Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O REI DO RIO DE OURO / Charles Dickens
O REI DO RIO DE OURO / Charles Dickens

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Numa remota e montanhosa região da Estíria, houve noutros tempos um vale da maior e mais surpreendente fertilidade. Era completamente rodeado de montanhas escarpadas e rochosas cujos picos muito altos estavam sempre cobertos de neve e de onde corriam em constantes cataratas inúmeras torrentes. Uma destas montanhas era tão alta que, quando o sol se punha para tudo o mais - e já em volta dominava a escuridão - ainda os seus raios brilhavam intensamente sobre o rio que se despenhava do seu cume, dando-lhe o aspecto de um chuveiro de ouro. Por esse motivo o povo daqueles sítios chamava-lhe o Rio de Ouro. Era estranho que nenhuma daquelas torrentes ia cair no vale, mas todas desciam pelos outros lados dos montes e serpenteavam através de vastas planícies e cidades populosas. As nuvens eram impelidas tão constantemente para os picos cobertos de neve e ficavam tanto tempo por sobre aquela concavidade, que, nas épocas das grandes secas e do calor, quando os campos próximos estavam queimados, ainda chovia no valezinho; as suas colheitas eram tão abundantes, e o seu feno tão alto, e as suas maçãs tão vermelhas, e as suas uvas tão roxas, e o seu vinho tão rico, e o seu mel tão doce, que era uma maravilha para quem os possuía e todos o conheciam pelo nome de Vale do Tesouro.

.
.
.
.
.
.

Todo este vale pertencia a três irmãos chamados Schwartz, Hans e Gluck. Schwartz e Hans os dois irmãos mais velhos, eram muito feios, de sobrancelhas salientes, olhos pequenos e baços, sempre semicerrados para que ninguém pudesse ver o que eles pensavam e eles vissem o que pensavam as outras pessoas. Viviam da lavoura do Vale do Tesouro e eram muito bons lavradores. Matavam tudo o que não compensasse o que comia. Matavam os melros, porque bicavam a fruta; matavam os ouriços para não sugarem as vacas; envenenavam os grilos para não comerem as migalhas na cozinha e matavam as cigarras que costumavam cantar todo o Verão em cima das limas. Faziam trabalhar os criados sem lhes pagar, até que eles se recusavam a isso; então questionavam com eles e mandavam-nos embora sem lhes dar absolutamente nada. Seria muito estranho se, com uma propriedade daquelas e semelhante sistema de se governarem, não enriquecessem. E enriqueceram. Em geral arranjavam as coisas para conservar o trigo em seu poder até que ele encarecia e então vendiam-no pelo dobro do que ele valia; tinham montões de ouro no chão da sua casa, mas não constava que tivessem alguma vez dado dinheiro ou alguma côdea, de esmola a alguém. Nunca iam à missa, resmungavam sempre que pagavam as décimas e, numa palavra, eram tão cruéis e tinham tão mau génio que as pessoas que precisavam lidar com eles os tinham alcunhado de Irmãos Negros. Gluck, o mais novo, era absolutamente diferente dos irmãos, tanto no feitio como no aspecto. Não tinha mais de doze anos, era louro, de olhos azuis, e benevolente para as pessoas e para os animais. Claro que não se dava muito bem com os irmãos, ou, por outra, os irmãos não se davam muito bem com ele. Em geral incumbiam-no do honroso trabalho de virar o espeto, quando havia alguma coisa para assar, o que não era frequente, porque, para fazermos justiça aos irmãos, devemos dizer que eles eram pouco mais generosos consigo próprios do que com as outras pessoas. De outras vezes encarregavam-no de limpar os sapatos, o chão e a louça, apanhando de quando em quando os restos que ficavam nas travessas, como gratificação, e muita pancada para ser educado. As coisas continuaram assim durante bastante tempo, até que, por fim, veio um Verão muito húmido e tudo se transformou nos arredores do vale. Mal tinham acabado de colher o feno quando as medas foram levadas para o mar por uma inundação; a saraiva despedaçou as vinhas; a geada negra queimou o trigo e só no Vale do Tesouro tudo continuou bem como de costume. Assim como tinha chovido ali quando não chovia noutros lados, assim fez sol quando não fazia noutros lados. Todos iam comprar trigo à herdade e se iam embora maldizendo os Irmãos Negros. Estes pediam tudo quanto queriam pelo trigo e davam-lhes, excepto os que andavam a pedir esmola e morriam à sua porta, sem que eles mesmos dessem por isso. Aproximava-se o Inverno e tempo frio, quando, um dia, tendo saído os dois irmãos, Gluck ficou a tomar sentido no assado, com a recomendação de não dar nada a ninguém nem deixar entrar ninguém. Gluck sentou-se ao pé do lume, porque estava muito frio, chovia e a cozinha era desconfortável. Virou e revirou o espeto até que o assado ficou louro e apetitoso. - Que pena os meus irmãos nunca convidarem qualquer pessoa para jantar! - pensou Gluck. - Estou certo que nesta ocasião em que tanta gente só tem pão seco, seria uma satisfação ter mais alguém à nossa mesa. Nesse momento sentiu dar na porta duas pancadas que, embora fortes e abafadas como se o martelo estivesse amarrado, mais pareciam empurrões do que pancadas. - Deve ser o vento! - disse Gluck consigo próprio. - Ninguém se atreveria a bater duas vezes à nossa porta. Mas não era o vento e logo em seguida bateram outra vez com mais força, e, caso estranho! como se quem batia estivesse apressado e não receasse as consequências. Gluck abriu a janela e debruçou-se para ver de que se tratava. Era um senhor com o aspecto mais extraordinário que ele tinha visto em toda a sua vida. Tinha um grande nariz levemente acobreado, as faces muito redondas e vermelhas, e não custava a acreditar se dissessem que ele tinha passado as últimas quarenta e oito horas a soprar um lume difícil de acender. Os olhos brilhavam-lhe alegremente através das pestanas compridas e sedosas. O bigode tinha as pontas encaracoladas como sacarolhas, dos dois lados da boca, e o cabelo, de uma cor grisalha muito curiosa, chegava-lhe aos ombros. Tinha cerca de quatro pés e seis polegadas de altura e trazia na cabeça um barrete de bico, quase do tamanho dele, enfeitado com uma pena preta de uns três pés de comprimento. O seu gibão tinha a aba muito comprida, atrás, lembrando uma cauda de andorinha excessivamente exagerada, mas estava meio escondido pelas pregas grossas de uma enorme capa preta, que devia ser demasiado grande para tempo calmo, visto que o vento, assobiando em volta da casa, lha levava para cima a uma altura quatro vezes maior do que a dele. Gluck estava surpreendido pelo estranho aspecto do visitante que ficou sem se mexer nem dizer palavra, até que o velhote, depois de bater novamente e com mais força ainda à porta, se voltou para agarrar a capa que esvoaçava ao vento. Neste movimento viu a cabeça loura de Gluck fora da janela e chamou: - Olha! Isso não é maneira de atender quem bate à porta. Deixa-me entrar que estou molhado da chuva. Era verdade, o senhor estava muito molhado. A pena do barrete caía como a cauda de um cãozinho pequeno, sovado, e escorria como um chapéu de chuva; das pontas do bigode a água corria-lhe para dentro das algibeiras do colete, e dali para o chão como se fossem ribeirinhos. - Desculpe, senhor! - disse Gluck. - Tenho muita pena, mas não posso. - Não podes o quê? - perguntou o velhote. - Não posso deixá-lo entrar, senhor. Não posso, na verdade. Os meus irmãos matavam-me com pancada se eu pensasse em semelhante coisa. O que quer, senhor? - O que quero? - retorquiu o outro petulantemente. - Quero lume e abrigo. Tens aí um grande lume a arder a crepitar, sem ninguém que o aprecie; deixa-me entrar, não ouves? Só quero aquecer-me. Nesta altura já Gluck tinha tido a cabeça muito tempo fora da janela e começava a sentir que estava na verdade bastante frio. Quando se voltou e viu o fogo a crepitar e a arremessar as suas labaredas brilhantes pela chaminé acima, como se lambessem as costeletas da apetitosa peça de carneiro, sentiu-se comovido, pensando que ninguém se utilizava dele e disse consigo: - Na verdade parece muito molhado e vou deixá-lo entrar só por um quarto de hora. Foi à porta e abriu-a. Logo que o senhor entrou sentiu-se na casa um pé-devento que fez oscilar as chaminés. - És um bom rapaz - disse o velhote. - Não te importes com os teus irmãos; eu falarei com eles. - Não, senhor! Não faça semelhante coisa! - pediu Gluck. - Não posso deixálo estar até que eles venham; isso seria a minha morte. - Meu Deus! Tenho pena de ouvir isso. Quanto tempo posso estar? - Só até eu acabar de assar o carneiro, que já vai estando muito adiantado! - replicou Gluck. O velhote deu umas passadas pela cozinha e sentou-se junto do lume. O extremo do barrete tocava na parte de cima da chaminé, porque era demasiado alto para estar dentro de casa. - Aqui depressa enxugará, senhor - disse Gluck sentando-se outra vez a assar o carneiro. Mas o senhor não se enxugou. Pelo contrário, o fato continuou a deixar cair pingos entre as cinzas, e o lume, espirrando, começou a enegrecer e a arrefecer. Nunca se tinha visto uma capa como aquela; de cada prega corria água como de uma goteira. - Desculpe, senhor - disse Gluck depois de ter visto durante um quarto de hora a água a correr em longos regatinhos prateados pelo chão da cozinha não posso tirar-lhe a sua capa? - Não, obrigado - respondeu o velhote. - Nem o seu barrete? - Estou bem assim. Obrigado! - tornou o outro já mal-humorado. - Mas... senhor... Desculpe - disse Gluck hesitante. - Mas... na verdade, senhor... está... a apagar o lume! - Mais tempo levará a assar o carneiro! - respondeu o visitante. Gluck estava muito surpreendido com aquele procedimento, que era um misto de frieza e de humildade, e voltou às suas meditações durante uns cinco minutos. - Este carneiro tem muito bom aspecto - observou por fim o velhote. - Não me podes dar um bocadinho? - É impossível, senhor. - Tenho imensa fome, pois nem ontem nem hoje comi nada. Certamente não darão por falta de um bocadinho da perna. Falava numa voz tão triste que o pequeno se comoveu.
- Os meus irmãos prometeram que me dariam hoje uma fatia - disse. Posso dar-lhe essa, mas mais, não. - És um bom rapaz! - repetiu o velho. Então Gluck aqueceu um prato e afiou uma faca enquanto pensava: - Não me importo que me batam por isto! No momento em que cortava uma grande fatia do carneiro sentiu-se uma forte pancada na porta. O velhote saltou do pé da chaminé, como se de repente sentisse calor demais. Gluck esforçou-se por tornar a colocar a fatia no sítio de onde a tinha tirado e correu a abrir a porta. - Por que nos deixaste estar à espera tanto tempo? - perguntou Schwartz entrando e arremessando o guarda-chuva para a cara de Gluck. - Porquê, meu vadio? - perguntou Hans dando-lhe um tremendo murro na orelha, enquanto seguia atrás do irmão. - Louvado seja Deus! - disse Schwartz já dentro de casa. - Amem! - respondeu o velhote, que tinha tirado o barrete e estava no meio da cozinha curvando-se em reverências tão rápidas quanto possível. - Quem é este homem? - perguntou Schwartz pegando num rolo de estender a massa e voltando-se para Gluck com ar furioso. - Não sei quem é! - respondeu Gluck aterrorizado. - Como entrou cá? - berrou Schwartz. - Não sei - disse Gluck humildemente. - Ele estava tão molhado!... O rolo da massa desceu sobre a cabeça de Gluck, mas no mesmo instante o velho estendeu o barrete, que aparou a pancada; esta fez espalhar a água por toda a casa. O mais extraordinário de tudo foi que, logo que o rolo tocou no barrete, se escapou da mão de Schwartz, redemoinhando como uma palha ao vento, e caiu no canto mais afastado da casa. - Quem é o senhor? - perguntou Schwartz dirigindo-se ao velhote. - O que faz aqui? - disse Hans por sua vez. - Sou um pobre homem - respondeu modestamente o desconhecido - e como vi através da janela um lume tão bom, pedi abrigo durante um quarto de hora. - Nesse caso tenha a bondade de sair outra vez! - ordenou Schwartz. - Já temos água que chegue na cozinha, sem fazer dela um secadouro. - Está um dia muito frio para porem assim uma pessoa na rua; olhem para o meu cabelo grisalho! Este chegava-lhe aos ombros, como já dissemos. - Já o vi! - respondeu Hans. - Chega para se aquecer. Mexa-se! - Tenho muita fome, senhores. Não me podem dar um bocadinho de pão antes de me ir embora? - Pão? - disse Schwartz. - Julga que não temos que fazer do nosso pão senão dá-lo a uma pessoa de nariz encarniçado como o senhor?
- Por que não vende a pena do seu barrete? - alvitrou Hans desdenhosamente. Ponha-se a andar! - Só um bocadinho! - suplicou o velhote. - Rua! - gritou Schwartz. - Por favor, senhores! - Suma-se da minha vista! - exclamou Hans, agarrando-o pelo colarinho. Mas, mal lhe tocou, seguiu o caminho do rolo da massa, dando voltas no ar até que foi parar ao mesmo canto. Então, Schwartz, que estava muito zangado, correu para o desconhecido no intuito de o empurrar para a rua, mas, assim que lhe tocou, foi, como Hans e o rolo, parar ao canto, e bateu com a cabeça na parede ao cair. Ali ficaram pois os três. O velhote rodou também com grande velocidade, mas para o canto oposto e, uma vez lá, continuou a andar de roda até que a sua grande capa lhe ficou toda enrolada em volta do corpo; meteu o barrete na cabeça muito à banda, porque o tecto não tinha altura para ele ficar direito, torceu de novo as pontas do bigode e disse com uma grande indiferença: - Muito bom dia, meus senhores. À meia-noite cá estarei outra vez e, depois de me terem recebido tão bem, por certo não se admiram se essa for a última visita que lhes faço. - Se o apanho aqui mais alguma vez... resmungou Schwartz, meio assustado, saindo do canto. Mas, antes de ele poder acabar a frase, o desconhecido saiu, batendo com a porta. No mesmo instante o farrapo de uma nuvem passou pela janela, redemoinhou e afastou-se em direcção ao vale, tomando toda a espécie de formas. Deu voltas e voltas até que finalmente se desfez num enorme aguaceiro. - Bonito serviço, senhor Gluck! - disse Schwartz. - Ponha o carneiro numa travessa. Se o torno a apanhar numa destas... Mas por que diabo está o carneiro partido? - Prometeste-me uma fatia, irmão, bem sabes! - murmurou Gluck. - E então cortaste-a quente, para ficares com o molho todo! Não será tão depressa que te prometo semelhante coisa outra vez. Sai daqui, e faz favor de esperar na carvoeira até que eu te chame. Gluck foi-se embora muito triste. Os irmãos comeram todo o carneiro que quiseram, fecharam o resto no armário e puseram-se a beber, a beber. Que noite aquela! O vento assobiava e a chuva caía sem interrupção. Os dois irmãos beberam tanto que mal puderam fechar as portas interiores das janelas e correr as duas trancas da porta antes de irem para a cama. Habitualmente dormiam no mesmo quarto. Quando bateu a meia-noite, um enorme barulho acordou-os e a porta abriuse com tal violência que toda a casa estremeceu. - O que é isto? - perguntou Schwartz dando um pulo na cama.
- Sou eu! - disse o desconhecido dessa tarde. Os dois irmãos sentaram-se na cama e ficaram a olhar na escuridão. O quarto estava cheio de água e, à luz de um raio de luar enevoado, que conseguia entrar por um buraco da janela, distinguiram no meio da espuma uma bolha de água flutuando, sobre a qual, recostado como na mais luxuosa almofada, estava o velhote com barrete e tudo. Agora já podia ter o barrete a direito, porque a casa não tinha tecto. - Desculpem-me incomodá-los - disse ele ironicamente. - Talvez as vossas camas estejam húmidas e seja melhor passarem para o quarto do vosso irmão, que ainda tem tecto. Não precisaram ouvir isto duas vezes. Cheios de medo e molhados até aos ossos, correram para o quarto de Gluck. - O meu cartão de visita fica sobre a mesa da cozinha - disse o velhote. Lembrem-se que é a última visita. - Oxalá assim seja! - resmungou Schwartz com um arrepio. A bolha de água desapareceu. Finalmente rompeu o dia e, de manhã, os dois irmãos olharam através da janela do quarto de Gluck. O Vale do Tesouro estava transformado num desolado montão de ruínas. A cheia tinha levado árvores, colheitas e gado, deixando em seu lugar uma enorme extensão de areia vermelha e lama acinzentada. Apavorados e a tremer, os dois irmãos encaminharam-se para a cozinha. A água tinha entrado no primeiro andar; trigo, dinheiro, quase tudo o que podia ser arrastado, tinha desaparecido, mas na mesa da cozinha tinha ficado um cartão branco sobre o qual se via em grandes letras estas palavras: o senhor vento sudoeste.
O Senhor Vento Sudoeste cumpriu a sua palavra; depois da visita que já contámos não voltou mais ao Vale do Tesouro, e, o que era pior, tinha tanta influência junto dos seus parentes, todos os Ventos Húmidos em geral, e serviu-se tão bem dela, que eles seguiram a mesma linha de conduta. Assim, entrava e saía o ano, sem nunca mais tornar a chover no Vale do Tesouro. Se bem que tudo continuasse verde e florescente nas planícies em volta, os campos dos três irmãos eram um deserto. O que outrora tinha sido o mais rico solo do reino, transformou-se num traiçoeiro montão de areia vermelha. Então os três irmãos, sem poderem suportar por mais tempo tanta adversidade, abandonaram o seu tão desvalorizado património, para procurarem meio de ganhar a vida nas cidades grandes e populosas. Todo o seu dinheiro tinha desaparecido, ficando apenas algumas peças da baixela de ouro, restos da sua riqueza mal adquirida. - E se nos fizéssemos ourives? - lembrou Schwartz a Hans, quando entravam numa grande cidade. - É um bom negócio e podemos misturar uma grande quantidade de cobre no ouro, sem que ninguém dê por isso. O outro achou a ideia esplêndida e, combinado tudo, alugaram um forno e fizeram-se ourives. Porém, duas circunstâncias afectaram o negócio: em primeiro lugar a maioria das pessoas não gostava do ouro acobreado e, em segundo, os dois irmãos sempre que vendiam alguma coisa deixavam o mais novo a tomar conta do forno, e iam para a taberna do lado gastar todo o dinheiro em vinho. Deste modo derreteram todo o ouro sem guardar dinheiro suficiente para comprar mais. Em pouco tempo ficaram reduzidos a uma grande caneca que um tio tinha dado ao pequeno Gluck. O rapazinho gostava muito dela e por nada no mundo queria vê-la desaparecer, embora só lhe servisse para beber leite ou água. A caneca tinha um aspecto muito extraordinário; a asa era formada por duas argolas de cabelo dourado, tão fino que mais pareciam fios de seda do que de metal; estas argolas desciam em madeixas a juntar-se com uma barba e suíças do mesmo requintado trabalho, que rodeavam uma cara de ouro, o mais avermelhado que se podia imaginar, na frente da caneca, e cujos olhos pareciam dominar tudo em redor. Era impossível beber pela caneca sem que eles se fitassem na pessoa que bebia, e Schwartz assegurava que já uma ocasião, em que a tinha bebido cheia de vinho do Reno dezassete vezes a fio, a tinha visto piscar o olho. Quando chegou a vez da caneca ser transformada em colheres, o pobre Gluck sentiu despedaçar-se-lhe o coração; mas os irmãos riram-se dele, arremessaram a caneca para o cadinho e foram para a taberna, deixando-o como de costume incumbido de fazer o ouro em barras quando estivesse pronto para isso. Depois de eles saírem. Gluck deitou um olhar de desdita ao amigo que estava dentro do cadinho. As madeixas do cabelo tinham desaparecido. Só restava agora o nariz vermelho e os olhos brilhantes, que pareciam mais vingativos do que nunca. «Não admira!» - pensou Gluck. - Tendo sido tratado da maneira que foi! Encaminhou-se tristemente para a janela e sentou-se ali para apanhar o fresco da tarde e fugir ao bafo quente do forno. Desta janela via-se a cumeada das montanhas, as quais, como atrás se disse, dominavam o Vale do Tesouro, e de entre todos sobressaía o pico de onde jorrava o Rio de Ouro. Era ao anoitecer e quando Gluck se sentou à janela viu os cumes das montanhas todos vermelhos à luz do sol poente. Em volta havia nuvens cor de fogo, que pareciam labaredas, e o rio, mais brilhante que todas elas, caía como uma coluna de ouro puro de precipício em precipício, como um duplo arco-íris que se estendesse pela encosta, tornando-se ora de um vermelho mais forte ora mais desmaiado por entre a espuma. Depois de ter olhado para ali durante alguns momentos, Gluck exclamou: - Que bom seria se aquele rio fosse, na verdade, todo de ouro! - Não. Estás enganado. Gluck! - disse perto do seu ouvido uma voz clara e metálica. - Deus meu! O que é isto? - perguntou o rapaz dando um salto. Não havia ali ninguém. Procurou por todo o quarto, debaixo da mesa, atrás de si. e, quando se certificou de que estava sozinho, voltou a sentar-se junto da janela. Desta vez não falou, mas não pôde deixar de pensar nas vantagens que haveria se o rio fosse realmente de ouro. - De modo nenhum, meu rapaz! - disse a mesma voz ainda mais alto. - Deus meu! - tornou Gluck. - O que é isto? Rebuscou todos os cantos e armários; como não viu nada, começou a andar de roda, de roda, tão depressa quanto podia, no meio do quarto, pensando que estaria alguém por trás dele, e ouviu de novo a mesma voz, agora já não a falar, mas a cantar alegremente: «Lara-lira-lá». Não dizia palavra, mas cantarolava numa melodia cheia de vivacidade, que lembrava a água a ferver numa chaleira. Gluck olhou para fora da janela. Não; era certamente dentro de casa. Em cima ou em baixo? Não podia deixar de ser naquele mesmo quarto, e cada vez mais apressada e em notas mais claras. «Laralira-lá». De repente, Gluck notou que parecia ouvir-se melhor perto do forno. Aproximou-se e olhou para dentro. Sim, o som vinha não só de dentro do forno, mas de dentro do cadinho. Destapou-o e deu um salto, assustado, porque era na verdade dali que saía a voz. Conservou-se durante um ou dois minutos no canto mais distante da casa, com as mãos na cabeça e a boca aberta, até que a voz deixou de cantar e pronunciou com grande clareza: - Ouve! Gluck não respondeu. - Ouve, meu rapaz! - tornou a voz. Gluck chamou a si todas as suas energias e encaminhou-se para o cadinho; tirou-o de cima da fornalha e olhou para dentro. O ouro estava todo derretido e, ao de cima, tão liso e polido como um rio; mas, ao olhar para lá, Gluck não viu a sua cabeça reflectida. Em lugar dela, o seu olhar distinguiu no fundo do cadinho o nariz vermelho e os olhos penetrantes do seu velho amigo da caneca; um nariz mil vezes mais vermelho e uns olhos mil vezes mais penetrantes do que nunca. - Vamos, Gluck, meu rapaz - disse a voz lá do fundo do cadinho. - Vaza-me que já estou pronto.
Mas Gluck estava de tal maneira atónito que não podia fazer nada. - Vaza-me, já te disse! - tornou a voz muito mal-humorada. Gluck continuou sem se mover. - Não me queres vazar? - repetiu a voz irritadíssima. - Estou demasiado quente. Com um esforço violento, Gluck conseguiu mexer os membros, agarrou no cadinho como para vazar o ouro, mas, em lugar de correr líquido, saíram de lá primeiro duas perninhas amarelas, logo a aba de um casaco, depois dois braços dobrados, e finalmente a bem conhecida cabeça do seu amigo da caneca. Todos estes artigos se juntaram à medida que iam rolando e ficaram depois de pé no chão do quarto, com a forma de um anãozinho de ouro, com cerca de pé e meio de altura. - Muito bem! - disse o anão estendendo primeiro as pernas e os braços e logo sacudindo a cabeça para cima e para baixo, tão depressa quanto podia, durante cinco minutos, sem parar. Parecia querer certificar-se se as suas articulações se moviam bem, enquanto Gluck o olhava mudo de espanto. Tinha vestido um gibão golpeado, do mais fino tecido de ouro e de fios de cores muito brilhantes, e que em conjunto lembravam madrepérola; sobre este gibão caía-lhe o cabelo e a barba até quase aos pés, em ondas de uma delicadeza tão requintada que mal se podia dizer onde acabavam, ou se se desfaziam no ar. As feições distinguiam-se nitidamente; eram grosseiras, e a cor da pele acobreada dava a impressão que o anãozinho era uma pessoa mal disposta e intratável. Quando acabou de se examinar a si próprio. voltou-se para Gluck e, depois de o fitar com os seus olhos penetrantes um ou dois minutos, disse: - Não, Gluck. Estás enganado, meu rapaz! Isto era de certo um modo disparatado de começar a conversa. Podia na verdade supor-se que se referia ao seguimento dos pensamentos de Gluck, visto que fora a estes que a primeira observação do anão tinha respondido. Mas, fosse como fosse, Gluck não se sentia inclinado a discutir e perguntou, humilde e submisso: - Acha que estou, senhor? - Decerto que sim, afirmou o anão. Dito isto, puxou o boné até às sobrancelhas e começou a passear no quarto de um lado para o outro, levantando muito as pernas e assentando os pés com grande força. Esta pausa deu tempo a Gluck para coordenar ideias; não vendo razão para temer o seu pequeno visitante e sentindo maior curiosidade do que espanto, aventurou-se a fazer esta pergunta bastante melindrosa: - Diga-me, por favor, senhor, era a minha caneca? Ouvindo isto, o homenzinho voltou-se bruscamente, encaminhou-se para Gluck e, empertigando-se, disse: - Eu sou o Rei do Rio de Ouro. Em seguida tornou a voltar-se, deu mais um ou dois passeios de cerca de seis pés, para dar tempo a que se desvanecesse a emoção causada no seu interlocutor pelo que acabava de dizer. Depois encaminhou-se outra vez para ele e parou na sua frente como se esperasse um comentário à sua afirmação. Gluck decidiu dizer alguma coisa, desse por onde desse, e perguntou: - Vossa Majestade está bem? - Ouve! - disse o anão sem se dignar responder a esta frase tão cortês. Sou o Rei daquilo a que vocês, mortais, chamam o Rio de Ouro. Vês-me sob esta forma devido à maldade de um rei mais forte do que eu, e de cujo encanto acabas de me libertar. O que sei a teu respeito e do teu comportamento para com os teus dois maus irmãos, leva-me a proteger-te; por conseguinte, ouve o que vou dizer-te: para aquele que subir até o topo da montanha onde nasce o Rio de Ouro, e deitar na nascente do rio três gotas de água benta, para ele e só para ele, o rio transformar-se-á em ouro. Mas o que não conseguir fazer pela primeira vez, também o não fará pela segunda, e, se alguém deitar no rio água que não seja benta, aquele cobrilo-á e transformá-lo-á numa pedra negra. Dizendo isto, o Rei do Rio de Ouro voltou-se e caminhou deliberadamente para o ponto mais esbraseado da fornalha. A sua figura tornou-se vermelha, branca, deslumbrante de luz rósea, tremeu e desapareceu. O Rei do Rio de Ouro tinha-se evaporado. - Oh! - gritou o pobre Gluck, correndo, na esperança de o ver subir pela chaminé. - Meu Deus! Meu Deus! A minha caneca! A minha caneca! A minha caneca!
Mal o Rei do Rio de Ouro saiu, do estranho modo que contamos no último capítulo, Hans e Schwartz entraram em casa a gritar e completamente embriagados. Ao descobrirem a perda da última peça da sua baixela de ouro, recobraram juízo bastante para baterem em Gluck durante um quarto de hora. Passado este tempo, cada um deles deixou-se cair numa cadeira e quis ouvir o que Gluck tinha para dizer em sua defesa. Gluck contou-lhes a sua história, da qual não acreditaram uma palavra. Tornaram a bater-lhe até sentirem os braços cansados, e foram cambaleando para a cama.
Contudo, na manhã seguinte, a exactidão com que o rapaz tornou a contar a sua história fê-los acreditar. Em consequência disto, os dois irmãos, depois de questionarem, durante muito tempo, sobre qual deles devia ser o primeiro a tentar fortuna, desembainharam as suas espadas e começaram a combater. O barulho da contenda alarmou a vizinhança, que, vendo-se incapaz de os apaziguar, chamou a polícia. Ouvindo isto, Hans conseguiu fugir e esconder-se, mas Schwartz foi levado diante do magistrado, multado por alterar a ordem e, como na noite anterior tinha gasto em vinho os últimos cobres, ficou preso, até poder pagar a multa. Quando soube esta notícia, Hans, satisfeitíssimo decidiu partir imediatamente para o Rio de Ouro. O mais difícil era obter a água benta. Foi pedi-la ao padre, mas o padre não podia dar água benta a uma pessoa tão mal comportada; por isso Hans foi nessa noite assistir às vésperas pela primeira vez na sua vida e, fingindo molhar a mão para se persignar, furtou um copo cheio de água e voltou para casa, radiante. Na manhã seguinte levantou-se antes do nascer do sol, deitou a água benta num frasco e pôs este, com duas garrafas de vinho e um bocado de carne, num cesto. Atirou tudo para as costas, agarrou no seu pau ferrado e partiu para a montanha. Quando ia sair da cidade, passou pela prisão e olhou para as janelas. Quem havia ele de ver espreitando pelas grades com ar muito desconsolado? Schwartz, o próprio irmão. - Bom dia, irmão! - disse Hans. - Queres alguma coisa para a Rei do Rio de Ouro? Schwartz rangeu os dentes de raiva e sacudiu as grades com toda a força, mas Hans riu-se dele e aconselhou-o a ficar quieto até ao seu regresso. Em seguida puxou o cesto para baixo, tirou o frasco da água benta, chocalhou-o perto da cara do irmão até a água fazer espuma, e foi-se embora na melhor das disposições. Na verdade, a manhã estava para fazer feliz qualquer pessoa, mesmo que não tivesse de ir à procura do Rio de Ouro. Do vale envolto em neblina erguiam-se as montanhas enormes, com as encostas em tons de verde pálido que mal se distinguiam do nevoeiro, e subindo gradualmente até lhes dar a luz do sol, que punha como que pinceladas de cores vivas ao longo dos precipícios, e penetrava com os seus raios baixos por entre a verdura dos pinheiros. Muito mais acima elevavamse as rochas enormes, tomando as mais fantásticas formas; aqui e além o reflexo do sol na neve assinalava as arestas das suas fendas, que pareciam chamejar. Mais longe ainda e mais alto que tudo isto, quase indistintos na luz da manhã, mas puros e imutáveis, destacavam-se no céu azul os picos onde a neve é eterna. O Rio de Ouro, que nascia numa das mais altas e mais nevadas elevações, estava agora quase na sombra. Só os mais altos jactos de espuma, que se elevavam como fumo acima da linha ondulante da catarata, flutuavam como frágeis grinaldas ao vento da manhã. Era ali, e ali apenas, que se fixavam os olhos e os pensamentos de Hans. Esquecido da distância que tinha de andar, pôs-se a caminho num passo demasiado rápido, que o fatigou antes de ter escalado a primeira colina. Além disso, surpreendeu-o sobremaneira ver que uma enorme geleira, cuja existência ignorava por completo, apesar de conhecer bem a montanha, o separava ainda da nascente do Rio de Ouro. Entrou nela com a audácia de um alpinista prático, mas não sem pensar que nunca tinha atravessado outra tão perigosa. O gelo era muito escorregadio e de todas as suas fendas vinha um barulho semelhante ao da água rebentando da terra; não monótono ou baixo, mas variado e alto, lembrando melodias selvagens, depois descendo em tons melancólicos, como gritos ou gemidos de vozes humanas em desespero e dor. O gelo estava estilhaçado e tinha formas confusas, mas nenhuma igual às que costumava ter. Aquelas lembravam caras de pessoas, contorcidas e desdenhosas. Miríades de sombras enganadoras e de luzes pálidas moviam-se através das arestas mais altas, deslumbrando e encandeando a vista do viajante, cansando-lhe os ouvidos e entontecendo-o com os ruídos constantes das águas ocultas. Estas dolorosas circunstâncias agravavam-se à medida que avançava. O gelo estalava e abria-se em fendas aos seus pés; agulhas estremeciam à sua volta e caíam em estilhas no caminho; embora já muitas vezes tivesse encarado perigos assim, nas mais terríveis geleiras e com muito pior tempo, foi com um sentimento opressivo de horror que saltou a última fenda e se arremessou, esgotado e a tremer de frio, para a terra firme da montanha. Tinha-se visto obrigado a abandonar o cesto das provisões por se tornar um perigoso estorvo ao atravessar a geleira, e não tinha agora maneira de se alimentar senão quebrando e comendo algum bocadito de gelo. Isto, ainda assim, aliviou-lhe a sede. Uma hora de repouso deu-lhe novo alento, e com o seu indomável espírito de avareza recomeçou a laboriosa jornada. O caminho, agora, seguia pela ladeira de uma montanha de rochas vermelhas e escalvadas, sem o mais leve vislumbre de erva que facilitasse o andar, ou um ângulo saliente, cuja sombra o protegesse do sol ardente. Passava do meio-dia e os raios do sol incidiam no caminho íngreme. Não corria a mais leve aragem e o calor era intenso. Uma sede horrível agravou em breve a fadiga que afligia Hans. Já por várias vezes tinha relanceado um olhar ao frasco da água que levava à cintura. «Três gotas chegam - pensou por fim - e poderei ao menos refrescar os lábios». Abriu o frasco e ia levá-lo à boca, quando viu um objecto sobre a rocha, ao seu lado. Teve a impressão de que se movia, e, olhando melhor, viu que era um cão que parecia morrer de sede! Tinha a língua de fora, as maxilas secas, os membros estendidos e sem vida; uma porção de formigas caminhavam-lhe pelo focinho e pelo pescoço. Estava com os olhos fitos no frasco que Hans segurava, mas este bebeu, afastou o animal com o pé e passou. Não soube bem como, mas convenceu-se de que subitamente uma sombra estranha tinha atravessado o céu azul. O caminho tornava-se mais íngreme e difícil a cada momento, e o ar daquela altitude, em lugar de refrescar, parecia pôr-lhe no sangue o calor da febre. O ruído da água que caía dos montes ecoava-lhe escarninho aos ouvidos. Era muito longe e a sede aumentava cada vez mais. Passou outra hora e ele de novo olhou para o frasco que levava ao lado; estava meio, tinha, por conseguinte, muito mais de três gotas de água. Parou para o abrir, e de novo viu ali perto uma coisa que se movia. Era uma criança loira, estendida quase sem vida, sobre a rocha. Estava ofegante, tinha os olhos fechados e os lábios secos. Hans olhou para ela e, num gesto resoluto, bebeu e seguiu o seu caminho. Uma nuvem cinzenta escura encobriu o sol, e sombras, compridas como serpentes, rastejaram ao longo da encosta. Hans continuou a subir. O sol declinava, mas nem assim o calor diminuía. O ar, pesado como chumbo, oprimia o coração de Hans, mas o fim estava perto. Já via a catarata do Rio de Ouro cachoando na encosta a uns escassos quinhentos pés de distância. Parou um momento para respirar e continuou. Pouco depois ouviu um grito fraco. Voltou-se e viu um homem de cabelo grisalho estendido nas rochas. Tinha os olhos encovados, o rosto pálido e pediu num desalento estendendo os braços para Hans: - Água! Água! Estou a morrer. - Não tenho nenhuma! - respondeu Hans. - Já viveste o que tinhas a viver! Passou por cima do corpo estendido no caminho e seguiu. Um clarão de luz azul ergueu-se do lado do Oriente e tomou a forma de uma espada; agitou-se por três vezes no céu e deixou tudo imerso na mais impenetrável sombra. O sol estava a esconder-se, mergulhando no horizonte como uma bola de fogo. Hans ouviu o rugido do Rio de Ouro. Parou à beira da abertura por onde ele saía. A luz vermelha do sol poente trazia a sua água, cuja espuma brilhava em línguas de fogo. O som tornava-se cada vez mais forte e entontecia Hans. Com um arrepio, tirou o frasco do cinto e arremessou-o para o meio da torrente. Logo sentiu um frio estranho gelar-lhe os membros. Cambaleou e caiu com um grito. As águas fecharam-se sobre ele e o barulho do rio tornou-se maior ao saltar por cima da pedra negra.
O pobre Gluck, sozinho em casa, esperou ansiosamente a volta de Hans. Quando se convenceu de que ele não vinha, ficou muito apoquentado e foi à prisão dizer a Schwartz o que tinha acontecido. Schwartz, muito satisfeito, respondeu-lhe que Hans provavelmente se tinha transformado numa pedra negra e que, sendo assim, todo o ouro ficaria para ele. Mas Gluck continuou muito triste e chorou toda a noite. Na manhã seguinte, quando se levantou, não havia pão nem dinheiro em casa, por isso foi-se oferecer a outro ourives. Trabalhou tanto, tão bem e tantas horas em cada dia, que em breve teve dinheiro bastante para pagar a multa do irmão. Foi à prisão levar-lha e o outro foi posto em liberdade. Então Schwartz prometeu dar-lhe algum do ouro do rio, mas Gluck só lhe suplicou que fosse para ver o que era feito do irmão Hans. Schwartz, ao saber que Hans tinha furtado a água benta, disse com os seus botões que por certo semelhante processo não tinha sido bem visto pelo Rei do Rio de Ouro, e resolveu arramar as coisas de melhor maneira. Assim, com algum do dinheiro de Gluck, foi procurar um mau padre que facilmente lhe vendeu água benta. Convencido de que tudo estava assim bem, Schwartz na manhã seguinte levantou-se antes do sol nascer, meteu algum pão e vinho num cesto, deitou a água benta num frasco e partiu para a montanha. Tal qual como o irmão, ficou muito admirado quando viu a geleira e teve grande dificuldade em atravessá-la, mesmo depois de abandonar o cesto das provisões. O dia não estava enevoado, mas também não estava claro, pois havia uma leve neblina suspensa do céu e os montes pareciam sombrios e tristes. À medida que Schwartz ia subindo o caminho íngreme e rochoso, a sede assaltava-o, como tinha assaltado o irmão, e em certa altura levou o frasco aos lábios para beber. Então viu a criança loira estendida perto dele nas rochas, chorando e pedindo água. - Água? Não tenho nem metade da que preciso para mim!... - disse Schwartz. E seguiu. Pareceu-lhe que os raios de sol eram menos claros e viu uma nuvem negra erguer-se do Oeste. Depois de andar mais uma hora, sentiu novamente uma sede intensíssima e pensou em beber. Nessa altura viu o velho estendido na sua frente e ouviu-o pedir água. - Água? Não tenho nem metade da que preciso para mim!... - disse Schwartz. E seguiu. Teve a impressão de que a luz lhe fugia dos olhos e, olhando para cima, notou que uma nuvem cor de sangue tinha encoberto o sol. A nuvem estava muito alta e as suas extremidades moviam-se como as vagas de um mar revolto, projectando sombras compridas que ziguezagueavam no caminho. Schwartz continuou a andar durante outra hora; de novo a sede voltou e, quando ia levar o frasco à boca, julgou ver Hans, o seu irmão, estendido no caminho, levantando os braços para ele pedindo-lhe água. - Ah! Ah! - riu Schwartz. - Estás aqui? Lembra-te das grades da prisão, meu rapaz! Água? Imaginas que vim até aqui com um frasco de água para te dar? Passou por cima do corpo e seguiu, mas ao passar julgou ver um sorriso de escárnio nos seus lábios. Deu mais uns passos e olhou para trás, mas já não distinguiu nada. Sem saber porquê, sentiu um súbito terror; no entanto a sede do ouro venceu tudo e ele continuou a caminhar. A nuvem negra subiu até ao zénite e dela saíram espirais de luz e vagas escuras, que pareciam flutuar por entre as chamas, espalhando-se por todo o céu. À luz do sol poente todo o firmamento parecia um lago de sangue; levantouse um vento forte que despedaçou as nuvens vermelhas em fragmentos, atirando-as para longe, e, quando Schwartz chegou à beira do Rio de Ouro, as suas águas estavam negras como nuvens de trovoada e a sua espuma parecia fogo. Quando ele deitou o frasco ao rio, o rugido das águas e o dos trovões confundiram-se, brilharam luzes diante dos seus olhos, a terra cedeu sob os seus pés e as águas fecharam-se sobre ele. O barulho do rio tornou-se maior ao saltar para cima das duas pedras negras
Quando viu que Schwartz não voltava, Gluck ficou muito triste e não sabia que fazer. Não tinha dinheiro e viu-se obrigado a oferecer-se outra vez ao ourives que o fazia trabalhar tanto e lhe dava tão pouco dinheiro. Ao fim de um ou dois meses, Gluck estava cansado e decidiu ir tentar fortuna ao Rio de Ouro. - O Rei pareceu-me tão bom, que talvez não me transforme numa pedra negra! - pensou. Foi ter com o padre, que logo lhe deu a água benta. Então, Gluck meteu um bocado de pão num cesto, pegou na garrafa da água e partiu de manhã cedo para a montanha. Se a geleira tinha dado muitos trabalhos e fadigas aos seus irmãos, foi vinte vezes pior para ele, que não era tão forte nem tinha tanta prática de montanhas. Caiu várias vezes, perdeu o cesto com o pão e passou grandes sustos ao ouvir os barulhos estranhos da água sob o gelo. Quando saiu da geleira, ficou um bocado deitado na relva a descansar e começou a subir precisamente à hora mais quente do dia. Depois de andar uma hora, sentiu muita sede e ia beber, como os irmãos, quando viu um velho, que parecia muito fraco, caminhar ao seu encontro amparado a um bordão. - Meu filho - disse o velhote - dá-me uma pinguinha de água, que estou a morrer de sede. Então, Gluck olhou para ele e, vendo-o pálido e cansado, deu-lhe a água. - Só lhe peço que não beba toda! - disse Gluck. Mas o velhote bebeu muita e, quando lhe entregou a garrafa, esta estava quase vazia. Desejou-lhe boa viagem e Gluck seguiu alegremente. O caminho era agora mais fácil, viam-se algumas ervas e as cigarras começaram a cantar. Gluck pensou que nunca tinha ouvido um canto tão alegre. Caminhou mais uma hora, e, como a sede aumentasse, estava já decidido a beber, mas, mal pegou na garrafa, viu ao seu lado uma criança ofegante que lhe pedia água. Gluck lutou consigo próprio e, decidido a suportar a sede por mais algum tempo, pôs a garrafa à boca da criança, que deixou apenas algumas gotas de água. Em seguida sorriu-se para ele e desceu a encosta a correr. Gluck ficou a olhá-la até que ela se tornou pequenina como uma estrela. Voltou-se então e seguiu o seu caminho. Nas rochas abriam as mais lindas flores. O musgo, de um verde tenro, estrelava-se de pequeninas flores cor-de-rosa, de gencianas mais azuis do que o céu e de lírios brancos e transparentes. Borboletas esvoaçavam aqui e além e o céu tinha uma luz tão pura que o pequeno Gluck nunca se sentira tão feliz na sua vida. Subiu durante mais de uma hora, ao fim da qual a sede se tornou intolerável, mas quando olhou para a garrafa viu que só lhe restavam cinco ou seis gotas de água e não se atreveu a beber. No momento em que prendia de novo o frasco no cinto, viu estendido na sua frente um cãozinho ofegante, exactamente como Hans tinha visto no dia em que por ali passara. Gluck parou, olhou para ele e logo para o Rio de Ouro, a menos de quinhentas jardas acima. Lembrou-se das palavras do anão: «o que o não conseguir fazer pela primeira vez também o não fará pela Segunda», e tentou passar pelo cão, mas este uivou tão doloridamente que o pequeno Gluck tornou a parar, dizendo consigo: - Pobre animalzinho! Se o não socorro já, estará morto quando voltar para baixo. Em seguida aproximou-se mais e viu nos olhos do cão uma tal tristeza, que não pôde resistir. - Maldito o Rei e o seu ouro! - disse Gluck abrindo o frasco e deitando na boca do cão toda a água que ele continha. O animal levantou-se e pôs-se de pé nas pernas de trás. A cauda desapareceu-lhe e as orelhas foram-se tornando mais compridas, sedosas e douradas; o nariz fez-se vermelho e os olhos brilhantes. Em três segundos o cão desapareceu e Gluck viu na sua frente o seu velho conhecido, o Rei do Rio de Ouro. - Obrigado! - disse o rei. - Não te assustes que está tudo bem! - acrescentou vendo que o pequeno Gluck parecia arrependido do que acabava de dizer. Por que não vieste há mais tempo, em lugar de me mandares os patifes dos teus irmãos, que me deram o trabalho de os transformar em pedras? E bem duras que elas são!... - Oh! Meu Deus! Foi assim tão cruel? - Cruel? Lembra-te que a água que eles deitaram no meu rio não era benta disse o anão. - Imaginas que estou disposto a consentir semelhante coisa? - Mas - respondeu Gluck - eu estou certo que eles trouxeram a água da igreja. - É provável - continuou o anão mostrando-se já muito zangado - mas a água que se recusa a um moribundo perde a virtude, embora antes disso tenha sido abençoada por todos os santos e santas da corte do Céu. E a água que fica no cálix de misericórdia depois de ter socorrido um infeliz, está benta, ainda que qualquer contacto a tenha tornado impura. Falando assim, o anão dobrou-se e cortou um lírio que crescia a seus pés, e em cujas pétalas brancas repousavam três gotas de orvalho cristalino. Deitou-as para dentro do frasco que o pequeno Gluck tinha na mão, e aconselhou-o: - Deita-as agora no rio e desce pela outra encosta da montanha até ao Vale do Tesouro. Boa viagem! Enquanto falava, a figura do anão tornou-se indistinta. As cores do seu fato formaram um nevoeiro irisado que o cobriu por instantes como se fosse o verdadeiro arco-íris. Pouco a pouco as cores apagaram-se e o nevoeiro diluiu-se no ar. O rei tinha-se evaporado. Gluck encaminhou-se para a beira do Rio de Ouro, cujas ondas eram límpidas como o cristal e brilhantes como o sol. Quando deitou na água as três gotas de orvalho, abriu-se nesse lugar um remoinho, por onde as águas desceram em ruídos harmoniosos. Gluck ficou a olhar durante algum tempo. Estava muito desapontado, porque não só o rio se não tinha transformado em ouro, mas as suas águas pareciam muito diminuídas. No entanto, obedeceu ao seu amigo anão e desceu pela outra encosta da montanha para o Vale do Tesouro. Enquanto andava, julgou ouvir o barulho da água abrindo caminho por debaixo da terra, e, quando avistou o Vale do Tesouro, um rio, como o Rio de Ouro, saía de uma nova fenda das rochas e corria em inúmeros braços de água por entre os montões de areia seca e vermelha. À medida que o pequeno Gluck abria os olhos cheios de espanto, cresciam nas margens dos ribeirinhos relva fresca e plantas trepadeiras, que iam alastrando por entre o solo húmido. Flores abriam de súbito, como as estrelas que começam a cintilar quando a noite desce, e moitas de murta e hastes de vinha ensombravam o vale. Assim o Vale do Tesouro se transformou outra vez num jardim, e a riqueza que os irmãos tinham perdido em castigo da sua crueldade era agora recuperada como prémio da sua abnegação. Gluck ficou a viver no vale e nunca os pobres foram escorraçados da sua porta, por isso os celeiros se lhe encheram de trigo e a casa de tesouros. Para ele o rio tinha-se transformado num Rio de Ouro - conforme a promessa do anão. Desde esse dia os habitantes do vale mostram o lugar onde as três gotas de orvalho foram deitadas no rio, apontando o curso do Rio de Ouro por debaixo da terra até aparecer no Vale do Tesouro, e no topo da catarata vêem-se ainda as duas Pedras Negras, em volta das quais as águas rugem tristemente todos os dias ao pôr-do-sol. A gente do vale ainda hoje chama a essas pedras os irmãos negros.

 

 

                                                                  Charles Dickens

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades