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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O PORTÃO DO PARAÍSO / Giselda Lapola Nicolelis
O PORTÃO DO PARAÍSO / Giselda Lapola Nicolelis

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

Meu nome é Taís e tenho treze anos. Antes eu não gostava desse nome. Mas a minha vida mudou tanto!

Por isso resolvi escrever este diário, só pra desabafar. Ninguém pode ler além de mim. Tenho uma história pra contar que até parece coisa de filme, de novela ou romance.

No ano passado, quando eu tinha doze anos, estudava numa escola municipal. Eu gostava da escola, principalmente por causa da merenda.

Nunca teve muita fartura aqui em casa, não. O pai vive de bicos. Ele tá na caixa do Inamps desde que sofreu um acidente: era pedreiro e caiu do andaime. Só que a caixa paga uma miséria, então o pai sai por aí fazendo bicos. Pinta parede, cuida de jardim, essas coisas.

A mãe olha os bebês das vizinhas que trabalham fora. Ela cobra por mês e olha várias crianças. Ela faz isso agora pra ficar em casa. Antes trabalhava de faxineira, saía cedinho e só voltava de noite. Tomava umas quatro conduções por dia, um suplício. A vida dela mudou muito também.

Mas deixa eu começar bem do começo. Eu ia na escola, como falei, estava na quinta série. Era até boa aluna, sabe? Tinha umas matérias de que eu não gostava muito, como Matemática. Minha escola tinha sala de leitura. A gente podia ler à vontade e até levar os livros da biblioteca circulante pra casa.

De certa forma, eu era até feliz. Minha vida era ir pra escola, voltar pra casa, preparar a janta pra mãe que chegava, moída de cansaço, esperar o pai voltar do trabalho. Os meus dois irmãos, o Emerson e o Vânderson, iam direto do trabalho pra escola noturna. Eles sempre foram muito esforçados. A mãe vivia dizendo: "Cuidado com má companhia, que por aí tá cheio. Olha, que a polícia atira primeiro e pergunta depois".

A mãe estava coberta de razão. Carecia mesmo tomar muito cuidado. Além da polícia ir atirando logo, confundindo marginal com gente boa, tinha também a turma do Mané Quim, um justiceiro famoso aqui no bairro.

 

 

 

 

Vou explicar pra você, meu diário, o que é justiceiro. Alguns comerciantes, geralmente da periferia, contratam uns caras, que chamam de "justiceiros", pra matar os assaltantes de bares, padarias, lojas...

Só que, no fundo, os justiceiros são também bandidos e começam a matar a torto e a direito, só por prazer, então, de ouvir dizer: "Aquele é traficante de drogas, o outro rouba carro, aquele assalta casa", e por aí... Então morre gente inocente, como o Zeca da dona Margarida: ele vinha voltando da escola quando levou um tiro bem no meio da testa, foi confundido com marginal. Não deu nem pra dizer "ai". Ficou jogado no meio da rua, feito cachorro atropelado. E teve outros como ele.

Mas tô desviando o assunto, quero mesmo é falar da minha vida. Eu tinha muitas colegas lá na escola, mas amigas mesmo eram a Deolinda, a Miracê e a Cejana. Todas da minha idade.

A gente vivia colecionando fotos de artistas de cinema, de tevê e de cantores de rock... Fizemos até um fã-clube do nosso cantor preferido. Às vezes, dava pra pegar um cineminha no domingo de tarde, em algum shopping, quando sobrava dinheiro, claro. O que mais a gente fazia mesmo era ver tevê e jogar conversa fora. Ah, também gostava muito de colecionar papel de carta, mas ficou caro demais — então nós paramos, porque só dava pra trocar, e coisa repetida perde a graça.

Quase não tenho visto mais a Miracê, a Deolinda e a Cejana. Elas vieram aqui na minha casa poucas vezes. Estou assim meio sem amigas...

Às vezes, me dá uma saudade do tempo em que eu vivia numa boa, da casa pra escola e da escola pra casa... Eu tinha tantos sonhos!

As minhas amigas também. A Miracê queria ser artista de tevê. A Deolinda sonhava ser modelo. Eu morria de rir, porque ela é gordinha e baixinha. Mas ela jurava de pé junto que ia fazer regime e crescer... E virar top model de capa de revista, famosa no mundo inteiro, eu que esperasse pra ver.

A Cejana queria ser médica, mas ia ser difícil realizar o sonho, porque a família dela é tão pobre quanto a minha. Cadê dinheiro pra fazer cursinho e conseguir entrar na faculdade? Ela era a mais estudiosa de nós quatro. Dizia que só ia casar depois de formada, e nem queria saber de penca de filhos igual à mãe dela, que tem seis.

Todo mundo me achava bonita, um corpo quase de moça: cabelo comprido, preto e liso, e olhos claros que puxei de um avô, que, dizem, era alemão de olhos azuis. Sou de estatura média, tenho um metro e sessenta, faz tempo que eu medi na escola. Sabe, meu diário, eu pensava que sabia das coisas e, depois, descobri que não sabia é nada!

 

Um dia, o pai recebeu uma carta, do irmão lá do norte, dizendo que um filho dele (sobrinho do pai) ia vir pra São Paulo. Ele precisava trabalhar pra ajudar a família, e não conseguia emprego. E pedia pra ele morar lá em casa.

O pai não gostou muito da idéia. Ouvi ele conversando com mãe:

— Que é que você acha, Carminda? Já temos cinco bocas aqui em casa pra sustentar, e agora vem mais um moço que deve comer por dois...

— Ele vai trabalhar, não vai? — disse a mãe. — Então ajuda nas despesas. Pode dormir com os meninos...

O pai girou os olhos de um jeito engraçado:

E tem a menina aí, a Taís. Tá ficando mocinha. Irmão é diferente, mas primo dentro de casa...

Credo, José, que malícia! A Taís é quase uma menina. Imagine se o moço vai mexer com ela... É filho do seu irmão, homem. É quase irmão dos meninos...

É, não sei se posso negar isso pro mano — respondeu o pai, e foi dormir.

No dia seguinte escreveu pro tio dizendo que o primo podia vir. Mas que ficasse sabendo: a casa tinha muita disciplina. O rapaz não pensasse que estaria morando em pensão de moço, essas confusões.

Um mês depois o primo chegou. A gente foi buscar ele na rodoviária, senão ele nunca ia achar a nossa casa, num bairro tão distante de periferia.

Quando vi o Gelcimar, até levei um susto: ele parecia um galã de televisão, um gato. Como o nosso avô era o mesmo, o tal alemão, ele tinha olhos bem azuis e cabe los castanhos.

Ele pegou na minha mão e disse:

— Oi, Taís, você é mais bonita que na fotografia.

Ué, você tem fotografia minha? — perguntei, um friozinho correndo na boca do estômago. Até a minha boca estava seca.

Claro que tenho, o tio mandou — disse ele, e sorriu com uns dentes bem bonitos. Tinha uma falha assim do lado direito, mas não atrapalhava nada, nadinha mesmo.

Enquanto a gente voltava pra casa, o Gelcimar olhava tudo, entusiasmado:

Puxa, que cidade grande, seo! Nunca vi um mundaréu de carro desse jeito. E como tem gente na rua!

Também, você veio de uma cidadica de nada — ria a mãe. — Dá pra conhecer todo mundo lá, não dá?

Todo mundo — concordou o Gelcimar. — Lá todos sabem da vida dos outros: quem nasceu, morreu, fugiu...

— Fugiu? — estranhei.

E, fugiu — continuou o primo. — Às vezes, tem casal de namorado que foge...

Que conversa mais boba — interrompeu o pai. — Como é que vai a cunhada, o mano?

Mãinha tá boa; painho também — disse o primo. — Mandam muitas lembranças. E um presente também. Uns doces, que a mãe faz, que são uma delícia... Se não derreteram pelo caminho... Tantos dias de estrada.

Você deve tá cansado — disse a mãe. — Descanse bem esta noite pra procurar emprego amanhã.

Gelcimar sorria pra mim, e o meu coração disparava: bum-que-bum, bum-que-bum, bum-que-bum... Credo, eu tava ficando até tonta. Eu nunca tinha visto olhos tão bonitos daquele jeito: pareciam um céu aberto, sem nuvens...

A mãe e o pai, graças a Deus, entretidos em mostrar a cidade pro Gelcimar, nem perceberam. Os meus dois irmãos estavam no trabalho. A mãe tinha até faltado no serviço pra ir junto buscar o primo, a patroa deu folga pra ela.

Chegamos e o Gelcimar disse que a casa era bonita. Acho que por educação, porque é uma casa muito simples, pobre mesmo. Ele jantou, conversou um pouco, viu televisão... Depois deu boa-noite e foi dormir.

Me deu uma alegria! Uma coisa assim dentro do peito, uma ansiedade, uma vontade de sair correndo... Contar pras amigas que o primo tinha chegado.

Mas era noite. Imagine se o pai ou a mãe iam deixar. Fui dormir pra acordar bem cedo, e cheguei na escola cheia de mistérios:

Vocês nem sabem da novidade...

Saiu CD novo do gatinho — disse a Miracê.

Você ganhou na loteria — falou a Cejana, que só pensava em guardar dinheiro pra poder fazer a faculdade de Medicina.

Emagreci dois quilos — anunciou a Deolinda, mais interessada nas próprias curvas, que fariam dela a maior top model do Brasil.

Meu primo chegou — eu disse.

Bela novidade! — a Miracê fez um muxoxo. — Veio lá do norte, não é? Deve ser o maior caipirão...

Com dois olhos azuis de matar — eu disse.

Um gato? — perguntou a Cejana.

Um gatão — exagerei. — Mais lindo impossível.

Puxa, a gente podia estudar um pouco hoje na sua casa — propôs a Miracê. — A gente tá ruim pra burro em Matemática.

Assim você vê o caipirão, né?

É — disse a Miracê, revirando os olhos.

 

Quando o Gelcimar saía pra procurar emprego, a casa ficava quieta, sem graça mesmo. O pai e a mãe fora, os meus irmãos no serviço, como sempre. Eu ia pra escola e voltava correndo... Então via a casa vazia, droga!

Mas, quando ele chegava, parecia que a casa ficava iluminada. Ele enchia a casa de alegria, de brincadeiras:

— Corre, Taís, que eu te pego!

Eu saía correndo pelo quintal e me escondia atrás do pé de laranja-lima que a mãe tinha plantado fazia um tempão e nunca que dava fruta.

— Te peguei!

Eu ria tanto que até engasgava. E aqueles olhos azuis sorrindo pra mim:

Quantos anos você tem, Gelcimar?

Vinte.

Nossa, você é um moço. Eu é que sou criança ainda. Tenho só doze.

Mas já é bonita pra burro.

Você acha mesmo?

Claro que eu acho. A moça mais bonita que eu já vi na minha vida.

Quando ele me chamou de moça, fiquei meio mole de prazer. Sabe, meu diário, eu tinha ficado moça mesmo, fazia uns meses. Levei um susto: a mãe não tinha me explicado nada. Quando vi aquele sangue, abri o berreiro:

— Mãe, tô morrendo!... A mãe reagiu na hora:

— Quieta, menina, isso é coisa de mulher. Só uns dias e passa... Pega o pacote de absorvente lá em cima do armário que eu te ensino a usar...

— Mas, mãe, por quê?

— Ora, menina, vá buscar logo! Não carece muita pergunta, não...

Mas eu tinha tanta pergunta presa na garganta: "Por que saía aquele sangue de mim?"; "Por que era coisa de mulher?"; "Por que acontecia aquilo?"

A mãe nem deu confiança. Voltou pro tanque cheio de roupa. O sonho dela de ter uma máquina de lavar roupa nunca que acontecia.

Então eu pus o absorvente como ela ensinou. Ficou engraçado: parecia que eu estava usando fralda de novo, que nem bebê. E fui correndo contar pra Cejana, pra Deolinda e pra Miracê. A Cejana fez cara de importante.

Eu já sou moça desde o mês passado...

Pô, Cê, nem contou pra gente...

Esqueci. Também não é coisa que a gente sai contando por aí, né?

A sua mãe falou com você? — perguntei ansiosa.

Mais ou menos — a Cejana fez mistério. — Disse que é coisa de mulher.

Isso a minha mãe também disse — falei. — Mas eu quero saber por que a mulher tem dessas coisas...

Ah, isso eu não sei, não — disse a Cejana.

Bela médica que você vai dar — rebateu a Deolinda. — Duas burras, vocês. Isso aí é menstruação, a minha irmã me contou. Serve pra mulher ter bebê mais tarde.

E como é que faz pra ter bebê? — A Miracê estava muito interessada. —Já ouvi tanta coisa que nem sei mais...

Só beijo não é, tenho certeza — disse a Deolinda. — Senão minha irmã tinha nenê todo dia. Do jeito que ela e o namorado se beijam, lá no portão de casa...

A gente precisa descobrir isso direito — disse a Cejana. — Deixem comigo. Eu vou perguntar pra mãe.

Será que ela conta? A minha mãe é uma concha, não tiro uma palavra dela — confessei.

Vamos ver — a Cejana sempre foi muito misteriosa. — Eu posso tentar, né? Se descobrir, eu conto tudo!

 

Todo dia, agora, eu voltava correndo da escola, só pra ver o Gelcimar... Pra ele me chamar de moça de novo. Que gostosura! Ele andava meio quieto e saía todo dia pra procurar emprego... E nada. Acho que ele tava ficando desanimado.

— Tão precisando de um guarda-noturno nas obras ali do prédio da esquina — disse o pai.

Tem de trabalhar de noite, né, tio?

Claro, mas é melhor que coisa nenhuma.

— Deu zebra, tio — desabafou o Gelcimar. — Eu pensei que fosse mais fácil.

Que nada, rapaz, em todo lugar a coisa tá feia. Vem muita gente pra cidade grande achando que aqui é o paraíso... Mas na maioria das vezes acaba vivendo ainda pior, nas favelas e cortiços.

Que sorte a minha ter vocês, senão nem teria onde morar ou comer... Já estava debaixo de alguma ponte.

Pois trate de pegar esse emprego com as duas mãos — continuou o pai. — Não quero lhe enganar, Gelcimar. A gente luta muito e você precisa ganhar algum pra colaborar nas despesas.

Tá bom, tio — o Gelcimar coçou a cabeça, desanimado. — Eu vou pegar esse emprego por enquanto... Depois, quem sabe, encontro coisa melhor.

O pai deu uma olhada pra mãe como se dissesse: "Esse tá querendo pegar o mundo com as mãos..." Eu conhecia aquele olhar do pai. Depois deu boa-noite e foi dormir. A mãe também. E gritou lá do quarto:

— Apague logo essa luz, Taís, que a conta tá muito cara!

Eu ainda fiquei um tantinho na sala, fazendo companhia pro primo. Ele estava meio deprimido. Me deu uma pena! Então resolvi consolar ele:

— Não fique triste, Gelcimar. Logo você arruma emprego bom. Até que ser guarda-noturno não é tão ruim, né?

Eu vou ter de dormir de dia. Uma aporrinhação. E aqui faz frio de madrugada. Não sei se vou acostumar.

Você logo recebe o ordenado e compra uma jaqueta — continuei consolando. — Daquelas bem bonitas.

E será que o dinheiro vai dar? — O Gelcimar ficou sério de repente. — Você é muito boazinha, Taís, mas muito criança ainda, não sabe das coisas. Vá dormir, vá...

Me deu um ódio! Eu consolando, dando a maior força, e ele me chamando de criança. Bobão! Palhaço! Por que não ficou lá no norte mesmo, com o calorão dos diabos? Que é que veio fazer aqui?

Molhei até o travesseiro de tanto que eu chorei... De raiva. Ele não tinha me chamado de moça? Como é que eu tinha virado criança assim de repente?

A droga do absorvente tava me incomodando. Tinha ficado de novo menstruada. Taí a maior prova de que eu não era mais criança. A irmã da Deolinda não disse que servia até pra fazer bebê? Lógico que mais tarde, muito mais tarde, quando eu tivesse um marido bem bonito... Assim como o Gelcimar!

E a mãe que nunca conversava comigo. Seria tão bom que ela parasse um pouco de trabalhar, parecia até uma formigona aflita, e viesse falar comigo...

Puxa, eu tinha tanta pergunta engatilhada que podia ficar um dia inteiro perguntando: "Tem idade certa pra ter filho?"; "Por onde sai o bebê na hora de nascer?"; e, o mais importante mesmo, aquelas perguntas mais curiosas: "Como é que o bebê vai parar na barriga da mãe?"; "Como é que faz pra mulher ficar grávida?"

Puxa, se a mãe conversasse comigo... De mulher pra mulher. Ué, isso mesmo, eu também não era mulher, por acaso? Ainda pequena, mas mulher... E eu não ia crescer e virar uma mulher de verdade, um dia? E eu queria tanto saber!

Mas a mãe só sabia dizer: — Essas coisas não são pra menina conversar. Depois eu conto... Depois... —Mas quando? E as burras da Deolinda, da Miracê e da Cejana também não sabiam nada! A esperança era que a mãe da Cejana fosse diferente e contasse alguma coisa pra ela... Mas eu duvidava, porque mãe é tudo igual: mis-te-ri-o-sa!

 

Então, sabe, meu diário, eu olhava no espelho e via meu corpo... Era meio gordinha, nem sei por quê, nem comia muito. Estava sempre com fome e o que me salvava era a merenda da escola. Tinha uns seios bem redondos e um pouco de barriguinha... A Cejana, com aquela sua mania de médica, vivia dizendo que eu precisava fazer regime.

Penteava o cabelo solto nas costas, um cabelão bonito, bem preto, que combinava com meus olhos verdes. Sempre fui vaidosa, a mãe até dizia que eu vivia me olhando no espelho. Minha maior vontade era ter um espelhâo pra me olhar de corpo inteiro, mas precisava me virar com um espelho partido no guarda-roupa, que dava pra ver só até a barriga.

Eu me sentia moça e bonita, e queria que o Gelcimar me achasse assim. Ele era tão gozado! Às vezes me chamava de moça, outras de criança. Também, ele tinha vinte anos e eu só tinha doze, uma porcaria.

 

Ele começou lá no emprego de guarda-noturno, e trabalhava a noite inteira. Quando voltava, eu já estava na escola, estudava de manhã. A hora do almoço era a melhor coisa que me acontecia. Quando chegava da escola, o pai, a mãe e os irmãos estavam fora. Então eu vinha correndo pra encontrar o

Gelcimar, que já estava acordado.

A mãe deixava a comida em cima do fogão e a gente almoçava junto. Ele perguntava:

Como é que foi a escola, hoje, Taís?

Ah, foi bom. E o seu trabalho?

— Uma droga! Quase morri de frio. Que terra fria que é esta aqui, não?

— Pois eu dormi muito bem.

— Sua sonsa — ele ria, mostrando a falha do dente. — Invocando comigo, é?

Que nada. Pensei em você passando frio lá na construção. Me deu até pena...

Eu não quero pena, não.

O que você quer?

Os olhos azuis também sorriam:

Quero é ser seu amigo, muito amigo, viu?

Ué, e a gente não é amigo?

Mais ainda.

Fiquei vermelha de emoção. Aquele moço feito, como dizia a mãe, querendo ser meu amigo. Então ele não me achava tão criança assim.

Você deixou namorada lá no norte?

Um montão.

Seu convencido. Vai ver que não deixou nenhuma.

Deixei, sim. Mas nenhuma tão bonita como você.

Eu sou criança ainda.

Nem tanto. — O Gelcimar me olhou dos pés à cabeça. Me mediu toda. Eu tava lavando a louça na pia, me senti esquisita:

Não olhe assim, não, Gelcimar.

Que é que tem, você não gosta?

Até que gosto.

Então, sua boba. Olhar não tira pedaço.

Todo dia era aquela conversa na hora do almoço. Depois ele ia flanar lá no portão, enquanto eu acabava de guardar a louça.

E a tarde inteira a gente ficava sozinho, lá em casa. Fazia café pra ele, e até bolo, quando tinha ovo e farinha. Ele gostava muito.

A gente ouvia rádio e ficava junto no sofá, batendo papo. Ele contando da sua vida lá no norte: de como nunca fazia frio e ia muito na praia, uma beleza. Só que a pobreza era grande. Então resolveu vir pra São Paulo tentar a vida. Mas aqui a coisa não era moleza, não. E ainda tinha o frio da peste.

Você nunca sai, menina? — perguntava ele de vez em quando. — Só fica em casa e vai pra escola. Que vidinha mais besta a sua, não?

Eu tenho de ajudar a mãe — respondia, sem graça.

Pois qualquer dia, deixa eu receber meu ordenado, a gente sai por aí... Vai num parque de diversões que tem aqui perto. E eu te compro pipoca e algodâo-doce, tá bom, Taís?

Foi o melhor dia da minha vida, ah se foi! O Gelcimar pediu pro pai e ele deixou. E a gente foi no parque pertinho de casa, onde nunca eu tinha ido.

Ele cumpriu todas as promessas. Me comprou um baita pacote de pipoca e outro de algodão-doce. E me levou pra andar na roda-gigante, no trem-fantasma, na montanha-russa. Eu gritava de medo e ele me abraçava, dizendo:

— Tem medo, não, menina, eu tô aqui pra te proteger...

Nessas horas eu nem ligava que ele me chamasse de menina, tava tão bom! O mundo podia parar, meu diário, que eu nem ia perceber. O melhor mesmo foi quando ele ganhou um prêmio numa barraquinha de tiro ao alvo e deu pra mim.

Era um ursinho branco, e eu pus nele o nome de Gil. Daquele dia em diante, onde eu ia, levava o ursinho. Na escola a dona Márcia até deu risada:

— É seu namorado, Taís?

— É — eu disse. E de certa forma era mesmo. Mas o que eu queria mesmo era namorar quem tinha me dado o Gil, o Gelcimar.

Sua tonta, pensava, quando é que ele vai dar bola pra uma menina como você? Bonito do jeito que é, deve ter um montão de garotas querendo namorar com ele. Ele tinha vinte anos e eu...

Se pudesse envelhecer de repente, virar uma garota de uns dezoito anos, pronta pra encarar um namoro. Que nada, eu olhava no espelho e continuava a menina de antes. Droga!

Depois do dia do parque, a gente sempre saía pra passear. A mãe comentava: — Ela é muito nova, José, pra andar por aí. — Mas o pai dizia: — Deixa a garota sair um pouco, o Gelcimar toma conta dela.

Meus irmãos, o Emerson e o Vânderson, viviam naquela correria... Mal dava pra dormir em casa. Assim mesmo, eles diziam, de passagem:

— Juízo, hein, menina!

Eu tinha até acostumado a voltar da escola e almoçar com o Gelcimar. Se ele não estava, eu ficava triste. Um dia, vinha voltando, dei com ele conversando com a vizinha. A Jacirese tinha dezesseis anos e nem era bonita. Fiquei uma fera. Até quebrei dois pratos. A mãe ia dar bronca.

Quando Gelcimar entrou pra almoçar, fiz o prato dele com tanta má vontade que ele reparou:

— Que foi, Taís, cê tá brava comigo?

Não tô coisa nenhuma, come de uma vez pra eu lavar a louça...

Credo, que menina mais enfezada — ele ainda por cima caçoou de mim.

 

Menina é a tua avó!

A nossa avó, você quer dizer — riu ele.

— A tua avó. Come logo, assim sobra tempo pra conversar com aquela besta da Jacirese.

Ele levantou da cadeira, todo ardido:

— Ué, menina, tá com ciúme, tá?

Eu? Cê tá ficando louco! Você não é nada meu. Por que teria ciúme?...

Ora — disse ele, aproximando-se mais —, porque você gosta de mim.

Seu convencido — quase que joguei um prato na cabeça dele. — Gosto coisa nenhuma. Sou sua prima. Só isso.

— Só mesmo?

O Gelcimar veio pro meu lado e, antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, me abraçou e beijou. Eu fiquei tão espantada que nem tive reação. E, pra falar a verdade, eu até gostei. Gostei!

— Não tenha mais ciúmes — disse ele baixinho no meu ouvido. — Eu gosto mesmo só de você, Taís...

Saí correndo pro quarto, o coração batendo mais que tambor. Tive até de pôr a mão no peito pra me acalmar. As palavras do Gelcimar me perseguindo: "Gosto mesmo só de você, Taís, só de você..."

 

Foi depois desse dia que eu comecei a ficar diferente. Sabe, meu diário, fiquei meio avoada, no mundo da lua mesmo. A dona Márcia foi a primeira a perceber:

— Você tá bem, Taís? Parece tão desligada. Tem algum problema?

A dona Márcia era superlegal. Era a coordenadora lá da escola, conhecia todo mundo, e às vezes agüentava cada barra!

Tinha uns garotões da oitava série que já tinham sido expulsos de escolas particulares e que a escola municipal não podia recusar. Faziam cada coisa!

Um dia, trancaram à chave uma classe e ninguém pôde entrar. O chefe da turma deles, o Robertão, quebrou a chave e escondeu. Todo mundo sabia que tinha sido ele. Então a dona Márcia telefonou pra mãe dele, que ficou uma fera. Disse que filho dela não fazia aquelas coisas, a dona Márcia nem era a dona da escola, não mandava nada. A coitada quase caiu dura no telefone, de tantas que a mãe do Robertão disse.

Pois imagine que, dias depois, o Robertão confessou pra outra professora que tinha sido ele mesmo quem tinha trancado a classe, quebrado a chave e escondido no pátio. Mas, pelo amor de Deus, não contasse nada pra mãe dele, senão perdia as férias. A professora ficou numa sinuca: não podia entregar o Robertão. E ele se livrou, todo folgado.

E não ficava nisso só, não, meu diário. A turma dele mexia com as coisas dos alunos menores, rasgava cadernos, escrevia besteira nas lousas, e vivia quebrando o orelhão da esquina. Eram maus elementos mesmo. E a família deles achava que era perseguição da escola, todos uns "anjinhos"...

— Tem certeza de que está bem? — insistia a dona Márcia. — Estou achando você meio diferente. Os professores me disseram que você nem presta mais atenção às aulas...

Coitada da dona Márcia, tão prestativa. Mas como é que eu podia dizer pra ela que o meu problema era o Gelcimar, o abraço e o beijo que ele tinha me dado lá na cozinha de casa? E o que ele tinha dito?

Hoje, pensando bem, acho que podia ter falado com ela, sim. Se a mãe não falava comigo, só restava a professora, não é? Ela até comentou comigo, muito depois:

— Por que não se abriu comigo, Taís? Por que não confiou em mim?

Confiar... Puxa, seria tão bom se eu pudesse mesmo confiar em alguém! O meu sossego acabou desde aquele beijo. Quando eu pensava no Gelcimar, ficava vermelha, me subia um calor! Tinha vontade de fugir dele, mas ao mesmo tempo uma vontade louca de ficar perto. Passei a viver só em função do Gelcimar...

Ele percebia e me olhava todo sorridente, os olhos azuis brilhando. Quando a gente ficava sozinho, ele vinha, me abraçava e beijava. Abraço cada vez mais apertado, beijo cada vez mais demorado. Eu pedia:

Pára, Gelcimar, o pai pode chegar...

Ih, ele tá longe, no serviço.

Então a mãe...

Pior ainda, ela só chega de noite.

Os meus irmãos... — eu suplicava.

— Eles só vêm pra dormir, fica sossegada, Taís. Vem sentar aqui no sofá, vem...

Eu ia. E então ele me abraçava e beijava mais. Vou ser sincera, eu gostava. Mas gostava de um jeito meio sem jeito, mas com muito medo que a mãe ou o pai chegassem e me vissem beijando o Gelcimar. Acho que eu caía durinha no chão.

De noite eu dormia mal, me sentia assim esquisita porque nunca tinha feito nada escondido do pai e da mãe. Mas era tão bom! Uma coisa tão boa não podia ser ruim, podia?

Um dia, de tão aflita, até tentei conversar de novo com a mãe. Ela tava passando roupa:

Dá pra gente conversar, mãe? Só um pouco?

Fala rápido que eu tenho muita coisa pra fazer, Taís. Tinha de ser uma conversa meio comprida. Rápido não dava.

— Só um pouco, mãe, vai?

— Que foi, tá precisando de alguma coisa? Mais material escolar? Essa escola pensa que somos ricos?

— Não é material escolar, não, mãe, é outra coisa...

— Que coisa? — a mãe empilhava a roupa passada sem paciência. — Você tá doente?

Doente? Não, não tô, não.

Dor de dente?  

Também não.

— Algum problema lá na escola? Não me diga que por causa daquelas suas coleguinhas que só falam em artista de novela você não vai passar de ano...

Não é isso, não, mãe, é outra coisa...

Me deixe trabalhar, menina. Vá cuidar da sua obrigação. Ponha o feijão de molho pra mim.

Nunca dava pra conversar com a mãe, nunca mesmo. E com a dona Márcia eu tinha vergonha. O que eu ia dizer pra ela? "Olha, dona Márcia, eu tô gostando do meu primo, aquele que mora lá em casa, o Gelcimar. Ele tem vinte anos, é muito bonito e vive me abraçando e beijando, dando uns amassos... Isso tá errado?"

Ah, eu não tinha coragem, não. E se eu falasse com a Cejana e mandasse ela perguntar pra mãe dela? Ou pra Miracê ou a Deolinda? Elas sabiam menos do que eu, mas... Quem sabe.

Tentei me abrir com elas. Quase caíram:

Nossa, cê tá namorando um homem tão mais velho... É bom ou ruim? — perguntou a Cejana.

Os dois — eu disse. — Tem horas que eu gosto, tem horas que tenho medo...

E o que ele... faz? — quis saber a Deolinda. — Dá beijo que nem nas novelas?

A Miracê então nem falava, de tanta ansiedade.

Igualzinho. Mas eu tô ficando com medo...

Medo de quê? — disse a Deolinda, bancando a sabida. — Eu já disse que beijo não tem perigo. A minha irmã...

Eu sei — falei. — Mas quem garante?

— Ah, garantir eu não posso — concordou a Deolinda. — Só se eu perguntar de novo pra ela...

Finalmente a Miracê abriu a boca:

E do que é que você tem medo?

Eu nunca tive namorado antes, né? — desabafei. — E ele tem vinte anos. Mas nunca ia fazer nenhuma barbaridade comigo, afinal, eu sou prima dele...

Que barbaridade? — a Cejana engoliu em seco.

Sei lá, transar... Eu não sei bem como é que é isso...

Transar? — a Miracê até arregalou os olhos.

Por enquanto a gente tá só ficando: dando beijos, abraços, uns amassos... agora, transar como marido e mulher, como será?

A Cejana suspirou fundo e entregou: — Um dia eu entrei de supetão no quarto do pai e da mãe. Eles tavam abraçados, lá na cama. Só que, no escuro, não deu pra ver direito...

Abraçados de que jeito? — aquilo me interessou muito.

Ué, abraçados — disse a Cejana. — Parecia que o pai tava por cima da mãe... Mas eles me deram uma bronca e me mandaram sair do quarto. Deviam estar transando, só pode ser isso.

Eu precisava saber com certeza...

Pergunte pra sua mãe — disse a Deolinda. — É o único jeito. Ou então pra dona Márcia... Ou pro seu primo.

A mãe não fala nada, tá sempre ocupada. Com a dona Márcia eu morro de vergonha. Com o Gelcimar... Ele vai pensar que sou uma tonta. Nem morta!

Então, como vai ser? — quis saber a Miracê.

Vou ter de descobrir sozinha. Vocês também, que bando de bobocas. Não sabem nada. Droga de turma que eu arranjei!

 

Eu estava apaixonada pelo Gelcimar, meu diário. Já não imaginava a vida sem ele. Era um amor tão bonito, como nos filmes ou romances...

Dormia pensando nele e sonhava com ele... Nós dois sempre juntos, morando numa casa com jardim na frente, onde esperava ele voltar do trabalho...

Quando acordava, meu primeiro pensamento também era pro Gelcimar: ainda está no serviço, que pena, só vou ver ele na hora do almoço...

Deitada na cama, ficava fantasiando, sabe, meu diário? Era como se o Gelcimar estivesse ali me abraçando, beijando... Até sentia o calor dos seus braços e a doçura dos seus beijos... Aí, me dava um; Pra lá de boa, e eu flutuava... Depois uma moleza!

Nem acreditava como podia ter vivido tanto tempo sem conhecer alguém tão maravilhoso como o Gelcimar!!!

Um dia, cheguei mais cedo da escola e o Gelcimar

tava me esperando, lá no sofá da sala. Perguntei:

— Tá com fome, Gê? Quer que faça o seu prato?

Acho que tem dobradinha que você gosta.

Ele não pareceu se importar muito. Me olhou de um jeito engraçado:

— Vem cá, vem, gracinha...

 

Ué, não quer almoçar?

Depois, a gente tem muito tempo. Agora vem cá que eu quero te mostrar uma coisa...

Puxa, pensei, será que é um presente? Corri pro sofá. Nem deu tempo de sentar, o Gelcimar me agarrou forte, me deu o maior beijo. Quase que perco até o fôlego:

Nossa, que foi que deu em você?

A gente já esperou demais, garota. De hoje não passa...

Passa o quê? — fiquei curiosa.

O Gelcimar estava tão estranho, o olhar parado, eu nunca tinha visto ele assim...

Me beija, me abraça! — pediu, e me agarrou de novo. No começo até gostei, depois fui achando que já era demais:

Pára, Gelcimar!

Mas ele não parou de jeito nenhum. Tinha a voz rouca e respirava de um jeito gozado. Então ele começou a tirar a minha roupa...

— O que você tá fazendo, Gelcimar?

— Você vai gostar, nenê, eu prometo. Fique calma, ninguém vai chegar. A gente tem todo o tempo do mundo.

O Gelcimar desabotoou a minha blusa e começou a bolinar os meus seios... Aí tive uma sensação que nunca tinha tido antes... Me deu um calor, o Gelcimar falando no meu ouvido:

— Não tenha medo, Taís, vai ser bom... — A gente sempre dava uns amassos, sentado lá no sofá, mas agora o Gelcimar fazia força pra eu deitar. Ele era forte e o calor que vinha do corpo dele era tão gostoso... Então fui deitando devagarinho... enquanto ele continuava tirando a minha roupa... Fiquei meio confusa: seria real o que estava acontecendo comigo?

 

Depois o Gelcimar também tirou a roupa dele bem na minha frente... Brincadeira: foi a primeira vez que eu vi um homem nu na minha vida!

Já sei o que você vai dizer, meu diário! E os seus irmãos? Acontece que sou a caçula lá de casa e, depois que eles cresceram, nunca mais ficaram sem roupa na minha frente, nem eles nem o pai. Também trancavam sempre a porta do banheiro. E, mesmo com toda a minha curiosidade, nunca pude ver alguém pelado. Então, o Gelcimar ali, nu, na minha frente, foi mesmo um choque!

Ao mesmo tempo me bateu uma curiosidade! "O que é que o Gelcimar ia fazer, afinal?" Quando comecei a me perguntar, ele pediu:

— Quietinha, Taís, vai ser uma boa... pode crer, gostosinha...

Então o Gelcimar veio vindo, vindo... Aquilo até parecia um sonho... Ele deitou em cima de mim e escutei o coração dele batendo forte de encontro ao meu peito.

Então uma coisa começou a fazer força como se quisesse entrar dentro do meu corpo. Eu não sabia direito o que era. Mas sentia uma sensação esquisita, de prazer e medo ao mesmo tempo... Como se eu fosse outra pessoa.

Aí, de repente, senti uma dor, e aquela coisa agora se mexia dentro de mim, enquanto o Gelcimar me abraçava cada vez mais forte...

Nem sei dizer quanto tempo demorou aquilo... Parecia que o tempo tinha parado... Até que a coisa parou de mexer... O Gelcimar foi se acalmando, mas ficou ainda um tempo sobre mim... Depois se levantou e disse:

Foi bom, não foi, Taís? Mas, olha lá, não conta pra ninguém, ouviu?

Você não quer que eu conte o que aconteceu aqui, é isso?

Você não vai contar nada, Taís, porque não aconteceu nada, entendeu? — ele parecia preocupado.

Entendi. — Falei, só pra encerrar aquele papo meio besta.

Mas não tinha entendido coisa nenhuma.

Só sei que escorria um leite meio aguado pelas minhas pernas, além de uma mancha de sangue no sofá.

Corri pra me lavar, e depois lavei também o sofá. A mãe tinha feito prestação pra comprar ele. Se encontrasse sujo de sangue, ia me dar a maior bronca!

 

Desde esse dia, fiquei cismada. Por que o Gelcimar não queria que eu contasse pra ninguém o que havia acontecido entre a gente? Ele gostava de mim e eu dele, que importância podia ter? Mas o que me encucava mesmo era saber que coisa era aquela...

Isso porque eu lembrava a história dos pais da Cejana. Então uma pergunta começou a martelar na minha cabeça: "Será que eu e o Gelcimar tínhamos feito igualzinho o que fazem marido e mulher?"

Só de pensar me dava um frio na espinha! O Gelcimar tinha razão. Nunca que eu ia contar pra mãe ou pra dona

Márcia. Pro pai nem pensar. Pras meninas... Talvez... Se tivesse coragem. Eu nem sabia se ia ter.

Agora o Gelcimar ficava sempre me esperando, quando eu voltava da escola:

— Vem cá, vem, Taís!

Às vezes eu ia porque ainda gostava dele. Mas ele não me levava mais pra passear, como antes. De repente, ficou com cara de todo mundo. Não sei por quê, mas acho que tinha perdido a graça, sabe como é?

Ele até percebeu:

Não gosta mais de mim, Taís?

Gosto.

Só gosta?

Sei lá, acho que gosto.

Pois eu gosto muito de você.

Quanto?

Muito, até demais.

 

Foi só quando vi a Cejana comprando absorvente na farmácia que lembrei:

— Nossa, nem fiquei menstruada este mês. Será que é assim mesmo?

Pois a minha irmã menstrua todo mês e fica numa alegria — disse a Deolinda.

Ué, alegria por quê? — perguntou a Miracê. — É tão chato e ela gosta?

Deve gostar, né? — a Deolinda fez um muxoxo. Apesar de ter a minha idade, ela nem tinha ficado menstruada ainda. Nem a Miracê.

A mãe, em casa, também reparou:

Não pede mais absorvente, Taís?

Não fiquei menstruada, mãe.

Como, não ficou? — Era impressão minha ou a mãe parecia preocupada?

Não fiquei, mãe.

Vai ver tá precisando de vitaminas. Se falhar o mês que vem, levo você no médico do posto.

 

Mas a minha menstruação não veio mais. Nem no mês seguinte, nem no outro... A mãe acabou esquecendo de me levar ao médico. Ela nunca tinha tempo pra nada, pô, uma correria de vida!

Então comecei a passar mal na escola. Um enjôo no meio das aulas, tonturas... Às vezes até vomitava na classe ou no recreio. Um sono... Parecia que eu não dormia nunca. E percebi também uma coisa engraçada: a minha barriga estava crescendo. Como se tivesse engolido um balão, desses que a gente vai enchendo de ar, bem devagar... Cada vez que eu me olhava no espelho, tomava um susto! O que estava acontecendo comigo?

Até que a dona Márcia, a coordenadora da escola, mandou me chamar lá na sala dela:

Estou preocupada, Taís. Primeiro você fica esquisita, depois começa a passar mal na escola e ultimamente vem engordando. Houve alguma coisa, minha filha?

Não, por quê?

Ora, por nada — disse a dona Márcia. — Sua menstruação está vindo certinha?

Até achei gozada a pergunta. O que é que a dona Márcia tinha a ver com isso?

— Pra falar a verdade, não tem vindo, não. A mãe até falou em me levar lá no posto e...

A dona Márcia ficou meio pálida e eu pensei: "Quem devia estar com algum problema era ela, não eu".

Tá se sentindo bem, dona Márcia?

Tudo bem, minha filha, vou chamar sua mãe pra gente conversar. Mas, antes, me diga: você tem namorado?

Me finji de tonta. Eu não podia entregar o Gelcimar assim de bandeja.

— Mais ou menos.

Como mais ou menos? Tem ou não tem? Isso é muito importante, Taís, saber se você tem namorado. Caso contrário a coisa fica ainda mais complicada...

Que coisa, dona Márcia? — Não estava entendendo nada do que ela queria dizer. Será que nunca entendia nada, pô!

Responda, Taís, por favor! — a dona Márcia insistia. — Você tem namorado?

Tenho. É o Gelcimar, um primo que mora lá em

casa.

Ah! — fez a dona Márcia e ficou me olhando.

Daí? — perguntei.

Faz tempo que vocês namoram, Taís?

Uns meses, desde que ele chegou do norte...

Você tem alguma idéia do que está acontecendo com você, Taís?

Idéia... Acontecendo... Eu não entendia mesmo mais nada. O que a dona Márcia queria saber afinal?

Volte pra classe, Taís! — a dona Márcia parecia que falava com uma criancinha bem tonta mesmo. — Quando sua mãe chegar, eu chamo você.

Mas a mãe tá trabalhando, a senhora não vai achar ela agora. Só chega de noite.

É mesmo. Nem tinha me lembrado. Então você leva um recado pra sua mãe. Para ela vir falar urgente comigo amanhã.

— Mas por que a senhora quer falar com a mãe?

— Calma, Taís, não fique nervosa. Não esqueça de dar o recado.

A senhora tá preocupada, dona Márcia?

Estou sim, Taís, muito preocupada.

Com quê?

Engraçado, a dona Márcia parecia que ia chorar ali na minha frente. Ela tem os olhos claros como os meus e por qualquer coisa eles se enchiam de lágrimas. Era muito carinhosa e se envolvia demais com os alunos. Por que ela precisava tanto falar com a mãe? E aquelas perguntas todas... Que mistério!

 

Dei o recado, e a mãe, preocupada, foi lá na escola falar com a dona Márcia. Ficaram um tempão conversando na secretaria. Depois mandaram me chamar:

Vou levar ela no médico, sem falta — disse a mãe. Ela estava esquisita, os olhos vermelhos.

Por favor, dona Carminda, o mais rápido possível. E me dê notícias. O que eu puder ajudar...

Já ajudou muito, dona Márcia — a mãe enxugou os olhos no lenço. — Se não fosse a senhora... Como é que nem me passou pela cabeça? Ah, meu Deus, como vou contar isso pro meu marido?

Prefere que eu conte, dona Carminda?

Não, de jeito nenhum. Tem de ser eu mesma. A casa vai cair. É uma desgraceira...

Calma, também não é assim — consolou dona Márcia.

Como não é? Nossa única filha. Ela tem só doze anos, e acontece uma coisa dessas...

Mas a senhora nem sequer foi ao médico. São apenas hipóteses. Ainda pode ser outra coisa...

Olhe pra ela, olhe pra ela! — gritou a mãe. — Tudo bate: a barriga crescendo, a menstruação que não vem há meses, o namoro. Como é que eu podia saber que estava pondo uma cobra dentro da minha própria casa? O pai dela vai enlouquecer!

Mãe! — rebati, apavorada. — O que foi que eu fiz, o que aconteceu, que cobra é essa? A senhora tá falando do...

Daquele desgraçado, sim! — completou a mãe. — Espera só pra ver o que teu pai vai fazer com ele...

— Mas por quê, mãe, o que ele fez, o que eu fiz? Agora quem gritava de desespero era eu. Os olhos da

dona Márcia ficaram de novo cheios de lágrimas. Parecia que o mundo estava acabando e cada vez eu entendia menos.

No dia seguinte, bem cedo, a mãe me levou ao posto médico. Lá tinha um médico novinho que me examinou, um exame chato pra burro. Também fez um monte de perguntas. Depois ficou falando com a mãe, um tempão. Ela saiu tão triste lá do posto que dava até dó!

Me puxava pela mão e ia andando na rua, como se estivesse cega. E não parava de falar:

— Como é que você fez uma coisa dessas, Taís? Não quero nem pensar quando o seu pai souber.

A gente chegou em casa quando o pai tava saindo pro trabalho. Ele e a mãe se fecharam no quarto e eu fiquei na cozinha, esperando o pior.

De repente, começou aquela gritaria lá dentro: o pai tava uma fera! De longe se ouviam os gritos dele e a voz da mãe tentando acalmar.

Foi mesmo uma coisa horrível, meu diário! Eu tinha vontade de fugir, sair correndo... Mas pra onde? E o Gelcimar nem tinha voltado do trabalho ainda.

Daí eles saíram do quarto e o pai passou por mim, como uma bala. A mãe ainda gritou:

Aonde você vai, homem?

Vou achar aquele desgraçado, onde ele estiver. É com ele que eu vou me entender.

Pelo amor de Deus, pai! — pedi. — Não faz besteira. Ele ainda me olhou da porta. Jamais vou esquecer aquele olhar. Tinha raiva, tristeza, dor, tudo junto. Ele falou: — Deixa que eu dou um jeito nisso, filha!

Coitado do pai. Ele parecia um animal ferido de morte.

 

O pai voltou muito tempo depois e se trancou de novo com a mãe no quarto. Agora eles falavam baixinho, eu não ouvia nada, só fiquei imaginando o que havia acontecido, se ele achou mesmo o Gelcimar e como foi a conversa dos dois.

Logo anoiteceu e nada do Gelcimar voltar. Meus irmãos, o Emerson e o Vânderson, vieram jantar. E o pai, muito sério, conversou com eles. Aí foi que a coisa toda piorou.

Eles ficaram furiosos: queriam dar uma sova no Gelcimar. Foi a mãe, com muito custo, que impediu, dizendo que não ia adiantar nada. Só complicar. Eles só sossegaram quando o pai garantiu que o Gelcimar ia casar comigo, que tava tudo acertado. Que não marcasse bobeira, senão ia ter uma desgraça.

Eu fiquei gelada: casar! Que loucura era essa! Mas nem perguntei nada. Já pensou? Do jeito que todo mundo tava bravo naquela casa! Só fiquei ouvindo e rezando pra acontecer o contrário.

Pra mim, até que os manos foram legais. Me olhavam também com tristeza e comentavam entre eles:

Ele se aproveitou da inocência dela, esse canalha. Vê se ela tem cara de saber das coisas.

O pai nunca devia ter posto esse cara aqui dentro. Mas será que ela não sabia mesmo?

Deixa ela em paz, não tem mais jeito mesmo, e o cara vai casar, não vai?

Gozado, eles falavam de mim, mas não falavam comigo. Como se eu fosse de outro planeta. E eles também tinham namoradas. Será que eles faziam com elas o que o Gelcimar fez comigo?

Queria tanto perguntar, mas morria de vergonha. E os dois batendo boca a meu respeito, que droga! E aonde tinha ido parar o Gelcimar?

 

O Gelcimar só voltou bem tarde da noite. Mas o pai tava esperando por ele. E falou duro:

— Vou pedir pro juiz de menores casar vocês, entendeu, rapaz?

O Gelcimar nem respondeu, de tanto medo. Só olhou feio pra mim. Que culpa eu tinha se o pai queria que a gente se casasse? A mãe ainda disse:

O juiz não vai deixar. Ela só tem doze anos.

Tem de deixar! — bufou o pai. — Eles casam de qualquer jeito. Filha minha é que não vai ficar largada por aí, com filho na barriga.

Filho na barriga?! Até aí o médico, o pai, a mãe, os irmãos tinham falado de coisas que eu não conseguia entender. Mas aquilo, brincadeira! Era por isso então que a minha barriga tava crescendo... Quer dizer que eu tava...

Corri pro quarto e chorei como louca! Eu nunca tinha chorado daquele jeito. Então, de repente, aconteceu a coisa mais esquisita do mundo: aquilo que tava na minha barriga... mexeu! Saí gritando:

— Acode, mãe, tem uma coisa mexendo na minha barriga!

A mãe me pegou pela mão, me levou pro quarto e, gozado, fez uma coisa que nunca tinha feito antes: conversou comigo. Disse que eu tinha transado com o primo e por isso tava grávida. O que mexia na barriga era o bebê, o meu filho, que ia nascer dali a alguns meses...

— Mas nascer como, mãe? Por onde?

A mãe parecia que não agüentava mais:

— Pelo mesmo lugar que entrou, por onde mais podia ser?

Ela saiu do quarto e eu fiquei com mais dúvida ainda: como o bebê podia ter entrado se eu não vi coisa nenhuma? A mãe mais confundiu que explicou. Depois cansei de pensar e fui ler umas revistinhas. Estava louca da vida com as minhas amigas. Pra falar a verdade, fazia um tempo que elas até fugiam de mim. Davam sempre uma desculpa esfarrapada pra não sair comigo. Ai, meu Deus, parecia tudo um sonho, ou pior, um pesadelo daqueles que a gente não consegue acordar.

Daí me deu um estalo: será que elas faziam isso porque eu tinha um bebê na barriga? Ué, quando as pessoas diziam que estavam grávidas, todo mundo fazia tanta festa! Por que comigo era diferente? Só porque eu tinha doze anos e o Gelcimar vinte? Ou porque não era casada ainda? Mas o pai disse que a gente ia casar... Será que então elas voltariam a ser minhas amigas de novo?

Só havia um probleminha, quer dizer, um problemão: eu não queria casar com o Gelcimar, não queria mesmo!

Acho que comecei a ficar mais velha nesse dia, sabe, meu diário? Quando decidi que não queria casar de jeito nenhum com o primo.

Casamento parecia uma coisa tão chata! Via a mãe trabalhando sem descanso, noite e dia, o pai sempre bravo, agora ele tinha dado até pra beber. A mãe dizia que era de desgosto, por causa do bebê na minha barriga. Puxa, esse bebê tava dando mesmo uma confusão!

Imagine se eu casasse com o Gelcimar! Ia cuidar da casa sozinha, fazer comida, lavar a roupa dele e ia ter de transar sempre, e já nem gostava tanto do Gelcimar, não como antes. Então casar não era uma coisa legal. Não ia poder estudar mais, porque ele ia mandar em mim, feito o pai com a mãe.

Como é que ia fazer pra escapar de casar com ele? O pai disse que pediria ordem pro juiz de menores, mas a mãe também disse que o juiz não deixaria, porque eu era muito nova.

Então ainda havia jeito. Tomara, mas tomara mesmo, que o tal juiz não deixasse. Por mim o Gelcimar podia até ir embora, voltar lá pro norte que nem ia me importar, até dava graças a Deus.

Mas o pai pensava o contrário. Mandou a mãe preparar uma festa de noivado. E, pra complicar, o bebê pulava tanto na barriga que às vezes nem me deixava andar direito. Será menino ou menina? Puxa, eu gostaria tanto de saber!

Na escola o pessoal me olhava atravessado. A dona Márcia disse que era pra não ligar, pra continuar indo na aula, eles não tinham nada com isso. Mas era tão chato eles olhando a minha barriga. As mães cochichando lá na porta da escola, quando eu entrava ou saía. E a Cejana, a Deolinda e a Miracê fingindo que não me conheciam, que ódio!

A única amiga mesmo era a dona Márcia. Ela sempre me chamava pra conversar na sala dela, dava conselho, perguntava da minha vida, se eu estava fazendo o pré-natal direitinho, lá no posto de saúde. Ela não queria que eu deixasse a escola. Nem sei o que teria sido de mim sem ela!

O dia do noivado foi tão sem graça! Aquela gentarada lá em casa, as vizinhas fazendo bico, comentando: "Que judiação, uma menina tão nova. Será que esse casamento dá certo? Pobre dessa criança!" Quando falavam criança, eu não sabia se falavam de mim ou do bebê. Ele continuava mexendo, parecia não ter outra coisa a fazer na vida a não ser mexer dentro da barriga.

O problema é que não tinha mais roupa que servisse, ficou tudo apertado. A mãe comprou duas blusas bem largas e uma calça de amarrar. Eu parecia um saco de batatas, um horror. Tinha vergonha de sair na rua, e acabei não indo mais na escola de tanta aporrinhação.

Não adiantava nada a dona Márcia ir lá em casa falar comigo: "Volte, Taís, não perca o ano, não ligue para o que os outros falam...".

Volto não, dona Márcia, é chato demais. Não tenho mais amiga, todo mundo foge de mim, parece que tô doente. Eu tô doente, dona Márcia?

Claro que não, meu bem — dizia a dona Márcia. — Isso logo passa. Está sendo difícil porque você é tão nova, mas tenha paciência que passa. Daqui a pouco o bebê nasce e você volta a ter sua vida de sempre...

Não sei, não, dona Márcia, o pai quer que eu case com o Gelcimar de qualquer jeito.

E você quer casar com ele?

Não, não quero, não.

Então vou falar com seu pai.

Ah, não, pelo amor de Deus. Ele é muito bravo, vai ser malcriado com a senhora. Deixa como tá.

A dona Márcia saía triste, triste. E eu não voltei mesmo pra escola. Ela ainda veio outras vezes falar comigo e até trouxe roupinhas de bebê. A mãe também fez uns casaquinhos de tricô e aproveitou umas roupas do tempo em que a gente era criança. Eu não queria saber dessas coisas. Aquele bebê estava vindo na hora errada, eu não tinha nada a ver com ele.

 

Era difícil andar com aquela barrigona, tomar banho, cortar a unha do pé. E o pai parece que não tinha conseguido ordem nenhuma, a mãe tava com a razão, eu era muito nova. Gozado, podia ter filho e não podia casar.

O Gelcimar só andava calado pelos cantos... Tava pior que coelho na toca. Mal falava comigo e com os outros. Chegava do trabalho, almoçava e saía, quase nem parava mais em casa. O pai já chegava perguntando:

Cadê aquele cafajeste? Ele que não me saia dos eixos, que vai ver uma coisa...

Deixe de beber, homem! — pedia a mãe. — Isso não resolve nada. O que não tem remédio, remediado está.

E onde eu ponho a minha vergonha, hein, mulher? O desgosto? Nossa única filha...

Já estava cheia daquela história, tudo agora era culpa minha, meu diário. Contava os dias pro bebê nascer e me livrar daquela barriga. De poder andar com minhas roupas tão bonitinhas, meus jeans, minhas minissaias. Tinha ódio daquelas blusas largas, daquela calça horrível que ia aumentando, aumentando, como se eu fosse um balão pronto pra explodir.

E o tempo nada de passar... Não saía de casa, não ia pra escola, só ficava ajudando a mãe a fazer comida, lavar roupa... Era isso que me esperava se casasse com o Gelcimar? Essa droga de vida? Às vezes até pensava em fugir... Mas pra onde?

A minha vó morava no interior, eu podia ir morar com ela. Mas o que ela diria quando visse o barriga o? Acho que ia cair durinha no chão. E ainda iam pôr a culpa em mim, como sempre!

O jeito era esperar... E eu não sabia direito quanto... Ficava na janela, horas e horas, às vezes até esquecia a comida no fogão e ela queimava. Ficava olhando as pessoas na rua, a garotada brincando na calçada, andando de bicicleta. Tão felizes! E eu ali, como se estivesse presa, dentro daquele corpo enorme.

Nem namorar o Gelcimar tinha mais graça. Ele mal falava comigo. Eu me lembrava daquele tempo tão gostoso em que ele me levava no parque de diversões, comprava pipoca e algodâo-doce. O ursinho, coitado, estava jogado lá no quarto, todo sujo. Lavei ele no tanque e pendurei no varal... Ficou todo arrepiado, feio pra burro, então me deu raiva e joguei no lixo.

De bruço, na janela, eu pensava muito. Não tinha mais nada a fazer na vida, só pensar: "Por onde é que ia nascer aquele bebê, meu Deus?" A mãe só tinha complicado as coisas, dizendo que ele ia sair por onde tinha entrado... Será que abria uma portinha na barriga? Mas isso devia doer pra burro! Será que era o médico que abria a portinha pro nenê, ou o nenê abria sozinho? E será que ele achava a tal portinha, mesmo sendo só um nenê, porque já havia entrado por ela?

Tanta gente já tinha nascido no mundo inteiro que não devia ser complicado, né? Eu lembrava daqueles filmes. Quando um nenê tava pra nascer, começava a correria: ferviam água, pegavam toalhas, tesoura... Pra que tudo isso? Toalha e água tudo bem, mas... Tesoura? Pra cortar o quê?

Mas por onde é que ia sair o bebê? Essa pergunta me atormentava. Se era pelo mesmo lugar por onde tinha entrado... Mas ele não entrou grande, claro que não. Tinha de entrar bem pequeno, porque senão eu teria percebido.

De uma coisa eu tinha certeza: foi depois daquele dia que aconteceu a "coisa diferente" entre mim e o Gelcimar. Então eu não podia ter feito o bebê sozinha... foi ele que botou o bebê dentro de mim. Só podia ser isso! E como ele tinha feito? Ora, só devia ter sido do jeito que todo mundo faz!

A mãe tinha conversado comigo, mas de um jeito apressado, não explicou o que eu queria saber. Ela parecia tão envergonhada, como se estivesse falando de uma coisa feia e suja. Como podia ser assim se todo mundo fazia festa quando nascia bebê? E as pessoas faziam bebê porque se gostavam... Senão eles nem casavam, né?

A minha cabeça até fervia de tanta pergunta. Eu também não ia casar com o Gelcimar? Mas nem gostava mais dele! Ia casar obrigada, mas tinha gente que casava porque se amava e queria ficar junto.

Nossa, eu não sabia de tanta coisa! Tinha direito de saber o que aconteceu comigo, de que jeito esse bebê entrou na barriga... Por que a mãe nunca me contou, por quê? Se eu soubesse de tudo antes, teria sido tão mais fácil. Não teria bebê nenhum, nem essa barrigona horrorosa!

Foi então que o Gelcimar sumiu. É, meu diário, sumidinho da Silva. O pai procurou ele por toda parte: no trabalho, na casa dos amigos, mandou até carta pro norte... Nada. Ele não estava em lugar nenhum. Tinha tomado mesmo chá de sumiço.

Pensei que o pai ia ter um troço de tão louco que ficou. Mas, com o tempo, foi se acalmando... Não tinha mesmo outro jeito, né? Parecia até mais velho, coitado, não parava de beber. Meus irmãos quiseram ir atrás do Gelcimar, mas a mãe não deixou. Ela parecia tão cansada. Me olhava de um jeito triste, como se quisesse dizer alguma coisa.

Chegou o Natal e eu pedi uma boneca de presente. Eu nem acredito mais em Papai Noel, mas sempre fingi que acreditava, só pra ficar mais emocionante.

Ganhei a tal boneca. Não foi do Papai Noel, não, foi da dona Márcia. Uma boneca linda, loira, de vestido azul, e que fazia xixi.

— Logo você vai ter uma boneca de verdade pra cuidar — ela disse. — Você sabe cuidar de bebê, Taís?

Eu não e nem quero saber.

E quem vai cuidar do seu bebê?

Sei lá. A mãe cuida.

Dona Márcia abanou a cabeça:

— ai ser divertido, você vai ver. Um bebê é uma coisinha tão fofa...

Sera?     Estava mais preocupada em cuidar daquela boneca tão linda que fazia xixi. No bebê eu não pensava muito, não. Só quando ele mexia dentro da barriga. Então fazia de conta que a barriga não era minha, era de outra pessoa. Dava certo, e eu perdia o medo.

Você continua fazendo o pré-natal? — perguntou dona Márcia.

A mãe me levou lá no posto algumas vezes, sim. Mas eu precisava saber tantas coisas...

Quer que eu lhe conte, Taís? — Dona Márcia tinha três filhos. Como eu não tinha pensado nisso?

— Quero sim, por favor.

 

Quando dona Márcia saiu, fiquei olhando as árvores, lá fora... Estava calma, porque agora eu sabia o que tinha acontecido comigo!

As árvores tão bonitas tinham nascido de uma semente. .. Como o meu bebê. Só que, no meu caso, quem tinha plantado a semente em mim fora o Gelcimar!

Agora eu entendia como o meu corpo funcionava. A dona Márcia explicou que, quando a menina nasce, ela já tem no corpo dela milhares de óvulos em formação dentro de duas casinhas — metade em cada casinha — os ovários.

Desses óvulos todos, só mais ou menos uns quatrocentos é que vão ficar maduros, durante a vida fértil da mulher, quer dizer, desde que ela é mocinha até quando fica mais velha, lá pelos cinqüenta anos...

Quando a garota tem entre onze e treze anos, e até antes, o primeiro óvulo fica maduro e pronto pra sair de uma das casinhas (de um dos ovários). Do lado de cada ovário tem um canal chamado trompa, que é como se fosse um túnel por onde o passageiro entra ou sai do avião.

O óvulo, então, como se fosse esse passageiro, sai do ovário e entra na trompa, pra chegar num lugar combinado, pra esperar a tal semente de gente, que se chama espermatozóide.

Às vezes, meu diário, o óvulo chega no lugar combinado e não encontra semente nenhuma. Então, solitário, ele morre... E não continua viagem até o seu destino, um órgão chamado útero, que tem o formato de uma pêra.

O útero é como um hotel que estivesse todo enfeitado pra receber um hóspede importante: com carpete, cortina na janela, flores... Modo de dizer, né?

Se o espermatozóide não chega, a arrumação toda se desmancha e sai do corpo da mulher, através de um canal chamado vagina. Isso é a menstruação, que acontece todo mês... Até a mulher chegar na menopausa, quando não pode mais ser mãe, porque acabaram todos aqueles quatrocentos óvulos de que eu falei. Entào não tem mais passageiro, nem viagem.

Agora, preste atenção: vem a parte mais bonita! Quando um garoto e uma garota transam como marido e mulher, ele coloca com o pênis dele milhões de sementinhas, os espermatozóides, no corpo dela, através da vagina.

Quando a garota ainda é virgem, como eu era, a vagina tem uma portinha na frente chamada hímen, que é uma pele resistente.

O homem tem de atravessar o hímen com o pênis. É por isso que senti aquela coisa fazendo força e depois a dor. E também ficou a mancha de sangue no sofá. Às vezes nem sai sangue, vai depender do tipo de hímen.

Então, quando as sementinhas já conseguiram entrar no corpo da mulher, elas começam uma correria lá dentro... Como se fosse um campeonato, que só uma vai vencer — a que chegar primeiro pra encontrar o óvulo, que já está esperando no lugar combinado: a trompa.

O ganhador da corrida entra no óvulo, que se fecha todinho como um cofre: daí vira ovo de gente, quer dizer, já começa a virar bebê... entendeu?

Mas deixa eu contar, direitinho, uma coisa muito importante que a dona Márcia me explicou: como funciona o ciclo menstrual. Ele dura mais ou menos vinte e oito dias, isso se a mulher tem um ciclo regular.

Catorze dias antes da próxima menstruação, o óvulo fica maduro e sai para fazer a viagem. A mulher então entra em seu período fértil, quer dizer, pode engravidar. Se transar três dias antes ou três dias depois da ovulação, ela também corre esse risco, porque o espermatozóide ainda está vivo dentro dela. A mulher, para evitar a gravidez, não deve ter relação sexual do ll2 ao 17s dia do ciclo — se tiver, o parceiro deve usar camisinha, que também protege contra uma porção de doenças, até da Aids.

Devo ter transado com o Gelcimar no meu dia fértil, ou uns dias antes... Porque não sabia de nada. Então fiquei grávida e por isso a minha menstruação parou. E pode ter acontecido até na primeira vez que a gente transou.

No caso do óvulo não encontrar o espermatozóide e não acontecer a gravidez, a menstruação vem certinha. E todo mês esse ciclo se repete. Bonito, né?

 

Agora, preste atenção, meu diário: o hímen, aquela pele que fecha a vagina quando a garota ainda é virgem, lembra? Tem um furinho bem no meio, por onde passa a menstruação. Mas se a garota tiver um contato maior com um rapaz, mesmo que não rompa o hímen, mas ele ejacular, quer dizer, soltar as sementinhas ou espermatozóides perto da vagina dela, a garota pode ficar gravida. .. Porque o espermatozóide é muito rápido, nada como um peixe no rio, na umidade do corpo da mulher... E não se admire, meu diário, se uma garota que ainda nem menstruou ficar grávida também... Porque às vezes a garota transa muito nova, quando o primeiro óvulo começou a viagem... ele então encontra o espermatozóide na trompa e é gol!! Ela ainda nem ficou "mocinha" e já vai ser mãe. A natureza é muito esperta: ela a-do-ra fazer bebês!!!

 

Muito bem... agora o espermatozóide já entrou no óvulo, que se fechou todinho como um cofre e virou ovo de gente — tá lembrado, meu diário?

Esse ovo de gente vai como um hóspede para um hotel enfeitado, o útero, onde ficará por nove meses mais ou menos... Então o bebê vai crescendo e se formando: desde o cérebro, a coluna vertebral, até os braços, pernas, dedos, olhos, nariz, boca, tudo! E, desde o primeiro mês, ele já tem coração, que logo começa a bater...

Às vezes, sabe, meu diário, o óvulo se atrasa para o encontro — os espermatozóides Y, que chegaram primeiro, porque são os mais ligeiros, e iam fazer bebê menino, já morreram todos, porque também são pouco resistentes. Então, quando o óvulo finalmente chega, encontra só os espermatozóides X, que fazem bebê menina e são mais demorados pra chegar, mas vivem mais tempo. Daí... Nasci eu! Beleza!

Dona Márcia falou que, antigamente, tinha marido que brigava com a mulher porque só nascia filha. Eles eram os maiores bobos, porque agora se sabe que é o pai quem dá o sexo para o bebê. Interessante, né? É que o óvulo é sempre X, e os espermatozóides podem ser Y ou X. Se ficar YX, nasce menino. Se ficar XX, nasce menina.

Sabe da maior, meu diário? O bebê fica o tempo inteiro dentro de uma bolsa d'água, como se fosse um peixe astronauta... Lá dentro é silencioso, escuro e morninho. Ele fica mesmo numa boa!

E acho que você já desconfiou... O bebê não respira dentro da bolsa d'água! Ele tem um cordão umbilical que, de um lado, sai da barriguinha dele e, do outro, imagine só, está ligado numa espécie de supermercado do bebê, a placenta.

A placenta é bacana; ela dá tudo o que o bebê precisa: ar, comida... Claro que não é a comida do tipo que a gente come, é uma espécie de suco. Mas tudo o que a mãe come ou bebe passa pra placenta, que por sua vez passa pro bebê por esse cordão, direitinho, como um astronauta preso na nave-mãe — não é lindo?

E ali o bebê fica sossegado e feliz até a hora de nascer. .. Quando a bolsa d'água estoura, a água sai todinha, e o bebê também, pela portinha da mulher, a vagina, por onde entrou a semente de gente, o espermatozóide. É isso que acontece com todo casal que tem bebê.

Eu sei que agora você vai perguntar, como eu perguntei: "Como nasce o bebê daquela garota que ficou grávida mas ainda é virgem? Isso se ela continuou virgem, naturalmente!" Daí, disse a dona Márcia, para o parto ser normal, o hímen tem de ser rompido pelo médico, ou então tem de fazer cesariana, aquela operação que tira o bebê pela barriga, quando ele não consegue nascer de modo natural.

E não custa repetir: o casal que quer transar, mas não quer ter bebê, deve usar camisinha (masculina ou feminina) ou a mulher tomar anticoncepcional.

Tem uma porção de anticoncepcional, como a pílula que a mãe toma todo dia, e ela dizia que era pra dor de cabeça. Brincadeira!

Tudo tão simples! Só que a dona Márcia também disse que ainda era muito cedo pra eu ter bebê. Antigamente, quando os pais escolhiam marido pras filhas, nossas bisavós casavam muito cedo, até com doze anos.

Agora é diferente: a mulher estuda, tem uma profissão, escolhe marido pra se casar. E tem só os filhos que ela quiser... Ela ganhou a liberdade!

Só que o Gelcimar não me deu essa liberdade. Decidiu por mim. Eu não sabia de nada e ele nem fez questão de contar. Foi logo transando comigo, feito marido e mulher... E como eu estava no meu dia fértil, resultou no bebê na minha barriga, entendeu, meu diário? Só a dona Márcia me disse a verdade, mas quem devia ter me contado era a minha mãe. Acho que é por isso que ela me olha daquele jeito engraçado; vai ver é remorso, sentimento de culpa, sei lá.

Teria sido tão mais fácil. Eu ia dizer assim pro Gelcimar:

— Não quero transar, não, ainda é muito cedo. Só quando eu crescer é que vou querer ser mãe. Tem muito tempo pra isso.

O Gelcimar sacaneou comigo! Ele já tem vinte anos, devia saber dessas coisas. Claro que ele sabia! E ainda por cima amarelou. Ouvi o pai falando:

— Como é que vai ser pra registrar esse bebê, Carminda? Você acha que devia registrar como filho nosso?

— E pode, José?

—Acho que não. Mas vou registrar no nome da Taís? Sem nome do pai? Ou será que posso pôr o nome do Gelcimar?

 

Melhor você se informar, José. Não vá fazer besteira.

De que vocês tão falando? O pai olhou pra mim e suspirou:

Minha nossa, ainda é uma criança!

Não sou mais criança, não, pai.

— É sim, minha filha. Você é uma criança esperando outra criança...

— Não bebe mais, pai — pedi. — Fico triste.

— Vou tentar — ele disse, e parecia sincero. Logo depois a vó chegou do interior. Ela não sabia

de nada e levou o maior susto. Ficou sentada na bei-radinha do sofá, olhando pra mim. Quando conseguiu falar, perguntou:

— Mas Carminda, como foi isso? A mãe suspirou fundo:

— Imagine que o José trouxe um sobrinho pra morar com a gente, um rapaz bonzinho, bem-educado...

— Quantos anos ele tem?

Que importa a idade dele agora? — a mãe sentou-se ao lado da vó. — Aconteceu, pronto. A senhora tem de me ajudar a segurar essa barra, mãe.

Mas é uma judiação — a vó fez cara de dó. — Ela é só uma menininha... E cadê esse rapaz, quero falar com ele.

Sumiu, mãe, se escafedeu. Nem pra casa dos pais ele voltou. A gente fez o noivado dos dois.

Não me diga que queriam casar a Taís aos doze anos! — a vó até riu. — Vocês ficaram loucos? Casar essa criança, acham que ia dar certo? Quer saber de uma coisa? Ainda bem que o cara sumiu na poeira... Até gostei!

Mas mãe, seria melhor pra menina, pro nenê. O José ia pedir ordem pro juiz de menores...

E acham que ele ia dar? Trabalhei muitos anos na casa de um juiz. Ele comentava essas coisas com a mulher e eu ouvia... A menina tem de ter catorze anos pelo menos para poder casar.

Tem certeza, mãe?

Claro que tenho. Teve um caso parecido com o da Taís, lá na minha cidade, e o patrão negou o pedido. Agora me deixe sozinha com a minha neta que quero falar com ela...

A vó é uma mulher baixinha, forte, e tem um olhar muito carinhoso. Sempre gostei muito dela. Pena que morasse longe e a gente só se visse nas férias ou quando ela vinha pra São Paulo.

Ele maltratou você, Taís?

O Gelcimar, vó? Não, não maltratou, não.

Ele forçou você a fazer o que não queria, minha neta? Seja sincera comigo — insistiu a vó.

Fiquei um tempão pensando, antes, de responder. Tinha me apaixonado pelo Gelcimar, isso eu não podia negar. Ele parecia tão bom, dizia que gostava de mim;

depois era tão bacana ter um namorado mais velho, um rapaz feito, como dizia a mãe. Mas naquele dia, no sofá... Ficava tudo tão confuso quando lembrava disso. Mas, de uma coisa eu tinha certeza:

Ele não me forçou, não, vó. Ele só me enganou. Eu não sabia das coisas. Foi só depois que a dona Márcia me contou tudo...

Quem é dona Márcia?

A coordenadora lá da minha escola. Mas, quando ela me contou, já tinha acontecido. A mãe nunca me falou disso antes. Se eu soubesse, podia escolher, né, vó?

Os olhos da vó ficaram cheios de lágrimas, iguaizinhos aos da dona Márcia:

Acho que sim, Taís. Sabe, a minha mãe também nunca me falou nada, nem eu falei com a sua mãe sobre esse assunto. E ela repetiu o eno com você. Por que será que a gente tem tanta vergonha de falar de coisas tão... tão...

... simples, vó? É isso que a senhora quer dizer? O amor é bonito, não é, vó? Ele não pode ser uma coisa suja, pode?

O amor é bonito, sim, Taís, muito bonito — a vó suspirou fundo. — E não pode ser sujo, não. A gente é que complica tudo, esconde as coisas, faz-de-conta...

Mas a vida da gente é real. E a gente tem o direito de conhecer a verdade sobre o nosso corpo, o que pode acontecer com ele, não é?

— Isso mesmo, Taís, você está certa — a vó me olhou bem de frente. — Nossa, minha neta, você sabe das coisas mais que eu!

 

A vó ainda ficou um mês com a gente, mas precisou voltar para o interior porque o vô tava doente. Fez uma porção de roupinha de bebê: sapatinhos e casaquinhos lindos de croché, de todas as cores. E um xale amarelo pra dar sorte.

Quando a vó foi embora, me deu uma saudade! A gente tinha tido conversas tão legais. Parecia até que éramos duas meninas, da mesma idade!

Quando eu contei isso pra dona Márcia, ela comentou:

Lembra, Taís, o que eu disse outro dia? Que as mulheres não podiam escolher, no passado? Que não sabiam de nada?

Só no passado, dona Márcia? Eu vivo agora e também não sabia de nada, e sou mulher, não sou?

Claro que é mulher! — a dona Márcia riu. — Tenha a idade que for, menstruou já é mulher. É a lei da natureza...

Gostaria de ler uns livros...

Sobre a gravidez, o parto? — adivinhou a dona Márcia.

Isso mesmo. Queria ler uns livros com gravuras bem bonitas, onde aprendesse mais ainda. É tâo bonita essa história da gente, não?

A mais bonita de todas, Taís. Dá pra você ir na biblioteca ou quer que traga aqui?

Ah, será que a senhora trazia pra mim? Tá tão difícil andar com essa barriga, e não queria ver ninguém lá na escola...

Vou fazer melhor — disse ela. — Tenho uns livros ótimos lá em casa. Você sabe, meu marido é professor de Biologia. Eu trago pra você, Taís, mas com uma condição...

Qual é?

Dona Márcia olhou bem nos meus olhos:

De você deixar de uma vez essa bobagem de viver escondida. Se você mesma admite que é uma história bonita, por que vai fugir das pessoas? Você vai ter um filho, só isso. Antes do tempo, é verdade, mas é uma coisa natural, não é nenhuma vergonha...

Mas as outras pessoas não pensam assim. A Cejana, a Miracê e a Deolinda fogem de mim, como se eu tivesse uma doença contagiosa. As vizinhas me olham das jane-!as... Elas me fazem sentir suja.

E você se acha suja, Taís?

Quando elas não me olham, nem cochicham, não me acho, não. Mas é difícil a gente ter certeza, quando todo mundo diz o contrário.

Então vamos fazer uma brincadeira — falou a dona Márcia. — Imagine que você é uma velhinha, mas bem velhinha mesmo... E se casou no começo do século aos doze anos, com um rapaz de vinte, como já disse que se casavam nossas bisavós. Com certeza você teria um filho aos treze e seria respeitada pela vizinhança e até invejada pelas suas amigas.

É, mas eu só tenho doze anos e não tenho marido. Então eu sou... mãe solteira, não é assim que dizem? E o Gelcimar ainda por cima sumiu. Esse bebê nem tem pai!

Claro que tem! — dona Márcia pegou as minhas mãos. — Ou ele foi germinado pelo vento? Gente nasce de pai e mãe, Taís. O fato de o Gelcimar não assumir a paternidade é outra conversa. E, casada ou solteira, você vai ter um filho do mesmo jeito que a sua bisavó teve no começo do século. Só que você se apaixonou pelo seu primo e a sua bisavó provavelmente se casou com alguém que os pais dela escolheram.

— Sabe o que eu acho, dona Márcia? — desabafei. Nem ela nem eu pudemos escolher. O que foi que

mudou, afinal?

— O direito de escolher — rebateu dona Márcia. — Mas, pra isso, é preciso que a mulher conheça seu corpo para que possa tomar decisões.

O tempo foi passando e a barriga crescendo... Onde é que eu ia parar daquele jeito? Tava virando um barril! Dona Rita, a vizinha que trabalhava como parteira numa maternidade, avisou:

— A criança tá baixa, nasce logo... Me deu um frio no estômago!

Pelo menos agora eu sabia, graças à dona Márcia, por onde a criança nasce... Lembra, meu diário? Pela vagina, por onde sai a menstruação todo mês e por onde entrou a semente do bebê. Era tão bom saber que não cansava de lembrar. E ela também me explicou que a mulher tem outro lugar, por onde sai o xixi, chamado uretra. No homem é mais simples, tem um só lugar pra fazer xixi e pôr a semente de gente na mulher, cujo nome é pênis. Dona Márcia me deu os nomes certos.

Ela também disse que a maioria desses nomes veio de uma língua muito antiga, chamada "latim", que ninguém mais aprende na escola.

Dessa língua-mãe vieram muitas línguas-filhas, como a francesa, a espanhola e a portuguesa, a que a gente fala, escreve e lê. Legal, né?

E até provou. Abriu o dicionário e pegou a palavra mãe. Tava lá, certinho: "Mãe, do latim mater". Até as palavras têm mãe. Não é dez?

Trouxe o livro também, como prometeu. Cheio de figuras, uma lindeza! De tudo o que ela havia me contado e mais coisa ainda. Acabei não só aprendendo, como me divertindo...

Sabe, meu diário, por que o bebê chora quando nasce? Não é porque o médico bate no bumbum dele, não. É que, quando o bebê nasce, acaba aquela mordomia dele: é obrigado a respirar. Então o choro é a primeira respiração do bebê, quando ele chega no mundo... Garanto que você também não sabia disso, como eu!

Lembra quando eu falei que assistia àqueles filmes e via a correria na hora que a personagem ia ter nenê? Mandava ferver água, pegar lençóis, tesoura? Pois agora eu já sei por que e vou contar pra você.

A água, fervida para ser esterilizada, depois que fica morna é usada pra lavar o bebê, porque ele nasce todo coberto de um sebo protetor. Também pra limpar os olhinhos dele pra não dar infecção. Os panos, lógico, são pra aparar o bebê quando nasce, e também pra enxugar ele.

E a tesoura? Essa é a melhor parte. É pra cortar o cordão umbilical, deixando alguns centímetros — daí vem o umbigo que todo mundo tem e precisa ser muito bem desinfetado. Senão o bebê pode morrer de uma doença chamada mal-dos-sete-dias... muito comum antigamente; a dona Márcia disse que, infelizmente, ainda acontece, por falta de cuidado após o parto, quando a mãe tem o bebê em casa.

E tem outra coisa curiosa... Lembra que a minha menstruação parou? Então. Durante os nove meses de gravidez, a mulher não menstrua, mas depois que o bebê nasce ela fica menstruada por vários dias seguidos...

E tem também a placenta, lembra? O tal "supermercado do bebê"? Ela também "nasce", logo depois do bebê, pendurada na outra ponta do cordão umbilical. A dona Márcia disse que a placenta é valiosa, protege o bebê de infecções e, depois do parto, serve até pra fazer remédios.

Tá vendo só, não era pra querer aprender tudo mesmo? Afinal aquilo tava acontecendo comigo e com o bebê! Fiquei encantada. E a dona Márcia disse que no ensino médio eu vou estudar todo o corpo humano, nas aulas de Biologia. E que a palavra "biologia" é formada de duas palavras. É uma palavra "gêmea": vem de bio(vida) e logia (estudo) e significa "estudo da vida". Não é dez, meu diário?

 

Fiquei um tempão lendo o tal livro... Quanto mais lia, mais queria ler... Tava estudando o meu corpo, entendendo a minha vida e a do meu filho.

Fiquei tão entusiasmada que até mandei recado pela dona Márcia pras "três mosqueteiras" virem me visitar. Queria compartilhar tudo aquilo com elas.

Você nem imagina minha alegria quando elas vieram aqui em casa. Sem jeito, meio ressabiadas. Vai ver elas pensavam que eu tinha virado um alienígena, tipo o ET!

Daí eu mostrei o livro, e a gente ficou discutindo o assunto... Nossa, elas não sabiam nada mesmo! Então fui explicando, tintim por tintim, pra não esquecer nada. Elas gostaram tanto! Ficaram alegres:

Puxa, Taís, superlegal você contar tudo isso pra gente.

Gosto muito de vocês, fiquei muito triste quando me viraram a cara...

Ah, desculpe, Taís! — disse a Cejana. — Foi por causa da minha mãe. Ela falou que você é um mau exemplo, uma perdida...

Ué, justo eu que nem saio de casa? Como ia me perder?

A minha mãe também me proibiu de falar com

você — continuou a Miracê. — E nem deu muita explicação.

E a minha irmã disse que você é uma tonta, que não serve pra ser minha amiga — completou a Deolinda, chorando.

Pare de chorar, Deolinda! — gritei. — Não morreu ninguém, pô! Vocês continuam minhas amigas ou não?

Claro que sim! — garantiu a Cejana. — Nem que finja que não sou, tá legal? Você tá gozada com essa barrigona...

... parece até aqueles sacos de batatas da feira — riu a Miracê.

Até me sinto uma miss perto de você — a Deolinda parou de chorar e agora se olhava no espelho partido do guarda-roupa.

Suas malcriadas! Foi pra isso que vieram, foi? Pra me sacanear? Dar risada de mim?

Ah, a gente veio porque a dona Márcia falou que você ia mostrar uma coisa muito interessante — disse a Cejana. — E porque a gente também gosta de você, mesmo com barriga e tudo.

Gosta sim — garantiu a Miracê.

Pois se até virei miss perto de você, como é que não ia gostar? — requebrou a Deolinda.

Suas tontas! — eu ri. — Também gosto de vocês. Me abracem, vá...

As três se amontoaram na cama pra me abraçar, e a Deolinda ainda gritou:

— Cuidado, senão esse nenê sai pela boca!

Então, certa manhã, quando a mãe tava saindo pro trabalho, eu berrei:

ACODE, MÃE, QUE O NENÊ VAI NASCER! A mãe até levou um susto:

Tem certeza?

— Tenho. Saiu uma aguaceira lá no banheiro. Agora tô sentindo uma força... TÁ NASCENDO, MÃE!

A mãe me pôs na cama e saiu correndo... Voltou com a dona Rita, a vizinha parteira. Não deu nem tempo de ir pra maternidade, era muito longe.

Então fiz mais um pouco de força... A dona Rita ajudava, me dizendo o que fazer... E, de repente, parecia que eu era um abacate maduro que o caroço queria sair, de qualquer jeito — uma coisa veio vindo, vindo... E explodiu!

A vizinha anunciou, sorridente:

— É uma menina, você tem uma filha, Taís!

Daí a dona Rita deu uma palmada no bumbum da nenê. Ela chorou bem alto e eu pensei: "Direitinho, já tá respirando..."

— Faz mais um pouquinho de força pra sair a placenta — pediu a dona Rita.

A placenta também "nasceu" e caiu bem dentro de um balde que a parteira tinha pedido pra mãe. E eu continuava pensando: "Não é tudo verdade mesmo? Do jeitinho que eu li!"

Estava meio atordoada, mas não perdia nada. Ouvi a dona Rita pedir: "Ferva um pouco d'água, dona Carminda, e me traga uma tesoura bem nova pra eu cortar o cordão aqui da menina".

Tudo direitinho como eu imaginei. A mãe ferveu a água, trouxe a tesoura e a dona Rita cortou o cordão umbilical da nenê, deixando alguns centímetros. Depois, quando a água amornou, desinfetou bem os olhinhos dela, deu banho e enxugou com a toalha nova que a mãe tinha comprado. E vestiu com a roupinha amarela pra dar sorte.

Então, ela comentou:

A Taís teve muita sorte! Foi um parto tão rápido... Que beleza!

Quero que ela se chame Taísa porque saiu de mim — falei.

— Tá bom — disse a mãe e sorriu.

Então não vi mais nada, acho que desmaiei ou dormi.

Quando acordei, tava a nenê ali do meu lado, na cama, enrolada no xale amarelo. Tinha "cara de joelho", era feia pra burro... O cabelo preto como o meu, lisinho.

Fiquei um tempão olhando a Taísa... A minha boneca era bem mais bonita. Será que ela ia ficar bonita igual à minha boneca, ou teria sempre essa cara enrugada de velha? Pus a mão na barriga. Pô, que alívio! Pelo menos dela eu tinha me livrado.

Ontem, tive um sonho tão lindo, meu diário! Estava num lugar onde nunca tinha ido antes, com um lago enorme refletindo a luz do sol. Então fui andando, andando... à volta do lago, quando vi um rapaz dormindo. Cheguei bem devagarinho e dei um beijo nele. Aí ele acordou e perguntou:

É você, Taís?

Sou a Taís, sim, mas quem é você?

Sou aquele que espera por você...

Então, foi gozado, meu diário. Porque ali, no sonho, lembrei daquelas histórias de fadas que a mãe contava quando eu era criança.

Nessas histórias, sempre havia um príncipe que chegava todo bonito num cavalo branco. Só que era o príncipe quem chegava e encontrava a princesa dormindo. E pensei assim: "Nossa, será que ele é um príncipe encantado? Mas ele é quem devia chegar, e quem devia estar dormindo era eu, porque sou a princesa..."

E o mais gozado ainda é que o rapaz leu meu pensamento e falou:

— Não tá trocado não, Taís, agora é assim, agora mudou...

— Mas não podia — eu disse. — Não tinha nada que mudar: você devia chegar e me acordar com um beijo, como nas histórias de fadas.

Então o rapaz sorriu e seus olhos azuis brilharam como as águas do lago refletindo o sol. Daí acordei... com o choro da Taísa. Era de madrugada e ela estava molhada e com fome, que droga!

 

 

 

A gente não tem dinheiro pra comprar fralda descartável, então a Taís usa a de pano mesmo. E a mãe vive dizendo:

— Vá lavar as fraldas da menina, Taís!

Tenho horror de lavar fralda! Ponho até pregador no nariz. Pô, se eu tivesse dinheiro, ia fazer como as mães que eu vejo na televisão, com seus bebês sempre sequinhos. Só trocar a fralda usada e jogar no lixo, meu Deus, que maravilha! A mãe dá risada, diz que pareço até garota-propaganda de fralda descartável.

Ela deixou o trabalho de faxineira pra poder ficar mais comigo e olhar a Taísa. O pior é que arrumou um serviço mais complicado ainda, já disse pra você, agora olha as crianças das vizinhas.

São seis, mais a Taísa, sete. É uma criançada que não acaba mais. Minha casa parece uma creche. É uma creche. As mães dos bebês compram fraldas descartáveis, ufa! Já imaginou se tivesse que lavar fraldas de sete bebês? Ia enlouquecer!

É uma choradeira dos diabos. Também, meu diário, quando um cala a boca, o outro abre o berreiro... Mas são tão bonitinhos! Eu gosto de bebê, só que sete são demais, né? A mãe corre o dia inteiro, esquenta papinha, dá mamadeira e banho, coitada! Tem umas mãos tão grossas! E o pior é que as minhas estão ficando assim também... Minhas mãos eram tão fininhas. Agora a mãe fala: "Passa limão com sal que afina".

Às vezes eu gosto muito da Taísa, mas quando ela acorda de madrugada, chorando, toda molhada, querendo mamar, e, ainda por cima, estraga um sonho bonito daqueles, com um príncipe encantado, fico louca da vida! Tenho vontade de dizer: "Vira pro lado, Taísa, dorme e não enche".

Mas como vou falar assim se ela nem sabe virar pro lado? Fica me olhando com aqueles olhinhos azuis dela, daí me dá uma pena! Levanto e vou esquentar a mamadeira. Quem mandou ser mãe antes do tempo?

 

Meus irmãos, no começo, olhavam ressabiados pra nenê. Depois não resistiram: ficaram vidrados por ela. Vivem trazendo presente. Mas ainda têm uma gana louca do Gelcimar. Queriam até ir atrás dele. A mãe não deixou, já contei isso. Mas eles não esqueceram. Se o Gelcimar aparece, nem quero pensar. É capaz de acontecer uma tragédia!

O Vânderson é mais meu amigo, parece que ficou com pena de mim. Ele fala pro Emerson: "Tenha paciência, já aconteceu mesmo, não tem mais remédio..."

O Vânderson tem uma namorada bonitinha que ele curte muito, a Flavinha. Disse que nunca ia deixar ela numa situação dessas, como fez o Gelcimar.

Já o Emerson não tem namorada firme, não. Namora um monte de garotas. É tão bonito, assim altão, um metro e oitenta, moreno, boa-pinta. Outro dia a mãe falou pra ele:

Vê lá o que apronta com a filha dos outros, hein?

Eu não namoro bobocas como a Taís...

Você que pensa, você que pensa, Emerson! Homem também tem responsabilidade. Essas meninas que você namora têm pais e irmãos como a Taís...

Cuide da Taís, que a senhora não cuidou quando devia, e me deixe em paz — falou e saiu batendo a porta.

A mãe até chorou, coitada. Só queria dar conselho. O Vânderson é mais carinhoso comigo e com a mãe. Não é tão bonito quanto o Emerson, mas tem olhos tão verdes que parece um gato!

O Gelcimar nunca mais voltou. Quer dizer, só mandou uma carta sem o remetente, pra ninguém saber onde ele está. Era até melhor que não tivesse mandado nada, porque foi uma carta tão besta, dizendo que não gosta mais de mim, por isso foi embora, e o casamento não ia dar certo. Nem perguntou do bebê: se nasceu, como chama. E ainda falou pra esquecer dele, que agora está em outra... Imbecil!

Às vezes fico pensando, meu diário. Como será um príncipe encantado de verdade? No sonho não vale, né? Será bonito, assim como o meu irmão Emerson, igual a um artista de novela?

Mas o Emerson tem um gênio tão esquisito. Briga muito comigo e com a mãe. Só respeita o pai, porque tem medo dele. Então não adianta nada. Respeito é bom quando a pessoa tem de verdade, de coração.

O Vânderson é bem diferente, se preocupa com a Flavinha, é carinhoso, um amor de pessoa. E o Gelcimar? Era bonito, um gato: aqueles olhos azuis que pareciam duas bolinhas de gude. Um sorriso lindo. Aquele jeito gostoso de dizer: "Eu gosto muito de você, Taís..." Mas pelo jeito era tudo mentira, porque foi embora.

Então, como será um príncipe encantado, de verdade mesmo? Acho que ser só bonito não chega. Tem que ter... O que mais? O que o Vânderson tem pela Flavinha: carinho, preocupação... amor!

Será que o príncipe das histórias de fadas iria embora no cavalo branco dele, deixando a princesa chorando sozinha? E ainda por cima com um filho na barriga? Nas histórias ele sempre chegava, nunca ia embora — ou então só ia embora com a princesa na garupa...

Será que ser príncipe é nunca ir embora? Ou ir levando a princesa junto? E será que existe mesmo príncipe encantado ou será que faz-de-conta só existe nas histórias de fada, como eu falei pra vó?

Então, por que contam essas histórias pra gente? São tão bonitas... Mas, se não são de verdade, de que adianta a gente escutar? Só pra fingir que pode ser feliz?

Ou será que são de verdade mesmo e tem um príncipe encantado me esperando... Que um dia vou encontrar como no sonho... Aí ele vai dizer assim: "Sou aquele que espera por você, Taís, porque agora tudo mudou".

Puxa, meu diário, ia ser tão bom! Bom é pouco, ia ser...

 

Mas por enquanto eu não tenho príncipe nenhum. Minha vida é ajudar a mãe, cuidar da Taísa; ela dá um trabalhão! Como come, como faz xixi! Até parece máquina de fazer xixi...pô! Acabo de trocar e já está molhada de novo.

A dona Márcia esteve aqui em casa e trouxe um presentinho pra Taísa: uma colherinha torta pra dar papinha. Perguntou de novo quando vou voltar pra escola. Disse que vou pensar. Estou querendo estudar de novo. Tô cheia de só ficar em casa cuidando dos filhos dos outros e da Taísa. Sou muito nova pra isso.

Gosto tanto de ler. A dona Márcia sempre manda livros pra mim da biblioteca lá da escola. A Miracê, a Deolinda e a Cejana vêm trazer escondido, né, porque as mães delas ainda acham que sou má companhia.

Fico lendo na cama até tarde da noite... Cada livro mais bacana que o outro. É tão gostoso. Faço de conta que sou a personagem do livro. Então estou sempre num lugar diferente, com pessoas diferentes, é dez!

Pena que, quando estou no melhor do livro, ou do sonho, a Taísa acorda... Eta nenê chata! E lá vou eu esquentar mamadeira enquanto a mãe grita do quarto:

— Faz a Taísa arrotar, não deixa ela de costas senão pode sufocar...

O pai só resmunga. Ele resmunga o tempo inteiro. Ele parou de beber, graças a Deus, e também gosta muito da Taísa. Vive com ela no colo, quando está em casa, e a Taísa faz aquela festa quando ele chega. Daí acho que ele lembra do Gê e começa a resmungação. Haja paciência!

Sabe, o pai foi lá no cartório comigo e registrou a Taísa só no meu nome. Não pôde pôr o nome do Gelcimar porque ele sumiu. Ficou assim: Taísa da Silva. Eu achei bonito.

Já voltei a usar minhas roupas de antes: meus jeans, minhas minis, que bom! Só fiquei um pouco mais gordinha, mas, com essa correria toda, logo eu emagreço.

 

Olho no espelho, aquele partido do guarda-roupa, e fico perguntando: "Será que mudei?"

Mas a minha cara tá a mesma, a franja meio comprida. Preciso cortar. Sou de estatura média, e meu nariz é arrebitado como o da Taísa. Ou será o dela que é parecido com o meu?

Preciso arrumar outras amigas, aquelas três acho que não dá mais. Tudo escondido, as mães cobrando, quero ter amigas que possam sair comigo na rua, sem complicação. Tomar sorvete na padaria, ir ao cinema, trocar papel de carta, fazer fã-clube do meu cantor preferido.

Não estou doente, nem tenho doença contagiosa. Por que toda essa confusão pra ser minha amiga? Sempre achei a vizinha meio besta, mas ela tem vindo aqui em casa, me convida: "Vamos dar uma volta, Taís? Tá um dia tão lindo! Por que você só fica entocada em casa? A gente leva a Taísa. Faz bem tomar sol".

Gozado, né? As três que eram tão minhas amigas parece que têm medo de mim, como se eu fosse um ET. E a Jacirese é tão legal!

Tá decidido: vou pôr uma roupinha bem bonita na Taísa e vou sair com a Jacirese pra gente tomar sorvete. Será que a Taísa pode tomar sorvete? Ela é tão gulosa!

 

Mudei muito, sabe, meu diário? Descobri até que gosto do meu nome. Fiz treze anos, logo que a Taísa nasceu, mas não teve festa nem nada. Acho que, se convidasse, não vinha ninguém mesmo.

Resolvi dar um jeito na minha vida. Tomei coragem e fui lá na escola falar com a dona Márcia. Ela ficou toda contente:

— Veio pra ficar, Taís?

Não sei, não, dona Márcia, tenho medo.

Medo do quê?

Do que vão falar, a senhora sabe... A dona Márcia me olhou bem de frente:

— Você tem que se decidir, Taís. Ou fica o resto da vida trancada dentro de casa ou então começa tudo de novo...

— É isso aí, quero começar tudo de novo.

— Pois então, o primeiro passo é voltar pra escola. Sem estudo, ninguém faz nada na vida. Pelo menos o ensino fundamental completo você precisa ter. E o ensino médio, se possível. Bom mesmo será você fazer os dois.

— Então a senhora acha que posso voltar mesmo?

— Não só pode como deve. A vida é assim, Taís. A gente tem de encarar de frente. Não se pode fugir o tempo todo.

 

Então é isso, meu diário. A partir de amanhã eu volto pra escola. Seja o que Deus quiser! Estive pensando: se a Cejana, a Deolinda e a Miracê forem amigas de verdade, continuarão sendo amigas, porque o que vale mesmo é a sinceridade.

Se elas acharem que sou má companhia, paciência. Vou ter de arrumar outras amigas. O mundo é tão grande, cheio de gente. Impossível que não consiga novas amigas. Pelo menos uma eu já tenho: a Jacirese.

 

A mãe ficou toda feliz quando eu disse que ia voltar a estudar. E o pai resmungou como sempre:

Quem vai olhar a Taísa?

Eu olho — disse a mãe. — Quem olha seis, olha sete. Você me ajuda depois que voltar da escola, Taís.

Eu posso estudar à noite, mãe.

Não, melhor você voltar no horário a que está habituada. Depois, de noite aqui no bairro é muito perigoso. Ia ter de buscar você na escola e ficava mais difícil.

Tá bom, mãe, deixe eu me formar que arrumo emprego e ajudo a senhora. E juro que algum dia compro a máquina de lavar roupa que a senhora tanto quer...

A mãe não respondeu, mas os olhos dela ficaram marejados de lágrimas.

Amanhã vai ser o meu "dia D", igual àquele lá da guerra, que o professor de História contou. Estou até tremendo de emoção.

Vou levantar cedo, pôr o uniforme, e chegar assim como quem não quer nada:

— Oi, Miracê, oi, Cejana, oi, Deolinda, puxa você está mais magra...

Ela não ficou mais magra coisa nenhuma, e nem vou bajular. Amizade forçada não quero. Quero amizade sincera. Se estiver gorda, vou falar com todas as letras:

Pô, assim que você quer ser modelo? Pra Cejana vou perguntar:

Como vão os planos pra faculdade? E pra Miracê eu vou dizer:

Como é, falta muito pra ser artista de novela? Se virarem a cara, nunca mais falo com elas. Mas se forem legais comigo, vou dar aquela força!

 

Afinal, o que eu quero ser quando crescer? Quer dizer, quando crescer mais um pouco, porque já me sinto uma moça feita. Depois de tudo que passei, parece que sou tão mais velha!

Podia ser enfermeira de berçário: prática de nenê eu tenho de sobra. Sete de uma vez! Cruz-credo, não chega a dose de bebê que eu levei? Sem essa, nega!

Bom, quero ser uma coisa diferente daquelas três, senão vão dizer que sou macaca-de-auditório delas.

Gostei tanto da tal Biologia... Podia até entrar na faculdade pra estudar isso. Já pensou? Ia ser bom demais.

O Emerson, meu irmão mais velho, é mecânico de automóveis. Adora mexer em máquina! Trabalha numa oficina onde consertam aqueles carrões mais lindos, importados. Dizem que é um bom mecânico.

Já o Vânderson é vendedor numa loja de sapatos, mas o sonho dele é estudar Direito. Isso se ele conseguir, pois, se tiver de pagar a faculdade, melou.

Ele me explicou outro dia que, em faculdade gratuita, do governo, só entra quem faz um ensino médio bem forte, porque a concorrência é grande. Todo mundo quer estudar em faculdade famosa e ainda de graça, né?

Então, se o Vânderson não estudar bastante e não tiver muita sorte, vai ficar mesmo só no sonho de ser advogado, porque não pode pagar faculdade.

Eu podia aprender a tocar piano: ser aquelas artistas que se apresentam nos teatros, num palco iluminado, com vestidos lindos... Mas, se não tenho dinheiro nem pra comprar fralda descartável, onde é que vou conseguir um piano?

Tem um conservatório aqui no bairro e dizem que é de graça. Quem sabe tem piano lá dentro e eles emprestam pra gente treinar. Vou dar uma espiada por lá. Não custa tentar...

Sabe, meu diário, o mais gostoso de tudo é a gente ter o tal direito de escolher, como falou a dona Márcia. Aqui estou eu, Taís, decidindo o que quero da vida.

Sou uma menina pobre, mas também tenho o direito de sonhar. E quem sabe realize o meu sonho... É só descobrir o sonho melhor, o mais desejado, e ir em frente, sem medo

Viu mesmo como mudei? Olho no espelho partido do guarda-roupa e digo pra mim mesma:

"Oi, Taís, você tá tão bonita hoje!"

Será que algum dia vou encontrar um príncipe encantado? Como vou reconhecer um príncipe de verdade? Não posso sair por aí perguntando:

"Oi, cara, você é um príncipe?"

Ou posso? Mas pode ter outro jeito de encontrar um príncipe. Fazendo uns testes. Não é assim que a psicóloga da escola fazia? Teste pra saber se a gente gostava de estudar, se vivia bem com a família, se sentia carinho ou raiva por alguém?

Não tenho pressa, não, tenho muito tempo... Ainda sou tão nova! A coisa que mais tenho na vida é tempo. O negócio é deixar rolar e um dia... Um dia eu vou encontrar esse príncipe. Uma pessoa muito especial que vai dizer pra valer:

Eu gosto de você, Taís.

Gosta mesmo, de verdade?

— De verdade. E nunca vou embora. Vou ficar porque me preocupo com você.

— E da Taísa, você também gosta? Percebeu, meu diário? Esse é o teste final.

Ele pode responder de duas maneiras: "Não gosto, não, sinto muito, mas não gosto da Taísa". Ou "Gosto sim, gosto da Taísa também..."

Então, se ele der a primeira resposta, eu digo:

Paciência, também gosto muito de você, mas, se você não gosta da Taísa, nada feito. Tchau, tchau, príncipe. Mas, se ele der a segunda resposta, vou dizer:

Que beleza, você é mesmo o meu príncipe! Cadê seu cavalo que vamos as duas na garupa.

Sou um príncipe moderno, Taís, não tenho cavalo. Ando de ônibus, de metrô, de carro...

Tudo bem. O que importa é que você é o príncipe. Nós duas estamos prontas. Pra onde a gente vai?

Pro paraíso, Taís.

— E onde é o paraíso, príncipe?

— Aqui do lado, é só passar pelo portão...

— Então o que a gente tá esperando? Venha logo, Taísa, não deixe o príncipe esperando...

— Tô indo, mãe... — (Aí ela já tá falando, né?)

O que você acha, meu diário? Ensino a Taísa a me chamar de mãe? Outro dia saímos, ela, eu e a minha mãe. Parou um conhecido na rua, que fazia tempo não via a gente, e perguntou:

Oi, Carminda, ganhou outra menina? A mãe ficou atrapalhada, mas disse:

Não é minha filha não, é minha neta.

O conhecido olhou pra mãe, olhou pra mim, desconversou, ficou sem graça e foi embora.

Não quero que a Taísa passe por minha irmã. Quero que todo mundo saiba que ela é minha filha. Fui eu que fiquei barriguda que nem podia cortar a unha do pé. Fui eu que me senti como um abacate maduro quando sai o caroço... Ela é minha filha, pô! Tá registrada assim lá no cartório. Quem gostar, gostou. Quem não gostar, paciência, que se dane!

Mas, voltando ao príncipe, meu diário... A Taísa então vai dizer: "Tô indo, mãe..." E vem com a malinha dela (a minha, claro, já estava pronta há um tempão!).

Então nós saímos os três (o príncipe não tem mala, ou tem?) pelo portão...

Tem certeza de que aqui é o paraíso, príncipe?

Tenho, Taís. Aqui é o paraíso.

 

Mas nem parece, quer dizer, parece a minha rua. Tudo igual como sempre. Como é que pode ser o paraíso?

Porque a gente passou pelo portão, já disse.

Mas era o portão da minha casa...

Por isso mesmo, Taís. O paraíso não é um lugar fácil: ele é difícil, cheio de desafios, de dúvidas... Se não fosse assim, não seria um paraíso, seria um lugar muito sem graça, não é?

— E dá pra ser feliz? — (essa pergunta vou fazer com certeza).

Mas, sabe, meu querido diário, acho que já sei a resposta. Posso ser feliz sim, muito feliz, porque agora eu aprendi a gostar de mim!

 

                                                                               Giselda Lapola Nicolelis 

 

 

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