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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O IMPERADOR E O MONSTRO / William Voltz
O IMPERADOR E O MONSTRO / William Voltz

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Thomas Cardif, o renegado, ocupou o lugar de Perry Rhodan: agora é Administrador do Império Solar.

Ninguém, nem mesmo os amigos mais íntimos de Perry Rhodan ou os mutantes, desconfia de que o governo vem sendo exercido por um usurpador.

Se o comportamento de Cardif não corresponde ao que se costumava ver em Perry Rhodan, a estranha conduta do administrador é explicada por meio dos danos psíquicos que Perry Rhodan sofreu quando era prisioneiro dos antis.

Thomas Cardif pode sentir-se exultante, pois ninguém o desmascarou. Pode dirigir os destinos do Império Solar conforme melhor lhe aprouver, mesmo que sua atuação leve os povos da Via Láctea para a beira do abismo...

E nem mesmo quase à morte, o filho de Rhodan desiste de seu intento diabólico...

 

O Major Hunt Krefenbac, imediato da nave linear Ironduke, era um homem muito controlado. No entanto, havia um ligeiro tremor em suas mãos quando fitou o terrano alto que acreditava ser Perry Rhodan. Sem que o percebesse, passou a mão pelo uniforme. Estava com o rosto tenso. Viu que a veia do pescoço de Rhodan estava muito inchada, e também notou a causa disso. A gola do uniforme estava apertada, embora o botão especial já estivesse na última casa.

Krefenbac contemplou o rosto vermelho do administrador. Teve a impressão de que estava mais largo e achatado que antes. Será que o crescimento celular explosivo prosseguiria indefinidamente?

Ouviu alguém pigarrear fortemente. Reginald Bell quis preveni-lo, mas já era tarde. Cardif virou-se abruptamente. O movimento foi tão violento que fez com que o botão do colarinho se desprendesse.

Na sala de comando da Ironduke passou a reinar um silêncio total. A boca aberta de Cardif não emitiu nenhum som. O botão foi rolando pelo chão, descrevendo círculos cada vez maiores, até imobilizar-se bem à frente do Dr. Carlos Riebsam, que era um matemático. Os presentes acompanharam o fenômeno como se estivessem hipnotizados.

Cardif pôs as mãos no pescoço. Seus olhos arregalaram-se numa expressão de mudo pavor. Apalpou a casa de botão rasgada.

— O senhor pretendia dizer alguma coisa, major? — perguntou com a voz rouca, dirigindo-se a Hunt Krefenbac.

A expressão dos olhos de Krefenbac revelava perplexidade, mas também certa dose de compaixão.

— Sir... — principiou cauteloso.

Cardif empertigou-se abruptamente. O uniforme apertava-lhe o corpo. Já não era segredo para nenhum dos tripulantes que, nos últimos três dias, o chefe crescera mais de três centímetros e também se tornara mais espadaúdo. Até parecia que a aproximação do planeta de Saós acelerava o fenômeno.

— Fale logo! — berrou Cardif fora de si.

Olhando de soslaio, viu Riebsam abaixar-se para pegar o botão. Deu um empurrão no matemático. Um sorriso repugnante surgiu em seu rosto.

— O senhor não, doutor — disse em tom irônico. — Não quero que o senhor faça isso.

Krefenbac enrubesceu ligeiramente. Reginald Bell mantinha-se de pé, com os braços cruzados, atrás de Cardif que, segundo acreditava, era seu melhor amigo.

Cardif lançou um olhar penetrante para Krefenbac.

— Como é, major? Não vai pegar o botão para seu superior enfermo?

O rosto de Krefenbac perdeu a cor. Ficou pálido como um cadáver. Sabia que Rhodan pretendia rebaixá-lo. Não compreendia o procedimento do administrador. Krefenbac prezava bastante a disciplina. Era um excelente soldado e um oficial de primeira.

— Sir — disse com a voz apagada. — Peço-lhe que me libere do cumprimento da ordem que acaba de ser dada. Mandarei outro botão ao seu camarote.

Os homens que se encontravam na sala de comando compreenderam que o major estava cedendo em parte aos desejos de Rhodan. E também sabiam que Krefenbac não iria mais longe que isso. Seria capaz de mitigar seu orgulho, mas não permitiria que ninguém o quebrasse.

Uma expressão de fanatismo surgiu nos olhos de Cardif. Sabia interpretar a atitude de Krefenbac tão bem como qualquer outra pessoa. O major era um homem de caráter. Mas para um homem como ele, que ficara submetido à influência imprevisível do ativador celular, qualquer tipo de retirada seria impossível. Fazia questão de que suas ordens fossem cumpridas de qualquer maneira.

— Major — disse em tom de ameaça. — Levante esse botão.

O corpo de Krefenbac entesou-se. Seu olhar franco cruzou com o de Cardif. Antes que o major tivesse tempo de dizer qualquer coisa, todos já sabiam que recusaria o cumprimento da ordem.

Naquele instante Bell passou ao lado de Cardif. Piscou para Krefenbac e abaixou-se para levantar o botão. Cardif não disse nada. Bell parecia pesar na mão o objeto da discórdia.

— Ora! Uma coisinha destas — disse em tom pensativo. — Tome, Perry.

O falso administrador virou-se abruptamente. Bell deixou cair a mão. A tensão diminuiu. Cardif retirou-se a passos largos. A intervenção de Bell deixara-o surpreso, muito embora ele a julgasse bem oportuna. Afinal de contas, uma prova de forças com o major teria reflexos desfavoráveis entre a oficialidade. Mas Cardif só pensou ligeiramente neste ponto.

Seu problema fundamental era outro. Como fazer cessar e conseguir a regressão do rápido aumento de peso e tamanho que estava experimentando?

Teve a impressão de que o único procedimento capaz de produzir algum êxito seria uma invasão de Saós. Os sacerdotes da seita de Baalol o haviam induzido a arranjar os ativadores celulares em Peregrino. Sem dúvida conheciam os terríveis efeitos que o aparelho produziria em seu corpo. Não estariam dispostos a ajudar espontaneamente, motivo por que teria de obrigá-los a isso. Cardif já não estava em condições de raciocinar logicamente. Aos poucos o desenvolvimento celular descontrolado ia atingindo o cérebro, envolvendo as células nervosas amadurecidas numa massa cerebral semi-acabada.

Sabia que poderia contar com o apoio da Frota Solar. Acreditava que a mesma representava um meio de pressão capaz de fazer com que os sacerdotes cedessem aos seus desejos. Cardif nem se lembrou da possibilidade de que alguém pudesse traí-lo.

Entrou no camarote e trancou-o cuidadosamente. Por algum tempo manteve-se imóvel no pequeno recinto. O movimento rítmico do tórax era o único sinal de que ainda havia vida em seu organismo. Depois de algum tempo iniciou uma atividade que repetia cuidadosamente de doze em doze horas.

Caminhou até a parede. Parou junto a uma saliência. Mais ou menos na altura da cabeça havia marcas de várias cores. Ao lado de cada uma dessas marcas havia uma data escrita em traços finos. Eram cinco ao todo. Cardif colocou-se de costas para a parede. Pegou uma régua e colocou-a sobre a cabeça, fazendo com que formasse um ângulo reto com a parede. Deu um passo para a frente, deixando a régua encostada à parede. Tirou uma caneta do bolso e riscou outra marca, que ficava em posição mais elevada que as outras. Cardif escreveu com a mão trêmula: 2 de setembro de 2.103.

Crescera mais meio centímetro depois que se medira pela última vez.

O punho daquele homem bateu com toda força contra a parede de metal leve. A dor fez com que recuperasse o autocontrole. Pegou uma trena elástica. Mediu cuidadosamente a cintura e registrou o resultado numa tabela. Mais uma vez constatou uma alteração.

Cardif gemeu baixinho. Pôs a mão no lugar do tórax em que se encontrava incrustado o ativador. Os médicos o haviam informado de que nem se poderia cogitar da remoção cirúrgica do aparelho.

Não adiantaria verificar o peso. O mesmo crescia na mesma proporção em que progredia o processo de cisão celular. Mas Cardif dispunha de outro meio que lhe permitia fazer um exame preciso de seu estado. Era simples e não falhava. E apresentava uma medida inconfundível do desenvolvimento da doença.

Num movimento apressado, o filho de Rhodan tirou o espelho de sob a cama. Tinha um metro de largura e dois de altura. Cardif encostou-o à parede.

Viu a imagem de um homem que deixava os braços pender junto ao corpo e apresentava uma cabeleira desgrenhada. Seu aspecto não era propriamente doentio, mas pouco restava da figura esbelta e musculosa de Perry Rhodan. O uniforme estava muito apertado, embora fosse o maior que existia a bordo da Ironduke. Apalpou o corpo com os dedos. As carnes já não eram firmes. Cediam sob a pressão dos dedos como uma esponja.

Cardif mantinha-se imóvel diante da imagem refletida pelo espelho. Agitado pelas emoções, parecia esfacelar-se por dentro. Seu ódio ameaçava transformar-se em loucura.

Apontou para a figura que era ele mesmo, embora devesse representar outra pessoa. Um braço estendeu-se em sua direção, vindo da imagem.

— Olá, Rhodan — disse Cardif com a voz desfigurada.

Levantou a cabeça para ouvir melhor.

— Para ser Rhodan e exercer o poder do mesmo não preciso parecer-me com ele — disse, dirigindo-se à sua imagem. — Compreendeu, meu filho?

Uma careta debochada sorriu para ele. Perdera boa parte dos aspectos marcantes de Rhodan.

— Meu jogo continuará — disse Cardif. — Não desisto sem mais nem menos. Saós cairá em minhas mãos.

Cardif deu um passo em direção ao espelho. Mantinha o corpo inclinado para a frente. Alguma coisa quis manifestar-se em seu subconsciente, mas não conseguiu chegar à superfície.

— Torno-me cada vez mais alto e engordo — disse com uma risadinha. — Um belo dia meu corpo não caberá mais na Ironduke — essa idéia macabra parecia diverti-lo. Uma série de pensamentos confusos atropelou-se em seu cérebro.

Abriu o uniforme e bateu no peito.

— Aqui está o inferno — balbuciou em tom de desespero. — Incrustado no meu corpo. Fica rumorejando e não me dá paz. Médicos, médicos. Por que não podem ajudar-me?

Ninguém respondeu. Sempre fora um homem solitário. E essa idéia despertou seu velho orgulho. Quis empertigar-se, mas receava que o uniforme não resistisse à pressão dos músculos.

Então era esta a vida eterna que lhe proporcionava o ativador celular obtido por meios fraudulentos?

Deixou-se cair na cama. Virou-se nervosamente de um lado para o outro. Devia pedir mais uma vez um sedativo? Uma idéia absurda começou a agitar-se em sua mente. Imaginou que, enquanto estivesse dormindo, Krefenbac poderia entrar no camarote e estrangulá-lo. Entorpecido pelo medicamento, não poderia defender-se com a necessária rapidez.

Balançou energicamente a cabeça. Devia manter a capacidade de raciocínio. E, o que era mais importante, não deveria esquecer-se de seu grande objetivo. Naquele momento, grande parte da Frota Solar encontrava-se em Saós.

Casualmente voltou a olhar para o espelho. Levantou-se e caminhou em direção ao mesmo. Havia alguma coisa que lhe chamava a atenção. Chegou bem perto. Seu hálito embaçou a superfície lisa. Limpou-a com a manga do uniforme, para enxergar melhor.

Fitou seu rosto. Estava apenas a um centímetro de distância.

De repente viu!

Quis gritar ou fazer qualquer coisa. Mas sentiu-se paralisado pelo pânico e pelo pavor. Num movimento lento pôs a mão para trás e levantou a régua. Levantou o braço e bateu contra o vidro. Seu rosto esfacelou-se num sem-número de partes; parecia ser arremessado para todos os lados. Os fragmentos do espelho tilintaram ao caírem no chão. O barulho fez com que Rhodan recuperasse a capacidade de raciocinar. Cambaleou em direção à cama e deixou-se cair sobre a mesma.

Foram seus olhos que tanto o chocaram. Subitamente teve a impressão de que o cinzento dos mesmos estava um tanto apagado. Uma tonalidade amarelenta sobrepunha-se à cor primitiva. Cardif sabia qual era a expressão de seu olhar.

Era a expressão de um animal feroz.

 

Krefenbac respirou profundamente. As palavras de gratidão dirigidas a Bell foram proferidas em tom convicto.

— O senhor me tirou de uma situação muito desagradável, sir — disse ao concluir.

Reginald Bell continuava muito sério. Rugas profundas desenhavam-se em seu rosto sardento. Via-se perfeitamente que carregava uma pesada carga. Queria continuar a apoiar o amigo, mas por outro lado queria também proteger os homens que o cercavam dos caprichos incompreensíveis de Rhodan.

— A situação é desagradável para todos — disse, dirigindo-se ao major. — Não se esqueça que a enfermidade do chefe lhe causa grandes sofrimentos. Além disso, ainda se encontra sob os efeitos da prisão em Okul. Conversei demoradamente com o doutor Alonzo, que é especializado na área da pesquisa celular. O mesmo diz que Perry foi acometido de um processo de cisão celular explosiva.

— Quem dera que eu pudesse ajudá-lo — disse Jefe Claudrin com sua voz retumbante. — Se me lembro do que temos pela frente, não consigo livrar-me de uma sensação desagradável. Pelo que informou o Tenente Alkher, sua fuga e a de Stana Nolinow foi habilmente preparada pelos antis. Estes queriam que Alkher e Nolinow acreditassem que os sacerdotes não desejavam que os dois escapassem.

— Dali se conclui que os antis estão interessados em que apareçamos por ali. Têm algum motivo especial para atrair-nos a esse lugar — disse Bell em tom pensativo. — Seu potencial militar em Saós não lhes permite que resistam a um ataque cerrado das nossas forças. E eles sabem disso.

— Esses indivíduos gostam desse tipo de jogo traiçoeiro — disse Claudrin em tom zangado. — Bem que deveríamos dar uma lição a esses bandidos.

O major era um homem de ação. Sob seu comando a Ironduke se transformara na unidade mais poderosa da Frota Solar.

Ainda acontecia que essa nave de oitocentos metros de diâmetro possuía o sistema de propulsão linear. Naquele instante mais de quatro mil naves terranas, entre as quais alguns supercouraçados, estavam estacionadas no sistema Saós. Era impossível que essa barreira de aço e energia pudesse ser rompida por uma nave estranha. Nenhuma espaçonave poderia decolar de Saós, e a tentativa de pousar no planeta seria um verdadeiro suicídio. Dispostas em concha, as fileiras das naves terranas haviam bloqueado completamente o segundo planeta do sol 41-B-1847-ArqH. A pequena estrela amarela não possuía nome próprio; era conhecida apenas pela designação sob a qual constava do catálogo estelar. Dois planetas gravitavam em torno dela, e Saós era o planeta exterior. Estava submetido ao Grande Império governado por Atlan, pois ficava nas proximidades do grupo estelar M-13, a 33.218 anos-luz da Terra.

Sob o ponto de vista humano, Saós era um mundo inóspito. A atmosfera consistia principalmente de nitrogênio e gás carbônico. Só continha quantidades reduzidas do elemento vital, o oxigênio. Mas o problema principal era a rotação lenta do planeta. Levava 214 horas terranas para girar uma única vez em torno de seu eixo. Dali resultavam certos efeitos colaterais bastante desagradáveis, que geralmente só são encontrados nos mundos que não possuem nenhum movimento de rotação, A zona intermediária entre a face diurna e a noturna era fustigada por furacões violentíssimos. Essa área era ameaçada constantemente pela fúria dos elementos. Nestas condições não houve possibilidade de que em Saós surgisse faixas de vegetação mais extensas. A superfície do planeta era formada por desertos.

Não era só graças aos relatos dos tenentes Alkher e Nolinow que o Major Claudrin tinha conhecimento das condições que encontraria no planeta se realmente houvesse a invasão. Tal qual todas as pessoas que se encontravam a bordo, fazia votos de que conseguissem arrancar dos antis o segredo das alterações sofridas por Rhodan.

Aquele homem nascido em Epsal não podia saber que dedicava suas esperanças a um lobo em pele de cordeiro. Nem uma única pessoa da Frota conhecia a verdadeira identidade do administrador. Por enquanto todos estavam dispostos a cumprir as ordens do falso Rhodan.

As modificações físicas visíveis sofridas pelo administrador teriam sido aceitas tranqüilamente pelos amigos, se juntamente com estas não se tivessem revelado traços de caráter até então desconhecidos.

Claudrin sabia raciocinar. Por isso foi o primeiro a corrigir sua afirmativa.

— Naturalmente quero dizer que devemos avançar em frente ampla contra os adeptos de Baalol — disse. — Em Saós as coisas serão bastante confusas enquanto não conhecermos os planos dos antis.

— Eles não estarão dispostos a revelá-los espontaneamente — disse o Dr. Riebsam em tom sarcástico.

Ninguém o contradisse. Quem quisesse obter informações dos antis teria de buscá-las em Saós. Acontece que, segundo parecia, os sacerdotes só esperavam que isso acontecesse.

Bell, que na ausência de Cardif se esforçava para minimizar os erros do homem que acreditava ser seu amigo, viu-se numa situação difícil. Teria de provar a Rhodan que um ataque a esse planeta dos antis seria um absurdo. E, para apresentar essa prova, teria de pousar em Saós. O gorducho começou a desconfiar de que os sacerdotes haviam colocado uma armadilha na qual a Frota Solar acabaria caindo de qualquer maneira. Rhodan — aquele Rhodan — era a melhor garantia de que isso aconteceria.

 

A estratégia de Kutlós era simples e eficiente. Consistia simplesmente em cumprir as instruções do Grande Baalol, houvesse o que houvesse. Foi assim que esse anti foi subindo até transformar-se no sacerdote em exercício no mundo de Saós. Quando Kutlós chegava a contradizer alguém, isso só acontecia com um subordinado. Adotara o princípio de que só alcança o poder aquele que permanece entre os poderosos e sabe lidar com eles, e esse princípio o ajudara durante toda a vida. Para os outros sumos sacerdotes era um homem quieto, que não chamava a atenção. Um belo dia chegara a Saós numa nave cilíndrica e assumira o cargo de sumo sacerdote. Saíra da eclusa, magro e ereto, e lançara um olhar atento para a área industrial.

As instalações que os antis haviam montado em Saós ficavam numa depressão bastante profunda, cercada de montanhas altas e desertas. A depressão media cerca de oito quilômetros. Os acidentes do terreno protegiam-na contra as tempestades de areia, e por isso constituía o lugar ideal para servir de base à seita de Baalol.

O porto espacial ficava na parte norte da depressão. O centro industrial propriamente dito estendia-se por uma área de dois quilômetros. Havia instalações no subsolo, que chegavam a penetrar até cinqüenta metros abaixo da superfície. Era em Saós que os antis fabricavam os projetores energéticos destinados a criar seus campos defensivos individuais.

No centro das instalações dispostas em círculo erguia-se uma pirâmide de 150 m de altura. Oficialmente era o templo dos antis. Em torno dessa construção agrupavam-se edifícios baixos e compridos. Nos quatro cantos destes havia elevadas cúpulas, cobertas por telhados metálicos semi-esféricos. Era nessas cúpulas que ficavam as quatro usinas de energia.

Desde o dia de sua chegada, Kutlós não mandara realizar nenhuma modificação no programa de fabricação que não tivesse sido ordenada pelo Grande Baalol. Apresentava seus relatórios com a maior regularidade e sempre evitava mostrar-se insistente ou formular perguntas incômodas. Por absurdo que pudesse parecer, isso fez com que o Grande Baalol se convencesse de que Kutlós era um dos sumos sacerdotes mais competentes no seio dos antis.

Kutlós encontrava-se na sala de televisão de Saós, que ficava a meia altura da pirâmide e estava recheada de instalações técnicas destinadas à observação espacial.

Olhava para uma tela ligeiramente abaulada. Vez por outra viam-se na mesma pontos luminosos do tamanho de uma cabeça de alfinete. Vistos assim pareciam inofensivos.

Mas podiam ser tudo, menos isso.

Cada um destes minúsculos pontos brilhantes representava uma nave terrana. Formavam um círculo em torno de Saós, impedindo que qualquer nave dos antis decolasse ou pousasse. Kutlós fora prevenido de que parte da Frota Solar apareceria nas proximidades do planeta, mas não esperava que isso acontecesse tão depressa.

As naves cargueiras dos antis, carregadas com as preciosas máquinas destinadas à fabricação de geradores de campos defensivos individuais, ainda continuavam pousadas no porto espacial. Só as naves cilíndricas dos saltadores já tinham desaparecido. Depois do ataque simulado contra a base, sua missão estava cumprida.

Kutlós endireitou o corpo. O zumbido do equipamento de ar-condicionado chamou-o de volta à realidade.

— Quer que desligue, Kutlós? — perguntou o jovem sacerdote.

O sumo sacerdote limitou-se a acenar com a cabeça. Os inúmeros instrumentos de localização que havia nessa sala ficavam “de olho” em cada um dos couraçados terranos. Qualquer mudança de posição era prontamente registrada. O dispêndio de energia de cada espaçonave era cuidadosamente controlado, para que se pudesse constatar prontamente o início da invasão.

Na opinião de Kutlós, os terranos já estavam demorando demais. Pelos padrões terranos, a Frota já se mantinha no espaço há três dias. O sumo sacerdote esperara que todos os antis conseguissem escapar nas naves cargueiras antes da chegada dos terranos. A rapidez com que as espaçonaves esféricas haviam saído do hiperespaço frustrara essa parte do plano. Os sacerdotes de Saós viam-se obrigados a permanecer na base contra a vontade.

Era a primeira vez que Kutlós via sua estratégia condenada ao fracasso. Qualquer defesa contra a invasão, por mais vigorosa que fosse, entraria em colapso depois de algum tempo. O sumo sacerdote não estava disposto a deixar que os terranos se apoderassem de Saós sem luta, mas estava preparado para uma derrota fulminante.

Kutlós passou discretamente a mão pelo cabelo. As naves que se enfileiravam em torno do planeta não o deixavam nervoso. Sentia certa melancolia diante da idéia de que sua caminhada em direção ao poder teria de esbarrar com a força e a velocidade de quatro mil espaçonaves. Continuava a julgar correta a maneira pela qual organizara sua vida.

— Quando atacarão? — disse uma voz que penetrou em sua consciência.

Virou-se e fitou os olhos inteligentes de Tasnor, que era seu representante. Desde o primeiro dia Kutlós tivera uma opinião bem definida a respeito de Tasnor. Era inteligente, muito mais inteligente que ele mesmo. Mas nunca chegaria a ser um dos altos dignitários do Baalol. Tasnor cometia dois erros fatais. Falava demais, e falava com qualquer pessoa. Além disso, acreditava que devia impor, de qualquer maneira, algumas de suas idéias. E esse procedimento estragaria sua carreira.

Kutlós fitou seu interlocutor sem dizer uma palavra, e a atividade de Tasnor morreu em meio a esse silêncio, congelou-se sob o brilho frio dos olhos de Kutlós. Para o sumo sacerdote pouco importava o que Tasnor sentisse em relação a ele. Provavelmente aquele jovem o odiava. Mas isso não afetava o respeito que lhe tributava. Durante seus contatos com os poderosos, Kutlós aprendera como conquistar e conservar o respeito dos outros.

— Esta espera desgasta os nervos da gente — disse Kutlós, como que se desculpando.

Um sorriso surgiu no rosto de Kutlós, um sorriso que desagradou Tasnor, transformando-o num jovem inexperiente e de nervos débeis, com o qual o sumo sacerdote tinha de ocupar-se, como se não bastassem as tarefas importantes que precisava cumprir. O representante enrubesceu. Baixou os olhos, e as mãos desceram pela manta larga.

— Compreendo — respondeu Kutlós, em tom amável. — Deveríamos agradecer os terranos por nos concederem um prazo que nos permite executar a segunda parte de nosso plano.

Hepna-Kaloot, que era bastante baixo e gordo para um anti, virou-se sem sair do lugar.

— Até parece que ainda temos uma saída — disse. — Nunca desejei uma morte heróica. Kutlós, que idéia é essa que ainda lhe infunde alguma esperança?

O único sacerdote de Saós pelo qual Kutlós sentia alguma simpatia era Hepna-Kaloot. Não podia aplicar suas atitudes costumeiras a esse homem baixo. Hepna-Kaloot sempre transmitia ao ambiente em que se encontrava a indiferença que sentia diante de todas as coisas. Mesmo quando formulasse perguntas, como acabara de fazer, percebia-se perfeitamente que não havia nada que pudesse abalá-lo no seu íntimo. Só havia uma coisa capaz de entusiasmar aquele sacerdote: o jogo de Paloot.

Era um jogo proibido. Acontece que Hepna-Kaloot conhecia tão bem as regras desse jogo que era de supor que por mais de uma vez desobedecera à proibição. Nas noites tranqüilas, muitas vezes se deixara levar a contar alguma coisa a respeito do jogo de Paloot. Nas suas histórias sempre figurava como espectador, mas qualquer pessoa que o ouvisse compreenderia perfeitamente que seu papel real era o de um participante.

Para julgar o caráter de Hepna-Kaloot, devia-se partir do princípio de que este era um jogador nato. E agora, pela primeira vez, tomava conhecimento do que estava em jogo.

Estava em jogo a mesma coisa que os outros sacerdotes arriscavam: a vida.

Era claro que Hepna-Kaloot também gostaria de sair do jogo, se tivesse oportunidade para tanto. Por isso era possível que as palavras que acabara de proferir fossem menos indiferentes do que costumavam ser suas falas.

— Não vejo nenhum motivo para deixarmos de executar nosso plano original — disse Kutlós. — Seguiremos as instruções do Grande Baalol.

Antes que concluísse sua fala viu a expressão de oposição nos olhos de Tasnor.

— Quando recebemos as ordens da sede ainda não sabíamos que não haveria possibilidade de abandonarmos Saós — ponderou o jovem sacerdote. — O plano elaborado pelo Grande Baalol partiu de pressupostos totalmente diversos dos atuais.

Kutlós não teve necessidade de examinar os rostos dos outros antis para certificar-se de que a maioria deles compartilhava a opinião de Tasnor. Seu representante parecia sentir a mesma coisa. Isso não deixou Kutlós nem um pouco nervoso. Esse tagarela não o impediria de saborear seu último triunfo.

— A única coisa que mudou é o fato de ainda nos encontrarmos aqui — disse o sumo sacerdote, em voz baixa.

Tasnor cometeu o erro de ver nessas palavras uma manifestação de fraqueza de Kutlós. Levantou os braços num gesto de súplica e dirigiu-se aos antis reunidos.

— Kutlós tem razão — gritou para eles. — Ainda estamos aqui, e nossa vida corre perigo. Quatro mil naves atacarão Saós e não nos darão a menor chance. Se quiséssemos arriscar a luta, estaríamos fazendo um sacrifício insensato. Sugiro que revelemos aos terranos quem é a pessoa que se apresenta como Rhodan. Eles o prenderão e voltarão à Terra.

— A sugestão não presta — disse Kutlós, em tom de desprezo. — Se os astronautas terranos descobrirem que estão obedecendo às ordens de Cardif, farão tudo para descobrir onde se encontra o verdadeiro Rhodan. E haveria um lugar melhor para eles obterem informações sobre isso do que o planeta Saós?

Kutlós fez uma pausa, para que os sacerdotes tivessem tempo para refletir sobre a pergunta que acabara de formular. Depois, prosseguiu:

— Quer dizer que pousarão no planeta, mesmo que saibam que o filho se fez passar pelo pai. Provavelmente o fato de nós os termos enganado os deixaria muito mais zangados — o sumo sacerdote fez um gesto violento. — Não vamos iludir-nos. Sabemos perfeitamente que os terranos são inimigos muito perigosos. Será que devemos irritá-los ainda mais? Por enquanto temos Cardif nas mãos. Não devemos abandonar este trunfo. Enquanto Thomas Cardif, disfarçado em Rhodan, exerce as funções de administrador, as naves da Terra não nos são muito perigosas. O Grande Baalol nos informou que, no momento, outro homem poderoso da Galáxia o deixa muito mais preocupado.

— O Imperador Gonozal VIII — interrompeu Hepna-Kaloot. — O almirante do Grande Império de Árcon.

Kutlós percebeu que o pequeno sacerdote não estava disposto a acompanhar os arroubos de Tasnor. Hepna-Kaloot costumava refletir antes de tomar suas decisões. E os antis sabiam disso. A expressão de lealdade de Hepna-Kaloot favorecia bastante o prestígio do sumo sacerdote.

— Isso mesmo — disse Kutlós. — Sabemos que muita coisa aconteceu desde que Atlan, um arcônida que manteve o espírito ativo, assumiu o controle do computador-regente. A mão forte de Gonozal VIII sacudiu o império, procurando deter o processo de decadência. Perry Rhodan foi um aliado leal. Reunidos, o Império de Árcon e o Império Solar pesavam bastante no jogo de forças da Galáxia. Os dirigentes supremos dos dois impérios estelares transformaram-se em bons amigos — um sorriso irônico surgiu no rosto de Kutlós. — Neste meio tempo nosso amigo Thomas Cardif conseguiu introduzir profundas modificações nessa situação. Há divergências políticas entre a Terra e Árcon. Quase se poderia falar numa guerra fria. Nossos agentes descobriram que Cardif mandou retirar todos os colaboradores terranos que trabalhavam nos planetas arcônidas. O filho de Rhodan deve ter proferido graves ofensas contra o imperador. As coisas chegaram a tal ponto que as unidades da Frota Solar voam pelas áreas de influência do Grande Império.

Tasnor começou a compreender que as explicações prolongadas de Kutlós tinham a finalidade de influenciar o estado de ânimo dos sacerdotes.

— Já sabemos — disse com a voz zangada. — Nem por isso nossa situação se torna menos grave.

O sumo sacerdote não deixou que estas palavras o perturbassem. Sua voz mal superou os ruídos dos aparelhos eletrônicos. Mas suas palavras foram compreendidas por todos. Como era seu hábito, Kutlós teve o cuidado de evitar que suas próprias idéias interferissem nas explicações. Vivia dizendo aos seus companheiros de raça que suas palavras representavam a opinião do Grande Baalol.

— Gonozal VIII decretou a mobilização geral — disse. — Isso significa que em sua opinião é perfeitamente possível que venha haver um conflito de grandes proporções.

Kutlós bateu as palmas das mãos uma na outra, como se quisesse esmagar um inseto que o incomodava. Estava de pé no centro da sala, alto e magro, tal qual saíra da espaçonave quando pela primeira vez pisou o solo de Saós. Representava o Grande Baalol, que era a autoridade suprema. Até parecia que um fio invisível unia o grande chefe dos antis a Kutlós — um fio que conduzia um fluxo autoritário, reforçando o sumo sacerdote. Kutlós parecia o prolongamento do braço do Grande Baalol.

— O Grande Baalol é de opinião que podemos fazer alguma coisa para desencadear o conflito. Árcon e a Terra têm uma visão negativa para com nossa seita. Por isso deveremos sentir-nos felizes se eles se enfraquecerem mutuamente. Bem que vale a pena sacrificar esta base para conseguir isso.

— Dessa forma também sacrificaremos a vida! — exclamou Tasnor.

Já utilizara muitas vezes o único argumento de peso de que dispunha. Por isso tal exclamação deixou de produzir o efeito desejado. Kutlós, que nunca duvidara da vitória, fez um gesto ligeiro para Hepna-Kaloot, em cujo rosto se desenhava um sorriso indecifrável.

Naquele momento Kutlós compreendeu que Hepna-Kaloot era a única pessoa a qual não conseguira convencer. Mas o anti era muito experimentado para confessar isso.

Ele adota a mesma tática que eu”, pensou o sumo sacerdote, perplexo.

— Se Atlan e Cardif se pegarem, assistiremos de camarote — disse Kutlós. — O sistema em que nos encontramos fica na área de influência do Grande Império. Se a Frota Solar nos atacar, estará interferindo nos assuntos internos de Árcon.

Kutlós aproximou-se da tela do aparelho de localização ótica e ligou-o. Os pontos reluzentes voltaram a aparecer.

— O plano é bom — disse. — E vai funcionar.

Com estas palavras singelas, Kutlós manifestou sua decisão de destruir quatro mil naves terranas — ou melhor, de fazer com que as mesmas fossem destruídas. E os antis não se importariam nem um pouco se isso causasse a destruição de milhares de unidades robotizadas de Árcon...

 

Um dos objetos que só aparecia na tela dos antis sob a forma de um lampejo era a nave linear Ironduke, que se mantinha numa órbita constante em torno de Saós.

O Tenente Brazo Alkher foi andando pelo longo corredor que levava da sala de comando aos camarotes dos oficiais. Pouco atrás dele caminhava o Tenente Stana Nolinow. Era baixo e usava cabelos cortados à escovinha. Formava um contraste marcante com Alkher, que era um homem alto e ossudo.

Os dois oficiais já se conheciam desde a primeira tarefa desempenhada na Fantasy. Sobreviveram ao naufrágio espacial juntamente com Perry Rhodan e foram salvos pelo Capitão Samuel Graybound. Os dois homens estavam ligados por uma amizade sincera, que ultrapassava em muito os limites do simples companheirismo. No que diz respeito à combatividade formavam uma equipe muito bem ajustada. Um homem como Brazo Alkher na central de tiro de uma espaçonave representava um perigo maior que dez cruzadores pesados.

Sempre que alguém lhe perguntava sobre suas extraordinárias capacidades, costumava dizer:

— Lido com os canhões; apenas isto. Mas restava saber como lidava com eles.

A prisão comum em Saós unira ainda mais os dois tenentes. Sabiam que sua permanência involuntária nesse planeta fora causada exclusivamente pelo homem que, segundo todos acreditavam, era Perry Rhodan. Cardif não tivera a menor consideração com eles. Deixara-os na nave dos antis e, além disso, dera ordem para abrir fogo contra o veículo espacial dos sacerdotes.

— O que deseja de nós? — perguntou Nolinow e parou.

Em sua voz havia um tom inconfundível que era um misto de desconfiança e de desprezo. Alkher sacudiu a cabeça como quem se lamenta.

— Você está falando no chefe? — indagou o amigo.

— É verdade — respondeu Nolinow, em tom amargurado.

Alkher parou à porta de um camarote e bateu.

— Faça o favor de entrar.

Alkher abriu a porta e entrou no pequeno recinto. O chão estava coberto por cacos de espelho. Perplexo, Alkher olhou para a cama sobre a qual estava deitado Perry Rhodan.

O administrador tirara o casaco do uniforme, trocando-o por um pulôver confortável. Seus olhos estavam protegidos por óculos escuros do tipo usado pelos técnicos nas salas dos conversores. Alkher ouviu que Nolinow entrava atrás dele.

— O senhor mandou chamar-nos, sir — disse Brazo.

Os óculos não lhes permitiam ver os olhos de Rhodan. Quando o administrador se levantou, Brazo Alkher não saberia dizer se estava olhando para ele ou para Nolinow. Surpreendentemente, Rhodan usou um tom amável.

— Os senhores sabem que pertencem ao grupo de pessoas em quem mais confio — principiou, dirigindo-se aos dois tenentes.

— Sim, senhor — responderam Alkher e Nolinow a uma voz.

Alkher sentiu que Nolinow o olhava como quem não entende nada. Não compreendia muito bem por que lhes fora conferida essa posição privilegiada.

— Escolhi os senhores para me levarem a Peregrino — lembrou Rhodan. — Sei dar o devido valor às suas qualidades.

Brazo Alkher sentia-se cada vez mais inseguro. Essa fala levaria a alguma coisa que de forma alguma contribuiria para restaurar a confiança que depositavam em Rhodan, pois esta se deteriorava progressivamente.

— Sem dúvida, sir — disse Alkher em tom cauteloso.

Em sua opinião seria preferível que não o deixasse concluir porque Nolinow, com seu gênio impulsivo, só causaria problemas.

Rhodan levantou-se e pisou em alguns cacos. O ruído fez com que Alkher estremecesse. Viu o quadro do espelho pendurado na parede. Ao que parecia, o administrador o quebrara num acesso de raiva.

— Os senhores presenciaram o ato de indisciplina do Major Krefenbac? — indagou Rhodan. — Se presenciaram, viram a que ponto pode chegar a arrogância psicopática de um oficial.

Nolinow aspirou ruidosamente o ar. Alkher cutucou-o com o cotovelo, fazendo votos de que Rhodan não o notasse.

— Vimos tudo — confirmou Alkher em tom tranqüilo.

— O Major Krefenbac é o imediato da Ironduke — prosseguiu Rhodan. — Ou melhor, ele já foi.

— Sir! — exclamou Alkher, em tom apavorado.

— Não permitirei que continue num cargo de tamanha responsabilidade — anunciou Rhodan. — Não é possível que uma posição vital para a nave seja ocupada por um homem desse tipo. O Major Krefenbac não é capaz de cumprir a ordem mais simples. O que se dirá quando tivermos que tomar decisões importantes? Imagino que, em meio a uma batalha espacial, o major perderá os nervos e recusará o cumprimento das ordens que receber.

Alkher esforçou-se para conservar a calma. Os pensamentos atropelavam-se em seu cérebro. Lamentava que Bell não estivesse presente. O amigo pessoal de Rhodan parecia ser a única pessoa que continuava a exercer certa influência sobre aquele homem doente.

— Para mim, o Major Krefenbac é um bom oficial e um superior muito competente — disse Stana.

Rhodan fez que sim. Voltara a sentar-se. A intervalos regulares cravava os dedos nas cobertas. O gesto desenhava-se com toda nitidez.

— Suas palavras constituem a melhor prova de que o senhor não sabe avaliar esse tipo de gente, tenente — disse. — Sempre é importante estudar as pessoas que nos cercam. O senhor deve fazer uma verdadeira autópsia de seu caráter, Nolinow. Use armadilhas psicológicas, e o senhor perceberá que, muitas vezes, a fachada brilhante esconde um gênio de canalha.

— Sim, senhor — respondeu Nolinow em tom frio e indiferente.

De repente Brazo Alkher sentiu que Rhodan o fitava por trás das escuras lentes dos óculos. Esforçou-se para enfrentar esse olhar.

— Tenente Alkher, tenho a impressão de que o senhor é um oficial muito aproveitável — principiou Rhodan.

— Faço o que posso, sir — respondeu Alkher, esforçando-se para dar à voz um tom amável.

Rhodan acenou com a cabeça; parecia satisfeito.

— O senhor será o imediato da Ironduke, tenente.

Por um instante Alkher sentiu-se tão perplexo que não conseguiu formular qualquer resposta. Os problemas, que se amontoavam diante dele em virtude desse convite fatal, lhe pareciam insuperáveis. Muito perturbado, piscou os olhos.

Rhodan soltou uma risada rouca.

— Isso o surpreende, não é mesmo, Alkher?

— Sem dúvida — conseguiu dizer o tenente.

Rhodan levantou-se e, arrastando os pés entre os cacos que tiniam, aproximou-se de Alkher. Num movimento instintivo, este deu um passo para trás. Rhodan bateu em seu ombro.

— O senhor saberá dar conta do recado — disse numa cordialidade forçada.

Alkher estremeceu. Nolinow parecia enrijecido como uma coluna de pedra. Desorientado, Brazo olhava para ele.

— Fico-lhe muito grato pela confiança, sir — gaguejou.

A mão de Rhodan pesava em seu ombro, mas Alkher não se atreveu a fazer qualquer movimento. De repente lembrou-se de seu primeiro encontro com Rhodan. Naquela oportunidade pensara que o administrador fosse um mecânico e lhe dispensara o tratamento que correspondia a essa posição. O Rhodan de quem se lembrava era um homem completamente diferente daquele que se encontrava à sua frente.

— Nolinow e o senhor são as pessoas que melhor conhecem a base de Saós — disse Rhodan. — Estão em condições de comandar o ataque contra os antis. Krefenbac ficará de lado, e tudo dará certo. Os senhores serão meus elementos de ligação com a frota invasora. Transmitirão minhas ordens às unidades que estiverem empenhadas no combate.

— Sir, eu... — principiou Alkher.

A voz de Rhodan assumiu um tom áspero.

— Alguma objeção, tenente?

Alkher engoliu em seco. Seus olhos refletiram um brilho... de temor. O que o perturbava não era o homem em si, mas sim as lendas, a história dos atos do mesmo.

Alkher falou com a coragem do desespero:

— Vejo-me forçado a recusar sua proposta, sir. Sinto muito.

— O quê? — gritou Rhodan. — Será que o senhor enlouqueceu, tenente? Ofereço-lhe a maior chance de sua vida, e o senhor se atreve a recusar minha oferta?

Brazo Alkher arregalou os olhos e fitou o homem enfurecido. Uma palidez tremenda cobria seu rosto. Suas mãos tremiam levemente e as palmas estavam úmidas de nervosismo. Nolinow mantinha-se de pé atrás dele, com os dentes cerrados. Ficou em silêncio.

— Será que o senhor tramou algum golpe juntamente com esse palerma do Krefenbac? — berrou Rhodan fora de si. — Saberei fazer cumprir minhas ordens.

— Qualquer ordem que o senhor me der será cumprida, sir — disse Alkher, em voz baixa. — No entanto, os regulamentos me permitem refletir sobre uma promoção que me seja oferecida e mesmo recusá-la, desde que não me sinta em condições de cumprir as novas tarefas.

— Fora! — gritou Rhodan.

Brazo Alkher e Stana Nolinow fizeram continência e retiraram-se.

— Cheguei a pensar que você aceitaria a promoção — disse Nolinow em tom tranqüilo assim que se encontravam a uma distância tal que Rhodan não podia ouvi-los.

Alkher respirava fortemente. Seu rosto, até então muito pálido, enrubesceu.

— Quase que ele me pega de surpresa — confessou. — Não perdoou essa história dos botões ao major.

— Você está falando no chefe — disse Nolinow num misto de repreensão e ironia.

— Gostaria de poder dar-lhe alguma forma de apoio — disse Alkher. — Ao que tudo indica, sua conduta incompreensível tem algo a ver com sua estranha doença. Notou que estava usando um pulôver muito largo?

— A jaqueta do uniforme ficou muito apertada, Brazo. Gostaria de saber por que estava com aqueles óculos. Decerto os pediu emprestados a um técnico.

Brazo Alkher sentiu-se dominado por um temor inexplicável.

— De qualquer maneira está escondendo alguma coisa — disse, dirigindo-se a Nolinow.

— É possível que a parte superior do rosto já se tenha alterado a tal ponto que produz um efeito repugnante.

— Você acha que ele vai morrer? — perguntou Alkher em tom deprimido.

— Na opinião dos médicos, a proliferação celular não é maligna. Tudo depende de como os órgãos e o cérebro reagirão a esse crescimento desmesurado — concluiu Nolinow com um gesto. — Se os médicos não conseguirem deter o processo, haverá no mínimo uma grave crise. Mas quando acontecerá isso?

Naquele momento estavam chegando à sala de comando. Enquanto entravam, Nolinow perguntou-se em voz baixa:

— E o que acontecerá?

 

A bordo da Ironduke os ânimos estavam muito deprimidos. Não se ouvia uma única palavra alegre. Os oficiais fitaram os dois tenentes sem dizer uma palavra.

— Como vai ele, tenente? — perguntou Bell, dirigindo-se a Alkher.

— Sente-se muito amargurado, sir — informou Brazo. — Pretende substituir o Major Krefenbac do posto de imediato. Ofereceu-me esse posto.

— Está ouvindo, major? — perguntou Bell, falando por cima do ombro.

— Estou, sir — respondeu Hunt Krefenbac, com a voz apagada.

Com o rosto pálido, mas controlado, o major levantou-se e aproximou-se de Bell. Estava abatido, mas parecia mais orgulhoso que nunca.

— Eu lhe entregarei meus galões, tenente — disse, dirigindo-se a Brazo.

— Não, sir — objetou o jovem. — Recusei a proposta de Rhodan. Quando invoquei os regulamentos ele nos pôs para fora.

— O senhor continua a ser o imediato, Hunt — disse a voz retumbante do Major Claudrin. — Rhodan teria que demiti-lo pessoalmente ou dar-me uma ordem nesse sentido.

— Será que devo esperar até que isso aconteça? — perguntou Krefenbac, com a voz amargurada.

— Falarei com ele — anunciou Reginald Bell.

Ninguém formulou qualquer objeção. Se havia um homem que ainda podia dizer algumas palavras sensatas a Perry Rhodan, esse homem era Bell.

— Está usando pulôver, sir — disse Stana Nolinow. — Além disso, traz no rosto um par de óculos protetores do tipo usado pelos soldadores.

Bell cumprimentou os homens com um gesto e retirou-se da sala de comando. Duvidava de que sua importante missão fosse coroada de êxito. Ao que parecia, o fio invisível da sua amizade de muitos anos se rompera.

Bell confessou a si mesmo que a vontade de resistir às ordens absurdas de Rhodan crescia cada vez mais. Os efeitos secundários do tratamento de choque a que Perry fora submetido em Okul não diminuíam.

Quando chegou à frente do camarote de Rhodan, Bell achou preferível bater fortemente à porta. Antigamente não conhecia esse tipo de cerimônia.

— Já mandei que desse o fora, Alkher — gritou uma voz furiosa, vinda do outro lado da porta.

Bell abriu e entrou. Rhodan, que estava estendido sobre a cama, mostrava exatamente o aspecto descrito pelos dois tenentes. Ergueu-se abruptamente e seu rosto desfigurou-se.

— Sou eu — disse Bell, em tom indiferente.

Rhodan voltou a cair sobre a cama e cruzou os braços embaixo da cabeça. Era só uma questão de tempo... e a cama ficaria pequena para ele.

— O que deseja? — perguntou asperamente.

— Pensei que você talvez desejasse companhia — respondeu Bell sem abalar-se. — Na sala de comando não precisam de mim.

Procurou um canto vazio na cama de Rhodan e sentou-se. Rhodan fitou-o com uma contrariedade evidente. Bell esforçou-se para não notar essa antipatia. Era preferível fazer como se não percebesse o gênio desagradável do amigo.

— Vejo que está usando óculos, Perry — disse com a voz amável. — Aconteceu alguma coisa com seus olhos?

— Malditos tagarelas! — exclamou Rhodan.

O insulto fora dirigido contra Alkher e Nolinow.

Bell contemplou-o com a maior tranqüilidade. O que restava do famoso autodomínio de Perry? O que era feito da tão falada objetividade fria que distinguira o administrador?

— Quer que eu peça ao doutor Gorsizia que venha até aqui? — perguntou Bell.

Rhodan soltou uma risada amarga. Baixou os cantos da boca numa expressão de desprezo.

— De que me servirá Gorsizia se nem mesmo os especialistas terranos podem fazer qualquer coisa por mim? — perguntou, repuxando o pulôver desajeitado. — Até mesmo minha jaqueta ficou apertada.

Levantou-se e segurou a gola do uniforme de Bell com ambas as mãos. Aproximou seu rosto dos olhos daquele homem baixo. Bell teve a impressão de que via sob as lentes escuras dos óculos os contornos apagados de um par de olhos. O hálito quente de Rhodan roçou seu rosto.

— Olhe para mim! — fungou Rhodan. — Vamos, olhe para mim! Aos poucos vou me transformando num monstro; num monstro inchado.

— Perry! — disse Bell, com a voz suplicante. — Procure acalmar-se.

— Acalmar-me? — repetiu o homem que já não era capaz de desempenhar o papel de administrador. — Será que você compreende a minha desgraça? Quer que eu lhe mostre?

Num movimento repentino tirou os óculos e atirou-os para longe.

Incapaz de proferir uma única palavra, Bell fitou os olhos do amigo. O medo e o desespero, a raiva e o ódio brilhavam nos mesmos como se fossem chamas amarelas.

De repente Bell lembrou-se de que já vira um par de olhos desse tipo. Quando ainda era muito jovem visitara um zoológico e um animal feroz o fitara por entre as grades.

— A cor mudou — gritou Rhodan.

Bell, que tinha nervos de aço, baixou os olhos.

— São os antis — gritou Rhodan. — São culpados de tudo. Pagarão por isso. Saós cairá.

Naquele momento, Thomas Cardif só tinha uma coisa em comum com o pai: o nome que usava indevidamente e o título que usurpara. Seus traços de caráter sobrepunham-se cada vez mais às características positivas herdadas. Cardif transformara-se num fanático odiento, que só vivia em função do desejo de vingança.

Reginald Bell levantou-se. Estava muito abalado. Olhando para o chão, caminhou em direção à porta.

— Bell! — gritou uma voz atrás dele.

Bell não se virou, porque aquele olhar de lobo ainda ardia em seus pensamentos como se fosse uma chama inextinguível. Parou, mas não disse uma palavra.

— Você tem de apoiar-me, Bell — pediu Rhodan com a voz rouca.

A única coisa feita por Bell foi confirmar com um aceno de cabeça. E isso lhe custou um autocontrole maior do que qualquer outra coisa que já acontecera em sua vida. O homem que se encontrava sobre a cama era um estranho. Não havia mais qualquer relacionamento entre eles. Bell retirou-se com os sentimentos em irrupção.

Esquecera-se completamente do motivo que o levara para lá. Quando voltou à sala de comando, só o Major Claudrin formulou uma pergunta.

— O que foi que o chefe disse?

Bell fitou o homem nascido em Epsal. O interesse de Claudrin apagou-se.

— Tirou os óculos — disse Bell em voz baixa.

Eram exatamente 18:45 h, tempo padrão. Depois disso ninguém mostrou qualquer interesse por Rhodan. Na sala de comando o silêncio era ainda maior. Todos esperavam que Rhodan aparecesse. À entrada do administrador seguir-se-ia, inevitavelmente, a ordem de iniciar a invasão de Saós.

Indiferente a esses acontecimentos, a Ironduke prosseguiu em sua órbita em torno do planeta dos antis. E em seu interior encontrava-se um homem cuja inteligência estava sendo turbada progressivamente pela terrível proliferação celular.

Esse homem estava investido no comando de toda a Frota Solar. Nas mãos de um homem sensato, as milhares de naves que a compunham representavam um importante instrumento político.

Thomas Cardif já não era um homem sensato.

Sob seu comando, a Frota se tornaria mais perigosa que um incontrolável incêndio atômico!

 

No âmbito da Galáxia a lei da causalidade também é confirmada sob milhares de formas. Suas variantes são infinitas. Muitas vezes um efeito é produzido por duas causas que parecem ser independentes.

O Major Kullmann nem desconfiou de que suas ordens foram uma das duas causas que fizeram com que dez mil naves robotizadas arcônidas se colocassem em movimento. Kullmann comandava um dos cruzadores de patrulhamento que haviam penetrado no Grande Império por ordem de Cardif. Era claro que, para Kullmann, essa ordem vinha de Rhodan, pois tal qual os outros oficiais nem desconfiava do jogo de Cardif. Talvez o caráter de Kullmann desempenhasse um papel secundário naquilo. Em condições normais e num setor da Galáxia pertencente ao Império Solar, sua concepção sobre os regulamentos do serviço seria defensável. Mas num setor que para o imperador de Árcon pertencia de direito ao seu império, um oficial do feitio de Kullmann era uma mecha acesa sob um barril de dinamite.

Em outras palavras: talvez os problemas não surgissem logo, mas a longo prazo estes seriam inevitáveis.

Há dois dias, tempo padrão, o cruzador ligeiro Zumbasi controlava o setor que lhe fora destinado. Os tripulantes cumpriam a tarefa com um desagrado variável. Só Kullmann dedicou-se de corpo e alma à sua missão. Fazia discursos na sala de comando e ressaltava a importância histórica da missão que lhes fora confiada. Quem ouvisse o major poderia ter a impressão de que era apenas uma questão de tempo, para que os terranos se apoderassem do Grande Império. O grande momento de Kullmann chegou quando os aparelhos de localização da Zumbasi registraram a presença de uma nave que há poucos segundos saíra do hiperespaço. Para sua felicidade — ao menos o major acreditava que fosse uma felicidade — o cruzador não teve o menor problema em colocar-se em poucos minutos nas proximidades da nave que acabara de surgir.

Albert Kullmann estava de pé atrás de Pedro Villaseluces, que desempenhava as funções de piloto. Segurava um microfone. A nave desconhecida aparecia nitidamente nas telas.

— É uma nave dos mercadores galácticos, sir — observou Villaseluces com a voz azeda. — Queira observar o formato cilíndrico, que constitui uma das características preferidas pelos saltadores.

Os olhos de Kullmann iluminaram-se.

— Sala de tiro! Atenção! — gritou com a voz forte para dentro do microfone.

— Pois não, sir — disse a voz saída do alto-falante.

— Faça um disparo de advertência para a nave dos saltadores — ordenou Kullmann. — A mesma já se encontra na sua mira?

Por um instante reinou o silêncio. Finalmente a voz perplexa de Mark Dickson, que desempenhava as funções de oficial do controle de tiro, disse:

— Quer dizer que, antes de pedir aos mercadores que parem, vamos fazer o disparo de advertência?

— Quer discutir comigo? — perguntou Kullmann, em tom indignado.

— Não, senhor. Mas peço licença para observar que nos encontramos num setor onde os saltadores têm o direito de fazer ou deixar de fazer o que desejarem.

Kullmann empertigou-se.

— Estes tempos já se foram, Dickson. Não se esqueça das novas ordens que recebemos do administrador.

— Às ordens, sir — respondeu Dickson. Notava-se perfeitamente que estava com vontade de dizer uma coisa bem diferente.

Kullmann fitou a tela do dispositivo de localização. Ao que parecia, os saltadores ainda não sabiam como deviam agir diante da nave esférica. Esta deslocava-se em queda livre, como quem se mantém em expectativa.

Naquele momento, um lampejo saiu dos pesados canhões de popa da Zumbasi. Um raio de vinte centímetros de espessura atravessou o espaço e passou junto à nave cilíndrica.

— Muito bem, Dickson — gritou Kullmann. — Por enquanto basta.

— A nave dos saltadores procura estabelecer contato, sir — anunciou Fleming, que se encontrava na sala de rádio. — Quer que transmita a ligação para o senhor pelo videofone?

— Ande logo — pediu o major.

A tela de radiocomunicação espacial comum iluminou-se. Um rosto barbudo surgiu na mesma. Se Albert Kullmann já vira um homem irritado, era esse saltador. Com uma visível alegria, o major fitou o comandante da nave cilíndrica.

— O senhor tem alguma explicação plausível para esse comportamento, terrano? — perguntou o saltador com uma calma que não parecia muito convincente.

— Prepare-se para receber um comando de busca — anunciou Kullmann, em tom seco.

O barbudo fitou-o com uma expressão de incredulidade.

— Será que o senhor conhece a posição de sua nave? — perguntou. — Será que seus conhecimentos de Cosmonavegação bastam para que o senhor perceba que se encontra no território do Grande Império?

A dúvida quanto à competência astronáutica de Kullmann estimulou-o à ação e atiçou sua vaidade.

— Estamos controlando esta área — disse em tom arrogante.

O saltador fervia de raiva. Pôs à mostra seus dentes e, depois de praguejar numa língua desconhecida, disse:

— Esta é uma nave mercante inofensiva. Se nos importunar, as conseqüências de sua atuação pesarão sobre o senhor. Faço um apelo ao seu bom senso.

Talvez Kullmann fosse bom psicólogo, mas não soube interpretar a conduta do mercador. Estava convencido de que o saltador temia o exame de sua nave. E esse temor devia ter algum motivo. Talvez houvesse carga proibida a bordo da nave cilíndrica. Kullmann não notou os rostos preocupados dos tripulantes de sua nave. Não viu Villaseluces balançar a cabeça, apavorado. O major só via aquilo que julgava ser seu dever.

— Dickson, coloque mais um tiro diante de sua proa, para que esse sujeito compreenda que estamos falando sério — gritou Kullmann.

O mercador já percebera que o terrano estava falando muito sério. Seu rosto exprimia uma resignação misturada com revolta.

— Está bem, terrano — disse em tom de cólera. — Vamos mudar de rumo.

Kullmann parecia satisfeito. Ordenou a Dickson que por enquanto não disparasse nenhum tiro contra a nave cilíndrica. Poucos minutos depois formou o comando de abordagem. Tal comando usou um barco auxiliar para transportar-se à nave dos saltadores. Os mercadores cerraram os dentes e submeteram-se à inspeção. Sabiam que o armamento de que dispunham não lhes permitia enfrentar um cruzador terrano.

Kullmann e seus homens revistaram cuidadosamente a nave. Não encontrou nada que parecesse suspeito. Aos poucos foi compreendendo que realmente detivera uma nave mercante inofensiva.

De qualquer maneira, um major terrano”, pensava Kullmann, “não tem necessidade de pedir desculpas a um comandante saltador.

Com a voz fria Kullmann mandou que o comando se retirasse.

— Pode prosseguir viagem — disse em tom condescendente, dirigindo-se ao saltador.

Nos planetas do Sistema Azul o ensinamento hipnótico estava sendo aplicado em grande escala. Acônidas inteligentes e de raciocínio ágil estavam deitados sob as máquinas de aprendizagem hipnótica. Num futuro previsível Atlan estaria em condições de formar uma frota gigantesca com excelentes tripulações.

Os aliados se haviam transformado em inimigos. A evidente pressão que estava sendo exercida contra Árcon teria levado Atlan a agir, se a raça que o ameaçava fosse outra. Acontece que Rhodan era seu amigo pessoal — ou melhor, ele o fora, até o momento em que começara a agir como inimigo. O imperador tinha muita simpatia pela raça humana, embora a chamasse de bárbara.

Por várias vezes os controles do centro de computação se haviam pronunciado pela ação contra as atrevidas naves terranas. Mas Atlan sempre passara por cima das conclusões lógicas do gigantesco centro de computação, guiando seus atos por considerações sentimentais. Esperava que Perry Rhodan acabasse por recuperar o bom senso, reparando os erros graves que estava cometendo.

As unidades da frota robotizada de Árcon foram colocadas em regime de prontidão. Atlan fizera várias conferências com os altos dignitários, mas em geral a “atividade” dos mesmos apenas o perturbava. Durante as reuniões falavam sem parar, mas nunca chegavam a um resultado aproveitável.

 

Parecia uma parede azulejada. Acontece que cada azulejo era uma tela de imagem. Todos os canais levavam ao centro de computação, que por intermédio deles irradiava as notícias para Atlan.

Um robô-criado entrou e trouxe uma xícara com uma bebida fumegante, colocando-a à frente de Atlan. A máquina praticamente não fazia nenhum ruído ao movimentar-se sobre o pavimento liso. Atlan pegou a xícara sem levantar os olhos. Via de regra, enquanto prestavam seus serviços, os robôs-criados diziam frases amáveis. Atlan mandara apagar essa característica na programação dos robôs que lhe prestavam serviços pessoais, pois achava que não adiantava nada uma máquina lhe dirigir frases corteses.

Sem dizer uma palavra, o robô retirou-se.

A pessoa que se encontrava sentada do outro lado da mesa esboçou um sorriso quase imperceptível. O General Alter Toseff esperou até que Atlan terminasse de beber o conteúdo da xícara.

— Esta bebida foi feita segundo uma receita terrana, general — disse Gonozal VIII. — O senhor deveria experimentar.

Toseff sorriu.

— Agradeço a Vossa Eminência — disse a título de recusa. — Receio que meu paladar se tenha acostumado às delícias de Saratan.

Saratan era um planeta colonial de Árcon. O General Alter Toseff representava os interesses do Grande Império naquele mundo. Distinguia-se da maioria dos arcônidas pela energia e vitalidade. Atlan o encontrara porque estivera à procura de homens desse tipo. O setor de processamento do centro de computação convocara para Árcon todos os oficiais que pudessem ser aproveitados naquela emergência. Na seleção foram aplicados critérios rígidos. Apesar disso Atlan sentiu-se decepcionado porque o centro de computação só encontrou quarenta e três homens que correspondiam às exigências. O general à sua frente era a pessoa que reunia o maior número de pontos positivos.

Atlan percebeu que mais uma vez o centro de computação acertara na escolha. Toseff não mostrava qualquer sinal de decadência.

— Terá que dispensar essas delícias por algum tempo, general — disse Atlan. — Temos tarefas importantes para o senhor.

— Estou disposto a lutar em qualquer lugar pela causa do Grande Império — disse Toseff em tom resoluto. — Tem alguma ordem específica para mim, imperador?

Muito pensativo, Atlan girava a xícara nas mãos. Seu cabelo muito branco formava um contraste marcante com o rosto, que era por demais escuro para um arcônida. Atlan simpatizava muito com esse homem e teve a impressão de que poderia confiar nele. Apesar de todo o empenho, o centro de computação só encontrara quarenta e três homens que reuniam as mesmas qualidades de Toseff.

Quarenta e três homens para todo o império.

Perry Rhodan dispunha de milhões de colaboradores desse tipo.

Era por isso que o imperador precisava do auxílio dos acônidas, que se haviam mantido ativos. Mas pretendia colocar em cada frota tripulada por acônidas um arcônida do tipo do General Toseff.

— A missão que lhe será confiada poderá ser de importância vital para nosso império — principiou Atlan. — Por isso deixo-o à vontade para recusá-la. Nesse caso poderá voltar sem problemas para Saratan.

— Estou aqui para fazer aquilo que Vossa Majestade desejar, imperador — disse o general. — Há muitas gerações os Toseff se têm mantido leais ao império.

Não seria justo deixar este homem por mais tempo na incerteza. Atlan entregou-lhe uma pasta.

— Leia — disse. — Aqui, o senhor...

Foi interrompido por um zumbido. Atrás dele, na parede coberta de telas, uma luz vermelha acendeu-se. Toseff olhou-a. Ao que parecia, esquecera-se dos documentos.

— Um momento — disse Atlan. — É uma notícia importante do centro de computação.

Ligou o aparelho de comunicação sonora que se encontrava sobre a mesa. Outra lâmpada acendeu-se. Uma voz indiferente disse:

— O sumo sacerdote do Baalol em Saós pede que o imperador lhe conceda uma entrevista.

Atlan respondeu em tom contrariado:

— Estou ocupado. O anti pode esperar. A voz mecânica prosseguiu com a mesma indiferença:

— Trata-se de mais uma violação cometida pela Frota Solar. O imperador deu ordem para que qualquer notícia desse tipo fosse transmitida imediatamente.

— Está bem — disse Atlan, em tom apressado. — Transfira a palestra para cá.

— O sacerdote está falando pelo canal 23 — disse a voz.

Toseff fez menção de levantar-se.

— Fique aqui, general — disse Atlan. — É bom que o senhor esteja presente durante a palestra, que sem dúvida se relaciona com a missão que terá de cumprir.

Toseff voltou a sentar-se. Uma das telas iluminou-se, e os contornos apagados transformaram-se no rosto magro do sumo sacerdote que se encontrava em exercício em Saós. Atlan apertou um botão, e o anti teve a imagem do rosto do imperador projetada na tela da sala de rádio da pirâmide-templo de Saós.

Atlan não tinha nenhum motivo para simpatizar com os sacerdotes, pois estes também haviam disseminado seus entorpecentes sob a forma de liquitivo nos planetas do sistema de Árcon.

— O que deseja? — perguntou o imortal em tom frio.

O rosto magro de Kutlós continuou impassível. Apenas os lábios se moveram quando respondeu com a maior tranqüilidade:

— Tenho uma notícia para Vossa Majestade.

Pelo seu tom de voz a notícia não devia ser muito interessante. Atlan lançou um olhar indagador para Toseff.

— Fale — disse, dirigindo-se ao anti.

— O planeta de Saós está submetido à soberania do Grande Império — disse Kutlós, em tom indiferente.

Atlan começou a perder a paciência.

— Será que o senhor chamou para me dar algumas lições de Astropolítica? — perguntou em tom gelado.

Kutlós sorriu. Dificilmente Atlan já vira um sorriso tão despido de senso de humor. Não podia deixar de reconhecer que o anti sabia esconder seus sentimentos. Aquele rosto anguloso não mostrava o menor sinal de emoção.

— De forma alguma — respondeu o sacerdote, em tom irônico. — Mas quero dar-lhe uma lição de estratégia cósmica.

O General Al ter Toseff fez um gesto de raiva diante da observação atrevida do sacerdote. Atlan pediu que se conservasse calmo. Por certo o sacerdote queria apresentar-lhe a notícia de forma bastante saborosa.

— Saós está na iminência da invasão de uma frota terrana comandada por Perry Rhodan — anunciou Kutlós, mantendo o tom de indiferença na voz.

Ao ouvir o nome de Rhodan, Atlan estremeceu. Não quis acreditar no que acabara de ouvir. Levou alguns segundos para recuperar-se do choque.

— Tem certeza de que as naves são terranas? — perguntou.

— Se andar depressa, Vossa Majestade poderá convencer-se pessoalmente — disse o anti em tom irônico. — É bom que não demore, pois, do contrário, Saós poderá ser destruído por bombas de fusão antes que o senhor chegue. Afinal, Rhodan reuniu nada menos de quatro mil naves.

— Quatro mil — repetiu Atlan, com a voz apagada. — Utiliza uma frota num ataque contra um dos planetas do Grande Império! Trata-se de uma ação bélica indisfarçada.

— O senhor vai agir? — perguntou Kutlós, com a voz curiosa.

Atlan fitou-o com uma expressão nada amável. Compreendia os pensamentos do sacerdote. De qualquer maneira, a conduta de Rhodan era inconcebível, pois, na verdade, equivalia a uma declaração de guerra.

— Procure adivinhar — disse, dirigindo-se a Kutlós, e desligou.

Toseff abriu a boca; parecia hesitante. A comoção interna do imperador era patente. O general preferiu não soltar a observação que trazia na ponta da língua. Seu instinto lhe dizia que não podia ajudar aquele homem solitário na decisão que este teria que tomar. Naquele momento, a lealdade do general tornou-se ainda mais forte. Naquele instante teve a sensação da ligação que o unia ao imperador e da lealdade eterna que o prendia ao Grande Império.

— Como o bárbaro pôde fazer uma coisa dessas? — perguntou Atlan, em tom de desânimo. — Será que quer por viva força desencadear uma guerra galáctica?

— Quem sabe se o sacerdote não mentiu? — disse o general, não muito convicto. — Talvez os antis estejam interessados em provocar um conflito entre duas potências, as quais eles mesmos não podem derrotar.

— Não tenho a menor dúvida de que estão interessados nisso — disse Gonozal VIII. — Acontece que o anti falou a verdade. Sabe perfeitamente que tenho meios de verificar prontamente a exatidão de suas informações. Se dissesse uma mentira, assumiria o risco de ver bloqueada a base de Saós.

O general sentiu-se apavorado ao notar que Atlan hesitava em dar a resposta adequada à provocação da Frota Solar. A amizade com Perry Rhodan prendia-o como se fosse um fio invisível. Não conseguia compreender por que o administrador da Terra fora capaz de cometer essa violação dos tratados firmados entre os dois impérios.

— Majestade, qualquer hesitação de nossa parte seria interpretada como fraqueza pelos aliados e pelas colônias rebeldes — advertiu Toseff. — Além disso, provocaria outras ações dos terranos. Tudo deve ter seus limites. Queira desculpar minhas ásperas palavras.

Atlan passou a mão pelo rosto. O silêncio do grande salão produzia um efeito deprimente em Toseff. Fazia um frio desagradável, mas talvez isso não passasse de imaginação.

— Agradeço-lhe por suas palavras francas, general — respondeu Atlan sério. — Sei apreciar a pessoa que me diz sua opinião sem rebuços. Entre os dignitários do império isso não é muito comum.

— O senhor terá muita dificuldade em tomar uma decisão, imperador — conjeturou o lugar-tenente dos arcônidas em Saratan.

Um sorriso triste surgiu no rosto de Atlan.

— Um velho provérbio arcônida diz que devemos ter paciência com os amigos, quando a amizade está ameaçada. Até que ponto deve chegar essa paciência, general?

A pergunta de Atlan retratava toda a dificuldade da situação. Atlan estava empenhado em evitar o confronto aberto com Rhodan. Mas por outro lado devia recorrer a todos os meios para proteger o Grande Império de novas investidas militares.

Atlan, talvez, teria considerado, mais uma vez, sua amizade com o terrano, se não fosse a ação do Major Albert Kullmann.

No momento em que Toseff se dispunha a responder, o centro de computação voltou a entrar em contato com Atlan. O general interrompeu-se e esperou que o imperador fizesse a ligação.

— Mais uma violação da Frota Solar cometida no setor espacial submetido à soberania do Grande Império — anunciou uma voz fria, que saía dos alto-falantes. — Acabamos de receber uma mensagem de hiper-rádio expedida por uma nave dos saltadores. Uma belonave terrana fez um disparo de advertência contra uma nave mercante e obrigou-a a parar. Um comando terrano revistou a nave dos mercadores. Sonzomon, o comandante da nave dos saltadores, exige reparações imediatas e um pedido de desculpas público da parte do oficial terrano.

Com uma pancada Atlan interrompeu a ligação. Seus lábios estreitaram-se.

— Agora basta! — disse em tom frio. — Por maior que seja a paciência, um dia acaba.

— O que pretende fazer, majestade? — perguntou Toseff, fitando-o intensamente.

Atlan tirou um mapa estelar de um estojo que se encontrava à sua frente. Abriu-o sobre a mesa. O general inclinou-se sobre ela. Atlan traçou um círculo em torno do grupo estelar M-13. Os planetas coloniais arcônidas estavam assinalados sob a forma de pontos vermelhos. O dedo de Atlan apontou um deles.

— Aqui — disse.

— O que pretende fazer? — Toseff manteve os olhos presos ao mapa. Sentiu a importância histórica do momento.

— Os tempos em que toleramos tudo dos bárbaros terranos chegaram ao fim, general. Árcon revidará o golpe. Não haverá outras violações — Atlan proferiu estas palavras em tom violento. — Os aliados acônidas, que ainda se encontram na fase do treinamento hipnótico, não podem entrar em ação. Isso significa que teremos de recorrer a uma frota robotizada. Esta equivale às frotas terranas quanto ao poder de fogo, mas não quanto à capacidade de reação e aos truques espantosos que os homens de Rhodan costumam usar, durante as batalhas cósmicas.

Ansioso, o arcônida de Saratan perguntou:

— Quer usar uma frota para salvar Saós, imperador?

O punho cerrado de Atlan bateu no círculo que acabara de traçar no mapa.

— Dez mil unidades bastarão — disse.

— Dez mil!? — repetiu Toseff em tom hesitante.

— Outros grupos ficarão de prontidão — prosseguiu Atlan. — Se Rhodan quer mesmo uma prova de força, nós lhe faremos a vontade.

Sem dizer uma palavra, o general fitou o mapa. Imaginou o momento em que dez mil naves robotizadas arcônidas sairiam do hiperespaço e se precipitariam, de surpresa, sobre os terranos. A imagem voltou a colocar diante de seu espírito o brilho antigo do Grande Império. Recordou-se dos grandes vultos do passado. Quando se lembrou dos nomes lendários de Ufagar, Salaston e Petech III, seus olhos brilharam.

Sem dúvida o império fora ferido e estava esfacelado e desunido, mas nem por isso passara a ser um nome vazio. Estava sendo comandado por um homem resoluto, disposto a recorrer a todos os meios disponíveis para evitar o colapso.

— Nós os derrotaremos, imperador! — exclamou. — Nós os expulsaremos do Grande Império e faremos com que percam a vontade de voltar.

Atlan sacudiu a cabeça.

— O senhor fala que nem um terrano, general — disse em tom suave. — Se conseguir agir como um terrano, compreenderá que é muito difícil derrotá-los. Estão impregnados da vontade férrea de não permitir que nada os detenha. E esse ímpeto que os leva para a frente é simbolizado por um único homem.

— Perry Rhodan — completou Toseff.

— Se conseguirmos derrotar esse homem, desferiremos um golpe mortal na Terra — disse Atlan.

Apertou um botão e o robô-criado entrou silenciosamente. Tão silenciosamente que Toseff estremeceu.

— Minha conferência com Lechtos fica adiada por um tempo indeterminado — disse Atlan, dirigindo-se ao robô. — Lamento que tenha que fazer a viagem em vão.

Toseff compreendeu imediatamente o significado da ordem que Atlan acabara de dar ao robô.

— Quer dizer que Vossa Majestade acompanhará a frota?

O imperador soltou uma risada.

— O senhor e eu seremos os únicos arcônidas ativos numa tripulação de dez mil naves robotizadas. Que tal lhe parece isso, general?

Toseff sorriu. Era um homem experimentado, e sua resposta lacônica provava que conservara um sadio senso de humor.

— A situação me parece muito promissora — respondeu.

Dali a três minutos Atlan entrou em contato com o centro de computação. Os bancos de dados positrônicos começaram a trabalhar a plena potência. Precisavam determinar uma posição de ataque favorável para a ação destinada a libertar Saós. Enquanto isso Atlan preparou-se para assumir o comando da nave capitania. A cabeça de Toseff fervilhava de idéias. Levou menos tempo que o gigantesco centro de computação para elaborar um plano de batalha.

 

A milhares de anos-luz Albert Kullmann, o major da Frota Solar que comandava o cruzador ligeiro Zumbasi, disse a Villaseluces, piloto da nave:

— Acho que fizemos o que estava certo. A esta hora, os saltadores já sabem que não podem atravessar nenhum trecho da Galáxia que esteja sem controle. O fato lhes servirá de advertência.

Recostou-se. Parecia muito satisfeito.

Naquele mesmo instante um relê do centro de computação de Árcon III caiu. Um sinal goniométrico automático foi irradiado. Poucos minutos depois, os jatos-propulsores de dez mil belonaves arcônidas despertaram para a vida.

Um dia negro da História da Galáxia teve início.

Duas frotas gigantescas estavam na iminência de entrar em choque...

 

Os dedos de Cardif crisparam-se em torno do lugar em que o ativador celular pulsava sob o peito. Os antis o haviam induzido a arranjar o aparelho. O espírito martirizado de Cardif nem pensou na possibilidade de que Aquilo, o Ser fictício do planeta Peregrino, pudesse ter algo com as alterações de suas células. Ainda não compreendera suas advertências vagas.

E nunca mais as compreenderia...

O processo de explosão celular prosseguia de forma proporcional em todo o corpo. O cérebro era atingido da mesma forma que as outras partes. O estado de espírito de Cardif já não permitia que compreendesse o perigo: sua verdadeira identidade poderia ser revelada pelos antis!

Confiava cegamente num plano de vingança que colocaria o planeta Saós em suas mãos. E ali esperava obter as informações de que precisava para curar-se.

Mostraria aos homens que ainda sabia comandar uma frota. Gemeu e virou-se na cama remexida. Apalpou o pulôver. Será que o mesmo não começava a ficar apertado?

Arrumou o cabelo e trocou de calça. Com um gesto de desprezo atirou para longe os óculos protetores.

Um administrador não tem necessidade de esconder o rosto!”, pensou.

Era bom que os oficiais vissem o rosto do homem que os conduziria para a vitória sobre os antis. O tempo das hesitações chegara ao fim. Nunca deveria ter permitido que as advertências de Bell o detivessem. Quando seu poder estivesse consolidado, Bell seria um dos primeiros homens que mandaria liquidar.

Cardif verificou sua aparência. Não queria confessar o desespero e o pânico que haviam tomado conta de seu espírito. Preparou-se para desempenhar o papel que combinava cada vez menos com sua pessoa: o de Administrador do Império Solar.

Seu aparecimento na sala de comando provocou várias reações diferentes. O comportamento do falso Rhodan representava uma carga pesada para os oficiais da Ironduke.

Cardif parou na porta e colocou as mãos nos quadris. Lançou um olhar atento para os homens. Sentiu a antipatia instintiva dos mesmos. Empertigou-se e seus cabelos tocaram na parte superior da entrada.

Isso significava que crescera mais um pedaço.

Entrou de vez na sala de comando.

— Expeça uma ordem dirigida a todas as naves, major — gritou para Jefe Claudrin. — Desfechar o ataque a Saós.

Claudrin virou-se abruptamente. Seu corpo volumoso atravessou a sala de comando como se fosse um tanque humano. Estabeleceu ligação de rádio comum com os comandantes de todas as naves.

— Talvez fosse preferível que o senhor falasse pessoalmente, sir — disse com a voz tranqüila. — Isso representaria um estímulo para a luta que se aproxima.

Um sorriso de desprezo surgiu no rosto de Thomas Cardif, o que constituía mais uma prova de que não possuía o gabarito do pai.

— Para derrotarmos essa base ridícula, o tom de sua voz será suficiente, major — disse numa ironia mordaz.

— Naturalmente, sir — respondeu o homem nascido em Epsal e executou a ordem, sem dizer mais nada.

Cardif olhou para o relógio de bordo.

— Dentro de uma hora terrana, exatamente, as primeiras naves pousarão em Saós — disse.

— Não sei por que, Perry, mas isso me dá uma sensação desagradável — disse Bell, sem sair do lugar. — O silêncio dos antis é altamente suspeito.

Cardif soltou uma risada estridente. Seu rosto movimentou-se. A maior parte dos oficiais abaixou a cabeça diante do olhar selvagem do administrador.

Naquele momento todos os homens a bordo da Ironduke compreenderam que Rhodan nunca desistira do seu intento.

A voz monótona de Jefe Claudrin avisou as outras naves. Os comandantes aceitaram as ordens com a maior tranqüilidade. Nenhum deles formulou qualquer objeção. A confiança na pessoa de Rhodan continuava inabalável.

— Ninguém nos de terá! — exclamou Cardif. — Vamos limpar esse ninho de ratos.

Naquele momento nem desconfiava de que estava muito enganado...

 

Fosse qual fosse o ângulo sob o qual Kutlós examinava, agora, sua palestra com Gonozal VIII, o resultado lhe parecia pouco satisfatório. A reação do imperador não fora tão violenta como Kutlós esperara. O sumo sacerdote compreendeu que cometera um erro ao irritar desnecessariamente Atlan. Com isso só aumentara a antipatia do imperador para com sua seita. Por isso tornava-se duvidoso que parte da frota arcônida lutaria por Saós.

Mergulhado em pensamentos, o sumo sacerdote estava sentado na poltrona que correspondia à alta dignidade do cargo que ocupava. Vez por outra, o fragmento de uma palestra dos outros antis penetrava em sua consciência. Não se percebia qualquer otimismo. Todos sabiam que, se as naves terranas atacassem, não havia a menor esperança de salvação. A derrota sofrida em Okul constituía a melhor prova de que os campos defensivos individuais dos sacerdotes não representavam qualquer obstáculo para os terranos.

— As naves terranas estão mudando de posição — gritou uma voz estridente.

Kutlós sobressaltou-se. Levou apenas alguns segundos para orientar-se. Os sacerdotes comprimiam-se diante das telas dos detectores de massa e dos indicadores de energia.

— Deixem-me passar! — ordenou o sumo sacerdote e fez seu corpo magro passar, sem a menor consideração, por entre os outros.

Os reflexos verdes projetados pelos aparelhos de localização estavam se movimentando. Viam-se perfeitamente os lugares em que os mesmos se reuniam em grupos. Não era necessário que Kutlós fosse um profeta para compreender o significado dessa modificação. Seu rosto assumiu uma expressão sombria.

A invasão era iminente.

Tasnor disse com a voz desfigurada:

— Seu plano falhou, Kutlós. Atacarão antes que Gonozal VIII possa vir em nosso auxílio. Duvido muito que ele apareça por aqui com suas naves.

O sumo sacerdote compreendeu que a crítica amarga daquele homem tinha sua origem exclusivamente no medo de morrer. Seria inútil envolver-se numa discussão com seu representante.

Hepna-Kaloot subiu numa cadeira e agitou os braços. O sumo sacerdote teve a impressão de que aquilo representava uma investida contra sua autoridade, mas não formulou nenhuma objeção. O comportamento daquele anti de estatura baixa desviaria as atenções dos antis da rebeldia de Tasnor.

— Já não existe a menor dúvida de que teremos de morrer — disse Hepna-Kaloot. Seus olhos pequenos e atentos fitaram os sacerdotes reunidos. O interesse de Kutlós era maior que sua contrariedade; continuou a manter-se em silêncio.

— Será que devemos esperar até que os terranos nos matem?

Fez uma pausa de efeito. Kutlós começou a desconfiar de alguma coisa.

Isso é um absurdo”, pensou. “Não é possível que pretenda fazer uma coisa dessas.”

Podia ser ilusão, mas teve a impressão de que Hepna-Kaloot o fitava com uma expressão irônica. Kutlós sentiu que sou poder de decisão estava praticamente paralisado. Não conseguiu formular uma advertência dirigida àquele sacerdote e interromper-lhe a fala.

— Não somos animais para esperarmos a morte! — gritou Hepna-Kaloot.

Kutlós viu sinais de infinita brutalidade naquele homem. Isso o deixou mais apavorado que o ataque iminente da Frota Solar.

— Saberemos preencher o tempo que nos separa do fim. Vamos sortear dois lutadores para o jogo de Paloot.

Por um instante Kutlós fechou os olhos. Os gritos de aprovação dos sacerdotes arrancaram-no da rigidez. Hepna-Kaloot desceu da cadeira e misturou-se aos homens que discutiam animadamente. A testa do sumo sacerdote estava coberta de suor. Tasnor, que se mantinha em posição afastada, parecia perdido em meio à confusão. Seu ataque a Kutlós não produzira o menor efeito. Hepna-Kaloot dominava a situação.

— Parem! — gritou o sumo sacerdote.

Um ajuntamento de homens, usando mantas largas, abriu-se e pôs-se à vista o pequeno sacerdote, que já preparava os bilhetes de rifa.

— O jogo é proibido — disse Kutlós, esforçando-se para dar um tom enérgico à voz.

Hepna-Kaloot atirou o primeiro bilhete para o sumo sacerdote e perguntou:

— Quem nos julgará depois que tivermos morrido?

Kutlós pegou o bilhete e rasgou-o.

— O jogo é proibido — repetiu em tom obstinado, se esforçando para apresentar algum argumento.

Não se lembrou de nenhum.

— O sumo sacerdote não participa do jogo — disse Hepna-Kaloot, em tom de desprezo. — Basta sortear um combatente. Apresento-me como voluntário.

Kutlós já acreditara não haver nada que pudesse deixá-lo com raiva. Agora, porém, não conseguiu reprimir um violento acesso de cólera. Lançou um olhar penetrante para o sacerdote mais baixo. Os olhos de Hepna-Kaloot formularam uma indagação muda.

Kutlós ouviu sua própria voz, enquanto as mãos tremiam levemente:

— Não precisamos tirar a sorte. Lutarei contra Hepna-Kaloot.

Ao que parecia, Hepna-Kaloot não esperara outra coisa. Não perdeu tempo. Com movimentos rápidos começou a tirar as vestes.

— Um momento — disse o sumo sacerdote, com a voz apagada. — Não conheço as regras do jogo.

O outro anti atirou as vestes sobre uma cadeira.

— Se prosseguirmos na luta até o taloosei, tudo será permitido — respondeu com um sorriso.

— Não vejo motivo para terminarmos antes — disse Kutlós. — Vamos escolher o árbitro. Sugiro que seja Egtoor.

Hepna-Kaloot concordou. Egtoor fitou o sumo sacerdote com uma expressão de dúvida.

— Quem começa com a escolha das armas? — perguntou com a voz insegura.

Aquele que escolhesse em primeiro lugar sofria uma grande desvantagem, porque seu adversário poderia escolher armas que o protegessem. Era bem verdade que a pessoa que escolhia em segundo lugar não poderia usar nenhuma arma que já tivesse sido escolhida.

— Sou de opinião que cada um deve escolher três armas — propôs Hepna-Kaloot. — Se o sumo sacerdote não tiver nenhuma objeção, escolherei em primeiro lugar.

Essa proposta exprimia o menosprezo que Hepna-Kaloot sentia diante da capacidade de luta de Kutlós.

— Lutarei com um espia, um punhal de Sostoos e um bule de água — decidiu o adversário de Kutlós.

O sumo sacerdote teve a impressão de que a escolha do espia representava um golpe muito hábil, mas não tinha a menor idéia do que Hepna-Kaloot pretendia fazer com um bule de água. O punhal também não era uma arma muito perigosa. O sumo sacerdote sabia que não poderia usar nenhum espia.

— Uma arma de radiações, uma corda de Lagoo e... —Kutlós hesitou — ...e Tasnor como informante.

O informante representava a única chance de compensar o espia. Tasnor permanecera em silêncio quando ouvira sua escolha como terceira arma. Seus olhos chamejaram de ódio, mas não teve outra alternativa senão aceitar a tarefa de informante. Tasnor não poderia atacar, mas corria um perigo constante. Hepna-Kaloot poderia usar todas as armas contra ele. Restava saber se, na qualidade de informante, Tasnor representava um perigo para ele. Kutlós esperava que seu representante causasse certas dificuldades a Hepna-Kaloot, aliviando-o um pouco. Naturalmente era possível que o sacerdote não se interessaria pelo informante, avançando diretamente sobre Kutlós.

— Será uma luta muito interessante — disse Hepna-Kaloot. — Infelizmente será curta, pois o sumo sacerdote não possui a minha experiência.

Essas palavras representavam uma confissão de que o sacerdote já participara do jogo proibido.

— Lutei por sete vezes até o taloosei — disse em tom de orgulho. — Nem sei dizer quantas vezes participei de jogos mais suaves... Para sua desgraça foram muitas vozes, Kutlós.

Nesse instante, o sumo sacerdote de Saós recuperou seu senso estratégico. Limitou-se a responder com um aceno de cabeça. Enquanto tirava a roupa, Tasnor, que era seu informante, estava com o rosto muito pálido. Agtlos, outro sacerdote, ajudou Egtoor, o árbitro, a trazer as armas.

Hepna-Kaloot foi o primeiro a avançar. Segurava o bule de água na mão direita. O punhal saía do cinto da calça grudada à pele. O espia oval flutuava acima de sua cabeça. O transmissor pertencente a Kaloot estava pendurado sobre os ombros do sacerdote. A pequena tela lhe permitiria acompanhar todos os movimentos de Kutlós, a não ser que este conseguisse destruir o espia.

— Boa sorte, Hepna-Kaloot — disse Egtoor, seguindo as tradições.

— Persiga-o — ordenou Kutlós a Tasnor, que se sentia muito infeliz. — Quero ser informado constantemente sobre sua posição. E preciso saber o que pretende fazer com a água.

Guardou a arma de radiações e pendurou a corda de Lagoo sobre o ombro. Estava equipado.

— Por que não tira a roupa, Kutlós? — perguntou Egtoor.

— Estou envergando as vestes do sumo sacerdote — respondeu Kutlós, em tom compenetrado. — Usei-as por muito tempo, e não me despojarei delas, nem mesmo durante a luta.

Os rostos dos sacerdotes retratavam seus pensamentos. Kutlós imaginava o que ia por suas cabeças.

Vivera dentro dessas vestes e dentro delas lutaria.

Continuaria a usá-las, mesmo depois que Hepna-Kaloot o obrigasse a iniciar o taloosei.

A palavra taloosei é de difícil tradução. Seu sentido equivale ao de um suicídio por desespero.

Em sua forma mais violenta, o jogo de Paloot trazia a morte a um dos lutadores.

Tasnor saiu da sala sem dizer uma palavra. Chegara a hora de Kutlós também se retirar. Caminhou com o corpo ereto em direção à porta. Antes que chegasse a ela, ouviu-se o alarma estridente do sistema de localização de abalos estruturais. Kutlós parou. Não era possível que tivesse tanta sorte.

— Sumo sacerdote! — gritou uma voz exaltada.

Kutlós fez meia-volta e retornou para junto dos companheiros. Os reflexos das naves terranas já se haviam imobilizado. Percebia-se nitidamente o motivo. Pelo menos dez mil naves haviam surgido do hiperespaço e penetravam no sistema Saós.

Não eram unidades solares. Kutlós teve de apoiar-se com ambas as mãos para dissimular seus sentimentos.

— Estão chegando!? — gritou fora de si. — O imperador vem em nosso auxílio?!

A resposta veio sob a forma de um grito de júbilo. Os aparelhos de localização tremiam sob a formidável carga. Um abalo leve fazia estremecer o edifício. Isso significava que as unidades arcônidas haviam emergido do hiperespaço numa perigosa proximidade. As tremendas cargas energéticas faziam com que ondas de tremor de terra percorressem o planeta Saós.

Kutlós teve uma sensação de triunfo. Mais uma vez sua tática fora vitoriosa. Alcançara a maior de todas as vitórias. Era só uma questão de tempo para que as duas frotas entrassem em choque.

Ouviu-se um rangido, vindo da porta da sala dos instrumentos. Kutlós levantou os olhos. Com uma expressão de incredulidade fitou o objeto que flutuava a meia altura entre o chão e o teto.

Era o espia de Hepna-Kaloot!

O sacerdote não tomara conhecimento da mudança da situação, ou então agia por puro desespero. Fora a primeira vez que Kutlós se afastara de sua tática, e a conseqüência era esta luta absurda com Hepna-Kaloot. A batalha das espaçonaves, que Saós esperava, tornar-se-ia de importância secundária.

A presença do espia não permitia a menor dúvida. Hepna-Kaloot abrira o jogo.

Num gesto discreto Kutlós pegou a arma de radiações. O espia planava acima da porta como um inseto ofuscado pela luz. Hepna-Kaloot estava escondido em algum lugar, esperando o adversário. O espia permitia-lhe ver todos os movimentos do sumo sacerdote projetados na tela.

Num movimento rapidíssimo Kutlós levantou a arma. O objeto voador desceu rapidamente. O tiro disparado pelo sacerdote fez uma abertura negra na parede. O espia saiu apressadamente da sala.

Os instrumentos de localização transmitiram o ruído rítmico dos rastreadores energéticos. A frota arcônida aproximava-se rapidamente. As naves esféricas dos terranos também voltaram a movimentar-se. O cerco se desfazia. Kutlós quase chegou a acreditar que a Frota Solar fugiria. No entanto, as unidades da mesma apenas mudavam de posição.

Tasnor entrou. Tinha os cabelos caídos na testa. Fitou Kutlós; parecia olhar através dele.

— Hepna-Kaloot está na unidade energética número três — anunciou com a voz apagada. — A mesma foi parcialmente destruída durante o ataque simulado dos saltadores. Está escondido nos destroços.

Arregalou os olhos e concluiu:

— Avançou contra mim com o punhal.

Kutlós acenou com a cabeça. Parecia zangado. Seu rosto magro e flácido assumiu uma expressão dura. Teria de pagar por seu triunfo. Lançou mais um olhar para as telas. O plano dera certo.

— Continue a observá-lo — disse, dirigindo-se a Tasnor.

Seu representante afastou-se para prosseguir em sua tarefa macabra. Kutlós não sentiu nenhuma compaixão pelo jovem sacerdote. Pensou em seu grande triunfo. E em Hepna-Kaloot, que o esperava para levá-lo até o taloosei.

Kutlós retirou-se da sala para pagar o preço que em sua opinião era devido por um homem de seu tipo que se afastava de sua tática, por uma só vez que fosse.

Saiu andando, magro e alto, com as passadas cautelosas e as mãos pálidas de tão firmemente que seguravam a arma.

Nunca mais voltaria.

 

Quando o General Alter Toseff venceu de vez a dor causada pela transição, o imperador já estava de pé diante dos aparelhos de localização. Toseff balançou a cabeça e ergueu-se do leito. Atlan virou-se para ele.

— O sacerdote falou a verdade. Quatro mil naves dos bárbaros estão reunidas em torno de Saós. Pelo que se conclui de sua posição, estão empenhadas nos preparativos da invasão.

Os ponteiros dos localizadores de massa subiram para a posição máxima. Inúmeras luzes acenderam-se nas telas dos oscilógrafos. O planeta Saós aparecia nas telas sob a forma de um segmento de círculo. Os campos gravitacionais do planeta já começavam a atingir as naves arcônidas, mas seus jatos-propulsores superpotentes venceram-nos com a maior facilidade.

Atlan sabia perfeitamente que naquele momento seria inútil assumir o comando das dez mil unidades robotizadas. Os computadores de bordo controlavam as naves. Todas elas mantinham contato com o centro de computação de Árcon, que numa questão de segundos interpretava os dados e orientava a ação das naves de acordo com essa interpretação. Atlan deixara que naquele momento o piloto automático cuidasse até mesmo das manobras da nave capitania.

Gonozal VIII não tinha a intenção de atacar sem aviso. Sabia que o centro de computação faria com que as diversas unidades se colocassem em posição de ataque, mas depois disso ele o consultaria. Do lado de Árcon não seria disparado um único tiro sem ordens expressas de sua parte. A disposição das naves arcônidas era uma ameaça em forma de ultimato, e Atlan queria que Rhodan a interpretasse dessa forma.

Atlan continuava a nutrir esperanças de que conseguiria estabelecer um entendimento razoável com o amigo.

— Ao que parece ainda não pousaram no planeta, majestade — conjeturou Toseff, depois de lançar um olhar para os instrumentos.

— Suspenderam as manobras de pouso — respondeu Atlan. — Perceberam imediatamente a nossa presença. A esta hora devem estar refletindo sobre a maneira de enfrentar simultaneamente dez mil naves e a base.

O arcônida de Saratan pôs-se a refletir e disse:

— Tomara que não tenham alguma idéia que nos possa trazer dificuldades.

Atlan sorriu. Algumas rugas surgiram em seu rosto.

— Estão num beco sem saída — disse. — Eles sabem avaliar situações como esta. Daqui a pouco tentarão entrar em contato conosco.

Para o general, aquilo tinha o encanto forte da novidade. Passara a maior parte da vida em Saratan, um pequeno planeta muito fértil, coberto de colinas suaves e habitado de animais peludos de olhos grandes. Ao olhar para trás, não compreendeu como conseguira sentir-se satisfeito num lugar como este. De repente teve a impressão de que Saratan seria apenas o lugar ideal para um velho que quisesse passar seus últimos dias de vida na santa paz.

Nunca me teria dado conta disso”, refletiu, muito perplexo. “Minha vida se teria desvanecido sem que nada me perturbasse.”

Naquele momento Toseff compreendeu o significado da inquietude interior que muitas vezes sentira. Era apenas a expressão de uma busca inconsciente por um novo campo de atividade.

O general observou a tela. Viu o segmento esférico de Saós como parte apagada de um mundo estranho. Teve a impressão de estar sonhando.

— Adeus, Saratan — disse em voz baixa.

O imperador não respondeu à observação, se é que a ouviu. Alter Toseff respirou profundamente. Seria um instinto mau que provocava a combatividade em seu espírito? Ou seria apenas uma reação natural? Havia alguma coisa represada dentro dele, alguma coisa que procurava libertar-se a toda força.

Sem dizer uma palavra, ficou de pé ao lado de Atlan e acompanhou os acontecimentos nas telas. As naves terranas continuavam a modificar sua posição. Mas notava-se perfeitamente que os grupos de ataque se iam dissolvendo. As naves esféricas do planeta Terra assumiam típica posição defensiva. Três naves formavam uma espécie de vanguarda à frente de cada grupo. Atrás, abaixo e acima delas oito espaçonaves mantinham-se em movimento. Os flancos dessa formação esférica eram defendidos por cruzadores ligeiros. Toseff sabia avaliar a eficiência dessa formação defensiva.

No caso de um ataque desfechado por unidades inimigas, as três naves da frente avançariam rapidamente, tentando romper a falange dos atacantes. Na maior parte das vezes devia-se contar com a perda dessas naves arrojadas. De qualquer maneira elas mantinham ocupado o inimigo, impedindo-o de concentrar todas as forças no ataque ao grupo...

Tal formação, enfim, servia para proteger os flancos, desempenhando um papel importante, para arrumação da retaguarda.

Aos poucos, os comandantes terranos foram formando inúmeros triângulos defensivos desse tipo em torno de Saós.

— Nós os obrigamos a entrar na defensiva — disse Atlan, satisfeito. — Dessa forma se mostrarão mais dispostos a negociar.

No seu íntimo não estava muito convencido disso. Suas palavras apenas exprimiam alguma coisa pela qual ansiava fortemente. Quando alguém queria obrigá-los a capitularem, os terranos costumavam ser bastante inacessíveis. E era exatamente essa a finalidade da reunião das dez mil naves arcônidas.

O planeta Saós não possuía nenhum valor. Sob o ponto de vista econômico, sua destruição não significaria qualquer prejuízo para o Grande Império. O que estava em jogo era tão-somente o prestígio militar. Atlan não podia permitir que frotas estranhas atacassem planetas situados sob o domínio de Árcon. Devia resguardar seu prestígio face aos numerosos aliados e mundos coloniais.

Um tanto abatido, Atlan entrou em contato com o gigantesco computador, que nestas horas lhe prestava inestimáveis serviços.

— Mantenha as naves em posição de ataque — ordenou com a voz calma. — Todas as armas devem ficar prontas para disparar. Daqui em diante, eu comandarei as unidades robotizadas.

O gigantesco centro de computação confirmou o recebimento da mensagem. Atlan dirigiu-se ao General Toseff. A boa iluminação da sala de comando permitiu-lhe reconhecer as linhas finas que se desenhavam no rosto do saratanense.

— Dar-lhes-emos trinta minutos para entrar em contato conosco — disse.

Os olhos de Toseff formularam uma indagação muda.

— Depois disso atacaremos! — disse Atlan.

Até então essas palavras para ele nunca tinham sido mais que um pesadelo. Mas, naquela hora amarga, elas se transformaram em realidade.

 

Thomas Cardif sentiu a crescente debilidade de sua substância espiritual. Podia acompanhar o processo com toda nitidez, como quem assiste a um filme. A parte instintiva de seu ser sobrepujava cada vez mais os setores da lógica e do raciocínio.

Quando as naves arcônidas saíram do hiperespaço, berrou durante alguns minutos e ordenou o ataque imediato — ordem que só abandonou depois de grandes esforços desenvolvidos por Bell. Tais atos provavam que seu intelecto já não possuía a mesma capacidade de discernimento de antes.

Cardif, que lutava contra sua deficiência mental, obrigou-se a agir refletidamente e a falar com lógica. No entanto, seus instintos, seu espírito revolto e suas imprevisíveis irrupções sentimentais constantemente levavam de roldão essas débeis tentativas de ação coerente. Cardif transformava-se progressivamente num prisioneiro de sua dupla personalidade.

A preocupação muda de seus oficiais, os olhares sérios trocados pelos mesmos e o clima tenso, que reinava a bordo da Ironduke, não ajudavam Cardif a ter mais paciência. Parecia mais irritadiço que um touro ferido. Qualquer crítica, por mais diplomática que fosse, fazia com que perdesse o controle dos nervos.

Seus olhos chamejantes fitavam as telas que retratavam nitidamente as posições de ataque das naves arcônidas. As unidades aproximavam-se como se fossem pérolas fulgurantes em meio ao negrume das telas, formando correntes luminosas.

— Parece que é uma frota de dez mil naves robotizadas — observou g Bell, em tom indiferente.

Cardif teve a impressão de que havia um tom de advertência na voz do gorducho.

— E daí? — perguntou em tom furioso. — Elas não me deterão.

Fitou seu próprio corpo e ajeitou o pulôver.

— Quero que os robôs façam imediatamente outra jaqueta de uniforme e que tragam uma que caiba no meu corpo — disse em tom contrariado. — Quero apresentar-me a esse rei estelar arrogante com todas as minhas condecorações, caso ele queira conversar comigo.

Um olhar cético de Bell fê-lo saber que ninguém acreditava que Atlan entrasse em contato de rádio com a frota terrana. Pelo contrário, na opinião dos oficiais seria Rhodan quem teria de entrar em contato com Atlan.

O Major Krefenbac deu ordem para que trouxessem a nova jaqueta. Até então Cardif não voltara a tentar a substituição do imediato da nave.

— Tenho a impressão de que não cairão imediatamente sobre nós — disse Bell, depois de lançar ligeiro olhar para os instrumentos de localização. Parecia visivelmente aliviado. — Estão mantendo suas posições.

— Esse bando de insetos — gritou Cardif, em tom odiento.

Corria diante dos registros dos rastreadores estruturais que nem ura animal enjaulado. Seu olhar parecia martirizado. Era mais alto que qualquer outro dos homens que se encontravam a bordo. E seu rosto sofrerá uma modificação horrível. Perdeu a expressividade e foi-se transformando progressivamente numa massa carnuda, sem contornos definidos. O tamanho dos poros estava aumentado, o que causava uma impressão repugnante quando havia alguma transpiração. Só os olhos, amarelos como os de um felino, conferiam certa característica a esse rosto que se ia desmanchando. Dominavam inteiramente esse rosto, da mesma forma que duas luzes fortes podem dar a impressão de que dominam uma paisagem escura.

O homem que, segundo todos acreditavam, era Perry Rhodan, transformou-se numa criatura monstruosa, cujo aspecto bastava para deixar preocupadas as pessoas que a cercavam.

— São mais perigosos que insetos — disse o Major Claudrin, pensativo. — Se Atlan der ordem de atacar, não poderemos resistir por muito tempo às investidas de suas naves robotizadas.

O homem nascido em Epsal já não via a menor possibilidade de descobrir qualquer sentimento no rosto inchado do administrador. E isso fazia com que se sentisse inseguro. Estava acostumado a informar-se sobre os pensamentos íntimos dos seus interlocutores através da mímica. Não que o rosto de Rhodan fosse inexpressivo, mas era praticamente impossível interpretar as modificações que o mesmo sofria. Para Claudrin, o tremor das carnes volumosas e os repuxos quase imperceptíveis da pele flácida não significavam nada. O próprio major não era uma figura humana ideal, no que dizia respeito ao aspecto exterior. A gravitação de Epsal, que superava em muito os padrões terranos, fizera dele um homem que tinha o aspecto de um urso que anda sobre as patas traseiras. A largura de Claudrin era quase igual à sua altura, que alcançava pouco mais de um metro e sessenta centímetros. Apesar de tudo seu aspecto não era repugnante. Sua constituição orgânica adaptara-se às condições reinantes em Epsal, pois, desde o nascimento, ele se desenvolvera sob os efeitos de uma gravitação mais elevada.

Sob o ponto de vista de Claudrin — ou seja, sob o ponto de vista de um homem nascido em Epsal — os terranos também eram criaturas disformes, tal qual certas inteligências humanóides. Um homem pode achar que um sapo é uma criatura repugnante. E, como estas não têm nenhum meio de comunicar-se conosco, elas não nos podem dizer que nos acham muito feios. A questão da beleza, e do seu oposto, a feiúra, é algo relativo, que só pode ser formulada no seio de cada espécie.

Provavelmente uma mulher de Terrânia veria em Jefe Claudrin uma figura bizarra, enquanto as moças de Epsal, cuja largura era quase igual à de Claudrin, se sentiriam enlevadas diante da figura marcante do major.

Mas a feiúra de Rhodan não era desse tipo. Até mesmo os terranos, ou seja, os membros de sua raça, viam nele uma criatura fisicamente anormal. Certas raças de pássaros da Terra costumam matar os filhotes malformados, atirando-os para fora do ninho sem a menor compaixão. Qualquer espécie, inclusive a humana, traz dentro de si certos preconceitos contra as criaturas disformes. Sob o ponto de vista psicológico, essa atitude não chega a ser condenável, já que tem sua origem no instinto eterno, que garante a sobrevivência da espécie. Mas o homem, um ser inteligente, capaz de raciocinar, criou certas leis que determinam a tolerância e a igualdade de direitos.

A sensação desagradável continuou. A compaixão e a vontade de ajudar não podiam apagar o fato de que o complexo de Frankenstein está indissoluvelmente ligado à condição humana. Uma criatura humana desfigurada por queimaduras provoca compaixão, mas ninguém se aproximará dela mais do que o estritamente necessário.

O homem não costuma matar as criaturas disformes de sua raça, mas inconscientemente faz uma coisa que talvez seja muito mais cruel. Elimina psiquicamente essas lamentáveis criaturas, evitando todo o contato com as mesmas.

Os oficiais da Ironduke eram apenas criaturas humanas, tangidas e dirigidas pelos sentimentos humanos. Aos poucos, Rhodan transformava-se numa criatura proscrita, num estranho. À medida que se tornava mais deformado, crescia a compaixão e o desejo de isolar-se dessa criatura.

O Major Jefe Claudrin, que era um modelo de tolerância humana, sentiu que tal compaixão crescia perceptivelmente entre ele e Rhodan. Este estava sujeito a uma metamorfose que fazia com que não mais parecesse um homem no sentido normal e convencional.

É que tudo que acontecia com ele era inumano.

Cardif interrompeu suas andanças diante dos indicadores.

— Atlan procura intimidar-nos. Acredita que poderá exercer pressão contra nós para tornar-nos submissos. Nós lhe faremos uma surpresa nada agradável, não é mesmo, Bell?

A pergunta foi proferida aos berros. O rosto de Bell continuou muito sério. Respondeu com a voz embargada:

— Atlan dispõe de muito mais que o dobro das nossas naves. Nestas condições acho que qualquer tentativa de pousarmos em Saós seria puro suicídio, e nunca passaria de uma tentativa.

Cardif soltou uma risada.

— Vou recolher-me ao camarote — disse. — Assim que os robôs tiverem terminado o novo uniforme, estarei disposto a falar com Atlan.

Saiu apressadamente da sala de comando. O Major Claudrin pigarreou.

— Queira desculpar, sir — disse, dirigindo-se a Bell. — Acho que nossa situação é insustentável. Sob o ponto de vista estratégico estamos perdidos. Se o arcônida mandar que suas naves abram fogo, seremos esmagados.

Bell acenou com a cabeça. Parecia desesperado. Estavam empenhados num jogo de azar de natureza militar; acontecia que jogavam sem trunfos. Nem sequer poderiam blefar, pois até mesmo um cadete da Academia Espacial seria capaz de interpretar qualquer lance da frota terrana que estava cercada.

— Só nos resta fazer votos de que o... — principiou Bell.

Mas foi interrompido pela exclamação nervosa do Major Krefenbac:

— Sir, uma mensagem. Alguém está chamando pelo rádio comum.

Com alguns passos, o representante de Rhodan colocou-se à frente do aparelho e colocou-o em recepção. Muito tensos, os homens fitaram a tela do videofone. Todos esperavam ver o rosto marcante de Atlan.

Acontece que não era Atlan que chamava a Ironduke. O homem que surgiu na tela era calvo; apenas tinha um círculo de cabelos ralos. Seu rosto inteligente estava marcado pela preocupação.

— Mercant! — gritou Reginald Bell, surpreso. — De onde veio o senhor?

— Se as dez mil belonaves arcônidas não o mantivessem tão ocupado, o senhor não teria deixado de notar que os rastreadores estruturais da Ironduke deram um sinal — respondeu o chefe da Segurança Solar, aparentando autocontrole. — Neste momento estou solicitando passagem livre entre as unidades da frota de Atlan. Encontro-me a bordo do cruzador ligeiro Acapulco. O comandante é o Major Burggraf.

De certa forma a presença de Mercant fez com que Bell se sentisse mais aliviado. Aquele homem era também um dos maiores confidentes de Rhodan. Talvez a influência que exercia sobre o chefe ainda poderia salvar a situação.

— Allan — disse Bell em tom cordial. — Sinto-me feliz porque o senhor veio.

Mercant sorriu.

— O senhor não pode esperar que esta pequena nave restabeleça o equilíbrio militar neste setor espacial.

— Quer dizer que o senhor já percebeu que as naves robotizadas de Árcon não estão aqui para apoiar-nos?

— Deram-me a entender isso de forma bastante drástica — informou Mercant com a maior tranqüilidade, como se estivesse relatando um piquenique. — Um certo General Toseff ameaçou-me, por ordem de Atlan, com os canhões de impulsos de uma daquelas naves gigantescas. Suponho que o imperador também se encontre a bordo — sorriu. — Obtive permissão para avançar até aqui. Ao que parece não me julgam muito perigoso.

— Recolheremos o senhor — retumbou a voz do Major Claudrin, que observava na tela a aproximação da Acapulco.

— Está bem — disse o chefe da Segurança. — O Major Burggraf receia que só nos deixaram passar porque têm certeza de que não conseguiremos voltar se por aqui as coisas ficarem realmente sérias.

— Talvez o major tenha razão — disse Bell. — Perry não permite que ninguém o convença de que não deve atacar Saós. Ele está... — hesitou Bell. — Bem, veja com seus próprios olhos.

— O senhor quer dizer que suas alterações físicas continuam.

— As alterações não são apenas físicas, Mercant.

— Compreendo.

O homem que controlava o gigantesco serviço secreto da Galáxia fechou os olhos por alguns segundos e depois falou.

— O Major Burggraf acaba de anunciar que o jato espacial está pronto. Vou me transferir para a Ironduke. Depois disso conferenciaremos sobre o que ainda poderemos fazer para evitar que aconteça o pior.

— Está bem, Mercant — concordou Bell.

O rosto do chefe de Segurança foi-se apagando, deixando para trás um pouco de esperança de que ainda encontrariam uma saída do beco em que se haviam metido.

 

Quando Allan D. Mercant entrou na sala de comando e pilotagem da nave linear Ironduke, lançou um olhar indagador para os oficiais reunidos.

— Onde está ele? — perguntou.

— No camarote — informou Bell. — Está esperando que os robôs confeccionem um uniforme novo para ele. O que usava ficou muito apertado. Faz questão de usar todos os distintivos no momento em que se defrontar com Atlan.

— É estranho — disse o homem calvo que comandava a Segurança. — Não me lembro de que antigamente Rhodan fosse de opinião que o uniforme faz o homem.

— Suas opiniões também mudaram em outros pontos — disse Bell, sem o menor ressentimento. — Às vezes chego a acreditar que o chefe se transformou num homem totalmente diferente.

Reginald Bell se aproximara muito da verdade. Não tinha a menor suspeita de Cardif-Rhodan, mas constatava as modificações que se verificavam na personalidade do amigo. Dificilmente alguém conhecera Rhodan melhor que Bell.

— Um dia superará tudo isso — disse Mercant. — Enquanto isso devemos fazer o possível para evitar que a Humanidade sofra algum prejuízo... irreparável.

O Dr. Riebsam apontou para os instrumentos de localização. Seu raciocínio lógico fez com que formulasse uma objeção:

— O que vem a ser isso, sir?

— Falaremos com Atlan — disse Mercant, em tom resoluto. — O que acha da idéia, Bell?

Num gesto nervoso, Bell passou a mão pelo cabelo ruivo espinhento. Mordeu o lábio inferior. Mercant observava-o numa atitude de expectativa.

— Acha que devemos agir por conta própria, sem informar Perry?

O chefe da Segurança abriu os braços. Suas mãos eram muito bem cuidadas. Usava, como sempre, um uniforme simples.

— Não temos outra alternativa. O imperador deve ser informado sobre o estado em que se encontra o chefe. Dessa forma talvez consigamos evitar que ele nos ataque.

— Concordo com o senhor! — exclamou Jefe Claudrin.

Sua pele com aspecto de couro começou a mostrar manchas causadas pelo nervosismo. Era esta a chance pela qual todos haviam esperado. Mas, em última análise, tudo dependeria da concordância de Bell. Ele e Mercant carregariam a responsabilidade por um procedimento desse tipo.

— Quando o administrador se encontra a bordo de uma nave, assume automaticamente o comando da mesma — lembrou Bell, em tom preocupado. — Rhodan é o comandante desta frota. Todas as ordens devem partir dele. Se ficar sabendo que agimos atrás das suas costas...

Bell não disse o que aconteceria nesse caso.

— Compreendo suas preocupações — falou Mercant erguendo ligeiramente a voz. — Apesar disso deveríamos arriscar. Afinal, não existe qualquer ordem de Rhodan que nos proíba falar com o almirante.

— Perry deu a entender que as negociações deveriam ser iniciadas por Atlan — lembrou o representante de Rhodan, em tom pensativo.

Dirigiu-se ao Major Krefenbac.

— Major, procure saber quando os robôs terminarão a confecção do uniforme.

Krefenbac usou o sistema de intercomunicação para entrar em contato com o setor da Ironduke em que trabalhavam os robôs. Dali a alguns segundos anunciou:

— Demorará mais algum tempo, sir.

— É uma decisão muito difícil — disse Bell, em voz baixa. — Isto parece cheirar a conspiração.

— Será que estaremos praticando um ato de traição se conseguirmos salvar a vida de alguns milhares de homens? — perguntou Mercant. — Queremos ajudar o chefe. E para isso temos de evitar qualquer conflito que possa degenerar numa guerra cósmica. Não precisamos usar cada minuto de que dispomos para combater a terrível doença de Rhodan? Em Saós nunca descobriremos nada sobre o misterioso planeta Trakarat, se matarmos todos os antis. Além disso, Atlan nunca permitiria que fizéssemos isso.

— Está bem; o senhor ganhou — disse Bell. — Jefe, procure estabelecer contato com a nave capitania dos arcônidas.

Claudrin, que face à sua constituição física sempre parecia lento, cumpriu a ordem com uma espantosa rapidez.

— Peçam que nos avisem quando o novo uniforme for entregue a Rhodan — disse Bell, dirigindo-se ao Major Krefenbac.

— Não quero que entre aqui, no momento em que estivermos falando com Atlan.

Em sua imaginação desenhou-se o quadro deprimente de um Rhodan, entrando na sala de comando e gritando com os olhos chamejantes, à procura do culpado.

Essa idéia provocou uma sensação estranha em Bell. No primeiro momento não conseguiu defini-la, mas depois de algum tempo deu-se conta do que estava sentindo.

Era medo!

Não sabia se esse medo tinha sua origem na possibilidade de perder o amigo de vez. No momento isso não lhe importava nem um pouco. O que lhe importava era que a sensação de desconforto que experimentava se transformara em medo. Não demoraria, e o medo seria substituído por um leve pavor.

E então?”, indagou-se mentalmente.

Bell fechou os olhos. De repente desejou que estivesse bem longe dali, longe de Saós, longe da Ironduke e longe de todos esses acontecimentos. Ansiava pela calma e pela solidão.

São os nervos”, pensou. “A sobrecarga constante vem me prejudicando.”

Sem dizer uma palavra, viu Claudrin mover os controles necessários para irradiar uma mensagem destinada à frota arcônida. Muito nervoso, fitava constantemente a porta de entrada da sala de comando. O comportamento de Rhodan era imprevisível, motivo por que tinham de contar com a possibilidade de que entrasse a qualquer momento.

— Acabo de completar a ligação, sir — anunciou Claudrin, que de tão nervoso esquecera-se da sala de rádio e havia ligado a tela comum.

Bell aproximou-se lentamente. Era desagradável informar Atlan dessa maneira. Sentia-se culpado diante do imperador, que substituíra o grande centro de computação de Árcon III no governo do império.

Mas o rosto que surgiu na tela não era o do almirante. Bell viu um arcônida desconhecido de pele morena e cabelos curtos.

— Sou o General Toseff — disse o desconhecido a título de apresentação. — O que deseja, terrano?

A voz era fria e arrogante. Para um arcônida, aquele general irradiava uma dose surpreendente de energia. Bell empertigou-se. Não era hora de bancar o ofendido. Precisava agir.

— Meu nome é Bell — disse com a maior tranqüilidade. — Ligue-me com Gonozal VIII, imperador de Árcon.

Toseff sorriu apenas o suficiente para dar uma expressão irônica e arrogante ao seu rosto.

— Sua Majestade só falará com o administrador da Terra — anunciou.

Instintivamente Bell deu um passo em direção ao aparelho. Cerrou os punhos. Mercant parecia sentir a indignação que se apossara de Bell. Falando em tom apressado, disse:

— Rhodan está doente. Informe o imperador sobre isso. Diga-lhe que temos muita urgência em falar...

Toseff interrompeu-o em tom áspero:

— Não adianta tentar dessa maneira.

Antes que Bell tivesse tempo de informar o arcônida de que ele o considerava um convencido arrogante, o general desapareceu da tela e o rosto de Atlan surgiu na mesma. Gonozal VIII parecia cansado.

— Está bem, Bell — disse com a voz tranqüila. — O General Toseff agiu assim por minha ordem.

A expressão sombria do rosto de Bell não se modificou.

— Perry não sabe que estamos falando com você — disse. — Mercant, John Marshall, Freyt, Claudrin, todos querem retirar a Frota Solar do setor pertencente ao Grande Império. Mas isso não é tão simples assim. Depois que Perry ficou preso em Okul, ele está mudado. Ainda não se recuperou do choque. Além disso, sofre de uma tal de cisão celular explosiva. É o nome que os médicos deram à doença. Na verdade, parece que cresce e incha ininterruptamente. Você dificilmente o reconheceria.

— Já não entendo mais nada — respondeu Atlan, com a voz fria. — O que é que sua doença tem que ver com Saós?

— Perry supõe que os antis sejam culpados de sua doença. Quer obrigá-los a ajudá-lo. Em sua opinião devem ser capazes de paralisar o ativador celular que funciona sem o menor controle. Estamos à procura de um planeta misterioso. O nome é Trakarat. Pelo que dizem, é o mundo central dos antis. Os sacerdotes usaram um truque para levar-nos a acreditar que Saós é o planeta Trakarat.

— As violações cometidas pela Frota Solar são cada vez mais numerosas — queixou-se o imperador. — Ninguém pode exigir que cedamos constantemente às perigosas extravagâncias de Rhodan.

Mercant, que se mantivera quieto durante todo o tempo, disse com a voz insistente:

— Somos amigos de Rhodan, Atlan. O senhor também se diz amigo dele. Apóie-nos em nossos esforços de curá-lo o mais rápido possível. Seu estado é inquietante. Devemos recear o pior. Dá ordens e instruções que antigamente lhe teriam provocado risos.

— Retire as naves terranas deste setor — exigiu Atlan, — É a única possibilidade.

— Bem que eu gostaria que você o visse! — exclamou Bell, em tom exaltado. — Será que você é mesmo capaz de recusar o apoio que lhe pedimos? Será que se esqueceu do que ele fez por você e pelo seu império? Acredita que ele fez isso para destruir tudo mais tarde? Não; Perry está doente, e por isso não podemos condená-lo. Precisamos pôr as mãos no sumo sacerdote que está em exercício em Saós. Só ele deve possuir informações que nos permitam tomar outras medidas.

Uma ruga profunda surgiu na testa de Atlan. Por um momento sua mão entrou no campo de visão. Passou-a sobre os olhos.

Como se parecem!”, pensou Bell, profundamente abalado. “Atlan e Perry... o Perry de antigamente.”

Depois de um momento de silenciosa reflexão, interrompida apenas pelo zumbido dos aparelhos, Gonozal VIII disse:

— Quer dizer que vocês pretendem atacar Saós?

— Pretendemos — responderam Bell e Mercant a uma voz.

— Naturalmente existe uma possibilidade de que esta mensagem de rádio não passe de um truque — disse Atlan. — Mas, mesmo assim, vejo-me obrigado a confiar em que vocês estejam dizendo a verdade.

— Isso já aconteceu tantas vezes — disse Bell, em tom suave.

Não recriminava Atlan pela atitude que estava tomando. Se estivesse em seu lugar, certamente não teria agido de outra maneira. No entanto, não poderia fazer mal nenhum lembrar Atlan de que no passado costumava confiar em seus amigos terranos.

— É possível que eu esteja cometendo um erro grave, mas por enquanto darei ordens para que a frota não intervenha — disse Atlan. — Mandarei que as naves ocupem uma posição tal que o sistema Saós seja bloqueado por uma formação esférica. Se acontecer qualquer coisa que não corresponda ao que combinamos, darei imediatamente ordem de ataque. Nenhuma unidade terrana conseguirá romper a esfera formada pelas pesadas unidades robotizadas.

— Existe uma possibilidade de evitar um ataque global das nossas espaçonaves esféricas ao planeta Saós — anunciou Bell.

Pela primeira vez um sorriso surgiu no rosto do gorducho.

Atlan e Mercant pareciam muito interessados. Mas, ao que parecia, Bell não estava disposto a dar maiores informações.

— Foi apenas uma idéia — disse. — Tudo depende do que Perry queira fazer.

— Sir! — gritou o Major Krefenbac, que se mantinha nos fundos da sala de comando. — Os robôs terminaram o uniforme. Neste momento, está sendo entregue no camarote de Rhodan.

— Vamos ficar por aqui, almirante. — disse Bell. — Torça para que tudo dê certo.

Atlan levantou as mãos para que aparecessem na tela e acenou. Pela primeira vez aparentou amabilidade.

Não houve necessidade de explicar aos oficiais da Ironduke o que Atlan quis dizer com isso. O imperador não acreditava que isso fosse dar certo. As duas partes já se haviam envolvido demais.

Jefe Claudrin desligou o rádio.

— Por enquanto ainda podemos agüentar nosso amigo — disse.

Agora tudo dependeria de Rhodan. A idéia de que, dali a pouco, Rhodan voltaria à sala de comando fez Bell estremecer. Agora, uma responsabilidade dobrada pesava sobre seus ombros, pois também assumira obrigações perante Atlan.

— Acho que já está na hora de o senhor nos informar sobre suas idéias — disse Allan D. Mercant, levantando a voz.

 

Thomas Cardif enfiou-se no uniforme e o abotoou. O robô que lhe trouxera a jaqueta já se retirara. Cardif contemplou seu corpo com os olhos embaçados. Teve a impressão de que aquela peça de roupa produzira uma modificação favorável em seu aspecto. Seu corpo inchado recebera nova “embalagem”. Não perdeu tempo. Prendeu ao uniforme as distinções a que seu pai fizera jus. Suas mãos tremiam, pois estava com pressa; queria ficar pronto em tempo.

Estava plenamente convencido de que Atlan falaria com ele para implorar a paz. Se fosse necessário, poderia chamar maior número de naves terranas para Saós.

Contemplou-se nos restos do espelho que ficaram presos na moldura. Uma grande rachadura dividiu seu rosto em duas partes, dando-lhe um aspecto ainda mais diabólico.

Cardif soltou uma risadinha. Estava na hora de voltar a entrar em contato com os médicos de Terrânia. Teriam de fazer alguma coisa para curá-lo.

Saiu do camarote arrastando os pés. O corredor pelo qual passou só estava iluminado em certos trechos. Toda vez que Cardif saía do círculo luminoso projetado por uma lâmpada, via uma sombra confusa no chão, que se desmanchava imediatamente assim que penetrava na luz de outra lâmpada. Cardif fitou a sombra que retornava constantemente. Estreitou os olhos. Preferiu não utilizar a fita transportadora. Continuou a caminhar pelo corredor. Cambaleava de uma luz para outra que nem uma mariposa. Tinha a impressão de que era repelido até pelas luzes...

De repente outro vulto surgiu à sua frente. Cardif teve uma idéia maluca; talvez fosse sua sombra transformada em carne e osso. Estendeu os braços e aproximou-se da mesma.

— Sir... — disse alguém.

Cardif teve de fazer um grande esforço para libertar-se do estado de ânimo que se apossara dele. Fitou atentamente a pessoa que se encontrava à sua frente. Era um oficial da guarda de bordo.

— O que houve? — perguntou em tom contrariado.

— Pensei... pensei que o senhor não estivesse passando bem — gaguejou o homem, bastante confuso.

Com o corpo inclinado e as mãos abertas em garra, Cardif parecia uma ave de rapina. Viu o medo nos olhos de seu interlocutor e notou o tremor de suas bochechas.

O estado daquele oficial transmitiu uma sensação de superioridade a Cardif. E essa sensação salvou o homem da morte.

— Saia do meu caminho! — ordenou o administrador. — Se eu estivesse doente, chamaria um médico.

— Sim, senhor! — disse o oficial, muito embaraçado.

Afastou-se para o lado, comprimindo-se contra a parede. Cardif passou sem olhá-lo. Sabia que o oficial o seguia com os olhos.

Quando Thomas Cardif entrou na sala de comando, seu instinto lhe disse que acontecera algo de decisivo. Não conseguiu descobrir o que era, mas a sensação inconfundível fazia crescer sua desconfiança doentia. Aproximou-se dos instrumentos de localização numa atitude propositadamente relaxada. Constatou que as naves arcônidas haviam voltado a colocar-se em movimento, sem assumir a posição de ataque.

— O que significa isso, major? — perguntou, dirigindo-se a Claudrin.

— Eles nos cercam — respondeu o homem nascido em Epsal. — Formarão uma concha impenetrável em torno de Saós, sir. Isso significa que não poderemos sair do sistema, a não ser que Atlan nos deixe passar.

Cardif-Rhodan fez um gesto de desprezo.

— É claro que o arcônida está com medo — constatou em tom de satisfação. — Se tivesse tanta certeza da vitória não deixaria de atacar.

Deu as costas a Claudrin e só então viu Allan D. Mercant.

— De onde veio o senhor? — perguntou.

O chefe de segurança conseguiu sorrir. Apesar disso não pôde disfarçar o abalo que lhe causava o aspecto de Rhodan. O administrador transformara-se num gigante... disforme.

— Pensei que o senhor talvez precisasse de mim — disse Mercant. — Quando atacarmos esse maldito ninho dos antis, eu lhe darei todo apoio.

— Vejo que ainda existem terranos corajosos! — exclamou Cardif, entusiasmado. — A bordo da Ironduke só tenho ouvido vozes queixosas, recomendando cautela.

Mercant empertigou-se. Evidentemente sentia-se lisonjeado.

Esse sujeito deve ser artista”, pensou Claudrin, embora aquilo não o divertisse nem um pouco.

— Só quem age pode colher os frutos do sucesso — disse Mercant, olhando em torno em atitude belicosa. — Mr. Bell e os outros oficiais acreditam que nosso ataque a essa base ridícula só será bem-sucedido se utilizarmos todas as naves.

Rhodan soltou uma risada de deboche. Bateu cordialmente no ombro de Mercant. Este teve uma sensação estranha ao contemplar os distintivos que Rhodan trazia no peito. Antigamente o administrador costumava envergar um simples uniforme de campanha.

O espírito confuso de Cardif não estava em condições de reconhecer a armadilha psicológica que o chefe de segurança lhe colocara. Mercant estimulara de propósito o espírito de contradição do administrador.

— Todas as naves? — repetiu Rhodan, em tom de deboche. — Garanto que conquistaremos Saós com dez naves.

— As naves que continuarão no espaço evitarão qualquer intervenção de Atlan — disse Mercant.

Não se esforçou mais para ocultar a satisfação que sentia.

Cardif interrompeu a palestra com um gesto relaxado.

— Vamos atacar — ordenou.

Mercant e Bell olharam-se, sem dizer uma palavra. Enquanto Rhodan escolhia as dez naves que participariam da invasão, o plano de Reginald Bell começou a ser posto em ação. O grupo que o executaria seria comandado pelos tenentes Brazo Alkher e Stana Nolinow, bons conhecedores das condições reinantes na base dos antis.

Thomas Cardif não poderia imaginar que, no momento em que desfechasse o ataque a Saós, outro grupo desceria sobre o planeta.

Tudo dependia de que Atlan ficasse quieto por algum tempo. Suas gigantescas naves robotizadas estavam espalhadas estrategicamente em torno de Saós e suas torres de artilharia giravam ameaçadoramente.

Dez cruzadores pesados da frota terrana desprenderam-se do grupo a que pertenciam e penetraram na atmosfera rarefeita do planeta. Seus jatos-propulsores fizeram tremer o ar formado por nitrogênio e gás carbônico.

A missão Saós teve início.

 

Hanoor era o mais velho entre os sacerdotes que se encontravam em Saós. Talvez fosse este o motivo por que o elegeram a título provisório para exercer as funções de sumo sacerdote, depois que Kutlós e seu representante Tasnor começaram a vagar pelos destroços da unidade energética, a fim de travarem com Hepna-Kaloot os últimos lances do mortífero jogo de Paloot.

A nova tarefa não representou qualquer peso para Hanoor. Era um velho que vira e conseguira muito durante a vida. Em seu espírito reinava uma calma toda especial. Só fazia o que fosse absolutamente necessário.

Quando os homens que controlavam os aparelhos de localização o informaram de que a frota arcônida se retirava e entrava numa formação esférica em torno do sistema Saós, Hanoor começou a desconfiar de que por enquanto Gonozal VIII pretendia manter-se na posição de espectador.

Hanoor mandou guarnecer todas as bases de artilharia e prepará-las para abrir fogo. As instalações defensivas subterrâneas abriram-se, deixando sair os pesados canhões de radiações. Hanoor também mandou distribuir armas de radiações portáteis, pois as lutas de corpo a corpo seriam inevitáveis. O velho sacerdote não se deixou embalar na ilusão de que seria possível rechaçar as naves terranas em pleno vôo.

Observou com a maior tranqüilidade as mudanças de posição das naves esféricas arcônidas. O fato de o imperador se manter numa atitude de expectativa não o apavorou nem um pouco. Sua calma inabalável transmitiu-se aos outros sacerdotes. Todos cumpriam com a maior solicitude as ordens do velho barbudo que, envergando uma manta larga, corria de um posto de defesa para outro, a fim de convencer-se pessoalmente do espírito de luta dos antis.

Voltou à sala de imagem da pirâmide que servia de templo e fez uma ligeira alocução.

— Se Gonozal VIII não nos ajudar, seremos derrotados — disse com a voz embargada. — Apesar disso não nos consideraremos vencidos. Cada um de nós tem o dever de resistir com todas as forças.

Controlou a capacidade de tiro de sua arma de radiações e sentou-se à frente da tela panorâmica. De todos os lados gritavam-lhe informações. Cada manobra das espaçonaves era observada.

Hanoor contemplou suas mãos, que já haviam perdido o vigor juvenil.

Que idade deve atingir um homem para não ser obrigado a lutar?”, pensou.

— Nunca se fica velho demais — disse, admirado com a lentidão do seu pensamento. — Quando o homem fica muito velho, ele morre... e tudo passou.

Um sorriso esboçou-se em seu rosto. Os sacerdotes que se encontravam mais próximos fitaram-no com uma expressão de perplexidade.

Está bem”, pensou Hanoor, muito alegre. “Se é assim, morrerei.”

Antigamente uma idéia como esta o teria deixado nervoso. A proximidade da morte deixaria seu espírito revolto.

— Hanoor! — gritou alguém em voz alta.

Hanoor sobressaltou-se. Percebeu imediatamente o que tinha acontecido. A tela retratava perfeitamente o que se passava nas camadas superiores da atmosfera.

Dez naves terranas se haviam separado da frota e trovejavam em direção à superfície de Saós. Hanoor escorregou para a frente, colocando-se bem perto da tela. Seus olhos apagados moveram-se como se fossem seixos descoloridos.

— Postos de defesa e posições de artilharia, atenção! — gritou Hanoor. Sua voz de ancião parecia rouca. — Preparem-se para disparar.

O recebimento da imagem foi prontamente confirmado. Os antis que manipulavam os pesados canhões de radiações e as rampas dos torpedos prepararam-se. Mais uma vez, uma atividade febril tomou conta da base de Saós.

A voz calma de Hanoor soou em todos os alto-falantes:

— Preparem-lhes uma recepção de que não se esqueçam tão depressa.

O antigo sumo sacerdote de Saós, chamado Kutlós, ouviu essas palavras, mas não teve tempo para refletir sobre as mesmas. A cinqüenta metros do lugar em que se encontrava, Tasnor estava estendido no chão. E vinte metros adiante seu adversário se mantinha na espreita.

 

Kutlós achava-se estendido no chão. Seu coração batia acelerado. À sua frente, no lugar em que estava deitada a figura contorcida de Tasnor, um véu de poeira enchia o ar. Tasnor estava estendido entre os restos de um muro caído, que não resistira ao ataque simulado dos saltadores.

Tasnor estava gravemente ferido. O ataque traiçoeiro de Hepna-Kaloot fora uma surpresa muito grande para aquele jovem. Numa manobra rapidíssima o pequeno sacerdote fizera o espia descer sobre

Tasnor e, antes que este pudesse esquivar-se, o objeto oval batera na cabeça do mesmo. Kutlós não se atreveu a atirar contra o espia, pois nesse caso poderia atingir seu informante Tasnor. O espia afastara-se rapidamente junto ao solo.

Desde então Hepna-Kaloot o mantivera escondido. Sob Kutlós, o chão mantinha-se estranhamente quieto. As vibrações e os ruídos das gigantescas instalações, destinadas à produção de projetores de campos defensivos individuais, já cessara. Para Kutlós, os ruídos da fábrica automática faziam parte da vida em Saós. E agora as linhas de montagem se encontravam nas naves cargueiras, estacionadas no porto espacial. Os centros de produção, comandados por robôs, haviam sido paralisados antes do ataque simulado dos saltadores. E, ao que tudo indicava, os preciosos mecanismos que se encontravam nas naves não poderiam ser levados a um lugar seguro. A Frota Solar aparecera mais cedo do que se esperava.

Kutlós olhou cautelosamente em torno. Tinha de verificar constantemente se o espia não se aproximava em silêncio, fornecendo a Hepna-Kaloot uma imagem perfeita do lugar em que se encontrava. Mas o recinto estava vazio até o teto.

O equilíbrio das forças deslocara-se ainda mais a favor de Hepna-Kaloot. Tasnor, o informante de Kutlós, achava-se gravemente ferido e não estava em condições de prestar qualquer serviço, enquanto Hepna-Kaloot continuava a ter à sua disposição todas as armas que escolhera.

Apesar disso o anti mais baixo manteve uma atitude propositadamente passiva. Afastava-se cada vez mais de Kutlós, que não teve outra alternativa senão seguir a pista do inimigo. Depois do ataque brutal contra Tasnor, a retirada de Hepna-Kaloot cessara, pois Kutlós continuava no mesmo lugar. A utilização traiçoeira do espia fizera com que agisse com muita cautela.

Kutlós continuava sem saber o que Hepna-Kaloot pretendia fazer com o bule de água. Por mais que forçasse o cérebro, não conseguia imaginar a finalidade do líquido. Acontece que seu adversário confessara que era um experimentado lutador de Paloot. Devia ter um plano bem definido, e por certo estava convencido de que conseguiria derrotar Kutlós.

Segurando firmemente a arma de radiações, Kutlós mantinha-se deitado atrás de seu abrigo. Refletiu sobre as ordens transmitidas por Hanoor, que acabara de ouvir por um alto-falante que se encontrava a grande distância. Ao que parecia, os terranos não queriam desistir do seu intento.

Tanto melhor”, pensou Kutlós, “pois nesse caso deixarão o imperador irritado e farão com que ele dê ordem de atacar.”

Tasnor gemeu baixinho, interrompendo as reflexões de Kutlós.

Preferiu não dizer nenhuma palavra animadora ao jovem, pois com isso trairia sua posição. Kutlós admitia a possibilidade de que Hepna-Kaloot soubesse onde estava, mas preferia não assumir nenhum risco.

A poeira, que se levantara com a queda da muralha, começou a baixar, formando uma camada cinzenta sobre as vestes negras do sacerdote. Kutlós rastejou em torno de dois grandes montões de tijolos. As vestes pouco confortáveis prendiam-no constantemente. Apesar disso hesitava em desfazer-se do símbolo de sua dignidade.

Foi então que viu o espia!

Durante todo o tempo estivera bem perto do lugar em que se encontrava, não acima dele, conforme esperara, mas à sua frente, entre dois montes de escombros. A objetiva de televisão brilhava atrás da fenda estreita como um fogo que se apaga. Kutlós a descobrira por puro acaso.

Hepna-Kaloot sabia perfeitamente o que fazia o sumo sacerdote e onde se abrigara. Kutlós sentiu uma leve admiração sobre a utilização sagaz do espia.

Com muito esforço dominou sua primeira reação, que era o desejo de atirar contra o espião robotizado. Sem dúvida, Hepna-Kaloot observava-o com um máximo de concentração. Ao menor movimento suspeito faria o espia subir abruptamente.

O sumo sacerdote evitava olhar diretamente para o esconderijo da objetiva de televisão. Não devia dar a perceber que descobrira o espia. Muito tenso, Kutlós ficou deitado. Tinha uma chance única para dar seu contragolpe. Mas teria de agir com muita habilidade. Um tiro muito rápido com a arma de radiações estava fora de cogitação, pois Hepna-Kaloot reagiria imediatamente. Além disso, os fragmentos do muro protegiam a câmara voadora.

Kutlós mordeu o lábio. Deitou de lado e lançou um olhar discreto para o espia.

Naquele momento teve uma idéia.

Com a maior calma começou a desenrolar a corda de Lagoo. Devia fazê-lo de tal forma que Hepna-Kaloot supusesse que apenas queria examiná-la. O sumo sacerdote deixou que o material elástico passasse por suas mãos. A substância sintética cedia com a maior facilidade. Kutlós teve a sensação- de que uma cobra deslizava por entre suas mãos, e de certa forma a corda de Lagoo preenchia as finalidades desse réptil. Via de regra os sacerdotes costumavam usá-la para amarrar os prisioneiros. A corda de Lagoo tinha quase vida própria. Uma vez movimentada por seu possuidor, o inimigo praticamente estava reduzido à impotência.

Kutlós pretendia usar a corda numa luta corpo a corpo com Hepna-Kaloot. Agora, modificou seu plano. Usá-la-ia contra a arma mais perigosa do sacerdote.

Contra o espia!

 

A excitação provocou palpitações, fez com que o sangue corresse mais depressa pelas veias e provocou uma sensação de calor cerebral. Hepna-Kaloot tinha a tela à sua frente e observava atentamente os acontecimentos que se desenrolavam no abrigo do sumo sacerdote. Tudo lhe era transmitido pelo espia.

O espião robotizado possuía três olhos, que podiam ser ativados à vontade por quem controlasse o aparelho. Havia o olho frontal, que era apoiado por dois olhos laterais. Na atual posição do espia bastava manter ativado o olho frontal, pois era o único que podia ver o abrigo de Kutlós, através da fenda nos destroços do muro.

Muito satisfeito, Hepna-Kaloot constatou os sinais de nervosismo crescente de seu adversário. Kutlós vivia olhando para cima e mexendo na corda de Lagoo.

Tasnor já havia sido colocado fora de combate. Hepna-Kaloot acariciou o bule de água e o punhal de Sostoos. Antes de morrer sob a chuva dos projéteis terranos, queria mostrar ao sumo sacerdote e a si mesmo que ele, o pequeno sacerdote despretensioso, o homem sem influência e valor, era o mais forte.

Na tela via-se perfeitamente Kutlós mexer na corda de Lagoo, enquanto a arma de radiações jazia a seu lado, numa posição em que facilmente poderia pegá-la.

Ele não agüentará muito tempo por lá”, pensou Hepna-Kaloot. “Daqui a pouco abandonará seu esconderijo para me procurar. Quando isso acontecer, seu fim estará próximo.

Uma sombra escura atravessou a tela. Aquilo foi tão rápido que, por alguns segundos, o raciocínio de Hepna-Kaloot ficou paralisado. A tela tremeluziu, os contornos da imagem tornaram-se cada vez menos nítidos e por fim esta apagou-se. Hepna-Kaloot praguejou e balançou o aparelho.

Subitamente os movimentos cessaram.

Pelo Grande Baalol”, pensou apavorado. “Ele atirou a corda de Lagoo contra o espia.

Agiu imediatamente, pois uma das várias pontas da corda se enrolara em torno do olho frontal do espia e procurava arrastá-lo para cima, a fim de colocar o aparelho dentro da linha de tiro de Kutlós. Hepna-Kaloot, então, girou abruptamente a chave principal do controle remoto. Todas as reservas energéticas do sistema de propulsão do espião robotizado foram ativadas. A imagem tremeu, produzindo diversos tipos de ondulação. E entre estas se via, vez por outra, o rosto enraivecido do sumo sacerdote.

Hepna-Kaloot ativou um dos olhos laterais. Viu que duas pontas da corda se haviam enrolado em torno do espia. Uma delas passava diretamente por cima do olho frontal, perturbando a recepção da imagem. E, da posição em que se encontrava o olho lateral, Kutlós não podia ser visto.

Hepna-Kaloot ligou o controle remoto para a potência máxima e fez o espia deslocar-se para trás, junto ao solo. A corda foi arrastada um pedaço, mas logo se prendeu a alguns blocos de pedra. Tudo se passava junto ao solo, a uns cinco metros do lugar em que se achava Kutlós. Hepna-Kaloot ligou o outro olho lateral e ficou apavorado ao ver outra ponta da corda que se aproximava. Apertou o botão direcional e fez o espião robotizado descer. A corda de Lagoo torcia-se como se fosse de borracha. As pedras nas quais se agarrara eram arrastadas.

Hepna-Kaloot sabia que o sistema de propulsão do espia não poderia ser mantido indefinidamente na potência máxima. Isso causaria o esgotamento das baterias.

Hepna-Kaloot girou a chave do sistema de propulsão para baixo e fez o espião robotizado deslocar-se a toda força em direção ao esconderijo de Kutlós. O aparelho libertou-se da corda e disparou rumo ao lugar onde estava o sumo sacerdote.

Um grito de triunfo saiu da boca de Hepna-Kaloot. Naquele momento, uma das pontas da corda de Lagoo chicoteou o ar e agarrou o olho lateral do espia. O resto da corda foi atrás do espia como se fosse uma mola, enquanto Hepna-Kaloot fitava, com o rosto sombrio, a imagem transmitida pelo olho frontal. Na posição em que o aparelho se encontrava, Kutlós não podia ser visto, mas Hepna-Kaloot imaginava que o sumo sacerdote apenas aguardava uma oportunidade de atirar contra o aparelho.

As diversas pontas da corda envolveram o espia como se fossem tentáculos. Hepna-Kaloot desligou o sistema de propulsão, pois, naquele momento, qualquer tentativa de fuga seria inútil. Aproveitara mal a chance de libertar seu espião robotizado. Em vez de dirigi-lo para cima, deixara que permanecesse no campo de ação da corda.

Mas não valia a pena refletir sobre o erro que acabara de cometer. Hepna-Kaloot ligou alternadamente os três olhos do espia, mas nenhum deles proporcionou uma boa imagem. A corda de Lagoo envolvera completamente o espião robotizado.

Aos poucos, a corda sintética foi comprimindo o espia para cima. Hepna-Kaloot imaginava que isso continuaria até que o aparelho ficasse na linha de tiro de Kutlós. Quando tal acontecesse deveria reagir muito depressa. Kutlós só poderia disparar depois que a corda se desprendesse do olho remoto, a não ser que quisesse arriscar a destruição de uma de suas armas. Na fração de segundo em que o espia flutuaria livremente no ar, tudo dependeria de quem fosse mais rápido. Poderia ser Hepna-Kaloot no controle remoto do aparelho, ou Kutlós no gatilho de sua arma.

Os dois antis estavam tão entretidos em sua luta que só tomaram conhecimento do ataque dos dez cruzadores terranos, quando a quarta unidade energética se desfez numa explosão uníssona.

 

No interior da nave girino o repuxo de terra atirada para o alto, peças de metal e de plástico derretido, madeira queimada e partículas de vidro transformadas em minúsculas bolhas, tudo isso só foi registrado sob a forma de oscilação do ponteiro do rastreador energético.

— O espetáculo começou! — gritou o Tenente Stana Nolinow e ligou o propulsor da pequena nave.

As imensas eclusas de ar do hangar abriram-se. Sob os efeitos da sucção provocada pelo ar que escapava para o espaço, os revestimentos de borracha da porta contorceram-se.

O rosto sardento de Bell apareceu na tela do videofone.

— O senhor sabe o que está em jogo — disse em tom muito sério. — Não assuma riscos desnecessários. Nossas naves foram recebidas com um violento fogo de artilharia. A batalha ainda poderá durar uma hora. Sabem qual é sua tarefa.

— Tenha confiança em nós, sir! — exclamou Nolinow.

Alkher acrescentou:

— Tudo em ordem, sir.

— Uma das construções abobadadas acaba de ser destruída — anunciou Bell.

— Só pode ser uma das quatro unidades energéticas dos antis — disse Alkher. — Constatamos a explosão em nossos aparelhos.

— Podem decolar — disse Bell. — Boa sorte.

A tela escureceu. A nave girino G-32 saiu do hangar e penetrou no setor espacial de Saós. A bordo havia trinta e dois homens, que obedeciam a ordens específicas de Reginald Bell e Allan D. Mercant. O comando estava equipado com armas especiais ultramodernas. Tratava-se de uma combinação funcional do radiador de impulsos com a carabina automática. Dois canos paralelos disparavam simultaneamente um raio térmico e uma série de projéteis de plástico antimagnético. E os projéteis normais saíam do cano uma fração de segundo antes do raio, para que a energia, que se deslocava a velocidade pouco inferior à da luz, atingisse o alvo juntamente com o projétil, que era muito mais lento.

A arma fora criada para romper o campo defensivo mental dos antis com o projétil de plástico; se a pessoa modificasse seu campo individual para a função normal, o mesmo seria rompido pelo raio térmico. Para os antis seria inútil modificar a carga de seus campos defensivos individuais numa seqüência rapidíssima, conforme a natureza do disparo a que estavam expostos.

A tarefa dos dois tenentes estava perfeitamente definida. Nolinow e Alkher, que conheciam muito bem o planeta Saós, onde já estiveram presos, deveriam aproveitar a confusão criada pelo ataque das dez naves comandadas pelo administrador, a fim de prender o sumo sacerdote em exercício na base dos antis. Bell e Mercant esperavam que o interrogatório desse importante anti lhes proporcionasse informações valiosas sobre o lendário planeta Trakarat que, segundo se dizia, abrigava a sede da seita de Baalol.

Bell e Mercant tiveram suas dúvidas de que Cardif conseguiria atingir seus objetivos por meio de um ataque frontal à base. Por isso colocaram a nave girino à disposição dos dois tenentes. Trinta homens resolutos acompanharam os dois oficiais. Todos haviam iniciado sua carreira a bordo da primeira nave linear, a Fantasy. Não havia mutantes no grupo, pois, face às faculdades paramentais dos antis, sua atuação seria inútil.

Stana Nolinow fez a pequena nave descer em curvas muito amplas para dentro da atmosfera do planeta. A nave girino não pousaria. Todos os ocupantes usavam os trajes arcônidas de combate, que possibilitavam o salto a grande altura. Além disso, os defletores faziam com que se tornassem praticamente invisíveis. Em outras palavras, o incrível aparelho impedia que os soldados refletissem a luz. Em qualquer planeta do Universo, a visão ótica não é outra coisa senão a percepção de certos reflexos luminosos selecionados pelo cérebro, em meio a uma série confusa de reflexos desse tipo, transformando-os nos objetos a que correspondem.

O piloto automático levaria o girino de volta ao hangar da nave-mãe. A qualquer momento, os homens poderiam usar o rádio para chamar de volta o barco espacial.

Brazo Alkher observava os instrumentos de localização.

— Parece que os antis nem pensam em capitular — disse.

— Talvez ainda tenham esperança de que Atlan os ajude — disse Stana Nolinow.

As pontas dos seus cabelos cortados à escovinha refletiam as luzes de controle, produzindo um brilho dourado.

Alkher cocou a cabeça; parecia pensativo. Fitou o amigo.

— Será preferível saltarmos nas proximidades do porto espacial — sugeriu. —

Acho que a luta pesada se desenvolverá em torno da pirâmide e das unidades energéticas.

— Será que as naves cargueiras de que o senhor nos falou não estão sendo vigiadas, sir? — perguntou Miguel Arcanjo, um jovem cabo de braços incrivelmente compridos.

— É possível — confessou Alkher. — Acontece que temos a vantagem da surpresa. Não se esqueça de que os antis só nos verão quando colocarmos nossas armas versáteis sob seu nariz.

Armas versáteis, era esta a expressão que Bell cunhara para as novas armas especiais.

Miguel Arcanjo manipulou uma arma imaginária. Como não houvesse nenhum inimigo por perto, estendeu os longos braços em direção do homem que se encontrava mais próximo. Este recuou, fingindo-se de apavorado. Quando Miguel sacudia os braços, o espetáculo era digno de ser visto. Em sua terra natal, na América do Sul, corria o boato de que ele poderia facilmente apertar a mão de um amigo que se encontrasse na margem oposta do rio Amazonas.

— Procure dominar sua ânsia de entrar em ação — disse Alkher, com um sorriso. — Daqui a pouco precisará de todas as energias que puder reunir.

Stana Nolinow fez a nave girino descer em espiral. Alkher, que controlava os aparelhos, fez um gesto e disse:

— Colocamo-nos em boa altura, Stana. Nolinow ligou o piloto automático e deixou que a nave flutuasse sobre seus campos antigravitacionais.

— Vamos descer, sir! — gritou para dentro do microfone.

Bell, que se encontrava a grande distância, a bordo da Ironduke, não usou o videofone.

— Está bem, tenente! — respondeu. — Vamos buscar a G-32.

Brazo Alkher guardou a arma no cinto do traje de combate.

— Sairemos da eclusa em intervalos de três segundos de um para o outro — disse aos homens. — Não se esqueçam de ligar os defletores. Assim que tocarmos o chão, ficaremos visíveis e atacaremos. Se o porto espacial estiver sendo vigiado, voaremos imediatamente para a sede. Quando chegarmos lá, os primeiros contingentes de desembarque espacial terão saído das naves.

Os três homens reuniram-se no interior da eclusa. O sistema de propulsão antigravitacional dos trajes de combate foi ativado. Alkher, que se encontrava à frente do grupo, fez um sinal para Nolinow. Por um instante seu perfil magro ainda se destacou contra a atmosfera sombria. Depois desapareceu.

— Vamos atrás dele! — gritou Nolinow com a voz rouca.

No momento em que saltou atrás dos outros, Nolinow viu bem ao longe um enorme lampejo seguido de um trovão prolongado.

— É a segunda unidade energética, Stana! — disse Alkher pelo rádio.

Nolinow abriu os braços, embora não houvesse nenhuma necessidade disso. O sistema de propulsão mantinha-o em posição estável. Virou a cabeça e viu que a G-32 já se transformara num ponto minúsculo, que não demorou a desaparecer.

O ruído da luta tornou-se cada vez mais forte. O rugido que, vez por outra, sobrepujava o chiado forte das armas, era provocado pelos jatos-propulsores dos cruzadores.

Nolinow sacudiu a cabeça. Não compreendia por que Rhodan fazia as naves descerem justamente nesse lugar. Por que não parava acima da sede e mandava que os homens saltassem? Mais tarde ficou sabendo que só dois cruzadores haviam pousado em Saós, isto porque o fogo cerrado dos antis os tornara incapazes de manobrar no espaço.

O Tenente Brazo Alkher, que voava à frente do pequeno grupo, viu a superfície plana do porto espacial, que aparecia atrás da montanha. As naves cargueiras dos antis, ali estacionadas, eram obrigadas a aguardar o destino que os atingiria; pareciam brinquedos. Por enquanto os sacerdotes ainda ofereciam uma resistência acirrada.

Alkher foi o primeiro a pousar. Desligou o defletor. Descera entre duas naves. Não viu nenhum anti. Aos poucos, os membros do comando foram-se reunindo em torno dele. Nolinow foi o último a aparecer. Seu vulto movia-se constantemente. Correu pelo pavimento de aço plastificado em direção à proa da nave dos antis. Uma vez chegado lá, deixou que seu traje o levasse para cima, a fim de obter uma visão de conjunto do porto espacial.

— Está deserto — falou, dirigindo-se a seu colega de patente. — Concentraram suas defesas na sede.

— Miguel terá uma oportunidade de provar sua coragem — disse Alkher com um sorriso. — Vamos ligar os defletores; voaremos para a pirâmide.

Ergueram-se do pavimento liso do campo de pouso e voaram em direção ao lugar em que os terranos estavam empenhados na luta com os antis.

 

O deslocamento de ar causado pela segunda explosão foi tão violento que Kutlós teve a impressão de que alguém lhe esmagava os pulmões. Respirava com dificuldade e deitou de costas. Ouviu-se o ruído das pedras que caíam. Kutlós ergueu-se sobre os cotovelos e procurou enxergar em meio à poeira levantada.

O espia de Hepna-Kaloot fora destroçado nas proximidades de Tasnor. A corda de Lagoo havia desaparecido. O sumo sacerdote foi sacudido por sucessivos acessos de tosse.

Os terranos atacavam, muito embora a frota arcônida, da qual Kutlós esperava auxílio, se encontrasse reunida no espaço em torno de Saós. Pela primeira vez se deu conta de que se deixara envolver num jogo condenável com Hepna-Kaloot. Embora o inimigo os ameaçasse, ele se ocupara com seus assuntos particulares e se deixara levar pela provocação grosseira de Hepna-Kaloot.

O pavor que essa idéia lhe provocava era maior que o medo que sentia dos terranos. Devia voltar imediatamente à sala de imagem, a fim de comandar a defesa.

Levantou-se e, por um momento, ficou cambaleando entre os destroços. Um ruído arrastado fê-lo virar-se abruptamente. Um vulto também cambaleava em meio ao pó.

— Hepna-Kaloot! — gritou Kutlós. — A Frota Solar está atacando.

Hepna-Kaloot carregava o bule de água, que tinha uma rachadura e estava vazio. Kutlós não lhe deu mais atenção e disparou pelo corredor. Constantemente tinha de passar por cima de destroços. O chiado agudo, que ouvia a intervalos regulares, provava que as rampas de disparo dos foguetes haviam entrado em ação. Alguém devia ter assumido o comando. Kutlós suspirou aliviado. Talvez ainda seria possível salvar a situação.

Um grupo de sacerdotes fortemente armados correu em sua direção.

— Venham cá! — gritou Kutlós. — Sigam-me. Precisamos ir ao porto espacial.

Ao que parecia, ninguém o estava reconhecendo. Os homens pararam, desconfiados, e apontaram as armas. Kutlós olhou seu corpo e viu as vestes sujas e esfaceladas.

— É o sumo sacerdote! — gritou um dos antis.

Kutlós passou a mão pelo rosto. Olhou pela janela no momento em que uma das construções explodia. O telhado ergueu-se, foi envolvido imediatamente por nuvens de fumaça e vapores, e as resistentes paredes ruíram, se romperam e foram pulverizadas.

— Vamos ao porto espacial! — voltou a gritar Kutlós.

O cheiro acre de queimado penetrou no corredor. Mais adiante, uma grossa nuvem penetrava por uma abertura e impedia a visão.

A voz de Hanoor saída dos alto-falantes sobrepujou os ruídos. Kutlós não entendeu as ordens do velho sacerdote. O grupo de antis armados uniu-se a ele e saíram correndo. Alguém aproximou uma arma de seus braços. Ele a segurou sem parar de correr. A pressão do metal duro, que sentia nos quadris, teve um efeito tranqüilizante. Os homens que corriam atrás dele tossiam e fungavam. A fumaça causticante fez os olhos lacrimejarem. Os homens tropeçavam nas pedras e nos destroços. Passaram pelo lugar em que Kutlós se abrigava durante a luta com Hepna-Kaloot Não se via o menor sinal do mesmo. Tasnor estava apoiado nos cotovelos e murmurava coisas incompreensíveis. Kutlós aproximou-se do jovem e inclinou-se sobre o mesmo. Os olhos de Tasnor estavam sem brilho e dirigiam-se a regiões longínquas, das quais, segundo imaginava Kutlós, vinha a morte.

— Vá embora! — balbuciou Tasnor.

Não havia ódio nem raiva em sua voz, apenas rejeição e uma necessidade infinita de paz. Kutlós enfiou os braços sob as costas do rapaz e apoiou-o.

— Você tem de sair daqui — disse em voz baixa. — Os terranos estão atacando com suas naves.

Por um instante teve a impressão de que conseguiria fazer com que aqueles olhos retornassem ao presente e de que conseguiria restituir-lhes a vida. Mas o ligeiro brilho nascera do subconsciente. Não era guiado pela vontade de Tasnor.

Num movimento suave, Kutlós deixou que o jovem voltasse a estender-se no solo. Levantou-se e fitou o pequeno grupo.

— Vamos! — disse com a voz apagada.

Contornaram Tasnor sem olhá-lo. Apressaram o passo, a fim de afastar-se do moribundo.

Kutlós compreendeu que o ataque dos terranos concentrava-se sobre a sede. Só umas poucas naves terranas bombardeavam a base. Talvez o grosso da frota estivesse envolvido numa batalha espacial com as unidades robotizadas do imperador. O sumo sacerdote sentiu-se reconfortado diante da idéia, embora não tivesse a menor prova de que a mesma correspondia à realidade.

Interrompeu suas reflexões quando, bem próximo do lugar em que se encontrava, vários homens passaram pelos muros destroçados e penetraram no corredor. Estavam quase irreconhecíveis em meio ao pó e à fumaça. De qualquer maneira representavam um valioso reforço para o grupo.

De repente Kutlós estacou.

Os homens que via à sua frente não eram servos da seita de Baalol, nem arcônidas...

Eram terranos!

Num gesto automático o sacerdote ativou seu campo defensivo individual e abriu fogo.

 

Pousaram nas proximidades da terceira unidade energética. Brazo Alkher desligou o defletor. Nolinow surgiu ao seu lado. Estava banhado de suor, mas sorria.

— Estamos em território conhecido! — gritou para Brazo. — Foi aqui que estivemos presos.

Alkher olhou cautelosamente em torno. Por enquanto Cardif não havia desembarcado nenhum contingente de tropas. O fogo dos antis já se tornava mais fraco. Buster Coleman colocou-se ao lado de Alkher e disse:

— Veja, sir! Os muros ruíram. Podemos entrar sem ter de abrir caminho a tiro.

— Miguel! — gritou Alkher.

O homem nascido no Brasil colocou-se a seu lado e fltou-o numa atitude de expectativa.

— Pegue três homens e dê uma olhada nesse muro destruído. Se tudo estiver calmo atrás dele, poderemos entrar por lá.

— Sim, senhor — disse Miguel e reuniu três soldados.

Alkher observou os quatro homens que saíam correndo, com as armas nas mãos. Passaram por cima dos destroços e Miguel foi o primeiro a penetrar no edifício. Dali a pouco apareceu de novo e gesticulou com seus longos braços.

— Não há perigo — observou Nolinow com a voz seca, muito embora naquele instante um pequeno depósito se derretesse nas imediações, sob o efeito de um raio de impulso. No momento, o perigo de ser atingido pelos disparos das naves terranas era maior que o que provinha dos antis, ocupados exclusivamente com sua defesa.

Brazo Alkher levantou a arma.

— Vamos! — gritou.

Quando chegaram ao lugar em que estava Miguel, o vulto comprido deste estava envolto no pó e na fumaça.

— Tudo bem, sir — anunciou o brasileiro. — Lá dentro está tudo em paz — disse, apontando para o edifício.

Espremeram-se pela abertura causada por uma explosão e viram-se num corredor cheio de fumaça. A visibilidade não ultrapassava os vinte metros.

— Sir, seria pos... — principiou Miguel. Fosse lá o que quis dizer, não conseguiu prosseguir. Apavorado, Alkher viu seus braços girarem pelo ar. Depois Miguel caiu. Viu à sua frente, em meio às nuvens opacas, alguns vultos em trajes ondulantes.

— São os antis! — gritou Nolinow. Alkher agiu quase instintivamente.

Com um salto abrigou-se atrás do muro e apontou a arma versátil. Alguém soltou um grito de dor e o corredor encheu-se com os rugidos e os chiados das armas. Alkher sentiu uma dor lancinante na região do estômago. À sua frente, pelo menos quatro terranos mortos jaziam no chão. Eram homens que não conseguiram abrigar-se em tempo. O tenente mordeu os lábios e começou a atirar.

Teve uma idéia estranha. Lembrou-se de que, enquanto lutava pela vida num planeta estranho, inúmeros jovens que se encontravam na Terra estavam empenhados em alguma ocupação agradável, sem pensar nem de leve num certo Tenente Brazo Alkher, cuja presença nesse planeta, juntamente com a dos membros da Frota Solar, garantia a paz dos homens na Terra e em seus planetas coloniais.

É duro, Brazo... é duro”, refletia.

 

Quando foi atingido pela primeira vez, Kutlós compreendeu que não chegaria vivo às espaçonaves. Seu campo defensivo individual não o defendia contra as armas dos terranos. Mantinha-se imóvel atrás dos destroços de um painel de controle, e comprimiu o rosto contra o metal frio. Todos os antis acabariam assim. Gonozal VIII os abandonara. O plano do Grande Baalol estava condenado ao fracasso.

Ouviu um gemido bem ao seu Indo. Kutlós abandonou o abrigo do painel de controle. As dores fustigavam seu corpo, olhou por cima da confusão de fios, bobinas e tubos quebrados. Antes que conseguisse enxergar o ferido, foi atingido pela segunda vez. Desta vez não sentiu quase nada. Apenas, o poder de sustentação das pernas diminuiu rapidamente.

O desconhecido voltou a gemer. Kutlós segurou em duas barras e arrastou-se por cima da superfície lisa do painel. Deixou-se cair para a frente e parou no chão. Não viu ninguém. Uma sensação estranha espalhou-se pela parte inferior do corpo. Teve a impressão de que as pernas eram de cera.

Apalpou o abdômen. Quando voltou a olhar as mãos, as mesmas estavam sujas de sangue. Começou a admirar-se porque não havia por ali ninguém que oferecesse resistência aos terranos.

— Fugiram — constatou, amargurado.

E então percebeu que os ruídos da batalha no interior do corredor haviam cessado.

Ouviu passos que se aproximavam. Kutlós fez um esforço tremendo para levantar-se, mas não conseguiu erguer o corpo. O cansaço provocado pela tentativa foi tamanho que teve de fechar os olhos.

Alguém arrastou o painel destruído. O ruído causado pelo revestimento metálico parecia incrivelmente forte.

Kutlós abriu os olhos e viu uma fileira de botas. Quando olhou para cima viu os homens que usavam as botas e seus rostos. Parecia enxergá-los através de um nevoeiro. Eram terranos.

Um dos rostos desceu sobre ele. Era magro e anguloso, e nele se via um par de olhos castanhos muito sérios. Teve a impressão de que já conhecia esse homem. De repente lembrou-se. Era um dos dois prisioneiros que deixaram escapar depois da batalha simulada.

— Kutlós! — exclamou o terrano em intercosmo.

— Ouço o que você diz — respondeu o anti em tom compenetrado. — Seja lá o que você deseja, ande depressa para manifestar seu desejo, pois não terei mais muito tempo de vida.

Brazo Alkher examinou-o rapidamente. Viu que o anti levara dois tiros no abdômen. O tenente cerrou o sobrecenho. Esforçou-se para dissimular seus sentimentos. Lá atrás o jovem e valente Miguel jazia morto.

— O planeta Trakarat é o mundo que serve de sede à seita de Baalol, Kutlós? — perguntou Brazo.

O sacerdote limitou-se a responder com um aceno de cabeça, já que tinha muita dificuldade em falar.

— Poderia fornecer a posição de Trakarat ou outras informações sobre esse mundo? — perguntou o tenente, em tom apressado.

— Poderia — respondeu Kutlós, com dificuldade.

— Pois fale! — pediu o terrano. Kutlós recusou.

— Não — limitou-se a dizer.

Foi a última coisa que disse antes de morrer. Ficou mudo diante das outras perguntas de Alkher, limitando-se a esboçar um sorriso de desprezo.

Pouco depois sua cabeça caiu para trás e seus olhos ficaram vidrados. Brazo Alkher levantou-se. Engolia em seco.

— Foi tudo em vão — disse em tom de desespero.

As linhas defensivas dos antis começavam a cair. O ataque comandado por Cardif se dirigia, agora, contra as últimas fortificações.

O comando dirigido pelos tenentes Alkher e Nolinow retirou-se para o porto espacial. Alkher e Nolinow não diziam nada. Cinco homens haviam ficado em meio às ruínas, cinco homens para os quais não havia mais salvação. Dois homens gravemente feridos estavam sendo transportados cautelosamente. A idéia de que a tentativa de obter informações sobre Trakarat fracassara, e isso em meio ao sacrifício de vidas, deixou os homens deprimidos.

— Talvez Rhodan teve mais sorte — disse Nolinow num acesso de esperança.

Alkher continuava cético.

— Os antis lutavam desesperadamente, e os dez cruzadores não lhes deram um tratamento muito suave.

— Sir! — gritou Coleman de repente. Brazo Alkher virou-se abruptamente.

Viu dois vultos que corriam pela área. Não usavam as vestes dos sacerdotes nem envergavam o uniforme dos terranos. Ao que tudo indicava, estavam fugindo. Só podiam dirigir-se ao porto espacial.

— Atrás deles! — ordenou Brazo Alkher.

Escolheu quatro homens. Estes se elevaram sob a ação dos propulsores antigravitacionais dos trajes de combate e voaram atrás dos fugitivos.

Pensativo, Nolinow falou, dirigindo-se a Alkher:

— Não sei por quê, mas tenho a impressão de que conheço esses sujeitos.

— Não é possível — disse Brazo. — De onde poderia conhecê-los?

Ao que parecia, Nolinow não estava disposto a manifestar a suposição que trazia na mente. Envolveu-se no silêncio. Prosseguiram na marcha. Por causa dos feridos os dois tenentes preferiram não utilizar os propulsores antigravitacionais.

Dali a dez minutos atingiram os quatro membros de seu comando que acabavam de prender os dois fugitivos. Eram grandes, de aspecto selvagem, cujos olhos exprimiam o medo.

Um deles fitou Nolinow e Alkher com uma expressão de incredulidade.

— É isso mesmo! — exclamou o Tenente Nolinow com uma expressão de triunfo.

Alkher fitou-o como quem não compreende nada. Com um sorriso Nolinow apontou para os prisioneiros.

— São velhos amigos nossos, Brazo — disse em tom sarcástico. — Acontece que, segundo diziam, estavam gravemente feridos quando nós os vimos pela última vez.

— São saltadores! — exclamou Alkher e, imediatamente, lembrou-se dos detalhes.

Durante a fuga, encenada pelos antis, haviam visto os dois homens. Eram os feridos retirados da pequena nave espacial que fora dirigida justamente até o platô para onde os dois terranos haviam sido “orientados” pelos sacerdotes. Naturalmente nenhum dos dois saltadores estava ferido; apenas contribuíram para o espetáculo oferecido aos dois terranos. Ao que parecia, não conseguiram voltar às naves de seu clã. E agora tinham de assistir a uma grande derrota de seus aliados.

Brazo Alkher adiantou-se e bateu fortemente nos ombros de um dos saltadores.

— Como estão os ferimentos? — perguntou em tom irônico. — Já estão curados?

— Somos pacíficos mercadores — respondeu o homem. — Não temos nada a ver com isto.

Seu companheiro confirmou com um aceno de cabeça. Numa disposição irônica, Alkher observou que o gênio pacífico dos mercadores galácticos costumava manifestar-se quando sua vida estivesse ameaçada. Fora disso não recuavam diante de qualquer violência.

— Ah, é? — perguntou Nolinow, fingindo-se de espantado e colocando-se ao lado do amigo. Apontou a arma versátil para o prisioneiro. — Então — disse em tom áspero.

— Vejamos o que há realmente atrás de seu gênio pacífico seus cordeiros inocentes.

Qualquer pessoa que não conhecesse Stana Nolinow sentiria medo dele. Um brilho ameaçador surgiu em seus olhos e seu rosto se contorceu.

Os dois saltadores, que já estavam amedrontados, estremeceram. Refletiam desesperadamente sobre como poderiam escapar.

— Fornecer-lhes-emos qualquer informação que possuímos — apressou-se a dizer um dos saltadores.

— Estamos à procura de certo planeta — disse Alkher, prosseguindo no interrogatório. — Pelo que dizem, é o mundo central da seita de Baalol. Seu nome é Trakarat... que sabem a respeito dele?

Olhando de soslaio para a arma de Nolinow, o homem respondeu:

— Muitas vezes ouvimos os sacerdote:, falarem sobre esse planeta. Não conhece mos a posição desse mundo, mas o mesmo parece apresentar-se como um fenômeno.

— O que quer dizer com isso? — perguntou Nolinow, em tom insistente.

— Trakarat possui um anel duplo, tal qual certo planeta do sistema solar — respondeu o saltador. — Se não me engano, vocês chamam esse planeta de Saturno.

Alkher acenou com a cabeça. Depois de ligeira hesitação o mercador prosseguiu:

— Trakarat circula em torno de um sol geminado vermelho, juntamente com mais quinze planetas. O nome desse sol é Aptut. Pelo que se conclui das palestras dos sacerdotes, deve ficar perto do centro da Via Láctea.

Os dois tenentes entreolharam-se. Nolinow baixou a arma, o que provocou um alívio visível nos saltadores.

— Vocês ficarão presos até que tenhamos conferido a exatidão das suas informações — disse Alkher. — Se tiverem contado alguma mentira, não terão outra alternativa senão retificá-la o mais depressa possível.

No seu íntimo estava convencido da veracidade das informações que acabara de receber. O medo dos dois mercadores era tamanho que não se arriscariam a irritar os terranos com alguma informação falsa.

— Vamos chamar a Ironduke — disse Alkher, dirigindo-se a Nolinow. — Bell e Mercant ficarão satisfeitos com o resultado do nosso trabalho. Afinal, já descobrimos muita coisa. Um sistema como o de Aptut representa algo fora do comum.

— Vou pedir que mandem o girino — disse Nolinow. — Nossa missão em Saós está concluída.

Enquanto proferia essas palavras, acionou o rádio. Já se encontravam fora da área atingida pelo fogo dos cruzadores. Dentro de alguns minutos as últimas resistências dos antis cairiam e Rhodan penetraria nos destroços do estabelecimento.

 

Passou por cima de montões de destroços, cambaleava entre paredes caídas, corria nos curtos trechos desimpedidos e espremia o corpo pelos lugares apertados. Não olhava para trás a fim de ver se a tropa o acompanhava. Havia um zumbido constante nos seus ouvidos, que sobrepujava todos os ruídos exteriores. Na estranha penumbra da pirâmide destruída surgiam inúmeros corredores e galerias. Havia elevadores destroçados e escadas reduzidas a fragmentos.

Thomas Cardif sentiu uma dor forte na região do coração. Teve de parar. Seu corpo estava banhado em suor. Seus olhos ardiam.

De repente sentiu que havia gente por perto. Percebeu sua presença e, quando se voltou com uma expressão de cólera, viu-os parados atrás de si. Encostados lado a lado, com as armas versáteis semi-erguidas, mudos, com os olhos semicerrados e os lábios apertados, estavam reunidos ali.

Era a infantaria espacial da Frota Solar. Pela primeira vez Cardif sentiu o que significaria para ele se realmente fosse Perry Rhodan. Aqueles homens o acompanhavam numa luta que deviam achar inútil, combatiam a seu lado por uma idéia, por uma lenda, por um símbolo chamado Perry Rhodan.

Cardif deixou pender os braços junto ao corpo e olhou os soldados. Havia um sabor salino em sua boca.

Por mais que investisse sobre os médicos terranos pelo hiper-rádio, as respostas dos doutores sempre foram um fraco consolo. Os maiores especialistas trabalhavam dia e noite, mas não havia nenhum medicamento capaz de deter os efeitos desastrosos do ativador celular. E, segundo disseram repetidamente, uma intervenção cirúrgica seria mortal.

— Sir! — gritou uma voz atrás dele.

Cardif parou e deixou que o sargento Mulford se aproximasse. Era um homem de meia-idade com um pequeno bigode e um par de olhos cinzentos e francos.

Mulford apontou para os montes de destroços.

— Devemos tentar ir ao alto da pirâmide. Sugiro que alguns homens voem pelos poços dos elevadores, usando os trajes de combate, a fim de verificar como estão as coisas lá em cima.

— Isso mesmo, sir — reforçou o tenente Yakinawo, olhando para Cardif. — Pelo jeito que estamos fazendo não conseguiremos nada.

Não havia nenhuma objeção válida contra esses argumentos, mas Cardif disse:

— Não sou da mesma opinião. Os soldados poderiam ser surpreendidos. Em qualquer lugar pode haver um ninho remanescente dos antis. Do jeito que estamos fazendo também chegaremos aos pavimentos superiores.

Yakinawo fitou-o com uma expressão de perplexidade e conservou-se em silêncio. Cardif prosseguia obstinadamente. A idéia de Mulford lhe parecera válida e ele a teria adotado, se tivesse certeza de que havia um traje de combate que coubesse em seu corpo. Mas, como provavelmente não fosse possível encontrar um traje nessas condições, obrigou o comando a prosseguir nas buscas pelo caminho normal, pois, quando o grupo descobrisse um anti, fazia questão de estar presente. Desconfiava tanto dos homens que o cercavam que jamais confiaria o comando do grupo a um dos oficiais.

— Neste caso vamos subir pela escada, sir — sugeriu Mulford em tom lacônico, apontando para a confusão de fios e pedras que ainda restavam.

Cardif fitou o sargento com uma expressão pensativa.

— Está bem, Mulford — disse depois de algum tempo. — Vá na frente.

Mulford era um velho soldado que não se abalava por pouca coisa. Mas agora arregalou os olhos numa expressão de incredulidade.

— Quer dizer que eu devo passar pela escada, sir?

— O senhor acaba de fazer a sugestão — disse Cardif, com a voz penetrante. — Será que a esta altura suas pernas já estão tremendo?

— Não, senhor — disse Mulford e fez continência.

Pendurou uma arma versátil sobre o ombro e aproximou-se do que sobrou da escada. Não hesitou. Agarrou-se numa barra metálica saliente e puxou seu corpo para cima. As pedras espalhadas pelos degraus deformados caíram ruidosamente. A estrutura, feita de metal leve meio derretido, começou a balançar. O sargento parecia um inseto num gigantesco balanço, o que o sacudia lentamente.

— Parece que vai agüentar — gritou Mulford com a maior tranqüilidade. — Pode seguir-me.

Que sujeito!”, pensou Cardif, enfurecido. “Ele quer me experimentar. Será que pensa que estou com medo?

Subiu atrás de Mulford, seguido por Yakinawo.

— Cuidado, sir! — disse Mulford. — Aqui em cima a coisa começa a ficar perigosa.

Cardif olhou para o sargento. Em certo lugar, a escada se quebrara de vez. Praticamente consistia apenas em duas barras, em cujas pontas havia suportes tão finos quanto uma agulha. Mulford passou entre as barras que nem um macaco.

Outros homens subiram pelo esqueleto metálico, que reagia através de balanços violentos e se dobrou com um forte rangido. Cardif pensou que seria melhor ter aceito a sugestão de Mulford. Um dos lados da pirâmide se abrira numa violenta explosão, e na queda esmagara completamente um dos edifícios. Cardif não se atreveu a olhar para baixo.

— Pronto! — gritou Mulford, satisfeito. — Acho que não conseguiremos subir muito mais, sir. É o último andar. Antigamente havia outros pavimentos, mas nossas armas os arrasaram.

De pé numa saliência que lhe oferecia, sorriu para Cardif, que avançava lentamente.

— Está vendo alguém? — perguntou o administrador.

Mulford olhou em torno.

— É difícil dizer. Por aqui tudo está reduzido a destroços. Sinto o cheiro de fios queimados. Certamente havia muitos aparelhos por aqui.

A fala primitiva de Mulford começou a enervar Cardif, mas este obrigou-se a permanecer calmo, pois havia coisa mais importante a fazer que repreender um soldado.

— Será que o senhor consegue? — perguntou a voz preocupada de Yakinawo atrás dele.

Não respondeu e continuou a subir. Finalmente Mulford pôde estender-lhe a mão para ajudá-lo a subir. Dali a pouco viu-se ao lado do velho soldado.

Ajudaram Yakinawo e os outros homens que vinham atrás do tenente.

— Acho que não deveríamos deixar subir tantos soldados, sir — disse o tenente. — Isto aqui parece bastante frágil.

Cardif confirmou com um aceno de cabeça, e o japonês berrou algumas ordens. Sua voz produziu numerosos ecos nos extensos corredores e poços de elevador. Cardif olhou em torno. De início viu o mesmo quadro com que já se deparara lá embaixo, um quadro formado por destroços cinzentos e construções destruídas.

Depois viu o anti. Era um vulto escuro num ambiente também escuro, que se mantinha imóvel nos restos de uma poltrona.

Cardif segurou o braço do Tenente Yakinawo. O japonês confirmou com um gesto. Juntamente com Mulford aproximaram-se do anti que parecia petrificado. Era um velho sacerdote, um dos velhos que Cardif já vira.

E aquele velho ainda estava vivo. Seus olhos descoloridos vagavam nervosamente entre Cardif e o tenente. De repente Cardif imaginou o motivo disso e ergueu a arma.

Ele sabe quem é a pessoa que se encontra à sua frente”, pensou. “Pode dizer ao tenente quem eu sou. Neste caso será o fim.”

Mas o velho manteve-se calado. Cardif, que por pouco não disparara contra ele, baixou a arma. Seu desespero era enorme e sua confusão mental progredira tanto que não teria o menor escrúpulo em atirar naquele velho.

— Onde podemos encontrar o sumo sacerdote em exercício? — perguntou Cardif, em tom enérgico.

Hanoor fitou-o com uma expressão de indiferença.

— Quem pode saber? — falava em voz tão baixa que Cardif teve de inclinar-se para compreender suas palavras. — Os campos da morte são infinitos. Kutlós pode estar em qualquer lugar.

— Algum dos seus representantes ainda está vivo?

— Está — disse Hanoor. — Sou eu.

— Preciso conhecer a posição do planeta Trakarat, meu velho — disse Cardif, em tom insistente. — Revele-nos a mesma, e nós lhe daremos a liberdade.

— O conceito de liberdade é muito vago — disse o anti, em tom pensativo. — Não existe nenhuma forma de restrição à liberdade que possa assustar um velho como eu.

Cardif já estava perdendo o autocontrole.

— Quero a posição do planeta; diga logo! — gritou para o sacerdote.

— Estou cansado; não me martirize — disse Hanoor em voz baixa.

Cardif fez menção de precipitar-se sobre aquele homem indefeso, porém mais uma vez a voz do japonês o deteve.

— Ele não falará, sir — conjeturou Yakinawo.

Hanoor fechou os olhos e apoiou a cabeça no encosto rachado. Cruzou os braços sobre o peito. Seu rosto continuou impassível.

Naquele momento, o terrano Thomas Cardif compreendeu que o velho sacerdote não lhe revelaria nada sobre a posição do planeta Trakarat. Nem ele, nem qualquer dos antis que ainda se encontrassem entre os destroços.

A mão levantada caiu sem forças. Sem dizer uma palavra, Cardif passou entre Yakinawo e dirigiu-se à escada.

O japonês, que o seguia com os olhos, teve a impressão de ver um homem perdido.

 

O tenente concluiu com um gesto em direção a Reginald Bell:

— Foi só o que conseguimos saber dos saltadores.

Os dois tenentes já haviam retornado à sala de comando da Ironduke, onde apresentaram seu relato a Bell, Mercant e outros oficiais. Allan D. Mercant cocou o queixo. Parecia pensativo.

— Já é alguma coisa, mas não podemos fazer muita coisa com isso — disse, falando lentamente. — Talvez o centro de computação de Árcon III possa fazer alguma coisa com estes dados.

— Para isto precisaríamos do apoio de Atlan — ponderou Bell. — Na situação em que nos encontramos, sua disposição não será muito amistosa, embora tenha afastado as naves robotizadas.

Claudrin interveio na conversa.

— Acho que temos a obrigação de informar o arcônida sobre o resultado da operação, pois só conseguimos levá-la avante porque ele se manteve quieto — disse.

— Muito bem, Jefe — concordou Mercant. — Faça uma ligação com Atlan.

 

O General Alter Toseff acompanhara os acontecimentos com os olhos em fogo. Não tirava os olhos das telas e esperava o momento em que Gonozal VIII resolvesse intervir. Acontece que o imperador ficara mergulhado em seus aposentos e observara tudo em silêncio. Toseff não se atreveu a arrancá-lo de suas reflexões, mas sentia um tremendo ódio dos terranos, que haviam atacado um planeta do Grande Império na presença de uma frota arcônida.

Se o General Toseff desconfiasse de que, no seu íntimo, Atlan desejava que seus antigos aliados fossem bem-sucedidos para que tivessem condições de ajudar Perry Rhodan, sua contrariedade provavelmente seria ainda maior.

Os pensamentos sombrios de Toseff foram interrompidos pelo zumbido do rádio. Ligou o receptor de imagem para receber o chamado. Nesse instante, o imperador despertou da letargia e aproximou-se de Toseff.

— Deixe para lá, general — disse.

O rosto franco de Reginald Bell surgiu na tela. Atrás dele estavam Allan D. Mercant e um sujeito formidável chamado Claudrin, que era comandante da Ironduke. Atlan não pôde reprimir sua simpatia por esses homens.

— Então? — perguntou.

Bell fitou-o com uma expressão de insegurança e pigarreou fortemente.

— Perry destruiu a base de Saós — disse, e o tom de sua voz revelava nitidamente sua desaprovação face a esse ato. — Daqui a pouco deverá retornar a esta nave sem trazer as informações que desejava, o plano elaborado por mim prometia ter êxito. Os tenentes Alkher e Nolinow prenderam dois saltadores que sabem alguma coisa sobre o mundo central de Baalol.

— Que mundo é este? — perguntou Atlan.

— O nome do sol em torno do qual circula o planeta é Aptut. Dizem que se trata de um sol geminado vermelho. Trakarat, é este o nome do mundo, tem dois anéis semelhantes a Saturno.

Atlan trocou um olhar com o General Alter Toseff. O saratanense sacudiu a cabeça.

— Nunca ouvi falar nesse sistema — disse o imperador.

— Dizem que fica nas proximidades do centro da Via Láctea — informou Mercant. — Por lá as estrelas que têm planetas não são nenhuma raridade, esse sistema é diferente dos outros, motivo por que talvez tenha sido catalogado como ponto de referência. De qualquer maneira, nos bancos de dados do centro de computação deve haver informações armazenadas a respeito do mesmo.

Bell acrescentou apressadamente:

— Queremos pedir-lhes que nos ajude a encontrar Trakarat. Com a ajuda do computador gigante deverá ser muito mais fácil interpretar os dados de que dispomos.

Atlan respondeu prontamente:

— Farei tudo que estiver ao meu alcance para descobrir a posição desse estranho sistema solar.

Os olhares de gratidão dos terranos representaram uma verdadeira bênção para ele. Aqueles homens ainda eram fiéis amigos, que o ajudariam em qualquer situação difícil. Sofriam com a doença de Rhodan tanto quanto o próprio.

— Nós lhe transmitiremos todas as informações que nos foram fornecidas pelos dois saltadores que prendemos — disse Bell. — Enviaremos um registro completo do interrogatório.

— Qualquer dado, por mais insignificante que possa parecer, poderá ser valioso — lembrou Atlan. — Os mercadores deveriam ser interrogados de novo.

— Prometo-lhe uma coisa, imperador — disse Mercant em tom solene. — Assim que esteja concluída esta ação, que ninguém de nós quis provocar, a frota terrana será imediatamente retirada do Grande Império.

Depois de combinar outros detalhes, o Major Krefenbac anunciou que os dez cruzadores se haviam juntado novamente à Frota e que Perry Rhodan se encontrava a bordo de um planador que o traria de volta à Ironduke. Face a isso, a palestra foi interrompida a pedido de Reginald Bell.

Atlan, que se sentia cada vez mais preocupado diante das informações relativas à doença de Rhodan, resolveu entrar em contato pessoal com seu velho amigo. Assim que este voltasse a assumir o comando da Ironduke. Nem mesmo as objeções de Bell o fizeram desistir.

— Desta vez ainda conseguimos evitar uma guerra entre os dois impérios — disse Atlan, dirigindo-se ao General Toseff, assim que a ligação com a nave terrana foi interrompida.

— Será que o preço não foi muito elevado, majestade? — perguntou Toseff.

— Nosso prestígio ficou resguardado, pois as naves da Frota Solar se retirarão. Poderemos registrar um êxito militar, sem derramamento de sangue.

Via-se perfeitamente que o general gostaria de formular uma objeção, mas não tinha muita certeza do que iria dizer, ou então tinha medo de Atlan.

Discutiram por muito tempo sobre as próximas medidas a serem tomadas. Aos poucos o General Toseff foi familiarizado com os planos que visavam ao reerguimento do Grande Império. O chefe do governo de Saratan ficou sabendo que Gonozal VIII pretendia utilizar colaboradores terranos nas mais diversas posições. Teoricamente até se poderia chegar à conclusão de que, uma vez alcançado o acordo, o Grande Império ficaria sujeito a uma forte influência terrana, enquanto os poderes dos dignitários decadentes sofreriam grandes restrições.

Depois de algum tempo, Atlan disse:

— A essa hora estou convencido de que, assim que Rhodan se restabelecer, as antigas relações de amizade voltarão a firmar-se. Os colaboradores terranos voltarão aos seus postos, e a confiança mútua será ainda mais forte. General, eu lhe garanto que sem os terranos não conseguiremos manter o Grande Império. Precisamos do reforço representado por eles, pois, do contrário, nos esfacelaremos em inúmeros reinos menores.

— Faço votos de que o futuro lhe dê razão — aceitou Toseff.

— Agora vou falar com meu amigo doente — disse Atlan. — Procure entrar em contato com a Ironduke, general.

Dali a alguns segundos, a tela iluminou-se. Atlan não pôde impedir que seu estômago se contraísse. Sentiu uma sensação estranha ao ter que rever Rhodan em sua nova forma.

De que forma reagiria Perry ao seu chamado?

A tela iluminou-se, e Atlan viu a sala de comando da Ironduke. Notou alguns oficiais que se encontravam em posição mais afastada e manipulavam os instrumentos.

Subitamente alguém penetrou no campo de visão, vindo do lado. Tomado de pavor, Atlan abriu a boca e disse:

— Oh, não!

Teve de fazer um esforço para continuar a fitar esse quadro monstruoso e olhar o homem que, segundo se dizia, já fora Perry Rhodan.

O administrador transformara-se num gigante disforme de rosto inchado.

— O que quer? — disse a voz saída do alto-falante.

O imperador sentiu-se profundamente abalado ao olhar para o terrano.

— Perry! — disse num gemido. — Não sabia que as coisas estavam tão ruins.

— Pare com essa fala melosa, arcônida — respondeu Cardif-Rhodan com a voz zangada. — Se tiver algum desejo, fale logo e não faça discursos sentimentais de mulher velha.

Atlan recebeu o insulto sem dar nenhuma resposta. Não viu que os dedos do General Toseff perdiam a cor enquanto mantinham-se apertados contra o painel de controle. Estava tomado de indignação.

Nesse instante Atlan fez um juramento a si mesmo: ajudaria o amigo desfigurado, custasse o que custasse.

— Você pode contar com meu apoio integral, Perry — disse em voz baixa e desligou o aparelho antes que Rhodan tivesse tempo de proferir outras ofensas.

— O senhor não pode tolerar uma coisa dessas — gritou Toseff fora de si.

Atlan viu desfilar diante dos olhos de sua mente as aventuras pelas quais ele e Rhodan viveram juntos. Lembrou-se dos duelos que haviam travado num passado distante, e lembrou-se da estranha compreensão que se estabelecera entre eles. O general não sabia nada a esse respeito. Só via o presente.

Em meio ao silêncio da nave robotizada, a voz de Atlan soou firme e decidida:

— Ele é um amigo, general, e farei tudo que estiver ao meu alcance para salvá-lo.

Naquele momento, Toseff compreendeu que não haveria nada que pudesse demover o imperador do seu intento. Compreendeu a grandeza da decisão que acabara de ser tomada. Saiu sem dizer uma palavra, pois sabia quando um homem gostava de ficar só.

 

 

                                                                  WilliamVoltz

 

 

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