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OPERAÇÃO CAVALO DE TRÓIA - 6
OPERAÇÃO CAVALO DE TRÓIA - 6

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

SÍNTESE DO QUE JÁ FOI PUBLICADO Janeiro de 1973 A Força Aérea norte-americana inicia a operação secreta denominada Cavalo de Tróia. Um ambicioso projeto científico que leva dois pilotos de volta ao ano 30 da nossa era. Mais concretamente, à Palestina de Jesus de Nazaré. O objetivo é tão complexo quanto fascinante: conhecer em primeira mão a vida e os pensamentos do chamado Filho do Homem. Jasão e Eliseu, responsáveis pela exploração, vivem a cada passo – quáse minuto a minuto – as terríveis jornadas da Paixão e Morte do Galileu. E comprovam que muitos dos fatos narrados nos textos evangélicos foram deturpados, omitidos ou mutilados. Depois do primeiro “salto” no tempo, Jasão, o major da Força Aérea norte-americana que dirige a operação e autor do diário no qual é contada essa aventura, passa por uma profunda transformação. Embora cético no início, a proximidade do Mestre abala sua estrutura interior.
Março de 1973 Os responsáveis pelo Cavalo de Tróia decidem repetir o experimento. Ficam no ar algumas incógnitas. Uma, em particular, dos cientistas: o que aconteceu na madrugada de domingo, 9 de abril do ano 30, Como explicar o misterioso desaparecimento do cadáver do Rabi da Galiléia? Jasão entra de novo em Jerusalém e assiste, perplexo, a várias aparições do Mestre. A desconcertante experiência se repete na Galiléia, Não há dúvida: o Ressuscitado é uma realidade física. Desta vez, a Ciência não tem palavras. Não sabe, não compreende o como daquele “corpo glorioso”. Jasão se aventura em Nazaré e reconstrói a infância e impropriamente chamada “vida oculta” de Jesus. Conclusão idêntica os evangelistas não acertaram ao narrar essas etapas transcendentais da encarnação do Filho de Deus. A adolescência e a maturidade foram mais intensas e apaixonantes do que tudo aquilo que já foi falado ou imaginado. O major vai conhecendo e entendendo a personalidade de muitas figuras que rodearam o Galileu. Jamais, até hoje, havia sido traçado um perfil tão minucioso e exaustivo dos homens e mulheres que participaram da obra do Mestre. É dessa forma que o Cavalo de Tróia desmitifica e coloca em seu justo lugar protagonistas como Maria, a mãe de Jesus, Pôncio pilatos ou os discípulos. Mas a aventura continua. Desejosos de chegar até o final, de conhecer, enfim, toda a vida pública ou a pregação de Jesus de Nazaré, os pilotos norte-americanos tomam uma decisão drástica: agirem à margem do procedimento oficial. E Embora suas vidas já estejam comprometidas por um mal irreversível – conseqüência do próprio experimento -, preparam-se para um terceiro “salto” no tempo. Uma experiência singular que nos Mostra Jesus infinitamente mais humano e divino. Um Jesus que pouco ou nada tem a ver com aquele retratado  ou sugerido nas religiões e na História.


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O diário (sexta parte)
18 DE MAIO, QUINTA-FEIRA (ANO 30) «Eu me enganei, sim... outra vez. Mas Eliseu, meu dedicado companheiro, soube esperar. Soube escutar. Soube compreender. Tornou fácil o difícil. Como já devo ter mencionado, as lembranças, a partir daquela manhã de quinta-feira, 18 de maio, são confusas. Alguma coisa me transformou e me dominou. Abandonei precipitadamente a Cidade Santa e, esquecendo a missão, galopei sem descanso. “O Mestre nos esperava... “Seu amor nos protegeria...” O que havia acontecido naquela longa presença derradeira do Rabi, Melhor dizendo, o que havia acontecido comigo Não era eu. Não era o cientista que, supostamente, devia avaliar, comparar e julgar. De fato, alguma coisa singular instalara-se no meu coração.
Na minha mente só brilhavam um rosto, uma frase, uma piscadela de cumplicidade. “Até breve!” Estava decidido. Iríamos em frente, já! Adiantaríamos o ansiado terceiro “salto” no tempo. E Ele nos esperava. Coitado do Posseidon. Mal lhe déramos descanso. A questão era que, já avançada a noite, Eliseu me recebia desconcertado. E durante algum tempo – na verdade, todo o tempo -, de maneira atropelada e sem muito êxito, tentei reconstituir os fatos do andar de cima da casa dos Marcos e ao pé do monte das Oliveiras. Meu irmão, percebendo que alguma coisa não ia bem, limitava-se a escutar. Deixou que eu desabafasse. Depois de uma longa pausa, apontou os beliches, sentenciando: - Vamos descansar. Um dia por vez. Decidízemos amanhã. Eu me recusei, sentia-me decepcionado. Insisti. - Ele nos espera. Não houve resposta. Eu sabia de seu ardente desejo. Ele, como eu, havia planejado a nova aventura com precisão e carinho. Contudo... Agora eu o compreendo e bendigo sua fibra. Ali morreu minha defesa apaixonada. O cansaço então chegou e fez-se o silêncio. A última lembrança que tenho é a de um Eliseu de costas, entretido na revisão dos cinturões de segurança que varriam o solitário cume do Ravid. Sim, amanhã decidiríamos.
19 DE MAIO, SEXTA-FEIRA Eliseu, prudente, me deixou dormir. Foi um sono longo. Profundo. Revigorante. Um descanso fantástico. Ou não foi o sono? Vejamos se sou capaz de explicar. A nova manhã nasceu esplêndida. Luminosa. Os sensores do “berço” ratificaram o que tínhamos à vista. Temperatura às 9:00 horas, 18 graus Celsius. Umidade relativa por volta de 47 por cento. Visibilidade ilimitada. Ventos calmos. Sim, um dia primaveril e diferente. A princípio, como eu ia dizendo, atribuí a mudança ao sono sereno e reconfortante. Pouco a pouco, porém, ao sair para a plataforma rochosa do “portaaviões”, comecei a intuir que ali acontecia alguma coisa mais. As palavras, de novo, me seguram, me limitam. Era uma sensação. Ou deveria eu falar de um estado? Quase não lembro do Jasão do dia anterior. Aquela fogosidade, aquele empenho cego em dar o terceiro “salto” pareciam agora um pesadelo remoto. Alguma coisa irreal. Meu Deus, como explicar tudo isso! Claro que discuti o problema com meu irmão e ele concordou comigo. Também havia percebido. Parecia ter sido repentino, embora eu continue tendo sérias dúvidas. Era, sim, como se “algo” invisível, superior, benéfico e sutil tivesse se derramado em nossos corações. “Algo” que, obviamente, naquele instante, não soubemos definir. Era, sim, uma sólida e implacável sensação (?) de segurança. Uma segurança diferente de outras que experimentara. Uma segurança em mim mesmo e, em particular, naquilo que levava em minhas mãos. Uma estranha e inexplicável mistura (?) de segurança, paz interior e confiança. Tudo nos parecia diferente. E a princípio, talvez por conta de um pudor estúpido, nenhum de nós se atreveu a mencionar a palavra, o espírito – não sei como descrevê-lo – que pairava no meio daquela “sensação”.
Foi meu irmão quem, corajoso, abriu seu coração. - Não consigo entender – disse -, mas aí está. Alguma coisa ou alguém abriu minha mente. E sei que minha vida não será mais a mesma. Seu espírito, suas palavras e suas obras se instalaram em todo meu ser... Então, ajoelhando-se, exclamou: - Bendito seja..., Jesus de Nazaré. Dias depois, ao retomar as missões que haviam ficado em suspenso, ao saber, de forma definitiva, aquilo que ocorrera e fora vivido pelos discípulos do Mestre em Jerusalém, comecei a desconfiar. E hoje sei quem foi o responsável por aquela cálida e poderosa “sensação”. Hoje sei que fomos participantes do magnífico “presente” do Mestre. Um “obséquio” várias vezes prometido e que levava um nome mágico: o Espírito da verdade. Mas não vamos nos adiantar aos acontecimentos. Não havia tempo a perder. Assim, diante do meu próprio desconcerto e da expressão feliz e radiante de Eliseu, entregamo-nos a uma análise calma e minuciosa da situação. E de forma espontânea, começamos pelo mais importante. Minha fuga louca da Cidade Santa acabava de arruinar um dos objetivos da missão oficial: seguir os discípulos depois da impropriamente denominada “ascensão”. O que acontecera durante a célebre festa do Pentecostes? Dera-se então realmente a chegada do Espírito? Mais ainda, o que era exatamente essa entidade? Podíamos dar credibilidade aos feitos fantásticos narrados por Lucas? O que ocorrera no cenáculo? Aqueles ali reunidos teriam visto as incríveis línguas de fogo? Os discípulos do Mestre teriam falado em outros idiomas? Para tentar esclarecer essas incógnitas, dispúnhamos somente de um recurso: apresentarmo-nos em Jerusalém e, com paciência e tato, reunir toda a informação possível. Segundo assunto não menos delicado: a chamada Operação Salomão. Aquela, justamente, era outra das chaves deste segundo “salto”. Não podíamos falhar. Mas o início dessa operação estava condicionado à “base-mãe-três”. Eliseu e este que escreve repassamos mais uma vez o tempo de
minha permanência na Cidade; finalmente desistimos. Não havia forma de sermos precisos. Dependia de uma porção de fatores, cada um mais frágil e inseguro do que o outro. Contudo, guiados por essa “força” férrea e recémchegada que nos invadia, deixamos nas mãos de Ab-bã, o Pai dos Céus... Curioso. Belo par de cientistas! E Eliseu e eu nos olhamos, estupefatos. Desde quando confiávamos no critério e na vontade de Ab-bã? O incrível é que nenhum dos dois se tinha incomodado. Ao contrário. Lutaríamos, sim. Isso estava claro. Mas, a partir de certo ponto, o assunto passaria à sua jurisdição. Sim, não há dúvida, alguma coisa havíamos aprendido com o Mestre. Terceiro problema. Melhor dizendo, terceiro problema duplo: a ameaça de Pôncio Pilatos e o assunto irritante da escassez de recursos. O governador, como anunciara o centurião, não descansaria até prender o “mágico poderoso” que se atrevera a ridicularizá-lo. Na verdade, eu pouco podia fazer. Allém das habituais e conhecidas medidas pessoais de segurança, só podia reforçar os cuidados e confiar. Discreto, Eliseu, não querendo piorar meu ânimo, tratou de aliviar minha carga, lembrando-me de uma coisa que eu já sabia: - Resistiremos. Com o terceiro “salto”, tudo isso desaparece. Outra questão foi o dilema difícil criado pela opala branca. A princípio, eu havia perdido uma oportunidade de trocá-la em Jerusalém. Contudo, meditando sobre as recomendações sensatas do ancião Zebedeu, que me advertiu sobre as intenções tortuosas e a voracidade de banqueiros e cambistas, fiquei um pouco inseguro. Nem mais: Eliseu achou ótima a fuga aparentemente louca da Cidade Santa. Que fazer então com aquela pedra preciosa? Como sabemos, segundo Cláudia Procla, governadora, a peça tinha sido avaliada em alguns milliões de sestércios (um pouco mais de 330 mil denários de prata). Uma enorme fortuna. Eu podia até me arriscar a viajar a Jerusalém levando a pedra.
Podia até negociar sua venda. Mas seria aconselhável transportar um carregamento tão vultoso e pesado de moedas até ao “berço”? Meu irmão não quis saber. O bom senso lhe recomendava cautela. Esperaríamos. Foi quando, ao fazer a contagem das parcas reservas existentes na sacola de borracha, aqueles exploradores, longe de cair num desânimo até natural, caíram na gargalhada. Outro indício, sim, de que “algo” esplêndido e prometedor estava nascendo no fundo de nosso ser... Eliseu acariciou as moedas e cantou pela segunda vez: - Dez denários e vinte asses... E ao nos olharmos, um riso contagioso, inexplicável e irrefreável explodiu de novo, quase nos fazendo chorar. Desconcertante Nem tanto. Hoje acho que sei o porquê de reação tão paradoxal. Em parte, a explicação foi dada por meu amigo com o seguinte comentário certeiro: - Seu “Chefe” está com algum problema... E o riso voltou, eliminando qualquer vestígio de pessimismo. Insisto. Hoje eu sei. Ali se dera um “milagre”. Aqueles homens começavam a compreender. Melhor dizendo, aqueles loucos aventureiros começavam a confiar em “alguma coisa” aparentemente pouco científica, mas sublime. Com efeito, Ab-bã, nosso Chefe, tinha um problema. Por último, maravilhados diante da nossa própria atitude, repassamos os detalhes do terceiro “salto”, mais que estudado. Eliseu me observava com complacência. Aquele Jasão, tranqüilo e sensato, mediu e calculou com equilíbrio. Tínhamos tudo, sim, mas convinha esperar e cumprir primeiro com o estabelecido. E aquela atmosfera de paz, confiança e segurança chegou ao “berço”. Eliseu, em silêncio, foi se sentar na frente do computador central. Digitou e, no ato, o fiel “Papai Noel” iluminou a tela e nos iluminou. A leitura das frases pronunciadas pelo Ressuscitado em 22 de abril, durante sua aparição na colina das Bem-Aventuranças, fechou a
inesquecível manhã. “... Quando fordes devolvidos ao mundo e à época de onde procedeis, uma única realidade brilhará em vossos corações: ensinai a vossos semelhantes, a todos, tudo o que vistes, ouvistes e experimentastes ao meu lado. Sei que, à vossa maneira, terminareis por confiar em mim. Sei também que não temeis os homens, nem o que possam representar,proclamareis minha verdade. E muitos outros, graças ao vosso esforço e sacrifício, receberão a luz da minha promessa... Não houve comentários. Não sei se meu irmão tinha preparado tudo. Não interessa. Os dois estávamos de acordo: aquele era de fato o verdadeiro objetivo, o mais sagrado, dessa experiência dura, estranha e fascinante. Claro que confiávamos nEle. Como não confiar depois do que havíamos visto e experimentado... Iríamos em frente, sim. Não deixaríamos em branco um único minuto, um único fato relacionado com o Mestre. O mundo devia, tinha direito de saber. Posseidon! Ao nos aproximarmos das escotilhas, percebemos nossa incompetência. O nobre cavalo branco, dado por Civílis na fortaleza do governador, em Cesaréia, reclamava um mínimo de atenção. Os relinchos reiterados e breves, rematados com um som grave, quase com a boca fechada, não deixavam dúvidas. O animal protestava. Chamava. Mas como podia saber que estávamos ali? O módulo, protegido pela radiação IV(infravermelha), era invisível aos seus olhos. Devíamos tomar uma decisão. Ficávamos com ele? Meu irmão, coberto de razão, foi contra. Certamente, pensando nas viagens que nos esperavam, contar com o Posseidon podia ser de grande utilidade. Contudo, enquanto a ameaça de Pôncio Pilatos continuasse pesando sobre este explorador, a presença do chamativo animal constituía um perigo extra. Tentei dissuadi-lo, argumentando que, ao montá-lo, não tinha reparado em marca alguma, nem de raça, muito menos de propriedade.
Eliseu me olhou feio. E eu soube a verdade: a única, a verdadeira razão de peso que me levava a defender o novo companheiro... era o afeto. Mas não protestou. Encolheu os ombros e me deixou com minha decisão. Havia uma prioridade. Querer alimentar o equino no alto daquela planície pedregosa e ressequida era coisa quase impossível. A água, talvez, era o de menos. O “berço” estava em condições de fornecê-la. A forragem já era outro problema. A vegetação que mal crescia no lugar era formada quase só pelos heróicos círculos de cardos perenes (a já mencionada Gundelia de Tournefort). Dessa forma, de comum acordo, decidi descer até a plantação situada ao norte do Ravid, ao pé do caminho que unia Migdal a Maghar. Com um pouco de sorte, podia encontrar o que procurava entre as hortas. O que não imaginei, naturalmente, é que o Destino – sempre ele – també me esperava entre aqueles esforçados felah. Peguei a “vara de Moisés”, os últimos denários e, sol a pino, puxei as rédeas do faminto Posseidon, cruzando a ladeira suave. Tudo estava calmo. Amarrei o paciente animal à frondosa macieira de Sodoma, devagar, extremando as precauções, fui me aproximando do que chamávamos de “zona morta”, a rampa de uns seis por cento de desnível que terminava na pista de terra negra e vulcânica. O caminho parecia livre. Ao longe, à altura da plantação, vi um bando de onagros, os asnos asiáticos duros e altivos, de ventre branco e orelhas grandes. Fiquei tranqüilo. Trotavam rápido em direção ao yam. Era o momento. Montei de novo o cavalo e, sem perder tempo irrompemos no caminho. Minutos depois, sem saber para onde ir, entrei decidido no labirinto de hortas e pomares. Não foi preciso caminhar muito. A sombra de umas amendoeiras em flor, um casal de fèlas (camponeses) trabalhava na colheita de enormes e suculentos hati (os famosos alhos-porós da Galiléia). Como se mostraram desconfiados, tive de repetir a pergunta. Precisava comprar cevada, se possível, cozida, e também alguns efa(1) de bom feno(2), bem como a pequena e nutritiva ol (fava) que começava a ser colhida nas margens do yam.
Suponho que eles me entenderam, mas, com má vontade, quase me dando as costas, se limitaram a indicar o rumo oeste, balbuciando alguma coisa sobre um tal Camar. Nem tentei esclarecer a situação. Aquilo não me parecia aramaico. Não querendo criar problemas desnecessários, aceitei como boa a indicação e voltei ao início da plantação. Ali, ao pé do montículo que protegia o pomar pelo seu lado norte, meio escondida entre alfarrobeiras, figueiras, pistácias e tamareiras, distingui uma choça de adobe com teto de palmeira. *1. Cada efa- medida de capacidade para sólidos – era equivalente a pouco mais de 43 quilos. (N. Do m.) 2. Estávamos em plena colheita da cevada – o que chamavam de primeira ceifa – e o feno, conseqüentemente, devia ser de excelente qualidade. Quer dizer, composto de leguminosas, gramíneas, rosáceas com flores e folhas de cheiro agradável e labiadas. Em resumo, um feno doce e verde. (N. Do m.)
A curta distância da casa, sentado sobre a grama e recostado contra a a de basalto de um poço, um velho me observava. Decidi fazer a prova. Eu me apeei do animal e, ao chegar perto do sujeito, comecei a entender. Respeitoso, retribuiu meu cumprimento, mas num aramaico da Galileia todo truncado. Levantou-se, estendeu a mão direita e, depois de entoar um “que Deus fortaleça tua barba”, colocou a mesma mão sobre o coração. Estava eu, de fato, diante de um badarvi (um beduíno)(3). O ancião, que devia ter uns 60 anos, vestia uma longa túnica branca parecida com o dissaha dos nómades da Arábia), com mangas amplas, cobradas por cima dos cotovelos. Cobria-se com um turbante (um keffiyeh), também de lã e de um branco igualmente imaculado. E sob o keffiyeh, solto sobre os ombros estreitos, um longo e desgrenhado cabelo, de um ruivo flamejante. Olhamo-nos com curiosidade. O rosto, magro, todo anguloso e marcado por dezenas de rugas, mostrava uns olhos pequenos, escuros e arrogantes. E na base daquele semblante negro esverdeado, uma barbicha grisalha e descuidada.
Sorriu, mostrando umas gengivas ulceradas e sem um único dente. E, segurando a grande mão de prata que lhe pendia do pescoço(4), fez sinal para que eu me aproximasse e que tomasse posse de seu humilde lar. Hesitei. Sequer havia perguntado quem era eu ou por que me encontrava ali. Pouco a pouco, conforme fomos avançando na pista de  Jesus de Nazaré, o contato com esses numerosíssimos badn – o povo  que fala claramente – foi nos dando um conhecimento mais completo e preciso de seus modos e costumes.
*3. O termo badmvi (beduíno, no singular) deriva do árabe (badu), embora os autênticos “habitantes do deserto” se autodefinam como arab (árabes, no plural). Esta expressão – arab – era a comumente usada nos tempos de Jesus para designar os beduínos em geral. (N. Do m.) *4. Esse tipo de enfeite – conhecido como khamsa – tinha para os badu um valor especial e mágico. Tanto as mãos, como as pedras azuis, olhos, triângulos, etc., serviam fundamentalmente para conjurar o temido mau-olhado – uma das superstições mais difundidas naquela época e naquelas terras, que o grande Rabi da Galiléia também enfrentou. (N. Do m.)
E a hospitalidade, como espero ter oportunidade de relatar, era uma de suas normas mais sagradas. Pena que os evangelistas praticamente não tenham mencionado os vários momentos nos quais o Mestre conversou e conviveu com os arab. Mas vamos dar tempo ao tempo. Logo, o amável velho voltava em silêncio da escuridão da choça; depositando no chão uma tigela de madeira e um ibrig (espécie de jarro de pedra). Cerimonioso, me estimulou a experimentar. Não fazê-lo teria sido um insulto. Dessa forma, correspondendo com teatralidade idêntica, levei a jarra aos lábios, descobrindo com prazer que o modesto “aperitivo” não era outra coisa senão o rai, espécie de “mosto” ligeiramente fermentado e sabiamente misturado com iogurt batido com suco de frutas. Em seguida, diante do olhar atento do meu anfitrião, como ditavam os bons costumes, enfiei três dedos da mão direita na tigela, tirando de dentro uma das delicadas e douradas tortas de pão Deliciosa... O homem, contente com meus elogios, esclareceu que uma coisa
inexplicável – pode ser a mão de Deus – o havia levado naquela manhã a preparar o liageh, um pão especial, elaborado com farinha de trigo e empapado em manteiga e mel. O que me chamou a atenção é que falava de Deus e não de deuses. Esses povos pré-islâmicos adoravam e veneravam toda uma legião de gênios benéficos (os wely) e maléficos (os inn), bem como numerosos fenômenos da Natureza, planetas e meteoritos. Mas não me pareceu prudente aprofundar-me num tema tão pessoal. De acordo com as especificações da boa educação entre os badu, repeti o raki três vezes e, finalmente, agitando a jarra, fui depositála nas mãos finas e longas do ancião. Foi então que, ainda de acordo com esses mesmos costumes, o gentil beduíno decidiu comer. E o fez num reverendo mutismo. Não tive alternativa. Se realmente desejava comprar a forragem para o paciente Posseidon, era preciso me ajustar às normas e me armar de paciência. Não me enganei. Ou sim? Concluída a refeição, como eu imaginava, ignorando a razão ou razões da minha presença em sua propriedade, ele tomou a palavra e aquele aramaico detestável começou a falar de seus ancestrais e de sua gloriosa origem. Eu me resignei, fingindo um vivo interesse e assentindo em silêncio a cada uma de suas afirmações mais que duvidosas. Soube assim que se chamava Gofel, embora todo mundo, na comarca, o conhecesse por um apelido: Camar, que em árabe significa “lua”. O apelido do antigo nômada – procedente, segundo ele, das remotas mesetas do Moab – se achava, pelo jeito, perfeitamente justificado. Mas sobre esse tema teríamos grandes notícias no terceiro “salto”. Disse pertencer ao mui nobre clã ou tribo dos Beni Saher, oriundos dos pastos de Madaba. E agitado referiu-se à sua estirpe como “os filhos do penhasco”, uma lenda que situava o nascimento do tal pooado numa rocha ou saher, nos limites da atual Belqa. E depois de enumerar os nomes dos vários varões até a quinta geração, esgotado, concluiu amaldiçoando – como era de esperar – os Adwan, os Togallr, os Hamaideh, os rltawne e, naturalmente, os odiados Sararat(1). Todos, segundo o agitado Camar, “cães raivosos e inimigos ancestrais de nossa gente”.
Era o ritual e, repito, não tive outro remédio senão escutar e esperar. Finalmente, como se fosse a coisa mais natural, perguntou a que se devia a honra da minha visita. Fui direto e sucinto. Camar, contudo, depois de compreender minhas prosaicas intenções, não respondeu. Dirigiu um olhar ao cavalo e, levantandose, caminhou até o animal. Eu não soube o que fazer nem o que dizer. Ele encarou posseidon e acariciou a estrela negra da fronte. O eqüino, com as orelhas em ponta e para a frente, mostrou-se dócil e tranqüilo. Bom sinal. O fino instinto do animal parecia coincidir com minhas observações iniciais: Camar era confiável.
*5. Conforme fomos avançando na exploração, comprovamos que, de fato, os clãs ou tribos mencionados por Camar se achavam distribuídos por boa parte da Peréia, mar Morto (em particular nas regiões do leste), deserto do Negueb, Decápole e, claro, Galiléia. A esses grupos de arab devíamos somar outras centenas de famílias e subclãs. (N. Do m.)
Devagar, deu a volta em torno do animal, apalpando-o e examinando-o. Escutei alguns elogios relativos ao excelente aprumo, à crina prateada, fina e imaculada, à cabeça retilínea e ao pescoço de cisne do meu “amigo”. Depois disso, voltou para perto de mim. Continuou observando o cavalo e, pedindo minha permissão, foi separar os lábios do animal. Segurou a cabeça com destreza e energia. O badawi sabia... Deixei que ele continuasse. Certamente aquele personagem podia ser muito útil. Ainda tínhamos pela frente muitos dias de permanência forçada no Ravid. “Quem sabe, pensei, nossa despensa pudesse até ser beneficiada. Acertei, mas não como imaginava. Ele examinou os dentes do cavalo e, uma vez mais, mostrou-se satisfeito. A verdade é que, até aquele momento, não havia reparado na idade do meu companheiro. Os incisivos de leite apareciam definitivamente substituídos, mostrando as respectivas
concavidades nas pontas. Posseidon, com toda a probabilidade, estava prestes a completar cinco anos. - Bem – ele sussurrou por fim, reforçando as palavras com um sorriso maroto -, na minha juventude fui sais e sei o que digo... Sais? Eu devia ter imaginado. Um especialista na avaliação de cavalos. - .. Ofereço-te 40 peças... Foi tudo tão repentino e inesperado que fiquei com a boca aberta, incapaz de reagir. E Camar, tomando o silêncio como uma negativa lógica, divertindo-se com o que achava ser uma forçosa cerimônia de pechincha, aumentou a soma. - Quarenta e cinco e que meus ancestrais me perdoem. - Mas... Rápido e astuto, adotou uma postura falsa e obrigatória naquele tipo de negócios entre os badu. - Achas que estou te enganando? - É que... Não me deixou terminar. E em seguida fez mais um gesto teatral, batendo no peito e invocando o suposto fundador de sua tribo. - Oh, pai Sahael!... Protege-me deste munayyil? 22 Fiquei na minha. Apesar da grosseria do insulto (munayyil, entre os arab, é sinônimo de covarde(6) e homem sem honra), eu sabia que lamentos e impropérios faziam parte do ritual. - O que pretendes? - Ele elevou a voz, desconcertado diante da aparente resistência daquele estrangeiro. - Queres ver minha ruína? Queres sujar minha cara?(7) Não vês que estou jurando pelo mais santo? Juro por mim e por meus cinco! Achas que sou um cão sararat?(5) A comédia, de fato, chegava ao fim. Ao jurar por si mesmo e por suas cinco gerações, Camar defendia sua honra no limite do permitido pelos escrupulosos badu. Quanto à alusão pejorativa ao clã dos sararat, o velho queria usar uma muleta, uma expressão
comum e corrente naquele tempo. Os sararat, nômadas dos nômadas, haviam caído na desgraça, sendo qualificados pelos judeus, gentios e arab como ladrões, assassinos e “cães do deserto”(8). Não era por acaso que, ao longo da sua vida de pregação, Jesus de Nazaré se referiria, em diferentes ocasiões, a estes infelizes, tão injustamente marginalizados e desprezados. Francamente, não sei o que aconteceu. Suponho que o Destino, atento, viera ao meu encontro. Enquanto eu assistia, perplexo, à encenação de Camar, “alguma coisa” me fez pensar na proposta. Resisti, mas foi inútil. “Aquilo” era implacável. Pesei prós e contras e, desconcertado, tive de reconhecer que a oferta nos aliviaria de duas maneiras.
*6. O termo munayyil (pintado com nileh) procedia de um velho costume dos arab. O homem covarde que, por exemplo, fugia da batalha, ao voltar ao acampamento recebia no rosto um banho de nileh (índigo) O ritual, geralmente, ficava a cargo de uma mulher da tribo. Dessa forma, o munayyil, com o rosto pintado de azul, era o alvo de gozação de sua gente, sendo desprezado por todos. (N. Do m.) *7. Entre os badu, a honra e a hospitalidade são dois princípios sagrados. Faltar à palavra ou trair os seus é considerado uma das piores afrontas. Na verdade, entre eles, é expressão corrente manter a “brancura da cara”, se referindo à preservação da honra pessoal ou do clã. (N. Do m.) 8. Os badus que chegamos a conhecer nas sucessivas explorações apareciam divididos numa infinidade de clãs. Um desses grupos – os sararat – devia sua péssima fama a uma remota e duvidosa lenda. Segundo a tradição, Sarar, o ancestral dessa tribo assassinou a própria mãe ao nascer, e o pai, como castigo, obrigou que uma cadela o amamentasse. Daí o qualificativo de “cães do deserto”. (N. Do m.)
De um lado, pairava o assunto da presença comprometedora de Posseidon. Doía, sim, mas cedo ou tarde, eu teria de seguir os conselhos de meu irmão. Ao mesmo tempo, e não era uma questão de fugir da magnífica ocasião, a venda do cavalo nos tiraria do sufoco. - De acordo... Nem eu mesmo acreditava.
- Mas vamos deixar em cinqüenta... Camar ficou pálido. Contudo, não lhe dei a menor chance. - ... Cinqüenta denários – rematei autoritário – e um presente. Os olhinhos do badawi baixaram. Beijou a mão de prata e, sorrindo meio forçado, negou com a cabeça. Não insisti. Eu devia mostrar firmeza. Assim, puxando o posseidon, fingi uma retirada em grande estilo, encaminhando-me para a estrada. O velho truque funcionou. Logo, um Camar gesticulante e choroso obstruía meu caminho, repetindo a habitual cantilena de juramentos. O resto foi simples. E o trato se fechou em 47 peças de prata e um enorme saco com a melhor colheita da horta: alho em abundância, cebolas, as suculentas adashim (lentilhas), alhos-porós, ovos e dez lo (seis quilos) de tenras pol (favas). Eu não quis olhar para trás. Com o coração na mão, literalmente fugi da plantação. Acabava de vender um amigo por um punhado de moedas. Curioso e demolidor Destino... Naturalmente, Eliseu aplaudiu a operação. Eu, de minha parte, fiquei silencioso e taciturno o resto do dia, refugiando-me nos preparativos para a iminente partida em direção à Cidade Santa e colocando em dia minhas anotações e lembranças. Repassei, em particular, os fatos transcendentais vividos por este explorador nas primeiras horas da manhã de quinta-feira, 18 desse mês de maio, na casa do falecido Elias Marcos e no monte das Oliveiras(9). *9. Ampla informação em Operação Cavalo de Tróia 5, pp. 314 e ss. (N. Do a.)
Tremi de novo, mas, enquanto escrevia, formando a imagem da última aparição incrível do mestre, um desgosto crescente e, imagino, inevitável tomou conta de mim. Como era possível? Caí de novo nos textos evangélicos e, repito, meu ânimo foi esquentando.
Marcos e Lucas, os únicos que se referem ao prodígio, simplesmente não davam uma dentro... Como isso era possível? O primeiro, no capítulo 16, versículo 19, diz textualmente: “E o Senhor, depois de lhes ter falado, foi levado ao céu, e está sentado à direita de Deus.” Será que a prolongada “presença” do Ressuscitado entre seus discípulos – por volta de meia hora – não tinha sido considerada importante? Será que o jovem João Marcos – o futuro escritor sagrado (?) - não soubera ou não quisera se informar a fundo? Essa lamentável escassez terminaria provocando, com o tempo, uma polêmica absurda entre exegetas e escribas. E a maioria sempre tratou de justificar o texto de Marcos, argumentando, mais ou menos, que o evangelista inspirara-se na história de Elias e o Salmo 110(10). Em outras palavras, alguma coisa assim como se a “ascensão” tivesse sido uma licença poética. Eu me revoltei, claro. Ele o disse. O Mestre repetiu duas vezes. Primeiro no cenáculo e, por último, na franja oeste do monte das Oliveiras: “... Eu vos pedi que permanecêsseis aqui, em Jerusalém, até minha ascensão junto ao Pai...”. Lenda? Licença poética? Marcos disse a verdade, mas não foi fiel a tudo aquilo que aconteceu naquela manhã memorável. Se tivesse relatado os fatos com detalhes, ninguém teria por que duvidar. Mas o que eu estranhava em tudo isso, As mutilações, silêncios e mudanças nos textos – que eu me nego a aceitar como revelados - mal haviam começado.
*10. No livro segundo dos Reis (2,11), podemos ler: “Iam caminhando (Elias e Eliseu; enquanto conversavam, quando um carro de fogo com cavalos de fogo se interpôs entre eles; e Elias subiu ao céu no torvelinho”. Por seu lado, o referido Salmo 110, garante: “Oráculo de Yaveh ao meu Senhor: Senta-te à minha direita, até que eu faça de teus inimigos o escabelo dos teus pés”. (N. do m.)
Estou sendo realmente objetivo? Temo que não... Talvez eu simplifique muito. Talvez o bom e voluntarioso Marcos
não tivesse tido toda a culpa. Vou me explicar. Segundo minhas informações, embora o jovem João Marcos, como venho relatando, tivesse conhecido o Mestre e o seguido durante alguns períodos de sua vida, seu evangelho deveria levar o nome de Pedro ou Paulo. Foram eles que, parece, o estimularam a escrever. Mas isso não foi o pior. O lamentável é que ambos, Pedro e Paulo, influíram decisivamente na redação, adulterando e suprimindo coisas segundo os interesses das cabeças visíveis da quase recém-fundada Igreja de Roma(11). Como dizia o Mestre, “quem tiver ouvidos...” E o que dizer de Lucas? Não conheceu Jesus. Parece que quase toda a sua informação sobre o Mestre vinha do, para muitos, nocivo Paulo(12). Talvez isso explique o porquê de muitos de seus arroubos literários e de seus erros crassos. Mas vamos por partes. No momento me atenho ao tema que me ocupa: a ascensão. Vejamos alguns exemplos daquilo que afirmo. No último capítulo de seu evangelho (versículos 50 e 51), ao narrar a derradeira “presença” do Ressuscitado, escreve impávido: “Depois levou-os até perto de Betânia e, erguendo as mãos, os abençoou. E aconteceu que, enquanto os abençoava, separou-se deles e foi elevado ao céu”. *11. Embora ainda não exista uma documentação histórica que prove, todos os indícios mostram que Marcos pode ter empreendido a redação do seu evangelho pouco depois da morte de Pedro e Paulo. Quer dizer, até o ano 68 de nossa era. Provavelmente – como observa o major -, Marcos elaborou o texto de acordo com suas próprias lembranças e com as indicações de Pedro. Pode ser até que o contato com Paulo o tenha levado a novas modificações. O certo é que, entre a morte de Jesus de Nazaré (ano 30) e a confecção dos escritos de Marcos, podem ter transcorrido esses quase quarenta anos. Um período de tempo muito longo para lembrar com precisão os fatos e, sobretudo, as palavras do Galileu. (N. Do a.) *12. Não é minha intenção julgar ninguém, e muito menos Paulo, mas estou convencido de que a “invenção” da Igreja deve muito ao fabricante de tendas de Tarso. Como espero poder expor, a mensagem chave do Mestre - “o homem é um filho de Deus” - foi lamentavelmente modificada e Paulo teve muito a ver com essa nefasta mudança de rumo. (N. Do m.)
Perto de Betânia? Nada disso. E o que aconteceu com a importante mensagem que o Filho do Homem preocupou-se em lembrar aos seus?
“... Amai aos homens com o mesmo amor com que eu vos amei. E servi vossos semelhantes como eu vos servi... Servi-os com o exemplo... E ensinai aos homens com os frutos espirituais de vossa vida. Ensinailhes a grande verdade. Incitai-os a crer que o homem é um filho de Deus... Um filho de Deus!... O homem é um filho de Deus e, portanto, todos sois irmãos...” Lucas fica mudo. Por quê? Se falou com Paulo, se perguntou a muitas testemunhas, por que ocultou essas palavras importantes Dias mais tarde, quando a Providência me permitiu assistir à definitiva ruptura entre os apóstolos, intuí a possível razão que teria levado Lucas e os outros “tabeliães” a descer um espesso véu sobre essa cena decisiva da ascensão. Mas disso prefiro falar mais adiante. Quanto ao segundo texto – os Atos dos Apóstolos -, atribuído geralmente a Lucas(13), a desordem alcança níveis insuspeitos. A verdade é que não há como negá-la. O médico de Antioquia mistura tudo, acrescentando – não sei se de sua própria colheita – fatos que jamais aconteceram. E, cúmulo da prepotência, ainda tem o atrevimento de afirmar que “escreveu no primeiro livro – o evangelho que leva seu nome – tudo aquilo que Jesus fez e ensinou desde o começo...”. Meu Deus! Como estão enganados aqueles que se consideram crentes! Mas vamos continuar com os exemplos. O capítulo 1 dos referidos Atos (versículos 6 a 12), diz textualmente: “Aqueles que estavam reunidos lhe perguntaram: «Senhor, é este o momento em que vais restabelecer o Reino de Israel?”. Ele lhes respondeu: *13. Segundo informações obtidas “à margem da missão oficial”, Lucas, o médico pagão que terminaria se tornando um seguidor de Paulo, escreveu seus textos por volta do ano 80, na província romana de Acaya, ao sul da Grécia. Embora, de fato, tenha consultado muitas testemunhas da vida do Mestre, sua principal inspiração foi o inevitável Paulo de Tarso. Parece que conheceu os escritos de Marcos e parte das “memórias” de Mateus Levi. Quando morreu, no ano 90, preparava um terceiro livro sobre o Galileu. (N. Do m.)
Não vos cabe conhecer o tempo e o momento em que o Pai, com
sua autoridade, determinou, e sim que recebereis a força do Espírito Santo, que virá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e Samaria, e até os confins da terra. “E dito isso, foi levantado na presença deles, e uma nuvem ocultouo dos olhos deles. Estando eles a olhar fixamente para o céu enquanto ia embora, apareceram dois homens vestidos de branco que lhes disseram: «Galileus, que fazeis olhando para o céu? Este que foi levado, este mesmo Jesus, virá assim como o vistes subir ao céu.» O que foi dito. Toda uma “salada” de erros e invenções. Para começar, o confiado Lucas mistura a pergunta dos “ali reunidos” com o final da impropriamente chamada “ascensão”. Como podemos lembrar, a pergunta – colocada por Simão, o Zelota, representando os atemorizados discípulos – surgiu no cenáculo. Quanto à resposta do Mestre, nada tem a ver com a realidade. Lucas ouviu o galo cantar, mas... Segundo parágrafo. Nuvem? Anjos? Roupas brancas? Anúncio da volta de Jesus? Tudo isso não passa de lenda. O Ressuscitado simplesmente, desapareceu. Ali não houve mais nada. E não é pouco... Suponho que, interpretando o sentimento generalizado da primitiva Igreja com respeito à iminente e triunfal volta à Terra do saudoso Mestre, Lucas deu asas à sua imaginação, enfeitando um prodígio que não precisava de reforço algum. A Ciência hoje sabe disso – nós sabemosmuito bem. Aqueles que, por outro lado, não sabem ainda são os teólogos e os exegetas. Muitos continuam acreditando, e afirmando, que o fenômeno da ascensão só foi um “ensinamento teológico”, sem rigor algum. Mais claro: que a ressurreição e o próprio Ressuscitado jamais existiram. Coitadinhos... Ultimo exemplo. Tanto no Evangelho como nos Atos, o confuso e confundido médico oferece, insisto, uma invenção que, entendo, altera a por si só
fantástica realidade do Ressuscitado. Vejamos. O evangelista afirma que, numa das aparições, o Mestre comeu com os discípulos (Lc. 24, 42 e 43 e Atos 1, 4). Além de não estabelecer com clareza o lugar e a data (essa “presença” deu-se em (?) 1 de abril, sexta-feira, às margens do yam),
ccomete outro erro. Ignoro o que poderiam ter-lhe contado as testemunhas presentes, mas, como já tive oportunidade de relatar neste apressado diário(14), ao lhe ser oferecido peixe o Galileu recusou negando-se a comer. O Ressuscitado jamais ingeriu comida ou bebida. Nem nessa nem em qualquer outra das dezanove aparições que pudemos contabilizar. Um “detalhe” aparentemente folclórico e sem maior transcendência mas que, para a Ciência, traz um conteúdo interessante. Um “detalhe” sutil que, de forma definitiva, manifestava a realidade “lógica” e esmagadora daquele “corpo glorioso”. Um maravilhoso “detalhe” que parecia “programado”, não para aquele tempo, mas para o nosso... Lucas, por fim, voltava a enfeitar os fatos, de forma desnecessária. E não tenho outro remédio senão me perguntar: se esses textos, supostamente sagrados, mudaram o rumo de meio mundo, o que teria ocorrido se houvessem respeitado a verdade? Contudo, o mais triste – que põe em jogo boa parte de tudo que se narra nesses evangelhos -, estava por chegar. E pouco a pouco fui me resignando. *14. Ampla informação em Operação Cavalo de Tróia 3, pp 321 e ss. (N. do a.)
DE 21 DE MAIO A 25 DE JUNHO Outro período importante, sim. Foram dias intensos nos quais este explorador recebeu uma informação privilegiada. Uma informação que, para variar, tampouco foi relatada pelos evangelistas. Vejamos se sou capaz de analisá-la bem. Depois de descansar sábado e domingo, em 21 de maio do ano 30, primeiro dia da semana, abandonei o Ravid ao romper do dia, empreendendo aquela que seria a última missão oficial em terras da
província romana da Judéia. Eliseu, como sempre, lacônico. Ambos detestávamos as despedidas. Como devo ter mencionado, era difícil estabelecer a data exata da minha volta. Bastariam talvez duas ou três semanas, a não ser que o Destino tivesse outros planos. Na verdade, um período mais que suficiente para visitar a Cidade Santa e a aldeia de Nazaré, reunindo a documentação que nos fora encomendada e que este aloucado grego não soubera conseguir no tempo devido. Na parte de cima do “porta-aviões” tudo andava sem novidades. A “base-mãe-três”, como suspeitávamos, parecia um refúgio excelente, sem interesse algum para os habitantes da zona e muito menos para o gado. O certo é que, naqueles dias, os alarmes, especialmente a “cortina” de microlaser – que varria a “popa” do Ravid num ângulo de 180 graus e a uma razão de cem varreduras por segundo -, não tinham detectado nenhum alvo importante, exceto as inevitáveis irrupções dos bandos festivos de pombos selvagens, pombas ruivas e andorinhas da Galiléia, tão habituais, naquela benigna primavera, nos penhascos e escarpados da vizinha Arbel. O “berço”, segundo o previsto, depois de desligada a SnrlP 27 (a pilha atômica), continuou “vivo”, graças à energia fornecida pelos providenciais espelhos solares, capazes de gerar até 500 W Como foi dito, a longa permanência do módulo no alto do Ravid nos obrigou a reservar a potência do plutônio da SNAP – limitada a um ano – para o obrigatório vôo de retorno à meseta de Massada. Desde os primeiros instantes, foi só pisar em terra e meu irmão ocupou-se da instalação e funcionamento dos doze espelhos de vidro com revestimento de prata(1). E como medida suplementar e de precaução, fixou também no exterior da nave as chapas de reserva, a base de aço doce prateado e metal eletroprateado, cujos índices de reflexão – 91 e 96 por cento, respectivamente – podiam incrementar a autonomia elétrica do “berço”. A despensa, discretamente sortida, não nos preocupava. Em princípio, água e alimentos eram mais que suficientes para sustentar Eliseu durante minha ausência. Em caso de emergência, contudo, sempre havia o recurso da plantação. Meu companheiro, então, devia descer e negociar com os felah. O contato com Camar havia sido
positivo, deixando aberta uma porta interessante. Ainda assim, lembrando a amarga experiência vivida na cripta de Nahum, eu Lhe supliquei que não caísse na tentação de se afastar do módulo. Ele deu um sorriso maroto e, francamente, eu estremeci. O acordo entre nós era o seguinte: enquanto este explorador permanecesse ausente, ele se ocuparia com as análises interrompidas do sangue da Senhora, a mãe do Mestre, e a revisão da viagem ao sul de Israel, batizada como Operação Salomão. A primeira parte do seu plano devia se completar com os estudos correspondentes sobre o DNA de José, o pai terreno de Jesus. Mas, para isso, este que aqui escreve tinha de trabalhar com alguns dos restos ósseos, missão que me obrigava a visitar de novo o cemitério da recôndita Nazaré. Mas isso ficaria para a minha volta a Jerusalém. *1. Cada uma dessas unidades, de 29 centímetros de diâmetro, levava presa ao dorso uma película de cobre, com a possibilidade de ser fixada a um estribo de ferro, em disposição azimutal biaxial. O sistema permitia que toda radiação refletida incidisse num único ponto. Isso era possível graças à fórmula especular assimétrica e ao deslocamento do eixo de giro horizontal no centro da curvatura da imagem. (N. Do m.)
último, seguindo as rigorosas normas do Cavalo de Tróia, fizemos a revisão da indumentária e do equipamento. Na verdade, coisa de rotina. Fui aspergido meticulosamente com a “pele de serpente”, incluindo mãos, pescoço e cabeça. Repassamos a “tatuagem” na palma da mão esquerda, bem como os “crótalos” (as lentes de contato, vitais para a visão infravermelha) e as sandálias “eletrônicas”. A partir desse momento era preciso ter mais cuidado. Aquele era o último par disponível. Com a sacola de borracha e os trinta denários de prata nela depositados, voltou a risada. Mas meu ânimo estava intacto. Iríamos em frente. Por uma questão de prudência – obedecendo aos conselhos sensatos de Eliseu – a valiosa opala branca ficou no “berço”. Quanto à sacola de viagem, poucas vezes eu havia encontrado uma tão leve: algumas provisões (basicamente frutas secas), água, a
habitual “farmácia” de campanha(2) e um par de ampolas extras, vazias. A vestimenta tampouco foi mudada: túnica de linho cru, modesto cinto trançado com cordas egípcias e o incômodo mas imprescindível manto azul celeste confeccionado com lã das montanhas da Judéia. E me aferrando à “vara de Moisés” saltei em terra, afastando-me. O que me reservava o Destino? A resposta foi um comichão familiar no estômago. Não me inquietei. Aquela misteriosa “força” continuava ali, me inundando. E seguro de mim mesmo, aproveitando o cálido amanhecer, caminhei rápido ao encontro da “via maris” e das portas da buliçosa Tiberíades. Sim, aquela experiência seria diferente. Eu sentia isso com nitidez. Allguma coisa” ou “Alguém” me acompanhava. *2. Numa dezena de ampolas de barro foram colocados, entre outros, os seguintes remédios: analgésicos, antitérmicos, antibióticos de amplo espectro (tetraciclina, cotrimoxazol e amoxicilina), antidiarréicos (loperamida), antiácidos (trissilicato de magnésio e hidróxido de alumínio), anti-histamínicos, antibióticos para uso tópico (neomicina e bacitracina), cloroquina (importantíssima como antipalúdico), um amebicida (tinidazol ou metronidazol), uma mistura especial para reidratração por via oral, soros antipeçonhentos polivalentes e soluções antifungos (clotrimazol). (N. Do m.)
No limite da conexão auditiva (15 mil pés), frente à capital do yam, despedi-me de vez de Eliseu, confirmando a caminhada até a segunda desembocadura do Jordão. A partir de Tiberíades, a ligação com o “berço” ficava praticamente cortada. Não precisei esperar muito tempo. Logo me juntei a uma numerosa caravana de sírios que transportava farinha de cevada e cujo destino era Jericó, na margem ocidental do rio. O capataz e chefE dos burriqueiros aceitou de bom grado a companhia daquele grego solitário e a soma de doze asses (meio denário de prata) por dia de viagem. Como eu já disse, muitos peregrinos procuravam esse tipo de proteção quando precisavam se deslocar dentro e fora do país. O céu foi benévolo. Na tarde de terça-feira, dia 23, pouco antes do cair da noite, este explorador batia nas portas do lar dos Marcos, em Jerusalém. O último trecho, a partir de Jericó, embora solitário, foi coberto sem incidentes dignos de nota.
O ambiente, reconheço, me desconcertou. O luto pela morte do cabeça da família parecia ter desaparecido por completo. Tudo era agitação e uma alegria contagiosa e inexplicável. Maria, a senhora da casa, João Marcos, o caçula, Rode, o resto da criadagem e os discípulos do Mestre que ainda permaneciam na moradia me receberam de braços abertos. Todos menos João Zebedeu, é claro... A verdade é que eu sentia falta deles. Depois da aparição no yam, na tarde de sábado, 29 de abril, não tinha voltado a vê-los. A Senhora e Tiago, seu filho, também continuavam no casarão. Serei capaz de explicar tudo isso? Como digo, “alguma coisa” pouco comum acontecia ali. Rostos, gestos e atitudes não eram normais. Aquilo não tinha relação com o que eu havia visto e escutado na Galiléia. Desconcertante, sim. Pensei primeiro nos efeitos lógicos provocados pela última aparição do Ressuscitado. Mas não... O comportamento, insisto, me era familiar. Sorrisos, alegria, companheirismo e afeto não eram estridentes. Ali pulsava alguma coisa mais profunda, mais serena, mais sólida e contínua. Todos falavam e se manifestavam com um aprumo, uma segurança e uma doçura que, repito, me lembrou a “sensação” enigmática experimentada por meu irmão e por quem aqui escreve no cume do Ravid. Algum tempo depois, após vários dias de conversas intensas e uciosas com aqueles vinte amigos, cheguei a uma conclusão. Uma conclusão que me fez estremecer. - Mas vamos por partes. Não podia acreditar naquilo. Que acontecera com aquele Pedro agressivo e desconsiderado? Agora se apresentava diante de mim, sóbrio, exuberante, irradiando uma paz insólita e desconhecida. Até o seco e cético Tomé dava rédea solta a um otimismo e a uma confiança que teriam dado muita satisfação ao Mestre. Foi Maria, a Senhora, quem, nessa mesma noite em que me interessei pela causa dessa mudança tão chamativa, começou a me abrir os olhos. E pouco a pouco, repito, ao interrogar mais sobre o resto, pude ir montando os detalhes daquele que, sem dúvida, tinha sido um dia hístórico para todos. Sim, eu disse bem, para todos.
Eis aqui a essência daquilo que aconteceu naquela quinta-feira, 18 de maio, e que, por causa da minha proverbial incompetência, não tive a sorte de presenciar: Segundo meus informantes, entre os quais devo mencionar homens muito sensatos e lúcidos como José de Arimatéia, Nicodemos e o próprio Tiago, irmão do mestre, pouco depois do “adeus” definitivo do Ressuscitado no monte das Oliveiras, um Pedro firme e corajoso – ignorando as disposições do Sinédrio contra aqueles que pregavam a Ressurreição – deu uma ordem seca: “todos aqueles que amavam Jesus de Nazaré deveriam congregar-se na casa dos Marcos”. O caçula e a criadagem percorreram então Jerusalém e, entre a terceira e a quinta hora (por volta das dez e meia da manhã), cerca de vinte homens e mulheres, todos fiéis seguidores dos ensinamentos de Jesus, foram abarrotar o andar superior do casarão. Ali, o já quase consagrado novo líder, Pedro Simão, dirigiu-se ao grupo e, com sua peculiar eloqüência, falou dos recentes acontecimentos registrados naquele mesmo cenáculo e no monte vizinho. De acordo com minhas indagações, Pedro não alterou os fatos, nem tampouco as palavras do Rabi. Cometeu porém um erro – não sei se involuntário – que se repetiria no futuro e que, como eu já disse em outras ocasiões, terminaria modificando gravemente a mensagem do Mestre. Ao fazer alusões à magnífica e esperançosa paternidade de Deus, o pescador esqueceu o trecho, reforçando, por outro lado, o fato deslumbrante da realidade física do Ressuscitado. E os presentes vibraram de emoção. Sim, Jesus vivia. Jesus tinha corpo. Jesus voltara da tumba. Jesus, de forma definitiva, era triunfante. E Pedro atacou a casta sacerdotal, ridicularizando-a. Suponho que isso seja compreensível. Eram seres humanos. Acabavam de padecer o horror e a vergonha da crucificação. Como não se aferrar à idéia maravilhosa de um Jesus vivo, que falava, que se mexia e que tocava? Não pretendo justificar o erro de Pedro e daqueles que o seguiram nisso, mas eu entendo. Eu O vi. Conversei com Ele. Tivemos a sorte de meio analisar sua estrutura física. Como não ficar extasiado com tal prodígio?
O vibrante discurso – no qual foi plantada, sem querer, a semente de uma religião “em torno a figura do Galileu” e não de sua mensagem – prolongou-se durante uma hora. Foi tal o impacto que ninguém se mexeu. Todos esperaram as ordens do brilhante líder. Mas Pedro, atônito com sua própria força, não reagiu. Foi Mateus Levi, seguido por André, o irmão de Simão, quem resolveu a incômoda situação, lembrando a promessa do Mestre de enviar o Espírito. Esse seria o sinal. Só depois agiriam. Quando perguntei que idéia tinham desse Espírito da Verdade, nem um único dos meus confidentes soube me explicar. Não entenderam o Ressuscitado. Não sabiam do que ele falava. Contudo, logo  averiguariam... Todos aceitaram. Esperariam. A iniciativa seguinte correu por conta de Pedro. Num daqueles interrogatórios, o pescador me confessou que a idéia surgira ao lembrar as frases de Jesus sobre o malogrado Judas Iscariotes. Uma alusão, com efeito, que aconteceu naquele mesmo andar superior e na primeira parte – por assim dizer – da última “presença” do Galileu na Terra. “Judas não está mais convosco – havia dito o mestre – porque seu amor esfriou e porque ele negou-se a confiar em vós.” Muito bem, essa referência ao traidor levou o líder a procurar um substituto. Ele expôs o assunto a todos os discípulos e a sugestão foi aprovada por unanimidade. Mas como fazer para nomear o “embaixador” número doze?
Guiados por sua boa fé cometeram o erro de anunciar sua intenção, a todos os presentes. E parte do grupo, excitada pelos acontecimentos fantásticos daquela mesma manhã, se colocou como voluntária em meio a uma formidável gritaria. Todos queriam esse posto. Curiosamente – segundo minhas informações -, entre esses cinqüenta ou sessenta braços levantados, nenhum pertencia a uma mulher. Eu não me enganava. As coisas, depois da partida do Rabi, não tinham melhorado para as sofridas e resignadas mulheres. Essa, contudo, é outra história.
Foi preciso pôr ordem e fazer uma votação. Assim, depois de várias discussões, o problema ficou reduzido a dois candidatos: um judeu do bairro alto de Jerusalém, ferreiro de profissão, viúvo, de uns 50 anos de idade, homem de escassas palavras, que recebia o nome de Matias, e um badawi conhecido pelo apelido de “Beer-Seba”, “Berseba” ou “Barsaba”,(3) 20 anos mais jovem e que havia se destacado por seu excelente trabalho entre os “correios” de Davi Zebedeu. Lamentavelmente, como veremos, a condição de prosélito não o favoreceu na hora da votação final. Este a’rab, nascido entre os nômades do Negueb, que adotou o nome de José ao se converter ao judaísmo, teria desempenhado um trabalho mil vezes mais frutífero que o lacônico ferreiro. Mas, não esqueçamos, os discípulos do Mestre viviam, e continuariam vivendo, enraizados na fé e nos costumes judaicos. Pedro, finalmente, tomou de novo a palavra e explicou que, “dada a importância e complexidade da eleição”, ele e seus irmãos iriam para o pátio do andar inferior para decidir. E assim foi. Quando me interessei pelo procedimento utilizado para essa votação, André, que tinha sido chefe do grupo quando Jesus estava vivo, sorriu com benevolência. Ele me olhou como quem tem na frente um menino pequeno e exclamou com certo tom de arrependimento: *3. Berseba, naquele tempo, era uma cidade próspera e notável ao sul do país, na rota em direção ao Egito e no começo do deserto do Negueb. Parece que o nome procedia de um dos poços (beer) utilizado pelo mítico patriarca Abraão. Quanto a Barsaba, o apelido em aramaico significava “Filho do Sábado”. Lucas, em Atos (I, 23) o traduz como “Justo”, ressaltando assim sua condição de homem que respeita a lei. (N. do m.)
- Querido amigo, não sejas ingênuo. Votação! Que votação? Ali, na hora, antes que alguém pronunciasse alguma palavra, meu irmão se acercou e “sugeriu” que não era o momento “de confiar os graves assuntos do reino aos que se aproximam... “Aqueles que se aproximam” era uma das expressões comumente utilizada pelos judeus para designar os prosélitos. E o badu, repito, era um deles. - “A importante e complexa eleição” - continuou, resignado – morreu
ali mesmo. Fez-se uma simulação, sim, mas a sorte já estava lançada. Quando Pedro invocou o nome de Matias, nove mãos se levantaram em uníssono, obviamente influenciadas pelo brilho do novo líder. Só Bartolomeu e Simão, o Zelota, confiaram em “Berseba”. Interessante. Bartolomeu e o Zelota. Ambos, como veremos, se mostrariam especialmente ácidos com a filosofia e a mudança de Pedro ao proclamar a boa nova.”   Naturalmente eu os interroguei em várias ocasiões. O urso de Caná”,  mais diplomático, escudou-se na magnífica trajetória do “correio”. Por essa razão se pronunciou a seu favor. O Zelota, por sua vez, que não era de meias palavras, foi contundente: - Esse ferreiro parece mais fenício do que judeu... Nunca gostei dos indecisos... A bem da verdade, o antigo guerrilheiro terminaria acertando. Matias foi de fato apresentado como o novo “embaixador” número doze, e ficou incumbido da tesouraria. Mas, segundo me consta, pouco ou nada teve a ver com as atividades da primitiva Igreja. Naquelas semanas consegui conversar em duas ocasiões com ele. Sinceramente, ele me decepcionou. Quase não sabia falar. Havia escutado o Mestre meia dúzia de vezes e sempre na Cidade Santa. Não estava convencido de sua divindade. Não entendia o porquê da encarnação do Filho do Homem. Na verdade, sua adesão ao grupo dos galileus obedecia mais ao ódio à casta sacerdotal ridicularizada por Jesus de Nazaré – do que a um sincero e fervoroso desejo de participar das idéias do Rabi. Consumada a “eleição”, por volta da hora sexta (meio-dia), Pedro, assumindo uma chefia implícita – jamais fora designado abertamente -, ordenou silêncio. E convencido da chegada iminente do Espírito prometido pelo Mestre, pediu calma, entoando o Ouve, Israel. A oração foi cantada em coro com entusiasmo. Aquele grupo, ao qual foram se somando outros seguidores, estava seguro. Isso me ratificaram. Mas seguro de quê? A palavra sempre repetida foi “poder”. O
Mestre, diziam, havia anunciado isso. O Espírito chegaria com poder. O “reino” se estabeleceria no mundo com força e majestade. Eles eram os embaixadores. Eles tinham sido eleitos. Era deles o poder para conduzir a nação judaica à glória que lhe cabia. Em resumo, aquilo que já se sabia... Eu me senti decepcionado. Aquela boa gente – apesar daquilo que iria acontecer por volta da uma da tarde – continuava obcecada com as velhas idéias manipuladas sobre um Messias terreno, político e libertador. E aconteceu o inexplicável. Devo confessá-lo. Foi inútil. Por mais que eu perguntasse, por mais horas que eu consumisse em exaustivos interrogatórios, por mais interesse que eu demonstrasse e que demonstrassem as testemunhas, não pude atravessar a barreira. Uma vez mais me choquei contra a palavra “presença”. Este foi o conceito que sintetizou o fenômeno vivido no cenáculo quando todos ali congregados entoavam fervorosos Ouve, Israel. Uma “presença”! As opiniões foram unânimes. Não havia passado nem uma hora desde que Pedro os animou a rezar, quando, de repente, “alguma coisa” (?) instalou-se no aposento... e nos corações. Claro que aquilo me era familiar. “Alguma coisa” Impossível. Como digo, ninguém acertou uma descrição melhor. “Uma presença, Jasão” - repetiam. - Allguma coisa que nos arrepiou o cabelo. Uma presença que foi desmoronando a reza até nos deixar em silêncio. Um silêncio total. Nós nos olhávamos assustados. Sim, todos sentiram a mesma coisa. Ali flutuava alguma coisa ou alguém. Uma presença.” Só isso. Quando perguntados se tinham visto, escutado ou percebido alguma  coisa, todos, absolutamente todos, negaram sem vacilar. “Línguas de fogo ou de luz sobre as cabeças? Um barulho, como o de um vento impetuoso?
Os pacientes e espantados hebreus me olhavam desconcertados. Mas quem escreve estas linhas não estava louco. Negativo. Nem línguas nem ruídos estranhos. Só essa definição irritante e imprecisa: “uma “presença”. O importante, porém, não eram os detalhes. O assombroso foi o resultado da enigmática “presença”: homens e mulheres..., diferentes. Otimistas. Confiantes. Seguros de si mesmos. Profundos. Não é que o misterioso fenômeno os tivesse transformado em homens mais sábios. Tampouco teriam avançado muito em relação às chaves do revolucionário legado de Jesus. Tinha sido alguma coisa de outra natureza. “Alguma coisa” que acionara um sonolento motor interno, proporcionando-lhes aquilo que já sabemos: uma sensação de segurança e confiança no Mestre. Foi quando comecei a intuir que o “berço”, da mesma forma que o cenáculo havia sido “visitado” (?) por essa mesma “presença”. Uma “força” superior, benéfica, incompreensível para a modesta inteligência humana, que nos estava transformando. Um “presente”, e isso é definitivo, que o Ressuscitado chamou de Espírito da Verdade. Claro que a minha curiosidade não foi satisfeita. Precisava de respostas. O que ou quem era essa entidade? De onde vinha? Por que modificara o temperamento e o pensamento de todos nós? Por que naquele momento, 18 de maio de 30, e não antes? Naturalmente tive de esperar. Seria durante o terceiro “salto” que essas e outras perguntas receberiam um esclarecimento preciso e completo. O grupo, atônito, sem poder dar crédito à “sensação” magnífica que o envolvia, tinha ficado mudo durante alguns minutos. Depois, segundo meus informantes, foram surgindo murmúrios. E dos cochichos, como uma onda, passaram aos gritos, palmas e abraços. Pedro teve problemas. A assembléia enlouquecera de alegria. “Como te explicar isso, Jasão?... Nós estávamos felizes. O medo desaparecera. Era como voar.
O alvoroço e A confusão se prolongaram por quase meia hora.
Por último, retomando o controle, Pedro pronunciou aquelas palavras históricas: - Irmãos, chegou a hora! Vamos ao templo e falemos claro! O líder acertou. Desta vez, sim. Simão Pedro soube captar o fenômeno da esmagadora “presença”. E associando-o com rapidez ao anunciado advento do Espírito Santo, agitou os corações, provocando o delírio. O novo “Chefe” se consagrava minuto a minuto. Pará-los? Se alguém tivesse se atrevido a pedir calma ou bom senso, simplesmente seria arrastado por eles. A julgar pelos dados recolhidos, aquela centena de homens e mulheres se convertera num tufão, saindo às ruas. Ali não havia lógica, pelo menos lógica humana. E gritando o nome do Ressuscitado, seguiram os passos do inflamado Pedro. Era o triunfo de um grupo que, durante cinqüenta dias obscuros, fora humilhado, perseguido e supostamente anulado. Entendi tudo. Aqueles que, por outro lado, não saíam de seu próprio espanto eram as centenas de peregrinos e sacerdotes que viam o grupo passar pelas ruas. Mas ninguém se atreveu a enfrentar tal furacão. Finalmente Pedro e os seus tomaram posse do páttio dos Gentios, no concorrido Templo(4). *4. Naquela época, o povo de Israel celebrava uma de suas três festas anuais mais solenes: a “Hasartha” ou Concentração, também conhecida como “Shavuot”, porque se realizava sete semanas depois do oferecimento do omer, no segundo dia da Páscoa ou “Pesah”. Antigamente consistia numa celebração eminentemente agrícola, pois marcava o tempo da colheita de trigo (mês de sivan). Depois foi agregada à festa a lembrança da entrega da Lei ou Torá no Sinai. Segundo os sábios, essa entrega pode ter ocorrido por volta do dia 6 do referido mês do sivan (maio junho). Como as célebres tábuas foram ditadas a Moisés cinqüenta dias depois da saída do Egito, a festividade do “Shavuot” só podia ser comemorada no mês de sivan. Esse número - cinqüenta – foi o que posteriormente serviu aos gregos para designar a conhecida festa do “Pentecostes”. O duplo motivo – agradecimento a Yaveh pela Lei e as obrigatórias primícias para apresentar no Templo – fazia com que a Cidade Santa se tornasse, naqueles dias, um formigueiro de gente procedente de todo o mundo conhecido. (N. do  m.)
Ainda segundo meus informantes, Pedro foi direto, repetindo, mais ou menos, aquilo que tinha sido proclamado naquela manhã no cenáculo. Talvez fosse por volta das duas ou duas e meia da tarde. Não houve trégua. Não houve concessão. A discussão foi esquentando. Simão, com uma eloqüência invejável, concentrou-se na grande notícia: Jesus de Nazaré, o crucificado, continuava vivo. Muitos dos ali presentes podiam dar fé disso. E explicou. Deu detalhes. Invocou os que chegaram a vê-lo no yam, e naquela mesma manhã nas ruas cheias de Jerusalém. A paixão, as pausas estudadas e, de novo, a segurança esmagadora daquele galileu não demoraram a surtir efeito sobre uma massa desconcertada e incapaz de raciocinar. O líder, hábil, cedeu a palavra aos seus irmãos. Foi assim que Zebedeu, Mateus Levi, Felipe e André entraram na discussão, confirmando aquilo que já tinha sido exposto. Mas nenhum soube completar a brilhante intervenção de Simão, que constituía a alma da mensagem daquele “poderoso Ressuscitado”: “o homem é um filho de Deus”. O erro se repetia. Os sacerdotes, inquietos, formaram círculos, murmurando. Mas o magnetismo e a audácia daqueles homens convenceram a multidão. Ouviram-se vozes, pedindo conselho e perdão. Não era o momento para detenções e polêmicas. E a casta sacerdotal, raivosa e humilhada, teve de se retirar. O fato não passou despercebido para os discípulos. E eles cresceram. O resto foi tão lógico quanto satisfatório. Por volta da hora “décima” (16:00 horas), por iniciativa de João Zebedeu, os radiantes “embaixadores” deixaram o gentio invadir a grande piscina de Siloé, ao sul da cidade. Ali, eufóricos - “quase uma nuvem” -, batizaram mais de duas mil pessoas. Pelo menos foi isso que disseram. Um batismo em nome do “Senhor Jesus”. Já bem avançada a noite, esgotados mas felizes, de novo se refugiaram no casarão dos Marcos. “O mundo – diziam uns aos outros – é nosso. Preparemos a gloriosa volta do Senhor.” Claro que não esqueci o assunto intrigante do chamado “dom para línguas”.
Segundo Lucas, os íntimos do Ressuscitado desconcertaram o público, falando em todos os tipos de idiomas. Línguas que, parece, não conheciam. Quando levantei o assunto, voltaram as risadas. Aquele grego de Tessalônica de fato parecia ter perdido o juízo. -  Muitas línguas! Sim, Jasão, as de sempre. As habituais. A informação me deixou perplexo. No fundo eu tinha acreditado no evangelista. Quando aprenderei o que aconteceu, segundo me contaram, foi simples. Aquela tarde, no átrio dos Gentios, reunia-se uma multidão muito variada. A festa do “Shavuot” podia congregar em Jerusalém mais de dez mil peregrinos, vindos de toda a diáspora. De fato, muitos daqueles que haviam vindo para a Páscoa, sete semanas antes, continuavam ainda na Cidade Santa. Ali, no Templo, segundo meus informantes, além de centenas de vizinhos da capital, reuniram-se judeus e gentios da Lídia, Capadócia, Babilônia, Egito, Trácia, Palmira, Nabatéia, Numídia, Creta, Roma, Silícia e um enorme etc. - Muito bem, seguindo o costume do Mestre – disse, francamente, eu sabia pouco -, os oradores, os cinco discípulos, intercalaram outros idiomas em seus respectivos discursos feitos em aramaico. Naturalmente, línguas que conheciam. A saber: grego (mais exatamente ,oiné), latim, aral, egípcio e siríaco(5). Achei tudo normal, tendo em conta que muitos dos judeus que residiam no estrangeiro não falavam aramaico, mas compreendiam koiné, o grego “internacional” ao qual se recorria para quase tudo: comércio, cultura, etc. Mas voltemos ao velho tema. Muitos, crentes ou não, pensam hoje que os íntimos de Jesus eram uns ignorantes, sem a menor base intelectual. Erro lamentável. Como terei oportunidade de expor mais adiante. *5. O aramaico, idioma nativo dos íntimos do Mestre, penetrou na Palestina e regiões vizinhas por volta dos séculos X e VIII a. C. Procedia, segundo todos os indícios, da Síria e das tribos do Leste. Ao evoluir, deu lugar a vários dialetos. Entre os mais destacados estavam o hoje chamado “ocidental”-que abrangia o aramaico palestino, o dos tárgumes judeus e o samaritano, entre outros – e o “oriental”, que os especialistas subdividem em aramaico do Talmud da Babilônia, dos livros mandeanos, e siríaco.
Este último apareceu em Edessa (hoje, Urfa, na Turquia). Ainda pode ser ouvido no Líbano e na Urmia. (N. Do m.)
os onze galileus e o Iscariotes (o único judeu) haviam freqüentado as escolas das sinagogas e, embora seu nível não possa ser comparado ao dos nossos “universitários”, sabiam manter uma conversa de certo nível, dominando, sem dúvida, alguns idiomas. Por exemplo, exceto os gêmeos, que apresentavam dificuldades maiores, o resto se defendia muito bem no mencionado grego “internacional”. Em latim, a língua de Roma, ainda que macarrônico como o dos estivadores, Mateus Levi, Judas, Bartolomeu, Simão, o Zelota, os Zebedeu e Tomé também eram capazes de entender e se fazer entender. Quanto ao aral (árabe), muito usado na Palestina e arredores, Bartolomeu e o Zelota manejavam palavras e frases soltas. Estes dois, em particular o “urso de Caná”, que era sem dúvida um dos mais cultos, estavam em condições de se aventurar até mesmo no difícil egípcio e no siríaco, outro dialeto aramaico. Em resumo, sobre o tal “dom para línguas”, nada mesmo. Em todo caso, um novo arrebatamento literário do amigo Lucas. E já que o Destino parece decidido a me colocar diante do “inefável” médico de Antioquia, eu me recuso a omitir sua incrível versão sobre os acontecimentos registrados naquele dia memorável que hoje chamam  “Pentecostes”. Ignoro quem o tenha informado, mas o certo é que o responsável foi um total irresponsável. O serviço de Lucas à História e à comunidade de crentes não poderia ter sido mais negativo. Vejamos por quê. Ao escrever sobre a “substituição de Judas” (Marcos 1,15), o escritor sagrado (?) continua confundindo as datas. “Num daqueles dias” - diz -, “Pedro ficou em pé no meio dos irmãos...” Num daqueles dias? Falso. Tudo aconteceu no mesmo dia, quintafeira, 18 de maio (mês do Sivan). Ao ler o parágrafo imediatamente anterior – versículos 12 ao 14(6) – comprovamos que as fontes do evangelista deixaram muito a desejar... *6. O texto que o major menciona diz assim: “Então voltaram a Jerusalém do monte chamado das Oliveiras, que fica perto de Jerusalém, à distância de um caminho sabático.
Quando chegaram, subiram ao andar superior, onde moravam Pedro, João, Tiago e André, Felipe e Tomé, Bartolomeu e Mateus, Tiago de Alfeu, Simão, o Zelote, e Judas de Tiago. Todos eles continuavam rezando, com um mesmo espírito, em companhia de algumas mulheres, de Maria, a mãe de Jesus, e de seus irmãos. (N. Do a.)
Depois da “ascensão”, os discípulos foram para a casa dos Marcos, sim, mas a espera foi questão de horas, não de dias. Ato contínuo, - Atos 1,16-22 -, Lucas oferece um discurso de Pedro que jamais foi pronunciado(7). Pelo menos, não naquele cenáculo e na referida manhã. Duvido também que Simão falasse do “campo comprado pelo Iscariotes”. Ele sabia que as moedas recebidas porJudas tinham sido jogadas pelo traidor na sala das “escovas”, no templo , numa última tentativa desesperada de salvar o Mestre(8). Não acredito, insisto, que Pedro se atrevesse a manipular esse fato. O evangelista, por outro lado, além de alterar a sorte final dos 30 siclos, coloca isso na boca do líder. Uma afirmação, enfim, tão falsa quanto pouco caridosa. E o desastre continua... Ao mencionar Matias, substituto de Judas, Lucas de novo deforma os fatos, ocultando parte da verdade(9). Nem houve oração prévia à “votação” e muito menos o escritor adverte sobre as tortuosas intenções de Simão com relação a “Berseba”, o segundo candidato. O lapso tem, em parte, uma justificativa. *7. O discurso citado por Lucas é o seguinte: “Irmãos, era preciso que se cumprissem as Escrituras em que o Espírito Santo, pela boca de Davi, já havia falado sobre Judas, aquele que foi guia dos que prenderam Jesus. Porque ele era um dos nossos e obteve um posto neste ministério. Este, pois, comprou um campo com o preço da sua iniqüidade, e caindo de cabeça, arrebentou-se pelo meio, espalhando-se todas as suas entranhas. E isso ficou conhecido por todos os habitantes de Jerusalém, de tal forma que o campo ficou sendo chamado, em sua língua haqueldamá, que quer dizer «Campo de Sangue». Pois no livro dos Salmos está escrito: “Que fique seu curral deserto, e não haja quem nele habite. E também: “Que outro receba seu pagamento. “Convém, assim, que, dentre os homens que andaram conosco todo o tempo que o Senhor Jesus aqui conviveu, a partir do batismo de João até o dia em que foi levado, um deles seja constituído conosco testemunha de sua ressurreição.” (N. Do a.) 8. Ampla informação em Operação Cavalo de Tróia I, pp. 58 e ss. (N. Do a.) 9. O parágrafo em questão diz o seguinte: “Apresentaram dois: José, chamado Barsabás, apelidado de Justo, e Matias.
Então oraram assim: Tu, Senhor, que conheces os corações de todos, mostra-nos qual destes dois escolheste para ocupar, no ministério do apostolado, o posto do qual Judas desertou para ir aonde lhe correspondia. Jogaram dados e a sorte caiu sobre Matias, que foi agregado ao número dos doze apóstolos”. (N. Do a.)
O discípulo de Paulo, ao pôr no papel esses acontecimentos, não podia macular a imagem de um dos fundadores do movimento ao qual pertencia. Como explicar aos crentes que o carismático líder havia desprezado um prosélito? Assim se faz a História... Mais adiante, no capítulo 2 de Atos, o fantástico Lucas se solta e diz: “Ao chegar o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar. De repente veio do céu um ruído como o de uma rajada de vento impetuoso, que encheu toda a casa na qual se encontravam. Apareceram a todos umas línguas como de fogo, que se espalharam e pousaram sobre cada um deles...” Fantástico. De onde tira o evangelista o “ruído” e as “línguas de fogo”? A propósito, ele também não esclarece se foram doze ou cento e vinte. Ocupado em repartir “fogos artificiais”, não acredito que o Espírito fizesse restrições. O fato, como eu já disse, foi mais sério e profundo do que o que Lucas nos retrata. Uma vez mais, porém, ele achou que “aquilo” não era suficiente e que convinha enfeitar um pouco o assunto. Se realmente tivesse acontecido aquilo que o escritor afirma, o “ruído” e as “línguas” teriam terminado por provocar um pânico generalizado e uma debandada coletiva. O “detalhe”, contudo, não foi levado em conta pelo “inventor”. Mais confusão. E continua assim – versículos 4 a 14(10) – o evangelista, que não oculta, mistura, inventa e deforma. *10. Atos (2, 4-14) diz textualmente: “... ficaram todos tomados pelo Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, segundo o Espírito lhes concedia expressar-se. “Havia em Jerusalém homens piedosos, que ali residiam, vindos de
todas as nações que existem sob os céus. Ao se produzir aquele ruído, as pessoas se congregaram e se encheram de estupor ao ouvir, cada uma delas, em sua própria língua. Estupefatos e admirados diziam: “Não são galileus todos estes que estão falando? Pois como cada um de nós ouve em sua própria língua nativa?” Partos, medos e elamitas; habitantes da Mesopotâmia, Judéia, Capadócia, o Ponto, Ásia, Frígia, Panfília, Egito, a parte da Líbia que faz fronteira com Cirene, forasteiros romanos, judeus e prosélitos, cretenses e árabes, todos os ouvimos falar em nossa língua as maravilhas de Deus. Todos estavam estupefatos e perplexos e se diziam uns aos outros: “Que significa isto?.” Outros, ao contrário, diziam rindo: “Estão cheios de mosto!.” (N. Do a.) “Dom para línguas?” Falso. Gente de Jerusalém que ouviu o ruído impetuoso e foi se reunir na casa dos Marcos? Falso. Esses discursos, depois do advento do Espírito da Verdade, foram pronunciados no Templo uma hora e meia mais tarde. Sinceramente, não consigo entender. Não posso compreender o porquê de tanto despistamento, a não ser que Lucas não pudesse falar com as testemunhas ali presentes – coisa de que duvido – ou que sua memória falhasse. Cinqüenta anos era muito... Claro que também cabe outra explicação, já insinuada anteriormente: que o evangelista teria tido a informação precisa, mas desejoso de engrandecer o episódio e influenciado pelas idéias peregrinas de seu mestre, Paulo de Tarso, decidiu modificar fatos e palavras “para glória maior da primitiva Igreja”. Não era a primeira vez que acontecia isso, nem seria a última. E eu disse bem. Falei de “idéias peregrinas” , referindo-me a Paulo. Basta repassar uma de suas epístolas (1 Cor. 14) para captar a obsessão deste – não duvido disso – bem intencionado artífice do cristianismo sobre o célebre “dom para línguas”. Estaria aí a “inspiração” que teria movido Lucas a narrar uma história tão diferente? Como dizia o Mestre, “quem tem ouvidos...” Quanto ao suposto discurso do líder – versículos 14 a 36 do mencionado capítulo 2 de Atos(11) -, pouco
posso acrescentar. A manipulação foi igualmente intensa. *11. Segundo Lucas, o discurso de Pedro foi o seguinte: “Então Pedro, se apresentando aos Onze, levantou a voz e lhes disse: «Judeus e todos os habitantes de Jerusalém: Que vos fique bem claro e prestai atenção às minhas palavras. Estes homens não estão embriagados, como supondes, pois é a hora terça do dia. Pelo contrário, está acontecendo aquilo que disse o profeta: «Nos últimos dias, disse Deus, derramarei meu Espírito sobre toda carne e vossos filhos e vossas filhas profetizarão; vossos jovens verão visões e vossos anciãos sonharão sonhos. E derramarei meu Espírito sobre meus servos e minhas servas. Farei prodígios no alto do céu, e sinais embaixo, na Terra. O sol se transformará em trevas, e a lua em sangue antes que chegue o grande e glorioso Dia do Senhor. E todo aquele que invocar o nome do Senhor, será salvo.» Quem podia zombar dos discípulos, tachando-os de bêbados, se não existiu o pretendido milagre das línguas? Para Lucas, porém, dá na mesma. É possível que precisasse de uma desculpa. Um incidente que lhe permitisse fechar a história e destacar a frase correta. Nesse caso, a do profeta Joel. E por que a frase correta? Aí está outra sutileza que acaba revelando os truques do evangelista. Foi a partir do Pentecostes que os íntimos e seguidores do Mestre se convenceram de que o retorno de Jesus era algo iminente. Uma volta com grande poder e majestade, escoltada por sinais celestes. E Lucas, que escreve meio século depois da “ascensão”, aproveita a passagem para inserir uma profecia feita de encomenda. Ele, provavelmente, continuava acreditando nesse próximo retorno e não duvidou em lembrá-lo à primitiva Igreja, colocando isso na boca de Pedro. A falha, contudo, quase imperceptível, está na data. Naquela quinta-feira, 18 de maio, ninguém falava ainda do espetacular e imediato regresso do Rabi. Isso foi depois. - “Israelitas, escutai estas palavras: Jesus, o Nazareno, foi um homem que Deus confirmou entre vós, realizando por meio dele os milagres, prodígios e sinais que vós bem conheceis. E Deus, com sua vontade e presciência permitiu que Jesus vos fosse entregue, e vós, através de ímpios, o matastes, pregando-o numa cruz. Deus, porém, ressuscitou Jesus, libertando-o dos sofrimentos do Hades, porque não era possível que ele o dominasse. Porque dele diz Davi: «Eu via constantemente o Senhor diante de mim, porque está à minha direita, para que eu não vacile. Por isso meu coração se alegra, minha língua exulta e minha carne repousa com esperança. Porque não abandonarás minha alma no Hades, nem permitirás que teu santo experimente a corrupção. Tu me ensinaste os caminhos da vida, e me encherás de alegria na tua presença.» “Irmãos, quanto ao patriarca Davi, permiti que eu vos diga com franqueza: ele morreu, foi sepultado e seu túmulo está entre nós até hoje. Mas, ele era profeta, e sabia que Deus lhe havia jurado solenemente fazer com que um descendente seu lhe sucedesse no trono. Por isso, previu a ressurreição de Cristo e falou: «Ele não foi abandonado na região dos mortos, e a sua carne não conheceu a corrupção. Deus ressuscitou este Jesus. E nós todos somos testemunhas disso. Ele foi exaltado à direita de Deus, recebeu do Pai o Espírito prometido e o derramou: é o que vós estais vendo e ouvindo.» De fato, Davi não subiu ao céu, mas falou: «O Senhor disse ao meu Senhor: senta-te à minha direita, até que eu faça de teus inimigos um escabelo para teus pés. Que todo o povo de Israel fique sabendo com certeza que Deus tornou Senhor e Cristo aquele Jesus que vós crucificastes.” (N. Do a.)
E precisando de uma desculpa – que justificasse, além disso, o forçado “milagre” dos idiomas desconhecidos -, o escritor situa o início do discurso do líder na hora “terça”. Hora “terça” As nove da manhã? Se Lucas conversou com Pedro, João Marcos, Paulo ou outras testemunhas, então teria de saber - necessariamente – que o horário foi outro. Como eu já detalhei, a desmaterialização () do Ressuscitado ao pé do monte das Oliveiras se deu pouco antes das 8:00 horas. E foi entre as 10 e as 11:00 horas que, obedecendo à ordem de Pedro, reuniram-se no lar dos Marcos os cento e vinte homens e mulheres que amavam Jesus. A enigmática “presença” - o Espírito – inundou a sala depois da “sexta” (por volta das 13:00 horas). Por causa disso, o grupo se mobilizou, dirigindo-se ao Templo. E foi por volta da “nona” (15:00 horas) quando os discípulos lançaram seus discursos. Tenho certeza de que Lucas sabia disso tudo, mas, como desejava enfeitar os fatos, que melhor solução do que a do mosto às nove da manhã? E o que eu já disse: um desastre. Quanto ao conteúdo do discurso, além de esquecer () que foram cinco os que falaram à multidão, o evangelista coloca na boca de Simão certos argumentos, citações e reflexões que nunca existiram. Exceção feita às alusões à morte e ressurreição de Jesus, o resto é irreconhecível. Não duvido que o líder tivesse chegado a pregar essas e outras admoestações em sua longa carreira como embaixador do reino (mais de 30 anos), mas nunca na manhã ou na tarde dessa quinta-feira. Em ambas oportunidades – não me cansarei em insistir nisso -, todos, absolutamente todos, se concentraram naquilo que, obviamente, os deixara perplexos: a deslumbrante realidade física do Ressuscitado. Repito: aquilo era um triunfo e os íntimos, não esqueçamos disso, eram seres humanos. Isso, e não outra coisa, foi o que comoveu e deixou boquiabertos os peregrinos e habitantes da Cidade Santa. Ali estavam as testemunhas , homens e mulheres confiáveis. Podiam perguntar a
elas, e fizeram isso. Esse foi o grande argumento. Se os oradores tivessem se limitado às palavras retumbantes que Lucas menciona – além disso impróprias para o tosco Pedro -, o mais provável é que o desenlace teria sido outro. Os sacerdotes, por exemplo, não teriam consentido semelhante desafio. A norma do Sinédrio contra aqueles que dessem publicidade à Ressurreição continuava vigente. Se não agiram foi, simplesmente, porque o povo estava eletrizado com a grande notícia. Lamentavelmente, porém, isso não foi suficiente para alguns. Bem, repassando o infeliz texto, temos a sensação de que o evangelista, obedecendo, talvez, à “recomendação” de outros, procurou sublimar a imagem do corpo apostólico – desde os primeiros momentos. Alguém os teria qualificado de homens “sagrados” e foi preciso manter e defender essa idéia a todo custo. É como se o Espírito da Verdade só tivesse se derramado sobre os Doze. Esta hipótese explicaria o porquê de algumas outras não menos infelizes frases atribuídas ao líder e que Lucas introduz no discurso mencionado. Duvido que Pedro chegasse a afirmar em público, e muito menos diante de seus companheiros, que “Deus havia ressuscitado o Mestre e que a carne do Rabi não experimentaria o apodrecimento”. E digo que não acredito nessa afirmação porque, como espero narrar mais adiante, os onze tiveram a ocasião de escutar dos lábios do próprio Ressuscitado que o ato de voltar à vida era, na verdade, um atributo da natureza divina do Filho de Deus. Em outras palavras, que a ressurreição de Jesus não dependeu da vontade do Pai. Se Pedro, naquele momento, tivesse dito algo assim, teria faltado gravemente com a verdade. Outra hipótese é que o evangelista não soubesse – ou não quisesse saber – sobre esse fato singular e tivesse tentado apresentar Simão Pedro como um profeta, como um homem “sagrado”. Apodrecimento? Aqui está outra incongruência de Lucas. Naquela época, nem Pedro, nem ninguém, estava em condições de saber o que acontecera no túmulo. Para os seguidores do Mestre, o cadáver simplesmente desaparecera. Mais ainda: Simão e as demais testemunhas das aparições tiveram a oportunidade de verificar que aquele “corpo glorioso”, especialmente durante as primeiras
“presenças”, pouco ou nada tinha a ver com o antigo suporte físico do Mestre. Nunca, que eu saiba, se aventuraram a falar de decomposição. Essa idéia, como outras, frutificou muito depois. Por último, o evangelista volta a forçar os dedos no versículo 21 do catastrófico capítulo 2. “E todo aquele que invocar o nome do Senhor – afirma Pedro (?) será salvo.” Lucas, como já dissemos, escreve esse texto por volta do ano 80 e se esquece de um “detalhe” quase insignificante que, contudo, invalida o trecho. A expressão “aqueles que invocam o nome do Senhor” seria cunhada algum tempo depois do Pentecostes. Foi uma espécie de “marca da casa”. Uma forma de se definir. Naqueles momentos iniciais, que é quando Lucas situa o discurso de Pedro, nem o líder nem qualquer outro falava assim. Anos mais tarde é que nasceria o slogan, não naquela controvertida quinta-feira. Sirvam, pois, estas reflexões como aviso aos navegantes. Diante dos erros numerosos e graves – e escrevo isso com todo respeito -, como é possível aceitar os evangelhos como a palavra de Deus? Espero e desejo que o hipotético leitor destas minhas memórias saiba julgar por si próprio. Agora eu sei. A decisão foi providencial. O Destino sempre sabe o que faz. Organizadas as indagações sobre o Pentecostes, pouco faltou para que eu voltasse a Nazaré. Mas a insistência e o carinho dos Marcos me obrigaram a ceder, prolongando minha estadia em Jerusalém até meados de junho. Sim, a casualidade existe. Graças a essa circunstância, tive a excelente oportunidade de ser testemunha de uma série de acontecimentos inéditos para mim e, suponho, para os que se consideram crentes. Fatos de tal transcendência que, obviamente, não podiam ser relatados pelos evangelistas. E não porque não tivessem tido notícia deles, mas sim por conta da delicada natureza dos próprios fatos. Tentarei colocá-los em ordem, da maneira como aconteceram, e
sintetizá-los. A verdade é que me assusta o pouco que me resta de vida... e o muito que ainda tenho de contar. O primeiro desses fatos apareceu nítido e implacável poucas horas Antes do advento do Espírito. Pedro foi o grande impulsor. Nos dias seguintes ao Pentecostes, o líder entusiasta e vários dos íntimos continuaram pregando e conversando com todos que quisessem saber sobre a ressurreição. E foi, nesses discursos e conversas que a idéia se firmou. Os discípulos interpretaram mal as palavras do Ressuscitado sobre sua segunda vinda à Terra e assim nasceu o erro. Se o Mestre havia afirmado que regressaria – e de fato afirmara -, isso significava que a volta era certa e iminente. Jesus de Nazaré acabava de ir ao Pai para preparar a definitiva entronização do Reino no mundo. O assunto estava claro. A nova ordem universal era questão de dias ou semanas. E a euforia disparou. Mas o equívoco foi mais além. Movidos pela maior boa vontade, desejosos de abrir caminho ao Senhor e de criar um ambiente propício de irmandade, eles se lançaram a um trabalho febril de ajuda e zeparação de injustiças. E não ficou mendigo, indigente ou necessitado em Jerusalém que não recebesse dinheiro ou alimentos. Foi uma loucura. Invocando essa nova era que estava próxima, muitos seguidores venderam suas terras, casas e propriedades, distribuindo a riqueza entre os irmãos menos afortunados. Nada era de ninguém e tudo de todos. Se o “Senhor Jesus” - como começavam a chamar o Mestre – estava prestes a voltar para a Terra, e a Terra seria equilíbrio e bem-estar, que sentido tinha o dinheiro? Pouco serviram as advertências sensatas de pessoas como José de Arimatéia, Bartolomeu, Maria Marcos e a própria Senhora, entre outros. Os pedidos de prudência eram como zunidos de moscas nos ouvidos daqueles exaltados. Ninguém escutava. Eu, triste, não tive outro remédio senão ficar à margem de tudo. Naturalmente, como demonstraria a História, Jesus de Nazaré não voltou. O resto não é difícil de imaginar. A catástrofe foi inevitável.
O Mestre não voltava e o mundo continuava rodando. Contudo, sobre esse fato importante nenhum dos escritores sagrados (?) diz coisa alguma. Não é preciso ser muito esperto para entender o porquê. E já que menciono tão trágica circunstância, que provocaria uma infinidade de conflitos e atritos, não ocultarei um pensamento que não me deixa desde então. Poderia ter sido essa uma das causas que propiciaram a falta quase absoluta de informação sobre a faceta humana de Jesus? Foi a crença firme no regresso imediato do Mestre que teria despojado de importância os anos anteriores à sua vida de pregação? O ambiente, enfim, foi esfriando e alguns dos íntimos e fiéis seguidores do Rabi da Galiléia acabaram se despedindo, abandonando Jerusalém. No início de junho, por exemplo, os gêmeos de Alfeu, a Senhora e Tiago, seu filho, foram em direção ao yam. João Zebedeu os acompanhou e eu, francamente, me senti aliviado, embora não tivesse que suportar suas malcriações habituais, pois jamais me dirigiu a palavra naqueles dias. Foi o único a quem não me atrevi a interrogar. Segundo fato. Tudo começou com Mateus Levi, o antigo cobrador de impostos. Lembro-me de que, a poucos dias da irrupção do Espírito no cenáculo, o sério e lacônico galileu surpreendeu a todos nós. Havia começado a escrever. E fazia isso sem descanso. Quando me aproximei dele e, solícito e feliz, me mostrou as folhas fiquei sem jeito. Num aramaico limpo, ele acabava de iniciar uma espécie de diário ou memórias sobre os dias trágicos da paixão e morte de Jesus de Nazaré. Embora superficial, o relato se ajustava à verdade. Ou eu me enganava muito ou aquele texto era o primeiro dos que, com os anos, constituiriam o legado dos evangelistas sobre os ensinamentos do Mestre. Eu o interroguei com curiosidade e compreendi que estava decidido a pôr no papel o mais notável de tudo que havia visto, escutado e sentido junto ao seu adorado Rabi.
A recente estréia literária de Mateus não passou despercebida. Pouco a pouco, quase todos desfilaram pelo aposento superior da casa dos Marcos, lendo o manuscrito. As reações, contudo, não foram unânimes. Embora a maioria tivesse aprovado o rigor e a precisão do conteúdo, três discípulos mostraram clara oposição quanto ao próprio ato de redigir em si. Bartolomeu, o Zelota e Tomé, foram os primeiros a argumentar contra Mateus: “Se o Mestre estava prestes a retornar, por que perder tempo escrevendo sobre sua vida e ensinamentos? Ele se encarregaria de lembrar tudo...” “O Senhor Jesus” - disseram - “não aprovaria uma coisa assim. Sabes bem que, quando vivo, repetiu que não desejava ver suas palavras por escrito. A afirmação, contundente, me desconcertou. Sobre isso eu também não sabia nada. O Rabi, que eu soubesse, não havia deixado escritos, pelo menos de seu punho e letra. Mas a advertência dos discípulos a Mateus não combinava com algo que eu havia visto: os manuscritos ditados por Jesus ao Zebedeu pai. Aquilo sim era uma contradição. Teríamos de esperar, porém, o ansiado terceiro “salto” para resolver o enigma. Bartolomeu e os demais, claro, não tinham captado as verdadeiras intenções de Jesus. O certo é que, não dando ouvidos às críticas, Mateus Levi continuou seu trabalho. E ninguém mais voltou a incomodá-lo. Curioso. Tempos atrás, um incidente desses teria provocado, com certeza, uma disputa azeda. Pois bem, desde aquele bendito Pentecostes, não me cansarei de insistir nisso: os íntimos se tornaram menos agressivos. Houve polêmicas e discussões, mas jamais caíram nos velhos insultos ou nas desqualificações pessoais. A estranha “presença” mudou essa gente de forma radical. Não acredito estar exagerando se afirmar que aprenderam mais em poucos dias do que nos quatro anos de convivência com o Galileu. Quando este explorador abandonou Jerusalém, o esforçado Mateus continuava mergulhado em seu projeto. Suponho que, com o tempo, chegaria a terminá-lo. Depois, ao ler aquilo que atualmente aparece
no evangelho que leva seu nome, voltei a me surpreender. Esse texto também é irreconhecível(12). *12. Embora, de momento, não me sinta com forças para revelar a esplêndida “fonte” na qual bebi, posso completar a informação do major com o seguinte: as memórias de Mateus, ao que parece, foram concluídas no ano 40. Mais tarde, depois do cerco de Jerusalém por Tito, em 70, Isador, um dos discípulos de Mateus, decidiu empreender a definitiva redação do diário original. Aquele crente conservava uma das múltiplas cópias do que fora escrito pelo cobrador de impostos da Galiléia, bem como parte daquilo que fora redigido por João Marcos depois da morte de Pedro. (N. Do a.)
O terceiro acontecimento significativo não tardaria a chegar. Na verdade, de acordo com a visão de cada um, foi uma conseqüência do fato anterior. Numa reação muito humana e compreensível, André, irmão de Simão Pedro, adotou uma iniciativa similar à de Mateus Levi. Escreveria, sim. Colocaria no papel suas numerosas lembranças intensas. E se lançou ao trabalho. No início, foi tudo bem. Melhor dizendo, quase bem. Bartolomeu, Tomé e Simão, o Zelota, protestaram de novo. O resultado, contudo, foi idêntico. André tinha tudo muito claro. O verdadeiro problema apareceria na segunda semana de junho, quando, ao ler em voz alta as palavras do Ressuscitado em sua última aparição, André esqueceu a grande mensagem sobre a paternidade de Deus e a filiação dos homens. Aí surgiu o conflito. O “urso de Caná” o fez ver que estava suprimindo o que mais interessava ao Mestre. Tinha razão. E embora o complacente André prometesse emendar o lapso, a admoestação provocou uma discussão densa e interminável na qual o líder se manifestou abertamente contra Bartolomeu. Não era aquilo que atraía as massas. Não era essa a revolucionária idéia que a cada dia arrastava centenas de judeus e gentios ao batismo. Não era isso, em definitivo, aquilo que Pedro e seu grupo pregavam todos os dias. Era o Jesus vivo, ressuscitado, poderoso e triunfante que os havia colocado na boca de toda Jerusalém. Não, não mudariam...
Bartolomeu e os outros dois, pacientes, com serenidade, tentaram enfocar melhor a discussão. Assisti, maravilhado, à exposição de alguns argumentos irrepreensíveis. Eis aqui os argumentos que me pareceram mais solenes e certeiros: “O Mestre” - clamou Bartolomeu - “nos ensinou que o homem pode manter uma relação direta com o Pai, com Deus... Não importa que seja pobre, rico, ignorante ou pecador. Não percebes que este é o grande triunfo?” Mas o líder, secundado na polêmica por Felipe, Tiago de Zebedeu e Mateus, não retrocedeu. Nunca entendi a mudança súbita do antigo cobrador de impostos nesse assunto crucial. Como podemos lembrar, em outra das acaloradas discussões no yam, Mateus Levi manifestou-se a favor da pregação da mencionada paternidade de Deus. É bom não esquecer isso. Aqueles homens, apesar daquilo que haviam visto e ouvido, eram judeus. Acatavam a Lei, e o exposto por Bartolomeu ainda ecoava no íntimo deles. A Torá não falava dessa incrível, quase blasfema, relação entre Yaveh e os seres humanos. Ao contrário do que lhes tinha ensinado Jesus, continuavam pensando que a obediência a essa Lei é que provocava a resposta de Deus (13). Bartolomeu insistiu: “Jesus foi muito claro. A salvação não depende da obediência à Lei, mas sim da fé...” Não houve saída. Suponho que, além do deslumbramento provocado pelo fenômeno da ressurreição, Pedro e o resto da oposição intuíram que a grande mensagem traria dificuldades no estreito terreno no qual, de agora em diante, teriam de viver e se desenvolver. De fato, se contemplarmos a história da primitiva Igreja, veremos que o líder e seus irmãos sempre se moveram, durante anos, dentro das rigorosas coordenadas que a religião judaica determinava. A argumentação seguinte – desta vez a cargo do Zelota – foi rejeitada sem dó nem piedade: “Não percebeis que o Mestre está nos proporcionando uma religião sem grilhões, sem castas sacerdotais e sem medos? Uma religião de e pela alma...” E Tomé acrescentou: “Quantas vezes o Rabi repetiu
isso? O Evangelho do Reino nada tem a ver com velhas leis, raças ou culturas.. “  A batalha dialética parecia perdida. Ainda assim, lançando mão de “alguma coisa” que todos aceitavam, Bartolomeu esgrimiu com perícia: “O Espírito da Verdade nos visitou. Pois bem, não compreendeis que um de seus propósitos é purificar as almas e limpar as mentes? Não entendeis que, a partir de agora, nosso trabalho se resume em fazer a vontade do Pai?” *13. Ampla informação em Operação Cavalo de Tróia 5, pp.105 e ss. (N. Do a.)
E, enérgico, enfatizou: “. Que mais glória, sabedoria e triunfo podeis esperar? . A “oposição” respondeu convencida: “Esqueces que o Senhor Jesus venceu a morte. Esse é o grande triunfo... Isso é o que todos devem saber. Essa é a vontade do Pai.” Bartolomeu, impotente, discordou mais uma vez. Por fim, desalentado, clamou: “Eu vos direi qual é essa vontade!... Cumprir os desejos do Mestre... Quer dizer, proclamar ao mundo que somos filhos de um Deus... Filhos de um Deus!” Mas o líder, eufórico, driblou o argumento preciso. “É isso que fazemos, querido “urso”... É isso que pregamos... Deus é o pai do Senhor Jesus!...” Simão tinha razão. Até certo ponto. Finalmente haviam compreendido o obscuro assunto da divindade do Mestre. Contudo, como observava Bartolomeu, a segunda parte do mistério – a paternidade de Deus para com os seres humanos – escapara ao entendimento deles. O grupo parecia condenado a “fabricar” uma irmandade de crentes na figura do “Senhor Jesus”, esquecendo-se da outra “irmandade”: a de um mundo sem hierarquias nem distinções, no qual todos soubessem que eram filhos do Pai. Foi uma pena... E não me enganei. A julgar pelos resultados, Pedro e os seus mantiveram a postura inicial, adorando o Galileu e transformando-o num exemplo a seguir. Estava assistindo ao nascimento de uma seita
que, anos depois, sob o gênio organizacional de Paulo, se transformaria no que hoje chamam de “Igreja”. Estão enganados todos aqueles que supuseram, e supõem, que a Igreja se consolidou com Jesus ou nos dias posteriores ao Pentecostes. Aquilo, pelo menos até onde consegui saber, não era uma organização, tal como hoje concebemos. Não havia hierarquias. No máximo, um reconhecimento implícito de um líder. Não existia ritual algum. Só um desejo sincero, embora utópico, de compartilhar tudo e de pregar as excelências do Mestre. A ruptura foi irreversível. Ninguém cedia um milímetro nas posturas, tão claras quanto coerentes. Falaram, sim, mas o abismo, longe de desaparecer, foi crescendo. O cisma estava aberto. Naturalmente, nem um único evangelista menciona esses lamentáveis acontecimentos. Fatos que dividiam o primitivo colégio apostólico em dois grupos irreconciliáveis sob o ponto de vista estritamente “teológico”. De um lado, Pedro, seu irmão André, Tiago Zebedeu, Felipe e Mateus Levi. Pouco depois, João Zebedeu se uniria a estes. No outro extremo, formando um segundo “clã”, Bartolomeu, Tomé e Simão, o Zelota. Tanto os gêmeos de Alfeu como Matias se mantiveram numa terra de ninguém, afastados de toda atividade apostólica. Escrever sobre o distanciamento de alguns homens que haviam estado em contato íntimo com o Filho de Deus? Esclarecer que o carismático Pedro renunciou à grande mensagem de Jesus? Divulgar o cisma? Reconhecer que seis apóstolos se equivocaram? Impossível. Isso teria maculado a imagem da nascente Igreja, propiciando dissidências e desordens. Seria muita humildade para alguém que se considerava de posse da verdade. E como era previsível, o grupo minoritário não teve alternativa: teria de abandonar Jerusalém. Lembro-me de que tive longas conversas com os três. Quais eram suas intenções? Renunciariam à pregação? O “urso de Caná” foi contundente. Primeiro, pediria o conselho dos irmãos que moravam em Filadélfia, do outro lado do Jordão. Lázaro era um deles. Depois, se essa fosse a vontade do Pai, iria para longe, talvez em direção ao leste.
Ali anunciaria a boa nova sobre a paternidade de Deus e a filiação dos homens. A verdade é que Bartolomeu, embora estivesse logicamente triste com o rumo dos acontecimentos, falou com serenidade. Sabia o que queria. Além disso, em seu coração pesavam agora, com força, as palavras proféticas do Mestre na “última ceia”. Palavras, à maneira de uma despedida, das quais não se havia esquecido e me lembrou com precisão: “... Quando eu tiver partido” - falou Jesus - “pode ser que tua franqueza interfira nas relações com teus irmãos, tanto os antigos quanto os novos... “... Dedica tua vida a demonstrar que o discípulo conhecedor de Deus pode chegar a ser um construtor do reino, até mesmo quando estiver sozinho e separado de seus irmãos de fé... “... Sei que serás fiel até o final... “... Levai convosco o preceito da tradição judaica e vos empenhai em interpretar meu evangelho de acordo com os ensinamentos dos escribas e fariseus... “... Aquilo que não podeis compreender agora, o novo mestre, quando tiver chegado, vos revelará nesta vida...(14)” Por que esconder isso? Uma vez mais fiquei maravilhado diante do poder daquele Homem. Como podia saber o que aconteceria dois meses depois da emocionante despedida histórica? Sei que, depois do que eu havia vivido, a pergunta era uma solene estupidez. Tomé, do seu lado, respondeu no mesmo tom que o “urso de Caná”. A decisão de se separar de seus antigos companheiros era dolorosa, mas não havia alternativa. Cumpriria a ordem do Rabi. Falaria do Pai aos gentios. Talvez até tirasse umas férias. Depois, veríamos... A bem da verdade, eu nunca mais soube nada dele. Algumas tradições garantem que se dirigiu ao Chipre, Creta e Sicília, visitando até mesmo a costa norte da África. Mas são apenas suposições. Num dia daquele quente mês de Sivan, acredito ter sido um domingo, dia 10, aquele que havia sido o cético do grupo desapareceu sozinho e sem despedidas. Coisa bem ao estilo de Tomé...(15). Quanto ao antigo guerrilheiro – Simão, o Zelota -, comungando com
a opinião dos dois companheiros, deixou a questão para o Pai. Por nada deste mundo trairia o Mestre. Ele também guardava na memória as frases certeiras e lapidares que o Rabi lhe dedicara naquela memorável despedida, na noite de 6 de abril. “... Que fareis quando eu for embora e enfim despertardes e perceberdes que não compreendestes o significado do meu ensinamento, e que tendes de ajustar vossos conceitos errôneos a outra realidade? *14. Ampla informação sobre a mencionada despedida de Jesus em Operação Cavalo de Tróia 2, pp.175 e ss. (N. Do a.). 15. Parece, segundo minhas fontes, que Tomé, o Dídimo, foi preso por Roma e executado na ilha de Malta. Ali, em algum lugar, foram encontrados seus restos. É possível que tenha chegado a escrever também seu próprio evangelho, (N. Do a.).
“... Simão, sempre serás meu apóstolo, e quando chegares a ver com o olho do espírito e submeteres plenamente tua vontade à do Pai do céu, então voltarás a trabalhar como meu embaixador...” Simão também não teve dúvida. Era o momento. O Espírito da Verdade lhe abriu os olhos. E agora ele ria de si próprio e de suas idéias bobas sobre um reino material e um Messias guerreiro e libertador. A mensagem aparecia muito clara em seu íntimo: “Era preciso despertar a grande esperança. Era mister que o mundo soubesse daquele Deus. Um Pai radiante e benigno, todo amor, que nos estava presenteando a vida. No fundo era simples. Tudo consistia em fazer a Sua vontade...”. E ele o fazia. Para começar, iria para o Egito. Depois, quem sabe... (16) Nunca mais voltei a vê-los... naquele “agora”. Na quarta-feira, dia 14, uma notícia procedente de Caná sacudiu os íntimos. Era a segunda morte em cerca de trinta dias. Primeiro foi a morte de Elias Marcos, agora a do pai de Bartolomeu. E o “urso”, acompanhado pelo Zelota e por quem escreve este diário, foi para sua aldeia natal. Dali, segundo explicou, se dirigiria à residência de um tal de Abner, em Filadélfia (atual Amã). Quanto a seu companheiro de viagem, simplesmente perdi sua
pista depois da despedida em Nazaré. O que estava claro para mim é que nenhum dos “dissidentes”Bartolomeu, Tomé e Simão, o Zelota – chegou a participar, direta ou indiretamente, da posterior edificação da chamada Igreja dos Cristãos. Acredito até que jamais voltaram a se reunir. Uma Igreja, por certo, que seria definitivamente desenhada, não por Pedro e seu grupo, mas por aquele gênio de marketing chamado Paulo. A ele e aos gregos devemos na realidade aquilo que hoje constitui a Igreja Católica. O inteligente Paulo, fazendo suas as premissas que vigoraram nos dias posteriores à chegada do espírito, *16. Essas mesmas e especialíssimas “fontes” indicam que o Zelota cumpriu sua palavra. Recuperado o ânimo, viajou ao Egito, pregando a boa nova. Chegou às fontes do Nilo e ali morreu. A África conheceu em primeira mão a mensagem de Jesus de Nazaré. Talvez, algum dia, este investigador que aqui escreve decida realizar um velho sonho: procurar o túmulo de Simão, o Zelota. Mas isso, como tudo, depende da vontade do Pai... Forjou uma religião cujo objetivo básico era a glorificação do Mestre. Lamentavelmente, a grande mensagem, a que provocou o cisma, foi enterrada. E assim continua... vinte séculos depois. Mas essa história me levaria paRa longe, afastando-me daquilo de que fui incumbido. Meu trabalho na Cidade Santa chegava ao fim. Na verdade, só faltava pôr ordem em outro “capítulo”. Um “capítulo”, reconheço, que me obcecava e ia crescendo dia a dia. Um “capítulo” espetacular, igualmente suprimido pelos evangelistas. Eu me refiro, é claro, às numerosas aparições do Mestre depois de sua morte na Cruz. Desde que cheguei a Jerusalém, as notícias SOBRE as incríveis “presenças” do Ressuscitado se davam quase sem interrupção. Vinham de todos OS lugares. A princípio, resisti. Aquilo era uma loucura. Alguém, provavelmente, andava inventando. Talvez a ressurreição tivesse transtornado as mentes das pessoas. Mas não, o equivocado era eu. Conforme fui interrogando os mensageiros, comprovei que seus testemunhos eram sólidos. Não consegui achar contradição alguma. De fato algo estranho, fora do comum, havia acontecido nesses quarenta dias.
Os íntimos e demais seguidores do Rabi se reuniam em torno desses “correios” e escutavam, felizes e encantados, os sucessivos relatos. Cada história era um jorro de oxigênio que renovava a certeza de todos, fortalecendo as idéias e as pregações diárias de Pedro e seu grupo. De certa maneira, as aparições pareciam dar razão ao líder. Aquilo era físico. Palpável. Deslumbrante. Aquilo mexia com os corações. Fazia palpitar as pessoas. Provocava polêmica. Entusiasmava. Pouco a pouco consegui colocar em ordem todo aquele aglomerado de fatos, reunindo, acredito eu, uma informação exaustiva sobre o tema. Contudo, antes de passar a comentar esses fatos fascinantes, considero conveniente que o hipotético leitor deste diÁRio receba um relato todo Ordenado. Algumas das “presenças”, já detalhadas nas páginas Anteriores foram reduzidas à expressão mínima. É meu dever esclarecer também que nem todas as aparições puderam ser investigadas por este que aqui escreve. A falta de tempo e a distância de alguns cenários me impediram. Contudo, como digo, nunca duvidei da credibilidade das testemunhas. Simplesmente, não havia como desconfiar de gentios e judeus que se achavam separados por tantos quilômetros e que, apesar disso, contavam praticamente a mesma história. Dito isso, tentarei enumerar, em rigorosa ordem cronológica, aquilo que viram e escutaram centenas de homens e mulheres entre a madrugada do dia 9 de abril, domingo, e as primeiras horas da manhã de 18 de maio, quinta-feira, desse ano 30 da nossa era.
9 DE ABRIL 1 – Pouco antes do romper do dia (ao redor das 5:47 horas). Horto de José de Arimatéia. Testemunhas: Maria Madalena e mais quatro mulheres. Observam “um homem com roupas brancas e o rosto, cabelos e pés translúcidos como o cristal”. Reconhecem a voz do Mestre. Quando Madalena tenta abraçá-lo, o Ressuscitado não
permite: “Não sou aquele que conheceste na carne.” Duração: uns cinco minutos. 2 – Por volta das 9:35 horas. Também na plantação do velho de Arimatéia, nas cercanias de Jerusalém. Unico testemunho: o de Madalena. Ela descreve o Ressuscitado como um “estrangeiro com túnica e manto brancos”. Reconhece a voz de Jesus. Duração: segundos. 3 – Hora “sexta” (meio-dia), mais ou menos. Betânia. Jardim da propriedade da família de Lázaro. O Ressuscitado se apresenta diante de Tiago, seu irmão. “Lembrou-me uma nuvem. Ou talvez fumaça... Era uma massa brumosa que, partindo da cabeça, foi moldando uma figura.. E pouco a pouco, a nuvem converteu-se num homem.” A testemunha não reconhece o Mestre, e sim sua voz. Passeiam. O “Homem” fala de “certos fatos” que deviam acontecer, mas Tiago se nega a revelá-los. Anos mais tarde, alguns associaram essa revelação à morte de Tiago, acontecida no ano de 62. Desaparecimento súbito. Duração: de três a quatro minutos. 4 – Por volta da “nona” (15:00 horas). Também em Betânia. No umbral de um dos aposentos da casa de Lázaro. Vinte testemunhas. Entre outros, a família de Lázaro, Davi Zebedeu (o chefe dos “correios”), Salomé, sua mãe, a Senhora, Tiago (irmão de Jesus) e Madalena. Desta vez, o reconhecem. Trata-se de um “homem de carne e osso”. Desaparecimento súbito. Duração: segundos. 5 – 16:15 horas, aproximadamente. Interior da casa de José de Arimatéia, em Jerusalém. Testemunhas: Maria Madalena e vinte e quatro mulheres. Elas têm primeiro uma clara sensação de frio. “Como uma corrente de vento gelado.” O Mestre aparece de repente no centro do círculo formado pelas hebréias. É um homem de carne e osso. O Ressuscitado reivindica o papel da mulher na difusão da boa nova. “Vós” - diz - “também sois chamadas a proclamar a libertação da Humanidade pelo evangelho da união com Deus... Ide pelo mundo inteiro anunciando este evangelho e confirmando os crentes na fé neste evangelho...” A “presença” se extingue. Por causa dessa
aparição, o Sinédrio dita normas contra aqueles que propagarem notícias sobre a volta à vida do Rabi da Galiléia. Duração: entre um e dois minutos. 6 – 16:30 horas. Jerusalém. Interior da casa de Flávio, antigo conhecido de Jesus. Testemunhas: mais de quarenta gregos, seguidores dos ensinamentos do Mestre (alguns se achavam em Getsêmane na noite da prisão). Aparição repentina. O “Homem” lhes pede também que saiam pelo mundo e proclamem a boa nova. “Dentro do reino do meu Pai” - comunica-lhes - “não haverá judeus nem gentios... Embora o Filho do Homem tenha aparecido na Terra entre os judeus, trazia seu ministério para todos os homens.” Desaparecimento fulminante. Duração: pouco mais de um minuto. 7 – Por volta das 18:00 horas. No caminho da Cidade Santa a Emaús. Talvez a cinco ou seis quilômetros de Jerusalém. Testemunhas: os irmãos Cleófas e Jacó, pastores. Um “Homem” sai ao seu encontro. Não reconhecem o Mestre nem sua voz. O “Homem” lhes fala lembrando-lhes “que o reino anunciado por Jesus não era deste mundo e que todos os seres humanos são filhos de Deus”. O “Homem” entra na casa dos pastores, senta-se à mesa e parte com facilidade uma fatia de pão de trigo. Depois de abençoá-lo, desaparece. Duração: uma hora e meia, aproximadamente. 8 – 20:30 horas. Pátio a céu aberto no lar dos Marcos, em Jerusalém. Testemunha: Simão Pedro. Um “Homem” se apresenta de repente junto ao desmoralizado discípulo. O pescador não o reconhece, apenas sua voz. O Ressuscitado, entre outras coisas, lhe diz: “Prepara-te para levar a boa nova do evangelho àqueles que se encontram nas trevas”. Passeiam lembrando o passado e falando do presente e do futuro. Desaparecimento igualmente súbito. Duração: mais de cinco minutos. 9 – 21:30 horas. Andar superior da casa de Elias Marcos Jerusalém). Testemunhas: o cabeça da família, José de Arimatéia, dez
dos onze discípulos (faltava Tomé) e este que escreve este diário. Portas fechadas e trancadas. Um vento gelado faz oscilar as chamas das lamparinas. O quarto fica no escuro. Uma ziguezagueante e infinitesimal faísca elétrica (?) azulada aparece no fundo do aposento. A “faísca” (?) desenha uma figura humana nitidamente composta por uma sutil linha de cor violeta. Uma “cascata de luz” () se derrama da parte de cima, envolvendo a silhueta. Aparece um “homem luminoso”. Ninguém reconhece o Mestre. A forma violácea fala e parece como se a voz saísse de toda a estrutura. Copos metálicos e espadas, situados perto da “aparição”, se entrechocam, caindo ao chão. O “ser de luz” (?) se desvanece, recolhendo-se sobre si mesmo, até restar apenas um ponto brilhante, branco como o mais potente dos arcos voltaicos. Duração: impossível de determinar. Talvez um ou dois minutos(17). 11 DE ABRIL, TERÇA-FEIRA 10 – Pouco antes das 8:00 horas. Interior de uma das sinagogas de Filadélfia (adiante da Peréia). Testemunhas: Lázaro e mais de cento e cinqüenta seguidores do Mestre. *17. Ampla informação sobre essas nove aparições em Operação Cavalo de Tróia 2, pp. 282 e ss., 298 e ss., 345 e ss, 436 e ss., 339 e ss., 358 e ss., 369 e ss., 366 e ss e 378 e ss., respectivamente. (N. Do a.)
A reunião tinha por objetivo difundir uma notícia procedente da Cidade Santa: a ressurreição do Mestre. Quando Lázaro e Abner, o chefe daqueles fiéis, se dispunham a falar, um “Homem” surgiu “do nada”, a poucos passos dos oradores. Tampouco o reconheceram. Segundo os emissários que relataram o fato, o Ressuscitado disse: “A paz esteja convosco... “Já sabeis que tendes um só Pai no céu e que existe um único Evangelho do Reino: a boa nova do presente da vida eterna que os homens recebem pela fé. Ao regozijar-vos em vossa fidelidade ao Evangelho, rogai a Deus para que a verdade se estenda em vossos corações com um novo e mais belo amor aos vossos irmãos. Amai a
todos os homens como eu vos amei e servi-os como eu vos servi. Recebei em vossa comunidade, com agradável compreensão e afeto fraternal, todos os irmãos consagrados à divulgação da boa nova. Sejam judeus ou gentios. Gregos ou romanos. Persas ou etíopes. João pregou o reino por vir. Vós, a força do evangelho. Os gregos já anunciam a boa nova e eu, em breve, vou enviar o Espírito da Verdade à alma de todos esses homens, meus irmãos, que tão generosamente consagraram suas vidas à iluminação de seus semelhantes, afundados nas trevas espirituais. Todos sois filhos da luz. Não tropeceis no erro da desconfiança e da intolerância. Se, pela graça da fé, vos enobrecestes amando os não crentes, não deveríeis, igualmente, amar vossos companheiros crentes da grande família da fé? Lembrai que da maneira que vos amardes uns aos outros, todos os homens reconhecerão que sois meus discípulos. “Percorrei, pois, o mundo todo anunciando o evangelho da paternidade de Deus e da irmandade dos homens. Fazei-o com todas as raças e nações. Sede prudentes ao escolher os métodos para a divulgação dessas verdades. Recebestes gratuitamente este Evangelho do Reino e gratuitamente o entregareis. “Não temais... Eu estarei sempre convosco, até o final dos tempos. “Deixo-vos minha paz...” Dito isso, o “Homem” desaparece da vista dos ali congregados. Duração: por volta de três minutos. As testemunhas, impressionadas, se apressam a relatar o ocorrido aos íntimos do Mestre e a sair pelos caminhos, anunciando aquilo que foi solicitado pelo “Homem”. Para dizer a verdade, são os primeiros “missionários”. Os pioneiros na difusão de uma mensagem – a grande mensagem – não contaminada.
16 DE ABRIL, DOMINGO 11 – 18:00 horas. Cenáculo, na casa dos Marcos Jerusalém). Portas novamente trancadas. Testemunhas: os onze íntimos e este que escreve este diário. Momentos antes da “presença”, as chamas das lamparinas de óleo oscilam, mas não chegam a se apagar. Como que saído de uma das paredes, apresenta-se na sala um “Homem de carne e osso”. Todos o reconhecem. E Jesus de Nazaré. O Ressuscitado ordena que saiam pelo mundo e anunciem a boa nova. “Envio-vos, não para amar as almas dos homens, mas sim para amar os homens... Sabeis pela fé que a vida eterna é um dom de Deus. Quando tiverdes mais fé e o poder de cima (o Espírito da Verdade) tiver penetrado em vós, não ocultareis vossa luz... Vossa missão no mundo se baseia no que vivi convosco: uma vida revelando Deus e em torno da verdade de que sois filhos do Pai, assim como todos os homens. Esta missão se concretizará na vida que fareis entre os homens, na experiência afetiva e vivente do amor a todos eles, assim como eu vos amei e servi. Que a fé ilumine o mundo e que a revelação da verdade abra os olhos cegados pela tradição. Que vosso amor destrua os preconceitos engendrados pela ignorância. Ao aproximar-vos de vossos contemporâneos com simpatia compreensiva e uma dedicação desinteressada, vós os conduzireis à salvação pelo conhecimento do amor do Pai. Os judeus exaltaram a bondade. Os gregos, a beleza. Os hindus, a devoção. Os remotos ascetas, o respeito. Os romanos, a fidelidade... Eu, contudo, peço a vida de meus discípulos. Uma vida de amor ao serviço de seus irmãos encarnados.” O Ressuscitado levanta os braços. As mangas deslizam e ele mostra a Tomé a pele limpa, sem sinal algum de feridas. E Lhe diz: “Apesar de que não vês nenhum sinal de cravos, pois agora vivo sob uma forma que tu também terás, quando deixares este mundo, que dirás aos teus irmãos?”. O “Homem” se distancia. Caminha até uma das paredes e desaparece. Duração: quatro minutos(18).
18 DE ABRIL, TERÇA-FEIRA 12 Pouco depois das 20:00 horas. Residência de Rodã (cidade de Alexandria, no Egito). Testemunhas: uns oitenta gregos e judeus que compartilhavam os ensinamentos do Mestre. Quando um dos “correios” enviado por Davi Zebedeu conclui sua exposição sobre a morte de Jesus de Nazaré, um “Homem” aparece de repente entre os ali reunidos. Rodã, Natã de Busiris (o mensageiro) e outros o reconhecem. O Ressuscitado, segundo Natã, diz textualmente: “Que a paz esteja convosco... O Pai me enviou para estabelecer algo que não é propriedade de raça ou nação alguma, nem de algum grupo especial de educadores ou pregadores. O Evangelho do Reino pertence aos judeus e gentios, ricos e pobres, homens livres e escravos, mulheres e homens e, inclusive, crianças. Espalhai este evangelho de amor e verdade através de vossas vidas. Amai-vos com um novo amor, como eu vos amei. Servi a humanidade com uma devoção nova e surpreendente, como eu vos servi. Então, quando os homens virem como vós os amais, e quanto trabalhais em seu favor, compreenderão que entrastes pela fé na comunidade do reino dos céus. Então seguirão o Espírito da Verdade, que eles descobrirão em vossas vidas, até encontrar a salvação eterna. “Assim como meu Pai me enviou a este mundo, eu também vos envio. Todos sois chamados a difundir esta boa nova àqueles que se debatem nas trevas. O Evangelho do Reino pertence a todos aqueles que acreditam nele... Prestai atenção: este evangelho não deve ser confiado exclusivamente aos sacerdotes... “Em breve, o Espírito descerá sobre vós e vos guiará à verdade. Ide , pois, e pregai esta grande notícia... *18. Ampla informação em Operação Cavalo de Tróia 2, pp. 489 e ss. (N. Do a.)
“E não vos esqueçais de que estarei convosco até o final dos tempos.” O “Homem” desaparece. Dois dias depois – quinta-feira, 20 de abril – outro “correio” chega a Alexandria com a notícia da ressurreição. Rodã e sua gente transmitem ao perplexo mensageiro outra informação não menos valiosa: “Sim, nós sabemos. Acabamos
de vê-lo.” , Duração da “presença”: escassos dois minutos.
21 DE ABRIL, SEXTA-FEIRA 13 Pouco depois do amanhecer (6:00 horas). Praia de Saidan, no lago de Tiberíades. Testemunhas “oficiais(1): dez dos apóstolos (faltava Simão, o Zelota), o adolescente João Marcos e este que aqui escreve. Um “Homem” aparece na margem do yam. Às 6:30 horas, as embarcações tripuladas pelos íntimos se aproximam da costa. O “Homem” alerta os pescadores sobre a presença de um cardume de tilápias. Enchem as redes e regressam. Quando estão quase chegando, Zebedeu intui que aquele “Homem” é o Mestre. Simão Pedro se lança à água e nada até a margem. O “Homem” os convida a comer um pouco do peixe. Todos o reconhecem. O “Homem” nega-se a comer. Passeia com os discípulos pela praia. Faz isso com dois de cada vez. Ao se dirigir a Pedro, lhe diz, entre outras coisas: “Não te preocupes com o que fazem teus irmãos. Se quero que João (o Zebedeu) permaneça aqui enquanto tu te vais e até que eu volte, que te importa?”. Minutos depois, caminhando junto a André, o Ressuscitado, sutilmente, lhe anuncia a morte de Tiago (irmão de Jesus): “... Quando teus irmãos se dispersarem em conseqüência das perseguições, sê um sábio e prudente conselheiro para Tiago, meu irmão de sangue, pois ele terá de levar uma carga muito pesada, que sua experiência não permite suportar.(2) 1*. Para não cansar o hipotético leitor deste diário, optei por suprimir minhas próprias vivências com o Ressuscitado, registradas desde as 4 horas dessa madrugada. A informação, além disso, aparece em páginas anteriores. (N. do  m.)
2. A morte de Tiago, ao que parece, deu-se 32 anos mais tarde. Ou seja, no ano 62 da nossa era. (N. Do m.)
Noutra conversa – desta vez com Tiago de Zebedeu -, o
ressuscitado formula uma nova profecia. Dirigindo-se ao “filho do trono” aFirma: “Aprende a pensar nas conseqüências de tuas palavras e atos. Lembra que a colheita é de acordo com a semeadura. Com fé, estas graças te sustentarão quando chegar a hora de beber o cálice do sacrifício. Não temas nunca...(3). Às 10, depois de despedir-se, deixam de vê-lo. Duração: “oficialmente”, umas quatro horas.
22 DE ABRIL, SÁBADO 14 – Hora “sexta” (meio-dia). Monte da Ordenação (hoje chamado das Bem-Aventuranças), ao norte do Kennereth (lago da Galiléia). Testemunhas “oficiais”: os onze discípulos. Um “Homem” surge de repente no topo. É Jesus de Nazaré. O Ressuscitado levanta o rosto para o céu e, com voz grave, pede ao Pai que cuide daqueles homens. Depois coloca as mãos sobre suas cabeças. A cada vez, fecha os olhos, ficando em silêncio alguns segundos. Finalizada a cerimônia, conversa com os onze, demonstrando excelente bom humor. Abraça Simão, o Zelota, durante um longo minuto. Repete a operação com o resto e por volta das 13:00 horas,(4) retrocedendo até o centro do círculo, desaparece de maneira abrupta. Duração “oficial”: uma hora.(5)
29 DE ABRIL, SÁBADO 15 – Por volta da “nona” (15:00 horas). Praia de Saidan. Testemunhas: os onze discípulos, o jovem João Marcos, a Senhora, parte da família dos Zebedeu, cerca de quinhentos moradores das localidades próximas e aquele que escreve este diário. 3*. Tiago de Zebedeu morreria no ano 44. (N. Do m.) 4. Ampla informação em Operação Cavalo de Tróia 3, pp. 295 e ss. (N. Do a.) 5. Ampla informação em Operação Cavalo de Tróia 3, pp. 335 e ss. (N. Do a.)
Depois de um audaz discurso de Pedro, no qual ele proclama a ressurreição do Mestre, o maarabit, o vento do oeste, cessa bruscamente. Faz-se um silêncio anormal. As fogueiras se alteram. De repente, no centro da lancha atracada que Simão Pedro ocupa, surge um “Homem”. Parte dos felah e am-ha-are ali reunidos retrocede e cai. É o Rabi. Durante alguns instantes, o Ressuscitado passa o olhar sobre a multidão. Finalmente, exclama: “Que a paz esteja convosco... Deixo-vos minha paz”. O “Homem” desaparece. Voltam os sons habituais do yam, bem como o vento.  Duração: não mais de quinze segundos.(6)
5 DE MAIO, SEXTA-FEIRA 16 – Primeira vigília da noite (cerca das 21:00 horas). Pátio a céu aberto na casa de Nicodemos Jerusalém). Testemunhas: o anfitrião, os onze discípulos e cerca de setenta seguidores do Mestre, entre os quais se encontram mulheres e gregos. Meia hora depois de iniciada a reunião, um “Homem” se apresenta de improviso entre eles. É reconhecido na hora. E, segundo as informações que estão em meu poder, Jesus lhes diz: “A paz esteja convosco. Eis aqui o grupo mais representativo de fiéis, embaixadores do reino, discípulos, homens e mulheres aos quais apareci desde que me libertei da carne. Eu vos lembro agora aquilo que vos anunciei tempos atrás: que minha estada entre vós terminaria. Disse-vos que tinha de voltar para junto do Pai. Também vos expus claramente que os sacerdotes principais e os líderes dos judeus me entregariam para ser condenado à morte. Mas também vos disse que me levantaria do túmulo. Então, qual é a razão de vosso desconcerto? Por que tanta surpresa quando, no terceiro dia, ressuscitei? Não crestes em mim porque escutastes minhas palavras sem entendê-las.
“Agora, portanto, prestai atenção para não cair de novo no erro de me ouvir com a mente, ignorando-me com o coração. *6. Ampla informação em Operação Cavalo de Tróia 5, pp.118 e ss. (N. Do a.)
“Desde o primeiro momento de minha estada entre vós, ensinei-vos que meu único objetivo era revelar o meu Pai dos céus aos seus filhos da Terra. Vivi essa encarnação para que possais aceitar o conhecimento desse grande Deus. Eu vos revelei que Deus é vosso Pai e vós sois seus filhos, Deus vos ama!... E é fato que sois seus filhos... “Pela fé em minhas palavras, isto se torna uma verdade eternamente viva em vossos corações. “Quando, por essa fé viva, estiverdes conscientes desse Deus e daquilo que afirmo, então tereis nascido como filhos da luz e da vida. E eu vos prometo que continuareis ascendendo e que encontrareis o Pai no Paraíso... “Eu vos exorto a que não vos esqueçais de que vossa missão consiste na proclamação do Evangelho do Reino. Quer dizer, a realidade da Paternidade de Deus e a irmandade entre os homens... Anunciai a boa nova, em sua totalidade. Não deveis cair na tentação de revelar somente uma parte. Prestai atenção! Minha ressurreição não deve mudar a grande mensagem, ou seja, que sois filhos de um Deus! “Permanecei, pois, fiéis ao Evangelho do Reino. “Deveis andar pelo mundo, pregando o amor de Deus e o serviço aos homens. “O que o mundo necessita é saber que todos são filhos do Pai e que , graças a essa fé, podem conhecer e experimentar essa nobre verdade. Minha encarnação deveria ajudar a compreender que os homens são filhos do céu, mas sei também que, sem fé, não é possível alcançar o autêntico sentido dessa revelação. “Agora, aqui, estais compartilhando a realidade da minha ressurreição. Mas isto nada tem de estranho. Eu tenho o poder de sacrificar minha vida.... e de recuperá-la. É o Pai quem me outorga esse poder. Mais do que por isto, vossos corações deveriam
estremecer é pela realidade desses mortos de uma época que empreenderam a ascensão eterna pouco depois que abandonei o túmulo de José de Arimatéia... “Vivi para vos mostrar como, com amor, podeis revelar Deus a vossos semelhantes. O fato de amar-vos e servir-vos foi uma revelação. Se fiquei entre vós como o Filho do Homem foi para que chegásseis a conhecer esta grande verdade: sois filhos de um Deus! “Ide, pois, e proclamai este evangelho. “Amai como eu vos amei. Servi como eu vos servi. “Recebestes com generosidade... Sede, pois, generosos. “Ficai em Jerusalém até que eu vá ao Pai e vos envie o Espírito da Verdade. Depois, Ele vos conduzirá a uma verdade mais ampla e vos acompanhará por todo o mundo. “Estarei sempre convosco... “Deixo-vos minha paz.” Dito isso, o “Homem” desaparece. Duração: uns quatro minutos.
13 DE MAIO, SÁBADO 17 – Por volta da “décima” (16:00 horas). Perto do poço de Jacó (cidade de Sicar, em Samaria). Testemunhas: cerca de setenta e cinco samaritanos, fiéis seguidores do Mestre. Enquanto comentam as notícias sobre a ressurreição, o Rabi aparece diante deles. Todos o identificam. O texto, com as palavras do Ressuscitado, é enviado também à casa dos Marcos. Dizia assim: “A paz esteja convosco... Estais jubilantes por saber que sou a ressurreição e a vida. Mas nada disso servirá se antes não nascerdes do espírito e encontrardes Deus. Se chegardes a ser filhos do Pai pela fé, nunca morrereis. “O Evangelho do Reino ensina que todos os homens são filhos de
Deus. Muito bem, é preciso que esta boa nova seja espalhada por todo o mundo. Chegou a hora em que não devereis adorar Deus no monte Gerizim nem em Jerusalém, mas ali onde vos encontrardes. Ali onde estiverdes..., em espírito e verdade. É a vossa fé que salva a alma. A salvação é uma graça de Deus para todos aqueles que se consideram seus filhos. Mas não vos equivoqueis. Ainda que a salvação seja um presente do Pai, oferecido a quantos o desejam pela fé, é mister render frutos espirituais na vida. “A aceitação da verdade sobre a paternidade de Deus significa que deveis tornar vossa a segunda grande revelação: todos os homens são irmãos..., fisicamente! “Portanto, se o homem é vosso irmão, é muito mais que vosso próximo. E o Pai exige que o ameis como a vós mesmos. “Se o homem pertence, pois, à vossa própria família, não só o amareis com um amor fraterno, como também o servireis como serviríeis a vós mesmos. E assim o fareis, porque eu, primeiro, fiz convosco. “Ide pois pelo mundo, anunciando esta boa nova a todas as criaturas de cada raça, tribo e nação. “Meu espírito vos precederá e estarei sempre convosco.” Ato contínuo, ante o temor e a perplexidade dos samaritanos, o Ressuscitado desaparece. Duração: uns três minutos.
16 DE MAIO, TERÇA-FEIRA 18 – Pouco antes das 21:00 horas. Cidade de Tiro (costa da Fenícia). Testemunhas: os emissários não conseguem chegar a um acordo. Alguns mencionam cinqüenta. Outros falam de uma centena de gentios, todos eles conhecedores dos ensinamentos de Jesus. No instante da aparição discutem sobre a pretendida volta do Galileu à vida real. Ao se apresentar subitamente diante deles, quase todos o reconhecem. “É um “Homem normal e comum.” Estas são as palavras do Ressuscitado: “A paz esteja convosco...
“Regozijai-vos ao saber que o Filho do Homem ressuscitou dentre os mortos. Assim sabeis que vós, assim como vossos irmãos, também vencereis a morte. Mas para alcançar essa vida superior é preciso que, previamente, tenhais nascido do espírito que busca a verdade e tenhais descoberto o Pai. O pão e a água da vida se outorgam unicamente aos que têm fome da verdade e sede de Deus. “Não vos confundais... Que os mortos ressuscitem não constitui o Evangelho do Reino. Essas coisas só são o resultado, uma conseqüência a mais, da fé na boa nova. Fazem parte do evangelho e da sublime experiência daqueles que, pela fé, se convertem em filhos de Deus... mas, lembrai, não é o evangelho. “Meu Pai me enviou para difundir esta notícia: todos sois filhos desse Deus! “Assim, pois, eu vos envio longe, para que pregueis esta salvação. “A salvação é um dom de Deus, mas aqueles que nascem do espírito demonstram os frutos imediatamente, através do serviço aos seus semelhantes. Estes são os frutos: serviço amoroso, dedicação desinteressada, fidelidade, equilíbrio, honradez, esperança permanente, confiança sem reservas, misericórdia, bondade contínua, clemência piedosa e paz sem fim. Se os crentes não contribuem com estes frutos na sua vida diária... estão mortos! O Espírito da Verdade – não vos enganeis – não reside neles. São rebentos inúteis de uma videira viva e logo serão podados. “Meu Pai exige que todos os filhos da fé rendam um máximo de frutos. Se vós sois estéreis, Ele cavará ao redor das raízes e cortará os ramos inúteis. Esta é a grande verdade: conforme avançais no reino dos céus, esses frutos deverão ser mais numerosos. Podeis entrar no reino como uma criança, mas vos asseguro que meu Pai solicitará que alcanceis, pela graça, a plenitude de um adulto. “Ficai tranquilos...Quando sairdes a proclamar esta boa nova, eu vos precederei e meu Espírito da Verdade habitará em vós. “Deixo-vos minha paz...” Em seguida, o “Homem” desaparece. Duração: entre quatro e cinco minutos.
No dia seguinte – segundo os emissários que trouxeram a notícia – aqueles gentios (tírios e sidônios, em sua maioria) se lançaram valentemente às ruas, enchendo de estupor os habitantes de Tiro, Sidon, Antioquia e Damasco.
18 DE MAIO, QUINTA-FEIRA 19 6:30 horas. Aposento do andar superior da casa dos Marcos, na Cidade Santa. Testemunhas: todos os íntimos (onze), Maria Marcos, uma das servas e este que aqui escreve. Quando se preparam para fazer o desjejum, um “Homem” se apresenta na sala. É o Mestre. Algumas cenas de pânico. O Ressuscitado os tranqüiliza. Simão, o Zelote, a pedido dos outros, formula a seguinte pergunta: “Então, Mestre, estabelecerás o reino? Veremos a glória de Deus se manifestar no mundo?”. Jesus responde: “Simão, ainda te aferras às tuas velhas idéias sobre o Messias judeu e o reino terreno. Não te preocupes... Receberás poder espiritual quando o Espírito tiver descido sobre ti... Depois vós andareis por todo o mundo pregando esta boa notícia do reino. Assim como o Pai me enviou, eu agora vos envio...”. O Rabi faz uma alusão ao desaparecido Judas Iscariotes e diz: “Judas não está mais convosco porque seu amor esfriou e porque ele se negou a confiar em vós... Confiai, pois, uns nos outros!”. Em seguida dá meia-volta e caminha para a saída, dirigindo-se, com os onze, para o sopé ocidental do monte das Oliveiras. Ao cruzar as ruas repletas de Jerusalém, muitos moradores o reconhecem. Pouco depois das 7:00 horas, o Ressuscitado e os íntimos param a meio caminho do cume. Jesus, em silêncio, contempla a cidade. Volta junto aos discípulos mudos e perplexos. Pedro se ajoelha diante do Mestre. Todos o imitam. São as últimas palavras do Filho do Homem na Terra: “... Amai os homens com o mesmo amor com que eu vos amei... E servi vossos semelhantes como eu vos servi. Servi-os com o exemplo... E ensinai com os frutos espirituais de vossa vida. Ensinai
a grande verdade... Incitai-os a acreditar que o homem é um filho de Deus... Um filho de Deus! O homem é um filho de Deus e todos, portanto, sois irmãos... Lembrai-vos de tudo que eu vos ensinei e da vida que vivi entre vós... Meu amor vos envolverá... E meu espírito e minha paz reinarão entre vós... Adeus!”. O Ressuscitado, em pé, desaparece. Duração: uma hora e vinte minutos, aproximadamente.(7) *7. Ampla informação em Operação Cavalo de Tróia 5, pp. 312 e ss. (N. do  a.)
Cenário das aparições de Jesus de Nazaré depois da sua ressurreição, na madrugada de Domingo, dia 9 de abril do ano 30. Durante quarenta dias se apresentou a judeus e gentios em dezenove ocasiões. Uma caricatura... Quanto mais analiso essas dezenove aparições, mais confirmo o que disse: os evangelhos que os fiéis veneram não passam disso. Uma má caricatura do que aconteceu. Pensei nisso várias vezes. Por que comento esses fatos? A verdade é que poderia passar por cima de tudo isso. Ainda me falta tanto para contar... Mas, essa “força” que me preenche, que me acompanha e guia desde então, extravasa, forçando-me a expressar algumas opiniões. Seguirei a intuição. Ele “sabe”. Eu me concentro no essencial, e aí fica claro que os mencionados textos sagrados (?) foram gravemente mutilados. Se essas “presenças” do Ressuscitado eram de domínio público, perfeita e minuciosamente conhecidas pelos “embaixadores do reino”, por que os evangelistas só fazem alusão a algumas poucas? Salvo João, que menciona quatro e muito por cima, os outros se contentam com duas ou três. Como é possível? Afinal, a volta à vida do Filho do Homem não era importante? Não o foram suas palavras? Duvidaram, talvez, da credibilidade das testemunhas? Acharam que o número de pessoas que tinham chegado à verdade não era suficiente? Claro que era.
Segundo meu parco conhecimento, todos pareceram estar de acordo: aquelas aparições eram a culminação de uma vida e de um ideal. Mas... E, antes de continuar, me permitirei abrir um parêntese que confirma, com muita clareza, a solidez desses acontecimentos e a aceitação unânime deles por parte dos íntimos. Trata-se de dados precisos, altamente significativos, que impressionaram a todos que os conheceram. Vejamos. Entre as anotações feitas por este explorador naqueles dias, consta o seguinte: Primeiro. Segundo os “correios” e demais mensageiros que trouxeram as notícias à Cidade Santa, o total de testemunhas que conseguiu ver e escutar o Ressuscitado nessas dezenove “presenças” oscilou entre 1.488 e 1.538. Bendito Deus! Não são números mais que suficientes? Segundo. Tempo em que o Mestre foi visível: oito horas e trinta e seis minutos, aproximadamente! Um recorde na História da Humanidade. Terceiro. As aparições se registraram de dia, à noite, em lugares abertos ou fechados e com as portas trancadas. Isso tampouco foi levado em consideração? Quarto. Dessas dezenove “presenças”, quatro aconteceram a consideráveis distâncias de Jerusalém. A saber: Alexandria, a 517 quilômetros; Tiro, também em linha reta, a pouco mais de 200; Filadélfia, a 76, e o yam (lago de Tiberíades), a 140 quilômetros. Uma bobagem? Quinto. Se as anotações não falham, eis aqui as vezes em que o Rabi foi observado por discípulos e seguidores privilegiados: Pedro foi quem mais contabilizou – sete oportunidades; depois dele, vêm os
discípulos, com seis (Tomé e Simão, o Zelote, o viram cinco vezes). Maria Madalena também pôde contemplá-lo em cinco ocasiões. A Senhora, Tiago, seu filho, e João Marcos, o caçula dos Marcos, desfrutaram de duas oportunidades cada um. O Galileu foi visto uma vez por José de Arimatéia, Nicodemos, Elias Marcos, Lázaro, Cleófas e Jacó (os pastores de Emaús), Davi Zebedeu e a família de Lázaro. Quem, em seu pleno juízo, se atreveria a duvidar da credibilidade desses homens e mulheres, cada um mais carismático que o outro? Fecho o parêntese. Com efeito, como dizia, os argumentos eram sólidos. Que eu saiba, ninguém questionou essas “presenças”. Ao contrário. Reafirmaram a crença geral, fortalecendo, em particular, a postura de Pedro e seu grupo e dando asas às pregações. Mas... Sim, alguma coisa aconteceu. Alguma coisa terminou arruinando esses prodígios. E o silêncio desceu sobre essa magnífica e sublime etapa da história do Filho do Homem. Suponho que a censura – porque é disso que se trata – foi gradual. E os anos, o distanciamento e o esquecimento se encarregaram do resto. Não é difícil imaginar. Quando os ânimos se estabilizaram, mais de um levou as mãos à cabeça, rejeitando o conteúdo, o contexto e as circunstâncias de muitas dessas aparições. Provavelmente não houve má intenção. Eram judeus – não nos esqueçamos disso – e não tinham conseguido se livrar da mão de ferro (A Lei) que governava vidas e idéias. Foi esse condicionamento que os fez refletir e sepultar os fatos. Por quê?  Esboçarei algumas possíveis razões. O coração me diz que não estou enganado. Primeiro: as mulheres. E não me refiro à mera circunstância de que chegaram a ser testemunhas. Isso eles poderiam ter aceitado. Por outro lado, o que era contrário aos costumes e ao entendimento foi aquilo que ocorreu na quinta aparição. Como podemos lembrar, nessa “presença”, o
Ressuscitado reivindicou para a mulher um papel na divulgação do reino. Foi claro e taxativo. “Vós – afirmou diante de vinte e cinco mulheres – também sois chamadas a proclamar a libertação da Humanidade pelo evangelho da união com Deus...” E se ainda havia alguma dúvida, acrescentou: “Ide pelo mundo inteiro anunciando este evangelho e confirmando os crentes na fé neste evangelho...” Jesus de Nazaré, sem dúvida, conhecedor da péssima situação social da mulher e se adiantando à História, lembra que todos, homens e mulheres, são iguais na hora de administrar os assuntos do reino. A ordem do Rabi, contudo, não agradou aos judeus teimosos e machistas. “Considerar como iguais as mentirosas e impuras por natureza?” Nem sonhando... E esta aparição foi excluída. Nunca existiu. As mulheres, claro, não só deixaram de ser equiparadas aos “sagrados embaixadores do reino”, mas também, para o cúmulo da desobediência àquilo que foi prescrito pelo Filho de Deus, continuaram sendo anuladas e menosprezadas. Exagero? Acredito que não. E como prova do que afirmo, aqui estão algumas frases do, insisto, nefasto Paulo de Tarso. Em sua epístola primeira aos Coríntios (14, 34-36), ele escreve com um descaramento que hoje provoca vergonha e indignação: “Como em todas as igrejas dos santos, as mulheres se calam nas assembléias, porque não lhes cabe falar, e sim viver como submissas como diz a Lei. Se querem aprender alguma coisa, que em casa perguntem aos seus maridos, porque não é decoroso que a mulher fale na igreja.” E este era o homem que dizia venerar Jesus de Nazaré! Sem comentários... Mais de uma vez eu me perguntei sobre isso. Se a primitiva Igreja e os evangelistas tivessem respeitado fatos e palavras e, mais concretamente, essa quinta aparição, os cristãos continuariam polemizando sobre o papel da mulher na obra do Rabi da Galiléia! Mas não foi este o único nem o mais doloroso silêncio. Segunda: os gentios e prosélitos. Como já foi dito, o Ressuscitado se apresentou também diante de um bom número de gregos, fenícios, arab e samaritanos, entre outros
“não judeus”. Segundo meus cálculos, diante de 400 ou 600. Quer dizer, de acordo com as estatísticas, por volta de uns 33 por cento do total.(8) Muito bem, eis aqui outra das razões que poderiam ter gerado uma censura impiedosa. Voltemos ao exposto anteriormente. Eram judeus, e a Torá dizia sem paliativos: os prosélitos constituíam uma casta de segunda ordem, marcada pelo pecado.(9) Esses indivíduos, pagãos convertidos ao judaísmo, 8. É quase  certo que essas  cifras foram sensivelmente superiores. Como já indiquei, numa das aparições do yam, muitas das mais de quinhentas testemunhas eram gentios que viviam nos povoados próximos a Saidan. (N. Do m.) 9. Os ger (prosélitos), mais numerosos que os halalim, ou filhos ilegítimos dos sacerdotes, dividiam-se em dois grandes grupos: os “prosélitos da justiça” e os “temerosos a Deus”. Os primeiros, ao se converter à religião judaica, eram circuncidados, submetendo-se ao banho ritual e à oferenda do sacrifício. Os segundos, por sua vez, considerados como pagãos, só aceitavam Yaveh, bem como a observância de alguns preceitos. (N. Do m.)
tinham limitados muitos de seus direitos cívicos, sendo sempre incomodados pelos sacerdotes e judeus mais ortodoxos. A penosa situação – não comparável, é claro, à dos bastardos – chegava a extremos inconcebíveis. Por exemplo: as casas e propriedades de um ger (”estrangeiro”) eram impuras, segundo a Lei. Uma impureza – idêntica à de um cadáver – que impedia a entrada dos judeus mais rigorosos. Por exemplo: apoiando-se no Deuteronômio (23, 4-9), muitos rabinos propugnavam que os prosélitos procedentes de Edom (ao sul do mar Morto) e do Egito não podiam casar-se com judeus ou judias imediatamente depois de sua conversão.(10) Por exemplo: segundo o direito judeu, o pagão “não tinha pai legítimo”. Daí que os descendentes de prosélitos foram designados com o nome da mãe (ver Yeb, 98.a, Peiata rabbati, 23-24, 122, a, 11, entre outros). Tão abominável princípio jurídico - ‘ên ‘ab 1.e gôy, que quer dizer “o pagão não tem pai” - criava, entre os judeus, uma atmosfera de rejeição em relação ao ger (prosélito) e tudo que lhe dizia respeito. Ao menos, nos círculos mais fechados e rigorosos. Esse pessimismo se traduzia, além disso, numa dúvida permanente sobre a capacidade moral dos gentios. Assim, por exemplo, “toda pagã,
inclusive a casada, era suspeita de haver praticado a prostituição”. Outros, mais duros, equiparavam os pagãos à lepra. E nem é preciso dizer que nenhuma prosélita podia aspirar, jamais, a contrair matrimônio com um sacerdote. Assim estava escrito no Levítico (21, 7). Melhor dizendo, assim interpretavam Yaveh os tortuosos doutores da Lei(11). Uns “especialistas”, os quais o Mestre enfrentou com coragem. Em questões de herança, por exemplo, o ger não se saía em melhores condições. Perdidos e ofuscados naquele labirinto de normas e leis, os “guardiães da Torá” chegavam a fazer perguntas como estas: “O prosélito tem o direito de herdar de um pai pagão? *10. Embora pareça incrível, Yaveh, no Deuteronômio, assinala que egípcios e edomitas não podiam pertencer à casa de Israel até a terceira geração (uma vez convertidos ao judaísmo). A norma continuou vigente até pouco depois do ano 90 da nossa era, com a oposição de alguns (entre estes, o célebre Gamaliel). (N. Do m.)
11. O mencionado versículo do Levítico diz assim: “Não tomarás por esposa uma mulher prostituta nem profanada nem tampouco repudiada pelo seu marido; pois o sacerdote está consagrado ao seu Deus”. (N. Do a.)
Que direito têm à herança os filhos do prosélito concebidos antes da conversão do pai?”. A verdade é que a tortuosidade daquela gente justificaria muitos dos ataques e advertências de Jesus. Pois bem, com respeito à primeira questão, os judeus só os autorizavam a ficar com o dinheiro e os bens que não guardavam relação com os ídolos do pai. No segundo caso, os filhos ficavam em situação ainda pior. O inapelável princípio judaico já citado - “o pagão não tem pai” - condenava-os à miséria, não podendo sequer recorrer aos tribunais, mesmo que eles demonstrassem que também haviam se convertido ao judaísmo(12). Imagino que o hipotético leitor terá compreendido por onde estou indo. Nos tempos de Jesus de Nazaré, um ger, um prosélito, era um ser desprezado, sem pai legítimo e com escassos direitos perante a Lei de Moisés. Esta, ao menos, era a corrente generalizada nos círculos mais ortodoxos. Mas esses não eram os únicos horrores que suportavam(13). Talvez mais adiante – ao narrar a vida de pregação do Mestre – eu tenha a oportunidade de voltar a essa dramática
situação. Está claro. Quando os íntimos – judeus, afinal de contas – receberam as notícias sobre as diferentes aparições do Rabi a gentios e prosélitos de Filadélfia, Alexandria, Tiro e do yam, para não falar dos odiados samaritanos, mais de um torceu o nariz em sinal de desaprovação. O que era aquilo? O Ressuscitado falando aos gregos a rab, tírios, fenícios e aos “impuros” samaritanos! *12. A gravíssima situação dos prosélitos dava lugar a injustiças: segundo Shebut (X, 9), “aquele que pedisse a um ger, cujos filhos se converteram com ele, não está obrigado a devolver, no caso de o prosélito morrer”. Dado que o direito rabínico estabelecia que a esposa não podia herdar (B. B., VIII,1 ), se o ger falecia sem filhos nascidos depois da conversão, por falta de herdeiros legais, qualquer um estava legitimado para tomar suas propriedades e, é claro, não restituir as possíveis dívidas. E, para o cúmulo do cinismo, contudo, a Lei autorizava os credores a separar das terras, dinheiro, casas, colheitas etc. A parte que o prosélito falecido havia deixado pendente (Gerim, III 11-12). Em outras palavras, o primeiro que chegasse praticava o que se chamava de “tomada de posse” (Gerim, III, 9-10,13). (N. Do m.) 13. Ampla informação sobre a rejeição dosjudeus em relação aos gentios e os prosélitos em Operação Cavalo de Tróia 5, pp. 66 e ss. (N. Do a.)
Hoje, esses fatos podem ser incompreensíveis. Será que os discípulos tinham aprendido coisa alguma? Não se lembravam dos ensinamentos do Galileu?  Naturalmente que sim. Mas estavam onde estavam. A Lei era a Lei. E eles, repito, nunca se afastaram da férrea norma judaica. Convém não esquecer disso... . Essas testemunhas também eram crentes, mas sua condição de ger quase as desconsiderava. Em várias ocasiões, eu os vi discutir sobre o assunto. Mas, honestamente, nesses momentos, eu não tinha consciência da transcendência de tais polêmicas. Como equiparar esses homens e mulheres com as testemunhas judias? E o que mais os preocupava: como dizer ao povo que eram irmãos na fé? Como valorizar os testemunhos de pessoas “sem pai legítimo”, suspeitas de prostituição e idolatria e claramente condenadas por Yaveh? Não, isso era demais. A referência a essas aparições nas
pregações só havia levado a críticas, gozações e, em resumo, a uma depreciação da religião que estavam impulsionando. Uma religião, insisto, em torno da imagem e da ressurreição do “Senhor Jesus”. Eis aqui uma questão que os fiéis de hoje costumam esquecer. Pedro e seu grupo trabalharam muito tempo na Cidade Santa e nas terras da Palestina. Foi mais tarde que alguns “embaixadores do reino” decidiram buscar a sorte em outras paragens do Mediterrâneo. Como assumir, portanto, essas aparições no meio de uma cultura que desprezava os prosélitos? Como dizer e defender que um Filho de Deus havia tomado iguais os indivíduos que a tradição e a sagrada Lei consideravam indesejáveis? Como se sabe, esse rigoroso acatamento das regras da religião judaica por parte do líder e dos seus provocaria lamentáveis confrontos com Paulo e seus seguidores(14). *14. Um dos conflitos que o major menciona aparece no capítulo 15 dos Atos dos Apóstolos (versículos 1 a 3). Lucas diz textualmente: “Alguns que haviam descido de Jerusalém ensinavam aos irmãos: «Se não vos circuncidardes conforme a Lei de Moisés, não podeis ser salvos». Isso produziu uma agitação e uma disputa nada pequenas, levantando-se Paulo e Barnabé contra eles. Por fim determinaram que Paulo e Barnabé, acompanhados de alguns do grupo, fossem até os apóstolos e presbíteros de Jerusalém, para consultá-los sobre isso”. (N. do  a.)
Simplesmente, essas “presenças” do Mestre diante de centenas de pagãos e prosélitos colocavam a nascente Igreja numa posição tão deLicada quanto desnecessária. E eles optaram então por não jogar mais lenha na fogueira, suprimindo-as. Se revisarmos o que foi escrito pelos evangelistas, observaremos que não há menção alguma às aparições em Filadélfia, Alexandria, Tiro e Sicar. Só Paulo, sem entrar em detalhes comprometedores, menciona que, numa dessas aparições do Rabi, as testemunhas foram mais de quinhentos irmãos (1 Cor., 15, 6). Entendo que fala do ocorrido em 29 de abril, sábado, na praia de Saidan, quando o Ressuscitado se apresentou diante de mais de quinhentos felah e am-ha-are. Habilmente, Paulo evita mencionar que muitos daqueles homens e mulheres, moradores das imediações, eram gentios e prosélitos. Hoje, logicamente, ao ler os textos sagrados (), temos a impressão
de que não houve mais aparições do que as mencionadas. Não podia ser de outra forma. E não só por causa do que acabo de relatar. Na minha opinião, o que alijou de uma vez essas quatro transcendentais “presenças” do Mestre depois de sua morte e ressurreição foi o conteúdo das mensagens. “Aquilo” se chocava frontalmente com a Torá, com a tradição, com o sentimento de superioridade do povo eleito e, sobretudo, com a filosofia que começava a se consolidar no grupo dominante. “Dentro do reino do meu Pai – disse Jesus aos gregos – não há nem haverá judeus nem gentios.” “Recebei em vossa comunidade – disse em Filadélfia diante de um bom número de arab -, com agradável compreensão e afeto fraternal, todos os irmãos consagrados à divulgação da boa nova. Sejam judeus ou gentios. Gregos ou romanos. Persas ou etíopes.” “O Pai me enviou – esclareceu por fim na cidade de Alexandria diante de gregos, egípcios e judeus – para estabelecer alguma coisa que não é propriedade de raça e nação alguma, nem de algum grupo especial de educadores ou pregadores... Prestai atenção! Este evangelho não deve ser confiado exclusivamente aos sacerdotes.” As diretíssimas e transparentes alusões de Jesus não podiam ser aceitas naquele tempo e, muito menos, registradas nos textos evangélicos. Insisto de novo: a mensagem não era compatível com as circunstâncias e práticas daqueles homens. Por essa razão, sem dúvida, Jesus a repetiu com tanta insistência. Houve contudo alguma coisa mais. Alguma coisa que deixou Pedro e os seus fora de jogo. Sabedor do que ia acontecer, o Ressuscitado se apresenta na casa de Nicodemos, em Jerusalém, e na primeira vigília da noite, com todos os íntimos em sua presença, lança uma advertência chave: “Eu vos exorto a que não esqueçais que vossa missão consiste na proclamação do Evangelho do Reino. Quer dizer, a realidade da paternidade de Deus e a irmandade entre os homens. Anunciai a boa nova em sua totalidade. Não deveis cair na tentação de revelar somente uma parte. Prestai atenção! Minha ressurreição não deve mudar a grande mensagem, ou seja, que sois filhos de um Deus!” Outros setenta seguidores foram também testemunhas
privilegiadas. Contudo, o líder e a primeira comunidade, como já mencionei, fizeram ouvidos surdos a esse decisivo esclarecimento. Bartolomeu, Tomé e Simão, o Zelota, com efeito, tinham razão. Mas, como foi dito, a grande mensagem “não vendia”, não inflamava as multidões. Pôr no papel essa aparição? Reconhecer publicamente que eles não tinham seguido os conselhos do Homem que adoravam? De maneira alguma. E assim foi feito. A “presença” número dezesseis tampouco existiu. Jamais faria parte da história do Filho do Homem. Novo e triste silêncio nos impropriamente chamados textos revelados. É justamente nessa aparição que o Mestre fala de “alguma coisa” a que já me referi nas páginas anteriores, ao comentar um dos supostos discursos de Pedro no dia do Pentecostes e que aparece nos escritos de Lucas. O Ressuscitado, com uma clarividência assombrosa, adiantando-se aos acontecimentos, faz uma revelação que tampouco foi levada em conta pela primitiva Igreja. “Agora, aqui, estais compartilhando a realidade de minha ressurreição” - lhes disse. “Mas isto não tem nada de estranho. Eu tenho o poder de sacrificar minha vida e de recuperá-la. É o Pai quem me outorga esse poder...” Conclusão: não foi Deus, o Pai, como pregariam depois Simão Pedro e os seus, que ressuscitou Jesus de Nazaré, mas sim Ele mesmo. Ele desfrutava desse poder. Interessante diferença... E antes de prosseguir com este desastre, intuo que devo voltar atrás. “Alguma coisa” toca um aviso dentro de mim. Sim, acho que me esqueci de uma sutileza. Foi em Alexandria, na “presença” número doze, onde o Ressuscitado, de repente, manifestou alguma coisa que, em nossa época, poderia ser mal interpretada. “Este evangelho” - afirmou - “não deve ser confiado exclusivamente aos sacerdotes.” A afirmação, na minha humilde opinião, contém mais do que
aparece num primeiro exame literal. Duvido que o Mestre se referisse unicamente às castas sacerdotais daquela época. Pelo que sei, e pelo que me foi dado a conhecer em nossa longa permanência junto ao Rabi, o aviso era infinitamente mais sutil. Estava claro que os sacerdotes que haviam conspirado contra Ele fariam suas a mensagem. Eles estavam a milhões de anos-luz da boa nova. Eles se consideravam os sagrados depositários da verdade e os únicos com acesso à Divindade. Para essas castas, Yaveh era inacessível, vingativo e discriminador. Não – repito -, não acredito que Jesus de Nazaré estivesse pensando nesses ciumentos custódios da Torá quando formulou a advertência. É óbvio. Eu me inclino é pelos “outros sacerdotes”. Assim como demonstrou em diferentes aparições, sabia o que ia acontecer. E quis pôr as coisas no seu devido lugar. Sabia que, com o tempo, esses “outros sacerdotes” - a hierarquia definitiva que nasceria com a primitiva Igreja – monopolizariam sua imagem e suas palavras. Quer dizer, seu evangelho. Um evangelho mutilado e contaminado, mas, afinal de contas, contendo parte da verdade. A pergunta chave é “por quê?”. Por que o Ressuscitado não deseja que a boa nova seja “propriedade” exclusiva dos sacerdotes? Hoje, do jeito que estão as coisas, a maior parte dos fiéis aceita que o ministério deva ser exercido precisamente por esses supostos representantes do “Senhor Jesus”. A verdade é que Jesus repetiu isso à exaustão. Seu evangelho – a grande mensagem – nada tinha a ver com as estruturas, adições, dogmas, leis, primados e demais intermediários. Tudo era simples e fascinante. Sua grande revolução foi esta: mostrar ao mundo que Deus não era uma idéia mais ou menos abstrata, remota e fiscalizadora. A revelação que justificou sua vida dizia outra coisa: Deus ê um Ab-bã, um Pai. Um Ser amoroso que só pede confiança. Em outras palavras, Jesus de Nazaré não pregou, nem propagou, uma religião tradicional, mas um estilo de vida. Compartilhar seu ideal – seu evangelho – significa entender e aceitar que existe esse Pai e que, conseqüentemente, os seres humanos são fisicamente irmãos. Esse “achado”, para quem tem a sorte de descobri-lo, muda
radicalmente a bússola do pensamento. A pessoa entra numa nova e esperançosa dinâmica na qual só vale a experiência pessoal. É o início de uma aventura na qual o homem não dependerá mais de velhas servidões. Ao procurar Deus por esse atraente atalho, Deus já está com ele. Esse evangelho, por fim, como insistiu o Mestre exaustivamente, não precisa, pois, de recintos sagrados, livros revelados ou veneráveis depositários da verdade. A advertência, contudo, como reflete a História, não teve eco. Nem Pedro, nem Paulo, nem o resto dos primeiros cristãos tiveram isso em mente. Muito pelo contrário. Aos poucos, uma engrenagem cada vez mais hierarquizada e dogmática foi abrindo caminho, monopolizando, condenando e discriminando. E hoje essa “máquina” - tão alheia aos propósitos do grande Rabi da Galiléia – continua controlando e dirigindo vontades. Escrever e deixar registrada a aparição de Jesus aos pagãos da Alexandria? Dizer ao mundo que o evangelho não devia ser confiado exclusivamente aos sacerdotes? Não, aqueles homens não estavam loucos. E uma vez desafogado meu coração, continuarei com a “grande fraude”. De que outra forma posso qualificar a ocultação sistemática dessas aparições? Discípulos e evangelistas conheceram a verdade e, no entanto a ocultaram. Isso não é uma fraude? Na verdade, se examinamos os evangelhos, descobrimos, alarmados, que as únicas “presenças” anotadas pelos escritores sagrados (?) foram protagonizadas pelos íntimos e alguns seguidores próximos. Naturalmente, todos judeus. Naturalmente, todas manipuladas. Exemplos. João, no capítulo 20, versículos 19 ao 30(15), além de confundir cenas correspondentes a duas aparições diferentes (a nove e a onze), inserindo-as numa única, coloca nos lábios de Jesus frases que nunca existiram. É natural que eu tenha dúvidas. Foi Zebedeu quem teria falsificado essas frases famosas Ou elas teriam sido resultado de uma interpolação posterior? Seja como for, o que aparece claro é
que a sentença em questão interessava à recém-inaugurada Igreja. “Os pecados daqueles que vós perdoardes” - escreve o evangelista no referido capítulo - “serão perdoados; aqueles que não perdoardes, não serão perdoados.” A liturgia, a engrenagem e o dogmatismo avançavam velozes e era preciso justificar aquilo que, mais adiante, seria conhecido como “sacramento da penitência”. Em alguém devia repousar o fundamento de tal privilégio e, provavelmente, João Zebedeu foi eleito como a testemunha irrefutável. E digo que foi “eleito” porque, à vista dos erros que apresenta o mencionado texto,é quase certo que João não pode ter sido o autor do mesmo. *15. A passagem citada diz assim: “Ao entardecer daquele dia, o primeiro da semana estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde se encontravam os discípulos, apresentou-se Jesus no meio deles e Lhes disse: «A paz esteja convosco». Dito isto, mostrou-Lhes as mãos e as costas. Os discípulos se alegraram de ver o Senhor. Jesus Lhes disse outra vez: «A paz esteja convosco. Como o Pai me enviou, também eu vos envio». “Dito isso, soprou sobre eles e lhes disse: «Recebei o Espírito Santo. Os pecados daqueles que vós perdoardes serão perdoados; aqueles que não perdoardes, não serão perdoados». “Tomé, um dos Doze, chamado de o Dídimo, não estava com eles quando veio Jesus. Os outros discípulos lhe diziam: «Vimos o Senhor». Mas ele lhes respondeu: «Se não vir em suas mãos o sinal dos cravos e não enfiar minha mão no seu lado, não acreditarei». Oito dias depois, estavam outra vez os discípulos dentro e Tomé com eles. Jesus se apresentou no meio deles, estando as portas fechadas, e disse: «A paz esteja convosco». Em seguida disse a Tomé: «Aproxima teu dedo e olha minhas mãos; traz tua mão e enfia no meu lado, e não sejas incrédulo mas sim crente». Tomé lhe respondeu: «Senhor meu e Deus meu». Jesus lhe disse: «Acreditaste porque me viste? Felizes aqueles que não viram e acreditaram.” (N. Do a.)
E se o foi, ou a memória lhe falhava de forma escandalosa, ou manipulara a verdade. Erros? Sim, alguns. Falhas que nos fazem duvidar da autenticidade de toda essa passagem. Para começar, nessa aparição, a última daquele domingo, 9 de abril, o Ressuscitado não mostrou aos íntimos as mãos e o lado. Isso aconteceu sete dias mais tarde (não oito, como afirma o evangelista).
E de onde o responsável pelo texto sagrado (?) tirou que o Mestre tinha soprado sobre seus discípulos? O escriba de plantão confundiu tudo. O Espírito da Verdade(16), como anunciaria Jesus em muitas “presenças”, chegou muitas semanas depois e para todos. A verdade é que essa discriminação evoca suspeitas. E quanto às palavras pronunciadas pelo Rabi depois do suposto “sopro”, quem conhece um pouco o estilo do Filho perceberá que elas dificilmente se encaixariam em seu pensamento e linha de conduta. O evangelho não era isso. A boa nova, repito, não era propriedade de ninguém e ninguém ostentava atribuições especiais. Na aparição número doze, em Alexandria, Jesus deixou isso muito claro: “O pai me enviou para estabelecer uma coisa que não é propriedade de raça ou nação alguma, nem de algum grupo especial de educadores ou pregadores”. Concluído o relato sobre a terceira “presença”, na qual o Ressuscitado repreende Tomé por sua incredulidade, o evangelista de repente se detém. E como se joão Zebedeu não se lembrasse ou como se sua lembrança tivesse sido imprecisa. *16. Segundo minhas “fontes”, por volta do ano 101, quando João Zebedeu tinha 99 anos, ao observar que os textos que circulavam entre os primeiros cristãos se achavam incompletos, decidiu escrever seu próprio evangelho. Para tanto, sempre de memória, ditou suas lembranças a um tal Natã, judeu natural da Cesaréia e convertido ao cristianismo. Só a Primeira Carta de João foi escrita pelo apóstolo de próprio punho, na forma de apresentação ou prólogo à narrativa de Natã. Presumivelmente, como afirma o major, dado o longo tempo transcorrido desde as aparições (71 anos), a memória de João pode ter falhado. Além disso havia as múltiplas adulterações sofridas pelo texto original com a passagem dos anos. (N. Do a.)
E salva a situação com uma frase na qual reconhece, implicitamente, que houve mais aparições: “Jesus realizou, na presença dos discípulos, muitos outros sinais que não estão escritos neste livro...” Ele, como os demais, sabia a verdade. Mas... Mais adiante, no capítulo 21, acontece uma coisa curiosa que parece confirmar aquilo a que já me referi antes: alguém “meteu a mão” no texto joânico. Alguém, não contente com o exposto por João com relação às aparições do Mestre, acrescentou mais algumas(17). O problema é que, ao fazer isso, além de faltar com a verdade,
mutilando e deformando as conversas de Jesus com seus discípulos na praia de Saidan(18), não contabilizou as “presenças” narradas pelo Zebedeu – e meteu os pés pelas mãos... O “intruso”, no versículo 14 do dito Epílogo, diz que “esta foi a terceira vez que Jesus se manifestou aos discípulos depois de ressuscitar dentre os mortos”. Lástima. Se tivesse tido a precaução de somar as aparições que João cita, teria verificado que aquela acrescentada por ele era a quarta. A saber: aparição do Mestre a Madalena, junto ao sepulcro; aos íntimos no cenáculo e – oito dias depois – a todos os discípulos (Tomé, inclusive). Como eu dizia, um relato distorcido, no qual só se oferecem as “presenças” de Jesus aos “embaixadores do reino” e a Maria Madalena. *17. É bem conhecido pelos especialistas que o Epílogo (capítulo 21) do evangelho de João pode ter sido um acréscimo posterior. Boismard, em 1947, denunciou isso com grande coragem: “o capítulo 21 aparece como uma confusa mescla de estilos adivinhando-se outras mãos” (Revue Biblique, LVI). O estilo do “intruso” - segundo Boismard- guarda uma suspeita relação com o estilo dos escritos de Lucas. Em 1936, outro prestigioso escriturista – Vaganay – já havia se manifestado sobre isso, destacando que o versículo 25 do referido Epílogo, por exemplo, “não era do mesmo molde que o precedente, podendo dever-se a um acréscimo” (Revue Biblique, XLV). As opiniões desses eruditos seriam posteriormente ratificadas pelas fotografias com raios infravermelhos e ultravioletas. Na última página do evangelho de João (Códice Sinaítico) foi comprovado que o texto original terminava no versículo 24 e não no 25. Alguém, sem dúvida, metera a mão... (N. Do m.). 18. Ampla informação sobre a referida aparição em Operação Cavalo de Tróia 3, pp. 332 e ss. (N. Do a.)
Em outras palavras, doze testemunhas. E que aconteceu com as outras 500? Apagaram-se da memória de João? Claro que não. ; Quanto ao segundo testemunho evangélico – o de Marcos -, a desordem, a manipulação e a censura também não faltam. Vamos dar uma olhada. No capítulo 16, versículos 9 a 20(19), o evangelista (ou quem se encarregou de fazer emendas na página) dá fé de três aparições somente. E todas, é claro, aos de sempre: aos íntimos e a Madalena. Das outras, nenhuma palavra.
Além disso, de forma bem camuflada, insinua-se no texto outra falsidade. As pessoas que “iam a caminho de uma aldeia”, e a quem o Ressuscitado se apresenta, não eram dois apóstolos, como sugere Marcos (?), mas sim Cleófas e Jacó, pastores de Emaús, que, parece, conheciam os ensinamentos do Mestre. O mais grave, contudo, se esconde na terceira e última “presença”. O evangelista – que a identifica com a impropriamente chamada “ascensão” -, sem o menor pudor, se “esquece” do que realmente Jesus dissera naquela manhã de 18 de abril e inventa com um descaramento inacreditável. *19. O texto mencionado pelo major diz assim: “Jesus ressuscitou de madrugada, no primeiro dia da semana, e apareceu de imediato a Maria Madalena, de quem havia extraído sete demônios. Ela foi comunicar a notícia aos que haviam vivido com ele, que estavam tristes e chorosos. Eles, ao ouvir que vivia e que havia sido visto por ela, não acreditaram. Depois disso, ele apareceu, com outra figura, a dois deles quando iam a caminho de uma aldeia. Eles voltaram para comunicar o fato aos demais; mas estes também não acreditaram. Por último, estando à mesa os onze discípulos, Ele lhes apareceu e lhes jogou na cara sua incredulidade e sua dureza de coração, por não terem acreditado em quem O havia visto ressuscitado. E lhes disse: «Ide por todo o mundo e proclamai a Boa Nova a toda a criação. Aquele que crê e for batizado, se salvará; aquele que não crê, será condenado. Estes são os sinais que acompanharão aqueles que acreditam: em meu nome expulsarão demônios, falarão em línguas novas, pegarão serpentes em suas mãos e embora bebam veneno, este não Lhes fará nenhum dano; colocarão as mãos sobre os enfermos e estes ficarão bons». “Com isto, o Senhor Jesus, depois de lhes falar, foi elevado ao céu e sentou-se à direita de Deus. Eles saíram a pregar por todas as partes, colaborando o Senhor com eles e confirmando a Palavra com os sinais que a acompanhavam.” (N. Do a.)
“Aquele que crê e for batizado” - Marcos põe na boca do Rabi”será salvo; aquele que não crê, será condenado.” Deus do céu! Quando e onde o Mestre teria pronunciado uma sentença tão destoante de seu temperamento amoroso e misericordioso? Posso intuir que Marcos – ou quem tenha sido o artífice de tal despropósito – soube ou escutou “alguma coisa” que soava relativamente parecido. E distorceu tudo, ajustando as coisas aos interesses do momento e da nascente Igreja. Essa “alguma coisa” foram umas palavras lançadas na terça-feira, 16 de maio, na aparição aos gentios de Tiro. Nessa ocasião, como podemos lembrar, Jesus disse: “A salvação é um dom de Deus, mas aqueles que nascem do
espírito demonstram os frutos imediatamente, através do serviço aos seus semelhantes. Estes são os frutos: serviço amoroso, dedicação desinteressada, fidelidade, equilíbrio, honradez, esperança permanente, confiança sem reservas, misericórdia, bondade contínua, clemência piedosa e paz sem fim. Se os crentes não contribuem com estes frutos na sua vida diária... estão mortos! O espírito da Verdade – não vos enganeis – não reside neles. São rebentos inúteis de uma videira viva e logo serão podados.” A diferença é eloqüente... Jesus nunca falou de condenação, muito menos de batismo. Isso foi outra maquinação de alguns homens que renunciaram à grande mensagem e que não tiveram outra saída senão defender-se dos múltiplos ataques internos e externos. Fidelidade? Honradez? Misericórdia? Piedosa clemência? Os “embaixadores do reino” e os evangelistas deram os frutos indicados pelo Ressuscitado na Fenícia? Honraram a verdade? Mostraram-se fiéis ao que aconteceu? Era própria de homens misericordiosos e clementes uma atitude tão severa e radical? O mais triste é que essa “invenção” continuou galopando ao longo da História, chantageando milhões de homens e mulheres de boa vontade. Sim, provavelmente, apoiando-me nas palavras do Filho de Deus, eles é que estavam “mortos”. O resto das afirmações de Marcos é pura brincadeira. Sinais? Quando é que o Mestre referiu-se a demônios, línguas, serpentes e venenos? Não é necessário ser muito esperto para descobrir que suas alocuções, depois da ressurreição, foram sempre mais sérias e profundas. O [ivangelista, por outro lado, com uma evidente “miopia”, transforma o magnífico prodígio num circo vulgar. Dessa forma, tampouco é de estranhar que os escritores sagrados (?) não façam uma única menção às profecias interessantes e precisas formuladas pelo Ressuscitado em várias de suas “presenças”. O anúncio das perseguições e das mortes violentas de seu irmão em carne (Tiago) e do outro Tiago (o Zebedeu) não seria importante? Por que ocultaram isso? Teriam eles achado que uma referência dessas daria maior relevância a esses discípulos que ao próprio
líder? Pode ser que, neste ponto, eu esteja equivocado. Talvez eu veja maquinações onde nunca tenha havido uma sequer. Mas é que hátantas! Vou fechar esta revisão com um capítulo que, pessoalmente, me parece um dos mais belos e esperançosos de todos aqueles que o amplo episódio das aparições contém. Um “capítulo” - é isso mesmo – também ignorado pelos evangelistas. Se a memória e minhas anotações não falham, é na primeira “presença”, na de número onze, na treze e também na dezesseis que o Ressuscitado fala com clareza de “outras formas de vida, existentes depois da morte”. Tanto meu irmão quanto eu repassamos e discutimos tudo exaustivamente. Na primeira, quando Madalena tenta abraçar o Rabi, este não hesita em afastá-la: “Não sou aquele que conheceste na carne.” Pouco depois, no domingo, 16 de abril, ao se apresentar no cenáculo em meio aos onze, Jesus, dirigindo-se ao incrédulo Tomé, diz: “Apesar de que não vês nenhum sinal dos cravos, pois agora vivo sob uma forma que tu também terás quando deixares este mundo...” Cinco dias mais tarde, na praia de Saidan (”presença” número treze), ao conversar com os íntimos, Jesus é igualmente preciso: “Ficarei pouco tempo na minha forma atual, antes de ir ao Pai. Quando tiverdes chegado ao final neste mundo” - Jesus ergueu o rosto para o azul do céu -, “tenho outros melhores, onde trabalhareis também para mim. Nesta obra, nesse e nos outros mundos, trabalharei convosco...” Por último, em 5 de maio, de novo diante dos íntimos e de setenta seguidores, na casa de Nicodemos, faz outro anúncio singular: “Agora, aqui estais compartilhando a realidade da minha ressurreição. Mas isto nada tem de estranho. Eu tenho o poder de sacrificar minha vida.... e de recuperá-la. É o Pai quem me outorga esse poder. Mais do que por isto, vossos corações deveriam
estremecer é pela realidade desses mortos de uma época que empreenderam a ascensão eterna pouco depois que abandonei o túmulo de José de Arimatéia...” Ficamos perplexos. Jesus de Nazaré jamais mentiu. Nunca inventou. Tudo que disse se cumpriu... ou está para se cumprir. Por que iríamos duvidar de palavras que garantem outra forma de vida depois da morte? Tínhamos, além disso, certas provas. Além de ter visto e tocado aquele “corpo glorioso” - a definição me parece excelente -, nossos sistemas analisaram tudo, até onde foi possível(20). Era físico, sim, embora de uma natureza desconhecida. “... agora vivo sob uma forma que tu também terás quando deixares este mundo...” Essa era a chave. Nessas palavras a Tomé está contido o grande jorro de oxigênio. A afirmação categórica não deixa espaço para dúvidas: depois da morte há vida. Em minha opinião, esta é uma das mensagens mais extraordinárias e gratificantes que o ser humano, sempre temeroso, possa ter recebido. E hoje, enquanto ponho em ordem essas lembranças, nada pode me convencer do contrário. Ao morrer, um “corpo” similar ao que vimos e estudamos nos espera a todos. A todos! Naturalmente, viramos o assunto de cabeça para baixo. E chegamos a algumas conclusões. Pobres, eu sei, mas conclusões. *20. Ampla informação em Operação Cavalo de Tróia 3, pp. 356 e ss. (N. Do a.)
exemplo: À vista do ocorrido nas três primeiras “presenças”, nas quais a forma física” do Ressuscitado apresentava “anomalias”, cabe a possibilidade de que esse recém-estreado “suporte corporal” (?) (as palavras me entorpecem) deva experimentar uma série de mudanças sucessivas e necessárias em sua formação (?). Isso explicaria a advertência de Jesus a Madalena? Que teria acontecido se a mulher o tivesse tocado? As seguintes, nas quais o Mestre aparecia já com um “corpo” aparentemente normal (?), talvez viessem a confirmar essa suposição. O misterioso “corpo” - a “forma” de que falou o Rabi
– se acharia então definitivamente constituído. Um “corpo” capaz de atravessar (?) paredes, que não precisa de aparelho circulatório, respiratório nem digestivo e que tem a faculdade de se materializar e se desmaterializar á vontade. Um sonho, sim. Coisa difícil de aceitar para um cientista. Mas Ele o disse..., e fez. Eliseu chegaria também a outra conclusão hipotética. Ajustando-se ao que Jesus anunciou - “quando tiverdes chegado ao final neste mundo tenho outros melhores, onde trabalhareis também para mim” -, audaz e imaginativo, especulou o seguinte: - É possível que, depois da morte, providos dessa “nova” forma corporal (?), sejamos transportados e colocados em “outros mundos melhores que o nosso”, nos quais devemos continuar agindo e aprendendo. E entusiasmado – o termo mais exato seria “esperançoso” formulou uma hipótese que me encanta: Para meu irmão, esse “corpo glorioso” podia ser “MAT-1”. Foi assim que o batizou. E o que ele entendia por “MAT-1”? “Matéria” física, embora desconhecida de nossa Ciência, 50 por cento. Quer dizer, um “corpo” integrado por elementos tangíveis e mensuráveis (50 por cento) e por uma “substância” mais sutil (também 50 por cento), que, simplificando perigosamente, poderíamos definir como “espiritual”. Por isso não considerá-la MaTéRIA, e sim “MAT”. Quanto ao “1”, eis aqui o curioso e não demonstrável raciocínio: se aquilo que já tínhamos visto e ouvido e que nos esperava no terceiro “salto” era correto, depois da morte um longo caminho nos espera. O Mestre repetiu isso até a saciedade. Pois bem, segundo Eliseu, logo ao acordar do “sono” da morte, recebemos o novo “corpo” (”MaT-1”). E com ele devemos “viver” e “prosperar” durante um “tempo” (?). (O hipotético leitor destas memórias compreenderá que as palavras não são meu melhor aliado.) Uma vez terminada essa etapa inicial, a porcentagem de “matéria” ficaria reduzida, aumentando, por outro
lado, a da “substância” mais leve. E o ser desfrutaria então de um “corpo” (?) “MAT-2”. O suposto processo continuaria com as sucessivas “aquisições” de “corpos” cada vez menos densos e muito mais “espirituais”. Em outras palavras, a cada salto “evolutivo” (?), o homem receberia uma “estrutura” (?) “MAT-3”, “MAT-4”, “MAT-5”, etc. E pode até chegar o instante em que essa inteligência – no caminho quase infinito em direção ao Pai – já não precise de “suporte” físico algum, transformando-se numa entidade absolutamente “espiritual”. Esse talvez seja o verdadeiro objetivo, a julgar pelos ensinamentos do Filho do Homem, de todos os que foram, são, e serão primeiro MATéRIA pura. Obviamente, para alcançar esse estado ideal, onde a criatura não se veja limitada pelas pobres e grosseiras estruturas materiais, é básico e primordial que entendamos o porquê dessa ordem cósmica. Mas, como insinuava Eliseu, essa compreensão só será uma realidade bem cimentada... “no outro lado”. Aqui, por enquanto, basta-nos a confiança. O cérebro não dá para mais que isso. A bela teoria também se encaixava bem com “algo” que, pouco a pouco, fomos aprendendo com o Rabi da Galiléia: o Pai, sempre misericordioso, sábio e “econômico”, nunca age bruscamente. Passar de um corpo como esse que conhecemos para uma “forma espiritual” poderia causar um choque, talvez um trauma, nada aconselhável. Da mesma forma que um bebê não salta de repente para o amadurecimento, assim entendo o que acontece “no outro lado”. Tudo isso é gradual, sereno, lógico e natural. E não são palavras minhas, mas dEle. Tudo isso, enfim, justificaria os famosos “MAT” do meu criativo irmão. Ou era tudo pura imaginação? Claro que ao refletir sobre essas questões, fomos assaltados por uma porção de interrogações: Será que tudo isso significava que o ser humano é imortal? E o que acontece com a morte? Prova-se uma vez ou é preciso morrer em cada mudança de “forma”? Por que o Mestre falava em “trabalhar” nesses outros mundos? A que “trabalhos” se referia? Que quis dizer com “os mortos de uma época que haviam empreendido a ascensão depois de sua ressurreição? E as respostas chegaram. Claro que chegaram, embora em seu devido
momento. Devo me conter e esperar? Intuo que isso é melhor. Contudo, existe “alguma coisa” que pressiona para sair. E não vou segurar. Sei que para o hipotético leitor destas memórias isso pode ser tão urgente quanto esclarecedor. Sim, meu irmão tinha razão... em parte. Quando Eliseu interrogou o Mestre sobre a teoria dos “MaT”, Jesus, sorrindo feliz, deu-lhe a entender que ele não estava num caminho muito errado... Dito e feito. “Quem tiver ouvidos...”
15 A 18 DE JUNHO Acertei nisso também. O Destino foi indulgente. Depois de carregar na sacola de viagem umas amostras de terra da horta de José de Arimatéia – essenciais para completar os exames sobre o fenômeno da ressurreição(1) -, no amanhecer de quinta-feira, 15 do mês de Tammu (junho), este que aqui escreve se juntava a Bartolomeu e a Simão, o Zelota, empreendendo a caminhada em direção ao norte. E acertei... A caminhada em companhia dos discípulos seria mais cômoda, segura e instrutiva. O “urso”, condicionado pela necessidade de chegar a Caná o mais rápido possível, escolheu a rota mais curta, atravessando Samaria. Não fosse por essa circunstância, a idéia teria sido rejeitada. Aquele território, como creio já ter mencionado, não era do agrado dos judeus. Samaritanos e judeus simplesmente se odiavam.
Hábeis e prudentes, os galileus contornaram as aldeias dos “impuros e enfadonhos samaritanos(2). O falecido rei Herodes, o Grande, havia tentado suavizar essas tensões, *1. Ampla informação sobre esses exames em Operação Cavalo de Tróia 5, pp.125 e ss. (N. do a.) 2. Embora não muito clara, a origem dos samaritanos parece estar em algumas tribos do leste (Mesopotâmia), forçadas pelos assírios a ocupar as terras dos israelitas quando estes foram desterrados no século VIII antes de Cristo. Ao se misturarem com osjudeus que continuavam na zona, acabou aparecendo um povo mestiço, que, para todos os efeitos, foi considerado pagão. Essa situação, à qual se somaram as notáveis diferenças em matéria religiosa e a construção de um segundo templo no monte Gerizim (provavelmente por volta do século V antes de Cristo) criariam um abismo entre eles. Para cúmulo, no ano 128 a. C., João Hircano destruiria esse templo, multiplicando o ódio dos samaritanos. E foi dito: “A partir de hoje, Siquém será chamada a cidade dos idiotas, pois nós nos divertimos com eles como se faz com um louco” (Levi, VII, 2). (N. Do m.)
casando-se com uma samaritana (Maltake), com quem teve dois filhos: os célebres Arquelau e Anápas. Desconfia-se até que, em outro gesto de boa vontade, Herodes teria autorizado os kuteus(3) a rezarem no átrio interno do Templo da Cidade Santa (assim o registra Josefo em Antiguidades, XVIII, 2, 2). Contudo, essa trégua seria rompida de vez no ano 8 da nossa era quando, sob o governo do procurador romano Copônio (de 6 a 9 depois de Cristo), um grupo de samaritanos irrompeu no templo, espalhando nos pórticos e nos santuários uma coleção de ossos humanos. Aquele ato de vingança, um sacrilégio em plena festa da Páscoa, esgotou a paciência dos judeus. Jamais perdoaram os samaritanos. Desde então, as brigas e insultos mútuos sempre estiveram na ordem do dia. Felizmente, ninguém nos incomodou. Na sexta-feira, dia 16, duas horas antes do cair da noite, este explorador se despedia dos discípulos às portas de Nazaré. Eles continuaram até a vizinha Caná e eu, fiel ao plano previsto, contornei a fonte concorrida, pegando apressado a trilha branca e empoeirada que ligava a aldeia de Nossa Senhora a Séforis, capital da baixa Galiléia. A princípio, o propósito não era complicado. Subiria pela franja
norte do Nebi Sain – um caminho bem conhecido deste pobre explorador e no qual ele já havia sofrido um acidente lamentável -, chegando até o cemitério de Nazaré antes do pôr-do-sol. *3. O nome de kuteus (assim os judeus chamavam os samaritanos nos tempos de Jesus) procedia do país de Kuta, na Pérsia, lugar de origem das tribos que se assentaram na Samaria (Josefo em Ant., IX e XII). E, embora os samaritanos defendessem que seus ancestrais eram os patriarcas judeus – José em especial -, o certo é que todo o mundo os qualificava como “povos de Kut”, ou descendentes de colonos medo-persas. Ou seja, “estranhos ao povo”, ou allogenes, como cita Lucas (17, 18). Os samaritanos reconheciam o Pentateuco, mas desprezavam o resto da Bíblia. Isto, logicamente, não era suficiente para os judeus, que, além disso, os tachavam de idólatras por manter um culto no monte Gerizim. (Lembrar a alusão do Ressuscitado na aparição aos samaritanos, em Sicar.) (N. Do m.)
Uma vez aí saberíamos o que fazer. Se os cálculos e os raciocínios não falhavam, com o crepúsculo, na entrada do shabbat (o dia sagrado para os judeus), o pequeno cemitério estaria livre de todo tipo de visitantes. A lei e a tradição eram inflexíveis. No sábado, por exemplo, era proibido o traslado dos mortos às sepulturas(4). Mais ainda, não era permitido sequer mover um único membro do defunto, embora estivesse autorizada a cerimônia da lavagem e embalsamamentos(5). Isso me deixou mais tranqüilo... em parte. E o que aconteceria com o coveiro e a inseparável companheira? Continuariam no local? Claro, só havia um meio de esclarecer a dúvida. A proximidade do sábado jogou a meu favor. Os felah que habitualmente trabalhavam nas proximidades do caminho acabavam de deixar as tarefas. Não tive problemas. Subi rápido a ladeira do Nebi e, a meio caminho do cume, o apertado olival me deu um sinal. Aquele era o ponto. Eu me desviei para a esquerda e, devagar, escondido entre as árvores, fui chegando ao meu objetivo. O breve quadrilátero, de uns 50 metros de lado, se apresentou tranqüilo e silencioso. Pelo jeito estava deserto. Mas eu não quis me precipitar. A lembrança da minha última incursão desastrosa entre as oitenta estelas de pedra(6) me fez dar uma freada. *4. A Misná, no seu capítulo X (”Segunda ordem: Shabbat”), reproduz esta norma com
precisão: “Transportar uma pessoa viva em padiola, está livre de pecado, apesar da padiola, já que esta é coisa secundária. Se é um morto, é culpado. Também, transportar uma quantidade como uma azeitona de um cadáver, ou de uma carniça, ou como uma lentilha de um réptil, é culpado”. (N. do m.) 5. Nesse sentido, o capítulo XXIII da citada Misná é igualmente taxativo: “Pode-se fazer todo o necessário para o morto: ungi-lo e lavá-lo, desde que não se mexa em nenhum de seus membros. Podese tirar o colchão debaixo dele e pode-se colocá-lo sobre a areia para retardar a decomposição. Pode-se segurar o queixo, não para que se levante, mas para que não continue afundando, da mesma maneira que a uma viga quebrada se sustenta com um banco ou com as laterais da cama, não para que se levante (que seria uma construção ou trabalho), mas para que não continue afundando. No sábado não se fecham os olhos do morto nem tampouco em dia de feriado no momento da agonia. Quem fecha os olhos no momento de expirar é como quem derrama sangue”. (Entendiam os judeus que seria como apressar sua morte.) (N. Do m.) 6. Ampla informação em Operação Cavalo de Tróia 5, pp. 273 e ss. (N. Do a)
Dessa vez eu agiria com mais segurança. Se fosse necessário, imobilizaria a “burrinha” (prostituta) e seu companheiro. Inspecionei a choça de palha e adobe que se levantava ao leste, e que servia de refúgio ao coveiro e à prostituta, mas, de onde eu estava, não percebi nada anormal. Se o casal estava ausente, aquele podia ser o momento. Tentei me acalmar. Tinha pressa? Sim e não... Na verdade, a operação, tal como fora concebida, deveria ser executada durante a noite. Isso reduziria os riscos. Eu me agüentei à beira das oliveiras que cercavam o cemitério. O sol, já começando a descer por trás dos 488 metros do Nebi, continuaria iluminando durante cerca de uma hora. Em frente do telhado, do outro lado do quadrilátero, as cinco grandes pedras calcárias que fechavam as criptas também pareciam solitárias e desafiadoras. Sim, “desafiadoras” para este explorador. Ali, nas grutas conquistadas do Nebi, se o instinto não me enganava,
deviam repousar os restos de José, o pai terreno do Filho do Homem, e os de Amós, o irmão de cinco anos, tristemente falecido em 3 de dezembro do ano 12. A advertência de Tiago, na minha primeira visita ao cemitério, foi vital. Como podemos lembrar, enquanto este explorador ficava em respeitoso silêncio diante da estela que perpetuava a memória do pai e da criança desaparecidos, o irmão de Jesus, colocando a mão em meu ombro, exclamou em voz baixa: - Não estão mais aqui... Isto significava duas coisas: que os ossos, de acordo com o costume, haviam sido jogados ao kokhim, fossa comum que se abria no centro do cemitério, ou que, também de acordo com a tradição, a família pudesse tê-los levado a um ossário particular, depositando-os numa daquelas criptas usuais na rampa oeste. No primeiro caso, não havia nada a fazer. O kokhim, de cerca de quatro metros de lado, estava cheio de ossos e caveiras, na mais caótica desordem. Ainda restavam as criptas funerárias. E a intuição me dizia que a família de José respeitara aqueles restos, conservando-os numa das costumeiras arcas de pedra ou madeira de cedro. Era preciso então penetrar nas criptas e esclarecer a incógnita. Só assim, dispondo de uma amostra dos ossos de José (de preferência uns molares ou pré-molares), estaríamos em condições de terminar o estudo delicado sobre a possível paternidade do desventurado empreiteiro de obras(7). *7. Como foi dito, esses exploradores conseguiram extrair o ácido desoxirribonucleico (DNA) do Mestre, graças aos pêlos da barba e aos múltiplos coágulos de sangue recolhidos nos dramáticos momentos de sua paixão e morte. Conseguimos também uma amostra de sangue de Nossa Senhora, mas, para tentar verificar se Jesus de Nazaré havia sido concebido de forma natural (quer dizer, com o esperma de José e o óvulo de Maria), precisávamos daquilo que Eliseu chamava de “terceira pista genética”. Em outras palavras, sangue, cabelos com raiz, ossos ou qualquer outro elemento pertencente a José que tivesse preservado células vivas, nas quais, como se sabe, se armazena a “espiral da vida” (o DNA). Se o Mestre devia sua concepção aos pais biológicos, o código genético apareceria, necessariamente, nos materiais de José e de Nossa Senhora. (N. Do m.)
Foi difícil resistir. Confesso que a espera me paralisou. Eu morria de vontade de enfrentar as pesadas pedras que bloqueavam as criptas
e agir. Tudo foi calculado minuciosamente. Não podia falhar. E a claridade diminuiu. Alguns minutos mais e... Ajustei os “crótalos” e a visão IV (infravermelha) modificou a escuridão crescente, facilitando meus movimentos. Quebrei um galho de oliveira e me dispus a caminhar até a rampa oeste. Parecia claro. O coveiro e a companheira não estavam no cemitério. Deduzi que, diante da iminente chegada do sábado e da lógica falta de trabalho, os dois tinham decidido ir para Nazaré ou, quem sabe, a Séforis “ ou qualquer outra vila próxima. Contudo, eu não devia me fiar nisso. E  se voltassem? Procurei me acalmar, lembrando outra das rígidas disposições rabínicas. Nenhum judeu estava autorizado a caminhar, no sábado, mais de dois mil côvados(8). Calculei a distância entre Nazaré e o cemitério pela rota mais curta (o cume do Nebi). *9. O que osjudeus denominavam “a fronteira do sábado” era o ponto mais afastado ao qual tinham autorização para chegar. Esse “caminho sabático” de Lucas foi estabelecido em dois mil côvadosjudeus (um quilômetro, aproximadamente; Fr, 4, 3 e 5, 7). A lei ditava as razões pelas quais se podia alcançar essa “fronteira”: “pode-se esperar o anoitecer até a fronteira do sábado para vigiar os preparativos de uma noiva ou um morto, como levar o caixão ou a mortalha”. Naturalmente, os astutos judeus conseguiram driblar a norma, criando o que chamavam de erub: um ponto no qual depositavam um pouco de comida, simulando assim que o lugar era uma segunda residência. Isso Lhes permitia somar outros mil metros. Em caso de necessidade ou conveniência, o erub se multiplicava até onde fosse necessário. (N. Do m.)
Não gostei. Se muito, o caminho dava uns setecentos metros. Se o casal tivesse escolhido a aldeia de Nossa Senhora, o “trabalho” que representava a ida e a volta não violava a Lei. Supondo que o destino fosse Nazaré...
Outra dúvida me perturbou: que segurança eu tinha de que o coveiro e a “burrinha” eram judeus? Nenhuma. Se eram pagãos, as coisas se complicavam. A volta podia se dar a qualquer momento. Sim, era uma situação ruim... Mas eu estava onde estava. Não tinha muitas alternativas. Dessa forma, confiando na formidável “força” que me sustentava, me arrisquei. Cruzei rápido entre as estelas e fui me colocar na frente das cinco pedras. Ao levantar os olhos, reparei numa coisa que não havia captado nas minhas visitas anteriores e que, com toda sinceridade, me gelou o sangue. - Era o que faltava – murmurei entre os dentes, imaginando a sorte deste intrometido se chegasse a ser capturado. Na metade da rocha calcária que fazia as vezes de fachada, a pouco mais de dois metros do solo, bem visível, as autoridades de Roma haviam embutido uma lousa de mármore de 60 por 40 centímetros, aproximadamente, na qual, em grego, se podia ler o seguinte: “É sabido que os sepulcros e os túmulos, que foram feitos de acordo com a religião dos antepassados, ou dos filhos ou dos parentes, devem permanecer perpetuamente imutáveis. Se alguém, pois, for convicto de tê-lo destruído, de haver, com má intenção, transportado o corpo a outros lugares, causando injúria aos mortos, ou de haver removido as inscrições ou as pedras do túmulo, ordeno que seja levado a julgamento como aquele que, agindo contra a religião dos Manes, o faz contra os próprios deuses. Assim, pois, primeiro é preciso honrar os mortos. Que não seja permitido a ninguém, em absoluto, mudá-los de lugar, se o convicto por violação de sepultura não deseja sofrer a pena capital.” Bendito Deus! Aquilo parecia outra brincadeira do Destino... Eu sabia o que me esperava se fosse apanhado com as mãos na massa. Mas não era preciso que me lembrassem disso com tanta pompa e precisão. O “édito”, nascido provavelmente nas chancelarias de Augusto, era
coisa comum naquele tempo em muitos cemitérios da província romana da Judéia. Esse não seria o primeiro nem o último que eu descobriria, nas minhas andanças. Tratei de esquecer o “aviso” e prossegui com aquilo que era mais importante. Cheguei perto das pedras redondas que fechavam as entradas às respectivas grutas funerárias e fui apalpando e examinando. Não havia vida. Rocha calcária..., As cinco pedras, de um metro e meio de diâmetro, podiam pesar não menos de setecentos quilos cada uma. Era muito peso para ser deslocado com a força de um único homem. E assim como foi planejado, recuei alguns metros, ativando a “tatuagem”(9). Não havia alternativa. Se eu queria entrar nas criptas e localizar os restos de José, aquele era o procedimento mais rápido e eficaz. Dei uma olhada ao meu redor. No céu, estimuladas por uma lua nova, algumas estrelas madrugadoras brilhavam insolentes. Tive a sensação de que gritavam, me denunciando. Mas não, tudo continuava em paz. Digitei, passando os dados necessários: distância, volume espacial, tempo para a inversão e, obviamente, a natureza dos swivels a “remover”. Quinze segundos depois, um “trovão” seco e apagado espantava uma família de corvos voando sobre as oliveiras. E a boca da cripta apareceu limpa e desafiadora. Voltei a observar o cemitério e seus arredores. Aquele era outro momento chave. O estampido, embora breve, podia ter chamado a atenção. Indócil, esperei. As corujas recuperaram a paz e eu com elas. Bom, era o momento... Deslizei os dedos até o extremo superior do cajado, tocando o laser de gás e colocando-o na potência mínima (umas frações de watt). *9. Ampla informação sobre este dispositivo em Operação Cavalo de Tróia 5, pp.141 e ss. (N. Do a.)
Ao atingir o ponto, um finíssimo fio de fogo apareceu na noite. Aproximei o galho de oliveira e o “cilindro” (de apenas 25 micros) provocou a combustão. Não havia tempo a perder. E transportando a improvisada tocha, penetrei silencioso na cripta. A umidade me agrediu. Fazia muito tempo que aquele lugar estava fechado. O reduzido habitáculo, em forma de círculo, de uns três metros de diâmetro e pouco mais de um e meio de altura, foi escavado com paciência, conquistando um calcário dócil e cinza. Em seu perímetro, a 50 centímetros do solo, havia uma dúzia de cavidades em arco. Hesitei... Encurvado e com o coração na mão, virei-me em direção à pedra “desaparecida”. Não, aquele não era o plano. Mas não tive forças. Já dentro, como medida de precaução, evitando assim que alguém me surpreendesse ali, eu devia ativar de novo a “tatuagem”, materializando a rocha e fechando a gruta. Contudo, repito, fiquei em dúvida. Fiquei com medo. Depois da amarga experiência nos subterrâneos da casa do saduceu, em Nazaré, não queria tentar a sorte. Sabia que a “tatuagem” não falharia, mas... O coração, acelerado, ficou do meu lado. “Não o faria. Correria o risco.” Inspirando fundo, olhei as arcas de pedra que descansavam nas cavidades. Era minha vez. “José e seu filho Amós.” Esta era a inscrição que, supostamente, teria de figurar num dos ossários. Será que eu a encontraria? Repassei as caixas com nervosismo. Bendito seja o céu! Todas apareciam gravadas na parte da frente. A maioria em aramaico. Outras em grego. Auxiliado pela chama crepitante, fui lendo: “Teodoto Liberto.” Não, aquela tradução para o grego do nome hebreu “Natanael”
(Bartolomeu) não era o que eu procurava... “Yehoeser filho de Eleazar”. Tampouco. “Miriam filha de Nathan.”  Comecei a desconfiar. Teria errado de cripta? “José e seu filho...” A emoção saltou. Era José? Contudo, ao terminar de ler, compreendi que me enganara. José e seu filho Ismael e seu filho Yehoeser.” O resto das apressadas traduções foi igualmente estéril. A decepção veio na hora. Ali não repousavam os ossos de José... Não importava. Repetiria a leitura. Naturalmente, outro fracasso. Aquela não era a cripta. Entrei de novo e dediquei alguns segundos à obrigatória vigilância de tudo que me rodeava. Tudo respirava sossego. Tudo menos o céu e aquele que escreve este diário. Agora eram milhares as “testemunhas”  que pareciam gritar, denunciando o sacrilégio. Eu me fiz uma única pergunta: quanto tempo seria necessário para examinar as covas restantes? Felizmente reagi. Não me deixaria abater. Dispunha da noite inteira, a não ser que recebesse, é claro, alguma visita. Fechei a cripta e, antes de digitar sobre a “tatuagem”, preparando a segunda exploração, dei-me alguns minutos. Precisava pensar. Tinha de me aliviar daquela tortura. Tinha de encontrar uma pista, um indício, que simplificasse a busca. Mas qual? Só Deus e os familiares sabiam onde se achava o ossário. Supondo que minha intuição estava certa... Imagino que tenha sido uma coincidência. Ou não? O certo é que, ao repassar mentalmente as inscrições das doze arcas, percebi “algo” que parecia ter certo fundamento. Mas eu não tinha certeza. Decidido a verificar, caminhei até as estelas do cemitério.
Concentrei minha atenção nas mais próximas às criptas. Bingo! Ali havia “alguma coisa”. Voltei a ler. Sim, minha suposição era correta. As inscrições que acabara de ver na cova funerária se repetiam nas primeiras filas. Estava claro. Aqueles restos tinham sido enterrados na mesma época e, posterior e paulatinamente, exumados e depositados na cripta correspondente. Nesse caso, naquela que ocupava o extremo direito da rampa calcária. O achado me reconfortou. Se existia uma ordem de exumação – como era presumível -, essas fileiras, as que confirmavam minhas suspeitas, tinham de ser as mais antigas. No campo oposto – eu me lembrava disso -, o pequeno cemitério apresentava uma área ainda virgem, pronta para novos enterros. Muito bem, nas filas próximas a essa zona reservada, eu havia descoberto a estela que perpetuava a memória de José e de seu filho Amós. Em resumo: a tal fileira – a número onze – era mais “moderna” e, conseqüentemente, os ossos ali sepultados deveriam ter sido resgatados muitos anos mais tarde. Comprovei meu raciocínio no próprio terreno. O cemitério somava treze fileiras. A partir daí, até o lugar onde se levantava a choça, a terra se achava livre e, repito, preparada para novos “inquilinos”. A questão, agora, se concentrava em outro ponto não menos problemático. Aceitando que a fileira “onze” fosse uma das mais novas (?) José estava morto havia 22 anos e seu filho, 18), para qual cripta haviam sido levados? O problema obviamente não era fácil de resolver. Eu me deixei conduzir pelo bom senso. Se os ossos das duas filas iniciais do cemitério se achavam na gruta da direita (a que acabara de abrir), os exumados do lado oposto talvez tivessem ido parar naquela localizada no outro extremo, quer dizer, a mais “moderna” (?). Naturalmente, essa coisa de “moderna” era outra suposição deste explorador otimista. Assim, dado que as especulações terminavam aí, optei pela cripta citada. Fui me colocar em frente à pedra e digitei, “volatilizando-a”.
O segundo estampido voltou a me paralisar. Agucei os sentidos. Observei a choça, o bosque de oliveiras e o caminho que subia até o cume do Nebi. Novos vôos inquietos de urubus. Mais ansiedade. E, finalmente, caindo devagar como a neve, o maravilhoso silêncio. Entrei com precauções idênticas. A umidade governava também aquele lugar. E “alguém” - pode ter sido esse anjo com nome de mulher chamado “Intuição” - passou pertinho de mim, na ponta dos pés. Seu sussurro, embora claro e preciso, foi por mim rejeitado. Desta vez, sim.” A gruta artificial, um pouco mais aberta que a anterior, tinha uma forma muito similar: havia sido escavada em círculo, com uma altura máxima ligeiramente superior à minha (1,80 metros). Nas paredes, também a curta distância do chão tosco, alinhavam-se outras cavidades. Contei dez. E nas cavidades, caixas ou arcas fundas de calcário. Em duas delas, ao contrário da primeira cripta, repousavam alguns ossários menores. Deduzi que podiam ser restos de crianças. A chama crepitante me chamou a atenção. No chão, ao pé das cavidades, encontrava-se uma das arcas. Estava quebrada, com a tampa a curta distância, e havia uma série de ossos espalhados e desarticulados. Eu me inclinei, examinando-os. Era estranho. A cova, provavelmente, estava fechada fazia muito tempo. O que havia acontecido? Passei a tocha pelo teto e, ao descobrir uma ampla fissura, imaginei que a queda fora causada por um movimento sísmico. Eu me virei sobre a malsucedida arca e procurei a inscrição. A princípio, fiquei mais tranqüilo: aquele não parecia ser o ossário de José. Continha somente um esqueleto. A gravação na pedra “Menahem filho de Simão” - confirmou a desconfiança. Mexi nos ossos e verifiquei o que imaginava. A umidade e a longa permanência no ossário estavam acelerando a desintegração. Eles já estavam muito frágeis. Isso podia complicar os planos. Mas não desanimei. Sabia que a umidade intensa da Galiléia não nos favorecia. As pessoas da região conheciam essa circunstância e
dificilmente fabricavam ossários de madeira. (O cipreste, o sicômoro e o pinho eram mais econômicos que a pedra.) Se eu tivesse a sorte de localizar os restos, mais concretamente os dentes de José, o problema não nos afetaria. Essas peças são justamente as mais indicadas para o estudo que queríamos fazer. A polpa, da qual deveríamos extrair o DNA, encontra-se sempre muito bem protegida, resistindo à ação dos agentes físicos, térmicos e químicos, assim como à inevitável putrefação. Um segundo achado, à esquerda da entrada, de novo chamou minha atenção. Tratava-se de três lanternas ou lâmpadas de argila e dois cântaros de tamanho médio. Um continha óleo em estado sólido, muito degradado, e o outro, um líquido verde e podre. Provavelmente, a água utilizada no obrigatório ritual da purificação depois da última manipulação das ossadas. Na verdade, pensei em aproveitar o combustível. Mas, inquieto, constatando horrorizado que o tempo voava, continuei na companhia da tocha oscilante. Ou muito me enganava ou teria de substituí-la em breve. Atento, repeti a operação, revisando as inscrições das nove caixas. As duas primeiras me confundiram. Em ambos os ossários, os menores, li a mesma coisa: “Yehoeser ilkabia.” Não pude evitar. A curiosidade foi mais forte. Levantei as tampas e acho que entendi. Estava diante dos restos de dois rapazes. Possivelmente irmãos. E, seguindo o costume, ao falecer o primeiro filho, os pais deram o nome do morto ao segundo. “Menahem (filho de) Simão. Simão.” Má sorte! A tocha começou a lamber a mão deste escriba, cada vez mais desconsolado. Não tive alternativa. Depositei a tocha e o cajado no solo da cripta e me lancei para o exterior, ao encontro das oliveiras. O lugar continuava silencioso. Desta vez peguei três longos ramos robustos. E me surpreendi a mim mesmo: quanto tempo pensava ficar nessa delicada situação? Incrível. Deixei o medo de lado e me convenci de que “aquilo devia ser apurado até o final”. Nem agora consigo entender esse comportamento tão arriscado, quase suicida.
“Miriam esposa de Judá.” Negativo. “Yeohoeser filho de Yeohoeser.” Balancei a cabeça negativamente. Deus! Será que eu me enganara de novo de cripta? “Salomé esposa de Eleazar.” O coração parou. A respiração agitada baixou e tentei escutar. Alguma coisa soara lá dentro. De repente, fixando os olhos na chama oscilante, compreendi que a luz poderia me delatar. Apaguei a tocha, pisando nela, e me levantei rápido, como impulsionado por uma mola. O ruído se repetiu. Agora muito perto. Eu me apoiei no umbral e peguei a “vara de Moisés”. Se era o coveiro, não tinha outro remédio a não ser imobilizá-lo. Mas o Destino, sempre brincalhão, não demorou a me apresentar o responsável por esses ruídos e pelo sobressalto. Entre as estelas, a visão, vermelha me mostrou o corpo inquieto e estilizado e a cauda longa abanante de uma raposa de ventre cinzento, faminta. Respirei aliviado. Contudo, o “aviso” me deixou alerta. Eu estava me descuidando. Era  violador de túmulos e, se me pegassem, o castigo seria a morte. Acendi o ramo de oliveira e, com certo desânimo, ocupei-me das três últimas arcas. “Slonsion mãe de Yehoeser.” Um desastre... “José...” Meu pobre coração quase pifou. Não pode ser!... Oh, Deus... Sim! “José e seu fillio Amós.” Quase deixei cair a tocha. Aturdido e incrédulo, colei o nariz na nona e providencial arca de pedra. Sob os nomes, também em grego, eliminando dúvidas, lia-se o mesmo epitáfio gravado na estela do cemitério: “Não desaparece
aquele que morre. Só aquele que é esquecido.” Recuei alguns passos. Contemplei o ossário e, tentando acalmar meu louco coração, dei graças a Deus. Melhor dizendo, agradeci e pedi perdão. Aquilo que eu estava fazendo e o que eu estava prestes a fazer não teriam sido aprovados pela família... Nova olhada ao exterior. A raposa continuava rondando perto da choça. Nada parecia me incomodar. Havia chegado o momento. A arca, de uns 50 centímetros de comprimento por 70 de altura e 30 de diâmetro, gemeu e protestou ao ser retirada do nicho. E a depositei com carinho no centro da cripta e, tremendo, me dispus a retirar a tampa de calcário. E se não fossem os restos de José? Rejeitei a dúvida tola. Tiago, em minha primeira visita ao cemitério, confirmou com suas palavras que aquela inscrição era dos seus. Além disso, quantos José e Amós compartilhavam o mesmo ossário? Eu mesmo me repreendi. “Não devo duvidar. Os ossos irão confirmar se estou certo ou não.” Levantei a lousa pesada e aproximei a tocha. Estremeci. Cuidadosamente colocados apareciam a caveira e os restos descamados de uma criança. Amós? O esqueleto, desarticulado, havia sido colocado sobre uma dupla esteira de folhas de palmeira. Peguei a esteira pelas pontas e, com muito jeito, procurando não alterar a disposição da ossada, eu a retirei e depositei no chão. Meu objetivo não era esse. Novo calafrio. José? Em idêntica posição e com o mesmo ritual esmerado, a família havia armazenado os restos no fundo da arca. Esses movimentos, eu sei, deveriam estar sendo feitos em condições de trabalho muito específicas e rigorosas. A análise
posterior do DNA assim o exigia. Mas, diante da impossibilidade de carregar um equipamento que isolasse as amostras evitando a contaminação, tive de me resignar. Tentaria otimizar a assepsia isolando-me das peças que deviam ser levadas ao “berço”. Nesse sentido, a “pele de serpente”, separando a epiderme, foi de enorme ajuda, servindo-me de luvas. De repente, o coração voltou a oscilar. À distância, a raposa se lamentava. Corri até a entrada da gruta e inspecionei ansioso ao redor. Alarme falso. Consumido pela pressa, tomei em minhas mãos o crânio do adulto. Felizmente, o tempo e o traslado à cripta respeitaram a mandíbula. Não sobravam muitos dentes. Revisei o maxilar. Escolhi um dos prémolares, com as raízes intactas. Em seguida, selecionei o terceiro molar ainda incipiente e visível na mandíbula. A extração foi rápida e limpa. O perióstio(10), obviamente desaparecido e a cortical (parte superior do osso) muito quebradiça facilitaram a operação. *10. o perióstio: membrana fibrosa, branca, vascular, mais ou menos grossa e resistente (depende da idade), que circunda o osso (N. Do m.)
Guardei o “tesouro” numa das ampolas de barro que conservava na sacola de viagem e, sem conseguir conter a curiosidade, continuei examinando a caveira. Afinal aquela era uma oportunidade única... A dezena de dentes apresentava um desgaste marcante, inicialmente os molares e pré-molares remanescentes. Atribuí isso à dieta, ou melhor, ao excesso no consumo de pão. Um dos caninos, no maxilar, tinha uma raiz dupla, coisa efetivamente normal na dentição. Mas o que mais me chamou a atenção foi a reabsorção alveolar. Sem dúvida, José padecera de uma das doenças mais freqüentes naquele tempo: a “piorréia”(11) ou doença periodontal. É o problema que acaba dizimando os dentes. Isso podia explicar também o porquê da escassez de peças dentárias(12). De fato, estava na pista certa. Ali, na parte superior do crânio, aparecia notável orifício ovalado, de uns seis centímetros de diâmetro maior. Não me enganara. Eram os restos do pai terreno de Jesus. A ostensiva ferida na região temporoparietal, que, sem dúvida, fora fatal, coincidia com a
descrição da família. José, como fora dito, caíra do alto de um edifício enquanto trabalhava, na cidade de Séforis. *11. Esta doença afeta progressivamente os tecidos que sustentam o dente, crescendo a partir da parte mais superficial (gengiva) até a mais profunda (osso). Trata-se de uma doença grave. Nas fases mais avançadas, provoca a mobilidade e perda das peças dentárias. Envolve duas situações claras: inflamação da gengiva (gengivite) e a do ligamento periodontal (periodontite). (N. Do m.) 12. Como é sabido pelos especialistas, na origem da doença periodontal, entram múltiplos fatores – desde hormônios até remédios. Contudo, o comum é que a doença seja produzida por um excesso de placa bacteriana e de cálculos (saliva) na superfície dos dentes. Essa placa se forma por determinados microorganismos, bem como uma substância pegajosa integrada por resíduos de alimentos e saliva. As bactérias alteram a configuração normal da gengiva, enfraquecendo-a, nela penetrando e a inflamando. A saliva, por sua vez, além de contribuir no suporte dos microorganismos, colabora nessa irritação, multiplicando a inflamação. Na primeira fase, a gengiva fica avermelhada e sangra (gengivite). Se o problema aumenta, a gengivite geralmente acaba na chamada periodontite. É quando aparece a bolsa periodontal e as toxinas das bactérias penetram com facilidade, ocasionando a destruição do osso alveolar. Daí surge a mobilidade, a migração dentária e, finalmente, a perda dos dentes. A julgar pela reabsorção alveolar e a redução da altura facial no crânio, cabe a possibilidade de que José tivesse sofrido esta última fase da doença. (N. Do m.)
Intrigado, querendo comprovar a informação, examinei o resto da ossada. Não demorei a descobrir que outros ossos estavam igualmente fraturados. Na análise constatei rupturas na clavícula direita, perônio, em várias costelas e em um dos metatarsos. Aquilo devia ser conseqüência da queda fatal. Outro detalhe que me assombrou e do qual eu logicamente não tinha informação – a estatura do empreiteiro de obras. Pena não dispor da mais tempo e dos recursos necessários para avaliar tudo com mais precisão. Sei, porém, que a margem de erro nas medições foi mínima. A julgar pela longitude dos úmeros, tibias e fêmures (segundo a fórmula de Trotter e Gleser), José pode ter tido 1,80 metros de altura. Uma constituição respeitável, levando-se em conta que a média para os homens da época do Mestre oscilava em torno de 1,60 metros.
A verdade é que, olhando bem, isso justificava a não menos notável altura de Jesus (1,81 metros). Os ossos, em geral, mesmo com a deterioração natural, me pareceram fortes. José deve ter sido, também, um homem atlético como seu Filho. Nas tíbias, por outro lado, percebi alguns sintomas de compressão. A explicação talvez estivesse na contínua flexão das pernas, coisa normal num terreno acidentado como o de Nazaré e arredores. Ao inspecionar as suturas da abóbada craniana e a apófise xifóide do esterno, confirmei aquilo que já sabia: José morrera antes de completar 40 anos. As primeiras continuavam abertas e a apófise não se juntara ao corpo. Assim, como detalhei nas páginas precedentes, segundo a família, o empreiteiro morreu em 25 de setembro do ano 8 da nossa era, quando tinha 36 anos de idade. Mas O crânio, em resumo, era claramente mesocéfalo(13), com uma fronte alta e vertical e um índice nasal mesorrino (ao redor de 48,9”). *13. Mesocéfalo ou de cérebro médio. No caso de José aparecia com bastantes rugosidades, protuberâncias superciliares e uma pronunciada glabela. O índice médio de alturacomprimento craniana era ortocéfalo. De seu lado, os processos mastóides eram moderados. Apresentava também um índice firontoparietal metriometópico. Embora não dispusesse do instrumental necessário, calculei que o comprimento craniano podia oscilar ao redor de 185 milímetros, com uma largura de 146, aproximadamente. Não observei processos degenerativos em articulações e vértebras (N. Do m.).
Quer dizer, um nariz médio, muito diferente, por certo, do nariz do Rabi. A mandíbula, em harmonia com o resto da estrutura craniana, se apresentava curta, ampla e poderosa. Imerso naquele estudo apaixonante, sinceramente perdi a noção do tempo e do lugar perigoso onde me encontrava. Mas o Destino cuidou deste irresponsável explorador. Não pensei duas vezes. Tinha de aproveitar a magnífica oportunidade única. As novas amostras, além disso, ampliariam e garantiriam os resultados das pesquisas sobre o DNA. E sem demora alguma, me lancei sobre a pequena caveira de Amós. Embora a mandíbula tivesse desaparecido, o maxilar conservava ainda vários dentes deciduais ou de “leite”, bem como os
permanentes, escondidos sob o osso. Resgatei as peças – um canino e um molar – e me apressei em ocultá-las na segunda ampola vazia. A missão, praticamente consumada, chegava ao fim. A curiosidade, porém, de novo me venceu. Nunca aprenderei. Faltou pouco para que aquele erro complicasse tudo. O crânio do menino, falecido aos cinco anos de idade, apresentava sintomas de osteoporose(14) nos parietais e occipitais. Revisei de novo os restos, mas, naturalmente, naquelas circunstâncias, era quase impossível averiguar o porquê do problema. Pensei numa hipotética deficiência de ferro e proteínas ou – quem sabe – numa infecção da mãe. Tudo era possível. Vários dentes haviam sido vítimas também de um mal agudo e generalizado: as cáries. Outra doença habitual no meio daquela gente. O resto da ossada, frágil e consumida pela umidade, não me disse grande coisa, exceto confirmar a idade da criança, através da observação da epífise interior do perônio. Contente, satisfeito diante do excelente resultado da aventura, devolvi os ossos de Amós ao interior do ossário, cobrindo-os com a tampa de pedra. Ergui-me e, obedecendo a um estranho impulso, baixei os olhos, pronunciando em silêncio uma oração: aquele belo e original Pai Nosso escrito pelo próprio Jesus de Nazaré. *14. A osteoporose provoca a formação de espaços anormais no osso ou sua rarefação sem descalcificar, pela ampliação de seus canais (N. Do m.).
Não pude concluir... Subitamente, alguma coisa me mandou de volta à realidade. A cruel e impiedosa realidade., Eu me senti numa armadilha. Instintivamente apaguei a tocha. O que fazia? Fugia Ficava escondido na caverna? Disparado, o coração não ajudou. Deus! Escutei de novo os sons confusos. Reagi e, devagar, muito devagar, medindo cada passo, assomei à entrada da gruta.
A escuridão espessa, alimentada pela lua nova, multiplicou minha aflição. A visão IV não detectava nenhum ser vivo. Mas o barulho estava ali, em algum lugar. Eu amaldiçoei minha irresponsabilidade. Podia ter abandonado o cemitério logo depois de ter extraído os dentes de José... Segurei-me no cajado. Se fosse preciso eu me defenderia. As amostras continuavam comigo. Nada nem ninguém tiraria de mim esse material. Risadas? Foi o que percebi em seguida. Pareciam vir da zona norte, talvez da trilha que conduzia ao cume do Nebi. O coração, de novo disparado, continuou bombeando até eu começar a me sentir mal. Sim, risadas, vozes, gritos. Alguém se aproximava pela direita, pela já mencionada trilha. Acho que comecei a hesitar. A hesitação e o medo, em partes iguais, me prenderam ao solo da cripta funerária. O que fazer? Pular como uma gazela em direção das oliveiras? Esquecer o ossário? Fechar a caverna? Continuar ali dentro? Se eu optasse pela primeira saída, talvez pudesse atravessar o cemitério e desaparecer antes da chegada dos ainda invisíveis indivíduos. E se não fosse isso? O que aconteceria se me pegassem a meio caminho? Sequer sabia quantos eram... Tentei pensar. Impossível. O medo não deixava. De repente, os “crótalos” colocaram diante deste abalado explorador duas figuras avermelhadas, abraçadas e cambaleantes. Precisei de alguns segundos para me certificar e entender. Não havia a menor dúvida. As risadas e o vozerio confirmaram tudo. O coveiro e sua companheira voltavam de Nazaré embriagados como gambás. Ao entrar no cemitério, cegados pelo vinho, acabaram trombando uma das estelas, caindo entre os túmulos. Mais risadas. Mais gritos.
Confusão. O Destino, eu sei, se apiedou de mim. Esperei. Ao princípio, a situação não parecia tão crítica como eu havia imaginado. O ânimo quebrado foi se erguendo pouco a pouco. Os dois, ajudando-se mutuamente, tropeçando aqui e ali, conseguiram a duras penas seu propósito, chegando à choça. Nunca entendi como conseguiram atravessar o Nebi. ; Aos poucos o alvoroço foi se extinguindo, dando lugar a maravilhosos e tranqüilizadores ronquinhos. Arquivei na cabeça o susto e a lição e, sem perder tempo, restabeleci a ordem na cripta e fechei a entrada. Duas horas mais tarde, ao romper do dia, aquilo já era história. Apertei o passo, ansioso por voltar ao Ravid e concluir esta fase da missão.  Uma vez mais, o Destino fora benevolente comigo.
DE 18 A 24 DE JUNHO Na mesma tarde de sábado, dia 17, sem tropeços nem percalços, este explorador abraçava seu irmão. Tudo no “porta-aviões” caminhava muito bem. Para dizer a verdade, toda essa paz começava a me preocupar. Isso não era normal. Dedicamos essa noite só ao descanso. Eliseu entendeu isso e, embora morresse de vontade de fazer perguntas e de expor aquilo que descobrira nas análises de sangue da Senhora, deixou que eu me recuperasse. Na manhã seguinte, com alma e coração exultantes, eu o informei de tudo que havia visto e ouvido na prolongada permanência na Cidade Santa e no cemitério de Nazaré. Não fez muitos comentários. Não valia a pena. O destino dos “embaixadores do reino” estava
claro. E a valiosa informação, como de costume, foi transferida ao banco de dados de “Papai Noel”. De seu lado Eliseu, não menos feliz, mostrou-me os relatórios e os resultados de suas investigações em torno do sangue que este explorador, como podemos lembrar, teve a sorte de recolher em Nazaré, quando Maria, a mãe do Mestre, ficou levemente ferida no nariz(1). O lenço providencial e a não menos oportuna hemorragia nasal da Senhora nos permitiriam completar outra missão decisiva, “especial e encarecidamente encomendada pelos diretores do Cavalo de Tróia”. Como já comentei, naquele momento, as exigências de Curtiss nos pareceram lógicas e normais. Para nós, cientistas, a possível paternidade de José era um desafio apaixonante. *1. Ampla informação em Operação Cavalo de Tróia 5, pp. 56 e ss. (N. Do a.)
Mais tarde, aparentemente por acaso, (), meu irmão descobriu “algo” que nos horrorizou e nos fez duvidar da honestidade de tal “pedido”. Mas vamos dar tempo ao tenpo. Ambos estávamos conscientes de que o lenço citado fora usado para enxugar o sangue da mulher. Eu era testemunha. Contudo, fiéis aos procedimentos e aos protocolos estabelecidos pelos responsáveis da Operação, os primeiros ensaios foram orientados para questões básicas. Identificação da amostras como sangue humano, sexo, etc.(2) Por último, Eliseu concentrou seus esforços naquilo que realmente interessava: o grupo sangüíneo. As provas foram contundentes. A Senhora transportava o tipo “B”. *2. Considerando que, nessa ocasião, a amostra podia ser macerada ou destruída – opção que não fora possível na análise de sangue de Jesus de Nazaré -, meu irmão descartou a prova dos “cristais de Teichmann”, escolhendo a técnica do hemocromogênio, mais limpa e eficaz. O reativo da cristalização se achava integrado por uma base nitrogenada (piridina), insípida, um agente hematizante e um redutor. Esta reação, como sabem os especialistas, não precisa de aquecimento. Muito bem, uma vez verificado o que era óbvio para nós, que se tratava de sangue humano, partimos para o estudo do diagnóstico individual Procurando o grupo da Senhora. Para tanto decantouse pelo método dos aglutinógenos (teste de absorção-elução). Nesse teste, as aglutininas se fixam sobre a mancha e, depois de uma incubação de 24 horas, são retiradas por meio de uma lavagem, esquentando-se posteriormente a 56 graus Celsius.
Liberadas, as aglutininas, definitivamente nos proporcionaram o diagnóstico do grupo. Tratava-se, assim, da identificação das aglutininas utilizando-se hemácias testemunhas, quer dizer, aglutinógenos conhecidos. E a surpresa veio quando meu irmão acrescentou hemácias do tipo “B”. O sangue, de fato, era do tipo “B”. Não satisfeito com isso, Eliseu confirmou os resultados com um segundo diagnóstico, utilizando para tanto a técnica mista de Pereira. Colocou um dos Fios da amostra sobre acetato de celulose, agregando soro anti-A. Ao mesmo tempo, num segundo fio igualmente manchado, adicionou uma gota de soro anti-B. E depois de incubá-los e lavá-los, acrescentou as hemácias A e B, respectivamente. Cinco minutos depois, uma vez incubados na câmara úmida a 50 graus Celsius, fez a “leitura” da aglutinação. O resultado foi o mesmo: grupo “B”. (N. Do m.)
Isso nos levou ao final da experiência. Sabíamos que o Filho do homem pertencia ao grupo “AB”(3) e conhecíamos também, agora, o da mãe. Só restavam duas operações, não menos delicadas e definitivas: averiguar os respectivos grupos sangüíneos de José e Amós, assim como os DNA de todos eles. Com esse material estaríamos em condições de excluir – ou não – a paternidade do empreiteiro de obras em relação ao Rabi. Do ponto de vista da Ciência, um gene de grupo sanguíneo só se apresenta num indivíduo se estiver presente num dos dois ou em ambos(4). Fizemos alguns cálculos. Na teoria – só na teoria -, aceitando que José fosse o pai biológico de Jesus, as possibilidades combinatórias (em grupos sangúíneos) eram as seguintes: Primeira: o pai podia ser “A”, a mãe “B”. Segunda: pai “A” e mãe “AB”. Terceira: “B” para José e “AB” para a Senhora. Quarta: “AB” para ambos(4). *3. Este tipo de sangue – grupo “AB”, com aglutinógenos “A” e “B” - não é muito freqüente nas raças européias, alcançando um índice que oscila entre 3 e 3,2 por cento. O “O”, ao contrário, se situa em 43,4 por cento. No Oriente Médio, contudo, esse grupo é mais comum. No Irã, por exemplo, as pessoas com “AB” chegam a 12,76 por cento. Quanto à incidência na totalidade da espécie humana, o “AB” é o menos representativo, com 2 por cento, diante de 42 e 45 do “O” e do “A”, respectivamente. (N. Do m.) 4. Acho que é bom esclarecer que os ensaios com grupos sangüíneos dificilmente demonstram uma paternidade. Fazem, isso sim, o contrário: averiguar que uma suposta paternidade é impossível. O sangue, como sabemos, é um equivalente das impressões digitais. Quer dizer, tem uma natureza primária inalterável. Lattes explica isso com perfeição: “O fato de pertencer a um grupo sangüíneo definido é um traço fixo de todo ser humano, que não pode ser alterado nem pela passagem do tempo, nem por
alguma doença intercorrente”. O sangue, portanto, como resultado de que suas células não dispõem de nenhum, um dos dois, ou ambos aglutinógenos, deve fazer parte de um desses fenótipos (grupos primários): “O”, “A”, “B” ou “AB”. Através dos anos surgiram outros grupos mais complexos, diretamente relacionados com raça e geografia. Assim, por exemplo, os antígenos “Rh” (CDE/cde) supõem 85 por cento da população. O “M”, 30 por cento, o “N”, 20, e o “MN”, entre outros, 50 por cento. A estes podemos acrescentar o “Hp” e o “Gm” mas, dado que não foram decisivos em nossas investigações, vamos descartá-los. (N. Do m.)
Obviamente, se Maria era “B”, as análises seguintes só podiam oferecer o grupo “A”. Mas era preciso demonstrar isso. De segunda-feira, dia 19, em diante, meu irmão e eu nos entregamos sem pressa a um trabalho intenso, conscientes das repercussões desses experimentos. A primeira causa de inquietação, surgida já no começo da operação, foi a possível contaminação das amostras e o estado das mesmas. Embora as ampolas de barro empregadas no traslado dos dentes tivessem sido desinfetadas minuciosa e rigorosamente, sempre ficava uma dúvida. Contudo, as circunstâncias mandavam e, simplesmente, confiamos na nossa boa estrela. Com respeito à integridade das peças dentárias, as observações ao microscópio nos deixaram tranquilos e animados. Não detectamos cáries nem fissuras. Outra questão era o interior. Depois de tantos anos, as polpas do molar e do pré-molar, no caso de José, bem como as do canino e molar de Amós, podiam ter sido reabsorvidas e ter aderido às paredes. Neste caso, as coisas ficariam mais complicadas. Os legistas conhecem bem esse problema. Quando os restos estão deteriorados, o DNA não serve, havendo até mesmo a destruição dos fragmentos maiores. Mas, repito, confiamos. E chegou o grande momento. Decidimos pelo molar, reservando o pré-molar de José para um segundo ensaio. Eliseu o perfurou e, hábil, extraiu a polpa. Bingo! Não havia reabsorção!
Eu sabia que o dente pertencia a um ser humano. Mas mesmo assim fomos fiéis ao método científico. Primeira determinação: a espécie. O exame foi conclusivo. A coroa e a raiz estavam no mesmo plano, indicando que o dente pertencia a um ser humano. (Como se sabe, o homem é o único mamífero cujos dentes se desenvolvem na vertical.) Segundo item obrigatório: idade. Seguindo as diretrizes de Gustafson, avaliamos alguns dos seis processos evolutivos básicos(5). *5. Uma vez terminada a erupção dentária, especialistas como Gustafson, Miles e Dalitz estabeleceram uma série de regras, em função do desgaste, para determinar a idade do indivíduo. Esses processos evolutivos são os seguintes: da superfície (conseqüência da mastigação), paradontose (mudanças nos tecidos de suporte do dente), dentina secundária (a cavidade da polpa fica recheada de um tecido duro que procede da parede), aposição de cimento (este aumenta sua densidade com a migração), reabsorção da raiz (em determinadas áreas, cimento e dentina são reabsorvidos por células especiais), transparência da raiz (com a idade, os canais que cruzam da polpa à periferia se fazem invisíveis, devido ao recheio de substâncias minerais). (N. Do m.)
Logicamente nem todos foram viáveis. Muito bem, quantificando as modificações provocadas no dente por cada um desses processos, o resultado da idade de regressão deu um total de quatro pontos. Considerando uma margem de erro de mais ou menos cinco anos, a idade de José ficou determinada assim em 35 anos. Em outras palavras, o que já sabíamos (o pai terreno de Jesus morrera aos 36 anos de idade). Quanto à primeira determinação – o sexo -, seria esclarecida pouco depois, com as análises celulares(6). A incógnita, obviamente, já era conhecida por mim, quando, ao inspecionar a ossada, pélvis, fêmur, sacro e o corpo do esterno – duas vezes maior que o manúbrio -, constatei que os ossos pertenciam a um homem. Não obstante, esperamos. Tudo devia ser feito com rigor. Os passos seguintes – diagnóstico dos grupos sanguíneos de José e Amós – não ofereceram maiores complicações. Repetimos os procedimentos já expostos, obtendo o que já suspeitávamos: o pai terreno do Rabi da Galiléia pertencia ao grupo “A”.
Exatamente igual ao menino. O achado nos fez estremecer. O Filho do Homem de fato era filho do homem... Seu grupo - “AB” -, como mandam as leis da hereditariedade, foi propiciado pela genética de José e da Senhora. E a mesma coisa acontecia com Amós, o irmão. Sob o ponto de vista científico, tudo se encaixava de forma matemática. *6. Um dos procedimentos para estabelecer o sexo aparece na contagem cromossômica, graças aos corpos cromaníticos sexuais. No homem, por exemplo, o cromossomo “Y” é fluorescente à quinacrina. Ao contrário, nas células que não estão em divisão, a feminina apresenta um ou mais nódulos de cromatina fixados à superficie interna da membrana nuclear. As masculinas, por exemplo, carecem desse corpo de “Barr”. Outro traço típico feminino aparece também nos leucócitos. Estes mostram o que se denomina corpo de “Davidson” (uma fina projeção em forma de banqueta de tambor). No caso que nos interessa- o suposto pai biológico de Jesus de Nazaré -, a presença do cromossomo “Y” na contagem cromossômica foi decisiva. (N. Do m.)
Como eu disse, aglutinógenos A e B são transmitidos com caráter hereditário dominante. Ou então, o que dá na mesma: não surgem nos filhos se não estiverem presentes nos progenitores. Assim, por exemplo, pais “AB” nunca poderiam ter filhos do grupo “O”. Mas essa pista importante precisava ser ratificada. E Eliseu, nervoso e emocionado, penetrou no último capítulo: a observação dos respectivos DNA(7) e seus estudos comparativos. Dessa vez, fiquei fora. Imagino que meu irmão tenha compreendido. Embora não fosse um comportamento próprio de um cientista, a “invasão” dos territórios mais íntimos do ser humano nunca me agradou. E muito menos, mergulhar e trazer à superfície os DNA dos meus amigos. Foi instintivo. Não sei expressar isso com palavras, mas o sentimento era claro: não manipularia as chaves da vida de Jesus de Nazaré e da Senhora. Para esses experimentos, o Cavalo de Troia nos dotara de duas técnicas desconhecidas, que eu saiba, pela comunidade científica. A primeira foi desenvolvida e aperfeiçoada pelos laboratórios de engenharia genética da Marinha norte-americana. Durante anos, como é habitual, *7. Todos os traços que identificam um indivíduo estão ligados a seu dote genético, depositado em chave química numa molécula: o DNA ou ácido desoxirribonucleico. O dote genético de cada pessoa é o resultante do dote contido no DNA procedente de seus progenitores. O descobrimento da estrutura do DNA, em 1954, por Watson e Crick, foi o que permitiu saber no que consistia o suporte do material hereditário e dar seqüência ao conceito do gene. O DNA é uma substância
dispersa no núcleo de todas as células. Num determinado momento da divisão celular, essa substância se concentra na forma de bastões ou cromossomos. A estrutura do DNA é similar à de uma fileira dupla em forma de escada em caracol. A parte externa se acha integrada por um açúcar e um radical fosfato. Na parte de dentro se concentram quatro bases “chaves” (formando pares): “A” (adenina), “T” (timina), “C” (citosina) e “G” (guanina. Cada volta dessa hélice dupla mede 3,4 nanômetros (um nanômetro equivale à bilionésima parte do metro) e contém dez pares de bases. Um fragmento correto de DNA forma o que se denomina gene ou unidade funcional. Cada gene encerra o código necessário para fabricar uma proteína. O ser humano dispõe de cerca de cem mil. Esses genes são idênticos na sua quase totalidade, cumprindo as mesmas funções em todos os indivíduos. Um por cento, por outro lado, é específico e contribui com os traços e características que diferenciam cada pessoa. (N. Do m.)
a ciência Militar foi “absorvendo” e “fazendo suas” as interessantes descobertas de cientistas como Khorana e Niremberg (decifradores da base do código genético), Smith e K. Wilcox (descobridores das enzimas de restrição), A. Kornberg e sua equipe (que acharam a Glimerasa) e Berg (que produziu a primeira molécula de DNA combinado), entre muitos outros. Nem é preciso dizer que esses importantes homens da Ciência jamais souberam dessas manipulações. Pelo que não cansarei o hipotético leitor deste diário com as seqüências complexas e confusas que integravam essa técnica, “propriedade” da armada(8). Não é esse, obviamente, o propósito que me leva a narrar o que vivemos na Palestina de Jesus de Nazaré. Lembro-me de que foi numa quarta-feira, dia 21, por volta do meio-dia... Este que aqui escreve estava passeando na zona da muralha romana, absorto e concentrado nos planos de nossa próxima missão iminente, a das fronteiras de Israel. *8. A título de orientação, proporcionarei algumas das mais destacadas características da nossa primeira técnica, utilizada na obtenção dos referidos DNA. Para começar, é bom esclarecer que a aplicação de provas científicas na determinação da paternidade biológica se faz em função de polimorfismos genético-bioquímicos, tais como marcadores enzimáticos eritrocitários, proteínas séricas e antígenos, entre outros. Esses sistemas, em particular os marcadores enzimáticos, proteínas séricas e sistema HLA, apresentam a característica de uma herança mendeliana simples. Assim, o filho reúne dois alelos – um herdado do pai, o outro da mãe – que se manifestam com clareza nas análises. Muito bem, tal técnica consistia, fundamentalmente, na replicação do ácido desoxirribonucleico. Esse ácido, como se sabe, é portador da informação genética, contendo quatro tipos de desoxinucleótidos: “A” (desoxiadenilato), “T” (desoxitimidilato), “G” (desoxiguanilato) e
“C” (desoxicitidilato). É a seqüência dessas bases, justamente, o que determina a formação genética. E foi graças aos achados dos cientistas mencionados que Cavalo de Tróia conseguiu a replicação do DNA contido nas amostras e sua posterior identificação. Para isso, Eliseu, em resumo, executou os seguintes processos: Primeiro: Extração química do DNA, partindo das amostras que estavam em nosso poder (sangue, cabelos com raiz e dentes). Os restos foram “digeridos”, isolando assim o DNA. Depois, se procedeu à separação, utilizando-se fenolclorofórmio (com 400 microlitos podem ser obtidos, por exemplo, entre 5 e 40 microgramas de DNA. Acima de um micrograma, o DNA, em forma de o vinho branco, aparece a olho nu no fundo do tubo de ensaio). Segundo: Mediante o uso de “tesouras químicas” (enzimas de restrição), o ovinho foi segmentado em zonas específicas. As restrictasas cortam o DNA em pequenas seções, permitindo um manejo mais fácil das chamadas regiões hipervariáveis e não codificantes do genoma humano. (Tais regiões não são propriamente genes, pois não codificam a síntese de nenhuma proteína e, portanto, não têm expressão genética: Em outras palavras, o estudo dessas regiões hipervariáveis não traz informação sobre a estrutura fenotípica do indívíduo.) Em seguida, mediante um “primeiro cevador” e um ciclador térmico, foram obtidas “cópias” ilimitadas. (Em horas, por exemplo, depois de 30 ciclos, é possível “fabricar” 1 073 741 824 “cópias”. Nas nossas provas utilizou-se uma polimerasa especial, extraída de uma bactéria cujo habitat são as fontes termais (a Thermus aquaticus), que proporciona excelentes resultados a altas temperaturas. Terceiro: Meu irmão “explorou e reconheceu” as regiões que interessavam, auxiliado por uma sonda especial (marcada com fosfata alcalina). Esta é mais recomendável que o fósforo 32, já que rompe os elos, podendo, além disso, ficar registrada em filme. Quarto: O padrão (DNA) foi transferido para nylon, preparando-se depois uma sonda radioativa. Quinto: Depois da união da sonda com as seqüências específicas de DNA, procedeuse, por meio de uma lavagem, à eliminação do excesso de DNA. Sexto: A sonda radioativa foi fixada sobre o padrão (DNA) da membrana, juntando a película de raios X. Por último, depois dessa revelação, Eliseu conseguiu por fim o padrão das bandas, o esperado “perfil genético” do indivíduo. (N. Do m.)
Excitado, Eliseu gritou através do sistema de som: conseguimos!... Aqui estão as provas! Depois dos ensaios com os grupos sangüíneos, eu havia intuído este desenlace. Agora, porém, estava diante da confirmação definitiva. Mostrando os diferentes “perfis genéticos”, meu irmão convidou-me
a compartilhar sua alegria. Eu os examinei com cuidado, ratificando resultados na tela do computador central. Não havia dúvida: a análise conjunta das regiões selecionadas oferecia um padrão de faixas claramente coincidente. “Papai Noel”, frio e objetivo, resumiu tudo assim: “Para cada uma das regiões se obtém uma perfeita compatibilidade entre as amostras do suposto pai e da suposta mãe. Observa-se de um fragmento materno e de outro..., de procedência paterna”. Nota do AuTor: O major, falecido em 1981, não chegou a conhecer o que foi batizado como a “reação em cadeia da polimerasa” (PCR), descoberta anos mais tarde por Kary Mullis. As técnicas descritas em seu diário se ajustam de forma extraordinária aos atuais processos para a obtenção do DNA. Coincidência? Meu Deus! Pura dinamite! Seis regiões hipervariáveis selecionadas, todos os “códigos de DNA resultavam coincidentes. A certeza, assim, era superior a 99,9 por cento. No final de seu relatório, Eliseu escreveu de forma contundente: A perfeita compatibilidade de perfis nos DNA do Mestre, de José e Maria permite concluir que a paternidade e a maternidade foram provadas, embora não tenha sido possível fazer um estudo estatístico diferencial, por razões óbvias. Considerando, contudo, a distribuição das freqüências nos Estados Unidos e em outras populações, a probabilidade de paternidade e maternidade obtida supera os 99,9 por cento.” O que significava tudo isso? Em palavras simples, que o código genético de Jesus aparecia repartido entre os códigos genéticos de seus pais terrenos. O Filho do Homem, portanto, segundo a Ciência, foi concebido com o esperma de José e o óvulo da Senhora(9). Era o que eu dizia, pura dinamite. A mesma coisa aconteceu com a “impressão genética” de Amós. Possibilidade de erro? Mínima, segundo meu irmão.
Para que dois perfis de DNA, pertencentes a indivíduos diferentes, coincidam em seis regiões hipervariáveis, teríamos que pensar numa “supercoincidência”. Dito de outra forma: um para um bilhão, segundo “Papai Noel”. Para nós dois, estava tudo claro. Contudo, cumprindo o programado pelo Cavalo de Tróia, repetimos a experiência. Desta vez, Eliseu lançou mão da segunda técnica, igualmente desconhecida do mundo científico. Executou a prova sobre o pré-molar de José e o molar de seu filho, Amós. *9. Todas as afirmações sobre a paternidade de José em relação a Jesus e sobre a questão da virgindade de Maria são de exclusiva responsabilidade do autor. A Editora Mercuryo não compartilha das mesmas. (N. Da Editora Mercuryo).
Extraídas as polpas, depois de congeladas e esterilizadas com nitrogênio líquido, evitando assim a possibilidade de contaminação, as reduziu a pó, depositando-as numa minicâmara de fluxo laminal. Em seguida, concluída a seleção química do DNA, seu isolamento e corte do ovinho com as enzimas de restrição, “Papai Noel” assumiu o comando, procedendo à “injeção” de um “nemo” em cada uma das regiões escolhidas. (Esta espécie de “microcensor”, de 30 nanômetro por nós batizado de “nemo” e que descreverei depois com mais detalhe funcionava como uma “sonda”, identificando e transmitindo por rádio o padrão de faixas. Quer dizer, o “perfil genético” do indivíduo. A “impressão digital”, uma vez em poder do computador, era ampliada à vontade.) Essa diminuta maravilha da Ciência – possível de programar soment com a participação de “Papai Noel” - economizava muitas fases da primeira técnica de identificação do DNA, exceto as já mencionadas. Definitivamente um sistema mais rápido, limpo e confiável. Segundos depois do ingresso dos “nemos” nas regiões hipervariáveis selecionadas nas amostras, a tela do computador oferecia algumas imagens inquestionáveis. Tranqüilo, Eliseu as repassou duas vezes, emitindo um veredicto:
- Paternidade e maternidade... provadas. Porcentagem de segurança: cem... Missão cumprida. Uma vez demonstrada definitivamente a paternidade biológica de José, a informação toda foi transferida imediatamente para os arquivos de “Papai Noel”. Quanto aos DNA, amostras, etc., cumprindo as ordens, foram hermeticamente fechados num recipiente especial. Nem nós tivemos acesso à chave de abertura. Essa guarda foi confiada ao computador central. O general Curtiss foi muito explícito e taxativo: o recipiente com o DNA de Jesus de Nazaré passaria direta e imediatamente às suas mãos logo depois de chegar à meseta de Massada. Naquele momento, como já mencionei, não estávamos conscientes das verdadeiras intenções dos diretores do projeto com respeito a esse delicadíssimo material genético. Éramos soldados. Cumpríamos uma missão. Não devíamos perguntar. Mas o Destino, felizmente, tinha previsto tudo. A partir daquele instante, ficou tudo estranho, confuso. Saí da nave e, sem dar explicações, caminhei durante horas pelo alto do Ravid. Precisava pensar. Não sei como dizer isso, mas, ao ser demonstrada a paternidade física de José, invadiu-me uma sensação amarga. Era paradoxal. Tratava-se de um triunfo, contudo meu espírito se entristeceu. Talvez estivéssemos cruzando uma fronteira sagrada, não sei. O certo é que, em meio àquele desassossego, um pensamento acabou se instalando no meu coração, confundindo de vez as coisas. Não porque afetasse meus princípios religiosos, totalmente consistentes, mas porque, como cientista, eu caíra do cavalo. Aquilo que acabara de ver – a “impressão digital genética” do Mestre – não combinava com outra não menos inquestionável realidade: a divindade do Mestre. Eu tinha sido testemunha privilegiada. Havia visto, verificado – se me permitem - “tocado” essa divindade. A ressurreição e as
aparições posteriores não deixavam espaço para dúvidas. Contudo, repito, “aquilo” não se encaixava nos meus parcos conhecimentos. Se a concepção e a natureza física do Rabi da Galiléia eram absolutamente humanas, onde colocar esse outro traço inegável que completava a essência de Jesus? Eu devia buscar isso nos genes? As pesquisas tinham sido transparentes. No código genético não havíamos encontrado nada de anormal. Então, esse traço foi adquirido a posteriori? Mas, como? Como conseguiu essa divindade? Naturalmente, fiquei confuso. Não tinha respostas. Mas, teimoso, do alto do ridículo pedestal da Ciência, continuei procurando... e me confundindo mais. Os pais terrenos não desfrutavam desse poder, por isso, não puderam transmiti-lo. Mas ele estava aí, em algum lugar. Lembro-me de que, no final, impotente, tive um branco total. E o Destino, imagino, com pena de mim, jogou-me uma corda. “Talvez a divindade – eu mesmo me disse num dos escassos momentos de lucidez – nada tenha a ver com a genética. Não estarei medindo as coisas com critérios diferentes? Desde quando, querido Jasão, o adimensional (a divindade) é comparável ao puramente material?” Acabei me rendendo. E ao voltar ao módulo e compartilhar estas inquietações com meu irmão, Eliseu respondeu com sua lógica proverbial: - Por que você se atormenta? Quando o vir, pergunte-lhe. Fiquei desarmado. Ele tinha razão. Eu faria isso logo que désse o tão ansiado terceiro “salto” no tempo. Já não podendo se conter, ele deixou no ar outra delicada questão. Uma interrogação que também martelava o meu cérebro desde que decidimos provar a paternidade biológica do empreiteiro de obras. - Se o Mestre foi gerado como qualquer ser humano, por que os evangelhos e os crentes lhe atribuem uma concepção sobrenatural? O assunto, obviamente, nos levou muito longe. Já falei sobre isso em seu devido momento(10), mas em homenagem ao meu irmão já desaparecido e ao que pode ter sido a verdade, voltarei ao assunto
traçando as linhas mestras daquela interessante conversa. Eliseu falava bem sobre isso. Dois evangelistas – Mateus e Lucas garantem que Maria concebeu Jesus “por obra e graça do Espírito Santo”(11). Nós sabíamos que não tinha sido assim, mas, de onde saíra essa informação? Pegamos o primeiro texto e o desmantelamos, analisando-o com frieza: Como Mateus Levi soubera daquela informação? Primeira possibilidade: a própria Senhora tinha lhe comunicado? Sinceramente, duvidei. *10. Ampla informação em Operação Cavalo de Tróia 2, pp. 452 e ss. (N. Do a.) 11. Mateus, no capítulo 1, versículos 18 ao 25, diz textualmente: “A origem de Cristo foi assim: Maria, sua mãe, comprometida em casamento com José, antes que coabitassem, achou-se grávida pelo Espírito Santo. José, seu esposo, sendo justo e não querendo denunciá-la publicamente, resolveu repudiá-la em segredo. Enquanto assim decidia, eis que o Anjo do Senhor manifestou-se a ele em sonho, dizendo: «José, filho de Davi, não temas receber Maria, tua mulher, pois o que nela foi gerado vem do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho e tu o chamarás com o nome de Jesus, pois ele salvará o seu povo dos seus pecados. Tudo isso aconteceu para que se cumprisse o que o Senhor havia dito pelo profeta: Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho e o chamarão com o nome Emmanuel, o que traduzido significa: “Deus está conosco”. José, ao despertar do sonho, agiu conforme o Anjo do Senhor lhe ordenara e recebeu em casa sua mulher. Mas não a conheceu até o dia em que ela deu à luz um filho. E ele o chamou com o nome de Jesus”. (N. Do a.)
Ela, que acreditava firmemente na concepção “não humana” de seu filho. Afirmou isso várias vezes. Nunca entendi esse aspecto, mas, insisto, não acreditei. E duvidei porque, se tivesse contado a Mateus tudo o que ocorreu nos meses que antecederam ao nascimento, a Senhora nunca teria inventado aquilo que o escritor sagrado (?) assegurou. Podia estar equivocada em suas apreciações, mas jamais mentiria. Eu me explico. O evangelista afirma que Maria encontravase grávida “antes de começarem a viver juntos”. Quer dizer, antes de estarem legalmente casados. A Senhora nunca diria isso. Como já informei no momento devido, quando grávida de Jesus, a Senhora já estava casada com José fazia oito meses. Mais claro ainda: tanto o anúncio do anjo como a concepção aconteceram depois das bodas
(estas foram celebradas em março do ano menos oito” e a visita de Gabriel e a gravidez imediata registraram-se em novembro desse mesmo ano). Portanto, o escrito de Mateus está viciado: não foi durante os esponsais ou “noivado” que Maria ficou grávida, mas, sim, muito depois. Se é assim, a afirmação seguinte - “José resolveu repudiá-la em segredo” - também não se sustenta. Imagino a expressão da Senhora se o seu homem tivesse se atrevido a levantar tal despropósito diante dela. Quanto ao célebre sonho do perplexo José, o evangelista não diz toda a verdade. Se a informação procedia da Senhora, o escritor sagrado (?) voltou a manipulá-la. Maria sabia o que acontecera. Sabia que a verdadeira preocupação de seu esposo era outra. O que realmente obcecava o então carpinteiro era mais ou menos a mesma coisa que me tinha deixado confuso: “como uma criança concebida por humanos podia ser divina”. O resto da mensagem proporcionada pelo sonho também não se encaixa nos fatos. A Senhora, insisto, nunca faltou com a verdade. Como entender, então, a categórica afirmação de que seu marido era da casa de Davi? Ela era a única descendente do famoso rei. Pecados? Jesus veio ao mundo para salvar seu povo dos pecados? Isso, fica evidente, não foi coisa da Senhora. Ela soube das palavras do Ressuscitado em todas as aparições. Em nenhuma delas ele se referiu a “salvar seu povo de seus pecados”. Alguém, realmente, teria voltado a “meter a mão...”. Em resumo: na minha humilde opinião, aquilo que Mateus escreveu: não procede da mãe do Mestre. Segunda possibilidade: será que ele teria recebido a informação da família de Jesus, de seus companheiros, os apóstolos, ou de seus seguidores? Ninguém está em condições de saber. Obviamente, tudo é possível. Contudo, se assim foi, detecto algo que não bate com Mateus. O evangelista era galileu. Conhecia as tradições e as leis judaicas. O Que quero dizer é Muito simples: Mateus Levi dificilmente teria afirmado que Maria ficara grávida antes de contrair matrimônio. Se tivesse agido assim, Jesus de Nazaré – como já
expliquei em páginas anteriores(12) – teria sido qualificado como mamer (bastardo). E isso não ocorreu. Se o que está narrado no texto supostamente sagrado fosse certo, a vergonha e a marginalização teriam caído como uma laje sobre a Senhora, sobre sua família e, naturalmente, sobre o Mestre. E seus atos e palavras não teriam tido o menor eco social. Seus inimigos não o teriam perdoado. Não, Mateus não era um irresponsável. Não acho que essas afirmações sobre a virgindade tenham nascido de sua pena. Terceira possibilidade: uma vez mais... alguém meteu a mão no texto primitivo de Mateus. Pouco importa quem e quando. O triste, o lamentável, é que deformou a realidade. Uma realidade, a magnífica maternidade da Senhora, que não precisava de enfeite algum. E, definitivamente, essa parece ser a razão que teria movido o “manipulador ou manipuladores” a modificar os fatos. A história se repetia. O Filho do Homem - sua figura, em suma – devia ser “vendido” com todas as honras. E que diziam as lendas mais antigas e régias? Que deuses, heróis e avatares em geral sempre nasceram de uma virgem. Em Alexandria, por exemplo, muito antes de Jesus de Nazaré, o povo celebrava no dia 6 de janeiro o nascimento do deus Eon, um ser nascido da virgem Kore. Nessa data, depois de uma cerimônia noturna, as pessoas caminhavam em procissão até a gruta na qual havia nascido o deus. Elas o tomavam em seus braços, passeavam com ele e, finalmente, o devolviam à caverna na última vigília: a do canto do galo. Ao deixar o santuário, *12. Ampla informação sobre os manzerim em Operação Cavalo de Tróia 5, pp. 83 e ss. (N. Do a.)
bradavam em uníssono: “A Virgem deu à luz... Aumenta a luz.” A mesma coisa acontecia no reino vizinho da Nabatéia, ao sudeste de Israel. Ali, nos templos de Petra, outra virgem - “Chaabou” - dava à luz o não menos célebre deus Dusares... (Essa festividade pagã serviria aos árabes cristãos para fixar a data do nascimento de Jesus no mencionado dia 6 de janeiro.) Foram esses ou outros mitos que condicionaram a verdade, reduzindo-a ao que os crentes lêem hoje. Pessoalmente, acredito nisso. Basta dar
uma olhada na História para provar que as Igrejas não tiveram o menor pudor em se apropriar de alguns desses mitos. Exemplo: o Natal. Qualquer pesquisador medianamente informado sabe que esse “dia 25 de dezembro” não é o do nascimento de Jesus, mas sim resultado da usurpação de uma velha celebração, igualmente pagã. Desde a mais remota antigüidade, os egípcios festejavam nessa data o que chamavam de “a vitória do sol”. Quer dizer, o lógico prolongamento dos dias. E a igreja católica, por esperteza, provaveLmente por volta do século IV, apropriou-se da festividade – herdada então pelos romanos -, convertendo-a, “por decreto real”, no “Natal(13). O segundo texto evangélico – o de Lucas – também foi minuciosamente investigado. O resultado nos decepcionou(14). *13. Ampla informação em Operação Cavalo de Tróia 2, pp. 465 e ss. (N. Do a.). 14. O capítulo I, versículos 26 ao 38, diz assim: “No sexto mês foi enviado por Deus o anjo Gabriel a uma cidade da Galiléia chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um homem chamado José, da casa de Davi; o nome da virgem era Maria. E entrando lhe disse: «Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo». Ela ficou intrigada com essas palavras e pôs-se a pensar qual seria o significado da saudação. O Anjo, porém, acrescentou: «Não temas, Maria, porque encontraste graça junto a Deus. Eis que conceberás no teu seio e darás à luz um filho, e tu o chamarás com o nome de Jesus. Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo, e o senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai; ele reinará na casa de Jacó para sempre, e o seu reinado não terá fim». Maria respondeu ao anjo: «Como é que vai ser isso, se não conheço varão?». O anjo lhe respondeu: «O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra; por isso o santo que nascerá será chamado Filho de Deus. Também Isabel, tua parente, concebeu um filho na velhice, e este é o sexto mês para aquela, que chamavam de estéril. Para Deus, com efeito, nada é impossível». Disse, então, Maria: «Eis aqui a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo tua palavra». E o Anjo a deixou”. (N. Do a.)
Para começar, o médico de Antioquia não conheceu pessoalmente a Senhora. A informação, como conseqüência, não foi da primeira (Lucas se converteu ao cristianismo e começou a seguir seu mestre, Paulo de Tarso, por volta do ano 47, mais ou menos. Maria, por ocasião da morte de Jesus, tinha cerca de 50 anos de idade. Em 47, portanto, se estivesse viva, estaria beirando os 70 anos. Quer dizer, dificilmente pode ter conhecido Lucas. Todas as notícias indicam que ela faleceu um ou dois anos depois da crucificação, no ano 31 ou
32). Partíamos, assim, de um fato quase certo: o evangelista recebeu os dados de segundas ou terceiras pessoas. Quando começou a escrever, Todos os indícios assinalam uma época: depois da morte de Paulo, no ano 67. Isto nos situava, no mínimo, a quase 40 anos depois do desaparecimento do Mestre. Quarenta anos! Era fácil conhecer a verdade depois de tanto tempo? Obviamente não era uma tarefa simples. E muito menos se, como desconfiávamos, já circulavam as interpretações deturpadas sobre a suposta virgindade da Senhora. Talvez Lucas não tenha deturpado os fatos deliberadamente. Talvez tenha se limitado a escutar e a copiar o que era de domínio público entre os primeiros cristãos. Embora haja também a possibilidade já levantada com relação ao texto de Mateus de que alguém, muito depois, tivesse mudado essa passagem..., “porque convinha que fosse assim”. Seja como for, o certo é que o aludido capítulo é outro acúmulo de erros e falsidades. Nem Nazaré era uma “cidade”, nem Maria uma “virgem”, nem estava “prometida”, nem “José era da casa de Davi”, nem o anjo mencionou jamais que Deus lhe daria o trono desse rei, nem a Senhora pronunciou as palavras que Lucas cita - “Como será isso, posto que não conheço varão” -, nem Gabriel referiu-se à “sombra do Altíssimo”, nem aquele era o sexto mês de gravidez de Isabel, nem Maria, por fim, se proclamou jamais como “a escrava do Senhor...” Embora tenha sido incluído em outro lugar deste diário que escrevo, entendo que é oportuno e benéfico lembrar agora o texto da verdadeira fala do anjo à jovem esposa de José. A diferença em relação ao texto do escritor sagrado (?) é eloqüente... “Venho por ordem daquele que é meu Mestre, a quem deverás amar. A ti, Maria, trago boas notícias, já que te anuncio que a concepção em teu ventre foi ordenada pelo céu... A seu devido tempo serás mãe de um filho. Vais chamá-lo “ehosu’a” (Jesus ou Yaveh salva), que inaugurará o reino dos céus sobre a Terra entre os homens... Fala sobre isso só com José e Isabel, tua parente,
a quem também compareci e que logo dará à luz uma criança cujo nome será João. Isabel prepara o caminho para a mensagem de libertação que teu filho proclamará com força e profunda convicção aos homens. Não duvides da minha palavra, Maria, já que esta casa foi escolhida como morada terrestre dessa criança do Destino... “Tens minha benção. O poder do Altíssimo te sustentará... “O Senhor de toda a Terra estenderá sobre ti sua proteção.” A mensagem é transparente. “Concepção ordenada pelo céu...” Isso não significava que Deus fosse modificar as leis naturais da ereditariedade, fazendo Maria conceber sem a participação de seu esposo. Sempre acreditei que esse Pai magnífico e poderoso tem a faculdade de conseguir que alguém conceba da forma apontada pelos evangelistas. Mas sei também que, acima de tudo, é um Deus sensato e respeitoso para com suas próprias leis. Se o Mestre desejava ser um homem – no sentido total da palavra -, por que começar com uma alteração tão singular? Não é lógico, a não ser que os próprios homens, no seu afã de enaltecer Jesus, tenham mudado a realidade. Como sempre, somos nós quem fazemos Deus à nossa imagem e semelhança. “E inaugurará o reino dos céus sobre a Terra entre os homens.” Quando é que o anjo faz alusão ao trono de Davi ou à casa de Jacó? Não é magnífico que o Filho do Homem viesse para abrir os olhos de toda a Humanidade em vez de tomar posse do “governo” de uma nação? De fato, os primeiros cristãos logo se esqueceram das advertências do Ressuscitado. E, como bons judeus, não deixaram de aproveitar a oportunidade, identificando o Mestre com o Messias prometido. Acho que, outra vez, estou me esquecendo de uma coisa importante. Já mencionei isso de passagem, mas entendo que convém aprofundar o assunto. Disse que a Senhora estava convencida da concepção “não humana” de seu Filho. Muito bem, como isso teria sido possível? Qual teria sido seu raciocínio? Se Maria, quando ficou
grávida, estava legalmente casada, mantendo as naturais relações sexuais com José, por que afirmava que Jesus fora concebido de forma sobrenatural? A chave, na minha opinião, era Isabel, sua prima longínqua. Teria sido simplesmente uma dedução. Se a mãe de João Batista estava incapacitada para ter filhos e, contudo, deu à luz o Anunciador, isso queria dizer que essa gravidez fora coisa do Altíssimo. E se as duas crianças – João e Jesus – tinham praticamente a mesma missão (ass anunciou o anjo), por que a concepção de seu Filho seria diferente? Este raciocínio tinha certa lógica. E a Senhora, repito, o fez seu. Não há dúvida que essa pretensão foi mais forte que as palavras claras de Gabriel: “A concepção em teu ventre foi ordenada pelo céu”. Para Maria, mulher afinal de contas, aquilo era mais sublime – considerando o sagrado destino de Jesus – que a prosaica idéia de uma gravidez puramente humana. Nem será preciso dizer que ficamos desolados. Eliseu e eu deixamos por aí o irritante assunto dos textos evangélicos. Afinal não éramos juízes. Nossa missão era outra: sem falsa modéstia, mais sutil e transcendental. Foi nos dada a oportunidade de seguir o Filho do Homem e narrar tudo o que vimos e ouvimos. Esse era o nosso trabalho. E a ele nos entregamos com paixão. O resto daquela semana foi igualmente tenso. Depois de muitos cálculos, meu irmão e eu fixamos o sábado, 24, como data limite para sair em direção ao sul e iniciar assim a Operação Salomão, que deveria esclarecer as causas do estranho sismo registrado no histórico dia 7 de abril, em Jerusalém. Um movimento sísmico, como sabemos, que se seguiu à morte de Jesus de Nazaré. Além da preocupação natural com uma viagem tão longa e complicada, o que nos deixou inquietos foi principalmente o fato de ter de abandonar o “berço”. Mas não tínhamos escolha. Estávamos plenamente conscientes também de que o módulo ficava nas melhores “mãos”: as de “Papai Noel”. Tudo estava previsto. Nada devia falhar. Mas...
Acho que esse foi um sentimento natural. Aquele era nosso “lar”, o meio para voltar para “casa”, ao nosso verdadeiro “agora”. Estávamos prestes a deixá-lo... Eliseu e eu trocamos alguns olhares significativos. Ninguém disse Os seus pensamentos, contudo, tenho certeza, foram os mesmos: Que aconteceria se não voltássemos? Pior ainda: o que seria daqueles exploradores se, ao subir de novo o Ravid, encontrassem a nave destruída ou inutilizada?” Isso não seria possível, eu me disse mais de uma vez, numa tentativa para me acalmar. Sob o ponto de vista estritamente técnico – se não ocorresse uma catástrofe -, eu tinha razão. As medidas de segurança eram quase perfeitas. Contudo... E a angústia, a partir daquele momento, foi uma companheira inseparável. Mas nem tudo foi negativo naqueles últimos dias. Outra inquietação: a falta de dinheiro – foi hábil e precisamente eliminada pelo genial Eliseu. O espertinho esperou quase até o fim para mostrar o que tinha obtido durante minha permanência na Cidade Santa. Quando sugeri que levássemos conosco a valiosa opala branca, para tentar trocá-la, meu irmão sorriu com malícia e me entregou uma pequena bolsa, rejeitando minha proposta. - Não será necessário... Vamos deixá-la no “berço”. Isto será suficiente... Ao abrir o saquinho, fiquei boquiaberto. - Mas... De novo sorriu, dando-me uma piscada. - Meu Deus! Incrédulo, esvaziei o conteúdo na palma da mão. Examinei outra vez e, temendo o pior, interroguei-o com os olhos. - Não seja desconfiado – ponderou, ficando na defensiva. - Cumpri suas ordens, major. Em nenhum momento, cruzei a linha da macieira de Sodoma... - Então...
E me convidando a passar à popa da nave, esclareceu de vez o enigma. Não tive outro remédio senão lhe dar os parabéns. O “trabalho”, além de oportuno, fora tão impecável quanto criativo. Conhecedor da nossa precária situação econômica, dedicou um tempo para consultar os arquivos de “Papai Noel”. E o computador lhe deu a idéia. De novo examinei as pedras diminutas, transparentes e luminosas e tentei encontrar a falha. Não consegui. Os pequenos diamantes – porque era disso que se tratava – me pareceram perfeitos. Não eram birrefringentes (de refração dupla). Quanto ao índice de refração, deu quase idêntico ao dos verdadeiros. Só o “fogo” - quatro vezes superior – despertava suspeitas. Somei as peças. Vinte. A maioria de alguns milímetros e três ou quatro, de dois centímetros e meio. Incrível! Com efeito, as falsas pedras preciosas podiam nos tirar do aperto. Contente, Eliseu foi mostrar sua “mina” particular. O engenheiro havia colocado em marcha uma reduzida “câmara de deposição”, fazendo crescer várias lâminas de diamante. Para isso, auxiliado pelo computador central, utilizou filamentos de tungstênio, mantendo pressões inferiores à atmosférica(15). Algumas descargas de microondas, gerando hidrogênio atômico, fizeram o resto, propiciando o crescimento das pedras “sintéticas”. O resultado, repito, foi impecável... e salvador. Com um pouco de sorte, aqueles “diamantes” seriam trocados por moedas de uso legal ou por artigos que, necessariamente, seríamos obrigados a utilizar e a consumir no périplo que nos esperava. A operação, também sabíamos disso, não era muito ortodoxa, mas, dadas as circunstâncias, não tínhamos escolha. E, ao romper do dia, aquele sábado, 24 de junho, meu irmão e este que aqui escreve enchemos as sacolas de viagem, despedindo-nos do “porta-aviões”. A sorte estava lançada... Uma nova e fascinante aventura se abria diante de nós.
*15. Além do tungstênio, Eliseu experimentou tochas de oxiacetileno, ricas em combustível. Essas chamas terminam produzindo hidrocarburetos de baixo peso molecular, assim como hidrogênio atômico, condensando-se em diamantes. Junto ao substrato e ao filamento foi colocado um tubo alimentador que abastecia o hidrogênio e o metano, sempre a uma pressão de 0,1 atmosfera. O tungstênio esquentava os gases, rompendo seus laços moleculares e fazendo com que o hidrogênio atômico eliminasse os átomos de carbono, permitindo assim o desenvolvimento dos cristais de diamante. Cada uma dessas preciosas lâminas alcançou uma espessura de 250 micrometros.  (N. do m.) DE 1 A 7 DE SETEMBRO
Eliseu e eu nos olhamos. E instintivamente apertamos o passo. Por que esconder que a dúvida nos consumia? Continuaria tudo igual? Já se haviam passado dois meses. Dois longos e intensos meses. Meu Deus! Tínhamos de acabar com aquela incerteza cruel! Em que estado encontraríamos a nave? Melhor dizendo: nós a encontraríamos? Meu irmão, grande conhecedor da blindagem do “berço” e dos cinturões que o protegiam, pediu calma. E com o sol a pino, divisamos por fim a “zona morta”, na popa do Ravid. Esperamos na beira do caminho. Várias fileiras de cavalgaduras carregadas cruzaram rápidas em direção a Migdal. Era sexta-feira, 1 de setembro, e os burriqueiros queriam descarregar as mercadorias antes da chegada do sábado. Caminho livre... Vencemos o desnível e, em segundos, alcançamos o caminho da macieira de Sodoma. Aqueles foram, provavelmente, os instantes mais duros. A suave ladeira aparecia tranqüila e solitária, como sempre. Mas... Desta vez foi meu irmão quem se apressou. - Vamos! Os “crótalos”!... Era isso, claro. E a visão infravermelha foi uma benção.
Aquele suspiro soou perfeito. Eliseu deixou-se cair no chão e, vencido pela tensão, chorou baixinho. Eu entendi. Eu também teria chorado. Mas fazia muito tempo que minhas lágrimas tinham secado. A nave, na tela em IV, em prata, vermelho e laranja, se apresentou diante de mim como a mais bela das visões. E o fez como um relógio: éramos nós que falhávamos, que tínhamos dúvida... Continuamos avançando e, oitocentos metros à frente, ao irromper no cinturão infravermelho, o fiel e eficaz “Papai Noel” reagiu em cima, alertando-nos por meio da “cabeça de fósforo(1). - Tudo bem!... Foi de primeira! Eliseu, feliz, saiu de perto de mim, correndo como um gamo em direção ao vértice do “porta-aviões”. A bem da verdade, e nós reconhecíamos isso, a longa ausência fora uma espécie de ensaio geral para o terceiro “salto”. Acho que nos serviu, em especial, sob o ponto de vista estritamente psicológico. Aprendemos alguma coisa que acabaria sendo muito útil: nos separarmos do “berço” e não ficarmos obcecados com sua segurança. “Papai Noel” era um “aliado” merecedor de mais respeito e confiança... E durante dois dias – acho que com todo o merecimento – negamonos a iniciar qualquer outra atividade. Foram 48 horas de absoluto descanso. Precisávamos respirar. Era preciso que a mente e o espírito tivessem um mínimo de repouso. A Operação Salomão, com toda *1. Embora ache quejá expliquei isso, vou insistir no assunto. Por causa do dramático incidente na cripta de Nahum, meu irmão fez algumas modificações na conexão auditiva. Uma delas consistiu na reprogramação do computador central, de forma que, na ausência de ambos os exploradores, qualquer intruso que penetrasse na zona de segurança IV pudesse ser detectado por nós, desde que estivéssemos dentro dos limites da referida conexão auditiva (15.000 pés). Para tanto, “Papai Noel” “traduzia” os impulsos provocados pelo target em sinais eletromagnéticos de 0,0001358 segundo cada um, sendo pontualmente remetidos até a “cabeça de fósforo” do explorador. Graças a essa correção, estávamos em condição de averiguar se alguém ou alguma coisa rondava o “berço”. Claro que antes de proceder ao terceiro “salto”, o alcance dessa medida de segurança foi ampliado a quase o dobro: 30.000 pés. (N. do m.)
Honestidade, tinha-nos deixado exaustos(2). Por outro lado, conscientes que havia chegado o grande momento, deixamos espaço para a reflexão. Cada um, de seu lado, procurou preparar-se mentalmente. Estávamos prestes a realizar o velho e ansiado sonho: voltar no tempo a nos reunirmos ao querido e admirado Jesus de Nazaré. Sim, um ideal era a culminância de todas as minhas aspirações na vida. E acho que não erro ao dizer que com Eliseu acontecia a mesma coisa. É difícil explicar. Ter conhecido esse Homem foi o maior acontecimento em nossas vidas. E, logicamente, não iríamos desperdiçar aquela ocasião de ouro. Ainda assim, ao anoitecer do sábado, 2 de setembro, tivemos uma conversa serena. Fui eu quem levantou o assunto, para surpresa e desconcerto do meu irmão. - Ainda temos tempo – eu disse com frieza. - Se você não quer, se não está seguro, cancelamos o projeto. Agora mesmo voltamos para “casa”... Ele não me deixou terminar. Estava preparado e ansioso. Não havia mais nada que falar. Insisti, lembrando-lhe do que ele já sabia. As novas inversões de massa poderiam acelerar o mal que nos afligia. Foi inútil. Aquele Homem era para ele o mais poderoso dos ímãs. - Se eu renunciasse – lamentou -, como você acha que seria o resto de minha vida? Fiquei cheio de satisfação e orgulho. E implacável, ele disse: - Agradeço sua gentileza, major, mas à merda os neurônios! Ele merece tudo isso! Eu não teria me expressado melhor. O Mestre começava a dar sentido à minha pobre e vazia existência. Por que dar prioridade agora à saúde se eu estava diante da verdadeira “fonte da vida”?
*2. Ao longo deste diário não aparece informação alguma sobre a citada Operação Salomão. Só numa das páginas, como veremos mais adiante, o major oferece uma breve e intrigante “pista”. Ignoro, assim, em que consistiu essa aventura “além das fronteiras de Israel”. (N. Do a.)
Apressaríamos o passo. Chegaríamos ao final. Transformar-nos-íamos em sua sombra. Nada ficaria oculto. O mundo e as novas gerações tinham o direito de saber... Na manhã seguinte, eufóricos, dividimos o trabalho. Meu irmão revisou os preparativos para o terceiro “salto” e eu de novo consultei o instrumental científico que nos acompanhou na Operação Salomão, alimentando de resultados e medições a base de dados do computador. Segunda-feira, dia 4, embora o plano tivesse sido estudado até o limite, nos sentamos diante do monitor do computador, checando procedimentos e avaliando as informações disponíveis. A princípio, tudo pareceu em ordem. Melhor dizendo, nem tudo. A grande dúvida continuava sendo a data prevista para o retrocesso no tempo. As notícias dadas por Zebedeu pai pareciam sólidas. Contudo, a confusão dos íntimos em relação ao início da vida de pregação de Jesus de Nazaré nos preocupava. Para uns o início do ministério se deu no batismo no Jordão, outros falavam do célebre e misterioso “milagre” de Caná. Os demais associavam-no à morte de João Batista. Em resumo, um quebra-cabeças. Finalmente, correndo riscos, escolhemos a proposta de Zebedeu. O ancião de Saidan nunca tinha falado do começo da vida pública. Baseado no que foi ditado pelo próprio Rabi, ele estimava que, antes do período de pregação, Jesus dedicara alguns meses a “outras atividades de grande interesse e transcendência”. Aquilo nos deixara intrigados. Nos textos dos evangelistas não há menção alguma a essas “outras atividades”. Isso também não é de estranhar. Em meio ao desastre das narrações evangélicas, podíamos esperar qualquer coisa.
Nós iríamos averiguar tudo. O desafio nos entusiasmou. O que acontecera nesses meses anteriores ao ministério público? Por que Zebedeu os qualificou de “especialmente importantes”? E se assim o foram, por que os escritores sagrados (?) mantiveram silêncio sobre isso? Estava decidido. De comum acordo, Eliseu e eu fixamos a data: “agosto do ano 25”. A propósito, agora que menciono isso, continuo sem saber o que fazer com a valiosa documentação que me deu o velho Zebedeu. Devo Incluí-la neste diário? Enterrá-la de uma vez? Por que hesito? Será que os acontecimentos durante esses anos “secretos” poderiam escandalizar hoje as pessoas de boa vontade? Bem, mas não devo desviar minha atenção. Vou deixar tudo nas mãos dEle”... como sempre. Ano 25! Isso significava um acompanhamento de mais de quatro anos. A missão – assim determinamos – terminaria, inexoravelmente, em Fevereiro ou março do ano 30. Do contrário, estaríamos de novo diante do perigoso fenômeno da “ubiqüidade”. Eliseu, imune ao desalento, achou ótimo prolongarmos a aventura. Este que aqui escreve, mais cauteloso, guardou silêncio. Claro que a idéia me fascinava. Só pensar em viver ao lado do Filho do Homem durante tanto tempo me fez vibrar. Mas a missão devia ser vista também no seu conjunto. Nem tudo se mostrava tão claro e promissor. Embora eu tenha tentado esquecer tudo, na minha memória ressoavam, implacáveis, os fatos inquietantes vividos como conseqüência das sucessivas inversões de massa. Aquela ameaça podia nos arruinar, acabando num instante com o sonho dourado. E no meu cérebro, com uma força inusitada – como se fosse um aviso -, foram desfilando os relatórios de Curtiss, mostrados a estes exploradores pouco antes do segundo “salto”. Neles, como já mencionei, os especialistas da base de Edwards recomendavam a suspensão imediata do projeto. Nas provas com ratos de laboratório detectaram uma grave alteração em algumas colônias neuroniais provocadas, parece, pelo processo de inversão axial dos swivels. Nas
microfotografias aparecia com clareza. “Alguma coisa” superexcitava os neurônios, multiplicando o consumo de oxigênio e os destruindo. (Os pigmentos do envelhecimento - “lipofuscina” - nos neurônios e em outras células fixas pós-mitóticas não deixavam dúvida.) “Vi” também a misteriosa “caixa secreta”, instalada pelo Cavalo de Tróia na nave. Uma caixa aberta por meu irmão que comprovaria o que fora anunciado pelo general: nosso mal era irreversível. Com sorte, tínhamos mais nove ou dez anos de vida. O experimento com as drosófilas (as diminutas moscas do Oregon) fora definitivo: nos décimos de segundo consumidos na inversão axial, o DNA nuclear sofria uma mutação desconhecida. Como resultado, várias redes neuroniais envelheciam progressivamente, e nós com elas. Essa dramática situação podia deteriorar-se muito mais (?) com novos retrocessos no tempo. Havia, por exemplo, o desmaio sofrido por Eliseu em 9 de abril, quando nos dispúnhamos a aterrissar no monte daS Oliveiras. Havia a perda de sentidos que eu tivera, nesse mesmo dia, quando me dirigia ao andar superior da casa dos Marcos, em Jerusalém. Havia, enfim, a “ressaca psíquica” que me assaltou durante os momentos críticos que vivi no subsolo da casa de Ismael, o saduceu, em Nazaré. Não, nem tudo era tão claro e promissor. Entretanto, absorvi as lembranças amargas. Havíamos aceitado o risco. Fizemos isso livre e conscientemente. Pra frente! Além do mais Ele nos protegeria...
Terça-feira, 5 de setembro.
Tensa espera. A meteorologia nos obrigou a adiar o lançamento. Uma inoportuna tempestade, procedente do Mediterrâneo, pairou sobre a região. E nos fez ficar em dúvida. Podíamos nos arriscar e levantar o “berço”. O vento cortante não o teria desestabilizado muito. Mas também não havia pressa. Minto. Ambos queríamos fugir o quanto antes daquele suplício. A tensão era insuportável. A cautela, porém, se impôs. Aguardaríamos. Eliseu não esperou os últimos minutos. Pulou o programa e, com a ajuda de “Papai Noel”, desmanchou os cinturões de segurança que nos protegiam. Todos menos um: a barreira de microlasers que varria a “popa” do Ravid à razão de uma centena de varreduras por segundo. Essa foi a única proteção naquelas horas derradeiras. Quanto a mim, tratei de relaxar, revisando, pela enésima vez, a rota a seguir na tentativa de localizar o Mestre. Consegui mais ou menos, claro... Quarta-feira, 6 de setembro. Pouco antes do crepúsculo, os barômetros do módulo subiram. Foi uma subida lenta, mas progressiva. Isso, contudo, em lugar de nos tranqüilizar, disparou nossa ansiedade. Que eu lembre, em nenhum dos lançamentos tínhamos sofrido um nervosismo tão acentuado. Talvez fosse natural. A iminente inversão – a quarta – era crucial. Crucial? Acho que estou sendo benevolente. Se os neurônios desmoronavam nesse retrocesso, quem sabia o que nos reservava o Destino? E a palavra “morte” rondou de novo Não obstante, contendo firmemente os temores, cada um de nós procurou evitar o assunto da melhor forma que pôde e soube. Passeamos. Investigamos os horizontes. Verificamos a meteorologia. Fizemos projetos. Conversamos e, sobretudo, nos refugiamos em nós mesmos e nessa esplêndida e enigmática “força” que nos assistia. 1.020 milibares. A noite, serena e estrelada, tentou... quis nos apaziguar.
Foi inútil. Não houve maneira de conciliar o sono. A ameaça de tempestade foi embora e, uma vez estabilizado o tempo, o computador central recomendou a decolagem para as 6:00 horas do dia seguinte, quinta-feira, 7 de setembro. O “salto” não devia demorar muito. A partir do meio-dia, o irritado maarabit, o vento do oeste, irromperia pontual no yam. Por isso era bom nos adiantarmos. 1.030 mbar. Respiramos. O tempo definitivamente ficou do nosso lado. Por volta das três da madrugada, duro e reto como uma lança, meu irmão pulou da cama. Sentou-se na frente dos controles e digitou. Ficou assim durante uma hora. Depois, dirigindo-se a mim, mostrou uma folha de papel. Sorriu e pediu que eu a lesse. Ao verificar o conteúdo, respondi com outro sorriso. Aquele jovem brilhante e entusiasta não tinha jeito. Às cinqüenta perguntas já feitas antes – todas destinadas a Jesus de Nazaré -, ele havia acrescentado outras cinqüenta, cada uma mais insólita e comprometedora que a outra. A bem da verdade, nesse instante crítico não prestei maior atenção às inquietações de Eliseu. Mas o piloto falava sério, muito sério. Em questão de dias eu teria a oportunidade de comprovar isso. 5:00 horas. Fiquei em pé. E com um olhar, meu irmão me entendeu. Havia chegado o momento. O amanhecer, previsto para 37 minutos mais tarde, marcaria o começo da contagem regressiva. Respirei fundo e senti que aquela “força” benéfica me empurrava para o posto de pilotagem. “Bem, vamos lá...” E as últimas palavras do Ressuscitado no monte das Oliveiras soaram forte e claro na minha memória: “Meu amor vos protegerá... Até breve! Até breve!... Até breve!...”
Quinta-feira, 7 de setembro. 5:30 horas. A sete minutos do romper do dia. Enfiados nos trajes especialmente desenhados para a inversão de massa, fizemos a revisão de rotina dos parâmetros do vôo. “Papai Noel”, alertado, já havia feito a leitura. Mas nós queríamos ter certeza. - Caudalímetro... - Leio sete mil duzentos e onze... - Câmbio. Entendi sete mil... - OIC... Sete mil... Você continua achando que o computador deve pilotar? - Afirmativo... É melhor assim... A insinuação de Eliseu não me alterou. Meditei friamente. O “berço” decolaria, ficaria estacionário, retrocederia no tempo e voltaria a  aterrissar no automático. Eu não queria correr riscos. A lembrança do incidente no cume do monte das Oliveiras, quando meu companheiro perdera a consciência, não saía da minha cabeça. Com “Papai Noel” no comando, caso se repetisse o desmaio, não sofreríamos o menor percalço. Isso, naturalmente, era o que eu queria; se a técnica iria responder ou não, era outro problema. E o Destino – bendito seja – me iluminou. - Repete combustível... - Câmbio. Leio sete mil duzentos e onze... sem a reserva. Aquele era outro problema de que não podíamos nos descuidar. A nave dispunha de mais ou menos sete toneladas de tetróxido de nitrogênio (oxidante) e uma mistura, de 50 por cento, de hidracina e Dimetil hidracina assimétrica. Embora a manobra prevista fosse breve, o consumo de carburante devia ser controlado de forma rigorosa. O vôo de volta a Massada, com sorte, exigiria quase 6.900 quilos de combustível. Em outras palavras, estávamos no limite. A
menor falha, qualquer ocorrência inesperada, nos colocaria numa situação altamente comprometedora. - “Apeesse”... (sistema de propulsão de subida). - OK... - “Bee mag” (giroscópio de posição). - OK... - “Ces”... (seção de controle eletrônico). - Tudo limpo... - “Dap”... (piloto automático digital). - De primeira... As primeiras luzes do amanhecer reconstituíram os suaves perfis da margem oriental do yam. O tempo parecia excelente: ventos calmos, visibilidade ilimitada, umidade de 70 por cento, temperatura em alta (20 graus naquele momento)... Em resumo: tudo pressagiava uma decolagem sem incidentes. Porém... - “Fait” (”fogo no agulheiro”: subida cancelada). - OK... - “Imu”... (unidade de medição de inércia). - OK... - “Indicadores de velocidade.” - OK... 5:40 horas. - “Erre ce esse”... (controle de reação). - De primeira classe... - Atenção, Eliseu!... “Esnap”... (pilha atômica). - Funcionando... e OK... Meu irmão e eu respiramos aliviados. A SNAP era a “alma” do módulo. Sem ela, nada teria sido possível. Não que tivéssemos dúvida, mas depois de um período tão longo de inatividade...
- Cinco para a ignição... - Câmbio... - Vamos terminar de uma vez... - Tranqüilo... Meu irmão levantou a mão esquerda, pedindo-me calma. Procurei me concentrar. Continuava sendo o chefe e não devia piorar a situação crítica. - Estou sentindo... Dê-me “erre eme ene”... (dispositivos de ressonância magnética nuclear). - Ativados..., e nas mãos do seu “namorado”. Agradeci a piada. E a tensão afrouxou. “Papai Noel”, meu “namorado”, tomou o controle da RMN. No primeiro momento tivemos dúvida. Devíamos incluir esse sistema de controle na quarta inversão axial?(3). No segundo “salto”, como já expliquei em outras páginas deste diário, ele foi decisivo, demonstrando que os especialistas de Edwards tinham razão. Eu pensei e, finalmente, concluí que isso era o certo. Nós nos submeteríamos à revisão da RMN. Embora a doença fosse irreversível, qualquer dado novo poderia ser útil. E, vencendo a rejeição inicial de meu companheiro, ajustamos os escafandros nos quais foram colocados os referidos dispositivos miniaturizados. A RMN, como acho que já comentei, tinha por objetivo “fotografar” os tecidos neuroniais durante a fração de tempo em que os swivels variavam seus hipotéticos eixos. Esses “cortes” lançariam de forma definitiva, mais luz sobre o estado das respectivas massas cerebrais. *3. O fundamento da RMN se baseia na característica peculiar do núcleo de átomos de hidrogênio. Em palavras mais simples: são como ímãs microscópicos, capazes de originar um fenômeno de ressonância magnética. Submetendo os referidos átomos a um campo magnético de alta intensidade ( 1,15 tesla, equivalente a um campo magnético quase 34 mil vezes superior ao do campo magnético terrestre na zona do Ravid), os núcleos de hidrogênio se alinham. Ao serem estimulados mediante ondas de rádio, os núcleos atômicos “giram” sobre si mesmos, perdendo a energia inicial na forma de radiação. Esta pode ser captada e processada com o auxílio de “Papai Noel”, sendo “traduzida” para imagens. Nossos dispositivos RMN, trabalhando num campo de duas teslas, podiam explorar a totalidade das massas cerebrais, interpretando cada órgão e
região em três dimensões e reconstruindo os “cortes” em forma sagital, axial ou oblíqua. (N. Do m.)
6.00 horas. - Ignição!... “Papai Noel”, fria e inapelaveLmente, deu luz verde. - Vamos embora!... Retivemos a respiração. E os corações aceleraram no ritmo do poderoso J 85. Uma vibração familiar sacudiu o módulo. - Ânimo, “Papai Noel”. É todo seu!... Um segundo depois, a turbina de jorro CF-200-2V elevava o “berço” com um empuxo de 1.585 quilos. - Atento!... Dê-me caudalímetro... - Câmbio...Queimando a 5,2... - OK...Um pouco mais!... A decolagem, por causa da escassez de combustível, seria concluída a uma altura máxima de 80 pés. Isso foi o programado pelo computador. Como medida preventiva, cada estacionário foi fixado pelos diretores da Operação a 800 pés sobre o terreno em que deveríamos pousar. Essa margem, em princípio, evitava qualquer possibilidade de choque no instante crítico do retrocesso no tempo. Nessa ocasião, discutimos a anulação da subida da nave. O cume desnudo do Ravid não parecia haver mudado no transcurso dos últimos anos. Dessa forma, fazendo o estacionário só a sete ou dez metros do cume, o gasto teria sido praticamente nulo. Mas, sinceramente, não nos atrevíamos. Era melhor agir com prudência e nos elevar a uma altitude que oferecesse todas as garantias e, é claro, que permitisse um consumo mínimo. - Três segundos e subindo a quatro... - OK... dê-me combustível...
- Continua a 5,2. Leio 16... - Câmbio... Entendi 16 quilos... - Afirmativo... Dezesseis e subindo a quatro por segundo... - Vamos, vamos!... - Preparados os auxiliares... - OK... Tranqüilo, seu “namorado” sabe... - Cinco... seis... - Ativar foguetes... “Papai Noel”, infinitamente mais sereno, ativou os auxiliares estabilizando o módulo a 80 pés. - Leio seis e dois... Bravo! De fato, a nave subiu lenta e docemente, à razão de quatro metros por segundo, queimando de acordo com o previsto: 5,2 quilos por segundo. Tempo invertido até o estacionário: seis segundos e seis décimos. - Caudalímetro... Dê-me caudalímetro... - O previsto. Trinta e quatro... - Câmbio... entendi 34... - OK... Afirmativo. Trinta e quatro vírgula trinta e dois... - Preparados!... - Membrana exterior ativada... - Incandescência!... Já! O computador disparou os circuitos de incandescência que cobriam a fuselagem, destruindo assim qualquer germe vivo que pudesse ter aderido à estrutura. Essa precaução, como detalhei antes, era essencial para evitar a posterior inversão tridimensional dos mencionados germes nos diferentes “agora” aos quais nos “dirigíamos”. As conseqüências de um involuntário “ingresso” de tais organismos em “outro tempo” teriam sido fatais. - Sete... Oito... - OK!... Inversão! Aos nove segundos e dois décimos da decolagem – inclusive antes
do previsto -, “Papai Noel” nos levou, por fim, ao instante decisivo: a inversão axial das partículas subatômicas do módulo todo. E fez retroceder os eixos do tempo dos swivels aos ângulos previamente estabelecidos: os correspondentes às 6 horas da quarta-feira, 15 de agosto do ano 25 de nossa era. E imagino que, como era habitual, a “aniquilação” foi acompanhada do inevitável “estampido”.
15 DE AGOSTO, QUARTA-FEIRA (ANO 25)
 Jasão!... Não enxergo!... Oh, meu Deus!... Não me lembro de mais nada. Nem sequer consegui desviar os olhos em direção ao meu irmão... Alguma coisa tinha sido cravada no meu cérebro. Fora um golpe agudo. Depois chegaram os círculos. A escuridão e uns círculos concêntricos. Uma espiral luminosa que invadiu minha mente. E caí. Caí devagar, em câmara lenta, num abismo negro e interminável... Depois, nada. Silêncio. Mas o Destino teve piedade. Quando acordei, um Eliseu suado e enfraquecido batalhava para me tirar o escafandro. Ele falou alguma coisa, mas não entendi. - Jasão, responde!... Não me deixe sozinho com este monstro!... Ele conseguiu!... Pensei que tínhamos morrido. Aquilo não era real.
Meu Deus!... O que terá acontecido? Onde tínhamos ido parar?... E a nave?... O céu quis que, lentamente, eu fosse me recuperando. Só então comecei a entender. Meus temores se concretizaram. Alguma coisa falhara. Alguma coisa viera abaixo no momento da inversão axial. Mas, e o berço?... Deus!... Estava em terra! Eu me livrei do solícito Eliseu e, de um salto, coloquei-me diante dos controles. - Calma! - disse meu companheiro -. Ele já fez tudo... Estamos a salvo... Se ele não fosse seu “namorado”, eu até me casaria com ele... Precisei de alguns minutos para captar o sentido daquelas refrescantes palavras. Inspecionei o painel de comando. Olhei pelas escotilhas. Voltei de novo ao “Papai Noel”... Afirmativo. O computador, no automático, havia terminado a operação. E de que maneira! Nada ficou ao acaso. O computador, fiel ao plano diretor, fez descer o módulo. Desligou o J 85 e, para o cúmulo da eficiência, soltou todos os sistemas e cinturões de segurança. Eliseu, com um leve e afirmativo movimento de cabeça, confirmou o que tinha à vista. E teve a gentileza de me parabenizar: - Major... nunca mais volto a duvidar... Você é o maior! Sentei em silêncio e fixei os olhos nos dígitos verdes que anunciavam o novo “agora”. Tive de fazer um esforço. Um suor frio e uma leve instabilidade entorpeciam meus pensamentos. “6 horas e 20 minutos..., de 15 de agosto, quarta-feira... Ano 25 de nossa era (778 A.U.C. E 3786 do cômputo judaico)(1). Custei a reagir. Se o retrocesso foi planejado para “aparecer” às seis da manhã, esses 20 minutos a mais representavam o tempo que havíamos permanecido inconscientes. Deus!... Aquilo era realmente grave.
Eliseu, como eu, estava com uma expressão preocupada. Extrema palidez. Contudo, a bem da verdade, eram relativamente boas a coordenação motora, a fluência de pensamentos e o estado geral do organismo. Essa ao menos foi minha impressão. *1. O ano 25 correspondia ao 778 ab Urbe Condita (desde a fundação de Roma). Por seu lado, os judeus – fundamentalmente os ortodoxos – se encontravam em 3786 (consideravam o ano 3761 a.C. Como o momento da suposta criação do mundo e contavam a partir daí). No ano 50 a.C., Júlio César modificaria o antigo calendário romano. Sosígenes, responsável pela mudança, preferiu o cômputo solar, abandonando o lunar e introduzindo os bissextos. Assim se tentou corrigir o grave desajuste provocado pela cronologia lunar, fixando o ano em 365,25 dias. (O equinócio da primavera, por exemplo, com o cômputo lunar, chegou a cair em maio, quando, na verdade, devia ser celebrado em março.) Esse calendário “juliano” esteve em vigor até 1582, data em que foi reformado pelo papa Gregório XIII. (N. Do m.) Mas vamos por partes. Haveria tempo para tentar averiguar o que acontecera na inversão de massa. Estávamos vivos. Isso era o que importava, e não era pouco. Agora, a prioridade era o “berço” e nossa situação no “novo tempo”. Revisamos todos os parâmetros. “Papai Noel” nos deu um panorama prometedor: “Tempo de inversão: 16 segundos e 6 décimos. Consumo total de combustível: 86,32 quilos.” Perfeito. Inferior ao programado. O computador havia “pilotado” com uma habilidade de primeira... Isso nos permitia uma bela respirada. As reservas de oxidante e carburante somavam 7.124,68 quilos. Suficientes para o vôo de volta, desde que a nave ficasse definitivamente imobilizada. E foi isso que decidimos. Por nada deste mundo tocaríamos naquelas sete toneladas. “Deterioração: nenhuma. Eliseu resmungou alguma coisa. Eu lhe dei razão. “papai Noel” tinha se esquecido destes dois exploradores maltrapilhos. Quanto à segurança, nenhuma objeção. O primeiro cinturão – o gravitacional – foi estabelecido pelo quase “humano” computador a
205 metros do “berço”. Os hologramas, com as imagens das terríveis ratazanas-topo, entre 1.000 e 1.500 metros do vértice em que nos havia pousado de forma magistral. A radiação IV (infravermelha) a 1.500 e, por último, o “olho do ciclope” foi disparado até a altura da macieira de Sodoma, na “popa” do Ravid. A única coisa da qual não cuidou foi a desconexão da pilha atômica, a SNAP. Mas isso não foi culpa sua. Fui eu quem, por prudência, não a inclui no sistema automático. Meu irmão desligou a pilha e a energia elétrica passou a sair das baterias solares. Apesar dos pesares, respiramos. E nos sentimos mais ou menos otimistas. Aquele retrocesso de 1.848 dias poderia ter sido pior. Pouco depois, por volta das 8:00 horas, já bem descansados, empreendemos a última fase da revisão obrigatória, com a observação direta, e sobre o terreno, da parte de cima do “portaaviões”. A primeira coisa que nos chamou a atenção foi a mudança térmica. O cume era quase um forno. Os sensores do “berço” marcavam 30 graus Celsius. Um anticiclone, montado em 1.035 milibares, era dono e senhor do yam. Logo nos acostumaríamos. Agosto, naquelas latitudes, era tórrido e sufocante. Mal sentimos as mudanças. A planície continuava solitária, visitada só por aquele sol estival, cada vez mais alto e impiedoso. A vegetação escassa, em particular os heróicos cardos – as Gundelim de Tournefort -, quase havia sucumbido. Agora se via ressecada e cinzenta entre os azuis das agulhas calcárias e o negro brilhante e resignado das pedras basálticas. Descemos até a “popa” e comprovamos, com alegria, que a macieira de Sodoma – o Calatropis procera cinco anos mais “jovem” continuava mantendo uma notável envergadura, luzindo milhares de flores prateadas e aquele fruto maldito para os judeus. O resto do caminho, através de precipícios escarpados, foi igualmente satisfatório.
Embaixo, em direção ao oeste, junto ao caminho que unia Migdal a Maghar, vimos a familiar plantação verde e tranqüila dos felah. E ao fundo, o yam, o mar de Tiberíades, azul metálico, pacífico, com gaivotas pairando sobre ele. Mais ao norte, ao longe, um gigante com o rosto nevado: o Hermon. Ficamos em silêncio. E ao contemplar o maciço montanhoso, acho que pensamos a mesma coisa. Ali, em alguma parte, achava-se o saudoso Rabi da Galiléia... “Nós o encontraríamos.” Lançamos um último olhar para os povoados à beira do lago e, impacientes, voltamos ao nosso “lar”. Tudo na “base-mãe-três”, em resumo, estava sob controle. Tudo. O que mais queríamos? A verdade é que Eliseu se irritou. Não lhe faltava razão. Mas me mantive firme. Devíamos ser audaciosos, sim, mas também sensatos e precavidos. Esquecer o ocorrido na recente inversão axial não nos ajudava. Tínhamos de conhecer o verdadeiro alcance do problema. Nova queda dos neurônios – como eu imaginava – era grave, o sonho perigava. Em qualquer momento, a operação em busca de Jesus de Nazaré podia ser interrompida abruptamente. Não, nem tudo estava sob controle. Todo resto daquela quarta-feira, apesar do lógico mau humor do meu companheiro, foi dedicado à análise exaustiva dos dispositivos alojados nos escafandros: a RMN (ressonância magnética nuclear). As microfotografias, ampliadas pelo computador, confirmaram as suspeitas: “alguma coisa” desconhecida havia alterado regiões do cérebro muito precisas. Concretamente, várias áreas neuroniais do hipocampo. Nas imagens dos espaços extracelulares detectamos microscópicos depósitos esféricos – não muitos, felizmente -, que associei com acréscimos da proteína amilóide beta. Esse polipeptídeo aparecia também em vasos sangüíneos do córtex cerebral.
“Papai Noel”, sempre com base na teoria, interpretou o dano como conseqüência do crescimento desmedido da enzima responsável pela síntese do ócido nítrico (o óxido nítrico sintasa). Esse radical livre, muito tóxico, estava conquistando os grandes neurônios, aniquilandoos(2). As células glia, por outro lado, que servem de apoio metabólico às anteriores, estavam intactas. A alarmante situação, unida à clara deterioração do DNA mitocondrial, me deprimiu muito. Só uma coisa, contudo, não consegui acertar naqueles momentos: onde estava a raiz primitiva da alteração dupla. Devia considerar o no (óxido nitroso) responsável pela queda do fornecimento energético do DNA mitocondrial? Ou era a inversão de massa que provocava uma mutação no DNA, causando o descontrole do óxido nítrico sintasa? (Como se sabe, os radicais livres aparecem também como conseqüência de radiações ionizantes muito específicas, oxidando as moléculas – quer dizer, multiplicando os átomos de oxigênio – e alterando seu comportamento. *2. Os neurônios especializados na secreção de acetilcolina apresentavam os axonos e corpos celulares muito deteriorados, projetando-se desde a parte basal do prosencéfalo até o hipocampo. A acelticolina, como se sabe, constitui um dos neurotransmissores utilizados pelos neurônios para se intercomunicar. (N. Do m.)
Que tipo de “radiação” se registrava nesse instante infinitesimal da inversão axial dos eixos dos swivels?) Com os meios ao nosso alcance, obviamente, nem o computador nem este que escreve estávamos em condições de esclarecer tais incógnitas. A única coisa clara – a RMN era inapelável – é que o excesso de soNO começava a “devorar” alguns setores dos grandes neurônios. Isso, não há dúvida, poderia desembocar numa catástrofe generalizada, já insinuada nos sucessivos desmaios. Essa catástrofe, se meu diagnóstico era correto, iria se manifestando por meio de sintomas de envelhecimento prematuro, possível perda de memória(3), confusão espaço-tempoRal, Rejeição da Realidade e, finalmente, a moRte. Bonito panoRama... Mas devo ser honesto. Nem tudo foi cruel e pessimista. PaRa minha surpresa, os “cortes” da ressonância magnética não indicaRam nenhum vestígio de uma coisa que havíamos obseRvado antes do
segundo “salto”. Repassei tudo exaustivamente. E “Papai Noel” o confirmou de novo: os pigmentos do envelhecimento (lipufuscina) que vimos nas microfotogRafias pRocedentes da base de Edwards instalados nos neuRônios e outras células pós-mitóticas... tinham desaparecido! Explicação? Racionalmente, nenhuma. Aquelas redes neuRoniais simplesmente tinham RecupeRado o bRilho. A única coisa que pude deduzir foi que, por razões desconhecidas, a própria inversão axial sufocara o mal, dando-nos de presente, isso sim, outro ainda pior. Um raio de espeRança? Foi assim que inteRpretei tudo, como um náufrago se agaRrando a uma tábua de salvação. Talvez nem tudo estivesse peRdido. Havia ainda a possibilidade de que no quinto e, supostamente, último “salto” no) tempo,se desse o milagre. Limparíamos então os cérebros? Seríamos indultados? *3. O estresse oxidativo, com a conseqüente liberação de radicais livres, pode estar estimulado pela reação do NO cnm o ânion superóxido, erando petrnxinitritn, nm agente nitrante de proteína implacável. Esse óxido nitroso podia, de fato, afetar as engrenagens da memória, muito especialmente o sistema límbico, responsável pela memória, bem como pelas emuções e pelo aprendizado em geral. Se consideramos que os neurônios não se reproduzem depois do nascimento e que, a partir da segunda metade da vida, ao redor de uns 5 por cento dos neurônius situados no hipocampo se perdem de forma definitiva a cada dez anos, o quadro desses exploradores era extremamente delicado. (N. Do m.)
Ingênuo, acariciei essa remota idéia. O Destino, contudo, se encarregaria de colocar as coisas no devido lugar. E esse “lugar” era o já indicado por “Papai Noel” quando meu irmão, violando as normas, abriu a caixa secreta de aço das Drosophilas: a expectativa de vida para nós não passava de nove ou dez anos. Prudente, guardei silêncio sobre os primeiros e dramáticos “achados” da RMN, transmitindo a Eliseu só o tímido e hipotético raio de esperança. Ele me olhou incrédulo, respondendo com um meio sorriso. Imagino que tenha agradecido meu gesto, embora, a essa altura, a deterioração neuronial também não lhe tirasse o sono. O
valente rapaz dava isso como consumado. Sua verdadeira preocupação era outra: partir o quanto antes em direção a Hermon. Finalmente, ajudado pelo computador, procurei soluções, numa tentativa vã de brecar ou amenizar o avanço da destruição cerebral. Meu Deus!... De onde tirar remédios tão específicos? A “farmácia” do “berço”, se eu me lembrava bem, não havia sido provida desses medicamentos tão especiais. O glutamato, de fato, administrado com prudência(4), constituía um excelente redutor, capaz de curar, a médio ou longo prazo, os tecidos infectados pelo óxido nitroso. 4. Este aminoácido, como neurotransmissor, favorece o intercâmbio sináptico entre os neurônios (em especial sobre o N-metil-Daspanato), conseguindo a abertura dos canais iônicos, que, por sua vez, promovem a migração dos íons de cálcio até o interior dos neurônios. Com isso, obtém-se um benéfico impulso ativador. Contudo, a administração do glutalnato exige cautela. Uma dose excessiva pode provocar efeito contrário ao desejado: a “chuva” do neurotransmissor, ao abrir os canais, “encharca” os neurônios, “asfixiando-os”. Muitos dos acidentes vasculares cerebrais ratificam isso. Em resumo: se não se acerta a dose justa, o nefasto óxido nitroso sintasa acaba por triplicar, aguçando o problema. (N. Do m.) Quanto ao segundo composto – o ter-butil -, se o tivéssemos à mão, teria sido de grande ajuda como antioxidante, colaborando na limpeza dos radicais livres e precipitando os níveis das proteínas oxidadas. (”Papai Noel” advertiu também que os índices de superoxidodismutasa e catalasa, enzimas responsáveis pela desativação do NO, estavam muito baixos.) O que fazer? Que caminho seguir? Como combater esse fantasma naquele “agora” e com meios tão precários? Eu me resignei, é claro. E fiz a única coisa que podia fazer: aumentar a ingestão de vitamina E(5). Para tanto convinha selecionar muito bem a dieta, incluindo principalmente um máximo de ovos, leite, óleos vegetais, legumes verdes, manteiga, germe de trigo, nozes, amêndoas e alguns peixes muito especiais (enguias,
sardinhas e, se possível, extrato de  fígado de bacalhau, este último, obviamente, de difícil obtenção naquele  tempo). Contava também com o auxílio da vitamina C e do betacaroteno, como “caçadores” de radicais livres(6). Era esse, enfim, o sombrio horizonte que tinha à minha frente. Mas estava me esquecendo de uma coisa... A verdade é que, deprimido, eu não lhe tinha dado a devida atenção. Na ocasião a solução de “Papai Noel”, além disso, me parecera tão complexa quanto arriscada. Simplesmente mencionou os nemo. Conhecedor da eficácia desses microssensores, sugeriu a possibilidade  de injetá-los nos tecidos neuroniais. E traçou até mesmo um minucioso plano, destinado ao ataque ao No e à posteriori regeneração dos grandes neuronios. Os “nemo” estavam capacitados, sem dúvida, para um trabalho indicado pelo providencial e “imaginativo” computador central. Contudo – incompetência minha -, a ideia sem dúvida descartada naquele momento. E eu as esqueci. *5. Esta vitamina é um bom oxidante. Graças aos tocoferóis – sobretudo ao alfatocoferol, ajuda a conservar as membranas, permitindo a formação de complexos com fosfolipídeos poliinsaturados. Parte do nosso problema – como a aparição de dermatite descamadora – se achava potencializada pela referida oxidação grave dos tecidos, que diminuía os valores plasmáticos da referida vitamina E. Essa queda, por sua vez, repercutia na atividade da desidratasa de ácido aminolevulinico, vital para a síntese do hem. (N. Do m.) 6. O fornecimento de vitamina C estava garantido por meio das frutas e hortaliças e fígado de vaca ou vitela. As batatas, logicamente, eram inviáveis, já que no século I não eram conhecidas no Velho Mundo. Com respeito ao betacaroteno – da classe dos pigmentos carotenóides -, podíamos ingeri-lo por meio de algumas hortaliças, especialmente a cenoura. (N. Do m.)
Mas as surpresas não terminavam aí. Aconteceu nessa mesma tarde da Quarta-Feira, dia 15, quando, quase por inércia (?), “alguma coisa” me impulsionou a repassar o conteúdo da “farmácia” de bordo. Foi curioso, muito curioso... Eu conhecia esse inventário. Quase o lembrava de cor.
Contudo... A princípio, fiquei desconcertado. Estaria sonhando? Não era possível. Revisei os rótulos e olhei dentro. Não, não estava sonhando. Aquilo era real. Mas, como? E um raio de esperança iluminou o túnel negro. Deus do céu! Agora, sim, eu acreditava em milagres. Mas como haviam chegado até ao “berço”? Quem os colocara ali? Porque não fomos informados? Porque não figuravam no banco de dados do computador? Aos poucos, reflectindo, passei de uma alegria natural a uma dúvida mortificante e, pior ainda, a uma crescente indignação. Na câmara frigorífica localizada na “popa” se alinhavam, de facto, três medicamentos tão inesperados quanto salvadores: Glutamato, N-ter-butil-alfa-fenilnitrona e dimetilglicina. Todos eles, como foi dito, com especial poder oxidante. Eu acariciei esses remédios e, perplexo, tentei me lembrar. Foi inútil. O general Curtiss jamais comentara sobre isso. Ninguém nos dera antecedentes. Então... Filhos da...! E uma suspeita feroz me devorou. Aqueles medicamentos tão específicos haviam sido introduzidos no módulo de forma sub-reptícia. Eles tinham deduzido que, cedo ou tarde, nós descobriríamos tudo. Mas por que não nos avisaram? A resposta apareceu clara e instantânea: Curtiss e sua gente sabiam mais do que nos tinham contado... A partir dessa conclusão, tudo se encaixou.
Uma comédia! Tudo tinha sido uma comédia. Os responsáveis pelo Cavalo de Tróia conheciam o verdadeiro alcance do mal de que sofríamos. Souberam de sua existência muito antes do início da operação. E, apesar disso, foram em frente, nos sacrificando. Sim, um puro e triste teatro. As dramáticas palavras de Curtiss em Massada, ao mostrar os relatórios de Edwards, haviam sido só isso – teatro. Ele tinha indicado parte do mal, mas, sabendo do nosso interesse por aquela aventura, jogou com a confiança e a boa vontade de Eliseu e deste que aqui escreve. Muito esperto... Pobres e incautos exploradores! Informar-nos? Se tivessem feito isso, nenhum piloto em seu perfeito juízo teria se oferecido para esse suicídio. Não num primeiro momento, quando ainda ignorávamos quem era na realidade Jesus de Nazaré. Mas, à medida que fui refletindo, a indignação cresceu e cresceu. Fui juntando as pontas e compreendi que a misteriosa atitude daqueles militares era mais vil e desprezível do que eu imaginava. Ao voltar para “casa”, meu irmão e eu acabaríamos confirmando isso(7). Não erramos nem por um milímetro. Por que os antioxidantes só entraram no “berço” no segundo “salto”? Por que não no primeiro? Muito simples: não chegaram a tempo. Curtiss e os diretores do projeto decidiram fornecer os medicamentos na primeira aventura. Mas, não podendo contar com eles, decidiram arriscar. Melhor dizendo, arriscar nossas vidas. E a segunda experiência sem querer tornou-se um magnífico “banco de provas”. Foi então que depositaram os medicamentos na “farmácia” e não por caridade, mas sim como parte do experimento sujo. *7. Se os dois primeiros medicamentos eram difíceis de obter, o terceiro – a dimetilglicina – era ainda mais difícil. Eliseu e eu, depois de discretas averiguações, soubemos que o Cavalo de Tróia encomendara esses medicamentos no verão de 72. Quer dizer, seis meses antes do primeiro lançamento. Isso confirmava nossas suspeitas. A N,N Dimetilglicina pura foi comprada nos prestigiosos laboratórios Da Vince,
que, posteriormente, a venderia como Glucônico DMG. (N. Do m.)
Misteriosos? Não, o qualificativo não era bem esse... Mas havia mais. Alguma coisa que continuou perturbando meu coração, fazendo-me desconfiar da “bondade” daquele projeto bastamente esplêndido. É que, no fundo, haviam cometido um erro. Eu deduzi isso ao contabilizar os frascos que continham os referidos oxidantes. Somei dez para cada um dos específicos. Para que tantos? Um outro medicamento contava com estoques tão exagerados. A etilglicina, por exemplo, constituía um total de 900 comprimidos! Considerando que a dose ótima era de 125 miligramas (ou seja, um comprimido) diárias por pessoa, essas 900 unidades permitiam fazer o tratamento durante 450 dias! Que coisa estranha! Oficialmente, o segundo “salto” não deveria ir além dos 40 ou 45 anos no novo “agora” histórico. Esquisito, de fato muito esquisito.  A intuição me abriu os olhos. Naquele momento era impossível comprovar, mas meu instinto se manifestou claro e forte: Curtiss desconfiav a ou sabia que nós desobedeceríamos às ordens, lançando-nos numa terceira exploração. Ele não tinha certeza disso, mas a intuição jamais se equivoca. Deus! E ele não se equivocou! Devo, porém, conter meus impulsos. Tudo no seu devido momento. Uma vez mais, fiquei em dúvida. Devia informar Eliseu sobre esses “achados” e deduções? Finalmente decidi pelo silêncio. Para que sobrecarregá-lo com mais um suplício? A carga que tínhamos já era suficiente. “Sim” - disse para mim mesmo em forma de consolo -, “faço isso depois. Talvez na véspera do definitivo retorno ao nosso verdadeiro “lar”. Tentei guardar comigo o lado positivo. Os medicamentos que acabava de descobrir eram um bom presságio. Proporcionariam um alívio, injetando em nós novas forças.
Pobre ingênuo! Nessa mesma noite iniciamos o tratamento. Eliseu, confiante, não fez perguntas. Meu comentário sucinto, suponho, esclareceu a situação: - Veio da parte da Providência...
16 DE AGOSTO, QUINTA-FEIRA (ANO 25) Coincidência? Eu me nego a admitir isso.  Na verdade, era como se o Destino tivesse pressa. Como se desejasse mostrar todas as cartas. Especialmente as “marcadas”. Como se quisesse desvendar a outra “cara” do Cavalo de Tróia. Como se pretendesse fazer isso antes do arranque da nova missão. E acho que conseguiu! Acaso? Aparentemente, sim, mas hoje sei que a palavra é uma miragem, uma péssima justificativa da Ciência para aquilo que não controla. Desta vez foi Eliseu o “descobridor”. E o desagradável “achado” jogou lenha na já atiçada fogueira da desconfiança. O “incidente” surgiu por causa de uma manobra de rotina. Depois de pensar sobre isso, prevendo uma possível emergência, o engenheiro em informática me pôs a par de uma coisa importante. Alguma coisa que, honestamente, nós passamos por cima e que poderia ter nos causado um desgosto na “recente” (?) Operação Salomão (por sorte, esses meses estivais foram secos e muito tórridos).
Como já expliquei, a visão infravermelha do “berço” e dos cinturões de proteção na tela do computador dependia vitalmente da SNAP, a pilha atômica. Muito bem, ao desligá-la, fazendo com que o fornecimento elétrico passasse a ser feito com os espelhos solares, meu irmão levantou uma séria dúvida lógica: que aconteceria se, em nossas prolongadas ausências, o tempo mudasse? A resposta era simples e grave: o sistema viria abaixo, deixando-nos sem proteção. Se o céu ficasse nublado, diminuindo a radiação solar, os acumuladores agüentariam, quando muito, cinco ou seis dias. Era preciso encontrar, portanto, uma solução alternativa que nos permitisse abandonar o Ravid sem medo. ; Eliseu estimou que o mais prudente seria deixar o assunto nas mãos de “Papai Noel”. Era só transferir uma ordem para que, em caso de emergência – variação meteorológica ou qualquer outra contingência -, o computador ativasse automaticamente o SNAP, sustentando assim a infraestrutura de segurança. Considerando que a pilha atômica tinha uma vida útil superior a um ano, o perigo ficava eliminado. Aprovei a idéia e, embora nossas ausências não devessem passar nunca de quatro semanas, fomos em frente. Foi no desenvolvimento dessa simples operação que meu irmão ficou sobressaltado: “descobriu” alguma coisa com a qual não contávamos. Seguindo o procedimento, digitou no computador central e puxou a lista correspondente: “CD-GMS” (”código de acesso aos sistemas gerais de manutenção”). Repito, coisa de rotina. Ao introduzir a ordem, “Papai Noel” a fazia sua, arquivando-a no sistema diretor. Meu companheiro, contudo, cometeu um pequeno erro, quase insignificante. Ao digitar a mencionada senha - “CD-GMS” -, os dedos erraram de tecla. Em lugar de digitar o “S”, deslizaram uns milímetros à esquerda, alcançando o “A”. Coincidência Duvido... A questão é que a senha digitada não foi a mesma. Eliseu, de forma involuntária, exigiu de “Papai Noel” uma ordem de entrada em outra lista: a “CD-GM1” (”acesso ao material genético”). Aí veio a surpresa. Uma desagradável surpresa.
Lembro-me de ter escutado um palavrão. Depois de um breve silêncio, meu irmão, alterado, pediu explicações (?) à máquina. - Mas é uma filha da...! Eu me aproximei intrigado. - Não posso acreditar, Jasão... O seu “namorado” enlouqueceu... Na tela, de fato, brilhava em vermelho uma frase que me deixou atônito. - O que foi? Eliseu explicou o pequeno deslize. “Tente de novo...” ele tentou, pedindo a lista que continha os relatórios sobre o material genético, devagar, sem pressa. Filha da...! “Papai Noel”, impassível, ofereceu a mesma instrução desconcertante. Olhamo-nos confusos. Não havia dúvida. Eliseu repetiu a senha as quatro vezes. E, impotente, cedeu-me seu lugar na frente do rebelde computador central. Eu também não tive sorte. - Como é possível? Meu irmão, tão perplexo como eu, encolheu os ombros. E sentenciou: - Ou ele ficou louco ou “alguém”... Louco? Não, a máquina era quase perfeita. E a resposta de “Papai Noel” nos deixou de novo à beira da explosão: “O usuário não tem prioridade para executar esta ordem.” Incrível. Tanto Eliseu como eu estávamos logicamente capacitados para executar essa e todas as outras ordens, abrindo as listas que nos parecessem oportunas. Assim fizemos, por exemplo, ao introduzir os resultados das análises feitas sobre as amostras da Senhora, de José, de Amós e de Jesus de Nazaré. Por que agora essa estupidez? Acesso negado? Era culpa nossa? Tivemos de nos render. Os esforços do engenheiro fracassaram. “Papai Noel”, de repente transformado em inimigo, ficou inacessível.
“Acesso negado.” Discutimos. Tentamos decifrar o problema. A conclusão, lamentavelmente, foi sempre a mesma: “alguém” de fato, uma vez transferido o pacote informativo sobre os DNA, programara o computador, bloqueando-o. “Allguém”? Meu irmão concordou comigo. Esse “alguém” era Curtiss... Mas por quê? A que se devia aquela desconfiança? Eliseu sorriu com benevolência. - Você não entende?... São da Inteligência... Eu o repreendi pela insinuação venenosa, embora, no fundo, tivesse boas razões para pensar a mesma coisa. Finalmente ele se desculpou: - Existem militares e militares, querido major... Você e eu pertencemos aos de boa vontade, como muitos companheiros, que tratam de servir a nação da melhor maneira possível. Aceitei a ponderação, voltando ao tema principal. O que continham afinal essas investigações para que “alguém” as tivesse trancado? - Está muito claro – continuou o engenheiro com certo cansaço. - Os DNA são muito mais do que um experimento científico. Só Deus sabe o que planejam fazer com eles! Por isso foram classificados... Achei que ele podia ter razão. E pouco faltou para que eu lhe confessasse tudo que havia descoberto sobre os medicamentos. Mas a indignação do soldado leal era tão grande que eu me contive. Não havia dúvida, éramos apenas marionetes a serviço de “alguma coisa” que me fez estremecer da cabeça aos pés. Pobres exploradores esforçados e incautos! Quando aprenderíamos? Anotamos isso direitinho. Eliseu, ferido no seu íntimo, jurou que “aquilo” não ficaria assim. Encontraria a porta “traseira” ou a chave de acesso para abrir de novo a lista dos DNA. Acreditava conhecer a psicologia do administrador do sistema e batalharia para encontrar a “chave”. Eu
não duvidava de sua capacidade, mas, honestamente, achava a coisa quase impossível. Estava claro que enfrentávamos uma mente particularmente agressiva e diabólica. O tempo me daria razão... Quanto a mim, por causa do “acidente”, também tomei algumas “decisões”. Para começar, nos aproveitaríamos da Operação em todos os sentidos. Um, em especial, teria a máxima prioridade: a informação obtida naquele terceiro “salto” extra-oficial seria de nossa absoluta propriedade. Ninguém nos tiraria a valiosa documentação. Uma “idéia” audaciosa e perigosa foi nascendo na minha cabeça. Eu não permitiria. Não permitiria que essas forças tenebrosas que nos utilizavam se apoderassem do valioso “carregamento” depositado no módulo. Os DNA não cairiam em suas mãos. E também jurei. E o fiz pelo mais sagrado que conhecia: o Filho do Homem. Fui militar, e tenho orgulho disso, mas entendo que para tudo há um limite. Meu irmão não ficou sabendo dessas minhas “drásticas” decisões. Não achei oportuno que soubesse. Considerando o aspecto arriscado da “idéia” e as imprevisíveis “conseqüências” que poderiam derivar de uma “ação” desse tipo, preferi mantê-lo à margem. Ninguém poderia culpá-lo de nada. Eu seria o único responsável. Assim terminou aquele dia estranho e difícil. Um dia no qual o Destino se empenhou em nos mostrar a outra “cara” da Operação Cavalo de Tróia. Claro que agradeci. Era mais útil e lucrativo saber a que nos atermos... antes de empreender a nova e fascinante aventura. Era vital que conhecêssemos de antemão o que nos aguardava na volta ao nosso verdadeiro “agora”. E me coloquei nas mãos da Providência. Ela “sabe”...
17 DE AGOSTO, SEXTA-FEIRA Não sei por que mas, ao subir ao “porta-aviões”, eu me senti otimista. Céu azul. Ventos calmos... Um dia magnífico, sim. Os recentes e tristes “achados” pareciam quase esquecidos. Agora contava a iminente viagem ao maciço montanhoso do Hermon. Imaginei o Mestre em algum belo canto daquele colosso nevado... O que estaria fazendo? Por que tomara a decisão de se refugiar num lugar tão distante? E sobretudo, quais eram seus pensamentos? Já teria concebido a idéia de começar sua pregação? De repente, contudo, o Destino me arrancou dessas reflexões. E continuou tecendo e desmanchando tudo. Subitamente, ao reparar nas minhas mãos, o otimismo se evaporou. Como não tinha percebido? Quando me deitei, não estavam ali. Devem ter aparecido durante a noite passada. Os velhos temores, os fantasmas conhecidos invadiram o coração deste cansado explorador. Meu Deus! Eu me examinei com cuidado, chegando a um único diagnóstico piedoso: a degradação neuronial avançava com maior rapidez do que havíamos calculado inicialmente. Acordei meu irmão e, sem dizer uma única palavra, repeti o exame. Afirmativo! Como eu, Eliseu reagiu assombrado. Esfregou as mãos com força e, vacilando perguntou: - É grave? Eu não soube responder. Melhor dizendo: não quis. Claro que era grave. Do meu ponto de vista de médico, “aquilo” era no mínimo um sintoma inquietante. Acabei mostrando-lhe as mãos e acho que ele entendeu. - E agora? Balancei a cabeça de forma negativa e, imagino, isso respondeulhe tudo. Da noite para o dia, de fato, como um aviso, os dorsos das mãos apareceram abundantemente salpicados. Não havia dúvida. As manchas senis, de um inconfundível vermelho escuro e formas circulares típicas, estavam nos invadindo. O envelhecimento, estimulado pela agressão dos radicais livres, seguia seu curso. Comecei a tremer.
Se as manchas se apresentaram em 48 horas, de quanto tempo o resto da patologia precisaria para surgir? A recuperação depois dos desmaios, certamente, fora boa. Quase ótima. Contudo, ali estava a verdade. O mal galopava de forma inexorável. Lutei comigo mesmo para me acalmar. Agora, mais do que nunca, devia ser frio e coerente. A primeira coisa era fazer em mim e em meu companheiro um exame profundo. Depois, veríamos... Eliseu, dócil e preocupado, deixou que eu o examinasse. Estava claro que os vasos capilares falhavam em conseqüência do déficit de vitamina C. A fragilidade saltava à vista. Ao examinar os olhos, contudo, fiquei um pouco mais tranqüilo. O arco corneano senil, ao redor da íris, ainda não havia aparecido. O gerontoxon, no nível da córnea, com seu depósito de cálcio e células mortas, era outro dos indícios mais temidos. Essa opacidade amarelada da superfície da córnea, causada pela degeneração adiposa das citadas células corneanas, podia marcar o princípio do fim. Nenhum dos dois tínhamos recebido aquele “aviso” - pelo menos de momento. O cabelo e as unhas também não se mostravam afetados. O cabelo se conservava firme e viçoso, sem sinais de recessão ou embranquecimento. As unhas estavam limpas e completas. Um envelhecimento prematuro as deixaria quebradiças. A pele, porém, era outra questão. Como já havia acontecido comigo, a pele de meu irmão acabava de iniciar um inquietante processo de secura, com uma descamação abundante. Estávamos, portanto, diante de uma pele hiperqueratósica. Tratei de animá-lo, explicando que o sintoma, embora ostensivo e desagradável, não era alarmante. Mas eu mesmo não acreditava nisso. O piloto continuou calado, cada vez mais inteiro e sereno. Eu quis imitá-lo, mas, a bem da verdade, fiquei no meio do
caminho. Quando examinamos a vista e o ouvido, Eliseu explodiu. Não conseguindo conter-se, soltou uma risada límpida e contagiante. Aquilo de fato era absurdo. Tanto ele quanto este que escreve tínhamos índices ótimos. Naturalmente, os valores de presbiacusia (menor audição) e resbicia (menor visão) foram negativos. Às gargalhadas, brincou: - Dois cegos e surdos procurando o Mestre?... Essa é boa, major! Agradeci o bom humor. E a tensão diminuiu. O resto do exame deu igualmente negativo. Não constatei as típicas ores que a osteoporose teria provocado e muito menos algum sinal de arteriosclerose. Em relação à secreção neuro-hormonal, só os “nemo” poderiam ter avaliado a situação do fator “tropo”, responsável pela estimulação hormonal por meio da hipófise. Imaginei que não devia flutuar muito. Quanto ao outro “problema”- a andropausa ou diminuição dos hormônios gonadais, com conseqüente “queda” da líbido -, para que escondermos isso? Afinal, não nos preocupava. Depois de tão prolongada permanência nas terras da Palestina era, sem dúvida, o único sintoma de envelhecimento que agradecíamos... O balanço, pois, apesar das aparências, não era tão ruim. O mal andava rondando, sim, mas pelo jeito se mantinha à distância. Ainda assim, fiquei em dúvida. A patologia, a doença, se aninhava dentro de nós e, cedo ou tarde, nos assaltaria. Que decisão tomar? Se o dano nos invadia de forma gradual, talvez tivéssemos uma chance. Talvez, ao detectar o primeiro indício grave, fôssemos capazes de abortar a missão, voltando de imediato a Massada e ao nosso legítimo “agora”. Mas eram só suposições. O que aconteceria se a memória, por exemplo, falhasse de repente? O que seria de nós se os neurônios entrassem em colapso sem aviso prévio, causando um acidente vascular cerebral? O que fazer diante da perda de visão? Aquelas possibilidades, muito reais,
me absorveram durante o resto do dia. Foi outro trago amargo. E tudo ficou adiado. Por último, ao entardecer, abaládo, incapaz de achar por mim mesmo uma solução que desse resposta ao problema, reuni-me com Eliseu. Fui mais ou menos franco. Detalhei alguns desses perigos – não todos -, expressando minhas dúvidas sobre a conveniência de empreender a missão. Ouviu tudo, paciente e resignado. Mas, ao pronunciar a frase chave - “entendo que deveríamos suspender o projeto” -, ele desmoronou. Esqueceu-se da hierarquia e da amizade e me chamou de covarde, pusilânime e não sei de quantas outras “gracinhas”. Agüentei sem me alterar. Até certo ponto era compreensível. Deixei que desabafasse. Saiu do “berço” e eu o vi se afastando em direção à macieira de Sodoma. Foi um momento amargo. Era o primeiro confronto sério. Seria eu de fato um covarde? Esse pensamento me torturou. Talvez tivesse razão. Já havíamos falado disso. E concordamos em que nossa saúde não era o mais importante. Então... Sim, um covarde. Aquela magnífica e poderosa “força” que nos assistia me pôs em pé. Saltei em terra e, decidido, fui ao encontro de Eliseu. Não houve muitas palavras. Pedi desculpas. E o nobre amigo, com um sorriso aberto, se encarregou do resto: - Não, sou eu quem pede perdão... E agora, escute... Compreendo que a situação não é das melhores. Se virássemos deficientes físicos neste “agora”, tal como você diz, não sei o que seria de nós e, muito especialmente, da valiosa informação que nos foi concedida. Aonde ele queria chegar? Em seguida, com idêntica segurança, esclareceu a questão: - ... Muito bem, proponho uma solução intermediária. Ele me olhou fixamente. Sem pestanejar. E depois de uma breve pausa estudada, proclamou:
- Vamos em frente. Vamos procurar o Mestre. Vamos cumprir a missão... até onde for possível. E no primeiro sintoma grave, no primeiro... voltamos. Seu olhar foi intenso. Eu diria até que brilhou. - Você aceita isso? Sorri satisfeito. Sua devoção e interesse por aquele Homem eram mais fortes e profundos que os meus sentimentos. Eu lhe estendi a mão. - De acordo, mas com uma condição... Mostrou-se impaciente. - Chegado esse momento, quando a nave decolar do Ravid, você me deverá perguntar sobre o que vir. Simplesmente isso, aceita? Eliseu franziu o senho, sem entender. Mas, esperto, não perguntou nada. - De acordo, major. O senhor comanda. Chegado esse instante terá um co-piloto cego, surdo e mudo. O normal em nossa situação... Sorrimos refeitos, esquecido o confronto azedo, envolvemo-nos na última revisão do plano e do modesto equipamento. Como já mencionei, se a informação do velho Zebedeu era correta, naqueles dias – agosto do ano 25 da nossa era -, o Galileu devia estar em algum lugar do maciço montanhoso que brilhava ao norte. Em meu poder estavam duas pistas valiosas que, talvez, se a sorte continuasse do nosso lado, nos permitissem localizá-lo com relativa facilidade (?). Na teoria, o plano era simples. Na manhã seguinte, logo cedo, deixaríamos o Ravid, encaminhando-nos até a primeira desembocadura do Jordão, nas proximidades de Saidan. Dali, acelerando, subindo o rio, podíamos chegar à margem sul do lago Hule (Semeconita) antes do cair da noite. A segunda etapa da viagem, prevista para o domingo, dia 19, era mais complexa. Não pela distância a percorrer – praticamente igual à do dia anterior -, mas sim pelo fato de penetrar nos desvios do imenso Hermon. O maciço, integrado por múltiplas alturas, somava
mais de 60 quilômetros de comprimento. Um labirinto. Se as pistas falhassem, nossa busca de Jesus de Nazaré seria um esforço quase inviável. Nós, porém, não queríamos pensar nessa possibilidade. O importante no momento, como repetia Eliseu, era “chegar ao rio”. Uma vez lá veríamos como “atravessá-lo”. Se o achássemos, encontraríamos o Mestre, e se as forças nos acompanhassem, o trabalho consistiria em segui-lo. Viver ao seu lado dia e noite. Reunir toda a informação possível. Conhecer seus pensamentos, desejos e projetos. Averiguar, de forma definitiva, quem era aquele Homem. Nem seria preciso dizer, mas à medida que fomos revisando o plano, meu companheiro esquentou com um entusiasmo contagiante. O instinto (?) nos gritava que tínhamos o Mestre ao alcance da mão. Estávamos a ponto de desvendar outro misterioso e ignorado capítulo de sua vida. Aqueles momentos intensos, francamente, nos compensaram das amarguras passadas. Parecíamos crianças, encantados com a magia de um encontro longamente desejado. E foi o ativo engenheiro quem levantou também uma das questões chave: será que ele nos reconheceria? O problema era difícil. Se nós nos ajustássemos a um critério estritamente racional, esse “reconhecimento” era impossível. Nós o havíamos conhecido no ano 30. Quer dizer, no “futuro”. Obviamente, ao retroceder cinco anos, Ele não poderia saber quem eram aqueles gregos. Ou poderia? Na minha mente surgiu a incrível cena na casa de Lázaro, em Betânia. O Mestre, mesmo ignorando tudo a meu respeito, deixou os seus e, avançando na minha direção, pousou as longas mãos aveludadas sobre meus ombros. E dando uma piscadela, sorrindo, exclamou: “Seja bem-vindo.” Aquilo aconteceu num 31 de março, sexta-feira(1). Nunca esquecerei. Muito bem, se foi capaz de tal reconhecimento no ano 30, o que aconteceria agora, no ano 25?
O exame das mochilas e roupas foi rápido. Não precisávamos de muita coisa. Por outro lado, sim, precisávamos dormir e recompor nossas forças debilitadas. *1. Ampla informação em Operação Cavalo de Tróia, 1 pp.123 e ss. (N. Do a.)
Decidimos colocar quinze denários de prata em cada uma das sacolas de marcha que ficariam penduradas nos respectivos cintos. As setenta moedas restantes – capital que sobrou da Operação Salomão – ficariam no “berço”, junto com a valiosa opala branca e os providenciais brilhantes sintéticos, que tão “bela” brincadeira nos proporcionaram no deserto. Segundo nossos cálculos – baseados sempre nas notícias de Zebedeu pai -, a volta de Jesus ao yam (mar de Tiberíades) deveria ser nos primeiros dias de setembro, mais ou menos. Nesse momento, nenhuma desculpa, subiríamos ao Ravid, para fazer nossas provisões. Em princípio, portanto, se não houvesse imprevistos, essas trinta peças de prata (equivalentes ao salário mensal de um diarista) supririam nossas necessidades básicas em Água e remédios. Levaríamos também duas cabaças fundas providas de gargalo, servindo de cantis, cada uma com três litros de água previamente tratada no módulo. Como já informei, tanto a água produzida na nave quanto a recolhida do lado de fora, seguindo a norma, eram filtradas e fervidas para eliminar os germes. Os quistos Entamoeba histolytica e Giardia lamblia recebiam um tratamento especial com tintura de iodo de até dez gotas por litro (a 2 por cento). Esses parasitas, muito freqüentes naquelas latitudes, eram resistentes até mesmo à cloração. A bem da verdade, essas precauções, muito louváveis e necessárias, terminavam sendo impraticáveis poucos dias depois de iniciada uma exploração. A água acabava e nos víamos obrigados a consumir o que havia à mão. Para evitar esses problemas, além de muito escrupulosos na hora de beber, incluímos nas ampolas de barro da “farmácia” de campanha doses abundantes de medicamentos antiinfecciosos. Contra o impaludismo, por exemplo, ingeríamos, obrigatoriamente, trezentos miligramas de cloroquina duas vezes por
semana, reforçando a barreira quimioprofilática com uma associação de pirimetamina-dapsona. (Tínhamos desconfianças fundadas de que algumas espécies – caso da P. Jalczparum – eram resistentes à cloroquina.) O resto da “farmácia”, além do habitual, consistia de um dos providenciais antioxidantes específicos, a dimetilglicina. No total, reservei cerca de trinta comprimidos para cada um. Com isso o tratamento estava garantido por um mês. Por último, mesmo contra a vontade de Eliseu, os roupões foram cuidadosamente dobrados e colocados no fundo das sacolas. Apesar das altas temperaturas do verão na Galiléia, convinha sermos prudentes e carregar esses incômodos casacos de lã. As noites no Hermon não tinham nada a ver com as do yam. Certamente agradeceríamos à providência. Quanto à minha mochila, depois de muito pensar, decidi completála com os últimos papiros existentes no “berço” e que haviam sido muito úteis na transcrição do que Zebedeu pai escrevera sobre os anos “secretos”, do Mestre. Pensei e acabei decidindo que o mais certo seria tomar notas ao longo do caminho. As palavras do Rabi, os fatos cotidianos, bem como nossas impressões pessoais seriam registrados minuciosamente e com exatidão. Minha memória era boa, mas eu preferia anotar tudo, dia a dia. Para isso só contava com aquele rústico suporte vegetal, do tipo amphitheatrica. Gradualmente, conforme precisasse, iria repondo completando assim o precioso “diário”. Cada folha, de oito por dez polegadas (24 por 30 centímetros), permitia escrever dos dois lados, sendo elas unidas na seqüência por uma costura simples. Logicamente, inclui um par de calamus (juncos) cortados de forma oblíqua, e com fenda na ponta, que serviriam de caneta, além de três pequenos “cubos” de tinta solidificada – de uns duzentos gramas cada um -, com o correspondente tinteiro de barro. A tinta, fabricada com fuligem e borracha, era conservada seca, sendo diluída em água na hora de escrever. Provisões. Essa questão seria resolvida na plantação vizinha dos felah. Ao descer do Ravid, tentaríamos adquirir o necessário.
Segurança pessoal. Poucas mudanças. Em princípio, o que tínhamos de costume era mais do que suficiente: “pele de serpente” cobrindo todo o corpo “tatuagens” na mão esquerda e a inseparável “vara de Moisés”, provida com os já conhecidos sistemas de defesa (laser de gás e ultra-som). Num primeiro momento, como aquele “salto” era extraoficial, pensamos em retirar o resto dos dispositivos de análise alojados no cajado de “Augur” mas decidi deixá-los onde estavam. Talvez fossem úteis. A verdade é que não sabíamos o que iríamos enfrentar. Por outro lado – e sobre isso, é claro, não disse nada ao meu companheiro -, se aquela idéia” malévola continuasse crescendo no meu cérebro, não havia porque me preocupar com tais dispositivos. Segurança do “berço”. Como na Operação Salomão, foi confiada ao inflexível e “insone” Papai Noel”. Os dois longos meses de ausência na época, como já disse, serviram de exemplo e lição. O computador nunca falhara. Como precaução extra, contudo, Eliseu sugeriu o desligamento das mangueiras que forneciam oxidante e combustível ao J 85 e aos outros motores. O tetróxido de nitrogênio e a mistura de hidracina e dimetil hidracina assimétrica (a 50 por cento) eram propulsores hipergólicos (quer dizer, queimavam-se espontaneamente quando combinados, sem necessidade de ignição). Embora o risco fosse remoto, poderiam causar uma catástrofe, deiXando-nos naquele “tempo” para sempre. Os tanques, portanto, foram devidamente isolados. O computador, por sua vez, se responsabilizaria pela checagem deles, vigiando para evitar qualquer vazamento. A alta toxicidade no caso de emanação seria fatal para todo o ambiente, incluindo, naturalmente, os pilotos. Para o caso de uma alta emergência – coisa improvável -, o computador foi programado para modificar o direcionamento do “olho do ciclope”, como forma de nos avisar. Nesse caso, o último cinturão protetor – dos microlasers – seria dirigido ao céu. Se estivéssemos no yam ou arredores, o leque infravermelho podia ser detectado com o auxílio dos “crótalos”. Tudo então era questão de voltar em
seguida ao cume do Ravid. A privilegiada torre de vigia, como acho já ter dito, estava a dez quilômetros em linha reta de Nahum e a catorze da pequena localidade costeira de Saidan, distâncias que permitiam “visualizar” o farol dos microlaserr. E, satisfeitos e nervosos, fomos descansar. Logo, porém, meu irmão voltou a se levantar. Parecia preocupado. Eu atribui essa preocupação à viagem iminente e, talvez, ao encontro não muito distante com o Filho do Homem. Mas, para minha surpresa, ele desceu à terra, perdendo-se no escuro. Aquilo me deixou inquieto. O que estava acontecendo? Pela minha cabeça passou a velha imagem da deterioração neuronial. Deus, outra vez não! Será que estava apresentando algum outro sintoma novo? Qual deles? Inquieto, eu o procurei através das escotilhas. Impossível. A lua nova caía negra e espessa sobre o “porta-aviões”. E se eu estivesse errado? Devia me controlar. Talvez se tratasse, unicamente, de uma insônia passageira, fruto da tensão. Não, meu irmão tinha nervos de aço. Sempre dormia como um anjo. Eu tinha de me livrar daquela maldita dúvida. Meia hora mais tarde, ansioso, quando me dispunha a saltar, eu o vi chegar. Ele se surpreendeu ao me ver de pé. E, compreendendo minha preocupação, desculpou-se, explicando o porquê daquela repentina saída. Ao ouvir o que tinha a dizer, minha estima por aquele espírito puro e generoso cresceu de forma notável. A verdade é que a Providência – tenho certeza disso – teve muito a ver com a “organização” daquela grande “viagem”. Se eu tivesse tido outro piloto, nada teria sido igual. Naturalmente concordei com ele, aprovando a sugestão. Apesar dos pesares, cumpriríamos.
Meu irmão confessou que ficara em dúvida. Ele, como eu, continuava tendo presente o pedido do general Curtiss antes de partirmos para o segundo “salto”: - ... Levem também esta muda e plantem-na em nome daqueles que ficaram deste lado... Será o humilde símbolo secreto de homens que só procuravam a paz. Uma paz sem fronteiras. Uma paz sem limitações de espaço... nem de tempo. Obrigado!...” Muito bem, depois daquilo que descobrimos e intuímos, o jovem não soube o que fazer. Será que eu ainda lembrava da presença no módulo da muda de oliveira? Será que eu aceitaria sua proposta? Será que eu concordaria em transportar aquela muda e plantá-la em algum lugar? Os acontecimentos recentes, que tinham colocado Curtiss e sua gente numa situação reprovável, acabaram por freá-lo. Ele desejava cumprir a palavra dada, mas desconhecia meus sentimentos. Eu o tranqüilizei. Cumpriríamos. Embora não merecessem nosso respeito, nós cumpriríamos. Além disso, aquela oliveira não representava apenas alguns poucos, mas toda a Humanidade. Era a nossa modesta homenagem ao Homem que mais fez pela paz. E o rebento, “filho de uma época”, também foi depositado em seu saco, pronto para ser transplantado para “outra”.  Curioso. A sugestão de Eliseu terminaria fazendo feliz a quem menos imaginávamos. Coisas do Destino. E a noite e o silêncio – como uma bela premonição – levaram-me até longe, muito longe... Nunca me esquecerei daquele sonho.
18 DE AGOSTO, SÁBADO Fora só um sonho? Quem sabe...  Lembro-me de que estávamos num pequeno planalto, rodeado de bosques espessos. No sonho não identifiquei o lugar, mas eu sabia que era o Hermon. Eliseu estava comigo, ao meu lado. E ao fundo resplandecente, o “berço”.
Falávamos com o Mestre...  Mais adiante, perto da nave, Pedro e os irmãos Zebedeu nos olhavam espantados. Parecia que estavam meio adormecidos. Jesus, meu irmão e eu conversamos sobre o “futuro”, sobre nossa missão e o que nos esperava na volta ao nosso verdadeiro “agora”. O Mestre sabia de tudo. E nos aconselhou coragem e confiança. Tudo iria bem. Era estranho. Falávamos, sim, mas não escutávamos sons. Contudo, nos entendíamos. Foram momentos intensos e felizes. Uma paz desconhecida nos invadia. Mas o mais incrível (?) é que, ofuscando o sol radiante, mãos e roupas irradiavam uma luminosidade branca, intensa e deslumbrante. O Mestre referiu-se depois à sua próxima ida a Jerusalém. Notamos certa tristeza. Eliseu o animou. Por último, depois de nos abraçarmos, voltamos ao módulo. Então os íntimos correram até Jesus. E ao passarem perto de nós, com grande veneração, diziam uns aos outros: “São Moisés e Elias.” Meu irmão quis falar. Alertá-los sobre o engano, mas eu o demovi dessa sua intenção, lembrando-lhe de que “isso nos estava proibido”. Meu Deus! Que absurdo! Absurdo? Hoje não tenho tanta certeza disso. Decolamos e, logo, alguma coisa falhou... “Papai Noel” enlouquecera... Os alarmes acústicos fizeram tremer a cabine. Perigo! O que estava acontecendo? Nesse instante, acordei... Melhor dizendo, me acordaram. - Jasão! O que aconteceu? O que falhou? Ainda imerso na lembrança do sonho aparentemente “louco” (?), precisei de alguns segundos para reagir. Onde estava? Continuava no Hermon? - Jasão! Perigo! Pulei da cama e, confuso, fui para o painel de comando. Aquilo era um manicômio. O computador havia disparado os sinais luminosos e acústicos. No exterior, os hologramas com as gigantescas
ratazanastopo se agitando e gritando multiplicaram a confusão. Mas o que está acontecendo? O que é isso? Alguma coisa se mexia e enchia a tela do 2 D, o radar de alerta prematuro (AP). Eram centenas, milhares de targets(1). Eliseu desligou os alarmes e o silêncio nos fez bem. Devíamos agir com a máxima cautela e precisão. Fui me acalmando. - Jasão, que diabo é isso? Não soube responder. Não tinha a menor idéia. Alguma coisa, de fato, acabava de irromper no “porta-aviões”, fazendo saltar todos os cinturões de proteção, incluindo o gravitatório, a 205 metros do “berço”. - Não estou vendo nada. As imagens em infravermelho só detectam corpos quentes. Afinei a resolução, amplificando os targets. - Negativo. “Papai Noel” distingue apenas focos de calor. São seres vivos! *1. Target: no vocabulário aeronáutico, um objeto localizado no radar. (N. Do m.)
Milhares e milhares? Consultei os relógios. Faltavam dez minutos para o romper do dia. - Muito bem. Vamos nos arriscar. Anule as defesas! Eliseu olhou-me perplexo. - Por Deus, obedeça! Desligue! Vou sair... Não havia alternativa. Peguei a “vara” e me lancei ao solo. Não sabíamos o que era aquilo, mas também não podíamos ficar de braços cruzados. O “intruso” era suficientemente importante para ter conseguido violar toda a nossa segurança.  Não precisei andar muito. A poucos metros da muralha em ruínas, “alguma coisa” alada, leve e silenciosa precipitou-se sobre este atônito explorador, cobrindo-o da cabeça aos pés. Deus! Meu irmão, que estava na escuta por meio da conexão auditiva, irrompeu alarmado:
- Jasão! Você está bem? O que é isso? Vejo milhares de focos quentes! Responda! Eu respondi, é claro. - Maldição! Estão por todos os lados! Quando consegui tirar de cima tudo aquilo, achei que tinha entendido. Mas “outros” caíram de novo sobre mim, deixando-me à beira da histeria. Eu os toquei e, ao tato, apesar do escuro, pareciam insetos. Mas eram enormes. Minutos mais tarde – às 4:55 -, com as primeiras luzes do amanhecer, o susto foi passando. Respirei aliviado. - Alarme falso! Foi uma praga... O cume fora assolado por uma “nuvem” de mariposas – de dez a quinze centímetros de envergadura -, de asas brancas, cor de laranja e negras, com tórax e cabeça escuros. Estavam por todas as partes. Ao penetrar na planície e invadir as barreiras de segurança, microlasers, IV, hologramas e gravitatório “acordaram” o “Papai Noel”, “enlouquecendo-o”. Que estranha e singular “conexão” com o sonho do monte Hermon! Ao voltar ao módulo e analisar um dos espécimes, o banco de dados nos deu a resposta. Tratava-se da Danaus chryippus, um lepidóptero dotado de cores brilhantes de advertência cujo principal alimento – bela coincidência! - são as folhas das macieiras de Sodoma, bem como outros vegetais da família das asclépias. Durante a primavera e o verão, pelo visto, formam imensos “enxames”, precipitando-se como uma maldição bíblica sobre os oásis, na costa ou em qualquer outro terreno onde cresça seu alimento. Não tivemos escolha. O engenheiro deu a ordem pertinente e a defesa gravitatória foi deslocada até a “popa” do Ravid, adiante da “nossa” macieira de Sodoma(2). Em cima, as Danaus se viram irremediavelmente empurradas para todas as direções. E o cume ficou limpo.
Como é certo o ditado “não há mal que não venha para bem”. Graças às inoportunas mariposas, compreendemos que nem tudo era perfeito como supúnhamos. E de imediato, meu irmão corrigiu a estratégia de segurança. Variou o limite do cinturão gravitatório, fixando-o a 500 metros do “berço” e convertendo-o no primeiro escudo. Com isso, a nave ficava perfeitamente protegida sob uma grande cúpula, invisível aos olhos humanos. Por detrás, a 400 metros do vértice ou “proa” do “portaaviões”, a barreira N. Por último, coincidindo com a muralha romana, a 173 metros do lugar do assentamento do módulo, “Papai Noel” colocou o “cenário” dos hologramas, com as terríveis cenas fictícias protagonizadas por nossos “vizinhos”, as ratazanas-topo. Quanto à varredura dos microlaserr, foi descartada. Já eram suficientes as proteções mencionadas. Assim conseguimos, além do mais, uma ótima economia energética e, é claro, um “descanso” para o computador. O “olho do ciclope” só funcionaria em caso de alta emergência, projetando o leque infravermelho na vertical. *2. A poderosa emissão de ondas gravitatórias, como foi explicado antes, partindo da membrana exterior do “berço”, era projetada à vontade, envolvendo a nave numa invísivel e gigantesca cúpula. A “barreira” funcionava como um muro de contenção, impedindo a passagem de qualquer ser vivo. Se alguém tentasse abri-la, ficava diante de uma espécie de “vento de furacão” silencioso, que afastava violentamente o intruso. (N. Do m.)
As novas medidas reduziram a área de proteção mas, por outro lado fortaleceram-na, vencendo “invasões” como aquela da madrugada e eliminando, de vez, as contínuas irrupções, na franja de segurança, de outros “vizinhos”: as aves que se aninhavam perto do Arbel e arredores. Todos saímos ganhando. As perplexas aves, nós e, obviamente, o computador, que ficou aliviado da tarefa de detecção e alerta. O único inconveniente dessa modificação era a obrigatória operação abertura e fechamento do gravitatório. Ao se aproximar da linha estabelecida – 500 metros -, os exploradores não teriam outra alternativa se não desativá-lo e voltar a ativá-lo. Para isso, o engenheiro idealizou a “chave” dupla. Por meio da conexão auditiva,
“Papai Noel” recebia ordens pertinentes, procedendo à anulação e reintegração da cúpula, conforme fosse o caso. Ao nos afastarmos em direção à “popa”, por exemplo, ou ao voltarmos à nave, bastava pronunciar uma contra-senha - “base-mãe-três” - e o computador abria o caminho. Para fechar, a senha escolhida foi “Ravid”, só que em inglês. A sugestão me pareceu correta. Eliseu transferiu os códigos ao sistema diretor. Contudo, alguma coisa me deixava inquieto. O que aconteceria se esquecêssemos as contra-senhas? Muito simples: não haveria forma de sair do ambiente do “berço” e, pior ainda, de voltar a ele. Ao comentar isso com meu irmão, ele rejeitou o que considerava ser uma possibilidade remota. Por que aconteceria alguma coisa assim? Tinha razão... até certo ponto. Lamentei então não tê-lo informado da magnitude do mal que nos rondava. Se a memória ficasse enfraquecida ou bloqueada – hipótese verossímil no processo de envelhecimento prematuro que sofríamos -, o que seria daqueles exploradores? Se isso nos acontecesse fora do Ravid, como voltaríamos outra vez ao módulo? Meu companheiro, sempre otimista, riu dessas minhas preocupações, chamando-me de “ave de mau agouro”. Engoli a repreensão. Talvez estivesse exagerando. Além do mais, considerando essa nefasta suposição, se perdêssemos a memória, de pouco serviria a senha. Sabe-se lá onde nos pegaria a catástrofe. O instinto (?), contudo, já tinha avisado. Quando vou aprender? Quando serei capaz de prestar atenção às certeiras “palavras” ruidosas da intuição? E, pobre de mim, esqueci a sutil “advertência”, não adotando medidas necessárias. Pagaríamos caro, muito caro, por isso. 7:00 horas.
Tudo desaparecera. Tudo caíra no esquecimento. Estávamos em marcha. Inaugurávamos, enfim, a procura do Filho do Homem. Ele nos esperava. Ele nos protegeria. Sacrifícios, punições, angústias... tudo foi relegado. Esquecido. E iniciamos ansiosos a descida, afastando-nos do “porta-aviões”. A praga e as modificações feitas por causa dela tinham causado bastante transtorno, atrasando em duas horas a partida. Observei o céu. Radiante. O presságio me pareceu ótimo. Temperatura: 27 graus Celsius. Não importava. Em frente! Em dois ou três dias, no máximo, se o Destino se mostrasse benévolo, estaríamos de novo diante do saudoso Rabi da Galiléia. A idéia, repito, nos estimulou, somando-se à misteriosa “força” que agora, mais do que nunca, parecia nos levantar do chão. Deus! Que magnetismo o daquele Homem! Na plantação dos felah pouco ou nada havia mudado. Camar, o velho nômade, nos atendeu com sua proverbial hospitalidade. Não pude evitar. Um calafrio me invadiu ao chegar à sua presença. Será que ele me reconheceria? Que absurdo! Eu sabia que isso não era possível. “Estávamos” no “passado”. Agora “vivíamos” cinco anos atrás... E assim foi. O “lua” não soube quem eu era. Seu aspecto e constituição também não tinham variado muito. Adquirimos algumas provisões – as necessárias – e refizemos o caminho de volta, parando em frente da rampa que denominávamos “zona morta”. Dali, segundo o combinado, iríamos em direção ao norte, ao encontro do nahal (rio) Zalmon. Escolhemos aquela rota, por prudência, mais tranqüila e solitária, evitando assim a repleta Migdal. Enquanto deixávamos para trás as ladeiras ressequidas e desgastadas que nos separavam da curva da “ferradura”, não pude deixar de me lembrar de Camar. Foi nessa breve passagem pelas
hortas que Eliseu e eu tivemos a verdadeira consciência de outro “fato”, que agora ganhava relevância especial. Já Discutimos o assunto ao longo do caminho e chegamos à mesma conclusão: esse “outro Jasão” que os familiares e íntimos do Mestre mencionavam, só podia ser eu. A explicação, mesmo que meio ao contrário, era elementar. Eles, Ruth, a Senhora, os discípulos etc., me “conheceram” no transcurso do ano 30. Muito bem, estávamos agora no ano 25 e, com toda certeza, voltaríamos a encontrá-los. Para todos, este “agora”, aquele que iniciávamos, era o “primeiro”. Quer dizer, não tinham memória do acontecido cinco anos depois. Era, pois, no ano 25 que nos conheceriam pela primeira vez. Mas todas as alusões faziam referência a um Jasão muito mais velho que o do ano 30. O que queria dizer isso? Meu irmão e eu ficamos em silêncio, deixando correr uma pausa dramática. Estava claríssimo. Por razões que conhecíamos muito bem, ambos envelheceríamos de forma prematura neste “agora”. Novo e prolongado silêncio. Por isso, ao me verem no ano 30, no “futuro”, não conseguiram me identificar com o “outro Jasão”. Como era possível – chegaram a comentar – que o Jasão do ano 30 fosse mais jovem que o do ano 25? E a desconfiança – eu diria que era certeza – me deixou fora do ar algum tempo. Devíamos nos preparar. “Algo” aconteceria nessa nova aventura. Algo” que nos deixaria quase irreconhecíveis. Vários sintomas, de fato, já despontavam em nossa pele. Sacudi o “fantasma” e procurei me concentrar. Isso seria avaliado no momento certo. Estávamos onde estávamos. As forças se achavam intactas. E esqueci. Alcançamos a solitária curva da “ferradura” e percorremos o minúsculo leito do rio Zalmon. A partir daí, entramos na “selva”, um dos trechos mais perigosos daquela etapa da viagem. A margem esquerda do rio lamacento que desembocava no yam era um ninho de insetos, cada um mais agressivo que o outro. Naquele inferno de
espadanas altas, papiros, espirradeiras venenosas, juncos de lagoa e dos míticos aravah, salgueiros de diminutas flores esverdeadas, concentrava-se uma “nuvem” de “agressores” potenciais. Vestimos as mantas e, apesar da atmosfera sufocante e da proteção da “pele de serpente”, cobrimos os corpos até onde foi possível, atravessando rapidamente a intrincada vegetação. Ao entrar finalmente na “via maris”, o caminho de pedras que rodeava a margem ocidental do mar de Tiberíades, respiramos aliviados. Os roupões estavam invadidos por muitos daqueles mortíferos Anopheles (mosquito transmissor da malária), Aêdes aegypti (responsável pela febre amarela), Culex guinguefasczatus (provocador do dengue) e outros indesejáveis propagadores de doenças como o tifo, filariose, leishmaniose, tripanossomíase e oncocercose, entre outras. Aceleramos. Da ponte sobre o rio Zalmon até a cidade de Nahum, faltavam ainda quatro quilômetros. Passamos sem problemas pelo jardim de Guinosar e pelos moinhos de Tabha. O trânsito de gente e animais, como imaginávamos, era quase nulo naquele sábado. E ao chegar à altura da familiar colina ou monte das BemAventuranças – antiga “base-mãe-dois” -, aproveitamos para relembrar os momentos intensos vividos naquele segundo “salto”. Já havíamos discutido isso e, à vista dos muros negros de Nahum (Cafarnaum), voltamos a estudar o dilema. Desta vez não cometeríamos os mesmos erros. Pelo menos, tentaríamos. Desta vez não nos apresentaríamos como “prósperos comerciantes de vinhos e madeiras e, muito menos, no meu caso, como médico. Era melhor assim. E, de comum acordo, estabelecemos que, a partir daquele sábado, 18 de agosto do ano 25, aqueles “gregos de Tessalônica” seriam, simplesmente, viajantes ricos, desejosos de conhecer o mundo e de averiguar a Verdade. No fundo, uma coisa muito certa. A simples lembrança dos problemas criados por minha condição de curandeiro” me fazia estremecer. Não cairia nesse erro de novo.
Outra questão era saber se eu seria capaz de manter-me de fora. Reagiria com frieza diante de uma circunstância dessa natureza? Honestamente, eu duvidava... 10:00 horas. Os nove quilômetros que separavam o penhasco do Ravid da “cidade de Jesus” - Nahum – foram cobertos num ótimo ritmo. De onde tiráv amos aquele ímpeto? A princípio o atribuí a Eliseu, forte como um touro, puxando sem piedade este que aqui escreve. Pode ter sido isso. Contudo, havia “algo” mais... Conforme nos aproximávamos da primeira desembocadura do Jordão, os corações começaram a bater agitados. Mais perto, sim, estávamos mais perto... Meu Deus! O que estava acontecendo conosco? Aquele Homem nos havia transtornado. Nahum, mais silenciosa que de costume, também não pareceu diferente. Sob os arcos da porta norte, alguns mendigos e aleijados, displicentes e abatidos pelo calor, observavam-nos passar. Um ou dois agitaram as tigelas de barro, pedindo esmolas. Se continuássemos nesse ritmo, e o Destino não nos “distraísse”, em quatro ou cinco horas veríamos a margem sul do lago Hule. “Perfeito”, eu disse a mim mesmo. “Isso significava concluir a primeira etapa da viagem até às 15 (a hora nona).” Tínhamos, pois, tempo de sobra para procurar alojamento (o cair da noite chegaria às 18 horas, 14 minutos e 53 segundos de um suposto horário “zulu” ou “universal”). Seja como for, diante do clima benigno, já não estava inquieto. Dormir ao ar livre era coisa habitual entre aquela gente e com aquele tempo estival. E o Destino nos alcançou... Como pude ter esquecido? Sim, ali estava. Era lógico. Parei. Eliseu percebeu o sobressalto. Quis saber o que acontecera. Contudo, não pude responder. - O que aconteceu? - perguntou-me pela segunda vez.
Se “aquilo” acabava de me paralisar – pensei -, o que seria de mim na frente do Mestre? A trezentos metros da porta principal de Nahum, à direita do caminho que conduzia a Saidan, erguia-se um velho casarão, não menos “familiar”. - A alfândega! - murmurei para mim mesmo. - A alfândega? - respondeu meu irmão, intrigado. - E daí? Não, não era o negro edifício de basalto que me deixava perplexo. - É ele! Eliseu. Meu companheiro dirigiu o olhar em direção à única pessoa que, sentada ao pé de umas frondosas figueiras que sombreavam a fachada, cochilava de vez em quando, vencida pelo calor e pelo tédio. - Ele? Ele quem? Eliseu ficou impaciente. Eu entendi. Meu irmão dificilmente poderia lembrar-se. Que eu soubesse, ele só o havia visto uma vez. Não consegui tirá-lo daquela incógnita irritante. Simplesmente, eu estava fascinado. Cheguei perto e, sorrindo, me plantei diante dele. Eliseu, aliás, contrariado com tanto mutismo, murmurou alguma coisa irreproduzível. O homem, enfim, em um de seus repentinos movimentos de cabeça ao cochilar, começou a distinguir as silhuetas dos dois “visitantes”. Tentou acordar melhor e, sem entender o sentido daquele interminável sorriso, interrogou-nos com os olhos. Pouco faltou para que eu o chamasse pelo nome. Essa foi, sem dúvida, uma das formas de disciplina mais árduas a que tivemos de nos submeter em tão extraordinária missão. Deu trabalho me acostumar. “Eles” não me conheciam. Mas eu a eles, sim, perfeitamente... Ficou de pé e, conforme o esperado, solicitou sem palavras que abríssemos as mochilas. Eliseu obedeceu prontamente. Este que aqui escreve, abobado, continuou a olhá-lo. Fisicamente estava quase idêntico. Agora poderia ter 25 ou 26
anos de idade. Tinha a mesma luz nos profundos olhos azuis, e seus cabelos, menos grisalhos, continuavam louros e bem cuidados sobre os ombros estreitos. Mãos, túne os ombros estreitos. Mãos, túnentavam como antes, melhor dito, como no “futuro”): esmeradamente limpos e asseados. A única “mudança”, a mais “notável”, se achava na reluzente chapa de latão presa ao peito, sobre a imaculada túnica de linho branco. Aquele, de fato, era o distintivo de seu “grêmio”. Sim, o Destino, brincalhão, nos pegava de novo. O homem não era outro senão Mateus Levi, o publicano, cobrador de impostos, um dos íntimos. Mas estávamos em 25 de agosto e o Mestre não havia ainda tocado seu ombro e seu coração. Para todos, naquele momento, era um “odiado servidor de Roma”, desprezado e ignorado. O bom homem me observou perplexo. Imagino que o olhar intenso, sem acanhamento algum, daquele viajante que acabava de chegar o tenha perturbado. Fez um movimento brusco com a mão esquerda, ordenando que eu abrisse a bolsa. - Sinto muito... Foi a única coisa que consegui articular. Meus Deus! Como descrever aquela emoção? Como expressar o monte de lembranças que me assaltava? Ele remexeu as ampolas de barro, examinou os papiros e, sem muito interesse, calculou o “pedágio” pelas provisões em dez leptos (coisa mínima, miúdos). Meu irmão pagou o estipulado e o “funcionário”, satisfeito, voltou para a enorme figueira. Ao prosseguir e confessar, enfim, o porquê da surpresa, Eliseu tentou lembrar-se do homem. Conseguiu mais ou menos. O rosto do discípulo se achava meio difuso em sua memória. Só o vira uma única vez: na penúltima aparição no yam, em cima da colina onde a nave se assentava então.
Aproveitei a circunstância e o adverti sobre o perigo da fortíssima tentação que acabava de experimentar. Por nada deste mundo deveríamos “nos adiantar”, pronunciando os nomes dos que conhecíamos e que, como neste caso, iríamos encontrar no transcurso daquele terceiro “salto”. Era difícil, mas essas eram as regras. A prudência, de novo, tinha de ser nossa bússola. Deixamos para trás o território de Herodes Antipas e penetramos nos domínios de seu meio-irmão Filipe, na bela e agreste Gaulanítide(3); Foi então que, por causa do encontro com Mateus Levi, meu companheiro levantou várias questões interessantes: Como era Jesus de Nazaré imediatamente antes da vida pública? Ele teria se misturado com gente como o odiado publicano? E foi mais longe: poderia o Mestre ter sabido da existência de Mateus antes de seu período de pregação? O que teria acontecido se nós tivéssemos falado do Rabi a Mateus? Discutimos. Eu defendia a hipótese de um Jesus sempre o mesmo. Eliseu, do seu lado, se mostrava reticente. Não havia provas do que eu dizia. Tinha razão. Era o instinto que me impelia a pensar assim. A verdade é que eu não concebia o Filho do Homem discriminando ninguém, muito menos pela atividade desenvolvida, ainda que fosse a de um cobrador de impostos para Roma, a invasora. Eliseu refutou. Se a divindade daquele Homem era um fato, quando começou a aproveitar desse poder? Devíamos falar de um Jesus anterior a essa faculdade e, portanto, diferente? Sorri dentro de mim. As interrogações eram velhas companheiras. Algumas me torturavam desde as análises do DNA. *3. A tetrarquia na que agora entrávamos ocupava um amplíssimo território, ao norte e leste do Jordão. Na verdade, aquelas divisões da província romana da Judéia não valiam quase nada. Tudo estava sob o controle de Roma. Por conveniências políticas, Augusto aceitou o testamento de Herodes, o Grande, falecido em março do ano “menos quatro”, e o reino ficou dividido da seguinte maneira: Arquelau, filho do tirano edomita e de Maltaké, uma samaritana, governaria a Judéia, a Idumea (ao sul de Jerusalém) e a Samaria. Antipas, irmão menor de Arquelau, recebeu a Galiléia e a Peréia (ao leste do Jordão), ambas separadas pela Decápolis. Quanto a Filipe, filho de Cleópatra, a quinta esposa “oficial” de Herodes, o Grande, foi nomeado tetrarca da Gaulanítide, um imenso
e montanhoso território povoado quase em sua totalidade por gentios. Por último, a irmã de Herodes, Salomé, obteve um pequeno pedaço de terra na costa (Iamnia), bem como as cidades de Azoto, Fasaelis e o palácio herodiano em Askalón, também na margem do Mediterrâneo. (N. Do m.)
Obviamente, não houve jeito de definir critérios. Carecíamos de informação, mas estávamos perto, muito perto, da solução do enigma. O segundo dilema parecia mais fácil. Teria o Mestre conhecido o publicano antes de iniciar o período de pregação? As notícias trazidas por Zebedeu pai indicavam que “sim”. Segundo rigoroso confidente, no ano 21, depois de abandonar Nazaré, Jesus instalou-se no yam durante uma temporada, trabalhando, parece, nos estaleiros da próspera Saidan vizinha. Se foi assim, se o Filho do Homem viveu realmente certo tempo em Nahum, era possível que tivesse cruzado com Mateus Levi e, talvez, com outros futuros discípulos. Que eu soubesse, quase todos tinham nascido ou eram residentes no yam. Meu companheiro, meticuloso, lembrou que o Galileu, afinal, era judeu. Por que iria se misturar com malditos e “pecadores”? Achei que ele não falava sério. Eliseu intuía como era de fato aquele Homem. E imaginei que podia estar se divertindo comigo, me provocando. Jesus de Nazaré tornara-se minha fraqueza. Claro que rejeitei a sugestão. Não tinha provas. Não sabia com certeza como era aquele “outro” Jesus, anterior ao retratado pelos evangelistas. Contudo, “alguma coisa” gritava dentro de mim dizendo que a diferença devia ser mínima. Era muito significativo aquilo que já tinha observado na infância e na juventude. Este, em resumo, cunsútuía outro fascinante motivo para continuar com a missão. O que encontraríamos no Hermon? Que tipo de Homem nos esperava? Um místico? Talvez um iluminado? Um revolucionário? Um
Deus? 11:00 horas. Demos uma olhada no lago. Era sábado, as águas estavam adormecidas. Apenas meia dúzia de embarcações, tripuladas com segurança por gentios, esperavam imóveis e pacientes a pontual visita do vento do oeste, o maarabit. Então abririam as velas, na direção da primeira desembocadura do Jordão. Algumas aves brancas, ruidosas e inquietas, se precipitavam sobre o azul chumbo das águas, “marcando” os bancos de tilápias. Era bonito estar ali, sim, belo e esperançoso. Quase sem que percebêssemos, absorvidos pela conversa, deixamos para trás os marcos que sinalizavam o velho e o novo caminho. Esses miliários, a bem da verdade, seriam de grande utilidade naquela e em futuras viagens. Roma, eficaz e severa, se encarregava de plantá-los ao longo dos caminhos pavimentados e rotas menores, para informar o caminhante sobre distâncias e direções. Nesse caso, cada cilindro de pedra calcária, de um metro de altura, além de anunciar as cidades próximas e as milhas a percorrer, apresentava uma inscrição alusiva ao imperador de plantão. Gravada em latim dizia: “Imperador César Divino Tibério, filho do Divino Augusto... Anode Tibério.” A não ser que fossem destruídos ou derrubados – coisa muito habitual entre os judeus mais fanáticos -, esses miliários apareciam sempre a distâncias exatas: uma milha romana (mil passos ou 1.182 metros). Para nós, repito, foram muito úteis, aliviando os cálculos que fazíamos por meio dos dispositivos alojados nas sandálias “eletrônicas”. Mas logo estaríamos sabendo de cor rotas e distâncias. Ao atravessar a ponte próxima à primeira desembocadura do Jordão, dois daqueles miliários nos advertiram. Um indicava “Nahum (3,3 milhas)” e outro “Beth Saida Julias (2 milhas)”. A partir daí, tudo era novo para mim e, é claro, para meu irmão. Prestamos especial atenção. As referências geográficas eram vitais.
Apertamos o passo. A estreita trilha descuidada serpenteou dócil, durante quase dois quilômetros, sob um benéfico “túnel” formado por esbeltos álamos grisalhos do Eufrates e tamargueiras emaranhadas. O “passeio” solitário, foi uma delícia. Entre as frondosas copas verdes e brancas se adivinhava o vaivém incessante das laboriosas andorinhas do mar e das calandras de cabeça negra, sempre encrenqueiras e melodiosas. Desde a primavera, os sofridos hawr (álamos), uma das poucas espécies capacitadas para resistir à salinidade das terras próximas ao Jordão, tornavam-se o lar obrigatório dessas pequenas aves migratórias, sempre bem-vindas. Para os galileus, as andorinhas e calandras eram allon (palavra sagrada que significa “Ele” ou “Deus”). Simplesmente, eles as associavam ao ressurgimento da vida, ao “santo amanhecer” da Natureza. De repente, ao longe, mal perceptível sob a sinfonia do bosque, vimos uma gritaria. Olhamo-nos inquietos. Pareciam vozes infantis... Com cuidado nos aproximamos de um dos poucos clarões. Ao contemplar o “espetáculo”, entendi. TranqüiLizei Eliseu e, pedindo prudência, continuamos. Na pequena clareira se desenhava uma encruzilhada de caminhos. Outra pista estreita, igualmente trabalhada com a negra escória vulcânica da região, embicava com dificuldade em direção a uma colina de duzentos ou trezentos metros. Lá em cima, murado pelo bosque denso, se distinguia um arremedo de cidade. Era Beth Said Julias, o povoado levantado por Filipe e, de certo modo, a “capital” administrativa da zona. Uma cidadela negra e caótica que evitaríamos por enquanto. Eu devia ter imaginado. Como em quase todas as rotas, as pessoas dos lugarejos aproveitavam essas encruzilhadas para armar suas barraquinhas e vender todo tipo de mercadoria. Claro, era um lugar estratégico. E tomamos nota disso. Consultamos o sol. Voava em direção ao zênite. Estávamos perto da hora “sexta” (meio-dia).
Comentamos isso e, precisando de um descanso, decidimos dar uma parada. Lentamente, com cuidado, misturamo-nos naquele caos. Trinta ou quarenta olhares nos seguiram curiosos. Entre os burros amarrados às árvores e as improvisadas banquinhas, uma criançada incansável e incontrolável desafiava o calor, correndo e pulando diante da lógica irritação dos cidadãos. Quase nuas, com as cabeças raspadas e as costelas à vista, as crianças iam e vinham, provocando e judiando das altas cavalgaduras com cardos espinhosos e longas varas pontiagudas. Os zurros justificados e os coices perigosos, longe de intimidar a molecada, excitavam-na, fazendo-a voltar à carga com brio renovado, entre incontáveis gritos e risadas maliciosas e contagiosas. Várias e modestas colunas de fumaça se erguiam, preguiçosas, de panelas enferrujadas, sufocando o lugar com os típicos e já familiares cheiros de peixe frito e carne ensopada. Ali, naqueles “mercadinhos” em miniatura, o caminhante encontrava de tudo. Com aspecto cansado, sem muito interesse, camponeses e pescadores espantavam um exército de moscas de todos os tipos que caía, negro e zumbindo, sobre pessoas, utensílios e mercadorias. A praga simplesmente fazia parte da paisagem. Não havia remédio a não ser se acostumar. Assim era a Palestina de Jesus. Frutas, hortaliças, ovos, especiarias, tilápias e “sardinhas” do yam – frescas ou salgadas -, pão feito na hora, água, vinho forte e quente e, até mesmo, suco de melão convenientemente gelado com a neve trazida do Hermon. Isto, e muito mais, era oferecido em quase todos os cruzamentos de caminhos. Eliseu fez um gesto, chamando minha atenção. A seus pés, sobre uma manta de lã descolorida e desfiada, um dos vendedores apresentava um “produto” singular. “Singular” para nós, é claro. O velho, um badawi (beduíno) de idade indefinida e quase
escondido sob um amplo roupão escarlate, convidou-nos a examinálo. Meu irmão inclinou-se e, decidido, pegou um dos “produtos”. Abriu e, divertido, leu em voz alta: “Para a filha de... (o nome do comprador aparecia em branco). Para curar a febre e o mau-olhado e para afugentar os demônios femininos... Blá, blá, blá, blá, blá..., e os espíritos do corpo. Em nome de Eu, aquele que Sou.” Sorri, entendendo. O nômade, diplomático, correspondeu com outro sorriso, mostrando umas gengivas desdentadas, sangrentas e purulentas. E o rosto enxuto, escuro como carvão, iluminou-se diante da possibilidade de uma boa venda. Sua “mercadoria” abrangia uma rica e variada coleção de amuletos, talismãs e ídolos, “muito capazes – segundo o homem - de resolver a vida de quem tivesse a sabedoria de comprá-los”.
Confeccionava os amuletos em papiro, couro, lã, cobre e pedra. - São santos – esclareceu o astuto dono num aramaico mutilado e carregado de infinitivos -, Se comprar, eles cuidar... Nada temer... Fixei minha atenção em duas grandes lâminas avermelhadas de argila, de 40 por 30 centímetros. Numa das faces estavam gravadas profundas cruzes em forma de “X”, compostas por dois pares de linhas paralelas. Fiquei intrigado. Aquilo para mim era desconhecido. - Santo..., muito santo – adiantou-se o badawi, adotando uma pose solene -, Linhas feitas pelo anjo Esdriel... Proteção máxima... Não tocar. Primeiro comprar... Barato... Deixo em dez peças. - Dez “asses” - insisti convencido. O ancião puxou a manta, descobrindo uma longa e pastosa cabeleira prateada. - Tu louco... amigo. Dez denários de prata por tábua... Tua vida protegida até a morte... Esdriel ser número um... O tal Esdriel era um dos espíritos habitualmente invocados por essa gente supersticiosa e temerosa. Triste, sim, mas esta, e não outra, era a realidade. Por todo o país, centenas de comerciantes
como aquele badawi rendiam felicidade com a ajuda de todo o tipo de elementos upostamente mágicos. E, como iríamos descobrir, muito poucos resistiam. Esta, justamente, seria outra das frentes de batalha do Filho do Homem; a luta para sanear as mentes e vontades, fazendo-os ver que a “sorte” e a verdadeira “proteção” não estavam nesses objetos. Mas não vamos adiantar os acontecimentos. Rejeitei as “cruzes divinas” e me interessei pelo resto dos amuletos. Um deles, muito mal pintado em folha de palmeira, dizia num hebreu defeituoso: “Canção para glorificar o rei dos mundos: Eu sou aquele que Sou, o rei que fala numa forma diferente e misteriosa para todo o mal, que não deve causar dor ao rabino... (aqui era incluído o nome do comprador; neste caso um rabino), servidor de Deus dos céus... Anael, Suriel, Kafael, Abiel e demais anjos, protegei...” Fiquei pensativo. Era este um resumo excelente do conceito de Yaveh. Assim pensavam os judeus. Seu Deus - “Eu sou aquele que Sou” - era Alguém que só causava dor ou administrava justiça. E nada melhor que um amuleto para se congraçar com tal “fiscal” e, de passagem, receber sua benção. Nessa infeliz situação comecei a entender o verdadeiro alcance da “revolução” que o Rabi da Galiléia desencadearia. Do meu pobre ponto de vista, Jesus tentou acabar com essa implacável “cara” única de Deus. Um “rosto” - agora sei – absolutamente falso. Outro amuleto, escrito sobre um lenço de linho, podia ser enrolado na cabeça, sendo “útil e benéfico nas viagens”. Dizia assim: “Eu sou aquele que Sou... Eu não listarei tuas culpas... (nome da pessoa), porque levas o sinal do temeroso.” Por último – a lista era interminável -, meu irmão foi me mostrar uma pequena placa de cobre sobre a qual o artesão havia gravado o seguinte: “Onde quer que este amuleto seja visto... (nome do dono) não
deve temer. E se alguém o detém, será queimado no calabouço. Bendito és tu, Senhor. Envia a... os remédios. Anjos que curam as febres e o tremor, curai... com palavras santas.” A peça, provida de um cordão tão carregado de anos como de gordura, se colocava no pescoço. Mas, cuidado, pois, segundo o velho, o “poder” do amuleto estava limitado pelas horas... Explico. Se a pessoa pagava o preço “base” - um denário de prata -, a “proteção” se estendia às vigílias da noite. Por mais uma moeda, o incauto comprador recebia uma “benção extra”, alongando a “magia” para o resto do dia. Junto a essa “sagrada mercadoria” se alinhavam outros “poderosos fetiches”, fundamentalmente fenícios e hititas. Em chumbo, bronze, pedra e madeira, e de todos os tamanhos, conseguimos distinguir o que havia de mais seleto das “cortes celestiais” adoradas naquele tempo e naquelas terras da Gaulanítide pagã. Ali, por um, dois, três denáriosdependendo do material e da “categoria” do ídolo -, o caminhante levava o número “um” fenício, o deus “Ele”, representado em forma de touro(4), *4. Entre as múltiplas deidades femininas, o trio formado por “Ele”, “Asherat do Mar” e “Baal” constituía o pilar de todas as crenças. “Ele”, espécie de “deus pai” identificado pelos gregos como Cronos, era um ser distante, quase sem forma e todo poderoso. Os fenícios mal o invocavam. Não acontecia a mesma coisa com sua esposa, também conhecida como Astarte ou Baalat (”nossa querida esposa”). Simbolizava a fertilidade, as boas colheitas, os filhos e a vida longa. E embora tampouco pudesse ser invocada diretamente ou por seu nome, mas sim através de deuses de segundo nível, o povo a respeitava, considerando-a mais próxima e “humana” que o misterioso e abstrato “Ele”. Claro que, segundo todos os indícios, Astarte não era uma criação fenícia. Provavelmente fora copiada e modificada, com base em outros deuses assírios, egípcios e babilônicos. A semelhança com a Ísis do Egito, por exemplo, é notável. E também com o Inniu sumério ou o Ishtar da Assíria e Babilônia (no século XII a.C. As relações entre o Egito e Biblos eram tão intensas que Astarte e Hator praticamente se confundem). Quanto a Baal, o terceiro dos deuses importantes da Fenícia, era, talvez, o mais popular e procurado. Na verdade, havia inumeráveis Baal. Cada região, cada cidade ou cada aldeia tinha o seu próprio: Baal Tsafon (”senhor do Norte”), Baal Shamim (”senhor dos céus”), Baal Lebanon (”senhor do Líbano”) e um longo etc. Outros povos, por seu lado, o conheciam com nomes diferentes. Para os de Sidon era Asmun. Para os giblitas, Adon ou Adoni (”senhor”). (Mais tarde, os gregos o denominaram Adonis.) Para os habitantes de Tiro era conhecido como Melquart. Baal,
curiosamente, como pregaria mais tarde o cristianismo, morria a cada ano para redimir os homens. Uma vez recolhidas as colheitas, ele se auto-imolava, reaparecendo na primavera. Esta lenda, sem dúvida, preparou o terreno para a futura e errônea crença dos cristãos com respeito à missão de Jesus de Nazaré. (N. Do m.)
esposa Asherat do Mar ou Astarte, com seu perfil quase egípcio e pintada com um disco entre os dois chifres, ou o filho de ambos-, transportando o raio da vitória na mão esquerda. Além dessas representações divinas de Tiro, Biblos, Sidon, Arvad e da extinta Ugarit, a pessoa podia adquirir o mais graduado dos deuses da mítica Cartago e das velhas Babilônia e Assíria. Entre os nomes dos primeiros, distingui o de Hammon, o deus barbudo, sentado num trono cujos braços eram atados com cabeças de carneiro. (Os romanos o identificaram como o deus africano Júpiter Ammon.) O badawi, ágil como o vento, conhecendo a arraigada superstição dos pescadores do yam, havia se abastecido até mesmo com alguns ídolos de ébano com a representação do deus Bes, um anão gordo como um tonel, de expressão feroz, que os marinheiros gostavam de pregar nas proas dos barcos. Embora o “invento” procedesse de Cartago, logo se estendeu por todo o “Grande Mar” (Mediterrâneo) e pelos rios e lagos navegáveis. Junto a Bes também me chamou a atenção outro “ídolo” estranho, gravado sobre ferro. Eu o examinei mas, honestamente, não soube identificá-lo. Era formado por uma espécie de tronco de cone, com um disco na parte superior. Entre ambos, o gravador havia traçado uma linha com as pontas dobradas para cima, em ângulo reto. Perguntei, e o nômade, farto da insaciável curiosidade daqueles dois estrangeiros, além de não ter tido até ali nenhum sucesso nas vendas, respondeu de forma concisa: “grande magia de deuses baixados do céu...”. Ele pouco mais sabia. Ao voltar ao Ravid, vivamente intrigado, consultei o banco de dados do computador. “Papai Noel”, com reservas, identificou o ídolo como a deusa Tanit, de Cartago, também conhecida como o “rosto de Baal”. A imagem figura nas numerosas pedras gravadas nessa parte do norte da África, mas, a bem da verdade, eram só opiniões de arqueólogos. O computador,
finalmente, contribuiu com um dado tão interessante quanto misterioso: talvez estivéssemos não diante de um deus, mas sim na presença de um antigo e desconhecido “alfabeto”. Talvez bereber? No rico panteão de deuses hititas reconheci Ishkur, também venerado como Adad, e simbolizado por um “X”. Com este número ou marca (?), representava-se uma divindade sem nome, responsável pela administração das chuvas. Como teríamos ocasião de comprovar, para muitos felah não judeus, a presença de Baal ou de um “X” em seus campos favorecia as chuvas – em especial as temporãs -, sendo esses ídolos entronizados nos acessos e orientados sempre para o norte ou para o oriente, respectivamente. Quer dizer, para os lugares de suas supostas origens. O “mostruário”, enfim, era altamente ilustrativo. Este era o panorama religioso dos gentios. Essa caótica situação o Filho do Homem, um dia, deveria enfrentar. Um confuso “panorama” ao qual se somava, naturalmente, a “equipe” de deuses romanos, gregos, egípcios, gauleses, beduínos etc. Segundo nossos cálculos – apoiados no cômputo de Hesíodo na Teogonia-, quando o Mestre apareceu na Terra, só na planície mediterrânea eram adorados 90 mil deuses! É possível que hoje, influenciado pelo monoteísmo, o hipotético leitor deste diário não tenha reparado na situação anômala de um mundo com semelhante proliferação de deuses. Muito bem, repito, esta era a terrível e cotidiana verdade que Jesus de Nazaré encontrou. Por um lado, seus próprios conterrâneos – os judeus -, servindo e venerando um Yaveh distante, vingador e sempre vigilante. Um Deus “negativo”, do qual se derivaram – direta ou indiretamente – 365 preceitos proibitivos contra 248 positivos ou afirmativos. Todo um “pesadelo” burocrático que converteu esse Deus num “contador” e num “fiscal” tão frio quanto absurdo. Por outro lado gentios, escravizados pelos ídolos de pedra, ouro ou ferro, cada um mais tirânico e caprichoso que o outro. Curiosamente, com nenhum deles – incluindo o sangrento Yaveh – era possível dialogar. Só o sumo sacerdote, uma vez por ano, estava autorizado a penetrar no “santo dos santos” e interrogar (?) o temido Deus do Sinai. Entre os pagãos, só algumas divindades menores muito específicas se
achavam capacitadas para escutar e transmitir as súplicas dos pessimistas e infelizes seres humanos. E a vida desses homens e mulheres transcorria na dependência da sorte e do humor dessas entidades. Acho que, na verdade, não foi avaliado com justiça o imenso, árduo e revolucionário empenho do Mestre em mudar esse estado de coisas. Difícil? A julgar pelo que estávamos vendo, a tarefa do Rabi da Galiléia não foi difícil. Eu a qualificaria de quase impossível. Eliseu e este que aqui escreve nos afastaríamos do badawi, e de sua singular e significativa “mercadoria”, com uma sensação asfixiante. Como fazer o “milagre”? Como arrancar o mundo de tanta escuridão? Muito em breve descobriríamos isso. E ficamos maravilhados. O Filho do Mestre, verdadeiramente, tinha a “chave”. O maarabit, pontual como um relógio, entrou em cena, derrubando as indolentes colunas de fumaça e surpreendendo crianças e adultos. Entre tosses e pigarros, o público tratou de se arrumar sob os roupões. E nós, driblando cântaros, melancias enormes, reluzentes vasilhas de cobre e a inevitável molecada, fomos atraídos por um cheiro apetitoso. Meu irmão aproximou-se curioso de uma daquelas amplas frigideiras de ferro negro e gorduroso. A mulher, impassível, continuou mexendo a enfumaçada fritura. Ao seu lado, em fundos caldeirões de barro, acho que identifiquei alguns fígados de frango mal passados, literalmente assaltados pelas moscas. Devagar, de forma estudada, a orgulhosa matrona pegava os pedaços, jogando-os no óleo. Uma cebola, previamente cozida, brilhante e transparente, flutuava entre a carne crepitante. Trocamos olhares. A comida tinha boa aparência. Mas desistimos,. As condições higiênicas do frango, literalmente “coberto” pelas moscas” deixavam muito a desejar. Ao ver que cochichávamos, a mulher levantou os olhos e, segurando o pequeno touro de madeira pendurado em seu pescoço, invocou
Baal, agradecendo a presença daqueles dois estrangeiros diante de sua humilde barraquinha. Isso explicava o amuleto e sobretudo o fato de aparecer cozinhando em público num sábado, coisa terminantemente proibida aos judeus. Segundo a Lei, nem sequer estavam autorizados a manter viva a chama do candeeiro... Isso supunha um esforço, um trabalho. Imagino que, familiarizados com nossa presença, alguns dos pescadores e felah terminaram por ganhar confiança e, arregaçando mangas e apertando cintos, nos obrigaram a ir daqui para ali, mostrando-nos as excelências de seus quiosques. As sucessivas negativas educadas não foram ouvidas. E tivemos de suportar a prova de melões e melancias e a forçosa degustação de figos, tâmaras e uma ou outra tilápia salgada. Aquilo estava ficando complicado. Os voluntariosos campesinos disputavam no tapa os “clientes”, em feias discussões. E prevendo coisa pior, apertei Eliseu, fazendo-o ver que era hora de retomarmos nosso caminho. Mas meu companheiro, tentado por uma luminosa cesta de maçãs vermelhas e verdes, não concordou. E eu me resignei. O pequeno e delicioso fruto – uma tauab talvez procedente da vizinha Síria – acabava de chegar ao yam. Eliseu examinou um par e perguntou o preço. O felah, implacável, dedo em riste, pediu um denário. Neguei com a cabeça. “No máximo”, adverti, “um par de leptos...” Discutiram. Era o de sempre. A pechincha fazia parte do jogo. E, de repente, vi o homem se aproximando. Mas, sinceramente, não me preocupei. Era um dentre tantos... Meu irmão ofereceu cinco e o camponês, teatral, puxou a barba, maldizendo sua sorte. Finalmente, entre bem estudados lamentos, acabou por deixar tudo por três. (Um denário de prata equivalia, mais ou menos, e dependendo do lugar, a vinte e cinco asses. Cada quarto de asse, por sua vez, significava um par de leptos.) Assenti em silêncio e peguei as maçãs, enquanto meu companheiro pegava a sacola de borracha, disposto a pagar o combinado. Mas cometeu um erro. Foi tudo tão vertiginoso e súbito que nos pegou de
surpresa. Eliseu, repito, imprevidente, desamarrou a bolsa do dinheiro das cordas egípcias que lhe serviam de cinturão. Esse foi o erro. Ele abriu a bolsa e pegou as diminutas moedas de cobre. E de repente... Aquele ladrão, plantado a meio metro destes dois exploradores e de olho na discussão, caiu como um meteoro em cima de Eliseu, arrancando-lhe a bolsa negra.  Levamos alguns segundos para reagir. O Meu irmão foi o primeiro. E, gritando, saiu atrás do ágil larápio. Depois foi a vez do felah que, aos gritos, colocou em alerta o resto do “mercadinho”. Imagino que tenha visto seu negócio em perigo. Quando me dei conta, meu companheiro e o ladrãozinho já estavam a vinte ou trinta metros de distância, no caminho que levava a Beth Saida Julias. Pensei em utilizar os ultra-sons, mas, dada a mobilidade do rapaz, teria sido em vão. Além do mais, como fazer isso num local tão concorrido? Não era racional nem prudente. A verdade é que também não foi necessário. Naquele momento, o infeliz ladrão, perseguido muito de perto pelo indignado Eliseu e por alguns dos vendedores, olhou para trás para avaliar sua vantagem, e acabou tropeçando na grossa camada de grão basáltico que forrava o caminho. Não conseguiu se levantar para continuar correndo. Os perseguidores caíram sobre ele e o imobilizaram. Eu me apressei a intervir. E graças aos céus cheguei a tempo. Meu irmão recuperou o dinheiro e, respirando fundo, interrogou o sujeito, repreendendo-o por sua atitude. Foi estranho. Naquele momento, sinceramente, não percebi. O jovenzinho, apesar dos pontapés dados pelos felah, não deu pio. Continuou com o rosto afundado na cinza escura, resfolegando e tentando se safar das mãos ásperas que o seguravam. Parecia que não era a primeira vez que ocorria uma coisa assim com o mesmo protagonista. Um dos camponeses, chamando-o de mamzer (bastardo), levantou sua bengala, disposto a quebrá-lo em pedaços.
Fui instintivo. Segurei a bengala no ar e detive o homem com firmeza. Atônito, o galileu me olhou sem compreender. Tentei sorrir, explicando-lhe que “aquilo não era necessário”. Bastavam os pontapés. O castigo era desproporcional. Acho que entendeu. Baixou a arma e negando com a cabeça, afastou-se, Levantei o agitado ladrãozinho e, segurando seus braços esquálidos: o interroguei. Continuou lutando mas, por fim, rendido, concordou em me olhar. E percebi medo e ódio naqueles grandes e desolados olhos verdes. Não teria mais que oito ou nove anos de idade. Não se dignou a responder. Nenhuma das perguntas teve resposta. E do pânico, o ruivo foi passando a uma atitude desafiadora. Senti tristeza. Uma profunda tristeza. Ao examinar o corpo quase nu, mal coberto por um rac, uma espécie de tanga, suja e esfarrapada, percebi que estava seriamente desnutrido. Os sintomas, à simples vista, eram inequívocos: veias muito visíveis sob a pele seca, atrofia muscular e um acentuado – quase escandaloso – relevo ósseo. Calculei a olho a circunferência dos braços. Lamentável(5)... Pedi a Eliseu que o mantivesse imóvel e o obrigasse a abrir a boca. Era o que eu temia. O exame das mucosas na língua, gengivas e palato confirmou o diagnóstico inicial. *5. Embora não seja um dado seguro, a medição da circunferência do meio do braço pode proporcionar uma pista importante. Com os centímetros exatos, prévia consulta às tabelas de porcentagens (Hanes, II), é possível uma aproximação ao índice de desnutrição. Nesse caso, considerei preocupante essa aproximação. Com tal medida é fácil obter a área muscular. É só aplicar a fórmula de Gurney-Jeliffe (área muscular = circunferência, em centímetros, menos “pi” prega, tudo elevado ao quadrado e dividido por 4 “pi”, considerando como “prega” a grossura do tricipital em centímetros). (N. Do m.)
O jovenzinho, inquieto, emitiu alguns sons guturais. Como fui tão incompetente? Como não percebi? As conjuntivas (membranas que recobrem o interior das pálpebras e a face anterior da esclerótica)
também me confirmaram tudo. O pequeno mamzer padecia de uma acentuada desnutrição. Coisa muito comum naquele tempo e sobretudo entre os mais infelizes: os bastardos. Insisti, quis saber sobre sua família, o lugar onde vivia e até mesmo seu nome. Impossível. Ele se negou a responder. Por último, apalpei o fígado do jovem e lancei um olhar significativo ao meu companheiro. Ele entendeu que alguma coisa não estava bem e, com a mesma espontaneidade com que havia parado o ladrãozinho, vasculhou a sacola de borracha, tirando dela um reluzente denário de prata. Os expressivos olhos do menino acompanharam a peça. Ele a observou, ávido. Mas continuou fechado naquele absoluto e enigmático mutismo. Eu decidi soltá-lo. E Eliseu, mostrando a moeda, o convidou a gastá-la com comida. O menino pareceu duvidar. - Talvez não entenda aramaico – insinuei como um perfeito idiota. Meu irmão repetiu o conselho em grego, em koiné, mas o resultado foi o mesmo. O ruivo nem se mexeu. O rosto, com uma sujeira crônica, permaneceu inalterado. Só os olhos, ágeis e agudos como os de um falcão, continuaram fixos nos esporádicos brilhos da prata. Finalmente, carinhoso, com o melhor dos sorrisos, Eliseu tomou a mão do garoto e nela depositou a moeda. O menino o olhou desconcertado. Levou a moeda à boca e, depois de mordê-la, o verde musgo dos olhos iluminou-se. Tentou, acho, dizer alguma coisa, mas só distinguimos um leve movimento dos lábios. Em seguida, como que impulsionado por uma mola, saltou em direção ao bosque, desaparecendo. Eliseu deu de ombros. Minutos depois, tendo pago os três leptos, entre os cochichos das matronas, o alvoroço da criançada e os lamentos das cavalgaduras, estes dois exploradores retomavam a marcha, afastando-se em direção norte.
Durante algum tempo quase não nos falamos. Imaginei que os sentimentos eram idênticos. Já havíamos visto miséria na “passada” Operação Salomão e, apesar do treinamento duro era difícil nos acostumarmos. Contudo, não tínhamos outra escolha. Além disso, precisávamos pensar no assunto. Pouco ou nada podíamos fazer para resolver o problema. Calculei que “aquilo” era só o princípio, E, naturalmente, acertei. O caminho, sempre coberto pela cinza vulcânica negra e crepitante, começou a ficar íngreme. Em questão de três milhas, passamos do nível do yam (naquele tempo, a 208 metros abaixo do nível do Mediterrâneo) a uma altura que oscilava entre os 100 e os 500 metros. E assim continuaria até que víssemos as lagoas de Semaconite. Aos poucos, o bosque de álamos do Eufrates e tamargueiras foi rareando. E ao sair do benéfico “túnel”, o sol de agosto nos bateu na cara. Se os cálculos estavam certos, o próximo cruzamento de caminhos se achava a uns cinco quilômetros, nas proximidades de Jaraba, outra povoação da alta Galiléia, igualmente desconhecida para nós. Nossa intenção era parar o menos possível, procurando alcançar a margem sul do Hule, como já disse, antes do anoitecer. O atraso no ponto próximo a Beth Saida Julias – batizado desde aquele momento como “clareira do ruivo” - não era significativo, mas também não devíamos nos descuidar.  Foi instintivo. Aqueles dois exploradores se detiveram maravilhados. O que se abria diante dos nossos olhos era mais belo do que imaginávamos. Lá embaixo, à esquerda da estrada, a cerca de um quilômetro, o alto Jordão descia lento e verdejante, como um dono e senhor. Nas duas margens das águas espelhantes, imensas plantações de frutas, hortas labirínticas, vinhedos carregados e uma endiabrada teia de aranha armada com açudes e canais. E entre verdes, ocres e cinzas, os perpétuos vigilantes do rio: os olmos esbranquiçados – os eshem -, agora amarelados e brigando inutilmente com as temperaturas elevadas. Dezenas de choças avisavam sobre a presença humana, apertadas umas contra as outras ou surgindo imprevisíveis entre disciplinados esquadrões de limoeiros, romãzeiras, amoreiras,
macieiras e a “luz”, as brancas amendoeiras, paradoxal e incompreensivelmente “nevadas”. Meu Deus!... Aquele era outro dos habituais cenários na vida do Filho do Homem! Como um “aviso” negro e cilíndrico, apontando para o incansável azul do céu, as torres de vigilância. Corpulentas atalaias de pedra basáltica de dez metros de altura, sempre vigiando, sempre carregadas de razão, sempre gritando que os kerem, os vinhedos sob sua tutela, eram sagrados. Assim dizia a Lei de Moisés. A gefen (a videira) e as anavim (as uvas) eram intocáveis. E durante o verão e o tempo da vindima, donos e patrões instalavam no alto – dia e noite – os melhores vigias. Embaixo, imprevidentes, enfeitadas de vermelho, distinguíamos algumas videiras bem carregadas, prontas para a colheita e escoradas com estacas. O pai Jordão – menos bíblico naquele curso que o propiciado pela segunda desembocadura – bendizia sem descanso a pouco célebre Gaulanítide. Contudo, eram terras de especial importância na existência de Jesus de Nazaré. Pouco a pouco o iríamos comprovando. Parecia como se a Providência tivesse investido tempo e esforços “extras” ao desenhar aquelas paragens. A meu ver, deviam ser percorridas por um Deus(6)... *6. A depressão do Jordão faz parte do grande vale denominado “falha sírioafricana”, se estendendo do norte da Síria até o rio Zambeze. Embora os especialistas não estejam todos de acordo, tudo parece indicar que o grande vale dividiu-se em dois trechos no Neozóico, que teria terminado há uns dois milhões de anos. Nesse período, apareceu a falha do norte (desde Bet Shean até o Hermon) e a do sul (até a Aravá). No final do Pleistoceno, parece, o mar penetrou a oeste, inundando essas depressões. Pouco a pouco, calcário, gesso e sal comum foram afundando, explicando assim o alto conteúdo salino dessas terras próximas ao atual Jordão. Movimentos tectônicos terminaram cortando a comunicação com o oceano e “apareceu” um enorme lago salgado: o “mar do Jordão” ou “mar de Lisan”. Há uns 25.000 anos, esse mar chegou à sua profundidade máxima, com uns 200 metros abaixo do nível do oceano. E depois de algumas mudanças – há 17.000 ou 15.000 anos – contraiu-se, formando basicamente o que hoje conhecemos: os lagos residuais de Tiberíades e Hule e o profundo mar Morto, ao sul. (N. Do m.)
Extasiados, continuamos em silêncio. À direita do solitário caminho, embora diferente, a paisagem não menos rica e exuberante. Pacientes e inteligentes, os felah haviam conquistado o abrupto perfil transformando planícies quase impossíveis nos cobiçados celeiros da alta Galiléia. Os campos de trigo e cevada – plantados entre abril e junho – se derramavam na direção leste como um mar negro, amarela agora em chamas pela queima dos restolhos. Ao longe, envolvidos em fumaça, grupos de camponeses pastoreavam um fogo fraco e inquietante, perigosamente estimulado pelo maarabit, o vento do Mediterrâneo. Nas regiões limítrofes, pirâmides de basalto altas, escuras e brilhantes, lembravam aos nativos e estrangeiros o titânico esforço dos galileus para domar aquelas montanhas. Nem uma única planície tinha ficado livre do minucioso trabalho de limpeza dos seixos e rochas vulcânicas que assolavam a região. Em algumas das “ilhas” os felah levavam em grandes carroças os últimos feixes de uma palha desgastada e queimada de sol. Mais adiante, as ayit, as oliveiras encurvadas, ásperas e cobertas de rugas, avisavam sobre o novo território e marcavam sem discussão a fronteira entre a humilde verticalidade do cereal e a altivez do bosque. Fiel ao profeta Oséias, o olival se engalanava discreto e distante. Os camponeses, escrupulosos e sábios, sabedores da permanente e lendária “sede” dessa espécie – a Olea europea -, procuravam plantá-la assim como recomendava a Lei: a uma distância de onze metros de uma oliveira a outra. Algumas das ayit, vencedoras, mostravam troncos enormes de até quatro ou cinco metros de diâmetro. Provavelmente eram testemunhas mudas de mil anos da história de Israel. E por trás dessa “milícia”, de novo o bosque, colonizando o norte e o oriente até os 800 ou 900 metros de altitude. Era assombroso. A massa florestal dominava o relevo. Disfarçada de horizonte verdeazul, confundia os céus. Verdadeiramente, a Palestina de Jesus de
Nazaré pouco ou nada tinha a ver com a Palestina de hoje. Pelo que fomos descobrindo, um esquilo poderia ter descido do Hermon até o mar Morto sem tocar o solo. Na primeira linha se apertavam as doces alfarrobeiras – os harw do Talud e da Misná -, respeitosas com o velho olival, com suas copas amplas, abertas e hospitaleiras a todas as aves. Por atrás, desafiadores e altivos, os ego, gigantescas nogueiras persas de trinta metros de altura, prontas para dar frutos. E entre a folhagem densa e aromática, suas “primas”, as nogueiras negras, uns intrusos e ladrões de luz de até cinqüenta metros de altura. Prudentes, os galileus haviam traçado numerosos corta-fogos que entravam e se perdiam na floresta. Semanas mais tarde, numa inesquecível incursão àqueles bosques, seguindo, naturalmente, o Filho do Homem, meu irmão e eu desfrutaríamos de uma excelente ocasião para explorá-los e conhecer de perto a vida de outro grupo apaixonante: lenhadores. Nem é preciso dizer que um desses “lenhadores” era, justamente, o afetuoso e sempre surpreendente Rabi. Ali, em algum lugar, ocultas entre nogueiras e alfarrobeiras, se erguiam três aldeias – Dardara, Batra e Gamala -, basicamente dedicadas à colheita da keratia (a vagem doce do haruv, a alfarrobeira) e da noz e ao corte do ego negro, de madeira dura e homogênea, muito apreciada pelos carpinteiros e marceneiros de interiores. A caminhada, enfim, foi um espetáculo. Cobrimos solitários e sem problemas os seguintes dois quilômetros e meio e, ao chegar à altura do miliário que anunciava a povoação de Jaraba (a duas milhas romanas: 2.364 metros), “algo” nos deteve. Inspecionamos os arredores mas, à primeira vista, não detectamos a origem da “martelada” prolongada e surda que encobria o familiar “chilreio” monótono das incansáveis cigarras. Eliseu apontou para o céu. Apesar do fortíssimo calor – talvez batendo nos 35 graus Celsius, inquietos bandos de pássaros flutuavam e desciam sobre os vales que separavam uma propriedade da outra, atacando “algo” que não
pudemos distinguir por causa da distância. Continuamos devagar, com cautela, imaginando – não sei por quê – uma praga de serpentes. Talvez víboras, tão abundantes no estio e, sobretudo, nas zonas rochosas. Uma centena de passos mais adiante, tivemos a resposta. Meu irmão, desconcertado, recuou. Eram milhares... O caminho, as plantações à esquerda e os campos e blocos basálticos da direita ferviam. O que fazer “Aquilo” nos barrava literalmente a passagem. Não pareciam agressivos, mas... Eliseu, decidido, tocou um dos incríveis exemplares com a ponta da sandália. Na hora, o “indivíduo” fugiu com um pulo ágil e vertiginoso, com tão má sorte que foi bater e se enganchar no peito do surprendido engenheiro. Ele o tirou com golpes rápidos da mão e, lívido, me interrogou com os olhos. Pouco faltou para que eu caísse na risada. Mas o susto do meu amigo recomendava prudência. Pensei em limpar o caminho com o laser de gás. A “carnificina”, contudo, me pareceu fora de proporção. Só restou uma alternativa: atravessar por cima da praga o mais rapidamente possível. Dito e feito. Cobertos com as mantas e correndo, os dois exploradores se lançaram na pista, triturando a cada passada várias daquelas “máquinas devoradoras”. Ao deixar aquele “inferno verde”, respirando fundo e, suados, não pudemos esconder uma cortante sensação de ridículo e começamos a rir como pobres tolos impotentes. Quando chegou a hora, “Papai Noel” nos deu conta da natureza e das “atividades” desses insetos. Porque afinal se tratava de outra das pragas habituais do verão na Palestina que Jesus conheceu. Segundo o computador, esses gigantescos ortópteros – de dez a
doze centímetros de comprimento – recebiam o nome de Saga ehipigera, embora os judeus os batizassem de “devoradores verdes”... e com razão. As enormes cigarras, com asas rudimentares, apresentavam uma tonalidade verde garrafa com franjas brancas ou marrons no ventre. E para onde fossem, levavam a morte verde. Nada resistia à sua voracidade: plantas, outros insetos, rãs, lagartos, serpentes e até pássaros do tamanho de uma andorinha. Cresciam na primavera e no verão – como os gafanhotos -, migravam para Israel, assolando tudo que aparecia pela frente. Em várias ocasiões, ao longo daquele terceiro “salto”, teríamos a má sorte de bater de frente com os saga. E a experiência foi sempre desagradável. Os órgõs bucais, enormes, agarravam a pele, cortando-a como navalha. Eram mais ativos durante a noite. Quando alguém dormia ao ar livre, de repente, sem nenhum aviso, podia ser literalmente “sepultado” pelos devoradores”, que não distinguiam plantas, animais ou seres humanos. Os felah combatiam essas pragas com muita dificuldade, usando o fogo claro, com a ajuda inestimável das aves, que se precipitavam sobre eles em grandes bandos. Se um pássaro, contudo, fosse atacado pelos “devoradores” dificilmente chegava a retomar o vôo. Em segundos, outros, “devoradores” caíam sobre ele, deixando só ossos. Nesse caso, os penetrantes silvos dos abelharucos multicolores alertavam outros “inquilinos” da zona, que se apressavam a compartilhar a festa. Até os “guarda-rios” (martim-pescador de peito branco) abandonavam seu plácido território no Jordão se aventurando na tórrida atmosfera daquelas elevações. E com eles, outras entusiasmadas famílias de cotovias, gaviões e calhandras de cabeça negra. A “caça”, em certas ocasiões, se prolongava por dois ou três dias, transformando aquelas paragens num mare-magnum de saltos, chorinhos, “marteladas” e incessantes planadas e bicadas. Mas as surpresas não haviam terminado. Recuperados do susto, depois de limpar os roupões dos pegajosos e recalcitrantes “devoradores”, decidimos dar uma boa respirada. À
sombra de um dos blocos de basalto que escoltavam de perto o caminho, tratamos de matar a fome, pegando as provisões fornecidas por Camar: ovos crus, grãos de trigo tostados, cenouras, nozes, figos secos e tâmaras. Uma dieta obrigatória, rica em vitaminas E e C. Estávamos nisso quando, por cima do monocórdio canto das cigarras negras, tivemos a impressão de ouvir “algo”... O som estava por perto. Levantamo-nos e tentamos localizar o lugar de onde viera o barulho. Repetiu-se pela segunda vez. Trocamos um olhar. Parecia um grunhido. Seria um animal? 211 Naquele tempo, e naqueles bosques, eram freqüentes o urso e um tipo de javali de cabeça grande e presas curtas e temíveis como adagas ou, o que era pior, os bandos de cães selvagens, geralmente famintos e impiedosos. Deslizei o dedo até o extremo superior da “vara de Moisés” e me preparei. Meu irmão caminhou alguns metros, rodeando parte do negro círculo de basalto. “ Terceiro grunhido. Imitei Eliseu e, inquieto, avancei devagar a dois ou três passos das pedras, seguindo o flanco oposto. O estranho som, claramente gutural, vinha de algum ponto do penhasco. Não sei explicar mas, ao ouvir de novo o singular “lamento” (), uma imagem me veio de repente à memória. Tratei de desfazê-la. Isso não era possível... De repente, Eliseu me alertou. - Jasão!... Aqui!... Rápido! Corri ao lugar e segui a direção apontada pelo meu companheiro. - Não pode ser... Meu irmão, intuitivo, exclamou: - Eu sabia... Alguma coisa me dizia que isso ia acontecer... Eu também acertara. O pressentimento fora atinado. - Bem – ponderou Eliseu, adiantando-se aos meus pensamentos -, e
daí? Eu não soube o que responder. - Isso não é casual... Concordei. No alto de um dos penhascos, agachado e encolhido, nos observava um “personagem” que havia pouco conhecêramos: o ruivo! Mas como não o tínhamos visto? Como não tínhamos percebido antes sua presença numa caminhada tão longa? No fundo dava na mesma. A questão era que ele estava ali e, evidentemente, nos seguia por alguma razão. Com medo, ignorando nossos pedidos para que descesse, o garoto continuou em seu esconderijo. De vez em quando, como uma resposta para tudo, negava com a cabeça. Eliseu fez menção de subir pelas pedras. Lá em cima, soltando uns animalescos sons guturais, ele saltou mais para o alto, mantendo a distância. Meu irmão desistiu. Embora nos tivesse seguido, estava claro que não tinha intenção de fazer amizade. Nós lhe mostramos um pouco de comida, convidando-o a descer. Negativo. Outra vez negou com mãos e cabeça, acompanhando os movimentos com gritinhos fundos e agudos. Gritinhos de protesto e rejeição. Como fora incompetente! Então entendi. Mas, confuso, não tive coragem de dizer tudo ao meu companheiro. E vendo aquele infeliz, me senti de novo invadido pela tristeza. O que eu podia fazer? Nada, absolutamente nada. Enterrei o “achado” no íntimo e, carregando as mochilas, depois de lançar um último olhar ao rígido e refratário ladrãozinho, voltamos ao caminho, apertando o passo.
Uma centena de metros mais adiante, ao olharmos para trás, a criança havia desaparecido. Como era possível? Onde se escondia? Esquadrinhamos campos e fundos de vales. Inútil. Era como se a terra o tivesse engolido. E, preocupados, nos dispusemos a terminar aquele trecho da viagem. Logo veríamos o cruzamento de Jaraba. Voltaríamos a encontrá-lo? E se isso ocorresse, o que faríamos? Sem querer acabamos nos envolvendo numa polêmica difícil e tortuosa. Admitindo a remota possibilidade de que ele se juntasse a nós, que papel nos reservava o Destino? Aquilo não estava previsto. Eliseu, compassivo, não fez reparos. - Que mal pode nos acontecer se ele nos acompanhar? Talvez seja positivo para todos... Fui contra. A missão nos obrigava a ficarmos livres e sem nenhum compromisso. Quase estive a ponto de confessar minhas suspeitas. Se minha avaliação era correta, acolher o menino complicaria os nossos planos. Não houve saída. Teimoso, manteve-se em sua posição. Senti que começava a ter carinho pelo ruivo. Coisa terminantemente proibida pelo Cavalo de Tróia. Segundo as regras, éramos apenas meros observadores e, por nada deste mundo, devíamos nos envolver com sentimentos ou amoricos com os nativos daquele “agora” histórico. Claro, isso era o ideal. Pura teoria. Na prática – e como acontecia conosco e o Mestre -, as coisas eram muito diferentes. Mas, tão obstinadamente quanto meu companheiro, eu me agarrei às normas, rejeitando as sugestões do bem-intencionado Eliseu. O Destino, felizmente, deixaria o assunto no lugar que lhe cabia. - Vamos chamá-lo de “Denário”... Reclamei. - Vai ver ele tinha seu próprio nome.
Acho que nem me ouviu. E continuou fazendo planos. - É esperto... Podíamos lhe ensinar um ofício. Talvez procurar uma família para ele. Feliz, querendo vê-lo de novo, Eliseu parava de vez em quando, procurando inutilmente nos campos e colinas. Ao lembrá-lo da terminante proibição de intervir nos fatos que pudessem alterar o desenrolar natural dos acontecimentos, ele caiu na risada. E com sua habitual e cristalina espontaneidade, disse: - Teorias, puras teorias. Você sabe muito bem que só nossa presença já constitui uma descarada violação deste “agora”. Aí ele me pegou. - Além do mais – acrescentou, afundando o dedo na delicada ferida -, quem disse que nós, pobres diabos sentimentais, somos capazes de modificar o Destino? Se fosse assim, você acha que esta operação teria sido realizada? Arrematou convencido. - Não, querido major. Esse Destino ao qual você, agora, talvez com razão, distingue com uma merecida maiúscula, não teria autorizado isso. Essas palavras tão sensatas e justas me desarmaram. Pensei nelas durante muito tempo. Naquela operação de fato palpitava “algo” mágico. “Algo” misterioso e sublime que, por sorte, escapou à nossa percepção. Mas essa já é outra história... Ao dobrar uma curva, a conversa se perdeu. E voltamos à realidade. Diante de nós, lenta e cansada, apareceu uma caravana. Detivemos nossa marcha. Embora não houvesse motivo algum para problemas, ficamos alerta. Tratava-se de uma dúzia de redas – enormes e pesadas carroças de quatro rodas, puxadas por mulas esgotadas e resfolegantes. Saímos do caminho. Os homens da caravana, seminus, com as cabeças cobertas por
turbantes brancos e armados de paus e longos chicotes de couro, fustigavam sem dó os animais, forçando-os a acelerar o passo. Pelos gritos e blasfêmias, concluí que eram uma quadrilha de tírios. Falavam um idioma indecifrável para mim. A cada golpe, as mulas respondiam com um novo esforço. Mas as pesadas cargas, o chão solto e granulado e, sobretudo, a violência do sol iam sufocando os animais, fazendo-os tremer e titubear. E os cinco ou seis fenícios, mais animais que as próprias mulas, aumentavam as blasfêmias e chicotadas, deixando os exaustos animais quase mortos. Eliseu, indignado, desviou o olhar. Tentei averiguar o que havia dentro das carroças, a olho nu, mas era impossível. Estava tudo cuidadosamente coberto com densos galhos de feto. De repente, um dos caravaneiros parou perto de nós. E, suado, apontando na direção do yam, perguntou em aramaico se o caminho à frente estava aberto. Aquele, como já expliquei, era outro costume habitual nas sempre perigosas e imprevisíveis rotas da Palestina. Viajantes, burriqueiros e chefes de comboios trocavam informações quando cruzavam caminhos. Esclareci que tudo estava tranqüilo, exceto o trecho infectado pelos “devoradores verdes”. Ao ouvir isso, o homem murmurou alguma coisa em sua língua, cuspindo sobre os animais. Ficou em dúvida por alguns instantes e, em seguida, avançando até a cabeça das carroças, gritou alguma coisa. As mulas estancaram, mexendo as cabeças, nervosas. Os tírios se agruparam e, depois de ouvir aquele que nos havia interrogado, discutiram, golpeando os animais com os chicotes. Pareciam furiosos e contrariados. Prudentemente demos volta, retomando nossa marcha. Aos poucos passos, contudo, nosso interlocutor nos chamou aos gritos. Queria ter certeza. Descrevi a cena e, convencido, franziu o cenho, amaldiçoando sua alma, a do seu pai, dos seus defuntos, o “injusto deus Baal” e a maldita hora em que lhe ocorreu aceitar o transporte daquela água mineral...
Água mineral? Eliseu ficou interessado nessa carga curiosa e o tírio, contra vontade, com o pensamento concentrado nos “devoradores”, explicou que procedia das fontes do Jordão, perto de Panéias (Cesaréia de Filipe) ao norte. Mais à frente, verificaríamos. Tratava-se de fato da saudável água hipotermal (fria), baixa em minérios e de notáveis propriedades diuréticas. Aproveitei a ocasião e fiz a mesma pergunta que o fenício me fizera: - Sem problemas. Fiquei mais tranqüilo. Isso significava que o resto da rota estava aberto e sem conflitos. O rude caravaneiro, porém, com um sorriso malicioso, foi mais além, esclarecendo um ponto que sempre inquietava os viajantes. Em especial, os muito patriotas e os judeus mais ortodoxos. - Nem sinal dos kittim... até o cruzamento do Dabra. O sujeito voltou ao grupo e deu algumas ordens. Na hora, as cabeças das mulas foram cobertas com grandes e generosos sacos de aniagem. Dois tropeiros ficaram na frente do comboio e instigaram os indecisos animais a retomar o caminho. Desta vez em silêncio, sem golpes, devagar, tendo o medo como novo integrante da caravana. Fiz meus cálculos. A referida encruzilhada de Dabra estava quase ao sul do lago Hule. Ao cair da tarde, portanto, tropeçaríamos nos kitim (os romanos). Mas não tínhamos por que nos preocupar. Ao contrário. No nosso caso, as tropas auxiliares, destacadas na afastada região da Gaulanítide, sempre representavam certa segurança. Ou não? Fomos em frente e Eliseu, depois de esquadrinhar pela enésima vez os arredores procurando o desaparecido “Denário”, referindo-se à caravana, disse estar contente com a escolha do sábado para iniciar a procura do Mestre. Compartilhei sua alegria. Tivemos sorte. Em escolher outro dia, a estreita e descuidada “artéria” pela qual caminhávamos teria sido um suplício e uma fonte inimaginável de conflitos.
Sim, talvez seja o momento de abrir um parêntese e falar sobre isso. Tudo que vou falar fizera parte, além disso, do dia-a-dia no qual Jesus se movimentava. E acabou propiciando uma infinidade de historinhas e fatos mais ou menos importantes. Alguns deles, como veremos, denunciados pelos textos sagrados (?). Essa estrada, pela qual agora caminhávamos, era um dos eixos comerciais de maior intensidade e transcendência na vida da Palestina. Dia e noite, dezenas de caravanas cruzavam por ali numa direção e na outra. O tráfego era angustiante. No fundo, era lógico que fosse assim. Mais ao norte, na cidade de Panéias, a rota se ligava a outra igualmente vital: a que se dirigia a Damasco, pelo lado leste, e à buliçosa Tiro, na costa mediterrânea. Procedentes, assim, dos quatro pontos cardeais, afluíam nessa estrada todas as mercadorias imagináveis... e algumas vezes Essa florescente realidade não era nada nova. Embora a paz do imperador Augusto tivesse multiplicado a segurança geral, o comércio intenso aparecia refletido já nas palavras do profeta Ezequiel, 600 anos antes de Cristo(7). Referindo-se à vizinha Fenícia – mais concretamente a Tiro e Biblos -, ele faz um minucioso e exaustivo “inventário” de tudo que entrava nessas cidades costeiras. *7. No capítulo 27, versículos 9 ao 25, Ezequiel fala das relações comerciais entre algumas cidades fenícias e o resto do mundo. Entre outras coisas diz: “Os anciãos de Gebal (Biblos) e seus sábios estavam a teu serviço para reparar as tuas avarias. Todos os navios do mar e seus marinheiros estavam aí para assegurar teu comércio. Os habitantes da Pérsia, de Lud e de Fut serviam como guerreiros no teu exército... Társis era teu cliente, em virtude da abundância de todos os bens: permutavam a prata, o ferro, o estanho e o chumbo pelas tuas mercadorias. Javã (Jônia), Tubal e Mosoc (provavelmente Anatólia) comerciavam contigo, trazendo escravos e objetos de bronze em troca de teus víveres. De Bet Togarma (Armênia) traziam-te cavalos, cavaleiros e mulas como mercadorias. Os filhos de Rodã (Rodas) faziam comércio contigo, muitas ilhas (oceano Índico) eram teus clientes, trazendo como tributo dentes de marfim e ébano. Cliente teu era Edom (Síria) em virtude da abundância de suas mercadorias: trazia-te turquesa, púrpura, escarlate, bisso, coral e rubis em troca das tuas mercadorias. Judá e a terra de Israel exerciam comércio contigo,trazendo o trigo de Minit (país de Amon: a Decápolis ou a Peréia), pannag (possivelmente bálsamo), mel, azeite e resina em troca das tuas mercadorias.
Damasco era tua cliente, por causa da abundância de tuas mercadorias, da abundância de todos os bens, ela te fornecia vinho de Helbon (norte de Damasco) e lã de Saar (?). Dã e Javã, desde Uzal (beduínos), em troca das tuas mercadorias forneciam ferro trabalhado, canela e cana. Dadã comerciava contigo em artigos de montaria. A Arábia e todos os príncipes do Cedar eram teus clientes, negociando contigo em cordeiros, carneiros e bodes. Os mercadores de Sabá e de Reema (Iêmen) comerciavam também contigo, fornecendo-te toda a variedade de perfumes e de pedras preciosas e de ouro em troca das tuas mercadorias. Harã, Quene e Éden (alto e médio Eufrates) e os mercadores de Sabá, da Assíria e de Quelmad (também Mesopotâmia) comerciavam contigo. Traziam a teu mercado vestes finas, mantos de púrpura e brocado, tapetes multicolores e cordas trançadas. Os navios de Társis formavam tua frota comercial”. (N. do m.)
Muito bem, tanto na época como no ano 25, boa parte dessas inumeráveis e exóticas mercadorias passava obrigatoriamente pela “artéria” à qual me refiro sempre paralela ao rio Jordão. Como é fácil imaginar, o próspero comércio envolvia povos, línguas e costumes, religiões e problemas de mil origens e natureza, transformando a Gaulanítide num cenário internacional e atraente. E a onda humana – é bom não esquecer - foi testemunha, em numerosas ocasiões, das palavras e prodígios do Galileu. Se tivesse que sintetizar esse rico trânsito de raças, culturas e mercadorias, eu o dividiria em quatro grandes grupos, segundo os pontos de partida. A saber: Os que procediam do norte e oeste. Nas prolongadas permanências na região, assistimos a um transporte contínuo, quase diário, a partir dos espessos bosques da Fenícia (hoje Líbano), das mais nobres e cobiçadas madeiras. Por essa estrada, rumo a Israel, a Nabatéia, etc., circulava o “rei” das árvores, o cedro, em comboios intermináveis e lentos. Junto com os troncos, ou a madeira já cortada, os fenícios exportavam também o caro azeite balsâmico que se extraía dos cedros e que os egípcios usavam para os rituais de mumificação de seus príncipes e faraós. O Egito também era o principal consumidor de coníferas, mer (uma árvore de madeira vermelha) e utilizados na fabricação de navios, mastros, móveis e ataúdes. O mer, sobretudo, era talhado na região de Nega, famosa por seus bosques impenetráveis.
Do norte também vimos desfilar, em todo tipo de carroças e animais de carga, ritios e sidônios, orgulhosos com uma de suas grandes invenções: o vidro. Aquela era uma das mercadorias mais comuns na região. O notável vidro fenício, cujo segredo de fabricação foi roubado, quase inteiramente, dos egípcios(8), chegava a todas as partes. O baixo custo seguido por Tiro e Sidon repercutia nas vendas, fazendo com que as jarras, cálices, garrafas, vasilhas, pratos, contas e telhas vidradas pudessem entrar até mesmo na casa dos mais humildes. Pouco a pouco, as peças transparentes iam substituindo as de barro e madeira. E junto com a “especialidade” da Fenícia – o vidro delicado e barato, havia outra não menos próspera fonte de renda para a vizinha costa nortista: a púrpura, a marca dos fenícios. Os hábeis comerciantes enviavam os tecidos já tingidos, sempre em carroças fechadas e permanentemente vigiadas, a todo o mundo conhecido. Em poucas ocasiões aceitavam vender os pequenos gasterópodos, dos quais extraíam a apreciada tintura preciosa. Nesse caso, os cântaros bojudos ou os cestos de vime que transportavam a tintura viajavam sempre à noite e, repito, fortemente escoltados por mercenários(9). Ao contrário do vidro, a púrpura era um artigo de luxo, ao qual só os mais poderosos tinham acesso. *8. Cerca de 4.000 anos a. C., os egípcios, parece, já conheciam a arte de fabricação do vidro. Utilizavam para isso areia, cinzas vegetais, carbonato de cal terroso e salitre, produzindo uma pasta opalina que teve muito sucesso. É claro que os espertos fenícios ficaram com os segredos dessa fabricação, melhorando-os. Daí surgiria toda uma florescente indústria. Mas os habitantes de Tiro e Sidon inventaram um vidro transparente que causou furor. Não contentes com isso, ainda inventaram uma produção “em série”, inundando os mercados e barateando o preço. Pouco a pouco, os artesãos descobriram a técnica do sopro, e o negócio, simplesmente, os transformou em homens imensamente ricos. As caravanas transportavam o vidro, bem fundido, bruto ou delicadamente talhado e perfilado. (N. Do m.) 9. O molusco – do gênero Murex brandaris ou Murex trunculus – era então muito abundante nas costas da Fenícia. O corante era obtido por meio da segregação das glândulas do tal gasterópodo. Para conseguir um só grama de púrpura, os fenícios tinham que sacrificar ao redor de 10 mil Murex. Por isso o apreciado produto era sempre muito bem guardado e vigiado. (N. do m.)
A cor em si, naquela época, era símbolo de realeza e de máximo poder. Algo que nasceu justamente do humilde Murex. Numa aberta concorrência com os fenícios, outros países, Israel inclusive, trabalhavam numa púrpura de menor qualidade e brilho que obtinham de um inseto parasita denominado precisamente “púrpura”. Mas a escassez do inseto e o processo trabalhoso tornavam essa púrpura descafeinada um produto ainda mais caro que a genuína. Dos portos de Tiro, Biblos, etc. Chegava também a essa “artéria uma infinidade de comboios ou comerciantes solitários carregando um produto que nos deixou maravilhado: todo tipo de esculturas – ídolos animais e belíssimas representações de cidades em miniatura – talhadas em marfim adquirido na Ásia, África e nas remotas costas da Europa setentrional. Havia marfim de elefante e de morsa. Dessas oficinas fenícias saía igualmente a mais abundante e artística coleção de vasilhas de ouro, prata e bronze que se possa imaginar. Com uma delicadeza peculiar, os oleiros do Sidon conseguiam vidrar a argila, fazendo dela jarros, pratos e diminutos frascos de perfume que nada ficavam a dever ao vidro autêntico. A longínqua Cartago também fazia parte dessa intrincada rede comercial, oferecendo, sobretudo, “algo” que ficou na moda entre as donas de casa da região: ovos de avestruz, previamente esvaziados e decorados com cores vivas. Alguns alcançavam preços exorbitantes. Os judeus ortodoxos, contudo, rejeitavam esses ovos, chamando os seus compradores de idólatras. E não foram poucas as brigas e disputas provocadas por essa “novidade”. (Como podemos lembrar, Yaveh proibia a representação de imagens.) Por essa artéria concorrida entravam, também, os mais surpreendentes produtos: alcachofras, carne e peixe em salmoura da Ibéria, armas, braceletes e colares de Cirene, carne apimentada da Gália, mel e queijo da Sicilia, gansos da Bélgica, minerais da Germânia, Grã-Bretanha, Itália e África, linho e trigo do Egito, vinho das campinas gregas, cipriotas e italianas, peixe de Córcega, limões de Numídia e, naturalmente, a produção da própria Gaulanítide (papiro, canas e aves das lagoas do Hule, a apreciada carne de gado de seus sempre verdes pastos nortistas, trigo, cevada, mel, flores e peixe, entre outras especialidades).
Mercados do leste e do sul. Se tudo isso aqui mencionado já era por si avassalador, aquilo que chegava das misteriosas China e Índia e da Arábia, mar Vermelho, Núbia não ficava atrás. Quando as vistosas caravanas desembocavam por fim no alto Jordão, na rota de Damasco, ou pelo sul do yam, o trânsito sofria inúmeros e endiabrados congestionamentos, ora divertidos, ora trágicos, com as freqüentes confusões, brigas e abusos de todo tipo. Esta, insisto, era a paisagem habitual que o Mestre e aqueles que o acompanharam em muitas e freqüentes idas-e-vindas pela Gaulanítide contemplaram. Procedentes do velho e mítico caminho da seda, hindus e orientais, mil tipos e condições, atravessam Israel oferecendo primorosos tapetes, pimenta, nardo, algodão, cavalos, finíssimos instrumentos musicais, rosas secas, jade, a inevitável e apreciada seda e até jogos malabares. Era uma delícia... Desde o princípio, desfrutamos essa realidade com aquele mar de gente, em geral aberta, respeitosa e desejosa de agradar. E sem falar do Filho do Homem... Bem, mas eu devo me conter. Tudo em seu devido tempo. Talvez os mais espetaculares fossem os traficantes árabes, originários, em sua maioria, dos reinos de Sabá, da Nabatéia e dos austeros desertos do Nafud, ao norte da Arábia. As pessoas mais humildes, sobretudo, os recebiam com especial entusiasmo. Os altos “barcos do deserto” (os camelos), sempre mal humorados e malcriados, os brancos e generosos abba de algodão dos homens, as alegres e multicoloridas roupagens das beduínas - com os rostos tatuados -, as lojas de peles, os falcões encapuçados que habitualmente os acompanhavam e as cálidas danças e gritos rituais faziam desse povo todo um espetáculo. E na sua passagem, crianças e adultos ficavam hipnotizados. Com eles chegava a mirra (vital para a elaboração de perfumes e cosméticos), o custoso bálsamo (em dura concorrência com o
cultivado em Jericó e no oásis de En Gedi, na costa ocidental do mar Morto), os volumosos cestos de incenso (consumido em toneladas no Templo da Cidade Santa), O alcatrão (imprescindível para calafetar embarcações e embalsamar cadáveres), outras madeiras finas como o buzo e a cidreira, pássaros exóticos das costas e ilhas do mar Vermelho e do golfo Pérsico, e o não menos procurado indigo (um corante natural que embeleza os tecidos e que fazia enorme sucesso entre as classes abastadas)(10). Eliseu de fato tinha razão. Tivemos sorte. O Destino, outra vez, fora compassivo. Aquele sábado foi uma exceção. O tráfego, por conta do calorent mês de elul (agosto), era fraco, quase nulo. Por fim alcançamos o miliário que anunciava o desvio em direção à vizinha povoação de Jaraba. Impacientes, aceleramos... Ali – por que não? -, nos aguardavam o Destino!... e “alguém” mais. Como podíamos imaginar algo assim? Mas ali estava... A escassa distância da encruzilhada, num dos pontos mais distantes do Jordão (ao redor de dois quilômetros), divisamos um notável tumulto. Instintivamente, reduzimos a marcha. O caminho estava todo tomado por uma fileira de cavalgaduras. E começamos a ouvir gritos e inevitáveis blasfêmias. Meu irmão fez um gesto de quem intuía problemas. Mais uma vez acertou. *10. Esta substância, originária da Índia, ao que parece, se extraía das folhas do anil (Indigofera tinctoria). Os egípcios, uma vez mais, foram os grandes exportadores da tintura já elaborada. Para isso esmagavam as folhas com canas, obtendo um líquido que, no contato com o oxigênio do ar, mudava para uma bela tonalidade azul. O índigo era uma mistura que continha cerca de 90 por cento de indigonita (índigo azul) e 10 por cento de outros elementos residuais (basicamente indirrubina ou vermelho de índigo). Depois se cozinhava, impedindo a fermentação e desativando assim as enzimas. Outros
povos, como os romanos, o utilizavam como cicatrizante e elemento base para a preparação de cosméticos. As romanas, por exemplo, apreciavam-no muito para sombrear os olhos. Devido à sua natureza molecular e à grande estabilidade, aguenta fortes lavagens. Coisa que não se ignorava já naquela época. Na Europa só seria introduzido por volta do século XVI. (N. do m.)
Ao chegarmos ao final da caravana, procedente sem dúvida do yam, de outras latitudes mais meridionais, não soubemos o que fazer. Dar a volta seria perda de tempo. Por outro lado, a grande excitação dos estrangeiros – quase todos negros -, correndo de um lado para o outro e batendo com paus nos enormes asnos, nos deixou intrigados, forçando-nos a passar no meio dos animais. Nunca, até aquele momento, eu havia visto burros tão vistosos e espetaculares. Tinham uma fronte considerável (quase um metro e meio), orelhas largas e altaneiras sobre cabeças amplas, nas quais se destacavam focinhos brancos como neve. Mas o mais chamativo era a cor da pele, quase rosada, com uma cruz de Santo André nas costas e uma mecha grande de crinas cinzento-avermelhadas no final dos rabos. Agitados com os próprios relinchos causados por tão cruel castigo, os animais se mexiam inquietos, tropeçando uns nos outros e pondo em perigo volumosas ânforas que carregavam nas costas. O caos logicamente, foi engrossando. Os negros, vestidos com túnicas vermelhas que tocavam a terra, tratavam de acalmar os animais, dando gritos estridentes e, o que era pior, varadas violentas sobre patas e ventres. Mais de um dos negros teve de pular rápido, para evitar os coices certeiros, agressivos e mais que justificados dos aturdidos jumentos. Nós também levamos uns bons coices, coisa que não desejamos a ninguém. Finalmente, ao sair daquele manicômio, demos com uma muralha humana. Por que não obedeci ao meu instinto? Por que não evitamos o tumulto? O que teria sido um atraso de dez ou quinze minutos Era só entrar nos vales que separam as propriedades ao longo da rota para sair fora do desastre... A princípio não distinguimos nada. O grupo de homens, quase todos vendedores naquele cruzamento de caminhos, formava um
apertado círculo gritando e gesticulando na maior confusão. Eliseu, cada vez mais intrigado, tratou de abrir caminho, numa tentativa de averiguar o que provocava toda aquela excitação. Eu o deixei à vontade. Quanta incompetência minha! Eu devia tê-lo tirado daquilo tudo, afastando-nos do lugar e do que nos esperava. Allguns galileus, indignados, levantavam as vozes contra o resto dos seus conterrâneos, pedindo justiça e chamando os kittim. Outros, igualmente ferozes, chamavam alguém de “gentio sujo” e “assassino”. Temi o pior. Nós também éramos estrangeiros e, inconscientemente nos havíamos colocado no olho do misterioso furacão. Não houve tempo nem possibilidade de reagir. Vários daqueles energúmenos, ao perceber a presença e a insistência de meu irmão em chegar ao interior do círculo, se voltaram contra ele e, confundindo-o com um dos integrantes da caravana, partiram para os golpes, empurrões e chutes, derrubando-o. O céu quis que a “pele de serpente” o protegesse e que eu, rápido como um raio, acionasse os ultra-sons, deixando três deles fora de combate em questão de segundos. Atônito, sem saber o que fazer nem para onde olhar, o resto da turba retrocedeu, incapaz de articular qualquer palavra. Gritos, impropérios e ameaças cessaram ali mesmo, ficando no ar a algazarra de negros e asnos e, é claro, um “protagonista”: o medo coletivo e insuperável. Ajudei meu companheiro e trocamos olhares significativos. Ele concordou com a cabeça. Estava bem e convinha nos afastarmos daquele lugar o quanto antes possível. Não devíamos brincar com a sorte. Mas as surpresas estavam só começando... Eliseu, ao descobri-lo, esqueceu-se da regra, e precipitou-se ao seu encontro. Eu, tão desconcertado como o engenheiro, não soube reagir.
Bendito Deus! Aquilo era a última coisa que eu havia imaginado. Olhei para os pasmados e silenciosos vendedores. Pareciam estátuas. Mas eu não podia confiar nisso. Em questão de minutos, os exaustos companheiros cairiam em si e sabe Deus o que aconteceria então... Devagar retrocedi, sem perdê-los de vista, e fui-me juntando ao trio integrado por Eliseu, um altíssimo indivíduo de quase dois metros, também de joelhos, na metade do caminho, e a “causa” de toda aquela enorme confusão. O gigante, visivelmente arrependido, sem poder conter o pranto, abanava o corpo sem parar para a frente e para trás, alternando as lágrimas com curtos gemidos agudos. Meu irmão, suplicante, fez um gesto para que eu interviesse. E devagar, segurando o extremo superior do cajado, sem deixar de controlar os galileus, eu me inclinei sobre a “vítima”. - Morreu? O espigado e choroso homem, entendendo o aramaico do meu companheiro, intensificou seus lamentos. Tomei o pulso da vítima. Estava um pouco lento, mas normal. E inspecionei a cabeça, procurando alguma fratura. Negativo. Só as costas apresentavam algumas equimoses, provocadas pelo extravasamento de sangue sob a pele. Aparentemente, alguns edemas locais de menor relevância. Interroguei o desconsolado indivíduo e, entre incontáveis soluços, acho que entendi que alguns dos seus asnos haviam derrubado e pisoteado a vítima. Parece que o menino não vira chegar a caravana e caíra sob as patas do animal, que agora era castigado. Apalpei os pequenos inchaços do Líquido seroalbuminoso e, como imaginava, a dor reativou o inconsciente do ladrãozinho, acordandoo. Abriu os atraentes olhos verdes e, confuso, nos olhou um a um.
Imaginei que, uma vez mais, tentaria escapar. Mas eu me equivocara. Ao reparar em Eliseu, subitamente, sem medir palavras, lançou-se sobre ele, abraçando com força o peito do explorador. E diante da surpresa geral, caiu num pranto amargo e ruidoso. Meu irmão me olhou. Eu sorri e dei de ombros. E terno, gratamente surpreso, muito devagar, hesitante, foi dar um abraço na criança, retribuindo o gesto afetuoso dela. Pelo que pude constatar, o jovenzinho só apresentava contusões de primeiro grau. Nada sério. Ao observar a recuperação do atropelado, os imóveis vendedores se agitaram nervosos. Eu me levantei e, disposto a agir de imediato, coloquei-me entre os dois bandos. Não foi necessário. Os galileus, temerosos, retrocederam até as banquinhas. E com um sinal, sem perder tempo, meu companheiro colocou o “Denário” nos ombros. Era bom colocar distância entre nós e aquela gente... E assim foi. O gigante, reconfortado diante do final inesperado, reagiu com idêntica rapidez, restabelecendo a ordem na caravana e retomando sem demora a caminhada. Ao perder de vista a encruzilhada, paramos. O menino havia parado de chorar e, dócil e contente, continuou sobre os ombros do meu amigo. Por uma questão de prudência, preferi esperar a caravana para nos juntarmos aos negros das túnicas vermelhas. A viagem em grupo era mais agradável e segura. O condutor e chefe, mais calmo agora, acolheu-nos de braços abertos, bendizendo a hora em que aqueles gregos haviam cruzado seu caminho. E o homem tornou aprazível a caminhada, contando-nos sua agitada existência. Assim ficamos sabendo que ele se chamava Azzam, que em árabe significa “bom homem”. Era, de fato, um beduíno, nascido no deserto de Neguev, ao sul de Israel.
Durante sua juventude fora um gazou, um bravo guerreiro, sempre envolvido em investidas ou conflitos com outras tribos. Um dia abandonou tudo e dedicou-se ao tráfico de escravos. Viveu no Egito e na Núbia. Finalmente, formou uma empresa, especializando-se na fabricação e venda do “vinho de zimbro”(11). Este, justamente, era o carregamento que transportava sobre os dorsos dos curiosos jumentos núbios, uma espécie hoje extinta. Sua intenção era chegar a Damasco e ali vender a preciosa carga.
*11. Este cobiçado “vinho”, consumido habitualmente por gentios e judeus, era extraído do fruto do Juniperus phoenicia ou comminis, do qual existiam grandes plantações ao norte do Sinai, nos pedregais vermelhos de Edom, ao sul do mar Morto, e no deserto do Neguev. Uma vez maduro, era triturado, a ele acrescentando-se água previamente fervida a 30 graus Celsius. Ao fermentar, obtinha-se o licor citado. Alguns o destilavam, conseguindo um líquido forte, coisa para macho. Também era adquirido para aromatizar a carne e para uso medicinal. (N. do m.)
Duas horas mais tarde, em frente da pedra miliar que informava a encruzilhada seguinte, decidimos nos despedir, separando-nos do comboio. Azzam, que fazia jus ao seu nome, benzeu-nos, pedindo à brilhante estrela matutina que guiasse nossos passos. Abraçamo-nos e, antes de partir, o “bom homem” nos presenteou com uma cabaça de vinho, repleta daquela beberagem forte e transparente, mais ou menos parecida com a nossa genebra(12). Não podíamos rejeitar. Seria um insulto. Curioso Destino... Algum tempo depois – em plena vida pública de Jesus de Nazaré -, voltaríamos a encontrá-lo. E em que circunstâncias! Na verdade, o mundo é muito pequeno... O sol, tão esgotado quanto nós, fugia em direção ao oeste, concedendo o perdão e deixando os homens livres. Aceleramos. Só restavam duas horas de luz e o lago Hule, se eu não estava errado, ficava ainda a cinco pedras miliares (quase seis
quilômetros). Ao contemplar meu irmão, feliz e confiante, com o ruivo silencioso sobre os ombros, voltaram-me as velhas dúvidas e receios. Ele havia feito as coisas à sua maneira. Muito bem. E daí? Devia eu dizer-lhe isso? Seria conveniente dar-lhe os antecedentes do mal de que, com toda certeza, o garotinho sofria? Não me atrevi. Era melhor deixar isso para outra ocasião. Talvez ele terminasse descobrindo tudo. Era irremediável. Sim, uma vez mais eu me entreguei nas mãos do Destino. Ele “sabia”.. Imerso nessas reflexões, precisei de um tempo para perceber que estava esquecendo de uma coisa vital: as referências geográficas. Procurei espantar essas angústias concentrando-me no que tinha à vista. A partir do cruzamento de Jaraba, a paisagem mudou. O Jordão, cada vez mais distante do caminho, desapareceu por trás de uma nova onda de oliveiras. Hortas e plantações ficaram mais abaixo, à esquerda, agora ressuscitadas por um sol oblíquo em retirada. *12. Genebra: bebida alcoólica fabricada com aguardente em que se destilam bagas de zimbro. (N. Do t.)
O caminho caprichoso, continuava vencendo declives e depressões. Calculei que o abrupto perfil já alcançava 800 ou 900 metros. À direita, as nogueiras e alfarrobeiras dos quilômetros anteriores foram substituídas por outro horizonte imenso, espesso, verdeescuro, no qual dominavam a ramagem tortuosa dos carvalhos do Tabor (os sagrados allon) e as suaves copas desgrenhadas dos azinheiros (os et shemen), conquistadores veteranos daquela agreste e belíssima Palestina de Jesus de Nazaré. De vez em quando, fugindo da escandalosa reunião das aves e das réstias de luz amarela no meio da mata cerrada, apareciam tímidos no caminho os ar, os loureiros espartanos e sofridos, convertidos, incompreensivelmente, em aprendizes de árvores. Aquele, desde então, foi o “trecho dos ar”. Ao vencer uma das ladeiras rebeldes, exaustos, vimos por fim a encruzilhada de Qarrin.
Surpresa. Uma edificação! Era a primeira nos 17 quilômetros percorridos desde Nahum. Erguia-se negra e descuidada, à esquerda do caminho e a curta distância da bifurcação. Talvez a dez ou quinze passos além. A julgar pelo lugar e pelo perfil inconfundível, deduzi que se tratava de uma mutation, uma hospedaria e estação destinada à troca de cavalos. Igual às pousadas que já havíamos visitado, esta tinha dois andares, mas com um “detalhe” que a distinguia das anteriores: era cercada por uma muralha espessa de quase três metros de altura que a protegia toda, formando um retângulo de cerca de 50 metros de lado. Estávamos na Gaulanítide, terra de bandidos, proscritos e indesejáveis. Essa lamentável realidade justificava a enorme muralha escura e ostensiva. Assim os viajantes sentiam-se mais seguros. Observamos atentamente. Outro incidente teria sido demais... Tudo parecia tranqüilo, adormecido. Ao pé da muralha, em ambos os lados do caminho e nas margens da encruzilhada, cochilavam e conversavam os inevitáveis vendedores. Nessa ocasião, mais de cinqüenta. Era lógico. Aquela ramificação conduzia à mencionada Qarrin, um laborioso povoado com pouco mais de três mil almas, situado a seis quilômetros dali, cercado de bosques e montado sobre um penhasco, a 900 metros de altitude. Uma plácida aldeia de lenhadores e félah que oportunamente iríamos percorrer à sombra do Galileu. Os carvalhos e os pinheiros de Alepo, empurrados pelos camponeses, haviam retrocedido. Em seu lugar, alguém, paciente e delicadamente, plantara uma formação marcial de oliveiras. Havia centenas delas, traçadas com rigor simétrico e anestesiadas pelo furioso ciciar das cigarras. Rachadas e epilépticas, se perdiam em direção ao norte, civilizando, à sua maneira, a paisagem primitiva. Ao fundo, bem perto do albergue, uma pontezinha de troncos saltava, alegre e ágil, sobre um ivadi, pelo qual fugia, cristalino e
apressado, um riacho de pequeno porte. A pesada carga do estio calorento, o modesto tributário do Jordão via acrescentada agora a não menos irritante presença de uma molecada nua, turbulenta e feliz. Ao descobrir os meninos, “Denário” emitiu um gritinho áspero. E deslizando pelas costas de Eliseu, correu ladeira abaixo, reunindo-se ao grupo festivo. Sem vacilar, de um pulo mergulhou nas águas refrescantes, misturando-se com os outros meninos. Surpreendido, meu irmão não soube o que fazer. Eu o tranqüilizei, explicando que o banho, além de tirar parte da sujeira, acalmaria a dor das costas, provocando uma vasoconstrição e a conseqüente e benéfica redução dos edemas. Avançamos em silêncio. Observei Eliseu de soslaio, mas não vi sinal de que tivesse detectado a doença do ladrãozinho. Estaria cego? Como era possível? O último grito, gutural, quase estrangulado, era um sintoma inequívoco. Ao chegarmos à encruzilhada, como era de prever, os felah se mobilizaram. Fizeram gestos para que nos aproximássemos. Mas não era essa nossa intenção. E ao perceberem que iríamos passar direto, alguns, os mais decididos, vieram ao nosso encontro, mostrando seus produtos entre intermináveis falatórios e fingidas reverências. Meu irmão, sempre afável e condescendente, parou, examinando as mercadorias. Eu me conformei. A zona, como eu disse, rica em bosques, oferecia aos nativos uma boa porção de produtos derivados das alfarrobeiras, carvalhos, azinheiros e loureiros. O produto mais abundante era a semente do haruv (alfarrobeira); colocada em cestas e sacos. Eram vagens marrons, de polpa açucarada e rica em cálcio, consumidas tanto pelo povo quanto pelo gado (em especial, pelas grandes varas de porcos existentes na margem oriental do yam). As vagens eram vendidas frescas, secas ou moídas. Com a farinha faziam tortas saborosas, muito apreciadas por homens e mulheres que queriam conservar a linha. Quando estivemos em Qarrin, descobrimos com assombro toda uma “indústria”, baseada
precisamente nessa semente, keratia. Os camponeses moíam-na, obtendo um pó ocre com o qual adoçavam bebidas e sobremesas. A engenhosidade dos felah ia bem mais além. Esse pó era misturado com ovos, leite e mel, e o resultado – convertido em tabletes – era exportado como um tipo de “chocolate”. A keratia, enfim, além de ser utilizada como medida de peso para o ouro(13), servia para a extração de uma seiva cor de âmbar que perfumava os cosméticos. Eliseu, perplexo, me chamou. Intrigado, respondi no ato e, ao verificar o conteúdo, balancei a cabeça. Ao pé da enorme muralha, de fato, outra banquinha oferecia ao sedento caminhante um líquido loiro, de grande consumo entre judeus e gentios. Este que aqui escreve já observara isso em explorações anteriores. Em grandes jarras de vidro ou cerâmica, enterradas na neve procedente do Hermon, aquele galileu vendia cerveja... Uma cerveja leve e até bebível, fruto da fermentação da cevada. No processo, o amido se transformava em açúcar e, posteriormente, num álcool de baixa graduação e em dióxido de carbono. Os recipientes, providos de coadores (parecidos com os coadores das chaleiras atuais), forneciam o líquido limpo, sem os resíduos da casca da cevada. *13. O termo keratia (grego) deu lugar ao nome científico dessa semente (Ceratonia). E foram precisamente os gregos que descobriram que os grãos da alfarrobeira mantinham sempre o mesmo peso (200 miligramas), sendo aproveitados como medida eficaz para pesar o ouro (carat). Num princípio, a onça tinha 140 carates. Daí a denominação “quilate”. (N. do m.)
Faltou pouco para que pedíssemos duas doses. Mais adiante, afastados os inevitáveis escrúpulos, desfrutaríamos, em mais de uma ocasião, dos oportunos e benéficos postos de cerveja. Naquela zona estratégica do “mercadinho”, ao longo do muro frontal ao albergue, os vendedores eram mulheres. Hebréias, beduínas e egípcias, tão faladoras, encrenqueiras e descaradas como os homens... Ou até mais. Ao passar perto delas, o bem apessoado Eliseu teve de agüentar todo tipo de “gracinhas”, destinadas, naturalmente, a atrair a atenção dos viajantes sobre as mercadorias. Mas o tímido engenheiro, resfolegante e vermelho como um pimentão, não captou
a intenção das mulheres. E apertou o passo. Mas tudo estava previsto entre as astutas matronas veteranas. De repente, dada uma ordem coletiva, vários pirralhos que as acompanhavam cortaram o passo nervoso do meu companheiro. E o arrastaram como a um tonto até as tigelas e cestas. Ele aprenderia logo... Imagino que meu sorriso aberto o tenha acalmado. No fundo, como em todas as épocas, elas só queriam vender. Entre os produtos à venda estavam também os frutos habituais da região: sementes e cascas de pinheiro do Alepo e de loureiro. As primeiras, soltas ou cobertas de mel, “muito adequadas para aqueles que sofriam de impotência sexual”, segundo as maliciosas mulheres. Eliseu, meio recuperado, respondeu que esse não era o seu caso. E as vendedoras, cáusticas, fizeram coro, fazendo enrubescer de novo o inocente explorador. Ele se defendeu como pôde e, obviamente, fui eu a “vítima”. - Você pensou no seu “namorado” Talvez ele agradeça. Neguei nervoso. Tarde demais. A turma, divertindo-se, caiu em cima de mim. E tive de suportar as mais mordazes insinuações. Acabei me rendendo. Meu companheiro, às gargalhadas, tinha melhorado o ânimo. Em outras vasilhas apareciam os grãos previamente tostados. Daquilo também não sabíamos grande coisa. Muito bem, diante da nossa surpresa, descobrimos que era a base de uma infusão negra, suave e aromatizada muito próxima do “café”. Os montanheses a consumiam, dia e noite. Mas a “indústria” mais próspera da região, derivada dos azinheiros, se apoiava no aproveitamento de sua resina. Os habitantes de Qarrin a recolhiam e envasavam, exportando-a para numerosos países, sobretudo a Grécia, e para outros povos produtores de vinho branco. Essa resina, colocada dentro de cubas e tonéis, evitava que o vinho azedasse. A bebida, tratada dessa maneira, recebia o nome de retsina e também era cotada entre as mais refinadas. Oferecia-se também a casca do Alepo, empilhada aos montes sobre mantas ou diretamente sobre o solo de cinza vulcânica.
Intrigado, perguntei para que serviam. A verdade é que a engenhosidade e a esperteza dos fèlah não conheciam limites. Uma vez pulverizada, a casca servia como emplastro, ajudando na cicatrização das feridas. Alguns grêmios, especialmente dos barbeiros e “auxiliadores” (médicos), disputavam essa casca. Se a moedura era destilada, o “piche” resultante atuava, além do mais, como anti-séptico e – segundo as mulheres – era um “remédio milagroso contra as rugas”. A julgar por seus rostos, consumidos por uma velhice prematura, duvidei dessas afirmações. Mas, como em todas as épocas, sempre há incautos que acreditam em tudo. Por último, no instrutivo passeio diante da pousada, chegamos perto das hábeis vendedoras de loureiro. De um lado vendiam as folhas, imprescindíveis na cozinha. Do outro, os frutos, de um negro brilhante, empregados como tônicos estomacais e, o mais assombroso, como “favorecedores da menstruação”. Quando voltei ao Ravid e consultei meu “namorado”, “Papai Noel” confirmou o que diziam as mulheres. O ar, assim como a arruda, a erva sabina ou o aipo, tinha excelentes propriedades emenagogas, excitando diretamente os órgãos genitais. Para tanto, eles trituravam as folhas de louro, misturando o suco espesso com vinho tinto ou licor de zimbro. Tomavam isso as mulheres que tinham ciclo menstrual irregular e as meninas de puberdade atrasada. Naturalmente, neste último caso, sempre se escondiam tortuosas intenções econômicas. Segundo a Lei, as hebréias eram desposadas a partir dos doze anos e meio, ou seja, com a primeira regra. Se a família tinha oportunidade de casar a filha com um bom partido, mas a menina não era mulher, administravam-lhe a referida poção, provocando uma menstruação prematura. E o documento dos esposos era assinado e abençoado. Em outras zonas da Palestina, o fruto do loureiro era aproveitado também para a obtenção de um óleo verde escuro, muito aromático, que acrescentavam na fabricação de sabonetes de luxo. Ao chegar ao portão da muralha, consciente de que as incansáveis vendedoras podiam nos enrolar infinitamente, bolei um esquema
para levar Eliseu, escapando vergonhosamente – eu sei – para o interior da pousada. Às nossas costas, inevitavelmente, soaram vaias e mais de uma maldição. Em princípio, não tínhamos intenção de pernoitar no albergue lúgubre e pouco recomendável. Mas, já que estávamos ali, seria bom dar uma olhada. Com o Destino nunca se sabe... O pátio amplo estava deserto. Como na maioria das edificações da comarca, o basalto era o principal material, quase único, empregado na construção. Grandes lajes escuras, maltratadas, empoeiradas e carcomidas pavimentavam a esplanada espaçosa. À esquerda (tomando o portão como referência), ao pé do muro, erguiam-se um poço quadrado e dois bebedouros altos e estreitos, encostados no bocal do poço, paralelos à muralha. Uma parelha de jumentos, solta e entediada, bebia sem vontade, brigando sem sucesso contra uma nuvem de insetos zumbindo impertinentes. Os jumentos nos olharam com cara de poucos amigos. Na frente, à direita, erguia-se o edifício da pousada, negro e hostil, em forma de “L”. Um velhíssimo casarão esticado, de dois andares, de aspecto tão entediado e mal-encarado como os burros. Na parte de baixo, através de sete arcos escuros e corpulentos, adivinhavam-se os estábulos, provavelmente vazios. E na parte superior, a típica e tradicional galeria, abrigando cerca de trinta portas de madeira minguadas e sem brilho. Quase com certeza, eram os quartos dos hóspedes. Nos extremos do “L”, escadas fundas de pedra, embutidas nos muros, permitiam o acesso ao corredor e às celas. No alto da escadaria, algumas cortinas vermelhas pendiam nos dintéis. Aquilo anunciava em todas as pousadas que ainda havia vaga para possíveis caminhantes retardatários. Diante do avanço do quente mês de agosto e da coincidência do sábado, era de se presumir que o lugar estivesse quase vazio. Não nos equivocamos. Eliseu reparou em “alguma coisa” que se destacava na muralha da esquerda, um pouco acima do poço. Curioso, como sempre, chegoú perto. Eu fui atrás dele, um pouco desconcertado pelo silêncio
absoluto: Tratava-se de um letreiro, com dizeres em koiné e aramaico, gravados a fogo numa prancha de madeira. “Não atires pedras na fonte em que bebeste.” O aviso era bastante comum nos poços e “asas de pássaro” (fontes). Na parte inferior, o responsável do albergue, cansado da péssima educação de muitos dos visitantes, havia acrescentado: “Não urines nos bebedouros.” Os asnos, displicentes, mantiveram a distância, brincando com a água e afocinhando entre as milagrosas ervas que coloriam as juntas das lajes. De repente, um sapateado súbito nos desviou da leitura atenta. Ao nos Tirarmos, descobrimos diante de um dos arcos uma mulher que dançando, vinha na nossa direção. Trocamos um olhar espantado. Pedi calma. Aquele era outro dos costumes nos albergues, sobretudo quando os clientes eram escassos. Em muitos albergues, patrões ou empregados saíam ao encontro dos viajantes e, dançando, prometiam todo tipo de prazeres se aceitassem entrar e se alojar em seus domínios. Sensual, contorcendo-se e sem deixar de bater umas castanholas brancas de madeira, chegou perto de nós. Eliseu, sem jeito, fez um árduo esforço para não soltar uma gargalhada mais que justificada. Eu o fulminei com o olhar, embora o quadro fosse realmente tragicômico. Sorridente, envolvida numa vaporosa túnica de seda verde, a esquelética “aparição” continuou dançando, girando sobre si mesma e pulando de vez em quando com uma graça duvidosa. Os pés descalços e sujos me pareceram estranhos. Enormes para uma mulher. Grandes como túmulos de filisteus... Mas eu, torpe e lento em reflexos, não percebi. A dança grotesca, ao som do sofrível toque de castanholas, terminou por fim com uma violenta reverência. Aquele, de fato, não era o seu dia. Ao inclinar-se, roçando o chão com os longos cabelos loiros encaracolados, a “cabeleira” se soltou, caindo no chão. Meu
companheiro não resistiu. E as gargalhadas ressoaram no pátio, sendo prontamente correspondidas por sussurros não menos inoportunos. Os asnos eram, com efeito, mais inteligentes do que imaginávamos. A anfitriã, aturdida, pegou a peruca, colocando-a sobre o crânio. Olhou-nos com desafio e dureza. Mas Eliseu, rápido, corrigiu, respondendo com outra cerimoniosa inclinação de cabeça. Suada e exausta, ela aceitou o cumprimento. Sorriu de novo e, com uma piscadela, deu-nos parabéns por termos escolhido sua casa. A voz, quadrada e profunda como o poço, me deixou meio zonzo. Mas continuei nas nuvens... Umas grandes gotas de suor, deslizando pelo estreito rosto ossudo, acabaram de vez com a festa da mulher. Arrastaram impiedosas o azul que lhe sombreava os olhos e o vermelho vivo que exibia nos lábios. Deu meia-volta e, assumindo que aceitávamos o convite, divertindo-se de forma provocante com alguns movimentos bem estudados de quadris, foi em direção ao prédio. O engenheiro perguntou o que devíamos fazer. Eu me senti encurralado. Dormir naquele lugar não estava nos nossos planos. Contudo, o cansaço natural e os quilômetros que nos separavam do lago Hule me fizeram ficar em dúvida. Conversamos. Para o meu amigo, a idéia de suspender a caminhada parecia positiva. No dia seguinte, com o frescor da manhã, recuperaríamos o tempo perdido. Tempo perdido? O Destino sorriu maroto. Claro, ele nos esperava ali dentro... Aceitei. Peguei a mochila do meu companheiro e, resignado, me dirigi ao arco pelo qual a “dançarina” acabava de desaparecer. Eliseu voltou para o lado de fora, à procura do ruivo. Bendito seja Deus!
Nesse assunto de pousadas eu ainda não tinha visto tudo... Aquela superava em termos de sujeira e miséria todas as que havíamos conhecido antes. Ao fim da escura e fétida arcada tive que cobrir o rosto. Uma fumaça branca enchia quase toda a área extensa que fazia as vezes de cozinha, copa e “salão social”. Era uma sala retangular, de oito por cinco metros pessimamente arejada por um par de estreitas janelinhas e oprimida por uma penumbra crônica. Ouvi gritos e maldições. Era a voz da “aparição” dando ordens. Depois, o ciciar da água jogada sobre o fogo. E a fumaça foi se extinguindo pouco a pouco. Mas a patroa continuava vociferando e arremetendo contra os jovenzinhos, ao que parece responsáveis pela inconveniência. Os empregados, acovardados, retiraram-se para o outro extremo da cozinha. E a mulher, ao perceber a minha presença, apressou-se ao encontro deste explorador que aqui escreve, desfazendo-se em mil desculpas e chamando a criadagem de inútil e bastarda. Pediu que eu tomasse posse da casa e, voltando ao arremedo de cozinha, eu a vi encher uma jarra. Meu Deus! Onde estávamos? Um amplo “balcão” dividia a sala em dois “ambientes”, para dizer isso de uma forma caridosa. Era o típico tabuleiro das tavernas e albergues públicos: uma plataforma de madeira de cerca de seis metros de comprimento, aberta em cinco pontos onde foram encaixadas outras tantas vasilhas bojudas, ancoradas, por sua vez, no chão de pedra. Do outro lado, ao pé do muro que se levantava diante do arco da entrada, iluminada (?) pelas janelinhas malencaradas, distinguia-se uma caótica sucessão de caldeirões, fogões de ferro, sacos e cestas, gaiolas de madeira com frangos e galinhas meio asfixiados, pratos, tigelas de barro e duas mesas repletas de hortaliças, fogaças de pão preto e uma temível família de facas, cravada numa superfície úmida e gordurosa. No alto, penduradas no teto todo descascado, atacadas por insetos e moscas, pingavam gordura e sangue várias costelas, alguns cordeiros esquartejados e numerosas réstias de um embutido negro que ressudava.
O resto da mobília consistia em três mesas de azinheiro altas e estreitas, tão oscilantes quanto gastas pelo tempo e pela sujeira, estrategicamente colocadas de forma paralela no centro da sala de jantar. As lâmpadas de azeite, ainda menos confiáveis que as janelinhas, se bem podemos dizer, combatiam com um amarelo oscilante a penumbra imprecisa e pesada. A mulher insistiu. Senteime e, de um gole, esvaziei o copo de vinho muito quente que acabara de servir. Na verdade, era o que eu precisava. Ela sorriu contente, servindo uma segunda dose. Eu quis recusar, mas, sagaz e intuitiva, percebendo que estava diante de um estrangeiro, deixou de lado o aramaico galileu e, se expressando num koiné impecável, anunciou sem rodeios: - O vinho é grátis... E, curiosa, sem nenhum pudor, iniciou um bombardeio de perguntas, interessando-se por nossas origens, motivo da viagem, destino, profissão e sobretudo pela “saúde” da bolsa pendurada no meu cinto. Escapei como pude, driblando a mulher. Não passávamos de gregos, de passagem em direção ao norte, com o objetivo de ver o mundo... Acho que acreditou em mim. Nesse tipo de lugar era perigoso falar demais. Os espiões de Roma, como também os numerosos confidentes dos tetrarcas, freqüentavam albergues e estações de troca de cavalos, dividindo mesa e toalha com nativos e viajantes. No decorrer da vida pública do Mestre, teríamos a oportunidade de comprovar isso: alguns desses “infiltrados” foram rápidos em seguir os passos do Rabi informando pontualmente o governador, Filipe, seu meio-irmão Antipas e a fina flor das castas sacerdotais sobre tudo que acontecia e se dizia. Logicamente, numa situação assim, todos desconfiavam de todos. (Flávio Josefo fala disso em várias ocasiões. Jerusalém, sobretudo no reinado de Herodes, o Grande, tornou-se uma cidade na qual os habitantes procuravam falar em voz baixa e o menos possível. Até o próprio “criado edomita” - Herodes – se disfarçava, misturando-se com seus súditos e escutando os comentários que se faziam sobre ele ou sobre Roma.) Contudo, nesse caso, eu havia me enganado. Pelo que averiguaríamos mais tarde, a
dona da pousada do cruzamento de Qarrin não era grande simpatizante, digamos assim, dos kittim e, muito menos, dos filhos herdeiros de Herodes, o Grande. Mas disso me ocuparei no seu devido tempo. Não foi preciso perguntar. Ela própria se apresentou. Chamava-se Sitio e vinha de Pompéia. Ali, na bela cidade italiana, dirigira um próspero oshpisa, um hospitium ou hospedaria, muito popular e reconhecida – segundo suas palavras – pela fina cerveja de Media e pelas lagostas curtidas no vinagre. Sitio? O nome, se eu me lembrava bem, era masculino. Que estranho... Finalmente, este cego explorador percebeu. Tudo se encaixava. Os pés grandes, a voz de mineiro e, naturalmente, o pomo pontiagudo, subindo e descendo na laringe. Mas, discreto, incapaz de “ofendêla”, eu me abstive de formular qualquer comentário sobre o seu sexo. Animada e agradecida diante da esmerada atenção dada por aquele desconhecido, continuou a lengalenga, informando-me de que, desde a subida ao poder do maldito “velhinho” (o imperador Tibério), tudo se voltara contra ela. Afogada pelos impostos e perseguida pelos credores, finalmente teve que fugir. Depois de uma turbulenta passagem por Tiro, onde trabalhou como prostituta, intérprete e garçonete, decidira tentar a sorte na Gaulanítide. E ali estava ela, dirigindo uma pousada de má reputação, “entre galileus bastardos e incultos”. Fez uma pausa. Molhou no vinho os lábios vermelhos, grossos e estragados e, de repente, seus olhos brilharam. E, solene, proclamou: - Mas isto não vai durar muito... Logo terei sorte. Quem poderia ter imaginado isso? Acertou, sim, mas não como imaginava. A sorte, de fato, a visitaria. Uma “sorte” com nome próprio: Jesus de Nazaré. Bebeu rápido e, pedindo desculpas, voltou à “cozinha”. O jantar – garantiu – estaria pronto antes do anoitecer. Senti tentação de voltar ao caminho. A demora de Eliseu começava a me preocupar. Contudo, esperei.
Levantei-me e, pegando uma das lâmpadas de óleo, fui examinar “algo” que me deixou intrigado. Todas as paredes, inclusive a das janelinhas, estavam cobertas por uma excitante “decoração”. Aproximei a chama. Curioso... Aquilo” não era habitual nas toscas e primitivas pousadas da Palestina. Dei uma volta na frente da parede da entrada e fui ficando cada vez mais assombrado. De vez em quando, a patroa lançava alguns olhares. Minha curiosidade, com certeza, era do seu agrado. Não devia ser muito normal que os rudes visitantes se interessassem por aquela mostra de inegável sensibilidade.  Não sei quantos consegui ler. Talvez vinte ou trinta. O certo é que depois da leitura dos “quadros”, minha confusa opinião sobre Sitio foi se desfazendo. Como eu dizia, aquela criatura era mais inteligente e comovente do que aparentava. Com paciência e sabedoria, a dona tinha pendurado nas pedras gastas e insípidas dezenas de tabuletas de madeira de todos os tamanhos, pintadas ou gravadas com adágios e ditados sutis, certeiros e insinuantes. A maioria em aramaico. Outros no grego “internacional” (o koiné) e alguns em latim. Nessa mesma noite, ao nos recolhermos, eu me apressei a tomar nota dos dizeres mais significativos. “Comer sem beber” - rezava um deles - “é como devorar o próprio sangue.” “Mercúrio aqui vos anuncia lucro”. Apolo, saúde, e Sitio, albergue, boa cozinha, conversa agradável ou silêncio (conforme o gosto)”, dizia outro. “Quem quer que entre na pousada de Sitio sairá satisfeito. Se não for assim então só sonhou que entrava.” Mais adiante, essa “mulher” admirável advertia: “Se um caminhante acode a esta casa, seu Deus – Baal, Júpiter ou o Santo bendito seja seu nome – se sentará com ele.” E acrescentava sarcástica: “O caminhante sempre paga... que Deus seja deixado em paz...”
Francamente, eu me divertia, esquecendo-me até da estranha e prolongada ausência do meu irmão. “Que os pobres não passem ao largo” - escrevia em koiné - ... “Se não há dinheiro não importa. A criadagem escasseia.”, “Não confie nas aparências” - assegurava com tino outra tabuleta. “As mulheres também são seres humanos.” Simplesmente fantástico. As sentenças atrevidas faziam de Sitio uma exceção no desprestigiado ramo de hotelaria daquele tempo. Quase todas as pousadas, dentro e fora de Israel, tinham a fama bem justificada de lugares de latrocínio, prostituição e abusos de todo tipo, Era raro um dono de pousada honesto. Como diz Petrônio em Trimalquio, “esses vigaristas são mais vendedores de água que taverneiros”. Quando um viajante entrava pela porta, sempre o fazia vigilante e na defensiva. Em qualquer momento, podia surgir a mentira, o roubo ou a calamidade. Na parede da direita (sempre usarei aqui o arco da entrada como referência), destacando-se sobre os “avisos” restantes, aparecia um “menu do dia” os preços e os diversos “serviços extras”. “Sopa de verduras... Verduras frescas – esclarecia – Carne ensopada com tomilho e pimenta preta (não recomendável para solteiros e virtuosos) – esclarecia de novo com ironia - ... e pirâmide de gengibre... Sem limite... (Imaginei que isso queria dizer que o cliente podia repetir quantas vezes quisesse.) “Pão, vinho e papo, presente da casa. Total: quatro asses... “Cama, dois asses...” E com letras maiores, destacava: “... Com burrinha (prostituta), oito asses. Banho grátis (no rio).” Embaixo, em vermelho, uma advertência obrigatória nos estabelecimentos dirigidos por gentios: “Comida kosher a pedido. O mesmo preço. A mesma amabilidade.” Esse tipo de “cardápio” - kosher ou “limpo” - era habitualmente solicitado pelos hebreus. Em particular, pelos mais religiosos. Sobretudo as carnes eram zelosamente vigiadas. Para ser kosher,
segundo a rígida lei de Moisés, tinham que ter sido selecionadas e cortadas por açougueiros especializados. No mínimo, antes de serem cozinhadas, deviam passar por um banho purificador, à base de água com sal. Com qualquer vestígio de sangue, ficavam inutilizadas. A tradição dedica-a interminá-eis e prolixas especificações (14) do tipo de animais a serem sacrificados, ferramentas dos magarefes, maneira de degolar, fórmulas para dessangrar, proibição de imolar no mesmo dia a mãe e e o filhote, tendão femural (terminantemente proibido) e artigos puros e impuros”. Na verdade um pesadelo, que o povo simples suportava com evidente dificuldade e que, ás vezes, era motivo de largas polêmicas. Para os furiosos “vigilantes da Torá”, não havia dúvida nem possibilidade de discussão. Aquilo” era a vontade de Deus. Para outros, mais sensatos, misturar os “desejos dignos” com o fato de desfrutar um bom presunto ou um gostoso caranguejo era absurdo. O próprio Jesus de Nazaré, para regozijo de muita gente, viu-se envolvido em mais de uma discussão com os intransigentes doutores da Lei. E, naturalmente, os deixou confusos. A propósito, foram encontros dialéticos jamais mencionados pelos evangelistas. Contudo, sem dúvida, aqueles que mais me surpreenderam foram os “cartazes” que enfeitavam a parede da esquerda. “Coma e procura a paz... Ama os outros homens e aproxime-os da Lei.” “Se um for agredido, serão dois a se defender.” “melhor não prometer que deixar de cumprir o prometido”. *14. Esta norma, recompilada no século II na Misná (Julin), reunia antiqüíssimas leis e tradições, em particular sobre a imolação de animais não destinados aos sacrifícios religiosos. As regras depuradas, conhecidas também como kashruth, procediam, parece, do próprio Yaveh. E estabeleciam, por exemplo, como fazer a degola. No gado, era obrigatório o corte pela traquéia e pelo esôfago. Com as aves era suficiente cortar um dos condutos. O golpe tinha que ser rápido, com um movimento para frente e para trás. A Lei fixava igualmente as carnes e peixes autorizados ou proibidos. Só se podia comer os quadrúpedes que ruminavam ou que tinham o casco fendido. O porco, esse sim, era tabu. Quanto aos peixes, Yaveh proibia aqueles que não tivessem escamas e barbatanas. O marisco, por exemplo, não era kosher. Outra regra determinava que os judeus não deviam cozinhar a carne de cabrito no leite da mãe (o costume era habitual entre muitos povos pagãos). Isso significava que os produtos lácteos não deviam
aparecer na mesa quando havia carne. Servir leite ou manteiga com cordeiro, por exemplo, era um sacrilégio. A incrível Lei dispunha, também, que todas as famílias hebréias tivessem vários jogos de panelas. No sabbath, um era destinado à carne, outro aos produtos lácteos. (N. do m.)
Eu repassei tudo várias vezes e cheguei à mesma conclusão: os ditados, em sua maioria, pertenciam a um venerado e já desaparecido rabino de Jerusalém. De certa maneira, um precursor da filosofia do Galileu. Me refiro, é claro, a Hillel, morto por volta do ano 10 da nossa era. “Quem amplia sua fama – continuei lendo – a faz perecer. Que não aumenta diminui. Quem não aprende se converte em réu de morte.” Quem se serve da coroa (a Torá) desaparece.” “Mais vale uma só mão cheia de repouso que duas cheias de trabalho e afazeres vãos.” “Com o melhor da tua riqueza, adquire a sabedoria. Com o que possuis, compra a inteligência.” As sábias palavras logo me lembraram outras não menos certeiras e sublimes. “Se não estou para mim, quem estará E se estou para mim, que sou eu? E se agora não, quando?” “Quem é rico?... Aquele que se regozija com o que tem.” “A inveja, a cobiça e a ambição abreviam a vida humana.” Pouco a pouco, repito, minha admiração por Sitio foi crescendo. Quem era realmente aquela “mulher”? Que fazia num lugar tão remoto e sombrio? As frases seguintes me deixaram ainda mais perplexo: “Fala pouco e faze muito. E recebe todo homem com expressão sorridente.” “Cumpre a vontade de Deus como se fosse a tua, para que Ele faça a tua como se fosse a dEle.” “Não julgues o teu próximo antes que estejas nas mesmas circunstâncias dele.” Algum tempo depois, o Mestre falaria a mesma coisa. A vontade do Pai. Sua grande mensagem. Seu grande desejo... “Os rios vão todos ao mar e o mar não fica cheio.” “Que a honra do teu amigo seja para ti tão querida quanto a tua própria honra.” “Não confies em ti mesmo até o dia da tua morte.” Um apetitoso cheiro de carne ensopada quase me desviou da
leitura. Eu estava faminto. E Eliseu? Por que não voltava “Quem é honrado quele que honra os outros.” “Anel de ouro em focinho de porco é como mulher bonita sem miolos.” “Anda com os sábios e serás sábio. Aquele que se cerca de idiotas, encontra a desgraça.” Sitio começou a pôr a mesa. Ela me observou de soslaio, mas não disse nada. Ambos, acho, estávamos de acordo: a leitura era mais importante. “Onde não há homens, esforça-te para ser um.” “Quanto mais carne, mais vermes. Quanto mais riqueza, mais preocupações. Quanto mais mulheres, mais sortilégios. Quanto mais criadagem, menos controle. Quanto mais escravos, mais roubo. Quanto mais estudo da Lei, mais vida. Quanto mais escola, mais sabedoria. Quanto mais conselho, mais inteligência. Quanto mais justiça, mais paz.” A patroa tinha sublinhado “mulheres” e “sortilégios”. Normal no seu “caso”. “O conteúdo é mais importante que o recipiente. “Tudo te foi dado como empréstimo e uma rede sobre ti se estende.”  “Não julgues os outros. Se muito julgares, julga a ti mesmo.” Tive a impressão de que reconhecia em algumas das sentenças ecos do livro dos Provérbios e do Eclesiastes. Mas como era possível isso? Sitio, supostamente, era pagã. “É melhor o pacífico que o forte. Aquele que domina seu espírito que aquele que conquista uma cidade.” “Não desprezes ninguém, nem rejeites nada como impossível, porque não existe homem que não tenha sua honra, nem coisa que não tenha seu lugar.” “Seja humildíssimo, já que o que te espera é a morte.” No iminente e providencial jantar, a “mulher” nos esclareceria o porquê daquela singular “decoração”. E reconheço que tanto meu companheiro como eu tivemos de nos inclinar diante de seu desejo pouco comum e, ao mesmo tempo, ardente. E outra “surpresa” logo viria. Melhor dizendo, várias “surpresas”.
“Todo aquele que profana em segredo o nome de Deus será publicamente castigado.” “Que teu amor não dependa das coisas, nem do que tens, mas sim do que és.” Não deu tempo para mais nada. De repente, Eliseu irrompeu através do arco. Fui ao seu encontro. Ele, furioso, exclamou: - Aprontou outra vez! Tentei acalmá-lo. Seu rosto estava suado. - Aprontou? Mas, o que, quem? Enquanto colocava na mesa uma fumarenta panela de barro, Sitio nos olhou intrigada. Meu irmão, visivelmente esgotado, sentou-se e, balançando a cabeça negativamente, repetiu: - Aprontou de novo! Aprontou de novo! Sem querer, a dona da pousada e eu trocamos um olhar. E ela, decidida, se intrometeu, querendo saber o motivo de tanta confusão. Teve mais sorte do que eu. Eliseu, abatido, contou que o menino que nos acompanhava tinha desaparecido. Outra vez? Meu irmão contou com detalhes a busca inútil do garoto. Perguntou até a outros meninos que nadavam no rio. Negativo. Nenhum deles disse coisa alguma. Tampouco conseguiu encontrá-lo entre os vendedores. Percorreu parte do caminho que levava ao norte, mas isso também foi inútil. Assustado e perplexo, resolveu voltar. Sitio, fria e racional, quis saber das características do desaparecido. Eu me adiantei, desenhando um perfil e acrescentando “algo mais” que mantinha em segredo. O Destino, de novo, atento, entrou em cena. A alusão à possível doença do ladrãozinho foi determinante. - Ruivo..., mudo... Ela pensou um pouco e, segura, exclamou: - Só pode ser o filho de Assi...
Confuso, Eliseu, não queria acreditar no que ouvia. Nem nas palavras de Sitio, nem nas minhas. - Mudo? “Denário” é mudo? - Surdo – ponderei. - Quase com certeza, surdo... E tem família. - Não devemos nos preocupar. É lógico que tenha voltado aos seus. O engenheiro tinha se afeiçoado de verdade ao menino. Teve que se esforçar para aceitar a realidade. Finalmente, mais sossegado, rendendo-se ao sabor da suculenta sopa de verduras, continuou o interrogatório. Sitio, solícita, entendendo o nervosismo de meu companheiro, deulhe todo o tipo de detalhes. Ela parecia conhecer bem os nativos da região. Dessa forma ficamos sabendo da obscura origem do menino, do lugar de sua residência e da pessoa que cuidava dele. Segundo a dona da pousada, “Denário”, cujo nome era Examinado (15), levava sobre os ombros uma desgraça dupla. Além de surdomudo, era mamer (bastardo). A mãe, uma fenícia de Sidon, prostituta, parira a criança na cidade de Panéias, onde trabalhava. Dias depois, ela a entregou em um kan existente ao sul do lago Hule. (O kan era uma instituição muito antiga que acolhia todos aqueles – judeus ou gentios – que não tinham meios de sobreviver. Às vezes era também usado como albergue de passagem. Geralmente consistia de casas ou choças, estrategicamente localizadas, sempre abertas, e a cargo de não judeus, que se responsabilizavam pelo alojamento, comida e cuidado dos residentes e transeuntes. O sustento corria por conta dos tetrarcas, de ricos saduceus ou de almas caridosas. Em certas ocasiões, os “clientes” contribuíam de boa vontade com o que dispunham. Eram lugares desorganizados, mais lúgubres, se assim podemos dizer, que as pousadas públicas, sem móveis e em condições higiênicas praticamente nulas. Nos kanes, acabavam se refugiando, além de aleijados, doentes crônicos, velhos ou crianças desamparadas, a fina flor da malandragem, os fugitivos da justiça e bandidos em geral. Lugares, de fato, pouco recomendáveis. O Genesis 42, 27
menciona esses lugares, e também Jeremias (41, 17).) Num desses locais, de fato, cresceu “Denário”, sob a tutela do governador do kan, um tal de Assi, “auxiliador” de grande bondade e notável reputação como médico ou curandeiro. *15. Segundo o tratado uiddushim, essa era a designação dada a todos os recolhidos na rua e cujos pais eram desconhecidos. (N. do m.)
Ao ouvir Sitio, minha memória ficou agitada. Assi? Perguntei e, de fato, emergiu, limpa e transparente, a lembrança de outro velho conhecido. Alguém que encontrei no ano 30, na casa do Zebedeu, em Saidan. Incrível Destino! Assi era, com certeza, o essênio que cuidava do patriarca dos Zebedeu quando eu curei o ancião de um pequeno problema num dos ouvidos(16). Eu não podia acreditar... O egípcio, destacado pela comunidade de Qumran para a longínqua Gaulanítide, achava-se, justamente, muito perto do caminho que nos conduziria nos dias seguintes até a base do Hermon. Coincidência? Tão certeiras eram minhas informações que a intuitiva “mulher” ficou de olho. Tinha razão. Como era possível que aquele grego, só de passagem, conhecesse o “auxiliador” do lago Hule? Fugi do assunto, concentrando-me de novo no ruivo. O menino, como eu imaginava, era surdo de nascença e, em conseqüência, mudo. Ninguém, é claro, sabia a causa. Simplesmente nascera assim. E graças aos cuidados de Assi, o menino pôde se desenvolver, livrando-se, em parte, da maldição que representava, naquele tempo, uma patologia dessa natureza. “Denário” - assim o chamaríamos entre nós -, a julgar pelas
informações de Sitio, era um menino “especial”. Apesar de sua terrível limitação, era dono de uma inteligência notável. Ele era visto, com freqüência, ao longo da rota, roubando caravanas e caminhantes e entregando o fruto dessa rapina ao seu pai adotivo. Este, pelo visto, não tinha conhecimento das andanças do jovenzinho. Eu, naturalmente, decidira entrar no kan e tentar encontrar os dois. Na manhã seguinte, se tudo fosse bem, passaríamos bem perto do lugar. O que não calculei naquele momento foi a transcendência de tal visita. *16. Ampla informação em Operação Cavalo de Tróia 3, pp. 257 e ss. (N. do a.)
Sitio tirou a sopa, indo para a “cozinha”. Então, Eliseu fez um comentário que confirmou minhas suspeitas tardias. A “mulher”, na verdade, era um homem... Um dos muitos homossexuais que proliferavam naquela Palestina. Mas, prudentemente, de comum acordo, preferimos ignorar isso” e deixar as coisas como estavam. Não me cansarei de repetir. Aquele encontro no albergue próximo a qarrin tampouco foi “casual”. O Destino, previdente, sabia o que fazia. Mas devo ser fiel aos acontecimentos, tal como se registraram. Oxalá esse destino maravilhoso continue me presenteando com luz e força para continuar. Carne de vitela “ao vinho”. Entusiasmado, Eliseu elogiou a boa mão da dona da pousada. E Sitio, toda a prosa com os elogios, obsequiou-lhe com uma porção dupla. A conversa ficou animada. Acho que a corrente de simpatia foi mútua e sincera. Aproveitei a circunstância para intercalar dois temas que me interessavam. De um lado, a segunda e não menos dramática maldição que pesava sobre o ruivo: sua condição de mamer. Como era possível que um essênio, pertencente a um grupo tão extremo e radical em relação à pureza religiosa, tivesse adotado um bastardo? A “mulher” suspirou. Indicou um dos “cartazes” que eu tinha lido e,
precisa, quase sem palavras, repreendeu minha interrogação aparentemente pouco caridosa: - Não julgues... Não era essa minha intenção, mas vesti a carapuça. Em seguida, num tom mais conciliador, ela explicou: - Assi, embora nascido no Egito, é de origem judaica. Mas seu nobre coração não tem raízes, nem entende essas malditas discriminações daqueles que se dizem “santos e separados”. Tu és estrangeiro e não sabes que nesta terra são mais os que procuram a verdade e anseiam por ela do que os que adoram essa injusta Torá... - É verdade? E passei direto ao segundo assunto. A que obedecia a singular coleção de sentenças que enfeitava as paredes? - Estás interessada em saber a verdade? - insisti, fingindo certo ceticismo. - E o que é a verdade? Será que está nesses “cartazes”? Não respondeu logo. Observou-me séria e, convencida, imagino na sinceridade dos meus questionamentos, abriu o coração, dando voz aos seus sentimentos. E durante algum tempo, lembrando sua passagem por Tiro, relatou seu encontro com alguns “missionários” cínicos. A filosofia daqueles gregos, parece, a impressionou. E tentou viver de acordo com o que pregavam: abandonou a prostituição, deu aos pobres tudo quanto tinha, lutou para se livrar dos desejos mundanos e procurou não pensar na morte como um mal irremediável. Contudo, não foi suficiente. Alguma coisa” falhava. Seu espírito continuou órfão. O cinismo(17) não era a verdade. E continuou na busca. Tentou com os estóicos(18). Seu “Deus-Razão” a comoveu. Concordou com a possível origem divina da alma e a irmandade dos homens, cantada pelos seguidores de Zenon de Citio.
Aprendeu a viver em harmonia com a Natureza e, o mais importante, consigo própria. Mas as brilhantes idéias do estoicismo a deixaram igualmente insatisfeita. Precisava da esperança e esta, lamentavelmente, não aparecia naquela filosofia. O “Deus-Razão”, como o resto dos deuses dos gentios, era “alguém”  remoto e inalcançável. Os epicuros e céticos também não trouxeram novidades ao seu inquieto e ansioso espírito. Os primeiros, defendendo a prudência como  expoente máximo da felicidade, não a convenceram. Não era o que  precisava. Não era isso... Quanto à doutrina dos céticos – segundo a  qual o conhecimento e a sabedoria são enganosos -, sinceramente, nem o considerou. Aprender, conhecer, crescer não podiam ser algo nocivo ou detestável. Finalmente, nessa árdua peregrinação, encontrou o Deus dos judeus. Mas o desencanto foi idêntico. *17. Ampla informação sobre as principais correntes filosóficas existentes naquele tempo em Operação Cavalo de Tróia 3, pp. 24 e ss. (N. do a.) 18. Platão e os estóicos influíram poderosamente nas crençasjudias. O quarto livro dos Macabeus é um claro exemplo. Essa influência provocou uma inevitável catástrofe, com a conseqüente confusão. Foi o célebre Filon de Alexandria quem, finalmente, tentou pôr ordem, harmonizando a filosofia grega com a teologia hebréia. Mais tarde, Paulo de Tarso se apropriaria desse “hibrido”, construindo o cristianismo. (N. Do m.)
Aquele Yaveh, longe de infundir alguma coisa que justificasse e desse sentido à sua vida, só provocou medo e incompreensão. O instinto a obrigou a renunciar. Yaveh não era a esperança... Mas a “viagem” à religião do colérico Deus do Sinai não foi em vão. Uma coisa a impressionou. Melhor dizendo, alguém. E o espírito desse alguém – profundamente humano e universal – passou a presidir na alma e nas paredes de sua casa. Esse alguém, como eu imaginara, não era outro senão Hillel(19). Seus ditos e sentenças a equilibraram em parte. Mas não totalmente. Tampouco era isso o que procurava... A sobremesa deu um fim às exposições da atormentada Sitio.
Deliciosa. A “mulher”, a bem da verdade, tinha se esmerado. Pirâmide de gengibre branco, comprado das caravanas da índia. Um exótico e dulcíssimo “biscoito”, habilmente embebido com um “chocolate” líquido extraído da já referida keratia. E por cima, uma reluzente bola de mel e nozes. Eliseu e eu devoramos tudo em silêncio. Trocamos um olhar e, acredito, compartilhamos o mesmo sentimento. Eu lhe fiz um sinal. Não devíamos nos precipitar. Não era o momento... Contudo, impulsivo, desejoso de proporcionar um raio de luz à solícita estalajadeira, o engenheiro abriu as comportas daquele nosso sentimento mútuo, fazendo-lhe uma pergunta: *19. Hillel, o Velho ou o Babilônio, chegou a Jerusalém no reinado de Herodes o Grande. Procedia da Babilônia, da diáspora. Era um jajamin (aqueles que desenvolviam, interpretavam e difundiam a Lei). Logo adquiriu prestígio e respeito, convertendo-se,junto com o também rabino Sammay, na máxima autoridade no halajá (a tradição oral ou o “caminho pelo qual transita Israel”). Na verdade, formaram um dos famosos “pares” da sabedoria rabínica nos tempos do jovem Jesus. É muito provável que o Filho do Homem, ainda criança, tenha chegado a conhecê-los durante a célebre estada no Templo, quando tinha quase treze anos de idade. Ao contrário do pedante fariseu Sammay, Hillel se destacaria por sua humildade e grande perfil moral. Para aquele, a essência da Torá se achava no detalhe. Para seu oponente, a chave da Lei era seu espírito. Se alguém acertasse na interpretação de dito espírito, o detalhe era secundário. Anos depois, o Mestre faria suas algumas das sentenças de Hillel, “polindoas” e “aperfeiçoando-as”. (N. Do m.)
- Você conhece um tal de Jesus, carpinteiro de Nazaré? Puxou pela memória. Esse já era um sinal inequívoco. Negou com a cabeça. Meu irmão, obstinado, insistiu. - Filho de Maria e José... Negativo. Era lógico. Estávamos no ano 25. Ainda faltava muito para que o mestre se tornasse conhecido. Ela, curiosa e intuitiva, perguntou: - Por quê? Ele é como Hillel? Nós sorrimos, aumentando sua curiosidade. Ela nos fitou com total atenção, esperando um esclarecimento. Desta vez tomei a palavra:
- Algum dia, se o Destino assim tiver previsto, voltaremos a nos encontrar. Então, se te lembrares, faze-nos de novo essa pergunta. Melhor ainda: faze a pergunta a Ele... Concordou meio confusa. - Eu me lembrarei... Jesus de Nazaré... E retomando a questão chave – a que este explorador deixara no ar -, murmurou para si própria: - A verdade... Esse Jesus, o carpinteiro de Nazaré, sabe qual é a verdade? Não respondemos. Ela própria, em seu momento, descobriria. E se converteria, curiosamente, num dos seus mais apaixonados e fiéis defensores. Um “seguidor” do Galileu que, como outros, jamais figuraria nos textos sagrados (?). O canto das aves de rapina noturnas nos avisou. Devíamos nos recolher. Sitio lamentou. Havia muito tempo não desfrutava de uma conversa tão amena e construtiva. Mas, compreendendo, pegou um par de lanternas e nos acompanhou. A temperatura, ainda cálida, nos envolveu. E o firmamento nos reteve no pátio durante alguns minutos, cortando nosso passo. A “mulher” também ergueu o rosto e definiu aquela maravilha melhor do que nós. - Essa, sim, é a verdade... Uma estrela fugaz, oportuníssima, abençoou suas palavras, enchendo de branco e verde uma fileira de estrelas assustadas e disciplinadas. Onde estaria? Meu pensamento, como outro Jasão, ziguezagueou entre as vigilantes constelações, deixando para trás as surpreendidas Castor e Capela e foi pairar sobre o Hermon. Ele estava ali...  Eu pressenti. Eu vi. Ele nos esperava. Não vou ocultar isso. Nesse momento intenso, a poderosa “força” que nos escoltava sussurrou no meu coração: “Animo!... Chegou a
hora...” Pouco importou a sujeira, as famílias de piolhos ou a estreiteza do quarto. Considerei tudo muito bem feito. Estávamos a um passo do Filho do Homem. Eu podia sentir isso... A jornada seguinte seria decisiva. Se o Destino nos protegesse, ao anoitecer do domingo, ou, no mais tardar, na segunda-feira, dia 20, nos encontraríamos diante das fraldas do Hermon. Acalentado pela lembrança do saudoso Mestre e pela perplexa e humilde chama amarelada da lanterna, tentei conciliar o sono. Mas me  custou muito. De repente, não sei por que, surgiu na penumbra a quase esquecida imagem de “Denário”. Eu resisti. Tinha que descansar. Contudo, os gritos guturais e animalescos do ruivo inundaram-me a memória, atormentando-me. Foi estranho. Parecia como se “alguém” se empenhasse para que eu não esquecesse sua surdez. Estranho? Mas havia alguma coisa normal ou racional naquela nossa aventura? Pobre e bobo Jasão! Quando aprenderei? Aquilo”, de fato, fora um “aviso”. Mais adiante eu entenderia por que... O fato é que, apesar da minha resistência, o problema do pequeno mamer entrara dentro de mim. E durante um tempo batalhei com o problema, numa vã tentativa de averiguar qual poderia ter sido a causa daquela doença. Obviamente, para tentar chegar a um diagnóstico, teria de investigar os ouvidos. E mesmo assim, o resultado seria duvidoso. Parecia, e segundo as informações de Sitio, que a surdez era prelingüística (aparecida antes de falar). Sim, o que eu temia, tratava-se de uma surdez profunda, originada, talvez, de um problema durante a gestação ou no parto, com poucas ou quase nulas possibilidades de recuperação(20). A verdade é que essas lesões, como hoje em dia, eram muito freqüentes naquele tempo. Doenças como a rubéola (sofrida pela mãe no período de gestação) (21), toxoplasmose, citomegalovírus congênito e outras infecções intrauterinas faziam grandes estragos na população. Era também possível que a cofose (surdez absoluta) estivesse determinada por
um fator genético ou por um acidente perinatal (eram freqüentes os traumatismos no parto, a hipoxi, [oxigenação insuficiente), o excesso de bilirrubina, etc.). Claro que se o mal aparecera depois do nascimento, as causas podiam também ser inúmeras(22). O importante, contudo, não eram essas causas hipotéticas, mas sim o alcance das mesmas. Até onde haviam afetado o menino? Era um surdo irrecuperável? O instinto de médico me dizia que sim. *20. Em termos simples, a surdez se divide em leve (hipoacusia de transmissão), na qual aparece lesado o sistema mecânico de condução do som (ouvido externo e médio) e profunda (hipoacusia de percepção), na qual o dano afeta o interior do caracol ou as vias nervosas que “conduzem o som” até o cérebro (ouvido interno). Se a surdez de “Denário” era provocada por uma deformação ou destruição do órgão de Corti ou das vias neurais, pouco se podia fazer. (N. Do m.) 21. A embriopatia rubeólica afeta o “calendário embriológico” entre a sétima e a décima semanas. O ouvido interno do feto fica alterado, produzindo-se uma hipoacusia perceptiva bilateral profunda, com destruição das células ciliadas e da membrana tectória do órgão de Corti. (N. Do m.) 22. A meningite cérebro-espinhal é uma das primeiras causas da surdez depois do nascimento. A isso devemos acrescentar as otites agudas necrosantes originadas do sarampo, gripe, escarlatina, malária, febre de Malta, varíola e febre tifóide, entre outras doenças. Todas podem se propagar no interior do labirinto, destruindo-o. As papeiras, por sua vez, alcançam com freqüência a zona nervosa, sendo responsáveis pela parotidite e pelas conseqüentes formas de surdez unilaterais. Também o herpeszoster pode se assentar no gânglio de Corti, causando lesões parecidas. (N. Do m.)
E naquela luta, tentando afugentar a imagem de “Denário” e procurando desesperadamente o necessário descanso, voltei a censurar minha absurda obsessão. Afinal, no que me afetava tudo aquilo? Este explorador pouco ou nada podia fazer. E ainda que tivesse estado nas minhas mãos ajudar o infeliz, as normas do Cavalo de Tróia proibiam isso de forma terminante.
Então... Naquele instante, repito, não compreendi. O “aviso” (?) não ia por aí.Não se tratava de auxiliar o ruivo. A “advertência” (?) indicava “mais além”... O menino, de fato, seria uma peça chave na hora de analisar e constatar um dos grandes prodígios do Rabi da Galiléia. Mas vamos por partes. Finalmente, entregue e confuso, caí num sono profundo e reparador. E “vivi” um estranho sonho. Mais um. Claro que jamais vou esquecê-lo. 19 DE AGOSTO, DOMINGO Agora, tão longe e tão perto daquela inesquecível aventura, eu tremo nas bases. Tenho certeza. E gostaria de gritar isso ao mundo: nada é casual. O acaso não existe. O sonho que me visitou na pousada do cruzamento de Qarrin é mais uma prova... Agora eu sei. Ele me foi oferecido “em seu momento” para que eu soubesse, e pudesse dar fé de que tudo na vida está amarrado, e bem amarrado. Que não compreendamos esses desígnios é outra questão. Ao verificar o que verificamos, chegamos à mesma conclusão: Nossa missão era “mágica”. Nosso trabalho, sim, foi minuciosa e magistralmente desenhado pela USAF... e por Alguém infinitamente mais poderoso e sublime. Não, não estávamos ali por acaso... Mas vamos ao estranho “sonho” premonitório. Eu me lembro de tudo com uma nitidez de arrepiar. Estávamos nas margens do yam. Era uma aldeia, talvez Saidan. No sonho, isso não aparecia com clareza. Agora tenho certeza de que se tratava do pequeno povoado de pescadores. Era inverno. Todos nos cobríamos com os pesados roupões. O sol estava prestes a desaparecer por trás do Ravid. De repente, um dos íntimos chamou a atenção do Mestre. Pelo caminho de Nahum uma multidão se aproximava. Saímos à rua. A multidão, ao ver Jesus, parou. Eram centenas. A maioria, doentes e aleijados. Coxos, cegos, mancos, paralíticos... E, na frente, um querido amigo: “Denário”. Gritavam. Imploravam. Rogavam ao Rabi que fizesse um milagre, que tivesse piedade deles. O ruivo havia crescido.
Um dos discípulos se acercou do Galileu e lhe sussurrou ao ouvido. No sonho eu soube o que ele dizia: - Esquece-os, Senhor... São mamer, loucos, lixo. O Mestre continuou mudo, observando-os com ternura e compaixão E os gritos aumentaram. “Denário” então saiu da multidão e foi se ajoelhar aos pés do Mestre E, por meio de sinais, com lágrimas nos olhos, mostrou que não ouvia. Eu me aproximei do Rabi e lhe disse: - Impossível, Senhor. É surdo de nascimento. Jesus virou-se e perguntou uma coisa absurda: - Hipoacusia de transmissão ou de percepção? - De percepção – respondi como se fosse a coisa mais natural. - O ouvido interno está desintegrado. Curá-lo seria um sonho... O Mestre me olhou e, num tom de carinhosa repreensão, exclamou: - Tu, melhor do que ninguém, devias saber disso: os sonhos se tornam realidade. Mas eu, teimoso, insisti: - Ninguém pode! O órgão de Corti e as vias neurais estão destroçadas... Não te esforces... Só Deus poderia... Jesus deu uma gargalhada. E todos o imitaram. - Mas eu sou Deus – esclareceu o Rabi. - Eu posso... É só querer. E agora quero... E, de imediato, o gentio irrompeu num alarido, sufocando as palavras do Filho do Homem. Ele continuou falando, alheio ao alvoroço, dando mil explicações sobre a misericórdia divina. Eu quis avisá-lo. “Alguma coisa” incrível acabava de acontecer. Os paralíticos caminhavam. Os cegos viam... “Denário”, pálido, olhava para todos os lados, tapando os ouvidos. “Denário” ouvia! O Mestre contudo, sem notar o prodígio, continuava falando e falando.
- Meu Deus! - gritei – É um sonho! Estou sonhando! Então, levantou os braços, pedindo silêncio. A multidão emudeceu, colocando as mãos sobre os ombros deste perplexo explorador, comentou: - Não é um sonho, Jasão. Em seguida, pegando as folhas de papiro, escrevi: “Curou centenas... Hora: cinco A.M.(1). Mestre apontou para o “caderno de campo” e corrigiu: - PM., Jasão. Cinco PM. O “sonho” se oncretizou às cinco PM. Retifiquei o erro. Tens razão, PM. É pela manhã, Senhor... Nesse momento, acordei. Alguém, batendo na porta da cela, gritava: - Já é de manhã, senhor! Compreendi. Tinha sonhado. Um estranho e absurdo sonho. Absurdo? Quando voltamos ao Ravid e consultei o computador fiquei perplexo. O nascer do sol naquele domingo, 19 de agosto do ano 25, registrou-se às 4 horas, 55 minutos e 44 segundos... Incrível. Quase às cinco... A.M., claro. Durante um tempo eu não soube o que pensar. Coincidência? Fora por acaso que este explorador escrevera no sonho “cinco A.M.” e a saída do sol, naquele instante, quando terminava o sonho, se dera também na mesma hora. Claro que tinha sido um sonho. Nenhuma dúvida sobre isso. Mas que tipo de sonho? Por que o Mestre garantira que não era um sonho? Absurdo? Mais adiante, no começo da vida de pregação, eu comprovaria que, às vezes, o supostamente “absurdo” é o mais real. *1. A.M. (antemeridian ou antes do meio-dia). P.M. (post-meridian ou depois do meio-dia).Trata-se de palavras de origem latina utilizadas nos países anglo-saxões, onde a contagem das horas do dia de 0 a 24 não é habitual. (N. Do a.)
E viriam as “explicações”. “Explicações” abaladoras. Jamais vimos coisa igual. Definitivamente não existe o acaso.
Verdadeiramente, o Cavalo de Tróia foi alguma coisa “mágica”. Sitio, silenciosa, serviu o café da manhã. Parecia contrariada da nossa partida. Leite quente, tortas de flor de farinha recém-assadas, requeijão e tâmaras. Pagamos e, no portão, triste e agradecida, pediu que não a esquecêssemos. Prometemos. Ela então, nervosa, suplicou que aceitássemos um humilde presente. Pegou minhas mãos e nelas depositou uma das pequenas tabuletas de madeira que decoravam a pousada. A inscrição me comoveu: “Achava que não tinha nada, mas, ao descobrir a esperança compreendi que tinha tudo.” Eu a abracei, agradecendo-lhe a gentileza. Depois foi a vez de Eliseu. Ela lhe entregou uma bolsinha de aniage e, sorridente, esclareceu: - São “sonhos”... Eliseu, curioso, abriu a bolsa e dela tirou outra das especialidades da cozinheira: pães doces recheados de coco amêndoas manteigga, canela, mel e especiarias. Um doce parecido com a baklavá. Uma receita aprendida – garantiu – com os “missionários” gregos que conhecera em Tiro. Meu irmão enrubesceu. Não soube o que dizer. “Sonhos”... Que coincidência! Nós, que não éramos chegados a despedidas, afastamo-nos do lugar. Algum tempo depois, como eu já disse, o Destino nos levaria de novo à presença daquele afetuoso ser humano. Nessa ocasião, contudo, acompanhados. Muito bem acompanhados. Aproveitamos o friozinho do amanhecer e, descansados, decididos e sobretudo exuberantes, encaminhamo-nos em direção ao objetivo seguinte: o lago Hule. Meu irmão parecia ter esquecido o ruivo. Por isso guardei silêncio
sobre o meu sonho recente. Para que mexer com sentimentos? O panorama mudou. A relativa paz da jornada anterior desaparecera. E o caminho apresentou-se tal como era: buliçoso, cheio de gritos, de burriqueiros sempre com as varas ao alto, de suor e de invisíveis cantos e trinados nas profundezas do bosque. Foi só cruzar a pontezinha de troncos e nos vimos envolvidos no meio de um febril vaivém de homens e cavalgaduras. Aquele, sim, era o aspecto autêntico e cotidiano da rota. Procedentes do norte, do Hermon, marchavam, nervosas, as últimas caravanas retardatárias de jumentos carregados até o topo com a apreciada e preciosa neve dos cumes. Os arrieiros, conscientes do atraso, fustigavam os animais, obrigando-os a trotar. Mais de uma vez fomos quase atropelados.  Na direção contrária, rumo ao Hule, fomos de novo ultrapassados por outras não menos inquietas e castigadas arreatas de asnos e mulas. A pressa era lógica. Em poucas horas, o sol de agosto apertaria, prejudicando as delicadas cargas de peixe do yam. Apesar do sal e dos densos ramos de feto, as tórridas temperaturas ameaçavam o peixe. Meia hora depois da partida, o terreno, benévolo, iniciou uma suave e gratificante descida. Saímos de uma curva e, de repente, os céus nos presentearam com um espetáculo difícil de esquecer. O miliário de plantão, pontual e em preto-e-branco, anunciava a distância até o Hule: três milhas romanas (quase quatro quilômetros). Majestoso. Simplesmente majestoso... Paramos e, contentes, absorvemos a paisagem. Os relógios do módulo deviam estar marcando seis horas. Ao fundo, coisa de trinta quilômetros, inclinada ao longo da frente norte, presidindo e mandando, cumprimentou-nos a cadeia do Hermon.
A neve, refugiada lá no alto, despertava imaculada e laranja, obediente aos suaves toques da luz rasante. Ali estava o nosso Homem! Lá de cima dos seus 2.814 metros de altitude, o maciço cintilava verde, azul e negro em todas as direções. Eram as “raízes”, os “pés” de um gigante de sessenta quilômetros de comprimento. Dezenas de colinas compartilhando o silêncio e o fofo abrigo de pinheiros, azinheirais e carvalhais e do soberano do lugar, o altivo cedro. Magnífico! Jesus de Nazaré havia escolhido de forma acertada. E entre o GebeGesh-Sheikh (a “montanha de cabelos brancos” árabes e beduínos ou o “Sirion” dos sidônios, cantado no Deuteronômio, e estes perplexos exploradores, outro “milagre” dos laboriosos felah da Gaulanítide: a “panela” do Hule, uma imensa concavidade ovalada com 29 quilômetros de diâmetro maior por dez de diâmetro menor. U jardim, ainda na sombra, aguardando respeitoso o despertar de seu outro dono e senhor: o manso e verde “coração”. O lago Hule, o antigo Meron da Bíblia. Um pântano de nove por sete quilômetros, quase no centro geométrico do jardim e, justamente, em forma de coração. Dependurada no Hermon, descendo em direção ao “coração”, uma madeixa de vitais “artérias”: quatro rios com a correspondente prole de afluentes. E por todos os lados, pelo este, pelo norte e pelo oeste, orbitando o Hule, uma constelação de lagoas de todos os tamanhos; abrigada em meio a uma “selva” de canas, juncos e papiros. Uma “selva” domixiante nos pântanos, dificilmente contida pelos camponeses. Uma mata cerrada alta, ondulante e perigosa, cortada pelos violentos e barulhentos tributários do Jordão. Achei que tinha distinguido o mais nervoso: o nahal Hermon, o rio mais para o oriente, pulando sobre as bases da montanha, a quase duzentos metros de altitude. Ele despencava, suicida, por canais e cascatas até que, esgotado, ia juntar-se, depois de nove quilômetros, ao seu irmão, o nahal Dan. Ali, sereno e patriarcal, nascia realmente o pai Jordão.
Mais ao oeste, também selvagens e indomáveis, desciam o Senir e o Iyyon. O primeiro se submetia ao Jordão, desembocando no bíblico leito a três ou quatro quilômetros ao norte do “coração”. O Iyyon, por sua vez, arisco, afinal de contas pagão, evitava os outros, esvaziando-se na margem ocidental do Hule. Aquela benção, nascida fundamentalmente nas neves perpétuas do Hermon, fazia frutificar toda a Gaulinítide, proporcionando ao mar de Tiberíades um caudal aproximado de 150 milhões de metros cúbicos por ano. Sob a proteção desse tesouro, os felah, repito, ganharam a batalha, transformando a ondulação que se abria diante de nós num jardim florescente e invejável. Ali, onde a “selva” ficava em silêncio, apareciam imediatamente disciplinadas legiões de oliveiras, hortas inclinadas ou terraços, e uma agitação ondulada de pomares, entre os quais ssaíam, decididas e imponentes, as macieiras da Síria. Aqui e aLi, tímidas e adormecidas, via-se uma vintena de aldeias. Todas com suas finas chaminés brancas recém-pintadas. Naquela posição, o caminho, feliz como o caminhante, esquecia alturas e obstáculos, precipitando-se, retilíneo, até o Hule. Uma vez ali, depois de lamber o lago do lado leste, renunciava outra vez à comodidade da planície, subindo em ziguezague e sem pressa em direção ao norte. Finalmente encontrava-se com a capital da região: Panéias Cesaréia de Filipe). Pelo oriente, aparecendo e desaparecendo entre as massas florestais, vimos chegar a também concorrida rota procedente de Damasco. Dava uma parada em Panéias e, em seguida, tenaz e voluntariosa, driblava o hal Dan, o Senir e o Iyyon, perdendo-se entre colinas e bosques, em direção à cidade marítima de Tiro. O jovem sol, sem querer, alertou a fauna dos pântanos. E várias nuvens de aves aquáticas, brancas e escandalosas, saíram da selva”, alterando a paisagem. Era a primeira mudança de guarda nas lagoas. Meu irmão apontou para o Hermon e, intranquilo, colocou a grande pergunta: - Isso é imenso... Como vamos encontrá-lo? De fato não tínhamos muita coisa, mas tentei acalmá-lo. - Tenha fé, rapaz... Vamos encontrá-lo.
Na verdade, só tínhamos duas pistas: uma aldeia localizada, parece,  aos pés do gigante e o nome de um de seus vizinhos. Creio que foi inevitável... Ao examinar de novo o silencioso Gebelesh-Sheikh, uma velha dúvida me assaltou. O Hermon não era o único cume prateado pela neve. Em sessenta quilômetros se espremiam outros cumes: Kahal, Kramim, Varda e Hermonit, entre outros. A qual deles se referia meu confidente? Em princípio, se eu bem me lembrava, o chefe dos Zebedeu fora muito preciso: o Mestre, naquele verão do ano 25, fora se refugiar na “montanha de cabelos brancos”, o que, provavelmente, significava grande Hermon. Mas ele também podia estar enganado. Não tinha sentido nos atormentarmos com isso. Pelo menos um ou dois dias do gigante. Primeiro convinha localizar Bet Jenn, a pequena povoação na qual, segundo meu informante, Jesus de Nazaré contratou os serviços de alguns de seus habitantes. Depois, veríamos o que fazer... Descendo, procurei espantar os temores, refugiando-me no obrigatório registro de referências geográficas, vitais, como já mencionei, para futuras incursões na região. Do lado oeste, como um farol branco, apoiada sobre penhascos de calcário, perseguida muito de perto pelo bosque, creio ter identificado a religiosa e ortodoxa Safed. Mais ao norte, a uma hora de caminho da célebre cidade dos rabinos, despontava, negro e afilado, o Meroth, um pico de 1.208 metros, escurecido da cabeça aos pés pelas oliveiras. Em algum ponto daquela montanha escondiam-se os túmulos do famoso Hillel, de seus trinta e seis alunos, do adversário do “Babilônio”, Sammay, e da esposa deste último. Quem sabe – eu disse a mim mesmo. - Talvez um dia você possa visitá-los e render uma homenagem particular ao ídolo de Sitio... “ E, como eu imaginava, meus desejos se veriam satisfeitos... em seu devido momento”. Por cima do Meroth, a umas dez milhas de Safed e a pouco mais de quatro do flanco ocidental do Hule, brilhava, róseo e deslumbrante,
outro misterioso povoado: Cades ou Cadasa, lugar santo para os judeus. Ali, segundo a tradição, venerava-se o túmulo de Josué. Aquela cidade também me interessava. Pelo que eu sabia, Cades desfrutava de uma curiosa singularidade: era uma das seis antigas cidades-refúgio” míticas, citadas na Bíblia(2). Um “asilo” inviolável no qual podia se abrigar todo aquele – judeu ou gentio – que tivesse cometido um homicídio involuntário. Assim o estabeleciam Êxodo (21, e Números (35,9-29)(3). Foi precisamente a Josué, quando atravessava o Jordão, que Yaveh ordenou que selecionasse as tais “cidades-asilo”. Assim se garantia ao presumível inocente um julgamento justo e, sobretudo, que ele não caísse nas mãos de parentes vivos do morto (vingadores do sangue). Segundo uma antiqüíssima tradição, esses “refúgios” deviam estar tantes entre si. Três de cada lado do Jordão. *2. Livro de Josué (20, 1-9) diz textualmente: “Yaveh disse a Josué: «Fala aos israelitas e diz-lhes: Apontei as cidades de asilo das quais já vos falei por meio de Moisés, às quais pode fugir o homicida que matou alguém de forma inadvertida (sem querer), e sirvam de asilo contra o vingador do sangue. (O homicida fugirá para uma destas cidades: se deterá à entrada da porta da cidade e exporá seu caso aos anciãos da cidade. Estes o admitirão em sua cidade e lhe indicarão uma casa para que habite com eles. Se o vingador de sangue o perseguir, não entregarão o homicida em suas mãos, pois feriu seu próximo sem querer, e não lhe tinha ódio anteriormente. O homicida deverá permanecer na cidade, até comparecer em juízo diante da comunidade, até a morte do sumo sacerdote que esteja em funções naquele tempo. Então o homicida erá voltar à sua cidade e à sua casa, à cidade da qual fugiu.). “Consagraram: Quedes (Cades) da Galiléia, na montanha de Neftali, Siquém na montanha de Efraim, Quiryat Arbá, ou seja Hebron, na montanha de Judá. Na Transjordânia, ao oriente de Jericó, designou-se Béser, da tribo de Rúben, no deserto, no planalto; Ramot em Galaad, da tribo de Gad, e Golã em Basan, da tribo de Manassés. Estas são as cidades designadas para todos os israelitas, assim como para o forasteiro residente entre eles, para que possa se refugiar nelas qualquer um que tenha matado alguém de forma inadvertida, e não morra nas mãos do vingador do sangue, até que compareça diante da comunidade.” (N. Do m.) 3 Em seu capítulo 35, Números estabelece: “Falou Yaveh a Moisés e lhe disse: «Fala aos israelitas e dize-lhes: Quando passardes pelo Jordão em direção à terra de Canaã, encontrareis cidades que transformareis em cidades de asilo: nelas se refugiará o homicida, aquele que feriu um homem por inadvertência. Essas cidades vos servirão de
asilo contra o vingador: não deve morrer o homicida até que compareça diante da comunidade para ser julgado. Da cidade que lhes cedereis, seis serão de asilo: três cidades lhes cedereis do outro lado do Jordão e três cidádes no país de Canaã; serão cidades de asilo. As seis cidades serão de asilo tanto para os israelitas como para o forasteiro e o hóspede que vivem no meio de vós, para que possa se refugiar nelas todo aquele que matou um homem inadvertidamente... (N. Do m.) Governantes e cidadãos eram obrigados a cuidar do traçado e da pavimentação dos caminhos, construindo pontes, sinalizando as cidades de forma adequada e limpando os caminhos de qualquer obstáculo que atrapalhasse ou confundisse o fugitivo. Com a morte do sumo sacerdote, se o julgamento ainda não tivesse sido realizado, o suposto homicida estava autorizado a voltar ao seu lugar de origem. E aí acontecia uma coisa interessante: a mãe do sumo sacerdote falecido tratava de alimentar e vestir esses refugiados, conjurando assim a possibilidade de que amaldiçoassem o seu filho. Se, ao contrário, o fugitivo morresse antes do sumo sacerdote, os restos eram trasladados para junto dos seus. Absorto nesses assuntos, de repente vi que estava perto do Jordão, Faltando dois quilômetros até o Hule, o leito ainda cristalino apareceu no caminho e, barulhento, trouxe-lhe música. Logo depois, outro miliário nos obrigou a reduzir o passo. O lago se achava a uma milha romana. Bem perto, em algum canto do extremo sul do “coração”, segundo as informações de Sitio, devia estar o kan de Assi, o auxiliador. E nos preparamos para visitá-lo. O que não imaginávamos é que o Destino, pegando a dianteira, aguardava-nos “impaciente”.. Não foi difícil. Assi, o essênio, era muito conhecido nos pântanos: O kan se erguia num ângulo estratégico, entre o Jordão, a oeste, e o lago, ao norte. Seguindo as indicações dos felah, abandonamos a rota, enveredando por um estreito e humilde caminhozinho que ziguezagueava em direção ao poente. Calculei que, ao sair da via principal e dobrar à esquerda, podíamos estar a uns seis quilômetros
do cruzamento de Qarrin e a dezessete, mais ou menos, da clareira do “ruivo”, nas proximidades de Beth Saida Julias. Ao avançar em direção ao Jordão, a paisagem mudou muito. E o caminhozinho, de apenas um metro e meio de largura, valente, enfrentou a temida e sufocante “selva” de canas, adelfas e espadanas. Dos dois lados, maciças, quase impenetráveis, erguiamse enormes muralhas de Arundo donax, as canas gigantes de cinco metros de altura, rematadas por feios penachos. Mas adiante, presas entre as grossas e nodosas gane, disputando cada palmo de terra, pediam clemência as ardaf vermelhas, brancas e cor de laranja, as adelfas impregnadas de veneno. E no final, e roçando as águas do Hule, outra resignada e compacta população de espadanas, o mítico suf que serviu para trançar a cesta que salvou Moisés, com seus esbeltos talos de três e quatro metros procurando desesperadamente a luz. E, zumbindo entre as folhas eretas e finas como fitas, uma ameaça errática e escura: a malária. Ao fundo, talvez a meio quilômetro, sobre o pântano, ouvia-se, confuso e desafinado, o concerto das aves aquáticas. Contei setecentos passos. Alto, por fim, o corredor de canas rendeu. E diante destes exploradores apresentou-se uma esplanada limpa, quase circular, de uns cem metros de diâmetro, cercada intensamente por outro bosque verde-amarelo de Arundos. Atrás, em direção oeste, a pouca distância, murmurava rouco e inconfundível o pai Jordão, há pouco liberado do Hule. No centro, sete choças plantadas em círculo, todas armadas com as enormes canas ocas e grossas. Os tetos, a pouco mais de três metros do chão negro e empoeirado, haviam sido confeccionados com ramos e folhas de palmeira. Nós nos olhamos intrigados. À primeira vista, o kan parecia abandonado. Estranho, nenhum dos felah nos avisou... As choças estavam fechadas, com as estreitas portinhas de cana firmemente bloqueadas com troncos espessos e pesados. Cada viga, de um metro, era sustentada por um par de laçadas de cordas, solidamente amarradas ao trançado.
A tranca, não sei por que, me pareceu estranha. Não era difícil tirar as traves. Por questão de instinto, conversando em voz baixa, decidimos dar uma segunda olhada minuciosa. Negativo. A mata cerrada que abarcava o lugar, a menos das barulhentas aves e das nuvens escuras de insetos, estava tão solitária como o minúsculo povoado. O que fazer? Meu irmão, inquieto, pressentindo alguma coisa, recomendou dar meia volta, retornando ao caminho principal. Quase segui seu conselho, continuando a viagem até o Hermon, “algo” - não sei bem definir – me segurou. “Algo” me atraía. “Algo” chamava lá de dentro das silenciosas cabanas. E o Destino – de novo – entrou em ação... De repente, de algum lugar da clareira, escapou um gritinho. Depois outro e outro... Eliseu, pálido, interrogou-me com os olhos. Nenhuma idéia. Subitamente, os gritinhos cessaram. Então, à nossa direita, detrás de uma das choças mais próximas, tivemos a impressão de ter ouvido um ruído metálico. Alguma coisa como correntes sendo arrastadas. Correntes? Nem pensei duas vezes. Apesar dos protestos do engenheiro, avancei firme até o centro do círculo formado pelas cabanas. O que acontecia afinal? O que ocorria naquele lugar remoto e perdido? Não foi preciso esperar muito para descobrir. I Ao passar a primeira choça da direita, ficamos imóveis e perplexos. Ali estava o “responsável” pelo som metálico. Quando nos viu, tão surpreendido quanto nós, ficou em pé. Durante uns instantes ele nos observou e, sem aviso prévio, furioso como uma pantera, veio para cima destes exploradores, berrando e agitando os braços.
Eliseu, instintivamente, recuou. E este que aqui escreve, num ato reflexo, deslizou os dedos até o extremo superior da “vara de Moisés”. E, atento, acariciou o botão dos ultra-sons. Não foi preciso intervir. A corrente que o prendia à base da cabana, com anéis grossos como punhos, esticou, derrubando-o. Contudo, o jovem negro levantou-se de novo e, uivando e se contorcendo de dor, tentou avançar. E, pela segunda vez, o grilhão de ferro que lhe apertava o tornozelo esquerdo o deteve secamente, jogando-o de bruços sobre a poeira. Impotente, sem deixar de uivar, começou então a jogar no próprio rosto a cinza vulcânica que cobria a clareira. Nós, lívidos, igualmente impotentes, assistimos à progressiva e inevitável destruição do nariz, testa, sobrancelhas, lábios e queixo. E assim continuou durante longos – e eternos – minutos. A criatura, talvez de uns vinte anos de idade, alta e forte, completamente nua, apresentava o corpo “tatuado” com dezenas de pequenos círculos que corriam paralelos desde o rosto ensangüentado até os pés. Pareciam cicatrizes, evidentemente provocadas. Uma espécie de escarificação ou incisões na pele, brutais e intencionalmente marcadas, que faziam as vezes das tradicionais tatuagens pintadas. Como constataríamos depois, era um costume bastante difundido entre as raças africanas. Passada a crise, o negro voltou a se sentar e, sem deixar de gesticular, Caiu na risada. E as gargalhadas, sonoras e intermináveis, repercutiram o kan, pondo em fuga as aves do canavial. Estávamos, de fato, diante de um desequilibrado. Um pobre infeliz que ficava acorrentado dia e noite. Semanas depois, numa segunda visita ao triste lugar, desta vez em companhia do Mestre, Assi, o auxiliador, me forneceu alguns dados complementares que deram uma pista sobre o mal que afligia o jovem negro. O escravo, recolhido no kan havia muitos anos, era vítima de uma síndrome pouco comum, ligada à loucura. Uma doença que em nosso tempo recebe o nome de amok(4). Um mal, de origem obscura, que lhe provocava freqüentes e
repentinos ataques de ira, e ele agredia e feria quem cruzasse seu caminho. Por causa desse perigo, tinha que estar acorrentado e isolado. De fato, naquela época e com os recursos rudimentares ao alcance do auxiliador essênio, não havia muitas alternativas. *4. Amok, em malaio, significa lançar-se furiosamente à batalha. O distúrbio, registrado basicamente entre varões, foi detectado entre os nativos da Malásia e também em tribos da África tropical. Os malaios definem os violentos ataques de loucura como mata gelap (”olho escurecido”). Passada a crise, o doente fica aniquilado física e psiquicamente, sem nenhuma lembrança do que aconteceu. (N. Do m.)
Uma escandalosa seqüência de gritinhos nos desviou da atenta observação ao acorrentado. Nervoso, meu irmão suplicou que eu deixasse as coisas como estavam. Já era o suficiente. Mas minha curiosidade foi maior. Realmente, acontecia alguma coisa estranha. O kan não estava vazio nem abandonado. Eliseu, intuitivo, previu novos sobressaltos. Não respondi. Tentei achar o lugar de onde partiam os gritos e, em grandes passadas, fui nessa direção.,e O engenheiro, amaldiçoando sua própria sorte, não teve outro remédio senão ir atrás de mim. Nunca eu havia imaginado aquilo que encerravam aquelas choças; Felizmente, todas tinham duas ou três janelinhas, altas e estreitas, de um só palmo, pelas quais só penetravam a luz e as inevitáveis nuvens de insetos. Quando espiei pelas janelinhas, de início a penumbra me confundiu: Pensei que se tratava de animais. E de certa forma era isso mesmo. Distingui alguns vultos em pé, outros deitados. Dez ou quinze. Meu Deus! Depois de alguns segundos, acostumado à escuridão quase total, compreendi. Retrocedi incrédulo. Mas os gritinhos agudos me empurraram de novo até a janelinha. À esquerda da habitação, sentado e com as costas coladas à
parede de canas, estava o autor da gritaria. Não teria mais de dez ou doze anos de idade. Estava igualmente acorrentado. Três pesados grilhões o imobilizavam. Um, ao redor do pescoço, o prendia à parede. Os outros, nos pulsos, ancorados em correntes pesadas e curtas, impediam que levantasse os braços além de trinta ou quarenta centímetros do chão. Ao me ver (?), ele girou a cabeça e intensificou os gritinhos, esperneando e começando um violento e sistemático golpear do crânio contra as canas. No extremo oposto, a quatro ou cinco metros, outro sujeito, também sentado, brincava em silêncio com as mãos, passando-as, como se fossem asas, diante dos olhos. Parecia absorto, divertindo-se com os movimentos dos dedos. Meu Deus! Comecei a entender... Um terceiro autista, coberto por uma minúscula tanga, também jovem e esquelético, andava de um lado para outro, rígido como uma árvore e driblando com habilidade os “vultos” que ocupavam o centro da choça. Ele segurava uma sandália. De repente, sempre nos mesmos lugares, parava. Apalpava o calçado. Levava-o ao nariz e, depois de cheirá-lo, retomava o monótono passeio repetitivo. Que tipo de kan era aquele? Meu companheiro, intrigado, juntou-se a este desanimado explorador. Nesse momento, uma das “sombras” levantou-se e se aproximou da janelinha. Ao entrar no facho de luz, Eliseu, vendo seu aspecto, atordoado, recuou. O “homem”, contudo, continuou avançando. Acercou-se de mim e, esboçando um sorriso forçado, perguntou: - Sois novos? Tive que fazer um esforço. A garganta, seca diante daquela coisa espantosa, negou-se a responder. O infeliz percebeu, baixou os olhos e, humilhado, fez menção de voltar à penumbra. - Sim – balbuciei como pude. - Somos novos...
O sorriso voltou e ele me estudou detidamente. O sujeito, já velho, sofria de um mal “repugnante”. Uma doença da qual não tinha culpa alguma e que, não obstante, provocava uma absoluta rejeição social. Seu rosto quase todo estava coberto por uma densa mata de pêlos negros. Uns pêlos grandes, de até dez centímetros, que, junto com o avermelhamento da conjuntiva e a maciça queda de dentes, davam-lhe um aspecto feroz. Se eu bem lembrava, o “homem” sofria do que a medicina chama de “hipertricose lanuginosa congênita”. Um hirsutismo ou abundância de pêlo duro e forte que, geralmente, prolifera por todo o corpo, exceto nas palmas das mãos e plantas dos pés. Um problema não muito comum, provavelmente de caráter hereditário (autossômico dominante), que transformava esses infelizes em “sanguinários homens-lobo”, “cara de cachorro” ou “ky terrier humano”. Correspondi ao sorriso aberto e ele, animado, chegou perto. Apesar de tudo, seus olhos irradiavam uma longínqua paz. - Procuramos Assi – adiantei. - Este é o seu kan, acho... Ele confirmou com a cabeça e, apontado o Hule, esclareceu: - Está pescando no agam (o lago) com os outros... Não volta até o pôr-dosol. Má sorte... Eu me despedi do bom “homem” e, reunindo-me com o ainda nervoso Eliseu, fiz um resumo da situação. Meu irmão, aliviado, pressionou-me. Queria sair da clareira imediatamente. Contudo, embora eu começasse a ter bem clara a natureza do “albergue”, pedi uns minutos, Tempo suficiente para examinar outra choça. Só mais uma. Aceitou contrariado. Escolhi a mais afastada e fomos até ela. O “espetáculo” tampouco foi muito gratificante, digamos assim.., Definitivamente, o kan parecia um refúgio de “monstros”, loucos irrecuperáveis e aleijados “envergonhados”. Ao nos aproximarmos, um cheiro fétido e pesado nos obrigou a tapar o nariz.
Naquele momento, o lugar estava quase vazio. Distingui dois homens e algumas mulheres. Ao pé da janelinha, jogado num leito de palha, nu e com os olhos muito abertos, olhava sem olhar um rapazote alto e magro. Deus! Eliseu, perturbado pelo mau cheiro e pela visão da figura, saiu de perto. E meu estômago, todo virado, ameaçou com um par de violentas convulsões. Como era possível? Aquele infeliz era o causador da insuportável atmosfera que dominava a cabana. Ele estava literalmente afundado em seus próprios excrementos. Com uma das mãos, recolhia parte daquilo e levava tudo à boca. Com a outra, se masturbava sem parar. Obsessivamente. Gemendo com um fio de voz... A julgar pelo aspecto e pela conduta, tratava-se, sem dúvida, de um oligofrênico, um deficiente mental profundo, cujo coeficiente intelectual creio que  não chegava sequer a 20. Em outras palavras, um total e irresponsável, com uma “idade mental” inferior à de uma criança de dois ou três anos. Sinceramente, caí para trás. Ndo nos viram, as mulheres se levantaram, aproximando-se cautelosas. Pararam a um metro e uma delas, com voz rouca e varonil, me censurou, exigindo comida. A hebréia devia pesar uns cento e vinte quilos. Desafiante, esperou uma resposta. Eu dei de ombros, insinuando que aquele não era o momento. O rosto, redondo como uma lua cheia, avermelhado, endureceu. Notei claros sintomas de calvície. Uma alopecia frontal, do tipo masculino. Imagino que, insatisfeita com minhas palavras, terminou dando-me as costas. Então, sob a túnica suja, bem perto da nuca, descobri um inchaço suspeito. Provavelmente, outro acúmulo de gordura. A típica corcunda de búfalo” que apresentam os afetados pela chamada drome de Cushing. Um quadro clínico provocado pelo funcionamento defeituoso do córtex supra-renal. Em resumo, uma excessiva secreção
de cortisona, um hormônio adrenocortical(5). Se era o que eu desconfiava a notável obesidade devia ser provocada por esse mal. E diante da minha surpresa, impudica, a mulher levantou a parte de baixo da túnica, mostrando um enorme traseiro. O gesto, desavergonhado, revelaria uma coisa que confirmou o diagnóstico. De fato, a pele aparecia frágil, atrófica e deixando transparecer as veias. Os flancos e raízes dos músculos estavam arrasados pelas características estrias vermelhas. Quanto às pernas, magras como palitos, contrastando com o pronunciado ventre dependurado, completavam o desastre com um conjunto de equimoses e outras manchas vermelhas (púrpura). *5. Essa doença, descrita pelo neurocirurgião Harvey Cushing, de Boston, é o resultado, em geral, de um adenoma independente do córtex suprarenal ou de um adenocarcinoma, responsável por um excesso de cortisona que inibe o hormônio adrenocorticotrópico (ACT-H). Isso leva, de forma inexorável, a uma atrofia da glândula supra-renal contralateral. A cortisona propicia, por sua vez, entre outros problemas, uma distribuição anormal da gordura. (N. Do m.)
Não havia dúvida. A mulher sofria da síndrome de Cushing. Uma patologia que, além do já descrito, coloca o paciente numa posição menos delicada de inferioridade psíquica(6). A segunda mulher, coberta por uma grossa manta de lã, tiritando da cabeça aos pés, levou o dedo indicador esquerdo à fronte e me deu a entender que sua companheira não regulava bem. Depois, confiante, chegou perto. Cabelo, sobrancelhas e pestanas haviam quase se sumido. Pegou minhas mãos. A pele da anciã, gelada, seca, dura, amarelada e escamosa, me assustou. Qual era o seu mal? E com voz lenta e áspera perguntou: - Procuras Assi? Fiz sinal que sim. - Ele é muito bom – acrescentou devagar. Muito devagar. - Cuida de nós... Agora está procurando o jantar. Segunda confirmação. O responsável pelo kan estava ausente.
Em seguida, apertando minhas mãos, disse uma coisa absurda: Faz frio... Não consigo me acostumar... Faz muito frio... Perplexo, não consegui responder. Frio Em pleno agosto Naquele momento e naquela selva, não acredito que a temperatura ficasse abaixo de 20 ou 25 graus... E levantando a voz de arrieiro exclamou: - O que disseste Não ouvi... Neguei com a cabeça. Eu não tinha dito nada. Provavelmente era surda. Pensei num hipotiroidismo, outra carência na secreção dos hormônios tiroidais. A queda de cabelo, tumefação e tonalidade amarelada da pele, tiritando de frio, a voz lenta e pastosa pareciam indicar isso. Se era assim, a desagradável voz tinha que ser produzida por infiltração mucóide da língua e da laringe. *6. O excesso de cortisona afeta também o sistema nervoso, produzindo excitação, estados confusos, alteração de consciência, depressões, alucinações visuais e auditivas ou idéias delirantes. Também altera os centros da “saciedade e do apetite”, localizados nas regiões ventromedial e ventrolateral, respectivamente. A destruição do primeiro ocasiona um aumento do apetite, com a lógica sensação de fome permanente e insaciável. (N. Do m.)
Contudo, sem um exame rigoroso, ficava tudo na especulação(7). Eu decidi sair dali. Já tinha visto o suficiente. Tentei me livrar das mãos da mulher. Mas, imagino que muito necessitada de companhia, ela resistiu, apertando com força. Foi quando, de repente, o segundo e silencioso homem levantouse. Eu o vi gesticular. De um pulo, colocou-se às costas da anciã. Pelo jeito eu ainda não tinha visto tudo. De repente, o enegrecido e enrugado rosto se convulsionou. E sobrancelhas, pálpebras, nariz, bochechas e boca afundaram num espetacular baile de tiques. Desconcertado, incapaz de precisar o alcance e a intenção das violentas caretas, consegui por fim soltar minhas mãos, indo para trás. A mulher repetiu o gesto inicial, levando o dedo direito à fronte. Também estava certa.
Sem controle, dominado pelos tiques motores, o pobre infeliz começou então uma nervosa e compulsiva série de blasfêmias, juramentos e obscenidades de todo tipo. O ataque recrudesceu e, ao lado das ostensivas caretas e tiques musculares, surgiu outra incontrolável série de movimentos espasmódicos na metade superior do corpo. A mulher, golpeada sem querer por mãos, braços e tórax, retirou-se atemorizada. Meus Deus, aquilo era demais... A coprolalia (repetição de frases obscenas) se concentrou em outro infeliz – o oligofrênico -, que começou, na base do grito, a soltar para fora todas e cada uma das misérias de sua deficiência mental. E a cada menção aos excrementos, o doente acompanhava sua loucura com tosses, salivadas e cavernosos ruídos bucais. *7. Na visita seguinte eu confirmaria isso. A anciã sofria de hipotiroidismo. Seu coração trabalhava de forma precária, com uma redução do volume sistólico, bem como de freqüência. A pele extremamente fria e a hipersensibilidade ao frio eram igualmente explicadas pela vasoconstrição periférica. Também o sistema nervoso central registrava danos, dando lugar a uma lentidão em todas as funções intelectuais. A mulher, de forma definitiva, estava às portas da demência. (N. Do m.)
Farto de tudo aquilo, Eliseu me pegou pelos ombros, obrigando-me a sair daquele “inferno”. Não acho que errei. O último sujeito era vítima de um distúrbio mental chamado “síndrome De la Tuzette”, uma doença de prognóstico muito ruim. Bendito seja Deus! Onde estávamos? Em que tipo de kan tínhamos ido parar? “Aquilo” nada tinha a ver com o que eu conhecia. “Aquilo” não era o típico albergue de passagem. E, desalentado, seguindo de perto os passos apressados do companheiro pelo corredor de canas, eu me perguntei que ou calamidades e despojos humanos escondia o resto das choças. Deus dos céus! Nós só nos aproximamos de duas... O que encerravam as outras cinco?
Semanas depois, como eu já mencionei, ao descer do Hermon e entrar de novo naquele lugar, ficaríamos devastados. Da mesma forma que a escura e tenebrosa cidade dos mamer localizada, como sabemos, nas proximidades de Tiberíades, este canteiro junto ao lago Hule era também um “pesadelo”. Outra demolidora realidade da Palestina na qual circulou o Mestre. Uma espécie de tristíssimo “depósito” de loucos, doentes e aleijados – contamos mais de sessenta -, perfeita e rigorosamente “controlados e marginalizados”, Um gueto ao qual pouca gente se atrevia a chegar. Uma humilhante e humilhada “aldeia” que, contudo, não passou despercebida para o terno e magnânimo Filho do Homem. Naquele momento não podíamos imaginar a importância que alcançariam os esquecidos pupilos de Assi durante a vida de pregação de Jesus de Nazaré. Uma importância, a propósito, da qual ninguém fala nos textos sagrados (?). Mas essa, como já terá percebido o paciente leitor destas memórias, é outra história. Uma belíssima história que – Deus queira – espero narrar em seu devido momento... Talvez fosse a hora “tercia” (por volta das nove) daquela luminosa manhã quando, por fim, desembocamos no caminho principal. Não conseguimos ver Assi, nem o ruivo, mas consideramos válida a experiência. O trânsito de homens e animais continuava no auge. Eu me fixei nos rostos. Muitos, risonhos. Outros, congestionados pelo calor e pela caminhada. Todos, de forma definitiva, alheios ao que acontecia um pouco mais adiante, a setecentos passos de onde nos encontrávamos. Eu me senti impotente. Derrotado. Aqueles infelizes não existiam. Não contavam para nada. Pior ainda: Era a vergonha e o descrédito de uma nação. Continuamos em direção ao norte e, incapaz de sufocar tanta amargura, comecei a falar sozinho, lamentando tudo quanto tinha visto.
Meu irmão tomou a iniciativa e, tentando aliviar e compartilhar a amargura”, perguntou-me sobre o porquê de semelhante situação. Quem era o culpado? Agradeci o apoio. Foi muito oportuno. Diante de nós, acenando lá do cume, erguia-se o gigante dos “cabelos nevados”. Eu devia ficar mais sossegado. Era preciso me aliviar da amargura daquele sofrimento. O encontro com o Rabi da Galiléia nos obrigava a permanecermos atentos, com o ânimo limpo e estável. Não podíamos nos distrair. Era muito o que estava em jogo. Demasiado... E me aferrando à pergunta de Eliseu, tentei simplificar as coisas. Para compreender de forma mediana o que representava o kan do essênio era preciso voltar a um velho e já comentado preceito judaico: pecado = castigo divino = doença(8). No fundo – fui explicando ao meu companheiro – era tão simples quanto dramático. Yaveh era a chave de tudo. Eu não exagerava. O Deus do Sinai, em boa medida, era o responsável por tanta miséria, marginalização e erro. Naturalmente, com a passagem dos séculos, “outros” contribuíram também para piorar a lamentável situação. Este foi o início da esclarecedora conversa que tivemos enquanto avançávamos. *8. Ampla informação complementar sobre esse tema em Operação Cavalo de Tróia 3 e 4, pp. 405 e ss. E 313 e ss., respectivamente. (N. Do a.)
- Yaveh? E por que Yaveh? Supõe-se que é Deus... - Sim – argumentei -, um Deus estranho. Negativo. E me concentrei nos fatos. - Lembre-se de algumas passagens do Pentateuco. Que Levítico? “... Mas, se não me ouvirdes e não praticardes todos estes mandamentos, e rejeitardes os meus estatutos, desprezardes as normas e quebrardes a minha aliança, deixando de praticar todos meus mandamentos, então eu farei o mesmo contra vós. Porei so vós o terror, o definhamento e a febre, que consomem os olhos e esgotam a vida...” (Levítico 26, 14-16).
Eliseu ficou em silêncio. Estranho Deus, sim... ... E o que aconteceu quando Aarão e Maria censuraram Moisés por haver tomado por esposa uma kusita (etíope)? A cólera de Yaveh acendeu-se contra eles e Maria acabou leprosa, “branca como a neve”. Aarão viu tudo claro. Aquele ataque de zarâ’at (lepra?) era coisa de Deus. E pediu a seu irmão Moisés que intercedesse (Números 12, 115). No Deuteronômio (28, 21-27) – continuei – Yaveh insiste: “Se não escutares a voz do Senhor..., então o Senhor trará sobre ti a morte... Te  ferirá de tísica e febre..., e com as úlceras do Egito, com tumores, com crosta e sarnas...”. E mais adiante (Deuteronômio 32,39), o desapiedado Deus () esclarece: “Eu feri e eu curo... Se obrares com retitude, nenhuma dessas doenças cairá sobre ti.” - Ainda bem... - murmurou meu companheiro, perplexo. - O Deuteronômio, como você sabe, está cheio de advertências desse tipo. ... Yaveh te castigará com a loucura, com a cegueira e com o frenesi, por isso andarás tateando durante o dia, como costuma andar um cego rodeado de trevas... Te ferirá o senhor com úlceras muito malignas nos joelhos e no peito das pernas, e de um mal incurável desde a planta dos pés até a cabeça... o Senhor acrescentará tuas pragas e as de tua descendência, pragas grandes e permanentes, doenças malignas e incuráveis: e arrojará sobre ti todas as pragas do Egito, que tanto te apavoram, que se agarrarão a ti estreitamente. Além disso, enviará o por sobre ti todas as doenças e chagas que não estão escritas no livro desta Lei, até te aniquilar.” Ficamos em silêncio. E acho que pensamentos e corações voaram juntos até o Hermon. Que bela e difícil “revolução” a daquele Homem! Quão diferentes o yaveh dos judeus e o Ab-bã de Jesus de Nazaré! Continuamos...
- Está claro – sentenciei. - A saúde tem sido, e continua sendo, um patrimônio exclusivo de Yaveh. A Bíblia o repete até a exaustão: “Yaveh ou Abimeleq” (Genesis 20, 17). “Eu sou Yaveh, aquele que te restaura” (Êxodo 15, 26). “Rogo-te, oh Deus, que os cures agora!” (números 12,13). E assim poderíamos continuar infinitamente... Na verdade, como também você sabe, os judeus não aceitam o título médico. Só Deus é rofé. Eles se contentam com uma designação que não ofenda esse “Senhor”. Eles se autoproclamam “auxiliadores” ou “curandeiros”. Assi, quando o conhecer, é um deles. Os outros médicos, os gentios, são desprezíveis usurpadores. Você deve ter notado que, em muitas ocasiões, me olham com repugnância... Em suma, de acordo com o que promulgou Yaveh, a doença é um castigo divino, conseqüência, sempre, dos pecados humanos. Se um judeu se equivoca, se infringe a Lei, esse Deus vigilante e vingativo não perdoa... - Meu Deus! - lamentou-se Eliseu com razão. - E o que acontece com as doenças genéticas? Que pecado pode ter cometido o oligofrênico que acabamos de ver? - Tudo isso está previsto e considerado nessa Lei tortuosa e sibilina, querido amigo. Tudo... Evidentemente é muito difícil culpar de pecado alguém que tenha nascido com esse ou qualquer outro defeito. Não importa. Os intérpretes da Lei invocam então a culpa dos pais. E se estes têm saúde, retrocedem aos ancestrais. Alguém definitivamente cometeu um erro. E Deus, implacável, fere e humilha.  - Não, esse não é um Deus... Eu sorri para dentro. Eliseu de fato estava pondo o dedo na ferida. Estava se aproximando de uma das outras “frentes de batalha” que deveria sustentar o Filho do Homem. Uma “frente” que multiplicaria o número de inimigos e que contribuiria de forma decisiva para sua prisão e execução. É bom não se esquecer disso. - Em outras palavras – ponderei -, a saúde, para este povo, depende direta e proporcionalmente do cumprimento da Lei. O problema, grande problema, é que essa Lei é uma diabólica teia de aranha impossível de ser memorizada. Como resultado, segundo os
extremamente severos, sempre fica alguma coisa sem se cumprir. E, situação louca, como você comprovará no devido momento, provo duas realidades, uma mais absurda que a outra. Um homem são, para os judeus, é alguém puro, fiel cumpridor dos preceitos divinos. E, suposição, em muitas ocasiões, arrasta rabinos, doutores da Lei e demais castas principais a uma presunção e arrogância mais que notáveis. Temos, sem ir mais longe, os chamados “santos e separados”, os fariseus, Deus, simplesmente, está com eles. Com os doentes, aleijados ou loucos, por outro lado, ocorre o contrário. Seus males são a demonstração palpável de que Yaveh os abandonou. E assim continuarão até que reconheçam suas faltas e se purifiquem. - Absurdo... - Sim, mas real. E o conceito em questão, querido Eliseu, se acha tão arraigado em seus corações que muito poucas das doenças psiquiátricas ou mentais têm nome próprio(9). Para o judeu, sobretudo extremista, a demência não é uma patologia. Essa idéia é estranha. E não consegue concebê-la. - Então... *9. Ao contrário das doenças somáticas, para as quais empregavam o paradigma paélet ou paálat, com as funcionais utilizavam uma terminologia ambigua, amparandose no modelo pialón: deavón era o difuso “pesar”; o “abobamento definiam como hipazón kilayón equivalia à “sensação de aniquilamento”, isavón corresponderia ao “nervosismo”, ivarón à “cegueira espiritual”, simamón “estupor”, sigayon à “alucinação” e sigaón, por exemplo, à “alienação”. (N. Do
Com os desequilibrados, o problema piora. Não são somente pecadores. Para o cúmulo da desgraça, Yaveh os castiga, mandandolhes um espírito maligno, um ruah. Os loucos, simplesmente, são possuídos. Quer dizer, duplamente infelizes. Por isso, os judeus acendem uma lâmpada durante o sábado: para que os ruah não se aproximem. Se bem que esses demônios são invisíveis e que estão por toda parte, sempre a serviço de Yaveh. Alguns até garantem ter visto suas pegadas, semelhantes às de
galos gigantes. Entendo. Segundo isso, o negro acorrentado no kan de Assi é um possesso. - O negro, os epilépticos, os autistas, os esquizofrênicos e, praticamente, todos os que padecem de distúrbios mentais, de linguagem, de audição, etc. Esses pobres infelizes, além disso, como você já terá intuído, não têm direitos. São impuros e contaminam, inclusive “à distância”. - À distância? - Yaveh deixou isso claro no Levítico (5, 3): “Se alguém, sem perceber, toca uma pessoa impura, manchada com qualquer tipo de impureza, quando disso souber se torna culpado.” Meu irmão começou a rir. - Deus! Meu Deus! - E a coisa não fica por aí. Para Yaveh (Levítico, 21,17-22), qualquer impedido ou inválido está desautorizado para se fazer sacerdote. Escuta que diz esse “Deus”: “Nenhum dos teus descendentes, em qualquer ação, se aproximará para oferecer o pão de seu Deus, se tiver algum defeito. Pois nenhum homem deve se aproximar, caso tenha algum defeito, quer seja cego, coxo, desfigurado ou deformado, homem que tenha o pé ou o braço fraturado, ou seja corcunda, anão, doente dos olhos, ou tenha sarna ou pragas purulentas, ou seja eunuco. Nenhum dos descendentes de Aarão, o sacerdote, poderá se aproximar para apresentar oferendas queimadas a Yaveh se tiver algum defeito; tem defeito e por isso não se aproximará para oferecer o pão de seu Deus. - Deus! Que Deus!... - Sim – comentei desalentado -, em nosso tempo Yaveh seria qualificado de “nazista”... Até o rei Davi se viu contagiado pela intransigência desse “deus” brutal e seletivo. Assim confirma o segundo livro de Samuel (5, 8): E disse Davi aquele dia: “Todo aquele que queira atacar aos jebuseus suba pelo canal... quanto aos cegos e mancos, Davi não quer saber deles. Por isso se diz: «Nem manco nem cego entrarão na Casa (Templo)”; Mais ainda: segundo a tradição, esses deserdados da
sorte não têm direito de participar dos rituais das grandes festas, das oferendas e, também, de determinados casamentos. Três vezes por ano, como você sabe, os israelitas varões devem peregrinar ao Templo e oferecer vários sacrifícios a Yaveh(10). Muito bem, isso não vale para as crianças, hermafroditas, mulheres, escravos, surdo-mudos, imbecis, indivíduos de sexo incerto, doentes, cegos, anciãos, em resumo, para todos aqueles que não estão capacitados para chegar caminhando. - Indivíduos de sexo incerto? - Sim, aqueles cujos órgãos genitais aparecem ocultos ou pouco desenvolvidos. - Então, Sitio... - Se fosse judeu, tampouco poderia se apresentar no Templo. Entra na difusa categoria dos hermafroditas. Quer dizer, os que reúnem dois sexos. *10. Nas solenes festas da Páscoa, Pentecostes e Tabernáculos, como indicam Êxodo, (23,14-17) e Deuteronômio (16,16), osjudeus maiores de doze anos e meio (idad legal) tinham a obrigação de comparecer ao átrio do Templo, em Jerusalém, e oferecer um holocausto ou sacrifício de comparecimento (reiyya). O sangue era derramado, a pele ficava para os sacerdotes e a carne, com a gordura, era queimada sobre o altar. Em outra passagem do Êxodo (23,14), se diz também que Yaveh deveria receber, trêS vezes por ano, o que denominavam “sacrifício festivo” (hagigá). Em muitas ocasiões, portanto, a oferenda era dupla. A hagigá era um sacrifício pacífico, no qual o sangue e a gordura eram oferecidos no altar e a carne comida pelos peregrinos, desde que estivessem em estado de pureza ou não fossem indivíduos marginalizados pela Lei. Se a hagigá não fosse suficiente para satisfazer as necessidades dos comensais fazia-se um terceiro holocausto: o sacrifício chamado da “alegria”. “Alegria”-dizia – por estar perto de Deus e poder degustar a carne sagrada. Os dois primeiros rituais, em resumo, eram obrigatórios. O da “alegria”, por outro lado, era voluntário. Naturalmente, os “pecadores” (aleijados, doentes, loucos etc.) não podiam desfrutar de tais sacrifícios... (N. Do m.)
E o que entendem por “imbecis”? Não é o que você acha... Não se trata de pessoas com pouca inteligência, mas sim de pessoas como as que vimos no kan: deficientes mentais e desequilibrados. Surdosmudos?... Por que Yaveh os proíbe de se aproximarem do templo?
Neste caso, a bem da verdade, a culpa não é de Yaveh, mas dos ciosos intérpretes de suas palavras. Tudo procede de um texto do Deuteronômio (31, 10-14). Ouça e deduza: “... E Moisés ordenoulhes: no fim de cada sete anos, precisamente no da Remissão, na festa das Tendas (Tabernáculos)., quando todo Israel vier apresentarse diante de Yaveh vosso Deus no lugar que ele tiver escolhido, vós proclamareis esta Lei aos ouvidos de todo Israel. Reuni o povo, os homens e as mulheres, as crianças e o estrangeiro que em vossas cidades, para que ouçam e aprendam a temer Yaveh o Deus, e cuidem de pôr em prática todas as palavras desta Lei. E filhos que ainda não sabem ouvirão e aprenderão a temer Yaveh o Deus, todos os dias que viverdes no solo do qual ides tomar e ao atravessardes o Jordão.” - Incrível... - Sim, essas expressões “Proclamareis esta Lei aos ouvidos de...”, “para que ouçam” e “ouvirão”, deixaram de fora os surdos. Para os doutores da Lei, e demais extremistas, está claro que, por não poderem escutar, não têm direito. E a mesma coisa acontece com a oferenda e o famoso dízimo. Nenhum dos infelizes do kan de Assi está autorizado a tais práticas. Além de tudo, a esses se juntam os mudos, cegos, bêbados, nus e, olhe só, os que tiveram uma polução noturna (emissão involuntária de sêmen durante a noite(11)). *11. Segundo a Lei de Moisés (Lev. 22,10-14, e Números 18, 8-11-12-26-30), osjudeus eram obrigados a entregar uma oferenda aos sacerdotes. A disposição de Yaveh abrangia todos os frutos da terra. Destes, segundo os rabinos, devia se separar um por cinqüenta. Tratava-se da “oferenda grande” (teruma gedola), diferente da que o levita fazia de seu próprio dízimo (terumat ma aser). A Lei proibia que tais frutos fossem consumidos se antes não se fizesse a separação do referido dízimo. (N. Do m.)
- Mas...
- Assim diz Yaveh no Levítico (15, 16-17): “Quando um homem tiver emissão seminal, deverá banhar em água todo o corpo, e considerarse impuro até a tarde. Toda veste e todo couro atingidos pela emissão seminal deverão ser lavados em água e ficarão impuros até a tarde”. - E que mal fazem um cego ou um bêbado? Por que não podem apresentar o dízimo? - A decisão, mais uma vez, foi tomada pelos “sábios” de Israel, Baseados nos Números (18, 29), onde Yaveh fixa a obrigação do dízimo. Estes “intérpretes” deduziram que cegos ou bêbados não estão capacitados para “ver” e selecionar “o melhor do melhor”, como ordena seu Deus. Meu irmão, desconcertado, fez então um comentário. Um comentário acertado. - Começo a entender que tipo de povo o Mestre teve que enfrentar. - Você ainda não viu nada, querido amigo. Nada... - E o que acontece com os casados? - Essa é outra longa e prolixa história. Pouco a pouco você vai descobri-la. Vou te dar um exemplo. A extensa norma dedicada a cunhadas (yemabot) especifica que se um homem casa com uma mulher sã e, ao fim de certo tempo, ela fica surda-muda, o marido tem todo o direito de repudiá-la. - E se acontece o contrário? - Isso, que eu saiba, a Lei não considera. - Machistas, cretinos e ignorantes... - Querido Eliseu – ponderei -, no fundo não são culpados. Simplesmente herdaram uma situação criada por Yaveh. Além disso, não se esqueça de que o conceito “pecado = castigo divino = doença acabou tornando-se um excelente negócio... Tratei de resumir tudo. - Tal como indica a Lei, a cura está nas mãos dos sacerdotes. Yaveh cura por meio deles. Yaveh perdoa os pecados por intermediação dessaS castas. O que significa isso? Benefícios.
Eliseu sorriu com malícia. - Entendi... - Cada vez que alguém se cura ou considera que pecou, tem a obrigação de pagar em dinheiro ou em espécie. Já imaginou o que isso representa para os cofres do Templo e para os bolsos dos espertos representantes de Yaveh? E aí lhe dei um simples e eloqüente exemplo. Segundo a Lei, o número de preceitos negativos que “Deus” colocou em Israel é de trezentos e sessenta e cinco. Quem é capaz de controlar semelhante pesadelo? Quem pode lembrar de tudo isso? Os “pecados”, portanto, estão por todo lado e são cometidos, segundo Yaveh, por razões as mais mínimas e inconcebíveis. Puxei pela memória e lembrei-me de alguns... “O judeu não deve vestir tecidos nos quais a lã e o algodão apareçam misturados.” Isso, para Yaveh, é “pecado”. “O judeu não deve maltratar sua barba.” (!)  “O judeu não deve ter piedade dos idólatras.”  “O judeu não deve voltar a morar no Egito.” “O judeu não deve permitir que se estraguem os pomares. “O judeu não deve consentir que a noite surpreenda o enforcado. “O judeu não deve deixar que o imundo se aproxime do Templo. “O judeu não deve comer espigas nem trigo torrado.” “O judeu não deve arar com boi e asno juntos. “O judeu não deve fazer intrigas.” - Belo negócio, isso sim... - Uma “sociedade limitada”. - “Yaveh e cia.” -, que, como você vai entender, não viu com bons olhos a “concorrência” do Galileu... E prossegui, sintetizando outro capítulo chave da vida pública do Mestre. - Espero que vejamos isso com nossos próprios olhos, mas vou adiantar o assunto. Quando Jesus iniciar as espetaculares curas coletivas, como você acha que reagirão esses “legítimos e autorizados curandeiros oficiais”?
- Nunca reparei nisso. - Eles se retorcerão como víboras. Como eu lhe disse, só eles têm capacidade para curar. Só eles desfrutam da prerrogativa de perdoar os pecados. Assim diz Yaveh. - E aparece Jesus e rompe com o estabelecido... - Mais que romper, desintegra. Não esqueça que o Galileu não é sacerdote. Legalmente não tem o direito. E, contudo, devolve a saúde, e o mais importante e intolerável para essas castas, perdoa as culpas! A perplexidade, indignação e ódio dos “santos e separados”: não conhecerá limites. O Mestre, ao se imiscuir no “território” dos sacerdotes, viola a norma e, de passagem, colocará em perigo o “negócio” do Templo. - Conclusão... - A já conhecida: morte ao impostor. Mas veja uma coisa interessante. Os dirigentes judeus cairão na sua própria armadilha. Se Yaveh é o único rofé, o único “médico” e “curandeiro”, e o único com poder para redimir o homem de seus pecados, quem é este humilde carpinteiro de Nazaré que faz a mesma coisa? Se aceitavam seus prodígios tinham que admitir também que Jesus se achava capacitado para perdoar pecados. Em outras palavras, o Filho do Homem era de origem divina. - Ou o que dá na mesma: Yaveh e tradição... pulverizados. - Afirmativo. A partir daí, a conversa correu em outra direção, intimamente ligada a esses raciocínios. Nem toda a culpa desse caos e intransigência era de Yaveh e os zelosos custódios da Lei. Durante séculos, como já disse, outras culturas penetraram no espírito judaico, multiplicando a confusão e fortalecendo o referido conceito: “pecado = castigo divino = doença”. A cultura babilônica foi, sem dúvida, uma das mais importantes. Desde a derrota de Judá em 587 a.C. E o conseqüente desterro para a Babilônia, a norma de Yaveh se viu alterada pelas crenças e costumes dos vencedores. Cinqüenta anos mais tarde, quando Ciro permitiu a volta dos judeus a Yehud (assim era conhecida então a
província persa de Judá), a elite político-religiosa de Israel estava contaminada pela filosofia babilônica. Aquele povo, como Moisés e seus descendentes, pensava que a doença era conseqüência da ira dos deuses. Essa atitude, de forma definitiva, reafirmou e completou o pensamento judaico sobre o assunto. Os Textos cuneiformes, anteriores ao êxodo do Egito, são muito elucidativos. Aquele que não tem deuses, quando anda pela rua, a dor de cabeça o cobre como uma veste”. Para os babilônios, quando alguém ficava doente, a primeira coisa era determinar a falta cometida e, em seguida, averiguar a identidade do ofendido. Se isso era possível, procedia-se à “penitência”. Os sacerdotes, então, recitavam salmos e o “pecador” devia “se congraçar” com a divindade, confessando seus erros. Por último, como tributo obrigatório, eram feitas as oferendas correspondentes. Um “sistema”, em resumo, muito parecido ao estabelecido pelo Deus do Sinai. E os “pecados” eram idênticos ou muito parecidos. Vejamos alguns exemplos: violar as leis religiosas, falar mal dos pais, roubar, pisar uma libação, tocar mãos sujas, mentir, adular, não cumprir promessas, cometer adultério, destruir as balizas que marcavam as propriedades, praticar a feitiçaria, adulterar pesos e medidas, assassinar, semear a discórdia e desunir as famílias, desprezar os deuses e seus legítimos representantes, não cumprir com os sacrifícios e oferendas, tomar o alimento dos deuses ou possuir um coração falso, entre outros. Desta antiga cultura, os judeus adotaram também as crenças nos anjos e nos espíritos diabólicos. A Babilônia era, sem dúvida alguma, a grande “exportadora” de demonologia(12). Foram os primeiros a apresentar os anjos com asas. Quando as quase 5 mil famílias hebréias exiladas na Babilônia. Descobriram que a idéia “pecado = castigo divino = doença” era coisa tão velha quanto enraizada entre seus conquistadores, não tiveram o menor pudor em apropriar-se dela. E daí, muito provavelmente, nasceu segundo conceito: “diabo = possessão”. Para os povos do Eufrates, eunucos e desequilibrados não eram mais que indivíduos tocados por ziqa, o vento ou sopro dos deuses.
*12. Entre os babilônios do século VI a.C. Apareciam muito bem diferenciadas a profissão de mágico ou exorcista (ashipü) e a de médico (asû).Este último termo, de forma curiosa e suspeita, está muitob próximo do aramaico assia, sinônimo do hebreu rofé médico para os judeus). Os demônios que, segundo a Bíblia, atormentaram o rei Saul Shedim Maziqin e Ruah Raa – eram velhos “conhecidos” dos exorcistas babilônios. (N. Do m.)
Embora modificado, este seria o panorama que Jesus encontraria em relação aos “possessos”, perturbados mentais com os quais conviveu e a quem curou. À nítida e forte influência babilônica juntou-se igualmente a quase gêmea dos egípcios. Muitos dos conjuros, amuletos e fatos que rodeavam as “curas” (?) dos judeus procediam do Egito exorcistas hebreus – que conheceríamos ao longo daquela apaixonante aventura – beberam, sem dúvida, nas não menos antigas tradições do Nilo. Lembro, por exemplo, das “recomendações” desses “expulsadores de demônios” à família de um pobre epilético. Para que o “possuído” recuperasse a saúde, além de reconhecer os pecados, pai e mãe deveriam raspar as cabeças. O peso dos cabelos então era convertido em ouro. Só assim – pregava o esperto exorcista – era possível afugentar o espírito imundo. Mas a entrega do dinheiro, é claro, não provocava outra coisa senão a ruína dos progenitores... A “terapia”, como muitas outras, procedia do Egito(13). Roma também deixaria sua marca nas crenças judaicas sobre doença e, mais concretamente, sobre a loucura. Apesar do ódio visceral aos invasores, os “auxiliadores” hebreus – assim constatamos, por exemplo, com Assi, o essênio – terminariam aceitando as idéias e os remédios dos kittim. Um dos que mais influenciou, sem dúvida, foi Celso, médico enciclopedista, nascido em 25 a.C., e que exerceu sua função entre 14 e 37 da nossa era. Para ele, como para o resto dos cidadãos romanos, doenças e desgraças eram castigos lógicos por desobedecer aos deus ou, simplesmente, por não saber interpretar sua vontade. Personagens tão ilustres como Plutarco ou Cícero manifestam isso claramente em suas obras.
Tanto em Numa como em Leis e sobre a natureza dos deuses, ambos expressam sua convicção de que as forças da Natureza são movidas pelo poder divino. A doença, naturalmente, fazia parte das caprichosas vontades dos 30 mil deuses que os governavam. No fundo, a filosofia, apesar do monoteísmo de Israel, era a mesma. O pobre mortal se equivocava e os deuses ou Yaveh respondiam pronta e fulminantemente, castigando-o com a doença. *13. Ver as obras de Diodoro de Sicília. (N. Do m.)
Foi uma pena que, entre tanta influência estrangeira, os gregos, do seu lado não conseguiram “vender” seus acertados prognósticos ao errante “povo eleito”. Apesar de seus erros e seu primitivismo, homens como Platão, Aristóteles, Frasístrato ou Asclépio, entre outros, souberam reformular o velho conceito “pecado = castigo divino =  redefinindo-o com uma ideia mais ajustada à verdade: “a doença era uma perda do equilíbrio natural”. Só isso. Platão, cinco séculos antes de Cristo, e o eminente Hipócrates propiciaram uma guinada de 180 graus nas ancestrais crenças sobre o espírito e, conseqüentemente, sobre a doença e a demência. Os dois trataram um tema um tanto revolucionário: a alma existia. Era racional, imortal e residia no cérebro. A partir daí, a interpretação da loucura, por exemplo, foi mais coerente. Os desequilíbrios mentais foram atribuídos a desajustes orgânicos, descartando-se de vez as pretendidas possessões diabólicas e o “acerto de contas” por parte dos deuses. Aristóteles, discípulo de Platão, compartilhava a essência desses raciocínios, embora divergisse quanto ao “território” em que se assentava a inteligência. Para “o estagirita”, morto em 322 a.C., a alma repousava no coração (o sensorium commune, onde memória e imagens se transformam em pensamentos). Pouco depois, um neto de Aristóteles – Frasístrato – dá um passo gigante. Examina as circunvoluções do cérebro humano e deduz que a inteligência depende desses misteriosos e sinuosos percursos. “Aí” garante - “tem que estar o segredo de algumas doenças.” Asclépio, por seu lado, vai mais além. E se atreve a distinguir entre
“loucura febril” e “loucura fria”. Para o grego, as duas, como o resto das doenças, dependiam do tamanho e do movimento dos átomos, autênticos integrantes da matéria humana. Esses átomos se “aninhavam” em vazios que ele denominava de poros. O fechamento ou alteração de tais poros provocava, de forma definitiva, a quebra da saúde, só recuperável com o restabelecimento da ordem atômica. Essas proposições sugestivas, contudo, foram repudiadas pela teologia judaica. Se Yaveh não era o justiceiro administrador das doenças e se esta dependia de “átomos” ou “desajustes orgânicos”, o que faziam tão categóricas afirmações contidas na Bíblia? O “negócio” dos sacerdotes, além disso, segundo as hipóteses era fraudulento. E rabinos e doutores ficaram irados. Deslocar Yaveh em benefício do raciocínio? Nem pensar... Revisar a próspera seqüência “pecado = castigo divino = doença Nem sonhando... Renunciar à prestigiosa prerrogativa de perdoar as culpas dos míseros mortais! Nada disso... A saudável filosofia grega foi condenada assim por ser sacrílega e inoportuna. “Yaveh e cia. Era intocável. E continuou se alimentando de citações bíblicas, conjurações, possessões demoníacas e com o frutífero monopólio da cura com “pagamento antecipado”. Um “monopólio” que seria duramente questionado por um novo magnífico “Yaveh”: o Filho do Homem. A ponte “7”! Absortos na conversa animada, não percebemos o quanto tínhamos avançado. Segundo meus cálculos, ao atravessar a tal ponte, podíamos estar a uns dez quilômetros do kan. Observamos o sol. Corria em direção ao zênite. Talvez rondasse hora “quinta” (ao redor das onze). Segundo o último miliário, a cidade de Panéias estava a uns doze quilômetros. Isso representava umas três horas de caminhada. Depois
Bet Jenn. Em outras palavras, se não surgissem inconvenientes, a “décima” (quatro da tarde), estes exploradores estariam às portas da aldeia chave. De repente, percebemos... Onde estavam os kittim? Não tinham dado as caras nem na encruzilhada de Dabra nem no que já havíamos percorrido. Coisa estranha! Os burriqueiros não costumavam errar. E, imprevidentes, prosseguimos em bom ritmo, fixando referências e desfrutando da exuberante paisagem. Uma das providenciais referências – muito útil em futuras incursões – ficou por conta dos rios que saíam do Leste. Antes de alcançar a margem sul do Hule, a uns cinco quilômetros, apareceu o primeiro dos tributários, de certo porte, do pai Jordão. Dali até Panéias ou Cesar de Filipe, contamos quatorze. Todo um festival aquático. Em 2 quilômetros... 14 rios! Muito bem, alguns desses afluentes, próximos dos cruzamentos dos caminhos ou lambendo aldeias de canas, foram memorizados com número. Assim, por exemplo, o “7” nos lembrou Dera, outro minúsculo povoado. E a ponte que o contornava recebeu a mesma referência. “14”, por seu lado, marcava a iminente Panéias, a uma milha romana. E assim sucessivamente. A partir do “7”, justamente, a intensa circulação de caravanas cresce muito com o transporte de dois produtos típicos da zona pela qual andávamos: o junco e o papiro. Enormes varas verdes e rosas cobriam os lombos de mulas e asnos rumo ao norte e ao sul. As primeiras, os humildes agmon ou juncos de lagoa, bem como as rosas (Butomus umbellatus), cresciam aos milhares no Hule e nas dezenas de charcos e pântanos que o cercavam por todos os lados. Tanto na Palestina como nos países limítrofes, eram basicamente empregadas na confecção de tapetes e esteiras. Quanto ao seu “irmão”, o papiro, os compridos caules triangulares – de até quatro metros de altura – constituía outro próspero negócio.
Como eles, além do “papel”(14), judeus e gentios fabricavam dezenas de barris, roupas para os mais pobres, cordas, sandálias, cestos, embarcações e um amplo etc. Em caso de fome, os rizomas, eram cozinhados ou consumidos crus. Um costume também importado do Egito, “inventor” do omeh ou papiro. Embora não tenhamos experimentado, imaginei que o elevado conteúdo de algodão nos citados Cyperus tornava muito nutritivos. Não havia dúvida, a prosperidade daquela parte da Gaulanítide estava assegurada. De um lado, graças à imensa “selva” que fervia à margem de rios e pântanos. À esquerda da rota, desde o kan de Assi até as proximidades de Daphne, num povoado perto de Dan, no norte, juncos, papiros, canas, adelfas e espadanas formavam um todo compacto e ininterrupto. Uma “selva” de uns 23 quilômetros de comprimento, de Norte a sul, por outros cinco de leste a oeste. Um intrincado labirinto de rios e lagoas, infestado de mosquitos, aves e pequenos animais, no qual só se aventuravam a entrar os mais hábeis ou necessitados. Uma massa verde, trepidante e traiçoeira que não permitia o crescimento de outras plantas e que os esforçados felah se viam obrigados, quase todos os dias, a fazer retroceder. De vez em quando, distinguiam-se, sobre os mansos e brilhantes espelhos de água do Hule e das lagoas maiores, pequenas canoas de Sapiro, já mencionadas por Jó e Isaías. Avançavam lentas, com as proas è popas afiladas e o “casco” barrigudo e também trançado com centenas de talos dourados. Provavelmente pescavam. E a cada grito ou manobra dos tripulantes, escapavam do meio da vegetação – brancos, chorosos e abobados – volumosos pelotões de aves aquáticas. Seria impossível descrever a variedade e beleza daquela fauna. Só de aves menores contei mais de cem espécies. Contudo, o mais atraente do Hule e seus pântanos eram as inúmeras cegonhas e pelicanos. Nessa época, meados de agosto, chegavam as primeiras ondas migratórias procedentes do Bósforo. Em várias ocasiões, entre agosto e outubro, calculei em mais de 300 mil as cegonhas brancas e negras, que davam uma parada no Hule, antes de prosseguir rumo ao
sul. O aparecimento da Ciconia ciconia (ceg, branca), enorme, majestosa e insaciável, era muito festejado entre os felah. A presença de milhares de exemplares, com seus bicos e patas coloridos de vermelho, constituía um alívio para os campos cultivados Desde o amanhecer até o pôr-do-sol caíam, inexoráveis, sobre insetos, gafanhotos, grilos e saltões, praticamente “limpando” hortas, pomares e plantações. Na “selva” também faziam estragos, devorando todo mundo de anfíbios e serpentes. *14. Curiosamente, o humilde papiro terminaria dando nome à Bíblia. O termo byblos servia para designar a medula branca da planta. Muito bem, com a passagem do tempo, biblion aplicou-se a todos os rolos ou livros e, depois, à própria Bíblia. (N. Do m.)
Os pelicanos, ao contrário, não eram bem recebidos. Para os pescadores da desembocadura do Hule e das grandes lagoas, os brancos e disformes Pelecans onocrotalus eram uma maldição. Desde fins de agosto ou princípios de setembro, com os primeiros emigrantes, a pesca diminuía sensivelmente. Em certas ocasiões desciam sobre as colheitas até dez mil dessas aves vorazes, engolindo tudo à vista, com seus afiados  e amarelados bicos-bolsas. Formavam enormes tumultos impossibilitando as tarefas dos irritados moradores. Cada um desses exemplares era capaz de engolir um ou dois quilos de peixe por dia e os frenéticos pescadores os combatiam com todos os recursos à mão, fogo, redes lançadas sobre grupos de aves, pedras, paus e peixe envenenado com caules e folhas de adelfas. Era tudo inútil. Quando conseguiam neutralizar cem pelicanos, entravam em cena outros milhares. Só em outubro, quando faziam o vôo de volta ao yam, à costa e ao norte do Sinai, voltavam a paz e as boas pescas. A essas correntes migratórias se uniam, naturalmente, os flamingos, garças, garças-ribeirinhas, pernaltas-espátulas, grossos milhares de gansos e patos, que, por sua vez, propiciavam a florescente “indústria”: carne para as mesas dos mais exigentes (em particular de ganso rabudo e de cantadeira), fígados triturados (espécie de patê) e penas para enfeites, travesseiros, acolchoados e colchões. À direita da rota pela qual avançávamos, a Gaulanítide dispunha
de uma não menos próspera e invejável fonte de riqueza. Só em alguns pontos do baixo Jordão, em Jericó, vimos coisa igual. Nunca pude percorrê-la toda. Isso era praticamente impossível. A panela do Hule com seus quase 28 quilômetros de norte a sul, por outros 20 de leste a Oeste, era um dos jardins mais extensos e intensos da Palestina. Até à fronteira marcada pelos bosques, no oriente, o imenso “retângulo” de 280 quilômetros quadrados não apresentava um só metro sem cultivo. Aqui e ali, à beira do caminho ou perdidas na frondosidade dos minifúndios, erguiam-se dezenas de aldeias ou minialdeias, sempre construídas com canas, juncos ou papiros. Muitas delas, assentadas à beira dos turbulentos afluentes, eram literalmente varridas pelas súbitas torrentes invernais. Não importava. Dias depois, os felah reconstruíam tudo nos mesmos lugares. Pior era o fogo. Mais de uma vez fomos testemunhas de incêndios rápidos e implacáveis, que reduziam os ricos assentamentos a manchas negras e fumacentas. Esse tipo de cabanas, contudo, oferecia notáveis vantagens. Uma delas – a que mais chamou nossa atenção – era sua mobilidade. Hoje passávamos ao lado de um monte de choças, amanhã a aldeia se evaporava. A explicação, simples e racional, estava nos trabalhos temporários. Quando os felah eram convocados para recolher frutos e colheitas, se as plantações tivessem longe, eles desmontavam as canas gigantes, papiros ou juncos, deslocando-se até o ponto requerido com as “casas debaixo do braço ou sobre os ombros”. Em meio a toda essa magnificência, o “rei” do kan ou jardim era, sem dúvida, a macieira. Meticulosamente alinhadas no nir (terra arável) negro e vulcânico, as imponentes árvores de até doze metros de altura minavam a “panela” quase toda. Acredito que não seriam menos de cinqüenta mil. As famosas tappnah sírias – brancas e vermelhas – eram cortadas em toneladas até os mercados mais recônditos. Junto às cheirosas macieiras, igualmente intermináveis, quase infinitas, cresciam outras curiosas e exóticas árvores frutíferas. Duas delas davam frutos para nós desconhecidos: “albaricoques” (?) de pequenas dimensões, sedosos e levemente tingidos de vermelho, importados, parece, da remota China. Os romanos gostavam muito desse fruto, para tanto compravam antecipadamente as dulcíssimas colheitas de “armeniaca”
muito antes de a árvore dar frutos. E entre as macieiras e albaricoques, outra “pérola” da Gaulanítide: uma “cereja” de ouro, enorme, de até cinco centímetros, reservada quase que exclusivamente para ricos, sacerdotes e patrícios. Um híbrido singular, nascido provavelmente da Prunus ursina, também transplantada da vizinha Síria. Um fruto que, talvez, tenha servido de inspiração ao Rei Salomão quando, no livro dos Provérbios (25,11), ele escreve que “uma palavra dita a tempo é como maçã de ouro em bandeja cinzelada de prata”. Nem será preciso dizer que a passagem por aquele jardim foi uma embriaguez de perfumes, incrementada pelas ervas das centenas de “matas”, (hortas), como a hortelã, o cominho e o mendro. Ao longo de toda a rota, ao pé dos caminhos vizinhos e trilhas que adentravam nas plantações e “matas”, dezenas de felah ofereciam ao caminhante montanhas de hortaliças, ervas aromáticas, deliciosos mikshak (melões) verdes, voluptuosas melancias de cerne vermelho i amarelo, ethrog ácidos (refrescantes cidras de pele pálida e aromáticas, vindas séculos antes da Índia) e, é claro, toda espécie de caldos e sopas e a bendita e gelada cerveja de cevada. Nesses mesmos pequenos caminhos, apareciam a toda hora arreatas de jumentos, carregadas de caixas de canas e juncos cheias de fruta e verduras. Umas iam na mesma direção que nós, até Panéias ou a estrada do leste, e outras, apressadas, empreendiam a marcha em direção ao yam, e, imagino, até a Cidade Santa. Na ponte “13”, por volta da “nona” (três da tarde), decidimos parar e comer alguma coisa. Pouco antes, na ponte “11”, o terreno havia começado a subir suavemente, chegando à cota de 100 metros acima do nível do Mediterrâneo (o Hule, como foi dito, se achava a 68 metros). A partir daí, a rota se tornava mais íngreme, marcando 330 metros nas proximidades de Panéias. Devíamos juntar forças e nos preparar para a penúltima etapa: a localização de Bet Jenn. À sombra de uma das cabanas, rodeados de crianças curiosas e inquiridoras, acabamos logo com a comida já escassa: carne de vaca defumada, ovos crus e os apetitosos bolinhos de chuva,(15) presente de Sitio. Naturalmente, a metade da sobremesa foi parar nas mãos dos agitados filhos dos fèlah.
*15. Bolinho de chuva, espécie de panqueca de farinha e ovos, frita em azeite, comese adoçada com mel ou com calda de açúcar ou ainda polvilhada com alguma canela. (N. Do t.)
Diante de nós, em direção ao noroeste, se destacavam, ao longe, as populosas cidades de Dan e Daphne, quase asfixiadas pelos pântanos. Um pouco mais perto, também ao lado do nahal Hermon, uma pequena aldeia igualmente desconhecida: Huda. Passaria certo tempo até que pudéssemos visitar a mítica Dan ou “terra grande”, conhecida na antigüidade como Lais. Aquele rico e pacífico povoado também seria cenário da vida pública de Jesus. Na verdade, como acho já ter mencionado, toda aquela paisagem, selvagem e florescente, seria percorrida em um momento inquieto e infatigável do Filho do Homem. Viagens difíceis de esquecer... O Filho do Homem! E meus olhos buscaram o Hermon, agora branco, azul e verde. Estávamos perto, muito perto... Consultamos o sol. Em questão de três horas – até às seis – iria escurecer. Era bom prosseguir com rapidez. Nossa idéia era pernoitar em Bet Genn. Mas antes, obviamente, tínhamos que localizá-la. E fomos em busca da Ponte “13”. A rota saltou sobre o nahal “Sion”, um rebelde e barulhento afluente do rio Hermon. Cota “197” e subindo. Três quilômetros e meio mais adiante avistamos a ponte e o nabal “14”, outro tributário do Hermon – o “Saar” - tão impetuoso e impaciente como o anterior. Cota “300” e subindo. O miliário de turno avisou: Panéias a uma milha romana. Nova consulta ao implacável sol. Hora “décima” (ao redor das quatro). O jardim, de repente, rareou. As contínuas ondulações do terreno o tornavam inviável.
Decidimos perguntar. Segundo os mapas de “Papai Noel”, a modesta Bet Jenn escondia-se em algum ponto do lado oriente de Panéias. Talvez a uns dois ou três quilômetros, no máximo. Penetrar na Cesaréia de Filipe não estava nos nossos cálculos. Não naquele momento. Não achávamos necessário. Provavelmente existia algum atalho que, rodeando a cidade, nos levasse ao objetivo primordial. Os felah, solícitos, confirmaram a informação do computador central. Um pouco mais adiante, pela direita, saía um nathiv(16), uma trilha “pavimentada ou batida”. Seguindo esse caminho, a coisa de seis estádios (uns 1.200 metros), desembocaríamos na importante estrada pavimentada de Damasco, a que vinha do leste. Muito bem, segundo alguns dos nossos informantes, tudo era questão de atravessar a estrada pavimentada mesmo, parece, o mencionado nathiv continuava sozinho até a falada Bet Jenn. Distância do cruzamento com a estrada de Damasco até à aldeia Umas quátro milhas romanas (quase cinco quilômetros). Um pouco mais do que o previsto. Uma advertência. Melhor dizendo, duas: no início do pequeno caminho de cabras encontraríamos uma patrulha romana. A trilha que agora percorríamos estava interrompida “por obras”. Mas foi o segundo aviso que nos deixou meio inquietos. O nathiv, que conduzia a Bet Jenn era um contínuo vaivém de bandidos e malfeitores. Anotamos. De fato mais a uns metros adiante, em terreno aberto e limpo, vimos certa aglomeração de gente. *16. Naquele tempo, os judeus distinguiam três tipos de vias: nathiv, do termo nathar ou pisar; messillah (estrada traçada), de salal ou traçar; e os “caminhos reais”. As primeiras eram pistas detestáveis, de um metro ou um metro e meio. Tinham caráter particular e, logicamente, reparações e manutenção corriam por conta dos nativos. Os caminhos públicos, segundo a legislação, deviam ter uma largura de sete metros. Mas muito pouca gente cumpria o regulamento. A Lei exigia também que as estradas
públicas fossem consertadas na primavera, antes das grandes peregrinações à Cidade Santa. O cumprimento dessa determinação, é claro, era muito irregular. Essa legislação, escrupulosa e exaustiva, proibia qualquer tipo de túnel ou estrutura subterrânea que pusesse em perigo a integridade da pavimentação. Também os ramos de árvores tinham que ser podados, de maneira que não atrapalhassem a passagem de homens e animais. Se alguémjogava lixo ou entulho na estrada pavimentada ficava responsável pelos danos sofridos por viajantes ou caravanas. Árvores podres ou muros perigosos deviam ser removidos ou demolidos num prazo de trinta dias. A Lei proibia até que se jogasse água, vidros ou qualquer outro material perigoso sobre o caminho. (”Baba Kama” e “Baba Bathra”.) (N. do m.)
Fomos nos aproximando devagar. A rota realmente estava interrompida. Arreatas e caminhantes eram desviados para nossa direita. Um nathiv estreito, negro e empoeirado seguia na direção leste, absorvendo com dificuldade os homens e as cavalgaduras que iam e vinham. Ao chegar ao fim da estrada, entendemos. A vital e descuidada artéria por onde circulávamos estava sendo consertada. Partindo de Panéias, um número grande de operários e técnicos se ocupava com a construção da estrada pavimentada. Eliseu, fascinado, pediu tempo. E fomos nos misturar aos curiosos e desocupados que observavam o trabalho febril de topógrafos, pedreiros, carpinteiros, ferreiros e demais especialistas. A uma centena de passos, protegidos do sol por uma cobertura de ramos e folhas de palmeira, descobrimos os sempre temidos e temíveis kittim. Meu irmão me perguntou a respeito deles. Eu os observei minuciosamente e deduzi que estávamos diante de um contubernium, uma patrulha ou grupo de oito infantes, pertencentes às tropas auxiliares. Não havia dúvida, eram soldados rasos, mais que fartos e entediados. A julgar pelos arcos, curtos e fabricados com aço e chifre, imaginei que eram sírios, hábeis e belicosos guerreiros assentados habitualmente em Rafan (Síria). No lugar da típica couraça metálica – a lorica segmentata -, vestiam uma armadura anatômica, de couro, fulvo, que protegia o tórax. As longas espadas, de um metro de comprimento e de bordas afiadíssimas, também os distinguiam dos legionários.
Três ou quatro jogavam dados. O resto cochilava ou olhava de vez em quando as obras, mais atentos no sol e no cair da tarde do que no tráfego e naqueles que vigiavam os trabalhos. Adiante, na cabeça, distinguimos meia dúzia de operários, sob as ordens dos topógrafos e de seus ajudantes. Seu trabalho consistia na limpeza do terreno pelo qual devia passar o calçamento. E com eles, os admiráveis “técnicos” encarregados do traçado propriamente dito. Ficamos perplexos. A minuciosidade e a competência dos romanos nesse tipo de construções eram admiráveis. Os topógrafos, armados com os instrumentos de nivelamento, 297 dioptras, bastões e gromas(17) -, mediam, anotando os cálculos com pequenas tábuas de cera que levavam penduradas nos cintos. Os ajudantes sustentavam os bastões, atentos aos gritos de seus “chefes”. Ora subiam os discos, ora desciam os discos, até que, finalmente, o ponto de mira da diotra ficasse alinhado com o disco deslizante do bastão. Aquela era, provavelmente, a tarefa mais difícil e tediosa. A dioptra, obviamente, não servia para medir grandes distâncias. Isso obrigava a repetir as medições até uma centena de vezes. Levando em conta que a quase totalidade dos 90 mil quilômetros de estradas pavimentadas que o império tinha era praticamente em linha reta,(18) fácil imaginar a paciência, garra e habilidade desses topógrafos. *17.  A dioptra, de 1,26 metro de altura, ancestral dos atuais teodolitos, dispunha, na parte superior, de uma pequena plataforma circular com um ponto de mira. Abaixo aparecia um parafuso nivelador do disco e outro que o fazia girar. O bastão, por sua vez, de até 2 metros de altura, apresentava a correspondente escala e um disco móvel, com um ponto ou sinal para marcar a escala. Por último, a groma, que consistia numa lanceta, arma com um sarilho no extremo superior, no qual ficavam dependurados quatro pesos de chumbo. O topógrafo cravava a groma no solo e, depois de verificar a horizontalidade dos braços, traçava as linhas retas ou os ângulos. (N. do m.)
18. A maior parte desta esplêndida rede de vias romanas – das quais 1.500 quilômetros estavam na província da Judéia – foi planejada e construída por e para as legiõeS: Com o tempo, contudo, seriam de grande utilidade para o comércio, os correios e as relações internacionais em geral. Claro que antes dos romanos outros povos já se haviam destacado por suas excelentes vias pavimentadas. Heródoto, cinco séculoS antes
de Cristo, mencionava uma obra verdadeiramente espetacular dos persas: “Ao longo da via pavimentada existem postos reais com excelentes pousadas. Todas as paragens que atravessa estão habitadas, o que permite viajar por ela com toda a segurança. Se é correta a medida dessa Estrada Pavimentada Real em parassangas (medida que equivalia a uns cinco quilômetros), então a distância de Sardes (hoje Turquia) até o palácio de Memnon (atual Irã) é de 450 parassangas (ao redor de 2.400 quilômetros) e a viagem não dura mais de 90 dias”. Mas o mais intrigante das estradas pavimentadas romanas eram os traçados. Os especialistas de hoje não explicam como podiam conseguir alinhamentos tão perfeitos. Vejamos uma eloqüente amostra. Na primeira via construída na Grã-Bretanha – de Dover (Dubris) a Thorney Island, passando por Canterbury (Durovenum) é Rochester (Durobrivae) – não existia uma única curva. E a estrada pavimentada em questão somava 90 quilômetros, vencendo uma infinidade de pontos elevados. Está claro, assim, que, antes de iniciar a construção, os “engenheiros” romanos tiveram que traçar uma linha reta entre os extremos da estrada. Como fizeram isso continua sendo um mistério. (N. Do m.)
Imediatamente depois dos responsáveis pelo traçado, apareciam os “escavadores”. Grupos de operários munidos de picaretas e pás que, segundo linhas demarcadas por cordas, abriam o terreno, fazendo duas retas paralelas de um metro de profundidade e separadas entre si por uns 13 metros. Cada um dos sulcos era então recheado com altos blocos retangulares de basalto, perpendiculares à rota. Em seguida, um segundo grupo de operários escavava a terra compreendida entre as fileiras de pedra, preparando assim um leito fundo e espaçoso, a metro e meio abaixo do nível do terreno. Uma nova turma de operários atacava a fase seguinte: a pavimentação ou statumen propriamente dita, constituída de grandes pedras. Por cima se colocava o “rudo” (cascalho de menor consistência e tamanho) e por último, o “núcleo”, uma terceira camada, geralmente de greda. Em seguida entravam em ação pesados cilindros de mais de mil quilos, puxados por seis operários cada um, e depois outro grupo de trabalhadores, munido de bate-estacas, com os quais se concluía a base batida. O calçamento ou summa crustra vinha depois. Dependendo da importância estratégica do summrm dorsum (pavimentação) e do dinheiro e materiais disponíveis, a nova rota era rematada com pedras perfeitas ou medianamente lavradas. Nesse caso, o polido não era tão rebuscado como o da célebre Via
Ápia. As lajes de basalto negro, contudo, apresentavam fundos esporões nas faces inferiores, facilitando o encaixe na base de greda. Pacientes e responsáveis pedreiros encaixavam as pedras de forma que a reluzente plataforma, a um metro acima do chão original, ficasse levemente empenada no centro. A água, assim, escorria para as laterais, favorecendo a marcha e preservando o pavimento. Lenta e minuciosamente, os artesãos recheavam os interstícios, “soldando” as placas com argamassa (a utilíssima pozolana)(19) e limalha de ferro. *19. Para cimentar tijolos, os romanos dispunham de um “invento” que lhes deu grande fama: a pozolana, cinza vulcânica que endurecia a tradicional argamassa, à base de areia, cal e água. O nome vem da cidade romana de Puteoli (hoje Pozzuoli.) Em geral, dependendo das necessidades, utilizavam duas ou três partes de pozolana para uma de cal. A mistura era essencialmente útil em regiões muito chuvosas. Com ela, a estrada pavimentada – segundo os construtores - “convertia-se em ferro”. E a passagem dos séculos deu-lhes razão. (N. Do m.)
Finalmente, ao pé dos canteiros que rodeavam a estrada pavimentada, outros operários davam o toque final, escavando o terreno e preparando – dos dois lados – corredores ou caminhos paralelos, base de cascalho, pelos quais, em princípio, deveriam transitar caminhantes e aqueles animais não acostumados à dureza do summum dorsum. Todo esse “aparato” era sustentado e abastecido por diferentes oficinas móveis com cortadores de pedras, carpinteiros, ferreiros e obrigatórios serviços sanitários, intendência e provedores de água. Num telheiro, ao redor de uma mesa de campanha repleta de planos e desenhos, creio ter visto os delegados ou representantes dos curat viarum (cuidadores de caminhos), os funcionários responsáveis pela construção e manutenção dessas notáveis obras. Os curatores, por sua vez, estavam sob as ordens diretas dos governadores de cada província. A eficaz empresa governamental havia nascido séculos antes, pelas mãos de Caio Graco, um político que elaborou a legislação sobre estradas pavimentadas e sobre os indispensáveis miliários que orientavam os viajantes. Ao contrário do que acontece
hoje em dia, essas vias eram financiadas pelo tesouro público, autoridades locais e proprietários das terras pelas quais passavam. Satisfeita a curiosidade, Eliseu e este que aqui escreve retomamos nossa marcha, desembocando de fato na não menos trepidante rota do leste. Uma estrada pavimentada, ao contrário da via do Hule, mais ampla e descongestionada, e tão meticulosamente pavimentada como aquela que estavam construindo um quilômetro mais abaixo. Se as indicações eram corretas, o nathiv para Bet Jeen devia começar ali mesmo, do outro lado da estrada. Mas nossa atenção foi desviada de repente... A uns vinte passos, do lado direito, no “corredor” de cascalho no qual estávamos parados e que corria paralelo à congestionada estrada, centenas de aves se atropelavam, brigavam e grasnavam furiosamente. Alguns burriqueiros, ao passar, espantavam as aves, golpeando-as com varas e chicotes. Outros cobriam o rosto e viravam a cabeça na direção contrária. Muitos dos jumentos e mulas, ao chegar à altura da passarada enlouquecida, cabeceavam inquietos, ou se negavam a avançar. E os arrieiros, tão ensandecidos como os animais, fustigavam as cavalgaduras e, de passagem, as aves furiosas. Ao chegarmos perto, descobrimos, com espanto, o motivo de semelhante tumulto. Eliseu, prudente, sugeriu que não continuássemos avançando. Tinha receio. As aves, fora de si, podiam representar uma ameaça. Os corpulentos abutres fulvos, cabeças e pescoços brancos e nus, nos conservavam nervosos e desafiadores. Ao seu redor, voando sobre eles e tentando se aproximar com curtas e bem calculadas incursões, disputava o “petisco” todo um exército de flexíveis e manchadas gaivotas risonhas, gralhas cinzentas e corvos fúnebres de até um metro de envergadura. A batalha, contudo, era desigual. Apesar da evidente superioridade dos dez ou quinze abutres fulvos, as centenas de implacáveis concorrentes, atacando por todos os ângulos, terminavam invadindo o “território” dos abutres, tirando pedaços das mutiladas “vítimas” De repente, empurrada pelo incessante voar dos corvos, um cheiro
pútrido nos assaltou. E retrocedemos. Já tínhamos visto e entendido... . Na beira da estrada, como uma advertência, as autoridades da Gaulanítide – podiam ter sido os kittim – haviam abandonado os corpos de três possíveis delinqüentes ou bandidos. Estavam sentados, costas contra costas, e firmemente presos a uma corrente. Não fazia muito tempo que estavam mortos. As aves, vorazes e impiedosas, ocultavam-nos um pouco com suas asas, destroçando-os e esvaziando-lhes as entranhas. Os rostos, irreconhecíveis, eram uma massa disforme, sanguinolenta e com os globos oculares negros e vazios. Pendurada em uma corrente, agitada pelas contínuas bicadas, havia uma placa na qual, em grego e aramaico, lia-se a seguinte inscrição: “Três “bucoles” a menos. Os parentes das vítimas se congratulam.” Não havia dúvida. A palavra “bucoles” se referia aos facínoras que habitavam os pântanos e a selva do Hule. O termo, tudo indica, foi tomado de outros bandidos, tão tristemente famosos como estes, que assolaram em sua época a comarca de Damiete, no Nilo. Deles falara Eratóstenes, quando percorreu o Egito convocado por Ptolomeu III. Esses grupos de sanguinários eram o pior problema da Palestina e países limítrofes na época de Jesus de Nazaré. Apesar dos esforços de Roma e dos tetrarcas, os bandos organizados semeavam a morte e o horror na alta Galiléia, a leste do Jordão e nos desertos de Judéia e do Neguev. Logo Eliseu e eu viveríamos uma amarga experiência com um desses esquivos e violentos grupos. Naturalmente, tanto os moradores da Gaulanítide, como os de outras regiões nas quais imperavam esses desalmados, aplaudiam esse tipo de “exibição”. E os esqueletos permaneciam nos caminhos, ou na entrada das cidades, diante do regozijo dos nativos e dos forasteiros.
Saímos meio fugindo daquele lugar. E ao passar para o outro lado da rota, vimos logo o estreito e maltratado caminhozinho de cabras que subia para o leste, literalmente encaixado entre as fraldas do Hermon à esquerda, e as colinas sobre as quais se assentava o lago Phiale, à nossa direita. Tentamos enxergar a aldeia. Foi inútil. A meio quilômetro, o nathiv desaparecia, engolido primeiro pelos bosques de oliveiras e, depois, conforme subia, por outra escura, apertada e pontiaguda massa de ciprestes. Uma vez mais ficamos maravilhados diante das centenas, talvez milhares, de oliveiras, sábia e pacientemente plantadas dos dois ladoS do desfiladeiro, em intermináveis e eficazes terraços. Tinham razão os rabinos quando, referindo-se ao rio de azeite que emana da Gaulanítide; garantiam que era mais fácil “criar uma plantação de oliveiras na Galiléia do que uma criança na Judéia”. Inquieto, Eliseu indicou a perigosa posição do sol. Em questão de uma hora e meia, se tanto, desapareceria por trás do Meroth. A verdade é que tínhamos nos descuidado... Demos uma última olhada na silenciosa paisagem e, preocupados, começamos a descer. Se nossos cálculos e as indicações dos felah estavam corretos, Bet Jenn tinha que aparecer no final da trilha solitária, a coisa de quatro quilômetros e a uns 1.200 metros de altitude. Em outras palavras, levando em conta que partíamos da cota “330”, se nossos corpos resistissem e o Destino fosse benevolente, talvez superássemos os riscos em uma hora e meia. Quer dizer, justo ao anoitecer. Mas o homem propõe... A meio caminho, como era de prever, nossas forças baquearam. O cansaço acumulado fez-se presente e a marcha amainou. Até as leves mochilas de viagem pesavam como chumbo. Sugeri uma parada, mas Eliseu, impaciente e temeroso, nem quis ouvir falar, não dando trégua alguma. Reconheço que ele tinha razão. A solidão do nathiv não era normal.
Desde que havíamos deixado para trás a estrada de Damasco, não tínhamos encontrado um único lugarejo. Estranho, muito estranho... A essa altura, as insistentes advertências dos camponeses me pegaram de repente, trazendo mais inquietação à minha já cansada mente. “Atenção!... Bet Jenn e seus arredores são um ninho de malfeitores. Lutei comigo mesmo para espantar os maus presságios. A trilha, tenteando entre as oliveiras, parecia tranquila e inofensiva. De vez em quando, acompanhando-nos de perto, alguma ave de rapina madrugadora fugia sigilosa e irritada, mudando de observatório entre as copas verde-azuladas das árvores. Tudo de fato respirava calma. Porém, o instinto continuou em estado de alerta. E pouco faltou para que eu ajustasse os “crótalos”, as lentes de visão infravermelha. Mas não quis alarmar meu irmão. A luz, inexorável, apagou-se, obrigando-nos a parar e a reformular as coisas. Para piorar, as espaçadas oliveiras terminaram, dando lugar a um bosque de berosh, os ciprestes sempre verdes, olhando hostis do alto de seus 25 ou 30 metros de altura. Eliseu procurou um lugar para descansar no pé de um desses ciprestes piramidais. Eu fiz a mesma coisa e tentamos calcular a distância que nos separava da hipotética aldeia. Não conseguimos chegar a um acordo. Ele estimou que estávamos muito perto. Talvez a um quilômetro. Eu, baseado na altitude na qual desaparecera a oliveira – ao redor de mil metros -, deduzi que ainda faltava o dobro: uns dois quilômetros. E nisso estávamos quando, de repente, soaram na escuridão uns assobios. Levantamos como que impulsionados por uma mola. No fundo, eu não era o único preocupado com os bandidos. Examinamos o labirinto de troncos. Impossível. As trevas da nova eram quase impenetráveis. Novos assobios. Longos. Com uma clara intenção...
Meu irmão perguntou mas eu não consegui esclarecer a origem dos repetitivos e cada vez mais próximos sons. - Ali! Eliseu marcou um ponto no meio da confusa e retilínea ramagem. - Vejo uns olhos... Ali! Eu me aproximei uns passos e, de fato, na parte de baixo de um dos berosh, meio escondidos, se viam dois pares de olhos redondos, grandes, amarelos e perfeitamente alinhados. Os assobios, agora monótonos, se repetiram. Mas não pareciam vir da árvore da qual éramos observados. Avancei mais alguns metros e, de repente, os olhos sumiram. Ao reparar, poucos segundos depois, surgiram de novo, no mesmo lugar. Respirei aliviado. E achando que reconhecia a identidade dos “proprietários” dos espetaculares e pertinazes olhos, voltei para junto do meu companheiro. Eliseu, impaciente, me encheu de perguntas. Mas eu, me divertinddo fiquei quieto, mortificando-o. Tirei as lentes de contato e, ajustando-as, convidei-o para que me acompanhasse. Ele o fez meio temeroso. Parei a uma distância prudente. E, alimentando a brincadeira, contendo como podia o riso, indiquei com o dedo que ficasse em silêncio. Os quatro olhos, diante da proximidade dos intrusos, se “apagaram” pela segunda vez. Eliseu, desfeito, indicou o extremo superior da “vara de Moisés”. Concordei. E deslizando os dedos até o botão dos ultra-sons, posteime como se me preparasse para um ataque iminente. Aí uma oportuna saraivada de assobios multiplicou a tensão... Aqueles olhos, calculadores, de novo apareceram diante do perplexo engenheiro. A visão infravermelha de fato confirmou minhas suspeitas iniciais.
Dois corpos quentes, agora vermelhos, de uns trinta centímetros de altura, surgiram nítidos entre os galhos. Não tive dúvida. Apertei o botão e o finíssimo “cilindro” de luz foi cair no centro da cara “prateada” de um dos exemplares. O leve choque foi suficiente para descontrolá-lo. E pulando da árvore, emitindo um guincho agudo, voou direto sobre Eliseu. O segundo, pressentindo o perigo, foi atrás do companheiro. E os dois passaram por cima de nós como um sopro, penteando nossas cabeças. As risadas de quem aqui escreve, incontroláveis, alertaram meu irmão. Durante um bom tempo tive que sofrer – merecidamente, reconheço, todo tipo de impropérios e maldições (desta vez, é claro, em inglês). A pequena brincadeira, contudo, aliviou o clima. O bosque, como estávamos vendo, era um fervilhar de aves de rapina noturnas, morcegos e cegonhas brancas. Estas últimas, como reza o livro dos Salmos, encarrapitadas no mais alto dos berosh. Os misteriosos e hipnóticos olhos amarelo-limão, bem como os assobios quase humanos, formavam parte também da agitada colônia de corujas, mochos e outros inofensivos e vigilantes policiais daquela mata. O singular aparecimento e desaparecimento dos dois pares de olhos também estava explicado. Na verdade nada tinha de estranho. Como se sabe, a coruja comum, a Tyto iba, ao contrário das outras aves, tem os olhos na zona frontal da cabeça. Essa anormalidade lhe dá uma visão binocular, relativamente semelhante à do homem, com a possibilidade de um cálculo quase exato das distâncias. O campo de visão, contudo, fica restrito a 110 graus. Para corrigir o “defeito”, a óah (coruja), como outras espécies, foi dotada pela Natureza de um sistema que lhe permite girar a cabeça 270 graus. Esta, nem mais nem menos, era a explicação do referido e suposto “desaparecimento” dos penetrantes olhos. Um pouco mais relaxados, retomamos o caminho. O instinto, previdente, me fez manter os “crótalos”. Não errou. Logo, à distância, na nossa frente, ouvimos alguma coisa. Prestamos atenção.
Bandidos? Era estranho, coisa rara... - Você está ouvindo a mesma coisa que eu? Esperei alguns segundos e concordei com Eliseu, confirmando sua impressão. - Mas... De fato, o som que chegava do meio daquela mata era absolutamente Impossível naquele “agora”. - Sim – eu me adiantei -, são gargalhadas... e “tirolesas”. Tirolesas? O típico e tradicional canto dos camponeses suíços e austríacos? Aqui, na alta Galiléia e no ano 25? - Deus santo! exclamou meu companheiro, desanimado. - Estamos ficando loucos! Eu não soube o que dizer. As gargalhadas e o famoso jodel tirolês continuavam se aproximando. O que estava acontecendo conosco? Por um instante levei muito a sério as exclamações do assustado engenheiro. Estávamos tendo alucinações? Éramos vítimas do mal provocado pela inversão de massa? Não, “aquilo” não era uma alucinação auditiva. “Aquilo” era real. Instintivamente saímos do meio do caminho, escondendo-nos entre os ciprestes. Incrível! Embora não muito afinados, os entrecortados “cânticos” passavam dos sons graves aos agudos, e depois ao contrário. E entre um e outro, aumentando a confusão, algumas discretas gargalhadas. - Jasão, você consegue ver alguma coisa? Um segundo depois, a resposta. - Não pode ser...! - O que foi? O que você viu? E transmiti o que me mostrava a visão infravermelha. O espectro infravermelho não tinha alucinações.
A meia centena de metros, no fundo da pista, surgiram na escuridão seis figuras vermelhas e azuis esverdeadas. - Vejo um sujeito e... Fiz uma pausa, para ter certeza. - Um sujeito e o que mais... - Os “crótalos” mostram outras cinco imagens. Parecem cães... O homem está armado. No cinto há uma adaga. Mas – acrescentei estupefato -, isso é impossível... - Inpossível? O que é impossível? A adaga? Vacilei. E deixei que o grupo chegasse um pouco mais perto. Jasão! Finalmente, consciente da loucura que iria pronunciar, esclareci: - O sujeito não canta... Apenas segura os animais em compridas correias. Eliseu, olhando-me aterrorizado, sublinhou: - Loucos, estamos ficando loucos! Em seguida, reiterando, acabou comigo: - Então, quem canta são os cães... Cães que entoam “tirolesas”? E riem às gargalhadas? Sim, riem dos loucos, mas era isso o que eu tinha diante de mim. E aconteceu o inevitável. O caminhante, de repente, parou, segurando com dificuldade crescente os inquietos cães. Os animais nos detectaram. E a “música”, confusa, acentuada pelas não menos incríveis “risadas”, cresceu e cresceu, conseqüência, imagino, do fino olfato dos companheiros do alto e suado conterrâneo. De fato, rosto e mãos, agora numa cor prata fulgurante, denotavam o esforço da caminhada. - Alto lá! A voz, autoritária e ameaçadora, deixou as coisas claras... O que fazer? Em décimos de segundo, diante da possibilidade de que ele soltasse os cachorros, preparei a “vara”. Com sorte, se nos
atacassem, um ou dois cairiam fulminados antes de vir para cima de nós. Depois, cairíamos... Felizmente meu irmão reagiu. Pulou para o meio do caminho e, elevando a voz, respondeu com um claro e contundente Shalom, oheb! (”Paz, amigo”). Sem hesitar, eu endossei o gesto temerário, cumprimentando nos mesmos trio, cumprimentando nos mesmos ts crânios dos excitados animais. O vermelho aceso e pulsante dos corpos, com as goelas brancas e babosas, me perturbou. Apesar da proteção da “pele de serpente”, aqueles animais podiam nos fazer passar maus momentos. O sujeito hesitou. No fundo, imagino, ele estava tão surpreendido e desconcertado como nós. Mas Eliseu, corajoso, tentou eliminar as suspeitas. Adiantou-se alguns passos, identificando-se e me identificando. ... Somos gregos. Homens de paz. Estamos perdidos. Procuramos uma aldeia chamada Bet Jenn... Os cães, diante do curto avanço do meu irmão, tensionaram as correias, “rindo” e “cantando” ameaçadores. Eu sei que isso é paradoxal, mas, naquele momento, “gargalhadas e tirolesas” não soavam exatamente como uma recepção hospitaleira. E, de forma rude, fincado na desconfiança, perguntou: - Bet Jenn?... Por quê? Quem procurais? Eu intervim conciliador: - Tiglat... O nome – a segunda pista dada pelo ancião Zebedeu – suavizou em parte a lógica aspereza do interlocutor. Ele se recolheu a um lado da trilha e, depois de acariciar e acalmar os cães, foi amarrá-los a um dos  troncos. Eu dei parabéns a mim mesmo. O perigo, em princípio, se afastara. Ele se aproximou devagar e, lacônico, respondeu:
- Eu sou Tiglat. O inesperado esclarecimento nos confundiu. Segundo nosso confidente, a figura que procurávamos e que, parece, ajudou Jesus de Nazaré, era um rapaz. Quase um menino. Sem entrar em maiores detalhes, explicamos ao homem que provavelmente, era tudo um equívoco. Ouviu em silêncio compreendendo que aquela dupla de estrangeiros irresponsáveis nada tinha a ver com bandidos ou assaltantes de caminhos, abriu-se de vez e, sem dissimular surpresa, comentou: - O senhor Baal nos protege. Não há dúvida... Esse jovem que procurais é o meu filho... Eliseu e eu, atônitos, olhamos um para o outro. Coincidência? Agora sei que tudo aquilo foi conseqüência da sorte. “Alguém” não me cansarei de repetir isso, parecia guiar nossos passos. - Tiglat está na aldeia – rematou o cada vez mais amável e providencial fenício. - Não estais no caminho errado. Bet Jenn está perto, a uns cinco estádios... Se quiserdes, posso acompanhar-vos. Se o senhor Baal vos colocou em meu caminho, sereis bem-vindos na minha humilde casa. Cinco estádios. Isso significava um mísero quilômetro. A verdade é que, surpreendidos, gratamente surpreendidos, não fomos capazes de responder. O Destino, magnífico e competente, continuava nos protegendo. Dito e feito. O alto e robusto pai de Tiglat voltou para junto de seus cães e puxando as correias, convidou-nos a segui-lo. Aquela noite, agasalhados pelo fogo, ao contemplar ao nosso redor os cães pacíficos, bem treinados e “musicais”, meu irmão não pôde se conter e perguntou sobre a origem dos singulares animais. Tiglat não soube dar muitas explicações. Sempre viveram naquela aldeia. Eram bons caçadores, excelentes guias e os melhores
companheiros. Quase todos os moradores tinham dois ou três deles. Seu filho, Tiglat, também desfrutava da companhia de um deles. No dia seguinte, na agitada e inesquecível jornada de segunda-feira, dia 20, enquanto subíssemos o Hermon, o rapaz nos contaria a curiosa história de Ot, seu cão. Não, não estávamos loucos. Aque Não, não estávamos loucos. Aque eram os únicos do mundo que não ladravam. Em lugar disso, emitiam os já mencionados e raríssimos sons, meio “risada” meio “tirolesas”. Naturalmente, ao voltar à “base-mãe-três”, faltou tempo ao engenheiro para consultar meu “namorado”. “Papai Noel”, rico em informação, oferecia imagens e uma documentação interessante. Mais ou menos, eis aqui o que me lembro: A particular raça procedia do antigo Egito. Hoje é conhecida como asenji. Sua imagem aparece em estelas funerárias cuja antigüidade remonta a 2300 a.C. Em duas delas é perfeitamente reconhecível: na tela de User, filho de Meshta, e na estela de um tal Sebeh-aa, inspetor de transportes. Os arqueólogos que os localizaram em pinturas e gravuras da IV Dinastia batizaram-nos de “cães de Quéops”. A semelhança com os cães de Bet Jenn era assombrosa. Mais tarde, por volta de 1870, os exploradores brancos que penetraram no Sudão e no Congo descobriram-nos entre as tribos. A figura deles era agradável e bem proporcionada. Pesavam pouco. Entre nove e dez quilos. Apresentavam um crânio plano, com o focinho afilado dos olhos até a ponta. Ao levantar as orelhas, enrugavam sistematicamente a “fronte”, avisando os donos de que alguma coisa não estava bem. Embora a maioria tivesse olhos cor de avelã, outros, como o fiel e corajoso Ot, se distinguiam por atraentes e vivíssimos olhos azuis, sempre amendoados e meio encobertos pelas pálpebras. Alguns, inclusive, tinham espetaculares olhos amarelos. Os pescoços eram grandes. Sólidos como troncos. Poderosos. O peito baixo, curto e reto. Patas e pernas musculosas, como que cinzeladas em pedra, com os joelhos aprumados. Os rabos, enroscados em um ou dois anéis, jamais se mexiam, apoiados sobre
um dos lados da garupa. Quanto ao pêlo, realmente chamativo (amarelo-avermelhado), quase todos os cães que vimos eram alazões, com manchas brancas no focinho, pescoço, patas e pernas e no final do rabo. Ot, ao contrário, era uma exceção. O pêlo, curto e sedoso, era de um brilhante negro azeviche delicadamente nevado no focinho, pescoço, pernas e no final do rabo. Pobre Ot! Foi leal e corajoso até a morte. Por fim, guiados pelo solícito Tiglat, divisamos a aldeia. Bet Jenn! O fim da trabalhosa viagem parecia próximo. Tudo, como sempre, dependia do imprevisível Destino. Bet Jenn. Meia dúzia de casas, todas negras. Pouco posso contar sobre elas, todas de basalto, todas roídas pelos anos e pelas freqüentes chuvas de neve daquelas latitudes. Todas pobres, quase miseráveis. Uma aldeia perdida, habitada pelos Tiglat, um clã fenício, quase puro, amável, orgulhoso de sua origem, discreto e sobretudo hospitaleiro. Maravilhosamente hospitaleiro. Nunca esqueceríamos... Ao entrar na casa do nosso guia e anfitrião logo demos com uma enorme família, integrada pelos pais velhinhos, a esposa e quinze filhos, além de um reconfortante fogo. Sob a modesta luz das chamas e das lâmpadas de óleo pudemos, por fim, ver melhor o aspecto de Tiglat. Igual a toda aquela numerosa prole, ele apresentava o típico perfil dos habitantes de Tiro: nariz adunco, olhos oblíquos, negros e profundos, pele queimada, cabelos longos, escuros, cheios de cachos e de raízes baixas, barba espessa, descuidada e ligeiramente esbranquiçada por seus quarenta ou quarenta e cinco anos. Ele falou à sua gente em fenício e, rápido, pedindo desculpas, retificou, prosseguindo num rudimentar aramaico galalaico. Depois nos apresentou ao seu filho, o segundo Tiglat, dando-lhe a entender que estes er (forasteiros) vinham de muito longe para conhecêlo. O rapaz, que não teria mais de quatorze ou quinze anos
de idade, assentiu em silêncio. Adiantou-se e, sorridente, colocou-se à nossa disposição. Mas, quando nos dispúnhamos a interrogá-lo, a mãe, repreendendo o chefe da família, censurou sua falta de atenção para com aqueles ilustres convidados. E antes de que pudéssemos responder, fomos obrigados a nos sentar sobre uma enorme e gasta pele de urso negro. Tiglat desculpou-se por sua desconsideração e nos ofereceu pequenos copos de barro, convidando-nos a fazer um brinde. - Lehaim! - Pela vida! - repetimos agradecidos. E, de acordo com o costume, tomamos de um só trago o transparente e forte licor, uma espécie de aguardente, o arac, fabricado com arroz. Eliseu, pouco chegado a essas beberagens montanhesas, se engasgou um pouco, provocando risadas de todos. Foi então que enquanto mulheres e crianças se ocupavam com o preparo do jantar, Tiglat, condescendente, sugeriu que falássemos com seu filho. Logicamente achava estranho o nosso interesse por aquele. Tomei a iniciativa e, medindo bem as palavras, expliquei que andávamos atrás de um velho amigo. Fui fiel à verdade, pelo menos em parte. No yam, outro antigo conhecido nos havia dado algumas pistas importantes: Bet Jenn e o nome do rapaz. Pai, avô e filho ouviram os esclarecimentos com interesse. E sem mencionar a identidade do “amigo” que pretendíamos encontrar, eu disse mais: que provavelmente, naqueles dias, ele podia estar em algum lugar do Gebel-esh-Sheikh. Segundo essas mesmas informações, Tiglat filho teria sido seu ajudante, auxiliandoo no transporte do equipamento. Os três, em uníssono, concordaram em silêncio. Meu irmão e este que aqui escreve, trocando um olhar triunfante, respiramos aliviados. Por fim! A informação do ancião Zebedeu era correta.
O anfitrião então pediu a palavra e ratificou o que eu acabara de dizer, acrescentando alguns dados preciosos. O “estranho galileu” havia chegado à aldeia em meados daquele mês de agosto. Caminhava sozinho, em sua companhia só um burrinho. Havia falado com o yoseb do clã (nesse caso, o “chefe” era o próprio Tiglat) e solicitara os serviços de alguém que pudesse abastecê-lo de comida duas vezes por semana. Pagou adiantado. No total, doze denários de prata. E Tiglat, embora receoso, aceitara a oferta, passando o trabalho a seu filho. Toda segunda e quinta-feira, de acordo com o combinado, o jovem carregava o jumento e subia até um ponto previamente combinado, muito perto de uma paragem denominada as  “cascatas”, quase a 2.000 metros de altitude. - Segundas e quintas-feiras? Tiglat sorriu, compreendendo o sentido da minha pergunta. - Isso mesmo. Como eu vos disse, o senhor Baal, nosso deus, está convosco... Amanhã, ao amanhecer, se quiserdes, podeis acompanhar o rapaz. Outra vez o acaso? Nada disso... Aceitamos, desde que nos permitissem pagar pelo serviço. Cochichou em fenício ao ouvido do avô. O ancião nos observou rapidamente e, por último, aceitou a proposta do yoseb. - Isso – falou então Tiglat – fica a vosso critério. Tampouco é tentar Baal... Fechamos o trato e eu, sempre prevenido, perguntei-lhes sobre a possibilidade de comprar uma tenda e víveres de reserva. Nenhum problema. Antes da partida, tudo estaria pronto. Atento e perspicaz, Eliseu tocou de novo nas recentes explicações do anfitrião. - “Estranho galileu”? Por que estranho? Tiglat, rápido e ágil, não querendo estragar a sagrada hospitalidade, corrigiu:
- Não tive intenção de ofender vosso amigo. Simplesmente me pareceu estranho que quisesse viver solitário num lugar tão isolado e... perigoso. Dessa vez fui eu quem interveio: - Perigoso? - Estas montanhas, estimados er... - Yervani – corrigi, tentando eliminar a conotação pejorativa do termo “forasteiro” -, somos yervani (gregos)... Indulgente, Tiglat retomou, agora com um sorriso meio forçado. - Estas montanhas, estimados yervani, são uma vergonha. Aqui, em qualquer canto, em qualquer caverna, se refugia o que há de pior do banditismo. Ultimamente, até os “bucoles” do Hule tomaram gosto pelos nossos bosques. E raro é o dia em que não temos notícia de algum assalto. Os outros Tiglat concordaram com a cabeça. - Entendestes agora? - Se a coisa é assim – disse o engenheiro com evidente preocupação -, por que permites que teu filho atravesse essas montanhas duas vezes por semana? - Nisso, como em tudo, estamos nas mãos de Baal, nosso senhor... Temos que ganhar a vida. Não podemos nos esconder como velhas assustadas. E amanhã, eu vos garanto, todo o kapar da aldeia) invocará o filho de Aserá e de El para que nada vos aconteça. Agradecemos os bons desejos. Lamentavelmente, como espero poder contar, o surdo Baal não deve ter escutado as preces de seus fiéis e crédulos filhos... - Pai – finalmente falou o adolescente, dando um novo e sombrio toque ao já delicado panorama dos salteadores - ... e não te esqueças dos dob. Dizem que foram vistos lá nas “cascatas”. Tiglat confirmou a informação do filho, arrepiando os cabelos de Eliseu e também os meus. Nas paragens onde se encontrava o Mestre, segundo os habitantes locais, haviam sido vistas algumas duplas dos temíveis e pouco sociáveis dob, os ursos sírios, negros,
de mais de 200 quilos de peso e até dois metros de altura quando se erguiam sobre os quartos traseiros. Alguns judeus, e também gentios, costumavam dedicar-se à caça desses ursos, adestrando-os para o trabalho em circos ou como atrações ambulantes. Os roubos, obviamente, enfureciam os montanheses. Como garante o profeta Samuel muito acertadamente (2, 17-8), “não há nada mais perigoso do que uma ursa da qual tiraram a cria. Bela perspectiva... Os sangrentos “bucoles” por todos os lados e, para completar, os dob, rondando nas proximidades. A família, contudo, não permitiu que nós nos perdêssemos em tão sombrios presságios. E depois de reiteradas desculpas, pedindo perdão pelo improvisado e “parco” jantar, colocaram diante destes enfraquecidos exploradores dois pratos reconfortantes e apetitosos. Jantar parco? Ainda bem que a visita foi inesperada... Para abrir o apetite – embora o nosso estivesse mais que aberto -, aquilo que chamavam ólodet: um caldo espesso e nutritiv o sobre o qual flutuava uma gelatina preparada com patas de vaca. Uma receita típica da alta Galiléia: depois de lavar e limpar as peças, as mulheres as passavam na brasa e removiam a pele. Em seguida, as patas eram cozinhadas em grandes tachos cheios de água, acompanhadas por sucessivas porções de cebola, louro, sal, pimenta, alho, cenoura e uma dose generosa de arac ou vinho branco. E o caldo era servido bem quente. Em seguida, o segundo e não menos nutritivo prato: carne e tutano, bem moídos e misturados com ovo duro. E como toque final, um bolo leve de mostarda e umas colheradas de mel que davam um fecho grandioso ao banquete. Delicioso. Eliseu, naturalmente, repetiu.
No transcurso do tranqüilo jantar soubemos um pouco mais sobre aquele remoto e caridoso clã. Uma família que, à sua maneira, modestamente, contribuiu também para o desenvolvimento do grande “plano” do Filho do Homem. Um grupo humano que, contudo, não consta nos escritos evangélicos. Tiglat explicou que sua gente, como o resto das minguadas aldeias que sobreviviam no Hermon, sempre se dedicara a três atividades principais: corte de árvores, caça e sopro de vidro. Sobre a primeira, como creio já ter mencionado, teríamos ampla informação poucos meses depois, quando o Destino nos permitiu acompanhar o Mestre. Ali, como já disse, entre os bosques da Gaulanítide, descobriríamos um Jesus lenhador. Coisa nova para estes exploradores. Sobre a caça, o cabeça da família respondeu com prazer, divertindo-se com todas as perguntas – às vezes ingênuas e aparentemente infantisdaqueles curiosos yervani. Assim soubemos que eram especialistas na caça do javali, cervo vermelho, gamo, lebre, raposa e, em certas ocasiões, do lobo e do não menos perigoso dob. Carne e peles eram um bom negócio, bem como os “remédios” derivados das peças, habitualmente elaborados pelas mulheres. O javali ou chair era quase uma praga. Todo ano, no fim do verão, invadia os vinhedos da “panela” do Hule e do resto da Galiléia, arrasando as colheitas. A carne, imunda para os judeus, era muito apreciada entre os gentios, sendo utilizada até como “arma dissuasória” contra os grupos de “bucoles” hebreus. As cabeças eram penduradas em cancelas e portas, advertindo assim os possíveis assaltantes. Assim como prescrevia a Lei de Moisés, o simples ato de se aproximar do chair ou porco selvagem significava contaminação e pecado. O cervo e o gamo, por outro lado, gozavam de uma excelente reputação na Palestina de Jesus. O primeiro, muito abundante naquelas montanhas, era um prato obrigatório nas mesas dos poderosos, desde que Salomão o colocou na moda (Reis 1, 4-23). Para caçá-lo, os montanheses empregavam um curioso e eficaz
sistema: ao pôr-do-sol se escondiam perto de rios e fontes, esperando com paciência a chegada do tsebi (termo hebreu mais próximo de “gazela” do que de “cervo”). Quando o animal começava a beber, entoavam uma doce melodia com a ajuda de flautas e cítaras. O tsebi, então, longe de fugir, ficava hipnotizado, chegava mais perto e caía nas mãos dos espertos caçadores. Os chifres eram vendidos como amuletos de “especial força”, capazes – segundo os Tiglat – de neutralizar qualquer veneno e, sobretudo, muito úteis para evitar problemas e brigas com esposas e sogras. A ingenuidade daquela gente era comovente. Com o sheral ou raposa acontecia uma coisa parecida ao mencionado sobre o javali. Sua paixão pelas uvas, arruinando os prósperos vinhedos, já a havia convertido em inimigo público da região. Donos e capatazes pagavam entre um e três denários de prata por cabeça entregue. Na verdade, de acordo com nossas próprias observações, não se tratava da raposa vermelha européia, mas sim do Vulpes vulpes niloticus, um irmão menor, de pêlo pardo amarelado, com as costas e o ventre acinzentados e o dorso das orelhas de um negro profundo. No fundo, judeus e gentios admiravam esse animal por sua sagacidade. E sobre isso corriam dezenas de lendas. Uma, em especial, fazia a delícia de grandes e pequenos. Dizia mais ou menos assim: “Depois do pecado de Adão, Yaveh entregou o mundo ao anjo da morte. E todas as espécies animais, inclusive a serpente, foram jogadas na água em duplas. Quando chegou a vez do shual, a astuta raposa, apontando sua imagem refletida nas águas, começou a gemer e a choramingar. O anjo, então, perguntou o porquê de tanto lamento. E a raposa explicou que estava triste pela sorte de seu companheiro. Ao reparar em erro tão sutil, Deus ordenou que fosse indultada.” Isso explicava por que os judeus se negavam a caçá-la, ficando o assunto exclusivamente por conta dos pagãos... Quando nos interessamos pela arnabet (lebre), Tiglat, entusiasmado confessou que essa era a caça da qual obtinham benefícios maiores e mais regulares. Não pela carne ou a pele,
apreciadas unicamente pelos gentios, mas por seus estômagos e cérebros. Desde tempos antigos, a crença popular garantia que os primeiros eram um certeiro e infalível remédio contra a esterilidade (entendendo sempre a feminina, pois a masculina era impensável). Tudo tinha origem, parece, numa informação contida na Bíblia. Segundo o livro dos Juízes (13, 4), a mãe de Sansão era estéril. Muito bem, segundo os judeus, quando o anjo de Yaveh apresentouse a ela, anunciando o nascimento do mítico herói, ordenou-lhe que comesse o mencionado estômago de lebre. O anjo fala da esterilidade da esposa de Manoah e, simplesmente, proibe-lhe de beber vinho e comer alimentos impuros. A questão é que, com o passar do tempo, o texto ficaria distorcido, nascendo daí um florescente negócio em cima das coitadas arnabet. Os cérebros também eram bastante valorizados. Em particular, pelas mães. Esta gente supersticiosa estava convencida de que o simples roçar sobre as gengivas dos bebês eliminava as dores provocadas pela primeira dentição. A lebre palestina, definitivamente, não tinha sorte. No cúmulo da ignorância e da distorção, rabinos e “auxiliadores” recomendavam até que não se olhasse para ela de forma fixa e muito menos que fosse desejada sexualmente. Se isso acontecesse, Yaveh fulminava o “pecador” com o defeito conhecido como “lábio leporino(20). Nossa surpresa, porém, chegou ao limite quando Tiglat garantiu, convicto, que todas as lebres eram do sexo feminino. Aquela era outra crença, firmemente arraigada, nascida talvez do próprio termo (arnabet uma palavra feminina). Depois de uma intensa discussão, o fenício aceitou no máximo que “um ano podiam ser machos e no ano seguinte, irremediavelmente, fêmeas”. Era inútil insistir. Ficamos nisso. Quando chegou a vez do lobo, o temido e respeitado eeb, também aprendemos mais coisas. Durante o inverno, sobretudo nos mais rigorosos, desciam em manadas do Hermon, chegando até os pântanos do Hule. Alguns lavradores tinham sido ferozmente atacados. Tiglat acrescentou outro dado inquietante:
*20. A lago quilia ou lábio leporino (semelhante à lebre) é uma malformação congênita no lábio superior, que aparece aberto ou fendido como conseqüência de uma má soldadura dos arcos maxilares e do gomo médio intermaxilar. (N. Do m.)
a zona das “cascatas”, muito próxima do acampamento de Jesus de Nazaré, era uma das paragens habitualmente freqüentada pelos eeb. Ali, sem dúvida, iam para acabar com a maior parte dos animais do bosque. Para capturá-los, os montanheses usavam laços e armadilhas. E tudo no animal era aproveitado. Com a pele cobriam o calçado, aliviando a marcha do caminhante. Também a vendiam em pequenas porções, previamente encharcadas no vinho ou no vinagre. Ao comê-la – garantiam -, os sonhos eram benéficos..., e eróticos. Os dentes, como os cérebros das lebres, eram usados para esfregar a gengiva das crianças, eliminando (?) a dor da incipiente dentição. Quanto ao coração – seguindo outra velha crença -, a família o secava, vendendo-o como um talismã mágico contra os próprios lobos: A melhor “arma” para isso, contudo, era a manteiga que os rins de leão destilavam. Se o viajante se lambuzasse com ela, nenhum lobo se atreveria a chegar perto. Tiglat nos jurou que era assim mesmo. O problema, é claro, era como conseguir o tal “ungüento”. Para uns e outros – judeus e gentios -, esse predador era o símbolo vivo da traição. Seu pescoço curto – diziam – era a prova irrefutável. E garantiam ainda que a inteligência do eeb crescia ao ritmo da lua. Por isso, durante a fase do crescente - nem falar da lua cheia -, ninguém em são juízo, se aventurava à noite por aquelas montanhas. A conversa, acossada pelo sono e o cansaço, foi esfriando. E a terceira atividade dos Tiglat – o sopro de vidro – ficou adiada para uma próxima vez. O anfitrião percebeu isso e, tomando a iniciativa, levantou-se recomendando que fôssemos dormir. Nós agradecemos.
Estávamos nisso quando, de repente, irrompeu na sala um novo “personagem”. O jovem Tiglat o chamou e, no ato, obediente e carinhoso, ele saltou sobre o peito de seu dono, lambendo mãos e rosto. Era Ot, o basen negro que nos acompanharia no dia seguinte. Intrigado, meu irmão dirigiu-se então ao rapaz, perguntando pela origem de nome tão original. (Ot, em hebreu, significava “milagre”, “sinal”, ou “prodígio”.) Tiglat, orgulhoso, explicou. - Foi em pleno inverno. Meu pai, meus irmãos e eu voltávamos da serra. Vacilou. E perguntando ao condescendente chefe da família, tentou confirmar a data. Tiglat pai lembrou que, de fato, fora no dia 14 de adar (fevereiro), em pleno Purim, fazia já quatro anos. - Isso mesmo – continuou o rapaz. - Para mim foi o maior presente... (Nessa festa, como espero contar mais adiante, era típico dar presentes. Sobretudo para as crianças.) - Vínhamos caminhando pela meseta onde agora está vosso “amigo” e, de repente, vimos alguma coisa na neve. Era uma bola negra, muito pequena. Chegamos perto e ali estava... Ot, captando que seu jovem dono falava dele, intensificou suas lambidas, emitindo aquelas incríveis “risadas”. - Era Ot... Tinha só um mês. Nunca soubemos como chegara ali, nem como sobrevivera. Foi um milagre, um prodígio. Um presente do senhor Baal. E assim Tiglat o batizou com o citado nome. Curioso Destino. Como já observei, o valente animal iria perecer muito perto de onde havia sido resgatado e salvo..., Mas não vamos adiantar os acontecimentos. Alguma coisa, contudo, não se encaixava bem em toda essa história. Eliseu, que nunca enrolava, falou disso abertamente: - Por que Ot? Afinal, tu és fenício... O rapaz ficou vermelho. Olhou para seu pai e este, ensaiando um sorriso maroto, respondeu com a mesma sinceridade:
- Uma vingança boba e infantil. Vós sois gregos e posso vos explicar. Os judeus nos desprezam e, como sabeis certamente, odeiam os cães. Muito bem, olho por olho. Que melhor brincadeira para um “cão fenício” e um nome hebraico?(21) A família, ingênua e feliz, achou graça no jogo de palavras. Estava tudo claro. Aproveito agora para abrir um breve parêntese e observar uma coisa que também teve a ver com o Filho do Homem. A coisa que tam pouco figura nos Evangelhos e que,  fácil imaginar a paciência, garra e habilidade desses topógrafos. contudo, contribuiria com mais um dado sobre a ternura do Galileu, provocando, por sua vez, mais de um ou dois confrontos com os puristas da lei mosaica. *21. A “vingança infantil” foi bem meditada. Como se sabe, o hebraico era habitualmente utilizado nos “assuntos sagrados”. Em particular na leitura e estudo da Lei. Se tivessem empregado o termo em aramaico (At), a “brincadeira” não teria sido tão mordaz. (N. do m.)
Eu me refiro, é claro, a zal, o magnífico cão de Jesus de Nazaré. Mas para compreender melhor tudo o que eu digo e o que Tiglat indicava, primeiro devemos contemplar a atitude do povo judeu em relação a esses não menos infelizes e desprestigiados cães. A origem da ancestral repugnância dos hebreus pelos cães, tão longe do conceito atual, se achava, e não podia ser diferente, no próprio Yaveh. Simplesmente o cão era condenado em todos os textos sagrados (?) nos quais aparece. Suas funções, basicamente, se reduziam a três: limpar carniça, cuidar de rebanhos e servir de “desculpa” para o insulto. Isaías, Reis e os Salmos deixam isso bem claro. No último (22,1720), o termo “cão” alcança seu autêntico significado: “malvado”. E a este, pouco a pouco, seriam incorporados outros: sujo, covarde, traidor, preguiçoso e desprezível. Se a esta lamentável situação acrescentarmos as alusões de Yaveh, por exemplo no Exodo(22), é fácil captar a intenção de Tiglat e, muito particularmente, a dos extremistas judeus em relação ao
Mestre pelo fato de ele demonstrar carinho por um cão. Para o cúmulo dos males, outras ridículas e fantásticas lendas acabaram por arruinar o escasso prestígio do cão, rebaixando-o, repito, à categoria de alimária e criatura imunda. Uma das mais extensas remontava ao suposto dilúvio. Segundo essa crença, o cão foi qualificado por Deus de “imoral” por não ter sabido conter seus instintos sexuais durante sua permanência na Arca de Noé. Sim, coisa de louco, realmente... À margem dessa realidade cotidiana, muitos judeus, com vigilância e tudo, aproveitavam-se dos “cães sarnentos”, tornando sua caça e captura um “negócio” interessante. Assim, línguas, olhos e dentes eram extirpados e vendidos como amuletos. A língua, colocada sob o dedo gordo do pé – diziam – evitava que outros cães ladrassem ao proprietário de tão estimado talismã. A mesma coisa acontecia com os olhos  dos cães negros, sempre que se tivesse a precaução de pendurá-los no pescoço antes de iniciar uma viagem. Mas a “suprema eficácia” contra os ataques de outros cães estava nos dentes de um cão raivoso. Isso sim: antes de prendê-los ao ombro, o tal cão tinha que já ter mordido um homem. Se a vítima fosse mulher, melhor ainda... *22. No capítulo 22, versículo 30, Yaveh diz: “Homens santos sereis para mim. Comeis a carne despedaçada por uma fera no campo: jogai-a aos cães”. (N. Do N.)
Tiglat nos levou até a sala contígua e, de novo se se desculpando, nos deu a entender que não dispunha de nada melhor. O lugar, amplo e espaçoso como a “vivenda”, era na verdade a oficina na qual a ffamília fabricava toda sorte de utensílios de vidro. Agradecemos a hospitalidade. Para aqueles esgotados caminhantes, qualquer canto era bom. Estendemos os roupões ao pé de um dos fornos apagados e, depois de nos desejar paz, Tiglat depositou uma lanterna (de óleo numa das estantes, provocando reflexos verdes e dourados nos bojudos vasos transparentes, jarrões e garrafas. Observou-nos um instante e, contente, fechou a porta,
desaparecendo. A Providência, de fato, continuava cuidando de nós e nos protegendo. Aquela família foi uma benção e um jorro de oxigênio no nosso caminho. Logo, o bom Eliseu dormia profundamente. Eu, ao contrário, me achava inquieto. Não houve jeito de pegar no sono. Atribuí tudo ao cansaço. Ou foi a inquietação? A verdade é que, outra vez, de forma obsessiva, a imagem do Mestre apresentava-se na minha memória. Estávamos muito perto, sim, quase a um passo... Mas o que me preocupava afinal? Eu me vi assaltado por uma matilha de furiosas e irritantes incógnitas. Será que ele nos reconheceria? Será que nos admitiria em sua companhia? O que podíamos lhe dizer? Como lhe explicar tudo? E a segurança que me havia acompanhado até aquele momento fugiu deste que aqui escreve. Eu me senti desolado. Talvez estivéssemos equivocados. O que aconteceria se Jesus de Nazaré não nos aceitasse a seu lado? Meu Deus! Nós não tínhamos pensado nisso. A figura do Galileu, ora distante, ora séria e alheia, continuava me espreitando na penumbra da oficina. Eu resisti. Esse não era o afável e íntimo “amigo” que eu conhecia. O esgotamento, sem dúvida, estava brincando comigo. Finalmente, incapaz de suportar aquele suplício, eu me levantei. Peguei a fraca e amarelada lanterna e tentei me distrair. Revistei fornos, foles, canas de sopro, matéria-prima(23) e a numerosa bateria de objetos que se espremia, fria e indiferente, nas paredes e no chão. Impossível. O sono, rebelde, se manteve à distância. Eu decidi sair para o lado de fora. Ali, com certeza, relaxaria. Mas tudo, naquela noite, parecia desagradável e contrário à minha vontade. Ao empurrar a gasta portinhola que comunicava com o resto da aldeia, os guizos, irritados, protestaram. Eu voltei ao ponto ond
descansava meu irmão. Bendito engenheiro! Nem um terremoto o teria acordado. As choupanas, escuras e silenciosas, nem se alteraram. Procurei refúgio ao pé de uma das paredes da oficina. Inspirei profundamente e sorvi as estrelas. Eu podia quase tocá-las com as mãos. Deus! Que bela e branca escuridão! De repente, lá ao longe, em nenhuma parte, soou limpo e prolongado um uivo. Senti um calafrio. Lobos? Chacais? E Vênus e Júpiter, em conjunção, me fizeram um sinal. Depois um e outro... Novos uivos. Novo estremecimento. E como que fugida daquela luminosa cidade flutuante eu vi em minha agitada mente uma inconfundível figura. Vestida de negro e segurando uma foice reluzente e afiada... *23. Os inteligentes Tiglat, além das terras da orla marítima da vizinha Tiro, sabiam aproveitar a própria terra do Hermon, rica em quartzo. Dela obtinham o ácido silícico, chave para a fabricação do vidro. Esse subproduto, misturado com cinzas de plantas marinhas (carbonato) e calcário ou cascalho, era esquentado até 800 ou 900 graus conseguindo-se assim o bem cotado e ambicionado vidro fenício. (N. Do m.)
Eu a rechacei. O que acontecia? Mas a imagem, decidida, ergueu o cutelo, avisando. E, subitamente, desapareceu. E dois, três, quatro novos uivos, mais próximos, me deixaram de cabelo em pé. O que era aquilo? Um pressentimento? Uma advertência? Uma loucura? Por que a morte? E por que naquele instante e naquele
lugar? Horas mais tarde, por desgraça, eu comprovaria que a “visão” (?) não havia sido fruto da minha cansada e quase nula imaginação. O Destino, suponho, à sua maneira, me avisava... Pouco a pouco, consumada a estranha “aparição”, a inquietação foi anestesiada e eu caí no poço dos sonhos. Sim, outra vez os sonhos... Nessa ocasião eu me vi caminhando nos bosques. Era o Hermon. Estava muito próximo, com o cume nevado., Na frente prosseguia o jovem Tiglat, em cima de um jumento. Ao seu lado, Ot, o basen negro. Atrás, alegre, carregando a sacola de viagem, Eliseu, e fechando o grupo, este explorador. Mas não, quem aqui escreve não era o último dos caminhantes. Às minhas costas, a quatro ou cinco metros, num passo igualmente apressado, avançava uma velha “conhecida”. Era A morte! Ela vinha coberta com a mesma e longa túnica funerária, carregando ao ombro uma temível e longuíssima foice. Eu quis avisar, mas a voz não saía da minha garganta. Ninguém parecia vê-la, nem sequer Ot.  Virei a cabeça e a morte, com um sorriso gelado, fez um sinal de assentimento. De repente, nas proximidades de uma imensa árvore, começou a chover. Era uma chuva torrencial. O cão “falou” e aconselhou que nos refugiássemos sob a grande árvore. Assim fizemos. E a caveira, impassível, sem deixar de sorrir, plantou-se na frente do grupo. Levantou então os descarnados dedos e apontou para o alto. Meu Deus! Nos galhos estavam penduradas nossas próprias cabeças... Estavam vivas. Mas a de Ot, sangrando e suspensa pelos olhos, já não tinha vida. Tentei reagir. Apertei o laser de alta energia, graduando-o na
potência máxima. Santo Deus! Não funcionou... E a morte respondeu com sonoras e cavernosas gargalhadas. Então, por trás, entre as árvores, surgiram alguns homens. TransPortavam machados, maças e espadas. Eram americanos! Vestiam uniformes de campanha. E avançaram ameaçadores. Oh, Deus! Todos tinham o mesmo rosto, o do general Curtiss! Sacudi Eliseu, advertindo-o. Não me deu atenção. Continuei falando com Tiglat sobre a inoportuna cortina de água. Ot garantiu que a chuva passaria logo... Um dos militares parou perto da morte. Abraçaram-se. Aquele “Curtiss” era o único que não estava armado. Melhor dizendo, era o mais bem armado... Na mão esquerda segurava outra “vara de Moisés” Cochicharam. De vez em quando me olhavam e continuavam falando em voz baixa. Finalmente “Curtiss”, todo molhado, fez sinal para que eu chegasse  perto. Obedeci. E ao sair de debaixo da árvore, a intensa chuva me encharcou. - Os relatórios !... Queremos os relatórios de DNA! Você está com esses relatórios! Neguei desesperado. O sujeito então tirou o gorro com umas estrelas de general e o jogou no chão, pisoteando-o com raiva. De novo neguei. - Entregue-me isso! É propriedade da USAF! E irritado, soltando o cajado, veio para cima de mim. Pegou-me
pelos braços e gritou: - Jasão! Obedeça! Jasão! Nesse instante, alguém me acordou. - Jasão! Eliseu, tão molhado quanto eu, me cutucava sem parar. - O quê? Meu general, eu não sei de nada... Meu irmão, ao ouvir as frases desconexas – e em inglês! - ficou assustado. - O que está acontecendo com você? Acorde! As frias e densas gotas de chuva acabaram me trazendo de volta à realidade. Fiquei em pé e, meio zonzo, pedi desculpas. Outro pesadelo? Assenti em silêncio. - Eu lhe disse. Ontem à noite abusamos do ólodet e do maldito arac. Mas que diabo você está fazendo aqui fora? Respondi como pude, improvisando. Não queria perturbá-lo com minhas estranhas inquietações e os não menos loucos sonhos. Loucos? Hoje sei que alguns sonhos não são tão loucos nem absurdos como parecem à primeira vista...
20 DE AGOSTO, SEGUNDA-FEIRA Voltamos à oficina. A família se ocupava do desjejum e dos preparativos para a partida. O sonho recente, contudo, ainda me deixava perplexo. Eu continuava vendo a cara daquele “Curtiss” e a caveira da morte. Que estranho! Aproximei-me da portinhola e examinei o céu. O firmamento brilhante tinha sido apagado de uma só penada. Durante a noite, um
inesperado temporal saiu do Mediterrâneo, cobrindo parte da Gaulanítide. E a chuva, benéfica, caiu sobre vales e colinas. Que estranho! No sonho também chovia torrencialmente... Tentei espantar a absurda coincidência. Estávamos onde estávamos. A manhã chegava pontual, acendendo as montanhas. Eu só devia me preocupar com a viagem iminente. Com um pouco de sorte, hoje estaríamos com Ele. Enfim! O chefe da família acabou se juntando a este desconcertado explorador. Ele me viu observar as negras e velozes massas de nuvens e, percebendo uma suposta inquietação pela mudança de clima, quis me tranqiülizar. - Vai passar logo... Ele tinha certa razão. Essas tempestades eram bastante comuns nos verões da alta Galiléia. E da mesma forma repentina com que apareciam, assim se afastavam. Nessa ocasião, contudo, o espetáculo das “bigornas”, inensas como torres, castigando-se mutuamente com fulgurantes relâmpagos, deixou-me inquieto. Passariam? Com isso não havíamos contado. Se a chuva não parasse, a viagem correria perigo. Tomamos o desjejum e, por volta da hora “tercia” (às nove), como Tiglat previra, o tempo abriu. Os cúmulos-nimbos, contudo, continuavam aparecendo do lado oeste, escurecendo a paisagem e obrigando o sol a se derramar em estreitas e clandestinas cascatas brancas, azuis e douradas. Não gostei nada daquilo. A chuva continuava ali, ameaçadora. E o “sonho”, de novo, tocou meu ombro... Tiglat revistou a carga. O jumento de propriedade do Mestre agüentaria sem problemas. O animal, alto, jovem e forte, recebeu dois grandes alforjes de junco, repletos de comida. E entre ambos, muito bem dobrada e enrolada, a tenda de peles de cabra solicitada na noite anterior. Diante da nossa surpresa, o anfitrião pediu que inspecionássemos a carga.
Eu me recusei. O chefe do clã, então, com voz autoritária, ordenou ao filho que voltasse para casa. Compreendemos. Se não concordássemos, não tinha viagem. Legumes, carne salgada, peixe defumado, ovos, azeite, dois log de sal (cerca de um quilo), dois bat de vinho (cinco litros), especiarias, farinha, frutas em abundância, dois gansos, seis grandes e redondas fogaças de pão de trigo, mel, duas garrafas de arac e um brinde da casa: um quarto deseah (uns quatro quilos) de um excelente lombo de cervo curtido. Do resto, para falar a verdade, não me lembro. Terminado o inventário – mais que suficiente para uma ou duas semanas -, Eliseu pegou a bolsa e perguntou o preço. Tiglat, outra vez, nos surpreendeu. - Isso – proclamou com a mesma contundência – fica para a chegada... - Mas... Não houve jeito. E depois de agradecer a confiança e a hospitalidade  daquela gente simples e dedicada, seguimos viagem. O jovem Tiglat, na frente, puxou o asno, pegando um caminhozinho, que logo levou ao bosque de ciprestes. Ao seu lado, correndo para cima e para baixo, Ot, o dócil basenji. Atrás, aliviado pela cor mais clara dos cúmulos-nimbos, meu irmão ia carregando no ombro a sacola de viagem. Por último, como sempre, este explorador, agora relativamente feliz e confiante. O nevado Hermon, um pouco chateado pela presença dos cúmulos-nimbos estava à vista. - Finalmente! - eu disse a mim mesmo. Se os cálculos de Tiglat estavam certos, os cinco quilômetros que separavam Beth Jenn do mahaneh, o acampamento no qual estava Jesus de Nazaré, deveriam ser percorridos em duas ou três horas. Tudo dependia da rota escolhida pelo pequeno guia e, naturalmente, do volúvel Destino. A princípio descemos. Depois, a pista, estreitíssima, endireitou,
escalando novas colinas. Cota “1.500”. Ao olhar para trás, entre as árvores, vi a meia dúzia de choupanas negras de Bet Jenn. Abaixo, na cota “1.198”, o lago verde escuro Phiale, um antigo vulcão inundado pelas correntes subterrâneas que fugiam do Hermon. Os nativos garantiam que a minguada e circular lagoa, de uns trezentos metros de diâmetro, se comunicava com a cidade de Panéias e até mesmo com o pai Jordão. De repente, ao cruzar um olival, Tiglat, de um pulo, montou no burro. Como não percebi isso antes? Tremi da cabeça aos pés. A reduzida expedição apresentava a mesma ordem de marcha que no sonho... E como um idiota cheguei a virar a cabeça. Ali, às minhas costas, obviamente, só encontrei oliveiras. O breve trajeto entre os robustos ayit foi um suplício. E o sonho foi tomando conta. Sem querer eu estava esquecendo dos “bucoles”, os sanguinários rufiões do Hule. Então – não sei como – vi tudo muito claro... Os “homens” do sonho podiam ser bandidos. Estávamos em seus domínios. O chefe do clã ratificou as advertências dos felah. Lá em cima era um ninho de malfeitores. Não, os militares armados não eram um “resíduo” do subconsciente. Ali latejava “alguma coisa” mais... Mas e as cabeças dependuradas nos galhos? Por que a de Ot era a única sem vida? Um negro pressentimento tomou conta, de forma definittiva, deste angustiado explorador. Por sorte, o cheiro de terra molhada e a aparente diminuição dos riscos foram me tranqüilizando. E o susto foi se diluindo. Perto da cota “1.700” a paisagem mudou de aspecto. Ciprestes e
oliveiras se afastaram e, no seu lugar, as bases do Hermon apresentaram um perfil mais ressequido e fechado. Na frente e à direita, bicudos e vigilantes, apareceram os har Nida e Kahal, com as ladeiras vestidas de zimbros gregos, pinheiros da Calábria, abetos e os perfumados mirtos, adoçando com suas coroas de flores brancas os solenes, emaranhados e azuis perfis do espesso ya ár, o bosque anunciador, sempre súdito do “rei” do Hermon, o monumental e mítico cedro. A trilha, à sua maneira, dobrou à esquerda e atacou os novos promontórios. No alto, montada no vento, uma família de abutres negros e fulvos patrulhava em círculos. De vez em quando, peitando a força dos cúmulos-nimbos, mergulhavam indicando alguma coisa. Não prestei muita atenção. Vai ver estavam de olho em alguma carne podre. Tiglat também olhou o céu e, sem aviso prévio, cutucou o jumento, acelerando a marcha. O que estava acontecendo? Logo saberíamos... Ao fim de alguns minutos, o bosque abriu-se momentaneamente. E a trilha dividiu-se em duas. O rapaz desceu e imobilizou o jumento. Ao se reunir a nós, indicando à nossa direita, mostrou um minúsculo grupo de choças, meio escondidas pelo pinheiral. Era Quinéia, um povoado de lenhadores. Pediu que esperássemos. Queria entrar e consultar sobre a situação na zona. A presença dos abutres não lhe agradava. Não era bom sinal. - Esses – disse – sempre chegam atrás dos “bucoles”. É Dito e feito. Tiglat correu na direção das árvores, seguido de perto pelo buliçoso bafenji. Eliseu observou as evoluções dos abutres e me interrogou com os olhos. Eu não tinha nada a dizer. Minha experiência com os bandidos – a
menos a da vivida na passada operação Salomão – era quase nula. Inquietos, nós nos distraíamos examinando a clareira. De fato, o caminhozinho se bifurcava a pouca distância. O novo ramal partia para a esquerda, engolido praticamente pela mata. Na encruzilhada, um poste grosso cravado no meio dos restos vulcânicos advertia: “Panéias. Sete milhas”. Anotamos a referência. A trilha parece que descia em direção sudoeste e acabava na rota de Damasco, muito perto da Cesaréia de Filipe. Voltamos ao centro da clareira. Tiglat estava demorando. Tudo ao nosso redor parecia tranqüilo. Contudo, o silêncio me pareceu estranho. Podíamos ouvi-lo. Eu o atribuí à natureza afastada e remota do lugar. De repente, Ot surgiu entre os pinheirais. E atrás dele seu dono acompanhado por dois sujeitos. - Más notícias – gritou Tiglat enquanto se aproximava. - Esses malditos rondam por aqui... - Esses malditos? A pergunta de Eliseu era desnecessária. Mas o guia esclareceu: - Os “bucoles”. E, referindo-se aos robustos e enegrecidos lenhadores, acrescentou: - Acabam de confirmar isso. Hoje de manhã, logo cedo, visitaram a aldeia. Roubaram vinho e provisões. O rapaz dirigiu-se então a um dos homens e, em fenício, voltou a interrogá-lo. O hoteb, um lenhador curtido e com cara de poucos amigos, estendeu-se numa longa fala, indicando o norte com a mão direita... - Diz – traduziu o guia -, que foram vistos indo para as “cascatas”... Eram seis. Quem manda é um velho “conhecido”: Kedab, também chamado de “Al”. O nome, em aramaico, significava “mentiroso”. Quanto ao apelido
“Ál” - fiquei meio confuso. E, inseguro, perguntei: - “Al”? Tiglat confirmou. Não havia entendido mal. “Al”, com efeito, queria dizer “não”. Balançando a cabeça de forma negativa, o jovenzinho, preocupado, resumiu o resto das explicações do hoteb. - Diz também que estão armados até os dentes... Com certeza, a essa hora, estão todos embriagados. - E o que aconselham teus amigos? Tiglat transmitiu a pergunta feita pelo meu companheiro a um deles, o de cara menos amigável. A resposta foi imediata. - Diz que o melhor é darmos meia volta e regressarmos a Bet Jenn. Esses malditos matam por um log de arac. (Um log equivalia a uns 600 gramas e nós, para piorar, carregávamos mais de dois litros). Silencioso, Tiglat acariciou o basenji. Compreendi suas dúvidas. Mas coisa de instinto, fiquei calado. Finalmente, depois de uma longa pausa, fez uma recomendação: - Se desejais podeis permanecer em Quinéia. O minguante de agosto já terá terminado e eles – dirigiu-se então aos lenhadores – não retomarão o corte até a próxima lua cheia(1). Aqui estareis bem e a salvo. São homens honrados. - E tu? Tiglat deu um sorriso forçado. - Eu cumprirei o combinado com o “estranho galileu”. - Mas... Não ouviu os argumentos de Eliseu. - Confio no meu senhor Baal. Ele me protegerá. *1. Na hora de cortar os bosques, aquela gente, com uma invejável sabedoria, estava acostumada a se ajustar às fases da lua. Sabiam que, no minguante, a seiva penetra nas raízes.
Esse era o momento certo para a poda. Era melhor em janeiro. A madeira cortada nessa época dura mais. Depois vinham os minguantes de agosto e o Inverno. Quanto à lua crescente e a cheia, os lenhadores só aproveitavam para a madeira destinada ao fogo. Com a seiva “subindo”, alguns povoados se limitavam a desvastar as árvores, preparando-as para o corte de inverno. (N. do m.) Estava tudo claro.  Peguei meu irmão pelo braço e, saindo dali, trocamos impressões. Estávamos de acordo. Continuaríamos. Não havíamos chegado até ali para voltar atrás por causa dos “bucoles”. E disso o informamos. O rapaz, contente, aceitou. Duzentos ou trezentos metros mais adiante o bosque voltou a se abrir. E nós nos encontrávamos diante de um adolescente e ruidoso rio ermon. Ao cruzar a decrépita pontezinha de troncos que o driblava, Tiglat, indicando as águas verdes, proclamou orgulhoso: - Aleyin, aquele que cavalga as nuvens... Esse era o nome do tributário do Jordão entre os montanheses. Aleyin, dos filhos do deus Baal, favorecedor das plantas. Como regra geral, os fenícios gostavam de batizar os rios com os nomes de suas divindades. Minguado leito, como teríamos ocasião de verificar dias depois, nascia no meio da neve do Hermon. Por isso dele se dizia “cavalgador das nuvens”. A ponte sobre o nahal era outra excelente referência. Eu calculei o tempo gasto desde Bet Jenn. Se não estava errado, já caminhávamos à cerca de duas horas. Distância percorrida: três quilômetros. Faltavam, portanto, outros dois, com um tempo estimado de uma hora, mais ou menos. Fiquei contente. Se tudo andasse normal, até o meio-dia (hora “quinta”) estaríamos na presença do Mestre... Normal Que ingenuidade! O Destino, de algum lugar, deve ter sorrido com benevolência. Do outro lado do nahal Hermon, nas margens do bosque, no meio de um atrevido e cheiroso maqui formado por arbustos de hortelã, cristáceas, sálvia amarela e tomilho, erguia-se uma novidade: cinco pedras basálticas, toscamente lavradas, de metro e meio de altura e perfeitamente alinhadas de leste a oeste. Tiglat desmontou. Aproximou-se reverente da fileira de basalto negro.
Durante alguns minutos, ficou em silêncio, com a cabeça baixa. Depois, virando-se, fez-nos sinal para um descanso. Dali em diante, segundo ele, começava o trecho mais duro. O caminhozinho, paralelo à margem direita do rio, subia árduo e desequilibrado, pulando da cota “1.700” para a “2.000” em questão de 1.500 metros. Pouco antes da tal cota “2.000”, a uns três estádios (pouco mais de meio quilômetro); terminava a viagem. Para sermos mais exatos, a viagem de Tiglat. Ali, explicou -, de acordo com o combinado com o “estranho galileu”, ele depositaria suas provisões. Em seguida, voltaria. O rapaz soltou o jumento e, sentando ao pé de uma das rochas abriu a bolsa pendurada na cartucheira. Tirou de dentro um pão e uma escura porção de carne de javali e se dispôs a devorar tudo. Ot, atento, plantou-se na frente do dono, esperando seu quinhão. Meu irmão, imitando o guia, procurou apoiar-se na pedra ao lado; Eu, intrigado, dediquei alguns minutos à exploração do monumento sagrado. Porque essa, sem dúvida, era a intenção das rochas pontiagudas. Tiglat, mais tarde, confirmaria isso. Estávamos, de fato, diante de um asherat, uma formação megalítica muito freqüente na Fenícia e sobretudo nas montanhas. Embora estivéssemos no território da Gaulanítide – quer dizer, na Palestina – esses centros de culto pagão eram relativamente comuns. Às vezes, em lugar da pedra, os montanheses utilizavam altos e robustos troncos de cedro, ou em círculo ou em linha reta. Os judeus, em particular amantes da paz, faziam vista grossa, ignorando essas construções. Yaveh, no Deuteronômio (16, 21), era especialmente rígido com esses símbolos idólatras. Finalmente juntei-me a Eliseu e, curioso, perguntei ao rapaz sobre a natureza do conjunto. De fato, os penhascos eretos recebiam o nome de asherat, em homenagem à deusa mãe de Baal, embora, neste caso, tenham sido dedicados a um dos filhos de Baal-Ros, senhor dos promontórios: Resef e o mencionado Aleyin. O primeiro, segundo o cerimonioso Tiglat, governava o raio e o trovão. O segundo, como já foi dito,
cuidava de fontes, rios e águas subterrâneas. Todo fenício, sempre que passasse perto de um desses “templos” tinha a obrigação de parar e rezar diante dos deuses representados por pedras ou lenhos. Concluídas as explicações, o engenheiro interveio, levantando um assunto tão oportuno quanto interessante. Um assunto do qual, forçados pelas circunstâncias, quase não falamos em Bet Jenn. - Que aspecto tem teu amigo, o “estranho galileu”? O adolescente, surpreendido pela súbita pergunta, respondeu com uma pergunta hábil e lógica: - Mas não disseste que o conheces? Meu irmão, encurralado, escapou como pôde. - Sim, bem... mas faz muito tempo que não o vemos... - Não sei – balbuciou Tiglat, voltando o rosto ao cume do Hermon -, nós não trocamos nem dez palavras... E acrescentou pensativo: - Parece sério... e preocupado. Alguma coisa grave deve ter-lhe acontecido para que se escondesse nesse lugar... Eliseu, homem de idéias fixas, insistiu. - Eu me refiro ao aspecto físico... E O guia, desconcertado, dando de ombros, voltou a perguntar.  - Aspecto físico? Não entendo... Tentei facilitar as coisas. - Tem boa saúde? - Acho que sim! E nos deu um dado interessante. - É um homem muito forte. E um sallit... (Assim denominavam os indivíduos vigorosos, donos de força física especial.) -... Ele sozinho construiu um esconderijo de pedra... Mas, pouco chegado às meias verdades, corrigiu: - Bem, eu também ajudei. Logo chegaremos lá. Costumo deixar ali. - Ali?
- Tiglat fez sinal afirmativo... - Então – completou Eliseu -, ele não permite que você chegue até mahaneh, ao acampamento? - Assim foi o combinado. Ele paga e eu obedeço... Meu irmão e eu trocamos um olhar inquieto. Por que Jesus não permitia que o jovenzinho passasse do esconderijo de pedra? O que acontecia no lugar onde acampava? E o mais importante: seríamos nós uma exceção? Será que nos autorizaria a permanecermos junto dEle? Mas, é lógico, nenhuma dessas irritantes perguntas fizemos ao rapaz. Isso teríamos que averiguar por nossa própria conta. - E o que imaginas que ele faz lá em cima? Os negros e atentos olhos do adolescente, intuindo uma segunda intenção, cravaram-se nos olhos de Eliseu. O engenheiro, contudo, frio como as pedras do asherat, agüentou firme. Finalmente, depois de uma pausa tensa, Tiglat atacou com audácia: - Quem sois? Quem é na verdade esse “estranho galileu”? - Tu não respondeste à minha pergunta. - Vós muito menos... - Nós já te dissemos – ponderei conciliador. - Somos gregos. Velhos amigos do teu amigo. Precisamos falar com Ele. Não pareceu muito convencido, mas resignou-se. - Em primeiro lugar, não é meu amigo... Um oheb (amigo) é outra coisa. É alguém querido... De um oheb não se cobra. E vos digo mais ainda. Nunca espiono... Eliseu acusou o golpe. - Os deuses não permitem isso e meu pai tampouco. Nunca fui além do refúgio. Além disso, como sabeis, essa paragem, a das “cascatas” não é muito recomendável... - Ele sabe disso? - Foi a primeira coisa que lhe dissemos quando se interessou pelos nossos serviços. Ninguém, bom de cabeça, acampa nesse lugar. E muito menos agora, com “Al” e sua gente rondando por aí.
- Ele comentou alguma coisa? Deu a ti alguma explicação? - Sim, ele disse que não estava sozinho. Mas, francamente, não entendemos. Que eu saiba, lá em cima não tem mais ninguém... só esses malditos. Ficou em silêncio e, percebendo alguma coisa, acrescentou convicto: - Claro, agora eu entendo. Ele espera por vós... Por isso disse que não estava sozinho. Ele estava errado, mas nós deixamos o assunto morrer por ali. Ou não estava errado? Será que o Mestre sabia...? Não, isso era impossível. E Eliseu, desviando a conversa, voltou ao tema inicial. - E por que tu dizes que ele parece preocupado? - Não sei... Talvez porque fale pouco. Além disso, a gente nota certa tristeza nos olhos dele. - Tu sabes como ele se chama? Negou com a cabeça. E, de novo surpreso, admitiu: - É curioso... Agora que tu falas nisso, ninguém nunca lhe perguntou, e ele também nunca disse nada. Meu pai e eu nos referimos a ele como o “estranho galileu”. E, curioso, adiantou-se aos nossos pensamentos. - Qual é o nome dele? - Yesua... - Jesus... - Jesus de Nazaré – precisei, sem disfarçar um certo orgulho. - Um “ah”, um irmão... - Mas sois estrangeiros. Como podeis chamar de irmão um yehuday (judeu)? - Esse yehuday não é como os outros... - É rico? O engenheiro, encantado com a sinceridade do jovem fenício, riu com vontade. E respondeu com a verdade. - Seu coração é imensamente rico...
- Compreendo... É um judeu que não teme o desapiedado Yaveh. - É um ser humano. - Humano e judeu? Impossível... - Já percebi que não te agradam – sentenciou Eliseu. - Não gosto do Deus deles. Um deus que os enlouquece. Discrimina. Eles se consideram donos da verdade. Desprezam a gente. - A verdade? - entrei na conversa. - O que é a verdade para ti? Nem pestanejou. Indicou as pedras cônicas e, seguro de si, afirmou: - Meu pai diz que a verdade, se existe, não está nos deuses nem tampouco nas leis. A verdade ainda está por chegar. - E se chegar algum dia, tu saberás reconhecê-la? 337 Ele fez sim com a cabeça. - Acho que sim. Segundo meu pai, a verdade vai direto ao coração. Eu saberei, porque ela me fará tremer. Mas não de medo, e sim de emoção... - Teu pai é um homem sábio. - Meu pai – disse corrigindo Eliseu – é bom. Ele se deixa guiar pelo instinto. Vou contar-vos uma coisa... A confissão, porém, ficou no ar. Enormes gotas de chuva, aqui e ali, nos colocaram em guarda. Tiglat examinou o cume do Hermon. Nuvens negras começavam a cobri-lo. O jovem levantou-se e, autoritário, mandou que nos apressássemos. - Vamos continuar. Isso não me cheira bem... Ele tinha razão. Os cúmulos-nimbos, animados por fortes correntes ascendentes, haviam se transformado em montanhas com alturas superiores a dez quilômetros. A base dos “Cb” desceu e suas correntes ascendentes, velozes, ocultaram a neve. Os relâmpagos, pulando de galho em galho e precipitando-se sobre os cada vez mais escuros bosques, deram o primeiro aviso. Uma tempestade espetacular estava a ponto de cair sobre nós. E os trovões, secos,
ainda distantes, acabaram por acelerar nossa marcha. Foi instantâneo. O contato com a chuva ressuscitou o velho e aparentemente absurdo sonho. “Nas proximidades de uma árvore robusta, de repente, começou a chover. Era uma chuva torrencial...” “  Não pude evitar. Estremeci. Será que o sonho se realizaria? E num derradeiro gesto de reflexão tentei tirar da cabeça a negra premonição. Tudo imaginação... Onde está a “árvore robusta”? Isso aqui é um pinhal... Mas a “visão” não retrocedeu. Ao abandonar o asherat, o caminhozinho, apertado entre a tolha fechada à esquerda e a cada vez mais impetuosa torrente e o resto emaranhado de pinheiros brancos à direita, fez o possíveL E foi subindo, metro por metro, sacrificando-se e se reduzindo a uma marca de apenas cinqüenta centímetros. Obviamente, tivemos que caminhar um atrás do outro. Tiglat puxou firme as rédeas do asno, sem trégua. E a carga, mais de uma vez, foi batendo nos baixos e impertinentes ramos dos pinheiros. Um passo em falso seria uma ameaça para as provisões. Na beira da pista, à nossa direita, como eu dizia, o jovem nahal Hermon pulava inconsciente entre penhascos, provocando inúmeras e nada recomendáveis correntezas. A chuva apertou. E as descargas elétricas estouraram na frente, iluminando durante décimos de segundo um maciço negro e todo disforme por causa das pancadas de chuva. Várias das detonações, muito perto, assustaram o voluntarioso jumento. Ele levantou a cabeça e resistiu às puxadas do guia. O rapaz, esperto, chamou o cão e, em fenício, deu-lhe uma ordem. Ot, metendo-se entre as patas do asno, mordeu-lhe os testículos. O jumento respondeu com um coice violento. Mão de santo. Num instante andava de novo. A temperatura caiu. E conforme íamos ganhando a cota seguinte, a
escuridão ia engrossando. Nova parada. Tiglat indicou o fundo da trilha. E entre a cortina de água, iluminado por faíscas, vimos outro alvoroço já familiar. O caminho estava impedido por quatro ou cinco grandes abutres. Deduzi que estávamos diante dos mesmos carniceiros que tínhamos visto nas cercanias de Quinéia. Como no caso das aves que devoravam os “bucoles” na rota de Damasco, estas, igualmente nervosas e agitadas, saltavam umas sobre outras, na disputa pela presa. Í O guia voltou a gritar ao basen. E o cão, saindo numa corrida desabalada, jogou-se em cima dos cegos abutres negros e fulvos. Dois deles, surpreendidos, só tiveram tempo para abrir as enormes asas cinzas, subindo com dificuldade. Um terceiro não teve tanta sorte. Ot foi em cima do pescoço longo, branco e nu, destroçando-o. E, compreensivelmente, os dois últimos continuaram com as cabeças enterradas no ventre da vítima. O cão, implacável, pegou um deles pelo pé. E, imediatamente, uma cabeça ensangüentada e outro pescoço disforme e azulado enfrentaram o valente Ot. O bico afiado e adunco do abutre negro fez o cão retroceder. Mas este continuou atacando. Tiglat então, aproximando-se, afastou a pedradas os teimosos carniceiros. Nós nos juntamos ao guia e, finalmente, encurralados, os abutres alçaram vôo, caindo pesadamente sobre as copas dos pinheiros brancos. Atônitos, meu irmão e eu, descobrimos a “vítima”. Eu me precipitei sobre o corpo. Estava praticamente nu, coberto só com um sag, a tanga de pele de urso. O rosto não tinha olhos. Quanto ao ventre, os abutres negros e fulvos o haviam rasgado quase inteiro. Apesar do aspecto lamentável, Tiglat achou que o reconhecia. - É um deles... Era chamado de Anas (”castigo”)... Estava sempre bêbado. - Um bandido... Concordou em silêncio. Inclinou-se e, com um só golpe, arrancou o
longo cravo pendurado no peito. - Tu já não precisas disso, maldito yehuday... (Os enormes cravos, quadrados e de vinte ou trinta centímetros de comprimento, eram muito cobiçados pelos judeus e gentios. Geralment eram utilizados nas crucificações e – segundo diziam – constituíam um excelente amuleto.)  Tiglat amarrou o cravo no pescoço do jumento e ficou algum tempo com os olhos pregados no quase apagado e ascendente caminhozinho. Não era difícil penetrar em seus pensamentos... Ali, em alguma parte do bosque, devia estar o resto da turma. O que podíamos fazer? Na verdade, muito pouco. Naquela altura da situação, o mais provável é que já sabiam da nossa presença. Mas então porque não nos atacavam? Eu imaginei que, talvez, esperassem que a tempestade amainasse. Uma vez mais errei... O decidido e valente jovenzinho não disse nada. Puxou o burro e continuou subindo pela escorregadia e brilhante trilha de cinza vulcânica. Prudente, Eliseu fez um gesto, recomendando que eu ajustasse os “crótalos”. Se os “bucoles” se apresentassem... iam dançar. Estávamos nisso quando, como era previsível, os trovões caíram em cima de nós, de fato. E as faíscas começaram a bater nos pinheirais. O asno ficou agitado de novo, mas Tiglat, sem piedade, o arrastou. Acabávamos de entrar num dos olhos da tempestade. E a chuva, grossa como uma parede, nos brecou. Quase não víamos... - Isso é um dilúvio! - gritei. - É melhor parar! O guia virou-se e, indicando o fundo da trilha, berrou entre os estampidos dos trovões: - Um pouco mais! Lá em cima temos uma clareira! Não tive tempo de endireitar a cabeça. Um raio saído da agitada “barriga” dos “Cb” deixou-nos cegos. E arrebentou-se na ponta de um Pinheiro todo molhado, a dez escassos metros da frente do grupo. O resto foi um desastre... Num milésimo de segundo – talvez menos – o “canal” pelo qual
desceu a faísca esquentou a mais de 30 mil graus Celsius, provocando dois fenômenos simultâneos. De um lado, o ar quente do milimétrico túnel” pelo qual o raio viajou expandiu-se, dando lugar a um espantoso trovão que nos deixou temporariamente surdos. Por outro, o bater na árvore úmida, a súbita e violenta vaporização criou uma onda de choque. E a expedição, cão e jumento incluídos, rolou ao chão. Foram instantes de grande confusão. Ninguém gritou. Ninguém se lamentou. Não havia tempo para isso... Tiglat estava no chão. Permanecia imóvel. Parecia morto. Eu me assustei. Ao seu lado, Ot emitia aqueles sons estranhos, lambendo sem parar o rosto do seu dono. Quanto ao jumento, espavorido, galopava colina acima. Galopava? Eu podia jurar que voava... E continuamos encurralados pelos relâmpagos e os estampidos. Precipitamo-nos para junto do menino. Verifiquei o pulso. Estava vivo! A cabeça. Um fiozinho de sangue saía do nariz. Ele estava inconsciente. Deduzi então que podia ter se machucado ao cair. Meio surdo, com aquele zumbido instalado no meu cérebro, com gritos, sinais, aturdido pelos raios e com o coração enfraquecido pelos massacres contínuos dos trovões, eu dei a entender a Eliseu que tínhamos que sair daquele inferno. Lembrando as últimas palavras de Tiglat, eu o peguei nos braços e fui correndo entre as faíscas e a muralha de água em direção à outra extremidade do caminho. De fato, ao final do caminhozinho, vimos uma clareira. O bosque havia se afastado, formando um meio círculo, cruzado unicamente pela pista e pela feroz torrente. No centro geométrico, dono e senhor da clareira, levantava-se uma árvore enorme. Uma sabina gigantesca, de quase trinta metros, com uma copa piramidal, aberta e generosa, que no momento nos daria grande alívio. Cheguei exausto. Resfolegante... Coloquei o rapaz ao pé do grosso tronco cinzento e tentei reanimálo. O céu teve pena de nós. Não precisei me esforçar.
Pouco a pouco ele voltava a si. E, meio fraco, tentou levantar-se. - O jumento! - exclamou -, Onde está?... As provisões! Eu o segurei. Quis tranqüilizá-lo. Impossível. Por fim levantou-se e fez menção de pegar de novo o caminho. Mas Eliseu, atento, se interpôs, segurando-o. E devagar, pouco a pouco, conseguimos acalmá-lo. - Eu vou procurá-lo... E assim foi. Minutos depois, deixando a sacola junto à árvore, o engenheiro, correndo, saía no encalço do jumento. E o vi desaparecer sob o dilúvio. Tiglat obedeceu. E sentou-se sob a árvore robusta. Agora só nos restava esperar. Aguardar com paciência que o tempo melhorasse. “Árvore robusta”? Um novo estampido marcou a súbita lembrança. E o sonho voltou. Ergui o rosto e fiquei petrificado. O Destino, em forma de raio, iluminou a clareira, confirmando a visão. Não é possível! Penduradas dos galhos, a curta distância deste perplexo explorador, golpeadas pela tormenta, me fitavam seis ou sete caveiras, agora prateadas pela visão IV. Ao seu lado, balançavam várias tripas secas... Por que negar o fato? Eu as examinei com medo. Eram crânios e vísceras de cabras. Compreendi. Nós estávamos debaixo de uma árvore sagrada, outro símbolo dos gentios da Gaulanítide. Ali penduravam suas oferendas aos deuses. A peculiar natureza da madeira de sabina branca – inatacável pelos insetos e resistente à putrefação – a tornava uma exceção, associada pelos moradores da região ao “poder dos céus”. Tiglat, percebendo minha surpresa, ratificou as suspeitas.
Levantou-se de novo e foi procurar entre os sulcos e as onduladas estrias da casca. Ao encontrar o que queria, veio me mostrar: eram pequenas pontas de flechas de basalto e sílex, chamadas de “pedras de raio”, umas peças neolíticas que – segundo os supersticiosos nontanheses – tinham a virtude de conjurar os efeitos das faíscas elétricas. Tempos depois as descobriríamos também nos ocos dos carvalhos. Na verdade, era uma crença errônea e perigosa. A sabina, como o carvalho, o azinheiro, o salgueiro, o abeto e a tília, se caracteriza justamente pelo contrário, ou seja, por sua capacidade para atrair os raios. De repente, a feroz tempestade amainou. A chuva diminuiu e as descargas elétricas foram se espaçando.  Respirei aliviado. Os “Cb” se afastavam. Mas a tímida alegria durou pouco. Ot, inquieto, com a musculatura tensa como uma tábua e as orelhas caídas, havia detectado alguma coisa. Eu pensei no meu companheiro. Seguramente acabava de encontrar o jumento e voltava... Sim e não. Esclareceu-se a dúvida em segundos. Logo vimos aparecer na clareira Eliseu... e mais cinco sujeitos. O coração sobressaltado me avisou. E, instintivamente, peguei o cajado. Os gritos de Tiglat, aterrorizado confirmaram a suspeita. - São eles, os “bucoles”!. Saí na chuva e ordenei ao rapaz que ficasse atrás de mim. Mas este, trêmulo, argumentou com razão: - Oh, senhor Baal!... Protege-nos. Eles estão armados!... E tu tens uma vara! Insisti. - Não tenhas medo. Agora tu verás a força da razão! - A razão? perguntou ele em tom de gozação. - Esses aí não entendem nada de razões! Andavam devagar. Quando nos viram, pararam. Na frente do grupo ia um sujeito baixo, ossudo e coberto unicamente como os outros,
com um escuro e encharcado saq de pele de urso, igual ao do cadáver que havíamos deixado para trás. Na mão esquerda levava uma pesada maça cheia de pregos. Faltava-lhe a metade da perna direita. Uma perna de pau negra e toda pingando juntava-se ao toco na altura do joelho. Tiglat identificou o homem. - Esse é o “Al”, o chefe... Atrás, pálido e impotente, meu irmão. E às suas costas, ameaçando-o com afiados ferros de três gladius, outros tantos hete ou bandidos igualmente silenciosos e mal encarados. Por último, fechando o cortejo, um quinto rufião, mais alto que os outros, com um turbante vermelho na cabeça, puxando as rédeas do jumento. As figuras se iluminaram com um dos relâmpagos, brilhando num azul esverdeado. Eu me preparei. Não sei por que, escolhi o botão do laser de gás. Minha intenção, naturalmente, era assustá-los e fazê-los correr. Mas, nessa oportunidade, eu só acertaria pela metade... O coxo se virou. Cochichou com os que vigiavam Eliseu e, sozinho avançou de novo em direção à sabina. O adolescente, escondido atrás de mim, anunciou: - Não tem saída... É melhor dar-lhe o que quiser... Não respondi. E de novo acariciei o botão, ajustando a potência. Meu irmão então fez um sinal. Levou a mão direita ao pescoço, e a deslizou como um punhal. Mensagem recebida. Pelo jeito, esse era o resumo da breve conversa que tiveram os ladrões. Muito bem, vamos em frente. Ot, duro como uma estátua, não se mexeu. E eu, já imaginando o desenlace iminente, sugeri a Tiglat que chamasse o cão. O rapaz, contudo, não obedeceu. - Dehab! - gritou o chefe ao chegar a cinco metros da árvore. E repetiu com insolência.
- Ouro! Queremos todo o ouro! Tentei calcular. Primeiro o da perna de pau. Depois, aproveitando a surpresa, as três espadas. Quanto ao sujeito do turbante vermelho depois veríamos... - Somos uns pobres caminhantes – respondi num tom submisso. - Não carregamos ouro... - Não! - Podes nos revistar. - Não! - Se queres, fica com as provisões... - Não! Tiglat, agarrado à minha cintura, sussurrou: - É a única palavra que conhece. Por isso é chamado de “Al”... Pelo senhor Baal! Dá-lhe o ouro! - Mentira! - continuou o energúmeno, cada vez mais violento e Enfurecido – Kefap!... Prata! O basenji, atento à voz do amo, abriu a bocarra, disposto a pular sobre o coxo. Eu não pensei duas vezes. Aquela comédia precisava terminar por fim. Levantei levemente a “vara de Moisés” e Eliseu, entendendo, jogou-se ao chão. Imediatamente, uma descarga invisível de oito mil watts atingiu a podre prótese do bandido, incendiando-a. O desconcerto, como era de esperar, foi geral. Tiglat recuou agitado. E “Al” uivando, soltou a maça. Dois segundos depois, um dos gladius, consumido pelo laser, se quebrava e ia ao chão. Os “bucoles” em uníssono, levantaram as cabeças na direção da negra tempestade. Eliseu, engatinhando, tratou de se afastar do grupo. O guia reagiu e, em fenício, ordenou a Ot que atacasse. E o cão, como uma flecha, caiu sobre o chefe, derrubando-o. Um dos sujeitos, contudo, ao descobrir a fuga de Eliseu, lançou-se
sobre ele, desferindo uma forte cutilada na altura dos rins. E a espada quebrou-se em duas... Louco de raiva, lancei uma descarga contra o saq do atônito agressor, Desta vez o laser, além de consumir a tanga do homem, pegou o baixo ventre, torrando-o. E o fulano caiu desmaiado. Procurei aquele que continuava armado. Medo e surpresa o mantinham imóvel, pálido como cera. E na pressa acabei cometendo um erro. Em lugar de queimar o gladius, apontei na direção de uma das pontas da pele de urso. De imediato, apesar da umidade, apareceram umas chamas no sag, desencadeando o pânico em seu dono. E o sujeito descomposto, soltou a espada, correndo para a torrente. Pouco depois, arrastado pelas águas turbulentas, perdia-se rio abaixo. Eu digo que errei porque, contra todos os prognósticos, o sujeito que segurava as rédeas do asno soube reagir com rapidez, apoderando-se do único gladius que não havia sido inutilizado. E, uivando, correu na direção do maltratado “Al”. Mirei de novo e apertei o botão... - Merda! O laser não respondeu. Tentei uma segunda, uma terceira vez... Negativo. Alguma coisa falhava no dispositivo de defesa. Foram segundos decisivos. Ot, cego, enlouquecido com o coxo pegando fogo, gritando, continuava procurando o pescoço do bandido. Não percebeu a chegada do sujeito de turbante vermelho. E antes que este perplexo explorador apertasse o botão dos ultra-sons, o esbirro, levantando a espada em ambas as mãos, desceu-a sobre o cão, decapitando-o. O impacto gelou meu sangue. Imediatamente, às minhas costas, escutei um grito desesperado: Fora questão de segundos.
Tiglat, fora de si, correu como um foguete, jogando-se de cabeça contra o estômago do bandido. E os dois rolaram por terra. Não pude evitá-lo. O rapaz se refez. Apoderou-se do gladius e o enterrou no coração do sujeito derrubado e ferido. Em seguida, arrancando o ferro ensangüentado, dirigiu-se ao que estava em pé. Mas o hete, entendendo, fugiu da clareira, pulando direto no nahal. Instantes depois, como havia acontecido com seu comparsa, as correntezas o engoliram e ele desapareceu. Tiglat acabou jogando a espada no meio das águas furiosas. Depois, nos ignorando, voltou para perto do corpo destroçado do basenji. Pegou sua cabeça negra e branca entre as mãos e, beijandoa, começou a chorar. Eliseu, machucado pelo golpe de espada, juntou-se a este desolado e abatido explorador. Eu me sentia culpado. Se tivesse usado os ultra-sons desde o primeiro momento, talvez Ot estivesse vivo agora... Mas não adiantava nada me lamentar. A “vara”, pela primeira vez, falhara. Quanto ao chefe, quando percebemos, ele já escapava aos tropeços em direção ao asherat. Inteligente, preferiu fugir. E, na clareira, debaixo da chuva, ficou a esfumaçada perna de pau... Curioso Destino. Algum tempo depois voltaríamos a encontrar o bandido. Nessa ocasião ele pediria ao Mestre “algo” muito mais importante que prata e ouro... Impotentes, não soubemos o que fazer nem o que dizer. O jovenzinho foi se sentar debaixo da árvore sagrada e ali ficou um longo tempo, com os ensangüentados despojos de Ot entre as pernas, chorando desconsolado. Meu irmão, comovido, incapaz de suportar a tristeza da cena, deu-lhe as costas. A tempestade, mais sortuda, foi se afastando em direção ao leste procurando a longínqua Síria. A chuva parou e, muito contra minha vontade, o velho sonho
continuou ao meu lado, lembrando-me de que não havia sido um simples e absurdo sonho. Mas o enigmático e, às vezes, cruel Destino tinha alguma coisa mais para me dizer... Tiglat secou as lágrimas e, trancado naquele impenetrável mutismo, subiu nos galhos mais baixos. Intrigados, eu e Eliseu vimos que ele rasgava a túnica e manipulava a cabeça do basenji. Depois, com muita delicadeza, amarrou o pano à sabina e Ot ficou pendurado pelas cavidades oculares. Meu Deus! Aquela cabeça, gotejando sangue e balançando, também fazia parte do sonho... Em seguida, ao descer dos galhos, abraçou-se ao tronco. Fechou os olhos e, com um fio de voz, entre suspiros, entoou um cântico. Não soubemos o que ele dizia. O ritual – porque disso se tratava – foi todo em fenício. Dias depois, quando as relações com o rapaz normalizaram, ele explicou que, simplesmente, tentou se congraçar de novo com os deuses, suplicando-lhes que lhe dessem forças para viver, sem seu amigo. E eu disse bem. Quando nossas relações se normalizaram... O problema é que, concluída a cerimônia, Tiglat nos observou brevemente. Notei alguma coisa estranha em seu olhar. Ódio talvez... Finalmente, rompendo o silêncio, anunciou: - Meu amigo morreu por tua causa. Se tivesses entregado o ouro agora ele estaria comigo... Comecei a entender. Eliseu, sabendo da falha da “vara”, respondeu indignado: - Tu não estás sendo justo... Tiglat, contudo, com o ódio crescendo, não ouviu. - Eu te avisei. Te disse: dá-lhes o ouro... - Sabes o que teria acontecido se eu tivesse entregue o que eles pediam? Os olhos incendiados do guia se desviaram na direção do meu
companheiro: Mas ele não quis ou não soube responder à pergunta. E Eliseu resumiu a breve conversa entre “Al” e os “bucoles” um pouco antes da luta. - Eu vou te dizer... Lembra que eu estava ali e ouvi tudo. O jovenzinho duvidou. - Primeiro o ouro e a prata, ordenou aquele selvagem, depois o pescoço e sem misericórdia... Esperamos uma resposta. Não houve. No fundo, Tiglat sabia que meu companheiro dizia a verdade. Aqueles miseráveis não perdoavam. Contudo, ainda muito desolado, não cedeu. E fazendo um esforço declarou: - Vou cumprir o combinado. Vou fazer isso só pelo meu pai. Vou levar-vos até o refúgio de pedra... Depois rogarei ao meu senhor Baal para que vos amaldiçoe... Foram suas últimas palavras. Pegou as rédeas do jumento e, sem olhar para trás, caminhou apressado até o promontório seguinte. Eliseu e este que aqui escreve, resignados, fomos atrás dele. Minutos depois, próxima já a cota dos dois mil metros, apareceram, pairando sobre a clareira da sabina as inconfundíveis silhuetas escuras dos carniceiros. E no meu coração, apesar das sensatas reflexões de Eliseu, foi se avolumando uma penosa dúvida: “Será que o fenício tinha razão? O que teria acontecido se tivéssemos entregado as sacolas de borracha com os diamantes e denários de prata? Quero acreditar que tinha sido a melhor resposta... Enquanto subíamos, do lado oeste, ancorado sobre os bosques, apareceu de repente um brilhante e belo arco-íris. E fez o milagre. Conseguiu que eu esquecesse pelo menos uma parte dos recentes e dramáticos acontecimentos. E devolveu-me à realidade, à feliz e esperançosa realidade. Estávamos quase conseguindo... O Mestre estava ao alcance da mão.
Enfim! O trecho entre a árvore sagrada – referência difícil de esquecer – e o refúgio de pedra, no qual Tiglat devia depositar as provisões, foi breve embora árduo. A montanha tornou-se mais íngreme e a trilha, cada vez mais humilhada, precisou dar voltas, disputando cada metro com muita garra. Finalmente, vencidos pela altitude, na cota “1.900”, os frondosos azinheiros, abetos, mirtos e o resto da corte claudicaram, cedendo ladeiras e canhadas ao senhor do Hermon, o cedro. O basalto também ficou para trás e foi substituído pelas pedras calcárias femininas e margas jurássicas, mais de acordo com a delicada e silenciosa beleza daquelas cumeeiras. Sim, essas seriam as palavras adequadas: silêncio e majestade. Nunca, enquanto durou nossa aventura na Palestina de Jesus de Nazaré, chegamos a viver um silêncio tão sonoro e contínuo como aquele. E quanto à nova paisagem, como descrevê-la? Hoje, o Hermon é uma pobre caricatura daquilo que chegamos a contemplar. O chamado Cedrus libani podia ser contado aos milhões. Nem uma única fralda, e menos ainda o próprio cume do monte santo, estava aberta ou mutilada. Tudo, na verdade, era uma massa verde escura, em acirrada concorrência com as neves perpétuas e o azul cristalino, quase milagroso, do céu. Pena que o professor Beals, da Universidade de Beirute, não tivesse tido oportunidade de verificar tal desperdício. Seguramente teria modificado suas conclusões(2). Não ponho em dúvida os argumentos dos especialistas: o corte indiscriminado da cobiçada riqueza do Hermon – o cedro – pode ter ameaçado a sobrevivência dos venerados ere. Testemunhos como o do primeiro livro dos Reis (5, 20) e o de Esdras(3, 7)3 assim dão fé. Mas isso foi há muito tempo. A montanha obviamente se recuperou, transformando o norte da Gaulanítide no maior e mais intrincado bosque de toda a Palestina. Lembro bem dos primeiros passos entre os altos erez – a “glória do Líbano”, segundo Isaías -, a maioria de 20 ou 30 metros de altura, com os ramos em forma de candelabro, filtrando com conta-gotas os audazes raios de sol.
*2. Num estudo interessante (1965), o citado cientista – cujos relatórios figuravam também no banco de dados do módulo - garantia que, no passado, os cedros cobriam as ladeiras norte e oeste do Hermon, entre 1.400 e 1.800 metros de altitude (N. Do m.) 3. Nos ditos textos sagrados há de fato alusões ao intenso corte de cedros, (Os famosos erez) desde os tempos do rei Salomão. Hiram, rei de Tiro, assinou um acordo com Salomão, fornecendo-lhe madeira do Líbano. Com esses carregamentos enviados provavelmente via marítima até o porto de Hoppe, o filho de Davi edificou o primeiro Templo a Yaveh. A madeira de cedro, leve, amarelada, aromática e de excelente qualidade, era muito procurada e cotada. Os assírios, egípcios e persas, também a utilizavam desde tempos remotos. Quando escasseou, o rei Sargon II (720 a.C.) foi buscá-la nos montes de Amanus e Zagros. O Segundo Templo de Jerusalém também seria edificado com os cedros do Hermon, símbolo de “força, dignidade e grandeza” entre judeus e gentios. (N. Do m.)
Meu irmão, sorridente, virou-se, falando da fortíssima e doce fragrância daquela massa espessa. Um aroma quase sufocante que terminaria impregnando nossas roupas e utensílios. E no mais alto, entre os ramos e os ondulados troncos cinza chumbo, a inevitável e desembaraçada tropa alada, às vezes descendo até um nahal Hermon igualmente despreocupado, rápido e prematuramente grisalho por conta das rochas, desníveis e pequenas cascatas. Não sou capaz de explicar, mas, ao penetrar naquelas alturas, à medida que subíamos, “algo” dentro de mim abriu as asas transformando-me em outra pessoa, não direi melhor e sim mais feliz. Ou foi talv ez a segurança do iminente encontro com o Rabi da Galiléia. E por volta da “nona” (três da tarde), Tiglat parou. Na metade do bosque, a curta distância do escandaloso aprendiz de rio, erguia-se o famoso “refúgio” de pedra. Uma desilusão... Mas afinal o que tínhamos imaginado? Uma casa robusta e espaçosa? Nada disso. O modesto habitáculo, digamos assim, consistia num amontoado de rochas pequenas e médias empilhadas em semicírculo, de um metro de diâmetro por outro de altura, coberto por galhos de cedro à
guisa de telhado. Em resumo, uma espécie de “dispensa” ou “armazém”, só adequado para as provisões. O guia, rígido e em silêncio, começou a descarregar o jumento, guardando os alimentos no “refúgio”. Não permitiu que o ajudássemos.  Meu coração bateu mais forte. Onde estava o Mestre? Por um instante, já que era segunda-feira, um dos dias combinados para a entrega do alimento, imaginei que ele estaria ali esperando. Outra desilusão. O bosque estava deserto. E eu me consolei: “Não deve demorar...”. Durante alguns minutos eu me distraí examinando minuciosamente a banda da montanha onde estávamos. A rampa apontava diretamente ao Norte. O pequeno caminho mal traçado continuava entre as árvores, chamando minha atenção. Segundo minhas estimativas, a cota “2.000”, na qual se encontrava o cahaneh ou acampamento de Jesus de Nazaré, devia ser perto, muito perto, talvez a quinze ou vinte minutos. Mas eu me contive. O instinto, forte e claro, aconselhava calma. Esperaríamos. Terminado o descarregamento, o jovenzinho, dirigindo-se a Eliseu, exigiu o pagamento. - São cinco denários... Meu irmão olhou para mim. Concordei com um sinal de cabeça. Ele então, puxando a bolsa, contou as moedas. Mas, no lugar de entregá-las, colocou-as de novo na sacola de borracha. Desamarrou a sacola do cinto e voltou a me olhar, inquisidor. Entendi. E repeti o leve movimento de cabeça, aprovando o gesto generoso do engenheiro. Era o mínimo que podíamos fazer pelo decepcionado Tiglat. Meu companheiro ofereceu-lhe a sacola e, sorridente, numa vã tentativa de suavizar a tensa situação, perguntou: - Por que tu não ficas? Logo vai escurecer... Teu pai aprovaria...
Não respondeu. Contou as peças de prata e, surpreso, exigiu uma explicação. - O que é isto? Aqui tem dez denários... Eliseu, com toda boa vontade, tratou de justificar a retribuição extra mas o orgulhoso adolescente, retendo a metade das moedas, devolveu-lhe a bolsa, assim nos ofendendo: - Guardai o dinheiro... Não penso lavar vossa consciência com cinco denários... Ot valia mais do que isso e mais do que vós... Em seguida, puxou as rédeas do jumento, afastando-se com rapidez entre os cedros. E ali ficamos os “três”: Eliseu, quem aqui escreve... e uma profunda tristeza. Não houve comentários. O que podíamos dizer! Eliseu, voltando à realidade, perguntou o que eu achava. - E agora, o quê... Eu lhe disse que era bom esperar. As provisões estavam no “refúgio”. O Mestre sabia disso. - Não acho que vá demorar... Acrescentei, movido por um repentino sobressalto: - Lembra das palavras de Tiglat?... O “estranho galileu” sério e preocupado... - Não entendo você. Fiquei em dúvida. Talvez eu estivesse exagerando. Talvez aquele inesperado sentimento não tivesse coerência. Mas decidi compartilhá-lo com Eliseu. - Não sei... O rapaz disse também que alguma coisa grave deve ter acontecido ao Mestre para que ele se escondesse neste lugar... Com sua fina intuição, meu irmão adivinhou a estranha e inoportuna inquietação. - Você está insinuando que talvez ele queira ficar sozinho? Fiz sinal que sim. - Você acha que nós nos precipitamos? Eu não soube responder. E o silêncio daqueles exploradores uniu-se
ao dos cumes. O engenheiro deixou-se cair junto ao semicírculo de pedras e, depois de longa pausa, argumentou com sensatez: - Muito bem, querido major. Vamos supor que você tenha razão, e não é o momento nem o lugar adequados. Que o Galileu, ao nos ver, manifeste seu desejo de continuar sozinho... Tudo isso pode estar certo, mas, utilizando sua própria linguagem, por que você não deixa que o Destino decida?. - E, gozador, ponderou: - Destino, como você diz e escreve, com maiúscula... Agradeci a sugestão. Como sempre, ele falava de forma oportuna e com bom senso. A verdade é que não dispúnhamos da menor informação sobre o porquê da permanência do Mestre naquelas paragens remotas. Os textos evangélicos não mencionam isso e o ancião Zebedeu também não sabia muita coisa. Ele se limitou a relatar o que o próprio Jesus lhe havia confessado: “permaneceu no Hermon umas cinco semanas, aparecendo em meados do mês de elul (setembro). Quando chegou ao Yam era outro homem. Percebemos que havia mudado. Exuberante”. Por isso, sem dúvida, havia uma contradição. Tiglat garantiu que “parecia sério e preocupado, com certa tristeza nos olhos”. O chefe dos Zebedeu, uma vez, falou que aquele Jesus era “outro”, feliz e seguro de si mesmo... Que diabos aconteceu lá em cima? A que se devia tão prolongado afastamento? E por que naquele momento? Estávamos no ano 25. Faltava pouco para o início da vida pública... Obviamente, nesses instantes críticos, nem Eliseu nem eu podíamos sequer imaginar a extraordinária “razão” que impelira Jesus de Nazaré a se refugiar a dois mil metros de altitude. Uma “razão” que, é claro, justificava plenamente as certeiras palavras de Zebedeu... E o céu quis que estes esforçados exploradores fossem testemunhas privilegiadas desse incrível “milagre”. Mas, outra vez, devo conter meus impulsos. Devo ater-me aos fatos
conforme aconteceram. O problema é que, enfiado nessas análises e suavemente envolto pelo sussurro e a fragrância dos cedros, este que aqui escreve, como Eliseu, acabou caindo num plácido sono. Imagino que o cansaço acumulado e a amargura da recente experiência com os “bucoles” tenham contribuído também para que nós dois, sem querer, acabássemos mergulhando naquele profundo e relaxante descanso. Hoje, contudo, com a vantagem do conhecimento e da distância, tenho minhas dúvidas. Sérias dúvidas. Foi um sono lógico e natural? Por que os dois ao mesmo tempo? Foi provocado? Só Ele sabe... Como descrever aquele momento? Como defini-lo? Absurdo e Estranho? Bem ao estilo de Jesus de Nazaré e destes impertinentes exploradores? Vejamos se sou capaz de pintar esse quadro, ainda que em toscas pinceladas. Primeiro vi Eliseu. Ele estava ao meu lado, me sacudindo nervoso. Estava pálido. Com a mão direita apontou à nossa frente. - Jasão, acorde!... Olhe! Precisei de alguns segundos para me situar. O bosque, sim... Os cedros... Tiglat, irritado, se afastando... A “2.000 metros”... O refügio com as provisões... A espera... O Mestre não devia tardar... O Mestre! Tentei me levantar com tanta velocidade e com tal aturdimento – coitado de mim – acabei pisando na bainha da túnica e caindo de bruços sobre o terreno inclinado. E logo veio uma risada. Uma risada cálida, familiar e contagiosa... Meu irmão, solícito, se apressou a ajudar este desolado e confuso piloto. Mas, evidentemente, aquele não era o nosso melhor dia... Ao me levantar, bati sem querer a cabeça na fronte do engenheiro, derrubando-o e ao mesmo tempo perdendo de novo o equilíbrio. E ambos, como dois perfeitos inúteis, rolamos ao chão.
As risadas, incontroláveis, aumentaram... Aí, aqueles dois estúpidos, de quatro, observaram-no atônitos e boquiabertos... Olhamos um para o outro e, percebendo a constrangedora situação, caímos numa risada também incontrolável, assustando o bosque com um sonoro concerto de gargalhadas. Eliseu, com lágrimas nos olhos, apontou-me o dedo, gozando de mim. E eu, contemplando sua não menos ridícula figura, o imitei, dobrando-me de tanto rir. Mas o ataque de riso acabou me fazendo engasgar. Então, o Homem se levantou. E se aproximando, deu um tapinha nas costas deste abatido e cada vez mais desconcertado explorador. Instantes depois, dissipadas as risadas, estávamos em pé, tomados pela surpresa e, antes de conseguir pronunciar uma única palavra, Jesus de Nazaré abriu os braços e, me apertando, sussurrou: - Oheb! - E repetiu: - Yaggir oheb!... Querido amigo! Não sou capaz de explicar isso. Não há maneira de articular e dar ordem ao torvelinho de sentimentos e sensações que aquele abraço provocou. Gratidão? Alegria? Emoção? Desconcerto? Só lembro que, sem poder me conter, comecei a chorar. E me abracei a Ele, com mais força, com tudo que podia... Enfim! - Querido amigo! Querido amigo! Em seguida, ao abraçar Eliseu com seus braços musculosos, continuou pronunciando a mesma frase. - Yaggir oheb!... Bendito seja Deus! Assim, de uma penada, da forma mais simples e natural, todos os meus temores e receios se extinguiram. Ele nos reconheceu! Reconheceu? Não, foi muito mais que isso. Mas, como pôde? Como sabia? Como era possível? Pobre idiota! Acho que nunca vou aprender... Ele nos contemplou alguns segundos e, acolhendo-nos com um
radiante e interminável sorriso, exclamou: - Obrigado! Obrigado por vossa decisão e sacrifícios...! Aquele sorriso... Era o mesmo! - Sei que estais aqui pela vontade do meu Pai... Eliseu e eu mudos, perplexos, com um nó no estômago, flutuávamos numa nuvem. Aquilo não era real. Será que eu estava sonhando de novo? Obrigado pela nossa decisão? Mas como podia saber? A resposta viria “em seu devido momento”. E viria de forma delicada, sem atropelos. “Como a coisa mais natural do mundo” (!). - Como viste, querido Jasão, o “até logo” se cumpriu... E piscando o olho ele me eletrizou. Claro que eu me lembrava daquelas palavras. Mas, santo Deus, ele as havia pronunciado na manhã de quinta-feira, dia 18 de maio... do ano 30! Foi sua despedida no monte das Oliveiras... - Bem – concluiu, como que nos chacoalhando -, vamos lá. Há muita coisa para fazer... Acho que o seguimos como autômatos. Nem o engenheiro nem este que aqui escreve fomos capazes de pronunciar um “sim” ou um “não”. Simplesmente, parecíamos hipnotizados. Carregamos as provisões e a tenda e fomos atrás dEle. De repente, meio de improviso, rememorei a cena recente, estivera ali, diante destes adormecidos exploradores! Eu o vi placidamente sentado nos observando... Meu Deus! Quanto tempo esteve ali aguardando por nós? Depois de alguns passos, meu irmão, emparelhando-se com este explorador, enfim falou e repetiu meus próprios pensamentos: - Como é possível? Ele nos reconheceu!... Então, outra vez nos pegando de surpresa, o Mestre deu uma volta. Virou-se sobre os calcanhares e, esboçando um sorriso maroto, fixou seu olhar irresistível sobre este que aqui escreve, pronunciando palavras que me atordoaram: - Lembras? “E nos corações ficou aquele lenço branco...
flutuando como um adeus definitivo”... Acho que fiquei pálido. Incrível! Escrevi essas frases no meu diário, no relato de sua “ascensão”, pouco depois do histórico e já mencionado dia 18 de maio do ano 30..., ao voltar ao Ravid. Ninguém as conhecia... Mas Ele, alegre, não deu trégua, e acrescentou: - Pois então, nisso tu erraste... Aqueles que conhecem o Pai nunca se despedem. Nunca dizem “adeus”... Só “até logo”. Nova piscadela de cumplicidade. Seu sorriso se expandiu e, dandonos as costas, ele continuou subindo pelo atalho com aquelas – quase esquecidas – grandes passadas. Eliseu, sem entender o alcance da pequena-grande revelação, interrogou-me impaciente, pedindo um esclarecimento. Não consegui responder. Minha mente, confusa, estava muito longe(4). Será que eu estava sonhando? Não podia ser... Ele ainda não podia ter conhecido essas frases escritas... no futuro! Contudo, acabava de pronunciá-las. Ele as conhecia! O enigma, reconheço, me deixou obcecado. Depois, conforme passavam os dias naquele inesquecível acampamento, fui entendendo. Ele era, sim, um ser humano. Mas também um Deus... Não foi fácil assimilar essa idéia. Nada fácil. E menos ainda para mentes racionais e científicas como as nossas. Mas os fatos, dia após dia, se impuseram. E diziam que era Ele. Com efeito, seu aspecto físico não era muito diferente. Era cinco anos mais jovem, mas a aparência era quase a mesma, assim O VimOS: Alto, muito alto para a média dos judeus, ao redor de 1,81 metro. *4. O major faz referência à última aparição do Filho do Homem, na chamada “ascensão”. EdIção Cavalo de Tróia 5, p. 319. (N. do a.)
Atleta... Ombros largos. Poderosos. Tórax oLímpico. Musculatura elástica. Invejável. Nem um grama de gordura. Pernas firmes. Duras como pedras.
Mãos elegantes. Aveludadas. Pausadas. Dadas ao trabalho. Unhas saudáveis. Sempre curtas e limpas. O rosto, alto e bem proporcionado, foi talvez o que mais me surpreendeu. Estava muito bronzeado e mais doce e risonho que aquele do outro “agora”. Acho que não erro se disser que, nesse tempo, Jesus estava mais extrovertido e confiante. Não era de estranhar. Ele estava apenas começando... A barba, repartida ao meio, mostrava-se agora mais comprida, igualmente bem cuidada. O cabelo, fino, cor de caramelo, menos grisalho, foi outra novidade: estava muito mais comprido, preso num rabinho. Queixo valente. O nariz, proeminente, tipicamente judeu, era o único traço que destoava um pouco. Lábios finos. O superior despontando levemente sob o bigode. Dentes impecáveis. Brancos e alinhados, reforçando aquele peculiar e abrasador sorriso. Fronte audaz. Alta e com as sobrancelhas retas e bem delineadas. Pestanas longas, cheias, perfilando uns olhos rasgados. Os olhos! Como descrevê-los – Eram e não eram humanos. De tonalidade mel claro. Líquida. Vivos. Intensamente vivos Penetrantes como punhais. Às vezes insustentáveis. Doces. Compassivos. Atentos. Ágeis. Espertos. Amigos. Sem necessidade de palavras... Os olhos de um Homem-Deus. Um Homem irresistível. Magnético. Imprevisível. Próximo. Sábio. Humilde. E sobretudo, naquele momento, feliz. A roupa tampouco nos surpreendeu. Vestia sua querida túnica de lã sem costuras, de um branco imaculado, flutuando até os tornozelos, de mangas largas e levemente presa na cintura por um simples cordão duplo, traçado com fibra de linho. As sandálias de couro de vaca curtido, semelhantes às nossas, estavam notavelmente gastas.
Sim, assim o vimos... Um Homem iluminado. Um Homem que, como veremos, acabava de fazer sua grande “descoberta”. Um Homem – e eu adianto isso sem a menor sombra de dúvida – que acabava de se “estrear” como Deus. E esse “achado”, essa segurança, durante um tempo o levou até as estrelas, até seu Pai Celestial... E tudo à sua volta ficou contagiado, incluindo estes exploradores. Jamais vivemos uma experiência tão gratificante como aquela, ao pé das neves perpétuas do Hermon. Pena que os evangelistas não tenham feito menção de acontecimentos tão memoráveis. Mas devo manter minha calma. Estou me precipitando outra vez. Tudo em seu devido momento. Tudo passo a passo. Agora, vencida a “nona” (três da tarde), só o presente contava. Só Ele contava. E começaram a acontecer coisas estranhas... Estranhas Não, com Ele, nada era estranho. Éramos nós que não o conhecíamos bem. Éramos nós que havíamos forjado uma imagem falsa, distante, erroneamente solene daquele carinhoso, espontâneo, muito íntimo e quase infantil Jesus de Nazaré. E, repito, de improviso, o Mestre mostrou-se tal como era. De novo parou. Apontou para o alto e, com o rosto grave, anunciou: - O último lava a louça!... Soltou uma gargalhada e, dando meia volta, saiu correndo ladeira acima. Eliseu e eu, atônitos, precisamos de uns segundos para reagir. O engenheiro, entendendo finalmente, saiu atrás dEle, passando a perna neste tonto explorador. Pouco depois, ferido no amor próprio, feliz, impulsionado por aquela “força” que continuava dentro de mim, puxei pela esgotada musculatura, numa vã tentativa de alcançá-los. Este era o Mestre. O autêntico Filho do Homem. Minutos mais tarde, resfolegando, quase me arrastando, fui parar a uma grande clareira. Ali, comodamente sentados, morrendo de dar
gargalhadas aqueles “loucos” me esperavam. Estavam novos em folha, sem o menor sinal de esgotamento. Eu olhei desconcertado para eles e, vencido, me deixei cair, tentando encher os pulmões e recompor a minha catastrófica figura. - Sobrou para ti! - brincou meu irmão. - Serviço de cozinha! Quero tudo impecável! Eu me conformei. Jesus, então, pegando minha sacola e as provisões que me coube levar, carregou tudo, fazendo coro ao que dissera meu irmão: - Tudo impecável!... E dirigiu-se à muralha de cedros que se levantava à nossa frente, a escassos cinqüenta metros. Na verdade, tratava-se de um minguado arvoredo, formado por três ou quatro fileiras de er. E do outro lado, uma nova surpresa: o mahaneh, o acampamento... Eliseu e eu nos detivemos fascinados e, durante alguns instantes, percorremos com a vista o incrível e belíssimo lugar. Aquilo me parecia familiar. Eu já conhecia aquelas paragens. Mas, no ato, afastei a ridícula idéia. Jamais estivera ali. Toda rodeada pelos cedros abria-se diante de nós uma meseta ovalada, de uns cem metros de diâmetro maior e coberta por um tímido tapete de ervas. À nossa esquerda, ao fundo, quase roçando a parede do bosque, uma pequena tenda de duas águas, armada, como a nossa, com peles de cabra negras e untadas. No centro da planície, um cedro gigantesco de uns quarenta metros de altura, com um tronco milenar, opaco e cinzento, de quatro metros de circunferência. Com a copa verde escura, achatada, se sobressaía por cima de seus irmãos, acolhendo uma barulhenta e, no momento, invisível colônia de aves. E ao pé do gigante, o que faltava, o toque exótico: um dólmen! Um antigo monumento megalítico composto por cinco rochas brancas verticais; de quase três metros de altura, solidamente enterradas, nas quais se apoiava à guisa de telhado outra enorme pedra plana. Neste caso, a colossal estrutura não tinha as habituais câmaras funerárias.
Passei muito tempo à sombra daquela impressionante construção E sempre me perguntava a mesma coisa: como a erigiram? Ou muito me enganava ou a pedra superior pesava mais de duas toneladas... E ao norte, a pouco mais de 800 metros acima da meseta, refulgia o pico nevado do Hermon, admirado de perto pelo verde-azul dos bosques. Ficamos extasiados. Mas não, ainda não tínhamos visto tudo... Em seguida, auxiliados pelo Mestre, nós nos concentramos na montagem da tenda e na organização do modesto equipamento. O refúgio rústico, bem próximo ao do Galileu, ficou pronto em questão de minutos. E nisso estávamos quando, de repente, no silêncio de dois mil metros, alguma coisa soou. Meu irmão e eu, largando as sacolas, nos olhamos atônitos. Pensamos a mesma coisa. Mas, discreta e prudentemente, não fizemos comentário algum. Logo depois, o incrível “ruído” repetiu-se, agora mais nítido. Não havia dúvida... Jesus, atarefado em ancorar um dos cabos, percebeu nossa inquietação. Ele nos olhou e, alegre, esboçou meio sorriso, mas continuou nos seus afazeres. O terceiro som foi até mais espetacular. Procedia, parece, do flanco oriental da meseta. Mas ali só se viam árvores. De repente, por sobre os cedros, apareceu a silhueta de uma ave de rapina. Não tenho certeza, mas juraria que se tratava de uma “perdizeira” enorme, dotada da força da águia e da agilidade do falcão. Planou lenta e majestosa, traçando círculos do outro lado do arvoredo. De repente, deixou-se cair num rápido e impecável mergulho, desaparecendo por trás do bosque. E no mesmo instante, o desconcertante e “impossível” som. Eram tiros... Rajadas! Achei que estava tendo alucinações.
Disparos? No ano 25? Meio minuto depois a águia reapareceu, afastando-se até o Hermon.  As “rajadas de metralhadora” cessaram.,! Esperamos um novo matracar. Nada. Silêncio. Não voltaríamos a uvi-lo. Na manhã seguinte teríamos a explicação... Concluídas as tarefas, o Mestre consultou o sol. Devia ser a “décima” (quatro da tarde). Faltavam, pois, pouco mais de duas horas para o anoitecer. E ele, atento e solícito, perguntou: - Que tal um banho antes do jantar? Um banho A dois mil metros de altitude! Meu irmão, entusiasmado, concordou no mesmo instante. E Ele, com um gesto da mão esquerda nos convidou a segui-lo. Como eu dizia, ainda não tínhamos visto tudo... O Galileu cruzou a esplanada, adentrando no breve arvoredo do referido flanco leste. Do outro lado nos esperava uma surpresa não menos reconfortante. As cascatas! Acho que foi normal. Eram muitas emoções para lembrar alguma coisa tão insignificante como as repetidas alusões dos montanheses àquele “pouco recomendável lugar”! Espero voltar a falar disso, mas, francamente, a presença do Filho do Homem me mantinha – nos mantinha – meio hipnotizados. Bem à margem dos cedros aparecia o esquecido nahal Hermon. Descia dos cumes nevados, e o fazia espumoso, irritado e queixoso. Na altura da meseta, cerca de cinco ou seis metros debaixo dos nossos pés, o terreno se escalonava, forçando a torrente a saltar. Resultado: duas cascatas brancas e barulhentas de mais de dois metros de altura cada uma. E entre ambas, uma espaçosa e mansa “piscina”, de águas frias e transparentes. Um amarelado anfiteatro rochoso de gesso cenozóico, magistralmente desenhado pela Natureza, ocupava parte da “piscina” refreando o ímpeto do nahal. O rochedo acompanhava a corrente, formando uma segunda ilhota ao pé da última cascata. Daquele momento em diante, para Eliseu e para este que escreve,
esse remanso seria batizado de a “piscina de gesso”. Diante de nós, erguendo-se para a dita “piscina”, desafiando os cedros, vigiava uma solitária patrulha de carvalhos. E entre o miniarvoredo, alguns salgueiros e os inevitáveis círculos de adelfas. Dito e feito. O Mestre, alvoroçado, tirou a túnica e as sandálias e, de um salto mergulhou de cabeça nas águas, provocando a precipitada fuga de dezenas de inquilinos do carvalhal: “nectarinas” de cabeças e peitos violetas, “trigueiros” de orelha negra e cauda branca e tímidos “carpinteiros” sírios, entre outros. Eliseu, nervoso, tirou a roupa como pôde e, sem vacilar, seguiu o exemplo de Jesus de Nazaré. Eu, sem acreditar no que estava vendo, fui me sentar na beira da “piscina”, para contemplá-los. O Mestre nadando! Podia parecer coisa infantil. Não sei... Mas não importa. Para mim, aquele Jesus era novo. Diferente. Tão próximo e natural... Ele dava braçadas ágeis, com força. Parava. Inspirava e desaparecia sob as águas. Procurara o engenheiro. Pegava-o pelas pernas e, como se fosse uma pena, o levantava sobre a superfície e o deixava cair. Risadas. Eliseu, desconcertado, se recuperava e, sem delongas, perseguia o Mestre. Apoiava-se nos brilhantes e musculosos ombros e tentava afundá-lo. Impossível. O Filho do Homem era uma rocha. Ele se esquivava. Chapinhava. E entre gargalhadas, terminava afundando de novo o pobre Eliseu... Não sei quanto tempo fiquei ali em cima, atônito... e feliz. Sim, essa era a palavra exata: feliz. De repente, porém, eu vi os dois cochichando. E, em silêncio, deslocaram-se na direção deste que aqui escreve. Os dois exibiam um suspeito sorriso de cumplicidade. Fiquei de pé e, entendendo as más intenções, pedi calma.
Tirei a roupa na maior velocidade e, antes de ser pego por aqueles maravilhosos “loucos”, pulei na “piscina”. Quando consegui voltar à superfície, quatro poderosas mãos me agarraram e me afundaram. E como três crianças, sem deixar de rir, perseguindo-nos uns aos outros prolongamos assim aquele primeiro e inesquecível banho aos pés do Hermon. Nunca, nunca poderei esquecer aquilo. Uma hora depois, esgotados, nos reunimos ao pé dos cedros. O Mestre soltou seus cabelos e foi se sentar na frente destes esbaforidos exploradores. O sol, se despedindo, roçando o horizonte azul e ondulado dos bosques, começou a vestir e a preparar para a noite os cumes nevados. E fez isso devagar, respeitoso, com dedos cor de laranja. Jesus inspirou profundamente e jogou a cabeça para trás. Depois, fechando os olhos, permaneceu num longo e majestoso silêncio. Algumas gotas, irreverentes, escorregaram pelas têmporas, caindo sobre o tórax bronzeado, largo e descontraído. Outra vez fiquei surpreso. Enquanto nossos corações bombeavam agitados, Ele, impassível, mal erguia a caixa toráxica. Sua capacidade de recuperação era assombrosa. De repente, sem aviso prévio, o sempre sincero e espontâneo engenheiro formulou uma pergunta. Uma questão que nos rondava e atormentava muito antes de chegar à sua presença. Eliseu, como de costume, teve mais coragem do que eu... - Senhor, o que fazes aqui? Na hora, o Galileu não respondeu. Continuou com os olhos fechados, alheio a tudo e a todos. Achei que não queria falar. E fulminei meu companheiro com o olhar. Eliseu, desolado, baixou a cabeça. - Não, Jasão – interveio o Mestre, me pegando de surpresa -, não repreendas teu irmão porque, como tu, ele anseia saber a verdade...
Era impossível. Eu não conseguia me acostumar. Como ele fazia isso? Como podia “ver” ou “ler” os corações? Se tinha os olhos fechados, como pôde... Endireitou o rosto e, me atravessando com aquele olhar, de novo me pegou na curva: - Por que agora, querido Jasão, finalmente, recuperei o que é meu... E virando-se para o espantado Eliseu, com seu melhor sorriso, acrescentou: - Amigo, fazes bem em perguntar. Para isso estais aqui. Para dar conta e dar fé do que sou e do que deseja meu Pai... Vosso Pai. Pedi desculpas ao meu companheiro e, esquecido o leve incidente, Eliseu, vibrante, voltou sua atenção ao Rabi, reformulando a questão inicial. - Vieste ao Hermon para procurar alguma coisa que havias perdido? O Mestre, encantado com a transparência daquele homem, o fitou durante alguns segundos. Seus olhos brilharam e um sorriso quase imperceptível derramou-se por seu rosto, chegando até nós. E voltou a nos desconcertar. - Excelente pergunta. Depois do jantar, não deixes de me lembrar essa questão. Deu uma piscada para Eliseu e, de um pulo, como um atleta, ficou em pé. Recolheu suas coisas e, decidido, cantarolando, voltou ao mahaneh. E estes exploradores e um Hermon definitivamente cor de laranja ficamos em suspense. Assim era aquele Homem... Suponho que isso era inevitável. Peço desculpas. Espero que o paciente e hipotético leitor destas atropeladas memórias saiba compreender e desculpar. Escrevo com o coração, com todas as minhas já escassas forças, mas mesmo assim as vivências escapam. São tantas as coisas que devo contar que, em certas ocasiões, não sei por onde ir e, pior ainda, talvez esqueça detalhes e impressões.
Agora mesmo isso acaba de acontecer. Ia me esquecendo de outra das desconhecidas facetas do Filho do Homem. Quem teria imaginado, alguma vez, Jesus de Nazaré “cozinheiro”? A verdade é que, no transcurso das experiências anteriores junto ao Mestre, jamais havia reparado nisso. Contudo, assim era. Assim o descobrimos no Hermon. E nos rendemos à evidência. Jesus cozinheiro Sim, e dos bons. O sol caía. Em questão de uma hora estaria tudo escuro. Jesus pôs mãos à obra. Eliseu, mais hábil para os afazeres domésticos que este limitado explorador, serviu de ajudante de cozinha. Reconheço que, no tempo que durou a permanência nos cumes da Gaulanítide, o Mestre e meu irmão formaram uma excelente e bem compenetrada dupla culinária. Quem aqui escreve, como era de esperar, foi relegado a “ajudante do ajudante”. Em outras palavras, a um mero lava-pratos. Mas não me arrependo. Também aprendi a minha parte com o sabão, panelas, copos e demais utensílios de cozinha. O Mestre deu as ordens oportunas e estes “ajudantes”, submissos e felizes, se dispuseram a armar um bom fogo. Diante da tenda do Galileu já estava preparado um modesto fogão: seis grandes pedras em círculo e, ao lado, uma boa reserva de galhos de cedro. Mas aí apareceu o primeiro problema. Eliseu e eu nos interrogamos mutuamente. Ninguém havia lembrado. Entre as provisões compradas dos Tiglat não constava o imprescindível punhado de “fósforos”, aquelas compridas lascas previamente embebidas em enxofre e que eram ativadas ao choque com o pedernal. Discutimos. Procurei entre as sacolas. Negativo. Nem sinal dos malditos “fósforos”. O Mestre ouviu e, percebendo a natureza do conflito, foi até sua tenda. Ao voltar pouco depois, depositava nas minhas mãos um punhado de “fósforos”, e brincando disse:
- Bela dupla de anjinhos! Instantes depois, graças ao meu irmão, é claro, um fogo cheiroso dançava vermelho, alto e com vontade, chamando a atenção de uma madrugadora e curiosa Vênus. A partir desse momento – dada minha declarada inutilidade – eu me limitei a vigiar e manter as chamas, assistindo, entre incrédulo e animado, o vaivém dos esforçados e muito sérios “cozinheiros”. Quem diria! Jesus de Nazaré cozinhando! Primeiro ele estendeu uma ampla esteira de folha de palmeira sobre a grama. Depois organizou as vasilhas e distribuiu ingredientes e comidas. Eliseu, atentíssimo, cumpriu as instruções do chef. Pegou meia dúzia de belas maçãs sírias brancas e começou a ralá-las. Sorri para mim mesmo. Nunca o havia visto tão concentrado, nem mesmo nas operações de vôo do “berço”. De repente, ao chegar ao coração da primeira fruta, ele parou. E indeciso, perguntou: - Senhor, que faço com o lebab? (Em aramaico, a palavra lebab tinha duplo sentido: coração e mente.) Jesus, absorto e batendo um molho, respondeu sem levantar os olhos da tigela de madeira: - O que acontece? Está inquieta? Compreendi. O mestre, distraído, interpretou o termo como “mente”. - Inquieta? Não, Senhor... É que não sei o que fazer com isso... - Esquece as preocupações. Aproveita o momento... - Mas... - Compreendo... - resignou-se Jesus, agitando com força a mistura. Tens saudade dela. É bonita? O engenheiro, perplexo, olhou para o coração que segurava entre os dedos.
- Bonita?... Não, Senhor... - Não é bonita – continuou sem deixar de bater o molho. - Que estranho! E qual é o problema? Por que te agitas todo? - Senhor – tentou esclarecer o cada vez mais confuso “ajudante de cozinha” -, é uma tappuah... Nova confusão. Tappuah (maçã) era utilizado também como galanteio. Equivalia a “doce”, “gostosa”, “desejável” (referindo-se, naturalmente, a uma mulher bonita). - E como ficamos? É ou não é tappuah? - Sim, mas... Não pude me segurar e comecei a rir, alertando o ensimesmado “cozinheiro chefe”. Jesus levantou os olhos e Eliseu, mostrando-lhe o coração da tapuah insistiu, vermelho como um pimentão: - Eu não tenho namorada, Senhor. Estava falando do coração. Ralo ou não? Naturalmente, ao perceber o equívoco, as gargalhadas voltaram ao mahaneh, contagiando as primeiras estrelas. E eu as vi piscar, desconcertadas.  Assim era aquele maravilhoso Homem... O jantar foi rápido. Salada “made in Maria”, a das “pombas”. Uma receita aprendida com a mãe. Desfrutamos e repetimos: maçãs raladas, palitos de um legume parecido com o aipo, nozes, passas de Corinto (sem sementes) e um leve e digestivo molho composto de azeite, sal, mel, vinagre e uma regada de vinho. Depois, toucinho magro na brasa e queijo em abundância. O mínimo que eu pude fazer foi dar parabéns aos dois. E meu irmão, satisfeito e mordaz, estendeu a mão, obrigando-me a beijá-la. Mas o Nazareno, que não ficava atrás em matéria de humor, fez a mesma coisa. Esse beijo, contudo, foi diferente. Eu tremi da cabeça aos pés. A noite nos pegou de surpresa. A temperatura caiu ligeiramente e o firmamento, atento, com uma luz suntuosa, espargiu-se sobre o Hermon, sabedor de “quem” estava iluminando e protegendo. Até o
cometa Haley, oportuníssimo, mostrou uma breve cabeleira pelo lado oeste do pulsante Procyon... Não, as estrelas não se enganavam. Aquela, de fato, seria uma noite histórica. Inesquecível. Pelo menos para nós... Ali, terminado o jantar, com o calor do fogo, com o rítmico e incansável coaxar das rãs junto ao nahal Hermon, teria lugar a primeira de uma série de conversas com o Filho do Homem. Conversas íntimas. Sinceras. Reveladoras. Praticamente todos os dias, com exceção da última semana, na mesma hora, como uma coisa muito bem “programada”, o Mestre falou, abrindo mentes e corações. E assim, suavemente, foi nos preparando... Não foi fácil. Mesmo com todas as anotações e notas, feitas sempre depois das animadas conversas e no silêncio da tenda, algumas de suas idéias e palavras muito provavelmente se perderam. Mas o fundamental ficou. As chaves... Entendo que devo ser honesto. Nem tudo o que Ele disse pode ser relatado aqui e agora. O mundo não entenderia. “Isso” ficou guardado no fundo do meu coração. Talvez, antes de minha morte já próxima, me decida pôr tudo no papel com a esperança de que seja lido pelas gerações futuras. Ele “sabe”. E agora outra advertência. Embora eu tenha procurado reunir por capítulo os assuntos de maior peso, as intensas conversas nem sempre se prestaram a anotações. Como é lógico e natural, daspendendo de circunstâncias, pulávamos de um tema a outro. Não obstante, para clareza, procurei uma certa ordem, um fio condutor. Dito isto, vamos prosseguir. O primeiro a falar foi Ele. Sério, de forma pausada, se interessou: pela nossa viagem. Nunca soubemos com certeza a qual viagem ele se referia. Estava claro que conhecia nossa verdadeira “origem”, mas sempre – e muito mais na presença de outros – ele se manteve numa discreta “nebulosa”. No fundo nós lhe agradecemos.
Finalmente, como anotação final, mais uma vez nos enchendo de otimismo e surpresa, ele repetiu aquilo que falou nas “cascatas”: - Meus queridos “anjos”... Não desistais... Ânimo!... Nem vós mesmos estais conscientes da transcendência de vosso trabalho... Ergueu os olhos até as estrelas e, suspirando, acrescentou: - Meu Pai sabe... Chegará o dia, graças a vós e a outro “mensageiro”, em que minhas palavras e minha obra refrescarão a memória do mundo. Obrigado por antecipação... - Outro “mensageiro”? Eliseu e eu fizemos a pergunta ao mesmo tempo. O Mestre, sorridente, assentiu com a cabeça. Mas nos deixou no ar. Hoje, quase com certeza, sei ao que ele se referia. Melhor dizendo, a quem. Ele, à sua maneira, também estava ali... na suave noite do Hermon. - Senhor – insistiu o engenheiro, que jamais esquecia -, respondenos agora. Prometeste. O que perdeste nestas montanhas? Por que dizes que vieste para recuperar o que é teu? O Filho do Homem, consciente do que se dispunha a revelar, meditou sobre as palavras. Pegou um dos ramos e brincou com o pacífico fogo. Depois, grave, num tom que não admitia dúvida alguma, assim se expressou: - Filho meu, o que vou te comunicar não é de fácil compreensão para a limitada e incompetente natureza humana. Vós sois os mais pequenos do meu reino e entendo que tua mente resista. Mas, em breve, quando chegar minha hora, compreenderás... E desviando o olhar na direção deste atento explorador, insistiu: - Então, só então, estareis em condições de entender. Agora, neste momento, escutai e confiai... Eliseu, impulsivo, o interrompeu: - Confiamos, Senhor! Tu sabes disso! Jesus lhe agradeceu. Sorriu e prosseguiu: - De acordo com a vontade do meu Pai, chegou o momento de
estabelecer em mim mesmo a autêntica identidade do Filho do Homem. Minha verdadeira memória, voluntariamente eclipsada durante esta encarnação, voltou a mim... E com ela, meu “outro espírito”. Ficamos perplexos e confusos. E, de repente, uma luz me iluminou. Achei que entendia o que Ele dizia. No fundo estava confirmando o que explicara em outro “agora” e que foi detalhado em páginas anteriores(5). De novo sorriu e, olhando fixamente para mim, assentiu devagar, convertendo-se em cúmplice das súbitas lembranças. - Assim é, meu querido amigo, assim é... E durante um longo tempo desceu aos detalhes, explicando o porquê de sua presença neste mundo. Pelo jeito – segundo disse -, era essa a vontade de seu querido Ab-bã, seu Pai Celestial. Ele, como Filho de Deus, devia viver, conhecer e experimentar de perto a existência terrena de suas próprias criaturas. Isso era o estabelecido. Esse requisito era vital e imprescindível para alcançar a absoluta e definitiva soberania como Criador de seu universo... Esse, em resumo, era o preço para conseguir a definitiva entronização como rei de sua própria criação. Percebendo nossa perplexidade arrematou: - Não vos atormenteis. Estais no princípio de uma longa travessia em direção ao Pai. Por ora deve bastar-vos minha palavra. - Então, se bem entendi – atacou o engenheiro -, tu és um Deus... “camuflado”. O Mestre, apanhado de surpresa, riu com vontade. Não havia dúvidas. As perguntas ingênuas e aparentemente infantis de Eliseu o fascinavam: - Um Deus escondido ... Sim, por enquanto... Deu uma piscadela e acrescentou: - E vos direi mais. Embora tampouco seja fácil de assimilar, de acordo com os desígnios de Ab-bã, outro dos objetivos desta
experiência humana consiste em “viver” a fé e a confiança que eu mesmo, como Criador, solicito de meus filhos com respeito a esse magnífico Pai. E sublinhou com ênfase: *5. O major faz alusões a estes temas em seu diário (Operação Cavalo de Tróia 3 e 4, 305 e ss. E 271 e ss., respectivamente). (N. Do a.)
- Viver a fé e a confiança... - Mas, não entendo... Por acaso não tens fé? De novo Ele dobrou-se às risadas e, quando conseguiu se recompor, esclareceu: - Meu querido anjo... eu sou a fé. Mas, ainda assim, convém provar isso... - Uma experiência... - murmurou quase que para si próprio o cada vez mais desconcertado Eliseu. - Tua encarnação neste planeta obedece a isso, à necessidade de experimentar. - É o plano divino. Só assim posso chegar a ser realmente e intimamente misericordioso. Meu irmão procurou minha opinião. - E tu, “ajudante” de anjo, que dizes? Isto é novo para mim. Isto nada tem a ver com aquilo que se tem dito... Jesus, sorrindo com malícia, esperou minha resposta. - A julgar pelo que vi e ouvi – resumi -, muito pouco daquilo que foi dito e escrito tem a ver com a verdade... E me atrevi a ir fundo no que eu já sabia: - Se bem entendi, tu, Senhor, não estás aqui para redimir ninguém... Simplesmente, negou com a cabeça. E afirmou: - Em seu devido momento escutaste isso do próprio Filho glorificado: O Pai não é um juiz. O Pai não contabiliza essas coisas. Por que exigir responsabilidades de criaturas que não têm culpa? Cada um responde por seus próprios erros... Eliseu mostrou estar de acordo. - Isso sim faz sentido.
E Jesus, nos apontando com o dedo, arrematou: - Estai, pois, atentos e cumpri vossa missão: deveis ser fiéis mensageiros de tudo que digo. Que o mundo, vosso mundo, não se confunda. Mensagem recebida. - Conhecer de perto tuas criaturas. Viver e experimentar na carne. Mas, Mestre, que podes aprender de nós? Meu companheiro, perplexo, continuou perguntando e se perguntando. - O que pode haver de bom em seres tão mesquinhos, brutais, ignorantes, primitivos...? O Galileu o interrompeu: - Deus! - Deus? - Assim é – explicou Jesus acariciando cada palavra. - Essa é outra das razões, a maior razão pela qual desci até vós. Revelar Ab-bã. Lembrar a estas e a todas as criaturas do meu reino que o Pai reside, pes-so-almen-te, em cada espírito. Naquele momento, Eliseu não percebeu a importância da revolucionária afirmação do Galileu. E desviou-se: - Outras criaturas? Jesus, compreendendo, resignou-se. Sorriu benevolente e de novo assentiu com a cabeça num significativo silêncio. - Mas como outras criaturas? Onde? - Querido e impulsivo menino... Acabo de te dizer: estás no começo de uma venturosa caminhada em direção ao Pai. Algum dia o verás com teus próprios olhos. A criação é vida. Não reduzas o Pai às curtas fronteiras da tua percepção. E te direi mais: a generosidade de Abbã é tão incomensurável que nunca, nunca, chegarás a conhecer seus limites. - Estás dizendo – manifestou o engenheiro incrédulo – que aí fora tem vida inteligente? - Olha para mim. Me consideras inteligente? Eliseu, aturdido, balbuciou um “sim”.
- Pois eu, filho meu, procedo de “aí fora”, como tu dizes. Eliseu, fora de prumo, caiu num profundo mutismo. Ele, como eu, amava Jesus de Nazaré. Havíamos visto o suficiente para não pôr em dúvida suas palavras. O tempo, é claro, continuaria ratificando essa convicção. Aproveitei o silêncio do meu companheiro e me concentrei em outra das insinuações do Mestre. - Teu reino... Onde está? No que consiste? Jesus estendeu os braços. Abriu as palmas das mãos e me olhou feliz. - Aqui mesmo. Depois, levantando o rosto até a congestionada e provocante “Via Láctea”, acrescentou: - Lá mesmo. - O universo é teu reino? - Não, querido Jasão – ponderou com aquela infinita paciência -, os universos têm seus próprios criadores. O meu é um deles... - Tem graça isso – reagiu o engenheiro. - Tu, Senhor, não és o único Deus... - Te repito uma vez mais: a pequena chama de teu entendimento acaba de ser acendida. Não pretendas iluminar com ela a totalidade do criado. Dá-te tempo, querido anjo... Contudo, Eliseu, de idéias fixas, comentou quase para si próprio: - Muitos Deuses!... E tu, és grande ou pequeno? O Mestre e eu trocamos um olhar. E, sem poder nos conter, acabamos na risada. - Nos reinos do meu Pai, querido “ajudante”, não há grandes nem pequenos... O amor não distingue. Não mede. - Senhor, tem uma coisa que eu não sei... - Enfim! - interrompeu-me maroto. - Enfim alguém reconhece que não sabe! - Essas criaturas, aquelas que dizes que também formam teu reino, são como nós? Precisam também ser lembradas por ti de quem é o Pai?
- Toda a criação vive para alcançar e conhecer Ab-bã. Essa é a única, a sublime, a grande meta... Alguns, como vós, estão ainda no princípio do princípio. Eles, não duvideis, estão atentos a este pequeno e perdido mundo. O que aqui está a ponto de acontecer os encherá de orgulho e esperança. Estranhas e misteriosas palavras. - E por que nós? - atacou de novo o incansável engenheiro. - Por que escolheste este remoto planeta? - Isso obedece aos desígnios do Pai... e aos meus, como Criador. No devido momento eu te falarei das desditas deste agitado e confuso mundo. Nada, na criação é fruto do acaso ou da improvisação... Lamentavelmente, meu irmão voltou a interrompê-lo, cortando o que, sem dúvida, podia ter sido uma revelação. Mas este que aqui escreve não se esqueceu disso. - Então, Senhor, tu andas por teu reino, por teu universo, revelando o Pai... Esse é o teu trabalho? A capacidade de assombro daquele Homem não parecia ter limites. Abriu os luminosos olhos e, comovido, respondeu: - Sim e não... Entrar e fazer parte da vida de minhas criaturas, como eu te disse, é uma exigência para todo Filho Criador. Antes desta encarnação, por exemplo, fui anjo. E também me submeti voluntariamente à natureza de outros seres a meu serviço. Outros seres que tu, agora, sequer imaginarias... - Tu foste um anjo? Mas, como? - Filho meu, podes explicar aos homens deste tempo de onde vens e como o fazes? Eliseu negou com a cabeça. - Muito bem, deixa que o conhecimento e a revelação cheguem no seu devido tempo. Desfruta da maravilhosa aventura da ascensão ao Pai. Nada ficará oculto... mas tem fé. Aguarda confiante. E Jesus colocou o dedo na ferida. - Dizei-me, acreditais no que digo?
Desta vez eu me juntei à contundente afirmação de Eliseu: Absolutamente, Senhor... - Então, deixai-me fazer. Meu Pai “sabe”. Não esqueçais disso... - Agora eu entendo – sussurrou “o ajudante” -, agora eu entendo. Apontou as neves do Hermon, a essa altura já sem contornos, e proclamou triunfante: - Chegou a tua hora. O Criador recuperou o que é seu. Agora sab quem é. Aqui e agora se fez o milagre. Jesus de Nazaré, o homem, está consciente, enfim, de sua verdadeira natureza divina... - Filho meu, és afortunado. É meu Pai quem fala por ti. As chamas oscilaram, tão eletrizadas como nossos corações. Meu irmão – não sei como – resumiu tudo com perfeição. E nós, pela generosidade do céu, fomos testemunhas. Testemunhas privilegiadas da “grande mudança”. Embora eu acredite já ter mencionado, será bom lembrar de novo, Naquele mês, justamente agosto do ano 25, na montanha santa, o Filho do Homem, arrastado pelo Destino, “acordou”. Minhas suspeitas se viram assim confirmadas. Jesus de Nazaré nasceu e viveu como um ser humano normal e comum. Durante anos - como reconheceria naquelas conversas noturnas – ele não soube quem era na realidade. Ele mesmo, antes de sua encarnação, se impôs esta condição. Só assim, com essa generosa renúncia, foi possível viver, sofrer e experimentar, de forma definitiva, a natureza humana. Foram anos turbulentos. Alguma coisa” férrea e invisível o impelia em direção ao Pai Azul. Mas, quem era Ele? Por que obedecia a esse irrefreável “puxão”? Por que seu coração se empenhava em falar às gentes sobre seu Pai Celestial E a luta – uma batalha ignorada igualmente pelos escritores sagrados () prolongou-se, feroz, até esse mês de elul quando o Mestre estava a ponto de completar 31 anos de idade... Santo Deus! Este “achado”, revalidado depois pelos inumeráveis prodígios, me manteve acordado durante muitas noites.
Estávamos na presença de um Deus! Contudo, por mais que eu o observasse e estudasse, não era capaz de distinguir a fronteira entre o puramente humano e o divino. Adianto isso e confesso humildemente: foi um inistério. Cientificamente não disponho de explicação alguma. Mas assim foi. Um Deus homem! Melhor dizendo, um Deus em busca do homem... Um Deus menino! Melhor dizendo, um Deus anulado. Imolado durante anos na espessa e incompetente natureza humana. A mais baixa da criação... Um Deus indefeso!  Melhor dizendo, um Deus desamparado... voluntariamente.  Enigmas demais para este pobre e inútil explorador. Outro dado mais, que ouvi de seus próprios lábios: justamente naqueles dias, durante a permanência no Hermon, uma vez assumida a genuína natureza divina, o Mestre poderia ter abandonado o mundo de sua encarnação. Ao levantar a insólita e desconhecida possibilidade, Eliseu, pasmo, perguntou. - O que dizes? Falas sério? Naturalmente. Apesar de suas constantes brincadeiras, o Mestre sempre falava sério. - Meu trabalho – afirmou – fora realizado. Cumpri a vontade do Pai. Agora conheço o homem. Se tivesse voltado ao meu lugar, teria recuperado a soberania que me pertence. Mas... Fez uma pausa. Olhou-nos com ternura e acrescentou: - Mas eu me submetera ao Pai... Eliseu, impaciente, cortou. - E o que disse o “Chefe?” O Galileu, desarmado, interrompeu o que ia dizer. E, entre risadas, perguntou: - O Chefe? - Sim – apertou o engenheiro apontando ao não menos atônito
firmamento -, o “Barbudo”... - O “Barbudo”? - O Pai. Tu me entendes, Senhor... Eu, imagino o Pai assim... com barba. - E por que com barba? - Se é o que dizes, Senhor, tem que ser muito velho... Jesus, maravilhosamente desconcertado, sorriu de leve. Foi um sorriso fugaz, mas pleno de amor e satisfação. - Vou te dizer uma coisa. Pouco importa se estás certo ou errado. Meu Pai fica encantado com esses retratos. - Muito bem, e o que Ele disse? - Que amanhã será outro dia..., querido “ajudante”. - Mas... Nisso concluiu a conversa. Jesus, dando-lhe uma piscadela, ficou em pé. - O “Barbudo” diz que é hora de descansar. Para falar dele precisamos de tempo. Muito tempo...
PRIMEIRA SEMANA NO HERMON Desilusão? Sim, em parte... Na manhã seguinte, quando acordei, o Mestre não se encontrava no mahaneh. Na frente da tenda, ele havia colocado uma das tigelas de madeira. Dentro, uns garranchos feitos com tição, diziam: “Estou com o Barbudo. Voltarei ao entardecer.” Logo nos acostumaríamos. Melhor dizendo, nos resignaríamos. A verdade é que, uma vez o tendo conhecido, era difícil viver sem sua companhia. Mas, repito, não tivemos escolha. Devíamos respeitá-lo e respeitar suas ausências. E assim aconteceu ao longo daquelas quatro
inesquecíveis semanas no Hermon. A maior parte das vezes ele desaparecia do acampamento ao amanhecer. Comia alguma coisa e, feliz, pegava o caminho que atravessava os bosques de cedros, rumo à neve. Pouco antes do pôr-do-sol, nós o víamos voltar e, sempre, sempre parecia alegre, renovado, quase transfigurado. Explicação? Ab-bã. Segundo Ele, esse tempo de íntima comunhão com o Pai era essencial. Em várias ocasiões, obedecendo a seus desejos, tivemos oportunidade de acompanhá-lo. E, como irei contando, descobrimos algumas facetas novas daquele Homem incrível. O prolongado descanso – por que negar isso? - foi providencial. Não só nos encheu de força e otimismo – vitais para os intensos dias que nos esperavam – como, acima de tudo, nos permitiu aprofundar no pensamento e nos objetivos do Filho do Homem. E, por tabela, nossos olhos se abriram, dissipando dúvidas e pontos obscuros. Hoje, à distância, agradecido e maravilhado, agradeço. Aquela aventura modificou nossas vidas, dando-lhes sentido. Quanto aprendemos! Não posso pensar em outra coisa: tudo foi delicada e magistralmente “programado”. Quanto ao dia-a-dia destes entusiasmados exploradores, foi simples e espartano. Quem aqui escreve ocupava-se em repassar as anotações. Junto com meu irmão cuidávamos dos afazeres domésticos, relaxávamos na “piscina” ou caminhando pelos arredores, sempre surpreendidos pela magnífica natureza. E cada dia, com o pôr-do-sol, o instante culminante: a volta de Jesus de Nazaré. Depois, terminada a janta, as ansiadas conversas... Aquela terça-feira, contudo, 21 de agosto, seria diferente. Vejamos por quê. Lembro que, depois de nos lavarmos e esfregar as panelas na
“piscina de gesso”, ao entrar de novo na tenda e me dispor a escrever, “alguma coisa” chamou minha atenção. Revisei anotações e memória e, de fato, percebi... Procurei Eliseu e, aturdido e alvoroçado, anunciei: - Sabe que dia é hoje? O engenheiro, brincalhão, respondeu: - De que tempo? Do nosso ou do atual? Eu lhe mostrei um dos pergaminhos e ele leu: - “Vinte e um de agosto”... E daí? - Você não lembra? Hoje é aniversário dEle. - Hoje? O rosto do meu amigo se iluminou. - O aniversário dEle... E faz... - Acho que trinta e um... Alguma idéia? Ficou pensativo. Depois, continuando com a faxina do lar, disse um lacônico “pode ser...”. Não consegui tirar dele nenhuma palavra mais. E, dando de ombros voltei às minhas ocupações. Para falar a verdade, não fiquei tranquilo. Conhecia Eliseu e sabia que sua quentíssima imaginação não descansaria... Logo depois, contudo, estas reflexões foram subitamente interrompidas. Ali estava outra vez. Saí intrigado. Meu irmão, em pé, com as mãos sobre os olhos, à guisa de viseira, explorava o lado oriental da meseta. Mas o sol, frontal e rasante, não nos deixava ver com clareza. - Está ouvindo? - perguntou o engenheiro baixinho. - Isto é coisa de louco... Concordei. Eram “disparos”! Autênticas rajadas! E o eco brincou nos cumes, assustando os inquilinos do cedro gigante. Não havia dúvida. Aquilo” era real.
Peguei a “vara de Moisés” e, decidido a esclarecer a irritante incógnita, fui em direção às “cascatas”. Eliseu, atrás de mim, continuou a cantilena. - Jasão, estamos tendo alucinações... Na última fila de cedros, paramos. E, escondidos, fomos descobrir a origem do incrível “matracar”? “Matracar”? Sim e, além disso, tossidas, assobios, roncos e um agudo e não menos desconcertante ruído. Alguma coisa assim como “he-he-he”... Eliseu e eu nos olhamos. Pouco faltou para que eu lhe desse com a vara na cabeça... - Alucinações...? Você é que está louco! - Mas o que é isso? Eu não soube responder. A verdade é que nunca tinha visto aquilo. Mais tarde, ao voltar ao Ravid e consultar “Papai Noel”, recebemos informação precisa. Os responsáveis pelos “disparos”, assobios, etc., eram na realidade uma pacífica “tribo” de damãos das rochas(1), assentada nos penhascos que emergiam na “piscina” e entre os córregos d’água. *1. O damão das rochas – hoje conhecido como daman do Cabo – pertence à família dos procávidos e à ordem dos hiracóideos. Três espécies são arborícolas e as duas restantes, estépicos. Trata-se de mamíferos de dimensões parecidas às do gato, de cabeça grande, sem pescoço perceptível, olhos e orelhas pequenos, boca fendida, patas curtas e sem rabo. Podem pesar entre três e quatro quilos, alcançando meio metro de comprimento no caso dos adultos. Dispõem de incisivos superiores enormes e os testículos, como no caso do elefante, permanecem sempre ocultos. (N. Do m.)
Simpáticos e muito sociáveis animaizinhos, relativamente parecidos com as lebres e coelhos, com um rosto “quase humano”, em contínuo exercício sobre as pedras. Alguma coisa assim como bolas de pêlos, marrons, negras e cor de laranja, agilíssimas, quase à margem da lei da gravidade. Em outras ocasiões, ao cruzarmos as montanhas de Neftali, ao oeste do Hule, voltamos a encontrá-los nas margens do
nahal Kedesh, entre as pedras de gesso cenozóico. Os judeus os chamavam tafna, em aramaico, ou safàn, em hebraico, por seu costume de viver quase ocultos (safirn: estar escondidos)(2). Para dizer a verdade, passamos muitos bons momentos observando-os. Jesus era o primeiro. E ali, diante de quarenta ou cinqüenta damãos, fomos descobrir outro costume peculiar do Mestre. Levado por seu inesgotável sentido de humor terminava sempre dando apelidos às coisas, animais ou pessoas. Assim, por exemplo, dependendo dos traços ou atitudes, alguns dos tafna foram “batizados” por Jesus como malkn (rei), behilu (pressa), haso (escuridão) ou emir (perfeito), entre outros. Quanto à explicação dos intensos “tiroteios”, ao olhar para o alto, entendemos tudo. Uma ave de rapina – possivelmente a mesma águia “perdizeira” do dia anterior – planava de novo sobre a família. Estava no alto, a uns quinhentos metros, e, contudo, foi rapidamente detectada pelos damãos “vigias”. A visão de nossos “vizinhos” era portentosa. E no mesmo instante soou o alarme, em forma de gritos curtos, secos e estridentes, idênticos a disparos. Alguns dos machos uniram-se apressados aos “sentinelas” e, levantando-se sobre as patas traseiras -, procuraram a silhueta da águia, acompanhando as “rajadas” com assobios, ronquinhos e aquele inconfundível e desconcertante “he-he he”. As fêmeas, com a numerosa prole, desapareceram de imediato nas fissuras entre as pedras. E ali ficaram os inquietos e desconfiados tafna de olho nas evoluções da “perdizeira”. *2. Durante séculos, osjudeus associaram o nome safan ao coelho e à lebre, confundindo os damãos com aqueles. O erro, parece, deveu-se aos navegantes fenícios, que, ao desembarcar na atual Espanha, ficaram assombrados com a abundância de coelhos. Chamaram o dito país “I-ha-sefanim” (terra de damãos). Daí nasceria “Hispania”. Como se sabe, nos tempos de Jesus, o coelho não existia na Palestina. (N. Do m.)
Minutos depois, quando o “tiroteio” se intensificou. E imediatamente, a colônia inteira sumiu. A águia, frustrada, dirigiu-se então ao bosquezinho de carvalhos, procurando um almoço menos esquivo. A enorme e silenciosa sombra “varreu” a ramagem e uma desorganizada esquadrilha de pássaros de todo tipo – ferreirinhos de Orfeu, de
Upcher, pássaros-torcicolos com traje de camuflagem, calhandras de peito negro, pombos vermelhos, “gorriões-chorões” de rabo branco, “roqueiros” de pescoços azuis e “carpinteiros” sírios uniformizados de branco e preto – empreendeu uma escandalosa e desabalada fuga em direção ao cedro gigante e bosques próximos. A “perdizeira” não perdeu um segundo. E num requebro impecável apanhou, em pleno ar, uma das calhandras “laponas”, atravessando-a com as afiadas garras. A vítima só teve tempo de emitir um gritinho, parecido ao tilintar de um sino. Segundos depois, quando a águia se afastou, o lugar recuperou seu aspecto habitual. E os damãos timidamente, ocuparam posições, desfrutando o sol e suas contínuas brincadeiras. O dia, lenta e aprazivelmente, foi se extinguindo. Olhos e corações continuaram fixos na muralha de cedros que nos isolava e protegia. O Mestre não devia demorar... Por volta da “décima” (quatro horas), pontual, Jesus de Nazaré rompeu no acampamento. Nós o escutamos no meio da mata cerrada quando atravessava as últimas fileiras de cedros. Vinha cantando. E cantava alto. “Eu Te agradeço, Pai meu, de todo coração... Cantarei tuas maravilhas...” A princípio não tive certeza. Parecia um salmo. Ao reunir-se com estes boquiabertos exploradores, soltou a panela que trazia e, sorrindo, levantou braços e rosto ao azul do céu, rematando o canto com voz grave e equilibrada: “Escuta minha lei, povo meu, dá teu ouvido às palavras de minha música... Vou abri-la em parábolas...” Desta vez o identifiquei. Salmo 78. Eliseu, curioso, acercou-se do recipiente de ferro. - Neve! De fato, o Mestre, aproveitara a visita ao cume para recolher o imaculado e sempre gratificante carregamento. Esta noite, sobretudo, isso seria particularmente útil. - Presente do Chefe – interveio o Galileu, referindo-se à neve. Hoje, queridos anjos, é um dia assinalado... Meu irmão e eu nos olhamos, e acreditamos ter captado o sentido
das enigmáticas palavras. Então, desolado, fiz um sinal ao engenheiro. E este, compreendendo, respondeu com um rápido sorriso e uma piscadela. Eu devia ter imaginado que Eliseu maquinava alguma coisa. Naturalmente, não havia esquecido o aniversário do Rabi. - O que andais tramando? Meu companheiro, pego em flagrante, escorregou como pôde. - Nada, Senhor, coisas de anjos... O Mestre, alegre, indicou a direção das “cascatas”, animando-nos a segui-lo. Era a hora do banho. Uma hora depois, o imprevisível Jesus voltou a nos surpreender. Nessa ocasião, contudo, o fato nos encheu de vergonha. Tinha sido uma falha, sim. Mas aprendemos a lição. Quando nos vestíamos, dispondo-nos a voltar ao mahaneh, o Galileu sempre discreto e delicado, pediu que eu fosse na frente. Entendi. Por alguma razão, queria falar a sós com meu companheiro. Minutos depois, enquanto eu mexia no fogo, avivando-o, eu os vi aparecer na esplanada. Caminhavam devagar. Ao chegar à altura do dólmen, pararam. Só o Mestre falava. Eliseu, de cabeça baixa, se limitava a escutar, assentindo uma vez ou outra. Intuí alguma coisa. A atitude do meu irmão não era normal. O que acontecia ali? Por último, Jesus o abraçou. Avançaram e, ao reunir-se com este intrigado explorador, cada um foi para suas respectivas tendas. Eliseu nem olhou para mim. Estava pálido. Pouco faltou para que eu fosse atrás dele, mas me contive. O assunto, evidentemente, não era da minha conta. Ou era? - Que diabos acontecia? Logo depois, Eliseu voltou. Trazia uma tigela nas mãos. Eu a reconheci no ato. Era a tigela de madeira na qual o Rabi havia escrito a breve mensagem: “ Estou com o Barbudo. Volto ao amanhecer.” Eu continuei em
péssimo estado. A verdade é que, depois da leitura do “aviso”, não prestei maior atenção à tal tigela. Simplesmente, a perdi de vista. E um súbito pensamento me desconcertou ainda mais: Por que Eliseu a guardou em nossa tenda? O engenheiro continuou mudo, evitando meu olhar. Eu o notei abatido. Desmoralizado. E fiquei assustado. Alguma coisa grave, sem dúvida, tinha acabado de acontecer. Jesus ficou na frente do fogão. Apresentava um rosto sereno e relaxado, como se nada tivesse acontecido. Aquela atitude, francamente, acabou me confundindo de vez. Eu não entendia mais nada... Em seguida, entregando-lhe a tigelinha de sopa, Eliseu, com a voz quebrada, desculpou-se: - Te peço perdão, Senhor. Isso não se repetirá... O Mestre pegou a tigela e, aludindo à inscrição interna, amenizou o assunto, tratando de animar o decaído engenheiro. - Compreende, meu queridíssimo filho. Vós tendes umas normas. Meu Pai e eu, outras... Então, aproximando-se do rapaz, pousou as mãos sobre seus ombros e, sacudindo-o carinhosamente, gritou: - Acorda! Não é tão importante assim! Eliseu, levantando-se com dificuldade, mexeu a cabeça afirmativamente e respondeu com um arremedo de sorriso. - Assim é melhor... E agora escuta. Escutai os dois... Pegou os patos. Sentou-se diante da fogueira e, entregando um deles ao meu companheiro, sugeriu-lhe que o depenasse. Ele se pôs a fazer o mesmo com o seu pato. E, enquanto limpava a ave, acabou nos revelando a coisa de especial interesse, que iluminou a mente deste confuso e confundido explorador. Uma coisa que tampouco figura nos Evangelhos que, não obstante, repito, esclarecia várias e importantes incógnitas relacionadas com a encarnação do Filho do Homem.
Incógnitas que, se tivessem sido resolvidas pelos escritores sagrados (?), teriam evitado muita confusão e infinitos rios de tinta... Segundo suas palavras, de acordo com os planos divinos, o fato físico de sua experiência humana se achava “limitado” por uma série de “condições”, absolutamente invioláveis. Essas “proibições” autoimpostas pelo próprio Jesus de Nazaré durante sua permanência no Hermon – acabavam sendo de enorme bom senso. Em primeiro lugar, o Homem-Deus não deveria deixar nada escrito. Escritos – bem entendido – de seu próprio punho. De nenhum tipo. Tinha razão. Se o Mestre tivesse posto no papel sua doutrina e filosofia, os seguidores, muito provavelmente, teriam convertido semelhante tesouro em “artigo” de veneração e, o que podia ser ainda mais lamentável, em motivo de permanentes disputas e interpretações de todo tipo. Nesse instante, fez-se a luz. Olhei para meu irmão e, envergonhado, baixei os olhos. Compreendi e, de certo modo, o justifiquei. Fora uma travessura. Um impulso infantil. Eliseu passando por cima das rígidas normas do Cavalo de Tróia, escondera a tigela de madeira, desejoso de conservar a pequena-grande “mensagem”, com a letra do Mestre. Afinal, ele era o “inventor” do qualificativo (o “Barbudo”) que tanto agradara ao Mestre. Quanto à maneira como Ele descobrira tudo, depois do que eu havia visto, nem quis averiguar. Anotei bem. Eliseu não era o único tentado a fazer uma coisa assim. Em segundo lugar – movido por esse mesmo bom senso -, o Filho do Homem tomaria outra decisão não menos importante: sua imagem, sua figura não poderia ser desenhada por mãos humanas. Curioso! Quando alguns, ao longo de sua vida pública, tentaram “retratá-lo” Ele sempre foi contra, provocando o desconcerto de íntimos e estranhos: Na minha opinião, isso também tinha sua lógica. No fundo, essas pinturas só teriam causado problemas. Em particular, de índole idólatra. “... Não poderia ser desenhada por mãos humanas.” Ao pronunciar
esta frase, Jesus de Nazaré interrompeu a limpeza do pato. Traspassou-me com aqueles olhos rasgados, incisivos e limpos como a atmosfera do Hermon e, dando uma piscadela de cumplicidade, prosseguiu. Meu coração disparou. Entendi perfeitamente. Sua imagem, sim, ficaria neste mundo, mas “confeccionada” por outras mãos. Como ele dizia com freqüência, “quem tiver ouvidos...” A terceira autolimitação – de maior peso, se assim podemos dizer – nos deixou perplexos. Alguma vez pensei nisso mas, francamente, não imaginei a que obedecia seu firme e decidido celibato. Muito bem – de acordo ainda com suas palavras -, a decisão de não se casar e não deixar descendência fazia parte também da rígida “norma” (?) divina. Isso – disse – era o conselho de seu Pai. E como Criador ele não podia infringir a lei. Uma lei, obviamente, que fugia à nossa compreensão. Mas aceitávamos isso. Não havia, pois, “razões” obscuras, nem muito menos religiosas, em tal atitude. Simplesmente isso era o disposto antes até de sua encarnação. Essa era a “ordem” estabelecida pelo Alto. E não lhe faltava razão. Se um escrito de seu punho e letra, ou então um desenho daquele belo rosto teriam provocado autênticas comoções no futuro, o que se supõe que teria acontecido com filhos, netos, etc., do Filho do Deus? Claro que não deixei passar essa excelente ocasião e perguntei: - Senhor, isso significa que preferes o celibato ao casamento? Jesus, lendo meu coração, apressou-se a me corrigir. - Sabes que eu não disse isso. E sei igualmente por que perguntas isso. Pois anota bem: o casamento é tão digno quanto a decisão de permanecer solteiro. No reino do meu Pai não existem casamentos assim como vós os entendeis. Mas isso agora não tem importância. Aqui, na fraternidade humana, tanto um como outro têm seu papel e justificação. Mas, cuidado, meu querido “mensageiro”, transmite bem has palavras... Nenhum solteiro deverá se considerar superior nem muito menos capacitado na hora de pregar ou praticar minha mensagem. E acrescentou direto e contundente: “... Procurar o Barbudo e fazer sua vontade não depende da
categoria social, de riquezas e, muito menos, do estado civil. E te direi mais: nem sequer está sujeito à inteligência... O grande segredo da existência humana, descobrir o Chefe, só pode ser desvelado com a vontade. Se desejas, só se o desejas, encontrarás o Pai e terás triunfado na vida.” O Mestre então, furando o pato com um pedaço de pau, colocou-o no fogo,flambando-o e purificando-o. E assim ficou alguns instantes, com o olhar fixo nas chamas. Depois, como se acordasse, proclamou solene: - Queridos filhos... Vedes as línguas de fogo? Pois isso, de certo modo, é o trabalho que espera o Filho do Homem... Eliseu, refeito, o interrompeu, alegrando o coração do Mestre – para não dizer o deste explorador. Ambos, acredito, sentíamos falta de suas brincadeiras. - Bombeiro! Pensas exercer como a militia vigilum? Espantado, Jesus começou a rir. E quase queimou o pato. Meu irmão, ao usar a expressão latina, referia-se ao corpo de bombeiros de Roma, fundado por Augusto no ano 22 antes de Cristo, comandado desde 6 d.C. Por um praefectum vigilum, e que ficaria famoso em todo o império. Quando me pus a rir também, junto com o Galileu, meu companheiro nos observou perplexo. Finalmente, feliz, intuindo que as risadas eram muito mais que uma conseqüência de suas palavras, espontâneo como sempre, soltou a ave e foi se ajoelhar diante do alegre Mestre. Sorriu e, sem aviso prévio, abraçou-se a Ele. E assim ficou vários minutos. Comovido, Jesus de Nazaré fez um esforço. Muito leve, é verdade, e um par de lágrimas acabou por traí-lo. E elas desceram soltas pelo rosto. - O pato, Senhor! Meu grito alertou o Mestre. De fato a pobre ave ardia por todos os lados. - Será possível?... O Galileu, desconcertado, tentou apagar as chamas. E conseguiu,
claro. Mas o coitado do pato, negro e esfumaçado, estava nas últimas. - Será possível? - Repetiu Jesus contemplando o jantar carbonizado. - Meus Deus, como posso ser tão atrapalhado? Eliseu, desconsolado, pediu desculpas. - Perdão, Senhor, perdão! O Mestre caiu de novo na gargalhada e exigiu: - Não, por favor, chega de perdão... Agora só nos resta um pato! Assim era aquele maravilhoso Homem... Quando os ânimos se acalmaram, o Rabi, absolutamente perdido, perguntou: - Onde eu estava? Eu quis responder, mas o riso, incontrolável, me pegou de novo. Eliseu então, muito sério, tratou de socorrer Jesus, esclarecendo: - Falavas dos bombeiros... Impossível. As gargalhadas, outra vez, tomaram conta do mahaneh, chegando bem claras até um Hermon igualmente avermelhado. - Queridos filhos – respirou por fim o Mestre -, sabeis o que há de mais belo e reconfortante no riso? Eliseu contemplou o pobre pato, mas, prudente, ficou em silêncio. ... O que há de mais atraente no senso de humor – continuou o Mestre – é que só é praticado por gente segura e confiante. E dirigindo-se ao engenheiro arrematou: - Não mudes nunca, meu querido anjo... “destroça-patos”... Era inútil. O Filho do Homem, quando se propunha, era pior que Eliseu. Não foi fácil segurar o novo ataque de risadas. E desde aquela tarde, meu irmão receberia o apelido de “destroça-patos”. Naturalmente, soube absorver a brincadeira do Galileu e aceitou o apelido com espírito esportivo. - Sabeis que o humor – revelou Jesus -, é uma invenção do Pai? - Quer dizer então – proclamou Eliseu com os olhos bem abertos -,
que o Chefe ri... - Sobretudo quando o homem pensa... - Senhor – entrei eu na conversa -, porque dizes que teu trabalho é semelhante ao trabalho das línguas de fogo? O Mestre agradeceu a menção do assunto. De novo ficou sério e disse: - O Filho do Homem também veio para curar a memória humana. Agora, não por vossa culpa, ela está doente. Dominada pela escuridão. Sujeita ao erro e ao desespero. Eu sou o fogo que clarifica. Eu vos trago a esperança. Eu vos anuncio que, apesar das aparências, tudo está por estrear. Deus, o Pai, está por fazer “estréia”. Fez uma pausa e, apontando o perfil escarlate dos bosques, nos deixou novamente em suspense: - E falando de estrear... o que tem para jantar Hoje, queridos anjos, como eu vos disse, é um dia especial... Ataquemos... O pato é nosso! Depois continuaremos com o “Barbudo”. Pato assado. O Mestre esmerou-se. Com o apoio do ressuscitado “ajudante” deixou no ponto um suculento molho à base de cebola ralada, alho esmagado, duas ou três pitadas de gengibre, muita pimenta, sal e azeite. E sem parar de cantarolar, pincelou o pato por dentro e por fora, dourando-o devagar. Foi uma glória aquele jantar. Depois, fruta picada, ligeiramente regada com arac e vinho gelado, cuidadosamente enterrado na neve do Hermon. No final, um brinde. O Mestre levantou a humilde taça de madeira. Olhou de novo as estrelas e, descendo feliz aos nossos corações, pronunciou uma de suas palavras favoritas: - Lehaim! - Lehaim! - fizemos o coro em uníssono. - Pela vida! - repetiu com voz imperativa. Suponho que era o momento esperado por Eliseu. Ele levantou-se e, em silêncio, perdeu-se no interior da tenda.
Jesus, impassível, continuou com os olhos ancorados no tumultuado firmamento. Vênus, Marte e Regulus, quase alinhados, brilharam com mais força. Pareciam cúmplices. O Halley, agora mais ao noroeste, também foi testemunha da seguinte, emocionante... e absurda cena. Eliseu reapareceu. Plantou-se diante do Rabi e olhou para ele sorridente. Tinha as mãos nas costas. Depois, procurando-me com os olhos, intensificou o sorriso. Achei que tinha entendido. Mas afinal o que ele escondia? Jesus o observou curioso. Desviou os olhos para os lados deste que aqui escreve e interrogou-me sem palavras. Eu encolhi os ombros. A verdade é que estava por fora de tudo aquilo. Finalmente, cerimonioso, o engenheiro foi mostrar-lhe o que tinha ido buscar. E, ao entregar-lhe, exclamou devagar e solene: - Felicidades! Um presente de outro mundo para o “gordo” de todos os mundos... O Mestre, perplexo, não soube o que dizer. Meu irmão, sem querer, errara uma das palavras. Em lugar de utilizar o aramaico mare (Senhor) pronunciou meri, que em hebraico significa “encebado” ou “gordo”. E acabou arruinando a bem estudada frase. - Mare, eu o corrigi aturdido. Mas o voluntarioso engenheiro, que, parece, havia ensaiado um pouco, não percebeu o lapso e continuou. - Sim, isso, meri... Um presente de outro mundo para o “gordo” de todos os mundos... O Mestre, entendendo a troca de letras, sorriu benevolente, pegando o broto de oliveira. Mas, não podendo resistir à tentação, voltou a usar aquele interminável senso de humor, respondendo: - Obrigado, obrigado, minha querida “rainha!”. Não consegui me controlar e cai na gargalhada. Acompanhando o involuntário jogo de Eliseu, o Rabi alterara o termo mal’áh, (anjo), trocando-o por mal... kah (rainha). Meu irmão, contudo, feliz com o presente, não percebeu o duplo
sentido. Jesus acabou se levantando e, depois de observar o broto guardado com tanto zelo, colocou a mão direita sobre o ombro do meu amigo, exclamando: - Um presente de outro mundo para o Senhor de todos os mundos. Não podias ter definido melhor... E acrescentou agradecido: - Vamos plantá-lo como símbolo de paz... A paz interior, a mais difícil... Em seguida entrou na tenda, guardando o broto que nos entregara o general Curtiss. Quando ficamos sozinhos, dei-lhe os parabéns. Foi uma idéia excelente. No fundo, o melhor dos destinos para a humilde oliveira. Algum tempo depois, aproveitando uma “especialíssima circunstância”, o Rabi cumpriria sua palavra, plantando o broto em outro “lugar não menos íntimo”. E ali cresceu. E ali se encontra, embora muito poucos conheçam sua mágica e verdadeira história. Mas disso falarei em outro momento. Aquela noite, verdadeiramente, seria histórica e inesquecível. Também o Filho do Homem reservava uma surpresa. Insinuou alguma coisa ao chegar ao acampamento, mas, sinceramente, depois do incidente da tigela, o estrago do pato e a entrega do presente, nós tínhamos nos esquecido por completo. O Mestre aproximou-se das chamas. Nunca esquecerei sua expressão. Ele nos fitou em silêncio. Estava sério, mas, de novo, os olhos falaram. Foi um “discurso” breve e eloqüente. Poucas vezes, até aquele instante, eu tinha sentido em seu olhar tanto amor e compreensão. Foi como uma maré. Intensa. Arrasadora. E nos invadiu, deixando nossos cabelos em pé. Não mexemos um músculo. Alguma coisa estava para acontecer. Eu sabia. Podia até apalpar aquilo... Jesus pestanejou. Relaxou os corações com um amplo e longo sorriso e, docemente, foi nos erguendo até as estrelas. - Hoje, ao completar meus 31 anos nesta forma humana, vou pedir
ao Pai que os converta em meus primeiros discípulos... E quero fazêlo solenemente... Como convém aos autênticos embaixadores e mensageiros... Levantou os braços e foi depositar as mãos sobre nossas cabeças. Foi instantâneo. Não sei como descrever... Uma espécie de fogo frio, uma chama gelada, percorreu meu corpo em décimos de segundo. Aquela mão era e não era humana... Guardou silêncio. Depois, com uma voz forte, prosseguiu: - Pai! Eles são os primeiros! Protege-os! Guia-os! Dá-lhes tua benção!... Então, intensificando a pressão das mãos, acrescentou solene e vibrante: - Eles, ao procurar-me, já te encontraram! Bendito sejas, Ab-bã, meu querido “papai”! De novo o silêncio. O Mestre, retirando as mãos, nos atravessou com os olhos de lado a lado. Aqueles olhos eram e não eram humanos... - Meus queridos anjos... Bem-vindos! Bem-vindos à vida! Beme vindos ao reino! E lembrai sempre: esta “viagem” ao Pai não tem volta. Em seguida, abraçou-nos um por um. Foi um abraço sólido. Inquestionável. Prolongado. Um abraço que ratificou a inesperada e cálida “consagração”. Seus primeiros embaixadores! E por que não? Éramos observadores, sim, mas observadores “presos” por um Deus. Que podíamos fazer? Eu, pessoalmente, fiquei grato e feliz. Meu trabalho continuaria o mesmo, analisando e avaliando. Ficaria sempre na sombra, a certa distância, mas, no íntimo, compartilhando e aprendendo. As normas da operação? Sim, foram respeitadas. Palavras e fatos figuram neste diário com escrupulosa objetividade. Quanto aos sentimentosigualmente proibidos pelo Cavalo de Tróia -, continuaram seu curso inevitável: simplesmente o amamos. E jamais me senti culpado por isso. Como assinalou o engenheiro, à merda Curtiss e sua gente!
Jesus de Nazaré encheu de novo as taças e, entusiasmado, gritou: - Pelo “Barbudo”! - Pelo Ab-bã! Jogou lenha ao fogo e, esfregando as mãos, sentou-se diante das surpreendidas chamas. Ele as viu dançar. Crepitar. Depois entrou no assunto. Em seu assunto favorito: o Pai. E aqueles perplexos exploradores continuaram aprendendo. - Onde estávamos? Eliseu, se adiantando, refrescou-lhe a memória. - Dizias que teu trabalho fora realizado. Dizias que agora conheces o homem, que poderias voltar, se assim quisesses, e assumir a soberania de teu universo... Jesus assentiu com a cabeça. - Dizias também que, contudo, havias optado por te submeter à vontade do Chefe... E eu te perguntei: e o que ele disse? - Em palavras simples: que continuasse convosco, que cumprisse o segundo grande objetivo desta experiência humana... Que vos falasse dEle! Que acendesse a luz da verdade! Este explorador, mais pragmático e prosaico que o engenheiro, interveio imediatamente: - Senhor, se vais nos falar do Pai, será bom que o definas, que nos digas o que ou quem ele é... E tentando me justificar, acrescentei: - Não esqueças que, no fundo, somos homens céticos... Jesus sorriu com malícia, e perguntou: - Céticos? Aí ele me pegou. Depois do que vimos na experiência anterior, depois de termos sido testemunhas de sua ressurreição, a definição, sem dúvida, não era correta. Retifiquei. - Ignorantes.
- Isso sim, querido Jasão... Mas não te alarmes. Ignorância e ceticismo têm jeito. Lembra: para dar sentido à tua vida, para saber quem és, que fazes aqui e o que te aguarda depois da morte, só precisas de vontade. Se queres, podes “saber”. E agora vamos à tua pergunta. Meditou um pouco. Tinha imaginado que não era fácil. Eu errara. A definição do Pai era quase impossível. Impossível para as baixíssimas possibilidades de percepção humana. - Lembrai sempre – começou com um preâmbulo decisivo – que, no futuro, quando chegar a minha hora, falarei como um educador. Esse será meu papel. Por isso, tomai minhas palavras como uma aproximação à realidade. Procurou nossa compreensão e continuou. - Por que digo isso? Simplesmente porque o finito, vós, não podeis entender, abarcar ou fazer seu o infinito. E isso é Ab-bã: uma luz, uma presença espiritual, uma realidade infinita que, por ora, não está ao alcance das criaturas materiais. Sorriu e, otimista, completou: - Mas vai estar. - Uma luz! - comentou meu companheiro intrigado. - Uma energia que, obviamente, pensa! - Obviamente... - Que pena! - lamentou o engenheiro... O assunto do “Barbudo” me agradava... O Mestre negou com a cabeça. E corrigiu Eliseu. - Não, meu querido anjo. Isso está bem. Por que achas que utilizo a palavra “Pai”? Não esperou resposta. - Porque ele é. O Chefe, como tu o chamas, e muito acertadamente, claro que não tem um corpo físico e material. Mas é uma pessoa. E um Ab-bã, no sentido literal da expressão. Ele é o princípio, o gerador, a fonte que sustenta a Criação... Podeis imaginá-lo como quiserdes. Podeis defini-lo como gostardes.
E eu vos digo que sempre ficareis aquém... - Uma pessoa? - entrei eu no assunto. - Não entendo. Uma pessoa sem corpo... Parece que o Mestre esperava aquela dúvida. - É lógico que te perguntes isso. Minhas pequenas e humildes criaturas do tempo e do espaço, as mais limitadas, têm dificuldade para imaginar uma personalidade que careça de um suporte físico visível. Mas eu vos digo que a personalidade, incluindo vosso caso, é independente da matéria onde habita. Mais adiante, quando seguirdes ascendendo até o Pai, tua personalidade, Jasão, continuará viva. Mais viva do que nunca, apesar de ter perdido o corpo que agora tens. Serão tua mente e teu espírito que irão forjar e dominar essa personalidade. Na verdade, isso está ocorrendo neste instante. Sorriu de leve e nos fez outra revelação. - É cedo para que o entendais na plenitude, mas em verdade vos digo que a personalidade humana não é outra coisa senão a sombra do Pai projetada nos universos. O problema, insisto, está em vossa finitude. Estudando essa “sombra” jamais chegareis a descobrir o “proprietário” e causador da mesma. Ficamos em silêncio, pensativos. Tinha razão. Se alguém pretendesse estudar um ser humano através de sua sombra, simplesmente perderia seu tempo... - Mas não desanimeis. Tudo em seu momento. Chegará o dia em que estareis na presença de Ab-bã. Então, só então, começareis a compreender e a compreendê-lo. Se Ele não tivesse essa personalidade, o grande objetivo de todos os seres vivos seria estéril. E sua personalidade, apesar da infinitude, que faz o “milagre”. E arrematou, desejando que entendêssemos. - Assim como um pai e um filho se amam e se compreendem, da mesma forma acontece com o grande Pai e todos os seus filhos... Ele é pessoa. Vós sois pessoas. Mas, como vos digo, deixai que se cumpram os desígnios de Ab-bã.
- Seus desígnios? - clamou Eliseu contrariado. - E por que não fala com mais clareza? O que ele quer? - Em primeiro lugar – replicou o Mestre imediatamente -, que saibas que ele existe. Para isso estou aqui. Para revelar ao mundo que Abbã não é um belo sonho de filosofia. Existe! Fez uma pausa e a palavra “existe” ficou flutuando, contundente, sólida, inquestionável. Levantou a voz e repetiu, fazendo retroceder qualquer vestígio de ceticismo: - Existe! A essa altura dos fatos, uma coisa estava muito clara para estes exploradores: Jesus de Nazaré jamais mentia ou inventava. E, embora fosse difícil de entender, nós aceitamos o fato. - Em segundo lugar, o Pai, teu Pai, deseja que o procures, que o encontres... - Como, Senhor? Tu mesmo acabas de reconhecer... Somos finitos, limitados, os últimos dos últimos... Parece que o Chefe descuidou-se ao pensar em nós... O Mestre acolheu com doçura a brincadeira. - Não, querido “ajudante”. No reino de Ab-bã não existem descuidos. Tudo é minuciosamente planejado. E, embora não acredites, vós, os  “destroça-patos”, sois e continuareis sendo a admiração dos universos... - Nós? - Imaginas por quê? - Nem idéia... - Vós, o mais denso e limitado, possuis alguma coisa da qual não desfrutam outras criaturas, criadas na perfeição: tendes a maravilhosa virtude de ascender e progredir..., sim, de saber, sem ter visto. Tendes a invejável capacidade de acreditar, de confiar...,  sem provas. - Exageras... O Galileu negou com a cabeça. - Não, não exagero. E esse é o “como”. Essa é a resposta à tua
pergunta. Por ora, só podes buscar o Pai com a ajuda da confiança. Esse é o plano. Isso é o estabelecido. Progredir. Progredir. Progredir... - Aqui? Neste lixão? - Aqui, neste atormentado mundo – corrigiu -, e naqueles que te reservo depois e sempre... Já me ouviste. Para chegar à presença de Ab-bã, primeiro deves percorrer um longo caminho, muito longo. Esse é o objetivo. E a única razão da tua existência: uma aventura fascinante... - um longo caminho... Muitos, em nosso mundo, pensam que o “barbudo” os espera do outro lado da morte. Jesus, alegre, ouviu os argumentos de meu amigo. - Dizem e acreditam que os justos serão recebidos de imediato em sua presença. Tu, por outro lado, falas de um longo caminho... Naquele instante – coincidência? -, uma enorme e bela mariposa quadriculada em branco e preto, uma Enreia oerteni, atraída pela luz da fogueira, foi pousar na ponta do galho com o qual brincava o Mestre. E Jesus, aludindo ao belo espécime, respondeu assim: - Dize-me, querido anjo, achas que essa criatura está em condições de compreender que um Deus, seu Deus, a está sustentando no ar? - Não, Senhor. A distância é grande demais... Então, agitando o pedaço de pau, a obrigou a voar. - Tu o disseste. A distância é grande demais. Pois bem, aquela que agora te separa de Ab-bã é infinitamente maior. Se um mortal fosse transportado, depois da morte, à presença do Pai, em verdade te digo, reagiria como essa mariposa. Não saberia, não teria consciência de onde está nem de quem a sustenta no ar... E acrescentou feliz. - Felizmente, vós sois muito mais que uma mariposa. E podeis estar seguros do que digo: chegará o dia, quando tiverdes crescido espiritualmente, quando tiverdes progredido, em que vereis o Chefe e compreendereis. Meu irmão, sempre espontâneo, exclamou:
- Mas é tão grande? Jesus se soltou. - Não existem palavras, querido “ajudante”. Ele sustenta e contempla os universos na palma de sua mão. É todo presente, mas está no futuro. É o único santo, porque é perfeito. E indivisível e, não obstante, se multiplica sem parar. Ele te imagina e apareces... Eliseu negou com a cabeça. E comentou quase para si mesmo: Bonito, muito bonito, mas a ciência... O Mestre, percebendo em que direção ia Eliseu, saiu na frente com contundência: - Não te equivoques. Nem a ciência, nem a razão, nem mesmo a filosofia poderão demonstrar, jamais, a existência do Pai. O engenheiro o olhou perplexo. E o Rabi, penetrando sem piedade em seus pensamentos, sentenciou: - Teu Chefe é mais esperto, imaginativo e amoroso do que supões. Ele não está à mercê de hipóteses ou postulados. Ele só está à mercê do coração... Então, apontando as evoluções da Erpreia em seu vôo, afirmou: - Aí levais vantagem. Vós, sim, podeis experimentar Deus... Ele nos olhou com intensidade e insistiu: - Eu disse experimentar, não demonstrar... Nessa busca, quando o homem persegue e anseia por Deus, sua alma, ao encontrá-lo, nota, percebe, experimenta sua presença. Isso é suficiente..., por ora. - Experimentar o Pai? E como se faz isso, como se sabe isso? - Não escutaste minhas palavras, querido “destroça-patos”. Quando um ser humano “toca” o Pai, quando Ele te “toca”, a alma fica em pé. É uma sensação única. Clamorosa. E uma magnífica segurança te acompanha por toda a vida... Mas esse benéfico sentimento é pessoal e intransferível. É difícil de explicar, mas tão real como a visita da ternura, da compaixão ou da alegria. E desviando o olhar na direção deste atento explorador, ele me preveniu:
- Por isso, Jasão, porque se trata sempre de uma experiência, de um sentimento pessoal, não escrevas para convencer. Faça-o para insinuar. Para ajudar. Para iluminar... Mensagem recebida. ... Não “vendas”, querido anjo. Não grites o nome do Pai. Não obrigues. Não discutas. Cada um, segundo o estabelecido, receberá o “toque” em seu devido tempo. Não há pressa. Ab-bã sabe. Ab-bã reparte. - Um Deus sem pressa – desafiou o “destroça-patos”. - Eu gosto disso. - Um Deus-amor que já está em ti... E o Mestre, dirigindo o galho na direção de Eliseu, foi tocar seu peito. O engenheiro, surpreso, baixou a cabeça, observando o ponto assinalado pelo Galileu. Depois – eu nunca soube se foi brincadeira ou coisa séria -, exclamou: - O Chefão está aqui?... E eu com estes pêlos! - Não acreditas em mim? Eliseu, incapaz de uma mentira ou dissimulação, negou com a cabeça e disse: - Tu disseste, Mestre. Somos matéria finita... O Pai, se quisesse entrar em mim, se sentiria muito incômodo. Jesus o acariciou com o olhar. Meu amigo era como uma criança. - Ouvi atentamente. Escutai os dois. O que agora vos anuncio fará parte da mensagem quando chegar a minha hora. O rosto, iluminado pela fogueira, tomou um ar solene. E tive a intuição de que se preparava para confessar alguma coisa transcendental. Não errei. - Dizei-me, alguma vez menti para vós? O “não” foi instantâneo. - Muito bem, eu vos digo que o Pai já está em vós... - Sim – concordei -, faz um momento que o invocaste. Foste muito generoso ao nos converter em teus embaixadores.
- Não – ele se apressou em corrigir -, isso só foi uma consagração formal. Mas Ab-bã já estava em vossas mentes. - Claro – aproveitou Eliseu -, muitas vezes pensamos nEle. O Mestre voltou a negar com a cabeça. - Não compreendeis. Eu vos estou falando de um dos grandes mistérios da Criação. O Pai, em sua infinita misericórdia, em seu indescritível amor, há muito instalou-se em vós... Ao notar nossa confusão, aprofundou. - Cada criatura do tempo e do espaço recebe uma diminuta fração da essência divina. O Pai, como eu vos disse, embora único e indivisível, se fraciona e vos procura. Instala-se em cada um de vós, os menores do reino. - Trata-se de uma parábola? - Não, Jasão, isto é real. E não me perguntes como ele faz isso porque ninguém sabe. É uma de suas grandes prerrogativas. Ele, assim, “sabe”. Ele, assim, “está.” Ele, assim, se comunica com a criação e se faz uno com cada mortal inteligente. - Mas como é isso? Como um Deus pode habitar no meu interior? O Mestre não respondeu às lógicas questões formuladas pelo meu irmão. Limitou-se a revolver as brasas, levantando um fugaz crepitar. Depois, atraindo nossa atenção, continuou: - Vedes as centelhas? Pois na verdade eu vos digo, alguma coisa semelhante acontece com o Pai. Uma “centelha” divina, uma parte dEle mesmo voa até cada criatura e a torna imortal. Suponho que ele tenha conseguido perceber a perplexidade daqueles exploradores. Sorriu amorosamente e exclamou: - Foi justamente para isso que eu vim. Para revelar ao mundo que sois filhos de um Deus... E o sois por direito próprio. - Mas, Senhor, não percebo nada especial... Se o Chefão estivesse em meu interior, eu teria notado. - Tu o percebes, querido “ajudante”, o percebes... O problema é que, até agora, não sabias. Podias intuí-lo, mas ninguém te havia
confirmado isso. - Eu percebo? Tu acreditas nisso? - Vou te dizer uma coisa. Que opinião tens dessa bela mariposa? Por que ela se sente atraída pela luz? - Isso é instintivo. - Correto. Ela não tem consciência, no entanto “algo” a empurra. Concordamos em silêncio. - Muito bem, convosco, os seres humanos, acontece a mesma coisa. “Algo” que não podeis, que não sabeis definir, vos impele a pensar em Deus. “Algo” desconhecido vos proporciona a capacidade intelectual suficiente para que penseis no problema da divindade. “Algo” sutil vos arrasta até o mistério de Deus. Ninguém está livre dessas inquietações. Cedo ou tarde, em maior ou menor medida, todos se fazem as mesmas perguntas: “Quem sou?”, “Existe Deus?”, “O que quer de mim?”, “Por que estou aqui?”. Voltou a enfiar o galho no meio do fogo e uma nova coluna de centelhas agitou-se brevemente no incrível e solene silêncio da noite e dos nossos corações. Finalmente, dirigindo-se ao engenheiro, perguntou: - Nunca percebeste essa inquietação? Eliseu disse que sim. Muitas vezes... - Agora sabes. Esse impulso, essa necessidade de conhecer, de saber de Deus, é animada pela “centelha” que mora dentro de ti. Essa “presença do “Chefe” em teu íntimo é o que realmente te torna diferente. É o que aperfeiçoa e corrige teus pensamentos. Aquilo que, às vezes, escutas falando contigo em voz baixa. Que sempre tem razão. Que, de forma definitiva, te “puxa” para Ele. - E a mariposa, Senhor, também é habitada pelo “Barbudo”? Jesus, soltando uma gargalhada, negou com a cabeça. Meu companheiro, contudo, falava sério. - Não, querido menino... Já te disse: vós sois muito mais que uma mariposa. Os animais são movidos pelo instinto. Em certas ocasiões
podem demonstrar sentimentos, mas nenhum, jamais, pensa na necessidade de procurar Deus. Nem sequer têm consciência de si próprios. A “centelha” do Pai, como eu disse, é um presente exclusivo aos seres humanos... Eliseu, inquieto, o interrompeu: - E os teus anjos? Também recebem a “centelha” do Chefe? - Não, caro... Não me ouves quando falo. Essa magnífica e divina presença do Criador alcança unicamente a vós, as criaturas do tempo e do espaço. As mais humildes... - Que luxo! E por que nós? - Isso irás compreendendo pouco a pouco, conforme estiveres subindo... O Pai é assim: um paizão... Dirigindo-se então a mim, comentou: - Estás muito calado... - Tudo isso é muito para meu pobre e pequeno conhecimento, Senhor... Mas já que falas nisso, dize: essa “centelha” tem alguma coisa a ver com a famosa frase...? Não me deixou terminar. - Sim, Jasão... “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança”. - Agora eu entendo – clamou Eliseu -, agora eu entendo tudo. O Rabi sorriu satisfeito. E falou: - Tu, meu querido “ajudante”, és igual a Deus porque o levas no teu íntimo. E não são simples palavras... Tu és sua imagem. Mais ainda, tu és Deus! - Eu, Senhor – esquivou-se como pôde o engenheiro -, sou só um pobre “destroça-patos”. - Tu és Deus! - Eu te digo que não. - E eu te digo que sim! - Não! - Sim! Entrei para conciliar:
- Paz!... - Bem – admitiu Eliseu – se tu o dizes... - Eu o digo e mantenho. E te direi mais: algum dia “trabalharás” ao seu lado, criando e sustentando... como Ele. - Eu, um Chefão? - Por que crês que Ab-bã pensou em ti? - Boa pergunta – intervim -, por que, Senhor? - Porque o amor não é possessivo. O amor do Pai, como a luz, se move numa direção: para a frente. Ele, embora não podeis compreender isso, precisa de vós. Ele será Ele quando toda sua criação for Ele. - Vamos ver se entendi. Estás insinuando que o ser humano é imortal? Desta vez Jesus deu um sorriso maroto. Deixou correr uma pausa bem estudada e, quando a tensão roçou as estrelas, exclamou contundente. Sem reservas. Com uma segurança que nos transformou em estátuas: - Não insinuo... Afirmo! Sois imortais! Assim quis o Pai. Eu, incapaz de reagir, fiquei mudo. O engenheiro, contudo, estourou: - Senhor, com todo o respeito, não brinques! O semblante dEle mudou. Foi uma das poucas vezes que o vi sério. Muito sério. Quase bravo... - Crês que vim a este mundo para brincar? Meu irmão, assustado, recuou. - Não, Senhor, não... - Estou aqui para revelar o Pai. Para dizer ao confuso e confundido homem que a esperança existe... Que sois filhos de um Deus! Que fostes escolhidos pelo infinito amor de Ab-bã! Que estais, simplesmente, no princípio! Modulou a voz e, mais sereno, acrescentou: ... Se ele não vos tivesse feito imortais... tudo isto seria, sim, uma brincadeira. Uma trágica brincadeira...
- Então – intervim timidamente -, essa história de ganhar ou merecer o céu... O Mestre recuperou seu sorriso habitual, mas, por ora, não disse nada. E me olhou sem pestanejar. E a força daquele olhar me sufocou. Em seguida, solene, pronunciou uma única palavra: - Mattenah. Um “presente”! É isso que significa mattenah. E eu, fingindo que não havia entendido, repeti: - Um presente! A imortalidade é um presente? - Sim, Jasão. E lembra bem o termo que utilizei. Lembra e escreve. O homem deve saber que é imortal por desejo expresso do meu Pai. Faça o que ele fizer, diga o que disser... Acho que de novo adivinhou meus pensamentos. - Não te preocupes com isso. Essa é outra história. Para aqueles que fazem o mal ou, simplesmente, erram, existem outros procedimentos... Em verdade vos digo que ninguém escapa do amor de Ab-bã. Cedo ou tarde, até os mais iníquos são “tocados”... - Mas, Senhor – exagerou Eliseu -, isso é magnífico! - Não, rapaz, o Pai é que é magnífico! É teu Pai o verdadeiramente grande e generoso! - Mas ele é mesmo tão grande? Jesus abriu os braços e gritou para as estrelas: - Tão imenso que fica em pé no menor espaço! Eliseu, exaltado, levantou-se e exclamou: - Então, viva a mãe que o pariu! E feliz acrescentou: - Sabes de uma coisa? Mesmo que fosse menor, eu também gostaria dele. E antes que o Mestre saísse de seu espanto, agarrou suas mangas e, puxando, o pressionou: - Vamos, Senhor! Vamos sair daqui! Todo mundo deve saber disso! Vamos!
Foram precisos alguns minutos para acalmá-lo e fazê-lo se sentar. Por fim, o Galileu, lançando mão de uma frase familiar, esclareceu: - Deixa que o Pai indique a minha hora... Seja como for, obrigado. Vejo que compreendeste... E arrematou brincalhão: - Percebes ou não percebes a “centelha”? Eu não pude me conter e soltei uma coisa que pressionava para sair: - Senhor, esse novo Deus, esse magnífico Pai, teu povo não vai gostar dele. - Não vim impor nada. Só revelar. Lembrar qual é o verdadeiro rosto de Deus e qual a autêntica condição humana. Minha mensagem é clara e fácil de entender: Ab-bã é um Pai íntimo, amoroso, que não precisa de leis escritas e muito menos de proibições. Quem o descobre sabe o que fazer. Sabe que tudo consiste em amar e servir, começando pelo próximo. Sabeis por quê? Sabeis por que deveis auxiliar e querer aos vossos semelhantes? - Por uma questão de ética – respondeu Eliseu. - Não. - Por solidariedade? - arrisquei. - Não. - Então será por lógica? - comentou o engenheiro sem muita certeza. - Está quente, quente! Acabamos desistindo. A bem da verdade, eu nunca havia pensado sobre essa questão aparentemente tão boba. - Bom senso – declarou o Galileu com naturalidade. - Bom senso? - Lembrais da “centelha” divina? Pensai... Se Ab-bã é o Pai de todos os seres humanos, se Ele reside em cada homem, se Ele vos imagina e apareceis, o que sois na verdade? - Irmãos na fé – respondeu o engenheiro.
- Não. - Não? Jesus sublinhou o “não” com um lento e negativo movimento de cabeça. - Não sois irmãos na fé. Sois irmãos... fisicamente. Sois iguais! Então esclareceu: - Segunda parte da mensagem do Filho do Homem: se Ab-bã é o vosso Pai, o mundo é uma família. Por isso deveis amar-vos e ajudarvos uns aos outros. Por bom senso. Todos tendes o mesmo destino: chegar a Ele. - Eu disse, Senhor – intervim desanimado -, isso não vai agradar. Ricos e pobres... iguais Escravos e senhores? Ignorantes e sábios? Judeus e gentios? Meu irmão concordou comigo e acrescentou: - O que dizes, Senhor, desse novo rosto do Pai? Um Deus amoroso? As castas sacerdotais não vão gostar nada... - Acabei de afirmar. O Filho do Homem não vem impor. Só inspirar. Meu trabalho não consiste em derrubar, mas em insinuar. Eu sou a verdade e todo aquele que ouvir minha palavra será tocado e movido. Deixai que a “centelha” interior faça o resto... - Mas Yaveh não é Ab-bã. Yaveh castiga, persegue... - Repito. Deixai que se cumpram os planos do Pai. Tens razão, meu querido “ajudante”. Yaveh não é Ab-bã, mas cumpriu com o disposto: o homem respeita a Lei. Agora é a vez da revelação. Acima da Lei está sempre a verdade. E a verdade é uma só: sois filhos de um Deus-amor. Comecei a intuir e a compreender. Mudar o rosto de Yaveh. Modificar seus pensamentos e normas. Suavizar o severo juiz. Quase humanizálo. Injetar a esperança num povo resignado e adormecido. Levantá-lo até as estrelas. Dizer-lhe que é imortal pela generosidade de um Deus. Gritar-lhe que essa “centelha” não é uma
utopia. Fazer-lhe ver que o mundo é uma família... E daquele momento em diante eu soube também o porquê do trágico final daquele Homem extraordinário. Sua filosofia, sua mensagem eram revolucionárias. Perigosamente revolucionárias. Uma vez mais, Eliseu amainou a tensão. Ele aferrou-se a uma das últimas frases de Jesus e pediu detalhes: - Deixar que a “centelha” interior faça o resto? Eu não sabia que o Chefão trabalhava... O Mestte rendeu-se encantado. - O que pensavas? Achavas que essa presença divina era um enfeite? - E o que é que Ele faz? - Já disse: te “puxa”... Essa misteriosa criatura se ocupa, entre outras coisas, de preparar tua alma para a vida futura, para a verdadeira vida. De certa forma, vai te treinando... - Pois eu não percebo nada. - É lógico. O Chefão é muito silencioso. Não gosta de gritos. Ele limita-se a polir e retificar teus pensamentos. Mas o faz na sombra de tua mente. Escondido. Quase um prisioneiro. - E como posso ajudá-lo? Jesus sorriu contente. - Estás fazendo isso agora. Basta tua boa vontade. Basta o desejo de amar, de prosperar em conhecimentos, de aceitar que Ab-bã é teu Pai. Ele, pouco a pouco, estreitará essa comunicação. E chegará o dia em que não vai precisar mais de símbolos para te dizer: “Coragem! Estou aqui. Escuta minha voz. Sobe. Vem até mim...”. - Mas, Senhor, não entendo. O Chefão deveria ser mais claro. Por que não fala um pouco mais alto? Meu Deus! Como o Galileu gostava daquelas perguntas do meu irmão! - Não quer e não deve. Além do mais, tu mandas...
- Eu? Um “destroça-patos”? - É assim. Isso é o estabelecido. Te darei um exemplo: tua mente é um navio, Ab-bã é a “centelha” interior, o piloto, e tua vontade é o capitão. Tu mandas... - Um navegante? - O melhor! Pena que não vos deixeis guiar por Ele! Com freqüência seu rumo é alterado por vossa incompetente natureza humana e, sobretudo, pelos medos, idéias preconcebidas e sabe-se lá o que mais... - Os medos! - exclamou Eliseu convencido. Como tens razão! Por que o homem sente tanto medo? - Muito simples. Porque não sabe, não está consciente disso que vos estou revelando. No dia em que acordar, e não tenhais dúvida de que o fará, e compreender que é filho de um Deus, que é imortal e que está condenado a ser feliz, nesse dia, meus queridos anjos, o mundo será diferente. O ser humano só terá um temor: de não se parecer com Ele... E, de imediato, ponderou: - Mas esse “medo” também acabará desaparecendo. A “centelha” irá sufocá-lo. - Vejamos – intervim sem muita certeza -, se bem entendi, a boa administração dessa “centelha” interior não depende daquilo em que a pessoa acredita ou deixa de acreditar, e sim da vontade, do desejo de encontrar o Pai. Estou errado? - Não estás, Jasão. Falaste acertadamente. O êxito do meu Pai está intimamente ligado ao teu poder de decisão. Se tu confias, Ele ganha. Pouco importa no que acreditas. Se o procuras, se o persegues, a “centelha” controla o rumo. E tu, pouco a pouco, vais te tornando uno com “ela”. Ficou em silêncio. Acho que entendeu que suas palavras eram belas, esperançosas, mas, às vezes, de difícil compreensão. - Eu vos direi um segredo...
Agitou de novo as chamas e, em tom mais sereno, com uma eloqüência abaladora, afirmou: - Observai a madeira. Faz-se una com o fogo e ambos, inevitavelmente, sobem. Enfim são verdadeiramente livres... Olhai! E apontou a trêmula espiral de fumaça, fugindo na noite. - Olhai bem! Agora, fogo e madeira são um só... Compreendestes? - Claro que sim... - Muito bem, este é o segredo. O homem, a madeira, que consegue identificar-se, fazer-se uno com o Ab-bã, o fogo... não morrerá! Seu invólucro mortal será consumido pela “centelha”, pelo Amor, e não precisará ser ressuscitado... Eu quis intervir, mas Eliseu me atropelou com uma pergunta que de fato, já estava superada. - Por que, ao mencionar a “centelha”, tu a denominaste “misteriosa criatura”? - Porque é... O Mestre suspirou. Estava evidente que, como a nós, as palavras também o limitavam. E tentou simplificar. - Lembrai da mariposa... por mais que vos empenheis, não vos entenderá. Se lhe disseres quem és, nem sequer te escutará. Tua pergunta, querido “Elisa” (Eliseu), me coloca na mesma situação. Ainda que eu “ te revelasse a verdadeira natureza dessa centelha, não compreenderias. Aceita, pois, minha palavra. O engenheiro, concordando com a cabeça, o animou. - A presença divina que habita em ti é uma luz, um cintilar do Pai... com sua própria personalidade. E, portanto, uma criatura, embora ainda desgarrada do Criador. E não perguntes mais. Eu já disse: também Ab-bã tem seus segredos... - E quando Ele se instala no ser humano? Jesus de Nazaré, contente com a insaciável curiosidade do meu
companheiro, sorriu condescendente. - Isso depende dEle... Mas, geralmente, quando a criança se torna capaz de tomar sua primeira decisão moral. - E o acompanha até a morte? - Além da morte. Lembra: sois imortais. O Pai, quando dá, não faz as coisas pela metade. Eliseu ficou pensativo. Jesus o observou e, nos surpreendendo, exclamou: - Fala... Essa é uma boa pergunta... Meu irmão, todo sem jeito, balbuciou: - Mas, como o fazes? Como sabes o que estou pensando? O Mestre apontou o rosto branco e adormecido do Hermon e lembrou uma coisa que esquecíamos com freqüência: - Chegou minha hora. Tu sabes disso. Aqui e agora recuperei o que é meu... Pergunta. O que acontece com a “centelha” quando alguém mata seu próprio irmão ou se suicida? O engenheiro, nervoso, esboçou um sorriso. - Isso... O que acontece com a “criatura” quando ela tira a vida de alguém? - O mais triste e lamentável, meu querido anjo, não é só que atent contra a vida, patrimônio exclusivo da divindade, mas que de repente e inadvertidamente, suspendas o trabalho da “centelha”. Literalmente, a deixas órfã. - Em outras palavras: um chute no traseiro do Chefe... - Correto – riu Jesus - ... admitindo-se que o “Barbudo” tenha traseiro... E ponderou: - Um gesto assim atrasa, mas não suspende a escalada em direção ao Pai. Permiti que eu insista: sois imortais. Ninguém pode privar-vos dessa herança. Ab-bã a entregou para vós adiantado. - Imortais! - Sim, Jasão... assim é. Essa é a minha mensagem. É por isso que
vim. É importante para ti? Eu abri meu coração: - Para gente como eu, perdida e sem horizonte, é o mais importante. Ainda assim, precisando de coisas concretas, de objetivos físicos e palpáveis, perguntei: - Está bem, Senhor. Nós te entendemos. Tudo consiste em descobrir e em procurar o Chefe. Mas, como é que eu faço isso? O Mestre – eu sei – esperava ansioso essa pergunta. E pronunciou a frase chave: - Abandona-te em suas mãos. Eu o olhei atônito. - Só isso? - Só isso. Mais nada. - Mas... O Mestre tinha essa virtude. Tornava fácil o difícil. E apressou-se em tirar as dúvidas. - Ele submeteu-se à tua vontade. Ele está em teu interior, humilde, silencioso e atento aos teus desejos de prosperar mental e espiritualmente. Faze tu a mesma coisa. Entrega-te a ele. Não sejas bobo e aproveita: abandona-te em suas mãos. Deixa que se faça sua vontade. Não fui capaz de reagir. Como era possível? Era só isso? Jesus entrou de novo em minhas confusas idéias e tentou acalmá-las. - Eu vos farei outra revelação... Alimentou o suspense com umas gotas de silêncio e, finalmente, quando nos tinha na palma da mão, anunciou: - Eu conheço o Pai. Vós, ainda não. Falo-vos, pois, com a verdade. Sabeis qual é o melhor presente que podeis dar a Ele? Eliseu e eu trocamos um olhar. Nem idéia... - O mais refinado, o mais singular e acertado presente que a criatura humana pode dar ao Chefe é fazer sua vontade. Nada o comove mais. Nada é mais compensador...
Meu irmão, tão perplexo quanto eu, confundiu o sentido dessas palavras. - Queres dizer que devemos negar a nós próprios? Jesus de Nazaré, compreendendo, correu a emendar o erro de Eliseu. - Não, eu não disse isso. Fazer a vontade do Pai não significa escravidão nem renúncia. Tuas idéias são tuas. Assim como tuas iniciativas e decisões. Fazer a vontade de Ab-bã é confiar. É um estilo de vida. É saber e aceitar que estás em suas mãos. Que Ele dispõe. Que Ele dirige. Que Ele cuida. - Entendo. Estás dizendo: “é minha vontade que se faça sua vontade”. - Exato, Jasão. Tu o disseste. Quando um filho toma essa suprema e sublime decisão, o salto para a fusão com a “centelha” interior é gigantesco. Essa é a chave. A partir daí, nada é igual. A vida muda. Tudo muda. E o Chefe responde... Nova pausa. Inspirou profundamente. Com ansiedade. E disse uma coisa que jamais esqueceríamos. Uma coisa que, pouco a pouco, iríamos verificando. - O Pai responde e uma força benéfica, avassaladora, coloca-se a serviço dessa criatura. Quando o homem diz “estou em tuas mãos” está dando tudo. E Ab-bã transforma esse filho num gigante. Nem ele mesmo chega a se reconhecer. Isso é muito mais do que aparenta ser. - Uma força avassaladora? Lembrei imediatamente. O que aconteceu no alto do Ravid? Um dia, sem prévio aviso, sem razão aparente, sentimo-nos plenos, inundados de uma “força” estranha e única. Era a isso que o Galileu se referia? O Mestre olhou-me e voltou a negar com a cabeça. - Não, meu perplexo anjo, essa “força” tem outra origem e outro nome... Ele conseguira outra vez. Acabava de entrar na minha mente. Sorriu brincalhão e continuou:
- Essa “força” que tanto vos intriga desceu sobre os homens por expresso desejo do Criador deste universo. Chama-se Espírito da Verdade. Mas disso, se estais de acordo, falaremos outra hora. Eliseu não aceitou. - Tu enviaste esse Espírito? - Foi o que prometi. E creio que sabeis disso de sobra: sempre cumpro. Não deixei que meu amigo desviasse o Mestre do tema inicial. E repeti a pergunta: - Uma força avassaladora? - Sim, Jasão... O homem que decide fazer a vontade do Pai torna-se pleno. Até seus menores desejos se realizam. Simplesmente, como eu vos disse, desperta para a glória e o Amor de Ab-bã. É o grande acontecimento. Sua vida, a partir de então, é uma constante e gratificante surpresa. É o princípio da mais fascinante das aventuras... E rematou com aquela inquietante segurança: - Colocar-se nas suas mãos, fazer a vontade de Ab-bã significa, além do mais, saber... - Saber? - Sim, saber. Obter respostas... Por exemplo, quem sou eu? Nesse instante é fácil. És um filho do Amor. Um “presente” do Chefe. Um ser imortal. Uma criatura nascida no mais baixo... destinada ao mais alto. Um homem que começa a correr. A correr até Ele. Por exemplo, o que faço aqui? Ao descobrir o Pai, isso também é fácil. Estás neste mundo para VIVER. O engenheiro não conseguiu se conter. - Claro, Senhor, óbvio... - Não... Jesus dirigiu-se a mim e continuou: - Escreve com maiúsculas... VIVER... Não disse viver tal como entendeis. Se o Pai vos colocou aqui é por alguma coisa realmente interessante... Interessante para vós. Escutai-me: sois imortais! Agora
estais presos nesse invólucro carnal, mas em breve, quando entrardes nos mundos que tenho reservados para vós, este corpo será apenas uma lembrança. Uma lembrança cada vez mais difusa... VIVEI, pois, a atual experiência! VIVEI com intensidade! VIVEI com amor! Com bom senso! Com alegria! E lembrai que tendes apenas esta oportunidade. Depois, após a morte, VIVEREIS de outra forma... Meu irmão e eu, impelidos por mil perguntas, acabamos atropelando as palavras. Jesus, contudo, fazendo ouvidos moucos, continuou falando. - Por exemplo, qual é meu futuro? Suponho que já adivinhastes. Eu sei – comentou, rindo de si próprio -, eu me repito muito... Insisto: vosso destino é Ele. Não existe outro caminho. Vosso futuro é chegar a Ele. Ser como Ele. Ser perfeitos. Conhecê-lo. Trabalhar ombro a ombro... - Seremos sócios – Querido “destroça-patos”, quando decides colocar-te em suas mãos, quando optas por fazer sua vontade... já és seu sócio! Ele fará maravilhas em ti. Ele te cobrirá com um amor que te levantará do chão. E teus medos, ouve bem, desaparecerão... A noite, como nós, ficou quieta. Absorta. Entusiasmada. Mais ainda: eu diria, esperançosa. Ele simplesmente nos mantinha cativados. Ele sabia disso e fechou o círculo. - Quando teu coração se abre e se faz aliado da vida, quando te abandonas à sua vontade, nada, dentro ou fora de ti, te fará tremer. Como um milagre, tua alma caminhará segura. Nada, querido anjo, nada te fará retroceder! E essa sensação, esse sentimento de segurança te acompanhará até o fim de teus dias. Mas não vos equivoqueis. Ao mesmo tempo que esse homem afortunado cresce, assim desaparece... - Não entendo. - É fácil, querido “ajudante”. O Amor que se derrama do Pai é turbulento. Não conhece descanso. E deverás irradiá-lo. Compartilhálo. Catapultá-lo. Não é propriedade tua. Pois bem, um dia, sem prévio aviso, perceberás uma coisa igualmente maravilhosa:
não existes! Desapareceste para ti mesmo! Não contas! Não exiges! Não precisas! Não reclamas! E assinou a revelação com o melhor de seus sorrisos. - Terás triunfado! Nesse momento, enfim, terás compreendido, querido “sócio”... - E o que acontece se eu guardo esse amor para mim mesmo? Escorreria, irremediavelmente, pela calha do barco. Seria uma pena. Terias que começar tudo de novo... Aquele que tenta prender a verdade..., a perde. Sois irmãos. E te direi mais: isso que propões não acontece jamais com um autêntico “sócio”. Eu te disse: trata-se de uma viagem sem volta. Quando Ele te “toca”... nada continua igual. - Sócios de um Deus! - De fato, Jasão. E tudo depende da tua vontade... Quando dizes “sim”, quando te abandonas em suas mãos, quando te deixas governar por esse “piloto” interior, rompes as barreiras que te limitavam. E tua capacidade de assombro outra vez irá transbordar. Tudo, ao teu redor, estará a teu serviço. Teu “sim” é o “sim” de Ab-bã. Em palavras mais simples: terás encontrado uma mina de ouro... Eufórico, o engenheiro o interrompeu. - Mesmo que seja de carvão, Mestre! Jesus riu com vontade. Depois, terminando a frase não concluída, nos deixou boquiabertos. - Tereis encontrado uma mina de ouro... que funciona sozinha! E perguntou: - Estais animados E grátis! Então, apontando a quase extinta fogueira, ele se apressou a comentar: - Pensai nisso. E depois me dizei... Ou melhor dizendo, dizei a Ele. E agora, ide descansar. E acrescentou maroto:
- Se conseguirdes...
SEGUNDA SEMANA NO HERMON Na verdade, toda nossa permanência nos cumes do Hermon foi um contínuo falar sobre Ab-bã. Ele era o tema e a palavra favoritos do Filho do Homem. Para nós foi uma descoberta. Um achado que nos marcaria para sempre. No meu diário defini isso como “espírito do Hermon”. Claro que pensamos sobre isso. Meditamos muito sobre o insólito “convite” do Mestre. Eliseu, mais ousado e inteligente do que este que aqui escreve, decidiu-se rápido. Certa manhã, antes da partida habitual de Jesus em direção aos montes nevados, ele o alcançou. Plantou-se diante dEle e, solene, comunicou-lhe: - Senhor, para mim está tudo claro. Não compreendo bem algumas das coisas que dizes, mas aceito. A partir de agora coloco-me nas mãos dEle. É minha vontade que se faça a vontade do Chefe... O Rabi reagiu com um de seus gestos familiares. Colocou as mãos sobre os ombros do engenheiro e, feliz, sentenciou: - Que assim seja... Bem-vindo ao reino! Eu, mais incompetente, deixei passar o tempo. Agora eu sei. Cometi um erro. Quis analisar e filtrar. Tentei submeter as revelações de Jesus de Nazaré à lógica e ao raciocínio. Em outras palavras, esqueci as advertências do Galileu. Não levei em consideração “que a ciência jamais poderá demonstrar a existência de Deus”. Não percebi o sábio aviso: “O encontro com o Pai é uma experiência pessoal”. E foi preciso que eu assistisse ao primeiro e
“involuntário” milagre do Mestre na aldeia de Caná para que, por fim, me rendesse às evidências. Como Ele afirmou cada um é “tocado” em seu devido momento. Mas vamos por partes. Aquela segunda semana no mahaneh foi igualmente tranqüila e benéfica. O Mestre, seguindo seu costume, desaparecia ao amanhecer, voltando pouco antes do pôr-do-sol. E todas as noites, nas animadas conversas, falava desses intensos “contatos” com Abbã. E fazia isso com uma naturalidade que dava medo. Pelo que consegui entender, esses “diálogos” (?) com o Chefe eram diretos. Alguma coisa assim como pegar um telefone e discar o número de Deus... Nem preciso dizer que jamais duvidamos de suas explicações, embora, em certas ocasiões, elas fossem inconcebíveis. E vou adiantar uma coisa que considero especialmente grave. Foi justamente essa atitude, essa espécie de “linha direta” com o Pai dos céus, o que, pouco depois, na sua vida pública, o colocaria em confronto com amigos e estranhos. Falar diretamente com Deus? Conversar com Ele de igual para igual? A ortodoxia judaica, logicamente, considerou isso uma blasfêmia. Quanto à sua família e o resto dos cidadãos comuns, essa revolucionária forma de “tratar” o Todo-Poderoso, o Yaveh, provocou uma rejeição total. E o Mestre, naturalmente, foi chamado de louco. Depois, conforme iam passando os dias, fui percebendo. Aquele retiro voluntário no maciço do Hermon foi uma etapa chave na vida do Filho do Homem. Em primeiro lugar, como já mencionei, “recuperou o que era legitimamente seu”. Foi, sem dúvida, um momento histórico. Jesus de Nazaré, o homem, “acordou” a divindade. Por último, naquelas semanas, “ele juntou as pontas soltas”. Preparou-se. Digamos que colocou em ordem as idéias. Sua mente e natureza humanas (as palavras não me ajudam) “aprenderam” a conviver com a outra “natureza”. Desconfio que se tornaram uma só, embora ambas, fisicamente, fossem independentes. Não consegui me aprofundar no assunto. Meu cérebro não dá para tanto. Mas assim foi. Pena que ninguém mencionasse esse decisivo isolamento ao norte
da Gaulanítide! Isolamento? Não de todo... Ao longo daquela semana, recebemos uma visita. Uma inesperada visita... Lembro que foi na quinta-feira, 30 de agosto. Mais ou menos ao redor da hora “décima” (quatro da tarde), vimos surgir na meseta dois personagens quase esquecidos. O Mestre estava ausente. Num primeiro momento, Eliseu e eu não soubemos o que fazer. E, receosos, deixamos que avançassem. Mas tudo foi mais fácil do que imaginávamos... Os Tiglat, pai e filho, puxando o jumento, nos cumprimentaram com cordialidade. Na verdade aquilo me pareceu estranho. Nossa despedida junto ao refúgio de pedra não fora muito cálida... Entendi também por que decidiram não cumprir o pacto com o “estranho galileu”. O jovem fenício devia depositar as provisões no lugar já mencionado, sem pisar no acampamento. Isso era o acertado com o Mestre. A explicação veio logo. Tiglat pai, sem delongas, olhou-me diretamente nos olhos e, com uma sombra de tristeza, pediu desculpas pelo “desastrado comportamento de seu jovem e irrefletido filho”: - Peço-te que aceites minhas desculpas. Essa reação não é própria da minha gente... Sinceramente, eu já havia esquecido o episódio com Ot. Não dei importância ao fato e, no mesmo tom, afável e sincero, pedi-lhes que esquecessem tudo aquilo. O cabeça da família, contudo, fez um sinal ao jovenzinho e este, se adiantando de olhos baixos, repetiu o pedido de perdão. Afaguei os cabelos negros do rapaz e, sorrindo, lembrei-lhe uma de suas frases: - Tinhas razão. Teu pai não é um bom homem. É o melhor...
Em seguida, começaram a descarregar em silêncio os mantimentos. E ao terminar, depois de um seco “que Baal vos abençoe”, fizeram menção de se retirar. Eliseu e este que aqui escreve, quase mudos, não soubemos reagir. Devíamos deixá-los ir embora? O que deveríamos fazer? Devíamos convidá-los a ficar? Essa decisão – imaginamos – não era da nossa competência. Tanto meu irmão como eu, sei bem, queríamos que ficassem no mahaneh. Mas, por respeito ao Mestre, contivemos o impulso. Só Ele poderia... Curioso, muito curioso. Naquela mesma noite, Eliseu me confessou. Ao vê-los afastar-se – fiel aos conselhos do Rabi – pediu ao Pai que “fizesse alguma coisa”, que os detivesse... E aconteceu. De repente, quando caminhavam perto do dólmen, alguém gritou de dentro dos cedros, chamando-os. O Galileu! O engenheiro, entusiasmado, reconheceria que aquilo que Jesus de Nazaré revelara “funcionava”. A mágica e avassaladora “força” da qual falou o Mestre tornou realidade nossos desejos. Os Tiglat pararam, deram meia volta e pernoitaram conosco. Eu, embora desconcertado, aferrei-me à única coisa que explicava a súbita e providencial aparição de Jesus: o acaso... Pobre ignorante! Jesus não permitiu que os Tiglat colaborassem no jantar. Eram seus convidados. Pegou as trutas descarregadas pouco antes – presente dos fenícios – e as cozinhou no estilo do yam. Uma receita que provocou animados elogios entre os comensais. Depois de limpar meia dúzia de “arco-íris”, afastou as espinhas com os dedos médio e polegar, soltando a carne. O “ajudante” seguindo as instruções do “cozinheiro chefe” - encarregou-se do molho escabeche: azeite, sal, mel de tâmaras, pimenta negra bem moída e vinagre. Terminada a fritura, Jesus deu o toque pessoal: amêndoas quentes e uma colherada de manteiga sobre cada peixe.
E, acompanhando o apetitoso prato, uma salada de sobremesa, por Ele mesmo preparada, à base do doce mikshak, o melão do Hule, salpicado com outra de suas fraquezas: as passas de Corinto. Enquanto devorávamos as deliciosas trutas, o jovem Tiglat trouxe de novo à luz o incidente com “Al” e seus asseclas, explicando ao Mestre como seu bom deus Baal nos havia protegido, “descarregando seus raios sobre os bandidos”. Eliseu e eu trocamos um olhar. A versão do pequeno guia nos tranqüilizou. Jesus ouviu atentamente, mas não fez comentário algum. Ao finalizar a detalhada exposição, o Galileu procurou-me com o olhar. Sorriu e me deu uma piscadela de cumplicidade. Então, dirigindo-se ao “estranho galileu”, Tiglat pai, curioso perguntou: - Meu filho disse que és um homem rico. Isso é verdade? O Mestre, surpreso, não pôde conter o riso e engasgou. Instantes depois, recuperado, respondeu: - E para que precisa de riqueza aquele que possui a verdade? Meu irmão, querendo corrigir a equivocada interpretação do fenício, esclareceu: - Não foi isso o que eu disse ao teu filho. Quando lhe falei de nosso amigo, eu me referi ao seu coração... “Um coração imensamente rico.” Essas foram minhas palavras. O chefe de Bet Jenn compreendeu. Mas, desconcertado com a resposta de Jesus, agarrou-se à idéia expressada pelo Mestre. - A verdade! Tu conheces a verdade? A partir desse momento nós assistiríamos a uma parca mas reveladora conversa com o Filho do Homem. Uma conversa da qual todos iríamos sair confusos... O Mestre, silencioso, nos observou um a um. Tive a sensação de que estava em dúvida. Melhor dizendo, de que não queria falar sobre esse assunto tão espinhoso. Agora, à distância, eu o entendo... O adolescente tentou forçar o Galileu. E quase o conseguiu. - Meu pai diz que a verdade, se existe, está por chegar.
Tiglat, contente, assentiu. - E diz também que, quando chegar, me fará tremer de emoção, porque é uma coisa que toca diretamente o coração... O Mestre, vencido, sorriu-lhe com ternura. Voltou a olhar-me e dando uma piscadela, exclamou: - Teu pai é um homem sábio... Eu devia estar acostumado, mas não... Essa frase, justamente, foi pronunciada por este explorador ao pé do asherat, como resposta aos comentários feitos pelo guia. Os mesmos comentários agora expostos pelo jovem Tiglat! Como ele conseguia fazer isso? Como podia saber e manejar os pensamentos alheios com semelhante desenvoltura? A explicação - também sei – era óbvia. Mas, teimoso como uma mula, eu resistia a aceitar isso... - Vós – continuou Jesus dirigindo-se aos Tiglat – não me conheceis. Estes, ao contrário, meus queridos gregos, sabem quem sou. Conhecem minha palavra e podem dar fé de que nunca minto. Hesitou. Estava claro que o que se dispunha a revelar não era simples. Deu um suspiro e, imagino, resignou-se. - Sim, meu amigo... Eu conheço a verdade. Teu filho está certo. A verdade existe mas, no momento, não está ao alcance dos seres humanos. Apontou a lua, quase cheia, e ponderou: - Vós tendes uma idéia da realidade. Mas é um conceito limitado, Próprio de uma mente finita que mal acaba de acordar. Para estes dois – continuou referindo-se a Eliseu e a este que aqui escreve -, educados em outro lugar, a realidade do universo é diferente da vossa... A sutileza, logicamente, não foi captada pelos Tiglat em sua autêntica dimensão. Mas a comparação era válida. E soubemos ler nas entrelinhas. - Eles entendem a lua e as estrelas de uma maneira. Vós, de outra. Sem dúvida, tendes diferentes conceitos de uma mesma realidade. E eu vos digo: os quatro ainda sabeis pouco. A realidade total, final e
completa, é muito mais que tudo isso. Ninguém respirava. - Mais além do que vedes, existem outras realidades tão físicas e concretas como esta lua, que pertencem ao mundo do não-material. Esse mundo invisível e inconcebível para vós, constitui na verdade a autêntica “realidade”. E terminou chegando ao que anunciara inicialmente. - Mas... como eu dizia, para alcançar essa realidade última, a grande verdade, necessitais de tempo. Muito tempo. A verdade, portanto, existe, mas é totalmente impossível de ser abrangida pela mente e pela inteligência de uma criatura mortal. O rapaz, ágil e esperto, o abordou sem dó nem piedade: - Tu não falas como um judeu. Quem és realmente? Jesus não se abalou. - Eu, filho meu, vim tocar teu coração. Estou aqui para fazer-te tremer de emoção. Para que questiones, para te ensinar um caminho que ninguém antes te mostrou... - Um caminho? Para onde? - Em direção a essa verdade da qual fala teu pai. Mas não te impacientes. Quando chegar minha hora voltarás a me ver e teus olhos se abrirão. Então te mostrarei Ab-bã e compreenderás que a verdade da qual te falo é como um perfume. Simplesmente a identificarás por sua fragrância. O jovem Tiglat, todo sem jeito, continuou perguntando. - Ab-bã? Quem é esse pai? - Para ti – anunciou o Filho do Homem categórico -, um Deus novo. Para teu pai... um velho sonho. - E tu, como sabes isso? - interveio perplexo o pai do jovem. - Como sabes que duvido de todos os deuses, inclusive do teu? Não houve resposta. Meu irmão e eu entendemos. Não era o momento. Como Ele acabava de afirmar, não havia chegado sua hora. Jesus de Nazaré escolheu o silêncio. - Um Deus novo! - exclamou o jovenzinho, não menos espantado. - E tu és judeu? O que acontece com Yaveh?
- Eu te disse: deixa que chegue minha hora... Então te falarei desse novo Pai. - Não – gritou o impetuoso adolescente. - Fala-me agora! O chefe dos Tiglat repreendeu o menino. Mas Jesus, pedindo calma, concordou. - Está bem, meu querido e impulsivo amigo... Eu o farei porque é teu coração que reclama isso. “Yaveh está bem onde está. E ali ficará para aqueles que não compreenderem a nova revelação. Porque disso se trata: de dar ao homem um conceito mais exato de Deus... Sim, filho meu, um Deus novo e velho ao mesmo tempo. Um Deus Pai. Um Deus que não precisa de nome. Um Deus sem leis escritas. Um Deus que não castiga, que não controla tuas ações. Um Deus que não precisa perdoar... porque não há nada para perdoar. Um Deus a quem podes e deves tratar de igual para igual. Um Deus que te criou imortal. Que te levará pela mão quando morreres. Que te convida a conhecê-lo, a possuí-lo e, sobretudo, a amá-lo. Um Deus, como tu fazes com teu pai, em quem podes confiar. Um Deus que cuida de ti sem que tu saibas. Que te dá antes mesmo de abrires os lábios. Um Deus tão imenso que é capaz de se instalar no menor: tu! A mágica voz daquele Homem, sonora, segura, armada de esperança, cativou a todos. Tiglat pai sustentou o olhar penetrante e cálido do “estranho galileu”. Não havia dúvida. Suas palavras o enfeitiçaram. E ele balbuciou: - Onde está esse Deus? Onde podemos encontrá-lo? Jesus tocou seu próprio peito com o dedo indicador esquerdo e esclareceu: - Eu te disse: aqui mesmo... dentro de ti. - Mas como é isso? - adiantou-se o filho. - Todos os deuses estão fora. - Exato, menino. Só a verdade está dentro. Por isso, como diz teu pai, quando a encontrares, quando descobrires Ab-bã, isso te fará tremer de emoção. E acrescentou, elevando de novo os corações: ... Esse Deus se
esconde na experiência. E a experiência é pessoal. Cada um vive Abbã à sua maneira. Não existem normas nem leis. Eu já vos disse isso. Esse Deus trabalha dentro e o faz na medida de cada inteligência e de cada vontade. Não perdeis tempo procurando no exterior. Não escuteis sequer os que dizem possuir a verdade. Eu vos digo que ninguém pode domesticá-la e fazê-la sua. A verdade, a pequena parte que agora podeis distinguir, é livre, dinâmica e bela. Quando alguém a prende, quando alguém a comercializa, ela, a verdade, se afasta. - Mas tu dizes conhecer a verdade. Tu também a estás vendendo e pregando... O Mestre voltou a vacilar. Ele olhou para nós e eu creio ter visto em seus olhos uma sombra de impotência. Nessa ocasião, contudo, não respondeu ao duro argumento do jovem Tiglat. Levantou-se e, lacônico, exclamou como numa despedida: - Não chegou minha hora... E desapareceu dentro da tenda. No dia seguinte, sexta-feira, quando os Tiglat voltaram a Bet Jenn, Eliseu e eu nos envolvemos numa forte polêmica. Meu irmão defendia a postura do Mestre. Estava de acordo com sua estranha e, de certo modo, coerente atitude. Não era o momento. Nós estávamos no final de agosto do ano 25. Jesus de Nazaré devia esperar. Eu, por outro lado, julguei que os fenícios tinham direito de saber. E assim nos encontrou o Galileu quando voltou do cume do Hermon: entrincheirados em posições radicalmente contrárias. Foi inevitável. Depois do jantar, eu mesmo levantei o problema. E Jesus, mais relaxado, deu razão ao meu companheiro. - Jasão, como teu irmão, eu também me coloquei nas mãos do Pai. Eu me limito a fazer sua vontade. E carinhoso, derrubando meus postulados pedantes, afirmou: Como podes pensar assim? Crês que meu coração não arde de desejos de pregar a boa nova? - Mas, então, Senhor, por que estás conosco? Por que nos falas de
Ab-bã? - Eu vos disse no devido momento. Estais aqui por expressa vontade do Chefe. Sois uma exceção. Não contais para este tempo. Sois os mensageiros de outros homens e meus próprios embaixadores. Sois uma das muitas realidades do meu reino. Ele vos abençoou e eu faço a mesma coisa. Eliseu não deixou passar a oportunidade. - Agora estamos sós. Talvez desejes falar com maior clareza. O que é isso de “outras realidades”? Jesus pareceu surpreso pela abordagem. - Achei que havias entendido... O engenheiro, transparente, também falou por mim. - Sim e não... Por exemplo, nos deixaste perplexos ao garantir que a verdade não está ao alcance da mente humana. O Mestre levantou o rosto em direção às estrelas e perguntou: - Estais vendo essa luz? - Sim, Mestre. É a luz do universo. - Dizei-me, crês que é a única luz? Aqueles exploradores, sentindo uma secreta intenção na pergunta, se entreolharam sem saber o que responder. - Bem – expressei meio receoso – assim parece... - Dizes bem, Jasão. Assim parece, mas não é... Essa é vossa realidade. O problema é: trata-se da única realidade? - Estás insinuando que existe outro tipo de luz? - Não, querido “ajudante”, não insinuo. Afirmo. No reino de Ab-bã existem três tipos de luz: a luz material, que estás vendo agora. A luz intelectual e a luz espiritual, a genuína. - Mas essas são físicas? - Muito mais que a das estrelas... Eliseu, insatisfeito, insistiu: - Quando digo “físicas”, quero dizer “físicas”...
Jesus sorriu. E fez suas as palavras do meu amigo. - Quando digo “físicas”, eu também quero dizer “físicas”. - Não pode ser. Eu não vejo a luz intelectual do meu irmão. Ele olhou para mim e acrescentou malicioso: - Procurei um mal exemplo... Este aí carece de inteligência. - Pois eu também não vejo a tua, “destroça-patos”... - Calma! - suplicou o Mestre. E foi direito ao assunto. - Os dois estais com a razão. Essas “outras realidades”, as luzes do intelecto e do espírito, não estão visíveis agora, enquanto permanecerdes nessa forma humana. Será que não entendeis? Estais no princípio. Sois como um bebê. Nem sequer aprendestes a ficar em pé... Então, apontando em direção às “cascatas”, nos fez lembrar de nossos “vizinhos”, os damãos das rochas. E continuou: - Estamos diante do mesmo caso da mariposa. Se conseguísseis apanhar uma dessas criaturas, como a convenceríeis de que o mundo se estende muito além do nahal? - Impossível, Senhor. - Pois em verdade vos digo que esse, nem mais nem menos, é o vosso caso. Acabais de nascer para a vida e ignorais tudo sobre as realidades que o PAI sustenta. E dizei mais: embora por razões diferentes às vossas, as criaturas espirituais também consideram a matéria como algo irreal. Imagino que percebeu nosso desconcerto. E apressou-se a explicar: - Queridos anjos, conforme vos afastais dessa estrutura material, conforme ganhais em perfeição e luz espiritual, tanto mais difusa estará a lembrança desta etapa. Na verdade, essas criaturas de luz atravessam a matéria física como se não existisse. - Entendo, Senhor. Por isso dizias que a verdade final não está ao nosso alcance... - Por ora, Jasão. Só por ora... Pouco a pouco, mais adiante, irás captando e compreendendo. - E serei sábio? - Mais que agora, sim... Mas não te confundas, meu querido
“destroça-patos”. Nem sequer quando chegares à presença do Chefão, estarás de posse da verdade absoluta. - Não importa, Senhor. Eu me contento em atravessar paredes... Não pude nem quis silenciar meus pensamentos. - Como estamos equivocados! Em nosso mundo existem muitos que se consideram donos dessa verdade... a começar pela ciência. O Mestre assentiu com a cabeça. E começou a repetir o que havia exposto na noite anterior. - Estão enganados. Ai daqueles que tentarem monopolizar a verdade! Seu fanatismo os tornará cegos. Quanto à ciência, querido Jasão, não te desesperes. Algum dia descobrirá que é só uma valiosa companheira de viagem... - De viagem De quem? - Da fé. - Isso é engraçado – desafiou o engenheiro. - Sempre achei que a fé era cega. - Não, são os homens que a tornam cega. A confiança no Pai, nessas outras realidades que vos aguardam, deve ser razoável e científica... até onde for possível. A ciência, pouco a pouco, controlará e compreenderá o universo no qual agora vos moveis. E confirmará o tesouro de vossa experiência pessoal, adquirido com vosso próprio esforço e de forma solitária. E chegará o dia em que a revelação, essa revelação, dará a mão a ambas: à fé e à ciência. - Um momento, Senhor, então a fé e a revelação não são a mesma coisa? - Não, Jasão, não são a mesma coisa. A fé... eu gosto mais da palavra confiança, é um ato que depende da vontade. A revelação é um presente do Pai. E chega sempre no momento oportuno. - Não entendo isso. Sempre ouvi e li que a fé, perdão, a confiança, é um dom de Deus... O Mestre sorriu com benevolência. - Eu sei, Jasão, eu sei... No futuro, muitas das minhas palavras e atos serão mal interpretados e, pior ainda, manipulados. Se fosse
como dizes, se a confiança em Ab-bã fosse o resultado de uma graça divina, alguma coisa falharia nos céus. Por que para uns sim, para outros não? Isso não é justo. Esse não é o estilo do “Barbudo”. Eu repito: descobrir o Pai, confiar nEle, colocar-se em suas mãos e aceitar sua vontade depende unicamente, unicamente!, do homem. - Mas antes, Senhor, é preciso perceber... - Exato, querido “ajudante”. Por isso estou aqui. O engenheiro murmurou quase para si próprio: - No fundo é fácil. Tudo consiste em dizer: “sim, quero”. - Não... É melhor dizer “sim, aceito”. Aí então, ao despertar para a nova, a verdadeira vida, essa confiança te fará razoável. Depois, após a morte, tua própria experiência te fará sábio. Por último, quando entrares em “outras realidades”, quando fores um “homemluz”, quando te apresentares diante do teu querido “Barbudo”, então, querido amigo, sentirás como a verdade te roça e te beija... - Então... - Sim – murmurou o Filho do Homem, acariciando as palavras -, só então...
TERCEIRA SEMANA NO HERMON Desde o domingo, 2 de setembro, até sábado, dia 8, a permanência nas cumeeiras do Hermon passou por uma mudança interessante. Interessante para estes exploradores, é claro... Jesus continuou com seus retiros habituais, mas, em três daqueles dias, tivemos a sorte de acompanhá-lo. Aconteceu na segunda-feira, 3 de setembro, e nos dois últimos dias da referida semana – sextafeira e sábado. O Filho do Homem simplesmente nos pediu que fôssemos com ele. Naquele instante, confesso, não reparei na sutileza de semelhante pedido. Agora acho que entendo... Mas vamos por partes.
Um dia antes da primeira excursão, domingo, 2 de setembro, na hora do banho relaxante de todos os dias nas “cascatas”, aconteceu uma coisa aparentemente sem maior transcendência. O pequeno incidente, contudo, me deixou pensativo. Dias depois, um acontecimento ainda mais grave e, de certo modo similar, me animaria a romper o silêncio e a colocar ao Mestre um assunto não menos intrigante: o que aconteceria com a segurança física daquele Homem-Deus? Estaria indefeso, como o resto dos mortais? Podia ser ferido? Como sua natureza divina influía ante a chegada normal de doenças, acidentes etc.? Nessa tarde de domingo, enquanto Jesus de Nazaré nadava e se divertia, apareceu uma coisa imprevista. De repente, ouvimos que ele gemia. Agarrou-se a uma das pedras e tentou alcançar as próprias costas com a mão esquerda. Eliseu e eu acudimos rápido. O Rabi, com o rosto tenso, acusava uma dor intensa. Seus dedos procuravam, sôfregos, o centro da coluna vertebral. E entendi imediatamente... Sobre as águas se afastava zumbindo uma mosca enorme, de uns 20 milímetros, de cor amarelo-areia, um pouco parecida com as vespas. Era uma mosca predadora, das maiores da Palestina, que, por causa de seu tamanho e ferocidade, era conhecida como “Satanás” (as atuais Satana-giga). Acredito que por uma coincidência (?) deu de encontro com o corpo do Galileu, enfiando então na pele dele suas unhas curvas poderosas como ganchos. E com a pequena e grossa trompa injetoulhe o veneno. Examinei o edema incipiente e constatei que, embora dolorosa, a picada não podia ser grave. Em questão de horas, provavelmente o inchaço desapareceria. E assim foi. O Mestre agüentou a dor e, antes de mergulhar de novo na “piscina” exclamou com seu incorrigível senso de humor: - Meu Deus, como sou atrapalhado! O percalço, contudo, não foi esquecido por este que aqui escreve. Mas nenhum de nós três voltou a comentar o assunto... por enquanto. Na manhã seguinte, segunda-feira, com a primeira luz, o Galileu,
feliz e sorridente, praticamente nos arrastou para fora da tenda. E apontando as neves do Hermon, anunciou eufórico: - Vinde comigo!... Os detalhes também são importantes. Pegamos algumas provisões e, ainda meio adormecidos, nos dispusemos a segui-lo. Aí então, quando peguei a “vara de Moisés”, o Rabi, autoritário, ordenou: - Não, Jasão, não temas. Ab-bã vela. Perplexos, o engenheiro e eu nos entreolhamos sem saber o que fazer. Sabíamos que sabia, mas, às vezes, ele nos desconcertava... Obedeci, naturalmente. E o cajado – muito contra minha vontade – permaneceu no fundo da tenda. Detalhes? A que se referia ele com essa insólita afirmação? Logo saberíamos do que se tratava... A bem da verdade, nas várias ocasiões durante aquele terceiro “salto” no tempo, foi Ele quem conduziu nossa missão. 426 Foi Ele quem nos alertou, abrindo nossos olhos tolos e enevoados para a infinidade de pequenos-grandes detalhes. Detalhes que também faziam parte – e de que maneira! - da vida do Filho do Homem. Jesus conhecia bem a trilha. Atravessamos os espessos bosques de cedros e, depois de passar várias vezes por cima do bravo nahal Aleyin (”o que cavalga as nuvens”), chegamos por fim aos primeiros lençóis de neve. Cota “2.800”. Quase no cume. Uma brisa fresca, limpa e moderada nos recebeu contente. Entre pedras azuis, a neve, escalando a montanha santa, suavizava paredes e penhascos. E o sol, ainda rasante, começou seus jogos de luzes, com preferência pelos tons branco e cor de laranja. O Mestre, cantarolando um dos salmos, pegou os cabelos e os amarrou em sua habitual forma de rabicho. Depois, sorrindo, cheio de
uma paz e uma felicidade difíceis de explicar, comentou: - Ficai tranqüilos... É a vez do meu Pai! Ele nos deu uma piscada e afastou-se devagar até a língua gotejante de neve mais próxima. Aquela figura, de novo, me deixou maravilhado. Jesus de Nazaré caminhando sobre a neve branca que rangia sob seus passos! De repente ele parou. Ergueu os braços e levantou o rosto ao azul puríssimo dos céus. E assim ficou durante longo tempo. Então creio ter entendido o porquê de suas enigmáticas palavras... “Acompanhai-me... Os detalhes também são importantes...” Claro que eram. Para falar a verdade, nunca, até aquele momento, o tínhamos visto em comunicação com Ab-bã. Nunca, que eu me lembre, havíamos assistido à majestosa e, ao mesmo tempo, simples cena de um Jesus rezando. Minto. Este explorador, sim, foi testemunha privilegiada de um desses momentos. Mas as circunstâncias, pouco antes da prisão no jardim de Getsêmani, foram muito diferentes. Este não era um Jesus de Nazaré atormentado e humilhado. Este era um Homem- Deus exuberante. Cheio de vida. Entusiasmado. Feliz e disposto. Durante horas bebi aquela imagem. Até nisso Ele era diferente e original! O Mestre não rezava como o resto dos judeus. Pelo menos em particular... Em nenhum instante ele se ajustava às rigorosas normas da Lei mosaica. Não juntava os pés. Não arrumava suas vestes. Não se curvava até que “cada uma das vértebras das costas ficasse separada”. Não seguia o conselho da tradição: “que a pele, sobre o coração, se dobre até formar pregas” (assim reza Ber. 28 b). Também não o vimos imitar jamais as pomposas práticas dos fariseus. Nunca, ao entrar ou sair de um povoado, recitava as obrigatórias bênçãos. E muito menos ao passar na frente de uma fortificação ou encontrar alguma coisa nova, bela ou estranha, como pretendiam os rigoristas da Torá. Mais de uma vez – como espero
narrar adiante – teve a coragem de enfrentar esses puristas de Yaveh, jogando-lhes na cara suas recitações hipócritas e vazias. (Para as castas sacerdotais e os doutores da Lei, o número de rezas multiplicava o mérito diante de Deus. Assim, por exemplo, uma centena de bençãos era considerada uma “alta mostra de piedade”.) Jesus rezava como quem conversa com um amigo muito querido. E o fazia em qualquer situação: em pé, sentado, deitado, enquanto cozinhava, em pleno banho ou no meio do trabalho. Lembro-me de que nesse dia, quando interrompeu (?) a “conversa” com o Chefe para verificar as provisões, este que aqui escreve, sem poder segurar a curiosidade, perguntou-lhe sobre aquela estranha forma de rezar. - Estranha? - perguntou o Filho do Homem. - E por que estranha? - Digamos que não é muito normal... O Galileu adiantou parte da resposta com um movimento negativo de cabeça. E voltou a nos interrogar. - Dizei-me, que entendeis por rezar? Aqui nos pegou. E ambos, humildemente, confessamos que jamais rezávamos. O Mestre então, sorrindo, afirmou contundente: - Pois já é hora! É muito fácil... A oração na verdade não é outra coisa senão uma conversa com a “centelha” que habita em vós. Vós falais. Conversais com Ele. Podeis expor vossos problemas e, sobretudo, vossas dúvidas. E Ele, simplesmente, responde. - E tu, Senhor, que problemas tens? Temos te observado e não tens parado de falar com Ele a manhã toda... - Bem – respondeu contente -, disso se tratava: de que captásseis também os “detalhes”. Quanto à tua pergunta, meu querido e indiscreto “ajudante”, eu não tenho problemas. Durante esses retiros, simplesmente troco impressões com Ele. Repassamos a situação e, digamos assim, eu me preparo para o que está por vir. - Genial! - exclamou o engenheiro. Uma reunião no “cume”! - Alguma coisa assim.
- Então – intervim desconcertado -, se bem entendi, quando tu rezas, quando falas com o Chefe, não pedes nada. - Pedir? Não, Jasão, com Ele isso é uma solene perda de tempo. Já ouvistes isso e eu repetirei muitas vezes. Ab-bã é AMOR. Lembra: com maiúsculas. Ele te sustenta e te dá... antes que tu abras os lábios. Tudo quanto te rodeia, o quanto tens e podes ter, é conseqüência de seu AMOR... Lembra?... - Sim, com maiúsculas. - Muito bem – riu satisfeito. - Vejo que aprendes rápido. E acrescentou contente: - Não sejais bobos! Quando falardes com Ele... deveis espremê-lo... Tirar dele o suco! Pedir unicamente informação e respostas! Nisso Ele não falha. Outra piscadela e, levantando-se, desculpou-se: - E agora, perdoai...Vou continuar “espremendo-o”. A segunda excursão, no dia 7 de setembro, foi – como eu poderia dizer?... - “especial”. Sim, especial e intensa como poucas... A princípio foi tudo bem. Normal. Ao redor da hora “tercia” (nove da manhã), o Mestre e estes exploradores nos reuníamos com o lençol de neve habitual, na cota “2.800”. O dia se apresentava esplêndido, embora um pouco mais frio que os anteriores. A brisa madrugadora, inexplicavelmente irritada, assobiava entre as pedras agitando as túnicas. Depositamos o saco com as provisões muito perto de um dos lençóis de neve e, de repente, meu irmão reparou em alguma coisa. Nós nos aproximamos e, curiosos, demos uma olhada na fileira de pegadas. Jesus inclinou-se sobre o imaculado manto de neve e, depois de uma breve examinada, comentou: - Um dob... As pegadas, nítidas e fundas, pertenciam de fato a um urso. Eram grandes. De quase 30 centímetros de comprimento por 20 de largura. As unhas apareciam igualmente claras e temíveis. Eliseu, com mais conhecimento nesse tipo de pegadas, chamou
nossa atenção sobre as almofadinhas digitais. Estavam muito juntas umas das outras. Aquilo, e o desenho do pé posterior, com o primeiro dedo mais curto, reafirmou a desconfiança do Rabi. Mas havia mais alguma coisa. Quase paralelas a essas pegadas, e a curta distância, vimos outras marcas gêmeas menores. - Um dob e seu filhote... O engenheiro e eu nos olhamos preocupados. O Mestre, ao contrário, nem se alterou. Ele nos deixou ali, perto das pegadas, e seguindo o costume, afastou-se um pouco, entregando-se à comunicação com Ab-bã. Naqueles momentos, verdade seja dita, eu lamentei não ter comigo a “vara de Moisés”. Eliseu continuou a investigação e, logo depois, voltou a me chamar. O novo achado confirmaria definitivamente nossa idéia. Sobre a neve, formando um grande montão, estavam fezes ainda quentes e tipicamente cilíndricas, de uns seis centímetros de diâmetro. Continham pedaços de ossos, pêlos, vegetais e alguns insetos. Fiquei alarmado. O animal, quase com certeza uma ursa, acabava de passar por ali, indo na direção oeste. Verifiquei o vento e, de certa maneira, fiquei mais tranqüilo. A brisa vinha do poente, estava a nosso favor. Talvez o animal não tivesse percebido nossa presença. O resto da manhã correu sem problemas. Jesus de Nazaré andou decidido e silencioso pelo lençol de neve, parando aqui e ali, sempre absorvido e com o rosto levantado para o céu.. Por volta da hora “sexta” (meio-dia) compartilhamos o almoço frugal: mel, queijo e fruta. O Mestre, de excelente humor, continuou falando do Pai e de sua intensa comunicação com Ele. Repetiu uma generosa porção de mel e retirou-se de novo a uma distância de cinqüenta ou sessenta metros. Nós continuamos observando-o. Mas, logo, o vento apertou. Eliseu levantou-se e, apontando a beira do bosque que estava próxima, animou-me a mudar de lugar, procurando assim melhor proteção contra o cada vez
mais desagradável maarabit. Agora, ao relembrar o oportuno e providencial gesto do meu companheiro, eu estremeço. O que teria acontecido se chegássemos a permanecer perto do lençol de neve? O Destino de fato é inexplicável. Umas duas horas mais tarde, já perto da “nona”, ouvimos um grunhido. A princípio tênue, distante... Eliseu e eu, movidos pelo mesmo pensamento, ficamos de pé, observando inquietos a fileira de árvores que fechava a nevada pelo flanco oeste. Instintivamente procurei o Rabi. Ele havia se deslocado alguns passos. Agora estava à nossa direita, de pé, sobre uma laje de pedra de uns 40 centímetros de altura e a uma centena de metros do saco de provisões. Tinha as palmas das mãos abertas em direção ao céu, e o rosto, como sempre, discretamente voltado para o alto. O vento, pertinaz, fazia ondear a túnica como uma bandeira. As provisões! De repente lembrei. A mochila, num descuido nosso, ficara aberta. E dentro, os restos da refeição: algumas maçãs, parte do queijo e o frasco de vidro com uma boa porção de mel líquido. E me perguntei. Teria sido fechado por Eliseu ao terminar o almoço? Não houve tempo para mais elucubrações... Aterrorizados, Eliseu e eu vimos aparecer entre os cedros um formidável exemplar de urso sírio, uma subespécie do ursus arctus, o célebre e temido urso pardo. Podia ter uns dois metros de comprimento, com um peso não inferior a duzentos quilos. Num primeiro momento o animal parou. Levantou a enorme cabeça e cheirou. O maarabit, o vento do oeste, por sorte, não lhe deu nenhuma pista sobre os humanos que estavam na frente dele. Contudo, temeroso, ficou atento a qualquer barulho. Olhei o Mestre. Continuava imóvel. Alheio. Absorto.  Meu companheiro, pálido, me fez um sinal. Avisávamos o Rabi? Tentei pensar rápido. O que faríamos? Podíamos ir ao encontro do animal e obrigá-lo a fugir, com gritos e pedras. O método, contudo,
não me convenceu. Esses animais são imprevisíveis. Se atacássemos, corríamos o risco de cair debaixo de suas garras. Umas garras negras e afiadas, de quase quinze centímetros de comprimento. Mas não foi esse hipotético perigo o que me fez decidir a continuar mudo e imóvel como uma estátua. Nós, afinal, estávamos protegidos pela “pele de serpente”. Foi a possibilidade de que o ursus pegasse Jesus e isso, definitivamente, me deixou pregado no chão. Pedi calma e, com sinais, fiz ver ao meu amigo que era melhor não fazer nada. Ele me olhou atônito. E voltou a dirigir seu dedo ao Mestre. Neguei com a cabeça e, prevendo uma súbita e mais que provável reação de Eliseu, eu o segurei pelo cinto, retendo-o. Naquele momento crítico, atrás do vigilante plantígrado, entrou em cena um segundo personagem: um ursinho de uns seis meses, de pelugem igualmente espessa e avermelhada, brincalhão, inquieto, e sobretudo, curioso. Ao vê-lo, verdade seja dita, eu me alegrei de não ter ido ao encontro da ursa. Naquelas circunstâncias, com uma cria sob sua proteção, a reação da mãe poderia ter sido muito mais violenta e temível. Finalmente, convencida de que o lugar estava vazio, ela avançou lenta e vacilante, com o típico furta-passo. O ursinho, confiante, passou por ela e, correndo, tomou a direção onde estava o Mestre. Mas um súbito e oportuno grunhido da ursa estancou o bichinho. Olhou para a mãe e, pulando e volteando na neve, esperou por ela. Meu coração, quase parado, avisou. Se o urso sírio não mudasse de rumo, iria passar bem perto da laje onde continuava Jesus. Mas como era possível? O Galileu continuava alheio a tudo. Como não ouvia os grunhidos? De repente, gelando o pouco sangue que ainda circulava dentro de nós, a ursa parou de novo. Levantou o focinho e cheirou. E o vento agitou a longa pelugem do pescoço e do ventre. O que teria detectado? A paragem não respirava. Só o maarabit assobiava entre os
farelhões, tão aterrorizado quanto estes exploradores. O cheiro corporal de Jesus não chegava até a ursa. O vento, providencialmente, o impedia. Então... Eliseu, desarmado, tomou impulso, querendo entrar em cena. Agüentei como pude e, autoritário, pedi-lhe em voz baixa: - Quieto! Não devemos intervir. É uma ordem! Eu o vi apertar os punhos e morder os lábios com raiva. Mas obedeceu. O ursus, então, mudou de rumo e aproximou-se da sacola de viagem. As provisões! Acabava de descobri-las com o olfato! De fato, depois de examinar o conteúdo, introduziu a bocarra na mochila, dando boa utilidade à comida. A cria, entediada, continuou dando voltas. E numa daquelas curtas corridinhas quase topou com a pedra sobre a qual rezava o Filho do Homem. Eu estremeci. O ursinho, apesar da absoluta imobilidade de Jesus, captou alguma coisa e, curioso, foi rodeando a laje. Ao ficar contra o vento, a presença humana chegou-lhe em cheio. Ficou quieto. Intrigado. Olhou a mãe, mas esta, encantada com a ração de mel, não lhe deu a menor atenção. Então, decidido, levantou as patas, apoiando-as sobre a beira da pedra. Eliseu e este que aqui escreve ficamos trêmulos. As sandálias do Mestre estavam a escassos trinta ou quarenta centímetros das garras do filhote. Se as tocasse, o mais provável é que o Galileu reagisse. Nesse caso, o que aconteceria? O ursinho aproximou o focinho, cheirando a estranha e alta criatura. E nisso estava quando, de repente, a barra da túnica, agitada pelo maarabit, bateu na cara do animal, assustando-o. Não teve dúvida. Saltou para trás e, aterrorizado, correu na direção da ursa. Instantes depois, concluído o festim, o Ursus afastou-se por onde havia chegado, seguido de perto pela incansável cria. E nós os vimos desaparecer no intrincado bosque de cedros.
Respiramos. Uma hora mais tarde – por volta da “décima” (as quatro) -, Jesus abandonou seu isolamento, reunindo-se a estes assustados exploradores. Notou alguma coisa em nossas expressões e, de imediato, intrigado, perguntou o que estava acontecendo. Ao explicar-lhe, sorrindo maroto, exclamou: - Uma ursa? Aqui! E eu com estes cabelos!... Assim era aquele Homem. Aquele magnífico Homem. Definitivamente, o Galileu não havia percebido a presença do ursus. Seu poder de concentração, sua “linha direta” com Ab-bã – não sei como chamá-lo – era assombrosa. E diante do ocorrido na “piscina de gesso” e no monte nevado, eu voltei a me fazer a inquietante questão: era vulnerável? Estava sujeito, como o resto dos mortais, aos riscos da existência? Eu conhecia seu fim e, evidentemente, era um Homem sujeito à dor e à morte. Mas isso foi o final de sua vida na carne. E o que teria acontecido com as etapas anteriores? A verdade é que, refletindo sobre isso, não encontrei um único dado, com exceção da infância, que permitisse imaginar ou supor um Jesus doente ou em sério risco de vida. A curiosa circunstância – por que negar isso? - me deixou perplexo. Não era normal. “Alguma coisa” invisível parecia protegê-lo. Naquela mesma noite, depois do jantar, não pude resistir à tentação e toquei no assunto abertamente. - Não tenhas medo, Jasão – respondeu o Galileu, ratificando minhas suspeitas -, nada acontece, nem acontecerá, sem o consentimento do Pai. E acrescentou com aquela segurança de ferro: - Estou nas melhores mãos! Então, lembrando um velho acidente – sua queda pelas escadas externas da casa em Nazaré(1), quando só tinha sete anos – perguntei: - E o que me dizes da tempestade de areia que provocou aquele
perigoso tropeço? Tu podias ter morrido... A alusão à sua remota infância deve ter lhe trazido gratas lembranças. Isolou-se alguns segundos e, finalmente, sorrindo, exclamou: Fizeste um bom trabalho, meu querido embaixador, mas lembra minhas palavras: a vida é para ser VIVIDA. Com maiúsculas... E vim também para experimentar a existência humana. Tudo foi minuciosa e escrupulosamente medido. Estava claro. *1. Informação sobre esse fato em Operação Cavalo de Tróia 3, pp. 413 e ss. (N. Do a.)
Eliseu interveio, interpretando as palavras do Mestre “à sua maneira”, como sempre. - Queres dizer que um anjo te protegeu? - É mais complexo, mas serve... Meu irmão não deixou passar a excelente oportunidade e atacou. Aquela, se eu me lembro bem, era uma das quase cem perguntas que tinha preparadas. - Então reconheces que os anjos existem... Jesus o contemplou assombrado. - Rapaz... estás surdo? - Ainda não, Senhor... - Quantas vezes terei que repetir isso? O reino de Ab-bã é um fervilhar de vida. - Ou seja, existem! - E em tal quantidade – respondeu o Mestre resignado diante da impetuosidade do engenheiro -, que não há medida na terra para somá-los. - E como são? - Por que não esperas para comprovar por tua própria conta? - Ah!, então eu os verei quando passar para o “outro lado”...
- Ao “outro lado”? - Já me entendeu, Senhor... Quando morrer. - Claro, meu querido “ajudante”. Isso é o estabelecido. - Têm asas? Eliseu, quando queria, virava um terremoto. - Asas! Como os pássaros? - Como os pássaros... Jesus olhou-me e, suspirando, comentou derrotado: - De onde tiraste ele? É sempre assim? Concordei com um sorriso. - Se queres imaginá-lo com asas... muito bem. Quando passares ao “outro lado”, como tu dizes, vais ter uma surpresa. Hesitou e, sem perder o sorriso, retificou: - Ou melhor dizendo, um susto... - São feios? - Menos que tu, querido “destroça-patos”... - Então são bonitos... O Mestre voltou a me olhar e murmurou: - Incorrigível! Maravilhosamente incorrigível! E, tão resignado como Ele, concordei de novo. - Bonitos? - insistiu meu amigo, percebendo que alguma coisa desencadearia as risadas do Rabi. - E não tem bonitas? - Os anjos são criaturas de luz. Pertencem a essas “outras realidades” das quais te falei. Não dispõem de corpos físicos. Foram criados na perfeição e não sabem de sexos. São uma “realidade” muito parecida com a que vos aguarda no “outro lado”... Interrompeu a explicação e, assentindo com a cabeça, falou consigo mesmo: - O “outro lado”... Eu gosto da definição. - E se não têm sexo, como se divertem? - Não sejas vulgar! - eu o repreendi.
- Não faz mal – disse Jesus. - Eu gosto de sua naturalidade... Filho meu, agora não estás capacitado para entender, mas existem outros prazeres imensamente mais intensos e gratificantes que o sexo. Eu te garanto que, no “outro lado”, não vais ficar entediado... Tentei reconduzir a conversa e perguntei: - E esses seres de luz, cuidam dos humanos? - Alguns sim. Não todos. - O famoso anjo da guarda! - Os famosos anjos, Jasão, no plural... O comentário, logicamente, nos deixou confusos. E Eliseu o abordou: - No plural? Quantos temos? - Essas deliciosas criaturas são criadas sempre em duplas. São dois em um. Cada mortal que o merece, portanto, recebe um guardião duplo. - E por que dois? - Coisas de Ab-bã. Tu sabes, Ele tem muita imaginação... Uma das afirmações não passou em branco para estes exploradores. E Eliseu e eu insistimos de novo na pergunta: - Cada mortal que o merece? Que queres dizer com isso? - Observai atentamente: sempre voltamos ao princípio. Sempre se volta à mensagem chave: colocar-se em suas mãos, fazer sua vontade, desencadeia uma força avassaladora e magnífica. Muito bem, o homem toma essa suprema decisão, uma dupla de serafins é destinada imediatamente à guarda do pequeno Deus. E o acompanhará até a presença do Chefe... e mais adiante. - Um momento – gritou o engenheiro desconcertado. - E o que acontece com os que nunca quiseram... ou, até, não puderam fazer sua essa grande decisão? - Meu Pai, eu também te disse isso, tem outros métodos e caminhos. O Amor não distingue. Vós quisestes saber uma coisa concreta e eu já respondi.
- Vamos ver – intervim, tentando ser o mais preciso e certeiro possível. - Isso quer dizer que uma mente subnormal, por exemplo, se acha indefesa? O Mestre, lendo meu coração, se apressou a negar com a cabeça. Adotou um tom mais grave e esclareceu: - Não, filho meu. Dessas criaturas cuidam especialmente os anjos a serviço de Ab-bã. E sublinhou com ênfase: - Especialmente! - Em outras palavras – arrisquei -, ninguém fica sem proteção. - Querido Jasão, o dia em que descobrires até onde chega o Amor do Pai, essa reflexão te deixará constrangido. - Mas, Senhor, não entendo. Se toda criatura humana é guardada e vigiada, que significado tem essa dupla de anjos que aparece quando se toma a decisão de fazer a vontade de Ab-bã? - Muito simples. Eu te disse que o Amor é dinâmico. Se tu prosperas, o amor prospera... - Entendo – resumiu Eliseu. - Essa dupla “extra” é um luxo. - Deus é um luxo. Um contínuo e inesgotável luxo. - E tu, Senhor, como ser humano, quantos anjos tens a teu lado? O Galileu, alegre, olhou ao seu redor... - Só vejo dois... Ingênuo, Eliseu não captou a brincadeira. - Dois? E como são? Primeiro, apontando para ele, exclamou entre risadas: 437 - Um deles... é um “destroça-patos”. Depois, dirigindo-se a este que aqui escreve, rematou: - O outro, um “lava-pratos”. Não insistimos. Pouco a pouco fomos aprendendo. Esse tipo de “respostas” marcava quase sempre um ponto final no assunto que discutíamos. Por razões para nós desconhecidas, alguns dos temas que vinham à luz não eram resolvidos pelo Mestre como teríamos
desejado. Lembro-me de que uma vez, em plena vida de pregação, eu me atrevi a interrogá-lo sobre esse particular. E Ele, afetuoso, colocando as mãos sobre meus ombros, sentenciou: - Meu querido anjo, a revelação é como a chuva. Em excesso só traz problemas. Deixai-me fazer... Minha intuição diz que o que me disponho a relatar em seguida, muito provavelmente, é um dos capítulos mais sugestivos e transcendentais de tudo quanto venho narrando neste pobre e apressado diário. Como eu gostaria de dominar a pena! Daria o pouco que me resta de vida para saber reproduzir aquelas belas e esperançosas palavras tal e qual Ele as pronunciou. Mas sou humano (ainda). Não sei se acertarei. Foi mágico. Nem eu nem meu irmão procuramos isso. Brotou em seu devido momento. Ele, certamente, sabia... Lembro-me de que eu estava dentro da tenda. Foi ao entardecer do dia seguinte, 8 de setembro. Acabávamos de voltar da terceira e última excursão ao cume da montanha santa. O Mestre e meu companheiro se ocupavam da preparação do jantar. Eu aproveitei aqueles minutos e repassei as anotações do dia anterior. De repente – não sei por que – parei numa das frases de Jesus. Curioso. Este explorador a tinha sublinhado. O Mestre, referindo-se aos anjos, assim se expressou: “São uma realidade muito parecida à que os aguarda no céu.” Fiquei pensativo. Naquela altura, o tema da morte era uma coisa que não me agradava. Contudo, obedecendo talvez a um impulso do subconsciente, eu ressaltara essa frase. Estava nisso, contemplando a dita frase com perplexidade, sem nenhum aviso, vi aparecer o Galileu no interior do refúgio. Parecia distraído. Ele me olhou. Sorriu e desculpou-se: - Olha só! Entrei na tenda errada. Desculpa. Procuro o sal... Deu meia volta e foi saindo. Mas, de repente, parou. Girou a cabeça e, apontando meus escritos, exclamou:
- Eu não disse, remáyin... Quando reagi, ele havia desaparecido. Remáyin! Fui direto ao diário e, atônito, descobri que, de fato, a referida frase dos anjos estava errada. Jesus de Nazaré nunca falou de “céu” (.remáyin), mas sim de “outro lado” (ohoran atar). Claro que acabei rindo sozinho, como um bobo. Ele errara de tenda? Nunca acreditei nisso. Perguntar como fazia essas coisas Nem pensar. Simplesmente, fazia... Minutos depois, reunidos ao redor do fogo, o Rabi, dando-me uma piscadela, perguntou: - Tinha ou não tinha razão? E eu, como um idiota, respondi: - Sim, mas no fundo dá na mesma... - Não, Jasão. O céu, tal e como vós o interpretais, tem pouco a ver com o “outro lado”. E assim, magicamente, começou a falar de “alguma coisa” que eu nunca quisera enfrentar. Uma realidade, contudo, da qual ninguém escapa. Meu irmão, percebendo parte do acontecido, deu de bandeja o tema para Jesus: - Já que falas da morte, Senhor, dize-me: não te assusta? A resposta foi categórica. Fulminante. - Responde primeiro a outra pergunta: te assusta dormir? - Não, mas não vejo a relação... - É a mesma coisa. - Morrer é dormir? - Assim é, meu querido “ajudante”. Só isso. - E depois? - Depois... a vida! A palavra utilizada pelo Galileu – hay – não deixava dúvida
alguma. Hay = vida. - Um momento – despachou Eliseu, muito consciente da gravidade do que se discutia ali -, falas sério ou em parábola? Jesus segurou o riso. - Muito sério... - Certeza? - Toda certeza! - Repete outra vez. Isso é certo? O Mestre esperou alguns instantes. Apagou todos os sinais de sorriso e com a fisionomia grave, muito grave, exclamou: - Yassib! Para esse termo aramaico, que eu saiba, só existem duas traduções: “certo” e “verdadeiro”. - Certo! - Repetiu o Rabi -, eliminando qualquer desconfiança. Silêncio sepulcral... Não havia melhor definição. Eliseu e eu nos olhamos. Diante de semelhante e categórica afirmação, só cabia acreditar ou não acreditar. O problema era que aquele Homem jamais mentia. Se Ele garantia que depois da morte existe vida... não tínhamos alternativa. Existe vida! O engenheiro, sincero, suspirou: - Como eu gostaria de acreditar em ti! Jesus então foi ao seu – ao nosso – encontro sem titubear: - Vós, precisamente, sabeis melhor que ninguém..... Por que agora essas dúvidas? - É que é muito forte, Senhor. - Sim, eu sei. Essa é outra das razões da minha presença entre os seres humanos. Quando chegar o momento... já sabeis a que me refiro, verão com seus próprios olhos. O Filho do Homem será visto ressuscitado dentre os mortos. E o verão de uma forma idêntica à que todos vós desfrutareis depois do sono da morte. - Mas, Senhor, tu és Deus. Tu, sim, podes fazê-lo. Nós, ao contrário...
- Não, filho meu. Minha ressurreição colocará às claras a glória do Pai, mas também terá uma segunda e não menos importante justificativa: a esperança. Eu te disse: sois imortais. Sereis ressuscitados. - Seremos? Por quem? - Justamente pelos meus anjos. - Pelos pássaros? - Pássaros? Que pássaros? Entrei na conversa, advertindo o meu companheiro. Não era o momento para brincadeiras. Jesus, contudo, me repreendeu. - Querido amigo, deixa que teu irmão se expresse. Quanto mais acima estiveres no caminho em direção ao Chefe, mais gostarás do bom humor. Quanto mais importante e sério um assunto, mais precisa de humor... O senso de humor, não esqueças, não foi inventado pelo homem. É coisa dos céus. Eliseu, sentindo-se importante, desceu aos detalhes. E eu, sinceramente, agradeci. - Mas, onde, como? O Mestre, feliz, pediu calma. E foi soltando algumas informações. - Lembras “Na casa do meu Pai existem muitas moradas...” Concordamos impacientes. - Pois bem. No meu reino há algumas estâncias... digamos que “especiais”, nas quais voltais à vida. A verdadeira vida. Ele nos observou contente. ... Depois da morte, depois desse sono fugaz, aparecereis em um mundo diferente... - Com casas, árvores, rios? - Sim, meu impulsivo amigo, igual a este... mas diferente. - Já disseste isso muitas vezes, Senhor... Captei o erro involuntário e retifiquei. - Perdão, dirás isso muitas outras vezes... “Quando chegar a hora despertareis num mundo que nem sequer podeis intuir.” Agora dizes
que é igual a este, mas diferente. Não entendo... - É lógico, Jasão. Dizei-me uma coisa: consegues imaginar corpos, matéria, que são e não são matéria? Estais capacitados para compreender uma besar (carne) que além do mais é or (luz)? Carne e luz ao mesmo tempo? Não, não éramos capazes de assimilar esse conceito. - A isso eu me refiro – continuou o Rabi fazendo um esforço para aproximar as palavras à nossa curta inteligência – quando vos digo que esse esplêndido mundo é igual, mas diferente. - Matéria e luz! De repente, Eliseu, lembrou uma coisa que discutimos longamente no cume do Ravid. E, sem delongas, expôs sua teoria original e ratificante sobre “Mat-1”. O Mestre ouviu atento e visivelmente comovido. Quando Eliseu concluiu, simplesmente sorriu, aprovando sua hipótese com vários e afirmativos movimentos de cabeça.  Foi suficiente. Meu amigo, entusiasmado, deu um pulo e, apertando os punhos, gritou: - Eu sabia!... Metade matéria, metade luz! O Rabi, contudo, interveio, esfriando um pouco seu entusiasmo: - Mais ou menos, querido “ajudante”. Mais ou menos... Em seguida, ligando o tema com uma coisa que repetiria até a exaustão, advertiu: - Compreendeis agora por que vos peço com tanta insistência que VIVAIS a vida? Entendeis por que eu disse que estou aqui para experimentar a existência humana? - Deixai-me adivinhar. Parece simples... Olhei para minhas mãos e me arrisquei. - Esta forma de vida é única. Lá, nesses mundos especiais, teremos outros “corpos”... diferentes. Não poderemos viver como agora. A isso te referes? Estás falando, Senhor, em apreciar e aproveitar esta oportunidade? Estás dizendo que VIVaMOS a vida porque não desfrutaremos de outra semelhante? Não respondeu. Ele nos deixou
em suspense por alguns segundos e, ao perceber nossa ansiedade, sorriu feliz, exclamando: - Perfeito, Jasão! VIVEI intensa e generosamente. Saboreai a vida. Desfrutai cada instante. Sabei que esta oportunidade, como dizes, é única. Nunca voltareis a este estado(2). Amai a vida. Respeitai-a. *2. As afirmações referentes a encarnação ou reencarnação são de responsabilidade exclusiva do autor. (N. Da Editora Mercuryo.) Compartilhai-a. Usai-a com inteligência e moderação. Eu vos dou um presente do Pai. Meu irmão então explodiu como um vulcão, interrogando-o sem trégua: - E aí, Senhor, o que devemos fazer? - Estou te dizendo, mas não ouves: acordar. - Mas para quê? - Para a verdadeira, a definitiva vida. Aí começas. Aí disparas em direção ao Pai. - Lá se trabalha? - Claro que sim, embora a princípio todos vós necessitais de uma “limpeza”. Notou nosso espanto e esclareceu: - Quando estiverdes acordados nesse mundo, tudo, praticamente, será idêntico ao que acabais de deixar aqui. Eu vos repito: é um simples despertar. Mas os defeitos e vícios da natureza humana continuarão pesando... em parte. E os meus se ocuparão então de “limpá-los”. Não vos preocupeis: a “cura” é rápida e indolor. Compreendei: nessa outra realidade não cabe a densa e incompetente herança que arrastais. Sereis preparados para um longo, muito longo caminho em direção ao Chefe. Um caminho cada vez mais esplêndido. Um caminho no qual, pouco a pouco, a luz irá dominando a matéria. E chegará o dia em que só sereis isso: luz. - Então veremos o Chefe... - Tranqüilo, rapaz! Verás o “Barbudo”... no seu devido tempo. - Metade luz, metade matéria... E como se sustenta essa matéria?
Come-se do “outro lado”? Jesus parecia estar esperando a pergunta de Eliseu. - Se come e se bebe... mas não como tu acreditas. Meu irmão e eu nos olhamos mais uma vez. E tivemos o mesmo pensamento. Essa afirmação do Rabi coincidia com aquilo detectado por nós durante a aparição.número 14 do Ressuscitado, na manhã do sábado, 22 de abril do ano 30, na colina da “Ordenação” (hoje chamada das Bem-Aventuranças). Naquela ocasião, o instrumental do “berço” detectou no “corpo glorioso” uma clara ausência de sistemas circulatório e digestivo, tal como os conhecemos na Terra. Ele não o disse, mas este que aqui escreve fez suas próprias deduções: quem sabe nesse mundo novo, nesse novo estado – em “MAT-1”, como dizia meu companheiro -, os “alimentos”, integrados por essa enigmática substância (metade matéria, metade energia [?)), fossem absorvidos total e absolutamente. Em outras palavras, uma “alimentação” sem dejetos. Francamente, fiquei maravilhado. Quanto à falta de aparelho circulatório, se eu aceitava as palavras do Mestre, e eu as aceitei, claro, a explicação (?) podia ser muito parecida. Embora a ciência ainda não esteja capacitada para entender isso, quem sabe esses “corpos” não tenham necessidade de respirar. Ou, se o fazem, talvez se nutram de oxigênio (?), ou do que for, por contato direto da “pele” (?) com o meio ambiente (?). Eu sei, puras especulações. Contudo, foi nessa direção que apontaram as respostas do Filho do Homem. Como dizia o Mestre, “quem tiver ouvidos...”. - Então – insistiu o engenheiro -, se come e se bebe... Jesus concordou em silêncio, mas não deu mais esclarecimentos. Simplesmente, limitou-se a repetir o que já fora dito. - Sereis como anjos... - Com esposa ou sem esposa?
- Querido “destroça-patos”, por favor, ouça quando falo... - Eu ouço, Senhor... - Então, estás surdo. - Não – entrei sarcástico -, é bobo mesmo... - Silêncio, “lava-pratos”! - Haja paz!. Eu te dizia que nessa nova realidade não se precisa de sexo, tal como o entendeis na Terra(3). Ali não existem essas inclinações. Entre outras razões, porque a carne, o corpo material não passa ao  “outro lado”. Aqui fica e aqui desaparece. *3. Ampla informação sobre o “corpo glorioso” em Operação Cavalo de Tróia 3, pp 337 e ss. (N. Do a.)
- Maravilhoso! - exclamou Eliseu. - Então, se não tem esposa, tampouco tem sogra... O Mestre levantou os braços, exclamando: - Eu me rendo! - Não, por favor... Prenderei a língua, mas continua falando... Aproveitei a brecada do engenheiro e me interessei por um ponto que ainda não terminara de assimilar. Um entre muitos, é claro. - Dizes que somos imortais. Assim nascemos. Então por que não ressuscitamos por nós próprios? Por que precisamos dos teus anjos? Jesus tropeçou de novo no grande problema: a limitação da mente humana. Eu ansiava saber, mas reconheço que talvez estivesse me aventurando em questões que iam muito além do meu parco conhecimento. Ainda assim, o Rabi tentou. - Filho meu, não é muito o que te posso dizer... Por enquanto. Há criaturas do tempo e do espaço que nem sequer têm inteligência. Por múltiplas razões se vêem privadas de um mínimo de espiritualidade. Muito bem, segundo o estabelecido por Ab-bã, esses humanos não são “despertados” depois da morte. Devem esperar, num sono coletivo, que chegue sua hora. E não perguntes mais. Aceita minha palavra.
Um sono coletivo? Acho que entendi então uma das misteriosas frases do Ressuscitado, pronunciada em 5 de maio do ano 30, na aparição na casa de Nicodemos, na Cidade Santa: “... Mais que por isto (referia-se à ressurreição), vossos corações deveriam estremecer é pela realidade desses mortos de uma época que empreenderam a ascensão eterna pouco depois que eu abandonei o túmulo de José de Arimatéia...” - Só um problema, Senhor. Muitos outros seres dispõem desse mínimo de inteligência e espiritualidade. Por que não ressuscitam por si próprios? - Já falámos nisso, meu querido e esquecediço anjo. Sois imortais, sim, e por direito próprio. Assim o quis Ab-bã. Mas não confundas imortalidade com vida. - Não compreendo... Não é a mesma coisa? - Sim e não. A vida sempre precede a imortalidade. Esta, de forma definitiva, depende daquela. E não esqueças que a vida é uma prerrogativa do Pai. Eu disponho desse poder por sua imensa generosidade. Vós, ao contrário, não estais capacitados para colocála em pé... Meu irmão o interrompeu. - Queres dizer que o homem nunca criará a vida? - Assim é. Enquanto pertencer ao reino do material... nunca conseguirá fazer isso. Nunca! Aquele “nunca!” soou contundente. Eu dizia até premonitório. Um aviso... para nosso mundo. E acrescentou com idêntica contundência: - Não esqueçais: a vida é sagrada. E patrimônio do Pai. Abortá-la, suprimi-la ou feri-la é um desprezo a quem a entrega... gratuitamente. Mensagem recebida. E Eliseu, desejoso de retomar o tema capital, voltou a atacar: - Senhor, se o corpo fica aqui, na terra, o que acontece com a
memória? Quando passar ao “outro lado”, quando teus anjos me ressuscitarem, lembrarei deste “lava-pratos”? O Mestre, suavizando o tom, respondeu: - No “outro lado”, lembrarás e serás lembrado. Reconhecerás e serás reconhecido. Nenhuma das tuas qualidades se perderá. Vacilou um instante e, sarcástico, ponderou: - Esta de “ajudante” de cozinha... não sei. - Lembrarei de tudo? - Tudo o que valer a pena. Tudo o que te emocionou e serviu para progredir. O resto, as tendências puramente animais, os vícios e defeitos desaparecerão com o cérebro físico. - Santo Deus! - exclamou Eliseu desconsolado. - Então, minha sogra vai me reconhecer. Jesus entrou na brincadeira. - Vai te reconhecer e te perseguir... - A propósito, senhor, veremos lá os nossos pais? - Claro que sim, Jasão. Teus pais e todos teus entes queridos. Eles te ajudarão, mas, insisto, aquele lugar não é como este. Lá não existem laços familiares, tal como vós os interpretais aqui na Terra. Nesses mundos não há lugar para conceitos como “pai”, “família”, “esposa” ou “filhos”. Sois como anjos! Ele nos olhou e ao perceber certa decepção em nossos rostos, esclareceu: - Nessa nova realidade em “MAT-1” como tu dizes, o Amor é tão pleno, intenso e limpo que os pequenos Deuses não sentem falta dos antigos e limitadíssimos afetos humanos. Vossa alma livre, ficará tão deslumbrada que nada do que agora considerais vos fará sombra. Eu vos repito: tereis entrado numa aventura fascinante. O Mestre, ao se referir à alma, empregou um termo – nismah – que me confundiu. O vocábulo, em aramaico, significa “espírito ou alento”.  E, não sei por que, eu o associei à “centelha” divina, Ab-bã. E perguntei: - “Centelha” e alma imortal são a mesma coisa? O Rabi, impotente diante da anemia das palavras, deu um ruidoso suspiro. E tentou
descer ao nosso nível. - Não, Jasão, não são a mesma coisa. Mas não te atormentes. Tudo será revelado... em seu devido momento. Essa presença divina, a “centelha”, quando morreres, se ocupará de guardar tua memória. Teu dikron. Ela a manterá a salvo até o momento de tua ressurreição. De novo Jesus leu o meu íntimo e corrigiu: - Eu disse dikron (memória), não bal (mente). Esta, como parte integrante do teu cérebro físico, se dissolverá com o corpo. Então, retomando a minha pergunta, completou: - A alma imortal é outra criatura, independente da memória e da mente física. E essa, a nismah, é acolhida depois da morte pelo teu anjo da guarda. Ele cuida dela e a conserva, também até o sublime instante da ressurreição. Palavras difíceis, eu sei, mas eram suas palavras. E acreditamos no que dizia. Sorriu compassivo e reiterou: - Tende calma. Meu Pai é sábio. Ele sabe... - Alma imortal... “centelha” divina... mente humana... memória... Senhor, que confusão! - Querido “ajudante”, confia em mim. - Senhor – eu o interroguei perplexo -, o que acontece no instante exato da ressurreição? - Simples: alma e memória se reúnem. E caminham juntas... para sempre. - E a “centelha”? - Eu também já te disse isso: não te abandona jamais. É o terceiro “viajante” a caminho da Perfeição. - E essa viagem, Senhor, quanto tempo dura? - Se eu expressá-la em termos humanos, querido “ajudante”, não compreenderias. - Vou achar tudo muito chato? - Duvido...
- E quanto tempo permanecerei como “MAT-1 “? - O tempo justo e necessário. Não muito... - Senhor, o que está acontecendo contigo? Estás muito lacônico. - Compreendei. Não é bom que eu fale demais. Eliseu, como sempre, não ouviu. - E depois? O que acontecerá quando, enfim, eu for um “homemluz”? - Surpresa! - Já entendi... Verei o Chefe. O Mestre, maldoso, negou com a cabeça. - Não? Então está muito longe! - A propósito, Senhor – eu entrei de novo na conversa, levantando um assunto que, pelo menos para mim, ainda não estava claro -, nesses mundos, ao passar de um “MAT” a outro, morre-se de novo? O Galileu sorriu e, olhando para mim como se eu fosse uma criança, sentenciou contundente: - Não. - Então, só se morre uma vez... - Exato. Eu já vos disse: Ab-bã é poderoso, mas prefere a imaginação. Compreendeu nossa confusão e, apontando as estrelas, exclamou: - Dizei-me: sabeis de alguma coisa na natureza que se repita? Silêncio. Eliseu e eu tentamos achar essa alguma coisa. - Não – eu desisti -, que eu saiba, nada é igual. - Muito bem, Jasão. E por que o fenômeno da morte seria uma exceção? Teu Pai “sabe”... - Senhor, mas tem uma coisa que me intriga... O Mestre e eu começamos a tremer. - Por que ninguém volta depois da morte?
- Estás enganado. Eu o farei. - Não é isso... Eu me refiro ao “destroça-patos”. - São as regras. Vós também tendes as vossas... - Que céu mais estranho... - Não, meu querido “ajudante”, isso não é o céu. Eu vos disse: tendes uma idéia equivocada. O céu, o Paraíso, está muito além. Agora é impossível para vós entender sua autêntica natureza. Nos mundos que vos aguardam depois da morte só podereis intuir essa imensa, imensa maravilha. - Bendito Deus! - explodiu meu amigo. - Como vamos transmitir tudo isso ao nosso mundo? A ciência não vai aceitar. - Meus queridos filhos: deixai a ciência em paz! Não estais aqui para convencer ninguém. Só para transmitir. Deixai que a verdade toque os corações. Basta isso. Eliseu, teimoso, não aceitou. Então, relembrando o vôo da bela mariposa que pousou sobre seu ramo, Jesus de Nazaré deu um exemplo eloqüente: - Meus queridos, a filosofia que rege os universos não pode ser entendida pela inteligência material. Não vos preocupeis... “Respondei-me: se os cientistas não tivessem a possibilidade de comprovar a metamorfose de uma mariposa, aceitariam que essa criatura tinha sido primeiro uma lagarta? Deixai que eles passem ao outro lado. Então verificarão que as leis que governam essas outras realidades são tão físicas e rígidas como as leis do tempo e do espaço. A surpresa, então, os deixará perturbados. Eles, as lagartas na Terra, terão se transformado em mariposas ágeis e deslumbrantes. Vós sois testemunhas. O Filho do Homem, uma lagarta, fará o milagre e se transformará em mariposa. “Insisto: limitai-vos a ser mensageiros da minha palavra. - A propósito, Senhor, já que o mencionas, temos uma ligeira idéia, mas gostaríamos de confirmar... O que aconteceu, perdão, o que acontecerá com teus restos mortais? Como desaparecerão do túmulo? - Coisas de anjos...
Esboçou um sorriso maroto e acrescentou: - Terás que perguntar isso a eles. Eu não tive nada a ver. Hesitou alguns instantes e completou: - Melhor ainda, interrogai-vos a vós mesmos. De certo modo também sois anjos e conheceis essas “técnicas”. Entendi. Quase sem palavras, o Mestre vinha ratificar nossas suspeitas. Sua ressurreição, seu retorno à vida, nada teve a ver com o fato físico da “dissolução” (?) do cadáver. O misterioso desaparecimento do corpo obedeceu, muito provavelmente, a uma “manipulação” (?) do tempo. Alguém, seus anjos, “condensou” ou “concentrou” em décimos ou centésimos de segundo os anos que teriam sido necessários para finalizar um processo normal de putrefação. E a matéria orgânica, magicamente, se extinguiu. O Mestre, confirmando minhas apreciações, concluiu assim: - Minha ressurreição não depende de ninguém. Eu sou a Vida. Não deveis cair no erro de associar esse gesto de piedade e respeito, por parte dos meus, com a realidade da minha volta à vida. Mensagem recebida. E exclamou, encerrando aquela inesquecível conversa: - Enchei-vos de esperança! A morte é só um sonho! Sois imortais por expresso desejo de Ab-bã!... Sois filhos de um Deus! Transmiti isso! Transmitir a esperança? Serei capaz? Que Ele me ajude...
QUARTA E ULTIMA SEMANA NO HERMON Foi a mais dura. A mais tensa e angustiante. Foi, praticamente, uma semana sem Ele. É curioso. Teoricamente – segundo as normas -, éramos simples observadores de outro “agora”. O Cavalo de Tróia proibia terminantemente: nada de afetos, nada de laços com gente daquele tempo histórico. Muito bem, não conseguimos isso. Jesus de Nazaré
nos cativou. Aquele Homem-Deus penetrou em nossos corações e, simplesmente, nós o amamos. Pouco importava a operação. Nunca nos arrependemos. Por isso mesmo, aqueles dias derradeiros no cume da montanha santa representaram um suplício extra. E não porque o Mestre, ou nós, sofrêssemos algum percalço, mas justamente, repito, por sua repentina saída do mahaneh. Segundo consta no meu diário, aconteceu no amanhecer do domingo, 9 de setembro. O Galileu nos reuniu e, com uma expressão séria, anunciou: - Escutai atentamente. Agora devo deixar-vos por alguns dias. É preciso continuar ocupando-me dos assuntos do meu Pai... Ficamos alarmados. Nem o tom nem o semblante eram habituais. Parecia preocupado. Muito preocupado... - Esperai tranqüilos. E concluiu com algumas palavras que não entendemos: ... É a hora do rebelde e do príncipe deste mundo... Ponto final. Nós o vimos carregar algumas provisões, pegar seu manto cor de vinho e, sem se despedir, desaparecer entre os cedros, rumo à nevada. O que acontecia? A que se devia aquela brusca mudança? Horas antes, enquanto compartilhávamos o aconchego do fogo, o Mestre havia estado alegre e comunicativo. Eliseu e eu discutimos o assunto. Passamos horas tentando esclarecer o enigma. Éramos os responsáveis pela súbita partida? O que tínhamos feito? O que podíamos ter dito para que, na manhã seguinte, se mostrasse tão sério e distante? Este que aqui escreve negou-se a aceitar que tivéssemos sido os causadores de tão estranha atitude. Suas palavras, além disso, apontavam em outra direção. Não, aquele não era o estilo do Rabi. A bem da verdade, pelo que já tínhamos visto e ainda veríamos ao longo de sua intensa e apaixonante vida de pregação, Jesus de Nazaré dificilmente ficava aborrecido. Que eu me lembre, só uma vez ele ficou alterado e com
razão. Foi no átrio dos Gentios, no Templo da Cidade Santa, quando soltou o gado destinado ao sacrifício, provocando uma catástrofe entre os comerciantes e cambistas. Meu irmão ficou em dúvida. E chegou até a se culpar, atribuindo o acontecido às suas “perguntas bobas e infantis”. Eu fiz o que pude. Lembrei-lhe mais uma vez as frases do Galileu: “Esperai tranqüilos... Agora devo deixar-vos por alguns dias.” Foi tudo inútil. Eliseu passou aquela semana numa constante tensão. Mal dormia. Subia em cima do dólmen e tentava enxergar seu ídolo. Em duas ocasiões eu o surpreendi preparando a mochila, disposto a sair atrás do Mestre. Discutimos de novo. E precisei de todo meu poder de persuasão para retê-lo. Ainda assim, às escondidas, ele se aventurava pelos bosques próximos, sempre à procura de Jesus. Quanto a mim, pouco tenho a contar. Aliviei a ansiedade escrevendo freneticamente e, naturalmente, vigiando o aturdido engenheiro. E a vida no acampamento continuou sem incidentes dignos de nota, exceto o já mencionado e um par de inesperadas “visitas”. A primeira foi na noite da quarta-feira, dia 12. Para falar a verdade, ficamos assustados. De repente fomos acordados por uns grunhidos. Saímos e, no meio da escuridão, distinguimos sombras. Davam voltas ao redor da tenda do Mestre. Peguei o cajado e, ao nos aproximarmos, dois dos vultos sairam correndo em direção às “cascatas”. O branco fugaz de algumas presas longas e curvadas nos deu um indício. Indecisos, paramos. Javalis! Uma família inteira havia penetrado no mahaneh. Adverti Eliseu. Alguma coisa se mexia no refúgio de Jesus de Nazaré.
E os fatos se precipitaram... Meu irmão, ofuscado pelo desejo de reencontrar-se com o Rabi, interpretou aquela agitação pouco usual no interior da tenda como uma inesperada volta do Mestre. E, desarmado, gritou: - Voltou! Jasão, os javalis o estão atacando! Não consegui segurálo. Ele correu na direção da entrada, gritando: - Mestre! Foi inevitável. Quase na entrada, foi literalmente arrastado pelo único e autêntico “visitante”: um chair de cabeça enorme que, alertado pelos gritos do engenheiro, saiu em disparada chocando-se com o corpo que lhe obstruía o caminho. E o não menos surpreso Eliseu caiu de costas e foi pisoteado por aquela flecha. Felizmente, a “pele de serpente” cumpriu sua função e meu amigo escapou ileso do encontrão. O pior viria depois... Na manhã seguinte, ao examinar o lugar, nós ficamos ainda mais espantados. Os vorazes javalis tinham dado cabo de boa parte das provisões. Mas o Destino, compassivo, veio ao auxílio destes desolados exploradores. Nessa mesma quinta-feira, dia 13, o jovem Tiglat reabastecia a pobre despensa, aliviando a penosa situação. A partir desse incidente com o chair, decidimos montar guarda durante a noite, iluminando a área com fogueira. Por um lado eu fiquei contente. A incursão dos javalis nos obrigaria a fazer turnos de vigilância que, de certa maneira, acabaram tornando a espera mais curta e divertida. Mas o infortúnio continuou rondando o mahaneh... Pouco depois, no transcurso da penúltima noite no Hermon, receberíamos uma segunda “visita”. Uma “visita” sigilosa e destruidora. Aparentemente, tudo correu normalmente. Nem Eliseu nem eu percebemos nada de estranho. Contudo, com as primeiras luzes do domingo, dia 16, descobrimos o novo desastre. Apaguei o fogo e, como de costume, antes de entrar para descansar, fui ao refúgio de peles do Mestre para inspecioná-lo.
Santo Deus! Eu não sabia se ria ou chorava. Era muito azar... Chamei meu companheiro aos gritos e, apontando o canto onde armazenávamos as provisões, pedi que examinasse. E ele assim o fez. Ao ver “aquilo”, retrocedeu perturbado e, pálido, perguntou: - O que é isso? O engenheiro sabia muito bem o que literalmente cobria as provisões. O que o deixou surpreso foi a quantidade e a ferocidade dos “visitantes”. Sinceramente, eu também não sabia explicar aquilo. Como tinham chegado ali Era incrível. Eram milhares! Dias mais tarde, “Papai Noel” daria a resposta precisa. Os mantimentos, pura e simplesmente, tinham sido infestados por uma multidão de Camponotus sanctus, uma insaciável formiga arbórea, dona e senhora dos bosques de cedros. Esses insetos, especialmente ativos durante a noite, deram um jeito de entrar na tenda, arrasando com as carnes, peixes e tudo quanto acharam desprotegido. Como é fácil imaginar, o resto da manhã foi consumido na vã batalha contra as avermelhadas e teimosas camponotus. E a despensa, outra vez, ficou quase a zero. Só se salvaram os ovos e os recipientes de sal, azeite, vinagre e mel. E nisso estávamos quando, de repente, ouvimos um longínquo e familiar cantarolar. Seria mais ou menos a hora “nona” (três da tarde). O Mestre! Verdade seja dita. A recepção foi quase cômica. Jesus veio ao nosso encontro e nos contemplou em silêncio. Ficamos como duas estátuas. Eliseu, perplexo, boca aberta, segurava nas mãos algumas hortaliças cobertas de formigas. Eu, do meu lado, tentava Limpar um punhado de tilápias curtidas, igualmente conquistadas pelas frenéticas camponotus. Era um Jesus diferente. Radiante. A habitual e penetrante luz de seus olhos agora aparecia multiplicada. Aquela figura nada tinha a
ver com a do Galileu que nos deixara uma semana antes. Mais ainda, a luminosidade era infinitamente mais acurada que a irradiada durante toda a permanência no Hermon. O que teria acontecido na nevada? O Rabi sorriu por fim e, apontando as formigas que começavam a correr por braços e túnicas, exclamou maroto: - Belo par de anjos! Não posso deixar-vos sozinhos. Um dia mais e acabais com meu reino... Em seguida, abraçando-nos, sussurrou: - Fez-se a vontade de Ab-bã. Agora sou eu o príncipe deste mundo. Naquela mesma noite – a última no Hermon -, cálido e eufórico, explicou o porquê de seu repentino e longo isolamento no cume da montanha santa. Num primeiro momento mal entendemos. Era tanto o que ignoráramos...! Depois, conforme o seguíamos e ouvíamos, fomos compreendendo. O jantar, embora frugal, foi divertido, como sempre. O cozinheirochefe” estava feliz e esmerou-se, apresentando outra receita familiar: torta com mel, à moda da Senhora, a das “pombas”. E no final, o brinde favorito do Mestre: - Lehaim! - Pela vida! E o Galileu, ansioso para compartilhar sua aventura na solidão das neves, iniciou assim seus esclarecimentos: - Vou lhes contar um conto... “Faz tempo, muito tempo, o grande Deus encomendou a um de seus Filhos a criação de um novo universo. E esse Filho construiu um magnífico reino, repleto de estrelas e mundos. Era um universo imenso. “E aquele Filho governou com amor e sabedoria durante milhares e milhares de anos. “Mas aconteceu uma coisa...
“Certo dia, numa região afastada, vários dos príncipes a seu serviço, chefes de outros tantos mundos, decidiram rebelar-se contra a autoridade do Filho e soberano. Não acreditavam mais em sua forma de governo e incitaram outros príncipes próximos a se manifestarem contra o estabelecido. E tentaram formar seu próprio reino, rejeitando o monarca e, de forma definitiva, ao grande Deus. “O Filho, lançando mão do amor e da misericórdia, tentou restabelecer a ordem. Foi inútil. Os rebeldes, mergulhados no erro, desprezaram todas as tentativas de reconciliação. “Finalmente, esse Filho divino tomou uma decisão: viajaria incógnito até os longínquos mundos dos infratores, fazendo-se passar por um modesto carpinteiro. Escolheu um dos planetas e ali nasceu como um homem comum. E assim viveu, sujeito à carne, e ensinando a verdade aos povos. Mostrou-lhes quem era na verdade o grande Deus. Falou do esplêndido futuro que os aguardava e, acima de tudo, lembrou-lhes de que eram filhos desse maravilhoso Pai. “Mas a fama daquele Homem-Deus acabou chegando aos ouvidos dos príncipes rebeldes. E aconteceu que, em certa ocasião, quando o carpinteiro rezava no alto de uma montanha nevada, dois dos traidores se apresentaram diante dele, fazendo todo tipo de perguntas. “Quem és...? Como te atreves a falar desse Deus? Quem te enviou? “Por último, convencidos de que estavam diante do Filho e soberano do universo, fizeram-lhe uma proposta: “Une-te a nós! “E o Filho respondeu: “Que seja feita a vontade do Pai. “Os rebeldes, derrotados, foram embora. E todo o universo, sabendo daquela conversa, elogiou a misericórdia do Filho e soberano. “Desde então, o Deus disfarçado de homem e carpinteiro ostentaria também o título de Príncipe da Terra.” Terminada a história, o Mestre desceu aos detalhes, revelando uma coisa que, com a passagem dos séculos, também acabaria distorcida. Isso foi o que conseguimos perceber:
Tempos atrás, há muito tempo, numa minúscula região de seu universo (a nossa), teve lugar uma insurreição, mais ou menos parecida àquela exposta no conto. Melhor dizendo, no aparente conto. Um velho conhecido dos seres humanos – Luzbel -, chefe dessa quase insignificante parcela da galáxia, levantou-se contra a ordem estabelecida, protestando contra o longo caminho exigido para se chegar ao Paraíso. Ele teria qualificado essa “caminhada” de “fraude total” duvidando até da existência de Ab-bã. A rebelião, contudo, não teve lá grande sucesso. Só 30 ou 40 mundos aderiram. A Terra foi um deles. Muito bem, não querendo recorrer a métodos mais severos – aos quais tinha legítimo direito -, o magnânimo Filho Criador deste universo optou por encarnar-se e “camuflar-se” entre as mais modestas de suas criaturas. Justamente aquelas que habitavam num desses mundos rebeldes. E fez-se homem. E viveu como tal, anunciando aos infelizes súditos dos príncipes rebeldes onde estava a verdade e quem era Ab-bã. Mas a natureza divina do humilde carpinteiro não passou despercebida dos chefes planetários que encabeçavam a rebelião. E dois deles – um alto representante de Luzbel e o próprio príncipe do mundo escolhido pelo Filho divino – acudiram à sua presença. E o fizeram naqueles dias de setembro e naquele lugar. Esta, provavelmente, foi a razão da súbita preocupação do Filho do Homem quando se afastou do mananeh. Ele sabia o que o esperava na solidão dos montes nevados. Sabia que estava a ponto de oferecer uma nova oportunidade para seus filhos desencaminhados. E assim, dócil, submeteu-se aos interrogatórios e às propostas. Mas, como dizia o “conto”, ele só se dobrou à vontade de seu Pai. Por último, estes seres não materiais – criados pelo próprio Filho divino na luz e na perfeição – se retiraram derrotados. E o universo de Jesus de Nazaré – segundo suas palavras – assistiu perplexo e comovido à “batalha dialética”.
Naquele momento – e continuo transmitindo suas explicações – o Filho do Homem, por expressa vontade de Ab-bã foi investido como Príncipe deste mundo. Um título especialmente importante, segundo Ele. A partir desse fato – afirmou -, a rebelião ficou “pronta para a sentença”. Ao rejeitar, uma vez mais, sua misericórdia, a sorte de todos eles depende agora de “outras instâncias”. E continua assim. Isso, nem mais nem menos, foi o que aconteceu no Hermon naqueles dias. Dias transcendentais nos quais, não obstante, não chegamos a perceber nada estranho, salvo a já referida e grave atitude do Mestre. A explicação era simples: essa “batalha” não se desenvolveu em nível físico. Em outras palavras, mesmo que o tivéssemos acompanhado à nevada, nada teríamos visto nem ouvido... Como eu disse, não foi fácil assimilar tão intrincadas e misteriosas explicações. Lentamente, contudo, iríamos vendo uma “luz” que se concentraria no espinhoso problema e, sobretudo, que esclareceria outras não menos interessantes incógnitas. Por exemplo, segundo o Mestre, uma das razões da violência e primitivismo da Terra devemos procurar, justamente, nas conseqüências dessa infeliz rebelião. Ao trair as leis divinas, nosso mundo, como o resto dos planetas que se insurgiu contra Ab-bã, ficou automaticamente incomunicável e afundado na escuridão e barbárie. E, “tecnicamente”, continua assim(1). Só quando for levantada a “quarentena”, a humanidade - esta infeliz humanidade – recuperará a normalidade. Claro que lhe perguntamos: quando chegará esse venturoso dia? A resposta foi contundente: - Quando os rebeldes forem julgados. Mas isso não está em minhas mãos. O que estava, sim, ao alcance do Filho do Homem era consolar e iluminar as criaturas que sofrem – e sofrerão – esse isolamento. E escolheu um desses mundos rebeldes, plantando a semente da esperança: Ab-bã existe. Ab-bã espera. Ab-bã vos ama... *1. A complexa história de Luzbel é analisada e recriada por J. J. Benítez em sua obra
A Rebelião de Lúcifer, Mercuryo, 1988. (N. Da Editora Mercuryo.)
Lamentavelmente, estes acontecimentos, registrados, repito, em setembro do ano 25, não foram bem entendidos pelos últimos seguidores do Rabi da Galiléia. Tal como verificaríamos mais adiante, Jesus contou tudo em detalhes e com toda a clareza de que era capaz. Contudo, foram distorcidos. Salvo João, que não os menciona, os evangelistas e Paulo de Tarso (Hebreus, 2-14), terminariam confundindo o assunto e cenários, situando o encontro do Mestre com os rebeldes (o diabo) no outro lado do rio Jordão, depois do batismo feito por João, o anunciador. Sobre o Hermon, nenhuma palavra. Sobre a transcendental e definitiva tomada de consciência de sua natureza divina por parte do Filho do Homem, nenhuma palavra. Sobre suas intensas comunicações com Ab-bã, no cume da montanha sagrada, nenhuma palavra. Em resumo: outro desastre literário dos supostos escritores sagrados... Como espero ter ocasião de relatar, o acontecido no célebre “deserto” depois do batismo no Jordão, foi muito mais importante que o narrado pelos evangelistas. E digo mais: no tal retiro não houve tentação alguma... Creio já ter mencionado isso. O Filho do Homem foi tentado, sim, mas não pelo Diabo. O que aconteceu no Hermon não foi uma tentação propriamente dita. Foi um ato de amor. Mais um daquele magnífico Homem... E chegou ao fim nossa permanência nos cumes da Gaulanítide. Essa noite, na véspera da segunda-feira, 17 de setembro, antes de descansarmos, Jesus de Nazaré deu uma última ordem: - Preparai-vos. Amanhã partiremos. A hora do Filho do Homem está próxima... E assim foi. Sua hora – a da vida pública – se aproximava. E estes exploradores foram testemunhas privilegiadas. Sim, a aventura acabava de começar...

 

 

                                                                                                    J. J. Benitez

 

 

 

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