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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS LIBERTINOS / Harold Robbins
OS LIBERTINOS / Harold Robbins

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Se é possível fazer tal julgamento em obra tão complexa, tão vasta e ainda em desenvolvimento e plenitude, aqui está a obra-prima de Harold Robbins. As qualidades, as vivências, os interesses demonstrados com tanto vigor em Os Insaciáveis, Escândalo na Sociedade, Os Implacáveis, 79 Park Avenue e outros livros seus, se precisam, acentuam e requintam em Os Libertinos, numa intensidade que não é apenas de grau, mas também de natureza, como se o escritor houvesse adquirido uma visão mais aguda e clinica das coisas e das pessoas.

        Isso acontece a tal ponto que não hesitamos em afirmar que este livro, embora autenticamente de Robbins, é diferente de todos os outros que já publicou.

        Em primeiro lugar, pelo cenário no qual se desenrola a ação. Se, nos outros livros, Robbins escolheu um território determinado e mais ou menos restrito para servir de palco à ação dos seus livros, estendeu neste os olhos pelo mundo e fez tudo desenvolver-se simultaneamente numa república da América do Sul, nos Estados Unidos, na França, na Riviera, na Inglaterra, em Macau, numa pitoresca multiplicidade de ambientes, impregnados de veracidade, aumentando assim o interesse e o dinamismo da ação.

        Segundo, pela variedade quase infinita de tipos. Há naturalmente um personagem central, que é Dax, o impetuoso Dax, diante de quem os homens tremiam e as mulheres deliravam. Mas, em torno dele e era contato com ele, desfila uma variedade interminável de pessoas — homens e mulheres, principalmente mulheres — todas levadas, tangidas e batidas pelas forças mais vigorosas da existência humana — o amor e o interesse.

        Dissemos amor e seria melhor dizer desejo, porque é o desejo, a volúpia, a embriaguez fundamental da sensualidade que joga dezenas de mulheres nos braços de Dax e dos outros personagens masculinos num ulular constante de luxúria.

        E este livro é ainda diferente de todos os outros de Harold Robbins pela intensa movimentação da sua ação, que nos faz penetrar na intimidade de vários meios cheios de interesse e vibração — das selvas fervilhantes de bandoleros à Paris ocupada pelos nazistas, dos gabinetes dos banqueiros aos meandros das casas de prazer — em cenas inesquecíveis desde a inicial com o seu excesso transbordante de violência e crueldade até à sobriedade trágica daquele duelo final.

        Leiam, pois, neste livro, a história de Dax e do seu mundo. De um Dax ardoroso, valente, generoso, sentimental, contraditório, desiludido e cínico e de um mundo que não era melhor do que ele.

 

 

 

 

                         EPILOGO COMO PRÓLOGO

        Era dez anos depois da violência em que ele morreu. E o seu tempo na terra terminara. O contrato que ele tinha sobre este último cubículo de refúgio havia expirado. O processo ia ser completado, e ele voltaria às cinzas e ao pó da terra de que tinha vindo.

        O sol dos trópicos desfechava ondas de candente umidade sobre as cruzes pretas pintadas nas paredes caiadas do cemitério quando o jornalista americano saltou do táxi diante dos portões enferrujados. Ele deu ao chofer uma nota de cinco pesos e se afastou antes que o homem tivesse tempo de dizer gracias.

        As barraquinhas de flores já estavam movimentadas. Mulheres de preto compravam pequenos apanhados de flores, com os seus pesados véus negros, que pareciam protegê-las do calor, e ao mundo, da sua dor. Os mendigos também estavam presentes e as crianças, com os grandes olhos escuros sumidos no fundo das olheiras e as barrigas estofadas de fome. Estenderam à sua passagem as mãos sujas para pegar as moedas que ele negligentemente nelas deixou cair.

        Depois que transpôs o portão, houve silêncio. Era como se alguma chave geral houvesse desligado o mundo exterior. Um homem fardado estava sentado numa barraca aberta. Ele dirigiu-se para lá.

        — Xenos, por favor.

        — Calle 6, apartamiento veinte — disse o homem, em cujo rosto ele julgou ver uma leve expressão de surpresa.

        O jornalista americano prosseguiu com um sorriso. Até na morte apegavam-se à rotina da vida. As aléias do cemitério eram chamadas de ruas, e as construções dentro de cujas paredes os mortos descansavam tinham o nome de apartamentos. Mas ele não compreendia a surpresa no rosto do homem.

        Estava ele na portaria do hotel folheando os jornais locais, como sempre fazia quando chegava a uma cidade e encontrara por fim a noticia que procurava. Eram apenas quatro linhas sumidas nas últimas páginas, entre uma porção de noticias maiores.

        Seguiu por uma aléia de custosos mausoléus. Foi lendo displicentemente os nomes. Ramirez, Santos, Oberón, López. Apesar do calor do sol, caia dos mármores brancos uma perceptível frieza. Sentiu no colarinho a transpiração úmida e fresca.

        O caminho se alargou. À esquerda, havia terrenos abertos, nos quais se viam covas pequenas, abandonadas, esquecidas. Eram as sepulturas dos pobres, jogadas na terra em frágeis caixões de madeira para que se desintegrassem à lei da natureza, sem cuidados nem saudades. À direita, estavam os apartados, as casas de cômodos dos mortos.

        Eram grandes construções, com telhados espanhóis vermelhos e cinzentos, de seis metros de altura e uns doze de largura por vinte e cinco de comprimento, feitas de blocos de cimento branco de um metro de altura e que tinham um pouco menos do que isso de cada lado para que mais ocupantes pudessem encher-lhes as paredes. Cada quadrado trazia o nome do ocupante, com uma cruzinha gravada no cimento acima do nome e a data da morte embaixo.

        Na primeira construção havia uma placa de metal que dizia: Calle 3, apartamiento 1. Tinha ainda muito que andar. Sentia terrivelmente o calor. Afrouxou o colarinho e apressou o passo. Estava quase na hora, e ele não queria chegar tarde.

        Julgou a principio que se houvesse enganado com o local. Não havia pessoa alguma ali. Verificou a chapa de metal do edifício e a hora do seu relógio. Estavam ambas corretas. Abriu o jornal para ver se havia feito confusão com a data, mas viu que ela também conferia. Deu então um suspiro e acendeu um cigarro. Estava na América Latina. Não havia tanta pontualidade ali quanto em sua terra.

        Começou a caminhar lentamente em volta da construção, lendo os nomes nos quadrados. Encontrou afinal o que procurava, num canto cheio de sombra. Instintivamente, jogou fora o cigarro e tirou o chapéu. Lá estava a inscrição:

 

        †

        DAX

        10 mayo

        1955

 

        Ouviu o barulho rangedor de um carro nas pedras da calçada às suas costas. Era um carro aberto, puxado por um burro cansado, que estava de orelhas murchas, talvez em sinal de protesto contra o fato de se ver forçado a trabalhar com aquele calor. O carro era guiado por um homem com roupas cáqui desbotadas. Ao lado dele, no banco, vinha um homem de roupa preta e chapéu preto, com o colarinho engomado já amarelado pelo suor e pela poeira. Ao lado do carro, caminhava outro homem, com uma picareta ao ombro.

        O carro parou, e o homem de preto desceu. Tirou uma folha de papel do bolso do paletó, olhou-a e começou a procurar pelas paredes, olhando os nomes nos carneiros. Foi só quando eles pararam que o jornalista compreendeu que ali estavam para proceder à exumação.•

        O homem fez um gesto, e o coveiro com a picareta se aproximou. Olhou para cima e disse alguma coisa em espanhol. O outro coveiro tirou do carro uma pequena escada, e o primeiro encostou-a à parede e subiu.

        — Dax — disse ele, e sua voz ressoou no cemitério em silêncio.

        — Dax — repetiu o homem de preto.

        O coveiro na escada estendeu a mão.

        — El pico.

        O outro entregou-lhe a picareta. Com um golpe experimentado, o homem bateu com a picareta no centro do bloco de cimento. O cimento se fendeu em linhas irregulares, que se irradiaram do centro no momento em que o sol, passando sobre a aba do telhado, iluminou aquele canto. O coveiro resmungou e puxou o chapéu por sobre os olhos para proteger-se da luz. Vibrou outra pancada no cimento. Quebrou-o dessa vez, e os pedaços rolaram nas pedras do chão.

        O jornalista olhou para o homem de preto. Ele observava os coveiros, mas era evidente que não tinha muito interesse pelo que faziam. Tudo aquilo parecia aborrecê-lo, e afinal não passava de um serviço como outro qualquer.

        — Donde están los otros? — perguntou o jornalista no seu espanhol hesitante.

        — No están los otros — disse o homem, encolhendo os ombros.

        — Pero la prensa... murmurou o jornalista e parou, chegando aos limites do seu espanhol. — Habla inglés?

        — Si. Yes, — disse o homem com um sorriso de orgulho. — As suas ordens.

        — Li a noticia no jornal e pensei que viessem outras pessoas — disse o jornalista.

        — Não há outras pessoas disse o homem.

        — Quem publicou então a noticia? Deve ter sido alguém.

        Ele era um homem famoso, muy famoso.

        — Foi a administração do cemitério que publicou a noticia. É da lei. Precisamos desse espaço para outros. A cidade está crescendo, e nós estamos superlotados, como vê...

        — Compreendo. Mas não havia ninguém? Parentes? Amigos? Ele tinha muitos amigos.

        — Os mortos são sozinhos — disse o homem, com uma sombra no olhar.

        O coveiro que estava na escada soltou uma exclamação. Olharam-no. Ele já havia removido todo o cimento da tampa, e avistava-se lá dentro a ponta do caixão descorada e meio destruída pelos cupins. Usando a ponta da picareta como uma alavanca, o coveiro tirou os pedaços de cimento que restavam e começou a puxar o caixão para fora.

        O jornalista voltou-se para o homem da administração do cemitério.

        — Que é que vão fazer agora com ele?

        — Será incinerado. É coisa rápida. Agora, só restam os ossos.

        — E depois?

        — Desde que não apareceu ninguém para reclamá-las, as cinzas serão jogadas nas terras pantanosas aqui ao lado. São terras que estamos procurando recuperar.

        O caixão estava sobre o estreito passeio em torno do edifício. O homem se aproximou, limpou com a mão uma pequena placa de metal na tampa, conferiu-a com o papel que tinha na mão e disse:

        — Verificado.

        Voltou-se para o jornalista e perguntou:

        — Quer olhar o caixão?

        — Não — disse o outro, sacudindo a cabeça.

        — Não se importa então? Quando não há família para pagar, os homens têm permissão de...

        — Compreendo, — disse o jornalista, afastando-se enquanto os coveiros abriam o caixão. Acendeu um cigarro. Ouviu as vozes dos homens, que discutiam sobre o que haviam encontrado. Depois, ouviu pregarem de novo a tampa do caixão.

        — Os homens ficaram decepcionados disse o homem da administração, indo para onde ele estava. — Só encontraram algumas obturações de ouro nos dentes e este anel.

        O jornalista olhou para o anel sujo que estava na mão do homem.

        — Fiquei com o anel e deixei que ficassem com as obturações. O anel tem algum valor, não tem?

        Tirou um lenço do bolso, limpou-o e mostrou-o ao jornalista, que o apanhou. Era um anel de formatura da Universidade de Harvard, da turma de 1939, de ouro, com uma pedra vermelha.

        — Tem valor, sim.

        — Dez dólares? perguntou o homem.

        O jornalista levou algum tempo para compreender que o homem lhe estava oferecendo o anel.

        — Dez dólares, — disse afinal, tirando o dinheiro do bolso.

        — Gracias.

        O jornalista guardou o anel no bolso. Os coveiros já haviam colocado o caixão no carro.

        O homem de preto olhou-o e disse:

        — Vámonos? Vai ser incinerado agora.

        Subiu ao carro e indicou ao jornalista um lugar no banco ao seu lado.

        O sol estava bem mais quente, e o jornalista tinha a camisa empapada de suor. Seguiram em silêncio pelo cemitério, e vinte minutos depois chegaram ao crematório.

        Havia no ar um leve cheiro de fumaça quando o jornalista desceu do carro e seguiu o homem de preto e os dois coveiros, que levavam o caixão pela porta do crematório.

        Lá dentro, teve a surpresa de ver que não havia teto; no alto, só o céu e o sol ardente. Nas paredes havia seis fornalhas de pedra abertas no alto e colocadas em circulo. Sobre cada uma delas o ar tremia com o calor que vinha de dentro. Um homem com um avental coberto de cinzas se aproximou.

        — Verificado? — perguntou ele.

        — Verificado — disse o homem de preto, entregando-lhe o papel.

        — A la uno, — disse o homem de avental aos coveiros.

        Estes empurraram o caixão para dentro da fornalha mais próxima. Em seguida, saíram.

        O homem de preto pegou o jornalista pelo braço e levou-o até perto da fornalha. O caixão descansava sobre barras de aço enegrecidas pela fuligem. Embaixo, havia uma rede metálica de malhas finas e o homem explicou:

        — Para as cinzas.

        O homem de avental os olhava. O outro puxou a manga do paletó do jornalista e disse:

        — Ele espera dez pesos pelo seu trabalho. É de praxe.

        O jornalista meteu a mão no bolso e tirou uma nota.

        — Gracias, — disse o homem, com um sorriso no rosto moreno.

        Fez então um gesto para que os outros se afastassem e começou a acionar um fole.

        Houve a principio um rumor dentro da fornalha, que de repente se transformou num barulho como de trovoada. Mas não havia chamas visíveis. O caixão parecia apenas tremer sob as ondas de ar quente. Mas o homem puxou de repente uma alavanca, e num momento pareceu que todas as fogueiras do inferno estavam acesas.

        O jornalista sentiu o intenso calor, mas logo as chamas baixaram e o caixão pareceu desintegrar-se num pó cinzento dentro da fornalha.

        O homem de preto disse-lhe então:

        — Vamos fumar um cigarro lá fora. Daqui a pouco, ele levará as cinzas.

        O sol parecia fresco em comparação com o calor que haviam sentido lá dentro. O jornalista ofereceu um cigarro ao homem de preto, que o aceitou com as maneiras delicadas que alguns latino-americanos têm e acendeu o cigarro do jornalista e, depois, o seu. Fumaram em silêncio.

        Antes de acabarem o cigarro, o homem saiu com uma pequena urna de cerâmica cinzenta. Olhou para o homem de preto, que disse, como se pedisse desculpas:

        — A uma custa cinco pesos.

        O jornalista achou uma moeda de cinco pesos no bolso e a urna foi entregue ao homem de preto.

        Este levou o jornalista para os fundos do crematório, onde havia uma carroça, à qual estava atrelado um burro que parecia dormir. A carroça estava cheia de lixo, sobre o qual as moscas enxameavam.

        — É aqui que despejamos as cinzas que depois são levadas para o pântano.

        — Não há outro lugar? perguntou o jornalista, sentindo uma ponta de revolta.

        — Bem, há uma fazenda do outro lado da estrada. Por cinco pesos, o dono nos deixará jogar as cinzas lá.

        — Vamos até lá, então.

        Chegaram do outro lado da estrada a um campo de batatas e o fazendeiro pareceu surgir do chão, mas desapareceu prontamente logo que recebeu a moeda de cinco pesos.

        — Señor, — disse o homem de preto, estendendo-lhe a urna.

        O jornalista sacudiu a cabeça.

        — Conheceu-o, señor? — perguntou o homem.

        — Sim, conheci-o.

        O homem destampou a urna e com um gesto experimentado, jogou as cinzas ao vento. Ficaram olhando enquanto as mesmas iam pousando no solo.

        — Não está certo! — exclamou de repente o jornalista. — Não está certo!

        — Por qué, señor?

        — Ele era um homem forte, sabe? A terra tremia à sua passagem, os homens amavam-no e temiam-no, as mulheres tremiam ante o poder dos seus abraços e todos solicitavam-lhe os favores. E agora não há quem se lembre dele. Tem razão, os mortos são sozinhos.

        O jornalista estava triste e cansado. Queria quanto antes voltar ao bar do hotel e beber alguma coisa bem gelada. Seria melhor que não houvesse lido a noticia no jornal, que não tivesse ido àquele lugar horrível, sob o tremendo sol, para encontrar um mundo desmemoriado.

        — Não, señor, — disse o homem de preto. — Eu estava errado. Esse morto não estava sozinho. O senhor estava aqui.

 

                               VIOLÊNCIA e PODER

        Eu estava brincando sob o sol quente no terreno em frente à casa quando ouvi o primeiro grito fino na estrada que levava à vila. Meu cachorro ouviu também, porque parou de repente de pular em volta de mim e da casinha que eu estava tentando construir com a terra endurecida. Olhou para mim com olhos amedrontados e encolhendo o rabo amarelo protetoramente por baixo dos testículos. Ficou parado e começou a tremer.

        — Quien es? perguntei, estendendo a mão para fazer-lhe uma festa e acalmá-lo. Via que ele estava com medo, mas não sabia por quê. O grito fora estranho e curiosamente alarmante, mas eu não estava com medo. Medo é coisa que tem de ser aprendida, e eu era muito menino ainda. Tinha seis anos de idade.

        Houve ao longe um barulho de tiros. Cessou pouco depois, e então ouviu-se outro grito, dessa vez mais alto e mais aterrador do que o primeiro.

        O cachorro pendeu a cabeça e saiu correndo para o canavial, com as orelhas murchas. Fui atrás dele, gritando:

        — Perro! Perro! Venga aqui!

        Quando cheguei ao canavial, não o vi mais. Fiquei ali parado, procurando ver se o descobria pelo barulho entre as touceiras.

        — Perro! — gritei.

        Ele não voltou. O canavial sussurrava levemente ao vento quente. Desprendia-se dele um pungente cheiro adocicado. Chovera na noite anterior e o açúcar estava umedecido nos caules. Percebi de repente que estava sozinho.

        Os trabalhadores, que estavam ali havia ainda cinco minutos, tinham desaparecido também. Meu pai iria ficar muito zangado com eles. Pagava-lhes dez centavos por hora e decerto esperava que dessem em troca todo o trabalho que pudessem.

        — Dax!

        O grito vinha da casa. Virei-me. Minha irmã mais velha e uma das empregadas da cozinha estavam na varanda da frente da casa.

        — Dax! Dax! gritou minha irmã, agitando os braços.

        — O cachorro fugiu pelo canavial, — gritei eu para ela.

        Um momento depois, ouvi-lhe os passos atrás de mim. Tomou-me nos braços e me levou carregado para casa, correndo. Murmurava roucamente:

        — Dios! Dios!

        Minha mãe apareceu à porta antes de chegarmos à varanda.

        — Depressa! A la bodega! — disse ela. — Para a adega!

        Entramos na casa. La Perla, a gorda cozinheira índia, estava atrás de minha mãe. Tomou-me dos braços de minha irmã e começou a correr para a despensa, atrás da cozinha. Ouvi o barulho da tranca da porta da frente que se fechava.

        — Que é que há, La Perla? — perguntei. — Donde está Papá?

        Ela me apertou com mais força de encontro ao seio farto.

        — Psiu, niño.

        A porta da despensa estava aberta, e descemos os degraus da adega. As outras empregadas já estavam ali, com os rostos escurecidos é apavorados, sumidos nas sombras lançadas pela pequena vela que ardia em cima de um barril de vinho.

        La Perla me deixou num banquinho.

        — Fique sentadinho ai e não se mexa.

        Achava aquilo tudo muito engraçado, mais engraçado do que brincar lá fora. Era uma nova espécie de brinquedo.

        La Perla subiu de novo as escadas, e eu ouvi sua voz rouca lá em cima. Um instante depois, minha irmã desceu com o rosto banhado em lágrimas. Correu para onde eu estava e me abraçou com força.

        Afastei-me, zangado. O seio dela me machucava porque era muito ossudo, muito diferente do seio confortável, quente e macio de La Perla.

        — Largue-me — disse eu.

        Minha mãe desceu as escadas, com o rosto abatido e triste. Ouvi a pesada porta da adega ser batida e trancada, e, pouco depois, La Perla descia também, com o rosto vermelho do esforço. Tinha na mão um facão de cozinha, com o qual costumava cortar a cabeça das galinhas.

        Mamãe me olhou e perguntou:

        — Você está bem?

        — Si, mamá. Mas Perro fugiu. Correu para o canavial e não o vi mais.

        Mas ela não me ouvia. Estava procurando escutar algum som do lado de fora. Era tempo perdido. Nenhum som podia chegar ali, tão debaixo da terra.

        Uma das empregadas prorrompeu num choro nervoso.

        — Cale essa boca! — exclamou La Perla, com um gesto ameaçador. — Quer que nos ouçam e nos matem a todos?

        A empregada se calou. Gostei de La Perla fazer isso porque minha irmã deixou de chorar também. Eu não gostava dela quando chorava. O rosto ficava muito feio e vermelho.

        Prendi a respiração e tentei escutar. Não ouvia nada.

        — Mamá...

        — Silêncio, Dax! — disse ela, severamente.

        Mas eu tinha uma pergunta a fazer.

        — Onde está Papá?

        Ao ouvir isso, minha irmã recomeçou a chorar.

        — Fique calada! — disse minha mãe. — Papá chegará daqui a pouco, Dax. Mas temos de ficar muito quietos até ele chegar, compreende?

        Bati com a cabeça. Voltei-me para minha irmã. Soluçava, mas contendo a respiração para não fazer barulho. Estava amedrontada, mas eu não via motivo para isso. Cheguei perto dela e disse-lhe ao ouvido:

        — No tengas miedo. Eu estou aqui.

        Um sorriso apareceu por entre as lágrimas. Abraçou-me e murmurou:

        — Meu heroizinho! Meu protetor!

        Ouviu-se lá em cima um tropel de botas pesadas, que de repente pareceu encher toda a casa.

        — Los bandoleros! — gritou uma das empregadas. — Vão matar todo mundo!

        — Cale-se!

        Dessa vez, La Perla não se limitou a falar. Levantou a mão, e a empregada rolou no chão, gemendo. O tropel de passos parecia estar na cozinha.

        — A vela! — sussurrou nervosamente minha mãe. A luzinha apagou-se abruptamente, e ficamos ali na escuridão.

        — Não estou vendo nada, Mamá — disse eu.

        Ela me tapou a boca com a mão. Procurei ver alguma coisa na escuridão, mas só ouvia as respirações agitadas. Os passos ressoavam acima de nós. Deviam estar na cozinha.

        Ouvi o barulho de uma mesa sendo virada, e as vozes e as risadas dos homens. Uma porta rangeu e eles chegaram à despensa. A porta da adega estremeceu. Ouvia-se com mais clareza a voz deles.

        — As galinhas devem estar escondidas ai embaixo, — disse um deles por entre gargalhadas.

        — Cocoricô! — gritou outro. — O galo está aqui.

        Deram um pontapé na porta.

        — Abre la puerta!

        Eu podia sentir as mulheres se encolhendo pelas paredes. Minha irmã a meu lado tremia desesperadamente.

        — Estão apenas querendo as galinhas, — disse eu. — Digam que estão no galinheiro, lá nos fundos.

        Ninguém disse nada. Parecia que não se importavam mais de que eu falasse ou não. La Perla passou por mim na escuridão e ficou à espera no pé da escada. Uma pancada forte na porta ressoou por toda a adega.

        Uma das empregadas caiu de joelhos e começou a rezar nervosamente. Deram outra pancada na porta. A porta por fim cedeu e ficou escancarada, ao mesmo tempo que a luz entrava por ela e mostrava La Perla resolutamente de pé, com a faca de cozinha refletindo a luz como um espelho de prata.

        Três homens desceram logo a escada. Dos outros que vinham atrás eu só podia ver as pernas.

        O primeiro parou quando viu La Perla.

        — Uma galinha gorda e velha. Não vale a pena. Mas há outras aqui, bem novinhas. A galinha velha está guardando o galinheiro.

        — Bastardos! — gritou La Perla por entre os dentes.

        O homem se virou quase com displicência, e a espingarda de cano curto que tinha na mão explodiu com um clarão ofuscante.

        Senti o cheiro acre da pólvora, e, quando pude olhar, vi La Perla cambalear, encostada à parede perto da escada. Pareceu ficar ali imóvel um instante, e, depois, seu corpo começou a escorregar pela parede. Parecia haver perdido metade do rosto e do pescoço. São se via ali senão uma massa ensanguentada de carne.

        — La Perla!

        Minha mãe gritou e correu para ela. Quase sem esforço, o homem virou a espingarda e deu uma coronhada na cabeça de minha mãe quando ela passou por ele. Ela caiu, e o homem lhe empurrou o corpo para o lado com o pé. Os outros desceram a escada logo depois. Eram onze.

        O primeiro viu a vela em cima do barril e disse:

        — La candela!

        Um dos homens riscou um fósforo, e a luz amarela brilhou na adega.

        — Ah! — disse o chefe, olhando para nós. — Quatro franguinhas e um franguinho!

        Ouvi então a voz de minha irmã. Parecia muito mais firme e equilibrada do que até então a ouvira.

        — Que é que querem aqui? Peguem o que quiserem e vão-se embora!

        O homem olhou-a por um momento, com os olhos brilhando como brasas.

        — Esta é minha, disse ele. — Podem tomar conta das outras.

        Uma das moças tentou correr pela escada, mas um deles a agarrou pelos compridos cabelos soltos. Puxou-a, e ela caiu no chão de joelhos.

        — O homem se virou para ela, puxando-lhe a cabeça para trás até que o rosto ficou inteiramente voltado para ele, com a boca aberta, no desesperado esforço de respirar. Com a outra mão, o homem tentou rasgar-lhe o vestido, mas a fazenda de algodão grosso era forte e resistiu.

        Com um palavrão, ele a deixou cair no chão e tirou a faca da cinta. Passou a lâmina rapidamente pela frente do vestido. A roupa grossa se desprendeu do corpo dela como a casca de uma espiga de milho. Um traço fino que parecia de lápis começava no pescoço, descendo entre os seios e pela barriga morena de índia, começando logo a avermelhar-se de sangue. Ela gritou e tentou fugir de novo, mas ele riu e tornou a pegá-la pelos cabelos.

        Ela ainda se debatia, e ele, raivosamente, forçou-lhe as pernas com o cabo da faca. Dessa vez, a moça gritou de dor.

        Caiu no chão aos pés dele, contorcendo-se. A lâmina da faca refletia a luz da vela. O homem plantou a bota na barriga da moça para fazê-la ficar quieta e começou a tirar a corda que lhe prendia os pantalones.

        Os outros estavam ocupados com as outras empregadas. Niella, que era a criada de quarto de minha mãe, já fora despida e estava estendida sobre um barril de vinho, segura por dois bandoleros, enquanto um terceiro começava a subir em cima dela. Sara, a moça índia que La Perla trouxera das montanhas para ajudá-la na cozinha, estava estendida no chão, atrás de uns caixões.

        — Faça o garoto sumir-se — disse o chefe à minha irmã, — senão vou matá-lo.

        Minha irmã começou a empurrar-me para o canto.

        Virei-me para olhar-lhe o rosto. Estava apático e parado. Os olhos pareciam haver perdido toda a vida.

        — Não! Não! — gritei.

        — Vá para trás daquelas caixas ali no canto e não olhe, — disse ela. Mas aquela voz não era a dela. Era a voz fria e distante de uma estranha, uma voz que eu nunca tinha ouvido.

        — Não!

        Senti no rosto a dor aguda de uma bofetada.

        — Vaya! Faça o que estou mandando!

        Não era só a dor. Era a nota de autoridade em sua voz. Comecei a chorar.

        — Vá!

        Esfregando os olhos, virei-me e fui estender-me, todo encolhido, atrás das caixas. Ainda estava chorando. De repente, comecei a molhar as calças. Como se aprende depressa o que quer dizer medo!

 

        Foi o grito penetrante de minha irmã que me estancou as lágrimas. Pareceram secar-se dentro de mim ao mesmo tempo que uma onda de ódio intenso e cego correu-me pelo corpo. Prendi a respiração e levantei a cabeça para olhar por cima das caixas.

        Minha irmã estava de costas para mim, e suas nádegas nuas se torciam violentamente enquanto o bandolero a forçava a cair de costas sobre uma caixa. As unhas dela se cravaram no rosto do homem, deixando-o sulcado de arranhões vermelhos, mas ele começou a dar-lhe terríveis bofetadas e ela caiu em cima da caixa.

        A boca estava aberta, e ela gritava, mas não se ouvia som algum. Os olhos desvairados encaravam-me sem nada ver. As suas pequenas tetas estavam caídas sobre o peito ossudo e a barriga era quase uma cova funda.

        Compreendi de repente o que era que o homem ia fazer. Eu já tinha visto muitos touros quando as vacas eram levadas para eles. Olhei para o bandolero quando os pantalones lhe caíram pelas pernas.

        Ela tentou levantar-se e fugir, mas ele fincou um cotovelo cabeludo bem na boca do estômago dela e com a mão aberta em torno do pescoço de minha irmã, prendeu-a de encontro à caixa, quase sufocando-a. Ela tornou a gritar e empinou o corpo, tentando desvencilhar-se, mas ele proferiu uma praga e aumentou a pressão contra o seu pescoço. Ela continuou a contorcer-se e ele deu-lhe um soco no rosto com toda a força, fazendo a cabeça dela bater violentamente na caixa.

        Por uma fração de segundo ele ficou parado, meio suspenso no ar acima dela, parecendo equilibrar-se em si mesmo. Então ela tornou a gritar e estremeceu. Pouco a pouco, ele foi desaparecendo nela enquanto seus gritos de minha irmã se dissolviam num longo gemido agoniado.

        Ele tornou a mover-se nela. Duas vezes mais pareceu rasgá-la e então uma agonia particular como que o dominou, e ele soltou um curioso rugido que parecia de animal.

        Nesse exato momento, levantou os olhos, e eu lhe vi o rosto. Os olhos estavam vidrados e torturados, e a boca se mostrava ansiosamente aberta como se lhe faltasse o ar. Então, minha irmã gritou de novo, e eu vi o sangue que corria dela. Senti o ódio crescer dentro de mim. Comecei a tremer e tive vontade de matá-lo.

        Ouvi o tilintar de alguma coisa no chão de madeira e olhei. A faca havia caído do cinto do homem. Sem refletir, pulei sobre as caixas para pegá-la. Lentamente, como que com um grande esforço, ele se virou para mim.

        — Bastardo! — gritei, brandindo a faca com as duas mãos na direção do pescoço dele.

        Ele estendeu o braço, e a faca me voou das mãos, caindo entre nós. Atirei-me a ele, tentando atingi-lo com os punhos fechados e ele quase displicentemente bateu em mim com a mão aberta.

        Rodei pelas paredes e fui cair violentamente no meio das caixas. Não sentia dor alguma. Havia somente ódio e uma vontade de matar que eu nunca até então conhecera. Não sei se compreendi o que poderia acontecer. Sabia apenas que nada mais importava. Eu tinha de destruir aquele homem.

        Minha irmã havia virado a cabeça e me olhava. De repente, seus olhos se desanuviaram.

        — Dax! — gritou ela, agarrando a mão do homem, já então armada com a faca.

        Ele tentou raivosamente soltar o braço, quase empurrando-a para o lado.

        — Fuja! Dax! Corra! Por Dios! — gritou ela. — Fuja!

        Fiquei ali, imóvel.

        Ele fez menção de levantar-se para me pegar.

        — Corra, Dax!

        O homem ia se levantando, mas de repente ela pareceu cruzar as pernas, juntando os joelhos. O homem deu um grito de dor.

        — Corra, Dax! Vá para onde está Papá!

        Isso eu compreendi. Isso me chegou ao sentido. Rodei o corpo e subi na carreira a escada da adega. Ouvi outro grito atrás de mim. Parei quase no meio e ouvi o homem gritar roucamente:

        — El niño!

        Sai pela escada e atravessei a casa. Quando cheguei lá fora, senti-me por um instante ofuscado pela claridade do sol. Depois, comecei a correr para os canaviais por onde Perro tinha ido.

        — Papá! Papá!

        Alguns homens vinham chegando pela estrada. Não sabia quem eram, mas corri para eles. Já estava além da cerca quando o primeiro bandolero saiu de dentro da casa. Corri pela estrada, gritando como um louco, e ouvi então a voz de meu pai.

        — Dax! Dax! Gracias a Dios!

        — Papá! — exclamei, e joguei-me nos braços dele, chorando. — Papá! Papá! Tengo miedo! Não deixe me pegarem!

        O rosto moreno de meu pai brilhava ao calor. Abraçou-me com força e murmurou:

        — Não tenha medo! Ninguém lhe fará nada!

        — Maltrataram Mamá e minha irmã, — gritei nervosamente. — La Perla está morta, e minha irmã está ensanguentada.

        Vi meu pai empalidecer e dizer em voz rudemente sarcástica:

        — É esse então o seu exército, General? Um exército que faz guerra às mulheres e crianças?

        O homem magro que estava ao lado de meu pai olhou para ele e depois virou para mim seus frios olhos cinzentos. Sua boca se apertou numa linha fina.

        — Se meus homens cometeram algum erro, morrerão por ele, señor.

        Encaminhou-se para a casa, e os bandoleros que tinham corrido atrás de mim pararam ao vê-lo.

        — El jefe!

        Encolheram-se junto às paredes quando passamos. O general parou à porta e, voltando-se, perguntou:

        — Onde é que estão?

        — En la bodega, — disse eu.

        De repente, meu pai saiu na carreira. Levando-me ainda nos braços, entrou à frente do general, atravessou a cozinha e desceu a escada da adega.

        Ficou ali um momento, olhando a confusão. Depositou-me então lentamente no chão.

        — Dios mio! — murmurou baixinho, caindo de joelhos e levantando para o seu colo a cabeça de minha mãe. — Dios mio!

        O rosto de minha mãe estava branco e muito parado. A cabeça estava inclinada num ângulo esquisito. Olhei minha irmã do outro lado da adega. Ainda estava estendida em cima da caixa, com a cabeça virada para trás. Corri para ela, gritando:

        — Tudo está bem agora! Papá está aqui!

        Mas ela não me ouvia. Nunca mais me ouviria. Ainda tinha no pescoço a faca ali cravada pelo bandolero. Olhei-a sem poder acreditar, e então dei um grito.

        Compreendia afinal o que havia acontecido. Estavam mortas. Todas estavam mortas. Mamá, minha irmã, La Perla. Mortas. Gritei, gritei, gritei.

        Mais tarde, depois que meu pai me pegou e me levou daquele lugar de sangue para a luz do sol, estávamos no pátio. Era no fim da tarde, e havia mais homens ali do que dantes. Devia haver mais de cem. Estavam todos ali, de pé, olhando em silêncio.

        Onze estavam separados dos outros, amarrados juntos, cada qual preso por cordas aos dois homens que o ladeavam. Estavam encostados ao muro em silêncio, olhando para os seus companheiros.

        O general estava sentado numa cadeira ao lado da mesa na galeria. Olhou para os onze homens e para os outros bandoleros. Falou calmamente, como se essa voz fria pudesse ir mais longe e ser mais bem compreendida.

        — Olhem bem e procurem guardar tudo na cabeça. O castigo que eles vão sofrer, vocês poderão sofrer também se se esquecerem de que são libertadores e não bandoleros. Estamos lutando pela liberdade e pelos nossos patrícios, e não pelo nosso interesse e pelo nosso prazer. Somos soldados a serviço da pátria, e não saqueadores e estupradores de mulheres!

        Levantou-se e virou-se para um ajudante, que lhe entregou uma metralhadora portátil. Virou-se para meu pai, estendendo-lhe a arma.

        — Señor?

        Meu pai respirou profundamente e correu os olhos pelos homens alinhados de encontro ao muro.

        — Não, General — disse ele mansamente. — Sou um homem da lei e não da guerra. A mim me cabe a dor, mas não a vingança.

        O general acenou gravemente com a cabeça e desceu os degraus da galeria para a terra dura e cozida pelo sol do pátio. Levando a metralhadora na mão, dirigiu-se para onde estavam os onze homens. Parou diante do primeiro da fila, o homem que havia violentado e assassinado minha irmã.

        — Você, Garcia — disse ele calmamente. — Fiz de você sargento. Devia saber como comportar-se.

        O homem nada disse. Encarou o general com olhos em que não havia medo. Sabia que não haveria piedade e não a esperava.

        Uma faca brilhou nas mãos do general enquanto ele passava diante da fila. Quando chegou ao fim, vimos o que ele havia feito. Os cintos e as cordas que prendiam os pantalones dos homens tinham sido cortados, e as calças haviam caído, mostrando os corpos e as pernas brancas. O general foi recuando lentamente até ficar a dez passos de distância. Começou então a levantar a metralhadora.

        Eu estava olhando para Garcia. A lembrança dele por cima de minha irmã explodiu-me na cabeça. Dei um grito e sai correndo da galeria.

        — Deixe-me matá-lo, general! Quero matá-lo!

        O general voltou-se, surpreso.

        — Dax! Volte para cá, Dax! — gritou meu pai.

        Mas eu não o ouvia. Voltei-me para o general.

        — Deixe.

        — Dax! — gritava meu pai.

        O general olhou para meu pai na galeria e disse:

        — É de justiça.

        — É uma criança — replicou meu pai. — Que pode ele saber de justiça?

        — No dia de hoje, ele soube de morte — disse o general. — Aprendeu a odiar, aprendeu a ter medo. É justo que agora aprenda a matar ou isso lhe roerá a alma para sempre como um câncer.

        Meu pai não insistiu mais. Voltou o rosto e murmurou tristemente:

        — Está na massa do sangue. A crueldade dos conquistadores.

        Eu sabia o que ele queria dizer. Já naquela época eu sabia. O sangue era de minha mãe, cuja família descendia comprovadamente dos espanhóis que haviam chegado com Cortés.

        O general ajoelhou-se.

        — Venha cá, menino.

        Aproximei-me dele. Ele pousou a arma no braço e guiou-me a mão até o meu dedo ficar no gatilho. O cano do retrocesso ficou seguro na curva do seu braço.

        — Agora — disse ele —, olhe para o alto do cano. Quando vir que está apontando para os cojones, puxe o gatilho. Deixe o resto comigo.

        Mirei com um olho apenas pelo cano de metal azul. Apontei a arma para Garcia. Vi-lhe as pernas brancas e a barriga peluda pouco abaixo da ponta do cano de metal. Apertei o gatilho.

        O barulho me explodiu nos ouvidos e o corpo branco se despedaçou numa porção de fragmentos ensanguentados. Senti o general ir empurrando o cano pela fila abaixo. E em todo lugar para onde ele era apontado, a carne branca se dissolvia em carne despedaçada e sangrenta. Sentia o gatilho esquentar debaixo do meu dedo, mas havia em mim tal exultação e tal febre, que eu não seria capaz de largá-lo ainda que me queimasse os dedos.

        De súbito o pente de munições se esgotou e a arma parou. Olhei para o general, perplexo.

        — Já acabou, niño.

        Olhei então para os onze homens. Estavam estendidos no chão, com o rosto contorcido na última agonia, os olhos sem vida abertos para o sol.

        Comecei a tremer e perguntei:

        — Estão mortos?

        — Sim, estão mortos respondeu o general.

        Estremeci como se tudo houvesse ficado de repente gelado. Desatei então a chorar e fui correndo para onde estava meu pai.

        — Papá! Papá! Eles estão mortos! Mamá e a mana poderão viver agora?

 

        Diógenes Alejandro Xenos. Era um nome muito comprido para um garotinho. A principio, minha mãe me chamava de Dio. Mas meu pai se zangou. Achava que era sacrilégio. Em dado momento, passou a ser Dax. Acho que foi La Perla quem primeiro me chamou assim. O som grego de Diógenes era difícil demais para a sua língua índia.

        Meu pai nascera na cidade litorânea de Caratu, filho de um marinheiro grego e de uma negra que tinha um pequeno restaurante perto do cais, onde os marinheiros costumavam comer quando iam a terra. Lembro-me de ter visto um daguerreótipo de meus avós, que meu pai me mostrou.

        Mesmo sentada, minha avó era evidentemente mais alta do que meu avô, que estava de pé ao lado e um pouco atrás da cadeira dela. O rosto de minha avó parecia muito escuro, e ela olhava para a objetiva com uma atitude que indicava grande energia interior e deliberação. Meu avô tinha olhos de sonhador e poeta, o que na verdade tinha sido antes de ir para o mar.

        Meu pai tinha a cor de minha avó e os olhos suaves de meu avô. Amara muito os pais. Disse-me cheio de orgulho que a mãe dele era descendente de príncipes bantos que tinham sido levados para lá como escravos.

        Jaime Xenos. Meu pai recebera o mesmo nome de seu avô materno. Quando a gravidez de minha avó já estava tão adiantada que ela não pôde tomar conta do pequeno restaurante, meu avô tomou-lhe o lugar. Mas não era homem para aquilo. Antes que meu pai tivesse um mês de idade, o pequeno restaurante teve de ser vendido com tudo o que minha avó acumulara com o seu trabalho.

        Meu avô, que tinha uma bela caligrafia, passou a ser então escrevente do alcalde do distrito do cais e se mudou com a família para uma casinha a cerca de dois quilômetros do porto, onde criava algumas galinhas e podia ver o Caribe azul e olhar os navios que chegavam e partiam.

        O dinheiro não era muito, mas meus avós viviam muito felizes. Meu pai era filho único, e ambos tinham grandes planos para ele. Meu avô ensinou-lhe a ler e a escrever desde os seis anos de idade, e, por intermédio do alcalde, conseguiu matriculá-lo no colégio dos jesuítas, que era frequentado pelos filhos dos funcionários e dos aristocratas.

        Em troca dessa honra, meu pai tinha de começar a trabalhar desde as quatro e meia da manhã. Tinha de fazer a limpeza de todas as salas antes que as aulas começassem. As suas tarefas se prolongavam depois que as aulas terminavam, às seis da tarde e ainda abrangiam outras que os professores ou o diretor desejassem.

        Quando completou dezesseis anos, meu pai havia aprendido tudo o que a escola tinha a ensinar. Herdara a estatura da família da mãe e o espirito cheio de curiosidade do pai. Era sem dúvida alguma o melhor aluno da escola.

        Houve uma longa conferência entre os jesuítas que dirigiam o colégio e meu avô, ao final da qual ficou decidido que meu pai seria mandado para a universidade a fim de estudar Direito. Como os vencimentos de escrevente de meu avô eram minguados demais para custear isso, ficou decidido também que eles seriam financiados pelos jesuítas com o limitado fundo de bolsas do colégio. Mas ainda assim não haveria o suficiente para os estudos de meu pai se o alcalde, para quem meu pai trabalhava, não tivesse se prontificado a entrar com a diferença em troca do compromisso de meu pai de servi-lo durante cinco anos depois de formado.

        Foi assim que ele começou sua carreira sem ganhar nada, trabalhando no escritório do alcalde onde meu avô era escrevente, trabalhando na úmida e sombria sala externa, sentado num tamborete alto, a copiar com a sua bela letra as primeiras petições e minutas que meu avô preparava para o seu patrão. Estava trabalhando ali, aos vinte e três anos de idade, no terceiro ano de seu compromisso, quando Curatu foi assolada pela peste.

        A epidemia chegou a bordo de um navio de velas brancas que venceu galhardamente as ondas que encrespavam as águas azuis do porto. Estava escondida na escuridão dos porões do navio, e dai a três dias quase toda a cidade de três mil almas estava morta ou para morrer.

        Naquela primeira manhã, quando o alcalde chegou, meu pai estava trabalhando na sua mesa do outro lado da sala. O alcalde estava visivelmente agitado, mas meu pai não perguntou o que era. Não se podia proceder assim com Sua Excelência. Baixou a cabeça para os seus livros e fingiu que nada havia notado.

        O alcalde veio por trás dele. Olhou por cima do ombro de meu pai para ver o que ele estava fazendo. Ao fim de um instante, falou:

        — Jaime?

        Meu pai levantou a vista.

        — Si, Excelencia?

        — Já esteve em Bandaya?

        — No, Excelencia.

        — Há um caso ali, uma questão de terras. Meu amigo Rafael Campos está em litigio com as autoridades do lugar.

        Meu pai esperou pacientemente.

        — Eu gostaria de ir pessoalmente — disse o alcalde —, mas há assuntos urgentes aqui, e eu...

        Meu pai não respondeu. Estava a par de tudo o que acontecia no escritório e sabia que não havia assuntos urgentes. Mas Bandaya ficava a seiscentos quilômetros de distância, no alto das montanhas, e a viagem até lá era difícil. Além disso, havia rumores de que um grupo de bandoleros infestava a estrada, atacando viajantes.

        — O caso é muito importante, — continuou o alcalde, —, e Campos é um velho amigo meu. Quero que ele tenha toda a ajuda possível. Acho que é melhor você partir ainda hoje. Providenciei para que lhe preparassem um dos meus cavalos.

        — Si, Excelencia, — disse meu pai, levantando-se. — Irei até a casa para pegar umas coisas minhas e estarei pronto para partir dentro de uma hora.

        — Sabe de que é que se trata?

        — Seguramente, Excelencia. Escrevi a petição por ordem sua há dois meses.

        — É verdade — disse o alcalde com um suspiro. — Havia-me esquecido. — Não tinha esquecido. Sabia perfeitamente que todos os papéis que tinham saído do seu escritório naqueles últimos anos tinham sido escritos por meu pai. — Quer dizer a Campos que sinto muito não poder ir pessoalmente?

        — Seguramente, Excelencia — disse meu pai. Passou então para a outra sala, onde meu avô estava sentado no seu tamborete copiando uma sentença.

        — Qué pasa? — perguntou o pai dele.

        — Voy a Bandaya, Papá.

        Meu avô sorriu.

        — Bueno. É uma grande oportunidade. Señor Campos é um homem muito importante. Fico muito orgulhoso com isso.

        — Gracias, Papá. Já vou. Adios.

        — Vaya con Dios, Jaime, — disse meu avô, voltando ao seu trabalho.

        Meu pai passou pela cocheira do alcalde e ali pegou o cavalo para passar por casa e apanhar a roupa. Não teria assim de caminhar de volta os dois quilômetros até a cidade.

        A mãe dele estava no quintal, pendurando a roupa lavada, e viu-o amarrar o cavalo na cerca. Ele explicou o que ia fazer, e ela, como o marido, ficou muito feliz e orgulhosa com aquela oportunidade. Ajudou-o pressurosamente a escolher as duas melhores camisas, que arrumou cuidadosamente com o melhor terno dele numa velha maleta de viagem.

        Voltaram ao quintal no momento em que um navio de velas brancas passava pelo quebra-mar, entrando no porto. Ela o olhou por um momento, encantada, e disse para o filho:

        — Mira!

        Jaime sorriu. A mãe lhe havia falado sobre os navios, dizendo que quando era menina o pai dela costumava levá-la para o morro, de onde ficavam olhando os navios que entravam no porto. E ele dizia que algum dia um grande navio de velas brancas chegaria para levá-los de volta à sua terra, onde se vivia em liberdade e onde um homem não tinha de dobrar os joelhos para ganhar o pão de cada dia.

        O pai dela havia morrido há muito tempo, mas lhe deixara o sonho. E o sonho se transferira agora para o filho. Era ele que os levaria para a liberdade com a sua força e o seu conhecimento.

        — Você teria gostado daquele navio, — disse o filho.

        Ela sorriu enquanto se encaminhavam para o cavalo, que comia o capim macio perto da cerca.

        — Você é o meu navio de velas brancas, Jaime.

        Meu pai beijou-a e montou, saindo para a estrada que passava pelos fundos da casa. Do alto da ladeira, voltou-se e olhou. A mãe ainda estava no quintal, olhando-o. Ele deu adeus. Ela respondeu e ele sentiu mais do que viu o sorriso, os cintilantes dentes alvos. Seguiu então o seu caminho.

        Enquanto isso, olhou o navio que se aproximava do cais, com os marinheiros correndo pelos mastros como formiguinhas. A vela grande foi a primeira a ser descida, e quando, ao fim de algum tempo, olhou o navio, todas as velas estavam arriadas e o barco se aproximava mostrando uma floresta de mastros altíssimos.

        Quando voltou a Curatu, dois meses depois, o navio ainda estava junto ao cais, mas aquela estrutura que outrora singrara vigorosamente os oceanos e que levara a peste para a cidade fora reduzida a um montão de madeira queimada. Do pai e da mãe, não pôde encontrar nem vestígios.

 

        Quando um empregado lhe foi dizer que um estranho vinha descendo da montanha para a hacienda, Rafael Campos pegou o binóculo e saiu para a galeria. Viu um homem moreno, metido em roupas da cidade empoeiradas, montado num cavalo preto que descia cuidadosamente a ladeira. Teve um sorriso de satisfação. Os empregados estavam vigilantes. Todo o cuidado era pouco quando a qualquer momento os bandoleros poderiam descer impetuosamente das montanhas.

        Tornou a observar pelo binóculo, e viu que o desconhecido vinha devagar. Olhou para o relógio de ouro. Eram dez e meia da manhã. Naquele passo, o homem levaria hora e meia para chegar à hacienda. Seria então a hora do almoço. Bateu palmas.

        — Mande botar mais um prato na mesa, — disse ele ao empregado, e entrou para completar a sua toalete.

        Meu pai levou quase duas horas para chegar à hacienda. Dom Rafael estava sentado à sombra, na galeria. Estava vestido com o imaculado terno branco do aristócrata, e os folhos de sua camisa de seda branca e a gravata preta que ondulava ao vento só serviam para acentuar-lhe a delicada estrutura do rosto. O bigode era fino e bem aparado à última moda espanhola, e os cabelos e sobrancelhas mal se tingiam de cinza.

        Dom Rafael levantou-se logo que meu pai apeou. Notou com satisfação que o terno de meu pai estava limpo e escovado, e que suas botas estavam bem engraxadas. Meu pai, percebendo o seu olhar, deu-se por bem pago de ter demorado um pouco à beira de um rio antes de chegar, para fazer-se mais apresentável.

        Dom Rafael chegou ao alto da escada quando meu pai começou a subi-la.

        — Bienvenido, señor, — disse ele polidamente, de acordo com o costume das montanhas.

        — Mil gracias, señor, — respondeu meu pai. — Tenho a honra de falar com Sua Excelência Dom Rafael Campos?

        O outro assentiu, e meu pai fez uma reverência.

        — Jaime Xenos, de la oficina del alcalde, a su servicio.

        — Entre, — disse Dom Rafael, estendendo-lhe a mão com um sorriso. — É um hóspede de honra em minha casa.

        — A honra é toda minha.

        Dom Rafael bateu palmas e disse ao empregado, que chegou correndo:

        — Traga uma bebida fresca para o nosso hóspede. Cuide do cavalo dele.

        Levou meu pai para a sombra da galeria e convidou-o a sentar-se. Quando meu pai se sentou ao lado de uma mesinha, viu de relance a espingarda e as duas pistolas no chão ao lado do dono da casa.

        — Nas montanhas, todo o cuidado é pouco, — disse o fazendeiro, percebendo-lhe o olhar.

        — Compreendo — disse meu pai.

        O empregado chegou com as bebidas, e os dois homens trocaram brindes, depois do que, meu pai apresentou desculpas em nome do alcalde. Mas Rafael Campos não deu muita atenção a essas desculpas. Disse que estava mais do que satisfeito com meu pai e que tinha certeza de que o caso seria resolvido satisfatoriamente. Foram então almoçar e, depois, Dom Rafael sugeriu que meu pai fosse para o seu quarto descansar, pois teriam tempo de sobra no dia seguinte para tratar de negócios. Naquele dia, o seu hóspede devia apenas descansar e sentir-se em sua casa. E assim, foi só na hora do jantar que meu pai conheceu minha mãe.

        Mas, da janela acima da galeria, Maria Elisabeth Campos vira o cavaleiro chegar ao pórtico. O murmúrio da conversa chegava-lhe claramente no sossego do principio da tarde.

        — É um homem muito alto e bonito, não acha? — perguntou uma voz atrás dela.

        Maria Elisabeth voltou-se. Dona Margaretha, irmã de sua mãe, que tinha sido a dona da casa desde a morte da irmã, estava atrás dela.

        Maria Elisabeth ficou vermelha.

        — Mas é moreno demais.

        — Tiene sangre negra, — disse a tia. — Mas isso não tem importância. Dizem que são bons maridos e muito amorosos. — Olhou pela janela e acrescentou: — Mucho hombre.

        Ouviram a voz de dom Rafael quando sugeriu que o hóspede fosse descansar até a hora do jantar.

        — Você também deve ir para a cama e descansar toda a tarde — disse dona Margaretha à sobrinha. — Não adiantaria nada deixar o hóspede vê-la toda vermelha e cansada do calor do dia.

        Maria Elisabeth protestou, mas obedeceu. Ficara também muito impressionada com o estranho alto e moreno e queria aparecer a ele da melhor maneira possível.

        As cortinas foram fechadas, e ela se deitou sozinha na fresca penumbra do quarto. Não dormiu. Ouvira-o dizer que era advogado. Isso queria dizer que tinha cultura e maneiras. Não era como os filhos de fazendeiros que andavam em torno da hacienda. Eram todos bem rudes e comuns, mais interessados em armas e em cavalos do que em conversas refinadas de sociedade.

        Apesar disso, teria em breve de tomar uma decisão. Já fizera dezessete anos, e o pai vivia a fazer pressão sobre ela. Mais um ano e ela começaria a ser considerada solteirona, condenada a uma vida como a da tia Margaretha. E talvez nem isso pudesse ter, pois era filha única e não tinha irmãs ou irmãos de cujos filhos pudesse cuidar. Seria bom casar-se com um advogado, pensou vagamente quando já ia adormecendo, e viver numa cidade onde se conheciam todas as espécies de pessoas interessantes e diferentes.

        Meu pai ficou muito impressionado com a moça esbelta e viva que desceu para o jantar com um gracioso vestido branco que lhe acentuava os grandes olhos negros e os lábios vermelhos. Sentiu mais do que viu o corpo ágil e os seios plenos debaixo do vestido.

        Maria Elisabeth, por sua vez, quase não falou durante o jantar. Escutou meio distraidamente a voz do pai e se encantou com os suaves subtons da voz do hóspede. A maneira de falar da costa era muito mais distinta do que a das montanhas.

        Depois do jantar, os homens foram para a biblioteca fumar os seus charutos e tomar conhaque. Mais tarde, apareceram na sala de música, onde Maria Elisabeth tocou para eles algumas melodias simples no piano. Depois de cerca de meia hora, sentiu a inquietação do hóspede e começou de repente a tocar Chopin.

        Meu pai ficou a escutar atentamente. A profunda paixão da música dominou-o e ele olhou, admirado para a mocinha que parecia tão pequena e frágil diante do grande piano. Quando ela acabou de tocar, ele bateu palmas.

        Dom Rafael bateu palmas também, mas por simples delicadeza, sem qualquer entusiasmo. Julgava Chopin muito arrojado, e talvez até imoral. Preferia uma música mais cerimoniosa e pesada. Não dava a menor atenção aos ritmos indisciplinados do povo.

        Maria Elisabeth levantou-se do piano, corada e linda.

        — Está muito quente aqui dentro disse ela, abrindo o pequeno leque de rendas. — Acho que vou dar um passeio no jardim.

        Meu pai levantou-se no mesmo instante. Inclinou a cabeça para dom Rafael.

        — Con su permiso, Excelencia?

        Dom Rafael concordou cortesmente.

        Meu pai ofereceu o braço à moça. Ela o aceitou graciosamente e os dois saíram passeando pelo jardim. Dona Margaretha seguiu-os discretamente a alguns passos de distância.

        — Toca muito bem — disse meu pai.

        — Nem tanto assim, — replicou ela, rindo. — Não tenho muito tempo para estudar. E ninguém que me ensine.

        — Tenho a impressão de que não lhe falta muito para aprender.

        — Em música, há sempre muito o que aprender. Ouvi dizer que em direito é a mesma coisa. Nunca se deixa de estudar e de aprender.

        — De fato, — murmurou meu pai. — O Direito é muito exigente. Está sempre em transformação. Novas interpretações, novas revisões, e até novas leis quase todos os dias.

        Maria Elisabeth deu um suave suspiro de admiração.

        — Não sei como pode guardar tudo isso na cabeça.

        Olhou-a e viu a admiração nos olhos dela. Naquele exato momento, embora não soubesse disso, ficou perdido.

        Só se casaram quase um ano depois, quando meu pai voltou de Curatu com a noticia da morte de seus pais. Foi meu avô, dom Rafael, quem lhe sugeriu a ideia de que ele ficasse em Bandaya, advogando ali. Havia já dois advogados, mas um deles era muito velho e estava pensando em deixar de trabalhar. Foi um ano quase exato depois disso que minha irmã nasceu.

        Houve ainda duas crianças depois dela e antes de mim, mas ambas foram natimortas. Por essa época, meu pai estava muito interessado no estudo do grego. O pai havia lhe deixado uma biblioteca regular, e ele levara tudo da casinha de Curatu para Bandaya.

        Foi a tia Margaretha quem me contou a história de meu nascimento e do meu batismo. Quando as parteiras e o médico desceram e deram a meu pai a boa noticia, ele se ajoelhou e agradeceu a Deus. Primeiro, porque eu era um menino (antes só tinha havido meninas) e, depois, porque eu era forte, sadio e sobreviveria.

        As discussões em torno do meu nome começaram logo depois. Dom Rafael, meu avô, fazia questão de que eu tivesse o nome do pai dele. Meu pai queria naturalmente dar-me o nome do pai. Nenhum deles cedia um centímetro.

        Foi minha mãe quem resolveu a questão ameaçadora.

        — Vamos dar-lhe um nome que se volte mais para o amanhã do que para o passado — disse ela. — Vamos dar-lhe um nome que encarne as nossas esperanças para o futuro e tenha um sentido para todos os que o ouvirem.

        Isso agradou à erudição e ao romantismo de meu pai e aos impulsos dinásticos de meu avô. Foi assim que meu pai escolheu esse nome:

        Diógenes Alejandro Xenos.

        Diógenes, em honra do lendário homem que buscava a verdade; Alejandro, em homenagem ao conquistador do mundo. A explicação era simples, como proclamou meu pai ao levar-me à pia batismal.

        — Com a verdade, ele conquistará o mundo!

 

        Acordei quando a primeira claridade do dia entrou no quarto. Fiquei ainda um instante na cama, depois rolei o corpo, levantei-me e fui até a janela.

        O sol estava na fimbria do horizonte, começando a aparecer por trás das montanhas. O vento soprava fracamente do lado do ocidente, e eu estremeci quando um resto de frialdade da noite me entrou pela camisa de dormir. De repente, deu-me vontade de urinar.

        Voltei para junto da cama e peguei o pequeno urinol que estava embaixo dela. Enquanto fazia a minha necessidade, pensei que o Papá bem me poderia dar um urinol maior, agora que éramos as únicas pessoas que estavam na casa. Senti-me um pouco mais aquecido depois que acabei, botei o urinol no lugar e voltei para a janela.

        Via do outro lado da estrada, em frente à casa, a fumaça das pequenas fogueiras em torno das quais, embrulhados nas suas mantas sujas, os bandoleros estavam dormindo. Não se ouvia entre eles nem movimento, nem som. Tirei a camisa de dormir, vesti os pantalones e calcei os sapatos. Vesti a minha quente camisa de lã índia que La Perla fizera para o meu aniversário e desci. Estava com fome, e era hora de comer.

        Sara, que tinha sido ajudante de La Perla, estava acendendo o fogo na cozinha. Levantou a cabeça quando entrei, mas o seu rosto de índia continuou impassível.

        — Estou com fome, Sara. — você que vai ser a cozinheira agora?

        Ela fez um sinal com a cabeça, mas não falou. Sara nunca fora de falar muito.

        Fui para a mesa e sentei-me.

        — Quero uma tortilla con jamón.

        Ainda sem falar, ela pegou uma grande frigideira preta. Jogou lá dentro dois dedos de banha e colocou a frigideira em cima de uma das bocas do fogão. Um momento depois, cortou duas ou três fatias de presunto em pedaços e jogou-os, com três ovos, dentro da frigideira.

        Observei-a, satisfeito. Ela era melhor do que La Perla, que não me teria dado uma tortilla, mas me faria comer um pratarraz de mingau. Resolvi fazer a suprema experiência.

        — Café con leche, — disse eu. La Perla e minha mãe só me davam chocolate.

        Sara colocou a xicara de café diante de mim sem uma palavra. Bebi-a em quatro ou cinco ruidosos goles, depois de ter colocado dentro três colheres bem cheias de açúcar mascavo. O açúcar disfarçou o gosto. Eu na verdade nunca havia gostado do café, mas tomá-lo fazia com que eu me sentisse uma pessoa crescida.

        Colocou a tortilla à minha frente. Estava meio amorenada e quente de sair fumaça e durinha, como as que La Perla fazia. Esperei um pouco que esfriasse, e então peguei-a com os dedos e comecei a comê-la, olhando Sara pelo canto dos olhos.

        Não dissera uma palavra sobre a necessidade de eu comer com o garfo e a faca, que estavam ao lado do prato. Ficou apenas ali a olhar-me com uma expressão curiosa. Quando acabei, levantei-me e fui até a pia para lavar as mãos, que enxuguei depois na toalha pendurada ao lado.

        — Estava tudo muito bom, — disse com satisfação.

        Vi nos olhos dela alguma coisa que me recordou a hora em que os bandoleros se haviam aproximado dela na adega. Os seus olhos tinham a mesma insondável resignação.

        Levantei-lhe a saia num impulso. As coxas não tinham nenhuma marca, e os cabelos pareciam intactos.

        Deixei cair a saia e olhei-a no rosto.

        — Machucaram muito você, Sara?

        Ela sacudiu a cabeça em silêncio.

        — Fico muito satisfeito com isso.

        Notei então um leve sinal de lágrimas em torno de seus olhos pretos. Tomei-lhe a mão e disse:

        — Não chore, Sara. Não deixarei que façam mais nada com você. Se tentarem fazer, vão morrer.

        De repente, ela abriu os braços e me abraçou com força. Senti-lhe os peitos quentes no rosto e ouvi o bater acelerado do seu coração. Ela soluçava convulsivamente, mas sem fazer o menor ruído.

        Fiquei muito tempo parado nos braços dela. A única coisa que podia pensar para dizer era:

        — Não chore, Sara. Por favor, não chore.

        Ela me largou de repente. Quase escorreguei para o chão, mas ela já se afastara e estava colocando mais lenha no fogão.

        Não havia mais nada a dizer e eu sai da cozinha.

        A casa estava em silêncio quando atravessei a sala de jantar e a sala de visitas, indo sair na galeria.

        Já havia movimento do outro lado da estrada. Os bandoleiros estavam começando a acordar. O sol surgia por trás dos galpões e os seus raios já inundavam o pátio na direção da casa. Ouvi um rumor no fundo da galeria e virei-me.

        Aquela parte ainda estava mergulhada em sombras, mas eu vi a brasa acesa de um charuto e o vulto de um homem sentado na cadeira de meu pai. Sabia que não era meu pai. Ele nunca fumava charutos tão cedo assim.

        Vi o rosto melhor quando passei da luz para a sombra. Os olhos cinzentos me miravam fixamente.

        — Buenos dias, Señor General, — disse eu, cortesmente.

        Ele respondeu com igual cortesia.

        — Buenos dias, soldadito. — Tirou uma baforada do charuto e colocou-o cuidadosamente na borda da mesa. — Como está esta manhã?

        — Muito bem, obrigado. Acordei cedo.

        — Eu sei. Já o tinha visto na janela em cima.

        — Já estava levantado? — perguntei surpreso, pois não havia ouvido ninguém.

        Os seus pequenos dentes brancos se mostraram num leve sorriso.

        — Os generais, como os meninos, têm de levantar-se cedo para ver o que é que o dia lhes reserva.

        Olhei para o acampamento do outro lado da estrada e disse:

        — Eles ainda estavam dormindo.

        Houve uma leve nota de desprezo em sua voz.

        — Campesinos. Só pensam é no que vão comer durante o dia. E dormem bem sabendo que a comida não lhes vai faltar. — Tornou a pegar o charuto. — Já comeu?

        — Já. Sara me deu desayuno. Ela estava chorando.

        — As mulheres sempre choram. Ela vai esquecer.

        — Eu não choro.

        Ele me olhou um instante antes de dizer:

        — Não, você é um homem. Os homens não têm tempo de derramar lágrimas pelo que já aconteceu.

        — Papá chorou ontem no cemitério, — disse eu e senti um nó na garganta ao lembrar-me. O sol poente lançando longas sombras no pequeno cemitério nos fundos da casa. O portão enferrujado que rangia. O som cavo da terra negra, úmida, caindo sobre os caixões, e o murmúrio untuoso do latim do padre ecoando surdamente no ar. Engoli o nó na garganta e disse: — Chorei também.

        — Isso é compreensível, — replicou o general gravemente. — Até eu chorei. Mas isso foi ontem. Hoje, voltamos a ser homens e não temos tempo para lágrimas.

        Fiz em silêncio um sinal de assentimento.

        — Você é um menino corajoso. Faz lembrar meus filhos.

        Continuei calado.

        — Um deles é poucos anos mais velho do que você. O outro é um ano mais moço. Tenho também uma meninazinha de quatro anos. — Sorriu, puxou-me e sentou-me no seu colo. — Vivem nas montanhas.

        Olhou para as montanhas distantes.

        — Estão em segurança lá em cima. Quem sabe se você não gostaria de ir fazer-lhes uma visita? Há muito o que fazer nas montanhas.

        — Haveria um cavalinho para mim?

        Ele me olhou pensativamente.

        — Já, não. Quando você crescer mais um pouco, talvez. Mas você poderia ter um burro de passo seguro.

        — E será meu, mas de verdade?

        — É claro, — respondeu o general. — Ninguém poderá montar nele senão você.

        — Seria muito bom. Penso que vou gostar muito! Mas... Papá talvez não deixe. Ele só tem a mim agora.

        — Acho que seu pai deixará, — disse ele. — Vai ter muito trabalho todo este ano e não terá tempo de parar aqui. Estará comigo.

        Nessa ocasião, o sol já estava todo de fora. Inundava toda a galeria, e o calor do dia já começava a fazer-se sentir. Ouvi um leve barulho de coisa arranhada sob os nossos pés, como se alguém estivesse escondido embaixo do tabuado da galeria. Quase antes que eu me pudesse mover, o general levantou-se, e uma pistola lhe apareceu de repente na mão.

        — Quién es? — perguntou com voz áspera.

        Houve mais barulho de coisa arranhada, e então ouvi um latido muito meu conhecido. Saltei da galeria e olhei por um buraco que havia na base de pedra. Um focinho frio e uma língua amiga me tocaram o rosto. Puxei o cachorro para fora e levantei-me com ele a debater-se nos meus braços.

        — Perro! — gritei, muito contente. — Perro voltou!

 

        Manuelo levantou a mão para fazer-nos parar, e em seguida, levou o dedo rapidamente aos lábios. Montado no cavalinho, eu não tinha coragem de respirar. Olhei para Roberto. Ele também estava muito atento.

        Roberto era o filho mais velho do general Diablo Rojo. Tinha quase onze anos, sendo dois anos mais velho do que eu. Eu tinha nove anos, mas era mais alto do que ele quase uns oito centímetros. Ele mostrava muita inveja de mim, principalmente porque desde o ano anterior era claro que eu estava crescendo mais depressa.

        Os outros continuaram em silêncio nos seus cavalos. Estavam escutando também. Fiz o possível, mas só pude ouvir o barulho da folhagem agitada pelo vento na floresta onde estávamos.

        — Não estão longe, — disse Manuelo. — Teremos de andar sem fazer barulho.

        — Seria melhor se soubéssemos quantos são, — murmurou Gato Gordo.

        Manuelo fez um sinal afirmativo. Gato Gordo sempre dizia coisas acertadas. Era um homem que pensava, talvez porque fosse muito pesado. Não podia mover-se com facilidade e pensava muito.

        — Vou fazer um reconhecimento — disse Manuelo, descendo do cavalo.

        — Não, — replicou prontamente Gato Gordo. — Você seria logo denunciado pelas folhas secas e pelos galhos. Eles saberiam logo que estamos aqui.

        Gato Gordo apontou para cima.

        — Pelas árvores, como os macacos. Nunca pensarão em olhar para cima.

        — Mas nós somos muito pesados — replicou Manuelo. — Um galho poderia quebrar-se com o nosso peso e — puf! estaríamos mortos!

        — Mas eles não são pesados — disse Gato Gordo, olhando para Roberto e para mim.

        — Não! — exclamou Manuelo, com tal violência que quase deu um berro. — O general nos matará se acontecer alguma coisa ao filho dele!

        — Dax pode ir, — disse mansamente Gato Gordo.

        Manuelo olhou para mim, com a dúvida estampada no rosto, e disse, hesitantemente;

        — Não sei...

        Antes que ele dissesse mais alguma coisa, estendi os braços acima da cabeça e agarrei-me a um galho. Levantei-me na sela e trepei na árvore.

        — Eu vou, — disse lá de cima, olhando para eles.

        Roberto estava de cara fechada. Seus olhos fuzilavam. Eu sabia que era porque eu ia e ele, não. Mas as regras do pai dele eram muito severas e tinham sempre de ser obedecidas. Roberto não se moveu.

        — Não faça barulho, — disse-me Manuelo. — Basta apurar quantos são e como estão armados. Depois, volte e venha nos dizer.

        Bati com a cabeça e subi pela árvore. A cerca de cinco metros do chão, quando os galhos já estavam ficando finos demais para aguentar o meu peso, comecei a passar de uma árvore para outra.

        Eu era muito rápido, pois sempre gostara muito, como todos os garotos, de trepar em árvores, mas levei quase uma hora para chegar ao acampamento deles, a meio quilômetro de distância. E, se não tivesse sentido o cheiro da fumaça, poderia ter passado sem vê-los. Quando parei, estava bem acima das cabeças deles.

        Agarrei-me com força a um galho, com o coração batendo, certo de que eles poderiam ouvir o barulho, ainda que estivessem conversando em voz alta. Recuei lentamente até ficar bem escondido dentro da folhagem.

        Como falavam tão alto, era evidente que não desconfiavam de que houvesse alguém por perto. Contei-os cuidadosamente. Havia catorze homens, com os uniformes vermelhos e azuis desbotados e sujos. Já haviam preparado a fogueira para a noite e de vez em quando um deles se levantava, ia apanhar uma acha de lenha e jogava-a na fogueira. Estranhei que nenhum deles estivesse preparando a comida da noite, mas essa dúvida foi logo resolvida.

        Uma mulher apareceu na pequena clareira. Um dos homens sentado mais perto do fogo, levantou-se e foi falar com ela. As divisas da manga mostravam que era sargento. A voz dele era mais ríspida naquele tranquilo entardecer.

        — Donde está la comida?

        — Já vem, — respondeu a mulher em voz baixa.

        Um instante depois, apareceram duas mulheres carregando uma grande panela de ferro. O cheiro de um ensopado de carne chegou-me ao nariz, e eu senti água na boca.

        As mulheres colocaram a panela perto dos homens e começaram a servir a comida em pratos de metal. Depois que todos foram servidos, as mulheres levaram o que sobrara e afastaram-se para comer num canto.

        Aproveitei-me desta preocupação com a comida para tomar o caminho de volta. Dei volta à clareira pelas árvores até ver onde as mulheres tinham preparado a comida. A uns seis metros de distância, havia os restos de outro fogo. Havia também alguns cobertores estendidos no chão, que mostravam onde as mulheres dormiam. Voltei.

        O sol estava quase desaparecendo quando cheguei. Embora os outros estivessem atentos, à espera da minha volta, consegui descer no meio deles sem fazer o menor barulho. Fiquei muito orgulhoso quando vi suas caras espantadas.

        — Quatorze homens sob o comando de um sargento, — disse eu. — Já fizeram acampamento para passar a noite.

        — Quais são as armas que eles têm? — perguntou Gato Gordo.

        — Vi fuzis e duas metralhadoras portáteis.

        — Só duas?

        — Foi só o que eu vi.

        — Que será que estão fazendo por aqui? — murmurou Gato Gordo.

        — Deve ser uma patrulha, — disse Manuelo. — Estão sempre mandando patrulhas para descobrir onde é que estamos. — Riu. — E nunca descobriram.

        — Quatorze homens e duas metralhadoras — murmurou Gato Gordo, pensativamente. — Somos apenas cinco, sem contar os dois garotos. Talvez seja melhor deixá-los.

        — Não pode haver ocasião melhor para atacá-los, — disse eu, impetuosamente. — As mulheres acabaram de dar comida para eles. Estão tão ocupados em encher a barriga que nem nos ouvirão chegar.

        — Há mulheres com eles? — perguntou Manuelo, surpreso.

        — Há, sim.

        — Quantas?

        — Três.

        — Desertores! exclamou Gato Gordo. — Fugiram para as montanhas com as mulheres.

        — Talvez seja verdade então, — disse outro. — O general está forçando o exército a debandar. A guerra acabará dentro em breve.

        — O exército ainda está de posse dos portos, — replicou Gato Gordo. — Não poderemos vencer enquanto o general não tomar Curatu. Quando cortarmos o caminho deles para o mar, os imperialistas ianques não poderão mais ajudá-los. E então tudo acabará.

        — Soube que estamos marchando para Curatu, — disse Manuelo.

        — Que é que vamos fazer com esses soldados? — perguntou Gato Gordo, fazendo a conversa voltar ao que interessava.

        — Não sei, — murmurou Manuelo. — Eles têm duas metralhadoras.

        — Têm também três mulheres disse Gato Gordo, signifi-cativamente.

        — Desertores não têm espirito de luta, — disse Diego Gonzáles. — E já faz muito tempo que eu...

        Gato Gordo interrompeu-o com um olhar de advertência para Roberto e para mim.

        — Poderíamos, aproveitar as metralhadoras. O general nos agradeceria. Há sentinelas por lá, Dax?

        — Não. Estão espalhados, comendo. Eu poderia ter mijado dentro da panela e eles nem notariam.

        Manuelo tomou uma decisão.

        — Vamos atacá-los de surpresa. Pouco antes do amanhecer, quando eles estiverem no melhor do sono.

        Rolei o corpo, puxando bem o cobertor para proteger-me da friagem da noite. Ouvi Roberto mover-se ao meu lado.

        — Está acordado? perguntei.

        — Si.

        — Não consigo dormir.

        — Nem eu.

        — Está com medo?

        — Não, — respondeu com voz desdenhosa. — Claro que não.

        — Eu também não.

        — Estou ansioso para que chegue a hora. Vou matar um daqueles soldados. Vamos matá-los todos.

        — As mulheres também? perguntei.

        — Claro que não.

        — Que é que faremos então com elas?

        — Não sei. — Ele pensou um momento. — Violentá-las, eu acho.

        — Creio que não gostaria disso, — murmurei. — Foi o que fizeram com minha irmã. — É uma coisa que maltrata as mulheres.

        — Isso é porque você ainda é garotinho disse ele. — Você não poderia violentar uma mulher ainda que quisesse.

        — Por quê?

        — Você ainda é muito pequeno. Não tem tamanho para isso.

        — Tenho, sim! exclamei, indignado. — Eu sou maior do que você!

        — Mas a sua coisa não é!

        Fiquei calado, porque era verdade. Eu tinha visto a coisa dele mais de uma vez. Costumava brincar com ela no campo nos fundos da casa, e ai ela ficava duas vezes maior que a minha.

        — Seja como for, vou violentar uma, — disse eu, num desafio.

        Ele riu ironicamente.

        — Não vai poder. Ela não vai ficar dura. — Embrulhou-se no cobertor, cobrindo a cabeça. — Agora, vamos dormir. Preciso descansar um pouco.

        Fiquei sossegadamente ali deitado. Olhei para as estrelas. Pareciam às vezes tão baixas no céu, que eu poderia estender a mão e tocá-las. Fiquei tentando descobrir qual seria minha mãe e qual seria minha irmã. Meu pai me dissera que elas haviam ido para o céu e tinham passado a ser estrelas de Deus. Estariam me vendo naquela noite? Afinal, fechei os olhos e peguei no sono.

        Foi Manuelo quem me acordou, tocando-me. Levantei-me no mesmo instante.

        — Estou pronto, — disse eu. — Vou mostrar onde é que eles estão.

        — Não, Dax. Você vai ficar aqui com os cavalos. Alguém tem de tomar conta dos cavalos, senão eles podem fugir.

        — Mas...

        — Você e Roberto vão ficar com os cavalos. É a ordem que estou dando, — disse Manuelo com voz firme.

        Olhei para Roberto, mas ele desviou os olhos sem querer encarar-me. Não era afinal de contas tão grande assim, dissesse o que dissesse. Se fosse, não o deixariam ficar ali.

        — Está ficando tarde! — disse Gato Gordo.

        — Fiquem aqui e esperem até voltarmos, — disse-nos Manuelo. — Se até ao meio-dia não tivermos voltado, peguem os cavalos e voltem com eles para casa, estão entendendo?

        Assentimos, em silêncio e vimos os homens desaparecerem na floresta. Ouvimos durante algum tempo o chiar das folhas secas e o estalar dos galhos, depois tudo ficou em silêncio.

        — Vamos olhar os cavalos, disse-me Roberto.

        Fui com ele até o lugar onde os animais estavam amarrados. Estavam pastando calmamente como se estivessem na fazenda.

        — Não sei por que não podemos nos divertir também, — disse eu. — Os cavalos estão peados e não poderiam ir muito longe.

        — Manuelo disse que tínhamos de ficar, — murmurou Roberto.

        Senti-me de repente cheio de coragem.

        — Se você quiser, fique. Eu é que não vou ficar!

        — Manuelo vai se zangar.

        — Ele nem vai saber — respondi. — Posso ir mais depressa pelas árvores do que eles a pé.

        Comecei a trepar pela árvore mais próxima. Parei no primeiro galho e disse:

        — Depois eu lhe conto tudo o que aconteceu!

        Roberto me olhou um momento e depois gritou, correndo para a árvore.

        — Espere por mim que eu vou com você!

 

        Não levei para chegar lá tanto tempo como na véspera, pois já sabia exatamente para onde ia. Ficamos escondidos nas árvores até que senti Roberto puxar-me a manga. Ele apontou, e vi Manuelo e Gato Gordo quase à beira da clareira. Depois, desapareceram na folhagem.

        De onde estávamos vimos os nossos homens tomarem posição em volta dos soldados que dormiam. No acampamento, nenhum deles se mexia. Estavam encolhidos debaixo dos cobertores, em torno da fogueira que morria. Comecei a contar.

        A luz ainda fraca do amanhecer, contei apenas doze. Por mais que procurasse, não conseguia ver os outros dois. Compreendi então. Estavam com as mulheres. Fiquei sem saber se Manuelo havia percebido isso.

        Vi um movimento na borda da clareira. Gato Gordo estava fazendo sinal para alguém do outro lado. Virei a cabeça e vi Manuelo aparecer, com o largo machete na mão, logo seguido de Diego.

        Dois outros se mostravam ao lado de Gato Gordo. Manuelo fez um gesto com o machete, e todos correram em silêncio através da clareira. Vi os machetes descerem, e cinco soldados estavam mortos antes que os outros tivessem ao menos aberto os olhos.

        O ataque foi ferozmente eficiente. Mais dois foram abatidos enquanto tentavam fugir. Um morreu quando se sentava, e outro já estava de joelhos quando Gato Gordo, com vigorosa cutilada, quase lhe cortou a cabeça fora.

        Até então, não tinha havido barulho, além dos movimentos dos homens que se debatiam no agoniado frenesi da morte. Então, um dos soldados virou o corpo de repente e começou a correr de quatro pés para o mato num esforço desesperado de fuga. Um tiro de pistola ecoou pela floresta, e os passarinhos deixaram• de cantar. O soldado que fugia caiu de bruços no chão.

        Houve silêncio por um momento, enquanto os nossos homens recuperavam o fôlego. Por fim, Manuelo levantou-se.

        — Estão todos mortos?

        — Si, — respondeu Gato Gordo.

        — Todos eles?

        Começaram em silêncio a verificar os corpos. Diego levantou a cabeça e disse, de um que estava aos seus pés:

        — Acho que este aqui ainda está vivo.

        — Que está esperando então? — perguntou Manuelo.

        O machete de Diego se levantou, e a cabeça do homem rolou a meio metro do corpo. Diego nem parou para olhar. Passou a outro corpo e cutucou-o com o pé. Em seguida, voltou para onde estavam Manuelo e Gato Gordo, tomando posição um pouco atrás deles.

        — Só estou vendo doze, — disse Gato Gordo.

        — Eu também, — confirmou Manuelo. — Onde estarão os outros dois? O garoto disse que eram quatorze.

        — E três mulheres, — acrescentou Diego.

        — Ele podia ter-se enganado, — disse Gato Gordo. — É ainda uma criança.

        — Acho que não — disse Manuelo. — Dois devem ter fugido com as mulheres.

        — Não podem estar muito longe. Vamos persegui-los?

        — Não — disse Manuelo. — Eles já nos ouviram. Nunca os encontraremos dentro desse mato. Juntem as armas e as munições.

        Tirou do bolso um cigarrillo e acendeu-o, encostando-se a uma árvore.

        Os outros estavam começando a juntar as armas quando ouvi um barulho bem embaixo da árvore em que estávamos escondidos. Olhei. Era o sargento inimigo. Empunhava uma metralhadora e estava colocando-se em posição para varrer a clareira, apontando-a para Gato Gordo.

        Gritei sem refletir:

        — Cuidado, Gato Gordo!

        As reações de Gato Gordo foram perfeitas. Jogou-se dentro da folhagem num pulo de lado, como o do animal de que tinha o nome. Mas Diego não. Olhou para cima, para a árvore onde eu estava escondido, com um ar de surpresa no rosto. Uma rajada de metralhadora pareceu levantá-lo no ar e jogá-lo violentamente para trás.

        O sargento levantou a arma para o alto da árvore.

        — Volte, Roberto! Volte! — gritei, saltando para outro galho.

        Ouvi o matraquear da metralhadora, que cessou quase tão depressa quanto havia começado. O sargento estava puxando desesperadamente a alavanca. A metralhadora havia engasgado. Não esperei para ver mais nada.

        Roberto deu um grito atrás de mim. Olhei por cima do ombro. Embora fosse mais baixo do que eu, pesava muito mais e um galho se havia quebrado com o seu peso. Desceu por entre os galhos e foi estatelar-se no chão, quase aos pés do sargento.

        Este jogou a metralhadora para o lado e jogou-se sobre Roberto. Rolou pelo chão e quando se levantou estava com o rapaz à frente dele, com a faca no pescoço de Roberto. Olhou para os nossos homens por cima da cabeça de Roberto. A arma de Manuelo estava apontada para ele, e o machete de Gato Gordo lhe pendia ao lado. Os outros dois se aproximavam em silêncio por trás deles.

        Não era preciso dizer ao sargento que ele estava com os trunfos na mão.

        — Não se movam, senão o garoto morre!

        Manuelo e Gato Gordo trocaram olhares embaraçados. Eu sabia perfeitamente o que eles estavam pensando. O general não ia gostar daquilo. Se acontecesse alguma coisa a Roberto, seria bem melhor que não voltassem. A morte na selva seria uma bênção em comparação com o que o general faria com eles. Não se moveram.

        Foi Gato Gordo quem falou primeiro, com o machete voltado para o chão.

        — Largue o garoto, — disse ele maciamente. — Em troca disso, deixaremos você fugir para a floresta em paz.

        O sargento deu uma risada nervosa e cuspiu para o lado.

        — Pensa que sou idiota? Vi o que fizeram com os outros.

        — Isto agora é diferente, — replicou Gato Gordo.

        Manuelo deu um passo curto à frente, e o sargento moveu a mão com a faca. Uma lista de sangue apareceu no rosto de Roberto.

        — Não se movam! — gritou o sargento.

        Manuelo ficou imóvel.

        — Jogue o fuzil no chão!

        Manuelo olhou para Gato Gordo, hesitante. Gato Gordo fez um sinal quase imperceptível e Manuelo deixou o fuzil cair.

        — Agora, os outros, — ordenou o sargento.

        Gato Gordo deixou cair o machete, e os outros dois largaram os fuzis. O sargento olhou um momento para as armas, e então decidiu que seria perigoso ele mesmo recolhê-las.

        — Varga! Venga aqui, Varga!

        A sua voz ressoou pela floresta. Não houve resposta.

        — Varga! Varga! gritou ele de novo.

        Nenhuma resposta.

        — O seu companheiro fugiu, — disse Gato Gordo maciamente. — Será melhor para você fazer o que lhe estamos dizendo.

        — Não! — O sargento começou a dirigir-se cautelosamente para as armas, levando Roberto à sua frente.

        — Para trás — gritou ele. — Afastem-se das armas!

        Todos recuaram pouco a pouco, e o sargento foi avançando. Já estava quase embaixo da árvore onde eu estava escondido, quando tive a ideia instantaneamente, como se eu soubesse todo o tempo o que era preciso fazer. Uma estranha raiva me dominou, como se um demônio tivesse tomado posse de mim. Tirei a faca do cinto e segurei-a com a lâmina projetada para fora, como uma espada.

        Ele estava bem embaixo de mim. Um grito feroz escapou da minha garganta, ao mesmo tempo que me atirei.

        — Toma, bandido!

        Vi o rosto branco voltado para cima quando me choquei com ele. Senti no braço uma dor penetrante, enquanto os dois rolávamos pelo chão. Dois braços então me agarraram e me empurraram. Rolei um pouco pelo chão, até que pude levantar-me e vi Gato Gordo curvado sobre o corpo do sargento.

        Havia no rosto dele um olhar de espanto ao observar o sargento.

        — Está morto! — exclamou afinal. — O garoto matou-o!

        Olhei para o sargento. Estava com a boca aberta, com os olhos sem vida, esbugalhados. Bem abaixo do queixo, saia-lhe do pescoço o cabo da minha faca.

        Olhei para Roberto. Estava estendido no chão, lutando para recobrar o fôlego. Quando virou o rosto para mim, vi o sangue que lhe corria pela face.

        — Está bem, Roberto? — perguntei.

        Ele acenou afirmativamente, sem falar. Havia nos olhos dele um brilho estranho, quase como se estivesse zangado.

        Encaminhava-me para onde ele estava quando ouvi um grito às minhas costas. Senti uma dor aguda na nuca, e, quando virei a cabeça, senti unhas arranharem-me o rosto. Cai para trás.

        Sacudi a cabeça para ver melhor e levantei a vista. Uma mulher se debatia, bem segura por Gato Gordo. Ela cuspiu em mim.

        — Assassino! Você o matou! Você não é uma criança, é um monstro! Uma peste foi o que saiu da barriga de sua mãe!

        Gato Gordo bateu nela com força com o cabo do machete, e ela desabou em silêncio no chão. Havia um leve traço de satisfação na voz de Gato Gordo quando olhou em torno e viu as outras duas mulheres imobilizadas pelo fuzil de Manuelo.

        — Ah! — exclamou ele. — Encontramos las mujeres!

 

        O índio Santiago tirou algumas folhas de uma moita de loureiro e esmagou-as, esfregando-as nas mãos. Depois, curvou-se e apanhou um pouco de lama da borda do poço.

        — Botem isto no rosto, — disse ele. — Fará passar a dor.

        Roberto e eu fizemos o que ele mandava. A lama fria era agradável.

        — Dói? — perguntei-lhe respeitosamente.

        — Muito não.

        — Eu nunca fui cortado, — disse eu.

        Ele aprumou o corpo com uma espécie de orgulho e passou os dedos pelo pequeno talhe.

        — Acho que vai deixar uma cicatriz — disse ele, com ar de importância. Olhou-me com um jeito critico. — Mas acho que você não vai ficar com cicatriz alguma. Um arranhão nunca é tão fundo quanto um ferimento de faca.

        Fiquei desapontado. Mas não tinha resposta para dar.

        Olhei para Manuelo e Gato Gordo. Estavam encolhidos debaixo de uma árvore, conversando em voz baixa. De vez em quando, olhavam para as mulheres, que estavam sentadas no chão, na borda da clareira. Os irmãos Santiago estavam montando guarda a elas.

        — De que é que eles estão falando? — perguntei.

        — Não sei, — respondeu Roberto, que não estava olhando para Manuelo e Gato Gordo e, sim, para as duas mulheres. — A mais moça até que não é ruim.

        — Acha que se zangaram conosco? — perguntei.

        — Quem? — perguntou Roberto com espanto. Mas viu logo o que eu queria dizer e sacudiu a cabeça. — Acho que não. Afinal de contas, todos estariam mortos se nós não os avisássemos.

        — Si.

        — A verdade é que eu pulei em cima do sargento para atrapalhá-lo.

        Olhei para Roberto. Pensava que ele houvesse caído.

        — Você é muito corajoso.

        — Você também é. — Olhou de novo para as mulheres. — Gostaria que eles parassem logo com essa conversa. Estou com uma vontade louca de cair em cima de uma delas agora mesmo.

        — Está?

        — Você ainda pergunta?

        Manuelo e Gato Gordo acabaram a conversa, e Gato Gordo veio para onde nós estávamos, passando por entre os cadáveres. Quando chegou junto ao corpo de Diego, parou. Santiago chegou perto e murmurou:

        — Pobre Diego!

        — Pobre Diego, uma ova! — replicou Gato Gordo. — Morreu por ser burro. Quantas vezes eu lhe disse que não ficasse de boca aberta para tudo! Bem feito!

        Santiago encolheu os ombros, e Gato Gordo continuou em nossa direção.

        — Estão bem, garotos?

        — Estamos, — respondeu Roberto por nós dois.

        — Bueno, — disse ele. — Acham que podem ir buscar os cavalos e trazê-los para cá? Temos muito o que carregar.

        Roberto falou antes que eu pudesse dizer alguma coisa.

        — Que é que vão fazer com as mulheres?

        — Vamos guardá-las até vocês voltarem.

        — Eu ficarei aqui para guardá-las — disse Roberto. — Mande um dos outros com Dax.

        Gato Gordo olhou-o por um momento e voltou para onde estava Manuelo. Voltaram a conversar em sussurros. Uma vez, Gato Gordo levantou a voz, mas Manuelo o fez falar baixo. Por fim, Gato Gordo voltou.

        — Se deixarmos vocês ficarem, não vão dizer nada em casa?

        Roberto prometeu.

        Eu não sabia o que ele estava querendo dizer, mas, se Roberto ia ficar, eu também ficaria.

        — Prometo também que não vou dizer nada.

        Gato Gordo me olhou um momento e disse:

        — Você não vai ficar. Temos um serviço muito mais importante para você do que ir buscar os cavalos. Gostaríamos que você servisse de sentinela. Não queremos que o soldado que fugiu volte e nos colha de surpresa como aquele sargento. Volte pelo caminho uns quinhentos metros e fique com os olhos bem abertos!

        — Não sei — disse eu, hesitante. Olhei para Roberto, mas este ficou calado.

        Gato Gordo tirou a pistola do cinto.

        — Fique com isto. Se avistar o homem, dê um tiro para o ar para avisar-nos.

        Isso me convenceu. Era a primeira vez que alguém me confiava uma pistola.

        — Tenha cuidado, — disse Gato Gordo. — Não vá ferir-se com a pistola.

        — Fique descansado, — disse eu, convicto da minha importância. Corri os olhos em volta para ver se os outros estavam olhando. — Se houver alguma coisa, darei um aviso.

        Ia a cerca de cem metros de distância pelo caminho quando ouvi as risadas. Não consegui imaginar por que estavam rindo. Já estavam fora das minhas vistas, mas o som ainda me seguia. Por fim, não ouvi mais nada. Quando calculei que já estivesse a uns quinhentos metros de distância, subi a uma árvore de onde podia ver tudo em volta.

        Cerca de quinze minutos depois, comecei a ficar inquieto. Se o soldado estava nas vizinhanças, eu não vira nem sinal dele. Quanto tempo eu teria de ficar ali? Gato Gordo nada dissera a esse respeito. Esperei mais alguns minutos e, então, resolvi voltar e perguntar.

        Estava quase chegando lá quando ouvi de novo as risadas. Subi instintivamente para as árvores. Alguma coisa me dizia que eles ficariam muito zangados comigo se eu voltasse naquele momento, mas a curiosidade foi mais forte do que eu.

        Estavam todos reunidos na borda da clareira. A principio, não pude ver bem o que faziam, porque estavam à sombra de uma grande árvore. Dirigi-me sem fazer barulho para o outro lado da clareira. Mas só pude ver uma mistura de corpos. De repente, compreendi o que estavam fazendo.

        Contudo, não era exatamente como da outra vez. Aquelas mulheres não estavam gritando, não estavam com medo. Estavam era rindo, como se pouco se importassem com aquilo.

        Santiago, o velho, estava sentado, encostado a uma árvore com um cigarrillo no canto dos lábios. Havia no seu rosto um curioso sorriso de satisfação. Onde estaria Roberto? De repente, eu o vi sair de dentro do mato com as calças na mão.

        Olhei para ele. Concordei a contragosto que tinha razão. Era maior do que a minha. Ficava em frente dele como um pequeno cabo de punhal.

        Santiago, o moço, disse uma coisa aos outros pelo canto da boca. Quase que no mesmo instante houve silêncio e todos se voltaram para olhar para Roberto.

        Gato Gordo sentou-se, mostrando a barriga branca. Falou e eu ouvir perfeitamente a voz dele do outro lado da clareira.

        — Já era tempo. O general vai ficar satisfeito. Estão vendo? Já é um homem.

        A mulher com quem Gato Gordo tinha estado estendeu um braço para puxá-lo de novo para ela. Ele bateu-lhe raivosamente na mão.

        — Puta! — exclamou, empurrando-a, e levantou-se.

        Manuelo e Santiago, o moço, também se levantaram lentamente. Manuelo pegou um cantil, derramou um pouco de água na barriga e se enxugou depois com um lenço. Virou-se para Roberto e disse:

        — É como nós combinamos. Pode escolher.

        Roberto olhou para as mulheres. Estavam ali estendidas, nuas, com os corpos reluzentes de suor, olhando-o com certa indiferença.

        — Quero esta, — disse ele, apontando.

        A que ele tinha escolhido parecia pouco mais do que uma menina. Eu teria escolhido uma das outras, que tinham peitos maiores, mas aquela é que Roberto me tinha dito que queria. Vi que as pernas dele tremiam quando ele marchava para ela. Ele caiu de joelhos diante da moça. Com um riso, ela o agarrou e o puxou para cima dela, levantando as pernas e fechando-as em torno dele.

        As nádegas e as coxas gordas e brancas da mulher davam quase uma volta em torno do corpo dele. Olhei para os outros. Todos observavam a cena com grande interesse. Um momento depois, Manuelo virou-se e jogou-se em cima da mulher que estava mais perto. Ouvi-a gemer quando fechou as pernas em torno dele. Houve outro grito, e Gato Gordo se jogou em cima da outra mulher.

        Tornei a olhar para Roberto. Ele e a mulher moviam-se numa dança furiosa e estranhamente sem ritmo. Comecei a sentir uma exaltação dentro de mim. O coração batia com força e uma dor muito esquisita começou a espalhar-se pelas minhas virilhas. Senti a boca de repente seca e fiquei sem poder respirar.

        Roberto começou a gritar, debatendo-se ferozmente como se quisesse livrar-se da mulher. Atordoado, deixei-me escorregar. Estendi a mão para pegar um galho, mas era tarde demais. Cai da árvore quase aos pés deles.

        Manuelo rolou pelo chão e me olhou, exclamando:

        — Sem-vergonha!

        Levantei-me e gritei:

        — Vocês mentiram para mim!

        Gato Gordo virou a cabeça.

        — Você devia estar de sentinela no caminho!

        — Mentirosos! — gritei. Atirei-me à mulher mais próxima, contorcendo o corpo como vira Roberto fazer. — Também quero violar uma mulher!

        Senti Gato Gordo pegar-me e esperneei.

        — Largue-me! Largue-me!

        Eu ainda me contorcia furiosamente quando Gato Gordo me levantou do chão. Alucinado de raiva, dei-lhe uma dentada no rosto. Depois, comecei a chorar.

        — Se tenho idade para matar um homem, também tenho idade para ficar em cima de uma mulher! Sou tão bom como Roberto!

        Mas os braços de Gato Gordo prendiam-me de encontro ao seu peito suado. Senti o seu cheiro forte, e de repente toda a revolta e todo o calor me abandonaram.

        Ele me afagou a cabeça delicadamente e disse com voz muito branda:

        — Calma, meu galinho, calma. Tudo tem sua hora. Não tarda muito e você já é um homem também!

 

        As mulheres ficaram nervosas depois que os homens se vestiram. Falaram em voz baixa entre si, e a mais velha, a que me havia arranhado, atravessou a clareira.

        — Vão nos deixar aqui no meio do mato?

        Manuelo acabou de afivelar o cinto.

        — Não fomos nós que trouxemos vocês para cá.

        — Mas, se ficarmos aqui, vamos morrer. Não haverá ninguém para proteger-nos, para dar-nos comida.

        Manuelo não respondeu. Tirou a pistola e substituiu as cápsulas detonadas.

        Ela interpretou o silêncio como um principio de aquiescência e procurou reforçar a sua posição.

        — Não fomos boazinhas para vocês? Não recebemos todos quantas vezes quiseram? Não nos queixamos, não foi?

        Manuelo virou-se e olhou para nós.

        — Já pegaram todas as armas?

        — Já, — respondeu Gato Gordo.

        — Então vamos, — disse Manuelo, dando alguns passos pelo caminho.

        A mulher correu para ele e agarrou-lhe o braço com o rosto contorcido de raiva.

        — Bandoleros! Vocês todos são uns animais sem um pingo de sentimento! Serviram-se de nós como se fôssemos vasilhas para receber as suas imundícies. Qualquer de nós pode estar com um filho de vocês!

        Manuelo deu-lhe um empurrão, e ela caiu a alguns passos de distância.

        — Cão! — gritou ela. — Quer mesmo que a gente morra aqui?

        — Quero, — disse ele displicentemente e, voltando-se, levantou a pistola e atirou.

        A bala atirou a mulher de encontro a uma árvore. Ela caiu para a frente de joelhos e afinal se encurvou numa posição fetal junto ao tronco da árvore. A mão ainda se agitou alguns instantes pelo chão antes de ficar imóvel.

        Manuelo levantou a pistola ainda fumegante.

        — As outras duas fugiram, — disse Gato Gordo.

        Corri os olhos pela clareira. Apenas uma onda entre as folhas ficara como um sinal da presença delas.

        — Vamos atrás delas?

        — Não, — disse Manuelo, guardando a pistola. — Já perdemos tempo demais com essas putas. Ainda temos um dia de viagem até o vale para pegar a carne. Começarão a passar fome lá em casa se não andarmos depressa.

        — Isso servirá de lição a essas mulheres, — disse Gato Gordo, sorrindo. — Elas não são donas de um homem só porque abriram as pernas para ele!

        Só fomos chegar ao vale de Bandaya no dia seguinte, bem cedo. Começamos a descer a encosta da montanha ainda dentro da névoa da madrugada. De repente, o sol rompeu as nuvens, e o vale apareceu estendido abaixo de nós, verde e belo como um espesso tapete. Aprumei-me na sela e olhei, procurando avistar a minha casa. Fazia mais de dois anos que eu não a via.

        Lembrei-me da tarde em que fora tomada a decisão. Meu pai e o general conversavam sossegadamente na galeria. De vez em quando, meu pai olhava para mim. Eu estava brincando no pátio com Perro. Havia-lhe ensinado um novo truque. Pegava um pedaço de cana e jogava-o o mais longe possível. Ele saia correndo, latindo sem parar. Pegava então a cana e vinha trazê-la de volta para mim contente da vida.

        — Dax?

        Parei com a mão levantada, pronta para jogar ainda uma vez o pedaço de cana. Olhei para meu pai.

        — Si, Papá?

        — Venha cá.

        Joguei o pedaço de cana no chão e fui para a galeria. Perro agarrou prontamente a cana e veio com ela para os meus pés, quase me derrubando. Quando comecei a subir a escada, ele ficou a olhar-me com uma expressão curiosa de expectativa. Sorri ao vê-lo parado ali. Ele sabia que não podia entrar na galeria.

        — Espere por mim ai, — disse eu.

        Perro se sentou no chão e começou a brincar com o pedaço de cana como se fosse um osso, abanando devagar a cauda.

        Olhei para meu pai quando me aproximei dele. Tinha no rosto rugas que eu nunca havia notado, e sua pele normalmente escura havia adquirido um tom cinzento. Parei diante dele.

        — O general me disse que lhe falou de ir para a casa dele nas montanhas.

        — Si, Papá.

        — Quer mesmo ir?

        — Ele disse que eu podia ter um burro. E, depois, quando crescer mais, um cavalo.

        Meu pai ficou em silêncio.

        — Ele também me disse que o senhor iria com ele. Se não vai, prefiro ficar aqui com o senhor.

        Meu pai e o general se olharam.

        — Não me agrada deixá-lo, meu filho. Mas é preciso.

        — Por quê?

        — É importante. O general e eu fizemos uma aliança.

        Eu ainda não compreendia. Meu pai continuou:

        — O povo está oprimido. Há injustiça e fome na terra. Temos de fazer o que for possível para ajudá-lo.

        — Por que não traz todos para cá? — perguntei. — Aqui há comida de sobra para todo o mundo.

        Meu pai e o general tornaram a se olhar. Meu pai me pegou ao colo e disse pacientemente:

        — Não podemos fazer isso, meu filho. É gente demais.

        Eu conhecia todos os campesinos do vale. Não eram tantos assim, e foi o que eu disse.

        Meu pai sorriu.

        — Há muito mais campesinos do outro lado das montanhas.

        — Quantos? Duas vezes mais?

        — Muito mais. Milhares e milhares. Se viessem todos para cá, não haveria lugar nem para se estenderem no chão e dormirem.

        Tentei imaginar o que meu pai dizia, mas não pude. Tive outra ideia.

        — Vai com o general porque é prisioneiro dele?

        — Não, meu filho. O general e eu somos amigos. Acreditamos que o povo deve ser ajudado.

        — Vai ser então um bandolero como ele?

        — Não, Dax, o general não é um bandolero.

        — Mas os homens dele são.

        — Não são mais, — explicou meu pai. — Todos os bandoleiros entraram para o seu exército. Esses homens são guerrilleros.

        — O exército tem farda azul e vermelha. Esses não têm farda. Parecem bandoleros.

        — Terão farda um dia — disse o general.

        Olhei-o, vi que o rosto dele estava impassível e disse:

        — Então ai vai ser diferente. Parecerão de fato um exército.

        Ouvi um tropel de cavalo que se aproximava e olhei para a estrada. Era meu avô, dom Rafael.

        — É Vovô! gritei, saltando do colo de meu pai e correndo para a cerca. — Holá, Papá Grande! Holá, Abuelo!

        Em geral, quando eu corria assim para a cerca e gritava, meu avô me respondia alegremente. Mas dessa vez ele ficou em silêncio. Quando desceu do cavalo, vi que ele estava muito zangado, pois tinha a boca franzida e o rosto muito pálido.

        Meu pai levantou-se quando o velho começou a subir a escada da galeria.

        — Bienvenido, Dom Rafael!

        Vovô não respondeu à saudação. Olhou-o friamente e disse:

        — Vim buscar meu neto.

        Fiz menção de correr para ele, mas alguma coisa no seu tom de voz me fez parar. Fiquei a olhar para ele e para meu pai.

        O rosto de meu pai estava ainda mais cinzento quando ele estendeu a mão e me puxou para ele. Podia sentir-lhe a mão trêmula no meu ombro.

        — Não creio que seja seguro para meu filho continuar neste vale depois que eu sair daqui.

        — Perdeu o direito a ele, — replicou Papá Grande com a mesma voz fria. — Aliando-se aos assassinos da mãe dele, deixou de proceder como pai. Quem se junta à ralé passa a ser ralé.

        Senti a pressão mais forte dos dedos de meu pai no meu ombro. Mas a voz não mudou.

        — O que aconteceu foi um acidente. Os homens que cometeram o crime já pagaram por ele.

        A voz de Papá Grande se alteou.

        — E isso fará viver de novo minha filha, sua mulher? Ou sua filha? Estão mortas e, logo no dia seguinte, você se dispõe a juntar-se aos assassinos delas. Entregaria seu filho aos cuidados dessa gente?

        Meu pai não respondeu.

        — Não ficará satisfeito enquanto ele não for o que eles são! Assassinos! Terroristas! Bandidos!

        Papá Grande estendeu as mãos para pegar-me, mas meu pai me afastou do alcance dele.

        — Ele é meu filho, — continuou ele, com a mesma voz calma, — e ficará sendo meu filho. Não o deixarei aqui. Será retido como refém contra mim se o exército chegar. Estará em mais segurança nas montanhas.

        — Sangre negra! — gritou meu avô com todo o desprezo. — Sangue de preto! Filho de escravos! Não pode haver nada mais baixo! Pensei que fosse um homem, pois do contrário não teria permitido que se casasse com minha filha. Vejo agora que estava errado. Não há baixeza a que não seja capaz de descer diante dos conquistadores, como seus antepassados fizeram diante dos seus senhores!

        Nesse momento, o general levantou-se da cadeira e gritou:

        — Basta, velho!

        Papá Grande olhou-o como se ele fosse lixo.

        — Bandolero! — Meu avô proferiu a palavra como se fosse a coisa mais obscena que eu já ouvira.

        O rosto do general ficou vermelho de raiva.

        — Pare! Não basta termos poupado a sua pessoa e os seus bens? Ou já está tão velho que procura a morte como um alivio aos seus achaques?

        Papá Grande nem lhe deu resposta. Voltou-se para meu pai como se o general nem estivesse ali.

        — Se tem algum amor por seu filho, deixe-o ficar comigo antes que seja tarde demais!

        Meu pai sacudiu a cabeça.

        — Vá embora! — gritou o general. — Vá antes que eu perca a paciência e cancele os favores que seu genro obteve para a sua pessoa!

        Papá Grande olhou-o furiosamente.

        — Não preciso da sua paciência nem dos seus favores. Já conheci durante a minha vida muita gente da sua laia. Espero ter vida para ainda ver sua cabeça espetada na ponta de uma lança como vi as dos outros!

        Deu as costas e desceu a escada da galeria até chegar ao seu cavalo, com o corpo empertigado e altivo, vestido com o terno branco como a neve no alto das montanhas. Montou e disse da sela:

        — Quando o exército chegar é que iremos ver a sua bravura!

        Olhou depois para mim, e sua voz se abrandou.

        — Adeus, meu neto — disse ele tristemente. — Já estou lamentando o que lhe vai acontecer.

        Dito isso, esporeou o cavalo e afastou-se a galope. Fiquei a olhá-lo. Os cascos do cavalo arrancavam pequenas nuvens de poeira da terra batida da estrada. Olhei-o até desaparecer. Voltei-me então para meu pai, em cujos olhos havia uma tristeza tão grande quanto a que eu vira nos olhos de meu avô. De repente, tomou-me nos braços e me apertou de encontro ao peito.

        — Meu filho, meu filho, — sussurrou ele. — Só peço a Deus que eu esteja fazendo por você o que é certo!

        O general bateu palmas vivamente, e um homem veio correndo do outro lado da estrada. Era um homem grande, o mais gordo que eu já conhecera, mas havia corrido com graça, leveza e agilidade. Lembrou-me os cabritos que eu vira saltar de pedra em pedra na montanha. Trazia o chapéu na mão.

        — Si, Excelencia?

        — Gato Gordo, — disse o general, — arrume-se e leve esse menino para as montanhas. Fica sob os seus cuidados e para mim você será o único responsável se alguma coisa acontecer a ele.

        — Si, Excelencia, — disse o homem com uma reverência. Voltou-se depois para mim. — O menino está pronto para viajar?

        Meu pai olhou para o general.

        — Agora?

        — O perigo aumenta de instante a instante.

        — Vá dizer a Sara para arrumar as suas roupas, — disse meu pai, colocando-me no chão.

        — Está bem, Papá, — disse eu, obedientemente e sai da galeria.

        — Depressa, niño, — disse-me Gato Gordo. — É melhor já estarmos nas montanhas quando a noite cair.

        Eu era muito tímido para dizer alguma coisa naquele momento, mas, naquela noite, quando o movimento de um animal me acordou, arrastei-me tremendo para onde ele estava, pelo chão gelado das montanhas.

        — Tengo miedo, Gato Gordo, — sussurrei.

        Ele me deu a mão.

        — Segure a minha mão, garoto, e eu o levarei sem perigo por estas montanhas.

        Tranquilizado, fechei os olhos e adormeci de novo.

        Havia mais de dois anos que isso acontecera, e naquele momento o sol iluminava o vale e eu podia abarcá-lo quase todo com a vista. Firmei-me nos estribos e senti uma onda de contentamento invadir-me. Havia muito tempo que não ia a casa. Papá Grande ficaria contente de saber que afinal de contas não teria de lamentar o que me havia acontecido.

 

        Havia apenas poucos minutos que descíamos a estrada da montanha quando Manuelo de repente levantou a mão. Paramos, e ele desceu do cavalo para encostar o ouvido no chão duro da estrada. Escutou um momento e então chamou Gato Gordo para escutar também.

        Pouco depois, estavam ambos montados de novo.

        — Temos de sair da estrada e esconder-nos, — disse Manuelo. — Há muitos cavalos subindo por esta estrada.

        Gato Gordo correu os olhos em torno.

        — Esconder-nos onde, nesta montanha sem árvores?

        — Temos de voltar então, — disse Manuelo prontamente, virando o cavalo.

        Eu havia brincado naquelas montanhas desde que era garotinho.

        — Mais abaixo na estrada, logo depois da curva, há algumas árvores. Logo depois das árvores, há uma caverna onde podemos esconder-nos.

        — Dá para escondermos também os cavalos?

        — Ouvi Papá dizer uma vez que dava até para um exército.

        — Então vá na frente, depressa — disse Manuelo. — Nós acompanharemos você.

        Afrouxei a rédea do meu cavalo, e galopamos para a curva da estrada. As árvores estavam no mesmo lugar de que eu me lembrava delas. Sai da estrada e passei por entre as árvores até chegar à entrada da caverna.

        — Chegamos! — disse eu.

        Manuelo saltou do cavalo num segundo.

        — Você e Roberto, levem os cavalos para dentro da caverna, — ordenou ele. — Os outros, venham comigo. Temos de apagar o nosso rastro na estrada.

        Saltaram todos e eu e Roberto seguramos as rédeas e levamos os cavalos para dentro da caverna. A principio, os animais relincharam e recuaram da escuridão, mas nós falamos brandamente com eles e pouco depois se aquietaram. Roberto fez um nó das rédeas e amarrou tudo a uma pedra. Depois disso, corremos para a entrada.

        Gato Gordo e Santiago, o velho, andavam de costas para nós, varrendo com galhos o leito da estrada. Manuelo e Santiago, o moço, estavam armando uma das metralhadoras. Quando acabaram, pegaram-na e correram para a entrada da caverna.

        Quando Gato Gordo e Santiago terminaram, olharam com satisfação para a metralhadora. Gato Gordo tomou posição atrás da arma e fechou o olho sobre a mira, muito contente.

        Manuelo ordenou a Santiago, o moço:

        — Vá para as árvores. Cubra-nos com o seu fuzil se houver alguma dificuldade.

        Quase antes que ele acabasse de falar, Santiago já estava empoleirado entre os galhos. As folhas tremeram um momento e ele não foi mais visível.

        Manuelo olhou para os garotos.

        — Para a caverna, vocês dois!

        Antes que pudéssemos protestar, Gato Gordo levantou a mão. Ficamos parados, escutando. Já era bem claro o pesado tropel dos cavalos.

        — São mais de vinte, — disse ele, fazendo um gesto para que nos deitássemos.

        Manuelo rastejou na direção da estrada. Avistei a cabeça dele perto das árvores, erguendo-se para olhar a estrada. Tentei olhar para a estrada além dele, mas a curva da encosta da montanha a escondia.

        O tropel era mais alto, e a cabeça de Manuelo desapareceu. O barulho vinha diretamente da estrada à nossa frente, depois passou e começou a diminuir.

        Manuelo voltou correndo.

        — Cavalaria! Toda uma tropa! Contei trinta e quatro homens.

        — Que estarão fazendo aqui? — murmurou Gato Gordo. — Não havia noticia de militares em Bandaya.

        — O fato é que estão aqui, — disse Manuelo, encolhendo os ombros.

        Ouviu-se ao longe o som de um clarim e, depois, silêncio. Manuelo escutou um momento mais e, então, sentou-se atrás da metralhadora e acendeu um cigarrillo. Estava muito pensativo.

        — Olá, moço! — disse ele em voz baixa, mas penetrante. — Que está vendo dai?

        — Nada, — disse Santiago com a voz abafada pela folhagem. — A estrada está desimpedida.

        — Não é da estrada que estou falando! É do vale!

        Houve silêncio, e ele voltou a falar:

        — Há muita fumaça, mas está muito longe para se saber o que é que está queimando.

        — Não está vendo mais nada?

        — Não. Posso descer agora?

        — Fique ai!

        — Estou com os cojones machucados de me sentar neste galho. Gato Gordo riu.

        — Não é o galho que lhe está fazendo os cojones doerem. — Voltou-se para Manuelo. — Que é que acha?

        — Não sei. Pode ser apenas um grupo de passagem pelo vale.

        — E agora? Vamos voltar para casa?

        — Levando armas em lugar de carne? Não adianta.

        — Mas se houver soldados no vale...

        — Não sabemos se há. Os que vimos estavam se afastando.

        Gato Gordo nada disse. Santiago, o velho, foi sentar-se defronte dele. Ficaram em silêncio, olhando um para o outro.

        Senti a pressão nos rins.

        — Vou urinar.

        Fui até uma árvore e comecei a urinar. Um instante depois, Roberto estava ao meu lado. Ficamos ali, com os dois pequenos rios amarelos a correr, dourados sob a luz do sol. Fiquei satisfeito. Ele podia ser mais velho e tudo o mais, mas eu urinava mais longe do que ele. Roberto não havia notado isso, e eu já ia chamar-lhe a atenção quando de repente tive de parar. Abotoei as calças e voltei para a entrada da caverna.

        Os três homens ainda estavam sentados em silêncio em torno da metralhadora. Manuelo apagou o cigarrillo e guardou cuidadosamente a ponta no bolso.

        — Só há um meio de descobrir. Um de nós tem de ir até o vale.

        — Se houver mais militares, será perigoso.

        — Será mais perigoso se voltarmos para casa sem carne e sem fazer nenhum esforço para consegui-la, — replicou Manuelo.

        — É verdade, — murmurou Gato Gordo. — Não irão gostar disso.

        — De jeito nenhum — disse Santiago, o velho. — Vão passar fome.

        Ambos olharam-no com surpresa. Era muito raro o índio falar.

        Manuelo perguntou a Gato Gordo:

        — Você irá?

        — Eu? Por que eu?

        — Porque você de nós todos é o único que já esteve no vale. É lógico, portanto, que vá você.

        — Mas só estive lá um dia. Logo depois, o general me mandou levar aquele garoto ali para as montanhas.

        Manuelo olhou para mim.

        — Lembra-se do vale?

        — Si.

        — A sua hacienda fica muito longe daqui?

        — Uma hora e meia a cavalo.

        — E a pé? Um cavalo chamaria muito a atenção.

        — Três, talvez quatro horas.

        Manuelo pensou um pouco e disse:

        — Leve o garoto com você como guia.

        Gato Gordo resmungou:

        — Devíamos ao menos levar os cavalos. Você sabe quanto é difícil para mim caminhar. Além disso, tenho a impressão de que é muito perigoso. Podemos ser mortos.

        — Nesse caso, você não precisará dos cavalos, — disse Manuelo com decisão. — Vaya!

        Gato Gordo levantou-se e pegou o fuzil.

        — Deixe isso ai! — ordenou Manuelo. — E esconda a pistola dentro da camisa. Se alguém passar por vocês na estrada, não verá senão um pobre campesino que vai para Bandaya com o filho. Se você estiver com um fuzil, atirarão primeiro e farão perguntas depois.

        Gato Gordo não parecia nada feliz.

        — Quanto tempo você esperará por nós?

        Manuelo olhou para o sol e disse:

        — Devem ser oito horas. Segundo disse o garoto, chegarão à hacienda ao meio-dia. Esperaremos até o anoitecer. Se até então não tiverem voltado, iremos para casa.

        Gato Gordo olhou-o sem queixas. Cada um sabia o que o outro estava pensando. Se a situação fosse ao inverso, Manuelo reagiria da mesma maneira. Era uma das condições da vida.

        Gato Gordo virou-se para mim.

        — Vamos, garoto. Parece que o trouxe de casa e tenho de levá-lo de novo para lá.

        — Meus cojones não aguentam mais! — disse Santiago, o moço, de uma das árvores.

        — Que pena! — disse Gato Gordo, sorrindo. — Quem sabe se você não prefere dar o passeiozinho que nós vamos dar?

 

        O sol estava quase no meio do céu quando nos escondemos no canavial e olhamos para o outro lado da estrada. O paiol e a cozinha tinham sido completamente queimados. O calor das madeiras carbonizadas me chegava até o rosto. Sentia no estômago um começo de náusea.

        Levantei-me. Gato Gordo me fez voltar para o chão.

        — Fique quieto! Pode ser que haja alguns deles por ai!

        Olhei-o como se fosse alguém que eu não conhecesse e murmurei surdamente:

        — Tentaram queimar minha casa!

        — Foi por isso que seu pai mandou você para as montanhas.

        — Se ele soubesse, teria deixado que eu ficasse. Eu não deixaria tocarem fogo na fazenda.

        — Teriam tocado fogo em você junto com ela, — disse Gato Gordo. Olhou atentamente os arredores e disse: — Vamos. Talvez a gente possa saber alguma coisa.

        Atravessei a estrada com ele. No meio do caminho, entre a estrada e a casa, encontramos um morto, caído de bruços no chão. Gato Gordo virou-o e disse com desprezo:

        — Campesino!

        Reconheci-o. Era o velho Sordes, o jardineiro. Disse isso a Gato Gordo.

        — Foi melhor para ele, — disse, com o mesmo desprezo. — De qualquer maneira, iria perder o emprego.

        Continuamos para a casa. A galeria fora também queimada. Parecia ter caído dentro da adega. A quentura era bem mais intensa. Gato Gordo bateu com o pé numa tábua, que se desprendeu e foi cair na adega. Quase imediatamente, uma língua de chama se elevou lá debaixo.

        Demos volta pela casa até chegar aos fundos.

        — Talvez ainda haja alguém na adega, — disse eu a Gato Gordo.

        — Se houver, já deve estar assado.

        Foi só quando chegamos às árvores que ficavam entre a casa e o paiol que vimos as duas mulheres. Estavam amarradas, costas com costas, ao tronco de uma árvore, e olhavam-nos com os olhos parados. Uma delas eu reconheci. Era Sara, a cozinheira. A outra eu não sabia quem era.

        Estavam nuas e tinham o corpo coberto de pequenos cortes nos quais o sangue se havia coagulado. As formigas já começavam a subir por elas.

        — Esta é Sara, — disse eu, — a que arrumou a minha mala.

        — La índia?

        — Sim.

        Fechei os olhos e lembrei-me de como ela havia preparado o meu café na última manhã que passei em casa. Abri os olhos e perguntei:

        — Por que não fizeram o que queriam com ela e não a mataram depois? Por que tiveram ainda de torturá-la?

        — Soldados! — exclamou Gato Gordo. — São piores do que nós.

        — Mas por quê?

        — Com certeza, pensaram que ela soubesse de alguma coisa e queriam que ela contasse. Bem, aqui não há mais nada. Podemos ir tratando de voltar.

        Estávamos quase na estrada quando ele me fez parar de repente e me disse nervosamente.

        — Você se chama Juan. Não fale! Deixe que eu falo tudo por você!

        Só compreendi o que ele me estava dizendo quando vi de repente os seis soldados aparecerem com as suas fardas vermelhas e azuis e as carabinas apontadas para nós.

 

        Gato Gordo tirou o chapéu com um sorriso servil no rosto.

        — Somos pobres campesinos que viemos para Bandaya procurar trabalho, Excelência. Meu filho e eu...

        O jovem tenente encarou-o.

        — Que é que estão fazendo aqui neste lugar?

        — Nada. Vimos a fumaça e pensamos que...

        — Pensaram que podiam roubar alguma coisa!

        — Não, Excelência, — protestou Gato Gordo com voz ofendida. — Pensamos que poderíamos ajudar em alguma coisa. A gente não sabia que era um caso militar.

        O tenente olhou para mim e perguntou:

        — Que idade tem o garoto?

        — Meu filho Juan tem quase doze anos, Excelência.

        — Estamos à procura de um garoto de oito anos, filho do bandolero Xenos.

        — Não sabemos quem é, — disse prontamente Gato Gordo.

        O tenente voltou a olhar para mim e disse:

        — Não sei... O garoto que procuramos é escuro como seu filho.

        — Levante o corpo, Juan! — disse Gato Gordo e voltou-se para o tenente: — Está vendo como meu Juan é alto? Qual é o garoto de oito anos que é desse tamanho?

        — Quantos anos você tem, menino? — perguntou-me de repente o tenente.

        — Tengo once anos, señor.

        — Por que é que você é tão escuro?

        Olhei para Gato Gordo. Não compreendia o que ele queria dizer.

        — A mãe dele é...

        O tenente interrompeu Gato Gordo.

        — Perguntei foi ao menino!

        Tomei fôlego.

        — Mi mamá es negrita.

        Ouvi Gato Gordo dar um suspiro quase silencioso de alivio. O soldado me fez outra pergunta.

        — Donde vives?

        — Lá em cima, — disse eu, apontando para as montanhas.

        — O menino se expressa muito bem para um campesino.

        — É a Igreja, Excelência, — disse prontamente Gato Gordo. — A mãe dele é muito religiosa. Por isso, conseguiu que ele frequentasse a escola dos padres jesuítas lá nas montanhas.

        O tenente olhou-o alguns momentos e disse:

        — Venha comigo.

        — Por quê, Excelência? — perguntou Gato Gordo. — Não pode querer nada mais de nós. E nós queremos voltar para casa.

        — Voltarão depois. O coronel quer interrogar pessoalmente todas as pessoas suspeitas. Marche!

        Os soldados tomaram rapidamente posição em torno de nós.

        — Para onde vai levar a gente? — perguntou Gato Gordo.

        — A la hacienda de dom Rafael Campos. Vamos!

        Seguiu pela estrada, e nós o acompanhamos, entre os soldados. Senti a mão de Gato Gordo no meu ombro, ao mesmo tempo que ele me dizia em voz baixa:

        — Não pode reconhecer seu avô!

        — E se ele me reconhecer?

        — Vamos deixar isso para quando acontecer. Há tempos que ele não vê você, que cresceu muito. É possível que não o conheça.

        — Que é que vocês dois estão conversando? — perguntou o tenente.

        — Nada, Excelência, — respondeu Gato Gordo. — Estávamos dizendo apenas que estamos muito cansados e com fome.

        Uma tropa de cavalaria apareceu na estrada, e tivemos de ficar parados de lado para deixar os cavalarianos passarem. O tenente perguntou a um dos oficiais:

        — Encontraram alguma coisa?

        O outro sacudiu a cabeça.

        — Nada.

        O tenente ficou olhando a tropa enquanto esta galopava para o acampamento.

        Havia homens, mulheres e crianças na hacienda de meu avô. Olharam-nos sem curiosidade, preocupados com as suas próprias desgraças. Gato Gordo levou-me para um canto.

        — Conhece alguma dessas pessoas?

        — Não. Ainda não vi ninguém conhecido.

        — Bueno, — murmurou ele, correndo os olhos em torno. — Bem que eu gostaria de ter alguma coisa para comer. Estou com o estômago dando cambalhotas.

        O sol estava quente, e eu me sentia cansado e com sede.

        — Há um poço nos fundos da casa.

        — Nem pense nisso, murmurou Gato Gordo. — Eles haviam de ver logo que você já sabia onde é o poço. E ai estava tudo perdido. — Notou a expressão do meu rosto, e sua voz se suavizou. — Venha, niño. Temos de achar um lugar com sombra para você se deitar e descansar.

        Achamos um lugar perto de um carro no pátio da frente. Gato Gordo se agachou e descansou as costas numa das rodas. Deitei-me embaixo do carro e dai a alguns minutos estava dormindo.

        Não sei quanto tempo havia dormido, quando Gato Gordo me sacudiu e disse:

        — Abra os olhos, niño.

        Sentei-me e esfreguei os olhos. O sol ainda estava alto no céu. Eu não podia ter dormido mais de meia hora.

        Os soldados estavam levando todo mundo para a galeria da casa. Tivemos de levantar-nos e ir com os outros.

        Um soldado subiu a escada, olhou para nós e disse:

        — Formem em fila de dois.

        Havia talvez cinquenta pessoas ali no pátio, entre elas alguns garotos da minha idade, mas a maioria eram adultos. Encaminhei-me para a frente da fila, mas Gato Gordo me puxou para trás de uma mulher gorda bem no meio do grupo.

        A porta da frente foi aberta, e dois soldados saíram da casa. Levavam um velho que se apoiava neles. Quase dei um grito e corri para ele, mas Gato Gordo me segurou com um punho de aço.

        Era Papá Grande, mas não o Papá Grande de que eu me lembrava. A camisa branca e o terno dantes sempre bem-passados e imaculados estavam amarfanhados e sujos. Havia sinais de sangue nos cantos da boca, na barba e no colarinho. Seus olhos estavam quase exaustos de dor, e seu queixo tremia enquanto ele procurava aprumar o corpo.

        Pararam na balaustrada da galeria, e um oficial saiu da casa e ficou atrás deles. Tinha na farda galões de coronel. Olhou para nós todos e depois para Papá Grande. Tinha um bigode muito fino, como que traçado a lápis, e um sorriso cruel no rosto.

        — Dom Rafael, — disse ele com voz ríspida, — essa gente que está ai diz que são campesinos do vale. Dizem que os conhece e que falará a favor deles. Quer olhar um por um e dizer-nos se há algum ai que não conheça? Compreendeu?

        — Compreendo, sim? — disse Papá Grande com dificuldade. — Mas já lhe disse tudo o que sei.

        — Isso é o que vamos ver, — replicou o coronel com impaciência. Fez um sinal para o soldado na escada. — Faça a fila passar bem devagar.

        A fila dupla começou a passar pela galeria, enquanto Papá Grande olhava com o olhar parado. Gato Gordo e eu estávamos quase diante dele quando o coronel gritou:

        — Você, ai, garoto! Venha para a frente, onde se possa ver você!

        Fiquei um momento sem saber que era comigo que ele estava falando. Mas senti alguma coisa fria nas costas, e Gato Gordo me empurrou para a frente. Fiquei com os olhos voltados para a galeria no alto, sentindo ainda aquela pressão no meio da espinha. Não pude saber o que era.

        Encarei diretamente os olhos de Papá Grande. Houve neles por um instante um súbito brilho de reconhecimento, mas logo as pálpebras desceram. Quando reabriu os olhos, estava com o mesmo olhar vazio.

        O coronel nos estava observando atentamente.

        — Está bem, — disse ele. — Continuem.

        A fila recomeçou a andar. Senti cessar a pressão fria na espinha enquanto Gato Gordo se movia. Vi então o tenente que nos prendera dizer alguma coisa ao ouvido do coronel.

        O coronel bateu com a cabeça e gritou:

        — Alto!

        A fila parou.

        — Você ai! — disse ele, apontando para mim. — Saia!

        Olhei para Gato Gordo. O rosto dele estava impassível, mas os olhos brilhavam. Segurou-me o braço e demos um passo à frente. Ele se curvou, todo atencioso.

        — Si, Excelencia.

        O coronel já se havia voltado para meu avô.

        — O tenente está me dizendo que prendeu aqueles dois perto da hacienda de seu genro. Dizem que são campesinos das montanhas que estão procurando trabalho. Conhece esses dois?

        Papá Grande olhou para nós com um ar curiosamente distante.

        — Parece que já os vi alguma vez, — disse ele sem qualquer expressão na voz.

        Mais uma vez, Gato Gordo se aproximou de mim, e eu senti de novo a fria pressão na espinha. Quis virar-me, mas ele me forçou com a outra mão a permanecer na frente.

        — Quem são eles? — perguntou o coronel.

        Meu avô levou muito tempo para responder. Afinal, passou a língua pelos lábios e disse com voz trêmula:

        — Sou um homem velho. Não me lembro de nomes. Mas já os vi muitas vezes aqui pelo vale procurando trabalho.

        O coronel olhou-me.

        — O garoto é bem escuro. Seu genro também é.

        — Há muita gente por aqui com sangue negro, — replicou calmamente o velho. — Nunca soube que isso era considerado um crime.

        O coronel ficou um instante em silêncio. Depois, tirou a pistola e apontou-a para mim.

        — Pouco lhe interessa então que o garoto viva ou morra?

        Havia tristeza nos olhos de meu avô, mas ela desapareceu quando ele se voltou para o coronel.

        — Pouco me interessa.

        O coronel engatilhou lentamente a pistola. Papá Grande virou o rosto. O coronel não olhava para mim; olhava para meu avô.

        Senti de repente Gato Gordo empurrar-me para o lado.

        — Excelência, — gritou ele, — tenha piedade! Não mate meu filho! Não mate meu filho, pelo amor de Deus, Excelência!

        O coronel virou o cano da pistola de mim para Gato Gordo.

        — É capaz de morrer no lugar dele? — perguntou com voz fria.

        Gato Gordo se rojou pelo chão.

        — Piedade, Excelência, piedade! Por Dios!

        Meu avô virou-se e cuspiu na direção de Gato Gordo.

        — Mate logo os dois e acabe com isso! — disse ele ao coronel, com desprezo na voz. — Acabe com essa covardia chorosa. Isso me está enojando!

        O coronel olhou-o e então guardou lentamente a pistola na capa do cinto.

        Gato Gordo levantou-se prontamente.

        — Mil gracias! Deus o abençoe!

        O coronel fez um gesto.

        Vão andando.

        Gato Gordo me levou para a fila. Fomos lentamente caminhando. Afinal, passamos todos por diante da galeria e ficamos ali em silêncio.

        — Ele não me conheceu, — disse eu em voz baixa a Gato Gordo.

        Conheceu, sim!

        — Mas...

        A mão de Gato Gordo apertou-me o ombro. O coronel vinha caminhando para onde nós estávamos. Parou à nossa frente.

        — Como se llama? — perguntou-me.

        — Juan.

        — Venha comigo.

        Virou-se e Gato Gordo ficou ao meu lado enquanto o seguíamos para a galeria.

        O coronel chamou um dos soldados.

        — Vá buscar o velho e mande os outros embora.

        O soldado passou os braços por debaixo dos ombros de meu avô e começou a ajudá-lo a descer as escadas. Houve um leve murmúrio abafado do lado da estrada. Voltei-me para olhar. Era o clamor dos campesinos ao verem meu avô arrastado assim da galeria. Havia uma nota de protesto e de ódio naquele murmúrio.

        — Diga a essa gente que saia daqui! — gritou o coronel. — Se for preciso, abra fogo contra eles.

        — Fuera! Fuera! — disse o tenente, correndo para eles, de pistola em punho.

        Todos ficaram onde estavam a olhá-lo. Ele deu um tiro para o ar e os campesinos começaram lentamente a afastar-se.

        Quando a estrada estava vazia, o coronel voltou-se para mim.

        — O velho disse que pouco lhe interessava você viver ou morrer. Vamos ver agora se você é da mesma opinião a respeito dele!

 

        Já eram quase três horas e o sol estava derramando fogo sobre a terra. O suor secava no corpo e a saliva se evaporava na boca, deixando um leve gosto enjoativo de sal. Apesar do calor, eu se dentro de mim um tremor incontrolável enquanto faziam Papá Grande descer a escada da galeria.

        — Leve-o para o carro, — ordenou o coronel.

        O velho soltou o corpo e disse altivamente:

        — Posso caminhar.

        O soldado olhou para o coronel, que fez um sinal de assentimento, e nós seguimos o velho que se encaminhava para o centro do esbraseado pátio. Quando chegou ao carro, virou-se e ficou de frente para eles. Havia linhas de abatimento e exaustão no rosto, mas os olhos se mostravam claros e firmes.

        — Tirem-lhe a roupa! — ordenou o coronel!

        Os soldados avançaram para ele. O velho levantou a mão como se quisesse detê-los, mas eles já haviam começado a rasgar-lhe as roupas. O corpo magro era quase tão alvo quanto as roupas que havia usado. Sem elas, parecia pequeno, mirrado e frágil, com todas costelas à mostra. As nádegas e os quadris estavam flácidos e bambos pela ação do tempo.

        — Amarrem-no à roda!

        Os dois soldados encostaram-no à roda e lhe amarraram ao aro da roda os braços e as pernas estendidos. O eixo da roda lhe forçava as costas para a frente, fazendo o velho encurvar-se numa posição quase obscena. O rosto se contorcia de dor, pois as juntas duras se rebelavam contra aquela tensão. Fechou os olhos e virou a cabeça para evitar o sol.

        — O coronel fez um gesto. Não era preciso dizer aos soldados o que tinham de fazer. Um deles encostou a cabeça do velho ao aro da roda e passou uma correia de couro pela sua fronte a fim de impedir a cabeça de mover-se.

        Dom Rafael, — disse o coronel em voz tão baixa que a principio não percebi que era ele que falava. — Dom Rafael!

        Meu avô olhou-o.

        — Não há necessidade de nada disso, — murmurou o coronel, quase respeitosamente.

        Papá Grande não respondeu.

        — Deve saber onde o garoto está escondido.

        Os olhos de meu avô não vacilaram.

        — Já lhe disse que não sei. Ele foi levado por Diablo Rojo e não sei para onde.

        — É difícil de acreditar, Dom Rafael, — disse o coronel com voz ainda branda.

        — Mas é verdade.

        O coronel sacudiu a cabeça com aparente tristeza.

        — Seu genro, Jaime Xenos, aliou-se aos bandoleros, aos assassinos de sua filha. Sabemos que ele tem ambições politicas. Podemos deixar de crer que simpatiza com essas ambições?

        — Se fosse esse o caso, seria tão louco ao ponto de ficar aqui na minha hacienda onde me encontrassem?

        — Deve ter pensado que a idade o protegeria.

        O velho respondeu com uma voz cheia de dignidade.

        — Nunca fui traidor.

        O coronel olhou-o em silêncio durante alguns momentos. Depois, virou-se para mim.

        — Onde é que mora?

        — Nas montanhas, señor.

        — Que veio fazer no vale?

        Olhei para Papá Grande e vi que os olhos dele me observavam.

        — Vim trabalhar, señor.

        — Não tem o que fazer em casa?

        Gato Gordo respondeu prontamente.

        — Não, Excelência. A seca...

        — Perguntei ao menino! — exclamou asperamente o coronel.

        — Não temos nada o que comer, — disse eu. Isso ao menos era verdade.

        — Conhece este homem? — perguntou ele, apontando para meu avô.

        — Si, señor. É Dom Rafael, o fazendeiro.

        — É Dom Rafael, o traidor! — gritou o coronel.

        Não respondi.

        De repente, ele me agarrou pelo pulso, puxando-me o braço e forçando-o para cima. Gritei de dor.

        — Ele é seu avô! — exclamou o coronel. — Nega que é?

        Tornei a gritar quando ele fez mais pressão sobre o meu braço. Senti-me tonto e vi que ia cair. Levei então uma pancada na cabeça e fui ao chão. Fiquei ali tão fraco que não me podia mover, soluçando com o rosto na terra.

        Ouvi a voz de meu avô, como se viesse de muito longe. Era fria e completamente destituída de sentimento.

        — Creio que isso basta para convencê-lo, coronel. Ninguém do meu sangue iria dar-lhe a satisfação de ouvi-lo chorar. Estaria abaixo da nossa dignidade.

        Ouvi uma praga e depois uma pancada surda. Levantei a cabeça e olhei. O coronel estava saindo de junto de meu avô com a pistola ainda na mão. O sangue corria pela face do velho e a barba já estava empapada de vermelho. Mas os lábios estavam firmemente apertados.

        O coronel voltou-se para um dos soldados.

        — Molhe a correia em tomo da cabeça dele. Vamos ver se o sol o convence a dizer a verdade.

        Encaminhou-se para a galeria e Gato Gordo me ajudou a levantar. O ombro me doeu quando procurei mover o braço. Fiquei um instante parado a fim de recuperar o fôlego.

        Papá Grande me olhava em silêncio. Um momento depois, fechou os olhos e eu percebi a dor que sentia. Estendi a mão instintivamente, mas Gato Gordo me agarrou instantaneamente o braço e me forçou a recuar. Da galeria, o coronel tudo observava.

        Um soldado passou carregando um balde de água. Jogou a água com a mão no rosto de meu avô. O velho estremeceu e respirou forte quase sufocado pela água. Tentou sacudir a cabeça para tirar a água dos olhos, mas a correia de couro só lhe permitiu movê-la uma fração de centímetro. O sol batia em cheio nele. Já o corpo estava ficando vermelho sob a ação dos raios abrasadores. Eu sentia a dor da queimadura e da tira de couro que lhe apertava a cabeça e que eu via quase diante dos meus olhos secar e encolher-se. Abriu a boca e tentou tomar o ar.

        Ouvi passos atrás de mim. Era o coronel que se aproximara com um grande copo na mão, cheio de gelo. Parou diante de Papá Grande.

        Levou o copo à boca e tomou um gole.

        — Então, Dom Rafael, não gostaria de tomar comigo um ponche bem geladinho?

        Meu avô não respondeu. Só não podia deixar de olhar para o copo e de passar a língua pelos lábios ressequidos.

        — Uma palavra, — disse o coronel. — Basta uma palavra. Nada mais do que isso.

        Com esforço, o velho afastou os olhos do copo. Olhou firmemente para o coronel e disse-lhe com um desprezo tal como eu nunca havia sentido na voz de alguém:

        — E pensar que eu podia ter defendido vocês. Vocês são piores do que os bandoleros, que, ao menos, têm a desculpa da ignorância. Mas vocês, que desculpa irão apresentar diante de Deus?

        O copo se despedaçou quebrado pelo coronel de encontro à roda do carro. Encostou o caco na barriga nua de meu avô.

        — Você vai falar, velho! Vai falar!

        Meu avô tomou fôlego e cuspiu diretamente na cara do coronel. Deu então um grito involuntário, que logo lhe morreu na garganta, enquanto baixava os olhos, cheio de horror. O coronel afastou-se e nós vimos por que o velho havia gritado. O caco do copo, com parte dos órgãos genitais dentro, estava cravado na sua carne.

        Comecei a gritar, mas Gato Gordo apertou-me o rosto contra a sua grande barriga e abafou a minha voz.

        — Deixe o garoto olhar!

        Gato Gordo largou-me. Mas conservou em meu ombro a mão que era uma advertência. Olhei para o coronel. Os olhos dele estavam frios. Virei-me para olhar meu avô. O corpo lhe pendia molemente das cordas que o prendiam. O sangue escorria lentamente do caco de vidro para o chão.

        Pisquei os olhos para conter as lágrimas. O coronel não me devia ver chorar. Papá Grande não queria que isso acontecesse. Os olhos do velho como que se suavizaram e eu vi que ele compreendia. Depois, fechou lentamente os olhos e o corpo amoleceu.

        — Está morto! — exclamou um dos soldados.

        O coronel se aproximou prontamente e levantou rudemente uma das pálpebras do velho.

        —Ainda não! — disse ele, com satisfação na voz. — Quem chega a ser tão velho quanto ele não morre com tanta facilidade. Ficam querendo viver para sempre. Chamem-me quando ele voltar a si. Ainda não almocei.

        Subiu, a escada da galeria e entrou na casa.

        — Estamos com fome também, — disse Gato Gordo a um dos soldados.

        — Dê-se por muito contente de não estar ali junto com ele, — disse o soldado, olhando para meu avô.

        Gato Gordo olhou para mim e voltou-se para o soldado.

        —Tenha ao menos pena do garoto. Deixe-me levá-lo para a sombra.

        Os soldados se olharam e um deles encolheu os ombros.

        — Bem, isso não é proibido. Mas não vá tentar nenhum truque, veja lá!

        Gato Gordo me levou para perto da casa. Jogou-se no chão à sombra da galeria e eu me deitei ao lado dele. Ficamos deitados de bruços, com a cabeça voltada para a casa e as costas para os soldados.

        — O ombro inda está doendo? — perguntou Gato Gordo.

        — Não, — respondi, embora ainda estivesse doendo um pouco.

        Olhou para o céu.

        — O sol vai desaparecer daqui a algumas horas. Manuelo e os outros terão de ir-se embora deixando a gente.

        — Que é que o coronel vai fazer conosco?

        Gato Gordo encolheu os ombros.

        — Ou nos matará ou nos deixará em liberdade. Tudo depende do velho. Se ele falar, nós morreremos. Se não falar, ainda temos uma chance.

        De repente, lembrei-me do metal frio em minhas costas quando o coronel nos mandara sair da fila.

        — Mas eles não me matariam. Você me mataria antes!

        — Si.

        — Mas neste caso eles matariam você.

        Ele fez que sim com a cabeça e eu lhe disse que não estava zangado, mas não compreendia.

        — Para salvá-lo de sofrer como o velho está sofrendo.

        Nada disse.

        — Forçariam você a trair seu pai, a dizer onde é o nosso esconderijo. Você não resistiria. E, no fim, não adiantaria nada, pois eles o matariam de qualquer maneira.

        Começava a compreender. Assim é que tinha de ser. Aquilo era o centro das nossas vidas, a única coisa que tinha importância. Olhei por cima do ombro. O velho estava lá, imóvel, com o sol queimando- lhe a pele.

        — Seria bom se pudéssemos matá-lo, — murmurei tristemente.

        Gato Gordo olhou-me, concordando. Disse então:

        Não vai tardar muito a morrer. Vamos rezar para que morra sem falar.

        Ouvimos uma voz atrás de nós.

        — Levantem-se! O velho já acordou. Vou chamar o coronel.

        O coronel aproximou-se, limpando elegantemente a boca com um guardanapo.

        — Dom Rafael!

        Meu avô não olhou para ele.

        — Dom Rafael! — tomou a dizer o coronel. — Está-me conhecendo?

        O velho rolou vagamente os olhos.

        — Selem o meu cavalo! — gritou de repente em delírio. — Vou para as montanhas matar eu mesmo os bastardos!

        O coronel afastou-se, com a cara aborrecida.

        — Tirem-no dai e acabem de matá-lo. Não nos serve para mais nada.

        Já se ia afastando, quando me viu.

        — Um momento. Continua a dizer que o velho não é seu avô?

        Não respondi. Ele tirou a pistola do cinto. Rodou o tambor e deixou cinco balas caírem na palma da mão.

        — Só resta uma bala. Você vai matá-lo.

        Olhei para Gato Gordo. O rosto dele estava sombrio e impassível. Hesitei.

        — Mate-o! — gritou o coronel, entregando-me a arma.

        Olhei para a pistola em minha mão. Era pesada, bem mais pesada do que a de Gato Gordo. Olhei para o coronel. Tinha os olhos arregalados e o rosto vermelho. Bastaria uma bala. Mas depois eles me matariam. E a Gato Gordo também. Virei-me.

        Meu avô estava em silêncio quando me aproximei dele. O sangue ainda lhe escorria da boca, mas os olhos pareceram de repente ficar mais claros.

        — Que é, menino?

        Não falei.

        — Que é que você quer, menino? — tomou a perguntar.

        Senti um bolo no estômago quando levantei a pistola. Meu avô viu-a. Não se moveu. Pareceu-me ver um leve sorriso antes de puxar o gatilho.

        O coice da arma me fez vacilar um pouco, ao mesmo tempo que o grande revólver me caia das mãos. Olhei para o velho. Estava caído pela roda, com os olhos abertos que nada mais viam.

        Ouvi a voz do coronel atrás de mim.

        — Bueno!

        Depois, virou-se e voltou para casa.

        Olhei para meu avô. Senti as lágrimas correrem-me para os olhos e contive-as. Vivo ou morto, ele não queria que eu chorasse. Gato Gordo me pegou pelo braço e me levou para a estrada. Os soldados nos viram passar impassivelmente. Afinal, quando já estávamos a alguma distância, as lágrimas jorraram-me dos olhos.

        — Matei meu avô! — exclamei em soluços. — Não queria, mas matei!

        Gato Gordo disse sem diminuir o passo rápido e sem olhar para mim.

        — Qual foi o mal? Ele já estava quase morto! O que vale é estarmos ainda vivos!

 

        Só fomos chegar de volta à caverna três horas depois do escu- recer. Os outros já haviam partido. Eu estava tão cansado que mal podia ficar com os olhos abertos. Joguei-me no chão.

        — Estou com fome.

        — Vá-se acostumando, — disse Gato Gordo. Entrou na caverna e começou a procurar alguma coisa.

        — Estou com sede também.

        Ele não respondeu. Ao fim de algum tempo, tive curiosidade de saber o que ele estava procurando.

        — Que é que está fazendo?

        — Estou vendo se descubro há quanto tempo eles saíram.

        — Oh!

        Teve uma exclamação e apanhou no chão alguma coisa que logo jogou fora.

        — Levante-se! — disse ele de repente. — Saíram há apenas uma hora. Talvez ainda os alcancemos.

        — Como é que sabe? Que foi que encontrou? — perguntei, levantando-me.

        — Bosta de cavalo, — disse ele, saindo da caverna. — Ainda estava quente no centro.

        Tive de correr para acompanhá-lo. Nunca pensei que Gato Gordo pudesse ser tão rápido. Mas a respiração dele estava ofegante quando subíamos para o alto da montanha. A estrada estava quase tão clara quanto de dia, pois a lua brilhava no céu. A noite estava esfriando. Corri para impedir os dentes de baterem.

        — Ainda... ainda falta muito?

        — Eles não vão parar enquanto não estiverem do outro lado da montanha.

        Olhei para o alto da montanha. Ainda faltavam bem uns três quilômetros para lá chegarmos. Atirei-me ao lado da estrada. Fiquei ali deitado, tentando recuperar o fôlego. Gato Gordo andou mais um pouco, mas não me ouviu e parou.

        — Que é que há?

        — Não posso mais andar, — disse eu, começando a chorar. — Estou com frio, estou com fome.

        Ele me olhou um instante e disse asperamente:

        — Pensei que você fosse um homem.

        — Não sou homem, — murmurei, num gemido. — Estou com frio e cansado.

        Ele se sentou ao meu lado.

        — Está bem. Vamos descansar.

        Meteu a mão no bolso e tirou uma ponta de cigarrillo. Acendeu-a cuidadosamente com a mão em concha sobre o fósforo por causa do vento. Aspirou avidamente a fumaça.

        Olhei-a, tremendo de frio.

        — Tome, — disse ele, — tire uma fumaça. Isso o esquentará um pouco.

        Fiz o que ele sugeriu e comecei logo a tossir e a sentir-me sufocado. Quando acabei, senti-me estranhamente mais quente. Ele tirou a blusa e passou-a pelos meus ombros. Depois, puxou-me para junto dele.

        Acomodei-me para aproveitar o calor que vinha dele. Senti-me confortável e seguro, e, antes de saber como, adormeci.

        Acordei com a primeira claridade do sol nos olhos. Rolei o corpo no chão, tateando à procura dele. Levantei-me de um salto. Não o vi.

        — Gato Gordo!

        Ouvi barulho dentro do mato. Virei-me e Gato Gordo apareceu, trazendo um coelho morto espetado na ponta de um pau.

        — Ah, já acordou!

        — Pensei que...

        — Pensou que eu o havia abandonado? — perguntou, rindo. — Estava procurando alguma coisa para comermos. Agora, junte uns gravetos para fazer um fogo enquanto eu esfolo esse bichinho.

        O coelho estava um pouco duro, mas foi uma das coisas mais deliciosas que já provei na vida. Quando acabamos, só restava um pequeno montão de ossos. Limpei a gordura do rosto com os dedos e limpei-os, lambendo-os.

        — Estava bom.

        Gato Gordo sorriu e levantou-se.

        — Guarde os ossos no bolso. Teremos ao menos alguma coisa para roer durante o dia. — Apagou o fogo com os pés e, quando acabou, disse: — Vamos.

        Acabei de guardar os ossos no bolso e segui-o pela estrada.

        — Desculpe o que houve ontem à noite.

        — Nem pense nisso.

        — Se não fosse eu, teríamos alcançado os outros.

        — E se não fosse você, os meus ossos já estariam apodrecendo lá embaixo no vale. Além disso, acho que de qualquer maneira não íamos alcançar os outros.

        — Que faremos agora? Como é que vamos voltar para casa?

        — Caminhando, — disse Gato Gordo. — O homem caminhava muito antes de aprender a montar em cavalos.

        Eu sabia que Gato Gordo detestava andar a pé. A cavalo, ia-se de Bandaya ao nosso refúgio nas montanhas em dois dias e meio. A pé, seria mais de uma semana.

        — Escute, — disse Gato Gordo. — Fique com os ouvidos bem abertos. Qualquer coisa que ouvirmos, sairemos da estrada. Não podemos facilitar. Compreende?

        — Si. Compreendo.

        Chegamos afinal ao alto da montanha, e pouco mais de um quilômetro adiante vimos um pequeno rio.

        — Vamos parar aqui para descansar disse Gato Gordo.

        Corri para a beira do rio, joguei-me à margem e comecei a beber avidamente a água. Pouco depois, Gato Gordo me puxou.

        — Chega. Descanse um pouco. Depois, pode beber mais.

        Recostei-me numa árvore. Os pés me doíam muito. Tirei as botas, esfreguei os pés e, depois, mergulhei-os na água, sentindo a deliciosa frescura que me subia pelas pernas. Em contraste, sentia o corpo seco e pegajoso com o suor acumulado daqueles últimos dias.

        — Posso tomar um banho? — perguntei.

        Ele me olhou como se eu estivesse louco. A gente das montanhas não tinha muito entusiasmo por banhos.

        — Está bem, — disse ele, — mas não demore muito, para não tirar a proteção da pele.

        Tirei a roupa e joguei-me dentro da água. Foi um prazer o contato da água fresca, e comecei a pular e bater os pés, muito feliz. Um peixinho prateado passou por mim e mergulhei para pegá-lo. Escorregou-me entre as mãos quando levantei a cabeça. Ouvi então uma risada na margem.

        Duas meninas estavam ali me olhando, e eu não via Gato Gordo. Sentei-me prontamente no rio raso.

        A menina menor voltou a rir. A maior voltou-se e chamou:

        — Papá! Diego! Venham depressa! Há um menino dentro do rio!

        Um instante depois, apareceram dois homens com as espingardas apontadas para mim.

        — Que é que está fazendo ai?

        — Estou tomando banho.

        — Vem, vá saindo.

        Comecei a levantar-me e voltei para dentro da água.

        — Jogue meus pantalones, — disse eu, apontando a roupa.

        O homem mais velho disse às duas meninas:

        — Virem-se de costas.

        A menorzinha riu outra vez, enquanto as duas se viravam. Levantei-me e fui até a margem.

        — Está sozinho? — perguntou o homem mais moço.

        — Não, señor, — respondi pegando os pantalones que ele me estendia. — Estou com meu pai.

        — Onde está ele?

        — Palavra que não sei, señor. Estava aqui ainda há pouco...

        — E ainda está, — disse Gato Gordo, saindo do mato com o rosto gordo aberto num sorriso. Tirou o chapéu e fez uma reverência. — José Hernández, a su servicio, señores. Este es mi hijo, Juan. O maluco gosta muito da água.

        O mais velho virou a espingarda para ele e perguntou, desconfiado:

        — Que é que está fazendo aqui?

        Gato Gordo aproximou-se, como se nem tivesse visto a espingarda.

        — Meu filho e eu estamos voltando do vale para casa. Há muita confusão em Bandaya. Os soldados estão lá. Não servia para um homem pacifico que está com o filho à procura de trabalho.

        O cano da espingarda estava quase encostado à barriga de Gato Gordo.

        — Onde é que você mora?

        — A uma semana de viagem daqui, — respondeu Gato Gordo. — E para onde vão os senhores?

        — Estanza.

        Estanza ficava a alguns dias de viagem de Bandaya, no caminho da costa. A estrada virava para o sul duas serras adiante. Naquele ponto teríamos de deixá-la e tomar os caminhos que atravessavam as florestas e as montanhas.

        — Talvez nos permitam acompanhá-los, — disse Gato Gordo. — Ouvimos dizer que há bandoleros por ai.

        Os dois homens se olharam.

        — É verdade, — disse o mais moço. — O coronel Gutiérrez nos disse que há muitos bandidos. Onde estão os seus cavalos?

        — Cavalos? — disse Gato Gordo, rindo. — Podemos lá ter cavalos, señor? Somos apenas pobres campesinos. Seriamos muito felizes se tivéssemos um burrinho.

        O mais velho baixou a espingarda.

        — Está bem. Iremos até Estanza juntos.

        — Mas, Excelência... protestou o mais moço.

        — Não tem importância, Diego, — disse o outro com voz levemente aborrecida. — Que mal podem fazer um homem e um menino?

 

        Sentei-me na porta de trás do carro, de costas para as duas meninas. Gato Gordo ia sentado na boléia com o Señor Moncada. Diego viajava ao lado num cavalo preto, com a espingarda atravessada no arção da sela. Moncada era um fazendeiro que havia ido buscar as filhas, que tinham passado uns tempos com os avós.

        Espreguicei-me e agarrei-me ao lado do carro para não cair se cochilasse. Olhei para o céu. Já estava quase escuro. Teríamos de parar dai a pouco, porque a estrada era muito perigosa para se viajar à noite.

        — Há um bosque depois da primeira curva, — ouvi Diego dizer. — Podemos passar a noite lá.

        O carro saiu da estrada e parou na relva entre as árvores. Gato Gordo pulou da boléia antes mesmo que o carro parasse.

        — Depressa! — disse ele. — Vamos apanhar lenha para o fogo, antes que as mocinhas sintam frio!

        Olhei-o, surpreso. Gato Gordo nunca se preocupava com os outros.

        — Vamos depressa! — disse ele.

        Comecei a juntar lenha. Vi Gato Gordo ajudar as duas meninas a descerem do carro. Quando cheguei com o primeiro punhado de lenha, os cavalos já estavam amarrados, já haviam bebido água e estavam pastando.

        — Onde deixo isso? — perguntei.

        O Sr. Moncada apontou para o chão diante dele.

        Comecei a jogar a lenha, mas Gato Gordo me fez parar.

        — Acho que está muito perto da estrada, señor. Podemos ser facilmente vistos, e isso talvez sirva de atração para convidados que ninguém chamou.

        O Sr.Moncada olhou para Diego, que fez um sinal de assentimento. Gato Gordo foi mais para dentro do bosque e afinal disse:

        — Acho que aqui será bem melhor.

        Joguei a lenha onde ele mostrou. Quando voltei com nova braçada de lenha, o fogo já estava aceso. Joguei a lenha no chão e senti-me muito cansado.

        — Mais, — ordenou Gato Gordo. Cortou alguns dos galhos maiores, aparou-os e formou uma tripeça com eles. Quando voltei, uma pesada panela de ferro estava suspensa da tripeça e já o cheiro de um bom ensopado de carne começava a encher o ar.

        — Chega? — perguntei.

        Gato Gordo olhou para mim, com o rosto brilhando ao lado do fogo.

        — Por enquanto, chega. Há um rio a cem metros daqui, ladeira abaixo. Pegue outra panela e vá buscar água.

        Fui até o carro. Vera, a mais moça, olhou para mim e riu. Fiquei aborrecido. Aquela menina vivia rindo.

        — Que é que você quer? — perguntou Marta, a mais velha.

        — Uma panela para ir buscar água.

        Vera tornou a rir.

        — Por que é que você está sempre rindo?

        Ela redobrou as gargalhadas, e as lágrimas começaram a correr-me pelo rosto.

        — Qual é a graça? — perguntei, zangado de verdade.

        — Você é tão engraçado, — disse ela, parando de rir.

        Olhei para mim mesmo.

        — Agora, não, — disse ela prontamente. — Hoje à tarde, quando estava dentro da água. É tão magro.

        Fiz uma careta.

        — É melhor do que ser gorda como você.

        — Aqui está a panela — disse Marta, abruptamente. Julguei perceber uma ponta de irritação na voz dela.

        — Gracias, — disse eu, pegando a panela.

        — No hay de qué.

        Vera riu de novo.

        — Que é que há com ela? — perguntei.

        Marta encolheu os ombros.

        — Ora, Vera é uma criança. Tem apenas doze anos. Nunca viu um menino nu.

        — Você também nunca viu! — replicou Vera.

        — Mas eu tenho quatorze anos e não procedo mais como uma criança.

        Diego apareceu ao meu lado.

        — Já pegou a panela? — perguntou, desconfiado.

        — Si, señor.

        — Que é que está esperando então? Vá buscar a água, como seu pai mandou.

        Afastei-me em silêncio. Ouvi a voz dele.

        — Que foi que ele disse?

        — Nada, — respondeu Marta.

        — Bem, trate de ficar longe dele.

        Não pude ouvir mais, pois entrei no bosque e desci até o rio. Gato Gordo estava à minha espera lá.

        — Depressa! Quanto mais depressa eles comerem, mais depressa vão dormir.

        — Que é que vai fazer?

        — Roubar os cavalos. Estaremos em casa daqui a dois dias. Além disso, gostei daquele cavalo preto.

        — Não vai ser fácil. Diego não confia em nós.

        — Vou matá-lo disse Gato Gordo, sorrindo.

        Houve um barulho no mato às nossas costas, e Gato Gordo levantou-se no momento em que Diego apareceu, de espingarda em punho. Será que ela nunca lhe sai das mãos?

        Gato Gordo enxugou as mãos nas calças.

        — Estava lavando as mãos.

 

        Um barulho me acordou no meio da noite. Virei-me embaixo do cobertor que o Sr. Moncada me havia emprestado e olhei para Gato Gordo. Estava ali dormindo e até roncando levemente. Olhei para o lugar de Diego. Ele não estava debaixo do seu cobertor.

        Olhei para o carro onde o Sr. Moncada e as filhas estavam dormindo. Dali não vinha barulho algum. Esperei mais um pouco. Talvez Diego tivesse ido fazer alguma necessidade no mato.

        Ouvi um cavalo resfolegar e virei a cabeça. Foi então que vi Diego que se dirigia para o carro, de espingarda na mão e em posição de tiro.

        — Psst!

        Gato Gordo acordou no mesmo instante. Fiz um gesto com as mãos e apontei.

        — Ele vai matá-los!

        Gato Gordo não se moveu.

        — Deixe-o — disse ele. — Isso nos poupará o trabalho.

        Diego rastejou até a frente do carro. Firmou então os pés e levantou o corpo, com a espingarda no ombro. Nesse momento, um grito fino cortou o ar da noite.

        Diego atirou desesperadamente quando o Sr. Moncada desceu do carro. Tentou atingi-lo com a coronha da espingarda, e quando ambos rolaram, atracados, para o chão ao lado do carro, Gato Gordo levantou-se e correu para eles.

        — A espingarda! — gritou ele para mim. — A espingarda!

        Parou perto dos dois homens que rolavam pelo chão e eu vi Gato Gordo levantar a faca. Esperou um momento e, então, a faca desceu. Houve um grito, e Diego levantou-se, com as mãos estendidas para o pescoço de Gato Gordo.

        Dando um passo atrás, Gato Gordo esperou. Diego avançou, e a faca se moveu. Diego se dobrou ao meio e caiu para a frente. Gato Gordo meteu-lhe o joelho por baixo do peito e jogou-o para o lado, levantou-se em seguida prontamente, com a faca já preparada na mão. O Sr. Moncada estava de costas para ele. Gato Gordo já ia levantando a faca quando o outro se voltou, empunhando a espingarda.

        Gato Gordo abaixou a mão.

        — Está bem, señor? — perguntou, com fingido interesse.

        O Sr. Moncada olhou para ele e depois para Diego, estendido no chão.

        — Era um bandolero! Tentou matar-me!

        — Foi uma sorte eu ter acordado, señor.

        O Sr. Moncada sorriu.

        — Sou seu devedor, meu amigo. Salvou-me a vida.

        Gato Gordo baixou os olhos, sem ter o que dizer. Mas, um instante depois, conseguiu falar.

        — Não foi nada, señor. Nem assim lhe poderia pagar a sua bondade comigo.

        Foi até onde estava Diego e empurrou-o com o pé.

        — Está morto. Onde foi que contratou esse homem?

        — Em Bandaya. Disseram-nos que havia bandoleros na estrada e que não seria bom eu viajar sozinho com as duas meninas. Esse homem me foi recomendado pelo coronel Gutiérrez. Estava trabalhando como guia para o exército.

        — Não passava de um bandoleiro, — disse hipocritamente Gato Gordo. — Ia matá-lo e roubar os seus cavalos. Devia estar de olho principalmente no cavalo preto.

        — O cavalo preto? Mas não é meu. Era dele mesmo.

        — Era? — perguntou Gato Gordo, arregalando os olhos.

        — Pela lei, o cavalo agora é seu.

        Gato Gordo me olhou sorrindo. Pela primeira vez, uma lei era a seu favor. O que pertencia a um bandolero passava automaticamente a ser de quem lhe tirava a vida.

        — Está bem, Papá? perguntou dentro do carro uma voz assustada.

        Eu me havia esquecido das meninas. Olhei para o carro e vi surgir cautelosamente a cabeça de Marta.

        — Estamos salvos! — exclamou dramaticamente o Sr. Moncada.

        — Pela graça de Deus, fomos salvos da morte! Este bom homem, arriscando a vida, protegeu-nos daquele assassino!

        Um momento depois, as duas meninas saltaram do carro, abraçaram o pai e começaram todos a beijar-se, a chorar e a rir. Afinal, o Sr. Moncada voltou-se para nós, com o rosto radiante.

        — Foi uma sorte para nós termos encontrado vocês hoje à tarde. Agora é que compreendo por que Diego não queria que vocês viessem conosco!

        — Foi uma felicidade para todos nós, señor, — disse Gato Gordo. Depois, virou-se para mim e falou com a voz de um proprietário: — Vá ver se o nosso cavalo está bem amarrado!

 

        Eu havia acabado de jogar o último saco de sal no barril de carne quando percebi de repente que as duas meninas estavam no galpão, olhando-me. Peguei a tampa do barril e comecei a pregá-la.

        — Vai para a sua casa amanhã? — perguntou Marta, ao fim de algum tempo.

        Era mais uma afirmação, do que uma pergunta. Bati com a cabeça. Já fazia uma semana que estávamos na hacienda. O Sr. Moncada não tinha querido fazer o resto da viagem sozinho, e Gato Gordo, sem mais aquela, resolveu acompanhá-lo, especialmente depois que o fazendeiro lhe dissera que tinha muito gado e que estava disposto a dar-nos como compensação quatro barris de carne salgada e um carro para levá-los.

        É claro que Gato Gordo teria de deixar o cavalo preto em segurança, mas só até que devolvermos o carro. Assim, o trato foi fechado, e nós continuamos pela estrada para Estanza.

        Trabalhamos dia e noite para salgar a carne e prepará-la para a viagem. Bati o último prego na tampa e me virei.

        — É verdade, — respondi afinal. — Iremos amanhã.

        — Que idade tem você? — perguntou Vera.

        — Treze anos, — respondi, sabendo que ela tinha doze.

        — Tem nada, — disse Marta, zombando. — Ouvi seu pai dizer que você tinha só dez.

        — Meu pai? — Por um momento, eu havia esquecido Gato Gordo, que devia estar naquele momento na cozinha, entendendo-se com a cozinheira e provavelmente enchendo a barriga.

        — Você tem irmãos? — perguntou Vera.

        Disse que não. Comecei a sentir frio ali no galpão, depois de haver parado de trabalhar, e vesti a camisa.

        — Você é tão magro, — disse Vera, rindo de novo. — Tem os ossos todos de fora.

        Olhei-a com raiva. Era só do que ela sabia falar, da minha magreza.

        — Não ligue para ela — disse Marta. — Está sempre procurando ver o que é que os homens têm.

        — Você também! — exclamou Vera. — Foi você que seguiu Diego quando ele foi urinar.

        — Mas foi você que me disse para onde ele tinha ido, — replicou Marta, e estremeceu, dizendo: — Aquele homem terrível!

        — Você não pensou isso naquela hora. Disse que ele era maior do que Papá!

        Compreendi então.

        Marta baixou a voz e me disse em tom de confidência.

        — Ele viu que nós estávamos olhando. Sabe o que foi que ele fez?

        Sacudi a cabeça.

        — Veio para o lugar onde estávamos escondidas. Ficamos assustadas, mas Diego riu e começou a brincar. Num minuto, ficou três vezes maior! Parecia o cavalo preto!

        — O cavalo preto? — perguntei, sem perceber a ligação.

        Marta acenou impacientemente com a cabeça.

        — Sim! Papá disse que fará o cavalo preto cobrir seis éguas antes que seu pai traga de novo o carro!

        — Oh! — O señor Moncada não era bobo. Um só potro valia quatro barris de carne.

        — Ele continuou a brincar e foi ficando cada vez maior — murmurou Vera.

        — Quem? — perguntei. Havia-me esquecido por um momento do que elas estavam dizendo.

        — Diego, — respondeu Marta. — Ficou com uma cara esquisita.

        Comecei a ficar interessado.

        — Que foi que aconteceu depois?

        — Nada, — respondeu Marta, com um tom de desapontamento. — Ouvimos Papá, que ia chegando, e voltamos correndo para o carro.

        Fiquei também desapontado. Estava tão ansioso quanto ela para saber o que ia acontecer.

        — De qualquer modo, eu não gostava de Diego, — apressou-se em dizer Vera. — Ele nos mataria depois que matasse Papá.

        — Antes disso, violentaria vocês, — disse eu, com um acento de autoridade.

        O meu tom as impressionou.

        — Como é que sabe?

        — Ora, sempre se violentam as mulheres antes de mata-las.

        — Por quê? — perguntou Marta.

        Encolhi os ombros.

        — Porque é assim que se faz.

        Vera me olhou com curiosidade.

        — Sabe muita coisa, não sabe?

        — Bastante, — respondi, cheio de importância.

        — Pode ficar igual a Diego?

        — É claro que posso. É muito fácil. Qualquer homem pode fazer isso.

        — Aposto que você não pode, — disse Marta. — Você é muito pequeno.

        — Não sou não! — repliquei irritado.

        As irmãs se olharam, cheias de interesse.

        — Prove então! — disse Marta.

        — Para quê? Talvez eu não esteja com vontade.

        — Você é muito pequeno e tem medo de não poder fazer isso! — disse Marta.

        — Posso, sim! Vou provar!

        Senti os olhos delas seguirem a minha mão quando desabotoei as calças e comecei a brincar, como vira Roberto fazer. Um minuto depois, olhei. Nada estava acontecendo.

        — Talvez você esteja fazendo isso muito depressa, — sussurrou Marta. — Diego fazia muito mais devagar.

        Olhei-a, confuso. Talvez ela soubesse mais daquelas coisas da que eu.

        — Deixe-lhe mostrar como é, — disse ela, estendendo a mão.

        A mão dela estava quente e úmida. Comecei a sentir o seu calor e uma pressão subir-me pelo meio do corpo. Olhei para elas. Não tiravam os olhos de cima de mim. Vera passava a língua pelos lábios secos e nem pensava mais em rir.

        Comecei a sentir um tremor espasmódico no corpo. Olhei para meu corpo e senti um orgulho que me envolveu com o calor do sol pela manhã.

        — Não disse a vocês que podia? Agora, parem senão eu ataco vocês!

        — Você não tem coragem! — exclamou Marta.

        — Não? É melhor vocês fugirem e bem depressa!

        Elas não se moveram. Dei um passo para elas. Olhavam para minha coisa e eu a senti vibrar.

        Fujam! Fujam!

        — Qual é a que você vai atacar primeiro?

        — Qualquer das duas serve. Mas é melhor irem-se embora, As duas irmãs se olharam e Vera disse:

        Você, que é a mais velha.

        Eu não sabia o que fazer. Não tinha esperado aquilo.

        — Como é? Vão fugir ou não vão?

        Marta me olhou.

        — Está bem. Vou ser a primeira.

        — Não vai gostar. É melhor ir-se embora.

        Marta levantou a saia.

        Vai ou não vai? — perguntou com impaciência.

        Olhei para a leve penugem preta entre as pernas dela. Havia um brilho de desafio nos seus olhos.

        Mas não se esqueça de que foi

        — Está bem, — disse eu. Mas não se esqueça de que foi você quem quis.

        Fui para ela como me lembrava de Roberto ter feito com as mulheres na floresta. Caímos no chão. Abri-lhe as pernas e montei sobre ela e comecei a sacudir-me num movimento que parecia vir de dentro de mim. Mas sentia que estava em toda a parte menos onde eu queria. Senti então a mão dela pegar-me e guiar-me para onde ela queria que eu fosse O cabelo ali era fino, mas me espetava como uma porção de agulhas.

        — Pare de dançar, — disse ela. — Empurre!

        Mas eu não podia. Havia por dentro de mim uma dor feroz e excitante que não me deixava. Por mais que eu fizesse, não conseguia passar das bordas da carne dela. Ouvi-a gemer com o esforço de fazer-me entrar nela.

        — Qué pasa?

        Virei-me e vi Gato Gordo na porta, com um ar de incredulidade no rosto. Vera havia desaparecido. Ele chegou perto de mim e me levantou zangado. Bateu-me com a mão no rosto.

        — É assim então que você paga a hospitalidade do Sr. Moncada?

        Eu estava muito sem fôlego para responder. Procurei Marta. Ela já se havia levantado e corria pela porta a fora. Virei-me para Gato Gordo.

        Ele não estava mais zangado, porque até ria.

        — É melhor abotoar as calças.

        Comecei embaraçadamente a abotoar-me.

        Ele me passou afetuosamente a mão pela cabeça.

        — Eu sabia que essas duas descaradinhas iam dar em cima de você. Ande dai. Vamos preparar o carro para a viagem.

        Foi saindo do galpão, mas, chegando à porta, virou-se para mim.

        — Não fique tão surpreso. Eu disse que você não demoraria muito a ser um homem!

 

        Ouvi um tiro e, antes mesmo que o som tivesse parado de ecoar-me aos ouvidos, já me havia jogado ao comprido dentro do carro. Outro tiro, e Gato Gordo já estava deitado de bruços na vala ao lado da estrada. Um momento depois, ele se levantou, com a lama e a água a escorrerem-lhe do corpo, gesticulando iradamente para a encosta e gritando com toda a força dos pulmões:

        — Santiago! Filho de uma hiena, idiota e cego! Você já saiu zurrando como um burro da barriga de sua mãe! Não está vendo que sou eu, seu companheiro?

        Ping! Uma bala caiu na terra a menos de um metro de distância, e Gato Gordo se jogou de novo na vala. Dessa vez, não se levantou. Ficou deitado dentro da água, gritando:

        — Merda! Índio de merda! Sou eu, Gato Gordo!

        — Gato Gordo? — exclamou Santiago, o velho, cuja voz ecoou pela montanha.

        — Sim, Gato Gordo, imbecil, cego, maluco! Gato Gordo!

        Houve um movimento no mato, e Santiago apareceu à beira da vala.

        — Gato Gordo! Por que não disse logo que era você?

        Gato Gordo se levantou da vala ainda mais sujo e molhado que da primeira vez. A água lhe escorria da aba do chapéu para o rosto, e ele resfolegava sem poder falar.

        — Gato Gordo, é você mesmo? exclamou Santiago, exultante, largando o fuzil para abraçá-lo. — Está vivo!

        — Claro que estou! — gritou Gato Gordo, ainda zangado. — Mas você fez o possível para que eu não estivesse!

        — Todos nós pensávamos que você tivesse morrido! — exclamou Santiago. — E aqui está você, são e salvo e sem uma marca!

        Gato Gordo olhou-se. A camisa e os pantalones novos que o Sr. Moncada lhe dera estavam imundos de lama.

        — Sem uma marca! — berrou ele, avançando com os punhos fechados para o índio.

        O soco atingiu bem em cheio o rosto de Santiago e o fez cair para trás na estrada. Olhou para Gato Gordo com uma expressão magoada no rosto impassível de índio.

        — Está zangado comigo, Gato Gordo? Que foi que eu fiz?

        — Que foi que você fez? Olhe para a minha camisa nova, para as minhas calças novas! Tudo estragado! Está ai o que você fez!

        Quis dar um pontapé na cabeça do índio e Santiago se esquivou com a maior facilidade. Com o pé suspenso, Gato Gordo perdeu o equilíbrio e caiu novamente dentro da vala. Ficou ali ofegante, esgotando o seu repertório de pragas.

        Ouvi que alguém vinha por dentro do mato, e então Manuelo apareceu. Olhou para o índio ainda caído na estrada e viu Gato Gordo dentro da vala. Disse então com voz calma:

        — Quando acabarem com essas brincadeiras de crianças, posso saber o que trouxeram nesse carro?

        Já fazia doze dias que tínhamos partido das montanhas para Bandaya, embora parecesse que fazia quase um ano. Fomos para o acampamento, onde todos se aglomeraram em torno de nós e nos trataram como heróis. Quase não puderam esperar até que o primeiro barril foi aberto e as mulheres levaram a carne para a cozinha. Durante todo o tempo da nossa ausência, tinham-se sustentado de caça e raízes. E bem mais de raízes, porque a caça tinha fugido das montanhas devido à seca.

        Havia oito homens, quatro mulheres e quatro crianças naquele pequeno acampamento nas montanhas que servia a Diablo Rojo de quartel-general e esconderijo. Três das mulheres eram dele; e três crianças. A outra mulher e a outra criança eram de Manuelo.

        Cada um dos três filhos do general havia nascido de mãe dife-rente. Roberto, o mais velho e meu companheiro, era escuro. Tinha feições de índio, o que não era de espantar, pois a mãe dele era uma prima distante dos Santiagos. Eduardo, mais moço, era o que mais se parecia com o general, mas mostrava também a marca da mestiçagem nas feições grosseiras. Só Amparo, a caçula, era clara e loura. O corpo era esbelto e ágil, os olhos, luminosos e vivos, sempre cintilantes de alguma exaltação intima. E não havia dúvida de que era a favorita do pai, como o era a mãe. Esta era elegante e loura, bem diferente das outras duas mulheres, escuras e corpulentas. As duas não gostavam dela, mas não se atreviam a dizer coisa alguma contra ela. Viera da costa, e dizia-se que o general a conhecera numa casa de mulheres, embora ela dissesse que era filha de um fidalgo castelhano arruinado e de uma refugiada alemã. De qualquer modo, procedia como grande dama, e as outras tinham de cozinhar para ela e de servi-la como se fossem criadas.

        Quando o general estava ausente, ela passava a maior parte do tempo com Amparo, brincando com ela ou vestindo-a e despindo-a como se fosse uma boneca. Isso e o tratamento extremoso que a menina recebia do general e, por isso mesmo, de todos os homens do acampamento, faziam-na perdida de mimos. Embora tivesse apenas sete anos, era imperiosa e de uma arrogância pronta e enorme quando não faziam o que ela queria. Isso raramente acontecia, e todo mundo vivia banhado no radioso calor do seu sorriso.

        Amparo estava ao lado do carro, com um belo vestido branco, quando desci da boléia.

        — Disseram que você estava morto disse ela, com voz um pouco decepcionada.

        — Mas não estou.

        — Já rezei uma novena por você, e mamãe me prometeu que na primeira vez em que formos a uma igreja mandará celebrar uma missa.

        Olhei-a. Tínhamos sido crianças juntos, e eu percebia de repente que ela ainda não deixara de ser criança.

        — Desculpe. Se eu soubesse, teria deixado que me matassem. Um sorriso lhe encheu o rosto.

        — Sério, Dax? Você teria feito isso por mim?

        — Claro!

        Ela me jogou os braços pelo pescoço e me beijou o rosto.

        — Oh! Dax! Você é o meu favorito! Estou muito contente de não terem matado vocês! Palavra que estou!

        Afastei-a delicadamente, mas ela olhou para mim com os olhos brilhantes.

        — Já tomei uma decisão, sabe?

        — Qual é, Amparo?

        — Vou me casar com você quando crescer. Vou dizer a mamãe, para ela ficar sabendo agora mesmo!

        E saiu correndo. Fiquei olhando-a até ela entrar na casa, com um sorriso nos lábios. Pouco antes da nossa partida, ela tivera um verdadeiro acesso de raiva porque resolvera casar-se com Manuelo e a mãe lhe havia dito que isso não era possível, porque Manuelo já era casado. E antes de Manuelo, tinha sido um jovem mensageiro que o general mandara com noticias. Virei-me para o carro e comecei a desatrelar os cavalos.

        Do outro lado, Gato Gordo estava contando aos outros as qualidades do cavalo preto. Foi então que vi Roberto e Eduardo.

        Olhei para eles e disse:

        — Alô!

        Eduardo respondeu imediatamente. Era apenas alguns meses mais moço que eu, mas muito menor e mais magro. Roberto limitou-se a olhar-me, carrancudo. Estava pálido, com os olhos amarelados e parecia doente.

        — Que é que há com você? — perguntei-lhe.

        Eduardo respondeu antes que o irmão pudesse abrir a boca.

        — Está com uma carga.

        — Uma carga? O que é isso?

        Roberto continuou calado; e Eduardo respondeu:

        — Não sei. Mas os Santiagos e Manuelo também estão com isso. A mulher de Manuelo está louca da vida com ele.

        — Eduardo! — chamou de dentro da casa a mãe dele.

        — Tenho de ir.

        Acabei de desatrelar os cavalos em silêncio. Roberto continuou a olhar-me, e eu lhe passei as rédeas de um dos animais.

        — Ajude-me a levá-los para o pasto.

        Levamos os cavalos. Abri a porteira, tiramos os arreios e soltamos os animais lá dentro. Os outros que estavam no pasto olhavam os recém-chegados.

        — Veja só, — disse eu. — Estão fingindo que nem vêem os dois. Amanhã, estão todos amigos, correndo por ai. Cavalo é como gente.

        — Mas não pegam esquentamento disse Roberto, surdamente.

        — Não? E você, como foi que pegou?

        — Das mulheres na floresta. Todos nós pegamos. A mulher de Manuelo está furiosa com ele.

        — E é ruim?

        — Muito, não. Mas quando se urina dói muito.

        — Que é que tem uma coisa com outra?

        — Mas como você é burro! É ai que se pega a doença. Você vai ter também. Manuelo diz que não se é homem enquanto não se pega uma doença.

        — Eu estive com uma mulher.

        — Foi mesmo? perguntou Roberto, com a voz cheia de incredulidade.

        — Foi. Marta, a filha do Sr. Moncada, da fazenda onde nós pegamos a carne. Cai em cima dela no galpão.

        — Enfiou mesmo?

        Não sabia bem o que ele queria dizer.

        — Acho que sim. De qualquer maneira, não tive tempo de notar isso. Estava muito ocupado. Eu ainda estaria violentando a menina se Gato Gordo não me tivesse tirado de cima dela.

        — Qual era a idade dela?

        — Quatorze anos.

        — Então era uma menina.

        — E você acha que eu pegarei uma carga?

        — Não, ela é uma menina. É preciso ser uma mulher de verdade para pegar doença na gente. E Gato Gordo pegou também?

        — Não sei. Não me disse nada.

        — Talvez ele tenha tido sorte e não tenha pegado.

        Voltamos para a casa, e eu fui pensando. Não podia compreender. Como era que só se era homem quando se pegava a doença e se tinha sorte quando não se pegava?

 

        Gato Gordo resmungou quando eu o segui em direção ao posto de vigia.

        — Aonde é que pensa que vai? — perguntou ele.

        — Vou dar um passeio por ai respondi inocentemente.

        — Dê então seu passeio, mas precisa estar atrás de mim toda vez que vou a algum lugar? Assim, vou acabar tropeçando em você. Acabará esmagado como uma lagarta.

        Não respondi, e ele continuou pelo caminho, dando de vez em quando irados pontapés nas pedras. Segui-o a uma distância prudente, não querendo ser esmagado como uma lagarta. Gato Gordo havia passado a semana toda assim, desde que Manuelo não o deixara voltar para pegar o cavalo preto. Manuelo dissera que tínhamos pouca gente e não era possível dispensar ninguém.

        Havia em geral dez homens de guarda ao esconderijo. Mas dois deles tinham morrido. Um fora morto pelo sargento na floresta e o outro morrera pouco antes da nossa partida. Ficara bêbado e tentara violentar uma das mulheres do general. Acho que foi a mãe de Amparo, mas não tenho certeza. Sei que ouvi um grito, e depois dois tiros. Quando cheguei lá, o homem já estava morto.

        O Santiago moço é que estava de vigia.

        — Chegou na hora. Estou quase morto de fome, — disse ele.

        — O melhor remédio para esquentamento é estômago vazio, — disse maliciosamente Gato Gordo.

        — Nesse caso, aconselho você a pegar um. Se continuar a comer como está comendo, daqui a pouco não haverá mais cavalo que aguente.

        — Conversa! — replicou Gato Gordo. — O meu cavalo preto poderia aguentar-me ainda que eu fosse cinco vezes mais gordo.

        — Sabe que não acredito nesse cavalo seu? — disse Santiago, rindo e tomando o caminho do acampamento.

        — É inveja sua! Dax estava comigo e viu, não viu, Dax?

        — Vi, sim.

        Mas Santiago já ia longe. Voltei-me para Gato Gordo. Estava olhando pelas montanhas na direção de Estanza.

        — Um grande cavalo, hem, Dax?

        — Un caballo magnifico!

        Gato Gordo sentou-se, encostou-se numa pedra com o fuzil nos joelhos e murmurou:

        — Manuelo não pode saber o que é ser dono de um animal daqueles. Nunca teve um e não pode saber!

        Não respondi.

        — Até parecia que eu estava pedindo a mulher dele emprestada. Disse que tenho de ficar aqui porque temos muito pouca gente.

        Encolheu os ombros.

        — E se não tivéssemos voltado? Eu não estaria aqui para Manuelo me negar uma coisa tão simples, e eles estariam passando fome, só tendo para comer rato e raiz de pau.

        Continuei calado, mas Gato Gordo não parecia importar-se de que eu falasse ou não.

        — E depois de tudo o que fiz por eles, ainda têm a coragem de duvidar de que eu tenha o cavalo. — Largou o fuzil e acendeu um cigarrillo. — É mais do que um homem pode tolerar!

        Vi-o tirar uma fumaça e correr os olhos pelos arredores. Tudo estava em calma nas montanhas. Dai a uma hora tudo estaria escuro.

        — Boa noite, Gato Gordo disse eu, e tomei o caminho de volta para o acampamento.

        No meio do caminho, ouvi o grito de um peru selvagem. Quase imediatamente, pensei em pegá-lo. Seria bom comê-lo. Eu já estava cansado de carne salgada todos os dias.

        — Glu, — glu, — glu! — gritei, chamando-o.

        O bicho respondeu, mas o som parecia vir muito da esquerda.

        Entrei pelo mato e chamei de novo. Ele respondeu, mas ainda estava se afastando de mim. Já era escuro quando consegui chegar perto dele.

        Não sei quem ficou mais surpreso quando a cabeça do peru apareceu de repente no mato à minha frente, se ele ou eu. Ficamos um momento ali parados, e então a grande ave levantou a cabeça para protestar, mas eu no mesmo instante ataquei-o com a faca e cortei-lhe a cabeça.

        Senti o sangue bater-me quente na camisa quando a ave sem cabeça passou por mim e foi cair mais adiante, debatendo-se deses-peradamente. Só uns dez minutos depois foi que o sangue correu todo e o peru ficou imóvel. Já estava quase escuro quando o peguei pelas patas e levei-o no ombro, com o longo pescoço pendente às minhas costas.

        Manuelo estava perto do cercado do pasto quando cheguei.

        — Onde estava? — perguntou-me, zangado. — Sabe muito bem que tem de voltar para casa antes de escurecer.

        Joguei o peru aos pés dele.

        — Deus do céu! — exclamou ele, admirado. — Onde foi que conseguiu isso?

        — Ouvi-o chamar quando voltava do posto de vigia.

        Manuelo pegou o peru.

        — Deve ter bem uns quinze quilos! Estrella, venha ver o que Dax trouxe! Vamos ter banquete amanhã!

        Mas não houve banquete, porque os soldados chegaram naquela noite.

        Deve ter sido poucas horas antes do amanhecer que ouvi o primeiro tiro. Pulei da cama e peguei os sapatos. Eu estava quase vestido, porque tinha dado para dormir como os outros desde a nossa volta. Passei a mão na faca debaixo do travesseiro.

        Ouvi no interior da casa um grito de mulher. Não sai pela porta. Pulei da janela para o telhado dos fundos e rolei por ele enquanto as chamas se erguiam da casa.

        Vi clarões de tiros e gritos de homens quando sai engatinhando na direção do mato. Saltei por cima de algumas moitas e joguei-me dentro da vala. Prendi o fôlego, e então levantei cautelosamente a cabeça.

        Só podia ver à luz do incêndio uniformes vermelhos e azuis por toda parte. Manuelo e Santiago, o velho, chegaram correndo do oitão da casa. Vi os clarões dos fuzis deles. Um soldado caiu e outro gritou, levando a mão à barriga. Outro soldado atirou então em Manuelo alguma coisa que saiu rodando pelo ar.

        Não pude deixar de gritar.

        — Cuidado, Manuelo!

        Mas ninguém me ouviu. Num momento, Manuelo estava ali de pé e no instante seguinte pareceu explodir em mil pedaços. Dois soldados atacaram então Santiago. O fuzil dele estava sem balas, mas Santiago começou a defender-se dos soldados, usando-o como se fosse um cacete. Os soldados conseguiram avançar, e eu ouvi o grito dele quando uma baioneta lhe entrou pelo pescoço e outra pela barriga.

        Baixei a cabeça e corri por dentro da vala para a frente da casa. Quando cheguei ao caminho do posto de vigia, que estava escondido pelo mato, ouvi um grito e vi Amparo, que fugia, com a camisola branca levantada pelo vento. Agarrei-a pela perna, e ela foi ao chão. Tapei-lhe a boca com a mão e arrastei-a para a vala.

        Os olhos dela se voltaram para mim, arregalados, cheios de terror.

        — Silêncio! — disse eu num sussurro. — Sou eu, Dax!

        Ela ficou mais calma, e eu tirei a mão.

        — Fique deitada bem quietinha ai. Vou olhar de novo.

        Levantei a cabeça. Santiago moço, estava morto a poucos metros de mim. Havia outros mortos caídos mais perto da casa.

        Os soldados ainda estavam ali. Uma mulher saiu correndo da casa com as roupas em fogo. Atrás dela, apareceu Eduardo, gritando:

        — Mamá! Mamá!

        Houve uma breve fuzilaria, e a mulher se estendeu no chão. Eduardo, que vinha logo atrás, caiu sobre ela, e um soldado correu para os dois e desceu a baioneta repetidas vezes.

        Outra figura saiu da casa, brandindo um machete com as duas mãos. Era Roberto, e o general teria sentido orgulho dele. Não havia medo no seu rosto, mas apenas ódio quando ele correu gritando para o soldado.

        Tomado completamente de surpresa, o soldado virou-se e correu. Mas era tarde. O machete desceu, e o braço do soldado pareceu desprender-se do seu corpo. Deu um grito de agonia e caiu, ao mesmo tempo que uma rajada de fogo partiu de trás dele. Roberto pareceu ficar suspenso no ar e foi cair ao chão, perto do corpo do irmão e da mãe deste.

        Depois disso, só houve o crepitar do fogo. Ouvi o choro de uma mulher. Três mulheres foram levadas para um canto da casa por alguns soldados. No meio ia a mãe de Amparo. Parecia estar confortando a mãe de Roberto. A mulher de Manuelo estava de rosto fechado, parecendo insensível.

        Um oficial aproximou-se. Não podia ver-lhe o rosto, mas não era necessário. Conheci-o no momento em que abriu a boca. Nunca mais esqueceria aquela voz até o dia de minha morte.

        — Estão todos mortos?

        — Estão, coronel respondeu o sargento. — Menos estas mulheres aqui.

        — Bueno. Façam o que quiserem com elas. Mas lembrem-se de que devem morrer antes de partirmos. Jurei que não deixaria um só traidor vivo!

        — Si, coronel!

        O coronel deu as costas e afastou-se para o outro lado da casa, desaparecendo.

        As mulheres já estavam despidas e estendidas no chão, e os soldados faziam fila em frente de cada uma. Senti alguém mover-se ao meu lado. Era Amparo, com os olhos arregalados.

        — Que é que vão fazer?

        Eu sabia o que iam fazer. Mas não adiantava nada ela ver. Era apenas uma menina. Como podia compreender o que os homens faziam quando lutavam?

        Empurrei-a para dentro da vala. Vi que ela tremia de medo.

        Tomei-a pela mão e corri com ela para o caminho do posto de vigia. Mas, quando chegamos lá, não encontrei Gato Gordo. Sabia para onde ele tinha ido. Fora buscar o cavalo preto em Estanza.

        Olhei para o caminho que descia do outro lado para o sul. Não se via ninguém. Se andássemos depressa, poderíamos alcançá-lo. A primeira claridade do dia já estava começando a aparecer muito pálida no horizonte.

        — Estou com frio disse Amparo, tremendo na sua camisola

        de dormir.

        Gato Gordo me ensinara o que se devia fazer num momento

        assim. Tirei a minha pesada camisa índia e coloquei-a nos ombros de Amparo. A camisa chegou-lhe quase às pernas. Depois, tirei os sapatos e calcei-os nos seus pezinhos nus.

        — Agora, — disse eu calmamente e procurando dar à minha voz o máximo de segurança e certeza, — vamos caminhar um pouco. Descansaremos quando o sol começar a esquentar.

 

        Estávamos no máximo a um quarto do caminho pelas montanhas abaixo quando ouvimos vozes de homens atrás de nós. Peguei no braço de Amparo e corri com ela para dentro do mato, até um lugar onde as moitas eram mais espessas. Escondemo-nos bem na hora.

        Ouvi um pesado tropel de botas, e quatro soldados apareceram diante de nós com os fuzis em posição de atirar.

        — Alto! — disse um deles, jogando-se no chão a uns três metros, se tanto, de nós. — Não aguento mais. Não posso dar mais um passo.

        Os outros ficaram parados a olhá-lo.

        — Sentem-se também, — disse ele. — Vocês estão tão cansados quanto eu.

        — Mas o coronel mandou que patrulhássemos a estrada até o fim.

        — E o coronel está vendo a gente? Está lá embaixo, enchendo-se de boa bebida, enquanto nós estamos aqui, nos esfalfando nestas malditas montanhas. Quero que o coronel vá à merda.

        Outro soldado sentou-se ao lado dele.

        — Um momento de descanso. Quem é que vai saber?

        Os outros se estenderam no chão. Um momento depois, um deles se encostou a uma árvore.

        — Qual foi a que você pegou?

        O primeiro soldado respondeu:

        — Peguei todas. Logo que acabava numa, eu me levantava e entrava em outra fila.

        O segundo soldado sacudiu a cabeça.

        — Não admira que você esteja tão cansado.

        — Qual foi a sua?

        — A que estava gritando. Não sei por que fazia aquele barulho todo. Era tão grande que podia caber um cavalo lá dentro. Quase não senti nada.

        — Aquela não prestava, — disse um dos outros.

        — A loura era a melhor — disse o primeiro soldado, rindo. — A gente podia ver que tinha escola. Era tão boa que eu nem demorei, Se a fila atrás de mim não fosse tão grande, eu teria repetido. E, dessa vez, garanto que teria demorado mais. — Tirou o cantil. — Preciso beber um pouco. Estou todo seco por dentro.

        Levou o cantil à boca, e a água lhe escorreu pelo canto da boca.

        — Estou com sede também, — murmurou Amparo.

        — Psiu!

        Ela torceu o corpo e bateu com a mão no rosto.

        — Mosquitos!

        Senti então as picadas dos mosquitos nas costas. Antes disso, estivera muito ocupado, observando os soldados. Com movimentos muito cautelosos para não agitar o mato e chamar a atenção, puxei a camisola dela por baixo da minha camisa e cobri-lhe o rosto.

        — Fique bem quietinha ai e não se mova. Os mosquitos não vão mais morder seu rosto.

        Mas a mim podiam morder. Eu estava nu da cintura para cima.

        Quase de segundo a segundo, sentia uma picada, mas nada podia fazer. Pelo menos, enquanto os soldados estivessem ali.

        Por fim, um deles se levantou.

        — Acho bom irmos andando.

        — Para quê? — perguntou outro. — Não há ninguém lá embaixo.

        — Mas o coronel mandou patrulhar o caminho todo.

        O primeiro soldado riu.

        — Isso quer dizer que teremos de ir até o pé da montanha e depois subir tudo de novo. — Olhou para o sol. — Podemos ficar aqui até o meio-dia e depois voltar e dizer que não encontramos nada. Quem é que vai saber?

        — Mas não é direito...

        — Está bem, vá você sozinho, já que faz tanta questão. Ficaremos aqui descansando até você voltar.

        O que estava de pé olhou para os outros, mas nenhum fez menção de acompanhá-lo. Ele então jogou-se no chão de novo.

        — Nisso tem razão. Quem é que vai saber?

        Virei a cabeça. O rosto de Amparo estava escondido pela cami-sola, e sua respiração era quieta e igual. Levantei cuidadosamente a camisola. Estava ferrada no sono.

        Cobri-lhe de novo o rosto e olhei para os soldados. Um deles estava deitado de costas, com os braços abertos, e roncava ruidosa-mente, com a boca aberta. Os outros se haviam acomodado à sua maneira e estavam começando a fechar os olhos.

        Seria bom se eu pudesse descansar também. Mas seria muito perigoso. Lutei para conservar os olhos abertos. O sol subia pelo céu, e o dia estava ficando cada vez mais quente. As costas me ardiam com as picadas dos insetos, mas eu não tinha coragem de coçá-las.

        Apesar de todos os meus esforços, minha cabeça de vez em quando caia para a frente num cochilo. Reagi ao máximo, mas devo ter dormido também. Quando ouvi um barulho, acordei de repente.

        Os soldados estavam todos de pé. No momento em que os olhei, tinham ido urinar do outro lado da estrada. Um momento depois, um deles disse para os outros:

        — Já é bem tarde. Podemos voltar.

        Vi-os afastarem-se pelo caminho até desaparecerem além da curva. Dai a pouco, não pude ouvir-lhes nem as vozes. Amparo ainda estava dormindo. Acordei-a delicadamente.

        Ela levantou a cabeça e tirou a camisola do rosto. Os olhos ainda estavam cheios de sono.

        — Estou com fome, — disse ela, esfregando-os.

        — Vamos comer daqui a pouco.

        — Vamos voltar para casa. Mamá me prometeu que hoje a gente ia comer no almoço o peru que você matou.

        — Não podemos ir. Os soldados ainda estão lá.

        O sono lhe desapareceu dos olhos, e a lembrança do que havia acontecido a invadiu. Começou de repente a chorar.

        — Mamá! Mamá! Mamá!

        — Pare com isso! — disse eu com alguma rudeza.

        — Vou ver Mamá depois?

        — Claro! — exclamei, não sabendo como poderia dizer à pobre menina que nunca mais iria ver a mãe. — Como foi que você fugiu da casa, Amparo?

        — Quando os soldados levaram Mamá, eu estava escondida embaixo da cama. Logo que eles saíram, pulei pela janela e comecei a correr.

        — Foi uma coisa muito inteligente o que você fez.

        — Você acha? — perguntou ela, com os olhos brilhantes.

        A coisa de que Amparo mais gostava era de elogios. Nunca se contentava com eles.

        — Sou bem inteligente, não sou?

        — Muito.

        Toda risonha e satisfeita, ela olhou para o caminho.

        — Já foram? — perguntou.

        — Já, — disse eu, levantando-me. — E nós temos de ir também.

        — Para onde é que vamos?

        Pensei um instante. Não podíamos mais alcançar Gato Gordo, mas eu sabia para onde ele tinha ido.

        — Vamos para Estanza.

        — Estanza? Onde é isso, Dax?

        — É muito longe daqui. Teremos de caminhar.

        — Eu gosto de caminhar.

        — Mas é preciso termos cuidado. Não podemos deixar ninguém ver a gente. Se ouvirmos que alguém vem vindo, teremos de nos esconder.

        — Poderão ser os soldados, não é?

        — Ainda que não sejam os soldados, teremos de nos esconder. Quem visse a gente poderia ir contar aos soldados.

        — Vou ter cuidado disse ela. — Mas estou com fome e com sede.

        — Há um riacho ali adiante.

        — Também tenho de fazer xixi.

        Para isso não era preciso esperar.

        — Faça ai mesmo.

        Amparo se agachou e levantou as roupas.

        — Não posso fazer xixi se você ficar ai assim me olhando.

        Dei-lhe as costas, sorrindo. As meninas eram mesmo engraça-das. Que diferença fazia eu estar olhando ou não?

        Chegamos ao riacho dai a uma meia hora. Lembrei-me do que Gato Gordo me havia dito e recomendei-lhe que não bebesse a água com muita sofreguidão. Só um pouquinho. Estendi-me na margem e baixei a cabeça para a água. As costas me coçavam terrivelmente. O sol quente agravara as picadas dos mosquitos. Comecei a coçá-las e senti que tinha bolhas nas costas. Joguei um pouco de água por cima do ombro.

        Amparo estava me olhando.

        — Você está com as costas todas mordidas. Mamá sempre me bota folhas de louro quando os mosquitos me mordem.

        — Como são essas folhas?

        — Estou vendo um bando delas ali.

        Apanhei um punhado do mato que ela me mostrara e tentei botar as folhas nas costas, mas elas caiam.

        — Você não sabe nada, hem? — exclamou Amparo, exasperada. — Deixe que eu faço isso para você.

        Entreguei-lhe em silêncio as folhas. Ela molhou-as um instante na água.

        — Vire para rá.

        Virei-me. Senti as folhas úmidas e a água que me escorria pelas costas. Ela estava certa. Alguns minutos depois, a sensação de ardência e de coceira havia desaparecido. Fiquei olhando para o riacho. Vi algum coisa mover-se lá dentro. Era um pequeno cardume de peixes que passava.

        Lembrei-me de que Santiago, o moço, costumava pescar arpoando os peixes com uma flecha. Procurei um galho reto e com a grossura necessária. Com a faca, tirei as folhas e fiz uma ponta bem fina com uma farpa. Depois, fui para a beira do riacho e agachei-me.

        Os peixes reapareceram. Procurei fisgá-los com a vara, mas eles foram mais ligeiros do que eu. O máximo que consegui foi quase cair dentro da água. Tentei de novo. Depois da terceira tentativa, comecei a ter uma ideia do que devia fazer. Os peixes se dispersavam, indo cada qual para o seu lado. Era preciso apenas calcular o que viria na minha direção.

        Resolvi que seria o que vinha mais atrás. Deixei-o passar a primeira vez porque não achei que pudesse chegar muito perto de mim. Da segunda vez, porém, ele chegou bem perto. Brandi a vara e senti a ponta fisgá-lo.

        Voltei-me exultante, com o peixe que se debatia espetado na ponta da vara.

        — Vamos comer!

        Uma expressão de nojo apareceu no rosto de Amparo.

        — Cru? Como é que você vai assar isso?

        A minha exultação morreu. Deixei-me cair numa grande pedra chata. Dei um grito e um pulo. A pedra estava quente como uma grelha devido ao calor do sol. E se ela tinha quentura para queimar meu traseiro, devia ter também para assar um peixe.

 

        O peixe estava gostoso, ainda que um pouquinho cru. Peguei mais dois até matarmos a fome, e de cada vez tive de raspá-los com a faca de cima da pedra. Foi muito bom comermos tanto então porque nos dois dias seguintes só encontramos algumas frutinhas do mato. Na manhã do terceiro dia, topamos com uma mangueira e chupamos mangas com tanta avidez que tivemos dores no estômago e passamos o resto do dia ali, sem coragem de andar.

        Quando a noite caiu, Amparo começou a chorar.

        — Quero voltar para casa.

        Olhei-a em silêncio. Nada havia que eu pudesse dizer-lhe. Fiquei ali, desarvorado, como fica qualquer homem diante das lágrimas de uma mulher. O rostinho lindo de Amparo estava magro e abatido em consequência da diarréia.

        — Estou com o bumbum doendo, — disse ela.

        Eu também estava. Devia ter juízo para não comer tantas mangas meio verdes.

        — Durma. Amanhã você estará melhor.

        — Não quero! — gritou ela, batendo o pé. — Já estou cansada de dormir no chão, de passar fome e frio e de sentir os bichos andarem pelo meu corpo. Quero voltar para casa e dormir na minha cama!

        — Mas não pode ser.

        — Quero! Quero! Quero! — gritou ela, sapateando no chão.

        Eu sabia que ela estava iniciando um dos seus famosos acessos. Mas eu não estava disposto a aguentar isso. Mandei a mão e bati-lhe em cheio no rosto. Por um momento, ela ficou parada e atônita. Depois, as lágrimas lhe rolaram pelo rosto.

        — Você me bateu!

        — E bato de novo se não calar a boca! — disse rudemente.

        — Tenho raiva de você!

        Fiquei calado.

        — Estou falando sério! Não vou mais me casar com você!

        Deitei-me na relva e fechei os olhos.

        Por um momento, houve silêncio. Senti que ela se chegava para perto de mim. Finalmente, ela aconchegou-se ao meu lado.

        — Estou com frio, Dax.

        Os lábios dela estavam realmente brancos de frio. Compreendi que não podíamos dormir ali no descampado. Teria de procurar um lugar mais abrigado do vento frio que soprava da montanha para a planície.

        — Levante-se, — disse eu, segurando-a.

        — Mas está escuro e eu estou cansada. Não posso mais caminhar.

        — Mas é preciso. Temos de procurar um lugar mais quente para dormir.

        Começamos a caminhar. Olhei para o céu. Não gostava do jeito dele. As nuvens estavam baixas e ameaçadoras, escondendo a lua e as estrelas. O vento era frio e úmido, e eu sabia que a chuva não tardaria.

        Caiu uma terrível pancada, açoitando-nos as costas com a força do vento.

        Lembrei-me de que na manhã daquele dia avistara ao longe uma pequena floresta. Estaríamos lá se não nos tivéssemos enchido tanto de mangas. Tentei avistá-la através da escuridão, mas não adiantou. Tínhamos de continuar caminhando e esperar que não demorássemos muito a chegar lá.

        Estávamos ensopados da cabeça aos pés. Levava Amparo pela mão, sentindo os pantalones molhados colados às pernas. A terra ficou mole e lamacenta sob os meus pés descalços.

        Amparo estava chorando de novo. Houve um momento em que ela caiu e eu levantei-a num repelão. Começamos a correr. Chegamos à floresta de repente. Parei debaixo de uma grande árvore. Estava relativamente seco ali. A chuva não havia penetrado ainda a espessa cúpula das folhas. Ficamos ali, tentando recuperar o fôlego.

        Percebi de repente que ela estava tremendo demais. Os olhos pareciam estranhamente brilhantes.

        — Dax, estou ouvindo vozes.

        Apertei-a bem contra mim, tentando aquecê-la com o calor do meu corpo.

        — Ainda estou ouvindo vozes, — disse ela, com a voz difícil e fina.

        Toquei-lhe a fronte. Estava bem quente. Devia estar com febre.

        — Fique caladinha. Agora podemos descansar.

        Ela me empurrou, zangada, e disse:

        — Estou ouvindo vozes, sim. Escute.

        Mais para fazer-lhe a vontade do que por acreditar, escutei. A principio, nada percebi, mas depois pareceu-me ouvir um fraco murmúrio de vozes.

        — Espere aqui que eu vou ver.

        Entrei pela floresta. Havia andado talvez um cem metros quando os vi. Eram três carroças que tinham sido levadas da estrada para o meio da floresta. Três homens estavam sentados numa delas, jogando cartas à luz de uma pequena lanterna. Mais três estavam deitados do lado de fora das carroças. Estavam todos com os uniformes vermelhos e azuis do exército. Os fuzis estavam ensarilhados diante da primeira carroça.

        Não sabia se havia mais soldados. Trepei um pouco por uma árvore e olhei cuidadosamente as outras carroças. Estavam vazias, mas vi vários cobertores numa delas. Olhei para a carroça onde estavam os jogadores e fiquei pensando em apanhar um cobertor.

        Pensei na febre de Amparo, e vi que não tinha outra coisa a fazer. Ela estava sob a minha responsabilidade, como eu tinha estado sob a de Gato Gordo. Desci da árvore e me esgueirei em silêncio para a carroça que estava mais atrás. Com movimentos rápidos, agarrei um cobertor e enrolei. Corri os olhos em torno para ver se havia mais alguma coisa que eu pudesse levar. Vi uma caixa de fósforos, e meti-a no bolso. Havia um pedaço de pele de toucinho seca no chão da carroça, e peguei-a também.

        Levei apenas alguns minutos para orientar-me quando voltei para a floresta, e então foi fácil voltar para onde estava Amparo. Encontrei-a deitada quietamente.

        — Dax? — perguntou ela, batendo o queixo.

        — Sou eu, sim. Tire logo essas roupas molhadas.

        Tirei o cobertor e embrulhei-a nele. Depois cortei com a faca um pedaço de pele de toucinho.

        — Tome. Chupe isso.

        Deitei-me ao lado dela e cortei um pedacinho para mim. Estava áspero e salgado, mas o gosto na boca não deixava de ser agradável. Senti que os tremores de Amparo iam pouco a pouco diminuindo, e dai a alguns minutos sua respiração regular me mostrou que ela estava dormindo. Também com sono, pensei sorrindo que Amparo era uma menina bem bonitinha.

        Um passarinho que cantava numa árvore me acordou. Abri os olhos e olhei para cima. Através das folhas, vi o céu azul e claro. Olhei para Amparo. Estava toda enrolada no cobertor.

        As roupas dela estavam juntas num monte molhado aos seus pés. Apanhei-as e estendi-as numa moita, onde o sol se encarregaria de secá-las. Quando ela acordou, levei um dedo aos lábios, recomendando-lhe silêncio.

        Cortei-lhe outro pedaço de pele de toucinho e disse em voz baixa:

        — Espere aqui que eu já volto.

        Dai a poucos minutos, estava de novo no lugar onde os soldados haviam acampado. Soldados e carroças não estavam mais lá.

        Os restos de uma pequena fogueira ainda ardiam no centro do acampamento deserto. Joguei alguns galhos nela e voltei para buscar Amparo.

        O calor do fogo foi muito agradável depois daquela noite fria.

        Tentei calcular a hora pelo sol. Deviam ser quase nove horas. Tínhamos de continuar a viagem. Enrolei o cobertor, joguei-o sobre os ombros e nos encaminhamos para a estrada.

        Três vezes naquela manhã tivemos de sair da estrada para esconder-nos. Uma vez, foram vários homens a pé, de outra, um homem numa carroça e, finalmente, um homem e uma mulher numa carroça. Fiquei tentado a fazer parar as carroças, mas desisti. Não adiantava arriscar-me, porque a frequência de carroças indicava que devíamos estar perto de alguma vila.

        Quando viramos a primeira curva, vi casas e a fumaça de uma chaminé. Sai com Amparo da estrada para dentro do campo.

        — Temos de dar volta à cidade sem passar por ela.

        Amparo concordou, e seguimos por dentro dos campos. O caminho seria mais longo, e já era quase noite quando deixamos a cidade para trás.

        — Estou com fome disse Amparo. — A pele de toucinho não me enche a barriga.

        — Conseguiremos alguma coisa para comer esta noite.

        Eu havia visto alguns galinheiros, e, logo que encontrei um bom lugar para passarmos a noite, voltei. Mas voltei com Amparo porque ela se negou a ficar sozinha.

        Estava escuro como breu quando nos aproximamos de um galinheiro. Era nos fundos de uma casa, e tivemos de esperar até ter a certeza de que todos tinham ido dormir.

        — Espere aqui e não se mova! — disse eu a Amparo.

        Avancei em silêncio, na ponta dos pés, com a faca nas mãos, e abri a porta do galinheiro.

        No mesmo instante, as galinhas começaram a fazer um barulho que podia ser ouvido a quilômetros de distância. Uma galinha bem gorda passou perto de mim, e eu a agarrei e no mesmo instante cortei-lhe a cabeça. Não consegui agarrar outra, que passava, mas segurei firmemente um franguinho branco cujo pescoço cortei logo. Guardei a faca. Peguei as galinhas pelos pés e corri para onde estava Amparo, atirando-me ao chão junto dela no momento em que o dono da casa aparecia com a camisa de dormir batendo ao vento. Estava com uma espingarda, e quando viu a porta do galinheiro aberta correu para fechá-la. Depois, saiu andando em direção a nós.

        — Que é? — perguntou uma mulher dentro da casa.

        — Deve ter sido a raposa de novo nas minhas galinhas! Algum dia ainda vou meter-lhe uma bala no corpo, maldita!

        Ficou ainda um momento ali e voltou para o galinheiro. Abriu a porta e entrou.

        Toquei no braço de Amparo e fiz-lhe sinal para irmos saindo. No instante em que ele encontrasse duas cabeças de galinha dentro do galinheiro saberia logo que não tinha sido nenhuma raposa. Corremos a toda até ao nosso esconderijo e sentimos de repente que não estávamos mais cansados. Até Amparo estava sorridente e feliz de ver as galinhas suspensas sobre o fogo, com os piolhos pulando precipitadamente das pernas para não serem carbonizados.

 

        Os dias tornaram-se noites e as noites viraram dias. Tínhamos perdido toda a noção do tempo, quando descemos a última montanha e chegamos ao deserto. Calculava vagamente que já havíamos partido do esconderijo umas três semanas antes, mas não tinha certeza.

        Eram mais ou menos duas horas da tarde quando ficamos ali olhando através do deserto a serra além da qual ficava o vale fértil e verde em torno de Estanza. Havia algumas carroças na estrada, e eu sabia que não podia atravessá-la com dia claro. Seriamos facilmente vistos, pois não havia onde nos pudéssemos esconder naquele areal.

        Procurei calcular a distância com os olhos. Havia levado três horas para atravessar aquele trecho na carroça com Gato Gordo. Isso devia corresponder a uns trinta quilômetros. Poderíamos cobrir essa distância caminhando a noite inteira. Voltei-me para Amparo.

        O rosto estava muito queimado de sol e os cabelos louros, descorados. As sobrancelhas e as pestanas de tão brancas pareciam quase invisíveis. As faces se mostravam magras e abatidas, e eu lhe podia ver os ossos sob a pele e o cansaço que lhe repuxava os cantos da boca. Tirei um osso de galinha do bolso. Amparo começou a chupar o osso devagar, deixando-o umedecer-se bem com a saliva. Ela também havia aprendido muito naquelas semanas.

        Várias vezes por dia tínhamos tido de sair da estrada e escon- der-nos. Mais de uma vez tínhamos quase dado de cara com patrulhas de soldados, mas havia-se desenvolvido em nós uma espécie de sexto sentido que nos avisava da proximidade do perigo.

        — Temos de atravessar esse areal à noite, Amparo. Ficaremos descansando até escurecer.

        Ela não fez comentário algum. Sabia por quê, sem que fosse necessário eu explicar-lhe.

        — Temos alguma coisa para comer? — perguntou ela, ainda com o osso na boca.

        — Não.

        Olhei em torno. Aquilo ali não era lugar de caça. Havia algumas árvores, mas dessas árvores mirradas que só se encontram nos desertos. Isso mostrava que também não devia haver muita água.

        — Mas não estamos longe de Estanza, Amparo. Lá teremos muito para comer e beber!

        Ela olhou as carroças que passavam na estrada e perguntou:

        — Todos eles nos odeiam? Todos querem nos matar?

        — Não sei, — respondi, surpreso com a pergunta.

        — Por que é então que temos de ficar sempre escondidos?

        — Porque não sabemos quais são os amigos e quais os inimigos.

        Ela ficou em silêncio por algum tempo e disse de repente:

        — Mamá está morta. Roberto, Eduardo e os outros, também. É por isso que não podemos voltar, não é?

        Não respondi.

        — Pode-me dizer que eu não vou chorar.

        — É, sim, Amparo.

        — Papá está morto também?

        — Não.

        Ela se virou e olhou para o deserto. Ficou calada durante muito tempo. Afinal, voltou-se e olhou para mim.

        — Se Papá estiver morto também, você promete casar-se comigo e tomar conta de mim?

        Ela me parecia tão magra e indefesa, como Perro quando não sabia que eu queria fazer-lhe uma festa. Peguei-lhe a mão, que estava quente e confiante, na minha.

        — Você bem sabe que sim. Isso já está combinado há muito tempo.

        Ela sorriu.

        — Ainda tem algum osso?

        Tirei o último do bolso e dei a ela.

        — Vamos procurar alguma sombra e tentar dormir, disse eu.

        O vento chegou bem forte naquela noite, quando começamos a atravessar o deserto pela estrada. Tremíamos ao seu impacto gelado.

        — Está bem, Amparo?

        Ela fez um sinal afirmativo e, fechando mais a camisa em torno do corpo, baixou a cabeça por causa do vento.

        — Espere, — disse eu, e, desenrolando o cobertor, cortei-o ao meio com a faca. Não iriamos mais precisar dele na fazenda do Sr. Moncada.

        — Tome. Use isso como uma ruana, um capote.

        Ela enrolou sobre o corpo o seu pedaço de cobertor, e eu fiz o mesmo. O vento parecia mais forte. De vez em quando, levantava a areia, que nos vinha bater no rosto como uma porção de agulhas. Depois de algumas horas de caminhada pela superfície compacta do leito da estrada, estávamos com a pele do rosto dolorida e cobertos de uma leve camada de poeira.

        Saímos várias vezes no escuro do leito da estrada e nos enterramos na areia até os tornozelos. Era tão forte o vento, que eu tinha dificuldade em ver para onde íamos. Tentei olhar para as estrelas a fim de orientar-me, mas estavam encobertas pelas nuvens. Mais de uma vez fomos arrastados e tivemos de lutar para voltar à estrada.

        — Não enxergo nada, — disse em certo momento Amparo. — A areia está me entrando pelos olhos.

        — Faça um capuz, — disse eu, cobrindo-lhe a cabeça com o cobertor e só deixando uma pequena abertura na frente para ela olhar. — Está melhor assim?

        — Está.

        Fiz o mesmo e deu resultado. Continuamos a andar e, dentro em pouco, tornamos a não ver mais a estrada. Levamos quase uma hora para encontrá-la de novo.

        — Não posso mais andar, Dax, — disse Amparo. — Os sapatos estão cheios de areia.

        Fi-la sentar-se e esvaziei-lhe os sapatos. Depois, levantei-a.

        — É só mais um pouco.

        Continuamos. Eu senti a garganta dolorida e seca. Dentro do peito, a respiração era estertorosa. De repente, o céu começou a clarear. Por um momento, foi um cinza muito leve, até que o sol surgiu nas montanhas atrás de nós. Fiquei sem poder acreditar no que via! O sol estava nascendo do lado oeste!

        Mas compreendi logo o que havia acontecido. No meio da noite, havíamos perdido o rumo e passamos a caminhar em sentido inverso. Estávamos bem no meio do deserto, em plena luz do dia. Virei-me e olhei para a estrada no rumo de Estanza. Avistei uma carroça ao longe.

        Peguei a mão de Amparo e corri para fora da estrada. Tudo era plano. Não havia absolutamente onde nos pudéssemos esconder. Disse a Amparo que se deitasse, e deitei-me na areia ao lado dela. Cobrimos a cabeça com os cobertores. Eu esperava que nos confundíssemos com a areia a ponto de enganarmos quem passasse.

        Ouvi o barulho das rodas da carroça. Levantei uma ponta do cobertor e olhei. A carroça havia passado. Já estava me levantando quando vi outra carroça que se aproximava. Cai prontamente no chão.

        — Que é?

        — Outra carroça.

        O sol estava começando a esquentar a areia. O calor começava a ficar insuportável.

        — Nada podemos fazer, Amparo. Teremos de esperar outra vez a noite. Há muita gente na estrada.

        — Estou morta de sede.

        — Fique quieta e procure não pensar nisso.

        Sentia o suor correr-me pelas costas e entre as pernas. Passei a língua nos lábios. Estavam secos e salgados. Levantei o cobertor. A estrada estava deserta em toda a sua extensão.

        — Está bem — disse eu. — Vamos andar um pouco. Mas cubra a cabeça com o cobertor por causa do sol.

        O calor que subia da estrada desenhava coisas diante dos meus olhos. Meus pés começaram a queimar.

        — Estou com sede, Dax.

        — Vamos andar mais um pouco. Depois, a gente pára e descansa.

        Conseguimos andar cerca de meia hora. A areia estava tão quente que, quando saímos da estrada e tocávamos nela, tínhamos de tirar o pé como de um ferro em brasa. Eu sentia a língua seca e grossa. Procurava fazer a saliva correr por ela a fim de refrescá-la, mas a saliva logo secava.

        — Está doendo, Dax. Minha boca está doendo.

        Amparo estava soluçando mansamente. Seus ombros tremiam.

        Eu sabia que ela tinha de molhar os lábios fosse como fosse.

        Tirei a faca e fiz um talho na ponta de um dedo. O sangue apareceu logo.

        — Diabo!

        — Que foi? perguntou Amparo.

        — Cortei-me, — disse eu, estendendo o dedo para ela. — Quer chupar um pouco para sarar?

        Ela levou o dedo até à boca. Um instante depois, perguntou.

        — Chega?

        Olhei o dedo. Apertei-o fazendo sair mais um pouco de sangue.

        — Chupe mais um pouco, para não haver dúvidas.

        Ela obedeceu. Dessa vez, as bordas do talho ficaram brancas.

        — Agora está bem.

        — Ótimo. — Ela levantou a ponta do cobertor e disse: — Está começando a escurecer.

        E estava mesmo. O dia terrível havia quase passado e a noite vinha chegando. Já não era tanto o calor que subia da areia. Olhei para a estrada que passava entre as montanhas. Do outro lado, ficava Estanza.

        — Se caminharmos a noite toda, estaremos lá ao amanhecer.

        — Não podemos beber um pouco de água, Dax?

        — Daqui até Estanza não há água.

        Ela foi até o lado da estrada e sentou-se.

        — Estou cansada.

        — Eu sei, Amparo, — disse, cobrindo-a com o meu cobertor. — Veja se dorme um pouco. Amanhã, tudo isso estará acabado.

        Ela se estendeu no chão e fechou os olhos. Um instante depois, estava dormindo. Tentei dormir também, mas uma dor indefinida não me deixou. Para onde quer que me virasse, o corpo parecia doer. Deixei Amparo dormir cerca de duas horas.

        Foi mais ou menos uma hora depois do nascer do sol que chegamos afinal à fazenda do Sr. Moncada. Havia na frente da casa II muitos cavalos amarrados, mas eu não vi ninguém. Fiz sinal a Amparo para não fazer barulho enquanto passávamos para o fundo.

        A fumaça estava saindo da chaminé da cozinha. Senti tão forte o seu cheiro que quase cai com uma vertigem de fome. Chegamos à porta da cozinha. Abri-a, segurando ainda a mão de Amparo.

        Estava escuro, e não pude ver logo as coisas com clareza. Uma mulher gritou, e então eu vi. A cozinheira estava de pé à beira do fogão e três homens estavam sentados à mesa da cozinha, dois deles de frente para mim. Percebi logo que estavam fardados de vermelho e de azul.

        Virei-me e empurrei Amparo pela porta afora.

        — Corra!

        Ela saiu como um coelhinho pelo pátio. Fui atrás dela. De repente, ouvi um grito às minhas costas, e, quando me virei para olhar, tropecei num pedaço de pau e cai. Quando tentei levantar-me, um soldado passou correndo por mim.

        — Corra, Amparo! Corra!

        Outro soldado correu para mim. Virei-me para enfrentá-lo, puxando a faca. Mas tonteei. O cansaço e a noite sem sono tiraram-me as forças. Mas vi bem a cara do soldado e nada mais houve em mim senão raiva e ódio. O desejo de matar me fazia tremer.

        — Gato Gordo! — exclamei e atirei-me contra ele, de faca em punho.

        Ele nos traíra. Por isso é que os soldados haviam encontrado o nosso esconderijo. Por culpa dele é que tanta gente fora morta, e tudo porque ele estava ansioso por vir buscar um miserável cavalo.

        Quando tentava feri-lo com a faca, ouvi Amparo gritar. Olhei e vi que um soldado a havia agarrado. Arrastava-a para onde estávamos, enquanto ela gritava e esperneava. Senti-me de novo tonto.

        Gato Gordo estava olhando para mim, com o rosto muito pálido.

        — Dax!

        — Sim, é Dax mesmo! — exclamei, como um alucinado. — Não morri como os outros. E vou matá-lo! Vou cortar seus cojones e fazer você engoli-los por essa garganta imunda!

        — Não, Dax! Não!

        — Traidor! — Avancei para ele, mas havia alguma coisa esquisita com o chão. Ondulava como se fosse o mar em Curatu, aonde eu tinha ido uma vez com meu pai. — Traidor.

        — Dax!

        Mas era outra voz que me chamava, uma voz que eu não havia esquecido, embora não a ouvisse havia mais de dois anos. Tirei os olhos de Gato Gordo e olhei para a porta da cozinha, onde estava meu pai. Mas havia alguma coisa estranha, e eu pensei que estivesse maluco. Meu pai estava também com uma farda do exército.

        — Papá! — exclamei. Dei um passo na direção dele, mas me lembrei de Gato Gordo e de novo senti-me dominado pela raiva. — Vou matar você! Matar!

        Armei o braço para enfiar-lhe a faca no pescoço, mas a luz do sol me cegou. Pisquei os olhos, e de repente tudo começou a ficar escuro. A faca me caiu das mãos. Senti que ia caindo para o chão, quando os braços de alguém me seguraram.

        A escuridão continuou, e eu me lembro de ter pensado: Como pode estar tão escuro se o sol nasceu ainda agora? Então do meio da escuridão, ouvi a voz de meu pai. Havia nela amor. E dor. E tristeza também.

        — Meu filho! Meu filho, que foi que eu fiz com você?

        E, então, a noite caiu misericordiosamente sobre mim e me cobriu.

 

        O velho de batina recostou-se na cadeira e juntou os dedos enquanto esperava pela minha resposta. Seus olhos pretos dele brilhavam atrás dos vidros dos óculos.

        — Tentarei melhorar, monsenhor disse eu.

        — É o que espero, Diógenes, — disse ele com uma voz em que havia tanta convicção quanto na minha.

        A escola não fora feita para mim. A rotina e a monotonia da sala de aula eram para mim coisa pior do que uma prisão. De algumas coisas eu gostava, e nelas me saía bem. Línguas. Inglês, francês. Até alemão. Latim era uma língua morta, e só os padres a usavam nas suas cerimônias. Não podia interessar-me menos por ela. Já estava ali havia dois anos e tinha sido reprovado duas vezes em latim. Era por isso que estava diante do diretor da escola.

        — O seu ilustre pai foi um dos nossos melhores alunos, — disse-me pontificalmente o diretor. — Sempre foi o primeiro em latim. Se quer seguir o caminho dele como advogado, precisa aprender latim.

        Parecia esperar uma resposta, e eu murmurei:

        — Si, Monseñor.

        — Tem de melhorar também as notas nas outras matérias, — disse ele, olhando para o meu boletim em cima da mesa. — Há muitas em que não conseguiu senão a nota mínima de aprovação. Linguagem, literatura, história, geografia...

        Olhei pela janela enquanto ele falava com a sua voz grossa. Via dali Gato Gordo à minha espera no portão da escola. Era uma figura imponente com a sua farda vermelha e azul, e, como sempre, era o centro da admiração de um grupo de empregadas e governantas que esperavam também outros alunos. Mas eu nunca me havia habituado a vê-lo de farda. Ainda que o exército fosse nosso e o general tivesse passado a ser o presidente.

        A revolução já estava terminada havia quase três semanas quando eu e Amparo chegamos a Estanza. Tínhamos levado quase cinco semanas na viagem, e durante todo esse tempo não tínhamos tido coragem de falar com qualquer pessoa.

        Ainda me lembro de quando o general entrou no meu quarto na hacienda do Sr. Moncada alguns dias depois. Estava deitado na cama, ainda fraco da febre que me havia abalado o organismo. Ouvi o bater das suas botas diante da minha porta e virei a cabeça para cumprimentá-lo. Não era muito alto, mas com o uniforme de comandante-em-chefe do exército parecia um gigante.

        O rosto ainda era magro e anguloso e os lábios, finos e cruéis sob os olhos cinzentos, tão firmes como sempre. Colocou afetuosamente a mão sobre a minha na colcha branca.

        — Soldadito.

        — Señor General.

        — Vim agradecer-lhe ter trazido minha filha.

        Não respondi. Não sabia o que ele tinha de me agradecer. Eu não poderia ter feito outra coisa.

        — Viu... murmurou ele com a voz estranhamente hesitante, — viu o que aconteceu aos outros?

        Bati com a cabeça.

        — Roberto e Eduardo? Poderiam estar ainda nas montanhas? Os corpos deles não foram encontrados.

        — Morreram, señor, — disse eu, olhando para o lado para não ver a dor nos seus olhos. — Eu os vi morrer.

        — Foi... foi rápido?

        — Foi, sim, Excelência. E morreram como homens em combate, não como meninos. Eu mesmo vi Roberto matar dois.

        Ele explodiu de repente.

        — Maldito Gutiérrez!

        — O coronel? — perguntei.

        — Sim, Gutiérrez, o carniceiro de Bandaya! O miserável sabia da rendição do governo e do armistício antes de subir para as montanhas!

        — Armistício, Excelência?

        — Sim, soldadito, uma trégua. Toda a luta foi suspensa enquanto se discutia a rendição.

        Voltou-se e foi até a janela, falando de costas para mim.

        — A guerra já havia acabado quando ele atacou o esconderijo.

        Fechei os olhos. Tudo tinha sido à toa. Todos haviam morrido sem necessidade. E meu avô também. Tudo por culpa do coronel. Senti o ódio crescer violentamente dentro de mim.

        Ouvi alguém à porta e voltei a cabeça. Gato Gordo me trazia a comida numa bandeja. Ainda tinha no braço o curativo do ferimento que eu lhe fizera com a faca.

        — Vejo que já está acordado, meu galinho de briga, — disse ele.

        Nisso, a voz do general explodiu.

        — Que aconteceu ao vigia? Por que os outros não foram avisados a tempo de fugir? Que foi que houve?

        Gato Gordo ficou de repente muito pálido, e sua testa se cobriu de suor. Havia nos seus olhos um medo que eu nunca havia visto, nem mesmo quando enfrentáramos a morte juntos.

        Tornei a fechar os olhos. Eu sabia o que havia acontecido e por quê. Gato Gordo havia abandonado o seu posto. Mas eu não era mais uma criança. Sabia que uma morte a mais não iria fazer ressuscitar os que já estavam mortos. E, se Gato Gordo estivesse no posto de vigia, teria sido apenas um cadáver a mais.

        Abri os olhos e disse ao general:

        — Não sei, Excelência. Acordei quando ouvi os primeiros tiros. Logo que vi que a casa estava se incendiando, sai pela janela e fui esconder-me na vala. Lá encontrei Amparo. Peguei a mão dela e fugimos.

        — Fez muito bem disse ele, tocando-me na mão com extremo carinho. — Meus filhos morreram, mas o espirito e a coragem deles continuam vivos em você. Hei de considerá-lo sempre como meu filho.

        Notei com surpresa que havia um principio de lágrimas naqueles olhos cinzentos. Mas o general não podia estar chorando. Ele mesmo me dissera que os homens não choram.

        — Obrigado, Excelência.

        Ele levantou o corpo, encaminhou-se para a porta e disse:

        — Vou deixá-lo almoçar.

        — Amparo como está? — perguntei-lhe.

        Ele sorriu.

        — Já está boa. Não sente mais nada. Vou levá-la para Curatu comigo. Fique bom logo e vá ficar conosco.

        Os seus passos se afastaram pelo corredor, e eu me virei para Gato Gordo, que ainda estava pálido, mas sorridente.

        — Você me devolveu a minha camisa disse ele.

        — O que lhe dei foi a sua cabeça! — exclamei, cheio de raiva. Empurrei a bandeja. — Pode levar isso que não estou com fome!

        Ele deixou o quarto em silêncio, e eu olhei pela janela. Mas não vi o sol, nem o céu azul, e não ouvi o canto dos pássaros. Só via o coronel e só ouvia a sua detestada voz. O ódio me dominou de novo, deixando-me um gosto amargo na boca. Se ele ainda estava vivo, eu iria um dia procurá-lo e matá-lo.

        Poucas semanas depois, estava em Curatu. Meu pai havia encontrado uma casa no alto de um morro sobre o mar, não muito longe da casa onde os pais dele tinham vivido. Logo depois, fui matriculado no colégio dos jesuítas onde ele havia estudado, e o mesmo monseñor que fora seu professor estava comentando as minhas falhas como estudante.

        Voltei a prestar atenção ao que ele dizia.

        — Há promessa em você, — dizia ele, — mas tem de esforçar-se muito para alcançar uma posição em que possa ser um orgulho para seu pai.

        — Está bem, monseñor. Vou esforçar-me.

        — Bueno, — disse ele, sorrindo. — Vá em paz, meu filho.

        — Gracias, monseñor.

        Sai da salinha que lhe servia de gabinete e corri para o portão. Gato Gordo se destacou do meio das suas admiradoras.

        — O carro está esperando, excelencito.

        Desde que saíramos de Estanza, ele não me chamara mais pelo nome. Era só excelencito. Eu não podia ir a lugar algum nem fazer o que fosse, sem ele estar perto. Uma vez ele me disse que o general e meu pai tinham-no designado para ser meu guarda-costas. Ora, eu não precisava de guarda-costas. Podia cuidar de mim mesmo. Mas isso não havia adiantado nada. Gato Gordo estava sempre ao meu lado.

        Olhei para a limusine Hudson preta com o chofer fardado e entreguei os livros a Gato Gordo.

        — Não quero ir de carro. Estou com vontade de andar um pouco.

        Virei-me e comecei a descer a ladeira que ia para a cidade. Um instante depois, ouvi o barulho do motor. Olhei para trás: O carro vinha em marcha lenta atrás de mim, com o chofer e Gato Gordo sentados no banco da frente. Sorri. Nisso ao menos Gato Gordo não havia mudado. Preferia em qualquer hipótese não andar a pé.

        Sentei-me depois numa pilha de tábuas no cais do porto e fiquei olhando a descarga de um navio. Ouvi os marinheiros insultando os estivadores em francês e estes responderam em espanhol. Meu professor de francês ficaria surpreso com os meus conhecimentos se me ouvisse dizer algumas das obscenidades que eles proferiam.

        Olhei para a bandeira azul, branca e vermelha, pendente do mastro. O vento desfraldava-a orgulhosamente. Corri os olhos pelo cais. Havia mais dois navios atracados. Um tinha a bandeira do Panamá e o outro era grego.

        Tinham-me dito que antes da revolução nunca havia menos de vinte navios no porto, na maioria ingleses e norte-americanos. Mas os Estados Unidos e a Inglaterra haviam proibido os nossos portos aos seus navios. Meu pai dizia que era porque tinham aliança com o governo anterior e ainda não haviam reconhecido o novo governo. Fiquei sem compreender por que isso tinha de ser assim, enquanto as nossas bananas apodreciam nos cais, canaviais inteiros eram queimados e o café era atacado pelos bichos nos armazéns.

        Ouvi passos atrás de mim e voltei-me. Dois garotos vinham na minha direção. Estavam com as roupas esfarrapadas e sujas que pareciam ser uma espécie de uniforme naquela parte da cidade. Pararam diante de mim, e um deles tirou o boné e me falou respeitosamente:

        — Alguns centavos para matar a fome, Excelência?

        Fiquei embaraçado. Não tinha dinheiro. Não precisava de dinheiro. Sempre que queria alguma coisa, Gato Gordo a comprava para mim.

        — Não tenho dinheiro, — disse rispidamente, para dissimular a minha confusão.

        — Um centavo chega, señor. Pelo amor de Deus.

        Desci das tábuas e disse:

        — Desculpem, mas não tenho nem um centavo comigo.

        Os dois trocaram olhares incrédulos. Senti-me mal. Não eram muito mais velhos do que eu, mas me haviam tratado de uma maneira subserviente, quase vergonhosa. Estavam bem à minha frente, na estreita passagem entre os montes de tábuas, e eu não tinha por onde passar.

        — Com licença, — disse eu.

        Vi as caras deles se fecharem. Não se moveram.

        — Que é que vocês querem? Já disse que não tenho dinheiro!

        Ficaram calados.

        — Deixem-me passar! — exclamei, começando a ficar zangado. Não sabiam aqueles idiotas que se eu tivesse dinheiro já lhes teria dado?

        — Ele quer passar, — disse zombeteiramente o maior deles. O menor sorriu e me arremedou numa voz de falsete.

        Para mim não era preciso mais nada. A raiva me subiu pela cabeça. Um momento depois, o menor era atirado dentro da água e o maior deu um grito quando meu pontapé o atingiu nos cojones. Caiu de joelhos, com as mãos nas virilhas, rolou pelo chão do cais com a dor e, quando eu o empurrei com o pé, caiu também dentro da água.

        Estava olhando para eles quando ouvi passos atrás de mim.

        — Que foi que houve? — perguntou Gato Gordo.

        — Não queriam me deixar passar.

        — Campesinos! — exclamou Gato Gordo, cuspindo para eles dentro da água.

        Voltei para a limusine preta que nos esperava fora do portão das docas. Perguntei a Gato Gordo antes de entrar no carro:

        — Por que é que estão pedindo esmola?

        — Quem?

        — Aqueles dois, — disse eu, mostrando os dois garotos que estavam saindo da água.

        — Mendigos há sempre, — disse Gato Gordo, encolhendo os ombros.

        — Disseram que estavam com fome.

        — Há sempre quem tenha fome.

        — Mas por quê? Não disseram que para isso é que estavam fazendo a revolução, para acabar com isso?

        Gato Gordo me olhou com um brilho estranho nos olhos.

        — Já tomei parte em três revoluções, sabe? Ainda não vi nenhuma que enchesse a barriga dos campesinos. Quem é campesino nasce para passar fome.

        — Por que foi então que brigamos?

        Gato Gordo sorriu.

        — Para que não ficássemos como eles e tivéssemos de pedir esmola para comer.

        Olhei-o por um momento, e então, tirei o pé do estribo da limusine.

        — Tem algum trocado ai, Gato Gordo?

        Estendi a mão, e ele deixou cair nela algumas moedas. Voltei para o cais. Os dois garotos me olharam, desconfiados, manifestamente com medo, mas o menor cuspiu nos meus pés.

        — Campesinos!

        Joguei-lhes as moedas e, dando-lhes as costas, afastei-me.

 

        O palácio presidencial ficava no centro da cidade. Ocupava dois quarteirões e era cercado por um muro de tijolos e cimento de mais de cinco metros de altura, que realmente separava das ruas o edifício do palácio. Só havia duas entradas, uma do lado norte, voltada para as montanhas, e outra no sul; de frente para o mar. Era uma verdadeira fortaleza. Havia sempre guardas em quantidade nos dois portões e sentinelas patrulhavam à noite os altos muros.

        Em virtude de um decreto de um dos presidentes anteriores, em quem haviam atirado de um edifício próximo quando ele passava pelos jardins da residência para o salão de despachos, todos os edifícios situados nos dois quarteirões em torno do palácio tinham sido demolidos. Não havia assim quaisquer janelas de onde se avistasse o interior da fortaleza presidencial. Mas isso não impedira que aquele mesmo presidente fosse assassinado. Depois de vários meses de humilhação com o fato de ele andar em público com a amante, a mulher o havia assassinado.

        Os soldados do Portão Sul ficaram em posição de sentido quando a limusine preta passou. Olhei-os displicentemente de dentro do carro. Este virou para a direita e tomou o caminho da Residência, um edifício branco de pedra no canto sudeste. Quando a limusine parou em frente e eu saltei, os soldados ali postados me olharam sem curiosidade porque já sabiam da minha visita semanal a Amparo.

        O apartamento de Amparo ficava na ala direita. A esquerda era do pai dela. No centro, ficavam as salas de audiência. Fui levado para a grande sala do canto do seu apartamento. Como sempre, tive de esperar. A Princesa, como agora a chamavam, estava sempre atrasada.

        Estava olhando pela janela, quando ela chegou em companhia da dueña. Estava com um elegante vestido branco, e os cabelos louros lhe caiam pelos ombros. Estendeu-me a mão imperiosamente.

        Beijei-a, de acordo com o costume.

        — Amparo, — disse eu muito sério.

        — Dax! — exclamou ela, sorrindo. — Gostei muito de ter vindo.

        Dizíamos as mesmas coisas todas as semanas e ficávamos à espera das palavras habituais da dueña. Vieram na hora exata.

        — Bem, vou deixar vocês dois à vontade, crianças.

        Esperamos a velha sair e fechar a porta e olhamo-nos, sorrindo. Corremos logo para a janela, a fim de olhar.

        A dueña estava saindo de fato pela porta do lado. Gato Gordo esperava ali, de quepe na mão, e os dois se dirigiram juntos para o pequeno apartamento da dueña, no edifício dos empregados.

        — Ela espera todas as semanas pela sua visita, — disse Amparo, rindo.

        — Pela minha, não.

        — Vamos olhá-los? — disse ela, rindo ainda.

        Sacudi a cabeça. Não tinha vontade naquele dia. Corríamos às vezes para o quarto de Amparo, de onde, por uma janela, podíamos ver o quarto da dueña. Era enfadonho. Faziam sempre a mesma coisa. Eu não sabia como Gato Gordo não ficava enjoado como nós ficávamos só de olhá-los.

        — Que é que você quer fazer então?

        — Não sei, Amparo.

        — Você hoje não está nada divertido, sabe?

        Olhei-a. Amparo aos nove anos era uma menina ainda mais bonita de cada vez que eu a via. E tinha plena consciência disso. Mas vivia muito sozinha. Não podia afastar-se um só instante dos muros do palácio, nem mesmo para ir à escola. Os professores iam dar-lhe aula em casa.

        Todas as tardes, outras crianças rigorosamente selecionadas tinham permissão para visitá-la. As duas filhas do Sr. Moncada, que estavam estudando num colégio particular em Curatu, apareciam uma vez por semana. Outras filhas de aristócratas e políticos locais tinham também a sua vez. Uma vez por mês, havia uma festa, a que todos compareciam.

        Fora daí, Amparo vivia num mundo povoado inteiramente por adultos. Havia ocasiões em que eu sentia que ela era mais velha do que eu. Sabia muito mais sobre tudo o que acontecia no mundo. Contava-me sempre boatos maliciosos sobre as pessoas.

        Foi sentar-se no sofá junto de mim.

        — Que foi que o Monsenhor lhe disse?

        — Como soube que ele me mandou chamar? — perguntei, surpreso.

        — A dueña me disse, — respondeu ela, rindo. — Ela disse que, se não fosse seu pai, você teria sido expulso da escola.

        — Onde foi que ela ouviu isso?

        — Foi um dos ajudantes de Papá que disse. Papá quer sempre saber do seu boletim escolar.

        O presidente devia ter coisas mais importantes em que pensar do que nas minhas notas na escola. Por que aquele interesse por mim?

        — Papá pensa muito em você. Diz que, se meus irmãos não tivessem morrido, seriam como você. Às vezes, gostaria de ter nascido homem. Assim, papai não ficaria tão triste.

        — Ele prefere ter você a qualquer dos outros, Amparo.

        — Acha mesmo?

        — É claro.

        — Vou ser muito esperta, sabe? Vou ser capaz de fazer tanto quanto qualquer homem.

        — Tenho certeza disso.

        Era sempre mais cômodo concordar com Amparo. Era a melhor maneira de evitar discussões.

        — Quando é que você vai para Paris?

        — Paris? — perguntei, realmente surpreso.

        — Você vai para Paris, — disse ela, positivamente. — Ouvi meu pai dizer. Seu pai vai para lá numa missão comercial. Os Estados Unidos e a Inglaterra não querem mandar os seus navios para fazer comerciar conosco. Temos de achar novos mercados para os nossos produtos, senão estaremos perdidos. A França parece o mais lógico.

        — Meu pai pode ir e não me levar.

        — Não. Ele vai passar alguns anos lá. Ouvi Papá dizer que tomará providências para você cursar uma boa escola lá.

        — É engraçado eu não ter sabido de nada.

        — Isso só ficou resolvido hoje de manhã. Ouvi tudo o que os dois discutiram na mesa do café.

        Pensei no cargueiro francês que vira nas docas. Talvez viajássemos nele. Fui até a janela e olhei para o porto. Não vi o navio no cais. Com certeza, já havia partido.

        Amparo veio para junto de mim.

        — Vamos dar um passeio lá fora?

        — Se você quiser.

        Descemos pela sua porta particular, que dava para um jardinzinho. Quando saímos, dois soldados começaram a andar a alguma distância atrás de nós. Passamos um portão de ferro e nos dirigimos para o edifício da administración. Soldados fizeram continência quando passamos.

        Um carro havia parado em frente do "pequeno palácio", como era chamada a casa dos hóspedes. Um homem saltou do carro e entrou apressadamente no edifício. Não pude ver-lhe o rosto.

        — Quem é?

        Amparo encolheu os ombros.

        — Já o tenho visto várias vezes. Creio que é o procurador de La Cora.

        Eu sabia quem era La Cora. Era a mais recente numa série de moradoras do pequeno palácio. O Presidente gostava de ter tudo ao seu alcance.

        — Não creio que ainda tenha de vê-lo muitas vezes, — disse Amparo.

        — Por quê?

        — Acho que Papá já está ficando enjoado de La Cora. Nesta semana, ele jantou comigo quase todas as noites.

        Havia uma nota maliciosa de triunfo em sua voz.

        É claro que eu sabia das mulheres que haviam passado pelo pequeno palácio. Cada qual ficava ali seis semanas em média e depois desaparecia. O presidente era um homem de gosto muito variável. La Cora havia demorado na Residência mais do que a maioria. Já estava ali havia quase dois meses.

        — Como é ela?

        — Não é muito bonita, — disse Amparo desdenhosamente.

        — Ouvi dizer que é.

        — Mas não acho. Tem seios enormes. Assim, veja.

        E estendeu os braços arqueados quase meio metro à frente.

        — Eu gosto de um busto grande.

        Ela se olhou. Os seus seios mal estavam começando a formar-se.

        — Pois eu terei busto grande, maior do que o dela.

        — Tenho certeza disso, — murmurei, para não discutir.

        — Você gostaria de ver La Cora?

        — Acho que sim.

        Amparo virou-se e dirigiu-se para a entrada do pequeno palácio. O soldado de serviço fez continência e abriu a porta. Entramos na casa, e um mordomo veio receber-nos.

        Amparo olhou-o arrogantemente e disse:

        — Quero ver La Cora.

        O homem hesitou. Era evidente que não sabia o que fazer. Mas Amparo estava habituada a ser obedecida.

        — Deve saber que não gosto de esperar!

        — Pois não, Princesa, — disse o mordomo com uma mesura. — Quer ter a gentileza de acompanhar-me?

        Levou-nos para um apartamento da ala esquerda do edifício e parou à porta. Ouvia-se lá dentro um leve rumor de vozes. O mordomo bateu.

        As vozes se calaram. Um momento depois, uma mulher perguntou:

        — Quem é?

        — La Princesa está aqui.

        — La Princesa?

        — Si, señorita. Quer vê-la.

        Houve de novo um rumor de vozes e a porta se abriu. Uma mulher alta de grandes olhos negros e cabelos pretos presos num coque, apareceu. Olhou para Amparo e deu um passo atrás.

        — É uma honra para mim, Princesa.

        Amparo entrou no apartamento como se este lhe pertencesse.

        — Pensei que seria bom tomarmos chá juntas.

        A mulher olhou de relance para um homem que estava à janela. Vi-o fazer um sinal indiferente. Seu rosto era magro e estava coberto por cerrada barba. Os olhos eram muito escuros e brilhantes.

        — Será um prazer para mim, Princesa, — disse La Cora, e bateu palmas. O mordomo chegou à porta. — Chá, sim, Juan?

        Amparo disse:

        — Gostaria de lhe apresentar meu amigo, Diógenes Alejandro Xenos.

        La Cora cumprimentou-me de cabeça, e eu fiz uma reverência.

        — Muito prazer, señorita.

        — Posso apresentar-lhe o meu procurador, señor Guardas?

        O homem cumprimentou, batendo os calcanhares à maneira militar.

        — A su servicio. — Olhou em seguida para La Cora. — Espero que possa convencer Sua Excelência a comparecer. Preparei tudo especialmente para esta noite.

        — Ele comparecerá.

        O Sr. Guardas dirigiu-se para a porta.

        — Peço licença para retirar-me. Tenho uns assuntos urgentes para resolver.

        Amparo bateu com a cabeça e ele tornou a fazer uma reverência e saiu. Fiquei certo de que aquele homem já havia sido militar. Mostrava-o na sua postura, e até na cadência do passo.

        La Cora apertou mais o peignoir em torno do corpo e levou a mão aos cabelos.

        — Se tivesse sabido da sua visita, Princesa, me teria preparado. Pode conceder-me um momento para vestir alguma coisa mais apropriada?

        — Sem dúvida.

        Amparo voltou-se para mim logo que La Cora saiu da sala.

        — O busto é bem grande, não é?

        Ouvi de repente uma voz pela janela aberta. Fui até a janela e olhei. Não pude ver quem estava falando, pois a pessoa estava bem abaixo da janela e escondida das minhas vistas. Mas a voz me parecia estranhamente conhecida.

        — La bomba deve ser colocada na mesa exatamente à meia- noite!

        — É o que será feito, Excelência, — respondeu alguém.

        — Não se esqueça. Não quero falhas!

        Houve um momento de silêncio e então dois homens apareceram. Um era o mordomo; o outro, o señor Guardas. O mordomo levantou a mão como que em continência, e o Sr. Guardas saiu. Não era de admirar que a voz me parecesse conhecida. Ouvira-a momentos antes.

        Amparo estava se olhando ao espelho e me perguntou:

        — Você acha que meu busto vai ficar tão grande quanto o de La Cora?

        — Acho que sim, — respondi secamente.

        Ela viu o meu rosto pelo espelho e perguntou:

        — Que é que o está preocupando?

        — A festa desta noite deve ser bem grande, Amparo. Vai haver até fogos de artificio na mesa.

        — Como foi que soube disso?

        — Soube agora mesmo. Ouvi o procurador de La Cora dar instruções ao mordomo. Quer que a bomba seja colocada na mesa exatamente à meia-noite. Que espécie de festa será essa?

        A voz de La Cora fez-se ouvir da porta.

        — É uma festinha que vamos oferecer ao presidente e a alguns dos seus ministros e auxiliares para comemorar o seu segundo aniversário como nosso chefe e benfeitor.

        — Ah! Essa deve ser a razão para la bomba à meia-noite.

        La Cora riu.

        — Diz isso de uma maneira que até parece haver alguma coisa de sinistro. É uma bomba, sim, mas feita de sorvete.

        — É uma ideia muito interessante, — disse eu. — La bomba de helado.

        La Cora olhou para Amparo.

        — Bem sabe como seu pai gosta de sorvete.

        Nesse momento, o mordomo entrou com a bandeja do chá.

        — Mudei de ideia, — disse Amparo de repente. — Lembrei-me de que tenho de estar agora mesmo na Residência. Vem comigo, Dax?

        Olhei para La Cora como se pedisse desculpas e sai para acompanhar Amparo, que já ia desaparecendo no corredor. Alcancei-a antes que ela chegasse à porta da frente.

        — Por que está tão zangada? — perguntei, abrindo-lhe a porta.

        — Odeio essa mulher!

        Os dois soldados voltaram a seguir-nos quando nos encaminhamos para a Residência.

        — Por quê? Que foi que ela lhe fez?

        Ela me olhou friamente.

        — Não nega que é um homem como os outros. Não vê nada senão peitos grandes.

        — Não é verdade.

        — Claro que é. Vi como você a estava comendo com os olhos.

        — Que é que você queria que eu fizesse? Não havia muito mais o que olhar.

        Amparo parou perto da sua porta particular.

        — Você nunca me olhou assim!

        — Mas prometo que vou olhar quando você crescer.

        — Se fosse um cavalheiro, você me olharia assim desde já!

        Olhei-a e, mesmo sem querer, tive de rir.

        — Está rindo de quê?

        — Mas se não há nada para olhar!

        Vi a mão dela levantar-se e segurei-a antes que me atingisse o rosto.

        — Por que isso, Amparo?

        — Odeio você — disse ela, com os olhos fuzilantes. — Fique sabendo que nunca mais em minha vida quero botar os olhos em você!

        Encolhi os ombros e sai pelo jardim.

        — Dax!

        — Que é?

        Ela estendeu as mãos.

        — Você não me deu um beijo de despedida.

 

        Senti que me sacudiam os ombros. Virei o corpo para o lado e tornei a enfiar-me nas cobertas, quentes e macias. Não queria ir para a escola. Podia até alegar que estava doente.

        — Acorde, Dax! — disse a voz aflita e urgente de Gato Gordo.

        O meu subconsciente registrou aquele tom de voz. Eu já o ouvira antes. Na selva, nas montanhas. Significava perigo. Sentei-me na cama, já bem acordado.

        — Que é?

        — Seu pai quer vê-lo agora mesmo!

        Olhei para as janelas. Estava tudo escuro ainda.

        — Agora?

        — Imediatamente!

        Sai da cama e vesti-me. Olhei para o relógio. Duas horas da madrugada. Senti um frio tremor envolver-me. Acabei de vestir-me, trêmulo.

        — Ele foi ferido! Está morrendo!

        Gato Gordo conservou-se carrancudo e em silêncio.

        Olhei-o quando ele me deu o paletó.

        — La bomba!

        Vi-lhe a surpresa estampada no rosto. Falei antes dele.

        — La bomba de helado! Asesinato!

        Ele se benzeu.

        — Já sabia?

        Segurei-lhe as mãos.

        — Meu pai está vivo? Diga!

        — Está vivo, sim. Mas temos de andar depressa!

        O chofer já estava ao volante da grande Hudson preta com o motor ligado. Entramos em silêncio, e ele partiu imediatamente para o palácio presidencial. Os guardas nos deixaram passar sem a exigência habitual de identificação.

        Saltei do carro e entrei antes mesmo que Gato Gordo se levantasse. O vestíbulo estava cheio de gente. Vi o presidente sentado numa cadeira a um canto. Estava nu da cintura para cima, e um médico lhe prendia ataduras na parte superior do peito. O rosto dele estava pálido e abatido quando se voltou para mim.

        — Onde está meu pai?

        Ele fez um gesto na direção do apartamento de La Cora.

        — No quarto.

        Sem dizer mais nada, corri para o apartamento. Na sala onde Amparo e eu tínhamos estado naquela tarde havia caliça e poeira por toda parte. Metade da parede dos fundos havia ruído. Corri pelo que restava da porta, para a sala de jantar. Todas as janelas e portas tinham sido arrancadas. As mesas e cadeiras estavam em pedaços. Os corpos de dois homens estavam estendidos no chão, mas não perdi tempo em olhar para eles.

        Passei por outra porta e cheguei a um pequeno vestíbulo. Havia do outro lado uma porta fechada, diante da qual dois soldados montavam guarda. Um deles abriu a porta quando me viu.

        Parei logo que entrei. Havia dois padres lá dentro. Um altar portátil tinha sido instalado aos pés da cama, e a luz da vela estendia uma sombra vacilante sobre o crucifixo na parede. Um dos padres estava ajoelhado diante do altar. O outro, curvado sobre a cama, levantava um crucifixo sobre a cabeça de meu pai. Do outro lado da cama, estava um médico com uma seringa de injeção na mão.

        Senti de repente as pernas muito fracas. Tropecei ao entrar no quarto e tive de apoiar-me numa cadeira para não cair.

        — Papá!

        Corri então para junto da cama, com as lágrimas a correr-me pelo rosto. Papai estava cor de cinza, e eu lhe senti o suor frio no rosto quando o beijei. Ele não se moveu.

        Olhei para o médico.

        — Morreu!

        O médico sacudiu a cabeça.

        — Não minta! Sei que ele morreu!

        Coloquei as mãos sob os ombros de meu pai a fim de levantá-lo. Ele gemeu, e eu tirei as mãos como se as tivesse queimado. Havia um espaço vazio do lado esquerdo. Olhei para o médico.

        — Onde está o braço dele?

        — Foi arrancado por uma explosão, — disse o médico.

        Pressenti um brilho sobre a minha cabeça e olhei. O dossel da cama era todo feito de espelhos, que refletiam tudo o que se passava na cama. Corri os olhos pelo quarto. Tudo eram veludos vermelhos e dourados. Nas paredes, grandes quadros com mulheres nuas. E em cada canto do quarto havia estátuas de pares em posições obscenas.

        Meu pai gemeu de novo. Olhei para ele. A fronte estava cheia de suor. O médico enxugou-lhe o suor com um lenço. Levantei-me lentamente e disse:

        — Levem-no daqui!

        — Não, — disse o médico. — É muito perigoso removê-lo!

        — Pouco me importa! Tirem-no daqui! Não quero que ele morra neste quarto de prostituta!

        Senti a mão do padre nos meus ombros.

        — Meu filho.

        Desvencilhei-me dele.

        — Quero meu pai fora daqui! A cama de uma puta não é lugar para um homem morrer!

        O médico principiou a falar, mas calou-se quando uma voz se fez ouvir atrás de mim. Era o presidente. Estava à porta, com as ataduras passadas pelo peito nu.

        — É o filho dele, — disse o presidente. — Façam o que o rapaz está mandando.

        — Mas... protestou o médico.

        — Ele será levado com cama e tudo para o meu quarto na Residência!

        A palavra do presidente era categórica e definitiva. Fez um gesto para os soldados que estavam no corredor atrás dele. Cobriram Papá com mais colchas. Foram precisos dez homens para levantar a pesada cama e carregarem-na até a Residência. Gato Gordo e eu seguimos a cama em silêncio, e só depois que vi meu pai no quarto do presidente foi que me voltei para o padre que viera conosco do apartamento de La Cora.

        — Agora, padre, vou rezar!

        A débil luz da madrugada estava entrando no quarto quando o presidente abriu a porta uma hora depois. Aproximou-se da cama e olhou para meu pai, enquanto eu o olhava em silêncio. Seu rosto não traduzia emoção alguma.

        Depois, voltou-se para mim.

        — Vamos, soldadito. Está na hora do café.

        Sacudi a cabeça.

        — Pode deixá-lo. Está fora de perigo.

        Olhei-o bem nos olhos.

        — Não iria mentir para você. Está fora de perigo.

        Acreditei no presidente. Ele me botou a mão no ombro quando saiamos do quarto. Olhei da porta. Meu pai parecia estar dormindo. Podia ver os cobertores arfarem ao movimento calmo da sua respiração.

        Descemos. Senti o cheiro de comida quente e fiquei de repente com fome. Sentei-me à mesa, e um empregado colocou diante de mim um prato de presunto com ovos. Comecei a comer sofregamente.

        O presidente sentou-se à cabeceira da mesa, e outro empregado levou-lhe uma xicara de café bem quente. Estava com uma camisa folgada, de modo que eu não podia ver se seu peito ainda estava com ataduras, mas seu braço se movia com dificuldade quando ele levantou a xicara.

        — Sente-se melhor agora? — perguntou ele, quando acabei de comer.

        Fiz com a cabeça um sinal afirmativo. Um empregado me deu uma xicara de café com leite. Estava quente e bom. Quando acabei, perguntei:

        — Que aconteceu a La Cora?

        Os olhos do presidente flamejaram.

        — La puta! Fugiu!

        — Como assim?

        — Saiu da sala no momento em que o sorvete foi colocado em cima da mesa. Disse que estava muito abafado lá dentro e que ia tomar um pouco de ar, mas saiu imediatamente do palácio num carro preto. Ela e outro homem, um homem de barba, no banco de trás. O mordomo estava dirigindo. Mas nós a encontraremos, e então...

        — Os guardas não fizeram parar o carro?

        — Não, e já pagaram pela sua negligência.

        — A bomba estava no sorvete?

        — Como sabia? — perguntou ele, surpreso.

        Falei-lhe da conversa que tinha ouvido, na véspera, da janela do apartamento de La Cora. Ele me ouviu em silêncio. Quando acabei, bateram na porta. O presidente fez um sinal a um empregado, que foi abrir a porta.

        Um capitão do exército entrou e fez continência.

        — Encontramos La Cora e o mordomo, Excelência.

        — Bueno, — disse o presidente, levantando-se. — Quero interrogá-los pessoalmente.

        — Mas já estão mortos, Presidente!

        — Eu disse que os queria vivos!

        — Quando os encontramos, já estavam mortos. Estavam no carro preto em que fugiram. Levaram vários tiros, e ainda por cima estavam ambos com o pescoço cortado.

        — Onde encontraram o carro?

        — En la Calle de Paredos, Presidente.

        Eu conhecia a rua. Descia das montanhas para as docas.

        — Em que parte?

        — Perto do porto.

        — E o homem de barba?

        — Nem sinal dele. Procuramos por ali tudo, vasculhamos até as docas. Havia desaparecido.

        O presidente ficou um momento em silêncio e então disse:

        — Obrigado, capitão.

        Virou-se então para mim,

        — Agora, você deve ir descansar. Mandei preparar um quarto de hóspedes para você. Ficará conosco até seu pai restabelecer-se por completo.

        Tive um sono inquieto, entrecortado de sonhos agitados. Num deles, eu estava de novo no pátio da fazenda de meu avô, O sol estava muito quente, e eu ouvi uma voz bem conhecida dizer-me que só havia uma bala no revólver e que eu tinha de matar meu avô.

        Nesse momento, acordei com os olhos arregalados. Sabia afinal onde tinha ouvido aquela voz. O procurador de La Cora, Sr. Guardas, o homem de barba, era o coronel Gutiérrez.

        Pulei da cama e vesti-me às pressas. Não sabia como, mas daquela vez eu o encontraria. Dessa vez, ele não fugiria. Porque eu ia matá-lo.

 

        Gato Gordo veio atrás de mim quando sai do quarto. Desci o corredor e abri a porta do quarto de meu pai.

        — Como está ele?

        — Ainda está dormindo, — respondeu-me o médico.

        Continuei pelo corredor em direção à escada. Amparo estava subindo quando comecei a descer. Ela me fez parar, e, pelo menos daquela vez, não se fazia de princesa.

        — Como vai seu pai, Dax?

        — Está bem. Está dormindo.

        — Foi bom você ter acordado. Venha almoçar comigo.

        — Não posso, — disse eu, continuando a descer a escada. — Tenho muito o que fazer!

        Cheguei à porta da frente e fiz sinal para o carro.

        — Onde é que vamos? — perguntou Gato Gordo.

        — As docas.

        Não esperei que ele abrisse a porta. Entrei de um salto, e ele se acomodou no banco da frente.

        — Que é que vamos fazer, Dax?

        — Vamos procurar o homem de barba que fugiu.

        — Como vai conseguir isso? A polícia e o exército já vasculharam toda a cidade e não acharam nem sombra dele.

        Encolhi os ombros e fiz o carro ir até o ponto onde eu tinha estado na véspera. Os mesmos garotos estavam ali, pescando no cais.

        — Campesinos!

        Eles se voltaram de cara fechada. Entreolharam-se e voltaram a concentrar-se na sua pesca.

        — Campesinos! — continuei. — Vocês me pediram ontem alguns centavos. Trouxe hoje cem pesos para vocês!

        Não desviaram dessa vez o olhar, mas era evidente que não acreditavam em mim.

        — Venham cá. Não quero fazer nenhum mal a vocês.

        Hesitaram um momento. Depois, largaram os caniços e se aproximaram. O mais velho tirou o boné.

        — Que deseja de nós, Excelência?

        — Quero que me descubram um homem. — Fiz-lhes uma breve descrição do procurador de La Cora, com barba e tudo. — Ele esteve por aqui ontem à noite. Quero saber onde está agora.

        Olharam um para o outro.

        — Um homem assim é muito difícil de achar, Excelência.

        — Mais difícil de achar do que cem pesos?

        — A policia já esteve procurando esse homem e não encontrou — disse o maior.

        — E a policia ofereceu cem pesos pela informação? — perguntei, fazendo menção de voltar para o carro.

        — Não queremos encrenca com as autoridades, Excelência.

        — Não haverá encrenca.

        — Bem, vamos ver o que podemos descobrir.

        — Bueno, voltarei dentro de duas horas. Se me trouxerem a informação, ganharão cem pesos.

        Voltei para o carro, Gato Gordo me olhou com um curioso respeito no olhar.

        — Acha que eles vão descobrir alguma coisa?

        — Se estão com tanta fome como dizem, vão descobrir. Agora, vamos voltar para casa que eu tenho de pegar dinheiro.

        Fui diretamente ao escritório de meu pai. Sabia onde ele guardava a pequena caixa de ferro — na última gaveta da mesa. A chave ficava na gaveta do outro lado. Abri a caixa e tirei cem pesos. Depois, como estava com fome, fui à cozinha e pedi à cozinheira que me preparasse alguma coisa para comer.

        Às quatro e meia da tarde, saltei do carro nas docas em companhia de Gato Gordo.

        — Não disse que eles não iriam descobrir nada? — perguntou Gato Gordo. — Veja! Nem estão aqui!

        — Mas virão.

        Voltamos para o carro e ficamos esperando. Chegaram quase vinte minutos depois. Apareceram num beco do outro lado da rua, fizeram sinais para mim, assobiaram e desapareceram. Atravessei a rua seguido de Gato Gordo e entrei no beco, onde não podíamos ser vistos da rua.

        — Trouxe o dinheiro? — perguntou o mais velho.

        Tirei os cem pesos do bolso.

        — Trouxeram a informação?

        — Como podemos saber se você nos dará mesmo o dinheiro?

        — Como posso saber se me dirão a verdade depois de receberem o dinheiro?

        Entreolharam-se e encolheram os ombros.

        — Somos forçados a confiar uns nos outros.

        O mais velho fez um sinal afirmativo.

        — Às três horas da madrugada de hoje, um homem como o que procura embarcou num navio no armazém 7. É o que está com a bandeira do Panamá.

        — Se estão mentindo, vão se arrepender.

        — Não estamos mentindo, Excelência.

        Dei-lhes o dinheiro e sai do beco. No armazém 7, saltei do carro e vi o navio. Aproximei-me e comecei a subir a prancha. Mas o marinheiro de guarda no portaló nos barrou a passagem.

        — Vamos partir daqui a uma hora. Não pode haver mais visitas!

        — Vamos — disse eu a Gato Gordo, e desci a prancha.

        Nem esperei que o carro parasse. Sai correndo, afastei os guardas e entrei no gabinete do presidente. Ele levantou os olhos, surpreso. Havia vários homens com ele, mas não dei oportunidade a ninguém falar.

        — Sei onde está o coronel Gutiérrez!

        — Que tem Gutiérrez a ver com essa interrupção?

        — Ele é também o Sr. Guardas, o homem de barba que fugiu.

        O presidente não perdeu tempo. Pegou o telefone em cima da mesa.

        — Diga ao capitão Borja para preparar imediatamente um destacamento e levá-lo para a porta do edifício dos escritórios.

        Imediatamente!

        Voltou-se para mim.

        — Onde?

        — Num navio panamenho no armazém 7. Temos de ir depressa. Vão sair do porto daqui a menos de uma hora!

        O presidente se encaminhou para a porta.

        — Mas não podemos retardar a partida de um navio, presidente! — disse um dos homens que estavam na sala. — Será uma violação das convenções internacionais!

        O presidente voltou-se para ele, irritado.

        — As convenções internacionais que vão para o diabo! — Em seguida, sorriu. — Além disso, quem se atreveria a protestar contra a visita de um presidente?

        Colocou a mão em meu ombro e me levou pela porta com ele.

        O comandante do navio estava visivelmente aborrecido.

        — Peço a indulgência de Vossa Excelência. Se perdermos esta maré, sofreremos um atraso de meio dia, seguramente.

        Mas a voz do presidente era muito suave.

        — Tenho certeza de que o seu governo, que tanto admiro, ficaria muito mais inquieto do que o senhor, se me fosse recusada uma visita ao seu navio.

        — Mas, Excelência...

        A voz do presidente perdeu de repente a brandura.

        — Tenho de insistir, Capitán. Ou me deixa dar uma busca a bordo ou deterei o seu navio sob a acusação de ter abusado da nossa hospitalidade dando refúgio a um assassino, inimigo da Pátria!

        — Mas não temos passageiros, Excelência. Só temos os tripulantes que estão a bordo desde que saímos do nosso porto de registro há mais de quatro semanas!

        — Neste caso, mande a tripulação apresentar-se para a revista!

        O comandante hesitou.

        — Imediatamente!

        O comandante voltou-se para o primeiro-piloto.

        — Convoque todos os homens para o convés de vante!

        Um momento depois, a tripulação começou a reunir-se. Havia trinta e dois homens, que formaram duas fileiras no centro do convés.

        — Sentido!

        Os homens se perfilaram.

        — Estão todos os tripulantes aqui? — perguntou o presidente.

        — Si, Excelencia — respondeu o comandante.

        O presidente voltou-se para o Capitão Borja.

        — Vá com dois homens dar uma busca completa no navio. Certifique-se de que não há ninguém escondido em canto algum!

        O capitão fez continência e apressou-se em cumprir a ordem.

        Os outros soldados ficaram em posição de sentido, e o presidente voltou-se para mim.

        — Vamos olhar essas caras? Um barbado não será difícil de reconhecer.

        Mas não era fácil. Nenhum dos homens usava barba. Quando passávamos pela segunda vez por entre as filas, o capitão Borja reapareceu e disse que não havia mais ninguém a bordo.

        — Você o viu? — perguntou-me o presidente com voz preocupada.

        Sacudi a cabeça Mas os meus dois informantes não poderiam ter inventado aquilo. Não eram suficientemente espertos para tanto.

        O comandante do navio se aproximou, com um leve sorriso de satisfação.

        — Está satisfeito agora, Excelência?

        O presidente não respondeu. Olhou para mim, e eu exclamei:

        — Não! Ele está aqui! Não pode deixar de estar! Com certeza, raspou a barba!

        — Como é então vai reconhecê-lo?

        Fiz um sinal ao presidente para curvar-se e disse-lhe alguma coisa ao ouvido. Ele sorriu e voltou-se para o primeiro homem da fila:

        — Como se llama usted?

        — Diego Cárdenas, Excelência.

        O presidente passou para o homem ao lado.

        — Y usted?

        — José Maria Luna.

        Chegamos ao terceiro homem da fila. O presidente parou em frente de um homem vestido com as roupas sujas de mecânico. Tinha o rosto besuntado de óleo, e até os cabelos estavam sujos.

        — Como se llama usted?

        O homem hesitou, olhou para mim e disse com voz áspera:

        — Juan Rosario...

        O presidente já havia passado para o homem seguinte, mas eu me voltei.

        — Juan Rosario o quê?

        — Rosario y Guard...

        Interrompeu-se bruscamente e avançou para mim, com as mãos para o meu pescoço.

        — Bastardo negro! Duas vezes eu devia ter matado você! Mas desta vez vou matar...

        Enterrei as unhas nas mãos dele, tentando tirá-las do meu pescoço. Já sentia faltar-me o ar nos pulmões, e meus olhos começarem a esbugalhar-se. Então, Gato Gordo aproximou-se dele por trás e a pressão em meu pescoço cessou de súbito.

        Fiquei ali tentando recuperar o fôlego e olhei para o homem no convés. Ele sacudiu a cabeça, rolou o corpo e me olhou. Os olhos eram os mesmos. Frios, cruéis, implacáveis. Podia mudar a cor dos cabelos, raspar a barba, engrossar a voz, mas não podia modificar aqueles olhos. O único olhar que me lançou o havia denunciado.

        Abri o paletó e peguei a faca que trazia escondida no cinto. Segurei a lâmina e avancei para o pescoço dele como o faria para o pescoço de uma galinha, mas fui agarrado antes que pudesse chegar onde ele estava. Olhei para o presidente. A voz dele era calma, quase suave.

        — Não é preciso matá-lo. Você não está mais na selva.

 

        Dois meses depois, eu estava à amurada de outro navio que se afastava de terra. Olhei para o cais e vi Amparo, que me dava adeus.

        — Adiós, Amparo!

        Ela gritou alguma coisa, mas o barulho era muito, e eu não pude entender. O navio dirigiu-se lentamente para o canal. Quase não se podiam distinguir mais as pessoas no cais. Além, avistava-se a cidade e, depois, as montanhas verdes e lindas ao sol da tarde.

        Senti o braço de meu pai em meu ombro e olhei-o. Seu rosto estava magro, e ele ainda não se habituara à perda do braço, mas os olhos eram claros e tinham um brilho que não conhecia ainda.

        — Olhe bem, meu filho. Estamos a caminho de outro mundo.

        Eu via Gato Gordo pelo canto dos olhos. Meu pai continuou a falar e eu me voltei para a terra.

        — Vamos para um mundo velho, mas que será novo para nós ambos. Por isso, olhe bem, meu filho, e guarde bem na lembrança a cidade, as montanhas e as planícies da sua terra. Quando você voltar, não será mais um garoto! Será um homem!

 

                                         PODER e DINHEIRO

        O médico acabou de dar a injeção e puxou a agulha. Virou-se para o jovem que estava aos pés da cama e disse:

        — Isso o fará dormir, Dax, e lhe conservará as forças para a crise que pode vir esta noite.

        O rapaz nada disse imediatamente. Foi para o lado da cama e delicadamente enxugou o suor da fronte do pai.

        — De qualquer modo, ele morrerá, — disse ele calmamente e sem levantar os olhos.

        — Nunca se sabe, — disse o médico. — Seu pai já nos tem assustado em outras ocasiões. Tudo está nas mãos de Deus.

        Sentiu o impacto dos olhos castanhos do rapaz, que pareciam ler-lhe o fundo da alma.

        — Costuma-se dizer lá na selva, — disse Dax, — que para um homem entregar o seu destino nas mãos de Deus deve ser uma árvore. Só as árvores acreditam em Deus.

        A voz do rapaz era branda, e o médico ainda não pudera habituar-se àquele francês suave, atenuado, quase sem sotaque. Ainda se lembrava da luta que o rapaz tivera com a língua quando o conhecera sete anos antes.

        — Você não acredita?

        — Não. Já vi coisas tão terríveis que não me pode restar muita fé.

        Dax olhou de novo para o pai. Os olhos de Jaime Xenos estavam fechados. Parecia estar descansando. Mas havia uma palidez cinzenta sob a pele escura, e a respiração era pesada e difícil.

        — Vou chamar um padre para dar-lhe os últimos sacramentos, — disse o médico. — Prefere o contrário?

        Dax encolheu os ombros.

        — Não é o que eu prefiro que tem importância e, sim, aquilo em que meu pai acredita.

        O médico fechou a maleta.

        — Voltarei esta noite depois do jantar.

        Depois de um último olhar para o pai, Dax acompanhou o médico pelo corredor.

        Quando a porta do consulado se fechou depois do médico, Dax foi para o gabinete do pai. Gato Gordo e Marcel Campion, jovem secretário francês e tradutor de seu pai, olharam-no com uma pergunta. Dax sacudiu a cabeça em silêncio e foi até a mesa. Tirou um cigarrillo da caixa e acendeu-o.

        — Convém passar um telegrama ao presidente disse ele a Marcel. — "Pai à morte. Mande instruções."

        O secretário deixou imediatamente a sala. Pouco depois, ouviu-se atrás da porta fechada o bater de uma máquina de escrever.

        Gato Gordo exclamou, irritado:

        — Pelo sangue da Virgem! É assim que tudo acaba! E nesta terra fria dos diabos!

        Dax nada disse. Foi até a janela. A noite estava caindo e havia começado a chover. A chuva suavizava os sujos edifícios cinzentos da rua que levava a Montmartre. De algum modo, parecia sempre estar chovendo em Paris.

        Como naquela noite em que ele chegara de Corteguay, havia sete anos. Tinham parecido um grupo de rústicos, com as golas dos paletós levantadas como uma fraca proteção contra a fria chuva e a neve de fevereiro e com as malas empilhadas no passeio onde o chofer do táxi os havia deixado.

        — O portão está fechado disse Gato Gordo. — Não há ninguém em casa.

        — Toque outra vez a campainha. Não pode deixar de haver alguém.

        Gato Gordo puxou o cordão da campainha. O barulho encheu a rua estreita e ressoou de casa em casa, mas ninguém apareceu.

        — Eu posso abrir o portão!

        — Então abra! Que é que está esperando?

        Os movimentos de Gato Gordo foram quase rápidos demais para serem seguidos pela vista. A automática estava fumegante na mão dele, e o barulho dos tiros havia ribombado dentro da noite como se fosse trovoada.

        — Maluco! exclamara zangado, o pai de Dax. — Agora, a polícia virá saber o que foi que houve e o mundo inteiro saberá que nós não pudemos entrar no nosso consulado! Seremos levados ao ridículo. E não adiantou nada, porque o portão continua fechado.

        — Não está, não, — respondeu Gato Gordo, tocando-o com o pé.

        O portão se abriu, rangendo nas dobradiças enferrujadas. Xenos hesitou um instante, mas se dispôs a entrar na casa. Gato Gordo o deteve com o braço.

        — Espere um pouco. Não estou gostando disso. Deixe-me entrar na frente.

        — Ora essa! Que é que pode haver de errado?

        — Já há muita coisa errada, — disse Gato Gordo. — Ramirez devia estar aqui, mas a casa está vazia. Talvez seja uma armadilha. Ramirez pode ter-nos traído.

        — Tolice! Ramirez nunca faria isso. Fui eu mesmo que propus a nomeação dele ao presidente.

        Apesar disso, Jaime Xenos ficou de lado e deixou Gato Gordo entrar primeiro na casa. O caminho estava cheio de mato, que lhes batia nas pernas.

        — Acha que a porta da frente também está trancada? — perguntou Dax.

        — É o que vamos ver.

        Gato Gordo fez sinal para que fossem para o lado da casa, agachou-se e estendeu a mão para torcer a maçaneta da porta.

        A porta se abriu silenciosamente. Olharam para a escuridão lá dentro, mas nada puderam ver. A automática reapareceu nas mãos de Gato Gordo. Murmurou ele baixinho.

        — Lá vou eu com Deus!

        Ouviram-no tropeçar no escuro, praguejar e afinal dizer no mesmo instante em que as luzes se acendiam:

        — Não há ninguém aqui!

        Entraram e ficaram de olhos arregalados. Parecia que um tufão havia passado pela casa. Havia destroços por toda parte, papéis espalhados pelo chão, restos de cadeiras quebradas empilhadas no meio da sala. Uma mesa na cozinha parecia ser o único móvel que restava na casa.

        — Os ladrões andaram por aqui, — disse Gato Gordo.

        O pai de Dax olhava tudo com uma estranha expressão de mágoa, como se não pudesse acreditar no que via. Disse finalmente com tristeza:

        — Ladrões, não. Traidores.

        Gato Gordo acendeu um cigarro e, quando viu o pai de Dax apanhar um papel no chão e examiná-lo, arriscou uma explicação:

        — Talvez a gente tenha errado o endereço.

        O pai de Dax sacudiu a cabeça.

        — Não, é aqui mesmo.

        E mostrou o papel com as armas de Corteguay.

        Dax olhou para o pai e disse:

        — Estou cansado.

        O velho abraçou o filho e disse:

        — Não podemos ficar aqui. Teremos de passar a noite num hotel. Vi o letreiro de uma Pensión lá embaixo na ladeira quando vínhamos para cá. Vamos. Talvez não possamos encontrar comida, mas ao menos descansaremos durante a noite.

        A empregada bem-arrumada fez uma reverência quando abriu a porta.

        — Bon soir, messieurs.

        O pai de Dax limpou cuidadosamente os pés no capacho antes de entrar e tirou o chapéu.

        — Tem três quartos aqui por esta noite?

        Um olhar de espanto apareceu no rosto da empregada. Olhou para Gato Gordo, que estava ao lado do cônsul, com os braços cheios de malas. Depois, olhou para Dax.

        — Marcaram alguma coisa? — perguntou ela polidamente.

        O cônsul ficou confuso.

        — Marcar o quê? Ah, fazer reservas dos quartos! — O seu francês limitado não o ajudava. — C'est nécessaire?

        Aquilo estava acima das forças da empregada. Abriu a porta de uma saleta e disse:

        — Se quiserem ter a bondade de esperar aqui, vou chamar Madame Blanchette.

        — Merci.

        O Pai de Dax foi na frente e depois que todos entraram a empregada fechou a porta. Ouviram no interior da casa uma risada de mulher. A sala era luxuosamente mobiliada com bons tapetes e sofás e poltronas ricamente estofados. Um fogo crepitava na lareira e num aparador havia conhaque e copos.

        Gato Gordo viu a garrafa e disse, indo até o aparador:

        — Assim é que eu gosto! Um pouco de conhaque, Excelência?

        — Não sei se devemos. Afinal de contas, nem sabemos para quem está preparado o conhaque.

        — Para os hóspedes, — disse Gato Gordo, com uma lógica que lhe parecia irrefutável. — Do contrário, por que estaria aqui?

        Serviu um copo para o cônsul e tomou o seu de um gole.

        — Que bom! — exclamou, e serviu-se logo de outro.

        Dax sentou-se numa poltrona diante da lareira. O calor o envolveu, e ele sentiu os olhos pesados de sono.

        A porta se abriu, e a empregada fez entrar na sala uma simpática mulher de meia-idade. Estava irrepreensivelmente vestida com um vestido de veludo preto e usava um duplo colar de pérolas róseas ao pescoço e um grande anel de brilhante no dedo.

        O pai de Dax cumprimentou-a.

        — Jaime Xenos.

        — Monsieur Xenos. — Olhou para Gato Gordo e, depois, para Dax. Se não gostou de Gato Gordo ter-se servido do conhaque, não deu o menor sinal disso. — Em que posso servi-los, cavalheiros?

        — Precisamos de alojamento para esta noite, — disse o pai de Dax. — Somos do consulado de Corteguay aqui mesmo nesta rua, mas parece que houve algum desencontro e lá não há ninguém.

        A voz da mulher foi extremamente delicada.

        — Pode mostrar-me os passaportes, monsieur? Há um regulamento.

        — Está bem, — disse o pai de Dax, entregando-lhe o passaporte de couro vermelho.

        Madame Blanchette examinou-os por um momento e em seguida apontou Dax:

        — Seu filho?

        — Oui e meu attaché militaire.

        Gato Gordo ficou cheio de orgulho e serviu-se de outro conhaque.

        — É o novo cônsul?

        — Oui, Madame.

        Madame Blanchette devolveu os passaportes. Hesitou um instante e então disse:

        — Se me der licença um instante, vou ver se há quartos vagos. Já é tarde e estamos com a casa cheia.

        — Merci, Madame. Sou muito grato à sua gentileza.

        Madame Blanchette saiu fechando a porta e ficou por um momento no fover. Encolheu então os ombros, entrou no corredor e abriu a porta de uma sala mais ricamente mobiliada do que aquela de que havia saído.

        Via-se ao centro uma mesa de jogo, à qual estavam sentados cinco homens que jogavam cartas. Atrás deles, estavam algumas mulheres belas e jovens, vestidas na última moda. Duas delas estavam conversando num sofá junto à lareira.

        — Banca! — exclamou um dos jogadores.

        — Diabo! — disse outro, jogando as cartas em cima da mesa. Depois, levantou os olhos para Madame Blanchette. — Foi alguém que interesse?

        — Não sei, Barão. Foi o novo cônsul de Corteguay.

        — Que era que ele queria? Informações sobre aquele patife do Ramírez?

        — Não. Queria quartos para dormir.

        O jogador que pegara a banca riu.

        — O coitado viu com certeza a sua tabuleta. Bem lhe disse que isso aconteceria mais cedo ou mais tarde.

        — Você naturalmente mandou-o embora, não foi? — perguntou o barão.

        — Não, — respondeu Madame Blanchette. — Era o que eu pretendia fazer. Mas vi depois o rapazinho...

        — Ah, está com o filho?

        — Oui, Barão. Mas acho que nada posso fazer.

        — Un moment, — disse o Barão de Coyne, levantando-se. — Gostaria de vê-los.

        — Que é que há, Barão? — perguntou o jogador à sua esquerda. — Ramírez já não o explorou bastante nesta mesma mesa? Ficou-lhe devendo mais do que a qualquer de nós — cem mil francos no mínimo.

        — É verdade, — disse o que estava com a banca. — Acha que pode arrancar isso do novo cônsul? Todos nós sabemos que o Corteguay está arruinado.

        O Barão de Coyne olhou para os seus amigos e disse:

        — Vocês são um bando de cínicos. Estou apenas com curiosidade de ver que espécie de homem nos mandaram desta vez.

        — Que importância tem isso? Todos eles são iguais. Só querem é o nosso dinheiro.

        — Quer falar com ele, Excelência? — perguntou Madame Blanchette.

        — Não. Quero apenas vê-los.

        O barão acompanhou-a até à parede ao lado e ela levantou um reposteiro. Havia uma abertura fechada por um vidro.

        — Pode vê-los daqui, — disse ela, — mas eles não nos podem ver. Há um espelho do outro lado.

        A primeira coisa que o barão viu quando olhou foi o garoto que dormia na poltrona, com o rosto abatido e cansado.

        — Deve ter a mesma idade de meu filho, — disse ele com surpresa a Madame Blanchette. — A mãe dele deve ter morrido, pois do contrário não o deixaria vir assim com o pai. Alguém sabe para onde o Ramírez foi?

        Madame Blanchette encolheu os ombros.

        — Ouvi dizer que estava na Riviera Italiana, mas ninguém sabe com certeza. Na semana passada, um caminhão encostou à noite ao portão do consulado e levou tudo o que havia lá.

        O barão fechou a cara. Era por isso que tinham ido procurar um quarto. Conhecia bem Ramírez e sabia que ele não devia ter deixado nem uma acha de lenha. Viu então o homem alto aproximar-se da poltrona e colocar uma almofada debaixo da cabeça do rapaz. Havia no seu rosto muito escuro uma expressão curiosa de gentileza.

        O barão deixou cair o reposteiro e voltou-se para Madame Blanchette. Já vira tudo o que queria. O pobre homem ficaria assoberbado de problemas logo que se soubesse que havia em Paris um novo cônsul do Corteguay. Todos os credores de Ramírez iriam bater-lhe à porta.

        Dê-lhes o meu apartamento no terceiro andar. Acho que Zizi não se importará de eu passar a noite no quarto dela.

 

        Parecia ainda o meio da noite mas já eram dez horas da manhã quando Marcel Campion ouviu baterem na sua porta. Rolou na cama e cobriu a cabeça com o travesseiro. Mas ainda assim ouvia a voz estridente da dona da pensão.

        — Está bem, está bem! — gritou ele, sentando-se na cama. — Volte depois. Prometo que vou pagar o seu dinheiro!

        — O telefone está chamando, monsieur.

        — A mim? — disse Marcel Campion, franzindo as sobrancelhas e tentando descobrir quem poderia estar-lhe telefonando. Levantou-se da cama. — Diga a quem for que espere um pouco que eu já vou descer.

        Foi até ao lavatório, encheu a bacia de água e lavou o rosto. Do espelho, os olhos avermelhados o examinavam tristemente. Procurou lembrar-se vagamente da qualidade do vinho que bebera na noite anterior. Fosse qual fosse, era horrível, mas ao menos tinha sido bem barato.

        Enxugou o rosto com a toalha e, vestindo um robe, desceu. A concierge estava sentada à sua mesa e ele pegou o telefone. Ela fingiu que não estava prestando atenção, mas ele sabia que estava.

        — Alô?

        — Monsieur Campion? — perguntou uma voz de mulher.

        — Oui.

        — Um momento que o Barão de Coyne já vai falar.

        A voz do barão fez-se ouvir antes que Marcel tivesse oportunidade de ficar surpreso.

        — Estou falando com Campion empregado do consulado do Corteguay?

        — Sim, Excelência, — respondeu Marcel, com a voz cheia de respeito. — Mas não trabalho mais lá. O consulado foi fechado.

        — Sei disso. Mas o novo cônsul acaba de chegar. Acho que deve voltar.

        — Mas, Excelência, o ex-cônsul ainda me deve três meses de ordenado!

        O barão não era evidentemente homem que gostasse de ver as suas sugestões discutidas.

        — Volte a trabalhar que eu garanto o seu ordenado!

        Desligou, deixando Marcel com o fone no ouvido. Desligou afinal o aparelho. A concierge se aproximou dele, sorrindo.

        — Monsieur vai voltar a trabalhar?

        Marcel não respondeu. Ela sabia tão bem quanto ele. Ouvira tudo. Subiu a escada, meio tonto. O Barão de Coyne era um dos homens mais ricos da França. Por que se interessava por um país pequeno como o Corteguay? Muita gente não sabia nem onde ficava.

        O telefone tomou a tocar e a concierge atendeu. Estendeu o fone para Marcel.

        Para o senhor.

        Alô?

        — Campion, — disse a voz que ele logo reconheceu como a do barão. — Quero que vá para lá imediatamente!

        Marcel olhou para o relógio quando chegou à Rua Pelier e começou a subir a ladeira. Onze horas. Andara bem depressa, mesmo para atender às ordens do barão.

        O homem do armazém estava varrendo o passeio em frente à loja e cumprimentou-o.

        — Bonjour, Marcel. Que anda fazendo por estas bandas?

        — Bonjour. Vou ao consulado.

        — Vai trabalhar de novo? Quer dizer que aquele merde do Ramírez voltou? Ele ainda me deve mais de sete mil francos!

        — Três mil francos, — retificou Marcel no mesmo instante.

        Nunca se esquecia de coisas assim.

        — Três mil, sete mil, vem dar na mesma! Ramírez desapareceu e eu perdi o meu dinheiro! Mas, espere! Há alguma novidade? Pode-me dizer.

        — Não sei ainda. Acabo de saber que chegou um novo cônsul e vim ver se volto para o meu emprego.

        — Neste caso, — disse o dono do armazém pensativamente, — talvez o meu dinheiro ainda não esteja perdido. Se conseguir que me paguem, darei a você cinquenta por cento. Mil e quinhentos francos.

        — Três mil e quinhentos — respondeu Marcel no mesmo instante.

        O negociante olhou-o um instante e depois deu um largo sorriso, batendo no braço de Marcel.

        — Ah, Marcel, Marcel! Eu sempre disse que quem lhe quisesse passar a perna teria de ficar de olhos bem abertos! Vá lá! Três mil e quinhentos francos!

        Marcel continuou a subir a ladeira. Quando avistou o consulado, atravessou, num impulso, para o outro lado da rua antes de chegar, lá e ter logo de entrar. A primeira coisa que viu foi que haviam arrebentado a fechadura do portão. Com certeza, tinham tido de fazer isso para poder entrar. O proprietário é que não ia gostar.

        Notou em seguida o rapaz no jardim da frente, limpando o mato. Embora o tempo estivesse frio, ele estava apenas com uma camisa de meia e os músculos dos braços se moviam enquanto ele trabalhava com a larga lâmina, muito atento ao que fazia.

        Marcel olhou para o instrumento que o rapaz tinha na mão. Não podia saber o que era. Lembrou-se então de que já vira aquilo numa fotografia que Ramírez lhe mostrara. Era um machete. Marcel estremeceu. Era uma arma predileta dos selvagens.

        Examinou o rapaz. Com aquela cara, não podia ser francês. Com a firmeza que mostrava no manejo do machete, também não. Fosse quem fosse, havia chegado com o novo cônsul. De repente, o rapaz levantou os olhos e deu com ele.

        Os olhos eram pretos e penetrantes. Marcel podia jurar que o machete estava virado para ele e podia atingi-lo a qualquer momento. O rapaz sorriu, mostrando dentes muito brancos, mas o sorriso nada tinha de amistoso.

        Marcel sentiu um tremor percorrer-lhe o corpo. Em seguida, sem compreender por que, deu meia-volta e começou a correr, ladeira abaixo. Sentia os olhos do rapaz sobre ele até que dobrou a primeira esquina.

        Entrou numa brasserie e pediu:

        — Conhaque.

        Bebeu o conhaque de um gole e pediu café. Sentiu o calor da bebida enquanto engolia o café. Se não fosse o fato de que o Barão de Coyne lhe havia falado pessoalmente, nunca pensaria em voltar a trabalhar ali, entre aqueles selvagens.

        Viu da sua mesa o rapaz entrar na mercearia do outro lado da rua. Pagou a conta apressadamente e atravessou à rua. Olhou da porta e viu o rapaz pegar dois pães, um pedaço de queijo e um rolo de salsichas. Marcel hesitou um instante e entrou na mercearia.

        O rapaz não se voltou para olhá-lo. Estava muito atento ao dono do armazém, que embrulhava as compras.

        — Trezentos francos, — disse o homem.

        O rapaz olhou para o dinheiro que tinha na mão. Marcel viu que eram duas notas de cem francos.

        — Neste caso, terei de não levar alguma coisa, — disse o rapaz num francês horrível.

        O dono do armazém já ia tirando as salsichas quando Marcel disse:

        — Não seja explorador. É dessa maneira que quer receber o seu dinheiro do consulado do Corteguay?

        O rapaz pareceu compreender a referência ao consulado, mas o resto fora tão ligeiro que não entendeu nada. Olhou para Marcel e reconheceu-o.

        — Não sei qual é seu interesse nisso, Marcel, — disse o negociante. Mas empurrou o embrulho por cima do balcão e recebeu os duzentos francos.

        — Merci, — disse o rapaz e saiu.

        Marcel seguiu-o ao passeio.

        — É preciso ter sempre muito cuidado com eles, — disse em espanhol. — Roubam até os olhos da cara quando sabem que estão tratando com um estrangeiro.

        Os olhos do rapaz eram insondáveis. Lembravam a Marcel os olhos de um tigre que vira no jardim zoológico. Havia os mesmos clarões ferozes amortecidos.

        — É o novo cônsul do Corteguay?

        — Sou filho dele. Quem é o senhor?

        — Marcel Campion. Trabalhei no consulado como secretário e tradutor.

        A expressão do rapaz não mudou, mas Marcel julgou notar um leve movimento da mão e adivinhar o volume de uma faca por baixo do paletó.

        — Por que estava me olhando?

        — Pensei que o novo cônsul pudesse querer os meus serviços. Mas...

        Não concluiu a frase. O conhecimento da faca escondida estava fazendo-o nervoso.

        — Mas o quê?

        — O cônsul anterior ficou-me devendo três meses de ordenado.

        — Ramírez?

        — Sim, Ramírez. Vivia prometendo que o dinheiro chegaria na outra semana. Um belo dia, vim trabalhar e encontrei o consulado fechado.

        — Acho que é melhor entrar para falar com meu pai.

        Marcel olhou para a mão do rapaz e viu que estava vazia. Deixou soltar-se o fôlego, que estava contendo e murmurou:

        — Será uma honra para mim.

        Subiram juntos a rua.

        Quando chegaram ao consulado, o novo cônsul estava sentado a uma pequena mesa, no centro da grande sala vazia, tendo à sua frente um grupo de homens enfurecidos que gritavam e gesticulavam.

        — Gato Gordo! — gritou o rapaz, correndo por entre eles para junto do pai.

        Um instante depois, Marcel sentiu-se atirado para o lado por um homem enorme e gordo que passou pela porta. Lutou para não perder o equilíbrio e quando conseguiu firmar-se nos pés viu que o gordo e o rapaz enfrentavam os homens de faca em punho.

        Os homens recuaram. Um súbito silêncio caiu sobre a sala. Marcel viu a palidez do medo no rosto dos homens e compreendeu que não devia estar muito diferente deles. Naquele momento, estavam todos em outro mundo. Um mundo de morte e violência. Paris havia desaparecido.

        Percebeu também que aquela não era a primeira vez que o rapaz e o homem enfrentavam o perigo juntos. Tinha havido muitos outros momentos como aquele. Isso se mostrava na comunicação quase tácita que havia entre eles. Reagiam quase com o mesmo espírito.

        Por fim, um dos homens falou.

        — Mas só queremos o nosso dinheiro.

        Marcel não pôde deixar de sorrir. Era um método de afugentar credores que eles ainda não haviam conhecido. E muito eficiente, por sinal. Gostaria de experimentá-lo com os seus credores, particulares.

        O cônsul levantou-se. Marcel ficou admirado. Era muito mais alto do que parecera quando estava sentado. Mas o rosto mostrava abatimento, um abatimento mais moral do que físico.

        — Se esperarem um pouco na outra sala, examinarei todos os casos — disse ele. — Mas um de cada vez.

        Os credores se voltaram e passaram em silêncio por onde Marcel estava. Quando o último saiu, ouviu a voz do rapaz.

        Feche a porta. Marcel.

        Não era voz de garoto. Era a voz de um guerreiro, habituado a ver as suas ordens obedecidas. Marcel fechou em silêncio a porta. Quando tomou a olhar, as facas haviam desaparecido e o rapaz estava atrás da mesa, junto do pai.

        — Está bem, Papai? — perguntou, com uma voz cheia de solicitude e de amor. Marcel teve a impressão de que tudo era quase como se o rapaz fosse o pai e o pai, o filho.

 

        No escritório de paredes revestidas de lambris e com pesado mobiliário de couro, o barão escutava atentamente, sentado à sua grande mesa lavrada. Embora ouvisse em segundo plano o murmúrio familiar do tráfego na Praça Vendôme, Marcel ainda não podia acreditar inteiramente na realidade de tudo o que lhe vinha acontecendo naquela semana desde que voltaram a trabalhar. A voz do barão se fez ouvir.

        — Qual é o total das contas que Ramírez deixou para pagar?

        — Quase dez milhões de francos — respondeu Marcel. — Oitenta milhões de pesos na moeda deles.

        Como era seu costume, o barão converteu automaticamente a importância em dólares e libras. Cento e sessenta mil dólares. Quarenta mil libras esterlinas.

        — E o cônsul pagou tudo isso do seu bolso?

        — Achou que tinha essa obrigação — disse Marcel. — Ramirez fora recomendado por ele e ele sabe que o tesouro do país não pode arcar ainda com essa despesa.

        — Onde conseguiu dinheiro?

        — Com agiotas. Pagou uma comissão de 20%.

        — Foi depois disso que o cônsul resolveu ir a Ventimiglia para ver se Ramírez podia restituir alguma coisa?

        — Foi, mas já era tarde demais. Cinco dias de trabalho naquela casa úmida e sem aquecimento, dormindo em cima de um lençol estendido no chão frio, deram conta do cônsul. O Sr. Xenos amanheceu naquele dia com febre alta. Chamei o médico à tarde e ele disse logo que o cônsul devia ser internado imediatamente num hospital. O Sr. Xenos protestou, mas perdeu os sentidos de repente e nós o levamos para o hospital no carro do médico.

        O barão sacudiu a cabeça.

        — A honra de um homem é ao mesmo tempo o seu bem mais valioso e o seu luxo mais caro.

        — Compreendo perfeitamente o cônsul, — disse prontamente Marcel. — É um dos homens mais honestos e mais idealistas que já conheci. O que me intriga é o garoto. Não tem nada do pai. O pai é sentimental, o filho é racional; o pai é impulsivo, o filho é controlado. Mas parece um jovem animal da selva, na sua maneira de pensar e de agir. Só tem lealdade para com uma pessoa — o pai.

        — E então o rapaz e o tal ajudante foram para Ventimiglia?

        Marcel bateu com a cabeça. Ainda se lembrava de quando haviam voltado para o frio consulado depois do hospital.

        — Penso que vou devolver as passagens que compramos para Ventimiglia para seu pai e para mim e receber o dinheiro, — disse Marcel a Dax, cujo rosto era uma máscara impenetrável.

        Não, — disse Dax, olhando para Gato Gordo. Marcel suspeitou de que tivesse havido alguma comunicação invisível entre eles, pois Gato Gordo bateu com a cabeça concordando antes mesmo que Dax falasse de novo. — Compre mais uma passagem. Iremos os três fazer uma visita ao nosso amigo Ramírez. Creio que já está bem na hora.

        Horas depois, estavam sentados na encosta de uma colina ao sol da Riviera no ocaso, olhando para a vila embaixo. Três homens estavam sentados a uma mesa no pátio, com uma garrafa de vinho entre eles. No ar tranquilo da tarde, ouvia-se leve rumor das suas vozes.

        — Qual é Ramírez?

        — O magro, que está no meio.

        — E os outros dois?

        — Devem ser guarda-costas. Ramírez nunca anda sem eles.

        — Conheço o grandão — disse Gato Gordo. — Chama-se Sánchez e era da guarda pessoal do Presidente. Sempre desconfiei de que aquele cachorro era um traidor!

        Algumas mulheres apareceram no pátio levando comida. Ramírez deu uma palmada numa delas quando passava.

        — Quem são elas? — perguntou Dax.

        Marcel encolheu os ombros.

        — Não sei. Ramírez sempre teve muitas amantes.

        Dax sorriu, mas Marcel não sentiu calor algum naquele sorriso.

        — Ao menos, sabemos que ele não dorme com os guarda-costas. Isso nos facilitará o trabalho. Temos de saber qual o quarto dele antes de irmos lá esta noite.

        — Como poderemos entrar? — perguntou Marcel. — A porta com certeza estará trancada.

        — Não será problema, — disse Gato Gordo, rindo. — Pularemos o muro.

        — Mas isso é ilegal, — murmurou Marcel. — Poderemos todos acabar na prisão.

        — E Ramírez roubou o dinheiro legalmente? — perguntou Dax com voz seca e cheia de desprezo.

        Marcel não respondeu. Gato Gordo encostou-se a uma árvore e riu satisfeito. Estendeu a mão e desmanchou afetuosamente os cabelos de Dax.

        — Até parece que estamos nos velhos tempos lá em nossa terra, hem, jefecito?

        — Deve ser o quarto do canto, o que tem a sacada, — disse o rapaz.

        Nesse momento, as portas altas se abriram e Ramírez chegou à sacada. Ficou ali debruçado no peitoril fumando um cigarro. Parecia estar olhando para o mar que ficava além da casa. Daí a pouco, apareceu uma mulher que ficou ao lado dele. Ele jogou o cigarro fora e ouviu-se o riso da mulher. Em seguida, Ramírez entrou na casa com ela. As portas que davam para a sacada ficaram abertas.

        — É muita hospitalidade do traidor, — murmurou Gato Gordo. — Agora, teremos de procurar o caminho por dentro da casa.

        As luzes do quarto se apagaram e toda a casa ficou às escuras. Gato Gordo começou a movimentar-se, mas Dax o fez parar com um gesto.

        — Vamos dar-lhe mais dez minutos. Estará então tão ocupado que não ouvirá o barulho nem de mil cavalos.

        Dax foi o primeiro a escalar o muro de pedra. Um instante depois, Gato Gordo estava ao lado dele. Ajudaram Marcel a subir e ele conseguiu a muito custo chegar lá em cima. Um momento depois, deixaram-se cair em silêncio no terreno da casa. Dax e Gato Gordo começaram imediatamente a correr sem fazer barulho e Marcel acompanhou-os como pôde.

        Os dois dobraram o canto da casa e, antes que Marcel os alcançasse, já estavam no teto da varanda. Subindo a balaustrada de pedra e, depois, suspendendo-se com a barriga curvada na borda do telhado, Marcel subiu também. Dax já havia passado do telhado da varanda para a sacada.

        Gato Gordo virou-se e, sem o menor ruído, ajudou Marcel a subir. O francês sentia a sua respiração ofegante soar como uma trovoada aos seus ouvidos. Era um milagre que não o ouvissem da casa.

        — Espere aqui até nós lhe fazermos sinal, — disse Dax ao ouvido de Marcel. — Se aparecer alguém, avise-nos.

        Marcel sentiu a onda gelada do medo espalhar-se pela boca do estômago. Dax e Gato Gordo já estavam colados à parede, cada qual de um lado da porta da sacada. Marcel pensou por um momento que estivessem rezando. De repente, compreendeu o que faziam: estavam acostumando os olhos ao escuro que encontrariam no quarto de Ramírez. As mãos dos dois se moveram quase ao mesmo tempo e Marcel viu o brilho das facas. Fechou os olhos. Pensou que fosse vomitar e lutou para conter a náusea.

        Quando abriu os olhos, os dois haviam desaparecido, embora ele não tivesse ouvido o menor barulho. Escutou muito atento, com o coração a bater desordenadamente. Houve um débil gemido dentro do quarto, o estalar de uma cama e um baque como de alguma coisa jogada no chão. Depois, mais nada.

        Marcel sentia o suor brotar-lhe da testa. Teve vontade de fugir, mas o seu terror do que eles podiam fazer se ele fugisse era maior do que o seu medo do que poderia acontecer se ficasse.

        A voz de Dax a chamá-lo do quarto foi um sussurro apenas.

        — Marcel!

        Parou cheio de horror à porta. Ramírez e a mulher, inteiramente nus, estavam estendidos no chão.

        — Estão mortos? — perguntou em voz baixa.

        — Não, — disse desdenhosamente Dax. — O traidor desmaiou. Tivemos de fazer a mulher desmaiar também para não gritar. Arranje-me alguma coisa para amarrá-los.

        — O quê?

        — Procure no armário, — disse Gato Gordo. — A mulher deve ter meias de seda.

        Marcel abriu febrilmente as gavetas. Quase no mesmo instante, encontrou o que procurava. Gato Gordo já estava metendo uma das meias de Ramírez na boca do traidor.

        — É bom ele provar o seu próprio fedor, — murmurou ele, rindo.

        Marcel entregou as meias sem falar. Com rapidez e perícia, Gato Gordo amarrou-os e amordaçou-os. Quando acabou, levantou-se.

        — Isso deverá aquietá-los por algum tempo. E agora, Dax?

        — Vamos esperar que o traidor volte a si. Depois, descobriremos onde está o dinheiro. Não deve estar longe. Quanto foi que meu pai disse que ele roubou, Marcel?

        — Seis milhões de francos nestes últimos dois anos.

        — A maior parte ainda deve estar aqui. Ele não teve tempo de gastar tudo isso.

        Ramírez foi o primeiro a voltar a si. Abriu os olhos e viu Dax curvado, sobre ele, com uma faca no seu pescoço. Os olhos se arregalaram de terror. Teve-se por um momento a impressão de que ia perder de novo os sentidos, mas se recobrou e olhou para Dax.

        — Está-me ouvindo, traidor?

        Ramírez fez um sinal afirmativo com a cabeça e um som abafado veio de trás da mordaça.

        — Então, escute. Estamos aqui para pegar o dinheiro que você roubou. Se nos der o dinheiro, nada acontecerá nem a você, nem à mulher. Do contrário, você morrerá e não vai ser depressa.

        Outro som abafado veio da mordaça.

        Dax levantou a faca para que Ramírez pudesse vê-la bem.

        — Vou tirar-lhe a mordaça. Basta um movimento seu para ser castrado e começar a morrer com o sangue que vai perder.

        Marcel prendeu a respiração enquanto Dax tirava a mordaça. Felizmente Ramírez não era herói.

        — E agora, onde está o dinheiro? — perguntou Dax.

        — Não tenho mais nada! — murmurou Ramírez com voz rouca. — Perdi tudo no jogo!

        Dax riu e moveu prontamente a faca. Um traço de sangue apareceu na barriga de Ramírez. O homem fez uma cara de horror ao ver o seu sangue. Rolou os olhos e a cabeça caiu desamparada.

        — O covarde desmaiou de novo, — disse Gato Gordo a Dax. Poderemos ficar nisso a noite toda.

        Dax foi até ao lavatório e pegou um jarro. Voltou e despejou-o todo em cima de Ramírez. O homem imediatamente acordou, quase sufocado com a água.

        Ao mesmo tempo, a mulher começou a debater-se.

        — Segure-a! — ordenou Dax. — Assim ela vai acordar a casa toda!

        Gato Gordo curvou-se para a mulher e deu-lhe uma bofetada.

        Embora toda amarrada, ela tentou dar-lhe um pontapé. Gato Gordo riu.

        — Ela ao menos tem a coragem que falta a esse traidor!

        Sentou-se pesadamente em cima dos quadris da mulher e fechou a grande mão no pescoço dela, prendendo-a de fato ao chão.

        — Onde está o dinheiro? — tornou a perguntar Dax.

        Ramírez não respondeu. Estava olhando para Gato Gordo e para a mulher. Mas rodou a cabeça quando Dax bateu nela com o cabo da faca.

        — Já lhe disse que não tenho mais nada!

        Gato Gordo olhou para o traidor.

        — Ela parece boa, mas tem os peitos pequenos demais.

        Ramírez ficou calado.

        Gato Gordo olhou para Dax.

        — Estou que não posso mais. Há três dias que estou virgem de mulher.

        — Está bem, — disse Dax, sem tirar os olhos de cima de Ramírez. — Pode ficar com ela. Quando acabar, Marcel pode andar também, se quiser.

        O protesto que subiu à garganta de Marcel não chegou a ser articulado. Viu aquele olhar de fera da selva no rosto de Dax. A mulher começou a debater-se enquanto Gato Gordo lhe abria as pernas com um joelho. Desabotoou as calças.

        — Fique quieta, menina, que você vai ficar até muito contente. Vai ficar sabendo o que é um homem de verdade em comparação com aquele que está ali.

        As palavras saíram precipitadamente da garganta de Ramírez.

        — Ali! No cofre da parede, atrás da cama!

        — Melhorou muito, — disse Dax, rindo. — Como é que se abre o cofre?

        — A chave está no bolso das minhas calças.

        Dax apanhou as calças jogadas em cima de uma cadeira e tirou uma argola de chaves.

        — São estas?

        — São. Atrás do quadro na parede.

        Dax atravessou o quarto. Tirou o quadro e colocou a chave no cofre de metal preto.

        — Não quer abrir! — disse ele, voltando-se iradamente para Ramírez.

        — Essa é a chave do carro. Deve haver outra, — disse Ramírez, tirando os olhos de cima de Gato Gordo.

        Marcel não podia deixar de olhar. Até então, a violência carnal fora uma coisa de que só tivera notícia pelos jornais. Sentiu-se atordoado com uma estranha agitação. Aquilo não se parecia absolutamente com o que conhecia. Era uma coisa fria, selvagem e brutal. Gato Gordo já havia entrado na mulher. Marcel viu o corpo dela estremecer todo com o impacto.

        — Marcel!

        Ele desviou a vista dos dois e dirigiu-se para onde estava Dax. O cofre estava cheio de maços bem arrumados de notas.

        — Meu Deus! — exclamou ele.

        — Não fique aí de boca aberta, Marcel! Pegue uma fronha e me ajude a embrulhar esse dinheiro!

        Marcel não pôde deixar de olhar por cima do ombro enquanto segurava a fronha para Dax. Olhou para Ramírez. O traidor estava com os olhos fixos em Gato Gordo e na mulher. Foi só depois que ele passou a língua pelos lábios que Marcel percebeu o que ele estava pensando. O dinheiro tinha sido esquecido.

        O mundo todo estava alucinado. Nada fazia mais sentido. Dax, depois de um olhar breve para os dois que se agitavam no chão, não lhe deu maior atenção. Era como se o que estivesse acontecendo fosse uma ocorrência perfeitamente comum. Marcel viu-se dominado por uma excitação sexual toda particular. Sentia as pernas fracas e trêmulas, mais do que da primeira vez em que estivera com uma mulher.

        — Bueno! — exclamou Dax, satisfeito. A fronha estava quase cheia. Amarrou o lado aberto com uma meia de seda. Depois, sentou-se na cama e olhou para Gato Gordo.

        — Veja se não vai passar a noite toda aí. Ainda temos de sair daqui.

        Olhou para a outra chave na argola e já a ia jogar de lado quando perguntou de repente a Marcel:

        — Sabe dirigir?

        Marcel fez um sinal afirmativo.

        — Bueno! Não há nada como uma viagem de automóvel com a fresca da noite.

        — Quanto foi que conseguiram recuperar? — perguntou o barão.

        — Quase quatro milhões e meio de francos, — respondeu Marcel, voltando ao presente.

        — Fico satisfeito com isso. Aquele rapaz é ótimo. Já chegaram a uma decisão sobre a escola que ele vai frequentar?

        — Ouvi o cônsul falar numa escola pública. Mas isso foi antes de recobrar-se o dinheiro.

        — O dinheiro infelizmente não vai ajudar muito. Mal dá para cobrir os empréstimos feitos pelo cônsul para pagar as contas. Quero que você sugira a ida do rapaz para De Roqueville.

        Mas é a escola mais cara de Paris!

        — E é também a melhor. Meu filho está lá. Pagarei as despesas e tomarei todas as providências. Para não dar na vista, será oferecida uma bolsa ao rapaz.

        A nota de dez mil francos que levava no bolso tranquilizava muito Marcel à sua saída do escritório do barão. As suas finanças estavam em franca prosperidade. O dono do armazém não tinha sido o único que lhe pagara uma comissão pela cobrança das contas.

        Mas ainda tinha uma dúvida que o atormentava. Sabia tanto por que o Barão de Coyne estava interessado no cônsul e no filho quanto soubera na manhã em que recebera o primeiro telefonema.

 

        A campainha tocou na mesa de seu pai. Dax saiu da janela e pegou o interfone.

        — Oui, Marcel?

        — Seu amigo Robert está aqui.

        — Merci. Peça-lhe que entre.

        Dax desligou o interfone e voltou-se para a porta.

        Robert apareceu e atravessou a sala com a mão estendida.

        — Vim logo que tive a notícia.

        Apertaram-se as mãos à maneira européia, como sempre faziam quando se viam ou se separavam, ainda que estivessem estado juntos naquela manhã treinando pólo no clube.

        — Muito obrigado. Como foi que soube?

        — Pelo gerente do bar no clube. Ele me falou do telefonema que você recebeu.

        Dax mordeu os lábios. Paris não era de certo modo diferente de qualquer cidadezinha do interior. Dentro em pouco, toda a cidade saberia e os repórteres começariam a aparecer.

        — Há alguma coisa que eu possa fazer?

        — Não há nada que ninguém possa fazer. Só nos resta é esperar.

        — Ele estava doente hoje de manhã quando você saiu de casa?

        — Não. Se estivesse, eu não teria ido treinar.

        — É claro.

        — Papai não é muito forte, como sabe. Desde que chegamos à Europa, ele é de vez em quando atacado de resfriados muito fortes. Era um em cima do outro. Parece que perdeu toda a resistência. Marcel o encontrou caído em cima da mesa. Levou-o lá para cima com a ajuda de Gato Gordo e chamou o médico. Este disse que era o coração e foi então que telefonaram para mim.

        — Isto aqui não é clima para seu pai, Dax. Ele devia ter ficado na Riviera.

        — Meu pai nunca deveria ter vindo para cá de modo algum. As preocupações e as tensões foram demais para ele. Além disso, nunca mais voltou a ser o que era depois que perdeu o braço.

        — Por que não voltou então?

        — O seu senso de responsabilidade é muito grande. Ficou porque a sua presença era necessária. Os primeiros créditos que ele conseguiu com o banco de seu pai salvaram o nosso país da bancarrota.

        — Poderia ter voltado depois disso.

        — Você não conhece meu pai, Robert. Isso foi apenas o começo. Bateu em todas as portas na Europa à procura de ajuda para a nossa terra. As recusas e as humilhações transformaram-no num velho. Mas ele continuou a lutar.

        Dax pegou um cigarro e acendeu-o.

        — Os primeiros anos aqui foram terríveis para ele. O cônsul anterior deixou tudo em situação calamitosa e ele regularizou tudo. Pagou todas as contas do seu bolso, embora com isso tivesse ficado pobre. Até hoje, ele não sabe que eu sei que tudo foi vendido para pagar essas contas — a nossa casa em Curatu, as suas economias, tudo o que ele tinha. Só não tocou foi em nossa hacienda em Bandaya, naturalmente porque quer que um dia ela seja minha.

        — Nunca soube disso.

        — É verdade, — disse Dax, com um sorriso amargo. — Se não me tivesse aparecido por um verdadeiro milagre aquela bolsa na De Roque, eu teria estudado numa escola pública. Ainda assim, meu pai teve de privar-se de coisas necessárias para que eu me vestisse decentemente e houvesse gasolina no carro para Gato Gordo trazer- me para casa nos fins-de-semana.

        Robert de Coyne olhou para Dax. Era estranho que ninguém na escola houvesse jamais suspeitado disso. Havia na escola jovens príncipes reduzidos à pobreza, mas todos sabiam quem eram. Estavam ali estudando porque davam prestígio social ao estabelecimento. Mas Dax era sul-americano e todos pensavam que os sul-americanos eram ricos. Possuíam minas de estanho, poços de petróleo e fazendas de gado. Não se via um só que fosse pobre.

        De repente, muitas coisas que haviam acontecido naqueles primeiros anos da escola se esclareceram. Por exemplo, o caso ocorrido no fim da sua primeira semana de aulas. Era uma tarde de quinta-feira entre a última aula e o jantar. Hora de recreio. Nos fundos do ginásio, haviam formado uma roda em torno de um dos novos alunos.

        Os olhos negros do rapaz fitavam impassivelmente os outros.

        — Por que é que eu tenho de lutar com um de vocês?

        Sergei Nikovitch respondeu com uma expressão de paciente enfado:

        — É porque na semana que vem temos de tirar a sorte para ver em que quarto você ficará enquanto estiver na escola. Se não lutar, como é que vamos saber se queremos você ou não?

        — Não tenho também o direito de escolher?

        — Só se você ganhar. Nesse caso, poderá escolher o seu companheiro de quarto.

        O novato pensou um instante e disse:

        — Parece-me idiota, mas estou disposto a lutar.

        — Muito bem, — disse Sergei. — Seremos honestos. Pode escolher com quem quer lutar para que não tenha de enfrentar um maior do que você. Mas não poderá escolher um menor.

        — Escolho você.

        Sergei fez uma cara de espanto.

        — Mas eu sou bem mais alto do que você. Não seria justo.

        — É por isso mesmo que escolho você.

        Sergei encolheu os ombros com uma cara de quem lava as mãos do caso e começou a tirar o casaco. Nesse momento, Robert de Coyne se aproximou do novato.

        — Mude de ideia disse ele, ansiosamente. — Lute comigo, que sou do seu tamanho. Sergei é o maior e o melhor lutador da turma.

        O novato sorriu.

        — Muito obrigado. Mas já escolhi. Tudo isso é idiota demais. Para que piorar as coisas?

        Robert olhou-o, admirado. Sempre pensara assim, mas era a primeira vez que via alguém ter coragem de dizer aquilo em voz alta. Sentiu uma instintiva simpatia pelo novato.

        — Você pode ganhar ou perder, mas eu ficarei feliz se tiver a sorte de escolher você como meu companheiro de quarto.

        O novato olhou-o com repentina timidez e disse:

        — Muito obrigado.

        — Pronto? — perguntou Sergei.

        O rapaz tirou o casaco e fez um sinal afirmativo.

        — Pode escolher ainda disse Sergei. — La boxe, la savate ou o vale-tudo.

        — Vale-tudo disse o outro, apenas porque não sabia o que eram as outras duas modalidades de luta.

        — Bien. A luta estará acabada quando um de nós bater, desistindo.

        Na verdade, a luta acabou antes disso. E acabou também com aquele costume na Escola De Roqueville. Tudo aconteceu tão depressa que terminou enquanto os outros rapazes ainda estavam à espera de que acontecesse alguma coisa.

        Sergei havia estendido os braços na posição convencional dos lutadores e começou a rodar em torno do novato, que estava com os braços caídos dos lados. Então, Sergei tentou agarrá-lo, e os movimentos do outro foram tão rápidos que se tornou quase impossível acompanhá-los com a vista. Com a mão espalmada, Dax deu uma cutilada no braço estendido de Sergei, e, quando esse braço pendeu, desamparado, para o lado, ele atacou de novo. Torceu o corpo, e isso pareceu dar mais força à cutilada da mão com que atingiu as costelas de Sergei. Mal houve tempo de ver a expressão de surpresa no rosto de Sergei quando seu corpo se dobrou, e o outro, dando a volta, foi atingir-lhe a base do crânio com os nós dos dedos da mão fechada. Sergei desabou no chão.

        O novato fitou-o um instante e voltou-se para os outros, que o olhavam, incrédulos. O novato não estava nem respirando com força. Viram-no voltar e apanhar o casaco, que dobrara cuidadosamente. Já se ia afastando, mas se virou para eles.

        — Escolho você como meu companheiro de quarto, — disse ele a Robert. Olhou para Sergei, que ainda estava estendido no chão. — Vão buscar socorro para ele. Está com o braço quebrado e duas costelas também. Mas vai ficar bom. Não o matei.

        O porteiro do Royale Palace era uma figura imponente. Era bem alto, pois tinha quase dois metros, calçado com as botas. O grande chapéu de cossaco fazia-o ainda mais alto, e o uniforme rosa e azul, com as grandes dragonas e os cordões dourados passados pelo peito davam-lhe a aparência de algum general saído de uma opereta de Franz Lehar.

        Ele exercia suas funções à porta do hotel como um general. As estantes para a bagagem estavam dobradas e guardadas num canto escondido, e ai do boy que se esquecesse de colocá-las daquela maneira exata. Sua voz estentórica de sotaque muito carregado podia chamar um táxi que estivesse até a três quarteirões de distância.

        Dizia-se dele que tinha sido outrora coronel de um regimento de cossacos, mas isso nunca fora provado. Só se sabia ao certo que ele tinha sido conde e parente afastado dos Romannoffs, e que num dia de inverno, em 1920, havia aparecido assim daquele jeito à porta do hotel. Desde então, estava ali.

        O conde Ivan Nikovitch não era homem de fazer confidências ou de manter quaisquer conversas de natureza pessoal. A cicatriz de sabre no rosto, mal oculta pela barba preta espessa e sempre muito bem-tratada, era suficiente para desanimar quem o tentasse.

        Naquele momento, estava sentado numa cadeira muito pequena para ele e olhava o filho meio reclinado na cama. Não havia nele nem cólera, nem compaixão pelo filho, mas apenas aborrecimento.

        — Você foi um idiota, — disse ele. — Nunca se luta com um adversário que não conhece as regras. Pode-se morrer assim. As regras são feitas para a nossa proteção e para a proteção do inimigo. Foi por isso que perdemos para os bolchevistas. Eles também não conheciam as regras.

        Sergei ficou embaraçado. Aquilo era pior que a dor que sentia. A facilidade e a rapidez com que fora derrotado, e por um garoto bem menor do que ele.

        — Eu não sabia que ele não conhecia as regras.

        — Mais uma razão para você explicar as regras a ele, — replicou o pai. — Isso o atrapalharia tanto que você poderia vencê-lo com a maior facilidade.

        Sergei pensou um momento e sacudiu a cabeça.

        — Acho que não, papai. — É bem provável que ele tivesse desrespeitado as regras.

        Ouviu-se um rumor de vozes pela janela aberta. O conde Nikovitch levantou-se e foi olhar.

        — Gostaria de ver esse rapaz disse ele, cheio de curiosidade. — Estará entre esses ai?

        Sergei virou a cabeça e olhou pela janela.

        — É aquele bem moreno, que está ali sozinho.

        O conde viu Dax atravessar o campo para outro prédio da escola, sem ao menos olhar com curiosidade para os outros garotos. Quando ele desapareceu, o Conde Nikovitch voltou-se para o filho.

        — Acho que tem razão. Aquele não respeita as regras e observa regras próprias. — É um rapaz que não tem medo de andar sozinho.

        No ano seguinte, Dax e Robert se mudaram para o andar imediatamente inferior, e passaram assim de ano em ano, de um andar para outro, do último ao primeiro, até completarem seu tempo de estudos na De Roqueville. Eram já "antigos" em comparação com os garotos mais novos, que se alojavam em outro prédio. Era por isso que tinham a companhia de Sergei. Os mais antigos viviam num quarto para três.

        Era um principio da escola, baseado na crença de que três é um número mais produtivo do que dois ou quatro. Quatro num quarto significava em geral a formação de dois grupos de dois, e dois só num quarto não era um arranjo economicamente interessante. Dax e Robert tinham começado a arrumar as suas coisas, quando bateram na porta. Robert foi abrir, e Sergei apareceu, de maleta na mão.

        Era difícil dizer quem ficou mais surpreso. Sergei conferiu o papel com o número do quarto que lhe deram na secretaria e olhou para o número da porta.

        — Não há dúvida. É este mesmo o quarto.

        Colocou a maleta no centro do quarto.

        — Não fui eu que pedi isso, fiquem sabendo, — explicou ele aos outros dois, que o olhavam em silêncio. — Meu companheiro de quarto saiu da escola, e o préfet me designou para este quarto.

        Os outros continuaram em silêncio. Desde a luta, Sergei e Dax tinham evitado ao máximo falar-se.

        De repente, Sergei sorriu, com quente vitalidade.

        — É uma felicidade para mim não ter de lutar por este quarto. Não sei se o meu esqueleto aguentaria.

        Robert e Dax se entreolharam, e o esboço de um sorriso apareceu nos lábios deles.

        — Como está você em literatura? — perguntou Robert.

        — Bem mal.

        — E em matemática, física e química?

        Uma expressão de tristeza se estampou no rosto de Sergei à medida que ele sacudia a cabeça a cada pergunta.

        — Em que é que você é bom então? — perguntou Robert. — São essas matérias em que mais precisamos de quem nos ajude.

        — Não sei, — confessou Sergei. — Também sou fraco nelas.

        — História, geografia, francês? — perguntou Dax.

        — Não sou bom em nada disso.

        Dax olhou para Robert, com um sorriso secreto nos lábios.

        — Precisamos de um companheiro de quarto que nos ajude. Você parece não servir muito para isso.

        — De fato murmurou Sergei tristemente.

        — Não há nada que você possa nos ensinar?

        Sergei pensou um instante e então riu.

        — Sei dezessete maneiras de me masturbar!

        Os outros dois levantaram os braços e fizeram uma reverência: — Seja bem-vindo ao clube!

 

        A limusine Citroën preta parou perto do campo de pólo e Jaime Xenos saltou. Olhou para a confusão de cavalos e cavaleiros no campo e apertou os olhos.

        — Onde está Dax?

        — É um dos que estão com chapéu vermelho e branco, — disse Gato Gordo. — Olhe, ali está ele.

        Um cavalo se separou dos outros e veio correndo pelo lado do campo. O esbelto rapaz que brandia o maço foi levando a bola pelo chão em pequenos golpes cuidadosos, não a deixando fugir ao seu controle.

        Um adversário veio do outro lado do campo, e Dax virou prontamente o seu animal e atirou a bola através do campo num passe para um companheiro. Este, por sua vez, passou a bola, adiantando-a, e Dax, que já se havia colocado para recebê-la, impulsionou-a entre os postes do gol sem que nenhum dos adversários se tivesse aproximado dele. Virou o cavalo e foi juntar-se à sua equipe no centro do campo.

        — Sr. Xenos?

        O cônsul voltou-se. A voz era de um homem mirrado, que cheirava a cocheira.

        — Oui?

        — Sou o treinador de pólo, Ferdinand Arnouil. É um prazer conhecê-lo.

        — O prazer é meu.

        — Fico muito contente de que tenha vindo, Excelência. Já observou seu filho?

        — Um momento apenas. Devo confessar que não conheço o jogo.

        — É compreensível. Nestes últimos anos, o pólo tem perdido muito da sua popularidade. E creio que o sucesso do automóvel foi o que mais contribuiu para esse declínio.

        Xenos fez um gesto polido de assentimento.

        — Os moços não querem mais aprender a montar. Têm mais interesse em aprender a dirigir. É por isso que, quando aparece um jovem como seu filho, é da maior importância desenvolver suas qualidades.

        — Ele é bom, então?

        — Bom? Dá a impressão de que voltamos aos velhos tempos exclamou Arnouil. — Seu filho nasceu para este esporte. Parece que já nasceu com os pés nos estribos.

        — Sua opinião me dá muita satisfação, — murmurou o pai de Dax, olhando para o campo. O jogo havia recomeçado, e Dax ia à frente de todos, guiando o cavalo com os joelhos e procurando reter a bola.

        — Já está vendo que não pode ficar com ela, — disse o treinador. — Veja como vai passá-la para o companheiro de equipe do outro lado.

        Dax se curvou na sela e bateu na bola por entre as patas do seu cavalo. O companheiro prontamente recolheu-a e avançou, ao mesmo tempo que Dax conseguia desviar para o seu lado parte da equipe adversária.

        — Magnifico! — exclamou o treinador. — Quer saber por que lhe pedi que viesse até aqui?

        — Sim?

        — No ano que vem, seu filho terá dezesseis anos e poderá disputar o campeonato escolar.

        — Bien.

        — Mas para poder inscrever-se, terá de possuir cavalos próprios. É uma exigência irredutível.

        — E se não possuir?

        Arnouil encolheu os ombros de maneira tipicamente francesa.

        — Não poderá jogar, por melhor que seja.

        — De quantos cavalos vai precisar?

        — Dois cavalos pelo menos, embora três ou quatro sejam preferíveis. Um cavalo descansado para cada chukker.

        — Quanto custa um cavalo? — perguntou Xenos, sem olhar para o treinador.

        — De trinta a quarenta mil francos.

        — Compreendo.

        O treinador olhou-o atentamente.

        — Poderá ter dificuldade em encontrar cavalos que prestem. Mas conheço uma pessoa que tem alguns animais de sobra e quer desfazer-se deles.

        Xenos sabia o que ele queria e forçou um sorriso.

        — Se acha que vale a pena, meu filho terá cavalos seus.

        — Fico satisfeito de que pense dessa maneira, Excelência. Garanto que não se arrependerá. Seu filho será um dos grandes jogadores desta época.

        Despediram-se, e o cônsul ficou olhando o homenzinho de pernas arqueadas afastar-se. Sabia o que Gato Gordo estava pensando. Voltou cansadamente para o carro e esperou até que Gato Gordo sentar-se ao volante.

        — Que é que acha?

        — Isso é apenas um jogo, — disse Gato Gordo.

        — É mais do que isso. E um jogo reservado para quem têm dinheiro para gastar nele.

        — Isso nos deixa de fora.

        — Não podemos ficar de fora.

        — E não podemos entrar, — replicou Gato Gordo. — Há coisas muito mais necessárias.

        — Dax podia tornar-se de certo modo um símbolo do nosso pais. Os franceses podem ajudar-nos.

        — Mande pedir então ao presidente os cento e sessenta mil francos para os cavalos.

        O cônsul sorriu.

        — Gato Gordo, você é um gênio!

        Gato Gordo ficou sem saber o que dizer. Olhou o cônsul pelo espelhinho do carro.

        — Não vou pedir o dinheiro, mas os cavalos, — disse Xenos. — Aqueles cavalinhos nossos, fortes e ágeis como cabritos monteses, devem ser perfeitos para esse jogo. Tenho certeza de que o presidente terá prazer em mandar-nos alguns.

        O treinador encontrou Dax quando ele saia do vestiário depois do jogo.

        — Acabei de falar com seu pai. Ele me garantiu que você terá os seus cavalos no ano que vem.

        — Foi mesmo?

        O treinador fez um sinal afirmativo:

        — Ele ainda está aqui?

        — Lá no fundo, perto do portão.

        Mas Dax já vira o carro e saiu correndo para lá. O pai saiu do carro e abraçou-o.

        — Por que não me disse que vinha, Papá?

        O pai sorriu. Dax estava crescendo. Já lhe batia no ombro. Mais um ano e poderia olhar de cima para ele.

        — Porque não sabia que poderia vir.

        — Fico muito contente de vê-lo aqui.

        Era a primeira vez que o pai aparecia na escola.

        — Há um lugar onde possamos tomar chá?

        — Na aldeia há uma pâtisserie.

        Entraram no carro.

        — O treinador me disse que o senhor lhe garantiu que terei meus cavalos no ano que vem.

        — Disse, sim.

        — E onde é que vamos conseguir o dinheiro? Não podemos fazer isso, Papá.

        O cônsul sorriu.

        — O presidente nos mandará quatro bons cavalos das montanhas.

        Dax olhou-o em silêncio.

        — Por quê? Há algum mal nisso?

        O rosto do pai ficara tão preocupado que Dax não teve coragem de dizer-lhe que bons cavalos de pólo precisavam de anos de treinamento. Apertou a mão do pai, sorriu e disse:

        — Mal nenhum. É magnifico!

 

        — Não seja bobo, disse Sergei. — Vá passar o verão conosco em Cannes. O pai de Robert tem lá uma vila e um barco.

        — Não. Tenho de trabalhar com os cavalos para que estejam em forma no outono.

        — Está perdendo o seu tempo, — disse Sergei positivamente. — Você nunca transformará aqueles pangarés das montanhas em cavalos de pólo.

        — O treinador acha que tenho uma chance.

        — Não sei por que seu pai não compra cavalos já treinados. Todo mundo sabe que vocês, sul-americanos, nadam em dinheiro.

        Dax sorriu. Sergei nem desconfiava da verdade.

        — Seria bom para o meu pais se os cavalos prestassem. Meu pai diz que isso poderia convencer os europeus de que podemos fazer outras coisas além de plantar café e bananas.

        — Bem, — disse Sergei, levantando-se. — Vou até a aldeia. Há uma garçonete nova na pâtisserie. Quer vir também?

        Dax sacudiu a cabeça. Havia outras coisas que ele poderia fazer com cinco francos.

        — Não. Tenho de estudar um pouco para os exames.

        Sentou-se à sua mesa depois que Sergei saiu. Havia três anos que estava na França. Sentiu-se inquieto, levantou-se e foi até a janela. Olhou para os gramados e os jardins bem-tratados.

        Uma onda de saudade encheu-lhe o peito. Desejou estar nas suas montanhas selvagens e incultas. Tudo na Europa era limpo e bem-arrumado. Não havia emoção em descobrir um novo caminho, uma maneira nova de descer as montanhas. Havia sempre as mesmas estradas.

        Toda a civilização parecia ser assim. Até seu pai, que era naturalmente disposto a observar as regras e as respeitava, nunca pensara que tudo pudesse ser tão fechado e estreito. A cada nova recusa, a cada decepção, ele parecia encolher-se mais para dentro de si mesmo. A traição de Ramirez tinha sido apenas o começo.

        Tinha havido outros incidentes, muito mais sutis e aniquilantes. As promessas feitas ao Corteguay de apoiá-lo na sua luta para libertar-se do domínio econômico dos ingleses e dos americanos não se haviam concretizado. Cada dia surgiam rugas novas no rosto de seu pai. Havia uma incerteza, uma hesitação que marcava sem dúvida o inicio da velhice. Aqueles três anos de insucesso haviam exigido dele um pesado tributo.

        Dax sentia tudo isso, e havia momentos em que queria dizer ao pai que aquela vida não era para eles e que deviam voltar imediatamente para os seus campos e as suas montanhas, para um mundo que compreendiam. Mas esses impulsos ficavam sufocados dentro dele. Sabia que o pai não escutaria, nem poderia escutar.

        Ainda era dominado pela determinação de cumprir a sua missão e a esperança de consegui-lo.

        Nisso bateram à porta do quarto.

        — Entre.

        A porta se abriu, e o barão de Coyne entrou. Era a primeira vez que se encontravam.

        — Sou o pai de Robert. Deve ser Dax.

        — Sim, senhor.

        — Onde está Robert?

        — Não deve demorar, senhor.

        — Posso sentar-me?

        Sem esperar uma resposta, o barão deixou-se cair numa cadeira. Correu os olhos em torno do quarto e disse:

        — As coisas não mudaram muito desde o tempo em que passei por aqui.

        — Acho que não.

        O barão olhou-o de súbito.

        — Já pensou que as coisas raramente mudam, por mais que a gente queira?

        — Não sei, Sr. Barão. — Dax não tinha muita certeza do que o barão estava querendo dizer. — Depende da coisa que queremos que mude.

        — Escute. Robert me disse que você talvez não possa passar o verão conosco.

        — Infelizmente, não. Mas sou-lhe muito grato por ter sido convidado.

        — Por que não vai?

        — Estou treinando alguns cavalos do Corteguay para jogarem pólo, — disse Dax, sentindo quanto a desculpa era esfarrapada.

        — Uma coisa muito louvável. Tenho muito interesse pelos resultados que conseguir. Se tiver êxito, isso poderá ser de muito valor para o seu pais. Mostrará à França que o Corteguay pode fazer outras coisas além de plantar café e bananas.

        Dax olhou para ele. Eram quase as mesmas palavras que seu pai havia dito. Sentiu-se mais animado. Se um homem como o pai de Robert pensava assim, as coisas talvez não fossem tão ruins quanto pareciam. Talvez ainda houvesse esperança para a missão de seu pai.

 

        Sylvie começou a tirar os pratos, e Dax levantou-se da mesa. Um momento depois, saiu. Arnouil e Gato Gordo se recostaram nas cadeiras. Gato Gordo preparou um cigarro.

        Arnouil ficou em silêncio algum tempo e depois colocou uma ponta de charuto na boca. Esperou que Gato Gordo acabasse de enrolar o cigarro e o acendesse.

        — O rapaz vive muito sozinho. Nunca ri.

        Gato Gordo soprou uma baforada de fumaça e não respondeu.

        — Ele não devia ter ficado aqui trabalhando durante o verão, — disse o treinador. — Devia ter ido com os amigos.

        — Os cavalos não estão dando certo?

        — Mais do que isso. Parecem feitos para o jogo de pólo. Será uma verdadeira revolução. Mas o pai dele não pode deixar de ver que um rapaz precisa divertir-se.

        Gato Gordo tirou o cigarro da boca e pensou que para um fumo francês até que aquele não era muito ruim. Só um pouquinho adocicado, talvez.

        — Dax não é como os outros rapazes, — disse ele ao treinador. — Algum dia, ele será uma pessoa importante em nossa terra. Talvez chegue até a ser presidente.

        — Bem, Napoleão também foi garoto. Mas não creio que ele tivesse deixado o seu destino privá-lo da sua mocidade.

        — Napoleão foi soldado porque quis. Ninguém o forçou a ser um guerreiro desde os seis anos de idade.

        — Foi o que aconteceu com Dax?

        — Sim. Dax não tinha ainda sete anos quando o próprio Presidente segurou a metralhadora enquanto Dax puxava o gatilho para fuzilar os assassinos da mãe e da irmã.

        O treinador ficou um momento em silêncio e disse:

        — Não admira então que ele não seja capaz de sorrir.

        A noite estava calma e o ar fresco com as primeiras brisas do oeste quando Dax chegou à cocheira. Os cavalos relincharam ao vê-lo chegar, e ele tirou o açúcar que sempre levava no bolso e deu um pedaço a cada um. Depois, afagou-os gentilmente. Os animais tornaram a relinchar.

        — Vocês devem estar saudosos como eu, murmurou — Dax. Sabia que eles não gostavam da cocheira. Preferiam a liberdade do pasto.

        — Dax? — Era Sylvie que falava da porta.

        — Estou aqui com os cavalos.

        — Que é que está fazendo? — perguntou ela, encaminhando-se para ele.

        — Achei que devia fazer-lhes um pouco de companhia. Devem estar com saudade da nossa terra e sentir-se muito sozinhos.

        — Você também sente saudades, Dax?

        Era a primeira vez que lhe faziam essa pergunta.

        — Às vezes.

        — Deixou alguém por lá?

        Dax pensou um momento em Amparo, a quem há três anos não via. Como estaria ela? Mas ele sacudiu a cabeça.

        — A bem dizer, não. Eu tinha nove anos quando uma garotinha disse que ia casar-se comigo. Mas já deve estar crescida e nem se lembra mais disso.

        — Tenho um namorado, — disse ela. — Está na marinha. Já há seis meses que não o vejo, e ele só deverá aparecer daqui a mais seis meses.

        Era a primeira vez que Dax pensava em Sylvie como uma moça. Até então, ela fora para ele apenas uma pessoa que andava pelas cocheiras, montava nos cavalos e participava das brincadeiras sem qualquer reserva. Tirando os cabelos compridos, não parecia haver nela nada de feminino, nem mesmo saliências arredondadas visíveis sob a camisa de homem com mangas arregaçadas que ela usava com calças de brim justas. De repente, ele percebeu a suavidade feminina de Sylvie.

        — Desculpe, — disse ele, sem saber ao certo por que lhe pedia desculpas. Mas achava que naquele momento ela parecia tão sozinha quanto os cavalos ou quanto ele mesmo.

        Os cavalos relincharam de novo. Dax tirou alguns torrões de açúcar e entregou-os a ela.

        — Querem comer açúcar da sua mão, Sylvie.

        Ela se aproximou das baias e os cavalos chegaram o focinho, ansiosos pelo açúcar. Ela riu quando um deles a empurrou e ela perdeu o equilíbrio, tropeçando para trás e indo bater em Dax. Este fechou involuntariamente os braços em torno do corpo dela.

        Ela voltou o rosto para ele, e os dois ficaram a se olhar por um momento. Depois, Dax a largou, sentindo uma contrição quase dolorosa na boca do estômago.

        — Acho que eles já comeram demais.

        — Já — disse ela.

        Parecia estar esperando.

        Dax sentiu o aperto no corpo, o latejar nas têmporas. Virou-se e começou a sair, passando por entre as baias.

        — Dax!

        Ele se voltou e olhou-a.

        — Também me sinto sozinha.

        Ele não se moveu. Ela foi até onde Dax estava e pousou a mão nele. Com um gemido quase frenético, ele a abraçou, e todas as tensões da mocidade e da solidão explodiram dentro dele.

        Mais tarde, estava deitado em silêncio no seu quarto ouvindo a respiração de Gato Gordo na outra cama. A tensão dentro dele tinha sido aplacada. De repente, ouviu no escuro a voz de Gato Gordo.

        — Andou com ela?

        Ele ficou tão surpreso que nem tentou negar.

        — Como é que sabe?

        — Nós dois só faltamos ver.

        — Nós dois? Você e o pai dela?

        — Claro — disse Gato Gordo, rindo. — Você pensa que ele é cego?

        — Ficou zangado?

        — Não tinha motivo nenhum para isso. O noivo dela está ausente há quase um ano. E nesta época do ano toda a potranca precisa ser bem servida. Além disso, ela tem idade bastante...

        — Como assim? Ela deve ser da minha idade.

        — Tem vinte e dois anos. Foi o pai mesmo que me disse.

        Vinte e dois anos, pensou Dax. Quase sete anos mais velha. Não era de admirar que houvesse tomado a iniciativa. Devia tê-lo julgado um idiota por haver esperado tanto. Sentiu-se de novo excitado ao lembrar-se do que havia acontecido entre eles. De repente, levantou-se da cama.

        — Aonde é que vai?

        Dax chegou à porta e riu. Aquilo era uma nova evasão, uma nova espécie de liberdade. Deveria ter descoberto isso há mais tempo.

        — Não foi você mesmo que me disse que uma vez só não chegava?

 

        Robert entrou na sala a tempo de ouvir o pai dizer:

        — Para que é que você quer uma piscina? Não tem o Mediterrâneo todo à sua disposição?

        Sua irmã Caroline fez uma cara de amuo. E quando o belo rostinho dela ficava assim, não havia quem lhe resistisse, inclusive o barão.

        — Mas é tão gauche, — disse ela, com o lábio inferior tremendo. — Todo mundo vai à praia.

        — Que diferença faz?

        — Papá! — exclamou Caroline, quase em prantos.

        O barão olhou para ela e, depois para o filho. Robert sorriu. Tinha experiência demais para tomar partido. A irmãzinha tinha uma maneira de agir toda pessoal.

        — Está bem, está bem, — disse por fim o pai. — Você terá a sua piscina.

        O rosto de Caroline floriu num sorriso. Ela beijou o pai e saiu correndo alegremente da sala, quase jogando ao chão o mordomo que ia entrando.

        — Monsieur Christopoulos deseja vê-lo, senhor.

        — Desculpe-me, papai. Não sabia que estava ocupado.

        O barão sorriu.

        — Não, Robert. Não saia, que isso não demora.

        Robert sentou-se numa cadeira da biblioteca do outro lado da mesa do pai. Viu o visitante entrar e sentar-se. O nome do homem não lhe parecia de todo desconhecido, mas não se interessou muito por ele. Apanhou uma revista e começou a folheá-la distraidamente, quando alguma coisa que o pai disse lhe chamou a atenção.

        — Já pensou no Corteguay?

        Robert levantou a cabeça.

        — Registrar os seus navios ali seria mais valioso do que registrá-los no Panamá.

        — Não compreendo como, — replicou o visitante com um forte sotaque grego.

        Robert consultou a memória, e o nome lhe surgiu perfeitamente identificado. Christopoulos. Era o jogador que, em Zographos e André, dirigia o sindicato que controlava o vatout em todos os cassinos de Monte Carlo e Biarritz. Que teria um jogador a ver com navios?

        — Em caso de guerra, — disse o pai dele, — o Panamá teria de declarar-se ao lado dos Estados Unidos. O Corteguay não tem laços dessa espécie. Nem com a Inglaterra, nem com os Estados Unidos, nem com ninguém. É o único pais sul-americano que pode manter a sua neutralidade, porque não corre o perigo de perder a ajuda externa ou o apoio financeiro, porque são coisas que já lhe foram negadas.

        — Mas em caso de guerra, os Estados Unidos procurariam naturalmente aproximar-se do Corteguay. Como se pode ter certeza de que lá resistiriam a isso?

        O barão sorriu.

        — Uma frota mercante claramente neutra com base nas Américas, com o direito de transitar em todos os mares livres de ataques de qualquer dos lados, valeria a sua tonelagem em ouro. Deve-se tratar desde já de assegurar essa neutralidade.

        — Isso poderia custar muito caro, — disse o grego pensativamente, olhando as unhas manicuradas. — Não é fácil sustentar um pais.

        — É verdade. Mas é isso exatamente o que deve ser feito, — disse o barão, levantando-se e dando a entender que a conversa havia terminado. — Minha participação no projeto depende disso.

        Christopoulos levantou-se também.

        — Darei essa informação aos meus companheiros. Muito lhe agradeço ter-me dado esses momentos do seu precioso tempo.

        — Não tem o que agradecer, — disse o barão, sorrindo. — Foi um prazer sentar-me a uma mesa em sua companhia sem um baralho entre nós.

        — Sempre tive a impressão de que sem as cartas sou uma criança inocente em suas mãos.

        O barão riu. Christopoulos, considerado o maior tailleur do mundo, não era muito dado a elogios.

        — Pois hoje à noite estarei no cassino para dar-lhe uma oportunidade de recuperar a confiança.

        — A bientôt. — Christopoulos apertou a mão do barão e saiu.

        Quando a porta se fechou, o barão olhou para o filho, e Robert se levantou.

        — Acha mesmo que vai haver guerra, Papai?

        — Infelizmente, acho, mas não já. Daqui a cinco ou seis anos, talvez. Mas é infalível. A Alemanha está ansiosa por uma revanche, e Hitler só se manterá no poder se der essa oportunidade ao povo.

        — Mas deve haver um meio de impedi-la. Se o senhor pode ver isso com tanta antecedência...

        — Mas nem todo mundo concorda comigo. Por que acha que o matriculei em Harvard e sua irmã em Vassar?

        Robert não respondeu.

        — Como está o seu amigo que joga pólo?

        — Dax?

        — Sim. De acordo com os jornais, a maneira de jogar dele foi a sensação esportiva do ano na Europa.

        — Dax está muito bem. Sabia que ele foi convidado para integrar a equipe nacional da França nos encontros internacionais?

        — Mas como reserva. É ainda um pouco moço.

        — Tem dezessete anos. Estão usando a idade dele como pretexto. Têm é medo dele.

        — Talvez, Robert. Não foi sem razão que lhe deram o apelido de Le Sauvage. Costa ainda está no hospital, pois seu amigo o fez cair deliberadamente do cavalo para impedi-lo de fazer um gol.

        — Dax joga para vencer. Diz ele que não há outra razão para o jogo.

        — Sempre ouvi dizer que havia uma coisa chamada espirito esportivo.

        — Para Dax, não. O campo de pólo é para ele como a selva de sua terra natal. Diz ele que perder ali é morrer. Sabia que o pai dele é o cônsul do Corteguay?

        — Ouvi dizer. Que tal é ele?

        — É muito diferente de Dax. Delicado e muito mais moreno. Só tem um braço. Dax diz que ele o perdeu na explosão de uma bomba durante um atentado contra o presidente.

        — Algum dia teremos de convidar os dois, — disse o barão displicentemente. — Gostaria de conhecer mais a terra deles.

        A própria Madame Blanchette abriu a porta.

        — Monsieur Christopoulos está à sua espera.

        Marcel entrou. Aquilo confirmava as suas suspeitas de que o sindicato não se limitava a controlar casas de jogo na França. Acompanhou-a até um pequeno salão. O grego levantou-se.

        — Obrigado por ter vindo, Monsieur Campion. Tenha a bondade de sentar-se.

        — Não estendeu a mão, nem Marcel deu qualquer demonstração de haver notado isso. Sabia o seu lugar. Sentou-se numa poltrona e ficou esperando, curioso por saber por que o jogador mandara chamá-lo. Não teve de esperar muito.

        — Soubemos que o jogo na Flórida vai ser proibido. Temos interesses também em Cuba e no Panamá, mas estamos pensando no Corteguay. Desde que as condições sejam interessantes, é claro.

        Marcel fez um sinal de assentimento, mas nada disse. Na aparência, era coisa legitima, mas na realidade não tinha muito sentido. O Corteguay estava muito longe dos Estados Unidos para atrair os turistas. Cuba, a apenas cento e quarenta quilômetros da costa da Flórida, era realmente o que lhes interessava. Mas, se era nisso que Christopoulos queria que ele acreditasse, não custava nada fazer-lhe a vontade.

        Como que sentindo a franqueza do que dizia, o outro continuou:

        — Nós sabemos sem dúvida que o Corteguay e os Estados Unidos não mantêm no momento relações muito amistosas. Mas estamos pensando no futuro. O tempo costuma alterar as circunstâncias. Daqui a dez anos, tudo poderá ser diferente.

        — De fato, — murmurou Marcel.

        — Temos de olhar muito para a frente no nosso ramo de negócio. Julga que talvez o governo do Corteguay possa ter receptividade?

        — É difícil, — murmurou Marcel.

        — O país é pobre. Não acha que aproveitariam as oportunidades de renda que nós poderíamos proporcionar?

        — Bem, — disse Marcel com um sorriso, —, a questão toda se resume no seguinte: o Corteguay precisa de assistência agora e não de promessas para o futuro.

        — Talvez certas pessoas de posição pudessem exercer influência — sugeriu o jogador. — Conversei sobre o assunto certa vez com o ex-cônsul Ramirez. Ele me pareceu muito interessado.

        Marcel sabia muito bem que Ramirez aceitara cem mil francos do sindicato exatamente a esse titulo. Convenceu-se então de que era naquilo mesmo que Christopoulos estava interessado. Não havia outro motivo para aquele encontro.

        — O Sr. Xenos é uma pessoa muito diferente do cônsul anterior.

        — Mas deveria receber bem alguma assistência financeira. Consta que ainda está pagando dividas bem avultadas.

        — É verdade, — disse Marcel. — Mas o Sr. Xenos é um homem excepcional, pois é honesto e idealista. A simples ideia de tirar algum proveito pessoal do fato de representar seu país é para ele uma coisa repugnante. Além disso, seria francamente contrário a qualquer projeto que pudesse tirar um centavo que fosse da receita dos seus pobres concidadãos.

        — Poderíamos proibir a entrada de naturais do país, como temos feito em alguns lugares.

        — Nesse caso, os benefícios do seu projeto seriam extremamente duvidosos. O cônsul deve saber muito bem que não haverá outra fonte de dinheiro para as mesas de jogo.

        O jogador ficou um momento em silêncio e então perguntou:

        — Que espécie de proposta acha que poderia interessar ao cônsul?

        As respostas vieram prontamente:

        — Indústria, comércio, investimentos, qualquer coisa que ajude o Corteguay a exportar os seus produtos. A economia do país é baseada na agricultura.

        — Acha que uma linha de navegação seria interessante para eles?

        — Sem dúvida. Creio que o transporte barato para os seus produtos de exportação teria para o país extraordinário interesse.

        — Tenho um sobrinho em Macau, — prosseguiu o jogador. — Administra os cassinos ali. Mas tem também uma empresa de navegação, quatro cargueiros de origem japonesa. Não trabalham tanto quanto seria de desejar, e sei que ele anda à procura de novos mercados. Talvez eu possa fazê-lo interessar-se pela ideia.

        — É possível que esteja ai uma solução. Quase com certeza, com isso poriam o pé na porta. O cônsul poderia estudar então a outra proposta, uma vez que isso fosse conseguido.

        — Compreende naturalmente, Monsieur Campion, que, se esta nossa conversa der algum resultado, sua colaboração não será esquecida?

        — Muito obrigado. É extrema generosidade da sua parte.

        — Diz que Christopoulos está querendo estabelecer uma linha de navegação em troca de privilégios de jogo? — perguntou o barão.

        — Marcel fez um sinal afirmativo.

        — E já tocou nessa ideia ao cônsul?

        — Não, Excelência. Achei que primeiro devia vir dizer-lhe.

        — Bien, fez exatamente o que devia. Acho que já está na hora de eu conhecer o cônsul.

        — Oui, monsieur. Quer que fale com ele para marcar uma hora?

        — Não. Ele já tem hora marcada com um dos meus bancos. Creio que é melhor que nos conheçamos nessas circunstâncias.

        — Como quiser, Excelência.

 

        — Caroline é uma cadela! — disse Sylvie, rolando na cama o esbelto corpo de garota, tremendo de raiva. Tirou um cigarro do maço na mesinha de cabeceira e acendeu-o.

        — Parece que está com ciúmes, — disse Dax, levantando a cabeça do travesseiro.

        — Não estou com ciúmes coisa nenhuma. Apenas não gosto daquela cadela, só isso.

        — Por quê?

        — Porque ela pensa que com o dinheiro do pai pode comprar tudo. Vi bem como ela olhou para você, depois do jogo na semana passada. Parecia um gato diante de um pote de creme.

        — Você está com ciúmes, — disse Dax. — Por quê? Eu não tenho ciúmes de Henri.

        — Ele não está presente bastante para você ter ciúmes dele.

        — Nem mesmo quando ele está. Lembre-se de que eu estava no quarto ao lado e ouvi tudo o que aconteceu e, apesar disso, não tive ciúmes!

        — Não e você é um monstro! — Ela se lembrava bem daquela noite. Fizera de propósito todo o barulho que era possível sem acordar a casa toda. E Dax não tinha dado o menor sinal de interesse nem de uma maneira, nem de outra. — Não me liga absolutamente! Para você, eu podia ser uma pedra. E agora vai passar uma semana toda de férias na vila dessa gente em Cannes. Sei muito bem o que é que vai acontecer!

        — Se sabe, me diga, porque eu não sei.

        — Ela vai fazer você perder a cabeça. Conheço bem o tipo.

        — E não conta com a minha pessoa para nada? Afinal de contas, eu só corresponderei se quiser.

        Sylvie olhou para ele.

        — Você nada poderá fazer. Desde já. Olhe para você. Basta falar nela e já está excitado. Você é um animal!

        Dax riu.

        — Não é nada disso. Que é que você pode esperar ficando assim nua diante de mim e com esse cheiro gostoso de pecado?

        Ela olhou um instante para ele, apagou o cigarro no cinzeiro e ajoelhou-se na cama. Tocou-o ternamente.

        — Quelle armure magnifique, — murmurou. — Tão pronta, tão forte. Já é tão grande que não me cabe nas mãos.

        Desceu a cabeça para ele e Dax sentiu na carne o seu calor. Puxou a cabeça dela contra ele.

        Dax sentiu a latejante agulhada da dor correr-lhe pelas virilhas. Deitou-se iradamente de bruços para que a sua angústia não se tornasse visível a todos. Sylvie tinha razão. Que cadela! Provocava, provocava e depois fugia.

        Murmurou uma porção de nomes em inglês. Preferia dizer nomes feios em inglês. Havia um tom rude e direto nas obscenidades anglo-saxônias. Exprimiam exatamente o que queria dizer. O francês era muito evasivo. O espanhol tinha palavras muito compridas. Perdia-se o fôlego antes de se dizer o que se queria. O inglês, sim, é que era uma língua econômica. Dizia-se muito com poucas palavras.

        Ouviu o riso de Caroline e voltou-se para olhá-la. Ela estava de pé à beira da piscina falando com Sergei e com o irmão dela, Robert. A seda úmida do seu pequeno maiô de uma só peça se colava aos seios pequenos e à barriguinha levemente arredondada com uma espécie de despreocupação. Ela tomou a rir e Dax viu que o estava olhando pelo canto dos olhos.

        Deu-lhe as costas. Que fosse para o inferno! Ela sabia exatamente o que estava fazendo com ele. Olhou através do gramado para o lugar onde o pai dele e o barão estavam sentados à sombra de uma glicínia com seu primo inglês.

        Era estranho notar como os dois eram diferentes. Era difícil acreditar que tivessem um antepassado comum, o apavorado negociante polonês que havia fugido do pogrom no gueto de Varsóvia. Viajara à noite através da Europa coberta de neve, levando cosida na roupa uma fortuna em brilhantes. E a previsão do homem fora fantástica. Havia mais de cem anos mandara o filho mais velho para a Inglaterra, enquanto ele e o mais moço ficaram na França, onde se haviam estabelecido como agiotas e donos de casas de penhores. Tinham tratado calmamente dos seus negócios apesar das guerras que ensanguentaram a Europa e tinham prosperado até que os bancos De Coyne na França e o Banco Coyne em Londres se tomaram dos mais sólidos da Europa, chegando a rivalizar com os dos Rotschilds.

        Os dois ramos da família tinham recebido honrarias nos países adotivos. O avô do barão recebera o título de nobreza de Napoleão, e Sir Robert Coyne, de quem o amigo de Dax tinha o nome, fora feito cavaleiro pelo Rei da Inglaterra por serviços prestados durante a Grande Guerra.

        O barão havia acabado de falar e Sir Robert estava respondendo. Era alto e louro e os seus olhos azuis se mostravam muito frios enquanto ele falava com o seu primo baixo, moreno e de olhos castanhos. Só o pai dele parecia calado e pensativo. Que conversa seria aquela?

        Tudo parecia convergir para aquele encontro. As pressões urgentes do Corteguay haviam chegado ao máximo. Se não fosse possível obter financiamento rapidamente, seria extremamente duvidoso que o Presidente conseguisse manter-se no poder em face da fome do povo.

        A água fria caiu em cima de Dax com um choque. Sentou-se no mesmo instante. Caroline estava de pé, olhando para ele e rindo. Ele fez menção de pegá-la e ela correu, mergulhando na piscina. Esquecendo-se de que a água era fria demais para o seu gosto, ele mergulhou atrás dela.

        Ela deu um grito fingido de medo, ao mesmo tempo que se afastava dele em rápidas braçadas. Saiu da piscina pelo outro lado antes que ele pudesse alcançá-la. Dax sabia que não a alcançaria. Ela nadava muito melhor do que ele. Ficou da piscina olhando furiosamente para ela.

        — Covarde! — exclamou ele. — Teve medo de deixar que eu a pegasse! Sabia o que iria acontecer!

        — Que é que iria acontecer? — perguntou ela, erguendo a cabeça num desafio.

        — Você sabe, — disse ele sem poder tirar os olhos dos seios que o maiô revelava perfeitamente.

        — Nada iria acontecer, — disse ela, sorrindo, muito segura de si.

        — Tem certeza?

        Ela fez um sinal afirmativo.

        — Tem coragem de encontrar-se comigo esta noite no vestiário da piscina depois que todos forem dormir e ver se acontece alguma coisa ou não?

        Ela o olhou por um momento e disse:

        — Está bem. Esta noite, no vestiário da piscina.

        Depois de dizer isso, afastou-se. Ele ainda estava dentro da água olhando para ela quando Sergei chegou nadando ao lado dele.

        — É a sua vez, amigo.

        — A minha vez? Que quer dizer com isso?

        Sergei riu.

        — Acabará em jejum e terá de contentar-se com isso, como todos nós.

        Dax não respondeu. Ainda a acompanhava com os olhos quando ela entrou no vestiário da piscina.

        Mais tarde naquela noite, ambos ouviram o ruído. Eram passos no passeio de cimento em tomo da piscina. A voz de Caroline se elevou um pouco na escuridão.

        — Quem pode ser?

        Ele tapou-lhe com força a boca.

        — Silêncio!

        Os passos se aproximaram e depois hesitaram. Os dois ficaram de respiração presa. Por fim, os passos se afastaram e desapareceram dentro da noite.

        — Quase, — murmurou ele com um suspiro que por pouco se transformou num grito porque ela cravara os dentes na mão dele.

        — Por que fez isso?

        Você me machucou a boca e eu resolvi machucá-lo também.

        — Cadelinha! — exclamou Dax, estendendo as mãos para ela.

        Mas Caroline já se havia levantado e, à luz fraca que vinha da janela, ele a viu compor o vestido.

        — Acho bom sairmos daqui.

        — Um barulhinho e você fica apavorada!

        — E você não está?

        — Não. E, além disso, ainda não acabei.

        Ela se aproximou e ele sentiu-lhe a mão nas calças. Ela desabotoou-o rapidamente e ele sentiu a quente umidade da sua mão.

        Caroline!

        — Um estranho sorriso chegou aos lábios dela.

        — Não está com medo, está?

        — De que iria ter medo?

        Dessa vez, ele não pôde deixar de gritar de dor. As unhas compridas de Caroline se enterraram na sua carne e, no mesmo instante, ela correu para a porta e abriu-a.

        — Sinto muito, Dax.

        Ele não respondeu.

        Sentiu de novo um riso secreto na voz dela.

        — Você não podia pensar que eu fosse tão fácil quanto a filha de um cavalariço, não é mesmo?

        Saiu então e ele ficou sozinho. Sentiu um ímpeto de raiva crescer por dentro dele enquanto se encaminhava para a pia e abria a torneira. Sergei morreria de rir se chegasse a saber do que havia acontecido.

        Mais zangado do que nunca, enxugou-se e saiu. Olhou um momento para a vila às escuras e tomou o caminho da estrada. Cannes estava apenas a um quilômetro de distância. Encontraria mulheres por lá. Isso nunca faltava. Ela que fosse para o inferno. Tentasse as suas artes de provocação com Sergei e até com o irmão, se quisesse. Os dois deviam ser civilizados bastante para servir a esses pequenos divertimentos dela.

        Um vulto emergiu de repente da escuridão e começou a andar ao lado dele. Não precisou de olhar para saber quem era.

        — Aonde é que vai?

        — Foi você que andou, por perto do vestiário? — perguntou, irritado.

        — Será que você não me conhece? — perguntou Gato Gordo, rindo, — Se fosse eu, você não me ouviria.

        — Quem foi então?

        — Seu pai.

        — Meu pai? — exclamou Dax, com a sua raiva apavorada. — Ele sabia que eu estava lá dentro?

        — Sabia. É por isso que estou aqui. Ele quer falar imediata- mente com você.

        Dax seguiu em silêncio Gato Gordo até a casa. O pai dele levantou a vista ao vê-lo entrar.

        — Que estava fazendo com aquela moça lá dentro?

        Dax olhou para o pai. Poucas vezes tinha-o visto tão zangado. Não respondeu.

        — Você está louco? Não pensou no que aconteceria se o surpreendessem lá com ela? Acha que o barão ainda iria conceder um empréstimo ao pai do homem que lhe desonrou a filha?

        Dax continuou calado.

        — Tudo estaria perdido. As negociações dariam em nada. Tudo aquilo por que lutamos e sofremos estaria arruinado. E tudo por culpa da sua insensatez!

        Dax olhou para o pai e pela primeira vez notou o tremor das mãos, os sinais de velhice e de exaustão no rosto.

        — Desculpe, Papá, — disse ele, aproximando-se. — Mas não tem motivo nenhum para preocupar-se. Não toquei nela.

        O pai acalmou-se. O que havia de certo na sua vida era a sinceridade existente entre eles. Sabia que o filho não lhe iria mentir.

        Tem toda a razão, Papá. Fui um insensato. Mas isso não tornará a acontecer.

        O pai abraçou-o e murmurou:

        Dax, Dax! Em quantos mundos você tem de aprender a viver por minha causa?

        Dax sentiu a angústia e a fragilidade do pai. De repente, viu-se tomado de uma tristeza e teve uma compreensão que ainda não conhecera. Beijou ternamente o rosto do pai e disse:

        Só quero viver no seu mundo, meu pai. Sou seu filho.

        Era a primeira vez em que Dax compreendia que o pai estava morrendo.

 

        Não havia dor, embora Jaime Xenos soubesse que estava morrendo. Olhou para o padre. Havia tanto que ele queria explicar. Mas as palavras lhe passavam pelo cérebro e não encontravam meio de chegar-lhe à boca.

        Estava cansando. Nunca se sentira tão cansado assim. Virou a cabeça para o travesseiro e fechou os olhos. O murmúrio do padre foi-se amortecendo. Talvez pudesse dizer o que queria depois de descansar um pouco. Não havia medo. Apenas uma grande tristeza. Havia tanto para fazer, tanto que ele ainda poderia fazer. Mas agora tudo isso havia acabado. Não havia mais tempo.

        Dax. A palavra parecia queimar-lhe a cabeça. Dax sozinho. E ainda era tão moço! E tão cheio de vida! Havia tantas coisas que ele ainda não lhe ensinara. Tantas coisas que o rapaz precisava saber. Os problemas do mundo não se resolviam apenas com a simples energia física da mocidade. Queria dizer-lhe isso. E muito mais. Mas era tarde.

        Tarde demais. Adormeceu.

        Dax atravessou o quarto para onde estava o médico.

        — Está dormindo, — disse o médico. — É um bom sinal.

        Dax saiu do quarto com o médico, deixando o pai em companhia do padre. Gato Gordo estava junto à porta.

        — Como vai ele?

        — No mesmo — respondeu Dax e voltou-se para o médico.

        — Quando...

        — Talvez esta noite, talvez amanhã de manhã. Ninguém pode dizer.

        — Não há possibilidade?

        — Há sempre possibilidade.

        Marcel apareceu.

        — Um repórter do Paris Soir está ao telefone.

        — Diga que não há notícias.

        — Não foi por isso que ele telefonou.

        — Por que foi então?

        Marcel não olhou para ele.

        — Querem saber se vai continuar a jogar pólo.

        Dax fechou o rosto e cerrou os punhos.

        — É só nisso que eles pensam. Um grande homem está morrendo e eles só se preocupam com os seus divertimentos imbecis?

        Lembrou-se de que os repórteres lhe haviam dado o nome de “Selvagem”, depois do jogo com a Itália, quando ele fizera dois italianos caírem e um deles, gravemente ferido, tivera de ser internado no hospital.

        Haviam-no cercado depois, fazendo perguntas.

        — Como se sente em relação aos dois homens que se machucaram?

        — Pouca sorte deles, — respondeu displicentemente. — Isso não é esporte para quem não sabe manter-se na sela.

        — Parece que não se importa com o que pode acontecer a eles.

        — E devo me importar? A mesma coisa pode acontecer comigo todas as vezes que entro em campo.

        — Mas não aconteceu com você, — disse um repórter. — Sempre acontece com alguém do outro time.

        — Que quer dizer com isso? — perguntou Dax, friamente.

        — Parece estranho que você sempre se envolva num acidente quando os adversários vão marcar um gol. E são sempre eles que se machucam e não você.

        — Está por acaso sugerindo que eu faço isso de propósito para machucá-los?

        — Não, mas...

        — Jogo para vencer e isso significa não deixar o outro lado fazer gols se estiver em meu poder impedi-lo. Não sou responsável pelo fato de que os outros não saibam montar.

        — Mas deve haver espírito esportivo.

        — Essa         história de espírito esportivo é para quem gosta de perder. A mim só me interessa vencer.

        — Ainda que mate alguém?

        — Ainda que me matem! — retorquiu Dax.

        — Mas o pólo é um esporte e não uma guerra! — exclamou outro repórter.

        — Como é que sabe disso — perguntou Dax. — Já esteve dentro de um campo com meia tonelada de animal e de homem avançando sobre você? Experimente um dia e mudará de opinião.

        Naquela mesma noite, fora chamado ao telefone na hora do jantar. Era um dos repórteres que lhe haviam falado à tarde.

        — Sabia que o italiano acaba de morrer no hospital?

        — Não.

        — É só isso que tem para dizer? Nem ao menos diz que sente o que aconteceu?

        — Dizer isso para quê? Faria o homem voltar à vida?

        E havia batido o telefone.

        Era estranho que se lembrasse de tudo isso naquele momento em que o pai estava morrendo. Nada podia alterar esse fato. Nem a sua volta apressada de Londres depois do jogo entre a França e a Inglaterra. Nem mesmo a notícia do contrato sobre os navios, tinha tido mais importância do que qualquer outra coisa. Tudo isso chegara tarde demais.

        A única modificação resultante da publicidade fora o aumento do público. Todas as localidades para o jogo seguinte tinham sido vendidas e quando os times entraram em campo houve um murmúrio nas arquibancadas. Dax levantou a cabeça surpreso e olhou para Sergei que ia montado ao seu lado.

        O russo sorriu.

        — Você é um astro. Essa gente toda está aqui para vê-lo.

        Dax sentiu um frio correr-lhe pela espinha.

        — Vieram ver-me matar alguém.

        — Ou ser morto por alguém, — acrescentou o russo.

        O público foi quase atendido. Já para o fim do quarto chukker, houve um choque no centro do campo e três cavalos caíram, com Dax entre eles. Fez-se completo silêncio enquanto os outros dois jogadores se levantaram e saíam do campo. Mas houve um murmúrio geral quando Dax se levantou. Olhou um instante para as arquibancadas e então virou-se prontamente para ajudar o seu cavalo a levantar-se.

        O cavalo ficou tremendo, com os flancos arquejantes e Dax carinhosamente lhe afagou o pescoço.

        — Nós os logramos desta vez, hem, amigo?

        Gato Gordo entrou então no campo com outro animal. Houve alguns aplausos quando ele tornou a montar. Quando ele, zombeteiramente, deu adeus, a ovação foi estrondosa.

        — Não compreendo, — disse ele, parando ao lado de Sergei.

        — Nem procure compreender, Dax. Você agora é um herói!

        Até os jornais reconheceram o fato e no fim daquele ano ele foi incorporado como titular à equipe nacional da França. Tomou-se o mais jovem jogador com um handicap de oito gols a entrar num campo. Estava a um mês do seu décimo oitavo aniversário.

        Mas como tudo isso lhe parecia vazio naquele momento em que esperava a morte do pai. Tudo. Todos os planos que lhe tinham parecido tão importantes. Lembrou-se de uma noite na escola, perto do fim do ano escolar. Os três estavam juntos no quarto.

        Tinha-se recostado na cadeira e pusera os pés em cima da mesa.

        — Como se saiu nos exames, Sergei?

        — Não sei, — disse Sergei, franzindo o rosto. — A última prova foi bem difícil para mim.

        Dax olhou para Robert. Quase não havia necessidade de perguntar-lhe. Nos últimos três anos, Robert sempre fora o primeiro da classe. Estava arrumando os livros.

        — Como se sente, Robert?

        Sei lá! Satisfeito e, contudo, um pouco triste. De certo modo, vou sentir saudades disto aqui!

        — Pois eu não! — gritou Sergei. — É com verdadeira alegria que vou dar o fora!

        — E quais são os seus planos, Sergei?

        — Que planos? Não haverá mais escola gratuita para mim. Não conseguirei mais bolsas. Todos agora lá acham que os comunistas não vão sair mais do poder. Quem é então que quer saber de um russo branco?

        — Que é que vai fazer então? — perguntou Robert. — Vai trabalhar?

        — Em quê? Que diabo é que eu posso fazer? Arranjar um emprego como o de meu pai? Ser porteiro de um hotel ou de um cabaré?

        — Mas terá de fazer alguma coisa, — disse Robert.

        — Talvez vá para Harvard como você, — disse Sergei sarcasticamente, — ou acompanhe Dax para a escola militar de Sandhurst. Mas quem conseguirá isso para mim? O general meu pai?

        Robert ficou calado. Sergei olhou-o e pediu desculpas delica-damente.

        — Não tive a intenção de ser grosseiro.

        — Não tem importância, — murmurou Robert.

        — A verdade é que eu já sei o que vou fazer, — disse Sergei.

        — Que é?

        — Vou-me casar com uma americana rica. Parece que elas gostam de príncipes.

        — Mas você não é príncipe, — disse Dax, rindo. — Seu pai é conde.

        A diferença não é muita. Para elas, um título é um título. Lembra-se daquela da festa naquela noite? Quando ficamos sozinhos, ela olhou para mim e disse com uma voz reverente: “É a primeira vez que vejo um príncipe nu”. “E sou diferente dos outros?”, perguntei-lhe. “É, sim”, respondeu ela. “É púrpura, púrpura real!”

        Quando as risadas cessaram, Robert perguntou a Dax:

        — E você?

        — Acho que vou para Sandhurst. Está tudo arranjado e meu pai quer que eu vá.

        — Esses ingleses são assim mesmo! — exclamou Robert, irritado. — Só lhe concederam matrícula porque querem que você jogue pólo para eles!

        — Que diferença faz? — perguntou Sergei. — Eu bem que gostaria de ir pelo mesmo motivo.

        — Meu tio é que deve ter conseguido isso, — disse Robert. — Viu como ele ficou entusiasmado quando esteve aqui no ano passado e viu você jogar.

        Meu pai pensa que isso pode concorrer para melhorar as relações entre a Inglaterra e o Corteguay. Talvez consigamos mesmo a linha de navegação.

        — Julguei que tudo estivesse resolvido quando meu pai organizou a companhia. Gastaram cinco milhões de dólares para obter os direitos.

        — Mas os navios não vieram. Parece que aquele jogador grego havia arrendado os navios aos ingleses antes de saber que o negócio estava fechado com o Corteguay.

        — Alguém saiu logrado.

        Seu pai e o meu. Seu pai, especialmente. O que ele conseguiu com os cinco milhões de dólares foi uma licença de importação e exportação que lhe garante a comissão de 5% sobre todos os fretes. Mas isso pouco vale quando não há navios.

        Ficaram em silêncio durante algum tempo. Embora ambos estivessem pensando a mesma coisa, nenhum disse uma palavra a este respeito. Era evidente demais.

        Foi Sergei que quebrou o silêncio.

        — Ainda temos neste verão dez jogos até começar o outono. Isso significa pelo menos umas quarenta festas e quarenta pequenas diferentes para levarmos para a cama. Tudo pode acontecer.

        — Eu sei o que é que vai acontecer.

        — Que é?

        Dax esboçou um sorriso.

        — Você acabará com uma doença púrpura real!

 

        O cônsul entrou no escritório a passo lento, apoiado na bengala.

        — Bom dia, Marcel.

        Marcel levantou os olhos do jornal que estava dobrando cuidadosamente e colocou no centro da mesa do cônsul.

        — Bom dia, Excelência.

        Jaime olhou para o jornal.

        — Venceram?

        Marcel sorriu.

        — É claro. E Dax voltou a fazer mais pontos. Todos o consideram um herói.

        O cônsul sentou-se à mesa e pegou o jornal. Estava cheio de elogios a seu filho. Sacudiu a cabeça.

        — Isso não me agrada muito. Toda essa atenção. Isso não serve para quem é tão moço.

        — Não fará mal algum a Dax. Apesar da idade, tem muito juízo.

        — Tomara que assim seja, — disse o cônsul e mudou de assunto. — Já chegou alguma resposta de Macau sobre os navios?

        — Ainda não.

        — Não compreendo. Ouvi dizer que os ingleses estavam ansiosos por liberá-los. Os navios estão parados no porto. E até agora, silêncio.

        — Essas coisas demoram.

        — Tanto tempo assim? Já faz um mês que Sir Robert prometeu apressar as coisas em Londres. Para os ingleses, o tempo não quer dizer nada. Para nós, tem uma importância enorme.

        — A última carta de Sir Robert dizia que ele estava-se esforçando ao máximo.

        — E está mesmo?

        — O dinheiro que o barão empregou no contrato dos navios era metade dele.

        — Mas ele é também diretor das linhas inglesas.

        — Dois milhões e meio de dólares são dinheiro demais para se perder.

        — Ele poderia perder muito mais se os ingleses não tivessem mais o direito de embargar os nossos embarques.

        O secretário não respondeu.

        O pai de Dax recostou-se cansadamente na cadeira.

        — Acho às vezes que não sou o homem para este lugar. Tudo é muito complicado. Não há ninguém que diga o que realmente pensa.

        — Ninguém poderia fazer melhor, Excelência. É que essas coisas são mesmo demoradas.

        — Talvez seja verdade, — disse o cônsul com um sorriso triste. — Mas eu não posso esperar muito.

        Marcel sabia o que ele queria dizer. O cônsul ficava dia a dia mais frágil. A estrutura outrora quase gigantesca do homem como que se encolhera e enfraquecera. Passara a só andar de bengala. E não se tratava de uma afetação de diplomata, como o cônsul dissera, brincando. Além disso, estava mais uma vez resfriado e devia estar na cama.

        — Vamos mandar outra carta para o Presidente, — disse o cônsul. — Quero atualizar as informações que ele tem. Talvez ele tenha mudado de ideia acerca da conveniência de mandar Dax para a escola inglesa.

 

        Foi com sentimentos complexos que Dax entrou no campo inglês. Era a última vez que defenderia as cores da França. No ano seguinte, estaria jogando pelos ingleses e por Sandhurst. Olhou para as arquibancadas e viu Sir Robert e suas duas filhas. As moças deram-lhe adeus e ele respondeu.

        Sergei riu.

        — Você está arrumado, hem? Qual é a que vai pegar primeiro?

        — Você está louco? Para mim já chega o que aconteceu com Caroline. Meu pai me mataria.

        — A mais lourinha parece que vale a pena até de se morrer por ela. E parece caidinha por você.

        Ouviu-se o apito soar no campo. O time inglês já estava presente.

        — Vamos, — disse Sergei. — Venha conhecer os seus futuros companheiros de equipe. E ensine-lhes logo como é que se joga.

        A festa naquela noite foi na casa de Sir Robert em Londres. Os ingleses haviam jogado bem mas sem imaginação e perderam. Mas o próprio Dax teve de reconhecer que eram bons esportistas. O capitão inglês parecia completamente sincero quando foi dar parabéns pela vitória aos franceses.

        Dax estava sozinho junto às portas que davam para o jardim, observando as danças. Sergei, que dançava com uma loura alta, piscou-lhe o olho. Dax não pôde deixar de rir. Sergei já havia escolhido a sua presa para aquela noite.

        — Está-se divertindo?

        Dax voltou-se e viu Sir Robert.

        — Muito. Obrigado, senhor.

        Sir Robert sorriu*

        — Creio que gostará disto aqui. Pode ser que não tenhamos estilo como os franceses, mas tentamos compensar isso com um pouco de conforto.

        Dax estava começando a gostar da reserva inglesa. Não conhecia uma casa mais luxuosa do que aquela. Nem a casa do barão em Paris podia comparar-se com ela.

        — Ninguém poderia desejar mais, Sir Robert. Tudo é perfeito.

        — Peço-lhe que considere esta casa como sua enquanto estiver em Sandhurst. Já dei ordens para que lhe preparassem um apartamento e estamos à sua espera para o fim-de-semana no campo.

        — Muito obrigado, senhor. Não sei mesmo o que dizer.

        — Então não diga nada. Considere-se em casa. Recebi uma carta de seu pai esta manhã.

        — Como está ele?

        — Seu pai nunca fala muito de si. A carta só falava de negócios. Mas, a propósito, como vai ele de saúde?

        — Infelizmente, não vai muito bem. Na verdade, não sei se devo deixá-lo desta vez. Talvez eu pudesse aliviar-lhe um pouco o trabalho se ficasse em casa em vez de vir para Sandhurst neste ano.

        Sir Robert olhou-o com alguma hesitação e disse:

        — Posso falar-lhe como uma pessoa mais velha?

        — Por obséquio, Sir Robert. Apreciarei muito a sua opinião.

        — Se eu fosse seu pai, ficaria mais satisfeito com a sua ida para Sandhurst. A impressão que você fará aqui será muito mais útil para ele e para seu país do que a sua permanência ao lado dele.

        Dax ficou em silêncio. Era exatamente o que seu pai teria dito. Apesar disso, talvez nenhum deles tivesse razão, pois ainda havia a questão da saúde de seu pai. Se ele não pegasse outro resfriado e se aqueles malditos navios fossem logo liberados, as tensões do pai talvez se atenuassem e ele não teria tanta inquietação de afastar-se.

        — Muito obrigado, Sir Robert, — disse ele em voz alta. — Creio que é exatamente o que farei.

        Mais tarde, depois da festa, ele rolou na cama e acendeu o abajur da mesinha de cabeceira. Olhou o relógio. Três horas e ainda não tinha podido dormir. Levantou-se e foi até à janela. O tráfego era mínimo e ele ficou olhando a rua. Pensou de repente em Sergei.

        Conseguira um carro emprestado para levar a pequena para casa e só deveria voltar com dia claro, se voltasse. Mas viu em dado momento os faróis de um carro brilharem no pátio. Sergei saltou e um momento depois estava no seu quarto.

        — Por que é que ainda está acordado? — perguntou ele, olhando desconfiadamente para o quarto. — Estava com alguma delas aqui?

        — É só nisso que você pensa, Sergei?

        — E há mais alguma coisa em que valha a pena pensar? Infelizmente, perdi o tempo com a tal que levei para casa.

        — Não se pode ganhar sempre, — disse Dax, rindo.

        — Sabe o que foi que ela me disse? Sir Robert vai dar-lhe este apartamento enquanto você estiver em Sandhurst.

        — Já sabia.

        — E sabe que os quartos das meninas são do outro lado do corredor?

        — E daí? — Dax sabia por que ambas tinham feito questão de pô-lo ao corrente do fato.

        — Você não pode deixar de tomar conhecimento delas, — disse Sergei, tirando a camisa. — Estão ambas no ponto e prontas. E estão ainda acordadas, sabe? Vi luz quando passei pela porta delas.

        — Tem cigarros?

        Sergei entregou-lhe o maço e disse:

        — Devem estar à sua espera.

        — Só quero é que não se cansem de esperar.

        Sergei sacudiu a cabeça com fingida tristeza.

        — Você está cometendo um erro, rapaz. Se não for você, será outro. Com que é que está preocupado? O pai delas está na outra ala da casa e não ouvirá nada. Devemos estar no mínimo a um quilômetro de distância.

        Dax riu.

        — Cale essa boca e vá dormir. Não tenho culpa de que você tivesse ficado em seco esta noite.

        Na realidade, Sir Robert estava no seu escritório, estudando o mais recente relatório sobre a situação do Corteguay. Levá-lo-ia no dia seguinte para a sua casa de campo a fim de guardá-lo juntamente com os anteriores. Havia mais segurança lá, embora aquilo pouco sentido fizesse para os criados, caso eles o lessem. Apertou os lábios. Havia muita pressão sobre ele. Às vezes, não podia deixar de irritar-se com o primo. O barão era muito francês, muito sentimental. Que importância tinha que o cônsul do Corteguay fosse um homem de honra? Além disso, era um homem doente. Não compreendia o barão que, se os navios fossem retidos um pouco mais, o governo poderia cair? Era um idiota, se não compreendesse isso.

        A situação do governo era precária. Os bandoleros já estavam em atividade nas montanhas. Dessa vez com dinheiro inglês e armas inglesas. Os camponeses tinham fome. Por quanto tempo ainda passariam fome pelo presidente, que também não passava de um bandolero?

        Os navios tinham de ser retidos. Um prejuízo de dois milhões e meio de dólares não era nada para impedir que o governo do Corteguay entrasse em acordo com os gregos. Quando o governo afinal caísse, o prejuízo seria mais do que compensado com a volta dos navios ingleses ao Corteguay.

 

        Dax desceu da camioneta da estação à porta da casa de campo de Sir Robert pouco depois das sete horas da noite seguinte. O mordomo abriu-lhe a porta.

        — Seja bem-vindo, senhor, — disse ele, tomando-lhe a valise.

        Dax entrou com ele na casa, que lhe parecia estranhamente silenciosa, em comparação com o movimento que esperava.

        — Onde estão os outros?

        — O senhor é o primeiro. As senhoritas deverão chegar no trem das dez horas. Sir Robert só chegará amanhã com os outros convidados.

        Abriu a porta do quarto de Dax e depôs a mala.

        — Quer que abra e arrume tudo, senhor?

        — Não, muito obrigado. Eu mesmo trato disso. Há muito pouca coisa.

        — A que horas gostaria de jantar, senhor?

        Dax teve fome de repente. Olhou para o relógio.

        — Vou tomar banho primeiro. Às oito horas será ótimo.

        Não demorou muito jantando. Comeu com rapidez e apetite e a um quarto para as nove havia terminado.

        — Há um rádio no escritório, — disse o mordomo. — E jornais também.

        Dax ligou o rádio e deixou-se cair numa confortável poltrona de couro. Alguns minutos depois, levantou-se e foi até à mesa para pegar um jornal. Quando o apanhou, uma carta que estava embaixo caiu no chão. Dax a recolheu e já ia colocá-la na mesa quando notou que era escrita em espanhol. Desde que já estava aberta e fora do envelope, olhou distraidamente e de repente viu a assinatura.

        Ramírez!

        Isso bastou para fazê-lo ler o primeiro parágrafo.

        “Quero mais uma vez felicitá-lo pelo seu descortino quanto à aquisição dos quatro cargueiros japoneses, impedindo assim que caíssem nas mãos dos nossos inimigos. As informações que tenho recebido de minha terra indicam que o governo está sob extrema pressão e precisa de auxílio imediato.”

        Dax sentiu enregelar-se apesar do fogo que crepitava na lareira. Que espécie de homem era aquele que, com uma mão, oferecia conforto, amizade e até a hospitalidade do seu lar e, com a outra, ajudava os inimigos que queriam destruí-lo? Continuou a ler.

        “A revolta está ganhando ímpeto. Mas, como sabe, temos grande falta de armas e munições e, como essas coisas só podem ser obtidas a um preço proibitivo, pois são contrabandeadas dos países vizinhos através dos Andes, sou contra a minha vontade obrigado a pedir-lhe fundos a mais. Não gostaria de sobrecarregar a sua sempre solícita generosidade, mas necessitamos urgentemente de dez mil libras para que os nossos planos tenham o êxito que todos esperamos. Se isso não for possível, creio que até cinco mil serão uma grande ajuda."

        Dax teve um sorriso amargo. Gostaria de saber quanto desse dinheiro ficaria no bolso de Ramírez antes de ser mandado para o Corteguay.

        “Muito lhe agradeceria uma resposta pronta. Até então, queira aceitar a minha gratidão e a dos meus compatriotas pela sua ajuda à nossa mútua luta para derrubar o despótico bandido que ilegalmente domina o nosso pobre país.”

        Ramírez! Se não tivesse com tanta raiva, poderia até achar graça. Ramírez, o ladrão, o covarde, o traidor, arvorando-se em acusador e justiceiro. Dax olhou para a carta. O pai dele teria de ter conhecimento dela. E o barão também.

        De repente, ocorreu-lhe uma ideia. E se o barão já soubesse? E se o barão também fizesse parte do plano? Não sabia mais em quem confiar. Dobrou a carta e guardou-a no bolso. Teria de advertir seu pai.

        Saiu da sala com raiva. Partiria para Paris naquela mesma noite. Mas viu imediatamente que isso seria o que podia fazer de mais errado. Sir Robert estranharia a sua partida repentina. Isso só serviria para chamar-lhe a atenção para a carta desaparecida. Era melhor passar o fim-de-semana e até demorar-se um pouco mais. Fazendo um esforço, voltou para a poltrona. Quando o mordomo apareceu para comunicar-lhe a chegada das moças, encontrou-o a ler tranquilamente o jornal.

        As duas eram tão parecidas que podiam ser julgadas gêmeas, embora não o fossem. Enid, a mais velha, tinha dezoito anos e a outra, Mavis, era um ano mais moça.

        — Não disse que ele estaria aqui hoje à noite? — disse uma delas à outra.

        Dax tomou-lhe a mão.

        — Alô, Enid.

        Ela riu.

        — Eu sou Mavis.

        — Nunca pude distinguir entre vocês.

        — Mamãe e Papai já chegaram?

        — Não, o mordomo me disse que só os está esperando amanhã.

        — Ótimo! — disse Enid. — Isso quer dizer que teremos a casa à nossa disposição esta noite.

        — Poderíamos fazer uma festinha particular, — disse Mavis. A quem poderíamos convidar?

        — Para que ter esse trabalho? — perguntou Enid, olhando para Dax. — Tenho certeza de que nós três podemos divertir-nos muito.

        — Festa? — exclamou Dax, rindo. — É só em que vocês pensam? Estou tão cansado que só penso agora é num banho quente e numa boa noite de sono.

        — Por que você é sempre tão sério? Por que nunca pensa em divertir-se?

        — Vou pensar nisso amanhã.

 

        Estendeu-se na grande banheira de mármore e fechou os olhos. Relaxou por completo o corpo. Ouviu então um leve ruído e abriu os olhos: Olhou para a porta que dava para o seu quarto. Não havia ninguém lá. Ouviu de novo o ruído e a sua estranheza aumentou.

        De repente, a porta se abriu e as duas irmãs apareceram juntamente com o ar frio do corredor atrás delas.

        — Fechem essa porta, por favor! — exclamou ele, estendendo a mão para pegar uma toalha. — Querem que eu morra gelado?

        Mas Mavis foi mais rápida. Puxou a toalha antes que ele pudesse segurá-la enquanto Enid fechava a porta. Dax procurou cobrir-se com as mãos, mas logo desistiu, vendo que era impossível. Elas ainda estavam rindo.

        — De que é que estão achando tanta graça? A banheira de vocês não está funcionando direito?

        Enid sentou-se num banquinho ao lado da banheira.

        — Resolvemos, como estava tão cansado, dar em você um dos nossos banhos medicinais.

        — Banhos medicinais?

        — Sim, são muito estimulantes. Todas as colegas tomam lá na escola.

        Estendeu a mão e abriu a torneira de água fria.

        Dax quase deu um pulo da banheira quando a água gelada lhe bateu nas costas.

        — Vocês duas estão loucas! — gritou ele.

        As duas o empurraram para dentro da água.

        — Fique quietinho aí. Tome um gole disto, vamos! — disse Enid, pegando uma garrafa.

        — Que é isso?

        — Conhaque.

        A garrafa estava pelo meio.

        — Onde foi que pegaram isso?

        — No armário de bebidas de Papai.

        — Mas já está quase vazia!

        Estávamos aborrecidas e bebemos um pouco, — disse Mavis. — Você não quis a festa.

        — Tivemos então a ideia de vir dar em você um banho medicinal, — acrescentou Enid. — Miss Purvis, lá na escola,       sempre diz que não há nada melhor para quem está cansado.

        Explicaram como era o banho. Estavam ambas altas. Dax encolheu os ombros e tomou um gole de conhaque. Isso ao menos o aqueceria.

        Mavis meteu os dedos na água.

        — Já está bem fria. Que é que você acha?

        Enid experimentou a água.

        — É, já está bastante.

        Dax tomou outro gole de conhaque e se estendeu na banheira, resignado.

        — E agora?

        — Você vai ver, — disse Mavis. — Saia da banheira.

        — Está bem. Passe uma toalha.

        — Não. Saia da banheira primeiro.

        — Isto é que não!

        — Não? — exclamou Enid, rindo. Tornou a abrir prontamente a torneira de água fria.

        Dax pulou da banheira quase antes de ser atingido pelo jato gelado. Ficou ali tremendo enquanto elas lhe batiam no corpo com as ásperas toalhas turcas.

        — Está doendo! Parem com isso!

        O que elas fizeram foi bater com mais força. Ele começou a pular, procurando livrar-se delas sem deixar cair a garrafa. Afinal, conseguiu esquivar-se e correr para o quarto. Jogou-se na cama e puxou os cobertores para cima do corpo.

        Elas foram para junto da cama e ficaram a olhá-lo.

        — Agora que já se divertiram, por que é que vocês duas não vão direitinho dormir nas suas camas?

        Houve um curioso olhar entre elas.

        — Está bem, — disse Mavis. — Devolva a nossa garrafa.

        Dax tomou outro gole.

        — Não vou devolver nada. Acho que tenho o direito de beber tudo depois do que passei. Posso até pegar uma pneumonia.

        Ele estava começando a sentir-se bem.

        — Se quiserem, terão de vir tomar de mim.

        Elas se moveram para ele ameaçadoramente. Ele colocou a garrafa embaixo do travesseiro e cruzou os braços no peito. De repente, elas puxaram os cobertores, deixando-o nu em cima da cama. Dessa vez, ele não fez qualquer tentativa de cobrir-se.

        — E agora? Que é que vocês vão fazer?

        — Nunca vi nada tão imensamente belo! — murmurou Enid em voz quase reverente ao mesmo tempo que desabotoava a blusa do pijama.

        Houve uma hora durante a noite em que uma das irmãs saiu e foi buscar outra garrafa de conhaque, mas Dax não poderia dizer qual tinha sido. Trocavam de lugar e ele não sabia mais quem era quem. Tinha porém certeza de uma coisa. Não era a primeira vez que elas haviam praticado aqueles jogos juntas.

        Enid — ou era Mavis? — bebeu um gole da garrafa e disse:

        — Não me lembro de já ter sido tão bem amada assim. — Deu um suspiro e olhou para o rosto de Dax que estava com a cabeça no colo dela. — E nós que pensávamos que você fosse...

        — Fosse o quê?

        Mavis — ou era Enid? — levantou a cabeça do colo dele e disse:

        — Não sabe? Homossexual!

        Ele riu.

        — Por que pensaram isso?

        Há tanta gente que é, — disse ela séria. — Acho que é por causa dos internatos. Ficam ali dentro sem mulher, andam juntos e a maioria acaba gostando.

        — Com pequenas como vocês ao alcance da mão?

        — Pois alguns deles até conosco só sabem fazer assim, — disse Mavis. — Dizem que é melhor. De outra vez, nós vamos experimentar.

        — Ótimo, — disse Enid, rindo.

        Dax acordou logo que amanheceu o dia. Estendeu a mão e sentiu o calor de uma nudez. Sentou-se na cama, estendeu a mão por cima de Enid e apanhou o relógio na mesinha de cabeceira. Quase cinco horas. Olhou para as pequenas que dormiam. Os franceses tinham razão a respeito das mulheres inglesas. Não tinham o encanto das francesas, mas na cama não havia ninguém que se comparasse com elas. Pareciam verdadeiras gatas no cio.

        Sacudiu-as. Mavis abriu os olhos.

        Já é dia, — disse ele. — Não é melhor vocês irem para seus quartos?

        Oh! — murmurou ela, espreguiçando-se. — Enid já se levantou?

        Mas Enid não quis abrir os olhos e no fim os dois tiveram de carregá-la pelo corredor. Dax deixou-a na cama e já ia saindo quando Mavis o segurou pelo braço.

        — Dax...

        — Hem?

        — Foi uma boa festa, não foi?

        Ele sorriu.

        — Foi grande.

        — Podemos fazer uma festa assim outra vez, não podemos?

        — É claro.

        Ela olhou para ele e sorriu.

        — A casa vai ficar muito cheia neste fim-de-semana. É uma pena você não poder ir a Brighton durante a semana. Temos o nosso apartamento perto da escola.

        Quem diz que eu não posso? Acha que seria bom eu levar um amigo?

        Seria, mas... — murmurou ela, com um ar preocupado.

        — Ah, não tenha receio, que ele sabe ficar calado. Você o conhece. É Sergei, o russo que joga pólo comigo no time francês.

        — Então está bem. Vamo-nos divertir muito. Quando é que vocês vão?

        — Segunda-feira à noite, se está bem para vocês.

        Ainda naquela manhã, antes que alguém chegasse, foi até à aldeia e telefonou para Sergei no hotel em Londres. Como prêmio pela vitória, a equipe estava com alguns dias de folga. Não se preocupou com a possibilidade de Sergei não aparecer, depois de haver-lhe explicado. Sergei sabia exatamente do que ele estava falando.

 

        Sir Robert olhou para as fotografias em cima da sua mesa. O seu rosto não mudou de expressão quando ele levantou a vista.

        — Sabe que pode ir para a cadeia por isso?

        Dax ficou impassível. Sabia que Sir Robert estava blefando. O silêncio envolveu a sala. Só se ouvia o rumor distante do comércio na zona bancária lá fora.

        Sergei lhe havia dito a mesma coisa quando Dax lhe expusera a ideia no hotel em Brighton, mas Dax rira.

        — Como? Acha que Sir Robert vai querer publicidade? Será impossível guardar sigilo sobre as filhas dele.

        Está bem, mas veja lá que o meu rosto não saia nas fotografias.

        — Não é seu rosto que eu quero, — dissera Dax. — Vamos sair que eu tenho de comprar a máquina e os filmes.

        — Compre também material de revelação. Você não pode mandar revelar essas fotografias na esquina. E se as pequenas não concordarem com a ideia?

        — Quando tiverem bebido o suficiente, farão tudo, — dissera Dax e tinha tido razão.

        Sir Robert folheou as fotografias e colocou-as numa pequena pilha em cima da mesa.

        Quanto quer por elas?

        — Nada, — respondeu Dax. — São suas.

        Neste caso, quanto quer pelos negativos?

        — Há em Macau quatro navios que foram há dois anos prometidos a meu pai. Quando os navios chegarem ao Corteguay, os negativos lhe serão remetidos pelo correio.

        — Isso está fora de discussão, — disse Sir Robert. — Não sou o dono desses navios.

        — Ramírez pensa que é.

        — Ah! Foi isso então que aconteceu à carta?

        Dax não respondeu.

        —•É esse então o seu conceito de honra? Trair a hospitalidade que lhe foi dada?

        A voz de Dax começou a mostrar sinais de cólera.

        — Quem é o senhor para me dar lições de honra, quando o valor da honra para o senhor é saber quanto pode ganhar com a traição?

        Sir Robert olhou para as fotografias e disse:

        — Faço o que é melhor para a Inglaterra.

        Dax levantou-se e disse:

        — Tanto por sua causa, Sir Robert, quanto pela minha, prefiro acreditar nisso a pensar que fez o que fez por simples cobiça.

        Encaminhou-se para a porta, mas a voz de Sir Robert o fez parar.

        — Preciso de tempo para pensar nisso.

        Não há pressa, Sir Robert. Vou voltar para Paris hoje. Se até ao fim da semana que vem eu não tiver tido uma reação favorável ao meu pedido, a carta de Ramírez será mostrada a meu pai e a seu primo, o barão. Depois, mil cópias dessas fotografias, serão distribuídas através da Europa.

        Sir Robert apertou os lábios e olhou friamente para Dax.

        — E se houver uma reação favorável, como diz? Não espera decerto que eu me comunique diretamente com a sua pessoa?

        Não, Sir Robert. Saberei da sua decisão imediatamente por intermédio de meu pai.

        E Ramírez? Não quer que faça alguma coisa a respeito dele?

        Um clarão amarelo luziu nos olhos negros de Dax. O banqueiro sentiu um arrepio ante a súbita ferocidade que houve na voz do rapaz.

        Não, Sir Robert. Eu me entenderei pessoalmente com ele.

        O café de Sir Robert esfriou quando ele deparou com o seguinte título no jornal: EX-DIPLOMATA ASSASSINADO NA RIVIERA ITALIANA

        Sentiu as mãos tremerem quando se lembrou do olhar e da voz de Dax no seu escritório. Estremeceu de pensar que havia convidado o rapaz a hospedar-se na sua casa quando estivesse em Sandhurst. O rapaz não passava de um selvagem. Toda educação, todo o polimento, era apenas uma leve capa de verniz que cobria o homem da selva. Não se podia saber de que era capaz uma fera daquelas. Poderiam ser todos assassinados enquanto dormiam.

        Era muito estranho que tudo de repente parecesse muito perto. Não era mais de cifras num balanço de banco que se tratava. Era de gente, de seres humanos, dele, de suas filhas, de vida e de morte.

        Suas filhas. Era horripilante pensar delas numa cama com aquele selvagem. Por que haviam procedido assim? As duas nunca lhe tinham dado o menor aborrecimento. Não tinha tido coragem de falar com elas sobre as fotografias. Eram tão finas que ele não sabia nem como podia abordar o assunto.

        De repente, a raiva lhe subiu pela cabeça. Compreendia tudo. Fora um louco em duvidar delas. Todo mundo sabia que os selvagens conheciam poções misteriosas que nem a ciência moderna conseguira desvendar. Devia ter sido isso. O rapaz conseguira dar um afrodisíaco às meninas. Talvez até numa inofensiva xícara de chá.

        Percebeu imediatamente o que tinha de fazer. Era preciso afas- tá-las dali. Sua esposa entrou na sala e sentou-se à mesa defronte dele.

        — Como está, querido? — perguntou ela, passando geléia numa torrada.

        — As meninas têm de ir para a casa de sua prima no Canadá? — exclamou ele.

        Ela o olhou surpresa, esquecendo a torrada.

        — Mas julguei que já estivesse decidido que não iriam. Você mesmo disse que Chamberlain não permitiria uma guerra na Europa!

        — Mas ele ainda não é primeiro-ministro! As meninas vão e não quero mais discussões sobre o assunto!

        Sir Robert levantou-se abruptamente e saiu da sala, enquanto a mulher o acompanhava com o olhar espantado. Encaminhando-se para o carro em que iria para o escritório, pensou que aquela decisão era apenas parte da solução. A outra parte era fazer o Corteguay receber os seus quatro navios.

        Não se tratava mais apenas da ameaça de escândalo ou da mancha que ficaria na sua honra se seu primo e outras pessoas soubessem da sua traição. Era uma coisa mais simples e fundamental. Pela primeira vez na vida, Sir Robert não se sentia protegido pela sua posição e pelo seu dinheiro. Nada disso poderia desviar o golpe da faca de um assassino. Dançava-lhe na espinha o pavor gelado da morte.

 

        O som abafado dos tambores ecoou nas docas enquanto Dax seguia pela prancha o caixão coberto com a bandeira. Os marinheiros, metidos ainda desajeitadamente nos seus novos uniformes da marinha mercante do Corteguay, ficaram em posição de sentido. Em silêncio, Dax viu o caixão passar das mãos da guarda de honra de soldados franceses que o haviam levado para bordo para as mãos deles.

        Os soldados ficaram então perfilados, enquanto os marinheiros levavam o caixão pelo convés. Seguiu-os lentamente, não se sentindo à vontade no fraque novo que usava e com a cartola que tinha na mão. Fechou os olhos quando os marinheiros inclinaram um pouco o caixão para passar com ele pela estreita porta do camarote.

        Pensou que o pai nunca havia sonhado em voltar para o Corteguay num navio com o seu nome. Fora a primeira coisa que Dax notara quando o cortejo chegou ao cais. Jaime Xenos. As letras brancas pintadas no casco preto ainda estavam frescas demais para que se percebesse embaixo o nome anterior — Shoshika Maru. Era a primeira viagem que fazia da França para o Corteguay um navio da recém-criada frota mercante.

        Fazia pouco mais de um mês do dia em que ele estava sentado no escritório de seu pai e Marcel chegara com o telegrama da Inglaterra. Ainda se lembrava do sorriso do pai ao lê-lo.

        Nosso amigo Sir Robert conseguiu afinal os navios para nós!

        Dax sorriu ao ver a felicidade que havia nos olhos do pai.

        — Agora, quando chegar a ocasião, talvez voltemos para casa num navio nosso.

        A ocasião chegara, mas de uma maneira que nenhum deles havia previsto. O pai estava de volta para casa, mas ele, não. O telegrama do Presidente fora explícito:

        “Meus sentimentos pela morte de seu pai que foi um verdadeiro patriota. Comunico-lhe foi nomeado cônsul em Paris e deve ficar no seu posto até segunda ordem”.

        Passaram correias em tomo do caixão para prendê-lo e protegê-lo da turbulência do mar. Depois, os marinheiros saíram um por um, fazendo continência enquanto passavam, até que só ele e Gato Gordo ficaram no camarote.

        Gato Gordo disse em voz baixa:

        — Vou esperá-lo lá fora.

        Dax olhou para o caixão ainda coberto com a bandeira verde e azul do Corteguay, tendo ao centro a águia branca de Cortez, que havia dado o nome ao país. Depois, aproximou-se e encostou a mão no caixão.

        — Adeus, Pai, — murmurou ele. — Terá sabido algum dia o bem que eu lhe queria?

 

        Eram quase onze horas quando Sergei acordou e saiu meio tonto de sono ainda do quarto para a cozinha. O pai dele estava sentado à mesa.

        — Por, que não foi trabalhar? — perguntou Sergei, surpreso.

        — Não estou trabalhando mais lá. Vamos para a Alemanha.

        — Para quê? Todos sabem que os hotéis de Paris são os que pagam mais em toda a Europa.

        — Não vou mais fazer esses trabalhos servis. Sou soldado e vou voltar para a minha profissão.

        — Em que exército? — perguntou Sergei sarcasticamente.

        Desde garotinho, ouvirá falar na formação de um exército de russos brancos que voltaria em triunfo à pátria. Mas isso nunca dera em nada. E todos sabiam que nunca seria possível.

        — No exército alemão. Ofereceram-me um posto em comissão e eu aceitei.

        Sergei riu enquanto se servia de uma xícara de chá fumegante do samovar colocado em cima do aparador.

        — O exército alemão, Papai? Um bando de idiotas treinando com fuzis de madeira e planadores.

        — Nem sempre terão fuzis de madeira e planadores. As fábricas não estão paradas.

        — Está bem, Papai. Mas por que é que tem de lutar por eles?

        — Eu os ajudarei a marcharem contra a Rússia.

        — Seria capaz de lutar num exército estrangeiro contra os russos?

        — Os comunistas não são russos! — exclamou o conde iradamente. — São georgianos, ucranianos, tártaros manobrados pelos judeus que se servem deles para os seus fins próprios!

        Sergei ficou calado. Sabia que não podia discutir muito com o pai sobre aquele assunto. Começou a tomar o seu chá.

        — Hitler está certo! — continuou o pai. — O mundo não terá paz nem segurança enquanto os judeus não forem exterminados. Além disso, von Sadow afirma que Hitler deseja devolver a Rússia aos seus governantes legítimos!

        — Há outros que vão com o senhor?

        — A princípio, não. Mas irão depois. Pode começar a arrumar as malas.

        Sergei olhou para o pai. Sabia havia muito que ele não era o mais inteligente dos homens. Estava sempre metido em todos os planos alucinados para a restauração da monarquia e conseguia ser sempre quem perdia dinheiro e quem ficava em posição ridícula com o insucesso dos planos. Daquela vez, não seria diferente. Os outros esperariam, observando enquanto o pai assumia os riscos e prontos depois a mostrarem a sua compaixão pelo fracasso. Mas ninguém pensava em indenizá-lo dos esforços que fazia por todos eles.

        Deu um suspiro. Não adiantava querer dissuadir o pai. Quando o Conde Ivan tomava uma decisão, estava acabado. Não recuava mais. As palavras lhe saíram dos lábios quase antes de saber que as havia proferido.

        — Não irei com o senhor.

        Quem ficou surpreso dessa vez foi o pai.

        Naquela mesma semana, Sergei estava sentado desajeitadamente na cadeira que ficava em frente à mesa na sala onde o pai de Dax tivera escritório. De certo modo, era difícil para ele aceitar o fato de que, menos de um ano antes, ele e Dax estavam cursando a escola juntos. Nos meses que se haviam seguido à morte de seu pai. Dax parecia mais velho, mais amadurecido.

        — Como vê, preciso de um emprego, — disse Sergei. — E não vejo nada que eu possa fazer. Foi por isso que vim procurá-lo. Talvez você possa ter uma ideia que me ajude. Sei que anda muito ocupado e foi por isso que hesitei em vir procurá-lo.

        — Pois não devia ter hesitado.

        Dax não quis dizer ao amigo que na verdade não havia muito o que fazer. Não havia ainda muita gente interessada no Corteguay. A única coisa que havia realmente mudado fora a sua vida social. Começaram de repente a convidá-lo muito para festas e reuniões. Havia alguma coisa que seduzia os franceses na ideia de um jovem cônsul cujas qualificações para o posto se resumiam na sua categoria internacional de jogador de pólo.

        — Temos de conseguir alguma coisa para você, — disse ele, sorrindo para Sergei. — Eu lhe daria um lugar provisório no consulado mas vou para minha terra no mês que vem. O Presidente resolveu nomear novo cônsul.

        — Mas eu pensei...

        — Ah, não! Só fiquei no cargo interinamente, até o Presidente encontrar uma pessoa que servisse.

        — E que é que você vai fazer? — perguntou Sergei, mais interessado no amigo do que em si mesmo.

        — Ainda não sei. O Presidente me escreveu dizendo que tem planos a meu respeito, mas eu não sei quais são eles. Talvez ir para Sandhurst, como ele havia planejado. De qualquer modo, saberei quando chegar lá.

        Os dois jovens ficaram em silêncio durante algum tempo. Afinal, Dax perguntou:

        — Quer ir para o Corteguay comigo?

        — Muito obrigado, Dax, mas não me sentiria bem numa terra estranha. Quero ficar em Paris.

        — Compreendo. Vou pensar no seu caso. Se souber de alguma coisa, procurá-lo-ei imediatamente.

        Sergei levantou-se.

        — Muito obrigado.

        — Escute, Sergei, tenho algum dinheiro sobrando e se você precisar de alguma coisa está às suas ordens.

        Sergei baixou os olhos. Cinco mil francos. Teve a tentação de aceitar, mas sentiu vergonha.

        — Não, muito obrigado. Tenho com que me arrumar.

        Mas estava zangado consigo mesmo ao sair do consulado. Os dez francos que tinha no bolso mal lhe durariam até o dia seguinte. E o senhorio já estava reclamando o dinheiro do quarto. Impulsivamente, tomou o caminho do hotel onde o pai havia trabalhado. Quando lá chegou, ficou parado a olhar o edifício tão conhecido. Por que tinha ido até ali? Seu pai não estava mais à porta e não podia dar-lhe o dinheiro de que ele precisava.

        Atravessou a rua até um café e se sentou debaixo do toldo. Pediu um café. Tomou o café, pensando em qual dos seus amigos poderia ter alguma coisa, um coquetel ou uma festa para onde o levassem e onde ele pudesse matar a fome sem dar na vista.

        Uma voz interrompeu-lhe as elocubrações.

        — Sergei Nikovitch?

        Levantou os olhos. Teve a impressão de que conhecia o homem que estava diante dele. Viu então que era o chefe da portaria do hotel onde seu pai trabalhara.

        — Alô, — disse ele, sem poder lembrar-se do nome do homem:

        O homem sentou-se sem esperar convite.

        — Já teve notícias de seu pai?

        Sergei olhou-o friamente. Teve por um momento a tentação de levantar-se e sair sem responder. O sujeito era excessivamente presunçoso. Depois, a curiosidade o venceu. O homem não estaria ali puxando conversa sem ter um propósito definido.

        — Nenhuma.

        — Não confio nos alemães. Dei conselho a seu pai para que não fosse.

        Sergei nada disse. Sabia muito bem que o chefe da portaria não havia feito nada disso. Não teria coragem. O pai tê-lo-ia esmagado como a um inseto, que ele era.

        Um garçom se aproximou.

        — Dois conhaques, — pediu o chefe da portaria e voltou-se então para Sergei. — E você, como é que vai?

        — Muito bem.

        — Já arranjou alguma coisa?

        Que diabo? pensou Sergei. Não há segredos nesta terra.

        — Tenho várias propostas que estou examinando.

        — Pois estive pensando em você hoje, — disse o homem enquanto o garçom chegava com os conhaques. — Não sabia se Sergei Nikovitch estava fazendo alguma coisa.

        Sergei olhou-o em silêncio.

        — Se não está, talvez se possa arrumar-lhe alguma coisa. Basta que você se decida entre as suas muitas propostas.

        Sergei pegou seu conhaque.

        — Na zdorovie!

        Ao menos, o patife tinha delicadeza bastante para não dizer de cara que sabia que Sergei não tinha proposta nenhuma para examinar.

        — A vôtre santé!

        Estava na hora de Sergei mostrar algum interesse. Se não mostrasse, tudo acabaria ali mesmo. Sentiu-se um pouco melhor com o calor do conhaque no estômago e perguntou:

        — Qual é a sua ideia?

        O outro baixou a voz.

        — Como sabe, há sempre muitos turistas hospedados no hotel. Entre eles, muitas senhoras ricas sozinhas. Elas têm sempre dificuldade em sair à noite sem ter quem as acompanhe.

        Sergei interrompeu-o.

        — Está sugerindo que eu seja um gigolô?

        O chefe da portaria levantou a mão em sinal de protesto.

        — Nada disso! Essas senhoras jamais quereriam saber de um gigolô! São pessoas de posição social impecável. Nunca pensariam em ter como cavalheiro um homem que não fosse igual a elas... ou melhor!

        — Que é que está sugerindo então?

        — Algumas dessas senhoras estão interessadas em conhecer a gente bem. Seriam muito generosas para quem as introduzisse nos bons círculos sociais.

        — É só isso?

        — Bem, o resto será com você, — disse o homem, encolhendo os ombros expressivamente.

        — Não compreendo, — disse Sergei. — Qual é o seu interesse nisso?

        — Farei as apresentações de você às senhoras. Por isso, receberei cinquenta por cento do que você ganhar.

        Sergei tomou outro gole de conhaque. O chefe da portaria com certeza receberia também uma boa gorjeta das mulheres pela apresentação.

        — Vinte e cinco por cento.

        — Feito.

        Sergei se arrependeu imediatamente da sua generosidade. O homem se contentaria provavelmente com dez por cento.

        — Há uma em particular muito interessante, — continuou o chefe da portaria. — Está no hotel há quase uma semana. Quando lhe levei os jornais americanos hoje de manhã, ela me falou de novo nessa possibilidade. Se está interessado, ela está agora mesmo na portaria.

        Sergei hesitou. Era provavelmente o contrário. Ele seria levado para ser submetido à aprovação da mulher. Apertou os lábios. Teve um momento a tentação de mandar para o diabo aquele alcoviteiro. Mas ainda tinha nos ouvidos a voz grosseira do senhorio. Levantou-se e ajeitou inconscientemente a gravata.

        — Vou ver. Depende de eu achar que serve.

        É aquela, ali, — disse o chefe da portaria quando entraram no vestíbulo do hotel. — A que está sentada na poltrona vermelha do canto.

        A mulher levantou os olhos quando Sergei entrou e ele teve uma surpresa. Não era velha como julgava. Devia estar por volta dos trinta anos. Sempre pensara que só as mulheres bem velhas reclamavam os serviços de um gigolô. Os olhos azul-escuro encaravam-no firmemente. Sergei sentiu que havia ficado muito vermelho quando tirou os olhos de cima dela.

        — Que é que acha?

        — Tem alguma importância o que eu ache? — perguntou Sergei. Viu então o espanto no rosto do homem e acrescentou: — Está bem. Pode até ser interessante.

        — Bon. Ela é muito distinta. Você vai gostar dela.

        — Casada?

        O homem olhou-o, indignado.

        Que espécie de homem você pensa que eu sou? Acha que eu seria louco para fazer você perder tempo com uma mulher solteira?

 

        A Sra. Harvey Lokow tinha dois filhos num colégio interno, quatro milhões de dólares que os pais lhe haviam deixado e um marido que estava convencido de que, se tomasse férias naquele verão, Roosevelt encontraria na sua ausência um jeito de arrumar o país.

        — Não poderei ir este ano, — disse ele à mulher. — Ninguém sabe as asneiras que aquele homem da Casa Branca poderá fazer.

        — Que é que ele pode fazer? E ainda que faça, nós ficaremos com dinheiro suficiente.

        — Será que você não compreende que estamos num período de crise? — perguntou ele, irritado. — Ele quer largar tudo nas mãos desses malditos sindicatos.

        — E você vai impedi-lo?

        — Sim, claro que sim! Ao menos, ele não se meterá nos meus negócios!

        Ela ficou calada. Os negócios não eram propriamente dele. O pai dela havia fundado a companhia havia muitos anos e Harvey entrara para ela depois do casamento. Com a morte do pai, ela herdara as ações e Harvey se tornara automaticamente presidente. Mas tudo isso havia sido convenientemente esquecido.

        — Vou para o escritório.

        — E eu vou para Paris. Sozinha, já que você não quer ir comigo, — dissera ela, tomando repentinamente a decisão.

        — Você não vai apreciar nada. Não conhece ninguém lá.

        Ela havia esperado em silêncio que ele se decidisse afinal a acompanhá-la. Mas isso não acontecera e ela estava havia quase uma semana sozinha naquele hotel de Paris pensando no que ele havia dito. De fato, não estava apreciando nada. Estava sozinha numa cidade onde uma mulher sozinha não é nada.

        Olhou-se no espelho alto quando saiu do banho. Tinha trinta e oito anos e, embora o seu corpo não tivesse mais a firmeza da juventude, não parecia ter a idade que tinha. Os seios ainda eram firmes, felizmente. Nunca tinham sido grandes demais, de modo que não caíam com o próprio peso e a barriga era quase lisa.

        Mas os olhos eram o que ela tinha de melhor. Eram grandes e de um azul-escuro que brilhava com uma luminosidade própria e um ardor íntimo que o tempo não havia arrefecido. De repente, sem causa aparente, encheram-se de lágrimas. Aborrecida consigo mesmo, embrulhou-se num robe e passou para a sala do apartamento no momento em que batiam na porta.

        — Entrez, — disse ela, pegando um cigarro.

        Era o chefe da portaria.

        — Os seus jornais, Madame.

        Vendo que ela lutava para acender o cigarro, riscou prontamente um fósforo.

        — Merci, — disse ela, batendo as pálpebras rapidamente.

        Mas ele já vira as lágrimas.

        — Madame quer o carro para esta noite?

        Ela hesitou um momento e sacudiu a cabeça. Não havia lugar algum onde uma mulher pudesse ir sozinha. Iria jantar de novo no seu apartamento, na solidão. Não gostava de comer no grande salão do hotel. O chefe da portaria olhou-a.

        — Quem sabe Madame não estaria interessada num cavalheiro para acompanhá-la à noite?

        Ela o olhou envergonhada dos seus pensamentos.

        — Um gigolô?

        — É claro que não, Madame, — disse ele, notando o leve tora de desgosto na voz dela.

        Ela pensou nos gigolôs que tinha visto e nas mulheres a quem acompanhavam. Era uma coisa que sempre dava na vista e ela nunca toleraria que a olhassem como olhavam para aquelas mulheres.

        — Não quero um gigolô.

        — Nunca me passaria pela cabeça uma coisa dessas, Madame. Mas há um rapaz no hotel que já viu Madame e está com muito interesse em conhecê-la.

        — Um rapaz? — perguntou ela, sentindo-se de algum modo lisonjeada. — E não é gigolô?

        — Não, Madame, — disse ele e baixou a voz num tom confidencial. — Tem sangue real.

        Ela hesitou.

        — Não sei.

        O chefe da portaria se aproveitou prontamente da indecisão dela.

        — Se Madame estiver por acaso na portaria, poderei providenciar para que fale com ele. Se Madame aprovar, poderei tratar então da apresentação. Se não o aprovar, o homem respeitará o desejo de Madame, apesar da decepção que vai sentir. Garanto que não a importunará mais.

        Embora ela já houvesse decidido que não desceria para ver o homem surpreendeu-se a tomar cuidados especiais com a maquilagem. Olhou-se ao espelho. Os olhos brilhavam com uma luz que não havia neles desde muito tempo. Sentia-se jovem e interessada. Só vou olhar, disse ela consigo mesma, ao sair do quarto. Vou olhar e depois continuar a viver como estou vivendo. Que mal pode haver nisso?

        Sentiu-se um pouco envergonhada de estar sentada ali na portaria. Estava certa de que todo mundo sabia exatamente o que ela estava fazendo ali. Olhou para o relógio e decidiu esperar mais dez minutos. Já estava para levantar-se e voltar para o apartamento quando os dois entraram.

        Era realmente moço, foi a primeira atônita impressão que teve. Mas lembrou-se de repente de que lera em algum lugar que os franceses preferiam as mulheres mais velhas. Era bem alto, foi a segunda impressão. Superava em altura o chefe da portaria e os ombros largos e os cabelos pretos meio revoltos davam-lhe de fato um ar de príncipe.

        Calculou que devia ter vinte e quatro anos. Mas era a idade dela que a fazia exagerar. Na realidade, Sergei ainda não tinha vinte anos.

        Correu com os olhos o vestíbulo à procura dela. De repente, os seus olhos se encontraram e ela o viu ficar vermelho. O chefe da portaria não estava então mentindo, pensou ela, surpresa. Só um homem que tem mesmo muita vontade de conhecer uma mulher, fica assim corado ao vê-la.

        Quando ele virou os olhos, ela fez um sinal afirmativo para o chefe da portaria. No mesmo instante, perplexa com a sua audácia, correu para o elevador.

        Nunca tivera um caso amoroso desde que se casara e era por isso que tudo parecia irreal em torno deles. O tempo parecia haver parado e, se não havia amor, ao menos o romance estava presente. Naquele dia, três semanas depois, esperou Sergei com uma carta na mão.

        Sergei compreendeu tudo ao ver a carta e se sentiu triste porque havia acabado por gostar daquela mulher calma e inteligente.

        — Chegou a hora do seu regresso, não é? — perguntou ele, aceitando um drinque.

        — Amanhã, — disse ela.

        — Então vamos ver esta noite a parte de Paris que você ainda não conhece. Passaremos a noite na rua.

        Ela ficou em silêncio durante algum tempo e disse:

        — Para mim, já chega de conhecer Paris.

        Ele largou o corpo e abriu os braços. Ela se jogou neles e Sergei sentiu-lhe o rosto molhado de lágrimas. Ficaram muito tempo em silêncio. O dia morreu, a noite começou e ás luzes se acenderam de rua em rua por toda a cidade.

        Ela afinal falou.

        — Vou pedir alguma coisa. Você deve estar com fome.

        — Não estou.

        O silêncio caiu de novo e eles ficaram olhando para as luzes.

        — Paris é linda à noite.

        Ele não se moveu.

        Ela se agitou nos braços dele.

        — Nunca fui jovem, — disse ela. — Sei disso agora.

        — Você será sempre jovem.

        — Agora, sim, serei, graças a você.

        — Vou levar você até ao navio, — disse ele, de repente.

        — Não. É melhor desde o trem eu me ir acostumando a ficar sozinha.

        — Terei saudades de você.

        — E eu também de você, — disse ela com os olhos sombrios.

        — Mas você ao menos volta para a sua família, para junto daqueles que a amam.

        — E você?

        — Não sei. Meu pai quer que eu vá ficar com ele na Alemanha. Não quero ir, mas...

        — Não deve ir!

        — Lá terei o que fazer — disse ele, encolhendo os ombros. — É melhor do que ficar aqui sem fazer nada.

        — Não, será um erro. O que os nazistas estão fazendo é horrível. É melhor você não ter participação alguma nisso. O Presidente Roosevelt diz...

        — Ora, o Presidente Roosevelt é judeu! — exclamou ele. — Meu pai diz que o verdadeiro nome dele é Rosenfeld e que ele está aliado aos comunistas.

        Ela começou a rir e então viu o olhar de espanto dele.

        — Você me faz lembrar meu marido, que sempre diz essas tolices. — Viu que ele se ofendera e acrescentou: — Desculpe, mas você sabe que isso não é verdade e que o Presidente Roosevelt não é judeu...

        Ele nada disse.

        — Você tem é de arranjar um emprego.

        — Onde? Quem me empregaria? Não há nada que eu possa fazer!

        Ela sentiu o desespero dele e abraçou-o com força. O pronto calor masculino dele atingiu-a e envolveu-a. Mais tarde, muito mais tarde, ela murmurou timidamente:

        — Era mesmo a mim que você queria ser apresentado naquele dia na portaria? Não era a qualquer mulher que aparecesse?

        Ele compreendeu o que ela queria ouvir e disse:

        — Não, era a você. Desde o primeiro momento em que a vi.

        Eram cinco horas da manhã, mas o chefe da portaria estava à espera dele quando Sergei saiu do hotel.

        — Então? Quanto foi que ela lhe deu?

        Sergei olhou-o um momento e então, negligentemente, tirou o cheque do bolso. O outro pegou o cheque e deu um assobio.

        — Sabe de quanto é?-

        Sergei sacudiu a cabeça. Não havia nem olhado.

        — Cinco mil dólares!

        Sergei nada disse. Ainda estava pensando na mulher que deixara no quarto.

        — Você deve ser de aço, — disse o chefe da portaria. — Andou tanto com ela que ela perdeu a cabeça.

        Não absolutamente por isso, pensou Sergei. Sabia por que o cheque tinha sido tão grande. Era para que ele pudesse ficar em Paris sem ter de ir para onde estava o pai.

        — E ela prestava? — perguntou o chefe da portaria. — Algumas dessas americanas são muito boas.

        Sergei olhou-o com frieza, mas o homem continuou:

        — Bem, isso não tem importância, porque ela vai-se embora amanhã. Há outra mulher no hotel que viu você na portaria. Quando ela me falou sobre você, eu disse que estaria livre a partir de amanhã, isto é, hoje. Ela quer que você jante com ela amanhã à noite.

        Sergei afastou-se abruptamente. O chefe da portaria ficou a olhá-lo, ainda com o cheque na mão e disse:

        — Ela quer que você vista o smoking, para acompanhá-la a uma soirée em casa de uma amiga.

 

        Dax levantou os olhos da carta.

        — Parece que afinal de contas não vamos voltar para casa.

        — Vamos então ficar aqui? — perguntou Gato Gordo.

        Dax sacudiu a cabeça.

        — Não. O Presidente resolveu que eu devo fazer o que meu pai queria e ir estudar. Mas não em Sandhurst. Em Harvard.

        — Nos Estados Unidos? — perguntou Gato Gordo, espantado.

        — Sim, nos Estados Unidos!

        — Então o Presidente deve estar doido, Dax! Eles nos odeiam! São capazes de matar-nos!

        — O Presidente sabe o que está fazendo. A universidade onde vou estudar é uma das melhores do mundo.

        Marcel, que estava de pé ao lado da mesa, perguntou:

        — Não é para onde vai também seu amigo Robert?

        — É, sim.

        Gato Gordo levantou-se.

        Isso não me agrada nada! É uma terra cheia de índios e de gangsters! Vamos ser assassinados à traição. Tenho visto os filmes deles!

        — Será que o gordo está com medo? — perguntou Dax, rindo.

        — Medo nunca! — exclamou Gato Gordo, levantando orgulhosamente a cabeça. — Mas fique sabendo que enquanto estiver lá, nunca dormirei sem minha faca debaixo do travesseiro!

        Depois de dizer isso, Gato Gordo saiu da sala e Marcel disse então a Dax.

        — Já há algum tempo que eu estou para falar-lhe uma coisa.

        — Que é?

        — Estou com vontade de sair do consulado.

        — Compreendo.

        Não era surpresa para Dax. De há muito, não sabia quanto tempo Marcel ainda iria ficar com o ordenado que lhe pagava o Corteguay. De certo modo, era uma sorte que ele tivesse demorado tanto.

        — Esperarei naturalmente até o novo cônsul ficar familiarizado com o serviço.

        — Meu país ficar-lhe-á muito grato. Tem alguma coisa em vista?

        Marcel sacudiu a cabeça.

        — Tenho quase trinta anos. Está em tempo de eu tentar alguma coisa nova. Não sei ainda exatamente o quê. Mas, se não sair daqui agora, nunca mais sairei.

        Não era essa exatamente a verdade. A transação já fora feita com o barão e com Christopoulos. O sobrinho do jogador não estava satisfeito com as linhas de navegação. Queria voltar para o movimento das salas de jogo. Christopoulos resolvera trazê-lo para a França, mas só depois que ele passasse mais um ano com as linhas de navegação. Marcel iria para Macau ostensivamente para dirigir o cassino, mas na realidade para aprender o negócio. Tinham também a missão de comprar quantos cargueiros pudesse.

        Marcel havia acumulado muito dinheiro, sem que ninguém soubesse. Pretendia usar esse dinheiro como uma entrada para a compra dos navios. Só depois de haver adquirido o título de posse de um navio, passá-lo-ia ao sindicato, mas ainda assim não o venderia logo. Limitar-se-ia a arrendá-lo a longo prazo. Com o dinheiro do arrendamento faria os pagamentos pelos navios e acabaria sendo o proprietário dos mesmos. Tinha certeza de que não teria dificuldade em convencer o sindicato das vantagens desse plano. Reduziria o investimento inicial do sindicato que lhe poderia até agradecer essa maneira de poupar-lhe o capital.

        A voz de Dax o despertou do seu momentâneo devaneio.

        — Temos de procurar alguém para substituí-lo. Quem sabe se meu amigo Sergei não está interessado? Ainda no mês passado, ele me disse que precisava de um emprego.

        Mas não foi preciso encontrar Sergei. A concierge do seu apartamento disse que naquela mesma semana ele havia arrumado tudo o que era dele e se mudara sem deixar o seu novo endereço. A única conclusão a que Dax pôde chegar foi de que seu amigo tinha ido viver com o pai na Alemanha.

        Sergei estava aborrecido. Nada o entediava mais do que o jogo. Fossem cartas ou roleta, o simples fato de ter de ficar sentado e esperar era intolerável para ele. Mas a velha já o havia esquecido na sua absorção.

        Aquela não era como a americana. Era uma francesa muito sabida, muito velha e muito rica que sabia exatamente o que queria. Queria apenas a companhia de um homem moço e de boa figura e Sergei correspondia perfeitamente às suas exigências. No momento em que o viu na portaria do hotel, teve certeza disso.

        O acordo feito tinha sido simples e direto. Sergei lhe serviria de companhia. Teria um salário de dois mil francos por dia e ela pagaria todas as suas despesas, inclusive de roupas. Dois dias depois, haviam partido para Monte Carlo.

        O cassino realizava duas sessões por dia e ela comparecia a ambas. Às vezes, Sergei se espantava com a firme determinação com que ela jogava fora o seu dinheiro, mas, ao fim de algum tempo, não pensou mais nisso. Parecia que a fonte de onde ela tirava o dinheiro era inesgotável. Duas semanas já haviam passado e ela não parara uma só vez. Estavam começando a terceira semana com outra sessão de matinê.

        Sergei se levantou da mesa e foi até ao terraço. Olhou para o porto. Os iates brancos cintilavam nas límpidas águas azuis e o palácio se elevava róseo na colina do outro lado. Desceu a escada para o jardim.

        Sentiu fortemente o aroma das flores depois do ambiente confinado e asséptico do cassino. Ficou no fundo do jardim, com as mãos nos bolsos a olhar para o mar.

        — Isto é muito bonito, não é?

        Era alguém que falava às suas costas e Sergei voltou-se, surpreso. Havia uma regra tácita de que nunca se devia falar com desconhecidos no recinto do cassino. Era um velho, sentado num banco, com as mãos pousadas no castão de ouro de uma bengala, os cabelos brancos e a barba branca muito bem tratada quase a confundir-se com a brancura do seu temo de seda. Não era preciso ninguém dizer a Sergei quem era aquele homem, embora fosse a primeira vez que o via.

        Dizia-se que o velho era o maior negociante de munições do mundo e também que era o dono do cassino onde estavam. O seu iate era o maior e o mais belo do porto.

        Sergei respondeu automaticamente em russo.

        — Muito bonito de fato, Sir Peter.

        — Você é Sergei Nikovitch, não é?

        — Da.

        — Tem tido notícias de seu pai, o Conde Ivan?

        — Não, senhor. Recebi apenas uma carta, logo depois que ele chegou a Berlim.

        O velho voltou a cabeça para o mar e pareceu olhar para bem longe.

        Não compreendo por que esses bobos perdem tempo jogando quando há tanta beleza aqui fora.

        Sergei nada disse.

        — Seu pai também está perdendo tempo, Sergei. A Mãe Rússia que nós amávamos está perdida para sempre e nós nunca mais a veremos.

        Sergei continuou calado.

        — Mas seu pai é cossaco e que é que um cossaco sabe fazer senão lutar? Mesmo quando a batalha está perdida, o cossaco não desiste.

        A voz do velho perdeu o seu tom filosófico, tomou-se mais áspera e ele voltou pára Sergei os penetrantes olhos azuis.

        — Mas ao menos seu pai tem suas razões para o que está fazendo. Quais são as suas?

        Sergei ficou tão espantado com a pergunta que não pôde responder. O velho continuou.

        — Está aqui com uma velha idiota que tem tanto dinheiro que não sabe mais o que fazer com ele. Perde então os dias em lugares como este. E consegue que você a acompanhe como um boneco para ganhar dois mil francos por dia.

        Nada havia que o velho não parecesse saber. Sergei se limitou a olhá-lo.

        — Você me envergonha, Sergei Nikovitch! — disse o velho indignadamente, levantando-se. — Você me envergonha!

        Sergei conseguiu afinal falar.

        — Mas que era que eu podia fazer?

        — Podia ir trabalhar como fez seu pai. Ele nunca se envergonhou do trabalho honesto.

        Quando o velho começou a afastar-se, dois homens apareceram misteriosamente e colocaram-se cada qual de um lado dele, Sergei olhou-os surpreso, mas para o velho aquilo pareceu a coisa mais natural do mundo. Os seus guarda-costas estavam sempre junto dele.

        — Vá jantar comigo esta noite, — disse ele, falando por cima do ombro. — Às sete horas. Seja pontual. Já estou velho e não gosto de comer tarde.

 

        A casa branca, com colunas e chão de mármore, ficava bem no alto do monte mais alto de Mônaco. Era mais alta do que até o palácio róseo dos Grimaldis, que eram os governantes titulares do pequeno país, porque mesmo eles aceitavam o fato de que Peter olhasse de cima para eles.

        Através da comprida mesa de mogno, Sergei olhou para Sir Peter e do outro lado para a sua jovem esposa francesa. Ela estava ali muito tranquila com todos os seus brilhantes e pérolas brilhando à luz das velas. Durante todo o jantar, mal havia aberto a boca.

        — Meus filhos morreram, — disse de repente o velho, — e eu preciso de um homem moço em quem possa confiar. Alguém cujas pernas sejam mais fortes do que as minhas e vá aonde eu não posso mais ir. O horário é longo, o trabalho enfadonho e exaustivo, o salário pequeno. Mas eu lhe darei a oportunidade de aprender. Interessa-lhe?

        — Sim, muito, — disse Sergei, voltando-se para ele.

        — Muito bem, — disse o velho, com satisfação na voz. — Agora, vá até ao hotel e diga a Madame Goyen que não voltará com ela para Paris.

        — Ela já voltou sozinha, Sir Peter, — disse Sergei, gostando do leve ar de surpresa que se estampou no rosto do velho..

        Tinha havido uma cena naquela tarde. A causa fora o fato de que a velha tinha achado que não podia jantar sozinha. Considerava uma humilhação aparecer no salão do hotel para jantar sozinha ou mesmo pedir comida no quarto. Todo mundo sabia que Sergei estava com ela. Que iriam pensar quando a vissem sozinha? Mas Sergei tinha sido irredutível e ela, impulsivamente, arrumara as malas e partira.

        Sergei, na verdade, só havia sabido da partida dela ao descer do quarto para ir jantar com Sir Peter. O gerente o chamara discretamente para um canto e lhe apresentara a conta. Sergei ficou indignado. A imunda velha o deixara sem ao menos pagar o quarto.

        — Tratarei disso amanhã.

        O gerente foi delicado, mas firme.

        — Desculpe, cavalheiro. O dinheiro tem de ser pago esta noite.

        A conta lhe levou quase todo o dinheiro e ele se via na mesma situação em que começara. No dia seguinte, teria de sair do hotel e procurar algum alojamento mais barato. Já havia decidido que não voltaria para Paris.

        — Ótimo, — disse Sir Peter. — Amanhã, pegue o que é seu no hotel e venha para cá.

        — Sim, senhor.

        Sir Peter levantou-se.

        — Estou cansado e vou dormir.

        Sergei levantou-se mas Sir Peter fez sinal para que ele ficasse sentado.

        — Se vai ficar aqui, tem de habituar-se com isso. Vou-me deitar todas as noites imediatamente depois do jantar. — Voltou-se para a mulher e disse com voz mais terna: — Fique com o nosso convidado. Não há razão para você subir cedo esta noite.

        Houve silêncio na mesa depois que o velho saiu. Sergei levantou a xícara de café e olhou a mulher, pensando na espécie de vida que ela poderia ter com aquele velho. Mas ela não estava pensando nele. Estava pensando em Sir Peter e no homem bom e inteligente que ele era.

        Sir Peter olhou-os da balaustrada no alto da grande escada e sorriu. Tinha oitenta anos e sua mulher vinte e oito. Tinha vivido bastante para saber que uma mulher jovem precisava de mais alguma coisa do que de jóias, riquezas e uma afeição tranquila. Viu-os levantarem-se da mesa e irem para o terraço. Dirigiu-se para o seu quarto.

        Entrou e fechou a porta. Tinha feito o que era justo. Era melhor que ela se entendesse com um bom moço como Sergei do que com um dos tipos equívocos que andam sempre na vizinhança dos cassinos. Além disso, com Sergei, ele podia sempre manter a sua vigilância sobre as coisas. Se a qualquer tempo houvesse sinais de alguma coisa mais séria, poderia sempre mandar o rapaz embora.

        Sergei não levou muito tempo para descobrir que não era mais do que um moço de recados enfeitado. Muitas vezes, naqueles primeiros meses, ficou sem saber por que Sir Peter se dera ao trabalho de contratá-lo. Mas um dia tudo se tomou claro.

        Voltara naquela manhã do banco em Monte Carlo com vários papéis que o velho tinha imediatamente de assinar. Entrou diretamente na biblioteca que servia ao velho de escritório e encontrou Madame Vorilov ali sozinha. Ela levantou os olhos do jornal que estava lendo.

        Sergei hesitou à porta.

        — Não queria perturbá-la, Madame, — disse ele respeitosamente. — Trouxe alguns papéis para Sir Peter assinar.

        — Entre, — disse ela, sorrindo. — Sir Peter foi para Paris.

        Sergei se espantou. Em geral, sabia quando Sir Peter resolvia viajar, o que, aliás, era muito raro.

        — Acho que devo então ir para lá também. Os papéis são importantes.

        — Podem esperar até amanhã. É quando ele deve estar de volta.

        — Muito bem, Madame, — disse Sergei ainda da porta. — Vou até ao banco informar.

        — Leva o seu trabalho muito a sério, não é? — perguntou ela com um sorriso.

        — Não compreendo.

        Ela apontou para o telefone.

        — Aquilo pode dar mais rapidamente a informação de que os papéis não podem ser assinados hoje.

        — Mas...

        — Não seja bobinho. Telefone e tome férias pelo resto do dia. Você ainda não se concedeu uma folga desde que veio para cá.

        — É muita bondade da sua parte, — disse ele, sorrindo e entrando na sala. — Mas eu não saberia como matar o tempo se estivesse de folga.

        Ela se levantou e foi até à janela. Lá embaixo, a baía se estendia com os seus iates brancos e as suas velas.

        — Sir Peter não lhe dá muito tempo para divertir-se.

        Ele colocou os papéis dentro de uma pasta em cima da mesa e pegou o telefone.

        — Não acho que ele tenha essa obrigação.

        Ela se voltou de repente para ele.

        — Sabe por que foi que ele lhe deu esse emprego?

        Ele a olhou, com o telefone esquecido nas mãos.

        — Não, e bem que gostaria de saber. Não parece precisar absolutamente de mim.

        — Você foi empregado por minha causa. Ele pensou que eu precisava de você.

        Sergei largou o telefone.

        — Ele me ama, — continuou ela, — e quer que eu tenha tudo. Foi por isso que trouxe você aqui para casa.

        — Ele lhe disse isso?

        — Claro que não. Acha que ele seria tão sem tato a ponto de dizer que tinha trazido um amante para mim para dentro de casa?

        — Desculpe, mas eu não sabia...

        — Claro que não sabia e é uma coisa que me agrada em você. Sempre foi muito cavalheiro para que uma coisa dessas lhe passasse pela cabeça.

        — Quando Sir Peter voltar amanhã, vou despedir-me.

        Ela olhou para ele.

        — Você é um cavalheiro. Para onde vai? Que é que vai fazer? Tem algum dinheiro?

        Ele pensou nos cem francos por semana que Sir Peter lhe pagava e sacudiu a cabeça.

        — Então não seja idiota. Só saia daqui quando tiver dinheiro.

        — A cem francos por semana?

        — Isso foi uma coisa que Sir Peter me ensinou, — disse ela. — Há sempre uma oportunidade de ganhar dinheiro quando se vive ao lado de muito dinheiro.

        — Infelizmente, parece que eu não tenho nenhum talento para ganhar dinheiro.

        — Não gosta de trabalhar, não é mesmo?

        — Decerto que não, — disse ele, rindo. — É muito aborrecido e nunca a gente se diverte. Para mim, chega.

        — Como é que espera então conseguir dinheiro?

        — Sei lá! Talvez encontre uma americana rica que esteja disposta a casar-se comigo.

        — Neste caso, talvez fosse preferível servir de gigolô a Madame Goyen.

        — De qualquer modo, é preciso ter dinheiro para ganhar dinheiro, — disse ele.

        — Quem sabe? Talvez eu possa ajudá-lo. Agora, pode ir. Tem o resto da tarde de folga.

        Ele bateu com a cabeça e saiu da biblioteca, mas não saiu da casa. Em vez disso, foi para o quarto, tirou as roupas suadas e tomou um banho de chuveiro. Depois, estendeu-se na cama e acendeu um cigarro. Antes de chegar ao fim, ouviu a esperada batida em sua porta.

        Sorriu, apagou o cigarro, enfiou um robe e abriu a porta.

        — Entre.

        — Tenho uma ideia que pode ajudá-lo.

        — Sério?

        Ele viu os olhos da mulher se voltarem para a frente aberta do seu robe, ao mesmo tempo que o rosto dela ficava vermelho.

        Fez um esforço para olhar para o lado, mas não conseguiu vencer a fascinação que aquela visão lhe provocava.

        — Eu...

        — Pois eu tenho uma ideia melhor, — disse ele, abraçando-a e levando-a para a cama. — Acho que já está em tempo de fazer jus ao meu salário.

 

        — Preciso falar com você, — disse ela, quando entrou na sala de jantar. — Não suba depois do jantar.

        Ele fez um sinal de que havia compreendido e foi para o seu lugar de costume na mesa. Ficou de pé até Sir Peter chegar e então os dois se sentaram.

        Depois do jantar, Sir Peter foi dormir, como sempre. Sergei foi para o terraço e ficou esperando. Pouco depois, ela apareceu. Encos- taram-se ao parapeito, olhando o sol chamejante que se escondia por trás das montanhas.

        — Estou grávida, — disse ela.

        — Com trinta e dois bidés nesta casa... murmurou ele surpreso, mas conteve-se. — Tem certeza?

        Ela fez um sinal afirmativo com a cabeça. Estava muito pálida.

        — Será que Sir Peter considerou essa possibilidade?

        Ela não respondeu.

        — Já disse a ele?

        Não.

        — E que é que vai fazer?

        — Já falei com o meu médico para tomar as providências.

        — Não vai poder. Ele descobrirá.

        — Mas tenho de arriscar-me, — disse ela, desesperadamente. — Que mais posso fazer?

        Ele acendeu um cigarro e olhou-a pensativamente.

        — Quando?

        — Amanhã. Ele vai passar a tarde toda numa reunião no banco. Você terá de me levar de carro para a clinique e de me trazer de novo para casa. Não confio nos empregados. Encontrarei algum pretexto para passar alguns dias de cama.

        — A que horas?

        — Não descerei para almoçar. Fingirei de manhã que não me estou sentindo bem.

        — A que horas?

        — Depois do almoço. Logo que ele sair para o banco. — Pousou a mão no braço dele e disse: — Sinto muito.

        — E eu também, — disse Sergei, olhando para ela.

        Ela ainda ia dizer alguma coisa, mas mudou de ideia. Entrou na casa. Ele a viu subir a grande escadaria e voltou-se para olhar o mar. O sol desapareceu e a noite caiu. Mas ele não saiu dali.

 

        Ela olhou para o relógio. Quase duas e meia. Ouvira a grande limusine descer a ladeira havia mais de meia hora. E nada de Sergei! De repente, bateram de leve na porta e ela se levantou e foi abrir.

        — Por que demorou tanto? — perguntou ela, mas no mesmo instante as palavras lhe morreram na boca.

        Não era Sergei que estava ali.

        — Posso entrar?

        — Sem dúvida, — murmurou ela, recuando da porta. — Sergei lhe disse?

        — Disse.

        Ele viu as lágrimas nos olhos dela e a sua voz que murmurava:

        — Não é preciso dizer-lhe quanto sinto o que aconteceu...

        — Mas está chorando por quê? — perguntou o marido, olhando-a firmemente. — Não há motivo algum para isso. Vamos ter um lindo filho!

 

        Sergei ia no trem naquela tarde, olhando a paisagem. Havia momentos em que se podia descortinar a vastidão do Mediterrâneo da corniche por onde passavam os trilhos. Em outras ocasiões corria por entre duas montanhas, que pareciam guardá-lo como sentinelas gêmeas.

        Olhou para o jornal que tinha na mão sem realmente vê-lo. Sabia que havia agido bem. E não sabia disso apenas pelo fato de Sir Peter haver-lhe dado cem mil francos. O olhar de alegria do velho é que lhe havia revelado isso.

        Ele não fora contratado apenas para ter um caso com ela. Fora mais do que isso. Tinha sido contratado para fazer o que o velho nunca poderia fazer e agora estava feito.

        Um sorriso lhe crispou os lábios. Não era mau. Cem mil francos para servir de reprodutor não era nada mau. Assim, sim.

        Era melhor do que trabalhar para viver.

 

        — A primeira coisa que você terá de fazer será comprar algumas chinesinhas.

        A língua era o francês mas com um forte sotaque gutural grego.

        O sobrinho de Christopoulos não era absolutamente como Marcel o havia imaginado. Era baixo, mas esbelto e muito simpático. Os seus ternos irrepreensivelmente talhados, em muitas coisas superiores a tudo o que Marcel via na Europa.

        — Afaste-se dos refugiados, — continuou Eli. — As mulheres brancas só lhe darão aborrecimentos. Se não pegar uma doença, acabará em confusões com a policia. Elas andam sempre metidas em conspirações e encrencas.

        — Para que preciso de qualquer mulher? — perguntou Marcel. — Posso passar perfeitamente sem elas.

        — É o que você pensa. Você ainda não conhece a espécie de mulheres que há por aqui. No momento em que você aparecer, estenderão a mão para você e não descansarão enquanto não o segurarem. E há mais uma coisa. Os chineses são uma raça esquisita. Só aceitam a gente depois que a gente os aceita.

        — E comprar pequenas chinesas indicará isso?

        — Indicará isso e mais ainda: que você pretende ficar por aqui. O fato de ficar ou não é sem importância. Uma vez que você compre uma pequena, passa a ser responsável por ela. E será sempre, ainda que saia daqui, pois ela ficará no seu lugar. Compreende?

        Marcel concordou. Era estranho, mas compreendia.

        — Depois, terá de comprar roupas decentes.

        — Que é que há com as minhas roupas? Mandei fazê-las antes de sair de Paris.

        — São muito européias, — disse Eli. — Só os refugiados usam aqui roupas européias. Além disso, os franceses são os piores alfaiates do mundo para roupas de homem. Há bons alfaiates em Hong Kong.

        — Isso não! — gemeu Marcel. A viagem da noite anterior no pequeno vapor de Hong Kong tinha sido a pior parte da viagem desde Paris. — Não voltarei ali!

        — Isso não será necessário, — disse Eli, rindo. — O meu alfaiate virá aqui para as provas.

        — Mas que é que eu vou fazer com as roupas que já comprei?

        — Dê-as a alguém, — respondeu displicentemente o grego. — Talvez algum chinês as aceite em troca de outra coisa, possivelmente uma criada. Mas não receberá muito por elas. — Levantou-se e disse: — Vamos. O meu apartamento fica no edifício nos fundos do cassino.

        — Eu gostaria de ver tudo antes, se é possível.

        — Sem roupas adequadas, não. Só Deus sabe quanta face você já perdeu quando atravessou o cassino carregando a sua bagagem!

        Bateu palmas e um empregado apareceu para levar a bagagem de Marcel.

        — Não podemos nem ir comprar as pequenas enquanto você não tiver roupas. Nenhum chinês respeitável seria capaz de vender uma filha a um homem vestido como você!

        Ela se chamava Lótus de Jade. Tinha quatorze anos e era muito delicada. A pele linha a cor do marfim róseo, os olhos eram grandes e negros e o rosto de um feitio oval muito puro e não redondo como o da maioria das chinesas. Andava de maneira tão graciosa e leve sobre os pés como se estes não tivessem sido absolutamente enfaixados. Marcel podia dizer só de vê-la que não era como as outras.

        Olhou para o pai dela. O homem estava calmamente sentado, tomando o seu chá. Marcel voltou-se para Eli. Também ele estava em silêncio, tomando chá.

        Um momento depois, falou, mas em cantonês, língua que Marcel não compreendia.

        — Seu chá tem a fragrância de mil flores, Venerável Tao.

        — É uma débil tentativa de agradar ao gosto dos meus veneráveis hóspedes, — replicou o chinês suavemente.

        — Concede-me permissão para falar em inglês? É a língua do meu amigo.

        — Sem dúvida, — disse Tao com uma gentil mesura. Dirigiu-se a Marcel: — O francês é uma língua que eu muito aprecio. Tem uma música muito semelhante à nossa.

        Marcel não pôde ocultar o seu ar de surpresa, mas se lembrou de, ser polido.

        — Agradeço a indulgência que mostra pela minha ignorância.

        O chinês curvou-se graciosamente. Apanhou um martelinho em cima da mesa e bateu num pequeno gongo. Antes que o som musical tivesse morrido, o chá tinha sido levado e haviam colocado um comprido cachimbo fino diante dele. Ele colocou o bojo raso sobre a chama de uma pequena vela dentro de um copo no centro da mesa. Depois, virou o bojo para que a chama pudesse atingir-lhe o interior. Por fim, levou o cachimbo delicadamente à boca.

        Marcel olhava-o fascinado. Nenhum dos homens de quem haviam comprado as duas primeiras pequenas era como aquele. Em comparação com ele, pareciam comuns e até vulgares.

        Você precisa é de uma moça de boa casta, — havia-lhe explicado Eli. — Uma moça de boas maneiras e boa educação que possa servir de dona-de-casa e ser a sua esposa número um. Será ela que receberá seus amigos e dirigirá sua casa. Ela manterá sua face.

        — Vamos consegui-la então, — tinha dito Marcel, que estava cansado das demoras, primeiro as roupas, agora as pequenas. Estava começando a achar que nunca o deixariam entrar no cassino.

        — Não é tão fácil assim, — dissera Eli. — Não há muitas moças boas disponíveis. Em geral, os chineses ricos as querem para si mesmos.

        — Que é que devo fazer então? Esperar até conseguirmos uma?

        — Calma, amigo, isto aqui é o Oriente e não a França. As coisas aqui não se fazem tão depressa quanto em sua terra. Mas não perca a esperança. Soube de uma pequena que poderá preencher todas as exigências, mas...

        — Mas o quê? — interrompeu-o Marcel com impaciência. — Vamos logo consegui-la e pronto!

        — Com tanta pressa, não. Há alguma coisa com a moça. Já está velha e ainda não foi escolhida. Pedi aos meus agentes que investigassem o caso.

        — Velha? — exclamar a Marcel. — Que idade?

        — Mais de quatorze anos.

        — E você diz que é velha?

        — É velha, sim, num país onde as meninas mais dotadas se casam com oito ou dez anos.

        Por fim, os agentes fizeram um relatório satisfatório. Lótus de Jade era muito bela, bem-educada e muito instruída. Cantava com uma bela voz e tocava vários instrumentos, inclusive a pequena lira de que os chineses tanto gostam. Eli teve de fazer muitas perguntas para saber por que ainda não tinha sido escolhida e afinal o defeito foi revelado.

        Lótus de Jade caminhava como uma mulher ocidental. Era como se os pés dela nunca tivessem sido enfaixados. O pai chamara vários especialistas, mas eles nada haviam podido fazer. Ele se havia resignado então a tê-la para sempre em casa.

        Naquele momento, o homem olhou benevolamente para Marcel e disse:

        — A fragrância da papoula é muito repousante depois do chá.

        Marcel admirou-se de uma civilização que permitia uma pessoa fumar calmamente uma cachimbada de ópio depois do chá e persistia em enfaixar os pés das meninas apesar de todas as leis baixadas para reprimir o costume.

        Devia estar na hora do início das negociações.

        — Meu amigo veio aqui para estabelecer um lar, — disse Eli.

        — Que os deuses da fortuna o assistam, — disse o chinês.

        — É um homem de muita posição no mundo do Ocidente.

        — Sinto-me honrado de que ele tenha entrado em minha casa.

        — Ele está à procura de uma esposa número um, — prosseguiu Eli, — alguém com quem ela possa compartilhar da sua velhice e dos seus bens.

        — Muitos ocidentais têm assim falado, — disse o chinês, — mas acabaram voltando para a sua terra e deixando lares vazios e corações partidos.

        Marcel sentiu-se desanimado. O chinês estava contra ele. Olhou para Eli. Mas este tinha uma resposta pronta.

        — Meu amigo está disposto a fazer um seguro contra essa possibilidade, embora tenha certeza de que ela nunca virá a ocorrer.

        Tao fumou o cachimbo e disse:

        — Acabei por depender de Lótus de Jade. Ela é sem dúvida alguma a mais inteligente e mais bela de todas as minhas filhas.

        — E é também a mais velha, quase além da idade de um casamento favorável.

        — Só porque tenho tido muito cuidado na escolha de um marido para ela. Tão bela flor exige um jardim todo especial.

        — O excesso de cuidado tem levado muitas moças para os jardins do outro lado da montanha, — replicou Eli.

        Todos sabiam o que isso significava. As moças mais velhas eram vendidas para os bordéis do outro lado do porto. A expressão de Tao não mudou quando ele olhou para Marcel.

        — Como é que se pode julgar a afeição de outra pessoa?

        — Meu amigo oferece mil dólares de Hong-Kong como prova da sua sinceridade.

        O chinês fez um gesto displicente com o cachimbo.

        — Isso não passa de uma insignificância comparado com a estima que tenho por Lótus de Jade.

        Marcel viu com surpresa Eli levantou-se.

        — Agradecemos ao Venerável Tao a sua hospitalidade graciosa e pedimos mil perdões por ter-lhe tomado o precioso tempo.

        Tao ficou inquieto com essa terminação abrupta das negociações. A despeito de si mesmo, as palavras lhe saíram dos lábios.

        — Um momento, um momento. Por que é que os ocidentais estão sempre com tanta pressa?

        De trás do grande biombo, Lótus de Jade tudo observava e sorriu quando Eli tornou a sentar-se e as negociações recomeçaram. Ela havia notado que o homem que fora comprá-la não se havia levantado quando seu amigo assim fizera.

 

        No dia seguinte, um robusto policial português estava sentado diante da mesa de Eli. Tirou um lenço e enxugou o suor do rosto.

        — Chegou ao nosso conhecimento que seu amigo está comprando esposas, — disse ele, olhando para Marcel. — Sabe que há leis que proíbem esses costumes?

        Eli riu.

        — É contra a lei um homem contratar empregadas para a sua casa?

        — Decerto que não, — disse o policial, sorrindo. — Mas julguei que era uma boa oportunidade para conhecer o seu amigo.

        Eli fez as apresentações.

        — O tenente e detetive Goa mantém-se vigilante por nós caso haja alguma dificuldade.

        Os dois homens se apertaram as mãos.

        — Todos os meses ele recebe um envelope com dez mil dólares de Hong-Kong. Ninguém conseguiu saber ainda de onde vem esse envelope.

        O policial riu.

        — Há sempre dois homens extras de serviço aí fora todas as noites.

        Marcel olhou para Eli.

        — E tem havido algum problema?

        — Nos anos que passei aqui, não — disse Eli.

        Marcel voltou-se para o policial, com um sorriso:

        Talvez um policial aí fora seja bastante. Dessa maneira, as suas despesas poderiam ser cortadas pela metade.

        A risada franca do policial ressoou pela sala.

        — Acho que seu amigo e eu vamos nos entender muito bem. Soube que ele contratou Lótus de Jade, filha do velho Tao, como dona-de-casa. É um sujeito de sorte. Há muito tempo, tenho de olho aquela pequena, mas estava esperando que o preço baixasse para ficar ao meu alcance.

 

        Os jogadores de fan-tan sentados à grande mesa levantaram a cabeça quando viram Marcel e Eli atravessarem o cassino.

        — O novo proprietário, — disse um deles.

        — Pelas roupas pode ver-se que é um homem de riqueza e posição, — disse outro. — Muito inglês.

        O que ele queria realmente dizer era que Marcel era claro e tinha cabelos castanhos, sendo diferente de Eli, que era moreno.

        — Só um homem de grande riqueza poderia abrir sua casa comprando quatro esposas numa semana! — disse outro jogador.

        — Sim, — acrescentou o primeiro, — e uma delas, que será a esposa número um, é a filha de Tao, Lótus de Jade. Vocês conhecem o velho Tao. Aposto que o ocidental pagou um bom dinheiro, ainda que os pés dela não sejam como devem ser.

        — Vamos começar o jogo, — disse outro com impaciência. — Todos sabem que os ocidentais são pouco inteligentes a respeito dessas coisas.

 

        O cheiro da cidade velha era penetrante quando Marcel virou para a rua estreita. Ali não era possível fugir dele. Os prédios altos conservavam a rua permanentemente na sombra e mal havia espaço para passar um ricksha, quanto mais um automóvel.

        Marcel correu os olhos pela rua. Ao fundo ficavam os cais. Os gritos dos vendedores de peixe ecoavam pela rua tortuosa e por toda a parte havia o cheiro do peixe que não fora vendido e apodrecia no chão. Os mendigos esperavam ansiosamente que os vendedores dessem as costas.

        Um garoto puxou Marcel pelo braço. Era pequeno e não devia ter mais de oito anos, mas os olhos eram bem velhos.

        — Poontang, mister?

        Marcel sacudiu a cabeça.

        — Muito limpa. Estilo ocidental. Oriental. Moça, como quiser.

        Marcel sacudiu de novo a cabeça.

        Mas o garoto não desanimava assim.

        — Oito anos? Cinco? Meninos? Gosta de meninos? Muito bom.

        Marcel não se deu ao trabalho de responder. Abriu a porta da casa onde o garoto estava e entrou. O forte cheiro de incenso com que se pretendia esconder o cheiro de ópio chegou-lhe ao nariz. Resistiu ao impulso de espirrar quando o jovem chinês se aproximou dele. Do outro lado da porta fechada, ouviu-se a voz do garoto da rua num palavrão.

        O jovem chinês fechou a cara.

        — Não sei o que está havendo com as crianças hoje em dia. Não têm respeito pelos mais velhos. Peço mil desculpas.

        Marcel sorriu.

        — Não tem importância, Kuo Minh. A árvore deixa de ser responsável pelos frutos que caem ao chão.

        Kuo Minh curvou-se.

        — Mostra muita compreensão. Meu pai e meus tios estão esperando lá em cima.

        Subiram os velhos degraus desconjuntados até o último andai do prédio. Embora já houvesse passado muitas vezes por ali, Marcel sempre se admirava da diferença que havia entre aquele andar e os outros. De repente, os corredores apareceram esquisitamente incrustados de teca e madeiras raras e as portas eram de ébano ricamente polido com enfeites de marfim. Kuo Minh abriu uma dessas portas e afastou-se para o lado a fim de deixá-lo passar.

        Uma bela moça com o traje tradicional de seda ajoelhou-se aos seus pés para tirar-lhe os sapatos e calçar-lhe sandálias chinesas. Quando ela desapareceu, Marcel entrou com o jovem chinês na sala ao lado.

        Os quatro homens que estavam sentados à pequena mesa Ievan- taram-se e fizeram uma mesura. Marcel correspondeu ao cumprimento e aceitou o convite do pai de Kuo Minh para sentar-se. Quase no mesmo instante, outra moça levou chá.

        Os quatro homens esperaram polidamente que o hóspede acabasse o chá. Como de costume, foi o pai de Kuo Minh quem falou. Só depois que trocaram frases gentis sobre a saúde de Marcel e a saúde de suas quatro esposas foi que começaram a tratar de negócios.

        — Tem alguma resposta sobre as armas?

        — Tenho, — respondeu calmamente Marcel.

        O velho olhou para os outros e voltou-se de novo para Marcel.

        — Muito bem. Podemos pagar com uma boa quantidade de papoula.

        Marcel deixou que um ar pesaroso lhe aparecesse no rosto.

        — É com muita relutância que tenho de comunicar que o meu cliente está interessado em navios e não em papoula.

        O pai de Kuo Minh prendeu a respiração.

        Mas o nosso comércio sempre foi feito com a papoula.

        — Consta que o mercado está ruim para a papoula. De qualquer maneira, é em navios que o meu cliente está interessado.

        Os chineses começaram a falar rapidamente entre si. Marcel nem tentou seguir o que diziam. Estavam falando muito depressa para o seu chinês ainda reduzido. Além disso, não importava muito que ele compreendesse ou não. Sabia muito bem o que queria.

        Fazia mais de um ano que tinha chegado a Macau. E naquele ano havia ficado mais rico do que jamais sonhara. Quase que com a primeira transação. As armas é que tinham feito isso. As armas e o ópio. Todos os senhores da guerra queriam armas. A única maneira pela qual estas podiam chegar à China era de contrabando nos pequenos barcos de pesca que navegavam entre o continente e Macau. E a única maneira pela qual podiam pagar era com a papoula.

        Mas os japoneses tinham sido muito mais espertos do que Marcel previra. Embora tivesse muito dinheiro para negociar, isso era uma ninharia em comparação com o que os japoneses queriam pelos seus navios. Foi nessa época, quando procurava desesperadamente meios de aumentar o seu capital, que se meteu no tráfico de armas.

        Tudo começara quando se havia encontrado o corpo de um homem boiando no mar perto do cais. O tenente Goa estava no escritório de Marcel quando foram dar-lhe a notícia. Levantou-se, sacudindo a cabeça.

        — É um caso que nunca resolveremos. O morto é um dos agentes de Vorilov.

        — Sir Peter Vorilov?

        — Sim. Ele faz muitos negócios por aqui.

        No momento em que fez a pergunta, Marcel compreendeu que a mesma era idiota.

        — Mas vender munições não é contra a lei?

        O policial o olhou de maneira peculiar e perguntou:

        — Quase tudo o que se faz não é contra a lei?

        Mal o policial saiu, Marcel correu para pegar o vapor da tarde para Hong-Kong. Não queria passar um telegrama de Macau. Tinha certeza de que a polícia recebia cópia de todos os seus telegramas.

        O que mandou para Sir Peter Vorilov, em Monte Carlo, estava assim redigido: “Seu agente Macau morto. Ofereço meus serviços sujeito aprovação Christopoulos. Esperarei resposta Hong-Kong Hotel Península, Kowloon, vinte e quatro horas.”

        A resposta chegou em menos de doze horas. Dizia: “Serviços aceitos”. Estava assinado “Vorilov”.

        Dois dias depois, Kuo Minh havia aparecido em seu escritório. Outros também apareceram e era sempre a mesma coisa. Armas em troca de papoulas. Em menos de uma semana, ele descobriu que as armas que Vorilov vendia eram antigas e não tinham saída em qualquer outro lugar do mundo e que o preço que ele recebia no estrangeiro pela papoula era mais de cinco vezes o que ela lhe custava. Estava realmente lucrando dos dois lados em cada transação. Um ano depois, quando recebeu do banco suíço o extrato da sua conta, ele próprio ficou surpreso. Tinha a seu crédito mais de três milhões de dólares em ouro.

        Foi então que Marcel resolveu voltar aos seus planos iniciais. Comprar navios. Mas, se ele abordasse os japoneses, estes perceberiam o seu interesse. O único recurso era fazer os chineses conseguirem os navios para ele.

        Por fim, o velho se voltou e falou rapidamente com o filho, que depois disse a Marcel:

        — Dizem que não têm dinheiro para comprar os navios. Só têm papoula. E os homens macacos não recebem papoula.

        Marcel fingiu que estava pensando sobre o que haviam dito.

        — Sabem de algum navio que possam conseguir?

        Os homens conversaram rapidamente entre si. Dessa vez, o velho falou diretamente a Marcel:

        — Há pelo menos dez navios velhos que podemos comprar, mas são muito caros. Talvez custem ainda mais.

        Marcel conservou-se impassível.

        — Quanto?

        — Não adianta, — replicou o velho, — pois não temos o dinheiro.

        Marcel voltou a fingir que estava refletindo.

        —Ajudaria se eu conseguisse outro mercado para a sua papoula?

        — Ajudaria muito, — disse o velho.

        — Vou procurar informações, mas duvido de que possa obter preços tão altos.

        — Seremos sempre seus devedores.

        Bon, — disse Marcel, levantando-se. — Falarei logo que tiver alguma resposta.

        Todos se levantaram e cumprimentaram-no cerimoniosamente. Depois que os passos de Marcel se afastaram pelo corredor, voltaram a conversar.

        — São todos a mesma coisa, — disse um deles. — Mais cedo ou mais tarde, a ambição acaba vencendo-os.

        — Sim, — disse o outro. — Seria de esperar que ele ficasse satisfeito em roubar tanto a nós quanto ao russo. Mas não, isso não lhe basta. Agora, quer ainda mais para comprar os seus malditos navios.

        — Acho que já está na hora de mandá-lo fazer companhia ao outro nas águas da baía,.— disse um terceiro.

        Kuo Minh voltou à sala no momento em que seu pai levantava a mão.

        — Não, meus amigos, ainda não está na hora. Não poderemos ficar parados até que o russo encontre um substituto para ele.

        — Vamos deixar então que ele nos roube ainda mais?

        — Não, ele não nos roubará, — disse calmamente o pai de Kuo Minh. — Logo que soubermos quanto ele nos quer pagar a menos pela papoula, dobraremos a diferença e acrescentaremos isso ao preço dos navios que ele deseja.

        — Ele ficou rico, — disse Christopoulos, irritado. — Em menos de um ano, juntou três milhões nos bancos suíços. Estamos sabendo agora que é o dono dos vinte navios que devia comprar para nós. E ainda tem a coragem de dizer que pode arrendar-nos os navios.

        — Que é que você quer que eu faça? — perguntou Sir Peter.

        — Esse dinheiro saiu de algum lugar. Desde que a escrita do cassino está em ordem, é de você que ele deve estar roubando.

        Sir Peter sorriu.

        — De mim, não. As contas dele são meticulosas e exatas. Recebeu para mim o preço exato em todas as transações.

        — Deve estar então cobrando demais aos seus fregueses.

        — Pouca sorte deles, — disse Sir Peter. — Os meus preços são suficientemente altos para me satisfazerem. Se eles querem pagar mais, não posso impedi-los.

        — Nada pode tentar então para fazê-lo parar?

        — Não tenho motivo para fazê-lo parar, — disse Sir Peter. — Só você tem e só você pode.

        — Como?

        — Não arrende os navios. Que é que ele vai fazer com vinte, navios sem carga? Em menos de um mês estará arruinado.

        — Então os japoneses retomarão os navios e nós estaremos na mesma situação anterior.

        — Pior para você, — disse Sir Peter e olhou para o relógio. — Tenho de ir-me embora. Está quase na hora de meu filho ir para a cama. Procuro estar em casa a essa hora sempre que posso. Na minha idade, não posso esperar fazer isso muitos anos mais.

        Levou o jogador até à porta e disse:

        — Quer saber de uma coisa, Christopoulos? Você não devia ser tão ambicioso. Aprendi muito tempo a cingir-me ao meu negócio. Você deve limitar-se também ao que faz de melhor, que é dar cartas.

        Eli olhou para o tio quando ele entrou no carro.

        — Que foi que o velho disse?

        Christopoulos soltou uma praga.

        — Não vai fazer nada?

        — Não. Diz que os livros dele estão em ordem também. Tive a impressão de que estava rindo de mim.

        — Que é que vai fazer? — perguntou Eli.

        — Sei lá! Disse ao barão que não confiava nele. Se ele estivesse aqui, eu o mataria pessoalmente.

        — Para que se dar a esse trabalho? Em Macau há alguém que teria prazer em fazer isso pelo senhor.

        O tio o olhou e ele continuou:

        — Se ele não está roubando do senhor e não está roubando de Sir Peter, deve estar roubando de alguém e só pode ser dos chineses com quem está fazendo negócio.

        — Você os conhece?

        — Todo mundo em Macau os conhece. Bastaria uma carta minha.

        — Mas os chineses não podem ser cegos. Devem saber o que ele está fazendo sem ser preciso você dizer. Por que ainda não o mataram?

        — Os chineses não são como nós, meu tio. Há no Oriente uma coisa muito importante que se chama “face”. Enquanto somente Marcel e eles sabem, não tem importância. Estão conseguindo o que querem. Mas quando for do conhecimento geral que eles estão sendo roubados, perderiam a face se não o matassem.

        O rosto de Christopoulos se contraiu de raiva.

        — Dê-me um mês para os entendimentos com os japoneses. Depois, escreva a carta para seus amigos.

 

        Marcel, sentado à sua mesa, estudava o americano. Era alto, corado e de firmes olhos azuis. Marcel olhou para o cartão de visita:

        John Hadley, Vice-Presidente

        Cia. Americana de Transportes Marítimos.

        — Que deseja de mim, Sr. Hadley?

        Hadley entrou diretamente no assunto.

        — Vim até aqui à procura de navios. Estão todos na sua mão.

        — Ora, nem todos, disse Marcel.

        — De fato, nem todos. Só aqueles que ainda podem navegar. Estou autorizado a. oferecer-lhe um bom lucro, se quiser vendê-los.

        Marcel sorriu.

        — Isso é sempre bom de ouvir. Mas ainda não estou preparado para vender.

        — Que irá fazer com eles? Ainda não chegou a um acordo sobre o seu contrato de arrendamento. E com toda a certeza, não poderá comê-los.

        Marcel deixou de ser displicente. O americano estava bem informado.

        — Os navios vão ser arrendados.

        — Não foi o que eu soube. Posso dizer-lhe que foi feita uma proposta aos japoneses de compra dos navios depois da sua desistência forçada por falta de pagamento.

        Era essa então a razão pela qual estavam demorando tanto a dar uma resposta, pensou Marcel.

        — Mas não me farão desistir, — disse ele com mais confiança do que sentia. Encontrarei carga.

        — Como? — perguntou o americano. — Aqui em Macau?

        Tinha razão. O movimento do porto era bem pequeno. As grandes cargas iam para outros portos.

        — Tenho agentes em Hong-Kong.

        — Não tem ninguém, — disse categoricamente o americano. — Se não fechar contrato com os gregos, estará perdido. Os japoneses retomarão os navios dentro de dois meses.

        — Neste caso, por que não se entende com eles?

        — Porque queremos ter certeza de conseguir os navios. Preferiria fazer um mau negócio com o senhor a arriscar-me com os japoneses.

        — O senhor é muito franco.

        — É a única maneira que temos de fazer negócios. Meu chefe não tem paciência com assuntos enredados. Vai diretamente ao que deseja.

        Marcel sabia da reputação do proprietário da Companhia Americana de Transportes Marítimos. Era um irlandês pobre de Boston que viera de muito baixo e lutara muito até conseguir o controle de muitas companhias e acumular uma fabulosa fortuna. Com a sua inflexível determinação, conseguira para os seus navios o monopólio virtual da carga entre os Estados Unidos e a América do Sul.

        Marcel procurou lembrar-se do que mais soubera a respeito de James Hadley. Naqueles últimos anos, dizia-se que ele se dedicava cada vez mais à política. Tornara-se uma figura importante no partido que acabara de eleger Roosevelt pela segunda vez e constava que o Presidente lhe oferecera uma embaixada. Já representara o seu país em várias importantes negociações diplomáticas, onde conseguira dar a impressão da mais completa vulgaridade. Tinha, porém, dois filhos de sua grande família em Harvard e diziam que ele se estava abrandando. Como todos os novos-ricos, havia começado a pensar em penetrar num mundo ao qual o dinheiro por si só não dava acesso, o mundo do prestígio.

        Marcel percebeu de repente que o homem com quem falava tinha o mesmo nome. Pegou o cartão e perguntou:

        — São parentes?

        — Primos-irmãos.

        — Ah, bem.

        Hadley esperou um momento e, vendo que Marcel não continuava, perguntou:

        — Está resolvido então a não vender os navios?

        — De fato.

        — Neste caso, vou fazer-lhe outra sugestão. Temos cinquenta navios de bandeira americana. Gostaríamos de transferi-los para registro estrangeiro, a fim de livrar-nos dos pesados impostos. Proponho juntarmos esses navios aos seus, formando uma companhia comum e registrando todos os navios num país cuja neutralidade seja mantida em caso de guerra. Dessa maneira, estaria assegurada aos nossos navios a liberdade dos mares.

        — É impossível, Sr. Hadley. Todos ainda saberiam que os navios eram da sua companhia.

        — Não, se lhe vendêssemos os navios. Os nossos interesses seriam protegidos por um contrato de sociedade feito na Suíça.

        — Mas em que país registraríamos os navios? Na Suíça seria impossível.

        O senhor passou muitos anos como secretário do consulado do Corteguay em Paris.

        Marcel não pôde esconder a sua admiração. Os americanos eram muito mais espertos do que ele julgava.

        Mas o Corteguay já tem um acordo com os interesses de De Coyne.

        E o que foi que conseguiram com isso? Quatro navios aos pedaços quando vinte não bastariam!

        — Apesar disso, o acordo existe.

        Quanto tempo acha que esse acordo seria mantido se explicássemos ao presidente do Corteguay as vantagens de fazer negócio conosco? Os políticos são iguais no mundo inteiro.

        Pela primeira vez desde muito tempo, Marcel pensou no falecido cônsul. Jaime Xenos teria querido mais do que tudo no mundo um acordo como aquele para o seu país. Ainda assim, sentir-se-ia decerto horrorizado com o que o americano lhe propunha. Mas este estava certo. Não havia muitos homens no mundo que tivessem a integridade do pai de Dax.

        — E como nos aproximaríamos do presidente do Corteguay? — perguntou Marcel. — Eu era simplesmente um empregado no consulado. Não teria prestígio suficiente...

        — Deixe isso conosco. Só desejo do senhor é um acordo em princípio. — Levantou-se. — Voltarei para Hong-Kong no vapor da tarde. Pense bem no assunto. Passarei alguns dias no Hotel Península à espera da sua decisão.

        — Vou pensar.

        Despediu-se e Marcel ficou sozinho no escritório pensando. Sabia que Hardley ia ficar em Hong-Kong, não apenas para esperar a sua resposta, mas também para iniciar entendimentos com os japoneses. Não poderia arriscar-se a perder o seu tempo, caso a decisão de Marcel fosse desfavorável.

        De repente, Marcel proferiu uma praga. Alguma coisa não tinha dado certo e ele nem sabia o que fora. Deu um soco na mesa. Gregos do inferno! Bem se dizia que não se podia confiar em ninguém. Já estavam tentando apunhalá-lo pelas costas. E se não fosse ele, nunca teriam qualquer oportunidade de conseguir os navios.

 

        A casa estava mergulhada num silêncio pouco habitual quando chegou naquela noite. A própria Lótus de Jade parecia deprimida quando lhe tirou os sapatos e calçou as sandálias. Depois, quando ela lhe levou um cálice de aperitivo, perguntou:

        — Está sentindo alguma coisa?

        Ela parecia pálida. Mas compreendeu que não devia insistir. Ela deixaria, de repente, de falar francês e desandaria num chinês rápido de que ele não entenderia absolutamente nada. A verdade era que já gostava muito daquela serena e amável moça que havia comprado.

        Assim se lembrava do dia em que a levara para casa. As outras esposas já estavam alinhadas na porta, para recebê-la. Havia pensado que elas iriam ter inveja — da sua beleza, do fato de que ela vinha de melhor família. Mas teve a surpresa de ver que acontecera justamente o contrário. Tiveram exclamações de admiração pela sua beleza e se encantaram com as roupas finas que levara. Juntaram-se em torno dela, exclamando muito felizes naquelas vozes monótonas e estridentes: “Seja bem-vinda, irmã! Seja bem-vinda!”

        Naquela noite, quando ele entrara no quarto, havia flores frescas na jarra perto da janela e o incenso cheiroso ardia diante da estatueta sorridente de Buda. Havia até colchas novas de seda na cama. Começou a despir-se quando ouviu um rumor e voltou-se para ver-se cercado pelas outras três esposas.

        Rindo e tagarelando, acabaram de despi-lo e fizeram-no deitar-se nu entre as cobertas. Fazendo-lhe sinal para que ficasse ali, saíram do quarto e um momento depois ele ouviu o som de uma lira suavemente tangida. A música se aproximava cada vez mais e afinal chegou diante da sua porta.

        A porta se abriu e Lótus de Jade entrou. Não podia tirar os olhos dela. Nunca vira ninguém mais bela. Os cabelos estavam caídos em torno do rosto e os olhos brilhavam pretos como azeviche. O diáfano vestido de seda se lhe colava à pele, revelando um corpo que parecia de marfim polido. Encaminhou-se lentamente para ele.

        Atrás dela entraram as outras esposas. Uma delas tocava uma pequena lira, outra levava um prato de doces e cascas de frutas cristalizadas e a terceira um jarro de vinho. Lótus de Jade parou em frente à cama, com os olhos modestamente baixos.

        Os doces e o vinho foram colocados na mesinha de cabeceira e, então, as outras esposas se voltaram para Lótus de Jade. Tiraram-lhe o vestido pela cabeça e ela ficou completamente nua.

        Voltaram-se depois para ele e levantaram a colcha. Mas ela se conservou ali de olhos baixos.

        — Venha, irmãzinha, — disse gentilmente uma delas. — Deite-se ao lado de seu marido.

        Sem olhá-lo, Lótus de Jade se sentou mansamente na beira da cama. Ele podia ver-lhe uma veia latejando no pescoço e o suave arrepio dos bicos róseos dos seios. Sentiu a excitação dominá-lo, mas ainda Lótus de Jade não voltara os olhos para ele.

        — Olhe, irmãzinha, — disse outra das esposas. — Veja como você agrada a seu marido!

        Mas Lótus de Jade não olhava para ele. Impaciente, uma das outras mulheres tomou-lhe a mão e guiou-a. O toque suave e quente completou a excitação. Ele estendeu os braços para virar-lhe o rosto e, de repente, os dois ficaram sozinhos.

        Olharam-se por um momento e então ela disse:

        — Estou com medo de olhar, meu marido. Sempre ouvi dizer que os ocidentais são como gigantes.

        — Foi o que as outras lhe disseram?

        Não, elas são suas esposas e nunca lhe seriam desleais. Disseram-me foi que o seu tamanho lhes dava até mais alegria e prazer.

        Experimentou uma sensação agradável. Sentiu-se de repente forte e vigoroso. Nunca se julgara muito bem dotado, embora tivesse ouvido dizer que os orientais eram menores.

        — Olhe para mim.

        Ela fechou os olhos e disse:

        — Tenho medo.

        — Olhe para mim!

        Dessa vez, era uma ordem que ela não se atreveu a desobedecer. Abriu os olhos e baixou lentamente o rosto. De repente, os seus olhos pararam e ela teve uma exclamação de espanto.

        — Vou morrer! — exclamou ela. — Você entrará dentro de mim e me rasgará o coração!

        Ficou de repente zangado.

        — Se está com medo, pode ir-se embora e mande uma das outras.

        Viu a palidez que invadiu o rosto dela. Nunca poderia saber o medo que ela sentiu naquele momento. Seria uma desonra para ela e para a família se ele a repelisse.

        — Não, meu marido. Não estou mais com medo.

        Ele riu e se aproximou dela, mas ela o deteve com a mão.

        — Não, meu marido, não quero que se canse.

        Movendo-se rapidamente, ficou de repente por cima dele, com um joelho de cada lado dos seus quadris. Depois, lentamente, guiando-o com a mão, baixou o corpo. A penetração foi difícil. De vez em quando, ela se afastava ao sentir mais aguda a dor.

        Ele viu os olhos dela apertarem-se e as lágrimas rolarem-lhe pelo rosto.

        — Pare! — disse ele asperamente.

        Ela abriu os olhos. O medo que havia naqueles olhos era intolerável para ele. Fê-la delicadamente deitar-se ao lado dele. Parecia pouco mais do que uma criança.

        — Quem lhe disse para fazer assim?

        Ela escondeu o rosto no travesseiro para que ele não pudesse ver a vergonha que sentia.

        — Minha mãe. Disse ela que é a maneira correta de receber os ocidentais.

        Ele lhe afagou os longos cabelos negros.

        — Não é verdade. Vou mostrar a você.

        Começou a beijá-la e acariciá-la e, quando afinal ficou dentro dela, até ele se surpreendeu com o acesso de paixão de Lótus de Jade. E, depois disso, ela havia sido sempre a sua favorita, pois nada havia que ela não fizesse para dar-lhe prazer no delírio que a possuía.

        Mas naquela noite estava silenciosa e pálida enquanto ele tomava o seu aperitivo.

        — Vou jantar e depois voltarei para o cassino. Tenho muito o que fazer.

        Ela bateu com a cabeça e saiu da sala em silêncio. Um momento depois, ouviu choro na cozinha e um murmúrio de vozes zangadas. Já ia para a cozinha quando ela apareceu na porta.

        — Que é que há lá dentro? — perguntou ele.

        Ela não respondeu.

        — Bem, se você não quer dizer, eu mesmo vou saber.

        De repente, todas as suas esposas apareceram na sala em prantos. Lótus de Jade olhou para elas e não aguentou mais. Começou a chorar também.

        — Quem é que vai me dizer o que foi que houve? — perguntou Marcel.

        Todas as outras mulheres redobraram os soluços. Mas Lótus de Jade se ajoelhou diante dele.

        — Não vá ao cassino esta noite. Não saia de casa.

        — Mas por quê? — perguntou ele, irritado. — Que é que vocês têm com isso?

        — A Tong Minh está espalhando que você já é um homem morto.

        — O quê? Como é que sabe disso?

        — Chegou isto aqui.

        Lótus de Jade levantou-se, abriu um armário e tirou uma grande caixa. Estava cheia de seda branca.

        — Que é isso?

        — Seda para fazer quatro vestidos de luto. É o costume das tongs para que uma esposa não fique despreparada para a sua viuvez.

        Quando recebeu isso?

        — Hoje à tarde. Um mensageiro de Kuo Minh deixou isto em nossa porta.

        Sentiu o frio do medo correr-lhe pelo corpo.

        — Tenho de sair daqui. Vou falar com a polícia.

        — Não vai adiantar nada, meu marido. Morrerá antes de chegar lá. A casa já está vigiada.

        — Não havia ninguém do lado de fora quando cheguei.

        — Eles se esconderam. Venha ver.

        Foi com ela até uma janela e olhou por um canto da cortina que ela levantou. Um homem estava num portal do outro lado da rua e outro estava mais adiante encostado a um poste de iluminação. Deixou cair a cortina.

        — Vou telefonar para a polícia. Sairei daqui sob a proteção da polícia.

        Mas o telefone não falava. Os fios tinham sido cortados. Marcel sentiu-se em pânico. Haviam pensado em tudo.

        Deve haver algum engano. Por que não me mataram quando vim para casa?

        Sem dar as suas esposas oportunidade de se despedirem de você? — perguntou Lótus de Jade, espantada. — Eles não são selvagens!

        Sentiu um medo terrível, mas controlou-se e murmurou:

        — Deve haver um jeito de sair daqui.

        Não houve resposta. Marcel foi até à sala de estar, abriu a gaveta da mesa e tirou o revólver que guardava ali para proteger-se dos ladrões. Mas isso não lhe dava segurança. Nunca em toda a sua vida dera um tiro em coisa alguma.

        As esposas apareceram na sala. Lótus de Jade disse alguma coisa às outras num chinês muito rápido. As outras concordaram com um sinal de cabeça. Depois, ela se voltou para ele e disse:

        — Há um meio.

        — Por que não me disse isso antes?

        — Não queríamos ver você ser um assassino. Já basta a tong dizer que você é ladrão.

        — Por que é que está dizendo isso?

        — Chegou uma carta do homem que estava no cassino antes de você. Mandou dizer que você não dava aos seus fregueses todo o dinheiro que recebia pela papoula.

        Tudo se esclareceu para ele. Era por isso que os gregos tinham tanta certeza de conseguir os navios. Estes seriam retomados pelos japoneses por falta de pagamento depois da sua morte.

        — Como é que eu posso sair daqui? — perguntou quase humildemente.

        — Recebemos ordem para sair da casa antes das dez horas. Uma de nós ficará aqui. Você sairá vestindo as roupas dela.

        — Qual será?

        — Eu, — respondeu Lótus de Jade. — Sou a esposa número um e é esse o meu dever. Depois, sou a que tenho um tamanho mais parecido com o seu e até ando como você.

        — Mas será um perigo para você! Que é que eles vão fazer quando descobrirem que você tomou o meu lugar?

        — Não haverá perigo algum, — disse ela tranquilamente.

        Durante toda aquela noite, no pequeno barco de contrabandistas que o levou para Hong-Kong, Marcel não pensou mais nela nem na expressão do seu rosto pálido quando o vira sair com as outras esposas.

        Só na noite seguinte, depois do encontro com Hadley no hotel em Hong-Kong, foi que ele acordou no camarote sentindo o pulsar das máquinas. Estava a bordo de um cargueiro americano que rumava para o seu porto de registro nos Estados Unidos.

        — Lótus de Jade! — exclamou ele na escuridão. Viu-lhe de novo o rosto e a terrível certeza que havia nele. Deixando-a no lugar dele, ele a havia condenado à morte.

        Anos depois, quando ele era muito rico e muitas mulheres haviam passado pela sua vida, pensava nela apenas como a mais bonita das quatro mulheres que comprara em Macau.

        Mas naquela noite chamou por ela em voz alta.

        Chorou pela       covardia que o fizera fugir.

        E chorou por ela.

 

        Gostaria de que Dax morasse conosco aqui em Boston até encontrar um lugar para ficar, — disse Robert quando a irmã desceu para o café da manhã.

        Caroline hesitou.

        — Mas, assim, o homem que está sempre com ele terá de ficar aqui também.

        — Gato Gordo?

        Caroline estremeceu.

        — Esse mesmo. Sinto arrepios só de olhar para ele.

        Robert riu.

        — Gato Gordo toma conta de Dax. Está com ele desde que Dax era garotinho. O presidente deles fez do homem guarda pessoal de Dax desde o tempo em que estavam todos na selva.

        — Mas não estão mais Ha selva. O que é que ele         ainda faz junto do rapaz? Ainda se fosse um criado ou alguma coisa assim...

        — Acho que já faz parte da família. E até, depois da morte do pai de Dax, é a única família que ele tem.

        Caroline tomou um gole de café e fez uma careta.

        — O café está horrível! Quando é que vamos achar uma cozinheira que saiba fazer café?

        — Você diz a mesma coisa todas as manhãs, — disse Robert, rindo de novo. — Não se esqueça de que estamos nos Estados Unidos. O café deles é diferente do nosso.

        — Vou escrever para Papá e pedir que nos mande um bom cozinheiro.

        Bon. — Houve um rumor à porta e Robert olhou. Levantou-se quando a convidada de Caroline entrou na sala.

        — Bom dia, Sue Ann.

        A bela moça loura sorriu.

        — Bom dia, Robert, — disse ela, com forte sotaque sulista.

        — Bom dia, querida Caroline.

        Robert continuou de pé depois que Sue Ann se sentou.

        — Concorda então que Dax fique conosco?

        Caroline encolheu os ombros.

        — Por que não? A casa é bem grande. Dá para ele.

        — Ele chegará a Nova York amanhã.         Estou com vontade de tomar o avião para ir recebê-lo.

        Sue Ann olhou com curiosidade para Caroline depois que Robert saiu.

        — Esse nome, Dax, não é desconhecido. Parece que já o ouvi em algum lugar.

        — Dax é amigo de meu irmão. Foram colegas de escola na França.

        Sue Ann provou o café.

        — Este café está uma delícia, — disse ela, distraidamente. — Espere aí! Não é o jogador de pólo, que passou a ser embaixador quando o pai morreu?

        — Ele mesmo, mas não foi embaixador, Sue Ann. Foi apenas cônsul.

        — Que diferença faz? Dizem que ele é fantástico!

        — Fantástico! — exclamou Caroline, olhando para a amiga. Havia ocasiões em que não a compreendia de modo algum. Por que todo o homem que ela falava era sempre “fantástico”? Ouvira aquela palavra pelo menos uma vez por dia desde que conhecia Sue Ann.

        Quando Dax chegou à casa com Robert, Caroline pensou que ele estava mudado. Teve um sentimento de surpresa. Estava crescido e não se podia pensar mais nele como um rapaz. Era um homem. Ela nunca havia sabido que um ano pudesse fazer tanta diferença. A última vez que o vira fora poucos meses antes da morte do pai. Ela tinha ido para os Estados Unidos alguns meses antes do irmão.

        Dax sorriu ao vê-la. Ela se aproximou e virou o rosto para ser beijada por ele, à moda francesa.

        — Que prazer em tornar a vê-la, Caroline.

        A voz era mais profunda também, pensou Caroline, e Robert parecia ainda um garoto ao lado dele.

        — O prazer é meu em estar aqui para recebê-lo, Dax. Como se foi de viagem?

        — Muito bem, mas só até desembarcar. Aí os repórteres não me deram mais descanso.

        — Está vendo? Estamos com uma celebridade dentro de casa!

        Dax sorriu modestamente.

        — Os repórteres são os mesmos em toda a parte. Quando não têm notícias, inventam e qualquer coisa serve. Até eu.

        Caroline se sentiu estranhamente perturbada. Aquele não era o rapaz a quem ela tratara daquela maneira cruel no vestiário da piscina. Tinha certeza de que já não teria coragem de proceder assim. Ele virou a cabeça e olhou para a escada. Sem precisar olhar, Caroline compreendeu que Sue Ann vinha descendo. Uma ponta de ciúme a agitou. A coquette havia passado a manhã toda diante do espelho, enfeitando-se.

        Caroline virou-se quando Sue Ann se aproximou, com os seus cabelos de mel e a pele queimada. Que diabo! pensou Caroline. Por que é que todas as americanas têm de ser tão altas? Virou-se para Dax.

        — Quero apresentar-lhe a minha amiga, Sue Ann Daley. Sue Ann, este é Dax Xenos.

        — Enchanté, — disse Dax, beijando-lhe a mão.

        Sue Ann ficou corada e disse:

        — Muito prazer em conhecê-lo, Sr. Xenos. — Caroline nunca vira Sue Ann falar com um sotaque sulista mais carregado. — Tenho ouvido falar muito no senhor.

        Dax voltou-se para Caroline e, no mesmo instante, percebeu o que ela estava pensando. Sorriu intimamente. Bem feito, pensou ele, as coisas já têm corrido demais a contento dela.

        — Por que não me escreveu para me dizer que havia mulheres tão bonitas nos Estados Unidos, Caroline? Se eu soubesse, não teria demorado tanto a vir.

        “Mulheres” fora a palavra que ele empregara e não “moças”. Caroline notou isso imediatamente. Ele havia crescido, sim. Pareceu por um momento fora do seu alcance e isso a aborreceu.

        — Eu poderia ter escrito, — disse ela, escondendo os pensa-mentos com um sorriso. — Mas pensei que estivesse muito ocupado.

        — Pois se eu tivesse sabido, — murmurou Dax, olhando para Sue Ann, — nunca teria ficado tão ocupado assim.

        Gato Gordo entrou no quarto quando Dax estava-se vestindo para o jantar. Sentou-se pesadamente numa cadeira.

        — Este país não é como eu pensava.

        Dax sorriu.

        — Nem índios, nem gangsters, não é?

        — É mesmo, não vi nada disso. Mas que calor! A gente parece que vai se derreter dentro das roupas.

        — Você está sempre se queixando. Na França, era a umidade e o frio. Aqui, é o calor. Não se preocupe. No inverno, você vai ficar enterrado na neve até às orelhas.

        — Quanto tempo vamos ficar nesta casa, Dax?

        — Por quê?

        — Porque sinto que a francesa, a irmã de seu amigo, não gosta de mim.

        Dax não procurou contestá-lo. Sabia que não podia discutir com os instintos de Gato Gordo.

        — Só ficaremos até encontrar um lugar que nos sirva.

        — Quanto mais cedo encontrarmos esse lugar, melhor, — disse Gato Gordo, muito carrancudo.

        Dax virou-se para o espelho, acabou de dar o laço na gravata e perguntou:

        — Por que está dizendo isso?

        — A loura olha para você como se você já estivesse com ela. A francesa tem uma cara de quem está disposta a matar você no momento em que isso acontecer.

        — Acha que está com ciúmes?

        — É mais do que ciúmes, Dax. Ela está habituada a ter todas as suas vontades feitas e compreende que não pode fazer mais com você o que fez na França. Cuidado!

        Dax desceu e encontrou Robert na biblioteca.

        — Onde estão as moças?

        — Ora, onde é que podem estar, Dax? Estão-se vestindo. Preparei um aperitivo para você.

        — Merci, — disse Dax e provou a bebida. — Pastis! Ah! Cest bon!

        — Sabia que você ia gostar.

        Dax sentou-se ao lado dele.

        — Agora, fale-me dos Estados Unidos.

        É muito diferente, Dax. Não quero dizer apenas que seja diferente da França, mas é muito diferente também do que nós pensávamos.

        — Foi o que senti. Gato Gordo é que está decepcionado. Não viu nem índios, nem gangsters.

        — Vou-lhe contar um segredo, — disse Robert, sorrindo. — Senti a mesma decepção logo que cheguei. — Quando pararam de rir, ele continuou: — Mas quero referir-me especialmente ao povo americano. Aqui, em Harvard, encontramos gente como nós, que tem conhecimento do mundo e do papel que nele lhes cabe. Mas, fora da Universidade, nas ruas, é tudo muito diferente. Pouco se interessam pelo que acontece no resto do mundo. Parece que estão isolados pelos oceanos de tudo mais.

        — De algum modo, estão certos, os dois oceanos são muito grandes, o Atlântico e o Pacífico.

        — Mas nem sempre será assim!...

        — E a escola? É difícil?

        — As aulas? Muito não. Quase a mesma coisa que na França. A outra parte da vida escolar é que eu acho dificuldade em compreender. Os esportes que praticam — beisebol, futebol americano, basquetebol. O estudante que se distingue neles tem mais prestígio do que qualquer bom estudante.

        — Em minha terra é o mesmo com o futebol. E a mesma coisa me acontece com o pólo. Por falar nisso, há uma equipe de pólo?

        — Acho que não. Mas recebi um convite de uns amigos para ir assistir aos jogos de pólo em Meadowbrook.

        — Meadowbrook? Não é o time em que Hitchcock joga?

        — Acho que sim, — disse Robert.

        — Pois eu gostaria de ir ver ao menos um jogo. Nunca vi Hitchcock jogar.

        — É em Long Island. Teremos de tomar o trem para Nova York ou ir de avião. Seria um bom fim-de-semana. Esses amigos nos convidaram para a casa deles.

        — Mas eles nem me conhecem, Robert.

        — Mas é assim que os americanos são. Não têm a menor hesitação em convidar para a casa deles uma pessoa estranha. Para o jantar, para um fim-de-semana, até para passar um mês. E parece que não se importam absolutamente com isso.

        — É uma gente estranha.

        — E não foi só esse convite. Já recebi uns vinte telefonemas desde que você chegou. Creio que eu não sabia bem a celebridade que você é.

        — Desculpe, Robert. Não quero perturbar assim a sua vida. Se você quiser, terei prazer em mudar-me para um hotel.

        — Nada disso! Esta é a primeira vez desde que saí da França que tenho com quem conversar. É como nos velhos tempos. Só quem está faltando é aquele russo grandalhão.

        — Sergei! — exclamou Dax, sorrindo. — Por onde andará ele? Procurei-o antes de vir para cá, mas ele havia mudado sem deixar o novo endereço. Julguei que tivesse ido ficar com o pai na Alemanha.

        — Não, está na Suíça. Caroline recebeu uma carta de uma amiga que o viu por lá. Parece estar com dinheiro. Tem uma grande Mercedes vermelha e parece estar sempre em companhia de mulheres ricas.

        — Acho que ele estava falando mais a sério do que nós pensávamos quando dizia que iria casar-se com uma milionária americana!

        — Pois ele faria melhor se viesse para cá. Por exemplo, a amiga de Caroline...

        — Sue Ann?

        — Ela mesma. Herdou no mínimo cinquenta milhões de dólares, só do avô. Foi ele quem abriu os primeiros armazéns Penny Savers em Atlanta. Herdará muito mais quando os pais morrerem.

        — Ah! Os Penny Savers Daley! Lembro-me deles na Inglaterra. Mas ainda não havia feito a ligação com ela.

        — Pois aqui há um desses armazéns em cada cidade, — disse Robert e riu. —. Já pensou o que Sergei faria com uma pequena assim?

        — Iria ficar púrpura real de verdade!

        As suas risadas foram interrompidas por Sue Ann e Caroline que desciam para o jantar.

 

        A voz dela era macia e lânguida.

        — É verdade, sim, meu bem. Ninguém me amou ainda como você.

        Dax virou-se e olhou para Sue Ann. Os olhos estavam quase fechados e à boca entreaberta. Os longos cabelos louros espalhavam-se pelo travesseiro e os seios fartos, com os bicos rosados estranhamente pequenos se levantavam gentilmente ao embalo da sua respiração.

        — Não acredito.

        Os olhos azuis abriram-se e fitaram-no com feroz intensidade.

        — É verdade, Dax. Os outros nem pareciam que me estavam amando e, sim, que me estavam fazendo um favor.

        Ele riu, acendendo um cigarro.

        — Eram então uns idiotas!

        Ela suspirou profundamente e fechou os olhos.

        — Quando você está comigo, sinto-me tão viva que tenho até vontade de morrer!

        Ele riu e virou-a de costas, puxando-a para ele. Sentiu-a estremecer quando a penetrou.

        — Oh! — exclamou ela. — Você não vai parar mais!

        — Só quando você achar que chega!

        — Para mim nunca chega! — Um tremor lhe percorreu o corpo. — Vou vibrar de novo! — gritou ela alucinadamente, tentando fugir dele.

        Ele prendeu-a, agarrando-a com força pelos ombros. Um momento depois, o frenesi dela cessou, mas ela continuou a se contorcer.

        — Não pare! Quero vibrar mil vezes!

        — Não vou parar!

        A cabeça dela descambou sobre o ombro e ela olhou para ele.

        Fechou de novo os olhos e disse em voz bem baixa:

        — Não admira que não queiram que se ande com negros!

        Dax já estava nos Estados Unidos havia tempo suficiente para saber o que ela queria dizer. Esteve quase para bater-lhe e murmurou entre os dentes: — Descarada!

        Ela se aconchegou ainda mais a ele.

        — Tudo certo, meu bem! Machuque-me, xingue-me nomes feios e me ame, me ame! É só o que quero!

        Mais tarde, ela tirou o cigarro dos lábios dele e colocou-o na boca.

        — Fiquei muito satisfeita de você ter conseguido este apartamento. Caroline nunca nos deixou um instante sozinhos!

        Ele pegou outro cigarro e acendeu-o sem responder.

        — Caroline é boa, Dax?

        — Por que não vai saber pessoalmente disso?

        — Não quer dizer?

        — Você gostaria de que eu falasse de você?

        — Que é que tem? Eu falo de você.

        Ele riu.

        — Você é uma maluca.

        — Dizem que as francesas são boas.

        — E são.

        — Tão boas quanto eu?

        — Ninguém é melhor do que você!

        Ela sorriu.

        — Gosto de amar. Não posso pensar noutra coisa. Quando era garotinha, vivia ansiosa, sem poder esperar. Ficava toda excitada só de pensar.

        — Pois olhe que não mudou muito.

        Ela pegou nele e disse:

        — Você é homem de verdade! — Uma sombra lhe passou pelos olhos. — Vou sentir muita falta de você.

        — Falta de mim? Por quê?

        — Mamãe resolveu que devo ir estudar na Suíça. Papai diz que vai haver guerra e Mamãe acha que eu devo ir logo para poder concluir o curso e voltar antes que a guerra comece.

        — Quando é que vai viajar?

        — Amanhã.

        — Mas já? Por que não me disse?

        — Teria feito alguma diferença?

        Não, mas...

        Ela olhou para o relógio e depois para ele e disse:

        — Ainda temos algum tempo.

        Apagou o cigarro no cinzeiro junto da cama.

        Mais tarde, ela o olhou pelo espelho, enquanto passava o batom nos lábios.

        — E você? Sentirá a minha falta?

        — Claro que sim. Não há muitas como você!

        Ela se levantou e beijou-o.

        — Foi grande, não foi?

        Ele bateu com a cabeça e perguntou:

        — Para onde foi que você disse que ia? Para a Suíça?

        — Sim.

        — Tenho um grande amigo lá, Sergei Nikovitch. Procure ver se o encontra. Conde Nikovitch.

        — Ele é conde mesmo? — perguntou Sue Ann, arregalando os olhos.

        — É, sim. É um russo branco. Os comunistas botaram a família dele de lá para fora.

        — Eu poderia conhecê-lo, — murmurou ela, mas logo hesitou: — Tem boa aparência?

        — É um homem muito bonito. E ainda maior do que eu. O pai dele era oficial de cossacos.

        Depois que ela saiu, ele se estirou na cama. Sue Ann não era mulher para ficar muito tempo sozinha. Se alguém ia tirar algum proveito dela, podia muito bem ser Sergei.

        O telefone ao lado da cama começou a tocar. Pouco depois, ouviu Gato Gordo atender na extensão na outra sala. Estava acendendo outro cigarro quando Gato Gordo abriu a porta.

        — Sempre que a loura vem aqui, a francesa telefona.

        — Caroline?

        — Há outra francesa por aqui? Você está bem? Estou contente de que a loura vá-se embora. Ela estava esgotando você.

        — Você andou escutando à porta.

        — Que é mais que a gente pode fazer aqui para se divertir? Como é? Vai falar com ela?

        OK, — disse Dax, pegando o telefone. — Caroline?

        Já lhe telefonei três vezes nestas últimas duas horas, — disse ela, com voz irritada, — mas esse seu horrível homem disse que você estava na cama.

        — Estava e estou.

        — A estas horas da tarde?

        — Você sabe como nós, sul-americanos, somos. Gostamos de uma sesta bem comprida. Além disso, não tenho muito mais o que fazer.

        Robert teve aulas o dia inteiro. Ele me pediu que lhe perguntasse se você ainda pretende passar o fim-de-semana com os Hadleys, em nossa companhia?

        — Claro que sim.

        — Então nós passaremos por aí amanhã às nove horas para pegá-lo.

        Dax não pôde resistir à tentação de aborrecê-la.

        — Sue Ann vai também?

        — Não, — respondeu ela secamente. Depois, a voz se abrandou e houve até nela um toque de felicidade. — Não sabe que ela vai-se embora?

        — Vai-se embora? Não diga? Para onde?

        — Para a Suíça. Os pais dela chegaram à conclusão de que ela não tem educação suficiente.

        Dax ainda estava sorrindo quando desligou o telefone.

        — Dax, Dax!

        Ouviu chamarem-no e começou a nadar descansadamente para a praia. Uma lancha cheia de rapazes partia para o mar quando ele chegou ao pequeno cais, fazendo-o com a onda perder a borda para a qual levantara a mão. Alguém pegou-o e puxou-o até em cima. Era James Jr., o mais velho dos irmãos Hadley.

        — Obrigado, — disse ele, olhando em seguida para a lancha. — Seu irmão parece que se está divertindo à grande.

        — Está sim, — disse Jim. — Foi a primeira vez que papai o deixou sair sozinho com a lancha. Afinal de contas, tem apenas dezessete anos e está na idade de entusiasmar-se com essas coisas. Vamos tomar uma cerveja?

        — Boa ideia.

        Ficaram na sombra, bebendo a cerveja na garrafa.

        — Gosta disto aqui? — perguntou Jim.

        — Acho muito bom. Agradecido por ter-me convidado.

        — Não estou falando de Hyannis Port, — disse Jim. — Mas de modo geral. Os Estados Unidos. Boston. Harvard.

        — Não sei ainda, — respondeu Dax com sinceridade. — Não tenho ainda tempo suficiente para chegar a um juízo definido. Só estou aqui há seis semanas, sabe?

        — Sei. Eu sei também que conheceu Sue Ann Daley, — disse o americano com um sorriso. — Isso não lhe deve ter dado muito tempo para qualquer outra coisa.

        Foi uma surpresa para Dax. Não tinha ideia de que isso fosse do conhecimento geral.

        — Conhece Sue Ann?

        — Conheço, sim. Tivemos um caso quando ela esteve aqui no ano passado. Durou cerca de um mês. Não aguentei com ela.

        Ambos riram e o gelo se quebrou. Depois, o rosto de Jim ficou sério de novo.

        — Ouvimos muita coisa a seu respeito.

        — Também ouvi muita coisa sobre você.

        — Sobre mim, sobre meu pai, — disse Jim, que continuou ante o silêncio de Dax: — Meu pai tinha muita curiosidade a seu respeito. Achou que você foi formidável preenchendo o lugar depois da morte de seu pai.

        — Não fiz nada, Jim. Limitei-me a fazer ato de presença até encontrarem outra pessoa para o lugar.

        — Meu pai diz que qualquer pessoa capaz de ocupar um lugar assim durante seis meses sem fazer nada de errado é notável.

        — Agradeça a seu pai por mim, mas é fácil deixar de errar quando há muito pouco para fazer. E com apenas quatro navios entre o Corteguay e o resto do mundo, não havia muita atividade comercial.

        — Acha que meu pai cometeu um erro quando cancelou as viagens dos seus navios para a sua terra? — perguntou Jim.

        — Você já citou seu pai, Jim. Agora, vou citar o meu. O boicote do Corteguay não foi apenas um ato de represália econômica. Foi um ato de crueldade. Condenou à fome um pequeno país.

        Jim Hadley ficou em silêncio durante algum tempo e perguntou:

        — Você não gosta muito de meu pai, não é?

        Dax olhou para ele. Naquilo, os americanos eram todos iguais. Torciam todas as coisas até dar-lhes um cunho pessoal. Se a gente aprovava o que faziam, presumiam automaticamente que se gostava deles. Quando não se aprovava, a presunção contrária era também automática.

        A resposta que lhe posso dar é a mesma que dei à sua primeira pergunta: não sei. Ainda não conheço seu pai.

        — Você é muito franco!

        — Vou citar de novo meu pai: nunca diga uma mentira quando a verdade faz o mesmo efeito.

        Jim sorriu.

        — Será que posso convidá-lo para tomar outra cerveja?

        Experimente e veja.

 

        Robert estava à espera deles quando saíram da aula. Tinha um jornal na mão e parecia carrancudo.

        — Já souberam?

        Jim sacudiu a cabeça.

        Robert mostrou-lhes a manchete do jornal: “Começou o Cerco de Madri”.

        — Oh! — disse Jim. — Não demorou muito.

        Robert começou a ler em voz alta:

        “O General Mola, que comanda as forças atacantes, diz que o fim da guerra está próximo. Além das quatro colunas que atacam a cidade, afirma que tem uma quinta coluna que está dentro de Madri trabalhando pela libertação”.

        — Uma quinta coluna, — murmurou Jim. — É uma nova designação para espiões e traidores.

        — Jim!

        Todos se voltaram para Jeremy Hadley, que corria para eles.

        — Que é que há, Jeremy?

        — Pode-me emprestar seu carro esta noite? Tenho um encontro com uma pequena que é um verdadeiro estouro!

        — Está bem, — disse Jim, tirando a chave do bolso e entregando-a ao irmão. — Mas cuidado para não dar nenhuma batida. Papai me fez trabalhar o ano inteiro por ele.

        — Obrigado!

        — Querem ir tomar uma cerveja em minha casa?

        Jeremy olhou para Dax.

        — Eu também?

        — Você também, — disse Dax, rindo. — Não temos objeções pessoais contra calouros.

        Jeremy olhou indeciso para o irmão mais velho e este disse:

        — OK. Você já tem dezoito anos. Creio que Papai não se aborrecerá.

        Atravessaram o pátio em silêncio. É uma família muito unida, pensou Dax, olhando os dois irmãos que caminhavam lado a lado. Não havia dúvida que o pai os governava com mão de ferro e, apesar disso, era adorado pelos filhos. Tudo fora planejado em relação a eles.

        James, o mais velho, iria para a escola de Direito depois da universidade e, depois, se dedicaria à política. Vinha depois uma filha, seguida de Jeremy. Este seguiria o mesmo caminho do irmão com a diferença de que iria ser advogado em vez de político. Mais duas moças e outro homem, Thomas, que tinha apenas doze anos, mas já estava destinado à Escola de Administração de Harvard. O pai decidira que a ele caberia tratar dos interesses comerciais da família. Mais uma menina e, por fim, o caçula da família, Kevin. Tinha dois anos mas todos já o tratavam de “Doutor”. Do futuro das moças é que o pai parecia não ter cuidado. Dax não sabia se acontecia o mesmo em todas as famílias irlandesas.

        — Que apartamento — exclamou Jeremy entusiasticamente, jogando-se numa poltrona com uma garrafa de cerveja na mão. — Gostaria de morar num apartamento assim. Por que você não fala com Papai, Jim? Não teríamos de voltar para casa todos os dias depois das aulas. Você bem poderia convencê-lo. Ele faz tudo o que você quer.

        — Eu não, que não digo nada, — disse Jim, rindo. — Trate das suas sujeiras sozinho.

        — Não tenho coragem, — confessou Jeremy, que se voltou para Dax. — Eu não seria capaz de abrir um livro se morasse aqui. Como é que você consegue?

        — Não é fácil, — disse Robert. — Você devia ver algumas das pequenas que vêm aqui. Teria a impressão de estar assistindo a um desfile de beleza.

        — Não é tanto assim, — murmurou Dax.

        Jeremy olhou-o, cheio de admiração.

        — Agora, eu já sei por que você tem tanto prestígio com as pequenas. Tem um lugar destes para trazê-las. O banco de trás do carro de Jim não é lá um lugar muito romântico.

        — Papai é que ficará muito romântico se as suas notas não forem boas! — disse, rindo, Jim.

        — Está bem, está bem, — murmurou Jeremy. — Mas por que vocês estavam de cara tão zangada quando eu cheguei?

        Robert mostrou-lhe o jornal.

        — Muito bem, — disse Jeremy. — E daí?

        — Daí que isso pode significar a guerra na Europa, — disse Robert. — A Alemanha e a Itália estão abertamente ajudando os falangistas. Você acha que nós aqui podemos ficar fora do brinquedo?

        — É verdade, — disse Jeremy, muito sério. — Eu não havia pensado nisso. Que é que você acha que vai acontecer?

        — Não sei. Mas Papai pensa que não vai haver guerra... agora.

        — Ouvi uns camaradas falando que iam alistar-se numa tal brigada internacional que estão formando. E o pessoal da minha classe está todo querendo entrar para o CPOR para pegar bons postos quando a guerra começar. Eu acho...

        — Você se meteu em alguma coisa? — perguntou Jim.

        — Não. Claro que não!

        — Então, não se meta. Deixe quem quiser falar à vontade. Há tempo de sobra para morrermos nas nossas guerras e não temos de nos meter nas brigas dos outros.

        O telefone tocou e Dax atendeu.

        — Alô, meu bem.

        — Lá está ele de novo!

        — Não, querida, — disse Dax, — não há nenhuma pequena aqui. Só alguns colegas. — Cobriu o fone com a mão. — Querem fazer um pouco de silêncio?

        — Lá se vai o fim-de-semana, — murmurou Robert.

        — Não deve ser uma pequena muito boa.

        — Isso para mim não teria importância nenhuma, — disse Jeremy. — Gostaria de que ela estivesse telefonando para mim!

 

        “Procure fazer amigos”, tinha dito o Presidente numa das suas cartas. “Trate de conhecer todas as pessoas que for possível. Algum dia, os gringos vão querer voltar ao Corteguay e você terá feito os contatos que facilitarão o caminho para eles. Isso é muito importante, meu amigo, mais ainda do que os seus estudos. Dessa maneira, estará ajudando muito o nosso amado Corteguay.”

        Dax se lembrou dessa carta quando se dirigia para o almoço com o velho Hadley. Tinha atendido aos desejos do Presidente, até porque teria dificuldade em agir de outro modo. Desde que chegara, era procurado pelos americanos. Era para eles uma nova espécie de celebridade. As suas maneiras européias e o fato de haver nascido numa terra de violência, onde não se dava muito valor à vida humana, pareciam emprestar uma estranha atração ao seu encanto pessoal.

        Para as pequenas americanas, principalmente. Depois de algum tempo, ele quase sabia que cada novo convite significava alguma pequena que estava ansiosa por descobrir se ele era mesmo tão selvagem assim na cama. Havia ocasiões em que ele estranhava essa curiosa coação ao desafio sexual. De muitos modos, esses entreveros — era assim realmente que acabara por julgá-los — transformavam a cama num campo de batalha e num lugar romântico. Parecia que o que se exigia principalmente dele era provar a sua superioridade masculina. Mas, quando isso acontecia, havia sempre um refluxo de ressentimento. Na maioria das vezes, nunca mais via a pequena.

        Enquanto isso, aumentava com cada nova conquista a sua reputação de Casanova. Às vezes, pensava nisso com uma ironia que o ajudava a absorver as pilhérias e as zombarias dos amigos. O conceito que fazia de si mesmo era muito diferente do que faziam dos outros. Se os americanos o julgavam um Casanova, que iriam dizer de alguém como Sergei, cujo único propósito na vida parecia ser andar com todas as mulheres que conhecia?

        Era claro que isso lhe prejudicava os estudos. As suas notas mal davam para passar e se a sua presença em Harvard não tivesse certa expressão diplomática, a universidade tê-lo-ia excluído da matrícula. Não que ele fosse um mau estudante. Apenas não lhe sobrava tempo para estudar.

        Naquele último verão, o segundo que passava nos Estados Unidos, jogara pólo pelo time de Meadowbrook e, ao fim da temporada, o grande Tommy Hitchcock resolvera afinal fazer-lhe um elogio. Mas tivera conhecimento também da reputação de Dax.

        Quando estavam juntos no banheiro depois do último jogo, havia dito:

        — Você poderia ser um dos maiores jogadores de pólo do mundo se não fizesse todo o seu treinamento na cama.

        Dax se limitara a rir. Apesar de haver jogado toda a temporada com ele, ainda se sentia tímido demais na presença de Hitchcock, para protestar.

 

        A neve começou a cair quando o táxi atravessou Boylston Street.

        — Aí está a primeira tempestade de verdade do inverno, — disse o motorista, virando-se para ele.

        Dax deu um resmungo em resposta. Agora, Gato Gordo só sairia de casa em situação de extremo perigo. Aquele homem que enfrentara a morte tantas vezes e sobrevivera a tantos perigos, tinha verdadeiro horror da neve. Chamava-lhe o lençol branco do inferno.

        Dax puxou a gola do sobretudo em torno do pescoço enquanto pagava ao chofer. Também ele não tinha grande entusiasmo pela neve. Olhou para o edifício onde ia almoçar com James Hadley. Os americanos eram um povo muito curioso. Tratavam de negócios na hora do almoço, quando o indicado seria apenas apreciar tranquilamente a comida, longe dos problemas.

        — Papai há muito tempo que quer conhecê-lo, — dissera Jim pelo telefone. — Acha uma boa ideia você ir almoçar amanhã com ele no Clube, se puder.

        Dax não precisava perguntar qual era o clube. Só havia um para as pessoas importantes de Boston e almoçar em qualquer outro lugar seria um sacrilégio.

        Um homem de uniforme cinzento recebeu-o à porta e tomou- lhe o sobretudo.

        — Sr. Xenos?

        — Sim.

        — O Sr. Hadley já está sentado à mesa. Tenha a bondade de acompanhar-me.

        Passou com Dax pelo bar, já cheio de pessoas que tomavam um drinque antes do almoço, e chegou ao grande salão de refeições.

        Atravessando a sala repleta, Dax reconheceu muitas figuras importantes. Jim Curley, ex-governador do Estado e mais uma vez prefeito da cidade, estava sentado a uma mesa bem no centro do salão, onde sempre se podia chegar para trocar uma palavra com ele. Como sempre, havia um padre à mesa. Não podia deixar de ser um bispo ou um cardeal, pensou Dax. Em outra mesa, reconheceu outro político, James “Honey Fitz” Fitzgerald, junto com um dos maiores homens de negócios de Boston, Joseph Kennedy.

        Chegou afinal à mesa e Jim levantou-se.

        — Dax, quero apresentar-lhe Papai.

        — Prazer, — disse Dax, estendendo automaticamente a mão. Mas não era para o pai de Jim que estava olhando. O outro homem presente à mesa era Marcel Campion.

 

        — Bem, tenho de voltar para o escritório, — disse James Hadley, levantando-se. — Não, por favor, não se levantem. Não tenha pressa, Dax. Tenho certeza de que tem muitas coisas para conversar com o Sr. Campion além dos negócios de que tratamos.

        O jovem Jim também se levantou:

        — Tenho uma aula e também vou andando.

        O silêncio caiu entre eles depois que os outros saíram. Dax olhou para Marcel. Ele tinha mudado. Não parecia mais o pequeno funcionário comum de quem Dax se lembrava. Havia nele algo de mais positivo e seguro. Talvez fosse o apurado terno de corte inglês, talvez, como era mais provável, fosse alguma coisa nos olhos de Marcel. Espelhavam o olhar confiante de um homem que sabia o que queria e sabia como ia consegui-lo.

        Marcel foi quem primeiro falou.

        — Há quanto tempo, Dax! Quase dois anos.

        — É verdade.

        — Que é que acha dele? — perguntou, referindo-se evidentemente ao homem que os convidara para o almoço.

        —•Ele é tudo o que me disseram que era e mais ainda, — respondeu Dax com toda a franqueza.

        Marcel passou a falar em francês e Dax acompanhou-o automaticamente.

        — Sabe o que foi que ele me disse? — murmurou Marcel, curvando-se para falar confidencialmente. — Que o prefeito Curley poderia ser presidente dos Estados Unidos, se tivesse nascido trinta anos mais tarde. Acha que algum dia haverá um presidente católico.

        — Não posso acreditar nisso.

        En vérité, — continuou Marcel, — creio que ele espera que esse presidente seja seu filho mais velho.

        — Jim?

        — Sim, o homem faz projetos com muitos anos de antecedência. Desde já, está procurando conseguir posições reforçadas no Partido Democrático. Por isso é que ele insiste tanto para que o rapaz se dedique à política.

        Dax olhou pensativamente para Marcel. Depois das coisas que tinha ouvido naquele almoço, estava pronto a acreditar em quase tudo.

        — Como foi que chegou a conhecê-lo?

        — Muito simples. Ele tinha navios para vender e eu queria navios.

        — Mas como é que foi interessar-se por navios? Pensei que tivesse ido para Macau administrar o cassino.

        — E fui. Mas dentro em pouco soube que havia navios que podiam ser comprados.

        — Como pôde conseguir os navios se os De Coyne não puderam?

        — De Coyne é um tolo, — afirmou categoricamente Marcel. Entrega tudo àquele primo inglês e este parece que só tem como objetivo impedir o crescimento de qualquer linha que ameace a dele. Penso até que ele só entrou no negócio para melhor sabotá-lo.

        Marcel se aproximou mais de Dax e baixou a voz, dizendo:

        — Quando soube disso, lembrei-me da necessidade de navios de que seu pai sempre falou. Consegui dinheiro emprestado a alguns amigos chineses e comprei vinte. Depois, procurei mais e soube que Hadley tinha cinquenta para vender. Fui naturalmente procurá-lo. Mas ele é muito vivo e percebeu imediatamente as minhas intenções. A minha impressão é de que ele já estava arrependido de haver-se juntado aos ingleses no boicote do seu país.

        — Quer dizer que ele se arrependeu de ter perdido tanto dinheiro?

        — No fim, é tudo a mesma coisa. De qualquer modo, mostrou-se disposto a vender os navios, contanto que a companhia dele continuasse como agente de cargas dos mesmos no mundo inteiro. Antes de assumir esse compromisso, acho que devo ter um entendimento firme com o Corteguay. De outro modo, eu não poderia utilizar os navios.

        — Não sei como o Presidente se sentirá de fazer negócios com um americano, — disse Dax.

        — O seu presidente é um homem prático, — disse Marcel. — Ele já deve estar sentindo que não pode esperar muito de De Coyne.

        — Mas há ainda os cinco milhões de dólares que foram pagos pelo privilégio. E este é válido pelo prazo de vinte anos.

        Marcel tirou um charuto do bolso e acendeu-o.

        — Não cometa o mesmo erro que seu pai cometeu, Dax. O Presidente não é um homem íntegro como foi seu pai. Sabe o que aconteceu com esses cinco milhões de dólares? Acha que foram mesmo para o tesouro do seu país?

        Dax nada disse.

        — Pois eu posso dizer a você o destino que tiveram. Estão num banco da Suíça numa conta com o nome do Presidente.

        Dax ficou atônito. Se Marcel sabia, seu pai não podia deixar de ter sabido.

        — E meu pai...

        — Sim, seu pai sabia.

        — Então por quê

        Marcel não o deixou concluir a pergunta.

        — Que poderia ter ele feito? Pedir demissão? Isso não serviria de nada ao Corteguay, ao passo que conseguir os navios, serviria. Por isso, ficou calado, mas a tanto custo que creio que isso foi uma das coisas que lhe apressaram a morte.

        Dax sacudiu a cabeça. Sentia um aperto na garganta. Seu pobre pai. Sé ao menos ele soubesse! Mas que poderia ter feito? Nada.

        Marcel se aproveitou do seu silêncio.

        — Por que acha você que estamos dispostos a pagar mais cinco milhões de dólares pelo privilégio? Porque temos certeza de que o Presidente aceitará. Dax, é tempo de você acabar de crescer e ser realista. Se a transação for fechada, você ficará muito bem. Deve começar a pensar em si mesmo. Salvo se pretende ficar na miséria pagando as dívidas dos ladrões.

        — Não sei, — disse Dax, hesitando. — É difícil para mim acreditar...

        — Que é que acha difícil de acreditar? Não pode ver para que foi exatamente que o seu presidente o mandou para cá? Foi justamente para uma coisa como essa, para facilitar a volta dos Estados Unidos ao Corteguay. Julga que ele não sabe que já recebeu da Europa o máximo de ajuda que era possível?

        Dax ficou calado.

        — Se eu não fosse tão positivo, acha que iria naturalizar-me cidadão do Corteguay?

        Dax olhou para Marcel.

        — Está pensando mesmo em ir viver no Corteguay e abandonar a sua nacionalidade francesa?

        Marcel riu.

        — Quem falou em ir viver no Corteguay? Disse apenas que ia naturalizar-me. Gosto dos Estados Unidos, especialmente de Nova York. É onde se fazem os negócios e é onde eu pretendo viver.

        Quando mais tarde, naquela noite, Dax falou com o Presidente pelo telefone internacional, ficou sabendo que não importava que Marcel houvesse dito a verdade ou não. A única objeção que o Presidente fez à proposta foi achar que a quantia a ser paga, na realidade uma indenização pelos prejuízos causados pelo boicote, devia ser de dez milhões em vez de cinco. E quando ele finalmente desligou o telefone, Dax compreendeu que a sua missão ali estava terminada. Era tempo de regressar.

 

        Dax olhou à volta da mesa. Robert e Caroline. Jim e Jeremy Hadley e duas das irmãs deles. Tinha sido muito gentil da parte deles oferecer-lhe aquele pequeno jantar no Ritz Carlton na sua última noite nos Estados Unidos. Tinha nos lábios um sorriso de ironia. Que diriam, pensava ele, se soubessem que ele, Dax Xenos, o Casanova moderno, estava sozinho e sem par no jantar da sua despedida.

        Na hora do café, Jim pigarreou e olhou para os outros. Todos fizeram sinal de assentimento e ele se levantou. Houve silêncio na mesa.

        — Dax, — disse ele numa voz fácil em que quase não havia traço do seu sotaque bostoniano, — nós, seus amigos, lamentamos a sua partida mas respeitamos a sua convicção de que pode servir melhor o seu país voltando para lá.

        “Mas não queremos que volte sem alguma pequena lembrança nossa, alguma coisa que o faça lembrar-se, onde quer que esteja, de que ainda está conosco, ainda é um dos nossos. Assim, certos de que quem estudou em Harvard é sempre um homem de Harvard, resolvemos dar-lhe essa lembrança, sinal da nossa amizade de penhor da nossa intenção”.

        Com os dedos inesperadamente canhestros, Dax abriu o estojo de couro. O anel de ouro e a pedra carmesim foram imediatamente identificados por Dax. Era o seu anel de formatura, da turma de 1939. Olhou-os ciente do esforço que deviam ter tido para consegui-lo. Em geral, esses anéis só podiam ser feitos depois de terminado o curso. E ainda faltavam mais de dois anos.

        Colocou prontamente o anel no dedo. Estava perfeitamente na medida. Olhou para eles, comovido.

        — Muito obrigado, — disse simplesmente. — Sempre o usarei. E sempre me lembrarei.

        Caroline se aproximou então dele e quando ele se levantou para beijar-lhe o rosto, viu com surpresa que ela estava chorando.

 

        Estava à amurada com Gato Gordo quando as montanhas de Corteguay, atrás da cidade de Curatu, surgiram por entre as névoas da manhã.

        — Veja, Dax! — exclamou Gato Gordo, exultante. — Estamos em nossa terra.

        As montanhas foram crescendo à medida que o navio se aproximava e eles viram o verde, o belo verde-escuro do inverno que era realmente verão no Corteguay.

        Dax ouviu nesse momento a voz do pai como se estivesse ao lado dele, a dizer-lhe, como, alguns anos antes, no momento da partida, que quando ele voltasse não seria mais um menino e, sim, um homem.

        — É verdade, Papai, — murmurou ele, sentindo as lágrimas subirem-lhe aos olhos.

        Mas o que nenhum deles tinha sabido anos antes era que a passagem da condição de menino para a de adulto fosse um processo tão doloroso e solitário.

 

                                              DINHEIRO e CASAMENTO

        Os gabinetes dos banqueiros têm o mesmo cheiro no mundo inteiro, pensou Sergei, sentando-se numa poltrona de couro. Só que os bancos suíços tinham um cheiro mais forte. De coisa velha e de mofo. Talvez fosse por causa da veneração dos suíços pelo dinheiro. E ele tinha a impressão de que o dinheiro deles era também mais velho e mais cheio de mofo.

        Os dois banqueiros sentados à grande mesa olhavam-no. Displicentemente, Sergei olhou-os também. Estava disposto a deixar que falassem primeiro. De qualquer modo, não tinha muito o que dizer e ficou calado.

        O baixinho e calvo foi quem primeiro falou.

        — Sou Monsieur Bernstein — disse ele num francês com forte sotaque alemão. — Este é meu sócio, Monsieur Kastele.

        Desde que eles não fizeram menção de estender a mão, Sergei permaneceu imóvel na cadeira. Limitou-se a inclinar de leve a cabeça, sem falar.

        Bernstein partiu imediatamente ao ataque.

        — O senhor não é príncipe! — disse ele acusadoramente, com os olhos faiscando atrás dos óculos de aros de ouro.

        — E dai? — perguntou Sergei, sorrindo. — Ela sabe disso.

        Os olhos de Bernstein, por trás dos óculos, perderam a animação.

        — Ela já sabe?

        Kastele acorreu prontamente em socorro do sócio.

        — O senhor não é nem conde, — disse ele, com uma voz carregada de censura. — Só seu pai, que está no exército alemão, é que é conde.

        Sergei mostrou-se então aborrecido.

        — Não sabia que o nosso encontro tinha por finalidade discutir minha família. — Levantou-se. — Não faço nenhuma questão de casar-me com a moça. A ideia partiu dela.

        Quando ele se encaminhou para a porta, Bernstei, com surpreendente agilidade, deu um pulo da mesa e alcançou Sergei antes que ele abrisse a porta.

        — Un moment, Monsieur Nikovitch!

        Sergei notou as gotas de suor na testa calva do homem.

        — Não houve intenção de ofendê-lo, conde Nikovitch.

        Sergei olhou com desprezo para Bernstein, e, sem nada dizer, estendeu a mão para a maçaneta da porta.

        Kastele completou a capitulação.

        — Tudo está certo, Alteza! — disse ele, com voz untuosa. — Não houve intenção de ofender. Faça a gentileza de sentar-se, Príncipe Nikovitch. Acho que podemos discutir esse caso do contrato de casamento como cavalheiros.

        Sergei deixou-se relutantemente ser levado de novo para a cadeira. Estava em posição superior e sabia disso. Uma palavra de Sue Ann para o pai dela faria imediatamente cessarem todos os contatos dos banqueiros com a fortuna Daley.

        Bernstein deu volta à mesa e sentou-se. Havia um evidente alivio no olhar que ele trocou com o sócio. Estampou um sorriso no rosto ao voltar-se para Sergei.

        — Entramos em contato com Monsieur Daley e temos o prazer de informar que ele não tem objeções ao seu casamento com a filha.

        Sergei inclinou a cabeça em silêncio. Assim era melhor.

        — Contudo, recebemos instruções para proteger os interesses de Miss Daley. Não deve desconhecer que ela é herdeira de uma grande fortuna, que está irrevogavelmente ligada ao futuro dos negócios da família. Cabe-nos elaborar um acordo que sirva de proteção a todas as partes interessadas.

        Sergei continuou calado.

        — O senhor inclusive — acrescentou Kastele.

        Sergei deu-se então ao luxo de uma resposta.

        — É claro, — disse ele.

        A voz de Bernstein tornou-se mais macia.

        — Em troca da costumeira desistência dos direitos de herança e de todos os outros direitos sobre os bens de sua futura esposa, Monsieur Daley nos autorizou a oferecer-lhe um dote de vinte e cinco mil dólares e uma mesada de quinhentos dólares depois de efetuado o casamento. É claro que suas despesas de manutenção, todas elas, correrão por conta de Monsieur Daley. Não terá de pagar absolutamente nada. Ele deseja que o senhor se sinta feliz, sabendo que isso fará também a felicidade da filha.

        — O que eu acho — disse Sergei, — é que não poderia fazer a filha dele feliz com um acordo miserável como esse. Tenho certeza de que Mr. Daley deve saber disso.

        Kastele olhou-o astutamente.

        — Quanto é, na sua opinião, que deveria ter?

        — Quem sabe? Quando se é casado com a herdeira de cinquenta milhões de dólares não se pode andar com niqueis no bolso. Que é que os outros iriam pensar?

        — Acha que cinquenta mil de dote e mil dólares por mês causariam boa impressão?

        — Mais ou menos — disse Sergei, tirando do bolso a cigarreira de ouro que Sue Ann lhe dera e pegando um cigarro, que acendeu com um isqueiro de ouro que fazia parte do jogo. — Mas ainda não é o bastante.

        Kastele olhou para a cigarreira e o isqueiro que Sergei havia deixado em cima da mesa e perguntou:

        — Por que pensa que deve causar melhor impressão?

        — Vou procurar ser tão simples quanto é possível, senhores. Não é o que penso, é o que Miss Daley pensa.

        — Do que Miss Dalev pensa temos só a sua palavra, — observou prontamente Bernstein.

        — Não, têm também a palavra de Miss Daley, — disse Sergei, abrindo a cigarreira. — Leiam a dedicatória.

        Bernstein pegou a cigarreira, e Kastele se inclinou para ler por cima do ombro dele. Sergei nem olhou para ver a expressão de surpresa que os rostos deles não poderiam deixar de ter.

 

        A meu Sergei

        presente de noivado

        ao maior esgrimista do mundo

        da sua bainha mais agradecida.

        Sua para sempre,

        Sue Ann.

 

        As condições finalmente combinadas foram um dote de cem mil dólares e uma mesada de dois mil e quinhentos dólares. Havia mais uma cláusula, proveniente de mútuo acordo. No caso de Sue Ann desejar o divórcio, Sergei teria direito á receber cinquenta mil dólares por ano de casamento, até cinco — isto é, duzentos e cinquenta mil dólares.

        Tudo havia começado pouco mais de três meses antes, em fins de janeiro, em Saint-Moritz. Era um daqueles dias cinzentos, quando as nuvens e a neve escondiam as montanhas e obrigavam todo mundo a ficar dentro do hotel. Eram quatro da tarde, e Sergei estava estendido no sofá em frente ao fogo bem forte, no pequeno chalé que alugara para a temporada. De repente, bateram na porta.

        Quem poderia ser com aquele tempo horrível? Gritou à empregada que fosse abrir a porta. No mesmo instante, lembrou-se de que era a tarde de folga dela.

        Levantou-se preguiçosamente e, ajeitando as calças, encaminhou-se para a saleta de entrada. Bateram de novo.

        — Já vou. — Abriu a porta. — Ah, é você! Eu podia saber que só um idiota andaria pela montanha num tempo como este.

        O homem coberto de neve era Kurt Wilhelm, skimeister no Suvtetta.

        — Está só? — perguntou ele.

        — Claro que estou. Quem esperava encontrar aqui, Greta Garbo?

        — Nada me surpreenderia. Mas que frio está fazendo lá fora! Tem alguma coisa ai para se beber?

        — Há uma garrafa de vodca aí no armário. Pode servir-se.

        Kurt bebeu um cálice de vodca e disse:

        — Acho que desta vez tenho uma boa para você.

        — Talvez seja como a última. Era uma corista inglesa que também andava à procura de um bom partido. Ficamos com cara de idiotas quando, depois de nos amarmos como dois malucos, descobrimos que ambos trabalhávamos do mesmo lado da rua.

        — Todo mundo pode se enganar. Mas esta é legitima. Eu verifiquei.

        — Verificou como?

        — Bem, ela chegou com duas pequenas como convidadas dela e tomou o apartamento real, o que tem três quartos. Bem, as reservas foram feitas pelo Crédit Suisse, que também pagará a conta. Ora, você conhece bem o Crédit Suisse. Não aceita como cliente quem não tiver um bocado de dinheiro.

        Sergei pensou por um momento.

        — Talvez sejam taradas. Três juntas assim...

        — Nada disso. Dez minutos depois de chegarem ao hotel já se estavam se engraçando com os meus rapazes. Disse-lhes que fossem em frente com as outras duas, mas deixassem a loura em paz até que eu viesse entender-me aqui com você.

        — Loura, hem? Como é ela?

        — Muito bonita. Pernas compridas. Muita pintura, como todas as americanas, mas nela não fica feio. Os olhos é que não enganam. A gente percebe para que é que ela olha logo num homem.

        — Americana? E as outras?

        — Americanas também.

        — Como se chama?

        — Sue Ann Daley.

        — Sue Ann Daley. O nome não me é desconhecido. Deixe ver se me lembro.

        Enquanto Kurt tomava mais um cálice de vodca, Sergei ficou de testa franzida, tentando lembrar-se. De repente, levantou-se, foi até a mesa e abriu uma gaveta. Examinou rapidamente um maço de cartas e pegou uma.

        — Ah! Eu sabia que o nome não me era desconhecido!

        — Que quer dizer?

        — Sabe, meu velho — disse Sergei, sorrindo para o skimeister. — Acho que dessa vez você acertou mesmo!

        — Você a conhece?

        — Um amigo meu me escreveu sobre ela há um ano, logo que ela veio para a Suíça. Eu estava muito ocupado e nem a procurei.

        Foi até a mesa e sentou-se. Tirou uma folha de papel de cartas que tinha uma coroa e onde estavam gravadas as palavras: Príncipe Sergei Nikovitch. Escreveu rapidamente um bilhete, depois dobrou o papel e guardou-o num envelope. Virou-se para Kurt.

        — Mande levar isto ao quarto dela com uma dúzia de rosas. Chegarei às nove horas para levá-la, e a suas duas amigas, para jantar. Diga a Émile que eu quero minha mesa especial do canto, com flores e velas, um buquê em cada lugar da mesa, e uma garrafa de Piper 1921.

        Kurt olhou para ele. Não havia no seu espirito a menor dúvida de que as moças aceitariam o convite para jantar. Só uma coisa o afligia.

        — E o dinheiro para as flores?

        — Pague você, — disse Sergei, rindo. — Não lhe custa nada, pois você vai levar vinte e cinco por cento desta jogada.

 

        Sue Ann pegou outro bombom e levantou-se da chaise longue. Atravessou o quarto e parou diante do espelho, deixando cair o negligê. Olhou com satisfação para a sua nudez.

        — Puxa! Eu devo ter ganho pelo menos uns dez quilos desde que vim para a Suíça!

        — Mas não está má assim — disse prontamente Maggie.

        — São esses danados chocolates — disse Joan. — Fazem sempre isso.

        Sue Ann voltou-se para as duas amigas.

        — E vocês? Já estão aqui há dois anos e continuam tão magras como quando estavam na América.

        — No primeiro ano, ficamos como você. Mas depois a gente emagrece.

        — É aquela maldita escola! — exclamou Sue Ann. — Parece uma prisão. Não se pode fazer outra coisa senão comer. — Estava ansiosa por estas férias.

        — Bem, aqui estamos.

        — E não posso nem entrar num dos meus vestidos de noite. Que diabo é que eu vou vestir para o jantar esta noite?

        Maggie riu.

        — Por que não vai como está? Isso pouparia um bocado de tempo.

        Sue Ann apanhou outro bombom e disse:

        — Não pense que não gostaria disso. Estou tão seca que não sei o que vai acontecer quando ele me beijar a mão.

        — Está a seu gosto a mesa, Alteza? — perguntou Émile respeitosamente.

        Sergei olhou e disse:

        — Está perfeita, Émile. Às vezes me pergunto por que é que você não está no Ritz em Paris. Você deve ir para onde se possa fazer realmente justiça ao seu talento.

        — É muita bondade sua, Alteza — disse Émile, curvando-se. — O seu aperitivo habitual?

        Sergei respondeu-lhe com um aceno de cabeça, e Émile retirou-se. Correu os olhos em torno. Notara os olhares curiosos das outras pessoas que jantavam quando ele havia entrado. Sabia a impressão que causava. As roupas de noite faziam-no parecer ainda mais alto, e a brancura da frente da camisa contrastava com o rosto muito queimado pelo sol de inverno. Cumprimentou polidamente várias pessoas a quem conhecia e depois pegou o drinque que o garçom colocara à sua frente. Bebeu-o devagar. As suas convidadas deveriam chegar a qualquer momento. Mandara o seu cartão para o apartamento delas antes de entrar no salão de jantar.

        Olhou para as três moças quando entraram. Meu Deus, pensou ele levantando-se, ela não tem absolutamente nada debaixo daquele vestido!

        Sue Ann estava um pouco gorda, mas era alta o bastante para que isso não chamasse a atenção. Caminhava muito aprumada, com a carne e a seda do seu vestido movendo-se juntas como uma liquida fluidez, com os seios forçavam o leve chiffon. Parou diante dele e estendeu a mão.

        — Dax me falou muito a seu respeito.

        Sergei sorriu. Levou a mão dela aos lábios. As outras moças riram. Era uma coisa que consolava — ela não rira. Havia, afinal de contas, alguma esperança para ela.

        — Como é que podemos chamá-lo? — perguntou Sue Ann depois que todos se sentaram. — Será um tanto constrangedor chamá-lo de "Alteza" a noite toda.

        — Por que não me chamam apenas Sergei? A verdade é que não sou realmente príncipe. Meu pai é apenas conde.

        — Gostam de esportes de inverno? perguntou ele pouco depois.

        — Oh, sim — disseram as outras duas quase ao mesmo tempo.

        — Pois eu, não, — disse francamente Sue Ann. — Sou do sul. Detesto a neve e o frio.

        Ele a olhou com uma espécie de surpresa.

        — Que veio então fazer aqui?

        Ela o olhou bem nos olhos e disse:

        — Vim me divertir. Vim fazer as coisas que não se podem fazer numa escola de moças.

        — Creio que compreendo o seu ponto de vista — disse Sergei, sorrindo. — E devo dizer que estou de acordo. Esquiar e patinar são uma perda de tempo.

        A orquestra começou a tocar, e ele se levantou.

        — Creio que seu horror aos esportes não se estende à dança.

        Sue Ann riu e sacudiu a cabeça.

        — Não. Eu gosto de dançar.

        A orquestra estava tocando um tango e ele sentiu a macieza e o calor da moça através do vestido leve de seda quando a apertou. Dançava melhor do que ela, mas, por isso mesmo, ela não chegou a perceber. Sergei a guiou magistralmente até que os dois pareceram fundir-se num só movimento liquido.

        Ele sentiu no peito a pressão de seus fartos seios ardentes e olhou para ela. Tinha os olhos quase fechados e os lábios entreabertos. Esta está no ponto; pensou ele. Deixou a sua força descer para o centro do corpo e encostou-se a ela.

        Ela bateu de repente as pálpebras e olhou-o.

        — Desculpe. Não pude evitar.

        Ela sorriu.

        — Não precisa pedir desculpas. Eu gosto.

        E chegou-se mais o corpo para ele até acabarem a dança.

        Sergei levou-a até a mesa e então dançou por polidez com as outras duas. Mas nenhuma delas tinha a exigente e dominante sexualidade de Sue Ann, embora de certo modo lhe parecessem mais interessantes.

        Quando tornou a sentar-se, moveu disfarçadamente a cadeira de modo que suas pernas pudessem tocar-se. Ao fim de algum tempo, encontrou a mão dela embaixo da mesa. E durante todo esse tempo conversava de coisas insignificantes, como se nada estivesse acontecendo.

        Depois de comerem os dois primeiros pratos, a orquestra começou a tocar outro tango. Ele olhou para ela:

        — Nossa dança?

        Ela fez sinal que sim e começou a levantar-se. De repente, parou e tornou a sentar-se.

        — Diabo! — disse ela, furiosamente.

        — Que foi?

        Ela olhou para as outras moças e depois para ele.

        — Eu sabia que não devia ter vindo assim. Agora, todo mundo vai notar.

        — Que é que vamos fazer? — perguntou Maggie.

        — Podemos ficar aqui até fecharem, — disse Joan.

        — Não seja idiota! Disseram-me que o restaurante fica aberto até as duas da madrugada.

        — Não se preocupe disse Sergei, sorrindo. — Darei um jeito e ninguém perceberá nada.

        — Como assim?

        — Espere.

        Inclinou-se para ela e, como por acaso, tocou a mão na taça de champanha que caiu e se derramou no colo dela.

        — Oh! Perdão! —exclamou ele com voz suficientemente alta para ser ouvida nas mesas vizinhas. Levantou-se e tentou enxugá-la com o guardanapo. — Mil perdões pela minha falta de jeito!

        Sue Ann começou a sorrir quando os garçons acorriam, solicitamente. Ela se levantou, cercada pelas outras moças e um garçom.

        — Vai tomar café no nosso apartamento, não vai?

        — Sem dúvida —respondeu Sergei.

        Ficou de pé até que elas saíssem da sala, e então sentou-se e pediu a conta. Assinou-a com uma rubrica floreada. Quando ia atravessando o vestíbulo para os elevadores, Kurt aproximou-se dele.

        — Então?

        — Não se preocupe. Esta pagará o aluguel.

        Joan abriu-lhe a porta. Sue Ann estava sentada no sofá, vestindo um negligê.

        — Tudo bem agora? — perguntou ele, sorrindo.

        Ela fez um sinal afirmativo.

        — Tomei a liberdade de pedir café e doces. Depois, caviar e mais champanha.

        — Caviar e champanha?

        — Não pode haver nada melhor para uma noite feliz.

        Maggie levantou-se.

        — Bem, vamos para os nossos quartos.

        — Para quê? — perguntou Sergei, falando para, ela, mas olhando para Sue Ann. — Pensei que íamos ter uma festinha.

        — Mas só há você.

        — Para que acha que pedi caviar e champanha?

        Sue Ann começou a rir. Aquela era a linguagem que ela entendia.

        — Você pensa que é muito bom...

        Ele riu, com os olhos nela.

        — Sou o melhor que há.

        — Chega para todas nós?

        — Sou um homem muito simples. Esse é o único esporte a que me dedico. Tudo mais é uma perda de tempo.

        Sue Ann olhou para as outras.

        — Que é que dizem, meninas? Eu estou querendo.

        Maggie e Joan olharam-se, hesitantes.

        — Que é que estão esperando? — disse Sergei, rindo. — Sempre me saio melhor quando tenho platéia.

        — Estou com fome disse Sergei.

        — Eu também.

        — Tratem disso vocês — disse Maggie, sonolenta. — Não consigo nem ficar com os olhos abertos.

        — E... — Sergei nem chegou a concluir a pergunta, porque Joan estava dormindo. Ele olhou para Sue Ann e riu. — Parece que só ficamos nós dois.

        — Assim é que devia ter sido — disse ela, com uma nota de sarcasmo —, se você não fosse um exibicionista.

        Ele riu, levantou-se da cama e começou a andar nu pela sala do apartamento. Depois, sentou-se no sofá, passou manteiga numa torrada e cobriu-a com uma generosa camada de caviar.

        Levantou os olhos quando Sue Ann chegou e sentou-se ao lado dele.

        — Sirva-se — disse ele, fazendo um gesto, com a boca cheia.

        — Você é um porco!

        Ele não respondeu. Pegou outra torrada.

        — Pensei que vocês, continentais, fossem mesmo cavalheiros como se afirma!

        — Se quer ser tratada como uma dama, vá botar alguma roupa em cima do corpo.

        Ela o olhou por um momento e então levantou-se e foi até o banheiro, voltando com dois roupões brancos. Jogou um para ele e enfiou-se no outro. Depois, sentou-se na cadeira em frente a ele. O roupão que ela jogara ainda estava onde havia caído, no colo dele.

        — Que é que está olhando?

        — Nada. Mas, aqui entre nós, que é que você estava querendo provar?

        Ele a olhou, compreendendo de repente que ela era mais inteligente do que ele havia julgado.

        — Que quer dizer com isso?

        — Ox. Dax é seu amigo. Mas não foi ele o único homem com quem fui para a cama.

        Ele não respondeu.

        — Estava procurando provar que é mais homem do que Dax?

        Ele riu.

        — Não, você acertou da primeira vez. Sou um porco. Pensei apenas que seria divertido andar com as três.

        Ela sacudiu a cabeça.

        — Não me venha com essa. Você não é tolo assim.

        — Está bem! — exclamou ele, zangado de repente. — Eu estava mesmo querendo provar que era mais homem!

        — Não é preciso ficar zangado. Você é mesmo, sabe? Provou suficientemente. Nunca estive com um homem igual a você!

        Ele se acalmou.

        — Nunca houve ninguém parecido! Vibrei não sei quantas vezes. Mesmo quando você estava com elas. Cada vez que elas vibravam, eu também. Afinal, fiquei louca. Queria você só para mim. Sabia disso, não sabia?

        — Sabia.

        — E que é que vai fazer?

        Ele se levantou.

        — Vamos, vista alguma coisa.

        — Para onde é que vamos?

        — Para o meu chalé, onde poderemos ficar sozinhos.

        — E elas?

        — Deixá-las. Elas que se arranjem. É você que eu quero.

 

        O sol de março batia na neve, arrancando cintilações ofuscantes. Entrava pela janela aberta da sala, onde estavam fazendo a primeira refeição.

        — Acho que você vai ter de se casar comigo, rapaz.

        Sergei pegou o copo de suco de laranja.

        — Por quê?

        — Ora, pelos motivos clássicos. Estou grávida.

        Ele ficou em silêncio.

        — Nunca pensou nisso, hem?

        Pensar, pensei, mas calculei que você tomaria as precauções necessárias.

        Ela sorriu.

        — Não vê que eu não tinha tempo? E agora, está zangado?

        Ele sacudiu a cabeça.

        — Em que é que está pensando então?

        — Conheço um médico muito bom.

        Dessa vez, foi Sue Ann que não soube o que dizer. Um momento depois, ele percebeu que havia lágrimas nos olhos dela, ao mesmo tempo que ela lhe dizia, com voz sumida:

        — Se é isso o que você quer, OK.

        — Não, não é o que quero. Mas pense em tudo o que vão dizer de você!

        — Que me importa! Não serei a única mulher que sobe ao altar com a sua encomenda já pronta!

        — Não é disso que estou falando. Veja, divertir-se na cama com um falso príncipe é uma coisa. Casar-se com ele é outra muito diferente. Todo mundo vai rir de você!

        — Meu avô me deixou cinquenta milhões de dólares, que serão meus quando eu me casar ou completar vinte e cinco anos, o que vier primeiro. Com esse dinheiro, podemos rir deles todos!

        — É justamente o que quero dizer. Seu dinheiro complica a situação.

        — Escute aqui! — exclamou ela irritada. — Que espécie de gigolô é você, afinal de contas? Meu dinheiro não é tão bom como o de qualquer pessoa? Não é igual ao daquele velho de Monte Carlo que lhe pagou para você ser garanhão da mulher dele? Não é tão bom como o daquela velha que continua a mandar-lhe cheques de Paris?

        — Você sabe de tudo isso?

        — Claro que sei. Ou você acha que os banqueiros de meu pai não me procuraram logo que eu não voltei para a escola e eles descobriram que eu estava vivendo com você? Levantaram e me deram a sua ficha completa!

        Ele ficou em silêncio. Ao fim de alguns instantes, perguntou:

        — E, apesar de tudo isso, você quer se casar comigo?

        — A ideia é essa.

        — Mas por quê? Não compreendo...

        — Então é um idiota. Você sabe como eu sou. Pensei que houvesse alguma coisa de anormal comigo antes de conhecer você. Um homem só nunca me bastou. Houve dias em que cheguei a ir para a cama com três, um atrás do outro. Estava começando a pensar que não havia um homem no mundo capaz de me dar tudo o que eu queria. Foi então que encontrei você.

        — E acha isso razão suficiente para nos casarmos?

        — Para mim, é. Que outra razão é necessária quando duas pessoas podem ajustar-se tão bem na cama como nós dois?

        — Bem, existe uma coisa que se chama amor.

        — Agora é que você está mesmo ficando idiota. Sabe me dizer exatamente o que é o amor?

        Ele não respondeu. Sentiu uma espécie de tristeza, além de pena. Compreendia perfeitamente o terror que havia nos olhos dela. O temor de que ele não a quisesse. Era o medo do que ela era, tinha sido e seria se não houvesse um homem a que pudesse apegar-se.

        Um sorriso apareceu nos lábios de Sue Ann.

        — Somos muito parecidos, você e eu. Somos pessoas de fazer, enquanto os outros são pessoas de falar. Se o que há entre nós não é amor, é a aproximação maior que qualquer de nós pode conseguir.

        A piedade venceu nele a razão. Não teve coragem de dizer-lhe que as razões que ela lhe dava eram justamente aquelas que iriam destruir as relações entre os dois. Sabia dentro de si mesmo que, com o tempo, nenhum deles poderia deixar de procurar satisfação com outras pessoas.

        — OK, — disse ele, pensando em qual deles seria o primeiro a sucumbir. — Vamos nos casar.

 

        Haviam planejado um casamento simples numa igrejinha perto de Saint-Moritz, mas o que se concretizou foi coisa inteiramente diferente. O dinheiro dos Daleys era muito grande para ser posto de lado, e eles acabaram se casando numa catedral, com cem convidados selecionados e pelotões de repórteres.

        — Você não parece feliz — disse Robert, enquanto esperavam na sacristia.

        — Já viu algum dia um noivo feliz? — perguntou Sergei.

        — Ora, vai tudo correr bem, não se preocupe, — disse Robert, rindo.

        — Não é a cerimônia que me preocupa. É o que vai acontecer depois.

        Robert nada disse. Ele também tinha as suas dúvidas.

        Sergei virou-se para a porta.

        — Seria bom que Dax estivesse aqui. Ele iria divertir-se com tudo isso. Não sei se ele recebeu o convite. Tem tido noticias dele?

        — Nem uma palavra, desde que ele voltou para o Corteguay, há um ano. Escrevi-lhe várias cartas, mas ele nunca me respondeu.

        — Parece que o pais é estranho e selvagem. Espero que nada tenha acontecido a ele.

        — Ele deve estar bem. Muito mais irá acontecer a nós.

        — Por quê? — perguntou Sergei. — Acha mesmo que vai haver guerra?

        — Não sei como poderão impedi-la. A guerra da Espanha está quase no fim. Os alemães já esquentaram os músculos. Disso você sabe pelas cartas de seu pai. Agora, Chamberlain vai a Munique para conversar com aquele louco. Nada disso adianta. É perder tempo apenas.

        — Que é que seu pai acha?

        — Ele está transferindo tudo o que pode para os Estados Unidos. Quer até que eu e Caroline voltemos para lá.

        — Vai voltar?

        — Não.

        — Por quê?

        — Por dois motivos importantes. Sou judeu e sou francês.

        — Que pode você fazer? Não é nem soldado.

        — Haverá alguma coisa a fazer disse Robert. — Pelo menos, posso ficar e lutar. Já há gente demais fugindo daquele monstro.

        Ouviu-se nesse momento o som do órgão. Robert olhou pela porta da sacristia e disse:

        — Allons, mon enfant! Chegou a sua vez!

        Os correspondentes estrangeiros estavam na entrada da igreja quando o casal se ajoelhou diante do altar.

        — Imagine só, — disse o homem da AP. — Quando ele se ajoelhou, era um pronto. Quando se levantar, valerá cinquenta milhões de dólares!

        — Parece que está com inveja!

        — E não é para estar? Ela, ao menos, devia ter-se casado com um americano. Que é que os americanos velhos de guerra têm de errado?

        — Não sei, — disse Irma Andersen, que estava cobrindo o casamento para a agência Cosmo-World, — mas consta que ela experimentou todos os americanos e encontrou defeito em todos.

        — Calma, que não é assim.

        — Eu bem que gostaria de experimentar aquele truque do caviar com champanha, — disse o homem do INS. — Deve resolver o caso.

        — Deixe de mania de grandeza. A gente tem de ficar mesmo é nas ostras.

 

        O farfalhar das folhas secas o acordou, e ele imediatamente agarrou o fuzil que estava em cima do cobertor ao seu lado. Pelo canto dos olhos viu Gato Gordo já de pé e a esgueirar-se em silêncio entre as árvores. Abafando o som com o cobertor, ele colocou uma bala na agulha do fuzil e esperou.

        Havia silêncio em seu redor. Olhou para o céu. Não precisava consultar o relógio para saber que eram cinco horas da manhã. Colou o ouvido ao chão e escutou.

        Os passos haviam cessado. Respirou fundo. Gato Gordo havia interceptado a pessoa. Mas não se moveu. Houve um leve murmúrio de vozes, e isso o tranquilizou. Se houvesse algum perigo, não haveria conversas. Apenas os ruídos da morte.

        Os passos recomeçaram. Dax levantou a cabeça e olhou para o caminho da pequena caverna onde estava. Por precaução, levantou o fuzil e mirou o caminho.

        O que apareceu primeiro foi o uniforme vermelho e azul do soldado. Atrás dele, Gato Gordo, com o revólver ainda na mão, estava quase invisível em sua roupa cáqui desbotado. Dax esperou até que estivessem bem perto e então levantou-se.

        O soldado assustou-se. Ainda estava pálido do seu encontro com Gato Gordo. Mas perfilou-se e fez continência.

        — Cabo Ortiz, Capitán. Trouxe despachos do presidente.

        — Sente-se, cabo — disse Dax. — Aqui não usamos cerimônias. E você é um alvo muito bom com essa sua farda.

        O soldado jogou-se no chão.

        — Há quase um mês que o procuro, Capitán.

        — Pois teve sorte, cabo. Mais uma hora e não nos encontraria mais aqui. Há café, Gato Gordo?

        Gato Gordo tratou de acender o fogo, num lugar onde o vento espalhasse a fumaça antes de subir ao ar.

        O soldado abriu a mochila e tirou um maço de cartas amarrado com um cordão.

        Dax encostou-se num rochedo e abriu o primeiro envelope. Tirou um cartão impresso, leu-o e começou a rir. Voltou-se para Gato Gordo.

        — Mira! Fomos convidados para um casamento!

        — Bueno! — exclamou Gato Gordo. — Não há nada melhor do que uma boa fiesta. Comida, música e chicas bonitas. Quem é que vai casar?

        — Sergei. Com Sue Ann Daley.

        — A loura?

        Dax bateu com a cabeça.

        — Aquela loura é insaciável. Ele não vai aguentar. Será que ainda há tempo de avisá-lo?

        — Que dia é hoje? — perguntou Dax ao soldado.

        — Doze de abril.

        — Agora, é tarde. O casamento foi há dois dias, na Suíça.

        — É uma pena! — disse Gato Gordo, sacudindo tristemente a cabeça. Depois, ele e Dax olharam um para o outro e começaram a rir.

        Ortiz olhou-os, espantado. Era para aquela tolice que o haviam mandado procurá-los? Arriscara a vida naquelas terríveis montanhas para levar um convite para um casamento a que eles não podiam nem comparecer? Na verdade, a vida de um soldado era uma coisa muito triste.

        Dax abriu os outros envelopes, deixando para o fim o que era oficial e trazia o selo do presidente. Uma por uma, as cartas foram sendo atiradas no fogo. Quando acabou de ler a última, disse:

        — O presidente quer que a gente volte.

        — Para quê? — perguntou Gato Gordo, entregando o café fumegante a Dax numa caneca. Depois, encheu uma caneca para Ortiz e outra para ele.

        — Não diz — disse Dax e olhou para Ortiz. — Sabe por quê?

        — Não, Capitán. Sou um pobre soldado sem importância. Não sei de nada.

        Gato Gordo se aborreceu.

        — Levamos três meses vivendo como animais nestas montanhas, e agora, que já estamos quase acabando o serviço que viemos fazer, chega a ordem de voltar. Não podia esperar mais dois dias para encontrar-nos, cabo? Só dois dias!

        O soldado empalideceu ante a raiva de Gato Gordo e pareceu encolher-se dentro da farda.

        — Talvez se dê um jeito — disse tranquilamente Dax. — Aqui nestas montanhas não se tem muita noção do tempo. Na realidade, o cabo só nos encontrou no dia 14, não foi mesmo, cabo?

        Ortiz correu os olhos de um para o outro. Não podia saber qual era mais maluco. O moço que tinha o rosto quase preto de tão queimado de sol ou o gordo, que de repente aparecia no caminho de uma pessoa, silencioso como uma cobra. Mas uma coisa ele sabia. Se lhe diziam que ele só os encontrara no dia 14, era assim que ia ser. Que diferença iriam fazer dois dias ali na selva? Especialmente quando era uma questão de vida e morte... para ele.

        — Mas é claro, Capitán. Foi no dia 14.

        Dax sorriu e levantou-se.

        — Então vamos andando. Ainda temos de caminhar muito até o lugar onde encontraremos El Condor.

        El Condor! Ortiz sentiu um frio na barriga. Era isso então que eles estavam fazendo! El Condor era o bandolero que há cinco anos espalhava o terror pelas montanhas e tinha jurado matar qualquer homem que lhe caísse nas mãos com o uniforme do exército.

        — Bem, acho que vou tomar o caminho de volta, — disse ele.

        — Acho que não deve fazer isso, — disse Dax. — Estará mais seguro se ficar conosco.

        — Especialmente com essa farda, — disse Gato Gordo. — Isso é um verdadeiro perigo aqui nas montanhas.

        — Não pode arranjar-lhe uns pantalones, Gato Gordo?

        — Poder, posso. Mas vão ficar um pouco grandes para ele...

        — Não faz mal. Ele se sentirá mais à vontade.

        Ortiz estava inteiramente de acordo. Tratou de tirar a farda a toda a pressa.

        Dax olhou para o vale e disse:

        — Estão vendo?

        Gato Gordo e Ortiz seguiram a direção apontada. Um leve fio de fumaça subia de um canto do vale.

        — Já estão lá esperando — disse Dax, com satisfação. — Exatamente como El Condor prometeu.

        — Qual você pensa que será a resposta dele?

        — Só Deus sabe — disse Dax, encolhendo os ombros.

        — Resposta a quê? perguntou Ortiz.

        — O presidente nos mandou fazer-lhe uma proposta de anistia, disse Gato Gordo. — Se El Condor depuser as armas e for para Curatu, tudo lhe será perdoado.

        — Anistia para El Condor? Acha que ele vai acreditar?

        — Ele conheceu meu pai disse Dax. — Sabe que eu não viria procurá-lo se não fosse verdade o que lhe vim propor. Na semana passada, mandou dizer que nos daria uma resposta dai a sete dias. Acho melhor passarmos a noite aqui e descermos — amanhã de manhã.

        — Pensa mesmo que El Condor aceitará? perguntou Ortiz a Gato Gordo quando estendiam os cobertores no chão.

        — Só lhe poderei responder à noite disse Gato Gordo, acrescentando umas palavras que deixaram Ortiz enregelado: — Se ainda estivermos vivos...

        Dax deitou-se de bruços no seu cobertor, com o queixo descansando nos braços cruzados. Olhou para o vale. Pouco a pouco, o dia foi esmaecendo e os ruídos noturnos começaram a chegar-lhe aos ouvidos. Não podia mais ver a leve fumaça do acampamento dos bandoleros. Permaneceu ali imóvel, com a segurança da noite a envolvê-lo. Tudo era diferente do que ele havia esperado, mas isso acontecia apenas porque ele havia esperado que as coisas estivessem mudadas.

        Só depois que voltou para a sua terra foi que compreendeu que as coisas na realidade não mudam. Os franceses costumavam dizer que, quanto mais uma coisa muda, mais fica a mesma coisa. Pareceu-lhe que nada do que seu pai havia esperado fora realizado ainda. Ainda não havia escolas suficientes e as poucas existentes eram requisitadas para os filhos dos oficiais e funcionários. Isso em Curatu. Nas pequenas cidades e no campo nem se pensava em escolas.

        Embora houvesse em torno da capital uma rede de estradas pavimentadas, elas não iam para lugar algum, terminando de repente nos pântanos ou na selva, poucos quilômetros além dos arredores da cidade. Nas montanhas e nos vales do interior, os bandoleros ainda enchiam de terror o coração dos campesinos.

        Sentira-se muito triste naquelas primeiras semanas que passara em sua terra. Era bom que seu pai não estivesse ali para ver o que ele via. Não era para aquilo que seu pai tinha vivido e sofrido.

        Tinha descido ao porto e vira os navios chegarem e partirem e os pescadores voltarem com os seus peixes. Nas primeiras horas da manhã, havia andado pela praça da feira, ouvindo os gritos dos vendedores. E por toda a parte via as pequenas estátuas de cimento do Presidente — nas esquinas, em cada edifício novo, diante de cada armazém do porto e na entrada da praça da feira. E havia sempre as fardas vermelhas e azuis dos soldados.

        Só uma semana depois foi. que percebeu que os soldados os estavam seguindo. Foi só alguns dias depois que notou que o povo o olhava como a um estranho que a sua voz tinha um sotaque diferente e que as suas roupas o marcavam como pertencente a outra sociedade.

        Um sentimento de solidão e isolamento começou a dominá-lo. De repente, a atmosfera da cidade como que o sufocava. E só então compreendeu que não era mais a mesma pessoa que dali saíra alguns anos antes. Era alguém diferente, alguma coisa diversa. O que ele era mesmo não sabia. Instintivamente, esperançosamente, saiu da cidade e foi para a hacienda nas montanhas onde havia nascido.

        Ali, onde o céu e a terra pareciam estender-se sem limites diante dele e onde as montanhas erguiam para o sol e para as estrelas os dedos azulados e finos dos picos, esperava encontrar a sensação de liberdade que havia perdido, E também um sentido para a sua existência.

 

        Uma tarde, algumas semanas depois, estava sentado no pátio, olhando para as montanhas, quando Gato Gordo saiu da casa e foi sentar-se ao lado dele.

        — Isto por aqui é o mesmo de sempre.

        Dax acendeu um charutinho antes de responder.

        — Não.

        — As coisas nunca são as mesmas, — disse Gato Gordo. — Mas você deve saber disso.

        — Eu sabia.

        Um tom de cólera apareceu na voz de Gato Gordo.

        — Pois eu pensei que o Presidente...

        — Faria o quê?

        — Encontraria alguma coisa para você fazer.

        Dax sorriu.

        — O que, por exemplo?

        Gato Gordo não respondeu.

        — O Presidente tem muitas coisas na cabeça para pensar em mim.

        Gato Gordo virou-se para as montanhas. Escutou um instante e disse:

        — Vem gente aí a cavalo. Soldados.

        Dax levantou-se e foi até à cerca. Nada havia que ele visse ou ouvisse.

        — Como é que sabe?

        — Só cavalos de soldados andam com esse passo cadenciado. Está esperando alguém, Dax?

        Dax sacudiu a cabeça. Já podia ouvir um leve tropel abafado de cascos. Virou-se. Gato Gordo estava verificando se o revólver estava carregado.

        — Você não disse que eram soldados?

        Gato Gordo guardou o revólver no cinto.

        — São soldados, sim. Mas quem não facilita continua vivo. Ficaram ali olhando para a estrada até aparecerem as primeiras fardas vermelhas e azuis e então Gato Gordo disse:

        — Devem estar com calor e com sede. Vou mandar preparar alguma coisa para eles.

        Dax viu os soldados aproximarem-se. Era um destacamento de cerca de quatorze homens, todos montados nos cavalos pequenos e fortes que o exército preferia. Dax viu que o comandante era um capitão. Mas havia outro, um jovem oficial esbelto, cuja patente Dax não conseguiu descobrir porque a farda não tinha qualquer insígnia. O capitão levantou a mão e o esquadrão fez alto diante do portão.

        Os dois oficiais se encaminharam para a casa. Foi então que Dax reconheceu o oficial mais moço. O uniforme parecia acentuar- lhe as jovens curvas femininas. Ela olhou para ele, riu e começou a correr para onde ele estava.

        Dax também correu ao encontro dela, mas a moça parou de repente e ficou a olhá-lo. Era quase como se ela tivesse voltado a ser uma menina e se espantasse de ver como o irmão havia crescido.

        — Dax? — disse ela com voz rouca e ofegante?

        — Amparo!

        Ela continuou parada, a olhá-lo. Parecia querer falar, mas as palavras não lhe vinham. Afinal, Dax falou:

        — Tire esse quepe.

        — Para quê?

        — Para que eu saiba se devo beijá-la ou fazer-lhe continência.

        Ela sorriu e jogou o quepe no chão. Os cabelos louros se espalharam até quase os ombros.

        — Dax, Dax! Quase não posso acreditar! Você está... tão grande!

        E se jogou nos braços dele. Dax abraçou-a, sentindo-lhe a quente feminilidade.

        — Cresceu também um pouco, Princesa.

        — Como foi que você pôde sair de Curatu sem me ver, Dax?

        — Você estava no Panamá e ninguém sabia quando voltaria.

        — Papai sabia.

        O rosto de Dax se anuviou.

        — Só vi o Presidente uma vez. E só por alguns minutos. Ele estava muito ocupado.

        — Papai anda sempre muito ocupado.

        Dax ouviu o capitão pigarrear atrás dele.

        Amparo fez as apresentações.

        — Capitán de Ortega, Señor Xenos.

        O militar fez continência e, em seguida, apertou a mão estendida de Dax.

        — Excelência!

        — Seja bem-vindo a minha casa, Capitán de Ortega.

        Houve passos na varanda e Amparo se voltou para ver quem era.

        — Gato Gordo! — exclamou ela. — Você não mudou nada!

        Amparo apareceu para jantar com um vestido branco. Tinha ao pescoço um colar de esmeraldas e brilhantes e brincos que combinavam, acentuando-lhe o louro dos cabelos. A luz das velas parecia dar-lhe um tom quente de marfim à pele queimada.

        Dax sorriu para ela na hora do café.

        — Você é a primeira visita que recebo desde que voltei. Terá de ficar alguns dias aqui. Temos muita coisa para botar em dia.

        — Eu bem que gostaria, — disse ela, mas hesitou e olhou para o Capitão Ortega.

        — Prometi a seu pai que voltaríamos amanhã, — disse ele.

        — Acho infelizmente que o capitão tem razão, — murmurou Amparo.

        Dax não insistiu.

        — Agora vamos tomar um licor na galeria.

        — Tenho de ir ver como estão os meus homens, Excelência. Depois, se me der licença, irei dormir. Temos de estar na estrada amanhã bem cedo.

        — Está bem, Capitão.

        Quando o militar saiu, Dax voltou-se para Amparo. Ficaram em silêncio durante alguns minutos. Dax pegou um charuto e Amparo perguntou:

        — Pode dar-me um cigarro?

        — Ah, desculpe.

        Abriu a caixa para ela e acendeu-lhe o cigarro.

        Amparo tirou a primeira fumaça e recostou-se na cadeira.

        — Então?

        Ele pensou um momento, tirou o charuto da boca, olhou-a e disse pausadamente:

        — As coisas mudaram muito. Foi um tempo bem longo.

        — Dez anos não são tanto tempo assim. E eu não estou mudada. Você está?

        — Você está mudada e eu também. Tudo muda.

        — Há coisas que nunca mudam.

        Ficaram olhando para a noite. As estrelas brilhavam no veludo azul do céu e as fogueiras dos soldados acampados pareciam vaga- lumes do outro lado da estrada.

        — Você sempre viaja com uma escolta de soldados, Amparo?

        — Sempre.

        — Por quê?

        — É meu pai quem faz questão disso. Acha que há perigo. Ladrões, bandoleros...

        — Ainda? — perguntou ele, rindo.

        — Ainda. Há alguns que se opõem a meu pai. Não querem ver a verdade. — Olhou-o de repente, consciente dos pensamentos dele. — Tem sido uma decepção para você, não? Esperava que tudo estivesse mudado.

        — De certo modo, sim.

        — Não é fácil, Dax. Sei como você se sente. Comigo aconteceu a mesma coisa quando voltei depois de passar cinco anos numa universidade no México. Mas, pouco tempo depois de ter voltado, comecei a compreender.

        — Compreendeu?

        — Sim, você ficou ausente mais tempo do que eu e esqueceu-se de como as coisas são. A maioria do nosso povo não quer mudanças. Querem receber as coisas, não querem trabalhar por elas. Até mandarem os filhos à escola é um esforço muito grande para eles.

        — Talvez seja porque não há vagas nas escolas, todas tomadas pelos filhos dos oficiais.

        — Não era assim a princípio. Mas, ao fim de algum tempo, as outras crianças deixaram de aparecer.

        Dax ficou calado.

        — A grande preocupação de Papai agora é preparar-se para a guerra.

        — Para a guerra?

        — Você veio do estrangeiro e sabe melhor do que nós que a guerra é inevitável.

        — E que é que nós temos com isso? O Corteguay não vai participar da guerra.

        — Diretamente, não. Mas Papai acha que a guerra será uma grande oportunidade para o nosso país tornar-se auto-suficiente. Alguém terá de abastecer os combatentes de alimentos.

        — As guerras não se fazem com bananas e café.

        — Papai sabe disso. Há mais de três anos, entrou em contato com os grandes estancieros argentinos. Fez-lhes especiais concessões e eles montaram grandes fazendas aqui. No ano que vem, teremos uma grande quantidade de carne para exportar.

        Dax sabia que espécie de concessões o Presidente devia ter feito. Pensou que uma boa quantia devia ter-lhe entrado no bolso.

        — E dessa carne sobrará alguma coisa para os campesinos?

        — Você ficou fora mesmo muito tempo. Já se esqueceu de que os campesinos não comem carne? Preferem a comida a que já estão habituados, verduras, galinha, carne de porco.

        — Talvez fosse porque a carne sempre foi cara demais.

        — Meu pai tem razão, — disse Amparo, subitamente irritada. — Você é igualzinho a seu pai!

        — O Presidente disse isso?

        Amparo fez um sinal afirmativo.

        Dax sorriu de repente.

        — Foi um dos maiores elogios que ele me podia fazer!

        — Dax! Dax! — disse ela, pegando-lhe no braço. — Não vim aqui para brigar com você.

        — Não vamos brigar, eu lhe prometo.

        — Que é que você pretende fazer? Não pode ficar aqui nas montanhas sem fazer nada.

        — Tenho pensado muito nisso, — murmurou ele lentamente. — Mas não posso ver nada para eu fazer. Passei quase três semanas em Curatu. Ninguém me ofereceu nada e eu vim para cá.

        — Papai sentiu muito que você não tivesse ido falar com ele antes de partir.

        — Como era que eu podia? Todas as vezes que o procurei, disseram-me que ele estava muito ocupado.

        — Acha que ele ia adivinhar que você estava querendo sair da cidade?

        — Teria feito alguma diferença? Que é que você acha que eu devia fazer? Andar atrás dele como um cachorro que quisesse um osso?

        — Volte comigo para Curatu e fale com ele.

        — Essa ideia é sua ou dele?

        — Minha. Ele jamais confessaria que está sentido e, ao mesmo tempo, desejoso de vê-lo.

        Dax pensou por um momento e depois sacudiu a cabeça.

        — Não. Vou ficar por aqui. Quando seu pai precisar de mim, ele que me mande chamar.

        Isso acontecera havia quase um ano e Dax ficara na fazenda quase nove meses até que o Presidente mandara chamá-lo. Quando entrou no gabinete, o Presidente abraçou-o efusivamente e recebeu-o como se se tivessem visto pela última vez no dia anterior.

        — A maior ambição de seu pai, — disse ele a Dax, — era ver o país unido sob um governo que representasse igualmente todos os cidadãos. É também a minha. E está quase realizada. Apenas em Asiento, El Condor, o velho bandolero, ainda resiste. El Condor conhecia e respeitava seu pai. Escutaria você se você o procurasse com uma proposta de anistia. A colaboração dele com o governo não seria sujeita a quaisquer restrições.

 

        — Não sou político, — disse o velho bandolero. — Não passo de um simples assassino, de modo que não entendo muito do que está dizendo. Mas uma coisa eu sei. Gostaria de que meu filho fosse para a escola. Gostaria de que ele aprendesse a ler e escrever e a falar com essa facilidade que você fala. Não me agradaria que ele passasse a vida nestas montanhas tendo apenas de lutar pela existência.

        Dax olhou por cima da fogueira para El Condor. O velho estava sentado no chão, com as pernas cruzadas à sua frente à moda dos índios, o fino charuto entre os dentes e o rosto forte de gavião com a pele esticada sobre os ossos. Olhou em torno. Os capitães do bandolero olharam-no, impassíveis. O sol da manhã brilhava nas faces e carabinas. Atrás do velho, estava o filho de quem ele falara. Tinha quatorze anos e olhava para Dax com uma desconfiança de animal. Como os outros, estava armado de punhal e revólver.

        — Aceita então o oferecimento do Presidente? — perguntou Dax a El Condor.

        — Já estou velho, — respondeu o bandolero. — A minha morte não tem muita importância. Mas não quero que meu filho morra comigo.

        — Ninguém sofrerá coisa alguma. É uma garantia pessoal do Presidente.

        — Não quero ser governador de Asiento, — continuou El Condor, como se não o tivesse ouvido. — Que é que eu entendo de governo? Só não quero é que meu filho morra. — Tirou o charuto apagado da boca, acendeu-o com um tição que apanhou da fogueira e continuou: — Tive oito filhos e três filhas. Todos morreram menos este.

        — Ninguém vai morrer, — afirmou Dax. — O Presidente dá a sua palavra.

        — Diablo Rojo é um idiota! Gutiérrez nos matará a todos.

        Dax viu que o rosto do velho estava impassível. Só um leve brilho nos olhos muito pretos traía a sua origem índia. Não sabia como explicar, a um homem para quem o tempo não existia, que Gutiérrez havia muito desaparecera e, que o governo era outro embora os soldados usassem a mesma farda. Como explicar-lhe que Diablo Rojo era agora o Presidente Córdoba e que ele mesmo vira Gutiérrez ser capturado elevado para o fuzilamento. Antes de resolver o que ia dizer, o velho voltou a falar.

        — Se garantir a vida de meu filho, aceito. Se você pessoalmente jurar pela alma do seu santo pai a quem todos nós queríamos bem e respeitávamos, estou disposto a aceitar a proposta de Diablo Rojo.

        — Juro!

        El Condor suspirou forte.

        — Bueno, — disse ele, levantando-se. — Vá dizer a Diablo Rojo que eu me encontrarei com ele na cidade de Asiento no último dia deste mês. Não haverá mais guerra entre nós.

 

        O Presidente esperou que o secretário saísse e então disse:

        — Você se saiu bem nas montanhas?

        Dax não respondeu, porque não havia resposta para dar. Olhou para o Presidente sentado à mesa. O homem parecia nunca mudar. Salvo alguns toques de cabelos grisalhos, parecia exatamente o mesmo de quando Dax o vira pela primeira vez. Estava com uniforme de general, mas sem medalhas, insígnias ou dourados. Devia ser para mostrar que era um homem do povo.

        — Haverá paz agora. El Condor foi o último dos seus adversários importantes. Os outros não valem nada. Podemos pegá-los como se fossem moscas.

        — Por que não se pode proceder da mesma forma com eles? Não haverá muita dificuldade depois que virem como El Condor foi tratado.

        O Presidente fez um gesto de desdém.

        — Não merecem esse trabalho. Cuidaremos deles. De qualquer modo, não terá mais de preocupar-se com esses problemas. Vou nomeá-lo para servir no exterior como cônsul. Vai voltar para a Europa.

        — Para a Europa? Por quê?

        — A guerra na Espanha está chegando ao fim, Dax. É tempo de estabelecermos relações com o novo governo de Francisco Franco.

        — E o General Mola? Pensei que ele é que fosse ser o Presidente.

        — Mola fala demais. Percebi isso logo que ele fez aquela declaração sobre a quinta-coluna antes do cerco de Madri. Com essas palavras, ele perdeu o poder que tinha, porque Madri não caiu imediatamente. A primeira coisa que um chefe deve aprender é ficar com a boca fechada. Não deve nunca deixar ninguém, amigo ou inimigo, saber o que ele está pensando ou planejando.

        Dax pensou por um momento. Quantos homens, além de seu pai, tinham sido enganados pelo silêncio calculado do Presidente? Tirou o pensamento da cabeça e perguntou:

        — Que deseja que eu vá fazer na Espanha?

        — A Espanha vai precisar de comida. Nós temos comida para vender. A Espanha precisará também de materiais para a reconstrução de todas as espécies. A estupidez dos gringos fará com que se abstenham de realizar transações com Franco. Podemos comprar a eles tudo o que for necessário e transportar para a Espanha.

        Dax olhou o Presidente com mais respeito. Sabia agora em que ele era diferente dos outros bandoleros que tinham descido das montanhas. Compreendia agora o que havia atraído seu pai. Certo ou errado, abnegado ou interesseiro, o Presidente era um homem que tinha cabeça e sabia planejar com muita antecedência. Parte do dinheiro podia ir para o seu bolso, mas o Corteguay sempre era beneficiado.

        — Você irá procurar Franco, — continuou o Presidente, — e fará um trato com ele. Seremos os agentes da Espanha nos mercados do mundo.

        — E se Franco não se mostrar interessado?

        — Franco se mostrará interessado, — disse o Presidente, sorrindo. — Conheço bem o homem. É um realista como eu. Sabe que não poderá mais contar com os seus aliados, a Alemanha e a Itália, quando a sua guerra houver terminado, pois esses países irão tratar da sua própria guerra. Não tenha receio que Franco entrará em entendimento conosco.

        — Quando quer que eu viaje?

        — No dia 3 do mês que vem haverá um vapor para a França. Você irá nele. — Levantou-se da cadeira e foi ficar junto de Dax. — E há mais uma coisa.

        — Que é? — perguntou Dax, sorrindo.

        O Presidente não respondeu imediatamente. Puxou uma cadeira, sentou-se ao lado de Dax e a sua voz mudou sutilmente.

        — Bem sabe que há muito o considero como um filho. Nunca me esqueço de quando meus dois filhos morreram e você desceu das montanhas com Amparo. Penso muito em vocês dois.

        Dax compreendeu então o que ele ia dizer. Levantou a mão e tentou deter o homem.

        — Éramos apenas crianças naquele tempo.

        Mas o Presidente não se ia deter.

        — Lembro-me até do lindo par que vocês faziam. Ela, tão clara e loura; você tão moreno e forte. Lembro-me de ter dito a seu pai; “Um dia...”

        — Não, Excelência, não, — disse Dax, levantando-se. — É muito cedo ainda para falar dessas coisas.

        — Cedo? Então é cedo para eu querer que um filho tome o meu lugar? Estou ficando velho. Um dia, terei de abandonar as complicações do meu cargo e retirar-me para a paz de uma fazenda sabendo que os destinos do país estão bem entregues às mãos de meu filho.

        O rosto do Presidente mostrava a sinceridade com que falava. Por um momento, Dax chegou a acreditar nisso. Mas o que o Presidente disse em seguida dissipou essa ilusão.

        — O casamento de vocês dois unirá verdadeiramente o país. O nome respeitado de seu pai junto ao meu convencerá o povo das montanhas da sinceridade dos nossos esforços.

        Dax ficou calado e o Presidente se aproveitou do seu silêncio para continuar:

        — Amparo é muito boa moça. Mas é mulher. E não há muito que uma mulher possa fazer. Preciso é de um filho, é de você. Para ser o meu braço-direito.

        — Já falou com Amparo? — perguntou Dax, deixando-se cair de novo na cadeira.

        — Para quê? — perguntou o Presidente, surpreso.

        — Ela pode não querer casar-se comigo.

        — Amparo fará o que eu quiser. Fará o que é melhor para o Corteguay.

        — Ainda assim acho que ela tem o direito de escolher a quem quer como marido.

        — É claro. Faça então a pergunta a ela.

        Dax fez um sinal de assentimento. Sim, perguntaria a Amparo mais tarde, talvez no ano seguinte, quando voltasse da Europa. Até lá, muitas coisas podiam mudar, até a decisão do Presidente.

        — Excelente, — disse o Presidente, voltando para o seu lugar. A conversa estava terminada.

        Dax levantou-se.

        — Mais alguma coisa, Presidente?

        — Há, sim. Gostaria de que fosse falar com Amparo logo que saísse daqui.

        — Há necessidade de tanta pressa? — perguntou Dax, com a leve suspeita de que tinha sido envolvido numa trama.

        — Decerto, — disse o Presidente, sorrindo. — Já mandei divulgar a notícia do noivado. Sairá amanhã em todos os jornais.

 

        Dax julgou que havia sinais de lágrimas nos olhos de Amparo.

        — Você chorou?

        Ela sacudiu a cabeça e perguntou:

        — Falou com meu pai?

        — Falei. Parabéns, estamos noivos.

        Ela o olhou por um momento, depois atravessou a sala e foi até à janela. Quando falou, a sua voz era tão baixa que quase não se podia ouvir.

        — Disse a ele que não fizesse isso.

        Dax ficou em silêncio.

        — Acredita em mim, não acredita, Dax?

        — Acredito.

        — Meu pai gosta de fazer as coisas à sua maneira. Achei que ele devia dar a você uma oportunidade de decidir por si mesmo.

        — E você? Não sou eu a única pessoa no caso.

        Ela o olhou firmemente e disse com um sorriso nos lábios:

        — Eu já decidi há muito tempo, Dax. Ou será que você esqueceu?

        — Não, não esqueci, — disse ele, rindo. — Mas pensei que você deixasse de ter essas ideias de menina quando crescesse.

        — Também pensei. Mas quando fui ver você nas montanhas, vi que os meus sentimentos em relação a você continuavam os mesmos.

        — Por que não me disse isso naquela ocasião?

        — Esperei que você dissesse. As moças não devem sugerir tais coisas. Será que você estava tão cego que não viu?

        — Sinto muito, mas isso nem me passou pela cabeça.

        Ela teve um assomo de raiva infantil.

        — Oh! Suma-se daqui! Você é mesmo um idiota como todos os homens!

        Ele estendeu as mãos para ela.

        — Amparo!

        Ela lhe afastou as mãos, zangada.

        — Você não é obrigado a se casar comigo! Ninguém tem de se casar comigo! Não vou me dobrar nem ajoelhar diante de homem nenhum!

        Saiu correndo da sala e Dax ouviu os seus passos precipitados pela escada.

        Nesse momento, o Presidente entrou, com um sorriso.

        — Que foi que houve? Uma briga de namorados?

        Amparo havia acabado de retocar a maquilagem quando bateram na porta.

        — Quem é?

        — Eu.

        Ela se levantou e foi abrir a porta. O Presidente entrou no quarto e fechou a porta.

        — Espero que tenha procedido com inteligência, — disse ele.

        Amparo sacudiu a cabeça.

        — Disse alguma coisa a ele?

        Ela tornou a sacudir a cabeça.

        — Ótimo, — disse ele, satisfeito. — Ortega         já foi         afastado. Não nos dará mais aborrecimentos.

        — Fez alguma coisa de mau a ele? — perguntou ela, com súbita aflição.

        — Não, — respondeu o Presidente, mentindo. Uma bala na cabeça bem certeira não era propriamente nada de mau. — Mandei-o para uma guarnição no sul.

        — Ele não teve culpa nenhuma.

        De quem foi então a culpa? Encarreguei-o de tomar conta de você. Ele tinha de protegê-la e não de violentar você.

        — Ele não me violentou. O que aconteceu, aconteceu porque eu quis.

        — Pior ainda! Não compreendo você, Amparo. Mandei-a para a universidade no México durante cinco anos, para você educar-se e tornar-se uma dama fina. E a primeira coisa que você fez foi cair na cama com o primeiro caballero bonito que lhe apareceu como se fosse uma mulher de rua!

        Ela ficou calada.

        — Graças a Deus, tudo está resolvido. Dax será um bom marido para você. Terão muitos filhos e não haverá mais dessas loucuras.

        — Não vou me casar com ele.

        — Não vai? Por quê?

        — Já estou grávida.

        — Tem certeza? — perguntou ele, boquiaberto.

        — Absoluta, — disse ela, acendendo um cigarro. — Já entrei no terceiro mês de gravidez. Não posso casar com ele. Ele saberia no mesmo instante.

        O Presidente pareceu paralisado durante um momento. Depois, explodiu em violenta cólera e a esbofeteou rudemente, fazendo-a cair sobre a cama.

        — Descarada! — gritou ele. — Não basta o que tenho de fazer para defender-me dos meus inimigos? Tenho ainda de aguentar a traição da minha própria filha?

        Um fotógrafo se aproximou deles.

        — Mais uma, Excelência, tenha a bondade.

        — Claro, claro.

        O Presidente se mostrava em tudo o pai orgulhoso. Chegou-se mais para junto de Amparo e ficou na ponta dos pés. Ao menos assim parecia mais alto do que ela, não tanto quanto Dax, que estava do outro lado de Amparo, mas bastante alto para não parecer ridículo.

        O flash acendeu-se e eles piscaram os olhos.

        — Obrigado, Excelência, — disse o fotógrafo, curvando-se e afastando-se.

        Dax olhou para Amparo, que parecia pálida e cansada.

        — Está bem?

        — Apenas cansada.

        — Tudo aconteceu muito depressa, — disse ele. — Apenas ontem, ficamos noivos e agora isto...

        O grande salão de recepção do palácio presidencial estava repleto. Dax percebia de repente que uma sociedade inteiramente nova se havia formado durante a sua ausência. Havia muita gente de quem ele nem sabia o nome. Era gente nova que havia adquirido importância. Muitas das velhas famílias ainda estavam presentes, mas eram como que um simples enfeite. As novas é que tinham realmente poder e prestígio.

        — Você precisa é de umas férias, Amparo.

        — Não, estou bem, Dax.

        — Você se tornou uma espécie de auxiliar política de seu pai. Liga Feminina. Associação dos Trabalhadores. Liga de Proteção à Infância. É demais.

        — Alguém tem de fazer essas coisas.

        — Você não pode fazer tudo sozinha. É um erro de seu pai pensar o contrário.

        — Vou aonde meu pai não pode ir. Do contrário, como pode ele manter o apoio do povo? Eu é que tenho de fazer isso e deixar-lhe a tarefa de governar, que não é pequena.

        — Esta tarefa cabe a seu pai e não a você.

        — E a mim também, Dax. Há muita gente que me procura para coisas que não têm coragem de falar com ele.

        Dax correu os olhos pelo salão. O Presidente estava falando com um grupo de homens. De vez em quando, olhava para eles como para certificar-se de que Amparo ainda estava ali. Que iria fazer o velho depois que se casassem? Amparo seria sua mulher e não a assistente política do Presidente.

        Olhou para Amparo, que estava empenhada em conversa com um grupo de mulheres. Conseguiu ouvir algumas frases e compreendeu que falavam de uma campanha para melhorar certas condições sanitárias. Não havia dúvida que Amparo dominava o grupo. Quando falava, as outras a ouviam com respeito.

        Não conhecia nenhuma das mulheres, também figuras da nova classe que havia surgido durante a sua ausência. Muitas coisas haviam mudado. Nada parecia mais o mesmo.

        A graça e a elegância da velha sociedade do tempo de seu avô e mesmo do tempo de seu pai haviam desaparecido. A nova sociedade formada com elementos da classe média e das camadas mais humildes ainda mostrava vestígios das suas origens. A voz deles, embora educada, ainda tinha a rudeza do linguajar como do povo. E as suas maneiras eram um verniz curioso de forma e de estilo sobre as maneiras abruptas e diretas do campesino.

        E os vestidos? Sorriu pensando nas mulheres que havia conhecido na Europa e nos Estados Unidos. A noção que em Corteguay se tinha da moda era uma profusão de cores vistosas, de complicações de rendas, fitas e babados que lembravam as fotografias de cinquenta anos atrás. Mas havia, em compensação, naquela gente uma energia e uma vitalidade que lhe despertavam a simpatia e o orgulho. Seu pai também se alegraria de ver aquela gente.

        Olhou para os homens que cercavam o Presidente. Estes é que não haviam mudado muito. Eram os mesmos bajuladores de sempre, cheios de respeito pelo poder e de indiferença pelos direitos dos outros. Rastejavam para os que estavam acima deles e desprezavam ou maltratavam os que estavam abaixo.

        Sentiu-se contente de súbito por ter de voltar para a Europa. De certo modo, sentia-se mais à vontade lá do que em sua terra, onde era quase um estranho no meio daquele povo primitivo.

        — Está com uma expressão muito estranha no rosto, — disse Amparo, aproximando-se.

        — Estava pensando.

        — Em quê?

        — Como seria bom que você e eu, só nós dois, pudéssemos ir para a minha hacienda nas montanhas. Sozinhos.

        — Papai não gostaria disso. Ele me quer ao seu lado.

        — Mas terá de acostumar-se à ideia de que mais cedo ou mais tarde isso não será mais possível. Quando nós nos casarmos, você não poderá mais ficar à disposição dele.

        Amparo conhecia o pai e sabia que a opinião dele era muito diferente. O casamento não mudaria nada. Ao contrário, pois Dax passaria a fazer também parte do grupo que gravitava em torno do Presidente.

        — Hoje à noite, — disse ele, confundindo o silêncio dela com aquiescência, — depois que todos saírem, partiremos em silêncio. Ninguém dará pela nossa falta.

        Amparo teve de repente pena dele. Em muitas coisas, ele era mais arguto e mais fino do que todos eles; em outras, era muito mais ingênuo. Não compreendia ainda as exigências do poder. Não sabia quanto o pai dela dominava a gente que o cercava e de que maneira absoluta controlava a vida de todos. Mas descobriria com o tempo. Por enquanto, era melhor deixá-lo na ilusão.

        — Gostei muito da ideia. Podemos sair depois do banquete.

 

        Dax estava sentado na galeria e olhou para Amparo, que chegou à porta.

        — Dormiu bem?

        — Muito bem. Há tanto sossego. Parece que as montanhas sussurram baixinho para acalentar o sono da gente.

        Dax olhou-a com admiração. Em apenas dois dias, as olheiras haviam desaparecido. O rosto dela estava de novo corado e sem sombra de tensão ou cansaço.

        — Não lhe disse que lhe faria bem vir para cá?

        Ela sorriu.

        — Se pudesse ficar sempre assim...

        Sentou-se ao lado de Dax, enquanto Gato Gordo chegava com uma bandeja de café. Amparo encheu a sua xícara e perguntou:

        — Não quer mais?

        — Não, muito obrigado. Já tomei café.

        Amparo tomou um gole do café forte e quente.

        — É tempo de conversarmos.

        — Está bem, — disse Dax.

        — Deve ter sido estranho para você ficar ausente tanto tempo e, quando voltou, ver-se de repente noivo. Para mim, não foi estranho. Sempre soube que, quando me casasse, seria na hora em que meu pai quisesse e não eu.

        — E não se aborrece com isso?

        — Não. Fui criada e educada para isso desde menina. Gostaria apenas de que você tivesse mais tempo para decidir. Talvez encontrássemos o meio de entender-nos, sem a ajuda dele, como quando éramos crianças.

        — Talvez assim tivesse sido melhor, — disse Dax. — Mas...

        — Pensa como eu? — perguntou ela, surpresa.

        — Não sei. Mas na realidade não fiquei tão aborrecido quanto pensei que ficaria quando seu pai falou comigo. Acho que não estou sendo muito romântico.

        — Nenhum de nós é. Mas fico contente de que tenha sido você.

        Pela primeira vez, ele lhe abriu os braços. Ela inclinou-se para ele e Dax a beijou. Ela sentiu o leve toque dos seus lábios e viu que havia nele alguma coisa muito jovem apesar do leve cheiro de fumo. Uma profunda tristeza cresceu de repente dentro dela e as lágrimas lhe vieram aos olhos.

        — Que é, Amparo?

        Ela sacudiu a cabeça. Não podia estancar as lágrimas. Levantou-se e correu para dentro da casa.

        Voltou alguns minutos depois.

        — Desculpe, Dax.

        — Não é preciso pedir desculpas.

        — Acho melhor você me levar para casa.

        — Por quê?

        — Eu não devia ter vindo. Com certeza, vão falar.

        — O motivo não é esse.

        — Seja qual for o motivo, quero ir para casa. Você me leva ou tenho de ir sozinha.

        — Vou levá-la, — disse ele, levantando-se.

        Só uma vez, durante a viagem de volta, ele falou com ela.

        — Mais cedo ou mais tarde, você terá de me dizer o que a está afligindo. Tenho a impressão de que quanto mais cedo fizer isso, melhor será para nós ambos.

        Ela o olhou, sem saber quanto ele sabia ou imaginava. Mas o rosto dele nada revelava. E ela não podia dizer-lhe. Ainda não podia.

        A cidadezinha de Asiento estava em festa. As ruas estavam engalanadas com a bandeira verde e azul do Corteguay e festões decoravam as portas e vitrinas das lojas ao longo da rua principal. Em quase todas as vitrinas havia uma fotografia do Presidente.

        Dax estava à janela de um hotel e olhava para a rua repleta de gente que esperava a chegada do Presidente. Por toda a parte havia um ar de animação. Vendedores ambulantes apregoavam doces e os garotinhos corriam por entre a multidão levando bandeirinhas nas mãos sujas. Um clamor se elevou por toda a extensão da rua quando a caravana presidencial apareceu.

        Primeiro, veio uma companhia de soldados de cavalaria em animais castanho-escuros. Em perfeita cadência, em filas por quatro desceram a estreita rua, com as fardas vermelho-azuis alegres e vistosas ao sol da manhã. Logo depois, vinha o primeiro automóvel. Dois soldados iam no banco da frente, um deles dirigindo. Havia dois oficiais sentados atrás. Entre eles estava o Presidente com um simples uniforme cáqui, destacando-se de todos os outros pela sua simplicidade. A multidão começou a gritar:

        — Viva el Presidente! Viva!

        O Presidente levantou a cabeça, mostrando num sorriso os dentes brancos. Tirou o chapéu saudando o povo. As aclamações redobraram. No segundo carro, também havia soldados no banco da frente. Mas entre os dois oficiais, com os cabelos louros descobertos e rebrilhando ao sol, quem vinha era Amparo. Com o rosto alegre e cheio de vida, sorria para o povo. Dessa vez, houve verdadeira afeição nos aplausos.

        — Viva la princesa! Viva la rubia!

        Dax virou-se para Gato Gordo.

        — Bela recepção!

        — Não estou gostando disso, — murmurou Gato Gordo. — Há soldados demais!

        — Queria que o Presidente viesse sozinho?

        — Não, mas também não precisava trazer quase todo o exército.

        Os automóveis pararam na praça. O alcalde desceu a escadaria da Prefeitura para saudar o Presidente. A uma ordem dos oficiais, a cavalaria formou na praça e ficou em posição de sentido. O Presidente saltou do carro e encaminhou-se para o carro seguinte a fim de ajudar Amparo a saltar. Em seguida, os dois se dirigiram para o local onde as autoridades estavam esperando.

        A voz do alcalde podia ser ouvida em toda a praça.

        “É com profundos sentimentos de humildade e de honra que a altiva cidade de Asiento dá as boas-vindas ao Presidente e à sua bela filha.”

        Dax virou-se para Gato Gordo.

        — Vamos entrar para beber alguma coisa.

        Sentaram-se no bar cheio de sombra e quase fresco, tomando cerveja.

        — Não creio que ele venha, — disse Gato Gordo inesperadamente. — El Condor não é louco. A estas horas já deve saber quantos soldados vieram com o Presidente.

        — O velho bandolero é um homem de palavra. Pode ter certeza de que virá.

        Gato Gordo ficou em silêncio e continuou a beber a sua cerveja.

        — Parece até que você está querendo que ele não venha, — disse Dax.

        Ele será esperto se não vier. Se vier — marque bem as minhas palavras —, se vier, vai haver sangue.

        Ouviram passos e viraram-se. Era Ortiz, o soldado que fora procurá-los nas montanhas. Fez continência.

        — Sr. Xenos?

        — Que é que há, Ortiz?

        — Sua Excelência quer que vá encontrar-se com ele e com a princesa no jardim do alcalde.

        Dax acabou de tomar a cerveja e levantou-se.

        — Vem também, Gato Gordo?

        Ele sacudiu a cabeça.

        — Con su permiso, vou ficar aqui. Está mais fresco e a cerveja é bem boa.

        Dax olhou para o relógio e depois para Amparo, que estava sentada ao lado dele diante da grande mesa no jardim do alcalde.

        — Quatro horas? — perguntou Amparo.

        Ele bateu com a cabeça. O Presidente se levantou e os outros fizeram o mesmo. Seguiram o alcalde através do jardim até à galeria do prédio, que se abria para a praça.

        O Presidente fez um sinal a Amparo, que foi ficar ao lado dele junto à balaustrada.

        — Você também, meu filho, — disse ele a Dax.

        Dax tomou lugar do outro lado de Amparo. Os soldados haviam formado em frente ao prédio em duas filas de frente uma para a outra, havendo entre eles um amplo caminho até à galeria. Atrás dos soldados, estava o povo em silêncio. Dax viu Gato Gordo sair do hotel.

        Nisso, houve uma agitação entre o povo no momento em que um garoto gritou:

        — Lá vêm eles!

        A multidão voltou-se para o outro lado da praça a fim de ver. Dax viu de relance o rosto sério do Presidente. Depois, olhou também para a rua onde o bandolero ia aparecer.

        El Condor vinha à frente, montando um grande cavalo baio. Cavalgava em silêncio, sem olhar para um lado, nem para o outro, com o chapéu de abas largas puxado para o rosto. Atrás dele, Dax viu os outros. Um deles era o filho de El Condor. O rapaz tinha um ar destemido, olhando firmemente para todos.

        A multidão permaneceu em silêncio enquanto o bandolero continuava, passando por entre as duas filas de soldados. O velho chegou diante da balaustrada, sofreou o cavalo e levantou a mão. Os outros pararam.

        Tirou o chapéu e os cabelos ainda pretos lhe rolaram até aos ombros. Olhou para o Presidente e disse com voz alta e clara:

        — Aqui estou, Excelência, atendendo ao seu pedido. Aceito a sua proposta de anistia. Que haja paz entre nós.

        O Presidente desceu a escada. O velho bandolero desceu do cavalo.

        — Em nome do nosso amado país, — disse o Presidente, — estendo-lhe a mão. Por muito tempo, esteve a nossa casa dividida.

        Em seguida, deu um passo à frente e abraçou o velho.

        A multidão prorrompeu em aplausos que vinham do fundo do coração. Aquilo significava o fim do terror, das noites sem sono, do medo de que a qualquer momento os bandoleros ou os soldados transformassem a cidade num campo de batalha. Isso havia terminado.

        Dax olhou para todos os cantos à procura de Gato Gordo, mas não o viu. Havia decerto voltado para o bar, decepcionado com o insucesso das suas previsões.

        O Presidente conduzia o homem para a escada da galeria. Os repórteres acorreram para eles e os dois homens tiveram de parar para as fotografias. Dax olhou para Amparo.

        — Seu pai deve estar muito orgulhoso. Foi notável o que ele fez.

        Um estranho olhar passou pelo rosto de Amparo, mas antes que ele tivesse tempo de perguntar o que isso significava, sentiu uma mão no braço e voltou-se. Era El Condor.

        — Cumpri a minha palavra, — disse ele. — Trouxe meu filho e entrego-o nas suas mãos. Tratará de fazê-lo frequentar a escola, como me prometeu?

        — Cumprirei a minha palavra.

        O velho fez um gesto e o rapaz se aproximou.

        — Você vai ficar com o Sr. Xenos. Deve obedecer-lhe como obedeceria a mim.

        O rapaz fez em silêncio um sinal de assentimento.

        — Seja um bom rapaz e algum dia poderá voltar para as montanhas com o conhecimento e com as palavras que o farão para sempre um homem livre. — Estendeu a mão e tocou de leve o rosto do filho. — Nunca faça nada de que você ache que eu poderia envergonhar-me.

        Empurrou quase o menino para Dax.

        — O nome dele é José. Pode bater nele se não fizer o que mandar.

        Nesse momento, o Presidente se aproximou do velho.

        — Vamos entrar para tomar um copo de vinho juntos. Temos muito o que conversar.

        O bandolero riu.

        — Vinho e conversa! Pelo que vejo, é sempre o mesmo!

 

        — Teremos de viajar a noite inteira para chegar a Curatu, — disse Dax. — Poderíamos em poucas horas chegar à minha hacienda. Passaríamos a noite lá e partiríamos de novo amanhã de manhã.

        Amparo olhou para o pai.

        — É uma boa sugestão, — disse o Presidente. — Você estaria com mais conforto lá. Esperá-lo-ei em Curatu amanhã.

        — Bueno! Vou chamar Gato Gordo.

        Mas Gato Gordo não aparecia em parte alguma. O homem do bar do hotel disse tê-lo visto sair com um soldado pouco depois da chegada de El Condor. O soldado havia voltado, mas Gato Gordo não. O soldado estava na mesa do canto.

        Era Ortiz e estava dormindo com os braços em cima da mesa. Dax acordou-o e ele levantou a cabeça com os olhos tontos de vinho. Não, não se lembrava do lugar onde havia deixado Gato Gordo. Tinham ido a uma cantina onde havia algumas mulheres. Estavam dançando e cantando lá, mas ao fim de um certo tempo haviam saído. Então, Gato Gordo e ele tinham-se separado.

        Dax pensou que Gato Gordo devia ter encontrado alguma mulher e com certeza só voltaria para casa na manhã seguinte. Riu sozinho. Gato Gordo era assim mesmo.

        Amparo estava esperando num dos carros. Dois soldados já estavam a postos no banco da frente.

        — Daqui não podemos ir de carro, — disse Dax, — porque não há estrada pelas montanhas. De carro, teremos de ir até perto de Curatu para então voltarmos para a hacienda.

        Amparo pareceu hesitar e Dax sorriu.

        — Não quer? Ainda me lembro do tempo em que você nunca queria sair da sela.

        Ela saltou do carro e disse com um leve toque de irritação na voz:

        — Prepare um cavalo para mim. Poderemos sair logo que eu acabar de trocar estas roupas.

        Dax foi até à cocheira do hotel e pegou seu cavalo e o de Gato Gordo. Este ia ficar zangado, mas ele mesmo é que fora o culpado.

        Levou os cavalos para a frente. Já estava escurecendo. Quando chegou lá, viu o filho de El Condor que o esperava com o seu cavalo. Quase o havia esquecido.

        — Já vamos, señor? — perguntou o rapaz.

        — Sí.

        Pararam em frente à casa do alcalde. Dax olhou para o rapaz.

        — Não quer ir dar adeus ao seu pai?

        — Já me despedi dele, — disse José.

        A noite estava clara e o luar iluminava tanto o caminho quanto se fosse dia. Viajavam em fila indiana, Dax à frente, Amparo depois e, por último, o rapaz. No alto da montanha, Dax parou e olhou para a cidade. As casas estavam todas iluminadas e de vez em quando chegavam até eles sons distantes de música.

        Dax riu.

        — Não se vai dormir muito esta noite em Asiento.

        — Acho que não.

        Avistaram ao norte da cidade clarões de fogueiras.

        — Que será aquilo? — murmurou Dax.

        Amparo não respondeu.

        — É o acampamento dos soldados, — disse José.

        — Como é que você sabe?

        — Vimos quando íamos para a cidade. Foi então que meu pai mandou a maior parte dos seus homens de volta para as montanhas.

        Dax voltou-se para Amparo.

        — Para quê?

        Ela encolheu os ombros evasivamente.

        — Papai nunca vai a lugar algum sem a sua escolta pessoal.

        — Pensei que essa escolta havia entrado na cidade com ele.

        — Meu pai disse que eram os guerrilheiros de Gutiérrez, — disse José.

        Dax virou-se na sela.

        — Estou cansada, — disse de repente Amparo. — Vamos ficar a noite toda parados aqui conversando?

        E tocou o cavalo pela estrada. Dax ainda olhou para os lados de Asiento e voltou-se para o rapaz, que esperava impassivelmente.

        — Vamos, José.

        Desceram a montanha seguindo Amparo, atravessaram o vale e atingiram os campos da hacienda de Dax. Era quase meia-noite quando chegaram. Não haviam trocado durante todo o caminho meia dúzia de palavras.

        Dax levou Amparo até ao quarto. Ela estava abatida e pálida e de repente Dax teve pena dela. Ser filha do Presidente não devia ser a coisa mais fácil do mundo.

        Deixou José no quarto onde ele havia dormido quando garoto e desceu. Acendeu um charuto e começou a fumar. Havia dúvidas que o atormentavam e que ele achava que Amparo poderia esclarecer. Mas trataria disso no dia seguinte. Aquele dia estava terminado. Mas nisso se enganava.

        Não havia dormido muito quando foi acordado por um tropel de cavalos. A princípio, limitou-se a rolar para o outro lado na cama, achando que Gato Gordo estava fazendo barulho demais sem necessidade. Depois, saltou da cama e foi até à janela. Dois cavalos estavam passando pela porteira. Reconheceu Gato Gordo montado num deles, mas não pôde identificar o outro cavaleiro. Quem era mal se aguentava na sela, agarrado ao arção e em risco de cair a cada momento.

        Dax vestiu-se rapidamente e desceu. Quando chegou à escada da galeria, Gato Gordo já estava apeando e o outro virou o rosto para a casa. Estava pálido e todo ensanguentado. Dax olhou para El Condor, quase paralisado de surpresa.

        — Ajude-me a levá-lo para dentro de casa, — disse Gato Gordo. — Os soldados vêm aí atrás.

        Dax estendeu a mão automaticamente para o velho. Era espantoso como o velho bandolero se tornara leve e frágil.

        — Que aconteceu, Gato Gordo?

        — Não lhe disse que havia muitos soldados? E fora de Asiento havia muito mais.

        O velho bandolero tossiu e o sangue lhe borbulhou da boca quando o deitaram no sofá ao lado da escada. A hacienda estava começando a acordar. Uma das empregadas saiu da porta da cozinha.

        — Traga água quente e toalhas! — gritou-lhe Dax. — Gato Gordo, mande um dos homens chamar o médico! Depressa!

        Gato Gordo saiu correndo da casa.

        El Condor tossiu e fez uma careta de dor quando tentou falar. Dax pegou uma toalha úmida das mãos de uma das mulheres e limpou o rosto do velho.

        — Não fale. Já mandamos chamar o médico.

        — Para quê? — murmurou arquejante o velho. — Já sou um homem morto.

        — Não vai morrer.

        — Não lhe disse que Gutiérrez nos mataria a todos?

        — Não foi Gutiérrez.

        — Foi Gutiérrez, sim, — disse Gato Gordo que voltava. — Fomos uns idiotas. O velho é que estava certo. Gutiérrez é agora o chefe da polícia secreta do Presidente.

        Dax arregalou os olhos. Ouviu passos na escada e viu que era Amparo que descia. Estava extremamente pálida. Dax viu um momento atrás dela o rosto de José, que em seguida desapareceu.

        — Fizeram uma tocaia na estrada e atacaram os bandoleros quando saíam da cidade de volta às montanhas, — disse Gato Gordo.

        Dax olhou para Amparo.

        — Você sabia disso?

        Amparo não respondeu. Aproximou-se do velho, olhou-o e perguntou:

        — Morreu?

        Dax viu o velho com a boca aberta e os olhos sem vida escancarados.

        — Morreu sim.

        Ouviu-se um urro na escada e Dax virou-se para ver o garoto atacar Amparo de faca em punho. Dax empurrou-a automaticamente para o lado, fazendo-a cair numa cadeira e interceptou o rapaz. Dobrou os joelhos ante o impacto, mas a faca foi rolar no chão. Deu um pontapé nela e levantou-se.

        O rapaz levantou-se também e olhou para Dax com o rosto banhado em lágrimas.

        — Você mentiu! Nunca deixou de saber que era isso que ia acontecer!

        — Eu não sabia, — disse Dax, aproximando-se dele. — Você tem de acreditar em mim!

        — Não me toque! — exclamou José, empurrando-o. — Mentiroso! Traidor! Algum dia, eu matarei você por isso que fez!

        Saiu correndo pela porta, desapareceu na noite e, um instante depois, ouviram o galope do seu cavalo.

        Gato Gordo saiu correndo atrás dele.

        — Ele vai voltar para as montanhas!

        — É melhor deixá-lo! — disse Dax e voltou-se para Amparo que havia caído da cadeira e estava estendida no chão. — Vou carregar você até seu quarto!

        — Não me mova daqui! — exclamou ela, ferozmente. — Não vê como eu estou?

        Ele olhou espantado. Da cintura para baixo, a camisola e o robe estavam empadados de sangue.

        — Que é isso?

        Ela o olhou com uma curiosa mistura de raiva e tristeza.

        — Não está vendo, pobre idiota? Estou perdendo um filho!

        Ele aprumou o corpo, com uma sensação de náusea no estômago. Como todos deviam tê-lo julgado um imbecil! Com todo o seu conhecimento, com toda a sua experiência da vida, com tudo o que havia aprendido no vasto mundo, tinha sido manobrado como uma criança por todos eles. Não havia ninguém que não lhe houvesse mentido, ninguém que não o houvesse tratado como um instrumento. Até Amparo.

        Ouviu-se de repente o tropel de muitos cavalos lá fora e, em seguida, pesados passos ressoaram na galeria. Os soldados entraram pela sala adentro e, num momento, tudo ficou cheio de fardas vermelhas e azuis.

        Logo depois, Gutiérrez apareceu por entre eles, no seu uniforme com galões de prata. Olhou rapidamente para Dax, para o cadáver de El Condor e para Amparo estendida no chão. Não era preciso que lhe dissessem que o bandolero estava morto. Voltou-se para Dax.

        — Onde está o garoto?

        — Foi-se embora.

        Gutiérrez olhou para ele e disse:

        — Não acredito em você. — Viu depois Gato Gordo e ordenou: — Prendam aquele homem!

        O grito de Dax fez os soldados pararem.

        — Não!

        — O Presidente não gostará se ele não for preso, señor, — disse Gutiérrez com um brilho nos olhos. — Ele tentou ajudar o bandolero a fugir!

        — Pouco me interessa o que o Presidente goste ou não goste!

        Um frio sorriso apareceu nos lábios de Gutiérrez.

        — Essas palavras são uma confissão de traição! — Tirou o revólver do cinto, apontou-o para Dax e ordenou aos soldados: — Prendam os dois!

        Os soldados avançaram para Dax mas, antes que o alcançassem, ele havia corrido e apanhara a faca que o rapaz deixara cair.

        Gutiérrez encostou-se à parede com um pulo.

        — Há muito tempo que espero por isso! — disse ele com um sorriso de vitória, levantando o revólver.

        — E eu também.

        O braço de Dax moveu-se com uma rapidez espantosa e o sorriso no rosto de Gutiérrez transformou-se numa expressão de surpresa quando o cabo da faca lhe apareceu de repente saindo do pescoço. O revólver lhe caiu das mãos, que ele levou desesperadamente ao pescoço para tirar a faca. Mas não conseguiu. Caiu e ficou de olhos vidrados antes que as mãos chegassem à metade do caminho.

        Dax sentiu-se agarrado pelos soldados e tentou livrar-se, mas eram muitos e seguravam-no com firmeza.

        — Soltem-no! — disse de repente da porta a voz autoritária do Presidente.

        Passou por eles e foi ajoelhar-se ao lado da filha. Trocaram em voz baixa algumas palavras que Dax não pôde ouvir. Depois, o Presidente levantou-se e voltou-se para Dax.

        — Agiu muito bem, meu filho! Eu mesmo vinha matar Gutiérrez por haver violado a anistia!

 

        Os escritórios de Nova York da Companhia Hadley ficavam na orla do distrito financeiro em torno de Battery Place. Ocupava o décimo nono andar de um velho edifício, cuja cobertura fora transformada no escritório pessoal de Hadley. Era um grande apartamento de cinco peças, constante de um escritório de paredes de vidro que dava uma ampla vista em todos os sentidos. Ao sul, ficava a Estátua da Liberdade e o porto. Ao norte e a leste elevavam-se as massas enormes do Edifício Empire State e do Rockefeller Center e a agulha do recém-terminado Edifício Chrysler. As outras peças eram uma sala de reuniões que também servia de sala de jantar, uma cozinha completamente equipada, um quarto e um banheiro.

        Marcel voltou-se lia janela quando Hadley entrou no escritório.

        — Desculpe tê-lo feito esperar, — disse Hadley. — A reunião demorou mais do que eu esperava.

        — Não tem importância, Sr. Hadley. Isso me deu oportunidade de admirar a vista.

        — Muito bonita, não é? — disse Hadley maquinalmente, indo sentar-se à sua mesa.

        A maneira pela qual disse isso fez Marcel duvidar de que ele tivesse de fato alguma vez olhado pelas janelas. Sentou-se na cadeira em frente à mesa.

        Hadley não perdeu um minuto.

        — As informações que tenho da Europa dizem que a guerra é uma questão de meses, talvez até de semanas.

        Marcel fez um sinal de assentimento e ficou calado, porque de fato nada lhe cabia dizer.

        — A representação americana na Europa irá tornar-se difícil, — continuou Hadley, — principalmente porque o Presidente não esconde as suas simpatias pela Inglaterra e pela França. Prometeu- lhes toda a ajuda possível menos a participação na guerra. Isso tornará também difícil a situação nos Estados Unidos para certos interesses europeus.

        Marcel começou a perceber para onde a conversa se estava encaminhando.

        — Quantos navios temos ainda no comércio de açúcar? — perguntou Hadley.

        Marcel pensou um momento. Havia nove no mar, mas quatro estavam transportando cargas destinadas aos seus armazéns pessoais em Brooklyn.

        — Cinco. E devem estar em Nova York antes do fim do mês.

        — Muito bem. Logo que forem descarregados, todos os navios devem ser mandados para o Corteguay. Se a guerra estourar, qualquer navio saído daqui rumo à Europa será caça legítima para os submarinos alemães. Tem alguma notícia recente de Dax?

        — O Presidente me informou que ele ainda está na Espanha. Os acordos com Franco estão quase concluídos.

        — Temos de mandar dizer a ele que procure concluir os acordos o mais depressa possível. Resolvi que ele será o nosso representante na Europa logo que a guerra começar.

        — Como sabe que Dax servirá para isso? Afinal de contas, ele não trabalha para nós.

        Houve um toque de aborrecimento no rosto de Hadley.

        — É por isso mesmo que ele serve. Dax representa um país completamente neutro. Ficará à vontade na Europa, seja qual for o andamento da guerra, podendo ir aonde quiser.

        Marcel não fez comentários. Estava começando a compreender os americanos. Já sabia como as grandes fortunas eram feitas. Na guerra ou na paz, a tarefa de ganhar dinheiro não podia sofrer solução de continuidade.

        — Já conversou com o Presidente sobre isso?

        — Ainda não. Deixei essa parte para você. Afinal de contas, ele é seu sócio e não meu.

        Ainda era cedo quando Marcel saiu do escritório de Hadley. Olhou o relógio e viu que ainda tinha tempo de ir a Brooklyn antes do almoço que tinha marcado para uma hora da tarde. Chamou um táxi e disse ao motorista.

        — Terminal Bush em Brooklyn.

        Olhou pela janela enquanto o táxi se dirigia para a Ponte de Brooklyn. Como os americanos eram diferentes dos europeus! Eram displicentes, protegidos pelos seus oceanos. Se houvesse guerra, não os atingiria.

        Seria alguma coisa de que se tomaria conhecimento pelos jornais, pelo rádio entre um programa humorístico e uma transmissão de música clássica ou num jornal cinematográfico antes de um filme de Clark Gable. As ameaças, furores e delírios de Hitler nunca chegariam até ali. A América ficava do outro lado do mundo.

        O calor úmido do princípio de agosto entrava pelas janelas do táxi. Nem o vento que soprava atenuava o calor abrasador que se levantava do pavimento. O táxi rompeu com dificuldade através do tráfego do centro de Brooklyn depois de sair da ponte. Subiu pela Avenida Flatbush, passou por Fulton Street repleta de gente e com os seus trens elevados e dobrou na Quarta Avenida, rumo a Bay Ridge.

        Marcel disse ao chofer que esperasse. O homem resmungou que perderia dinheiro esperando, mas Marcel não lhe deu importância. Um homem estava sentado a uma mesa lá dentro, lendo um jornal, e levantou a vista, largando o jornal ao ver que era Marcel.

        — Bom dia, Sr. Campion.

        — Bom dia, Frank. Tudo bem?

        — Perfeito, Sr. Campion, — respondeu o vigia, levantando-se. Já estava habituado àquelas visitas. Marcel tinha o hábito de aparecer nas horas mais desencontradas. Chegava às vezes no meio da noite, sem qualquer aviso. Como sempre, ele seguiu Marcel até ao armazém.

        Marcel olhou pela porta. O prédio cobria todo um quarteirão da cidade e pilhas e mais pilhas de sacos de açúcar subiam quase até ao sistema de encanamentos de água contra incêndios perto do teto metálico.

        Marcel sentiu-se cheio de satisfação. Mais de um ano havia passado desde que tivera aquela ideia. No dia 3 de setembro, quando os quatro navios que esperava estivessem atracados ao cais diante dos armazéns, a operação estaria concluída. O último armazém se encheria e só teria então de esperar. A guerra que iria estourar na Europa se encarregaria do resto.

        Lembrou-se do tempo em que era garotinho na Primeira Guerra. Tinha havido duas coisas que sua família nunca pudera encontrar em quantidade suficiente — sabão e açúcar. Lembrava-se de ter ouvido seu pai queixar-se de haver pago vinte francos por alguns gramas de um grosseiro açúcar mascavo. Tinham-no guardado como se fosse um tesouro, fazendo durar mais de uma semana. Dessa lembrança é que havia nascido a ideia.

        Açúcar. Tudo na América era muito doce. Bombons, sorvetes, bolos, pastelarias e até pão. Todos consumiam açúcar em grande quantidade, todos presumiam que nunca faltaria açúcar. Sempre tinha havido açúcar de sobra. Ninguém pensava que pudesse faltar em caso de guerra. E, se faltasse, pagariam qualquer preço por ele.

        Por isso, ele tinha quatro prédios como aquele, cheios de açúcar. Ele era talvez o único homem que poderia ter feito isso. Controlava os navios. Podia falsificar manifestos de carga para distrair a atenção dos guardas aduaneiros que fiscalizavam todos os navios que entravam no porto.

        Mas isso custava dinheiro, muito dinheiro, mais dinheiro do que Marcel possuía. Parecia quase que os produtores de açúcar estavam perfeitamente cientes do que ele pretendia. Tinha de pagar um acréscimo de 20 cents por saco a fim de assegurar a sua preferência de compra. Era preciso gastar mais dinheiro com os oficiais dos seus navios, que estavam a par da verdadeira natureza da carga que transportavam. Até o arrendamento dos armazéns lhe custava milhares de dólares acima dos preços normais.

        Tinha quase oito milhões de dólares metidos naquela operação, na sua maior parte dinheiro emprestado. Nunca tivera tanto dinheiro e, se não fosse Amos Abidijan, nada poderia fazer.

        Marcel não tinha ilusões a respeito dos motivos pelos quais Abidijan lhe emprestara o dinheiro. Não era porque Marcel houvesse dado como garantia a sua parte dos navios. Abidijan tinha mais navios do que precisava. Não era também porque Abidijan quisesse participar dos lucros resultantes da operação. Ele não tinha nem perguntado para que Marcel queria o dinheiro. Abidijan só estava interessado numa coisa. Era em casar sua filha mais velha.

        Eram ao todo cinco e, enquanto a mais velha não se casasse, nenhuma das outras poderia casar-se. Estava começando a parecer que elas nunca se casariam porque ninguém se mostrava interessado em pedir a mão de Ana, apesar do dote que com toda a certeza ela levaria. Era na verdade uma infelicidade que de todas as filhas Ana fosse a mais parecida com o pai. Era baixa e muito morena, com uma sugestão bem forte de bigode no lábio superior que nenhuma dose de eletrólise, por mais forte que fosse, conseguira eliminar satisfatoriamente. E nenhum costureiro, por mais hábil e caro que fosse, podia disfarçar as linhas grosseiras do seu corpo de camponesa.

        Parecia que ela havia arrecadado todos os traços negativos da família. As outras irmãs eram esbeltas e altas, quase se aproximando do tipo médio americano em cor de pele e aparência. Só a pobre Ana se parecia com o pai e agia como ele. Chegando à conclusão de que os homens eram coisa fora do seu alcance, interessara-se pelos negócios do pai e começara a trabalhar no seu escritório. Assim é que Marcel a havia conhecido.

        Fora até lá para uma conferência com hora marcada, mas tivera de esperar. A recepcionista o fizera entrar para a sala de espera do escritório de Abidijan, que estava vazia. Mal se havia sentado, Ana apareceu.

        — Desculpe, Sr. Campion, — disse ela na sua voz forte, quase masculina, — mas meu pai demorará um pouco.

        Marcel, ao compreender que se tratava da filha de Abidijan, levantara-se numa demonstração de cortesia francesa.

        Mas, para a pobre e inexperiente Ana, que não estava habituada a qualquer atenção do outro sexo, cortesia pareceu interesse amoroso e Marcel viu-se envolvido antes de perceber o que estava acontecendo. Almoços, jantares e reuniões à noite em casa de Amos. Depois, convites para passar fins-de-semana na casa de campo da família. Isso durava havia dois anos e se tornara mais ou menos uma coisa entendida que os dois estavam interessados um no outro, embora Marcel nunca houvesse dito uma só palavra a esse respeito.

        Estavam as coisas nesse pé quando Marcel fora procurar o pai dela para solicitar-lhe o empréstimo pouco mais de um ano antes. Pensara em pedir o dinheiro a Hadley e depois desistira. James Hadley tinha uma moral bastante curiosa. Nada havia em matéria de negócios que ele não fosse capaz de fazer, mas aquilo para ele seria uma coisa completamente diversa. Sonegação de gêneros de primeira necessidade e mercado negro eram para ele verdadeiros tabus. Tudo o que ele fizesse tinha de ser justificado de uma maneira ou de outra como coisa de interesse coletivo. Se, além de atender ao interesse coletivo, a operação lhe desse lucro, tanto melhor. E era em geral o que acontecia.

        — Preciso de quatro milhões de dólares, — disse Marcel a Amos. — Posso levantar dois milhões com...

        — Não diga mais nada, — exclamou Amos, estendendo a mão para o talão de cheques.

        Marcel olhou-o, espantado.

        — Mas não quer nem saber para que é que eu preciso de dinheiro?

        — Não é preciso, — disse Amos, sorrindo. — Afinal de contas, fica tudo na família.

        Marcel ficou boquiaberto. Mas logo se refez e observou:

        — Mas talvez eu ainda precise de mais.

        Amos assinou o cheque e entregou-o a Marcel.

        — Pois quando precisar, é só vir falar comigo.

        Duas vezes mais Marcel tinha pedido dinheiro. E sempre o cheque lhe era entregue sem que lhe fossem feitas perguntas. Mas tudo se aproximava do fim.

        Mais um pouco e Marcel poderia pagar os empréstimos. E, logo que pagasse, esclareceria de vez aquela situação. Era apenas uma questão de tempo.

 

        O jantar em casa de Abidijan foi demorado, sem graça e enfadonho como sempre. Depois do jantar, foram tomar o café e o conhaque na biblioteca. Marcel pegou em silêncio o charuto que o mordomo lhe ofereceu e acendeu-o com um suspiro de satisfação. Uma coisa Amos fazia certo. Fumava bons charutos. Os seus havanos eram sempre perfeitos. Nem muito úmidos, nem muito secos e com um gosto que parecia uma carícia.

        Amos acomodou-se na sua poltrona de couro favorita e perguntou a Marcel:

        — Conhece o Barão De Coyne?

        — Já trabalhei com ele, — respondeu Marcel, torcendo a verdade numa fração necessária. A sua curiosidade fora despertada mas ele era esperto demais para fazer perguntas.

        Amos pensou um momento e continuou:

        — Talvez você possa ajudar-me. Há certas companhias em que ele e eu estamos interessados. Ambos apresentamos propostas e agora estamos sendo jogados um contra o outro para forçarem o preço.

        — Há sempre gente muito ambiciosa, — disse Marcel num tom de reprovação. Tinha sabido que o barão estava transferindo para os Estados Unidos a maior parte dos seus bens, mas desconhecia ainda que pretendesse também ter participação ativa nos negócios americanos. — Em que posso ajudá-lo? Para mim será um prazer.

        — Talvez De Coyne e eu possamos entrar num acordo antes que os preços subam tanto que o negócio deixe de ser rendoso para qualquer de nós.

        — Parece viável. Tenho certeza de que o barão não se oporia a isso.

        — É também o que acho. Mas parece que não tenho meio de entrar em contato com ele. Os advogados dele aqui se negam a qualquer entendimento.

        — Deixe-me pensar no assunto, — disse Marcel. — Depois eu lhe falarei.

        — Ótimo, — disse Amos.

        Levantou-se, foi até à janela do apartamento e olhou para o East River. Algum tempo depois, consultou o relógio.

        — Está atrasado, — disse ele.

        — Quem é que está atrasado? — perguntou Marcel.

        — O Shooting Star. Devia passar por aqui         às nove e vinte.

        Marcel olhou-o surpreso. Abidijan possuía ou controlava uma das maiores frotas do mundo e ainda sabia quando um simples navio-tanque devia chegar.

        Amos saiu da janela e tornou a sentar-se na poltrona.

        — Às vezes, tenho vontade de me aposentar, — disse ele, — mas então penso em todo mundo que depende de mim e sei que não posso. Mas a verdade é que estou ficando velho.

        — Você ainda está muito longe da velhice.       Eu só queria era ter a sua energia.

        — Não, não! Você é moço e por isso é que me diz essas coisas. Mas eu é que sei. Ainda se eu tivesse filhos,' um filho só que fosse, não me preocuparia. Não é que haja alguma coisa de errado com as meninas. Mas, você sabe, moças são moças. Se eu tivesse um filho, poderia entregar tudo a ele e viver com mais calma.

        Marcel sorriu.

        — Com cinco filhas, terá muitos netos.

        — Se eu tivesse um filho como você, — disse Amos, como se não tivesse ouvido o que Marcel dissera, — deixaria todos os meus negócios nas mãos dele.

        Marcel não mordeu a isca. Conhecia Amos bastante para saber que ele não cederia nada. Ficaria no controle de tudo até morrer. E mesmo depois de morto, tanto quanto possível. Ana entrou na sala nesse momento e livrou-o da necessidade de responder.

        — Papai, — exclamou ela nervosamente, — o Shooting Star está subindo o rio!

        Marcel olhou-a e sentiu um arrepio. Por um momento, ela se parecera exatamente com o pai.

        Abidijan se levantou e foi até à janela.

        — É o Shooting Star, sim, e com quinze minutos de atraso. Ana, lembre-me amanhã para mandar uma nota ao comandante. Se nós temos horários é para serem cumpridos!

        Marcel saiu pouco depois das dez horas sob o pretexto de uma dor de cabeça. Ana foi levá-lo até à porta.

        — Procure descansar bem, — disse ela, com uma expressão preocupada. — Parece muito cansado.

        Marcel resistiu ao impulso de dizer que não estava cansado. Estava apenas chateado. O que disse foi:

        — Acho que tudo se resolve com uma boa noite de sono.

        — Vá diretamente para a cama.

        — É o que vou fazer. Boa noite.

        Saiu da casa de Sutton Place e respirou profundamente o ar da noite. Depois do calor do dia, a brisa que vinha do rio parecia quase fresca, embora o calor voltasse mal ele começou a andar. Depois de andar um quarteirão, sentiu o suor correr-lhe pelo corpo.

        Chegou à esquina da Quinta Avenida e procurou um táxi. Como sempre, na hora em que se queria um táxi nunca aparecia nenhum. Olhou para a rua. Só as luzes de alguns bares baratos representavam um convite. Só havia dois lugares aonde se pudesse ir naquela hora: El Morocco ou Stork. Resolveu ir ao primeiro. Era mais perto e ele teria muito pouco que andar.

        O maitre cumprimentou-o.

        — Boa noite, Monsieur Campion. Sozinho?

        — Sim, — disse Marcel, correndo os olhos pela sala para ver quem estava lá. — Uma mesinha num canto, se for possível.

        — Sem dúvida, Monsieur Campion.

        O maitre levou Marcel para uma mesa no canto da pequena sala externa. Era uma boa mesa e ele guardou discretamente no bolso a nota que Marcel lhe deu.

        Marcel pediu champanha e ficou bebericando devagar o vinho, sentindo o ar refrigerado da sala apagar a tortura do calor úmido que reinava lá fora. Passaram vários conhecidos e ele cumprimen- tou-os polidamente. O restaurante foi-se enchendo pouco a pouco. E ele continuava ali, temendo a ideia de voltar ao calor.

        Ouviu de repente uma voz de mulher atrás dele.

        — Marcel?

        Levantou-se automaticamente antes de voltar-se.

        — Mademoiselle de Coyne!

        Ela estendeu a mão que ele beijou.

        — Estava mesmo com a esperança de vê-lo.

        — Felizmente para mim isso aconteceu, — disse ele, só então compreendendo que estavam falando francês. — Por que não se senta?

        — Só por um momento. Estou com outras pessoas aí.

        Ele puxou-lhe uma cadeira e o garçom chegou no mesmo instante com outro copo.

        — À votre santé. Como vai seu pai?

        — Vai bem. Na França é que as coisas não vão bem.

        — Sei disso.

        — Aqui é que ninguém está-se importando, — disse Caroline, correndo os olhos pelo restaurante.

        — É uma gente feliz e que nem sabe a sorte que tem. Soube que seu pai está com vontade de vir para cá.

        — Não sei, Marcel. E ando tão         preocupada. Vou voltar amanhã no Normandie.

        — Apresente meus respeitos a       seu pai. E diga-lhe por favor que, se há alguma coisa que eu possa fazer para ele aqui,       para mim será um prazer. Basta que ele ordene.

        — Obrigada. Mas, escute. Tenho perguntado a todo mundo sem resultado. Sabe onde o Dax está?

        Ele devia ter sabido que ela não havia parado apenas para vê-lo. O motivo tinha de ser outro. Para ela, nunca passaria de um simples empregado. Ocultou a decepção num rosto impassível.

        — Dax está na Europa. Não sabia?

        — Não, não sabia.

        — Já está há quase um ano.

        — Não soubemos dele. Ele nunca nos procurou, — murmurou ela com visível tristeza.

        — Está na Espanha em missão do governo do seu país, — disse Marcel sentindo pena dela.

        — Na Espanha? E está bem? Não lhe aconteceu nada?

        — Não. Tenho certeza de que ele está bem. Soube até que dentro em breve irá à França. Talvez ele a procure nessa ocasião.

        — Não pode comunicar-se com ele? É muito importante. Meu pai precisa muito falar com ele.

        — Vou tentar.

        As coisas estavam começando a fazer sentido. Era por isso que Hadley tinha querido que Dax fosse à França e não pela vaga razão que tinha dado. Ele se entendera decerto diretamente com De Coyne. Outra peça do quebra-cabeça caía no lugar.

        Era com Hadley que ele tinha de falar a respeito do problema de Abidijan. Os advogados eram apenas uma pista falsa. Teria de verificar isso com eles no dia seguinte.

        — Veja se consegue mandar dizer alguma coisa a ele, — disse Caroline, levantando-se e estendendo-lhe a mão. — Ficar-lhe-ei imensamente grata.

        Ele lhe beijou a mão.

        — Será para mim um grande prazer servi-la.

        Ficou a olhá-la enquanto ela se encaminhava para a sua mesa. Viu-a falar com o homem à sua direita e desviou os olhos bem em tempo quando olharam para ele. Mas percebeu os sorrisos dos outros dois e sentiu um aperto no coração.

        Era a história de sempre. Havia quase esquecido. A Europa ainda era a Europa. Sentiu um estranho ódio ferver dentro dele. O simples fato de que ela não o houvesse apresentado às pessoas que a acompanhavam indicava que não o considerava seu igual. Seria bem feito que o Velho Mundo se destruísse na hecatombe em marcha.

        O vinho perdeu o gosto e ele pediu a conta. Pagou e saiu.

 

        Quando Robert de Coyne desceu para o café, já encontrou o pai à mesa com um telegrama aberto ao lado. Pegou o telegrama e deu-o para Robert ler.

        “Abidijan ofereceu doze milhões pela Master Products. Até onde posso ir? Hadley”.

        Robert jogou, aborrecido, o telegrama em cima da mesa.

        — Isso é um verdadeiro assalto!

        — Que é que podemos fazer? — perguntou       o barão. — Essa companhia é a chave das nossas atividades nos Estados Unidos.

        — Julguei que Hadley fosse melhor homem de negócios. Como foi que Abidijan soube?

        — Isso não importa. Teremos de subir agora para quinze milhões.

        — É três vezes o que vale a companhia!

        — Os mendigos não podem ser exigentes,       meu filho. E é apenas isso que nós somos no mercado americano.

        Quando Robert começou a tomar o café, o mordomo entrou na sala.

        — Monsieur Campion quer falar com Vossa Excelência.

        — Marcel Campion? — exclamou Robert com uma voz que refletia a sua surpresa.

        — Foi esse mesmo o nome, senhor.

        Robert olhou para o pai.

        — Pensei que Marcel ainda estivesse em Nova York.

        — Faça-o entrar para a biblioteca, — disse o barão ao mordomo. — Irei vê-lo logo que acabar o café.

        Marcel estava cochilando numa poltrona quando os dois entraram na sala meia hora depois. Levantou-se e pediu desculpas.

        — Perdoe-me, mas acabo de chegar de Lisboa, depois de sair do avião de Nova York.

        — Não tem importância, — disse o barão, mas não estendeu a mão. Foi até à sua mesa e sentou-se. — Conhece meu filho, Robert?

        Marcel inclinou-se.

        — Monsieur Robert.

        Robert fez um breve cumprimento.

        — Marcel.

        Marcel esperou que o convidassem para sentar-se. Em lugar disso, o barão perguntou com voz quase de condescendência:

        — Qual é o motivo da sua extraordinária visita?

        Marcel sentiu o cansaço da longa viagem invadi-lo. Pareceu haver perdido a voz e ficou ali parado a olhá-los.

        O barão fez uma cara de aborrecimento.

        — Pode falar. Que deseja? Tenho muito o que fazer hoje.

        Marcel sentiu uma onda de ressentimento dominá-lo. Nada havia mudado, nada jamais mudaria. Aquela gente se habituara desde muito a ver os outros rastejarem diante dela. Na América não era assim. A pessoa valia pelo que era e não pela família na qual havia nascido.

        Que estava fazendo ali? Não precisava mais do barão. Ou do dinheiro dele. Ou sequer de relações com ele. Na América, já começavam a aceitá-lo por ele mesmo. O velho que fosse para o inferno e se arrumasse como quisesse na América. Todo o complicado plano que havia elaborado fugiu pela janela. Por que iria deixar os De Coynes montarem em cima dele?

        Mas prontamente encontrou a voz.

        — Meu grande amigo Amos Abidijan sugeriu que eu o procurasse a respeito de certas companhias em que ambos estão interessados.

        — E daí? — perguntou o barão, lançando um olhar rápido a Robert.

        — Talvez possa haver uma fusão de interesse. Isso poderia representar considerável economia para ambos.

        O barão olhou-o friamente e perguntou:

        — E o seu papel nisso qual é?

        De repente, Marcel começou a rir. Pela primeira vez, viu-se pensando e falando em inglês. E exclamou:

        — Ora, vá para o diabo! Nenhum mesmo! Só vim aproveitar o passeio!

        Nunca se arrependeu dessa explosão. Nunca, mesmo quando estava no escritório de Amos dois dias depois que Hitler deu ordem às suas tropas de invadirem a Polônia e ele teve de ir pedir quatro milhões de dólares para livrar-se da falência.

        Foi o açúcar que fez isso, o plano que iria enriquecê-lo fabulosamente. Um dia depois de haver começado a guerra na Europa, Roosevelt havia estabelecido um preço-teto para o açúcar. Quatro dólares e sessenta e cinco cents por 100 libras. Marcel havia pago pelo açúcar 4 dólares e 85. O seu prejuízo era de vinte cents por cem quilos. Quatro milhões de dólares. E os outros credores não queriam esperar pelo dinheiro. Sabiam da situação e o estavam apertando.

        O armênio preencheu o cheque em silêncio e entregou-o a Marcel. Depois, levantou a vista.

        — Muito obrigado, — disse Marcel, humildemente.

        — A especulação é um negócio muito perigoso. Fez-me sofrer muito durante a guerra passada.

        Marcel olhou com surpresa para Amos. Isso mostrava que ele sabia de tudo a respeito do açúcar.

        — Mas ainda é uma boa ideia, — disse ele para justificar-se.

        — Contanto que você se desembarace do açúcar antes que o governo requisite os armazéns.

        — Acha que vão fazer isso?

        — É quase certo. Roosevelt prometeu abastecer, os Aliados. Todos os armazéns do cais serão requisitados.

        — Onde é que vou achar um lugar para guardar tanto açúcar?

        Amos riu.

        — Você é um moço muito inteligente, mas ainda tem muito o que aprender. Não amontoe tudo num lugar só. Assim chama mais a atenção. Espalhe a mercadoria. Esconda-a em lugares obscuros e improváveis, onde ninguém se lembrará de ir olhar. Um pouco de cada vez como os contrabandistas faziam com o uísque no tempo da Lei Seca.

        — Não poderei encontrar lugares suficientes a tempo.

        — Sei como poderá fazer isso, Marcel. Tenho um amigo que em outros tempos foi bootlegger e ainda tem muitos dos seus antigos esconderijos. Já falei com ele e ele resolverá o seu caso.

        — Salvou-me a vida! — disse Marcel emocionado.

        — Não fiz mais do que você fez por mim.

        — Como assim?

        — Recebi há duas semanas uma carta do Barão De Coyne. Disse-me que você foi procurá-lo para falar da minha proposta.

        — Ora, isso não foi nada.

        — Nada? — exclamou Amos. — Você foi para a Europa metido numa dessas arapucas voadoras só porque lhe pedi um favor e ainda acha que não é nada? Eu não entraria num troço daqueles nem que meu pai me pedisse. E, graças a isso, o barão e eu acabamos de comprar a companhia Master Products por três milhões de dólares abaixo da minha última oferta.

        Marcel olhou-o. Então o barão não era afinal de contas tão orgulhoso assim. O dinheiro era o grande denominador comum.

        Amos botou a mão no ombro de Marcel.

        Agora, vamos deixar os negócios de lado e falar de coisas mais importantes. Acho que outubro é um mês muito bom para um casamento, não acha?

 

        Sue Ann desligou o telefone e disse:

        — Papai quer que a gente volte para casa.

        Sergei levantou os olhos do jornal.

        — Você bem sabe que a criança não pode ser tirada da clinique.

        Sue Ann levantou-se irritada. Quando se movia com rapidez parecia ainda mais pesada. Depois que dera à luz, não fizera mais qualquer esforço para manter o peso. Parecia, ao contrário, que só estava esperando o pretexto para descuidar-se inteiramente da sua pessoa. Comia a cada instante bombons e bolos e empanturrava-se de tudo o que o seu apetite pedia e que ela dantes evitava. Só não mudara a sua insaciável fome de sexo.

        — Sei muito bem disso, mas para ela tanto faz a gente estar aqui ou lá. O fato de estarmos aqui não significa que estejamos fazendo alguma coisa por ela. As únicas pessoas que ela conhece mesmo são as freiras da clinique.

        — Apesar disso, é nossa filha. Não podemos ir e abandoná-la aqui.

        — Você não desiste, não é? — exclamou Sue Ann com a cara fechada. — Não quer reconhecer que ela não tem jeito mesmo e que será a vida inteira assim?

        — Os médicos dizem que há uma chance.

        — Os médicos? Com o dinheiro que estão ganhando com ela, são capazes de dizer tudo o que você quiser ouvir.

        Sergei não disse mais nada. Levantou-se e encaminhou-se para a porta.

        — Aonde é que vai?

        — À clinique. Quer ir comigo?

        — Para quê? Só para chegar lá e olhá-la?

        Ele encolheu os ombros.

        Ela foi até ao armário de bebidas e pegou uma garrafa de scotch.

        — Vou comprar passagem para os Estados Unidos na semana que vem.

        — Compre só a sua, — disse calmamente. — Se você for, irá sozinha.

        Sue Ann preparou o uísque. Voltou-se então para ele.

        — Eu sei que há outra. Aquela enfermeira do hospital. A inglesa.

        — Não seja boba.

        — Minhas amigas viram você com ela no carro.

        — Foi só uma carona que lhe dei no meu caminho.

        — Sério? Pois não é isso o que minhas amigas dizem.

        — Que é que suas amigas dizem?

        — Estavam na sacada quando você passou e puderam olhar bem para dentro do seu carro. E viram o que ela estava fazendo com você.

        — Em plena luz do dia? Você acredita nisso?

        — Conheço muito bem você, — disse ela, acabando de tomar o uísque e servindo-se de outro. — Você não pode dirigir sem ter alguém para fazer as mudanças na sua alavanca. Algum dia, você ainda morrerá assim.

        Sergei riu.

        — É uma morte tão boa quanto qualquer outra. Pelo menos, não morrerei de encher a barriga de comida como um porco.

        — Não tente mudar de assunto, — disse ela, ao mesmo tempo que uma nuvem lhe passava pelo rosto. — Não sou mais a mesma que era quando me casei com você. Agora, estou de olhos bem abertos a seu respeito.

        — Está de olhos bem abertos, hem? Pois fique sabendo de uma coisa: você era muito melhor quando era cega e burra.

        Saiu batendo a porta. Sue Ann, enfurecida, jogou o copo de uísque na porta. O copo se quebrou, espalhando cacos e uísque pelo tapete.

        — Dane-se!

        De repente, correu para a janela e escancarou-a. Olhou para o pátio e viu que ele ia entrando no carro.

        — Dane-se! Dane-se! Dane-se! — gritou ela a plenos pulmões pela janela aberta, como se fosse uma mulher da rua. Ainda estava gritando quando o carro saiu do pátio para a rua.

        As mãos de Sergei se crispavam no volante. Sentia o possante motor da Mercedes pulsar dentro do capô. Tinha sido um erro o seu casamento, como ele sempre soubera que seria. Mas isso não o consolava naquele momento. Ter tido razão não resolvia nada. Ao contrário, complicava tudo.

        Era exatamente como ele havia dito. Eram muito parecidos os dois e, ao mesmo tempo, muito diferentes. Agora, estava tudo acabado, menos num sentido, para ele quando nada. Havia a menina. Haveria sempre a menina. Por mais velha que viesse a ser, Anastasia seria sempre uma criança.

        “Elle est retardée.” Ainda ouvia a voz do médico, tentando ser profissionalmente indiferente, mas cheio de grande compaixão pelo sofrimento dos pais.

        Ele olhara para Sue Ann. Não havia no rosto dela qualquer expressão. Pensou a princípio que ela não entendera por que o especialista havia falado em francês.

        — Ele diz que ela é retardada.

        — Ouvi muito bem, — disse ela com uma voz sem emoção e olhando-o friamente. — Eu sabia que havia alguma anormalidade logo que ela nasceu. Nunca chorava.

        Sergei olhara para o berço. Anastasia estava tranquilamente deitada. Os olhinhos estavam abertos mas não denotavam qualquer curiosidade. Tinha três meses e já passara do tempo para mostrar sinais de consciência. Sentiu um aperto no coração e teve de conter as lágrimas.

        — Não se pode fazer nada? Uma operação?

        — Agora, não, — respondeu o médico. — Talvez quando ela for mais velha. Nestes casos, nunca se tem certeza. Pode sempre acontecer alguma coisa.

        — Que é que vamos fazer então? — perguntara ele desesperadamente. — Ela é tão pequenininha, tão indefesa.

        Sue Ann afastara-se do berço e fora para a janela. Era como se quisesse alhear-se de tudo o que estava acontecendo ali no quarto.

        — Conservem-na aqui, — dissera gentilmente o médico. — Ela precisa de cuidados especiais. É muito frágil para ser removida para outro lugar. No momento, é só o que pode fazer.

        — Dê um jeito de matá-la! — exclamou ferozmente Sue Ann, voltando-se da janela. — Isso é que um médico deve fazer! Ela tem sangue mau. Papai bem que me avisou a respeito dessas velhas famílias européias. Ela nunca servirá para nada. Será sempre uma idiota!

        O médico não pudera dissimular a sua escandalizada surpresa.

        — Não, Madame, ela nunca será uma idiota. É simplesmente retardada. Um pouco lenta talvez, mas uma bela criança apesar disso.

        Sue Ann olhara-os por um momento e depois saíra do quarto, batendo a porta. Um momento depois, a criança começou a chorar.

        — Está vendo? — disse o médico, aproximando-se do berço. — Ela reage, um pouco lentamente é verdade, mas reage. Ela precisa é de cuidado e carinho.

        Sergei olhara-o em silêncio. O médico sabia o que ele estava pensando com esse conhecimento intuitivo que lhe dava a experiência.

        — Sua mulher está muito nervosa. A culpa não é sua. A verdade é que houve um acidente por ocasião do parto. A criança quase foi estrangulada pelo cordão umbilical. Isso produziu uma lesão no cérebro antes que pudéssemos dar-lhe oxigênio. Mas a lesão foi muito pequena e em muitos casos essas coisas se reparam por si mesmas com o tempo.

        Sergei continuou calado.

        — Não deve considerar-se culpado, meu amigo, — disse bondosamente o médico.

        Mas de certo modo ele se considerava.

        Sergei parou o carro no local de estacionamento da clinique e foi diretamente ao quarto da menina. A freira estava mudando a roupa da cama e sorriu para ele.

        — A menina está no jardim com a enfermeira.

        Sergei dirigiu-se para o jardim. A enfermeira estava sentada num banco com o carrinho diante dela e levantou a cabeça à aproximação dele.

        Sergei olhou para a filha. Estava acordada. Olhou-o sem interesse.

        — Como é que ela está hoje?

        — Muito bem. O tempo estava tão bonito e tão quente que resolvi dar-lhe um pouco de ar.

        — Muito bem, — disse Sergei. Acendeu um cigarro e baixou a voz. — Onde esteve ontem à noite? Esperei-a até às nove horas.

        — Não pude sair. A chefe me arranjou serviço até bem tarde. Quando fiquei livre, não havia mais ônibus e eu dormi aqui mesmo.

        Ele a olhou e viu sinais de abatimento no rosto dela.

        — Houve alguma coisa?

        — Não dormi bem. Fui despedida.

        — Despedida? Por quê? Não houve reclamações quanto ao seu trabalho.

        — Houve, sim, — disse ela sem olhar para ele. — A chefe me disse.

        — Disse quem foi que reclamou?

        — Não, ela nunca faria isso. Mas, pela natureza das reclamações, pude fazer uma ideia.

        — Minha mulher?

        Ela fez um sinal afirmativo.

        — Não devia ter feito isso! Ela sabe como você é importante para Anastasia!

        — Mas fez. Era a única pessoa que podia ter agido assim. A queixa não foi sobre o meu trabalho. Foi sobre o meu procedimento.

        — Vou falar com a chefe das enfermeiras, — disse Sergei, levantando-se irritadamente.

        — Não faça isso! — disse ela firmemente. — Isso só serviria para complicar as coisas.

        — Que é que você vai fazer agora? Já tem algum plano?

        — Não. Terei de procurar alguma coisa por aqui mesmo. Não posso voltar para a Inglaterra agora que os alemães ocuparam a França. — Olhou para o céu e disse: — Vou entrar que o tempo está mudando.

        Sergei foi com ela ao quarto e ficou olhando enquanto ela mudava a criança e a colocava no berço. Anastasia ficou muito quie- tinha. Era emocionante a delicadeza com que a enfermeira cuidava da menina. Se Sue Ann pudesse ver quanto a menina precisava dela, talvez as coisas corressem de outro modo.

        — Ela é realmente uma criança muito boazinha, — murmurou a enfermeira.

        Sergei chegou junto do berço e se inclinou.

        — Bom dia, Anastasia.

        A menina olhou um momento para ele e então os olhos brilharam e um sorriso se esboçou nos seus lábios.

        — Ela está sorrindo para mim! Está começando a me conhecer! — exclamou Sergei.

        — Não lhe disse que ela estava melhorando? — disse a enfermeira. — Daqui a alguns meses, nem a conhecerá mais.

        Sergei tornou a olhar para o berço.

        — É seu papai, Anastasia, — disse ele, feliz. — É seu papai, que lhe quer muito bem.

        Mas o sorriso desaparecera e a criança estava de novo com os olhos indiferentes.

 

        De repente, Sue Ann sentiu-se cheia de pena. Pena de Sergei e pena dela. Tudo estava acabado entre eles. De certo modo, estava acabado desde muito tempo. Se, ao menos, ela não tivesse ficado grávida. Ou se não tivesse tido medo de fazer um aborto. Por que não tinha prestado mais atenção à folhinha para não deixar a coisa ficar tão adiantada? Mas não adiantava pensar em tudo o que ela poderia ter feito. Nada disso resolvia mais nada.

        Mas de quem ela tinha mais pena era da menina.

        Gostaria de querer bem àquela criança. Gostaria de cuidar dela, animá-la e brincar com ela, mas quando a via, quando via a sua expressão ausente, não era possível. Havia tentado a princípio. Mas sentia-se mal diante daquele rosto encarquilhado e sem cor, aqueles olhos vazios. Largava em silêncio a criança e a enfermeira a levava.

        Sue Ann deitou a cabeça no sofá e fechou os olhos. Pensou na sua vida. Muito tempo passara desde quando ela era uma menina.

        Seu pai nunca estava em casa. Aparecia às vezes no Natal ou em outras festas, mas a maior parte do tempo estava ausente, tratando dos seus negócios. As lojas estavam sempre em primeiro lugar. Podia ver as tabuletas amarelas e azuis. DALEY PENNY SAVERS. As lojas eram toda a vida de seu pai, como tinham sido a de seu avô.

        A mãe dela tinha sido uma das moças mais bonitas de Atlanta. Muitas vezes, Sue Ann a ouvira manifestar aborrecimento porque a filha saíra ao pai, que era grande e corpulento, em vez de mostrar a beleza de todas as mulheres da família da mãe.

        Aos quatorze anos, Sue Ann era mais alta do que a maioria dos garotos na sua turma no ginásio. Lutava já sem grande sucesso com o problema do peso porque, quanto mais nervosa ficava com o seu excesso de peso, maior era a vontade que sentia de comer. Quando vieram as regras, ela apareceu com uma erupção crônica de espinhas.

        Lembrava-se das lágrimas de frustração que derramava diante do espelho e da sua recusa a aparecer assim na rua ou na escola. Mas a mãe a havia obrigado a ir e ela ainda se lembrava do riso dos colegas ao vê-la com o rosto todo pintado e ainda com os restos das pomadas que havia passado. Ao fim de um certo tempo, começou a odiar os rapazes porque eram cruéis, mas apesar disso sempre sentia uma exaltação estranha quando algum deles lhe dava atenção ou conversava com ela. As suas reações já eram então tão fortes que, por mais que ela tentasse, não conseguia controlar-se. E tinha sempre um medo horrível de que alguém notasse.

        Não se lembrava exatamente de quando ou como principiara a masturbar-se, mas se lembrava do alívio que isso lhe dava e do sossego e da lassidão que a envolviam depois. Era muito agradável ficar na cama de manhã depois de ter feito isso e fechar os olhos, pensando que de repente se havia tornado muito bonita. Um dia, sua mãe entrara no quarto e a surpreendera.

        Podia ver ainda a expressão de espanto e de raiva no rosto de sua mãe quando chegou à porta e a viu estendida nua em cima da cama. Quase antes que ela pudesse parar, a mãe apanhara um cinto de couro em cima da cômoda e começara a surrá-la.

        A primeira chibatada sobre a carne nua queimou-a com uma dor muito estranha. Dera um grito e rolara na cama, tentando esquivar-se às furiosas pancadas. Sentiu a carne empolar-se nas costas, nas nádegas, nas coxas. Sentiu um calor crescer dentro dela e, dentro em pouco, estava gritando e contorcendo-se tomada pelo primeiro orgasmo de verdade que sentira.

        Mas, apesar disso, ainda ouvia os gritos raivosos da mãe enquanto a espancava.

        — Menina suja! Quer que seus filhos nasçam cretinos, quer? Quer ter filhos cretinos?

        E tome, e tome, sempre, sempre, até que as pancadas se confundiram com a dor e com as lágrimas. Cretinos, cretinos, cretinos...

        O único resultado que ela tirara do episódio fora sempre trancar a porta do quarto depois disso. Nada mais interferiu com a atenção que ela dava ao corpo. Continuou assim até o seu primeiro caso sexual, que ocorreu quando ela tinha dezesseis anos. Na realidade, teria acontecido antes se dependesse só dela. Mas a princípio ela não conseguia interessar os rapazes. Depois, quando finalmente o conseguiu, eles se mostraram receosos. Talvez fosse pela reputação da família dela, talvez fosse porque havia neles vestígios do velho cavalheirismo do Sul.

        Aconteceu finalmente dentro de um conversível parado numa estrada escura, depois de um baile da sua turma do ginásio. Quase antes que o rapaz compreendesse o que estava acontecendo, as coisas haviam chegado a tal ponto que não era mais possível recuar. Contudo, no momento final, ele hesitou.

        — Por que foi que parou? — perguntou ela, zangada.

        — Não       sei, Sue Ann. Você acha direito o que estamos fazendo?

        Ela explicou com uma bomba do senso prático.

        — Será que nunca vai se cansar do meu carinho?

        No fim, ela mesma é que teve de fazer quase tudo. Guiou-o para dentro dela. Mas quando ele encontrou a obstrução do hímen, parou de novo.

        — Não posso ir mais, — disse ele.

        Já então, ela estava meio alucinada. A ideia de que havia chegado tão perto e tudo poderia dar em nada enfureceu-a. Cravou as unhas nas nádegas do rapaz.

        — Com mais força, vamos! Empurre!

        O rapaz fez mais um esforço convulsivo e tudo se resolveu. Um instante depois, ele teve o seu orgasmo e começou a tirar.

        — Para onde é que você vai? — perguntou ela.

        — Não quero machucá-la.

        — Mas você não está me machucando.

        — Tem certeza?

        — Claro que tenho. Venha, vamos outra vez. Depressa! Sou eu que quero! Venha! Depressa!

        Quase da noite para o dia, as espinhas desapareceram e ela não teve mais de trancar a porta do quarto. Eram muitos os rapazes e muitos os automóveis e pela primeira vez um mundo novo se abriu diante dela. E a surra que sua mãe lhe dera e as coisas que sua mãe dissera ficaram esquecidas. Mas depois que a menina nascera tudo havia voltado à sua cabeça.

        Parecia estar lutando dentro de um nevoeiro. Abriu os olhos. A luz bem forte ainda lhe caía nos olhos. Estava deitada na mesa na sala de partos. Piscou os olhos para ver se melhorava a visão turva.

        O médico e duas enfermeiras estavam em torno de uma mesa a um canto. Tentou vagamente perceber o que estavam fazendo. De súbito, compreendeu.

        — Meu filho — exclamou, querendo levantar-se, mas sentiu-se presa à mesa.

        O médico olhou para ela por cima do ombro e disse alguma coisa a uma enfermeira, que chegou junto dela.

        — Deite-se e descanse.

        — Há alguma coisa com meu filho?

        — Não há nada. Descanse. Tudo vai bem.

        — Doutor — gritou, tentando levantar-se e contida pela enfermeira. — Que foi que houve com a criança? Está morta?

        O médico se aproximou e disse:

        — Não, a criança está bem. Houve apenas um pequeno contratempo.

        — Que foi?

        — O cordão umbilical estava enrolado em torno da cabeça da criança.

        A enfermeira que estava junto à mesa moveu-se um pouco e ela viu a criança com uma máscara de oxigênio.

        — Que é que estão fazendo?

        — Dando oxigênio à menina. Agora, procure descansar.

        — Por quê?

        — Aplica-se sempre oxigênio nestes casos. Não podemos arriscar-nos, sabe?

        De repente, ela compreendeu.

        — Ela é deformada, não é? Ou então a cabeça? É a primeira coisa que sofre!

        — Nunca se pode dizer em casos assim, — disse o médico, hesitando.

        Ela olhou para ele. Podiam não ter certeza, mas ela tinha. Subiram-lhe do fundo da memória as palavras da mãe. “Quer ter filhos cretinos?”

        Fechou os olhos com um sentimento profundo. A mãe tinha razão. As mães sempre tinham razão.

        — Doutor?

        — Sim?

        — Pode dar um jeito para eu não ter mais filhos?

        — Posso. Mas não acha que deve falar antes com seu marido?

        — Não!

        — Foi apenas um acidente e provavelmente nunca se repetirá. É uma probabilidade em mil. Mas, depois que as suas trompas estiverem ligadas, não será mais possível abri-las. E se quiser outro filho...

        — Tratarei de adotá-lo. Assim, terei ao menos certeza do que vou ter!

        O médico pensou um instante e fez um gesto para a enfermeira. Aplicaram-lhe no rosto a máscara da anestesia e ela respirou profundamente. Sentiu as lágrimas subirem-lhe aos olhos quando os fechou e a sala começou a rodar. Havia uma dor curiosa e ela sentiu que as suas entranhas choravam e que ela também choraria se estivesse acordada.

        Por quê? Por que as mães tinham sempre de ter razão?

 

        Sue Ann virou-se para ele de repente enquanto começavam a levar as malas para o carro.

        — Não quero divórcio.

        Sergei ficou calado.

        — O banco lhe mandará o cheque todos os meses e pagará tudo o que for necessário para a menina.

        — Não é preciso, — disse Sergei, muito sério. — Posso cuidar de minha filha.

        — Mas eu quero.

        Sergei não replicou.

        — Voltarei. Quero apenas passar alguns tempos em casa. Até sentir-me melhor.

        — Está bem.

        Mas ambos sabiam que ela nunca mais voltaria. Assim é que tinha de ser.

        — Tudo é tão diferente aqui — a língua, o povo. Nunca me senti à vontade aqui.

        — Compreendo e acho bastante normal. Todo mundo se sente mais feliz na terra onde nasceu.

        A última mala já fora levada. Ela olhou para ele.

        — Bem, adeus.

        — Adeus, Sue Ann, — disse Sergei, beijando-a à moda francesa, nas duas faces.

        Ela o olhou por um momento e as lágrimas vieram-lhe aos olhos.

        — Perdoe-me, — murmurou ela e saiu correndo, deixando a porta aberta.

        Sergei fechou-a e foi para a sala. Serviu uma dose de uísque e bebeu-o puro. Sentiu o cansaço dominá-lo e se deixou cair numa poltrona. Tinha havido despedidas com outras mulheres, mas aquela era diferente. Nenhuma delas tinha sido Sue Ann. Nenhuma delas tinha sido mulher dele.

        Contudo, não podia dizer que não houvesse esperado aquilo. Desde que ela saíra do hospital e lhe dissera o que tinha feito.

        — Você é uma idiota! — exclamara ele. — Só uma louca faria uma coisa dessas.

        — Não quero mais filhos. Uma como Anastasia é bastante!

        — Os outros talvez não fossem assim!

        — É possível, mas não quis mais me arriscar. Sei o que acontece com as velhas famílias da Europa.

        — Mas isso foi apenas um acidente! Nunca houve uma coisa assim em minha família!

        — Nem na minha! De qualquer maneira, não quero mais filhos!

        Um pesado silêncio caíra entre eles. Ele estava em frente à lareira olhando para o fogo. Ela fora ao lado dele.

        — Amamos um bocado, hem?

        Ele ficara em silêncio e ela, depois de algum tempo, dissera:

        — Acho que vou para a cama.

        Ele nada dissera.

        Ela se encaminhara para a escada e perguntara de lá:

        — Não vem também?

        — Daqui a pouco.

        Ela subiu lentamente a escada. Sergei ficou vendo o fogo consumir os troncos. Quando chegou ao quarto, ela estava na cama à espera dele. Mas não fora a mesma coisa. Nunca mais seria a mesma coisa entre eles. Havia muitas muralhas a separá-los.

        Ela compreendeu isso quase tão depressa quanto ele. De repente todo o desejo que ela sentia de voltar à normalidade desapareceu. Deixou de fazer regime e desistiu da ginástica. Descuidou-se da sua aparência e de dia para dia parecia engordar mais. Um dia, ele sugeriu que não havia mal algum em que ela fosse fazer o cabelo e comprar alguns vestidos novos.

        — Para quê? — perguntou ela. — Nunca vamos a lugar algum.

        Era verdade. A guerra lhes havia limitado os movimentos. As viagens na Europa eram uma coisa do passado. Não podiam mais ir à Riviera para gozar a praia nem a Paris, para divertirem-se. Estavam como que presos numa ilha.

        Pouco a pouco, uma por uma, as pessoas pareciam desaparecer. Colhidos no vórtice do conflito, todos procuravam, assim que podiam, voltar para a sua terra. Dentro em pouco, só havia lá os suíços. E os suíços eram muito chatos. Pareciam interessar-se apenas por dinheiro e o tema principal das conversas era sempre saber quem era dos líderes mundiais que estava depositando mais dinheiro na Suíça.

        Da maneira por que falavam tinha-se a impressão de que os suíços não tinham a menor intenção de devolver o dinheiro. Quando a guerra acabasse, a maioria dos depósitos ficaria por lá porque os depositantes não sobreviveriam e teriam deixado de tomar providências para a transferência dos seus fundos. Esses tomar-se-iam então propriedade dos suíços. Quando os alemães contornaram a Linha Maginot e derrotaram a França, teve-se a impressão de que os suíços estavam certos. Era como se uma cortina houvesse caído sobre a Europa Ocidental.

        Menos de um mês depois, Sergei fora por acaso ao escritório dos banqueiros.

        — Seu pai é coronel do exército alemão? — perguntara Bernstein.

        — Por quê? — perguntou Sergei com curiosidade. Eles sabiam disso tão bem quanto ele.

        — Gostaríamos de entrar em contato com alguns dos nossos clientes e agora não há meio de fazê-lo.

        — Por que não vão procurá-los pessoalmente? — perguntou Sergei. — Ambos são suíços e não devem ter dificuldade alguma.

        — Não podemos fazer isso, — disse prontamente Kastele. — O governo suíço não permitiria. Isso poderia ser considerado pelos alemães um ato de hostilidade.

        Sergei compreendeu sem demora. Os clientes de que falavam, eram judeus.

        — Se seu pai lhe arranjar licença, — disse Kastele, — nós poderíamos conseguir-lhe um passaporte suíço?

        — Neste caso, eu passaria a ser cidadão suíço?

        — É uma coisa que também pode ser conseguida.

        Sergei ficou pensando. Na realidade, ele não era nem francês, nem russo. Era apenas uma das muitas pessoas que tinham ficado a rolar pela Europa depois da guerra anterior. Eram pessoas sem nacionalidade. Reconhecia-se, porém, o direito que tinham de ficar vivendo em algum lugar e quase todos os russos brancos haviam escolhido a França. A cidadania suíça poderia ser-lhe muito útil um dia.

        — Que querem que eu faça?

        — Apenas que procure localizar os nossos clientes e peça instruções a respeito dos seus depósitos.

        — E se eu não os encontrar?

        — Procure apurar se ainda estão vivos. Precisaremos dessa informação para saber o que vamos fazer com, as contas deles.

        Sergei ficou pensando que talvez fosse verdade o que lhe haviam dito. Os depósitos não reclamados eram divididos igualmente entre os banqueiros e o governo suíço. Se assim era, tomava-se bastante compreensível o interesse dos banqueiros.

        — E eu que é que ganharia com isso?

        — Tenho certeza de que poderemos entrar num acordo satisfatório, — disse Bemstein. — Aliás, creio que não tem motivo de queixa de nós.

        Quando Sergei saiu do escritório, havia concordado em escrever para o pai e ver o que seria possível. Passaram alguns meses. A resposta do pai havia finalmente chegado naquela manhã, na manhã do dia em que Sue Ann partiu.

        O pai estava em Paris, alojado num apartamento do mesmo hotel em que fora porteiro. Alguma coisa podia ser conseguida e o pai teria prazer em tornar a vê-lo.

        Sergei acabou de beber o uísque e resolveu aceitar a proposta dos banqueiros. Naquela tarde, iria ao banco informá-los da decisão. Mas antes tinha de fazer uma coisa. Pegou o telefone e deu um número à telefonista.

        Uma voz de mulher atendeu.

        — Peggy? Quem está falando é Sergei.

        — Sim?

        — Sue Ann foi-se embora. Quanto tempo você levará para preparar a menina?

        — Já preparei desde cedo, — disse ela, com um tom de felicidade na voz. — Estava esperando que me telefonasse.

        — Estarei aí dentro de dez minutos.

 

        O único som que se ouvia na Avenue Georg V era o dos seus passos na calçada. Dax olhou pela rua até aos Champs Elysées. Era uma visão a que não estava absolutamente habituado. Paris deserta à meia-noite.

        As ruas estavam vazias. Todos os franceses estavam nos seus apartamentos com as portas trancadas. O restaurante Fouquet, na esquina, estava fechado, bem como os cafés cujas mesas e cadeiras vazias ainda estavam do lado de fora. As lojas, com todas as suas vitrinas cheias de belos artigos para atrair as mulheres, também estavam fechadas. Era Paris no verão de 1940 quando não se viam namorados de braços dados parando para beijarem-se sob os copados castanheiros.

        Acendeu um charuto. No mesmo instante, ouviu passos e voltou-se. Uma mulher saía da sombra de uma porta. Viu-lhe o rosto à luz do fósforo — cansado, magro, faminto.

        — Wohin gehen Sie, mein Herr? — sussurrou ela.

        O seu alemão soava estranho dentro da noite e lhe rolara com dificuldade da língua.

        Sacudiu a cabeça delicadamente e falou com ela em francês, vendo-a voltar para as sombras de onde havia saído. Continuou a caminhar. Até as prostitutas pareciam derrotadas.

        Não tinha sido assim na festa de que ele acabava de sair. Ali as luzes intensas tinham estado todas acesas por trás dos reposteiros pesados. Havia música, risos, champanha e mulheres bonitas. Havia alemães e franceses que os aceitavam. Mas, ao fim de algum tempo, a festa perdera a animação. Os franceses estavam muito ansiosos e os alemães muito condescendentes. O riso era muito forçado. Resolveu sair e correu os olhos em torno à procura de Giselle.

        Achou-a no centro de um grupo de alemães, enquanto o seu gerente francês rondava por perto, olhando-a com relances rápidos e cautelosos. O rostinho belo estava cheio de vida enquanto ela falava com os homens que a cercavam. Giselle era atriz e adorava ter um público.

        Sorriu para si mesmo. Não adiantava convidá-la para sair. Ela estava-se divertindo muito. Saiu calmamente. Telefonaria na manhã seguinte. Teria a voz ainda engrolada de sono para que ele soubesse que tinha dado à criada ordem de acordá-la.

        — Por que saiu sem me chamar? — perguntaria ela em tom de censura.

        — Você estava-se divertindo tanto.

        — Estava nada! Não posso suportá-los. Os alemães são tão pomposos. Mas tinha de fazer aquilo. Georges mandou. É comercial.

        Georges sempre mandava. Georges não gostava de Dax. Dax não podia conseguir filme para as suas câmaras, nem licenças para rodar filmes. Dax só sabia distrair Giselle das suas obrigações. E Giselle era o principal produto de Georges. Sem ela, ele era um produtor igual aos outros.

        — Vem almoçar? — perguntaria ela.

        — Vou fazer o possível.

        — Até já, então, — diria ela na sua voz tonta de sono e Dax iria para a sua mesa, sabendo que ela havia virado para o outro lado na cama para continuar a dormir.

        Já fazia mais de um ano que a conhecia. Encontrara-a na estação da estrada de ferro em Barcelona. Havia uma verdadeira multidão em frente à porta.

        — Que é que está havendo? — perguntou a um amigo, que fazia parte da comissão de compras da Espanha.

        — É a estrela de cinema Giselle d’Arcy. Veio de Hollywood e vai para Paris.

        O nome nada significava para ele, mas quando a viu no centro da multidão reconheceu-a imediatamente. Não podia deixar de conhecê-la. A fotografia dela aparecia em cartazes e nos jornais e revistas do mundo inteiro.

        As fotografias não lhe faziam justiça. Os seios não eram tão grandes quanto pareciam nas fotografias, nem eram os quadris tão redondos ou as pernas tão compridas. E o que as fotografias não mostravam era a sua intensa graça, a alegre vivacidade do seu andar.

        Dax olhou-a e sentiu uma verdadeira dor física alanceá-lo. Já fazia muito tempo que não sentia vontade de mulher. De repente, ficou aceso. Aquela. Só aquela. Tinha de tê-la.

        Ela correu os olhos pela multidão e deu com ele a olhá-la. Desviou automaticamente os olhos, mas logo depois, como se fosse atraída por um ímã, voltou os olhos para ele. Ele não tirou os olhos. Viu-a empalidecer um pouco e então o movimento da multidão afastou-a e ela entrou na estação para tomar o trem. Ele seguiu-a.

        Só depois que o trem havia partido da estação havia meia hora foi que ele começou a procurá-la. Encontrou-a sozinha na cabina, pois Georges havia ido ao lavatório. Ela levantou os olhos da revista que lia e viu-o através do vidro da porta. Olhou-o em silêncio abrir a porta. Ele fechou a porta e ficou de pé, encostado a ela. A respiração era difícil dentro do seu peito.

        — Preciso de você, — disse ele ao fim de alguns segundos.

        — Eu sei, — disse ela. O que ela podia sentir era a sua intensa energia animal, como se ele fosse um barril de pólvora prestes a explodir.

        Ele tomou-lhe a mão que estava um pouco trêmula.

        — Conheço você, — disse ela, num sussurro, — embora nunca nos tenhamos visto.

        — Antes não. Mas agora nos conhecemos. Aqui, agora.

        Quando Georges voltou para a cabina, as cortinas estavam descidas e a porta trancada. Bateu nervosamente na porta.

        — Giselle! Você está bem, Giselle?

        — Vá-se embora!

        Ficou um instante parado. Conhecia aquele tom de voz. Não era a primeira vez que o ouvia. Foi para o bar, pediu alguma coisa e ficou filosoficamente olhando a paisagem. Com quem estaria ela? Em geral, ele sabia com antecedência. Encolheu os ombros e pediu outros pastis. Não se podia ter tudo. De qualquer maneira, estariam em Paris no dia seguinte e tudo então estaria certo. Em Paris, ele podia controlá-la.

        Isso tinha sido havia mais de um ano. Muita coisa acontecera nesse ano. Os alemães dominavam o continente. A França estava esmagada pela pesada bota dos nazistas. Havia um novo governo em Vichy. Georges tentava desesperadamente apegar-se à ilusão da autonomia.

        Mas não era tão fácil assim. Os alemães tinham sempre a última palavra em tudo. Havia sinais de que eles poderiam permitir a produção em alguns estúdios e Georges queria estar entre os primeiros. Cultivou cuidadosamente as pessoas indicadas. Os alemães e os seus colaboracionistas franceses. E eles, como todos, se haviam impressionado com Giselle.

        A única coisa que o afligia era a predileção dela por Dax. Isso havia durado muito mais do que ele esperara. Não compreendia. Dax não podia fazer nada por ela, não dava nada a ela. E ela continuava a vê-lo. Dax nunca falara em casamento e ela o enchia de presentes. Abotoaduras de ouro e brilhantes.

        Georges não podia compreender. Estava tudo às avessas. Em geral, era Giselle quem recebia os presentes e não quem os dava. Era a velha prerrogativa das artistas.

        Uma vez ele a fora procurar com uma proposta de um importante oficial alemão. Giselle tinha rido e o mandara embora.

        — Mas ele pode ajudar-nos.

        — Ajudar a você. Estou feliz como estou.

        — Não quer voltar a trabalhar?

        — Quero, mas tenho a impressão de que não seria direito. Estão começando a falar muito nos colaboracionistas.

        — São uns idiotas! —exclamara Georges. — A guerra acabou e nós fomos derrotados!

        — Ainda há franceses lutando no estrangeiro!

        — Nada. Isso é outra vez como em 1870. Esta é a vez dos alemães. A próxima será nossa.

        Ela o olhara com os olhos azuis muito tristes. Sabia como ele estava ansioso por voltar a fazer cinema. Sem o seu trabalho ele não era nada.

        — Se não ganharmos dessa vez, Georges, não haverá a próxima vez.

        Mas ia às festas e às outras reuniões que ele sugeria. Mas sempre com Dax, nunca com ele sozinho, ou com outro francês ou até com um alemão. Não queria de modo algum ser tida como colaboracionista.

        Uma vez ali, procedia normalmente. Não havia sinais visíveis de que ela não fosse cooperar. Mas recusava todas as propostas por um motivo ou por outro e evitava tudo o que pudesse ter sentido político. A prova de que ela tinha sido discreta era que as pessoas comuns da rua, quando a viam, sorriam e cumprimentavam-na. Não a evitavam, nem lhe davam o tratamento do desprezo e do silêncio que davam a tantos outros. Para eles, ela ainda era uma estrela, estivesse fazendo filmes no momento ou não.

        Uma vez, ela e Dax estavam almoçando no apartamento dela que dava para o Bois de Boulogne, quando ouviram rumores de marcha. Ela foi até à janela e viu os alemães que desfilavam em passo de ganso. Depois de um momento, voltou-se pata Dax.

        — Acha que um dia vão sair daqui?

        — Só sairão forçados.

        — E isso chegará a acontecer?

        Ele não respondeu. Ela se zangou de repente.

        — Você pouco se importa, não é? Você não é francês, é estrangeiro. Além disso, está fazendo negócios com eles. É capaz de fazer negócios com qualquer pessoa!

        — Está errada em dizer que não me importo, Giselle. Tenho amigos que são ao mesmo tempo franceses e judeus. Não gosto do que está acontecendo com eles, mas não posso meter-me nisso. Sou representante do meu governo.

        Ela o olhou surpresa. Era a primeira vez que o ouvia falar sobre a guerra. E havia raiva no fundo da sua voz pausada. Aproximou-se dele arrependida e encostou o rosto no dele.

        — Desculpe, querido. Eu devia ter sabido. Não é fácil para você também.

        — É mais fácil para mim do que para vocês, franceses.

 

        Gato Gordo estava à espera dele quando chegou ao consulado.

        — Uns alemães estão esperando você no escritório.

        — Oh! Quem são eles?

        — Não sei. Dois oficiais.

        — Vou vê-los.

        Gato Gordo parou em frente à porta.

        — Ficarei esperando aqui se houver alguma coisa.

        — E pode haver? — perguntou Dax, com a voz cheia de sarcasmo. — Eles são nossos amigos!

        — Eles não são amigos de ninguém!

        Dax abriu a porta do escritório e entrou. Os dois oficiais se levantaram e estenderam automaticamente as mãos.

        — Heil Hitler!

        — Cavalheiros, — disse Dax, cumprimentando-os e sentando-se à sua mesa, — Não creio que nos conheçamos.

        O mais velho dos dois levantou-se.

        — Permita, Excelência. — Bateu os calcanhares numa saudação militar. — Tenente-Coronel Reiss. Meu assistente, Tenente Kron.

        Dax tirou um charuto da caixa que tinha em cima da mesa e acendeu-o sem oferecer aos alemães.

        — Já é tarde e estou cansado. Gostaria de que tivessem a bondade de dizer o que desejam.

        Os alemães se entreolharam. Era evidente que não estavam habituados a ser recebidos assim. Notando o emblema da SS em suas fardas, Dax sabia por quê. Estavam habituados a provocar medo onde quer que aparecessem. Sorriu intimamente. Precisavam mais dele do que ele deles.

        Não se havia chegado a acordo com os alemães sobre a carne do Corteguay, embora as discussões ainda prosseguissem. Na verdade, iria comparecer a outra reunião no dia seguinte. Sabia que a Espanha mandava para os alemães grande parte dos abastecimentos que recebia do Corteguay. Era um dos preços que Franco tinha de pagar pela ajuda que havia recebido.

        O coronel tirou um papel da túnica e olhou-o, perguntando então num francês muito carregado:

        — Conhece um tal Robert de Coyne?

        — Fomos colegas de escola. É amigo meu.

        — Sabia que ele é judeu? — perguntou o alemão, com a voz cheia de desprezo.

        Dax falou com desprezo igual.

        — Tenho também alguns amigos que são alemães.

        O coronel fez que não havia percebido o sarcasmo.

        — Tem visto recentemente esse seu amigo?

        — Não.

        — Onde esteve esta noite? — perguntou de repente o oficial mais jovem.

        Dax olhou-o e respondeu firmemente:

        — Não é da sua conta!

        — Quero lembrar-lhe, cavalheiro, — disse o coronel, empertigando-se, — de que estamos aqui a serviço do Terceiro Reich!

        — E eu quero lembrar-lhes de que estão na embaixada do Corteguay! Podem retirar-se!

        Como por encanto, a porta atrás deles se abriu. Os oficiais ficaram meio atônitos.

        — Podem retirar-se, cavalheiros!

        — O General Foelder não vai gostar disso! — exclamou o oficial mais moço.

        — E podem dizer ao seu superior, — disse Dax com voz firme, — que quando ele desejar alguma coisa de mim, pode fazê-lo pelos canais diplomáticos habituais. Isso pode ser conseguido por intermédio do Ministério do Exterior do seu país.

        Um momento depois eles saíram, Gato Gordo entrou.

        — Que é que eles queriam?

        Dax sorriu.

        — Você já sabe, por que é que pergunta? A menos que tenha perdido a sua velha perícia em escutar pelo buraco das fechaduras. Ou será que está tão gordo que não pode mais dobrar o corpo?

        — Teve notícia de Robert?

        — Não. Nem dele, nem da irmã, já há algumas semanas.

        Ficou aborrecido de não haver notado isso antes. Ele e Caroline costumavam-se falar pelo telefone ao menos uma vez por semana.

        Estivera com ela algumas vezes e sempre na casa dela. Caroline quase não saía mais de casa. Ele ainda achava que ela devia ter ido com o pai para a América logo que os alemães haviam invadido a França. Mas ela ficara. Era de certo modo parecida com o irmão. Não acreditava na fuga.

        — Vou telefonar para ela, — disse Dax, pegando o telefone. Discou o número. Ninguém atendeu. Deixou o telefone chamar alguns minutos sem resultado.

        Quando desligou o telefone, estava realmente preocupado. Alguém devia ter atendido. Se Caroline não estivesse em casa, havia sempre alguma empregada.

        Olhou para Gato Gordo e disse:

        — Acho que nossos amigos estão em dificuldades.

 

        Caroline estava sentada na borda da cadeira olhando para o telefone que tocava. Um alemão de terno cinza estava sentado diante dela.

        — Por que não atende? — perguntou ele. — Pode ser seu irmão. Talvez esteja correndo algum perigo grave.

        Caroline tirou os olhos do telefone. Era quase um alívio não olhar para ele.

        — Não tenho notícia de meu irmão há meses. Por que iria ele telefonar agora?

        — Já lhe disse, — explicou o alemão pacientemente, — que houve uma tentativa de sabotagem no pátio de cargas da estrada de ferro. É claro que fracassou. Matamos todos os sabotadores, mas houve um que fugiu. Ficou ferido e acreditamos que fosse seu irmão.

        — Que provas tem disso? — replicou Caroline. O telefone parou afinal de tocar e ela quase deu um suspiro de alívio. — A última notícia que tive dele foi de que estava num campo de prisioneiros depois de ter sido capturado na Linha Maginot.

        — Fugiu, já disse que ele fugiu, — exclamou o alemão, pela primeira vez com uma nota de impaciência na voz. — Além disso, um dos sabotadores confessou antes de morrer que o que havia fugido era o seu irmão.

        — Já tenho ouvido falar dessas confissões, — disse Caroline com desprezo.

        — Não obstante, era seu irmão. Está ferido e deve estar em algum ponto de Paris. Talvez não esteja longe daqui, provavelmente perdendo sangue e morrendo. Se o encontrarmos, pode haver uma probabilidade de salvar-lhe a vida.

        — Quem lhe salvará a vida? — perguntou Caroline sarcasticamente. E para quê? Para que seja torturado e depois encostado a um muro e fuzilado?

        — Não somos tão ruins assim. Não acredite em tudo o que a propaganda dos nossos inimigos espalha.

        Caroline não replicou. Apanhou um cigarro na caixa que estava na mesa diante dela. O alemão inclinou-se prontamente e deu-lhe fogo.

        — Por que não procede sensatamente? Não pode deixar de compreender. Você tem um pouco de alemã. Ao menos, sua família veio de lá.

        — Isso aconteceu há quase cem anos. Saímos de lá porque éramos judeus e fomos perseguidos. As coisas não mudaram tanto que pudéssemos esquecer.

        O homem da SS acomodou-se na cadeira.

        — Apesar de tudo o que possa ter sabido, o Terceiro Reich não é irredutível. Quem foi alemão, sempre será alemão. Poderia ser até esquecido que vocês foram judeus.

        — Talvez esquecessem. Mas nós poderíamos esquecer?

        O alemão fechou a cara. Curvou-se e arrancou o cigarro dos lábios dela. Toda a polidez lhe desapareceu da voz.

        — Cadela judia! Se o telefone tocar outra vez, você vai atender, ouviu?

        — E se eu não atender?

        Ele se moveu rapidamente e deu-lhe uma bofetada com as costas da mão. Ela caiu de lado da cadeira para o chão e ficou olhando para ele. Ele se levantou e ficou olhando para ela, a tremer de raiva.

        — Se não atender, vai depois arrepender-se amargamente!

        Robert encolheu-se no portal do outro lado da rua, apertando com a mão o ombro onde levara o tiro. Sentia o sangue quente correr-lhe por entre os dedos. Olhou para a casa.

        Estava quase amanhecendo e havia ainda uma réstea de luz por trás dos pesados reposteiros da biblioteca. O carro alemão com os dois soldados estava estacionado diante da casa.

        De repente, a porta da casa se abriu e os dois soldados saltaram do carro, ficando em posição de sentido. Caroline e um homem à paisana saíram da casa. Um dos soldados abriu a porta e Caroline entrou no carro enquanto o homem falava rapidamente com o soldado.

        Robert ouviu-lhe o rápido “jawohl”. Depois, o homem entrou no carro ao lado de Caroline e fechou a porta. O motorista deu a partida. O soldado que havia ficado olhou um momento o veículo que se afastava e, depois, entrou na casa.

        Robert esperou que a porta se fechasse para sair do seu esconderijo. Mas ficou indeciso no meio da rua. No momento, o fato de Caroline estar presa era mais importante do que o seu ferimento. Ninguém precisava dizer-lhe o que os alemães faziam com os seus prisioneiros. Um frio tremor o envolveu. Era preciso fazer alguma coisa para livrá-la.

        Chegou a pensar em entregar-se em troca da liberdade dela, mas sabia que isso não iria adiantar nada. Ambos ficariam então em poder dos nazistas. Sentiu uma dor aguda no ombro. Um movimento brusco fizera o ferimento sangrar de novo e ele se sentia fraco e a ponto de ceder às lágrimas e ao desespero. Ouviu então na rua um pesado tropel de passos.

        Não esperou para ver quem era. Conhecia muito bem a cadência do passo de ganso. Entrou por um beco e escondeu-se num portal escuro. Ali ficou encolhido e tremendo. Só moveu a cabeça depois que o som dos passos se desvaneceu por completo.

        Depois disso, moveu-se quase a esmo pelas ruas desertas. Não tinha para onde ir. Todos os outros estavam mortos e quando voltara para o esconderijo havia nazistas por todos os lados. Começou a sentir-se fraco, quase tonto com a perda de sangue. Se não fosse logo socorrido, não teria mais de esconder-se dos alemães. Estes o encontrariam estendido no meio da rua.

 

        A voz da mulher pelo telefone era cautelosa e reservada.

        — Monsieur Xenos, quem fala é Madame Blanchette. Lembra-se?

        — Claro que sim.

        Desde a primeira noite que passara em Paris, Dax quase todos os dias havia passado diante da casa dela.

        — Como vai, Madame Blanchette?

        — Muito bem. Mas estou um pouco triste. Ainda não nos veio fazer uma visita desde que voltou.

        Dax não compreendeu. Nunca fora cliente de Madame Blanchette. Mas logo se lembrou de que o barão tinha sido.

        — Desculpe, Madame, mas tenho andado muito ocupado.

        — Um homem nunca deve viver tão ocupado que não possa divertir-se de vez em quando. Quando a pessoa se diverte         um pouco sempre volta ao trabalho com maior disposição.

        Dax riu.

        — Torno a pedir-lhe desculpas, Madame.

        — Tomei a liberdade de telefonar-lhe na esperança de que possa vir aqui esta noite. Vou dar uma soirée muito especial. Pode ser muito divertido e eu tenho quase certeza de que vai gostar muito.

        Dax olhou para a folhinha em cima da mesa.

        — Acontece que tenho outro compromisso...

        — Seria uma decepção para todos se não viesse, Monsieur Xenos. De certo modo, a soirée foi planejada por sua causa.

        Parecia haver uma estranha insistência na voz da mulher.

        — Está bem, irei. Mas só vou poder chegar um pouco tarde.

        — A que horas?

        — À uma da manhã.

        Sentiu um tom de alívio na voz dela.

        — Será perfeito. Não acontecerá muita coisa antes dessa hora.

        Quando Dax desligou, Gato Gordo apareceu.

        — Então? Que foi que descobriu?

        —• Ela não está mesmo em casa. Nenhuma das empregadas quis falar. Havia dois alemães dentro da casa.

        — Perguntou na vizinhança?

        — Perguntei, mas foi a mesma coisa. Ninguém sabe ou não tem coragem de falar.

        — Dax pensou um momento. Acabo de receber um telefonema curioso de Madame Blanchette, da pensão mais embaixo, aqui nesta rua. Ela era amiga do barão. Será que Caroline está escondida lá? Madame Blanchette parecia muito interessada em que eu aparecesse por lá hoje.

        O telefone tocou de novo e, quando Dax atendeu, ouviu a voz de Giselle, como sempre àquelas horas cheia de sono.

        —Bom dia, querido. Por que saiu e me deixou sozinha naquela horrível festa de ontem?

        — Você parecia tão contente, — disse Dax, olhando para o relógio. Era quase meio-dia.

        — Ora, querido, era porque eu estava com você.

        — E com mais seis homens. Eu não podia nem me aproximar de você.

        — Mas estou sozinha agora. Por que não vem almoçar?

        Dax podia quase vê-lá estendida na grande cama, com os seios levantados contra a décolletage da camisola, enquanto falava ao telefone deitada de bruços.

        — Eu bem que gostaria, mas não posso.

        — Oh, querido, que decepção para mim!

        Ele riu com a evidente insinceridade da sua voz. Era muito boa atriz, mas nem sempre conseguia dar à voz a expressão exata que desejava.

        — Não, não fique decepcionada. Vá dormir outra vez, que é isso mesmo o que você quer.

        Ela riu, um riso quente e bom.

        — Feio... Então, venha jantar, sim?

        — Está bem, mas terei de sair à meia-noite. Tenho outro compromisso.

        — À meia-noite?

        — Sim.

        — Então é outra mulher! — disse ela com uma ponta de ciúme, que não era mais representação.

        — Claro que não! Como poderia eu conhecer outra mulher se você não me dá tempo para isso?

        — Você não terá forças para querer outra mulher quando me deixar esta noite!

        — É uma ameaça ou uma promessa?

        — Não brinque comigo. Sou uma mulher muito ciumenta.

        — Melhor. Assim é que eu gosto.

 

        Sergei estava em frente ao Hotel Royale Palace. Havia em tudo um aspecto curiosamente fanado desde que os alemães o haviam ocupado. Entrou e viu que a tinta das paredes estava descascando no vestíbulo e na portaria.

        O cabo olhou respeitosamente para as roupas caras de Sergei.

        — Ja, mein Herr?

        — Quero falar com o Coronel Conde Nikovitch.

        — Tem hora marcada? O coronel está muito ocupado.

        — Ele me receberá. Diga que o filho dele está aqui.

        O soldado pegou o telefone e um momento depois Sergei foi escoltado até um escritório no segundo andar. Parou um instante diante da porta com o nome de seu pai e abriu a porta. Quase imediatamente foi apertado num forte abraço pelo conde, que correra ao seu encontro.

        — Sergei, Sergei, — exclamava ele, com as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto.

        Sergei olhou para o pai. O rosto estava mais enrugado e os cabelos, outrora inteiramente pretos, mostravam mechas grisalhas.

        — Como vai, Papai?

        — Estou bem agora, — disse o pai na sua voz forte. Foi até à sua mesa e acendeu um comprido cigarro russo. — Você está com muito bom aspecto. Como vai sua mulher?

        — Voltou para os Estados Unidos.

        — E levou Anastasia?

        — Não. Anastasia ficou comigo.

        — Como está a menina?

        — Tem algumas melhoras. Mas isso é coisa demorada.

        — Sua mulher vai voltar?

        — Acho que não.

        Um silêncio um tanto desagradável caiu entre eles.

        — O seu escritório é bom.

        — Meu lugar não é aqui, — disse mal-humoradamente o pai.

        — Mas o Estado-Maior acha que eu conheço muito bem Paris e aqui é que estou.

        Sergei riu.

        — E você saiu de Paris pensando que os alemães iam mandá-lo para a Rússia!

        O pai não sorriu.

        — Todos os exércitos são a mesma coisa. Mas nós ainda invadiremos a Rússia.

        — Mas a Alemanha tem um pacto de não-agressão com a Rússia.

        O conde baixou a voz.

        — Der Fuhrer já fez muitos pactos. Não respeitou nenhum. É muito inteligente para abrir outra frente e ter uma guerra em duas frentes. Mas, depois de liquidarmos o caso da Inglaterra, você vai ver.

        — Acredita mesmo nisso, meu pai?

        — Escute, Sergei. Um homem tem de acreditar em alguma coisa. Quando saí da Rússia, não tinha mais em que acreditar. Todo o nosso mundo havia desaparecido da noite para o dia, arrasado pelos pés imundos dos bolchevistas!

        — O que faz pensar que Hitler permitirá que esse mundo volte a existir? Acha que ele vai querer outro mundo que não seja o seu? Não creio, Papai. Ele já dispõe de maior poder do que qualquer czar. Por que iria cedê-lo a alguém?

        O pai permaneceu algum tempo em silêncio e foi ficar ao lado de Sergei, que tinha ido até à janela.

        — Quando eu era garoto, Sergei, seu avô costumava trazer-me uma vez por ano a Paris. Ele dizia que isso era essencial para todo jovem nobre. Era em Paris que se aprendia a viver. Lembro-me de como ficávamos numa janela deste mesmo hotel olhando para a rua, vendo as lindas cocottes e as elegantes carruagens. E que festas à noite!

        Ficou um instante em silêncio e continuou:

        — Quando cheguei aqui depois da Revolução, o proprietário do hotel, que tinha sido muito amigo de meu pai, teve a bondade de me dar um emprego como porteiro. De vez em quando parava e conversava comigo sobre os velhos e bons tempos. Às vezes, eu olhava para as janelas e ficava pensando se algum dia eu ainda seria hóspede do hotel, em vez de ficar lá fora à chuva e à neve. Agora, tudo mudou de novo e eu aqui estou.

        — Mas tudo está diferente...

        — Como assim?

        — Onde está o povo, as belas cocottes, o riso, a alegria? Isto aqui não é mais Paris. Mesmo aqui dentro não é mais a mesma coisa. Isto aqui era um belo apartamento e veja o estado em que se acha. E o proprietário? Que foi que houve com ele? Era judeu?

        — Não sei, — disse o pai, sentando-se. — Sou soldado e não político. Não me meto em coisas que não me dizem respeito.

        — Mas ele foi bom e o ajudou quando você precisou de ajuda.

        — Desde quando você está tão interessado pela sorte dos judeus?

        — Não estou. Só o que me interessa é a sorte de Paris. O riso desapareceu do mundo. Talvez os judeus tenham levado a alegria com eles.

        — Que foi que veio fazer aqui?

        — Vim a negócios. Represento o Crédit Suisse. Estou tentando entrar em contato com alguns clientes do banco.

        — Judeus?

        — Alguns deles são.

        O conde ficou em silêncio. Falou afinal com voz pesada.

        — E eu devia ter adivinhado. Pela primeira vez na vida, você consegue uma ocupação decente e vai-se meter com quem não deve.

        Caroline estava com frio. Nunca sentirá tanto frio em sua vida. Foi até à porta da pequena cela e bateu nas grades. A guarda que estava do outro lado do corredor olhou para ela.

        — Quando vão devolver as minhas roupas? Estou gelada.

        A mulher olhou-a com ar estúpido e Caroline percebeu que ela não devia entender francês. Repetiu com dificuldade a pergunta em alemão.

        — Ich weiss nichts.

        Ouviram-se passos no corredor e a guarda levantou-se e perfilou-se. Ouviu-se então a voz de um homem cujo rosto Caroline não pôde ver.

        — Der Fräulein Caroline de Coyne?

        — Drei und zwanzig.

        A guarda chegou à cela e abriu a porta de aço. Caroline enco- lhou-se num canto do cubículo e a guarda afastou-se para deixar um homem entrar.

        Ele teve de baixar a cabeça para passar pela pequena porta. Depois, fechou a porta com o pé. Um sorriso lhe apareceu nos lábios quando viu Caroline cobrir a nudez com as mãos.

        — Não se sinta confusa, — disse ele em francês. — Pense em mim como se eu fosse o seu médico.

        — Quem é você?

        Ele tornou a sorrir, parecendo gostar da ponta de medo que havia na voz de Caroline.

        — Ou talvez fosse melhor considerar-me um padre, — continuou ele com voz suave. — De certo modo, sou seu confessor. Deve confiar-me todos os seus segredos, todas as pequenas coisas que não diz a ninguém.

        Caroline sentiu um tremor pelo corpo todo. Mas não era apenas de frio. Era principalmente de medo.

        — Não tenho segredos, — disse ela com voz fraca. — Só disse a verdade. Nada sei sobre meu irmão.

        Ele sacudiu a cabeça, como se não acreditasse.

        — Por favor, acredite! — Ela se olhou e a humilhação da sua nudez a fez chorar. Jogou-se no chão, cobrindo o rosto com as mãos.

        — Meu Deus! Que é que eu posso fazer para que acredite em mim?

        Por entre os dedos viu os sapatos do homem aproximarem-se. A voz veio diretamente de cima dela.

        — Diga-me a verdade.

        — Mas estou dizendo a...

        As palavras lhe morreram na garganta quando viu. O homem estava com a braguilha aberta à sua frente. A mão do homem agarrou-a brutalmente pelos cabelos e puxou o rosto dela.

        — Beije, — disse ele com voz fria, tranquila, quase desinteressada. — Beije e jure que não está mentindo. Vamos, cadela judia. Beije. Não lhe fará mal nenhum. Isso não é carne de porco.

 

        — Você está muito misterioso — disse Giselle, quando Dax se levantou da mesa. — Aonde é que você vai?

        Ele se virou do espelho onde estava ajeitando a gravata e disse:

        — Você talvez não acredite, mas vou ver uma velha amizade.

        — Uma velha amizade? A estas horas da noite? Onde? Só os bordéis ainda estão abertos.

        — Acertou.

        — Num bordel? E acha que vou acreditar nisso?

        — Não lhe disse que você não ia acreditar?

        — E você vai encontrar-se num bordel com um velho amigo e apenas para falar com ele?

        — Não é amigo. É amiga.

        — Se eu soubesse que era verdade, seria capaz de matá-lo!

        Foi até à mesa e beijou-lhe o rosto. Tentou beijar-lhe a boca, mas ela afastou-a. Ele riu.

        — Sabe que o ciúme lhe assenta muito bem? Fica ainda mais bonita.

        — Pode ir! Vá para a casa das suas mulheres! Só espero é que pegue uma doença!

        Ele foi até à porta e abriu-a. A voz dela o fez parar.

        — Depois que acabar, voltará?

        — Posso demorar. Posso até ficar o resto da noite.

        — Não faz mal. Seja a que hora for, mas não vá para casa. Venha para cá.

        Ele a olhou por um momento e fez sinal que sim.

        — E tenha cuidado, sim, Dax?

        — Terei, sim — disse ele, sorrindo.

        Desceu e a sonolenta concierge abriu-lhe a porta. Gato Gordo o esperava à porta.

        — Que é que está fazendo aqui?

        Gato Gordo riu.

        — Acha que eu ia deixá-lo ir à casa de Madame Blanchette sozinho? Ela sempre teve em casa as mais belas mulheres de Paris e não é sempre que meu dinheiro dá para isso!

        Madame Blanchette foi recebê-los depois que a empregada abriu a porta e lhes tomou os chapéus e os sobretudos.

        — Que bom que tivesse vindo, Monsieur Xenos! Há quanto tempo!

        — É verdade, Madame Blanchette.

        — Venha comigo para a grande salle — disse ela, tomando-lhe o braço. — Temos uma reunião muito especial esta noite. Vai ver o que tem perdido em não aparecer. — Baixou a voz e murmurou: — Depois, irá ficar com a asiática. Não há outra. — Falou de novo com voz normal. — Está com muito bom aspecto.

        Dax sorriu.

        — E está mais bonita, Madame, do que quando a conheci na minha primeira noite em Paris.

        — Ah! E eu que não sabia que era também um galant!

        Entraram na grande salle. Três homens jogavam num canto. Espalhados pela sala havia pequenos grupos de sofá, mesa e poltronas. Cada qual formava um pequeno núcleo, dando uma impressão de intimidade.

        A conversação como que parou por um momento e Dax sentiu que muitos olhos se voltavam para ele. De vinte e tantos homens que estavam na sala, Dax calculou que quinze fossem alemães, embora nenhum deles estivesse fardado. As conversas recomeçaram quando Madame Blanchette o levou para um pequeno sofá quase no centro do salão. Um garçom veio servir-lhe champanha.

        — A votre santé, Madame — disse Dax.

        — Merci, Monsieur. À la votre.

        Beberam. Dax disse em voz baixa:

        — Há muitos alemães aqui, embora sem uniforme.

        — Não permito uniformes. C’est une maison de plaisir. A guerra tem de ficar lá do lado de fora.

        Dax levantou-se quando uma pequena se aproximou. Era delicada e tinha surpreendentes olhos verdes num rosto de feitio levemente javanês. Longos cabelos negros emolduravam-lhe o marfim dourado do rosto.

        — Mademoiselle Denisonde. Monsieur Xenos.

        A pequena estendeu a mão que Dax beijou. Em seguida, ela se sentou ao lado dele no sofá. Nesse momento, Madame Blanchette bateu palmas e as luzes diminuíram até apagarem-se por completo. Durante um momento, tudo ficou em escuridão, mas depois o grande lustre do centro do salão se acendeu.

        Viram-se então no centro do tablado de danças dois homens e três mulheres nus e imóveis num quadro em que braços e pernas se misturavam bizarramente. A princípio, Dax teve consciência apenas da beleza dos corpos esbeltos, mas depois viu que todos estavam tendo contato sexual. Nenhum deles estava sem um par. Do canto, elevou-se a batida de um tambor, acompanhada do pizzicato de um violoncelo. O ritmo das batidas foi-se acelerando enquanto os atores representavam o seu quadro no centro do salão.

        Ainda que sem querer, Dax olhou fascinado. Não importava que a paixão representada fosse real ou simulada. A pura sexualidade do ato era uma das coisas mais excitantes que já tinha visto. A mão da pequena procurou-o, mas ele quase não teve consciência do contato. O seu interesse se concentrava no que se estava desenrolando no centro do salão.

        Quando a excitação se ia tornando quase insuportável, a sala mergulhou de repente na escuridão. Houve um momento de completo silêncio. De repente, a pequena afastou a mão, pois as luzes voltaram a acender-se. Dax piscou os olhos.

        Em todo o salão, os homens estavam fazendo a mesma coisa. Voltavam todos de um mundo secreto próprio. Evitaram os olhares uns dos outros até que tivessem readquirido o controle emocional.

        — Cavalheiros — disse Madame Blanchette, levantando-se. — Espero que tenham gostado do nosso pequeno número. — Esperou sorrindo que os aplausos terminassem e disse: — Vou deixá-los agora entregues aos seus prazeres.

        E, como uma rainha que deixasse os seus súditos, retirou-se do salão.

        Dax voltou-se para a pequena.

        — Agora?

        Ela fez um sinal afirmativo.

        Levantou-se e ia saindo com a pequena quando uma voz o fez parar.

        — Herr Xenos?

        Dax virou-se.

        — General Foelder.

        O general sorriu.

        — Não sabia que conhecia isto aqui.

        — Como podia deixar de conhecer? — disse Dax, sorrindo também. — O consulado fica nesta mesma rua. Há anos que conheço Madame Blanchette.

        — Venha tomar alguma coisa conosco.

        — Não, muito obrigado. Fica para outra ocasião.

        — Ah, vocês sul-americanos têm o sangue quente. Não podem esperar.

        Dax nada disse.

        — Não é que eu o censure. Esses franceses decadentes sabem despertar a nossa sensualidade, não acha?

        Dax bateu com a cabeça.

        — A propósito, — continuou o General Foelder — aceite as minhas desculpas por qualquer aborrecimento que os meus homens possam ter-lhe causado. Excesso de zelo, compreende? Repreendi-os severamente.

        — Sabia disso, General. Foi por isso que não me dei ao trabalho de telefonar-lhe. Sei como é ocupado e não quis importuná-lo.

        — O caso está resolvido — disse o general. Em seguida, olhou para a asiática. — Está com um tipo bem interessante. Deve ser nova aqui. — Voltou-se para o seu ajudante-de-ordens e disse como se a pequena não existisse: — Providencie um encontro para mim. Sabe como admiro o exótico.

        Voltou-se de novo para Dax.

        — Estou com inveja, sabe? Mas não quero tomar-lhe mais tempo.

        — Auf wiedersehn, General.

        Saíram do salão e encontraram Madame Blanchette no corredor, indignada.

        — Nazista imundo! Os decadentes franceses! Pois sim! Antes de chegarem os alemães, nunca fiz desses circos em minha casa!

        — Por que então mantém a casa aberta? — perguntou Dax. — Tenho certeza de que não precisa de mais dinheiro.

        Madame Blanchette encolheu os ombros.

        — Quando uma casa como esta se fecha, nunca mais se reabre. Os alemães não ficarão aqui para sempre. E, quando saírem, retomarei a nossa vida normal.

        Dax subiu com a pequena para o segundo andar. Ela parou diante de uma porta e pegou uma chave. Com um rápido olhar para ver se não havia ninguém mais no corredor, abriu rapidamente a porta e fez Dax entrar. Só depois que trancou a porta foi que acendeu a luz.

        Dax olhou para o quarto. Era luxuosamente mobiliado e havia uma cama antiga com as cortinas cerradas em cima de um estrado. Dax abriu as cortinas e viu que a cama estava vazia. Olhou para a pequena e ela disse:

        — Não. Venha comigo.

        Levou-o para dentro de um armário embutido. No estreito espaço, ele pôde sentir-lhe o perfume e o calor do corpo. Viu que os dedos dela corriam pela parede. De repente, o fundo do armário correu e ele se viu num pequeno quarto sem janelas. A parede do armário se fechou atrás deles e ela acendeu uma lâmpada.

        Dax viu logo um homem deitado numa estreita cama.

        — Denisonde?

        Dax correu para junto da cama e ajoelhou-se ao lado do amigo.

        — Robert!

        Robert agitou-se na cama e gemeu. Dax notou o ferimento no ombro.

        — Que aconteceu? — perguntou à pequena. — Como foi que ele veio parar aqui?

        — Fomos amantes em outros tempos, agora somos amigos. Ele não tinha outro lugar para onde ir.

        Ao ouvir-lhe a voz, Robert abriu os olhos.

        — Denisonde, vá falar com Dax. Temos de salvar Caroline!

        — Estou aqui, Robert.

        Robert voltou o rosto e Dax viu que ele estava delirando de febre.

        — Sou eu, Dax.

        Era como se Robert não visse, nem ouvisse. Gemeu de novo.

        — Vi quando levaram Caroline. Vá falar com Dax, Denisonde!

 

        — Tomaremos conta dele, — disse Madame Blanchette. — É com Mademoiselle que deve preocupar-se.

        — Mas Robert precisa de um médico.

        O médico virá vê-lo amanhã de manhã quando vier examinar as pequenas. Ele ficará bom. E, logo que ficar curado, nós o mandaremos para a Inglaterra.

        Dax olhou para ela, para Gato Gordo e para a pequena ajoelhada ao lado da cama. Quase não havia espaço para mover-se dentro do pequeno quarto.

        — Acho melhor sairmos.

        Madame Blanchette bateu com a cabeça e saiu, passando pelo armário para o outro quarto, seguida de Dax e de Gato Gordo. Logo que ela fechou a porta, Dax disse:

        — Devo-lhe desculpas. Madame.

        Madamé Blanchette riu.

        — E agora a respeito de Caroline... Mademoiselle de Coyne. Sabe de alguma coisa que possa ajudar-me?

        — Sabemos de algumas coisas, embora seja difícil dizer se isso ajudará ou não. Ela foi presa pelo pessoal do General Foelder, de modo que deve estar no quartel-general dele.

        — Mas o quartel-general dele fica no Hotel Royale Palace.

        — Instalaram no porão uma prisão de segurança. Pode ser que a encontre lá, mas, se estiver, só poderá chegar a ela pelo hotel mesmo.

        — Há outros lugares onde ela poderia estar?

        — Poderia estar na prisão da polícia secreta, embora eu tenha minhas dúvidas. Himmler e Foelder não se toleram, mas em Paris tudo está sob o comando de Foelder. Talvez amanhã possamos ter certeza. O general vai passar a noite aqui.

        — Não podemos esperar tanto — disse Dax. — Falei com o general à saída da grande salle. Ele me disse que o caso estava encerrado. Desde que sabemos que ele não tem Robert, deve ser Caroline que está presa.

        — Parece lógico, monsieur.

        — Deve haver algum meio de sabermos com certeza.

        — Ah, espere — disse de repente Gato Gordo. — Esqueci-me de lhe dizer. Esta noite, bem cedo, seu amigo Sergei telefonou do escritório do pai. Disse que telefonaria de novo amanhã.

        O pai de Sergei tinha um escritório no Royale Palace, pensou Dax. Devia saber de Caroline e, ainda que não quisesse falar com Dax, falaria decerto com Sergei. Mas Sergei estaria disposto a ajudá-lo?

 

        Sergei olhou para Dax.

        — Você está muito mudado.

        — E você também, Sergei. Só os mortos não mudam.

        Tirou um charuto e ofereceu-o a Sergei, que recusou.

        — Senti muito o que soube de Sue Ann.

        — Como soube? — perguntou Sergei, surpreso.

        — Um amigo meu encontrou-se com ela em Lisboa. Estava de volta para os Estados Unidos.

        — É verdade.

        — Sentiu muito, Sergei?

        — A bem dizer, não. Já esperava por isso. Ao menos, desde que a menina nasceu.

        — A menina deve ter ficado com você. Meu amigo não falou numa menina.

        Sergei sorriu tristemente.

        — A menina é retardada. Sue Ann achou que a culpa era minha e assim... Mas com o tempo a menina ficará boa.

        — Talvez tenha sido melhor assim. Não terão de ver-se e torturar-se mutuamente todos os dias.

        — E você? Soube que ia casar com a filha do Presidente do Corteguay. Agora, fala-se muito de você e Giselle d’Arcy.

        — Fala-se — disse Dax, rindo. — O povo tem de ter sempre alguma coisa de que falar.

        — É verdade. Mas você não me chamou aqui só para conversar sobre essas coisas.

        — De fato. Vou dizer-lhe tudo da maneira mais simples possível. Tudo indica que os alemães prenderam Caroline de Coyne anteontem. Suspeito de que ela esteja presa no porão do Royale Palace. Quero tirá-la de lá.

        Sergei deu um assobio.

        — Não é pouco o que você quer. Que é que você quer que eu faça?

        Dax respirou. O simples fato de que o amigo não se tivesse negado de saída já era uma segurança.

        — Seu pai tem escritório no mesmo hotel. Deve saber onde ela está. Exatamente. E o que eu devo fazer para tirá-la.

        — E se meu pai não souber ou não me quiser dizer?

        — Teremos então de achar outro meio.

        Sergei pensou um instante.

        — Está bem. Vou ver o que posso fazer.

        — Obrigado.

        — Não me agradeça — disse Sergei, levantando-se. — Os De Coynes são meus amigos também.

        Duas horas depois, estava de volta ao escritório de Dax.

        — Por que não me disse que ela esta sob suspeita de pertencer, juntamente com Robert, a uma quadrilha de sabotadores?

        — Porque não sabia.

        — É um assunto muito sério.

        — Já conseguiram alguma prova?

        — Não. Ainda estão interrogando.

        — Então está tudo perdido. Uma semana de interrogatório como eles sabem fazer e Caroline confessará até que foi ela quem incendiou o Reichstag. Decerto seu pai não lhe disse onde ela esta.

        — Meu pai me disse exatamente onde ela está. Informou-se também quem está encarregado do caso dela e me indicou a única maneira pela qual podemos tirá-la de lá.

        — Não compreendo, Sergei. Por que seu pai fez isso?

        — Sabe quem era o proprietário do Royale Palace? O Barão de Coyne. Foi ele o único homem em Paris que deu um emprego a meu pai quando ele veio da Rússia.

        Dax ficou em silêncio por um momento. Perguntou então:

        — E como vamos tirá-la de lá?

        É muito simples, meu velho. Você é a chave de tudo.

        — Eu?

        Sim. Os alemães estão ansiosos por fechar o contrato da carne com você. Todos receberam ordem para tratá-lo nas palmas das mãos.

        — Ainda não compreendo.

        Sergei tirou um envelope do bolso e colocou-o em cima da mesa.

        — Nesse envelope, há quatro passes para visitar Caroline. Basta você ir até lá com um padre e duas testemunhas. Case-se com ela e vá depois ao escritório de meu pai pedir a libertação de sua esposa. Ele assinará a ordem de soltura.

        — E o General Foelder? Ele não terá de aprovar isso?

        — O General Foelder partiu para Berlim hoje de manhã. Houve alguma coisa com Himmler e ele foi resolver a situação. Até à volta dele, o comandante é meu pai.

        — Preciso de duas testemunhas — disse Dax. — Uma pode ser Gato Gordo. E a outra?

        Sergei levantou-se prontamente.

        — Nem olhe para mim. Deve saber que não é possível.

        Claro que Dax sabia. Sergei não podia ser por causa do pai. Seria uma coisa muito suspeita.

        — Você não terá dificuldades em encontrar alguém — disse Sergei. — Você sabe como os franceses adoram casamentos. E por falar nisso, posso ser o primeiro a dar-lhe os parabéns?

 

        — Você pode é ir para o inferno! — gritou Giselle. — Que espécie de homem é você? Como é que tem coragem de vir-me pedir que seja testemunha do seu casamento? Acha que não tenho sentimentos?

        — Se eu pensasse assim, não viria pedir-lhe nada. Mas você é a única pessoa a quem me atrevo a       sugerir isso.

        — Grande! E você gostaria se         eu o convidasse para ser testemunha do meu casamento?

        — Claro que não gostaria. Mas         não é isso que lhe estou pedindo. Estou pedindo é que me ajude a salvar a vida de uma pobre moça.

        — E que é que me interessa a vida dela? Que representa ela para mim? Não a conheço!

        — Ela é francesa. E é prisioneira dos alemães. Não é uma razão suficiente?

        Giselle não respondeu.

        — Ou Georges conseguiu afinal que você ficasse do lado deles?

        — Eu amo você, Dax. Sabia disso?

        Ele bateu com a cabeça.

        — Nunca pensou que eu queria casar-me com você, Dax? Por que nunca me falou nisso?

        — Não sei. Sempre me pareceu que havia muito tempo para isso. Agora, estou arrependido de não ter feito isso.

        As lágrimas brotaram dos olhos dela.

        — Está sendo sincero, Dax?

        — Nunca menti para você e não iria começar agora.

        Ela abraçou-o em prantos.

        — Dax, Dax! Que vai ser de nós agora?

        — Quando tudo isso estiver acabado, voltaremos a ser o que éramos dantes — disse ele, afagando-lhe os cabelos.

        — Não, Dax. Quando se volta as coisas não são mais as mesmas.

        Levantara-se quando a guarda abriu a porta e fez Caroline entrar na pequena sala.

        — Têm quinze minutos — disse ela em alemão e saiu fechando a porta.

        Caroline ficou ali tremendo sem olhar para eles.

        — Não sei de nada! — exclamou ela. — Não estou mentindo. Por favor, não me maltratem mais!

        Dax olhou para os outros. Gato Gordo e o padre estavam olhando para (Caroline, mas Giselle estava olhando para ele. Estendeu a mão, mas ela recuou.

        — Caroline, sou eu. Dax. Não vou maltratá-la.

        Ela sacudiu a cabeça violentamente, piscando os olhos para ver melhor.

        — Não acredito. É algum truque!

        Começou a chorar, mas Dax segurou-a gentilmente pelos ombros.

        — Não é truque, Caroline.

        Estava desolado com a aparência dela. Havia manchas empoladas pretas e azuis no rosto e o vestido caía frouxamente sobre o corpo emaciado. Dax viu que o colo estava sulcado de vergões vermelhos. Sem poder falar, abraçou-a. Ela escondeu o rosto no ombro dele, ainda soluçando. Dax quis levantar-lhe o rosto, mas ela não deixou.

        — Não olhe para mim! — disse ela com voz entrecortada. — Fizeram coisas tão terríveis comigo que ainda sinto a sujeira no rosto!

        — Vim casar-me com você, Caroline — disse ele, delicadamente. — É a única maneira de tirá-la daqui. Compreende?

        — Não posso casar com você — disse ela com a voz abafada de encontro ao paletó dele. — Depois do que eles fizeram, depois do que me obrigaram a fazer, não é possível...

        — Isso não tem importância. Nada tem importância. Ouça-me.

        — Não! — Ela se soltou dos braços dele e correu para a porta fechada, onde ficou encolhida e com o rosto escondido. — Você não ia me querer se soubesse o que eles fizeram! Não ia me querer se soubesse o que fiz para que eles parassem de me maltratar! Eles me fizeram...

        — Pare com isso — gritou de repente Giselle.

        A voz de Caroline morreu na garganta. Levantou o rosto pela primeira vez. Giselle atravessou a pequena sala.

        — Não fique assim com tanta pena de si mesma! Você está viva e isso é o que interessa! — Segurou Caroline pelos ombros e impeliu-a de novo para onde estava Dax. — Cale a boca e faça o que ele está dizendo antes que nos matem a todos!

        Em seguida, voltou-se para o padre e disse:

        — Comece a cerimônia.

        O padre abriu o seu livrinho preto e fez sinal para que todos se aproximassem. A voz dele estava um pouco emocionada quando começou a ler:

        “Estamos aqui reunidos nesta cerimônia simples, perante os olhos de Deus e do homem, para unir este homem a esta mulher pelos laços do santo matrimônio...”

        Tudo terminou num momento. Caroline ainda estava com o rosto escondido no ombro de Dax quando Giselle se aproximou dele.

        — Obrigado — disse-lhe Dax.

        As lágrimas correram dos olhos dela. Beijou Dax nas duas faces. Depois, passou o braço pelos ombros de Caroline e disse:

        — Venha comigo. Tenho um batom aqui na bolsa. Isso não é jeito de uma noiva aparecer no dia do casamento.

        Dax olhava-as.

        Giselle tomou de repente conhecimento das suas lágrimas.

        Não repare — disse ela. — Sempre choro em casamentos.

 

 

                                                               CONTINUA

 

 

                               CASAMENTO e MODA

        A fumaça pairava pesadamente no ar do porão mal iluminado. Uma orquestra fazia mais barulho do que música. Robert olhou para Denisonde que se aproximava por entre as mesas repletas. Não se levantou quando ela parou ao seu lado. Não tomou conhecimento dela e ficou olhando para o seu pastis.

        — Bobby?

        Nem assim ele levantou a cabeça.

        — Vamos. Está na hora de ir para casa.

        — Você já acabou por esta noite?

        — Já.

        — São apenas duas horas, — disse ele olhando para o relógio.

        — Não há movimento.

        Foi então que ele olhou para ela. Fez um gesto para as mesas cheias.

        — Pois aqui há muito movimento.

        — Lá fora, as ruas estão vazias.

        Ele estendeu a mão e tomou a bolsa dela. Abriu-a e esvaziou-a em cima da mesa. Um batom, um pequeno estojo de pó e espelho, algumas notas amarfanhadas. Pegou as notas e contou-as.

        — Só seis mil francos?

        — Não lhe disse que não há movimento?

        Ele jogou o dinheiro com raiva em cima da mesa.

        — Gastei mais do que isso aqui esperando por você.

        — Desculpe.

        Ele tomou a pegar as notas, meteu-as no bolso e empurrou os outros objetos para ela.

        — Ainda não estou disposto a ir para casa.

        Denisonde guardou as coisas na bolsa e perguntou quase com humildade:

        — Posso sentar-me? Estou cansada.

        Não, vá-se sentar em outro lugar, — disse ele, sem olhar para ela. — Não quero você.

        Ela hesitou um momento e, em seguida, passou por entre as mesas, e se dirigiu para o bar. O homem do bar colocou um pastis em frente dela. Denisonde sentou-se num dos bancos altos.

        — Ele está de novo com um dos seus acessos?

        Ela bateu com a cabeça.

        — Está assim a noite toda. Ainda não falou com ninguém.

        Denisonde nada disse e o homem do bar se inclinou para falar confidencialmente com ela.

        — Não sei como você suporta isso, uma pequena como você. Devia, ter era um homem que lhe desse valor. Um que saísse e a ajudasse. Ele devia arranjar fregueses para você e não ficar aqui parado deixando tudo para você fazer.

        — Ele é um cavalheiro.

        — Cavalheiro coisa nenhuma! Se cavalheiro é assim, prefiro um bom maquereau.

        Saiu um instante para atender a um pedido. Quando acabou, voltou e se inclinou de novo no balcão.

        — Você está-se perdendo. Dê o fora nele e eu lhe arranjarei uma coisa realmente boa. Não terá mais de bater a calçada com esse frio.

 

 

 

 

        Ela riu.

        — Não quero trabalhar numa casa. Prefiro trabalhar sozinha.

        — Não é uma casa. O patrão acaba de me dar a ordem. Disse-me que arranjasse umas boas pequenas e eu pensei logo em você. Você é que é a pequena exata para o lugar. Você tem classe.

        Antes que ela pudesse dizer alguma coisa, ele foi para o outro extremo do balcão a fim de atender a um pedido. Nesse momento, a orquestra parou de tocar e os três músicos desceram do estrado. O negro magro que tocava os tambores parou ao lado dela. Tirou um cigarro de um maço amarrotado e botou-o na boca.

        — Alô, Denisonde.

        — Jean-Claude.

        Ele se encostou no bar de modo a olhar para ela e para a sala ao mesmo tempo.

        — Bobby não disse uma palavra durante toda a noite.

        — Houve alguma coisa?

        Jean-Claude sacudiu a cabeça.

        — Não, agora já estamos habituados a Bobby. Todo o mundo passa bem longe dele.

        — Muito bem. — Ela olhou por cima do ombro. Robert ainda estava com os olhos fixos na bebida. — Gostaria de que ele fosse para casa. Está sentindo dor.

        — Como é que sabe?

        — Sempre sei. Percebi no momento em que saímos de casa esta noite. Quase não pude trabalhar de tão preocupada que estava com ele. Foi por isso que vim mais cedo.

        — Você gosta mesmo dele, não gosta, Denisonde?

        — Ele está sozinho e precisa de alguém.

        — Segundo me disseram, está sozinho porque quer.

        — Que foi que você soube, Jean-Claude?

        — O tal homem esteve aqui de novo na noite passada, o tal que veio perguntar por Bobby.

        — Robert falou com ele?

        — Não. Como sempre, Bobby mandou-o embora. Depois disso, Bobby saiu e só voltou pouco antes de você. O homem disse que o pai de Bobby quer que ele volte para casa.

        Houve um momento de silêncio e então...

 

                                                                  

 

        

                                                   

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