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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O REI FUJITIVO / Jennifer A. Nielsen
O REI FUJITIVO / Jennifer A. Nielsen

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

    

Algumas semanas após Jaron assumir o trono de Carthya, uma tentativa de assassinato o leva a uma situação mortal. Rumores de uma guerra iminente atravessam as muralhas do castelo, e Jaron sente a pressão aumentar. Logo fica claro que abandonar o reino pode ser sua única esperança de salvá-lo. Conforme suas aventuras o levam a territórios desconhecidos e perigosos, Jaron precisa aprender a distinguir os amigos dos inimigos e decidir em quem ele pode confiar - se é que pode confiar em alguém. Mas, quanto mais Jaron é forçado a fugir de sua verdadeira identidade, mais ele se pergunta se está indo longe demais. Será que algum dia ele poderá voltar para casa? Ou terá que sacrificar a própria vida para salvar o reino?

Cheguei cedo ao meu próprio assassinato.

 

 

 

 

Era a noite do funeral de minha família, e eu já deveria estar na capela. Mas a ideia de prestar minhas últimas homenagens ao lado dos almofadinhas arrogantes que também estariam lá me revirava o estômago. Se eu fosse qualquer outra pessoa, a cerimônia poderia ser particular.

 

Fazia um mês que eu era rei de Carthya, cargo para o qual nunca fora preparado e para o qual a maioria dos cartianos achava que eu não servia. Mesmo que quisesse discordar, eu não teria credibilidade para isso. Durante as primeiras semanas de meu reinado, cortejar a opinião pública não tinha sido uma das minhas prioridades. Em vez disso, dediquei-me a uma tarefa muito maior: convencer meus regentes a me ajudar na preparação para uma guerra que eu tinha certeza de que estava próxima.

 

A maior ameaça vinha de Avenia, reino a oeste do nosso, cujo líder, o rei Vargan, chegara inesperadamente para o funeral de minha família. Ele declarara que viera apenas para demonstrar seu respeito, o que talvez soasse sincero para os outros, mas não para mim: o rei lamentaria mais a perda de seu bolo de sobremesa do que a de meus pais e de meu irmão. Não. Vargan viera até meu país para conhecer minhas fraquezas e avaliar minhas forças. Ele estava aqui para me testar.

 

No entanto, antes de entrar em qualquer tipo de confronto com Vargan, eu precisava de tempo para pensar, para me sentir seguro. Então, em vez de seguir direto para o funeral, pedi que o iniciassem sem mim e vim para cá, para os jardins reais.

 

Este havia se tornado meu lugar favorito nas várias ocasiões em que eu precisava ficar longe de todo mundo. As flores coloridas da primavera cercavam-se por arbustos altos e densos, em meio a plantas de todos os tipos. Árvores majestosas impediam a visão do alto em quase todas as estações do ano, e a grama macia tornava quase obrigatório que se andasse descalço sobre ela. No centro de tudo, havia uma fonte de mármore com uma estátua em homenagem ao rei Artolius I no topo, um antepassado que conquistara a independência de Carthya várias gerações atrás. Recebi meu nome do meio, Jaron Artolius Eckbert III, em homenagem a ele.

 

Numa visão retrospectiva, estes jardins eram perfeitos para uma boa e silenciosa tentativa de assassinato.

 

Nem passou pela minha cabeça me sentar passivamente no jardim. Sobrecarregado por sentimentos conflituosos sobre o funeral e com a chegada tardia de Vargan, meu corpo estava tenso, e minhas emoções, à flor da pele. Eu precisava escalar para gastar energia.

 

Rapidamente escalei o primeiro andar do castelo, apoiando minhas mãos e meus pés nas pedras cortadas de forma desigual. O parapeito era largo e coberto de hera, mas eu gostava disso. Desse modo, eu podia me esconder na folhagem densa e admirar os jardins como se fosse parte deles, em vez de um simples observador.

 

Menos de um minuto depois, a porta do jardineiro se abriu sob mim. Muito estranho. Era tarde demais para alguém da manutenção vagar por ali, e aquela parte do entorno do castelo era proibida para qualquer outra pessoa, a menos que eu mesmo a convidasse. Arrastei-me pelo parapeito até a quina da parede e vi um vulto vestido de preto avançando cautelosamente pelo jardim. Não era nenhum de meus empregados. Se fosse, teria se anunciado da forma correta. Isso caso se atrevesse a entrar ali. O vulto fez um rápido reconhecimento da área, então sacou uma longa faca e se refugiou em alguns arbustos bem abaixo de onde eu estava.

 

Balancei a cabeça, mais entretido do que zangado. Todos teriam esperado que eu viesse ao jardim para refletir naquela noite, mas não haviam calculado que eu pudesse vir antes do fim do funeral.

 

O assassino achava que a surpresa estaria a seu favor. Mas agora a vantagem era minha.

 

Silenciosamente, soltei minha capa para que ela não atrapalhasse. Então puxei minha própria faca, segurei-a firme na mão esquerda e me agachei na beirada do parapeito, para em seguida saltar diretamente sobre as costas do homem.

 

Quando pulei, o sujeito se moveu, então causei pouco mais do que um arranhão no ombro dele enquanto caíamos em direções opostas. Levantei-me primeiro e dei uma facada em sua perna, mas o corte não foi nem de longe tão profundo quanto eu esperava. Ele me chutou e eu caí, então o bandido se ajoelhou sobre meu antebraço e tirou a faca de minhas mãos, jogando-a para longe de nós.

 

O homem me acertou um soco poderoso no queixo, o que fez minha cabeça bater no chão. Tentei me reerguer lentamente, e, quando ele me alcançou, chutei-o com toda a força que pude. O homem recuou, tropeçou, bateu contra um vaso alto e então caiu, imóvel.

 

Rolei no chão, olhando para o castelo e massageando minha mandíbula. O fato de já estar com a mão pousada em meu rosto provavelmente salvou minha vida, porque um segundo assassino surgiu do nada, segurando uma corda que passou em torno do meu pescoço. Ele a apertou com força, roubando-me o ar. Mas, com minha mão presa dentro do laço, pelo menos eu tinha alguma chance de respirar.

 

Dei uma cotovelada para trás, atingindo o peito do novo agressor. Ele grunhiu, mas precisei atingi-lo mais três vezes para que ele fosse forçado a reajustar sua posição e acabasse afrouxando um pouco a corda. Quando o homem se moveu, eu o rodeei, jogando um braço para trás para desferir-lhe um soco.

 

Então congelei. No instante em que meus olhos se fixaram no intruso, o tempo parou.

 

Era Roden. Que já fora meu amigo. Depois, meu inimigo. E agora meu assassino.

 

Poucas semanas haviam se passado desde a última vez em que eu vira Roden, mas pareciam meses. Em nosso último encontro, ele tentara me matar, em um derradeiro esforço de tomar o trono para si. Mas percebi que seus motivos para estar ali naquela noite eram ainda mais sombrios.

 

Juntos, nós havíamos sido treinados por um nobre chamado Bevin Conner, que nos retirara, bem como a dois outros garotos, Tobias e Latamer, de orfanatos cartianos, com a intenção de que um de nós se passasse por Jaron, o príncipe perdido de Carthya. Os pais de Jaron tinham tentado enviá-lo a um colégio interno, onde ele deveria aprender as boas maneiras oportunas, mas, depois que ele escapara do navio com destino a Bymar, piratas atacaram a embarcação com a intenção de matá-lo. Ninguém — nem Conner, nem Roden, nem os outros garotos — sabia que eu era, na verdade, Jaron disfarçado. Nem sequer Roden estava ciente disso. Ele sabia apenas que eu era um órfão chamado Sage, e não mais digno do trono do que ele.

 

Foi bom que Conner não tivesse tentado fazê-lo se passar pelo príncipe Jaron, porque nesse curto período Roden mudara o bastante para estar ainda mais diferente de mim. Seu cabelo castanho havia clareado e sua pele estava mais bronzeada. Ele parecia mais velho e certamente agia como se fosse. Na última vez em que tínhamos nos encontrado, Roden estava nervoso, mas aquilo não era nada comparado à sua expressão nesse momento. Ela ia muito além da raiva.

 

Deixando cair a corda, Roden pôs-se de pé e sacou uma espada, segurando-a como uma extensão de seu braço, como se tivesse nascido com a arma em punho. Minha faca estava em algum lugar atrás dele, escondida nas sombras. As chances não estavam exatamente a meu favor.

 

— Levante-se, Sage, e enfrente-me.

 

— Esse não é o meu nome — respondi. E eu ainda não iria me levantar.

 

— Eu estava com você em Farthenwood. Não pode mentir para mim sobre quem você é de verdade.

 

O que era exatamente minha defesa, se ele pensasse um pouco. Falando com toda a calma que podia, eu disse:

 

— Abaixe a espada e eu lhe explicarei tudo.

 

Eu já tinha localizado minha faca, mas ela estava longe demais para ser alcançada antes que ele pudesse usar a espada. Por isso, preferi conversar com Roden.

 

— Não estou aqui para ouvir suas explicações — resmungou ele.

 

A espada continuava pronta. Eu me levantei lentamente, mantendo as mãos visíveis.

 

— Então, você veio para me matar?

 

— Esta fraude acabou. É hora de você reconhecer quem realmente está no comando.

 

Eu ri.

 

— Você?

 

Ele balançou a cabeça.

 

— Estou com gente poderosa agora. E eles estão vindo buscá-lo. Eu preferia matá-lo aqui, mas primeiro o rei dos piratas tem negócios para resolver com você.

 

Apesar de apreciar o adiamento de minha morte, por alguma razão eu duvidava que qualquer encontro com o rei pirata fosse boa notícia. Com um sorriso irônico, eu disse:

 

— Então você se uniu aos piratas? Eu não poderia imaginar ninguém, além do clube de tricô das senhoras, aceitando você.

 

— Os piratas me aceitaram com satisfação e, um dia, irei comandá--los. Eles mataram Jaron e, quando chegar a hora, serei eu a matar você.

 

— Você quer dizer que eles falharam quando deveriam ter me matado. Assim, você se uniu a fracassados. Se eu escapei deles há quatro anos, por que acha que não posso fazer isso mais uma vez?

 

A expressão dele endureceu.

 

— Tenho ordens para você. E sugiro que as aceite.

 

Eu obedeceria às ordens do rapaz que polia o gongo antes de obedecer a Roden. Mas estava curioso.

 

— O que você quer, então? — perguntei.

 

— Ficarei no mar por dez dias. Quando atracarmos, você estará em Isel para se render a mim. Se o fizer, deixaremos Carthya em paz. Mas, se recusar, destruiremos Carthya para pegá-lo.

 

Sozinhos, os piratas avenianos eram destrutivos, mas no final Carthya prevaleceria. Então, se essa era a ameaça, eles deviam ter aliados. Pensei imediatamente no rei Vargan. Talvez ele não estivesse aqui para me testar, afinal. Não podia ser coincidência esse ataque ocorrer tão pouco tempo depois de Vargan passar pelos meus portões.

 

— Eu prefiro a terceira opção — disse a Roden.

 

— Que é...?

 

— Os piratas têm nove dias para se render a mim. Mas, se o fizerem em oito, serei misericordioso.

 

Ele riu, como se eu estivesse brincando.

 

— Está vestido como um rei, mas continua o mesmo órfão tolo. Há mais uma exigência: os piratas querem que você liberte Bevin Conner.

 

Ri outra vez.

 

— Para que Bevin também possa se unir a eles?

 

Roden balançou a cabeça.

 

— Eu só sei que alguém o quer morto. Certamente você não poderia ter objeções quanto a isso.

 

Eu certamente poderia. Conner não era meu amigo. Era o assassino de minha família e a razão pela qual os piratas tinham tentado me matar quatro anos antes. Durante minha curta estada em sua propriedade, ele fora brutal comigo. No entanto, eu não o entregaria a Roden, assim como não pretendia me entregar.

 

— A morte de Conner não vai fazer nada pelos piratas — eu disse. — É só vingança que eles buscam, pela vida de nós dois.

 

— E daí se for isso? Sua vida acabou, Sage. Aceite seu destino com alguma dignidade e salve seu país. Ou tente resistir e assista à destruição de tudo. Vamos queimar suas propriedades, arrasar suas cidades e matar todos que se puserem entre nós e você — ele deu um passo em minha direção. — E, caso tente se esconder, vamos pegar as pessoas que você ama e puni-las pela sua covardia. Sei exatamente a quem devo matar para feri-lo mais profundamente.

 

— Talvez seja você — eu disse. — Por que não vai em frente e se mata agora mesmo?

 

Com isso, Roden disparou para frente. Tentei tomar-lhe a espada, mas ele a manteve firme e me atacou, fazendo um corte em meu braço. Eu uivei e o soltei. Gritos dos meus sentinelas ecoaram atrás de nós. Finalmente. Eu estava imaginando se meus lamúrios tinham lhes perturbado a soneca. Já era tempo de perceberem que eu estava com problemas.

 

Em algum lugar perto de nós estava minha faca, mas Roden continuava atacando e me forçando a recuar para longe dele. Quando dei meu próximo passo, tropecei e caí na fonte. Roden chegou até a beirada dela, com a evidente intenção de me golpear, mas então os sentinelas chegaram para me socorrer. Sem nenhum sinal de medo no rosto, ele começou a lutar com o que estava mais perto. Eu só consegui ficar sentado ali, atônito com o rápido progresso de Roden em suas habilidades em tão pouco tempo. Ele golpeou todos eles como se fossem meros flocos de neve.

 

Então saltei da fonte e me atirei no chão, tentando alcançar a espada de um dos meus guardas caídos. Ao mesmo tempo, Roden feriu outro homem, que, ao cair para trás, tropeçou em mim, me derrubando e pousando sobre minhas pernas.

 

Roden chutou para longe a espada que eu tentara alcançar. Então, colocando a lâmina de sua arma contra meu pescoço, ele se agachou perto de mim e disse:

 

— A decisão é sua. Dez dias para se render, ou destruiremos Carthya.

 

Eu ainda estava na metade de uma das minhas melhores maldições contra Roden quando ele ergueu a espada e a baixou com força na minha cabeça.

 

Quando voltei a mim, Roden e seu cúmplice já haviam fugido. Considerando o ferimento em meu braço e a dor latejante em minha cabeça, provavelmente foi bom que tivessem ido embora. No entanto, as ameaças que fizera ainda estavam no ar. Tive sorte de Roden não cumprir a pior delas enquanto eu estava inconsciente.

 

Molhado pela água da fonte e com o braço sangrando, cambaleei até o pátio para encontrar outra patrulha de sentinelas correndo em minha direção. Apontei para um deles e lhe disse que me desse sua capa, e ele obedeceu. Eles falaram algo a respeito de eu precisar ver um médico, mas, em vez disso, pedi-lhes que levassem o médico até o jardim para cuidar dos homens feridos ali. Então ordenei que mantivessem silêncio a respeito de tudo, pelo menos até o fim do funeral.

 

Cobrindo o ferimento do braço com minha mão em concha, lentamente caminhei de volta à capela, onde o funeral transcorria. Eu devia ter primeiro homenageado minha família, em vez de ter ido aos jardins. O ataque teria acontecido de qualquer forma, em algum momento, mas pelo menos eu teria mostrado o respeito devido a minha família. Eles mereciam isso.

 

Senti muita falta de minha família enquanto estava sozinho no orfanato, mas, aqui no castelo, a ausência deles me assombrava a cada passo. Eu queria desesperadamente entrar na capela e demonstrar meu luto da forma apropriada. Mas, com minha aparência naquele momento, seria impossível. Então, eu me encolhi como um espião embaixo de uma pequena janela aberta para ouvir a cerimônia fúnebre, esperando que, onde quer que minha família estivesse, ela me perdoasse.

 

Lá de dentro vinha a voz de Joth Kerwyn, meu alto camareiro, que fora o conselheiro de meu pai e o de meu avô também. Talvez até do rei que viera antes deles. A mim parecia que Kerwyn sempre havia existido. Ele estava falando de meu irmão, Darius, e eu mal reconheci a descrição que fazia. Darius era quatro anos mais velho do que eu e tinha mais ou menos minha idade da última vez em que eu o vira. Ainda assim, se havia verdade nas palavras de Kerwyn, Carthya agora tinha o pior dos filhos de Eckbert como rei. Como se eu precisasse que me lembrassem disso.

 

Em seguida, cada um dos regentes teve a oportunidade de falar. Os que o fizeram previsivelmente exageraram nos elogios à minha família. Uns poucos foram rudes o suficiente para incorporar seus interesses políticos ao discurso. Do mestre Termouthe, que era no momento o mais antigo de meus regentes, ouvi o seguinte:

 

— E agora temos o rei Jaron, que certamente honrará todos os cautelosos acordos comerciais de seu pai.

 

E a mestra Orlaine, uma amiga de Santhias Veldergrath, não conseguiu disfarçar o escárnio em sua voz quando disse:

 

— Longa vida ao rei Jaron. Se ele nos guiar com a metade da capacidade que revela para nos entreter, então Carthya terá um futuro verdadeiramente grandioso à sua frente.

 

Mesmo na minha condição, quase invadi o funeral naquele instante. Eu tinha em mente algumas palavras indelicadas que garantiriam semanas de entretenimento para a corte, em forma de mexericos.

 

— Jaron?

 

Virei-me, sem saber ao certo se estava alegre ou constrangido em ver Imogen caminhando em minha direção. Ela se movia com cuidado, claramente confusa com o fato de eu estar ali e não dentro da capela.

 

Imogen era empregada na propriedade de Conner, em Farthenwood, e, sem dúvida, salvara minha vida ali. Um dos meus primeiros atos como rei fora a pequena retribuição de torná-la nobre. Era interessante como seu novo status parecia afetá-la muito pouco. Certamente vestia roupas mais finas e costumava usar o cabelo castanho-escuro solto, em vez de trançado como os empregados faziam, mas continuava amigável com todos, independentemente de quem fosse.

 

Seus olhos examinaram o céu escuro.

 

— Choveu? Por que você está todo molhado?

 

— Um banho noturno.

 

— Completamente vestido?

 

— Sou recatado.

 

Rugas surgiram em sua testa.

 

— Quando você não apareceu no funeral, a princesa me pediu para procurá-lo.

 

A princesa Amarinda de Bultain era a sobrinha do rei de Bymar, nosso único país aliado. Por causa disso, fora acertado, desde seu nascimento, que ela se casaria com quem herdasse o trono de Carthya, selando a aliança. Isso deveria caber a meu irmão, e acredito que ele ficaria feliz em cumpri-lo. Agora a obrigação era minha, mas a felicidade em cumpri-la não. Amarinda deixara claro estar tão infeliz quanto eu com nosso noivado. Comparado a Darius, eu me sentia um prêmio de consolação, e um bem pobre.

 

Então, Imogen notou meu braço ferido. Ela deu um gritinho abafado e se aproximou para vê-lo melhor. Sem uma única palavra, ela se abaixou e ergueu a bainha do vestido, apenas o suficiente para pegar o tecido de uma das anáguas. Rasgou um pedaço e o usou como bandagem para enfaixar meu braço.

 

— Não foi tão ruim — disse eu, enquanto ela enrolava o ferimento. — O sangue faz parecer pior do que é.

 

— Quem fez isso? — Eu hesitei e ela disse: — Deixe-me trazer a princesa.

 

— Não.

 

Os olhos de Imogen se estreitaram.

 

— É importante. Você precisa falar com ela.

 

Eu já havia falado bastante com Amarinda, usando todas as frases educadas que aprendera, como “É um belo vestido” e “O jantar está delicioso, não?”. Mas nós dois tínhamos evitado todas as coisas que realmente precisavam ser ditas.

 

Imogen continuou insistindo:

 

— Jaron, ela é sua amiga e está preocupada com você.

 

— Não tenho nada a dizer.

 

— Isso não é verdade.

 

— Não tenho nada a dizer a ela! — Um silêncio incômodo se seguiu, até que acrescentei: — Os amigos de Amarinda já estão na capela.

 

Ela fizera amizade com os regentes que mais me desrespeitavam. E a rira tanto na companhia do capitão de minha guarda no jantar da noite anterior que acabei indo para o quarto mais cedo, a fim de não atrapalhá-los. Queria confiar em Amarinda, mas ela tornara isso impossível.

 

Depois de mais silêncio, Imogen murmurou:

 

— Então fale comigo. — Ela sorriu timidamente e acrescentou: — Acho que ainda sou mais próxima de você do que qualquer outra pessoa.

 

Imogen tinha razão, o que era uma tragédia. Porque, quando ela disse isso em voz alta, compreendi que mais alguém percebera. Roden afirmara saber qual morte me magoaria mais.

 

Imogen. Se os piratas quisessem me ferir, levariam Imogen.

 

Eu não podia imaginar um dia de minha vida sem ela, de forma alguma. Mas, se eu não conseguisse manter os piratas fora de Carthya, Roden os levaria direto a Imogen. Pensar no que poderia acontecer então era insuportável. Um vazio me invadiu quando percebi o quanto era perigoso para ela permanecer no castelo. Permitir que ela continuasse ligada a mim de qualquer forma representava uma sentença de morte em potencial.

 

Por mais que detestasse pensar nisso, sabia o que tinha de ser feito: Imogen teria de deixar a corte. Pior ainda, precisaria desejar estar tão longe de mim quanto possível, de modo que ninguém jamais pudesse suspeitar haver qualquer benefício em lhe fazer mal.

 

Meu estômago revirou, como se as mentiras que estava prestes a dizer fossem facas me dilacerando. Balancei a cabeça lentamente e falei:

 

— Você está enganada, Imogen. Nós não somos nem nunca fomos amigos. Eu apenas usei a sua ajuda para voltar ao trono.

 

Ela ficou imóvel por um instante, sem certeza de ter me ouvido direito.

 

— Não entendo...

 

— E você está me usando para ficar aqui no castelo. Lugar a que você não pertence.

 

— Isso não é verdade! — Imogen recuou, com uma expressão de choque, como se eu a tivesse esbofeteado. Assim que se recuperou, ela disse: — Quando você era Sage...

 

— Eu sou Jaron, não Sage. — Fingi uma expressão de desdém ao acrescentar a pior coisa que pude pensar em dizer: — Achou mesmo que eu algum dia poderia me importar de verdade com alguém como você?

 

A luta de Imogen para conter suas emoções era óbvia. Isso me feriu, mas não voltei atrás, porque não podia voltar. Ela fez uma reverência e disse:

 

— Vou embora ao amanhecer.

 

— Você vai embora agora. Uma carruagem será preparada para levá-la até sua casa.

 

Balançando a cabeça, ela falou:

 

— Se houver algo que precise me contar...

 

Virei de costas para não denunciar meus sentimentos.

 

— Não quero mais você aqui. Pegue suas coisas e vá, Imogen.

 

— Não tenho nada aqui — afirmou ela. — Vou embora como cheguei.

 

— Faça como preferir.

 

Ela saiu sem olhar para trás, com a cabeça erguida. Vê-la escondendo a dor que eu havia causado era pior do que se ela a tivesse demonstrado. Eu nunca fora tão cruel com alguém, e estava me odiando por isso. Ela também me odiaria, e eu nunca poderia lhe explicar que mandá-la embora com tanta indiferença, até hostilidade, salvaria sua vida.

 

Um novo tipo de dor se espalhou dentro de mim, algo diferente de qualquer coisa que já sentira até então. Se havia alguém a quem eu poderia um dia dar meu coração, eu tinha acabado de mandá-la embora de minha vida para sempre.

 

Não fiquei sozinho por muito tempo. Apenas alguns minutos depois que Imogen me deixou, o rei Vargan saiu pelas portas da capela, segurando as costas como se sentisse dor. Ele não me viu na escuridão, então tive um momento para observá-lo. Vargan era alto e forte, mas esmorecia lentamente. Os olhos eram escuros e o rosto acinzentado estava marcado por rugas profundas. O cabelo, apesar de longo e espesso, tinha a cor da lenha em um fogo apagado.

 

Enquanto eu o observava, olhando para além do pátio com olhos famintos, minhas mãos se fecharam. Ali estava ele, participando de alguma maneira do atentado contra minha vida havia apenas uma hora, e, no entanto, eu não tinha como impedi-lo. Os piratas queriam minha vida, Vargan queria meu país e meus regentes queriam pintar um arco-íris sobre a realidade e dizer a todos que tudo estava bem.

 

Por sorte, eu já estava seco o bastante para que minha aparência fosse desleixada, mas não encharcada. Girei a capa para esconder meu braço enfaixado, afastei o cabelo que me cobria o rosto e dei um passo à frente.

 

Vargan me ouviu chegando e se virou assustado, então segurou as costas novamente.

 

— Rei Jaron, não percebi que estava aqui. Eu esperava vê-lo lá dentro.

 

— Estava muito cheio. Achei que talvez ninguém tivesse reservado um assento para mim.

 

Ele sorriu com meu gracejo e disse:

 

— Você podia ter ficado com o meu. Esses bancos de igreja torturam minha coluna. Perdoe-me por abandonar o funeral de sua família.

 

— Não tenho certeza de que seja o funeral de minha família. A não ser pelos nomes, não reconheço essas pessoas de quem estão falando lá dentro.

 

Vargan riu.

 

— Quanto desrespeito pelos mortos! Eu esperaria essa reação de um aveniano, mas pensava que os cartianos fossem superiores. — Sua expressão ficou mais séria, e ele acrescentou: — Fui informado de que você se passou por aveniano durante os últimos quatro anos, enquanto estava perdido.

 

— Nunca estive perdido — respondi. — Sempre soube exatamente onde estava. Mas é verdade que muita gente acreditava que eu fosse aveniano.

 

— Por quê?

 

— Consigo imitar o sotaque.

 

— Ah — ele tocou o rosto com um dedo enquanto me estudava. — Você é um rei tão jovem. Eu mal me lembro de um dia ter sua idade.

 

— Então claramente estamos falando sobre o quanto você é velho, não sobre o quanto eu sou jovem.

 

Seu sorriso divertido desapareceu, enquanto ele dizia:

 

— Acho que você se parece mais com sua mãe.

 

Eu herdara a estrutura corporal sólida de meu pai, mas parecia-me bem mais com minha mãe. Assim como ela, meu cabelo era espesso e castanho, com tendência a formar cachos nas pontas, e os olhos, verde-folha. Mais do que semelhanças físicas, no entanto, eu tinha sua natureza travessa e seu senso de aventura.

 

Pensar nela me incomodava, então, em vez disso, perguntei:

 

— Nossos países são amigos, rei Vargan?

 

Ele deu de ombros.

 

— Depende do que quer dizer com isso.

 

— Eu estou perguntando se deveria me preocupar em proteger minhas fronteiras de uma invasão aveniana.

 

Seu riso forçado saiu desajeitado e condescendente. Eu nem ao menos sorri, e a risada do rei rapidamente desapareceu.

 

Então ele disse:

 

— Estou certo de que você tem problemas muito mais graves esta noite do que se preocupar com meus exércitos.

 

— É? E que problemas são esses? — Vargan provavelmente não sabia que o ataque contra mim havia acontecido mais cedo do que o planejado. Assim, usei o mesmo tom inocente que sempre funcionava com meu pai quando eu inventava desculpas por ter perdido as aulas. Ainda que agora estivesse em jogo algo muito mais grave do que algumas palmadas no traseiro.

 

A boca de Vargan se retorceu, mas o sorriso desaparecera.

 

— Se você é tão esperto quanto dizem, como pode não ver o perigo diante de si?

 

— Você está diante de mim. Eu deveria estar mais preocupado com você ou com meus velhos amigos, os piratas? — Fiz uma pausa para que aquilo entrasse em sua mente e então acrescentei: — Ou não há diferença?

 

Sem o menor tremor na voz, ele respondeu:

 

— Os piratas vivem dentro de minhas fronteiras, mas governam a si próprios, têm até mesmo seu próprio rei. Eventualmente até podemos trabalhar juntos, mas só quando é bom para nossos objetivos mútuos.

 

Obviamente, no meu caso, isso seria muito bom para os objetivos de ambos.

 

— Você pode lhes transmitir um recado meu? — perguntei. — Diga--lhes que ouvi boatos de guerra contra meu país e que, se ousarem tentar tal coisa, eu os destruirei. — Vargan olhou para mim sem expressão enquanto eu continuava: — Não começarei a guerra, mas, se ela vier, irei terminá-la. Diga isso a eles.

 

Vargan deu uma risadinha, mas isso não disfarçou sua irritação.

 

— Está me ameaçando, jovem rei?

 

— Não sei como poderia fazê-lo, a menos que você estivesse me ameaçando — arqueei uma sobrancelha. — Certo?

 

Com isso, a expressão de Vargan relaxou.

 

— Há certa coragem em você e admiro isso. Quando jovem, eu era igual. Gosto de você, Jaron, por isso vou perdoar sua arrogância... por enquanto.

 

Aquela era uma boa notícia, apesar de eu não gostar muito dele. Ele tinha bafo de peixe.

 

Vargan se inclinou mais para perto de mim e continuou:

 

— Na verdade, vou lhe fazer uma oferta; vamos começar com um fácil acordo. Antes de morrer, seu pai e eu estávamos negociando uma pequena área de terra em nossas fronteiras, perto de Libeth. A terra cartiana tem uma nascente de água da qual meus fazendeiros precisam para suas plantações. Carthya tem outras nascentes por perto, então essa não vai lhe fazer falta.

 

— Meu pai não teria sentido falta, mas eu sim — disse, sem fazer a menor ideia de que fonte ele falava. — Acontece que é a minha fonte favorita em toda Carthya, e não vou dividi-la.

 

Vargan franziu a testa.

 

— Este é um momento de cooperação. Trabalhe comigo, como seu pai fez, e mantenha Carthya em paz.

 

— De que adianta a paz se ela custará nossa liberdade? Não vou trocar uma pela outra.

 

Ele deu um passo à frente.

 

— Escute-me, Jaron. Estou tentando avisá-lo.

 

— E eu estou lhe avisando: não traga a guerra ao meu país, seja com suas próprias forças ou com piratas trabalhando em seu lugar!

 

Dessa vez, quando mencionei os piratas, vi uma faísca brilhar em seus olhos, algo que ele não pôde controlar.

 

Ele sabia. Eu tinha certeza disso agora.

 

— Majestade? — Gregor Breslan, capitão da guarda cartiana, saiu da capela e se aproximou, com cuidado. — Onde esteve, Majestade? Está tudo bem?

 

Gregor tinha a exata aparência de um capitão da guarda. Era alto e musculoso, com cabelo escuro e um rosto austero que comunicava sua natureza séria. Mantinha também uma barba curta que, segundo ouvi dizer, deixara crescer para cobrir antigas cicatrizes de batalhas. Mas Gregor, ainda que altamente capacitado e inteligente, era um bocado chato. Nós fingíamos tolerar as falhas um do outro e, francamente, ele se mostrava mais esforçado do que eu, que o culpava sempre por ser tão irritante. Mas, para ser justo, naquele momento não era sua culpa ter chegado exatamente na hora errada.

 

Ainda encarando o rei de Avenia, eu disse:

 

— Parece que nossa privacidade chegou ao fim. Espero que suas costas melhorem, a menos que a dor evite que invada meu país.

 

Vargan riu.

 

— Não me dê motivos para invadir seu país, jovem rei. Porque, se o fizer, uma dorzinha nas costas não me deterá.

 

Trocamos um aperto de mãos, então acenei para Gregor e disse:

 

— Venha comigo.

 

Ele começou a caminhar ao meu lado, enquanto cruzávamos o espaçoso pátio.

 

— Mas o funeral...

 

— Não é nada além de um bom teatro para nobres incapazes de amar qualquer coisa além de seus próprios reflexos.

 

— Não é da minha conta como o rei se comporta no funeral de seu próprio pai, mas...

 

— Você tem toda razão, Gregor. Não é da sua conta.

 

Ao meu lado, eu podia sentir sua raiva borbulhando, mas, com uma voz cuidadosamente controlada, ele perguntou:

 

— O que Vargan quis dizer com não lhe dar motivos para invadir?

 

— Ele me fez uma oferta. Em troca de uma promessa de paz, quer um pedaço de nossas terras.

 

— É um pedido e tanto. Mas sempre funcionou com o seu pai.

 

— Mas não funciona para mim. Nós defenderemos as fronteiras deste país!

 

— Com que exército? Vossa Majestade enviou quase todos os homens que tínhamos para o Lago Falstan, aparentemente sem nenhum outro motivo exceto tirar terra de uma área e despejá-la em outra. Foi um desperdício de efetivo e uma decisão desnecessária.

 

Na verdade, fora uma decisão tática, a fim de que tivesse um plano alternativo se a guerra realmente chegasse a Carthya. Eu pensara em compartilhar o plano com Gregor e meus regentes, mas Kerwyn havia me aconselhado a não fazer isso. Como os regentes já questionavam minha competência como rei, Kerwyn achava que isso só aumentaria suas dúvidas.

 

— Traga os homens de volta para Drylliad — disse Gregor. — Preciso deles aqui.

 

— Por quê? Para engraxar as botas e marchar em formação? De que adianta isso, para quem quer que seja?

 

— Como todo respeito, senhor, se estamos fazendo perguntas, então permita que eu lhe pergunte por que Vossa Majestade está usando uma capa de sentinela e escondendo o braço.

 

Parei de caminhar e o encarei, mas bufei bem alto para ter certeza de que ele me ouviria. Então, com certa relutância, afastei a capa para que ele visse meu braço enfaixado. A maior parte de minha manga abaixo da faixa estava tingida de sangue, que havia empapado o tecido molhado.

 

Ao ver isso, os músculos no rosto de Gregor ficaram tensos. Ainda olhando fixamente, ele disse:

 

— Vossa Majestade foi atacado.

 

Outra brilhante dedução do capitão de minha guarda. Mesmo protegido pela bandagem de Imogen, o ferimento ardeu ao ser exposto ao ar, então eu o cobri novamente.

 

— Dois piratas passaram pelos muros do castelo — expliquei. — Vargan deve tê-los ajudado de alguma forma.

 

— Tem certeza absoluta?

 

— Sim.

 

— E há provas?

 

— Bem... Não.

 

Mal disfarçando seu desprezo, ele disse:

 

— Vossa Majestade, e se toda essa ideia de guerra existir apenas em sua cabeça? Talvez Vargan não esteja por trás desse ataque, mas o senhor acha que sim porque já concluiu que ele pretende invadir o país.

 

— Ele vai invadir o país! — Gregor afastou o olhar, mas eu continuei de qualquer modo. — Eles querem nossas terras, nossos recursos. Vão tomar tudo o que temos e destruir tudo o que somos.

 

— Nós tivemos anos de paz, senhor. Seu retorno não deve mudar as coisas.

 

— É claro que muda. Há quatro anos, meu pai deixou todos acreditarem que eu havia morrido em um ataque pirata. Agora que retornei, os outros países vão considerar um grave insulto as mentiras que meu pai lhes disse. Há consequências de minha subida ao trono e devemos lidar com elas.

 

Gregor cerrara os lábios enquanto eu falava, mas então comentou:

 

— Se o senhor fosse mais velho, poderia declarar guerra agora mesmo e eu lideraria os soldados. Mas, até que chegue à maioridade, Vossa Majestade deve aceitar que não pode tomar certas decisões sem o apoio dos regentes. E, se me perdoa por falar tão francamente, a decisão de lhe dar o trono no mês passado, em vez de considerar a possibilidade de um governante, foi tomada rápido demais e só por causa do entusiasmo do momento. Eles deveriam ter lhe dado as boas-vindas como príncipe e então lhe dar um tempo para se adaptar antes de colocar todo o peso do reino sobre os seus ombros.

 

— Mas eles já decidiram — eu disse. — E com sua ajuda posso defender este país.

 

Os olhos de Gregor se estreitaram.

 

— Vossa Majestade ainda não tem o coração de seu povo, nem de seus regentes. Ninguém vai segui-lo em uma guerra baseada em seu instinto. É necessário que haja provas. Os assassinos foram capturados?

 

— Eram mensageiros, não assassinos — pelo menos não por enquanto.

 

— Qual era a mensagem?

 

— Eu já lhe disse. Que a guerra está se aproximando — mostrei meu braço ferido. — E esta é a prova.

 

Mas Gregor via a coisa de outro modo.

 

— Os piratas devem estar abertos a negociações, do contrário eles simplesmente o teriam matado quando tiveram a chance.

 

— Parece que o rei deles quer tomar conta desse detalhe pessoalmente.

 

Eu nem ousava pensar no que isso talvez significasse, mas provavelmente não acabaria sendo o melhor dia da minha vida.

 

Caminhando novamente, mudei de direção e fui até uma entrada nos fundos do castelo, usada principalmente para o transporte de prisioneiros, para a visita de suas famílias e pelos vigias dos calabouços.

 

— Aonde estamos indo? — perguntou Gregor.

 

— Quero falar com Bevin Conner.

 

Os olhos de Gregor se arregalaram.

 

— Agora? Nestas condições?

 

— Ele já me viu em condições piores.

 

— O que Vossa Majestade poderia querer com ele?

 

— Será que agora o rei precisa da permissão de seus serviçais? — perguntei.

 

— Claro que não. Mas é que...

 

— O quê?

 

— Jaron, você destruiu todos os planos do homem, tudo o que ele queria na vida. — O tom de Gregor era mais suave agora. — Você sabe o que ele fará se o procurar.

 

Projetei o queixo para frente.

 

— Depois do que passei esta noite, você acha mesmo que ele pode me ferir mais?

 

— Ah, sim — respondeu Gregor solenemente. — Pode e vai. Diga-me o que quer dele. Eu faço isso enquanto você descansa.

 

A ideia de que eu pudesse descansar naquela noite parecia cada vez mais absurda. Perguntei a Gregor:

 

— Você sabe por que os piratas tentaram me matar há quatro anos?

 

— Conner confessou tudo, senhor. Ele os contratou, esperando forçar seu pai a ir à guerra para proteger nossas fronteiras.

 

— Obviamente, os piratas não esqueceram seu acordo.

 

Gregor estalou a língua.

 

— Então esta noite não teve a ver com a guerra. Eles querem matá-lo.

 

Eu retomei o passo e resmunguei:

 

— Tudo começou com Conner. E, se existe alguma esperança de acabar com isso, preciso da ajuda dele agora.

 

Desde que eu mandara prendê-lo na noite de minha coroação, eu não havia encontrado Conner frente a frente e não estava ansioso pelo reencontro. Nem ele, aparentemente. Não importava o quanto me desagradasse ter de olhar para Conner novamente, pelo menos disfarcei minha ansiedade. Conner nem tentou. Pareceu completamente aterrorizado quando me viu entrar.

 

Afinal, eu não demonstrara a menor piedade quando ele fora condenado por seus crimes. Depois do julgamento, seu pedido de ficar separado dos outros prisioneiros do castelo fora atendido. Agora Conner permanecia isolado em uma cela trancada na torre, onde, segundo me disseram, ele passava a maior parte do tempo olhando para fora através de uma janelinha minúscula e imunda.

 

Conner tinha uma corrente em torno do tornozelo e estava mais magro do que da última vez que eu o vira, apesar de ter me certificado de que ele seria alimentado e teria direito à higiene básica. Ainda assim, sua barba estava desgrenhada, e, à fraca luz das tochas bruxuleantes, estou certo de ter visto cabelos brancos. Eu nunca os notara durante nosso tempo em Farthenwood.

 

Conner fez uma leve reverência.

 

— Rei Jaron. Eu perguntaria se o senhor está bem, mas, francamente, já o vi com aparência melhor. E mais seco, a propósito.

 

— Estou perfeitamente bem, obrigado por perguntar.

 

— A que devo a honra da visita?

 

— Isto aqui cheira a esgoto, então serei breve. — Olhando diretamente para ele, perguntei: — O rei Vargan fazia parte do plano de me matar, há quatro anos?

 

O medo sumiu, substituído por uma ampla expressão de desdém.

 

— Não. Os piratas não queriam Avenia envolvida. Eles não gostam de trabalhar com Vargan a menos que seja inevitável, e de qualquer forma achavam que Avenia não iria querer uma parte no meu plano.

 

Avenia certamente estava envolvida agora. De acordo com Vargan, isso era bom para os objetivos de todos.

 

— Conte-me novamente sobre a noite em que matou minha família.

 

Com um suspiro entediado, ele disse:

 

— Não há nada além do que já confessei mil vezes.

 

— Tenho lido sobre o óleo de dervanis. Você sabia que são necessárias mais de cem flores para produzir uma única gota do veneno? Por isso é tão raro e tão difícil de conseguir. Não acho que você o tenha conseguido sozinho.

 

Gregor levou a mão à espada.

 

— Jaron...

 

Afastei-o para o lado.

 

— Onde você o conseguiu?

 

Conner riu, exibindo claramente sua arrogância.

 

— Se não fizer as perguntas certas, estará apenas desperdiçando o seu tempo e o meu.

 

— Não insulte o rei! — protestou Gregor. Dessa vez ele sacou a espada, mas fiz sinal para que a embainhasse novamente. Conner não tinha pretendido me insultar. Ele queria uma pergunta diferente. Mas eu não sabia qual.

 

Distraído, usei minha bota para tocar um prato vazio no chão, com um guardanapo dobrado em cima.

 

— De onde veio isto?

 

Conner sorriu.

 

— A princesa prometida disse que você perdeu uma refeição na companhia dela esta noite. Então ela me trouxe seu prato.

 

Amarinda estivera ali? Tentei agir como se aquilo não me incomodasse, mas ele sabia a verdade. Ela não teria motivo para ir até ali, a menos... De repente, eu não queria mais ficar naquele lugar.

 

Gregor deu um passo à frente.

 

— Ela não pensou que Vossa Majestade fosse se importar.

 

— Não a defenda! — ordenei. De todas as amizades de Amarinda, esta era inaceitável.

 

Em silêncio, Gregor baixou a cabeça e recuou contra a parede, mas ainda com a mão no punho da espada.

 

Voltei-me para Conner, que agora estava com os braços cruzados, desafiando silenciosamente minha autoridade. Não se passara nem um mês desde que eu o encarara com um olhar desafiador semelhante.

 

Ele disse:

 

— Estava na hora de você vir me agradecer.

 

— Agradecer? — Ele tinha sorte de o meu agradecimento não ter vindo em forma de forca.

 

— Você é o rei agora, como eu havia prometido — ele disse. — Talvez odeie as coisas que fiz e que o trouxeram até aqui, mas o fato é que você não seria rei sem mim.

 

Algo explodiu dentro de mim. Foi difícil controlar minha raiva. Quando finalmente falei, minhas palavras fediam amargura.

 

— Depois do que fez, você realmente espera minha gratidão?

 

— Carthya toda deveria ser grata a mim! — Conner ergueu a cabeça. — Seu pai era um fraco. Em algum momento, os países que nos cercam teriam engolido Carthya completamente. Darius também era um risco. Ele era próximo demais de seu pai para conseguir vê-lo como ele realmente era.

 

— Eles eram minha família!

 

— Sua família o rejeitou. Não uma, mas duas vezes. Eles o transformaram em um ninguém e o largaram no mundo. Mas eu lhe dei o mundo de volta. Eu o fiz rei.

 

Ainda furioso, inclinei a cabeça.

 

— Agora eu tenho tudo. É isso que você pensa?

 

— Com uma exceção — Conner indicou com a cabeça o prato que Amarinda trouxera.

 

Olhei fixamente para o prato no chão mais uma vez. Será que ela de fato achava que eu não me importaria que ela viesse aqui? De todos neste castelo, Amarinda deveria ser a pessoa mais fiel a mim. Conner estava absolutamente certo ao insinuar que Amarinda e eu não éramos amigos. E eu não tinha a menor ideia de como acertar as coisas com ela, se isso fosse ao menos possível.

 

Conner abaixou a voz e continuou:

 

— Paguei por meus crimes contra você. Deixe-me livre e eu lhe servirei agora.

 

Sorri, sentindo-me em vantagem novamente.

 

— Você pode querer reconsiderar isso. Acabei de receber uma visita dos piratas. Eles querem você.

 

Conner me dirigiu exatamente o olhar de pânico que eu esperava. Seus olhos se arregalaram, e algo mais ou menos do tamanho de uma rocha pareceu estar preso em sua garganta.

 

— Não me entregue a eles, Jaron. Você sabe o que fariam comigo.

 

— O que quer que seja, tenho certeza de que iria doer — eu disse friamente. — Talvez eu o entregue a eles, no fim das contas.

 

Eu me preparei para sair, então, em pânico, Conner gritou:

 

— Jaron! — Sem esperar que eu me voltasse, ele acrescentou: — Traí sua família, é verdade, mas nunca traí Carthya. Ainda me considero um patriota.

 

Virei-me para ele.

 

— Como pode ser isso? Você tem ideia do que desencadeou quando contratou os piratas?

 

Conner comprimiu os lábios e então fez um gesto afirmativo com a cabeça, olhando para o meu braço enfaixado.

 

— Ah. Eles querem você também — as longas linhas de seu rosto suavizaram-se. — Então nossa vida está em jogo.

 

— Carthya inteira está em jogo — afirmei. — Você abriu comportas que talvez eu não consiga mais fechar. — Aproximei-me dele, a ponto de ver suas pupilas se dilatando conforme retribuía meu olhar. — Preciso do nome do pirata que contratou para me matar. Diga-me agora, ou será entregue a eles esta noite.

 

Derrotado, Conner sussurrou:

 

— O nome dele era Devlin. Ele se vangloriou de que sua morte lhe daria um lugar de honra entre os piratas. O fato de estar vivo deve ser humilhante para ele.

 

— E para você também, imagino.

 

Conner não se alterou.

 

— Na verdade, somente eu me importo com a sua vida. Sou o único aqui que já trabalhou com os piratas. Você precisa de mim.

 

Balancei a cabeça.

 

— Carthya precisa de você tanto quanto da peste negra.

 

O tom de sua voz se tornou asqueroso.

 

— E você acha que é estimado pelo seu povo? Realmente acredita que alguém quer lutar por um garoto que nunca lhes trouxe nada além de problemas? Alguém o queria de volta? Não, Jaron, você está sozinho aqui.

 

Tais palavras doeram como se ele tivesse me espancado. Conner deve ter sentido a emoção me dominando e continuou a atacar:

 

— Eu me lembro do anúncio feito por seu pai há quatro anos, quando afirmou que não podia declarar guerra porque não havia provas do que acontecera a você. Era mentira, claro, e nenhum rei gosta de mentir para seu povo. As coisas não seriam mais fáceis se você tivesse morrido? Você não acha que, de certa forma, seu pai preferia que você tivesse morrido de verdade?

 

Eu já empunhava minha faca. Pulei sobre ele, minhas mãos tremiam tanto de raiva que a faca lhe arranhou a garganta.

 

— Você destruiu tudo! — gritei.

 

Conner afastou a cabeça, tentando respirar.

 

— E eu sou o único que pode salvá-lo agora. Os regentes não o ajudarão. Pense no quanto lhes seria conveniente se os piratas o pegassem.

 

Infelizmente, Conner estava certo. Do ponto de vista deles, minha morte resolveria uma porção de problemas.

 

— Seu povo também não vai ajudar — ele continuou. — Ouça-os. Estão rindo de você.

 

Olhando-o fixamente nos olhos, perguntei:

 

— Está rindo de mim?

 

Ele se calou por um instante e finalmente a tensão o abandonou:

 

— Não, Jaron — respondeu misteriosamente. — Eu o amaldiçoo a cada respirada que dou. Mas não rio.

 

Gregor tinha permanecido às nossas costas e me ocorreu que ele não objetaria se eu usasse minha faca naquele momento. Ele nunca aprovara minha decisão de prender Conner em vez de executá-lo. Mas também não tinha concordado com a maioria de minhas decisões. Soltei Conner, que caiu de joelhos, massageando a garganta.

 

Respirei fundo até me acalmar e então disse a ele:

 

— Onde você conseguiu o óleo de dervanis?

 

— Com o pirata Devlin — resmungou Conner. — Mas saber a verdade não o ajudará agora. Só eu posso consertar essa situação. Deixe-me ajudá-lo a salvar Carthya. Perdoe-me, meu rei, aqui e agora.

 

Estalei a língua e falei:

 

— Eu lhe perdoarei assim que tiver minha família de volta. Adeus, Conner. — Ele ainda gritava meu nome quando a porta da masmorra se fechou. Gregor me seguiu silenciosamente pelas escadas da torre. Eu prossegui enquanto ele mandava o sentinela voltar a seu posto.

 

Minhas mãos tremiam conforme eu voltava ao caminho principal. Conner me irritara de uma forma inesperada. Mesmo acorrentado, ele conhecia minhas fraquezas.

 

Assim que me alcançou, Gregor perguntou se estava tudo bem, mas não respondi. Então ele disse:

 

— Conner negou qualquer ligação entre Vargan e os piratas. Talvez Vossa Majestade esteja errado.

 

— Não estou. Mostre-me o que não consigo vislumbrar. Conner disse que minhas perguntas não estavam certas.

 

— Ele é um manipulador e brinca com as fraquezas de Vossa Majestade. Não merece confiança.

 

Parei de andar para poder encará-lo.

 

— Você confia em mim, Gregor?

 

— Deveria? — Ele mudou o peso de um pé para o outro, enquanto pensava em sua ousadia. Em um tom mais humilde, continuou: — Depois de tudo que houve hoje, Vossa Majestade deve estar exausto. Descanse um pouco e saiba que estou aqui para protegê-lo.

 

— Assim como me protegeu esta noite? — Tomei fôlego e então acrescentei: — Diga-me uma coisa, se os piratas nos atacarem, Carthya tem alguma chance de vencer?

 

Seus olhos se arregalaram.

 

— Vossa Majestade não está sugerindo que...

 

— Preciso saber.

 

— Bem, estamos em maior número — explicou ele —, mas seria como lutar com um urso. Carthya pode sair viva, mas com ferimentos terríveis. E, uma vez ferida, seria uma presa fácil, caso Avenia resolvesse invadir.

 

Exatamente como eu imaginara.

 

— Sobreviveríamos apenas o suficiente para sermos destruídos — resmunguei. E então acrescentei: — E se atacássemos os piratas primeiro?

 

Gregor balançou a cabeça.

 

— Os piratas estão escondidos dentro de Avenia. Para chegar até eles, precisaríamos atacar Avenia toda. Com os dois inimigos juntos contra nós, Carthya seria destruída em semanas. Independentemente de os piratas o terem agredido esta noite, a guerra não pode ser uma opção.

 

Eu odiava a ideia de entrar em guerra. Mas odiava ainda mais o fato de estarmos tão despreparados para nos defender. Sempre com medo da guerra, meu pai tratara seus soldados mais como enfeites de desfile militar do que como guerreiros. Minha mãe entendera melhor as ameaças contra nós, mas obviamente nem ela podia fazê-lo superar o medo das batalhas. Pior de tudo era perceber que, se meu pai estivesse vivo, nós dois jamais teríamos chegado a um acordo. Sempre encontraríamos algum modo de desapontar um ao outro.

 

Agradeci a Gregor e disse-lhe que iria sozinho até meus aposentos e que o veria novamente pela manhã.

 

Continuei a caminhar, mas só até encontrar um canto tranquilo onde pude repousar as costas na parede fresca e respirar. Conner talvez estivesse certo sobre uma coisa: eu nunca estive tão sozinho, e minha situação era desesperadora. Cada minuto da noite me empurrara mais para perto da morte, e, a cada instante, restavam-me menos opções. Tornava-se claro o que eu devia fazer, mas eu tinha certeza de que não havia esperança de conseguir fazê-lo. De um jeito ou de outro, eu teria de enfrentar os piratas.

 

Mott e Tobias estavam me esperando na porta dos meus aposentos quando cheguei e fizeram uma reverência ao me ver. Eu não me importava muito quando os serviçais do castelo se curvavam diante de mim, mas ainda achava incômodo quando meus amigos faziam isso.

 

Tobias era o último dos órfãos arrebanhados por Conner, e Mott, o antigo empregado dele, e ambos tinham me causado uma série de problemas quando estávamos em Farthenwood. Considerando as coisas naquela época, era incrível que agora eu pudesse chamá-los de meus amigos. Durante o mês anterior, eu os enviara por toda Carthya em busca de Roden. Agora percebia quão tola tinha sido a missão.

 

Tobias era mais alto e tinha os cabelos mais escuros do que os meus e, até minha recente perda de apetite, fora mais magro também. Mott era pelo menos uma cabeça mais alto que Tobias. Quase inteiramente calvo, tinha pele escura e parecia feito de pouca coisa além de músculos e caretas de desaprovação.

 

Os olhos de Mott foram imediatamente até meu braço enfaixado e suas sobrancelhas se uniram em preocupação.

 

— Você está ferido — ele afirmou.

 

— Não se importe com isso — eu disse. — Quando vocês voltaram?

 

— Agora mesmo — o olhar de Mott continuava fixo em meu braço. — O funeral de sua família já estava terminando. Obviamente, você não estava lá.

 

— Eles não precisavam de mim. Todos lamentavam demais suas próprias perdas de poder para se importar com o luto. — Virei-me para Tobias e notei os círculos escuros sob seus olhos. — Você parece exausto. Não tem dormido?

 

— Não muito.

 

— Vá descansar — eu disse. — Mott pode me contar as novidades agora e conversaremos mais amanhã. — Dei-lhe um empurrãozinho. — Vá, Tobias.

 

Ele fez outra reverência.

 

— Obrigado, Majestade.

 

— Jaron. Você me conhece bem demais para me chamar de outra forma.

 

— Obrigado... Jaron. — Tobias pediu licença e saiu rapidamente.

 

Mott franziu a testa.

 

— Você não deveria chamar-lhe a atenção por ter usado o título da forma certa.

 

— Se esse é o meu título, então você não deveria chamar minha atenção de jeito nenhum — retruquei com severidade.

 

— Fui alertado de que você estava com um mau humor terrível, mas acho que subestimei o aviso.

 

— Um humor para combinar com o dia de hoje — afirmei.

 

Tanto o tom de voz quanto a expressão de Mott se suavizaram.

 

— O que houve?

 

O empregado que mantinha minha porta aberta adotara o notável aspecto de estátua quando meus olhos o fitaram, mas claramente absorvia cada sílaba que pronunciávamos. Fiz uma pausa e disse a Mott:

 

— Vamos conversar onde haja menos ouvidos ávidos por mexericos.

 

Mott me acompanhou até meu quarto. A camisa de dormir e o robe estavam estendidos sobre a cama, caso eu estivesse pronto para eles. Parte de mim queria entrar debaixo dos cobertores aveludados de minha cama e tentar dormir para esquecer a noite horrenda. Outra parte se perguntava como eu poderia voltar a dormir algum dia.

 

Mal as portas se fecharam, Mott rasgou o resto de minha manga cortada, revelando a bandagem no meu braço.

 

— Quem fez isso?

 

— Parece que tenho ainda menos amigos do que pensava.

 

Mott limpou a garganta, enquanto terminava de desenfaixar meu braço e estudava o corte.

 

— Isto precisa de álcool.

 

— Não está tão ruim.

 

— É ruim o suficiente. Por sorte, não é seu braço de espada.

 

— Meus dois braços são de espada. — Eu normalmente preferia a mão esquerda, mas meu pai me forçara a treinar com a direita. Quando criança, o uso de ambas as mãos me frustrava, mas a capacidade de lutar com qualquer uma delas havia se tornado uma habilidade valiosa à medida que eu crescia. — E por que isso é relevante?

 

— É que ouvi falar que o rei passa cada minuto livre no pátio, treinando com a espada. Por que isso?

 

— As garotas gostam de olhar. — Mott zombou, então acrescentei: — É simples. Não tenho praticado nos últimos quatro anos. Só isso.

 

— Só que nada é simples quando se trata de você.

 

— Ai! — puxei meu braço quando ele tocou uma área especialmente dolorida do ferimento. — O que quer que esteja fazendo aí, pare!

 

— Estou limpando a ferida. Da próxima vez que o atingirem, tente não sujar o local de terra.

 

— Da próxima vez pedirei ajuda a alguém que não trate um ferimento como se escovasse uma chaminé.

 

Claramente irritado, Mott disse:

 

— Você devia me agradecer por tolerá-lo. Eu esperava que, ao se tornar rei, você se livraria de suas péssimas maneiras.

 

— Isso é interessante. Meu pai esperava que me tirar da realeza fizesse o mesmo. — Então, com mais gentileza, eu disse: — Agora, conte-me as notícias de sua viagem.

 

Ele deu de ombros.

 

— Seguimos Roden até Avenia, logo depois de sua coroação. Acreditamos que ele esteja de volta a Carthya agora, mas não podemos garantir.

 

Eu podia. Indicando meu braço com um movimento de cabeça, eu disse:

 

— Roden fez isso.

 

— Ele esteve aqui? — As grossas sobrancelhas de Mott se uniram. — Você está bem?

 

— Eu já disse, o corte não foi tão fundo.

 

Ele balançou a cabeça.

 

— Não foi isso que perguntei. Jaron, você está bem?

 

Uma pergunta tão fácil para uma resposta que me dava nós no estômago e me sufocava. Serenamente, eu disse:

 

— Parece que faz uma vida inteira que o dia de hoje começou. E toda vez que acho que nada mais pode dar errado, dá.

 

— Você passou por Farthenwood. Vai passar por isso também.

 

Grunhi ao ouvir isso, então disse:

 

—Apesar de horrível, Farthenwood era um teste de resistência. Eu sempre soube que venceria Conner se conseguisse sobreviver a ele — olhei para Mott. — Mas não consigo visualizar como terminará o que precisa ser feito agora. Ou talvez eu não queira.

 

O silêncio se instaurou enquanto Mott continuava a cuidar do meu braço. Quando começou a enfaixá-lo novamente, perguntou:

 

— Por que você nos enviou para encontrar Roden? Por que simplesmente não o deixou ir?

 

— Porque pensei que... tínhamos sido amigos. Era Cregan que nos jogava um contra o outro. Eu acreditava nisso.

 

— E agora?

 

— Parece que eu estava errado. Tudo que enfrentamos juntos... nada importou. Tudo o que vi nos olhos dele esta noite foi ódio.

 

Enquanto acabava de prender a nova bandagem, Mott afirmou:

 

— Estou preocupado com você.

 

— Que bom. Eu não queria ser o único. — Inspirei lentamente e, então, acrescentei: — Se minha única escolha é entre o inaceitável e o impossível, qual dos dois devo escolher?

 

— Qual deles significa que continuará vivo? — perguntou Mott.

 

Fomos interrompidos por uma batida à porta e fiquei grato pela distração. Ele não teria gostado da minha resposta.

 

Mott caminhou até a porta e então se virou para mim.

 

— Lorde Kerwyn quer vê-lo.

 

Assenti e, quando Kerwyn entrou, Mott pediu licença para se retirar, dizendo que ia buscar mais álcool. Achei que ele parecia um pouco irritado ao olhar para trás, mas as pessoas frequentemente ficavam assim quando conversavam comigo, e, desse modo, não era algo muito digno de nota.

 

Kerwyn fez uma reverência antes de se aproximar e em seguida disse:

 

— Jaron, seu braço!

 

— Eu sei.

 

— Gregor me disse que atacaram você. Graças aos santos que não foi mais grave.

 

— Vai ficar bem mais grave antes de chegar ao fim.

 

E eu não conseguia pensar em nenhuma razão para que os santos tivessem qualquer interesse na minha pessoa.

 

Os vincos no rosto de Kerwyn se aprofundaram. Imaginei quantas de suas rugas teriam sido causadas por mim. Mais do que deveria ser minha cota, suspeitei.

 

Eu disse:

 

— Você convocaria uma reunião com os regentes amanhã de manhã? Gregor não apoia minha posição, então falarei com eles diretamente.

 

Kerwyn franziu a testa.

 

— Na verdade, esta é uma das razões pelas quais eu vim. Gregor acaba de reunir os regentes em assembleia. Estão reunidos neste exato momento.

 

— Sem o rei? — Murmurei uma série de maldições, inventando algumas novas no processo. Então fiquei de pé e comecei a despir meu tabardo úmido, para poder trocar de roupa. A dor no braço fez meu rosto se contrair, e Kerwyn ficou de pé para me ajudar.

 

— Os regentes terão de agir agora — ele disse. — Enquanto você estiver no trono, será um alvo.

 

— Enquanto eu for Jaron, serei um alvo — declarei. E então, com a voz mais forte, acrescentei: — Ajude-me a me vestir, Kerwyn. Tenho de ir a essa reunião.

 

Minutos depois, irrompi pelas portas da sala do trono. Todos os dezoito regentes estavam ali, com Gregor na cadeira anteriormente ocupada por lorde Veldergrath, aquela cobra. Eu ainda não havia escolhido regentes para substituir Conner e provavelmente não o faria por enquanto. Pelo menos não até que aqueles que desejavam ser escolhidos parassem de se ajeitar todas as vezes que eu passava por eles. Qualquer que fosse a conversa no momento, ela se extinguiu feito uma tocha mergulhada na água. De forma meio descuidada, todos se curvaram em reverência, sem dúvida maculando sua nobre boca ao resmungarem o vocabulário do diabo.

 

— Quem quer que tenha se esquecido de me convidar para esta reunião deveria ser decapitado — declarei, conforme me afundava na cadeira do rei. — Então, quem foi?

 

A maioria dos regentes subitamente pareceu fascinada pelas pegras de suas roupas. Ou isso ou estavam evitando me olhar. O silêncio pelo menos não me incomodava. Lorde Hentower ocupava a cadeira mais próxima à minha direita. Encarei-o friamente e apreciei bastante a visão de seu crescente desconforto.

 

Gregor resolveu diminuir a tensão.

 

— Vossa Alteza, esta foi uma reunião apressada e não houve intenção de ofendê-lo. Se soubéssemos que desejava participar...

 

— Eu nunca desejo participar — corrigi. — No entanto, aqui estou. Então, o que estamos discutindo?

 

Mais uma vez, os regentes fixaram o olhar em suas roupas, ou nas mãos, ou no piso. Em qualquer coisa, na verdade, em vez de me dar uma resposta.

 

— Lady Orlaine — eu disse—, posso presumir que estamos todos aqui para discutir os rituais de acasalamento da coruja pintada?

 

Ela titubeou antes de encontrar a própria língua e então gaguejou:

 

— Houve uma tentativa de assassinato aqui hoje, senhor.

 

— Sim, eu sei. Eu estava lá — voltei minha atenção para Gregor. Pelo menos ele tinha a coragem de encarar meu olhar. — Como os piratas passaram pelas muralhas de meu castelo?

 

— Isso está sendo investigado enquanto conversamos — ele respondeu.

 

— Mas não por você — olhei em volta —, a não ser que suspeite de um de meus regentes.

 

— Não, é claro que não — Gregor limpou a garganta. — Encontraremos os responsáveis.

 

— Foram os piratas. E o rei Vargan os ajudou a se esgueirarem aqui para dentro.

 

Suspiros seguiram a acusação, e então lady Orlaine perguntou:

 

— Há provas disso?

 

— Provar as coisas é trabalho dele — disse eu, apontando para Gregor. — E talvez ele não tenha lhes contado, mas conversei com Vargan mais cedo. Ele me preveniu que vamos ser atacados.

 

— Por que ele faria isso? — perguntou Gregor.

 

— Você sabe por quê. Para me intimidar para que eu entregue nossas terras antes que isso aconteça.

 

Um fato que não parecia incomodar Gregor tanto quanto deveria.

 

— Vossa Majestade está certo de que ele disse “ataque”? — perguntou ele. — Talvez ele quisesse dizer outra coisa.

 

— Ah, uma das definições positivas da palavra, então? — perguntei. — Algo como um ataque de afeição, ou um ataque de boa vontade contra Carthya? Eu sei o que ouvi, Gregor.

 

— O que o senhor pensa que ouviu — corrigiu mestre Westlebrook, um regente mais jovem, sentado na ponta mais distante da mesa. — Não podemos fazer nenhuma acusação baseados em um raciocínio tão frágil.

 

Gregor se inclinou para a frente, as mãos apertando a mesa.

 

— Vossa Majestade, nossa maior preocupação, obviamente, é sua segurança. Já expliquei a seus regentes a ameaça que lhe fizeram e acreditamos ter um plano.

 

— Qual? — Isso ia ser divertido.

 

Lorde Termouthe continuou:

 

— Primeiro, concordamos em entregar Bevin Conner a eles. Devemos fazer algumas concessões se esperamos ter paz entre nós.

 

Do outro lado da mesa, Gregor continuou:

 

— E é claro, senhor, sua vida deve ser preservada. Decidimos que Vossa Majestade não pode ser entregue aos piratas.

 

Sorri.

 

— Uma decisão a que provavelmente só chegaram depois de um longo debate.

 

Eu esperara alguns sorrisos depois desse gracejo, mas não houve nenhum. Inclinei a cabeça, me perguntando se teria mesmo havido um debate.

 

— Os regentes acreditam que, até a ameaça imediata passar, Vossa Majestade deve ficar escondido — explicou Gregor. — Não importa o quanto demore, nós o manteremos a salvo.

 

— Até quando? — Eu estava quase no limite de minha paciência agora. — Mais quatro anos? Ou vamos esperar quarenta dessa vez?

 

Sem responder, ele continuou:

 

— Por fim, precisamos eliminar o motivo pelo qual os piratas o querem. — Gregor inspirou profundamente antes de acrescentar: — Propus aos regentes que nomeassem um governante para cuidar do trono até sua maioridade. Se Vossa Majestade não estiver no trono, então os piratas não ganham nada ao matá-lo. — Ele me olhou esperando uma resposta e, como permaneci em silêncio, acrescentou: — Pode não ser uma ideia agradável, mas salvará sua vida, Majestade.

 

Ante a menção de um governante, meu coração congelou. Eu não sabia a quem dirigir a raiva que tão subitamente tomara conta de mim. A Kerwyn, por não ter me avisado disso? Ou a Gregor, por fingir que era o mais leal dos serviçais mesmo conspirando para me tirar do trono? Ou a mim mesmo, por dar aos regentes motivos para confiar mais em Gregor do que em mim? Acabei escolhendo Gregor, porque já estava irritado com ele, de qualquer forma.

 

Então lorde Termouthe disse:

 

— Jaron, você apoiará este plano?

 

Tamborilei os dedos no braço da cadeira.

 

— Não.

 

— A que parte se opõe?

 

— Comecei a discordar assim que você começou a falar — fiquei de pé e comecei a andar pela sala. — Para começar, devemos proteger Conner até que eu entenda tudo sobre o assassinato de minha família. Ele é a nossa única ligação com a verdade. O óleo de dervanis...

 

— Conner lhe disse que isso era irrelevante — afirmou Gregor, elevando o tom de voz. — Por que essa obsessão em perseguir sombras, quando a verdadeira questão é como manter os piratas fora de Carthya?

 

— É tudo uma coisa só! — gritei de volta. — Você não consegue ver que tudo está interligado? Tem algo errado com a história dele!

 

Minha conversa com Conner já começava a me perturbar. Alguma coisa acontecera lá que eu deveria ter entendido, talvez uma mensagem em código em suas palavras, ou em seu tom de voz. E ainda assim as pistas continuavam ocultas.

 

— Não há nada errado com a história dele. Você se tornou muito instável, obviamente a única coisa errada aqui é com você! — Gregor fez uma pausa e então baixou a voz. — Perdoe minha explosão, Majestade. Eu não quis dizer isso.

 

Ah, ele tinha desejado, sim. E bastou uma olhada em meus regentes para constatar não ser ele o único que pensava assim. Apenas Kerwyn, de pé e em silêncio no canto da sala, parecia estar do meu lado.

 

Engoli minhas emoções e então disse, calmamente:

 

— Você não entendeu as razões pelas quais os piratas querem minha morte. Esteja eu escondido ou não, seja o rei ou não, eles pretendem terminar o serviço para o qual Conner os contratou há quatro anos. Eles não querem um tratado ou um acordo comercial. Nada vai satisfazê-los além da minha morte. Esta é uma ameaça que não pode ser eliminada com negociações.

 

— Negociações sempre funcionaram com seu pai — disse mestra Orlaine.

 

— Meu pai estava errado! — Isso era algo que eu jamais dissera em voz alta e nunca nem mesmo ousara pensar. Endireitei os ombros e continuei: — Quando o outro lado só quer nossa destruição, o que resta para negociar? Estou pedindo a vocês que me sigam. Porque, se não nos defendermos agora, quando os piratas vierem, os exércitos de Avenia não demorarão a segui-los.

 

— Por isso acreditamos que a solução é remover a motivação dos piratas para virem, em primeiro lugar! — Gregor ficou de pé, olhando diretamente para mim. — Jaron, os regentes não apoiarão nenhum ato de guerra como solução para este problema.

 

Eu os encarei, perplexo.

 

— Desde a noite de hoje, os piratas já estão em guerra conosco. Ignorar essa realidade não significa que estejamos em paz. — Algumas cabeças assentiram, mas não o suficiente.

 

— Encontraremos uma forma de evitar a guerra... sem você — a voz de Gregor soou fria e distante.

 

Minha mente voltou ao que Conner dissera na masmorra. Se eu morresse, Carthya provavelmente poderia evitar a guerra, uma opção conveniente para todos. Exceto para mim, claro.

 

Minha mandíbula ficou tensa.

 

— Houve uma votação?

 

Ele balançou a cabeça e então disse:

 

— Talvez nós não possamos obrigá-lo a se esconder, mas temos autoridade para nomear um governante até que você atinja a maioridade e esteja pronto para voltar a ser rei. Não faça disso uma batalha, Jaron. Você está sozinho aqui.

 

Também como Conner dissera.

 

— E o governante será você? — perguntei.

 

Gregor limpou a garganta novamente.

 

— Em tempos de guerra, eu sou a escolha mais lógica. Além disso, Amarinda será a rainha deste país um dia. Ela apoia totalmente minha liderança e estou certo de que endossoaria os regentes.

 

— Ela ainda não é rainha — eu disse.

 

Kerwyn caminhou até nós dois e se dirigiu a Gregor.

 

— Há duas vagas entre os regentes agora. Uma é do regente que teria matado Jaron se o tivesse encontrado em Farthenwood. A outra é do regente que realmente matou a família de Jaron. O rei é jovem, mas eu ainda confio mais nele do que em qualquer um nesta sala.

 

— Esperamos que um dia possamos confiar nele também — Gregor se voltou para mim. — É só até sua maioridade, Vossa Alteza. E para seu próprio bem.

 

Comecei a responder, mas Kerwyn colocou a mão em meu braço, insistindo para que eu não continuasse a discussão. Ele estava certo em agir desse modo. Eu não poderia vencer esta batalha.

 

Eles haviam me deixado com apenas uma escolha, e minhas mãos já estavam suando só de pensar nela. Sentia-me como se estivesse de pé dentro de minha própria cova, tão profunda que eu não alcançava a saída. Ainda assim, precisava escalá-la. Meu primeiro passo começaria ali mesmo, com meus regentes.

 

Já prevendo a resposta, forcei meus punhos a se abrirem e olhei para Gregor.

 

— Então, quando partirei?

 

— Ao amanhecer. Investigaremos o que houve esta noite e então prosseguiremos com esforços diplomáticos para resolver o problema.

 

Balancei a cabeça.

 

— Você deve adiar qualquer votação para a escolha de um governante até que a investigação esteja completa. Os piratas me deram dez dias. Dê-me nove.

 

Gregor hesitou, mas Kerwyn disse:

 

— Isso é aceitável. Nenhuma investigação seria adequada com um prazo menor.

 

— E quanto à princesa? — perguntei. — Sua segurança?

 

— Você foi o alvo esta noite, não ela. Estou certo de que Amarinda está a salvo aqui — respondeu Gregor, acrescentando: — Vossa Majestade faz muito bem em apoiar este plano.

 

Eu absorvi as palavras, assentindo lentamente.

 

— Você acha que eu quero fugir?

 

Ele disse apenas:

 

— Logo você vai voltar. E verá que, no fim, tudo estará melhor.

 

Deixei a sala do trono sozinho, agitado demais para dormir e exausto demais para enfrentar tudo o que a noite ainda exigia de mim.

 

A última coisa de que eu precisava era dar de cara com Amarinda, que claramente esperara no corredor pelo fim da reunião. Dirigi-lhe um breve aceno de cabeça e então disse:

 

— Qual dos regentes você está esperando? Ou é Gregor que deseja ver?

 

Os olhos cor de amêndoa de Amarinda se estreitaram enquanto me avaliavam. Ela era incomumente bela e conseguia me intimidar sempre que eu a olhava diretamente. Então, eu raramente o fazia.

 

— Vim falar com você — seu tom era furioso. — Soube o que fez com Imogen. Como ousa? Ela não merecia aquilo!

 

Virei-me para ela com raiva:

 

— E, diga-me, o que Conner fez para merecer uma refeição tão agradável, entregue em mãos por você?

 

— Você deveria ter compartilhado aquela refeição esta noite comigo! — Isso eu não podia negar. Durante toda a semana, encontrara algo melhor para fazer na hora de quase todas as refeições. Então ela se acalmou. — Eu esperei que você viesse jantar comigo. Pense que fôssemos conversar.

 

Alguma coisa em sua voz fez com que eu me arrependesse de ter dispensado tão casualmente todas as chances de passar um tempo com ela.

 

— Tudo bem. Talvez devêssemos conversar agora.

 

Ofereci-lhe o braço e começamos a caminhar pelo corredor. Alguns segundos se passaram. Eu não conseguia pensar em nada para dizer, e ela parecia igualmente desconfortável.

 

Finalmente, Amarinda perguntou:

 

— Você quer o melhor para Carthya e eu também. Por que estamos tão distantes?

 

Porque ela levara alimento e conforto a um homem que tentara me matar. Além disso, confiara em um homem que naquele momento estava fazendo de tudo para tomar meu trono.

 

Respondi à pergunta dela com outra:

 

— Como foi o funeral? Só ouvi uma pequena parte dele.

 

Amarinda comprimiu os lábios e então respondeu:

 

— Foi adorável. Mas devo dizer que, mesmo que você ainda esteja zangado com o que sua família lhe fez, foi terrivelmente desrespeitoso não participar.

 

— Não estou zangado com eles e não queria ter faltado.

 

— Então o que poderia ter sido mais importante? A menos que você estivesse quase morto em algum lugar, devia ter estado lá! — Parei de caminhar e encarei-a fixamente. Ela inclinou a cabeça, enquanto percebia o que isso significava. — Ah, não. Perdoe-me, eu não sabia. O que nós vamos fazer?

 

Ela disse nós, e aquilo me deteve por um instante. Apesar de sua lealdade a Gregor, seria possível que ela quisesse uma parceria mais forte entre nós dois?

 

— Antes de qualquer coisa, você poderia ajudar Imogen? — perguntei-lhe. — Garanta que ela tenha tudo de que precisa para viver com conforto... em outro lugar.

 

— Por favor, deixe-a ficar. O que quer que ela tenha feito para ofendê-lo, ainda é minha amiga e não tem mais para onde ir.

 

— Ela não pode ficar aqui — resmunguei. — Minha decisão é irrevogável.

 

— Mas por que... — então Amarinda parou de falar, como se entendendo as coisas que eu não podia explicar. — Tudo bem. Eu a ajudarei.

 

— Avise-me quando ela estiver em segurança e nós terminaremos nossa conversa. — Eu lhe devia pelo menos total honestidade quanto a meus planos.

 

Foi rude não me oferecer para acompanhá-la ao quarto de Imogen, mas não queria chegar nem perto daquela parte do castelo nessa noite.Então trocamos uma reverência, e ela seguiu em uma direção, e eu, em outra. Apenas alguns segundos depois, ouvi a voz de Gregor perto da princesa:

 

— Milady, posso escoltá-la até seu destino?

 

Amarinda arrulhou, encantada, e aceitou a oferta. E, com essa atitude, qualquer boa vontade que houvesse entre ela e mim se evaporou. Se Amarinda não me procurasse mais tarde, eu também não iria atrás dela.

 

Antes de voltar ao meu quarto, parei na biblioteca, a fim de pegar alguns livros para a viagem. Aquele não era meu lugar favorito no castelo porque, no centro da parede principal, havia um grande retrato de minha família, pintado um ano antes. Ele retratava meus pais sentados lado a lado, com meu irmão de pé entre os dois. Depois que encontrei os livros que queria, permaneci ali, olhando para o quadro por um momento, imaginando se algum deles havia pensado em mim enquanto posavam. Por mais que tentasse, ainda não conseguia entender meus sentimentos a respeito do que meu pai fizera. Ele me custara a vida que eu deveria ter tido, ou ele a salvara?

 

Aquilo era demais para mim, e deixei a biblioteca sem olhar para trás.

 

Voltei o mais rápido que pude aos meus aposentos, onde Mott ansiosamente aguardava notícias. Os olhos dele fixaram-se no que eu trazia nas mãos. Tentei cobrir o título do livro de cima, mas era tarde demais.

 

— Livros sobre piratas? — ele perguntou. — Para quê?

 

— Nem comece, Mott.

 

— Eu me lembro de você dizendo a Conner que não era um grande leitor, a menos que o assunto fosse de seu interesse.

 

Passei por ele.

 

— Partiremos ao amanhecer. Tobias também virá. Certifique-se de que ele saiba disso.

 

— Aonde... — Mott parou quando eu me virei para ele, e então disse: — Jaron, você está doente? Não parece bem.

 

Balancei lentamente a cabeça enquanto entrava em meu quarto.

 

— Sem perguntas. Só esteja pronto pela manhã.

 

A manhã trouxe uma fria garoa que fez a paisagem parecer cinzenta e deprimente, como se até o sol estivesse envergonhado desse plano. Gregor reunira um grande número de sentinelas e alguns serviçais para me acompanhar. A expressão no rosto deles ia de pena pela minha tão covarde partida até um mal disfarçado desprezo pela minha incompetência. Com exceção dos dois empregados que me serviriam naquela manhã como cocheiros, eu não via a hora de dispensar a todos.

 

Gregor cuspiu um protesto, mas eu disse:

 

— Como vou me esconder com metade do reino me escoltando? Só preciso de Mott, e Tobias pode ajudar com as coisas só até começar a ficar irritante demais. — Olhei em volta. — Amarinda não está aqui?

 

— Acredito que a princesa tenha ficado acordada até bem tarde, ajudando Imogen com os preparativos para a partida dela.

 

Perguntei-me como Gregor poderia conhecer tal fato envolvendo Amarinda, e eu não. Sem dúvida, ele estava cortejando o apoio dela ao seu nome como governante. Ou talvez ele a estivesse cortejando por outros motivos também. Eu realmente não sabia.

 

Kerwyn me puxou de lado enquanto os últimos suprimentos estavam sendo carregados.

 

— Por favor, Jaron, não vá.

 

Apesar de suas súplicas, eu só podia balançar a cabeça.

 

— Não há outra escolha agora.

 

— Achei que dormir um pouco o faria mudar de ideia.

 

Colocando a mão sobre o ombro de Kerwyn, eu disse:

 

— Eu tinha a mesma preocupação, por isso fiquei acordado.

 

Os olhos de Kerwyn umedeceram.

 

— Eu sempre o amei, Jaron, você sabe disso. Quando o perdemos há quatro anos, perdi parte de mim. E agora o tivemos de volta por apenas umas poucas semanas. Você deve prometer que vai voltar.

 

Minha tentativa de sorrir falhou.

 

— Prometo o seguinte: se eu não voltar, é porque não era forte o suficiente para ser rei. Nesse caso, Carthya deveria mesmo ter um governante.

 

Isso não serviu para confortá-lo e, para falar a verdade, deixou-me uma sensação de vazio também. Ele fez uma profunda reverência e disse que esperaria por notícias minhas todos os dias. Eu gostaria que ele não tivesse dito aquilo. Eu não mandaria notícia nenhuma, boa ou ruim.

 

Depois que entrei na carruagem com Mott e Tobias, disse ao cocheiro que nos levasse a Farthenwood.

 

— Farthenwood? — perguntou Mott, surpreso. — Mas Gregor tinha outro local em mente.

 

— Gregor não manda em mim — rebati.

 

Com um rápido olhar para Mott, Tobias disse:

 

— Precisamos conversar.

 

— Vão em frente — afirmei, me esparramando em meu assento. — Mas falem baixo para que eu possa dormir.

 

— Conversar com você — esclareceu Tobias. Mas meus olhos já estavam fechados.

 

Assim que acharam que eu estava dormindo, ouvi Tobias sussurrar para Mott:

 

— Ele está horrível.

 

— Eu perguntei ao sentinela que fica na porta do quarto hoje de manhã. Ele tem certeza de que Jaron ficou acordado a noite toda e pode ter escapado por sabe-se lá quanto tempo.

 

Eu tinha feito isso mesmo e passara a noite toda lendo os livros que pegara da biblioteca. Minha esperança era de que Amarinda mandasse me chamar para que pudéssemos conversar, mas ela não fez isso. Assim que desisti de esperá-la, encontrei Kerwyn, com quem compartilhei o plano para minha partida, mas ele o recebera com ainda menos entusiasmo do que eu tinha esperado.

 

— Você está indo direto para a boca da fera que quer devorá-lo! — ele gritara.

 

— Já estou sendo devorado! — foi a minha resposta. — Kerwyn, esta é a única chance que tenho. A única chance que qualquer um de nós tem.

 

Por fim, Kerwyn relutantemente me dera sua bênção. Não era muito para levar comigo nessa viagem, mas era tudo o que eu tinha.

 

Sentado de frente para mim agora, Tobias sussurrou para Mott:

 

— Como está o braço dele?

 

— Não está ruim. Levará ainda alguns dias para cicatrizar.

 

— E foi Roden quem o apunhalou? Eu sabia que Roden queria o trono, mas nunca imaginei que tentaria algo assim.

 

— Não dê tanto crédito a Roden — murmurei. — Ele me cortou, não me apunhalou — abri um olho para eles e sorri. Nem Mott nem Tobias retribuíram o gesto.

 

Então fechei os olhos novamente e me permiti adormecer. Deve ter sido um sono profundo, porque, quando acordei, a carruagem já havia parado e o sol se punha alto no céu. Mott e eu estávamos sós.

 

— Chegamos a Farthenwood? — perguntei.

 

— Sim.

 

Bocejei e afastei o cabelo do rosto.

 

— Onde está Tobias?

 

— Ele entrou para fazer arranjos para a nossa estada. Como não houve aviso de nossa vinda, ninguém estava preparado para recebê-lo.

 

— Dispense qualquer um que ainda esteja aqui. Diga-lhes que iremos embora em poucos dias e que eles podem voltar. E quero que encontre algo nas colinas para os sentinelas protegerem, como uma rocha ou uma moita de espinheiros. Não os quero aqui.

 

— Certo. Mas eles não estão por perto agora. Estamos sozinhos. — Ele umedeceu os lábios e acrescentou: — Nós precisamos falar sobre o ataque de Roden na noite passada.

 

Olhei pela janela da carruagem, mas não vi nada.

 

— Tudo bem, fale.

 

Ele se inclinou para a frente e cruzou as mãos.

 

— Ontem à noite você me disse que sua escolha seria entre o inaceitável e o impossível. E então, qual das duas coisas escolheu?

 

Com pouco a oferecer, apenas dei de ombros.

 

— Bem, como eu disse, o inaceitável não era... aceitável.

 

— Então o impossível evidentemente significa que você está planejando algo contra os piratas.

 

— Não me peça que eu fale sobre isso agora.

 

— Então me peça alguma coisa você! — Eu nunca tinha visto uma expressão de preocupação tão intensa nos olhos de Mott. — Jaron, tudo o que você precisa fazer é pedir e eu o seguirei até o covil do diabo. — E, depois de um instante, acrescentou: — Ou até o dos piratas.

 

— Eu sei disso — minhas palavras foram pouco mais do que um sussurro.

 

— Consigo ouvir o medo em sua voz. Deixe-me ajudá-lo.

 

Eu sentia medo, e queria falar a respeito. Mas também não podia permitir que Mott me fizesse mudar de ideia. Se eu lhe desse tempo suficiente para uma conversa, ele talvez acabasse conseguindo.

 

Então eu disse apenas:

 

— Se você quer me ajudar, livre-se dos sentinelas.

 

Mott suspirou, então alcançou a maçaneta e deixou a carruagem. Depois que ele se foi, também saí dali e andei sem rumo até os fundos da propriedade de Conner. Era estranho estar ali novamente. Farthenwood permanecera tão igual, enquanto minha vida inteira mais uma vez estava de ponta-cabeça.

 

As lembranças do tempo que vivera naquele lugar continuavam frescas e dolorosas. Era ali que eu havia recebido duas cicatrizes nas costas, lembretes do preço de voltar ao trono. Uma me fora infligida por Tobias, e a mais profunda viera de Mott. Eles eram agora as duas pessoas de que eu mais precisava neste mundo.

 

— Estávamos à sua procura — Tobias já estava fazendo uma reverência, quando me virei.

 

— Pare com isso — eu disse.

 

Ele se endireitou e sorriu desajeitado, enquanto caminhava na minha direção. Ficamos ao lado um do outro, voltados para a parte dos fundos de Farthenwood. Diretamente à nossa frente estava o quarto de Conner. Talvez sugerissem que eu ficasse com ele, já que era o melhor cômodo de todos. Eu não estaria ali naquela noite, mas, mesmo que estivesse, sob nenhuma circunstância dormiria nele.

 

— Ouvi dizer que Gregor quer substituí-lo por um governante — disse Tobias.

 

— É o plano dele.

 

Tobias chutou um pouco de terra.

 

— Você nunca quis ser rei, então talvez isso seja bom.

 

— É mesmo? Será que eu deveria comemorar?

 

Ele se desculpou e, enquanto nos dirigíamos para a casa, eu disse:

 

— Talvez devesse indicar você como meu substituto.

 

Tobias deu uma risadinha.

 

— Definitivamente não! Mas eu adoraria ser médico um dia. Ou talvez professor. Acho que eu seria bom nisso.

 

— Seria sim.

 

— O problema é que no castelo não há crianças a quem ensinar. Talvez algum dia você e Amarinda...

 

— Eu não contaria com isso — eu disse categoricamente.

 

— Ela ainda o odeia?

 

— Não sei o que ela pensa de mim. Na verdade, não sei o que ela pensa sobre coisa nenhuma.

 

— Você falou com ela?

 

Revirei os olhos.

 

— Não comece você também.

 

— Sinto muito — ele se desculpou. E então acrescentou: — Jaron, por que estamos aqui? Tem alguma relação com aqueles livros sobre piratas da noite passada?

 

Mal conseguindo pensar em tudo que viria, apenas assenti e disse:

 

— Sim, Tobias. Tem tudo a ver com eles.

 

Uma vez em Farthenwood, fiz de tudo para evitar Mott e Tobias. Eu não tinha nada a lhes oferecer em termos de conversa de verdade, e muitos pensamentos enchiam minha cabeça para que ainda restasse espaço para conversa fiada.

 

Sem nada melhor para fazer, andei sem rumo pelas salas e salões e inevitavelmente acabei indo ao subsolo da mansão, ao calabouço de Conner. Não estava claro para mim por que eu me sentira compelido a ir até ali. Talvez fosse só para estar ali como uma pessoa livre, sabendo que poderia sair quando quisesse.

 

— Não achei que viria até aqui.

 

Eu me virei e vi Mott descendo as escadas. Ele parou ao meu lado e cruzou os braços.

 

— Nem eu — respondi.

 

— Você me trouxe para o seu lado nesta sala, sabia? Tudo em que eu acreditava a respeito de Conner mudou aqui.

 

— Como você pôde trabalhar para ele, Mott?

 

— Era só o que eu conhecia. E juro que eu nunca soube de seus piores crimes.

 

— Ele nunca falou de seus planos?

 

Mott pensou por um instante e então disse:

 

— Uma semana antes de matar sua família, Conner mencionou que o rei andava desconfiando dos regentes e havia ordenado que os revistassem todas as vezes que entrassem no castelo. Não dei atenção a isso na época, mas, pensando sobre o caso agora, isso certamente dificultou os planos de Conner. Se eu soubesse, teria impedido.

 

Assenti e chutei o chão com a ponta da bota.

 

Mott ficou em silêncio por mais um instante e então acrescentou:

 

— Jaron, você pode me perdoar pelo que aconteceu aqui?

 

— Você chicoteou Sage, não Jaron. — Ele balançou a cabeça, sem entender, então eu disse: — Você quer meu perdão agora porque sou Jaron, porque sou o rei? Teria se desculpado caso eu fosse apenas Sage?

 

Então Mott compreendeu. Ele se virou de costas para mim e parecia estar desabotoando a camisa.

 

— Você se lembra de quando Tobias lhe cortou as costas? Você me disse que havia se ferido em uma janela.

 

Fora uma enorme mentira de minha parte, da qual ainda me arrependo. Mas tinha sido o único jeito de forçar Tobias a recuar em sua tentativa de se tornar o príncipe.

 

— Só o que lhe aconteceu foi a perda das refeições de um dia, e Tobias não foi punido — continuou Mott. — Mas, quando Conner descobriu que eu havia tentado esconder o fato, ele me fez isto. — Mott abaixou a camisa o suficiente para revelar uma cicatriz de chicotada em suas costas, não tão profunda quanto a que ele fizera em mim, mas sem dúvida suficiente para ter lhe causado muita dor. Senti-me mal ao ver aquilo. Assim que a exibiu, vestiu a camisa novamente. Ainda olhando para o outro lado, Mott falou: — Fiz isso por Sage, não por Jaron — e saiu antes que eu tivesse a chance de dizer uma palavra, embora não houvesse nada a ser dito naquele momento.

 

Encontrei-o novamente na hora da ceia, na pequena sala de jantar de Conner. Tobias, junto com o cozinheiro, cuidava dos detalhes finais da refeição, por isso Mott e eu estávamos a sós. Ele se levantou quando entrei e ficamos em perpendicular, constrangidos para olhar diretamente um para o outro.

 

Depois de um breve silêncio, eu disse:

 

— Só estou vivo até hoje por causa das coisas erradas que fiz na vida. Meus crimes podem ter me deixado a salvo, mas eu nunca quis que eles lhe causassem mal.

 

Os olhos de Mott estavam cheios de tristeza quando ele olhou para mim.

 

— Jaron...

 

— Você nunca mais vai me pedir perdão novamente pelo que aconteceu no calabouço — eu o interrompi. Doeu dizer isto: — E você deixará que eu lhe peça perdão.

 

— Não é necessário.

 

— Talvez ainda não — olhei-o rapidamente. — Mas será.

 

— Eu sei que você tem muitas preocupações — disse Mott. — Mas somos amigos. Você pode me contar tudo.

 

Balancei a cabeça.

 

— Não, Mott. Não tudo, porque você é meu amigo.

 

Nesse momento, Tobias entrou carregando uma bandeja com três tigelas de cozido. Se percebeu o desconforto entre nós, não demonstrou.

 

— Não temos pão. O cozinheiro não teve tempo de fazer — explicou Tobias, me entregando a tigela maior.

 

— Isto é suficiente — eu disse. — Sentem-se, vocês dois. Vamos comer como amigos esta noite e nada mais.

 

Ainda assim, o tempo passava em um silêncio incômodo, até que Tobias perguntou:

 

— Você ficou surpreso ao ver Roden na noite passada?

 

— O tipo de surpresa que faz seu coração pular uma batida — respondi. — Eu queria que, quando o visse novamente, fosse em meus termos, não nos dele.

 

Tobias assentiu.

 

— Você devia tê-lo matado na noite em que foi coroado, quando vocês lutaram nos túneis. Por que o deixou ir?

 

Depois de outra garfada, expliquei:

 

— Até a noite passada, eu não achava que ele seria capaz de me fazer mal. Penso que agora isso mudou.

 

— Roden só deseja fazer diferença, ser importante — disse Tobias. — Se tiver de feri-lo para conseguir isso, ele o fará. Talvez Gregor esteja certo e você devesse mesmo se esconder.

 

Fuzilei-o com os olhos.

 

— E você acha que eu poderia agir de forma tão covarde?

 

— Chega! — frustrado comigo, Mott jogou o talher sobre a mesa. — Se insiste para que nós não nos curvemos perante sua realeza, então eu vou tratá-lo como o menino teimoso que é. Por que estamos aqui? Exijo uma resposta.

 

— Senão o quê? — sorri e cruzei os braços. — Eu posso vencê-lo em uma luta de espadas, e todos nós sabemos o que acontecerá se você me trancar em meu quarto.

 

— Nada tão complicado assim — Mott também cruzou os braços. — Eu simplesmente decidirei que não gosto mais de você.

 

Meu sorriso ficou ainda mais largo.

 

— Essa é uma ameaça grave.

 

— Fica pior. Eu só o chamarei pelo seu título, revirarei os olhos em silêncio quando me der ordens e farei com que não lhe seja divertido me insultar, nunca mais.

 

— Bem, não posso lidar com isso — não pude evitar uma risada, e até Mott sorriu. Meus olhos foram dele para Tobias. — Se vamos discutir a verdade, então preciso de algo para beber. Notei que há uma garrafa de cidra pela metade na despensa. Não é muito, mas deve servir. Você pode ir buscá-la?

 

Tobias se ergueu de um pulo e saiu correndo da sala.

 

Eu me virei novamente para Mott.

 

— E se você não gostar do que tenho a dizer?

 

— Eu raramente gosto do que você tem a dizer, então esperarei o pior.

 

— Prometo não desapontá-lo.

 

Mott se remexeu na cadeira, mas eu mal me movi enquanto esperávamos pela volta de Tobias. Ele voltou poucos minutos depois, com a cidra e três cálices. Estendi as mãos para que ele os entregasse a mim e eu mesmo servi as bebidas.

 

— Você devia ficar com mais — disse Mott quando eu lhe entreguei seu cálice.

 

Balancei a cabeça, insistindo para que ele pegasse a taça que lhe era oferecida.

 

— Eu já sei o que direi. Acredite em mim, você vai querer o suficiente para afogar sua raiva.

 

Ele franziu a testa, mas ergueu um brinde em minha homenagem. Eles beberam à minha saúde e vida longa. Quanto à saúde eu não estava preocupado, mas eu esperava que os demônios tivessem ouvido a parte da vida longa e se sentissem inclinados a garanti-la.

 

Fiquei em silêncio até que Mott limpou a garganta, me incentivando a começar. Olhei para ele e disse:

 

— Se eu não me entregar aos piratas em nove dias, eles atacarão Carthya. Lutarão até que eu esteja morto ou todos eles estejam.

 

— Guerra — resmungou Tobias.

 

— Os regentes deixaram claro que não apoiarão uma guerra — respirei fundo. — E acreditam que a melhor forma de evitá-la é me entregando aos piratas. Por isso estamos aqui e não onde os regentes queriam que eu me escondesse.

 

— Só porque eles desejam um governante não significa que o queiram morto — disse Mott.

 

— Talvez não. Mas e se você estiver certo e um governante for escolhido? Algum de vocês acredita realmente que isso me deixa fora de perigo? Serei enviado a uma sala de aula para observar de longe aqueles tolos fingirem que está tudo bem, enquanto nossos exércitos se esfacelam.

 

— Então encontre uma forma de evitar que nomeiem um governante — disse Tobias.

 

— Até que eu seja maior de idade, não posso impedir que os regentes votem — dei de ombros. — Eu já perdi, de qualquer forma.

 

As sobrancelhas de Mott estavam unidas e ele apertava o cálice com tanta força que achei que fosse esmagá-lo.

 

— E você tem uma solução? — perguntou ele.

 

Eu me inclinei na intenção de falar diretamente para eles, mas no fim minha coragem falhou e acabei abaixando os olhos. Depois de um instante de hesitação, eu disse:

 

— Vou sozinho até os piratas. Vocês dois voltarão ao castelo sem mim.

 

Houve um longo silêncio enquanto eles digeriam a novidade. Mott falou primeiro, surpreendentemente calmo:

 

— Não acredito que você vá se entregar assim tão facilmente.

 

— Não vou me render. Vou me unir a eles.

 

— O quê? — os olhos de Mott se arregalaram. — Jaron, não. Por favor, diga-me que você não é tão tolo.

 

Tolice era um traço que eu nunca poderia negar com muita credibilidade, mas de qualquer forma o comentário me irritou. Batendo o punho na mesa, respondi:

 

— Não tenho escolha. Cada possível solução leva ou à minha morte ou à destruição de meu país. Isso é tudo o que me resta.

 

— Então seu plano é simplesmente entrar no acampamento deles? E quem garante que assim eles não o matarão mais rápido?

 

— E se eu pudesse conquistar a lealdade dos piratas? Trazê-los para o meu lado. Então, caso Avenia atacasse...

 

Foi tudo o que consegui dizer antes que Tobias desse risadinhas de desprezo e Mott começasse a me encarar como se eu tivesse bolhas no cérebro.

 

— E como exatamente você planeja transformar esses inimigos em aliados? — perguntou ele.

 

— Eu não sei! Mas é melhor do que a alternativa.

 

— Que é...?

 

Bufei.

 

— O pirata que Conner contratou há quatro anos para me matar é um homem chamado Devlin. Foi ele quem forneceu o veneno que Conner usou para assassinar minha família, e também deve estar por trás do ataque de ontem contra mim. Se eu não puder conquistar sua lealdade, então terei de remover a ameaça. — Sentindo meu coração bater mais rápido, acrescentei: — Terei de matá-lo.

 

Essas palavras ficaram no ar por um momento antes que Mott dissesse:

 

— E você fará isso sozinho? — Assenti. Mott empurrou a cadeira para trás e ficou de pé, para depois começar a andar de um lado para o outro, irritado. — Ninguém volta de uma visita aos piratas — ele murmurou. — Nunca.

 

— Eu voltei, há quatro anos.

 

Mott parou bem na minha frente.

 

— Não, você fugiu do navio antes que os piratas chegassem sequer perto dele. A sorte o salvou naquele dia, nada mais.

 

Tobias tentou a via racional.

 

— E se o reconhecerem?

 

— Roden e o homem que veio com ele estarão no mar. Os outros piratas reconheceriam meu nome, mas não meu rosto.

 

— Você não pode fazer isso — disse Mott, balançando a cabeça. — Não permitirei.

 

Essas palavras me enfureceram ainda mais.

 

— Eu não estou pedindo sua permissão, Mott, ou sua aprovação! Você me pediu para lhe dizer a verdade sobre meus planos, e eu lhe contei tudo.

 

— Seus planos acabarão por matá-lo!

 

— Não fazer nada é que vai me matar! Ficar no castelo e fingir que está tudo bem, isso é que acabará me matando!

 

O rosto de Mott estava vermelho como fogo, e acho que, se eu fosse qualquer outra pessoa, ele teria me atirado contra a parede para devolver-me o bom senso. Mas essa não era uma opção para ele. Então, depois de respirar fundo, ele se sentou de novo e cruzou as mãos.

 

— Então, já tomou sua decisão? — perguntou ele.

 

— Sim.

 

— Então eis a minha. — Mott olhou diretamente para mim e falou devagar, para que eu não perdesse nenhuma palavra: — Não permitirei que vá. Não sozinho.

 

Minhas mãos se fecharam.

 

— Como rei, esta é minha ordem.

 

— Perdoe-me, mas a ordem do rei é a coisa mais imprudente que ele já proferiu, o que nós dois sabemos ser um feito e tanto. Se quiser me impedir de arrastá-lo de volta para Drylliad, então terá de me matar aqui.

 

— Não posso fazer isso — eu disse. — Quem vai garantir que Tobias volte em segurança? Ele mal pode atravessar a rua sem se colocar em perigo.

 

— Posso sim — disse Tobias.

 

Mott mal reagiu, mantendo toda a sua atenção em mim.

 

— Jaron, escute a voz da razão. Você é meu rei, mas não pode esperar que eu aceite um plano tão bobo.

 

Encarei-o, irritado.

 

— Então, talvez você também queira um governante para mim, uma babá para a coroa.

 

— Talvez você precise de uma — Mott suspirou alto, como se isso fosse me fazer mudar de ideia. Embora tivesse sido injusto partir sem lhes explicar nada, quase desejei ter feito isso para aproveitar a noite em paz.

 

Não conseguindo qualquer mudança de planos de minha parte, Mott apoiou a mão em meu braço. Ergui os olhos para ele quando ele disse:

 

— Se você precisa partir, então terá de descobrir uma forma de me levar junto, porque não vou deixá-lo sozinho. Qualquer que seja o plano imprudente nessa sua tola cabeça real, terá de haver espaço para mim.

 

Puxei o braço e o movimento derrubou a garrafa de cidra em cima da mesa. Mott pulou para trás para evitar os respingos, enquanto o líquido escorria para o chão.

 

Amaldiçoei e me pus de pé, passando a mão pelos cabelos.

 

— Dê-me até o amanhecer, Mott. Estou com uma tola dor de cabeça real e cansado demais para pensar em como mudar meus planos hoje.

 

Mott concordou e me desejou boa-noite antes que eu tivesse tempo de mudar de ideia, o que era completamente desnecessário porque eu não desejava mudar nada em meu plano. Era verdade que minha cabeça latejava, e ainda mais verdade que eu estava cansado. Mas, mesmo que esperasse a noite toda, ou o mês inteiro, uma coisa permaneceria igual: eu iria sozinho.

 

Tobias dormia profundamente e não me ouviu entrar em seu quarto mais tarde naquela noite. Eu não havia lhe servido muita cidra, mas ele bebera um pouco do sonífero que eu encontrara no escritório de Conner.

 

Quando sacudi seu braço, ele acordou assustado. Coloquei um dedo sobre meus lábios para lhe pedir silêncio. Ainda assim, sua voz soou alta demais quando ele sussurrou:

 

— Jaron? O que está acontecendo?

 

— Eu vou falar e você vai ouvir. Combinado?

 

Ele assentiu, sem entender. Sentei-me na cadeira ao lado de sua mesa, enquanto ele saía da cama. Eu quase podia ouvir as batidas de seu coração de onde eu estava. Ou seriam do meu?

 

Apesar do nosso acordo, Tobias falou primeiro:

 

— Você vai mesmo? Você disse a Mott que mudaria seus planos.

 

— Não, eu disse a Mott que estava cansado demais para pensar em mudar meus planos — corrigi. — Há uma grande diferença.

 

— Mas Mott estava certo. Ninguém volta de uma visita aos piratas. Talvez você até consiga matar Devlin, mas como escapará de todos os outros?

 

Fiz uma careta, com uma pontada de preocupação causada pela pergunta. A verdade era que eu não tinha uma resposta para ela. Eu sabia apenas que minhas chances de ser bem-sucedido não seriam melhores se ficasse em Carthya. Pelo menos dessa forma, enfrentaria os piratas em meus próprios termos.

 

— Espere alguns dias e pense melhor — ele disse.

 

— Não tenho alguns dias. Se não puder resolver as coisas antes que os regentes votem por um governante, não terei poderes para consertar nada depois.

 

— Não há tempo suficiente.

 

— Então pare de desperdiçá-lo. Agora fique quieto. Preciso que faça algo por mim.

 

— O que é?

 

Removi o anel de rei do meu dedo e o coloquei sobre a mesa. Eu não o tirara desde a noite de minha coroação e fiquei surpreso pela diferença no peso da minha mão.

 

— Não quero que os regentes achem que estou me escondendo, isso só tornaria a votação para me depor ainda mais fácil. Você e Mott devem voltar a Drylliad assim que amanhecer. — Indiquei com a cabeça uma pilha de roupas minhas em uma cômoda no quarto. — Você retornará como se fosse eu. Somos parecidos e, com este anel e nas sombras da carruagem, você não terá problema em passar pelo portão da frente. Certifique-se de chegar à noite, para que possa ir até meus aposentos protegido pela escuridão. Mott o ajudará a evitar que alguém o veja. Deixe que ele invente alguma história, como o rei está doente ou envergonhado e não quer ver ninguém. Diga a qualquer um que pergunte que o rei prefere se esconder dos piratas no conforto de seu próprio quarto.

 

— Jaron, não — sussurrou Tobias, balançando a cabeça.

 

Prossegui como se ele não tivesse dito nada.

 

— Eles podem fazer uma pergunta no portão. É um pedido de senha, para que o vigia saiba que é mesmo Jaron. Eu mesmo mudei a senha esta manhã. A pergunta será “O que o rei quer para o jantar?” A resposta é “Você sabe o que o rei quer e não tem nada a ver com o jantar.”

 

Tobias não conseguiu evitar um sorriso.

 

— E o que o rei quer, então?

 

— Ele quer que você se cale e preste atenção. Há uma carta para Amarinda no bolso das minhas roupas. Entregue-a e responda a qualquer pergunta dela, se puder. Ela ficará zangada, mas acho que o ajudará a manter seu disfarce.

 

— Zangada? — disse Tobias. — Ela vai ficar furiosa, e isso se acreditar em nós. E se ela nos acusar de usurparmos o trono?

 

— A carta explicará as coisas — respondi. — Amarinda é totalmente capaz de tomar qualquer decisão necessária, então você só precisa permanecer quieto em meus aposentos. Passei tanto tempo sozinho desde que me tornei rei que ninguém vai questionar isso.

 

— É por isso que...

 

Suspirei.

 

— Não tente me entender, Tobias. Nem eu consigo. Agora, o que você acha que aconteceu com as nossas roupas antigas, as que usamos quando estivemos aqui?

 

Eu já sabia a resposta. Os serviçais que trabalhavam para Conner haviam furtado as melhores. Mas minhas roupas velhas, de quando fui trazido até aqui como Sage, ainda estavam na gaveta de meu velho guarda-roupa. Ninguém as quisera.

 

Eu me despi dos trajes reais e os joguei dentro do baú, então vesti as roupas de Sage: as calças gastas e compridas demais para mim quando as conseguira agora estavam quase muito pequenas; a camisa que um dos serviçais de Conner remendara e, ainda assim, estava coberta de pequenos rasgos; e minhas velhas botas, que ainda serviam muito bem, pois eu as roubara pouco antes de Conner me levar do orfanato. Havia um furo no dedão direito, mas ele só me incomodava durante as tempestades.

 

Foi como se tudo que se relacionasse a Sage voltasse até mim no instante em que vesti suas roupas. Inclusive o instinto de enganar quando pudesse e mentir quando necessário. E também a sensação de que, não importava o quanto tentasse, eu jamais seria melhor que um rato de esgoto.

 

— Não posso fazer isso — disse Tobias, enquanto eu acabava de me vestir.

 

— Se você falhar, também falharei. Tobias, você precisa fazer isso. Mott vai querer me seguir, mas você não pode permitir. Se ele fizer isso, ficarei exposto e aí realmente correrei perigo.

 

Lentamente ele assentiu.

 

— Depois que você partir, se eu não for correndo até Mott para lhe contar o que aconteceu, ele vai me matar. Literalmente.

 

— Há uma solução para isso, mas você não vai gostar — eu sorri e estendi a mão até o lençol da cama de Tobias. Rasguei o tecido no sentido do comprimento e lhe disse para pôr as mãos para trás.

 

— Tenho de apertar bastante. Mott vai desconfiar se eu não fizer isso.

 

— Tudo bem — concordou Tobias, estendendo os braços. — Estranho eu lhe agradecer tal atitude.

 

Eu o amarrei à cama e então o amordacei, sem apertar demais a mordaça para que ele respirasse de modo confortável.

 

— Não falhe — disse a ele, quando acabei de atar os nós. — Nós nos veremos novamente.

 

Momentos mais tarde, escapei silenciosamente para fora de Farthenwood, e no estábulo escolhi Mystic, um dos mais velozes. A não ser por uma estrela branca na testa, o animal era negro como piche e mais leal a seu cavaleiro do que qualquer corredor que eu já montara antes. Além disso, era muito bem cuidado, então qualquer um que o visse presumiria que eu tivesse roubado o cavalo, o que, de certa forma, eu tinha feito. Assim que acabei de arrear o animal, eu o montei e, em poucos minutos, deixei Farthenwood para trás.

 

Pelo menos durante o resto daquela noite, eu estava livre.

 

Cavalgar sozinho pelo interior de Carthya era como emergir de uma lagoa profunda. Cada inspiração parecia me tornar mais vivo, conforme eu absorvia cada momento de liberdade que podia. O vento fresco acariciava meu rosto e me saudava a cada mudança de paisagem durante a minha jornada. Mesmo à noite, Carthya era um belo lugar. Nossas árvores cresciam fortes e altas, enquanto os rios e riachos sinuosos mantinham nossos campos verdes e nossas fazendas férteis. Não era de se estranhar que os países fronteiriços nos olhassem com tanta cobiça.

 

Ainda assim, apesar de toda a alegria que me invadia, não era uma cavalgada agradável. Embora eu tivesse a lua cheia para me guiar, precisava prestar atenção aos desníveis do terreno acidentado. Não podia me arriscar a ferir Mystic, não ali. E sempre havia o perigo de ladrões se escondendo em acampamentos próximos às áreas de bosques. Ninguém esperaria um viajante tão tarde da noite, o que me colocava em vantagem. Por outro lado, eu também não sabia quando esperar um ataque. Não sentia medo, mas decididamente estava cauteloso. Distrair-me era a última coisa de que eu precisava.

 

Então, apressei Mystic ao máximo. Só restavam quatro horas antes que a aurora surgisse no horizonte. Eu precisava da proteção da noite para atravessar a fronteira para Avenia. Tinha boas chances de chegar lá a tempo. Mystic era veloz e robusto, e não carregávamos muito peso. Eu só levava uma espada, uma faca na cintura e uma mochila com algumas poucas provisões e um punhado de moedas surrupiadas do tesouro do castelo.

 

As estrelas gradualmente giravam no céu, à medida que aumentava a distância entre mim e Farthenwood. Eu me perguntava por quanto tempo Mott dormiria. Provavelmente até mais tarde. Quando ele despertasse, sentiria os efeitos do sonífero e imediatamente saberia que fora enganado. Desde que eu me tornara rei, ninguém ousara me amaldiçoar na minha frente, mas, sem dúvida, ele usaria todas as palavras do vocabulário do diabo no dia seguinte, quando fosse ao meu quarto e o encontrasse vazio. Então ele encontraria Tobias. Eu esperava que Tobias fosse capaz de persuadir Mott a fazer o que eu pedira. Na verdade, era mais do que apenas esperança. Eu precisava que Mott me obedecesse.

 

Eu estava a menos de uma hora da fronteira quando ouvi os primeiros sinais de encrenca. Vozes frenéticas de homens aos berros e uma mulher gritando. Cavalos movendo-se aleatoriamente. O brilho incerto de uma tocha a distância. Saquei minha espada e guiei Mystic na direção dos sons.

 

Os gritos pararam abruptamente e todas as vozes se calaram por um instante, mas então um deles gritou:

 

— Há mais um!

 

A essa altura eu já me aproximara o suficiente para ter uma boa noção do que estava acontecendo. Havia vários homens, todos com sotaque aveniano, e estavam armados. Um dos homens me viu chegando e abandonou o grupo para me atacar. Eu facilmente bloqueei sua espada com a minha e então lhe fiz um corte profundo no braço. Com um grito, ele se recolheu de volta às sombras.

 

Os outros homens pareceram incertos de como agir, talvez em parte pela surpresa de terem sido vistos, ou talvez porque eu havia vencido o primeiro deles tão facilmente. No entanto, não houve hesitação de minha parte. Galopei em frente e atingi outro dos homens nas costas com minha lâmina.

 

Isso causou uma confusão de ordens entre os cavaleiros, mas todos pareciam concordar que eu não podia escapar. Era tolice eles acharem que escapar estava nos meus planos. Todos me cercaram, o que deveria ter me forçado a voltar para a densa vegetação. Em vez disso, fui em frente, visando o homem que segurava a tocha, já que ele só dispunha de uma das mãos livre para lutar. O sujeito tinha um lado do rosto cortado por uma cicatriz irregular, e de alguma forma conseguiu ficar ainda mais feio quando me aproximei. Ele brandiu a espada em um bom movimento, que chegou a me atingir, mas ignorei a dor superficial em meu estômago e guiei Mystic novamente na direção dele. Golpeei minha espada com força contra a dele, e tanto sua espada quanto a tocha caíram no chão. Investi outra vez, sem certeza de onde meu golpe o atingira, mas causando um ferimento profundo. Outro homem me alcançou e jogou seu cavalo contra Mystic, mas a minha montaria era bem mais forte, então o outro cavalo tropeçou. Girei e fiz um corte na perna do homem que, com um uivo, recuou seguindo os companheiros em sua fuga para a escuridão.

 

Um graveto se partiu atrás de mim, e eu me virei, a espada em punho. O silêncio encheu novamente o ar, mas eu não estava só. Desmontei e levei Mystic pelas rédeas em direção aos arbustos. Então, com um súbito movimento, deixei-as caírem, enfiei o braço por entre as folhas e puxei ao alcance de minha lâmina quem quer que estivesse escondido ali.

 

— Por favor, não me machuque!

 

Dei um passo para trás, surpreso. Era só uma criança, uma garotinha que não podia ter mais de 6 ou 7 anos. Ela não alcançava o meu peito e o cabelo loiro-pálido lhe caía até o meio das costas. Ela vestia uma camisola simples de algodão e estava descalça. Provavelmente fora tirada da cama às pressas, em uma tentativa de fuga.

 

Imediatamente baixei minha espada e me agachei ao lado dela.

 

— Está tudo bem. Você está a salvo agora. Mas o que está fazendo aqui? — Estava escuro demais para ter certeza, mas ela não parecia estar ferida. — Você está bem?

 

Ela segurou minha mão e me conduziu por uma curta distância até junto de um álamo alto. Uma mulher, provavelmente a mãe da garotinha, estava deitada no chão, ao pé da árvore. Respirava com tanta dificuldade que só poderia estar ferida. Provavelmente foram os gritos dela que me atraíram até ali.

 

Ajoelhei-me a seu lado e toquei seu abdômen, em busca do ferimento. Quando sentiu minha presença, ela abriu os olhos e tocou meu braço.

 

— Não adianta — ela sussurrou. — É grave demais — seu sotaque era cartiano. Ela era do meu povo.

 

— Quem fez isso? — perguntei-lhe.

 

Ela fechou os olhos por algum tempo e pensei que não fosse responder. Então os abriu e resmungou:

 

— Você não pode ser da região e não saber o que acontece aqui.

 

— Não sou.

 

Ela assentiu.

 

— Ladrões avenianos. Eles cruzam nossas fronteiras à noite para roubar nosso gado ou nos tirar de nossas terras.

 

Balancei a cabeça.

 

— Por que ninguém em Drylliad sabe disso? O rei...

 

— Eckbert está morto. Você não ouviu falar? Além disso, ele sabia há meses que isto estava acontecendo. — Ela arqueou o corpo e arfou. Coloquei a mão sob suas costas para ajudá-la a se erguer e senti o calor de seu sangue. Havia muito. Demais para sobreviver. Sua respiração ficava cada vez mais difícil. — Meu marido... Eles o mataram. Nila... Leve-a até seu avô... Libeth.

 

Nila pôs a sua pequena mão em meu ombro. Libeth ficava ao norte de onde estávamos, e ir até lá me atrasaria várias horas. Além disso, eu tinha planejado evitar todas as cidades. Nelas havia muito mais chances de alguém me reconhecer, ou de deixar pistas, caso Mott decidisse me seguir.

 

A mãe de Nila se ergueu novamente, segurando meu braço.

 

— Por favor — sussurrou ela.

 

— Eu a levarei até lá, prometo — afirmei, mesmo que isso significasse voltar atrás. Como se minhas palavras a tivessem libertado, ela finalmente relaxou, fechou os olhos e partiu.

 

Nila se ajoelhou ao meu lado e tocou o ombro da mãe.

 

— Ela está morta?

 

Assenti, enquanto uma nova fúria crescia em mim. Meu pai sabia que isso estava acontecendo? E Gregor, ou Kerwyn? Por que ninguém havia me falado disso?

 

— Há um arbusto de lilases perto de onde deixei meu cavalo — eu disse a Nila. — Pegue quantas puder para sua mãe.

 

Sem expressão, Nila se levantou e caminhou de volta até Mystic, enquanto eu cavava o solo macio da primavera usando as mãos e minha faca. Levei mais de uma hora para enterrar a mãe de Nila, e, depois que as flores foram colocadas sobre o túmulo, acomodei Nila na garupa de Mystic e partimos em direção a Libeth.

 

As pessoas já estavam acordadas e trabalhando nas plantações quando alcançamos os arredores da cidade. Libeth era um lugar pacífico, protegido de Avenia por terras pantanosas que nenhum dos dois países fazia muita questão de reclamar. Eu nunca havia estado nem perto dali antes, mas gostei da cidade.

 

Nila não sabia onde vivia seu avô; dizia apenas que ele tinha uma fazenda grande e que as pessoas lhe pagavam com suas safras. Eu suspirei alto quando ela me contou isso, porque significava que ele provavelmente era um nobre. Um daqueles esnobes inúteis que eu detestava.

 

Imaginei se ele teria ido ao funeral de minha família. Se tivesse, talvez ainda se encontrasse em Drylliad. Fiquei em dúvida sobre o que esperar. Porque, se ele já tivesse voltado a Libeth vindo do funeral, certamente me reconheceria. Mas, se ainda estivesse em Drylliad, o que eu deveria fazer com Nila?

 

Algumas horas antes, a menina finalmente começara a parecer sonolenta, então eu a sentara à minha frente na sela, para poder ampará-la entre meus braços. Agora, enquanto entrávamos na praça da pequena cidade, ela endireitou as costas e esfregou os olhos.

 

— Eu me lembro daqui — resmungou.

 

— Você sabe onde seu avô mora?

 

— Não.

 

Paramos perto de uma barraca onde uma mulher havia colocado uma variedade de carnes em exposição. Eu olhei um assado e lembrei-me de quando tentara roubar um daqueles e quase fora morto pelo açougueiro. Aquela não tinha sido a melhor das minhas ideias. Infelizmente, também não tinha sido a pior.

 

— Estou procurando pelo avô desta garota — eu disse à mulher na barraca. — Acho que ele é um...

 

— Nila? — A mulher saiu correndo de trás da barraca e estendeu as mãos para a garotinha, que caiu em seus braços. — O que está fazendo aqui? — os olhos dela se estreitaram quando olhou para mim, coberto de terra e de sangue seco. — O que aconteceu?

 

— Você conhece o avô dela? — perguntei.

 

A mulher acenou afirmativamente e apontou para uma casa no alto de uma colina, no extremo oposto da cidade.

 

— O avô dela é o mestre Rulon Harlowe.

 

Desci do cavalo e lhe estendi a mão, em um convite para que ela montasse com Nila.

 

— A senhora pode me levar até lá?

 

Alguém, cuja presença eu não havia notado, assumiu o lugar da mulher na barraca. Então, com minha ajuda, ela colocou Nila de volta sobre Mystic e depois montou na sela atrás da criança.

 

Tentei obter mais informações da mulher enquanto seguíamos colina acima, mas ela gesticulou para que eu me calasse e deu toda a sua atenção a Nila. Então ouvi enquanto Nila descrevia o que tinha acontecido com sua família. Pelo que ela disse e pelas perguntas da mulher, entendi que várias das famílias mais jovens de Libeth tinham ido para a zona rural, a fim de tentar construir sua própria fazenda longe de quaisquer nobres que lhes pudessem cobrar impostos sobre as terras. Assim que as fazendas começaram a prosperar, os avenianos começaram a atacar. A princípio, apenas para furtar grãos ou gado. Quando os fazendeiros começaram a retaliar, os ataques se tornaram violentos. As coisas tinham se acalmado durante o inverno, mas, com o degelo, as incursões avenianas voltaram. Nila tinha visto o pai ser atingido por flechas, enquanto a mãe lhe ordenava que corresse. Sua mãe fora ferida com uma espada pouco antes da minha chegada, na noite anterior. Parecia que Nila testemunhara mortes demais para alguém de sua idade.

 

— Você sabe se o rei Eckbert sabia desses problemas? — perguntei.

 

A mulher caçoou:

 

— E o rei algum dia já fez algo por nós? Mestre Harlowe não conseguiu uma audiência com ele, mas falou com um de seus regentes.

 

— Qual?

 

— Faz diferença? Disseram ao mestre que precisávamos manter a paz com Avenia e que os fazendeiros simplesmente deveriam abandonar suas terras e se mudar para mais longe da fronteira.

 

Balancei a cabeça, esperançoso de que os fatos ali jamais tivessem chegado aos ouvidos de meu pai. Porque, se ele soube daquilo tudo e nunca tomou as devidas providências... Não, eu não podia pensar nisso. Quanto mais eu descobria sobre o reinado de meu pai, menos eu sentia que o havia conhecido algum dia.

 

A propriedade de Harlowe não era nada comparada a Farthenwood, mas bastante grandiosa se comparada com as casinhas que vimos pelo caminho. Era uma casa quadrada, com quinze a vinte quartos, e parecia robusta e imponente. Degraus largos levavam a uma espaçosa varanda e a portas duplas de madeira escura. Eu as olhei fixamente, dividido entre o desejo intenso de permanecer ali para perguntar a Harlowe se meu pai sabia dos ataques avenianos, ou ir embora, reconhecendo que o primordial era seguir meu caminho para Avenia. Escolhi a segunda opção.

 

A mulher que estava com Nila recusou minha oferta de ajudá-la a descer, então, depois que ela desmontou, estendi os braços para Nila. Mas a mulher me empurrou.

 

— Eu cuido da criança. — Recuei e ela acrescentou: — Não quero ofendê-lo, depois do que fez, mas você obviamente não é alguém que...

 

— Joss vai carregar minha neta — disse um homem atrás de mim. Harlowe, evidentemente. Ele era tão alto quanto Mott e provavelmente tinha pouco mais de 50 anos, embora com o físico de alguém bem mais jovem. A cabeleira espessa era mais cinzenta do que preta, e os olhos marcados por longas rugas nos cantos, daquelas causadas por sorrisos. Ao lado dele estava o servo, Joss, que deu um passo à frente e tirou Nila de cima do cavalo. Harlowe passou a mão com ternura no rosto sujo da neta, e pela primeira vez vi lágrimas escorrerem pelas faces da menina. Então, após um aceno de seu mestre, Joss a levou para dentro. — Agora você — disse ele, se virando para mim.

 

Desviei o olhar, mas a mulher que me conduzira até ali falou primeiro:

 

— Mestre Harlowe, como se pode ver claramente, este garoto...

 

— ... parece exausto — ele apoiou a mão firme em meu ombro. — Você pode me dizer onde estão os pais de Nila?

 

Procurei uma resposta, mas, ao ver minha hesitação, ele a adivinhou. Lágrimas inundaram-lhe os olhos.

 

— Entendo. Jamais poderei lhe agradecer por me trazer Nila de volta. Você... Você... — ele tentou dizer mais alguma coisa, mas as palavras o sufocaram. Finalmente, falou: — Venha comigo.

 

Instintivamente, meus joelhos travaram contra a pressão de sua mão.

 

— Está tudo bem — disse ele, com gentileza. — Venha, por favor. Sei que você está faminto.

 

Até que ele dissesse isso, eu não havia percebido que era verdade. De repente, nada me parecia mais desejável que uma refeição sólida. Então entramos em sua casa, decorada com bom gosto, mas não excessivamente ornamentada. Viramos em um corredor à esquerda e passamos por um pequeno cômodo, que parecia o escritório de Harlowe. Ele me conduziu até uma modesta sala de jantar, onde outro empregado nos aguardava com um prato de pão recém-assado e um jarro de leite.

 

— Nós não fazemos refeições extravagantes aqui, mas, de qualquer modo, você é tão magro que duvido que coma muito — disse Harlowe.

 

— Não ultimamente. — Mas o pão cheirava bem e, pela primeira vez desde que eu me tornara rei, estava faminto.

 

— Perdoe-me por deixá-lo sozinho, mas preciso ver como Nila está — disse Harlowe. — Voltarei antes que tenha terminado.

 

Fiel à sua palavra, Harlowe voltou à sala de jantar quando eu estava acabando meu terceiro copo de leite. Ele sorriu, obviamente satisfeito ao ver que eu apreciara a comida, e então se sentou do outro lado da mesa, de frente para mim. Deixei meus ombros se curvarem quando ele me olhou. Aquele não era o momento de causar boa impressão.

 

Harlowe me avaliou antes de começar a falar.

 

— O pai de Nila, Mathis, era meu filho. Garoto teimoso, precisava fazer as coisas sempre a seu modo, independentemente do quanto fossem tolas. Eu o amava e lhe implorei que não deixasse Libeth — Harlowe puxou do bolso do colete um relógio de ouro, marcado pelo tempo e pelo uso, mas sem dúvida de valor inestimável para ele. — Quando Mathis partiu, há dois anos, me deu isso. Ele disse que para onde estava indo saberia as horas do dia pela posição do sol.

 

Eu tinha parado de comer enquanto ele falava. Havia muita tristeza em seu rosto, mas também estava clara sua determinação de seguir em frente. Harlowe parecia estar sentindo o mesmo que eu quando descobri a morte de minha família. Eu disse:

 

— Lamento não ter sido capaz de impedir a morte de seu filho. Eu não sabia o que estava acontecendo por aqui.

 

Harlowe inclinou a cabeça, incerto sobre o que eu quisera dizer, e então falou:

 

— Perdoe minha intromissão, mas você evidentemente não é daqui. O que fazia por lá tão tarde da noite?

 

— Estava só de passagem.

 

— Você é aveniano?

 

— Não.

 

— Você é um ladrão? — Hesitei, e então ele abanou a cabeça. — Não é. As roupas que veste podem sugerir isso, mas suas unhas estão muito limpas e seu cabelo bem aparado, e, se não se importa que eu diga, você não cheira como um ladrão. Tomou banho recentemente.

 

A última coisa que eu queria era falar sobre mim.

 

— Nila está bem?

 

— Ela está sofrendo, mas, com o tempo e o cuidado, acho que vai ficar bem. — Seus olhos marejaram, e ele acrescentou: — Você salvou a vida dela. — Comecei a balançar a cabeça para negar, mas ele continuou: — Sim. Ela me contou toda a história. Você lutou sozinho contra todos aqueles homens.

 

— Eles não eram grande coisa como adversários — comentei, forçando uma expressão de calma. Como era possível me sentir tão em casa e tão desconfortável ao mesmo tempo? Deixei meu guardanapo na mesa e fiquei de pé. — Obrigado pela refeição, mas eu realmente preciso ir.

 

— Tem sangue em sua roupa — Harlowe se levantou e chamou um empregado. Então, sem nem pedir licença, ele se aproximou de mim e ergueu minha camisa, revelando um longo corte na altura do estômago. — Você foi ferido durante a luta?

 

Recuei e puxei a camisa para baixo, o que não adiantou muito, já que ela também estava rasgada.

 

— É só um arranhão.

 

— Arranhões não sangram assim.

 

O empregado entrou, e Harlowe disse a ele para pegar uma bandagem e um pouco de álcool. Gemi. Onde quer que estivessem, os demônios deviam estar rindo. Como pagamento pela minha boa ação, eu novamente seria tratado com algo que doeria mais do que qualquer ferimento.

 

— Leve-o para o quarto de hóspedes e cuide do ferimento. Ele pode descansar lá pelo tempo que desejar, e então nós lhe arranjaremos roupas mais adequadas.

 

Eu me opus, mas em vão. O empregado de Harlowe me arrastou para fora da sala e, exausto como estava, nem sequer consegui resistir.

 

Insisti em tirar a camisa eu mesmo antes que o empregado limpasse o ferimento, e me deitei logo na cama, para que ele não visse as cicatrizes em minhas costas. Eu teria preferido continuar vestido, mas, como a camisa estava manchada com o meu sangue e o da mãe de Nila, até que pudesse ser lavada, era completamente imprestável.

 

Em uma vã tentativa de me distrair, tentei puxar conversa com o empregado, enquanto ele delicadamente lavava o corte com água morna.

 

— Que tipo de patrão é Rulon Harlowe? — perguntei.

 

— O melhor. Ele é gentil, generoso e sincero. Libeth não existiria sem ele.

 

— Ele tem esposa?

 

— Ela morreu há um ano... senhor — o empregado quase engasgou ao ter de me tratar como se eu fosse alguém respeitável.

 

— E ele tem outros filhos, além de Mathis?

 

— Não. Ele perdeu outro há muito anos, devido a uma grande tragédia. E perdoe-me a observação, mas você se parece um pouco com Mathis. Ele era mais velho, e claro que há diferenças, mas qualquer pessoa que conhecesse Mathis seria capaz de ver a semelhança.

 

Talvez por esse motivo Harlowe me tratara com tanta gentileza. Talvez eu o lembrasse do que ele havia perdido. Comecei a fazer mais perguntas sobre isso, mas o rapaz já dava batidinhas no ferimento com uma esponja encharcada em álcool. Urrei e me contorci, e então disse a ele que, se não parasse, eu o machucaria. Ele retirou a esponja do corte e olhou-a fixamente por um instante, em dúvida sobre concluir os cuidados do ferimento, como lhe fora ordenado, ou optar pela autopreservação.

 

— Largue essa esponja e me enfaixe logo — afirmei. — Já há álcool suficiente neste outro ferimento em meu braço; ele deve encontrar sozinho o caminho para o novo corte.

 

O empregado pegou uma bandagem.

 

— O senhor se importa se eu perguntar o que houve?

 

— Sim, eu me importo.

 

Ele terminou rapidamente e então me ofereceu outra esponja e uma bacia de água morna para que eu me lavasse.

 

— Vou deixá-lo à vontade agora — disse ele, e saiu do quarto.

 

Eu me lavei com a esponja até ficar tão limpo quanto pretendia e, em seguida, enrolei-me em um robe que o empregado deixara para trás. Não podia explorar a casa de Harlowe vestindo apenas aquilo, por isso me deitei para esperar que o empregado voltasse com roupas. Planejara ficar acordado, mas, quando meus olhos se abriram novamente, havia um grosso cobertor estendido sobre mim. Um relógio na mesa de cabeceira indicava que era o começo da tarde, portanto eu dormira muito mais do que jamais pretendera.

 

Joguei o cobertor de lado e rapidamente me vesti com as roupas estendidas ao pé da cama: uma camisa de linho de mangas compridas, por baixo de um longo colete cor de cobre, com botões banhados em prata. As calças de lã eram um pouco largas na cintura, mas a maioria das minhas calças estava assim ultimamente, e as botas de couro serviam perfeitamente. Quando abri a porta, outro empregado me aguardava.

 

— Acordado, senhor? Mestre Harlowe tem uma refeição pronta para o senhor, se puder se juntar a ele.

 

— Onde estão minhas roupas? — perguntei.

 

— Foram queimadas, senhor — ele respondeu.

 

Suspirei. As roupas que agora eu usava eram novas, limpas e cheiravam a dinheiro. Eu não podia entrar em Avenia vestido daquela forma, e já deveria estar lá. Só me restava uma semana antes que os regentes se reunissem com Gregor.

 

— Peça desculpas ao mestre Harlowe, mas devo partir — eu disse.

 

— Seu cavalo está sendo tratado — explicou o empregado. — Depois da luta em que esteve, achamos que o senhor gostaria que ele fosse cuidadosamente examinado em busca de qualquer ferimento. Ele deverá estar pronto quando os senhores terminarem a refeição.

 

Cedi.

 

— Então me leve a seu mestre.

 

A mesa de Harlowe estava repleta de comida quando cheguei. Considerando a quantidade, fiquei surpreso ao ver apenas três lugares arrumados. Nila já estava em sua cadeira. Ela também havia se lavado e, apesar do ar solene, tinha melhor aparência do que antes. Harlowe ficou de pé para me cumprimentar quando entrei na sala de jantar e me indicou meu lugar à mesa.

 

Empregados começaram a nos oferecer comida, até que me fosse impossível aceitar mais alguma coisa. Tudo parecia delicioso, com um cheiro magnífico, mas simplesmente não havia mais espaço em meu prato.Quando todos os pratos na mesa já tinham sido servidos, Harlowe dispensou os copeiros e ficamos a sós. Decidi acabar a refeição o mais rapidamente possível, por isso me concentrei na comida.

 

— Você nunca nos disse seu nome — falou Harlowe.

 

Respondi com a boca cheia de pão quente:

 

— Não, senhor, eu não disse.

 

Ele sorriu compreensivo.

 

— Que importa um nome, afinal? Talvez você deseje ouvir um pouco sobre mim primeiro. — Ergui os olhos, e Harlowe continuou: — Minha família tem vivido em Libeth há muitas gerações. Nós cuidamos das pessoas da vila e elas cuidam de nós.

 

— O senhor é um nobre?

 

Ele balançou os ombros.

 

— Acho que sim, mas é só um título. Títulos não importam por aqui.

 

— Eles têm bastante peso em Drylliad. Achei que todos os nobres estivessem lá, para o funeral do rei Eckbert.

 

— E o que são essas cerimônias senão um desfile de vaidades? — seu sorriso se desfez. — Eu permaneço o mais distante possível das políticas do rei. Além disso, temos os nossos próprios problemas aqui.

 

— Com os avenianos?

 

— Muitos deles são perigosos. Espero que, aonde quer que suas viagens o levem, você não se encontre com eles, filho.

 

Nossos olhares se cruzaram durante aquela última palavra, mas rapidamente desviei o meu. Ninguém me chamava de “filho” havia anos. Meu pai talvez me chamasse assim no passado, mas naquela época a palavra não me dizia nada de especial. Agora, tinha muito mais valor.

 

Preenchi o silêncio constrangedor que se seguiu comendo mais. A refeição era mais simples do que as de Drylliad e Farthenwood, mas eu a apreciava. Agora que reencontrara meu apetite, eu me sentia esfomeado.

 

Sentada de frente para mim, Nila mal tocava na comida, o que não era de surpreender, considerando o que ela havia passado. Ela trocara de roupa e agora usava um vestido amarelo-pálido, com o cabelo preso e trançado. Era um estranho contraste com o que ela deveria estar sentindo. Apesar de as pessoas enlutadas usarem cores escuras na maioria dos países à nossa volta, os cartianos raramente o faziam. Havia um consenso geral de que seria mais adequado, para lembrar a vida do falecido, se todos usassem cores que o homenageassem. Enquanto eu observava Nila, percebi que Harlowe mantinha os olhos em mim. Deixei meu cabelo cair mais sobre o rosto e me esforcei ainda mais para não trair minha identidade, fosse com palavras ou ações.

 

— Você vai passar a noite conosco? — perguntou Harlowe.

 

— Não posso. — Embora, por razões que não entendia completamente, eu gostaria de poder ficar. Desconfiei que, se o fizesse, ele me convenceria a passar mais uma noite, e então até o fim da semana, e em breve me ofereceria o quarto de hóspedes em caráter permanente. Harlowe me parecia um homem de grande capacidade de persuasão. Ou talvez eu não quisesse admitir que a ideia de ficar ali fosse muito tentadora.

 

— Claro que pode — insistiu ele. — Esse corte em sua barriga precisa sarar, e ouvi dizer que há outra bandagem em torno do seu braço. — Ele hesitou e então perguntou com delicadeza: — O que houve com você? Você é um garoto, jovem demais para carregar tais ferimentos.

 

E, pela primeira vez em semanas, eu me senti com a idade que tinha. Outros garotos da minha idade estavam trabalhando como aprendizes e mexendo com belas garotas a caminho do mercado. Também podiam ser vistos apreciando um jogo de Bandeira Rainha na rua ou fazendo bicos para ganhar dinheiro para comprar seu primeiro cavalo. De repente, fiquei com saudades de uma vida que nunca conheci.

 

Harlowe franziu as testa.

 

— Filho, onde estão seus pais? Você não tem família?

 

Levantei-me tão depressa que quase derrubei a cadeira.

 

— O senhor pode chamar alguém para trazer meu cavalo? Eu preciso ir embora. Agora.

 

— Eu disse algo errado? — Harlowe também ficou de pé. — Por favor, pelo menos termine sua refeição. Eu lhe devo isso, pelo que fez por Nila.

 

— Fico feliz de ter ajudado, mas realmente não posso ficar nem mais um minuto.

 

Harlowe passou com ternura a mão pelo cabelo de Nila e chamou um empregado. Quando ele entrou, ordenou-lhe que buscasse meu cavalo e preparasse um farnel com comida para mim.

 

— O senhor já me deu o suficiente — protestei.

 

— Não é nada comparado ao que você me deu — disse Harlowe.

 

Quando Nila se levantou, eu me agachei para ficar ao nível de seus olhos. Assim como eu, a menina agora era uma órfã, apesar de eu não ousar lhe explicar isso, não com seu avô presente. Então, pude apenas lhe sussurrar:

 

— Essa dor que você está sentindo vai melhorar com o tempo.

 

Sem dizer nada, ela afagou meu rosto com sua mãozinha e beijou minha bochecha. Tive de desviar os olhos por um instante, enquanto ficava de pé novamente, sem confiar que conseguiria esconder as emoções que me inundavam.

 

Harlowe disse:

 

— Gostaria de lhe retribuir. O que posso fazer?

 

Olhei rapidamente para Nila, então novamente para Harlowe.

 

— O senhor pode manter isso tudo em segredo? Se alguém vier a Libeth procurando por mim, não importa o que digam, preciso que negue que eu tenha estado aqui.

 

— E o que diriam quando viessem procurá-lo?

 

Que eu era um tolo. Que estava a ponto de perder tudo. Que ia acabar conseguindo ser assassinado.

 

Dei de ombros.

 

— Se vierem, o senhor saberá que estão falando de mim, não importa o que digam.

 

Harlowe me acompanhou para fora da sala de jantar, em direção à porta da frente.

 

— Manteremos sua estada aqui em segredo, mas nunca o esqueceremos. Você salvou minha neta e, por isso, sempre será parte de nossa vida.

 

Eu o encarei por um instante, ainda lutando contra a vontade de ficar um pouco mais. Então o empregado me entregou o farnel com comida, tão pesado que tive de pendurá-lo no ombro para carregá-lo. Harlowe e Nila me acompanharam até a frente da casa, onde Mystic aguardava arreado.

 

— Filho... — Harlowe pôs a mão em meu ombro. Eu me virei e, sem entender por que, abracei o velho, como uma criança assustada poderia abraçar um pai amado. Ele hesitou por um instante, mas logo senti suas mãos em minhas costas.

 

Meu pai não era um homem abertamente afetuoso. Eu sabia que ele me amava, mas nunca fora do tipo que expressa sentimento em palavras e, se eu tivesse tentado abraçá-lo assim, ele permaneceria parado, rígido feito uma porta, incerto do que fazer. Pensando nele, soltei Harlowe e recuei, envergonhado, mas ele não parecia estar. Ele apenas disse:

 

— Boa sorte em suas viagens. Se tiver um lar, volte a salvo para lá. E, se não tiver, sempre encontrará um aqui.

 

Sem saber se conseguiria falar, apenas assenti. Então, prendi o farnel à sela de Mystic, montei e acenei com a cabeça para Harlowe, antes de esporear o cavalo e partir a galope.

 

Eu tinha algo a fazer antes de deixar Libeth e o fiz no que parecia ser a parte mais pobre da cidade. Encontrei um garoto do meu tamanho, andando pela rua com um feixe de lenha nos braços. Eu o chamei, então desmontei e desamarrei o farnel de comida, enquanto ele vinha até mim.

 

— Tenho uma oferta para você — comecei. — Está com fome?

 

— Sim, senhor. — Abri o farnel e lhe mostrei a comida. Seu rosto se iluminou, mas ele logo conteve o entusiasmo, repentinamente desconfiado. — O que o senhor quer?

 

— Estou com um problema — eu disse. — Acho que cresci recentemente, porque minhas roupas ficaram pequenas e estão desconfortáveis para andar a cavalo. Prefiro as roupas que você está usando.

 

O rosto do garoto se retorceu em confusão.

 

— Senhor, minhas roupas são pouco mais que trapos. As suas são...

 

— ... pequenas demais. Eu não fui claro? Se trocar suas roupas pelas minhas, eu lhe dou toda a comida que está no farnel. — Eu não queria de fato me separar daquela comida, mas era óbvio que o garoto precisava dela bem mais do que eu.

 

Ele me encarou por um instante, ainda confuso. Por fim, pendurei o farnel em meu ombro outra vez.

 

— Tudo bem. Eu encontro outra pessoa.

 

— Não, senhor, por favor — impelido a agir, o garoto tirou a camisa e a entregou a mim. — Tome.

 

Sorri, baixei o farnel e desabotoei minha camisa. Minutos mais tarde, eu estava novamente cavalgando Mystic, sem comida, porém mais uma vez com as roupas adequadas. E eu podia ouvir o garoto assoviando uma música alegre enquanto caminhava quase dançando pela rua, com roupas de nobre e um farnel cheio de comida. O feixe de lenha que ele carregava ficou totalmente esquecido, empilhado à margem da estrada.

 

Poucas horas depois, cruzei a fronteira e entrei em Avenia. Considerando todo o esforço dispendido para chegar até ali, foi um momento bastante banal. Eu me mantive nas terras pantanosas do norte, me afastando de qualquer estrada ou trilha, de forma que apenas uma estaca fincada no chão marcava a fronteira por ali.

 

A cidade mais próxima era Dichell, um chiqueiro para humanos e um dos piores lugares de Avenia. Mas era por lá que eu deveria começar.

 

Deixei Mystic em um bosque denso próximo a Dichell. Havia o risco de meu cavalo ser roubado ali, mas ele com certeza seria roubado se eu o levasse à cidade. Eu me certifiquei de que ele tivesse um pouco de relva e uma pequena nascente de água por perto. Então segui pelo restante do caminho a pé.

 

Por causa das gangues de rua que patrulhavam a escuridão, as noites em Dichell eram bastante perigosas. Mas, durante o dia, os malfeitores se recolhiam às sombras e as pessoas de bem dominavam. No entanto, a segurança nunca era garantida por ali, independentemente da hora. A tarde ia chegando ao fim, mas eu estava armado com uma faca e uma espada. Com sorte, isso manteria qualquer problema a distância. Além do mais, meu destino era a igreja, lugar que jamais fora atacado.

 

A igreja desempenhara um papel importante em minha vida quatro anos antes. Depois que escapei do navio em Isel, fora ali que o bom padre desconfiara de minha identidade. Finalmente, meu pai viera me ver e ali combinamos que eu deixaria de ser o filho do rei e me tornaria Sage, o órfão. Se eu tivesse voltado ao castelo com ele, provavelmente estaria no túmulo com o resto de minha família.

 

Mas, quando me aproximei, fiquei horrorizado em ver as condições da igreja. Os degraus de pedra que eu esfregara em troca de abrigo e comida estavam rachados e esburacados, com ervas daninhas cheias de espinhos crescendo entre eles. As janelas estavam quebradas e até a pesada porta de madeira da frente estava sem uma dobradiça, não fechando completamente.

 

Talvez a igreja não tivesse sido deixada em paz. Perguntei-me onde estaria o padre que me acolhera antes e o quanto ele sabia sobre o que acontecera ali. Eu ansiava por encontrá-lo e esperava que ele se lembrasse de mim e me oferecesse ajuda novamente. Seria preciso certa criatividade de minha parte para convencê-lo, mas ele acabaria me contando onde encontrar os piratas.

 

— Quem é você? — perguntou um garoto sentado nos degraus brincando com um rato. Ele o colocou no ombro conforme ficava em pé para falar comigo. Como a maioria das crianças avenianas, o garoto pouco passava de pele e ossos, mas seu sorriso era luminoso, e o cabelo, loiro-escuro, da cor que o meu ficara depois de tingido, quando eu ainda atendia por Sage. Ele aparentava ter 10 ou 11 anos e usava roupas que pareciam ter pertencido a alguém bem maior. Eu não saberia dizer se ele as roubara ou simplesmente as herdara de um irmão mais velho. De qualquer forma, não foram feitas para ele. A única exceção eram os sapatos, em bom estado e exatamente do tamanho que deviam ser.

 

Respondi com sotaque aveniano:

 

— O padre desta igreja ainda está aqui?

 

— Não — ele estreitou os olhos. — Nunca vi você antes. É de fora da cidade?

 

— Eu também nunca o vi antes — respondi. — Então talvez você não seja daqui.

 

Minha resposta o divertiu.

 

— Meu nome é Fink. Quer dizer, não é meu nome de verdade, mas é assim que todos me chamam.

 

— Qual é o seu nome, então?

 

— Sei lá. Todo mundo só me chama de Fink.

 

— Você não deveria estar em outro lugar?

 

— Na verdade não. O que quer com o padre?

 

— Uma pergunta sobre a doutrina. Que punição o Livro da Fé recomenda para um garoto muito intrometido?

 

Fink não entendeu a indireta e apenas disse:

 

— Você não pode perguntar isso a ele, porque ele está morto. Foi assassinado há uns quatro anos.

 

Morto? A notícia me atingiu como um soco no peito. Meu mundo ficou embaçado, e tive de fixar os olhos em um ponto perdido, em silêncio, até conseguir falar outra vez.

 

— Tem certeza?

 

— Eu vi — Fink apontou para um local na frente da igreja, onde a grama crescia. — Bem ali, um pirata o cortou.

 

Eu não ousaria perguntar, mas a palavra me escapou num suspiro:

 

— Por quê?

 

Ele deu de ombros.

 

— Como vou saber? Eu era só uma criança na época.

 

Nenhuma explicação era necessária. Quatro anos antes, o padre que me abrigara tinha mandado avisar meu irmão de que o príncipe estava aqui. O mensageiro certamente contou o fato a outras pessoas. O padre acabou se convencendo de que eu era só um garoto órfão, mas, se os piratas haviam acreditado que existia alguma possibilidade de o garoto ser Jaron, eles teriam vindo até a igreja. Eu já tinha partido, mas o padre sofrera a punição dedicada a mim.

 

— Você está bem? — perguntou Fink.

 

Não. Era difícil respirar. Tristeza e raiva me inundavam, me sufocando.

 

— Quem era o pirata? — perguntei. — Quem matou o padre?

 

Fink balançou a cabeça.

 

— Não vou contar isso a você.

 

Agarrei o colarinho de Fink e o empurrei contra a parede da igreja.

 

— Qual é o nome dele?

 

Fink parecia nervoso, mas os garotos avenianos são acostumados à agressão, então ele manteve a calma.

 

— Por que eu deveria lhe contar? — perguntou ele.

 

Enfiei a mão na bolsa amarrada à minha cintura e tirei um garlin, provavelmente mais dinheiro do que ele costumava ver em um mês.

 

— Você me dirá porque está faminto.

 

Ele estendeu a mão. Deixei que a moeda lhe tocasse a palma, mas segurando-a firmemente entre os dedos. Fink olhou para os dois lados antes de se inclinar para a frente e sussurrar:

 

— Foi Devlin. Mas você não vai encontrá-lo por estas bandas, porque agora ele é o rei dos piratas. Provavelmente não desejará encontrá-lo de jeito nenhum, a menos que queira acabar igual ao padre.

 

Devlin era o rei deles? Isso explicava por que Avenia se dispusera a ajudar na tentativa de assassinato que eu sofrera. Não era apenas uma questão de vingança por ter escapado dos piratas quatro anos antes. Juntos, eles buscavam a total destruição do meu país.

 

Soltei a moeda e, quando Fink fechou a mão em torno dela, eu o puxei para perto novamente e murmurei:

 

— Agora vá embora, ou direi a todo mundo onde foi que ouvi esse nome.

 

Dessa vez, Fink entendeu a mensagem. Sem me olhar outra vez, ele correu. Esperei até que tivesse sumido e então parti na direção oposta.

 

Mantive a compostura só até encontrar um beco, onde pude me esconder atrás de uma velha carroça que fora despedaçada para aproveitamento da madeira, provavelmente durante o último inverno.

 

Na privacidade do local, puxei a faca e olhei fixamente para a lâmina, com raiva de Devlin por ter matado um inocente. Não, com raiva de mim mesmo. Porque eu era o motivo pelo qual Devlin matara o padre. E porque ele morrera sem nem mesmo saber que eu realmente era o garoto que ele, a princípio, pensara que eu fosse.

 

Primeiro cortei o curativo em meu braço. O ferimento que Roden me fizera estava dolorido, mas cicatrizando. Era muito cedo para retirar a bandagem de minha cintura, mas a arranquei mesmo assim. Eu não podia parecer alguém que recebera cuidados. Um sorriso sombrio surgiu em meu rosto quando pensei no que Mott diria se me visse. Então o sorriso sumiu. Se Mott me visse nesse momento, ele não teria nada de bom para dizer.

 

Ajoelhado, agarrei um punhado do meu cabelo e o cortei com a lâmina, de forma irregular, como eu queria. A última pessoa que o cortara fora Errol, meu valete enquanto eu estivera em Farthenwood. Ele desmaiaria se visse o que acabara de acontecer com os fios que ele havia aparado tão cuidadosamente.

 

Fiz o primeiro corte com raiva, o que me deu um sentimento de rebelião, de rejeição da pessoa que todos achavam que eu deveria ser. Com o segundo, a raiva se interiorizou e fiquei furioso comigo mesmo não apenas porque eu não pensava como os outros, mas também porque minhas soluções para cada problema sempre criavam vários novos problemas. Com o terceiro corte, lutei para segurar as lágrimas, até entender a inutilidade de fingir que eu não sentira a perda do velho sacerdote. Devlin assassinara um homem cujo único crime fora abrigar um garoto faminto e assustado. Por razões que eu não compreendia, queria saber se alguém, além de mim, havia chorado pelo padre. Ele tinha uma família? Alguém que me culpasse pelo papel que desempenhei em sua morte?

 

Eu dissera a Mott que precisava matar Devlin, o que em si já era um peso insuportável. Mas, se Devlin era o rei dos piratas, então o caminho para sair dessa situação era muito mais difícil, muito pior. Eu nunca conseguiria sua lealdade e, se ele de fato controlava os piratas, nunca desistiria de acabar com a minha vida. A única forma de manter Carthya a salvo dos malditos piratas e a única maneira de permanecer vivo no final dessa jornada seria destruindo todos eles.

 

Mott tinha razão. Seria impossível. Mas era a minha única opção.

 

Respirei fundo para me acalmar e então fiz um último corte em meu cabelo, este com determinação. Eu precisava continuar avançando e, se os demônios permitissem, voltaria para casa outra vez.

 

– O que você tem?

 

Eu me virei com um pulo, com a faca na mão, e vi Fink me encarando, com os dedos apoiados na corda que lhe servia de cinto. O rato ainda estava sentado em seu ombro, me observando com cautela. Ratos não eram minha companhia favorita. Eu havia convivido com roedores demais no orfanato para desenvolver um ódio saudável por eles.

 

Constrangido, enxuguei os olhos e fiquei de pé. Recoloquei a faca na bainha e continuei caminhando pelo beco, para longe de Fink. Ele me seguiu.

 

— Então você está me dizendo que o nome do pirata é Devlin? — perguntei bem alto. — Você, Fink, está me dizendo que esse é o nome do pirata?

 

— Pare! — disse Fink, correndo até mim. — Todos podem ouvi-lo.

 

— Sério, Fink? Então todos podem ouvir que você me contou o nome do pirata? Fique longe de mim, ou eu continuarei gritando.

 

Ele parou de caminhar.

 

— Ah, entendi. Você não me quer por perto.

 

— Não.

 

— Mas...

 

Eu olhei para trás.

 

— Mas o quê?

 

Ele lambeu os lábios, rachados e secos.

 

— Sei que você tem outras moedas e estou com muita fome. Sei que você é novo aqui, então, se precisar de alguma coisa, eu o ajudo a encontrar.

 

Caminhei de volta na direção do garoto. Apesar de eu não ser especialmente alto, ainda parecia bem maior que ele.

 

— Do que você acha que eu preciso?

 

Olhando para o chão, ele resmungou:

 

— Para que você queria o nome do pirata?

 

— Estou colecionando poesias sobre piratas. Achei que seria interessante escrever sobre ele. — Fink fez uma careta e se virou. Então chacoalhei a bolsa de moedas, presa ao meu quadril, atraindo novamente sua atenção. — Eu fiz uma pergunta — falei. — Do que você acha que preciso?

 

— Bem — disse Fink —, acho que você precisa de um lugar para passar esta noite.

 

— Posso pagar por qualquer lugar onde queira dormir.

 

— Não, eu quis dizer um lugar ao qual alguém como você pertença. — Os olhos de Fink continuavam colados à bolsa.

 

— Meu lugar é com os piratas — afirmei. — Onde posso encontrá-los?

 

Fink estendeu a mão.

 

— Eles me matam se eu contar. Então, uma informação dessas custa bem caro.

 

Desamarrei a bolsa da cintura e a estendi para ele, esperando uma resposta.

 

Enquanto olhava para as moedas, Fink segurou o rato gordo que estava em seu ombro e começou a lhe acariciar as costas. Parte de mim se sentia mal por induzi-lo a falar comigo, porque eu sabia como poderia ser perigoso. Mas, sem a ajuda do padre, eu não tinha outra maneira de encontrar Devlin.

 

Então ouvi um fraco barulho às minhas costas, um movimento. A expressão de Fink não se alterou, o que significava que ele não se surpreendera com o que quer que estivesse caminhando em nossa direção. O garoto havia me atraído para uma armadilha. Mas é claro. Ninguém sobrevivia sozinho em Avenia.

 

Eu me virei e deparei com meia dúzia de garotos que se juntara a nós. Fink era o menor e o mais novo deles. Alguns eram até maiores e mais velhos do que eu, e nenhum tinha uma expressão amigável. Cada um deles trazia consigo uma arma caseira de algum tipo, um bastão ou um chicote, ou ainda uma faca esculpida em osso. Alguns seguravam pedras grandes nas mãos. Até um idiota poderia usar uma pedra.

 

Levei uma mão à espada, mas não a saquei. Naquele instante, uma lembrança me ocorreu, absolutamente vital para o mistério do assassinato de minha família, mas eu não podia pensar nela ali. Uma luta estava se formando, o que era a última coisa que eu queira. Eu acertaria alguns deles, e alguns me acertariam, e, para ser honesto, era a segunda possibilidade que mais me preocupava.

 

Joguei a bolsa no chão, aos pés de Fink.

 

— Pegue-a. Há muito mais moedas de onde vieram estas.

 

Ele ergueu uma sobrancelha.

 

— Você não está nas ruas há muito tempo.

 

— Por que diz isso?

 

— Porque você nunca deve dizer que tem mais dinheiro. Isso só atrai mais problemas depois.

 

Eu forcei um sorriso.

 

— Problemas vindos de quem? Um garoto como você jamais poderia roubar tudo a que tenho acesso.

 

Os olhos de Fink se arregalaram enquanto pensava nisso, e então ele acenou com a cabeça para o meu cinturão.

 

— Se é verdade, então você pode comprar outra espada e outra faca.

 

— Você disse que há um lugar ao qual pertenço. Onde quer que isso seja, vou precisar de minhas armas.

 

— Se você roubou as moedas, roubou essas armas também, então elas não são mais suas do que nossas. Entregue-as e sairá caminhando daqui. Tente lutar contra nós, e não escapará.

 

— Lutar iria estragar meu novo corte de cabelo — eu disse. — Diga-me onde acha que é meu lugar.

 

— Entregue suas armas. — Ele recolocou o rato no ombro e fez um gesto com a cabeça para um garoto que era praticamente uma montanha e que estava bem atrás de mim. Para mantê-lo a distância, joguei minha faca e espada no chão, perto dos pés de Fink. — Há uma taverna do outro lado da cidade — continuou ele. — Talvez lá seja o seu lugar. Peça o quarto 11.

 

Fink se abaixou para pegar as armas e, nesse instante, chutei sua cabeça. Ele gritou e caiu de costas. O garoto já segurava minha espada, mas recuperei a faca e corri. Os outros meninos começaram a me seguir, ainda que sem muito esforço. Eles sabiam tão bem quanto eu que havia muitos esconderijos em Dichell, feitos pelas gangues de rua, esperando emboscar um viajante, ou por um viajante tentando salvar a própria vida nas sombras. Mas eu não podia me esconder. Precisava encontrar os piratas.

 

Eu me lancei em uma padaria que estava sendo fechada por uma bela garota. Conversei educadamente com ela e roubei dois pães doces, que enfiei sob a camisa. Talvez ela tenha notado, mas me deixou ir embora mesmo assim.

 

Por mais que me desagradasse a ideia de ir à taverna que Fink sugerira, eu sabia que precisava fazer isso. E vê-la, mais tarde naquela noite, foi ainda pior do que eu tinha imaginado. Nenhum grau de escuridão podia disfarçar o fato de que havia celeiros mais confortáveis para humanos do que aquilo. O lugar estava parcialmente coberto por mato e ervas daninhas e sujo por todo tipo de lixo que os hóspedes não queriam mais carregar. Havia umas poucas janelas no térreo e no andar de cima, mas estavam engorduradas demais para que alguma luz conseguisse atravessar o vidro fosco. Provavelmente não existia nada ali dentro que valesse a pena ver, e talvez fosse melhor assim.

 

Passei um bom tempo discutindo comigo mesmo antes de entrar. Certamente não era uma boa ideia, mas eu parecia sofrer de certa falta de alternativas melhores. Quando coloquei os olhos sobre o proprietário, conclui que ele se parecia tanto com um porco que fazia todo sentido a taverna me lembrar um celeiro. Como a maioria das tavernas, o lugar era muito escuro e parecia excepcionalmente lotado de mesas e cadeiras. Dois homens sarnentos estavam sentados atrás de teias de aranha, próximos à quina de uma das paredes, mas pareciam mais interessados em beber do que com quem eu poderia ser. Os cantos do salão eram imundos, e percebi, pelas pernas roídas das cadeiras, que havia ratos por ali.

 

— O que você quer? — perguntou-me o proprietário.

 

Meu coração acelerou. Uma vez que eu falasse, não haveria como voltar atrás, pelo menos até que minha luta chegasse ao fim ou eu estivesse morto. Ele inclinou a cabeça, impaciente com meu silêncio, e eu respondi:

 

— Quero um quarto. O número 11.

 

Se houvesse onze quartos naquela carroça de esterco, eles teriam o tamanho de caixões. Obviamente aquilo era uma senha.

 

Ele passou a mão no queixo e me olhou de cima a baixo.

 

— Mostre-me seu dinheiro.

 

Dei um sorriso forçado.

 

— Posso pagar mais tarde? — Se eu ainda estivesse ali pela manhã, provavelmente poderia roubar do seu caixa o bastante para cobrir meu débito.

 

Ele franziu a testa.

 

— Qual é o seu nome?

 

— Você não precisa saber.

 

O homem ficou ofendido.

 

— Estou lhe fazendo um favor, garoto. Você podia ser mais amigável. — Ele empurrou uma bebida para mim do outro lado do balcão. — Tome.

 

O líquido era marrom-escuro e espumoso e cheirava como chão de estábulo. Eu a empurrei de volta.

 

— Não bebo.

 

— Só um golinho. Certamente você está com sede. Além do mais, é uma remessa nova e quero saber se ficou boa.

 

— De onde estou posso lhe dizer que não ficou. — Se esse lugar era o que eu suspeitava, na bebida havia o mesmo pó que eu usara para fazer Mott dormir, ou coisa ainda pior. Eu me virei. — Onde fica o quarto?

 

Ele indicou as escadas.

 

— Primeira porta à direita. Durma o quanto quiser e talvez você trabalhe para mim mais tarde.

 

Não, eu não trabalharia.

 

O quarto 11 não estava indicado como tal, e os móveis ali dentro eram simples, nada além de um colchão estofado com agulhas de pinheiro e musgo. Estava direto no chão, com um fino cobertor por cima. Eu não me importava. Afundei-me no colchão, ignorando as pontas das agulhas que me pinicavam através do tecido, e adormeci imediatamente.

 

Algum tempo depois, algo rangeu no corredor e meus olhos se abriram de uma vez. O quarto estava muito escuro, mas eu me lembrava de ter visto uma vela no canto. Comecei a rolar na direção dela e então parei, certo de ter ouvido passos na escada.

 

Meu primeiro pensamento foi de que o proprietário da taverna estava enfim indo para a cama, o que me daria tempo para dar uma boa olhada no lugar antes de decidir se permaneceria ali, como Fink sugerira. Mas logo ficou claro que o barulho não vinha do proprietário, um homem grande cujos passos eram mais pesados e menos cautelosos.

 

E havia mais de uma pessoa lá fora. Fiquei imóvel no chão. Minha mão estava a centímetros da minha faca, mas não a peguei.

 

Ouvi o cochicho do proprietário no corredor, dizendo:

 

— Sim, sim, nesse quarto. Mas façam silêncio. Ele não tomou a bebida.

 

Tudo ficou quieto. Esperar ali, sabendo o que viria, era torturante. Mas isso tinha de acontecer.

 

A porta se abriu com um rangido, deixando entrar apenas uma réstia de luz do corredor. Eu podia sentir que estavam ao meu redor, feito cobra rastejando em um quarto. Um dos homens estava perto da minha cabeça, e eu não tinha certeza de quantos estariam atrás de mim, talvez quatro ou cinco.

 

Não sei ao certo qual foi o sinal, mas todos avançaram ao mesmo tempo sobre mim. Gemi enquanto enfiavam uma mordaça em minha boca. Assim que eu estava amarrado, um saco de lona foi posto na minha cabeça e ajustado com um barbante corrediço. Um dos agressores prendeu meus pulsos às minhas costas, e foram necessários dois deles para segurar minhas pernas e amarrá-las. Alguém pegou minha faca e a pressionou contra o meu pescoço.

 

— Dê-me um motivo para usar isso e eu uso — rosnou um homem, com o rosto perto do meu.

 

Assenti, bem devagar, e então um homem grande me ergueu e me atirou sobre o seu ombro, carregando-me para fora da taverna.

 

Onde quer que Fink achasse que era o meu lugar, estávamos indo até ele.

 

Eles me deitaram de atravessado no lombo de um cavalo e deixamos Dichell. Assim que as estradas ficaram mais esburacadas e irregulares, eu soube que estávamos fora dos limites da cidade. E duvidei que estivéssemos em uma estrada principal, porque às vezes sentia galhos de árvores me tocarem.

 

Tirando isso, eu não fazia ideia de onde estávamos indo.

 

Havia pouca conversa, e, quando alguém falava, era quase sempre o homem que me ameaçara na taverna, então era impossível dizer quantos homens formavam o grupo. Pelo menos meia dúzia, eu calculava, mas talvez mais um ou dois. Na verdade, não fazia muita diferença.

 

Não seria muito difícil desatar os nós nos meus pulsos, mas, naquele instante, a fuga não estava em meus planos. Esperava apenas que me dessem a chance de falar antes de me matarem. Contudo, pensando melhor, normalmente só depois que eu começava a falar que a maioria das pessoas ficava com vontade de acabar com a minha vida.

 

Consegui tirar a mordaça da boca. Eu não ia gritar, e não havia muito sentido em tentar fazer isso, mas ela dificultava minha respiração, principalmente porque eu estava de bruços sobre o cavalo, o que comprimia meus pulmões.

 

Havia fogueiras onde quer que tenhamos parado em seguida. Ouvi os estalos da lenha úmida no fogo e podia vislumbrar um pouco da luz através do saco de lona. Quem quer que estivesse cavalgando comigo fez o desserviço de me empurrar do cavalo. Caí de pé, mas, com as pernas amarradas, acabei desabando imediatamente no chão.

 

— O que temos aqui? — alguém perguntou.

 

— O garoto que andava por aí fazendo perguntas sobre Devlin.

 

— Fink disse que esse garoto ficou perturbado quando ouviu o que Devlin fez com o padre.

 

O fato de Fink ter falado com esses homens não me surpreendeu.Eu sabia que ele estava ligado de alguma forma a pessoas mais poderosas. Provavelmente era ele quem levava suprimentos ou colhia informações para elas. Um menino como aquele sempre seria útil E isso ficou ainda mais evidente quando reparei nos sapatos dele. Só os sapatos eram do tamanho certo. Nitidamente tinham sido um presente de seus patrões para garantir que ele pudesse cumprir as tarefas que lhe passavam.

 

Tive de admirá-lo por já ter falado com eles. Fink trabalhava rápido.

 

Eles me colocaram contra uma árvore, prenderam uma corrente à corda que atava meus pulsos, me acorrentaram ao tronco e só então removeram o saco de lona que cobria minha cabeça.

 

Era um simples acampamento de ladrões, com tendas distribuídas ao acaso por entre as árvores, sem qualquer discriminação visível na escuridão dos espaços onde cozinhar, dormir e a área das latrinas. Ainda assim, pelo aspecto geral, esse acampamento parecia estar ali havia algum tempo.

 

Um homem se agachou ao meu lado para me olhar melhor. Ele tinha 40 e poucos anos, ombros largos e costas ligeiramente encurvadas, com o cabelo fino e curto, e provavelmente costumava ser mais vermelho. Ainda assim, os olhos exalavam inteligência e o rosto era marcado por rugas prematuras. Parecia pouco provável que ele fosse muito tolerante comigo.

 

— Não gostou da mordaça? — perguntou ele, desamarrando-a.

 

— Tinha um gosto ruim — respondi, ainda usando o sotaque aveniano. — Tem certeza de que você usou um pano limpo?

 

Ele soltou uma risadinha e então me deu um tapa no rosto. Não com muita força, no entanto, e fiquei grato por isso.

 

— Isso é pelo seu atrevimento. Sou Erick Loman. Estou no comando aqui. Qual é o seu nome?

 

Hesitei e, então, com um suspiro alto, respondi:

 

— Sage.

 

— Só isso?

 

— Você acha que alguém como eu teria mais de um nome?

 

Erick sorriu.

 

— Estou surpreso de que alguém tenha se dado ao trabalho de lhe dar até mesmo um.

 

Minha expressão refletiu a dele.

 

— Não deram. Eu mesmo me dei esse nome.

 

E isso encerrou os sorrisos. Com as apresentações já feitas, Erick concentrou-se nos negócios que o tinham levado a me raptar.

 

— Por que você estava perguntando sobre o padre a Fink?

 

— Tenho alguns pecados a confessar — respondi. — Por ter arruinado a vida do último homem que me raptou.

 

O segundo tapa foi menos gentil.

 

— Fink disse que você está tentando encontrar Devlin.

 

— Estou tentando encontrar os piratas. Tenho um trabalho e preciso da ajuda deles.

 

— Eu trabalhei com eles durante anos, garoto. Piratas não ajudam ninguém além de si mesmos.

 

— Esse trabalho vai ajudá-los um bocado.

 

Ele franziu as sobrancelhas e então me amordaçou novamente.

 

— Cuspa isso de novo e eu arranco a sua língua. Entendeu? — Sem esperar uma resposta, ele colocou o saco de lona de volta na minha cabeça.

 

Eles me largaram ali e logo tudo ficou silencioso. Assim que me certifiquei de que estavam dormindo, desfiz os nós que amarravam minhas mãos, removi a mordaça e o saco de lona. Depois de desamarrar a corda que prendia meus pés, também me deitei para dormir, usando o saco de lona como um fino travesseiro entre minha cabeça e meu braço.

 

Acordei com uma bota tocando minhas costelas, o que era melhor do que eu havia esperado. Quando abri os olhos, Erick estava de pé à minha frente, de braços cruzados. Fink estava atrás dele, nas sombras, e um hematoma escuro lhe marcava a testa, onde eu o chutara. Uma pessoa melhor talvez lamentasse ter chutado uma criança. Eu não.

 

— Tem um rato atrás de você — murmurei para Erick.

 

Fink abanou a cabeça.

 

— Não, meu bichinho está na gaiola dele agora.

 

— Eu não estava falando do seu bichinho.

 

— Chame-me do que quiser — disse Fink. — Eles disseram que, contanto que eu vigie você, também posso ficar.

 

Se ele esperava algum tipo de congratulação da minha parte, ficaria muito despontado. Aquele não era lugar para alguém da idade dele. Por sinal, nem da minha.

 

— Por que você não fugiu? — perguntou Erick. — Parece que nossos nós não eram bons o bastante para você.

 

— Desfazer todos esses nós me deixou cansado. Além do mais, eu e você temos negócios a discutir. — Olhei para Fink. — Sem ele.

 

— Se não fosse por mim, eles já teriam matado você — disse o garoto.

 

— E, se não fosse por você, eu não estaria aqui — respondi.

 

Erick me agarrou pela camisa e me pôs de pé num tranco, então me puxou e foi caminhando, com Fink atrás de mim. Toda vez que ele se aproximava demais, eu parava de andar, forçando-o a colidir comigo, e em seguida me virava e sorria para ele. Isso o irritava, mas eu era maior, então não achei que ele fosse tentar se vingar. É claro que, da última vez que nos vimos, eu o chutara no rosto, então talvez ele me fizesse algum mal.

 

Eles me levaram até uma tenda provisória no extremo oposto do acampamento. Pela aparência, era uma tenda de suprimentos, apesar de não haver muita coisa nela: no centro, uma pequena mesa, sobre a qual estavam minha faca, minha espada e a bolsa de moedas que eu dera a Fink.

 

Erick mostrou os objetos.

 

— Explique isso.

 

Dei um sorriso seco.

 

— Se você não sabe o que são, então está no ramo errado.

 

Ele não achou graça. Suspendeu a bolsa pelas costuras e despejou as moedas na mesa.

 

— São cartianas e novinhas. Como conseguiu tantas?

 

— Eu as peguei. — O que foi fácil de fazer, porque, como rei, elas eram minhas.

 

— Então você é um ladrão.

 

Casualmente, enfiei as mãos nos bolsos.

 

— É o que parece.

 

— E você é bom? — Minha resposta foi um aceno de cabeça na direção das moedas. — De onde elas vieram?

 

— Por que quer saber?

 

Como se isso não fosse evidente.

 

— Você disse a Fink que podia conseguir mais.

 

Olhei para Fink.

 

— Ele devia ter percebido que esse segredo seria mais bem dividido apenas entre nós dois.

 

Erick estava perdendo a paciência rapidamente.

 

— Então há mais?

 

Cruzando os braços, eu disse:

 

— Você não pode esperar que eu responda à sua pergunta. Se houver, prefiro guardar a novidade para os piratas.

 

Erick sorriu com malícia.

 

— Ah. Você acha que com algum tipo de tesouro conseguirá um lugar à mesa deles?

 

Eu não precisava de um lugar. Só de uma espada e muita sorte.

 

Erick continuou:

 

— Não vai funcionar, porque eles não o conhecem. Eles pegariam as moedas e cortariam sua cabeça rapidinho.

 

— Eu me oponho firmemente a qualquer decapitação que envolva a minha cabeça — eu disse. — Então me diga como fazer isso funcionar. Talvez você conheça os piratas.

 

— Conheço alguns — Erick coçou o queixo. — Se me contasse onde fica esse tesouro, eu poderia dizer aos piratas.

 

— O que ainda não resolveria o meu problema de ficar sem cabeça — retruquei. — Tenho acesso às moedas, mas não posso consegui-las sozinho. E, sem querer ofendê-lo, eu não poderia confiar no seu bando de ladrões amadores para roubar uma única moeda de um poço dos desejos, quanto mais o tesouro a que tenho acesso. Isso é uma tarefa para os piratas, e sou eu que tenho de contar a eles.

 

Erick puxou uma faca e me empurrou contra um dos postes que sustentavam a tenda.

 

— Não há tesouro nenhum. Acho que você está inventando.

 

As palavras soaram bastante ofensivas, porque, se eu quisesse inventar uma história, poderia ter criado uma muito melhor. No entanto, minha atenção permaneceu voltada para a faca encostada na minha garganta.

 

— Você não quer fazer isso.

 

Os lábios de Erick se enroscaram.

 

— Quero, sim.

 

Pensei um pouco.

 

— É justo. Mas seria um erro. As moedas são de verdade e há milhares delas. Estão em uma caverna secreta em Carthya. A realeza mantém apenas uma pequena porção de sua fortuna no castelo. Se a fortaleza cair em mãos alheias, eles não querem que os inimigos fiquem com todo o tesouro.

 

— Como é que você sabe disso?

 

Ergui uma sobrancelha.

 

— Você não sabia? É uma prática comum a todos os reis, não só os cartianos.

 

— Pensei que fosse uma lenda — disse Fink.

 

— Eu estive lá — afirmei. — Dentro da caverna.

 

Aquilo só havia acontecido uma vez, quando eu ainda era bem pequeno. Eu me lembrava de ter ido até lá com meu pai e Darius. Meu pai me flagrara usando as moedas como pedrinhas, tentando fazê-las quicar na superfície de um lago no fundo da caverna. Meu traseiro ainda se lembrava do quanto ele tinha ficado irritado com a minha brincadeira.

 

Erick finalmente me soltou e então passou a mão pelo queixo barbado.

 

— Onde é a caverna?

 

— Você acha que é assim tão fácil de encontrá-la? — eu ri. — Posso até desenhar um mapa e, mesmo assim, você não a localizará. Na verdade, precisa me manter vivo se quiser vê-la.

 

— Quanto tem lá? — perguntou Fink.

 

— Mais do que você vai ver na sua vida inteira. Há o suficiente para dividir entre cada pirata, e cada um ficará com uma boa parte, e acho que mais do que o suficiente para me garantir um lugar à mesa deles.

 

— E talvez para mim também — Erick balançou a cabeça. — Você não pode ir sozinho até os piratas, mas, se eu o levasse comigo, os sujeitos o ouviriam. Eu poderia barganhar com eles e, em troca das informações sobre o tesouro, também poderia acompanhá-los.

 

— Você poderia incluir me manter vivo nessa barganha? — perguntei.

 

Erick sorriu.

 

— Sua vida não é a minha maior prioridade. — Comecei a protestar, mas ele acrescentou: — Não lhe permitirei sair sozinho daqui. Mas, se for um dos meus ladrões, se for meu parceiro, terá uma chance. Além disso, não conseguirá encontrar o acampamento deles de outra forma.

 

Com uma expressão teimosa, eu disse:

 

— Você vai ficar com toda a fama pela descoberta do esconderijo.

 

— Nós dois ficaremos. Você mesmo disse que não pode roubar sozinho as moedas, e os demônios sabem que não vou deixá-lo ir sem pegar minha parte. Então não veja toda essa situação como perder a fama, você está é ganhando um sócio.

 

Na verdade, eu não via isso como nenhuma das duas coisas. Mas fiz as expressões apropriadas, como se pensasse na proposta e então concordasse:

 

— Tudo bem, estou dentro. Mas não temos muito tempo.

 

— Por quê?

 

Porque o tempo não estava a meu favor. Faltavam apenas cinco dias até que os regentes se reunissem. Mas, ao me dar conta de que esse detalhe só complicaria nosso frágil relacionamento, respondi:

 

— Há outros que sabem sobre a caverna. Precisamos chegar lá antes deles, ou não vai adiantar nada.

 

— Então vamos procurar logo os piratas. Contudo, antes você deve provar que é capaz.

 

Subitamente ansioso, inclinei a cabeça.

 

— Eu já fiz isso. Ora, eu trouxe estas moedas.

 

— É, mas ninguém viu você pegá-las. Achou que eu o recomendaria aos piratas sem vê-lo em ação com meus próprios olhos?

 

Não necessariamente, mas eu tinha mesmo torcido para que isso acontecesse.

 

— Então, o que sugere?

 

— De vez em quando, alguns dos meus garotos cruzam a fronteira até Carthya e arrumam encrenca. O último grupo voltou há uns dois dias, mas, infelizmente, alguns deles voltaram feridos. — Se os meninos fossem aqueles que eu havia enfrentado perto de Libeth, então eu esperava que os ferimentos lhes interrompessem a carreira. — Não vou até lá com eles há algum tempo — continuou —, então desta vez você me acompanhará, e eu o observarei para ver se realmente merece um lugar entre nós.

 

— E se eu não merecer? — perguntei.

 

— Então você não voltará.

 

Sorri, fazendo pouco caso.

 

— Já ouvi falar sobre essas incursões. São patéticas.

 

Ele não gostou do insulto e questionou.

 

— Por quê?

 

— Raramente geram dinheiro suficiente para que valham a pena. Você arruma um monte de problemas, mas não traz para casa nada de muito valor. Não é isso o que importa?

 

Ele alisou o queixo novamente.

 

— Você tem um plano melhor?

 

Minha cabeça fervilhava. Eu precisava mesmo de um plano melhor. Porque, se não os ajudasse, eles me matariam. E sob nenhuma circunstância eu atacaria meu próprio povo.

 

Quase que imediatamente uma ideia me ocorreu. Não era muito boa, mas bem melhor que a de Erick.

 

— Há um nobre que vive em Libeth — eu disse. — A casa dele não é bem guardada e ele é rico.

 

— Não invadimos casas de nobres — explicou Erick, balançando a cabeça com firmeza. — É muito perigoso, estaríamos em território estrangeiro, então não teríamos apoio de Avenia se fôssemos pegos.

 

— Deixe-me entrar lá sozinho e sairei com o que quiser.

 

Erick continuou balançando a cabeça.

 

— É muito arriscado.

 

— Mas só eu correrei o risco — afirmei. — Se queremos provar aos piratas que somos bons, meras incursões na fronteira não significarão nada. Deixe-me mostrar aos piratas que merecemos um lugar entre eles.

 

Erick olhou para Fink, que assentiu, ansioso.

 

— Tudo bem — disse Erick. — Mas, se você vier com truques, incendiaremos o lugar inteiro, com você e quem mais estiver lá dentro.

 

Sorri concordando, mas meu estômago revirou. Não era um truque. Em poucas horas, eu voltaria à casa de um homem que me cobrira de gentilezas e, chegando lá, roubaria dele tudo o que pudesse.

 

Planejamos partir para Libeth naquela tarde. Nesse meio-tempo, fiquei livre pelo acampamento, embora todos ali estivessem de olho em mim. Era bom que eu não quisesse escapar, porque de qualquer forma seria impossível.

 

Quando finalmente chegou a hora de partir, eu meio que pensei que Erick mandaria seus homens cobrirem minha cabeça com um capuz, mas ele não fez isso. Talvez tivesse decidido confiar em mim e me aceitar no grupo.

 

Cavalguei com Erick no animal dele, guiando-o para onde eu havia escondido Mystic, que, incrivelmente, ainda estava amarrado no mesmo lugar. Erick nunca perguntou sobre Mystic, obviamente presumindo que também fora roubado. Quase desejei que ele tivesse perguntado. Pelo menos seria divertido contar a história que eu inventara sobre como tinha conseguido aquele cavalo.

 

Por causa dos pântanos atrás de Libeth, tivemos de refazer praticamente o mesmo caminho que eu fizera vindo de Avenia na manhã anterior. Era quase meia-noite quando entramos na cidade, bastante silenciosa, exceto pela ocasional movimentação de animais nos pastos e de grilos agitados às margens da estrada.

 

— Onde é a casa? — perguntou Erick.

 

Apontei para o alto da colina. De onde estávamos, ela parecia completamente escura, o que era um alívio. Se houvesse qualquer indício de alguém estar acordado, eu teria arrumado uma desculpa para cancelar o plano.

 

— Para um trabalho como este, precisamos de silêncio — eu disse a Erick. — Eu entro sozinho e todos vocês ficam aqui me esperando.

 

— Nós dois iremos — disse Erick. — Isto é um teste para eu ver como você trabalha, lembra? — Eu me lembrava até demais. Erick me entregou minha faca. — Imagino que queira isto.

 

Eu a peguei e a prendi à minha cintura.

 

— E minha espada?

 

— Ainda está na tenda, por enquanto a salvo. Vamos ver como as coisas se desenrolam esta noite.

 

Uma vez na propriedade de Harlowe, Erick mandou que os homens esperassem do lado de fora. Ele e eu faríamos o resto do caminho a pé.

 

— Eu não gosto de ficar me esgueirando — disse Erick. — Prefiro usar a força.

 

— Da última vez que seus ladrões usaram a força, vários deles voltaram feridos — decidi não sobrecarregá-lo com o detalhe de quem causara os ferimentos. — Assim é melhor.

 

Ficamos em silêncio quando nos aproximamos da casa. Imaginei quantas pessoas estariam lá dentro. Será que os empregados de Harlowe moravam ali ou iam para casa à noite? Será que ele mantinha sentinelas como Conner costumava fazer? Cada parte de mim odiava o que estávamos prestes a fazer, e eu me odiava por levar os ladrões até ali.

 

Quando chegamos à casa, hesitei, avaliando qual seria a melhor forma de agir. A presença de Erick tornava a situação muito mais complicada. Eu poderia escalar as paredes externas e invadir a casa pelo andar superior. Erick provavelmente não me seguiria, então esta seria minha melhor chance para ficar sozinho. Eu poderia procurar Harlowe e explicar-lhe o necessário para conseguir sua ajuda. Mas, se Erick me seguisse, isso o levaria ao mesmo andar dos quartos. Eu conhecia muito pouco o interior da casa de Harlowe. Se eu assustasse alguém, haveria o grande risco de ocorrer uma luta, e Erick estava armado até os dentes.

 

Então eu o levei até a frente da casa. Pensei que poderíamos caminhar direto até o escritório de Harlowe, torcendo para que nenhum empregado ainda estivesse acordado.

 

Não fazia tantas horas desde que eu fora um hóspede bem-vindo ali. Como pude descer tanto e tão depressa? Fiz um voto silencioso de compensar Harlowe por meus crimes logo que fosse possível. Ainda assim, minha atitude me parecia a pior das traições. Harlowe entenderia um dia por que eu havia persuadido os ladrões a não irem até as fazendas da fronteira. Mas eu não estava certo se, algum dia, o faria compreender que eu precisava levá-los a algum lugar, e que aquele era o único sobre o qual eu sentia ter algum controle.

 

A janela que, segundo minha intuição, levava ao escritório era alta, portanto eu teria de subir por uma árvore para entrar. Com sorte, isso bastaria para impedir Erick de me seguir. Eu duvidava que ele fosse um homem acostumado a escalar.

 

Passei minhas mãos nas calças para secá-las. Erick olhou para a janela, então agarrou minha camisa e me empurrou contra o tronco da árvore.

 

— Você jura que isto não é uma armadilha? — sibilou ele.

 

— Não é uma armadilha — assegurei. — Confie em mim, eu quero entrar e sair tanto quanto você.

 

Talvez mais.

 

— Se alguma coisa parecer estranha, aviso meus homens e garanto que ninguém saia daqui vivo. Especialmente você.

 

— Se não quer que nada dê errado, pare de fazer tanto barulho — eu disse, empurrando-o de volta. — Agora vamos lá.

 

Subi na árvore sem fazer mais ruído do que um ocasional farfalhar de folhas. Então, tentando me manter protegido pela parede, espiei pela janela. Apesar da pouca luz do luar, pude ver que era mesmo o escritório de Harlowe e que estava vazio. Melhor ainda: olhando a parte de baixo da porta fechada, vi que os corredores estavam escuros. Se os empregados estivessem acordados, haveria luz no primeiro piso.

 

— Espere por mim aqui — eu disse a Erick. — Estarei de volta em cinco minutos.

 

Enfiei os dedos por baixo da vidraça e lentamente a ergui. Ela deslizou silenciosa e facilmente, um indício de que Harlowe a abria com frequência, talvez para que entrasse uma brisa durante as tardes quentes de primavera. Pular do galho em que eu estivera empoleirado não foi tão difícil e, em poucos segundos, eu estava dentro do escritório.

 

Na quase total escuridão, eu enfrentava o desafio de descobrir onde ele mantinha seus objetos de valor. Não precisaria de muita coisa. Moedas seriam melhor, porque dinheiro era o que os ladrões mais valorizavam, seria fácil repô-las e tinham menor valor sentimental. Se Harlowe guardasse moedas em algum lugar da casa, o mais provável era que fosse ali.

 

Dei a volta na escrivaninha e estava vasculhando as estantes de livros quando ouvi passos no corredor principal. Congelei, esperando que fosse apenas um empregado de passagem.

 

Mas então escutei vozes e a luz de uma vela tremulou sob a porta do escritório. Eles se aproximavam.

 

Quando ficou óbvio que estavam se aproximando dali, me apressei em direção à janela. Eram as vozes de dois homens, mas abafadas pela porta fechada. Não pude identificá-las, mas imaginei que uma delas deveria ser de Harlowe.

 

A porta se abriu antes que eu alcançasse a janela, então tentei me esconder atrás da escrivaninha, mas uma voz ordenou que eu parasse.

 

Não puxei minha faca. Não havia motivo. E me virar para encarar os dois homens ali no escritório foi uma das coisas mais difíceis que eu já fizera na vida.

 

Os homens prenderam o fôlego ao me reconhecer. Harlowe era o que segurava a vela. O outro, que havia me mandado parar e puxado a faca, era ninguém menos do que Mott.

 

Nenhum de nós falou durante o que pareceu uma hora. Lentamente, Mott baixou a faca e, por fim, Harlowe sussurrou:

 

— Você é Jaron. Mas por que...

 

Com o coração disparado, olhei para Mott em busca de ajuda, ainda incapaz de falar.

 

Quase ao mesmo tempo, ouvi um barulho atrás de mim, e Erick entrou pela janela.

 

— Eu vi a luz — disse ele. — Achei que precisasse de ajuda.

 

— Não preciso — então puxei a faca.

 

Mott pôs a mão no braço de Harlowe.

 

— Este não é quem você pensa — ele disse. — Este garoto é um dos melhores ladrões de Avenia. Eu já o vi antes e sei que é capaz de tudo. Você devia lhe dar o que ele quiser. Ele vai conseguir de qualquer forma.

 

Erick olhou para mim.

 

— Do que você é capaz?

 

Ignorei Erick e olhei para Harlowe.

 

— Todo o dinheiro que tiver aqui, eu quero. Agora.

 

Harlowe permanecia imóvel, incapaz de concatenar as várias explicações sobre quem ele achava que eu era quando nos conhecemos, aquilo que Mott lhe dissera e o que agora ele via acontecer. Finalmente, Mott o empurrou para frente e Harlowe disse:

 

— Não tenho muito aqui — ele apanhou um porta-retratos sobre a escrivaninha. — Mas isto é feito de ouro. Vale muito.

 

Havia o esboço de uma criança dentro da moldura. Eu me perguntei se seria o pai de Nila ou o outro filho, sobre o qual o empregado de Harlowe me falara.

 

— Não quero a pintura — eu disse. — Mas fico com a moldura.

 

Harlowe removeu o retrato e o apoiou cuidadosamente sobre a escrivaninha, antes que Erick pegasse a moldura e a jogasse dentro de um saco que trouxera consigo.

 

A seguir, Harlowe pescou algo dentro de seu colete e me entregou.

 

— Você pode levar isto. Também é de ouro. — Era o relógio que pertencera ao pai de Nila.

 

Joguei o objeto de volta para ele.

 

— É imitação. Não vale nada! — Incapaz de evitar o olhar de Mott, acrescentei: — Com certeza você sabe que conheço a diferença entre isso e ouro de verdade.

 

— Evidentemente você não sabe — Erick franziu a testa em minha direção enquanto estendia a mão. — É verdadeiro o suficiente para as minhas necessidades.

 

— Se alguém for ficar com ele, serei eu — estendi a mão para pegar o relógio, mas Erick deu-lhe um tapa e me mostrou a faca. Não havia nada a fazer além de aceitar.

 

— Este garoto não significa mais que ouro falso para nós — disse Mott, olhando fixamente para mim. — Dê-lhe algumas moedas e ele vai embora.

 

Harlowe caminhou até a estante. Puxou uma caixa de uma das prateleiras mais altas e então se dirigiu a mim e disse:

 

— Estenda as mãos. — Tomei o saco das mãos de Erick e Harlowe virou a caixa, deixando dúzias de garlins caírem dentro dele.

 

Atrás de mim, Erick arfou de alegria. Então seus olhos se fixaram em Mott.

 

— E ele?

 

Mott olhou para mim.

 

— Você não vai me pegar, ladrão — e correu para fora do escritório.

 

Apontei para Harlowe e disse a Erick:

 

— Você o vigia. — Parei ao passar por Harlowe. — Não se mova. Não lhe dê motivo para qualquer atitude. — Então saí do escritório, indo atrás de Mott.

 

Ele já me esperava. Logo que virei para sair do corredor principal, ele agarrou meu braço e me atirou contra a parede.

 

— O que está fazendo aqui? — sibilou.

 

— Você devia ter ouvido qual era a minha alternativa. — Subitamente, havia tanto a lhe contar. Sobre os ladrões avenianos que atravessavam nossas fronteiras para atacar nossas mulheres e crianças. Sobre os nobres de Carthya que acobertavam tudo. E sobre meu pai, que, pior que os outros, havia ignorado as súplicas de seu próprio povo por socorro. Mas não havia tempo. — Por que você está aqui?

 

— Não consegue adivinhar?

 

— Você deveria estar ajudando Tobias no castelo. — Houve uma pausa. — Como ele está indo?

 

— Amarinda e Kerwyn vão protegê-lo. Mas todos estão falando que os regentes vão votar contra você. Se não voltar agora, talvez não haja mais razão para fazê-lo.

 

Dei um passo para trás.

 

— Se eu não terminar isto aqui, não haverá para onde voltar.

 

— Matar Devlin não resolverá esse problema.

 

— É, você tem razão. — Dizer as palavras a seguir me horrorizava e, mesmo enquanto as falava, entendia a impossibilidade daquilo tudo: — Tenho que destruir os piratas. Todos eles.

 

Os olhos de Mott se incendiaram.

 

— O quê? Isso é loucura! Não é o plano de um rei!

 

Irritado, sibilei:

 

— Então, junte-se aos que desejam um governante e me deixe em paz!

 

Comecei a voltar para o escritório, mas Mott agarrou meu braço.

 

— Não desejo um governante em Carthya mais do que você. Mas suas ações só dão munição para aqueles que o julgam incapaz de ser rei. Você os está ajudando a destruí-lo.

 

Eu o encarei e disse:

 

— Por que você não consegue ver isso, Mott? Esqueça o governante e veja os perigos para Carthya. Esta é a nossa única esperança de não sermos destruídos. Nossos problemas são bem maiores do que as ambições políticas de Gregor.

 

Mott não estava convencido.

 

— Você devia ter contado seus planos a Gregor. Além de Kerwyn, ele era a pessoa em quem seu pai mais confiava. Por favor, volte enquanto ainda pode.

 

— Se eu fizer isso, quanto tempo teremos antes que os piratas invadam Carthya? Apenas dias, ou será que eles nos darão uma semana inteira para nos prepararmos? Eu não quero estar aqui Mott, então me dê outra opção. Diga-me qualquer coisa que faça Carthya sobreviver e eu a farei.

 

Mas ele não podia. Em uma voz carregada de tristeza, Mott disse:

 

— Ninguém volta de uma visita aos piratas, Jaron.

 

— Eu preciso voltar. Quem mais tornaria sua vida tão interessante? — E até sorri para ele.

 

Mott sussurrou uma maldição e disse:

 

— Se precisar de mim, estarei na igreja em Dichell. Para sua própria segurança, é só até lá que me atreverei a segui-lo. — Comecei a voltar para o escritório, mas ele continuou: — Dê-me sua faca.

 

— O quê?

 

Mott estendeu a mão, com a palma para cima.

 

— Você ficou aqui tempo demais. Então me dê a faca.

 

Era a segunda vez que Mott se feria para salvar meus segredos. Observá-lo enquanto ele corria a lâmina pelo braço me doeu quase tanto como se fosse em minha carne. Quando peguei a arma de volta, hesitei, ouvindo um barulho suave atrás de nós.

 

Nila segurava uma pequena vela para nos ver melhor.

 

— Oh! — disse ela, assustada. Então, quando me reconheceu e viu o sangue em minha faca, deu um passo atrás. — Ah, não! — exclamou, virando-se e correndo escadas acima. Eu não ousei chamá-la. Não podia correr o risco de ser ouvido por Erick.

 

— Vá, agora — disse Mott. — Tentarei pará-la antes que ela acorde todo mundo. E, Jaron, você precisa voltar.

 

— Eu voltarei — retruquei, aparentando mais confiança do que sentia, o que pareceu confortá-lo. — E provavelmente isto não faz diferença a esta altura, mas eu sinto muito.

 

Antes que Mott pudesse responder, voltei ao escritório e então saltei sobre Erick, que tinha encostado Harlowe na parede e lhe apontava a faca. Eu me interpus entre os dois e gritei:

 

— O que está fazendo?

 

— Ele perguntou seu nome — disse Erick.

 

Virei-me para Harlowe.

 

— Não, senhor, eu não quero que se lembre do meu nome. Nem que se lembre desta noite — então puxei Erick para longe. — Precisamos sair daqui.

 

Os olhos de Erick se fixaram em minha faca suja de sangue, e Harlowe prendeu a respiração, horrorizado, quando percebeu o que eu provavelmente fizera.

 

— Então é disso que você é capaz — resmungou Erick. — Eu o subestimei.

 

— Ele pediu por isso — eu disse, e então indiquei a janela com a cabeça. — Você primeiro.

 

Quando ele saiu pela janela, voltei-me para Harlowe, que falou:

 

— Diga-me que você não acabou de...

 

— Espero que algum dia o senhor entenda — falei tão baixo que mal emiti um som. — Perdoe-me.

 

Harlowe apenas negou com a cabeça, se sentindo nada além de horrorizado e traído. E eu desci da árvore sabendo que cometera um crime pelo qual poderia nunca ser perdoado.

 

– Você parece chateado — disse Erick, enquanto saíamos de Libeth, poucos minutos mais tarde. Ao meu lado, os outros ladrões discretamente comemoravam, contando o número de bebidas que poderiam comprar com sua parte do dinheiro de Harlowe. Era repugnante ver que já o consideravam sua propriedade e como me felicitavam como se eu tivesse feito algo bom.

 

— Sorria — disse Erick. — É hora de comemorar.

 

— Ele viu meu rosto — resmunguei.

 

— É só isso? — a risada de Erick soou grosseira e fez meus músculos se enrijecerem. — Você não tem com o que se preocupar. O que Carthya vai fazer conosco? Nada! Você deve conhecer a reputação do rei deles.

 

— Eckbert se foi. Eles têm um novo rei agora.

 

— É dele que estou falando. Do filho de Eckbert. Como é mesmo o nome dele?

 

— Jaron.

 

— Isso mesmo. Eu não sei muito sobre ele, mas, pelo que ouvi falar, teremos toda a liberdade que quisermos em Carthya.

 

Por algum motivo, não pude evitar uma risada.

 

— O que há de errado com Jaron?

 

— Dizem que é selvagem e imprudente, que sempre foi. Todos sabem que ficou desaparecido por um longo tempo, mas agora está de volta para reinar. O que um garoto com uma história dessas pode saber sobre governar um país inteiro?

 

— Provavelmente não muito.

 

Eu sabia apenas o suficiente para entender que já havia cometido muitos erros. Ir até lá com Erick era sem dúvida o maior de todos.

 

— Exatamente — Erick riu. — Mas tudo o que nos importa é que nosso estúpido rei aveniano negue ter conhecimento do que fazemos.

 

— Ele sabe?

 

— Ainda que saiba, somos pequenos demais para que se importe. Quando ele quer que algo seja feito sem sujar as próprias mãos, usa os piratas.

 

Isso era algo que o próprio Vargan praticamente admitira. Avenia queria minhas terras. Os piratas queriam minha vida. Eles tinham nascido um para o outro.

 

Erick não pareceu notar minha angústia. Cavalgando ao meu lado, ele riu sozinho e então continuou:

 

— O alvo principal de Vargan é Carthya. Você deve saber que, se ele descobrir que você é um pirata, pode usar seu conhecimento de Carthya para ajudá-lo a destruí-la.

 

Sim, disso eu sabia.

 

Não conseguindo muita conversa comigo, Erick foi mais à frente, até os outros, para lhes contar detalhes sobre o que acontecera na casa de Harlowe. Ele até tirou o relógio do bolso para lhes mostrar e então o enfiou de volta dentro da camisa, sem dar a menor importância para seu real valor. Eu não conseguia entender por que Harlowe o entregara tão facilmente e me amaldiçoei por não ter ficado com ele.

 

Estávamos quase de volta ao acampamento quando minha irritação se transformou em súbita ansiedade. Ao nos aproximarmos da crista de uma serra, vimos pelo menos uma dúzia de cavalos parados atravessados na estrada, bem mais abaixo, bloqueando nossa passagem. Ao dar uma olhada em quem montava os animais, soube que estava com sérios problemas.

 

Fiz Mystic parar e perguntei a um ladrão, cujo rosto era cheio de marcas de varíola, ao meu lado:

 

— São homens do rei Vargan?

 

Ele estreitou os olhos para enxergar melhor e então fez uma careta.

 

— Parece que sim. Imagino que o bom rei tenha decidido que é hora de recolher impostos de novo.

 

Erick já estava cavalgando em nossa direção.

 

— Todos vocês, recuem.

 

Obedecemos, até ficarmos fora da vista dos soldados. Então Erick nos juntou e puxou o saco de moedas que eu havia roubado de Harlowe.

 

— Todos peguem uma parte e escondam onde puderem — disse ele. — Nas botas ou debaixo da sela, em qualquer lugar. Rápido!

 

— É melhor seguirmos por outro caminho — falei, mal conseguindo esconder a preocupação em minha voz. — Ou esperarmos até que partam.

 

O ladrão mais próximo de mim riu.

 

— Sage não conhece os truques do rei.

 

Discordei enfaticamente. Eu provavelmente conhecia os truques melhor do qualquer um ali e tinha muito mais a perder do que um punhado de moedas. Eu não podia de forma nenhuma ir em frente e arriscar um encontro com os soldados de Vargan.

 

— Eles provavelmente já nos viram — disse Erick. — Se não descermos logo esta encosta, virão atrás de nós e farão com que tudo seja muito pior.

 

Pessoalmente, eu não conseguia ver como as coisas poderiam piorar.

 

Sentindo meu desespero, Erick disse:

 

— Trabalhamos duro a noite passada, e eu sei que o incomoda perder as moedas. Também odeio isso, mas não podemos evitar. Agora separe alguns punhados e vamos esperar que reste pelo menos alguma coisa para nós depois de passarmos por eles.

 

Eu estava apavorado com a ideia de ir em frente. Mas era igualmente arriscado abandonar Erick agora, porque implicaria perder qualquer esperança de chegar aos piratas. Erick me estendeu o alforje de novo. Quando enfiei a mão nele, notei alguns trapos sob as moedas e perguntei para que serviam.

 

Erick deu de ombros.

 

— Para o caso de um dos meus ladrões ser ferido quando estivermos longe do acampamento. — Enfiei a mão no alforje novamente, puxei os trapos e então comecei a desenrolá-los. — O imposto é o mesmo, esteja você ferido ou não — protestou Erick. — Além do mais, tem sangue seco neles, da última vez que foram usados.

 

— Melhor ainda. — Comecei a enrolar as bandagens em torno de minha cabeça, cobrindo um olho e uma bochecha e todo o meu cabelo. Assegurei-me de que a parte com sangue ficasse diretamente sobre o meu olho.

 

— Tire isso — disse Erick. — Você está ridículo.

 

— Eu pareço ferido, o que é bem diferente. — Rasguei um pedaço da ponta do tecido e o enfiei na boca, entre a bochecha e a gengiva, esperando que isso me deixasse com a aparência de quem tinha o rosto inchado.

 

— Pronto, agora estou ridículo.

 

Erick xingou num sussuro e disse aos homens que relaxassem, assim talvez todos atravessássemos a barreira sem sermos incomodados.

 

Os soldados ficaram atentos ao notar que estávamos nos aproximando e nos mandaram parar e desmontar. Mantive a cabeça baixa e deslizei de cima de Mystic recuando de volta para o meio do grupo de sete ou oito ladrões.

 

— Não temos nada de valor — Erick disse aos soldados. — Só queremos voltar ao nosso acampamento.

 

O soldado mais próximo de Erick pigarreou, então nos mandou ficar em fila e pôr no chão qualquer arma que estivéssemos carregando. Relutei em me mover, mas os homens à minha volta já se alinhavam. Permaneci ao lado de Erick, e ele sinalizou para que eu pusesse minha faca no chão. Eu fiz isso, mas apoiei a ponta da bota sobre ela, para ao menos mantê-la sob controle caso uma briga começasse. Não que isso fosse ajudar muito. Os soldados, em número muito maior do que nós, estavam mais bem armados. Talvez eu acabasse precisando mesmo das bandagens.

 

Os soldados começaram revistando Erick. Eles imediatamente encontraram o relógio de bolso de Harlowe e o jogaram em um pano estendido no chão. Então, enfiaram as mãos no alforje e acharam o restante das moedas que ainda não tínhamos dividido. Com essa descoberta, um dos soldados bateu com força no rosto de Erick, jogando-o no chão.

 

— Você mentiria para seu rei? — disse o soldado.

 

— Eu menti para você — Erick gemeu um pouco e limpou o sangue dos lábios. — Você não tem direito a nossos bens.

 

— Mas eu tenho — alguém disse.

 

Eu me virei rapidamente e, no mesmo instante, afundei o queixo no peito. O rei Vargan saiu de uma carruagem parada à sombra de algumas árvores altas. De cabeça baixa, eu não havia prestado muita atenção nela, mas, quando o fiz, vi claramente que era a mesma que o conduzira ao funeral de meu pai.

 

Vargan veio até nós e nos inspecionou. Os outros homens ficaram de joelhos, mas eu me virei e ajudei Erick a se levantar. Se Vargan notou que eu não me ajoelhara, deixou passar e disse:

 

— Um dia glorioso está chegando para Avenia. Logo, meus amigos, nós seremos mais do que um grande país: seremos um império.

 

Cerri os dentes. Ele pretendia alcançar sua glória à custa do meu povo e com a ajuda dos piratas. A menos que eu encontrasse uma forma de impedi-los.

 

— Joguem suas moedas agora e não haverá punição por terem tentado escondê-las de mim — continuou Vargan. — E fiquem gratos por terem tido a oportunidade de contribuir para a grandeza de Avenia.

 

Os homens a meu redor resmungaram em silêncio, mas seu rei estava à frente deles agora e nada que dissessem faria diferença diante da ganância dele. Eles tiraram as moedas de onde quer que as tivessem escondido e as deixaram cair no pano. Por mais que me enfurecesse usar o dinheiro de Harlowe para beneficiar o inimigo, entreguei as minhas moedas também. A última coisa de que eu precisava era atrair a atenção de Vargan para mim.

 

Vargan checou a fortuna no chão e então se aproximou para nos examinar. Felizmente, todos os homens estavam de cabeça baixa como eu, por isso, a não ser pelas bandagens, tínhamos todos a mesma aparência.

 

— Tenho mais boas notícias — o tom de Vargan era de deboche. Independentemente do que dissesse, todos sabíamos que não haveria boas notícias. — Além destes impostos, também estou à procura de homens para se juntarem ao meu exército. Vocês não são nada além de ladrões agora, meros roedores. Mas podem vir comigo hoje e eu os transformarei em heróis.

 

Quase ri ao ouvir isso. Em que sentido atacar um país vizinho pacífico era heroico? Ele humilhava os homens de Erick por serem ladrões, enquanto planejava roubar Carthya de mim. Meus dedos ansiavam por pegar minha faca e começar a briga. Isso significaria uma sentença de morte certa para todos nós — uma desvantagem definitiva —, mas parte de mim queria que Vargan soubesse que eu estava ali.

 

Vargan apontou para o homem do outro lado de Erick.

 

— Ele será um voluntário. Levem-no.

 

O ladrão escolhido era um homem grande e musculoso que, apenas vinte minutos antes, prometera uma rodada de cerveja para todos, em comemoração ao que eu roubara de Harlowe. Ele recuou, mas os soldados o agarraram e, depois de controlá-lo apontando-lhe facas, arrastaram o pobre homem até uma carroça parada ao lado da carruagem do rei.Vargan então escolheu dois outros homens: um que eu julgava ser grande amigo de Erick, e outro, mais calado, em quem eu mal prestara atenção desde que me juntara ao bando. Ele foi sem reclamar, mas o amigo de Erick gritou:

 

— Eu não vou lutar! — e tirou uma faca do bolso. Os soldados agiram mais rápido e no mesmo instante o sujeito foi ameaçado por seis espadas. Em seguida, colocaram os dois homens na carroça e fecharam uma porta com grades, trancando-os lá.

 

Não era de se estranhar que os exércitos de Avenia fossem tão maiores que o meu. Se esse era o método de Vargan para recrutar soldados, ele poderia ter um exército do tamanho que quisesse.

 

— Você lutará — desdenhou Vargan, e então fez um gesto em nossa direção. — Todos vocês lutarão. — Em seguida acenou para seus soldados rabugentos e acrescentou: — Levem todos. Para o que se aproxima precisaremos de todos os homens que pudermos recrutar.

 

Com as espadas em punho, os soldados imediatamente começaram a nos apontar para a carroça, mas eu permaneci firme em meu lugar. Ao meu lado, Erick também não se movia, os punhos cerrados com tanta força que eu sabia que ele estava debatendo se valia a pena tentar resistir. Um soldado respondeu a essa pergunta um instante depois, quando parou ao lado de Erick e o golpeou com o lado cego da espada na parte de trás dos joelhos. Com um gemido, Erick caiu no chão. Fui atingido em seguida, e a força do golpe abalou meus músculos a ponto de me fazer cair ao lado de Erick. Soldados agarraram os braços de Erick e começaram a puxá-lo rumo à carroça. Outros vieram até mim, mas eu já estava com a faca na mão a essa altura. Foi quando Vargan disse a seus soldados para esperarem um instante e se aproximou de mim.

 

— Você foi ferido. — Sem fitá-lo, sacudi a cabeça. — Fique de pé, garoto.

 

Obedeci, mas não o olhei nos olhos. Ele me estudou por um tempo que pareceu se estender por horas. Eu tinha certeza de que ele me reconheceria, embora fosse verdade que, na última vez que nos encontráramos, estava escuro, e agora eu estava bem mais sujo. Ainda assim, eu me sentia tão óbvio ali, como se as bandagens chamassem ainda mais atenção para o fato de que eu estava tentando esconder minha identidade.

 

Mas não era assim. Na verdade, as bandagens pareciam exatamente ter surtido efeito oposto, distraindo-o e evitando que ele prestasse atenção ao meu rosto. Vargan as olhava fixamente, tentando entender por que estavam ali.

 

— Se não é um ferimento, então para que são essas faixas? — perguntou ele.

 

Além de uma tentativa medíocre de me disfarçar? Sorri para ele, tentando parecer bastante grotesco, já que eu ainda mantinha uma bola de tecido enfiada entre a bochecha e a gengiva. Em um sussurro sibilante, eu disse:

 

— São lesões da peste negra.

 

E foi tudo que precisei dizer. Independentemente da forma de contágio, conhecíamos os perigos de ficar perto de alguém tão doente.

 

Vargan praticamente saltou para longe e, para um efeito melhor, eu gemi e ergui a mão para ele. O jeito como ele se contorceu para se afastar de mim certamente pioraria suas dores nas costas. Pelo menos assim eu esperava.

 

— Esses homens estão com a peste! — gritou Vargan. — Soltem todos!

 

Os soldados deixaram Erick cair como se ele estivesse lhes queimando as mãos e esvaziaram a carroça quase mais rápido do que eu podia piscar os olhos. Em seguida, escoltaram seu rei até a carruagem quase na mesma velocidade. Em segundos, Vargan e sua escolta militar tinham nos deixado na poeira levantada pelos cascos dos cavalos.

 

Os homens vibravam enquanto eu tirava as bandagens, mas Erick apenas me encarou, como se eu tivesse feito algo errado. Por fim, ele cruzou os braços e disse:

 

— Você me deve uma explicação.

 

Provavelmente era verdade. Mas ele não a receberia. Eu disse apenas:

 

— Se eu não tivesse feito isso, todos nós acordaríamos amanhã como soldados avenianos.

 

— Pode ser. Mas não foi por isso que você fez.

 

— Fiz isso porque alguém aqui precisava de um plano. — Então, repus minha faca na bainha e comecei a caminhar até Mystic. Montei no animal e, sem olhar para trás, continuei na trilha que levava ao acampamento dos ladrões. Os outros homens me seguiram e, após algum tempo, notei que Erick entrara no fim da fila, as moedas roubadas chacoalhando novamente em seu alforje. Só quando saímos daquele pedaço da estrada foi que consegui voltar a respirar livremente.

 

Era fim da manhã ao chegarmos de volta ao acampamento. Ovos fritos e biscoitos foram preparados, e eu me forcei a engoli-los só porque um dos homens que eu salvara do recrutamento — o que tinha marcas no rosto — insistiu para que eu comesse. Fink se sentou ao meu lado, cheio de perguntas sobre nossas aventuras fora do acampamento, e decepcionado porque eu não respondia a nenhuma delas. O rato estava novamente em seu ombro, olhando para o meu café da manhã.

 

— Você é da família agora — disse ele. — É isso que os homens estão falando.

 

— Eu não tenho família, garoto. — E, se tivesse, não seria formada por ladrões.

 

Fink apenas riu do que quer que estivesse passando por sua cabeça.

 

— Você disse ao rei que tinha a peste negra? Ah! Quando eu tiver a sua idade, serei igualzinho a você.

 

— Saia daqui — rosnei. — Você não vai querer ser igual a mim.

 

Ele não se convenceu e continuou a comer ao meu lado. Depois que terminei, Fink apontou para um saco de dormir perto de algumas tendas.

 

— Erick disse que, se estiver cansado, pode dormir ali. Eu devo vigiar você.

 

— Eu achei que era da família.

 

Ele deu de ombros.

 

— Erick só quer garantir que você não é o tipo de família que foge quando não tem ninguém olhando.

 

— Eu não vou fugir, Fink.

 

— Eu sei. Mas tenho de vigiá-lo mesmo assim.

 

Fiel à sua palavra, Fink se deitou no chão, virado de frente para meu saco de dormir. Depois de algum tempo, quando talvez eu parecesse adormecido, Erick se aproximou de Fink e cochichou:

 

— O que você acha dele?

 

Houve uma breve hesitação, e então Fink respondeu:

 

— Ele não é um ladrão comum, não é como nenhum de nós.

 

— Concordo. Ele não queria que Vargan visse seu rosto. Por que você acha que ele fez isso?

 

— Sei lá. Você disse que ele se abriria mais comigo, porque somos jovens. Mas ele não age como jovem. E não me conta nada.

 

— Ele deve ter visto muita coisa na vida e aprendeu a guardar seus segredos. Mas você tinha razão: ele é um bom ladrão. O que significa que deve ter segredos muito interessantes. Fique de olho nele até que eu descubra o que ele realmente quer. Acho que ele não dá a mínima para o tesouro que está naquela caverna.

 

Na verdade, eu me importava bastante. A maior parte da riqueza de Carthya estava guardada ali. Eu deixaria os piratas me matarem antes de lhes dizer onde ela ficava.

 

Havia um plano alternativo. Antes de deixar Drylliad, eu pedira a Kerwyn que ordenasse que um número maior de soldados guardasse a caverna. Assim, se eu falhasse, garantiria que ninguém se aproximaria do tesouro de Carthya. Mas, se tudo corresse bem, meu plano estaria completo muito antes de as coisas chegarem a ponto de eu ter de revelar sua localização.

 

Finalmente adormeci, sentindo um vazio no peito, um lembrete de que, desde a noite do funeral, nada tinha dado certo para mim.

 

Sons de aplausos e gritos de torcida me acordaram pouco depois, naquela tarde. Eu me sentei e afastei o cabelo dos olhos.

 

— O que está havendo? — perguntei a Fink.

 

Ele estava de pé sobre uma rocha e, se inclinando sobre um galho de árvore, tentava enxergar algo atrás de mim.

 

— Começou um jogo de Bandeira Rainha. Quer assistir?

 

Havia um sério risco de Fink se desfazer em uma poça de decepção se eu dissesse não, então, depois de me espreguiçar lentamente, fiquei de pé e fomos até o campo, onde vários homens estavam jogando.

 

Bandeira Rainha é um jogo para dois times, cada um tentando capturar a bandeira do outro, ou sua “Rainha”, que fica atrás do seu campo. Os jogadores lutam pelo controle de uma bola de couro cheia de grãos, trigo ou arroz. A bola pode ser chutada, carregada ou lançada na área do outro time, mas só com a posse dela um jogador pode entrar na área do adversário e roubar a Rainha para vencer o jogo. Os jogos de Bandeira Rainha são fisicamente muito vigorosos, frequentemente premiam seus jogadores com várias contusões e são sempre muito divertidos.

 

Conforme nos aproximávamos do campo, vi Erick jogar a bola para alguém, que foi imediatamente derrubado no chão. Ele acenou para nós e logo depois tropeçou em um jogador adversário que tentava abrir caminho para um colega de time. Alguns dos jogadores tinham ido conosco à casa de Harlowe na noite anterior, e todos eles me encorajavam a entrar no jogo, mas eu ainda resistia.

 

— Sage, junte-se a nós! — gritou Erick. — Precisamos de mais um jogador.

 

— Eu não sou muito bom — respondi, o que era totalmente verdadeiro. Apreciara o Bandeira Rainha quando pequeno, até perceber que os filhos dos nobres, meninos que jogavam conosco, tinham sido instruídos a deixar que meu irmão e eu vencêssemos. Darius tentara me explicar que esse era o modo de vida de um príncipe, sendo o dever dos outros garotos nos dar vantagem. Para demonstrar o que eu achava dessa “vantagem”, eu subira até o topo da capela com a bola de couro e a empalara no campanário, onde permaneceu até que meu pai mandasse um pobre pajem buscá-la. Depois daquilo, os jogos de Bandeira Rainha foram banidos do castelo. Algumas vezes jogávamos uma partida no orfanato, mas a sra. Turbeldy desencorajava os jogos porque quase sempre acabavam em briga de socos.

 

— Vá jogar — disse Fink. — Você parece estar com vontade.

 

Só um cego não veria o quanto Fink desejava entrar em campo. Gritei para Erick:

 

— Fink também vai jogar!

 

— Aí vamos ficar com um homem sobrando — disse Erick.

 

— Ele ainda mal é um garoto, quanto mais um homem — respondi. — Deixe-o jogar.

 

Apenas para não interromper o jogo, o outro time gesticulou para Fink entrar comigo.

 

— Obrigado — disse ele, claramente empolgado.

 

O jogo começou assim que tomamos posição. Fink foi imediatamente derrubado, mas sinalizou que estava bem, e os jogadores passaram por ele correndo em direção à nossa área. Eu me atirei sobre outros jogadores para impedir seu progresso, e seus companheiros me derrubaram em resposta. Um deles puxou minha camisa, revelando o ferimento feito em mim três noites antes, ao defender Nila. Nós nos encaramos, mas eu não o reconheci daquela noite, então me levantei e voltei ao jogo.

 

Depois de mais vários minutos, o outro time pediu um tempo para que todos pudessem recuperar o fôlego. Erick nos juntou em um círculo e disse:

 

— Eles estão ficando cansados. Devíamos fazer outra tentativa de roubar a Rainha deles.

 

— Nós também estamos cansados — disse o jogador ao meu lado —, e não podemos passar por todos eles.

 

— Sim, mas eles não sabem disso — eu falei. Todos me olharam, e eu olhei para Fink e então expliquei minha ideia.

 

Da próxima vez que pusemos a bola perto da área deles, em vez de ter apenas um homem forte tentando passar pelo time adversário inteiro para chegar à Rainha, todos nós corremos para passar pelo time deles, para o fundo do campo e longe da área. Todos menos um.

 

Quando estávamos longe o bastante, Erick chutou a bola de volta para Fink, que inocentemente a esperava sozinho perto da área. Ele recebeu a bola e correu com ela para dentro da área do outro time. A Rainha estava em suas mãos antes que a maioria dos nossos oponentes tivesse sequer percebido que haviam sido enganados.

 

Meus companheiros de time correram ao encontro de Fink para comemorar, e Erick chegou a carregá-lo sobre os ombros. O sorriso do garoto era tão largo que praticamente se alongava para fora de seu rosto. A certa altura, Fink me olhou. Ele ainda segurava a Rainha e a bola. Ele me saudou com a Rainha, mas manteve a bola perto do peito.

 

Eu sorri para ele, mas senti uma pontada de tristeza. Aquele lugar era tudo que ele conhecia e, apesar de todo o seu potencial, Fink já parecia acorrentado àquele mundo, onde ele não tinha absolutamente nenhuma chance de um futuro.

 

O resto da tarde foi passado com Fink me contando repetidamente cada detalhe de sua vitória contra nossos oponentes. Não importava a ele que eu tivesse estado lá vendo tudo acontecer, ou que a estratégia tivesse sido ideia minha.

 

— Você viu a cara deles quando eu peguei a Rainha? — disse ele. — Agora eles lamentam.

 

— Não o suficiente para ignorá-lo — inclinei minha cabeça na direção de alguns dos homens que passavam por ali. — E, se você não se calar, acabarão vindo aqui para lhe mostrar o quanto não lamentam.

 

Fink riu, mas ficou calado, pelo menos até que todos tivessem passado por nós.

 

Eu estava sentado em um caixote atrás das tendas, olhando para o campo onde havíamos jogado. Era difícil me concentrar com Fink falando sem parar, mas seu falatório acabou se transformando em barulho de fundo, apenas uma versão mais estridente de um pássaro piando.

 

O campo estava vazio agora. A relva fora achatada por causa dos jogos disputados ali, mas, no centro daquilo tudo, uma solitária flor silvestre chamou minha atenção. Ela era de um roxo brilhante e se mantivera de pé, enquanto outras centenas à sua volta tinham sido esmagadas. Perguntei-me se ela de alguma forma havia conseguido se livrar dos pisões, ou se, mesmo pisoteada, a flor se recusara a se deitar.

 

Depois de algum tempo, Erick veio me ver. Ele puxou um caixote para se sentar e dispensou Fink, que disse que precisava mesmo achar comida para seu rato.

 

— Estive pensando no que você fez esta manhã com o rei Vargan — ele disse.

 

Permaneci em silêncio, ainda que também pensasse nisso. Eu me sentia com sorte por meu truque ter funcionado tão bem, mas tudo se resumira a isto: sorte. E não podia esperar ter êxito junto aos piratas baseado simplesmente na sorte.

 

— O que está achando de ficar aqui, entre os meus ladrões? — perguntou Erick, mudando de assunto.

 

— Eles são a melhor coleção de mentirosos, brutamontes e criminosos que eu poderia querer como meus raptores.

 

— Acho que você queria que nós o raptássemos daquela taverna.

 

Com um leve sorriso, eu disse:

 

— Na verdade, eu esperava que os piratas tivessem me levado naquela noite. Isso me economizaria um bom tempo.

 

— Você é uma contradição, Sage. — Senti o peso de seu olhar conforme ele acrescentava: — O sujeito careca na casa do nobre soube imediatamente quem você era. Era óbvio que ele respeitava sua reputação como ladrão, ou, pelo menos, não estava feliz por vê-lo lá.

 

— Ele com certeza ficou surpreso — concordei.

 

— E por motivos que não quer compartilhar, você evidentemente não nutre sentimentos amistosos pelo rei. Por quê? Você cometeu algum crime contra ele?

 

— Não. — Ainda não, de qualquer forma.

 

— Ainda assim, nunca ouvi falar de você. Como é possível?

 

— Passei muito tempo em Carthya. Só estou aqui em Avenia porque continuar lá se tornou perigoso demais para mim.

 

— Ah. Por isso você não queria que o nobre visse seu rosto. E por isso não podia deixar o outro, o calvo, continuar vivo. — Não exatamente, mas, como Erick parecia contente com sua própria explicação, deixei que ficasse com ela. — E se eu o levar ao esconderijo dos piratas amanhã, você irá como amigo ou inimigo deles?

 

— Nenhum dos dois — respondi. — Simplesmente não há outro lugar onde eu possa fazer o que preciso.

 

— Pôr as mãos naquele tesouro? — Mais uma vez não respondi, e Erick continuou: — Escute, farei o que puder para que o aceitem, mas os piratas sempre serão um bando perigoso. Mais ainda no seu caso, porque não há história entre você e eles.

 

Desviei o olhar, entretido pela ironia dessas palavras. Erick não pareceu notar. Ele continuou:

 

— Não é tarde demais para mudar de ideia. Você acha que quer estar entre os piratas, mas percebo sua hesitação. O que quer que você queira, poderá conseguir aqui.

 

Ele falou mais ao meu coração do que imaginava. Pensei nas coisas que eu mais desejava: a liberdade de ser quem quisesse, de ir aonde tivesse vontade e viver uma vida escolhida por mim. Era verdade. Eu poderia ter tudo isso ali, longe da política e do fingimento de Drylliad. Longe dos intermináveis deveres e obrigações e até mesmo do medo e da raiva que tinham me levado tão longe. Ficar seria tão fácil.

 

— Não responda agora — disse Erick.

 

— Preciso responder — as palavras requereram certo esforço para sair. — Porque minha resposta talvez mude, e não posso correr esse risco. Vou com você amanhã.

 

— Mesmo que isso signifique nunca mais conseguir sair de lá?

 

— Mesmo assim.

 

Erick sorriu.

 

— Isso foi um teste, Sage. Apesar de, por um momento, eu julgar que você aceitaria minha oferta.

 

— Por um momento, eu também pensei que faria isso.

 

Erick me deu um tapa nas costas quando ficou de pé.

 

— Suponho que isso é o melhor que eu poderia pedir. Agora vá pegar algo para comer.

 

Em vez disso, voltei para o meu saco de dormir. Fink se aproximou e me observou por um instante antes de perguntar:

 

— Está com fome?

 

— Com certeza — respondi. — Traga-me alguma coisa. Prefiro comer sozinho.

 

Seu rosto se contorceu.

 

— Eu não sou um empregado.

 

— Claro que é. Por que eles lhe dão sapatos de trabalho, mas nada de roupas de passeio?

 

Ele arqueou os ombros, parecendo desanimado.

 

— Bem, não sou seu empregado.

 

— Nenhum dos meus serviçais está por aqui. Você vai ter de servir.

 

— Você pode fugir.

 

— Estou faminto — protestei. — Se eu resolver fugir, será depois do jantar. Agora vá.

 

Ele não ficou muito feliz, mas obedeceu e voltou alguns minutos depois com uma tigela de cozido para cada um de nós.

 

— Você cuspiu no meu? — perguntei.

 

Ele pareceu ofendido.

 

— Não.

 

— É o que eu teria feito, se você tivesse falado comigo do jeito que falei com você.

 

Ele sorriu timidamente.

 

— Bem, talvez eu tenha cuspido um pouquinho.

 

Escondi meu próprio sorriso enquanto trocava nossas tigelas.

 

Fink ficou quieto por um instante, enquanto comíamos, e então perguntou:

 

— Você acha que os homens aqui me consideram só como um empregado?

 

— Sim.

 

— E se eu fosse com você e Erick amanhã?

 

Balancei a cabeça.

 

— Se você não consegue se destacar entre os ladrões, jamais conseguirá entre os piratas.

 

Fink se empertigou.

 

— Eu seria um bom pirata. Tenho talentos que esses ladrões nem conhecem.

 

— É mesmo? Quais?

 

— Eu posso chorar quando quiser. Veja. — Quando olhei para cima, Fink já tinha um córrego de lágrimas no rosto. — Não é justo! — chorava ele. Ele literalmente chorou. — Eu posso ser jovem, mas mereço uma chance.

 

— Você é patético — eu disse, rindo.

 

Instantaneamente, Fink sorriu de novo. Ele enxugou as lágrimas com as costas da mão, deixando rastros em seu rosto sujo.

 

— Uma vez eu ganhei uma torta de carne inteirinha de uma mulher, usando esse truque.

 

— Tente isso com os piratas e eles o penduram pelo pescoço até que pare de agir feito um bebê.

 

— É sério, Sage. Eu não uso esse truque sempre, mas, quando uso, funciona.

 

— Então, que seu talento para ataques espontâneos possa lhe trazer grande glória e honra.

 

Fink sabia que eu o insultara, mas não pareceu se importar. Em vez disso, mexeu o cozido com a colher enquanto resmungava:

 

— Erick disse que, quando vocês foram a Libeth, você matou um homem. É verdade?

 

— O que quer que eu tenha feito, foi bem pior do que ele merecia — respondi baixinho.

 

Em minha mente, revi a expressão tensa no rosto de Mott enquanto eu partia. Não poder me seguir devia o estar torturando.

 

— Não pensei que você fosse capaz de fazer algo assim.

 

— Não sou.

 

E, ainda assim, era inevitável que eu precisasse destruir os piratas.

 

Fink expirou lentamente.

 

— Você quer ir até os piratas?

 

Eu o encarei.

 

— Tenho de ir. É diferente.

 

— Você parece apavorado.

 

— Todos ficam apavorado às vezes. Só os tolos não admitem isso.

 

Fomos interrompidos por Erick, que voltava para se juntar a nós. Ele se agachou perto de mim e disse:

 

— Que tal se reunir conosco em torno da fogueira, Sage? Todos querem ouvir sua história sobre nossas aventuras em Libeth.

 

Ignorei sua pergunta e fiz outra.

 

— Quando vamos até os piratas?

 

— Estive pensando sobre isso. Se eu tivesse tempo para conhecê-lo melhor...

 

— Se é de tempo que você precisa, então partirei esta noite e encontrarei outra forma de chegar até eles — eu disse, com total sinceridade. — Tempo é um luxo que não tenho.

 

Erick massageou o maxilar.

 

— Você promete contar a eles a localização da caverna? Porque, se eu o levar até lá e você se recusar a dizer, minha cabeça vai rolar junto com a sua.

 

Eu não podia prometer isso, mas com total sinceridade respondi:

 

— Farei o que for preciso para evitar que minha cabeça role. E tentarei não fazer nada que lhe cause isso.

 

Aparentemente, isso foi suficiente. Estrelas pareceram dançar nos olhos de Erick quando ele disse:

 

— Durante toda minha vida, eu sempre quis uma chance com os piratas. Mas nunca tive nada de valor para lhes oferecer. Até agora.

 

— Então, quando partimos? — perguntei.

 

Ele pensou por um instante e então se decidiu.

 

— Ao alvorecer. Quero entrar no acampamento deles quando estiverem acordando. Devlin estará em seu melhor humor a essa hora.

 

Entreguei minha tigela a Fink e peguei meu saco de dormir, arrastando-o para dentro da tenda de suprimentos mais próxima.

 

— Nesse caso, quero bastante privacidade para dormir bem. Logo amanhecerá.

 

Eu me deitei, mas não fechei os olhos. Eu dormira o suficiente durante o dia, então não foi difícil ficar acordado. A parte mais difícil foi lutar contra a vontade de fugir, de correr enquanto podia.

 

Quando tudo ficou em silêncio, finalmente decidi me arriscar a voltar até a igreja para encontrar Mott. Ele estivera certo desde o começo: meu plano era uma insanidade. O diálogo com Fink ainda me corroía por dentro. Quando chegasse a hora, eu realmente conseguiria agir para aniquilar os piratas? Eu já acabara com uma vida uma vez, em Farthenwood, sem intenção e em defesa de Imogen, e mesmo assim aquilo quase havia me destruído. Quanto mais eu me aproximava dos piratas, mais enxergava as falhas de meu plano. Portanto, precisava da ajuda de Mott se quisesse ser bem-sucedido.

 

Ergui-me sobre um cotovelo. Fink havia se deitado na entrada da tenda, como meu sentinela, mas aquela não seria a minha saída. Ergui um canto da tenda e silenciosamente rolei por baixo dela. O que eu não esperava era colidir com outro ladrão, que se sentou e me agarrou pelo colarinho.

 

— Aonde pensa que vai? — rosnou ele.

 

— Preciso ir... — respondi, pronto para começar minha história habitual sobre ter herdado de minha mãe a bexiga do tamanho de uma ervilha.

 

Mas ele não estava interessado. Empurrou-me de volta para o chão e ergueu a lateral da tenda.

 

— Entre aí até Erick vir buscá-lo. Acorde-me de novo e ele não terá ninguém vivo para levar embora.

 

As palavras dele não estavam particularmente a meu favor, então rolei de volta para dentro da tenda. Era certo que, independentemente da direção por onde tentasse escapar, haveria alguém esperando por mim.

 

Amaldiçoei e chutei um dos esteios da tenda, o que assustou Fink. Eu disse a ele para voltar a dormir e parar de me amolar, e então me sentei com as costas apoiadas no esteio. Parecia que eu não poderia encontrar Mott essa noite. Eu iria sozinho até os piratas.

 

Eu ainda estava sentado e apoiado no esteio quando Erick veio me buscar, bem cedo, na manhã seguinte.

 

— Já acordado? — Acordado e ainda furioso. Eu nem olhei para ele. — Ouvi dizer que você tentou escapar a noite passada.

 

— Todos podem andar por aí. Por que não eu?

 

— Porque você ainda não é um de nós.

 

— Então não vamos até os piratas.

 

— Por que não?

 

Então, eu o encarei.

 

— Se você não confia em mim, como vai convencer os piratas de que devem confiar?

 

O rosto de Erick ficou vermelho.

 

— Talvez eu não deva confiar em você — ele fez um gesto com o braço, e um homem com uma longa cicatriz no lado direito do rosto entrou na tenda. Fechei os olhos por um instante, certo de que, se prestasse atenção, seria capaz de ouvir os demônios rindo da nova peça que haviam pregado em mim. Era o homem que segurara a tocha na noite em que eu lutara para socorrer Nila, e ele com certeza me reconhecera. Relutantemente, eu me levantei para olhá-lo. Seu ombro estava visivelmente enfaixado, o que me deu certo prazer. Então fora ali que eu o atingira.

 

— Fendon voltou para cá na noite passada — disse Erick. — Um dos homens com quem jogamos Bandeira Rainha achou você meio suspeito, então pediu que Fendon viesse dar uma olhada. Fendon disse que o cavalo que você monta lhe pareceu conhecido. E acha que você também parece.

 

Fendon veio confiante em minha direção. Antes que eu pudesse impedi-lo, ele ergueu minha camisa e mostrou o corte em minha barriga a Erick.

 

— É o garoto de quem lhe falei. Foi aí que o apunhalei.

 

— Apunhalou? — bufei. — Você não conseguia controlar sua espada para fazer algo além de me arranhar.

 

— Você se esqueceu de me contar que havia atacado membros da minha família — acusou Erick.

 

Calmamente, pus a mão sobre minha faca.

 

— Você se esqueceu de perguntar.

 

Fendon recuou e me golpeou no queixo. Eu tombei, agarrando sua camisa enquanto caía e o puxando para baixo comigo. Ele caiu sobre o ombro ferido e grunhiu de dor. Então, puxei minha faca e a encostei na garganta dele.

 

— Talvez você devesse lhe perguntar por que eles assassinaram uma mulher inocente e quase mataram a filhinha dela.

 

Erick arregalou os olhos.

 

— Eles fizeram o quê?

 

— Faz muito tempo que você não participa daquelas incursões a Carthya — então, me inclinei na direção de Fendon. — E, se você participar de mais alguma, vou encontrá-lo.

 

Erick me agarrou pelos ombros e me puxou de cima do ladrão, colocando um pé sobre o peito dele, para que não viesse atrás de mim. Quando Fendon fez sinal de que havia se acalmado, Erick disse a ele para se sentar. Ele obedeceu, mas com olhar feroz e os punhos fechados com força.

 

— Nós temos regras aqui! — disse Erick. — Somos ladrões, não assassinos.

 

— Não foi isso que ele fez com aquele homem, na casa do nobre na noite passada? — perguntou Fendon, apontando o dedo curto e grosso para mim.

 

— Se aquele homem tivesse escapado, teria chamado outros para nos capturarem — disse Erick. — Sage salvou todos nós duas vezes, e, além disso, conseguiu um bom lucro. Mas o que você fez é imperdoável.

 

— Não vai acontecer novamente. — O tom emburrado de Fendon sugeria que ele não ligaria a mínima se acontecesse de novo. Então ele se dirigiu a mim: — Você é um de nós agora?

 

— Um verme com cérebro de ervilha como você? — perguntei. — Não, nunca. Erick e eu estamos partindo hoje.

 

Os lábios de Fendon se curvaram.

 

— Estarei esperando aqui quando voltarem. Temos contas a acertar.

 

— Pode esperar sentado. Não vou voltar — eu disse, e saí da tenda.

 

Fiquei quieto enquanto concluíamos nossos preparativos para a viagem, mesmo Erick perguntando sobre minha participação no ataque. Eu lhe contei o mínimo possível e não disse nada sobre Nila. Surpreendeu-me descobrir que ele estava quase tão incomodado com o evento quanto eu.

 

— Os piratas têm um código sobre mulheres e crianças — ele explicou. — Eles não as tocam, não se forem inocentes. Deveria ser o código dos ladrões também.

 

— Talvez esse código me proteja — afirmei. — Ainda conto como criança?

 

Erick inclinou a cabeça.

 

— Você não conta como inocente.

 

Fink me trouxe uma porção extra de desjejum logo depois.

 

— Não porque eu seja um empregado — fez questão de dizer, ao me entregar a tigela —, mas porque somos amigos, certo?

 

— Você cuspiu aqui?

 

— Não.

 

— Então somos.

 

Quando chegou o momento de partir, pouco depois, Fink fez um apelo de última hora, pedindo para ir conosco. Ele não derramou lágrimas, então desconfiei de que já tivesse usado esse truque com Erick.

 

— Você só iria atrapalhar — disse Erick.

 

— Eu posso ajudar — protestou Fink, mas Erick balançou negativamente a cabeça.

 

— Erick não terá tempo de cuidar de você — comentei. — Ele terá trabalho suficiente cuidando de mim o tempo todo, para garantir que eu não fuja.

 

Erick suspirou e então notou meu sorriso.

 

— Tudo bem, você pode vir — ele finalmente disse a Fink. — Mas lembre-se de que é novo demais para ser pirata, portanto estará lá apenas como meu aprendiz. E vai ficar de olho em Sage sempre que eu não estiver por perto. — Então ele veio até mim, enquanto desamarrava o cavalo: — Não pense que me enganou para levá-lo, a escolha foi minha. É útil tê-lo por perto.

 

Eu ri de leve e montei Mystic.

 

— Aqui está — disse Erick, me entregando uma espada. — Você fez por merecer.

 

A espada era barata e com o peso mal distribuído. Ainda que eu fosse apenas um ladrão, eu não aceitaria aquilo e a devolvi.

 

— Esta não é a minha espada, Erick.

 

— Mas é boa o bastante para você.

 

Bufei.

 

— Não mesmo.

 

Ele tentou novamente.

 

— Pegue a espada.

 

— Eu quero a que estava comigo.

 

— Por que aquela?

 

— As pedras no punho combinam com os meus olhos.

 

— Pegue esta, ou não terá nenhuma.

 

Quando ficou claro que eu não a aceitaria, Erick franziu a testa e esporeou seu cavalo, com a espada rejeitada ainda em seu poder, os nós dos dedos brancos de tensão.

 

Incitei Mystic a ir em frente também, mas virei o animal na direção da tenda onde eles ainda guardavam minha espada. Em posição de ataque, usei minha faca para abrir o tecido da barraca, ameacei com a lâmina o ladrão assustado ali dentro e peguei minha espada de cima da mesa.

 

Quando saí novamente, Erick esperava por mim.

 

— Você é incorrigível — ele disse.

 

— Mais do que você imagina. — Prendi a espada e sua bainha ao meu cinto e então disse: — Vamos?

 

Erick continuou me encarando.

 

— Acho que posso odiá-lo antes disso tudo terminar.

 

— Mas ainda não odeia, e devo ter batido algum tipo de recorde com isso.

 

Para minha surpresa, Erick riu. Em poucos minutos havíamos deixado o acampamento dos ladrões para trás e cavalgávamos em direção aos piratas. Ele mal podia conter sua ansiedade.

 

— Conte-me sobre os piratas — eu disse. — Diga-me o que devo esperar.

 

— Quem sabe o que eles vão achar de você? Você é jovem, mas eles aceitam garotos da sua idade se acharem que podem ser úteis. Devlin está com eles há quatro anos, depois de fazer um acordo para matar o jovem príncipe de Carthya. Depois ele matou o padre suspeito de ter ajudado a esconder o garoto. Em seguida, se tornou o rei dos piratas. — Ele olhou em minha direção antes de acrescentar: — Fink já lhe contou sobre o padre e posso ver que isso o abala ainda agora.

 

— Eu o conheci. — É claro que esse fato era apenas em parte o motivo de meus punhos estarem cerrados e meu coração disparado.

 

— Isso vai ser um problema? — perguntou Erick. — Porque se for...

 

— Não. Isso não será problema — inclinei a cabeça. — Como Devlin se tornou rei?

 

Erick fez um gesto vago com a mão.

 

— Qualquer pirata pode desafiar o rei para uma luta de espadas. E, se ele matar o rei na luta, será imediatamente reconhecido como o novo rei.

 

— E Devlin já foi desafiado?

 

— Claro, mas nunca perdeu. Ele é um guerreiro feroz e exige obediência estrita ao código dos piratas.

 

Eu sabia um pouco sobre o código, ou pelo menos sobre como era há muitos anos, quando os livros da biblioteca do castelo foram escritos. A maior parte do código se referia às punições obrigatórias para diversas infrações. Parecia-me estranho que um grupo dedicado a atividades criminosas para ganhar a vida tivesse uma disciplina tão rígida. Mas, no coração do código, estava a ordem das lealdades: primeiro ao rei pirata, depois aos camaradas e então ao seu país de origem, Avenia, e à sua coroa. Se isso fosse verdade, significava que eles só seguiriam o rei Vargan se lhes fosse útil. Eles poderiam atacar Carthya com ou sem as bênçãos de Avenia.

 

Erick continuou a falar enquanto minha mente divagava. Comecei a ouvi-lo novamente quando ele disse:

 

— Além disso, os piratas são como meus ladrões: desde que você seja justo, eles ficam felizes, não importa quem esteja no comando.

 

— O que vai acontecer com os ladrões, agora que você partiu?

 

— Alguém vai assumir a liderança. Quase lamento que você não tenha aceitado minha oferta e ficado, Sage. Você parece ter as qualidades de um líder.

 

Explodi em uma gargalhada.

 

— Posso lhe dar uma enorme lista de pessoas que discordariam de você. — Imaginei o que Gregor pensaria se soubesse que eu estava ali e não me acovardando em minha cama, no castelo. Isso me levou a imaginar pela centésima vez se Amarinda realmente manteria segredo sobre quem realmente estava lá, em meu lugar. Mas eu precisava afastar essas preocupações para me concentrar no que me esperava mais à frente. — Então, como é o acampamento dos piratas?

 

— Eles o chamam de Baía Tarblade, ou só Tarblade, e é um lugar muito bem estruturado. Não há estradas sinalizadas até lá, é óbvio, então a única maneira de você saber que chegou é passar bem perto. E, se fizer isso, há chances de ser capturado. Uma vez que alguém descubra o acampamento, nunca mais sairá de lá.

 

— Evidentemente — eu disse.

 

— Evidentemente — ecoou Erick.

 

— Quantos piratas vivem lá?

 

— Difícil dizer. Lá cabem cem pessoas facilmente, mas sempre há vários deles no mar, então não tenho certeza de quantos seriam no total. É provável que vejamos pelo menos cinquenta agora, talvez mais.

 

Olhei para Erick.

 

— Dizem que ninguém volta de uma visita aos piratas. Mas você voltou.

 

— Estive lá como amigo e só saí porque eles deixaram. Os forasteiros não voltam, e, se nos aceitarem como piratas, só sairemos caso permitam.

 

Isso certamente complicava as coisas.

 

— Conte-me mais sobre a Baía Tarblade — pedi.

 

Erick assentiu.

 

— Ela tem três elevações, todas visíveis do mar, mas, quando um navio está perto o suficiente para ver os piratas, eles já o viram antes. Por terra, só o nível mais alto é visível, e parece apenas um campo limpo rodeado por um denso bosque de árvores altas. É lá que o grupo se reúne. Ao pé de uma pequena colina ficam a cozinha e várias tendas. Contudo, um viajante poderia passar bem ao lado do acampamento e nem sequer notar qualquer coisa ali, a não ser que os piratas fizessem algum barulho ou chamassem atenção.

 

— Evidentemente.

 

Erick achou menos graça dessa vez.

 

— Você quer saber ou não? — Dei de ombros e ele continuou: — Há um caminho íngreme que leva da área onde eles vivem até a praia, que fica logo abaixo. Além desse caminho, só há uma parede de penhasco ao longo de quase toda a praia. Contra essa parede, ficam os lugares onde todos dormem, exceto os piratas mais velhos, que ficam no alto.

 

— É lá que dormiremos então — eu disse—, perto da praia.

 

— Você vai adorar — afirmou Erick. — Cada onda que quebra na praia é uma nota em uma canção de ninar.

 

Em seguida, ficamos em silêncio. Apesar de eu ter de admitir que me animava a ideia de me sentar perto do mar novamente, sentia-me nervoso por encontrar os piratas. Tudo com o que eu me importava dependia de meu sucesso junto a eles e, àquela altura, o fracasso parecia bem mais provável. Algumas horas mais tarde, Erick nos fez parar e apontou algo à frente. De onde estávamos, havia muito pouca evidência de que alguém vivesse ali, mas Erick anunciou, orgulhosamente:

 

— Bem-vindos a Tarblade.

 

Quando entramos na Baía Tarblade, fomos recebidos com tanta indiferença quanto eu havia esperado. Piratas vestidos quase que unicamente de preto espreitavam pelos cantos ou por sob a aba abaixada dos chapéus. Alguns deles sacaram qualquer arma que estivessem portando e vieram furtivamente em nossa direção. Um rápido olhar aos meus companheiros me mostrou que eles se sentiam tão ansiosos quanto eu. Eram muitas as possibilidades de nossa aventura dar errado.

 

Erick empunhou a espada, com a lâmina para baixo, e gesticulou para que eu fizesse o mesmo. Fink havia se apropriado da espada que eu recusara, mas, como ela era grande demais, ele estava tendo dificuldade para manejá-la com apenas uma das mãos.

 

A expressão nos rostos dos piratas iam de hostis a assassinas, com um número maior do que eu gostaria se encaixando na segunda descrição. Imaginei se Devlin estaria entre eles e como eu reagiria quando nos encontrássemos. Eu mal conseguia pensar em seu nome sem sentir uma onda de raiva me dominar.

 

Quando os piratas se aproximaram, um deles reconheceu Erick. Talvez o sujeito tivesse sido espichado muitas vezes quando criança, porque tudo nele parecia longo:a altura, o rosto, o nariz. Os olhos azul-cobalto eram muito próximos um do outro, mas pelo menos tinham escapado do alongamento, e o cabelo fino e escuro caía embaraçado, chegando quase à altura dos ombros. Quando ele nos viu, seu rosto se ampliou em um sorriso.

 

— Erick, meu amigo! Há quanto tempo!

 

— Tempo demais, Agor. Tempo demais — Erick embainhou a espada e desmontou. Fazendo um gesto em nossa direção, ele acrescentou: — Este é Fink, meu garoto de recados — notei que Fink piscou ao ouvir isso — e este é um novo membro de minha família, Sage.

 

Tentei parecer com alguém que Agor esperaria ver enquanto ele me examinava.

 

— Você é aveniano? — perguntou Agor. — Qual é a sua história?

 

— Ele é aveniano — Erick respondeu em meu lugar. — Mas sua reputação foi feita em Carthya.

 

Agor ergueu uma sobrancelha, e eu acrescentei, com uma risada:

 

— Acredite em mim; eu sou bem conhecido em Carthya.

 

Agor ponderou um pouco e então disse a Erick:

 

— Por que você está aqui?

 

— Para falar com Devlin. Tenho uma proposta para ele.

 

— Devlin só estará de volta hoje à tarde. Você pode me contar sua proposta.

 

Erick hesitou. Ele não queria que Agor ficasse com o crédito pelas nossas novidades, mas também não podia recusar um pedido direto. Finalmente, com um sorriso, ele fez a única escolha possível.

 

— Claro, meu amigo. Mas eu preferiria que conversássemos a sós.

 

— Você me deixa curioso — Agor sinalizou que eles deveriam caminhar colina abaixo, para onde ficavam as tendas. Fink e eu deslizamos de nosso cavalo com a intenção de acompanhá-los, mas Agor ergueu a mão. — Vocês dois não. Eu não os conheço ainda.

 

— Mas a ideia que ele quer lhe contar é minha — protestei.

 

— É só conversa — Erick disse calmamente. — Você e Fink esperam por mim aqui.

 

— Aqui não — Agor fez um gesto para dois homens que estavam atrás de nós. — Tranquem os dois.

 

Fiz menção de puxar minha faca, mas Erick veio rapidamente até mim e pôs a mão sobre meu braço.

 

— É só enquanto eu falo com eles. Deixe que fiquem com suas armas.

 

— Se nós decidirmos que você é confiável, você as terá de volta — disse Agor, enquanto eu relutantemente entregava minha faca e minha espada aos homens que nos cercavam.

 

— E se decidirem que não sou?

 

Agor sorriu, revelando várias falhas entre seus dentes.

 

— Nesse caso, não precisará de armas para onde você vai.

 

— Por aqui — disse um pirata de cabelo preto, usando minha própria espada para guiar Fink e a mim mais para o interior de Tarblade.

 

A prisão não ficava longe da tenda para onde Agor e Erick tinham ido conversar, mas era basicamente escavada no chão e nela havia apenas uma pequena janela com grades de ferro perto do telhado para a entrada de ar e luz. O cômodo em si era minúsculo e forrado com terra seca ou grades enferrujadas. Do lado de fora, fora colocada uma cadeira, onde o pirata de cabelo preto se sentou para nos vigiar.

 

— Quanto tempo você acha que ficaremos aqui? — perguntou Fink.

 

— Sei lá — respondi enquanto sacudia as grades da janela. Elas estavam bem firmes.

 

— Puxe o quanto quiser — ele disse. — Você não seria o primeiro a tentar fugir.

 

O homem ficou de pé, como se alguém tivesse atraído sua atenção, e subiu os degraus. A princípio, eu não consegui ouvir a conversa, até que ele disse algo sobre estarmos bem onde estávamos.

 

Então uma voz feminina disse:

 

— Agor quer que sejam tratados como convidados. Eu trouxe água para que se refresquem.

 

Ao ouvir a primeira palavra, meu coração parou gelado em meu peito, pois era uma voz que eu conhecia tão bem quanto a minha. Mas apenas segundos depois, antes que eu pudesse ao menos começar a imaginar o que aquilo significava, Imogen desceu as escadas.

 

Ela evitou meu olhar, mas claramente não estava surpresa em me ver. Claro, muita gente sabia que os piratas e eu tínhamos negócios inacabados, mas supostamente também era verdadeira a história de que uma pessoa não podia simplesmente encontrar os piratas; eles é que tinham de encontrá-la. Como Imogen tinha ido parar ali?

 

— Você pode ficar de olho nesses dois enquanto eu vou até ao banheiro? — perguntou nosso vigia. — Eles não devem criar problema.

 

— Claro — respondeu ela. Assim que o homem correu escadas acima, Imogen virou-se para nós. — Agor não quer que sejam maltratados. Então, como têm passado?

 

A pergunta era tão simples que eu quase não conseguia compreendê-la. Tudo que conseguia fazer era encarar Imogen de boca aberta. A trança no estilo que os empregados usavam estava de volta, assim como suas roupas humildes: uma camisa de musselina coberta por um vestido, com tiras que se fechavam na frente formando um laço, semelhante a um avental. No castelo, ela me dissera que partiria como chegara, mas eu não fazia ideia de como ela fora literal ao dizer aquilo.

 

— Estamos bem — disse Fink.

 

Imogen me olhou nos olhos, mas só por um instante, e então desviou o olhar. Teria ela se oferecido para nos trazer água para que eu soubesse que estava ali, ou teria vindo a contragosto, cumprindo ordens?

 

— Os piratas raramente recebem visitas — disse ela. — Por isso ficamos bastante surpresos quando vocês chegaram.

 

Fink apontou para mim.

 

— Ele tem algo para os piratas.

 

— Ah. E o que um garoto esfarrapado como ele teria de valor para oferecer a piratas avenianos?

 

Fink olhou para mim, hesitando quanto à resposta. Eu estava absorto demais nas perguntas sobre Imogen, pouco me importando com o que o garoto diria. Ela estivera em minha corte apenas cinco dias antes. Para estar aqui agora, provavelmente viera direto para Tarblade, e eu não conseguia acreditar que ela tivesse qualquer ligação com os piratas. Havia poucas pessoas no mundo em quem eu confiava completamente, e Imogen era uma delas.

 

Ela sorriu para Fink.

 

— Seu amigo é mudo, ou só está fingindo que não pode falar? Qual é o nome dele?

 

— Ah, ele fala bastante, só que a maior parte do que diz não é muito agradável. O nome dele é Sage.

 

A expressão alegre de Imogen se esvaziou quando ela olhou para mim.

 

— Mesmo? Um nome tão familiar? — uma careta se formou enquanto ela parava de fingir que era uma estranha para mim. — Esse não pode ser seu nome.

 

Os olhos de Fink passaram de Imogen para mim e novamente para ela. Claramente confuso, ele perguntou:

 

— Vocês se conhecem?

 

Recuperando-se, Imogen balançou a cabeça, negando nossa amizade tão friamente quanto eu a havia rejeitado no castelo.

 

— Uma vez conheci um menino que se parecia com ele. Mas este garoto eu não conheço de forma alguma.

 

— Exijo saber o que está acontecendo — eu disse finalmente, soando tão zangado e confuso quanto me sentia.

 

— Seu amigo tem um tom áspero na voz — disse Imogen a Fink. — Ele sempre fala assim?

 

— Sim — disse ele. — Eu avisei.

 

— Então diga a ele que não está em posição de exigir coisa nenhuma de mim — retrucou ela.

 

Fink olhou para mim como se fosse mesmo dizer aquilo, mas viu meus punhos e sabiamente decidiu não fazê-lo. Era óbvio que Imogen ainda estava abalada com a maneira como eu a mandara embora. Mas não fazia sentido ela me ignorar como vingança. Afinal, por que ela estava ali?

 

Fink disse:

 

— Eu achava que eles não deixavam garotas virarem piratas.

 

— Sou apenas uma empregada contratada — explicou Imogen. — Nós praticamente só trabalhamos na cozinha e servimos comida — então ela olhou para mim de novo. — Mas espero passar pouco tempo aqui.

 

Seria pouco, sim. Eu me certificaria disso.

 

— Você pode me explicar por que seu amigo continua me encarando? — ela perguntou a Fink. — Ele sabe o quanto está sendo rude? O quanto é óbvio?

 

Fink deu uma risadinha

 

— Talvez ele goste de você.

 

— Talvez eu ache que aqui não é lugar para você — eu disse.

 

— Como se um garoto como você se importasse comigo — ela mergulhou uma concha em um balde de água e o estendeu para Fink, que bebeu avidamente. Então pôs a concha de volta no balde e se virou para sair.

 

— Nada para mim? — perguntei-lhe.

 

Imogen franziu a testa.

 

— Não até que eu veja algum sinal de humildade em você. De agora em diante, você falará comigo educadamente, como um verdadeiro amigo, ou não falará de forma alguma. — E, como nosso vigia estava voltando a seu posto, ela se apressou em subir as escadas.

 

Houve um breve silêncio antes que Fink dissesse:

 

— Uau! Ela realmente odeia você.

 

Ignorei-o e, em vez de conversar, peguei um pequeno tamborete que estava em um canto, a fim de me erguer o suficiente para poder olhar pela janela outra vez.

 

— O que você está vendo? — perguntou Fink.

 

— Pare de falar e deixe-me pensar!

 

— É por isso que as pessoas não gostam de você — disse Fink. — Sorte sua que eu sou mais paciente.

 

Lá estava Imogen, se afastando da prisão. Ela fez uma pequena pausa, como se pudesse sentir meu olhar, e então se virou e voltou. Veio até as grades, pisando duro, segurou o balde pela alça e pela base e, sem nenhum aviso, jogou toda a água em meu rosto.

 

— Pare de ficar me encarando, seu ladrão imundo — disse ela.

 

Eu caí para trás, com a parte superior do meu corpo ensopada. Tanto Fink quanto o vigia tiveram ataques de riso.

 

— Nunca vi a garota das flores tão nervosa — disse o vigia.

 

Afastei meu cabelo do rosto.

 

— Garota das flores?

 

— Ela só está aqui há um ou dois dias, mas passa seu tempo livre colhendo flores no bosque e replantando-as no acampamento. Diz que embelezam o lugar, mas acho que só o fato de a garota estar aqui já faz isso. Você não acha?

 

Em vez de responder, pensei em avançar e tentar estrangulá-lo através das grades. Ela devia ter metade da idade dele.

 

— No começo Devlin não queria deixá-la plantar as flores aqui, mas então pensou por que não? — Eu sabia a razão, e era porque Imogen não devia estar no acampamento dos piratas. — Isso foi o máximo que eu já a vi falar até agora — continuou o vigia. — Alguma coisa em você realmente a irrita.

 

— É, ela definitivamente odeia você — concordou Fink.

 

Quando balancei a cabeça para sacudir a água que pingava pelo meu rosto, um pequeno brilho de metal no chão atraiu minha atenção. Imogen não jogara apenas água; ela havia colocado algo no balde: um grampo de cabelo. Eu o peguei disfarçadamente e deixei-o cair dentro de minha bota. Provavelmente não demoraria muito para que os piratas me soltassem, mas, se não o fizessem, Imogen tinha me dado um modo de passar pelas portas trancadas.

 

Afinal, talvez ela não me odiasse tanto assim.

 

Ficamos na cela por várias horas. Eu já quase enlouquecendo no espaço confinado e comecei a andar em círculos, feito um animal enjaulado. O que poderia estar levando tanto tempo?

 

Pelo menos tive uma confirmação de que Imogen estava do meu lado. Eu não entendia ao certo como ela soubera que eu estaria ali, mas estava furioso por ela ter se infiltrado em meus planos. Sua presença tornava tudo ainda mais complicado.

 

— Acalme-se — disse Fink, com um enorme bocejo. — Erick vai tomar conta de nós.

 

— Jamais confio em ninguém para tomar conta de mim.

 

— Bem, deveria. Foi por isso que você veio até nós, certo? Você não podia fazer isso sozinho.

 

— Sente-se — disse o vigia. — Você está me deixando nervoso.

 

Eu não estava com a menor disposição para receber ordens de alguém como ele.

 

— Por que você não procura Agor e diz a ele que trancado aqui eu não sirvo para nada?

 

— Diga-me você mesmo — afirmou Agor, descendo as escadas.

 

Eu o encarei por um instante.

 

— Agora você já sabe.

 

— Erick e eu tivemos uma longa conversa sobre você. Ele diz que você é um ladrão.

 

— Sou muitas coisas.

 

Seus olhos me avaliaram.

 

— Você sabe lutar? Sua espada era boa.

 

— É uma espada excelente — concordei. — E eu sou um ladrão muito bom.

 

— Ah — Agor pegou as chaves do vigia e destrancou a porta da cela. Ele balançou a cabeça para Fink, indicando que ele deveria ficar, mas segurou a porta para que eu saísse. — Caminhe comigo — ordenou.

 

Postei-me a seu lado assim que saímos. A manhã sonolenta havia florescido em agitadas atividades. Era difícil saber quantos piratas viviam ali, mas Gregor estivera certo em uma coisa: se os piratas e os exércitos avenianos se juntassem, meus soldados cartianos não teriam a menor chance.

 

Enquanto caminhávamos, Agor apontou as várias áreas da Baía Tarblade. Tudo era exatamente como Erick havia descrito, com a área de encontro mais acima na colina, as habitações à minha volta e os dormitórios na praia, abaixo de nós. Então, a não ser por um ou outro detalhe, eu já conhecia a disposição do local.

 

— Aonde vamos? — perguntei.

 

— Erick insiste que você sabe onde Carthya guarda seu tesouro. Mas, se tem acesso a todo esse ouro, por que vir a Tarblade? Você sabe que ficaremos com tudo para nós.

 

Sorri.

 

— Isso me trouxe até aqui, não foi?

 

— Você acha que consegue lidar com uma vida de pirata?

 

— Eu sugiro que você se pergunte se os piratas conseguem lidar comigo.

 

Agor ergueu uma sobrancelha, mas ainda parecia em dúvida.

 

— Você diz que é um bom ladrão. Quero ver com meus próprios olhos — ele apontou para a prisão. — Volte lá. Vamos ver se consegue roubar as chaves do vigia e libertar seu amigo sem que ninguém o impeça.

 

Balancei a cabeça.

 

— Fink tem o hábito de me irritar. Temo não ter nenhuma motivação para libertá-lo.

 

— Ah. E qual seria sua motivação?

 

— Fome. Deixe-me roubar alguma comida da cozinha.

 

— Fácil demais.

 

— Talvez, mas eu vou roubar comida de qualquer forma, então pelo menos isso deveria servir para alguma coisa.

 

Agor sorriu.

 

— Há um cutelo em nossa cozinha. Ele é bem vigiado, já que algumas de nossas facas têm desaparecido ultimamente. Pegue a comida que quiser, mas traga-me aquele cutelo.

 

Assenti e comecei a correr na direção da cozinha. Agor gritou atrás de mim:

 

— Seja rápido! Estou contando seu tempo.

 

Deslizei para dentro da cozinha por uma janela lateral. Era uma construção sólida e estava bem abastecida. No salão principal havia tudo que era necessário para preparar refeições para uma tripulação inteira de piratas. Levando em conta o quanto o exterior ficava bem escondido de qualquer um, o lugar era bastante impressionante.

 

Como eu esperava, Imogen estava trabalhando ali, sovando uma grande porção de massa. Mas não estava sozinha. Uma garota de cabelos escuros lavava pratos e outra, de cabelos claros, cuidava de um cozido que estava no fogo. Imogen me ouviu entrar e se virou por um instante, mas logo voltou a sovar a massa. O rosto da garota de cabelo escuro se iluminou quando entrei, mas a outra mal me notou.

 

— Agor pediu que eu lhe levasse um pouco de comida — eu disse a ninguém em particular.

 

Imogen olhou para as outras duas garotas, então jogou as mãos para cima. Se ela estava realmente irritada ou fingindo, eu não saberia dizer.

 

— Ah, tudo bem, eu pego para você — disse ela. — Venha comigo.

 

Eu a segui, descendo alguns degraus até um pequeno cômodo cheio de frutas e legumes. Assim que ela fechou a porta, eu a virei para mim e sussurrei:

 

— Diga-me por que está aqui.

 

— Eu poderia perguntar a mesma coisa. Jaron, você está louco? Eles vão descobrir quem você é.

 

— Se descobrirem, descobrirão sobre você também. Como conseguiu chegar aqui, afinal? Você sabe o que me custou estar aqui?

 

— É mais fácil para uma garota. Fui até Isel e perguntei sobre vagas de emprego para trabalhar na cozinha. Perguntei por lá até que alguém disse que os piratas estavam sempre procurando.

 

— Eles estão sempre procurando porque uma garota respeitável jamais viria até aqui.

 

— Eu sou perfeitamente respeitável e não ouse sugerir o contrário! — Imogen cuspia as palavras com a mesma raiva feroz que eu sentia. — Além do mais, eles não encostam em nós. Desde que eu faça meu trabalho e não me meta no que não é da minha conta.

 

— Mas você está se metendo no que não é da sua conta e, acredite, não está a salvo aqui. Por que você acha que eu a mandei embora de Drylliad?

 

— Isso é óbvio — ela cruzou os braços. — Porque você é arrogante, não consegue confiar em ninguém além de si próprio e é um idiota.

 

Não pude evitar um sorriso.

 

— Bem, eu não teria dito exatamente dessa forma.

 

Ela não achou muita graça.

 

— Eu vim para cá porque você não pode ficar sozinho aqui. Você precisa de ajuda, mesmo que ainda não entenda isso.

 

— Se for verdade, então não quero que essa ajuda venha de você. Você devia ter confiado na minha decisão!

 

O rosto de Imogen ficou vermelho.

 

— Você ousa falar em confiança para mim? Agradeço por ter se preocupado com minha segurança no castelo, mas o modo como agiu foi imperdoável. Por que não podia confiar em mim e me contar a verdade?

 

Infelizmente, havia um motivo muito bom para aquilo. Abaixei os olhos e disse:

 

— Porque eu precisava que você acreditasse em mim. Precisava que você fosse embora e nunca olhasse para trás.

 

Imogen ficou em silêncio e seus cílios tremeram enquanto ela pensava em como responder. Finalmente, disse:

 

— Eu acreditei, até que Amarinda e eu começamos a falar sobre a tentativa de assassinato. Conhecendo você como conheço, o resto do seu plano ficou evidente, assim como seus motivos para me mandar embora de forma tão cruel.

 

— Perdoe-me. — Ela provavelmente não conseguiria, e eu não a culparia por isso. — Todos deveriam pensar que eu ia ficar escondido.

 

— Mas qualquer um que o conheça jamais acreditaria nisso — ela fez uma pausa e leu a pergunta em meu rosto. — Você nunca foge, Jaron. Nem de Conner, nem de uma luta de espadas e certamente nunca de seu próprio castelo. Você não fugiria, então nós sabíamos que deveria estar usando isso como uma desculpa para vir até aqui.

 

Aquilo reacendeu minha raiva.

 

— Se você sabia de tudo isso, então também sabia que eu estava tentando afastá-la do perigo. E, no entanto, aqui está você, bem no meio dele! Não tem medo?

 

— Claro que sim. Mas não por mim — suas sobrancelhas se uniram. — Amarinda acha que você vai tentar impedir sozinho um ataque dos piratas. Como exatamente planeja fazer isso?

 

Fechei a boca e recusei-me a responder, principalmente porque os detalhes do plano ainda estavam um pouco vagos para mim também. Em vez disso, eu disse:

 

— Como seu rei, ordeno que vá embora daqui.

 

— Eu já estou sob ordens de alguém. Não vou sair daqui sem você.

 

— Ordens de Amarinda? — Aquilo era enfurecedor.

 

— Ela me pediu para fazer o que eu pudesse para ajudá-lo a ficar a salvo. Ela disse que você não ouviria mais ninguém, mas que talvez eu conseguisse fazê-lo partir antes que fosse tarde demais — Imogen ergueu a cabeça. — Se você me forçar a escolher a que ordens obedecer, vou escolher as dela. Porque Amarinda está certa. Você não deveria estar aqui.

 

Não há palavras para descrever a raiva que senti. Eu sabia que Amarinda e Imogen tinham se tornado amigas, mas isso parecia quase tão desleal quanto Gregor solicitando um governante.

 

Imogen estendeu a mão, mas eu lhe dei as costas. Então me ocorreu que tempo demais havia se passado desde que eu deixara Agor.

 

— Se está aqui para me ajudar, então eu preciso do cutelo para carne lá da cozinha. E, se alguém perguntar, você tem de dizer que o roubei. — Imogen revirou os olhos e então abriu a porta para sair. Agarrei-lhe o braço enquanto ela começava a ir e lhe disse: — Isto não acabou.

 

— Não — disse ela, com igual ferocidade. — Não acabou mesmo.

 

Poucos minutos depois, voltei até Agor e lhe entreguei o cutelo. Em minha outra mão, eu carregava um pão quente. Ele sorriu.

 

— Foi difícil?

 

— O cutelo foi fácil. Passar por uma de suas garotas foi um pouco mais difícil.

 

— Deixe-as em paz, ou essa será a última coisa que você fará aqui. Siga-me.

 

Agor me conduziu até uma tenda pequena e escura. Parei por um instante na entrada, vendo alguns outros piratas já amontoados no pequeno espaço. Erick estava ali também, mas ele mal me olhava. Isso não era bom sinal.

 

— Sente-se — Agor puxou uma cadeira em frente a uma pequena mesa.

 

Sentei-me. Minha mão percorreu meu cinto, de onde eu esperava que minha faca ou espada surgisse magicamente, mas é claro que nenhuma das duas estava lá. Desejei ter ficado com o cutelo, mas Agor o segurava de uma forma que me deixava desconfortável. Teria Erick falhado em convencê-los a me aceitar?

 

Agor apontou para um homem sentado diretamente à minha frente. Apesar da altura mediana, ele tinha o porte de uma rocha. Numerosas cicatrizes definiam seus anos passados como pirata e lhe davam autoridade sobre os outros homens. Em seu cabelo castanho queimado de sol havia reflexos em um tom dourado e nem de longe era tão bem aparado quanto a barba. Mas foram os olhos que mais me chamaram atenção. Eram fendas de escuridão que faziam com que ele parecesse completamente desprovido de alma.

 

— Sage — disse Agor. — Este é Devlin, nosso rei.

 

Eu o olhei fixamente, enquanto o sangue corria mais rápido por minhas veias. Ao me lembrar de tudo o que ele havia feito, emoções venenosas se avolumaram dentro de mim, e eu mal consegui manter uma expressão neutra. A única forma de salvar Carthya era vencendo os piratas, começando por Devlin. E, naquele momento, eu estava certo de que seria capaz de fazê-lo.

 

Devlin me ofereceu a mão. Ainda hesitante, eu lhe estendi a minha. Ele a pegou e então bateu meu braço com força na mesa e o segurou ali. No mesmo instante, Agor me agarrou por trás, com um braço prendendo meu pescoço e a outra mão apertando o cutelo contra minha garganta. Virei a cabeça, tentando afastar a lâmina do meu pescoço, mas isso só lhe deu mais motivo para me segurar com ainda mais força.

 

— Seu nome é Sage? — perguntou Devlin.

 

— Serão muitas perguntas? — questionei. — Se assim for, talvez você possa me dar espaço para respirar.

 

Devlin acenou com a cabeça para Agor, que afrouxou um pouco o braço, mas manteve o cutelo mais perto de mim do que eu gostaria.

 

— Você tem antebraços fortes, Sage.

 

— Eu os herdei de minha avó. Ela era uma senhora volumosa.

 

Ele sorriu com a piada, então disse:

 

— Bom saber. Do contrário eu acharia que você passou muito tempo com aquela espada pesada que trouxe para cá.

 

— Só uso a espada quando preciso perfurar alguém.

 

Dessa vez, Devlin não sorriu. Ele disse:

 

— Ouvi dizer que você ficou bravo por eu ter matado aquele padre alguns anos atrás.

 

— É verdade — meus olhos foram de Devlin para Erick, que sinalizou com as mãos que eu deveria me explicar. — Mas não tão bravo quanto eu ficaria se você me matasse agora.

 

Isso pareceu diverti-lo.

 

— Você conhecia o padre?

 

— Sim.

 

— Como?

 

— Ele me acolheu por um tempo.

 

— Ele também traiu minha confiança — Devlin observou em volta, para se assegurar de que todos estavam olhando para ele. E estavam. — Foi por isso que ele morreu. Isso o incomoda?

 

A lâmina estava afiada contra minha pele. Era difícil me concentrar no que Devlin dizia, mas resmunguei:

 

— Sim.

 

Um mapa de Carthya estava aberto sobre a mesa. Eu me mexi para tentar vê-lo melhor, mas me retraí quando a lâmina me fez um pequeno corte. Talvez Agor não estivesse prestando muita atenção. Ou talvez quisesse me lembrar do que estava em jogo.

 

— Mostre-me onde está a caverna — ordenou Devlin.

 

Olhei para longe do mapa.

 

— Não.

 

Devlin olhou para Agor.

 

— Mate-o.

 

Agor ergueu a lâmina. Eu tentei me livrar, mas, com Agor segurando meu pescoço e Devlin a minha mão, não era assim tão simples. Com a mão livre, agarrei o braço de Agor e rapidamente acrescentei:

 

— Você precisa de mim para encontrar a caverna. E eu farei isso melhor se minha cabeça ainda estiver presa ao pescoço.

 

Devlin balançou a cabeça muito sutilmente para Agor, então aumentou a força com que me segurava e disse:

 

— Erick acha que, se tiver a oportunidade, você pode tentar me matar em vingança pelo que fiz ao padre.

 

Meu coração ainda estava acelerado, mas mantive os olhos firmes nos dele enquanto respondia:

 

— É, eu posso tentar. — Era difícil não pensar no padre quando olhava Devlin.

 

Ele estendeu a mão e estapeou meu rosto.

 

— Boa resposta, jovem ladrão. Se você tivesse respondido de qualquer outra forma, eu o mataria agora mesmo por ter mentido. — Afastei o rosto de seu toque e ele recolheu a mão. Então continuou: — Demoraremos ainda alguns dias para nos preparar antes de roubar o tesouro de Carthya. Mas colocaremos as mãos nele antes que Avenia o tome para si.

 

— Eu não sabia que Avenia o queria — eu disse.

 

— Avenia pretende extorquir Carthya até que o país deixe de existir. E eu preciso de piratas em número suficiente para garantir minha parte daquele lugar primeiro. Então, seja bem-vindo à minha tripulação.

 

Ergui uma sobrancelha, desconfiado.

 

— Simples assim?

 

Os homens em torno de nós riram, inclusive Devlin.

 

— Tornar-se um pirata é simples. O problema é se você consegue permanecer pirata. Por enquanto, basta que você preste um juramento a mim.

 

Encarei Devlin.

 

— Jurar o quê, exatamente? Jurar servir-lhe ou curvar-me perante você? Não farei nenhuma das duas coisas.

 

— Sage! — O grito de Erick não foi nenhuma surpresa, a não ser pelo fato de que eu pensara que viria muito antes. Ele balançou a cabeça como se estivesse me dando um aviso.

 

Devlin apenas ergueu um canto da boca.

 

— Você tem coração de pirata, isso está claro. Quando chegar a hora, quero sua promessa de revelar a localização da caverna. E você deve jurar lealdade ao código dos piratas. De agora em diante, passará sua vida como pirata, o que significa que jamais deixará Tarblade sem a permissão do rei pirata. Jure que sempre obedecerá às ordens do rei pirata. Se não o fizer, sofrerá a mais cruel das mortes.

 

Fechei os olhos para pensar em tudo que ele estava exigindo de mim. Recusar-me a jurar lealdade sem dúvida alguma significaria morte imediata. Mas eu viera para destruir os piratas. Será que eu poderia aceitar seus termos?

 

— Dê-me sua resposta, Sage — disse Devlin.

 

— Fique quieto e deixe-me pensar — afirmei. Um momento depois, abri os olhos e assenti: — Eu juro.

 

Devlin acenou para alguém às minhas costas, mas, pelo cheiro de queimado que invadira a cabana, eu já sabia o que ocorreria a seguir. Agor baixou o cutelo, mantendo o braço em torno do meu pescoço. Devlin apertou ainda mais minha mão e dois piratas agarraram meus braços, segurando-os contra a mesa. Minha testa ficou encharcada de suor. Era bom que me prendessem com tanta firmeza, porque do contrário era bem possível que eu tentasse escapar.

 

Um pirata gordo, fedendo à fumaça, ficou entre mim e Devlin. Em suas mãos, havia um ferro de marcar, com a ponta vermelha.

 

— Fique quieto — ele disse. Comecei a objetar, mas Agor enfiou um pedaço de madeira entre meus dentes e o manteve firme enquanto o homem pressionava a ponta incandescente do ferro em meu antebraço.

 

Gritei enquanto ele queimava minha carne e tentei puxar o braço, mas eles não afrouxaram as mãos. Um segundo depois tudo acabou, e alguém imediatamente cobriu meu braço com um trapo frio.

 

Eles continuaram a me segurar até que me recuperasse o suficiente para não desmaiar. Levantei o trapo e olhei para o desenho chamuscado em minha pele, um X formado por uma serpente marinha inclinada para o nordeste e uma cobra inclinada para o noroeste: o símbolo da habilidade de um pirata para gerar terror na terra ou no mar.

 

— Congratulações — disse Devlin, finalmente soltando minha mão. — Agora você pertence aos piratas.

 

Erick foi o primeiro a me alcançar depois que saí da cabana. Ele me deu um tapa nas costas e sorriu.

 

— Você é o jovem mais imprudente que eu já conheci. Ao menos duas vezes tive a certeza de que Devlin deixaria Agor matá-lo.

 

— Eu também. — O trapo já estava quente demais para ajudar a diminuir a dor em meu braço, mas eu o mantive pressionado ali. — Eu não sabia sobre o ferro de marcar.

 

— Melhor o ferro que o cutelo. Você jurou para mim que revelaria a localização da caverna.

 

— Mas no meu tempo, não no deles.

 

Erick me fuzilou com os olhos, mas não havia mais nada que ele pudesse dizer. Ambos sabíamos que, se eu tivesse lhes dito onde ficava a caverna, não teria saído vivo daquela cabana.

 

Agor foi o próximo a surgir ao meu lado.

 

— Ninguém nunca falou com Devlin daquele jeito. Mas o mais louco é ele parecer admirar você por isso.

 

— E agora? — perguntei.

 

Agor começou a me conduzir por uma trilha.

 

— Primeiro, vamos comer. Depois, Devlin vai querer testar suas habilidades.

 

— Fink ainda está trancado. Ele também vai até aquela cabana agora? — Eu brigaria para evitar que o garoto fosse marcado.

 

Erick balançou a cabeça.

 

— Fink é jovem demais. Talvez em alguns anos.

 

— Nós o soltamos — explicou Agor. — Ele vai se juntar a nós para a refeição.

 

Minutos depois, chegamos a uma área perto da cozinha onde algumas mesas longas foram arrumadas para as refeições. Fink já estava esperando em uma delas e gesticulou para que nos uníssemos a ele. Aparentemente, já tinha ouvido sobre o que acontecera na cabana, porque, assim que me viu, levantou-se de um pulo e agarrou meu braço.

 

— Parabéns!

 

Desvencilhei-me bruscamente, arfando, porque Fink, sem querer, apertara meu braço no local próximo da queimadura. Os olhos dele se arregalaram quando viu a marca, provavelmente com admiração renovada pelo que significava tornar-se um pirata.

 

— Sim, parabéns — virei-me para ver Imogen de pé atrás de nós. Ela segurava uma panela grande, com uma concha dentro. Estava servindo cozido aos outros homens.

 

— Então, conseguiu o que queria?

 

Eu mal a olhei.

 

— Você sabe o que eu quero.

 

— E você sabe como conseguir — disse Imogen, franzindo a testa para mim e indo em frente, sem colocar nada na minha tigela.

 

Fink ganhara uma tigela cheia e sorriu para mim enquanto se sentava mais confortavelmente no banco.

 

— Ajudaria um pouco se você usasse palavras como por favor e obrigado.

 

— Então, obrigado pelo favor de não se intrometer na minha vida — afirmei, me espremendo para caber no banco.

 

A garota de cabelo escuro que eu vira mais cedo apareceu um minuto depois, com outra panela de cozido.

 

— Você é novo aqui? — perguntou ela, colocando uma porção generosa em minha tigela. — Eu sou Serena.

 

— Fique longe dele — disse Imogen, surgindo instantaneamente ao lado de Serena.

 

— Eu só estava dizendo olá.

 

— Foi sobre ele que eu lhe falei, quando ele veio até a cozinha.

 

Serena ergueu as sobrancelhas.

 

— Sim, eu sei.

 

Os avisos de Imogen só pareceram melhorar a opinião da jovem a meu respeito.

 

Inclinei a cabeça, sem saber ao certo do que Imogen me acusara, mas era óbvio que funcionara para desviar qualquer suspeita sobre nós.

 

— Ele fez aquilo antes de jurar obedecer ao código, então é perdoável — disse Serena, deixando que Imogen a levasse embora. Achei ter ouvido a garota sussurrar em seguida: — Ele é bonito. Eu não reclamaria se ele tivesse tentado isso comigo. —Então, sorri um pouco.

 

Ao meu lado, Fink abafou o riso.

 

— O que você fez?

 

— É o que eu gostaria de saber.

 

Então, para evitar novas perguntas, dediquei-me a comer.

 

Os piratas em torno de nós conversavam, comiam e riam vorazmente. Erick e eu fomos incluídos nas conversas como se fôssemos velhos amigos, apesar de Erick estar bem mais interessado em conversar com eles do que eu. Pelo menos uma vez era bom ter Fink por perto, sua tagarelice incessante preenchendo o vácuo.

 

Fiquei de olho em Imogen enquanto ela servia os piratas que pediam mais, mas me esforcei para não ser muito óbvio. Nós dois éramos novos ali, e eu já havia sido indiscreto demais quando ela fora até a cadeia. Agora, ela provavelmente estava segura, desde que todos acreditassem que sua antipatia por mim decorria de algum mau comportamento de minha parte.

 

Assim que o almoço acabou, Agor me escoltou até uma área de onde a grama havia sido removida, o que tornou o chão quase tão duro quanto pedra. Longos pregos tinham sido enfiados nas árvores, nos quais estavam penduradas várias espadas de madeira.

 

Recuei diante das espadas.

 

— Eu vim para cá como ladrão, Agor, não como lutador.

 

Agor escolheu uma espada para si.

 

— Piratas são as duas coisas. Devlin quer testar suas habilidades.

 

— Ele testou Erick?

 

— Para falar a verdade, sim — disse Erick, caminhando até nos alcançar.

 

Vários outros piratas o acompanhavam. Eu não conseguia ver a área onde havíamos feito nossa refeição, mas presumi que Imogen ficara lá para limpar tudo. Provavelmente isso era bom. Ela não iria querer ver a luta.

 

— Escolha uma espada — ordenou Agor.

 

Andei até as árvores e examinei as espadas como se fosse a primeira vez que eu as via. Talvez fosse muita bondade se referir a elas como espadas, já que eram pouco mais que grossos bastões com punhos.

 

Depois de um instante, Agor ficou impaciente e pegou uma da árvore mais próxima a mim, empurrando-a em minhas mãos.

 

— Pronto.

 

Então, ele ergueu sua espada e eu ergui a minha. Meus pés estavam em posição, mas Agor precisava ser o primeiro a atacar e, quando o fez, golpeou meu ombro com força, me desequilibrando.

 

— O que você está esperando? — perguntou ele. — Lute!

 

— Desculpe meu erro. — Esfreguei meu ombro, certo de que um hematoma já estava se formando ali. — Eu não sabia que já havíamos começado.

 

Em seguida o ataquei, mas errei completamente. Ele fez uma finta à esquerda, o que era ridículo, já que eu não estava sendo agressivo o suficiente para que tentasse me enganar, e então veio novamente pela direita. Bloqueei a maior parte do golpe, mas ainda assim ele me acertou no braço.

 

Ao nosso redor, a audiência, no início bastante indiferente, rapidamente mudou e começou a gargalhar e a gritar para que me fosse dada uma lição. Agor sentiu-se encorajado, pois parecia apreciar a ideia de usar meu fraco desempenho para exibir suas habilidades. Ele acertava três ou quatro golpes contra mim a cada um que eu tentava contra ele. Às vezes eu acertava um alvo, mas fracamente; ele batia com força e logo eu estava perdendo o entusiasmo pela brincadeira.

 

Por fim, ele me acertou nas costas com tanta força que expulsei o ar de meus pulmões. Deixei cair a espada.

 

— Chega.

 

— Você não é muito bom — disse Agor.

 

— Eu nunca disse que era.

 

Agor me estudou por um instante.

 

— Acho que esperávamos mais. O último garoto a se juntar aos piratas tem mais ou menos sua idade e é incrível.

 

Tive certeza de que ele estava falando de Roden, que provavelmente logo retornaria de sua estada no mar. Devolvi a espada à árvore e então disse:

 

— E agora?

 

— Se você for esperto, vai ficar por aqui e praticar um pouco com a espada.

 

— E se eu não for?

 

Agor deu de ombros, claramente decepcionado.

 

— Admito que estou aliviado por você ser ruim em esgrima. Do jeito que ameaçou Devlin, pensei que talvez estivesse falando sério. — E eu estava. Cada palavra. Agor aproximou-se mais e continuou: — Você deve saber que cuido de Devlin. E alguém cuida de mim. E assim por diante. Mas ninguém está cuidando de você aqui, então, se tentar cumprir aquela ameaça, será a última coisa que fará acima do chão. Entendeu?

 

Entendi perfeitamente. Se eu fosse atrás de Devlin, eu o seguiria para dentro da minha cova.

 

Agor me deixou ali, levando a maioria dos piratas consigo. Enquanto eles iam embora, vi Imogen carregando algumas flores em direção a uma árvore. Ela balançou a cabeça para mim, em negativa, e eu lhe dei as costas. Recusava permitir que ela pensasse que eu precisava de sua ajuda. Quando olhei novamente, um momento depois, ela havia sumido.

 

Erick e Fink também tinham ficado para trás comigo.

 

— Você foi péssimo — disse Fink.

 

— Obrigado.

 

Era uma pena que eu tivesse sido premiado com tantos hematomas, porque do contrário meu desempenho daria uma história engraçada um dia.

 

— E quanto aos meus ladrões, em Carthya, na outra noite? — perguntou Erick. — Você lutou contra eles.

 

Eu sorri.

 

— Obviamente eles são piores do que eu.

 

— Você deve tê-los apanhado desprevenidos. Porque uma pessoa teria praticamente de se esforçar para ser tão ruim quanto você hoje.

 

Não só praticamente.

 

— E como você se saiu contra Agor? — perguntei-lhe.

 

Erick deu de ombros.

 

— Ele é bom com a espada, mas não excelente. Eu me defendi bem.

 

— Você deveria me ensinar alguns de seus truques.

 

Erick riu.

 

— Não há truque, Sage. Você só precisa de mais disciplina. E muita prática.

 

— A prática eu consigo, mas ninguém nunca foi muito bem-sucedido em me disciplinar.

 

Erick começou a se explicar, mas desistiu. Ele puxou o relógio de Harlowe para ver as horas e o enfiou de volta no bolso.

 

— Você devia ter mais cuidado com isso — eu disse.

 

— Não é tão valioso quanto eu pensava — retrucou Erick. — Está cheio de arranhões e batidas. Da próxima vez que eu for à cidade, vou mandar derretê-lo e vender o ouro.

 

Não se eu pudesse evitar.

 

Passamos o resto da tarde explorando o acampamento. Perto da área da cozinha, um riacho de água doce caía do penhasco até a praia. Erick disse que eu estava começando a cheirar mal e sugeriu que considerasse a ideia de me lavar ali. Eu lhe falei que tivera muito trabalho para cheirar tão mal assim e não queria arruinar isso com um banho. Não cheguei a mencionar que as cicatrizes nas minhas costas ficariam expostas se eu tomasse um banho, o que no mínimo atrairia perguntas sobre meu passado e, na pior das hipóteses, revelaria quem eu era.

 

Uma vez na praia, encontrei um lugar confortável, de frente para o mar, e me acomodei. Depois de um tempo, Erick e até Fink me deixaram em paz, procurando algo melhor para fazer, e eu me contentei em ficar sentado ali apenas olhando o mar. A paisagem me acalmava, coisa de que eu realmente tinha necessidade. Estava ficando cada vez mais difícil lutar contra a sensação de que algo aconteceria em breve. Algo que eu não seria capaz de controlar.

 

Em algum momento quase ao final da tarde, eu andava sem rumo pela parte elevada da Baía de Tarblade, esperando encontrar Imogen para tentar, mais uma vez, convencê-la a sair dali o mais rápido possível. Mas um navio que se aproximava do porto atraiu minha atenção. Ele parecia diferente das escunas dos piratas que já estavam atracadas, mas, pelos comentários dos homens próximos a mim, eles haviam reconhecido vários dos sujeitos a bordo. Obviamente, aquele navio tinha sido capturado.

 

Caminhei até o topo da colina para ter uma vista melhor. Mas, da distância que eu estava e sem uma luneta, foi difícil discernir um rosto em particular entre a multidão de piratas. Era verdade que os piratas tinham o irritante hábito de vestir preto e que a aparência deles era bastante esfarrapada, mas essas eram características quase únicas entre muitos avenianos.

 

Agor veio até onde eu estava e parou ao meu lado, suspirando satisfeito.

 

— Aquele navio parece rentável, não acha?

 

— Onde está a tripulação? — perguntei-lhe.

 

— Provavelmente morta — respondeu Agor, como se não desse a mínima. — Se não agora, logo todos estarão, certo? — ele riu, e então pareceu frustrado quando não achei sua piada a coisa mais engraçada do mundo. E depois acrescentou zangado: — Devlin só fez de você um pirata porque é ganacioso. Se fosse por mim, você nunca deixaria a prisão vivo. Apesar das histórias que Erick nos contou, duvido que tenha coragem para encarar essa vida.

 

— Não é preciso muita coragem para atacar o que é obviamente um navio comercial — observei, apontando para o navio no porto. Os piratas em terra gritaram e deram vivas quando os homens a bordo despejaram um corpo na praia. Ele estava se mexendo, mas parecia ser o único tripulante vivo. — O que vai acontecer com ele? — perguntei a Agor.

 

Agor olhou para mim como se eu tivesse musgo no lugar de cérebro.

 

— Ninguém deixa Tarblade.

 

Devlin viu o navio se aproximando e também veio para o topo da colina. Ficou parado perto de nós, observando enquanto o tripulante era arrastado por toda a encosta íngreme, até ser jogado como uma trouxa na frente do rei dos piratas. Então, finalmente consegui dar uma boa olhada nele.

 

Era um homem que deveria estar na casa dos 50 anos, com um tufo de cabelos grisalhos escapando do chapéu de abas largas que o identificava como um dos oficiais do navio. Havia restos de sangue em seu nariz e um olho estava inchado e roxo. E, apesar da corajosa tentativa de olhar de forma desafiadora para Devlin, ele estava claramente aterrorizado.

 

— Quem é este? — perguntou Devlin.

 

— Meu nome é Swifty Tilagon — respondeu o homem. — O navegador da embarcação.

 

Devlin se abaixou e o golpeou no rosto.

 

— Quando eu quiser ouvir você, falarei com você.

 

Agor se adiantou carregando papéis que lhe foram entregues por um dos homens que ajudaram a capturar o navio.

 

— A carga não passa de pedras.

 

— Não são pedras — corrigiu Tilagon. — Transporto metais para uma mina no sul. Cobre e chumbo e tudo o mais que encontrarmos.

 

— Transporta para onde?

 

— Para Isel, onde tudo será vendido. Por favor, me soltem. Aquela carga representa vários meses de trabalho. Centenas de homens estão à espera de seu salário.

 

Suspirei silenciosamente. Ele tinha mesmo que contar aos piratas que sua carga era tão valiosa?

 

Devlin fez um gesto indicando seus homens.

 

— Eles estão esperando o salário também. Acredito que ninguém em Isel precise desses metais mais do que nós — então, ele acenou com a cabeça para Agor. — Mate esse homem. Depois, mande descarregar o navio.

 

O homem gritou, e eu me adiantei, abrindo caminho por entre a multidão que já havia se formado em torno de Devlin.

 

— Você deveria ter mais visão, Devlin. — Seu olhar se fixou em mim, desafiando-me a sugerir algo mais inteligente do que a ordem dele. Eu só podia esperar que fosse: — Você tem a oportunidade de roubar este homem duas vezes. Envie alguns piratas a Isel com ele amanhã, homens disfarçados como tripulação do navio. Ele venderá as pedras e então seus homens pegarão o pagamento. Ah, depois, é claro, podem matá-lo. Mas antes você precisa dele para vender os metais sem levantar suspeitas. E, se enviar piratas em número suficiente, poderá lutar para manter a carga do navio também. Você ficará com o dinheiro e com as pedras.

 

Com seu apetite voraz por ganância estimulado, Devlin sorriu. Apontou para um pirata louro de cabelos encaracolados que não podia ser muito mais velho do que eu.

 

— Amarre esse homem. Voltaremos para pegá-lo pela manhã.

 

— Por que não colocá-lo na prisão?

 

— Eu já tenho alguns homens lá para que acalmem seu gênio ruim durante a noite. Amarre este homem a uma árvore. Somos muitos; ele não tentará fugir.

 

Não havia mais nada que eu pudesse fazer. Tilagon cuspiu nas minhas botas quando passei por ele para descer a encosta e disse:

 

— Não foi o bastante matar meus homens. Agora você vai roubar nossos investidores também. De todos esses abutres miseráveis, você é o pior.

 

— Eu salvei a sua vida — falei.

 

— Só por mais um dia.

 

— Então, use-o bem. Um dia a mais é bastante valioso por aqui.

 

— Usarei meu tempo pedindo que os demônios o amaldiçoem.

 

— Entre na fila — respondi friamente. — Você acha que é o primeiro?

 

Então me dirigi até as mesas para jantar com os outros piratas. Erick me alcançou no caminho.

 

— Foi uma boa ideia. Pelo menos, Devlin ficou satisfeito com você.

 

— Eu não dou a menor importância para o que Devlin pensa de mim.

 

Erick olhou ao redor para ver se alguém tinha escutado.

 

— Pois deveria. Goste ou não dele, Devlin é o rei por aqui. — Bufei com desprezo, mas Erick agarrou meu braço para me obrigar a olhar para ele. — Quem é você para menosprezá-lo? Você não é ninguém, Sage. E não vai chegar a lugar nenhum com essa atitude.

 

— Bom conselho — retruquei. Erick tinha razão. Minha atitude desafiadora não iria me ajudar a lidar com Devlin.

 

O jantar foi parecido com o almoço: barulhento, confuso e desagradável. Procurei Imogen, mas só a vi de longe, carregando de volta para a cozinha os pratos que outras garotas juntavam pela tenda.

 

Várias horas se passaram até que todos começassem a se acomodar para dormir. Eu dormiria com os piratas comuns, próximo ao mar, debaixo de uma espécie de barraca presa à parede do penhasco. A parede íngreme de rocha garantia certa proteção, mas os outros três lados ficavam abertos. Havia uma segunda tenda montada na encosta, acima de onde eu dormiria. Era um pouco menos exposta à brisa do mar e garantia mais privacidade, por isso os piratas de hierarquia superior a usavam. Acima dela, havia uma cabana com espaço para apenas uma pessoa, que eu não sabia para o que servia. Devlin, Agor e outros piratas mais velhos ocupavam tendas particulares no topo do penhasco.

 

Fugir dali foi muito simples. Os piratas dormiam da mesma forma que viviam, e a tenda era barulhenta e desconfortável. O problema depois foi evitar a praia e voltar ao topo da colina, já que, diretamente atrás de nós, o penhasco lamacento era muito íngreme para uma escalada segura à noite. Degraus tinham sido esculpidos em um trecho menos íngrime, mas havia vigias ali. Então, só me restou alcançar o topo escalando pela enconsta, fazendo o possivel para evitar os deslizamentos de pedras.

 

Fiquei surpreso ao ver que Tarblade não era mais bem guardada junto à praia quanto na colina. Havia poucos vigias cuidando da baía, mas era como se tivessem certeza de que ninguém seria tão tolo a ponto de atacá-los. Então, não esperavam encrenca. Ainda assim, me movi com precaução enquanto seguia na direção do navegador capturado.

 

Tilagon estava dormindo contra a árvore em que fora amarrado. Sua cabeça, tombada para frente, quase lhe tocava o peito. Perguntei-me como ele conseguia dormir naquela posição, já que eu enfrentava dificuldades para dormir mesmo quando deitado na cama mais confortável. Pelo menos, lhe deram um cobertor. Devlin queria garantir que Tilagon estivesse saudável o bastante para viajar pela manhã, antes de matá-lo.

 

O nó que atava suas mãos estava quase desfeito antes que ele finalmente acordasse. Sussurrei que, se ele fizesse algum som, nós dois estaríamos mortos, e ele rapidamente fechou a boca. Quando soltei as cordas, livrei os braços do homem, que, depois de tanto tempo na mesma posição, engasgou de dor ao tentar se mexer.

 

— Você? — sussurrou espantado quando finalmente conseguiu se levantar e me reconheceu. — Veio para me matar?

 

— Não fale besteiras. E cale a boca.

 

— Sendo assim, sinto muito pelo que disse antes.

 

— Ouça-me com muito cuidado — afirmei. — Seu navio e sua carga estão perdidos para os piratas. Você deve partir a pé.

 

Tilagon concordou. Ele já estava massageando as pernas com as mãos, preparando-se para correr.

 

Olhei em volta para ter certeza de que ainda estávamos sozinhos, então disse:

 

— Depois que sair daqui, faça o que puder para não ser encontrado. Fique longe das estradas e tavernas e se esconda em qualquer lugar onde eles não pensem em procurá-lo. Se os piratas o pegarem, não poderei ajudá-lo de novo.

 

Ele colocou a mão no meu braço.

 

— Diga-me seu nome para que eu possa agradecer-lhe corretamente.

 

— Agradeça-me ficando vivo. Dê-me o seu chapéu. — Tilagon obedeceu, então eu disse: — É hora de partir. Agora.

 

Ele concordou mais uma vez, pegou minha mão e a apertou com firmeza, em seguida deu a volta e correu, sem olhar para trás.

 

Usei o grosso cobertor de lã para cobrir um pedaço de madeira na esperança de que se parecesse com um corpo contra a árvore e coloquei no topo o chapéu do homem. De perto ficava claro que era um truque, mas, a distância, torci para que o vigia acreditasse que Tilagon ainda estava amarrado ali. Menos de dez minutos depois, passei pela cama de Erick ao entrar no quarto de dormir. O relógio de Harlowe estava debaixo da cama, e fiquei tentado a pegá-lo e escondê-lo.

 

Mas eu não podia. Ainda não. No entanto, silenciosamente, jurei pegá-lo de volta antes de tudo estar terminado.

 

Na manhã seguinte, fui um dos primeiros a chegar para o café da manhã. A refeição foi interrompida por um grupo de piratas que, do lado de fora da tenda de refeições, fazia algazarra em torno de algo que eu não conseguia enxergar. Corri até lá preocupado, talvez Tilagon tivesse sido recapturado. Fink rodeava o grupo, mas, baixo demais, nada conseguia enxergar.

 

— O que está acontecendo? — perguntei a ele.

 

— Acabaram de pegar o garoto responsável por amarrar o velho que foi capturado ontem. Devlin disse que ele não deve ter feito nós fortes, porque o homem fugiu enquanto dormíamos.

 

Abri caminho. O garoto estava encolhido no chão, chorando e tentando proteger o rosto com os braços enquanto Devlin o espancava com um galho.

 

— Pare com isso — avancei e segurei o braço de Devlin. — Você não sabe se ele fez algo errado. Talvez Tilagon fosse bom em desatar nós.

 

— Se ele os fizesse direito, ninguém conseguiria escapar.

 

— Muitas pessoas conseguem escapar de nós.

 

Devlin tirou a minha mão de seu braço.

 

— Como quem?

 

Era mais inteligente me afastar, mas, pelo brilho nos olhos de Devlin, imaginei que já fosse tarde demais.

 

— Eu posso.

 

Devlin se esqueceu do garoto ainda no chão. Um sorriso malvado cruzou-lhe o rosto quando olhou para mim.

 

— Quero ver. Amarrem-no.

 

— O quê? — gritei. Alguns piratas me pegaram, mas consegui me soltar. — Eu não fiz nada errado. — Pelo menos não nas últimas horas.

 

— Ninguém o está acusando — Devlin disse, enquanto os piratas me seguravam novamente. — Você contou vantagem, e eu quero testá-lo.

 

Apesar de meus esforços, eles amarraram minhas mãos para trás e as ataram com vários nós antes que eu me desse conta do que estavam fazendo. Não era um grande problema. Mantive as mãos bem abertas enquanto me amarravam e já havia encontrado uma ponta da corda.

 

Aprendi a desatar nós assim que entrei para o orfanato da sra. Turbeldy, graças às brincadeiras dos rapazes mais velhos, que gostavam de nos amarrar no sótão e dizer a ela que não estávamos com fome na hora do jantar. Uma noite, após descobrir que conseguia desfazer os nós com dedos ágeis e muita paciência, vi que a hora da minha vingança havia chegado. Na manhã seguinte, os rapazes acordaram amarrados em sua cama, enquanto o restante de nós foi tomar o café da manhã. As brincadeiras pararam, e minhas habilidades com nós só melhoraram desde então.

 

Uma inclinação de cabeça de Devlin bastou para que seus homens me arrastassem para os estábulos. Enterrei minhas botas no caminho de terra para retardar os que me puxavam, mas outros dois se juntaram a eles e ergueram minhas pernas. Levaram-me para o curral e me atiraram diante de um cocho de água. Eu balancei a cabeça para Devlin.

 

— Não se atreva. Eu nunca disse...

 

— Erga a mão quando precisa de ar. Se conseguir.

 

E ele me mergulhou de cara no cocho e ainda apoiou o pé nas minhas costas, me empurrando ainda mais fundo. Eu nem me preocupei em lutar. Não adiantaria nada e me custaria ar. Então, arqueei as costas para manter a corda tão seca quanto possível. Cada gota de água que ela absorvesse faria com que se tornasse mais espesa, apertando ainda mais os nós.

 

Meus dedos trabalharam tão rápido quanto conseguiram, decifrando cada volta de cada nó e fazendo o caminho por meio dos padrões intrincados. Eu estava progredindo, mas muito lentamente e com sérias dificuldades de me concentrar. Como não tinha respirado fundo antes de Devlin me empurrar, meus pulmões já doíam.

 

Encontrei o nó seguinte, mas ele estava acima dos meus pulsos e não conseguia manobrar os braços naquele ângulo. Seria impossível desatá-lo enquanto estivesse submerso.

 

Eu não podia mais controlar a necessidade de respirar. Eu precisava respirar. O fim da minha vida estaria bem próximo se eu não me libertasse.

 

Contra minha vontade, meus pulmões finalmente explodiram e minha boca ficou cheia de água. Meu corpo estremeceu, instintivamente buscando ar. Em seguida, Devlin tirou o pé de minhas costas e me puxou do cocho, atirando-me contra uma árvore. Continuei a tossir água enquanto procurava ar.

 

Devlin se abaixou para me encarar.

 

— É melhor você aprender rápido que, se interferir no castigo de alguém, esse castigo passará a ser seu. Especialmente quando você conta vantagem e é arrogante.

 

Sem dizer nada, segurei uma de suas mãos e depositei em sua palma aberta a corda com a qual fora amarrado.

 

— Obrigado pelo aviso — eu disse, ainda sem fôlego. — Mas eu nunca conto vantagem.

 

Ele me amaldiçoou e jogou a corda de volta no meu colo. Em seguida, deu as costas e deixou o curral, seguido pelos outros homens. Guardei a corda em meu bolso, apenas para o caso de precisar dela no futuro. Quando me senti melhor, levantei-me e caminhei em direção à praia.

 

No caminho, passei por Fink, que começou a murmurar alguma coisa, mas, com um grunhido, eu disse:

 

— Não, não vou lhe ensinar como fiz aquilo. Você precisa abandonar esta vida.

 

Fink apenas concordou:

 

— Sim, eu sei.

 

Carthya era um país sem acesso ao mar, um dos destinos mais cruéis de minha vida. É verdade que temos um clima agradável e uma das melhores terras em recursos naturais de todos os nossos países vizinhos.

 

Mas não possuímos oceano.

 

A praia dos piratas era cheia de pedras que queimavam pés descalços quando o sol estava a pino. Mas até uma praia superaquecida era melhor do que nada. Eu poderia ficar sentado ali o dia todo, observando a agitação das ondas suaves, seguindo-as com os olhos até alcançarem a linha do horizonte onde o mar encontrava o céu. Em algum lugar do outro lado, estavam os países estrangeiros sobre os quais eu pouco sabia. Talvez um dia pudesse viajar, explorando novas terras e aprendendo seus costumes. Na verdade, eu planejara algo assim depois que a sra. Turbeldy me chutara para fora do orfanato pela última vez. Sabia que meus pais odiariam minha ideia, se a descobrissem, o que de alguma forma a tornava mais atraente.

 

Por um longo tempo, observei um bando de gaivotas rodeando sobre a água, envolvido numa dança hipnotizante de voo. No meu bolso, havia um pedaço de pão que restara do café da manhã. Eu o despedacei pela areia e esperei. Algumas logo pousaram e lutaram pela comida. Eu lhes dei mais, trazendo-as mais para perto de mim a cada vez. Então, peguei um pedaço de pão entre os dedos e o estendi para um pássaro que parecia um pouco mais corajoso do que os outros. Ele balançava a cabeça para frente e para trás, o olhar saltando do pão para o meu rosto, indeciso sobre se valia a pena me enfrentar por aquela migalha.

 

— Vamos — sussurrei. — Você quer isto. Aproveite a chance.

 

Ele se lançou para pegar o pão, mas alçou voo de repente, quando uma pedra aterrissou na areia perto dele. O resto do bando também se dispersou.

 

Atrás de mim, Devlin resmungou:

 

— Pragas miseráveis. Não são nada além de faxineiros. — Como se os piratas fossem uma forma de vida superior. Mas fechei a boca e não disse nada, olhando novamente para o mar. Parecia inevitável que conversássemos. Ele se aproximou de mim e continuou: — Você parecia perdido em pensamentos.

 

Eu me ajeitei antes de responder:

 

— Eu estava.

 

Devlin carregava minha espada, deixando-a cair ao meu lado na areia. Então se sentou, inclinando o corpo para trás e se apoiando nos cotovelos.

 

Olhei para a espada por um momento, então perguntei:

 

— Onde está minha faca?

 

— Vou ficar com ela — ele disse. — É minha agora.

 

— Tome cuidado. É melhor estar em boas condições quando eu a pegar de volta.

 

Ele riu, então disse:

 

— Sim. Agor acredita que você deve ser um ladrão muito bom, porque suas habilidades como espadachim são sombrias.

 

Dei de ombros.

 

— Sombrias, nesse contexto, é um pouco ofensivo. Prefiro dizer que perdi por pouco e para um adversário habilidoso.

 

— Não, eu não acho que tenha sido isso. — Sorri para ele, esperando outra piada sobre minha falta de habilidades, mas a expressão de Devlin ficou muito séria. — A razão pela qual o aceitei tão facilmente como pirata é porque Erick nos contou histórias sobre você. Como você lutou contra o rei Vargan, ou o enganou, que seja. Que atacou um grupo dos ladrões dele em Carthya, defendendo uma mulher inocente e sua filha. Você sofreu um corte, mas vários deles voltaram seriamente feridos. Como isso aconteceu, Sage?

 

— Talvez eu os tenha apanhado de surpresa.

 

— Sim, talvez. Mas Erick contou que, na casa do nobre, um homem disse que era melhor entregar-lhe qualquer coisa que quisesse, porque você daria um jeito de conseguir. Erick disse que depois você matou o tal homem. — Ele esperou que eu respondesse, mas dessa vez apenas o encarei. — Posso apostar que é um ótimo espadachim. E acho que permitiu que Agor vencesse só para não chamar atenção. Minha única pergunta é por que você fez isso.

 

Ergui a manga para que ele pudesse ver os vários machucados daquela disputa.

 

— Você acha que eu o deixaria me ferir se tivesse o poder de pará-lo?

 

— Sim, eu acho — os lábios de Devlin se curvaram enquanto ele me avaliava. — Acho que você é mais do que um simples ladrão. E, embora haja uma caverna cheia de tesouros cartianos, penso que você pretende pegá-lo para si. Acima de tudo, penso que é um mentiroso compulsivo.

 

Minha risada foi tensa, mas sincera.

 

— Dificilmente. Na verdade, considero-me um honesto compulsivo. É que parece que todo mundo está compelido a não me compreender.

 

— E então aquela luta de espadas com Agor foi um mal-entendido? — Devlin apontou para a espada. — Pegue-a. Quero vê-la em sua mão.

 

Depois de bufar alto, eu me levantei e ergui a espada. Não fiz esforço nenhum para fingir que não conseguia segurá-la corretamente, ou que era muito pesada para mim. Ele teria percebido uma encenação.

 

Devlin também se levantou. Em seguida, abriu os braços para mostrar que não carregava arma nenhuma.

 

— Estive pensando naquele sacerdote. De onde você disse que o conhecia?

 

— Ele cuidou de mim uma vez — respondi.

 

— Ah. O nome dele era Fontelaine. Você sabia disso? — balancei a cabeça. — Fontelaine era bastante conhecido, não só em Dichell, mas em toda a região norte de Avenia. Ele tomou conta de muitos meninos de rua por anos, mais do que poderia ser contado, e nunca pediu ou esperou nenhuma recompensa.

 

Eu me perguntei, brevemente, se meu pai teria recompensado Fontelaine de alguma forma para que ele ficasse comigo. Provavelmente não. Ele se preocuparia, pensando que o dinheiro poderia justificar as suspeitas do sacerdote de que eu era mais do que um menino de rua.

 

— Dei a ele a melhor recompensa que ele poderia esperar — acrescentou Devlin. — O martírio. Ele precisava morrer por uma causa. Você sabe por que eu matei aquele velho?

 

Apertei o punho de minha espada. Eu tinha vários motivos que justificassem usá-la contra esse homem mau.

 

Devlin respondeu à própria pergunta:

 

— Ele acreditava que o jovem príncipe de Carthya estava escondido em sua igreja, um garoto que, sabe-se lá como, escapara de um navio que atacamos.

 

— Você deve ter se sentido muito estúpido quando ele escapou — eu disse. — Quanto tempo demorou para perceber que tinha sido enganado por um menino de 10 anos?

 

Seu olho direito estremeceu antes de continuar:

 

— Pensamos que o garoto tinha afundado com o navio, até que Fontelaine enviou um mensageiro para encontrar o irmão do príncipe. A familia real vasculhava Avenia em busca de notícias sobre o garoto desaparecido. Eventualmente, essa história acabou nos alcançando. Quando cheguei à igreja, o rapaz já havia fugido. O sacerdote me garantiu que o garoto que estivera hospedado ali não era o príncipe. Mas o estrago já estava feito. Ele deveria ter contado aos piratas assim que suspeitou. E assim ter permitido que nós determinássemos a identidade do menino.

 

— Mas, se não era o príncipe, você matou o sacerdote por nada — eu disse.

 

— Fontelaine morreu como um exemplo do que acontece aos avenianos que faltam com respeito aos piratas! — falou Devlin. — Se você o conhecia, então pode adivinhar como ele morreu: sem implorar por sua vida, sem lágrimas, sem barganhas. Infelizmente, tive de fazer do padre um exemplo, então sua morte teve de ser lenta e dolorosa.

 

— E quanto ao príncipe, agora que ele está de volta?

 

Os olhos dele escureceram, e vi neles uma sede de sangue. Meu sangue.

 

— Não se preocupe com o rei Jaron. Nós vamos pegá-lo também, muito em breve.

 

A raiva me dominou, e eu não estava lidando bem com ela. Se eu iria agir, aquele era o momento. Mas, ainda assim, algo me deteve. O suor nas palmas de minhas mãos tornava difícil manejar a espada. E eu a troquei para a mão direita.

 

Devlin sorriu.

 

— Talvez você saiba usar essa arma. Então, por que não me atinge? Mais cedo, você disse que poderia fazê-lo, para vingar o assassinato do sacerdote.

 

O calor percorreu-me o corpo enquanto eu encarava Devlin. Ele estava me incitando a uma luta que ele claramente desejava. Então, por que não avancei? Afinal não tinha sido exatamente para confrontar Devlin que eu fora até os piratas? Aquele homem merecia qualquer coisa ruim, qualquer mal que eu pudesse lhe causar. E, ainda assim, eu me senti mais fraco do que nunca, incapaz de fazer algo que poderia salvar o meu país.

 

Devlin se agachou e recolheu um punhado de pedras da praia. Ele jogou uma na minha direção, acertando-me no ombro.

 

— Talvez Agor tenha razão — disse ele, jogando outra pedra no meu peito. — Você não é nenhum espadachim. Só é um ladrão porque não tem capacidade de ser algo melhor. Desamarrar nós é um bom truque, mas não colocará o pão na sua boca nem na minha — então ele lançou outra pedra com bastante força, acertando o corte em minha barriga. — Você acha que é melhor do que o resto de nós? Melhor do que eu? Agora lute! — e jogou o resto das pedras em mim. Eu me abaixei para desviar de uma que vinha direto no meu rosto, mas ela me acertou na bochecha.

 

Ergui minha espada, finalmente pronto para atacar. Em resposta, ele plantou os pés no chão, o rosto tenso de raiva. Fitei seus olhos negros e repentinamente percebi que não havia nada além disso. Nenhuma humanidade, nem amor, nem alma. Exceto pela raiva, Devlin era completamente vazio. E aquela se parecia com a raiva que eu sentira por muito tempo, o que me horrorizou.

 

Desde a noite em que fui atacado, eu permanecia imerso em um estado de raiva total, absolutamente determinado de que não havia escolha, a não ser destruir os piratas. Mas, se aquela escolha significava que eu teria de me tornar parecido com Devlin, eu teria de encontrar outro meio para vencer. Não era como se eu não conseguisse acertá-lo. É que eu não faria isso. Recusava-me a ficar como ele.

 

Em silêncio, abaixei minha espada e comecei a me afastar, mas Devlin se adiantou e segurou meu braço, virando-me e puxando para junto dele. Perdi o equilíbrio na areia fofa e lhe dei um encontrão desajeitado.

 

— É melhor que aquela caverna esteja cheia de tesouros, porque, se não estiver, transformá-lo em um pirata foi o maior erro da minha vida! Você não tem valor nenhum para nós! Eu acabei de lhe dar todas as chances do mundo para que usasse essa espada contra mim, e você nem sequer teve a coragem de tentar. Nem mesmo contra um homem desarmado.

 

Com isso, ele me atirou na praia e começou a se afastar.

 

— Você não estava desarmado — murmurei, levantando-me novamente.

 

— O quê? — Devlin se virou e viu em minha mão uma pequena faca antes escondida dentro das calças dele, a qual peguei quando lhe dera um encontrão. Seu rosto ficou vermelho.

 

— Você esperava que eu tentasse atacá-lo com a minha espada, assim poderia usar a faca contra mim — disse eu, jogando a arma na areia perto dele. — Boa tentativa, mas sou um pirata agora. Sou um de vocês.

 

— Se você fosse realmente um pirata, jamais me devolveria essa faca, garoto — disse Devlin.

 

— Quero a faca que me pertence — retruquei. — Não esse brinquedo vagabundo que você está usando — e comecei a me afastar.

 

— Sage! — gritou Devlin.

 

Eu me virei a tempo de vê-lo atirar a faca em mim. Instintivamente, levantei minha espada, usando a parte plana para rebater a arma. Ela bateu e voou até um caminho de grama alta. Devlin olhou bem nos meus olhos e sorriu sombriamente.

 

— Então, você consegue usar a espada. Mas não ganhou ainda. Para que oportunidade está guardando seus talentos, Sage?

 

Hesitei por um momento, antes de dizer:

 

— Sou melhor do que você, Devlin. E estou guardando esta espada até que chegue o tempo em que todos entendam isso também.

 

Devlin permitiu que me afastasse, mas eu sabia que não demoraria muito até que fosse obrigado a pagar por aquelas palavras.

 

No caminho de volta para o acampamento, vi Imogen perto do bosque. Ela estava ajoelhada, plantando uma fileira de margaridas, e fez uma careta quando olhou para cima e me viu.

 

— Você parece aborrecido — ela disse. — O que aconteceu lá?

 

— O tempo está se esgotando. Para nós dois. — Ela acenou para que eu me aproximasse, e eu suspirei. Teria preferido ficar sozinho até me acalmar, mas não poderia recusar aquele pedido. Especialmente ali. — Alguém pode nos ver! — eu disse, olhando ao redor. Havia piratas por perto, mas não perto demais.

 

— Então, venha até aqui.

 

Eu a segui até uma pequena colina, onde estaríamos protegidos dos olhares curiosos pelas árvores e pela inclinação do terreno. Ela puxou uma batata crua de um bolso do avental e então fez um gesto para que eu me sentasse a seu lado. E eu obedeci.

 

— Queimadura de ferro em brasa pode doer por dias.

 

Fiz uma careta.

 

— Uma batata?

 

— Shhhhh. Mostre-me seu braço. — Eu estiquei o braço marcado. Imogen pegou o dorso de minha mão e virou meu pulso, assim ela conseguia ver melhor a queimadura. — Dói?

 

— Estou bem.

 

— Claro que você está. Eles poderiam quebrar seus ossos ao meio e você também me diria que está bem. — Então ela apoiou meu braço sobre seu colo e, cortando a batata em tiras, foi depositando uma a uma sobre a queimadura. Quase instantaneamente, as tiras começaram a puxar o calor do braço. Quando terminou, Imogen colocou o resto da batata e a faca no chão e, com uma das mãos sob meu pulso e a outra abaixo do meu cotovelo, tentou manter as fatias equilibradas.

 

Ficamos sentados ali em silêncio por vários minutos. Eu não queria abrir a boca e acabar com a trégua delicada que se estabelecera entre nós. E também não queria tornar as coisas piores ou finalmente convencê-la a partir. E me senti envergonhado ao perceber que uma parte de mim não queria que ela fosse embora. Era reconfortante ter alguém do meu lado naquele lugar miserável.

 

— Eu vi você e Devlin na praia — disse ela finalmente. — Ele estava zombando de você.

 

— Era um teste.

 

— Você ainda está aqui, então deve ter passado.

 

— Eu não fiz o teste. Duvido que encontre alguma forma de passar nos testes dele.

 

Imogen começou a reorganizar as tiras de batata, colocando as mais frias sobre a queimadura e descartando as outras no chão.

 

— Pensei que você fosse lutar com ele. Era óbvio, mesmo de onde eu estava, que você queria.

 

— Sim, eu queria.

 

Na verdade, eu ainda desejava.

 

— Você não pode vencer os piratas, Jaron.

 

— Eu sei.

 

— O que significa que nossa única escolha é escapar deste lugar. Podemos fugir daqui hoje à noite, você e eu. Não há vergonha nisso.

 

— Fugir? — irritado, joguei longe as tiras de batata que estavam no meu braço, levantei-me e peguei minha espada. — Diga-me por que você sabia que eu tinha outra razão para deixar o castelo na semana passada. Você se lembra disso?

 

Uma única lágrima rolou pelo rosto de Imogen, antes que ela respondesse:

 

— Eu sei. Você tinha um plano e por isso deixou o castelo. Você não fugiria simplesmente. Você não foge. Nem mesmo quando é a coisa mais lógica a fazer.

 

— Isso mesmo. Eu não fujo — rosnei. — Nunca — e comecei a me afastar.

 

— Jaron, há mais uma coisa. — Antes de eu me virar, ela se levantou e completou: — Ouvi uma conversa de Devlin. Roden está vindo. Ele é esperado a qualquer hora de amanhã.

 

Suspirei e fechei os olhos antes de falar:

 

— Ele sabe que você está aqui?

 

Imogen balançou a cabeça.

 

— Também ouvi dizer que Roden foi voluntário para ir a Carthya naquela noite. Não porque se preocupasse com a mensagem que supostamente deveria lhe entregar, mas porque desejava que você soubesse sobre ele e quem ele é agora. Você não entende o quanto ele o odeia?

 

Eu entendia isso muito bem. O suficiente para sentir meu peito pesado desde a última vez em que me encontrara com Roden. Inclinei a cabeça.

 

— Você estava pensando em não me dizer isso?

 

— Eu esperava que os piratas o rejeitassem e o mandassem embora, ou que você visse a tolice que estava fazendo e partisse antes de eu ser obrigada a contar. — Esquecendo o risco de alguém nos ver, ela se aproximou de mim: — Você não entende? Ele vai reconhecê-lo, Jaron. Pior ainda, ele saberá que é você assim que ouvir o nome Sage. De todos os nomes do mundo, Jaron, você não podia ter pensado em algum melhor? Não podia ter escolhido um nome que não dissesse imediatamente a ele que você estava aqui? — Baixei os olhos, e Imogen respirou ofegante. — Oh — sussurrou ela. — Esse é o plano. Você quer que ele o encontre! Por favor, diga-me que estou errada.

 

Suspirei.

 

— Você não está.

 

Isso a deixou furiosa.

 

— Você esqueceu que ele quase o matou na semana passada? E que você deixou a segurança de sua casa, de sua guarda real e de seus amigos e veio para cá sozinho? Você acredita mesmo que vai conseguir vencer os piratas assim? Você não sabe mesmo contra o que está lutando? — Cerrei os dentes e desviei meu olhar, mas ela continuou: — Sei que você é forte e que consegue usar uma espada com habilidade, mas o rumor que corre pelo acampamento é o de que Roden ainda não largou a espada nem por um minuto desde a noite em que você foi coroado. E quando Roden voltar, não será apenas contra ele que você vai ter de lutar. Será contra todos os piratas. Eles ficarão do lado de Roden, e você não terá nenhuma chance de vencer. Nenhuma — Imogen colocou as mãos em meu rosto, obrigando-me a olhar para ela. — Por favor, Jaron. Por favor, ouça. Você precisa aceitar o que estou dizendo. Não importa quanta raiva sinta dos piratas ou de Roden, amanhã você vai perder e eles irão machucá-lo.

 

— Você tem tão pouca fé em mim, Imogen?

 

— A fé não pode proteger ninguém da realidade, Jaron. — Lágrimas encheram-lhe os olhos quando ela disse: — Sei que você nunca foge, nunca, de nada. Em qualquer outra ocasião, eu poderia admirar sua coragem. Mas, pelo menos desta vez, você deve fugir. Faça isso por mim. Fique vivo por mim.

 

— É isso que você realmente quer que eu seja? Uma pessoa que se esconde pelo resto da vida? Uma presa indefesa?

 

— Quero que seja alguém que escolheu viver! É com isso que me preocupo; quero você vivo, Jaron! E, se voltarmos para Carthya pela manhã, você poderá preparar seus exércitos contra um ataque dos piratas.

 

— Sim, e a votação para a escolha de um governante será no dia seguinte! Não terei nenhum tipo de controle sobre meus exércitos.

 

Gregor não enfrentaria muita resistência ao tentar persuadir os regentes a torná-lo governante. Em função de nossa atual ameaça de guerra, os regentes fariam qualquer coisa que ele quisesse, obedecendo-lhe cegamente.

 

Tropecei, de repente tonto e ciente de que meu coração estava batendo contra a parede do meu peito.

 

Desta vez, sei quem está no comando. Essa tinha sido a mensagem de Roden no dia em que me atacara no castelo. Por mais que o rei aveniano quisesse tomar meu país ou que os piratas quisessem minha riqueza, eles não tinham nenhum controle sobre mim... ainda. Mas havia alguém ao alcance do meu poder.

 

Faça as perguntas certas tinham sido as palavras de Conner. Desde que eu deixara a masmorra, havia algo me incomodando sobre a nossa conversa. Mas, por mais vezes que eu repassasse tais palavras em minha mente, não conseguia entender que perguntas deveriam ser feitas. Agora eu sabia.

 

Imogen tocou meu braço.

 

— Jaron, você está bem?

 

— Não — resmunguei. Como se a ameaça estivesse parada bem diante de mim, minha mão se fechou em torno de minha espada. Naquele momento, eu soube o que não tinha entendido no calabouço de Conner.

 

E caí de joelhos.

 

Quando eu perguntara a Conner onde ele tinha conseguido o óleo de dervanis, Gregor colocara a mão no punho de sua espada.

 

— Por que ele faria isso? — murmurei. — Era apenas uma pergunta. Por que Gregor faria menção de pegar a espada?

 

Imogen balançou a cabeça.

 

— Do que você está falando?

 

Mott me contara que, um mês antes da morte de minha família, meu pai suspeitara dos regentes e começou a exigir que fossem revistados antes que atravessassem as muralhas do castelo. Ainda assim, Conner conseguiu entrar carregando consigo o óleo de dervanis dos piratas.

 

Faça as perguntas certas.

 

A pergunta não era onde ele conseguira o veneno, mas como havia entrado no castelo com ele.

 

Conner precisara de ajuda para matar minha família. Havia um segundo traidor em meu castelo.

 

Talvez Conner nem tenha percebido que recebeu ajuda. Os piratas poderiam facilmente ter conspirado com alguém mais para que Conner pudesse passar pela segurança rigorosa.

 

Apenas um homem teria a autoridade para permitir que um regente entrasse no castelo sem ser revistado. Era o mesmo que permitira que o rei de Avenia passasse pelos meus portões sem identificar seus assessores como piratas.

 

Gregor tocara em sua espada no calabouço porque naquele momento pensou que eu já soubesse ser ele o segundo traidor. Assim, esperou precisar da espada. Contra mim.

 

Gregor sabia que eu seria atacado nos jardins. Sabia que a mensagem de Roden tinha a intenção de me amedrontar, e isso lhe permitiu fazer uma cena para os regentes, dizendo que eu precisava de um governante.

 

Onde quer que Gregor quisesse que eu me escondesse, eu poderia apostar que os piratas também sabiam que lugar era esse.

 

Os piratas não se importaram em matar Conner, cuja ligação com eles já tinha sido exposta. Mas Gregor precisava dele morto para esconder o quanto se envolvera com o assassinato da minha família.

 

Em dois dias, Gregor seria declarado governante de Carthya. E tudo o que estava entre ele e o trono era Tobias, que naquele momento fingia ser eu. Tobias corria grande perigo. E o que seria de Amarinda, que estava presa no meio dos dois?

 

Olhei para Imogen, que parecia meio apavorada com a minha estranha reação.

 

— O que está acontecendo? — perguntou ela.

 

Depois de ficar em pé, eu disse:

 

— É hora de ir. Encontre-me nos estábulos esta noite. Uma hora após a última luz se apagar no acampamento.

 

— Haverá vigias patrulhando o acampamento.

 

— Você pode evitá-los?

 

— Sim. — Imogen fez uma pausa e em seguida enxugou uma lágrima. — Obrigada, Jaron.

 

Eu assenti. Em seguida, fechei os olhos, tentando ordenar tudo o que teria de acontecer. Quando os abri novamente, Imogen já tinha partido.

 

Fink já estava acomodado quando cheguei para o jantar. Erick sentou-se do outro lado da mesa, distante de nós. Fink se afastou para abrir lugar para mim. No entanto, depois de me cumprimentar sem entusiasmo, ele empurrou sua tigela para frente e descansou a cabeça nas mãos.

 

— Com sono? — perguntei. — Você não cochilou à tarde?

 

— Shhhhh — O tom irritado de Fink me pegou de surpresa. Pensei que já tivéssemos estabelecido como regra em nossa amizade que eu era o ranzinza. — Sente-se direito ou vão acertar uma concha do guisado em sua cabeça. — Ele me encarou, mas obedeceu. Então, perguntei:

 

— O que está acontecendo?

 

Fink espiou em volta para ver se os piratas próximos não estavam nos ouvindo. Como se a prioridade deles fosse bisbilhotar a conversa de um garoto tão jovem que nem era considerado pirata. Depois, inclinou-se para mim e sussurrou:

 

— Quero ir para casa.

 

— Que casa? Voltar para os ladrões?

 

— Talvez. Não gosto daqui.

 

— Erick vai ficar — eu disse. — Duvido que ele vá voltar um dia.

 

— Eu sei — então ele deu de ombros. — E você?

 

Se eu não voltasse para casa, a farsa de Tobias seria revelada. Gregor descontaria sua raiva nele e provavelmente solidificaria seu poder sobre ambos, Amarinda e meu reino, antes que eu pudesse retornar e expor a traição dele. Mas, se eu voltasse agora, os piratas levariam a guerra para Carthya e destruiriam tudo.

 

— Eu não sei o que devo fazer — murmurei.

 

Ficamos em silêncio quando Serena, a garota de cabelos escuros que me servira em outras refeições, se aproximou de nós. Ela colocou a mão no meu ombro e sussurrou:

 

— Você precisa de uma concha extra. Está muito magro.

 

Eu sorri e apreciei a porção a mais. Mesmo que não estivesse particularmente com fome, planejava comer a tigela inteira. Eu também estava me achando magro demais.

 

— Olhe isto — Fink apontou, por baixo da mesa, para Imogen, cujos olhos se estreitaram quando ela olhou para Serena. — Não acho que ela odeia você, afinal. Acho que ela está brava porque a outra menina acabou de lhe dar comida a mais. Está com ciúmes.

 

Encontrei os olhos de Imogen e sutilmente balancei a cabeça para ela, que entendeu a mensagem e se afastou de mim.

 

De seu lugar em outra mesa, Devlin se levantou e sua voz trovejou:

 

— Desejo algum tipo de diversão. Deveríamos ter uma luta de espadas. — Todos pararam de falar de repente. Ninguém ali considerava divertido levantar-se contra a espada de Devlin. Ele sacou sua espada e começou a apontá-la aleatoriamente para um homem e depois outro. — Eu deveria lutar com você? Ou você? — Foquei meus olhos na tigela diante de mim e meu queixo enrijeceu. Devlin continuou: — Vamos lá, nenhum voluntário? — Então seus olhos pousaram em mim como o brilho do sol. — Sage, você vai lutar.

 

Aquilo não foi um pedido e não havia chance de eu vencer. Ou perderia a vida para Devlin, ou para os homens dele, depois que eu o derrotasse. Meu estômago se agitou.

 

— Podemos pelo menos comer enquanto o guisado está quente? — perguntei.

 

— Eu já comi, e uma refeição não vai fazer falta para você.

 

Porque eu não viveria o bastante para digeri-la.

 

De qualquer modo, dei outra colherada. Devlin continuou me observando até que deixou seu lugar na mesa e começou a andar em minha direção. Finalmente, eu me forcei a ficar em pé. Minha única certeza era que, de um jeito ou de outro, eu perderia.

 

Então Devlin gritou de raiva e, pela primeira vez, olhei para cima. Guisado quente escorria-lhe pelo peito e braço direito.

 

— Perdoe-me, senhor. Não vi que estava vindo — Imogen se curvou diante de Devlin. O caldeirão de guisado estava vazio em suas mãos.

 

— Serva desastrada! — Devlin levantou a mão para bater em Imogen e lentamente a abaixou. Ele olhou para ela, depois para mim, então blasfemou e saiu pisando firme.

 

Voltei a me sentar, embora minha mão estivesse tão firme em torno do punho de minha espada que foi preciso certo esforço para soltá-lo e pegar de novo minha colher. Com a ajuda silenciosa de outras garotas, Imogen limpou o que conseguiu da bagunça que tinha feito e saiu correndo. Os homens murmuravam entre si, mas nenhum deles queria que sua voz se destacasse. Diante de mim, Fink parecia quase congelado.

 

— Fink — sussurrei. — Coma.

 

— Ele teria matado você agora.

 

— Coma.

 

Mas ele só empurrou sua tigela e deitou a cabeça na mesa. Finalmente, tomei uma decisão com a qual estivera lutando a noite toda. Mergulhei a colher na minha tigela e sussurrei:

 

— Uma hora após a última luz se apagar hoje à noite, encontre-me nos estábulos.

 

— Por quê?

 

— Só esteja lá. E certifique-se de que ninguém siga você.

 

 

Fink já havia partido quando me levantei cerca de meia hora depois que as luzes do acampamento se apagaram. Ele disse que ia ao banheiro mais de uma hora antes e não voltou. Ninguém percebeu.

 

Levantei-me em silêncio e, em seguida, arrumei meu cobertor, de modo a parecer que eu ainda estava na cama. Se os demônios estivessem misericordiosos naquela noite, ninguém acordaria naquele quarto. Especialmente o dono da cama na direção da qual eu caminhava na ponta dos pés.

 

Erick estava dormindo perto da extremidade da cabana, em uma localização desfavorável, o primeiro a receber a brisa fresca do mar. Por isso, ele estava enrolado em seu cobertor, com a cabeça parcialmente coberta.

 

Todos os piratas guardavam seus objetos pessoais em baús ou caixas simples, colocados sob sua cama. No entando, como era muito novo no acampamento, Erick colocava pouquíssimas coisas sob a cama, apenas o que seria desconfortável para dormir com ele. As botas e também a bainha vazia de sua espada estavam ali. Imaginei que ele dormisse com ela. A maioria dos homens fazia isso. Eu me abaixei com cuidado e vasculhei o chão, até encontrar o objeto que eu queria.

 

Peguei o relógio de bolso de Harlowe, cobrindo-o com a mão para diminuir o som de seu tique-taque, e o coloquei sob minha camisa. Movimentando-me em silênio, saí da cabana. O céu estava escuro e nublado, o que era uma bênção, pois permitia que eu me escondesse dos piratas que, escalados como vigias, faziam a ronda noturna. Caminhei na direção da cabana onde Devlin dormia e fiquei parado do lado de fora por um ou dois minutos, enquanto decidia o que fazer. Só de ficar parado ali, eu já sabia que não seria abençoado com o quarto de um roncador, como acontecera com Conner. Devlin tinha o sono leve e, na escuridão de sua tenda, eu disporia de apenas poucos minutos para encontrar minha faca. A ideia não era boa.

 

Mas queria muito minha faca de volta. Ou melhor, não queria que Devlin ficasse com ela.

 

Avancei pela porta aberta, mas eu só tinha colocado um pé dentro da cabana antes de sair novamente. Havia alguém por perto. Virei-me, ouvindo o ruído de areia atrás de mim. Imogen apareceu das sombras com um dedo pressionado nos lábios.

 

Ela colocou a boca em meu ouvido e sussurrou:

 

— O que está fazendo?

 

— Você precisa de uma arma — respondi. — Por precaução.

 

— Você estará lá para me proteger. Além do mais, tenho isso — então, ela se inclinou em minha direção e tirou uma faca de cozinha do bolso.

 

Balancei a cabeça em aprovação, mas olhei de volta para a porta de Devlin.

 

— Espere por mim — comecei a andar, mas Imogen tocou meu braço e balançou a cabeça.

 

— Não, Jaron — ela disse. — Por favor, vamos.

 

Não era o que eu queria ouvir, mas ela estava certa. Seria tolice arriscar tanto para reaver minha faca. Já se afastando, ela me pediu que a acompanhasse. Finalmente desisti e a segui. Mantendo-nos nas sombras, corremos para os estábulos.

 

— Você sabe quantos piratas estão de guarda esta noite? — perguntei.

 

— Não tenho certeza. Tudo que sei é que um deles passa perto de nosso alojamento a cada dez minutos mais ou menos.

 

Foi o que notei na noite em que ajudei Tilagon a fugir. Não tínhamos muito tempo.

 

Nós nos agachamos atrás de alguns arbustos perto dos estábulos. Um vigia estava vindo de lá, olhando os cavalos.

 

— Vamos ter que correr assim que ele sair daqui — peguei o relógio de bolso de Harlowe de dentro da minha camisa e o estendi para Imogen.

 

— O que é isso? — ela perguntou. Mesmo depois de reconhecer o objeto, ela ainda balançava a cabeça.

 

— Esconda-o — sussurrei. — É muito importante.

 

Imogen se virou de costas para mim e, quando voltou a me encarar, o relógio já não estava em sua mão.

 

— Por que... — começou ela, mas eu pedi para que se calasse ao ver o vigia se afastar do portão e vir mancando em nossa direção. Conforme ele se aproximava, reconheci o garoto de cabelos enrolados no qual Devlin batera com a vara no dia anterior. No orfanato, a sra. Turbeldy batera com uma vara em mim, e reconheci a dor no jeito como ele andava.

 

Estiquei minha mão para a faca de Imogen, mas, antes que ela me entregasse a arma, o garoto parou bem perto de nós.

 

— Quem quer que esteja se escondendo, saia agora! — ele disse.

 

Coloquei a mão no ombro de Imogen, abaixando-a enquanto me levantava. Felizmente, ele não tinha visto nós dois. O garoto segurava a espada na mão, com a ponta virada para baixo. Ele não era um espadachim.

 

O garoto se aproximou ainda mais.

 

— O que está fazendo fora da cama?

 

— Eu preferiria que você não tivesse perguntado isso.

 

— Tem mais alguém com você.

 

— Eu preferiria especialmente que você não tivesse me perguntado isso.

 

— Levante-se — ordenou o garoto.

 

Lentamente, Imogen se levantou. Percebi que ela afrouxara a trança, obviamente sugerindo que estávamos ali por razões românticas.

 

O garoto balançou a cabeça.

 

— Ninguém toca nas garotas. Faz parte do código.

 

— Deixe passar desta vez, pode ser? — Ele não pareceu convencido, então emendei: — Todos nós cometemos erros com o código. Talvez com as meninas. Talvez falhando em amarrar corretamente um prisioneiro.

 

O garoto ficou boquiaberto. Ele obviamente não gostou de ser lembrado de que a minha intervenção o salvara de uma surra pior.

 

— Eu não vi vocês aqui — disse finalmente. — Mas não sou o único vigia, então é melhor irem logo.

 

— Esse definitivamente é o plano — eu disse.

 

Assim que ele se afastou, Imogen e eu corremos para os estábulos. Mystic estava alojado em uma baia no centro e, com a ajuda de Imogen, dois minutos depois, já selado e pronto para partir.

 

— Há mais alguém aqui — disse ela, voltando para as sombras.

 

Olhei para cima e vi Fink entrando nos estábulos pelo topo da cerca.

 

— Tudo bem — afirmei, acenando para que Imogen se aproximasse. — Ele está indo embora também.

 

— Foi mais difícil do que eu pensei chegar até aqui — disse Fink. — Desculpe-me pelo atraso — ele parou de repente quando viu Imogen. — O que a moça está fazendo aqui? Eu pensei que ela odiasse você.

 

Se não odiasse naquele momento, odiaria muito em breve. Ajudei-a a montar na garupa de Mystic e fiz um gesto para que Fink chegasse mais perto.

 

— Não podemos pegar seu cavalo — explicou Fink.

 

— Aposto Mystic que você pode — eu disse. — Ele é seu cavalo agora.

 

— Então, vamos precisar de um segundo cavalo para você — afirmou Imogen, olhando ao redor.

 

— Não — balancei a cabeça com firmeza. — Não precisamos.

 

— Mystic não pode carregar nós três — a expressão esperançosa de Imogen sumiu. — Ah, não. Não! Foi por isso que me deu o relógio.

 

— É para um nobre em Libeth chamado Rulon Harlowe. Certifique-se de que ele o receba.

 

— Concordamos em não ficar aqui — ela disse. — Por favor, não faça esses joguinhos.

 

Minha expressão endureceu, deixando claro que aquilo não era um jogo. Então, dei uma carta à Imogen, explicando os detalhes da traição de Gregor.

 

— Você deve colocá-la na mão de Mott e de ninguém mais. Destrua-a se houver o risco de mais alguém a pegar. Eu vou segui-los em breve.

 

— Não, você deve vir conosco — disse Imogen, segurando a carta.

 

Abri a mão, revelando a faca que ela trouxera da cozinha. Incrédula, verificou duas vezes do bolso da saia onde o objeto estivera.

 

— Promete partir agora, ou devo entregar isto a Fink, que se certificará de que você vá? — Ela pressionou os lábios e olhou para a frente. Eu entreguei a Fink a corda que Devlin usara para me amarrar. — Amarre a moça a você, se necessário, mas que ela não saia do seu lado até que estejam seguros e longe deste lugar — então entreguei a faca a Fink.

 

Quando Imogen falou, as palavras saíram entrecortadas e zangadas.

 

— Eu plantei as flores para você, mas elas já estão morrendo. Sabe por quê? Porque o solo é ruim. Elas não pertencem a este lugar, assim como você. Olhe as flores e verá o seu próprio futuro.

 

Talvez Imogen estivesse certa, mas eu não iria discutir com ela. Apenas conduzi Mystic e disse:

 

— Mott está na igreja em Dichell. Fink, você deve levá-la até lá. Quero vocês três fora de Avenia.

 

— E você? — perguntou Imogen.

 

— Se eu conseguir sair daqui, irei encontrá-los em Drylliad.

 

— O que você quer dizer com se?

 

Fiz uma careta para ela, então dei um tapa na traseira de Mystic. Imogen se virou para me olhar e disse:

 

— Jaron, por favor. — Mas eles já estavam se afastando.

 

Conforme avançavam, ouvi Fink perguntar:

 

— Quem é Jaron?

 

O barulho do alarme rompeu a paz no início da manhã. Eu já estava acordada, como permanecera a noite toda. Fazia uma semana que deixara Drylliad, e muita coisa havia acontecido desde então. Mas nada me preocupava tanto quanto o que as próximas horas poderiam trazer. Obviamente, a ausência de Imogen acionara o alarme.

 

Agor correu para nossa cabana e gritou:

 

— Uma das garotas da cozinha está desaparecida. Achamos que ela roubou um cavalo.

 

Erick ficou de pé ao lado da cama, olhando ao redor.

 

— Fink também não está. O garoto que veio comigo.

 

— Roubaram o seu cavalo — Agor disse para mim.

 

— É de Fink agora — respondi. — Ele o ganhou ontem à noite em uma aposta. Eles não podem ter ido longe, talvez estejam apenas colhendo frutinhas nos bosques.

 

— Já verificamos esses lugares — os olhos de Agor escureceram. — Ainda assim precisariam de permissão para partir. Devlin está convencido de que ficaram com medo e fugiram. Mas para onde?

 

— Fink voltaria para Dichell — disse Erick.

 

— Mas a garota não queria ir para lá — eu disse. — Da última vez que falei com ela, deixou isso bem claro.

 

— Até agora, não demos falta de nada além do cavalo. — Agor convocou todos nós: — Vistam-se. Faremos uma busca pelo acampamento.

 

Comecei a colocar minhas botas. Erick já calçara as suas e veio se sentar ao meu lado.

 

— O que você acha que aconteceu? — perguntou. — Acha que Fink queria partir?

 

— Ele não pertencia a este lugar — respondi. — Se ele realmente foi embora, você deveria estar feliz por ele.

 

— Sim. — Desapontado, Erick estalou a língua. — Mas eu estava me acostumando a tê-lo em meus calcanhares.

 

Assim que me aprontei, nós nos juntamos em uma busca pelo acampamento. Era uma medida completamente inútil, não porque estava óbvio que tinham ido embora, mas porque éramos tantos procurando por eles que tropeçávamos uns nos outros tentando cumprir a tarefa.

 

Fui primeiro aos estábulos para me certificar de que não houvesse nada ali que pudesse me incriminar. Depois, refiz cada um de nossos passos tanto quanto pude, e tudo estava limpo. Finalmente, Agor chegou à única conclusão possível: Imogen e Fink tinham fugido.

 

Com isso, os piratas começaram a se juntar nas mesas para o café da manhã. Infelizmente, as servas tinham sido interrogadas sobre Imogen durante toda a manhã, então não havia nada pronto. Todos já estavam irritados por ter desperdiçado a manhã à procura de duas pessoas realmente sem importância ali, e a fome não estava ajudando na situação.

 

Comecei a descer a colina em direção à praia, afastando-me o máximo possível de todos os outros. O tempo estava acabando, e eu precisava de um lugar para pensar.

 

— Alguém está vindo! — gritou um vigia na parte principal do acampamento. — A menina e o menino estão de volta.

 

Virei a cabeça e juntei-me a alguns outros homens para ter uma visão melhor. Como ela ousara? Fora difícil o bastante tirá-la daqui com segurança da primeira vez. Não havia a menor chance de conseguir fazer isso de novo e, mesmo que houvesse, não antes que fosse tarde demais. Mas, de onde eu estava, ainda não conseguia vê-la.

 

— Eles não estão sozinhos — continuou o vigia. — São prisioneiros.

 

— De quem? — Agor tirou a luneta do vigia e a pressionou contra seu olho.

 

— Quem é? — perguntou Devlin.

 

Agor devolveu a luneta ao vigia e gritou de volta:

 

— Parece aquele soldado cartiano, que ajudou Vargan a pegar nossos homens em Drylliad. Qual era o nome dele?

 

Devlin puxou sua espada e o tom de sua voz ficou sombrio:

 

— Gregor Breslan.

 

Eu me escondi atrás da árvore mais próxima, meu coração batendo desenfreadamente. Gregor estava na Baía Tarblade. E Imogen era sua prisioneira.

 

Quando Gregor entrou no acampamento trazendo Imogen e Fink na garupa de Mystic, eu ainda estava escondido, mas com uma boa visão de tudo. Imogen e Fink vinham amarrados juntos com a corda que eu lhe entregara, e pareciam aterrorizados.

 

Minha mente disparou conforme eu tentava decidir o que fazer. Nem Imogen, nem Fink eram piratas, portanto não tinham obrigação de obedecer ao código. Não oficialmente. Torci para que fossem levados para a prisão ilesos, onde permaneceriam até que eu pudesse me esgueirar até lá e soltá-los.

 

Com isso estabelecido, concentrei-me na chegada de Gregor ao acampamento. Pelos lamentos que ouvi, ninguém estava feliz em vê-lo. Mas nada que sentiram poderia se comparar à minha angústia. Eu não podia ignorar a ideia de que talvez ele já tivesse descoberto a verdade sobre Tobias e que soubesse que eu estava aqui. Se assim fosse, ele viera para me delatar.

 

Assim como Erick e eu tínhamos feito em nossa chegada, Gregor entrou no acampamento com sua espada erguida, a lâmina voltada para baixo.

 

Agor foi o primeiro a se aproximar dele.

 

— Mestre Breslan, não lhe foi avisado que não viesse aqui sem ser convidado? O plano era esperarmos até que um governante estivesse no trono, quando Jaron estivesse menos visível.

 

— Eu sabia que não podia vir sem motivo — respondeu Gregor. — Mas tenho isso. Primeiro, permita-me lhe presentear com dois de seus fugitivos.

 

Fink deve ter dito a Gregor que fugiram daqui. Imogen nunca faria isso.

 

— Onde os encontrou? — perguntou Agor.

 

— A quilômetros daqui. Na estrada para Dichell.

 

Eu suspirei em silêncio. Talvez Imogen e Fink tivessem imaginado que seria mais difícil alguém rastreá-los se ficassem nas estradas. Mas teria sido melhor se tivessem permanecido longe delas.

 

Erick surgiu ao meu lado, aparentemente sem perceber meu desinteresse em conversas inúteis. Ele bateu no meu ombro e perguntou:

 

— O que você acha, Sage? O que eles vão fazer com Fink e a menina das flores?

 

Dei de ombros em resposta, enquanto Agor se aproximava dos prisioneiros de Gregor.

 

— De quem foi a ideia de partir?

 

— Foi minha — respondeu Imogen. — Convenci o garoto a vir comigo caso eu precisasse de ajuda ao longo do caminho.

 

— Não é verdade — retrucou Fink. — Nós dois queríamos ir embora. Estávamos com medo.

 

— É claro que estavam — disse Agor. — Mas deviam ter procurado Devlin e pedido dispensa. Fugir sob o véu da escuridão parece muito suspeito.

 

— Vocês devem mesmo suspeitar deles! — disse Gregor. — Não conheço o menino, mas esta não é uma garota qualquer. Ela foi fundamental no retorno do rei Jaron ao trono de Carthya. É de conhecimento geral que eles são amigos próximos.

 

Isso chamou a atenção de Devlin. Ele se adiantou e pediu a alguns piratas para tirarem Fink e Imogen do cavalo. Fink foi puxado primeiro. Ele foi colocado de joelhos e lhe disseram que, caso se movesse um centímetro, lhe cortariam as pernas. Os olhos de Fink estavam arregalados e ele não piscou nenhuma vez. Não iria a lugar algum.

 

Em seguida, Imogen foi levada para junto de Devlin. Ela parou ereta, mas, mesmo de onde eu estava, pude farejar seu medo.

 

— O que faz uma garota, amiga do rei de Carthya, vir servir os piratas avenianos? — perguntou-lhe Devlin.

 

— Gregor está errado. Jaron não é meu amigo — Imogen falou de modo tão confiante que eu me perguntei se ela acreditava naquilo. — Ele me mandou embora, para tão longe de seu castelo quanto eu conseguisse. Até Gregor pode atestar esse fato. Eu precisava ganhar a vida, então vim para cá.

 

— Ainda assim, é uma incrível coincidência. Certamente você sabe de nossa história com seu rei — Devlin deu uma risada sombria. — Gregor, conte a ela.

 

— Conner contratou esses mesmos piratas para matar Jaron quatro anos atrás — disse Gregor. — Tenho certeza de que, em todas as muitas conversas que vocês tiveram, ele mencionou isso — então ele voltou sua atenção para Devlin. — E foi por essa razão que eu vim. Os regentes concordaram em entregar Bevin Conner a você. Aquele idiota era arrogante o bastante para acreditar que Conner matou a família real sem ajuda, sendo a única pessoa no castelo com ligações com vocês. Fico feliz de me livrar dele.

 

— A morte de Conner sempre foi o seu desejo, não o nosso — afirmou Devlin. — Nós concordamos em matá-lo para ele não expor, acidentalmente, sua conexão conosco. Mas o nosso interesse é Jaron. O que pode dizer sobre ele?

 

Gregor assentiu.

 

— Tentei mandá-lo para a fronteira sul, onde você poderia encontrá-lo facilmente, mas, contra a minha vontade, ele voltou a Drylliad. No entanto, ele se encontra escondido em seus aposentos. Está com medo, paranoico e fraco, mas não vai demorar muito para se recuperar e tentar retomar o controle. Os piratas desejam Jaron há anos, e este é o melhor momento para pegá-lo. Quando eu voltar, os regentes me escolherão como governante de Carthya. Terei o controle absoluto de nossos exércitos e vou garantir uma passagem segura para vocês. Este acordo cimentará a amizade entre nós.

 

Erick olhou para mim.

 

— Acho que vamos pegar aquele seu tesouro de Carthya em breve, mas não do jeito como planejamos.

 

— Não — murmurei. — Esse não era mesmo o meu plano. — Eu me sentia aliviado em ver que Gregor não sabia que Tobias estava se passando por mim no castelo, mas, tendo em vista seu convite para os piratas há pouco, eu não tinha motivos para comemorar.

 

Devlin e Agor permaneceram juntos, discutindo em particular o que Gregor dissera. Fink continuou imóvel de joelhos, sabiamente se mantendo calmo. Imogen continuava sozinha, perto do centro do grupo, tentando não deixar transparecer o pavor que a dominava. Em uma demonstração de arrogância, Gregor arqueou o pescoço enquanto esperava seu veredicto. Parecia que ele não reconhecera Mystic. Gregor capturara Imogen e Fink na escuridão. Talvez não tivesse lhe ocorrido verificar o cavalo com mais cuidado.

 

Depois de alguns minutos, Devlin apontou Fink e Imogen.

 

— Nós vamos lidar com esses dois primeiro. Sob a lei pirata, não há violação oficial pela qual possamos acusá-los, mas a fuga também não pode ficar impune. Leve-os para a prisão até decidirmos o que fazer.

 

— Mas houve um crime — afirmou Gregor. — Cometido por essa menina.

 

Mesmo do meu esconderijo, ouvi o suspiro impaciente de Devlin.

 

— Que foi...?

 

Gregor apanhou um relógio de bolso em seu casaco. O relógio de Harlowe.

 

— Ela estava escondendo isso na saia. É um relógio de homem, então ela deve ter roubado.

 

Erick vasculhou os bolsos. Até aquele momento, em meio a toda comoção, ele não tinha pensado que o objeto estava desaparecido. Então se levantou e correu até eles.

 

— Isso é meu!

 

— Quando foi a última vez que o viu? — perguntou-lhe Agor.

 

— Na noite passada. Eu o coloquei debaixo da minha cama antes de dormir.

 

— A menina não poderia entrar lá para roubá-lo, mas Fink dormia perto de você — Agor olhou para os dois. — É melhor um de vocês confessar e salvar o companheiro de receber um castigo injusto.

 

Fink e Imogen se encararam com os olhos arregalados de horror. Mas foi Imogen quem falou:

 

— Eu peguei o relógio. Fink nem sabia que estava comigo.

 

— Coloquem o menino de lado — disse Devlin. — Temos algumas contas a acertar com a garota — então se aproximou, e ela pareceu se encolher sob a sombra dele. — De acordo com o código pirata, nunca tocamos nas garotas que estão a nosso serviço. Mas, se uma delas comete um crime contra nós, a punição não é menos grave. Traga-me um chicote!

 

Gregor deu um passo à frente.

 

— Deixe-me levá-la em vez disso. Podemos usá-la como escudo contra qualquer tentativa de insubordinação de Jaron quando ele voltar a lutar. Ele entregará tudo que existe em Carthya para protegê-la. Posso garantir isso.

 

Um chicote foi entregue a Devlin. Sua mão percorreu o cabo e ele disse:

 

— Nosso castigo primeiro. Depois você pode levá-la para onde quer que seja. Em primeiro lugar, meus piratas devem ser ensinados a não roubar uns dos outros! Virem a garota.

 

— Ela não roubou esse relógio — todos os olhos se voltaram para mim quando me aproximei, ofegante com a rápida corrida. — Eu roubei.

 

Em quaisquer outras circunstâncias, haveria certa dose de humor associada à minha entrada. Apesar de os piratas terem visto apenas Sage se apresentando, Gregor cambaleou para trás em choque. Uma pena ele não ter caído e se machucado.

 

Eu segurava minha espada, erguida em posição de combate, enquanto encarava Devlin.

 

— Você me ouviu? Fui eu que roubei o relógio de bolso. Foi por isso que eles fugiram. Eu fiz com que saíssem daqui na noite passada. Se você ousar erguer esse chicote contra ela, prometo que vou derrubá-lo no chão antes que consiga baixar sua mão.

 

Devlin sorriu.

 

— Você pegou o relógio de bolso de Erick porque é um ladrão. Mas pensei que tínhamos concordado que você não é espadachim, Sage.

 

Àquela altura, Gregor já tinha se recuperado.

 

— Sage? Devlin, perdoe-me dizer isso, mas você é um tolo. Não sabe mesmo quem é ele?

 

Devlin não pareceu disposto a perdoar a acusação. Com um sorriso de escárnio, cruzou os braços e disse:

 

— Esclareça.

 

Gregor olhou para mim e franziu a testa.

 

— Ele pode imitar o sotaque aveniano tão bem quanto fala sua própria língua cartiana. E, ainda que tenha a reputação de ser hábil o suficiente para roubar a cor branca da neve se quiser, este garoto está longe de ser um mero ladrão. Devlin, você está olhando para o garoto que vem sendo caçado pelos piratas nos últimos quatro anos. Ele é Jaron, o príncipe perdido de Carthya.

 

Mais uma vez, o tom cômico do momento não podia ser negado, exceto pelo fato de que ninguém, nem mesmo eu, estava rindo. Devlin quase deixou cair o chicote e seu queixo sem poder acreditar. Devido ao fato de a espada estar em minha mão, ninguém avançou sobre mim, nem o faria, até que Devlin desse a ordem.

 

À frente da multidão de piratas, Erick balançava a cabeça. Eu estava verdadeiramente arrependido de o ter enganado para que ele me levasse ali, em grande parte porque Erick estava em perigo agora. Próximo a ele, Agor, com o rosto vermelho, parecia já estar planejando sua morte.

 

Ou eu podia estar errado; era mais como se Agor estivesse pensando na minha morte como sua prioridade. Erick seria o próximo.

 

— É verdade? — Devlin perguntou para mim. — Você é o príncipe Jaron?

 

— Rei Jaron, na verdade. As notícias devem correr mais devagar entre os iletrados — eu o encarei, com desdém em cada centímetro do meu olhar. — Você não deveria estar rastejando ou curvando-se diante de mim, ou algo assim?

 

Gregor sorriu.

 

— Acho que, antes de eu ter a chance de fazer isso, você já estará morto.

 

— Ah. Depois de todos aqueles brindes que você ergueu desejando--me uma vida longa.

 

— Pelo menos lhe resta o conforto de saber que, em breve, você se juntará à sua família — então, ele franziu as sobrancelhas escuras. — Se você está aqui, quem está no castelo?

 

Inclinei minha cabeça.

 

— Conte-me seus segredos e eu lhe contarei os meus. — Voltei minha atenção a Devlin: — Qualquer coisa que acontecer agora, é entre nós dois. Fink e Imogen são distrações. Solte-os.

 

— E depois? — perguntou Devlin.

 

— Depois, os piratas se renderão a mim e eu partirei em paz. — Inclinei a cabeça em direção a Gregor. — Em troca, você pode ficar com ele.

 

— Mas isso me negaria o prazer de terminar a maior missão inacabada que os piratas já tiveram em sua história — disse Devlin. — Alguns de nós nunca superaram a decepção de não ter conseguido matar você, Jaron.

 

— Há várias pessoas que compartilham os mesmos sentimentos em relação a mim — respondi. — Francamente, não acho justo que me mate quando há outros que queriam fazê-lo primeiro.

 

Devlin gargalhou.

 

— Tranquem o garoto na cabana na encosta da praia. Não precisamos dele aqui. E leve Gregor para a prisão.

 

— O quê? — ele resmungou e começou a sacar sua espada, mas quatro piratas o cercaram antes que ele conseguisse usá-la.

 

— Até este momento, tudo o que tivemos foi a promessa de que poderíamos matar Jaron — o tom de Devlin era igualmente desagradável. — Mas agora ele está sob nosso poder. E o futuro governante de Carthya também. — Ele fez um sinal para alguns de seus homens. — Levem todos daqui.

 

Alguns piratas agarraram Fink e o obrigaram a ficar em pé. Vários outros desarmaram Gregor e os dois foram levados embora. A estranha combinação de pedidos de misericórdia e de ameaças feita por Gregor podia ser ouvida ao longe. Não era o seu melhor momento.

 

Em seguida, Devlin inclinou a cabeça em direção a Imogen.

 

— Não precisamos de Gregor para conseguir o que queremos de Carthya. Porque temos a garota.

 

Eu me aproximei de Imogen, bloqueando o corpo dela com o meu.

 

— Tranque-a junto com Fink. Qualquer coisa que queiram dela, podem conseguir de mim.

 

Devlin sorriu.

 

— Na verdade, penso que o contrário seja verdadeiro. Qualquer coisa que eu queira de você, posso conseguir usando-a. — Ele ergueu a mão para seus homens. — Vocês sabem o que fazer.

 

Como abelhas atacando um invasor, os piratas investiram contra mim. Bati onde consegui acertar e feri alguns, mas também fui ferido. Até Erick estava ao lado deles, mas, embora eu tenha tido a chance de acertá-lo, me virei para outro lado. Não importava quem eu tentasse atingir, havia piratas avançando de todas as direções. E a luta acabou muito rapidamente. Eles tomaram minha espada e alguém a usou para me acertar as costas e me mandar para o chão. Assim que caí, puxaram meus braços para trás, amarrando-os. Depois, jogaram Imogen e a mim aos pés de Devlin.

 

Pressionei a lateral de meu corpo contra o dela em uma tentativa idiota de lhe oferecer certo conforto. Mas ela sabia que nos restavam poucas opções. Não havia consolo para isso.

 

— Um esforço valioso, jovem rei, mas você deveria saber que nunca teria uma chance contra nós. Você ousou vir até aqui prometendo revelar o lugar em que está escondido o tesouro cartiano, e fará isso. Francamente, eu estava cético quanto a essa promessa a princípio, mas devia ter confiado mais em sua audácia. Obviamente, você sabe onde está a caverna. Mostre-me.

 

Agor já havia aberto o mapa de Carthya ao meu lado. Então ergueu uma sobrancelha, esperando para ver o que eu faria.

 

Ignorei o mapa e não disse nada. Era óbvio que Devlin estava adorando ouvir a si mesmo falar, então não acreditei que ele realmente esperasse que eu me juntasse à conversa. Sobretudo porque eu não estava inclinado a fazer o que ele queria.

 

Devlin começou a andar na nossa frente, enquanto falava alto o suficiente para que todos os piratas ouvissem:

 

— Eu sempre soube que um dia desempenharíamos um papel importante na queda de Carthya. Mas pensei que isso aconteceria sob as ordens do rei de Avenia. Só que agora tudo mudou. No fim deste dia, não haverá mais Jaron. Eu serei o rei de Carthya.

 

— Você não iria querer ser o rei do meu país — ponderei.

 

— Por que não?

 

— Bem, você é meio gordo. Duvido que caiba no meu trono.

 

Ele riu.

 

— Aprecio sua preocupação, mas ele servirá até que um novo possa ser feito para mim. Agora, se não estou enganado, há uma jovem princesa em Carthya obrigada a se casar com quem quer que seja que use a coroa. Ouvi dizer que ela é muito bonita.

 

— E você é muito feio, Devlin — resmunguei. — Tenha piedade de seus filhos. Mesmo a beleza da princesa não compensaria a sua feiura.

 

— Esse é um risco que eu gostaria de correr.

 

— E o que acontece agora? — inclinei a cabeça, o único desafio que eu poderia oferecer daquela posição. — Porque você deve saber que eu jamais desistiria de meu país e certamente não para um porco como você.

 

— E a seguir você dirá que eu terei de matá-lo para que isso aconteça, certo? — Devlin riu. — Vamos poupar seu fôlego, jovem rei. Não tenho a intenção de matá-lo... ainda. Você vai me contar a localização da caverna, Jaron, e vai desistir do trono, ou eu matarei a garota ajoelhada ao seu lado.

 

E, com um aceno de cabeça, dois piratas imediatamente lhe obedeceram e colocaram Imogen em pé. Ela gritou aterrorizada e olhou para mim.

 

Tentei me levantar, mas os dois piratas ao meu lado me prenderam ao chão.

 

— Você ainda está preso ao seu código, Devlin! — gritei. — Ela não cometeu nenhum crime! Você não pode tocar nela!

 

— Ela mentiu para mim quando chegou aqui — disse ele. — Isso fere o código. Preparem-na.

 

Continuei a me debater.

 

— Você é o pior dos covardes. Lide comigo, Devlin. Não com ela.

 

— Gregor estava certo — disse ele, erguendo novamente seu chicote. — Você faria qualquer coisa por ela.

 

Os piratas ataram as duas mãos de Imogen nas extremidades de uma tábua larga que fora baixada de uma árvore. Em seguida, fendas foram entalhadas em seus pulsos para impedir que se movesse muito enquanto a chicoteavam.

 

Àquela altura, eu já tinha soltado minhas mãos das cordas. Estiquei um pé para atingir um pirata atrás de mim e levantei-me para acertar outro no queixo. Desviei da tentativa de um terceiro de me agarrar e tentei tomar a espada dele. Mas, antes que eu pudesse alcançá-la, vários piratas me imobilizaram mais uma vez. Um me acertou nas costas, deixando-me sem fôlego. Antes que eu pudesse me recuperar, outros dois prenderam meus braços atrás de mim.

 

— Devlin, eu o desafio — eu ainda engasgava em busca de ar, com minha voz soando seca e áspera. — Desafio você como o rei dos piratas.

 

Devlin balançou a cabeça.

 

— Você não tem direito a um desafio. Mentiu para mim quando entrou em meu acampamento.

 

Tecnicamente, eu não tinha mentido, mas não era hora de discutir. Libertei um braço o suficiente para revelar a marca de pirata que ele e seus homens queimaram em minha pele.

 

— Tudo que eu fiz foi para chegar até aqui. Sou um pirata. Tenho todo o direito de desafiá-lo, Devlin. E você é obrigado pelo código a aceitar o desafio.

 

— Tudo bem — ele finalmente concordou, baixando o chicote. — Devolvam ao garoto-rei a espada dele. Aceito seu desafio, Jaron. Prepare-se para morrer.

 

A questão era que eu não estava preparado para morrer. E não só eu estaria morto como ficaria provado que todos os que me chamaram de tolo por vir até aqui estavam certos. Além disso, Gregor riria por último, e eu não tinha a menor intenção de morrer e lhe proporcionar essa satisfação. No entanto, presumi que Devlin também não tinha planos de morrer. Um de nós perderia. Eu esperava que fosse ele.

 

Os piratas formaram um círculo irregular e barulhento ao nosso redor. Imogen foi deixada fora dele, mas eu preferi assim. Se as coisas ficassem ruins, não queria que ela tivesse de ver. Murmurei meu desejo de que os demônios usassem sua maldade contra Devlin e não contra mim. Era um pedido justo. Os demônios vinham gastando muito tempo comigo ultimamente.

 

Agor jogou minha espada na arena que se formou, me obrigando a me aproximar de Devlin para recuperá-la. Dei um salto até ela e rapidamente rolei para longe dele. Devlin apunhalou o chão e acertou as costas de minha camisa, retardando meus movimentos por um segundo antes de eu escapar.

 

Devlin enterrara sua espada tão fundo no chão que precisou das duas mãos para puxá-la. Aproveitei a oportunidade para acertar-lhe o tornozelo. Ele gritou e girou a espada em minha direção quando se soltou. Bloqueei-o com minha arma, mas tive de rolar de costas para fazer isso. Quando ele ergueu os braços para um segundo golpe, chutei bem forte um de seus joelhos, jogando-o para trás.

 

Ao nosso redor, a multidão torcia por ele. Não ouvi ninguém gritando meu nome, pelo menos não sem desejar minha morte, o que não me surpreendia.

 

Enquanto Devlin cambaleava, fiquei em pé e corri de encontro a ele. Ele se recuperou e juntamos as espadas. Era óbvio que ele era muito mais forte que eu. Eu até conseguia bloquear os golpes dele, mas isso exigia de mim um esforço considerável. E meus golpes pareciam causar um pouco mais de impacto do que se eu jogasse penas sobre Devlin.

 

No entanto, eu tinha a vantagem de ser um alvo bem menor e muito mais rápido, então era mais fácil me esquivar de seus golpes e pancadas. Também era mais jovem, então decidi fazê-lo se mover o máximo possível para cansá-lo. Pouco a pouco, a tática pareceu funcionar. A espada de Devlin ainda atingia a minha ferozmente, mas sua reação tornava-se cada vez mais lenta. Aproveitei as lacunas para acertá-lo sempre que possível.

 

Devlin atacou meu lado direito, eu o bloqueei, mas me desequilibrei, e ele aproveitou esse instante para trocar a espada de mão. Avancei e consegui atingi-lo no ombro. Devlin gritou e caiu para trás. Com o braço mais fraco e o ferimento sangrando bastante, finalmente fiquei com a vantagem.

 

Aumentei a velocidade de minha espada, forçando-o contra a multidão, agora em total silêncio. Os piratas abriram espaço para Devlin e, pela primeira vez, pensei que talvez alguns gostassem da ideia de perdê-lo como rei. No entanto, não significava que quisessem me ver ocupando o posto.

 

Devlin deixou cair a espada e eu suspirei, aliviado pela briga estar prestes a acabar. Mas a outra mão dele, escondida em suas costas, avançou sobre mim. Eu me abaixei e desviei quando percebi o que ele segurava.

 

— Esta é minha faca! — gritei, insultado por ele ter tentado me matar usando minha própria arma. Bati no braço dele com a borda lisa da minha lâmina e Devlin deixou a arma cair. Então avançou, mas eu o chutei na coxa e o derrubei.

 

Devlin ergueu um braço pedindo misericórdia e lentamente se ajoelhou. Mantive a espada em seu pescoço enquanto me abaixava para pegar minha faca.

 

— Agradeço por não me obrigar a roubar isso. Teria dado muito trabalho.

 

Devlin curvou a cabeça.

 

— Sage... Jaron, poupe minha vida. Eu imploro.

 

— Se quer viver, então solte Imogen primeiro.

 

— Devlin não tem autoridade para soltá-la, nem mesmo para salvar a própria vida — disse Agor, dando um passo à frente. — Ela ainda deve responder por violar o código pirata.

 

— Mas eu posso salvá-lo, Jaron — grunhiu Devlin, e segurou o braço ferido. — Se me matar, meus piratas nunca vão aceitá-lo como rei. Assim que eu cair, piratas desafiarão seu governo, até que eventualmente você falhe. Se poupar minha vida, eu pouparei a sua. Vou deixá-lo livre, e os piratas nunca ficarão contra você novamente.

 

— Se isso for uma oferta honesta, diga-me os nomes de mais alguém de minha corte que tenha ligações com você.

 

Devlin grunhiu, mas mantive a ponta da espada em seu pescoço. Para incentivar a confissão, arranhei-o e ele disse:

 

— Não há mais ninguém. Depois do fracasso de Conner, Gregor era a nossa única conexão com a corte.

 

Retirei ligeiramente a lâmina.

 

— E você me dá a sua palavra?

 

— Sim — ele ergueu os olhos para mim. — Por favor.

 

— Então, aceito sua oferta. Com uma exceção. Se eu puder trocar uma vida pela sua, então deve ser a vida de Imogen. Deixe-a ir. Assegure-me que ela saia em segurança daqui para qualquer lugar.

 

Devlin piscou de descrença.

 

— E o que acontece com você?

 

— Você me tem. Mas ela fica livre.

 

— Então, liberte-a você. — Devlin rosnou para seus homens atrás de nós: — Vocês ouviram a barganha desse tolo. Afastem-se!

 

A multidão se abriu, revelando Imogen atrás dela. Lágrimas banhavam-lhe o rosto e outras caíram quando ela me viu. Alcancei as cordas ao redor de seus pulsos e comecei a desatá-las.

 

— Isso não pode acontecer — ela disse. — Deve haver outro jeito. Se você matasse Devlin...

 

— Ele está certo. Se eu tomar o lugar dele como rei, eles me matarão primeiro e depois irão atrás de você. Pelos menos assim, um de nós fica livre.

 

— Então, que seja você — disse Imogen. — Você deve salvar seu reino.

 

— Você vai salvá-lo. Deve retornar a Drylliad e expor a traição de Gregor.

 

— Não, Jaron. Eles vão matá-lo!

 

Ser morto não estava nos meus planos, embora as perspectivas não se mostrassem tão animadoras quanto eu gostaria. Mas Devlin ainda precisava de mim para encontrar caverna. Eu tinha certo tempo.

 

Olhei de volta para os piratas. Vários cuidavam do ombro de Devlin, mas muitos outros olhavam em minha direção com os punhos cerrados, esperando a ordem para me pegarem. Eu sabia o que aconteceria quando fizessem isso, e a ideia me aterrorizava. Mas eu não queria que Imogen visse, não queria que ela soubesse. Pensar nisso fez minhas mãos tremerem e tive dificuldade em afrouxar o restante da corda.

 

Em pânico, ela tocou meu rosto com a mão livre.

 

— Um rei teria dado sua vida por seu país. Mas estou lhe pedindo para se salvar. E não apenas por mim. Se você cair, toda a Carthya cai.

 

Incapaz de desatar o nó da mão direita de Imogen com meus dedos trêmulos, usei a faca para cortar a corda. Ela se soltou, então me envolveu com os braços e disse:

 

— Se há alguma amizade entre nós, então você deve fazer o que eu peço. Deve haver um jeito de você partir. Encontre-o e venha comigo, por favor. Não é tão tarde.

 

Esforçando-me para me concentrar, cheguei mais perto e sussurrei em seu ouvido:

 

— Isto não acabou. Não vim aqui para fracassar.

 

— E eu não vim aqui para perder você! — Desesperada, ela enterrou os dedos em meus ombros. — Tudo que lhe resta é fugir. Se não o fizer por mim, então faça por seu povo. Ele não significa nada para você?

 

— Claro que significa, Imogen! — Fiquei magoado por ela ter sugerido o contrário. Fechei os olhos, emocionado demais para respirar. Mas, quando os abri novamente, minha voz estava firme: — Pegue Mystic e vá para Drylliad. Não volte mais para cá. Nunca.

 

Antes que ela pudesse responder, vários piratas me agarraram pelas costas. Tiraram minha espada e minha faca. Mais uma vez. Eu não resisti, exceto pelo breve momento em que vi Imogen correndo para Mystic e montando em seu dorso. Ela parou quando me viu e olhou por um instante, como se pudesse ela mesma tentar lutar com Devlin.

 

— Vá! — gritei.

 

Chorando, ela assentiu. Então, bateu os calcanhares nas ancas de Mystic e desapareceu entre as árvores.

 

Devlin estava sentado, com o ombro já envolto em uma bandagem. Ele receberia melhores cuidados em breve, e aquele curativo teria de bastar por ora. Os piratas me levaram até ele, forçando-me a ajoelhar a seus pés. Recusando-me a obedecer, mudei minhas pernas para a posição de sentar. E aquilo o entreteu por um instante.

 

— Você fez um juramento — disse Devlin. — Podemos concordar que você o violou?

 

Eu discordava, mas Devlin não era do tipo que debatia as sutilezas dos significados das palavras. E possivelmente eu tinha mesmo violado o juramento.

 

— Há alguma chance de evitarmos as formas mais cruéis de assassinato e acabarmos com isso com um jogo de cartas? — perguntei.

 

Devlin riu.

 

— Você está com medo?

 

Medo nem mesmo começava a descrever o terror que eu sentia. Amarradas em minhas costas, minhas mãos ainda tremiam. Mas eu também sentia raiva de mim mesmo. Porque, apesar de todas as minhas boas intenções, era evidente que eu cometera um erro vindo ao acampamento dos piratas. E várias pessoas pagariam por isso.

 

Devlin se inclinou em minha direção.

 

— Você deveria estar com medo, Jaron. Porque ainda tenho meu chicote e meu mapa de Carthya. E vou chicoteá-lo até que revele a localização daquela caverna.

 

Ele acenou para quem quer que fosse que estava me segurando e fui carregado à mesma tábua na qual Imogen estivera presa havia alguns instantes. Manchas de sangue cobriam a madeira. Rapidamente me perguntei de quem eram e o motivo da punição. A pessoa provavelmente sangrara tentando se soltar ao sentir a dor dos golpes do chicote. Com certeza, os piratas fariam com que eu sentisse a mesma dor. Estava igualmente certo de que, quando por fim decidissem me matar, eu ficaria grato.

 

Assim que os homens de Devlin começaram a me amarrar, eu quis gritar para me livrar um pouco do medo, mas me controlei. Imogen ainda não estaria tão longe dali, e eu não queria que ela soubesse o que estava prestes a acontecer. Se fosse possível, entretanto, gritar para o lado de dentro, era o que eu fazia. E o som era ensurdecedor.

 

Minha camisa já estava em farrapos, então foi fácil para eles rasgar o restante. Devlin permanecia em sua cadeira, de onde conseguia me observar. Mas Agor segurava o chicote, e eu poderia dizer, pela crueldade em sua expressão, que ele saboreava a oportunidade de usá-lo.

 

— Quem você pensa que é para me fazer parecer tão tolo? — zombou ele. Pensei que a resposta para essa pergunta já estivesse dada, então não me preocupei em falar. — Você pode ter derrotado Devlin, mas, em uma luta de verdade, eu ainda poderia acabar com você — disse Agor.

 

Muito improvável. Agor era previsível demais para ser perigoso. Mas, se lhe dissesse isso, só o deixaria ainda mais irritado comigo. E, como ele tinha o chicote nas mãos, optei pelo silêncio.

 

Já sem minha camisa, Agor me rodeou, avaliando exatamente por onde ele queria começar. Respirei fundo e tentei me preparar para o chicote. Não fazia tanto tempo desde que Mott e Cregan tinham me chicoteado no calabouço de Conner. E, por mais terrível que tivesse sido, o chicote de Conner era grosso e tinha a intenção de me machucar, não de provocar os cortes profundos que o chicote de Agor me infligiria. Mott me chicoteou como punição, e eu sabia que a tortura terminaria, se pudesse suportá-la. Mas Agor queria algo mais de mim. Ele continuaria até que eu contasse a eles a localização da caverna, ou até que estivesse morto.

 

— Venha vê-lo — Agor disse para Devlin, ainda olhando para mim. — Este não é o corpo que se esperaria de um rei.

 

Irritado por ser tratado como se estivesse em uma exibição pública, revirei os olhos, mas, de novo, segurei a língua. Se a mórbida exibição não servisse de muita coisa, pelo menos me daria mais um minuto, ou dois.

 

Curioso, Devlin se levantou da cadeira e caminhou atrás de mim também. De onde ele estava sentado, já devia ter visto o corte em minha barriga, feito por um dos ladrões de Erick, e o corte feito por Roden em meu braço. Mas eu era magro demais para alguém que literalmente recebia um banquete de rei a cada refeição. Também estava coberto de hematomas em função da luta de espadas com Agor e cheio de arranhões resultantes da luta com os piratas momentos antes, e ainda tinha duas cicatrizes nas minhas costas da época em Farthenwood.

 

Devlin se afastou para me encarar, mas não consegui ler sua expressão. Não era muito respeitosa, mas também não era de raiva.

 

— Pensei que você fosse de um país civilizado, Jaron — ele observou. — Como foi que acabou se parecendo mais com um servo chicoteado por seus erros do que com um rei?

 

— Tenho o hábito de irritar alguns de nossos povos menos civilizados — respondi. — Mas você parece um pirata... civilizado. Eu preferiria que você não me chicoteasse.

 

— E por que eu não deveria fazer isso?

 

Com certo esforço, dei um sorriso.

 

— Porque vai doer.

 

— Espero que sim — Devlin segurava o ombro quando voltou para sua cadeira. — Você vai receber chicotadas suficientes para aprender a ser mais humilde. Depois, conversaremos sobre aquela caverna.

 

— Será perda de tempo — respondi. — Não é do meu feitio virar humilde, nem revelar segredos a meus inimigos.

 

Agor ergueu seu chicote e o estalou no ar. Eu me encolhi e cerrei os dentes ao ouvir aquilo. Seria impossível não gritar, ainda que fosse para poupar Imogen. E parte de mim se preocupou, pois cedo ou tarde eu revelaria qualquer coisa que Devlin quisesse.

 

Agor grunhiu ao fazer o movimento que finalmente me acertaria em cheio. Mas a dor não veio.

 

— O quê? — Agor olhou para trás de si, confuso.

 

Eu olhei também. Roden estava bem na frente da multidão de piratas, que o observava. Em sua mão, a ponta do chicote. Ele a enrolou no pulso até puxar a arma da mão de Agor. Durante todo o tempo, não tirou os olhos de mim. Eu quase pude senti-los me perfurarem.

 

Agradeci silenciosamente mais esse atraso no castigo, mas me preocupei com a total falta de simpatia na expressão de Roden, o que não era bom.

 

— Como ousa? — perguntou Agor.

 

— Roden! O que significa isso? — perguntou Devlin.

 

Roden terminou de enrolar o chicote e o jogou para o grupo. Dirigindo-se a mim, ele disse:

 

— Uma mensagem chegou ordenando que eu voltasse mais cedo. Dizia que um garoto de nome Sage estava com os piratas, prometendo-lhes algum tipo de tesouro. Mas eu disse a mim mesmo que não poderia ser você.

 

— Não é a primeira vez que erra sobre mim — retruquei.

 

Roden ergueu a voz:

 

— Devlin, você prometeu que qualquer ação envolvendo o rei de Carthya seria privilégio meu.

 

— Tudo mudou quando seu rei se passou por um de meus piratas.

 

Roden se virou em minha direção, verdadeiramente surpreso. Ele viu a marca em meu braço e seu queixo caiu. Nossos olhos se encontraram novamente e sorri, um pouco envergonhado com as palavras de Devlin.

 

— Ele? — Roden balançou a cabeça ferozmente, como se o movimento fosse ajudá-lo a entender. — O rei de Carthya é um pirata?

 

— Não sabíamos realmente quem ele era.

 

— Você deveria saber! — o rosto de Roden ficou sombrio. — Eu lhe contei sobre ele. Eu o avisei!

 

Mesmo preso e prestes a ser chicoteado, não pude deixar de me sentir um pouco lisonjeado. Os piratas tinham sido avisados sobre mim.

 

— Você nos contou sobre Jaron — disse Devlin. — O nome Sage nunca foi mencionado.

 

Roden me mirou e estreitou os olhos.

 

— Qualquer que seja o nome dele, estou aqui agora e ele é meu. Solte-o.

 

Devlin balançou a cabeça.

 

— Ele fez um trato comigo, trocando sua vida pela de uma garota chamada Imogen.

 

Roden me lançou outro olhar. Dessa vez, desviei os olhos. Não queria qualquer questionamento sobre o envolvimento dela ali.

 

Ele se voltou para Devlin.

 

— Você já tinha um trato comigo.

 

O ferimento de Devlin começou a sangrar sob o curativo em seu ombro. Ainda assim, ele fez o esforço de ficar em pé e encarar Roden.

 

— Concordamos que, quando os piratas atacassem Carthya, você teria o rei como prêmio. Mas isso é diferente. Jaron veio para cá por vontade própria.

 

Roden se aproximou de Devlin, claramente nervoso.

 

— O plano era apenas matar Jaron e deixar Avenia levar tanto a culpa, quanto os despojos. Se você o matar aqui, Carthya vai querer se vingar de nós.

 

— Eu conheço a reputação dele — disse Devlin. — Carthya não lutaria por Jaron.

 

— Sim, lutaria — afirmou Roden firmemente. — Se ele é o garoto que eu conheci em Farthenwood, então seu povo o seguirá mesmo que o diabo diga não.

 

Inclinei a cabeça ao ouvir isso. Eu ainda era o garoto que Roden conhecera em Farthenwood? Desejei poder conversar com ele em particular. Havia tanta raiva em seu olhar, mas seria por minha causa, ou por causa de Devlin?

 

Roden cruzou os braços.

 

— Então, o que pretende fazer com ele?

 

— Em algum lugar em Carthya, há uma caverna cheia de riquezas. Farei o que for preciso para que ele revele a localização. E depois vou decidir o que fazer com ele.

 

— Não — insistiu Roden. — Eu o quero. Agora.

 

Devlin o ignorou.

 

— Agor, dê vinte chibatadas no rei de Roden, para começar. Depois, vamos perguntar-lhe sobre a caverna. — E disse para Roden: — E vou fazer o seguinte trato com você: depois que eu colocar minhas mãos no tesouro de Carthya, você poderá fazer o que quiser com Jaron. Não desejo privá-lo de sua vingança.

 

Ergui a cabeça. Roden queria vingança porque eu ficara com o trono de Carthya, e ele, não. Mas ele já me machucara com um corte profundo e doloroso em meu braço. Estávamos mais do que quites. Apesar da desvantagem da minha atual posição, fiquei justificadamente bravo.

 

— Essa negociação vai parar de uma vez! — gritei. — Devlin, você é um covarde e um porco. Dê-me o castigo que quiser. Nunca vou revelar a localização daquela caverna. E você, Roden, sabe meu nome. Sabe que o trono sempre vai pertencer a mim. Nada do que você possa fazer vai mudar esse fato. E você sempre será um traidor, uma forma mais desprezível de vida do que a de Devlin, se isso é possível.

 

Sem esperar por uma ordem, Agor ergueu o chicote para me acertar. Fechei os olhos em antecipação à dor e não vi o movimento rápido de Roden. Sei apenas que, antes de o chicote tocar em mim, o grito raivoso de Agor se transformou em um grunhido de dor e ele caiu no chão. Quando olhei, Roden estava parado atrás dele, segurando a espada vermelha de sangue.

 

— Detenham-no! — gritou Devlin.

 

Assim como tinha feito com meus vigias no castelo, Roden acertou os piratas a golpes de espada, como se fossem um pouco mais do que manteiga macia. Não levou muito tempo até que o restante deles se afastasse. E, assim que viram para onde ele estava indo, pararam completamente de lutar.

 

Devlin se deixou ficar atrás de seus homens não porque eles o protegiam, mas porque ele os usava para se esconder. Sacara sua espada com o braço bom, mas ela permanecia inerte.

 

— Sou o rei destes piratas — disse Devlin. — Roden, você violou o juramento...

 

— E você violou nosso trato — rebateu Roden. — Jogue sua espada.

 

— Nunca — Devlin levantou a arma para atacar, mas, em um único movimento, Roden avançou, rompendo a barreira de piratas que o separava de seu rei, conteve o golpe que Devlin mal começara a esboçar e o acertou logo abaixo do peito. Devlin estava morto no instante em que seu corpo tocou o chão.

 

Por um longo momento, os piratas apenas olharam para o corpo de seu rei, como se fosse impossível, depois de tantos anos, ele ter morrido tão rápido e com surpreendente pouco esforço da parte de seu oponente.

 

Roden olhou para ele também. Claro, Devlin tinha feito o primeiro movimento, mas não pensei que ele pretendia matá-lo. Agora que o fizera, era mais do que um pirata ali. E ele sabia disso.

 

— Vocês tem um novo rei — anunciou. — Seguirão minhas ordens agora. — Os outros olharam para ele, incertos do que esperar. Então, ele acenou para mim. — Desçam Jaron daí e encontrem uma camisa para ele. Coloquem-no na cela até que eu decida o que fazer com ele.

 

— Meu capitão da guarda, aquele traidor, está detido na sua cadeia — eu disse. — Um de nós será obrigado a matar o outro ali. Então, se você quer que nós dois fiquemos vivos até que decida o contrário, sugiro que me mande para outro lugar.

 

Roden olhou para um pirata próximo a mim, que disse:

 

— Vou colocá-lo junto de um garoto que prendemos mais cedo. Acho que vieram juntos para cá.

 

— É seguro? — perguntou Roden.

 

— Provavelmente mais seguro do que a cadeia. Ninguém nunca escapou de lá.

 

— Ótimo.

 

As cordas que atavam minhas mãos foram cortadas e os piratas me seguraram pelos braços. Roden não olhou enquanto eles me levavam embora. Eu também permaneci calado, principalmente porque não sabia o que dizer. Roden não me salvara dos piratas. Apenas adiara o que agora parecia inevitável.

 

Como o pirata tinha dito a Roden, a cabana para onde me levaram parecia muito mais segura do que a cadeia onde estivera no dia anterior. A cela era próxima ao nível do chão, então, se o prisioneiro conseguisse passar pelo vigia, poderia desaparecer em segundos.

 

A cabana não passava de um quarto e ficava no meio da encosta, um verdadeiro penhasco, acima dos alojamentos. E levou um tempo considerável para que os homens destrancassem a porta e me colocassem lá. Imaginei que seria quase impossível arrombar a fechadura do lado de dentro. E, mesmo que alguém conseguisse fazê-lo, a descida da encosta estava repleta de piratas furiosos e bem armados, e não havia degraus para o topo do penhasco. Era óbvio por que ninguém nunca escapara de lá. Duvidei que alguém tivesse tentado.

 

Fink gritou de alegria e quase se atirou sobre mim quando a porta foi aberta.

 

— Não pensei que o veria novamente — ele disse. — Sem ofensa, mas realmente não pensei.

 

Meus acompanhantes me empurraram para dentro do espaço, mobiliado apenas com uma pequena mesa e uma única cadeira. Um deles, que fora particularmente indelicado enquanto segurava meu braço, disse a Fink:

 

— Ele ainda não está a salvo, garoto, então não se apegue muito.

 

Eles atiraram ali dentro uma camisa que, surpreendentemente, estava em melhores condições do que a que eu vestia antes. Então, trancaram a porta e partiram.

 

— Sem vigias? — perguntei a Fink, vestindo a camisa por cima da cabeça.

 

— Eu pedi um, só para ter alguém para conversar. Disseram que o local dispensa vigias e, além disso, não represento ameaça para ninguém.

 

— Não mesmo — concordei. — Mas estou feliz que esteja aqui.

 

— Onde está Imogen?

 

— Ela partiu. Espero.

 

— Oh. Isso é bom. — Fink se sentou sobre o tampo da mesa e olhou para mim. — Ela me contou que seu nome é Jaron, e que você é o rei de Carthya.

 

Sentei-me ao lado dele na mesa, não olhando para nada em particular.

 

— Ela está certa.

 

Ele coçou o nariz e continuou a me encarar.

 

— Você não se parece com um rei. Nem age como um.

 

— Frequentemente, não me sinto como um rei.

 

— Ela disse que você veio até aqui para destruir os piratas. E que essa era a pior ideia que alguém já teve.

 

— É difícil argumentar com esse tipo de lógica.

 

— E ela disse que você é o rei mais tolo que Carthya já viu e que é estupidez sua deixar que o matem, porque provavelmente você é a única pessoa capaz de salvar seu país.

 

Eu sorri.

 

— Talvez você não deva me contar mais nada do que Imogen disse, Fink. Acho que não posso ouvir mais nenhuma das opiniões dela.

 

Ele sorriu de volta.

 

— Sim. Eu nem sequer cheguei às coisas que realmente importam — ele bocejou. — Mas eu gostava de você quando era Sage. Acho que, mesmo você sendo rei, podemos continuar amigos, certo?

 

— Claro — levantei-me e comecei a caminhar pelo espaço. Quanto tempo Roden me deixaria ficar aqui? O que faria quando finalmente viesse me encontrar?

 

Havia uma pequena janela no fundo da cabana, no lado oposto da porta. De pé ali, eu ainda não conseguia ver o topo do penhasco, mas tive uma boa ideia do quanto estávamos acima do nível do mar. Depois, continuei a andar para lá e para cá dentro da minúscula cabana.

 

— Estou com fome — reclamou Fink depois de um tempo. — E você?

 

— Sim, também estou. — Minha última refeição tinha sido o jantar na noite anterior, e já estávamos na tarde do dia seguinte. No entanto, distrair-me do incômodo da fome não era difícil, sobretudo imaginando como impedir Roden de me matar antes que eu tivesse minha chance com ele.

 

Virei-me para Fink.

 

— Escute, os piratas têm um novo rei, e o nome dele é Roden. A única razão de eu ainda estar aqui é o fato de Roden me odiar há muito tempo e querer se vingar. Ele não deseja simplesmente me matar, entende? Por isso, quando a hora chegar, não quero que você aja como meu amigo. Não quero que me defenda ou tente me ajudar de algum modo. Isso apenas tornaria as coisas piores para você.

 

Fink deu de ombros.

 

— Eu não tenho medo.

 

Agarrei seu braço para forçá-lo a olhar para mim.

 

— Isso é sério, Fink. Eu poderia ter-lhe dito coisas horríveis bem agora para você me odiar de verdade. Acredite em mim, eu sei fazer isso. Mas estou tentando agir direito com você. Tenho de confiar que sabe se cuidar sozinho. E deve fazer Roden pensar que você quer se afastar de mim. Diga qualquer coisa. Faça qualquer coisa, mesmo que ache que me magoará. É o único meio de você sobreviver.

 

Fink franziu a testa, abriu a boca para falar, mas parou ao som de uma chave na porta.

 

Porei, preparado para encarar o que quer que entrasse pela porta. Dei uma olhada para Fink.

 

— Qualquer coisa que tiver de fazer — repeti.

 

Erick foi empurrado para o quarto e depois jogado ao chão pelos homens atrás dele. Seu olho direito estava machucado e inchado e o lábio sangrava, mas ele estava andando, então tive esperanças de que o pior já tivesse passado. Infelizmente, era provável que não.

 

A intensidade do olhar de Erick quando encontrou meus olhos era assassina. Eu teria me desculpado bem ali, mas achei que minhas palavras soariam ridículas e ofensivas. Além disso, ele não estava sozinho.

 

Dois homens imensos o seguiram para dentro ali, enquanto pelo menos três ou quatro guardavam a porta. Os dois ali dentro carregavam correntes nos braços e algemas que ligavam umas às outras. Pelo jeito, aquilo era para mim.

 

Tentei aceitar tudo de maneira pacífica e levantei meus braços para mostrar que não criaria problemas. Porém os piratas me empurraram com força contra a parede. Então, achei plenamente justificável que eu os chutasse de volta. Se eles não estavam jogando de maneira decente, eu não via motivos para jogar assim.

 

Fink e Erick ficaram do lado oposto da cabana. O medo evidenciava-se no rosto de Fink, mas Erick parecia satisfeito. Se ele estava feliz de me ver levando o que eu merecia, eu não poderia culpá-lo.

 

Os piratas passaram a corrente pelo poste que ficava em um dos cantos do espaço. Em seguida, prenderam firmemente as algemas ao redor dos meus pulsos e tornozelos. Ajustei os pés para manter o equilíbrio, o que um pirata interpretou como um movimento agressivo e, sem misericórdia, deu um soco em minha barriga. Dobrei o corpo para a frente, engasgando com minha própria respiração. Ao fundo, ouvi Fink dizer:

 

— Agora dê mais um soco nele por mim.

 

Sorri levemente, mas permaneci curvado. Era grande a probabilidade de que, se eu ficasse em pé novamente, os piratas honrassem o pedido de Fink.

 

Um dos homens se inclinou e rosnou:

 

— Você achou que estava encrencado quando Devlin era o rei? Acabei de ouvir o que o novo rei planejou para você e sugiro que peça aos demônios que o levem agora, antes que ele chegue aqui.

 

Não era uma sugestão ruim, exceto pelo fato de que os demônios estavam claramente do lado de Roden.

 

Assim que os piratas deixaram a cabana, Fink veio na minha direção, mas Erick agarrou-lhe pelo ombro e o impediu.

 

— Ele não é um amigo — disse Erick com frieza. — Nem meu, nem seu.

 

Fink olhou para mim, e eu balancei levemente a cabeça. Eu lhe dissera que ele precisava convencer Roden de que não gostava de mim. Os olhos do garoto escureceram quando ele percebeu que teria de convencer todo mundo disso também.

 

— Eu mesmo quero machucá-lo — disse Fink. Não me importaria se ele fizesse isso, porque duvidei de que batesse tão forte que pudesse ser comparado com qualquer coisa que eu encarara naquele dia. Mas fiquei feliz de vê-lo se afastar.

 

— Se vale de alguma coisa, Erick, quero dizer que sinto muito — eu disse as palavras lentamente, porque meu estômago ainda doía.

 

— Não vale nada! — gritou Erick. — Você mentiu sobre quem é e mentiu sobre o tesouro! Tudo que lhe acontecer ainda será melhor do que aquilo que você merece. Coloquei minha própria vida em risco para trazê-lo aqui. E agora, quando os piratas acabarem com você, vão me matar e provavelmente Fink também.

 

— As coisas não saíram como eu tinha planejado. — Não que fosse fazer alguma diferença para ele, ou para mim, mas isso precisava ser dito.

 

Erick deu um passo à frente. Desejei que ele não me batesse também. Ou, se o fizesse, que escolhesse partes ilesas do meu corpo.

 

— Há apenas uma coisa que está me incomodando — ele disse. — Quando fomos à casa do nobre em Libeth e você perseguiu aquele homem, você realmente o matou?

 

— Nunca disse que o matei — respondi. — Foi a sua dedução. E não, nunca toquei nele. Ele era meu amigo.

 

— Você diz isso como se ele não fosse mais.

 

— Ele me servirá enquanto eu for rei — fiz uma pausa, pensando em quanta frustração eu deveria ter causado a Mott nos últimos dias. — Mas duvido que tenha me sobrado algum amigo.

 

— Aqui você não tem nenhum — com isso, Erick se jogou na única cadeira da cabana e cruzou os braços.

 

Fink subiu na mesa ao lado dele, cruzou as pernas e descansou a cabeça nas mãos. Nenhum deles olhou para mim.

 

Eu me ajeitei do melhor modo possível, apoiando-me em um dos cantos da cabana e fechando os olhos. Se nada mais acontecesse, pelo menos poderia dormir um pouco.

 

Não sei dizer se dormi por dois minutos ou duas horas, mas acordei ouvindo vozes altas e o som de uma chave sendo virada na fechadura. Meus olhos se abriram lenta e relutantemente. Olhei para Erick e Fink, que ainda permaneciam sentados nos mesmos lugares.

 

Erick inclinou a cabeça, também ouvindo a chave.

 

— Você está pronto para o que quer que esteja do outro lado? — ele perguntou.

 

— Não — murmurei. E não estava.

 

Quando a porta se abriu, Erick e Fink se levantaram com um pulo, encostando-se à parede. Ainda me sentia tonto e demorei para me endireitar. Na verdade, foi difícil reunir energia. A tensão dos últimos dias tinha finalmente me atingido.

 

Dessa vez foi Roden quem entrou na cabana, acompanhado dos dois piratas que haviam me acorrentado mais cedo. E, como antes, vários outros esperavam na porta.

 

Roden cruzou os braços e me olhou friamente. Não era nenhuma novidade alguém me fitar com expressões de raiva ou desprezo. Mas eu não gostei quando veio de Roden. Em Farthenwood, havíamos estabelecido o que pensei ser uma amizade decente. Depois, ele foi manipulado por um servo de Conner, Cregan, cujas ambições eram obscuras. Talvez por arrogância, achei difícil acreditar que Roden me odiasse apenas porque eu tinha a coroa e ele não. À luz disso, concluí que seria melhor deixá-lo falar primeiro, então esperei, baixando os olhos.

 

Ele dirigiu-se primeiro a Fink.

 

— Erick disse que não sabia quem Sage era. Você sabia?

 

Fink balançou a cabeça, então disse:

 

— Mas também não pensei que fosse um ladrão comum. Ele era diferente do resto.

 

Voltando a atenção para Erick, Roden estreitou os olhos.

 

— Até mesmo o garoto percebeu algo errado. Nenhum de vocês dois deixará este lugar vivo.

 

A exceção óbvia em suas palavras era eu e, apesar dos pesares, não achei aquilo reconfortante. Roden me queria vivo, embora não pudesse ser para algo agradável.

 

— Por favor — soluçou Fink. Olhei-o e ele estava chorando. — Por favor, não me machuque! Eu sou apenas uma criança.

 

— Pare com isso.

 

— Por favor, senhor — grandes lágrimas rolavam pelo rosto de Fink. Era impressionante, de verdade.

 

Roden revirou os olhos, mas as lágrimas cumpriram seu papel de sensibilizá-lo e ele suavizou o tom:

 

— Vou pensar, certo? Agora pare.

 

— Se nos mantiver vivos, ainda poderemos provar nosso valor.

 

Roden ergueu uma sobrancelha.

 

— Ah, é? Como?

 

— Vamos cuidar de Jaron para você. — Recupendo-se um pouco rápido demais, Fink secou os olhos e disse: — Erick e eu temos algo a acertar com ele agora.

 

Eu quase ri. Era uma boa tentativa de Fink direcionar seu ódio a mim, mas ele não fez isso bem. Roden apenas balançou a cabeça.

 

— Obrigado, mas tenho meus próprios planos para ele.

 

E disso, infelizmente, eu já tinha suspeitado.

 

Então, Roden voltou sua atenção para mim.

 

— Você ignorou minha ameaça na semana passada.

 

— Parece que sim.

 

— Pensou que eu não falava sério? Que não cumpriria tudo o que eu lhe disse que faria?

 

— Eu sabia que você falava sério — respondi. — Foi por isso que eu vim.

 

— Mas você estava me procurando antes disso. Mandou Mott e Tobias por toda Carthya atrás de mim. Por quê?

 

— Não gostei do jeito como as coisas terminaram na passagem subterrânea debaixo do castelo. — Roden e eu tínhamos lutado em uma estreita passagem sob o castelo na noite em que voltei para lá. Se ele tivesse me derrotado, entraria no castelo e tentaria reclamar o trono, se passando por Jaron. Mas isso não funcionaria. Roden nunca teria ido tão longe tentando enganar Kerwyn, e a fraude logo seria descoberta. Em algum ponto, durante nossa briga, recuei quando poderia tê-lo matado. Houve um momento em que pensei que ele também tinha recuado, embora eu nunca tenha tido certeza disso.

 

Roden riu.

 

— Você não gostou de como as coisas terminaram? De eu ainda estar vivo? — o tom de sua voz era sombrio. — Suponho que pense que foi misericordioso naquela noite, permitindo que eu fugisse. Mas não foi. Você me amaldiçoou. Aonde mais eu deveria ir para escapar de você?

 

— Seria ótimo se você tivesse escolhido um lugar menos perigoso — eu disse. — Você é um pirata pior do que eu.

 

Em um instante, o rosto de Roden endureceu e ele me deu um tapa com o dorso da mão no rosto.

 

— Somos iguais agora, então você não pode falar comigo assim. Sou tão rei quanto você.

 

— Dificilmente — zombei. — Não há honra em ser rei dos piratas. Não há glória e não há outro prêmio a não ser uma eventual morte pelas mãos de seus próprios homens.

 

— Então, não consigo entender por que resolveu enfrentar tantos obstáculos para se juntar a nós.

 

— Você não me deixou muita escolha.

 

— Ou talvez você queira terminar o que começamos em seus jardins. — Quando sustentei o olhar de Roden, ele complementou: — Eu estava lá porque você trapaceou na noite em que foi coroado. Você trapaceou para ganhar aquele duelo e trapaceou para conseguir o trono!

 

Naquela noite, durante a luta, eu fingi cair e perder minha espada. Mas não foi trapaça. Foi um truque, sim, e Roden não tinha ninguém para culpar além dele mesmo. Especialmente porque eu o avisara mais cedo de que faria aquilo.

 

— Tudo em relação a você é mentira — disse Roden. — Sempre foi. Você sabe o que aconteceu na manhã seguinte em Drylliad? Para qualquer lugar que eu olhasse, havia celebração e conversas sobre um novo dia para Carthya, e tudo por causa de quem? Você!

 

— Sim, era por mim. Eu sou Jaron, e, mesmo que não goste, nada que faça mudará a situação.

 

— Qualquer que seja seu nome, você não merece o trono. — A voz de Roden ficou mais alta, mais afiada: — Deveriam dá-lo a quem quer que vencesse naquele túnel. E era para ser eu!

 

— Então, dê-me uma espada e lutaremos de novo — sugeri. — Se você ganhar, poderá vingar-se do modo que quiser. E, se eu ganhar, terei o que quiser.

 

— Para que outra luta de espadas se já tenho você? — havia um brilho cruel em seus olhos. — E sei o que quer. Você pensou que, estando aqui, poderia de alguma forma impedir os piratas de invadirem Carthya.

 

Concordei.

 

— Essa ainda é minha intenção, aliás.

 

— Bem, eu sou o rei deles agora. E você está atrasado para me impedir de fazer qualquer coisa. Vamos ter um banquete esta noite em celebração a meu reinado. Depois, na frente de todos, eu darei fim a sua vida. É bom que vejam o que acontece com qualquer um que me desafie. Usarei sua morte para solidificar meu reinado.

 

Roden não teve a intenção de ser engraçado, mas ri dele mesmo assim.

 

— Estou muito feliz de ouvi-lo dizer isso. Porque, até este momento, pensei que eu era o governante mais ridículo destas terras.

 

Roden levantou a mão para me bater de novo, mas dessa vez eu não vacilaria, então ele a abaixou lentamente.

 

— Vamos — disse aos piratas que o acompanhavam. — Há muito que fazer antes de hoje à noite.

 

— Você não pode deixá-lo aqui dessa forma — disse o maior dos piratas. — Foi você quem nos contou as histórias sobre ele.

 

— Ele escapou das cordas antes — comentou Roden. — Não de correntes. Ele não se livrará destas. — Na verdade, eu poderia. O grampo que Imogen roubara para mim ainda estava em minha bota. Seria fácil soltar aquelas correntes. — Mas, se ele escapasse, poderia subir por aquela janela — Roden me encarou. — Não posso negar essa possibilidade.

 

Nem eu. De fato, aquele era meu plano.

 

Roden pegou um porrete de um dos piratas que estavam na porta e chegou bem perto de mim. Ele o girou uma vez no ar, testando seu peso, o que soou como um aviso. Mas Roden me queria vivo para aquela noite. Então concluí que ele queria apenas me ameaçar com aquilo.

 

— Sinto muito por isso — ele disse. E, quando girou o porrete por sobre seu ombro, vi o que pretendia.

 

— Não! — gritei. — Roden, não!

 

Mas ele fez. O porrete acertou a parte de baixo de minha perna direita e foi como se eu tivesse sido atingido por uma bala de canhão. Um relâmpago percorreu cada nervo de meu corpo e escapou pelos meus gritos. Soube imediatamente que o osso estava quebrado, mas, com tanta dor, não poderia precisar a extensão dos danos.

 

Seguro só pelas algemas, eu caí de lado e vomitei, minha cabeça envolta em uma densa névoa.

 

— Ele não vai escapar dessas correntes agora — disse Roden. — Mas, se escapar, não vai a lugar nenhum.

 

Desejei poder fazer algum comentário inteligente, mas meu mundo estava desaparecendo rapidamente. Atingido por uma combinação tóxica de dor, fome e exaustão, caí para a frente e afundei-me na escuridão.

 

Foi a dor que acabou me acordando. O choque do golpe dado por Roden me levou à inconsciência, que evoluiu para um sono sem descanso e improdutivo. As correntes ao redor de meus pulsos, muito altas na parede, me impediam de sentar no chão. Então, quando tentei me equilibrar em minha perna machucada para ajustar o peso, um golpe de dor me dominou. Meus olhos se abriram e eu gritei. Ao focar em Erick e Fink, vi que eles continuavam parados na parte deles da cabana, olhando para mim com horror.

 

— Por quanto tempo fiquei desmaiado? — murmurei. Nenhum dos dois respondeu, então olhei diretamente para Fink. — Quanto tempo?

 

— Algumas horas, talvez.

 

Ainda não havia escurecido. Pelo ângulo em que a luz do sol entrava pela janela, deduzi que ainda faltava duas ou três horas até o pôr do sol. Eu não tinha muito tempo.

 

— Como está seu machucado? — perguntou Fink.

 

— Como beijos de borboletas, o que você acha? — inclinei a cabeça para trás para esticar os músculos, mas pouco adiantou. Meu pescoço, após tanto tempo na mesma posição, protestava contra minha tentativa de usá-lo.

 

— Por que você falou com Roden daquele jeito? — perguntou Erick, obviamente ainda bravo comigo.

 

— Cometi um erro.

 

Eu esperava que, irritando Roden, ele me desafiaria para outra luta de espadas. Estava bastante claro que o plano não funcionara.

 

— Eis o que eu não entendo — disse Erick. — Você era um rei, tinha tudo. Agora, está afundado no nosso nível e vai perder não apenas a vida, mas também seu reino.

 

— Você está errado em todos os aspectos — afirmei. — Ainda sou um rei. Meu título não é determinado por minha coroa; está no meu sangue. Gregor está aprisionado aqui, então, pelo menos por agora, meu reino está salvo. — Então, olhei diretamente para Erick. — E eu não desci de nível por me juntar a vocês. Você pode ser um ladrão, mas há mais bondade que maldade em você. Tornei-me uma pessoa melhor por conhecê-lo.

 

Os olhos de Erick se agitaram e, por fim, ele os baixou, em silêncio.

 

Voltei minha atenção ao problema mais imediato. Roden não fora claro sobre quando o banquete começaria naquela noite, mas não havia dúvida de que eu estava correndo contra o tempo.

 

A complicação era que o grampo de Imogen estava na bota da perna que Roden tinha quebrado. Fiz uma vã tentativa de manobrá-la, mesmo sabendo que sentiria muita dor e que seria inútil tentar tirar o calçado. Eu não poderia abaixar minhas mãos até meus pés para tirá-la e, ainda que pudesse, a algema ao redor do meu tornozelo deixava a bota mais apertada que de costume.

 

Acenei para Fink, pedindo que ele se aproximasse. Ele hesitou, e eu disse:

 

— Não me faça implorar por ajuda. Venha aqui. — Ele olhou para Erick, que permaneceu indiferente, e depois cruzou o espaço até mim. — Do jeito mais gentil possível, você precisa tirar essa bota do meu pé — estremeci enquanto falava, e Fink empalideceu. Para encorajá-lo, completei: — Ela está um pouco grande em mim, então deve sair facilmente. Apenas vá devagar.

 

Fink se ajoelhou ao lado da perna machucada. Não pude fazer nada para erguê-la um pouco, e, quando ele a levantou alguns centímetros e tocou meu calcanhar, gritei e lhe falei que parasse.

 

— Novo plano — continuei, com a respiração entrecortada. — Tente abaixar o cano de couro.

 

Ele tocou o cano da bota. Puxou-o para o lado, e a dor correu da minha perna até minhas costas e minha cabeça. Então, desistiu.

 

— Acho que isso é pior do que apenas puxar — ele disse.

 

Ainda do seu lado da cabana, Erick murmurou algo para si mesmo e levantou-se. Sem olhar para mim, tirou da própria bota uma pequena faca dobrada.

 

— Afaste-se — ordenou a Fink, que rapidamente obedeceu. Então se ajoelhou e começou a cortar o couro na lateral, o que foi um lento processo, já que a faca era muito pequena. E, cada vez que ele movia um pouco minha perna, mesmo que só um pouquinho, eu engasgava e tentava não desmaiar novamente de tanta dor.

 

Quando Erick chegou à sola, foi fácil puxar o resto da bota e liberar meu pé.

 

— Há um grampo nela — ofeguei. — Dê para mim.

 

— Deixe-me fazer isso — disse Fink. — Você não pode alcançar a fechadura com todas essas correntes.

 

Fink abriu totalmente o grampo e então enfiou uma ponta nas algemas que prendiam meus pulsos. Cutucou um pouco até encontrar a lingueta que estava procurando. Com um movimento delicado, as algemas se abriram. Em seguida, Fink repetiu o processo nas algemas dos tornozelos e, quando elas se abriram, ele as retirou cuidadosamente.

 

Livre das correntes, caí no chão. A queda doeu, pois minha perna saudável estava cansada demais para que me abaixasse com cuidado.

 

— E agora? — perguntou Fink. — A fechadura fica do lado de fora. Continuamos presos nesta cabana.

 

Olhei para a janela, pela primeira vez grato por ter perdido tanto peso recentemente. Erick me encarou, incrédulo.

 

— Você sabe onde estamos? Vários metros acima da praia e quase o mesmo tanto abaixo do topo do penhasco. Não há para onde ir.

 

Fink, aproximando-se de Erick, murmurou para ele:

 

— Roden disse que ele poderia escalar.

 

— Um penhasco? — Erick balançou a cabeça. — Talvez com duas pernas boas, mas não com uma.

 

— Quebre o vidro — pedi a Fink. — E reze para que não tenha ninguém abaixo de nós.

 

Fink esticou a mão para pegar a faca de Erick, que suspirou alto antes de entregá-la. Então o garoto agarrou a cadeira do canto, para subir nela enquanto quebrava o vidro. Esperamos em silêncio por passos do lado de fora do quarto, mas ninguém veio. Roden queria um grande banquete. Eu tinha certeza de que ele estava mantendo todo mundo ocupado.

 

Quando a janela estava livre, fiz um gesto em direção à cadeira onde Fink subira.

 

— Agora, quebre-a. Não divida as peças mais longas.

 

— Uma tala — murmurou Erick. — Sim, isso vai fazer toda diferença. — De qualquer forma, ele caminhou até a cadeira e começou a batê-la contra a parede.

 

Enquanto ele fazia isso, pedi a Fink que tirasse sua camisa e a cortasse em tiras bem longas. Então, deitei a cabeça no chão e fechei os olhos. Roden se arrependeria de ter feito isso comigo, e eu mesmo tomaria as providências para que isso acontecesse.

 

Com um golpe final, as últimas juntas da cadeira se partiram. A maior parte resultou em pedaços inúteis, mas Erick conseguiu quebrar dois pedaços retos e quase tão longos quanto minha perna. Disse a ele que diminuísse um pouco o comprimento deles, pensando que talvez precisasse dobrar o joelho para me equilibrar.

 

Eles concluíram o trabalho sem qualquer outra instrução. Fink segurou as talas de madeira em minha minha perna, enquanto Erick amarrou as tiras da camisa o mais apertado que conseguiu. Odiei precisar da ajuda deles, embora soubesse que seria impossível agir sozinho. Minha perna ainda latejava de dor, mas, uma vez imobilizada com os pedaços de madeira, era possível movimentá-la mais do que antes. Fiquei em pé e tentei sustentar sozinho o peso de meu corpo. Não me arrisquei a apoiar qualquer peso na perna machucada, agradecido pelos anos de escalada e de caminhadas em lugares estreitos, o que me deu equilíbrio e força.

 

— Agora, coloque a mesa sob a janela — eu disse.

 

— Você não tem chance naquele penhasco — comentou Erick.

 

— Prefiro despencar durante a escalada a ficar aqui esperando ser assassinado! — o medo que eu sentia soou como raiva. — E agora me ajudem. Por favor!

 

— Você é um completo idiota — disse Erick.

 

— Já me falaram isso. — Olhei para cada um deles por um momento e disse: — Acho que serei apanhado antes que alguém venha procurar por mim. Mas, no caso de eu estar errado, vocês deveriam inventar uma boa história sobre como consegui escapar sozinho daqui.

 

— Eu sabia que odiaria você antes que isto acabasse — afirmou Erick.

 

— Lamento que me odeie. Sinceramente, dentre as pessoas que conheço, você é uma das poucas que eu preferiria que gostasse de mim.

 

Erick olhou para sua faca, suspirou com desgosto e então a estendeu para mim.

 

— Pegue isso.

 

Mas eu balancei a cabeça.

 

— É sua última defesa. Já peguei o bastante de você.

 

Sentei-me na mesa, depois fiquei em pé. Agarrei a beirada da janela com as pontas dos dedos, mas não havia um ponto de apoio para que eu erguesse meu corpo para alcançá-la. Erick suspirou de novo e, afastando a mesa, levantou-me em seus ombros e depois acima de sua cabeça, até que eu estivesse no ângulo certo para passar pela abertura.

 

Sentei-me no parapeito com minhas pernas já dependuradas. Uma brisa fria vinda do mar me atingiu, e eu respirei fundo. Erick subestimara a distância. Tanto para cima quanto para baixo, estávamos bem mais distantes do solo do que ele imaginara. A textura da parede do penhasco, entretanto, era melhor do que eu esperava. Videiras e outras plantas eram grossas e tinham raízes profundas, sendo ótimos pontos de apoio. Além disso, havia muitas pedras e reentrâncias que eu poderia usar durante minha lenta e dolorida escalada. Eu não sabia se conseguiria ou não chegar até o topo com apenas uma perna, mas achei que seria um ótimo dia para tentar.

 

Poucos metros depois, tive de admitir que a fuga, e consequentemente a escalada, não fora minha ideia mais brilhante. Eu não havia pensado na pressão que meus ombros e braços teriam de suportar para compensar a perna inutilizada, e minha perna que fazia o trabalho gritava por socorro.

 

Cada centímetro da escalada exigia uma série de etapas. Primeiro, eu precisava localizar visualmente o próximo ponto de apoio. Isso não parecia tão difícil, e eu planejei antes o que viria a seguir, tentando me assegurar de que não teria problemas. O segundo passo exigia que eu alcançasse tal ponto de parada com minha mão mais forte, para que ela estabilizasse meu peso e me mantivesse firme, mesmo que todo o resto falhasse. Depois, usava as duas mãos para me agarrar na parede, enquanto pulava para o próximo aporo com meu pé bom. Achei que poderia usar minha perna machucada temporariamente para o salto, mas doeu como se os demônios tivessem vindo me torturar. Contudo, desde que eu me movesse rapidamente, conseguia manter o equilíbrio para o passo final, que era mover minha outra mão para a nova posição.

 

Normalmente, eu completaria uma subida como aquela em apenas meia hora, mas eu me movia bem mais lentamente do que de costume. O sol estava se pondo e, com ele, qualquer esperança de que eu sobrevivesse à noite. Ouvi os sons dos piratas movendo-se abaixo de mim, mas, para minha sorte, ninguém pensou em olhar para cima à procura de fugitivos. De qualquer forma, a maioria parecia muito ocupada, provavelmente ainda preparando o jantar de Roden.

 

Depois de uma hora, eu já havia percorrido mais da metade do caminho. Cada músculo em meu corpo doía, e eu estava molhado de suor. Mas agora eu sabia que tinha alguma chance. Então, forcei-me a continuar subindo, focando meus pensamentos naqueles de quem eu mais gostava para me dar força.

 

Eu precisava viver. Havia tantas pessoas a quem eu precisava pedir perdão, tantas que eu esperava ver novamente. Além disso, era estranho notar que eu queria ver Drylliad outra vez, olhar para as paredes brancas do meu castelo e passar por suas portas, o lugar ao qual eu pertencia.

 

E então continuei a subir. Cheguei a um ponto em que a ideia de sentir dor não me impedia mais de usar minha perna machucada. Ainda não conseguia apoiar o peso nela, mas, como todos os meus outros músculos doíam demais, eu a usava para ter mais equilíbrio e estabilidade. Além disso, eu precisava me apressar. Afinal, se ainda estivesse no penhasco quando escurecesse, não teria chance de alcançar o topo.

 

O sol estava prestes a desaparecer quando minha mão mais forte alcançou uma pedra na superfície do penhasco. Parei um momento, para me certificar de que estava sozinho. Naquela hora, o banquete parecia já ter começado, então ninguém estava por perto. Aparentemente, Roden não mandaria ninguém me pegar até depois que a refeição terminasse. Eu esperava que eles ainda tivessem muitos pratos para comer.

 

Com um impulso final, rolei para o topo de penhasco, onde me deitei sem fôlego por vários minutos antes de perceber que precisava continuar. Então, fui me esconder sob um arbusto. Todas as partes do meu corpo doíam, e a dor de alguns músculos dos meus ombros competia com a da perna quebrada.

 

Então olhei para o lado e sorri.

 

Logo que cheguei ao orfanato da sra. Turbeldy, levei uma surra numa noite por impedir um garoto de continuar chutando um outro menor que roubara comida. Ao me ver todo machucado, a sra. Turbeldy me mostrou um aravac em seu quintal, um grosso arbusto verde-escuro com folhas finas e brilhantes flores roxas, e me ensinou que mastigar aquelas folhas diminuiria minha dor.

 

Eu havia me escondido debaixo de um arbusto de aravac.

 

Arranquei algumas folhas de um ramo e enfiei-as na boca. Apesar do gosto horrível, o efeito entorpecente começou quase de imediato.

 

Quando as folhas do primeiro ramo acabaram, peguei outras de um segundo e mastiguei-as também. A dor não desapareceu por completo, mas diminuiu bastante. Enquanto mastigava, aproveitei para ajustar o tecido ao redor das talas em minha perna, o que também amenizou a dor ali.

 

Era necessária uma boa dose de força de vontade para que eu continuasse a andar, mas eu disse a mim mesmo que as coisas ficariam piores quanto mais tempo eu esperasse. Contudo, só consegui me mexer ao imaginar Roden atrás de mim, após ver que eu conseguira chegar até ali, mas não tinha sido capaz de seguir adiante. Quase pude ouvir a risada dele, zombando do meu esforço ridículo em tentar alcançá-lo.

 

Para me mover, eu me deitava no chão e forçava meu corpo para a frente, apoiando-me na perna boa, enquanto arrastava a perna machucada. Mesmo sozinho, eu me sentia patético naquela situação, movendo-me como uma cobra. Até o rato de Fink andava com mais dignidade. Talvez tudo isso apenas revelasse minha verdadeira natureza. Era possível um rei se distanciar tanto de sua identidade a ponto de não ser mais alguém especial? Porque eu nunca me sentira mais baixo, menos merecedor do meu título.

 

Pelas risadas, era fácil saber onde os piratas estavam comendo. Eles não estavam muito longe de mim. Atravessei a arena onde Agor e eu duelamos; as espadas finas de madeira permaneciam penduradas nas árvores. Lentamente, fiquei em pé, então puxei as duas para usá-las como muletas. No entanto, não eram muito boas, pois me forçavam a andar encurvado, cerrando os dentes a cada passo trôpego. Mas pelo menos eu não mais rastejava. Quando já estava na metade do caminho, uma delas escorregou, e eu caí novamente no chão.

 

Mais uma vez, a ironia daquela situação colocou um sorriso em meu rosto: uma trilha das flores de Imogen estava diante de mim. Era difícil não notá-las. Elas pareciam se espalhar por todos os lugares do acampamento, ou, pelo menos, por aqueles onde eu poderia me meter em encrenca. Imogen dissera que as plantara para mim, como lembretes constantes do perigo que eu corria.

 

Então eu gemi quando finalmente entendi. Não, Imogen as plantara por causa do perigo. Eram para mim. Cavei com os dedos e rapidamente senti algo duro. Depois de cavar um pouco mais, tirei uma faca do buraco. Indiscutivelmente, uma das facas que, segundo Agor, faltavam na cozinha. Imogen deve tê-las enterrado por todo aquele campo. Para mim.

 

Quando me ergui, escondi a arma na bota e, em seguida, joguei fora a espada, que se quebrou ao cair, fragmentando-se em vários pedaços inutilizáveis. Continuei a usar a outra espada como apoio, pois desse modo poderia pular para frente, usando a perna machucada apenas quando fosse necessário certo equilíbrio extra. Eu me sentia completamente inútil, e nunca precisei tanto de determinação para me aproximar, aos pulos, de Roden.

 

Um cheiro doce enchia o ar quando cheguei perto do local do banquete, e imaginei que algum tipo de pudim estava sendo servido. Em um dos cantos do campo, alguém tinha deixado uma pilha de pratos usados, provavelmente as garotas que serviam as mesas, para depois levá-los para a cozinha. Em silêncio, revistei a pilha em busca de comida, qualquer coisa serviria. Muito do que encontrava não passava de cartilagem de assado, mas mesmo assim engoli o que pude.

 

— Oh.

 

Virei-me, muito ansioso e faminto para me importar com o quanto a situação era humilhante. Serena tinha me visto. Ela me encarou, parada no meio da trilha que levava à tenda do banquete. Coloquei um dedo sobre os lábios, num pedido silencioso de ajuda. Serena olhou em volta antes de se dirigir à outra pilha de pratos um pouco distante de mim. Ela a carregou até onde eu estava escondido, colocando-os na minha frente. Não havia muita comida, mas cada pedaço era um novo impulso para minha força.

 

Com comida no estômago e o avarac diminuindo as dores, não havia mais sentido em esperar. Fiquei de pé e usei a espada para seguir mancando até o banquete, já tão pronto quanto poderia estar naquela noite.

 

As mesas estavam dispostas em um grande retângulo, e Roden sentava-se à cabeceira. Os piratas, ocupados, conversavam e comiam. Levou um tempo até que percebessem que eu estava ali.

 

Roden ficou em pé e seu queixo caiu. Seus olhos percorreram minha perna enfaixada até chegar à espada de madeira em minha mão.

 

— Você não pode estar falando sério.

 

— Vamos terminar o que começou nos meus jardins — eu disse, com a voz mais firme que consegui. — Roden, vim desafiá-lo como rei dos piratas.

 

A maioria dos piratas continuou sentada enquanto esperava para ver o que Roden faria. Ele riu por um momento, como se estivesse certo de que eu estava brincando. Mas, quando se deu conta de que eu não brincava, concordou.

 

— Tudo bem.

 

Em voz alta, ordenou que retirassem as mesas para que se formasse ali uma arena de batalha.

 

— Primeiro, eu preciso de uma espada — eu disse. — O pessoal por aqui insiste em ficar com a minha.

 

Roden riu novamente, enquanto caminhava em minha direção. Fez um gesto para a espada que eu usava como muleta.

 

— Você tem uma.

 

— Feita de madeira. Como eu poderia acertá-lo? Não tem nem ponta.

 

Ele esfregou o queixo e sorriu perversamente.

 

— Eu também não teria escolhido essa. Mas algumas vezes precisamos viver com as consequências de nossas escolhas. O que você pensou que aconteceria quando viesse aqui?

 

— A mesma coisa que estou pensando agora. Qualquer pirata que não jurar lealdade a mim esta noite vai morrer. E você vai voltar comigo para Carthya — estudei cuidadosamente a reação dele para ver o impacto de minhas palavras. Mas não consegui dizer, pelo menos não ainda, se houvera algum. — Quero você ao meu lado, Roden. Preciso de um capitão de guarda em quem possa confiar.

 

Os piratas acompanharam Roden em uma sonora gargalhada.

 

— Você ficou louco. Não percebeu? Sou seu pior inimigo.

 

— Não precisa ser. Estou convencido de que você seria melhor amigo que inimigo.

 

— Acabei de quebrar a sua perna e pretendo matá-lo no fim desta noite.

 

— Bem, se você pedir com delicadeza, eu aceitarei suas desculpas. — Fiz um gesto mostrando a tenda. — Este lugar não é para você. É sangue cartiano que corre em suas veias.

 

— Isso não significa nada.

 

— Significa que não precisamos lutar — abaixei a espada para enfatizar o que estava dizendo. — Na verdade, realmente prefiro que não lutemos. Preciso de você, Roden. A guerra se aproxima.

 

Ele balançou a cabeça em descrença.

 

— Sim, eu sei. Sou eu quem levará a guerra até vocês.

 

Com um sorriso, eu disse:

 

— Então, você consegue entender minha lógica para vir até aqui.

 

Um pirata se aproximou de Roden.

 

— As mesas estão prontas. Um lugar foi preparado para vocês.

 

Roden olhou para mim.

 

— Se desistir agora, prometo matá-lo rapidamente, com misericórdia. É o melhor que posso fazer.

 

— Não. O melhor que pode fazer é deixar este lugar.

 

— Faça-me sair daqui — provocou Roden.

 

— Como quiser — plantei minha perna boa o mais firmemente possível no chão e ergui a espada. — Seu tempo como pirata termina esta noite. Venha comigo como o leal capitão de minha guarda, ou irei matá-lo.

 

Roden zombou.

 

— Com uma perna?

 

— É difícil derrotá-lo, a menos que eu use no mínimo uma — respondi, sorrindo. — Em vez disso, venha comigo. Faça esta escolha.

 

Roden sacou a espada da bainha e a agitou em um círculo completo ao redor dele. Ele manejava sua arma com uma facilidade que guerreiros de uma vida inteira invejariam.

 

— Não lhe darei outra chance, Jaron, e, a menos que se renda agora, vou matá-lo.

 

E a luta começou.

 

Andar não era uma opção para mim, então tive de usar o que estava disponível. Quase caí ao pressionar a espada de madeira contra uma pedra grande no chão. Ela se partiu, deixando-me com uma ponta muito mais afiada que a de uma lâmina. Mas ainda continuava uma arma inferior, feita de madeira.

 

O objetivo de Roden era claramente que eu perdesse o equilíbrio. Mas consegui me desviar da maioria dos ataques mais duros e me mantive firme apenas com uma leve ajuda da perna machucada. Quando ele percebeu minha estratégia, bateu um pouco mais baixo, forçando-me a bloqueá-lo com a espada de madeira próximo ao punho, onde o golpe era mais forte. A cada golpe, Roden precisava erguer novamente sua espada, e aproveitei esses momentos para arranhá-lo com os cacos de minha lâmina quebrada. Não consegui acertá-lo profundamente em nenhuma de minhas tentativas, mas todos os cortes sangraram. Então, por enquanto, eu ainda estava no páreo.

 

— Roden, não é isso que você quer — eu disse.

 

— Aqui eu sou rei.

 

— Você é um leão governando um ninho de larvas. Não há glória nisso, não há honra. Você é melhor do que isso.

 

— Você só quer me enganar, Jaron — retrucou Roden. — Ficou tão desesperado que essa oferta é sua última esperança.

 

— Quando eu estiver desesperado, pedirei a ajuda de Tobias. Isto não é um truque.

 

Roden tentou acertar novamente meu peito. Consegui desviar, mas a manobra custou meu equilíbrio, e Roden usou a chance para me empurrar. A queda fez meu corpo todo latejar de dor e deu a ele tempo de pisar em minha espada, quebrando-a.

 

— Agora, viu só o que fez? — perguntei. — Foi brilhante. Você seria um excelente capitão.

 

Ele nem ao menos sorriu. Em vez disso, agitou sua espada mais duramente contra mim. Eu me esquivei e depois o chutei com a perna boa. Roden cambaleou para trás, antes de novamente erguer sua arma. Eu me inclinei para a frente e agarrei-lhe as pernas. Ele caiu ao meu lado e sua lâmina tocou meu ombro.

 

Peguei a faca de Imogen e acertei a coxa de Roden, que gritou e se afastou.

 

— Essas feridas na perna doem, não acha? — perguntei.

 

Roden me acertou com um soco no queixo, mas, quando caí de costas, chutei o pescoço dele. E, como achei que seu soco fora um truque sujo, chutei-o novamente, com mais força. Dessa vez, enquanto o rei dos piratas reagia, ele perdeu o controle da espada. Eu mergulhei sobre ela, mas ele a recuperou, jogando-a para longe, e então se levantou.

 

— Levante-se — ordenou ele, arfando. — Esta é uma luta de espadas, não um joguinho.

 

Ergui a mão enquanto recuperava o fôlego. Roden abaixou sua espada e pegou meu braço, me ajudando a levantar.

 

— Por que eu? — perguntou ele. — Há outros tantos que você pode escolher. Homens com experiência, guerreiros.

 

— Qualquer um que seja brutal o suficiente para ameaçar Carthya é feroz o suficiente para defendê-la.

 

— Mas como você poderia confiar em mim? — insistiu Roden. — Depois de tudo que aconteceu entre nós.

 

— Porque você poderia ter me matado há instantes — firmei meus olhos nos dele. — Sei tudo sobre como fazer inimigos, mas muito pouco sobre amizade. Mesmo assim, penso que fomos amigos em Farthenwood. Até Cregan envenenar sua mente.

 

— Cregan só queria que eu me tornasse o príncipe.

 

— Mas esse é o problema. Se você aceitar que nunca teve chance de se tornar o príncipe, nunca, então começará a enxergar tudo que pode se tornar.

 

— Você sempre foi Jaron — murmurou Roden, como se fosse a primeira vez que isso lhe ocorrera.

 

— E você é um amigo de Jaron. E tenho tão poucos amigos que não afirmo isso levianamente. Você não pertence a este lugar. Nunca pertenceu. — Roden me encarou e algo mudou em seus olhos. Eu não tinha certeza do que ele estava pensando, mas pelo menos estava me ouvindo, e não tentando me acertar. Continuei: — Você quer ser alguém que faça a diferença neste mundo. Se assim deseja, então seja uma diferença para o bem. Em Carthya, você ficará ao meu lado e vamos lutar juntos. E isso importa.

 

Roden vacilou por um instante e então gritou:

 

— Ele precisa de uma espada. Não posso vencê-lo com honra a menos que esteja armado.

 

Alguém atirou uma espada para a arena, longe de mim. Inclinei a cabeça em direção a ela e ergui uma sobrancelha.

 

— Isso não conta. Não com a espada estando ali.

 

Roden suspirou, então foi pegá-la. Assim que eu estava armado, ele investiu contra mim mais uma vez.

 

Manejando uma espada de verdade, eu poderia lutar em um estilo mais tradicional, mas era óbvia a complicação da perna quebrada. Mantive o pé direito tocando o chão de leve, apenas para estabilizar meu peso, e fiz uma careta de dor cada vez que precisei usá-lo. Os golpes de Roden eram mais violentos do que os meus, ainda que eu fosse mais rápido. Então, Roden percebeu que bastava girar um pouco para que atrasasse meus golpes. Com isso, nossas lâminas executavam uma espécie de dança, tocando uma na outra.

 

Em seu entusiasmo, a multidão de piratas se aglomerava gradualmente à nossa volta, limitando ainda mais o espaço entre nós. Aquilo pareceu frustrar Roden, que desejava um espaço maior para aumentar seu impulso e a força de seus movimentos, embora representasse uma vantagem para mim; quanto menos eu me movimentasse, melhor. Minha perna gritava em protesto a qualquer movimento, e estava ficando cada vez mais difícil ignorar a dor.

 

Empurrei Roden para o local onde havia mais gente. Em razão de seu tamanho, ele era lento e minha manobra o encurralou.

 

Nossas espadas colidiram e se separaram. Em dado momento, ergui a minha para um ataque. Roden colocou a dele em posição para me bloquear, mas inesperadamente foi empurrado por alguém que estava atrás. Ele virou a cabeça, muito brevemente, para gritar a todos que se afastassem.

 

Bati a espada contra a mão dele, e Roden gritou ao ver o sangue correndo por seu braço. Ele tentou girar novamente, mas, ferido, deixou sua arma cair. Agarrei sua camisa, usando o peso dele para me equilibrar, enquanto pressionava minha espada em seu pescoço.

 

— Esqueça esse ódio, Roden — eu disse. — Tornei-me quem eu deveria ser desde sempre, e você precisa fazer o mesmo. Você pode ser muito mais do que isso. — A expressão endurecida no rosto dele não se alterou. Afastei-lhe um pouco a espada do pescoço e completei: — Você não foi destinado a ser rei. Mas é destinado a liderar os exércitos do rei. Você é minha escolha, meu guardião, meu protetor. Roden, preciso de você como amigo.

 

Algo brilhou em seus olhos novamente. O rei dos piratas abriu a boca para dizer algo, mas não teve chance. Apenas ouvi os passos pesados de um pirata atrás de mim, quando o homem pulou dentro do círculo. Antes que eu pudesse me virar, ele chutou diretamente a panturrilha de minha perna machucada. Gritei e caí de cara no chão, o corpo inteiro consumido pela dor. Minha espada caiu longe de mim.

 

Ao meu redor, os piratas riram e parabenizaram o camarada deles. Mas, com sua espada nas mãos, Roden abriu o círculo e gritou:

 

— Pare! Como ousa interferir na minha luta?

 

Os piratas se calaram. O homem que me chutou rosnou.

 

— Ele estava prestes a matá-lo.

 

— Se ele o fizesse, então seria uma vitória justa. Não posso governar se preciso de sua ajuda para vencer um oponente perneta — Roden me olhou. Eu consegui rolar para o lado, mas a dor em minha perna me sufocou com náusea e tontura. Com a visão turva, não conseguia enxergar com clareza se Roden estava em pé, ou se o chão onde eu me deitava havia de alguma forma se inclinado. — Pegue sua espada — ele ordenou. — Pegue-a e lute comigo.

 

Meus olhos se ergueram para fitá-lo, então deitei a cabeça em meu braço. Não havia sentido continuar a luta. Antes, eu podia usar ao menos a perna quebrada para ter equilíbrio. Mas, naquele momento, não conseguia sequer ficar em pé e beirava à inconsciência.

 

Roden caminhou até mim.

 

— Pegue sua arma. Você começou esta luta e você vai terminá-la.

 

Ele a terminaria.

 

Fechei os olhos por um instante. Depois, finalmente tomei minha decisão. Se eu fosse morrer, seria com uma espada nas mãos. Enterrando meus dedos na poeira, palmilhei o caminho até minha arma caída. Eu arrastava minha perna machucada enquanto me impulsionava para a frente com minha perna boa.

 

Quando passei por Roden, sua espada ficou pendurada em um ponto acima de minha cabeça. Alcancei a arma com as pontas dos dedos e a segurei, usando a outra mão para impulsionar o corpo.

 

Ergui a espada e forcei um leve sorriso.

 

— Esta é sua última chance de se render — disse eu, mal ouvindo minhas palavras, quem diria ele.

 

— Não tenho escolha então — Roden levantou sua espada, eu fechei os olhos, preparado como nunca estivera para a espada dele me atravessar e acabar com minha dor. Mas ele enfiou a ponta de sua arma na poeira ao meu lado e caiu de joelhos. — Obviamente devo me render, ou perder esta batalha.

 

Abri os olhos e vi o sorriso torto de Roden, enquanto me encarava. Então, ele balançou a cabeça, claramente exasperado pela minha dificuldade de entender aquelas palavras. Finalmente, soltei a espada, sem força nas mãos, como uma criança. Mas minha voz era forte quando eu disse:

 

— Jure lealdade a mim, Roden. E renuncie aos piratas.

 

Ele inclinou a cabeça.

 

— Jaron, você me derrotou em batalha. Portanto, eu renuncio à minha posição e juro lealdade a você, como rei de Carthya, rei dos piratas avenianos e meu rei sempre, para onde quer que você vá neste mundo.

 

Quando fiz um gesto para que Roden ficasse em pé, ele se virou para os piratas que ainda permaneciam ao nosso redor e falou:

 

— Vocês me ouviram. Jaron venceu esta batalha e ele nos comanda agora.

 

E essa foi a última coisa que ouvi antes de desmaiar.

 

Quando recobrei a consciência, estava em uma cama de verdade. Havia três ou quatro velas acesas no quarto e, embora eu tivesse tentado adivinhar, não estava claro o motivo pelo qual eu me encontrava ali. Talvez fosse um sonho. Uma leve mudança de posição lançou ondas de dor pelo meu corpo e eu engasguei. Definitivamente não era um sonho.

 

— Shhh — Serena apareceu ao meu lado, ajudando-me a me recostar. Ela olhou para trás. — Roden, ele está acordado.

 

Então se afastou e Roden preencheu meu campo de visão.

 

— Acho que jamais seria capaz de matá-lo. No momento da verdade eu falharia — ele disse.

 

— Você não poderia ter me dito isso nos jardins do palácio?

 

— Eu mesmo não sabia, não até agora. Como prova, deixei-o vencer. E agi leve com você o tempo todo.

 

— Então, exijo uma revanche — sorri, sonolento. — Mas não hoje. Onde estará quando eu estiver pronto?

 

— A seu lado, Jaron, como capitão de sua guarda.

 

Meu sorriso ampliou, e fechei os olhos para voltar a dormir.

 

Quando Roden me acordou, estava claro novamente. Serena estava sentada em sua cadeira com uma tigela de algo fumegante, mas meu estômago revirou só de pensar em comer.

 

— Você sente muita dor? — perguntou Roden.

 

Olhei-o.

 

— Isso é uma piada? Em quantos pedaços você supõe que minha perna esteja agora?

 

Ele revirou os olhos.

 

— Esqueci que você choraminga como um bebê quando está machucado.

 

Vi uma xícara ao lado de minha cama. Se não fosse tão difícil, eu a teria atirado nele.

 

Roden sentou-se ao meu lado e sorriu com simpatia.

 

— Não há ninguém aqui que possa consertar sua perna.

 

— Você deveria ter pensado nisso antes de quebrá-la.

 

— A perna de um homem morto não precisa de conserto.

 

— Ah. Como está a perna que eu esfaqueei?

 

— Doendo.

 

— Que bom — fechei os olhos novamente, esperando dormir mais, mas Roden chacoalhou meu braço. Encolhi-me ao toque dele e voltei minha atenção a Serena. — Pegue algumas folhas de aravac; todas que encontrar.

 

Assim que ela saiu, Roden disse:

 

— Elas vão ajudar com a dor, mas não consertarão sua perna.

 

— Prepare uma carroça para nos levar a Libeth — pedi. — Um nobre chamado Rulon Harlowe vive lá. É para onde iremos, se ele quiser me receber.

 

— Não acho que você esteja forte o bastante para viajar. Não parece muito bem.

 

— Não me sinto muito bem. Mas duvido que eu seja a pessoa mais popular por aqui. Minhas chances são melhores na estrada para Libeth.

 

— O que vai fazer com os piratas?

 

— A decisão é sua — então me lembrei de que Roden me dera a vitória. Agora eu era o rei pirata. — Chame Erick aqui — eu ainda estava cansado e minhas palavras soavam hesitantes. — Fink também. Traga-os aqui.

 

Roden se levantou e eu imediatamente caí no sono. Acordei algum tempo depois, com a porta rangendo ao ser aberta, e Erick entrou, seguido por Fink.

 

Erick balançou a cabeça sem acreditar quando me viu.

 

— Fiquei olhando pela janela, esperando ver seu corpo cair. Quando não vi, imaginei que tivesse caído em outro lugar. Nunca me ocorreu que ainda estava vivo.

 

Fink se adiantou, mas levantei a mão para impedi-lo. Mesmo aquele movimento provocava dor.

 

— Se você me tocar, vou enforcá-lo — avisei. Ele provavelmente não encostaria em mim, mas era melhor eu agir com cautela.

 

— Ouvi dizer que você ganhou a luta de espada — disse Erick.

 

Roden tossiu. Notei a expressão aborrecida dele para Erick.

 

— Esta discussão não tem motivo. Mas agora sou o rei aqui.

 

Roden deu um meio sorriso ao ouvir minhas palavras, então blasfemou em silêncio.

 

Erick continuou como se não tivesse percebido:

 

— Saiba que todos estão falando sobre o que fez. Ninguém o estima, mas eles o respeitam. — Eu assenti. Isso já era bom o bastante. — Quais são seus planos agora? — perguntou.

 

Tentei sacudir os ombros, mas desisti do esforço. Em vez disso, apenas disse:

 

—Tenho de ir para casa. Mas alguém precisa ficar no comando aqui enquanto eu estiver fora.

 

— E você escolheu Roden para nos liderar. — Obviamente, o último falatório não chegara ao cativeiro trancado de Erick.

 

— Não seja ridículo. Ele perdeu o trono para um oponente perneta. E devo dizer que estava quase inconsciente no final. Erick, você está no comando agora. — Erick arregalou os olhos, então rapidamente completei: — Sob duas condições. A primeira é que deve me devolver o relógio de bolso. Estou cansado de tentar roubá-lo de você.

 

Erick suspirou e em seguida puxou o relógio da camisa, estendendo-o para mim.

 

— Não está marcando bem o tempo.

 

— Não é por isso que o quero — disse, segurando o objeto. — A segunda condição é que você lembre os piratas de seu juramento ao rei pirata, a mim. Mas eu também sou o rei de Carthya, de modo que causar dano a qualquer cidadão cartiano, ou à nossa terra, ou propriedade, é me prejudicar. A partir de agora, haverá um juramento de paz entre nós. Todos os piratas devem renovar seus juramentos ou serão expulsos.

 

Ele balançou a cabeça em sinal de protesto.

 

— Eles nunca concordarão.

 

— Você os fará concordar. Diga-lhes que, se se entediarem, então sempre podem perturbar a paz dos meus inimigos. Agora vá, Erick, e consiga os juramentos.

 

Ele se levantou para sair, depois hesitou e disse:

 

— Gregor quer ver você.

 

— Mas eu não quero vê-lo. — Até pensar nesse encontro me deixava enjoado.

 

— Gregor me pediu para lembrar que, apesar dos crimes, ele manteve sua princesa a salvo e pensa que isso vale alguns minutos de seu tempo.

 

Fechei os olhos para descansá-los e murmurei:

 

— Muito bem, então.

 

Quando Erick saiu, olhei para Fink.

 

— O que você quer? Espero que não pretenda ficar aqui.

 

Ele pensou por um instante e depois disse:

 

— Posso ir com você?

 

— Não tenho certeza. Você é muito chato — então ergui um canto da boca. — Sim, quero que venha para Drylliad comigo. Mas terá de desistir de seus planos de ser ladrão e receber uma educação adequada.

 

Fink coçou o nariz.

 

— Educação?

 

— Sim. E aprender algumas boas maneiras. Por enquanto, não sei do que mais você possa precisar. Meu amigo Tobias vai ensiná-lo e, se você lhe causar algum problema, vou ordenar que ele seja duas vezes mais entediante que o usual. Confie em mim, ele é capaz de fazer isso.

 

— Posso levar meu rato?

 

— Não. — Fink inclinou a cabeça, mas eu firmei meu olhar sobre ele. — Não.

 

Relutantemente, o garoto concordou. Então, com os olhos pesados, mirei Roden.

 

— Estou a salvo sob sua vigilância?

 

— Você está a salvo — assegurou-me ele, enquanto eu desmaiava.

 

Não dormi tão bem depois disso. Uma nova dor acometera minha perna e eu fiquei meio acordado e meio submerso em pesadelos que mantinham a dor renovada. Ainda assim, preferia isso a ser acordado algum tempo depois com as notícias de que Erick trouxera Gregor para me ver.

 

Sentei-me com a ajuda de Roden, o que fez minha cabeça quase revirar de tanta tontura. Eu sabia que estava com uma aparência péssima, mas me recusei a parecer um inválido.

 

Erick acompanhou Gregor para dentro do quarto; as mãos dele estavam amarradas, e as roupas, rasgadas. Ele me avaliou rapidamente com seus olhos cruéis e depois disse:

 

— Jaron...

 

— Você vai me chamar pelo meu título — disse eu bruscamente. — E, agora, incline-se até que seu queixo raspe o chão.

 

— Sim, Vossa Majestade. — Ele não chegou até o chão, mas fez um esforço justo.

 

— Se você espera me convencer de sua inocência, então está desperdiçando meu tempo.

 

— Não, Vossa Majestade. Gostaria apenas de pedir a mesma misericórdia que o senhor estendeu ao mestre Conner. Por favor, leve-me a Drylliad de volta com o senhor. Os piratas...

 

— Os piratas não podem ser tão ruins assim. Afinal, você estava feliz quando pediu a ajuda deles para me matar.

 

Gregor cerrou os dentes tão forte que me perguntei se o queixo dele não estaria quebrado.

 

— Tive minhas razões.

 

— Que eram...?

 

Pela primeira vez desde que entrara, ele olhou diretamente para mim.

 

— Você perdeu reuniões importantes, fez piadas sobre os regentes e ignorou os planos futuros de seu pai. Realmente, pensei que seria melhor rei que o senhor. Mas agora devo confessar que talvez o senhor estivesse certo: parece que há uma ameaça sobre Carthya.

 

Esse não era um pedido interessante de desculpas. Pelo menos não do tipo que eu esperava.

 

— Bem, eu o levaria de volta, exceto pelo fato de que teria de vigiá--lo durante a viagem, e já me sinto bastante doente sem isso. Não. Você vai ficar aqui e encarar quaisquer que sejam as consequências que os piratas tenham em mente.

 

— Você também é o rei deles.

 

Eu inclinei a cabeça para Erick.

 

— Mas é decisão dele agora. Use sua língua venenosa para implorar misericórdia a ele. E vá embora.

 

Erick se adiantou, preparado para levar Gregor dali.

 

— Na noite antes de partir, você perguntou se eu achava que você queria fugir — o tom de voz de Gregor estava em algum lugar entre o pânico e fúria. — Eu achava que sim. Pensei que você era o pior dos covardes, e isso justifica minha crença de que eu deveria ser chamado de governante.

 

Apesar da dor que tais palavras me causaram, me inclinei para a frente e, em um suave sussurro, disse:

 

— Há algo que você não conseguiu entender sobre mim. — Gregor inclinou a cabeça e minha voz soou mais forte quando completei: — Eu nunca fujo!

 

Os olhos dele se arregalaram e, em seguida, o rosto empalideceu quando Erick o arrastou para longe, entregando-o aos piratas que estavam esperando do lado de fora.

 

— E o juramento? — perguntei a Erick quando ele se virou para mim.

 

— Ninguém está feliz com essa história — ele afirmou. — Mas deixei claro que nunca os deixaríamos partir a menos que jurassem. Além disso, imaginamos que, se você ficasse, não haveria muito mais que os piratas poderiam lhe causar. O juramento é seguro. Os piratas estão, oficialmente, em paz com Carthya.

 

Aliviado, eu disse:

 

— Muito bom.

 

— Não é de todo bom — continuou Erick. — Não vai demorar muito até que o rei de Avenia descubra que você roubou a lealdade dos piratas. E não vai ficar feliz com isso.

 

— Bem, eu também não estou feliz com ele. — Afinal, o rei tinha conspirado com os piratas na tentativa de me derrubar, o que inviabilizava nos sentarmos juntos para um chá. Usei minha última reserva de energia para dizer: — Não importa o que aconteça, você garantirá que os piratas vão manter o juramento. Se houver uma briga, eles lutarão por mim.

 

— Você é nosso rei — afirmou Erick.

 

Eu assenti e então disse para Roden:

 

— É tempo de partir. Quero ir para casa.

 

A volta para Libeth foi um passeio pela enciclopédia de técnicas de tortura. Roden guiou a carroça conduzida por seu cavalo e pelo meu, e eu gritei mais de uma vez conforme ele deliberadamente passava por cada elevação ou buraco. Roden disse que estava indo o mais rápido que podia, o que não era exatamente uma negação das minhas acusações. Amaldiçoei-o como resposta, até que Fink me disse que estava aprendendo palavras que nem mesmo os piratas usavam. Mandei-o ficar quieto e que me deixasse tentar descansar. Não muito tempo depois, comecei a tremer. Fink enrolou cobertores no meu corpo, mas não adiantou muito, porque o frio não vinha de fora, estava em mim, como se água gelada tivesse preenchido minhas veias. A náusea tinha voltado e com ela um tipo de tontura que só piorava quando eu fechava os olhos. Como dormir era impossível, a cada quilômetro eu me sentia consideravelmente pior, até que Fink foi desaparecendo nas nuvens que tomavam meus olhos, como faziam frequentemente as personagens em meus sonhos.

 

Era tarde da noite quando a carroça finalmente parou. Eu tinha a vaga noção de que Roden estava falando comigo e pressionando meu pescoço em busca de pulsação. Mas, quando tentei explicar o que queria, ele apenas me olhou como se não tivesse entendido.

 

Um momento depois, o rosto de Harlowe se debruçou sobre o meu. Ele gritou ordens para pessoas que eu não consegui ver, depois me pegou no colo e me carregou para dentro de sua casa. Tentei falar, mas ele me disse para permanecer em silêncio e tudo ficaria bem. Eu já tinha entendido aquilo. Não era por isso que eu fora até os piratas, para consertar as coisas? Para que tudo, afinal, acabasse bem? Estava tão cansado que nada que alguém fizesse ou dissesse fazia qualquer sentido.

 

Harlowe me deitou em uma cama, em um quarto que não reconheci, e me cobriu. Continuei empurrando-os e lutando com quem estivesse por perto até conseguir pegar dentro de minha camisa o objeto que procurava.

 

— Harlowe — murmurei. Ele apareceu e disse já ter mandado chamar um cirurgião. Pouco importava. Eu mal conseguia sentir minha perna. Tudo que eu queria era lhe entregar o relógio de bolso, que pressionei na mão dele. — Perdoe-me — sussurrei. Não tive certeza se ele me entendeu ou não, mas Harlowe afastou-me do rosto o cabelo molhado de suor e me disse para dormir. Eu obedeci.

 

Acordei com uma sensação tão feroz em minha perna que pulei na cama e gritei. Minha mão escorregou até a faca, mas, como ocorria com frequência ultimamente, ela não estava ali. Então, com minha perna boa, dei um chute, chocando-me com alguém que grunhiu e caiu para trás.

 

Mãos fizeram com que eu me deitasse e, em algum lugar do quarto, a voz de Roden disse que era apenas o cirurgião dando um jeito na minha perna e que eu me acalmasse. Perguntei-me se fora Roden quem eu acabara de chutar. Porque, se fosse ele, o golpe era bem merecido depois de ele me fazer sentir tanta dor.

 

Finalmente, o pior da dor passou e as mãos me soltaram. Alguém tentou me dar algo para beber, mas estava quente e eu cuspi. Ouvi alguém pronunciar o nome de Imogen e perdi a consciência de novo.

 

Na vez seguinte em que acordei, as coisas começaram a fazer mais sentido. As cortinas estavam quase totalmente fechadas, deixando passar apenas uma estreita faixa de luz. Gemi quando tentei mudar de posição, e vi o rosto de Imogen, cuja pele brilhava com a luz. Então, me perguntei se os demônios estavam zombando de mim e se ela não estava realmente ali.

 

— Beba isso. — Imogen me ajudou a me recostar para engolir um chá de mel que, ao mesmo tempo, me acalmou e aqueceu minha garganta seca. Até aquele instante, eu nem sequer percebera quanta sede sentia.

 

— De onde você veio? — perguntei.

 

— A mensagem de Harlowe nos alcançou quando estávamos deixando Dichell. Íamos em direção aos piratas para salvar você.

 

— Ordenei-lhe que não voltasse ao acampamento dos piratas.

 

— Sim, mas não deu essa ordem a Mott, e infelizmente era ele quem estava me dando carona.

 

Sorri, mas até esse pequeno movimento me provocava dor.

 

— Você está começando a se parecer comigo. Isso não é bom.

 

Em vez de uma resposta, Imogen me deu mais chá. Aceitei e então perguntei:

 

— Estamos na casa de Harlowe?

 

— Sim. Ele pediu para ver você tão logo estivesse sensato novamente.

 

— Lembro-me de estar confuso — disse. — Mas só porque ninguém conseguia me entender.

 

— Seu corpo estava em choque. O cirurgião ficou surpreso por você ter sobrevivido à viagem até aqui.

 

— Eu também. Roden é um condutor terrível.

 

— Ele foi obrigado a vir depressa. Sabia o perigo que você corria.

 

Uma porta atrás de mim se abriu e Imogen ergueu o olhar, então acenou para quem quer que estivesse ali. Quando Harlowe se aproximou de minha cama, ele se inclinou um pouco. Imogen o convidou a se sentar na cadeira que ela estava ocupando e disse que voltaria em poucos minutos.

 

Harlowe se sentou, deu um sorriso triste para mim e então se inclinou para a frente, com os braços descansando nas pernas.

 

— Os ladrões estavam indo roubar alguém — era importante fazê-lo entender isso, antes que qualquer coisa fosse dita. — Se eu não os trouxesse aqui...

 

— Eles teriam ido a algum outro lugar e causado um dano real. Eu sei. Mott explicou depois que você partiu.

 

— Mott não sabia. Eu nunca lhe contei.

 

— Mas ele conhece você e então explicou.

 

— Lamento, Harlowe. Assustei Nila.

 

— Nila estava com medo por você, não de você.

 

— Como ela está?

 

— Está se ajustanto, mas sente falta dos pais.

 

— Lamento por isso também. Não sabia que os ataques estavam acontecendo.

 

Depois de tossir, Harlowe disse:

 

— Tentei falar com o rei, seu pai, não faz muito tempo. Ele me encaminhou para seu principal regente, mestre Veldergrath.

 

Meu estômago revirou. Meu desprezo por Veldergrath era pior do que minha opinião sobre os ratos, isso se pudesse distinguir um do outro.

 

— Ele foi destituído do cargo de regente no mês passado — eu disse. — Mas alguém deveria ter escutado o que você tinha a dizer. — Era difícil fazer a pergunta seguinte, mas eu precisava da resposta: — Meu pai sabia o que estava acontecendo aqui?

 

Ele franziu a testa.

 

— Não sei. Nós tentamos lhe mandar mensagens, mas não sei se ele as recebeu.

 

Provavelmente isso não importava. Duvidava que meu pai tivesse forças para deter Avenia, ainda que soubesse de tudo. Recostei a cabeça nos travesseiros e descansei. Depois de um momento, eu disse:

 

— Naquele dia em que eu trouxe Nila para cá, você me pediu para passar a noite. Era uma oferta sincera, não era?

 

— Claro que sim.

 

— Por causa do que eu fizera por ela?

 

— Porque você se parecia com alguém que precisava de um lugar para ficar.

 

— E por que você me deu o relógio de seu filho?

 

Ele hesitou, depois disse:

 

— Eu não sabia o motivo de você ter se juntado àqueles ladrões, mas sabia que não era como eles. Tinha esperanças de que o relógio o ajudasse a encontrar seu caminho de volta. Talvez o mantivesse a salvo.

 

Meus olhos ficaram pesados de novo. Harlowe fez um movimento para sair, mas pedi a ele que esperasse. Quando ele se sentou outra vez, falei:

 

— Você prefere evitar os políticos em Drylliad. Honestamente, eu também. Mas Carthya precisa de você, e eu preciso de um primeiro regente.

 

Harlowe se endireitou.

 

— Primeiro regente? Esse é um título concedido ao mais antigo de seus regentes. Há muitos outros...

 

— São todos idiotas. Ambos sabemos disso. Por favor, Harlowe, você virá para Drylliad?

 

Não houve hesitação.

 

— Como desejar, Vossa Majestade.

 

— Sou Jaron — minhas palavras estavam começando a patinar e logo o sono chegaria. — Esse é o meu nome.

 

Quando Imogen cuidou de mim em Farthenwood, ela ainda era uma serva e estava sujeita às ordens de Conner. Mas agora, na casa de Harlowe, rapidamente ficou evidente que ela controlava cada aspecto de minha recuperação.

 

Ela me forçava a comer e a tomar água, até que eu me recusasse a abrir a boca. Cuidava dos cortes e arranhões nas minhas costas e no meu peito e ficava comigo constantemente, a menos que houvesse uma visita. Contudo, falávamos pouco um com o outro. Acho que nenhum de nós sabia as palavras certas.

 

Na maior parte do tempo, eu deixava que ela conduzisse as coisas e não reclamava. E na tarde daquele mesmo dia eu lhe disse que era tempo de voltar para Drylliad. Pedi que arranjasse um mensageiro que notificaria Amarinda e Tobias; eles deveriam encontrar uma desculpa para partir e nos encontrar em Farthenwood. Precisávamos nos organizar a fim de que eu voltasse ao castelo.

 

— Você não acha que eles vão perceber que o rei está voltando para Drylliad com uma perna quebrada? — perguntou ela sorrindo.

 

— Talvez eu não seja mais o rei — respondi. Talvez, mesmo sem Gregor presente, os regentes tivessem votado pela minha saída.

 

Alguém bateu à porta, interrompendo a resposta de Imogen, e Mott entrou no quarto. Então ela pediu licença para sair e ele se sentou na cadeira antes por ela ocupada.

 

Era difícil saber por onde começar a falar. Eu sabia que Mott tinha sido respeitoso em razão do meu título e da extensão de meus ferimentos, mas eu queria mais do que isso. Precisava saber o que o levaria a me considerar amigo de novo, se é que fosse possível. Aparentemente, ele se sentia incomodado também, porque gastou mais esforço estudando o chão do que olhando realmente para mim.

 

Finalmente, eu disse:

 

— Não me desculparei pelo que fiz. Mas devo me desculpar pelo tanto que minhas ações devem ter sido difíceis para você.

 

— É justo. — Então, ele completou: — Mas, para registro, eu não vou me desculpar por ter ficado louco da vida quando você fugiu. Estou feliz que tudo tenha acabado bem, mas você foi muito imprudente.

 

— Concordo. — Fiz uma pausa e continuei: — Embora, nas mesmas circunstâncias, eu fizesse tudo de novo. Exceto irritar tanto Roden a ponto de ele quebrar minha perna.

 

Ficamos em silêncio por um instante e, depois, com uma voz muito mais triste, Mott continuou:

 

— Por que não me deixou acompanhá-lo? Eu o protegeria.

 

Olhei para ele.

 

— Esse é o problema. Você me protegeria, o que teria arriscado a nossa vida. E era minha a obrigação de ir. Sabia que, em algum ponto, teria de enfrentar Roden. E ele não voltaria se fosse outra pessoa em meu lugar.

 

— Depois do modo como ele o tratou, pensei que o mataria.

 

— Apenas se não tivesse escolha. Minha esperança sempre foi de trazê-lo para o nosso lado de novo.

 

— Ele está melhor aqui conosco.

 

— E estamos melhores com ele — afirmei. — Roden é um inimigo perigoso, mas um amigo feroz. Carthya precisa dele ao nosso lado.

 

— Mas como pode confiar nele, depois de tudo que fez com você?

 

— Quando lutamos daquela última vez, ele poderia facilmente ter terminado as coisas acertando minha perna. Mas não o fez, nem uma vez. Se ele me quisesse morto, eu estaria morto.

 

Mott assentiu.

 

— Então terei de aprender a confiar nele também. Você tem amigos, Jaron. Sempre estaremos ao seu lado.

 

Eu entendia aquilo melhor agora. Apontei para o braço dele, ainda envolto em bandagens.

 

— Sinto muito pelo que tive de fazer com seu braço na casa de Harlowe.

 

— Eu tinha chegado um pouco mais cedo naquela noite. Harlowe estava fazendo o possível para negar que vira você, mas era evidente que o vira — o canto da boca de Mott se ergueu. — Ele pensou que você era um servo fujão, provavelmente pertencente a algum nobre em Drylliad.

 

Por alguma razão, aquilo me pareceu divertido. Sorri até sentir dor, então disse:

 

— Harlowe é um bom homem. Pedi a ele que se torne meu primeiro regente.

 

As sobrancelhas de Mott se levantaram.

 

— O primeiro? Os outros regentes ficarão bravos. Alguns estão lá há mais tempo do que você está vivo.

 

— Eles estavam prontos para dar o controle de Carthya a um traidor. Assim que a traição de Gregor for exposta, eles serão muito mais humildes. Harlowe é o homem certo para liderá-los.

 

— Ele vai lhe servir bem. — Mott cerrou os lábios e emendou: — Ele ainda não conseguiu entender como um rei pôde abandonar tudo e ir se juntar a ladrões e piratas. Ficou preocupado que você tivesse se esquecido de quem era.

 

— Nunca me esqueço, nem uma vez — murmurei. — Essa é a parte mais difícil — olhei para Mott. — Nem sequer posso me perdoar, se você não me perdoar.

 

— Por isso? — ele inclinou a cabeça. — Não há nada a perdoar.

 

— Não, não pelo que fiz — abaixei o olhar e peguei uma linha solta do cobertor. — Peço-lhe que me perdoe por quem eu sou. Nunca será fácil trabalhar comigo.

 

Os olhos de Mott ficaram marejados.

 

— Estou certo disso. Mas vou servir-lhe mesmo assim. — Após tais palavras, deitei a cabeça nos travesseiros e descansei. Quando Mott voltou a falar, abri os olhos, mas olhei apenas para a frente: — Eu devia saber que é melhor nunca duvidar de você — ele colocou a mão no meu braço. — Hoje você está vivo por ter feito tudo certo na vida. Você se saiu bem.

 

Eu sorri e voltei a dormir. Não havia nada mais amável que ele pudesse ter dito.

 

 

Imogen estava lá quando acordei. Devo ter dormido a noite toda, porque o sol da manhã aquecia o quarto. Ela me ajudou a me sentar e colocou uma bandeja de comida em meu colo.

 

— Você parece você mesmo de novo — ela disse. — Quem quer que seja.

 

Pisquei algumas vezes para enxergá-la melhor.

 

— Um inválido? Esse é meu eu verdadeiro?

 

— Claro que não. Mas... — Dona de poucas palavras, ela apenas deu de ombros. — Você parece... satisfeito. Fica bem assim.

 

Eu ri.

 

— Não, não fico.

 

— Suponho que não. — Ela ficou quieta por um momento, então continuou: — Eu não devia ter ido até os piratas, mesmo sob as ordens de Amarinda.

 

— Concordo.

 

— Tínhamos esperança de que eu pudesse ajudar. O grampo, as flores, tudo para salvar você.

 

— Não, Imogen — eu disse. — Foi você que me salvou, e não apenas dos piratas. Preciso de você. Quando voltarmos para o castelo...

 

— Eu não voltarei — ela suspirou lentamente, como se desejasse expressar em silêncio as piores notícias. — Jaron, por favor, entenda. Não posso mais ir para lá.

 

— Por quê não? — Claro que ela iria comigo. De que outra forma as coisas voltariam ao normal? Havia preocupação em meu tom de voz agora: — Por causa dos servos, ou da princesa...

 

— De você. Não posso voltar e ficar próxima a você — as sobrancelhas de Imogen se juntaram, formando uma suave linha entre elas. — As coisas são diferentes agora. Você não consegue sentir?

 

Naquele momento, o que eu mais sentia era intensa frustração. Quando eu a demiti do castelo, sabia que a tinha machucado. Mas, certamente, depois de tudo, ela entendia minhas razões. Eu disse:

 

— Aquela noite em que mandei você embora, foi só porque...

 

— Era a coisa certa a fazer, e nós dois sabemos disso. Devlin teria me usado para tomar o reino de você.

 

Eu balancei a cabeça.

 

— Sim, ele tentou. Mas não funcionou.

 

— O que aconteceria se Devlin não aceitasse a luta? Você teria lhe contado sobre a caverna para impedi-lo de me chicotear?

 

Imogen tinha razão. Quaisquer que fossem minhas opções, eu jamais deixaria que ele a machucasse. Ainda assim, isso não era uma solução. Finalmente, murmurei:

 

— Você precisa voltar. É apenas amizade, Imogen.

 

As lágrimas inundaram-lhe os olhos.

 

— Não, Jaron, não é. Talvez nunca tenha sido. Você não vê que é doloroso para mim ficar perto de você? — Dor. E esse era o efeito que eu parecia desencadear nas pessoas mais próximas a mim. Talvez todas as minhas ações ao longo dos últimos dias tivessem sido necessárias para Carthya, mas eu pagaria um preço por elas: perderia a amizade mais importante de minha vida. Imogen limpou uma lágrima com as pontas dos dedos. — Além disso, se eu voltar, estarei no caminho entre você e Amarinda.

 

— É isso que a está incomodando? Posso resolver a situação.

 

Ela franziu a testa e, mesmo em meio às lágrimas, seu tom de voz ficou áspero:

 

— Como? Você vai me escolher e humilhar a princesa? Vai destruir a relação com o país dela, nosso único aliado? — ela balançou a cabeça. — As pessoas gostam dela, Jaron, e devem mesmo gostar. Escolha a mim, e você perderá o povo.

 

Escolher? Eu estava tão surpreso que só consegui balbuciar:

 

— Não estou escolhendo ninguém!

 

— E não precisa. Eu estou fazendo a escolha. — Ela olhou ao longe, então acrescentou: — Harlowe me ofereceu um posto para ficar aqui e cuidar de Nila, e vou aceitá-lo. Você deve retornar a Drylliad e aprender a confiar em Amarinda. Aprender a precisar dela.

 

Com um muxoxo, desviei os olhos de Imogen. Depois de ter ido tão longe, eu retornava exatamente aonde tinha começado. Imogen sentou-se e tocou meu braço.

 

— Jaron, ela está ao seu lado, sempre esteve.

 

— Ela é amiga de um traidor.

 

— Ela é sua amiga, o que você saberia se já tivesse lhe dado a chance de demonstrar. Como você pode identificar seus inimigos de forma tão clara, mas nunca seus amigos? — Imogen fechou os olhos muito brevemente, para acalmar suas emoções. — Você é um rei, e Amarinda deve se tornar sua rainha. Vocês se casarão um dia.

 

Então, ouvi um tremor na voz dela e me perguntei se havia me enganado antes. Talvez Imogen não tivesse dito que não éramos mais amigos. Talvez sua mensagem fosse que nós éramos não mais apenas amigos.

 

Foi impossível fitá-la diretamente quando murmurei:

 

— Imogen, você me ama?

 

Meu coração acelerou enquanto eu esperava a resposta. A cada segundo sem fim que passava, eu sentia aumentar a certeza de que nunca deveria ter feito aquela pergunta. Entendia o conceito de amor, mas há muito duvidava de que alguém pudesse me amar. Tudo que ousei esperar se resumia a pedir que Imogen fosse minha amiga. E mesmo isso parecia estar desmoronando.

 

Depois de um longo e horrível silêncio, ela balançou a cabeça e sussurrou:

 

— Eu não pertenço ao seu mundo, Jaron. Você tem a princesa. Ganhe o coração dela. Seja dela.

 

Procurei no rosto de Imogen qualquer indício de que ela estivesse escondendo suas verdadeiras emoções. Afinal, eu mesmo escondera meus reais sentimentos quando, naquela noite terrível, a expulsara do castelo. Emoções conflituosas invadiram-me, e me perguntei se era o que eu tinha feito Imogen sentir naquela noite, despedaçando seu mundo inteiro. Ela estava mascarando sua dor; eu a conhecia bem o suficiente para ver isso. Mas, por motivos que eu ainda não conseguia entender, eu era a causa de tudo.

 

Entretanto, no final, os motivos não importavam. Imogen estava certa: ela nunca poderia ser minha, independentemente do que sentíamos. Meu futuro indicava apenas um caminho, e ele seria trilhado com minha noiva princesa.

 

Acenei silenciosamente para ela, e então Imogen se levantou e procurou o que fazer no quarto.

 

— Você deve estar pronto para partir em breve. Harlowe lhe preparou uma cama em uma carruagem.

 

Como se eu me preocupasse com isso.

 

— Não quero mais camas — resmunguei. — Vou viajar em uma carruagem normal.

 

— Tudo bem. Se conseguir chegar até ela.

 

Ela nem ousou me encarar, o que era horrível. Mas o pior de tudo era ainda olhar nos olhos dela e encontrar apenas indiferença.

 

Tentei uma última vez, desejando fazê-la me entender:

 

— Para onde quer que nossa vida nos leve, uma coisa é certa: sempre estaremos ligados. Você talvez até negue isso, mas eu não. Mesmo porque não sou tão bom mentiroso assim.

 

Imogen concordou, então se virou para mim pelo tempo suficiente para fazer uma reverência profunda e respeitosa.

 

— Por favor, perdoe-me... Vossa Alteza. Não é provável que nos vejamos novamente. Seja feliz em sua vida.

 

E então ela partiu.

 

Mott e Roden conduziam a carruagem de volta a Farthenwood. Harlowe viajou ao meu lado, com Fink sentado diante dele. Ainda sentia dor ao me sentar, mas não muita. Minha perna estava posicionada em um assento e enrolada com o que eu achava ser cada cobertor existente em Libeth. Ainda que um terremoto abalasse Carthya, ele mal perturbaria minha perna.

 

Na maior parte do tempo, viajamos em silêncio. Harlowe não fazia tentativas de conversas sem sentido ou sagazes, e muitas vezes se contentava apenas em ouvir e ver o mundo ao seu redor, o que muito me agradava. Em contrapartida, Fink parecia lutar para permanecer de boca fechada, cheio de energia presa dentro de si. Mas alguém deve tê-lo ameaçado porque, sempre que olhava para mim e abria a boca, fechava-a de novo e voltava a olhar pela janela.

 

Já estava escuro quando chegamos a Farthenwood. Fink dormiu a maior parte da viagem e assim permaneceu mesmo depois que nosso transporte parou. A carruagem real já estava lá.

 

Tobias veio nos saudar quase que imediatamente. Ele respirou fundo quando eu apareci com o rosto coberto por hematomas de batalha e a perna em uma tala, mas fez uma corajosa tentativa de sorrir. Olhou desconfiado para Roden, e supus que Roden teria de lidar com esse sentimento por um tempo. Além disso, Tobias superaria tudo quando ouvisse todas as explicações.

 

— Você vai ser um professor, afinal — disse a Tobias quando passamos por ele. — Seu primeiro estudante está dormindo na carruagem. Desejo-lhe muita sorte. — Ele fez uma careta e olhou hesitante para a carruagem. — Se isso não lhe basta, tenho outro pedido — continuei. — Ainda preciso de mais um regente. Por favor, aceite, Tobias.

 

Os olhos dele se estreitaram.

 

— Você está oferecendo o cargo para mim? Sério?

 

— Agradeça-me agora. Porque você não vai gastar muito tempo com aqueles tolos antes de se arrepender de ter aceitado.

 

— Então eu agradeço, Vossa Majestade. — Tobias beijou o anel do rei, então o passou para mim e disse: — Trouxe uma muda de roupas, assim posso ser eu de novo. Há roupas para você também, embora eu não saiba como passaremos a calça por essa perna.

 

— Vou pensar em algo. E a princesa? Ela está aqui?

 

Tobias assentiu.

 

— Ela disse que, se desejar falar com ela, vai encontrá-lo onde quiser. — Comecei a andar e ele completou: — Passei muito tempo com ela esta semana. Amarinda se importa sinceramente com você.

 

— Se alguém puder encontrar algo para comer, estou realmente faminto — eu disse, ignorando a avaliação de Tobias. — Vai demorar um pouco para eu trocar de roupa, mas peça a ela que se junte a mim quando eu terminar.

 

Quase uma hora depois, eu estava vestido e pronto para que Amarinda entrasse na pequena sala de jantar. Eu não deixaria que Tobias a trouxesse até que minha perna estivesse devidamente ajeitada sob a mesa. Ainda assim, alguém deve tê-la informado de minha condição, porque a primeira coisa que fez foi olhar para a cadeira na minha frente. E Amarinda se sentou na cadeira que Tobias lhe puxou, antes que eu tivesse tempo de ficar em pé e saudá-la da maneira adequada. Se eu pudesse fazê-lo, é claro.

 

Amarinda usava roupas simples: um corpete de algodão azul sobre a camisa branca e uma saia listrada também azul. O cabelo castanho-escuro caía-lhe como uma cachoeira nas costas, amarrado com uma fita branca. Independentemente do que quer que ela representasse para mim, eu não podia negar sua beleza. Ela viraria a cabeça das pessoas mesmo que vestisse um saco.

 

Amarinda começou a conversa:

 

— O que fez com seu cabelo?

 

Pareceu-me estranho que, mesmo estando coberto de cortes e contusões, para não mencionar a evidente lesão em minha perna, meu cabelo tenha sido sobre o que ela escolheu comentar. Então percebi que provavelmente essa foi sua intenção, para que ficasse claro que ela me via, embora sem chamar atenção para o quanto eu parecia ruim. Então sorri.

 

— Eu queria desafiar o cabeleireiro do castelo.

 

— É gentil de sua parte sempre encontrar maneiras de entreter seus servos.

 

— Esse é exatamente o bom tipo de pessoa que ele é — disse Tobias.

 

Amarinda sorriu para ele.

 

— Você ficaria orgulhoso de Tobias. Ele fez um trabalho admirável em sua ausência. No dia em que os regentes votariam sobre a administração, ele lhes mandou um relatório de dez páginas explicando em numerosos detalhes que, com apenas dezoito regentes, o voto deles não teria autoridade compulsória. Tobias foi brilhante!

 

— Obrigado, minha senhora — agradeceu Tobias.

 

— Então, a votação será adiada? — perguntei.

 

Ela balançou a cabeça.

 

— Não haverá votação. Você é o único governante de Carthya.

 

Fechei os olhos absolutamente aliviado. Então, olhando para Tobias, perguntei:

 

— Como posso recompensá-lo?

 

— Apenas prometa nunca mais fazer isso comigo de novo. Sem ofensa, Jaron, mas não quero sua vida. Mesmo fechado atrás de portas, tive uma ideia de quanto pode ser horrível.

 

— Alguém tentou matá-lo enquanto eu estive fora?

 

— Não.

 

— Então você não sentiu nem o gosto. Pode nos dar licença, Tobias?

 

Depois de Tobias fazer uma reverência e partir, virei-me para Amarinda.

 

— Você mandou Imogen para os piratas.

 

Um cacho de cabelo caiu-lhe na testa quando ela lentamente assentiu.

 

— Conversamos por um longo tempo antes de ela deixar o castelo. Eu disse que você havia me contado sobre o ataque. Como Imogen tinha certeza de que você iria até os piratas, ofereceu-se para ir até lá também, certa de que, se alguém tivesse a chance de fazê-lo mudar de ideia, esse alguém seria ela. Ou ela, ao menos, manteria você a salvo.

 

— Você deveria tê-la proibido de ir.

 

— Eu também poderia ter mandado o sol não raiar e, mesmo assim, ele se levantaria ao amanhecer. Ela teria ido de qualquer forma, Jaron.

 

— E você? Eu a deixei em uma posição terrível.

 

— Na verdade, não. — Seus longos cílios flutuaram, então ela disse: — Minha parte no plano todo foi insignificante.

 

— Nada é mais importante do que ter alguém cuidando de Carthya. Além disso, eu a coloquei em risco. Mott já havia partido para informar Kerwyn da traição de Gregor — eu mal olhei para Amarinda. Gregor fora seu amigo mais próximo. — Minha maior preocupação era o que aconteceria com você se eu não voltasse.

 

— Se houvesse qualquer ameaça, Gregor teria me protegido. Quaisquer que fossem as intenções dele para com você, ele ainda tinha certeza de que eu estava a salvo — ela baixou os olhos. — Acho que ele acreditava que, uma vez que se sentasse no trono, eu seria sua esposa.

 

— Ele estava certo?

 

Ela franziu a testa.

 

— Sob nenhuma circunstância eu o aceitaria. Você acha que eu poderia passar tanto tempo convivendo com Gregor e não ver quem ele era?

 

— Então, você sabia?

 

— Não exatamente, mas suspeitava. Percebi depois que a morte de sua família fora uma pequena sugestão da deslealdade de Gregor. Então decidi construir uma amizade com ele, na esperança de que, em uma relação mais próxima, eu pudesse encontrar alguma evidência de sua deslealdade. A única razão de eu trazer Conner para aquele jantar foi porque Gregor sugeriu. Pensei que era o modo de ele me testar contra você.

 

— O teste quase funcionou. Eu estava prestes a declará-la traidora. — O pensamento de que as coisas poderiam ter sido muito piores me fez estremecer. Completei: — Você se arriscou muito. Por que não me contou?

 

Ela endireitou sua postura.

 

— Eu mal conseguia lhe dizer as horas sem você interromper nossas conversas. Além disso, ele era seu capitão. Eu não poderia fazer acusações sem prova. Depois, tudo aconteceu muito depressa após a tentativa de assassinato. Eu tentei falar com você mais tarde naquela noite, mas os vigias à sua porta me disseram que você tinha escapado e ninguém sabia onde estava. Então você fugiu muito rápido na manhã seguinte. — Recostei-me na cadeira e ri. Com um movimento curioso de cabeça, ela disse: — Acabei de confessar um segredo que quase o matou. Pensei que você ficaria com raiva, e não alegre.

 

— Estou com raiva apenas de mim mesmo — suspirei. — Mott estava certo o tempo todo. Sou um tolo. Sabia de sua amizade com Gregor, razão pela qual eu não falaria com você também. Se o tivesse feito, tudo poderia ter sido bem mais simples.

 

— Ah — Amarinda sorriu timidamente. — É um milagre você e eu termos encontrado um assunto sobre o que conversar.

 

— Não encontramos, não de verdade. Imogen vivia me pedindo para fazer as coisas darem certo com você, mas eu não fazia isso. Qualquer fracasso entre nós é inteiramente culpa minha.

 

Amarinda pressionou os lábios, depois disse:

 

— Ouvi dizer que Imogen ficou para trás, em Libeth.

 

— Sim.

 

— Você me odeia porque não sou ela? E porque você vai ter de se casar comigo um dia?

 

Olhei Amarinda por um instante, antes de soltar outra risada mal-educada. Ela lançou-me um olhar que muito rapidamente se transformou em dor.

 

— Perdoe-me — pedi. — É que eram essas as palavras que quis dizer-lhe todo esse tempo e nunca ousei. — Antes que ela pudesse falar, perguntei: — Você me odeia? Porque não sou o meu irmão e porque você vai ter de se casar comigo um dia?

 

Um lento sorriso cruzou o rosto de Amarinda, então ela acenou com a cabeça e fez um gesto com a mão. Ela roçou a mão na minha e, antes que se afastasse, segurei-a, como um sinal de nossa parceria. Um sinal de que, a partir daquele momento, estaríamos juntos. A mão de Amarinda ficou imóvel a princípio, mas lentamente ela relaxou e apertou a minha. Eu nunca havia segurado a mão de ninguém antes, não assim. Era ao mesmo tempo maravilhoso e assustador.

 

— Eu estou deixando que Imogen se vá — eu disse. — E estou pedindo que você também o deixe ir.

 

Amarinda assentiu lentamente.

 

— Somos amigos, Jaron?

 

— Somos.

 

Com a outra mão, Amarinda acariciou meu braço, no local marcado pelos piratas. A queimadura ainda estava vermelha e suave, mas, de alguma forma, não doeu quando tocada por ela.

 

— A marca ficará mais clara um dia — eu disse. — Mas nunca vai desaparecer.

 

— Não deveria desaparecer. É parte de sua história agora. E o que você fez é parte da história de Carthya.

 

— Ainda assim, vou tentar mantê-la escondida.

 

Amarinda aumentou a pressão sobre meu braço.

 

— Não é necessário que a esconda. Nem esconda nada de mim.

 

O silêncio retornou, mas menos estranho que antes. A mão dela parecia macia e me perguntei se a minha era muito áspera para confortá-la. Desejei que eu não tivesse me tornado muito áspero para ela.

 

Finalmente, sorri e disse:

 

— Eu não como carne se for bem passada. — Ela me olhou, confusa, e eu completei: — Acho que você deve saber disso, já que agora seremos amigos.

 

O sorriso de Amarinda se abriu.

 

— E eu acho injusto que as mulheres não possam usar calças. Elas parecem mais confortáveis do que os vestidos.

 

Eu ri.

 

— Não são. Todo ano acho que a moda inventa mais uma peça que preciso ter em meu guarda-roupa.

 

— E uma camada a mais nas minhas saias. — Ela pensou por um instante, depois disse: — Acho engraçado quando você é rude com o cozinheiro. Não deveria admitir isso, mas o rosto dele fica de todas as cores quando você é mal-educado e ele não pode fazer nada a respeito.

 

Então ela riu e me deu um aperto de mão. Ficamos em silêncio. Depois de um tempo, falei:

 

— Não vou governar como meu pai fazia, e você não pode esperar que eu seja parecido com meu irmão. Nunca. Mas governarei da melhor maneira que puder para transformá-la em uma rainha orgulhosa um dia.

 

— E sobre esse dia? — Quando Amarinda sorriu, era óbvio que algo mudara entre nós. Ela completou: — Jaron, estou orgulhosa do que você fez por Carthya. Orgulhosa por ter confiado em mim, enquanto estava fora. E estou orgulhosa de estar sentada ao seu lado agora. Grandes coisas virão até nós.

 

E, pela primeira vez desde que me tornei rei, acreditei nela.

 

Era tarde da noite quando entramos em Drylliard. Mesmo àquela hora, as ruas pareciam mais quietas que de costume e muitas das casas estavam escuras. Talvez fosse muito mais tarde do que eu havia pensado. Ainda cansado, deitei a cabeça no assento, enquanto passávamos pelos portões do castelo. Fink abriu as cortinas das janelas da carruagem e tentou falar comigo, mas Harlowe o espantou com firmeza e disse-lhe que me deixasse em silêncio.

 

Tão pouco tinha mudado desde que partira duas semanas atrás. Mas algumas coisas haviam melhorado: Carthya estava a salvo de Gregor e do ataque pirata; Roden e Amarinda estavam comigo e a perda do trono não era mais uma possibilidade. Mas nem tudo estava como eu queria. Eu vagamente me perguntei se meu pai aprovaria todos os meus atos. Provavelmente não, mas eu poderia aceitar isso.

 

— Você está pronto? — perguntei a Harlowe quando nossa carruagem parou. — Com todas as desculpas, você logo verá o que significa associar-se a mim. — Independentemente de como o povo me avaliava, eu esperava que demonstrassem a Harlowe o respeito que ele merecia.

 

Harlowe sorriu calorosamente de volta.

 

— Uma pergunta melhor, Vossa Majestade, é se o senhor está pronto.

 

Ele saiu primeiro, e eu percebi que meu pátio estava muito mais bem iluminado do que normalmente ficava à noite. Em seguida, Harlowe estendeu a mão para Amarinda. Quando ela saiu da carruagem, comecei a ouvir ruídos, sopros e o arrastar de pés.

 

Então Harlowe se inclinou.

 

— Vai querer ajuda para sair desta carruagem, senhor.

 

Com raiva, balancei a cabeça.

 

— Quantos servos se juntaram para esta exibição? Sairei sozinho, antes que lhes dê motivos para rirem de minha impotência.

 

Harlowe estendeu a mão para mim.

 

— Tome meu braço, por favor. Confie em mim.

 

Então, deslizei para mais perto da porta e ele a escancarou. A princípio, tudo o que eu conseguia ver era o pátio iluminado por tochas, tão brilhante que tive de estreitar os olhos contra a luz. Então, quando dei meus primeiros passos, um clamor trovejou pela noite.

 

Hesitei, e, sem Harlowe para me equilibrar, eu poderia ter caído. Seria possível que aquela saudação fosse para mim?

 

Sorrindo, Harlowe disse:

 

— Então, é isso que significa estar associado a você?

 

Balancei a cabeça, sem entender. De repente, em algum lugar acima de mim, ouvi a voz de Kerwyn ecoando:

 

— Salve Vossa Majestade, Jaron, o rei ascendente de Carthya — e mais aplausos se seguiram.

 

Ao meu lado, Amarinda disse:

 

— Jaron, o ascendente. Gostei disso. Gostei de ver seu povo lhe dando boas-vindas ao lar.

 

Harlowe me guiou adiante, para onde a luz não era tão forte e eu poderia ter uma visão melhor do local. Até onde podia ver, o pátio estava repleto de gente. Meu povo. Então, lentamente, todos se ajoelharam e ficaram em silêncio.

 

Juntos, Mott e Kerwyn se aproximaram de mim. Eles se curvaram e Kerwyn limpou as lágrimas dos olhos quando se levantou novamente. Sacudiu a cabeça conforme olhava para mim.

 

— Sei como devo estar — eu disse.

 

Mas ele só ergueu um canto da boca e respondeu:

 

— Não, acho que você não tem ideia do que todos nós vemos em você.

 

Eu ainda estava confuso.

 

— Você ordenou às pessoas que viessem?

 

— Vieram por vontade própria — explicou Kerwyn. — Depois que ouviram o que você fez para elas.

 

— Mas como... — meus olhos se estreitaram. — Mott?

 

— Eu até contei os fatos a algumas pessoas — ele riu, claramente satisfeito consigo mesmo.

 

Eu olhei a multidão de novo, completamente absorto. Conner tinha me dito que eu era rei só pelo sangue, e não porque o povo me quisesse no trono. Mas isso não era mais verdade. Lágrimas inundaram meus olhos, trazendo à tona uma emoção jamais experimentada. Eu estava em paz. Outra batalha, muito maior do que qualquer coisa que eu enfrentara com os piratas, estava acabada.

 

Um sorriso brotou em meu coração e se irradiou pelo meu rosto. Eu ergui os braços e, com força renovada na voz, disse:

 

— Meu povo, meus amigos. Nós somos Carthya! — olhei-os enquanto comemoravam de novo, em seguida abaixei os braços e me virei para Mott. A exaustão finalmente ganhava a batalha. — Você me levaria até meu quarto?

 

Ele baixou a cabeça para mim.

 

— Sim, meu rei. — E mais aplausos acompanharam minha saída do pátio.

 

 

Pelos dois meses seguintes tudo ficou calmo. Quando necessário, Amarinda e eu aparecemos em público juntos, ainda que, com o problema na minha perna, houvesse menos eventos do que o habitual. Geralmente ela se juntava a mim e jantávamos juntos. Às vezes, outras pessoas participavam. E, qualquer que fosse o nosso grupo, era sempre um bom momento.

 

Depois de oito semanas, o médico permitiu que a tala de minha perna fosse removida, encorajando-me a me exercitar tanto quanto possível. Eu não precisava ouvir mais nada. Atravessávamos a estação mais quente, e eu estava desesperado para sair do castelo. Então, defini uma rotina de exercícios pelas manhãs e também à tarde. Só costumava parar quando Mott me lembrava de que minha perna não estava totalmente curada ainda. E eu lhe dizia que, provavelmente, sempre sentiria um pouco de dor , e era melhor que eu me acostumasse o mais rápido possível.

 

Foi em uma dessas ocasiões que vi Mott se aproximando no gramado. Normalmente, eu teria continuado o exercício, deixando a ele o trabalho de conseguir minha atenção. Mas ele não caminhava sozinho naquela tarde. Kerwyn e Amarinda o acompanhavam, e os três pareciam tensos.

 

O valete que me acompanhava se apressou com uma toalha quando viu que eu tinha parado. Coloquei-a sobre os ombros e, então, o dispensei.

 

— O que aconteceu? — minha pergunta não era endereçada a ninguém especificamente.

 

Kerwyn respondeu:

 

— É ruim, Jaron. Na noite passada, o exército aveniano cruzou nossas fronteiras. Libeth foi destruída.

 

Por um longo momento, não consegui respirar, não consegui avaliar quanta violência estaria implicada em uma invasão daquelas. Eu sabia que algo estava para acontecer, mas não uma invasão. Nada assim. Hesitei em busca das palavras certas e olhei para Mott, igualmente em busca de respostas.

 

Ele disse:

 

— Nila escapou com um dos servos de Harlowe, o mesmo que nos contou sobre o ataque. Harlowe está com eles agora.

 

— E Imogen?

 

Amarinda gentilmente balançou a cabeça.

 

— Eles a levaram. O servo acredita que os avenianos foram a Libeth para isso. Para chegarem até ela.

 

Para me pegarem.

 

— Nós vamos encontrá-la — a mão de Mott já segurava o cabo da espada.

 

— Mas há algo ainda pior — disse Kerwyn. — Acabamos de receber uma mensagem de que Gelyn e Mendenwal estão avançando do norte e do leste. O ataque foi coordenado e estamos cercados. Jaron, a guerra começou.

 

                                                                               Jennifer A. Nielsen 

 

 

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