece que você fez hoje alguma coisa que aborreceu muito Loren. Foi mesmo? —  É possível. Mas eu trabalho para o avô dele e não andamos muito de acordo ultimamente. —  Ouvi a voz de Loren quando passava no corredor. Ele disse: "Sei agir sem piedade como o velho a qualquer tempo, e Ângelo poderá ter conhecimento disso agora mesmo". —  Que mais ele disse? —  Não ouvi mais nada. Cheguei ao fim do corredor e saí de casa. Mas não estou gostando disso. —  Ora, você ouviu apenas algumas palavras soltas que parecem muitos piores do que realmente são. Ela acabou o drinque e me entregou o copo, que eu pus em cima do bar. —  Tenha cuidado, sim? — disse-me ela.  Caminhamos para a porta e eu perguntei: —  Está sem casaco? —  Deixei-o lá embaixo. Abri-lhe a porta. Ela passou e se voltou para mim. Curvei-me e beijei-lhe o rosto. —  Adeus, Bobbie. Felicidades. Podia ver-lhe um prenuncio de lágrimas nos olhos. —  Estamos sempre a dizer-nos adeus, não é, Ângelo? —  É o que parece. Ela conteve as lágrimas e ergueu corajosamente a cabeça. —  De qualquer maneira, é a última vez que passamos por isso, não é mesmo? —  É sim. Ela me pegou pela gola do paletó e me puxou para ela. Os seus lábios pousaram gentilmente nos meus. —  Adeus,  Ângelo. Não pense mal de mim.  Lembre-se apenas de que houve um tempo em que nos amamos. As lágrimas lhe brilhavam nos olhos. —  Não me esquecerei — disse ternamente. Ela me deixou abruptamente e se dirigiu para o elevador, com o corpo erguido e rígido. Fiquei ali até que ela entrou no elevador e as portas se fecharam. Não olhou para trás uma só vez que fosse.
 
Capítulo 6
Quando saí do banheiro depois do banho de chuveiro, o garçom tinha deixado a mesinha do café da manhã ao lado da cama e Cindy estava sentada a comer pão, deixando as migalhas caírem no lençol, e com o estéreo ligado. — Meu Deus! — exclamei, amarrando a toalha em torno da cintura e servindo-me de uma xícara de café. — Já a estas horas da manhã? —  É a corrida inaugural das Quinhentas Milhas de Pocono em julho do ano passado. Só ontem foi que recebi as fitas. Provei o café. Estava quente e sem gosto, como todo café de hotel. —  Não podia esperar mais um pouco? Ela não me deu atenção e continuou a acompanhar muito interessada o trovejar dos motores que corria de um altofalante para outro. —  Esse aí é Mark Donohue! — disse ela, com os olhos brilhantes. — Ouviu aquele outro carro que se aproximava dele? Acendi um cigarro e escutei. Ela estava certa. Havia o barulho de dois motores que se perseguiam de um canto para outro. Em dado momento, apareceram juntos no mesmo altofalante. —  É Joe Leonard! Está passando Mark! Já passou! Mark perdeu velocidade numa mancha de óleo na segunda curva da segunda volta e Joe passou! Escute. Lá vêm A. J. e Mario logo atrás dele! O telefone tocou e eu atendi. —  Alô! — gritei acima do barulho dos alto-falantes. —  Que barulho danado é esse? — perguntou Número 1. —  Onde é que você está? —  Desligue isso, Cindy! — gritei. Ela acionou o controle remoto. O barulho cessou. Falei de novo ao telefone: — Está melhor assim? —  Quem está com você? — perguntou o velho. —  Cindy, minha motorista de provas. —  Que diabo ela está fazendo? Correndo com um Fórmula 1 dentro do quarto? —  Quase — disse eu, rindo. —  Já faz três dias que você não me dá notícias. Que é que há? Lembrei-me do que Alicia me tinha dito da Sra. Craddock e murmurei: —  Não tinha nada para lhe dizer. —  Nada? Que é então que anda fazendo? Engrenando essa sua motorista em cima da cama? —  Por que não me telefona mais tarde de fora da casa? — perguntei cautelosamente. —  Para quê? Você sabe muito bem que eu detesto sair de casa aqui nesta cidade. —  Segurança. Ficou por um momento em silêncio e eu pude ouvir-lhe a respiração pelo telefone. —  Está dizendo isso por causa da Sra. Craddock? — perguntou ele. —  Exatamente. —  Sei de tudo sobre ela. Está fora neste momento, fazendo compras. Pode falar à vontade. —  Se sabe de tudo, por que não a bota na rua? —  Ela é a melhor secretária e ainda por cima a melhor governanta que eu já tive. E pode crer que gente assim não é muito fácil de encontrar hoje em dia. De acordo com os meus cálculos, o dinheiro que meu neto lhe paga torna o emprego muito rendoso para ela e a impede de querer sair. —  Mas que adianta isso se Loren sabe de tudo o que o senhor faz? Ele riu. —  Ele só sabe o que eu quero que ele saiba. Assim, todo mundo vive feliz, compreende? Agora, pode falar que ela não está em casa. —  Está bem — disse eu, pensando que nenhum de nós podia pegar o velho desprevenido. Não era à toa que ele chegara aos noventa e quatro anos. Se era verdade que com a prática tudo se torna perfeito, ele tivera um bocado de prática nos seus noventa e quatro anos de vida. Escutou em silêncio enquanto eu lhe falava sobre tudo o que acontecera nos últimos dois dias. Quando acabei, continuou calado. Pensei que a ligação tinha sido cortada e exclamei: —  Alô? —  Alô. Estou aqui — disse ele, dando um profundo suspiro. — Meu neto está com tanta vontade de me derrotar que não pode nem esperar. Foi a minha vez de ficar calado. Pela primeira vez, ouvi resignação em sua voz. —  Quem é moço está sempre com pressa. Podia esperar um pouco. A segunda-feira não tarda. —  Muita coisa pode acontecer em seis dias. —  Disse a Roberts que pode transferir o direito de voto para a fundação. Não vou nem comparecer ao tribunal no dia da audiência. —  Por quê? Porque sabe que vai perder? —  Não seja impertinente, meu jovem — disse ele, com a voz novamente animada. — Não é porque vou perder, mas porque é o que devo fazer. A fundação é uma coisa muito importante e não pode servir de gato morto na briga entre mim e meu neto. Fiquei calado. —  Por outro lado, isso é apenas uma escaramuça. A verdadeira batalha vai ser na reunião dos acionistas, na terça-feira de manhã. É aí que vamos ganhar ou perder. Essa batalha é que eu não quero perder. Com certeza, meu neto pensa que já venceu, pois do contrário não teria convocado a reunião logo para o dia seguinte ao da audiência. —  Ele perdeu os votos de Alicia — disse eu. — Talvez possamos conseguir outros. —  Não, ninguém mais tem a mesma motivação de Alicia. Na minha opinião, a única chance é ligá-lo a Simpson. Os curadores da fundação não poderiam tolerar um presidente empenhado em sabotar a sua companhia. —  Já temos um bom começo. Já sabemos que ele tem mais que um conhecimento fortuito com o homem. —  Isso é com você. Nada há que eu possa fazer daqui.
—  Vou tentar! Ainda não me esqueci de sua recomendação quando falou comigo. —  Nem pense nisso! Só falei assim porque estava zangado. Se ele está inocente, não quero que você o envolva numa trama. —  Por que mudou de idéia? Será que ganhou consciência depois de velho? — Nada disso! Mas não se esqueça de que ele é meu neto e não quero condená-lo pelo que não fez! —  Prepare-se então para perder se não pudermos estabelecer uma relação entre os dois! —  Não vou perder! — exclamou ele. — Lembre-se do que lhe disse quando começamos. Disse que iríamos construir um novo carro e foi exatamente o que já fizemos!
 
—  O Sr. Hardeman está esperando em sua sala — disse minha secretária quando entrei. —  Ótimo. Mande levar duas xícaras de café. Abri a porta e entrei em minha sala. Loren estava de pé junto à janela e se voltou para mim. —  Bom dia, Loren. Está com uma semana de antecipação, não é mesmo? —  Não estou lhe fazendo uma visita comercial — disse ele com voz pesada. Afastou-se da janela e se encaminhou para a minha mesa. Parecia ter passado a noite sem dormir. O rosto estava abatido e pálido e os olhos se mostravam injetados. — Minha mulher me deixou ontem à noite. Minha secretária chegou com o café. Ficamos em silêncio enquanto ela colocava as xícaras em cima da mesa e saía. Empurrei uma xícara para ele. —  Beba isso. Parece que está precisando. Ele se deixou cair na cadeira à minha frente e estendeu a mão para a xícara. Mas as mãos lhe tremiam tanto que ele derramou o café e tornou a colocar a xícara no pires sem prová-lo. —  Você não se surpreendeu com a notícia — disse ele. —  E devia surpreender-me? Você se surpreendeu? — Acho que não — disse ele, quase como se falasse consigo mesmo. — Há muito tempo que espero por isso. Mas nada podia fazer. Detroit não era a idéia que ela fazia do mundo. Tomei meu café sem falar. Café de escritório era tão ruim  como café de hotel. —  Esteve com ela ontem à noite? — perguntou ele.
—  Estive. —  Ela lhe disse alguma coisa? —  Não me disse mais do que você está me dizendo. —  Diabo! — exclamou ele. Levantou-se, foi até a janela e deu um soco na palma da mão. — Diabo! Olhei-o em silêncio, tomando o meu café. Alguns instantes depois, ele se recuperou e, voltando-se para mim, perguntou numa voz quase normal: —  Por que ela foi procurá-lo? —  Porque éramos amigos, eu acho. E não havia mais ninguém a quem ela pudesse procurar. Acho que acertou em cheio. Detroit não era a idéia que ela fazia do mundo. Mas, por sua vez, Detroit nunca fez grandes esforços para acolhê-la. —  Não sei o que pensar. . . Sabe de uma coisa? Tive ciúmes de você. . . Sabia que ela estava em San Francisco durante todo o tempo em que você esteve lá. —  Mas isso foi há dois anos, muito antes de você resolver casar-se com ela. —  Sei disso. Mas, quando ela me disse que passou pelo Pontchartrain para vê-lo antes de ir para o aeroporto, comecei a pensar. Afinal de contas, você é muito mais o tipo dela do que eu. Nunca fui um homem muito dado a mulheres. Apesar de tudo, não pude deixar de sorrir e perguntei: —  E eu sou? Ele, pelo menos, teve a delicadeza de se mostrar embaraçado. — Ora essa, Ângelo, você bem sabe o que eu estou dizendo. Fala-se muito de casos seus com uma porção de mulheres. Ri e disse: —  Quando tiver tempo, precisa me contar algumas dessas histórias. Vou acabar descobrindo coisas que não sabia a meu respeito. —  Ângelo, se eu lhe fizer uma pergunta direta, você me dará uma resposta direta? —  Faça a pergunta. —  Você teve um caso com minha mulher? —  Não — respondi, encarando-o com firmeza e certo de que estava dizendo a verdade. Bobbie eu não tínhamos tido um caso depois que ela passara a ser a mulher dele. Ele respirou fundo e disse: —  Muito obrigado. Agora, posso tirar isso da cabeça e esquecer-me de que cheguei a pensar nisso. —  Sem dúvida alguma!
Ele se levantou para sair, mas eu o fiz parar. —  Você também, Loren, me dará uma resposta direta se eu lhe fizer uma pergunta direta? —  Faça a pergunta. — Se eu pudesse elaborar um acordo entre você e seu avô, você encerraria essa absurda luta em que um de vocês poderá perder, mas só a companhia sofrerá? O rosto dele se contraiu energicamente. Era espantoso como ele se parecia com o avô. —  Não. —  Por quê? —  Porque ele é um déspota. E eu não vou deixar que me destrua como destruiu meu pai. —  Mas isso foi há muito tempo. Agora ele é um velho numa cadeira de rodas... —  Ele já era velho naquele tempo e já estava numa cadeira de rodas! Mas isso não o deteve e não vai detê-lo agora! Além disso, você não pode saber o que é entrar numa sala e encontrar o próprio pai com a cabeça estourada! —  E você tem absoluta certeza de que o culpado foi seu avô? —  Tanta certeza quanto tenho de eu estar aqui neste momento! Levantei-me e disse: —  Desculpe ter feito a pergunta. Seu avô romperia comigo se soubesse o que eu fiz. Mas tive uma impressão errada. —  Qual foi? —  Ainda há pouco, você me pareceu quase humano.
 
Capítulo 7
Marion Stevenson, chefe da Segurança da Bethlehem, tinha a cara impassível do agente do FBI que ele tinha sido. O terno cinza e a gravata comum não concorriam para dissipar a impressão. Era a espécie de homem que não chamaria absolutamente a atenção num grupo. Era um homem mediano em tudo, salvo numa coisa: tinha os olhos mais claros que já vi. Quase se podia espiar por eles para dentro da cabeça do homem. —  Quer falar comigo, Sr. Perino? — perguntou com uma voz tão inexpressiva quanto tudo mais nele. —  Sim, Sr. Stevenson. Muito obrigado por ter vindo. — Em geral, eu não era tão cerimonioso assim, mas lembrava-me do ressentimento dele pelo fato de eu haver contratado guardas de fora para a pista de provas. Havia nele bastante consciência profissional para que isso fosse considerado uma afronta pessoal. — Faça o favor de sentar-se. —  Muito obrigado — disse ele, também todo cerimonioso. O telefone tocou e eu atendi. Era Max Evans, do Departamento de Compras, e estava com um problema. Cobri o fone com a mão enquanto escutava. —  Com licença — disse eu a Stevenson. — Um momento, apenas. —  Acabamos de receber um cálculo revisto dos fornecedores dos conectores eletrostáticos dos cintos de segurança, com um acréscimo de três dólares e quarenta cents, —  Por quê? — Isolamento reforçado dos fios de acordo com os padrões dos seguradores. —  Isso não estava incluído em nossas especificações? —  Até certo ponto. Mas os seguradores alteraram as suas exigências em relação a nós há duas semanas. Nada se podia fazer. Os cintos de segurança do motorista eram um dos nossos itens característicos, sem aumento de preço para o consumidor. Eram ligados eletricamente a um regulador no motor. Se todos os cintos estivessem abertos, o carro não faria mais de quinze quilômetros por hora. Com o cinto de cintura apertado, a velocidade podia ir a quarenta quilômetros. O cinto dos ombros apertado liberava por completo o regulador. Mas o aumento representava um bocado de dinheiro. Mais de um milhão de dólares em trezentos mil carros. — Já se entendeu com outros fornecedores? — perguntei. — Já. Quando fizemos a primeira tomada de preços. Mas é muito tarde agora. Qualquer deles levaria no mínimo oito meses para nos entregar o material. — Não temos outro jeito então? — É o que parece. — Espere um pouco — disse eu. — Isso corre pelo Controle de Custo. O normal não é essas coisas serem aprovadas pelo escritório de Weyman?
—  Sem dúvida. Mas hoje de manhã recebemos instruções para pedir a sua aprovação em tudo o que se refere aos novos carros. —  Compreendo. . . Compreendia mais que isso. Havia centenas de coisinhas como aquela todas as semanas. Se Weyman pudesse descarregar tudo em cima de mim, eu ficaria tão ocupado com porcarias que não teria tempo para nada mais. —  Posso tocar a encomenda, Sr. Perino? —  Pode, sim, Max. Mande uma ordem de compra que eu a aprovarei. Desliguei o telefone e voltei-me para o meu visitante. Peguei um cigarro e estendi o maço para ele. —  Muito obrigado. Deixei de fumar. Acendi o cigarro e me recostei na cadeira. Expeli lentamente a fumaça enquanto o observava. Ao fim de alguns momentos, percebi que ele estava ficando nervoso. O telefone tocou e eu disse a minha secretária: —  Suspenda todos os telefonemas para mim.  Desliguei e continuei a fumar em silêncio. Depois de cerca de um minuto, ele começou a olhar para o relógio no pulso. Não tomei conhecimento disso até acabar de fumar o cigarro e apagá-lo cuidadosamente no cinzeiro. — Sei que é um homem muito ocupado, Sr. Stevenson — disse eu —, mas vai ter paciência se eu lhe parecer um pouco lento hoje. Não sabe quantas coisas tenho na cabeça. —  Compreendo, Sr. Perino. —  Estive lendo as regras da organização e, se não estou enganado, o senhor é responsável diretamente junto ao presidente e ao vice-presidente executivo. —  É isso mesmo. — E suas responsabilidades se estendem a todos os assuntos de segurança da companhia, desde a repressão a atos criminosos dos empregados até a proteção aos registros e aos segredos industriais da empresa. —  É verdade. —  Vou lhe fazer uma pergunta hipotética. Se descobrisse uma falha de segurança em meu escritório, comunicaria o fato ao presidente? —  Não, senhor. Em primeiro lugar, ao vice-presidente executivo. —  E se descobrisse uma falha em qualquer dos escritórios dos dois?
—  Faria a comunicação ao presidente se a falha fosse no escritório do vice-presidente executivo e vice-versa. —  E  se  a  falha fosse  nos  dois  escritórios  ao  mesmo tempo? Ele pensou por um momento. —  Neste caso, eu teria de presumir que a falha de segurança resultava de uma política  estabelecida da companhia, aprovada por eles. Peguei o exemplar do Wall Street Journal em que saiu o artigo e perguntei: —  Viu isto? Ele fez um sinal de assentimento. —  Julga que a informação contida nesse artigo resultou de uma violação da segurança da companhia? —  Não sei dizer. — Chamo a sua atenção para a alusão a "fontes beminformadas da companhia". Chamo-lhe a atenção também para certos dados numéricos citados no artigo. Acontece que correspondem exatamente aos dados constantes dos registros secretos de custo da companhia. Não há mais de uma dúzia de diretores na companhia que estejam a par desses dados. De repente, essa informação aparece num jornal de circulação nacional e de tal maneira que pode ser prejudicial à companhia. Não acha que houve uma grave quebra da segurança da companhia? Ele estava ficando cada vez mais nervoso e murmurou: —  Não sei dizer. — Posso então presumir que julga que esse assunto se enquadra no que o senhor classifica de política estabelecida na companhia? Já então, o homem estava patentemente nervoso. Advogados e policiais são péssimas testemunhas. Não gostam de ser interrogados. —  Não posso responder a essa pergunta, Sr. Perino. —  Escute, o artigo não é assinado. Sabe por acaso o nome do autor? —  Sei, sim. —  Pode dizer-me? —  Desculpe, Sr. Perino, mas já apresentei meu relatório sobre o assunto ao Sr. Weyman. —  Conhece um homem chamado Mark Simpson? —  Conheço. —  Que sabe a respeito dele? —  É chefe de uma sociedade chamada Organização Independente de Segurança Automobilística e publica um boletim relativo à indústria de automóveis. —  Que mais sabe a respeito dele? —  O Sr. Weyman tem meu relatório a respeito desse cavalheiro. Não tenho permissão para distribuir cópias dele. —  Compreendo. Será também contra o regulamento fornecer-me uma relação das vezes em que o Sr. Simpson visitou esta fábrica e das pessoas com quem falou nessas ocasiões nos últimos dois anos? — De modo algum — disse ele e eu podia ver que ele estava contente de encontrar afinal alguma coisa que pudesse fazer por mim. — Mandar-lhe-ei essa relação hoje mesmo à tarde. —  Muito obrigado — disse eu. — Foi muito atencioso.  O rosto dele ficou vermelho, Sabia exatamente como tinha sido atencioso. Levantou-se. —  Tem minha permissão para comunicar, se quiser, esta nossa conversa aos seus superiores. — Sr. Perino, se eu achasse que esta conversa devia ser levada ao conhecimento dos meus superiores, faria a comunicação com ou sem a sua permissão. Gostaria de salientar que estou encarregado da segurança da fábrica e não da sua política. —  Desculpe, Sr. Stevenson — disse eu, levantando-me e estendendo-lhe a mão. Ele hesitou um momento e então me apertou a mão, dizendo: —  Obrigado, Sr. Perino. Telefonei para Weyman no momento em que ele saiu da sala. A voz dele pelo telefone foi quase cordial. Acho que estava esperando uma bronca da minha parte pelo fato de haver transferido para o meu escritório as aprovações de custo. Mas não houve nada disso. —  Número 1 está em cima de mim, ansioso pelo relatório que pedimos sobre Mark Simpson — disse eu. — Acabei de falar com Stevenson, da Segurança, e ele me disse que o relatório está em sua mão. Ele se atarantou com facilidade. —  Ah...  Lembro-me de ter visto esse relatório. Vou procurá-lo e, logo que encontrar, mandarei para você. Desliguei sabendo muito bem que ele nunca me mandaria esse relatório, mas certo também de que ficara registrado que eu sabia que estava em poder dele.
No princípio da tarde, recebi a relação de Stevenson das visitas de Simpson à fábrica. Tinham sido várias nos últimos anos e, à exceção de uma feita a Bancroft, das Vendas, todas tinham sido feitas a Weyman. Tinha a intenção de sair do escritório e fazer uma. visita a Simpson, mas houve uma coisa e outra e só às quatro horas é que pude sair. Telefonei para Cindy no apartamento. —  Quer ir jantar na Dearborn Inn? —  Fantástico! — disse ela. — Nunca estive lá, mas já ouvi falar muito do lugar. È dentro do território da Ford, não é? —  Bem no meio, mas não se incomode com isso; é realmente muito bom. Ainda tenho de passar por um lugar antes de ir para lá, mas não devo demorar. Desça e esteja na entrada de carros daqui a quinze minutos que eu a pegarei. —  Estarei lá daqui a quinze minutos pontualmente. E estava mesmo. Com um vestido até. O porteiro abriu a porta da Maserati para ela. Era a primeira vez em quase dois anos que eu a via vestir alguma coisa que não fosse um macacão. —  Sabe de uma coisa? Você é uma garota de fechar o comércio! — disse eu, engrenando a primeira. — Puxa, como você custa ver as coisas. Pensei que nunca fosse descobrir isso. . .
 
Os escritórios da OISA ficavam na Michigan Avenue, fora do distrito de alta valorização imobiliária, já no caminho para Dearborn. Era um prédio de dois andares perto de um posto de venda de carros usados. O andar térreo era ocupado por uma tipografia, com grandes janelas pintadas de preto num lugar que devia ter sido em melhores dias uma loja de carros novos. No andar de cima, as janelas mostravam em letras azuis desbotadas o nome "OISA". Parei o carro no meio-fio diante da tipografia e saltei, dizendo: —  Não demoro. Ela piscou o olho, abriu a bolsa e tirou um minicassete. —  Posso ouvir um pouco? Quando me afastei do carro, Creedence Clearwater trovejava pela pista e ela o escutava de olhos fechados e com uma expressão de beatitude.
Não havia entrada separada para o andar de cima que eu pudesse ver, de modo que entrei na tipografia. O barulho das máquinas me encheu os ouvidos logo que abri a porta. Havia um velho balcão de madeira que separava a entrada do resto da oficina. Havia um botão de campainha na parede com um cartaz velho: "Toque a campainha". Toquei, mas o som se perdeu no barulho das máquinas. Tornei a tocar. Vários operários esticaram a cabeça para ver quem era. —  OISA? — gritei, apontando para o andar de cima. Um homem grande de cabelos pretos, lambuzado no rosto e nos braços cabeludos de tinta de impressão, saiu de trás de um prelo e fez um gesto circular com o braço. —  Dê a volta ao prédio — gritou ele. — Há uma escada nos fundos. —  Obrigado — gritei. Saí, feliz de ver-me livre daquela barulheira. Cindy me viu e sorriu. Começou a descer o vidro do carro. Sacudi a cabeça e apontei para o lado do prédio. Ela fez um gesto de assentimento e tornou a levantar o vidro, mergulhando de novo nas delícias do som dos motores. Havia uma escada enferrujada de aço na parte externa do prédio. Perto dela, um pequeno cartaz com uma seta indicava: "OISA". Subi a escada e entrei no prédio por uma porta de aço pintada de um cinza desbotado. Entrei numa sala de recepção deserta. As paredes eram pintadas de um verde sujo e cobertas de cartazes impressos. Um deles dizia: "Vá devagar para ter segurança! A velocidade mata!" Os outros eram do mesmo estilo, Ouvi nos fundos soar uma campainha que anunciava a minha chegada. Um momento depois, uma loira gorda de suéter preto e minissaia apareceu. —  Que deseja? — perguntou numa voz tão aborrecida quanto a expressão do seu rosto. —  O Sr. Simpson está? —  Tem hora marcada? —  Não. —  Seu nome, por favor? Disse-lhe meu nome, sem que houvesse alteração na expressão de aborrecimento da voz ou do rosto. — Tenha a bondade de sentar-se. Vou ver se ele pode atender.
Saiu da sala de recepção e eu ouvi a porta ser trancada depois que ela passou. Sentei-me num banco de madeira ao lado de uma mesa na qual se via o último número do boletim informativo da OISA. Acendi um cigarro e passei os olhos displicentemente pela publicação. Fiquei sabendo tudo sobre os aperfeiçoamentos que a GM havia introduzido no novo Vega 12 que não podiam ser vistos externamente e o rendimento adicional que se podia obter do Pinto com o novo conjunto Boss. Tudo isso era coisa que se poderia ficar sabendo nos anúncios das companhias interessadas, nos jornais e na televisão. Cheguei à última página sem encontrar o menor parágrafo que se referisse à segurança automobilística. Procurei um cinzeiro onde pudesse apagar a minha ponta de cigarro. Não o encontrei e, por isso, levantei-me, abri a porta e joguei o cigarro no beco ao lado do prédio. Através das paredes atrás de mim, ouvi a campainha tocar. Ao mesmo tempo, a leve vibração do pavimento e o barulho abafado das máquinas da tipografia embaixo cessaram de súbito. Olhei para meu relógio. Quatro e quarenta e cinco. Já estava ali havia mais de dez minutos. A loira tornou a aparecer à porta. Uma expressão de surpresa sucedeu à de aborrecimento quando ela me viu. Correu os olhos pela sala. —  Alguém entrou aqui? —  Não. Fui apenas jogar um cigarro fora. —  Está esperando mais alguém? —  Não. Contínuo a esperar o Sr. Simpson. —  A secretária dele não o veio atender? —  Não. —  Que horror! Este é o lugar mais desorganizado dentre todos em que já trabalhei. Ela tinha de vir aqui dizer-lhe que ele não está na cidade. — É mesmo? — Meu caro senhor, do jeito que as coisas andam aqui, não me admiraria nada que ele tivesse embarcado para a Lua! Saiu batendo a porta e eu resolvi sair também. A luz do dia tinha quase desaparecido enquanto eu esperava e parei no patamar da escada para acender outro cigarro antes de descer a escada. Achei que tinha sido ingênuo em esperar que Simpson me recebesse, fossem quais fossem as circunstâncias, a julgar pela maneira pela qual ele escapara no outro dia do escritório de Weyman. Enquanto descia a escada, ouvia as vozes dos homens da tipografia que saíam do trabalho. Quando cheguei ao último degrau, ouvi alguém dizer atrás de mim: —  Pode me dar fogo, amigo? —  Pois não — disse eu, virando-me. Pelo canto dos olhos, vi um punho enorme que vinha na direção do meu rosto. Tratei instintivamente de abaixar-me. Mas não fui suficientemente rápido. O soco me explodiu no rosto com toda a força de uma marreta. Senti que cambaleava para trás enquanto uma chuva de faíscas me dançava diante dos olhos. Sacudi a cabeça meio atordoado, tentando desanuviar a visão. Fui agarrado pelos ombros e arrastado para o fundo do beco. Mesmo então, não me passou pela cabeça que aquilo fosse outra coisa senão um assalto. Quis dizer que minha carteira estava no bolso das calças, mas senti os lábios paralisados e nada pude dizer. Senti-me encostado à parede do prédio. Consegui vê-los através dos olhos semicerrados. Eram três, mas eu não podia ver-lhes o rosto, pois estava muito escuro. Começou então a dor. Era tudo lento, deliberado, metódico e profissional. Nas costelas, no estômago, na barriga, nos testículos. Escorreguei pela parede e a dor me recomeçou no rosto. Estourava-me nos ouvidos, no nariz e na boca. Senti o gosto do sangue quente na boca quando cheguei ao chão. Mas, apesar de tudo isso, eu não perdia a consciência. Havia um pensamento no fundo da cabeça que persistia em não me abandonar. Alguém tinha dito que eu devia ter cuidado. Não me lembrava quem. Alguém tinha dito que eu ia aprender como eles sabiam agir sem piedade. Mas não me lembrava quem. Tratei de me levantar. Já estava de joelhos e ia erguer o corpo quando vi a pesada bota. Nada havia que eu pudesse fazer. O pontapé me atingiu no queixo e eu me senti suspenso no ar e dando uma cambalhota na direção da parede. Senti-me quase feliz quando as trevas desceram afinal sobre mim.
Capítulo 8
Ouvi os gritos dela muito distantes. "Ângelo! Ângelo!" Senti-lhe as lágrimas quentes que me caíam no rosto. Lutei com grande esforço para ir ao encontro dela. Dentro da noite, o rosto branco e apavorado estava muito próximo, mas as feições pareciam turvas através de meus olhos inchados. Senti o braço dela passado por trás de minha cabeça, que foi encostada ao seu seio. As lágrimas continuavam a cairme pelo rosto enquanto ela me abraçava de joelhos, embalando-me de um lado para outro. —  Cindy. . . — minha voz era um som estrangulado e estranho que me saía da garganta. — Ajude-me. . . —  Não se mova, Ângelo. Você está muito machucado. Vou telefonar pedindo uma ambulância. Tentei sacudir a cabeça, mas a dor era muita. —  Não. . . Leve-me para casa. Meu pai é médico. —  Por favor, Ângelo! —  Ajude-me a levantar-me! Ela reagiu à urgência em minha voz e colocou um braço sob meus ombros. Quase gritei ao sentir a pressão no corpo quando ela me puxou. Pareceu levar horas, mas ela conseguiu afinal levantar-me o corpo, apoiada na parede do prédio. —  Não dê um passo — disse ela. — Vou trazer o carro até aqui. Assenti com a cabeça. —  Pode ficar aí de pé? — perguntou ela ansiosamente.    — Posso. . . Ela olhou para o meu rosto por um momento. Não sei bem o que viu nele, mas, um instante depois, virou-se e eu ouvi os passos dela que se afastavam. Não olhei para ela porque qualquer movimento com a cabeça doía muito. O tempo pareceu de novo arrastar-se e houve um vácuo ressoante em minha cabeça. Ouvi então o barulho da Maserati que se aproximava, com os faróis cortando a escuridão. Bati os olhos dolorosamente. O vulto de Cindy deu a volta ao carro e abriu a porta do meu lado. —  Pode apoiar-se no meu ombro? — perguntou ela, aproximando-se. Levantei o braço e ela se colocou sob ele. Deixei o peso do corpo descansar nela e assim fizemos o meio quilômetro que me separava da porta. Ela me virou o corpo e me fez escorregar primeiro para o banco e, depois, pegou-me os pés e colocou-os dentro do carro. Passou o cinto de segurança por mim e inclinou o banco para trás até que fiquei quase deitado. —  Está bem assim? — perguntou. —  Estou, sim. À luz refletida dos faróis, vi que a frente do vestido dela estava toda manchada de sangue. Fechou a porta e foi sentar-se à direção. Inclinou-se sobre mim e travou a porta. —  Desculpe — murmurei. — Estraguei seu vestido. Ela não me respondeu. Saiu em marcha à ré e virou para a Michigan Avenue. —  Aonde é que vamos agora? Cuidadosa e explicitamente, disse-lhe qual o caminho que devia tomar para a casa de meus pais. A língua me mostrava falhas nos dentes. Esperava que fossem os postiços e não alguns dos poucos dentes que me restavam. Ela saiu pela avenida e me disse: —  Agora, descanse. Fechei os olhos. Abri-os depois é perguntei: —  Como foi que você me encontrou? —  Às cinco e meia, quando vi que você não aparecia, fiquei inquieta. O prédio estava inteiramente às escuras e eu tinha visto todos saírem. Fui então para os fundos, subi a escada e tentei a porta. Estava fechada. Bati e ninguém respondeu. Foi então que ouvi você gemer. Desci a escada e encontrei-o caído atrás do canto do prédio. — Parou num sinal e olhou para mim. — Agora, chega de conversa até que eu o leve para casa. Descanse. Fechei os olhos e mergulhei de novo na escuridão. Abrios quando o carro parou diante da casa. —  Vou ajudá-lo — disse ela, abrindo minha porta e estendendo os braços para mim. Conseguimos tirar meus pés do carro, mas não pude fazer mais que isso. Mesmo com o auxílio de Cindy, a dor não me deixava andar. Agarrei-me à porta do carro e disse: —  Toque a campainha. Gianno me ajudará. Ela subiu os degraus e tocou a campainha. Um instante depois, as luzes da varanda se acenderam e Gianno apareceu à porta. Ela mal pôde dizer meu nome e ele já estava descendo os degraus na carreira e me tomava nos braços como se eu ainda fosse o menino que ele outrora carregava. —  Dottore! Dottore! — gritou ele com toda a força de seus pulmões quando entramos na casa. — Ângelo está ferido! Minha mãe foi a primeira a aparecer. Olhou para mim e levou a mão à boca. —  Figlio mio! — exclamou, chorando. — Que foi que lhe fizeram? Meu pai apareceu logo atrás dela. Olhou para mim, fechou a cara e disse a Gianno: —  Leve-o para o meu consultório. Gianno me carregou através da casa até a sala que meu pai usava como consultório quando recebia clientes em casa. Entramos na sala de exames e Gianno me colocou com muito cuidado na mesa branca. Meu pai abriu um armário e pegou uma seringa, dizendo: —  Gianno, telefone para o hospital e peça que mandem imediatamente uma ambulância. —  Hospital, não! — disse eu. Gianno hesitou, mas meu pai olhou-o severamente e ele correu para o telefone. —  Que foi que houve? — perguntou meu pai calmamente enquanto preparava a injeção. —  Fui atacado por três homens. Ouvi minha mãe soltar uma exclamação. Meu pai voltouse para ela e disse severamente: —  Espere lá fora, mamma! —  Mas Ângelo. . . —  Ângelo vai ficar bom, eu lhe prometo. Agora, vá esperar lá fora. — Olhou para Cindy, que estava atrás de minha mãe, e disse: — Você também, moça! Minha mãe tomou o braço de Cindy e disse, saindo com ela da sala: —  Vai me contar tudo o que aconteceu. Olhei para a seringa na mão de meu pai e perguntei: —  Para que isso? —  Analgésico — disse ele. — Vou fazer os curativos e vai doer muito mais do que agora. —  Não quero dormir. Tenho que dar alguns telefonemas. —  Para quem você quer telefonar? Talvez eu possa ajudá-lo. Quase não senti a picada da agulha. —  Primeiro, quero falar com tio Jake.
— Tio Jake? — perguntou ele e eu consegui captar a nota de surpresa na voz dele antes que a injeção me fizesse mergulhar no país dos sonhos.
 
Gianno e eu estávamos brincando de cowboys e índios no jardim ao lado da casa. Naquele momento, eu era Tom Mix e ele era meu fiel cavalo Tony e eu estava disparando o meu revólver sobre os índios que perseguíamos através da planície, exatamente como tinha acontecido no filme que tínhamos visto na véspera, na matinê infantil. —  Espere, Tony! — exclamei, puxando-o pela gola da camisa ao chegarmos ao fim do jardim. — Acho que estou ouvindo uma carroça coberta, de pioneiros. Saltei das costas dele e escondi-me num canteiro. O grande Duesenberg preto de meu avô apareceu na alameda. Esperei que ele passasse e pulei de novo nos ombros de Gianno. —  Depressa! Temos de avisá-los de que há índios por aqui! Gianno galopou impetuosamente pela alameda, segurando-me as pernas para que eu não caísse. Disparei meu revólver para o ar, fazendo barulho com as espoletas e gritando: —  Cuidado, vovó! Os índios estão aí! Pelos vidros, vi meu avô sentado no carro atrás do chofer entre dois homens. Havia ainda outro homem sentado no banquinho diante deles, O automóvel parou em frente à casa. Gianno e eu esperamos por eles na varanda quando desembarcaram. Os dois homens que estavam sentados ao lado de meu avô esperaram, um de cada lado do carro, enquanto o outro homem subiu a pequena escada em companhia dele. Brandi meu revólver no ar e gritei: —  Os índios vão descer das montanhas! Vovô parou diante de nós. Não era um homem grande. Ao contrário, era franzino e quase pequeno. Gianno parecia um gigante ao lado dele. Mas isso não tinha a menor importância. Fosse quem fosse que estivesse ao lado de meu avô, o grande homem era ele. Estendeu a mão e disse: — Dê-me essa arma, Ângelo. Procurei em seus olhos algum sinal de aborrecimento, mas não pude ver nada. Eram olhos castanho-escuros, quase pretos, e insondáveis. Entreguei-lhe meu revólver em silêncio. Ele o tomou na mão e olhou-o com aborrecimento. Olhou para Gianno. —  Quem deu isto a ele? — É apenas um brinquedo, padrone — disse Gianno, procurando curvar-se. —  Pouco importa — disse meu avô, com voz ríspida. —: Disse que não queria armas, nem mesmo de brinquedo. Não prestam para crianças. Dessa vez Gianno conseguiu curvar-se, mesmo comigo às costas. —  Si, padrone. Vovô entregou-lhe o revólver e disse: —  Jogue isso fora. — Estendeu em seguida os braços para mim e disse: — Venha, Ângelo. Passei dos ombros de Gianno para os braços de vovô, contente de que ele não estivesse zangado comigo. Vovô me beijou enquanto me carregava para dentro da casa e me disse: —  As armas são coisas muito perigosas na mão de crianças, mesmo quando são de brinquedo. Entramos na sala, onde minha mãe e meu pai estavam esperando. No momento em que minha mãe o viu, começou a chorar. Vovô me passou para o outro braço e abraçou minha mãe. —  Que é isso, Jenny? Não chore. A Sicília não fica no fim do mundo. —  Mas vai para tão longe de nós! — murmurou ela, chorando. Comecei a chorar também. —  Não quero que vá, vovô! —  Viu o que você fez, Jenny? — perguntou meu avô. — Fez o menino chorar. — Voltou-se para meu pai. — Diga a sua mulher que pare com isso, dottore. Não é bom para Ângelo ficar agitado assim! Os olhos de meu pai não estavam exatamente secos e eu me aproveitei da hesitação momentânea dele para chorar ainda mais. —  Não quero que me deixe, vovô! — disse eu, abraçado a ele e soluçando convulsivamente. Dessa vez, a coisa foi tão forte que até minha mãe parou de chorar e olhou para mim.
—  Ele   está ficando nervoso demais! — disse ela, estendendo os braços para mim. Meu avô afastou-lhe os braços. —  Não lhe disse?  Agora deixe, que o avô  sabe como cuidar dele. Minha mãe se calou enquanto meu avô me virava nos braços para me olhar. —  Não vou deixar você, Ângelo mio! Vou apenas à Sicília, a Marsala e a Trapani, onde eu nasci. Eu estava perdendo terreno, mas pelo menos ele já se esquecera do meu revólver. Tentei mais um grito. —  Nunca mais vou ver o senhor! Quem ficou com os olhos cheios de lágrimas foi ele. Abraçou-me com tanta força que eu quase não podia respirar. —  Claro que vai ver — disse ele, com voz embargada. — No verão, você poderá ir fazer-me uma visita com sua mãe e seu pai e eu lhe mostrarei os vinhedos e os olivais na encosta do monte Erice, onde seu avô se criou. —  Pode-se brincar de bandido e mocinho lá? — perguntei, com os olhos arregalados. —  Não, que esse brinquedo não presta. Todo brinquedo de matar gente é ruim. Você tem de ser um médico, como seu pai, para curar os outros e não matar gente. — Olhou para mim, sem muita certeza de que eu o estivesse compreendendo. — Além disso, não há índios na Sicília. —  Só gente boa, não é? Ele sabia quando tinha perdido. —  Só há gente boa na Sicília — disse ele, desistindo e recorrendo à sua arma decisiva, o suborno. — Vovô vai lhe mandar um presente muito especial quando chegar lá. —  Qual é o presente? —  O que você quiser. Basta dizer a seu avô. Pensei um momento e me lembrei de um filme que Gianno e eu tínhamos visto uma semana antes. O artista era Monte Blue, que fazia o papel de um corredor de automóveis. —  Pode ser um carro de corridas de verdade, que eu possa dirigir? —  Se é o que meu Ângelo quer, é isso que ele vai ganhar. Vou encomendar à Bugatti um carro especial para você! Passei os braços pelo pescoço dele e beijei-o. —  Obrigado, vovô! Ele se voltou para meus pais e disse triunfalmente: —  Viram? Está perfeitamente bem agora.
Durante todo esse tempo, o homem que havia entrado com ele estava de lado a observar-nos com um sorriso. Por fim, meu avô o chamou. —  Venha cá, Jake. "Este é meu filho, o Dr. Perino", disse meu avô, orgulhosamente. "A mulher dele, Jenny. Este é o Juiz Jacob Weinstein, de quem já falei." O Juiz Weinstein, um homem de cabelos castanhos, mais ou menos da idade e da altura de meu pai, apertou a mão de meus pais. —  Não se esqueça de mim — disse eu, estendendo-lhe a mão. Ele se voltou com um sorriso e me apertou a mão. —  Seria impossível — disse ele. —  Fiz um contrato por toda a vida com Jake para ele tomar conta dos negócios da família enquanto eu estiver ausente — disse vovô, botando-me no chão, — Agora, vá brincar enquanto eu trato de alguns assuntos com seu pai e com o juiz. —  Vamos  até  a cozinha  — disse-me minha mãe.  — Preparei uns bolinhos que estão muito gostosos. Você poderá comê-los junto com um copo de leite. Ela me pegou pela mão e me levou para a porta. Detive-a e olhei para trás. —  Ainda vou ver o senhor antes de ir, vovô?  Vi que os olhos dele se turvavam de novo, —  Sim, antes de eu ir — conseguiu dizer. Cerca de uma hora depois, fomos para a varanda na frente da casa e demos adeus a meu avô, enquanto o grande Duesenberg descia pela alameda. Vi-o olhar pela janela traseira e tornei a dar adeus a ele. Meu avô levantou a mão e o carro desapareceu no fim da alameda. Ficamos ainda um momento na varanda e eu olhei para meus pais. —  Aqueles homens que estavam esperando vovô tinham armas escondidas debaixo do paletó. Deviam saber que vovô não gosta de armas. Minha mãe e meu pai se olharam durante muito tempo e então os olhos de minha mãe tornaram a se encher de lágrimas. Meu pai me pegou com um braço e passou o outro pelos ombros dela. Ficamos em silêncio muito tempo ali na varanda e minha mãe escondeu o rosto no peito de meu pai. Olhei para meu pai. Havia lágrimas nos olhos dele  também. Senti um aperto esquisito na garganta. Havia tantas coisas que eu não compreendia. . . Mas acabei compreendendo muitas delas. Por exemplo, os dois homens que esperavam vovô, quando ele veio a nossa casa, eram agentes federais que iam escoltá-lo até Nova York, onde ele embarcaria num navio para a Itália. Soube também que o Juiz Weinstein, ou tio Jake, como vim a chamar-lhe, não era na verdade juiz e sim um advogado, que se encarregava de todos os assuntos comerciais de meu avô. Durante muitos anos depois, quase até o tempo em que eu fui para a universidade, tio Jake ia uma vez por mês a nossa casa, sempre num domingo e sempre para almoçar conosco. Por fim, pouco depois de fazer vinte e um anos e quando estava de férias no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, janeiro de 1952, foi que vim a saber como meu avô tinha sido um homem rico. Nessa época, a parte que me cabia de seus bens, graças à prudente administração de tio Jake, era de mais de vinte e cinco milhões de dólares e a parte de meus pais era o dobro disso. Lembro-me de ter olhado para meu pai e para tio Jake inteiramente aturdido. Eu sabia que tínhamos algum dinheiro. Não fazia a menor idéia de que fôssemos ricos. —  Que é que eu vou fazer com todo esse dinheiro? — É melhor que tome um rumo desde já — disse meu pai —, porque um dia tudo vai ser seu. —  Por que não faz um curso na Escola de Administração de Harvard? — perguntou tio Jake. — Mas eu não estou interessado em negócios. Só estou interessado em automóveis. — Mas os automóveis podem ser também um negócio — disse tio Jake. — Para mim, não. Tudo o que eu faço com automóveis é gastar dinheiro. — Bem, ao menos agora você sabe que o tem para gastar. — Mas não vou precisar desse dinheiro todo. — Por que não abre então um fundo de investimento e não deixa um banco administrar o seu dinheiro? Olhei para tio Jake. —  Por que o senhor não pode continuar a administrá-lo corno até agora?  Lembro-me de que vovô disse que o seu contrato era por toda a vida. Se era bom para ele, é bom para mim também. Ele olhou para meu pai e depois para mim e disse:
—  Desculpem, mas não posso fazer isso. —  Por quê? — Em vista de certas outras atividades comerciais minhas, que o governo julga que são ligadas ao crime organizado, acho melhor separar-me de vocês do que arriscar a possibilidade de que se envolvam em alguma coisa na qual não têm a menor participação. Compreendia perfeitamente o que ele estava dizendo. Eu lia os jornais e sabia que o nome dele era com freqüência mencionado em relação às investigações sobre o crime organizado. —  Mas podemos recorrer ao senhor se algum dia tivermos um problema de verdade? — perguntei. —  É claro. Afinal de contas, meu contrato com seu avô foi por toda a vida. Tudo está resolvido no banco, John. Talvez você e Ângelo queiram ir comigo ao centro da cidade. Poderemos almoçar, depois iremos ao banco, assinaremos a papelada e tudo será legal. Foi o que fizemos e, quando voltei para a escola, fiz uma assinatura do Wall Street Journal. Durante algum tempo, acompanhei religiosamente, todos os dias, a cotação dos títulos que o banco administrava para mim. Acabei me cansando disso e fiquei dependendo das comunicações trimestrais do banco para ficar atualizado quanto à minha situação financeira. E, muitas vezes, nem essas comunicações eu abria. Que mal podia haver comigo se eu começara com vinte e cinco milhões de dólares e tudo em papéis seguros? Tio Jake não perdeu inteiramente a sua luta com o governo, mas no ano seguinte abandonou a advocacia e se mudou para Las Vegas, onde tinha interesse em vários hotéis. Trocávamos cartões de Natal e, de vez em quando, sempre que ele vinha ao leste, fazia uma visita a meus pais, mas em ocasiões em que eu estava ausente. Alguns anos depois, li nos jornais que ele tinha vendido os seus interesses em Las Vegas e se mudara para Phoenix, no Arizona, onde se metera num vasto programa de loteamento de terras ligado a um centro de esportes, hotel de veraneio e estância hidromineral que tinha o nome de Paradise Springs. Tinha recebido um convite dele para assistir à inauguração, mas fora na época em que eu começara a trabalhar para Número 1 e não pudera ir. Mas meu pai e minha mãe tinham ido, levando as minhas desculpas e os meus melhores votos. Tinham gostado tanto que voltaram varias vezes. Meu pai me disse que tio Jake parecia feliz pela primeira vez em sua vida e se adaptara tanto aos costumes locais que ia jogar golfe todas as manhãs sem tirar da cabeça o seu chapelão Stetson de cowboy. Desde aquele tempo, eu tinha aprendido muitas coisas e acumulara vários pesares. Um deles fora nunca mais ter visto meu avô. Ele levou quase dois anos para me mandar a Bugatti que me havia prometido, mas afinal mandou. Um ano depois disso, a guerra começou na Europa e ele escreveu a meus pais dizendo que não fossem visitá-lo, pois não queria nem por sombra que me acontecesse alguma coisa. Então, entramos na guerra e quase dois anos passaram sem que tivéssemos notícias dele até que as tropas americanas desembarcaram na Itália. Mas tarde demais. Meu avô tinha morrido, um ano antes, de câncer.
 
Capítulo 9
Abri os olhos para a luz do sol que se derramava num quarto cheio de flores. Movi um pouco a cabeça e nada senti. Movi mais e me doeu terrivelmente. —  Diabo! — exclamei. A enfermeira, que estava sentada num canto do quarto, levantou-se. O uniforme engomado farfalhou quando ela se aproximou da cama e olhou para mim. —  Já acordou — disse ela.  Disso eu já sabia. —  Que dia é hoje? —  Quinta-feira. —  Que foi que houve com a quarta? —  Passou o  tempo  todo dormindo — respondeu ela, estendendo a mão para o telefone. Ouvi o ruído fanhoso de uma voz que respondia. — Faça o favor de procurar o Dr. Perino e dizer-lhe que o 503 já acordou. Obrigada. Voltou-se para mim e explicou: —  Seu pai está fazendo visitas, mas ele pediu que o avisássemos no momento em que o senhor acordasse. —  Que horas são? —  Dez horas. Como se sente?
—  Não sei. E estou com medo de querer saber.    A porta se abriu e meu pai entrou no quarto. Nada de cerimônias anglo-saxônicas entre nós. Éramos italianos. Ele podia ser médico à vontade, mas em primeiro lugar era meu pai. Beijamo-nos na boca. —  Sua mãe e Cindy estão na cantina tomando café e já vêm. —  Antes que elas cheguem, quer me dizer como é que estou? —  Só lhe posso dizer é que podia estar pior. Duas costelas quebradas, numerosas contusões e escoriações, mas nenhuma lesão interna, tanto quanto nos foi possível determinar. Um pouco de concussão, o que lhe vai causar durante algum tempo dores de cabeça. — Fez uma pausa. — Mas lhe destroçaram o rosto. Deitaram a perder toda a cirurgia plástica que você foi fazer na Suíça. O nariz está quebrado em dois lugares, há uma pequena fratura no malar, embora não seja nada de grave e capaz de consolidar-se por si. Perdeu uns cinco dentes, principalmente postiços, e parece que o malar direito está um pouco deslocado, mas isso só se pode ver depois que essa tumefação passar. Alguns cortes acima dos olhos e perto da boca. Em suma, ruim, mas não muito. —  Obrigado, doutor — disse eu. Peguei-lhe a mão e beijei-a. Como disse, somos italianos. Quando olhei para ele, havia lágrimas em seus olhos. A porta se abriu então e mamãe e Cindy entraram. Papai teve bem dez minutos de trabalho para impedir que mamãe me inundasse de lágrimas. Cindy ficou parada aos pés da cama, observando-nos quase com timidez. Creio que foi a primeira vez que viu uma família italiana em ação. Era de fato uma coisa muito difícil de se ver. Por fim, quando mamãe me beijou quase todo, sem esquecer os pés, levantou o corpo e disse: —  Venha cá, Cindy. Ângelo quer agradecer-lhe.  Voltou-se então para mim e disse: —  É uma boa moça e muito sua amiga. Salvou-lhe a vida e trouxe você para casa e para nós. Já agradeci a ela não sei quantas vezes. Agora, agradeça você. Cindy curvou-se sobre mim e me beijou castamente o rosto. Retribuí com um beijo igualmente casto no rosto dela. —  Muito obrigado — disse eu, gravemente. —  Não há de quê — disse ela, cerimoniosamente. —  É um bom menino, o meu Ângelo — disse minha mãe, com orgulho. Cindy e eu quase não podíamos conter o riso. —  Quem mandou todas essas flores? — perguntei. —  A história da agressão que você sofreu saiu em todos os jornais — disse Cindy. — As flores começaram a chegar ontem. De Número 1, Duncan, Rourke, Bancroft e até de Número 3 e de Weyman. —  Ângelo tem bons amigos — disse minha mãe, toda satisfeita. —  De fato — disse eu secamente, olhando para Cindy. —  Número 1 telefonou de Palm Beach — disse Cindy. — Mandou dizer que você não deve se preocupar. Estará com você na segunda-feira, quando chegar aqui. De repente, tudo me ocorreu. Só faltavam cinco dias para a segunda-feira. Havia perdido um dia precioso dormindo. Olhei para meu pai e perguntei: —  Quanto tempo ainda tenho de ficar aqui? —  Calculo que até depois do fim de semana. Se tudo correr bem, poderei dar-lhe alta na segunda ou na terça-feira. —  Se eu saísse do hospital por um dia e voltasse, o prejuízo seria muito grande? —  É tão importante assim para você? —  É, sim. Não foi um assalto e o senhor sabe muito bem disso. Não me levaram a carteira, nem o relógio. Meu pai sabia também reconhecer um espancamento feito por profissionais. Não lhe seria possível trabalhar mais de quarenta anos nos hospitais de Detroit sem ter esse conhecimento prático. Ficou pensando. —  Há uma coisa que eu não posso deixar de fazer — disse eu. — É a única chance que tenho de impedi-los de tomar a companhia das mãos de Número 1. Houve uma estranha expressão no rosto de meu pai. —  Refere-se ao velho Hardeman? —  Sim. —  Voltará dentro de um dia? —  Voltarei. —  Poderá sentir dores quase a cada minuto. —  Dê-me comprimidos para levar. —  Está bem. Vou conceder-lhe um dia e confiar na sua palavra. Terá de voltar. —  Não!  — exclamou mamãe. — Não  consinta!   Meu filho vai piorar, vai se machucar! Meu filho! Meu pai levantou os braços para detê-la e disse severamente: —  Jenny? Mamãe olhou para ele com surpresa. Com certeza, era a primeira vez que ele lhe falava naquele tom. —  Deixe os homens fazerem o trabalho dos homens! — disse meu pai. As mulheres sicilianas sabem disso. —  Está bem, John — disse minha mãe, em voz baixa. Olhou para mim, mas falou com ele. — Será que ele vai ter cuidado? —  Ele vai ter cuidado — disse meu pai. Acordei da vez seguinte na cabina do grande avião DC-9, fretado. A aeromoça olhava para mim e Gianno estava ao lado dela. —  Desceremos em Phoenix dentro de quinze minutos, Sr. Perino — disse a aeromoça. —  Levante-me — disse eu a Gianno. Ele se abaixou ao lado da cama e rodou a manivela, levantando as costas da cama até que eu fiquei numa posição meio reclinada. —  Está bem assim, Ângelo? —  Muito bem. O sol da tarde era mais claro ali, a dois mil e setecentos metros de altitude, do que em Detroit. O sinal para apertar os cintos se acendeu. Gianno apertou as faixas em torno de meu corpo e verificou se os pés da cama estavam bem presos. Em seguida, foi para o seu lugar e apertou o cinto. A aeromoça foi para a cabina do piloto. Recostei-me na cama com uma sensação de bem-estar. Meu pai é que tinha na realidade tomado todas as providências. Tudo tinha começado naquela manhã, quando eu pedira a Cindy que verificasse os vôos para Phoenix enquanto eu dava um telefonema para tio Jake. —  Deixe isso comigo — disse meu pai. — Eu me encarregarei de tudo. —  Mas eu tenho de estar em Phoenix hoje. —  E estará. Trate apenas de descansar. Vou  telefonar para Jake e botar você em Phoenix hoje. —  Como é que vai conseguir isso? —  Não se preocupe — disse ele, sorrindo. — Já está em tempo de você aprender algumas das vantagens da riqueza. Depois que ele saiu, Cindy se aproximou da cama. Ficou junto de mamãe, que estava sentada numa cadeira, atenta a todos os meus movimentos. —  Acho que vou voltar para o hotel e dormir um pouco — disse Cindy. — Estou exausta. —  Não quero que volte para o hotel. Sabem que você estava comigo e eu não quero que lhe aconteça coisa alguma. —  Nada vai me acontecer. —  Era também o que eu pensava. —  Cindy pode ficar em nossa casa — disse mamãe mais que depressa. — Pode ficar no quarto dos hóspedes, onde dormiu na noite passada. Olhei para Cindy e ela fez um sinal afirmativo. —  Não quero que ninguém saiba onde você está. —  Está bem — disse ela. — Vou dizer a Duncan que guarde segredo. —  Não vai dizer nada a Duncan. Não vai telefonar para ele, nem para ninguém. Não confio em nenhum dos telefones da fábrica. —  Mas eu prometi a ele que daria notícias suas. —  Ele poderá conseguir essa informação no hospital. Esconda-se até nova ordem minha. —  Ela vai fazer o que você está dizendo, Ângelo — disse minha mãe. — Não é mesmo, Cindy? —  É — respondeu Cindy. —  Viu? — exclamou minha mãe, exultante. — Eu sabia que ela era uma boa moça. Não se preocupe com ela. Tomarei conta dela como minha filha. Ninguém vai saber onde ela está. Pude notar um começo de sorriso nos lábios de Cindy. Mas não era um sorriso de zombaria. Era o sorriso de satisfação que se tem diante de uma prova de amizade. —  Está bem. Muito obrigado, mamãe.  Meu pai entrou no quarto. —  Tudo providenciado. Falei com Jake e ele o espera no escritório hoje, às cinco horas. Tinha de fato providenciado tudo. Uma ambulância particular me levou do hospital para o aeroporto, entrando no campo e indo parar ao lado do jato fretado. Gianno me acompanhou na ambulância e no avião certificou-se de que a cama estava bem colocada e bem presa. Cinco minutos depois de levantarmos vôo, me apareceu com uma seringa na mão. —  Que é isso? — perguntei. —  É para dormir. O dottore quer que você descanse até chegar a Phoenix. —  Vou descansar.. —  O dottore disse que, se você criasse problemas, eu podia fazer o avião voltar para Detroit. —  OK. Pode espetar. Papai tinha receitado bem. Acho que já estava dormindo antes mesmo que ele me tirasse a agulha do traseiro. Havia uma ambulância esperando na pista quando o grande avião afinal parou. Trinta e cinco minutos depois, chegávamos a Paradise Springs. Vou dizer uma coisa em favor das ambulâncias. São uma solução para os problemas do trânsito. É uma pena que não possam ser usadas sempre. Fomos conduzidos pela entrada privativa para o escritório de tio Jake. Passava por um jardim cheio de cercas vivas, defronte dos campos de golfe. Tio Jake estava sentado à sua mesa, no grande escritório de paredes revestidas de lambris. Troncos crepitavam na lareira numa batalha perdida com o ar-condicionado. Tio Jake me viu olhando espantado para a lareira, enquanto Gianno levantava a cama. Levantou-se da cadeira e veio ao meu encontro com o Stetson branco a destacar-se do lambri escuro. —  Este ar-condicíonado é tão eficiente que às vezes tenho receio de ficar congelado — disse ele. — E ainda sou bastante homem do leste para gostar de uma boa lareira onde possa esquentar as mãos. Sorri para ele, estendendo-lhe a mão. —  Alô, tio Jake! Seu aperto de mão foi firme e cordial, como sempre tinha sido. —  Alô, Ângelo. Muito prazer em vê-lo, Gianno. —  O prazer é meu, Eccellenza — disse Gianno, que fez uma reverência e saiu do escritório. Tio Jake voltou-se para mim quando a porta se fechou. Puxou uma cadeira e sentou-se ao meu lado. —  Você agora costuma viajar assim? — perguntou, sorrindo. —  Só quando estou tão cansado que não quero me levantar da cama. —  Seu pai me disse que você tinha levado uma surra e tanto — disse ele, ainda sorrindo. — Devia aprender a esquivar-se. —  Esquivei-me, mas encontrei um pontapé pela frente. 
O sorriso lhe desapareceu do rosto. As pálpebras pesadas e caídas sobre os olhos grandes, o comprido nariz romano recurvo, os lábios finos, o queixo com covinhas, tudo se combinava para lhe dar o ar perigoso e vigilante de um falcão à caça. —  Quem foi? — perguntou ele. —  Não sei ao certo. Mas tenho minhas suspeitas. —  Pode falar. Contei-lhe toda a história desde o princípio, isto é, desde o primeiro telefonema de Número 1, fazia já três anos. Não omiti coisa alguma, tanto dos negócios quanto de minha vida pessoal, porque sabia que era assim que ele queria e assim que tinha de ser. Uma hora e meia depois, cheguei ao fim de minha história com a conversa que tinha tido com meu pai naquela manhã. Ele era um homem que sabia escutar e bem poucas vezes me interrompeu para pedir esclarecimentos sobre algum ponto que para ele tinha ficado um pouco vago. Por fim, levantou-se e espreguiçou-se. Estava numa forma fantástica para um homem de quase setenta anos. Fisicamente, parecia ter uns quinze anos menos. — Acho que estou precisando de um drinque — disse ele. — E eu também. — O que gostaria de tomar? — Uísque canadense com gelo.  Ele riu. —  Seu pai me disse que você iria pedir justamente isso, mas que eu só lhe poderia dar um cálice pequeno de conhaque. —  Não posso ir contra meu pai. Havia um bar embutido na parede, que se abriu ao toque de um botão. Ele serviu dois cálices de conhaque e me entregou um. —  Tintim — disse ele. O conhaque me desceu pela garganta queimando tudo. Tossi e fiz uma careta quando a dor me tomou todo um lado do corpo. — Conhaque não é para ser tomado assim de uma vez, mas aos goles — disse ele, dando-me uma lição prática. Ao fim de alguns goles, olhou-me e disse: — Agora, que já ouvi sua história, quer me dizer exatamente o que deseja de mim? —  Ajuda. —  De que maneira? —  Há duas coisas que eu quero que faça, se puder. Uma delas é descobrir onde Simpson conseguiu o dinheiro para financiar a sua campanha contra nós. Se conseguiu esse dinheiro legitimamente, muito bem, não se fala mais nisso. Mas, se o dinheiro lhe foi fornecido por alguém de nossa companhia, quero saber disso. Em segundo lugar, quero a nota de suicídio que Loren III tem no cofre na casa dele. —  Que resultado espera dessas duas coisas? —  Não sei. Mas tenho o palpite de que nelas é que pode estar a chave de tudo. —  Não acha que está pedindo um pouco demais? Um trabalho não muito fácil de detetive e um serviço de arrombamento de cofre. Apenas. Fiquei calado. —  De quanto tempo dispomos? — perguntou ele. —  Até segunda-feira à noite. Preciso da informação para a reunião dos acionistas na manhã de terça-feira. É nossa última chance. —  Deve saber que está me pedindo que participe de um ato ilegal com pleno conhecimento prévio. Foi uma coisa que eu nunca fiz. Tenho sido advogado toda a minha vida e a única coisa que fiz foi defender meus clientes da melhor maneira possível, depois que eles cometiam algum ato ilegal. —  Sei disso, tio Jake. —  E ainda me pede que faça o que você quer? —  Peço. —  Por quê? — Sendo advogado, não devia fazer essa pergunta. Fez um contrato pela vida toda com meu avô pata cuidar de meus assuntos. E esse é um assunto meu. Ele pensou por um momento e, por fim, fez um sinal afirmativo. — Tem razão. Vou ver o que é possível fazer. Mas não posso prometer coisa alguma. Meus contatos em Detroit talvez já não sejam tão bons quanto eram. —  Isso é bastante para mim, tio Jake. Muito obrigado.  Ele olhou então para o relógio. —  Está na hora de você voltar para o avião. Já passa das sete e eu prometi a seu pai que a essa hora você já estaria de volta. —  Estou muito bem — disse eu. Mas não estava. A dor já começara a sua dança demente dentro de mim. —  Onde estará você, às nove horas da noite, na segundafeira? — perguntou tio Jake. —  Ou no hospital ou em casa. Depende de papai.
—  Está certo. Às nove horas da noite, na segunda-feira, esteja onde estiver, será procurado por alguém. Essa pessoa ou lhe dará o que você quer ou dirá que foi humanamente impossível consegui-lo. —  Ótimo. Ele foi até a porta e abriu-a. Gianno estava de pé junto a ela. —  Pronto, Gianno. Pode levá-lo. —  Si, Eccellenza — disse Gianno tirando do bolso uma seringa. Rasgou o invólucro de celofane e começou a retirar o líquido de um vidrinho. —  Eu posso compreender por que seu pai o deixou vir até aqui nesse estado para falar comigo — disse tio Jake. — O que não compreendo é o motivo que você tem para fazer isso, o que espera ganhar com isso. —  Em primeiro lugar, dinheiro. As ações que eu tenho podem valer algum dia dez milhões de dólares. —  Não é isso. Você tem de seu agora cinco vezes mais e nunca ligou ao dinheiro. Deve haver outra razão. — Talvez seja porque dei minha palavra ao velho de que faríamos um novo carro. E não considero a minha palavra cumprida enquanto o primeiro carro não sair da linha de montagem. Ele me disse então, com satisfação na voz: — Ah, isso, sim! Mas eu tinha também uma pergunta a fazer-lhe. —  Disse que sabia por que papai me deixou vir. Por que foi? —  Pensei que você soubesse. Foi o velho Hardeman quem conseguiu para seu pai uma colocação como médico de um hospital de Detroit, quando ele estava lutando com dificuldades por ser filho de seu avô. —  Quer se virar um pouco para o lado? — perguntou Gianno. Obedeci automaticamente, olhando ainda para tio Jake. Senti a leve espetadela da agulha.  Tio Jake começou a sorrir. —  A roda da vida nunca pára de girar, não é? Então, bem ali diante de meus olhos, começou a desaparecer. Grande injeção aquela! Dormi desde aquele momento no escritório de tio Jake, em Phoenix, até as nove horas da manhã seguinte, quando acordei na minha cama, no hospital de Detroit.
Capítulo 10
No sábado à tarde, no hospital, eu estava ficando tanta. As dores tinham melhorado bastante a ponto de eu poder dominá-las com aspirina à vontade, mas eu passeava de um lado para outro como um animal enjaulado, Mudava de canais na televisão sem encontrar um que prestasse e rodei o botão do rádio até que ele se soltou e me ficou na mão. Por fim, a enfermeira fugiu do quarto e voltou dez minutos depois com meu pai. Ele me olhou calmamente e perguntou: —  Que é que há? —  Quero sair daqui! —  Está bem. —  Não pode prender-me mais aqui dentro! Não agüento mais! —  Se prestasse atenção em vez de falar tanto, saberia que eu disse: "Está bem". —  Sério? —  Vista-se. Virei buscá-lo daqui a quinze minutos   logo que acabar as visitas aos doentes. —  E minhas bandagens? —  Terá de ficar com as costelas enfaixadas ainda algumas semanas, mas eu poderei substituir as bandagens da  cabeça e do rosto por alguns Band-Aids. Para dizer a verdade, estou muito satisfeito com o seu estado. Acabo de ver suas radiografias e seus exames de laboratório desta manhã. Tudo vai bem. Agora, vamos dar ao remédio milagroso da mamma, a pasta que ela faz, uma chance de agir sobre você. É evidente que mamãe chorou quando me viu chegar a casa. Com Gianno e papai, aconteceu a mesma coisa. Mas o maior assombro foi olhar para Cindy e ver lágrimas também nos olhos dela. Olhei para ela e disse, rindo: —  Estou vendo que mamãe lhe tem dado lições sobre a maneira de ser uma boa italiana. Ela me fez uma careta e virou o rosto, Quando tornou a olhar-me, sorria. —  Aprendi também a fazer molho de espaguete. Estamos na cozinha desde cedo, logo que seu pai disse que vinha trazêlo para casa. —  Podia ter-me dito, papai.
—  Queria primeiro ver seus exames para ter certeza. —  Gianno, ajude-o a subir — disse minha mãe. —  Si, signora. —  Dispa-o e faça-o deitar-se. Quero que ele descanse até a hora do jantar. —  Não sou mais criança, mamma — disse eu. — Posso arranjar-me sozinho. —  Vá com ele, Gianno — disse minha mãe com firmeza. — Não ligue ao que ele está dizendo. Comecei a subir as escadas, seguido de Gianno. —  E não o deixe fumar deitado — acrescentou minha mãe. — Senão vai tocar fogo na cama. Quando afinal cheguei à cama, percebi que não era tão forte quanto havia pensado. Fiquei satisfeito com a ajuda de Gianno. E adormeci direto.
 
Cindy apareceu antes do jantar, bem na hora em que minha mãe me forçava a tomar um cálice cheio de Fernet branco. Engoli quase a metade, sufocado com o gosto horrível que me ficava na boca. Fiz uma careta e disse: —  Chega! —  Vai beber tudo! — insistiu minha mãe. — Isto vai lhe fazer mais bem do que todas as bobagens de comprimidos! Continuei obstinadamente a olhar o cálice que tinha na mão. Minha mãe apelou para Cindy. —  Faça-o tomar tudo, minha filha. Eu tenho de descer e ir para a cozinha preparar a água da pasta. Obrigue-o a beber o resto antes de descer para o jantar. —  Sim, Sra. Perino — disse Cindy, obedientemente. Minha mãe saiu para o corredor e Cindy voltou-se para mim com um sorriso. — Não ouviu o que sua mãe disse? Tome o resto, vamos! —  Ela é formidável, não é? O mal é que ela acredita mesmo quando eu digo que o melhor amigo de um rapaz é sua mãe. —  Nunca em toda a minha vida conheci ninguém como ela — disse Cindy, com uma nota de inveja na voz. — Ou como seu pai também. O dinheiro que têm não os perturba de modo algum. Só se interessam um pelo outro. E por você. São pessoas de verdade. — Pode ser tudo isso, mas esta porcaria eu não vou beber.
—  Quem foi que disse? — murmurou Çindy. — Nem para fazer a vontade de sua mãe? Tomei de um gole o resto do Fernet branco. Fiz uma careta e entreguei-lhe o cálice. —  Mas isso é horrível mesmo! Ela nada disse e continuou com os olhos fixos nos meus.  Sacudi a cabeça, cheio de assombro. —  Você está mesmo impressionada com minha mãe, não está? —  Você não sabe como é feliz, Ângelo! Minha família tem mais dinheiro do que a sua. Muito mais. E minha mãe e meu pai nunca pareceram sequer tomar conhecimento de minha existência. Olhei-a, surpreso. Era a primeira vez que falava na família dela. —  Já ouviu falar na Morris Mining? Fiz um sinal afirmativo. Claro que sim. Compreendia afinal por que Cindy nunca dera muita importância a dinheiro. A Morris era uma das grandes empresas do país. No campo da mineração, estava mano a mano com a Kennecott Copper, a Anaconda e a Three M. Eu mesmo tinha cerca de mil ações dela. —  Meu pai é presidente da diretoria. Meu irmão é presidente da companhia e é quinze anos mais velho do que eu. Nasci fora de época e sempre tive a impressão de que minha chegada atrapalhou tudo e eles nunca me perdoaram por isso. De qualquer maneira, despacharam-me para as melhores escolas desde que foi possível. Dos cinco anos em diante, o tempo que me lembro de ter passado em casa foi muito pouco. Pensei em minha infância e em como tinha sido diferente da dela. Tinha razão. Eu era feliz. Levantei as mãos em sinal de rendição. —  Pronto! Confesso! Quero muito bem a eles dois! —  Não é preciso você me dizer! É uma coisa evidente. Logo que você se viu em dificuldades, veio diretamente para casa. Durante toda a minha vida, sempre que tive um problema, procurei ficar o mais longe possível de casa. Gianno bateu na porta aberta e entrou no quarto. —  La signora mandou que eu viesse ajudá-lo a se vestir e descer. Ajeitei-me na cama, cobrindo as pernas e sorrindo para Cindy. Ela sabia o que eu estava pensando. Mamãe a havia verdadeiramente impressionado. Faltava ainda mais de uma hora para o jantar. Não havia necessidade de que eu me vestisse já. Mas moças direitas não passam muito tempo no quarto de um rapaz italiano. Não é direito.
 
Na hora do jantar, descobri que estava faminto. Mamãe havia realmente se esmerado para mim. A pasta estava exatamente como eu gostava. Al dente. Cozida firme e não mole e aguada. E o molho tinha tudo. Salsichas apimentadas, salsichas doces, pimentões fritos de leve no azeite, bolinhos de carne misturados com carne de porco picada, tomates italianos preparados com um rico molho vermelho com o toque exato de orégano e alho. Só havia um defeito. Como sempre, estava doce demais. Era muito siciliano carregar a mão no açúcar. Mas fechei os olhos a isso. Estava com tanta fome que não podia ser exigente. Mamãe olhou para mim, toda orgulhosa. —  Está gostando do molho? —  Muito! — consegui dizer, com a boca cheia. —  Foi ela quem fez — disse minha mãe. — Sozinha.  Olhei para Cindy, admirado e sem saber se devia dizerlhe que, de outra vez que minha mãe lhe desse uma oportunidade, colocasse menos açúcar. As palavras de Cindy resolveram minha indecisão. —  Isso é muita bondade de sua mãe. Só fiz botar na panela as coisas que ela me dava e mexer de vez em quando. Eu devia ter adivinhado isso. —  De qualquer maneira está ótimo! —  Se ela passar algumas semanas comigo — disse minha mãe —, farei dela uma boa cozinheira siciliana. A pasta foi melhor do que qualquer soporífero. Meia hora depois do jantar, meus olhos começaram a se fechar, bem no meio do programa de televisão favorito de minha mãe. Subi para dormir.
 
O dia seguinte era domingo e o costume era toda a família, inclusive Gianno, ir à missa das dez. Naquele domingo, o costume não foi observado, pois mamãe não quis me deixar sozinho em casa. Gianno foi à missa das nove horas e, quando ele voltou, meus pais foram à missa das dez. Com grande surpresa para mim, quando desci à procura de Cindy, Gianno me disse com um sorriso malicioso que ela tinha ido à missa com eles. Voltei para meu quarto, resmungando coisas. Foi assim que eu soube que estava mesmo melhor. Sentia uma vontade louca de estar com Cindy. Mas mamãe estava agindo dentro da melhor tradição italiana. Devo ter pegado novamente no sono porque, quando abri os olhos, meu pai estava ao lado da cama a olhar para mim. Curvou-se e me beijou a testa. —  Se está com disposição, podemos descer para o consultório e tirar essas bandagens. —  Vamos, então. Sentei-me na mesa com as pernas balançando, enquanto ele me tirava cuidadosamente as bandagens da cabeça. Depois, com a maior delicadeza possível, tirou o esparadrapo que prendia a bandagem do nariz e levantou-o. Procedeu com o mesmo cuidado em relação ao esparadrapo e à bandagem do rosto, do queixo e da orelha. Pegou um vidro e derramou um pouco do líquido num chumaço de algodão. —  Vai arder um pouco — disse ele. — Mas preciso fazer uma boa limpeza. Mais uma meia-verdade profissional. Ardeu à beca. Mas ele foi rápido. Quando acabou, olhou-me criticamente. —  Não está nada mau, sabe? Quando você tiver tempo, poderá dar de novo um pulo até a Suíça. O Dr. Hans poderá consertar de novo tudo, sem muito trabalho. Saí da mesa e fui olhar-me no espelho acima da pia. Um rosto muito conhecido olhou para mim. Senti-me bem de repente. Eu era de novo eu mesmo. Durante todo o tempo que levara com o outro rosto eu tinha sido outra pessoa. Meus olhos já não pareciam velhos. Estavam de acordo com o resto do rosto. —  Alô, Ângelo — murmurei.  Meu rosto me respondeu: —  Alô, Ângelo. —  Que foi que você disse? — perguntou meu pai.  Voltei-me para ele e disse: —  Não vou procurar de novo o Dr. Hans. Vou ficar com este rosto mesmo. É o meu.
Acordei, na manhã de segunda-feira, nervoso como um gato. E não melhorei nada, principalmente depois de ler os jornais. Havia uma notícia com clichê na primeira página. O título dizia:
 
"MISTERIOSA EXPLOSÃO SEGUIDA DE INCÊNDIO NUM PRÉDIO DA MICHIGAN AVENUE".
 
Quase não me foi preciso ler a notícia para saber o que tinha acontecido. Pouco depois da meia-noite, duas violentas explosões que tinham quebrado vidraças a três ruas de distância, seguidas por um incêndio rápido e de intenso calor, tinham destruído por completo a Companhia Gráfiea Mark S., a OISA e quarenta carros do posto de venda de carros usados ao lado. Os esforços feitos pela reportagem para ouvir o Sr. Mark Simpson, proprietário do prédio e das empresas, foram baldados, em vista da informação de que ele estava ausente. A polícia e os bombeiros tinham aberto inquérito para apurar as causas do sinistro. Felizmente, não havia ninguém no local e não se tinha notícias de danos pessoais. A notícia não contribuiu absolutamente para me acalmar. Não conseguia compreender por que os contatos de tio Jake se haviam excedido daquela maneira. Mas logo afastei esse pensamento da cabeça. Se tio Jake não sabia o que estava fazendo, ninguém mais sabia. Mas não me livrei do nervosismo. Ao contrário, piorei no correr do dia. Subi e tentei dormir, mas não adiantou nada. Levantei-me e tornei a descer. Liguei a televisão, que estava transmitindo um jogo de futebol americano. Mas não consegui interessar-me. Fiquei ali olhando sem prestar atenção e fumando um cigarro atrás do outro. Por fim, desliguei, farto daquilo, subi de novo e me estendi na cama, com os braços estendidos para o travesseiro e os olhos voltados para o teto. Ouvi a porta abrir-se. Não olhei. Meu pai chegou perto de minha cama sem que eu dissesse uma palavra. —  Você não está num estado em que possa se deixar ficar nervoso assim. —  Não está em mim. —  Vou lhe dar uma injeção para você dormir um pouco. —  Não!
—  Tome então um ou dois tranqüilizantes. Assim, você se acalmará. —  Deixe-me em paz, sim, papai? Sem dizer mais nada, ele deu meia-volta para sair do quarto. Sentei-me na cama, colocando os pés no chão. —  Papai! Ele se virou, já com a mão na porta. —  Desculpe, papai. —  Não foi nada, Ângelo — disse ele e saiu do quarto.  Não tive apetite algum na hora do jantar e atravessei como pude uma refeição durante a qual ninguém falou. Depois do jantar, subi para meu quarto. Às oito e meia, desci e me sentei sozinho na sala de estar. A televisão estava ligada na saleta e eu ouvi o barulho. Às oito e três quartos, o telefone tocou e eu corri para atender. Era Donald, o criado de Número 1. —  Sr. Perino? —  Sim — respondi, decepcionado com o fato de que não fosse o telefonema que eu esperava. —  O Sr. Hardeman me pediu que soubesse se o senhor poderá comparecer às reuniões dos acionistas e da diretoria amanhã. —  Estarei lá. —  Muito obrigado, direi a ele. Boa noite. —  Espere um pouco, Donald! Posso falar com o Sr. Hardeman? —  Sinto muito, Sr. Perino, mas o Sr. Hardeman já está dormindo. Fizemos uma parada em Pensacola e acabamos de chegar. O Sr. Hardeman estava muito cansado e foi imediatamente para a cama. —  Está bem, Donald. Muito obrigado. Desliguei e fiquei pensando que o velho devia ter água gelada nas veias em vez de sangue para poder dormir assim numa ocasião como aquela. Mas muita gente era assim. Tinha lido em algum lugar que o General Grant sempre tirava um cochilo antes de alguma batalha. Dizia que o sono e o uísque o retemperavam para a luta. Dormir eu não podia, mas talvez o uísque não fosse ma idéia. Olhei para o relógio. Cinco para as nove. Dirigi-me para o bar. Estava no meu segundo uísque, exatamente às nove horas, quando tocaram a campainha da porta. Ouvi Gianno encaminhar-se para lá, mas cheguei antes dele e abri a porta. Um homem estava na escuridão, com o chapéu puxado para cima dos olhos e a gola do sobretudo levantada. Não me era possível ver-lhe o rosto. —  Sr. Ângelo Perino? —  Sou eu mesmo. —  Isto  aqui  é para o  senhor — disse  ele,  entregandome um grande envelope vermelho. — Com os cumprimentos do juiz. —  Obrigado — disse eu. Mas acho que o homem não me ouviu. Já tinha descido os degraus da varanda e entrado num carro que desceu a alameda. Fechei a porta e voltei a passos lentos para a sala, desatando a fita que fechava o envelope. Dentro, havia duas pastas. Sentei-me no sofá e abri-as. Na primeira, estava a carta que eu tinha pedido que fosse tirada do cofre de Loren. Li-a rapidamente. Era quase, palavra por palavra, como Bobbie me havia dito. Tornei a guardá-la na pasta e abri a outra. Nesta, havia tudo o que eu queria e mais ainda. Nomes, datas, lugares, tudo. Havia até cópias fotostáticas dos cheques que ele recebera, bem como dos seus saques. Simpson devia ser um idiota por guardar tudo isso. Ou isso, ou tinha planos para fazer chantagem no futuro. A julgar pelo tipo de homem que ele era, não podia ser outra coisa. Levantei a vista de repente. Estavam todos ali a olhar-me ansiosamente. Meu pai, minha mãe e Cindy. Até Gianno, um pouco atrás, me observava. —  Era isso o que você queria? — perguntou meu pai.  Sorri. De repente, a opressão que me havia dominado o dia inteiro desapareceu. Dei um pulo do sofá, beijei meu pai, beijei Cindy e comecei a dançar com minha mãe. —  Ei, papai! — gritei. — Quem sabe se vovô não está vendo a gente agora? Minha mãe parou de dançar e se benzeu, dizendo solenemente: —  Ele está lá no céu com os anjos! Mas nunca se esquece de cuidar dos filhos!
 
Capítulo 11
Era-me impossível dirigir com as costelas enfaixadas, por isso Cindy me deixou à porta do edifício da administração às oito e meia da manhã. —  Quer que eu venha buscá-lo? — perguntou ela.  Prendi a respiração. Não era coisa fácil desembarcar de uma Maserati quando se tinha duas costelas quebradas. —  Não — disse eu. — Vá para o hotel. Pegarei um táxi e irei buscar você para comermos quando isso acabar. —  Certo — disse ela, sorrindo e levantando a mão com o polegar para cima. Dei-lhe adeus com um sorriso e entrei, indo diretamente para a minha sala. Minha secretária ainda não tinha chegado e era muito bom. Sentei-me à mesa dela, botei papel na máquina e comecei a bater algumas anotações.  Tinha acabado quando ela chegou. Faltavam dez para as nove. Tirei a última nota da máquina, assinei-a e guardei-a no bolso. — Como está, Sr. Perino? — perguntou ela. — Melhor? — Muito melhor. — Todos aqui ficamos muito sentidos quando soubemos o que aconteceu. — Muito obrigado — disse eu, pegando a minha pasta de couro. — Vou ao escritório de Número 1. — Não se esqueça da reunião dos acionistas às nove horas. — Não vou me esquecer.  Número 1 ainda não havia chegado. —  Vai chegar um pouco atrasado — disse a secretária dele. — Teve de passar ainda num lugar antes de vir para cá. Voltei para o meu escritório, tomei uma xícara de café e, exatamente às nove horas, encaminhei-me para a sala das reuniões. A sala estava repleta. Todos estavam presentes, menos Número 1. Loren III bateu com o martelo de madeira na mesa. Todas as conversas na sala cessaram. —  Acabo de ser informado de que meu avô chegará com alguns minutos de atraso. Enquanto esperamos por ele, explicarei sumariamente algumas alterações processuais instituídas exclusivamente para as reuniões de hoje dos acionistas e dos diretores. Essas alterações foram explicadas a meu avô, que está de acordo com elas. Fez uma pausa, correndo os olhos em torno da mesa. Não creio que me tivesse reconhecido à primeira vista, porque voltou para me olhar de novo, e então continuou. —  Tanto os acionistas quanto os diretores foram convidados para comparecer às duas reuniões — disse ele. — Na reunião dos acionistas, os diretores que não são acionistas deixarão a mesa para ocupar as cadeiras arrumadas para eles em torno da sala. Estarão sentados também à mesa com os acionistas diretos Os curadores da Fundação Hardeman que deverão votar pelas ações da companhia possuídas pela fundação. Vou agora apresentar os outros curadores da fundação que estão presentes, além de mim mesmo. Fez uma breve pausa. — Minha irmã, a Princesa Anne Elizabeth Alekhine.  Anne, parecendo de fato uma princesa da cabeça aos pés, num elegante costume parisiense, cumprimentou os presentes com muita distinção e se sentou à direita do irmão. —  Minha irmã votará não só como curadora da fundação mas também como acionista direta da companhia. Continuou, apontando: —  À direita dela, está o Dr. James Randolph, diretor executivo da fundação, e à sua direita o Professor William Mueller, diretor administrativo da fundação.  Os  acionistas  terão direito a ter assistentes jurídicos sentados ao lado deles, se assim o desejarem. Esses assistentes não poderão dirigir-se diretamente a qualquer outro acionista, devendo limitar a sua comunicação ao seu cliente ou aos seus clientes. Fez de novo uma pausa e continuou: —  Na reunião da diretoria, será observado justamente o contrário. Isto é, os acionistas que não são diretores da companhia afastar-se-ão da mesa a fim de que os diretores possam tratar sem demora e sem interferência dos assuntos que determinaram a convocação da reunião. "Se os diretores que não são acionistas tiverem a bondade de sair da mesa, poderemos realizar a reunião dos acionistas assim que meu avô chegar." Houve movimento na sala enquanto muitos dos presentes trocavam de cadeiras. Quando tudo serenou, restavam apenas cinco pessoas na mesa: Loren III, Anne, os dois curadores da fundação e eu.
Fiquei sentado sozinho na outra ponta da mesa. Loren tornou a olhar para mim, mas nada disse. Havia mil metros de campo de batalha abertos entre nós. Havia um murmúrio nas outras cadeiras em volta da sala. Eu não podia deixar de sentir que éramos como gladiadores numa arena da antiga Roma. O silêncio desceu de súbito sobre a sala quando a porta se abriu e Número 1 apareceu, impelindo vigorosamente a cadeira de rodas. Atrás dele, vinham Alicia, uma mulher alta, grisalha e simpática que eu não conhecia, e Artie Roberts. Número 1 parou por um segundo, correndo os olhos pela sala, e então fez a cadeira rolar para a mesa. Ele fez um gesto para as mulheres e elas se sentaram ao lado dele. Artie se sentou numa cadeira logo atrás de Número 1. Loren III estava muito pálido ao olhar zangadamente para o avô. Anne se levantou e se dirigiu para onde estava Número 1. Loren seguiu-a depois de alguma hesitação. Anne parou junto à senhora de cabelos grisalhos e beijoua afetuosamente no rosto. Havia surpresa na voz dela quando exclamou: —  Mãe! Não esperava vê-la. Devia ter-nos avisado de sua chegada! Fiquei sabendo assim quem era a senhora simpática. Era a esposa do Almirante Hugh Scott. Não era de admirar que Loren III estivesse tão zangado com o avô. Este levara para a reunião sua mãe e sua ex-esposa. Anne cumprimentou Alicia com um carinho no rosto e um "Prazer em vê-la", fez em silêncio um afago no rosto do avô e voltou para a sua cadeira. Loren se mostrou muito mais reservado. Beijou discretamente o rosto da mãe, cumprimentou cerimoniosamente Alicia, não tomou conhecimento do avô e voltou para a sua cadeira. Pegou então o martelo e bateu na mesa. — Está aberta a reunião dos acionistas da Bethlehem Motors Incorporated. — Olhou para o avô e continuou: — Antes de começarmos a discutir os assuntos que determinaram a convocação desta reunião, cumpre esclarecer o direito e,a propriedade da presença nesta reunião da Sra.  Scott e da ex-Sra. Hardeman. Esta presidência afirma que nenhuma das duas tem qualquer título ou direito a estar presente, desde que esta presidência está de posse da procuração da Sra. Hardeman para votar nesta reunião e não tem conhecimento de qualquer interesse da Sra. Scott nesta companhia.
Artie se inclinou para a frente, colocou um papel na mão de Alicia e disse-lhe alguma coisa ao ouvido. Ela assentiu e se levantou. —  Senhor presidente! —  Sim,   Sra.   Hardeman?   —   respondeu   formalmente Loren. Com Artie falando em voz baixa atrás dela, Alicia disse com voz clara: —  Submeto à consideração da presidência esta notificação de revogação da procuração anteriormente dada e de restituição à minha pessoa dos direitos de voto nela contidos. Colocou o papel em cima da mesa, empurrando-o para seu ex-marido, e sentou-se. Loren pegou o papel e olhou-o. Passou-o às mãos de Dan Weyman, que por sua vez o passou ao advogado da companhia. Loren começou a falar, sem esperar. —  Parece-me que essa revogação é ilegal, contrária a um acordo estabelecido e, portanto, sem validade para a presente reunião. Artie falou rapidamente ao ouvido de Alicia. Esta voltou a falar, mas desta vez sem se levantar. —  Como acionista, estou disposta a concordar com o adiamento da presente reunião até que a questão seja decidida em juízo. Parece-me que os meus direitos de voto como acionista são tão válidos quanto os direitos alegados pela presidência em relação à fundação em circunstâncias semelhantes e que já foram objeto de uma decisão judicial aceita por todas as partes interessadas. Loren virou-se na sua cadeira e falou com o advogado da companhia. Um momento depois, encolheu os ombros desdenhosamente. Eram apenas cinco por cento. Ainda tinha uma boa maioria com a inclusão das ações da fundação. Cinqüenta e quatro por cento. —  Concedida a revogação — disse ele. — Mas esta presidência ainda se opõe à presença da Sra. Scott. Dessa vez, Número 1 jogou um papel em cima da mesa. —  De acordo com o direito que me é assegurado pelos estatutos da Fundação Hardeman, posso designar meu sucessor como curador da fundação se resolver afastar-me dessa posição. É o que faço neste momento. O documento que entreguei à presidência contém a minha renúncia ao cargo de curador da fundação e a designação da Sra. Sally Scott como minha sucessora nessas funções.
Loren apanhou o papel e entregou-o ao diretor executivo da fundação. O homem leu rapidamente e fez um gesto de assentimento. Loren voltou-se para a mesa. —  A fundação reconhece a Sra. Scott como curadora e esta presidência dá-lhe pessoalmente as boas-vindas à mesa. A Sra. Scott sorriu. —  Muito obrigada, Loren. Loren cumprimentou-a. Afinal de contas, não havia prejuízo algum. Continuava com quatro dos votos dos cinco curadores. —  Podemos agora debater os assuntos que interessam? — perguntou ele ironicamente. Número 1 disse amavelmente: —  Creio que sim, meu filho. Loren olhou em torno da mesa, recebendo um coro de assentimentos até que chegou a mim. Sacudi a cabeça e ele parou. —  Senhor presidente — disse eu. —  Sr. Perino? —  Antes  de  entrarmos  no  assunto  propriamente  dito dessa reunião, pergunto se seria possível uma reunião particular a que estivessem presentes apenas os acionistas pessoais da companhia e as pessoas pertencentes, no passado ou no presente, à família Hardeman. Até Número 1 me olhou com curiosidade. Loren pareceu confuso. —  É um pedido muito estranho o seu, Sr. Perino. —  Considero-o, porém, justificado em vista de certas informações de que disponho — disse eu calmamente. — Desde que essas informações se referem diretamente a pessoas da família Hardeman, não me parece conveniente divulgá-las publicamente. —  Seria possível a esta presidência ver essas ditas informações a fim de melhor julgar da conveniência do seu pedido? —  Não faço a menor objeção a isso — disse eu, abrindo a minha pasta de couro. Separei os originais das cópias de xerox que fizera naquela manhã e passei-as às mãos dele. Loren as olhou durante vários segundos e o seu rosto mudou de cor, passando do vermelho da cólera para uma palidez mortal. Por fim, olhou-me com olhos esbugalhados e disse com voz embargada: —  Isso é chantagem! Só agi para o bem da companhia! —  Deixe ver — disse Número 1.
Loren jogou com raiva os documentos por cima da mesa para o avô. Número 1 apanhou-os e leu-os. Alguns minutos depois, olhou para mim. Vi-lhe nos olhos um enorme sentimento de dor e tive pena dele. Loren ainda era seu sangue e sua carne. Ele correu lentamente os olhos pela sala e disse numa voz cansada: — Creio que é melhor conversarmos particularmente sobre isso no meu escritório. E foi esse o fim da reunião dos acionistas.
 
Capítulo 12
—  Penso que temos o direito de saber como conseguiu esta informação — disse Número 1, com voz calma, de trás de sua mesa. —  Ontem à noite, às nove horas, um homem chegou à minha porta e me perguntou se eu era Ângelo Perino. Respondi afirmativamente. "Isto é para o senhor", disse ele, entregandome esses papéis, depois do que desapareceu. Era a verdade, parcial sem dúvida, mas suficiente para responder à pergunta dele. — Conhecia o homem ou já tivera algum contato com ele? — Não. — E diz que esta carta é uma nota de suicídio deixada por meu falecido filho? — perguntou ele, com um leve tremor na voz. —  Pare com isso, vovô! — exclamou Loren III, explodindo de repente. — Sabe muito bem que é! Reconhece a letra dele! Ou prefere não reconhecer porque ele estava escrevendo a seu respeito? — Respirou fundo e continuou: — Como Ângelo conseguiu essa carta não sei, mas há muitos anos, desde que meu pai morreu, esta carta ficou trancada no meu cofre! Fiz isso para que o mundo nunca soubesse que o senhor era um patife tão grande que havia forçado seu filho ao suicídio! Começou a chorar.
—  Como o tenho odiado por isso! Sempre que pensava em meu pai ali estendido, no frio chão da biblioteca, com a cabeça estourada, odiava-o ainda mais. Mas, por outro lado, não podia acreditar inteiramente nisso. Lembrava-me de como o senhor brincava conosco, quando éramos pequenos. Mas, quando começou com o projeto do Betsy, tudo me veio de novo à cabeça. Estava agindo comigo exatamente como tinha agido com meu pai. Mas tomei uma decisão. Não deixaria que me destruísse como destruiu a ele! Eu o destruiria antes disso! Deixou-se cair numa cadeira e cobriu o rosto com as mãos. — É isso que você julga que eu fiz a seu pai? — perguntou Número 1, com voz calma. Loren III já havia recuperado o domínio de si mesmo e olhou para o avô. — Eu poderia julgar outra coisa? Sei o que aconteceu a ele. Li a carta em que ele o acusou diretamente, só faltando mesmo escrever seu nome. E sei muito bem como agiu comigo. —  Nunca lhe passou pela cabeça que seu pai poderia estar-se referindo a outra pessoa? —  Quem mais poderia ser senão o senhor?        Número 1 olhou para a Sra. Scott, no outro lado da sala, e disse: —  A verdade sempre se sabe. Ao menos, quando se vive bastante para que ela nos alcance. Ela olhou para ele e depois para o filho, tendo no olhar a mesma cálida compaixão por ambos. Falou por fim: —  Seu avô está dizendo a verdade, Loren. Não era a ele que seu pai se referia na declaração que deixou. —  Só diz isso para defendê-lo! — exclamou Loren. — Eu soube o que se dizia sobre a senhora e ele, mãe! E sei quais eram os seus sentimentos para com ele. Sei disso desde meus tempos de garoto. —  Loren — disse a Sra. Scott —, seu. . . —  Não, Sally! — exclamou Número 1. — Deixe que eu contarei tudo a ele! Mas a Sra. Scott continuou: —  Loren, seu pai era homossexual. Durante vários anos, foi ligado a um homem que trabalhava para ele, chamado Joe Warren. Esse tal Joe Warren era um homem terrível, doente e perverso. Depois que ele morreu, pensamos que tudo ficara sepultado com ele. Mas infelizmente assim não aconteceu. "Parece que Warren tinha feito um minucioso registro fotográfico das suas relações e esse registro foi cair nas mãos de um homem igualmente sem escrúpulos. Esse homem explorou seu pai durante anos até que ele não pôde mais resistir. Ficamos tão chocados quanto você com o suicídio dele, que não podíamos compreender. "Mas a morte de seu pai não estancou a avidez do homem. Seu avô foi procurado por ele. Lembro-me de ter conversado com seu avô nessa ocasião. Ele me disse que o único aspecto bom de todo o caso era que o chantagista tinha ido procurá-lo e não a você. Desse modo, você nunca saberia dessas coisas sobre seu pai. "Seu avô providenciou para que o chantagista fosse para a cadeia e todas as fotografias fossem destruídas. Seu avô gastou uma pequena fortuna para guardar sigilo sobre tudo isso. Compreenda que, apesar de tudo o que tinha acontecido, ele ainda amava o filho e queria proteger a memória de seu pai." Loren III olhou para ela e depois para o avô. —  É verdade? Número 1 assentiu gravemente. Loren III pôs a cabeça entre as mãos. Olhei pela sala. O único estranho era eu. Todos ali eram Hardeman, presentes ou passados. O telefone começou a tocar. Número 1 não atendeu. A campainha continuou a tocar insistentemente. Por fim, resolvi atender. Escutei um instante e passei o fone a Alicia. —  É para você. Ainda enxugando os olhos com o lenço, Alicia falou ao telefone de Número 1, junto à cadeira de Loren III. —  Alô? Sim, é a Sra. Alicia Hardeman.  Ouviu o que lhe diziam e exclamou: —  Sim? Sim, sim! Muitos beijos para vocês todos!  Desligou lentamente o telefone e se voltou para Loren III. —  Loren? Ele se voltou para ela com o rosto transtornado. —  Sim, eu sei, Alicia. Errei em tudo. Em tudo o que era possível. —  Não, Loren, não é disso que estou falando. Acabei de falar com Max pelo telefone! —  Max? —  Sim, Max! — exclamou ela, exultante. — O marido de nossa filha. Telefonou da Suíça! Betsy acaba de dar à luz um menino! Estão ambos passando bem! Meu Deus, Loren! Já pensou? Somos avós! No mesmo instante, voltaram a ser uma família. Todos se beijavam, choravam e riam. Saí da sala e fui para o meu escritório. Por um instante, quase me convencera de que todo mundo ali era italiano. Meia hora depois, a porta de minha sala foi aberta e Número 1 entrou, fazendo rolar a sua cadeira. Bateu a porta e ficou olhando para mim. Olhei-o também. Ao fim de algum tempo, ele exclamou: —  Estragou tudo! Está despedido! —  Eu sei. Sabia desde que cheguei aqui hoje de manhã —  disse eu, tirando do bolso o meu pedido de demissão. Levantei-me de minha cadeira e fui entregá-lo a ele. Ele abriu o papel, leu-o e olhou para mim. —  É verdade mesmo! Você sabia!  Fiz um sinal afirmativo. —  E sabe por quê?  — Também sei. —  Então diga. —  A idéia era de que eu perdesse. Eu não podia ganhar! —  É verdade — disse ele. — Perdi um filho e não queria perder Loren. Mas, se você sabia que minha intenção era deixar que ele ganhasse, por que foi que não deixou que isso acontecesse? —  Porque eu não tinha jeito algum de conseguir isso. Ainda que eu tentasse, não podia ceder-lhe a vitória. Ele não é meu neto e a pista era minha, compreende? —  Compreendo. Não tem ressentimento de mim? —  Nem um pingo. —  Afinal de contas, o negócio não foi assim tão mau para você. As ações que você possui valerão doze milhões quando abrirmos a companhia ao público no ano que vem. —  Claro — disse eu, metendo a mão no bolso. — Tenho aqui alguma coisa que lhe pertence. Coloquei nas mãos dele as abotoaduras com o Sundancer de ouro. —  Você me passou a perna também no caso do Sundancer —  disse ele. — Por que mudou o nome de Betsy Starjet para Sundancer? — Porque o carro foi tão bom durante tantos anos que não era possível deixá-lo desaparecer assim. Ele pensou por um momento e disse: —  Talvez tenha razão. — Tirou cuidadosamente as abotoaduras dos punhos e substituiu-as pelas do Sundancer. Guardou as outras no bolso e repetiu: — Talvez tenha razão. Abri-lhe a porta enquanto ele passava com a cadeira. Depois, fechei-a, voltei e comecei a limpar as gavetas.
 
Cindy estava à porta quando cheguei ao apartamento. —  Já liguei a sua bomba e enchi a banheira com os sais de que você gosta. Beijei-lhe a ponta do nariz. —  Bem que preciso disso. Ela me acompanhou através do apartamento até o banheiro e ficou ao meu lado pegando as roupas enquanto eu me despia. —  O rádio deu a notícia no boletim do meio-dia — disse ela. —  Em Detroit, as notícias da indústria de automóveis andam depressa. Apoiei as mãos na parede. Não era fácil entrar na banheira com as costelas enfaixadas. —  Você tem de me ajudar, Cindy. Ela passou o braço sob meus ombros e eu comecei a descer o corpo para a água. —  Houve um bocado de telefonemas para você — disse ela. —  Alguma coisa importante? — perguntei, já com o traseiro tocando a superfície da água. —  Não — disse ela, displicentemente. — Apenas Iacocca da Ford, Cole da General Motors. . . —  Mentirosa! —  Sou mentirosa, não sou? — exclamou ela, indignada, tirando o braço de trás de meus ombros. Escorreguei para dentro da banheira com um baque que me tirou o fôlego. —  Aii! Ela saiu correndo do banheiro e voltou um momento depois com as mãos cheias de recados telefônicos. —  Veja  se  estou  mentindo!   Telefonemas  também  da Chrysler e da American Motors. E até da Fiat, na Itália! Liguei a bomba. A água começou a ferver com a sua cantiga repousante. Encostei a cabeça na parede atrás da banheira e suspirei. Sentia-me bem. —  Que é que você quer que eu faça com isso? — perguntou ela, agitando o punhado de mensagens que tinha nas mãos.
— Deixe tudo em cima da mesa. Não sou tão louco assim para voltar a trabalhar já. Isso vai me impedir de gozar o fato de ser rico. A campainha da porta tocou. —  Vá ver quem é, Cindy. Ela saiu torcendo o rosto e voltou daí a um instante, um pouco intimidada. —  Número 1 quer falar com você. —  Mande-o entrar. —  Para aqui? —  Claro. Ou você acha que eu vou poder sair desta banheira em menos de meia hora? Ela saiu e voltou daí a pouco empurrando a cadeira dele. Em seguida, saiu do banheiro. —  Como está quente aqui dentro! — exclamou Número 1, olhando para ela. — Quem é essa boneca? —  Cindy, a motorista de provas. —  Não a reconheci. Está um pouco diferente. —  Acho que ela agora descobriu a importância de usar vestido. —  Pelo amor de Deus, você tem mesmo de deixar essa coisa horrorosa ligada? Não posso conversar com você aos gritos! Desliguei a bomba e o barulho cessou. —  Está melhor assim? —  Muito melhor. Escute aqui. Você também parece diferente. —  Recuperei meu rosto — disse eu, sorrindo. —  Já estava a caminho do aeroporto quando me lembrei de que tinha alguma coisa sua. Por isso, passei por aqui para entregá-la. —  É mesmo? Não conseguia me lembrar de coisa alguma minha que estivesse em poder dele. Número 1 meteu a mão no bolso e tirou um pequeno estojo de jóias. Abriu-o e passou-o às minhas mãos. Eram abotoaduras de platina com uma reprodução do Betsy Fada de Prata. Quem fizera o trabalho não omitira o menor detalhe do carro. Eram belas. Mas eu nunca usava abotoaduras. Devolvi-as. —  Não são minhas. São suas.  Ele não as aceitou. —  São nossas. Mas são mais suas do que minhas! Fique com elas! Recuou com a cadeira para a porta e gritou: —  Ajude-me a sair daqui, moça! Ainda olhando para as abotoaduras, tornei a ligar a bomba. Eram lindas. Teria de comprar algumas camisas com que pudesse usá-las. Saí do banho com a toalha amarrada na cintura, ainda olhando as abotoaduras do Fada de Prata. —  Veja isto, Cindy! —  São lindas — disse ela. Em seguida, olhou para mim. — Sabe que você está lindo também? Na verdade, nunca gostei de seu outro rosto. —  Nem eu. —  Como está se sentindo? Ela tinha nos olhos aquele belo jeito que eu já conhecia. — Louco por você. Vamos para o quarto — disse eu, tomando-lhe a mão Entramos no quarto e eu olhei em torno. — Alguma coisa aqui está diferente — disse eu, enquanto ela tirava o vestido. — Onde foi que você escondeu o estéreo? Embaixo da cama? —  Joguei-o fora — disse ela, vindo nua para os meus braços. — Todas as pessoas, até uma moça, acabam chegando um dia à idade adulta. —  Não foi meio repentino isso? — perguntei, mordendolhe a orelha. —  Nem tanto. Já tenho vinte e quatro anos. —  Muito velha, na verdade. . . —  Estou na idade exata de deixar de criancices. — Em seguida, me olhou bem nos olhos e acrescentou: — Além disso, com você não tenho mais necessidade do estéreo. . . — Tem certeza? —  Tenho, porque o amo. Eu também  não tinha mais dúvidas. —  E eu também a amo, Cindy. Beijamo-nos então. Ela tinha toda a razão. Não precisávamos do estéreo. Ambos ouvíamos a música.

 

 

                                                                  Harold Robbins

 

 

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