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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O PECADO DE JONATHAN / Gina Wilkins
O PECADO DE JONATHAN / Gina Wilkins

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Ao chegar a mansão da rica família Hightower no Tennesse, para uma missão anti-seqüestro, o investigador de polícia Jonathan Luck pensava encontrar uma solteirona feia e pedante. Mas, para sua grande e agradável surpresa, deparou-se com uma deslumbrante morena de vinte e seis anos.

Amanda Hightower precisava de proteção e não da constante presença de um fascinante policial. E logo se deu conta de que mais perigosa que os bandidos era a diabólica arte de sedução de Jonathan Luck…

 

 

 

 

Sentado na sala de leitura da biblioteca, o menino consultou o relógio de pulso, suspirou e fechou o pesado volume aberto na mesa à frente dele. Aubrey Jerome Hightower adorava a atmosfera erudita e até o cheiro de poeira e desinfetante da biblioteca. Sentia-se mais à vontade ali do que na mansão da avó, a oeste de Memphis, onde vinha sendo obrigado a morar nos últimos cinco meses. Relutante, levantou-se para ir ao encontro de Terrence, o motorista da avó, que logo estaria ali para apanhá-lo. A bibliotecária-chefe, Sra. Campbell, sorriu para o garoto quando ele passou pela mesa dela. Aubrey respondeu sem prestar muita atenção, ocupado em equilibrar a pilha de livros que abraçava contra o peito.

Uma onda de calor o atingiu quando ele saiu na tarde de setembro. O Lincoln cinzento não estava parado no lugar de costume, no meio-fio da calçada. Aubrey olhou para os dois lados da movimentada rua, vendo de relance a rechonchuda loira que caminhava na direção dele. Era estranho. Terrence nunca se atrasava. Vovó simplesmente não permitiria aquilo.

— Aubrey?

Voltando-se, o menino viu que a loira bem ao lado dele. Empur­rando os óculos para o alto do nariz, examinou-a através das grossas lentes.

— Sim?

A mulher sorriu por trás dos enormes óculos de sol avermelhados. Aubrey não se lembrava de tê-la visto antes.

— Eu sou Mona — apresentou-se a desconhecida, com aquele detestável jeito que alguns adultos tinha para falar com crianças. — Sou uma amiga da sua tia Amanda e estou aqui para levá-lo para casa.

Instintivamente Aubrey recuou.

— Por quê?

A mulher riu.

— Ora, não se assuste. Terrence está fazendo uns serviços para sua avó e por isso sua tia me pediu que viesse buscá-lo. Eu tinha mesmo que passar por aqui e naturalmente me prontifiquei a aten­dê-la. Você não se incomoda, não é, doçura?

Aubrey tinha apenas nove anos e aparentava menos idade ainda, mas detestava quando alguém se dirigia a ele como se estivesse falando com uma criança abobalhada. Não era o caso dele, natural­mente. Era intelectualmente desenvolvido para a idade e justamente por isso ficou desconfiado da história contada por aquela mulher. Maníaca por segurança e escrava da rotina, a avó dele jamais man­daria Terrence fazer outro serviço na hora em que o motorista teria a responsabilidade de levar Aubrey para casa.

Apertando os livros que carregava, o menino recuou mais um passo na direção da biblioteca.

— Vou ligar para tia Amanda, só para saber se está tudo bem — ele disse, procurando demonstrar calma. — Há um telefone na biblioteca.

O sorriso da loira esmaeceu de forma evidente, embora ela se esforçasse para esconder aquilo.

— Aubrey, querido, admiro o seu bom senso, mas realmente não temos tempo para isso. Prometi a Amanda que o deixaria em casa antes da hora do chá. Sabe como Roseanne reclama quando alguém se atrasa para o lanche.

Aubrey não entendia como aquela gorducha sabia tanto sobre a família Hightower, mas não iria entrar num carro com ela sem au­torização da tia. Havia algo de muito estranho naquela desconhecida.

— Não vou demorar—ele prometeu, virando-se enquanto falava.

— Voltarei num minuto.

A mulher estendeu a mão para retê-lo.

— Chega de bobagens! — ela disse, agora mais parecendo uma professora aborrecida. — Vamos para o carro, Aubrey.

O menino soltou o braço dos dedos de longas unhas da loira.

— Não! — ele gritou, começando a correr.

A mulher tentou segurá-lo novamente, desta vez pela camisa, mas Aubrey conseguiu se livrar e disparou para a biblioteca, sem olhar para trás. Na corrida, quase esbarrou numa atarantada mulher que empurrava um carrinho de bebê, além de carregar dois livros, uma bolsa e uma sacola com roupas do filho.

— Cuidado! — disse a jovem mãe, com rispidez.

Aubrey mal prestou atenção no que ela dizia enquanto abria a porta da biblioteca. Só ouvia a voz da loira, chamando o nome dele e mandando que parasse. Com o coração batendo muito depressa, o garoto soltou um suspiro de alívio quando se viu na segurança do interior. Então arriscou uma olhada pela porta de vidro. A mulher estava no lado de fora, aparentemente indecisa. Olhava para os lados, mexendo nervosamente as mãos gordas. Depois moveu os lábios. Aubrey não ouviu, mas entendeu o palavrão que ela soltou. Final­mente a mulher se afastou, quase correndo.

Apoiando-se na porta e apertando os olhos por trás dos óculos, ele procurou se lembrar de que meninos de nove anos excepcionalmente inteligentes não choravam por qualquer bobagem.

— Aubrey? O que houve, querido? Onde está Terrence?

Aubrey levou um susto e voltou-se rapidamente para a Sra. Camp­bell. A vontade dele foi pular nos braços daquela boa mulher, mas os Hightower eram pessoas de temperamento reservado.      

— Acho que devemos chamar a polícia, Sra. Campbell — ele disse, aprumando o corpo de um metro e vinte e sete centímetros. — Alguém tentou me seqüestrar.

 

Amanda Hightower mexeu-se na desconfortável ca­deira francesa, fechou os olhos e permitiu-se so­nhar durante trinta segundos com uma praia ensolarada. A areia quente e as águas brilhantes que imaginou podiam estar no Havaí, no Taiti ou na Jamaica, em qualquer lugar que não fosse a sala de visitas da antiga mansão da família Hightower, localizada no bairro mais rico de Memphis, no Tinisse. «Miniférias imaginárias.» Era assim que ela chamava aqueles sonhos à luz do dia, nos quais buscava forças quando as pressões da vida real pareciam insuportáveis. Como naquele momento.

Relutante, Amanda abriu os olhos e focalizou o rosto sério da mãe, Eleanor Cummings Hightower. Eleanor vinha falando sem parar nos últimos dez minutos, criticando o que considerava ser incom­petência e descaso do Departamento de Polícia de Memphis.

Outra vez Amanda tentou defender os rapazes de uniforme azul, embora começasse a concordar com a afirmação da mãe de que eles não haviam ajudado tanto quanto podiam.

— A polícia fez o possível até agora, mamãe. Eles não têm ne­nhuma pista.

— O que eles querem mais? — despachou Eleanor, com os olhos cinzentos fuzilando. — Aubrey fez uma excelente descrição da mu­lher que tentou seqüestrá-lo, dando detalhes das roupas que ela usava, mas aqueles investigadores incompetentes acham pouco. Na certa esperavam que um menino de nove anos agarrasse a seqüestradora e ficasse esperando peia chegada deles.

— Mamãe, há centenas de loiras gorduchas em Memphis... milhares. A polícia não pode interrogar todas elas. Como eles argu­mentaram, não se pode nem ter certeza de que a mulher era uma loira. Podia estar de peruca. Os policiais não têm uma descrição do carro, uma testemunha... não podem fazer nada.

Numa rara demonstração de descontrole emocional, Eleanor bateu com o punho fechado no braço da poltrona.

— Dois dias atrás uma mulher tentou seqüestrar meu neto e a polícia diz que não pode fazer nada! Será que tenho que aceitar isso sem nenhum protesto?

Pelo menos naquele instante Amanda sentiu plena simpatia pela mãe. Ela própria estava aterrorizada com o que quase havia acon­tecido e com a possibilidade de que Aubrey sofresse uma nova ten­tativa de seqüestro.

— Não vamos permitir que ninguém leve Aubrey embora, mamãe — ela declarou, colocando na voz o máximo que pôde de confiança.

— Tomaremos providências para protegê-lo. Nada de visitas desa­companhado a bibliotecas ou museus. Alguém estará com ele o tempo todo. Se isso a faz sentir-se melhor, contrataremos um detetive par­ticular para investigar o incidente, embora eu duvide que alguém consiga ir além de onde a polícia já foi.

Eleanor cruzou as mãos sobre o colo, com uma expressão um tanto presumida, o que deixou Amanda desconfiada.

— O que andou fazendo, mamãe?

— Teremos os serviços de um especialista em segurança — res­pondeu Eleanor. — Ele chegará amanhã.

— Um especialista em segurança? Que especialista em segurança? Chegará de onde?

— De Seattle. Estive conversando ontem com minha velha amiga Jéssica Luck e, quando contei o que quase havia acontecido, ela recomendou que trouxéssemos o filho dela para passar alguns dias aqui, a fim de nos aconselhar sobre as melhores formas de proteger Aubrey, Ele tem experiência nesse tipo de coisa.

Embora não conhecesse Jéssica Luck pessoalmente, desde menina Amanda ouvia falar na antiga colega de escola de Eleanor. Sabia que a mãe gostava muito daquela mulher, com quem se correspondia com regularidade e vez por outra conversava por telefone. Mesmo assim havia umas certas coisas que precisaram ser explicadas.

— Vamos começar pelo princípio, mamãe. Quem é o filho de Jéssica, qual é a experiência dele nesse tipo de coisa e por que ele está vindo para cá?

Sentado na poltrona do avião, o investigador Jonathan Luck res­mungou um palavrão enquanto tentava encontrar a melhor posição para a perna machucada. A bonita e morena aeromoça aproximou-se dele com um sorriso.

— Está tudo bem, Sr. Luck? Precisa de alguma coisa? Jon balançou a cabeça.

— Não, obrigado — ele respondeu, retribuindo com um sorriso distraído.

A moça observou-o durante mais alguns instantes e afastou-se para dar continuidade ao seu serviço.

Em outras circunstâncias Jon teria feito alguma coisa para co­nhecer melhor uma mulher tão atraente, e obviamente atraída, mas preferiu não retê-la. Além de não conseguir uma posição confortável, estava enraivecido consigo mesmo.

Era tudo culpa dele próprio. Como podia ter deixado que a mãe o convencesse?

Mas sabia que não teria tido muitas chances. Quando Jessie Luck colocava alguma coisa na cabeça, ninguém era capaz de dissuadi-la, nem mesmo o adorado marido ou os três exasperados rebentos, em­bora igualmente adorados.

— Afinal de contas, Jon, você estará de licença durante as pró­ximas seis semanas — havia lembrado a mãe dele. — E tem expe­riência nessas coisas. Minha amiga precisa da sua ajuda, querido. Vai fazer esse favorzinho à sua mãe, não vai?

Era uma pergunta que ele vinha ouvindo a vida inteira, e sempre se submetia. Quase invariavelmente acabava se arrependendo de ter concordado em fazer mais um «favorzinho» à mãe. Daquela vez até que havia resistido bravamente.

— Ah, não, mamãe — ele tinha dito, com firmeza. — De jeito nenhum. Sinto muito, mas desta vez não posso atendê-la. Não há nada que eu possa fazer pela sua amiga, seja qual for o problema dela. Eu certamente não irei...

Mas ele iria, certamente. Agora estava num avião com destino a

Memphis, no Tinisse, para ficar na casa de duas mulheres que jamais vira na vida e oferecer serviços de proteção a um garoto de nove anos que havia sofrido uma tentativa de seqüestro, três dias antes.

Este será meu último favor, mamãe.

Na manhã do sábado, Amanda parou no lado de fora do quarto do sobrinho e respirou fundo antes de bater na porta.

— Aubrey? É tia Amanda.

— Entre.

A porta servia para diminuir a vibração que podia haver naquela voz infantil, mas mesmo assim Amanda percebeu o pouco entusiasmo do menino. Respirando fundo novamente ela empurrou a porta e armou o sorriso para entrar no quarto.

Aubrey estava sentado à escrivaninha colocada num dos cantos do espaçoso quarto, parecendo muito pequeno e vulnerável por trás daquela pilha de livros. Quando olhou para a tia através dos óculos, a expressão dele era cortês mas distante. Como sempre.

— Já está quase na hora do almoço, Aubrey. Você precisa tomar banho.

Obedientemente o menino fechou o livro. Era sempre obediente.

— Está bem, tia Amanda. Logo estarei descendo.

Aubrey também era bem-educado, mas paradoxalmente aquele pensamento entristeceu Amanda. Quando já estava se voltando para sair ela resolveu esticar um pouco a conversa.

— O que está estudando?

— Álgebra.

Já no curso secundário, Aubrey freqüentava uma turma três anos adiante de meninos da idade dele.

— Eu sempre gostei de álgebra — comentou Amanda. — É di­vertido tentar descobrir o valor de x, y ou qualquer outra incógnita, não é mesmo? Dá sempre a impressão de que estamos solucionando um mistério.

— E, sim, tia Amanda — respondeu o garoto, sem levantar os olhos do caderno e do lápis que ia cuidadosamente arrumando.

Não estava sendo uma conversa lá muito animada. A pergunta seguinte foi feita com cuidado.

— Aubrey... você está bem? Não está mais preocupado com o que aconteceu outro dia na biblioteca, não é?

Amanda sabia que Aubrey tivera pelo menos um pesadelo desde o incidente. Ao entrar no quarto dele na noite seguinte à tentativa de seqüestro, o encontrara choramingando na cama, inquieto. O me­nino havia negado lembrar-se do sonho ao ser carinhosamente acor­dado com palavras de conforto, mas era evidente que estava assus­tado. Se ao menos fosse mais receptivo às tentativas de aproximação dela, aceitasse um pouco de conforto...

— Eu estou bem, tia Amanda. Agora vou tomar banho.

Sem conseguir dizer mais nada por causa do nó que sentiu na garganta, Amanda foi saindo do quarto. Enquanto caminhava pelo corredor, viu-se lutando para controlar as lágrimas, algo que vinha se tornando comum sempre que enfrentava mais uma rejeição nas tentativas de se aproximar do sobrinho, que há cinco meses estava sob a guarda dela.

No fim daquele tarde Amanda ficou caminhando nervosamente de um lado para outro na sala de visitas, aguardando a chegada de Jonathan Luck. Enquanto andava precisava se desviar das delicadas cadeiras e das mesinhas de madeira trabalhada onde estavam frágeis e caros vasos de porcelana. Lembrava-se com saudade do aparta­mento do qual tivera que desistir cinco meses antes. Aquele, sim, era lugar bom para se caminhar, já que tinha apenas os móveis necessários. Eleanor sempre o havia detestado, mas Amanda real­mente gostava do apartamento.

Mas não adiantava lamentar. Com a morte trágica do irmão e da cunhada, ela se vira obrigada a morar novamente na casa da mãe, já que ficara responsável pela guarda legal de Aubrey. Agora estava determinada a fazer tudo pela segurança do menino, mesmo que precisasse contratar um guarda-costas em tempo integral para pro­tegê-lo. Já teria feito isso se a mãe não a houvesse convencido a esperar até que elas pudessem conversar com o tal «especialista em segurança» que estava para chegar a qualquer minuto.

Amanda sentou-se no sofá.

— Especialista em segurança — ela resmungou, apertando uma almofada para descarregar a raiva. — Parece até que ele é o melhor do ramo, só porque é filho de uma velha amiga de mamãe.

Na verdade o tal homem não passava de um investigador de polícia. A ação do Departamento de Polícia de Memphis nos três dias que já se haviam passado desde a tentativa de seqüestro não animava Amanda a recorrer novamente a tiras. Ela preferia alguém que não estivesse comprometido com normas, regulamentos e for­malidades, alguém disposto a fazer qualquer coisa para proteger Au­brey.

O discreto toque da campainha a fez levantar-se. Preferindo não esperar até que Roseanne fosse abrir a porta, Amanda caminhou para atender pessoalmente. Já havia aprendido que, para lidar com policiais, era sempre bom ter o controle da situação.

O homem parado à porta não era nada do que Amanda estava esperando.

A mãe dela tinha dito que Jonathan Luck era um investigador de Seattle que se ferira recentemente e ficaria várias semanas de licença médica. Eleanor havia informado também que Jonathan, de trinta e três anos, o mais velho dos três filhos de Jéssica, era solteiro e muito «devotado» à mãe.

Amanda havia imaginado um homem calmo, discreto, com a apa­rência de um intelectual e mais para o tipo Sherlock Holmes. Alguém que aparecesse discretamente na mansão Hightower, desse algumas sugestões e fosse embora sem chamar muito a atenção.

Ela não havia pensado mesmo que Jonathan Luck seria tão alto e musculoso. Mesmo apertando com a mão direita o cabo de uma bengala, ele parecia exalar força por todos os poros.

Amanda também não havia imaginado que veria um rosto tão bonito, apesar de certamente já ter tido contato com um bom número de punhos enraivecidos. Os espessos e lisos cabelos castanhos-escuros emolduravam o rosto e os olhos verdes estavam apertados pelo sorriso que ele mostrava. E era um sorriso essencialmente mas­culino, algo que fez Amanda sentir um calor nas entranhas, um apelo da libido.

Em suma, Amanda não havia pensado que receberia um homem que pareceria tão à vontade numa briga de bar quanto na cama com uma mulher.

Em que confusão nos meteu desta vez, mamãe? Superando o espanto ela conseguiu sorrir.

— O senhor deve ser o investigador Luck. Eu sou Amanda Hightower. Entre, por favor.

— Pode me chamar de Jon — ele disse, coxeando enquanto pas­sava por ela. — Estou de licença.

Atrás dele entrou o jovem e moreno Terrence, carregando uma usada valise de couro em cada mão.

— Terrence, leve a bagagem do Sr. Luck para o quarto de hóspedes azul — instruiu Amanda.

— Está certo, dona Amanda — respondeu o rapaz, caminhando para a larga escada em curva e sorrindo para Jonathan. — Até logo mais, Jon.

Amanda ficou espantada com aquela falta de cerimônia, mas Jo­nathan também sorriu para responder ao motorista.

— Vou cobrar a sua promessa de que me levará para conhecer Beale Street, Terry. Avise-me quando tiver uma noite livre.

— Pode contar com isso — prometeu Terrence, começando a subir a escada enquanto assobiava um antigo blue.

Amanda olhou outra vez para Jonathan, que parecia desafiá-la a comentar a amizade dele com um simples motorista. Bem, parecia um bom desafio.

— Estou vendo que não tem dificuldade para fazer amigos, in­vestigador Luck.

— Jon — ele repetiu.—É, eu sou rápido para fazer uma amizade... quando gosto da pessoa.

Mesmo contra a vontade, Amanda perguntou-se se aquele homem alto, atraente e de aparência perigosa estava gostando dela. Sufocando aquele pensamento bobo ela fez um gesto na direção da sala de visitas.

— Bem, vamos nos sentar. Quer tomar alguma coisa antes que comecemos a conversar sobre a segurança do meu sobrinho?

— Boa idéia — aprovou Jon, apoiando-se pesadamente na bengala para segui-la até a sala. — É uma longa viagem de Seattle a Memphis.

Amanda perguntou-se se Jonathan havia se ferido no cumprimento do dever. Apenas ficara sabendo pela mãe que ele havia machucado a perna e precisava de algumas semanas para se recuperar. Embora estivesse ali para aconselhá-las sobre a segurança de Aubrey, apa­rentemente aquele homem não dava muita importância à própria segurança.

Depois de indicar com um gesto a poltrona vitoriana, que pareceu ridiculamente pequena ao ser ocupada por Jon, Amanda prometeu que voltaria em seguida e escapou para a cozinha à procura de Roseanne. Parando no corredor ela respirou fundo para recobrar a com­postura. Sentia-se meio tonta desde que vira aquele sorriso despreo­cupado no rosto de Jonathan Luck.

Jonathan ficou olhando enquanto Amanda deixava a sala, repa­rando naquelas ancas esbeltas e na forma como a saia rodada ba­lançava em volta das pernas compridas e bem torneadas. Nada mal, ele pensou, erguendo uma sobrancelha. Nada mal mesmo.

Nada naquela viagem estava sendo como ele havia esperado.,, Não havia pensado que seria aguardado no aeroporto, por um motorista uniformizado com um enorme Lincoln cinzento. Depois Terrence tinha passado com o carro por um enorme portão e atra­vessado um jardim de vastos e verdejantes gramados, coloridos can­teiros de flores e árvores frondosas. Segundo o rapaz, o jardim tinha doze acres. A mansão Hightower, uma construção colonial de tijolo aparente e frisos brancos que se erguia ao fim de uma comprida pista, devia ter no mínimo uns setecentos metros quadrados de área construída.

— Esta é a residência da família Hightower? — ele havia per­guntado ao motorista, de quem já se sentia íntimo o suficiente para chamar pelo apelido.

— Bela casa, não?

— Acho que se pode dizer isso — havia concordado Jon, com secura.

— Principalmente quem cresceu numa casa de madeira de três quartos num bairro operário de Seattle.

— Ou numa casa de cômodos no centro velho de Memphis — acrescentara Terry, sério. — Eu fiquei até com medo no meu primeiro dia de trabalho aqui.

Jon não tinha ficado muito à vontade com a perspectiva de passar mais ou menos uma semana naquela casa, mas não iria admitir aquilo, nem mesmo para Terry. Embora não tivesse muitos contatos com gente rica, ele conhecia alguns ricaços e sabia que era preciso uma pessoa ter algo além de dinheiro para merecer respeito.

Jon fora informado por Jéssica de que Amanda Hightower era solteira, vivia com a mãe e o sobrinho na antiga mansão da família e tinha uma pequena loja de presentes na parte rica da cidade. Havia imaginado uma reprimida solteirona aproximadamente da idade dele, o que nem de longe o deixara ansioso para conhecê-la.

Até o momento em que Amanda abrira a porta.

A primeira reação dele foi pensar que, se aquela mulher era uma empregada da casa, os Hightower realmente tinha bom gosto para escolher as pessoas que contratavam.

Depois ela havia sorrido e falado com aquele sotaque tão sulista quanto a torta de nozes da mãe dele, levando-o a concluir que se enganara redondamente ao imaginar Amanda Hightower. A mulher diante dele tinha cabelos castanhos que alcançavam os ombros, rosto oval, grandes olhos também castanhos, nariz levemente arrebitado, boca bem desenhada e um corpo esbelto mas de curvas decididamente femininas. Devia estar com uns vinte e cinco ou vinte e seis anos e era pelo menos vinte centímetros mais baixa que Jon, que tinha um metro e oitenta e cinco.

Amanda Hightower não tinha nada a ver com a solteirona que ele havia imaginado. Mas havia uma expressão que a definiria bem: uma mulher de tirar o fôlego.

Jon ouviu um leve barulho e voltou-se. Retornando à sala, Amanda sorriu polidamente para ele. Caminhava como uma perfeita dama, mas com uma graça absolutamente sedutora.

Ah, mamãe, talvez desta vez eu a perdoe, ele pensou.

— Logo Roseanne trará as nossas bebidas, Jonathan — disse Amanda, sentando-se.

— Chame-me de Jon — ele voltou a pedir, num tom grave, bem de acordo com o jeito felino. — Se vamos dormir sob o mesmo teto, não precisaremos de formalidades.

Amanda sentiu as faces quentes ao ouvir a expressão «dormir sob o mesmo teto» e rezou para que ele não reparasse naquilo.

— Está bem, Jon. E sinta-se à vontade para me chamar de Amanda.

— Está certo — ele respondeu. — Agora me diga por que acha que alguém tentou seqüestrar seu sobrinho.

Aparentemente aquele homem não perdia tempo com sutilezas. Alguma coisa no jeito de falar dele fazia Amanda lembrar-se da irritante postura dos funcionários da polícia que tinham feito tão pouco para garantir a segurança de Aubrey. — Eu não acho que alguém tentou seqüestrar meu sobrinho — ela rebateu. — Eu sei que foi isso o que aconteceu.

Jon assentiu com a cabeça, num gesto de impaciência.

— Está bem, não precisa ficar na defensiva. Só quero que me conte o que aconteceu.

Amanda apontou o queixo para ele.

— Eu não estou na defensiva, mas já não agüento mais as insi­nuações feitas por policiais de que estou paranóica ou histérica em relação à segurança de Aubrey. Não se trata de histeria ou paranóia, investigador Luck. A mulher que abordou Aubrey chamou-o pelo nome e sabia mais sobre esta casa do que devia saber. Acha que isso é paranóia?

Jon olhou para ela com as sobrancelhas erguidas.

— Eu não diria isso... mas você está na defensiva, Amanda. Eu só lhe fiz uma pergunta.

Amanda corou ao perceber que ele definia com absoluta precisão o que estava acontecendo... e também porque Jon estava evidente­mente se divertindo com aquilo. Adotando a postura de dignidade que havia aprendido com a mãe ao longo dos anos ela passou a se expressar com frieza.

— Três dias atrás alguém tentou agarrar meu sobrinho por motivos que não consigo imaginar. A polícia nos fez dúzias de perguntas e preencheu uma infinidade de formulários, mas fora isso prestou-nos bem pouca assistência. Fomos aconselhados a ter mais cuidado no futuro e a tentar esquecer o que havia acontecido. Quando eu ex­pressei minha preocupação de que a tentativa de seqüestro pudesse voltar a acontecer, fui educadamente acusada de ser uma paranóica. Assim sendo, talvez eu esteja mesmo um pouco na defensiva, in­vestigador Luck, mas acho que tenho bons motivos para isso!

Jon apoiou os pulsos nas coxas, inclinou-se para a frente e olhou diretamente nos olhos dela.

— Vamos deixar algumas coisas bem claras — ele disse, num tom cortante. — Primeiro: não estou aqui numa investigação oficial e você pode parar de me chamar de «investigador». Como já disse, meu nome é Jon. Segundo: não pertenço à polícia de Memphis e não tenho culpa pelo que os policiais daqui fizeram para aborrecê-la. Atravessei metade do país para fazer um favor à minha mãe e à sua. Para que a minha estada aqui dê algum resultado vou precisar da sua cooperação, mesmo que seja para responder às mesmas per­guntas que a polícia local já lhe fez. Acha que suportará isso?

Amanda percebeu que eles estavam começando de uma forma totalmente errada, e a culpa era principalmente dela. Jon tinha razão. Ele estava ali para ajudar, não para importuná-la. Além disso, tudo levava a crer que Jéssica Luck e Eleanor Hightower eram muito parecidas, o que significava que ele fora forçado a fazer aquela viagem.

— Desculpe — ela se obrigou a dizer. — Você tem razão, na­turalmente. Eu descarreguei em você a minha frustração com os policiais da cidade, o que não foi uma atitude justa. Fico grata, é claro, por ter vindo até aqui para...

— Escute — disse Jon, erguendo a mão para silenciá-la. — Você provavelmente teve tanta influência na minha presença aqui quanto eu. Se a sua mãe for igual à minha, na certa arranjou tudo antes de lhe fazer qualquer comunicação.

Ao ver nas palavras dele o que ela própria havia acabado de pensar, Amanda mostrou um meio sorriso.

— Bem...

— Foi o que pensei. Pois vamos fazer um trato. Você cooperará comigo repetindo tudo o que já disse à polícia de Memphis, e eu tentarei não me parecer tanto com um tira quando lhe fizer perguntas. Levarei alguns dias examinando as medidas de segurança que vocês já tomaram e recomendarei o que for necessário para melhorá-las. Se descobrir alguma pista, por menor que seja, de quem possa ter tentado o seqüestro, passarei a informação ao pessoal da polícia local. Depois disso irei embora e você poderá voltar ao que estava fazendo antes que as nossas mães tivessem a brilhante idéia de me chamar. É um trato justo, não acha?

Desarmada pela franqueza dele, Amanda balançou afirmativamente a cabeça. Quando abriu a boca para concordar com palavras, foi interrompida pela mulher que entrou na sala carregando uma bandeja. Grata por aquela folga temporária, Amanda se apressou em apresentar o desconcertante hóspede.

— Roseanne, este é o Sr. Jonathan Luck, que ficará hospedado conosco durante os próximos dias. Sr. Luck, esta é a Sra. Roseanne Wallace, nossa governanta.

Jon já havia se levantado, para surpresa de Amanda. Apoiando-se na bengala ele sorriu para Roseanne.

— Prazer em conhecê-la, Sra. Wallace. Esses bolinhos devem estar deliciosos, principalmente depois do lanche que fui obrigado a comer no avião.

Roseanne foi imediatamente cativada. O que mais espantou Aman­da foi o fato de que o homem que tinha sido tão ríspido com ela agora despejava um irresistível charme sobre a governanta.

— Obrigada, Roseanne — ela disse. — Eu mesma servirei. Cha­maremos se precisarmos de mais alguma coisa.

Outra vez a sós com Jon, Amanda serviu a ele um copo de chá gelado e um pratinho com sanduíches e bolinhos recheados. Depois de colocar tudo numa mesinha à frente dele, voltou à própria cadeira com um copo de chá na mão e a firme determinação de, daquele momento em diante, procurar ser simpática com aquele homem.

Jon aparentemente havia tomado a mesma decisão.

— Está muito bom — ele elogiou, depois de comer metade de um sanduíche com uma só mordida.

— Há mais, se você quiser. Jon assentiu com a cabeça.

— Enquanto você fala, eu como. Comece pelo começo.

Bem, pelo jeito Jon Luck gostava de ir direto ao assunto, mesmo quando decidia ser cortês. Mas ela procuraria lidar com aquilo sem ficar outra vez na defensiva.

Segurando o copo com as duas mãos, Amanda levou alguns ins­tantes para organizar os próprios pensamentos.

— Aconteceu aproximadamente às quatro horas da tarde de quarta-feira. Aubrey encontrava-se na biblioteca pública fazendo umas pesquisas para um trabalho da escola. Estava lá há uma hora e meia.

— Estava lá sozinho?— perguntou Jon, levantando os olhos do prato.

Não fique na defensiva, Amanda.

— Sim. Terrence o levou até lá e ficou de apanhá-lo às quatro. A bibliotecária-chefe, Sra. Campbell, sabia que Aubrey estava lá e ficou atenta a ele.

— Uma bibliotecária não é uma babá — disse uma voz masculina vinda da porta da sala. — O mesmo pode ser dito de um motorista. Aubrey estava sozinho na biblioteca, como sempre está... e quase foi seqüestrado por causa da negligência da guardiã. Isso apenas prova o que eu venho dizendo há um bom tempo: Amanda Hightower jamais devia ter sido nomeada guardiã de um menino de nove anos!

 

Numa reação instintiva ao tom inamistoso daquela voz Jon estendeu a mão para pegar a bengala. De­pois ergueu os olhos para Amanda. Espantada, ela olhava para o homem que a fitava com uma expressão maldosa no rosto. Jon não sabia quem era aquele sujeito, mas no mesmo instante decidiu que não gostava dele.

— Howard — disse Amanda, olhando para o homem calvo e atarracado que Jon achou ter perto de cinqüenta anos. — Não ouvi a campainha.

— Eu não toquei — despachou o recém-chegado. — Você pro­vavelmente orientou aquela sua governanta arrogante para não me admitir aqui e por isso resolvi ir entrando. Quero conversar com você e desta vez terá que me escutar.

Jon pôs-se de pé, lamentando ter que se apoiar na bengala. Quando falou foi com absoluta frieza.

— Esse sujeito já passou da conta, Amanda. Quer que ele saia? O tal Howard olhou com desprezo para a bengala que ele segurava

com a mão direita.

— Pretende me pôr para fora?

— Se for preciso — respondeu Jon, tentado a cumprir a ameaça.

— Tenho assuntos para tratar com essa mulher e não vou sair. A menos que você seja um policial ou um advogado, nem precisa ficar aqui.

Jon mostrou um sorriso de desagrado.

— Então é muita sorte minha ser um policial, não é mesmo?

— Então prove.

Jon pegou a carteira mas Amanda ergueu a mão.

— Ele não precisa provar nada. O intruso aqui é você, Howard. O que quer?

— Só hoje fiquei sabendo do que aconteceu na biblioteca na quarta-feira. Tive que ouvir de outras fontes, já que nem você nem sua mãe se preocuparam em me informar de que meu sobrinho quase foi seqüestrado. Não achou que eu tinha o direito de saber?

—Tentei avisá-lo por telefone na quarta-feira à noite — respondeu Amanda, com naturalidade. — Você não estava na cidade.

— Voltei para Memphis há quase trinta e seis horas.

— Eu obviamente não estou inteirada do seu itinerário. Sinto muito se ficou sabendo do incidente por terceiros, Howard, mas acredite que não o excluímos deliberadamente.

Howard fez uma careta.

— Sim, claro.

Amanda suspirou, procurando ser paciente.

— Deixe-me apresentar-lhe o nosso hóspede, Howard — ela vol­tou a falar, numa voz admiravelmente calma. — Este é o investigador Jonathan Luck, do Departamento de Polícia de Seattle. Ele está aqui para nos aconselhar sobre medidas de proteção a Aubrey. Jon, este é Howard Worley, tio materno de Aubrey.

Nenhum dos dois homens estendeu a mão para o outro.

— Polícia de Seattle, é? — inquiriu Worley, olhando alternada­mente para Amanda e Jon. — Por que diabo um tira de Seattle vem dar assessoria de segurança em Memphis?

— Jon é um velho amigo da família — respondeu Amanda, tor­cendo a verdade com a mais absoluta naturalidade. — E é especialista nesse tipo de coisa. Eu lhe garanto, Howard, que estamos fazendo todo o possível para manter Aubrey em segurança.

— Deixando-o sozinho numa biblioteca pública por uma hora e meia? — rosnou Worley.

Amanda encolheu-se, mas respondeu no mesmo tom de antes.

— Isso não voltará a acontecer. De agora em diante haverá alguém com ele o tempo todo.

— Quando irá admitir que não está preparada para assumir essa responsabilidade, Amanda? Deixe o menino comigo. Loretta e eu proporcionaremos a ele toda a segurança necessária.

Amanda não respondeu e Worley prosseguiu, agora num tom calmo e persuasivo.

— Você é uma mulher solteira. Tinha a sua vida antes da tragédia que matou o seu irmão e a minha irmã... a sua carreira, o seu apar­tamento, o noivado com um brilhante professor universitário. Não precisava desistir de tudo isso só porque o seu irmão, num ato ir­responsável, a nomeou guardiã do filho dele.

Amanda ficou muito pálida.

— Em toda a vida meu irmão nunca fez nada de irresponsável, Howard. Embora nesse caso não tenha discutido o assunto comigo, tenho certeza de que tinha razões muito boas para me nomear guardiã do filho dele. Aceitei voluntariamente essa responsabilidade. Não desisti da minha carreira e o fim do meu noivado com Edward Miller não tem nada a ver com Aubrey. Agradeço pela preocupação, mas Aubrey ficará aqui, com mamãe e comigo. Sua visita sempre será bem-vinda nesta casa, é claro, mas peço que nos avise com antece­dência sempre que resolver vir. Seria apenas o cumprimento de uma praxe entre pessoas bem-educadas.

Jon teve de admirá-la pela forma como ela havia colocado o sujeito em seu devido lugar. Antes aquele jeito pomposo de falar o havia deixado irritado, mas era bem o que o cretino merecia.

Mas Worley não partilhava da mesma admiração.

— Eu lamentaria muito o embaraço que seria para todos nós a transformação disso numa batalha de tribunal, Amanda, mas é o que vou ter de fazer para garantir o bem-estar do meu sobrinho.

Amanda ficou tensa.

— Está ameaçando requerer judicialmente a custódia de Aubrey?

— É exatamente o que estou ameaçando. Pense nisso, Amanda. Minha esposa e eu podemos oferecer àquela criança um lar estável, normal. Você é uma mulher solteira que vive com uma velha e alguns empregados sem nenhuma afeição pelo menino. Ele não tem amigos, não pratica esportes, não se envolve em nenhuma atividade própria para um garoto de nove anos. Você está querendo transfor­má-lo num rato de biblioteca bobalhão e efeminado, exatamente como...

Worley interrompeu subitamente o que dizia e Amanda concluiu a frase para ele.

— Como o pai?

— Sim, como o pai — repetiu o homem. — Deixe que eu faça dele um menino normal... se já não é tarde demais para isso.

— Quero que você saia agora, Howard.

Pelo leve tremor da voz, Jon viu que Amanda estava a ponto de perder o controle. E ele até queria ver como seria aquilo. Tinha a desconfiança de que ela transformaria Worley em pedacinhos sem ao menos parar para respirar. Quase ficou desapontado quando viu que Worley não estava disposto a ficar por muito tempo.

— Você ainda não ouviu o fim dessa história, Amanda — rosnou o homem, recuando para a porta da sala.

— Por favor, Howard, não recorra a clichês dramáticos. Quem os usa sempre corre o risco de parecer idiota, não acha?

Ponto para Amanda, pensou Jon, com um sorriso contido.

Howard lançou a ela um olhar de ódio antes de sair da sala. Amanda ficou parada até que ouviu a porta da frente batendo. Só então permitiu-se relaxar, mas tão discretamente que Jon só percebeu porque a observava atentamente.

— Desculpe — ela disse, voltando-se para ele. — Isso foi muito desagradável.

— Ele tem sido tão inconveniente assim desde a morte do seu irmão?

— Como pôde ver, Howard não aceita o fato de Jerome me ter nomeado guardiã de Aubrey.

— Por acaso o seu irmão deixou uma herança grande para o filho?

Amanda pareceu perturbada.

— Sim — ela admitiu. — Bem grande. Mesmo assim não quero acreditar que seja esse o único motivo que Howard tem para rei­vindicar a custódia do sobrinho.

Jon fez uma cara de descrença.

— Por que acho difícil acreditar que é apenas o bom coração de Worley que o faz agir?

Amanda conseguiu mostrar um leve sorriso.

— Também não acredito muito nisso. — Então ela sacudiu a cabeça, como se quisesse expulsar a lembrança daquela visita desa­gradável, e fez um gesto indicando o sofá. — Sente-se, Jon, por favor. Desculpe por mantê-lo de pé com a perna machucada. Não convidei Howard para se sentar com medo de que ele ficasse por mais tempo.

—- Fez muito bem.

Jon acomodou-se no sofá duro e de encosto reto. Muito certamente aquele móvel havia sido construído com o objetivo único de pro­porcionar desconforto. Ah, o que ele não daria para estar no sofá macio do apartamento onde morava!

Só depois que Amanda se sentou ele tentou retornar ao assunto de antes.

— Sobre o que aconteceu na quarta-feira...

Eles não saberiam dizer qual dos dois ficou mais frustrado quando foram outra vez interrompidos, desta vez por uma mulher de cabelos prateados e um garotinho magro. Jon adivinhou serem eles Eleanor e Aubrey.

Mais uma vez se esforçando para se pôr de pé, ele resolveu que teria uma conversa muito séria com a mãe quando retornasse a Seat­tle. Na próxima vez que oferecesse os serviços dele a alguma amiga, bem que ela podia pensar numa forma de se oferecer!

— Aquele que eu vi quando estava chegando não era Howard Worley? — inquiriu Eleanor, antes que a filha tivesse a chance de saudá-la.

— Era, sim — confirmou Amanda.

— O que estava fazendo aqui? Você contou a ele o que aconteceu?

— Howard já sabia. Veio aqui para... — Amanda olhou para o sobrinho e para Jon antes de continuar. — ... para ter notícias de Aubrey. Está muito preocupado.

Eleanor fez uma cara de descrença. Jon reparou que a expressão de Aubrey era absolutamente impassível.

— Mamãe, este é Jonathan Luck — apresentou Amanda. — Jo­nathan... minha mãe, Eleanor Hightower.

Eleanor estudou Jon atentamente.

— Você tem os olhos da sua mãe — ela decretou, depois de alguns segundos.

— É o que dizem — respondeu Jon, um tanto divertido com o jeito de falar daquela mulher. Agora ele se lembrava de que a mãe tinha dito que Eleanor sempre fora «um pouquinho mandona». — Minha mãe lhe manda lembranças, Sra. Hightower.

— Ah, quanta gentileza. E você pode me chamar de Eleanor — ela permitiu, como uma rainha que fizesse uma concessão a um súdito de muita sorte. — Este é o meu neto, Aubrey Jerome High­tower. Aubrey, cumprimente o Sr. Luck.

Jon voltou a atenção para o garoto de pé ao lado da avó, os braços finos sustentando um estojo de violino e uma sacola de couro que provavelmente continha livros de música.

— Olá, Sr. Luck — recitou o menino, cumprindo a ordem. — É um prazer conhecê-lo.

Enquanto retribuía ao cumprimento Jon achou que simpatizava com aquele garoto. Aubrey era fisicamente pouco desenvolvido para a idade, mas tinha uma dignidade pouco comum numa criança. Os cabelos curtos e ruivos estavam bem penteados, os olhos tinham o tamanho exagerado pelas grossas lentes dos óculos e os lábios mos­travam um sorriso de pouco entusiasmo. Embora sem gravata, o menino vestia um impecável terno azul e sapatos pretos de couro. Jon duvidou de que Aubrey Hightower pudesse ao menos ter uma calça jeans e um par de tênis.

— Como foi o recital de hoje, Aubrey? — quis saber Amanda. Jon não entendeu por que ela parecia tensa ao fazer a pergunta.

— Foi um bom recital — respondeu o menino, sem nenhuma mudança de expressão. — A assistência aplaudiu e a minha profes­sora disse que eu toquei muito bem.

— Infelizmente desta vez eu não pude ir. Não quer um bolinho? Posso pedir a Roseanne que traga um copo de leite para você.

— Não, obrigado, tia Amanda. Não estou mesmo com fome.

— Não quer levar suas coisas para o quarto, Aubrey? — sugeriu Eleanor, sentando-se numa cadeira ao lado de Amanda.

Jon ficou contente por poder voltar ao mesmo assento de antes, por mais desconfortável que fosse. Já estava com a perna doendo. Mesmo assim não parou de olhar para Aubrey. Alguma coisa naquela criança o deixava intrigado.

— Sim, vovó — respondeu o menino, voltando-se para a porta. — Acho que vou estudar um pouco antes do jantar.

— Está bem, mas não se esqueça da hora. Não vá se atrasar outra vez para o jantar.

—: Não me atrasarei, vovó.

Jon ficou reparando enquanto Aubrey saía da sala. O relaciona­mento de Amanda com o menino parecia tenso. Por quê? Será que Worley estava certo ao dizer que ela não se adequava à função de guardiã de uma criança... talvez por relutância dela própria?

— Ele sabe por que estou aqui? — perguntou Jon, depois que o menino saiu.

— Sim, é claro — respondeu Amanda. — Nós dissemos a ele que você é um policial experiente e que está aqui para nos ajudar.

— Sempre assim tão... retraído, ou ainda está assustado por causa do incidente?

Jon olhava para Amanda ao"fazer a pergunta e viu claramente que os olhos dela se anuviavam. Era como se ele houvesse colocado o dedo na ferida.

Mas foi Eleanor quem deu a resposta.

— Aubrey é um menino bem-comportado, Jonathan. Uma criança brilhante. Já está na sétima série, três anos adiante do que seria normal para a idade. Tem saúde delicada, por causa de uma doença que teve quando bebê, mas é muito maduro. É sério por natureza e está lidando muito bem com a situação.

Jon não concordava muito com aquilo, mas afinal de contas estava falando com a avó do menino. Eleanor devia conhecer o neto melhor do que ele. Qualquer garoto de nove anos que Jon conhecesse teria avançado naquela bandeja de doces e seria absurdo pensar que algum deles realmente preferiria estudar... pelo menos não numa tarde de sábado.

Eleanor olhou para a filha.

— Agora que Aubrey já foi, conte-me o que Howard Worley veio fazer aqui. Tenho certeza de que ele não queria apenas notícias de Aubrey.

— E está certa — confirmou Amanda, com um leve suspiro. — Howard insistiu novamente que Aubrey deve morar com ele e Loretta e usou a tentativa de seqüestro como uma evidência de que eu não sirvo para guardiã.

— Como teve a ousadia? Aquele...

— Mamãe — interrompeu-a Amanda, num tom cansado. — Eu pedi a Howard que não usasse clichês dramáticos. Espero não precisar lhe fazer o mesmo pedido.

Jon engoliu o riso que sentiu vontade de soltar. Pelo jeito, com a mãe Amanda não mostrava tanta timidez quanto havia demonstrado diante dele e de Worley. Era bom para ela.

— Ora, Amanda — queixou-se Eleanor. — Não precisa falar comigo desse jeito.

— Desculpe, mamãe. O dia não está sendo muito fácil para mim. Eleanor pareceu contentar-se com aquilo, mas persistiu no assunto.

— Se Howard pensa que vai tirar de nós aquela criança, apesar da vontade expressa de Jerome, está redondamente enganado.

— Acho melhor deixarmos para discutir isso mais tarde, mamãe. Não quero que Jon tenha uma má impressão da nossa família.

— Jonathan está aqui para nos aconselhar sobre segurança — lembrou-a Eleanor. — Isso certamente inclui tomar medidas contra futuras complicações causadas por Howard Worley.

— Worley já causou alguma complicação a vocês? — perguntou Jon, dirigindo-se a Eleanor.

— Ele insiste em visitar Aubrey pelo menos duas vezes por mês — respondeu a mulher, com irritação. — Aubrey não gosta dele e eu tenho certeza de que Howard não tem a menor afeição pelo me­nino. Nós achamos que a esperança dele é encontrar um bom motivo para requerer judicialmente a custódia. É sempre muito crítico em relação à forma como Amanda e eu criamos Aubrey.

— Crítico em que sentido?

Eleanor apenas abriu os braços e Amanda dispôs-se a responder, embora relutante.

— Howard é muito grosseiro quando se refere à personalidade de Aubrey. Chama-o de efeminado e rato de biblioteca... e na frente do menino! Censura os pais de Aubrey, com quem nunca se deu bem, pela criação que davam ao filho antes de morrerem, e afirma que só estamos piorando o que já era ruim.

— Não existe absolutamente nada de errado com a criação de Aubrey — insistiu Eleanor. — Worley simplesmente não vê que meu neto é uma criança especial. Meu filho e a esposa perceberam bem cedo os dotes de Aubrey e o incentivaram a desenvolvê-los desde a primeira infância. Certamente iriam querer que prosseguís­semos na mesma linha.

Se fosse menos perceptível Jon consideraria Eleanor insensível pela forma como havia se referido ao filho morto; No entanto, e apesar da máscara de compostura que aquela mulher havia aprendido a usar ao longo de muitos anos de vida, ele pôde ver a tristeza que havia naqueles olhos azuis. Assim como viu o leve tremor nos lábios de Amanda quando ela ouviu a referência aos pais de Aubrey. Ele até se perguntava se alguma das pessoas daquela família, Eleanor, Amanda ou Aubrey, já havia deixado que a dor chegasse à superfície.

Quanto ao repelente Worley, haveria alguma possibilidade de que a tentativa de seqüestro fosse uma manobra para colocar nas mãos dele o dinheiro de Aubrey sem a necessidade de um processo judicial provavelmente fadado ao fracasso?

— Pois muito bem — disse Jon, cruzando os braços e procurando a melhor posição no desconfortável sofá. — Falem-me sobre a ten­tativa de seqüestro, desde o começo. Se tiver alguma pergunta eu interromperei.

Entre a narrativa de Amanda e as freqüentes interrupções de Elea­nor, Jon levou algum tempo para achar que já ouvira tudo que as duas sabiam. O que o preocupou mais foi o fato de que a mulher que havia tentado o seqüestro sabia muitas coisas sobre a família. Ao mesmo tempo, estava ficando claro que Amanda e a mãe não eram assim tão paranóicas. Alguém havia tentado seqüestrar Aubrey e Jon concordava com a preocupação dos familiares de que uma outra tentativa poderia ocorrer.

— Você disse que Terry se atrasou para apanhar o menino por causa de um pneu furado? — ele perguntou, olhando para Amanda.

— Sim, e ele só viu isso quando já ia sair. Trocou o pneu o mais depressa possível mas já eram quatro e vinte quando conseguiu che­gar à biblioteca.

— O Lincoln estava aqui?

— Não, estava na casa da mãe dele, perto da biblioteca. Em geral Terrence vai visitar a mãe enquanto Aubrey fica estudando na biblioteca... ou melhor, costumava fazer isso. De agora em diante ele tem que ficar com Aubrey sempre que mamãe ou eu não podemos ir.

— Se o pneu furado não foi uma coincidência, devemos concluir que quem estava por trás disso sabia que Terrence costumava visitar a mãe nas quartas à tarde.

— Ou seguiu-o até a casa da mãe dele, furou o pneu do carro e depois retornou à biblioteca — sugeriu Amanda.

Jon concordou com aquela explicação igualmente plausível.

— Tem razão. E naturalmente Terry mostrou uma prova de que o pneu estava mesmo furado, não foi? — ele perguntou, no tom mais displicente que conseguiu.

Tanto Amanda quanto Eleanor se aprumaram na cadeira.

— Terrence trabalha para mim há oito anos, desde os dezenove anos de idade — disse Eleanor, com frieza. — Meu marido e eu fornecemos a ele recursos para terminar o curso secundário e começar a freqüentar uma faculdade noturna, tendo assim como sustentar a esposa e o filho, que nasceu logo depois que ele veio trabalhar aqui. Quando meu marido morreu, há dois anos, Terrence pareceu sentir-se responsável por tomar conta de mim. Mesmo nos dias de folga ele procura saber se preciso de alguma coisa. Não permitirei qualquer questionamento à lealdade de Terrence. Isso está claro, Jonathan?

Amanda percebeu que Jon estava perplexo diante da veemência da mãe dela e resolveu interferir.

— Sua pergunta é pertinente, Jon, mas espero que entenda que nós gostamos muito de Terrence. Ficamos revoltadas quando os po­liciais daqui insistiram em perguntar por que ele havia demorado tanto para chegar à biblioteca. Terrence foi tratado como um cúmplice na tentativa de seqüestro e os tiras continuaram duvidando da história mesmo depois que a mãe e a irmão dele confirmaram que o pneu precisou ser trocado. Mas o que Terrence disse ficou comprovado.

— Ele passou maus momentos nas mãos dos tiras, não foi? — perguntou Jon, franzindo a testa ao se lembrar do sorridente rapaz que o apanhara no aeroporto.

Não era uma pergunta para ser respondida e Eleanor retomou a palavra.

— Não sei quem pode ter estado.por trás dessa manobra suja, mas sei que não foi Terrence. Howard Worley seria um suspeito mais provável.

— Ora, mamãe... Jon ergueu a mão.

— Havia alguma testemunha na biblioteca? Alguém viu quando a mulher saiu de carro?

— Não — respondeu Amanda, frustrada. — Naquela tarde havia poucas pessoas por lá e a mulher já havia partido quando Aubrey notificou a bibliotecária. Ele disse que, enquanto corria, esbarrou numa jovem que empurrava um carrinho de bebê, mas essa pessoa não foi localizada.

— É muito pouco para começar — murmurou Jon.

— De fato — concordou Amanda, olhando de lado para Eleanor.

— E é isso o que eu venho repetindo para mamãe.

— Houve alguma outra ocorrência pouco comum, telefonemas estranhos, desconhecidos rondando a casa ou tentando falar com Aubrey?

— Não... não que eu me lembre — respondeu Amanda.

— E aquele portão na entrada da propriedade? — perguntou Jon.

— Reparei que estava aberto quando Terrence me trouxe. Ele sempre fica aberto durante o dia?

— Fica aberto o tempo todo — admitiu Amanda, olhando rapi­damente para a mãe, aparentemente envergonhada. — Não é fechado há tanto tempo que as dobradiças já enferrujaram. Nunca achamos necessário nos trancarmos aqui dentro.

— Aquele portão sempre foi muito difícil de abrir e fechar — lamentou-se Eleanor. — Há trinta anos que paramos de mexer nele.

— Então já é hora de consertá-lo — pronunciou-se Jon, brusca­mente. — Pode-se instalar um sistema para que ele seja aberto ou fechado automaticamente, de dentro do carro. É uma inconveniência que ajudará muito na questão da segurança.

Eleanor deixou escapar um suspiro mas concordou.

— Bem, nós pedimos os seus conselhos.

— E o passo seguinte será melhorar a segurança aqui na casa.

— Nós já temos trancas em todas as portas e janelas — informou Amanda.

— Isso não é suficiente. Vocês precisam de um sistema de alarme que dispare se alguém tentar entrar aqui. Mesmo que Aubrey não esteja correndo mais nenhum perigo, hoje em dia uma segurança extra nunca é demais. Como foi que Worley simplesmente apareceu na sua sala de visitas, afinal? A porta não estava trancada?

Amanda apertou as mãos sobre o colo e Jon teve a impressão de que ela estava se controlando para não esbofeteá-lo. Mas na verdade aquelas pessoas pareciam viver fora do tempo. Será que ainda não tinham percebido que nos últimos trinta anos o planeta Terra havia se transformado num lugar muito perigoso?

— Acho que me esqueci de trancar a porta depois que você entrou — admitiu Amanda. — Isso não voltará a acontecer.

— Ótimo.

— O que devemos fazer primeiro, Jonathan? — perguntou Eleanor, aparentemente muito confiante nos conselhos dele.

— Amanhã darei uma olhada por aqui e farei mais perguntas sobre a rotina de vida de vocês. Na segunda-feira procurarei nas lojas especializadas da cidade o sistema de alarme mais indicado para esta casa. Enquanto isso, quero que vocês duas pensem, entre todas as pessoas que conhecem, quais delas poderiam ter algum motivo para querer que Aubrey fosse seqüestrado... Todos. Parentes ou empregados descontentes, pessoas que tenham alguma raiva de vocês, alguém em sérias dificuldades financeiras. Os principais negócios da família estão no ramo bancário, não é?

— O avô do meu marido fundou o Banco Comercial de Memphis e a Companhia de Seguros, um século atrás — respondeu Eleanor. — Ainda somos os principais acionistas.

— Pode ter alguma relação com isso. Alguém que teve um pedido de empréstimo recusado ou um título protestado... coisa desse tipo.

— Nesse casa haverá dezenas de suspeitos — concluiu Amanda, com desânimo.

— Infelizmente, sim — confirmou Jon. — Mas a prioridade é impedir que alguém tente novamente seqüestrar Aubrey.

— Eu não gosto de pensar que o meu neto tem que ser vigiado o tempo todo — disse Eleanor, falando devagar, subitamente pare­cendo muito mais velha. — Não é justo para ele.

— De fato, mas ninguém está dizendo que a vida é inteiramente justa — rebateu Jon, resistindo a dizer que a riqueza tinha suas desvantagens, apesar dos privilégios.

Ele chegou mesmo a sentir pena daquela mulher. Devia ser ter­rivelmente difícil para Eleanor Cummings Hightower reconhecer as próprias vulnerabilidades.

Eleanor manteve a postura ereta e ergueu uma das sobrancelhas. Tomando a iniciativa de encerrar a conversa, pareceu querer lembrar, talvez até para si própria, que ainda era a rainha naquela casa.

— Amanda já lhe mostrou o seu quarto, Jonathan?

— Não, mamãe — respondeu Amanda. — Ainda não houve tempo.

— Então mostre a casa a ele e depois leve-o até o quarto. Cer­tamente Jonathan quer descansar um pouco antes do jantar.

Jon teve a sensação de que estava recebendo uma ordem para ir cochilar no quarto. Então olhou para Amanda, que ensaiou um sorriso amarelo.

— Estou pronta a mostrar a casa a Jon, mamãe, desde que ele queira.

Eleanor fez um gesto de mão, como se não desse importância à vontade do hóspede naquele assunto.

— Bem, se precisarem de mim estarei no escritório dando alguns telefonemas — ela disse, levantando-se. — Até o jantar, Jonathan.

Embora fazendo uma polida reverência, Jon não estava aguar­dando com muita ansiedade um jantar formal com Eleanor. Para ser honesto, preferia passar algumas horas circulando pela Beale Street com Terry.

Talvez adivinhando aquele pensamento, Amanda voltou-se para ele como se quisesse pedir desculpas.

— Mamãe não quis parecer cerimoniosa — ela explicou. — E apenas a forma de se expressar que às vezes faz com que ela pareça um tanto... mandona.

Jon pensou nos métodos menos ostensivos mas igualmente dita­toriais da mãe dele.

— Não tem importância. Eu também tenho uma mãe.

— Você gostaria de conhecer a casa?

— Mas é claro — respondeu Jon, pegando a bengala. — Mostre-me tudo.

 

Jon não se surpreendeu ao descobrir que o resto da casa tinha móveis igualmente caros e o mesmo toque femi­nino da sala de visitas. Seguindo Amanda pelos intermináveis cômodos, sentia-se até um tanto sem jeito no meio de toda aquela elegância. O que ela não pensaria do apartamento de quarto, sala e cozinha em que ele morava em Seattle? Não que Jon não preferisse estar na própria casa; ele preferia, sim. Era lá que ficava à vontade para receber os amigos.

Sentia-se deslocado naquela mansão, assim como... bem, assim como ficaria Eleanor Hightower se participasse de uma das reuniões com os amigos dele num sábado à tarde, para ver um jogo de futebol pela TV e comer pizza. Quanto a Amanda... Jon olhou disfarçada­mente para a elegante mulher ao lado dele enquanto os dois subiam a escada para o segundo andar. Bem, quanto a ela ainda não havia se decidido. Amanda parecia muito bem integrada à sua classe social, uma perfeita dama da elite sulista, dos cabelos bem cuidados às sapatilhas de couro italianas. Mas Jon desconfiava de que aquela sofisticada mulher tinha um outro lado, algo de que talvez nem ela própria tivesse notícia.

Na metade dos degraus Amanda reparou que ele se encolhia cada vez que apoiava o peso do corpo na perna direita.

— Nós podíamos ter ido pelo elevador, Jonathan.

Jon balançou a cabeça, não gostando de estar em desvantagem diante dela. Também não estava gostando de ser chamado pelo nome inteiro, o que fazia Amanda parecer-se com a mãe dele.

— Chame-me de Jon — ele voltou a pedir. — Quanto à minha perna, não ficará boa se eu tiver cuidados demais com ela.

Amanda abaixou os olhos para a perna dele, mas muito rapida­mente.

— Você se feriu no trabalho?

Bem que ele preferia não ter ouvido aquela pergunta. Se ao menos pudesse dizer que havia se ferido ao tirar um carrinho de bebê da frente de um carro em disparada, ou resgatando uma velhinha de dentro de uma casa em chamas... ou até tentando tirar o gato de uma criança de cima de uma árvore. Mas era preciso falar a verdade.

— Não, eu... bem, eu caí da bicicleta — respondeu Jon, sem olhar para ela, no momento em que eles chegavam ao alto da escada e começavam a andar por um comprido e bem iluminado corredor.

— Uma bicicleta? — repetiu Amanda, embora não parecesse par­ticularmente surpresa.

Mas que droga!

— É, uma mountain-bike. Eu estava... bem, estava fazendo uma demonstração para uma... para uma amiga e perdi o equilíbrio na descida de uma colina. Rolei pelo resto do caminho e a bicicleta caiu em cima de mim, causando alguns cortes na minha perna. Houve ruptura de uns ligamentos, mas estarei bom dentro de algumas se­manas.

Amanda não respondeu logo. Com os olhos castanhos brilhando intensamente, parecia estar contendo o sorriso. Jon ficou fascinado. Antes já a achara bonita, mas agora estava literalmente com a res­piração contida enquanto observava o leve tremor do lábio inferior dela e a pequena parte dos dentes brancos que aparecia entre aqueles lábios.

Interpretando erroneamente a expressão dele, Amanda corou.

— Desculpe. Não estou rindo da sua desgraça. É só que, quando penso em você caindo de uma bicicleta quando queria impressionar uma garota...

Com a voz trêmula e a ponto de desatar no riso, Amanda inter­rompeu o que dizia. Jon forçou um sorriso.

— Não tem importância. Eu já me acostumei com as gozações. Você precisava ouvir o que meu irmão, minha irmã e meus amigos têm dito desde que saí da cirurgia. Esperava ter a simpatia deles, mas me vi transformado em assunto de piadas.

Amanda arregalou os olhos e instantaneamente ficou séria.

— Precisou se submeter a cirurgia?

— Sim, mas nada muito sério — respondeu Jon, achando melhor mudar de assunto. — Onde fica o meu quarto?

Amanda fez um gesto para a direita.

— O meu quarto fica na asa oeste deste andar. O quarto de Aubrey e o que você irá usar ficam na asa leste.

Ela já havia informado que a suíte da mãe ficava no andar térreo. Jon perguntou-se quando teria a chance de conhecer o quarto de Amanda. E em que circunstâncias.

— Qual é a minha porta?

— E a primeira à esquerda. O quarto de Aubrey fica bem na frente, no outro lado do corredor. Os dois quartos ao fundo estão desocupados. Ah, e todos os quartos têm banheiro privativo.

Jon procurou não se mostrar muito impressionado.

— A que horas será o jantar?

— Às sete. E você não precisa trocar de roupa, a menos que queira.

Jon seria capaz de apostar qualquer coisa como as pessoas daquela casa trocavam de roupa para jantar. Por sorte ele havia se lembrado de colocar na valise três calças sociais e as melhores camisas.

Amanda pôs-se em movimento e deu a entender que a conversa devia terminar.

— Tenho algumas coisas para resolver antes do jantar. Há mais alguma coisa que eu possa fazer por você no momento?

— Ah, bem que eu queria que você fizesse algumas coisas por mim — murmurou Jon, não resistindo à tentação de provocá-la só para ver a reação dela. — Mas posso esperar até nos conhecermos melhor.

Amanda pestanejou, como se não tivesse certeza do que acabava de ouvir. Depois mostrou uma expressão de frieza que certamente vinha aperfeiçoando ao longo dos anos. Se Jon fosse do tipo medroso teria ficado assustado. Como não era, apenas se divertiu com aquilo.

— Até o jantar, Jonathan. Chame Roseanne se precisar de mais alguma coisa. Há um interfone no quarto que se comunica com a cozinha.

— Em geral eu consigo me arranjar sozinho.

— Sem dúvida.

Dito isso ela girou o corpo e saiu andando, o corpo ereto, os movimentos graciosos embora apressados.

Depois de tomar banho, fazer a barba e se vestir, Jon saiu do quarto faltando dez minutos para as sete. Havia passado mais ou menos meia hora se preparando psicologicamente para o jantar com a sensual Amanda, a dominadora mãe e o estranho Aubrey.

Vendo luz por baixo da porta do quarto de Aubrey, ele se lembrou da admoestação de Eleanor para que o menino não se atrasasse para o jantar. Jon sabia que aquilo não era da conta dele, mas mesmo assim resolveu bater na porta.

Instantes mais tarde a porta se abriu e ele pôde ver que Aubrey continuava com as mesmas roupas com que havia chegado do recital de música, algumas horas antes. Tinha um leve rubor nas faces e os olhos azuis por trás dos óculos pareciam esconder um certo sen­timento de culpa. Estivesse ali um outro menino de nove anos, Jon diria que ele acabava de fazer alguma traquinagem.

Não se via no quarto nenhuma evidência de um mal-feito. Vários livros estavam abertos em cima dá escrivaninha, onde havia também um moderníssimo computador. Tudo muito inocente. Mas os olhos de Jon eram treinados para ver além da superfície. Vasculhando o quarto com o olhar ele viu embaixo da cama a beirada de uma caixa de plástico preta e retangular, muito parecida com um videogame portátil. Pela posição, dava a impressão de ter sido colocada ali há poucos instantes... pouco depois de ele bater na porta, para ser mais exato.

Jon conteve um sorriso. Pelo jeito, Aubrey Jerome Hightower não era tão esquisito quanto parecia. Ótimo.

— Já está quase na hora do jantar — ele disse, num tom casual. — Pensei que podíamos descer juntos.

O ar espantado do menino e a rápida olhada no relógio indicaram que ele de fato havia se esquecido da hora.

— Sim, é claro, Sr. Luck — disse Aubrey, imitando o jeito de falar de um adulto. — Eu lhe mostrarei o caminho para a sala de jantar.

Instantes mais tarde eles percorriam o corredor a caminho da escada.

— Não prefere ir pelo elevador, Sr. Luck? — perguntou o menino, olhando rapidamente para a bengala em que Jon se apoiava. — Fica na outra extremidade do corredor.

Jon balançou a cabeça.

— Não, vamos pela escada. E pode me chamar de Jon, está bem? Do contrário terei de chamá-lo de Sr. Hightower.

Aubrey riu, logo depois parecendo surpreso consigo próprio. Jon ficou imaginando há quanto tempo aquele garoto não ria.

A pretexto de se equilibrar melhor na descida, Jon apoiou a mão no ombro magro do menino. A princípio Aubrey ficou um pouco tenso, mas não reagiu negativamente e logo relaxou.

Amanda e Eleanor já estavam na sala de jantar, a mais velha das duas relatando um evento de caridade a que havia comparecido. Amanda percebeu a entrada de Jon e Aubrey e virou o rosto para olhá-los. Pareceu espantada com a forma como o hóspede se apre­sentava.

Jon vestia uma camisa branca de mangas compridas e uma calça azul-escura. Havia penteado cuidadosamente os cabelos lisos e um pouco compridos, que por ainda estarem úmidos pareciam colados à cabeça.

Aparentemente Amanda também estava surpresa com o fato de que Jon havia colocado a mão no ombro de Aubrey sem ser repelido. Criado por pais dedicados mas pouco dados ao carinho físico, aquele menino não reagia muito bem a esse tipo de coisa. Ela própria não era muito bem recebida nas poucas vezes em que tentava abraçá-lo.

— Ah, vocês estão aí — exclamou Eleanor, seguindo o olhar da filha. — Sentem-se, por favor. Roseanne logo servirá o jantar.

Jon sustentou o olhar de Amanda e sorriu, convidando-a a partilhar o divertimento dele com o tom cerimonioso da matriarca. Ela retri­buiu o sorriso, embora logo desviasse os olhos.

Jon sentou-se à esquerda de Amanda e Aubrey ocupou o seu lugar de sempre, à cabeceira da mesa.

— Esta noite você fará as preces, Aubrey — ordenou Eleanor, depois que todos se acomodaram em seus lugares.

O menino abaixou a cabeça ruiva e obedeceu, como sempre.

— Agradecemos Senhor, pelo alimento que iremos receber. Amém.

Contendo o riso, Jon deixou escapar um som que parecia o de um soluço. Como resposta Amanda apertou os lábios, também que­rendo se conter.

Eleanor ergueu a cabeça e olhou para o neto com a testa franzida.

— Abrigada, Aubrey, mas na próxima vez procure pôr um pouco mais de sentimento nas palavras.

— Sim, vovó — respondeu Aubrey, pegando o guardanapo.

Quando o demorado jantar terminou, Jon havia chegado a algumas conclusões: Roseanne Wallace era uma das melhores cozinheiras que ele já havia conhecido; os formais Hightower certamente se beneficiariam com uma boa injeção de humor e energia que rece­bessem da família Luck; e, por fim, se ficasse mais tempo ao lado de Amanda, talvez ele não resistisse à vontade de tocá-la para ver se aqueles cabelos e aquela pele eram tão macios quanto pareciam.

Por sorte logo depois da sobremesa Eleanor sugeriu que eles fos­sem para a sala de visitas, apenas os adultos, porque Aubrey poli­damente pediu licença e se retirou para o quarto. Jon até que invejou o menino. Sentia dor na perna e havia deixado o analgésico na mesinha ao lado da cama.

— Você ainda não me falou nada sobre os seus irmãos, Jonathan — observou Eleanor, iniciando uma conversa e frustrando as espe­ranças dele de fazer uma rápida retirada. — Como estão Benjamim e Kristin?

— Estão bem. Não sei se mamãe lhe disse, mas Ben trabalha como investigador para uma companhia de seguros e Kris é profes­sora de arte numa escola secundária. Os dois parecem contentes com o que fazem.

— Nenhum deles tem um casamento em perspectiva? — inquiriu Eleanor.

Jon mostrou um meio sorriso.

— Não que eu saiba.

— E, pelo que imagino, você também não pensa nisso. O sorriso de Jon tornou-se largo.

— Ah, não.

Eleanor suspirou e balançou a cabeça, olhando para Amanda en­quanto falava.

— Assim como eu, Jessie deve estar se perguntando quando é que os filhos dela irão se acomodar com uma família própria. Amanda mexeu-se na cadeira e protestou no ato.

— Mamãe.

Eleanor iniciou um monólogo sobre quando ela e Jéssica eram jovens, lamentando as mudanças ocorridas no mundo desde então. Jon e Amanda faziam comentários esporádicos, mas sem muito en­tusiasmo. Jon precisou tomar muito cuidado para não ofender a an­fitriã com bocejos.

Finalmente ele se pôs de pé, equilibrando-se na bengala.

— Se me permitem, acho que vou me recolher mais cedo. Estou um pouco cansado por causa da longa viagem.

— Sua perna está doendo? — perguntou Amanda, levantando-se.

— Um pouco — ele admitiu, embora sem dar mostras do ver­dadeiro desconforto que sentia.

— Quer que eu lhe arranje algum analgésico?

— Eu trouxe umas pílulas, que deixei no quarto. Mesmo assim obrigado.

— Se por acaso se sentir mal durante a noite, Jonathan, não deixe de nos chamar — recomendou Eleanor.

Jon surpreendeu-se com a genuína preocupação que identificou na voz da idosa mulher.

— Obrigado, Eleanor. Boa noite.

No andar de cima, a luz do quarto de Aubrey estava acesa. Jon ouviu um fraco bip-bip e sorriu. Outra vez o videogame. Qual seria a reação de Eleanor se soubesse daquele frívolo passatempo? En­trando no próprio quarto e rumando direto para onde estavam as pílulas, Jon decidiu que não seria por ele que a mulher ficaria sabendo o que o neto dela andava fazendo.

Amanda sentiu uma ponta de inveja ao ver Jon indo para o quarto tão cedo. Sabia que a mãe protestaria se ela tentasse fazer o mesmo.

Eleanor sempre havia enfatizado o valor das conversas de depois do jantar, embora atualmente se prendesse àquilo mais por força do hábito.

Outra vez Amanda pensou com nostalgia na época em que morava sozinha, livre para seguir os impulsos, quando, podia tirar os sapatos e sentar-se no chão com uma soda diet e uma terrina de pipocas para ver TV... algo que Eleanor jamais permitiria. Mesmo depois de ficar noiva de Edward ela fizera questão de ter alguns dias livres na semana, quando fazia o que bem quisesse sem se preocupara em ofender ninguém.

Tinha sido uma época maravilhosa... antes que ela se tornasse responsável por um menino de nove anos.

— Jonathan é um rapaz estranho, não acha? — perguntou Eleanor, interrompendo as reminiscências da filha. — Eu nunca consigo per­ceber o que ele está pensando. Houve ocasiões durante o jantar em que pensei que ele estava rindo de nós.

Amanda tinha tido a mesma impressão, mas procurou melhorar o conceito da mãe a respeito do hóspede.

— Você sempre disse que a mãe dele era uma pessoa muito bem humorada. Talvez Jon tenha herdado isso dela.

— Talvez. Jéssica realmente vê graça nas coisas mais inesperadas. Outra vez Amanda pensou em algo que sempre a deixava intrigada: se Jéssica Luck era tão bem-humorada, como podia ter uma amizade duradoura com a mãe dela? Talvez a distância... Eleanor suspirou discretamente.

— Espero que Jonathan realmente saiba o que fazer quanto à nossa segurança. Jéssica me pareceu muito confiante na competência dele.

— Trabalhando para o Departamento de Polícia de Seattle ele certamente adquiriu muita experiência — comentou Amanda, sem saber o que dizer para minorar a preocupação da mãe.

— Divisão de Homicídios — murmurou Eleanor, com a testa franzida. — Que carreira mais desagradável. Mesmo assim Jessie garante que ele adora o trabalho que faz.

— Talvez se sinta atraído pelo desafio.

— Jonathan parece ser do tipo que gosta de aventuras, não acha?

Amanda teve que engolir o riso quando se lembrou de Como ele tinha ficado embaraçado ao contar o acidente com a bicicleta.

— Parece, sim,

E ela se perguntava se a mulher para quem ele havia proporcionado o espetáculo não era mais do que uma simples «amiga». Não que fosse da conta dela, naturalmente.

Eleanor suspirou novamente e balançou a cabeça.

— É claro que Jessie tem sorte por os filhos dela ainda estarem vivos, apesar da natureza inquieta de Jonathan. É tão difícil uma mulher sobreviver aos filhos. Não sei o que seria de mim sem você, Amanda.

Sempre que ouvia aquilo da mãe Amanda se sentia como se es­tivessem colocando mais cem quilos no fardo que ela vinha carre­gando desde a morte do irmão. Havia crescido como uma menina mimada e voluntariosa, rebelando-se contra as normas da mãe e as expectativas do pai. Ainda bem que Jerome era um rapaz perfeita­mente de acordo com os padrões da família, o que diminuía um pouco as pressões dos pais sobre ela. Mesmo depois da morte do pai, Jerome estava lá para dar assistência a Eleanor, deixando Aman­da livre para viver a própria vida. Mas Jerome também morreu e ela se viu responsável não só por Eleanor, mas também por Aubrey.

Amanda respirou fundo. Não adiantava muito ficar pensando na­quilo.

— Se me der licença, mamãe, acho que vou para o quarto. Gostaria de escrever algumas cartas.

Eleanor não se opôs.

— Talvez você devesse ver como está Jonathan. Não gostei da forma como ele mexia a perna quando saiu daqui, Jessie certamente espera que nós cuidemos bem dele.

Amanda engoliu em seco ao pensar na possibilidade de «cuidar» de Jon, mas respondeu com naturalidade.

— Vou ver como ele está. Boa noite, mamãe.

— Boa noite, querida.

Não havia luz por baixo da porta e Amanda imaginou que Jon já estivesse dormindo. O primeiro impulso dela foi correr para a segurança do próprio quarto, mas ao sair da sala Jon não tivera muito sucesso na tentativa de esconder a dor que devia sentir. Ela realmente precisava ver como ele estava.

Amanda bateu levemente na porta, pronta para se afastar silen­ciosamente se não ouvisse resposta.

— Entre.

A voz de Jon soou abafada pela porta, mas evidentemente ele estava acordado. Amanda girou a maçaneta, achando-se uma idiota por estar tão nervosa.

Jon estava encostado no batente da porta do banheiro com uma escova de dentes na mão. Ainda vestia a camisa branca e a calça azul, mas agora a camisa estava desabotoada e para fora da calça. Embora a princípio parecesse espantado ao vê-la, ele logo sorriu.

— Passou por aqui para me pôr na cama direitinho? Ah, mas que homem irritante!

— Passei para ver como você está — respondeu Amanda, apon­tando o queixo para ele. — Mamãe acha que está muito incomodado por causa da perna. Posso fazer alguma coisa por você?

No mesmo instante ela desejou ter feito a pergunta de outra forma. Jon mostrou um sorriso malicioso, colocou a escova no balcão da pia e apagou a luz do banheiro.

— Ah, posso pensar numa porção de coisas que você pode fazer por mim — ele murmurou.

Amanda fechou o semblante.

— Sempre parte para o ataque com toda essa disposição, Sr. Luck? — ela inquiriu, com frieza.

— Só quando fico intrigado — respondeu Jon, parando a poucos centímetros dela.

Ele realmente muito bom no ataque, mas naquela noite ela se sentia fraca demais para aquele tipo de batalha. Rapidamente Amanda recuou.

— Pode-se ter a impressão de que fica intrigado com facilidade.

— É uma impressão errada — respondeu Jon, encostando dois dedos na face dela. — Na verdade estou um tanto surpreso com isso.

Amanda pensou em perguntar o que significava «isso», mas conteve-se. Preferiu imitar a mãe para falar com toda formalidade.

— Bem, já que não há nenhum problema, vou deixá-lo. Você certamente está cansado... e eu também.

Sem parar de sorrir, Jon ficou olhando enquanto ela caminhava para a porta.

— Boa noite, Amanda.

Naquela noite Jon demorou mais do que o normal para adormecer. Talvez fosse por causa da perna, dolorida depois da longa viagem. Talvez fosse por estar num ambiente estranho, já que ele nunca dormia bem quando não estava na própria cama. Ou talvez fosse pela lembrança do que havia sentido ao tocar na pele macia de Amanda, o espanto que vira por um instante naqueles olhos casta­nhos.

Achando-se um idiota, Jon bateu algumas,vezes com os punhos no travesseiro e procurou se ajeitar melhor na cama. Jamais seria perdoado pela mãe se agisse como um irresponsável na casa de uma velha amiga dela. Embora fosse contra a natureza dele, o melhor seria mostrar-se um perfeito cavalheiro até que aquela visita chegasse ao fim... ou pelo menos até que Amanda desse alguma indicação de que queria que ele se comportasse de outra forma.

Ah, sim. Só porque você quer, Luck.

Depois disso Jon adormeceu. Não saberia dizer por quanto tempo dormiu antes de ser acordado por um grito. No instante seguinte estava de pé, quase soltando um palavrão por causa da dor que sentiu na perna.

O grito se repetiu e desta vez Jon percebeu que vinha de Aubrey. Sem parar para pegar a bengala ele marchou para a porta, atravessou o corredor e entrou no quarto do menino.

A descarga de adrenalina era bem conhecida, assim como a sen­sação de segurança proporcionada pela arma automática que ele se­gurava com a mão direita. Outra vez Jon estava na pele de um tira.

 

Aubrey estava sentado na cama, tremendo e olhando fixamente para a janela.

— O que foi? — perguntou Jon, não vendo nada na janela que pudesse assustar o menino.

— Havia alguém ali — respondeu Aubrey, numa voz baixa e trêmula. — Na janela, olhando para mim.

Jon coxeou até a janela, que estava com a cortina aberta. Era uma noite clara de setembro e a lua cheia despejava uma lumino­sidade prateada sobre o jardim. Não se via sinal de ninguém por ali. A janela se abria para uma pequena sacada de ferro. Como lá embaixo havia altos arbustos e trepadeiras, alguém em boa forma poderia subir até a sacada e olhar para o interior do quarto. Mas por quê?

Jon caminhou novamente até a cama de Aubrey.

— Fique tranqüilo — ele disse. — Não há ninguém ali fora.

— Mas havia — insistiu Aubrey, ainda pálido e trêmulo. — Eu vi. Ele estava olhando para mim.

Apesar do problema na perna, depois de ouvir o grito Jon havia levado poucos segundo para vencer a distância entre os dois quartos. Haveria tempo para que alguém saltasse da sacada e se escondesse em algum lugar? Segurando a arma ao lado da perna, ele pensou numa forma de fazer perguntas ao garoto sem assustá-lo ainda mais.

— Será que não foi uma sombra passando na janela? Um pesadelo, talvez?                                                                          

— Não! — respondeu Aubrey, como se suplicasse a Jon que acreditasse nele. — Havia um rosto. Um rosto pálido, assustador, com cabelos pretos em volta. Eu vi!

— Aubrey? — disse Amanda, entrando no quarto, ofegante e apertando o robe na altura da garganta. Com o rosto sem maquiagem, ela mostrava umas leves sardas em que Jon não havia reparado antes. — O que houve, Aubrey? Por que está assustado? Foi outro pesadelo?

— Havia alguém na janela olhando para mim — repetiu o menino. Aubrey agora parecia acabrunhado, certamente achando que nin­guém acreditaria nele.

— Vou dar uma olhada lá fora — disse Jon. — Fique aqui com ele, Amanda.

Amanda olhou para Jon pela primeira vez desde que havia entrado. Ao ver que ele estava apenas com a calça do pijama, rapidamente desviou os olhos. Jon conteve um sorriso. Será que aquela mulher jamais vira um homem sem camisa?

— Vai sair com os pés descalços? — ela perguntou. Jon ignorou a pergunta.

— Voltarei daqui a alguns minutos. Enquanto isso, Aubrey, conte à sua tia tudo o que viu, está bem?

Entrando no próprio quarto para pegar um par de chinelos e a bengala, ele resmungou um palavrão por precisar daquilo. Apanhou também uma pequena lanterna portátil que tinha na valise e rumou para a escada.

Na verdade não esperava encontrar nada lá fora. Aubrey na certa tinha tido um pesadelo, mas não custava nada fazer alguma coisa para reanimá-lo. Jon lembrava-se de que, na infância, ficava enrai­vecido quando não era levado a sério pelos adultos.

Saindo da casa ele olhou para o portão aberto e balançou a cabeça, exasperado. Qualquer um poderia entrar ali sem a menor dificuldade. A luz da lanterna não revelou marcas de pés embaixo da janela, mas não ficaria mesmo nenhuma pegada naquela grama bem aparada. A perna machucada, que já doía por causa da descida da escada, doeu ainda mais no ar frio da noite. Resmungando, Jon correu o facho da lanterna pelos canteiros de flores ali perto, certo de que não descobriria nada de anormal.

Mas alguma coisa chamou a atenção dele num grande pé de azaléia por baixo da sacada. Aproximando-se, Jon viu que o arbusto estava afundado bem no centro, como se um peso houvesse caído ali. E aquilo havia acontecido recentemente, porque viam-se galhos verdes quebrados.

Droga. Aubrey não havia sonhado. Alguém realmente tinha estado na sacada.

— Que diabo está acontecendo aqui? — resmungou Jon, olhando para cima.

Amanda ainda estava com Aubrey quando ele retornou ao quarto. Eleanor também havia chegado, a figura ereta envolta num robe de cetim, os cabelos prateados no mesmo penteado de antes. Aubrey tinha uma expressão distante e retraída.

Jon caminhou diretamente para a cama e colocou a mão na cabeça ruiva do menino.

— Havia alguém ali fora — ele disse. — Agora já foi, mas estava ia.

Imediatamente Aubrey ergueu a cabeça. Tinha um brilho intenso nos olhos, uma combinação de medo renovado e gratidão por alguém estar acreditando nele.

— Já foi embora?

— Já. Amanda, ligue para a polícia. Por enquanto não vai adiantar muito, mas é preciso registrar a ocorrência.

— Como sabe que havia alguém ali? — inquiriu Eleanor.

— Havia sinais disso lá embaixo, mas o principal é que Aubrey viu. O que está esperando, Amanda? Chame os tiras.

Amanda não gostou daquele tom autoritário e deixou isso claro com o olhar que dirigiu a ele enquanto saía do quarto. Jon nem se perturbou. Mas o que estava acontecendo com aquela família, afinal? Eram todos ali de fato tão incompetentes quanto pareciam ou ele apenas os havia surpreendido num momento difícil?

— Já é tarde, Aubrey — disse Eleanor. — E melhor você procurar dormir agora. Nós daremos as informações que a polícia precisar.

O menino olhou para a janela, com o medo estampado no rosto. Jon deu dois passos e fechou as pesadas cortinas.

— E melhor mesmo você dormir um pouco, garotão — ele re­comendou, num tom quase displicente, mas que era bem o que pre­tendia. — Depois dessa confusão toda quem andou por aqui já está bem longe. Não vai ter coragem de voltar esta noite.

— Tem certeza?

Jon afagou os já despenteados cabelos ruivos do menino.

— Tenho certeza. E lembre-se de que estarei bem ali, no outro lado do corredor.

— Vai deixar aberta a porta do meu quarto?

— Pode crer, e a do meu também. Se precisar de mim, basta gritar.

— Sua arma está carregada? — perguntou Aubrey, com curio­sidade.

Eleanor reagiu prontamente.

— Arma? que arma?

A pistola automática estava na parte traseira da cintura de Jon, sustentada pelo elástico do pijama. Ele a colocara ali justamente para não chamar a atenção da mulher.

— Eu tenho porte de arma — ele lembrou. — Não precisa se preocupar com isso.

— Não gosto de armas nesta casa, Jonathan. É perigoso.

Jon permaneceu calado, embora pensasse em dizer que quem es­tava atrás do neto dela era muito mais perigoso do que a pistola que ele sabia usar com perícia. A verdade era que Eleanor precisava reclamar de alguma coisa.

Caminhando juntos para sair do quarto eles se encontraram com. Amanda à porta.

—- Um policial logo estará aqui para registrar a ocorrência — ela disse a Jon. — Eles não me pareceram muito impressionado com o fato.

— Eu não esperava que ficassem — declarou Jon, de uma forma brusca. — Na verdade não aconteceu nada.

— Alguém invadiu a nossa propriedade — argumentou Eleanor, enfática. — Eu não diria que isso não é nada.

— Mas os tiras dirão — rebateu Jon, encolhendo os ombros com displicência.

Eleanor mostrou uma expressão desdenhosa enquanto saía do quarto, depois de dirigir um rápido boa noite ao neto.

Amanda ficou hesitante ao pé da cama do sobrinho. Jon esperou à porta, perguntando-se se ela iria fazer algum carinho no menino. Em vez disso Amanda apenas juntou as mãos na frente do corpo.

— Está se sentindo bem, Aubrey? Quer que eu fique aqui até que você volte a dormir?

— Não, obrigado, tia Amanda. Eu estarei bem. Jon disse que o homem não teria coragem de voltar aqui esta noite.

Amanda olhou rapidamente para Jon. Talvez estivesse ressentida com a confiança que o menino depositava nas palavras dele. Se isso era verdade, ela soube esconder muito bem quando olhou outra vez para o sobrinho.

— Então boa noite, querido. Não deixe de me chamar se precisar de alguma coisa, está certo?

— Boa noite, tia Amanda — murmurou Aubrey, deitando-se e puxando o cobertor até o queixo.

Depois de um longo momento de hesitação, Amanda girou o corpo e caminhou para sair do quarto. Jon ficou olhando para as costas dela, perplexo. Então era assim? Ela não ia nem dar um beijo de boa noite no menino?

Jon estendeu a mão para apagar a luz do quarto.

— Boa noite, garotão — ele disse, deixando acesa apenas a fraca lâmpada de uma das paredes. — Se precisar de mim, é só gritar.

— Boa noite, Jon. Obrigado.

A campainha soou lá embaixo. Os tiras de Memphis pelo menos eram rápidos, pensou Jon enquanto seguia Amanda até o vestíbulo. Bem, havia certas vantagens em pertencer a uma família rica, tra­dicional e bem relacionada.

Como ele havia esperado, os dois policiais que registraram a ocor­rência não deram muitas garantias de que alguma coisa seria feita. Pareceram dar mais atenção ao caso depois de saberem da identidade de Jon e ouvirem o relato dele, mas todos concordaram que não havia muito o que fazer. No momento, a única providência reco­mendável seria adotar medidas para proteger a propriedade.

Jon acompanhou os policiais até a porta enquanto Amanda ia recolocar a mãe na cama. Depois que o carro da polícia partiu, ele verificou se as portas e janelas estavam trancadas e apagou as luzes do andar de baixo.

Amanda estava à porta do quarto de Aubrey, que permanecia aberta.

— Ele já está dormindo — ela murmurou.

— Ótimo. Pelo menos não ficou transtornado demais.

— Ele estava exausto, eu acho.

— É.

Jon sabia que estava sendo lacônico demais, mas não conseguia esquecer a expressão que vira no rosto de Aubrey, como o menino parecera pequeno e amedrontado naquela cama muito grande. Tam­bém estava espantado com o fato de que Amanda, assim como a mãe dela, não fazia nenhum esforço para oferecer conforto maternal. Ele se lembrava de quando tivera alguns pesadelos, na infância, e da forma como a mãe o abraçava, murmurando palavras carinhosas. Crianças sempre precisam desse tipo de coisa... mesmo crianças de inteligência excepcionalmente desenvolvida. Jon sentia raiva ao ver que, naquela noite, Aubrey não tinha dada daquilo.

Amanda Hightower o intrigava tanto quanto o atraía. Aqueles olhos castanhos podiam soltar chispas de fogo ou um gelo glacial. Num momento ela discordava frontalmente da mãe, no outro imitava a postura da velha senhora. Parecia sentir afeição pelo sobrinho, mas não fazia nenhum esforço para se comunicar com ele.

Pela décima vez Jon se perguntou o que podia haver de errado com aquela família. E pelo jeito seria difícil encontrar a resposta, mesmo que ele passasse um bom tempo ali.

Cansado demais para pensar em outra coisa que não fosse dormir, Jon virou as costas para Amanda e deu um passo na direção do quarto. O movimento brusco provocou uma forte dor na perna e ele só conseguiu se equilibrar com a ajuda da bengala.

No mesmo instante sentiu num dos braços as mãos macias de Amanda.

— Você está bem? Machucou mais a perna quando esteve lá fora?

— Eu estou bem — respondeu Jon, embaraçado por aquela de­monstração de fraqueza. — Só estou cansado.

Amanda ergueu os olhos, com o rosto muito perto do dele.

— Está sentindo muita dor? — ela perguntou, com a preocupação estampada no semblante em geral impassível. — Posso fazer alguma coisa?

Ah, mas como aquela mulher era bonita. E estava tão perto... Então ele foi inclinando a cabeça para reivindicar um rápido beijo, apenas para sentir o gosto daqueles lábios tentadores. Nesse instante Jon viu a porta aberta do quarto de Aubrey.

Era o sobrinho de Amanda quem precisava da solicitude dela. Não era justo ele receber o que havia sido negado ao menino.

Jon recuou um passo.

— Já é tarde e nós dois precisamos descansar. Boa noite, Amanda. Amanda deixou os braços caírem ao longo do corpo. Jon pensou ver desapontamento nos olhos dela... mas podia estar enganado. Não conhecia mesmo aquela mulher.

— Boa noite, Jon — ela disse, num tom formal. — Obrigada pela assistência que nos deu. E desculpe se a sua visita está sendo tão caótica.

— É... bem, é para isso que estou aqui, não é mesmo?

Sem esperar pela resposta, ele girou o corpo e entrou no quarto.

Na segunda-feira pela manhã Amanda não saberia dizer o que a fazia sentir mais culpa: sair para trabalhar ou querer tanto fazer aquilo. Era bom se afastar um pouco da dominadora mãe, do retraído sobrinho e do intrigante homem que havia se apresentado para aju­dá-los. Mesmo assim ela se sentia como se estivesse fugindo covar­demente das de um problema que havia se tornado difícil de resolver. Talvez fosse egoísmo, covardia... mas era bom ir para longe daquilo tudo.

Ela dera à loja o nome de Amanda Presentes, apenas por gostar da sonoridade das palavras. Era um estabelecimento graciosamente antiquado, assim como o sortimento de presentes e pequenos objetos de decoração que oferecia.

Amanda tivera que enfrentar a oposição dos pais para abrir a loja num concorrido shopping center de Germantown. O pai queria que ela ingressasse no ramo bancário, principalmente depois que Jerome se declarou interessado apenas em seus projetos intelectuais. Eleanor continuava insistindo em chamar a loja de «o pequeno hobby de Amanda». Achava que as horas que a filha dedicava à loja seriam muito mais bem empregadas na organização de chás de caridade ou coisas similares.

Os amigos de Amanda também não conseguiam entender por que ela trabalhava tanto. Prevalecia entre eles a opinião de que alguém com tanto dinheiro certamente encontraria algo mais interessante para fazer. Surpreendentemente, apenas Edward, o professor de so­ciologia que ela havia conhecido alguns anos antes num evento de caridade, dera todo apoio naquele projeto, fazendo até sugestões para a loja que acabaram dando muito certo, embora ele tivesse bem pouca ou nenhuma experiência no assunto. Por isso agora Amanda achava que havia se tornado noiva de Edward mais por gratidão. Ainda bem que havia percebido isso a tempo. Um casamento exigia emoções mais profundas do que a simples gratidão, emoções que certamente não existiam entre ela e Edward.

Amanda foi a primeira a chegar à loja, mas a gerente, Trícia Bowman, chegou logo depois.

— Bom dia — saudou-a Trícia, entrando no pequeno escritório aos fundos do estabelecimento. — Como foi o seu fim de semana?

— Interessante — respondeu Amanda, levantando os olhos do relatório deixado sobre a mesa. — Parece que o movimento foi bom no sábado.

Ela costumava trabalhar aos sábados, mas havia tirado folga para receber Jon. Ainda bem que tinha alguém de confiança para se res­ponsabilizar pela loja nos raros dias em que não podia estar lá. Seria um transtorno se não pudesse contar com Trícia, que era pontual, conscienciosa e simpática com os fregueses, além de ser perita em números... algo que Amanda particularmente admirava, já que nesse aspecto ela própria era uma lástima. Tinha uma dificuldade terrível para gravar números, às vezes se esquecendo do próprio telefone!

— Sábado foi um bom dia, sim — concordou Trícia, com. satis­fação. — Vendemos várias peças de cristal... provavelmente estão acontecendo muitos casamentos.

— De fato, muita gente se casa nesta época do ano. Mas como Kelly está se saindo?

— Acho que ela vai dar muito certo. Você precisa ver o jeito que aquela menina tem para lidar com os que vêm aqui só para olhar as mercadoria. Ela sempre os convence de que, se não com­prarem nada, estarão perdendo uma oportunidade única.

— Espero que ela dê certo mesmo. Não gostaria de ter que dar treinamento a outra pessoa. E sempre uma inconveniência.

— Sem dúvida. Mas como estão as coisas na sua casa? A polícia descobriu alguma pista de quem tentou seqüestrar Aubrey?

— Não, e algo mais aconteceu no sábado à noite. Consultando o relógio, Amanda viu que ainda tinha vários minutos

antes da abertura da loja ao público. Rapidamente contou o que havia acontecido na noite de sábado, quando Aubrey afirmara ter visto alguém na janela e Jon encontrara evidência confirmando o que o menino dizia. Ela e Trícia eram amigas desde bem antes de trabalharem juntas. Por isso discutiam assuntos pessoais sem constrangimento.

— Não acredito que alguém teve a coragem de subir até a janela de Aubrey! — exclamou Trícia, agitando os longos cabelos loiros em volta do rosto. — Você deve ter ficado terrivelmente assustada.

— Teria ficado mais ainda se Jon não estivesse lá — admitiu Amanda. — Por mais incômodo que isso às vezes possa ser, é bom ter um policial em casa quando acontece esse tipo de coisa. Você precisava ver a rapidez com que ele se pôs em ação ao ouvir o grito de Aubrey.

— Então me conte mais sobre esse investigador Luck. Como é ele?

— Não sei se já o conheço o suficiente para responder a essa pergunta.

— Ele é solteiro?

— É, sim.

— Bonito? Amanda lembrou-se de quando o vira apenas com a calça do pijama, os ombros largos e o peito musculoso totalmente à mostra, os olhos de esmeralda brilhando perigosamente. Lembrou-se também de quando eles dois tinham estado muito perto um do outro e ela tivera a impressão de que seria beijada. Logo depois ele havia re­cuado, aparentemente mudando de idéia. Por quê? Naquele momento dificilmente ela teria resistido.

— Jon Luck é atraente, de uma forma um tanto rude... mas é claro que não tenho nenhum interesse nele além de ouvir conselhos para garantir a segurança de Aubrey — ela mentiu.

— Sei — disse Trícia, olhando para a amiga e patroa com evidente ceticismo. — Bem, já que você não está interessada, eu até que gostaria de conhecê-lo. Comparado com os cretinos aborrecidos com quem tenho saído ultimamente, um policial bonitão me parece uma opção deliciosa.

Sem saber por que ficava enrubescida, Amanda consultou nova­mente o relógio.

— Bem, está na hora. Vá abrir a loja enquanto eu termino de ver estes papéis.

— Covardona — caçoou Trícia, enquanto ia saindo para atender ao pedido de Amanda.

 

No domingo Jon fizera uma inspeção na mansão Hightower, anotando o que precisava ser feito para torná-la mais segura. Na segunda-feira pela manhã ligou para várias empresas especializadas em equipamentos se segurança. Aubrey ti­nha ido para a escola, Eleanor saíra para fazer seu trabalho voluntário e Amanda estava na loja. Depois do almoço ele se ocupou em anotar as recomendações que iria fazer às duas mulheres. Feito isso, ficou perambulando pela casa, inquieto, até que Terrence chegou com Au­brey.

Jon havia esperado que Terry tivesse algum tempo livre naquela noite, mas o rapaz informou que teria uma aula à qual não poderia faltar.

— O que acha de me mostrar os jardins da casa — perguntou Jon a Aubrey, olhando para o menino com disfarçado interesse. — Tenho a impressão de que estou trancado desde que cheguei aqui, no sábado.

Aubrey pareceu surpreso com a pergunta, mas respondeu com a costumeira polidez.

— O que gostaria de ver?

— Deixo à sua escolha — disse Jon, enquanto atravessava com o garoto a porta dupla que dava para o gramado dos fundos.

A tarde estava bonita, mais quente do que devia estar em Seattle.

— Bela tarde, não? — comentou Jon, soltando um dos botões da camisa esporte de mangas curtas que estava usando.

— Sim, senhor — concordou Aubrey, cortesmente. — Muito bonita.

Bem, não estava sendo um começo muito promissor. — O que você gosta de fazer em dias como hoje? — perguntou Jon, seguindo o garoto entre os bonitos canteiros protegidos por cercas de ferro pintadas de branco.

— Gosto de me sentar à sombra para observar os pássaros — respondeu Aubrey, sério. — Às vezes trago meus livros para fora e me sento à beira do riacho para estudar ou praticar o violino.

— Riacho?

— Sim, um riacho corta os fundos da propriedade na altura da­quelas árvores — explicou Aubrey, apontando. — Tem até alguns peixes de água doce e girinos.

Pelo menos aquilo parecia mais apropriado para um menino da idade de Aubrey.

— Você gosta de entrar no riacho para pegar peixinhos e girinos? O garoto arregalou os olhos por trás dos óculos.

— Não, eu nunca entro no riacho. Vovó diz que não posso ficar com os pés molhados. Minha saúde não é muito boa — ele explicou, quase como se pedisse desculpas. — É por isso também que não pratico esportes.

Jon olhou para o menino com um ceticismo que mal conseguiu esconder. Seria capaz de apostar que, pelo menos fisicamente, não havia nada de errado com aquela criança. Embora de pequena es­tatura, Aubrey tinha um aspecto perfeitamente saudável. Será que a avó queria transformá-lo num neurótico?

— Já que não pratica nenhum esporte, o que você faz para se divertir? Gosta de ver filmes? Videogame?

— Eu gosto de ver filmes — respondeu Aubrey. — Mas só os que vovó considera adequados para a minha idade, é claro.

Jon já imaginava quais seriam os filmes aprovados por Eleanor.

— E Videogame?

— Faço parte do clube de xadrez da escola. Sou muito bom nesse jogo.

— Eu acredito — disse Jon, com sinceridade. — Quer dizer, então, que você não gosta de Videogame?

Com o canto do olhou ele viu que havia uma ponta de culpa na expressão do menino.

— Bem... vovó acha que Videogame é uma frivolidade, pura perda de tempo. Segundo ela, esses jogos eletrônicos apenas enco­rajam a preguiça e entorpecem o raciocínio.

Jon engoliu a palavra com que ia comentar aquilo, já que Eleanor dificilmente a consideraria apropriada para os ouvidos do neto dela.

— Não vou dizer que a sua avó está enganada, é claro, mas acho que um pouco de frivolidade e divertimento é até bom para quem tem personalidade definida. A vida não se resume aos projetos in­telectuais, sabia?

Aubrey apertou os lábios e balançou afirmativamente a cabeça, obviamente impressionado pela argumentação que acabava de ouvir.

Mas Jon preferiu não deixar que a conversa ficasse muito séria.

— Escute... será que posso chamá-lo de A.J.? Aubrey Jerome me parece um nome comprido demais.

— A.J.? — repetiu o menino, surpreso. — É um apelido?

— E, acho que sim.

— Eu nunca tive um apelido. Jon encolheu os ombros.

— Posso continuar a chamá-lo de Aubrey, se preferir.

— Não — respondeu o garoto, mais depressa do que seria de se esperar. Logo depois tossiu e procurou falar com naturalidade. — Pode ser A.J. — ele permitiu, magnânimo, só então mostrando al­guma preocupação. — Só não sei se vovó vai gostar muito.

— Não se preocupe. Tomarei o cuidado de tratá-la sempre por Eleanor.

Aubrey soltou uma risada, um som que Jon achou bom de ouvir num menino tão sério.

— Mesmo assim, não sei se ela gostará de que você me chame de A.J.

— Bem, isso cabe a nós dois decidir, não é?

— E, acho que sim.

Jon achou divertido o fato de que, inconscientemente, o menino estava imitando o jeito de falar dele.

— Negócio fechado, A.J. — ele disse, estendendo a mão, que Aubrey solenemente apertou.

— Aubrey? Você está aqui fora, Aubrey? Ao som daquela voz os dois se voltaram para o lado da casa.

— E tia Amanda — disse Aubrey, reassumindo a expressão séria.

Jon procurou não ficar de cara feia enquanto caminhava com o menino na direção de onde vinha a voz de Amanda.

Amanda abriu um sorriso e caminhou ao encontro de Jon é Aubrey. O sorriso foi se desfazendo quando ela viu a expressão de Jon. Ele não parecia muito contente em vê-la. Se aquilo continuasse ela acabaria acreditando que causava desagrado ao hóspede. Só não entendia por quê. No começo até que eles haviam se entendido bem.

— Resolveram aproveitar a beleza da tarde? — ela perguntou, sem pensar em outra coisa para dizer.

— Estive mostrando os jardins a Jon — respondeu Aubrey. Amanda reparou que o sobrinho pronunciava o nome de Jon com admiração. Não se lembrava de ter visto Aubrey se ligando a outra pessoa com tanta rapidez. Com Edward, por exemplo, o menino não havia demonstrado o menor entusiasmo.

— Fez muito bem, Aubrey. Mostrou a ele o local no riacho onde gosta de praticar o violino?

— Não fomos tão longe — respondeu Jon, repousando a mão no ombro de Aubrey. — Resolvemos deixar o riacho para outra ocasião.

Amanda olhou para a bengala, na qual ele se apoiava pesadamente.

— Como está sua perna? — Não está doendo.

— Ótimo. — Ao chegar, Amanda havia reparado que Jon e Aubrey conversavam animadamente. Por que era tão difícil para ela integrar-se à conversa deles? Agora até se sentia na obrigação de quebrar o silêncio que já durava alguns segundos. — E a escola, Aubrey?

— Eu trouxe vários trabalhos de casa.

— Nesse caso, é melhor começar logo antes que chegue a hora do jantar, não acha?

— Sim, senhora. — Aubrey olhou para Jon e sorriu, o que Amanda achou espantoso. — Amanhã eu lhe mostrarei o riacho, está certo?

— Estou contando com isso. Obrigado, A.J.

A.J.? Amanda pestanejou ao ouvir aquilo, mas Aubrey apenas abriu ainda mais o sorriso.

— Até a hora do jantar, Jon — ele se despediu. Quando se voltou para a tia, prontamente desfez o sorriso. — Com licença, tia Amanda.

Desconsolada, Amanda ficou olhando enquanto o menino cami­nhava para a casa, sem olhar para trás.

Jon estudou de perto a expressão de Amanda. Cada vez que estava quase convencido de que ela era uma mulher fria e sem a menor afeição por aquele menino, via um brilho... alguma coisa nos olhos dela que o deixava em dúvida. Talvez ela apenas não soubesse ex­pressar os sentimentos, já que fora criada pela rígida Eleanor Hightower.

Mesmo assim aquilo o importunava. Se um dia tivesse filhos, o que sempre estivera nos planos dele, Jon queria tê-los com uma mulher que pudesse oferecer todo carinho, todo amor e toda segu­rança de que uma criança precisava.

Amanda voltou-se e viu que ele a observava. Então fez um gesto vago na direção do sobrinho, que ainda estava à vista deles.

— Parece que ele se deu bem com você. Qual é o seu segredo?

— Não há segredo nenhum. Eu apenas gosto de crianças.

— Ah, sim.

— E você? — perguntou Jon.

— Eu o quê?

— Gosta de crianças?

O semblante de Amanda tornou-se triste.

— Não tenho convivido muito com crianças. Gosto muito de Aubrey, é claro, mas acho que ele não sente a mesma coisa por mim.

Jon viu tristeza nos olhos de Amanda e sorriu para reanimá-la.

— Tenho certeza de que ele sente a mesma coisa. Não faz muito tempo que Aubrey perdeu os pais. E natural que demore para superar isso.

— Talvez você tenha razão — disse Amanda, embora não pare­cesse convencida.

Jon não gostou do tom de melancolia que percebeu na voz dela. Preferia vê-la sorrindo, ou mesmo espumando de raiva. Era bem possível que obtivesse uma daquelas duas coisas se dissesse o que estava pensando.

— Seu cabelo fica muito bonito ao sol — ele declarou, admirando ii tonalidade quase aloirada que os cabelos castanhos de Amanda agora pareciam ter. — Deve gastar uma fortuna para mantê-lo nessa cor.

Para satisfação de Jon, no mesmo instante Amanda apontou o queixo pára ele, agora com a tristeza dos olhos substituída por um brilho de indignação.

— Eu não pinto os meus cabelos — ela informou. — A cor que você está vendo é absolutamente natural.

— Está brincando! E esses seus olhos incrivelmente castanhos? São dessa cor mesmo ou você usa lentes de contato?

— Não, não uso lentes de contato. Antes que você faça mais perguntas desse tipo, saiba que tudo o mais em mim me foi dado pela natureza. Mas o que...

— A natureza foi generosa — murmurou Jon, abaixando os olhos para examinar «tudo o mais».

— O que o faz pensar que tem o direito de me fazer essas perguntas? — inquiriu Amanda, ignorando a interrupção.

— Nada, apenas curiosidade.

— Não acha um tanto grosseiro comentar a aparência de uma pessoa?

— Se achasse eu não faria isso — respondeu Jon, usando a lógica. Por alguns instantes Amanda ficou com a boca levemente aberta. Jon sorriu e ergueu a mão para tocar na face dela com as costas

dos dedos.

— O que há por trás desse seu rosto bonito, Amanda Hightower? — ele murmurou, num tom leve, embora falasse sério. — Gomo é você de verdade?

Os olhos castanhos de Amanda tornaram-se desconfiados.

— Por que pergunta isso? Eu sou exatamente o que pareço ser. í Jon aproximou-se mais e Amanda claramente contraiu os músculos, mas não recuou.

— Ah, não — ele duvidou, numa voz grave e baixa, o que aí obrigou a prestar atenção. — Não acho que você seja o que parecei ser. Certamente há muitas surpresas por trás desse exterior de respeitável dama da elite sulista.

As pálpebras de Amanda pareceram subitamente pesadas, obrigando-a a abaixar os olhos. Logo depois ela umedeceu os lábios com a ponta da língua. Não foi um gesto de sedução, mas sim de puro nervosismo.

— Por que acha que seriam surpresas agradáveis? — ela inquiriu, muna voz que era quase um sussurro.

— Eu não disse que podiam ser agradáveis, mas gostaria de des­cobri-las.

Apoiando-se na bengala com a mão direita, Jon deslizou a es­querda pela esbelta cintura de Amanda e puxou-a contra o próprio corpo. Ela não opôs resistência. Também não recuou quando ele roçou os lábios nos dela, muito levemente.

Aqueles lábios tinham o sabor de pêssego, pensou Jon, experi­mentando novamente. Não, eram muito mais deliciosos.

Aqueles pensamentos extravagantes desapareceram quando ela começou a corresponder ao beijo. Abrindo mais os lábios já molha­dos, Amanda colou-os aos dele. Aquilo o fez abraçá-la com mais força, ansioso por um beijo mais profundo. Jon estava a ponto de soltar a bengala para beijá-la da forma como vinha querendo desde a primeira vez em que a vira quando eles foram interrompidos por alguém chamando pelo nome de Amanda.

No mesmo instante ela afastou a cabeça e engoliu a saliva.

— É Roseanne. Agora preciso ir.

— Eu sei.

Mas que droga!

Amanda recuou um passo e passou a mão pelos cabelos. Jon pensou em dizer que ela estava com uma aparência irrepreensível... a não ser pelo rubor das faces e pela excessiva vermelhidão dos lábios. Parecia ter acabado de se entregar a um beijo cheio de paixão e passar a mão pelos cabelos não mudaria em nada aquilo.

Quem diria que a respeitável, formal e reservada Amanda High­tower podia beijar daquele jeito? Agora Jon mal podia esperar para descobrir que outros segredos estariam escondidos por trás daquela fachada de seriedade.

Por causa da perna machucada, Jon não conseguiu acompanhar a velocidade de Amanda, que parecia determinada a ficar bem adiante dele. Roseanne esperava à porta da casa e por alguns instantes ficou olhando alternadamente para um e outro, com curiosidade.

— Está aí uma visita, Amanda — disse a mulher, finalmente.

— Quem é?

Jon reparou que, antes de responder, Roseanne fazia uma expres­são de desagrado.

— É o Dr. Miller. Está na sala de visitas com a sua mãe. E a Sra. Hightower pediu que o senhor vá até lá, Sr. Luck. Logo levarei uma bandeja de canapés.

— Dr. Miller? — perguntou Jon, olhando para Amanda, depois que Roseanne se voltou para entrar.

— Dr. Edward Miller — ela explicou, não parecendo mais en­tusiasmada do que a governanta. — Ele é... é um amigo da família.

Jon lembrou-se do nome. Edward Miller, o ex-noivo de Amanda. O «brilhante professor universitário», segundo a definição do repe­lente Howard Worley.

— Estou ansioso para conhecer esse amigo da família — ele disse, fechando o semblante.

Amanda abaixou os olhos e entrou na casa, seguida por Jon.

Uma visita de Edward era a ultima coisa que Amanda queria enfrentar naquele dia, principalmente quando não conseguia esquecer o beijo trocado com Jon momentos antes.

— Mas que surpresa — ela murmurou, realmente intrigada com aquela visita.

Bonito e displicentemente charmoso, Edward Miller saudou-a com um beijo que teria atingido os lábios de Amanda se ela não virasse rapidamente o rosto, oferecendo a face.

— Resolvi passar por aqui para ver como estão você e Eleanor — ele declarou. — E o menino, é claro. Como ele está?

— Aubrey está bem — respondeu Amanda, pronunciando com intencional clareza o nome do sobrinho.

Em geral ela gostava de Edward. O desapego aos padrões e a natureza impulsiva daquele homem tinham sido algo renovador para Amanda, criada numa família na qual imperavam a rigidez e a rotina. Mas havia ocasiões em que ele era simplesmente irritante. Como naquele momento, por exemplo.

Reparando que ele olhava para Jon, Amanda perguntou-se se Ed­ward não queria mais ter informações sobre o hóspede dos Hightower do que se certificar do bem-estar dela.

— Edward, este é o investigador Jonathan Luck. Jon, este é o Dr. Edward Miller.

Edward despejou uma torrente de saudações, às quais Jon res­pondeu com um murmúrio ininteligível. O aperto de mão deles de­morou apenas o tempo ditado pela boa educação.

Eleanor convidou os homens a se sentarem... Para Amanda, seria mais correto dizer que ela ordenou que eles se sentassem. Logo depois a matriarca sugeriu à filha que servisse os drinques. Amanda teve que admitir que a mãe estava fazendo um admirável esforço para se mostrar simpática, já que detestava visitas que não se anun­ciavam com antecedência e nunca havia gostado muito de Edward. Eleanor sempre dissera acreditar que Edward se sentia mais atraído pelo dinheiro da família do que por Amanda.

Edward e Jon foram muito polidos um com o outro durante a rápida visita... talvez até polidos demais. Desde o começo Amanda teve a impressão de que não haviam simpatizado muito um com o outro. E não era de admirar. Aqueles dois homens não podiam ser mais diferentes: o elegante e intelectualizado professor de sociologia e o grosseiro e absolutamente masculino tira.

Esgotadas as amabilidades, um constrangedor silêncio caiu sobre a sala. Eleanor não fez nenhum esforço para preenchê-lo, menos ainda Jon. Amanda simplesmente não conseguia pensar em nada para dizer. Felizmente Edward olhou no fino relógio de ouro e tossiu discretamente.

— Está ficando tarde e é melhor eu me retirar. Certamente Ro­seanne está esperando para servir o jantar de vocês.

Então ele fez uma pausa, mas ninguém se pronunciou. Amanda precisou morder a língua para não fazer o convite para jantar que as normas de boa educação do Sul mandavam que ela fizesse. Edward sorriu e levantou-se elegantemente da cadeira.

— Pois bem, então. Fico contente em ver que você está tão bem, Eleanor. Foi um prazer conhecê-lo, investigador Luck.

— Sim, claro, o prazer foi meu — disse Jon, pegando a bengala, talvez pensando em pôr o outro homem para fora a bengaladas.

— Vou levá-lo até a porta, Edward — ofereceu-se Amanda.

— Não é necessário, querida — ele garantiu. —- Conheço o ca­minho. Fique aqui com sua mãe e seu hóspede. — Desta vez ele foi mais rápido para beijá-la, conseguindo roçar os lábios nos dela. — Você tem meu telefone. Ligue-me quando precisar de alguma coisa.

Eleanor mal esperou até que Edward não pudesse mais ouvi-la para dizer o que pensava.

— Pelo que estou vendo, ele ainda tem esperanças de se apoderar do dinheiro da nossa família.

— Mamãe — protestou Amanda, aborrecida por Eleanor estar levantando aquela suspeita na frente de Jon. — Isso não é justo. Ele só queria saber como estávamos passando.

— Podia ter telefonado.

— Você sabe que Edward faz tudo por impulso. Provavelmente estava passando por aqui e resolveu parar.

— Impulso — repetiu Eleanor, num tom seco. — Se quer saber minha opinião, tudo que aquele rapaz faz é muito bem calculado. Pode escrever o que estou dizendo, Amanda. A intenção dele é reatar o noivado. Está em dificuldades financeiras e, se tiver a chance, não deixará que o seu dinheiro escape por entre os dedos dele.

— Mamãe, você está sendo...

— Existe algum motivo para acreditar que aquele sujeito está realmente interessado no dinheiro da família? — perguntou Jon, de súbito, ficando pensativo.

— É claro que não — despachou Amanda, antes que Eleanor pudesse falar. — Qualquer homem que me convide para sair é acu­sado por mamãe de ser um caçador de fortuna. Ele acha impossível acreditar que alguém possa simplesmente se interessar por mim.

— Eleanor, você tem evidências palpáveis de que Miller está em dificuldades financeiras? — inquiriu Jon, ignorando o veemente pro­testo de Amanda.

— Não — admitiu a mulher, relutante. — Mas sempre suspeitei disso.

Só então Amanda percebeu o motivo das perguntas de Jon. Por alguns instantes ficou olhando para ele, incrédula.

— Naturalmente você não está sugerindo que Edward tem alguma coisa a ver com a tentativa de seqüestro.

Jon encolheu os ombros.

— Como eu já lhe disse, Amanda, todos são suspeitos. Miller teria os conhecimentos necessários sobre a rotina da família. Eleanor suspirou e balançou a cabeça.

— Tenho que admitir, Jonathan, que não consigo imaginar Edward comprometendo o próprio futuro numa coisa tão arriscada. Ele tem um cargo importante na universidade e adquiriu um certo respeito nos meios acadêmicos com o livro que publicou no ano passado. Seqüestrar Aubrey seria para alguém afeito a métodos grosseiros... algo mais ao estilo de Howard Worley.

— Ainda acho que foi alguém que não estamos levando em conta: um desconhecido — insistiu Amanda. — Por mais que eu desgoste de Howard, não consigo vê-lo fazendo algo que Edward não faria.

— Por enquanto é melhor não excluirmos nenhuma possibilidade — sugeriu Jon, outra vez encolhendo os ombros.

— Bem, vou mandar Roseanne servir o jantar — disse Eleanor, levantando-se e caminhando para a porta.

Jon ficou pensativo por alguns segundos.

— Eleanor tem razão numa coisa — ele disse, quando já estava a sós com Amanda.

— O quê? — ela inquiriu, com desconfiança.

— Miller parece estar esperando que você caia outra vez nos braços dele.

Aborrecida, Amanda levantou a cabeça e marchou para a porta.

— Eu não caio nos braços de nenhum homem — ela declarou, cheia de orgulho.

Ao passar por Jon de cabeça erguida, Amanda não viu a posição da bengala e acabou tropeçando. Teria caído inapelavelmente no chão se ele, ainda sentado, não estendesse os braços para apará-la.

— Ali, não? —- murmurou Jon, com um sorriso malicioso. Amanda segurou nos ombros dele, mas apenas para se equilibrar.

— Você é um... — ela começou, apenas para ser silenciada pelos lábios de Jon.

Logo Amanda percebeu que era aquele o beijo que havia esperado no jardim. Profunda Quente. Delicioso. Assustador. E nem tentou resistir.

Foi Jon quem finalmente afastou a cabeça. Logo depois segurou nos braços dela para colocá-la de pé.

— Vou lavar as mãos para jantar — ele declarou, saindo da sala com a rapidez que lhe permitia a perna machucada.

Amanda ficou olhando para as costas dele, atordoada.

Balançando a cabeça ela juntou as mãos trêmulas. Mas o que estava acontecendo, afinal? Como a vida dela, sempre perfeitamente previsível, podia estar se tornando tão complicada?

 

Na manhã da quarta-feira Jon fez uma ligação in­terurbana, que mandou debitar no cartão de cré­dito. Quando uma voz masculina atendeu no outro lado da linha, ele sorriu.

— Feliz aniversário, irmãozinho.

— Ei, você se lembrou! — exclamou Ben, com satisfação. — Obrigado, Jon.

— Está tudo bem por aí?

— Tudo bem. E com você? Está se divertindo com o favorzinho que resolveu fazer a mamãe?

Jon riu.

— Não é lá muito divertido, Benjamim. Quando será que vamos aprender a dizer não para ela?

— Não me pergunte. Cada vez que eu tento, ela faz beicinho, me olha com aqueles olhos compridos... bem, eu acabo amolecendo. Foi assim quando ela me pediu para tirar daquele bar o filho rebelde de uma das amigas dela. Rapaz, tive sorte em sair de lá com todos os meus dentes! Mas fiquei vários dias com o olho roxo.

Jon riu novamente.

— Eu me lembro. E não adianta mesmo, Ben. Mamãe poderia ser catedrática em manipulação.

— Pode crer. Ela faz o que quer conosco. Mas como está se saindo por aí, Jon? Já descobriu alguma pista do provável seqüestrador?

— Eu estou aqui para sugerir medidas de segurança, Ben, não para investigar o incidente. Estou fora da minha jurisdição, lembra-se?

— Sim, claro — disse Ben, pouco convencido. — Mas o que descobriu?

— Pouca coisa — admitiu Jon, narrando rapidamente a tentativa de seqüestro e o incidente acontecido na primeira noite dele na casa. — Hoje estive conversando com um dos policiais daqui. Até agora o único suspeito que eles interrogaram foi um tio materno do menino. O sujeito ficou tão irado com o interrogatório que ameaçou processar meio mundo. O problema é que não temos nenhuma testemunha do incidente. Ninguém a não ser o garoto, é claro.

— Jon, não existe a possibilidade de esse menino ter inventado a história toda? Será que não está querendo chamar a atenção?

Resistindo ao impulso de negar aquela possibilidade, Jon procurou raciocinar com objetividade antes de responder. Pensou num menino solitário, inteligente, imaginativo, carente da atenção da tia e da avó... Pensando bem, a pergunta não era totalmente descabida. Mas depois ele se lembrou do que vira nos olhos de Aubrey ao entrar no quarto na noite da tentativa de invasão.

— Não — decidiu Jon. — Ele não inventou nada. Alguma coisa está acontecendo, e eu queria muito saber o que é.

— Então você acha que o garoto está realmente correndo perigo?

— Acho. Ele corre perigo, sim.

— Droga. Bem que eu gostaria de ter alguns dias de folga para ir até aí. Juntos, talvez conseguíssemos descobrir alguma coisa. Mas acabei de ser designado para uma investigação bem complicada. Ficarei semanas envolvido nisso.

— Eu me arranjarei, Ben — disse Jon, esperando não estar sendo excessivamente confiante. — Não se preocupe.

— Mas tome cuidado, homem. Nós dois sabemos que às vezes você é um tanto... inquieto.

— Inquieto? — repetiu Jon, brincando com a bengala. — Que* nada.

Ben riu.

— Mesmo assim procure se cuidar, mano. Jon desligou o telefone e suspirou. Era bom entrar novamente em contato com o mundo dele, mesmo que por uns poucos minutos.

Desde que havia chegado a Memphis... ou melhor, desde que Amanda Hightower o recebera à porta da mansão, ele se sentia meio deso­rientado. Parecia um tanto fora da própria identidade. E não sabia muito bem como interpretar aquela confusão.

Estava uma manha calma na loja, deixando a Amanda e Trícia tempo suficiente para abrir as caixas com um novo carregamento de estatuetas e arrumá-las no mostruário envidraçado. Amanda estava arranjando lugar para uma minúscula noiva de louça quando a porta bateu. Alguém estava entrando sem muito cuidado.

Amanda olhou por cima do ombro e franziu a testa ao ver o homem de aparência desleixada que acabava de entrar. Enquanto erguia o corpo, ela trocou um olhar de preocupação com Trícia.

— O que quer, McFarland? --- perguntou Amanda.

— Quero o dinheiro que você deve à minha mulher — respondeu o homem, avançando para ela e espalhando um cheiro forte de bebida alcoólica.

Amanda não recuou de onde estava.

— Eu já lhe disse que não devo nada a Nancy — ela declarou, com frieza. — Ela foi apanhada roubando dinheiro da caixa regis­tradora e teve até sorte ao ser apenas despedida.

— E mentira! — vociferou McFarland, com os olhos negros fu­zilando. — Você deve dinheiro a ela e eu vim cobrar. E acho bom acrescentar um pouco mais por tê-la chamado de ladra.

— Não vou lhe dar nenhum dinheiro, McFarland. E terei que chamar a polícia se você não sair da minha loja imediatamente. Trícia?

A gerente pegou o telefone por trás do balcão.

— Quer que eu ligue?

— Isso depende do Sr. McFarland — respondeu Amanda, olhando fixamente para o homem embriagado. — E então? Está disposto a sair com seus próprios pés?

— Não sem o dinheiro de Nancy — negou-se o homem, pegando numa prateleira um caríssimo vaso de cristal. — Pode chamar a polícia, sua cadela. Vamos ver em quantos pedaços esta peça se transformará antes que eles cheguem.

A porta se abriu e Amanda desejou sinceramente que ninguém acabasse se ferindo por causa daquele incidente desagradável. Per­cebeu que Trícia pressionava os botões do telefone e rezou para que a polícia chegasse antes que McFarland destruísse tudo na loja.

— Você certamente não quer problema com a polícia, McFarland — ela voltou a falar. — Se sair daqui já, não haverá...

— Algum problema aqui?

Amanda reconheceu aquela voz grave e segura. Mas o que Jon estava fazendo ali?

McFarland voltou-se para ver de onde vinha a pergunta.

— Não é da sua conta. E é melhor voltar outra hora. Enquanto se voltava o homem soltou em cima do balcão o vaso de cristal. Amanda conteve a respiração enquanto via a delicada peça rolar por cima do tampo de vidro, parando perigosamente na beirada.

— Pois eu acho que é você quem vai ter que sair daqui — disse Jon, calmamente, com um olhar perigoso. — Agora.

McFarland aprumou o corpo e Amanda reparou, nervosa, que ele era uns sete ou oito centímetros mais alto que Jon. Logo depois o invasor afastou-se do balcão e avançou para o homem que o havia desafiado.

— É você quem pretende me pôr para fora?

Jon firmou-se nos pés, parecendo perfeitamente preparado para a confrontação.

— Pois é. Sou eu, sim. McFarland soltou a gargalhada característica de um bêbado.

— Então segure-se, vaqueiro — ele recomendou, numa voz en­rolada, ao mesmo tempo que soltava na direção de Jon o punho fechado.

Aparentemente sem pressa, Jon moveu o corpo para o lado e ergueu as mãos para interceptar o braço de McFarland.

Amanda fechou os olhos, certa de que dentro de mais alguns instantes tudo na loja estaria em pedaços. Só esperava que Jon não saísse muito machucado. Com a perna já ferida ele não teria con­dições de vencer uma briga com um homem daquele tamanho... mesmo McFarland estando bêbado como um gambá.

Ouviu-se apenas um som surdo e um palavrão, seguidos por um momento de silêncio. Quando Amanda abriu os olhos, McFarland estava deitado de bruços no chão com o rosto no carpete. Sentado por cima, Jon pressionava firmemente a nuca do homem contra o solo. McFarland estava com o braço esquerdo imobilizado às costas. Cada vez que movimentava o corpo ria tentativa de se soltar, Jon aumentava a pressão ali:

McFarland finalmente se submeteu, gritando por causa da dor que sentia.

— Você vai quebrar meu braço, seu desgraçado!

— Só se for necessário — respondeu Jon, com serenidade.

— Ou! — murmurou Trícia, chegando perto de Amanda. — Quem é ele?

Antes que Amanda pudesse responder, dois policiais uniformiza­dos entraram na loja. Jon levantou-se e, agora demonstrando certa dificuldade de movimentos por causa da perna, passou por cima do homem deitado no chão.

— Ela me deve dinheiro, droga! — gritou McFarland, enquanto tinha as mãos algemadas às costas. — Será que não tenho o direito de pegar o meu dinheiro?

— Eu não lhe devo nada — repetiu Amanda, aliviada ao perceber que estava com a voz firme. — Você nunca tirará nenhum dinheiro de mim, McFarland, e não apareça mais aqui.

— Cadela — vociferou o homem, enquanto era levado para fora pelos policiais. — Você vai se arrepender por isso. Lamentará não ter...

A porta se fechou antes que ele pudesse completar as ameaças. Amanda suspirou de alívio e apoiou-se no balcão.

— Você está bem? — perguntou Jon, andando com clara difi­culdade para se aproximar dela.

— Estou bem, sim. E você? Está bem?

— É, estou. O sujeito estava tão bêbado que mal conseguia ficar de pé. Quem diabo é ele, Amanda?

— O nome é Gray McFarland. Algumas semanas atrás eu tive que despedir a namorada dele e desde então McFarland vem nos dando alguns problemas.

Um dos policiais que haviam levado McFarland para fora retornou para preencher a ficha de ocorrência. Amanda declarou que não pretendia apresentar queixa formal, mas de bom grado respondeu! às perguntas. Menos de vinte minutos depois o policial foi embora,

— Eu preciso conhecer esse homem — disse Trícia, aproximando-se e dirigindo a Jon.um sorriso de curiosidade. — Quem é oi herói, Amanda?

Divertida ao ver um leve rubor nas faces de Jon quando ele ouviu a palavra «herói», Amanda fez a apresentação.

— Trícia Bowman, este é o investigador Jon Luck, do Departamento de Polícia de Seattle.

— Ah, então você é o investigador de Amanda! A descrição que ela me fez não lhe faz justiça.

Jon sorriu diante do espalhafatoso galanteio de Trícia.

— Por que será que não fico surpreso ao ouvir isso?

Pela primeira vez desde que havia entrado na loja, Jon olhou em volta para admirar as delicadas e caras mercadoria ali expostas. Amanda acompanhou o olhar dele e verificou, com gratidão, que não precisaria contabilizar nenhum prejuízo. Estava devendo um grande favor a ele.

— Bonito lugar — disse Jon.

— Obrigada. O que está fazendo aqui, Jon? — Mal fez a perguntai Amanda ficou levemente pálida. — Algum problema? Aconteceu! mais alguma coisa com...                                                            

— Aubrey está ótimo — apressou-se em dizer Jon. — Não acon­teceu nada. Eu só passei aqui para ver se você queria almoçar comigo. Ainda não comeu, não é?

— Almoçar? — repetiu Amanda, confusa.

Ela encontrava uma certa dificuldade em passar do drama que eles acabavam de viver para um assunto tão corriqueiro como comida.

— Ela ainda não comeu, não — intrometeu-se Trícia. — E cer­tamente adoraria almoçar com você... não é, Amanda?

Amanda lançou um olhar de repreensão à amiga.

— Bem, eu...

— Ótimo — comemorou Jon, considerando a decisão tomada. — Tenho umas coisas para conversar com você.

— Mas...

— Não se preocupe, Amanda — tranqüilizou-a Trícia, indicando com um gesto a loja vazia de fregueses. — O movimento hoje está fraco e Kelly logo estará aqui para me ajudar a arrumar o estoque novo. Aproveite o almoço.

Amanda suspirou e submeteu-se. Afinal de contas, um almoço era o mínimo que Jon merecia depois de ter evitado que McFarland destruísse a loja. Magnânima, ela decidiu que pagaria a conta.

— Está bem, eu irei. Brincando, Jon fez uma reverência.

— Ora, muito obrigado.

Amanda resistiu ao impulso de lançar a ele um olhar frio e reparou em outra coisa.

— Onde está a sua bengala?

— Resolvi sair sem ela. Estava começando a ficar cansado de levá-la para todos os lados... embora às vezes eia se mostre muito útil.

Amanda percebeu, pelo meio sorriso que viu nos lábios de Jon, que ele estava se referindo ao incidente de antes do jantar da segunda-feira, quando ela havia tropeçado na bengala paia cair nos braços dele, logo depois de ter declarado que não caía nos braços de nenhum homem. Desde então ela vinha se esforçando, sem muito sucesso, para não pensar no beijo que eles haviam trocado em se­guida.

O restaurante escolhido por Amanda não era muito longe da loja, mas ela achou melhor ir de carro. Não queria que Jon exigisse mais da perna ferida, principalmente depois do esforço que ele já fizera para dominar McFarland.

Mal eles se sentaram e fizeram os pedidos, Jon pediu mais in­formações sobre o incidente na loja.

— Fale-me mais sobre aquele cretino — ele disse, sentado de frente para ela a uma mesa de canto. — Que outros problemas ele lhe causou?

Amanda balançou a cabeça.

— Antes de hoje McFarland não tinha feito nada muito sério. Foi inconveniente algumas vezes, exigindo que eu readmitisse Nancy ou lhes desse dinheiro. Fez algumas ameaças, achando que com isso me convenceria.

— Por que você despediu a namorada dele?

— Ela estava roubando dinheiro da caixa registradora. Acho que levei tempo demais para perceber isso. Sempre confio cegamente nos meus empregados e foi muito ruim descobrir que uma mulher de quem eu gostava estava me roubando. Mas tudo ficou muito evidente e ela não tentou negar.

— Você apresentou queixa contra a moça?                              

— Não — respondeu Amanda, tomando um gole de água. Jon fez cara feia.                                                                    

— Não? Mas por que não, meu Deus?                                    

— Eu simplesmente preferi não apresentar queixa — ela declarou, achando que não precisava justificar as próprias decisões.

Jon evidentemente não concordou com aquilo.

— Acha que ela não merecia? Já pensou no risco que estará correndo o próximo patrão dessa moça? Não se sentirá responsável quando ela causar prejuízos a ele também?

Amanda não via a questão por aquele ponto de vista.

— Eu fiquei com pena de Nancy — ela admitiu. — Ela é uma pessoa doce, mas terrivelmente insegura. Não tem nenhuma auto-estima, e McFarland não ajuda muito para que ela supere isso. Trata a garota de uma forma horrível, acho que até agredindo-a fisicamente, mas Nancy o adora. Faz tudo o que ele pede, sem discutir.

— Acha que foi ele quem pediu a ela que roubasse dinheiro da sua loja?

— Tenho certeza. Por si própria, Nancy jamais pensaria em fazer aquilo.

— Provavelmente você estaria fazendo um favor a ela se apre­sentasse queixa. Talvez a garota resolvesse se separar do cretino.

— O mais provável seria ela assumir sozinha a culpa, enquanto ele escaparia impune — discordou Amanda. — Por isso, preferi não arriscar. Ofereci ajuda se ela o deixasse, mas Nancy rechaçou a oferta e defendeu McFarland com firmeza.

— Que tipo de ameaças ele fez?

— Nada específico. Só ameaças vagas, do tipo «você se arre­penderá». Eu não o levei muito a sério.

— Pois talvez deva. E hoje devia ter apresentado queixa contra ele. O terrorismo é um crime em si, sabia?

— Parece que você está sempre pronto a me dizer o que eu devia ter feito — queixou-se Amanda, com uma ponta de ressentimento.

— Resolvi esquecer essa história, Jon. E realmente não acho que preciso me justificar com você.

Só que praticamente tudo o que ela dissera até aquele momento fora para se justificar, concluiu Amanda, exasperada consigo própria.

Jon encolheu os ombros.

— E você quem decide, mas não acho que tenha sido uma decisão acertada. — Bem, o que eu acho é que isso não é da sua conta — resmungou Amanda. Jon ergueu as sobrancelhas. — Talvez seja da minha conta. Como sabe que McFarland e a namorada não foram as pessoas que tentaram seqüestrar A.J.? Amanda arregalou os olhos. — Você não pode estar acreditando nisso. — Como é a aparência de Nancy? Ela é gorducha e loira? — Não, ela tem cabelos castanhos, quase pretos. Jon, isso é... — Mas é gorducha? Será que não foi ela que, com uma peruca loira, abordou Aubrey na biblioteca? — Nancy tem um metro e sessenta de altura e deve pesar uns cinqüenta quilos. Não pode ser a mesma mulher. De qualquer forma isso seria absurdo. Nancy faria praticamente qualquer coisa por aque­le cretino, mas não acredito que ameaçasse uma criança.

— Talvez ele tenha prometido que o menino não seria ferido. Talvez a tenha convencido de que seria a única forma de pegarem o dinheiro que, segundo ele, você lhes deve.

Amanda balançou a cabeça.

— Não, não foram eles. Jon mexeu a cabeça para os lados, impaciente.

— Até agora você me garantiu com firmeza que não pode ter sido Worley, Miller ou McFarland. Mas alguém tentou seqüestrar o seu sobrinho, Amanda, e nós não vamos descobrir quem foi en­quanto você não se mostrar mais aberta para as possibilidades.

Amanda pegou o garfo e, raivosamente, enfiou-o na verdura da salada. Estava enfurecida com a arrogância daquele homem, embora tivesse que reconhecer que o ponto de vista dele era correto.

Uns cinco minutos se passaram antes que Jon voltasse a falar.

Quando isso aconteceu, foi para tocar num assunto completamente diferente.

— Esta manhã falei por telefone com o meu irmão. Ele é inves­tigador de uma companhia de seguros em Seattle.

Amanda demonstrou interesse.

— Você o consultou sobre Aubrey?

— Na verdade eu telefonei para desejar a ele um feliz aniversário. Ben está completando trinta e um anos hoje. Mas nós conversamos sobre o que está acontecendo aqui.

— Ele fez alguma sugestão?

— Fez uma — disse Jon, olhando atentamente para ela, como . se quisesse ver qual seria a reação ao que ia dizer. — Ben me perguntou se não havia alguma possibilidade de que o garoto esti­vesse imaginando o incidente, ou mesmo deliberadamente inventando a história.

Amanda melindrou-se com aquilo. — Espero que você tenha respondido à altura.

— Eu disse a ele que, na minha opinião, os incidentes realmente aconteceram. Mas pensei um pouco antes de responder. Afinal de contas, foi uma pergunta pertinente.

— Pertinente? — repetiu Amanda, incrédula. — Isso é ridículo! Por que Aubrey inventaria uma história assim, meu Deus?

— Para chamar a atenção.

Amanda balançou a cabeça, com firmeza.

— Absurdo. Aubrey nunca teve carência de atenção.

— Tem certeza? — inquiriu Jon, num tom um pouco calmo de­mais.

— E claro que tenho certeza! — ela declarou, ofendida com a implicação da pergunta dele. — Mamãe e eu estamos sempre pre­sentes quando ele precisa de nós. Temos dado tudo o que Aubrey precisa desde... desde que ele foi morar conosco.

— Materialmente, não há dúvida de que o garoto tem tudo. Emo­cionalmente... Bem, quanto a isso não tenho muita certeza.

Amanda ficou olhando fixamente para a salada, subitamente sem apetite.

— Você acha que eu não tenho tentando me aproximar dele? Eu tenho tentado, sim. Mas Aubrey não permite. Eu... eu acho que ele não gosta muito de mim.

A voz de Jon tornou-se meiga.

— E você gosta dele?

— Se eu gosto dele? — espantou-se Amanda. — Jon, eu adoro Aubrey. Ele é meu sobrinho.

— Sim, mas você gosta dele — insistiu Jon. — Realmente conhece aquele menino? Sabe quais são as coisas de que ele gosta, o que sente em relação à perda dos pais, as esperanças e os planos que tem para o futuro?

Amanda pestanejou, determinada a não derramar nenhuma lágri­ma.

— Como posso saber dessas coisas se ele não quer confiar em mim? Faço perguntas, mas ele sempre responde com monossílabos. Tento encorajá-lo a falar dos pais, mas ele se retrai por completo. Pergunto o que gostaria de fazer e ele diz que precisa estudar. Aubrey não permite a minha aproximação, Jon, nem emocional nem fisica­mente. Às vezes...

Nesse ponto a voz de Amanda fraquejou e Jon estendeu as mãos para cobrir as dela em cima da mesa. As lágrimas que ela vinha tentando reter começaram a escorrer.

— Às vezes eu sinto tanta vontade de abraçá-lo, afagar os cabelos dele... mas Aubrey sempre arranja um jeito de escapar. Ele não gosta de mim, Jon. E eu não sei o que fazer para mudar isso.

Jon apertou mais as mãos dela.

— Amanda, eu sei que você tem se esforçado muito para ser uma boa guardiã do menino, mas talvez devesse apenas relaxar, tratá-lo na medida do possível como um garoto normal, embora sem deixar de ajudá-lo a desenvolver o potencial que tem.

Amanda ficou ressentida por ele estar dando mais um conselho que não havia sido solicitado, embora se visse pensando cuidado­samente em cada uma das palavras que acabava de ouvir.

— O que fez de você um perito em crianças excepcionalmente desenvolvidas?

Jon riu da pergunta.

— Não, eu não sou nada disso. Sei perfeitamente que nunca fui um menino-prodígio, mas certamente houve uma época em que fui um garoto de nove anos. Aubrey me dá a impressão de ser um menino solitário, carente de uma vida mais alegre. Tenho certeza de que, se você relaxar e passar a tratá-lo como um garoto comum, e não como um gênio mirim, vai acabar descobrindo que ele gosta de você muito mais do que parece. Amanda mordeu o lábio.

— Não sei como ele poderá se divertir quando alguém o ameaça de seqüestro.

Jon apertou os dedos dela outra vez e logo depois recuou, com uma expressão determinada no rosto.

— Disso cuido eu.

— Só espero que consiga.

— Confie em mim, Amanda. Ninguém encostará a mão naquele menino enquanto eu estiver por aqui.

Amanda ficou relutante.

— O problema é que você só ficará aqui mais alguns dias. E depois?

— Eu cuidarei disso também — ele prometeu.

A lembrança de que Jon logo estaria indo embora deixou Amanda com menos apetite ainda. Estaria ela preocupada apenas com a se­gurança do sobrinho... ou haveria outros motivos para lamentar aqui­lo?

 

Naquela tarde, quando Terrence chegou trazendo Aubrey da escola, Jon estava esperando na frente da casa, encostado numa das colunas de mármore da varanda. Nos últimos dias ele vinha procurando uma oportunidade para passar algum tempo com o garoto. Aubrey agora sentia-se bem mais à vontade com o hóspede da família, o que ficou evidenciado pela forma como o saudou.

— Olá, Jon! — exclamou o menino, desembarcando do carro.

— Olá, A.J. Como foram as coisas na escola?

— Foi tudo bem. Onde está a sua bengala?

— Resolvi aposentá-la. Vá guardar suas coisas e volte aqui para fora. Pelo que me lembro, combinamos passar algum tempo à beira do riacho.

Aubrey empurrou os óculos para o alto do nariz e sorriu timida­mente.

— Voltarei num minuto.

— Na volta passe na cozinha e peça a Roseanne que arrume uns doces ou coisas assim para levarmos conosco. Você certamente irá querer comer alguma coisa. Lancharemos à beira do riacho.

Já caminhando, o garoto olhou para ele por cima do ombro.

— Como num piquenique? Jon abriu um largo sorriso.

— E, como num piquenique. E diga a Roseanne para não pôr nada de comidas saudáveis... só baboseiras mesmo.

Como já havia combinado tudo com a alegremente espantada governanta, Jon sabia que àquela altura o lanche já devia estar pronto.

— Qual é a mágica? — perguntou Terrence, depois que Aubrey desapareceu correndo porta adentro,

— Que mágica?

— Eu nunca vi esse garoto tão animado. Ele gosta mesmo de você.

— E um bom garoto.

— Ele sempre foi bem-educado comigo, mas nunca me disse mais do que umas poucas palavras.

— O problema é a timidez dele — explicou Jon. — Aubrey não sabe como começar uma conversa. Apenas responde polidamente.

— Acho que ele foi ensinado a ser assim. Os pais eram um tanto... bem...

Terrence não concluiu a frase, aparentemente não querendo ser , indiscreto sobre os patrões.

Jon, porém, não tinha esses escrúpulos.

— Os pais dele eram um tanto o quê?

— Assim como... como a avó de Aubrey — respondeu Terrence, com cuidado. — Muito bondosos, mas um tanto...

— Rígidos? Formais? Frios? — ajudou Jon, já que o rapaz parecia não encontrar as palavras.

— E, tudo isso — confirmou Terrence. Jon fez uma careta.

— Esse garoto precisa se soltar, sujar as roupas brincando na terra, ter amigos — ele disse, pensando alto.

O motorista concordou de pronto.

— E o que eu sempre pensei, mas nunca soube como sugerir. Para falar a verdade, cheguei a pensar em apresentá-lo ao meu filho, mas não sei se a Sra. Hightower aprovaria.

— Por que ela não aprovaria, homem? Quantos anos tem o seu garoto?

— Nathan é alguns meses mais novo do que Aubrey, mas são muitas as diferenças. Meu menino está na quarta série... Não está atrasado, mas também não é um gênio. Gosta de esportes, TV, vi­deogame... esse tipo de coisa. Não sei como ele e Aubrey se enten­deriam.

— Talvez devêssemos fazer uma tentativa qualquer tarde dessas, depois da escola — sugeriu Jon, lembrando-se do videogame que vira embaixo da cama de Aubrey. — Eles podem ter muito mais em comum do que você pensa. Quanto à avó... Bem, se ela perguntar alguma coisa diremos que foi idéia minha.

— É, faremos isso — concordou Terrence, sorrindo e abrindo a porta do carro. — Agora preciso ir, mas amanhã estarei livre. Ainda quer conhecer Beaie Street comigo?

— Pode crer, homem — disse Jon, contente com a possibilidade de escapar a mais um jantar formal em família.

O motorista riu.

— Então virei apanhá-lo às oito. Vou lhe mostrar o meu lado de .Memphis.

— Estou contando com isso.

Segurando uma sacola de papel marrom, Aubrey reapareceu no instante em que Terrence ia se afastando com o carro. Jon desencostou-se da coluna, determinado a ignorar os protestos da perna machucada pelas extravagâncias que ele andava fazendo.

— Agora vamos ver esse tal riacho.

Roseanne havia colocado na sacola refrigerantes gelados em lata, maçãs e bolinhos de chocolate com amêndoas. Os bolinhos desapa­receram em tempo recorde. Durante vários minutos Jon e Aubrey discutiram solenemente se deviam perdoar Roseanne por não ter colocado mais bolinhos de chocolate no lugar das saudáveis maçãs.

Jon tirou os sapatos e as meias, para ter o prazer de sentir a grama na sola dos pés, mas encontrou dificuldade em convencer Aubrey a fazer o mesmo. O menino só concordou quando ele disse que, segundo o costume, o lanche de um verdadeiro piquenique devia ser comido com a pessoa de pés descalços. Aubrey tirou os sapatos italianos, nos quais guardou as meias cuidadosamente dobradas.

— Você tem amigos na escola? — perguntou Jon, com natura­lidade, quando eles se deitaram na grama mastigando as maçãs.

— Acho que não — admitiu o garoto, arrancando o talo da maçã e evitando olhar para Jon. — São todos bem mais velhos do que eu. Alguns às vezes se divertem às minhas custas.

— Por que fazem isso?

— Bem, porque eu sou muito pequeno, uso óculos e sapatos em vez de tênis. Às vezes me chamam de... de Audrey, que é um nome de mulher.

Jon franziu a testa.

— Então diga a eles para chamá-lo de A.J. Ninguém vai poder dizer que é um nome de mulher.

Aubrey olhou timidamente para Jon.

— Hoje eu... bem, eu pedi a um dos garotos que me chamasse de AJ. E ele me chamou assim. Eu... eu gostei, sabe?

— Você não gostaria de freqüentar a quarta série, com outros meninos da sua idade.

— Não. Não mesmo. As aulas seriam muito aborrecidas. Mas às vezes eu gostaria de...

Aubrey fez uma pausa e Jon resolveu socorrê-lo.

— De ter mais amigos?

— E — confirmou o garoto, com a cabeça abaixada.

— Você sabia que Terry... que Terrence tem um filho da sua idade? O nome dele é Nathan.

— Sim, ele já me falou no filho.

— Bem, o que acha de numa dessas tardes depois da escola nós quatro nos reunirmos para um programa só de homens? Um passeio no parque para ver as garotas, um jogo de bola... alguma coisa assim?

Aubrey pareceu hesitante.

— Eu não sei...

— Seria divertido. Você gosta de Terrence, não é?

— Ele é uma boa pessoa.

— E gosta de mim, não é?

O sorriso tímido de Aubrey fez com que Jon sentisse um aperto no peito.

— Sim.

— Sei que também gostará de Nathan. E então? Não quer tentar?

— Está bem.

Jon esfregou os cabelos do garoto.

— E assim que se fala. Agora quero ver aqueles girinos de que você me falou — ele pediu, olhando para o pitoresco e sombreado riacho que cortava os fundos da propriedade dos Hightower.

— Ah, no outono não há girinos — informou Aubrey, pondo-se rapidamente de pé. — Eles só aparecem na primavera. Nesta época estão em gestação.

— Ah, é mesmo? — lamentou Jon, que só então tomava conhecimento daquele fato científico. — Mas que azar. Bem, talvez possamos ver alguns barrigudinhos.

Aubrey acocorou-se na beira do riacho e correu os olhos pela água.

— Está vendo ali, naquela pedra? Há um cardume inteiro deles. Jon chegou mais perto do garoto e fez uma cara de descrença.

— Você está querendo me enganar. Aquilo ali é uma sombra.

— Não, são barrigudinhos — insistiu Aubrey, com ênfase. — Não está vendo como eles se movem em volta da pedra?

— Pura ilusão de ótica.

— São barrigudinhos! — persistiu o garoto.

— Talvez seja melhor você olhar mais de perto — sugeriu Jon, colocando a mão nas costas dele e empurrando-o de leve.

Aubrey cambaleou, conseguiu se equilibrar mas no instante se­guinte viu-se com os dois pés dentro da água. Depois de olhar para baixo e ver as pernas da calça molhadas, voltou-se para Jon, atônito.

— Você me empurrou! Jon riu.

— É, empurrei. E o que é que você vai fazer agora? Aubrey pareceu ainda mais perplexo ao ouvir a pergunta. —- Não sei.

Jon colocou os punhos fechados na cintura e balançou a cabeça.

— Mas qual é o problema com você, rapaz? Se alguém o empurra num riacho, tem que haver retaliação. Qualquer homem iria querer uma desforra.

Pela primeira vez desde que havia conhecido o garoto, Jon viu um genuíno brilho de peraltice naqueles olhinhos em geral sérios. Juntando as mãos, Aubrey inclinou-se rapidamente para a frente e arremessou uma porção de água em cima dele.

— Ah, resolveu me molhar, não é? — protestou Jon, procurando não pensar na inevitável desaprovação de Eleanor àquele tipo de brincadeira. — Pois vai ver uma coisa, seu fedelho.

Dito isso ele partiu para o riacho, procurando alcançar o excitado e risonho menino. Mas Aubrey se esquivou e correu pelo leito do riacho. Logo adiante parou para jogar mais água no perseguidor. Jon riu e fez o mesmo com ele.

De fato, já era tempo de alguém ensinar aquela criança a brincar.

Mesmo que esse alguém fosse quase um estranho que ficaria na cidade apenas alguns dias.

Amanda saiu pelos fundos da casa e caminhou para o lado do riacho, onde Roseanne tinha dito que Jon e Aubrey se encontravam. Tendo passado a tarde inteira pensando no que Jon dissera durante o almoço, agora se perguntava se Aubrey queria tanto quanto ela superar a barreira que havia entre eles dois. Perguntava-se também se dera ao menino algum motivo para que ele acreditava que ela não queria se aproximar dele. Se isso fosse verdade, não tinha sido intencional. A única culpa que podia assumir era a de não ter ex­periência com crianças. Mas achava também que podia ter tentado um pouco mais.

O riacho ainda estava escondidos pelas árvores quando Amanda ouviu o som de risos. Eram risos de Jon e... e de Aubrey! Ela não se lembrava de ter ouvido o sobrinho rindo daquele jeito. Logo depois outros sons a fizeram apertar o passo. Aparentemente alguém estava batendo na água. Mas o que, afinal...

Amanda jamais imaginaria a cena que viu quando chegou perto do riacho. Com os pés dentro da água, dois representantes do sexo masculino olhavam para ela, o menor com uma expressão de culpa no rosto, o maior advertindo-a com o olhar de que não devia fazer a menor censura.

— Ora, mas... como está a água? — foi o que ela conseguiu dizer.

— Por que não vem ver pessoalmente? — desafiou-a Jon.

— Não, acho que não.

Jon riu e começou a caminhar na direção dela. Percebendo a intenção dele, Amanda recuou dois passos e estendeu os braços com as mãos espalmadas.

— Ah, não — ela o proibiu. — Nem pense nisso.

Aubrey cobriu a boca com as mãos e riu. Era um som tão alegre, tão bom de ouvir... Amanda sentiu-se tentada a deixar que Jon a arrastasse para a água, só para ouvir o sobrinho rir novamente. Mas...

— Este vestido é de seda, Jon — ela argumentou, abaixando os olhos para um dos vestidos de que mais gostava.

Jon deixou escapar um exagerado suspiro.

— Nesse caso, vou poupá-la por hoje. Mas se eu a pegar andando por aqui de calça jeans e camiseta, esteja avisada de que será jogada dentro da água.

— Não me esquecerei da advertência — ela prometeu. — Aubrey, é melhor você entrar para tomar um banho e trocar de roupa. Sua avó logo estará chegando da reunião da Liga das Senhoras.

Amanda se arrependeu do que acabava de dizer quando o sorriso desapareceu do rosto de Aubrey. Já ia dizer que ele não seria punido quando Jon falou.

— Não se preocupe se a sua avó fizer um estardalhaço, A.J. Diremos a ela que, por causa da minha perna machucada, eu perdi o equilíbrio e caí no riacho. Arriscando a própria vida, você brava­mente entrou na água para me salvar. Ela achará que você é um herói. Talvez até lhe dê uma medalha.

— Se formos agora nem precisaremos dizer nada — acrescentou Amanda. — Ela só chegará daqui a meia hora, mais ou menos.

Aubrey prontamente saiu do riacho e recolheu o sapato e as meias.

Jon seguiu-o um pouco mais devagar. Fez uma careta quando pôs o pé para fora do riacho e apoiou o peso do corpo na perna ferida. Instintivamente Amanda estendeu as mãos, mas ele balançou levemente a cabeça, contendo-a.

— Eu estou bem. Só exagerei um pouco.

Amanda saiu caminhando ao lado de Jon, só para o caso de ele precisar de algum apoio. Apenas adiantou-se um pouco para apanhar os sapatos dele, que entregou com um gesto casual, disfarçando assim a preocupação que sentia.

— Você... não quer me dizer por que resolveu brincar na água? — ela perguntou, polidamente.

— Ora, porque ela estava lá — respondeu Jon, com um gesto largo do braço livre. — Jonathan Luck aceita qualquer desafio. Ne­nhuma colina é alta demais, nenhum rio é profundo demais, nenhum...

— Não acredito em nada disso — interrompeu-o Amanda, para satisfação de Aubrey.

Quando o menino riu novamente, o brilho nos olhos de Jon dizia com clareza que ele estava contente com a forma como ela havia reagido ao surpreendê-los na água. E nem era mais preciso perguntar por que Jon resolvera brincar na água. O raro riso de Aubrey já dizia tudo.

Eles quase conseguiram. Estavam já perto da casa quando a porta da cozinha se abriu. Antes imaginando que era a indulgente Roseanne quem esperava por eles, Amanda empalideceu ao ver a mãe. Não podia haver um dia menos indicado para Eleanor chegar em casa antes da hora prevista!

Espantadíssima, a mulher olhou alternadamente para o imundo neto e para o igualmente sujo e ensopado hóspede.

— Meu Deus! Mas o que...

— Aubrey estava me mostrando o riacho — informou Jon, com a maior tranqüilidade do mundo. — É um lugar muito agradável, Eleanor. Você deve se orgulhar.

— Mas vocês estão ensopados... os dois! — exclamou Eleanor. — Aubrey, entre já aqui. Vai acabar se resfriando se ficar nesse ar frio com as roupas molhadas. Amanda, não posso imaginar como você deixou que ele ficasse nessas condições. Sabe que esse menino tem a saúde delicada. Teremos sorte se não precisarmos levá-lo ao médico amanhã. E você, Jon, não devia estar exigindo tanto da sua perna. Sua mãe certamente ficará preocupada se souber que você não está repousando como devia. Roseanne, traga toalhas, por favor. Depressa.

Amanda olhou para Aubrey, que parecia diminuir de tamanho enquanto a avó dele ralhava.

— Desculpe, vovó — ele disse, no tom sério com que costumava falar. — Não tive a intenção de deixá-la preocupada.

— Honestamente, mamãe — protestou Amanda, realmente abor­recida por Eleanor estar estragando a primeira vez em que ela via Aubrey relaxado e feliz e reparando que Jon começava a fazer cara feia. — Brincar um pouco no riacho não causará pneumonia nem nenhuma doença horrível. E Aubrey não é uma criança de saúde delicada. Pelo contrário, é um menino perfeitamente saudável.

Ela pensou ver uma expressão agradecida no rosto do sobrinho antes que Roseanne retornasse. Enquanto distribuía as toalhas, a go­vernanta riu e fez comentários do tipo «meninos são assim mesmo». Mas Aubrey não se mostrou mais animado com aquilo, e Amanda culpou apenas a mãe dela.

Eleanor ficou mais algum tempo por ali, lançando o mesmo olhar de desagrado à filha, ao neto e ao hóspede.

— Ufa! — exclamou Jon, depois que a enraivecida matriarca levou Aubrey para trocar as roupas molhadas. — Parece que a sua mãe não está muito contente comigo. Acho que estraguei tudo.

— Não diga bobagens — repreendeu-o Amanda. — Aubrey estava se divertindo a valer com você. Se mamãe teve aquela reação... ela apenas ainda não se acostumou com o fato de ter um garoto em casa.

Enquanto usava a toalha para enxugar os braços molhados Jon fez um ar de descrença.

— Ela teve um filho, não teve?

Amanda sentiu uma súbita onda de tristeza e engoliu em seco.

— Sim, é claro. Mas Jerome... Jerome nunca foi um garoto típico. Sempre foi calmo, muito sério. Aubrey se parece muito com ele.

No mesmo instante Jon aprumou o corpo.

— Aubrey precisa ser incentivado a ser um garoto típico. Você viu como ele estava se divertindo no riacho. Seu sobrinho pode passar a infância inteira trancado no quarto, com os livros. Isso não é natural.

Amanda reagiu quase sem pensar.

— Durante o almoço você deixou perfeitamente clara a sua opi­nião sobre como estamos criando Aubrey.

Jon ergueu a mão, num gesto conciliador.

— Eu não quis lhe passar um sermão. Isso você já ouve da sua mãe o tempo todo. Só fiz um comentário.

— Eu sei — disse Amanda, com um leve suspiro. — Venha. Vou ajudá-lo a subir até o quarto.

— Sou perfeitamente capaz de...

— Cale a boca, Jon — ela ralhou, segurando no braço dele. — Pare de ser o Sr. Machão, mesmo que seja só por um minuto, e aceite a minha ajuda. Isso não causará nenhum arranhão na sua masculinidade.

Jon não protestou e eles saíram caminhando juntos. Mesmo com evidente dificuldade para se locomover, ele procurava não se apoiar muito nela. Recusou o elevador e subiu apoiando-se pesadamente no lustroso corrimão da escada. Quando eles passaram pelo quarto de Aubrey Amanda prestou atenção mas não ouviu vozes. Felizmente Eleanor havia deixado o menino trocar de roupa em paz.

A porta do quarto de Jon ela girou o corpo para se afastar, mas ele segurou-a pelo braço.

— Amanda.             .

— Sim?

— A.J. não é a única pessoa aqui que precisa se soltar um pouco. Amanda contraiu os músculos do rosto.

— Agora vai me dizer como devo conduzir a minha vida? Jon balançou vagarosamente a cabeça.

— Não. Só estou dizendo que não vai doer nada se você vez por outra também procurar se divertir. Parece que falta um pouco de riso nesta casa.

Amanda não estava com disposição para discutir com ele.

— Obrigada pelo conselho, Jonathan. Prometo que darei a ele a consideração que merece. Até a hora do jantar.

— Mas que Droga, Amanda. Parece que você...

Mas ela não deu tempo paia que ele concluísse a frase e caminhou para a escada. Queria ficar algum tempo sozinha. Precisava pensar no que sentia por Aubrey, pela mãe... por Jon. Precisava pensar no que a vida dela havia se transformado, e refletir sobre o que fazer para acertá-la.

Naquele momento precisava desesperadamente fechar os olhos, relaxar a mente e pensar numa ensolarada praia do Taiti, mesmo que fosse apenas por trinta segundos.

Naquela noite todos na casa se recolheram mais cedo, depois de um jantar durante o qual Jon, Amanda e Aubrey escutaram as la­mentações de Eleanor sobre o caos social que o mundo vinha atra­vessando. Amanda ficara em silêncio a maior parte do tempo, perdida nos próprios pensamentos. Aubrey também falou muito pouco, man­tendo o semblante sério... a menos quando olhava para Jon. Amanda percebeu claramente que agora o sobrinho dela tinha um herói. Por isso temia que Aubrey ficasse ainda mais retraído depois da partida de Jon.

Amanda lembrava-se dos comentários de Jon durante o almoço, afirmando que Aubrey era carente de atenção, devia ser tratado como um garoto normal e não como uma criança de saúde fraca e inteli­gência excepcional. E ela achava que provavelmente ele estava certo, principalmente depois de ter visto o sobrinho no riacho... Mas como se aproximar de Aubrey da forma como Jon fazia? Talvez os rígidos padrões da família Hightower estivessem tão arraigados que o menino não pudesse mais se abrir com ela. E se a partida de Jon acabasse servindo para colocar mais um obstáculo entre ela e o sobrinho?

Sem conseguir dormir, Amanda resolveu descer até a cozinha para beber alguma coisa. Leite, talvez, ou um suco... qualquer coisa que a ajudasse a relaxar, a esquecer a fascinação que estava come­çando a sentir pelo homem que dormia na outra extremidade do corredor.

Mas ao chegar à cozinha ela pôde ver que Jon também não estava dormindo. Esparramado numa cadeira e vestindo apenas uma calça jeans, ele acabava de tomar um copo de leite e massageava distrai­damente a perna direita, enquanto lia um jornal aberto «sobre a mesa.

— Jon? — disse Amanda, aproximando-se. — Está se sentindo bem? Sua perna está doendo?

Jon balançou a cabeça e parou com a massagem.

— Minha perna está um pouco entrevada, mas logo estará novinha em folha. Mas o que você está fazendo de pé a uma hora dessa. Não conseguiu dormir?

— Eu estava com sede.

— Então recomendo o leite, que é de uma excelente safra... de anteontem, eu acho.

Amanda riu e abriu a geladeira.

— Nesse caso vou experimentar. Não quer um pouco mais?

— Claro. Acha que Roseanne tem escondida nesta cozinha alguma coisa que não seja camisa saudável... salame, amendoim torrado, essas coisas? Eu adoraria fazer um lanche no meio da noite.

-— Mamãe jamais permitiria a entrada nesta casa desse tipo de comida — respondeu Amanda, num tom pomposo. Jon suspirou.

— Eu devia ter adivinhado.

Amanda enfiou a mão por trás de uma embalagem de farinha de trigo colocada numa prateleira alta.

— Mas eu sei onde está uma caixa inteirinha de biscoitos com cobertura de chocolate — ela disse, com um sorriso malicioso, ao mesmo tempo que tirava a caixa da prateleira. — Se é para fazer uma extravagância, que seja com uma comida bem rica em calorias. Jon abriu o sorriso, com os olhos brilhando.

— Acho que estou apaixonado por você, mulher.

Amanda fez um ar de fingido desprezo, colocou a caixa sobre a mesa e sentou-se na cadeira de frente para ele.

— Paixão por interesse. Isso eu consigo de qualquer cachorro faminto.

Jon piscou o olho, com uma expressão de malícia.

— Eu posso lhe dar algo que você não conseguiria de nenhum cachorro faminto — ele murmurou, imitando o sotaque sulista com que ela se expressava.

— Pulgas? — sugeriu Amanda, num tom cheio de doçura.

— Muito engraçado.

— Acho que fui um pouco grosseira, não é? Deve ser por causa das companhias com quem tenho andado ultimamente.

Jon balançou a cabeça.

— Quer ter a bondade de abrir essa caixa?

Havia algo perturbadoramente íntimo no fato de eles dois estarem na cozinha enquanto o resto da casa dormia, ela de camisola e robe e ele vestindo apenas a calça jeans. Enquanto estendia a mão para entregar dois biscoitos, Amanda aproveitou para admirar disfarça­damente o peito nu de Jon. Os dedos deles se tocaram e ela sentiu um arrepio pelo corpo. Era estranho. Não se lembrava de já ter sentido a mesma coisa ao tocar acidentalmente num homem.

— Amanda...

Um som vindo da porta fez com que Jon interrompesse o que ia dizer. Amanda virou rapidamente a cabeça, com medo de que eles estivessem sendo descobertos pela mãe dela. Mas que motivos podia ter para sentir culpa?

— Aubrey? — ela exclamou, identificando o sobrinho. — O que está fazendo de pé? Algum problema?

De pijama e chinelos, o menino entrou na cozinha e olhou em volta, curioso.

— Eu ouvi um barulho aqui embaixo. Fui ao quarto de Jon para chamá-lo mas ele não estava lá.

— E então você resolveu vir até aqui para investigar?—perguntou Jon, retirando a mão de cima da de Amanda. — Foi muito corajoso, A.J. Sente-se aqui conosco.

Aubrey olhou para a tia, aparentemente com medo de que ela o mandasse de volta para a cama. Em vez disso Amanda se levantou e sorriu, sem saber se devia ficar aliviada ou desapontada com o fato de o clima entre ela e Jon ter sido quebrado.

— Vou pegar um copo de leite para você.

Jon empurrou a caixa de biscoitos para o lado de Aubrey enquanto ele se sentava.

— Vamos lá, AJ. Mergulhe de cabeça.

— Não devo comer nada entre as refeições... a não ser um lanche leve depois da escola — recusou Aubrey, polidamente.

Amanda viu que Jon olhava para ela, parecendo querer perguntar se as regras daquela casa eram mesmo tão rígidas. Como resposta ela balançou a cabeça.

— Uma extravagância vez por outra não faz mal nenhum, Aubrey, desde que você se alimente bem no resto do dia. Pode pegar um biscoito. Dois, se quiser.

Com os olhos brilhando, Aubrey pegou dois biscoitos e aceitou o copo de leite oferecido pela tia.

— Obrigado.

— De nada.

Amanda estava preocupada com o fato de Aubrey estar acordado àquela hora da noite, num dia de semana, mas naquele momento certamente não ralharia com ele.

Nos vinte minutos que se seguiram Jon monologou em voz baixa, fazendo Amanda e Aubrey rirem. Amanda não se lembrava de quan­do havia se sentido mais à vontade e relaxada na casa da mãe. Pelo menos não nos últimos cinco meses. Aubrey, igualmente, parecia satisfeito como nunca. Que mágica Jon podia estar usando com o menino? E com ela?

Foi Jon quem encerrou aquela seção noturna, embora Amanda já houvesse pensado em tomar a mesma providência depois de ver o sobrinho bocejando pela segunda vez.

— Hora de ir para a cama — disse Jon, empurrando a cadeira. — Você tem escola amanhã, A.J., e sua tia irá trabalhar.

— O que vai fazer amanhã, Jon? — perguntou Aubrey, levantando-se e levando o copo vazio para a pia.

— Amanhã será instalado o sistema de segurança que a sua avó encomendou. Acho que ficarei por aqui para supervisionar tudo.

— Bem que eu gostaria de ficar aqui para ver, em vez de ir à escola — lamentou o menino.

Jon sorriu e balançou a cabeça.

— Quando você chegar eu lhe explicarei o funcionamento do sistema, está bem?

— Está bem.

— Ótimo. Agora dê um beijo na sua tia e suba comigo para me colocar na cama.

Aubrey riu ao ouvir a sugestão de que iria colocar um homem adulto na cama, mas a idéia de beijar a tia o levou a olhar timidamente para Amanda, embora Jon houvesse dito aquilo com absoluta natu­ralidade. Então ela abriu os braços. Depois de um instante de hesi­tação, o menino deu um passo adiante e ergueu o rosto. Sentindo um nó na garganta, Amanda inclinou a cabeça e beijou-o na face, ao mesmo tempo que o abraçava. Foi um abraço muito rápido, mas ela pôde perceber que, pela primeira vez, Aubrey não ficava com os músculos retesados. Aquilo a deixou cheia de gratidão, porque era um avanço fenomenal.

Mas o que a surpreendeu mesmo foi a pergunta que Aubrey fez a seguir, com uma ponta de malícia na voz infantil.

— E você, Jon? não vai dar um beijo de boa noite nela? Amanda franziu a testa. Aubrey, é claro, não podia estar querendo bancar o cupido. Na certa ainda era jovem demais para perceber que entre o novo herói dele e a tia não havia a menor compatibilidade.

— Aubrey... — ela começou, sendo interrompida pelo riso de Jon.

— Ah, essa oportunidade é boa demais para que eu deixe passar —ele proclamou, avançando para Amanda com um brilho demoníaco nos olhos de esmeralda.

Amanda recuou um passo.

— Ouça, Jon...

Não sabendo direito o que dizer, ela dobrou o corpo para trás. Mesmo assim foi alcançada por Jon e beijada nos lábios. Foi um beijo brincalhão, espalhafatoso, estalado... tendo por objetivo único divertir Aubrey. Por isso Amanda não entendia por que estava tremula quando recuou e pronunciou um nervoso "boa noite".

Argumentado que precisava apagar as provas daquele lanche clan­destino, ela esperou que eles saíssem e voltou a sentar-se. Então encostou a mão no peito, onde o coração batia em disparada, e respirou profundamente. Ainda sentia os lábios formigando por causa do beijo de Jon... não importava qual tivesse sido a intenção dele.

 

Na quinta-feira à noite, já era bem tarde quando Terrence deixou Jon na frente da mansão Hightower. Terry tinha sido uma companhia agradável para a noitada levando o novo amigo para comer a comida típica do Sul e ouvi blues.

Eles também haviam trocado idéias sobre quem podia estar por trás da tentativa de seqüestro. Terry tinha fortes suspeitas contra Worley, que em algumas ocasiões o havia tratado de forma desde­nhosa. Jon não ficaria surpreso se surgissem provas de que a coisa toda era idéia de McFarland, mas preferia suspeitar de Miller. Não havia gostado mesmo do ex-noivo de Amanda... talvez porque de testasse a idéia de vê-la ao lado daquele cretino.

Enquanto subia os degraus da varanda, Jon constatou com satis­fação que a cada dia aquilo se tornava mais fácil. A perna sarava rapidamente, apesar do rápido confronto com McFarland e da ex­travagante tarde no riacho. Logo ele estaria em condições de reas­sumir suas funções, retornar ao apartamento em Seattle.

Jon abriu a caixa metálica instalada na parede a pouca distância da porta e digitou os números secretos. Só depois disso enfiou na fechadura a chave emprestada por Eleanor. Era bom ver que o sistema recém-instalado funcionava perfeitamente. O portão já fora conser­tado e estava trancado, proporcionando uma segurança extra. Não havia mais muita coisa que ele pudesse fazer naquela casa. Os responsáveis pela tentativa de seqüestro ainda não haviam sido agarrados, mas isso era incumbência da polícia de Memphis, não dele.

Jon subiu silenciosamente a escada, acreditando que todos na casa dormiam. Chegando no alto dos degraus, um impulso o fez olhar para o lado do quarto de Amanda. A porta estava fechada, mas deixando passar por baixo um filete de luz. Ela estava acordada.

Depois de dar dois passos na direção do próprio quarto Jon parou, hesitante.

Vá dormir, Luck, ele se recomendou, quando cedeu ao impulso de olhar outra vez na direção daquela luz. Você não precisa disso. Nem ela.

Jon teria dado ouvidos ao bom senso se não fosse o fraco som de música que vinha do quarto de Amanda. Então ele começou a caminhar, como se estivesse sendo atraído por aqueles acordes. Não iria perturbá-la, certamente. Apenas estava curioso para saber que tipo de música ela gostava de ouvir sozinha no quarto.

Era música clássica, constatou Jon, sem surpresa. Aquela hora da noite ele preferiria ouvir blues ou jaz romântico, mas a música erudita parecia mais adequada a Amanda. Antes de pensar no que estava fazendo ele ergueu a mão e bateu na porta.

Instantes mais tarde a porta se abriu.

— Você nem perguntou quem estava aqui — repreendeu-a Jon, contemplando a cascata de cabelos castanhos que caíam sobre os ombros cobertos pelo robe de cetim branco.

— Não foi preciso — murmurou Amanda, olhando para ele com um misto de cautela e curiosidade. — Posso fazer alguma coisa por você?

Ah, sim, pensou Jon, reparando que o robe se amoldava perfei­tamente às curvas daquele corpo esbelto e tentador.

— Bem, eu... preciso falar com você um instante. Quero pedir sua autorização para fazer uma coisa.

— Minha autorização? — espantou-se Amanda.

— Sim. E sobre Aubrey.

— Acho melhor você entrar — ela disse, afastando-se da porta. — Não vamos acordar Aubrey outra vez, como fizemos ontem à noite.

— Sim, claro — concordou Jon, embora achasse aquela uma idéia meio louca.

Depois de entrar no quarto ele fechou silenciosamente a porta. Amanda parou a alguns passos dele, juntando as mãos na frente do corpo. Depois os olhos dela foram da desarrumada cama até a única cadeira do quarto.

— Bem... sente-se — ela convidou. — Vou desligar a música.

— Não, deixe tocar. E a Nona Sinfonia de Mahler, não é?

— É, sim — confirmou Amanda, um tanto surpresa por ele iden­tificar a música.

— Um tanto triste, não acha? Mahler compôs peças mais anima­das.

— Esta estava de acordo com o meu estado de espírito esta noite. Jon aproximou-se e eles ficaram a poucos centímetros de distância.

Amanda precisava levantar a cabeça para olhar nos olhos dele. Ce­dendo a um impulso, Jon ergueu a mão e acariciou a face dela.

— Está triste, Amanda?

— Não... — ela murmurou, contendo a respiração por causa do toque dos dedos dele. — Apenas um pouco melancólica.

Então Jon ergueu a outra mão e, com as duas, segurou o rosto dela.

— Não quer me falar sobre isso?

Amanda ficou evidentemente trêmula. Depois de alguns instantes em que pareceu não saber o que fazer com as mãos, encostou-as no peito de Jon.

— Falar sobre o quê? — ela perguntou, claramente se esforçando para se concentrar na conversa.

Jon roçou os lábios na testa dela.

— Sobre o motivo da sua melancolia. Amanda engoliu em seco, o que ele quase pôde ouvir.

— Não.

Envolvidos pelos acordes da música eles ficaram se olhando nos olhos. Os de Amanda estavam muito abertos e era possível ver que ela estava consciente da magnitude do que estava acontecendo entre eles dois.

Fosse o que fosse o que Amanda viu nos olhos dele, deu coragem para que ela erguesse os dois braços e passasse as mãos por trás do pescoço de Jon, enfiando os dedos nos cabelos dele. Jon envolveu-a pela cintura e praticamente encostou os lábios nos dela.

—Amanda? — ele murmurou, sem saber bem o que iria perguntar.

— Sim? — ela disse, também num murmúrio.

— Espero que isso signifique o que estou pensando — disse Jon, beijando-a antes que ela tivesse a chance de desmentir aquela es­perança.

Mas evidentemente não era essa a intenção dela. Amanda cor­respondeu ao beijo como se há muito estivesse esperando por aquele momento.

Jon não se lembrava de ter sentido um desejo tão grande. Bem devagar, dando tempo para que ela resistisse, usou os dedos trêmulos para desfazer o nó da faixa que envolvia a cintura dela. Mas não houve resistência.

O sedoso tecido escorregou pelos ombros dela e amontoou-se aos pés deles dois, deixando-a coberta apenas pela camisola. Renda e cetim colavam-se maravilhosamente àqueles seios perfeitos, à cin­tura fina e às ancas esbeltas. Jon jamais vira nada tão belo.

— Você é linda — ele murmurou, lamentando não pensar em nada mais original, mas certo de que ela saberia entender.

Outra vez eles se beijaram demoradamente, cada vez mais trêmulos de desejo. Depois, numa concordância que não precisou de palavras, caminharam para a cama. Jon pensou em carregá-la nos braços, mas achou que a perna machucada não suportaria o esforço. Aquele gesto romântico teria que esperar algumas semanas.

Semanas? Jon lembrou-se de que não ficaria naquela casa por tanto tempo. Talvez nem tivesse outra oportunidade de estar com Amanda como estava agora. Mas não era hora para ter aquele tipo de preocupação. Naquele noite havia apenas Amanda, a música de Mahler, a cama... e ele, determinado a saborear cada momento.

Mais de cinco longos meses já se haviam passando desde que Amanda fizera alguma coisa irresponsável, cedera a um impulso, entregara-se ao prazer. Há mais tempo ainda ela havia experimentado algo tão delicioso quanto os abraços de Jon... se é que já havia passado por uma experiência parecida.

Era um prazer indescritível acariciar o corpo forte e levemente moreno de Jon, assim como ser acariciada por ele. Agora eles estavam nus na cama, numa mútua exploração.

— Jon — murmurou Amanda, quase sem fôlego.

Erguendo a cabeça ele a fitou com um intenso brilho nos olhos verdes.

— O que é?

— Eu...

Amanda balançou a cabeça no travesseiro, sentindo-se subita­mente incapaz de se expressar. Sentia no abdômen a ereção de Jon e percebia, pelo tremor dos músculos que acariciava, a força do desejo de que ele estava possuído. Mas o sorriso dele era doce e paciente. Jon não seria apressado com ela.

— Desculpe — pediu Amanda, encostando a palma da mão na face dele. — Estou um pouco nervosa.

— Acha que é muito cedo para você? Quer que eu saia do seu quarto?

Foi muito bom ter certeza de que ele realmente iria embora se ouvisse o pedido, não exigiria nada além do que ela se mostrasse pronta a oferecer.

— Não — murmurou Amanda, agora correndo os dedos pelo queixo dele. — Não vá. Só quero que você saiba que não estou fazendo isso levianamente... Afinal de contas, nós não nos conhe­cemos há muito tempo.

Cinco dias... Como aquele homem podia ter mudado a vida dela de forma tão dramática se estava ali há apenas cinco dias? Jon roçou os lábios nos dela.

— Eu também não. Venho querendo isso desde o instante em que você abriu a porta para mim, Amanda. Pensei que ia enlouquecer de desejo por você. Mas se achar que ainda é cedo, se ainda não estiver pronta, nós esperaremos.

— Eu não quero esperar — negou-se Amanda, abraçando-o com força. — Quero tê-lo hoje, esta noite, agora.

Dissipada a hesitação, Amanda abandonou-se às carícias de Jon, dominada por um desejo que crescia a cada instante. E ele estava possuído da mesma ânsia. Por um bom tempo, murmurando palavras incompreensíveis, eles se entregaram a uma louca mistura de mãos, braços e pernas, procurando-se mutuamente em todas as partes do corpo. Pararam apenas o tempo suficiente para que Amanda pegasse um preservativo na gaveta do criado-mudo e Jon o colocasse. Fi­nalmente ele a penetrou.

Por um fugaz instante Amanda teve a impressão de que agora estava inteira, completada por uma parte que havia faltado nela du­rante toda a vida. Logo depois aquele pensamento foi substituído por uma onda de prazer de indescritível intensidade. Flutuando nas ondas daquele prazer, Amanda apertou com força o corpo do homem deitado por cima dela, ansiosa por usufruir a força, o calor e o estímulo que ele oferecia.

Jon murmurou alguma coisa parecida com o nome dela e pres­sionou fortemente os quadris. Amanda quase soltou um grito, tão grande foi o prazer que sentiu.

Um bom tempo depois do orgasmo ela continuava a abraçá-lo, relutante em retornar ao mundo real.

Por muitos minutos eles ficaram deitados na cama, Amanda com a cabeça repousada no ombro de Jon. Ele não sabia direito como aquilo havia acontecido, já que ao ir ao quarto dela não estava com aquela intenção, mas não sentia arrependimento. Como poderia se arrepender? Aquela tinha sido a experiência mais fantástica por que já passara na vida.

— Está dormindo? — ele perguntou.

Ela estava tão quieta. Estaria arrependida? Ele esperava que não.

— Não — murmurou Amanda. — Só estou me recuperando.

— Você está bem? Eu não a machuquei, não é? — perguntou Jon, subitamente preocupado com a possibilidade de que aquilo que eles acabavam de fazer não tivesse sido tão perfeito para ela quanto tinha sido para ele.

— Não, não me machucou — garantiu Amanda, finalmente olhan­do para ele e sorrindo.

Jon afastou uma mecha de cabelo dos olhos dela. —Eu realmente não vim aqui para isso. Não sei como aconteceu... mas estou muito contente.

— Eu também — declarou Amanda, baixinho, com os lábios bem perto dos dele. — Mas... agora estou me lembrando de que você ia pedir a minha permissão para alguma coisa.

— É verdade. Terry e eu estamos pensando em levar amanhã AJ. e o filho dele, Nathan, ao Parque Overton. Seria depois da escola. Sabe como é: visita ao Zoológico, brincadeiras no playground, essas coisas.

— Aubrey e o filho de Terrence?

Jon ficou apreensivo com aquela pergunta. Não gostou de pensar na possibilidade de que a mulher que o levara até tão perto do paraíso fosse uma esnobe.

— E. O que acha?

— O filho de Terrence não é bem mais novo do que Aubrey?

— Só alguns meses. Está cursando a quarta série. Não é um gênio como A.J., eu acho, mas Terry garante que é um bom garoto. Acho que os dois vão gostar de se conhecer.

— Você pode convidá-lo, é claro — apressou-se em dizer Aman­da, como se subitamente percebesse o que Jon estava pensando. — Eu só acho que... isto é... Aubrey não tem muito interesse em crianças da idade dele. Não sei se...

— O garoto precisa de amigos. Os colegas da escola são bem mais velhos e certamente não querem andar com um pirralho de nove anos. Ele é muito solitário.

— Acha que eu não sei disso? — perguntou Amanda, num tom sofrido que não passou despercebido a Jon. — Tentei interessar Au­brey em atividades das quais participassem crianças da mesma idade, mas ele... — Nesse ponto ela fez uma pausa e respirou profunda­mente. — Talvez você tenha mais sucesso do que eu. Aubrey parece dar valor às suas idéias.

— É que sou novidade para ele. Nós já falamos sobre isso, Aman­da. Ele gosta de você. Apenas precisa de tempo para conhecê-la melhor. E ultimamente tenho visto muitos progressos nesse sentido.

— É mesmo?

Jon pensou haver uma ponta de sarcasmo naquela pergunta. Ou seria de amargura? Estaria Amanda ressentida com os esforços dele para se tornar amigo de Aubrey?

— Amanda, você quer que eu procure me afastar de Aubrey? Prefere que não haja esse passeio de amanhã?

Amanda balançou a cabeça encostada no peito dele.

— Não, é claro que não. Será bom para Aubrey ter contato com outro menino da idade dele.

— Então o problema sou eu, não é? Provavelmente você acha que não existe mais motivo para a minha permanência aqui. O sistema de segurança está instalado e me parece muito bom. De fato, não

tenho mais por que...

— Não! — ela exclamou, erguendo subitamente a cabeça e quase atingindo o queixo dele. — Eu não quero que você vá embora logo.

Jon ficou com o ego inflado.

— Bem, eu...

— Nós ainda não sabemos quem tentou seqüestrar Aubrey. E se tentarem novamente?

O ego dele voltou a murchar.

— Ouça: eu lhe disse desde o começo que não vim aqui para prender um provável seqüestrador. Isso cabe à polícia local. Sua mãe apenas me pediu que recomendasse um sistema de segurança para a casa. Isso eu já fiz, e até supervisionei a instalação daquela droga.

Amanda tocou na face dele, num gesto de conciliação.

— Não estou querendo dizer que você não ajudou, Jon. Ajudou, sim, e eu fico grata por isso. Apenas estou preocupada com Aubrey.

Ela estava se desculpando e Jon procurou não demonstrar res­sentimento.

— Eu sei. "Compreendo como se sente, mas procure não se preo­cupar muito. Talvez eles tenham desistido depois das duas fracassadas tentativas. Na certa não estamos lidando com profissionais, já que nas duas ocasiões eles agiram de forma desastrada. Provavelmente resolveram abandonar o plano maluco.

— Espero que você esteja certo — disse Amanda, embora sem parecer inteiramente convencida.

Jon também não estava muito convencido do que tinha dito, mas por enquanto não queria que ela soubesse disso.

— Você gostou da noitada com Terrence? — perguntou Amanda, mudando de assunto, talvez por querer evitar mais conflitos.

— Gostei muito. Terry é um bom sujeito.

— É, sim. Não sei o que mamãe teria feito sem ele depois, da morte de papai... e antes que eu me mudasse para cá.

— Você gostava de ter sua própria casa?

— Gostava, sim — ela respondeu, num tom melancólico. — O apartamento era pequeno, mas eu gostava dele.

— Por que voltou a morar com a sua mãe?

— Por causa de Aubrey. Quando subitamente me vi responsável por ele, percebi que não entendia quase nada sobre a educação de uma criança... como você mesmo já observou. O apartamento era muito pequeno para duas pessoas e eu não sabia o que iria fazer com o menino enquanto estivesse trabalhando. Achei que seria me­lhor, tanto para mim quanto para ele, se nos mudássemos para cá. Aqui poderíamos contar com a ajuda de mamãe, Roseanne e Terrence.

Achando que já havia criticado demais as ações dela em relação a Aubrey, Jon preferiu guardar para si o que pensava daquilo. Além disso, o que ele sabia sobre a educação de uma criança, principal­mente uma criança como Aubrey? Na verdade, não mais do que Amanda. No lugar dela, provavelmente teria tomado a mesma de­cisão.

— Você sabia que, no testamento do seu irmão, era nomeada guardiã do filho dele? — perguntou Jon.

— Não. Fiquei espantada quando o advogado dele me disse que eu havia sido nomeada guardiã e executora do testamento. Nós... Jerome e eu jamais falamos nesse assunto.

Jon percebeu um leve tremor na voz de Amanda e apertou o braço em volta dos ombros dela.

— Você e o seu irmão eram muito chegados? — ele perguntou, com simpatia, pensando no quanto era ligado ao irmão e à irmã e no quanto sofreria se ficasse privado de um dos dois.

Amanda suspirou.

— Jerome e eu não concordávamos em muitas coisas, mas gos­távamos um dos outro. Acho que isso era o que realmente importava.

— Em que coisas vocês não concordavam? — perguntou Jon, curioso em saber mais sobre aquela família e sobre a própria Amanda.

Então ela encolheu os ombros, que Jon apertou novamente.

— Seria demorado relacionar as coisas em que discordávamos. Ele achava que eu devia ser mais estudiosa, perder menos tempo com frivolidades como festas e aulas de dança. Dizia que eu devia ser uma intelectual, coisa que nunca fui. Quando finalmente aceitou o fato de que, diferentemente dele, eu não me sentiria bem no meio acadêmico, Jerome pensou que eu teria o «bom senso» de ingressar no ramo bancário para suceder papai. Não conseguiu entender a minha decisão de abrir uma loja para vender «bugigangas», como costumava dizer. Nós tivemos muitas brigas por causa disso. Quanto a Edward... — Nesse ponto Amanda hesitou. — Jerome não gostava de Edward. Como mamãe, opunha-se frontalmente ao meu noivado. Jon engoliu as palavras que imediatamente pensou em dizer sobre Edward. Entendia por que Eleanor e Jerome haviam desgostado da­quele sujeito. Mesmo assim preferiu não dizer nada a respeito.

— Mas Jerome lhe entregou a responsabilidade pela criação do filho dele. Ao fazer isso, demonstrou a confiança que tinha em você.

— Eu sei — disse Amanda, movendo a cabeça e roçando os cabelos no queixo de Jon. — Embora às vezes eu ache que talvez não fosse a pessoa mais indicada para ter essa responsabilidade, isso certamente indica que ele confiava em mim. Aubrey era muito im­portante para Jerome e Wanda, minha cunhada. Eu só espero poder corresponder à confiança deles.

— Você conseguirá — disse Jon, acariciando o rosto dela.

A música havia terminado e o silêncio tomava ainda mais íntima a atmosfera entre eles dois. Amanda ergueu a cabeça e olhou nos olhos de Jon, com os lábios entreabertos. Então eles voltaram a se beijar, sem pressa e com muita ternura. O calor do beijo acabou por despertar neles uma nova onda de desejo, que se esmeraram em satisfazer.

Estava quase amanhecendo o dia quando Jon finalmente saiu da cama de Amanda e caminhou pelo corredor. Deixou-a profundamente adormecida, fisicamente esgotada pelo amor que tinham feito.

Quando se deitou na própria cama, também já quase dormindo, Jon estava cansado demais para pensar em como a vida dele havia mudado, agora que ele e Amanda Hightower eram amantes.

— Não, nós não dispomos dessa série de pratos de parede — disse Amanda a uma freguesa da loja, na sexta-feira à tarde. — Mas posso encomendá-la para a senhora.

A expressão.da mulher se iluminou.

— Verdade? Ah, seria maravilhoso! O que eu quero é o número quatro da série... E o único que eu não tenho, e não consegui encontrar em lugar nenhum.

— Deixe comigo o seu nome e o seu telefone e eu lhe avisarei quando chegar — prometeu Amanda.

A freguesa deu as informações e saiu. Para não esquecer, Amanda anotou o pedido no formulário próprio. Quando ergueu a cabeça, viu um rosto conhecido sorrindo para ela.

— Edward! Você me assustou.

Imediatamente o ex-noivo dela mostrou uma expressão de arre­pendimento.

— Desculpe, querida. Pensei já tinha me visto.

— Não, eu não o tinha visto. O que posso fazer por você? Ela só esperava que ele não a convidasse para jantar, o que era

bem possível, já que faltavam apenas quinze minutos para fechar a loja. Amanda não queria ofendê-lo, mas naquela noite não estava com a menor disposição para jantar com Edward. Embora achasse embaraçoso admitir, mesmo que fosse apenas para si própria, o dia inteiro vinha contando os minutos que ainda faltavam para estar outra vez em casa... com Jon.

— Amanhã é o aniversário de Delia — explicou Edward, referindo-se à eficiente secretária do Departamento de Sociologia da universidade. — Preciso levar alguma coisa para ela, mas você sabe como sou inepto nesse tipo de coisa. Achei que podia ter a sua ajuda.

Amanda sorriu.

— Isto aqui é uma loja de presente, Edward. É claro que posso ajudá-lo.

O brilho que apareceu nos olhos do homem a fez sentir um certo desconforto.

— Eu contava com isso, querida — ele declarou. — Não sei o que faria da vida sem você.

Amanda tossiu.

— Acabamos de receber uns frascos de perfume muito bonitos e de excelente qualidade. Chegaram também algumas caixas de mú­sica de porcelana que são lindíssimas. Acha que ela gostaria de alguma coisa assim?

— Uma caixa de música seria perfeito, eu acho. Prefiro que você faça a escolha. Afinal de contas, conhece Delia e deve saber quais são as preferências dela.

— Eu só estive com ela umas poucas vezes, Edward — lembrou-o Amanda, num tom seco, enquanto caminhava para o mostruário onde estavam as caixas de música. Logo depois pegou uma delicada peça de porcelana que tocava alguns acordes de A Rosa quando uma chave era acionada. — Que tal esta aqui?

Edward olhou sem muito interesse.

— Sim, essa está bem. Será que pode embrulhá-la para mim?

Naturalmente.

— Achei que, depois, talvez pudéssemos...

Amanda preparou-se para rejeitar educadamente qualquer convite que ele fizesse para aquela noite, mas, antes que o homem concluísse a frase, Trícia aproximou-se e tirou a caixa de música das mãos dela.

— Vou embrulhá-la para o senhor, Dr. Miller — disse a moça, com um largo sorriso. —Amanda, parece que os seus acompanhantes para esta noite acabam de chagar.

— Meus acompanhantes? — repetiu Amanda, espantada. —

Mas...

— Sim — voltou a falar Trícia, ainda sorrindo enquanto se dirigia ao balcão de embrulhos. — Acabei de ver dois simpáticos cavalheiros entrando na loja e achei que estavam procurando por você. Mas pode ser que, para sorte minha, estejam à minha procura.

Amanda virou o rosto e viu o par de olhos verdes que a fitavam. O ar de cumplicidade que havia naqueles olhos a fez sentir uma deliciosa onda de calor.

— Jon! — ela exclamou, logo depois reparando na presença do sobrinho. — E Aubrey! O que vocês dois estão fazendo aqui?

— Pedimos a Terry que nos deixasse aqui depois do nosso passeio no parque — respondeu Jon, com um sorriso estudadamente casual. — Achamos que talvez você aceitasse um convite para um programa conosco. Sabe como é: uma pizza, um cineminha...

Amanda abaixou os olhos para o sobrinho.

— Pizza e cineminha, é?

Com alegria ela reparou que, embora demonstrasse timidez, Au­brey parecia um pouco mais confiante em si próprio.

— É, sim, titia. Jon achou que a senhora iria gostar de participar de um programa assim conosco.

Em nenhuma circunstância ela frustraria a expectativa que via nos olhos do menino.

— Está me parecendo um programa e tanto. Eu certamente vou adorar ir com vocês.

Edward tossiu, o que sempre fazia quando ficava aborrecido. Esforçando-se para demonstrar simpatia, Amanda olhou outra vez para ele.

-— Edward, é claro que você se lembra de... do nosso hóspede, o investigador Luck.

— Sim, é claro — disse Edward, com um entusiasmo ainda menor do que aquele que havia demonstrado pelo presente que daria à secretária.

Nenhum dos dois homens estendeu a mão para o outro, assim como não houve sorrisos. Logo depois Edward olhou para o menino.

— Olá, Aubrey — ele disse, com a excessiva animação que al­gumas pessoas se acham obrigadas a demonstrar quando se dirigem a crianças. — Como vai você?

— Eu estou bem, obrigado, Dr. Miller — respondeu Aubrey, num tom neutro.

— Saiu para passear com o guarda-costas, não foi?

Aubrey pestanejou por trás dos óculos, sem saber como responder a uma pergunta tão mordaz. Jon apertou os olhos. Rapidamente Amanda tomou a iniciativa de falar.

— Jon é um hóspede na nossa casa, Edward, não um guarda-costas — ela declarou. — Ele e Aubrey tornaram-se bons amigos.

— Isso é muito bom — murmurou Edward, com uma expressão que era o oposto do que estava dizendo.

— Aqui está, Dr. Miller — pronunciou-se Trícia, reaparecendo com um bonito embrulho de presente nas mãos. — Pode apanhar aqui comigo depois de passar na caixa. Amanda, hoje eu fecharei a loja. Se quiser pode ir... e divirta-se.

— Tem certeza? Jon e Aubrey podem esperar um pouco...

— E claro que tenho certeza — garantiu Trícia, sorrindo. — Esta semana saí mais cedo duas vezes, lembra-se? Ainda ficarei em débito com você. Agora vá e divirta-se. Até amanhã.

— Amanda — disse Edward. — Eu estava esperando que você e eu pudéssemos...

Amanda fingiu que não tinha ouvido.

— Diga a Delia que desejo a ela um feliz aniversário, está bem, Edward?

Jon aproximou-se e segurou no braço dela, apertando de leve.

— Está pronta? — ele perguntou, parecendo querer dar a entender que já tinha sido paciente demais com ela... e com Edward.

— Sim, estou pronta.

Logo depois eles saíram caminhando para a porta, seguidos por Aubrey. Até sair da loja Amanda sentiu nas costas o olhar duro de Edward.

 

Jon garantiu que poderia dirigir sem nenhum proble­ma. Amanda entregou a ele as chaves do carro e acomodou-se no banco do passageiro. Aquilo a deixaria livre para conversar com Aubrey sem precisar prestar atenção no tráfego.

Enquanto colocava o cinto de segurança, pensou em como era surpreendente o fato de que tinha sido preciso acontecer uma tentativa de seqüestro e a visita de um estranho para que ela percebesse que quase havia desistido de estabelecer um relacionamento bom com o sobrinho.

Eleanor provavelmente se espantaria quando constatasse as mu­danças que estavam ocorrendo na família em conseqüência da con­versa dela com a velha amiga Jéssica Luck.

— Ai, meu Deus! — exclamou Amanda. — Eu me esqueci de ligar para mamãe avisando que não jantaríamos em casa. Certamente ela vai...

— Já cuidei disso — elevou Jon. — Avisei a Roseanne que A.J. e eu convidaríamos você para uma noitada. Ela disse que prepararia apenas um jantar leve para a sua mãe.

— Estava muito confiante em que eu aceitaria o convite, não é? — ralhou Amanda, aliviada por se ver livre da confrontação com a mãe.

— Não confiante, mas esperançoso — corrigiu-a o amante. Amanda franziu a testa, preocupada por ter pensando em Jon

como um amante. Era isso mesmo que ele era? Tecnicamente, tal­vez... pelo menos por uma noite. Mas... e agora?

Amanda girou o corpo no banco e olhou para o sobrinho.

— Gostou do passeio no parque? — ela perguntou, mais para distrair a mente do assunto em que estava pensando antes.

— Gostei muito, titia — respondeu Aubrey, sorrindo e lançando a Jon um olhar de gratidão que ela chegou a invejar. — Foi divertido, não foi, Jon?

Jon sorriu para o menino pelo espelho retrovisor.

— É, nós rimos um bocado. Nathan devia trabalhar num circo, porque não pára de fazer palhaçadas.

— Você gostou de Nathan, Aubrey? — perguntou Amanda, cu­riosa em saber como os dois meninos haviam se entendido.

— É, ele é um bom sujeito — respondeu Aubrey, com a displi­cência que os garotos costumam mostrar quando querem esconder ura sentimento mais profundo. — Ele é muito parecido com Terry... aliás, Terrence.

— Isso é bom. Talvez logo vocês possam voltar a se encontrar. Mas conte-me como foi o passeio. Quero saber tudo.

Aubrey respondeu com um entusiasmo que ela não se lembrava de ter visto no sobrinho.

Como ainda era cedo, a pizzaria não estava lotada e eles não precisaram ficar esperando mesa. Jon e Aubrey declararam-se fa­mintos depois da tarde no parque e todos concordaram em pedir uma pizza gigante com todos os temperos.

Amanda insistiu para que se incluísse salada no pedido. Aubrey não protestou, já que gostava de salada. Jon, porém, pôs-se a res­mungar contra o que chamava de «alimento de coelho» e «comida saudável». Amanda deu o troco, caçoando e afirmando que era uma incoerência ele encher o prato pela segunda vez no bufe de saladas. Aubrey não dizia muita coisa, mas evidentemente divertia-se com aquela alegre batalha entre os adultos.

Em nenhum momento Jon se referiu ao fato de ter encontrado na loja o ex-noivo de Amanda. Ela achou que era uma omissão proposital... e oportuna, pois não estava mesmo disposta a falar em Edward. Aquela noite devia ser aproveitada por ela, Jon e Aubrey.

Depois do jantar eles resolveram assistir a uma comédia que estava tendo boa aceitação. Aubrey sentou-se entre os dois adultos segu­rando um saco .grande de pipoca amanteigada no qual Jon e Amanda freqüentemente enfiavam a mão. Amanda procurou não pensar na quantidade de caloria e gorduras que eles estavam ingerindo naquela noite. O importante era ver as gargalhadas que Aubrey soltava por causa das cenas absurdas do filme.

Displicentemente Jon estendeu o braço por cima do encosto do assento de Aubrey, mas a forma como ele acariciou a nuca de Aman­da não tinha nada de displicente. Mesmo assim continuava olhando para a frente, como se estivesse muito interessados nas trapalhadas que se desenvolviam na tela.

— Preciso ir ao banheiro — cochichou Aubrey para a tia, tão logo o filme terminou. — Acho que não posso esperar até chegarmos em casa.

Amanda escondeu o sorriso.

— Você poderá ir quando estivermos saindo do cinema. Os ba­nheiros ficam no saguão.

Aubrey ficou evidentemente aliviado. Jon ofereceu-se para acom­panhá-lo, mas rapidamente recuou na oferta ao perceber que o menino parecia ofendido com a sugestão de que não saberia ir sozinho ao banheiro. Mesmo assim Jon ficou atento depois de empurrar a porta do banheiro masculino para que o garoto entrasse.

— Às vezes é difícil não ferir o orgulho de Aubrey — disse Amanda, forçando um sorriso. — Ele é uma criança muito sensível.   :

— Parece que está superando o incidente da tentativa de seqüestro sem guardar nenhum trauma — comentou Jon. — Nas últimas noite não tenho escutado choro dele durante o sono, o que quer dizer que os pesadelos cessaram.

Amanda suspirou, agradecida.

— Tomara que sim. Ele ficou muito assustado, mas a sua presença aqui foi uma grande ajuda, Jon. Transformou-se no herói de Aubrey, sabia?

Jon murmurou alguma coisa ininteligível e virou um pouco a cabeça. Amanda sorriu, enternecida por ele ficar sem jeito.

O sorriso desapareceu quando ela ouviu um grito de Aubrey.

Amanda voltou-se rapidamente, mas naquele momento Jon já cor­ria na direção do sobrinho dela. Parado na porta do banheiro mas­culino e com uma expressão de pavor no rosto, o garoto olhava para a mulher gorducha e loira que segurava no ombro dele.

— Pare! — gritou Jon, chamando a atenção de todas as pessoas que se encontravam no saguão do cinema. — Afaste-se desse menino!

A gorducha soltou um grito agudo e recuou, erguendo as mãos rechonchudas, aparentemente amedrontada ao se ver cercada por um homem de aspecto ameaçador e uma mulher nervosa. Amanda en­volveu o sobrinho com os braços protetores. Jon olhou de frente para a mulher, que estava muito pálida.

— O que é isso? — ela reagiu, histérica. — O que foi que eu fiz?

— Responda a senhora — sugeriu Jon, sério.

— O meu garotinho está aí no banheiro masculino. Eu só estava pedindo ao seu... ao seu filho o favor de ir ver se ele precisava de alguma coisa. Eu...

Nesse instante um menino de uns seis ou sete anos saiu do banheiro masculino. Concluindo que Jon ameaçava a mãe dele, prontamente deu início a um barulhento protesto.

— Ei! Afaste-se da minha mãe!

Logo depois apareceu o preocupado gerente do cinema querendo saber o que estava acontecendo.

— Não é a mesma mulher da biblioteca — declarou Aubrey, numa vozinha fina, olhando para a tia com olhos chorosos. — Eu pensei que era. Desculpe.

Amanda apertou-o nos braços.

— Está tudo bem, meu querido. Eu compreendo.

— Tem certeza de que não é a mesma? — perguntou Jon, com cuidado. — Olhe com atenção, Aubrey.

Aubrey virou o rosto no círculo formado pelos braços de Amanda e espiou a mulher. Depois balançou a cabeça.

— Não, não é a mesma.

Jon suspirou, evidentemente aliviado. Depois voltou-se para o lado onde estavam a agitada mulher e o gerente do cinema.

— Alguns dias atrás alguém tentou seqüestrar meu filho — ele disse, sem desmentir a suposição da gorducha. — Ele ainda está muito nervoso por causa do incidente e espero que a senhora saiba compreender.

— Tentaram seqüestrá-lo? Oh, meu Deus, que coisa horrível! — exclamou a mulher, enquanto se aproximava de Aubrey com um braço em volta do próprio filho. — Mas você está bem? Eu não quis assustá-lo. Desculpe.

Rapidamente Jon tirou Amanda e Aubrey do cinema, levando-os para longe dos olhos curiosos.

— Tudo bem com você, A J.? — ele perguntou, já na privacidade do carro de Amanda.

— Tudo bem — respondeu Aubrey, suspirando. — Desculpem pela cena que eu acabei criando.

— Você fez exatamente o que devia fazer — declarou Jon, com firmeza. — Se algum desconhecido encostar a mão em você, comece a gritar na mesma hora, está ouvindo. Primeiro a sua segurança; depois as perguntas e as explicações.

— Está bem — concordou o menino.

Embora ainda não fosse muito tarde, Aubrey acabou dormindo no carro a caminho de casa, exausto que estava física e emocional­mente depois de um dia cheio. Amanda virou a cabeça e olhou por cima do encosto do banco.

— Ele estava cansadíssimo — ela murmurou.

— Pobrezinho — disse Jon, olhando pelo retrovisor. — Acho que ainda está mais nervoso com o incidente na biblioteca do que havíamos pensado.

Amanda sentiu uma' onda de raiva. Que tipo de pessoa seria capaz de ameaçar uma criancinha que tão recentemente havia perdido os pais? Mesmo assim ela procurou falar com naturalidade.

— Apesar de tudo, acho que hoje ele se divertiu um bocado. Você foi muito bondoso com ele planejando tudo isso. Passeios assim farão muito bem a Aubrey.

— Quer dizer que você vai providenciar para que ele saia mais? — perguntou Jon, sem olhar para ela, mas com mais seriedade do que o tom da voz dele poderia dar a entender.

— Sim — ela respondeu, igualmente séria. — Cuidarei disso. -— Ótimo.

Amanda ficou observando enquanto Jon pisava no freio para que o carro passasse mais vagarosamente sobre uma lombada, movendo depois o pé direito para acelerar novamente,

— Por falar em exageros, como está a sua perna? — ela perguntou, pensando nas cicatrizes que vira na perna dele... o que a fez lembrar-se também de que o vira totalmente despido. — Espero que hoje não a tenha forçado demais.

— Não, ela está bem melhor. Sempre me recuperei dessas coisas com rapidez.

Mas ele não era rápido apenas naquilo, pensou Amanda. Jon Luck era o primeiro homem que a levava para a cama poucos dias depois de tê-la conhecido. Não fazia nem uma semana... Durante o resto do trajeto ela ficou refletindo sobre o próprio comportamento, tão diferente do que costumava ser.

Eleanor estava esperando quando eles entraram pela porta da fren­te. Jon tinha um dos braços por cima dos ombros de Aubrey, que andava com as próprias pernas embora estivesse grogue de sono.

— Bem, já era tempo de vocês voltarem para casa — disse a mulher, examinando o rosto sonolento do neto e reparando nas man­chas de molho de tomate que marcavam a antes impecável camisa branca de Aubrey.

—- Será que você pode levar Aubrey até o quarto, Jon? — pediu Amanda, determinada a não deixar que a mãe estragasse a noite do menino. Já bastava o incidente do cinema. — Aubrey, suba e vá para a cama. Daqui a pouco passarei !á para lhe dar um beijo de boa noite.

— Está bem, titia — murmurou o garoto, esfregando os olhos enquanto Jon o empurrava com cuidado para a escada. — Boa noite, vovó.

— Espere, eu...

Sem dar tempo a Eleanor para concluir a frase, Jon apressou um pouco o passo e começou a subir os degraus com Aubrey. Prontamente ela se voltou para Amanda.

— Eu nem terminei o que ia dizer!

— Não precisava dizer mais nada, mamãe. Pelo menos não para Aubrey. Ele está muito cansado.

— Está claramente exausto — despachou Eleanor. — Aubrey não costuma ficar fora de casa até tão tarde. Tem apenas nove anos de idade. Francamente, Amanda. Como pôde ser tão irresponsável?

— Chegar em casa tarde uma vez na vida não faz mal nenhum, mamãe. Não exagere, por favor.

Eleanor retesou os músculos, obviamente irritada com o tom de voz da filha.

— Eu realmente não sei o que está acontecendo com você ulti­mamente, Amanda. Não fala comigo nesse tom desde quando era uma adolescente rebelde.

— Desculpe. Acho que também estou cansada. Eleanor não se contentou com aquilo.

— Acho que cometi um erro quando convidei Jonathan para vir aqui — ela murmurou. — Este não era o momento correto para trazer um estranho para dentro de casa. A nossa rotina de vida tem sofrido mudanças radicais. Devíamos ter tentado resolver tudo por nossa conta. Afinal de contas, não se caminhou muito para esclarecer a tentativa de seqüestro.

— Desculpe se a desapontei, Eleanor — disse Jon, da porta. — No entanto, lembre-se de que eu apenas me ofereci para ajudar na escolha do sistema de segurança mais adequado para a casa. Não sei o que mais você esperava de mim.

Eleanor até que se mostrou um pouco embaraçada, mas logo es­condeu aquilo com a fria dignidade de sempre.

— Eu certamente estou grata pelo que você fez, Jonathan. Apenas estou frustrada por não ter havido nenhum progresso na identificação das pessoas que tentaram seqüestrar meu neto. E se tentarem novamente?

Amanda e Jon trocaram um olhar, concordando em silêncio que Eleanor não devia ser informada do susto que eles haviam levado no cinema.

— Jon tem feito tudo o que pode para garantir a segurança de Aubrey, mamãe. Devemos agradecer a ele por ter vindo a Memphis para nos fazer esse favor.

— Nós certamente agradecemos, Jonathan — disse Eleanor, numa voz macia. — E acredito mesmo que você já fez tudo o que podia. Agora deve estar ansioso para voltar para a sua casa e seus amigos. Quando pretende partir?

— Mamãe! — protestou Amanda, horrorizada.

Ela não saberia dizer se aquela reação era motivada pela mal disfarçada impaciência da mãe em se ver livre de Jon ou pelo de­salento dela própria com a perspectiva de que ele fosse logo embora.

Eleanor lançou à filha um olhar de inocência.

— Ele pode ficar pelo tempo que quiser, é claro. Só não quero que se sinta obrigado a isso. Tenho certeza de que ele tem uma vida social ativa em Seattle. Deve estar ansioso para voltar, não é, Jonathan?

Jon respondeu num tom neutro.

— Pensei em ficar aqui o fim de semana para verificar o fun­cionamento do sistema de segurança. Provavelmente volte para Seat­tle na segunda-feira pela manhã.

Amanda sentiu um aperto no coração. Será que desde o começo Jon pensava em ir embora tão cedo? Se fosse isso, o que a noite anterior havia significado para ele? Apenas um interlúdio de prazer durante a visita a Memphis? Para ela tinha sido muito mais.

Colocada entre Jon e Eleanor, Amanda sentiu-se numa posição muito desconfortável. Então saiu andando para a porta, sem olhar para nenhum dos dois.

— Prometi um beijo de boa noite a Aubrey. Acho que depois também vou me deitar. Boa noite, mamãe.

— Amanda! — chamou-a Eleanor, obviamente querendo dizer que ainda não havia terminado.

— Eu já lhe dei boa noite, mamãe. Amanhã voltaremos a con­versar.

Bem, talvez na ocasião ela estivesse com as emoções mais con­troladas.

Aubrey estava deitado e coberto, o quarto iluminado apenas pela fraca luz que havia ao lado da porta. Achando que ele já dormia, Amanda inclinou-se e beijou-o na testa. Foi com surpresa que ouviu a voz sonolenta do menino.

— Vovó ficou muito zangada, tia Amanda?

— Não, é claro que não — ela mentiu, sem hesitação. — Você se divertiu hoje, Aubrey?

— Ah, sim, eu me diverti muito.

— Ótimo. Faremos a mesma coisa outras vezes.

— Eu vou gostar — disse o garoto, abrindo e fechando os olhos. Sorrindo, Amanda afagou os cabelos dele e começou a se afastar da cama.

Outra vez Aubrey abriu as pálpebras pesadas.

— Tia Amanda?

— O que é, querido?

— Acha que papai aprovaria? Isto é: hoje eu não estudei nada. Amanda sentiu um nó na garganta. Oh, Jerome, o que foi que você... o que foi que nós fizemos com essa criança?

— Acho que sim, meu querido. Uma tarde longe dos livros cer­tamente teria a aprovação do seu pai? Lembra-se dos torneios de xadrez de que já participou? Serviram para que você relaxasse, afastando-se um pouco do trabalho. E a sua mãe sempre gostou de longos passeios no campo, lembra-se?

— Sim, eu me lembro. Então acho que eles estariam de acordo com o que fiz hoje.

— Seus pais ficariam... muito orgulhosos de você — declarou Amanda, numa voz meio trêmula. — Tanto quanto eu.

Audrey murmurou algo que ela não entendeu e fechou os olhos. Depois de enxugar os olhos, Amanda saiu silenciosamente do quarto do sobrinho.

Jon esperava à porta do quarto dele, no outro lado do corredor.

— O que houve? — ele inquiriu, reparando que ela estava com os olhos molhados.

— Nada — respondeu Amanda, caminhando até o próprio quarto e voltando-se para ele, mas para falar de outro assunto. — Jon, desculpe pela atitude de mamãe. Ela está apenas... perturbada com tudo isso que tem acontecido ultimamente. Não tem sido a mesma mulher desde a morte de Jerome.

Jon encolheu os ombros.

— Não fiquei aborrecido. Você é quem talvez não esteja mais agüentando ser tratada como uma garota irresponsável. Quando vai ter outra vez a sua própria casa?

Amanda arregalou os olhos, espantada com aquela pergunta.

— Não estiou pensando em me mudar daqui. Aubrey.,.

— Aubrey estaria muito melhor longe da avó, que faz tudo para transformá-lo numa reencarnação do pai — disse Jon, bruscamente. — Não use o menino como uma desculpa para a sua covardia, Amanda.

— Covardia? — ela reagiu, indignada. — Por que está dizendo isso?

Jon não mediu as palavras.

— Você ainda tem medo de assumir inteiramente a responsabi­lidade pelo garoto. Tem se esforçado tanto quanto A.J. para assumir perante a sua mãe o lugar de Jerome. Mas tem a sua própria vida, Amanda, e o garoto tem a dele. Não deixe que a vida passe em branco por você, apenas para cumprir um dever sem sentido. Sua mãe é perfeitamente capaz de viver sozinha a vida dela.

Amanda achou que já ouvira demais por uma noite e, incons­cientemente, assumiu o jeito de falar da mãe.

— Você foi solicitado a nos aconselhar sobre segurança, Jonathan, não sobre a minha vida pessoal. Tenho plenas condições de tomar minhas decisões sem a sua ajuda.

Jon fechou o semblante.

— Tem razão. Já vi que você está fazendo um trabalho muito bom nesse sentido.

Amanda conteve a respiração.

— Olhe aqui: você tem todo o direito de ficar ofendido com o tratamento rude que recebeu de mamãe, mas não tem o menor motivo para descontar em mim! Não fiz nada para merecer sua crítica.

— Não se trata de crítica, droga! — rebateu Jon. — Eu só não estou mais agüentando ver a forma como ela a trata. Não gosto de pensar que, depois de segunda-feira, tudo voltará a ser como era antes da minha chegada aqui. Será que não reparou como A.J. tem agido de forma diferente nos últimos dias? Não percebeu a solidão que aquele menino tem suportado nos últimos cinco meses... ou talvez até antes?

— Ó que eu sei é que você chegou aqui e se apossou do meu sobrinho! — despachou Amanda, limpando furiosamente as lágrimas que acompanharam aquelas palavras. Lembrando-se de que Aubrey não estava longe, procurou falar em voz mais baixa. — Deve ser fácil para você dar conselhos. Está aqui apenas por alguns dias e logo irá embora sem olhar para trás. Como é que eu posso tomar o seu lugar no coração de Aubrey? Ah, mas por que você iria se preocupar com isso? Afinal de contas, na última semana nada mudou na sua vida.

— Nada mudou na minha vida? — repetiu Jon, aparentemente incrédulo. — Que diabo acha que aconteceu ontem à noite?

— Responda você — desafiou-o Amanda. — Uma aventura de férias? Um divertimento passageiro? Ou será que você queria apenas me prestar mais um favor? Foi isso?

Subitamente os lábios de Jon perderam a cor. A onda de revolta que apareceu nos olhos dele fez com que Amanda involuntariamente recuasse um passo.

— Se é isso o que você pensa, talvez esteja mesmo na hora de eu ir embora — ele disse, numa voz baixa, precisa e cortante.

— Desde o começo nós dois sabíamos que a sua visita não seria demorada — ela respondeu, procurando se mostrar impassível, em­bora sentisse o coração batendo muito depressa.

Mas o que estava fazendo? Por que o enxotava daquele jeito? Será que achava mesmo que seria menos doloroso vê-lo partir se coubesse a ela a iniciativa de romper o breve caso entre eles dois?

— Gostaria que você ficasse durante o fim de semana, como estava pretendendo — acrescentou Amanda, controlando-se à custa de muita força de vontade. — Será bom para Aubrey ter algum tempo para se preparar para a sua partida.

— Está certo — concordou Jon, tenso. — E não se preocupe, porque não vou lhe dar mais conselhos. A partir de agora ficarei com a boca fechada.

— Eu agradeço — disse Amanda, com frieza, voltando-se para a porta. — Boa noite, Jon.

Jon resmungou alguma coisa que ela considerou uma reposta.

Só depois de fechar a porta Amanda deixou que as lágrimas es­corressem. Com as mãos na cabeça, desabou na cama e enroscou o corpo para ficar na posição fetal. Mas que diabo havia acontecido? A noite havia começado de uma forma tão agradável, tão cheia de calor... depois de um desagradável começo com Edward.

Teria a intromissão de Edward influenciado no desentendimento entre ela e Jon? Estaria Jon enciumado, suspeitando de alguma coisa? Certamente ele sabia que não havia motivo para isso.

Amanda não havia previsto como seria o final daquele rápido caso com Jon. Inconscientemente fez uma comparação, entre a de­vastação em que se encontrava naquele momento e o alívio que havia sentido ao romper o noivado.

Soluçando e afundando o rosto no travesseiro, ela percebeu que naquela noite não encontraria resposta para nenhuma daquelas per­guntas. Talvez nem conseguisse dormir. Se conseguisse, já sabia com quem iria sonhar.

O sábado começou mal e tudo levava a crer que só podia piorar. Amanda não vivia um dia tão desagradável desde quando fora in­formada de que o irmão e a cunhada dela haviam perdido a vida num desastre de carro.

Levantando-se da cama depois de uma noite praticamente em claro, ela se sentia exausta, vazia por dentro. Meia hora mais tarde, ainda com todos dormindo, saiu de casa e rumou para a loja, chegando lá duas horas antes de abrir. A arrumação que fez naquelas duas horas ajudou muito pouco a melhorar o estado de espírito dela.

Trícia chegou com uma crise de sinusite que a deixou quieta e retraída. O movimento na loja estava fraco, o que não era normal para um sábado. E Edward apareceu sem avisar, insistindo com Amanda para que fosse almoçar com ele. Ela acabou concordando, apenas por se sentir cansada demais para discutir.

Durante uma hora inteira Edward tentou convencê-la a reatar o re­lacionamento deles, fez perguntas bem pouco sutis sobre o que podia estar acontecendo entre ela e Jon e deu conselhos não solicitados sobre a segurança de Aubrey e a vida de Amanda. Mas ela não estava mesmo disposta a ouvir conselhos dele... o que acabou declarando sem meias palavras antes de pedir que a levasse de volta à loja.

Para completar, no fim da tarde Amanda reparou que Gray McFarland estava rondando a loja. Ele não tentou entrar, graças a Deus, mas parecia fazer questão de mostrar que estava por ali.

Se a intenção daquele homem era deixá-la nervosa, estava fazendo um trabalho muito bom. Era difícil para Amanda e Trícia concentrarem-se no serviço com aquele fantasma andando de um lado para outro lá fora. Finalmente Amanda ligou para a polícia, que mandou alguém para sugerir que McFarland se afastasse. O homem se sub­meteu, não sem antes dirigir um gesto obsceno a elas duas.

Amanda estava com a cabeça latejando quando atravessou com o carro o portão da casa. Mas por que o portão tinha sido deixado aberto? Ao ver o veículo que estava estacionado perto da entrada da casa ela franziu a testa. Para coroar aquele dia, só mesmo uma visita de Howard Worley.

Mal pôs o pé dentro de casa Amanda ouviu o chamamento de Eleanor.

— Estou chegando, mamãe — ela respondeu, deixando escapar um suspiro de resignação. — Olá, Howard.

Eleanor e Howard estavam sentados, os dois numa postura rígida, enquanto Jon se mantinha de pé, recostado na guarnição de mármore da lareira, com os braços cruzados e um ar de evidente desagrado no rosto.

Amanda viu sem dificuldade que a calma de Jon estava no limite. Depois de cumprimentá-lo com um frio aceno de cabeça ela também se sentou.

— Onde está Aubrey?

— Está lá fora, brincando com o filho do motorista — respondeu Howard, de cara feia. — Como não tem amigos do seu nível, o menino tem que se submeter a relacionar-se com os filhos da cria­dagem. Se morasse comigo...

-— O fato é que ele não mora com você, Howard — interrompeu-o Amanda, mostrando o mais doce dos sorrisos. — O filho de Terrence é um bom menino. Não me oponho a que ele e Aubrey sejam amigos.

— Esta tarde eu ainda nem tive uma chance de conversar com meu sobrinho — lamentou-se Howard, fuzilando Jon com os olhos. Logo depois ele olhou novamente para Amanda, com a expressão de quem' queria ser absolutamente razoável. — Estava explicando a Eleanor que minha e esposa e eu gostaríamos de ter Aubrey como nosso hóspede neste fim de semana. Comprei entradas para um espetáculo circense desta noite, depois do qual Loretta e eu o levaríamos para jantar. Ele poderá ir à igreja conosco amanhã pela manhã e voltar para almoçar aqui... se é que vai querer voltar tão cedo. Eleanor nem quis levar em consideração o meu pedido, mas já argumentei com ela que você é a guardiã oficial do menino. Cabe a você decidir, não a ela;

— E por que acha que a minha decisão será diferente? — inquiriu Amanda, erguendo uma sobrancelha.

— Porque penso que você gosta realmente daquela criança — devolveu Howard, evidentemente tentando agradá-la. — Não impe­diria que Aubrey se divertisse um pouco comigo, não é?

— E claro que não — declarou Amanda, ignorando o ar de espanto da mãe e o resmungo que Jon deixou escapar. — A questão é que não sei se Aubrey gostaria de se divertir com você, Howard. Acho mesmo que o fim de semana seria um tormento para ele, já que não tenho a menor dúvida de que você passaria todo esse tempo criticando a educação que mamãe e eu damos a Aubrey. Também tentaria convencê-lo de que seria muito melhor para ele morar com você e Loretta. Minha resposta é não. Aubrey não passará o fim de semana com você.

As bochechas de Howard enrubesceram-se perigosamente.

— Não vai nem perguntar ao menino o que ele prefere?

— Não é necessário, porque Aubrey recusaria o convite. Howard levantou-se da cadeira com a fúria estampada no rosto.

Amanda reparou que Jon aprumava o corpo, como se estivesse se preparando para entrar em ação. Então ela dirigiu a ele um rápido olhar de advertência antes de se dirigir novamente a Howard. —- Queria dizer mais alguma coisa?

— Ah, sim — rosnou o homem, com os dentes trincados. — Você vai se arrepender disso, Amanda. Não repercutirá bem no tri­bunal quando eu mostrar as tentativas que vem fazendo para afastar o menino da família da mãe dele. Se acha que algum juiz aprovará isso, prepare-se para ter uma boa surpresa.

Amanda resistiu ao impulso de encostar os dedos nas têmporas, que estavam latejando.

— Não estou querendo afastar Aubrey de você, Howard. Poderá visitá-lo a qualquer hora, embora em insista em pedir que nos avise antes. Mas não vou obrigar o menino a passar na sua companhia mais tempo do que o necessário. Se quer mesmo me processar, o problema é seu. Suas ameaças não me impedirão de continuar fazendo o que acho mais de acordo com os interesses de Aubrey.

— Escute aqui, sua cadela nojenta...

— Agora chega, Worley — intrometeu-se Jon, avançando para o enraivecido homem. — Ponha-se para fora daqui.         ,

Involuntariamente Howard recuou um passo.

— E você não se meta no que...

Nesse instante Terrence entrou na sala sem avisar, com os olhos arregalados.

— Jon, os meninos... Eu não consigo encontrá-los. Eles desapa­receram!

 

Durante um segundo ninguém se mexeu. Jon foi o primeiro a se recuperar do choque.

— Como não consegue encontrá-los, homem? Terrence abriu os braços, num gesto de desespero.

— Eles estavam brincando lá perto do riacho. Quando fui chamar Nathan, haviam desaparecido. Procurei em todo o jardim mas eles não estão em lugar nenhum.

— Procurou no quarto de Aubrey? — inquiriu Amanda, levantando-se.

— Sim, mas também não estão lá — respondeu Terrence. — E Roseanne não os viu na cozinha.

— Dê uma busca na casa, Eleanor — ordenou Jon, marchando para a porta. — Os outros venham comigo para procurar lá fora.

— Não é melhor ligar para a polícia? — sugeriu Eleanor, com um leve tremor na voz.

— Ainda não — respondeu Jon, sem retardar o passo.

— Eu sabia que uma coisa assim ainda ia acontecer! — esbravejou Howard, também caminhando para a porta. — Se alguma coisa acon­tecer com o meu sobrinho eu...

Já com um pé no vestíbulo, Jon parou e voltou-se para encarar Howard, que estava a não mais de um metro e meio dele.

— Diga só mais uma palavra, Worley, e eu fecharei pessoalmente essa sua boca — ele advertiu, num tom controlado, deixando claro que cumpriria a ameaça. — Estamos entendidos?

Howard submeteu-se, embora estivesse espumando de raiva. Amanda não se surpreendeu ao ver que ele não dizia mais nada.

Chamando pelo nome dos garotos, Jon, Terrence a Amanda saíram pelos extensos jardins da propriedade, seguidos por um silencioso Howard. Amanda sentia a pulsação acelerada, o pavor aumentando a cada minuto que passava.

— O portão estava aberto quando eu entrei — ela disse a Jon. — Será que alguém...

Antes que a frase fosse concluída Jon apertou o ombro dela.

— Nós vamos encontrá-lo, Amanda. Continue procurando.

Um grito de Terrence vindo do lado do riacho fez com que Aman­da e Jon saíssem correndo naquela direção. Amanda quase gritou de alívio quando viu os dois meninos, com as roupas amarrotadas e sujas, parecendo muito surpresos com aquela comoção. Correndo na frente dos outros ela abraçou o sobrinho.

— Graças a Deus vocês estão bem! Mas por onde andavam? Aubrey pareceu espantado com o fervor da tia mas não tentou sair dos braços dela.

— Nós estávamos no terreno vazio no outro lado do muro — explicou-se o menino. —- Queríamos descobrir a nascente do riacho. Vocês sabiam que ele vem de uma fonte subterrânea que fica a uns cem metros do limite da nossa propriedade?

— É verdade, Srta. Hightower — confirmou Nathan, com muita ênfase na voz fina. — Existe uma pedra grande e...

— Eu não lhe disse que não devia sair da propriedade, rapazinho? —- interrompeu-o Terrence.

Nathan arregalou os olhinhos pretos.

— Não, papai, você não me disse nada disso. Terrence suspirou, exasperado,

— Bem, eu nem precisava dizer! É uma coisa que você já devia saber.

— E você também, Aubrey — apoiou Amanda, embora não con­seguisse parar de abraçar o sobrinho. — Não pensou que ficaríamos preocupados com o desaparecimento de vocês?

Aubrey levantou a cabeça.

— Desculpe, tia Amanda. Eu nem pensei nisso. Howard abriu os braços.

— Isso só indica que o menino precisa de atividades mais indi­cadas para a idade —- ele interpretou, com ares de quem sabia o que estava dizendo. — Se Aubrey morasse comigo, teria atividades na dose certa... e companhias mais adequadas.

A ênfase que ele pôs na palavra «adequadas» fez com que Terrence aprumasse o corpo.

Aubrey, que teve a mesma reação ao ouvir as palavras do tio, olhou para Amanda como se pedisse ajuda. Enquanto afagava os cabelos do sobrinho ela sorriu para o companheiro dele.

— Bem, meninos, o que importa é que vocês dois estão aqui. Na próxima vez em que brincarem juntos, lembrem-se de que não devem sair da propriedade sem autorização.

— Sim, senhora — disseram os garotos, em uníssono, trocando um olhar de alívio.

— Agora vamos para casa, Nathan — disse Terrence, sério, em­bora colocasse a mão no ombro do filho com evidente carinho.

— Até logo, AJ. — despediu-se Nathan, olhando depois para Amanda. — Desculpe pela preocupação, Srta. Hightower.

Amanda sorriu para o menino, que se afastou com o pai. Depois apertou o ombro do sobrinho.

— Agora vá tomar um banho e trocar de roupa, Aubrey. E conte à sua avó o que aconteceu. Ela ficou preocupada.

— Está certo, tia Amanda. Adeus, tio Howard. Howard franziu a testa.

— Gostaria de falar com você por alguns instantes, Aubrey. Aubrey olhou para a tia com um ar de súplica nos olhos. Era a primeira vez que recorria a ela para se livrar do tio. Amanda decidiu que não o decepcionaria.

— Talvez outra hora, Howard. AJ. está cansado e com fome. Precisa se aprontar para o jantar.

O menino sorriu quando viu que ela o tratava pelo novo apelido. Amanda fizera aquilo para mostrar a diferença que havia entre ela e o tio de Aubrey, o que evidentemente deu certo. Até Jon a olhou com um ar de aprovação, diferentemente do que havia acontecido na noite anterior. Infelizmente era uma aprovação que não resultaria em nada de positivo para ela.

Antes que Howard tivesse oportunidade de fazer mais protestos, Jon aproximou-se de Amanda.

— Acho que já está na hora de também nos prepararmos para o jantar — ele disse, num tom significativo. — Certamente voltaremos a nos ver, Worley.

— Ei, espere aí. Você está me dispensando como se eu fosse um.

— E ele fez muito bem — cortou Amanda, com frieza. — Adeus, Howard. Avise-nos com antecedência da sua próxima visita, ou o portão estará fechado para você.

— Ora, sua...

— Não abuse da sorte, Worley — recomendou Jon, com calma, embora parecesse preferir que o homem ignorasse a advertência.

Mas Howard não era idiota a esse ponto. Trêmulo de raiva, ele saiu pisando firme no chão, resmungando ameaças.

— Ai, meu Deus... — murmurou Amanda, passando a mão pelos cabelos. — O que mais pode dar errado hoje?

Jon hesitou apenas um instante antes de erguer as mãos para massagear os ombros dela.

— Foi um dia ruim para você?

— Horrível — respondeu Amanda, quase fechando os olhos para aproveitar melhor a deliciosa pressão dos dedos dele.

— E acho que a forma como eu agi ontem à noite não ajudou muito... — Jon respirou fundo e interrompeu o movimento dos dedos. — Amanda, tudo aquilo que eu disse ontem à noite... Peço que me desculpe. Eu passei dos limites. Não tinha o direito de censurar o que você vem fazendo desde a morte do seu irmão.

Amanda olhou para ele, surpresa e desarmada pelo pedido de desculpas.

— Eu...

Na verdade ela não sabia o que dizer.

Jon segurou no rosto dela com as duas mãos.

— Passei a maior parte da noite acordado, pensando em você. Também passei um bom tempo me chamando de idiota por causa das coisas que lhe disse, quando na verdade devia ter dito o quanto você é especial. Ou que percebo os seus esforços para se aproximar de AJ. e como isso é importante para ele. Podia ter passado todo aquele tempo e mais outro tanto apenas dizendo o quanto você é linda. Será que pode me perdoar por ter descarregado em você a irritação que a sua mãe me causou?

Amanda colocou as mãos nos ombros de Jon, com os seios apenas tocando no peito dele.

— Sim — ela murmurou. — Desde que você me perdoe por ter feito a mesma coisa.

— Negócio fechado — comemorou Jon. — Ah, como eu quero beijá-la.

Amanda pôs-se na ponta dos pés e parou com os lábios a poucos centímetros dos dele.

— O que está esperando?

Jon abriu um sorriso de dentes brancos no rosto bronzeado e colou os lábios nos dela, ao mesmo tempo em que a abraçava.

Foi um beijo quente, em que os dois pareciam querer ao mesmo tempo se entregar e tomar posse. Amanda lembrou-se de quando havia dormido com Jon e desejou passar com ele outra noite... seguida de outra, muitas outras noites de amor.

Será que não estava sendo uma tola ao sonhar com um futuro ao lado daquele homem? Mas naquele momento não queria pensar nisso. Sabia apenas que o desejava, precisava dele. Tinha sérias sus­peitas de que estava apaixonada por ele.

— Amanda — murmurou Jon, interrompendo o beijo. — Oh, Deus, eu queria...

— Amanda!

Ao ouvir o grito agudo de Eleanor eles se separaram como se acabassem de receber na cabeça um balde de água gelada. Jon abai­xou os braços tão rapidamente que Amanda quase perdeu o equilíbrio. Quando conseguiu se aprumar, ela lançou à mãe um olhar exasperado.

— Francamente, mamãe. Quer me matar de susto?

— Gostaria de conversar com você, Amanda — declarou Eleanor, lançando depois um olhar frio a Jon. — Em particular, por favor.

Indeciso, Jon olhou para Amanda como se quisesse descobrir o que ela queria que ele fizesse.

— Você não queria passar no quarto antes do jantar, Jon? — ela disse, passando a mão nos cabelos e sorrindo para ele. — Então vá. Mamãe e eu logo estaremos indo.

— Tem certeza? — inquiriu Jon, pronto a ficar se ela pedisse. Amanda ficou grata pelo gesto, mas achou que seria melhor ele não ficar ali.

— Tenho certeza.

Só quando Jon estava a uma distância de onde não podia ouvi-las Amanda se voltou para a mãe.

—Por que diabo gritou daquele jeito? — ela perguntou, bruscamente, partindo para o ataque antes que Eleanor pudesse fazer o mesmo.

A matriarca levantou a cabeça.

— Eu não grito.

— Mas gritou. E foi muito rude com Jon. Por «quê?

— Eu fiquei espantada — declarou Eleanor, olhando para a filha como costumava fazer quando ela era criança. — Certamente não esperava encontrá-la protagonizando aquela cena de... de...

— Paixão? Luxúria? — ajudou-a Amanda, cada vez mais inquieta. Eleanor abriu os braços.

— Às vezes não sei por que me preocupo em conversar com você. Pensei que havia mudado nos últimos meses, finalmente re­solvendo aceitar suas responsabilidades para com a família. Mas você continua sendo a rebelde renitente que sempre foi, não é?

Aquelas palavras atingiram Amanda em cheio, principalmente porque nos últimos cinco meses ela vinha tentando com afinco cor­responder às expectativas da mãe.

— Eu estava beijando Jon, mamãe, não jogando na lama o nome da família. Você está exagerando, como sempre.

— Espero sinceramente que você não esteja pensando em ter um caso romântico com esse rapaz. Não daria certo, Amanda, de forma nenhuma. Com enorme esforço Amanda conseguiu falar com moderação.

— E eu espero que você não queira acuses Jon de ser também um caçador de fortunas. Não vai poupar nem o filho da sua dileta amiga?

— É claro que o filho de Jessie não é um caçador de fortunas. Mas ele teve uma educação muito diferente da sua, Amanda. Jonathan não se ajustaria ao nosso mundo... assim como você não se ajustaria ao mundo dele. Não existe futuro nisso e vocês só causarão emba­raços às duas famílias se continuarem agindo de forma irresponsável. E você precisa pensar em Aubrey. Não percebe que, comportando-se desse jeito, está dando um mau exemplo ao menino?

— Cabe a eu decidir que exemplo dar a A.J., mamãe — res­pondeu Amanda, usando de propósito o apelido. — Lembre-se de que a guardiã sou eu, não você.

— AJ. — desprezou Eleanor, com toda delicadeza. — Que nome mais vulgar. Trazer Jonathan para cá foi definitivamente um erro. A impressão que tenho é de que ele está sendo um mau exemplo para quase toda a família.

Enraivecida, Amanda assumiu a defesa de Jon.

— Ele usou um período em que devia estar se recuperando de um ferimento para ajudar uma família que na verdade nem conhecia. Tornou-se amigo de um menino que nos últimos meses vinha cada vez mais se enterrando em seu mundo de solidão. E tem recebido bem pouca gratidão das pessoas daqui... inclusive de mim mesma, reconheço. Não quero ouvir nem mais uma palavra de censura a Jon Luck. Isso está claro, mamãe?

Eleanor soltou um suspiro de indignação.

— Pelo menos ele logo estará indo embora. Já que tenho certeza de que Jonathan não tem a menor intenção de continuar esse namoro depois que voltar para Seattle, não vou mais tocar no assunto. Só espero que você não acabe sofrendo quando se arrepender da tolice que está fazendo.

Amanda procurou conter as palavras que tinha na ponta da língua, percebendo que estava a ponto de ter uma crise parecida com as que tinha na adolescência.

Antes que ela voltasse a falar Eleanor retomou a palavra.

— Esta tarde o seu ex-noivo esteve aqui.

Aquela novidade devolveu a Amanda o dom da fala.

— Edward esteve aqui? Depois de ter almoçado comigo? Por quê?

— Ele foi muito solícito. Queria saber como estamos todos. Edward garante que, durante o noivado de vocês, afeiçoou-se muito à nossa família e que ultimamente está muito preocupado conosco. Mas ficou apenas alguns minutos. Jonathan não foi muito simpático com ele.

— E duvido que você tenha sido.

— Eu agi de uma forma perfeitamente polida —- declarou Eleanor, com frieza. — Só espero que Edward não crie o hábito de vir aqui sem avisar.

Amanda sabia como era quando a mãe dela agia de forma «per­feitamente polida» e tinha certeza de que Edward havia entendido a mensagem. Mas por que ele não desistia? Seria inconcebível pensar que ele estivesse sofrendo por causa de um amor não correspondido.

Talvez Eleanor tivesse razão desde o princípio. Talvez fosse do di­nheiro de Amanda que Edward não queria desistir.

Eleanor entrou e Amanda resolveu ficar no jardim por mais algum tempo, pensando no que ouvira da mãe... não só sobre Edward, mas também sobre Jon.

Estaria ela se comportando como uma tola? Será que não esperava de Jon mais do que ele queria dar? Correria o risco de estar se apaixonando por um homem que apenas se divertia enquanto não voltava para uma vida de liberdade?

Amanda entrou na casa e marchou para o quarto. Para aplacar a dor de cabeça que estava sentindo precisaria de muito mais do que alguns segundos pensando numa ensolarada praia tropical.

Eleanor alegou também estar com dor de cabeça e ordenou a Roseanne que lhe servisse o jantar no quarto. Aquilo foi um alívio para Amanda. O que ela menos queria era participar de um jantar durante o qual a mãe dela ficaria observando cada gesto que ela e Jon fizessem.

Aubrey esteve quieto durante a refeição. Aquilo não era novidade, naturalmente, mas Amanda o achou mais retraído do que de costume. Jon aparentemente achava o mesmo. Ambos perguntaram se alguma coisa o perturbava, mas o menino garantiu que estava apenas cansado. Logo depois do jantar, pediu licença e retirou-se, dizendo que tinha trabalhos da escolar para fazer antes de dormir.

— Acha que sua mãe brigou com ele por ter desaparecido esta tarde? — perguntou Jon, depois que Aubrey os deixou na sala de estar, para onde todos tinham ido depois do jantar.

— Provavelmente — respondeu Amanda, suspirando. — Vou conversar com Aubrey antes que ele durma. Direi que o que ele fez não estava certo, embora não tenha sido nenhum crime.

Jon abriu a boca para dizer alguma coisa, mas parou e voltou a atenção para o guia da TV que tinha nas mãos.

—- Estão apresentando a premiação dos melhores da música. Não quer ver?

— Acho que não. O que você ia dizer antes?

— Nada.

Amanda balançou a cabeça e mostrou um sorriso de descrença.

— Você não me engana, Jon. Ia dizer alguma coisa e mudou d idéia. O que era?

— Eu prometi que não lhe daria mais conselhos não solicitados

— Então estou lhe pedindo. Que conselho ia me dar? Jon suspirou e acomodou-se no sofá ao lado dela.

— Eu ia dizer novamente que seria melhor se você e Aubrey morassem em outro lugar. Tenho certeza de que as intenções da sua mãe são muito boas, mas ela está enganada sobre a educação que se deve dar a um menino. Não é boa coisa ele reprimir as próprias necessidades, vivendo apenas para corresponder às expectativas dela.

— Eu sei — concordou Amanda, também suspirando. — De fato, não é boa coisa para Aubrey uma vida assim. Pensei que seria mais fácil para mim e para ele vivermos aqui, mas acho que estava enganada. Não sei absolutamente nada sobre o que é ser uma mãe solteira, mas quero aprender. Vou começar procurando um lugar para nós... logo que tiver certeza de que Aubrey não corre mais perigo.

Jon fez uma cara de preocupação.

— Você tem que arranjar um lugar realmente seguro, é claro. E ele não deve ser deixado sozinho.

— Financeiramente eu estou em condições de proporcionar toda segurança a Aubrey, Jon. Tenho os meus próprios ganhos, além da herança deixada por papai, que é razoável. Aubrey não será um menino desamparado.

Jon fez uma careta.

— Eu não quis dizer isso. Desculpe.

— Já reparou que ultimamente nós dois vivemos pedindo des­culpas um ao outro?

— E — concordou Jon, coçando a cabeça. — O que acha de pararmos com isso?

Amanda sorriu e imitou o jeito de falar dele.

— Negócio fechado.

Jon inclinou-se e beijou-a levemente nos lábios, selando o pacto. Mas não se afastou para falar.

— Eleanor não gostou quando nos encontrou juntos, não foi? Amanda olhou pára as mãos juntas sobre o colo.

— Não. Não gostou mesmo.

— Por quê?

— Ela acha que eu estou me comportando de forma irresponsável, dando um mal exemplo a Aubrey.

Sem dizer nada, Jon ergueu a cabeça e revirou os olhos.

— Em alguns aspectos minha mãe é muito antiquada, Jon. Não se aborreça com isso.

Jon encolheu os ombros.

— Desde que você não se aborreça.

— Eu aprendi a conviver com o problema. Desde a adolescência que tomo as decisões sobre a minha vida pessoal. Não vou deixar que isso mude agora.

—E isso significa que esta noite não vou dormir outra vez sozinho, apesar da desaprovação da sua mãe?

A pergunta foi feita quase com displicência, mas Amanda sentiu um arrepio ao ver o desejo que havia naqueles olhos verdes.

— Sim, é o que significa — ela murmurou. — Esta noite você não dormirá cozinho.

Jon inclinou-se novamente para beijá-la, mas Amanda colocou a mão no peito dele.

— Aqui não. Vamos subir.

— Tem medo de que alguém nos veja? — perguntou Jon, embora atendendo ao pedido.

Amanda sorriu e acariciou o rosto dele.

— Tenho medo de que alguém nos interrompa.

Jon foi tomar um banho, combinando que a encontraria mais tarde, no quarto dela.

Amanda bateu na porta do quarto de Aubrey, só entrando quando o menino respondeu. Encontrou-o sentado à escrivaninha, por trás de uma pilha de livros.

— Como está indo o trabalho?

— Estou quase terminando — respondeu Aubrey, colocando o lápis sobre a escrivaninha. — Só faltam dois problemas.

— Ótimo. — Amanda sentou-se na cama do sobrinho e repousou as mãos nas pernas, pensando em como começar. — Aubrey, sobre o que aconteceu esta tarde...

Aubrey ficou evidentemente tenso e ansioso.

— Estou arrependido por tê-la deixado preocupada, tia Amanda — ele disse, com um olhar suplicante. — Não vou fazer isso outra vez. Por favor, não deixe que eu vá morar com tio Howard. Prometo que serei um bom menino se ficar aqui.

Espantada, Amanda ficou olhando fixamente para o sobrinho.

— Deixar que você vá morar com Howard? Aubrey, eu jamais concordaria com isso! De onde tirou essa idéia?

— Eu sei que ele tem tentado convencê-la disso — respondeu Aubrey, visivelmente abatido. — Tio Howard me disse que seria melhor para todos, principalmente para a senhora, se eu fosse morar com ele e tia Loretta. Mas eu não lhe causarei mais nenhum problema, tia Amanda... juro.

— Venha cá, Aubrey.

Hesitante, o menino levantou-se e aproximou-se da cama. Amanda esperou que ele chegasse bem perto e abraçou-o demoradamente. Depois, segurou nos ombros dele para falar olhando-o nos olhos.

— Eu nunca deixarei que você vá morar com Howard Worley. Está me ouvindo? Eu gosto muito de você, Aubrey. Quero que fique morando comigo.

— Verdade? — perguntou o menino, aparentemente achando di­fícil acreditar naquilo.

— Verdade. Por que acha que poderia ser de outra forma? Aubrey abaixou a cabeça.

— Eu ouvi uma conversa sua com vovó, depois que ficou sabendo que seria a minha guardiã. A senhora disse que não sabia nada sobre a educação de uma criança. Disse que tinha tido muito trabalho para ter sua vida própria e não queria desistir da sua liberdade. Mas depois mudou-se para cá, já que o apartamento era muito pequeno para nós dois, rompeu o noivado por minha causa c...

— Ei, ei, espere aí — interrompeu-o Amanda, só então percebendo que Aubrey realmente havia pensado que ela o desprezava. — O meu rompimento com Edward não teve absolutamente nada a ver com você. Eu teria desmanchado o noivado de qualquer jeito, porque descobri que não o amava o suficiente para me casar com ele.

— Mas eu ouvi a sua conversa com vovó e...

— Sinto muito por você ter escutado aquelas coisas todas, querido — disse Amanda, fazendo com ele se sentasse ao lado dela. — Provavelmente eu disse tudo aquilo, mas não estava falando sério... pelo menos não como parecia. Estava transtornada, chocada com a morte dos seus pais e a inesperada responsabilidade de educar uma criança. Acho que tinha um pouco de medo de não corresponder à confiança que eles depositaram em mim. Você... pode entender isso? Aubrey assentiu com a cabeça.

— Acho que sim.

— Desde que você veio morar comigo, Aubrey, o nosso maior problema tem sido o da comunicação. Não temos conversado o su­ficiente sobre o que você quer, o que sente. Eu nem sabia direito como conversar com você, e acho que você também não sabia como conversar comigo. Precisamos superar isso, aprender a falar um com o outro. Precisamos nos conhecer.

— Eu também quero muito isso — declarou Aubrey, timidamente. — Tem certeza de que não se incomoda em continuar sendo res­ponsável por mim?

— Eu adoro ser responsável por você — respondeu Amanda, voltando a abraçá-lo. -—Gosto muito de você, Aubrey. Sempre gostei e sempre gostarei.

— Também gosto muito da senhora, tia Amanda.

Amanda esforçou-se para conter as lágrimas que quiseram escorrer quando ela ouviu pela primeira vez aquelas palavras da boca do sobrinho.

— Quando a polícia terminar a investigação... quando tivermos certeza absoluta de que você está em segurança... você e eu procu­raremos um outro lugar para morar. O que acha disso? Viremos visitar vovó com freqüência, é claro, mas acho que será muito melhor se tivermos a nossa casa. Não concorda.

Aubrey mordeu o lábio.

— Jon irá morar conosco?

Amanda conteve a respiração. Logo depois, riu nervosamente.

— Não, meu querido. Jon precisa voltar para Seattle. E lá que está o trabalho e a família dele.

Aubrey entristeceu-se.

— Vou sentir saudade dele. Outra vez Amanda teve trabalho para conter as lágrimas.

— Eu também — ela confessou, procurando depois demonstrar bravura. — Mas nós nos arranjaremos. Você e eu vamos dar muito certo juntos. Podemos até arranjar uma mascote. O que acha?

— E, pode ser — respondeu o menino, sempre cauteloso em se comprometer.

Em alguns aspectos ele se parecia muito com Jerome, mas em outros se parecia com ela. De uma coisa Amanda não tinha dúvida: eles dariam certo.

— Está tudo bem agora? — ela inquiriu. — Quer falar sobre mais alguma coisa?

Aubrey hesitou, depois balançou a cabeça.

— Hoje não.

— Está bem. Termine o trabalho e deite-se, está bem? Até amanhã, querido. Já que será domingo, você não irá para a escola e eu não abrirei a loja, faremos alguma coisa para nos divertir.

— O quê? — perguntou Aubrey, intrigado. Amanda beijou-o na testa.

— Pense no assunto e nós discutiremos durante o café da manhã. Boa noite, Aubrey.

— Tia Amanda?

Ela já ia se levantar, mas parou.

— O que é?

— A senhora se importa em me chamar de A J.? Amanda sorriu.

— Não, A.J. Eu não me importo mesmo.

O menino sorriu, com uma expressão de felicidade que há muito tempo ela não via nele.

Amanda estava com um nó na garganta quando saiu do quarto do sobrinho e fechou a porta.

O quarto de Jon estava fechado e ela podia ouvir os movimentos dele lá dentro. Sentiu-se tentada a entrar, mas virou-se e caminhou para o próprio quarto. Precisava de alguns minutos para se recompor. Além disso, tinha uma bonita camisola preta que queria que Jon conhecesse.

Lembrando-se do que dissera a mãe dela, Amanda achou que não seria prudente pensar num futuro ao lado de Jon. Mas teria um;i noite com ele. E estava decidida a tirar o melhor proveito disso.

 

Jon parou à porta do quarto de Amanda. Quando ia bater, percebeu que estava com a mão tremula. Mas o que era aquilo, afinal? Pela primeira vez na vida ele ficava trêmulo diante da perspectiva de passar a noite com uma mulher.

Estava realmente caído por Amanda Hightower, uma mulher que se movia em círculos bem diferentes dos dele, fosse no aspecto geográfico, econômico ou em qualquer outro. Era muito possível que ele tivesse que voltar para Seattle com o coração bem machucado. Não estava fazendo nenhum esforço para se proteger, nem se dando ao trabalho de pensar em como seria o amanhã.

Ele não podia saber o que traria o amanhã. Por enquanto tinha aquela noite, que já era o bastante.

Finalmente Jon bateu na porta.

— Entre.

A voz de Amanda era apenas um murmúrio, mas que ele ouviu claramente.

Entrando no quarto Jon conteve a respiração. Ela estava deslum­brante. Os cabelos soltos emolduravam o rosto onde predominavam os grandes e expressivos olhos castanhos. Usava uma camisola preta muito fina que deixava à mostra os braços e uma boa parte do vale entre os seios. Amoldando-se à cintura fina, o fino tecido esvoaçava das coxas para baixo. Além disso, quando ela se movimentava a camisola fazia adivinhar todas as deliciosas partes do corpo ali con­tido. As mãos de Jon coçavam de vontade de tocar naqueles tesouros.

— Você está linda — ele declarou, numa voz baixa e um tanto rouca.

Amanda mostrou um sorriso que era ao mesmo tempo misterioso e acolhedor.

— Obrigada.

Jon aproximou-se, atraído por uma força a que não teria conse­guido resistir, mesmo que quisesse. Da pele de Amanda, recente­mente banhada, emanava uma fragrância floral.

Jon estendeu as mãos e tomou a nos braços. Depois beijou-a com toda a ternura, toda a paixão, toda a ânsia de que estava possuído, tentando mostrar sem palavras que as emoções que sentia era espe­ciais, diferentes, muito mais intensas do que qualquer coisa que já houvesse partilhado com outra mulher.

Todos os músculos do corpo dele estavam sob forte tensão. Os instintos ordenavam que a possuísse naquele instante, já, imediata­mente.

Jon procurou se controlar, lembrando-se de que eles tinham muito tempo pela frente. A noite toda. E aquela tinha que ser a mais perfeita das noites.

— Amanda — ele murmurou, apenas para dizer o nome dela. — Eu...

Jon não sabia o que dizer, não tinha palavras para descrever o que aquela mulher o fazia sentir. Contentou-se em beijá-la nova­mente, um beijo profundo a que ela correspondeu com um fervor que o deixou com os joelhos vacilantes.

Jon não saberia dizer quem se moveu primeiro na direção da cama, quem primeiro ergueu a mão para despir o outro. Num ritual de beijos e carícias eles acabaram nus na cama, abraçados, a pe­numbra do quarto proporcionando um paraíso de intimidade. Encos­tando os lábios no bico de um dos seios de Amanda, Jon achou que, se morresse naquele momento, não teria nada a lamentar.

Um bom tempo ele levou nos seios dela, experimentando a maciez, o gosto, o calor e a doçura. Amanda gemia a cada toque dos dedos e da língua dele, acariciando-o nos cabelos e nos ombros. Depois ele abaixou a mão e intrometeu os dedos nos pêlos entre as coxas dela, proporcionando uma satisfação parcial com movimentos vaga­rosos e ritmados.

Os gemidos de Amanda tornaram-se mais intensos, ao mesmo tempo em que ela o beijava e mordiscava nos ombros. Ficando por alguns segundos com o lábio inferior de Jon entre os dentes, ela enfiou a língua na boca dele para uma ansiosa exploração. Depois disso eles não puderam mais esperai-. Jon posicionou-se entre as pernas de Amanda e aninhou-se no abrigo que ela oferecia.

— Amanda — ele murmurou novamente.

O nome dela era como uma doce canção de amor.

— Fale-me do seu dia — pediu Jon, muito tempo depois.

Há horas que eles estavam juntos na cama, às vezes conversando em murmúrios, às vezes sem dizer nada, freqüentemente trocando beijos e afagos. Nunca concordância muda, não falavam sobre o futuro.

Amanda moveu o rosto no ombro dele.

— Você não pode estar querendo ouvir sobre o meu dia — ela duvidou.

— Quero, sim. O que houve de tão desagradável? Além de Worley, é claro. Eu estava aqui quando ele chegou.

Amanda falou sobre a dor de cabeça de Trícia, os atrasos nas entregas de mercadorias, os poucos fregueses que tinham ido à loja. Jon acariciou as costas dela e beijou-a para reanimá-la. Mas preocupou-se quando ela falou em McFarland.

— Você chamou a polícia?

— Sim. Eles o obrigaram a ir embora.

— Devia requerer um mandado para mantê-lo longe da loja.

— Espero que ele desista. No momento já tenho preocupações demais para pensar em McFarland.

— O que mais aconteceu hoje?

— Eu almocei que Edward — confessou Amanda, depois de um instante de hesitação. — Antes de ele vir aqui, eu acho.

Jon evidentemente não gostou de ouvir o nome do ex-noivo dela.

— Por quê? — ele perguntou, bruscamente.

— Edward apareceu sem avisar e anunciou que me levaria para almoçar. Achei mais cômodo ir do que discutir com ele.

— O que ele queria?

— Vou lhe contar, embora isso não seja da sua conta — disse Amanda, desmentindo aquelas palavras com um sorriso.—Ele queria reatar o nosso relacionamento. Eu disse que isso estava fora de questão, é claro. O máximo que Edward e eu podemos ser é amigos... e estou começando a duvidar disso também. Ele tem suas qualidades, mas também sabe ser um bocado aborrecido.

— Ele é um canalha.

Amanda riu.

— Você não é a pessoa mais indicada para avaliar isso. Não se deu bem com Edward desde que o conheceu.

— Acha isso surpreendente? Nós dois queremos a mesma mulher. Parecendo um tanto atrapalhada ao ouvir aquelas palavras, Aman­da tossiu.

— Seja como for, ele aceitou a minha rejeição sem criar nenhuma cena e foi embora depois de me beijar na face. Não estou convencida de que desistiu por completo, mas acho que finalmente está come­çando a perceber que o que havia entre nós dois está acabado.

— Avise-me se ele voltar a perturbá-la. Terei uma conversa com aquele cretino.

— Você não vai fazer nada disso, Jon — disse Amanda, passando a falar mais vagarosamente. — Além disso, nem estará aqui, já que voltará para Seattle na segunda-feira.

Jon não disse nada. Sentiu um súbito aperto na garganta que o impediu de falar.

— Depois eu vim para casa e vi o carro de Howard — ela pros­seguiu, com forçada tranqüilidade. — O resto você sabe.

— Você está mesmo preocupada com a possibilidade de que aquele palhaço abra um processo judicial, não é? Ele não tem a menor chance de conseguir a custódia de A.J., e sabe muito bem disso.

— Mas pode causar outros problemas — reconheceu Amanda.

— Aubrey... isto é, AJ. já passou por traumas demais. Ainda está se recuperando da morte dos pais, aprendendo a confiar no que eu sinto por ele, finalmente começando a fazer amigos e a pensar em brincadeira próprias para um menino. Howard o deixa triste, diz coisas que o perturbam. Bem que eu queria mantê-los longe um do outro.

— Então faça isso — recomendou Jon, com absoluta simplicidade.

— Não tem nenhuma obrigação de permitir as visitas de Howard se a presença dele perturba o garoto. Howard não tem o direito de interferir na vida de A.J., já que a custódia é exclusivamente sua. Diga isso a ele. Ou melhor, comunique por meio de um advogado.

— Talvez eu devesse fazer isso. Sempre pensei que seria um trauma para A J. afastá-lo do único parente materno, mas estou co­meçando a achar que seria a melhor saída. Afinal de contas, minha cunhada e o irmão nunca foram muito chegados. Wanda e Howard raramente se viam. O interesse dele no sobrinho só se manifestou depois do desastre.

— Você está querendo dizer depois que AJ. herdou a fortuna do pai, não é?

— Infelizmente, sim.

— Então afugente o canalha.

— Provavelmente é o que vou fazer... quando tudo se ajeitar. Mas quando será isso, Amanda? Onde você irá viver? Ainda pensará em mim? As perguntas estavam na ponta da língua de Jon, mas ele preferiu não pronunciá-las. Amanhã, ele se lembrou. Ainda havia algumas horas daquela noite para aproveitar.

Jon não saberia dizer o que o acordou bem depois da meia-noite. Talvez a consciência de que precisava voltar para o próprio quarto antes que o resto da casa despertasse, ele supôs, pensando sem en­tusiasmo na cama vazia que o esperava. Amanda dormia silencio­samente e ele até pensou em acomodar-se novamente ao lado dela. Se fizesse isso, porém, havia sempre a possibilidade de que dormisse até bem tarde.

Depois de se vestir e sair silenciosamente do quarto, Jon caminhou pelo corredor. Quando se aproximou do quarto de Aubrey, achou que devia dar uma olhada. Ora, mas que bobagem. A casa estava toda trancada e ele próprio havia se certificado disso. Só que naquele momento Jon tinha uma estranha sensação, uma espécie de pressen­timento que às vezes o assaltava. Talvez fosse a iminente separação de Amanda ou...

Bem, não custava nada olhar no quarto do menino. Jon empurrou a porta, atravessou o quarto e segundos mais tarde olhava fixamente para a cama vazia.

Nada de pânico, ele pensou, voltando-se para o banheiro. O garoto deve estar em algum lugar.

Aubrey não estava no banheiro.

— A cozinha — lembrou-se Jon, pensando na noite em que o menino havia surpreendido ele e Amanda num lanche noturno clan­destino.

Aubrey também não estava na cozinha. Nem na sala de visitas, no vestíbulo, na sala de estar ou em qualquer dos outros lugares da casa em que Jon conseguiu pensar. E o pior: o sistema de alarme, que ele próprio havia ligado, agora estava desconectado. A porta da frente nem estava trancada.

Jon subiu correndo a escada e sacudiu Amanda para acordá-la, com mais impaciência do que cuidado.

Esfregando os olhos como uma criança, ela demorou alguns se­gundos para despertar e olhar para ele.

— Que horas são? O que foi?

— São duas da madrugada. Aubrey desapareceu.

— O quê?! — exclamou Amanda, sentando-se e cruzando os braços. — Tem certeza?

— Tenho certeza — respondeu Jon. — A cama dele está vazia, o sistema de alarme foi desligado e a porta da frente estava des­trancada. Vou dar uma olhada lá fora. Dê uma busca na casa... ainda não olhei no quarto da sua mãe. Se não o encontrar, ligue para a polícia.

Amanda vestiu-se rapidamente. Estava pálida e trêmula, mas con­trolada. Jon desejou ter tempo para confortá-la com um abraço, mas naquele momento a primeira preocupação era Aubrey.

A noite estava nublada e escura. A pequena lanterna que Jon levou ajudou pouco, mas foi suficiente para que ele visse que o menino não estava no jardim. O portão estava trancado. O sistema de abrir e fechar era eficiente, mas fazia um razoável baralho. Mesmo que alguém estivesse de posse de um controle, não teria entrado por ali sem que ele ouvisse. Então como...

Jon se lembrou da tarde em que Aubrey e Nathan haviam saído da propriedade.

— Droga! — ele esbravejou.

Tinha sido um idiota ao pensar que os meninos haviam retornado pelo portão. Os dois certamente tinham saído e entrado por alguma passagem nos fundos da propriedade. Naquela tarde, pensando apenas nos próprios sentimentos por Amanda, ele não havia pensado naquela possibilidade.

Amanda estava ao telefone da sala quando Jon retornou à casa. Eleanor mantinha-se de pé ao lado da filha, de chinelos e vestindo um longo robe de cetim. Não tinha um único fio de cabelo fora de lugar, nenhum sinal de transtorno no rosto a não ser uma leve palidez nos lábios.

— Já liguei para a polícia — anunciou Amanda. — Aubrey não está na casa.

— Também não está lá fora — respondeu Jon. — A menos que tenha se escondido, o que seria absurdo. Você tem o telefone da casa de Terry?

— Tenho. Por quê?

— Disque o número — ordenou Jon, aproximando-se para pegar o telefone quando a ligação se completasse,

Amanda obedeceu, discando os números e entregando a ele o receptor.

Uma sonolenta voz feminina atendeu no outro lado da linha, apa­rentemente preocupada com aquele chamado no meio da noite. Jon pediu para falar com Terry e instantes mais tarde ouviu a voz do motorista.

— Jon? O que aconteceu?

— A.J. desapareceu. Alguém entrou na casa, burlando o sistema de segurança. Provavelmente tinha uma chave e o código secreto.

Fez-se uma breve pausa antes que Terry voltasse a falar.

— Não tive nada a ver com isso, Jon.

— Eu sei, droga — disse Jon, com impaciência.

O envolvimento de Terry era um pensamento que jamais havia passado pela cabeça dele, embora talvez devesse. Além de Jon e dos membros da família, apenas Terrence e Roseanne conheciam o código secreto. Eleanor havia insistido para que eles tivessem essa informação. Apesar de estar ali há apenas uma semana, Jon não vira motivos para duvidar de nenhum dos dois.

— Preciso saber como os garotos saíram da propriedade ontem à tarde — ele explicou. — O portão ainda está trancado. Alguém deve ter entrado por outro lugar.

Terrence pareceu aliviado com a confiança declarada de Jon, mas não soube responder à pergunta.

— Eu pensei que eles haviam saído e entrado pelo portão, que ontem à tarde ficou aberto quase o tempo todo.

— É, eu também pensei isso — culpou-se Jon. — Mas lembro-me agora de que, quando reapareceram, eles vieram dos fundos da pro­priedade, e não do lado do portão.

— Espere um pouco. Vou perguntar a Nathan. Mantendo o fone no ouvido, Jon olhou para Amanda.

— Os tiras logo estarão aqui. Vá abrir o portão para eles. Ela saiu no instante em que Terry retornou à linha.

— Há uma abertura no muro dos fundos da propriedade, no lado leste — num tom sério. — Fica escondida por arbustos, mas Aubrey devia saber disso, porque mostrou a Nathan. Estou indo para aí, Jon.

Jon não procurou dissuadi-lo. A ajuda daquele rapaz nunca seria desprezível.

— Obrigado, Terry.

Mal Jon desligou o telefone, chegaram dois policiais, que passa­ram a conferenciar com ele como se fosse um membro da família, e não apenas um visitante vindo de outra cidade. Procurando não ficar ressentida com aquilo, Amanda pôs-se a caminhar de um lado para outro. Era terrível pensar na possibilidade de perder Aubrey, justamente agora, quando estava começando a se entender com ele.

Pouco depois chegou Terrence, vestindo calça jeans, camiseta e tênis. Imediatamente os policiais começaram a fazer perguntas e ele, como se estivessem tratando com um suspeito, mas a firmeza de Jon os convenceu da lealdade do rapaz à família.

— Ninguém ouviu nada? — perguntou o mais jovem dos policiais, que tinha no uniforme uma tarja identificando-o pelo nome Murphy.

Amanda e Eleanor balançaram a cabeça.

— Não — respondeu Jon, com um ar de desalento.

Amanda sabia que ele se culparia por ter estado no quarto dela quando podia estar mais perto de Aubrey. Queria tranquilizá-lo, dizer que ele não tinha a menor responsabilidade pelo que havia aconte­cido, mas naturalmente não podia falar na frente dos outros.

— Tenho certeza de que Howard Worley tem alguma coisa a ver com isso — declarou Eleanor, com os olhos fuzilando só de pensar naquela possibilidade. — Insisto que vocês devem mandar alguém para interrogá-lo imediatamente.

Aquilo, naturalmente, exigia uma explicação. Quando ficou sa­bendo das ameaças que Worley fizera naquela tarde, Murphy con­cordou que ele era um suspeito. Ligou para a central de polícia e pediu que se providenciasse para que Worley fosse imediatamente interrogado sobre o desaparecimento de Aubrey. Esclareceu, porém, que nada mais efetivo podia ser feito enquanto não se tivesse algo mais concreto, um bilhete, um pedido de resgate, alguma coisa pro­vando que o menino não havia apenas fugido com as próprias pernas. O jovem policial apressou-se em garantir que não acreditava que Aubrey tivesse feito aquilo, mas os superiores dele certamente con­siderariam a possibilidade. Afinal de contas, era muito freqüente meninos daquela idade fugirem de casa.

— Não o garoto em questão — garantiu Jon, frustrado.

— Tem certeza de que o sistema de alarme estava ligado? — perguntou Murphy.

— Claro. Eu mesmo liguei.

Os dois policiais não pareceram ficar com dúvida a respeito da­quilo.

— Alguém, Worley ou seja lá quem for, tinha uma chave — concluiu o outro policial, chamado Catlett.

— Provavelmente — concordou Jon. — E os quatro dígitos do código secreto.

— Que pessoas têm a chave do sistema?

— Mamãe e eu — respondeu Amanda. — Além de nós duas, Terrence e a nossa governanta, Roseanne Wallace. Foi feita também uma cópia para Jon usar enquanto estiver aqui.

— Vamos ver todas as chaves — sugeriu Murphy. — Alguém por favor chame a governanta e peça que procure a chave dela.

— Eu a chamarei — ofereceu-se Eleanor. — Terrence, minha chave está na gaveta da mesinha do vestíbulo. Pegue-a, por favor.

Amanda pensou que encontraria a chave dela na bolsa, que deveria estar na mesinha do quarto. Não estava. Preocupada, tentou se lem­brar de onde poderia estar. O blazer que usara para trabalhar continuava jogado no encosto da cadeira, com as chaves do carro no bolso, onde ela sempre as deixava. Mas onde estava a bolsa?

Dez minutos mais tarde Amanda teve que admitir que houvesse per­dido a bolsa.

— E minha chave estava lá dentro — ela disse aos policiais, sob os olhares de todos os presentes.

— Então a sua chave é a única que está faltando — concluiu Jon. — Droga. Quando viu pela última vez a bolsa?

— Não me lembro.

— Pense, Amanda. Estava com ela quando saiu da loja?

— Eu estou tentando pensar! — ela rebateu, nervosa, levando as mãos às têmporas. — Desculpe, mas...

— Eu sei — disse Jon, apertando de leve o ombro dela. — Sei que está tentando. Imagine-se saindo da loja, Amanda. Estava com a bolsa?

Amanda viu a própria mão na porta da loja, viu-se girando na fechadura a chave que ficava no mesmo chaveiro com as do carro. Naquele momento estava com a jaqueta pendurada no braço. Será que levava a bolsa por baixo?

— Tenho certeza de que estava com ela quando fui almoçar com Edward — ela disse, pensando alto, lembrando-se de que, no res­taurante, havia passado batom nos lábios antes de voltar ao trabalho. — Depois disso... não sei se a deixei no carro. Estava com muita pressa. Mas... Edward esteve aqui depois do almoço — acrescentou Amanda, olhando para a mãe. — Por acaso ele disse que estava devolvendo a minha bolsa?

— Não, e ele nem chegou a dizer que vocês haviam almoçado juntos — respondeu Eleanor, evidentemente desaprovando as ações da filha. — Mas não é possível que Howard tenha apanhado a bolsa no meio daquela confusão, quando ficamos procurando por Aubrey e pelo filho de Terrence?

— É muito possível — concordou Jon, sério. — Ele será inter­rogado se estiver em casa, Eleanor. Se não estiver...

A frase ficou no ar e todos entenderam o que poderia significar a ausência de Howard àquela hora da madrugada.

Amanda sentiu-se compelida a levantar uma outra possibilidade.

— Também é possível que alguém tenha apanhado a bolsa no meu escritório da loja... ou que ela ainda esteja lá. Do contrário estaria na mesa do quarto, onde sempre a deixo. Como já disse, não me lembro mesmo de quando a vi pela última vez.

— Iremos até a loja para verificar — decidiu Jon, grato pela oportunidade de se pôr em movimento.

— É possível mesmo que alguém tenha pegado a bolsa e se apoderado da chave, mas... e o código secreto? — questionou Ter­rence, pensativo. — Por acaso Worley ou Miller a viram digitando o código, dona Amanda?

— Não, isso nunca aconteceu — ela respondeu.

— Você certamente não guardava em algum lugar da bolsa os números do código, não é? — inquiriu Jon, quase lamentando pensar numa possibilidade tão ridícula.

Amanda tossiu, sem responder, e ele arregalou os olhos.

— Ah, você não faria uma loucura dessa, não é? Diga que não foi tão descuidada, Amanda.

— Eu não consigo me lembrar de números — ela se defendeu. — Todos que me conhecem sabem disso... é uma espécie de bloqueio mental. Costumo escrever na minha agenda os números de que pre­ciso me lembrar ao lado de nomes fictícios. Apenas olhando ninguém pode saber o que eles significam. Qualquer pessoa pensaria tratar-se de números de telefones. Foi Edward que... — Amanda fez uma pausa, continuando depois mais devagar. — Um ano atrás Edward me sugeriu esse sistema. Eu achei uma boa idéia.

Jon marchou para a porta.

— Vamos. Pegue a chave da loja. Passaremos primeiro por lá.

— investigador Luck — chamou-o o policial Catlett. — Não se esqueça de que está fora da sua jurisdição. Por que não deixa que nós cuidemos disso?

— Só estou saindo para um passeio de carro, amigo — respondeu Jon, num tom suave. — Terry, fique aqui com Eleanor, está bem? E não saia de perto do telefone. Ligaremos para saber como estão as coisas.

Ignorando os protestos de Eleanor e mais recomendações dos policiais, Jon arrastou Amanda para fora da casa sem ao menos perguntar a ela se estava disposta a isso. Não que ela pensasse em se recusar. Como Jon, também sentia necessidade de fazer alguma coisa, qualquer coisa que não fosse ficar sentada esperando uma notícia do sobrinho.

A bolsa de- Amanda não estava no escritório ou em qualquer outro lugar da loja. Jon achou que eles nem precisavam ficar mais tempo ali.

— Acho que devemos fazer uma visitinha ao seu ex-noivo — ele sugeriu, enquanto eles saíam da loja.

— Você não pode estar pensando que Edward seqüestrou Aubrey — ela duvidou, sentando-se ao volante do carro. — Ele às vezes pode ser esnobe e importuno, mas não é talhado para esse tipo de coisa. Além disso, que motivos poderia ter, meu Deus?

— Por que não perguntamos a ele? — rebateu Jon, indicando o volante do carro com um gesto de mão. — Vamos?

 

Quando Edward abriu a porta do apartamento onde morava, com cara de quem havia acabado de se levantar da cama, Amanda não resistiu ao impulso de olhar para Jon com a expressão de quem perguntasse: «Eu não disse?» Vestindo um roupão atoalhado por cima do pijama de algodão, Miller olhou para os dois inesperados visitantes com ar de espanto.

— Amanda? Que diabo...

Sentindo um certo alívio por Edward aparentemente não estar envolvido no desaparecimento do sobrinho dela, Amanda tentou ex­plicar.

— Aubrey desapareceu, Edward. Nós achamos que alguém entrou na casa usando as minhas chaves. Eu perdi a minha bolsa e achei que talvez a houvesse deixado no seu carro depois do almoço de ontem.

— Aubrey desapareceu? — repetiu Edward, parecendo ainda mais perplexo. — Pobre Amanda... Você deve estar transtornada. Mas entre. Entrem os dois.

— Não podemos demorar — disse Amanda. Jon seguiu-a silen­ciosamente e fechou a porta. — Eu só queria saber se você tinha visto a minha bolsa depois que saímos do restaurante.

— Não — respondeu Edward, quase se desculpando. — Infeliz­mente não reparei na sua bolsa... ou na falta dela. Só estava prestando atenção em você, Amanda.

. Jon produziu um som gutural e Amanda lançou a ele um rápido olhar de advertência. Ele estava de pé perto da porta, ao lado de um antigo cabide vertical, as mãos no bolso do paletó que vestia por cima da calça de ginástica, o rosto muito sério.

— Desculpe se o perturbamos, Edward — ela pediu. — Agora precisamos ir.

— Avise-me se souber alguma coisa sobre o seu sobrinho, está bem?

— Sim, eu avisarei.

— Tem certeza de que não há nada mais que eu possa fazer? Amanda balançou a cabeça e deu um passo na direção da porta, impaciente para sair.

— Não, mas obrigada assim mesmo.

Edward segurou-a pelo ombro, o rosto muito perto do dela.

— Amanda, querida, sei o quando você deve estar sofrendo. E isso me deixa muito entristecido. Se houver alguma coisa que eu possa...

Nesse instante ouviu-se um barulho por trás deles e Amanda girou o corpo. Jon havia derrubado o cabide, mas ela não saberia dizer se ele tinha perdido o equilíbrio por causa da perna machucada ou se fizera aquilo de propósito, apenas para interromper a fala de Ed­ward. O cabide agora estava no chão, juntamente com uma capa de chuva e um blazer que antes sustentava.

— Desculpe, Miller — disse Jon, com fingida consternação, abaixando-se para desfazer a confusão que havia provocado. — Eu sou um desastrado.

Edward moveu-se rapidamente naquela direção.

— Eu cuidarei disso.

Jon já havia segurado o blazer pela bainha e levantou-o. Alguma coisa caiu no lustroso assoalho de madeira, provocando um som surdo. Amanda abriu muito os olhos.

— Edward? O que está fazendo com a minha agenda? Durante três segundos os visitantes ficaram olhando fixamente para o dono da casa, que agora estava muito pálido. Logo depois Amanda voltou à carga.

— Como explica isso, Edward?

Ele fez um movimento, talvez uma tentativa de sair correndo, mas não conseguiu dar mais de três passos. Jon alcançou-o com um salto que não deve ter feito bem à perna ainda em recuperação.

Perplexa diante das implicações que tinha o fato de a agenda dela estar em poder de Edward, Amanda ficou olhando enquanto o ex-noivo dela resistia ao ataque, revigorado pelo desespero. A luta foi terrível, mas depois de um tempo felizmente curto Jon estava sentado no peito de Edward, com as mãos na garganta do homem deitado.

— Onde está o menino, Miller?

— Eu não sei do que você está falando — rebateu Edward, res­pirando com dificuldade.

Jon puxou o pescoço do homem para cima e voltou a empurrá-lo para baixo, o que fez com que a cabeça de Edward batesse fortemente no chão de madeira. Dois gritos ecoaram ao mesmo tempo: o de Edward, de dor; e o de Amanda, de protesto. Jon ignorou os dois, com os olhos fixos no rosto contorcido do adversário, que agora estava muito vermelho em conseqüência do aperto na garganta.

— Onde está o garoto? — repetiu Jon, num tom que fez Amanda sentir um arrepio.

Edward deve ter percebido que não adiantava resistir.

— Aubrey não sofreu nada — ele declarou, quase sufocado, agar­rando os pulsos de Jon. — Pelo amor de Deus, Amanda! Tire-o de cima de mim!

Amanda respirou fundo e aproximou-se um passo.

— Onde está Aubrey, Edward? O que você fez com ele?

— Eu lhe contarei, juro, mas faça com que esse homem me solte. Amanda colocou a mão no ombro enrijecido de Jon.

— Afrouxe um pouco para que ele fale, Jon. Se não ouvirmos o que precisamos saber, faça com ele o que achar melhor.

Edward arregalou os olhos, como se não quisesse acreditar na frieza que a ex-noiva dele acabava de demonstrar. Depois daquilo nem pôde falar tão rapidamente quanto eles dois queriam.

Pelo menos numa coisa Amanda tinha razão: Edward não era talhado para aquele tipo de coisa.

Enquanto vivesse Jon não esqueceria a expressão que viu no rosto de Aubrey quando a polícia invadiu o miserável barraco no lado oeste de Memphis onde o menino era mantido em cativeiro. Os policiais insistiram para que Amanda aguardasse a uma certa dis­tância até que os seqüestradores fossem dominados, mas não conseguiram convencer Jon a esperar no carro. Felizmente o homem e a mulher que tomavam conta do garoto foram presos sem dificuldade, embora tivessem o desplante de, em altos brados, protestar inocência. Ainda vestindo o pijama, Aubrey debulhou-se em lágrimas de puro alívio quando saltou nos braços de Jon.

Amanda entrou no instante em que recebeu permissão.

— Aubrey! — ela gritou, com o rosto molhado de lágrimas. Sem hesitação, o menino soltou-se de Jon e correu para receber o abraço da tia. Tocado pela visível emoção que dominava aqueles dois, Jon permaneceu por perto, esforçando-se para suportar o latejar que sentia na perna.

Havia sentido uma dor aguda ao se lançar sobre Miller. Tinha imaginado que, desde que não desse atenção, aquilo acabaria pas­sando. Mas a verdade era que a dor aumentava a cada minuto.

Jon trincou os dentes, procurando se convencer de que não tinha tempo para pensar na dor da perna. Naquele momento só o garoto importava.

— Tem certeza de que está bem, A.J.? — ele perguntou, colocando a mão no ombro magro do menino. — Eles não o machucaram?

— Estou com dor de cabeça — admitiu Aubrey. — O homem que me tirou da cama pôs uma coisa no meu rosto e eu desmaiei. Quando acordei estava aqui, com aqueles dois olhando para mim. Mas eu sabia que vocês me encontrariam.

A confiança que Jon percebeu na voz do menino o deixou com um nó na garganta.

— Agora vamos levá-lo para casa, Aubrey — disse Amanda, que não queria soltar o sobrinho, como se naquele momento o contato físico com ele lhe fosse vital. — Nunca mais ninguém fará uma coisa assim com você.

Depois de olhar rapidamente para Jon, ela se voltou e começou a caminhar para a porta.

Jon tentou segui-los. Conseguiu dar dois passos antes de sentir uma dor que quase o fez desmaiar.

Encostado na cabeceira da cama no quarto da mansão Hightower, Jon olhou com desânimo para o gesso que imobilizava a perna dele do meio da coxa até o tornozelo. Como resultado do confronto com Edward Miller, vira-se obrigado há passar dois dias e duas noites num hospital de Memphis, submetendo-se a cirurgias para recuperar os ligamentos novamente rompidos. Recebendo alta, teria que ficar alguns dias em convalescença sob os cuidados dos Hightower.

O seqüestro havia sido executado pelo homem preso no barraco, um experiente assaltante recentemente saído da prisão. Ele entrara na casa sem dificuldade, usando a chave e o código extraído da agenda de Amanda, tudo isso fornecido por Edward. A mulher dele era a mesma que havia abordado Aubrey na biblioteca. Agora es­tavam os dois na prisão, aguardando julgamento.

Também preso, Edward Miller, autor intelectual da ação, culpava Amanda pela participação dele no seqüestro. Cheio de amargura, afirmava que fora levado àquilo ao ser rejeitado por ela quando o casamento parecia certo. Segundo Miller, Amanda o fizera acreditar que nunca mais precisaria se preocupar com dinheiro. Era culpa exclusivamente dela ele ter assumido tantas dívidas por conta da fortuna que teria à disposição quando se casasse.

Já era fim da tarde de quinta-feira, cinco dias depois do resgate de Aubrey, e Jon era paparicado e tratado como um verdadeiro herói. Devolver Aubrey Hightower aos braços amantíssimos da família ga­rantiria a qualquer um o lugar de honra naquela mansão, mas ele certamente se sentira mais à vontade quando era apenas um hóspede ali, sem aquele exagero de atenções.

Uma leve batida na porta fez Jon levantar a cabeça, desconfiado. Se fosse Roseanne com mais uma bandeja de doces e frutas, ou a mãe dele, que chegara a Memphis no dia seguinte ao resgate de Aubrey para visitar a amiga e cuidar do filho herói, ou, pior, Eleanor, com a insuportável solicitude e gratidão...

— Quem é?

— Amanda. Jon relaxou.

— Entre.

Amanda abriu a porta e espiou para dentro, hesitante. Jon fez um gesto para que ela entrasse.

— Rápido. Feche a porta para que ninguém entre atrás de você. Amanda sorriu e fechou a porta. Depois caminhou até bem perto da cama, ficando ali com as mãos juntas diante do corpo. Era a primeira vez que ficavam a sós desde a madrugada do domingo.

— Como está A.J.? — perguntou Jon, procurando distrair a mente da lembrança do que havia acontecido antes que ele saído da cama de Amanda.

— Está bem. Ele e Nathan estão lá embaixo, na sala de estar, brincando com o videogame. Eu nem sabia que Aubrey tinha um videogame.

Jon lembrou-se da caixa escura que vira no quarto do menino, no dia em que chegara àquela casa, mas preferiu não comentar o assunto.

— Sente-se. Você me parece exausta.

Amanda sentou-se na beirada da cama e suspirou.

— Estou um pouco cansada — ela admitiu. — Tive um dia cheio.

— Então me conte,

— Sua perna está doendo?

— Não — ele mentiu. — Não se preocupe com isso. Amanda sorriu, descrente.

— Você não me diria se ela estivesse doendo, não é?

— Não — confessou Jon, retribuindo o sorriso, satisfeito por constatar que o ar de sofrimento que vira nos olhos dela nos últimos dias havia desaparecido.

— O machão incorrigível.

— Incorrigível — concordou Jon, segurando na mão dela. Amanda entrelaçou os dedos nos dele.

— Não posso parar de pensar que você se machucou para salvar Aubrey. Sei que não agüenta mais ouvir isso, mas tenho que repetir. Obrigada, Jon, por tudo.

— De nada — ele respondeu. — Agora vamos mudar de assunto. — Sobre o que gostaria de conversar? — ela perguntou, sorrindo.

— Sobre nós.

O sorriso de Amanda vacilou.

— Nós? O que sobre nós?

— Você só pode estar louca se pensa que eu vou voltar para Seattle daqui a alguns dias e esquecê-la por completo — disse Jon, inquieto. — A vida inteira venho procurando por alguém como você, Amanda Hightower. Agora que a encontrei, não vou deixar que se livre de mim com essa facilidade.

Amanda havia relaxado o aperto dos dedos na mão dele. Jon esperava que aquilo significasse mais surpresa do que resistência.

— E então? — ele inquiriu, quando ela não deu resposta. Cada vez mais inquieto, Jon sentiu vontade de tomá-la nos braços e dizer que em hipótese nenhuma abriria mão dela. Aquela mulher pertencia a ele, droga! Isso já estava decidido... pelo menos na cabeça dele.

— Eu... não sei o que você quer que eu diga — murmurou Aman­da.

— Podia começar dizendo que não quer que eu vá embora e a esqueça.

Amanda fechou e abriu os olhos várias vezes e ele pensou ver um brilho de lágrimas naqueles olhos castanhos. Tristeza? Jon sentiu um aperto no peito.

— Amanda?

— Eu não quero que você vá embora — ela declarou, em voz baixa, ao mesmo tempo em que desviava os olhos dos dele. — Acho que nunca poderia querer que você fosse embora. Mas...

Aliviado, Jon apertou os dedos dela.

— Eu a amo — ele declarou, num rompante.

Eram palavras que há muito tempo não dizia a uma mulher, pa­lavras que jamais havia pronunciado com tanta convicção.

Agora havia de fato lágrimas nos olhos dela. Ele só não saberia dizer se eram de alegria ou tristeza.

— Mas você nem me conhece — conseguiu dizer Amanda. — Não se passaram nem duas semanas.

— Eu a conheço o suficiente. Não sou um menino, Amanda. Sei muito bem o que quero. E quero você. Um futuro com você. Uma família.

— Mas... o que vamos fazer com Aub... com A.J.? Preciso pensar nele em primeiro lugar, Jon. Espero que entenda isso.

— Caso ainda não tenha reparado, eu sou louco pelo gênio mirim que é aquele seu sobrinho, Amanda Hightower. A proposta se estende aos dois?

— Proposta? — balbuciou Amanda.

— De casamento. Sabe como é: aliança no dedo, viver sob o mesmo teto, empurrar carrinho de bebê, essas coisas.

Amanda engoliu em seco.

Outra vez apreensivo, Jon usou as duas mãos para apertar a dela.

— Ouça: eu sei que isto está acontecendo depressa demais, sei que você não teve tempo para pensar... Droga! Estou fazendo uma confusão danada, não é? Vou lhe dar tempo, Amanda. E estou dis­posto a fazer o que você quiser: mudar-me para Memphis, namoro a distância... Só sei que não posso lhe dizer adeus.

— Jon, eu...

— Jon, você... Oh, desculpem. Eu voltarei mais tarde. Aubrey deu apenas um passo para dentro do quarto, mas começou a recuar. Jon nem tinha ouvido a porta se abrir. Amanda aparente­mente também não.

— Não, vá entrando — disse Jon, gesticulando para o menino.

— Eu devia ter batido — recriminou-se Aubrey, olhando alter­nadamente para Jon e Amanda. — Nathan foi embora e eu queria saber se você estava bem.

— Estou bem, sim — respondeu Jon. — Agora venha cá. Aubrey aproximou-se da cama, examinando a expressão séria de­les dois.

— Algum problema?

— Eu acabei de pedir a mão da sua tia — precipitou-se Jon. — O que acha disso?

Tanto Aubrey quanto Amanda ficaram boquiabertos.

— Pediu a mão dela? Em casamento?

— É claro que pedi a mão dela em casamento. Você faz alguma objeção?

— Não, senhor! — respondeu o menino, com os olhos brilhando. — Isso faria de você meu tio. Eu gostaria muito.

— Eu também — garantiu Jon, ainda segurando a mão gelada de Amanda. — Estava aqui justamente esperando uma resposta.

Aubrey voltou-se para a tia, espantado com a possibilidade de que ela não houvesse aceitado prontamente o pedido.

— A senhora não quer se casar com Jon? Amanda respirou fundo e fixou os olhos nos de Jon.

— Quero, sim — ela disse, numa voz calma e sincera. — Eu quero muito me casar com Jon, mas...

— Está preocupada comigo, não é? — interrompeu-a Aubrey, agora parecendo abatido. — Não deve ficar, tia Amanda. Prometo que não vou lhe causar nenhum problema. Além disso, no ano que vem irei para um colégio interno.

— Colégio interno? — repetiu Jon, incrédulo. — De onde tirou a idéia de que vai para um colégio interno, homem?

Aubrey tossiu e ficou olhando para os sapatos.

— Era o que o meu pai queria que eu fizesse. Há em Maryland uma escola para crianças bem-dotadas e meu pai pretendia me mandar para lá quando eu completasse dez anos. Ouvi vovó dizer que ela e tia Amanda farão cumprir o currículo que meus pais estabeleceram para mim.

Jon voltou para Amanda os olhos muito abertos.

— Vai mesmo fazer isso?

— É claro que não — ela respondeu, enfática. — Não se Au... se A.J. não quiser ir. Naturalmente eu sabia dos planos do meu irmão nesse sentido, mas pretendia consultar A.J. antes de tomar uma decisão tão importante. E esperava que ele resolvesse ficar co­migo.

Aubrey levantou a cabeça, agora com a expressão iluminada.

— Quer dizer que não serei obrigado a ir, se não quiser? Posso ficar com a senhora e Jon?

Amanda estendeu para ele a mão que Jon não segurava.

— É claro que pode, querido! Oh, Aubrey... Estava com medo de que eu o mandasse embora?

O menino confirmou com a cabeça.

— Tio Howard disse que eu só atrapalharia quando a senhora quisesse ter a sua própria família. Disse que eu certamente seria mandado para um internato.

— Seu tio Howard só tem titica de galinha na cabeça — declarou Amanda, num jeito de falar que era bem pouco próprio dela. Aubrey riu ao ouvir aquilo.

— Ela tem razão, porque é isso o que Howard tem naquela cabeça careca — secundou-a Jon. — Além disso, depois que nós três nos mudarmos para Seattle, você não precisará mais se preocupar com ele.

— Nós vamos nos mudar para Seattle? E vovó? E a loja de tia Amanda?

Jon olhou para Amanda.

— Talvez acabemos ficando mesmo em Memphis — ele se cor­rigiu, percebendo que estava fazendo previsões um tanto apressadas.

— Se for essa a nossa decisão, eu posso arranjar um trabalho na polícia daqui. Mas acho que a sua avó continuaria vivendo muito bem se nós nos mudássemos para lá, e a sua tia poderia abrir uma outra loja em Seattle. Conversaremos sobre essas opções depois de tomarmos algumas decisões. Nós três. É assim que deve agir uma família.

Aubrey apressou-se em se pronunciar a respeito.

— Acho que gostaria de Seattle.

— Tenho certeza que sim, mas discutiremos isso mais tarde. Ago­ra... vá até a cozinha e veja se Roseanne lhe arranja um lanchezinho gostoso. — Dizendo aquilo Jon sorriu e piscou o olho para o menino.

— Não precisa ter pressa em voltar, A.J.

Aubrey riu novamente, parecendo mais feliz do que nunca. Num impulso, debruçou-se sobre a cama e abraçou Jon.

— Até mais tarde, tio Jon — ele disse, correndo para fora do quarto antes que Jon pudesse responder.

Jon ficou olhando para a porta, com um meio sorriso nos lábios.

— Eu gosto um bocado desse garoto.

— Eu também — disse Amanda, tocada, limpando os olhos com a ponta dos dedos.

Jon segurou nos ombros dela e puxou-a para bem perto.

— Você... tem certeza, Amanda? Será que não a estou forçando a fazer uma coisa para a qual ainda não se sente pronta?

— Eu o amo, Jonathan Luck — ela declarou, finalmente pronun­ciando as palavras que ele tanto queria ouvir. — Quero me casar com você. E não estou sendo forçada, pode acreditar.

— Qual será a reação dá sua mãe quando souber disso? Amanda riu daquela preocupação.

— Desde que você resgatou Aubrey, mamãe não tem feito outra coisa que não seja me empurrar para os seus braços, Jon. Ela o considera um herói.

Jon mexeu-se na cama, embaraçado.

— Ainda estou muito longe disso. Mas serei um bom marido para você e um bom pai para A.J. e os outros que vamos ter. Isso eu juro.

— Eu acredito.

Jon apertou-a contra o peito.

— Como pude ter tanta sorte assim? — ele murmurou, beijando-a na boca.

Um bom tempo se passou antes que Jon erguesse a cabeça, fazendo cara feia.

— Ah, não.

Com os olhos brilhando e um sorriso nos lábios molhados, Aman­da olhou com curiosidade para ele.

— O que foi?

— Parece que fiquei devendo um outro favor a mamãe. Só Deus sabe o que, ela não vai me pedir agora.

Amanda riu do desalento que havia na voz dele.

— Se isso lhe serve de consolo, saiba que eu é que ficarei devendo muitos favores a ela, por tê-lo mandado a Memphis.

— Pois acredite que ela cobrará tudo direitinho.

Ainda sorrindo, Amanda segurou no rosto dele com as duas mãos.

— Não vamos nos preocupar com isso. Duvido que ela nos peça mais do que estejamos dispostos a dar.

Retornando com entusiasmo ao beijo, Jon achou melhor esperar até que estivesse casado com Amanda para explicar umas certas coisas à mãe. Não queria abusar da sorte.

 

 

                                                                  Gina Wilkins

 

 

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