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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS PECADOS CARDEAIS / Andrew M. Greeley
OS PECADOS CARDEAIS / Andrew M. Greeley

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

    

Os chamados pecados cardeais (ou mortais ou capitais) não são, de forma alguma, pecados e sim apenas sete propensões desordenadas na nossa personalidade que nos leva a comportamentos pecaminosos. Soberba, avareza, luxúria, ira, gula, inveja e preguiça são tendências humanas sólidas e sadias que enveredaram por um caminho errado: amor-próprio, autopreservação, comunhão, liberdade pessoal, expressão própria, celebração, relaxamento.

  Os pecados mortais não resultam de uma maldade fundamental e sim de uma bondade da mesma espécie que se descontrola, de um amor humano que se sente confuso e apavorado e não confia o bastante no amor.

  É claro que os pecados mortais nada têm a ver com os membros do Sacro Colégio que, como todos nós sabemos, quase não cometem pecados.

  A tradicional espiritualidade católica vem afirmando que todos nós temos alguma "falta dominante", o pecado mortal que é o mais forte em nossa personalidade (da mesma forma que, nas peças de moralidade medieval, um caráter diferente representa, como exemplo, cada um dos sete vícios).

  Se nós fôssemos procurar a falta dominante dos quatro atores principais desta história, poderíamos concluir que o ponto fraco de Kevin é a soberba, o de Patrick é a avareza, o de Ellen é a ira (com uma ocasional dose de gula) e que o de Maureen é a preguiça (ou "acedia", como é muitas vezes chamada).

  Eles todos se sentem perturbados, e não pouco, pela inveja e a luxúria como, aliás, nos sentimos todos nós.

 

 

 

 

Patrick Donahue tinha sido o meu mais íntimo amigo desde tempos imemoriais. Éramos inseparáveis desde a escola primária até os três anos do ginásio dos jesuítas. Ele sempre fora um cara pequenino, muito mais-baixo do que eu quando ainda éramos calouros. De repente, porém, quase da noite para o dia, ele deu um salto. Embora tivesse crescido, era adorável quando pequeno, e agora encantava todo mundo com suas maneiras e com a sua cortesia de uma pessoa madura. As garotas mais velhas disseram, certa vez, que ele era "uma .gracinha" com seus cabelos louros, pestanas longas e olhos de um azul-prateado. Agora então, que já tinha dezessete anos, as mulheres de todas as idades diziam que ele era simplesmente magnífico.

 Dois anos antes, aos quinze, ele era um garoto de poucas palavras que se encabulava com as garotas, mas agora parecia que não pensava em coisa mais alguma senão em garotas, até mesmo quando elas eram apenas umas calouras bem desenvolvidas, como acontecia com a minha "prima" Maureen Cunningham.

 Diziam as garotas, então, que Pat era muito parecido com Guy Madison, uma coisa que só pode fazer sentido para aqueles que se lembram daqueles tempos ou então para os que ficam vendo os filmes da TV até tarde. Parecido ou não com Guy Madison, a sua risada era contagiosa e a maneira como fazia coisas engraçadas contribuía para tomá-lo o centro de qualquer grupo onde estivesse.

 Ele não era um estudante tão bom como eu, e também não era um líder. Era muito mais devoto do que eu, e esse é um fato importante que não posso deixar de registrar. Era uma espécie estranha de devoção marcada por clausuras, períodos contínuos de missas diárias e de rosários recitados, complicadas reformas de sua vida moral e depois tremendas fases de bebida e correrias atrás de saias, mas meu pai me dizia que aquele era o método irlandês, já que não aprovava o meu método mais tranqüilo para as coisas divinas.

 Numa certa manhã de sábado, bem cedo, no úmido mês de julho de 1948, Pat caminhava comigo, falando sobre minha prima Maureen, quando um Packard cinza caiu numa vala do outro lado da estrada onde nós estávamos, e explodiu. A coragem e a reação instantânea de Pat salvou as vidas dos ocupantes do carro. Eu fiquei ali estatelado na poeira do verão a esperar pela bola alaranjada de chamas e fumaça que devoraria o carro. Mesmo assim fui eu quem recebeu o crédito.

 Eu vinha descendo o morro, por trás da aldeia, a caminho da igreja. Pat subia o morro com seu rosto bonito e um sorriso alegre que não se mostrava diminuído depois da noite de uma farra na praia. Logo se ofereceu para voltar comigo descendo o morro até a igreja, principalmente porque, tenho quase a certeza, se voltássemos da igreja para casa juntos, minha mãe e meu pai não iriam fazer perguntas sobre a noite anterior. Eu deveria zangar-me com ele já que era meu hóspede e eu era o responsável pelo seu bem-estar espiritual e físico. Contudo, as risadas e alegrias de Pat, especialmente naqueles tempos, faziam com que fosse difícil alguém ficar zangado com ele.

 Ele sorria com complacência enquanto me explicava.

 - Não houve nada muito sério nos abraços e beijos. Nem mesmo o bastante para impedir que eu comungue na missa.

 - A cerveja depois das doze interrompe o seu jejum - respondi-lhe muito sério.

 Ele deu-me uma vigorosa palmada nas costas mostrando todo o seu bom humor.

 - Você já fala como se fosse um monsenhor. Eles logo vão lhe ordenar monsenhor, Kevin.

 - Pelo menos bispo, Pat. Quem sabe até cardeal? Ele deu uma gostosa risada.

 - Kevin, Cardeal Brennan. Gosto da maneira como isto soa. Será que você vai me fazer cavaleiro do Papa ou coisa parecida?

 O asfalto da estrada estava mole com o calor. Eu detestava aquela volta depois da missa. Aquele ia ser mais um dia terrível de calor.

 - E Maureen será uma dama papal. Dama Mo. Gosto disso!

 - Ela já é uma dama e tanto. - Pat sacudiu a cabeça como se apreciasse aquilo. - Eu sei que ela é sua prima, mas para uma caloura ela tem os lábios mais quentes de toda a praia.

 - Ela não é bem minha prima, Pat. Nossos pais vêm sendo sócios, no escritório de advocacia desde tanto tempo que nós nos tratamos de "primos", e, sendo assim, aqueles lábios tão quentes não são coisa proibida para mim, também.

 - Eu só queria ver esse dia em que Kevin Brennan, um dos pilares da devoção, fosse passar a noite na praia com as garotas.

 Aquele pensamento dos lábios de Mo apertados contra os meus era, realmente, coisa muito mais apetitosa do que eu estava disposto a reconhecer.

 - E onde está Maureen? Será que a sua ressaca ainda não permite que ela suba o morro? Ou será que está somente muito gasta?

 Pat deu de ombros.

 - Mary Delaney vai subir com eles no Packard e eu queria fazer um pouco de exercício. Disse-lhes que você ficaria zangado se eu não ficasse em condições para a estação do basquete.

 - A bolsa é sua e não minha.

 Ele nem se deu conta do que eu lhe dizia. Pat precisava daquela bolsa para entrar na universidade. Os Brennans eram bastante ricos e nenhum de nós se preocupava com dinheiro. Eu desconfiava que Pat considerava aquilo uma injustiça. Em compensação, eu achava que a injustiça era ele ser dez vezes mais charmoso do que eu.

 Antes que pudéssemos dizer mais alguma coisa, o Packard de Delaney entrou na curva final que separava a aldeia do morro, e vinha roncando feio. Marty devia estar fazendo uns 90 por hora. Ele teria entrado bem na curva se o velho Buick do Doe Crawford, a caminho do iate clube, não surgisse na curva, em sentido contrário. Delaney deu um golpe de direção - instintivamente, creio eu - para evitar o grande carro vermelho e derrapou para o lado da estrada onde nós estávamos andando, depois voltou ao asfalto escorregadio e caiu na vala. O Packard rolou como se fosse uma tartaruga na ponta de uma vara, e as suas rodas ficaram a girar desamparadas no ar.

 Pat disparou para o carro.

 - Vamos tirá-los de lá! - Gritou.

 Eu sentia meus pés como se eles estivessem colados no chão. Finalmente saí atrás dele, mas cada passo meu parecia uma eternidade.

 Dentro do carro os ocupantes estavam gritando. Pat conseguiu abrir uma porta, e então gritou para mim.

 - Venha me ajudar, Kevin.

 Arrancamos Marty Delaney do banco do volante. O seu rosto era uma máscara de sangue. Sue Hanlon estava ao lado dele inconsciente. O vestido estava rasgado e as suas pernas bem-feitas estavam trançadas num ângulo bem estranho. Eu ajudei Delaney, bem bombardeado, mas ainda consciente, para sair da vala enquanto Pat, com muito cuidado, depositava Sue na poeira do acostamento.

 Nós estávamos arrancando Joan Ryan e Joe Heeney do banco traseiro quando o tanque de gasolina explodiu, e a força da explosão atirou-nos todos para dentro da vala. O vestido fino de Joan pegou fogo e ela gritava histericamente enquanto as chamas saltavam para seus longos cabelos louros. Joe estava deitado na estrada sem falar coisa alguma. Durante um momento eu cheguei a pensar que íamos todos morrer. Foi aí que Pat derrubou Joan fazendo-a rolar na poeira para apagar o fogo, enquanto eu levava Sue para a segurança da estrada. Fiquei ali de pé abobalhado olhando Joan, com a histeria já dominada, mas com o rosto sardento todo sujo da poeira e da graxa. Pat arrastou os dois rapazes para longe das chamas.

 Doc Crawford tinha conseguido parar seu carro alguns metros adiante do acidente e logo surgiu ao meu lado tentando tirar Sue de meus braços. Eu ainda resisti um pouco, mas logo deitei-a na gjjama e sentei-me ao seu lado enquanto Doe apalpava e resmungava sacudindo a cabeça. A fumaça acre que saía do carro incendiado atacava-me o nariz e fazia-me arder os olhos.

 A ambulância da polícia estadual chegou depois do que me pareciam horas. Ted Smith, o tenente da polícia, e o padre O'Rourke, o beberrão que era o pastor da igreja da aldeia, estavam juntos do carro em chamas e sacudiam as cabeças.

 Pat ainda estava ofegante.

 - Se tivéssemos chegado apenas uns segundos mais tarde, eles todos teriam virado fumaça. - Ele tinha o rosto e os cabelos pretos, e a camisa branca com as calças estavam rasgadas e sujas.

 - E nós com eles - disse eu, que só então notei não estar Maureen no carro.

 O tenente estava zangado e falava com uma voz arrastada e anasalada que traía o interior do Wisconsin.

 - Nenhum deles tem o direito de estar vivo. Pestes de garotos malucos que passam a noite bebendo e depois fazem 90 por hora numa área onde a velocidade máxima é de 30. Foi uma sorte você estar aqui, Kevin.

 - Você salvou-lhes as vidas e talvez até mesmo as almas, Kevin - disse o velho padre aturdido enrolando uma estola escarlate já bem encardida. - Se eles tivessem morrido sem os últimos ritos, depois do que andavam fazendo lá na praia, iriam todos direitinho para o inferno.

 - Como é que o senhor sabe, padre? De qualquer forma, foi o Pat quem salvou todos eles e não eu.

 Ninguém parecia ouvir-me.

 Vi o espasmo de dor no rosto de Pat.

 Ted estava mexendo no bigodinho aparado à moda de Tom Dewey. (Famoso político da década por seu combate ao vício e à corrupção. Chegou a ser candidato à Presidência, mais foi derrotado.)

 - Dois deles parecem que estão liquidados, especialmente a garota. Se escaparem, Kevin, a culpa é toda sua.

 Ainda meio aturdido, voltei para casa mas, quando cheguei no alto do morro, vomitei até as tripas e enfiei-me no meu quarto para dormir o resto do dia.

 Minha mãe veio acordar-me para o jantar, e seus cabelos ruivos brilhavam à luz do sol da tarde.

 - Todos vão ficar bons, menos a moça Hanon que vai ficar aleijada para o resto de sua vida.

 Durante anos, eu via sempre em meus sonhos as pernas trançadas de Sue.. Agora já-posso distingui-las das pernas trucidadas de uma outra mulher que também persegue meus sonhos.

 Logo depois de serenados os ânimos a respeito do acidente, Pat voltou para a nossa casa de verão no lago na última semana de agosto. Uma tarde ele organizou um jogo de softball com os rapazes do lugar, mas eu não gostei da maneira como se houve no jogo.

 Na hora do jantar eu mostrei-me aborrecido com ele por ter perdido o jogo embora Pat, como sempre, pilheriasse com o resto da família. Depois do jantar perguntou se poderia sair com o Studebaker para ver o que estava acontecendo na cidade. Eu sabia, naturalmente, que ele ia pegar a Maurcen na casa vizinha. A mãe dela achava que ele era um jovem encantador, e não criava problemas para os passeios pelo sul do Wisconsin com o filho de de um empregado da limpeza pública.

 Sem dizer palavra, eu entreguei-lhe as chaves.

 - E você não quer vir? - A sua pergunta era como uma sondagem, e a expressão de seu rosto tinha aquele ar meio encabulado que tanto encantava as senhoras. - Nós poderíamos procurar a Cunningham e a Foley.

 Ellen Foley, que me era destinada para a semana por Maureen e Pat, era realmente o fim da picada. Maureen tinha tomado a pobrezinha sob a sua proteção e ela tinha-me cabido por azar.

 - Deixe pra lá. - A minha resposta mostrava claramente que eu não estava satisfeito.

 Sentei-me numa cadeira de balanço na varanda da frente que tinha vista para a aldeia e o lago. O meu avô e o avô de Maureen tinham comprado vários quilómetros quadrados nas colinas do lago antes da Primeira Guerra Mundial, preferindo a tranqüilidade e a solidão ao que a minha família chamava "a favela de recreio" ao longo da praia. Nos anos que se passaram na recuperação da Depressão, meu pai tinha sido tentado a vender a sua parte das terras. Finalmente, pouco antes dele se alistar, Tom Cunningham garantiu-lhe que haveria dinheiro bastante na firma de advocacia para cuidar de nossa família enquanto ele estivesse fora. O papai voltou depois de quase quatro anos com os cabelos brancos, o peito cheio de medalhas e com uma águia nos ombros, ainda a tempo de verificar que a firma estava em más condições. Tom estava mais interessado na sua linda filhinha do que nos negócios da firma. Papai, que agora era "o Coronel", permitiu-se apenas o comentário que aquilo era o resultado de um casamento tardio, e atirou-se ao trabalho na firma da mesma maneira como se atirara antes nas cargas em Cassino e Bastogne.

 Três anos mais tarde estávamos todos ricos como jamais tínhamos sonhado. Os Cunninghams, sem precisar trabalhar muito, vinham logo atrás. Papai já falava em fazer uma piscina no lago e uma casa de inverno na Flórida, e tanto ele como minha mãe não faziam a menor cerimónia quando se tratava de gastar dinheiro. Naqueles tempos, as expectativas de todo mundo subiam e se expandiam como se fossem balões de ar quente. Nunca mais haveria uma outra Depressão. O céu era o limite.

 Na nossa vizinhança em Chicago, no entanto, o "após guerra" tinha criado um espírito que, em 1948, parecia permanente. Os Cunninghams e os Brennans pareciam estar apenas um pouco à frente dos Donahues e dos Foleys durante os sofrimentos comuns dos anos anteriores, mas agora nós estávamos ricos, enquanto o pai de Pat era ainda um trabalhador na limpeza pública, o homem do lixo, e o de Ellen era um pobre policial irlandês.

 Eu fiquei olhando o lago lá embaixo que se avermelhava com o pôr-do-sol, as esteiras deixadas pelos barcos a motor cruzando o lago, os carros que rodavam na praia e que iam para as festas e jantares na noite de sexta-feira. Andava preocupado com Pat Donahue. Se não conseguíssemos ganhar o campeonato da cidade no ano seguinte, ele certamente não conseguiria a bolsa para entrar na Notre Dame. Se ele continuasse a pensar só em garotas durante a estação, como vinha fazendo naquele verão, então tudo iria por água abaixo.

 Meu pai veio sentar-se na outra cadeira de balanço ao meu lado.

 - É uma linda vista. Você não acha, Campeão?

 Eu resmunguei concordando. Meu pai já não sabia o que fazer comigo. Eu era apenas um garotinho simpático quando ele fora embora para a guerra, e ao voltar encontrara a mulher cada vez mais bonita, os filhos mais novos de olhos arregalados, de alegria, mas o mais velho era um garotão de quatorze anos, misterioso e calculista.

 Mais tarde ele diria: "Um garotão alto e magro com um rosto muito sério, cabelos ruivos abundantes e uns verdes olhos duros." Para tornar as coisas ainda piores, eu fui logo dizendo-lhe que queria ser padre.

 - Isto me faz lembrar uma porção de lugares na Itália e na Suíça... - disse ele pensativo. Era raro ele se deixar levar por reminiscências da guerra quando estava conosco - ... algumas vezes, eu pensava que nunca mais veria tudo aquilo outra vez.

 Eu continuei calado.

 Ele prosseguiu sondando o terreno.

 - Foi uma batalha que perdemos hoje.

 - Um simples jogo de brincadeira... - respondi, só para dizer alguma coisa.

 - Mas você gosta muito de ganhá-las todas...

 - Não posso imaginar onde fui buscar isso, Coronel. - A minha resposta foi bem seca.

 Naquela luz crepuscular o seu olhar era meio divertido.

 - Eu acho que essa coisa de ganhar ou não pouco significa para o Pat. Não é tão importante para ele como é para você.

 - Era isso mesmo que eu estava pensando, papai. Mas quando ele voltar com o carro e com as garotas, eu logo esqueço tudo.

 Ele deu-me uma palmada no joelho e foi-se na escuridão, deixando atrás um perfume agradável de fumo turco no ar da noite.

 Quando o Studebaker chegou com Pat e Maureen no banco da frente, eu não liguei para as descupas de Pat e sentei-me no banco de trás com a Ellen Foley. A mim pareceu-me que ela era uma garotinha assustada com o seu cabelo em rabo-de-cavalo e que tinha desobedecido as instruções do rapaz encarregado da vigilância.

 Pat desceu o morro em direção à aldeia guiando com muito cuidado. Maureen começou a provocá-lo dizendo que o carro era meu e que não havia razão para tanta cautela.

 Eu respondi um tanto áspero:

 - É isso mesmo, Pat. Pé na tábua! Ele está no seguro. O pai de Mo certamente fará absolver você como causador de morte acidental. O padre O'Rourke virá abençoar-nos, se não estiver bêbado, e nós poderemos jogar pôquer com Sue Hanlon no hospital.

 - Você deveria ter entrado para o seminário três anos atrás - disse Mo com ar de pouco caso para mim.

 - Lá você estaria num lugar em que todo mundo obedece às regras todo o tempo.

 - E eu não teria que aturar as filhinhas únicas dos papais que as estragam e acham que elas nunca fazem nada errado - respondi.

 Nós seguimos para o Sugar Bowl em silêncio, mas eu sentia a reprovação daquela pessoinha que ali estava ao meu lado.

 O Sugar Bowl era uma casa de sorvetes com uma vitrola automática, luzes muito fortes, cheiro de leite.azedo, e mesas de madeira que, provavelmente, já existiam antes da Guerra Civil. Todas as cabeças de homens e mulheres voltaram-se quando Maureen entrou. Ela percebia a sensação que estava fazendo, e adorava aquilo.

 Maureen era mesmo uma beleza. Pele muito branca, cabelos negros e longos, um porte de modelo, génio ferino, olhos escuros que desafiavam as pessoas. Para os garotos com menos de vinte anos ela era A Mulher com que todos sonhavam. Quando assistimos a State Ftàr, no princípio daquele verão, fomos todos unânimes em concordar que Mo era mais bonita do que Jeanne Crain.

 Maureen arranjou as coisas de modo que Pat ficasse sentado ao seu lado. Senti seu joelho roçar-me de leve quando passou.

 - Vocês vão à festa do Dia do Trabalho no clube? - A pergunta era dirigida a mim e claramente deixava de fora os outros dois que não eram sócios.

 Animado pelo contato inesperado, eu voltei-me para a garçonete e fiz o pedido para todas: dois banana split, um sundae de chocolate e um chocolate maltado para a minha "convidada".

Já mais calmo, respondi então à pergunta de Maureen.

 - Duvido muito. Você sabe muito bem como a minha mãe desaprova bebedeiras. Nós, provavelmente, ficaremos na piscina comendo cachorro-quente. Meu pai mandou limpá-la e já podemos nadar ali.

 - Puxa vida! Isso parece um barato! Precisamos ir lá um desses dias. - Foi essa apenas a resposta de Maureen.

 - É uma boa ocasião para você se apresentar com aqueles seus maios indecentes, não é? - Eu procurava fazer com que minha pergunta parecesse uma reprovação.

 - Nunca vi você desviar o olhar quando eu me apresento com eles. Para alguém que quer ser padre, você arregala os olhos como todos os outros - ela retrucou com voz ácida.

 A música na vitrola terminou com It Might as Well Be Spring e começou um jitterbug. Maureen agarrou Pat pela mão.

 - Vamos lá Pat. Vamos dançar. O chato do Kevin pode ficar aí explicando a Ellen por que é que eu sou a única que zomba dele.

 Eu fiquei olhando os dois dançarem. Eram dois jovens altos e bonitos, um par soberbamente equilibrado na plena posse de seus corpos flexíveis. Ali estavam uma princesa mágica de olhos negros com o seu cavaleiro louro e belo. Era com aquele material que se faziam os sonhos românticos.

 - Por que foi que você mandou ele para casa hoje? Procurei ver de onde vinha aquela voz que parecia o badalar de sinos distantes, e descobri que vinha de Ellen. Era a primeira vez, em toda aquela noite, que ela falava diretamente comigo.

 - Eu não mandei ele para casa. Eu fui para casa antes dele. Seus olhos eram grandes e suaves, e extraordinariamente claros.

 - Eu não estou falando disso. Estou falando do que aconteceu lá no jogo. Você poderia ter agido de outra forma, não acha? Você queria se mostrar da mesma maneira que ele, não era?

 - Nós estávamos ganhando forças. Se ele tivesse marcado, nós poderíamos ter feito mais.

 Ela continuava a me olhar sem piscar.

 - O Tim Curron é o melhor jogador do time na sua posição. Havia maiores chances para ele ajudar o Pat do que para o Pat derrubar o adversário. - O seu nariz pequenino e atrevido fez uma careta.

 - As garotas nada entendem de beisebol... - Logo me arrependi da resposta desajeitada, envergonhado por haver caído numa armadilha injusta.

 Ela continuou, e a sua voz era agora decisiva.

 - Ele não tinha lá muita vontade de ganhar, e de qualquer forma... - ela agora procurava agradar-me - eu acho bonito a maneira como você toma conta dele.

 - E ela então desviou os seus olhos.

 - Quando você crescer, Ellen, você pode ser uma garota perigosa.

 Ela corou até a raiz dos cabelos muito louros do rabinho-decavalo, e eu fiquei ali observando-a enquanto ela chupava o seu chocolate maltado. Havia alguma coisa muito agradável no seu pescoço muito liso e na sua pele muito branca além de um queixo muito decidido.

 - Será que há alguma coisa estranha na maneira como estou bebendo isto, Kevin Brennan? - Ao fazer a pergunta os seus olhos grandes encaravam-me com cinismo.

 - com alegria eu contemplo, e com assombro/a Etéria Titania chupando em seu canudinho mágico.

 Aquelas palavras me escaparam antes que eu pudesse contêlas. Seus lábios se abriram num sorriso.

 - Maureen já tinha-me dito que você era muito delicado duas vezes por ano.

 - Pois então, agora, você pode suspender a sua respiração e ficar esperando pela segunda vez. - Meus dedos, tão impulsivos como minha língua, procuraram alcançar a sua mão em cima da mesa. Ela retirou-as apressadamente, na hora em que a toquei. Eu sentia como se uma corrente elétrica estivesse saltando entre nós dois.

 - É bem bom que você, junto com sua língua tão rápida, siga logo para o seminário.

 A chegada de Tim Curran impediu que continuássemos a conversa. Os olhos dele brilhavam com a luz de duas cervejas.

 - Alô, chefe. Alô, garotinha... - Fez uma festinha na cabeça dela como se fosse um cachorrinho de estimação. - Posso ficar sentado aqui enquanto aqueles dois estão lá agarrados?

 Foi Ellen quem respondeu.

 - Eles nem vão se dar conta de estarmos aqui quando voltarem. Quais são os planos novos para o Cavaleiro Negro?

 Tim afastou da testa uma mecha de seus cabelos encaracolados que lhe tapava um olho.

 - Eu estou trabalhando num plano realmente bom para outubro. O Kevin aqui já está velho demais para essas coisas, mas que diabo, por que deve a gente crescer? Não estou certo, Kevin?

 Ela não passava de uma garota, mas, naquela noite, ela era a minha garota, e eu não gostava de ver o Tim sorrindo-lhe como se fosse um terrível pistoleiro do IRA.

 - Todos nós temos que crescer - respondi carrancudo.

 - E qual é esse tal plano para outubro? - perguntou Ellen sem se dar conta de meu mau humor.

 - Ainda não posso contar para você, mas vai ser bem melhor do que quando o velho Honnikar entrou na sua loja de comestíveis finos e viu que alguém andara por ali arrumando de novo as prateleiras.

E Ellen acrescentou:

 - Ou dos McGinitys quando voltaram para casa e encontraram a mobília da sala de estar na sala de jantar e vice-versa.

 Eu repreendi-a.

 - Você é muito moça para se lembrar disso.

Ela sacudiu a cabeça com um ar de desafio e acabou de chupar o seu chocolate.

 - Mas não sou muito moça para lembrar que foi você quem colocou a estátua de tamanho natural do Sagrado Coração no assento da privada no banheiro da Irmã Pauline.

 O meu rosto, que já estava bem esquentado desde algum tempo, ficou ainda mais esfogueado.

 - A idéia foi do Tim.

 - E Kevin jamais contará a alguém como foi que ele conseguiu entrar no convento com a estátua.

 - Aquilo foi fácil. Eu apenas... - Parei de repente porque percebi que estava tentando impressionar Ellen com as coisas que eu era capaz de fazer quando pertencia ao bando dos Cavaleiros Negros.

 Tim achou graça.

 - Você quase entornou o caldo. Você deve estar muito por dentro com ele, garotinha... - Ele bateu-me no ombro. - Ainda resta alguma cerveja lá na aldeia e seria uma vergonha desperdiçá-la. Ainda vejo vocês mais tarde. - Ele saiu esgueirando-se por entre os pares que dançavam, como se ainda fosse o misterioso e invisível Cavaleiro Negro de sua infância.

 Eilen não escondia a sua admiração.

 - Ele é um amor!

 - Mas bebe cerveja demais, para meu gosto.

 Felizmente para mim, Mo e Pat, ainda sem fôlego, mas exultantes, escolheram aquele momento para voltarem aos seus lugares. Não havia a menor dúvida que eu estava quase fazendo uma tolice.

 Na manhã seguinte, quando levei a louça do café para minha mãe na cozinha, ela perguntou:

 - Não era a garota dos Foley que estava no carro ontem à noite?

 Antes de responder eu coloquei a louça na pia e apanhei um pano para enxugar os talheres.

 - Nada escapa às mães, hein?

 - Pois é para isso que elas são feitas. Ela ficou uma moça muito bonitinha, mesmo, você não acha?

 - Eu nem reparei.

 - Não mesmo? Então deveria ter olhado bem. - Ela estava lavando um copo com o olhar perdido.

 - Da mesma forma que o papai, não gosto de mulheres pequeninas.

 - Se você é mesmo como o seu pai, você não escolhe muito aquilo que admira desde que se mostre bem em um maio.

 - Ainda não vi a Ellen num deles, mas acho que não afetaria muito a minha pressão sangüínea.

 - Eu me preocupo com as moças assim. A mãe trata-a como se fosse uma escrava. Obriga-a a tomar conta de todas as crianças pequenas como se a Ellen fosse a culpada pelo tamanho daquela família. Ela vai crescer e vai casar e jamais saberá ser outra coisa senão uma escrava do trabalho. Nem posso acreditar como a Kate a deixa passar algumas semanas aqui.

- Ellen esteve doente no mês passado. O médico achou que poderia ser um caso benigno de pólio. A Mo diz que foi simplesmente estafa. De qualquer forma, não se preocupe com ela. É uma garota muito esperta.

A minha mãe arregalou os olhos.

 - Você reparou na sua inteligência e não reparou como a moça é bonita, Kevin? Acho que o seu lugar é mesmo no seminário.

 Rimos bem os dois.

 - Afinal, o que é que vocês, os jovens, realmente esperam da vida? - A sua pergunta era feita com cuidado para parecer sem importância e também não ser dirigida a mim diretamente.

 Eu respondi com a mesma indiferença rebuscada.

 - Nós todos queremos contradições. Pat quer ser poderoso e popular. Maureen quer ser pintora, mas também gosta de se meter na política. Quanto a Ellen, não tenho muita certeza sobre o que se passa em sua cabeça, mas creio que quer ser escritora e também quer constituir família. São todos inocentes. Quanto a mim, tudo que desejo é ser padre.

 

 Pat Donahue estava com medo. Tinha a garganta seca e as mãos molhadas. Quanto mais eles se aprofundavam no mato escuro e úmido, mais indeciso ele ficava. Ela caminhava na frente, balançando-se ligeiramente, desviando-se aqui e ali para evitar que sua saia e blusa, que escolhera por se tratar de um domingo, ficassem presas por galhos.

 Ela não olhava para ele que vinha atrás enquanto caminhavam descendo por uma velha trilha já muito batida.

 Chegaram a uma clareira. Estaria ela ouvindo como pulsava forte a cabeça dele?

 Ela voltou-se para ele com um sorriso convidativo.

- Isto aqui foi antes um recanto de verão para onde meus avós vinham para beber chá e limonada. O Coronel tinha mandado limpá-la e pintá-la na mesma ocasião em que reformara o poço. Aquilo era uma gentileza dele, não era?

 Ele seguiu-a subindo os degraus que estalavam até chegar ao pequeno recinto octogonal cercado de treliças. Ali dentro estava escuro e úmido, e ainda se sentia o cheiro forte da tinta, mas tão isolado do resto do mundo que até parecia uma ilha deserta. Ela voltou-se outra vez para ele e seus olhos brilhavam com a expectativa.

 Ele tomou-a nos braços com brutalidade e começou a beijarlhe os lábios. Ela apertava o corpo contra o dele deixando cair a cabeça.

 Ela riu-se.

 - Nada mal, Pat. Nada mal mesmo! Gosto de sua maneira de beijar.

 Ele começou a beijá-la de novo, mas já então se mostrava mais paciente e cuidadoso. Os lábios de ambos se exploravam mutuamente, sondando, buscando, caçando. Ela deixou que ele a dominasse e entregou-se à sua força.

 Ele jogou-a ao chão da saleta. Suas mãos se enfiaram por baixo do vestido e subiram-lhe pelas coxos. Tocava-a com delicadeza apesar da febre que lhe corria no sangue. Com ternura ele acariciava-a numa busca ardente. Ela entregou-se às suas explorações, suspirando baixinho com prazer.

 Com a ajuda dela ele conseguiu despi-la um pouco. Ela se mostrava passiva em suas mãos e respirava ofegante. Ele ia chegar até o fim. Ela não estava esperando aquilo. A idéia era que não se ia até o fim. Ele iria dar-lhe uma lição.

 Ela lutou um pouco, mas logo desistiu, como se estivesse resignada a perder ali a sua virgindade.

 A paixão dele mudou, de repente, passando para o medo e a repulsa. Ele afastou-se e virou-se para não ver o seu corpo quase riu. Depois falou numa voz muito fraca:

 - É melhor irmos procurar o Kevin e a Ellen. Ela levantou-se devagar.

 - Não devemos deixar o Kevin esperando. - A voz dela ainda não estava muito firme enquanto se vestia.

 Saíram dali, daquele lugar abafado, para a sombra fresca da clareira. Pai sentia-se ludibriado. As coisas seriam melhores se cie tivesse ido até o fim?

Ele esperava a hora para se desculpar pelo que tinha feito. Ela fingia não se importar muito com o que acontecera. Afinal ele falou:

 - Nós vamos ter que fazer isso outra vez. Claro que é muito melhor do que jogar cartas. - Ele queria fazer parecer que aquilo era uma coisa que fazia todos os dias.

 - O que foi que você disse? - Fiz a pergunta a Ellen com o pensamento ausente.

 - Eu disse que nós não vamos fazer o mesmo que eles estão fazendo lá, não é? - Os seus olhos não demonstraram se ela estava impaciente ou não com a minha falta de atenção.

- E o que é que eles estão fazendo lá? - A observação de minha mãe a respeito de sua formosura não parecia muito certa, embora as bermudas brancas e a blusa que ela vestia não ajudassem muito.

 - Imagina que estarão fazendo tudo, mas sem chegar até o verdadeiro sexo, - Ela respondeu com a maior naturalidade.

 - Pois eu já não tenho tanta certeza de que estejam fazendo "tudo". E você quer isso, Ellen?

 - Não. E você quer? - Ela respondeu sem olhar para mim.

 - Não com alguém que acabou de sair do berço.

 Ela não respondeu. Tirei-a de minha cabeça. Pat e Maureen eram o problema. Rezei pedindo a Deus, mas sem muita confiança. Ele cuidaria de Pat e de Maureen desde que eu não me preocupasse mais com eles.

 Era a primeira vez que eu via o lago depois que papai mandara limpá-lo. Tinha cerca de trinta e cinco metros de comprimento, era alimentado por uma fonte natural e fluía num regato que descia até o lago lá embaixo. O pequeno lago ficava entre duas colinas e, provavelmente, tinha sido o resultado de uma pequena geleira. Era todo cercado por chorões já muito velhos. A não ser no tempo da seca, a água corria muito rápida e isso impedia a proliferação de mosquitos e insetos. As rochas que formavam a sua bacia estavam se desmanchando lentamente, e meu pai achava que a placa de granito, que era represa natural, não iria durar muito. E, quando chegasse

a hora, ele se transformaria num lago completamente artificial, mas nesse meio tempo nós poderíamos continuar a desfrutar dele como uma piscina natural, profunda o bastante na altura da represa, para permitir uns mergulhos.

 Aquele era um dia quente e úmido, a espécie de tarde de domingo do Meio-Oeste que somente um adorador de verões como eu podia suportar. O lago sempre me parecera misterioso com a sua superfície prateada e convidativa. Eu o imaginava habitado pelos espíritos das águas, alguns escuros como os chorões quando o sol já não dava mais neles, e outros claros como as jóias que pareciam dançar naquela água. Eu ali fiquei contemplando o lago e pensando em Maureen e Pat. "Pai nosso que estás no

céu, olhai por eles..."

 - É uma beleza. - Ellen estava ao meu lado. - É uma pena não termos trazido nossos maiôs.

 Eu fiquei aborrecido com aquele pequeno transtorno, como se fosse um gatinho miando do lado de fora da janela.

 - Você não precisa de maio para nadar aqui... - Disse isso com uma certa brutalidade e estendi a mão para o primeiro botão de sua blusa.

 Até hoje eu não sei bem nem compreendo como tudo aconteceu. Embora eu houvesse prometido a mim mesmo que pararia no primeiro botão, caí numa esparrela, da mesma forma que ela, nas garras de forças que escapavam a nosso controle e à nossa compreensão.

Meu dedo apertou o botão com tanta força que ele se quebrou. A expressão no rosto dela não mudou. Seus olhos continuavam claros e frios. Eu passei de um botão ao outro, e assim sucessivamente, com toda a calma, como se estivesse em transe. Quando lhe tirei a blusa, disse comigo mesmo que só o que queria era vê-la em suas roupas íntimas. Iríamos nadar com elas.

 No entanto, havia uma espécie de continuidade em meus movimentos, tão inevitáveis como os da água que escorria por cima da represa. Minhas mãos chegaram às alças de seu sutiã como se estivessem sendo acionadas por alguém. Aquela era uma peça ridiculamente complicada para uma criança, mas eu afinal consegui retirá-la com facilidade.

 A minha mãe tinha razão. Ellen era realmente uma mulher. Seus seios, muito claros, eram uma perfeição. Ela era o diminutivo de um ídolo que fora soberbamente esculpido.

 Nem um músculo seu contraiu-se enquanto eu a despia. Houve somente um grito contido de susto e depois uma corrente de emoções conflitantes que surgiram em seu rosto quando meus dedos pegaram no elástico e arriaram as suas calcinhas.

 Segurei uma de suas mãos e ali fiquei atônito a olhar toda a sua beleza. Não sentia desejo. Aliás, nem mesmo cheguei a pensar nisso. Mas, apesar de tudo, aquilo era algo mais do que uma simples admiração estética. O que eu sentia por Ellen estava infinitamente além do meu desejo físico.

 Ela soltou a sua mão da minha, apanhou suas roupas e arrumou-as cuidadosamente numa pedra. Depois começou a desabotoarme a camisa.

Aquilo era uma mistura de vergonha, alegria, dor, exaltação, escravidão, liberação. Quando, ajoelhando-se diante de mim, como eu já fizera com ela, retirou-me as bermudas, eu senti a mesma ferroada de embaraço e prazer que antes vira em seu rosto. Arrumou minhas roupas junto às suas e segurou-me as duas mãos enquanto os seios tremiam-lhe à medida que ia caminhando.

 Ali ficamos nós, mais um do que dois, durante muito tempo sem pronunciarmos uma só palavra e apenas sorrindo. Depois eu levei-a com todo o cuidado para as águas tépidas do lago. Ela deixou que a água escorresse em seu corpo, mergulhou e depois veio à tona e ficou boiando perto do rochedo chamando-me para junto dela. Eu caí na água mergulhando, e nadamos juntos, a princípio lentamente e depois com solenidade. Então, depois que mergulhou minha cabeça, nós começamos a brincar, perseguindo-nos mutuamente como se aquilo fosse o ato final de um bale aquático coreografado por forças invisíveis das quais éramos meros instrumentos.

 Depois, ficamos sentados nas pedras para secar ao sol. Nenhum tocou o outro e nem isso era preciso. Tenho a certeza de que foi Ellen quem manteve o iníerlúdio cheio de magia e mistério. Nua, ela era elegantemente graciosa, mais modesta na sua delicada posse de si mesma do que quando vestida. Era incapaz de uma vulgaridade. Tinha a mesma graça que as águas encrespadas do lago.

 Fui eu quem, afinal, rompeu o silêncio.

 - Será melhor voltarmos. A Maureen está, provavelmente, usando-nos como uma desculpa para escapar do meu predatório amigo.

 Ela sorriu e empurrou-me as roupas. Pela primeira vez eu me dei conta de toda a beleza de seu sorriso.

Alguns minutos depois de já estarmos vestidos, chegaram Pat e Maureen. Ele assobiava, mas ela estava inquieta e tensa.

 Logo que notou os cabelos molhados de Ellen, Maureen perguntou com ar superior.

 - O que foi que vocês dois andaram fazendo? Quem respondeu fui eu.

 - Estivemos conversando a respeito de deuses, livros e outras coisas.

 Quatro vezes mais, naquele agosto muito úmido, sem pensarmos em Harry Truman ou Alger Hiss*, Ellen e eu fomos até o lago para representar o nosso ritual solene e silencioso. Na última vez, com nuvens ameaçadoras que se formavam lentamente no céu daquela tarde, Ellen apareceu tranqüilamente em nossa varanda da entrada em sua inevitável blusa muito larga e bermudas. Já em transe, eu levantei-me e acompanhei-a até a mata. Em cima da pedra, depois de cansados de nadar, começamos a nos apalpar mutuamente, como se estivéssemos tocando nos cálices sagrados em um antigo santuário. Então eu coloquei meus braços em torno dela, que se aninhou contra

meu peito. Aquilo durou uma eternidade.

 Na noite de domingo do fim de semana do Dia do Trabalho, havia a tradicional fogueira na aldeia. Caixotes, engradados, caixas de papelão, papel, móveis quebrados, tudo, enfim, que fosse combustível, era atirado no parque público da praia do lago e então acendia-se a fogueira.

 Naquele ano o fim de semana estava fresco, e eu fiquei ali olhando a dança do fogo assoberbado por pensamentos melancólicos sobre o fim do verão e do fato de estar ficando mais velho. O reflexo do fogo fazia com que os rostos dos jovens que ali estavam assumissem cores estranhas e misteriosa, muito parecidas com os fantasmas de Halloween a dançar antes de se precipitarem de volta ao inferno.

 Tim Curran, com o seu entusiasmo reforçado por cerveja, tocava freneticamente sua guitarra havaiana e Pat seguia em frente do povo cantando o mais alto que podia com a sua bela voz de tenor. Mo, com um suéter atirado em cima da blusa, agarrava-se a ele como se Pat estivesse a caminho da guerra. Eu não cantava. Não estava a fim de entoar Buttons and Bows. Ellen e eu estávamos ali silenciosos e separados dos outros, hipnotizados pelo fogo.

 (Truman foi Presidente dos Estados Unidos. Alger Hiss era um homem da confiança de Roosevelt, esteve com a sua comitiva na conferência de Yalta, mas, mais tarde, descobriu-se que era um espião comunista. Foi julgado e condenado.)

 - O Pat chefia a brincadeira e você chefia tudo mais. - Ela falava com aquele seu jeito de Prudente Mulher Velha.

 - Cale a boca, você vai estragar tudo - disse-lhe baixinho. Ela não obedeceu à minha ordem e continuou.

 - Aquela fogueira faz-nos lembrar o incêndio do carro, não é? Mas você não precisa ficar triste por causa daquilo, Kevin. Você salvou-lhes as vidas. - Ela segurou-me a mão e eu cheguei-me mais para perto.

 - Foi o Pat quem salvou as vidas, Ellen.

 - Foi ele e você. Foram os dois. - Ela falava como se fosse uma professora repreendendo um aluno rebelde.

 Passei o braço em torno dela e apertei-a bem contra mim.

 

 Maureen encheu-me a taça com champanha morno. Naquela noite ela fazia quinze anos e caminhava para os trinta, em seus modos esfuziantes como o champanha que espumava ali. Satisfeita com a minha cuidadosa inspeção à luz das velas, ela ergueu-se bem para mostrar toda a sua altura de um metro e setenta, quase tão alta como eu.

 - À saúde de 1949, primo Kevin. - Ela saudava assim o ano e o primo ao mesmo tempo.

 Lá fora, os relâmpagos cruzavam o céu e a chuva batia forte nas janelas.

 Eu respondi o mais grave que me foi possível.

- Ao fim do bloqueio de Berlim e ao segundo período de Harry S. Truman.

 Ela bateu os pés com Impaciência.

- Mas que diabo! Vamos deixar de lado toda essa maldita seriedade. Vamos beber ao que você realmente deseja para o AnoNovo: ao campeonato da cidade e a um bom começo no seminário.

 - Ela virou a metade do champanha em sua taça.

Eu apenas beberiquei com cuidado. Meus pais, explorando as possibilidades de uma casa na Flórida e seguindo um impulso de momento, que era bem característico deles, tinham alugado uma casa velha na vizinhança de um pântano. Eles tinham ido para uma festa de Ano-Novo no hotel e tinham-me deixado como babá das crianças e de Maureen.

 As crianças me obedeciam, embora a minha irmã de quatorze anos, Mary Ann, resolvesse ficar acordada até às onze e meia. Depois, com olhos sonolentos, tinha ido na ponta dos pés para a cama. Ela era apenas um ano e meio mais moça que Maureen, mas pertencia à geração anterior. Mo e eu estávamos sozinhos na casa. Quando o relógio de cima da lareira bateu a meia-noite, nós abrimos a garrafa

de champanha que ela escamoteara durante o dia.

- Um feliz 1949 para você, prima Mo, e que todos os seus desejos sejam realizados, sejam eles quais forem. - Ela franziu a testa olhando-me e enchendo novamente a sua taça enquanto esmagava o cigarro no cinzeiro.

 - Olhe lá, cristã - disse eu - como é que você está roubando toda a água de fogo. - Nós tínhamos assistido a O Tesouro de Sierra Madre naquela tarde, pela terceira vez, e as suas expressões faziam agora parte de nosso vocabulário.

 Ela encheu também a minha taça.

 - É para fazer com que o seminarista goste de minha bebida mágica. Muito bem, vamos beber aos nossos amigos. Ao Pat Donahue e que ele consiga a sua bolsa em Notre Dame e também a sua primeira boa trepada.

 - Maureen! - Eu fingi-me chocado.

 - Mas que porra, Kevin. - Ela logo revidou. - O Pat é como a maioria dos caras que andam por aí. Ele tem que provar que é um homem e nunca se cansa disso. - Então a sua raiva passou da mesma forma que tinha passado a luz do sol logo no princípio do dia. - OK, Kevin, retiro a segunda metade. À bolsa de Pat e ao campeonato da cidade que vai junto com ela. - Ela estava sorrindo outra vez. O seu encanto, tornado ainda maior pelo slack marrom e o suéter, era Irresistível. Eu bebi um golezinho acompanhando-a e beijei-a.

 - Feliz Ano-Novo, Maureen. - Eu só esperava que ela não percebesse a minha respiração ofegante.

 - Puxa vida! Nada mal para uma babá. Sente-se aí enquanto vou buscar uns salgadinhos e colocar um disco. Se precisar de mim é só assobiar.

 Fiz como me mandavam. Aquela era a minha última noite de véspera de Ano-Novo antes de entrar para o seminário, ali sozinho à luz de velas, com uma linda garota, numa tempestade da Flórida, e o champanha estava fazendo girar minha cabeça cada vez mais depressa.

 - Você vai mesmo jogar no campeonato da cidade, Kev? Ela fez a pergunta ao mesmo tempo que colocava os salgadinhos em cima da mesa na minha frente e logo sentava-se ao meu lado no sofá que rangeu num protesto de velho. Eu logo lembrei-me de tudo que os chefes do retiro me haviam falado a respeito de comer até tarde da noite junto com uma garota. Bolas! Tudo que eu fizesse teria que sair no confessionário, embora aquela atitude em si já fosse um pecado.

 - Tudo depende de Pat. Quando ele está disposto, não há ninguém melhor na Liga Católica. Quando ele não está, o nosso time é completamente diferente. Leo é a única ameaça de verdade, e na última vez nós dêmos-lhes uma lavagem. Se o Pat conseguir os vinte e oito pontos outra vez, quando jogarmos com eles em março, vai ser uma barbada! - Já então eu estava virando o champanha com uma avidez igual à dela.

 Mo estava pensativa.

 - Ele é um ótimo rapaz, Kev. Até mesmo quando está jogando um jogo bruto. Tem medo de machucar os outros. - Encostou a cabeça em meu ombro e suspirou. - Quando estou junto de você, Kev, logo começo a me sentir responsável com respeito a alguém, exatamente como você. Deixa isso pra lá. Vamos beber uma para a pobre Ellen... Puxa vida, Kev. Você bebeu todo o champanha.

 - Não fui eu, não, Mo. Você bebia duas taças para cada umaque eu...

 Seus olhos negros flamejaram.

- Ah, ah. Então você estava contando, hein? Pois deixe-me dizer-lhe uma coisa, senhor babá, você não é assim tão esperto. Você me acreditaria se eu lhe dissesse que há uma outra garrafa na cozinha? Eu escamoteei-a ontem quando ninguém estava olhando. E você já está tão alto agora que nem vai poder impedir que eu vá buscá-la para abri-la.

 E com isso ela foi para a cozinha de onde logo voltou trazendo a outra garrafa.

 - Para a Ellen... - Eu disse, como se sonhasse, quando ela fez estourar a rolha e encheu as nossas, taças. - E o que é que vamos desejar para a Ellen?

 Uma das velas tinha chegado ao fim e eu mal podia ver o olhar carrancudo de Mo à luz da outra. Afinal ela falou.

 - Acho que meu desejo é vê-la afastada de sua horrível família. Ela é apenas uma empregadinha barata para eles, ou então coisa pior. As empregadinhas baratas sempre têm seu dia de folga. Ela quer ser escritora. Será que já lhe contou isso?

Eu hesitei um pouco.

 - Ela tem muita coisa boa.

 A minha resposta pareceu satisfazê-la. Colocou a taça na mesa, aninhou-se mais para perto e beijou-me. Dessa vez aquilo era um convite certo e cheio de promessas.

 - com todos os diabos, Kev - explodiu ela. - Eu não estou tentando seduzi-lo nem tampouco afastá-lo do seminário. Estamos na véspera do Ano-Novo e eu quero um pouco de carinho.

 Os seus lábios eram tudo o que Pat me dissera. Eram quentes, doces e muito bem treinados. Não estavam fora de meu alcance, Patrick.

 Enfiei os dedos por baixo do suéter para acariciar-lhe a barriga bem formada. A vitrola começou a tocar A Valsa do Tennessee. Ela tornou a suspirar, quase gemendo, quando lhe afaguei o sutiã. Os seios de Ellen vieram-me ao pensamento e eu logo me detive. Reacomodei-lhe o suéter que ficou certinho até a cintura dos slacks bem cortados.

 Ficamos os dois ali sentados, silenciosos e muito embaraçados.

 - Primo Kevin, você leva bem a sério as suas responsabilidades de babá... e você é também melhor nos beijos do que eu jamais poderia imaginar. Tome aqui, coma um salgadinho. - A sua voz já estava pastosa.

 Ainda estava sobrando a metade da segunda garrafa. Ela tornou a encher a sua taça, fez menção de encher a minha também, mas sacudiu a cabeça, desapontada, quando eu coloquei a mão em cima da taça.

 Ela conseguiu, de alguma forma, chegar até a outra extremidade do sofá.

 - Eu não pretendo lutar contra Deus, mas gostaria que você me dissesse outra vez por quê? Por que está querendo passar o resto de sua vida fechado numa reitoria e desligado do resto do mundo? Não acha que, com isso, está desperdiçando sua vida? - A segunda vela já estava quase apagando também.

 - Não há nenhum desligamento, Mo. Os padres estão conosco nos momentos mais importantes de nossas vidas. Padre Conroy bate as ruas da vizinhança todos os dias. Ele conhece todos nós e conhece também a maioria dos nossos problemas. Você recorre a ele quando precisa de ajuda, ou então ele vem até você quando vê que é preciso dar-lhe um chute no... no traseiro. - Ela deu uma risadinha e tornou a encher a taça. - Eles representam a Igreja. com toda a gente ganhando tanto dinheiro, os católicos vão mudar, e a Igreja vai ter que acompanhá-los. Muita gente está saindo de nossa vizinhança para ir morar nos arredores. Vai ser uma ótima ocasião para os padres. - A minha voz estava querendo fugir. Fiquei imaginando se o álcool no sangue estava tornando a minha explicação mais obscura do que ela, geralmente, era.

 - Não sei se tudo isso faz sentido para você, Mo.

Ela demorou algum tempo, mas finalmente falou.

 - Tanto melhor para Deus e tanto pior para mim. Você já nasceu padre, Kevin. Eu sinceramente desejo que você esteja por perto quando eu precisar de um, e também que você seja um padre tão carinhoso como é para... para outras coisas.

 Ficamos calados durante muito tempo, ambos mergulhados sozinhos em nossos pensamentos um tanto confusos por causa da bebida. A última vela apagou-se. Maureen estava mergulhada num sono profundo, com a cabeça encostada no braço meio esfarrapado do sofá. Ela tinha voltado a ser apenas uma garotinha um pouco mais velha que Mary Ann. Derramei o pouco que restava do champanha dentro da pia e joguei as garrafas vazias na lata do lixo que estava lá fora atrás da cozinha. A chuva agora era apenas pouco mais que uma garoa e o ar estava pesado com a umidade e o perfume das flores. Abri a janela da sala, quase caindo aos pedaços, para fazer sair o cheiro do champanha e dos cigarros e fui jogar fora na latrina as cinzas dos cigarros de Maureen. Não queriam que ela fumasse, mas eu duvidava que meus pais não soubessem.

 Cheguei até mesmo a lembrar-me de desligar a vitrola já, desde muito, silenciosa.

 Tentei acordá-la, mas ela apenas mergulhou o rosto no sofá e então, respirando fundo, carreguei-a para o quarto onde ela dormia junto com Mary Ann.

 Minha irmã dormia profundamente como era seu costume. Ela nem mesmo ouviria o chamado para o julgamento do Dia Final. Custei muito até chegar à outra cama igual à de Mary Ann, mas, afinal, consegui juntar os restos de minhas forças só pensando no que aconteceria se eu deixasse Maureen cair, e que explicação poderia dar.

 Deitei-a na cama, tirei-lhe os sapatos, cobri-a com a colcha. Seria preciso mais alguma coisa?

Beijei-a na testa, rezei pedindo que a vida fosse boa para ela e saí na ponta dos pés. Voltei para o meu quarto às apalpadelas. Meus irmãos Mike e Joe estavam dormindo ainda mais profundamente que Mary Ann.

 Na hora do café, na manhã seguinte, fiquei a imaginar como minha cabeça podia agüentar tudo aquilo e o quanto teria de confessar sobre o que acontecera. Mamãe perguntou-me se eu me sentia bem, e disse que Maureen parecia estar com uma gripe estomacal.

 Ora, ora. Uma gripe estomacal. Aquilo incluía uma grande variedade de doenças.

 - Eu estou OK, mamãe. Você não está pensando que eu seria capaz de fazer alguma coisa com a Mo para ela apanhar essa gripe, hein?

 Ela apenas suspirou.

 - Claro que não, querido. Jamais pensaria uma coisa dessas.

 A jogada de Pat saiu voando para a cesta num arco perfeito. Bateu no aro, parou durante segundos e então, como se uma mão invisível tivesse chegado até ela, pulou para fora batendo na tábua. Willewski, o grandalhão perto do Leo, chegou até a bola e fez um passe para um dos seus jogadores. Eu corri de volta para a nossa cesta, mas o passe do adversário levou a melhor. Dois a um. Voltei para o centro. Ele fez um passe para um dos zagueiros. A bola passou e nós perdemos quatorze pontos para os Lions. Desanimado, eu fiz o sinal de tempo esgotado para o juiz.

 Eu estava quase vomitando. Minhas pernas tremiam, meu peito estava doendo e sentia a garganta apertada. O treinador nem mesmo quis olhar para o nosso lado. Era o que fazia sempre que estávamos perdendo um jogo.

 Nós estávamos sendo liquidados pela precisão dos Lions de Leo que mais pareciam uma máquina, um time magnificamente treinado. Nós tínhamos já ganho uma partida deles no torneio de St. George, no Natal, porque Pat fizera vinte e oito pontos. Agora, ali estávamos na metade do terceiro turno e ele só fizera seis pontos. A torcida hostil gritava e entoava nomes para ridicularizá-lo sempre que ele apanhava a bola. Estávamos entrando pelo cano. O que é que havia de errado com Pat? Quando tinha a mão quente ele podia fazer doze pontos seguidos, mas quando estava fria...

 O seu peito arfava tanto quanto o meu.

 - Eu não sei o que está havendo de errado, Kevin, elas simplesmente não entram na cesta.

 Uma semana de elogios nos jornais de Chicago, entrevistas com a imprensa, a provável bolsa de Notre Dame, o assistente do treinador de South Bend na assistência, e Pat fracassando. Não fazia a menor diferença quando um jogador como eu fracassava, já que ninguém notava a diferença, a não ser, talvez, o treinador de Leo. Mas quando a estrela do time fracassava, todo mundo sabia.

 Dei-lhe uma pancadinha nas costas.

 - Não se aflija, Pat. Você vai ganhar. Nós vamos dar-lhes uma colher de sopa porque assim as finais vão ser grandes. Tim, você presta bem atenção. Quando eles botarem dois jogadores marcando o Pat, você estará livre e nós vamos passar-lhe as bolas.

 O Cavaleiro Negro sacudiu a cabeça, procurando economizar seu fôlego para os golpes de precisão. Ele não era dos bons, mas nunca desanimava.

 O apito tocou. Eu peguei a bola e passei-a para Larry Ryan, o nosso centro baixote, e ele entregou-a ao Tim que a devolveu para mim. Atirei-a para Pat que caminhava para a cesta e ele tornou a bater na borda. Felizmente ela voltou para mim na linha do tiro livre e eu encestei fácil. Doze menos.

 Gritei para que continuassem a apertar, mas já não tínhamos mais forças para agüentar senão alguns momentos. Roubei a bola de um dos guardas de Leo e passei-a para o Pat que estava perto da cesta. Ele deveria tê-la mandado de volta para mim, mas atirou-a mecanicamente. A bola bateu na madeira e caiu dentro da cesta. Dez menos. A nossa torcida começou a gritar.

 Fossem quais fossem os demónios que estavam tolhendo as mãos de Pat, eles foram exorcizados com aquela cesta de sorte. Leo também estava com tudo e Willewski encestava tanto quanto Pat, mas nós estávamos cada vez mais perto. Faltava apenas um minuto e nós perdíamos por quatro pontos. Eu fui vítima de uma falta quando corria para a cesta e o juiz mandou atirar uma vez. Disse-lhe que tinha direito a duas vezes. Ele apenas riu.

 Sem dar atenção à gritaria da assistência eu encestei.

 Leo estava paralisado. Tim Curran, completamente exausto, atirou-se desesperadamente à bola depois de Willewski tê-la passado para o centro deles. < Conseguiu tocá-la e atirou-a na minha direção. Corri para a cesta procurando Pat. Ele não estava lá. Duas em uma. Passeia-a para Tim e fiquei esperando a volta. Ela passou por mim sem tocar-me. Não voltou. Tim só tinha marcado cinco pontos até então, em todo o jogo, mas aquela cesta colocounos somente a dois pontos da vitória. Leo pediu tempo.

 Ficaram todos amontoados em torno do treinador, tratando de arranjar um jogo que matasse os vinte e cinco segundos que faltavam para acabar o jogo. Q nosso treinador ficou lá no banco porque não sabia o que poderia dizer-nos.

 - Onde é que você estava? - Perguntei-lhe zangado. Pat estava curvado procurando recuperar o fôlego.

 - Não agüento mais.

 - Claro que tem de agüentar. Vamos roubar-lhes a bola outra vez e você vai correr para a cesta mesmo que esteja se esvaindo em sangue.

 O passe de Leo foi perfeito. Calmos e frios, eles aturavam a bola na parte da frente da quadra ignorando os nossos desesperados esforços para contê-los. Eu saí atrás do Willewski logo que ele pegou um passe.

Bati na bola fazendo-a cair de suas mãos. Por incrível que pareça, o juiz não apitou. Talvez não tivesse sido falta.

  Dois em um outra vez. Quatro ou cinco segundos, e ali estava a minha oportunidade para ser um herói. Calculei as probabilidades e passei para Pat. Ele errou o tiro e Willewski, surgindo não sei bem de onde, correu junto comigo para a bola. Ele esbarrou em mim quando atirei a bola para Pat que ali estava desanimado e sem fazer um movimento. Mas ele encestou e logo a cigarra marcou o fim do jogo. Tínhamos vencido o campeonato da cidade.

  Muito mais tarde, quando o banheiro já estava vazio, senteime num banco com o estômago ainda embrulhado e o coração aos saltos. Martin, um jovem jesuíta que gostava de andar com os atletas, era a única outra pessoa que ali estava.

  - Será que ele estava bancando o herói, Kevin? Levantei os olhos para ele.

  - Pode apostar, Sr. Martin, que ele não estava mesmo.

  - Então por que ficou tanto tempo ali sem fazer nada? - O rosto fino do moço mostrava bem que não estava acreditando.

  - Ele estava ali apático porque estava mesmo apático... retruquei com uma certa grosseria enquanto esticava a mão para apanhar uma meia. - Eu não procuro entender o Pat Donahue. Apenas passo-lhe as bolas.

  - E devolve-lhe as que ele perdeu. - Aquela resposta mostrava mais compreensão do que eu julgava possível para ele.

  - É por isso que eu vou para o seminário, Sr. Martin. Enfiei minha camisa T. - Não precisarei mais devolver bolas para Pat Donahue.

  Como se eu soubesse...

  Ellen tinha os pés descalços na areia macia e fria. A água do lago molhava, por vezes, as pontas de seus dedos. Fora a própria mãe de Maureen quem telefonara pedindo licença para que ela viesse para aquele fim de semana. Mesmo assim, aquilo não lhe agradava muito. Havia muita coisa a fazer em casa. Dois de seus filhos pequenos estavam doentes e ela achava que Margaret Cunningham era uma grã-fina. Foi o que ela disse a Ellen. Além disso, se eram bons católicos mesmo, como era que só tinham um filho? O pai de Ellen, que, por vezes, defendia a filha, insistiu para que ela fosse, e Ellen entrou no ônibus que passava pelo lago disposta a divertirse bastante.

  - Então você acha que a Jeanne Crain não é uma boa artista? - Era o que ela perguntava a Pat aspirando a mistura de gasolina, fumaça de churrascos, óleo de bronzear e spray contra mosquitos que era o perfume daquela estação de veraneio.

  - Ela não precisa ser, Ellen. - Ele apertou-lhe os ombros e deu uma risada. - Esta noite ela nada mais fez senão mostrar-se bonita.

  Ellen continuava a defender sua heroína com vigor.

  - Ela precisava fazer muito mais do que simplesmente mostrar-se bonita em Quando a Carne Herda.

  Pat riu-se novamente, mas sem ridicularizá-la. Ele ouvia as suas opiniões sobre filmes com cuidado e discutia tudo com muita seriedade. Não podiam falar de livros porque ele não os lia.

  - É claro que Quando a Carne Herda era melhor do que Quem É o Infiel?, mas a Jeamezinha não se parece nada com uma negra, para mim.

  Ele gostou por não ter dito nigger, que era uma palavra imoral, pelo que diziam as freiras de St. Dominic. E ela insistia.

  - A gente pode ter sangue negro sem mesmo parecer que seja. Os entendedores dizem que vinte por cento das pessoas com sangue negro passam facilmente por brancos.

  - Pelo menos, ela pensava que aquilo fora o que a irmã Caroline tinha dito.

  Pat respondeu muito sério.

  - Se eu fosse negro, e se pudesse passar por branco, claro que era isso que eu faria. Eu não sei como eles agüentam isso. Já basta que... - Achou melhor não terminar a frase.

  Ellen resolveu trazer a conversa para um terreno mais seguro.

  - Eu aposto como você vai adorar Notre Dame.

  - Eu não sei.... - Ele continuou a beber a cerveja na garrafa que já era a quarta. - Pelo que tenho ouvido, aquilo me parece uma prisão muito parecida com aquela para onde vai o Kevin. E você? Para onde vai?

  Ela respondeu sem muito convicção.- Eu acho que vou para a escola de enfermagem de St. Anne.

  Ele soprou a espuma da cerveja que lhe grudara na boca.

  - Talvez fosse melhor ser logo uma freira em lugar de se misturar com aquelas freiras alemãs... Espere um pouco aqui.

  Vou buscar mais duas cervejas ali do outro lado da rua.

  Ela ficou pensando na paz que havia na vida de um convento. Depois de todo aquele barulho de sua casa, aquilo seria um alívio. Ainda tinha mais dois anos para se decidir. Os pais diziam que ela teria de ser uma enfermeira para poder ganhar dinheiro e pagar de volta tudo que eles tinham gasto com sua educação.

Pat estava calado, entregue aos seus próprios pensamentos, quando voltou com uma garrafa em cada mão.

  - O que é que há, Pat? O que foi que eles disseram para você?

  - Nada. - Ele respondeu de má vontade.

  - Não me venha com respostas dessa ordem. - Ela não gostou. - Eles lhe disseram alguma coisa lá, só para magoá-lo, e eu quero saber o que foi.

  Ele deu-lhe umas pancadinhas nas mãos.

  - Que garotinha esperta que você é, minha Ellenzinha. Pois muito bem. Um deles, um cara grã-fino que esteve em Notre Dame, disse que a escola estava muito por baixo já que aceitava até lixeiros.

  - Deixa pra lá, Pat. Não dê atenção para o que dizem aqueles bêbados. Você é tão bom quanto eles. Talvez mesmo melhor.

  - Não tenho tanta certeza assim, Ellen. Beba um gole disto aqui, não vai te fazer mal. - Ele falava sem calor enquanto lhe afagava os cabelos com as suas mãos enormes.

  Ela nunca bebera cerveja antes, e foi com uma surpresa misturada com culpa que gostou. Não devolveu a garrafa.

  A irmã Caroline dizia que o alcoolismo não era hereditário.

  - Você tem idéias formadas a respeito de tudo, Ellen. - Ele fidou-lhe carinhosamente. - Por que as pessoas são tão desagradáveis?

  Ela ficou pensando com cuidado.

  - Acho que é, principalmente, por inveja. Ninguém me detesta muito, e eu acho que é porque eu nada tenho que possa ser motivo de inveja. Se você não fosse famoso por haver ganho o campeonato da cidade, aquele cara iamais lhe diria qualquer coisa. Pat terminou sua garrafa.

  - Eu bem gostaria de enfiar essa maldita bolsa em... Eu vou mostrar-lhes. Há de chegar o dia em que eu lhes mostrarei. Então nós seremos os últimos a rir, Ellen, você e eu.

  Ela bebeu a cerveja muito devagar. Pensando bem, não era nada melhor do que um malted milk. Não era mesmo.

  Eles começaram a caminhar deixando para trás a aldeia, com as suas luzes alegres e vistosas refletindo-se nas águas tranqüilas e negras do hgo. As luzes das casas da beira do lago lançavam raios dourados e alaranjados naquele silencioso espelho negro. Por trás da aldeia e no alto da colina estavam as casas das pessoas ricas, dos Brennans e dos Cunninghams, e de gente como eles.

  Estavam agora perto da praia cheia de árvores frondosas do parque estadual. Durante o dia, aquela praia ficava cheia de visitantes. À noite o parque estava fechado e era proibido entrar ali. A rodovia corria entre as colinas e o parque. Era a South Shore Drive. Ellen e Pat tinham saltado por cima da cerca em silêncio. Os guardas do parque estavam mais interessados em manterem de fora as pessoas que vinham da estrada do que os garotos que saltavam a cerca.

  - Você é uma pessoa maravilhosa, Ellen. - Pat disse aquilo de repente, interrompendo a paz que baixara sobre eles.

  Ela respondeu com simplicidade:

  - Obrigada, Pat.

  Ele tomou-a em seus braços e beijou-a apaixonadamente. E ela pensou, como se sonhasse, que gostava de ser beijada assim.

  Depois ele mudou. Tirou-lhe a garrafa da mão e jogou-a no lago, fazendo-a sentar na areia. Ela ficou por demais surpresa para resistir e aterrorizada demais para implorar. Ele levantou-lhe o vestido com violência e apertou o seu corpo rígido com a mão. Ela gritou e tentou libertar-se.

  - Ninguém vai ouvir você gritar aqui.. . - Ele  berrou para ela enquanto a mantinha deitada na areia com a sua mão enorme. Ela desistiu, entregou-se reclamando baixinho enquanto ele apalpava-lhe o corpo todo.

  As lágrimas dela romperam o transe de sua violência. Ele largou-a e saiu cambaleando como um bêbado para a beira do lago. Ellen agarrou sua bolsa e fugiu para dentro da mata, evitando, apavorada, os monstros que surgiam de repente e que assombravam aquelas árvores escuras. Caminhou tropeçando e caindo às cegas por cima dos arbustos e galhos, cortando os pés, e finalmente esparramou-se no chão de terra batida depois de haver esbarrado num banco do parque. Ofegante como um coelhinho apavorado,  ela ouviu quando ele veio chegando e então pôs-se de pé e saiu correndo novamente pela escuridão. Finalmente, com o corpo alagado de suor e com o peito doendo, ela deixou-se cair no acostamento da rodovia. Enterrou os dedos no solo de areia.

  - Oh Deus, ajude-me por favor. - Não lhe veio resposta do céu estrelado daquela noite de verão. Ela obrigou o corpo a acalmar-se.

  A floresta lá atrás estava calma e tão silenciosa como as estrelas. De repente, sem nenhum aviso, ela foi envolvida por um foco de luz. que passou por ela como se fosse o próprio raio da morte e logo sumiu acompanhado de um barulho de rodas. Ela deixou-se rolar para a vala ao lado da estrada. Seus dentes batiam, seus braços e pernas tremiam. Ela ali ficou toda encolhida e chorando enquanto os fachos de luz passavam por ela e outros carros seguiam rugindo pela estrada.

  Mais uma vez. ela reagiu e conseguiu dominar a tremedeira. Teria que caminhar, morro acima, uns dois quilômetros e meio até a casa dos Cunninghams. Na bolsa estavam as sandálias que tinha tirado quando começara a andar na praia com Pat. Calçou-as. Os pés doíam-lhe e estavam todos cortados e arranhados pela sua desesperada fuga pelo parque. As canelas sangravam por causa do encontrão com o banco do parque. Sabia que teria de esconder os ferimentos para que a mãe de Maureen não os visse, e teria que inventar alguma coisa que justificasse a roupa rasgada.

  Luzes brilharam lá na frente entre as árvores, e ela, como um animal acuado, logo escondeu-se na vala. Foi só depois que o grande Packard passou que ela reconheceu o carro dos Brennans. Teriam eles visto a sua caminhada pela colina com os pés feridos, as pernas sangrando e as roupas rasgadas? Iriam contar a Kevín?

  Pat atirou-se no lago rasgando a superfície das águas. Que Deus me perdoe. .. por favor, perdoe-me, perdoe-me.

  Ele tinha corrido pelo parque à procura de Ellen para lhe pedir perdão. Ele adorava-a. Jamais quisera amedrontá-la. Depois voltara ao parque, arrancara fora as roupas e mergulhara no lago esperando que aquilo lhe limpasse a sujeira do seu pecado. Estava agora quase no meio do lago e começava a sentir-se cansado. A cerveja estava cobrando o que lhe era devido. Já não me importo. Vou afogar-me. Ninguém vai sentir falta de mim. Eu prometi no retiro de setembro último. O padre fez-me prometer antes de me dar a absolvição.

  Ele já estava afundando. Seus pulmões já estavam enchendo. Aquilo era doloroso como se fosse fogo. Instintivamente, ele veio novamente à superfície, sentiu um muro liso ao qual procurou se agarrar, e sua mão encontrou uma corda. Agarrou-se a ela, a sua última ligação com a vida. Deveria largá-la? E por que não?

  Preferiu viver.

  A corda era da âncora de um veleiro grande. com a respiração ofegante, ele procurou subir ao barco. Havia lá uma luz e ele escutava vozes. Vou descansar um pouco e depois volto para a praia.

  Havia no barco um homem e uma mulher. Não eram jovens nem velhos. Estavam ambos parcialmente despidos e abraçados naturalmente. Não conseguia ouvir o que diziam.

  Mais tentação. Ele deveria sair antes que visse alguma coisa que o sujasse ainda mais do que já estava.

  Não nadou de volta. Estava fascinado por aquela postura descontraída do casal. Como era que uma coisa podia causar-lhe uma febre venenosa enquanto para aqueles ali parecia tão natural? A mulher riu, um riso baixinho e suave de prazer. Ele sentiu o estômago embrulhar-se, cheio de nojo.

  com cuidado, para não fazer barulho, Pat largou a corda e nadou de volta para o banco do parque. Muito depois ele chegou lá e deitou-se nu, completamente exausto, e procurando recuperar o fôlego. Estava pensando nos soluços aterrorizados de Ellen e da risada satisfeita da mulher no barco. Deitou-se de costas e ficou olhando as estrelas. Que horas seriam? As luzes estavam apagadas na aldeia. Seriam talvez, duas ou três da madrugada. Ele gemeu de desespero. Se, pelo menos, Deus o fulminasse ali mesmo...

  Então uma luz estranha apareceu, uma bola de luz muito suave que se erguia das águas da lagoa. Girou em torno dele e depois envolvéu-o. O tempo parou. A paz, alegria, perdão e o amor penetraram no mais íntimo do seu ser. A luz aqueceu-o, lavou-o e renovou-o. Ellen apareceu-lhe na luz junto com a mulher do barco e também Maureen.

  Todas as mulheres do mundo ali estavam cuidando dele e amando-o.

  Depois todas elas se fundiram em uma só mulher com trajes brancos e dourados. Ela disse-lhe o que deveria jazer para se livrar da danação eterna que lutava para conquistar a sua alma.

  O diretor espiritual do Seminário Quigley, um homem grisalho e nervoso, avisou-me que seria necessário abandonar os meus colegas do ginásio, e acrescentou "homens e mulheres" destacando bem a última palavra. Eu iria agora trilhar um caminho muito diferente do que todos eles seguiriam. Devia eliminá-los de minha vida cortando tudo que me ligasse a eles. Quanto mais tempo eu levasse para fazer isso, muito mais difícil seria.

  Quigley transigiu com seus princípios fazendo-me entrar diretamente para o quinto ano de seu programa porque meu pai tinha procurado o seu velho amigo do exército, dos tempos da guerra, e que era agora o vice-chanceler da diocese. A maioria dos "especiais" era obrigada a voltar ao segundo ano para repetir todo o ginasial.

  Depois de um ano em Quigley eu iria para os sete anos do principal seminário em Mundelein, ao norte de Chicago, onde seria ordenado "se Deus quisesse", conforme dizia meu pai que, sem dúvida, repetia o que ouvira de seu antigo camarada do exército. O reitor foi convencido a salvar um pouco de sua dignidade insistindo para que eu fizesse um curso de verão de grego do Novo Testamento que não me tinham ensinado nos jesuítas.

  Foi assim que eu passei todo o verão indo de bonde até as torres góticas e bem sujas de Quigley, já que os seminaristas não tinham permissão para dirigir automóveis, para ali fazer a transição da vida que levara até então para a vida de seminarista. Foram dois meses tristes e insuportáveis, devido ao calor. Eu sentia falta do lago e de meus amigos. Enquanto estudava o terrível grego de São João e mergulhava em Charles Dickens por minha conta, eu não cessava de procurar convencer-me de que, em breve, tudo aquilo seria coisa do passado.

  Maureen telefonou-me na semana anterior ao Dia do Trabalho, na hora exata em que eu chegava em nossa casa vazia e quente, voltando de minha última aula.

  - Alô! Desconhecido. Será que está disposto a fazer um favor para uma sua antiga paixão?

  O som de sua voz fez com que eu me esquecesse de todas as agruras.

  - Tudo depende da paixão. - Ao dizer isso eu fazia tudo para que ela não percebesse a minha satisfação e o largo sorriso em meu rosto.

  - Você não vai querer ficar aí na cidade todo este fim de semana, vai? Nós não vamos roubar a sua vocação só em três dias.

  - Eu estou indo para lá de carro dentro de meia hora. Qual é o favor?

  - Leve a Ellen ao cinema quinta-feira à noite e à festa do clube de campo na sexta.

  - O que é que há com o Pat? - Eu fiz a pergunta sem ouvir a voz da consciência que não estava gostando de minha alegria ao ouvir a voz de Mo.

  - Acontece que ele foi a Mayslake para rezar a respeito da tal visão. Além disso, ele e Ellen tiveram uma brigazinha. Você sabe como o Pat é materialista.

  Minha mão apertou-se e meus dedos ficaram brancos com a força que fiz apertando o fone.

  - Que negócio é esse de visão?

Ela soltou uma risadinha de escárnio.

  - O coitado do maluco Pat anda por aí dizendo que viu a Virgem Maria, e que Ela lhe disse o que deve fazer com sua vida. Seja lá como for, Kev, você quer ou não quer livrar-me da Ellen? Não creio que ela possa ser uma ameaça para alguma maldita vocação de alguém.

  Se ela estivesse em condições de ouvir como batia forte o meu coração, é bem possível que modificasse a sua opinião sobre os atrativos sexuais de Ellen.

  - Você quer que eu a leve de carro? - Eu estava espantado com aquela minha atitude desabrida,

  - Puxa vida, Kevin. Você mudou muito depressa! Não. Aquela mãe dela nojenta... você nem imagina como eu detesto aquela mulher carola, ela não deixa

a Ellen vir senão na noite de quarta-feira...

  Depois de desligar, eu me lembrei que "carola" era um adjetivo que eu nunca vira a Maureen usar antes.  

  Estávamos todos ficando mais velhos.

  E foi assim que na quinta-feira eu estava no Sugar Bowl sentado com a Ellen, vendo-a demolir metodicamente mais um sorvete e ouvindo-a comentar o herói de A Grande Ilusão, a que acabara de assistir.

  Ela estava ainda mais bonitinha do que eu me lembrava, com um sorriso muito animado, olhos faiscantes, e uma voz rápida e decisiva. Ellen estava descobrindo o seu corpo e o seu espírito, e estava gostando daquilo.

  - Posso pedir um favor a você, Kevin? - Ela falava um tanto timidamente, com os olhos baixos atentos ao sorvete em sua frente. A vitrola estava começando a tocar Riders in the Sky.

  - Peça cem, minha bonitinha.

Uma mecha de seu cabelo louro, agora cortado curto, caiu-lhe na testa, e ela endireitou-a com impaciência.

  - Bem, isso não faz parte do trato que você fez com a Maureen a meu respeito... - ao dizer isso ela corou um pouco - ... e você pode dizer não se quiser. Será que dava para você me ensinar a esquiar na água amanhã? É um favor.

  Coloquei meu indicador embaixo de seu queixo e levantei-lhe a cabecinha.

  - Eu pego você quando for nove e meia. E não vá pensar que eu não gostei do trato que fiz com a Maureen.

  Depois ficamos os dois um tanto embaraçados, lembrando tudo aquilo que houvera entre nós dois e sobre .o que não gostávamos de falar.

  Na manhã seguinte, às dez e meia, não havia magia alguma. Eu estava zangado com Ellen e ela detestava-me.

  - Estou completamente exausta... - gemeu ela. - Por favor, deixe-me entrar no barco.

  Ela estava mais do que exausta. Era um camundongozinho todo encolhido e molhado que não queria, ou talvez não podia, seguir minhas instruções, e aquilo deixava-me furioso. Gritei então para ela:

  - Você não tem coragem! Se você confessar que não tem coragem mesmo, eu puxo você para o barco. De outra maneira vai ficar aí mesmo e vai ficar tentando acertar.

  Ela atirou-me um punhado de água e respondeu gritando:

  - Você é convencido, arrogante e insensível. Jogue-me a escada de corda para eu subir.

  Não liguei para os insultos nem para o pedido.

  - Mantenha a porcaria dessa corda entre os seus esquis, com as pontas fora da água e os joelhos juntos. Não se deixe amedrontar quando começar a deslizar. - Afinal, a sua coordenação não era tão má assim, o que a amedrontava eram a água espirrando, o barco puxando e o barulhão do motor.

  Ali perto de mim, Nick McAuliff, um seminarista que viera ao lago comigo naquele dia, estava achando muita graça. Vinha achando graça desde que eu dissera a Ellen:

  - Abaixe bem a... a parte inferior de seu corpo em cima dos esquis.

  Ela ficara zangada e respondera:

  - Não é nenhum pecado dizer "bunda", seu bobalhão estúpido!

  Manobrei o velho motor Higgins esticando bem a corda, engrenei e acelerei. Estava tão furioso que acelerei demais. A corda, certamente, ia fugir-lhe das mãos.

  - Ela está de pé! - Nick gritou.

  Eu, então, dei uma olhada. O camundongozinho se transformara num lindo e gracioso passarinho. Ellen não era daquelas que preferiam se encolher por trás do barco uma vez que estava lá de pé. Logo depois ela ali estava atravessando o lago tranqüilo, a toda velocidade, com os joelhos bem juntos gritando o mais alto que podia numa verdadeira alegria de animal.

  Ela agüentou-se bem para dar quase uma volta inteira no lago, cheia de confiança na esteira do enorme Chris Craft, deu um salto elegante e esparramou sua bundinha bonita com força contra a água. Estava ainda rindo quando encostei o barco ao seu lado.

  Três vezes ela tentou subir pela escada de corda e três vezes caiu de volta na água sempre às gargalhadas logo que punha a cabeça de fora.

  Estiquei-me por cima da borda do barco e peguei-a por baixo dos braços trazendo-a para dentro. Quando a sentei no banco os nossos corpos se tocaram levemente e eu senti um espasmo de desejo tão forte que pouco faltou para cair ali mesmo.

  - Você está mais pesada do que no verão passado, Ellen.

  - Só pouco mais de dois quilos. - Ela riu-se alegremente. Mas creio que perdi a metade lá dentro da água.

  Enrolei-a numa toalha, dei-lhe umas palmadinhas de aprovação como se ela fosse uma campeã, e levei-a até o banco de trás do barco.

  Ela virou-se para o Nick com os lábios muito vermelhos e os dentes ainda batendo de frio.

  - Você está vendo como é que o Kevin trata as garotas agora que ele já está no seminário? E ele faz isso com a garota na manhã do maior baile do verão, para que ela esteja derreada e então já não será obrigado a tirá-la para dançar.

  - Vocês dois são loucos. - Foi esse o comentário de Nick McAuliff.

  Ellen nada tinha de derreada naquela noite. Seus cabelos estavam muito bem ondulados. Trazia sapatos de saltos bem altos, um vestido cor-de-limão com alças muito finas, e tudo aquilo fazia com que parecesse uns seis anos mais velha. E ali estava eu, um garoto, com uma mulher jovem. Por baixo do vestido eu sentia os contornos de seu corpo flexível. Os sons de Some Enchanted Evening guiavam nossos corpos que deslizavam no salão. Perto de nós dançavam também meu pai com minha mãe.

  E foi ele quem disse.

  - O seu gosto a respeito de mulheres está bem bom neste ano, Campeão.

  E mamãe dizia para Ellen que ela estava absolutamente divina. Ela aceitou o elogio dos dois com uma graça natural. Eu apertei-a ainda mais. Ela dançava muito bem.

  - Eu quero lhe dizer duas coisas, Kevin... - Ellen falava como se fosse a madre superiora dando ordens para a vida da comunidade.

  - Pois diga uma centena.

  - São só duas. A primeira é que você será um padre maravilhoso, e eu rezarei para que você não desanime quando a coisa ficar dura.

  - Oh, Deus meu! "Não desanime." Conversa de freira durante um baile.

  - E qual é a segunda? - A minha pergunta não denotava grande interesse.

  Ela aninhou sua cabecinha loura em meu peito.

  - A segunda coisa, Kevin Brennan, é para lhe agradecer ter sido tão gentil comigo nestes dois últimos verões. Eu sei que você é gentil com todo mundo, mas principalmente porque você sente a responsabilidade. Eu... - As palavras escapavam-lhe agora como se fosse o ar sendo expelido de um pneu furado. - Eu acho que você não sente essa responsabilidade por mim de forma alguma. Você é bom comigo só porque gosta de mim, e... e... bem, eu apenas lhe sou muito grata por isso.

  Dois dos meus dedos acariciavam-lhe o pequenino sinal que ela tinha nas costas.

  - Eu gosto de você, Ellen. Mas você está errada. É você que tem sido muito boa para mim.

  Mais tarde, quando a beijei, desejando-lhe uma boa-noite, ela franziu o rosto.

  - Será que os seminaristas devem beijar desta maneira?

  - Se não beijasse você desta maneira, seria um pecado mortal. - E, como se desejasse provar o que dizia, tornei a beijá-la.

  O diretor espiritual disse-me que a gente atravessa a vida carregando as feridas do passado. Quando adormeci satisfeito naquela noite, sabia que Ellen Foley, a fada surgida das águas, cujos seios macios eu havia reverentemente acariciado no lago da floresta, seria a ferida que eu carregaria comigo durante muito tempo.

  Eu tentava conter a minha fúria.

  - Mas Pat, essa é a coisa mais maluca que você já fez em sua vida. Você não tem vocação.

  Ele também estava zangado. Um pequenino nervo em sua garganta estava pulsando. As mãos estavam apertadas com os dedos trançados.

  - Como é que você, com todos os diabos, sabe se eu tenho ou não vocação? Você está pensando que é o único que pode ser padre em toda esta maldita paróquia?!

  Estávamos na quarta-feira à noite depois do Dia do Trabalho. Pat e eu estávamos conversando na sala de nossa velha casa em Mason Avenue. O lago estava abandonado e o pessoal estava se aprontando para voltar à escola. O Seminário Quigley começaria às nove da manhã do dia seguinte. Era apenas a metade do dia para todo mundo, com exceção dos "especiais" que deviam ficar o dia inteiro. Pat tinha na mão a carta de recomendação que conseguira de nosso pastor. Ele queria que meu pai falasse com o seu amigo, o vice-chanceler. Afinal de contas, ele tinha feito o mesmo curso e as suas notas eram quase iguais às minhas. Meu pai saiu para deixar-nos sozinhos.

  - E a sua bolsa em Notre Dame, Pat?

  - Ela que se dane. A minha alma imortal é mais importante do que o basquete.

  - Você sempre poderá salvar a sua alma de outra forma... Ele ficou muito pálido antes de responder meio zangado:

  - Há gente que não pode. Eu não posso. A Virgem Maria me disse que eu só poderia salvar a minha se fosse padre. - A sua fisionomia estava tensa, mas os seus olhos muito azuis estavam com uma firme determinação. - O padre Plácido disse que eu tinha mesmo vocação. Seria um pecado mortal se eu não correspondesse.

  Procurei sondá-lo por um outro lado.

  - E a sua família?

  - Estão furiosos comigo, da mesma forma que você. Eu não estou ligando. Tenho que fazer o que Deus me ordenou. Por favor, Kevin, preciso de sua ajuda.

Era difícil ficar zangado com Pat. Via-se que ele era sincero.

  - Mas claro que vou ajudar, Pat. Será uma beleza ter você lá junto comigo.

  Ele ficou tão aliviado com a minha aprovação que não chegou a notar como eram ocas as minhas palavras.

  Depois que ele saiu eu fiquei olhando, meio apatetado, para as flores que desabrochavam em nosso jardim na frente da casa. O sol, que desaparecia cada vez mais cedo, fazia lembrar o inverno que se aproximava. Ele desenhava na grama, com a sua luz suave, um padrão meio louco. Deveria eu falar com o reitor a respeito da maluquice de Pat? Lá em Quigley eles não gostavam de gente que levasse muito a sério a santidade do padre Plácido. Resolvi não dizer nada. Eles é que deviam investigar. Não era de minha conta dizer-lhes que o lugar de Pat não era num seminário. Nem, tampouco, o sacerdócio.

  Maureen disse a palavra final no verão de 1949 quando me encontrei com ela, caminhando firme com saltos muito altos, na missa das onze de domingo.

  - O jogo ainda não acabou, não é mesmo, primo Kevin? Os seus olhos muito grandes dançavam cheios de malícia.

  Pobre Maureen. Ela teria que pagar um preço bem mais alto pela vocação de Patrick. Bem mais alto que o meu...

 

  - Que diabo, Kevin, não tente mostrar-se tão alheio. - Maureen esmagou o cigarro no cinzeiro. - Você deseja tanto ir para Roma que até já gosta de macarrão.

  Evitei olhar para Ellen que estava sentada ao lado de Maureen. Preferia olhar lá para fora, pelas janelas, para a neve que acabara de cair, limpa como cristais ao luar nos jardins dos Cunninghams. Era a casa nova deles em River Forest, a uma quadra de distância da casa de um famoso gangster italiano, e que era um palácio, embora minha mãe dissesse que era um palácio de mau gosto e muito vulgar. A única compensação era a quantidade de sol que entrava na sala de visitas e na de jantar, verdadeiras celebrações em rosa, amarelo e ouro de luz, fruto das aulas de arte de Mo.

  Procurei controlar minha voz.

  - Eu já estive em Roma com a família e tenho a certeza de que voltarei lá. Não há razão nenhuma para eu estudar teologia lá.

  Ela respondeu logo bebendo mais um bom gole de conhaque.

  - Bobagem. Você é ambicioso e quer ser bispo. Se Pat for para Roma, ele será o bispo em seu lugar. - A voz dela já estava pastosa com os efeitos do Chateau Lafite que bebera no jantar.

  Respondi sem muita convicção.

  - Eu não pretendo ser bispo. E desde que construíram o novo North American College no Janiculum, aquilo já não é mais uma escola para futuros bispos, e sim apenas um grande seminário norte-americano.

  - O Kevin não quer ser bispo - disse Ellen baixinho com os seus olhos cinzentos muito redondos e firmes, observando bem, toda a mudança em minha expressão do rosto. - Ele só quer é vencer. Você vai vencer mesmo, não vai, Kevin?

  - Eu não sei bem... - respondi suspirando. Já lá iam três anos e meio desde a última vez que eu falara com ela.

  As nossas férias de inverno, naquela época, eram no fim de janeiro. O Cardeal Mundelein deixara-se convencer de que o seu seminário, uma extensa coleção de edifícios georgianos em tijolos vermelhos, no campo, era um paraíso silvestre. Não podia imaginai razões para que seus seminaristas desejassem passar o Natal em casa. Embora ele já estivesse morto desde uns dez anos e meio atrás, nós ainda continuávamos a fazer coisas na arquidiocese, da mesma forma que elas eram feitas no seu tempo.

  As autoridades do seminário gostavam daquela decisão porque não queriam vernos de volta às nossas paróquias numa ocasião em que nossos amigos em idade de universidade estavam também em suas casas para as férias de Natal. Nunca lhes ocorrera que também havia as férias de meio de ano para os leigos.

  Eu estava violando diversas regras quando conversava com duas moças bonitas, eminentemente femininas, trajadas à última moda do new look, e que representavam exatamente a espécie de tentação contra a qual o padre McNulty, nosso diretor, nos alertava durante três semanas antes de começarem todas as férias.

  As duas já estavam no segundo ano da universidade e eram realmente encantadoras. Depois de quatro meses de seminário, onde as únicas mulheres eram as freiras e as irmãs dos seminaristas, que vinham visitá-los nos três domingos permitidos, durante duas horas, todas as garotas pareciam encantadoras. Eles chegavam a imaginar que estavam ouvindo o tique-taque dos saltos altos nas calçadas de concreto vazias.

  De repente, Ellen ficara sendo a mais bonita das duas. Ainda parecia frágil, mas já agora o seu rosto pálido deixava transparecer uma inteligência rápida a despeito de sua serena imobilidade. Eu não me sentia bem ali.

  - Mas é claro que você vai vencer. - Maureen explodiu, cobrindo com a mão o cigarro de Ellen para acender o seu, e elas pareciam dois elegantes pássaros bicando-se mutuamente. – Você, tem melhores notas, é mais popular entre os outros seminaristas e, além disso, é um líder natural.

- Não é isso que acontece, necessariamente. Tanto os jesuítas como a faculdade da diocese gostam muito do Pat. Ele é espirituoso e encantador. Eles me acham

muito casmurro e... - o vinho tinha-me soltado a língua e eu disse uma coisa da qual logo me arrependi. - ... também sou muito elegante e muito rico. Fui severamente repreendido por ter ido a Roma com a família antes de minha designação de verão para o orfanato no ano passado.

  Fui um tolo em reconhecer uma coisa daquelas somente para conquistar as simpatias femininas. Embora fosse muito popular com meus companheiros de classe, tendo sido o primeiro "especial" a ser eleito presidente da classe de formatura em Quigley, eu não era muito bem-visto pelas autoridades do seminário, e isso mesmo sob um ponto de vista tolerante. Eu obedecia a todas as regras, fazia todos os trabalhos, rezava tudo que era preciso, mas as autoridades não gostavam de todo aquele dinheiro

da família. As melhores nomeações eram sempre para o Pat, inclusive a que ele ocupava agora como prefeito-chefe. Ele governava com gostosas gargalhadas, com um sorriso sedutor e com uma rápida piada. Eu era apenas um funcionário subalterno, o chefe dos jogos, responsável pelas tabelas de atletismo, a-pessoa a quem Pat se dirigia para pedir conselhos sobre casos sérios como, por exemplo, a licença para "fumar dentro de casa" nos dias muito frios, isto é, licença para fumar no salão de recreio durante a meia hora em que isso era permitido depois das refeições.

   Maureen não se conformava.

  - Isto é a coisa mais estúpida que já vi. Mas, que diabo! Sente-se, Kevin, a Ellen e eu não vamos te estuprar. - Fez-nos sinal para um sofá antigo cheio de enfeites, de muito mau gosto e que não combinava com a sala em que estávamos. - Será que a Igreja não vai jamais acordar para reconhecer que estamos no século XX? Será que todos nós teremos de abandoná-la antes que ela mude? Por que sentirem inveja de você só porque sua família tem uns tantos dólares?

  - A Igreja está mudando - disse eu enquanto procurava uma cadeira na sala, o mais longe possível. - Aí temos a nova liturgia da Páscoa.

  Maureen ficou irritada e levantou-se do sofá para fazer tuncionar a vitrola.

  - Kevin Brennan, somente um seminarista poderia jamais pensar que os jovens estão ligando a mínima para essa tal de liturgia da Páscoa.

  - E como é que vocês dois se sentem com a rivalidade que o seminário lhes impôs? - A pergunta veio de Ellen com sua voz muito macia que era quase um sussurro.

  Ao contrário de Manhattanville onde Maureen se misturava com a aristocracia da costa do Atlântico, a Escola de Enfermagem de St. Anne não tinha, naquela época, as jovens rebeldes de hoje.

  - Nós não tocamos no assunto. - Eu apenas resmunguei.

  - E por que não? - Ellen era persistente.

  - Porque somos homens, e homens não sabem como contornar as dificuldades, da maneira como fazem as mulheres.

   - Aliás, na realidade - Ellen continuou - não faz a menor diferença o fato deles gostarem ou não de você. Assim como também não faz diferença você ganhar do Pat.

  - É isso mesmo, Ellen. É apenas um jogo bem tolo.

  Se eu fosse o perdedor no páreo com o Pat para ir a Roma, teria que aturar o seminário durante mais quatro anos, numa vida vazia e rígida com todos os segundos marcados desde cinco e vinte e cinco da manhã até nove e quarenta e cinco da noite com todos os momentos cuidadosamente vigiados à procura de sinais de "desobediência", já que a obediência, e não o zelo ou a caridade, era a mais importante das virtudes sacerdotais. A rígida disciplina do seminário era uma triste preparação para o sacerdócio das dioceses no século XX. Costumavam dizer que o nosso reitor era um dos mais esclarecidos espíritos do século XVIII. E a rotina de memorização dos livros didáticos em latim, que nós quase não compreendíamos, não era certamente útil para o treinamento de um trabalho entre os leigos que se formavam nas universidades e para a classe média superior.

  Devido ao fato de sermos seminaristas, estávamos isentos do serviço militar na guerra da Coréia que se arrastava depois de havermos ido para Mundelein. Larry Ryan, o nosso miudinho do centro na escola dos jesuítas, tinha sido morto na retirada do Rio Yalu e a minha consciência levou-me ao ponto de abandonar Mundelein para me alistar. Meu pai ficou furioso dizendo que eu devia saber exatamente onde estavam as minhas obrigações. Foi então que a linha de batalha se estabilizou e eu não fui requisitado para defender a democracia nas redondezas de Seul.

  Eisenhower era Presidente, o seminário estava dividido ao meio a respeito de Joe McCarthy e o país estava se preparando para o longo sono da década de cinqüenta. O mundo tinha a impressão de que o Papa Pio XII estivera sempre ali, da mesma forma que o Cardeal Stritch, o nosso arcebispo.

- Que diabo está havendo com o seu amigo Donahue? - Foi a pergunta que me fez TomO'Malley, um seminarista gregário, muito vermelho, numa noite fresca de primavera quando passeávamos em torno do lago.

  Aquela pergunta colocou-me logo na defensiva.

  - O que está querendo dizer com isso?

  - O que é que ele está pretendendo?

  - E que importância tem isso?

  Atravessamos a ponte por cima do malcheiroso ribeirão que as gerações anteriores de seminaristas tinham, cruelmente, batizado com o nome de Ribeirão Stritch, por causa do nome do arcebispo.

  Agora já era Tom que não se sentia à vontade.

  - Ninguém fala nisso com você porque os dois foram criados juntos, mas aqui, eles são o inimigo, e ele está do lado deles todas as vezes. Defende-os, adula-os.

  E muitos de nós acreditam que ele faz espionagem em favor deles.

  - Duvido muito. - A minha resposta foi evasiva. - Pat apenas gosta que gostem dele.

  - Que eles gostem, e não nós, Kevin.

  Fiquei calado esperando que O'Malley continuasse.

  - Alguns colegas nossos pensam que ele está querendo conseguir ir para Roma... - Ele falou baixinho sem me olhar de frente.

  - Pois ele pode ir se assim quiser.

  - Mas é você que deve ir. - Tony parecia um advogado defendendo um cliente. - Eles sempre enviaram o líder da classe. Eles sempre preparam o líder com antecipação ensinando-lhe o italiano durante dois anos. Você é o líder da classe, e eles estão i lhe ensinando italiano. Pat, porém, está sempre adulando os caras da faculdade que não gostam de você.

  - O seu "sempre" significa apenas três anos, Tony.

Fora somente depois da construção do novo colégio em Roma que a política do Cardeal Mundelein que consistia em mandar todos os seus rapazes para os seus próprios seminários fora violada, aliás, uma das poucas que o Cardeal Stritch conseguiu encontrar a energia suficiente para modificar.

  - Pois então você ainda não reparou como ele anda sempre a puxar o saco daquele maldito idiota, o Vandy? - O'Malley continuava.

  O Professor Harold F. X. Vandenbergue, S. J. era um jesuíta quase senil que ensinava filosofia, e com isso nos fazia dormir em quatro tardes da semana. Éramos obrigados a ouvi-lo, sentados nas cadeiras muito incómodas do grande salão de conferências decorado com quadros de nus da Renascença, falsificados e só de homens. Alguém tinha enganado o Cardeal Mundelein fazendo-o acreditar que eram autênticos originais de Paolo Veronese, Vandy nunca olhava para nós durante as lições, aparentemente obcecado pelas árvores que via lá fora através da janela. As suas aulas eram um monótono comentário sem fim, em latim, sobre a diferença entre Santo Tomás de Aquino e Francisco Suárez. Ele era a favor do último.

  - E daí? - Eu estava começando a perder a paciência com O'Malley e também com Pat.

  - E daí é que você sabe muito bem como a faculdade mantém viva a ficção que o Vandy sabe descobrir talentos. Donahue está de olho na colina do Janiculum, e você é o único cara em todo o edifício que não se dá conta disso. - Ele olhou-me com, ar inquiridor. - E esse negócio que há entre ele e o Stan Kokoleck? Eles estão sempre falando de "amizades particulares", mas a regra parece que não se aplica ao Donahue. Se ele não está chupando o Koko, não é porque o Mac não está olhando para o outro lado. Naqueles tempos, a palavra "homossexualismo" não era mencionada no seminário. Nós fingíamos que ela não existia. Não havia muita coisa ostensiva nesse sentido. Quando se enclausura umas duas centenas de moços solitários, as "ligações" podem vir a ser um problema, especialmente quando os superiores e a faculdade demonstram parcialidade e inclinação para o favoritismo para com alunos bonitões, como era o Pat Donahue.

  - Isso, pelo menos, eu posso dizer-lhe para esquecer, Tony. Se existe uma coisa que o Pat não é, essa coisa é... é esse negócio que você está querendo insinuar.

  Lá de onde nós viemos há uma grande quantidades de garotas que podem confirmar o que digo. - Eu procurava mostrar-me convincente, e hesitava em usar a palavra certa.

  Alguns dias depois disso o Pat pegou-me de surpresa e propôs-me que nos encontrássemos no ginásio, durante o recreio da noite, para falar sobre o torneio de basquete para o qual ainda faltavam seis semanas. O seu lugar de prefeito-chefe dava-lhe as chaves e o direito de estar no ginásio nas horas em que ninguém mais tinha permissão para ir lá. Foi somente quando ele ligou a luz no pequeno escritório do ginásio que eu percebi que estava voltando aos velhos tempos do basquete e das bolas que batiam na trave.

  - Eu estou ficando maluco, Kev. - Ele falou-me com uma voz agoniada. - Estou precisando de ajuda. Já é bastante ruim perdê-lo. Não posso vê-lo com mais ninguém.

  Um dos cantos de minha mente estava olhando lá para fora e vendo a neve derreter-se no primeiro grande degelo daquele inverno. A poça de água que se formava lá na frente do ginásio fez-me voltar à realidade.

  Procurei ganhar tempo fazendo que não entendia.

  - O que é que você quer dizer?

  - Eu... humm... - fez uma pausa muito embaraçado. Bem... eu estive com o Koko durante as férias e acho que bebi um pouco e... meu Deus... eu fui bruto com ele, e então ele não gosta mais de mim. Ele diz que gosta do Marty Fitzpatrick.

  - Dois porcariazinhos... - Interrompi-o irritado.

  - O Koko não é nada disso... - Ele falava implorando e defendendo. - Ele é sensível e compreensivo, e eu não me agüento aqui sem a sua ajuda. Eu preciso tê-lo de volta.

  Passou-me pela cabeça a tentação de perguntar-lhe se ele iria levar o Koko para Roma, mas contive-me.

  - O que é que você anda fazendo com o Stanley, Pat? Preciso saber, se você quer que eu o ajude.

  - Não é nenhum pecado, Kev. - E ali estava aquele herói lívido e acabrunhado, derreado em cima de uma mesa de cerejeira, num pequenino cubículo cimentado onde o cheiro de suor masculino jamais poderia ser exorcizado. - Não é mesmo. Pelo menos não é com uma garota...

  - É muito pior, Pat.

  - Não, não é não, Kev. Não é mesmo. Não é, desde que você entenda o que sentimos um pelo outro. Se não fosse por Koko eu já teria ido embora. Aqui a gente fica tão sozinho! Ele já estava chorando. - Sinto falta de meus pais e de meus irmãos.

  A minha raiva estava começando a se transformar em piedade. Talvez, afinal de contas, a culpa fosse do seminário. Todo mundo ficava um pouco estranho dentro daquele maldito lugar.

  - E o que é que você está querendo que eu faça, Pat?

  - Fale com o Koko. Diga-lhe que estou arrependido por ter batido nele. Diga-lhe que ele precisa deixar de ser amigo do Marty. Eu vou perder a cabeça se continuar a vê-lo com o Marty.

  - Vamos lá, Pat. Esqueça isso. Vá confessar-se e esqueça o passado.

  - Não posso confessar-me, Kev. Eles me obrigarão a ir embora se descobrirem. - Ele estava procurando controlar-se, mas o seu rosto bonito estava desfigurado pelo desespero.

  - Peça um confessor especial. O regulamento permite isso. Eles deixam a gente fazer tudo que quiser, mas você tem que desistir disso.

  Ele sacudiu a cabeça.

  - Eu sei que tenho que desistir, Kev. Já faz meses que eu ando querendo pedir a sua ajuda. Só quero que você fale com o Koko, e eu farei tudo que você mandar.

  Saímos do ginásio e caminhamos de volta pela lama para o prédio da residência. A névoa estava se transformando num jog. Pat, já mais alegre, fez perguntas sobre as férias e sobre a casa nova dos Cunninghams. A menos de cinco minutos depois de sua "confissão" comigo, já ele estava querendo saber como fora o meu encontro com Mo e Ellen.

  Durante um dia inteiro eu fiquei observando o Marty e o Koko, Eles eram mesmo algo mais do que simples "amigos". Falei com o padre Meisterhost, o velho diretor espiritual jesuíta, em seu gabinete decorado com cartões de santinhos, dizendo-lhe que me sentia obrigado a contar, por uma questão de consciência, a minha preocupação a respeito do relacionamento entre Martin Fitzpatrick e Stanley Kokoleck. O jesuíta olhou-me muito sério.

  - Ah, meu filho. Você está certo que sabe o que está me contando?

  - Sim, padre. Eu sei muito bem o que estou contando.

  Os dois não compareceram às aulas na manhã seguinte. Quando voltei de lá para o edifício de residência eles já tinham saído. Quando Pat e eu caminhávamos apressados para o almoço, estávamos os dois pensando sobre o que teria acontecido. Pat parecia notavelmente tranqüilo.

  Uma semana depois, ele saudou-me com um sorriso aberto quando saíamos juntos da aula de Vandy. (Os alunos sempre deviam sair juntos com aquele que encontrava na porta. Aquilo era mais uma proteção contra as tais "amizades particulares".)

  - Foi uma grande coisa eu ter conversado com você naquela noite, Kev - ele disse - já me sinto completamente melhor.

  Naquele ano eu ainda não me livrara daquelas bolas que batiam na cesta e voltavam.

  Em meados de abril, quando a primavera ainda fazia força para nascer, eu caminhava sozinho numa triste manhã de quintafeira, o dia em que não havia aulas porque era assim que eles faziam em Roma, no caminho de baixo entre a "Gruta de Lurdes" artificial e o lago muito sujo. Os alunos não deviam andar sozinhos, talvez porque isso pudesse levar a pensamentos sujos durante o trajeto, ou talvez mesmo só porque poderiam apenas pensar, e isso era uma coisa que o seminário não via com bons olhos.

  Sentei-me num banco, embaixo de um telhadinho que ia até o lago, e ali tentei resolver o problema de Roma. Ouvi o passo de dois homens andando lá em cima, e havia alguma coisa no Tomdas vozes que me fez ficar vagamente inquieto. Uma das vozes era de O'Malley.

  - Duas vezes por semana? Por quê? - Foi a outra voz que falou.

  - Ele tem uma garota em vista na cidade de Mundelein disse O'Malley. - Tiraram-lhe o Koko e agora ele está tentando o outro lado.

  - Você tem certeza? - Era claro que a outra voz estava muito impressionada sobre o que lhe dissera O'Malley, mas estava querendo uma prova.

  - Jerry, o barbeiro, me disse que viu quando Donahue apanhou-a em frente do drive-in onde ela trabalha. Ela está no ginásio de Libertyville. O Jerry diz que o Donahue aparece por ali por volta das 10:30 das terças e quintas, e eles saem no carango dela.

  - E por que ele lhe contou isso tudo? - Agora era Ted Froelich, um de nossos caras mais corretos e sensatos.

  - Eu não sei, mas o fato é que isso está acontecendo, e nós não podemos deixar um cara desses ir para Roma representando Chicago. Temos que avisar ao Mac. Se você não me acredita, vigie o quarto do Donahue esta noite. Depois você pode contar ao Mac na terça-feira.

  As vozes foram sumindo na distância.

  Eu fiquei ali no banco com o corpo e o espírito paralisados. O lugar de Patrick Donahue não era num seminário. Agora eu 'iria livrar-me dele de uma vez por todas.

  Não seria preciso que eu fizesse coisa alguma. Eu ia ganhar a parada de Roma já que meu adversário cometera falta.

  A moça guiava com cuidado pela estrada que levava ao seminário evitando o único carro da polícia que patrulhava aquela área todas as noites. Ela estacionou embaixo da casa de força, escorregou pelo banco da jrente e abraçou-o.

  Ele beijou-a na testa meio distraído, saiu do carro e esgueirou-se por entre as árvores a caminho do edifício de residência. A parte mais perigosa era voltar para ali. Esgueirou-se na direção da porta da frente que deixara aberta, na certeza de que ficaria assim até a sua volta. Ninguém usava aquela porta, e nem mesmo o Mac sabia que havia uma chave para abri-la. Caminhou cauteloso pelo corredor, iluminado apenas pelas luz.es que ficavam acesas a noite inteira e que eram do outro lado. Agora só faltava uma corrida silenciosa nos dois andares de escadas e ele estaria de volta em seu quarto. Agradecia a Deus pelo fato do Cardeal Mundelein ter destinado um quarto para cada seminarista. O momento mais perigoso era quando ele subia correndo o primeiro lance de escadas e começava o segundo. Mac iria vê-lo certamente se lhe acontecesse abrir a porta de sua suíte.

  Havia sempre alguns segundos de um terror delicioso quando ele chegava àquele ponto perigoso. Adorava a excitação da brincadeira quase ainda mais do que o corpo da garota.

  Mac não estava lá. com uma mistura de exaltação e alívio ele saltou sobre os últimos degraus e correu, já sem cautela, o pouco que ainda faltava para a segurança de seu quarto, uma sensação muito parecida com os últimos e rápidos momentos antes de possuir a garota. Ao abrir a porta ele pensava sobre o que iria experimentar na próxima vez. Havia algumas variantes que ele lera num livro no verão anterior...

  A meio caminho para a cama ele teve um susto. Havia alguém sentado em sua mesa de estudo.

  Eu saí apressado da capela já meio escurecida depois das orações da no'te, com a esperança de ainda conseguir um banho de chuveiro antes que as luzes se apagassem às nove e quarenta e cinco. Mundelein era provavelmente o único seminário do mundo que se dava ao luxo de ter banheiros particulares.

  Quando vi o Ted Froelich caminhando pelo corredor e batendo na porta de Mac, galopei pelas escadas até o terceiro andar e corri até o quarto de Pat. Bati na porta, baixinho primeiro e depois com mais força. Ninguém respondia. Abri a porta e olhei lá dentro. Tudo escuro. Liguei a luz mas logo desliguei-a depressa. Ele nem mesmo desmanchara a cama ou arrumara-a para fingir que havia alguém por baixo das cobertas.

  Se o Mac encontrasse uma cama vazia, ele iria ficar sentado ali para esperar a volta de Pat.

  Tirei fora a batina e as roupas, apanhei o pijama de Pat atrás da porta do banheiro, vesti-o e enfiei-me em sua cama cobrindo a cabeça com um travesseiro como se estivesse querendo abafar o barulho lá de fora.

  Quase não ouvi quando a porta se abriu. Não fiz um só movimento. Estaria o travesseiro bem colocado?

  No momento do medo ocorreu-me que talvez fosse necessário imitar a voz de Pat. Apertei bem os olhos. A respiração ofegante 'de Mac andava pelo quarto até perto do armário que marcava a entrada para a alcova e a cama. Percebi uma luz muito fraca. Talvez uma lanterninha de pilha. com muito cuidado abri um olho. Mac estava iluminando com cuidado os pés da cama para ter a certeza de que os contornos por baixo do cobertor eram mesmo de gente. Apagou a luz. Sem fazer barulho caminhou até a porta meio aberta e saiu. Solas macias. A porta fechou-se com um clique.

  Muito espertinho.

  Esperei muito tempo. Afinal levantei-me e tornei a arrumai a cama com muito cuidado, da melhor maneira que podia ali na escuridão, tornei a pendurar o pijama de Pat e vesti as minhas roupas.

  Fiquei ali sentado na cadeira dura ao lado da mesa de metal. Não havia muitos livros nas estantes. O meu amigo Pat não tinha muito de intelectual. O quarto foi ficando frio à medida que diminuíam a calefação do prédio. Começaria a esquentar de novo logo que três fortes badaladas do sino nos acordassem às cinco e vinte e cinco, badaladas que chegavam a abalar os nervos. Fiquei ali imaginando se deveria continuar minha vigília ou voltar para o aconchego de minha cama. Eu havia conseguido persuadir a boa freira encarregada do nosso andar para me dar mais dois cobertores, o que, aliás, era apenas uma violação técnica dos regulamentos.

  Foi então que ouvi passos no corredor, e não eram as solas macias dos sapatos de Mac. Fiquei com a respiração suspensa à medida que eles se aproximavam.

  A minha situação seria bem estranha se me pegassem ali sentado na mesa de estudos de Pat, principalmente se fosse alguém do seminário.

  A porta abriu-se e alguém entrou muito ofegante. com a luz fraca do corredor, eu consegui ver o seu rosto antes que fechasse a porta. Então era assim que um homem ficava depois de uma satisfação sexual.

  - Divertiu-se muito, Pat?

  Ele pareceu se encolher todo ao caminhar cambaleando para a mesa. Apoiou as duas mãos na superfície fria do metal e abaixou a cabeça.

  - O que é... - Estava ofegante e sem poder falar.

  - Um dos seus amigos descobriu o caso com a garota e avisou ao Mac. Ele esteve aqui procurando você, e aconteceu que eu estava em sua cama. Desta vez você conseguiu escapar, Pat.

  Ele deixou-se cair no chão com a cabeça encostada na mesa.

  - E como...

  - Deixa pra lá. Eu descobri. Você não disfarçou bem... Quando falou, a sua voz estava rouca.

  - Você não devia ter feito isso, Kevin. Nunca mais arrisque a sua vocação por minha causa. Eu não mereço isso.

  - Pode ser que eu tenha prazer em manter você fora de encrencas, Pat.

  Parei na porta e olhei cuidadosamente para um e outro lado do corredor, o meu quarto era apenas ali adiante a uns doze passos de distância. Eu queria dizer-lhe mais alguma coisa, mas não conseguia encontrar as palavras. Fui andando pelo corredor mal iluminado.

  O Pat nunca chegou a falar daquela nossa aventura noturna. Froelich não voltou ao seminário no ano seguinte. Imagino que tenha sido levado a isso com a pecha de ser um mentiroso contumaz. Entrou para um outro seminário e hoje é bispo em Kansas.

  Três semanas mais tarde a competição chegou ao fim.

  McNutty fez-me sinal, quando saíamos da capela depois do jantar em silêncio e em fila indiana.

  - Venha ao meu gabinete - foi tudo que ele disse.

  Fui ao seu gabinete abafado e tresandando a charuto e ali esperei uns vinte minutos, o suficiente para me fazer ficar tenso e inquieto, e era isso mesmo que ele desejava.

  Mac era um homem esbelto, mais ou menos do meu tamanho. e talvez apenas uns doze anos mais velho. Pelos meus padrões de hoje, era um padre bem moço. Tinha os cabelos louros já escasseando e um nariz grande e alto que o fazia parecer um pouco com um cão de caça. Ele ainda é padre, um pastor razoavelmente bemsucedido, mas eu ainda não gosto dele.

  - Você é orgulhoso, Brennan, orgulhoso - disse ele vindo ao meu encontro logo que entrei.

  Eu sabia que tinha perdido. Em certo momento terrível cheguei até mesmo a pensar que ia ser expulso do seminário como a única maneira que pudesse justificar o que pretendiam fazer comigo. Vim a saber, muitos anos depois, que Vandy e alguns outros jesuítas tinham querido fazer isso mesmo, mas que tinham sido dissuadidos por Mac.

  A minha resposta foi um tanto evasiva.

  - Acho que vou ter que cuidar disso...

  - Você deveria ir para Roma, deveria mesmo... mas não podemos mandar para lá uma pessoa tão convencida como você. O Sr. Donahue não é tão esperto e hábil como você, e tampouco exerce tanta influência sobre os outros, como acontece com você, mas você é frio e arrogante. Não sabe tratar com as pessoas...

  Eu interrompi-o desejando marcar, pelo menos, um ponto antes que me mandassem embora.

  - Sendo assim, como é que eu exerço tanta influência sobre os outros?

  - Se você vai querer discutir comigo, então podemos acabar já com a nossa conversa. . . - Mac estava recostado em sua poltrona olhando-me com solenidade.

  - Não, padre. É claro que eu não quero discutir com o senhor. Só estou procurando entender... - A minha maneira de falar era muito respeitosa. Aquilo pareceu amolecê-lo.

  - O seu problema é que você se julga melhor que todo o mundo só porque a sua família tem muito dinheiro...

  - Nós não éramos tão ricos assim quando meu pai se alistou... - Interrompi-o mais uma vez, acreditando que o apelo ao patriotismo o deixasse desconcertado.

- Infelizmente, você não aprende que o dinheiro não torna você superior a todos nós.

  - Sim, padre, eu vou tentar; - Respondi com humildade, embora desejasse gritar o meu desprezo por ele de forma que todo o seminário me ouvisse. Mas ele continuou.

  - Roma não é tudo. Você deve considerar os próximos quatro anos como um tempo de penitência, um tempo de perdão, um tempo para refletir sobre a pouca importância do dinheiro.

  - Sim, padre - mas aí eu não consegui resistir ao desejo de acrescentar - embora eu goste deste seminário, e, na verdade, não ache que quatro anos aqui seja mesmo uma penitência.

  - Você é um homem bem esperto, Brennan - disse ele sem muita convicção. - Ainda não sei se você está aceitando bem esse desapontamento, ou se está brincando comigo.

  - Ainda há uma terceira possibilidade, padre. - Nesse ponto, eu abandonei a prudência. - Pode ser que eu não esteja realmente desapontado.

Pat esperava por mim na porta com o rosto ansioso e pálido. Apertei-lhe a mão.

  - Congratulações, Pat. Posso vender-lhe o meu dicionário de italiano.

  O espasmo que exprimiu o seu rosto era de dor e não de alegria.

  - Eu não vou, Kev. - Falou-me baixinho. - Eles devem mandar você. Vou recusar... Minha família está precisando de minha ajuda lá em casa.

  Ele era sincero. Todas as palavras eram de pura sinceridade. Mas ele também sabia qual seria a minha resposta.

  - Você aqui não vai ajudar mais a sua família do que se estiver em Roma. De qualquer forma, eles não vão me mandar. Não há razão para você abrir mão disso em favor de alguém mais. É claro que você deve ir.

  Ele poderia ter insistido. Então seria eu o contemplado. Ele sabia que era assim, e eu também sabia. E ali, no corredor, os nossos caminhos começaram a sua separação. De uma certa forma, eu já não era mais o vitorioso.

 

  Eu não conseguia tirar de minha mente o que vira nos olhos de Pat Donahue. Seria ainda a mesma coisa antes dele ir para Roma? Qual era o medo que se escondia por baixo dos modos romanos suaves e amadurecidos que ele adquirira nos últimos dois anos? Por que parecia especialmente ansioso quando falava comigo? A graça e o encanto eram os mesmos de antes, conquistando todo mundo, e ele tinha uma coleção de piadas e coisas engraçadas, e pouco respeitosas, a respeito do Vaticano. Mesmo assim, aquela alegria parecia mais forçada do que antes. O que teria acontecido em Roma?

  A nossa caminhonete, já bem bombardeada, ia seguindo a custo desde a vila no Lago de Águas Claras, onde eu estava com meu colega Nick McAuliff, e entrou no caminho muito bem tratado que ia para a casinha de campo de Tansey onde passávamos o verão.  

  Ao chegar ali já eu tinha banido Pat do meu espírito da melhor maneira que me era possível.   

  Quatro mulheres estavam sentadas na varanda da frente, lendo tranqüilamente, como se fossem clientes de algum abrigo para velhos extremamente dispendioso, o que, aliás, era exatamente o que parecia ser Tansey. Minha mãe lia muito concentrada O Americano Tranqüilo; Mary Tansey lia muito séria Andersonvüle, com seu rosto pequenino franzido ainda mais do que era a sua normal e irritada careta para as indignidades da vida. Maureen, radiantemente linda, lia preguiçosamente O Homem do Terno Cinzento e Georgína Carrey, uma mulher vistosa, de cabelos negros, sete ou oito anos mais velha que Maureen, folheava com indiferença a Weekly Gazette, de Eagle River. Todas elas estavam mais ou menos despidas, dando a impressão de que iam para a praia ou então para a cama, embora no caso de Georgina Carrey eu suspeitasse um desejo de ter em cima de si o menos de roupa que fosse possível. Os restos do café da manhã, já bem tardio, estavam espalhados em cima da mesa coberta por uma toalha de linho. Havia ali restos de torradas, copos vazios usados para suco de laranja e dois bules de café mal cheios no meio do serviço de prata.

  O amplo e muito bem tratado gramado da casa dos Tanseys estendia-se até a beira do despenhadeiro. Lá embaixo, as águas azuis do Lago Minocqua pareciam brilhar de forma enganadora, dando muito pouca impressão de como o lago era bem mais frio que o nosso pequenino que ficava lá na outra extremidade do Estado.

  - Chegou tarde, Kevin - disse Maureen beijando-me repetidas vezes e com isso aquecendo o meu rosto. (Eu já percebia que o Nick ia ter um dia cheio quando chegássemos à vila.) - Os jogadores de golfe começaram cedo. - Mo estava com o cabelo como o de Audrey Hepburn, um resultado do impacto de A Princesa e o Plebeu que ainda se fazia sentir entre nós.

  Minha mãe recompensou-me com um sinal de afeto bem mais maternal; Mary Tansey quase não notou minha existência e Georgina Carrey avaliou-me bem com um olhar cuidadoso antes de voltar para a Gazette. Apresentei Nick, que tinha sido designado para me acompanhar da vila até onde estavam meus pais. Não era exatamente uma regra que obrigava a gente a trazer um colega. Era apenas uma coisa prudente a fazer se alguém esperava conseguir mais um dia de folga.

  Nick aceitou café e eu servi-me de chá. Os jogadores de golfe, Arnold Tansey; o Coronel; Pat Donahue; o namorado de Mo, um tal de Burke Haggarty, de Boston; e John Carrey, tinham saído cedo. Eu sabia que Arnold, uma antiga estrela do time de Notre Dame, e que agora era um dos 154 milionários dos Estados Unidos naquele ano, queria começar cedo, e foi o que aconteceu.

  Os Tanseys tinham inventado aquela peregrinação ao norte de Wisconsin. Eles tinham conhecido Pat numa viagem a Roma e, muito naturalmente, tinham ficado encantados. Tinham-lhe pago a passagem para voltar durante duas semanas, no fim de julho. Ele chegara como um herói conquistador, transbordante de urbanidade romana. Como meu pai era advogado de Tansey, ele e minha mãe foram convidados, da mesma forma que Maureen e Burke, que representavam alguma espécie de ligação política. John e Georgina já estavam lá com o filho. Ninguém me disse qual era a ligação entre os Carreys e os Tanseys, embora ambos fossem da mesma rica paróquia do lado sul de Chicago.

  - E qual foi o filme ontem à noite? - perguntou minha mãe fechando o Granam Greene com um arrepio de desagrado.

  - Foi Sindicato de Ladrões na noite passada, A Princesa e o Plebeu na noite anterior e Matar ou Morrer amanhã.

- O que é que vocês acham da Audrey Hepburn? - quis saber Mo.

- O cabelo fica melhor em você do que nela. - Quem respondeu fui eu.

- Humm... - ela fez um muxoxo. - É só isso que você faz aqui? Vendo filmes e jogando golfe?

- com isso temos uma oportunidade para nos pôr em dia com os filmes que perdemos quando estamos no seminário.

- E por que eles fecham vocês aqui durante a metade do verão? - Mo fez a pergunta dando um pontapé de reprovação na espreguiçadeira.

Foi minha mãe quem respondeu, já que não aprovava de forma alguma o sistema do seminário.

- É porque eles querem proteger os rapazes contra os perigos do mundo, Maureen. E como tal, eles se referem a gente como você, que usa roupas de banho que não são muito melhores do que as roupas íntimas, a lingerie. Nós não queremos que nossos futuros padres fiquem sabendo dessas coisas, não é mesmo?

  - Isso não é coisa em que os padres devem pensar - atalhou Georgina com muita carolice. - Já basta os problemas que encontram com a bebida.

  Senti que ela estava dizendo aquilo simplesmente porque achava que devia dizer alguma coisa e não porque realmente acreditasse naquilo. Mary Tansey, uma mulher que parecia ter sido recortada de um papelão, continuava pacientemente a ler o seu Andersonville.

  - Enquanto esperamos pelos golfistas vamos dar um mergulho no lago. Ele está frio o bastante para varrer qualquer tentação que nos ocorra. - Mo levantou-se. - Vamos lá, Nick.

  Eu ia dizer que aquilo não era muito provável, mas depois de descermos no elevador e de termos mergulhado, já me sentia inclinado a concordar com ela. Até mesmo a Mo num traje de banho de dois tons e sem alças deixava de ser uma ameaça naquela água abaixo de 16°C. Saímos às pressas para nos enxugarmos no píer novinho em folha e ficamos nos esquentando ao sol, adorando o perfume pungente dos pinheiros.

  - Um grupo estranho - disse eu quando nos esticamos no píer.

  - Capitalistas ricos e preguiçosos oprimindo nós, os proletários. - Nick acrescentou. - Puxa vida, aposto como eles têm calefação na casa para as noites, o que é mais do que têm na vila.

  Um golpe de vista rápido foi o suficiente para persuadir Mo a confiar em Nick.

  - Georgina é uma chata; a Mary é nojenta; Arnold é um cabeçudo e John realmente não existe. Graças a Deus temos sua mãe e seu pai, Kevin. - Ela tornou a enrolar-se na toalha. - E o que pensa você de Burke?

  - Agradável o bastante para um irlandês de Boston.    

  - Eu disse sem sentir o que dizia. Burke Haggarty era um cara bonitão mas vazio, que não mostrava mais inteligência só porque falava arrastado sem pronunciar os "rr", dizendo cahs quando queria dizer cars.

  Ela sentou-se e virou-se para mim.

  - Ele levou-me às casas dos Kennedys no mês passado e nós jogamos bola com eles. Gente engraçada. Quando o Jack concorrer à Presidência em 1960, Burke vai herdar a sua cadeira no Senado. É coisa decidida. - Os seus ombros nus moviam-se rapidamente para cima e para baixo quando ela respirava entusiasmada.

  - Não acredito que um católico possa ser eleito presidente disse Nick com cautela.

  - O Jack Kennedy pode - disse Maureen confiante. - Olhem ali! Vejam quem está vindo. Se namorar o Burke outra vez eu arranco-lhe os olhos!

  Ela cantarolou Whatever Lola Wants Lola Gets quando Georgina saiu do elevador e veio rebolando em nossa direção. Vinha num maio sem alças cujas costas desciam até onde era possível. Georgina fazia com que Mo parecesse a castidade em pessoa.

  - Posso juntar-me a vocês? - perguntou ela com a sua voz rouca.

  - E por que não? - Foi Mo quem respondeu com entusiasmo. Depois ela voltou-se para mim. - Olhe aqui. O que é que você pensa do romano? Ele tem ou não tem classe?

  - Estou impressionado com ele. - Eu concordei. - Não há dúvida de que adquiriu muito verniz juntando-se àqueles aristocratas italianos. É bem possível que façam dele um bispo.

  - Ele faz a gente parecer um bando de roceiros broncos disse Nick com uma certa amargura, e o seu rosto sardento mostrava bem como se sentia infeliz.

  - Acho que não gostaria de ter príncipes coroados aqui no nosso bucólico retiro de verão.

  - Então o que é isso? - Mo arqueou as sobrancelhas. - O povo não está satisfeito com o seu herói? Vamos lá, Kev, você precisa fazer alguma coisa a esse respeito.

  - Mo disse aquilo quando eu estava tentando passar o bronzeador nas costas.

  - A inveja eclesiástica é um pecado mortal. Todos nós gostamos do Pat, mas há uma grande distância entre o Lago de Águas Claras e a Via Veneto.

  - Parece que ele leva uma vida muito diferente da de vocês. Tem muito mais liberdade. - Mo não dava folga.

  Nick continuava a olhar para o lago. Depois falou com uma voz apertada:

  - Ele não é obrigado a levantar-se às cinco e vinte e cinco. Não é obrigado a rezar durante hora e meia antes de caminhar os oitocentos metros para o café da manhã; não tem só três curtos períodos para fumar todos os dias ele não vive como se estivesse num campo de treinamento da marinha; ele não passa a metade de seu tempo olhando para quatro paredes vazias, desde que acorda até a hora de ir dormir, e também pode ir à cidade mais do que umas poucas semanas durante todo o ano. Nós somos prisioneiros, enquanto ele se entope de cultura dos hábitos romanos.

- Também não é tanto assim... - resmunguei, olhando para o lago e fixando a vista nos pinheiros. Georgina não mostrava grande disposição para cair na água.

  Aquele seu maio era só para exibição e não para nadar.

  - Pat é o Pat e nós todos gostamos muito dele - disse o Nick.

  - Como é que vocês podem ficar zangados com ele, até mesmo sabendo que ele vai ser papa? O negócio é que eu já passei cinco anos sobrevivendo nesse maldito e estúpido sistema, e então tenho inveja de quem conseguiu escapar dele.

  - Então você confessa que odeia o sistema? - Mo sentou-se com um ar de triunfo.

  - E é por isso que os colegas de classe ficam tão unidos disse eu, agora que a verdade finalmente vieira à luz do sol. Nós já desperdiçamos muito tempo contra um inimigo comum, uma peça de museu georgiano que se espalha por algumas centenas de hectares na parte norte de Illinois, entre as montanhas, e que tenta fabricar padres da mesma forma que uma fábrica de lingüiças produz os seus salames.

  - E saem-se bem - intercalou Nick com amargura. - E para terem a certeza de não nos dar uma oportunidade para descobrir como é a vida, eles enviam-nos para esses lugares gelados durante quase todo o verão, só para nos isolar ainda mais.

  - Pat Donahue foi muito gentil conosco quando estivemos em Roma com os Tanseys. - Georgina falou com a voz sem expressão. - Até mesmo levou-nos às catacumbas que ficam embaixo da Igreja de S. Pedro.

  - Um lugar realmente cheio de atrativos, pelo que tenho ouvido dizer - atalhou Mo com ironia.

  - Acho que já estão almoçando lá em cirna - disse eu encaminhando-me para o elevador.

  Quando chegamos eles estavam mesmo almoçando, embora aqueL refeição mais se parecesse com um velório. Arnold Tansey, um homem grandalhão, com músculos que pareciam postes de iluminação, meio calvo, com apenas uns fios de cabelos pretos, um queixo que parecia uma marreta, estava ali bem enfezado. Gente assim constituía uma barbada para o Coronel lá no campo de golfe.

Tansey tinha feito fortuna na construção civil que herdara do pai depois da guerra. Era um homem com idéia fixa, cabeça de touro, com pouca inteligência mas com a disposição de um tanque Sherman. Aos quarenta e cinco já era milionário sem filhos, com uma mulher a quem ignorava e a convicção absoluta de que era um sabichão. Apesar de tudo isso, no entanto, a sua simplicidade não deixava de ter

algum atrativo, especialmente em contraste com John Carrey, um homem inofensivo, e gentil que usava óculos. Pelo que consegui saber, fizera fortuna com peças de automóveis.

  As mulheres tinham vestido blusas para o almoço, com exceção de Maureen, que desafiava o costume de Tansey de um almoço formal.

  - Estou vendo que Chicago tem um novo prefeito que arranjou enquanto eu estava fora - disse Pat procurando quebrar o gelo com a sua alegria.

  - O Dick Daley não vai se agüentar senão durante um período. - Arnold Tansey pegou logo a isca. - Martin Kennelly foi um ótimo prefeito e um bom homem de negócios.

  O Dick Daley está amarrado aos sindicatos. Ele e o Bill Lee acham que vão ser os donos da cidade. Quando o all e o CIO* se fundirem neste inverno, Chicago vai ser a primeira cidade a ter um governo trabalhista. O Dick Daley junto com o George Meaney estão querendo tomar conta da cidade. Vocês vão ver que eles apresentarão o Walter Reuther para presidente. A comunidade empresarial deve lutar para impedir isso. Acham que podem fazer isso no próximo ano por causa do ataque cardíaco do Presidente. Devemos formar uma frente unida sustentando o Senador Goldwater para impedir o golpe.

  - Sempre pensei que o Senador Daley fosse socialista - disse meu pai. - Como o seu pai, o Big Mike, era antes dele.

  - Vocês vão ver só. - Arnold parecia confiante. - O socialismo do New Deal vai arrasar este país. Teremos que voltar às virtudes empresariais dos velhos tempos.

 

* all (American Federation of Labor) e CIO (Congress of Industrial Organizations) eram dois poderosos sindicatos que acabaram se fundindo. (N. do T.)

 

  - Como em 1933 - disse Pat. Minha mãe e Mo estavam às voltas com a salada de atum que era servida por dois empregados em lindos pratos de porcelana.

  - Por que você não nos conta mais alguma coisa sobre o Senador Kennedy? - Mo virou-se para o seu namorado.

  Burke Haggarty já estava na sua segunda cerveja. Bocejou e os seus olhos azuis mostravam como estava chateado, ao mesmo tempo que um tique no seu nariz afilado deixava ver o seu desdém pelo que ouvia.

  - O Jack é um grande político - disse na sua voz arrastada é bom mesmo no jogo. No entanto, para lhes dizer a verdade, eu acho que Bobby, que foi meu colega em Harvard - ele pronunciava Haavud - é, aliás, bem melhor do que o Jack. Tem um instinto maravilhoso. Nós vamos revolucionar a política dos Estados Unidos.

  Haggarty tinha uns cinco ou oito quilos a mais de gordura, seus olhos eram vidrados como os de quem está habituado a beber muito, e seus cabelos negros, já com algumas mechas prateadas, davam uma impressão de desleixo apesar de serem bem tratados. Meu Deus, Mo, deixe ele de lado, não ligue a essa conversa de cadeiras no Senado dos Estados Unidos.

  - O Coronel pode bem entregar-lhe os votos do condado de Coo! - Pat estava agora atacando o presunto de Smithfield.

  - Um católico jamais será eleito presidente - pontificou Arnold.

  - E por que diabo não pode?! - Atalhei eu com calor desviando os olhos das costas nuas de Georgina o tempo suficiente para entrar na briga. - Não me agrada ganharmos com um cara de Haavud, mas vamos ganhar mesmo antes da década de 60 chegar ao fim.

  - Espero que você esteja com a razão, meu rapaz. Estou vendo que você tem o mesmo ardor de seu pai - disse Tansey meio contrariado.

  - Nada disso, tem o ardor de sua mãe e a beleza de seu pai - disse Pat.

  Logo que as gargalhadas terminaram Georgina entrou na conversa.

  - Quer me fazer o favor de passar o presunto, Arnold? Ela disse aquilo como se estivesse fazendo um convite para um encontro.

  Depois do almoço Pat veio conosco na caminhonete para voltar à vila. Nós íamos jogar tênis e depois íamos para uma "farra" naquela noite, uma louca revista satírica com base em O Barco das Ilusões, e para a qual eram convidadas as famílias dos seminaristas que estavam por ali, uma concessão que jamais teria sido feita em Mundelein.

  - Agora conte-nos coisas de Roma - disse o Nick quando descíamos com cuidado pela estrada de terra batida atravessando os pinheirais que ligavam a casa de Tansey à rodovia estadual.

  - É uma oportunidade maravilhosa, Nick. Nossos mestres são as melhores mentalidades da Igreja, nossos colegas vêm de todas as partes do mundo, estudamos no coração da cristandade. Vivemos, em Roma, o período do maior e mais progressista dos pontificados desde muitos séculos. Pio XII é realmente um santo.

  - Apesar de haver feito acordo com Hitler e Mussolini? Perguntei fingindo-me de inocente.

  - Espere aí, Kev. - Pat não perdeu a calma enquanto descíamos aos trancos e barrancos pela estradinha que levava à rodovia. - Você não está sendo justo.

  O seu encanto de jovem não era uma coisa praticada ou disciplinada. As palavras rápidas fluíam em sentenças completas e o sorriso caloroso aparecia na hora exata.

  Nem muito cedo nem, tampouco, muito tarde. Somente os olhos ainda mostravam o medo. Aquilo era estranho. Eu sempre me dera conta da existência daquele medo, mas agora, ali, e pela primeira vez, eu o via claramente.

  - Eu invejo a sua liberdade - disse Nick com o seu corpo magro muito tenso com a raiva que todos sentíamos pelo rígido sistema do seminário. - Você vive em uma das cidades mais urbanas do mundo, ao passo que nós vivemos aqui neste lugar do interior. Você passa as suas férias de verão correndo toda a Europa e nós vamos para o Lago de Águas Claras pelo amor de Deus.

  - Não é assim tão diferente, na realidade, Nick. - Pat riu. Alem disso, pense em todas as tentações que existem numa cidade como Roma.

  - Nós bem que precisávamos de um pouco de tentações em Mundelein.

  - Por falar em tentação - disse Pat - aquela tal de Georgina é uma mulher e tanto, não acham? Eu imagino o que o pessoal da vila pensa a seu respeito.

  - Não sei, Pat, mas prefiro, de longe, a sua amiga Maureen.

  - Você vai precisar entrar na fila para isso, Nick. É uma fila bem comprida e eu, de boa vontade, poria você na frente daquele pretensioso de Boston.

  - Vocês dois parece que sempre tiveram mulheres bonitas por perto. - Nick disse. - O que foi que aconteceu com aquela loura que quis aprender o esqui aquático com você, Kevin? Ainda se lembra dela?

  - Vagamente, Nick.

  - Ela formou-se em St. Anne em junho. - Pat respondeu logo. - Está trabalhando no departamento de psiquiatria do Hospital Loretto.

  - Fez as pazes com ela, hein? - A minha pergunta deixava transparecer um certo ressentimento.

  - Fiz sim, Kevin... Ela agora anda saindo com o Tim Curran, sabe?

  - O último dos Cavaleiros Negros...

  - Ele deixou de beber. Está trabalhando na seção de sapatos da loja Marshall Field e estuda à noite. Quer ser advogado.

  - E está fazendo tudo isso só por causa da Ellen?

  - Não acredito que seja. Acho que ela veio depois da... "conversão". De qualquer forma, acho que o Tim se tornou bem sério. O velho comediante desapareceu.

Pensei comigo mesmo que se houvesse alguém que pudesse manter viva a comicidade de Tim, esse alguém seria a Ellen.

  Depois da "farra" daquela noite, houve uma festa de sorvete na varanda de madeira que ficava na frente do salão da assembléia lá na vila. A lua cheia de agosto brilhava iluminando o Lago das Águas Claras.

  - Será que vai se encrencar se eu for vista conversando com você, Kevin? - Maureen fez a pergunta ao mesmo tempo que devorava um enorme sorvete de chocolate.

  - Vou ganhar uma quantidade de pontos pelo bom gosto, Mo. O que acha você de nossa vila? O Cardeal Mundelein construiu-a para nós, da mesma forma que construiu tudo mais, um campo com floresta ao lado de um lago para temperar os espíritos de sua turma durante os meses de verão cheios de pecados.

  - Não fale assim - disse ela com o seu sorriso quente e olhos generosos que me deixavam fervendo por dentro. - Eu acho que é um lugar muito bonito e também acho que você, realmente, gosta dele. Ali você pode ler, pode fazer exercícios e pode se divertir com ocasionais contemplações de gente como a Georgina. O que mais  pode esperar da vida um jovem que vai ser padre?

  - Posso garantir-lhe, Mo, que é muito mais do que isso.

  Ela estava com um vestido branco com as mangas arregaçadas e um fino suéter atirado sobre os ombros para se garantir contra o frio daquela área ao norte do Wisconsin.

  - Você é um romântico, Kev, muito mais que eu. É um romântico inocente. - Ela cruzou os braços como se o frio de um romântico inocente fosse momentaneamente pior do que o ar da noite. - Desejo sinceramente que a sua Igreja não o desaponte.

  - É, provavelmente, o que vai acontecer - disse eu tristonho.

  - Você perdeu para ele esta tarde? - Ela fez a pergunta levantando a cabeça.

  - Ganhei por seis a dois e seis a zero. - Respondi sem muito entusiasmo. - Só que não acho mais graça porque Pat aprendeu a perder com bom humor.

  - E você ainda não aprendeu a ganhar com bom humor? Ela fez uma careta.

  - Ainda vou aprender - concordei, e rimos os dois.

O Coronel chegou naquele instante com um reforço de mais sorvetes e veio logo avisando:

  - O Jerome Kern pode acioná-lo pelo que vocês fizeram a O Barco das Ilusões.

Todo encolhido por baixo de vários cobertores no dormitório, naquela noite, eu rezei pelo Cavaleiro Negro e a sua namorada. E depois, pensando bem, rezei também para que Deus exorcizasse o medo que havia nos olhos de Pat Donahue.

  Dois dias mais tarde, Pat e Maureen saíram de barco no Lago Minocqua. A temperatura tinha subido um pouco e já estava acima dos 25°C com o céu completamente limpo.

  Atravessaram o lago e foram desembarcar no lado oposto, num lugar onde não havia nenhum loteamento.

  - A floresta primeva - disse Maureen esticando as pernas para desentorpecê-las.

  - Não é bem isso. - Ele a corrigiu. - Os pinheiros já desapareceram. As companhias madeireiras cortaram todos eles no princípio do século.

  - Isto aqui é bem mais bonito do que o nosso lago - disse ela tirando fora a camisa que trazia por cima do maio e atirando-se na água bem fria.

  - Vou dar umas voltas pelo mato, Mo. Não facilite, hein? Ele já estava agora bem mais tranqüilo do que quando chegara logo nos primeiros dias. A irreverência alegre de Maureen parecia contribuir para a sua tranqüilidade.

  Encontrou uma trilhazinha e enfiou-se pelo mato durante wnt dez minutos até que deu de cara com um velho pinheiro que havia escapado à fúria dos madeireiros, e tão grande que ele só podia abarcar uma terça parte com seus braços. Achou estranho que ele houvesse escapado, porque havia ali perto uma trilha de mateiros. Ouviu vozes vindo da trilha e voltou depressa para o mato não querendo ser surpreendido como invasor.

  Escondido por trás da árvore ele percebeu que as vozes eram de Arnold e Georgina, e por pouco ele não saía do mato para ir cumprimentá-los. Eles estavam bem longe de casa.

  Enquanto ele hesitava, Arriold tomou a mulher nos braços e beijou-a. Ela pareceu lutar, mas não conseguia livrar-se de seus braços fortes. Pat estava achando graça naquele estupro fingido. Ela vinha provocando Pat desde a primeira vez em que se haviam encontrado em Roma, fingindo-se carola, mas bombardeando-o com insinuações que não deixavam dúvidas quanto às suas intenções.

  Os protestos dela logo cessaram e ela passou a cooperar de muito boa vontade. Pat assistiu tudo até o fim. Depois, sentindose culpado, ele voltou pelo mato até o lago onde Maureen estava estirada ao sol dormindo muito tranqüila.

  Já fazia muito tempo que eles se tinham namorado, um namoro que era bem inocente em comparação com os furiosos demônios que o assaltavam agora.

  Mais tarde, quando remavam de volta para casa, ele não conseguia esquecer a imagem do corpo de Georgina, arqueando-se todo para se juntar ao de Arnold.

 

  No dia seguinte, o Coronel e Pat deram uma tremenda surra no golfe na dupla de Tansey com Burke. O dono da casa não gostou e ficou emburrado durante todo o caminho da volta. Em lugar de agüentar a hora do coquetel com aquela recriminação silenciosa, Pat encontrou uma cadeira no gramado ao sol onde ficou para "repousar os olhos".

  Era uma tarde de verão quente e enfadonha. Sonhou que ele e Maureen estavam perdidos numa ilha deserta. E a ilha transformou-se em um iceberg ártico.

  Acordou tremendo de frio. O tempo tinha mudado. Ouvia-se ao longe uma trovoada e alguns relâmpagos. A chuva já começava a cair em todo o lago, e havia nuvens correndo empurradas pelo vento frio.

  Ele apanhou o suéter e levantou-se. No momento em que se encaminhava para casa viu uma canoa que emborcava no lago.

  Era uma canoa verde que trazia um menino e uma menina de uns dez anos. As suas cabecinhas saíram de baixo da canoa como se fossem pedaços de pau boiando e Pat ficou olhando aquilo como se estivesse assistindo a um filme de horror. A canoa continuava a girar na água e os esforços que eles faziam para endireitá-la só serviam para virá-la outra vez. Os dois já estavam em pânico. Estavam agora a mais de uns cinqüenta metros da praia e demonstravam medo de nadar ou, talvez, nem mesmo soubessem.

  Ele estava ali parado olhando com os pés enterrados no gramado espesso quando viu uma pessoa que nadava com braçadas fortes contra as ondas cada vez mais fortes. Não precisou olhar outra vez para ver que era Maureen.

  Ele correu de volta para casa. Kevin tinha conseguido sair da vila outra vez e estava na varanda lendo um jornal.

  Pat gritou-lhe que Mo estava tentando salvar umas crianças no lago e era melhor que fosse buscar ajuda.

  Sem esperar por uma resposta, Pat correu de volta para a beira do escarpado, achou que o elevador era muito lento e desceu pelo meio dos pinheiros afrontando-lhe os espinhos, mas, quando chegou lá, a chuva já caía na pequenina praia. A menina da canoa já estava no píer escorregadio chorando histericamente. A tempestade já derramava agora uma cortina de água que escurecia tudo, só permitindo que se visse as ondas que vinham bater no píer.

  Nesse momento a cortina de água clareou um pouco e ele viu a canoa virada que saltava nas ondas, mas não havia ninguém dentro dela. Uma cabeça veio à superfície.

  Tinha longos cabelos negros, mas logo desapareceu novamente. Mo tornou a mergulhar tentando achar o menino. Pai atirou longe os sapatos e ia mergulhar quando ela veio novamente à superfície trazendo alguma coisa, e começou a nadar para a praia. Ele atirou-se na água e foi ao seu encontro. Tirou-lhe a criança dos braços enquanto a chuva continuava, cada vez mais forte. Maureen estava sem fôlego e arquejava. A criança parecia que não estava respirando. No momento em que Pat a colocava no píer o Coronel surgiu e começou a tentar a respiração artificial. A mulher do Coronel agarrou a menina abraçando-a. Os Tanseys apareceram gritando para serem ouvidos por causa do vento e da trovoada.

  O menino já respirava. Engasgava-se, espirrava, arquejava, mas estava mesmo respirando.

  Maureen não estava ali no píer. Onde teria ela ido? Pat foi .encontrá-la, junto com Kevin, na garagem dos barcos, sentada no chão e chorando com a cabeça encostada em um velho banco.

  - O menino está bem, Mo. - Kevin abraçava-a. - Ele está bem. Como é que você pode pensar que isso não acontecesse depois que o Coronel tomou conta dele?

  No meio dos soluços ela conseguiu rir.

  - Está tudo bem, Mo. Está tudo bem. Você salvou os dois.

  Aos poucos o pranto foi cessando e ela relaxou-se em seus braços.

  Pat saiu logo devagarzinho, sentindo-se como alguém que entra por acaso num quarto onde estão marido e mulher.

  Ao subir a colina olhando o arco-íris que a chuva deixara para trás, ele ia abrindo e fechando as mãos com força. As fúrias negras que o vinham assaltando, desde que voltara à casa, estavam cada vez mais terríveis. Dentro dele havia uma luta entre 0 Odio o desejo e a solidão, tudo aquilo tentando dominá-lo. Kevin, Maureen e Ellen, as pessoas mais importantes do mundo, para ele não lhe davam importância.

  Na manhã seguinte ele desculpou-se com uma dor de estômago para fugir do gplfe. O demónio que estava dentro dele m0strava-se cada vez mais violento e exigente. Ouviu quando os carros sairam um de cada vez. Aquele era o dia de folga dos empregaaoSf jya casa ficavam somente ele e Georgina. Ela estava no quarto e não tinha aparecido para o café.

  Pensou consigo mesmo que o melhor seria ir nadar um pouco. Enfiou o calção de banho e saiu do quarto como se estivesse em transe. Resolutamente, deu dois passos para a escada e para a praia Seus pés resolveram o contrário e ele caminhou para o quarto dela. Sentia que a cabeça latejava como se fosse estourar.

  Empurrou a porta. O quarto era todo enfeitado de rendas e o sol atravessava as cortinas transparentes. Ela estava deitada com um penhoar branco amarrado na cintura.

  - Saia daqui!

  - Você vem querendo isto desde que nos encontramos em Roma. - Ele bateu a porta e fechou-a por dentro.

  - Vou contar ao meu marido. - Ela falava sem muita convicção.

  - Não creio que faça isso. - Ele exultava em sua masculinidade quando tirava o calção de banho. - Eu vi você com o Tansey. Não acredito que você queira que o John saiba o que Você anda fazendo.

  - Você é um miserável sujo - disse ela raivosa.

  Ele serviu-se dela com brutalidade. Como sabia que iria acontecer, ela adorou tudo.

  De volta ao seu quarto ele soluçava de nojo e odiando-se enquanto murmurava um ato de contrição.

 

  Alguns dias depois Pat estava de volta a Roma. Os Tanseys e os Carreys fecharam suas casas e voltaram às suas residências em St. Praxides, onde havia um clube de campo e o "único campo de golfe que valia alguma coisa em todo o Meio-Oeste". Meus pais voltaram para o nosso lago onde a temperatura era bem mais alta. Maureen voltou para Chicago, já que seus pais passavam agora muito pouco tempo no lago. Burke Haggarty, a ponto de morrer chateado, salvou sua vida voando de volta para Boston e para Cape.

  Antes da partida de Pat, ele e eu fomos a pé pela estrada da vila na direção da parada da estrada de ferro e da aldeia do Lago das Águas Claras onde havia uma loja que tinha um telefone público e de onde podíamos falar com nossas famílias em Chicago. Era somente em caso de emergência que tínhamos permissão para telefonar quando estávamos na vila. Um time de beisebol estava treinando num lado da estrada e, no outro, estava o campo de golfe cheio de gente. Havia nuvens no céu que pareciam

sorvete de creme com baunilha. O apito imperioso de um trem empurrounos de volta para a trilha.

  Caminhávamos silenciosos.

  - É o diabo, Kevin. Só há uma coisa ruim em Roma. - Pat enfiou as mãos nos slacks brancos muito justos. - Eu adoro aquilo, mas sinto saudades dos camaradas de Mundelein.

  E sinto saudades de você. Você devia estar lá também. Não achei direito quando eles começaram a mandar dois alunos para Roma logo no ano seguinte.

  - Acho que foi para não haver mais competição. - Eu sentia-me tão embaraçado quanto ele.

  - Mas, no nosso caso, não houve competição. Foram eles que criaram a competição e não nós. - O seu rosto bonito mostrava animação.

  - Foi mesmo...

  O trem da Northwestern já estava à vista. Estava na hora certa, o que era para causar admiração. As autoridades da vila tinham discretamente sugerido a Pat que seria melhor ele ir para casa de trem em lugar de ir com os Tanseys de carro.

  Ele empertigou-se, respirou fundo e estendeu-me a mão.

  - com tudo isso, Kev, eu vou sentir saudades de você. Vão ser só mais dois anos. Espero que mandem você para Roma para a formatura.

  Eu apertei-lhe a mão com o mesmo calor que ele apertava a minha.

  - Não creio que o façam. De qualquer maneira, já estou cheio de escolas.

  Ele hesitou como se quisesse dizer mais alguma coisa. Os pequenos sinais de medo apareceram novamente em seus olhos. Tornamos a nos apertar as mãos.

  O trem parou. Caminhamos depressa para ele e entreguei-lhe a sua elegante maleta.

  - Dê lembranças minhas para a sua família, Pat.

  - Sim, sim... Vou passar um ou dois dias com eles e depois you para Roma.

  Uma semana com os Tanseys, um dia ou dois com seus pais. E eu era o único seminarista que estava ali para se despedir dele.

  Ele encontrou um lugar do lado da janela e dali me acenou enquanto o trem amarelo e verde, bufando e estertorando, ia saindo lentamente. Fiquei ali olhando até ver apenas a fumaça do diesel a distância.

  A estada na vila estava chegando ao fim muito lentamente. Isso seria a 15 de agosto. Eu estava aflito para voltar ao seminário. Eram somente dois anos, e então a batalha com o sistema chegaria ao fim. Eu poderia começar a minha vida como padre para fazer as coisas que desejava desde os tempos em que via os padres de minha paróquia, quando eu era apenas um garotinho. No dia 8 de agosto, quando faltava só uma semana para fechar, o padre Desmon, um velho e cansado jesuíta, que tomava conta da vida na vila, chamou-me quando saíamos em fila depois da missa. Disse-me que havia um chamado para mim, de minha mãe, no seu gabinete. O seu rosto aflito parecia cada vez mais ansioso e os seus óculos escorregavam-lhe pelo nariz.

  Fiquei com medo. Muitos de meus colegas tomavam conhecimento de morte na família daquela mesma maneira. Seria o papai? Ou uma das crianças?

Mamãe não perdeu tempo.

  - A casa dos Cunninghams, lá em River Rorest, pegou fogo na noite passada.

  - E a Mo? - Eu soltei um grito.

  - Ela não estava em casa. - A voz da mamãe não estava muito firme. - Os dois velhos morreram quando chegavam ao hospital. Ellen não estava lá quando... Oh, Kevin, você precisa voltar. Venha para o enterro. É depois de amanhã. A Maureen precisa de você.

  Precisasse de mim ou não, eu não estaria lá. Não adiantou eu explicar ao padre Desmon que o TomCunningham e meu pai tinham sido sócios durante vinte e cinco anos, que seus pais também tinham sido sócios, que a família havia cuidado de nós durante a guerra e que a Mo era como se fosse minha irmã.

  Ele sacudia a cabeça com ar muito triste, e respondia-me de olhos baixos.

  - Se dependesse de mim, Kevin... Eu ia botar você no trem em cinco minutos. Infelizmente, não sou eu quem dita as regras. Você sabe o que iria dizer o reitor se ele descobrisse. Se deixarmos uma pessoa ir por motivos pessoais, teríamos que deixar ir todo o mundo. Eu sinto muito. Sinto muito mesmo, Kevin.

E eu percebia que ele sentia mesmo, o pobre homem. Telefonei para minha mãe.

  Quando lhe disse o que havia, ela deixou-se levar por um de seus raros momentos de indignação pouco cristã, mas falou baixinho.

  - Filhos da puta sem coração. Eles não entendem nada do que Jesus dizia.

  E ela estava com a razão. E eu fiquei lá na vila apesar de tudo.

  Maureen não morreu no incêndio. E isso, simplesmente, porque só voltara para casa às três horas da madrugada. Tinha estado numa festa onde a bebida andava solta, e chegara para ver os bombeiros diante da casa em chamas. Isso eu vim a saber mais tarde. Minha mãe me contou que ela se sentia culpada pela morte dos pais. Achava que, se estivesse em casa, teria sentido o cheiro da fumaça. O fogo fora causado pelo cigarro de seu pai que adormecera com ele aceso na mão.

  - A pobrezinha teria morrido também - dizia minha mãe procurando inocentá-la.

  Mas Maureen não se perdoava. Eu lera muitos livros de psicologia naquele verão para saber que as crianças muito mimadas sempre se sentiam culpadas quando os pais morriam.

  Fui visitá-la no mesmo dia que voltei da vila. Fui encontrá-la junto da nova piscina atrás da casa de verão dos pais, com uma lata de cerveja na mão e duas outras vazias atiradas ali perto de sua cadeira. Ela olhava fixa para um ponto acima dos chorões no outro lado da piscina. Como sempre, havia uma vitrola tocando em algum lugar. Parece-me que tocava Rock Around íhe Clock, o que não era uma música muito apropriada para quem estava de luto.

  - Alô, Mo! - Eu não sabia bem o que dizer, nem como começar.

  - Kevin, Kevin, Kevin! - Na sua excitação ela derrubou a cadeira e caiu em meus braços chorando.

  - Sinto muito não ter podido vir aqui antes, Mo. - Eu procurava encontrar palavras.

  - É melhor hoje do que nunca. - Ela estava com um biquini branco, a moda que conseguira chegar até o nosso lago, mas que só era vista em piscinas particulares.

  Maureen já não era mais aquela garota bonita que desabrochava, e sim uma elegante mulher feita.

  - Eu hoje estou precisando de um ombro forte e amigo. - O soluço foi diminuindo e ela soltou-se de meus braços. - Aposto como você não abraçaria assim por tanto tempo a Ellen com um biquini igual ao meu.  

  - Deu uma risadinha marota enquanto enxugava as lágrimas num lencinho de papel que estava por ali.

  - Ellen é recatada demais para mostrar tanto de seus encantos aos olhos de curiosos - respondi, agora já mais satisfeito por estarmos de volta a um quadro que me era conhecido.

  - Sempre o mesmo velho Kevin. - Ela ria-se enquanto enxugava a sua última lágrima, para reclinar-se novamente na cadeira.

  - Conte-me o que andou fazendo até agora. Nós não tínhamos oportunidade para isso lá em Eagle River.

Sentei-me numa cadeira que fora buscar do outro lado da piscina.

  - Não há muito que contar. Estou crescendo em sabedoria e virtude, só esperando a hora surgir embaixo de uma árvore de Natal de algum pastor. De qualquer forma, o assunto de hoje é você.

  - Bem, eu estou voltando para aquele buraco sujo em Purchase dentro de algumas semanas para aturar uns esnobes idiotas da costa do Atlântico e esperar contando os dias que faltam para a minha formatura. Depois disso... - ela sacudiu seus ombros lindos. - Eu não sei, Kev. Tenho esta piscina aqui que meus pais nunca chegaram a usar, tenho mais dinheiro do que aquilo que posso gastar e não tenho nenhum motivo para viver. Você jamais chegou a encontrar aquilo por que rezava para mim algum tempo atrás?

  - Não se sinta culpada pela morte de seus pais - supliqueilhe.

  - Culpada? - Ela olhou para mim inclinando a cabeça. Mas que diabo, Kev, eu não me sinto culpada. De qualquer forma, eles quase não viviam. Não venha me dizer que foram para o céu. Como é que gente com tão pouca vitalidade pode ir a algum lugar? Jamais conseguirei descobrir como arranjaram bastante paixão para me conceber.

  Eu apenas escutava em silêncio.

  - De qualquer forma, eles, certamente, não irão para o inferno. Rezo a ave-maria todas as manhãs e um rosário todas as noites. Pode ser que Deus tenha alguma espécie de limbo para as pessoas que não têm o fogo suficiente para pecarem ou serem virtuosos. Eles gostariam de um lugar assim. - Ela virou-se inquieta na cadeira. - Quanto a mim, Kev... eu vou direitinho para o inferno. Já sei que you mesmo. Eu sou vazia e perversa, com dons que you desperdiçar. you viver mais alguns anos e depois virão os sofrimentos ou talvez, até mesmo, o nada. De qualquer forma, não penso que a diferença seja muito grande.

  O seu rosto de madona era uma máscara implacável. Tentei arrancá-la àquele desespero.

  - Não vai acontecer nada disso. Tudo que você tem a fazer é falar com São Pedro no portão dizendo que conhece minha família. Ele tem coisa ruim em toda parte.

  Ela riu, saiu da cadeira e mergulhou na piscina. Depois de algumas braçadas saiu, sacudiu a água de seus longos cabelos negros e enrolou-se numa toalha.

  - Obrigada por ter-me arrancado da fossa. Vou buscar uma cerveja para você, meu querido primo.

  Quando voltou, com uma lata bem gelada de Heineken, já estava novamente muito séria.

  - Você acha que ainda há alguma esperança para mim, Kev?

  - Deus vai achar você irresistível como, aliás, todo o mundo acha, especialmente de biquíni.

  - Ora, que diabo! Ele pode espiar-me sempre que quiser no chuveiro nuazinha em pêlo. - Ela disse aquilo fazendo uma caretinha maliciosa. - Você acha que Ele faz isso, Kev? Será que Ele aprecia nossos corpos? Acho que deve, porque, afinal, Ele é o responsável por tudo.

  Pouco faltou para que eu a aconselhasse a pensar em Deus como alguma coisa mais humana, mas preferi não fazê-lo.

  - Se Ele fosse Ela, certamente teria inveja de seu corpo, Mo. Quando voltei para casa, minha mãe estava na varanda da frente e, olhando-me por cima dos óculos, perguntou:

  - Palavras de consolação?

  - Meia hora de risadas. - Eu estava desiludido. - Havia uma resposta de que ela precisava, mas eu não a tinha.

  - Você pode dar ainda um bom padre - ela disse, e voltou para o seu livro policial.

  Mesmo assim eu estava preocupado com o desespero de Maureen. O que é que a gente pode fazer com alguém que não acredita na possibilidade de ir para o céu? Lá no seminário ainda não me haviam dado a resposta para aquilo, a não ser a afirmativa de que era um pecado mortal.

  Na sexta-feira seguinte eu estava em Chicago, passando de carro pelo Boulevard Austin, depois de haver vasculhado uma livraria em Oak Park erri busca de uma coleção de livros de psicologia. Vi uma pessoa conhecida, com longos cabelos louros, que esperava pacientemente em mn ponto de ônibus.

  Ela estava com uma blusa de mangas curtas e mna saja rodada estampada. Dei uma marcha à ré no meu Chevrolet novo conversível, que me era proibido no seminário e na vila mas não era na cidade, pelo menos até que eu fosse ordenado.

  A senhora está esperando uma carona?

  Ela ficou muito séria, mas logo reconheceu-me, e então entrou no carro.

  - Desculpe, Kevin, mas não estou acostumada a ser paquerada.

  - Não posso entender por quê. Você está linda de morrer. Para onde quer ir? para o hospital?

  - Não, não. - Ela respondeu nervosa. - Eu Vou para Loyola, onde tenho uma aula. É muito longe. Por que não me deixa no Elevador?

  Meu coração estava aos saltos. Deus meu, como ela estava linda!

  - Nada disso. O que está estudando? Biologia?    

  - Literatura. Você nem vai acreditar. - Ela estava encaulada.

  - Pensei que quisesse ser enfermeira.

  - Será que as enfermeiras não podem ser escritoras? - A sua resposta tinha uns laivos de zanga.

  Então a maturidade também trazia o fogo.

  - Você sempre se veste assim para ir às aulas? Ou não é nada de minha conta se você tem um encontro com o Tim, quando elas terminam?

  - Claro que é de sua conta. - Ela sorriu. - Tim é um amor. Ele trabalha até as nove, mas nós nos encontramos depois das aulas.

  Eu virei na Avenida Chicago sem dar muita atenção ao tráfego. Vi de esguelha os seus olhos cinzentos muito solenes que me olhavam qe um modo parecido com uma adoração. Deus meu!

  - Você foi maravilhoso com a Maureen, Kevin. Ela me contou o que você falou com ela. Kevin, você fez com que ela voltasse à vida.

  Senti em mim um calor e senti-me também monumentalmente satisfeito comigo mesmo.

  Seus dedos tocaram de leve o meu braço.

  - A paróquia que ganhar você, Padre Kevin, vai ser uma paróquia de muita sorte.

  A despeito de Pat Donahue, de Burke Haggarty e de Georgina Carrey com Arnold Tansey, o inundo me parecia um lugar bem melhor.

  - Você alguma vez notou aquele jeito estranho nos olhos de Pat, Ellen? - Aquela foi uma pergunta impulsiva que me escapou.

  - Claro. - O seu rosto delicado já estava outra vez solene.

  - De que é que ele tem medo? - Mudei a velocidade e atravessei a Avenida Cícero desejando que a viagem até Loyola durasse a noite inteira, - Bem... pode ser de você, quando vocês estão juntos, e pode também ser de outros. Tudo depende.

  - Mas por quê?

  - Ele quer que as pessoas gostem dele.

  - Todos nós queremos isso, Ellen, - Eu estava de olho no carro que ia na minha frente.

  - Não dessa forma. - Ela insistia. - Não tão desesperadamente. De qualquer forma, o melhor mesmo é esquecer isso, Kevin. Você jamais vai conseguir livrá-lo de seu medo.

  Encostei o carro na esquina das ruas Rush e Pearson, num sinal que dizia ser aquilo proibido ali. O gótico cinza sujo do Seminário Quigley, do lado oposto da rua onde estavam as Lewis Towers de Loyola, muito sombrias e com tijolos escuros, fez-me lembrar que eu não devia estar num carro com uma moça bonita.

  - Você vai melhorando com a idade, Kevin.

  - Não somente um irritado fanático ou um pretensioso cheio de si mesmo?

  - Você finge ser tudo isso porque ficaria indefeso se as pessoas soubessem o quanto você realmente é delicado e gentil. - Os seus lábios roçaram os meus e eu pensei que o mundo estava pegando fogo. - Você é tão durão como uma taça de sorvete que se derrete.

Ela saltou rápida do carro, fechando a porta e caminhando para Towers. Então empertigou-se e voltou-se para o carro.

- Sorvete de chocolate derretendo-se. - Riu-se e piscou-me o olho.

  Apesar da reprovação que via nas torres de Quigley, eu fiquei ali olhando-a até que desapareceu no meio da garotada que se encaminhava para Loyola.

Mas não foi Ellen quem assombrou meus sonhos naquele outono em Mundelein. Foi Pat Donahue e as marcas do medo que eu vira em seus olhos.

 

- Padre, há uma moça lá fora na porta dizendo que conhece o senhor - berrou Harry Fagan, num esforço só em parte bem-sucedido, para abafar o Volare que estava sendo tocado por dezenove instrumentos musicais precariamente coordenados dos Cavaleiros da Melodia do ginásio dos jesuítas. Respondi gritando também:

  - Diga-lhe que falarei com ela amanhã antes do jogo.

  Aquela banda do ginásio dos jesuítas tinha agora mais entusiasmo do que em meu tempo, embora não fosse tão boa. Os quinhentos e tantos adolescentes que se amontoavam no salão da paróquia não se incomodavam muito. O fato de contar com os Cavaleiros da Melodia no baile do ginásio era, por alguma razão desconhecida, um sinal de grande prestígio. O Lou Carmody, um jesuíta de olhos muito vivos, ficava encantado com a presença deles, e eu era apenas, no momento, um "padre muito novo" pelos

padrões da garotada local.

  - Ela diz que seu nome é Ellen... - tornou a berrar o Harry com sua calva brilhando ali na luz artificial.

  - Vou já. - Eu tentava abrir caminho por entre uma multidão de adolescentes, de rapazes encostados nas paredes e nas colunas e de moças dançando umas com as outras.

  - Lembre-se do regulamento a respeito dos que não são sócios. .. - berrou novamente o Harry quando eu ia saindo.

  Um padre jovem em St. Praxides não tinha apenas um pastor e sim centenas deles. Todos os leigos da paróquia achavam-se na obrigação de mostrar os padrões de comportamento para os padres novos que tinham a sorte de serem bem recebidos naquela comunidade de novos-ricos. Até mesmo aqueles que conheciam meu pai não podiam se conformar com a idéia de que todos os padres vinham das classes mais pobres.

  Alguns adultos que ainda não tinham filhos naquela faixa de idade vinham dar uma espiada nos bailes do Clube para ver se eu estava andando direito. Leonard Gaspar, que andava sempre impecavelmente bem vestido e era usher chefe, uma espécie de introdutor diplomático, vinha dar uma espiada de alguns minutos em todos os bailes, e o seu rosto bonito, com um bigodinho como se fosse riscado a lápis, registrava uma completa reprovação do que estava ali acontecendo. E quando via a multidão de adolescentes em camisetas e bermudas, dizia com cara de nojo.

  —  Será que o pastor não pode obrigá-los e se apresentarem com paletó e gravata, e as moças com saias?

  — Fale com ele a esse respeito, senhor Gaspar — eu respondialhe de mau humor dando-lhe as costas, confiante que até então eu tinha os votos dos pais daquela garotada contra uma reforma que viria esvaziar o salão.

  Ellen estava esperando ao pé da escada, junto da mesa onde se faziam as admissões, e que levava ao salão de teto baixo no porão da paróquia.

  — Não tenho cartão de sócio, padre — disse ela com um sorrisinho maroto.

  — Ninguém com menos de vinte anos pode entrar sem mostrar o cartão de sócio — disse Georgina Carrey muito decidida. Ela estava sempre por ali, e eu desconfiava que era para vigiar o seu filho que estava naquela faixa de idade. — Não podemos fazer exceções, padre.   

  — Suas mãos estavam apoiadas em suas cadeiras volumosas para dar mais solenidade ao aviso.

  Aquele engano era fácil de entender. Ellen, de bermudas, e uma blusa branca por baixo do casaco um tanto sujo, e que era exigido, um rabinho-de-cavalo e sem o menor vestígio de maquilagem, era outra vez a garotinha da terceira série no banco de trás de meu Studebaker de gloriosa memória.

  — Tenho a licença de motorista — disse ela mostrando o cartão com um certo acanhamento.

— Georgina, esta aqui é a Ellen Foley, durante os próximos vinte anos ela vai continuar parecendo que ainda não tem vinte. Na realidade, ela é enfermeira formada especializada em psiquiatria.

  Ela hesitou, sem saber se devia acreditar em mim, mas viu o anel de noivado, um pequenino diamante, e tornou-se mais delicada.

  — Desculpe-me — disse irradiando todos os seus encantos que não eram poucos.

  Escapamos afinal de Georgina e voltamos para o tumulto dos adolescentes.

  Ellen estava entusiasmada.

  — Puxa vida, Padre Kevin, que maravilha. O senhor vai ser moço toda a sua vida.

  Eu sentia calor, estava cansado e tenso.

  — Você veio visitar-me ou veio para conversar?

  Os seus olhos grandes e cinzentos ficaram muito sérios.

  — Já faz dias que eu ando querendo falar-lhe. Tim deu-me seu carro esta noite e disse que era melhor eu vir para tirar logo isso da mente.

  Levei um susto. Tive medo de que ela quisesse me convidar para oficiar na sua missa de casamento. O Tim, muito solene e sério, no dia de minha ordenação, tinha-me pedido isso.

  Monsenhor Rafferty, o meu pastor, não me dava licença para eu sair num sábado para ir casar alguém noutro lugar. E ainda dissera:

  — Eu farei uma exceção, meu filho, mas somente para membros mais próximos de sua família. Irmãos e irmãs, mas não para primos.

  — Será que você não pode esperar até que eu mande essa gente toda para casa, Ellen?

  — Tenho toda a noite. Não há pressa.

  Chamei a Mônica Kelly, a chefe pequenina e magra da segunda série, cujos cabelos louros e encaracolados faziam com que fosse possível descobri-la numa multidão de garotas adolescentes, e apresentei-lhe Ellen.

  Ela foi logo cumprimentando Ellen.

  — Alô. Em que ginásio você está?

- Sienna, - Ellen nem mesmo piscou.

  Eu voltei às minhas obrigações no ginásio, expulsando os que bebiam demais, apartando brigas, varrendo os restos de garrafas quebradas e defendendo a Propriedade de St. Praxides contra as depredações que, no dia seguinte, certamente ofenderiam o monsenhor, a Irmã Superiora, o engenheiro-chefe, o usher chefe, o presidente da Confraria do Altar, e uma quantidade de outros funcionários interessados na eliminação daquela garotada. Eu adorava tudo aquilo. Pois aquela garotada era justamente uma das razões que me levaram ao sacerdócio.

  Eu aprendera no seminário a assumir uma atitude que era essencial ao meu sucesso em St. Praxides: o cinismo. A Igreja não ia mudar. A liderança ia continuar sempre nas mãos de homens como o Monsenhor Rafferty durante toda a minha vida. Se alguém queria fazer alguma coisa pelo povo, e eu queria, seria preciso aprender como aplacar e manipular homens como ele. Para alguém com o meu treinamento, não era difícil saber o que fazer. Era ficar de boca fechada, dizer-lhes o menos que fosse possível sobre o que se estava fazendo e fazer o máximo que fosse possível às escondidas, sempre esperando que não fosse descoberto por eles.

  Leo Mark Rafferty não queria que um bando de garotos e garotas muito barulhentos invadissem a propriedade nas noites de sexías-feiras. Na verdade, ele não queria ninguém ali na propriedade desde que fosse possível impedir, a não ser nas manhãs de domingos e, assim mesmo, desde que trouxessem na mão os envelopes para a coleta.

  No entanto, ele não estava em condições de discordar de Georgina Carrey, cuja fortuna o deixava boquiaberto. Quando ela quisesse um baile para o seu filho de quatorze anos, o John Júnior, esse baile se realizaria.

  Acabamos a limpeza às 11:30, mandamos os serventes para casa, pagamos aos Cavaleiros da Melodia, demos um último boanoite para Georgina, seu filho que parecia um cachorrinho sem dono, e o seu marido, e depois fomos sentar numa mesa para conversar, com uma garrafa de Coca-Cola na mão e mastigando docinhos que Ellen tinha conseguido escamotear dos ostrogodos que já tinham ido embora.

  Ellen acendeu um cigarro.

  - Essa mulher ainda está tentando seduzi-lo?

  - Não está, mas vai tentar.

  Ela tirou apenas uma tragada e esmagou o cigarro no cinzeiro.

  - Pelo menos enquanto você souber disso...

  - Eu não cederei. - Prometi-lhe.

  - Não tenho a menor dúvida. O seu gosto é diferente. - Ela olhou para o docinho que tinha na mão e que estava mordiscando. Sempre viciada em chocolates, mas as calorias não pareciam afetála.

  - O que é que há com você, Ellen? Vejo sua preocupação nesses seus olhos cinzentos.

  Ela virou-os lentamente para mim.

  - É a Mo. Ela não deve casar-se com ele. - Ellen disse aquilo com simplicidade.

  - Eu também acho que não devia. Ele é muito mais velho do que ela. Mais de dez anos, e me parece um playboy alcoólatra.

  - Eu acho - acrescentou a minha sombria amiguinha - que ela está se casando porque eu Vou me casar, e ela tem medo porque, se a Ellen achou um homem, então é porque o estoque está se es tando...

  - E você acha que esse é mais um dos impulsos de Mo?

  - Desde que os pais morreram ela vem agindo como louca. Ela precisa de sua ajuda, Padre Kevin.

  - A não ser que você deseje que eu passe a chamá-la "Enfermeira Ellen" é melhor deixar de lado esse negócio de "padre".

  O sorriso dela tornou a iluminar a sala.

  - Está bem. Aliás, o que é que está fazendo esse homem com os botões vermelhos andando para cima e para baixo na porta e vigiando-nos como se eu fosse uma mulher de má reputação?

  Eu suspirei.

  - Aquilo não é um homem, Ellen. E o monsenhor. Desculpeme um pouco, sim?

  Fui até a porta do salão silencioso. Leo Mark Rafferty, que se parecia com um corcunda zangado e gordo até mesmo quando estava alegre, não se mostrava nada alegre ali naquela ocasião.

  Ele caminhou para mim, e o seu rosto, que já era vermelho por natureza, estava ainda mais vermelho.

  - O que é que você pensa que está fazendo, meu rapaz?

  - Estou conversando com uma moça. - A minha resposta foi dada com um visível pouco caso. Inspirado pela presença de Ellen, eu ia deixar de lado um respeitoso oportunismo. Nem mesmo um cura, a mais baixa forma de vida na Igreja, pode ser tranqüilamente humilhado na presença da mulher que o ama.

  A cor de seu rosto ficou ainda mais carregada e suas bochechas se inflaram como se fossem explodir.

  - E você acha que está procedendo certo?

  - Ela é uma amiga muito íntima de minha família e está noiva de um de meus antigos colegas. Ela está falando comigo a respeito de um problema de um amigo comum.

  - Então ela que marque uma hora decente durante o dia. Agora, trate de mandá-la embora e volte para a reitoria. Você sabe que existe uma regra das onze horas nesta diocese.

  Eu estava muito calmo.

  - Vou dizer-lhe uma coisa, monsenhor. Fale com o vigáriogeral amanhã de manhã e pergunte-lhe se um padre que está dando conselhos a alguém, no salão da escola, depois do baile, está ou não infringindo a regra das onze horas. Diga-lhe também que o senhor quer me ver fora daqui. A mim não importa porcaria alguma que o senhor faça. Eu vou ficar aqui durante todo o tempo que julgar necessário para tratar deste problema.

  A cor de Leo Mark já agora tinha mudado. Estava brancopálido como um morto. Deu uns passos atrás abruptamente, como se alguém houvesse aberto a porta de uma fornalha.

  - Ora essa, Kevin. Eu não sabia que era assim tão importante. Fique o tempo que quiser... pode até fazer um cafezinho...

  Quando ele saiu apressado, eu sabia que havia descoberto o seu ponto fraco e agradeci a Deus por ter enviado Ellen. Ela me recebeu com um sorriso gaiato.

  - O Kevin venceu mais uma...

  - Não tenha tanta certeza assim. - Peguei um doce numa segunda porção que ela descobrira. - Vamos falar da Mo.

  - Veja se a convence a desistir, Kev.

Suspirei e tornei a colocar o doce de onde o tinha tirado.

  - Você acha que eu poderia convencer você e Tim a não se casarem?

  - É claro que não, Kev. Nós estamos apaixonados.

  - E você não acha que a Maureen irá me dar a mesma resposta?

  Ela suspirou e empurrou o prato de doces.

  - Será que o Tim e eu estamos tão cegos quanto ela? Eu sentia-me muito cansado e muito velho.

  - Olhe aqui, Ellen. Eu sou tão novo nesse negócio de padre de paróquia que^nem mesmo cheguei ainda a decorar algumas orações. A única coisa que já aprendi é que não se pode, de forma alguma, dissuadir os jovens quando eles pensam que estão amando. Você jamais consegue convencê-los de coisa alguma, a favor ou contra, Ellen.

  Ela ainda insistiu.

  - Mas você não quer, pelo menos, conversar com a Maureen?

  - Desde que ela também queira conversar comigo... se ela está procurando encontrar alguém para encorajá-la numa decisão que ela já tomou, de cair fora, então farei isso. Os seus conhecimentos psiquiátricos certamente lhe dizem que isso é tudo que posso fazer.

  Ela franziu a testa.

  - Você é padre, não é psiquiatra.

  - Se a Maureen sente-se culpada porque os pais morreram no incêndio, e deseja expiar a sua culpa destruindo-se, então nada há que você ou eu possamos fazer.

  - Então não vai fazer coisa alguma, Kevin?

  - Se eu pensar em alguma coisa que possa fazer, pode estar certa de que eu farei.

  Ela levantou-se e abotoou o casaco.

  - Acho que já sabia o que você iria me dizer. É melhor eu ir andando.

  Eu bem que gostaria de ficar conversando com ela até o sol nascer, até mesmo ali naquele triste salão da paróquia onde se ouvia o eco de nossas palavras.

  Regulei o despertador para as 5:45. O monsenhor tinha-me castigado, por causa do Clube do ginásio, dando-me a primeira missa dos sábados. Voltei para a cama logo depois da missa, mas, quinze minutos depois fui acordado pelo telefonema de Pat Donahue. Ele estava nojentamente alegre para uma madrugada de sábado.

  - Olá, Kev. Você tem um minuto?

  Sentei-me desanimado na cadeira que estava perto do meu telefone.

  - Vai falando, Pat.

  A nossa amizade parecia de volta à normalidade desde que ele voltara de Roma. Nós dois dávamos um duro danado, mas gostávamos de nosso trabalho. Em nosso mútuo compromisso com o sacerdócio tínhamos achado, assim pensava eu, uma base para um "relacionamento amadurecido", uma frase que eu vira nos tratados de psicologia. Ele ainda não se mostrava inteiramente franco comigo, mas aquelas marquinhas do medo só raramente apareciam agora.

  - Bem, eu... eu sei o quanto a Mo e a Ellen significam para você, Kev.

  - Elas significam muito, mas, mesmo assim, não posso oficiar nas missas de seus casamentos, Pat.

  - Você não se importaria, então, se eu as oficiasse?

  - Mas, por Deus, não, Pat. E por que me importaria? Isso fará com que elas tenham toda a elegância de Roma. As duas merecem isso, Pat.

  - Obrigado, Kev. - O seu bom humor ia estava de volta. Aprecio muito a sua atitude. Eu só queria ter a certeza. Vamos nos ver na quinta-feira, se você puder.

  Depois que ele desligou fiquei olhando para o telefone com um ar maligno. Depois mandei tudo às favas e voltei para a cama.

  Na quinta-feira seguinte, passei a tarde do meu dia de folga numa precária cadeira de campanha que estava no porão atulhado e mal iluminado de uma igreja na Northern Avenue esquina de Pauline, ouvindo uma conferência sobre as obrigações da Igreja com a cidade. Na audiência estavam o clero da Ação Católica, uma porção substancial dos padres liberais da diocese que ainda eram fiéis  seguidores de Monsenhor Reynold Hillenbrad, um reitor de seminário, carismático, mas sem diplomacia, que havia sido banido pelo Cardeal Stritch para uma paróquia alguns anos antes de eu entrar para Mundelein. A maior parte do fermento intelectual e organizacional que havia na diocese, naqueles tempos, estava sendo atiçada pelos seguidores de "Hilly". O Cardeal Stritch era suficientemente tolerante, para não dizer suficientemente preguiçoso, para permitir que essas atividades florescessem, confirmando a convicção geral de que, se o Hilly tivesse sido diplomático com os pastores da cidade, e com a faculdade jesuíta de Mundelein, nada lhe teria acontecido. O cardeal descobriu que era mais difícil defendê-lo do que substituí-lo, e então caiu fora. Os seus seguidores jovens foram muito mais tortuosos.

  Eu não fazia parte da Ação Católica. Havia muito trabalho na paróquia, e Monsenhor Rafferty não via com bons olhos a participação de seus padres naquelas "malditas atividades externas". Eu estava ali naquela reunião porque quem ia falar era Pat Donahue.

 Pat, bonitão e glorioso, estava na porta do porão cumprimentando os que chegavam. Quando me viu não conteve uma exclamação.

  - Puxa vida, que bom, Kev. É maravilhoso você ter vindo. Espero que não se arrependa.

  Pat estava fazendo um sucesso enorme na Igreja dos Quarenta Santos Mártires na parte sul da cidade. Havia uma certa magia na química que existia entre ele e os negros daquela área da cidade. Centenas deles vinham para as suas aulas de conversão todos os semestres. Já havia batizado mais de duas centenas de convertidos, a maior parte deles sendo pais que escolhiam aquela igreja para mandarem seus filhos, em lugar de mandá-los para as escolas públicas, decrépitas e desordenadas. Eu já tinha

ouvido uma das "instruções" de Pat numa classe de seus convertidos, e ficara impressionado pelo seu est Io simples, direto e eficaz.

  - O rapaz é mesmo bom. - Era essa a opinião de seu pastor, o velho Huch Mulcahey, conforme me disse, sussurrando, depois da aula. Aquilo era mais do que o meu pastor jamais dissera de mim.

  A maior parte dos ouvintes ali no porão da igreja, naquela tarde, esperava que ele falasse a respeito da técnica usada para converter negros ao catolicismo, e seu principal artifício era o de exigir que os pais de crianças não católicas na escola paroquial recebessem as instruções. Em lugar disso, ele falou a respeito do "ambiente social e humano" daquela área da cidade. Foi uma esplêndida demonstração, ajustada com sutileza para a mentalidade e disposição dos ouvintes do clero com inclinações liberais.

  Ele contou coisas impressionantes a respeito do impacto da pobreza e da injustiça nas vidas das famílias negras de sua paróquia, e descreveu os perigos da vida nas favelas e cortiços. Pintou um quadro bem triste das perigosas tentações que encontravam até mesmo os negros mais virtuosos, principalmente os jovens. Ele dizia que a Igreja deveria fazer alguma coisa quanto às necessidades humanas, sociais e religiosas da comunidade negra. (A palavra "preto" ainda não estava na moda naquela

época.)

  Ele não gostava de usar e, aliás, nem mesmo chegava a usar a palavra "cidadão" como fazia a maior parte dos padres empenhados naquele "trabalho". Achava que ela era uma palavra de código para "negro" inventada pelo clero.

  Começou a sua peroração dinâmica dizendo:

  - Nós precisamos nos tornar a Igreja dos pobres. Temos uma enorme oportunidade nesta área da cidade para educar, libertar e pregar, e temos a obrigação de nos identificarmos com a mentalidade da raça negra e com a sua causa. Nós colocamos muito dinheiro e muita gente nossa em paróquias de bairros de gente rica onde são poucos os problemas humanos e onde precisam pouco da Igreja. Todos os padres jovens deveriam servir nas paróquias dos bairros pobres das cidades. Devemos parar com a construção de escolas, igrejas e reitorias com ginásios para os ricos e passar a construir casas para os pobres.

Os aplausos foram tremendos e eu também aplaudi. Era uma infantilidade minha ficar imaginando ali se o terno de duzentos dólares de Pat, feito sob medida, e as dispendiosas abotoaduras francesas nos punhos da camisa eram compatíveis com a mensagem de pobreza, e também como era que, com um salário de setenta e cinco   dólares por mês, ele conseguia dinheiro para comprar tudo aquilo. Se ele tinha amigos generosos, ninguém tinha nada com isso.

  Duas semanas depois, Leo Mark apareceu-me na porta de meu quarto.

  - Há uma moça lá embaixo, no escritório, que diz ser sua irmã.

  - Desconfio que talvez seja mesmo. - Eu já estava começando a avaliar bem aquele homem. - Ela disse que se chama Mary Ann? Tem os cabelos escuros e encaracolados, olhos verdes e sardas como eu? Bonitinha. O tipo de moça atleta e decidida?

  Ele sacudiu a cabeça sem saber bem o que dizer.

  - É melhor eu ir logo falar com ela. - Comecei a abotoar a batina que apanhara em cima da cadeira e saí passando por ele. (Em St. Praxides, ninguém aparecia no escritório da reitoria sem batina, mesmo se fosse para ir falar com a irmã.)

  - Alô, padre. - Mary Ann falou assim que eu entrei. Estava com o casaco de couro obrigatório e bermudas.

  - Monsenhor me disse que você estava alegando que era minha irmã.

  Ela deu-me um beijinho no rosto.

  - Que espécie de bobalhão é ele? E que espécie de escritório de reitoria é este? - Ela apontava com reprovação para a complicada mobília dinamarquesa moderna e para os retratos muito sérios e formais dos três Pios - X, XI e XII - do século XX.

  - Pois fique sabendo que foi desenhada com cuidado. Eu não podia nem mesmo comprar uma lâmpada para a minha mesa de trabalho, pois tudo era escolhido pelo decorador de interiores.

  Ela parecia não acreditar.

  - Não me diga que chamaram um decorador de interiores! Eu sempre pensei que essas coisas só aconteciam por acidente.

  - O que é que há, Mary Ann? - Eu estava cansado e queria ir deitar-me. Na madrugada seguinte teria que sair a pé para dar a Comunhão. O pastor dizia que eu não precisava de carro, e o cura mais velho nunca se aventurava a me emprestar o seu. - Está tudo bem lá em casa?

  Ela fez um gesto com a mão.

- Não é nada disso. É a Ellen. Você tem que impedir aquele casamento.

  Senti um aperto no coração.

  - E por que motivo? Eles parecem combinar bem.

  - Os dois são gente séria, tranqüila e sensata. -    

  Ela respondeu sarcasticamente. - Meu irmão, não sei o que se passou entre você e Ellen, mas se você realmente a compreende, sabe muito bem que ela é sabida e esperta e que tem algo selvagem por dentro.

  - Sei disso muito bem.

  - Olhe aqui, Kev. Eu não tenho nada contra o seu amigo Tim, mas ele é agora sério demais. Já não ri mais nem faz as brincadeiras que costumava fazer. Nos últimos cinco anos ele não teve um só pensamento feliz. A Ellen não precisa disso. Isso vai matá-la. Ela vai logo ter um bandão de filhos e vai voltar direitinho para aquela chateação a que foi condenada antes por sua mãe, desde o dia em que nasceu.

  Ellen e Mary Ann eram amigas íntimas. As duas tinham se fixado ali mesmo nos arredores de Chicago para o curso universitário. O diagnóstico de minha irmã estava indiscutivelmente certo. Não havia lugar para a minha pequenina fada das águas na vida cuidadosamente calculada de Tim.

  - Faltam só duas semanas e, além disso, eu não posso impedir o casamento. Eu não sou Deus. E, tampouco, quero bancar o Deus na vida dela.

  Minha irmã ficou ali, olhando para mim, como se eu fosse algum espécimen clínico que ela tivesse observando num microscópio, - Sabe de uma coisa, irmão? Você é uma espécie interessante de padre. - Ela falava devagar. - Forte em entusiasmo e energia, e fraco em compaixão e bondade.

  - Quem sabe se, com os anos, eu consigo adquirir alguma compaixão.

  Ela mostrou-se contrita.

  - Desculpe-me se fui estúpida e grosseira. Mas você deve estar preocupado com o que está acontecendo com a Ellen. Eu quero dizer é que você não pode, simplesmente, permitir que ela jogue fora a sua vida.

  Procurei argumentar.

  - Não sei bem se casar com Tim significa jogar fora a vida, Mary Ann. E, aliás, ela nem mesmo me ouviria.

  Mary Ann insistiu.

  - Claro que vai ouvir. Você jamais conseguiria deter a Mo, mas poderia falar com Ellen amanhã de manhã e acabar logo com esse casamento.

  Eu ainda hesitava.

  - Mesmo e pudesse, não acho direito estar me metendo na vida dos outros, principalmente na dela.

  Minha irmã reconheceu com um suspiro o fato de saber que aquela seria a minha resposta. Sua missão fracassara. Ela saiu da reitoria e voltou de carro para a costa oeste.

  Eu sentia a garganta seca enquanto subia devagar para o meu quarto. A porta do pastor abriu-se no momento exato em que eu chegava no topo da escada. Estava espeiando para ter a certeza que o jovem padre não tentaria escapulir.

   Ellen e Maureen casaram-se nos dias marcados. Em lugar de minha presença, enviei-lhes cartas cheias de recomendações piedosas. Mo foi para Boston com o seu marido, e me disseram que ele ficara furioso com a minha ausência no casamento.

  Muita coisa mais aconteceu naquela primavera e no verão. Charles De Gaulle foi reeleito chefe do governo francês, Robert Welch fundou a Sociedade John Birch, e o Cardeal Stritch morreu em Roma. Pio XII, já também perto da morte, vetou a tentativa da Cúria para mandar Leo Binz para Chicago e insistiu na nomeação do "homem das escrituras", como ele o chamava, o segundo nome na lista de três, o Arcebispo Gregory Meyer, o estudioso das escrituras que estava em Milwaukee. Em princípios de outubro Pio XII morreu e foi sucedido a 25 de outubro por Ângelo Giuseppe Roncalli.

  Pat estava comigo no parlatório em St. Praxides quando a televisão da CBS mandou a notícia de Roma. Ainda não havia as transmissões "ao vivo" porque não tínhamos ainda os satélites, mas a voz cheia de Winston Burdette disse-nos que o novo Papa era o Patriarca de Veneza com setenta e cinco anos de idade.

  Pat mostrou-se admirado.

  - Meu Deus! Eles devem ter ficado num impasse. Roncalli e um diplomata de segunda ordem que nunca fez coisa alguma em sua vida. Isto é um desastre! - Foi o que disse a Leo Mark que se sentia honrado por ter ali no seu parlatório um verdadeiro romano na ocasião da eleição de um Papa.

  Depois veio a voz forte do Papa Roncalli com a sua bênção Urbi et Orbi, para a cidade e para o mundo. Vinte anos depois, quando faltava pouco mais de uma semana, os cardeais iriam eleger um outro papa. Três dos homens que haviam escolhido Roncalli Vyshmsky, Leger e Siri - estariam no Sacro Colégio. E Pat Donahue também estaria lá.

  Mas naquela manhã dourada de outubro, na parte sul de Chicago, Pat só conseguia sacudir a cabeça espantado. Depois, enfiou, de repente, as mãos nos bolsos.

  - É um papa transitório. Em breve teremos um outro conclave.

No dia 25 de janeiro de 1959, o Papa João anunciou que o Segundo Concilio do Vaticano iria reunir-se.

 

  Eu me lembro do momento exato em que descobri que Leonard Kaspar, o chefe dos ushers, estava roubando as coletas dos domingos em St. Praxides. Foi naquele outubro em que os White Sox de Chicago tinham chegado ao Campeonato Mundial pela primeira vez desde 1919, quando perdera, naturalmente. Pat, Nick McAuliff e eu estávamos sentados na sala do pastor ouvindo The Sound of Music no hi-fi de Leo Mark que tinha custado seiscentos mil dólares, mas que ele nunca usava. Leo Mark estava de férias, e eu então deixara de comparecer à minha visita de costume na liga de bowling para jantar com meus amigos. Pat estava profundamente preocupado a respeito do Papa João XXIII e sua última encíclica sobre a Liturgia Latina que, aparentemente, proibia até mesmo qualquer discussão quanto à possibilidade da missa  em inglês.

  - Vai ser uma complicação enquanto ele estiver no poder lamentava Pat tomando o seu segundo martíni, uma indulgência que era proibida pelo nosso juramento de vinte e cinco anos mas que não incluía Pat porque o sistema nunca se dera ao trabalho de pedir o mesmo juramento aos alunos do North American College. Roncalli é estritamente da terceira classe. Todos concordam que o Sínodo de Roma é um desastre. Só Deus sabe o que vai ser esse Concílio. O meu amigo Tonio Martinelli escreveu-me outro dia dizendo-me que ele, provavelmente, jamais se reunirá.

  - Então ele acha que nós nem mesmo podemos falar a respeito de uma Liturgia Inglesa? - A pergunta era de Nick.

  - Ele, provavelmente, nem está ligando. - Pat olhou com relutância para o copo vazio. - O rascunho foi escrito por um grande amigo seu, o Tonio, que, naturalmente, aprova a preservação do latim, diz que essa é a maneira como a Igreja é governada atualmente. Favores para velhos amigos.

  - O Coronel compreenderia isso - disse eu.

  - Pode ser que os seus paroquianos possam aturar o latim disse Pat com o rosto fechado - mas na Rua Trinta e Cinco a missa poderia ser rezada até em sânscrito.

  Ficamos ali ouvindo a música e tentando esquecer-nos da Igreja que insistia na missa em'latim para os moradores da Rua Trinta e Cinco.

  Estávamos no meio do Edelweis quando eu vi. Creio que foi o hi-fi de Leo Mark, Leonard Kaspar tinha um igualzinho. Lembro-me quando perguntei ao monsenhor, quando ele, muito orgulhoso, anunciou na mesa do jantar que o "Len" - Mr. Kaspar para os curas, naturalmente - tinha resolvido comprar um sistema igual àquele, e eu logo pensei como era que um homem com um emprego nos escritórios das Indústrias Tansey podia se dar ao luxo de ter um sistema daquele preço.

  Leo respondera logo.

  - Esta é uma pergunta descabida, meu jovem. Você deve se ocupar com a administração de St. Praxides em lugar de estar querendo avaliar o que ganham seus paroquianos.

  Além disso, a mulher de Kaspar é irmã da mulher de Tansey.

  Aquela resposta era irrelevante, já que Tansey não era de distribuir dinheiro com facilidade.

  O telefone veio interromper meus devaneios. Era Georgina Carrey perguntando, quase sem fôlego, qual era a orquestra que ia tocar na festa de caridade da primavera na Sociedade do Altar. Mesmo com o pastor ausente, era preciso fazer alguma coisa. Perguntou-me se sabia onde poderia encontrá-lo.

  Respondi sem me interessar muito.

  - Ele nunca nos diz para onde vai, Georgina. Nem tampouco quando vai voltar. Pode ser que o Sr. Kaspar saiba.

  - Mas o Leonard e a Martha estão na Flórida. Tenho a certeza de que o monsenhor não está com eles.

  - E como é que a paróquia pode sobreviver sem o seu pastor e sem o seu usher chefe. - Foi o que perguntei. - De qualquer forma, vou ver o que posso fazer-sobre isso amanhã.

  - Quem era? - Pat perguntou-me sorrindo. - Você me parecia muito obsequioso e solícito. Aposto que era uma mulher.

  - Não é o seu tipo, Pat. É muito religiosa. Vem à igreja todos os dias sem falta.

  - Nós ainda podemos pegar um cinema - disse Nick mostrando pouco interesse nas mulheres da paróquia.

  - Eu ainda tenho alguma coisa para fazer. Vocês podem ir.

  Acompanhei-os até o Falcon novo de Pat que estava estacionado atrás da reitoria. O carro, também, era contra o regulamento, mas, aparentemente, ninguém se lembrara de dizer isso a quem tinha estudado em Roma. A licença era somente para depois de cinco anos da ordenação.

  Pat apontou a imponente St. Praxides.

  - Meu Deus! Aquilo até parece uma árvore de Natal. O que é que está havendo ali?

  - Isso é normal nas noites de outono aqui nessas redondezas. É o coro ensaiando na igreja. Educação religiosa para as crianças das escolas públicas no salão, treino de basquete para o primário no ginásio, preparativos para uma reunião no escritório da reitoria, aulas de Marty Herlihy para os adultos antes da confirmação, em um outro escritório, o torneio de bridge na biblioteca, a Sociedade de São Vicente de Paulo que está preocupada com a ausência de pobres no porão da reitoria e não sei mais o que nas salas auxiliares para reuniões no porão do salão. Não há nada demais. É uma noite de rotina.

  Pat sacudiu a cabeça com as mãos nas cadeiras, espantado com tudo aquilo.

  - E foi para isso que te ordenaram, Kevin? É isso o que significa a pregação do Evangelho aqui nessas redondezas?

  Respondi com sinceridade.

  - Não sei. Tudo não passa de divertimentos, no entanto, e na maioria dos casos, nem mesmo precisa de minha ajuda. Como você vê, eu não tomo parte em nenhuma delas. Afinal de contas, que diabo, foram eles que pagaram as construções. Se quiserem usá-las para bridge e basquete, o problema é deles.

  Pat suspirou.

  - E aí vou eu outra vez, parecendo um fanático. Desculpeme, Kev, você está com a razão. Creio que isso faz parte de ser um padre jovem. - Ele sorria desculpando-se:

  - Quero dizer que pensamos* que aquilo que fazemos é a coisa mais importante do mundo, o mais importante que a gente pode fazer.

  Voltei depressa à minha sala quando o carro arrancou, tirei um envelope de meu arquivo e focalizei a luz mais intensa para os pedaços de papel que estavam lá dentro.

  Leo Mark era um "chorão" crônico. Estava sempre reclamando que as despesas aumentavam e a receita já não aumentava tanto. O seu relatório anual era uma obra-prima de coisas vagas e obscuras. Aos poucos, no entanto, eu consegui compreender as despesas o suficiente para ver que ele tinha razão para andar atribulado. Muito pouco faltava para que as finanças de St. Praxides passassem a ser deficitárias. Monsenhor não queria pedir mais dinheiro porque, para isso, precisaria apresentar à paróquia um balanço detalhado das finanças. Ele já me dissera, com muito orgulho, que isso seria o primeiro passo para que viessem controlar as finanças de sua igreja. Uma outra razão para a sua hesitação era que ele não conseguia descobrir o que havia de errado com a parte financeira de sua paróquia. Também tinha medo de que fosse tachado de incompetente numa região onde os grandes empresários julgavam que a competência financeira era uma prova sólida de masculinidade e, até mesmo, às vezes, um substituto.

  Somei o montante das coletas a partir das quatro primeiras missas de domingo nos últimos três meses. Os padres contavam regularmente o montante da coleta no porão da reitoria, mas aquilo não fazia parte de minhas atribuições.

  Durante alguns meses eu vinha abrindo os envelopes que traziam os recibos dos depósitos feitos todas as segundas-feiras de manhã, e vinha conservando comigo os totais semanais desses depósitos. Eu tinha a permissão para ir fazer os depósitos e depois passava na lavanderia para apanhar as roupas do pastor já bem passadas a ferro, mas nunca preenchia os talões de depósitos, já que essa responsabilidade era delegada a Leonard Kaspar, muito mais digno de confiança.

  Os nossos depósitos eram, geralmente, em torno de $2.400 e a coleta das primeiras quatro missas rendia geralmente uns $1.400. A igreja ficava quase vazia na missa das sete da manhã, ficava em menos da metade da lotação da das oito, e enchia para a das nove, mas era principalmente de garotos cujas contribuições eram muito pequenas.

  Também na das dez a igreja não ficava cheia. Mais da metade dos paroquianos, e entre eles estavam os mais ricos, vinha para as duas últimas. E, no entanto, nós só estávamos recebendo cerca de jnil dólares deles. Tornei a arrumar as cifras em folhas limpas. Dos mil dólares, havia quinhentos em cheques. Somente quinhentos dólares em dinheiro vivo para quase duas mil pessoas?

  Kaspar levava para casa as duas últimas coletas, depois da última missa, contava o dinheiro e depois voltava à reitoria no fim da tarde de domingo, para preencher as fichas dos depósitos, e deixava o dinheiro num cofre muito velho. Monsenhor achava que não havia perigo de roubo porque eram poucos os que sabiam do fato de Kaspar levar o dinheiro para contar em casa. Agora eu sabia a razão por que, sempre que estava de férias, ele voltava para casa de avião para as missas de domingos. Aquele sinal de dedicação fora, publicamente, exaltado pelo pastor por ocasião da missa de meia-noite de Natal.

  Desci e fui até o quarto do único padre que ali era mais novo do que eu.

  - Marty, você quer dar um pulo até o meu quarto? É só um minuto. Quero mostrar-lhe uma coisa.

  Marty Herlihy era um rapaz baixinho, veemente, com olhos flamejantes, cabelos claros e uma tremenda capacidade para passar longas horas de joelhos e rezando. Ele era mais tranqüilo e mais caridoso do que eu. Se ficasse convencido com as provas que eu tinha, eu teria um caso muito sério em mãos.

  Contei-lhe as minhas suspeitas e os seus olhos se arregalaram sem poder acreditar e quase mostravam indignação. Depois então mostrei-lhe os números.

  - Deus do céu, Kevin. - Ele falava baixinho. - Isso deve estar acontecendo durante anos.

  - E continuará durante anos a não ser que a gente ponha um paradeiro.

  Ele sacudiu a cabeça.

  - Monsenhor não vai acreditar em você. Eu tenho um irmãu na chancelaria...

  - Não quero ir até lá, a não ser que seja obrigado. A primeira coisa a fazer é obter as provas.

  - E como é que podemos consegui-las? - Ele coçou o queixo.

  - Quero dizer que, como sendo verdade, como é que vamos convencer o monsenhor?

  - Isso é fácil. É só somar os envelopes das coletas das duas últimas missas. Depois subtraímos o que registra para essas duas missas, do total do envelope, e temos o mínimo que ele tirou.

  Ele franziu o rosto. Parecia relutar para compreender o que eu estava dizendo.

  - O Kaspar mistura os envelopes. Como é que você vai saber quais são os das duas últimas missas?

  - Isso não é problema. Quando estivermos contando o dinheiro das quatro primeiras missas, marcamos um sinal no verso de cada envelope. Na manhã seguinte separamos os envelopes sem marcas e somamos o total.

  - E isso deixa de fora o que é trazido na cesta sem envelope. Isso mostrará uma estimativa conservadora do que foi roubado.

  - Exatamente.

Houve um momento de silêncio.

  - Você está gostando disso, não é Kevin?

com aquela pergunta ele não estava fazendo um julgamento. Estava só querendo saber.

  Aproveitei a ausência do pastor para telefonar a Ellen para marcar um jantar no apartamento em que morava com Tim.

  A Ellen que me recebeu na porta de seu apartamento malcuidado e pobre não tinha boa cara e estava um pouco mais gorda. Seus cabelos estavam viscosos e já não tinha mais o brilho antigo. O pior de tudo, porém, era que já não havia aquele brilho em se :s olhos grandes e cinzentos. Ela conseguiu .sorrir, mas foi com algum esforço.

  O seu aperto de mão, pelo menos, foi muito caloroso.

  - Kevin! É maravilhoso ver você! Parece que o trabalho na paróquia lhe faz bem. Não é mesmo, Tim? Quem sabe se não seria melhor sermos todos padres?

  O sorriso de Tim foi largo e natural, e havia nele ainda uns restos do antigo Cavaleiro, embora estivesse mais magro, cansado e nervoso. A freqüência na escola noturna e o emprego estavam cobrando o seu preço. Ele esfregava as mãos sem parar como se estivesse querendo enxugá-las.

  - Puxa vida, Padre Kevin, como o tempo corre. A sua primeira missa foi a última vez que nos vimos, não foi mesmo? Entre. Sente-se e venha ver a nossa filha.

  Não é mesmo uma beleza?

  E Caroline era mesmo tudo aquilo. Ali estava em meu colo um conjunto de energia, alegria e vivacidade com apenas seis meses.

  - Ela é mesmo uma belezinha muito especial, Ellen.

  - Ela é uma bichinha realmente encantadora, mas não acredita que é preciso dormir de noite. - Ela respondeu com o olhar cheio de ternura.

  - Você não deve usar esses termos com a nossa filha, El. Não fica bem para a mãe cristã que você é

  - Tim reprovou-a com delicadeza.

  Não houve a menor reação da parte dela. Foi como se não tivesse ouvido. Procurei então romper o silêncio perigoso que se seguiu.

  - Ela tem os olhos cinzentos da mãe. Aposto como já sabe quem eu sou.

  - E ela vai ter um irmãozinho na primavera. - Tim acrescentou muito orgulhoso. - Uma boa família católica. Dois filhos em dois anos.

  - E dez em dez anos... - disse Ellen sem a menor emoção.

  - Aliás, você poderá compará-la com Sheila, a filha de Maureen, quando a conhecer no mês que vem.

Antes que pudéssemos discutir a família Haggarty, a herdeira dos Currans, para grande humilhação de seus pais, achou por bem vomitar um resto de sua última refeição em cima de mim. Ela parecia divertir-se extraordinariamente quando a mãe e o pai correram para reparar os estragos. E também se recusava terminantemente a sair de meu colo. J

Não havia coisa alguma para se beber antes do jantar porque; Tim não gostava mais de beber, embora quisesse fazer uma exceção para Ellen e para mim com o vinho branco que eu trouxera para beber com o peixe da sexta-feira.

  - Não me lembro de haver conhecido você como abstêmio nos velhos dias... - Eu disse aquilo rindo para tentar encobrir o meu embaraço. O apartamento cheirava a comida cozinhada demais. A mobília era de segunda mão e o tapete estava puído em muitos lugares. - Houve um tempo em que todo mundo acreditava que você ia ter problemas, Tim...

  Ele inclinou-se um pouco, sempre esfregando as mãos.

  - Naqueles tempos eu não pensava no terrível desperdício de dinheiro que acompanha a bebida. Eu, simplesmente, não encontro uma justificativa para aquilo. - Seus ombros estavam pateticamente magros e frágeis. Fiquei pensando comigo mesmo onde estaria o velho Timmy tão exuberante.

  Ellen interrompeu-o abruptamente, querendo mudar de assunto.

  - E você tem visto alguns bons filmes ultimamente, Kevin? Veio outra vez uma reprovação sutil.

  - Você devia chamá-lo Padre Kevin, querida. Pois então não sabe que ele é padre?

  E, mais uma vez, não houve reação à reprimenda.

  - Vocês dois ficam aí falando dos velhos tempos e eu vou ver como vai indo aquele peixe na cozinha. Padre Kevin, se essa malandrinha aí lhe der algum trabalho, ponha-a de volta no berço. Ela vai chorar, mas isso é bom para os pulmões.

  Quando saiu para a cozinha, ela passou de leve os dedos pelo rosto e o pescoço de Tim.

  - Não deixe que ele coma muitas bolachas, querido, senão vai perder o apetite.

  O rosto de Tim mostrou como se sentia feliz, e começamos então a discutir sobre o campeonato no ginásio jesuíta. O queijo e as bolachas não iam ameaçar muito o meu apetite. O primeiro estava duro como pedra porque acabara de ser tirado da geladeira e as bolachas estavam passadas.

  Também o peixe com batatas deixava a desejar porque tinha sido cozido demais, e tudo porque a terrível Caroline tinha feito uma grande manha no momento crítico de sua preparação. U vinho, pelo menos, compensou um pouco. Comemos na cozinha, já que não havia sala de jantar. Tim fazia tudo que podia para Ijudir a servir a comida, e embora só -«P*^^ sempre lhe agradecia. Falamos a respeito de KMUMH. nas Nações Unidas, e Tim era de opinião que os Estados Unidos deviam cair fora. O casal concordava que a Maureen estava com a razão e que John Kennedy poderia conseguir sua designação para candidato do partido no ano seguinte.

  Conversamos principalmente sobre os planos de Um para quando se formasse e fosse autorizado a praticar. Ele falava com convicção.

  - Nós vamos comprar uma casa em River Forest e uma outra casa de verão no lago, perto de sua família, e a Ellen vai ser a mulher mais bem vestida da paróquia. Ela tem bom gosto para isso e vai chegar o dia em que ela terá o dinheiro que quiser.

  - O mais importante é que ela tem uma família que a adora a despeito das manhas da princesa.

  Eu tornaria a dizer aquilo mais mil vezes só pela gratidão que vi em seus olhos.

  - É isso que eu estou sempre dizendo para ele, Padre Kevin. Eu não desejo mais nada...

  - E nós também lhe daremos outras coisas mais, minha que rida. - Tim deu-lhe uma pancadinha na mão.

  - Qual é a espécie de trabalho a que você vai se dedicar quando estiver formado, Tim?

  - A minha idéia é entrar para uma firma de advocac que tenha ligações políticas. Talvez possamos reformar a política de Chicago. O que eu qüero dizer é que para cada advogado honesto como seu pai, existem vinte trambiqueiros – Quando ele falava assim com tanto entusiasmo, o seu rosto parecia ainda mais magro.

  - Seria melhor dizer cem... - Eu ri-me, já não

podia imaginar qualquer outra coisa para a qual ele tivesse menos aptidaão.

Fomos interrompidos pelo telefone. Tim atendeu e voltou desanimado. Teria que trabalhar no dia seguinte. Já não podia pintar a cozinha.

  - Mesmo assim, precisamos mais do dinheiro do que de uma cozinha sem aquelas manchas todas, não é mesmo, querida? Na próxima vez, quando o Padre Kevin vier, nós teremos uma cozinha novinha em folha.

Eu saí cedo, dando como desculpa a missa das seis e meia e que tinha também que rezar o Breviário. Eu já tinha feito isso, e a minha missa era a das oito e quarenta e cinco. Eu não tinha assunto nenhum para conversar com ele.

  Eles me pediram, muito respeitosos, que abençoasse a família. Ellen foi buscar Caroline que dormia tranqüilamente e os dois se ajoelharam de mãos dadas. Abençoei-os todos, pedindo a Deus nosso Pai, ao Filho e ao Espírito Santo que lhes desse o que eu não podia dar. E com essa invocação Caroline acordou chorando. Quando chegamos à porta, Tim abraçou a mulher pela cintura.

  - Foi ótimo vê-lo novamente, Padre Kevin. Foi uma verdadeira honra tê-lo em nossa casa. Prometa voltar em breve, sim?

  - Prometo sim, Tim. - Mas eu estava mentindo, e a expressão triste no rosto de Ellen disse-me que ela não se enganava.

  No dia seguinte falei com minha mãe ao telefone.

  - O pior de tudo é que ela se dá conta de ter feito uma péssima escolha. Quando eu saí, ela estava com os olhos cheios de lágrimas. Se, pelo menos, ela conseguisse se enganar que tudo vai dar certo...

  - Por que é que você sempre tem que ver as coisas debaixo de termos tão moralistas, Kev? - Ela demonstrava mais impaciência do que geralmente havia quando falava com o seu primogénito.

  - Quem sabe ainda vai dar certo, Kev. É preciso dar-lhes algum tempo.

  - Não foi essa a impressão que tive na noite passada, mamãe.

  - Eles estão atravessando um período difícil, meu filho. Já com um filho e outro a caminho. Tenho certeza que se amam.

  - Ela sente pena dele.

  - Mas isso faz parte do amor, meu filho. Ellen é uma moça com vontade muito forte. Não vai entregar os pontos com facilidade. Quando eles tiverem tempo, e quando não tiverem mais problemas, então você vai ver como o casamento deles vai melhorar.

  — E o que possa fazer? — Eu não conseguia acreditar.

  — Seja um bom amigo. Visite-os com freqüência. Leve-os para jantar fora. Anime-os. Não se mostre sombrio e sério com eles, por mais difícil que isso possa ser para você.

  Aquele era um conselho sensato, e eu tinha todas as intenções de segui-lo, mas, mesmo assim, sempre achava urrt pretexto para não lhes telefonar.

Na tarde da quarta-feira seguinte, com a porta de meu gabinete fechada, para que a irmã do pastor, que também toma conta da casa, não nos visse, eu e Marty somamos as cifras dos envelopes do domingo numa velha máquina.

  Apertei o botão do Total e puxei a manivela.

  — Mil e quinhentos dólares, Marty, e só dos envelopes. Isto não inclui os cheques nos envelopes nem o dinheiro miúdo.

  — Pelo menos mais uns quinhentos...

  — Ele falou em voz alta e com a voz apertada.

  — Mil dólares por domingo, cinqüenta mil por ano. E durante quantos anos, Marty?

  — Eu apertava a mão corn força.

  — Assim vale a pena voltar de avião para contar, não acha? E com isso ainda fica sendo um cidadão muito dedicado. E o que vamos fazer agora?

  — Marty estava mais indignado ainda do que eu.

  — Vamos continuar fazendo a mesma coisa até o Natal, só para ver quanto ele tira nessa ocasião. Depois vamos mostrar ao Leo. Se ele não acreditar em nós... e aposto como não vai mesmo... então nós ameaçamos com o seu irmão.

  — Comigo não vai haver nada, Kevin, por causa de meu irmão. Mas se o pessoal da cidade ficar sabendo que você fez isso com o Leo Mark, eles jamais o perdoarão. Você sabe como ele é respeitado como pastor.

  — Quando tudo isso ficar sendo conhecido, ele não vai mais ser tão respeitado. De qualquer forma, não ligo a mínima sobre o que possam fazer comigo.

  Os "missionários" chegaram nas primeiras duas semanas em novembro. Eram dois homens enormes, de caras feias, em hábitos religiosos azuis e capas pretas que trovejavam sobre os pecados, a morte, o inferno, lá de cima do púlpito nas manhãs de domingo e durante todas as noites da semana, trazendo à tona culpas do passado, deixando nervosas as consciências fracas e fazendo com que ficassem frias todas as camas de casais da comunidade, espalhando o pavor sobre "os pecados da carne" e o "suicídio da raça". Dois padres foram mandados embora para dar lugar a eles na primeira semana. Os outros dois foram na semana seguinte. Marty conseguiu folga para a primeira semana, e eu para a segunda, de maneira que um de nós ficasse para vigiar os envelopes de domingo.

  A primeira semana foi de um terror surrealista. Os homens foram as primeiras vítimas. Por mais estranho que parecesse, eles, mais do que as mulheres, ficavam a imaginar se haviam ou não mencionado, com todos os detalhes, todos os seus pecados em todas as confissões feitas durante sua vidas. Todas as noites, depois dos sermões, e todas as manhãs durante a missa, eu suava frio no confessionário, tentando persuadir os apavorados homens da paróquia de que Deus não era um advogado da acusação.

  Aquilo me era especialmente difícil, já que os missionários eram reconhecidos como homens santos e sábios, muito mais santos e mais sábios do que aquele jovem padre ruivo que, de qualquer forma, era mesmo um tanto radical.

  Embora a maioria dos homens de nossa paróquia fossem homens bem-sucedidos na vida e profissionais de valor, os seus antecedentes religiosos nas suas educações tinham deixado neles um resíduo de superstição e magia na maneira como encaravam Deus e os pecados. Era justamente aquilo que os missionários andavam procurando.

  - Está havendo uma grande quantidade de más confissões. Era o que dizia um dos missionários, um homem de cabelos brancos longos e que se embebedava todas as noites na reitoria. Ouvi um homem, esta noite, que não fizera uma boa confissão nestes últimos cinqüenta anos. Imaginem só que sacrilégio.    

  - Disse isso e emborcou mais um copo de uísque puro sem pestanejar.

  Eu continuava a beber a minha Pepsi, mas não me contive.

  - Parece uma vergonha enganar a Deus tirando-lhe todo o prazer que teria punindo um cara como esse.

  - A mim quer parecer - disse o missionário - que quando a gente encontra uma paróquia cheia de más confissões, isso só reflete mal nos padres que ali servem.

  Leo ficou branco, e eu tive ali a certeza de que eles jamais voltariam à nossa paróquia.

  - Nos padres, mas não no pastor. - Disse isso e levantei-me para atender ao telefone. - São eles que, durante esses cinqüenta anos, vêm ouvindo essas confissões.

  Era a Mônica Kelly.

  - Esses caras são malucos ou o que é que eles são, padre? O Pete me disse que não pode mais beijar-me o boa-noite porque, se o fizer, seus lábios ficarão queimados e serão apenas carvões para toda a eternidade. E o negócio, padre, é que ele não é tão

bom assim em matéria de beijos...

  Pete era o presidente do Clube e Mônica era a sua namorada em vigor.

  - Vá contando isso à garotada, Mônica. Diga-lhes para não acreditarem em nada do que dizem esses dois caras, especialmente quando eles dizem que, para amar a Deus, as pessoas precisam ser freiras ou padres. Diga-lhes que somente o Padre Herlihy ou eu somos infalíveis como o Papa. Está compreendendo?

  - Sim, padre. - Ela não parecia muito convencida. - Eles apavoraram a garotada toda.

  - Diga-lhes que venham até aqui amanhã depois das aulas, às cinco horas.

  Vou conversar com eles na biblioteca. Quanto a vocês, meninas, fiquem de fora.

  Conversaremos na noite seguinte. Está certo?

  - OK, padre. Vou espalhar por aí. Beijar não é nenhum pecado, não é mesmo, padre? Quer dizer... se não for muito demorado, não é?

  - Mônica, você poderia beijar o Pete durante vinte anos, e isso não seria nem mesmo um pecado venial.

  - É melhor que acredite mesmo, padre. - Ela deu uma risadinha.

  Pat ofereceu-se para me levar ao aeroporto para pegar o avião para Nova York. Isso evitaria que eu arrastasse a Mary Ann, ou mesmo o Coronel, até lá na parte sul.

  Ele parecia inquieto.

  - Kevin, eu já lhe devo mais favores do que me seria possível pagar durante toda a minha vida. Estou tentando pagar alguma coisa, só uns poucos deles, com o que vou lhe dizer, embora isso não lhe pareça assim. - Ele calou-se sem saber como continuar.

  - Pois diga lá o que é.

  - Bem, é o seguinte. Algumas pessoas de sua paróquia, sabendo como somos amigos, pediram-me que lhe falasse... sobre a sua atitude. Eles não estão gostando, e então me pediram para falar com você...

  - Já sei. Foram os Kaspars, os Tanseys e os Carreys... E então, de repente, fiquei sabendo de onde lhe vinham as abotoaduras e o carro novo em que ele me levava ao aeroporto.

  - Isso mesmo. Especialmente o Len Kaspar, que tem sido muito bom para nós lá na paróquia. Ele se responsabilizou por todas as despesas com as nossas aulas de instrução no inverno. E ele não tem a metade do dinheiro que têm o Arnold e o John.

  - Homem bom, esse. - A minha apreciação vinha com um sarcasmo que Pat não podia compreender. Era o nosso dinheiro que estava pagando as instruções dos convertidos e o carro de Pat.

  - Se você prefere que eu não diga mais nada, Kev...

  - Não, não. Continue falando, Pat.

  Ele passou a mão nos cabelos, fez uma careta e parou num sinal vermelho na Rua Sessenta e Sete.

  - É uma condenação muito ampla, e eu não estou fazendo um julgamento.

  - Claro que não...

  - Acham eles que você não respeita o Leo Mark, que olha com desprezo os paroquianos mais ricos e que está favorecendo radicais inovações litúrgicas. Que você prega demais a justiça racial, e que está querendo tomar conta da paróquia para manobrá-la ao seu gosto.

  - Culpado em todos os pontos. Volte e diga-lhes que é isso mesmo. E diga-lhes também que pretendo continuar a fazer justamente o que estou fazendo.

  Paramos na porta da United Air Lines em Midway. Saltei do carro e apanhei a mala que estava no banco traseiro. Apontei para o carro e perguntei:

  - Isto foi um presente do Kaspar?

  - Foi sim. O meu velho carro enguiçou e eu não tinha o dinheiro...

  - Era o que eu pensava. - Bati com força a porta do carro e entrei no terminal.

  Fui de trem até Boston para ver a Maureen antes de voar de volta para casa no fim de minhas férias.

  Sheila era uma garotinha encantadora, embora fosse tão plácida como Caroline era ativa. Depois de haver sido devidamente inspecionada, ela foi levada, sem protestos, por uma babá gorda, para algum lugar da casa onde uma possível manha sua não viesse perturbar as conversas dos adultos. A mãe também era um contraste chocante com a mãe de Caroline.   

  Esbelta, bem cuidada e elegantemente vestida.  

  Estava tensa e excitada com a campanha política que se aproximava. Maureen estava ali sentada junto  de uma mesa antiga no apartamento de Black Bay, como se já estivesse ensaiando para ser uma das anfitriãs de Washington.

  - Nós vamos conseguir, Kevin. - Bateu na mesa com a mão fechada e por pouco não enfiava o punho de pele do vestido dentro da sopa. - O Jack Kennedy vai ser designado e depois vai ser eleito. O Burke vai vencer na Assembléia, com a mais espetacular maioria da história, daqui a dois anos. Quando houver uma eleição especial para preencher a vaga deixada por Jack, ele vai ser o novo senador dos Estados Unidos pelo Estado de Massachusetts.

  - E você muda-se para Washington. E como vai o Burke na campanha?

  - Ele não é muito bom nisso. - Ela fechou a cara.   

  - Claro que são altos os padrões neste Estado, onde temos o Jack e o Bobby. O que conta é o que ele vai fazer depois de eleito.

  Não cheguei a perguntar se ele ainda estava bebendo muito, mas não me faltou vontade para isso.

  - E você é boa nas campanhas, como as mulheres dos Kennedys?

  - Claro. - Ela sorriu com orgulho. - Nós nos divertimos muito. Alguns homens dizem que eu sou ainda melhor do que Jean e Eunice, e Deus sabe como é fácil ser melhor que a Jackie.

  - E o que é que você lhes diz?

  - Eu digo que sou boa mesmo porque sou de Chicago. E com isso eles se calam. Será que o Prefeito Daley vai realmente entregar Chicago para o Jack? As pessoas mais esclarecidas acham que ele fica preocupado com o problema dos que são contra o catolicismo.

  - No Condado de Cook? - Eu dei uma risada. - Mas claro que Daley vai entregar Chicago, quando se convencer de que o Jack vai ganhar. Em Chicago nós não apoiamos perdedores, desde que isso seja possível. Meu pai diz que o Daley é tão católico como o Papa, e talvez, até mesmo, um pouco mais. Claro que ele vai apoiar o Kennedy.

  - Por falar em Papa. O que é que há com o meu amigo, o Papa do West Side? Ele não é dos que gostam de escrever cartas, hein? - Ao falar aquilo, o seu rosto angelical mudara de uma expressão para outra, ambas animadas, enquanto seus dedos brincavam nervosamente com a colher da sopa.

  - Está muito ocupado reconstruindo a Igreja e falando das incompetências do Papá Roncalli. - Enquanto falava, eu a observava com atenção. - O meu palpite é que ele está no caminho certo para subir. Uma coisa eu posso dizer: embora tenha procurado se aproximar de todos os seus antigos colegas, depois que voltou de Roma, ele está novamente com a turma. Não há vestígios do antigo jogador imprevisível de basquete.

  - Já tomou o seu lugar como líder, Kevin? - Ela disse aquilo arqueando as suas encantadoras sobrancelhas.

  - Caí fora desse papel quando tinha dezenove anos, Mo.

  - Você acha que ele quer ser bispo? - com os cotovelos na mesa e as mãos no queixo, Maureen debruçou-se para mim. Quando esteve aqui neste verão, ele mostrou-se em seu elemento quando esteve lá no Cape. - Ela empurrou a cadeira para trás com impaciência e começou a andar de um lado para outro como uma leoa enjaulada. - Você devia tê-lo visto exibindo todo o seu charme lá em Hyannis, nas casas dos Kennedys. Eles estão acostumados com padres de fala macia. Alguns sorrisos, umas boas gargalhadas de rapazes, algumas piadas e, em pouco tempo, estava com a mãe dos Kennedys, a Rose, enfeitiçada por ele. Ele realmente gosta disso. Adora estar no meio dos ricos e dos poderosos.

  - E quem não adoraria?

  - Eu gosto muito do Pat - Maureen nem me ouvia - mas ele não é muito bom quando se trata de resistir às tentações. Dinheiro, poder, prazeres, tudo isso ativa os seus demônios negros. Se ele não conseguir se entender com esses demônios com os seus paroquianos pobres, ele vai destruir-se.

  - Demônios negros? Acho que não estou...

  - Mas, que diabo, Kevin. Todos nós os temos. O Pat está na encruzilhada de sua vida. Agora ele está quase envolvido na corrupção... Não me olhe assim, Kev. Ele está mesmo. E se você não conseguir detê-lo, ele vai abandonar os seus pobres e vai sair em busca do poder. Aí então todos nós estaremos encrencados, e você muito mais que os outros.

  - Creio que você está exagerando, Mo.

  Como se já estivesse cansada de falar sobre Pat, ela mudou de assunto de repente.

  - E como vai a Ellen? As suas cartas não me contam nada.

  - Ela está grávida outra vez, e creio que isso não a ajuda muito...

  - Isso não vai acontecer comigo durante muito tempo. - Ela logo interrompeu-me. - É o que lhe posso garantir, Kev.

  - E embora eles se amem muito, parece que está faltando alguma coisa...

  - Você acredita em sexo, Kev? - Ela tornou a sentar-se e começou a comer seu pirão de batatas. - A Ellen não me conta, mas eu adivinho. Ela é uma sonhadora romântica, e os dois são inocentes. E quero dizer isso mesmo. Inocentes. Nada sabem a respeito de sexo. Depois que o Tim pôs à mostra o traseirinho dela, eu aposto como ele não tinha a menor idéia sobre o que fazer em seguida.

  - Eu não posso saber. Creio que com o tempo eles descobrirão. Tudo de que precisam são algumas oportunidades.

  - Pois não é isso mesmo que todos nós precisamos? - Ela falava com amargura, empurrando o prato e estendendo a mão para o copo.

  No aeroporto de Logan, enquanto esperava o avião para Chicago, pensei comigo mesmo que eram inúmeras as coisas que podiam sair erradas em um casamento, e isso sem contar o sexo. A caminho de casa eu me concentrava na melhor maneira de liquidar Leonard Kaspar.

  Foi somente no carro, já de volta à reitoria, que me lembrei. Esquecera completamente de abençoar Sheila quando saíra do apartamento de sua mãe em Boston. A pobrezinha certamente precisava de todas as bênçãos que conseguisse obter.

 

  Uma tremenda tempestade de inverno assolava a área de Chicago. Os rostos dos pedestres que caminhavam apressados pela Avenida Michigan estavam encolhidos e ansiosos.

  Eles nem mesmo se interessavam em levantar os olhos para a nova torre Hancock que se erguia como uma nova Torre de Babel em aço e vidro, e que chegava a penetrar nas nuvens escuras. Os aeroportos estavam fechados, tanto o Midway como o novo de O'Hare. Len Kaspar não ia conseguir voltar para Chicago quando voltasse da Flórida.

  Eu tinha certeza de que íamos pegá-lo. Seu plano era audacioso mas, na verdade, muito mal bolado. Somente um bestalhão como ele se meteria numa coisa assim. E não havia razão para se pensar que o seu sucessor não fosse também um bobalhão como ele.

  Nós conseguimos sobreviver as três primeiras missas sem um usher chefe. Às dez, quando o coro estava chegando, o sol conseguiu romper as nuvens.

  A última missa começava ao meio-dia e quinze e ele ainda não estava lá no seu lugar, na porta principal da igreja.

  - O chefe está lá todo nervoso pensando em quem vai contar o dinheiro - disse Marty. - Tudo que precisamos fazer é nos oferecermos.

  - Não vamos nos apressar. Se parecermos por demais interessados, o Len vai desconfiar. Não vamos querer botar tudo a perder, Marty.

  Era uma e cinco quando Kaspar apareceu, suave e despreocupado. Desculpou-se com o monsenhor, explicou que tinha sido o tempo e, com muita modéstia, recebeu os entusiásticos elogios do bom homem pela sua dedicação ao serviço.

  Algumas horas depois, naquela mesma tarde, eu estava no gabinete de meu pai olhando a neve derreter-se no gramado em frente de nossa casa enquanto o sol ia desaparecendo.

  - É incrível - meu pai fumava furiosamente o seu aromático cachimbo - absolutamente incrível. Que magnífico advogado você poderia ter sido, Kevin, embora, veja bem, eu tenha a certeza de que vai ser um padre ainda melhor. - Ele estava visivelmente embaraçado quando tentou corrigir o que dissera primeiro.

  - Senhor Promotor, onde é que ficamos?

  Ele franziu o rosto e passou a mão pelos cabelos brancos.

  - Suas provas são muito fracas, Campeão. Você tem razões para suspeitar que houve roubo de dinheiro nos meses em que vocês tomaram nota de tudo, mas, para os nove meses anteriores, tudo que vocês têm são conjecturas. Um júri provavelmente o condenaria com as provas que você tem, mas isso se vocês conseguissem chegar até lá. O seu grande problema seria um veredicto de não culpado em vista de provas insuficientes. A polícia poderia ajudar se você apresentasse queixa, mas então tudo escaparia de suas mãos. E então tudo se transformaria em um complicado escândalo público que viria prejudicar a paróquia e a Igreja. Poderia até mesmo causar a morte do seu pastor, e não acredito que você deseje isso.

  - Então nós vamos ameaçar o Kaspar, vamos recuperar tudo que for possível, e vamos ficar caladmhos? - Eu andava de um lado para outro muito nervoso.

  - Isso mesmo, Kevin. Se o Tansey estiver envolvido, você vai ter que se haver com um cara muito duro... e eu estarei em um conflito de interesses, possivelmente.

  - Será que poderíamos arrasar o Tansey?

  - Acredito que sim. Ninguém é invulnerável. O escândalo iria prejudicá-lo, e ele é tão orgulhoso como se fosse realmente um anjinho.

  O Coronel telefonou-me na tarde seguinte.

  - Os investimentos imobiliários do Kaspar na Flórida valem mais de dois milhões de dólares. Ele já tem dinheiro bastante para se aposentar de suas falcatruas na hora que quiser sem que isso lhe faça a menor mossa.

  - Mas que sacana!

  - Neste momento, a terra não representa um património líquido, com a economia do jeito que está. No entanto, ele poderia contrair um empréstimo sem a menor dificuldade. Se alguém oferecer duzentos mil, Campeão, você deve aceitar logo. E bem depressa.

  Eu tinha justamente acabado a tabela do voleibol feminino quando o Marty entrou muito afobado. Estava quase sem fôlego.

  - Contei o envelope de domingo. Ele tirou mil e duzentos dólares, ontem. Por quanto tempo vamos deixar que isto continue?

  - Até o dia em que ele cometer um erro. - Respondi com muita calma. - Aí vamos pegar tudo de volta. Ele tem muitos terrenos na Flórida.

  - E se ele não pagar?

  - Ele vai pagar, Marty. Será bastante ameaçarmos com uma denúncia ao Imposto de Renda.

  - Mas isso é chantagem, Kevirí. - Marty arregalou os olhos, muito chocado.

  - É a maneira de recuperarmos o nosso dinheiro, Marty. Dizendo isso voltei para a minha tabela do voleibol.

  O Natal foi um pesadelo em St. Praxides, com doze horas de confissões e muitos dos paroquianos combatendo as neuroses que os missionários tinham feito surgir, e depois a missa da meia-noite que só acabou às duas horas. Quarenta e cinco minutos foram consumidos com um sermão cheio de divagações em que o Monsenhor agradecia a todo mundo da paróquia pela cooperação, sem contudo ter uma palavra de agradecimento para os seus padres e para o Menino Jesus. Estávamos todos de pé às seis da manhã para ajudar nas comunhões das missas da manhã e para contar o dinheiro arrecadado no Natal. Cada Natal era considerado pelo pastor como uma espécie de plebiscito em que os seus paroquianos votavam dando-lhe apoio em vista de sua administração. Se a coleta aumentava, ele chegava à conclusão de que tinha sido aprovado. Se permanecesse constante, ou se diminuísse, então era porque ele fracassara. Todos os anos ele entrava em pânico antes do Natal, sempre esperando por um veredicto contrário à sua administração.

  Claro que isso nunca acontecia.

Naquele dia Kaspar contou apenas o dinheiro da última missa do dia.

  Às três horas da tarde nós todos nos reuníamos no porão da reitoria e, enquanto as outras famílias cristãs estavam jantando, chegávamos ao total geral. Leo Mark parecia que ia ter ali um ataque cardíaco à medida que anotava os números lidos por Len Kaspar, muito queimado e com um elegante terno novo.

  Monsenhor somou uma vez, depois tornou a somar sacudindo a cabeça, não conseguiu mais conter sua alegria, exclamando:

  - Seis mil dólares. Mais dois mil e quinhentos do que na última vez, no ano passado.

  - Congratulações, monsenhor. - Len parecia igualmente feliz. - O pessoal todo correu em seu auxílio novamente.

  Era a minha vez de levar o dinheiro ao banco. Não podíamos arriscar deixando-o passar a noite no precário cofre da paróquia. Algum pobre caixa do banco estava perdendo o seu jantar de Natal com a família para ficar esperando pelo nosso depósito. Como exceção especial, o padre que levasse o dinheiro poderia usar o Cadillac do monsenhor, já que a alternativa seria caminhar mais de uns dois quilómetros pela neve com uma sacola de dinheiro às costas.

  No dia seguinte Marty veio me contar o que tinha descoberto.

  - O espírito do Natal deve ter afetado o Kaspar. Ele só roubou quinhentos dólares.

  - E isso mal chega para pagar aquele terno novo, Marty.

  No domingo depois do Ano-Novo fui designado para a missa das dez horas da manhã. Eu poderia dormir até às nove, já que a minha primeira obrigação era assistir e ajudar na comunhão das nove e meia. Aquilo não agradava ao monsenhor, mas, apesar de muito procurar, ele não podia encontrar uma razão que obrigasse o padre da missa das dez a estar de pé antes das nove, aos domingos. Eu, geralmente, não dormia muito até tarde, mas, sempre que rezava a missa das dez, dormia até tarde por uma questão de princípios.

  Estava ainda meio tonto de sono quando o Marty deixou o altar. Deus está me castigando, foi o que pensei. Lá fora, no ar ainda frio, a fumaça branca das chaminés apontava para o céu como se fosse fogueiras de acampamentos de índios nas planícies.

  - Ele não está lá. - Marty estava ofegante.

  - Quem é que não está lá, Marty? - Eu estava colocando hóstias num cibório.

  - Kaspar. Foi para a Flórida, outra vez. Ele telefonou. Há outra tempestade e ele só poderá voltar no fim da tarde. Garantiu ao monsenhor que contará o dinheiro à noite.

  - E daí? - Acabei de encher o cibório e coloquei a tampa dourada.

  - E o Leo Mark está tonto. Se não tivermos o dinheiro contado até às três horas, isso vai atrapalhar tudo. Tenho uma vaga idéia de que teremos que fazer a contagem.

  - Vamos ter que contar nós mesmos. - O pastor fechou seu relógio de ouro e levantou-se da mesa.

Os dois padres velhos foram dispensados. Monsenhor, Marty e eu descemos para a sala de reuniões toda forrada de tábuas com nós de pinho, no porão, onde logo começamos a abrir os envelopes. Minha mão tremia.

  Eram três horas quando acabamos. Arrumei as três pilhas de papel verde em cima da mesa e anunciei:

  - Dois mil e trinta e cinco dólares, incluindo os cheques.

  - Menos do que no último domingo - disse o pastor.   

  - Isso é gente que está em férias de inverno. As pessoas não percebem que a boa sorte delas pode prejudicar a Igreja.

  - Estou falando só das últimas duas missas - disse eu com voz macia. Marty estava pálido e seus dedos formavam estranhos padrões em cima da mesa.

  - Deve haver algum engano. - O pastor não se conformava.

  - Vocês devem ter esquecido das duas primeiras missas.

  - Negativo. - Coloquei um saco de dinheiro em cima da mesa. - Aqui estão as quatro primeiras missas. - Esvaziei os montinhos verdes e a pilha de cheques que estavam dentro do saco, como se aquilo fosse uma comucópia.

  Leo contou todos os montinhos, somou os cheques mais uma vez na máquina de calcular muito bombardeada e depois contou outra vez o dinheiro.

  - Deve haver algum engano. - O seu rosto estava cinzento.

  - Aqui há mais de três mil dólares, e este domingo não é dos mais importantes.

  - Mas também é o primeiro domingo nesses últimos dez anos, mais ou menos, em que a contagem das duas últimas missas não foi feita por Len Kaspar - eu disse aquilo com o olhar desviado para um dos condicionadores de ar ali numa das janelas da sala.

  - Esta é uma afirmação ultrajante! - disse o monsenhor com a voz abafada onde não se percebia sinceridade. Ele já ouvira muita coisa a respeito de paroquianos que haviam prevaricado.

  - Olhe aqui estas listas, monsenhor. - Passei-lhe então as folhas com as quantias dos últimos quatro meses. - Note que os nossos depósitos no banco sempre mostram que os das duas últimas missas são menores do que os das primeiras quatro. Eu mesmo não conseguia descobrir isso, mas creio que, agora, já temos a explicação.

  Ele estava tão acabrunhado que nem mesmo me perguntou como eu tinha conseguido aqueles números.

  - Nós podemos ver os envelopes dos últimos domingos. Marty percebeu logo a "deixa" e entrou no assunto. - Eu ainda não os arquivei, e poderemos ver se as somas nos envelopes confirmam o que parece estar acontecendo.

  - O que vão dizer os meus amigos quando souberem disso?

  - Leo estava arrasado. Tremia e gaguejava. - A minha reputação como administrador estará arrasada. Nunca mais vamos poder recuperar isso, e eu vou apenas despedi-lo  do cargo e... também não vamos contar a ninguém. Não podemos permitir que isso se espalhe.

  - Talvez não se consiga recuperar tudo, mas vamos recuperar alguma coisa. Creio que podemos manter isso em segredo, mas se não houver qualquer tentativa de restituição, acho que devemos entregar o caso à Chancelaria, e ao procurador do Estado. Minha consciência me obriga a isso, e creio que você também pensa assim, não é Marty?

  Ele acenou com a cabeça.

  Leo Mark começou a tossir e eu tive medo de que ele se engasgasse e morresse. Foi nessa hora que Len Kaspar despencou pela escada com um sobretudo de cashmere cor de couro e um cachecol muito elegante.

  - Mas o que é que está havendo aqui? - A pergunta foi feita numa voz que escondia a sua inquietação.

  - Você está demitido de seu cargo de usher chefe a partir deste momento - disse o monsenhor abotoando a sua batina numa tentativa de recuperar a sua dignidade.

  Embora o seu bigodinho tremesse, Kaspar manteve-se calmo.

  - É o primeiro domingo que eu falto em doze anos, monsenhor, e o senhor me despede? - Ele mostrava-se muito magoado.

  A mulher dele veio logo atrás enrolada no seu custoso casaco de mink. Ela era mais moça e mais bonita do que Mary Tansey, e da mesma forma que a irmã, ela parecia recortada em papelão.

  - O que há é que encontramos mil dólares a mais na coleta quando contamos - disse eu, contente por poder entrar na conversa.

  - E você, seu sacaninha de merda - ele voltou-se para mim como uma fúria solta - o que é que está querendo insinuar?

  - O que eu estou querendo insinuar, Sr. Kaspar, é que tem havido algo de errado com as duas últimas coletas durante muitos anos. Tenho aqui os registros de quatro meses. - Atirei-os para ele por cima da mesa. - Nesse período, parece que a paróquia perdeu uns dezoito mil dólares.

  - O senhor vai permitir que este arrogante filho da puta me difame? - Kaspar voltou-se para o monsenhor. - Tudo isso é uma grande calúnia. No próximo domingo eu estarei lá no meu posto como de costume.

  A cara de Martha Tansey Kaspar com seu olhar muito duro matou a questão. Ela estava também na jogada e enterrada até o pescoço, onde estavam as suas lindas e perfeitas pérolas.

  - Se for uma calúnia, eu lhe ficarei devendo minhas desculpas. - Eu não perdi a calma. - No domingo que vem, quem vai contar somos nós, não é mesmo, monsenhor?

  Leo não sabia para onde se virar. Ele estava com medo da raiva do Kaspar, estava com medo do escândalo, e estava com medo por causa de sua reputação. E no entanto, o que era, aliás, bastante estranho, ele também estava com medo de mim.

  - É sim, Kevin... - a sua resposta estava cheia de humildade.

  Kaspar apanhou a papelada em cima da mesa, rasgou tudo e atirou-me em cima.

  - Os seus números, Brennan, são um monte de merda. Para mim eles não têm a menor importância.

  - Eu tenho cópias de tudo lá em cima. E lembre-se de que, para você, eu sou o Padre Brennan.

  - Vamos embora, Martha - ele agarrou a mão enluvada da mulher - não somos obrigados a aturar isto tudo.

  - Nós temos dados atrasados durante uma década, e você está devendo a esta paróquia, pelo menos, meio milhão de dólares. Acho que vai ser obrigado a vender uma parte de suas propriedades na Flórida. Nós lhe damos dez dias. Se não houver resposta sua, vamos levar o caso para o procurador do Estado e para o Imposto de Renda. - Eu dizia tudo aquilo inventando alguma coisa.

  Pela primeira vez, era fácil ver o medo estampado no seu rosto bem escanhoado. Ia dizer alguma coisa, mas a mulher puxou-o pelo braço. Eles fizeram meia-volta e subiram as escadas, para logo saírem no meio da neve que caía.

  O rosto de Leo estava enterrado nas mãos, e foi com a maior docilidade que me perguntou:

  - O que é que vai acontecer, Kevin?

  - Tudo depende deles envolverem ou não o Tansey. Não se preocupe, chefe. Não podemos perder. - Coloquei minha mão em seus ombros para acalmá-lo.

  De volta em meu quarto e sentado na poltrona de couro escuro, telefonei ao Coronel para lhe contar o sucesso. Meu pai respondeu dizendo-me que logo na manhã seguinte ele avisaria ao Tansey de que não podia continuar como seu advogado.

  - Eu, aliás, nunca fui muito com aquele cara - disse ele.

  Eu gostava da vitória, mas já não gostava tanto de suas seqüelas. Pensava nos soluços do pastor, no bigodinho de Kaspar que tremia, no ódio que via nos olhos de sua mulher e nos lábios apertados de Marty. Desejava ter alguém com quem fosse possível conversar.

  De repente, num impulso, agarrei o telefone, procurei na lista o nome Curran, no Jackson Boulevard, e comecei a discar. Já tinha discado cinco dos sete números quando desliguei.

  Na tarde de terça-feira o pastor veio ao meu quarto.

  - Kevin, humm... o seu amigo Pat Donahue está no telefone. Tansey quer que ele converse comigo sobre o nosso problema.

  - Filho da puta...

  - Kevin, por favor. Ele deixou bem claro que não está de lado nenhum. Apenas está tentando acomodar as coisas de uma forma cristã. Vamos falar com ele? Ele diz que pode vir esta noite.

  - Mas claro. E por que não?

  Eu estava furioso com Pat. Nós podíamos estar precisando de um intermediário honesto, mas não precisávamos dele.

  Depois do jantar, naquela noite, Pat chegou à reitoria em um outro Oldsmobile novo. Presente de Tansey por serviços prestados.

  Estávamos todos sentados em torno da mesa no gabinete do pastor: Marty Herlihy, Leo Mark Rafferty, Patrick Donahue e eu, que estava bebendo uma bebida irlandesa, já sem me lembrar do juramento dos cinco anos.

  - Olhem aqui, senhores - Pat falava com muita suavidade eu não aprovo o que aconteceu. Pelo contrário, considero tudo muito desprezível. Da mesma forma que vocês, eu também quero proteger a Igreja e evitar um escândalo. E esse é também o desejo do Sr. Tansey. Ele se obriga a garantir um pagamento de cinqüenta mil dólares por ano durante os próximos dois anos, e em troca só deseja que dêem suas palavras de que tudo será esquecido. O senhor concorda com isso, monsenhor?

  - Bem, isso é muito generoso do Arnold. Acho que nós, certamente. .. - ele esfregava as mãos muito satisfeito.

  - Nossos números mostram meio milhão de dólares - disse eu sem papas na língua.

  - O Sr. Tansey não acredita que isso possa ser provado - Pat mexeu-se inquieto e pôs de lado o copo   - e tampouco acredita que vocês tenham provas que sejam aceitas em um tribunal. Bem podem imaginar que ele não aprova o que vocês fizeram, mas, mesmo assim, como bem podem imaginar, ele quer que a Igreja nada sofra por causa desses prejuízos. Claro que ele não pode assumir a responsabilidade por todo o prejuízo.

  - Pois então faça com que o Sr. Kaspar assuma a responsabilidade por todo o prejuízo - eu insisti. - Ele que venda as suas propriedades na Flórida. Creio que o Sr. Tansey sabe bem o que poderia acontecer se o Imposto de Renda fizesse uma auditoria nos bens de seus parentes.

  - Claro que ele sabe, Kevin - Pat ficou muito pálido - embora ache que a Igreja haverá de preferir que seja evitada a publicidade que uma investigação dessa ordem causaria.

  - Mas não tanto quanto ele mesmo desejaria. E quanto às propriedades na Flórida?

  - Está tudo em nome da mulher dele - Pat passou a língua nos lábios. - O Sr. Tansey e a sua mulher não acham justo que a mulher de Kaspar seja castigada por alguma coisa que ela desconhecia.

  - Merda! - Eu não me contive mais e soltei um berro.

  - Devo então dizer ao Sr. Tansey que a sua oferta não é satisfatória? - Pat olhava, muito nervoso, para mim e para o Leo. Mas que filho da puta! Que filho da puta sujo!

  - Bem... eu... Você não acha, Kevin... - Leo estava indeciso sem saber para onde se virar e quase chegava a implorar.

  - Olhe aqui, Pat. Ligue para ele e diga-lhe que eu mandei dizer que são trezentos e cinqüenta mil dólares.

  - Eu não posso fazer isso. - Ele ficou tão vermelho que dava a impressão que ia arrebentar.

  - Pois é melhor que faça mesmo, porque senão quem vai telefonar sou eu.

  Pat foi ao gabinete do pastor e eu ouvi que falava baixinho.

  - O Sr. Tansey está no telefone. Ele está muito aborrecido com o que aconteceu na paróquia e já está inclinado a elevar a sua oferta para duzentos e cinqüenta mil dólares. - Ele falava como se o Tansey fosse o próprio Papa.

  - Fechado... - disse eu friamente.

  - O que quer dizer com isso? - Pat estava de boca aberta.

  - Fechado - disse eu esvaziando o copo e tornando a enchêlo.

  - Cinqüenta mil durante cinco anos?

  - Oitenta e três durante três anos.

  Pat voltou ao telefone, e regressou sorrindo.

  - O Sr. Tansey acha que está bem. Antes de desligar ele quer que eu lhes diga que considera isto um acordo entre cavalheiros, uma espécie de aperto de mãos oral, já que imagina estar tratando com cavalheiros.

  - Nós somos tão cavalheiros como ele. Pat voltou do gabinete.

  - Está tudo combinado. O primeiro cheque virá na semana que vem.

  - Será que ele vai querer antedatá-lo por causa dos impostos do ano passado? - A minha voz era amarga.

  Durante um momento, tudo ficou tão quieto que até parecia um túmulo.

  - É melhor eu ir andando. - Pat estava inquieto.

  - Até a vista, Pat. - Eu não lhe apertei a mão.

  A mulher estava com um robe vermelho bem grosso quando abriu a porta. Aquilo era, sem dúvida, um presente de Natal. Ele tinha lutado contra a tentação durante quase cinco anos. Agora ele se via apanhado, da mesma forma que logo ela se veria também •apanhada. Ela sorriu com satisfação. Sabia bem o que ele desejava. Suas mãos seguraram o cordão do robe. Lá fora havia gelo, mas ali dentro, em poucos momentos, haveria calor. O robe caiu de seus ombros.

  Na noite de quinta-feira encontrei Pat me esperando em meu quarto trançando os dedos.

  - Devo-lhe uma desculpa - disse muito sem jeito.

  - Esqueça. Mesmo agora, custo a acreditar no que aconteceu.

  - Eu estava certo de que...

  - Os ricos não são diferentes dos pobres, Pat, a não ser quando a gente se torna dependente deles. E é então que a pessoa se torna corrupta.

  - Para você isso é fácil de dizer, Kev... - ele falava com amargor.

  - Eu sei, Patrick, eu sei...

  - Eu preciso da ajuda deles para manter o programa de instrução e a escola da paróquia. O Mulcahey é um homem bom, mas é incompetente.

- Eu vou ajudar na administração desta paróquia de hoje em diante. Nós vamos estabelecer um fundo entre os paroquianos para ajudar você. Está bem assim?

  Alguma coisa de sua antiga vivacidade estava de volta.

  - Puxa vida, Kevin, você é generoso e eu não mereço isso.

  - Isso não vem ao caso. A sua paróquia merece.

  Os pontinhos do medo não desapareciam de seus olhos. Ele levantou-se e estendeu-me a mão.

  - Vamos trabalhar juntos outra vez, exatamente como nos velhos tempos.

  - Como nos velhos tempos, Pat. - Apertei-lhe a mão.

 

A Década de Sessenta

  Era uma noite quente de abril. Os Corpos da Paz tinham acabado de ser criados. Khrushev andava arrotando força a respeito de Berlim. John Kennedy já estava na Casa Branca, e João XXIII estava no Palácio Apostólico. Tinha chegado o degelo.

Marty Herlihy enfiou a cabeça na porta da sala de nós de pinheiro onde eu estava escrevendo cartas já bem atrasadas.

  - Telefone, Kevin...

  - Eu telefonarei depois, Marty. Receba o recado.

  - Pelo Tomde sua voz, ele está precisando falar com você agora.

  - E disse quem era?

  - Tim Curran. Lembra quem é?

  - É uma espécie de aviso.

  Fui falar no telefone que ficava na sala onde se contava o dinheiro e que ainda era a mais importante da reitoria, pelo menos na opinião de monsenhor.

  - Já soube que você tem um garoto para fazer companhia à princesa. Espero que a família esteja bem, Tim.

  - Sim, sim. Muito bem, obrigado, Padre Kevin. - A sua voz fina parecia desanimada. - A Ellen anda um pouco cansada e eu ando muito ocupado com os exames para advogado, em agosto. Mas creio que o pior já passou.

  - Dê lembranças minhas a Ellen, Tim. - Brendan, o filho deles, tinha já quase um ano, mas eu logo me esquecera da existência dele. Aquela antiga vizinhança, e a maior parte dos que a compunham eram agora parte do passado.

- Você precisa vir ver os dois... deixa passar os exames. A Caroline é uma maravilha ambulante.

  E aquilo era só o que lhes faltava. Uma filha de dois anos para meter medo ao irmão mais novo.

  - Já me disseram que ele tem os olhos da mãe. - Mary Ann e seu namorado Steve McNeil eram os padrinhos, e Pat batizara-o.

  - Tem sim, padre, e nós o adoramos. - Eu tinha a impressão de que ele estava fazendo um esforço enorme para amar. - Hum, hum. . . padre. Eu queria perguntar uma coisa, uma coisa particular. .. se é que o senhor não se importa.

  Resmunguei apenas uma coisa que não me comprometia.

  - É a respeito dessa coisa de controle de natalidade, padre. A Ellen está muito cansada e o médico diz que ela não deve ter outro filho nos próximos dois anos. Que assim seria melhor para ela. Faz três anos que nos casamos e ela esteve grávida durante dezoito meses e...

  Padre Kevin, isso não é fácil.

  Do que vale alguém ter uma mulher se não pode usufruí-la o tempo todo? Eu sabia todo o resto da conversa de cor.

  - Vocês já tentaram o ritmo? Ellen é enfermeira, e tenho a certeza de que ela... - E ali estava o padre, sempre parecido com um idiota pomposo naquela espécie de conversa.

  - Sim... bem... Os períodos dela são regulares, mas parece que isso não funciona bem em nosso caso.

Eu fiquei a pensar se eles, realmente, tinham tentado.

  - Eu sei que é duro. - Eu estava ali tentando as minhas últimas habilidades psicológicas, por meio de conselhos não direcionais e "centralizados no cliente".

  Afinal ele teve coragem de chegar aonde queria abertamente.

  - A Ellen quer usar essa tal pílula... Ela diz que a Igreja vai mudar e não há razão para ficar esperando até 1965, mais ou menos, para fazer isso. Vai mudar mesmo, padre? O caso é que eu não quero cometer um pecado mortal ou coisa parecida.

  - Não acho que haja razão para se antecipar à mudança, Tim.

  - Respondi-lhe com uma certa reserva. Se um dos cônjuges insistia em usar os anticoncepcionais, eu sempre estava pronto a lhe dar a absolvição no confessionário.

  Talvez fosse possível esticar um pouco para incluir casos como aquele. Deus meu, como gostaria se pudesse fazer isso.

  - O que eu quero saber é se seria um pecado mortal se a Ellen a usasse. - Na sua voz eu sentia a agonia que lhe ia na alma.

  Respondi com cautela.

  - Estou certo, Tim, de que a Ellen jamais faria alguma coisa que, em sua consciência, ela julgasse ser pecado. Ela deve fazer o que lhe indicar a consciência. - O cofre da paróquia parecia estar de olhos arregalados para mim por me estar afastando da ortodoxia.

  Ele ainda estava em dúvida. Talvez estivesse cansado demais para poder se dar conta da solução que eu lhe aconselhava.

  - Mas nós devemos ouvir a Igreja para formar a nossa consciência, não é mesmo, padre?

  - Tenho a certeza de que a Ellen sempre ouviu os conselhos da Igreja, Tim. - Eu já estava desesperado.

  - Acho que o senhor está certo, Padre Kevin. Eu sabia que não podíamos fazer isso, mas queria ter a certeza.

  Eu ainda pensei em tentar mais uma vez, mas afinal desisti. Tim, simplesmente, ainda não estava pronto para assumir a responsabilidade da tomada de suas decisões morais. Dentro de um ano haveria um outro filho. Nesse ponto, então, Ellen passaria a usar a pílula sem levar em conta a posição da Igreja. Mais tarde teriam problemas de consciência e recorreriam novamente ao ritmo, e teriam mais filhos antes de chegarem aos trinta e cinco anos. Em St. Praxides havia mais de cem famílias nas mesmas condições que eles.

  - Eu bem que gostaria de ajudar, Tim...

  - O senhor já ajudou muito, Padre Kevin. Reze por nós, por favor. - Eu chegava a ouvir o desespero de um homem que estivera numa caverna tanto tempo que já não conseguia mais reconhecer a luz outra vez.

Fiquei ali sentado, perto do contador de moedas, como se estivesse numa sala de espera de algum hospital depois da morte de alguém.

  Quando ia caminhando para cima, dei uma espiada no gabinete de Leo Mark.

  - Alguma novidade, monsenhor?

  Ele levantou os olhos muito nervoso. Sua visão estava ficando cada vez mais fraca, e as mudanças na Igreja estavam abalando a sua confiança.

  Ele ficou procurando uma folha de papel antes de responder em voz baixa:

  - Há sim, Kev. Gina Carrey telefonou para perguntar se você poderia levar-lhe os cheques cancelados do projeto da parte pobre da cidade. Ela quer fazer um relatório para apresentar aos diretores amanhã à noite. Aqui estão eles... Não vai ser muito trabalhoso para você? (Nos Estados Unidos os cheques pagos são devolvidos aos emitentes e são chamados "cancelados".)

  - Claro que não.

  Georgina Carrey era uma mulher difícil e, talvez, até mesmo "perigosa". Pouco tempo depois de havermos apanhado Kaspar, monsenhor tinha-me pedido para levar um maço de convites, para uma reunião da Associação Feminina, para a casa dela. Todos os seus pedidos eram sempre muito atenciosos e cautelosos, naquela época, e eu sempre atendia a tudo com muito boa vontade para levantar-lhe o moral.

  John Carrey tinha viajado a negócios, como fazia com freqüência, e o rapaz John Júnior já tinha ido dormir. Georgina estava com um vestido preto que tanto podia ser um vestido como uma peça de lingeríe, mas muito mais próximo da última hipótese.   

  Eu consegui evitar um olhar de espanto.

  - Podemos falar por alguns minutos, padre? - A sua voz não conseguia esconder a sua ansiedade.

  Ela estava então com uns trinta e poucos anos, tinha um rosto bonito e seus cabelos pretos caíam-lhe nos ombros num descuido artificial.

  Enquanto ela falava sem parar a respeito das "visões" que a perseguiam à noite, com serpentes, anjos e coisas dessa espécie, eu pensava na situação em que me encontrava.

  Eu era mais duro do que ela. Ela jamais conseguiria dominar-me, tanto na cama como em qualquer outro lugar. Seria bem divertido dobrá-la à minha vontade. Apertei a mão e meu coração começou a pulsar descontrolado. E por que não? Iria dar-lhe uma lição que ela jamais esqueceria.

  Ela me sussurrara numa voz bem rouca, e o cinto escorregara para o lado deixando à vista as ligas, as meias e as coxas.

  - John é um homem maravilhoso, mas ele, simplesmente, não consegue se interessar pelos meus problemas espirituais. Ele viaja muito.

  Ela acenou com as mãos desesperada, vulnerável e indefesa, O magnífico sofá em que ela se reclinava seria uma cama maravilhosa. Eu imaginava o gosto delicioso de sua pele de encontro aos meus lábios.   

  Parecia ter chegado a hora para eu experimentar a sensação de gozar uma mulher. Foi então que pensei em Ellen e percebi que estava sendo tentado. Relaxei as mãos apertadas.

  Levantei-me da macia poltrona onde me sentara como se estivesse caindo numa armadilha.

  - Quem sabe se não lhe seria possível ter uma longa conversa com ele para que viaje com menos freqüência? Terei muito prazer em aconselhar essa conversa, se acha que isso poderia ajudar.

  - Se ò senhor pensa assim, padre... - Ela levantara-se arrumando um pouco o vestido - agradeço-lhe muito pelo seu interesse. - Depois de uma pequena hesitação ainda acrescentou: Sinto muito por ter tomado o seu tempo.

  Aquele não fora o meu último encontro com Georgina. Agora, dois anos depois, eu estava entrando em meu carro, ou antes, no carro da paróquia que Leo Mark comprara para mim, e estava a caminho da casa dela. Lembrei-me que fora salvo da tentação não pela minha virtude ou inteligência, e sim por uma rápida imagem de uma mulher que eu condenara a uma terceira gravidez. Senti um nó no estômago e tive vergonha de mim mesmo.

  Respirei fundo, apertei o botão que abria a porta da garagem, e saí de costas para aquela noite de abril. Apaguei todos os pensamentos sobre Ellen enquanto dirigia o carro pelas ruas do arrabalde. Depois obriguei-me a pensar na decisão que em breve deveria tomar. Joe Herlihy, o irmão mais velho de Marty, trabalhava na Chancelaria.

  A sua informação era que dois padres iam ser mandados para Roma, no verão, por um período de três anos, para estudarem as leis canónicas e para trabalhar na equipe do Segundo Conselho do Vaticano, e o meu nome estava na lista.

  Eu já ocupara aquele cargo antes e não me agradava muito voltar para lá, especialmente porque, como me dizia Joe, Pat Donahue também estava na lista.

  O Segundo Conselho do Vaticano seria o mais importante acontecimento no mundo católico durante séculos. Eu queria ter a oportunidade de estar lá.   

  No entanto, mesmo assim, não tinha vontade de sair de St. Praxides quando tudo ali estava começando a funcionar direitinho.

  O trabalho de Pat em Quarenta Mártires Sagrados tinha-lhe granjeado a atenção do país inteiro. Três revistas católicas tinham escrito sobre ele que, além disso, estava sempre organizando retiros, conferências e dias de meditação em todo o Meio-Oeste. Ele talvez merecesse aquela missão em Roma. Talvez fôssemos juntos, e aquela possibilidade não me agradava muito.

  Eu sabia que meu nome estava na lista devido ao Cardeal Meyer que gostava muito de mim. Em certa ocasião, depois de uma missa fúnebre, ele me chamara de lado para dizer-me que havia lido alguns de meus memorandos para a Repartição de Educação para o Casamento, de Chicago, e gostara muito, achando-os interessantes. Aquele holandês grandalhão de Milwaukee não tinha jeito para conversas de menor importância, mas, de uma certa maneira, era muito acessível. Suas perguntas eram inteligentes e ele

ouvia tudo com cuidado. A observação que fez quando nos despedimos, "eu quero ver mais trabalhos dessa ordem", era mais um elogio do que uma ordem.

  Quando cheguei à frente da casa de Georgina fiquei imaginando o que diria dela o cardeal holandês.   

  Puxei a aldrava da porta, ouvi o gongo cantar lá dentro e esperei que Georgina viesse abrir. Como sempre, John estava fora e o filho tinha saído com amigos.

  Atirei em cima do sofá a caixa de sapatos com os cheques que ela pedira.

  - Não compreendo a sua pressa, Gina - dei-lhe um beijinho no rosto - mas você ordena e eu obedeço.

  Ela estava de slacks pretos, blusa branca, jóias caras e muito perfumada.

  - Queria muito falar com você. - Seus olhos eram frios e seu rosto estava duro.

  - Pois então fale, encantadora senhora. Fale. - Sentei-me na beira do sofá.

  - Eu estou grávida.

  - Que maravilha! Meus parabéns!

  - Você é um perfeito idiota! Já faz cinco anos que não durmo com John.

  - De quantos meses? - A minha pergunta foi feita quase automaticamente.

  - Ora... não são muitos. Provavelmente cinco semanas.

  - E você vai ter a criança?

  O seu queixo caiu. Ela parecia bem mais velha do que os seus trinta e cinco anos. Depois falou horrorizada:

  - Um padre sugerindo um aborto?

  - Não estou sugerindo coisa alguma. Estou apenas perguntando. Preciso conhecer os detalhes se deseja que eu a ajude.

  - Não vou fazer aborto nenhum. - Ela respondeu com decisão.

  - Então vai pedir o divórcio para casar com o homem? - Eu sentia muito pouca pena dela.

  - Ele não quer casar comigo - ela respondeu, e vi que tinha os olhos cheios de lágrimas.

  - Muito bem. Então o melhor a fazer é ir para a cama com o John logo que ele volte e mantê-lo aqui durante algum tempo.

  - Quer então que eu engane o John? - O seu rosto contraiuse cheio de veneno. - Que espécie de conselho é esse, partindo de um padre para uma mulher?

  - É bem possível que o John fique tão feliz por ser o alvo de alguma afeição que nem mesmo se importa em ser enganado, mesmo se vier a saber.

  - Tudo assim bem certinho, não é mesmo? - Ela caminhou para o bar, que ficava do outro lado da sala.

  - Você terá que tomar algumas decisões, Gina. Em algum lugar desse seu corpo encantador existe um impulso para que tente outra vez a maternidade. Se não fosse assim, você optaria pelo aborto, boa católica ou não. Você não sabe como o John reagirá quando souber que sua mulher andou dormindo com outro homem, diante dessa prova que desafia controvérsias. Você tem que escolher. Ou volta para a cama dele ou então vai correr o risco de ser obrigada a trabalhar para ganhar a vida, uma coisa que não é muito de seu gosto.

  Ela apanhou um copo grande de cristal Waterford e encheu-o de gim. Depois falou com ar desanimado:

  - Você parece que gosta de me ver humilhada.

  - Não muito. - Eu estava mentindo.

  Ela sentou-se à mesa do café, na minha frente.   

  Perguntou-me então com uma voz ausente:

  - Quer beber alguma coisa? Desculpe se me esqueci se oferecer.

  - Não, obrigado. Você vai ou não vai voltar para a cama com o John?

  - Mas, naturalmente. - Ela franziu o nariz como se eu fosse um idiota.

  - E quando é que ele volta?

  - Dentro de algumas horas. - Os seus ombros caíram.

  - Então é melhor eu deixá-la sozinha. Você, certamente, tem que se preparar... - Levantei-me para sair.

  Ela veio até a porta comigo, e ali falou-me friamente:

  - Algum dia eu talvez queira agradecer-lhe por ter sido um miserável sacana.

  Coloquei meu braço em torno dela e dei-lhe um beijo na testa. Senti correr-me nas veias uma terna letargia agradável. Uma voz nos distantes recessos de meu cérebro alertou-me: É outra vez a tentação.

  - Muito obrigada, padre. Reze por mim. - Sua voz era fraquinha.

  Em junho foram anunciadas as nomeações. Patrick H. Donahue de assistente em Quarenta Mártires Sagrados para estudos de formatura em Roma. Telefonei-lhe para dar os parabéns. Ele pareceu satisfeito em ouvir a minha voz e disse que a nomeação fora uma completa surpresa para ele.

  Aquilo era a reação usual de Roma. Eles tinham que ficar sabendo no primeiro dia de aula.

  Disse-lhe que o Concílio seria um acontecimento extraordinário e que nós estávamos entrando em uma nova era. Ele não se manifestou a respeito. Convidou-me para jantar com ele na noite seguinte, quando estaria sozinho na reitoria e então conversaríamos à vontade.

  Por mais pobre que fosse a paróquia dos Quarenta Mártires Sagrados, a comida era boa e o cozinheiro era excelente. Eu trouxera comigo uma garrafa de Barola e logo nos sentamos à mesa na velha sala de jantar, onde o pé-direito era muito alto.

  - Não me diga que vai infringir as regras outra vez para beber junto comigo - Pat sorriu com malícia.

  - A ocasião justifica. - Ele abriu a garrafa e serviu-nos de vinho. Eu levantei o brinde. - Ad muitos annos.

  - Puxa vida, Kevin. Eu desejaria muito que tivesse havido mais tempo nestes últimos três anos. - Ele parecia cansado e desgastado. Seu rosto estava enrugado e seus olhos mostravam o desânimo. De repente ele perguntou. - Você tem visto a Ellen e o Tim?

  - Não. - Eu sentia que ele houvesse rompido o rápido sentimento. - Como estão eles?

  - Não muito bem. Creio que Ellen está grávida outra vez. Tim estuda até não agüentar mais. O apartamento deles cheira a fraldas. A aparência da Ellen é terrível.

  Está gorda e flácida. As crianças choram o tempo todo. Ela se mostra terrivelmente amarga. Não vai mais à igreja. E você bem pode imaginar como o Tim sofre por causa da revolta dela contra a Igreja.

  - Nós somos os malditos bodes expiatórios, Pat. Talvez seja porque trabalhamos tanto para sê-lo.

  - Eu já fiz tudo que me foi possível, Kev. - Ele encheu-me o copo e passou-me o prato do assado. - A Ellen já não me ouve. Creio que até seria melhor se Tim a deixasse dar vazão à sua revolta. - Sorriu como se procurasse desculpar-se. - Desculpe se estou parecendo um psicólogo. Aliás, já li alguma coisa a respeito. Mas ele não lhe dá uma folga. Acha que é o responsável por sua alma. Aqueles dois nunca tiveram sorte... - Ficou calado alguns momentos... De repente perguntou-me: - Você não quer fazer uma tentativa?

  - Eu?! - Fiquei assombrado. - E por que cargas d'água iriam eles me ouvir? Já faz mais de ano que não os procuro por falta de tempo. Ellen me atiraria pela porta afora.

  - Não. Ela nunca faria isso. De qualquer maneira, pense um pouco nisso. A cada dia que passa ela se parece mais com sua mãe, e também se comporta da mesma maneira.

  - Ele parecia bem triste.

  - Pensarei sobre isso, Pat. Agora vamos falar de assuntos mais simples, como Roma, por exemplo.

  - Ainda não sei se aceito ou não. - Ele fechou novamente o rosto, parecendo contrariado. - O chanceler deu-me uma semana para pensar e resolver.

  - E por que não aceitar? - Eu avancei nas batatas.

  - Eu não quero deixar o meu trabalho - ele fez um gesto com a mão - e não quero ficar engaiolado numa chancelaria tratando de casos de casamentos para o resto de minha vida. Além disso, eu já estive em Roma e quatro anos é o bastante para uma estada lá.

  - Você irá.

  - Acredito que irei mesmo. Mas irei com emoções misturadas. Por que será que não mandaram você, Kev?

  - Porque eu sou indispensável para a salvação da alma de Leo Mark Rafferty, porque não sei italiano e porque não sou do material de que se fazem os bispos. Posso pensar em mais uma dúzia de boas razões, mas estas já são suficientes.

  - Eu tenho a certeza de que você estava na lista, Kev.

  - Eu sei que estava, mas duvido que fosse o segundo da lista, ou se eles queriam mesmo me mandar para Roma. Se quisessem, seria muito fácil mandar-me. Eles antes nunca hesitaram em mandar dois alunos.

  - Há grande falta de padres agora... - Ele dizia aquilo como se quisesse convencer-me, mas hesitava.

  - Olhe aqui, Pat. Lembra-se de mim? Kevin Brennan? O último dos grandes operadores na política? com duas gerações de sangue irlandês de Chicago em meus

antecedentes? Se eu quisesse alguma coisa daquela gente lá na chancelaria eu iria lá e pedia. Lembre-se de que fui o domador de Leo Mark Rafferty. Ou então eu pediria a meu pai que se mexesse. Já esqueceu que o Coronel conhece todo o mundo?

  - Desde que você se sinta feliz... - Ele pareceu ficar aliviado.

  Em fins de agosto recebi um telefonema do secretário do cardeal. Queria falar comigo às duas e meia daquela mesma tarde. Sim, claro que eu podia ir. Como se, na realidade, eu tivesse outra escolha.

Apesar de todo o luxo que havia em seu gabinete, Albert Meyer ainda era um homem muito acessível.

  - Não recebi mais memorandos seus, Kevin - ele começou atacando.

  - Tive um verão muito ocupado, eminência.

  - Você fuma? - Ele levantou uma sobrancelha e esticou o braço para apanhar um charuto.

  - Aceitarei um para o meu pai, se for possível.

  - Claro que conheço o seu pai. - Ele riu-se e deu-me o charuto. _ Homem notável. Não falou em você até eu dizer-lhe que sabia do fato dele ter um filho que era padre. - Arqueou novamente a sobrancelha.

  - Há sempre uma ovelha negra em todas as famílias...

  - Nem mesmo cinzenta. - O cardeal, apesar de sua fama de falta de senso de humor, gostava de terçar palavras da mesma forma que eu. - De qualquer forma, havia gente que queria mandar você para Roma nesta primavera e outros que não queriam. Eu intervim e resolvi o problema. Você estaria sendo desperdiçado em direito canónico. Eu quero que você se forme aqui mesmo na América. Creio que você gostaria de estudar psicologia.

  Fiquei desejando que aquele tobogã parasse para eu poder coordenar minhas idéias.

  - Sim, gostaria muito disso. - Eu estava ajustando a minha maneira de falar com a dele. Uma completa sinceridade.

  - Foi o que pensei. Roma não seria apropriada para essa espécie de estudo. Você poderia ficar em St. Praxides e estudar na universidade.

  - Claro que podia... - O tobogã corria cada vez mais.

  - Muito bem, Kevin. - Ele tomou nota num pedaço de papel.

  - Vou providenciar. Estou convencido de que, nos anos futuros, o bispo precisará ter na sua equipe cientistas sociais formados. Você pode ficar sabendo que está se preparando para isso. Vamos combinar com a universidade a respeito de sua admissão.

  - Minha família... - Eu comecei. O braço da poltrona em couro vermelho já estava ficando molhado com o suor de minhas mãos. Naquele momento, desejei que gostasse de fumar charutos, pois assim teria o que fazer com minhas mãos trémulas.

  - Nada disso. - Ele interrompeu-me. - Este assunto é de nossa responsabilidade. - Levantou-se da cadeira. - Mantenhame informado, Kevin. Envie-me tudo que você ache que eu deva ler. Tanto seu como de outros.

  A sua mão grandalhona envolveu a minha, e eu logo estava descendo as escadas a caminho da Avenida Wabash, quase sem perceber que já tinha saído de seu gabinete.

  Albert Gregory Meyer tinha virado a minha vida de cabeça para baixo em apenas doze minutos e vinte e nove segundos. Foi o que constatei depois de consultar o meu relógio.

  Não disse nada a ninguém, nem mesmo à minha família, até que a notícia saiu no New World, o jornal da diocese. Uma transição num Tombastante baixo para uma nova vida.

  Pat telefonou-me uma semana depois de haver sido publicada a notícia. Eu esperava parabéns.

  - Preciso de ajuda, Kevin - a sua voz demonstrava angústia.

  - Vá dizendo logo... - Eu já via uma outra bola que ricocheteava em minha direção.

  - Será que podemos falar, Kev. - Ele parecia aterrorizado. Quero dizer... agora, aqui, no telefone?

  - O pessoal aqui é bem ensinado, Pat. Pode falar.   

  - Eu já estava impaciente.

  - Eu me encrenquei com uma mulher.

  - Que espécie de encrenca, Pat?

  - Eu, huumm... Ela ficou grávida, e agora diz que vai falar com o cardeal...

  - Logo antes de você seguir para Roma, Pat...

  - Isso mesmo. Antes que eu parta para Roma. Não posso detê-la nem impedi-la. Ela vai mandar uma carta particular. O marido não vai saber. - Será que você poderia falar com ela?

  - E por que iria eu falar com ela? - Senti no cérebro um toque de alarme.

  - Ela respeita muito você, Kev. É Georgina... - A última informação veio quase como se houvesse escapado sem querer.

  Eu devia ter desconfiado.

  - Eu vou cuidar disso. Continue fazendo as malas... Desliguei.

  Fiquei ali sentado vendo o sol desaparecer por baixo das paredes da escola de St. Praxides. Era uma noite de verão quente e úmida. Se eu não conseguisse detê-la, aquela mulher iria liquidá-lo. Ele passaria a ser um obscuro pastor lá numa cidade do Sul para o resto de sua vida, e isso se escapasse de ser expulso da Igreja.

  Ajeitei meu colarinho romano e saí para a garagem.

Georgina, num vestido de verão verde e esvoaçante, estava sentada em sua mesa de trabalho ao lado do janelão.

  - A gravidez lhe assenta muito bem. Devia ficar assim com mais freqüência, Gina.

  - Pelo que diz a sua maldita psicologia, eu quero ficar assim ... - Ela apenas olhou-me de relance ao responder numa voz sem cor.

  - Não faça o que está pretendendo, Georgina. - Sentei-me no braço de uma poltrona ao lado de sua mesa.

  - Eu vou destruí-lo. - O seu rosto logo transformou-se numa desagradável máscara. - Eu farei com que seja impossível ele continuar sendo padre em qualquer lugar do mundo. Ele mentiu-me e enganou-me. Vou vê-lo no inferno antes de sua ida para Roma.

  - Suas mãos estavam fechadas com toda a força que tinha e o seu corpo estava rígido de fúria.

  - Acalme-se - ordenei. - Por que é que está assim tão furiosa agora? Não era essa a sua atitude na primavera.

  - Ele não atende aos meus chamados pelo telefone. Não quer mais me ver. Não quer vir para jantar. Já não se interessa mais por mim... - Ela desabou na cadeira depois de dar vazão ao ódio.

  Pobre e estúpido Pat. Umas poucas cortesias elementares e aquela mulher teria se resignado a tudo.

  - Você sabe como ele é, Georgina. Deveria ter esperado por isso quando se envolveu com ele.

  Esperava fidelidade da parte de Pat Donahue? Não seja tola.

  - Eu you esmagá-lo. Ele é um vermezinho vagabundo... Seus olhos encheram-se novamente de ódio.

  - Só porque você foi uma tola em certa ocasião, isso não justifica que queira repetir a tolice. Ou será que você está imaginando que a sua carta será mantida em segredo? Vai haver uma falha em qualquer lugar e tudo virá à tona. E aí então onde ficará você? - Eu, na verdade, não sabia se aquilo poderia acontecer, mas estava jogando a minha última cartada.

  - Pouco estou ligando para isso...

  - Mas claro que está ligando. Você, afinal, conseguiu seduzir o John?

  - É claro que consegui.

  - Aposto como ele está gostando de ter você de novo em seus braços, não está mesmo?

  - Mas certamente que está. - Eu via claramente que o ódio contra Pat já se voltava para mim. E tinha que ser assim. O seu orgulho obrigava-a a uma resposta.

  - E aposto como você também está gostando... de quando em quando... De qualquer forma, você tem o seu filho, John e tem o que vem por aí, tudo isso com uma vida boa e mansa. Será que valerá a pena você atirar tudo isso pela janela só pelo prazer de uma vingança que logo se tornará amarga?

  Suas mãos se fecharam novamente apertando o tecido do vestido verde à medida que eu falava. Depois elas se abriram e tornaram-se inertes e passivas.

  - Eu tenho ódio de você, Kevin Brennan. Tenho desprezo por você e não quero mais vê-lo em toda a minha vida... - Agora, ali no seu resplendente espelho, eram dois os rostos do carrasco.

  - Nesse caso, Gina, você terá que sair destas redondezas, mas eu não sairei de minha paróquia. - Levantei-me.

Saí para entrar na noite visguenta.

  A família mudou-se para Lake Forest algumas semanas antes do nascimento de Patrícia, uma garotinha loura por quem John se babava de satisfação e orgulho.

  Pat e eu caminhávamos na floresta deserta naquela manhã de uma terça-feira de verão, mas, mesmo assim, ela estava cheia de latas de cerveja e lixo do último fim de semana, um testemunho vivo da existência da humanidade ali bem perto.

  Foi Pat quem quebrou o silêncio falando com certa agitação:

  - Não se parece nada com o lago dos nossos tempos de antigamente, não é? Em agosto você vai sentir saudades.

  - Eu irei lá no fim do mês, depois do piquenique do clube do ginásio.

  - Acho que a floresta é para mim o que o lago é para você.

  - Ele passou a mão nos cabelos. - Fiquei satisfeito por você ter encontrado tempo para conversarmos. Você deve andar muito ocupado aprontando-se para a universidade.

  - Não tanto assim.

  - Foi num dia como hoje que nós salvamos aqueles garotos no carro do Delaney. Lembra-se?

  - Foi você quem os salvou, Pat. E era um domingo, um pouco antes e muito mais quente.

  - Não sei o que está acontecendo comigo, Kevin. - Ele enfiou as mãos nos bolsos e franziu o rosto. - Não é biológico. Não até o fim, de qualquer maneira. Esse terrível... nem sei como dizer... não é tensão exatamente, e sim força... parece que toma conta de mim. Não consigo deter-me.

  - Eu sou apenas um calouro em psicologia, Pat, e não um terapeuta. - Paramos numa pradaria ensolarada.

  - Eu sei disso, e agradeço-lhe muito pelo que fez por mim com a Georgina... Não consigo acreditar que vou ser pai.

  - Para todos os efeitos práticos você não é. - Começamos a andar novamente.

  - Ainda bem que estou indo para Roma. Isso me proporcionará uma vida nova.

  Ele acompanhou-me descendo pelo caminho. Os seus slacks cor de couro e a camisa aberta ao peito faziam dele um homem afeito ao ar livre que fora dotado de bom gosto e de uma sólida conta bancária.

  - Talvez você não devesse ir...

  - E por que não? - O seu rosto mostrou surpresa. - Você vai para a universidade e não poderia ocupar o meu lugar.

  - Eu acho que agora já estou convencido daquilo que você me disse quando saiu a nomeação na primavera passada. Seria melhor para você passar a vida no meio dos pobres do que no meio dos ricos.

  - Acho que não estou compreendendo.

  - Nós todos temos os nossos demônios, Pat. Se você for para Roma, certamente estará tendo acesso ao poder. Urna parte de você deseja isso, e uma outra não. E eu creio que a real em você é aquela que não quer. - Eu estava citando Maureen quase que palavra por palavra.

  - Você tem medo que eu vá me corromper se for a Roma para junto do poder, da fortuna, dos prazeres e tudo mais, Kev? Ele sorriu esperando que eu negasse aquilo.

  - Tenho sim, Pat. - Eu não precisava olhar para os seus olhos para ver que aquele medo estava ali de volta. - Vá, e diga ao Meyer que, por motivos ligados à sua vida espiritual, você prefere ficar em sua paróquia. Isso não diminuirá o conceito dele a seu respeito. Talvez, até mesmo, aumente.

  - Você não acha que eu deveria ficar longe da Georgina?

  - Eu já lhe disse o que penso, Pat.

Ele teve um riso contrafeito e deu-me uma palmada nas costas.

  - O bom e velho Kevin. Sempre sincero e sempre áspero. E é bem provável que esteja com a razão. Sabe de uma coisa? O simples fato de pensar em ficar na minha paróquia faz com que eu me sinta mais feliz. Durante algum tempo vou ficar agoniado, mas lhe escreverei.

  Foi para Roma três semanas depois sem nos termos visto mais.

  Na mesma tarde, depois de meu passeio com Pat, ganhei do Calvin Ohira no tiro de pistola. Ele era um japonês de terceira geração, nascido em Nebraska, tão metodista como eu era católico, e era o dono de uma elegante escola de karatê na Rua Noventa e Cinco. Aquilo era o lugar ideal para espantar as tensões. Cheguei a ser faixa preta, mas nunca consegui vencê-lo.

  Um certo dia, ele apanhou numa gaveta uma chave grande, e que chamava a sua "chave mágica", e levou - me ao porão onde instalara um stand de tiro numa sala à prova de som e bem acolchoada. Nessa ocasião, ele me dissera sorrindo que era preciso estar sempre pronto para uma outra invasão de orientais. Aquilo era a amargura que ele ainda sentia por causa dos campos de concentração para os japoneses na década de 40.

  O Coronel, apesar de herói de guerra, não tolerava armas e eu, naturalmente, ficava fascinado com elas. Cheguei a atirar bem com os .38, mas nunca conseguira ganhar de Calvin. Isso só me aconteceu naquela terça-feira.

  - Eu não gostaria de estar na pele daquele que você imagina ser o alvo. - O comentário dele foi bem significativo.

  - Nunca se pode dizer quando se vai precisar disto, Calvin. Ao guardar de novo a arma, eu me sentia nervoso.

  Eu viria a precisar do karatê e da arma uma vez na vida, na pequenina ilha ao largo da costa de Nápoles. E precisar muito, mesmo.

2 de outubro

 

  Minha querida Ellen,

  Esta carta ainda será mais confusa e desordenada do que todas as outras. Sempre tenho medo de colocar minhas notas em envelopes. Você escreve tudo à máquina tão bonitinho, pensa com tanta clareza, enquanto minhas cartas são uma trapalhada, como, aliás, é toda a minha vida.

  Eu nem mesmo sei como contar a você a maneira como tudo aconteceu. Eu deveria telefonar ou ir à sua casa para contar tudo se não fosse tão orgulhosa para confessar que tola tenho sido.

  E eu bem que merecia. Enquanto você continuava pura e boa, eu vivia namorando, esfregando-me com tudo que era rapaz bonito que aparecia, até ir com ele para a cama. Eu tentei parar. Meu Deus, como tentei parar! Ia confessar-me, prometia não repetir, pedia ajuda rezando à Virgem Maria, até que encontrava um bonitão qualquer e então tudo entrava pelo cano outra vez. Pensava que sabia tudo que era possível saber sobre os homens. Achava que poderia ter qualquer um que desejasse e que valesse a pena... bem, sem contar o Kevin.

  Eu, realmente, cheguei a amar o Burke, e essa foi a humilhação. A Mo, a velha sofisticada, sendo apanhada. Ele é espirituoso e brilhante, e é divertido a gente andar com ele que é bem típico da aristocracia que a gente encontra por aqui. Eu gostava de estar com ele e adorava as temporadas no Cape.

  Ficava preocupada com o seu vício de beber. Dizia a mim mesmo que tudo acabaria bem, e ele, realmente, tentou parar. Então, quando estava mergulhado nas eleições primárias do ano passado e os Kennedys o abandonaram, mas continuaram a tomar-lhe o dinheiro, ele voltou à bebida e, por vezes, chegava a abandonar o seu escritório de advocacia durante três ou quatro dias. Foi aí que percebi ter-me casado com um homem fraco, uma criança grande rica e mimada.    

  Estava resolvida a tirar daquilo o maior proveito, dizendo para mim mesmo que estava cuidando da Sheila, mas a verdade era que eu não queria que as outras pessoas soubessem como eu tinha sido tola.

  O sexo nunca foi muito importante para nós, mesmo no princípio. Acho que você não acreditará, mas o nosso namoro foi casto, e isso principalmente porque, para falar a verdade, ele nunca fez muita força. Claro que fizemos melhor depois do casamento, e a prova disso é a Sheila. Vez por outra, quando estava realmente "cheio", ele até que era bom.

  Eu estava preparada para viver também com aquilo, sem ligar muito para o sexo. Só Deus sabe que, a despeito de meus tremendos esforços de garota, eu não via nada de especial naquilo por mais que me excedesse, a não ser o espírito da aventura e o perigo...

  Tudo isso já foi há tanto tempo!... Mas agora eu preciso lhe contar a parte do horror em toda a história. Em meados de agosto, passei um fim de semana fora do Cape.

  De qualquer forma, a vida ali não estava muito divertida depois que havíamos sido riscados da lista de convidados dos Kennedys. Uma de minhas colegas em Purchase casara-se com um brâmane cuja família chegara aqui muito antes dos Cabots. Eles, geralmente, passam o verão em North Shore, onde somente os WASP com raízes no século XVIII eram normalmente recebidos. Ela estava promovendo uma reunião de antigas alunas. Burke disse que tomaria conta de Sheila, embora a babá estivesse lá.

  Um dia com verdadeiros aristocratas era tudo que eu podia esperar. Eles faziam com que Burke parecesse um protótipo de vitalidade e masculinidade. Então voltei de carro para Hyannys no sábado à noite.

  As luzes da casa estavam todas brilhando. Sheila estava dentro do seu cercadinho de brincar suja, esfaimada e chorando. Não encontrei a babá em lugar algum, e só mais tarde vim a saber que o Burke tinha-lhe dado folga. Havia gente rindo e gritando lá em cima. Em nosso quarto de dormir fui encontrar Burke, um outro homem de sua idade, e um garoto junto com uma garota de menos de vinte anos, bêbados e fazendo coisas que mantinham ocupados todos os seus orifícios.

  Quando entrei no quarto, Burke convidou-me para entrar na brincadeira, e quando recusei ele insultou-me, disse que eu era a responsável por suas bebedeiras, porque era frígida.

  Bem não preciso dizer mais nada, não é? Peguei Sheila, entrei no carro e fomos para um motel. No dia seguinte voltei para Boston e, apesar de ser domingo, liguei para um advogado. Na segunda-feira aluguei uma casa em Newburyport, onde existe uma grande escola de arte. Burke telefonou-me para pedir desculpas, mas recusei-me a atender.

  Não estou exigindo nada pelo divórcio. Só quero Sheila e as coisas que trouxe comigo por ocasião do casamento. Fui falar com o padre da paróquia na cidade a respeito de anulação do casamento, mas ele não se mostra muito otimista. Diz ele que o bissexualismo não é a mesma coisa que homossexualismo.

  Será que o Burke é um desses? Acredito que seja, pelo menos «m grande parte, mas não o suficiente para a Igreja. De qualquer forma, não estou interessada em repetir o casamento.

  Rezo pelo Burke todas as noites, quando rezo por meus pais. Para mim, ele está tão morto quanto eles. Logo de início imaginei que o estava abandonando

numa hora de necessidade, mas agora vejo que era a mim mesma que eu estava abandonando. E é bem possível que eu continue a fazer isso. com muito amor, Mo.

  P.S. Lembranças ao Tim. Escreva-me dizendo logo que ele terminar os exames.

 

  5 de outubro, Mo querida.

  Eu te amo. Eu te amo. Eu te amo. Tenho vontade de matar o Burke. Se eu ainda acreditasse em Deus pediria que Ele o amaldiçoasse. Tudo vai acabar bem, Mo. Eu sei que tudo vai acabar bem.

  Ando enjoada (é isso mesmo, o terceiro vem aí) e cansada. E o pior de tudo é que choro por você. Por favor, telefone-me, e então poderemos chorar juntas.

  E, com todos os diabos, fique com a pintura desta vez.

  Durante o meu primeiro semestre na universidade, li o livro de John Noonnan Contraception e juntei-me às fileiras de padres que estavam mudando de idéia a respeito de anticoncepcionais e controle de natalidade. Já vinha tarde demais para Ellen Foley Curran. Mary Ann, que se aprontava para o seu casamento, disse, no Natal, que Ellen estava esperando outro filho, para março.

  - São três, e ela ainda não tem vinte e oito anos.     

  - Ela comentou. - Quantos terá ela quando chegar aos quarenta?

  - É uma pena. - Eu estava ali simplesmente olhando para o monte de embrulhos junto à árvore de Natal da família Brennan.

  - E como é que ela está agüentando?

  - Ela continua a cuidar das crianças. Ele estuda até às duas da madrugada. Já não falam muito um com o outro. Mas também não brigam. Ainda se amam mas,

simplesmente, não encontram mais tempo.

  - Eu pensava que ele tinha feito o exame para advogado no verão...

  - Não passou. - Mary Ann, respondeu com um ar bem triste. - Papai acha que jamais passará. É uma espécie de impedimento emocional.

  Feliz Natal, Ellen.

 

  Quando eu estava saindo da piscina, minha mãe perguntou-me:

  - Quando é que o Pat volta de Roma para tirar suas férias? Enfiei meu casaco. Estava bem frio para um princípio de agosto. Eu precisava tanto de umas férias que já nem ligava mais.

  - No fim da semana, penso eu. Por quê?

  Ela levantou os olhos da carta que estava lendo. Seus cabelos ruivos já estavam bem entremeados de mechas cor de neve.

  - A Maureen vai para a Europa - ela disse pensativa. Vai estudar pintura em Roma. Diz que deseja uma vida nova.

  - Então não vai casar com aquele garotão de Newburyport?

  - Eu fiz a pergunta sentindo aquele buraco de culpa na boca do estômago. Era uma coisa que sempre me aparecia quando alguém falava a respeito de Maureen Cunningham Haggarty. Minha mãe sacudiu a cabeça.

  - Eu já contei para você como ele e sua família são religiosos - disse ela. - Maureen, afinal, não conseguiu a anulação do casamento no tribunal de Boston.

  - São uns miseráveis - resmunguei.

  Dois anos de trabalho em psicologia social tinham-me convencido de que a estreiteza da política de anulações da Igreja era inconcebível. A metade das pessoas do país, que se casavam, eram psicologicamente incapazes de contrair uma união que refletisse o amor entre Cristo e a Igreja, o que é aquilo que deve ser um casamento sacramentado e, por isso, indissolúvel. Haveria uma mudança quando a Igreja se igualasse com a moderna psicologia. Estaríamos então concedendo anulações da mesma

forma que Nevada concede divórcios. E isso seria tarde demais para Maureen e o seu Tom Murray.

  - Será que Pat vai poder fazer alguma coisa por ela em Roma? - Minha mãe perguntou numa voz conspiradora.

  - Ele saberá quais são as mãos que precisam ser amaciadas. Vamos ver o que tem para dizer na próxima semana.

  Todos os meses, enquanto eu lutava com os meus estudos e com a estabilidade financeira de St. Praxides, chegava-me uma longa carta de Pat que, indiscutivelmente, caíra nas boas graças do novo Papa, Paulo VI, o "maior homem da Igreja deste século" e o maior promotor do Segundo Concílio do Vaticano, e que chegara a escrever:

  "A próxima sessão irá mudar o curso da história do catolicismo." As cartas estavam cheias de detalhes que nunca apareceriam nos jornais. O que o Cardeal Suenens dissera a Paulo VI na manhã que se seguira à sua eleição; a reação hostil do Cardeal Mclntyre aos bispos negros; o comentário de um africano com dois doutorados para o velho reacionário de Los Angeles dizendo que jamais sentaria nos últimos bancos dos ônibus sem levar em conta a opinião do cardeal a respeito dos niggers.

  Apesar de todas as fofocas das cartas de Pat, havia sempre ali uma certa névoa. Ele não parecia perceber que havia diferenças de opinião entre os cardeais progressistas do Norte da Europa e os seus amigos e patrocinadores de Roma.

  - Se você fosse o padre da paróquia de TomMurray, você o aconselharia a romper o seu noivado com Mo? -   A pergunta era feita por minha mãe, e os seus olhos eram tão doces como os meus deveriam ser duros.

  - Está querendo descobrir se o filho mudou de ideologia? Respondi com uma risada. - Eu não conheço o torn. Você e meu pai gostavam muito dele. Se a Mo está apaixonada, então é porque ele é bom.

  - Você está contemporizando, igualzinho a seu pai, e nem mesmo é advogado. É isso mesmo. A Mo está caidinha por ele, e agora vem a Igreja e diz que ela  não pode casar com ele.

  Vi um pedacinho de azul aparecer no meio das nuvens e logo depois desaparecer. O vento chocalhava as árvores em torno da piscina.

  - Mesmo assim eles deviam casar. A Igreja vai mudar no que diz respeito às anulações. Maureen está livre e pode casar, mesmo que o tribunal de Boston não pense assim. Eles teriam apenas que esperar alguns anos para serem abençoados na igreja. Nessa altura a minha voz tornou-se amarga. - Se ele não estiver disposto a correr alguns riscos, então é porque não a ama de verdade, e não merece tê-la.

  - Arriscar a sua alma imortal, meu filho? - Ao fazer a pergunta as sobrancelhas de minha mãe se arquearam quando pronunciou as duas últimas palavras.

  - Um bom professor poderia tê-lo tranqüilizado a esse respeito. - Respondi-lhe já irritado.

  - Você poderia ter-lhes dito isso. - Minha mãe olhou-me com uma mistura de espanto e desapontamento.

  - Ninguém me perguntou. Quer uma cerveja? - Levanteime. Ela sacudiu a cabeça.

  - Não acorde Mary Ann, ela está muito cansada.

Mary Ann, que esperava um filho dentro de dois meses, era a própria figura de uma saúde perfeita e de satisfação com a vida. Mamãe estava mais preocupada do que ela a respeito do futuro neto.

Ouvi o telefone tocar e pensei em atender, mas quando já me dispunha a isso, e antes que pudesse chegar à cozinha, a campainha parou. Era provavelmente Steve chamando de Chicago. Ele chegaria naquela noite com papai para um longo fim de semana. Tirei duas latas de cerveja da geladeira e dei uma para meu irmão Mike, que estava debruçado sobre um livro de anatomia, Mary Ann entrou na sala, de shorts e uma blusa maternal. O seu rosto estava branco como um pergaminho e seus olhos estavam arregalados. Ela caminhava como se estivesse em transe.

  Mike levantou-se logo. Era o brilhante estudante de medicina que estava imaginando, apavorado e esperançoso, a possibilidade de ter que atender a um parto.

  - Você está bem, Mary Ann?

  - O quê? Oh... sim, estou bem, Mike... - Ela falou baixinho e deixou-se cair no sofá. Lá fora o vento gemia agourento.

  O terror apertava-me a garganta. Eu já tinha visto aquele olhar em outra ocasião.

  - Quem foi que morreu, Mary Ann? - Eu mal reconhecia a minha voz.

  - Foi o Tim... - Ela disse aquilo como se não pudesse acreditar em sua própria voz. - Morreu faz hora e meia. Quem falou foi o Padre Conroy. Ellen pediu-lhe que me chamasse. Ele morreu no Hospital St. Anne... embolia cerebral. - Ela olhava para o Mike sem ter a certeza se a palavra era mesmo aquela ou não.

  Nas profundezas da minha alma uma voz me dizia que eu o matara, da mesma forma que também condenara Mo a perder o seu amado torn.

  - Depois de toda aquela trabalheira e de todas aquelas preocupações ... e agora todas aquelas crianças, o cansaço, a tensão...

  - Mary Ann procurava chorar, mas as lágrimas não vinham.

  - As embolias não são causadas por estresse - eu a interrompi. - Ele teria morrido da mesma maneira, mesmo se fosse rico e solteiro.

  - É isso mesmo - Mike logo me apoiou. - Ninguém pode fazer coisa alguma para evitá-las.

  - Estou certa de que isto será uma grande ajuda para Ellen.

  - Mary Ann falou com amargura e, afinal, as lágrimas corriamlhe pelo rosto.

 

Ellen querida,

  Imagino que você já estivesse pensando que nunca mais iria ter notícias minhas. Da mesma forma que aquele penny falso, a Mo está de volta. De qualquer forma, estou em Roma. Imagine só! Já me enchi de Chicago, Boston, Newburyport e tudo mais. Aluguei um apartamento aqui. Sheila está numa escola maternal onde falam inglês. Eu estou estudando arte. Desta vez you levar a sério a pintura. you mesmo. O professor em Newburyport era bom, mas aí apareceu o Tome eu me apaixonei outra vez.  

  Não era bem a mesma coisa, ele era certamente heterossexual e não bebia. Sua fraqueza era a religião que, afinal de contas, é quase tão ruim como o vício de gostar de garotos. Ele me amava, sua família me amava, mas o tribunal de casamentos de Boston não me amava. Eles fugiram de mim como se eu fosse uma vagabunda das piores quando os monsenhores disseram que não podia ser. Já me disseram que está saindo com uma outra moça.

Desculpe-me se lhe pareço muito amarga. Eu amava torn. Não era como com o Burke. Era um amor sincero.

Roma é bonita, mas terrivelmente quente. Fui procurar o Pat depois de já estar instalada. Ele é completamente o padre jovem com futuro que está em Roma. Uma das mais antigas famílias daqui, os Martinellis, já o adotou da mesma forma que fizeram os Tanseys em Chicago. Eles têm muito dinheiro e muitos contatos no Vaticano.

  Exibem Pat em todas as decadentes festas de Roma. É a perfeita repetição de A Doce Vida, mas as mulheres não são tão bonitas. Ele é o padre americano bem escovadinho e limpinho- com uma batina cortada sob medida e porte atlético.

  Pat venderia a alma de sua avó para subir na Igreja. Ele não gosta de ver gente sofrendo, leva muito a sério essa história de justiça social, e realmente acredita que foi chamado pela Igreja. Ele divide a sua vida em pequeninos compartimentos e não permite nenhuma interferência entre eles.

  Eu saí para passearmos juntos um dia, e ele distribuía sorrisos e uma palavra agradável para todo mundo na rua. Os romanos detestam os padres por causa daquela história dos estados papais, mas os padres os odeiam de volta. Muitos padres tentam sorrir para as pessoas, mas sempre se arriscam a levar uma cusparada. Mas todo mundo sorri de volta para Pat. Ele está cada vez mais bonitão, e isso apesar de toda a pasta que come. E por falar nisso, estou fazendo agora mais uma dieta. Não quero engordar nesta altura da vida.

  Pat não é um cara mau. Não é mesmo. Apenas ele só olha numa direção e está sempre pronto a usar alguém desde que isso ajude a sua carreira. Mas ele não tem nada de mesquinho em todo o seu corpo, e é bondoso e sincero desde que isso não lhe prejudique a carreira. Vive paparicando a família Martinelli (o monsenhor é, obviamente, veado e o seu primo leigo, o Alfredo Delucca, é um tarado), contando-me a história do catolicismo em Roma, e é também um amor com Sheila, e tudo isso, no entanto, não parece inconsistente.

  Que diabo! Eu não tenho mais ninguém com quem conversar!

  Lembranças ao Tim. Espero que tudo esteja bem.

  com amor, Mo.

 

  A funerária de Cornelly estava cheia de gente, rapazes e moças que vinham prestar a Tim as suas últimas homenagens, ao mesmo tempo em que, bem lá no fundo de seus corações, se regozijavam por ter sido Tim e não eles. O prédio cheirava a perfume e flores murchas.

  - Eu já me tinha esquecido de como eram os velórios irlandeses ... - disse um Pat muito humilde que algumas horas antes tinha desembarcado do avião que o trouxera de Roma. - Agora já não é mais assim lá na Velha Pátria. Estou bem satisfeito por estar de volta. - Ele parecia um guia de turismo fazendo comentários.

  Ellen estava separada da família de Tim. Pelo que diziam Mary Ann e Steve, que tinham estado no velório na primeira noite, os pais dele, precisando de alguém para culpar, culpavam Ellen. Não havia ali ninguém da família dela. Nunca lhe haviam perdoado o casamento que, para eles, resultará em perda do dinheiro que ela trazia para casa.

  Ellen estava gorda, e aquilo não era só da gravidez que já estava em seu quinto mês. As calorias de seus doces de chocolate tinham, finalmente, levado a melhor.

  Seu rosto estava inchado e seus cabelos não tinham nenhum brilho. Até mesmo quando vistos de longe, os seus olhos ainda eram luminosos. Eu estava arrasado.

  - Como é que ela vai viver, Kev? - Pat fez a pergunta enquanto esperávamos pacientemente, e tínhamos preferido não usar nossos colarinhos romanos para entrar na frente da fila. Em torno de nós todo mundo conversava alegremente. O velório era um acontecimento social, e não se devia perder ali um só momento, nem mesmo aqueles que se passavam na fila para assegurar à viúva como "estavam sentindo a sua dor".

  Dei de ombros em silêncio, procurando palavras que não vinham. Os olhos de Ellen eram como faróis muito próximos que buscam com insistência o vazio escuro e frio do espaço. Apesar de seu estado, ela ainda era incrivelmente jovem naquelas roupas pretas malfeitas. Era uma garota gorda que ainda não chegara aos vinte anos.

  - Isso é apenas o começo da vida dele, Ellen... - eu disse aquilo segurando-lhe a mão, meio sem jeito.    

  Ela parecia um pedaço de madeira seca.

  - Eu sabia que tinha que vir aqui dizer-me uma coisa assim. .. - Os dois faróis fixaram-se em mim e ela recolheu a mão.

Oh, oh, isto não vai ser fácil. Foi o que pensei.

  - Estou surpreendida por ver que o senhor achou tempo para vir ao velório, Padre Brennan. Tenho a certeza de que o Tim ficaria encantado em saber que veio aqui.

  - Eu sinto muito, Ellen.

  - Aposto que está sentindo mesmo... O senhor está sempre sentindo, não é mesmo, Padre Brennan? Sentiu muito por não ter assistido ao casamento dele, sentiu muito porque não pôde batizar seus filhos, sentiu muito porque não podia conversar com ele sobre os seus problemas, sentiu muito porque não pôde jantar com ele, sentiu muito porque não pôde visitá-lo em sua casa. Claro que não era uma casa tão bonita como a dos seus amigos ricos, não é mesmo, Padre Brennan? - Na sua voz não havia nem mesmo o menor indício de histeria ou dor. A expressão de seu rosto não mudava. Aquela acusação era muito mais terrível e poderosa porque era dita com voz calma. Todo mundo que estava ali ficou silencioso. Ainda bem que meus pais não estavam.

  - Eu sinto muito, Ellen.

  - O que aconteceu com aquela presteza com que Kevin Brennan manejava as palavras? Não vai me dizer agora que não tem nada mais inteligente para me dizer, hein? - Ela estava provocando.

  - Nada.

  - Sabe como ele o amava? - Seus olhos agora já brilhavam de ódio. - Para ele, o sol nascia e morria em Kevin Brennan. Ele até mesmo chegava a ler aqueles incoerentes artigos sobre psicologia que o senhor escreve para as suas malditas revistas para sábios. Ele o citava como se fosse a própria Bíblia. Ele ansiava por uma simples palavra de aprovação de sua parte. Coisa que o senhor jamais lhe deu. Nem mesmo uma única palavra. Ele era apenas o garoto que marcava um ponto no basquete quando o seu ídolo precisava dele. Pouca diferença lhe fazia ele viver ou morrer. Agora ele morreu, e isso também nada significa para o senhor, não é mesmo, Padre Brennan?

  Eu nada mais podia fazer senão agüentar firme. Vi os seus dois filhos mais velhos, um menino e um menina, ambos com os grandes olhos cinzentos de Ellen e o mesmo narizinho atrevido. A menina, até mesmo, usava um rabinho-de-cavalo. Estavam me olhando, muito solenes, sem compreenderem o que estava acontecendo, mas estavam com medo.

  - Eu sei de tudo isso, Ellen.

  - Não, não sabe de nada. E não se dê ao trabalho de vir ao enterro amanhã, mesmo que tenha tempo. Tim foi obrigado a viver sem o senhor. Agora deixe que ele vá para a sepultura sem a sua presença.

  - Eu rezarei por vocês dois... - respondi baixinho.

  - Não desperdice as suas rezas. Nenhum de nós precisa delas. - Ao responder-me, os seus lábios estavam apertados e amargos.

  Quando saía do velório ainda vi Ellen soluçando abraçada ao Pat.

 

15 de setembro

Ellen querida,

  Oh, Deus meu, acabo de saber. O que posso dizer? Eu sinto tanto! Mandei rezar uma novena de missas na Igreja de S. Paulo. Telefonei para lá. Como desejaria estar aí com você! Como desejaria poder fazer alguma coisa! Qualquer coisa!

  Minha pobre, maravilhosa e querida Ellen. Você vai ficar bem. Eu sei que vai. Mas vai levar tempo. Deus vai protegê-la.

  Uma coisa mais. Sei que você está zangada com o Kevin. Perdoe-o. Faça isso, por favor.

  Eu não ligo a mínima para ele. Kevin é tão obtuso que isso não lhe vai fazer diferença. Perdoe-o por você e não por ele.

  Escreva-me, por favor.

  com amor, Mo.

 

  Pat e eu estávamos bebendo alguma coisa no meu quarto em St. Praxides. Marty e Leo Mark já tinham ido dormir desde algum tempo.

  - Bem, Kevin, você estava certo. - Ele virou um longo trago do martíni. - Eu deveria ter ficado lá na minha paróquia. As tentações da corrupção estão lá em toda a parte. Acho que you me defendendo, mas gostaria que você estivesse lá para me dar um murro na cabeça sempre que eu precisasse.

  - Mulheres?

  - Graças a Deus, não. - Ele piscou-me o olho. - Creio que já estou imune a isso, embora as ruas da cidade estejam repletas de garotas de abafar. O que me ajuda é ter a Maureen lá. A candura dela ainda é mais rude que a sua. - O seu rosto abria-se num sorriso que era uma súplica.

  - Mas então, qual é o problema?

  - O poder, o dinheiro, a capacidade para fazer coisas, a maioria das quais é admirável. O Concílio é um jogo político fascinante. Você ali seria o máximo!

  Para mim é como se fosse uma droga. E eu não quero ficar viciado. As pessoas... bem, elas são espertas e urbanas. Mas... eu nem mesmo sei como dizer... esgotadas, sem sangue nas veias. Há bispos que até dão a impressão de não terem hormônios de espécie alguma. Mas isso, e Deus bem sabe, não é o meu problema. - Mais um sorriso.

  - Então ainda não se decidiu?

  - Se eu quero ou não entrar no jogo do poder eclesiástico? É isso mesmo, ainda não me decidi. É um jogo em que a gente pode fazer muita coisa boa, Kev.

  - E também pode fazer muita coisa ruim para você.

  - Você provavelmente está certo... - Ele tornou a servirse de mais um martíni. - Olhe aqui, você já viu a minha filha? Ela é bonita?

  - Patrick, você não está... - Eu precisava beber mais um pouco. Bastante.

  - Não se apoquente, Kevin. Não you lhe dizer como foi que a vi, mas a Georgina nada teve que ver com a coisa. Eu me sinto verdadeiramente orgulhoso com aquele tiquinho de gente. Ainda não tem dois anos e já fala como se tivesse seis!

  - Você está louco, Pat. Por que arriscar-se assim? Por que atormentar-se desse jeito? Você queí ser marido da Georgina?

- Meus Deus, claro que não! - Ele estremeceu. - Mas eu sou o pai de Patsy. Nunca fiz muita coisa boa neste mundo, mas ela é uma coisa linda que eu deixo por aqui.

  - Você poderia destruir tudo. A sua vida, a dela, a do casal. - Reduzi substancialmente a quantidade de martíni.

  - Eu só a vi uma vez, Kevin, e, provavelmente, não o farei novamente durante muito tempo, ou talvez mesmo nunca mais. Mesmo assim, sinto-me orgulhoso dela. Eu só queria partilhar com você o meu orgulho. - Agora, ali, pela primeira vez naquela viagem, eu via o medo de volta em seus olhos. - Desculpe-me se o ofendi, Kev.

  - Não fiquei ofendido, Pat. Fiquei apavorado.

 

  Em novembro, John Kennedy morreu numa rua de Dálias. O Papa, o Presidente e Tim Curran.

  E a vida continuava. Uma semana depois da morte do Presidente, entrava neste mundo Steven Kevin McNeil, um ruivo com os tradicionais olhos verdes e duros. No dia de Natal apareceu Timothy Curran Jr., que se juntou a Brendan e Caroline e uma outra garotinha de ano e meio cujo nome eu jamais ouvira.

  Em Roma, os bispos, numa votação esmagadora, apoiaram a Liturgia em Vernáculo, cerca de uns trinta e sete anos antes da previsão de Pat Donahue imaginar que estivéssemos prontos para aquilo, e as forças da mudança pareciam dominar completamente o Concilio, apesar da aparente relutância do Papa Paulo VI em dar-lhes um completo apoio.

  Os documentos sobre as liberdades religiosas e os judeus foram adiados. Albert Gregory Meyer, agora um dos dez presidentes do Concilio, exercia um poderoso impacto através de suas declarações, escritas, em sua maioria, por dois brilhantes e progressistas estudiosos das escrituras, Frank McCool e Barnabas Ahern. O sucesso do cardeal em Roma tornou-o popular em Chicago e isso surpreendeu-o muito. Ele se preocupava com o resultado do Concüio.

  - Eles não fazem um jogo limpo - disse-me ele em seu gabinete durante uma breve estada. Eu acabara de lhe contar sobre a oferta que recebera para continuar no instituto depois de minha tese e ele logo aprovou a idéia. - Eles torcem todo o contexto do Concilio só para servir aos seus propósitos, e isso não é justo. Ofereceu-me um charuto, esquecido, mais uma vez, de que meus vícios eram todos espirituais.

  No primeiro domingo da Quaresma seguinte, todos os altares da arquidiocese foram virados para ficarem de frente para o público, pela primeira vez em um milênio e meio. E a missa foi rezada em inglês. Todos os pastores estavam prontos para uma tempestade de protestos que jamais ocorreu.

 

  Ellen falou muito pouco na festa. Ela compareceu porque uma de suas amigas lhe dissera que precisava sair um pouco. Era difícil diferençar os que tinham sido padres com suas mulheres, e os padres atuais e seminaristas com suas companhias femininas. Ela chegou a chamar de "irmã" uma mulher cujo marido tinha sido padre, pensando que ela fosse uma freira, engano esse fácil de se cometer, já que a maioria das mulheres pareciam realmente freiras, a não ser uma ou duas delas, tranqüilas e atraentes e que, afinal, eram mesmo freiras.

  Pensava consigo mesma que, se jamais ela fosse um padre que houvesse abandonado o sacerdócio, a primeira coisa que faria seria afastar-se para sempre da Igreja. E, no entanto, toda a conversa na festa girava em torno de fofocas eclesiásticas sobre quem substituiria o Cardeal Spellman de Nova York, como era o novo Arcebispo de Filadélfia e o que haviam dito Michael Novak e Daniel Callahan.

  Havia bebida demais; havia piadas sujas demais; havia muitas insinuações sobre sexo. Ela odiava a Igreja pelo que tinha sofrido quando acreditava nela. E aqueles idiotas, brincando já no fim da vida, fatiam com que a Igreja se transformasse numa nojenta piada. Pensou na Irmã Caroline e ficou imaginando se aquela boa mulher estaria agora de calças longas de poliéster. Ela tremeu ligeiramente.

Um rapaz chamado Tim Prindeville, acompanhado por uma mulher alta, angulosa e mais velha do que ele, falava a respeito de Pat Donahue, um assunto que interessava a todo mundo.

  - Pat está se agarrando com a metade dos cardeais - o ;ovem dizia. - Prestem atenção. Qualquer dia desses ele vai aparecer por aqui como arcebispo. Aí nós estaremos todos encrencados.

  - E então nenhuma mulher de Chicago estará em segurança.

  - O acompanhante de Ellen entrou na conversa. - Pat nunca conseguiu manter fechada as braguilhas das calças.

  Ela não quis mais ouvir. Seníia-se como se nem mesmo estivesse na sala. Era apenas uma espectadora que via tudo de uma grande distância. Era freqüente ela sentir-se assim ultimamente.

  O seu acompanhante tentou apalpá-la quando terminou a festa, mas ela deu-lhe um empurrão. Ele apertou-a com brutalidade contra a porta do apartamento dela e arrancou-lhe a blusa. Ela deixou de resistir, permitindo que ele se divertisse.

  - Abra a porta para eu poder entrar. Não lhe farei mais nada.

  - Nem que eu tenha que ficar aqui de pé a noite inteira ela respondeu sem a menor emoção.

Ele desistiu, finalmente, e foi-se embora. Durante muito tempo ainda ela ficou sentada na janela do apartamento. A casa estava silenciosa, as crianças estavam todas dormindo. A noite era fria e as estrelas estavam muito longe.

 

  Meu pai encostou-se na enorme poltrona de espaldar alto era seu escritório e suspirou ao ingerir um avantajado gole do Jameson com vinte e quatro anos, reserva especial. Ele estava nos sessenta agora, mas não parecia mais velho do que quando voltara da Alemanha.

  - Você vai se formar em junho - falou comigo com alegria.

  - Isso é depressa demais para um doutorado, não acha?

  - Eu sou o que eles chamam um aluno amadurecido. Fortemente motivado para acabar de uma vez, sem família para preocupações, e financiado pela Igreja. Assim não fica tão duro. Aquele Jameson era uma trovoada líquida, e eu fiquei imaginando quantos seriam os clientes homenageados com aquilo.

  - E depois, Kev?

  - Eu não sei. Mais pesquisa. Há gente interessada em minhas noções a respeito de comunidade local e desenvolvimento humano. Posso continuar em St. Praxides. Vou esperar até que o Concilio termine e o holandês grandalhão decida o que quer fazer comigo - dei de ombros.

  - E sente-se feliz? - Ele estava brincando com o abridor de cartas que tinha em cima da mesa.

  - Claro. E por que não haveria de estar?

  Ele hesitou. Afastou o abridor para o lado e começou a brincar com "um envelope do tamanho usado para cartas.

  - Campeão, nós, geralmente, não lhe pedimos favores.

  - Eu acho que lhes devo alguns. - Eu fiz uma careta e tentei quebrar o gelo.

  - Talvez você não saiba que nos deve este. - Dessa vez foi ele quem sorriu. - No domingo passado, na hora do jantar, nós tivemos um conselho de família. Você estava lá ocupado com a sua garotada...

  - É sim. - Eu senti-me culpado. - Desculpe-me por não haver comparecido...

  - Bem, nós decidimos que a Ellen está precisando de ajuda. - Os seus olhos observavam-me atentamente.

  - Ajuda?

  - Isso mesmo. Você sabe que ela está recebendo o auxílio de desemprego, não sabe? - Eu não sabia. - Não havia nenhum seguro. A família não lhe perdoa o casamento com Tim, e a família dele só ajudará se ela lhes entregar os filhos. Ela precisa voltar à sua profissão de enfermeira, em regime de meio expediente, para refazer seu amor-próprio. Ela vai precisar de alguém que tome conta da casa para as crianças e de dinheiro para roupas... e uma série de coisas. Nós chegamos à conclusão de que se não a ajudarmos, ninguém mais o fará. Então, resolvemos dar-lhe isto aqui. - Ele empurrou-me o envelope.

  Acabei de engolir o Jameson e apanhei o envelope. Não estava fechado, e dentro havia um cheque de doze mil e quinhentos dólares em nome de Ellen Foley Curran. Coloquei o cheque de volta no envelope e larguei-o em cima da mesa.

  - Ela não vai aceitar. - Eu desejaria estar naquela hora em algum lugar seguro, como o Saara, por exemplo, durante uma tempestade de areia.

  - Foi uma decisão unânime. - Ele não deu a menor atenção ao que eu dissera. - Não demorou muito tempo. A importância é apenas o resultado de uma transigência. Sua mãe e Mary Ann queriam que fosse quinze mil. Eu imaginava que ela não aceitaria nada acima de dez mil. Sua mãe e eu sempre achamos que a melhor coisa era transigir sempre que houvesse divergências na família. - Ele espalmou as mãos em cima da mesa.

  - Ela não vai aceitar coisa alguma, papai.

  - Mas você não tem nenhuma objeção a fazer quanto a nossa... preocupação com a Ellen, não é? Se for assim, vamos, voltar a fazer outros cálculos.

  - Objeção? - A minha reação foi um tanto brusca. - Não, claro que não tenho. Faz com que eu me sinta orgulhoso por pertencer a esta família. Mas Ellen não aceitará nem um penny. Sabe como é o orgulho irlandês.

  - Foi por isso que resolvemos pedir a você para cuidar da parte mais difícil. - Ele suspirou. - Você deve persuadi-la a que aceite.

  Olhei lá para fora da janela, para o novo edifício que estavam construindo ali bem defronte do escritório de meu pai e onde os martelos pneumáticos trabalhavam ativamente. Já não havia mais a neve de fins de março. Afinal respondi sem olhar para ele:

  - Você deve ter sabido sobre o que ela me disse lá no dia do velório, papai...

  - Mas é justamente por isso que eu quero que seja você quem vai levar-lhe isto. - A resposta dele foi categórica. - Nesta altura ela deve estar se sentindo tão culpada daquela explosão que julga dever-lhe um favor.

  Aquilo explicava por que ele era um dos maiores advogados de Chicago.

  Apertei o botão da campainha da porta pela terceira vez. Senti uma vaga esperança pensando que não havia ninguém em casa.

 

Logo depois ouvi aquela voz tão conhecida, muito fraca, que perguntava na caixinha ao lado do botão da campainha:

  - Quem é?

  - Kevin. - Respirei fundo.

  Houve uma longa pausa antes que a cigarra tocasse. Eu estava certo de que nunca chegaria a vencer aquele primeiro obstáculo.

  O prédio todo cheirava a repolho azedo. As paredes das escadas tinham sido pintadas em creme-escuro algum tempo antes da Grande Depressão. Havia uns pretinhos brincando tranqüilamente no patamar do segundo andar. No terceiro uma porta abriuse para mim.

  Eu esperava que no apartamento houvesse uma terrível confusão com crianças chorando, cheiro de fraldas, tapetes e mobília sem conservação. Mas tudo estava rigorosamente limpo, com uma decoração alegre, e muito claro com o sol que entrava pela janela da cozinha. Brendan e Caroline sorriram com muita delicadeza e depois voltaram a sua atenção para uma porção de brinquedos que estavam por ali. Maria estava dormindo e Timmy chupava uma mamadeira no colo da mãe.

  A única coisa que não estava certinha na casa era a mãe deles. Estava gorda demais, desarrumada em roupas que lhe caíam mal, meias curtas nos pés, um pacote com maços de cigarros em cima de uma mesa tosca ao lado de sua cadeira, uma pilha de livros baratos.perto dela, no chão, um prato com doces em cima da mesa e ao alcance de sua mão.

  Ela já era uma velha. Seu corpo bonito tinha desaparecido, as mãos estavam manchadas com nicotina, os olhos estavam cansados, a voz era apagada e os seus movimentos eram lentos e pesados.

  - Como vão as coisas, Ellen? - Fiz aquela pergunta desejando que houvesse encontrado coisa melhor para início de conversa. O envelope dentro de meu bolso já queimava tanto que certamente iria fazer um buraco no casaco.

  - Eu não retiro nem uma palavra daquilo que lhe disse no velório...

  - Nem eu esperava que o fizesse, Ellen. Pensei que poderíamos considerar isso ultrapassado.

  - Será que jamais poderia entrar nesta sua cabeça insensível e complacente que eu, realmente, amava Tim? - Ela continuava a balançar o pequenino Timmy com a maior delicadeza enquanto me estraçalhava impiedosamente. - Não. Claro que não. Você não sabe o que é o amor. É certo que o nosso casamento não foi grande coisa, mas isso não foi culpa dele. Eu o amava, eu o amava com todo o amor que tenho em mim. Eu nunca o fiz feliz, nunca o deixei em paz, e, praticamente, nunca lhe proporcionei prazer algum. Você e todos os seus malditos padres e freiras encheram o Tim com tanto medo e tanta culpa que ele chegava a ter medo de amar. - Ela falava num Tom monótono tão isento de emoção que era como se não lhe restasse mais nenhum sentimento. - Você disse que nós não podíamos fazer amor senão depois de casados, e então nós nos casamos sem que nenhum de nós soubesse bem o que era trepar ou qualquer coisa mais. Eu, praticamente, engravidei na própria noite

do casamento. Posso contar pelos dedos o número de vezes que fizemos amor durante os últimos dois anos do nosso casamento. E, no entanto, nós nos amávamos muito. Vá para o inferno com os seus olhos verdes cheios de preconceitos. Nós nos amávamos mesmo. Agora ele está morto, e nós não nos amaremos mais.

  Nessa altura eu já estava começando a modificar minha opinião a respeito da sabedoria e esperteza do Coronel. Mas não tentei interrompê-la. Deixei-a dar vazão a tudo que sentia. Os livros que ali estavam eram uma verdadeira bagaceira, e não havia entre eles um único exemplo de literatura. Pensei na minha Ellen que queria ser escritora e que lera todo o Dickens e Scott antes de entrar para o ginásio.

  - Você tem todo o direito de estar muito zangada, Ellen. ..

  - Não me venha bancar o bonzinho, seu filho da puta miserável. - A sua voz continuava sendo incolor. - Poderia você jamais imaginar no seu mundo de celibato que uma mulher possa ter paixão e desejos que não são realizados com o nascimento de quatro filhos em cinco anos, e que há coisas melhores que uma mulher poderia desejar e que não fossem apenas mudar fraldas o dia inteiro?

  - Mundo de celibato... - Eu a interrompi quase instintivamente. - Uma bonita frase bem imaginada...

  Dois pontos de cor apareceram em seu rosto pálido, e ela respondeu com presteza:

  - Kevin sempre tem a última palavra. - Lá fora, no beco estreito, a garotada gritava jogando basquete. Levantei-me.

  - Agora você vai ouvir-me, Ellen. Eu não saí ganhando no velório porque não ficaria bem para um padre fazer isso diante de tanta gente, e foi por isso que resolvi vir aqui para dizer a última palavra. Eu não vou permitir que uma gorducha desmantelada passe o resto da vida dizendo a todo mundo que levou a melhor numa discussão com Kevin Brennan.

  - Gorducha desmantelada?! com todos os diabos, com quem pensa que...

  - Cale-se e ouça a verdade - respondi gritando também porque eu sou a única pessoa disposta a dize-la para você. Você é uma mulher gorda e neurótica, que vive se queixando e também comendo e fumando desbragadamente para morrer mais depressa. Os únicos interesses que você encontra na vida são as novelas baratas e tolas.

  - Aquilo era um palpite meu, mas tive a impressão de que acertara em cheio. - Isso não lhe vai trazer o Tim de volta. Não vai ajudar no crescimento de seus filhos e nem mesmo a você. Pobre Ellen, aquele burro de carga que sofreu a vida inteira e que é tão digna de pena! Você é uma completa e maldita idiota, e eu uso as três palavras com pleno conhecimento de causa.

  Ela acompanhava-me com os seus terríveis olhos cinzentos enquanto eu me deslocava pela sala aos gritos.

  - E o que é que quer que eu faça? - Ela respondia-me também aos gritos.

  - A primeira coisa a fazer é parar com esta porcaria... e atirei o pacote de cigarros na cesta do lixo. - E parar também com isto aqui... - e os doces acompanharam os cigarros. - Livre-se desta tralha... - um pontapé nos livros - e vai logo emagrecer dez quilos.

  Ela levantou-se da cadeira, foi devagarinho até o berço vazio junto ao que era ocupado por Maria, que não se perturbara com a gritaria, deitou Timmy com muito carinho e voltou à sua cadeira.

  - Provavelmente quinze... E depois disso, padre? O que é que eu tenho que fazer?

  - Depois você vai voltar a trabalhar em St. Anne ou em Loretto. Vai usar os seus conhecimentos e a sua capacidade para recuperar o respeito por si mesma... E enquanto faz tudo isso, procure arranjar um outro homem.

  - Eu já tive um, e não quero outro. - Ela estava fazendo força para não chorar.

  - Quer queira, quer não queira, o melhor que você tem a fazer é arranjar um - continuei gritando. - Seus filhos precisam de um pai, e você precisa de um marido, e deve haver milhões de homens neste mundo que precisam de uma mulher como você. Eu já estava perdendo o entusiasmo e tentei mantê-lo forte. Pelo amor de Deus, pare com essa história de viver se lamentando. Quer saber de uma coisa, Ellen? Ninguém está ligando a mínima para as suas lamúrias. Desista disso.

  - Será que há alguma coisa em mim que não precise ser mudada, Kevin? - Ela olhava contrita para o chão.

  - Há sim. Você pode continuar com esses seus olhos cinzentos da forma como eles eram quando você estava zangada comigo, Ellen.

  - Aposto - ela levantou os olhos com o lábio superior ligeiramente virado - como você fez voda essa caminhada da universidade até aqui só para me fazer este elogio que, aliás, não me parece inteiramente sincero.

  Foi então que me lembrei da razão para a visita, e isso me tirou todo o entusiasmo. Sentei-me no sofá.

  - Isso é tudo que você tem para me dizer, Kevin? - A pergunta era feita com muita paciência.

  - Puxa vida, Ellen, eu fiz uma completa trapalhada. Desculpe-me. Não foi para isso que eu vim... - eu estava tentando achar uma brecha. - Hum... eu preciso de um favor seu.

  - E por que não disse logo? - O lábio superior subiu um pouco mais, mas não era um sorriso. - O que é?

  - O Coronel... não está pedindo muito. Vamos lá, Kevin Brennan. Coragem. Ele quer que eu faça uma coisa, e eu... bem, eu preciso de sua ajuda.

  Ela franziu o rosto. Tirei do bolso o envelope e estendi o braço para ela.

  - Você tem que me prometer que não vai rasgá-lo...

  - Não seja criança, Kevin. Claro que não vou rasgar. - Ela falava como se estivesse impaciente.

Pegou no envelope e abriu-o, olhou para o cheque e atirou tudo no chão.

  - Eu não preciso da caridade de sua família!

Apanhei o envelope e o cheque, que enfiei novamente onde ele estava, e depois coloquei tudo em cima da mesa do café cheia de manchas.

  - Então, pelo menos, você aceitaria o nosso amor?

  - Mas por que, Kevin? - Ela reagiu como se lhe tivessem dado uma facada. Via-se que estava outra vez fazendo força para não chorar.

  - Houve uma reunião de família, lá em casa, na semana passada ... mas eu não estava presente - acrescentei rapidamente, para que ela não pensasse ser minha a idéia - mas logo concordei quando me disseram...

  - E provavelmente ficou muito triste por não ter pensado nisso primeiro, não foi mesmo?

  - Eu me lembro de haver conhecido uma garota que estava sempre querendo me espicaçar dessa mesma forma... - eu mergulhei de cabeça. - Eles acham que você precisa voltar a trabalhar, pelo menos em meio expediente, e isso significa uma pessoa para tomar conta da casa, roupas e uma porção de outras coisas. Todos nós a amamos, Ellen... - eu continuava falando como se não percebesse a rápida mudança de expressões de dor em seu rosto - e então chegaram a essa conclusão.

  - Eu não poderia conseguir um lugar de meio expediente em Loretto. Eles só precisam de enfermeiras de psiquiatria de tempo integral. - Ela estava começando a perceber que caíra na armadilha.

  - Você não imagina que o Coronel deixaria de cuidar disso a tempo, não é? Claro que eles vão aceitar você em regime de meio expediente.

  - E quais são as condições? O que preciso fazer?

  - Se fosse eu a decidir, isso seria duro. Um certo número de trabalho diário; um certo número de quilos perdidos cada mês; um certo número de livros bons para exorcizar essa porcaria. Você tem até sorte porque minha família exige muito menos do que eu exigiria. Não há condições. O cheque virá todos os anos, até o dia em que eles verifiquem que você não precisa mais deles.

  - Então é um empréstimo? - Ela fez a pergunta como alguém que vê um salva-vidas ao alcance de suas mãos e então tenta alcançá-lo.

  - Nada disso. Nós não somos emprestadores de dinheiro. Nós o damos às pessoas que amamos. - Levantei-me e caminhei para a porta. Ela estava derreada. Olhou para o envelope como se ele houvesse sido posto ali em cima de sua mesa por algum disco voador.

  - Eu não quero ser obrigada a escolher, Kevin. - Sua voz estava abafada com a dor.

  - A favor da vida ou contra ela? - Eu estava com a mão na maçaneta.

  Ellen sacudiu a cabeça.

  - O caso é que os seus amigos fizeram uma crueldade com você. Estamos obrigando você a tomar uma decisão. - Eu já estava com a porta aberta.

  Ela estava ainda olhando fixamente para o envelope quando eu saí do apartamento.

<188>

 

Ellen querida,

  Estou de volta a Roma depois de uma triste tarde de domingo lá no alto, perto de Tivoli, a região montanhosa onde os exaustos aristocratas romanos passam os domingos de verão desde a época de Rômulo e Remo. São só árvores, sombra fresca, brisa leve sem a nojenta fumaça e nevoeiro de Roma. O lugar perfeito para um palácio de prazeres como a Casa Martinelli.

  As mulheres eram todas terrivelmente belas e com traços finos que fariam você chorar de inveja. Os homens eram todos imitações de Rodolfo Valentino. Durante as tardes só se ouviam suspiros e risadinhas sem contar com os comentários cínicos a respeito das artimanhas financeiras de figurões da Cúria.

  Os nossos anfitriões eram Monsenhor Martinelli, o protetor de Pat e veado reconhecido com certidão passada, e a sua mãe, a Princesa Martinelli que, na minha opinião, deve andar pelos cinqüenta e tantos, mas que parece quinze anos mais moça. Ela tem duas lindas "empregadinhas" que sempre acaricia despreocupadamente quando elas andam de um lado para outro servindo café-expresso e licores. Elas combinam bem com os dois lindos padres jovens que fazem parte da antourage do Monsenhor Martinelli. Levando tudo em conta, e com outros personagens variados, você pode imaginar ali a causa dos Borgias, só que os Martinellis consideram os Borgias como simples parvenus. As arcadas de mármore e os balcões batidos pela brisa na vila foram construídos quando os Borgias ainda eram simples lavradores na Espanha.

  Ninguém parece dar muita importância quanto à perversidade do lugar. Conforme a Princesa me disse em sua voz modulada, o Cardeal Rodrigo Martinelli, o fundador do clã nos idos de 1400, construiu a vila com duas alas, sendo uma para os seus bambinos e outra para as suas bambinas, e com isso ele não queria dizer filhos ou filhas.

Eu disse baixinho para o Pat que nós éramos as duas únicas pessoas direitas, por ali. Ele fez-me sinal para eu falar mais baixo ainda, e disse que aquela família era das mais antigas entre toda a nobreza e a mais leal ao Papa.

Nesse ponto, Tonio, o monsenhor, juntou-se a nós curvando-se mais uma vez para beijar-me a mão, embora os seus olhos castanhos e duros estivessem fitos no Pat, mais do que em mim. "O nosso' retiro na montanha é o ambiente perfeito para a sua beleza incomparável, signora." Os seus lábios finos e cruéis conseguiram sorrir de maneira agradável.

  Mais tarde, quando descíamos pela estrada da montanha, já bem no escuro, a reação de Pat foi fortemente defensiva. Ele me disse então que aquela gente era mais sofisticada e tinha mais experiência do que nós. Disse que eles eram mais cínicos e mais relaxados, e ainda que o sexo não era importante para a Cúria da maneira que o era no século passado, quando alguns dos homens que chegaram a papa já tinham filhos. Pat me dizia também que a maioria dos padres era fiel aos seus votos e não tinham amantes nem "amiguinhos".

  Eu lhe disse que aquilo era possível, embora o Tonio fosse realmente veado e estivesse de olho nele. Pat ficou zangado e chegou a gritar comigo dizendo que aquilo não era verdade. "Além disso, Maureen, não quero que você pense que eu vou subir na Igreja satisfazendo os desejos inconfessáveis de monsenhores."

  Eu pedi-lhe que me desculpasse, e disse-lhe que não punha em dúvida a sua castidade ou a sua heterossexualidade. Mas, mesmo assim estou inquieta. Pat acha que ele é muito esperto e pode usar o Martinelli e talvez, até mesmo, tornar-se seu amigo sem cair na esparrela. Mas eu, de qualquer forma, sempre preferiria aproximar-me de um crocodilo.

  Você está como enfermeira na psiquiatria. Aconselhe-me, por favor.

  Sheila já está quase boa da gripe do verão. Espero que a sua criançada esteja toda boa e que você esteja adorando o seu emprego.

  com amor, Mo.

 

Minha querida Mo,

  Vou dar-lhe um conselho, já que foi você quem pediu.

  Mantenha o Pat longe desses nojentos. Ele é ainda o garoto que nasceu no West Side, a zona ruim de Chicago.

  Adorei a descrição que você fez da vila dessa gente. Gostaria de ver o Kevin num lugar como esse em Tivoli. Aposto como ele reagiria aos Martinellis com a única emoção que eles não toleram, o dêsprezo ostensivo. A família dele, e até mesmo a Mary Ann que eu adoro, não é dada ao pecado mortal do sensualismo como acontece com você, Pat e eu mesma, além dos Martinellis. Na verdadeira tradição irlandesa, eles se concentram no orgulho, no ódio, na raiva e na vingança.

  Aliás, pensando bem, eu provavelmente estou nos dois campos.

  Às crianças estão ótimas. Espero que Sheila esteja melhor. Eu me sinto cansada e solitária. Agradeço as suas orações. Mal não podem fazer.

com amor, ELLEN.

 

  - Nenhum deles tem alguma coisa contra os seus judeus... Assim falava o franciscano barbado no seu sotaque carregado de Wexford, sacudindo a cabeça na direção da corrente vermelha de bispos que saía do portal de San Pietro. - O problema com os documentos sobre o anti-semitismo são os árabes cristãos.

  Fazia apenas uma semana que eu me encontrava em Roma. O céu por trás de S. Pedro era de um azul cristalino. A própria cúpula brilhava quase branca naquela manhã ensolarada. Os bispos da Igreja Católica Romana em esplendor multicolorido passavam pela piazza para entrarem em ônibus ou carros.

  - Você quer dizer que o Papa está contemporizando na declaração para as razões políticas? - Na minha exaltação eu coloquei a xícara de chá em cima da mesa com medo de entorná-la.

  - Se ele acusar o anti-semitismo - Maureen respondeu isso não lhe vai granjear muitos votos e coloca os árabes cristãos em foco... - Ela levantou-se.

  - Vou buscar mais um café.

  Fiquei a olhá-la até entrar no café. O seu corpo acomodava-se melhor com alguns quilos a mais do que o de Ellen, mas ela estava bem mais magra. Para quem gostasse de mulheres bem nutridas, aqueles quilos a mais eram até uma melhoria. Mas aquele desânimo que eu via em seus olhos não me agradava nada.

  - Diga-me uma coisa, Padre Kevin, será que o seu holandês apoiaria a declaração? O meu chefe gostaria de saber ao certo. Quem fazia a pergunta era Dermot McCarthy.

  - Eu preferiria que perguntasse isso ao Cardeal Spellman, que é o cardeal do Comitê Judaico-Americano sobre esse assunto.

  - Claro que eu não ia contar ao sabichão do Dermot McCarthy que o "holandês" Meyer e eu tínhamos limitado a nossa conversa em Roma a discussões sobre as condições meteorológicas de Chicago em outubro.

  - A Cúria vai-lhe dar a que fala sobre os judeus, Padre Kevin - disse Dermot suspirando - depois que ela tenha misturado tudo bem, mas eles não gostam mesmo da que fala em liberdade religiosa. Se começarmos a dar liberdade de crença fora da Igreja, é claro que o primeiro resultado será que vão começar a esperar isso por dentro, e então onde é que nós vamos parar?

  - O pessoal todo vai lutar por isso até o amargo fim - eu insistia.

  - Será que vão mesmo? - Ele olhou-me de frente. - Pois bem, você pode estar certo de que a Cúria não vai cometer o mesmo engano outra vez durante muito tempo de nomear bispos assim nos Estados Unidos.

  Maureen voltou para a mesa trazendo café para Dermot, cKá para mim e o expresso para ela.

  O garfo de Dermot estava brincando com um pedaço de doce cremoso. Então ele falou baixinho:

  - Muito bem, vou lhes dizer uma coisa. Eles vão fazer com que vocês, rapazes, aproveitem seu dinheiro. - Outra vez o sorriso franciscano, e ele levantou-se da cadeira saindo para a rua, caminhando rapidamente em direção ao Vaticano.

  - Não confie muito no charme irlandês, Kevin. - Maureen aconselhou-me. - Há ocasiões em que eu fico pensando se ele é capaz de distinguir o que está realmente acontecendo daquilo que ele imagina que está acontecendo. - Ela ficou ali brincando com uma pequena mecha de seu cabelo negro cortado muito rente. Parecia cansada.

  - Mo, o que é que nós podemos fazer por você? Mesmo com o Tomcasado, a anulação...

  - O que é que você tem com isso, Kevin? - Ela interrompeu-me logo. - O que é que você fará para se divertir? Claro que não pode estar gostando da brincadeira de poder que anda por aqui, não é mesmo? Qual é o prazer que você encontra em se inquietar com a trapalhada do meu casamento, com as aventuras amorosas de Pat ou com a viuvez solitária de Ellen ou seja lá qual for o nome que você lhe dá? Aposto como é isso que você faz lá na sua paróquia o tempo todo. E toda a trabalheira só para ter um grau? Por que se preocupa tanto? Por que se preocupa comigo? Bem sabe que sou uma causa perdida...

  - Você não é uma causa perdida, Mo - eu tinha acabado com o meu doce e estava agora comendo o de Dermot - e eu tenho prazer em me preocupar com sua vida. Sinto doer meu coração quando vejo o cansaço em seus olhos. Quanto às razões para... é possível que um pouco de psicologia seja perigoso. Um garoto cresce enquanto o seu supercompetente pai está longe tentando salvar o país. Ele aprende a cuidar de sua mãe e dos irmãos menores. Depois passa o resto de sua vida cuidando dos outros. Há ocasiões em que até se sai muito bem.

  - Meu Deus, Kevin - ela mostrou-se horrorizada - é isso que constitui toda a sua vocação? E por que não cai fora?

  - E por que iria fazer isso? Gosto de cuidar dos outros.

  - E você é feliz mesmo com esta explicação? - Ela levantou a xícara e logo tornou a colocá-la no pires sem tocar.

  - E por que não?

  Ela debruçou-se por cima da mesa e beijou-me ali à sombra de S. Pedro sem ligar para o escândalo que poderia causar.

  - Isto é por ter sido tão carinhoso e por preocupar-se tanto comigo. E não pense mais no Tom. Ele é um paspalhão e não compreendo o que jamais possa ter visto nele.

  Cheguei tarde de volta à casa do Villanova onde estava hospedado, e fui logo para a cama. Sonhei não com Maureen e sim com Ellen. Eu estava de novo no Hospital de Loretto por onde realmente passara algum tempo antes, logo depois de entregar o envelope a Ellen. No sonho ela estava correndo atrás de mim com uma faca na mão. Fui despertado com o ronco de uma Vespa embaixo de minha janela antes que ela pudesse me morder.

  Já se tinham passado dois meses depois daquele confronto e ainda me sentia humilhado. Eu fora visitar a pobre Mary Tansey que, apesar de ser o que era, não merecia aquele câncer no pulmão. Um paroquiano meu estava ali na unidade de psiquiatria e eu não sabia se passaria ou não pelo seu quarto. Eu receava mais não ver a Ellen do que realmente vê-la.

  A minha dúvida foi logo resolvida. Ellen estava ali na sala das enfermeiras, de prancheta na mão e cercada por um grupo de enfermeiras e atendentes.

  - Alô! - O meu cumprimento foi um tanto tímido depois que ela dispensou com frieza e competência o pessoal que a cercava.

  - Boa-tarde, padre. O Sr. McClutchey está no 417, se o senhor quiser vê-lo. Está passando muito bem.

  - Você também me parece que está indo muito bem. Já está a mais da metade do caminho para voltar à sua forma antiga. Tem lido alguns bons livros?

Houve um silêncio completo. Seus lábios ficaram brancos. Os olhos endureceram.

  - Desculpe-me. Que tolice a minha. Eu achava que iria me encontrar com você e que não saberia o que dizer. Dei mais uma mancada.

  - Claro que deu mesmo. - A sua resposta foi bem fria. - E, por favor, lembre-se de que por mais que eu seja grata à generosidade de sua família, não sou obrigada a me submeter a uma inspeção sua.

  Ela voltou-se e foi embora com seus sapatos batendo zangados no corredor muito liso. Fui ver o Joe McClutchey. Ellen não estava mais lá quando passei pela sala das enfermeiras.

  Depois que acordei de meu cochilo entrei no chuveiro. O não funcionamento adequado dos chuveiros italianos é a prova mais evidente de que realmente existe um purgatório.

  Depois fui para o salão comum que ficava no fim do corredor da casa. John Quinn, um peritus de Chicago em direito canónico, já tinha providenciado duas garrafas de Jameson. Dando graças às suas virtudes, falando comigo mesmo já que não havia mais ninguém ali "na sala, servi-me generosamente e fui buscar o gelo na máquina que o fabricava e que era também uma providência de Quinn. Só havia duas daquelas máquinas em Roma, naquele tempo, e a outra estava na Casa de Chicago, um presente do sempre atento Quinn para o cardeal.

  - Será que é um Jameson que você tem aqui? - disse uma voz de homem, precisa e distinta. - Mas que diabo, Kevin, será que só há duas pessoas com um gosto tão apurado em toda esta cidade?

  John Courtney Murray era um espírito alto, frio e incandescente com mais de um metro e oitenta de altura, pelo menos. Era calvo, usava óculos com lentes muito grossas e tinha um domínio sem igual do estilo literário. Ele tinha sido proibido, muitos anos antes, de continuar escrevendo sobre o apoio da Igreja à liberdade religiosa. Fora banido da primeira sessão do Segundo Concilio do Vaticano e depois convidado exatamente pelo Cardeal Spellman para agir como perito em todas as outras sessões. Agora ele estava redigindo um documento sobre o seu assunto predileto, documento esse que poderia criar uma revolução no pensamento católico a respeito da liberdade.

  Sentamos os dois nas cadeiras de espaldar duro e ali ficamos bebericando aquela ambrosia.

  - Será que eu preciso lhe dizer, Kevin, que será um desastre de proporções monumentais se a declaração sobre liberdade religiosa não for aprovada? Pode você imaginar, nos dias de hoje, que a Igreja sugira que num Estado católico será perfeitamente aceitável a perseguição religiosa às minorias? - Dizendo isso ele engoliu a sua bebida, e eu notei então que ela não fora poluída com o gelo. Mas ele continuava. - No entanto, eu não ficaria surpreso se aqueles que se opõem à liberdade religiosa tentarem explorar o Padre Donahue que, pelo que me dizem, é um amigo seu. É um jovem excelente, encantador, eficiente e inteligente, mas ainda não está à altura das maquinações deles. Todos nós temos que estar muito atentos quanto às nossas áreas de informações. Será que poderei contar com você?

  - Pode deixar que eu cuidarei dele - minha resposta foi em Tombem incisivo.

 

1.° de outubro - Ellen querida,

  Tenho hoje mais uma grande festa à noite, mas quero escrever para você antes que comece a me preparar. Eu não sei mais o que fazer com o Pat. A sua família abandonou-o, e estou certa de que você sabe o que isto significa. Tudo começou quando ele quase não os procurou durante todo o tempo que passou na paróquia dos Quarenta Mártires Sagrados. Esperavam que ele fosse jantar com eles todos os domingos. Sua mãe devia ter planejado exibi-lo todas as semanas durante os anos que passou no seminário. E então ele começou a aparecer pouco, já que a paróquia lhe ocupava todo o tempo, e passou a envolver-se com as pessoas que lhe davam o dinheiro para ir manobrando a paróquia como, por exemplo, os Tanseys, e que Deus lhe dê um bom descanso, e os Carreys. Creio que ele sempre achou a família muito chata. Não estou querendo procurar desculpas para ele. O caso é que eles não compreendiam bem o que ele estava fazendo e tampouco gostavam de vê-lo em uma paróquia ds negros. Depois, ficaram ainda mais zangados quando ele não ficou por ali, perto de casa, durante suas férias dois anos atrás.

  A carta que recebi da mãe dele ontem é de cortar o coração. Ela diz que ele não dá notícias, que não se importa com eles, que traiu a família e que estava  mais interessado em sua carreira do que na família. E eu quero crer que estejam com a razão, mas também eles são os principais culpados, você não acha? A idéia que eles fazem de um bom padre é que ele deve ser exatamente como foi o Padre Conroy em nossa paróquia uns vinte anos atrás. Todas as tardes de domingo ele corria de volta aos braços da mãe.

  Há ocasiões em que ele diz como teria vontade de abandonar tudo e voltar para a sua antiga paróquia para passar os domingos com a família. Se ele tivesse um pouco mais de coragem e um pouco menos de ambição, seguiria o seu instinto e seria um padre muito feliz.

  E é isso mesmo que eu vou dizer a ele. Depois a decisão terá que ser exclusivamente sua.

  Puxa vida, Ellen, estou até parecendo o Kevin, não é mesmo? Quem sabe ele é contagioso? Eu estive com ele hoje e tomamos um café juntos. Eu sei que você o detesta e você sabe que eu acho que não devia pensar assim. Então vou parar por aqui.

  Aposto como você está querendo saber o que eu penso dele agora que tem a mesma idade de Nosso Senhor quando morreu na cruz. É bem difícil responder a isso. Ele está pior e, de uma maneira engraçada, está muito melhor.

  O que eu quero dizer é que ele é, cada vez mais, o lutador cínico, impiedoso, que jamais existiu. E como são duros os seus olhos! Você tem que descascar uma boa quantidade de camadas para chegar até aquilo que ele sente. E no entanto... no entanto... aquela parte suave e delicada continua lá, e talvez até mais óbvia. Você certamente lembra como seus olhos verdes podem mostrar tristeza.

  O Pat quer ser bispo. Eu quero fazer alguma coisa útil com a minha vida. Você quer ser uma escritora... e eu não me importo com o que você diz. O que será que deseja o Kevin? Eu não sei.

  Você devia fazer as pazes com ele. Você sabe que acabará fazendo isso. Então, por que não fazer logo?

Agora vou me arrumar.

Com amor, Mo.

 

  Da mesma forma que todas as festas de Maureen, aquela foi um brilhante sucesso. Pat ficava admirado ao ver como Maureen fingia interessar-se pelos problemas do Conselho quando ela, na realidade, não dava àquilo a menor importância. Os seus quadros inacabados estavam espalhados negligentemente no antigo palazzo na Piazza Farnese, e as semanas se passavam sem que eles ficassem mais perto de seu fim. Maureen estava dando preferência à política do Concilio em detrimento de suas lições de arte.

  Pat sentia-se culpado por aquilo. Os quadros pareciam exibir algum talento. Um de seus amigos italianos, Fredo DeLucca, primo de Antônio Martinelli, dizia que, embora se tratasse de um modesto talento, sempre valeria a pena desenvolvê-lo.

  Dermot McCarthy estava ali do outro lado da sala, cada vez mais encantador. Estava numa conversa muito séria com a mulher loura de um repórter inglês. McCarthy, com seus trajes franciscanos e tudo mais, gostava muito das festas noturnas de Mo. Ninguém jamais sabia ao certo o que ele tinha em mente. Não se mostraria mais solícito com ela se fosse o seu marido. Ela estava cheia de Roma e era presa fácil para o charme do irlandês de fala macia.

  Maureen estava disposta a dedicar todo o seu tempo e energia à carreira de Pat. Eram velhos amigos que se haviam reencontrado, depois de muito tempo, numa cidade que não tinha coração. Tinham andado muito juntos quando Maureen procurava apartamento, contratava a babá da Sheila e procurava um professor para ela. Ele não lhe pedia que desse aquelas recepções, mas ela parecia imaginar que ele precisava de um outro lugar, além da Casa de Chicago, para ver e ser visto. O fleumático Meyer não gostava muito da vida social de Roma, e a sua presença tranqüila espantava o brilho e o chiste.

  Os romanos pareciam notavelmente tolerantes face a todos os arranjos humanos. Os jornalistas norte-americanos não pareciam desconfiar de nada no que dizia respeito a um jovem minutante e uma rica patrocinadora. Vez por outra Pat procurava explicar que eles tinham sido amigos de infância, ansioso para que não houvesse qualquer outra interpretação.

  Agora Kevin estava ali em Roma. Na realidade, ele estava trocando monossílabos com Antônio, na outra sala, parecendo vagamente aborrecido como, aliás, acontecia muitas vezes.

  Pat surgiu trazendo um prato de salaminho e passando por Hans Küng que estava numa profunda conversa com um outro teólogo. Uma das razões para soirées como aquela, conforme Pat certa vez explicara a Maureen, era para reunir membros de facções opostas para que eles aprendessem a se conhecerem e respeitarem mutuamente. O ministério da reconciliação com o qual o Papa se comprometera profundamente estava sob a responsabilidade de todos.

  A sala estava cheia de jornalistas importantes, dos homens que, para melhor ou para pior, estavam mostrando a reação do mundo ao Concilio. As recepções de Maureen eram famosas em toda Roma. Era uma situação perfeita para exercer influência sobre o que o mundo pensava. Pat ficava satisfeito com a oportunidade.

  Pat reparou que Kevin estava ouvindo o Monsenhor Maríinelli. Muito mais alto do que o homem da Cúria, Kevin não parecia muito impressionado. Aquilo era uma pena.

  Os dois eram pragmáticos e ambos procuravam soluções de transigência e também compreendiam o comportamento humano. Ele bem gostaria que Kevin desse mais atenção à sua maneira de trajar. A roupa preta tirada do armário e o suéter de gola rulê poderiam ser bem apropriados na universidade, mas ali, numa recepção grã-fina no coração de Roma, aquilo chegava a ser chocante.

  - O seu amigo aqui está me contando coisas muito interessantes a respeito da psicologia dos norte-americanos. Nós ainda temos muito que aprender. Ele, na verdade, deveria ser um peritus no Concílio. Talvez o Cardeal Meyer pudesse cuidar disso na próxima sessão, não acham? - Tonio falava mostrando os seus dentes muito brancos num rápido sorriso.

  - Ele está pensando que a Igreja não estará pronta para os psicólogos senão depois do próximo Concilio - disse Kevin.

  - Será que você e a Maureen poderiam almoçar comigo no Sabatini amanna? - Pat fez a pergunta de repente, e, num aparte para Tonio: - Nós crescemos os três juntos, monsignor, e ainda não tivemos tempo para falar dos velhos amigos.

  Tonio acenou com as mãos num gesto de tolerante urbanidade.

  - Mas claro, nós veremos se o Felici pode dispensar os pobres padres do Concilio dez minutos antes para que você possa fazer o seu pedido antes do rush.

  - Almoço? E por que não? - Kevin não parecia lá muito satisfeito com a perspectiva, mas concordou.

Pat afastou-se. O apartamento estava agora cheio, com uns setenta e cinco convidados, e todos eles "importantes".

  A mulher loura do repórter inglês ainda não estava completamente embriagada, mas continuava falando com Dermot que discretamente a mantinha a distância para que ela não se encostasse nele. Quando acendeu o seu cigarro ele percebeu nitidamente o convite que havia em seus olhos, e que Dermot não aceitava nem tampouco repelia.

  Tinha-se mais a impressão de que o convite ficava arquivado para 'uso futuro, quando valesse a pena usá-lo.

  Afinal, o apartamento esvaziou-se ficando ali apenas Sheila, que dormia, o último dos empregados e Pat com Maureen. Ele estava separando as garrafas que ainda tinham alguma coisa que escapara enquanto Maureen recostava-se no grande sofá cinzento do século XVIII para descansar.

  - Eu simplesmente não posso deixar de dar essas recepções. Adoro tudo isso. Eu poderia facilmente ser um dos personagens nos filmes de Fellini. O que é que você acha, Patríck?

  - Eu diria que a parte mais deliciosa é a elegância da conversa. - Ele fechou a porta do armário onde eram guardadas as bebidas.

  - O que você achou do Kevin? - Enquanto procurava um cigarro, ela mudou de conversa, de repente.

  - Ele talvez ainda esteja cansado - ele pensou bem antes de responder - mas me parece mais ensimesmado do que nunca. Mas nada lhe escapa, não acha? - Ele inclinou-se para acender o cigarro dela e pensou em Dermot e na moça inglesa. - Você reparou como ele estava observando Fiona e o seu amigo franciscano?

  - Ele trata o Dermot como se fosse um espécime de laboratório. - Mo sorriu. - E o Dermot, a quem também nada escapa, nem percebe aquilo.

  A proximidade dos ombros nus de Maureen perturbava-o. Acendeu também um cigarro esperando que aquilo lhe acalmasse os nervos. Sentia a cabeça leve. Era muito Campari com soda. O melhor seria ir embora logo.

  - Será que o Kevin não se dá conta de si mesmo? - Ele fez a pergunta sem muita convicção, lutando para esconder a tensão que tomava conta de seu corpo.

  - Creio que sim - Maureen bocejou e esticou-se espreguiçando-se - e é por isso que ele sorri tão raramente. Não vejo uma saída para o pobre Kevin.

  - Convidei-o para almoçar conosco amanhã no Sabatini. - O movimento do seu corpo deixou-o nervoso.

  - Para mim está ótimo. - Ela levantou-se e caminhou para a porta. - É melhor você voltar para Via Sardegna. Aquele seu cardeal lá não verifica os dormitórios?

  - Há alguma coisa que eu preciso fazer primeiro, Mo. - Ele observava seus ombros e costas nus, o perfume que se desprendia dela e os seus seios que o convidavam a tocá-los. Na porta do apartamento, ela voltou-se para ele, inquieta com o Tomde sua voz.

  - O que é que você quer, Pat? Por que me olha desse jeito? Oh... por favor, não faça isso.

Ele abafou o seu grito de susto com a sua boca enquanto a apertava com força.

  Ela debateu-se procurando escapar.

  Empurrou-a para o sofá e rasgou-lhe o vestido deixando nu o seu busto. Ele queria parar. O princípio começava a se fazer valer. Seus dedos afastaram-se de seus seios.

  Ele estava ofegante. Mas agora já podia parar. Deus meu, ela jamais vai perdoar-me. Preciso pedir-lhe perdão e sair correndo. Não vê-la nunca mais. Procurar um mosteiro. Ele já não lhe tocava mais a carne. Somente rendas pretas que eram muito menos perigosas.

  Então ela abraçou-o e puxou-o para cima de seu corpo.

  O amor deles foi violento e desesperado. Ficaram os dois abraçados até muito tempo depois com o suor dos dois corpos fundindoos num só. Nenhum dos dois falou.

 

  O meu táxi ficou detido no rush barulhento e fétido do começo da tarde. Praguejei contra a estupidez de uma cultura que criava duas horas de rush em lugar de uma só. A minha raiva, no entanto, de nada servia para me levar mais depressa da Piazza Hungaria em Parioli, do outro lado do rio, até o Trastevere. O motorista do táxi com um praguejamento dramático e gestos ainda mais dramáticos lutava para romper o caminho desde o Tibre até a igreja medieval de Santa Maria, no Trastevere. Eu já estava com vinte minutos de atraso. O encantador prédio romanesco com seus lindos mosaicos não me acalmou da mesma forma que a manifesta ansiedade de Pat ao  levantar-se da mesa na frente do Sabatini.

  - Você quer comer lá dentro, Kevin, ou você...

  - Aqui está bem - respondi mecanicamente. - Desculpem o atraso. O trânsito...

  - Faz com que Chicago até pareça bom, não é mesmo? - Ele parecia agora mais tranqüilo ao ver-me ali sentado. Encheu um copo com Frascati para mim. Aquilo parecia mais uma outra tarde boa para uma sesta.

  - Será que o Monsignor Martinelli fez você sair dez minutos mais cedo? - Fiz um sinal ao garçom pedindo manteiga. Meus nervos estavam ainda em frangalhos depois daquela viagem atravessando Roma.

  - Para falar a verdade, realmente saímos um pouco mais cedo. Creio que foi mera coincidência. Espero que você e Tonio tenham feito boa camaradagem na noite passada.

  - Creio que ele achou bem difícil compreender uma pessoa como eu. - A minha resposta foi cautelosa.

  - E você achou o Fredo DeLucca interessante? - Seus olhos estavam desviados.

  - Apenas um perverso Rodolfo Valentíno com tendências sadomasoquistas.

  - Isso é terrivelmente agressivo, Kevin. - Ele ficou muito vermelho.

  - E creio que é mesmo. Essas antigas famílias romanas me atacam os nervos. Nem sei bem por quê.

  - Ele é um dos mais respeitados jornalistas de Roma. La Você é um jornal muito influente, lido por todo mundo na Cúria. Fredo conta com leitores muito distintos.

  Resisti para não dizer as palavras que se formavam em meu espírito sobre as predileções sexuais dos leitores de Fredo. Em lugar disso fiz uma observação:

  - Parece que a Mo ficou retida no mesmo engarrafamento que também me atrasou.

  - É sim, provavelmente... - Ele fez uma pausa e depois falou precipitado. - Pois é realmente a seu respeito que eu quero lhe falar, Kevin. Não sei o que você pensa a respeito dessas reuniões que a Mo faz em meu benefício. Isto é, quem gosta de fazê-las é ela mesma, pensando que isso pode ajudar na minha carreira. Esboçou um sorriso irónico. - Como se eu não fosse fazer mais nada senão ficar sentado na Chancelaria atendendo telefones durante todo o resto de minha vida. De qualquer forma, achei melhor dizer a você que não existe nada entre Maureen e eu.

  - Deus do céu, Pat, isso nunca passou pela minha cabeça. A minha resposta foi justamente o que eu estava pensando.

  - Bem, você sabe que nós fomos namorados nos tempos do ginásio.

  - Aquilo foi amor de crianças - eu sorri. - E já lá vão dezesseis anos... não, não. Dezessete...

  - O negócio é que esta cidade está cheia de fofocas - ele disse. - Eu achei melhor dizer-lhe isso, e também que eu estou andando direito e ainda que lhe sou muito grato por me haver ajudado.

  Aquilo parecia tão formal. Os seus olhos estavam inquietos com o antigo medo voltando momentaneamente, como se ele estivesse esperando que eu lhe desse um voto de confiança. De repente uma idéia cruzou-me o espírito e eu fiquei a imaginar se seria possível que estivesse tarado por mim. Seria eu agora o Koko? Ultimamente eu havia encontrado muitos homossexuais entre os padres, mas logo descartei a idéia como absurda.

  Poderia satisfazê-lo dando-lhe o voto de confiança.

  - Eu nunca duvidei disso, Pat, mas sempre é bom saber. Se alguém vier com fofocas sobre você e Mo, eu responderei com um soco na boca.

  - Você costuma vê a Patsy? - De repente ele perguntou.

  - Georgina e o marido levaram ela ao enterro de Mary Tansey.

  - E como é que ela está agora? - Ele inclinou-se ansioso.

  - Uma garotinha de quatro anos muito bonitinha, loura e de olhos azuis. - A minha resposta foi dada com cautela.

  Ele sentou-se de novo, sacudindo a cabeça e bebendo o vinho.

  Logo Maureen saltou de um carro, numa minissaia verde-pálido que revelava bem as suas formas quando ela subiu na escada estreita. Estava radiantemente encantadora.

  Enquanto comíamos a pasta os dois me pediram notícias de Ellen.

  - Eu não sei muito bem - respondi com toda a sinceridade.

  - Durante algum tempo ela parecia ir muito mal, mas depois voltou a trabalhar e já perdeu uns oito quilos.

  - Então ela deve estar positivamente esbelta - disse Mo com inveja.

  - Eu não entendo muito do assunto, mas acho que ela ainda precisa perder mais uns cinco quilos. De qualquer forma, ela parece que está arrumando a sua vida. Nós, os irlandeses, temos a tendência para nos lamentarmos durante um ano para, depois então, recomeçar a vida. - Eu falava tudo aquilo lembrando-me bem de como Ellen excedera a minha expectativa.

  - Eu escrevi-lhe uma longa carta no Natal - disse Pat - e parece que isso ajudou bem.

  - É possível, sim. - Fiz o possível para esconder minha ironia.

  - Vamos escrever-lhe um postal daqui mesmo... - falou Mo entusiasmada com a idéia.

E então escrevemos uma porção de tolices num postal endereçado a Ellen. Eu me ofereci para colocá-lo no correio em Parioli.

  Depois do almoço fomos todos de táxi até o cruzamento da Via Veneto com a Via Sardegna. Pat, ainda pouco firme das pernas por causa do vinho, caminhou até a Casa de Chicago. Maureen e eu saímos passeando devagar na direção da Fontana de Trevi.

  - Você acha que eu estou sendo muito duro com o Pat? - A minha pergunta foi feita abruptamente, amenizada pelo vinho e pela agradável sensação de estar desfilando ali na Via Veneto com uma linda mulher cujas pernas faziam com que todas as cabeças se voltassem para admirá-las.

  - Ora essa, Kevin. - Ela olhou-me com um ar divertido. Você é mesmo impossível. Mas é claro que você não é muito severo com ele. - Ela segurou-me a mão. - Você avaliou esta cidade melhor em duas semanas do que ele em três anos e meio. Mas não se deixe enganar pela ingenuidade de Pat, meu querido. Ele trabalha muito e com muita eficiência e consegue fazer com que eles aqui compreendam o ponto de vista dos Estados Unidos. Eles o usam de uma forma ultrajante, mas, preste bem atenção e vai ver ele sair como ganhador.

  Contei-lhe a respeito do medo que tinha quanto à possibilidade de Martinelli usar Pat numa última tentativa para conseguir uma vitória simbólica no assunto das liberdades religiosas.

  - Pat poderia ser persuadido de que vai conseguir uma vitória e acabar fazendo alguma coisa que seja desastrosa para ele. vou ficar bem atenta. - Ela sacudiu a cabeça pensativamente. - Eu acho que... você sabe bem o que fazer em caso de encrenca. Ao dizer aquilo os seus olhos brilhavam olhando-me com um ar maroto e apertando-me a mão.

  - Eu poderia imaginar alguma coisa...

  Eu disse aquilo sem muita convicção. E também registrei em meu cérebro uma outra coisa. Mo não estava ligando a mínima quanto ao possível vencedor do conflito sobre as liberdades religiosas. Tampouco dava grande importância à Igreja institucional. A sua única preocupação era manter Pat longe de qualquer encrenca.

  Pat ajoelhou-se diante do altar da pequenina capela na Casa de Chicago. Ele queria chorar, mas as lágrimas não lhe vinham. Sentia-se tomado pela dor.

Eu não queria jazer aquilo. Estive a ponto de deter-me. Ela precisava de mim mais do que eu precisava... Oh Deus! Como estou arrependido... depois de todos esses anos. Pensei que já tinha vencido. Eu sabia que tinha... E foi aí... Perdoe-me, perdoe-me, por favor, perdoe-me.

  A única luz que havia ali tremeu.

  Jamais tornarei a jazer isso. Dê-me forças. Eu só desejo servir ao Senhor. Eu sei que posso fazer muito pela Igreja. Eu desisti do casamento para poder ajudar a Igreja. Foi o que a Vossa Mãe me disse para fazer lá no lago na noite em que Ela me apareceu.

  Houve um fraco ruído no fundo da capela. Era Albert Meyer que vinha fazer as suas orações. E se ele soubesse? Patrick estremeceu ligeiramente. O padre italiano dera-lhe a absolvição algumas horas antes, como um ato de rotina, metodicamente, como se a fornicação eclesiástica não fosse assim tão rara.

  Pai tornou a olhar para o tabernáculo que ainda estava ali no altar apesar das mudanças na liturgia. Estaria Deus dando valor àquilo? Estaria Ele ouvindo?

  Eu sinto muito. Sinto muito mesmo. Também menti para o Kevin. Estou arrependido por todas as coisas más que fiz. Dê-me mais uma outra chance. Só mais uma, por favor.

  Nunca mais permitirei que isso torne a acontecer.

  Ele percebia a aprovação, o perdão, a chance para um novo começo. Se o cardeal não estivesse ali, apenas a alguns bancos de distância atrás, ele teria chorado. Quando saiu da capela benzendose e sentindo-se como se houvesse renascido, ele percebeu que Meyer estava tão imerso em suas orações que nem mesmo notaria as lágrimas.

  John Murray esperava por mim na entrada da Casa Villanova. Fezme sinal para acompanhá-lo até a sala.

  - Correm por aí uns boatos de que a Cúria vai tentar conseguir que o Cardeal Cushing proponha ao Santo Padre, em nome de cem bispos norte-americanos, que o presente documento seja retirado, para o bem da Igreja, e substituído por alguma coisa mais à moda antiga e inócua. Isso seria um golpe devastador, porque daria ao grupo Otaviani uma oportunidade para se apoiar no Papa e então retirar tudo da agenda. O pobre Cushing nem sabia bem o que estava fazendo, mas ele já foi usado dessa mesma forma antes.

  - E o que é que o Otaviani ganha com isso? - Eu fiz a pergunta sem entender bem como o sombrio e reacionário chefe do Santo Ofício podia ser amigo de um liberal como John Quinn, o advogado canónico vindo de Chicago.

  Otaviani tinha nascido em Trastevere e estava quase cego poi causa de uma doença nos olhos que grassava entre os pobres de Roma quando ele era criança. Diziam que ele tinha malocchio, e muitos padres eram supersticiosos o bastante para terem medo de seu olhar, ou "mau olhado".

  - O Otaviani não é um homem mau. À direita do Imperadoi Justiniano, veja bem, e sim um homem de convicções, ao contrário de muitos outros. Acredita realmente que o erro não tem direitos.

  - Ele limpou cuidadosamente as suas lentes muito grossas.

  Eu pensei comigo mesmo que um cara que realmente acreditasse naquilo do erro não ter direitos, era muito mais perigoso do que um cara mau que acreditasse na mesma coisa.

  - Essa brincadeira leva ao vício - disse eu suspirando.

  - E é mesmo. Todo mundo em Roma escolhe o lado em que vai ficar. - Murray tornou a colocar os óculos em seu nariz aristocrático.

  Maureen atirou os embrulhos em cima da cama e deu uma espiada para dentro do quarto a fim de ver se Sheila estava dormindo. Ela estava acordada e de mau humor, como sempre. Maureen beijou-a e a garotinha abraçou-a com efusão. Sheila precisa de mim, pensou Maureen. Será que jamais lhe darei o suficiente?

Chamou a babá para vestir a menina para a hora do jantar, acusando-se de não ser uma boa mãe porque tinha empregadas para fazer aquilo.

  Abriu os embrulhos que tinham as roupas de baixo e arrumou tudo direitinho na cômoda. Já que ia ter um homem na casa, seria preciso estar em condições de lhe proporcionar uma paisagem agradável. Ela ria-se feliz. Pai ainda tinha muito que aprender quanto aos segredos do amor. Contudo, ele era forte e apaixonado. Ela ia se esquecera de como era bom ter um homem forte e apaixonado para o ato do amor. O seu corpo estava agradavelmente dolorido com a aventura da noite anterior. Viria ele outra vez. à noite? Não.

  Ele provavelmente estaria às voltas com problemas de consciência. Ela foi até a sala e acendeu um cigarro. De qualquer forma, a Igreja ia mudar no que dizia respeito ao celibato. Então por que esperar?

Voltou devagar para o quarto, já desabotoando o vestido. De uma forma ou outra, o mais provável era que Deus não se importaria com aquilo. Ele tinha feito os dois com partes importantes de suas personalidades ainda por acabar. Ela cuidaria dele para que não fizesse alguma tolice para ele ou para a Igreja. Algum dia ele seria cardeal e, com todos os diabos, ela faria com que ele fosse um bom cardeal.

  Atirou a roupa de baixo em cima da cama e foi até a cozinha, de chinelos, para beber um copo grande de Frascati. Sem dar importância ao costume italiano, colocou no copo vários cubos de gelo e voltou para o quarto.

  Estava ainda fazendo planos com cuidado quando abriu a torneira de água quente na banheira. O que pensaria você, meu caro Kevin, se soubesse que toda a minha ambição agora é tentar fazer um cardeal de seu amigo Patrick Donahue? Despiu-se completamente e experimentou a água com a ponta dos dedos. Aquela porcaria dos italianos, nem mesmo sabiam ser bons encanadores. Regulou a torneira fria.

  Entrou devagar na banheira e começou a bebericar com satisfação o vinho geladinho. Aquele caso seria inconveniente e Pai haveria de tentar o rompimento. Tudo estava bem. Mais algumas'noites com ele e Pat ficaria tão viciado com ela que nem mesmo pensaria em rompimento.

  Suspirou muito satisfeita. O único problema era o Kevin. Se ele jamais chegasse a descobrir... Ela franziu o rosto. Eu também amo você, meu querido Kevin, mas você é meu inimigo. Tomou a abrir a torneira da água quente. Estava escuro ali no banheiro. Em outubro, as noites chegavam cedo em Roma.

 

  Eu tinha atravessado todo o Oriente Médio sem me apressar, visitando o Líbano, a Síria, a Jordânia e Jerusalém. Em fins de novembro, quando só faltavam dez dias para a terceira sessão, eu estava sentado no Intercontinental de Jerusalém, olhando lá de cima as luzes da Cidade Santa e ouvindo música rock tocada por uma orquestra de árabes que tentavam imitar os Beatles.

  Comecei a ler a edição parisiense do New York Times onde havia uma manchete dizendo "Boatos de uma Retirada dos Estados Unidos sobre Liberdade Religiosa". O artigo de Israel Shenker noticiava movimentos nos bastidores, de parte de alguns bispos dos Estados Unidos aliviar o explosivo problema da liberdade religiosa mediante a substituição por um documento que fosse aceitável pelos conservadores da Cúria.

  Foi nesse momento exato que eu me decidi. Estávamos numa quinta-feira. O Conselho tinha entrado em recesso até a segundafeira de manhã. Eu pegaria o primeiro avião de domingo e estaria em Roma naquela mesma tarde.

  No Aeroporto de Lod, no domingo, encontrei John Carrey. Tentei livrar-me dele mas não foi possível. Como era bom me encontrar. Georgina estava viajando com ele agora. A sua atitude a respeito de viagens tinha mudado radicalmente depois do nascimento de Patsy. Não, eles iam voar diretamente para Nova York. Não havia tempo para uma parada em Roma. Talvez na próxima viagem. Suspirei aliviado. Estaríamos em vôos diferentes.

  Ele agarrou-me e arrastou-me até o salão das partidas para que eu falasse com Georgina. Ela estava mais magra, mais pálida, e parecia bem mais velha, mas, mesmo assim, ainda chamava a atenção na maior parte dos aeroportos do mundo. Ela foi muito delicada e reservada, mas os seus olhos estavam cheios de ódio. Algum dia ela ainda se vingaria, ou, pelo menos, tentaria. Eu me alegrava em saber que Patsy não era a minha filha.

 

Minha Querida Mo,

  Vejo-me obrigada a escrever para você esta noite. Tenho duas boas notícias que preciso partilhar com alguém. Fui nomeada Diretora da Enfermagem Psiquiátrica no hospital. Isso significa mais dinheiro, mais prestígio e mais tempo fora da Unidade, é isso é ótimo para mim. Também significa que sou um sucesso e isso é terrivelmente importante para mim. Agora já fiz uma das coisas que resolvera fazer quando a família Brennan me deu aquele dinheiro.

  A outra novidade não é tão importante. Não. Retiro o que disse. É mais importante . 'nda. Ontem o meu peso era exatamente o mesmo que quando eu tinha dezenove anos.

  E isso foi bem mais difícil do que o emprego. Fui  obrigada a concentrar-me e a levar em conta a minha aparência, coisa que não faço sempre. Experimentei alguns vestidos antigos e eles estão perfeitos. Sinto-me tão feliz em ter de volta o meu corpo que amanhã vou celebrar isso com um malted mük!

  Agora já sei que posso me arranjar sozinha. Em breve deixarei de receber o dinheiro dos Brennan e vou tentar dar um jeito para pagar o que eles me deram. Não o dinheiro, que eles jamais aceitariam e nem precisam dele, e sim o amor.

  Ainda não acabou tudo. Eu ainda não sou eu... como isso me parece terrivelmente psiquiátrico!... Mas estou a caminho. Dentro de um ou dois anos vou começar a procurar um homem, não porque precise de um, e sim porque sempre é bom ter alguém.

  Reli as cópias de algumas das histéricas cartas que escrevi para você quando o Tim morreu. Que amiga maravilhosa é você, Mo, por me haver aturado com toda aquela choradeira. Agora você vai ter que me aturar como uma complacente e pretensiosa que se analisou. Também vou tentar superar isso.

  Como eu gostaria de estar em Roma com toda a excitação que há por aí. Tenho pena do Pat. Você está certa quando diz que ele poderá encontrar a felicidade e a salvação, seja isso lá o que for, nos Santos Mártires e nos jantares de domingo com a família. Ele também poderia encontrar a paz com alguma boa mulher - desde que não seja você - mas não acredito que ele aceite qualquer dessas soluções, e eu não gosto de ver você envolvida com ele.

  A última frase é indesculpavelmente pretensiosa. Perdoe-me, mas fica assim mesmo.

  Sinto-me culpada com o Kevin. No último verão ele apareceu lá na Unidade e eu simplesmente agi como uma tola. Eu o odeio demais. Sei que é uma criancice, mas, pelo menos, eu agora posso ser sincera a esse respeito. Eu o odeio porque sempre quis que ele abandonasse o sacerdócio para se casar comigo. Talvez ainda queira. Eu culpo a Igreja pelo fracasso do meu casamento com*o Tim, e, realmente, penso que isso seja razoável, e também a culpo por não ter permitido que eu ficasse com o Kevin.

  Eu odeio o Kevin porque ele permitiu que a Igreja se metesse em nosso caminho.

  Você não acha que essa seja uma boa razão para a gente odiar alguém?

  Ou então por amá-lo tanto que chega a doer só em pensar nele? Especialmente desde que fiquei sabendo que se ele fosse meu marido e não um padre celibatário, jamais conseguiria ter feito por mim o que ele fez, obrigando-me a voltar à vida.

  A despeito de toda esta auto-analise, que é o resultado da gente passar o dia lidando com birutas, eu ainda não cheguei a uma conclusão. E nem tenho a certeza se quero mesmo chegar a ela.

  Continue a rezar por mim, já que eu não faço isso, ou, pelo menos, pretendo convencer-me de que não estou rezando.

Eu te amo, EL.

 

  O avião levantou vôo atrasado e chegou em Roma atrasado. Já estava quase noite quando o transporte do aeroporto chegou à Stazione Termini. Quando eu ia saindo ouvi uma voz conhecida.

  - Então é você que chega de volta para assistir ao foguetório final, hein?

  E ali estava o Dermot McCarthy, o irlandês moreno de cabelos crespos e bonito como é difícil imaginar.   

  Ele estivera em Nápoles, na véspera, para uma conferência, conforme garantiu-me, e voltara no rápido.

  - O seu amigo Pat Donahue está fazendo um figurão por aqui... - disse-me num sorriso aberto.

  - Está mesmo? - Procurei manter neutra a minha voz.

  - Se está! Acabo de saber de um amigo meu da imprensa inglesa que vai sair um grande artigo a seu respeito nos jornais de domingo, da próxima semana, mostrando como ele desempenhou um papel importante na solução da controvérsia sobre a liberdade religiosa.

  - Eu nem sabia que isso já estava resolvido.

  - Bem... ainda não está resolvido, se é que você me compreende ... - Piscou-me um olho quando chegamos junto ao meiofio onde uma horda de italianos lutava para conseguir táxis. Mas tenho razões para acreditar que vai ser resolvida amanhã de manhã com uma espetacular intervenção de um de seus cardeais norte-americanos.

  - Não conte muito com os cardeais dos Estados Unidos senti um aperto no estômago - especialmente de um que se torna imprevisível no decorrer da noite.

  - Ora essa, Padre Kevin - ele riu-se alegremente - você é muito engraçadinho. Já me disseram também que o autor do artigo vai falar também sobre a divorciada norte-americana que está patrocinando o Pat. Não acha que vai ser uma beleza mesmo?

  - Estou certo de que ela vai gostar da publicidade.

  - A amizade deles é muito grande. Mas é assim que as coisas são feitas, na minha opinião.

  Maureen estava desesperada quando discou novamente o número. A freira no Villanova respondia desanimada. Não, o Padre Brennan ainda não voltara. Sim, ele vai voltar hoje, mas ainda não chegou. Sim, claro, ela daria o recado. Como era que se escrevia o nome? Sim, sim. É claro H-A-G-G...

  Maureen desligou. Meu Deus, Kevin, por onde é que você anda? Temos um outro problema para você resolver.

  Ela apertou mais o robe sobre o corpo que tremia. O apartamento estava bem aquecido. O frio era dentro dela.

  Alguma coisa terrível ia acontecer naquela noite no Restaurante Polesi. Deus do céu! Como era que alguém poderia ser tão obtuso como o Pat? Aquele horrível Martinelli, aquela bicha suja, estava usando o Pat como um instrumento para um monstruoso complô. O pobre bobalhão do Pat está pensando que ele vai ser o salvador da Igreja!

  Eles tinham-se amado depois do almoço de uma maneira tranqüila, calmamente, cheia de ternura, enquanto a babá levara Sheila para passear. Pat e Sheila tinham-se tornado muito bons amigos. A sua filha parecia feliz como nunca o fora antes. Pat era maravilhoso com as crianças, uma coisa que era realmente de espantar. Mo tinha dormido depois de se amarem, e agora acordava com o barulho que Pat jazia vestindo-se.

  - Já vai? - ela bocejou.

  - Tenho um importante compromisso para jantar hoje à noite... com um cardeal - ele falava baixinho, como se aquilo fosse um segredo. Como era ingênuo e como eram fortes os seus braços.

  - Qual deles? - ela ficou logo atenta.

  - Richard Cushing - ele respondeu enquanto abotoava a camisa.

  - Eu nem sabia que você o conhecia o bastante para ser convidado para jantarem juntos.

  - Não o conheço assim tão bem - ele enfiava as calças em suas pernas fortes e bem-feitas - mas trata-se de um jantar importante que vamos ter no Polesi.

  - Não é muito elegante para um cardeal - ela automaticamente anotou o nome do restaurante.

  - Os jantares importantes não acontecem nos lugares óbvios...

  - Ele parecia tremendamente satisfeito consigo mesmo e com o seu segredo.

  - Liberdade religiosa? - ela perguntou num Tom misterioso. Ele apenas piscou-lhe o olho, deu-lhe um beijo rápido e saiu do apartamento.

  - Mas que diabo, Kevin Brennan, onde é que você está? O som de sua voz, no apartamento vazio, chegou a espantá-la. Por favor, meu Deus, ajude-me. - Ela começou a rezar pensando consigo mesma se Deus ouviria as preces de fornicadores sacrílegos.

  Telefonei para o apartamento de Maureen. A linha estava ocupada e eu esperei sem dar atenção aos italianos lá fora que faziam gestos ameaçadores porque eu estava monopolizando a cabine. Tentei outra vez e ouvi a campainha tocar. Mo atendeu e o gettone caiu na caixa.

  - Aqui é o Kevin, como vai você, Mo?

  - Você recebeu o recado que deixei na Casa Villanova? Ela estava quase em lágrimas.

  - Não. Estou falando aqui do Grande Hotel. Acabei de chegar do aeroporto.

  - Você ficaria contrariado e preocupado se soubesse que o Pat está jantando sozinho com o Cardeal Cushing, no Polesi?

  - Eu ficaria apavorado. Foi assim de repente?

  - Ele vem tratando de alguma coisa secreta nestes últimos dias. Creio que é sobre liberdade religiosa. Kevin, veja se pode segurá-lo para ele não fazer... não sei bem o que é, mas é preciso detê-lo.

  - É aquele lugar que fica defronte do Chiesa Nuova?

  - Isso mesmo - a voz dela estava novamente firme e confiante - no antigo lugar dos Borgia, Piazza Sforza Ceasarini.

  - Se eu não falar com você outra vez até as onze horas, vá para a cama e durma. Pode contar que ganhamos a parada.

  Desliguei e só então lembrei-me de que precisava de mais um gettone. Saí da cabine e entrei na fila na mesa do porteiro para comprar uma outra, e aceitei o seu olhar de desprezo porque não era hóspede do hotel, dali voltando para as cabines.

Estavam todas ocupadas e havia uma linda jovem romana esperando a sua vez e batendo nervosamente com o pé no tapete. Uma porta abriu-se e eu passei na frente dela.

  Chamou-me de alguns nomes bem desagradáveis, em italiano, e depois saiu dali quando a olhei zangado.

O telefone na Villanova tocava sem parar. O portiero indignado afinal atendeu, e o seu incisivo "pronto" dava a entender que somente um tolo poderia estar chamando às cinco e trinta de uma tarde de domingo.

  Houve mais uma longa espera antes que John Murray atendesse com o seu "pronto" na outra extremidade da linha.

  - Aqui é Kevin Brennan. O Pat Donahue vai jantar com o Cushing esta noite no Polesi. Eles estão tentando pôr um fim na liberdade religiosa amanhã de manhã. Vá até lá e intercepte o Pat.

  - Certo.

  - O restaurante é na Piazza Sforza.

  - Eu sei onde é. Obrigado, Kevin - desligou.

  Segurei a porta aberta para a moça cujos olhos de Sofia Loren fuzilavam de raiva. Curvei-me delicadamente e pedi-lhe desculpas num italiano remendado pela minha falta de delicadeza. Logo desaída ela mostrou-se monumentalmente fria, mas os cabelos ruivos sempre encontram uma forma para amolecer os corações femininos. Ela finalmente sorriu e aceitou minhas desculpas dando-me um adeusinho com sua mãozinha bonita.

  Entrei num bar no Corso Victore Emanuelli, uma espécie de lugar em que a gente se imagina estar em 1935 e que a Greta Garbo vai entrar ali a qualquer momento. Bebi rapidamente um uísque e, logo depois, mais outro.

  Do outro lado da rua havia apenas alguns fregueses numa mesa coberta com uma toalha de xadrez em frente da casa dos Borgias. Em uma delas estavam dois homens de batina e um deles tinha cabelos grisalhos que brilhavam com as luzes da rua. Pat estava provavelmente entregando o texto do documento sobre a liberdade de religião que Martinelli queria que fosse substituído.

  Amaldiçoei Pat por ser ingênuo e Cushing por ser uma pobre vítima sempre que se afastava da segurança de Boston. Amaldiçoei os meus patrícios aliados por não aparecerem.

  As maldições funcionaram. Um táxi parou na calçada, do outro lado da rua, e cinco homens dirigiram-se para a mesa. Houve gargalhadas gostosas. Pensei reconhecer a forma grandalhona de John Wright, o bispo de Pittsburgh, e a silhueta alta e magra de John Murray. Entrei num táxi e fui para o Parioli, sentindo-me cansado e aborrecido.

  Li os jornais até quase as onze horas, que era quando as boas irmãs fechavam a porta. Depois fui para o salão, onde havia muita gente. Murray e George Higgins, um monsenhor da ação social de Chicago, entraram com um largo sorriso estampado em seus rostos. Murray fez-me um sinal mostrando que tudo estava OK.

  A intervenção do Cardeal Cushing fora cancelada a pedido de Sua Eminência, disse Felici, às pressas, no meio de muitas outras notícias bem mais elegantes.

  Mesmo assim, a Cúria ainda saíra ganhando. Na última sessão do Concílio, antes do encerramento, um de seus presidentes anunciou que a votação das duas declarações, que teriam efeito imediato, fora prorrogada para a próxima sessão.

  Houve uma exclamação de espanto dos padres do Concílio. Meyer bateu na mesa do presidente com tanta força que ela estremeceu. Ele passou como um tufão pelo espantado Ottaviani, quase derrubando o pobre velho. Mais tarde, Ottaviani diria aos seus amigos norte-americanos, com toda a sinceridade, como depois se verificou, que aquele espetacular golpe da Cúria tinha-o apanhado completamente de surpresa, da mesma forma que aos outros.

  Saí de S. Pedro enojado com a Igreja e com o Papa. Aquele homem era um desastre. Não tinha coragem quando havia uma crise. Ele fracassara em todas as grandes crises.

  No dia seguinte Mo levou-me de carro para o Aeroporto de Fiumicino usando aquela sua minissaia verde-pálido. Ali nos despedimos com um casto beijo.

Quando nos separávamos, ela segredou em meu ouvido:

  - Sempre a mesma pergunta, Kevin. O que é que você ganha com isso?

  - A resposta é sempre a mesma, Mo. Além disso, acontece que, vez por outra, tenho uma oportunidade de beijar uma mulher bonita.

  - Você ganhou a batalha mas perdeu a guerra - ela estava triste.

  - O Meyer não pensa assim. Ele acha que a confusão e protestos posteriores amedrontaram ainda mais o Papa do que a própria Cúria. Nós abrimos o caminho. As declarações serão aprovadas na sessão final do ano que vem.

  - Espero que você esteja certo, Kevin. Sabe de uma coisa? Pat está elogiando o Meyer agora, dizendo que ele é o maior de todos os homens da Igreja atualmente.

  - Ele tem razão, Mo - apertei-lhe o braço e entrei na fila dos passaportes.

  O holandês grandalhão não viveu para saborear a vitória. Dentro de alguns meses ele morria com um câncer no cérebro.

  E, no que dizia respeito à Arquidiocese de Chicago, eu também estava morto.

  Patrick Donahue, no entanto, estava ainda bem vivo.

 

  Em princípios de março de 1966, Patrick Donahue convidou-me para ir jantar com ele na mansão do arcebispo. Ele insistiu dizendo que era apenas uma pequena reunião de romanos, mas eu não via bem como me enquadraria naquela categoria. O novo chefe era o Cardeal Daniel O'Neil, um homem extremamente agradável e loquaz.

  - É um prazer ver você, Kevin - ele disse, dando-me uma palmada nas costas. - Sempre fui grande admirador da capacidade jurídica de seu pai.

  Ele era um homem alto e magro, parecido com um espantalho, cabelos castanhos e raros numa cabeça ossuda. Para todos os convidados que chegavam ele tinha sempre um comentário que mostrava como estava bem a par de seus antecedentes. Aquilo poderia impressionar os que não soubessem que ali estava o seu risonho Chanceler Pat Donahue que, certamente, lhe dera todas as informações antes de nós chegarmos.

  O'Neil deixava-nos todos à vontade e era ele mesmo quem preparava os drinques. A bebida era tudo o que poderia haver de melhor, assim como o jantar muito caprichado que, logo depois, foi servido. A conversa geral não era séria nem profunda já que, em sua maior parte, eram as fofocas eclesiásticas entremeadas de piadas. À medida que corria o vinho tinto e que a carne era servida, já ninguém mais dava muita atenção àquilo.

  Eu bebi apenas um Jameson e um único copo de vinho branco. Estava fascinado pelo homem, quase como se fosse uma mosca fascinada pela aranha. Ele era um verdadeiro furacão de palavras, martelando, rodeando, gesticulando, completamente imprevisível, a não ser a respeito do assunto que era quase sempre, invariavelmente, ele mesmo.

  - E que tal aquele seu pastor, Larry? Ele bebe bastante? a pergunta era feita a um dos "romanos", um rapaz bem jovem ainda.

  O moço, ordenado havia pouco tempo, hesitou, e aquilo deu a O'Neil a resposta de que ele precisava.

  - Não muito, excelência, o senhor sabe como é. Ele foi capelão do exército. É um exigente disciplinador.

  - Eu nunca fui capelão - o arcebispo engoliu um pedaço bem grande do bife - mas tive muita experiência com eles quando trabalhava no secretariado, na porta ao lado de Monsenhor Montini, o nosso Papa atual. Passei algum tempo em Berlim logo depois da guerra. Desci de avião em Tempelhof no primeiro DC-6 que chegou ali logo depois da rendição. Ajudei-os a organizar a ponte aérea para Berlim. Você sabe que Roma desempenhou uma parte importante naquilo, não sabe? Nunca saí de lá. Tudo isso terá que esperar pelas minhas memórias, creio eu.

  - Acabou de engolir a carne e esvaziou um cálice de vinho.

  Eu olhei bem para o arcebispo. Não havia ainda nenhum DC-6 na Europa. Eles só chegaram alguns anos depois da guerra. Quando a ponte aérea começou, em 1948, O'Neil já era o chanceler em Paterson, New Jersey.

  - Gostou de sua estada em Roma, Kevin?

  - Foi uma satisfação para mim ver a aprovação da declaração da liberdade religiosa, finalmente, depois da quarta sessão. Significa muito para este país, excelência.

  - Se, pelo menos, pudesse lhe contar tudo que houve e como nós tivemos que lutar para conseguir a aprovação - ele espetou um outro bife que estava num prato grande à sua frente e continuou: - Você nem acreditaria, mas houve alguns daqueles safardanas romanos que tentaram fazer com que o pobre Cushing apresentasse uma alternativa no fim da terceira sessão. Foi uma luta para impedir. Na noite anterior recebi alguns telefonemas pedindo-me para procurar os amigos do Cushing para tentarem convencê-lo. Escapamos por pouco, sabem?

  Fiquei a imaginar se ele saberia que fora eu quem telefonara ao Murray. Pouco provável. Ele, na certa, ouvira falar da forma como haviam convencido o Cushing, e então agora ali estava querendo bancar o herói.

  Pat nem piscou enquanto continuava a comer o seu bife.

  Resolvi tentar uma experiência.

  - É isso aí. É claro que alguns daqueles que levaram a petição ao Papa naquela tarde, depois que a Cúria tinha bloqueado a votação na terceira sessão, realmente conseguiram o que queriam.

  As sobrancelhas de Pat se arquearam de espanto como se eu fosse alguém qOe acabava de chegar de Marte. Naquele dia, O'Neil não levantara um dedo. Até mesmo desaparecera convenientemente quando o Cardeal Murray o procurara para assinar a petição.

Assim mesmo, O'Neil mordeu a isca.

  - Pois quero dizer-lhe uma coisa, Kevin, aquilo esteve por pouco. - Entornou mais um cálice. - Se eu não tivesse empurrado aquela petição, eles teriam vencido.

  Nós trabalhamos bem naquele dia e naquelas poucas horas. E eu vi bem no rosto do Papa que ele estava satisfeito. Aquilo dava-lhe justamente a força que ele precisava para que as coisas tomassem outro rumo. É isso aí... um dia ele chegou a me dizer...

Eu já não ouvia mais. Estava atordoado.

  Pat não me parecia muito satisfeito quando me apertou a mão na despedida ao chegarmos à porta da mansão. Li nos seus olhos um apelo.

  - Ele é realmente um ótimo eclesiástico, Kevin...

  - Merda - foi tudo que achei para dizer.

 

  Mo querida,

  Já encontrei o homem. Ele é perfeito... bem, não exatamente, mas servirá bem. É psiquiatra e judeu. Imagine só o que minha família vai dizer.

  Ele é alto, comparado comigo, pelo menos, tem cabelos castanhos e crespos, já com algumas estrias grisalhas, um rosto magro e distinto, parecendo até um asceta do Velho   

  Testamento sem a barba. E os seus olhos são doces e  castanhos.

  Pouco me importa se ele casa ou não comigo. vou repetir de forma mais forte. Eu não vou me casar com ele, pelo menos por enquanto.

  Quero ser ainda uma viúva maliciosa durante alguns anos mais, só para saber como é.

  O seu amigo Pat é um cara muito importante agora na igreja de Chicago. Ele tinha uma aparência terrível no enterro do pai em fevereiro. Cansado, angustiado, desfigurado.

  Contarei mais sobre o meu psiquiatra depois.

Com amor, ELLEN.

 

  - Você alguma vez já pensou em casar, Kevin? Quero dizer, ter a mulher em vista e considerar a coisa como bem possível? - Joe Herlihy, o irmão mais velho de Marty, tremia ao vento áspero de março no cemitério de Mount Olivet.

  Tínhamos acabado de enterrar os restos mortais de Annie Prindeville, nascida em Galway, na Irlanda, sessenta anos antes. Seu filho Tom, com os olhos vermelhos e o rosto amargurado, arrancou o ritual das mãos do padre da paróquia e leu a oração à beira da sepultura, dando as bênçãos finais da igreja para a sua mãe. A mulher de Tom, a Irmã Mary Dolores, segurava-lhe a mão com ar feroz e gritava-lhe os responsos como se fossem um desafio. Todos nós acompanhávamos, compreendendo, mais ou menos, que participávamos de um ato de rebelião. Até mesmo Joe Herlihy, vice-chanceler e membro do gabinete do cardeal, também rezava.

  - Você quer dizer desde a ordenação? Mas que diabo, Joe, eu tenho andado muito ocupado.

  - Eu estou querendo dizer algum dia, Kevin. Existe alguma mulher, em algum lugar, com quem você jamais tenha pensado em casar?

  Eu fiquei a imaginar se o Joe, incrivelmente atropelado pelo maluco do cardeal, estava, realmente, pensando em abandonar o sacerdócio. Começamos a caminhar de volta para os carros, passando pelas sepulturas, e contornando os vestígios de neve que ainda estavam ali espalhados no chão do cemitério.

  - Houve uma sim... - a minha resposta saiu num raro momento de candura enquanto ia esmagando com os pés a relva congelada.

  - Você jamais imaginou como poderia ter sido?

  - Seria um inferno para ela, quero crer. Minha irmã Mary Ann diz que eu teria dado um péssimo marido. - Eu queria mudar de assunto.

  - O Papa vai publicar uma encíclica sobre o celibato nesta primavera. Primeiro virá uma sobre ação social, que será liberal, e depois a do celibato, que conserva as coisas como estão. Pat diz que o problema está morto e enterrado, pelo menos no que respeita a Paulo VI.

  - Você não precisa das fontes de informação de Roma do seu chefe para chegar a essa conclusão, Joe.   

  - A minha resposta foi um tanto rude enquanto íamos descendo a ligeira elevação do cemitério, passando pelos túmulos até chegarmos ao carro de Joe. É fácil ser liberal nas coisas fora da organização e conservador nas de dentro.

  Não é preciso nenhuma coragem para isso.

  - E o que é que você acha, Kev? A maneira como você foi criado deve lhe dar uma boa opinião. - Ele abriu a porta do Pontiac preto para eu entrar e sentar-me ao seu lado.

  - E por que devo eu ter uma opinião? Eu mesmo não sei o que pensar a tal respeito, Joe. - Entrei no carro e bati a porta com força para dar vazão à minha irritação.

  Joe ligou o motor e ficou esperando pacientemente que o carro da frente saísse a caminho da Rua 111. O céu estava cinza. A previsão do tempo prometia mais neve. Arrependi-me de ter sido brusco com ele. O coitado já tinha tanta coisa para o atrapalhar. Tinha o cardeal maluco, e ainda o Pat, que era mais moço do que ele cinco anos e que fora promovido a chanceler, passando por cima dele. Sem falar na diocese, que estava desmoronando.

  Além disso, Joe me salvara do Cardeal Daniel O'Neil dois anos antes. Depois da morte de Meyer, e antes da chegada do Arcebispo de Newark que vinha substituí-lo, eu fora transferido de St. Praxides e designado para a universidade. Joe insistira na transferência dizendo que eu poderia trabalhar nos fins de semana em St. Praxides, e estaria numa boa posição se o novo cardeal não gostasse deacadémicos. Fiquei furioso com ele e desabafei chamando-lhe de uma porção de nomes bem feios. Depois que O'Neil já estava na cidade havia alguns meses, eu pedi-lhe desculpas. O pobre Leo Mark Rafferty foi aposentado de surpresa pelo cardeal, que andava pela cidade com uma lista de velhos pastores para serem também aposentados, destruindo assim os centros de poder que talvez se opusessem a ele.

  Leo morreu três meses depois, sem ter ainda conseguido se recuperar do que ouvira do arcebispo: "Monsenhor, creio que está ficando senil." Uma animadora afirmativa ouvida do seu superior eclesiástico na tarde do domingo antes do Natal. O novo pastor, pensando que o arcebispo poderia estar atrás de mim, dispensoume dos serviços do fim de semana. Depois de oito anos e meio, a minha querida St. Praxides fora-me arrancada e eu passei a ser um académico exilado morando no porão do Newman Club, afastado das pessoas a quem eu desejava servir e, por isso, me tornara padre. É verdade que alguns dos garotos de St. Praxides, agora já adultos, continuavam a me procurar, e eles eram os únicos paroquianos que eu tinha.

  Sem muita coisa para fazer, além de minhas pesquisas, volteime para escrever psicologia religiosa popular. O meu primeiro livro era adequadamente intitulado Autodecepção, e foi um tremendo sucesso. Eu encontrara uma nova vocação que me trazia dinheiro, fama, leitores pelo país inteiro e a animosidade de parte de meus colegas do clero.

  - Você estava certo, mesmo, a respeito do O'Neil, Kev. Joe entrava finalmente na Rua 111. - O cara é um psicótico.

  - Tecnicamente falando, Joe, ele é uma personalidade antisocial. Uma pessoa que não pode estabelecer relacionamentos de confiança com outras pessoas; que não dá bola para os sentimentos alheios, e nem mesmo sabe se eles existem; que não consegue distinguir entre a verdade e a falsidade; que não cumpre suas promessas; que não tem princípios, mas que pode ser o homem mais encantador e atraente que se possa imaginar desde que o deseje. Aquilo era uma espécie de dissertação a que eu já me acostumara na minha nova vocação.

  - Você nem sabe da missa a metade, Kev. - O Joe tinha uma cara bem triste. - Ele é também financeiramente incompetente, apesar de sua brilhante reputação de negocista.

  Ele deixou as suas outras dioceses à beira da falência e, da maneira como gasta o dinheiro da nossa, isso é também o que nos espera.

  - Mas como pode ser, Joe? Ele não está constraindo escolas novas nem tampouco paróquias...

  - Está fazendo maus investimentos. Está enviando dinheiro para Roma a fim de conquistar simpatias. Uma espécie de subomo. Se eu, ao menos, pudesse contar-lhe...

  - a sua voz foi ficando mais baixa. - E as pessoas que o cercam, com exceção de Pat, é claro, são gananciosas ou estúpidas, ou talvez mesmo ambas as coisas.

  - Então é pior do que eu pensava, Joe. - Eu não compreendia bem por que Joe estava me contando aquilo tudo.

  - E você ainda não sabe o que vai por lá a respeito de bebidas e mulheres...

  - Mulheres?! - Eu nem queria acreditar. - Os psicopatas não gostam de mulheres, Joe.

  - Mas ele gosta - Joe continuou cada vez mais triste. - O nome dela é Margaret Johnson. Já faz uns vinte e cinco anos que estão juntos. Ela vem acompanhando-o em todas as dioceses onde tem servido. Ele diz que ela é sua prima, mas isso não é verdade. Ele tem um negócio de imóveis com um filho dela. Ela tem um apartamento lá na estrada. Falam ao telefone todos os dias, e quase todas as noites ele vai para lá... - Parou o carro na frente de um drugstore na Western Ave.

  - A noite inteira, Joe? - Eu já estava começando a pensar que o Joe estava ficando biruta.

  - Não. Ele volta para casa aí pelas onze, bêbado como um gambá. Eu estive no segundo andar da mansão do cardeal umas semanas atrás. Vi roupas de mulher no quarto oposto ao seu.

  - Eu nem posso imaginar. .. - Eu estava procurando digerir aquilo tudo.

  - Não sei se eles fazem amor. - Joe derreou-se ainda mais.

  - Ele é tão maluco que a gente não sabe o que esperar. Ele vem conseguindo isso durante vinte e cinco anos, e são poucas as pessoas que sabem. Fique certo, Kev, o homem é diabolicamente esperto. E, com tudo isso, não passa de um paspalhão. Estou certo de que estão roubando o dinheiro bem ali na frente de seu nariz. É esperto o bastante para manter o segredo sobre a Margaret, mas também estúpido o bastante para permitir que eles roubem uma fortuna. - Eu nem pensava em perguntar quem eram "eles". Se não fosse o Pat, nós todos estaríamos loucos. Você nem imagina como são esses bispos, Kev. Eu diria que eles são uma penca de mulheres velhas, só que isso seria uma injustiça para as velhas decentes. Eles são uma coleção de chorões efeminados sem nenhum tutano. O'Neil é apenas o pior de um love ruim - Joe conseguiu, afinal, com muito esforço, disciplinar a sua indignação para engrenar novamente o carro.

  - Mas o Meyer não era assim, Joe. ..

  - Não, não era mesmo. - Ele suspirou resignado. - Era um ser humano sensível e correto como muitos que conheci. Que merda, Kev, eu sei que estou exagerando. O meu problema é que tudo que vejo ultimamente são os produtos de uma camaradagem sem hormônios.

  - Mas se o O'Neil mantém essa mulher, ele deve ter alguma espécie de hormônios.

  - Kevin - Joe sacudiu a cabeça - se eu soubesse que ele era homem bastante para trepar naquela mulher, eu não odiaria aquele filho da puta da forma que odeio.

  - A melhor coisa que você tem a fazer, Joe, é cair fora daquele escritório. O Pat pode cuidar do cardeal sem precisar de sua ajuda.

  - É engraçado, Kev. O Pat é o único que consegue mantê-lo na linha. Eu, às vezes, ponho-me a pensar a respeito do Pat. Ele diz que o chefe é um grande eclesiástico. Será que ele é mesmo sincero, Kev? Você o conhece melhor do que ninguém.

  - Mas que diabo, Joe. Já que ele diz que é, isso não significa que daqui a um ano ele diga coisa diferente com a mesma sincera convicção.

  - O Pat é sempre bom com os padres que desistem - Joe procurou defender o chefe. - Você sabe que ele é completamente a favor do celibato, mas, mesmo assim, ele os trata como se fossem cavalheiros. Todos eles juram que se houvesse mais chefes como ele, pouca gente pensaria em cair fora.

  - Claro... - respondi-lhe sem me importar que ele pudesse me julgar sarcástico.

  De volta ao meu quarto, eu ia saboreando a ironia de Pat Donahue acreditar piamente no celibato.

  Em fevereiro, numa noite bem fria, eu tinha passeado pela neve nas colinas que cercavam o lago, tentando, em vão, descobrir algum significado naquilo que estava acontecendo com a Igreja e comigo. Havia luz na casa dos Cunninghams. Mo devia estar em Roma. Ela voltara a Chicago somente duas vezes, desde o fim do Concílio, durante agosto e no Natal. Nessas duas viagens eu a vira em casa de minha família, cada vez mais adoravelmente linda.

  Se Mo estava em Roma, quem, então, poderia estar lá na casa dela?

  Fui até o lado da casa e dei uma espiada pela fresta da cortina. Maureen e Pat estavam nus em cima do tapete branco diante da lareira crepitante. Aquela cena ali diante de meus olhos era um espetáculo lindo, doce e cheio de ternura. Afastei-me sem fazer barulho.

  Na manhã seguinte eu estava furioso com eles por se arriscarem daquela maneira. E mais furioso ainda estava comigo mesmo por haver permitido que Pat me enganasse tão cinicamente em Roma.

 

  Mo querida,

  O Herb insiste para nos casarmos. Diz ele que é para o bem das crianças. Ele quer uma família e eu sou uma família já prontinha. Durante alguns meses deliciei-me no meu papel de amante, mas ele diz que eu vou acabar ficando chateada.

  Posso te garantir que ainda não me chateei com o sexo. Sou mais sensual do que jamais poderia acreditar que fosse. Quero sempre saber e fazer tudo.

  Acho que seria bem legal ter novamente um marido. Posso largar o trabalho e voltar à escola. As crianças já terão um pai. Já não serei obrigada a ficar pensando na hora de mandá-los para a universidade.

  Ora, Mo, quer saber mesmo de uma coisa? Eu vou casar com o Herb porque estou louca por ele. Sinto-me tonta só de pensar nele e quase morro de paixão quando ele não está comigo. Quero tê-lo ao meu lado, na cama, a noite inteira e todas as noites também.

  Aí tem você a verdade verdadeira, Mo. Por baixo do sensualismo e por baixo da clínica profissional, você tem sempre a Ellen romântica de antes dos vinte anos, loucamente apaixonada quando já tem idade bastante para ter um pouco de juízo.

  Vamos conversar com Monsenhor Pat a respeito de uma igreja. Herb diz que o catolicismo é importante para mim e que será melhor acertar tudo agora. Acho que ele está errado. Acho que também não podemos casar na igreja porque ele já foi casado. Acho que me esqueci de dizer isso a você, não foi?

  Tenho que sair correndo.

  com amor,  Eu

 

  A governanta do Newman Club gritou lá de cima da escada que uma moça estava me procurando. A sua maneira de falar era um tanto marota.

  A aparência, pelas costas, de minha visita, que estava de pé olhando lá para fora da janela, explicava bem a reprovação que havia na voz da governanta. Suas pernas esbeltas projetando-se da minissaia eram o bastante para conseguir a desaprovação até mesmo da mais discreta das governantas de uma reitoria.

  - Boa-tarde - cumprimentei-a formalmente.

  - Boa-tarde, padre - ela voltou-se.

  Na entonação de sua voz havia alguma coisa de petulante. Ali estava novamente a minha sereia esbelta e encantadora, e mais sexy do que nunca. Via-se que estava pronta para uma briga. Meu coração estava aos saltos.

  - Você está com um penteado diferente, El.

  Durante um curto instante pareceu-me que a sua zanga ia dissolver-se em uma risada, mas logo a seguir seus lábios se apertaram.

  - Pode dizer à sua família que não vou precisar do cheque deste ano. vou me casar.

  - Meus parabéns.

  - Guarde-os um pouco até conhecer os detalhes. vou casar com um psiquiatra, judeu e divorciado.

  - Se você o ama, Ellen, estou certo de que é um bom homem. Vamos sentar para conversar?

  Ela sentou-se numa cadeira de espaldar alto e duro.

  - Ele quer casar comigo numa igreja. Para mim não faz diferença. Quero que o conheça, e que fale com ele.

  - Por quê? - perguntei-lhe baixinho.

  - Ele conhece o seu trabalho, e eu quero que ele conheça um padre que não seja um tolo completo. - Enquanto falava, seus dedos moviam-se nervosos.

  - Por que isso faz diferença, se você já não se importa mais com a Igreja?

  Ela respirou fundo procurando uma resposta, e então torceu a boca num sorriso triste.

  - Kevin sempre leva a melhor numa discussão.

  - Somente quando a oposição se contradiz. Claro que terei prazer em falar com...

  - Herbert Strauss.

  - Um nome muito conhecido. Será um prazer, para mim, almoçar com o Dr. Strauss no clube da faculdade. As coisas ficariam mais fáceis se eu soubesse de antemão o que devo fazer.

  - Nós falamos com Pat. - Ela esboçou um gesto de desespero. - Ele diz que não podemos nos casar numa igreja a não ser que Herb se torne católico. Isso... isso não me parece justo...

  - E quem foi que falou em "justo"? - Eu a interrompi, sentindo em mim um imenso desejo de espantar para sempre aquela dor. - Acredito que Pat disse a vocês que a Igreja não reivindica qualquer jurisdição sobre o primeiro casamento do doutor, não foi isso mesmo?

  - Herb foi para Israel quando tinha dezessete anos - ela deixou cair os ombros - e viveu num kibbutz durante dois anos. Quando se desligou do exército de Israel, do departamento de informações, ou sei lá o que era então, ele casou-se depois de haver conhecido a moça durante três semanas. Dentro de um ano estavam já divorciados. Herb tinha vinte anos.

  - Acredito que Pat mostrou-se muito afável e desejoso de ajudar e teria, para isso, até mesmo encantado os passarinhos nas árvores, mas acontece que ele é ainda o nosso chanceler, e a Igreja ainda tem as suas leis.

  - Você é um psicólogo, Kevin. - Ela sacudiu a cabeça com tristeza. - Acha que aquilo foi um casamento?

  - Eu não sou um advogado canónico nem tampouco o chanceler...

  - Oh. Pat mostrou-se tão suave e efusivo... - Ela continuava triste. - Fiquei com ódio dele. Falou de homem para homem com Herb, mas sem sinceridade. Será que não posso fazer alguma coisa, Kevin? Ele é um homem tão delicado e refinado! Se você não quiser, não é obrigado a falar com ele.

  - Mas eu quero muito conhecê-lo, Ellen. Só espero que ele não julgue a nossa herança por mim melhor do que julga pelo Patrick.

  - Acho que o critério está comigo, Kevin. - Ela continuava triste.

  O Cardeal Daniel O'Neil entrou como um tufão pelo meu gabinete, um tufão vindo lá das planícies. Atirou em cima da mesa um exemplar de Autodecepção com tanta força que a estátua do Sagrado Coração estremeceu e o retrato de Pio XII na parede forrada de vermelho chegou a balançar.

  - Você anda escrevendo demais, Kevin. - Ele disse aquilo como se estivesse falando de um assunto já encerrado.

  Todo mundo sabia que ele sempre tentava intimidar os outros num primeiro arroubo. A estratégia certa era ficar firme e não ceder. Algumas vezes isso era difícil porque ele era um homem que chegava mesmo a intimidar.

  - Dois livros em dois anos não é tanto assim...

  - E quem lhe deu permissão para escrever? E a censura? Para onde é que vai o dinheiro? Quem é que lhe paga? Qual é o seu status canónico? Ainda continua ouvindo confissões? Que espécie de padre é você?

  - Quanto à última pergunta, sou um padre pobre, como a maior parte deles. As respostas para as outras estão todas em meus arquivos. O Cardeal Meyer deu-me permissão para escrever e também disse que eu não estava sujeito à censura.

  - Sei de tudo isso. - Ele retomou a palavra bruscamente.

  - Não posso deixar você nesse trabalho para sempre. Vai perder o contato com as pessoas.

  - Os meus colegas no instituto de pesquisas também são pessoas, Vossa Eminência. Da mesma forma que os jovens com quem trabalho e os estudantes da universidade.

  - Não são pessoas de verdade! - Ao mesmo tempo que falava, ele brincava com a cruz que trazia ao peito.   

  - Olhe aqui, padre. Para ser um bom padre, você precisa trabalhar com gente de verdade.

  - Sim, Vossa Eminência.

  - Quanto é que eles pagam a você lá nessa tal coisa de pesquisa? - Ele deu um murro na mesa. - Não podemos permitir que alguns padres enriqueçam enquanto outros fazem o serviço.

  - Eles me pagam o salário estabelecido para os que fazem pesquisas em meu nível...

  - E a quanto monta isso?

  - O senhor pode encontrar isso em muitas das publicações jacadêmicas, cardeal. - Eu continuava calmo. - No que diz respeito à minha renda real, acho que a pergunta só é pertinente a mim, a Deus e ao Imposto de Renda. Falando com toda a franqueza, isso não é de sua conta!

  - Muito bem. - O tufão pareceu acalmar-se. Finalmente ele falou: - Espero que você mereça o que eles lhe pagam, já que seu trabalho é muito bom. Um homem como você pode ser um verdadeiro prémio para um bispo. Eu posso dizer aos outros bispos que um dos meus homens é tão bom que uma grande universidade secular faz questão de que ele pertença à faculdade. Tudo que peço é que você faça de forma a nos sentirmos orgulhosos com o seu comportamento.

Ele continuou a falar durante quase uma hora mais, sempre, procurando conseguir alguma informação sobre a vida amorosa do capelão do Newman Club, que, aliás, não existia, contando caso improváveis e enchendo-me de tanto uísque que eu me vi obrigado a caminhar durante uma hora antes de entrar no carro para voltar à casa.

  Pat nunca me disse coisa alguma sobre aquela discussão. Alguns meses depois eu já não recebia mais correspondência alguma vinda da Chancelaria. O meu nome havia sido riscado da lista dos que recebiam coisas da Chancelaria da diocese por instruções diretas do Cardeal O'Neil. Foi o que me contou um Joe Herlihy muito encabulado e procurando desculpar-se. Ele abandonou o sacerdócio antes de terminar o ano de 1967, com grande desgosto para o seu irmão mais moço, Marty, que continuava a proteger St. Praxides.

 

  Mo querida,

  É isso aí, Mo. Afinal de contas vamos mesmo casar numa igreja. Adivinhe quem arranjou isso? Errou. Não foi o chanceler, e sim o nosso amigo comum, o Reverendo Kevin James Sarsfield Brennan, o homem que, na opinião de meu querido, é uma das maiores dádivas de Deus para a humanidade.

  Não vou aqui explicar a você todos os chatos detalhes canónicos. O Pat atrapalhou tudo, e então eu fui falar com o Kevin, com quem tive uma briga feia, como quase sempre acontece. Isto é, eu briguei e gritei e ele foi muito delicado. Depois ele conversou com o Herb e encontrou uma saída. Foi um negócio qualquer com a mulher do Herb, que era judia mas se tornara católica durante alguns anos antes de completar os vinte.

  Herb voltou do almoço com Kevin completamente assombrado. A mim jamais poderia ocorrer que um homem também se apaixonasse assim por aquele filho da puta, também.

  O Herb está procurando conhecer-nos todos. E ainda não conheceu você. Ele ainda não sabe que está se casando com toda uma comunidade irlandesa e não apenas com uma família dessa ilha. Só quero ver quando ele se encontrar com o Coronel.

  Desculpe a minha tagarelice

  com muito amor, EL.

 

  Foi Monsenhor Patrick Donahue quem celebrou o casamento de Herbert Strauss com Ellen Curran. Ela estava ofuscante num vestido azul-claro, que Mary Ann sussurrava ser um verdaderio Chanel que valia, pelo menos, uns quinhentos dólares. Ellen, afinal, podia dar vazão ao seu bom gosto pelas roupas.

  Ficou zangada comigo porque eu permiti que fosse casada pelo Patrick. Quase não falou comigo na igreja nem no banquete. Mostrava-se radiante para todo mundo e fechada para mim.

  - A sua missa é uma cerimônia interessante - disse Herb enquanto caminhávamos do salão de banquetes do Drake para o saguão. - Bem parecida com o nosso serviço israelita.

  - Ao qual você nunca comparece, Herb - disse a sua nova mulher, fingindo ignorar-me.

  - Na verdade - disse eu - são da mesma raiz. Ambos fazem parte da cultura religiosa da era do Segundo Templo. Um antropólogo que viesse de Marte julgaria que eram da mesma religião, o que não deixa de ser verdade. A malfadada cisão depois da queda de Jerusalém é apenas temporária, até mesmo depois de alguns milhares de anos bem sangrentos.

  - Essa é uma estranha perspectiva sobre a qual precisamos conversar - os olhos castanhos e intensos de Herb arregalaram-se fascinados.

  - Mas não na noite de nosso casamento, querido. Ela pegou-o pelo braço com firme autoridade. Eu fui premiado com um sorriso divertido de quem perdoa. - Se vocês dois, os intelectuais, começam com essa discussão, nós vamos perder o avião para a Irlanda.

  - Eu cuidarei bem dela para você. - Herb apertou-me calorosamente as mãos.

  Ela me telefonou às três da madrugada, hora de Chicago, do aeroporto de Shannon.

  - Desculpe se o acordei, Kevin. .. - ela falava apressada depois da ligação ter sido feita pela telefonista internacional. - E também peço desculpas por ter sido tão grosseira com você no casamento, e também, ainda, por todas as más palavras minhas nos momentos de zanga. Eu o amo, Kevin.

  Não há nada que precise ser desculpado, Ellen. Desejo para você uma feliz lua-de-mel - resmunguei ainda meio tonto.

  Na manhã seguinte, depois de meu segundo bule de chá, achei que aquela resposta não fora das mais brilhantes.

  Passei por alguns maus momentos quando irrompeu a Guerra dos Seis Dias. De acordo com o itinerário que haviam traçado, eles deviam estar em Jerusalém quando as bombas começaram a cair. Tanto quanto eu conseguia lembrar, o hotel em que estavam, o New City, ficava bem perto do Portão Mandelbaum. Foram precisos uns cinco ou seis dias até que eles conseguissem enviar notícias dizendo que tudo estava bem, que nada haviam sofrido.

 

   O rosto bonito do monsenhor estava desfigurado e seus olhos brilhavam. Esticou os braços embrulhando-se na sua capa escarlate para se proteger da brisa da noite.

  Estendeu as mãos numa súplica.

  - Por favor, vão todos para suas casas! - A sua voz atroava pelos alto-falantes. Ele ajustou o microfone pregado à batina de botões vermelhos. - Vocês já deram vazão à dor e indignação de todos! Agora voltem para as suas casas antes que haja mais violência. A memória do Dr. King não se sente honrada com o saque desenfreado e sem sentido. Voltem para casa antes que alguém seja ferido!

  Ele afastou-se dos carros azul e branco da polícia e caminhou em direção da multidão de jovens negros, muitos dos quais já com pedras nas mãos. Os policiais vinham logo atrás dele com as armas nas mãos. A rua estava coberta de vidros quebrados e um carro dos bombeiros veio estacionar junto ao meio-fio. A fumaça ainda saía pela porta de uma loja incendiada. Os faróis vasculhavam a rua para cima e para baixo.

  - Vocês todos devem se lembrar bem de mim. Eu jogava o basquete com vocês aqui não faz muitos anos. Por favor, voltem para suas casas antes que alguém mais fique seriamente ferido.

  Um negro jovem, de rosto contorcido pelo ódio, atirou uma pedra, não contra o monsenhor e sim contra o policial que estava logo atrás dele. Ouviu-se uma rajada de tiros. Alguns moços negros caíram ao chão. Os outros separaram-se e correram. O monsenhor balançou por um momento e depois desabou lentamente. O escarlate de sua batina estava agora manchado de sangue.

  Ouviu-se a voz do locutor dominando as sirenas e os tiros. "Acabaram de ver o episódio filmado do tiro que atingiu Monsenhor Patrick Donahue, Chanceler da Arquidiocese de Chicago, que fora ferido antes quando tentava intervir na rebelião que estourara no lado sul. O movimento é em protesto contra o assassinato de ontem do Dr. Martin Luther King, Jr. Monsenhor Donahue voltou àquela área onde serviu como padre da paróquia até alguns anos atrás. Do Hospital Mercy informam que ele não está seriamente ferido. O Cardeal O'Neil acorreu ao Hospital Mercy para ficar ao lado do Monsenhor Donahue logo que soube do acontecido." Houve alguns metros de filme onde se via Daniel O'Neil entrando no hospital. A sua preocupação quanto ao estado do seu chanceler não impedia que ele sorrisse e acenasse para as câmaras da TV. "Há boatos que o Prefeito de Chicago, Daley, pediu ao Presidente Johnson para enviar a Divisão 101 Aerotransportada, para manter a ordem aqui. Eles chegarão tarde demais para Monsenhor Donahue, o terceiro no escalão eclesiástico da arquidiocese, e que foi ferido, acidentalmente, pelas costas com um tiro de um policial da cidade."

  Eu desliguei a TV. Aquele fora um gesto de bravura idiota e louco. Aqueles garotos com as pedras não eram os mesmos com quem Pat jogara o basquete anos atrás.

  Provavelmente nem o conheciam. Estava desafiando o perigo quando se colocara entre as pedras dos garotos e as armas da polícia. Jamais encontrariam a bala que atingira o seu ombro, e o policial que atirara nem mesmo sabia que sua bala perdida havia derrubado o chanceler da arquidiocese. Um padre negro talvez houvesse conseguido alguma coisa, mas um branco envolto em púrpura...

  Mas quem era eu para criticá-lo. Fora de propósito ou não, o seu gesto e a sua coragem foram uma boa resposta para a rebelião. Eu contentava-me em ficar ali no porão vendo a televisão e esperando pela chegada da Divisão 101.

  Se Roma tinha a intenção de fazer de Pat um bispo, seria melhor que o fizessem logo. O Cardeal O'Neil não tolerava que alguns de seus padres merecessem a atenção da imprensa, e Monsenhor

Donahue era agora o seu herói. Era certo que perderia as graças do cardeal.

 

  Maureen e Ellen estavam no quarto do Pat no hospital quando lá cheguei, na manhã seguinte ao tiroteio. Ele descansava confortavelmente protestando que aquilo não tinha importância e que seu ombro logo estaria novamente bom depois que lhe tirassem os curativos, e ridicularizando a sua estupidez que causara toda aquela confusão.

  Era uma perfeita representação. O pessoal da TV teria adorado aquilo. Eu não sabia bem se o cardeal seria da mesma opinião.

  - Que bom que você veio, Kevin. . . - ele repetia aquilo talvez pela quinta vez. - O cardeal acaba de sair.

  - Ele parecia pensar que era o ferido. . . - Maureen estava furiosa.

  - Maureen - Pat olhou-a com reprovação - ele estava preocupado a meu respeito. - Pat parecia até notavelmente saudável e relaxado para uma pessoa que fora tocada pela morte. Eu, bem contra a vontade, cheguei a admirá-lo.

  - A preocupação dele era que você poderia estar esgotado com as entrevistas à imprensa - disse Ellen. - Ele falou que gostaria muito de cuidar deles para você.

  É um homem muito bom e atencioso.

  Aproveitei a oportunidade para olhar bem de perto a Sra. Herbert Strauss. Minha primeira impressão estava certa. Não era apenas aquele elegante vestido cinza que a tornava tão bela. Era óbvio que ela se sentia completamente feliz.

  - Escreva um artigo sobre ele para a escola - Maureen deu uma risada. - Você consegue acreditar, Kevin, que Ellen voltou para a escola? Quer tirar um diploma de literatura criativa.

  - Olhe aqui, Ellen, não vá escrever nada negativo sobre o cardeal, hem? - Pat pedia aquilo com ar desconsolado e cansado.

  - Pode ficar sossegado, querido - Ellen beijou-o na testa.

  - Agora acho que é melhor mandar sair todos esses anticlericais que aqui estão para você poder dormir. Fique aqui quietinho até lhe darem alta, hem? Não dê ouvidos aos apelos de Sua Eminência quando diz o quanto precisa de você lá na Chancelaria. - Depois voltou-se para nós como se fosse a enfermeira-chefe, e ordenou:

  - Fora!

  Nós saímos todos devagar.

  - Venha ver-nos qualquer dia desses - Ellen disse quando se despedia de mim e de Maureen.

  - Claro, Ellen. - Só que, para mim, não havia mais razão para ir visitar Ellen Foley Curran Strauss.

  Ela estava riscada de minha lista de preocupações.

Maureen, contudo, ainda continuava ali. Caminhamos a pé pela beira do lago ao norte do píer da marinha. Mo tinha levantado a gola do casaco para se proteger da umidade que vinha do lago. As torres da Northwestern Medicai School e do Centro Hancock apareciam e desapareciam com o nevoeiro. Os blocos de vidro do elegante Mier van der Rohe projetavam-se altivos sobre os vizinhos vitorianos.

  - Você devia sentir-se satisfeito porque aquele sujeito ruim impediu que fizesse parte da comissão sobre o controle da natalidade ... - Quando disse aquilo ela estava tremendo, talvez por causa do nevoeiro ou então só de pensar no cardeal que vira, pela primeira vez, na cabeceira da cama de Pat.

  - Pois eu achei o relatório deles muito bom, Mo. Eles deram ao Paulo VI uma saída desde que ele queira aproveitá-la.

  - Aquele santarrão sem-vergonha! - A sua resposta estava cheia de raiva e amargura.

  - Isso é um pouco forte até mesmo para mim, Mo... - eu protestei. O tráfego da hora do rush passava por nós em Lake Shore Drive com um barulho atordoante.

  - Desculpe-me, Kevin - ela pareceu arrependida. - Você bem sabe que eu não estou ligando para a Cúria. Observo-a somente por causa do Pat.

  - Quando não está pintando...

  Entramos na curva onde termina a Rua Oak e dali olhamos para o imenso desfiladeiro enevoado e dourado da Avenida Michigan e que davam o nome de "Esplendorosa Milha".

  - E também faço isso, Kevin.

Caminhamos em silêncio durante alguns minutos, chegando até perto da Praia da Rua Oak. Maureen agora voltava a Chicago de dois em dois meses, mais ou menos. Ela estava no O'Hare, esperando um avião de Roma que estava atrasado, quando ouviu a notícia do tiroteio. Voltou correndo para o hospital e conseguiu se avistar com Pat antes do cardeal.

  - Você sabe de tudo a nosso respeito, não é mesmo, Kevin?

  - A sua pergunta, muito baixinho, apanhou-me de surpresa.

  - Eu sei de tudo, sim, Mo. - Nossos passos agora ecoavam por baixo do viaduto da estrada.

  - E o que é que você pensa de nós, Kevin? - Ela fez a pergunta como se estivesse querendo saber o que eu achava do seu novo casaco de inverno.

  - Só espero que não sejam apanhados - a minha resposta foi evasiva.

  - Oh, Kevin - ela soltou uma risada - você é mesmo um amor. Sempre preocupado com os amigos. Certos ou errados, nós ainda somos seus amigos. Muito bem, sem contar com isso, o que é que você pensa a nosso respeito?

  - Não acho que seja uma coisa boa para nenhum dos dois, Mo. Ele não vai largar a batina.

  - Mas claro que não vai. - Ela mostrou-se impaciente. Eu desejo ser a sua amante e não sua mulher. Ele não precisa de mulher e eu não preciso de marido.

  - E o que vai acontecer quando ele chegar a bispo? Você bem sabe que ele está na lista.

  - Mas claro que sei, Kevin. Eu moro em Roma, lembra-ise? - Os saltos dos seus sapatos batiam compassados quando entramos na Avenida Michigan, e ela começou a andar mais depressa.

  - É provável que ele tente abandonar-me então. E eu não vou permitir que isso aconteça. Ele não poderá sobreviver sem mim, Kev. Ele será um bispo maravilhoso enquanto estiver sob minhas vistas, enquanto eu lhe disser o que tem a fazer e enquanto lhe proporcionar noites agradáveis na cama. Você está vendo que eu encontrei o que devo fazer, embora isso não seja exatamente aquilo que você tinha em mente.

  - Ele não seria o primeiro bispo que...

  - O celibato pode ser muito bom para alguém como você, mas não dará certo para Pat, e nós dois sabemos disso muito bem. Não há razão para que ele deixe de ser padre... ou até bispo. Depois de um momento de silêncio ela perguntou. - Você vai denunciar-nos? - Enfiou as mãos nos bolsos do casaco esperando a resposta.

  - Creio que já é bem tarde para eu pensar nisso, não acha?

  - Você nunca compreendeu o Pat, Kevin. - Ela sacudiu a cabeça coberta com um lenço como se estivesse tentando ensinar alguma coisa a um aluno relutante.

  - Você é muito bom para ele, mas existe sempre aquela parte de você sentado na cadeira jurídica do Coronel, avaliando, catalogando, formando uma opinião, para então proclamar a sentença do Pat. Você não vê como ele é generoso, dedicado e sério. Você não vê o que o sacerdócio significa para ele. Você não vê como ele ama a Igreja e a Virgem Maria. Você não vê como ele é paciente, bom e sensível.

  - Acho que não vejo mesmo - respondi, imaginando se, quando estavam na cama, eles falavam também da Virgem Maria.

  - Eu conheço todos os seus defeitos - ela continuava falando muito depressa. - Conheço-os bem melhor do que você, Kevin. E também posso ver todas as coisas boas a que você permaneceu cego, Kevin. Eu vejo um homem maravilhoso que vai fazer coisas maravilhosas para a Igreja. É só dar-lhe a oportunidade.

  - E agora quem é que vai ajudá-lo a encestar? - A minha pergunta foi cheia de amargura.

Ela começou a soluçar baixinho. Abracei-a por alguns instantes.

   - Eu acho que o que vocês estão fazendo é uma loucura, é muito perigoso e também é errado, mas eu ainda gosto muito de vocês.

  - Ele é um ótimo homem, Kevin. - Ela encostou a cabeça no meu suéter das ilhas Aran e deixou-se ficar ali. - Se você o conhecesse como eu o conheço, você o amaria tanto quanto eu.

  A meninazinha trouxe-lhe um buquê de flores silvestres que apanhara no parque. Ela era uma coisinha linda e delicada com olhos que brilhavam e rosto que sorria.

  - Eu gosto de você - disse ela muito úmida.

  - Eu também amo você. Sheila - disse Pat acariciando-lhe os cabelos. Ela precisava de um pai. Como seria a sua própria filha? Alguns anos mais moça...

  - Por que não vem à nossa casa mais vezes? Eu sinto muitas saudades quando você não vai lá em casa. - Ela subiu em seu colo. Maureen dizia que aquela menina ficava transtornada quando ele aparecia.

  - Eu sou obrigado a viajar muito, Sheila. Eu gostaria bem de ficar mais tempo com você.

  - Eu não tenho um papai - ns olhinhos dela encheram-se de lágrimas. - As outras meninas todas têm o seu papai, só eu não tenho.

  - Deus é o papai de todos nós... - Ele apertou-a nos braços.

  - Você quer vir morar com a gente para ser meu papai para sempre? - Ela segurou-lhe o rosto com as mãozinhas.

  - Eu bem que gostaria, Sheila - os olhos dele também estavam cheios de lágrimas. - Quem sabe se algum dia eu farei isso, hem?

  Ela ficou satisfeita e correu para os balanços.

  Os olhos torturados da meninazinha ainda estavam em seu espírito naquela noite enquanto fazia amor com a mãe dela e quando a acariciou para fazê-la dormir. Seria bom ficar com ela e a filha para o resto da vida. Tudo mais era coisa destituída de importância.

  Na manhã de domingo, depois da missa, eu estava de pé nos fundos do Newman Center da universidade. O novo capelão chegara à conclusão de que não gostava muito do cardeal e pedira-me para subir saindo de minha toca. Eu era então um pária na arquidiocese. Escrevia livros demais, ganhava muito dinheiro, não fazia parte da estrutura da paróquia e todos sabiam que eu era anátema para o cardeal. O novo capelão precisava de mais um pregador para os domingos.

  - Contanto que, lá na cidade, eles não saibam o que estou fazendo aqui. Por mim, eles podem ir todos para o inferno.

Ele era um recente convertido ao conceito de uma diocese espalhada. Dentro de alguns anos, todo mundo pensaria da mesma maneira.

  Uma moça bonitinha saiu da capela e aproximou-se de mim i com muita timidez. Parecia que tinha pouco mais de vinte anos, tinha cabelos louros encaracolados e curtos, ombros estreitos por l baixo da capa de pano e era muito clara vista ali naquela luz da primavera. Foi ai que-a reconheci.

  - Mônica Kelly, já está de volta à cidade?

  Ela ficou ali indecisa sem saber se me abraçava ou não, mas, i finalmente, decidiu-se.

  - Estou de volta da escola de jornalismo. Tenho um apartamento perto da universidade e um emprego no Tribune.

  - Puxa vida, Mônica. Já faz bastante tempo, hem? Logo de saída eu não a reconheci. Você ficou ainda muito mais bonita do que jamais imaginei que poderia.

  Ela ficou muito vermelha, resmungou alguma coisa, e resolveu-se a falar.

  - Eu tenho o começo de um artigo que gostaria de lhe mostrar para ter a sua opinião. - Ela falava com muita timidez.

  - Quer entrar?

  - Não, padre - ela sacudiu a cabeça fazendo esvoaçar os cabelos louros. - Não é assim tão complicado. Eu sei como é amigo de Monsenhor Donahue e fico imaginando se já ouviu alguma coisa a respeito do escândalo financeiro na diocese.

  - Não ouvi nada disso, Mônica - resolvi ser cauteloso. O que é que você ouviu?

  - Eu sei que o cardeal perdeu quatro milhões de dólares no ano passado, dos fundos da Conferência Nacional de Bispos Católicos. Maus investimentos. O senhor sabe que ele é o tesoureiro, não sabe? Pois eu também sei que o cara que cuida dos investimentos da Igreja, no Illinois National Bank, vai ser indiciado na próxima semana. Eu sei que o Imposto de Renda está investigando gente da Chancelaria. Sei que Monsenhor Donahue tem tido conversas muito sérias com os advogados da Igreja. O que é que o senhor acha de tudo isso, padre?

  - Eu não estou a par de coisa alguma, Mônica. - Escolhi as palavras com a máxima cautela. - É possível que você tenha realmente alguma coisa, mas tenha muito cuidado. Lá na Chancelaria há gente perigosa envolvida na parte financeira.

  - Do Cardeal Daniel O'Neil para baixo... - ela disse numa voz muito suave. Na hora em que ia saindo ela voltou-se. -. Um grande sermão o seu, padre.

  Na semana seguinte, depois do assassinato de Bobby Kennedy, eu estava em Washington, uma cidade ainda atordoada e de luto, tentando conseguir mais verbas para uma pesquisa sobre o bemestar emocional. Jantei com um membro muito importante da Conferência Nacional dos Bispos Católicos que estava interessado nas implicações de meu trabalho sobre renovação de paróquias.

  Quando tomávamos o café, ele me disse que eu deveria escrever um livro sobre a comunidade religiosa local.

  - É uma boa idéia, bispo - resolvi dar um salto no escuro.

  - Assim talvez os meus direitos autorais possam servir para salvar a diocese depois que ela tiver sido levada à falência pelo Cardeal O'Neil.

  - O que é que você sabe a esse respeito? - O outro pegou na xícara do café.

  - Quatro milhões perdidos em maus investimentos. Investigação do Imposto de Renda. Condenação de um associado. Os jornais ainda estão calados porque estão com medo. - Então, como a última pá de cal, ainda acrescentei. - Estão envolvidos com a Máfia.

O bispo engasgou-se com o café.

  - Na idade Média você seria queimado como feiticeiro...

  - Ele tentava recuperar a sua compostura.

  - O Pat Donahue está limpo, bispo?

  - Quem pode saber? - Ele fechou a cara. - É bem provável que esteja. Tudo está ainda muito confuso e incerto. O'Neil está em Chicago faz muito poucos anos. Roma ainda não quer enviar um visitador para verificar os livros.

  - Eles sabiam muito bem que ele já tinha enterrado as outras dioceses. Por que então imaginariam que seria diferente agora?

  - Desta vez é muito pior. - Meu amigo apenas sacudiu a cabeça. - Não só porque Chicago é muito maior, mas também porque, pela primeira vez, ultrapassa as raias da incompetência. O Departamento de Justiça acha que houve uma possível violação da lei do mercado de ações com o papel comercial que ele negociou. Ainda não prosseguiram porque não querem arrastar um cardeal à barra do tribunal, e porque talvez se trate de um inocente engano.

  0'Neil não é um vigarista, não exatamente, isto é. Muita gente em torno dele é, certamente, corrupta. O encarregado dos investimentos, por exemplo, já roubou milhões de muita gente. Não há razão para se acreditar que ele deixou escapar a Igreja. Neste exato momento todo mundo está com medo de mexer nisso.

  Encomendei um drinque para nós dois. Limpo ou não, Pat estava à beira de problemas sérios.

  Na volta para Chicago resolvi que nada diria a Mônica. Ela poderia derrubar O'Neil, mas também poderia arrastar Pat e talvez, até mesmo, ficar seriamente prejudicada no processo. Eu tinha a certeza de que O'Neil acabaria liquidando-se sozinho, da mesma forma que Kaspar fizera antes.

  Eles saíram correndo da água tépida e estiraram-se no cobertor muito grande. Até onde a vista alcançava em todas as direções, a praia muito ampla estava completamente deserta. Ele sentia-se repousado pela primeira vez depois do tiro. Ali, pegando as ondas, sentia um contentamento saudável, como um homem reabilitado depois de uma longa guerra. Se apenas o ofuscante sol do Mediterrâneo, suas águas purpúreas, e a areia confortadora fossem as únicas realidades... além da mulher em topless que ali estava ofegante no cobertor ao seu lado.

  Ele rolou de barriga para baixo para não ver os seus seios. Maureen sempre achava que ele conseguia dividir sua vida em compartimentos estanques. Faüa o amor com ela ao mesmo tempo em que bancava o futuro bispo, isento de culpa. Se, ao menos, fosse verdade. Já que não era, tinha chegado a hora de dizer a ela que suas vidas tinham que mudar. Embora corroído pela vergonha e humilhação, ele lhe dizia:

  - Nós precisamos acabar com isto, Maureen. Eu preciso arrumar a minha vida. Não posso ser bispo e continuar vivendo assim. Não posso continuar sendo um hipócrita... - Não conseguiu continuar.

  Ela ficou ali calada, com o queixo apoiado no peito e os pés mexendo na areia sem parar.

  - Eu te amo - ele continuou - e sempre hei de te amar. Não tenho vergonha do nosso amor. Só tenho vergonha de minha hipocrisia.

  - Você não ê o único hipócrita na Igreja - ela respondeu baixinho: - De qualquer forma, a Igreja vai mudar, provavelmente quando já formos velhos demais para que isso faça diferença. Por que então esperar?

  - Nada vai mudar. E, certamente, nada mudará para os bispos. Se você quiser, eu desisto do bispado, desisto do sacerdócio s vamos começar uma vida nova.

  - Ele voltava a um assunto que já tinha sido muito debatido.

  - Não seja estúpido - ela respondeu com impaciência. Você jamais se sentiria feliz numa domesticidade de classe média e aliás, tampouco eu.

  - Então vamos voltar já para Roma - ele respondeu com ar triste - onde eu serei novamente casto. Sei que poderei fazer isso agora.

  - Não, não poderá - ela falou, e começou a explorar o corpo dele com as mãos.

  - Não, por favor, Maureen - ele implorou, afastando-a. - Pare com isso. Chegamos ao fim. Estou falando sério.

  Ele levantou-se e caminhou decidido de volta para o caminho de terra batida onde estava o pequenino Fiat. Esperou muito tempo até ela chegar também.

  No dia 25 de julho foi publicada a encíclica sobre o controle da natalidade. Minha família estava no lago e eu estava esquiando na água com meu irmão Mike e sua nova noiva Kathy, uma moreninha que era modelo de modas e cujo QI andava perto dos 160. Quando voltamos para casa na colina, toda a família lá estava mamãe, papai, Joe, Mary Ann e seu marido, todos sentados na varanda da frente e de caras amarradas.

  - A NBC quer ouvir sua opinião. Estão a caminho -• o Coronel falou com a cara mais preocupada que eu já lhe vira desde que voltara da guerra.

  - Não se preocupem comigo. Não tenho nada a perder.

  Li o texto da encíclica. Era pior do que eu esperava. O Papa não levara em conta o relatório da maioria, e simplesmente ignorava o que ele dizia.

  Naquela noite, Pat Donahue e eu fomos ao ar no Canal 5 em teipe. Muito calmo e frio, Pat leu uma declaração em nome do cardeal. "Nós nos congratulamos com a decisão do Santo Padre que acabará com a inquietação de muita gente da arquidiocese com relação a esse problema. Estamos certos de que todos os leigos católicos reagirão com entusiasmo à decisão do Papa e que, na plenitude de uma madura reflexão de suas consciências, eles chegarão a uma decisão acertada sobre esse assunto difícil e delicado."

  - E o que significa isto? - quis saber Kathy.

  - Não significa coisa alguma - respondi com impaciência.

  - O'Neil partiu para o Alasca logo que soube da publicação da encíclica, e deixou a bomba nas mãos do Pat.

  - Claro que significa alguma coisa, Kevin - meu pai respondeu. - Pat está passando a bola para a consciência dos leigos.

  - Porque ele sabe muito bem, muito melhor do que qualquer outro, que os leigos vão resolver como muito bem entenderem.

  - Se houver bastantes chancelarias para reagirem dessa forma, será que os padres não vão receber instruções para agirem como quiserem? - Ao fazer a pergunta, Mary Ann tinha os olhos frios e espertos que eu já estava acostumado a ver no meu espelho.

  - E é isso mesmo que eles vão fazer, de qualquer forma. Pelo menos aqui em Chicago eles não vão se deixar levar.

  Depois então eu já estava diante da TV dizendo a um perturbado repórter católico que ninguém iria dar importância à encíclica.

  - A maioria dos padres e dos leigos já resolveram o que vão fazer. E não vão mudar de idéia. Não quero dizer com isso que seja essa a reação certa. Digo somente que é. isso, provavelmente, o que vai acontecer.

- Acho então que vão desobedecer ao Papa? - O repórter insistia.

  - Não é muito provável que obedeçam... - Procurei fugir da palavra "desobedecer".

  - Quer dizer então que eles vão largar a Igreja? - O homem continuava a me apertar.

  - Alguns, talvez. Não muitos.

  - Mas, olhe aqui, Padre Brennan, há gente dizendo que os católicos vão abandonar a Igreja, mas há também quem diga que vão obedecer ao Papa...

  - E eu lhe digo que as duas afirmações estão erradas. Os católicos não vão abandonar a Igreja, mas também não vão aceitar a encíclica na íntegra, por mais que admirem o seu espírito. Não acredito que os padres e bispos insistam na sua observação. Não vejo como poderiam fazê-lo, a não ser que colocassem espiões em todos os quartos de dormir dos católicos.

  Minha mãe levou um susto coma minha declaração, mas os outros todos acharam muita graça e riram.

  - Então, a sua opinião é que... hum... a Humanae Vitae não vai causar um impacto na Igreja?

  - Ao contrário. Vai ser um desastre. Muita gente vai achar que o Papa não deu atenção aos seus problemas, e até mesmo que traiu os seus crentes. Os padres e as freiras vão abandonar a Igreja em números cada vez maiores. Não quero pôr em dúvida a integridade da decisão. Só o que estou dizendo é que o custo vai ser terrível...

  Herb Strauss telefonou-me logo depois.

  - Kevin, você devia aparecer sempre na TV. Brilhante! Os católicos, em sua grande maioria, vão se sentir liberados com aquilo que você disse.

  - Sentir-se-ão apenas confirmados em suas convicções. Quando voltei, o Coronel quis saber quem tinha telefonado.

  - Foi o Herb Strauss...

  - Isso me faz lembrar... Vocês não se importariam se eu lhe vendesse aquele pedaço de terra lá perto da piscina natural, hem? Ele quer comprá-la para construir lá uma casa para a Ellen e as crianças. Sua mãe e eu achamos que não devemos ficar guardando toda a terra da colina.

  - E o dinheiro vai ajudar para construirmos uma casa maior na Flórida... - Mamãe ainda reforçou.

  - Podem até comprar a metade do Estado da Flórida intercalou Steve.

  Eles queriam a Ellen como nossa vizinha. Eu não queria que ninguém comprasse o meu poço mágico. Por outro lado, Ellen seria a escolha lógica se fôssemos vendê-lo. Levantei os braços.

  - Por que diabo iria eu me incomodar se vocês querem ter judeus como vizinhos?

 

  Minha muito querida Ellen,

  Você é uma amiga de verdade. Uma amiga das boas. Todos esses anos você vem me dizendo a verdade e eu venho mentindo para você... ou, pelo menos, venho te enganando.

  Ou será que venho mesmo? Você talvez tenha desconfiado de meu caso com Pat.

  Foi apenas mais um caso da Velha Mo tentar endireitar um homem fraco. Foi aí que eu me deixei apanhar na ratoeira. Aquilo significava tanto para mim, do ponto de vista físico e psicológico, que eu deixei de pensar sobre a loucura que era. E então chegou a hora em que ele terminou tudo. Agora, que já é bispo, quer tornar a ser casto. Acho até que é razoável, não é? Fiquei furiosa com ele, e isso mostra a você como eu estava enredada.

  Está tudo acabado agora, e eu me sinto como se estivesse convalescendo de uma longa doença. Sou agora outra mulher. Estou pintando uma tempestade, e estou saindo com um jovem viúvo da embaixada.

  Creio que fui de alguma ajuda para Pat. Não posso ter certeza. Talvez estivesse brincando comigo mesma o tempo todo. Rezo para que ele consiga safar-se sozinho como bispo. Suas intenções são boas. Só que é fraco como eu. E também é um bobo... não, não, isso não é verdade. Ele é muito inteligente e esperto. É elegante no traje e no espírito. O problema é que ele dividiu a sua vida em pequenas celas estanques. E é aí que comete tolices.

  É isso ai. Está tudo acabado. Já posso viver outra vez.

  Seja boa para o Herb e, por favor, não confunda eu e Pat com você e Kevin. Completamente diferente.

  Que Deus a abençoe, Mo.

 

  Eu estava no Hospital Mercy fazendo uma visita ao que sobrara de Mônica Kelly, no dia em que a delegação apostólica anunciou a nomeação de Patrick H. Donahue como Bispo Titular de Heliópolis e auxiliar do Cardeal O'Neil, Arcebispo de Chicago. Mônica tinha o rosto inchado e muito castigado. Seus maxilares estavam presos com arame. O nariz e os ossos do rosto estavam quebrados. O jovem residente, um homem moreno e bonitão, disse-me que ela fora estuprada repetidas vezes, e que seus seios tinham sido lacerados por um instrumento afiado. Havia mais de quarenta queimaduras de cigarros em seu corpo. Os dentes da frente tinham sido quebrados. Ela encarou-me com olhos apagados.

  - Quais são as suas chances, doutor? - Eu fiz a pergunta quando já estávamos lá fora no corredor.

  - Nós vamos recompô-la direitinho. Não ficará muito diferente do que era antes. Só não sei o que será possível fazer quanto aos danos psíquicos. Ela era virgem, padre. Uma criança inocente. Na melhor das hipóteses, vai levar muito tempo...

  Aquilo era obra de um profissional. Somente a Máfia fazia aquela espécie de coisa, e só faziam quando alguém estava chegando muito perto de alguma coisa muito séria.

  Mônica Kelly não era uma pessoa importante. Era apenas uma moça que um dia elogiara um sermão que eu fizera. E era também a vítima da podridão que se infiltrara na Arquidiocese de Chicago. Jurei ali que iria encontrar os responsáveis... mesmo se isso incluísse a destruição do Bispo de Heliópolis, o mais jovem bispo dos Estados Unidos.

  Fat foi consagrado bispo pelo Cardeal Daniel O'Neil, o Arcebispo Martinelli e o delegado apostólico, em princípio de setembro. Maureen não veio de Roma, e eu não me sentia como se pertencesse àquela celebração. Herb e Ellen, pelo que me contou Mary Aun, estavam sentados bem perto da mesa do orador.

  Uma mulher de Chicago, com mais de sessenta anos, quando entrevistada para a TV, falou com muito orgulho:

  - Ele é um ótimo menino. Conheci a sua mãe toda a minha vida. Tome nota do que eu digo, ele ainda será cardeal.

  Eu sorri com tristeza com aquele palpite, mas o Cardeal O'Neil não ia achar graça nenhuma.

  Afinal, não houve o êxodo maciço que tinha sido previsto pelos jornais católicos liberais como resultado da Humanae Vitae. Os católicos fizeram uma importante descoberta. Era possível ignorar o Papa e continuar a viver.

 

  - E aqui, senhor bispo, está a nossa classe do segundo grau. A maior parte das meninas já tem sete anos. Meninas, cumprimentem o nosso novo bispo - a freira velha estalou os dedos com a ordem. As crianças curvaram-se numa mesura respeitosa. As irmãs ainda lhes ensinavam aquelas boas maneiras. Ainda havia poucas coisas que não tinham mudado no mundo.

  - Uma das meninas vai falar em nome de todas - foi o que anunciou a professora secular. Já eram poucas as religiosas que podiam servir de professoras, até  mesmo numa escola de convento.

  Uma lourinha muito bonitinha veio colocar-se na frente da classe. O bispo sentiu como se uma garra de ferro lhe apertasse o coração.

  A menina curvou-se. Falava baixinho, mas sua voz era firme.

  - Bom-dia, senhor bispo, meu nome é Patrícia Carrey. Todas nós do segundo grau desejamos dar-lhe as boas-vindas à nossa escola. Queremos agradecer-lhe pelas coisas maravilhosas que fez para a nossa gente. Desejamos que Deus o ajude a ser um ótimo bispo. Todas noa rezaremos pelo senhor... - ela parou hesitando, respirou fundo e depois continuou:   

  - O senhor rezará por nós? E agora, será que o senhor pode nos dar, por favor, a sua bênção e-e-episcopal? - ela suspirou aliviada e veio ajoelhar-se aos seus pés.

  Toda a classe também ficou de joelhos. Foi a custo que ele conseguiu falar.

  - Muito obrigado, Patrícia, Muito obrigado a todas vocês do segundo grau. Estou certo de que Deus ouvirá suas orações para mim muito mais do que as minhas para vocês. Deus ama muito a todas vocês... e... e eu também. Agora... - ele fez uma pausa e sentiu que a sala girava em torno, mas afinal encontrou forças para continuar: - Agora, desejo que as bênçãos de Deus TodoPoderoso, do Pai, do Filho e do Espírito Santo desçam sobre vocês todas e que aí continuem para todo o sempre.

  Deu um beijo na cabeça de Patrícia.

  Mais tarde, já no seu quarto, na reitoria da catedral, o bispo chorou amargamente.

 

  A Década de Setenta

  - Eu bem desejaria que ele tivesse voltado no ano seguinte, padre. -, Harry Willewski sacudiu a cabeça já agora coberta de cabelos grisalhos e abundantes cortados bem curtos. - Eu sempre desejei dar uma boa surra naquela cara. . - Esfregou o tampo da mesa limpa como se estivesse arrependido. - Os jesuítas nunca chegaram às finais naquele ano, com todos os diabos.

  - E o Quigley não chegou a jogar pela universidade naquele ano...

  A minha resposta foi dada com delicadeza já que eu não queria perturbar a nostalgia de Harry daqueles dias no passado em que nenhum de nós estava perto dos quarenta.

  O escritório dele* no Edifício Federal era todo em aço e vidro num dos cantos como convinha ao primeiro assistente do procurador do Estado de Illinois. Todo o mobiliário era também cinza como os seus cabelos. Das imensas janelas que iam do chão até o teto, descortinava-se a parte sul do Loop, o Parque Grant e o lago lá ao longe. O rosto redondo de Harry estava ainda mais redondo, seu corpanzil com tendências à gordura, já que aquela era a sorte dos atletas cujos cargos não permitem exercícios quando lutam com as múltiplas crises da idade provecta.

  - Como, diabo, você consegue continuar em tão boa forma? - ao fazer a pergunta ele brincava com uma baioneta da Coreia do Norte transformada em.' abridora de cartas, ganhando tempo para a pergunta, que me trouxera ao seu escritório. Numa das estantes, por trás de sua mesa, estava o retrato de uma mulher bonitinha com uma porção de crianças.

  - Jogo de bola, karatê e gens. Será que você tem notado algum peso a mais no Coronel?

  - Quanto menos eu botar os olhos nesse cara, tanto melhor será para num - a sua resposta foi acompanhada de uma risada.

  - Todas as vezes em que ele entra numa sessão do tribunal eu tenho logo vontade de atirar a toalha no ringue.

  O condicionador de ar não estava funcionando bem e o sol de verão estava transformando o escritório- numa estufa. Eu tinha um encontro marcado na Avenida Michigan dentro de uma hora e não queria faltar.

  - O que é que está acontecendo, Harry?

  - Eu devo a você um almoço no Clube dos Advogados ele começou a falar devagar. - Detesto tê-lo feito vir aqui dessa maneira. Aliás, padre, aprecio o fato de você não estar com o colarinho clerical.

  - O nome ainda é Kevin, Harry. Vamos lá, desembuche logo. - Eu mudei de posição na cadeira de aço.

  - O seu amigo Donahue, com todos os seus botões vermelhos, está atolado até o pescoço em duvidosos negócios financeiros. Não estou me referindo aos maus investimentos, à violação a respeito de ações, ou coisas parecidas. Há alguma coisa muito estranha acontecendo na Chancelaria. Muitos leigos que trabalham lá estão cheios demais de dinheiro. A Máfia está por trás de tudo. Um dos grupos marginais que os dons toleram. Temos denúncias bastantes para fazer uma investigação para o Imposto de Renda contra dois deles, e isso vai deflagrar uma reação em cadeia. Seu amigo, é o controler junto com o Vigário-Geral. É ele quem assina os cheques. Ou ele faz parte de um plano de apropriação indébita ou então está permitindo que os outros o façam. Se tudo isso vier à tona, ele poderá ir parar na cadeia de Lexington apesar de sua qualidade de bispo.

  Senti como se todo o edifício estivesse mergulhando e girando. Só desejava que aquela cadeira de aço estivesse pregada no chão.

  - O Cardeal... não é lá muito esclarecido.

  - Não é muito esclarecido! - O outro soltou um grito. O'Neil vende terras por meio milhão e logo, na semana seguinte, das são vendidas por setecentos e cinqüenta mil dólares. Não é muito esclarecido, nem? Ele está louco varrido. E esse dinheiro é parte do meu salário e do salário de todos aqueles que todos os domingos deixam lá uma nota com o retrato do Lincoln. Desculpeme, padre. - Ele estava procurando recuperar a sua calma profissional.

  - Eu continuo a ser Kevin e não o culpo pela indignação. Tudo que o cardeal faz é mandar dinheiro para Roma, milhares de dólares dos estipêndios das missas, ou coisa parecida, para os seus cupinchas. Donativos de meio milhão de dólares para o Papa. Ele não é um peculatário comum, também, hem?

  - Não acreditamos que seja. - Ele suspirou fundo. - Não se esqueça de que estamos com medo de mexer nisso. Quem, com todos os diabos, estaria disposto a trazer um cardeal e o seu bispoauxiliar perante um tribunal? Nós apenas sabemos que o casal J. Bernard O'Keefe, ela née Sally McCornack, tem muito dinheiro e é freqüentemente visto na companhia de um vigarista chamado Dom Corso, vulgo "o Morto". O'Keefe é o coordenador dos serviços na Chancelaria e Sally é a secretária particular do cardeal.

  Os dois possuem Cadillacs, moram em Lake Shore Drive, passam as férias em Cortina e usam.' roupas que devem custar o meu salário de um ano. Não é com os seus salários que eles pagam suas contas.

  1. Bernard O'Keefe era um homem bonitão, de ombros largos, e cujo rosto queimado dava a entender o uso de tratamento de raios violeta. Sua mulher era uma loura platinada e estatuesca que obrigava muitas cabeças eclesiásticas a se voltarem para admirá-la quando passava pelos corredores da Chancelaria muito bem atapetados. Os dois eram figuras escusas de segunda classe que fugiam do mundo dos negócios. Meu pai classificava O'Keefe dizendo que ele "era o tipo de presidente de alguma sociedade com nome de santo que, se fosse instalador de eletricidade e água, daria à sua paróquia um orçamento pelo dobro do preço de qualquer outro e sempre esperava conseguir o contrato só porque era bem apresentado e também amigo do pastor".

  - Harry, esse tal de OTieefe é um vampiro.

  - E perto do Dom Corso, ele parece um vegetariano enquanto falava ele brincava novamente com a sua baioneta.

  - Foi ele quem mandou liquidar a Mônica - a verdade surgiu diante de meus olhos.

  - Isso mesmo. - Harry olhou-me surpreso. - Foi ele. Ela estava chegando muito perto. Não era tão perto assim, mas ele gosta de maltratar mulheres. Não podemos acusá-lo. Depois das eleições de novembro, nós vamos pegar o casal sem ligar para a Igreja. Diga ao seu amigo Donahue para se livrar deles antes dessa data, porque senão teremos que pegá-lo também, - Quando acabou de falar bateu na mesa com o cabo da baioneta.

  - Então você quer que eu faça o papel de mensageiro não oficial entre o Procurador dos Estados Unidos e o Vigário-Geral da Arquidiocese de Chicago?

  - Este é o seu lado acadêmico, padre. - Ele recostou-se na cadeira. - O Coronel nunca falaria com tanta clareza.

  - Só quero pedir um favor a você, Harry. Pegue o Dom Corso. - Eu me levantei.

  - Você é o mesmo de sempre, não é isso, Kevin? - Ele sacudiu-me calorosamente a mão.

  - Sempre quero ganhar, Harry. Você ainda se lembra, não é mesmo? - Caminhei para a porta.

  - O que é que a moça representa para você? - ele mostrou-se curioso. - E, por falar nisso, como vai ela passando?

  - Ela gostou de um dos meus sermões, e nos dias que correm isso é o bastante. Ela está passando bem. Fisicamente, isto é. Creio que, psicologicamente, ainda deve estar bem ferida. Ficará talvez assim para o resto da vida, embora a Tribune esteja ajudando dando-lhe serviços internos.

  - Faça-me um favor e tire o Donahue para fora da jogada. Eu cuidarei do "Morto" em seu nome. Fechado?   - Harry tornou a apertar-me a mão.

  - Fechado.

  Eu sentia-me deprimido. Os críticos eclesiásticos arrasavam os meus livros, mais como um ataque pessoal, enquanto os críticos seculares falavam maravilhas. Eu escrevia livros, chamava a atenção para a minha pessoa, tinha um emprego fora da igreja, ganhava dinheiro e, por isso, era considerado um pária. Se desistisse de tudo aquilo, eu poderia voltar a ser humilde novamente e também feliz.

  Considerei a possibilidade, já que a elite que mandava na universidade resolvera recusar a minha vitaliciedade. Eles achavam que só poderia ser um cientista social o padre que se desligasse completamente de seus vínculos eclesiásticos e de sua autoridade como padre. Um dos administradores de alto nível explicou-me:

  - É claro que não precisa abandonar o sacerdócio, Sr. Brennan. Isso não nos diz respeito. Nós, simplesmente, precisamos ter a certeza de que isso não interferirá. Se tivermos uma prova disso, estou certo de que a maior parte das objeções desaparecerão, Esse mesmo administrador disse a um de meus colegas de psicologia social, deixando-o espantado:

  - Um padre não pode ser um estudioso objetivo em psicologia, da mesma forma que um comunista convicto, membro do partido, já que, pela mesma razão, as suas convicções influirão em suas conclusões.

  Foi a minha teimosia que me manteve onde eu estava. Seria um cretino se desse à universidade ou ao cardeal a satisfação de me expulsarem. E então, para aumentar ainda mais os meus problemas, tive um pega com a Georgina Carrey, que voltara de meu passado só para me atormentar.

  Fiquei profundamente abalado. Aconteceu na época da tragédia do Kent State. O instituto de pesquisas, onde eu agora era o chefe, continuava em suas atividades, embora com algum temor de minha parte, imaginando que a garotada violenta poderia explodi-lo.

  Estava sentado em meu gabinete, vendo na TV uma reunião no Chicago Circle. Quem falava era o Padre Rick Flannery, discípulo dos Berrigans. Ele era um homem magro e alto, parecido com o chefe de um grupo de flageladores da Idade Média.

  - Já chegou a hora de estraçalharmos essa sociedade apodrecida. Esta é a revolução desde muito esperada por todos nós. Vamos sair daqui desta reunião para obrigar este país a cair de joelhos.  Nós fabricaremos bombas, acharemos armas, incendiaremos, arrasaremos e destruiremos. Nós seremos a imensa peneira do Senhor que varrerá toda esta cidade para purificá-la de seus pecados e da sua corrupção. Nós levaremos Chicago e a América diante da sede de julgamento de Deus. Vamos paralisar o capitalismo corrupto de todo este país pecador. Vamos libertar os pobres e os infelizes de todo o mundo. Abaixo a América! Vivam os pobres! Uma longa vida para a República Democrática do Vietnã! O poder para o povo!

  Um de meus colegas que assistia ao programa junto comigo disse:

  - A gente quase pensa que ele é protestante.

  De volta ao vídeo lá estava o rosto gasto e belo do Reverendíssimo Patrick H. Donahue, Bispo-Auxiliar de Chicago. Não havia uma única demonstração com marcha pela paz, naquela época, sem que logo aparecesse Pat envolto em seu manto, o que, certamente, era uma completa mudança de estilo depois da desleixada aparência de Rick Flannery.

  Ele esperou com paciência até que os jovens se aquietassem, pedindo silêncio com seu porte imponente e, finalmente, conseguindo-o.

  - Meus caros jovens - começou falando lentamente - a guerra no Vietnã, seja lá o que for que pretendessem que ela fosse, é um trágico engano. O bombardeio é maldoso e imoral. A morte de estudantes quando exerciam seus direitos constitucionais, que garantem a reunião, foi um crime de bradar aos céus. Os protestos de vocês representam a tradição política destes Estados Unidos naquilo que ela tem de mais belo. Sinto-me orgulhoso por estar aqui com vocês hoje para lhes demonstrar o meu apoio irrestrito a este protesto. Vocês vão pôr um fim na guerra do Vietnã. Vocês vão transformar este país. Vão fazer renascer a sua alma.

  Vocês vão dar início a uma nova era na história dos Estados Unidos. - Todas as suas frases eram interrompidas por calorosos e atordoantes aplausos.   

  - Só poderemos acabar com a guerra quando obtivermos o controle do Congresso. Em novembro, precisamos eleger os candidatos que se batem pela paz em todo o país. Nosso protesto aqui, hoje, não é apenas um grito ultrajado contra as coisas terrívies que têm sido feitas em nome de nossa grande herança aqui nos Estados Unidos. Nós vamos marchar daqui com o compromisso formal de enviarmos para o Congresso, em novembro, uma maioria formada por candidatos que se batem pela paz. Nós venceremos.

  Nesse ponto, todos começaram a cantar o hino nacional. Rick Flannery abraçou o bispo como se os dois houvessem falado as mesmas coisas. Alguns dos tipos mais sabidos de profissionais da paz não pareciam muito satisfeitos.

  Os jornais todos elogiaram sem restrições a atitude do Bispo Donahue por haver contornado a ameaça do comício. A verdade era que os garotos, de qualquer forma, voltariam todos aos seus deveres domésticos.

  Já no fim da tarde a minha secretária veio avisar-me de que uma Sra. Carrey estava ao telefone. Eu já vinha esperando, mais ou menos, aquele chamado depois que seu marido morrera.

  - Você o viu na TV? - Sua voz estava cheia de amargor.

  - Claro que o vi. - Eu sentia-me culpado por não haver comparecido ao enterro do John. O seu fulminante ataque cardíaco viera sem aviso prévio, e Georgina ficava sendo uma das mulheres mais ricas de Chicago.

  - Eu agora vou pegá-lo. - Ela falou tão baixinho que eu mal podia ouvi-la. - O John está morto e já não tenho nada a perder.

  - Isso é lá com você, Georgina. - Eu só desejava ver-me livre dela para voltar ao meu trabalho. Ela estava metida na política da direita, e tanto quanto me era dado perceber de suas declarações à imprensa, ela queria que se jogasse uma bomba atómica em Hanói e outra em Pequim.

  - E também vou destruir aquela amiguinha dele com quem anda dormindo - ela acrescentou ainda mais baixinho.

  - Mas que amiguinha? - Eu fiz a pergunta imaginando se ela teria ou não contratado detetives particulares para vigiarem o Pat.

  - Você sabe muito bem quem é! - Agora a voz dela já era histérica. - É melhor que venha ao meu apartamento esta noite, ou então eu vou telefonar amanhã cedo para a Delegação Apostólica. Tenho todas as provas.

  A empregada fez-me entrar no edifício de apartamentos em condomínio de quinze andares de onde se descortinava o lago, disse-me que a senhora viria logo e saiu deixando-me só. Os pisos eram de desenhos embutidos, tapetes orientais, uns originais de Jackson Pollock, e um móbile que só podia ser de Calder. Georgina tinha adquirido o bom gosto junto com o dinheiro.

  Num dos cantos da sala havia um bar. Servi-me de uma dose grande de Jameson on lhe rocks e virei-o em três goles enquanto olhava lá embaixo o tráfego e o pôr-do-sol.

  Em cima do lago havia nuvens negras de tempestade. Vindo dos fundos do apartamento ouvi o barulho de água que escorria. Talvez alguém estivesse embaixo do chuveiro.

  Pela primeira vez, depois que ela me telefonara, eu agora pensava se o assunto seria algo mais que Pat Donahue. Servi-me de outra dose.

  Continuei esperando. O terceiro uísque foi o meu maior engano, maior ainda do que em haver concordado com aquela visita. Estava no meio do drinque quando ela apareceu, cheirosa como um jardim na primavera, com uma toalha vermelha em torno da cintura. Fiquei completamente tonto, mais dos uísques do que da vista de seu peito, embora, e só os céus sabiam, aquilo fosse também esplêndido.

  Ela apresentava um quadro preparado com muita arte. Os cabelos, já ligeiramente prateados, estavam soltos e cobriam, em parte, seus opulentos seios que vibravam quando ela andava. Estava mais magra e mais pálida e, a despeito dos anos, muito mais atraente do que quando a conhecera antes. Percebi então que a vingança seria uma espetacular sedução.

  - Boa-noite, Padre Brennan. Eu sabia que viria. - Ela estava de pé e eu sentado.

  - Você está com uma boa aparência, Gina. - Esvaziei o copo. Fingi que a avaliava com cuidado enquanto meu sangue chegava ao ponto de fervura com a fúria brigando com o desejo. Foi então que surgiu a inevitável imagem de Ellen. - É notável o que se pode fazer hoje com a cirurgia plástica...

  - Desta vez não vai ser tão fácil você se livrar de mim, Kevin. Ou você aceita fazer amor comigo, ou então os seus amigos vão estar nas páginas do Sun-Times depois de amanhã. - Ela foi até o bar, virou um pouco de gim num copo de cristal e voltou para onde eu estava, rebolando-se de forma provocante. O desânimo e a depressão dos anos eliminaram as minhas defesas.

  - Você é uma puta velha, e barata, Gina, e, além de tudo, patética. Eu não estou ligando a mínima quanto ao que você possa fazer com o Pat. Se quiser atrapalhar a vida dele, isso é lá com você e mais ninguém. O problema é seu. Eu vou-me embora para casa.

  Levantei-me para sair, ainda sem muita certeza se conseguiria ou não. Caminhei na direção da porta pedindo a Deus que não me deixasse fraquejar. Tinha que sair bem depressa, antes que mudasse de idéia.

  A minha língua, já agora solta pela bebida, ainda deu para mais uma flechada quando já estava na porta.

  - Olhe aqui, Gina, com plástica ou não, as suas tetas ainda são bem apetitosas para uma mulher de sua idade.

  Na tarde seguinte, quando o resultado dos uísques da noite anterior estava já desaparecendo, a minha secretária veio dizer-me que um moço esperava por mim no meu gabinete.

  - Tommy Valero - ele estendeu-me a mão logo que entrei, apresentando-se - lembra-se de mim? Nós nos conhecemos no Hospital Mercy.

  - O residente da Mônica? - Apertamo-nos as mãos calorosamente. A moça ainda vinha à missa dos domingos, muito pálida, retraída e amedrontada. Já não tinha mais comentários elogiosos para os meus sermões. Ao contrário, evitava-me sempre que podia.

  - Eu preciso de um favor seu, padre.

  - Conheço bem essa palavra, doutor. - Recostei-me na cadeira e coloquei os pés em cima da mesa como fazem os guardas de prisões. - E, por falar nisso, foi você quem lhe fez a plástica? Está uma beleza.

  - Fico contente com o seu elogio. - O seu rosto abriu-se num sorriso. - Eu também me sinto orgulhoso do resultado. Ela ficou bonita como era... - Ele ficou mais sério. - Bem, quero dizer, como eram os retratos. Não a conheci antes.

  Eu apenas resmunguei e fiquei esperando que ele dissesse ao que vinha. Afinal, foi meio envergonhado que ele conseguiu falar.

  - Como o senhor pode imaginar, padre, eu me apaixonei por ela.

  - Uma reação muito inteligente, doutor. E ela? Como é que vê isso?

  - Mais ou menos. - Ele suspirou. - Vejo que ela gosta de mim... mas o trauma... ela... bem, ela acha que está arruinada para um homem. De uma certa forma, ela está mesmo, mas não da maneira como imagina. Se não conseguir sair de sua depressão, ela jamais poderá casar-se. E é aí que entra o favor...

- Seus olhos brilhavam intensamente. Ali estava um jovem perdidamente apaixonado. - Há um psiquiatra que é o melhor de todos no Meio-Oeste quando se trata de problemas como este. Ele tem uma lista imensa de pacientes. Fiquei sabendo que o senhor o conhece e então... a Mônica simplesmente adora o senhor, e então eu pensei que...

  - É o Herb Strauss?

  Apanhei o telefone em cima da mesa e disquei. O Tommy era uma versão italiana do Herb, só que tinha os cabelos mais negros, a pele mais clara, um cabeludo corpo de atleta com ombros muito largos.

  - Herb? Aqui é o Kevin. Preciso de um favor seu. É uma moça chamada Mônica Kelly que foi muito maltratada pela gangue. Ótimo. O Dr. Varco vai procurar você. As sobrancelhas do médico estavam mais altas do que o teto da capela na universidade. Falou titubeando:

  - Muito obrigado, padre. A Mônica ainda não se decidiu se quer mesmo ver um outro especialista de cucas. Houve uns lá no hospital que foram pouco delicados com ela. Quando souber que se trata de um amigo seu, ela vai ter confiança nele.

  Naquela noite eu senti-me um tanto deprimido.

 

  7 de maio Ellen querida,

  vou falar com você com a máxima franqueza. Você precisa deixar de agir como uma burrinha, e deve fazer as pazes com a Igreja.

  A fé não foi culpada pela embolia do Tim, não foi ela que fez de sua mãe a porcaria que ela é, nem tampouco é a culpada pela fraqueza dü seu pai. Também não foi ela quem lhe pespegou os quatro filhos antes dos trinta anos. Você sabe muito mais do que eu a respeito da psicologia, e portanto sabe também que todos os nossos problemas estão bem dentro de nós. Se a sua vida resultou naquela trapalhada, isso foi porque você assim o quis. E se você deu um jeito nela, em parte, foi porque você quis, realmente, fazê-lo. Eu não estou ligando a mínima a respeito de suas relações com a Igreja, a não ser porque sei que você precisa dela e também a deseja muito, e você também sabe disso, Nenhum de nós pode, realmente, jamais se livrar da Igreja. Ela era uma parte muito importante em nossas vidas quando éramos crianças e adolescentes. É possível que a gente não faça tudo que ela manda, mas nós sempre recorremos a ela na hora da necessidade.

  Perdoe-me, Ellen, se estou gritando com você. Eu pensava que já tinha desistido disso há muito tempo. Fiquei furiosa com a sua última carta. Você não precisa se atormentar, principalmente a respeito de religião. Deixe o Kevin fora disso. Ele é apenas uma distração.

  De qualquer forma, eu rezo todas as noites para a Madonna. O pessoal daqui diz que ela sempre atende às orações quando a gente pede alguma coisa para os outros. Sendo assim, quero ser franca, e você fica avisada de que tem uma Madonna italiana que não tira os olhos de cima da sua pessoa.

  Lembranças para o Herb e beijos nas crianças, Mo.

 

  Patrick Henry Donahue estava em seu quarto parcamente mobiliado aa reitoria da catedral. Ele vestia uma camisa branca sem colarinho com punhos franceses e que, claramente, tinha sido feita sob medida. Estava mais magro, parecia mais alheio e gasto e seus olhos já não tinham o mesmo brilho de antes. Dei-lhe os parabéns pela sua ótima atuação no comício. Seus olhos brilharam só por um momento. Quando lhe falei sobre o recado de Willewski, ele ficou branco como a camisa que vestia.

  - Invoco Deus como minha testemunha, Kevin - ele começou, e a sua voz tremia - como a culpa não é minha. O mesmo está acontecendo em todo o país. Todos agem como se o dinheiro fosse deles para fazer com ele o que bem entenderem. Hospitais, asilos de velhos... milhões e milhões entrando pelo cano sem que ninguém saiba. Acham que por serem bispos e pastores podem fazer o que bem entenderem, podem mentir e podem roubar, e nós somos obrigados a lhes dar cobertura para proteger a Igreja. Confesso que procurei dar-lhes cobertura, mas nunca fiquei com um único centavo para mim.

  - Eu sei disso, Pat... - Estiquei-me colocando os pés em cima de um rico sofá otomano. - Mas você assinou um monte de cheques. Isso é o suficiente para fazer com que o pessoal do Governo desconfie. O que é que você sabe ao certo?

  Apesar do barulhento condicionador de ar, o seu rosto estava coberto de suor. Suas mãos tremiam. Ele estava precisando de um drinque, embora fossem apenas onze da manhã.

  - Eu sei que há alguma coisa por aí. O Bernard e a Sally tomam conta do escritório. O cardeal não me dá a mínima atenção. É como se eu não existisse... - Sacudiu a cabeça num movimento de desespero. - Eles estão levando uma vida muito acima do que ganham em seus salários. Creio que jogam nas corridas. Não vejo maneira alguma para conseguir provas. Não sei o que fazer, Kevin. Já rezei pedindo a Deus que me oriente.

  Eu pensei comigo mesmo. Será que ele não pode fazer o que é certo sem.' ter a Maureen para ajudá-lo?

  - O Coronel acha que estão alterando os cheques e que há alguém do banco por dentro da jogada - eu disse. - Você também assina os cheques para a caixa pequena?

  Você examina-os quando eles são devolvidos com os extratos?

  - Eu ainda sou o encarregado do controle. O Dan... o cardeal não despede ninguém. Apenas retira-lhes as atribuições. Eu assino tudo, mas a Sally não me mostra os cheques pagos quando eles voltam com os extratos.

  - Na primeira vez que lhe derem um cheque para assinar, para a caixa pequena, ligue para mimi. Dê uma desculpa qualquer ao O'Keefe antes de lhe entregar o cheque e tire um xerox. No dia seguinte, de manhã, iremos ao banco. O seu presidente é amigo do Coronel. Nós poderemos pegar o cheque já pago sem que eles se dêem conta.

  Tiraremos cópias. Depois colocaremos o cheque de volta nos arquivos da arquidiocese no banco. Aí já teremos as provas e eles de nada saberão.

  - E o que é que eu vou fazer com as provas, Kevin? Ele sacudiu a cabeça completamente desanimado. - O cardeal não admite queixas contra Sally ou Bernard.

 - Vá ao delegado e peca-lhe que mande um visitador. Eu falava-lhe com severidade ao mesmo tempo que pensava comigo mesmo o que teria acontecido com aquele orador confiante do comício. Aquilo era mais um compartimento na sua vida.

  - Não posso fazer isso, Kev. O cardeal saberia logo no dia seguinte. O delegado jamais aceitaria a prova e, ainda por cima, ficaria furioso. Você quer ir em meu lugar?

  Aquele era um outro ricochete da bola batendo na boca de cesta. Mo tinha razão. Eu teria sempre que ajudá-lo a encestar.

  - É claro que irei, e depois irei também a Roma se for necessário. Será que o Martinelli...

  - Não, não! - ele levantou as mãos horrorizado, - O Tonio é muito chegado ao cardeal. Você teria que falar com o Benelli. Ele é o subsecretário de Estado.

  - Já ouvi falar nele. - Eu já estava impaciente.

  Na tarde da sexta-feira seguinte Pat telefonou-me às quatro e meia.

  - Estou numa cabine telefónica, Kev. Não sei se a Sally escuta os meus telefonemas. Assinei um cheque de cinqüenta dólares para a caixa pequena esta manhã. O Bernard ficou muito zangado, mas eu demorei o bastante para poder tirar um xerox. Espero que você saiba o que está fazendo. Eu acho... eu acho que a Máfia está na jogada.

  - Mas claro que está, com todos os diabos, Pat.

  O Coronel, felizmente, ainda não tinha saído para o fim de semana. Ele ia falar com o presidente do banco e depois me telefonaria. Dentro de dez minutos estava falando comigo.

  - Marquei uni encontro para você e Pat, no meu escritório com o Murphy, às dez horas. Você tem as chaves e então chegue mais cedo. Eu já providenciei com uns amigos... para que o Pat tenha uma proteção discreta durante vinte e quatro horas. Se você estiver de cardo, eu vou avisar ao Willewski.

Na manhã seguinte, um Cornelius Murphy, pálido como cera, estava comparando o seu xerox de um cheque de cinco mil dólares com o xerox do outro que o Pat assinara de cinqüenta dólares.

  - Está muito malfeito - ele estava assombrado. - Eles devem andar fazendo isso desde muito para se mostrarem assim tão confiantes. Tenho a certeza de que há gente minha envolvida. Isso deve andar por centenas de milhares, senhor bispo...

  - A mim parece que chega ao milhão, ou mais!

  - O que vai fazer agora, senhor bispo? - Murphy estava nervoso. - Acha que devemos começar já uma investigação?

  - Acho que não, Sr. Murphy. Será melhor investigar discretamente, mas tenha cuidado. Temos que ser muito cautelosos do nosso lado para podermos conseguir todas as provas necessárias. Dê-me... uma semana, mais ou menos. - Falava olhando para mim como se pedisse a minha aprovação.

  Eu sacudi a cabeça discretamente.

  - Muito bem, senhor bispo - Murphy estava preocupado.

  - Nós vamos pôr isso tudo em pratos limpos. Note bem minhas palavras.

   Eu pensei com meus botões. Contanto que não acabemos todos lá no fundo do lago com um pijama de cimento.

 

  O Arcebispo Raefaelo Crespi não se mostrava interessado. Deixou-me na sala de espera da Delegação Apostólica durante mais de uma hora, o que era um velho truque eclesiástico para colocar a gente em seu lugar. Visto do lado de fora, o edifício da Delegação era parecido com todos os outros que ali se enfileiravam como embaixadas.

Por dentro, ele se parecia mais com uma reitoria ou convento em ponto grande, com os mesmos retratos de papas, os mesmos tapetes caros, mas feios, e o mesmo mobiliário heterogêneo e desconfortável.

  Afinal Crespi apareceu, com o rosto vincado mais profundo dó que de costume. Ignorou a mão que lhe estendi.

  - Eu não costumo receber padres que não sejam bem-vistos por seus cardeais - disse com entonação bem desagradável.

  Ele era baixo e gordo, e considerava a sua nomeação para Washington como um prêmio por uma carreira de serviços leais e uma oportunidade de voltar para casa em Roma para o chapéu vermelho e uma boa fortuna para ele e a família. O delegado sempre recebia presentes por ocasião da nomeação de novos bispos e também quando se instalavam, desde que estivesse presente. Só que ele arrumava as coisas de forma que estava sempre presente em quase todas elas.

  A sua figura atarracada, pele morena e testa estreita, faziamme pensar no estereótipo do mafiosa. Sem querer, fiquei a imaginar se ele seria parente do Dom o "Morto".

  Contei-lhe o que sabia e ele nem mesmo se deu ao trabalho de esconder seu ceticismo. Entreguei-lhe as cópias dos cheques, e ele quase não as olhou. Entreguei-lhe as cartas de Murphy e de Willewski que ele nem mesmo olhou.

  - Senhor arcebispo, se não acredita em mim, tudo que tem a fazer é pegar no telefone e falar com o Sr. Murphy ou o Sr. Willewski.

  - E por que iria eu fazer isso? - Ele gritou. - Tudo isto é um absurdo. Quem é este Murphy? Quem é este Willewski? O cardeal não me falou nada sobre isto.

  E por que irei eu levar a sério um padre desacreditado como você é? Por que devo eu acreditar nesta fábula ridícula? Estou perdendo tempo com você.

  - Levantou-se dando por encerrada a audiência.

  - Dentro de menos de um mês, senhor arcebispo, o Procurador dos Estados Unidos vai iniciar uma investigação. O Cardeal O'Neil e o Bispo Donahue vão ser intimados a comparecerem diante de um tribunal. O Bispo Donahue poderá ser indiciado. Eu íhe prometo que o próprio Papa vai ficar sabendo que o senhor se recusou a dar um simples telefonema para obter a confirmação do que eu lhe dizia.

  Crespi hesitou. Via o seu chapéu vermelho em perigo. Olhouine com atenção. Seria eu um louco? Era bem provável.

  - Você está suspenso como padre... - e ele esticava o beiço com desprezo.

  - Nada disso, senhor arcebispo. Aqui está a minha ficha. Olhe-a bem. - Apresentei-lhe a minha pasta.

  - Você poderia ter escondido o documento da suspensão. - Ele acenou com a mão afastando-a. - vou transmitir esta conversa para Roma. É possível que eles queiram fazer alguma coisa. Eu, por mim, recuso-me a levá-lo a sério. Agora, peço-lhe que me desculpe, - Levantou-se e saiu da sala.

  Ele encontrara a solução. Chutava a bola para os escalões superiores. Dessa forma, não poderia ser censurado se alguma coisa não saísse certa. O seu chapéu vermelho estava garantido.

  Uma chuva com vento varria a Avenida Massachusetts quando saí da Delegação. Antes de entrar num táxi já a minha roupa estava encharcada. Crespi certamente iria falar com O'Neil que, por sua vez, abriria o bico com o O'Keefe. Antes do anoitecer já Dom, o "Morto", saberia de tudo. A vida de Pat poderia estar em perigo. Eu sentia-me inquieto à medida que o táxi se arrastava na direção do Statler embaixo de chuva e na hora do rusli em Washington.

  Logo que cheguei ao meu quarto, ainda molhado até os ossos, dei o primeiro telefonema.

  A reação do Coronel foi a que seria de esperar.

  - Que sacana! E o que você vai fazer agora?

  - Não tenho outra escolha. Já fiz minha reserva no aeroporto de Dulles de onde partirei dentro de três horas. Amanhã de manhã estarei em Roma.

  - Será que vão te receber?

  - Telefonarei para a Mo. Estou certo de que ela dará um jeito. .. - Eu não tinha tanta certeza assim, mas era o meu único trunfo. - Será que você pode reforçar a guarda para o Pat? E para a Mônica também. O tal de "Morto" pode querer divertir-se novamente.

  - Deixe comigo, meu filho. Quem me preocupa é o casal O'Keefe. Quando se sentirem encurralados, só Deus sabe o que poderão fazer.

  - Eles têm vivido perigosamente tanto tempo que, a esta altura, já se devem julgar invulneráveis.

  - Espero que você esteja certo, Kevin. - A voz do Coronel não mostrava que ele estivesse muito convencido.

  Pedi a ligação para Roma e tirei fora a roupa molhada. Estava ainda no chuveiro quando o telefone tocou.

  - Alô... - A voz de Mo era sonolenta e confusa.

  - Eu preciso falar com o Giovanni Benelli amanhã à tarde. É um caso de vida ou morte. Diga-lhe isso, e diga-lhe também que há três milhões de dólares em jogo.

  - Kevin? É você mesmo, Kevin? - A voz dela continuava empastada.

  - Continuo sempre agüentando os rebotes da bola, Mo. Benelli, amanhã na parte da tarde. Chegarei no vôo 890 da TWA. - Ao lado do telefone na mesa já havia água escorrendo.

  - É mais fácil conseguir uma audiência com o Papa do que com o Benelli...

  - Se alguém pode conseguir isso, esse alguém é você, Mo.

  - vou tentar. Você quer ficar comigo ou quer que faça uma reserva no hotel?

  Eu nem hesitei. Afinal de contas, que diabo, ela não era minha amante.

  - vou ficar com você, Mo. Quer ir buscar-me no aeroporto?

  - Claro. Tenha cuidado, Kevin.

  Meu coração sossegou quando a sanfona no aeroporto esticou-se na direção do 747.

  No avião, junto comigo, estava John Mikolitis, um rapaz que morava na Rua 67 com Califórnia e que estivera na segunda turma do nosso time quando tiramos o campeonato da cidade. Ao contrário de Willewski, ele parecia muito bem-disposto, embora já escasseassem os seus cabelos louros.

  - Estou na Embaixada em Roma. Vim para assistir ao enterro de minha avó. Era uma mulher maravilhosa. Imagine que escapou dos cossacos atravessando a fronteira correndo quando tinha só dezesseis anos.

  - Acho que, hoje em dia, isso seria bem mais difícil. - Eu jantara e agora estava bebericando um drinque.

  - É mesmo... - Ele esticou-se contra um lugar vazio à nossa frente.

  Só para começar uma conversa, perguntei-lhe o que fazia na Embaixada.

  - Trabalho para o Governo... - O seu rosto redondo tornou-se um pouco tenso.

  - Você é um dos tais...

  - Alguma objeção?

  - Não de minha parte, John.

  - O Pat poderia talvez... - O rosto ficou mais tenso ainda.

  - Tudo dependeria da pessoa com quem estivesse falando. Ele falava a favor ou contra a Companhia com a mesma veemência. A palavra é mesmo Companhia, não é?

  - Em alguns romances policiais.

  Eu anotei a informação. Quem sabe quando alguém1 pode ter necessidade de um contato com a CIA na Via Veneto?

  Eram precisamente oito e meia da noite seguinte quando entrei no amplo gabinete do Arcebispo Giovanni Benelli que era, tecnicamente, subsecretário de Estado quando, na realidade, era o chefe do gabinete de Paulo VI. Eram oito horas quando Mo me deixou no pátio de lajes, onde mereci a honra de uma continência especial do bonito guarda suíço. Unia série de funcionários levou-me de uma ante-sala para outra. Benelli escandalizava o estilo do Vaticano porque trabalhava até mesmo nas horas de sesta, e muito mais ainda porque continuava trabalhando pela noite afora. Creio que o escândalo maior era a sua paixão pela pontualidade, uma coisa inédita na Cúria.

  A sua mesa de trabalho, de nogueira, estava limpa como a de Willewski. Não havia decoração nas paredes. A cadeira que me apontou, num gesto mudo, era bem mais confortável do que aquela (que o Governo dava ao Harry. Giovanni Benelli era quase inteiramente calvo. Seus olhos castanhos eram luminosos e inteligentes e a sua postura era tensa como se fosse a de uma mola em espiral. As mãos, cruzadas em cima da mesa, na sua frente, pareciam estranhamente passivas em comparação com o resto do corpo que irradiava uma tremenda energia. Giovanni Benelli era uma carga de explosivo pronta a deflagrar.

  Não houve preliminares.

  - Quero ver seus documentos, padre. Monsenhor Crespi já imaginava que o senhor viria a Roma.

  Eu levantei-me e atirei tudo em cima de sua mesa sem fazer nenhuma cerimônia, o que me deixou um tanto amedrontado.

  - Aqui estão os xerox dos cheques, a carta de Harry 'Willewski, a carta de Cornelius Murphy, a minha ficha oficial, sem nenhuma notificação de suspensão... Tinha a esperança de estar me mostrando tão decidido como me sentia.

  - O que o senhor acha de Monsenhor Crespi? - Ele usou o mesmo Tomde voz que o meu.

  - Monsenhor Crespi é um tolo. Um telefonema seu me teria poupado esta viagem, teria poupado o tempo que está perdendo comigo e teria evitado um embaraço potencial para a Igreja. Também pode acontecer que uma ou duas vidas estejam correndo perigo.

  Ele olhou-me fixamente durante um momento e depois pegou nos documentos. Examinou com cuidado os cheques e seus respectivos xerox, leu e releu as duas cartas, passou os olhos na minha ficha.

  - Então... o grande Meyer gostava muito do senhor.

- Nunca consegui descobrir a razão...

  Enquanto olhava os cheques, mais uma vez ele resmungou:

  - Os opostos se atraem. Mas que falsificações grosseiras! Idiotas! Idiotas!

  - Quais são os idiotas a que Vossa Excelência está se referindo?

  Nesse ponto fui agraciado com um dos famosos sorrisos de Benelli... um sorriso sincero contagioso que desarmava qualquer um.

  Neste caso, padre, a todo mundo, menos o senhor e eu.

  Já eu tinha mais uma vez cuidado do rebote.

  Ele tornou a arrumar todo o material bem direitinho.

  - O senhor acha que nós não sabemos o que se passa em Chicago? Acha que não sabemos o que há com o seu cardeal? Acha que já não descobrimos nosso engano?

Sabe que o idiota tentou um dia dar-me um estipêndio de mil dólares por uma única missa? Será que eu tenho cara de ser um homem capaz de aceitar essa espécie de suborno? O senhor pensa que nós não sabemos que o seu prefeito escamoteou uma ordem de prisão contra ele por dirigir embriagado? Pensa talvez que ignoramos tudo? - As suas perguntas vinham como uma saraivada de metralhadora.

  - Eu não sei até onde o senhor arcebispo sabe. De qualquer forma, O'Neil não foi um engano seu.

  - O senhor precisa entender, padre - os seus dedos tamborilavam na mesa lentamente - Que Sua Santidade ficou terrivelmente magoado quando ele foi enviado para Milão pelo Papa Pio XII. - As mãos fizeram um pequeno gesto antes de voltarem para a sua posição. Eram mãos muito pequenas.

  - Enquanto isso - eu disse rudemente - milhões de dólares são roubados, vidas são arruinadas e Chicago se transformou num deserto eclesiástico só por causa da sensibilidade do Papa a respeito dos sentimentos do cardeal. Ele se preocupa com um psicopata sem se importar com o resto de nós.

  Em lugar de explodir, como eu esperava que fizesse, ele abriu uma pasta onde estavam os meus documentos e a minha ficha.

  - Ora, ora. É como eu pensava. O senhor é psicólogo. E este é o seu diagnóstico. E o meu também. Devo dizer... Muito Dem, padre, o que vamos agora fazer sobre o problema do dinheiro? Devemos cuidar disso em primeiro lugar.

  - A primeira coisa a fazer seria nomear o Bispo Donahue como visitador financeiro com poderes para contratar uma firma de auditores e iniciar uma investigação. Ele cuidará de fazer uma limpeza geral na parte administrativa da Chancelaria. Ele deverá despedir o casal O'Keefe. As nomeações não devem ser tornadas públicas. Sempre pode haver alguma indiscrição. Assim parecerá que as irregularidades foram logo descobertas pela atividade do Bispo Donahue. Não se deve permitir que o cardeal tenha acesso ao dinheiro outra vez.

  - O senhor acha - Benelli sacudiu a cabeça pensativo que essas instruções devem ser dadas claramente e em detalhe ao Monsenhor Donahue no documento que lhe será enviado?

  - Da maneira mais clara possível, e tudo deve seguir logo amanhã.

  - vou fazer o que for possível. - Ele franziu a testa. Diga-me, padre, será que há em Chicago alguma firma de auditoras que se encarregue de administrar as finanças?

  - Arthur Anderson, é a melhor que há. - Eu respondi logo. Ele levantou-se e enfiou as mãos na faixa vermelha.

  - Muito bem, volte aqui amanhã à mesma hora, padre. Não prometo nada, mas farei o que for possível.

  Veio até a porta comigo e ali, pela terceira vez, agraciou-me com o mesmo sorriso. Apertou-me a mão. Depois disse com simplicidade.

  - Somos-lhe muito gratos, padre.

 

  Não quis jantar com a Mo no Tre Scalini e preferi voltar ao apartamento. Sheila já estava dormindo. Naquele mesmo dia eu tinha tentado abraçá-la, mas ela mostrara-se fria e distante. Era uma pobre meninazinha solitária e infeliz.

  Eu perguntara ligeiramente a Mo se havia algo de errado com ela.

  - Sente falta do Pat. Ele tinha um jeito incrível com crianças. Creio que me culpa por tê-lo perdido.

- Ela falava sem encarar-me.

  Eu bebericava o café-expresso e comia o bolo ao mesmo tempo que ia contando a Mo tudo o que acontecera, do princípio ao fim. Ela ouvia atentamente, e o seu rosto, geralmente expressivo, mostrava-se imóvel como era o de Ellen antigamente.

Quando terminei ela disse confiante:

  - O Benelli vai cuidar de tudo. Ele é inteligente o bastante para saber que você deve dar ao Pat instruções detalhadas. Sacudiu a cabeça. - Agora, pelo menos, o Pat já ficou sabendo quem é o O'Neil. O que acha você que eles vão fazer?

  - A minha opinião é que darão ao O'Neil um cargo insignificante por aqui e depois então, quando o Pat já tiver arrumado tudo, colocarão lá um outro arcebispo.

  Depois, passados alguns meses, darão ao Pat uma boa, mas pequena diocese. Depois disso, então, o céu é o limite, na minha opinião.

  Mo tinha tirado o seu vestido de verão e estava agora com um robe branco, transparente mas muito discreto, cuja gola segurava com os dedos que me pareceram muito magros.

  - Isso seria a coisa mais sensata que poderiam fazer, mas a gente nunca pode ter a certeza nesta cidade. Como é que você aoha que ele está agora, Kev? - Ela apertava bem a gola com os dedos, temendo, talvez, que a vista de sua garganta me tentasse.

  Espetei mais um pedaço do bolo antes de responder.

  - Eu não gostaria de ter Giovanni Benelli como um inimigo.

  - Eu estava falando do Pat. - Ela sorriu com tristeza. Havia apenas uma luz ali naquela sala elegante e isso resultava em sombras sutis nas cadeiras e na mesa. Nossas silhuetas pareciam figuras clássicas nas paredes. O barulho da rua, perto da Piazza Farnese, parecia estar vindo de quilómetros de distância. Eu passei a mão na testa.

  - Depois de todos esses anos, eu não sei o que dizer. Sei que sou duro com ele e preciso ter muito cuidado com o que digo porque estou por demais condicionado para ser cínico quando falo dele. Ele vem desempenhando bem suas funções em circunstâncias bem difíceis. No que diz respeito aos problemas públicos, ele tem sido mais sincero e valente do que muita gente. É ele quem ainda mantém unida a Igreja em Chicago. Está agindo com coragem nessa trapalhada financeira, sabendo que sua vida pode correr perigo.

  - Mas. . . - Ela soltou as mãos da gola deixando ver uma bela garganta.

  - Não tem nenhum mas. . . - Eu dei de ombros e enchi a minha quarta xícara de chá.

  - Você pensa que ele é um cabeça oca, um imprevisível e, talvez, até mesmo uma pessoa sem consciência, como O'Neil, não é mesmo? Você acha que falta alguma coisa na sua personalidade, especialmente porque ele nunca observou muito o celibato, não é mesmo? - Ela até parecia o Coronel interrogando uma testemunha.

  - Todo mundo tem alguma coisa faltando em sua personalidade, Mo, e a minha não escapa. No cerne de Pat deve haver alguma coisa boa. Eu sempre fiz tudo para ajudá-lo.

  E você está apaixonada por ele.

Ela apanhou um lenço de papel e começou a chorar baixinho.

  - Eu sei que estou completamente livre dele mas, mesmo assim, as saudades são terríveis.

  Achei que tinha chegado a hora de lhe falar sobre a nova casa de Ellen no lago, num ambiente seguro, e também fazer algumas perguntas discretas sobre suas atividades na pintura, coisa com que ela se ocupava agora muito pouco.

  Quando ia subir para meu quarto, ela desejou-me boa-noite com um beijo cheio de ternura, e depois disse baixinho:

  - Você é maravilhoso, Kev.

  - Gosto muito de receber elogios assim. - Retribuí-lhe o beijo.

  Fechei a pó 'a por dentro e despi-me para entrar no chuveiro, mas depois envergonhei-me e abri a chave deixando-a só na maçaneta.

  Na noite seguinte, Benelli esperava-me de pé em seu gabinete no momento exato em que o carrilhão de S. Pedro dava as oito e meia. Ele entregou-me um envelope grande que ainda estava aberto.

  com a mão sempre enfiada na cintura, ele falou efusivamente.

  - Pode ler tudo, se quiser, padre. Contém tudo aquilo que me pediu ontem.

  Fechei primeiro o envelope que estava endereçado a Patrick Donahue.

  - Não é necessário, Excellenza, tenho confiança no senhor.

  - Se, algum dia, quiser vir trabalhar aqui... - Dessa vez o sorriso foi ainda mais aberto.

  - Nós estaríamos brigando o dia inteiro, Excellenza. Rimos muito os dois.

  - Quanto foi o dinheiro, padre? - Ele ficou novamente sério.

  - Na minha opinião, deve andar entre três ou quatro milhões. Estou certo de que o Pat o manterá informado. Vai chegar o dia em que o senhor chegará à conclusão de que o melhor mesmo é não saber a quantia exata.

  Ele sacudia a cabeça com tristeza.

  - Quanto ao outro assunto, padre, vou fazer o que me for possível. Mais uma vez, não lhe prometo nada. O cardeal andou distribuindo presentes para muita gente altamente colocada... Ao dizer isso suspirou de forma expressiva.

  - Eu sei que fará o melhor, Excellenza. - E eu era sincero.

  Pat não perdeu tempo e agiu rapidamente. O casal foi despedido na sexta-feira e os contadores de Arthur Anderson apareceram discretamente logo de manhã, na segunda-feira.

  O Coronel, ainda mais discretamente, instalou-se numa das mesas da Chancelaria. Willewski visitou Pat e logo depois telefonou-me.

  - O sacana virou bonzinho. Está agindo muito bem.

  - Vai indiciar alguém, Harry?

  - Na verdade, Kevin, ainda não sei... - Ele hesitou. Ora, que diabo, você tem o direito de saber. Não queremos indiciálos. Seria mais prejudicial do que bom. De qualquer maneira, eles vão escorregar outra vez, e então alguém, talvez de uma outra jurisdição, vai pegá-los.

  Ele estava querendo dizer que o seu chefe sabia bem que qualquer providência mais enérgica contra alguém que trabalhasse para a Igreja redundaria num tremendo ônus político.

  Dom, o "Morto", porém, não estava satisfeito.

Pat telefonou-me pouco antes do fim de semana do Dia do Trabalho e perguntou-me baixinho numa voz abafada.

  - Você já viu os jornais?

  - Eu tenho andado muito ocupado tentando recuperar o tempo perdido com a viagem e quero pôr em dia o meu trabalho. O que foi que houve?

  - Sally foi espancada, estuprada, cortada, na noite passada. Obrigaram Bernard a assistir. Meu Deus, Kevin, o que foi que nós fizemos? - Ele parecia bem chocado.

  - Nós não fizemos coisa alguma, Pat, mas eu vou fazer agora. Telefonei para o Coronel e disse-lhe o que ia fazer.

  - Você está querendo bancar o Deus, Campeão. . .

  - Se o Governo dos Estados Unidos e o Estado de Illinois não podem proteger o seu povo, então não temos outra escolha, pai. Não é mesmo? - Houve uma pausa.

  - Você está certo, Kevin. Eu não teria coragem para isso. Acho que sou civilizado demais. Isto não é um insulto, Campeão. Há ocasiões em que um pouco de falta de civilização torna-se até necessário. . .

  - E, além disso, ele poderia tentar uma repetição com Mônica. Afinal, foi ela quem apitou pela primeira vez. Nós todos lhe devemos alguma coisa.

  - Você tem toda a razão, Campeão. . . vou mandar dobrar a segurança dela nestes próximos dias.

Durante muito tempo eu fiquei ali sentado e olhando para fora pela janela do instituto. O campus estava deserto. O prédio estava quase vazio. Eu devia ir para o lago e aproveitar o fim de semana. Sabia que não iria. Lutei um pouco mais com meus pensamentos e, afinal, cheguei à conclusão de que, de qualquer forma, eu estava mesmo bancando o Deus e, sendo assim, a minha primeira obrigação era proteger aqueles qtre me eram caros.

  Embora eu tivesse telefonado antes de chegar lá, Mônica abriu a porta de seu apartamento na Rua 53 com alguma indecisão e sem retirar a corrente de segurança.

  Ela parecia cansada e desanimada. Quando viu que era eu seus olhos brilharam. Havia ali um vestígio do sorriso inocente que eu vira no rosto de uma caloura no High Club já fazia muito tempo.

  Ela apertou a gola da mesma forma que a Mo fizera em Roma.

  - Desculpe-me, padre. Fiquei com o Tommy até muito tarde na noite passada, e como hoje é o meu dia de folga, dormi um pouco mais.

  A recuperação do seu rosto estava perfeita. Uma cicatriz quase invisível, aqui e ali, ainda tornava seu rosto mais interessante.

  - Estou vendo que o Tommy se interessa muito por seus pacientes...

  - Ele é o meu Pigmalião. Reconstituiu o meu rosto e o meu corpo e depois se apaixonou por sua obra.

  - Você anda lendo demais para pensar dessa forma. E onde está o chá para o padre?

  Ela voltou logo depois com o chá e bolinhos de chocolate.

  - Quero agradecer-lhe pelo Dr. Strauss, padre. Agora, quando sei que tudo vai dar certo, vejo o mundo de forma diferente.

  Ia haver um casamento 10 Natal e eu teria que cerebrá-lo. Contei-lhe o que tinha acontecido e ela ouviu tudo muito pensativa sacudindo a cabeça. Se quisesse, poderia escrever o seu artigo para o jornal, mas eu lhe impunha certas condições.

  - É preciso que alguém revele tudo isso, padre. E é o que eu vou fazer. vou telefonar para o editor...    - Voltou logo depois. - Ele me disse que vá em frente. Eu lhe prometo que tudo vai aparecer como se o roubo fosse descoberto, muito discretamente, devido ao trabalho do Bispo Donahue.

  O artigo sai; no jornal de domingo e Dom Corso era citado explicitamente COMO o torturador de Sally CTKeefe. Falava nos grandes prejuízos do casal nas corridas e também de haverem sido despedidos da Chancelaria pelo Vigáriop Geral, Monsenhor Patrick Donahue. Mostrava abertamente que o casal fora vítima da gangue de Corso.

  Não havia comentário algum de parte do Bispo Donahue.

  Alguém na Chancelaria Kevin Brennan, para falar a verdade explicara que o Bispo Donahue, tendo sabido do envolvimento do casal O'Keefe com uma gangue de jogadores, não tivera outra escolha, e então despedira-os.

  Não havia menção alguma a respeito do cardeal, como também não havia nenhuma sugestão de que o casal fizesse parte de uma gangue de estelionatários. Mônica não falou dos que tinham sido despedidos no banco porque Kevin nada lhe dissera a tal respeito.

  Afinal, O'Neil recusou-se terminantemente a aceitar sua transferência para Roma, mas Pat foi nomeado para Benton Harcour, Michigan, como bispo da cidade. A turma de Arthur Anderson ficou na Chancelaria, onde não houve mais desvio de dinheiros. O cardeal, no entanto, continuava a vender terras a preços de liquidação e a enviar estipêndios de mil dólares para missas em Roma.

  - Eu resolvi que ficaria ali sentada até que ele me visse - disse Ellen com um sorriso maroto.

  Ela trajava um vestido marrom maternal e estava muito bonita.

  - Estou vendo que posso dar-lhe os parabéns...

Estava ali sentada, bem esticadinha, em meu gabinete, ainda uma noviça, embora fosse uma noviça grávida.

  - Desta vez é muito diferente. Antigamente, eu nunca tinha tempo para saber se queria ou não os outros filhos, coitadinhos deles. Mas este aqui, nós o esperamos nestes últimos dois anos sem que ele se resolvesse a cooperar. Acho que foi bem feito para mim... - Ela falava acariciando a barriga.

  - Eu diria que ele é um cara de sorte. Os gens irlandesesjudeus são duros de roer.

  Ela apanhou sua bolsa de couro trabalhada à mão e tirou dali um livrinho que me ofereceu com alguma hesitação.

  - É uma oferta de paz.

  O livro tinha como título Nutmeg, e sua autora era Ellen Foley.

  Ela explicou-me que o marido achava que aquele era um livro irlandês e, portanto, deveria ter um nome irlandês como autor.

Parecia ser uma coletânea de ensaios cómicos sobre a vida em família.

  - Meus parabéns...

  - Olhe a dedicatória, Kevin.

  Eu a li em voz alta: "Para todos os Brennans." Senti qualquer coisa nos olhos.

  Depois ela falou com alguma complacência. Estava alegre como um passarinho.

  - As primeiras vendas já excederam quinze mil exemplares. Estou instituindo uma bolsa para seminaristas em honra ao Coronel... - Ela hesitou e seus olhos cinzentos estavam sombreados com a preocupação. - Será que ele vai gostar?

  - Gostar? - Eu recostei-me na cadeira. - E você acha que o urso polar não gosta da neve?

  Seguiu-se uma pausa um tanto desajeitada entre nós dois. Então era aquela a razão que levara Ellen a me procurar. Queria dar-me um livro e queria me dizer como iria pagar o que havíamos feito por ela.

  Depois falou muito séria.

  - Eu quero me confessar, Kevin.

  - vou chamar um padre. - Eu levantei-me caminhando para a porta. - Entre na capela e...

  - Você não está compreendendo. Quero me confessar com você. - Logo ajoelhou-se ali na minha frente e eu não tive muita escolha.

  - Abençoe-me, padre, porque pequei... Já faz... Oh Kevin. .. faz quase dez anos... Eu estou com medo. - Segurou-me a mão.

  - Eu também estou com medo, Ellen.

  - Eu creio que a pior coisa que fiz, além de me manter afastada durante tanto tempo, foi... eu cometi o pecado da fornicação com Herb muitas vezes, antes de nos casarmos. Eu o seduzi da maneira mais fria e calculada que podia... Ele não podia escapar. Eu gostava daquilo, Kevin, em.1 parte porque sentia prazer em desafiar a Igreja... - Ela estava de cabeça baixa e eu não lhe via o rosto.

  - Espere um pouco, Ellen. Não creio que você achasse aquilo errado naquela época, e não creio que você ache errado nem mesmo agora. - Ela afrouxou a mão.

  - Eu andava tão confusa e revoltada. Será que você aceita esta desculpa quando digo que andava confusa e revoltada, fazendo coisas que me envergonham agora? - Ela ainda não me olhava de frente.

  - Desde que você não inclua ter obrigado o Herb a fazer as coisas de que se envergonha agora.

  Ela deu uma risadinha. Depois ficou séria.

  - Gasto dinheiro demais com roupas. Sou muito vaidosa. Fico impaciente com as crianças e respondo mal ao Herb. Arrependo-me de tudo isso à noite quando faço as minhas orações.

  - Você reza todas as noites?

  Ela, afinal, encarou-me com os olhos arregalados de espanto.

  - Mas claro que rezo. Não consigo dormir sem dar boa-noite para Deus. Até mesmo quando estou zangada com Ele.

  Fornicação, sedução, impaciência com os filhos e boa-noite para Deus. Sem dúvida ela dava-Lhe boa-noite até mesmo quando ia para a cama e pecava com o Herb.

  - Eu continuo esperando pelo pecado real, o único pecado, Ellen.

  - Eu já disse tudo... - Ela levantou a cabeça.

  - Você não me disse a coisa mais importante de todas. Você estava zangada com Deus e estava zangada com a Igreja, e durante muito tempo pensou que isso podia ficar assim.

  - Não quero tocar nesse assunto...

  - Então não poderá ter a absolvição. - Ela procurou retirar a mão, mas eu não a larguei.

  - Será que nessa sua alma fria como gelo não existe o menor resquício de compaixão?

  - Se você está procurando compaixão, Ellen, vá procurar seu marido e peca-lhe que a apresente a algum psiquiatra que a ouvirá com simpatia. Se quiser a absolvição, pare com a brincadeira.

  Ela deixou de puxar a mão. Ficamos muito tempo em silêncio.

  - Então é só isso que conta, não é? Pois muito bem, Kevin, eu vou lhe contar e você terá que enxugar as lágrimas que vão cair neste seu chão muito duro. Eu culpava a Igreja e Deus por coisas que estavam dentro de mim e de minha família. Eu só via as coisas feias e esquecia-me do Padre Conroy, da Irmã Carolina, da primeira comunhão, das coroações de maio, das festas no clube, da Missa do Galo e de todas as coisas maravilhosas que adoro tanto. Desisti de tudo porque estava revoltada. Achei que a Igreja era a culpada pela morte de Tim. Eu amava-o demais. Não podia salvá-lo, mas achava que a Igreja podia. Até mesmo quando fazia tudo isso eu sabia que estava errada e que, algum dia, eu me ajoelharia no chão diante de você para lhe implorar que me recebesse de volta.

  - E agora já o fez. E a maldita e idiota Igreja lhe diz: "Ellen Foley Curran Strauss, nós, realmente, não nos demos conta de que você fugira porque nós nunca permitimos que você se fosse."

  - Senti como se um imenso peso se elevasse de meus ombros e saísse espiralando pelo espaço.

  Ela encostou a cabeça em meu joelho e chorou. Depois recuperou-se.

  - Então o pior pecado de Ellen era contra a própria Ellen... Por esses e todos os outros pecados de minha vida, eu me arrependo de todo o coração e peço perdão a Deus, e ao senhor, padre, eu peço a penitência e a absolvição. É assim mesmo que a gente fala, Kevin? Eu me sinto tremendamente desatualizada.

  - Está bem assim. - Eu sentia-me relaxado. - E a penitência vai ser bem pesada. Vai ter que rezar um pai-nosso para todos os homens que existiram em sua vida. Para seu pai, o Tim, o Herb, seus filhos, o Pat e eu.

  - Só um pai-nosso? - Ela parecia espantada.

  - Não creio que Deus precise ouvi-lo duas vezes para saber qual é a oração. - Depois disso dei-lhe a absolvição, ou a reconciliação, que é o nome obrigatório atualmente.

  Deixei que minha mão ficasse ainda um instante em sua cabeça antes de ajudá-la a levantar-se.

  - Você batizará meu filho?

  - Claro que batizarei.

  - E também virá jantar conosco de vez em quando?

  - Claro que irei. Preciso conhecer melhor os meus filhos.

  Eu disse aquilo sem saber bem quantas vezes lá iria.

  - Puxa vida, Kevin, como me orgulho deles todos! - Ela vibrava em seu amor materno.

  - Os pais são ótimos.

  Houve um momento de silêncio sem nenhuma angústia, mas apenas tranqüilo, em que pensamos ambos em Tim.

  - Muito obrigada. - Ela estava alegre agora.

  Já estava na porta quando se voltou bruscamente. Os olhos estavam muito abertos e angustiados.

  - Não quero ir-me embora sem lhe pedir muitas desculpas, Kevin. Tem que me perdoar por ter sido uma verdadeira pestezinha com você... - Aquela frase mágica apagava toda uma década de ira.

  - Realmente acho que você tem direito a uma licença especial para ficar zangada comigo sempre que assim o desejar. Eu lhe perdôo, Ellen, esperando que você também já me tenha perdoado.

 

  27 de dezembro Querida Mo,

  Será que você pode adivinhar quem foi a nova mãe que, com um bebé no braço e cercada pelos seus outros quatro filhos, caminhou até o altar na Missa do Galo em St. Luke para se comungar pela primeira vez depois de passados dez anos? E com o marido judeu sorrindo orgulhosamente como se houvesse conseguido converter alguém?.

  Agora já me reconciliei com a Igreja e com Kevin, embora nenhum dos dois queira reconhecer o fato de termos estado zangados todo essse tempo. Aquilo foi como se eu já houvesse comungado na antevéspera.

  Eu amo Kevin com toda a minha ternura, e já não me sinto zangada com ele. Ele ainda sente medo de mim, e eu acho que isso só passará quando eu me oferecer para ir com ele para a cama, e que ele tenha então a oportunidade para me dizer não.

  De qualquer maneira, eu vou ter um Ano-Novo muito feliz. Estou começando um outro livro. Eu sei que devo a você uma grande parte de minha felicidade. Será que existe alguma maneira para eu lhe fazer também feliz no Ano-Novo? Por favor, dê-me a oportunidade se isso for verdade.

  Dois dos meus garotos estão doentes. Excessos do Natal. Portanto, desculpe-me por esta carta tão curta.

  Com amor,  ELLEN.

 

  P.S. Se o Kevin dissesse sim, fico a imaginar o que eu faria.

 

  Quando voltava de minhas férias de Natal com a família, no Arizona, eu não me sentia feliz ali sentado no avião, e essa condição não melhorava com a presença de dois jovens jesuítas sentados perto de mim em vestes sacerdotais, um fenómeno bem raro para jesuítas nos dias que correm. Eram ambos de uma província da Costa do Pacífico e estudavam psicologia, um em Harvard e outro em Yale. Eu ainda estava em trajes esportivos e eles não indagaram nada a meu respeito, empolgados como estavam com a sua missão para a renovação e atualização da Igreja. Logo descobri que eram behavioristas e discípulos fanáticos de B. F. Skinner.

  - Como o senhor sabe - um deles informou-me, com uma entonação apropriada para uma aula de calouros - a Igreja tornou-se irrelevante porque todo o seu reforço positivo é programado para a outra vida, ao passo que o negativo cuida desta vida. Só nos prometem a alegria depois da morte.

  - É isso mesmo - o outro confirmou. - Somente quando introduzirmos mais reforços positivos neste mundo e esquecermos o que vem depois, é que as pessoas vão dar-nos atenção outra vez.

  - Sim, sim. - Eu estava deixando que eles me vissem como um leigo. - Mas o que é que acontece com a sua tabela de reforços positivos e negativos depois da... da Ressurreição?

  - Achamos que essa espécie de reforço é irrelevante, - Os dois tiveram um risinho sardónico.   

  - O mito da Ressureição já está fora de moda. Obviamente, ele representa a espécie de renascimento psicológico que acontece quando a mistura certa de sanções positivas e negativas resulta num comportamento satisfatório como uma substituição para o comportamento insatisfatório. Não, agora já não precisamos mais da vida que vem depois da morte.   

  - Quem falava era o de Yale.

  - Quer dizer que não há céu? Não há Ressurreição?

  - Mas claro que não. - Agora a palavra estava com o de Harvard. - Aliás, a maior parte das pessoas já não acredita mais nisso.

  - E como é que os psicólogos católicos ainda não descobriram isso? Esse tal de Brennan...

  - Ele não deve ser levado a sério - o de Yale interrompeume. - Não tem a menor reputação na profissão.

  - Quase se pode até dizer que ele nem é padre - disse o outro. - Ele não está interessado na Igreja. Só pensa em ajuntar dinheiro.

  - E também é muito difícil trabalhar com ele. Quase não tem amigos.

  - É mesmo?!

  O avião continuava em sua rota junto com a lição que eles me davam. Foi um alívio quando saltei em Chicago e eles seguiram para Boston.

  Antes de desembarcar, contudo, pensei em tirar uma pequenina forra.

  - Foi um prazer a conversa que tivemos, padres. Estou tão interessado em tudo que disseram que até mesmo vou mandar uma cartinha para o seu provincial congratulando-me com ele pela educação que dá a jovens progressistas e brilhantes como vocês. Estou certo de que ele estará muito interessado em tudo aquilo que me disseram.

  Em lugar de ficarem apavorados, eles ficaram muito satisfeitos.

  A guerra continuava a devastar o Vietnã. Os Colts ganharam dos Cowboys no Super Bowl. Descobriram que nós tínhamos invadido o Laos e o Camboja. A violência estava mais forte do que nunca na Irlanda. E eu continuava ali sentado em minha toca desanimado, descobrindo que a Igreja era uma puta que estraçalharia o meu coração todas as vezes que eu tentasse amá-la. Os cabelos de minha mãe já estavam tão brancos como os de meu pai, e os meus já tinham também seus laivos encanecidos.

  No meio de todas as tristezas, Maureen, cada vez mais adorável, veio visitar-me no porão do Centro Católico onde eu tinha o meu gabinete e onde o novo capelão permitia que recebesse meus amigos.

Ela sentou-se, cruzou as pernas e acendeu um cigarro.

  - É um favor enorme o que eu venho lhe pedir, Kevin. Gostaria que olhasse pela Sheila enquanto eu estiver fora.. . Eu fazia o possível para não olhar as suas pernas, ao mesmo tempo em que pensava no tempo que ela devia levai- para se maquilar daquele jeito.

  - Foi a sua gente que olhou a criançada dos Brennans durante a guerra, Mo. Claro que será um prazer olhar pela Sheila. Mas mesmo se não fosse assim, nós ainda estaríamos devendo isso, pelo menos.

- Exatamente o que disse o Coronel. - Ela fez uma careta com o nariz. - Vocês dois são vinho da mesma pipa. De qualquer forma, a Sheila precisa ficar aqui, longe de mim. Voltarei com freqüência para cuidar das minhas exposições. Creio que ela não vai sentir muita falta... - O seu rosto enuviou-se. - E eu ficarei mais tranqüilo sabendo que você está olhando por ela...

  - Acho que devia ser discreto e não perguntar. . . mas você esteve com Pat?

  Ela esticou o braço para a bolsa, mas logo se arrependeu. Não queria fumar tanto em minha presença.

  - Não. Não estive. Sei que ele anda muito ocupado em sua diocese e eu ando muito ocupada com a minha nova vida. Está tudo acabado, Kevin. Já sou uma moça crescida.

  E tenho também um homem fisgado que não precisa de atenções maternais.

  - É Sloane? O protestante?

  - Da cama de um bispo para a de um WASP. . . - Ela deu uma risada. - Eu sempre fui imprevisível, Kevin.

  - E também maravilhosa. . . - Estava com inveja do Sloane Adams, que era das Relações Exteriores.

  Ela beijou-me e penetrou no nevoeiro do inverno. Eu cruzei os dedos.

  Nunca me faltarajm favores para eu prestar. Em março foi um antigo amigo dos meus anos de seminário, Casey Zenkowski, rotundo, calvo e folgazão.

  - Puxa vida, Kevin. Sua aparência é horrorosa. Magrela e oco.

  - É excesso de exercício.

  - Essa não! - Ele acendeu um charuto e ficou a admirá-lo. - Este aqui é Havana legítimo. - Ele tirou algumas tragadas com ar satisfeito. Era o pastor de uma paróquia polonesa que se transformara em espanhola. Rezava três missas aos domingos. Fazia uma prédica em polonês, uma em espanhol e outra em inglês.

  - E como vão os outros, Casey?

  - Mas que outros, Kevin? Os únicos que sobraram são o Nick e eu. Ninguém se exilou. O Nick está cansado. Leva as coisas das encíclicas papais muito mais a sério do que nós. Ultimamente ele vem se lamentando e achando que a Igreja vai mal e como é possível que nos mande caras como o O'Neil.

  - Nós não devíamos permitir que eles tivessem tanta força assim, Casey.

  - É isso aí. Então você vai jantar com o Nick um dia desses para animá-lo um pouco?

  - Claro, Casey. E obrigado por me avisar.

O pedido de Casey foi devidamente arquivado para uma futura ação.

  O pedido seguinte para um favor veio bem disfarçado. Era de Patrick Donahue.

  Ele telefonou-me de Benton Harbour propondo-me, com a sua voz aveludada e charmosa, um passeio no seu novo veleiro, St. Brendan, numa quinta-feira em fins de maio.

  Eu não era muito apaixonado por veleiros, mas o calor e a amizade no convite eram irresistíveis.

  O St. Brendan tinha seus nove metros e Pat manobrava-o como se fosse um barquinho de brinquedo dentro de uma banheira, apesar de enfrentarmos ondas de mais de um metro num vento de nordeste de vinte milhas. Saímos da marina de New Buffalo, tresandando a gasolina, nos limites de sua diocese, e descemos o canal em direção ao lago. Segurei o leme enquanto Pat, muito elegante em shorts brancos, andava de um lado para outro manobrando as velas, gritando comandos náuticos que eu não entendia.

  Ele, afinal, veio sentar-se ao meu lado ainda ofegante e tomando o leme de minhas mãos inexperientes.

  - Eu guardo o barco dentro da diocese porque não quero esconder a sua posse. Dou um duro danado durante toda a semana e não quero esconder de meus padres ou de meus paroquianos que preciso relaxar um pouco no lago em algumas tardes.

  - Você tem uma ótima aparência, Pat. - Eu estava todo encolhido dentro do suéten com ou sem o sol quente de maio, eu não sabia como ele podia andar ali nu da cintura para cima, mas era obrigado a reconhecer que era a imagem típica de um jovem atleta saudável e bem disciplinado.

  - A saída de Chicago foi a melhor coisa que podia ter acontecido para mim, Kevin. Livrou-me da maior parte da pressão. Deus bem sabe que não tenho muito tempo livre aqui em Benton Harbour, mas a minha parte espiritual está novamente em perfeita ordem. Rezo todos os dias. Estou fazendo tudo, o que é humanamente possível... - A sua voz foi desaparecendo, e eu sabia que, se olhasse bem em seus olhos azuis, veria lá, novamente, aqueles sinais do medo.

  - Eu sei que você está mesmo, Pat. O pior já ficou para trás.

  - É o que, certamente, espero. No princípio foi muito duro, mas agora já está mais fácil.

  - Eu nunca o vi assim tão feliz. Parece que você encontrou o seu papel. Bispo e capitão de seu barco.

  - Eu acho que me enredo com as mulheres quando são muito fortes as pressões e as responsabilidades. - Ele riu. - Benton Harbour tem a conta certa do que preciso. Se fosse mais... eu estaria novamente encrencado.

  Começamos a viagem de volta, e o meu estômago ainda não se decidira se enjoava ou não.

  - Você não gostaria de uma promoção? - perguntei.

  - Absolutamente. De forma alguma. Nem mesmo Grand Rapids ou Detroit, e muito menos Chicago. Sei que gostam do que eu estou fazendo por aqui e que estou marcado para coisas maiores, mas vou recusar tudo categoricamente. Mesmo se a minha vida ainda durar outros quarenta anos, eu pretendo morrer como bispo de Benton Harbour.

  - Acho que é uma decisão muito sensata, Pat.

- Você me disse um dia que eu devia ficar lá nos Mártires.

  - Ele agarrou-me o braço com força. - E você estava certo. Cada vez que subo um pouco, eu me meto em encrencas. Não posso voltar para lá, mas posso parar de subir e ficar aqui. E é o que vou fazer.

  Eu sabia que ele estava sendo sincero, mas já não tinha tanta certeza se iria pensar assim nos dias seguintes.

  Lá em cima de nós as nuvens em flocos amarelados iam deslizando e a água azul e verde com a espuma branca passava por nós à medida que o St. Brendan deslizava para a praia. O sol e o vento banhavam-nos com uma paz cheia de segurança. Antes de terminarmos a viagem já eu tinha despido o casaco e a camisa e andava por ali cheio de entusiasmo, puxando as cordas... ou os lençóis, conforme me ensinaram a chamá-las. Quando, finalmente, entramos na baía, Pat e eu estávamos sentados ao lado um do outro, na proa, ofegantes, relaxados, felizes e novamente amigos íntimos.

  - Kevin, estou precisando de mais um favor seu. - O seu rosto estava sério e havia um sulco profundo em sua testa.

  - Eu nunca te disse não, Pat.

  - Desta vez, não é coisa muito grande. - Ele riu-se sem muita vontade. - Apague o que eu disse. É muito grande para mim, embora não exija muito esforço de sua parte.

  - Desembuche logo, homem.

  - É a Patsy. Estou preocupado com ela. Tanto quanto eu saiba, o John cuidou bem dela. Creio que a Gina não liga a mínima. Ela vai casar com o Arnold Tansey, que se dá muito bem com o John Júnior. De qualquer maneira, a Patsy vai ficar sobrando. - A sua voz estava tensa. Manobrou com perícia o barco para o seu ancoradouro, dando a marcha à ré no momento certo. Não é a questão do dinheiro que me preocupa. É o que não falta por lá, O que vai faltar é o afeto humano. Ela está na escola com a filha da Mo, a Sheila, que é, realmente, uma menina encantadora. E já me disseram que as duas andam muito juntas com a Caroliné, a filha mais velha de Ellen. Sei também que você é muito chegado a Sheila e a Caroliné, de forma que não lhe seria difícil tê-la sempre de olho...

  - Você adora a menina...

  O barco encostou no píer e parou como se fosse um pássaro de volta ao ninho.

  - Ela é tudo que eu tenho agora, Kevin. Você sabe como a minha família ficou furiosa por eu ter vindo para aqui. Acham que sou culpado pela morte da mamãe, como se fosse possível recusar a nomeação para ficar em Chicago. Quem mais existe neste mundo e que eu possa amar senão a Patsy? Você faz isso para mim, Kevin? - Enrolou a amarra e olhou para mim.

 

  1.° de julho Querida El,

  É apenas um bilhetinho para dizer a você que estarei ai dentro de alguns dias. Preciso tomar algumas providências a respeito de minha próxima exposição, que é a primeira. vou passar um fim de semana com o exibidor em Michiana e depois irei até o lago na semana de 7 de agosto. Eu preciso ver Sheila. As suas cartas são ótimas.

  Você, os Brennans e os MacNeils têm sido uns amores para ela. Eu talvez possa passar todo o verão no lago. Seria tão bom estarmos todos juntos outra vez. Uma espécie de volta à juventude. Só que preciso ter os quadros prontos para a exposição. E também, com todos os diabos, quero passar algum tempo com Sloane. Temos um relacionamento caloroso, agradável, sem nada de espetacular. Ele não é um fraco, no entanto, e é mais do que passável na cama. Gosta mais de família do que eu, e quer, por força,

casar. O verão será uma boa época para eu conhecê-lo melhor. Creio que estou me inclinando a fazer a sua vontade.

  Até breve, Mo.

 

  15 de julho Querida Mo,

  Todo mundo está entusiasmado com a sua próxima vinda. Temos uma casa para hóspedes por trás de nossa casa onde você poderá ficar com a Sheila para matarem as saudades e se conhecerem novamente. Ela está ótima, desinibida e muito alegre. Já está rindo outra vez.

  É uma pena você não estar aqui nesta semana. Kevin está na casa dos pais, cada vez mais magro e mais solitário. Caroliné e & sua turminha se apaixonaram por ele e passam o tempo todo na beira da piscina dos Brennans encharcando-se de sua sabedoria como se fosse o bronzeado do sol. Ele é um amor para elas e sabe como se adaptar aos problemas de cada uma, e até mesmo de uma garotinha linda e doce chamada Patsy Carrey. Tem sido uma maravilhosa experiência para elas e também tem servido para restabelecer a confiança do Kevin mostrando que ele é um bom padre. Só que não vai durar e ele vai voltar para a porcaria daquele buraco onde mora. É uma forma de se castigar tão óbvia que nem sei como ele mesmo não se dá conta disso.

  Ah, é verdade Já ia-me esquecendo. Case com o Sloane. Nós não queremos nem mesmo discutir qualquer outra alternativa.

  Eu te adoro, e até breve, EL.

 

  Maureen caminhava ao longo do lado da sombra da estrada de Michianà sentindo-se plenamente satisfeita. Sheila estava gostando muito da escola. A dona da galeria estava encantada com os planos para a exposição no ano seguinte, da mesma forma que o seu marido, negociante de atacado de gêneros alimentícios e que, como Maureen desconfiava, era quem arcava com o prejuízo da galeria. O melhor de tudo era aquele carro cheio de rapazolas que tinham assobiado para ela. Ela se dizia que aquilo, para quem já estava perto dos quarenta, valia para uma semana em qualquer estação de águas. Estava satisfeita por haver emagrecido e a sua aparência era muito sexy quando usava shorts e uma camisa T.

  Estava pensando em Sloane. Quando voltasse a Roma ele ia querer casar com ela. Talvez já fosse tempo.

  Chegou até a estrada ao pé das dunas. O lago brilhava ao sol da tarde enquanto pequenas ondas preguiçosas vinham se espraiar na areia. Por que o seu avô e o velho Jeremiah Brennan não tinham comprado ali as terras em lugar do Wisconsin?

  Um grande Ford preto passou na estrada do lago, parou e deu marcha à ré.

  - Oi! Bonitinha! - disse uma voz conhecida.

  - Pat! - O mundo inteiro parecia girar em torno dela. Encostou-se no carro.

  - Eu tenho um barco em New Buffalo. Um dia ótimo para velejar...

  - Eu adoro barcos... - Ela esqueceu tudo que podia haver em sua vida.

  O barco mal tinha saído da marina e já os dois estavam abraçados.

 

  Daniel O'Neil fez com ele aquilo que Roma não conseguira fazer. Uma noite, no outono de 1972, pouco antes da reeleição de Richard M. Nixon, ele atirou o seu Cadillac contra a cerca do Lake Shore Drive e caiu lá embaixo no lago. O carro afundou como uma pedra. Mônica telefonou-me antes que a notícia fosse para o ar.

  - Ninguém vai falar nisso, padre, mas havia uma garrafa vazia de bourbon no carro. - Ela agora já era a Sra. Tommy Varco para os íntimos. - Ele já tinha sido preso pela polícia várias vezes neste ano por dirigir embriagado. O prefeito botou uma pedra em cima com muito pouca vontade.

  - E você vai publicar isso? - Eu estava ainda com voz de sono sem saber bem se estava dormindo ou acordado.

  - Você está brincando! Nesta cidade? Quem você acha que vai ser o novo bispo?

  Eu sugeri um nome, mas pedi-lhe que não mencionasse a fonte, Roma não esperou muito. Dentro de seis semanas o Bispo Patrick H. Donahue, de Benton Harbour, era nomeado o sétimo Arcebispo de Chicago. Tinha quarenta e um anos e era o mais jovem arcebispo do país. Quando ouvi a notícia no jornal da manhã, senti-me como se estivesse perdido no meio de uma tempestade de neve.

  - Então, nós já trabalhamos muito, não é mesmo? - Tonio espreguiçou-se como se estivesse acordando.

  - Sim - Pat arrumou os papéis em cima da mesa. - Já estamos prontos para a reunião de amanhã. Eu lhe disse que não levaria toda a tarde.

  - Temos sorte da principessa ter ido para Ischia para aproveitar as águas. - Tonio tornou a encher outra vez os dois copos - O sossego aqui na nossa vila facilita muito o trabalho, não é mesmo? Não é assim que falam os norte-americanos? Facilitar?

  - Ele estava nos seus dias de born humor. Pat nunca o vira assim tão descontraído e alegre. Tinha até mesmo desabotoado a gola da batina. - Você não acha este pôr-do-sol uma beleza, Pat? Tudo está tão lindo, tão tranqüilo... e, naturalmente, temos ainda o calor da amizade. - Ergueu seu copo numa saudação. Pai levantou também

o seu copo.

  - Eu estou preocupado com algumas das nomeações lá nos Estados Unidos. Uma quantidade de bispos fracos que não parecem compreender...

  - Não se preocupe, caro mio. - Tonio bebericava o seu conhaque, lentamente. - Sua Eminência me disse no outro dia que está muito bem impressionado com a maneira como você compreende as suas responsabilidades.

  - Fico satisfeito sabendo que a Santa Sé confia em mim. Pat sentiu-se corar de orgulho.

  - Você irá longe, meu born amigo. - Tonio observava-o com olhos intensos c ansiosos. - Como norte-americano que é, não vai esquecer aqueles que o ajudaram.

  Acho que nós, os italianos não damos tanto apreço à lealdade. - Ele levantou-se e caminhou para Pat. - Vamos ouvir um disco de Vivaldi?... - Sua mão apertava o braço de Pat de uma forma que era ao mesmo tempo terna e tenaz.

  Pat estava confuso e disse, muito sem jeito, que preferia Cherubini.

  - Ah, ah - Tonio deu uma risada. - Finalmente começamos a civilizar o nosso amigo americano. Já está começando a compreender a sutil diferença de nossa música.

  Ligaram a vitrola que começou a tocar ali na meia sombra. Tonio voltou e passou o braço em torno de Pat.

  - Estou certo de que vai me permitir oferecer-lhe uns frios. Tenho uma garrafa muito velha de um vinho do Pó que poderíamos beber com queijo e salaminho...

uma refeição verdadèiramente rural. Os criados já foram todos embora. Estamos só os dois. Você e eu. - A voz dele era macia e sedutora.

  - É muita bondade sua, Tonio - a voz de Pat tremia ligeiramente. - Mas... sabe como é... Fico com medo de voltar a Roma dirigindo o carro com mais meia garrafa de vinho no bucho.

  - Não seria necessário voltar com a noite já fechada. Claro que poderá partir de manhã cedo. Haverá menos tráfego na segunda-feira de manhã do que neste domingo à noite... - Havia nas suas palavras uma nuança de carícias.

  Pat. bebia o seu conhaque em pequeninos goles c já estava nervoso. Já estava transpirando apesar da suave brisa que soprava, vinda das montanhas.

  - Eu bem que gostaria, Tonio. Fica para uma outra vez. Prometi jantar com uns amigos...

  - Mas, claro, caro mio. - Percebia-se o desapontamento em sua voz, mas ele continuava sendo atencioso e encantador como se nada houvesse acontecido.

  Enquanto descia para Roma, para os braços de Maureen, ele ia imaginando se o outro iria ficar magoado ou, até mesmo, se faria alguma coisa para prejudicá-lo.

 

  No inverno anterior à nomeação de Pat para Chicago, Maureen tinha vendido a luxuosa casa da família no nosso lago, e tinha comprado uma pequena casa em Beverly Shores, Indiana, que ficava logo do outro lado da fronteira da diocese de Pat. Ela passara a viajar para Roma com menos freqüência. Já tinha quadros bastantes para apresentar na exposição em Chicago onde os críticos a acolherem com opiniões diferentes. O Sun-Times disse que "... a senhora Cunningham tem instinto para o colorido do MeioOeste

dos Estados Unidos, especialmente para as luzes que saem da escuridão. No entanto, tudo indica que ela ainda não tem a seriedade ou, talvez, a disciplina, para se concentrar o suficiente naquilo que vê. O resultado é uma coleção de obras que são, em verdade, atraentes mas, de um certo mudo, desapontadoras. Levanos a desconfiar de que a sua visão vai muito além daquilo que nos mostra."

Li aquilo quatro vezes sem conseguir chegar a uma conclusão se era uma crítica boa ou má. Quando lhe falei na Galeria, ela estava realmente encantada. Veio correndo abraçar-me.

  - Oi, Kev, esses malditos liberais gostam dos meus quadros.

  - Pois eu pensei que eles estavam dizendo que você poderia fazer coisa melhor. . . - Consegui recuperar a respiração com alguma dificuldade.

  - Puxa vida! Não seja um desmancha prazeres. Todos sabem que sou mesmo superficial, Kevin. Dizem que sou superficial, mas que os quadros são bonitos. - Maureen já começava a mostrar seus trinta e oito anos, mais no seu rosto desanimado do que nas linhas de seu corpo.

  - A exposição é um sucesso?

  - Claro que não, que diabo! - Ela respondeu alegremente.

  - Não vou ganhar o bastante para cobrir as despesas. Olhe aqui, guando é que você vem ver a minha casa lá em Beverly Shores?

  Disse-Lhe que iria até lá no verão, sabendo, de antemão, que não iria cumprir a promessa. Naqueles anos nós a vimos muito pouco. O Coronel se aposentara, já que o Joe estava na firma, e viajava sempre entre o lago e Tucson, depois de haver vendido tudo que tinha na Flórida para comprar o que parecia ser a metade das montanhas de Santa Catalina. Embora ele e minha mãe adorassem os seis netos, os dois preferiam gozar os seus sessenta anos juntos e com mais tranqüilidade. A mão dele já tremia ligeiramente quando pegava o talher, mas, ao contrário de muita gente, ele não procurava esconder a tremedeira.

  - Posso garantir-lhe que tremia muito mais em Bastogne, no Natal de 1944, e posso garantir que não era por causa do frio.

  - E terminava com uma gargalhada.

  Eu já não me entristecia por vê-los envelhecerem, e rezava, quando tinha tempo para isso, pedindo a Deus que me desse uma velhice cheia de graças como a deles.

  Algumas semanas depois da exposição de Maureen, eu ia caminhando para o Kroch num daqueles dias de primavera repentina que enganam a todos nós do Meio-Oeste, quando ouvi uma voz musical que me chamava.

  - Padre, como vai o senhor?

  Era Ellen, enfiada num jeans e numa camisa de Notre Dame tendo por cima uma jaqueta e que poderia parecer tudo, menos a mãe de cinco filhos. O rabo-de-cavalo estava amarrado por uma banda de borracha e não usava maquilagem. Parecia dez anos mais moça que a Mo.

  - Estava bom no México, Ellen?

  - Herb estava, realmente, precisando de umas férias... Ela resmungou pensativamente. - Aliás, você também está precisando, Kevin. - Seus olhos cinzentos encararam-me com compaixão. - Herb queria, por força, convidar você também, mas eu achei que você se sentiria deslocado...

  - Não sei bem... - Eu tentei uma piada. - Um ménage à trois seria até engraçado. - Abri a porta da livraria para deixá-la entrar.

  - Animal vulgar! Então isto é coisa para um padre dizer?

  - Sou um padre terrível.

  - Nada disso, Kevin. - Ela bateu-me no braço. - Você sabe se a Maureen e o Pat estão juntos novamente?

  - Por que me pergunta isso? - Minha vista estava presa à mesa onde estavam oferecidos os bestsellers lá dentro.

  - Logo que chegamos ao nosso quarto do hotel no México, fui para a varanda a fim de gozar a paisagem, ver o mar e a areia, quando ouvi vozes na porta ao lado. As varandas possuem anteparos para garantir a privacidade dos hóspedes... mas logo reconheci as vozes... - Aí faltou-lhe o fôlego. Ela procurou esconder a confusão e pegou um dos livros, mas ele estava de cabeça para baixo.

  - E você viu-os depois?

  - Deus do céu! Não. Isto é, eu não quis que Herb descobrisse. O que iria ele pensar da Igreja? No dia seguinte vim a saber que eles tinham saído. Eram o Sr. e Sra. Cunningham. Ele era alto, bonito, com cabelos louros já grisalhos. Eu não tinha nada com aquilo, mas...

  - Se a Guarda Costeira apanhá-los trepando, numa das tempestade do Lago Michigan, nós todos vamos ter alguma coisa com isso.

  Ela não chegou a abrir o livro e colocou-o de novo na estante.

  - Por favor, meu Deus, não permita que isso aconteça.

   A caminho de casa eu ia fantasiando a respeito das férias românticas no México. Continuava apaixonado pela Ellen da mesma forma que estava naquele baile do Iate Clube vinte e quatro anos atrás.

 

  Eu também adorava a Patsy. Aquela menininha de onze anos mexia com meus nervos como se fosse a minha própria filha. Eu comparecia regularmente à porta do convento, uma vez por semana, para sair com Sheila e ela, para darmos umas voltas e tomarmos sorvete. A minha desculpa era a Sheila, cuja mãe, minha amiga, me pedira que olhasse por ela. Patsy vinha com ela, naturalmente, como sua melhor amiga. As duas desabrochavam e tornavam-se umas mulherezinhas realmente encantadoras. Sheila era imprevisível, algumas vezes solene e piedosa, enquanto em outras era come a sua mãe, voluntariosa e engraçada.

  Patsy era sempre a mesma. Delicada, frágil, incrivelmente doce e carinhosa. Todas as semanas ela me trazia um presente que podia ser um poema, um desenho, algum trecho copiado numa ortografia interessante. Aquilo, para mim, no princípio, tinha sido quase uma obrigação tediosa, mas no fim já era um prazer que esperava com ansiedade. Nada dizia ao seu pai, nem tinha intenção de fazê-lo, a não ser que ele me perguntasse.

  Em abril, com as chuvas se alternando com pedaços de céu azul, Patsy e eu estávamos sentados numa mesa de fórmica no 31 Flavors bebendo núlk-shake. Patsy ia sorvendo o seu muito •devagar, na tentativa de prolongar o prazer o mais possível. Sheila estava gripada e não pudera vir.

  A irmã achava que eu podia sempre sair com qualquer das duas para aqueles passeios semanais, já que se tratava do Padre Brennan. Eu ficava a imaginar se a Georgina sabia ou se pouco se importava.

  Ela olhou-me e brindou-me com um sorriso encantador com as pestanas piscando sem parar.

 - Padre Brennan, será que posso lhe fazer umas perguntas?

  Já havíamos falado sobre sexo, com ela e Sheila, algumas vezes e esperava que agora o assunto fosse outro.

  - Vai dizendo, Patsy. - Primeiro pensei se deveria tomar mais um milk-shake. Poderia desculpar-me com Calvin Ohira na sessão do dia seguinte.

  - O senhor gosta mesmo de mim?

  - Mas claro que sim. Gosto muito, Patsy. - Ela corou, da mesma forma que Pat quando recebia um elogio.

  - Por que, padre?

  - Porque você é muito boazinha. Você é adorável.

  - Mas há alguma razão especial!

  - A minha fraqueza são as lourinhas bonitas.

  - O senhor é meu pai? - A pergunta foi feita baixinho.

  - Não, Patsy. - Eu senti qualquer coisa que me enchia os olhos. - Por que é que você imagina que sou?

  - Eu sei que meu pai não era o meu pai verdadeiro - ela corou ainda mais e passou a mão no rosto para limpar as lágrimas.

  - Eu tenho olhos azuis e minha mãe, como meu pai, tinha olhos castanhos. O John também não era filho dele. Pensei que o senhor fosse o meu pai, já que gosta tanto de mim.

  - Eu não sou o seu pai, Patsy, mas se fosse teria um grande orgulho por uma filha como você. - A dor que senti no peito devia ser bem igual àquela que se sente quando o coração se dilacera.

  - Eu posso fingir que o senhor é meu pai? - o sol do seu sorriso doce conseguia afastar a tristeza que eu sentia.

  - Não, Patsy. A gente não deve brincar com coisas Como essa. Você deve apenas ficar certa de que eu amo você como se fosse minha filha de verdade.

 

  Patrick Donahue veio para Chicago como se fosse um vento quente do sudoeste no fim de um duro inverno. Ele nomeou para seus consultores o comitê executivo do Senado Eclesiástico, instituiu um conselho pastoral eletivo com um representante de todas as paróquias da cidade, prometeu um sólido apoio financeiro para todas as paróquias dentro da cidade, deu vida nova aos Clubes  Newman, dando-lhes um assistente que me obrigou, a sair do Centro Católico para um apartamento, passou a freqüentar os concertos sinfônicos e as exposições do Instituto de Artes, falava em programas da TV, reunia-se com os redatores dos dois maiores jornais, queria que todos os padres o chamassem de Pat, pôs à disposição do público todos os livros de contabilidade da diocese, e prometeu que os gastos acima de trinta mil dólares teriam que ser aprovados pelo comitê executivo do Senado e do conselho pastoral. Chegou, até mesmo, a jogar basquete com os garoto do seminário.

  Na primavera de 1973, com o escândalo de Watergate no apogeu, ele era o querido da cidade, era o belo, progressista, encantador e democrático arcebispo. Era, disparado, o mais popular arcebispo dos Estados Unidos. Os editoriais dos jornais de Chicago chegava a saudá-lo como a espécie de líder que o país estava precisando naquela época de crises e desilusões.

 

  Aquele foi o ano em que Nick McAuüff abandonou o  sacerdócio.

  - Estou cansado, Kevin - ele disse em meu gabinete, com o rosto desfigurado pela dor. - Estou cansado como o diabo. Já não me importo mais com a política, o controle da natalidade nem todas essas coisas, E&tou na última lona. Já dei de mim tudo que tinha para dar. Já estou vazio. Preciso de um pouco de amor antes de morrer. Sinto-me tão solitário! - Chegou a engasgar-se. - Ela é uma mulher maravilhosa. Cinco filhos extraordinários. Não é uma questão de sexo, Kevin. Não ligo muito para isso. O que preciso é de amor. E ela me ama. Não posso continuar vazio assim.

  - Se é isso o que você vai fazer, Nick - respondi tentando esconder o meu sentimento de traição e deserção - eu tenho a certeza de que vai fazer a coisa certa. Desejo que tenha toda a felicidade que tão bem merece.

  Um mês depois do casamento, ele convidou-me para jantar em sua casa e conhecer "Lonie". Eu tinha uma reunião em Washington e não pude aceitar o convite. Pelo Tom de sua voz eu percebi que ele estava imaginando ser aquilo apenas uma desculpa.

Até mesmo com o rejuvenescimento da Arquidiocese de Chicago, sob a brilhante chefia de Pat Donahue, a Igreja, nos Estados Unidos, continuava a escorregar para o despenhadeiro. As escolas se fechavam. Os padres e freiras estavam indo embora, e os que ficavam continuavam confusos e sem saber o que fazer. Os seminários e noviciatos estavam fechando as portas. A hierarquia desistiu do controle da natalidade e começou a caminhar para uma nova política a respeito das anulações. A despeito da nomeação de mais pastores pelo novo delegado, a chefia não conseguia recuperar muita credibilidade, a não ser o Pat, que era um herói nacional. Novas modas e manias varriam a Igreja com frenética velocidade. As bolsas escolares que eu conhecia tão bem eram agora vistas com desprezo ostensivo. O eomparecimento às missas reduzira-se à metade, embora a população jovem compensasse um pouco. Surgian escândalos financeiros em dioceses e ordens religiosas. Os novos bispos estavam descobrindo que  os seus antecessores tinham gasto dinheiro de forma descontrolada e que, no dia em que se instalavam, já encontravam fiscais do governo à sua espera.

  Meus pais estavam quase sempre fora. Meus irmãos estavam todos ocupados com as suas famílias. A comunidade de jovens de St. Praxides tinha desaparecido. Eu sentia-me só.

  Ia resistindo, escrevendo relatórios sobre pesquisas e livros. PC quando em quando, algum bispo me telefonava, tarde da noite, pedindo sugestões. Creio que o faziam às escondidas com medo de Pat, a quem não queriam ofender.

  Kevin Brennan, o inevitável líder de 1948, já não existia como pessoa. Patrick Donahue, que sobrevivera graças à discrição de Kevin Brennan, era o arcebispo de Chicago.

 

  Já fazia seis meses que de estava em Chicago quando recebi um telefonema. Minha secretária veio avisar-me, muito nervosa, que havia um telefonema do gabinete do arcebispo. Atendi.

  - Sim?... O endereço certo para a correspondência é aqui no instituto de pesquisas.

  Do outro lado da linha houve um frígido silêncio. Depois uma voz impessoal e eficiente falou:

  - O arcebispo quer vê-lo esta tarde.

  - Tenho um seminário hoje à tarde, mas se Pat Donahue quer falar comigo, ele sabe o número de meu telefone. - Eu estava querendo uma briga de qualquer  maneira.

  - vou dar o seu recado, padre. - A resposta foi uma ducha gelada.

  Em cinco minutos Pat estava me chamando. Falou logo muito alegre.

  - Oi, Kevin. O que é que está havendo?

  - É o meu nome para a correspondência. Tenho sentido falta de suas palavras cheias de sabedoria todas as semanas.

  Ele deu uma gargalhada como se aquilo fosse uma grande piada.

  - Kev, eu não tenho mais tempo para nada. Quando cheguei aqui prometi-me que iria conversar com você logo na semana seguinte. Não tenho palavras para dizer a você o quanto aprecio o seu tato e discrição mantendo-se nos bastidores. Há muita gente de olho em mim para ver se há favoritismo por aqui. Todo mundo sabe que eu não posso dizer não para você. De qualquer maneira, vamos esquecer tudo isso agora. Você tem alguma noite livre nas próximas semanas? Queria que viesse jantar comigo.

  Marcamos o dia.

  Pat passava a maior parte de seu tempo na reitoria da catedral, mas continuava com a casa em North State Parkway, como um lugar onde poderia receber convidados, especialmente pessoas cívicas, reuniões para padres, uma vez por semana, e para "conversas particulares", conforme me explicou com um sorriso em que se desculpava numa reunião do Senado Sacerdotal. Acho que o meu caso era uma "conversa particular".

  Era uma magnífica noite de verão quando um padre, jovem ainda, veio abrir a porta. Era um moço muito bonito, extremamente parecido com o Pat dos velhos tempos, a não ser pelos cabelos que eram castanhos e não louros. Ele apresentou-se respeitosamente.

  - Art McGrath, padre. É uma honra conhecê-lo. Tenho lido todos os seus livros e espero o próximo com ansiedade, sobre o Entusiasmo. Aposto como vai substituir o de Ronald Knox como a principal contribuição nesse campo. - Ali estava um outro porcaria de fala macia.

  - Meu nome é Kevin, Art. E o meu ponto de vista não será histórico como o de Knox. Só pretendo complementar a sua obra e não substituí-la. - Enquanto falava, apertava-lhe a mão.

  - De qualquer forma, quero lê-lo.

  Fui introduzido no gabinete particular do arcebispo no segundo andar. Art explicou-me que ele iria demorar um pouco porque tivera uma longa conversa com o Arcebispo Benelli naquela tarde, e isso prejudicara um pouco a sua agenda.

  Numa sala ao fundo do corredor, uma datilografa jovem e bonita trabalhava com afinco. Às seis em ponto ela levantou-se, veio até ao gabinete, olhou-me com desconfiança e colocou uma volumosa pasta em cima da mesa. Depois falou com severidade:

  - Isto é somente para os olhos de Sua Excelência.

  - Onde está a máquina Xerox? - olhei para ela rindo.

  A moça lançou-me um olhar rancoroso e saiu apressada. Fiquei ali a iiuaginar se o Pat andava trepando com ela.

  Esperei quarenta e cinco minutos, muito menos do que O'Neil me obrigara a esperar.

  Pat abraçou-me no estilo romano mas sem os beijos.

  - Kevin, Kevin! Meu Deus, como é bom ver você. Está com uma ótima aparência. Nem meio quilo de gordura a mais. Quer um Jameson? Um Special Reserve de dezesseis anos?

  - Quero uma Pepsi, Pat.

  Ele tirou fora a batina de botões vermelhos, atirou-a num sofá e foi para o bar muito enfeitado. O martíni que tomou era muito mais seco do que os de antigamente.

  Ele parecia estar em boas condições. No entanto, não havia a menor dúvida, seus cabelos estavam pintados, mas isso não o diminuía a meus olhos, Ele era um arcebispo bonitão, com jeito de garoto.

  - Ao futuro de Chicago, Kevin.

  Tocamos os copos, e já a minha hostilidade tinha desaparecido.

  O jantar foi tranqüilo e agradável. Ele explicou-me a norma de suas decisões e pediu-me conselhos sobre assuntos pessoais, anotando o que eu dizia. Estava especialmente interessado na espécie de pesquisa empírica que eu achava boa para a diocese. Comeu  pouco e bebeu só alguns goles do vinho. Ele sacudiu o garfo alegremente enquanto eu espetava um outro pedaço do rosbife.

  - O que é que você acha da nova Chicago, Kevin? A contabilidade dos recursos à disposição do público, promoções por merecimento, tomada de decisões democrática, consultas com os leigos, renovação espiritual. Você pode me apontar uma outra diocese, posterior ao Concílio do Vaticano, que esteja em melhores condições?

  A satisfação que demonstrava pelas mudanças ocorridas na diocese fazia com que o seu rompante parecesse infantilmente inócuo.

  - Ainda está na lua-de-mel... - respondi um tanto ácido. A sua expressão de desconsolo implorava alguma coisa mais.

  Pensei comigo mesmo que ele não a teria enquanto não me disaesse o que queria de seu amigo Kevin.

  Depois do jantar voltamos ao seu gabinete, onde ele me ofereceu um magnífico Porto e um de seus charutos de Cuba, que recusei. Ele recostou-se em sua poltrona com ar muito satisfeita.

  - Muito bem, Kevin, diga-me agora o que você deseja fazer nesta nova Chicago?

  - A mesma coisa que venho fazendo até agora, Pat. A pesquisa que faço é importante para a Igreja, da mesma forma que meus livros.

  - Eu sei. - Acenou com o charuto. - Mas ouvi dizer que houve algum problema com a universidade a respeito da qualidade de suas pesquisas...

  - O instituto de pesquisa é independente da universidade, Pat - os músculos do braço começaram a ficar tensos. - Eu tenho com eles um contrato de dez anos. Tentaram arranjar para mim uma nomeação na universidade, mas houve oposições. Isso nào afeta o instituto.

  - Eu não sou académico, Kevin - ele franziu a testa pensativo - mas não posso acreditar que houvesse discriminação em sua universidade nos dias que correm.

  - Pois então tente imaginar. Quer alguns detalhes?

  - Não, não - ele sacudiu o charuto outra vez. - Isso nào será necessário.

  - Ótimo vinho, Pat - eu bebericava o Porto. - De qualquer forma, eu recebi ofertas de algumas universidades importantes, mas gosto demais de Chicago e, por isso, não quero sair daqui.

  - Tenho a certeza de que não pode haver ninguém melhor do que você na Igreja, e é por isso que desejo vê-lo na minha equipe. Você aceitaria ficar com o nosso Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento? Tenho aqui as suas notas e estou certo de que havemos de arranjar verbas para fazê-lo funcionar. Não temos muito dinheiro, mas estou certo de que são muitas as fundações em Chicago... -   Cruzou as mãos atrás da cabeça com um ar satisfeito. - Seria tão bom se pudéssemos trabalhar  juntos outra vez, Kevin.

  - Não - a minha resposta foi dita em voz muito baixa.

  - Kevin, eu gostaria muito que você pensasse no assunto. Nós, realmente, precisamos muito de você aqui, na diocese.

  - Eu trabalho por conta própria, Pat. Se fosse a uns cinco ou dez anos atrás, talvez aceitasse correndo. Agora eu sou o meu próprio patrão. Recebo dotações muito maiores do que a diocese pode imaginar, e faço o que bem entendo. Estou velho demais para mudar.

  - Nem mesmo pela Igreja? - suas sobrancelhas arquearam-se numa reprovação ligeira.

  - Eu serei o juiz daquilo que a Igreja espera de mim, Pat levantei um pouco a voz.

  - Eu sou o seu arcebispo, Kevin. - Ele soltava baforadas do charuto com ar pensativo. - Tenho o direito de exigir alguma coisa, não acha?

  - Pois então exija - apanhei a garrafa do Porto e enchi meu cálice.

  - O problema que eu enfrento é a unidade do presbiterado, Há muita gente ressentida com a sua independência e, para falar francamente, com a sua renda. Eu não posso tolerar a grande desigualdade em responsabilidade, trabalho e... salário que representa um emprego como o seu, já que ele é de uso duvidoso para a Igreja numa ocasião em que há uma crescente falta de padres. Torna-se especialmente difícil porque todos sabem que você é meu amigo. Estou sob tremendas pressões, Kevin...

  - Nem mesmo O'Neil se meteu com as minhas atribuições, que me foram dadas pelo Meyer.

  - Por favor, Kevin - ele inclinou-se para mim. - Não torne as coisas ainda mais difíceis para mim...

  Eu sorri com benignidade. Ele franziu a testa e rolava o charuto na mão.

  - Você não me deixa muita escolha, Kevin. vou ser obrigado a ordenar que saia do instituto e que venha trabalhar comigo. Darei essa ordem em nome da santa  obediência.

  Senti desencadear-se dentro de mim uma reação em cadeia. Continuei calmo e com o controle de meus sentimentos externamente. Por dentro eu estava fervendo.

  - Você ainda anda trepando com a Maureen? - a pergunta foi convencional.

  - O quê? - ele ficou muito pálido.

  - Não quero dizer esta noite. Estou me referindo a quando você está em Roma e ela está em Beverly Shores. Ou será que ela vem aqui também na calada da noite? Será que ela é a primeira mulher que foi para a cama em North State 1555? Ou entáo, se não é Maureen, quem é que você anda levando para a cama? Ou será aquela pedra de gelo bonitinha que bate a papelada e que dá os telefonemas? Você já conseguiu pegá-la?

  - Kevin... Como se atreve...

  - Ora, Pat. Eu me atrevo a tudo. - Virei o cálice e levantei-me. - De você eu nada mais quero senão que me deixe em paz e ao meu trabalho. É só isso. Você não me incomoda e eu não o incomodo, está bem? Mas se tentar mexer comigo mais uma vez só, todo o seu dossiê estará em cima da mesa do Benelli antes de você ter tempo de dar um pio.

  - Dossiê?

  - Todos os seus casos de amor, desde o Stanley Kokoleck e aquela empregadinha em Mundelein, e daí para baixo. Tudo com os mínimos detalhes. - Era tudo mentira, mas era o trunfo que eu tinha escondido. - Estou certo de que a Santa Sé estaria especialmente interessada nas escapadas de um casal, Sr. e Sra. Cunningham, em Acapulco. E o que me diz de sua filha? Da Patsy?

Certamente gostaria de saber que o pai é um arcebispo. Será que você pensa nela, Pat?

  - Penso sempre - ele estava derreado na cadeira com o rosto escondido nas mãos.

  - É impressionante a semelhança, Pat. Isso daria uma ótima manchete. A minha amiguinha Mônica Kelly não gosta muito de você. Não creio que ela se importasse muito com o que pudesse acontecer com Patsy. - Tudo aquilo era uma mentira deslavada. Só que ele não sabia.

  - Você não faria... Você não poderia... - Ele já era agora uma casca completamente vazia.

  - Muito obrigado pelo jantar... - Encostei-me na moldura da porta. - E pelo Porto.

  - Isso destruiria a Maureen... - ele agora já implorava.

  - Ela sabia bem onde estava se metendo, garotão. E se for destruída, a culpa será sua. Deixe-me em paz e o dossiê continuará com o meu advogado.

  - Advogado?! - Ele tirou as mãos do rosto, onde se lia agora o terror.

  - Mas claro. Você não vai pensar que quero me arriscar hem? E, por falar nisso, Pat, é melhor que você continue sendo o melhor arcebispo deste país, com todos os diabos, até mesmo depois que terminar a sua lua-de-mel com o público. Se não andar bem direitinho, eu enviarei o seu famoso dossiê a quem de direito, só para ver o circo pegar fogo.

  Seus lábios muito pálidos moveram-se como se quisesse dizer alguma coisa.

  - Até breve, Pat. Lembranças a Mo. - Depois, quando já estava saindo, desferi o golpe final. - Exatamente como nos velhos tempos, hem Patrick?

  Semanas mais tarde, quando minha consciência finalmente reagiu dizendo-me culpado de crueldade exagerada, eu, mesmo assim, ainda não me sentia tão culpado.

 

  No verão de 1974 Richard Nixon estava deixando a Presidência, Chinatown era o filme mais popular. Soljenitzyn veio para os Estados Unidos, a garotada ouvia The Who, e o Chicago Cubs não ganhou o campeonato.

  A minha monografia sobre saúde mental teve uma boa aceitação pela crítica, excetuando-se apenas umas poucas escritas por padres ou por críticos que já tinham sido padres; fui eleito para uma sociedade profissional honorífica e recebi convites em número menor do que me era possível aceitar para fazer conferências; muitos bispos ignoravam o interdito formal que existia em Chicago e estavam recorrendo ao meu serviço de consultas; um ou outro padre moço sempre me aparecia para conversar a despeito de ser eu um banido pela Igreja de Chicago. Eu pensava comigo mesmo que o pior já passara.

 Via bastante Ellen, o suficiente para ver que ela era feliz. Patsy, Sheila e eu estávamos sempre juntos. Sheila estava agora mais desinibida e alegre do que antes, embora continuasse a ser muito religiosa. Caroline Curran era incrivelmfcnte bela, e serenamente indiferente às atenções que isso lhe trazia.

  A vida continuava, irresistível e vigorosamente. Era isso mesmo, o pior estava para trás. Era o que eu pensava.

  Na verdade, porém, o pior ainda estava para vir.

 

  Querida Ellen,

  Desculpe-me se demorei muito a responder. Não haverá exposição este ano. Acho que é fato consumado, infelizmente. Não tenho trabalhado muito, e o meu coração não está naquilo que pinto. Tem sido um inverno feio aqui e não me sinto tão bem como devia. Passarei várias semanas em Chicago, a maior parte delas em Beverly Shores, mas isso não quer dizer que não aceite com alegria o seu convite para passar algum tempo com Sheila, mais uma vez, na sua casa de hóspedes. Minha filha é quase uma estranha para mim, embora ache que é uma estranha bem mais feliz do que era antes. Sei que fracassei com ela, e sinto-me culpada por isso. Está feito, no entanto, e o que está feito não tem mais rerr.édio. Você, os Brennans e as irmãs na escola compensaram  uma grande parte de meus erros. Tudo que posso fazer é rezar por ela, e é exatamente o que faço todas as noites.

  Há ocasiões em que a minha piedade me enoja, mas, a despeito de todas as coisas más que fiz, eu ainda acredito.

  Também estou engordando outra vez. Amanhã vou começar uma dieta. Na próxima vez que nos virmos eu já serei novamente uma matrona esbelta que está envelhecendo, ou então não me verá.

  O meu caso com o Sloane continua, pois não tenho coragem para mandá-lo embora. De maneira alguma vou abrir mão de minha liberdade me amarrando a alguém. Já acho bem chato o ato do amor. Vez por outra eu saio com um tal de Alfredo DeLucca. Talvez você já tenha ouvido, o Kevin falar a respeito dele. Faz parte de uma das famílias da velha Igreja aqui. É um cara interessante e muito sexy. Até breve. Lembranças para o Herb e as crianças.

  Mo.

 

  Fredo DeLucca andava magoando-a deliberadamente, com muita arte e precisão. Ela adorava a experiência da dor e do prazer, adorava a afiada estocada da agonia que, repetidamente, sentia em todo o corpo. A dor lhe era infligida com cuidado. Não o bastante para causar dano e não o bastante para ser insuportável.

  Ele ria-se baixinho divertido com as suas reações. Então a dor ultrapassava o limite da tolerância e ela gritava. Fredo ria-se outra vez. Ele a mantinha suspensa sobre o vale do sofrimento e do prazer e fazia com que se movesse de um lado para outro desse vale. E então, quando ela implorava, ele infligia-lhe uma rápida tortura excruciante seguida imediatamente pelo êxtase sublime.

  Depois de haver perguntado ao Marty Herlihy, que era "o melhor diretor espiritual da diocese", fui levado à presença solene e imponente da Irmã Mary Carmel, que me ouviu em silêncio quando lhe contei sobre a responsabilidade que assumira a respeito de Sheila.

  - Sim, padre - ela disse quando terminei - e não também.

  - Como assim?!

  - Digo-lhe sim porque o senhor está fazendo exatamente o que é certo para a menina - ela sorriu com aquela doçura de freira que eu pensava estar já bem fora de moda - e não, porque não vou substituí-lo como diretor dela. E por que iria fazer isso? O senhor tem a competência psicológica, a simpatia e a confiança da menina. Não me proponho a deixá-lo fugir à responsabilidade que Deus colocou em seus ombros. Se precisar de conselhos sobre problemas específicos, venha procurar-me.

  - Acho que está certa, irmã. Muito obrigado pelo conselho.

  - Levantei-me para sair.

  - Padre... - ela pareceu hesitar. - Sente-se por favor. Disse-me aquilo com o Tom que somente as madres superioras sabem ter. - Não ficou zangado com o que acabei de lhe dizer, ficou?

  - Tamborilava na mesa com um ar pensativo. - O senhor já é um psicólogo famoso, e eu sou apenas uma freira sem credenciais acadêmicas...

  - Irmã, eu poderia dar-lhe uma longa lista de jesuítas que não pensam assim... - Levantei-me novamente querendo escapar daqueles olhos inquisidores.

  - Por favor, sente-se padre. - Ela mostrou que não dava importância àquilo com um gesto imperioso de sua mão elegante.

  - Eu não vou mordê-lo.

  - Sim, irmã... - disse eu com toda a humildade.

  - Eu sou a madre superiora, padre, embora já não se use mais esse título. Não obstante, ou talvez mesmo por esta razão, vou ser completamente franca. Eu não aceito ser a diretora espiritual de uma menina que já tem o senhor e que, portanto, não precisa de mim. Posso, no entanto, agir como sua diretora espiritual, já que o senhor precisa de mim porque não tem nenhuma. Quem decide é o senhor, naturalmente... - Eu engoli em seco. Ela tornou a acenar com a mão da mesma forma que fizera para os psicólogos jesuítas. - É claro que vai querer pensar sobre isso...

  - Não, irmã, e sim também.

  Ela arqueou as sobrancelhas.

  - Touché!

  Levantei-me outra vez e consegui chegar até a porta. Como sm breve eu acabaria descobrindo, com credenciais acadêmicas ou não, a Irmã Mary Carmel era perfeitamente capaz para se afundar o bastante na psique de um homem até chegar à verdade.

 

  Eu não precisava de diretor espiritual para Patsy.

  Estávamos sentados diante de nossos sorvetes, que eram os últimos daquela estação. Maureen estava na cidade, e Sheila não estava conosco.

  Como já lhe dera a permissão, ela segurava-me a mão. Estava, transbordante de alegria. Caroline sempre conseguia arranjar rapazes para saírem com ela e todos eles a apreciavam e tratavam com

respeito.

  - Este ano foi muito importante para mim, Kevin. Já cresci bastante e sei que sou uma boa pessoa. Já sei como enfrentar a indiferença de mamãe e do Arnold. Compreendo o quanto eles sofreram. Já posso ser eu mesma. - Ela dizia aquilo tudo sorrindo, e os seus dentes muito brancos e certinhos eram a cópia exata dos de seu pai.

  Aquilo era a pseudo-seriedade e a pseudo-introvisão das pessoas muito jovens. Muitas vezes eu me surpreendia temendo que ela fosse uma frágil peça de porcelana que se quebraria com facilidade. Mesmo assim, no entanto, ninguém lhe poderia negar aquele momento de satisfação consigo mesma.

  - Em breve estaremos juntos no lago, Patsy.

  - É mesmo. - O seu rosto muito claro ficou avermelhado.

  - A mamãe e o Arnold sentem-se tão felizes como eu quando vou para casa de seus pais, e para me encontrar com Anne. Ela se parece muito com você, Kevin.

  - Até mesmo mais do que com sua mãe.

  - A sua família toda é maravilhosa. . .

  Aquilo calou fundo no meu coração que chegou a pulsar com mais violência. Para tornar as coisas bem claras eu ainda acrescentei que Anne também era, em parte, uma McNeil.

Sheila caminhava apressada no píer de New Buffalo. Sua mãe não estava em casa, em Beverly Shores, quando o táxi ali deixara Sheila. Havia uma nota dizendo que tinha ido velejar no barco do arcebispo. Sheila não compreendia bem como era que um arcebispo tinha um barco, mesmo quando se tratava de um como o Arcebispo Donahue, que trabalhava tanto e que era um homem tão encantador.

  Pensou um pouco naquilo e, afinal, resolveu que um padre tão santo como o arcebispo certamente sabia bem o que estava fazendo. Se ele estava certo quando andava no barco, então devia estar certo também o fato de sua mãe acompanhá-lo. Aliás, a sua mãe não a convidava muito .para sair de barco também mas, por outro lado, não a proibia. Sheila mudou de roupa enfiando um maio e uma camisa T, e depois foi pedir ao rapaz da casa ao lado que a levasse até a marina.

Ele ficou satisfeito e logo convidou-a para um cinema no sábado. Quando saltou no píer, ela agradeceu-lhe com seu sorriso mais lindo e prometeu-lhe que iria ao cinema.

  Ela vivia num mundo de névoas, e de confusão e de comportamentos variados, de temores sem nome e de esperanças sem razão de ser, de profunda religiosidade e de saudades vagas mas muito poderosas. O tempo que passara nos Estados Unidos não conseguira mudar o seu mundo, mas dera-lhe mais confiança quanto à sua capacidade para sobreviver nele.

  Sheila procurou algum tempo tentando localizar o barco e ficou pensando que perdera o passeio. De repente, viu as letras douradas na proa de um barco que estava ali adiante. Correu e chegou até o píer seguinte onde, ofegante, soltou para dentro do barco e empurrou a porta da cabine.

  Todos os detalhes do quadro ficaram gravados para sempre em sua mente. Jamais poderiam se apagar. Sua mãe estava com um jeans branco, mas também estava nua da cintura para cima. Estava encostada na mesa de jantar apoiando-se nela com as duas mãos. O seu rosto estava contorcido numa máscara de dor e de prazer. Os cabelos longos caíam-lhe nos ombros como se fossem fuligem em cima da neve. O arcebispo, completamente nu, estava curvado sobre os seus seios, chupando-os como se fosse um bebé se alimentando. Uma de suas mãos segurava o seio que estava chupando enquanto a outra acariciava o outro seio. Sheila lembrou-se de que nunca antes tivera ocasião de ver as tetas de sua mãe.

  E então ela começou a gritar histericamente.  

  Afinal, a gritaria passou e veio a escuridão.

 

  A Irmã Mary Carmel olhou discretamente o seu relógio.

  - O senhor se sente desligado dos outros padres? Sente-se vítima da inveja dos outros padres? Tem a certeza de que não está sendo vítima daquilo que, nos outros, chamaria de paranóia?

  - Eu não sei qual a importância que tem. Creio que não seja muito importante... - Eu já estava arrependido de lhe ter falado sobre o aviso na paróquia de Ellen.

  Ela, porém, persistia numa voz firme e que não admitia recusa.

  - E como é que pode não ser importante? Um pastor que orgulhosamente afirma jamais ter lido um de seus livros e que, no entanto, o acusa como inimigo da Igreja, atribuindo-lhe ensinamentos que o senhor nunca escreveu e atitudes que nunca assumiu, junto com motivações que não poderia, de forma alguma, conhecer, mesmo que tudo isso se encontre em sua personalidade. É claro que o senhor fica magoado com a sua desonestidade, mas por que acha que é uma virtude o fato de sermos insensíveis aos ataques de pessoas invejosas? E por que tem medo que descubram como sua pele é fina, especialmente quando isso é a verdade?

  - Pode ser que eu seja um paranóico...

  - Ora, ora, padre. Duvido muito que seja. Eu apenas fiz a pergunta. Estou certa de que a reação é comum. O senhor receberá muito pouco apoio de seus colegas de sacerdócio. Mais forte, portanto, é a razão para que nós encontremos alguma maneira de construir uma comunidade que o apoie. Um homem sensível, solitário e amável como o senhor não pode continuar nessa solidão.

  Aquela foi a primeira vez, dentre as muitas, em que eu me senti como se a Irmã Mary Carmel me houvesse arrancado as roupas.

 

  Hoje tive uma séria confrontação com Maureen que bem pode ter arruinado para sempre a nossa amizade.   Estou escrevendo o que se passou porque Herb não está aqui e eu preciso desabafar. Tenho ft certeza de que atrapalhei tudo. E também tenho a certeza de que, embora estivesse querendo ajudar, eu estava também indignada, e foi a indignação que prevaleceu destruindo a possibilidade de ajuda.

  De forma bem apropriada, nós estávamos nuas na piscina e, portanto, estávamos ambas completamente indefesas no sentido mais pri. mitivo da palavra. Mo sempre se escandalizava quando as crianças e eu nos despíamos completamente para cair na água. Eu gostava de pensar que, embora tivesse sido uma garota "pra frente" quando mocinha, ela exibia agora uma falsa modéstia, enquanto eu tinha uma modéstia válida.

  Enquanto se despia, ela reclamava que estava gorda demais para fazer aquilo.

  - Que tolice é essa? - Eu sorri. - Você ainda é um modelo perfeito para um nu artístico.

  - Os quadros de Rubens já passaram de moda - e dizendo isso ela mergulhou na piscina.

  De qualquer maneira, ela gostava da brincadeira da mesma forma que qualquer um de nós. Depois eu toquei a garotada para a casa, Caroline, Anne, Sheila e Patsy.

  - Nós, como mulheres velhas, precisamos conversar, Mo.

  Ela respondeu com alguma tristeza na voz, enquanto as menina caminhavam para a casa:

  - É a mocidade! Estão cheias de vida. E eu concordei.

  Estávamos as duas penduradas na beira da piscina, ainda ofegantes com o exercício feito.

  - Vamos sentir falta da Sheila, Mo. Ela já se tornou a mais entusiasmada da turma...

  - Tem sido muito bom para ela. - Ela não me encarou. - Mas se quiser mesmo acabar o curso na Irlanda, isso é lá com ela, acho eu.

  - Ficamos todos muito surpreendidos...

  - Ela explicou-lhe a razão? - Ela encarou-me com um olhar cheio de desconfiança.

  - Não. Não lhe perguntei, e creio que a Mary Ann também não Ela encostou a cabeça na beira da piscina.

  Ela nos surpreendeu, o Pat e eu, fazendo coisas no barco. Ficou histérica. Fomos obrigados a levá-la para um hospital em Michigan. Foram necessários alguns dias para ela se recuperar. Chamoume de puta suja. Não fala mais comigo quando estamos sós. Vai para a Irlanda porque quer ficar longe de nós dois.

Eu fechei os olhos e ali fiquei na beiia da piscina sem saber o que fazer.

  - Vamos lá, pode dizer. Diga-me que nojenta vagabunda sou eu e ainda a espécie de mãe que sou.

  A medida que escrevo estas linhas começo a compreender que se houvesse dito aquilo, ou coisa parecida, teria havido um pega feio. E era o que a pobre Mo precisava.

  Em lugar disso eu procurei consolá-la.

  - Não vou dizer, porque não é isso o que penso. Eu gosto demais de você, Mo.

  - Eu não mereço isso. Também não estou ligando. E também, com todos os demônios, não me venha com esse seu ar de boazinha.

  - Não sinta raiva de si mesma, Mo... Ela ficou calada.

  - Desculpe-me. Estou agindo como se estivesse fazendo um sermão. .. - que era realmente o que eu estava fazendo. - Eu só me preocupo com você. Sheila vai crescer. Pat sempre terá a Igreja. E o que vai acontecer com você? Você é uma linda mulher que tem ainda a metade da vida à sua frente. Quando não está

com Pat, você pinta os seus quadros. Você é feliz e tem outras amizades. Você não o ajuda, e ele a prejudica... - Tentei enlaçá-la nos braços.

  Ela sacudiu fora o meu braço e afastou-se na piscina como se quisesse ficar longe de mim. Depois falou em voz baixa e magoada:

  - Você não entende nada disso.

  - E não entendo mesmo. Só o que entendo é que você está sofrendo e eu não quero que sofra.

  - Você tem o Kevin - ela respondeu gritando - e eu tenho o Pat, qual é a diferença? - Da mesma forma que todos os amigos, ela conhecia os elos fracos na cota de malhas de todos eles.

  - Só que eu não trepo com ele.

  - Treparia, se pudesse.

  - E treparia mesmo, mas não trepo... - E foi nesse ponto que fiquei indignada. - Também não durmo com ele. Não permito que meu amor por ele interfira com minha família e meu casamento. Não permito que me impeça de escrever, e não quero vê-lo cheio de desprezo e culpa.

  - Mas isso é só porque ele não tem tutano. Se ele desse em cima de você, teria tudo que quisesse. - Ela encarava-me e o seu rosto estava desfigurado com

a emoção.

- Você está errada, Mo. - Respondi solenemente. - Não porque eu seja melhor que você, e sim porque tive sorte bastante para encontrar outros amores

na vida. Você também pode fazer isso.

  Já então, em retrospecto, era tarde demais. Desde que eu lhe permitira falar da nossa loucura a quatro, nós estávamos engajadas numa luta da qual não podíamos sair.

  Acho que teria sido melhor se eu houvesse ficado caladinha.

  Ela saiu da piscina e cobriu-se com um robe.

  - Quando precisar de seus conselhos, pode estar certa de que os pedirei. Você nada sabe sobre os homens. Vá se foder. Você jamais encontrará um homem

para uma boa foda.

  Ela caminhou furiosa para a casa apertando o robe cuja cauda branca flutuava atrás dela como se fossem as asas de algum anjo muito irado.

  No jantar com a família nós duas nos mostramos razoavelmente civilizadas. Depois ela retirou-se em silêncio para a casa de hóspedes.

  Em certa ocasião Kevin dissera que nós todos devemos viver coro os nossos erros e enganos, e, algumas vezes, até mesmo sem saber se foram realmente erros.

 

  O céu estava cinzento e ameaçador quando caminhávamos para a nossa casa de verão, a espécie de dia que o pessoal da terra chamava de "tempo traiçoeiro". A minha cunhada Kathy desceu correndo a escada com o rosto vermelho de tanto chorar.

  Era tal a sua emoção que não conseguia encontrar as palavras certas.

  - Patsy foi para o hospital. Está muito ferida. Um motorista maluco atropelou-a junto com Sheila e Caroline hoje de manhã. Mike e Herb estão lá. Todos os outros também. Estão querendo você lá para... para... para os últimos ritos - e desatou a chorar novamente. Aquilo me deixou tonto. Liguei o carro novamente.

  - E as outras?

  - Sheila está com um braço quebrado e Caroline está muito machucada, com cortes e contusões.

  O pequenino hospital católico de Genoa, Wisconsin, parecia pequeno demais para abrigar uma tragédia tão grande. Entrei correndo e a moça na recepção, sem que eu lhe perguntasse, foi logo dizendo: "O trezentos e doze." Continuei a correr pelas escadas e pelo corredor.

  Quando entrei estavam todos rezando com Ellen na direção. O quarto estava cheio de freiras, e ali estavam os Currans, os Brennans, com exceção de Kathy. Herb e Mike estavam na cabeceira da cama. Do outro lado estava um padre jovem e um interno, também jovem. Mike sacudiu a cabeça. O murmúrio da reza, muito baixinho, enchia o quarto com uma espécie de paz muito solene.

  No centro de tudo aquilo estava um rosto pequenino e machucado rodeado por uma auréola de cabelos muito louros e revoltos. Os olhos dela estavam fechados.

  - Sinto muito, padre - o padre chegou-se ao meu lado. Já lhe dei os últimos sacramentos. Não tínhamos a certeza se...

  - Está bem, padre - apertei-lhe o braço. - O senhor fez exatamente o que devia...

  O rosário prosseguia. Patsy abriu os olhos, olhou nervosamente em torno e depois tornou a fechá-los.

  - Ferimentos internos - o Coronel segredou ao meu ouvido:

  - O motorista fugiu. Elas estavam lá fora passeando na estrada. O motorista estava bêbado ou drogado. Saiu da estrada e pegou-as. Depois fugiu. Provavelmente era um carro roubado. Caroline tomou nota do número.

  Os meus olhos logo a encontraram ajoelhada ao lado do padre. Não havia expressão em seu rosto e os lábios moviam-se automaticamente na oração.

  Eígueirei-me para fora do quarto e telefonei para a Chancelaria. Art, o secretário do arcebispo, atendeu.

  - Aqui é Kevin Brennan, Art Diga ao seu chefe que é questão de vida e morte.

  - Arcebispo Donahue falando... - disse a voz fria e informal.

  - Patsy está morrendo - fui direto ao assunto. - Foi atropelada e está num hospital em Genoa.

  - Não, meu Deus! Não! - Ele gritou. Houve uma pausa enquanto ele tentava se controlar. - vou rezar uma oração especial para ela na hora da missa, Kevin.

  - Você parece que não está compreendendo, Pat. Ela está morrendo. Em poucas horas estará morta. Você não vai querer vir...

  Ele desligou, mas não antes que me chegasse aos ouvidos um soluço atormentado.

  Voltei ao quarto. Ela estava tentando sentar-se e o seu rosto delicado estava contorcido pela dor e pelo medo.

  - Eu não quero morrer - ela disse muito baixinho. - Por favor, não me deixem morrer...

  O murmúrio suave da oração cessou. Eu procurava alguma coisa para dizer.

  Cároline passou-me na frente. Sentou-se na beira da cama e enlaçou a amiga em seus braços.

  - Não tenha medo, Patsy - falou com imensa ternura. Tudo vai passar. Nós estamos todos aqui com você, e vamos cuidar de você até que Jesus e Maria cheguem para levar você para casa. Eu estou muito zangada com Eles. Nós amamos você tanto quanto Eles e, por isso, achamos que não devem levar você para longe de nós. Acho que Eles estão pensando que precisam de alguém como você para aprontar tudo lá para quando nós chegarmos. É bom que prepare uma bonita festa para mim... um imenso gramado com uma porção de meninos cantando o dia inteiro.

  Patsy sorriu e encostou a cabecinha no ombro de Cároline e depois deixou-se cair tranqüilamente em seu travesseiro.

  - Kevin, você também está aí, Kevin?

  - Eu estou bem aqui, Patsy - aquela não parecia, de forma alguma, a minha verdadeira voz.

  - Posso segurar a sua mão enquanto Jesus não vem? Você é o meu verdadeiro pai.

  Mike fez-me um sinal dizendo que era o fim. Questão de momentos.

  O padre entregou-me o ritual.

  "Pai, em Vossas mãos entrego minha alma. Senhor Jesus, recebei o meu espírito. Santa Virgem Maria rogai por mim. Maria, mãe da graça, mãe de misericórdia, protegei-me do inimigo e recebei-me na hora da morte.

  São José rogai por mim. São José com a Virgem bem-aventurada vossa esposa. Abri-me o seio da divina misericórdia.

  Jesus, Maria, José, eu vos dou meu coração e minha alma.

  Jesus, Maria, José, ajudai-me na última agonia. Jesus, Maria, José, fazei-me repousar em vossa paz."

 

  Logo que acabei a oração, Patsy estendeu seus braços como se quisesse abraçar alguém. Numa voz cheia de doçura e amor ela falou:

  - Sim, sim, já estou pronta. ..

E então morreu.

 

  Art McGrath estacionou o Cadillac nos fundos do hospital. O carro ostentava a placa 100.

  - Entre e vá ver o que há, Art.

  Em poucos instantes o jovem padre estava de volta.

  - Todo mundo já foi, e o corpo está no necrotério do hospital, embaixo, no porão, esperando o agente funerário. A irmã compreende que o senhor prometeu

à família dar-lhe a sua bênção apostólica mesmo se... se já não houver sinais de vida.

  Pat saltou do carro com o rosto transtornado pela dor.

  - Acho que isto vai de encontro à sua teologia, Art. E a minha também, acho eu. Mas, mesmo assim, é um símbolo, e significa muito para os pais.

  Art deu de ombros.

  Deram alguns passos no pátio ensolarado e logo entraram no corredor dos fundos do hospital, fresco e escuro. Uma freira idosa, num hábito à moda antiga, beijou o anel do arcebispo.

  - Minhas orações para todos que a conheceram - disse ela.

  - Muito obrigado, irmã, muito obrigado - ele falava baixinho como se estivesse numa igreja.

  A freira desceu com eles até chegar a um corredor escuro e abriu uma porta com uma das muitas chaves que trazia numa penca na cintura. Ao entrarem, ela acendeu a luz. A sala era toda branca, as paredes, o piso, a mesa e duas cadeiras. Brilhava mais do que lá fora a luz do sol. Numa das paredes havia uma fileira de armários que pareciam arquivos. Art sentiu o estômago embrulhado. Nunca estivera antes em um necrotério. Tudo era limpo e cheirava a desinfetante, ao mesmo tempo negando e afirmando a morte.

  A freira escolheu uma outra chave e abriu um dos armários, puxando uma prateleira. Lá, dentro de um saco plástico, como os que são usados para cobrir equipamentos de escritórios, estava uma linda boneca de cera. com muito cuidado, a irmã abriu a parte superior do saco para revelar um rostinho lindo com cabelos louros. O resto do corpo estava coberto por um lençol muito bem passado. Ela parecia uma estátua, quase viva apesar de estar tão distante da vida. Ao abrir o plástico a freira benzeu-se.

  Pat conseguiu abafar um soluço. An olhava-o inquieto. Toda aquela viagem louca estava muito longe de se parecer com alguma coisa de Patrick Donahue. Ele estendeu o braço mecanicamente, e Ari deu-lhe uma estola de bolso e o ritual.

  Ele rezou monotonamente em latim, mal dando à freira e ao Art o tempo necessário para responderem "Amém". Depois deu a bênção apostólica, já então em inglês, como se a moça morta pudesse ouvi-lo.

  - E, pelo poder que me foi concedido pela Santa Sé, eu a absolvo de todos os seus pecados e concedo-lhe a indulgência plena. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amém.

  Art não acreditava muito em indulgência plena e também desconfiava que Pat pensava da mesma forma. Mesmo assim, por um momento, ele imaginou que poderia visualizar a menina entrando no céu com as asas de anjo. Ela, certamente, parecia um anjo com seu rostinho suave e inocente que, de alguma forma, lhe parecia conhecido.

  - Muito bem, irmã - Pat fez uma pausa. - Muito obrigado. - Falava muito baixo.

  A freira benzeu-se novamente, tornou a fechar o saco, fechou a porta do armário e deu a volta na chave.

  Na volta para Chicago, o arcebispo foi sentado no banco de trás com as lágrimas a escorrer-lhe pelo rosto. De repente, Art compreendeu por que estava achando aquele rosto da moça tão parecido com algum outro.

  Soltou um assovio baixinho e ficou com muita pena de Patrick Donahue. O engraçado era que ele sempre desconfiara que o homem seguia na direção oposta. Afinal de contas, talvez houvesse alguma coisa por baixo daquela fachada impassível.

 

  Arnold Tansey telefonou para meu pai naquela noite para dizei que ele e Georgina consideravam-nos pessoalmente responsáveis pela tragédia e que seus advogados viriam procurar-nos. Aquilo, naturalmente, era uma ameaça tola. Também nos intimou a não comparecer ao enterro, ou ao velório.

  Eu queria ir, de qualquer maneira, mas fui impedido por todo mundo. Rezamos uma missa fúnebre particular na varanda da frente de nossa casa. Não me lembro mais do que disse no sermão.

  Quem rezou a missa foi Pat, já que era íntimo da família Tansey. Em toda a diocese, os padres só falavam de sua grande emoção. Chegara a chorar durante a metade do sermão. Afinal de contas, aquilo servia para provar que ele tinha um coração.

 

  - Este foi o ano em que as mulheres se tornaram um problema mais sério para o senhor do que para o seu arcebispo. - A Irmã Mary Carmel cruzou as mãos por baixo de seu escapulário escuro, como sempre fazia quando marcava um ponto contra mim. - Fico imaginando se um bom psicólogo como o senhor conseguiu encontrar um padrão nesses acontecimentos.

  Em seu hábito marrom e branco à moda antiga, ela poderia ter trinta e cinco anos, como poderia ter cinqüenta. O seu rosto, liso como alabastro, e as sobrancelhas carregadas não ajudavam muito.

  Mexi-me nervosamente na cadeira já minha conhecida que talvez tivesse a mesma idade do prédio, e que tanto poderia ser anterior ao Incêndio como também à Guerra Civil.

  - Seriam as manchas do sol? - eu disse esperançosamente.

  - vou apresentar-lhe duas possibilidades, padre - ela suspirou impaciente. - Pode ser devido ao fato do senhor estar ficando mais velho e, portanto, menos capaz no seu trato com as mulheres usando os métodos comuns para protegê-las, encantá-las ou dominá-las, como também pode ser que tenha sido purificado suficientemente pelos seus sofrimentos, de forma que já esteja agora mais capaz de entreter um relacionamento mais amadurecido com elas. Elas percebem essa nova vulnerabilidade, e então agem de acordo com isso, cada uma ao seu modo.

  - Que sofrimentos?

  - A encruzilhada surgiu - ela continuou pacientemente quando Ellen se tornou uma pessoa de verdade. Ela ofereceu-lhe uma amizade adulta. O senhor não pode aceitar isso, mas também não está preparado para rejeitar. E então hesita. A única graça salvadora que o Senhor lhe concedeu foi o fato de gostar delas.

  - Mas é claro que gosto de mulheres. com o celibato ou sem ele eu sou heterossexual.

  Ainda uma vez ela acenou com a mão, como se não admitisse aquilo.

  - Pois esse é precisamente o ponto. O senhor conservou as mulheres a distância durante toda a sua vida só porque precisava proteger a sua vocação sacerdotal. É bem possível que, já agora, perceba que, no seu caso, esta vocação está protegida pela graça de Deus.

 

  A Irmã Rogéria apareceu em meu gabinete num dia de agosto muito quente dizendo que estava fazendo um master em psicologia da religião. Queria conversar comigo a respeito da orientação que deveria seguir. Aquela foi a primeira das muitas mentiras daquela moça muito simples com um rosto incisivo e cabelos castanhos em desalinho.

  A maior parte das perguntas que ela fazia nada tinha a ver com psicologia ou religião. Ela queria saber tudo sobre meus hábitos de trabalho, meu estilo de vida, minhas atitudes para com o "Terceiro Mundo", o que eu achava do homossexualismo e sobre o papel da mulher na Igreja. Fui ficando impaciente com ela à medida que, laboriosamente, ia anotando literalmente as minhas respostas. Mesmo assim, eu a aturei durante três horas e meia, já que a ajuda a padres e freiras, na minha opinião, fazia parte do resto de vocação que me deixara Pat Donahue.

  Pouco antes de minha partida para Roma em fins de setembro, para um projeto de pesquisa, desde muito planejado, nos arquivos do Vaticano, saiu publicado no National Catholic Repórter o primeiro artigo da Irmã Rogéria. O seu título era "Padre Professor Rico Ridiculariza o Terceiro Mundo e Defende o Colonialismo." O artigo falava sobre a minha suposta fortuna mas, na verdade, colocava-a bem abaixo da realidade, já que não sabia o que me cabia na parte da família. Citava um comentário meu de que o Terceiro Mundo era principalmente um amontoado de ditaduras militares e que o seu povo comum astava em melhores condições quando os governos da Inglaterra e da França o protegiam do genocídio entre as tribos. Eu dissera muitas coisas mais, também, mas nenhuma delas era assim tão escandalosa. A Irmã Rogéria não se interessava por uma comparação entre Tanzânia e Quénia, nem tampouco por uma cuidadosa análise económica dos vários países do Terceiro Mundo.

  Pat enviou-me um recorte do artigo junto com seu cartão pessoal onde o nome, naturalmente, era impresso em vermelho, e um bilhete dizendo:   

  "Preferia que você não dissesse essas coisas, Kevin. Isso só serve para criar embaraços para toda a diocese."

  Parti para Roma sem responder ao seu bilhete. A Irmã Rogéria já havia dado o seu tiro, e não havia mais nada a fazer. Só que eu não sabia que ela tinha um arsenal completo.

  Na primeira noite que passei em Roma jantei com meu amigo Monsenhor Adolpho, no Roberto, que fica na esquina perto do Vaticano e o Borgo Pio. Enquanto bebericávamos os nossos Campari com soda, Adolpho, sem dizer palavra, entregou-me o último numero do National Caíholic Repórter; "Padre Psicólogo Ataca Homossexuais", dizia a manchete. No seu artigo, a Irmã Rogéria dizia que, embora, a American Psychiatric Assodation houvesse resolvido retirar o homossexualismo da lista de doenças mentais, um padre, "que se intitulava psicólogo", classificava os homossexuais e as lésbicas como vítimas de "perturbações muito sérias". Ela deixara de mencionar todas as qualificações, toda a insistência quanto aos direitos humanos dos homossexuais, todas as diferenças entre a reação pastoral e a pessoal, para se concentrar apenas na minha observação de que as ligações homossexuais não possuem as características que reforçam a "durabilidade das relações heterossexuais". Para refutar-me, ela citava muitos "notáveis" psicólogos católicos que consideravam as relações e uniões homossexuais tão boas e válidas como as heterossexuais. A maior parte das pessoas que ela citava era apenas de terapeutas com graus de master em conselhos e orientação.

  - E assim, o Santo Ofício ficará satisfeito sabendo que você concorda com eles, Kevin.

  - Acho que vou receber um outro bilhete de meu arcebispo pedindo-me que não o embarace. Isso ainda vai continuar, pois desconfio que ela ainda tem mais munição.

  - Eu estava sinceramente aborrecido.

  - Não se preocupe com o seu arcebispo - Adolpho fez um gesto expansivo com suas enormes mãos de camponês. - Todo mundo por aqui já sabe que ele é um peso leve.

  O restaurante se enchia e a sala de jantar estava abafada devido à noite quente. A freguesia, toda ela ostentando alguma forma de vestes sacerdotais, desde as batinas até os ternos cinzentos dos protestantes, parecia entregue a conversas de conspiradores.

  Achei-me na obrigação de defender Pat.

   Ele fez um magnífico trabalho repondo tudo em seus verdadeiros lugares. Todos gostam dele, os padres e o povo. E digame, desde quando é preciso ser um peso pesado para ser arcebispo nos Estados Unidos?

  O Adolpho deu uma risada.

  - Eu não tenho influência - o que era uma patente mentira - eu apenas ouço o que dizem. Agora diga-me quais são os seus planos.

  Expliquei-lhe que estava fazendo um estudo psicológico sobre a eleição papal. Ele ficou logo fascinado.

  - Você não imagina, meu amigo, o que significa o papado. Neste último domingo, no fim de uma dessas canonizações intermintáveis com as quais nós divertimos o povo, principalmente durante este ano santo, o pobre Papa, depois de terminar a missa, foi até a frente do altar e, só por alguns instantes, sorriu e acenou para o povo. Ficaram todos loucos de alegria. Ninguém lê as suas encíclicas; ninguém gosta de sua caligrafia; todos acham ruim a sua recusa para aposentar-se aos setenta e cinco anos como todos os bispos são obrigados a fazer. No entanto, quando sorri e acena com as mãos, ele é, durante aqueles rápidos momentos, a verdadeira encarnação da cristandade católica. É isso o que significa ser papa. Ele tem dado um duro, meu amigo... todas as viagens, a luta contra os conservadores na Cúria, a proteção ao Concílio. Você talvez ache que ele alienou os liberais que o teriam apoiado de muito boa vontade. Concordo, mas você não imagina o desastre que ele evitou...

  - Como no caso da encíclica sobre o controle da natalidade? - eu já tinha começado a atacar o meu fettucine.

  - Vocês, lá nos Estados Unidos são os únicos que se preocupam com isso. Aqui, eles olham a multidão que acorreu a Roma para o Ano Santo em peregrinações e, então, acham que o Santo Padre estava certo. Que o povo deu-lhe ouvidos.

  - Será que todos eles olham os índices de natalidade nos países católicos? Será que se dão conta do número de peregrinos que trazem a pílula nas bolsas e ao mesmo tempo, gritam: "Viva o Papa"? Será que sabem como entrou pelo cano a credibilidade deles a respeito de sexualidade? Será que sabem o que está acontecendo com as vocações?

  - Há os que sabem, Kevin, e há os que não sabem. - Adolpho levantou novamente os braços. - Todos ainda se deixam levar pela fé dos. peregrinos. Autodecepção? Claro que é, mas você ainda não compreende Roma se está pensando que uma crise de pouca duração deixa-os perturbados. A resposta que lhe darão é que representa uma vergonha o fato da Igreja estar morrendo no mundo do Atlântico Norte, mas que a Europa Oriental e o Terceiro Mundo representam o futuro para ela.

  - Será que abrem mão do Ocidente assim com tal facilidade? - eu estava espantado.

  - Vista aqui - com o copo de vinho na mão, ele acenou na direção do Borgo - de dentro das paredes do Vaticano, Chicago não passa de uma cidade nova e pequena. Eles pensam em coisas remotas, isto é, em séculos. É uma desculpa maravilhosa para não voltarmos ao trabalho depois da sesta.

  - E a eleição?

  - Ninguém fala nisso. O Sínodo dos Bispos, no ano passado, trouxe a Roma muitos dos cardeais eleitores. O Papa não está bem de saúde, mas, mesmo assim, ninguém falou em conclave. Seria uma indecência falar nisso enquanto o Papa está vivo, não acha você? - ele sorria amavelmente.

  - E como é que descobrem quais são os candidatos?

  - Ficam sabendo disso quando lerem a revista Time. Ele levantou os braços. - Onde mais acha que poderiam descobrir?

  - E a Cúria dominará a eleição? - eu estava desanimado.

  - Você precisa compreender, Kevin - ele empurrou para o lado o seu fettucine ainda pelo meio - que a Cúria tem muitas vantagens. Os cardeais serão convocados em todas as partes do mundo sem qualquer aviso prévio. Serão arrancados de seus afazeres. Chegarão cansados da viagem a jato. Pode ser que aqui esteja muito quente.

  Eles não terão conhecimento dos processos, dos problemas ou dos candidatos. A Cúria sabe como fazer as coisas. Irão escolher aqueles que pregam nas novenas rezadas para o repouso do Papa. Todos saberão onde ficam os banheiros. Controlarão tudo - dizendo isso, ele cruzou os braços fortes e encostou-se na mesa.

  - Então eles ditarão o resultado? - eu estava quase desesperado.

  - Vou-lhe contar um grande segredo, Padre Kevin Brennan.

  - Ele abaixou a voz e falou solenemente. - Eles estão desorganizados, divididos por facções, politicamente ineptos. Controlam a Igreja porque são os únicos aqui.

  Sempre que um stranierí aparece por aqui, ele vence a Cúria. - Acenou com o garfo na direção da sala. - Quando surge uma luta entre políticos medíocres e políticos sabidos, quem é que vai ganhar?

  - Uns poucos irlandeses de Chicago poderiam ir longe, Adolpho.

  - Talvez como o Cardeal Patrick Donahue, nem?

 

  Maureen já estava recolhida quando cheguei ao apartamento. Os nossos cumprimentos no aeroporto tinham sido apenas superficiais. Ela sabia das ameaças que eu fizera ao Pat e mostrara-se fria comigo nas poucas vezes que nos encontramos depois daquilo.

  Tomei um banho de chuveiro e deitei-me deixando a janela aberta para aproveitar a brisa fresca da noite. Na manhã seguinte era possível que a chuva entrasse no quarto trazida pelos ventos do sudoeste. O cheiro da cidade estava ainda mais forte do que durante o Concílio, mas havia menos barulho porque as Vespas tinham sido substituídas por pequenos Fiats.

  As chuvas vieram mais cedo do que fora previsto. Relâmpagos, trovoadas e uma chuva torrencial varriam a cidade. Acordei com o barulho de Mo fechando a janela de meu quarto.

  - Se não fechar a janela, tudo isto vai ficar encharcado... - a sua voz ainda era sonolenta.

  - Claro...

  - Podemos conversar um pouco, Kevin? - Ela veio sentarse na beira de minha cama.

  - Desde quando é preciso perguntar isso, Mo? - Eu estava de sobreaviso tanto quanto às minhas emoções como às dela. Se é o que você está pensando, esse tal de dossiê não existe.

  - Aquele pobre idiota! Não sei o que lhe deu na cabeça. Só porque um bando de padres reclamava contra você.

  Eu estava ali sem jeito, arrependido de não ter trazido um pijama.

  - Você sabe que não era só isso, Mo. - Eu via que ela estava impaciente comigo.

  - Muito bem. Ele tem algumas coisinhas contra você, da mesma forma que você tem contra ele. Mesmo assim, foi uma tolice da parte dele pensar que podia mandar em você. Só que você não precisava ser tão cruel como foi. Aposto como você adorou o que fez.

  - Não fui eu quem começou a briga. Mo - Eu estava na defensiva.

  - Mas foi você quem acabou, não foi mesmo? - Ela estava furiosa. - Sabe que ele queria demitir-se naquela mesma noite? Gastei duas horas de telefone interurbano para convencê-lo de que estava maluco. Ele está sempre pensando em se retirar para um mosteiro e penitenciar-se para o resto da vida.

  - Olha que não era má idéia, sabe? - Eu queria ver o seu rosto, mas não conseguia.

  - De forma alguma, com todos os diabos! Ele é um bom arcebispo, não é mesmo? É o melhor do país, não é?

  - Porque você lhe diz o que deve fazer. - Eu também já estava furioso.

  - E que diferença faz isso? Ele precisa de ajuda que você não lhe dá... - Ela socava a cama, furiosa.

  - Ele não devia ser arcebispo. - Eu insistia.

  - E quem devia ser? Você? A sua mágoa é que ele passou na sua frente. Você, seu miserável filho de uma puta...

  - Pelo menos eu não fico entrando e saindo da cama com toda mulher que aparece. De qualquer forma, não se assustem que eu não vou pôr o apito na boca contra vocês dois. Claro que nunca pensei em concretizar a ameaça, e você sempre soube muito bem disso. Ele é estúpido demais para ver que eu jamais o faria.

  - Eu o amo tanto, Kev. - Ela soluçava como se estivesse sofrendo dor atroz. - Todas as vezes que ele tenta acabar eu deixo que ele parta, mas ele sempre acaba voltando. Eu não posso viver com ele e também não posso viver sem ele. Eu também estou contribuindo para destruí-lo. Deus meu! Eu não sei o que fazer. Passo noites sem dormir só pensando nisso.

  Puxei sua cabeça para o meu peito e acariciei-lhe os cabelos negros e longos.

  - Tudo vai acabar bem, Mo...

  - Não. Não vai não. - A sua resposta foi cheia de convicção. - Nós dois estamos amaldiçoados. Bem que eu gostaria de encontrar ainda alguma felicidade nos poucos anos que nos restam.

  Comecei a acariciar-lhe a pele de veludo das costas, gostando de sentir a maciez de seu corpo por baixo da camisola muito fina.

  - Você não vai para o inferno, Mo. Nem tampouco o Pat. Tudo vai se resolver. É uma questão de tempo. Tudo vai acabar bem, Mo.

  Ela estava ali em meus braços completamente relaxada e tranqüila. Afinal falei desajeitadamente:

  - Você devia arranjar um marido...

  - E quem vai querer uma mulher velha e já usada, Kev?

  - Você não é nem velha nem usada, Mo. - Eu respirei fundo.

  Pouco depois já ela dormia tranquilamente em meus braços.

  Arrumei-a na cama cobrindo-a com um lençol.

  Fiquei a pensar comigo mesmo. "Que grande amoroso é você, Brennan. Pega uma linda mulher na cama com você depois de quatro décadas de fantasias, e tudo o que consegue é fazê-la dormir."

  Como resposta, resolvi dormir também.

 

  Quando voltei de Roma verifiquei que a Irmã Rogéria continuava a sua fuzilaria. Tinha vasculhado todas as críticas de meus livros técnicos junto com os populares e transformara uma série de citações isoladas, fora do contexto, para condenar a minha competência profissional. Uma das manchetes dizia "Padre 'Especialista Desancado pelos Críticos." Depois vinha uma versão espúria de minha luta com a universidade. "Revelação de Incompetência é a Razão para a Decisão de Vitaliciedade de Padre 'Especialista'." O Coronel telefonou de Tucson.

  - Ela agora se excedeu. Vamos atirar em cima dela uma ação por calúnia. "Incompetência profissional" é uma acusação que nos dá razão para isso.

  - Talvez não valha a pena, pai - respondi-lhe sem muito entusiasmo.

  - Campeão, quem está ficando velho sou eu, e não você. Pois então não quer ganhar? - Ele pareceu assombrado.

  - Eu talvez consiga os votos por uma questão de simpatia...

  - E então, pela primeira vez pensei nessa possibilidade.

  - Ela vai mandar o seu livrinho para todos os bispos e pastores do país, Kevin,

- Quem é que lhe dá o dinheiro? - Aquilo já me cheirava a uma conspiração e eu já estava começando a pensar como o Coronel e sentindo o cheiro da pólvora.

  - A sua velha amiga Georgina Carrey - a sua resposta foi imediata - que agora é Georgina Tansey.   

  - Até mesmo lá naquele fim de mundo, à sombra do Monte Lennon, ele estava a par de tudo.

 

  Ellen achava que a poltrona do arcebispo era como uma enorme banheira. Quem caísse lá dentro teria, praticamente, uma escalada para sair. Ela sentia-se só, cansada e razoavelmente "alta". Não queria ser obrigada à escalada.

  - Esta é uma casa bonita, Pat - ela disse, engolindo um pouco de conhaque. - No entanto, apesar de seu tamanho e de todas as suas chaminés, ela não me parece confortável.

  - Eu quero crer que o Arcebispo Feehan construiu isto aqui mais para se exibir do que para conforto. Sabe que estas terras pertencem às freiras do Mercy? A irmã de Feehan era freira do Mercy. Eles, aparentemente, compraram o terreno para que ele pudesse construir a casa. O O'Neil tentou vender o terreno trocando-o por um arranha-céu, mas descobriu que não podia fazê-lo. As irmãs disseram-lhe que ele poderia vender o terreno, mas o dinheiro seria delas. - Ele soltou uma risada.

  - É por isso que a casa ainda está aqui como um marco histórico terrivelmente inconfortável e também inconveniente. Custa um dinheirão para a calefação e para a refrigeração.

  Apesar de todos os seus tapetes e valiosos móveis antigos, de seus lambris de carvalho e de tecidos que cobriam as paredes, a "Mansão do Cardeal" não valia todo aquele esforço. A volta pela mansão era o anticlímax até mesmo depois do soturno jantar da Diretoria da Orquestra a que comparecera antes. Viera só porque Herb estava viajando e tinha ficado encantada quando se sentara ao lado de Pat no jantar.

  - Onde é que estão as vantagens, Pat? - Sua língua já estava pastosa depois do uísque, do vinho e agora do conhaque. - Eu não acredito que sejam estas acomodações muito caras, a placa especial do carro ou os bilhetes de primeira classe nos aviões.

  - Há sempre algumas - ele sacudiu a cabeça mostrando que compreendia - como, por exemplo, o poder, a possibilidade de fazer com que os outros se dobrem às suas vontades. Há ainda outras, como a aclamação, o título "Sua Eminência" ou "Sua Excelência", o olhar de respeito, e até mesmo de subserviência na fisionomia das outras pessoas. Eu vi a que tudo isso levou no caso do O'Neil, e não quero que me aconteça o mesmo. Eu sou humano, como você bem sabe, e por isso não desprezo todas essas coisas que forjem parte do cargo. Mas se isso fosse tudo, eu me demitiria em cinco minutos. Você e o Kevin podem não acreditar, mas é a pura verdade.

  - Eu acredito sim - ela respondeu-lhe com solenidade. É possível que tudo isso atraísse você antes, mas é alguma coisa mais que o mantém morando aqui neste horroroso prédio vitoriano.

  Ele sacudiu a cabeça concordando em silêncio.

  - O que é? - Ela insistia, terminando o seu conhaque e jurando que não beberia mais nada.

  - Eu sou um arcebispo bom como o diabo, Ellen - ele fez uma careta. - Sou um dos melhores do país. Você não encontrará, em todo o mundo, uma diocese mais democrática, responsável e progressista do que esta aqui. Nós limpamos toda a sujeira que havia, obra do O'Neil, e estamos indo em frente... - Hesitou um momento, sacudiu a cabeça como se quisesse limpá-la. Sinto-me feliz com tudo que consegui fazer. Não acha que isso é o bastante?

  - É mais do que o bastante, Pat.

  Ele tornou a encher o copo dela com conhaque e voltou para o sofá com o corpo tenso.

  Ela devia partir. A conversa àquela hora da noite, à luz difusa do gabinete opulento mas inconfortável, estava fazendo com que tudo aquilo parecesse um sonho surrealista, - Preciso ir para casa, agora, Pat.

  - Muito bem, vou buscar o seu casaco.

  Ele saiu da sala e voltou logo depois com o casaco no braço. Ela levantou-se sentindo que suas pernas não estavam muito firmes. Quando ele segurou o casaco para que o vestisse, pareceu-lhe que havia em seus olhos azuis um brilho muito duro.

  Quando ela se voltou para enfiar as mangas no casaco, ele segurou-a pelos ombros fazendo-a girar. Seus lábios apertaram-se contra os dela. O álcool e o medo paralisavam seus movimentos.

  - Não... - ela suplicou.

  Primeiro ela tentou lutar, mas ele era forte e ela era pequenina, fraca e embriagada. A sua resistência só servia para diverti-lo e para aumentar o brilho cruel que via em seus olhos. À medida que ia mergulhando naquele pesadelo, ela continuava a pensar que ele odiava as mulheres.

  Ele agora tinha mais prática do que naquela noite no parque Mantendo-a imóvel com um de seus fortes braços, ele ia despindo-a com o outro sem se apressar, como se estivesse brincando. Exausta e vencida ela deixou-se cair no fundo do pesadelo.

  Ele levou-a até o sofá onde recomeçou suas explorações. Ela estava pronta para ele. Mais do que pronta. Seus suspiros já eram agora gemidos de prazer. Deus meu, eu não quero...

  Ele continuava a brincar com ela, levando-a até à beira do prazer e logo retrocedendo.

  De repente parou.

  Afastou-se, cambaleando, do sofá e deixou-se cair de joelhos ao lado de sua mesa, soluçando. Bateu com a cabeça contra a almofada da poltrona como se fosse um ataque epiléptico.

  Imediatamente, ela viu-se lúcida, outra vez. Era, de novo, a enfermeira. Sua excitação sexual desaparecera. Cobriu-se com a roupa de baixo, correu ao corredor onde encontrou um banheiro e voltou logo com toalhas molhadas. Ajoelhou-se ao lado do arcebispo em convulsões e enrolou-lhe no rosto uma toalha molhada.

  - Tudo está bem, Patrick. - Ela procurou acalmá-lo. Tudo está bem.

  Aos poucos, ele deixou de tremer e os soluços se extinguiram Então, como um balão furado, ele deixou-se cair. Ela ajudou-o a voltar para o sofá. O seu rosto parecia o de um morto.

  Ela sentou-se na cadeira mais perto dele, 'ainda encolhida em sua combinação.

  - Se alguém vai desmaiar - ele falou com voz rouca sempre é melhor que o faça na presença de uma enfermeira psiquiátrica. - Mais uma vez, a sua gargalhada tocava as raias da histeria.

  - Pare com isso, Patrick! - ela gritou.

  - Ellen, eu te adoro. - Ele escondeu o rosto nas mãos. Sempre te adorei. Eu não queria fazer aquilo. É uma coisa terrível que explode dentro de mim. Eu não queria fazer aquilo.

  - Eu sei disso, Patrick. - Embora o seu coração ainda estivesse aos saltos, ela procurava acalmá-lo.   - Se você quisesse mesmo, então teria ido até o fim.

  - Eu estou maluco. Sempre fui, creio eu. Quando estou longe da Mo e quando as coisas não vão bem por aqui... - Continuava com a cabeça enterrada nas mãos.

  - Você está precisando de ajuda, Patríck... - ela falava calmamente, como se fosse a coisa mais natural do mundo estar ali sentada, quase nua, na casa do arcebispo, discutindo seus problemas emocionais.

  - Eu sinto-me tão envergonhado... - Ele continuava a soluçar, embora já não histericameníe, e sim profundamente, cheio de tristeza. - Você, a Mo e o Kevin são mais importantes para mim do que qualquer outra pessoa neste mundo. E mesmo assim, eu atrapalho a vida da Maureen, afasto-me do Kevin e depois ainda tento violentá-la.

  Eu não quero magoar nenhum dos três, porque são três pessoas que amo.

  - Especialmente o Kevin - disse ela numa explosão de compreensão.

  - Você também sabe disso? - Ele levantou os olhos para ela. - Especialmente o Kevin. Não diga nada a ele, sim?

  - Claro que não vou dizer.

  - Creio que, provavelmente, eu sou mais homossexual do que qualquer outra coisa. Não existe a ira nem o ódio. Tudo é paz. É estranho que esta seja a primeira vez que pronuncio essa palavra a respeito de mim mesmo.

  - Isto é querer simplificar demais, Paírick. As suas relações com a Mo desmentem o que você diz.

  - De qualquer maneira, sou maluco mesmo - ele levantou-se ainda meio cambaleaníe, como uma pessoa que se recupera de uma longa doença.

  - Você é uma boa perspectiva para a terapia. Você logo veria tudo claramente, Pat. Você tem que fazer isso. Isso vem atrapalhando toda a sua vida.

  - Você está brincando, Ellen - ele esboçou um risinho fraco. - Já imaginou um arcebispo às voltas com essa terapia? Nunca daria resultado... Não se preocupe mais, você aqui está tão garantida como se estivesse num convento.

  Foi somente depois que ele saiu da sala que ela pensou em se vestir. À medida que o fazia, quase chegava a se persuadir de que tudo aquilo fora apenas um sonho.

  Ele voltou e ofereceu-se para levá-la de volta para casa.

  Quando abria a porta para saírem ele ainda lhe pediu perdão mais uma vez.

  - Mas é claro, Pat. - Ela esperou que suas palavras parecessem sinceras. - Prometa-me que você vai pensar em tratatamento, sim?

  - Está bem, El. vou pensar nisso seriamente.

  Na luz difusa da iluminação da rua o seu rosto bonito estava devastado e encovado.

  Ela sabia que ele não ia procurar ajuda. Jamais o faria.

 

  Patrick Henry Donahue conseguiu o seu chapéu vermelho dentro de uma semana do meu vigésimo aniversário como sacerdote.

  Eu tinha lutado até chegar à beira da depressão e desânimo. Meus livros vendiam mais que nunca. O meu grupo de jovens dos tempos de St. Praxides, a maior parte deles já na casa dos trinta, estava rejuvenescido. Eu estava arranjando para mim um nicho na Igreja dos Estados Unidos, na periferia, não havia dúvida, mas sempre era um lugar onde me seria possível encontrar a satisfação. Mesmo assim, no entanto, eu não conseguia dar os passos finais para sair de dentro da bruma. A nomeação de Pat para o Sacro Colégio, para a qual eu deveria estar preparado, atirou-me de volta ao nevoeiro espesso.

  - A Igreja está melhorando - eu disse à Irmã Mary Carmcl. - As pessoas estão voltando a ela. Chegaram à conclusão de que podem ser bons católicos e também ignorar os ensinamentos da Igreja. Meus irmãos todos são leigos dedicados cujas consciências não se deixam perturbar pelo controle da natalidade.

  - E Deus conseguiu tudo isso sem a sua ajuda e a despeito de suas previsões - a Irmã deu-se ao luxo de um sorriso. - Foi uma falta de consideração da parte do Senhor!

  Eu já vivia triste, acabrunhado e solitário. Não precisava que ela ainda tornasse as coisas piores.

  - O senhor está perturbado agora porque o seu amigo e colega foi elevado a cardeal - ela continuava. - O senhor mesmo reconhece que ele é um dos melhores arcebispos dos Estados Unidos. O que o ofende e deprime é o pensamento de ser, em parte, o responsável pelo seu sucesso. O senhor deve decidir, a cada nova promoção, se vai continuar a arcar com a responsabilidade.

  - Ele é um homem feito de papier-maché, irmã. É um boneco que anda. A senhora o viu no comício da Chamada à Ação, em Detroit. Ele repetia todos os chavões liberais que estão nos livros. Depois ele foi à reunião dos bispos onde ajudou a torpedear as recomendações da conferência e então, como recompensa, ganhou o chapéu vermelho.

  - Acha que ele é o único homem de igreja de grande competência política? - ela suspirou, mais desesperada do que nunca.

  - Será que é o primeiro arcebispo que considerou impossível o celibato? Será que ele é o primeiro cardeal de papier-maché? O senhor jamais irá denunciá-lo, padre. Vai continuar a ajudá-lo como sempre fez desde os tempos de colégio, e durante toda a sua vida, se for necessário, como o senhor mesmo o diz. O senhor deve, no entanto, desistir dessa ridícula pretensão quando acha que, se não fosse pela sua ajuda, o Todo-Poderoso não encontraria outro instrumento para usar Patrick Donahue como agente para o Seu Plano. O senhor exagera muito quando quer se atribuir a responsabilidade de coisas feitas pelo Todo-Poderoso e não por Kevin Brennan.

  - Ele vai se deixar apanhar, irmã... - eu não conseguia esconder minha tristeza.

  - É possível que isso aconteça, meu bom padre - ela já tinha novamente enfiado as mãos por baixo do escapulário - mas a igreja sobreviverá da mesma forma que o amor de Deus pelo senhor.

 

  Naquela noite eu jantei no Chicago Club com Ellen e Herb, cujo cabelo já estava completamente grisalho. Ellen também se permitia uns laivos brancos em seus cabelos louros e macios porque sabia que aquilo ainda a tornava mais alucinantemente bela. Aos quarenta e três anos a minha ninfa irradiava maturidade e sensualidade satisfeita, da mesma forma que uma mamãezinha dourada irradia alegria diante da inevitabilidade do Inverno.

  - Meu querido Kevin - o seu sorriso já era agora mais demorado e cativante - será que eu me arriscaria a pecar se perguntasse por que você tornou a descobrir o bom doutor e eu mesma?

O garçom trouxe-lhe o salmão que ela pedira. Havia muito poucas mesas ocupadas na solene e augusta sala de jantar. Os homens nas outras mesas não tinham tirado os olhos de cima de Ellen desde que ela entrara.

  - Logo de saída nós pensamos - disse Herb, provando cautelosamente o clarete - que você estava preocupado com a Caroline. No entanto, quem jamais poderia ter uma filha de dezoito anos tão sossegada e adorável, até mesmo quando ela vai para Notre Dame, se Deus quiser?

  - Quer dizer que temos um mistério. - Os olhos cinzentos de Ellen perseguiam-me da mesma forma que sempre o haviam feito desde os tempos do lago quando éramos garotos.

  - Por que será que o Kevin anda preocupado conosco? Não é pela Caroline nem nenhuma das outras crianças. Será que pensa estarmos com problemas conjugais?

  - Então você acha que eu procuro a companhia de vocês só quando me sinto responsável pelo que possa haver com o casal?

  - Uma vez por mês, regular como um relógio, durante os últimos cinco meses - Ellen largou o garfo. - De repente, sem avisar, Kevin Brennan passa a fazer parte de nossas vidas... Segurou-me a mão. - Quando isso acontece com alguém, a razão é que anda preocupado com eles e está querendo ajudar. Nós apreciamos e gostamos da ajuda, mas queremos saber a razão.

  - Eu procuro vocês todos os meses porque a Irmã Mary Carmel acha que devo fazer isso. - Eu sentia o meu rosto pegar fogo.

  - Ela acha que é bom para minha vida espiritual ter vocês como amigos.

  - E quem é essa Irmã Mary Carmel? - Ellen olhou-me desconfiada e um pouco zangada.

  - É a minha... bem, acho que "diretora espiritual" seria o título certo. . . - Abaixei a cabeça no prato atacando o bife. Ela é encantadora... e se preocupa muito com o meu bem-estar espiritual. Receitou-me mais interação com amigos íntimos. Deus sabe que é verdade. - Eu estava radiante porque via a Ellen com ciúmes.

  - Ela sabe quem eu sou... quem nós somos? - Ellen ainda tinha as suas dúvidas, mas os cantos de sua boca já esboçavam um sorriso.

  - Ela sabe o que você e Herb significam para mim. Diz que eu preciso passar mais tempo com pessoas. Espero que não pensem que apenas pretendo usá-los.

  - Mas pelo amor de Deus. . . - explodiu Herb numa rara vazão de profanação.

  - Imaginem só! - Ellen ria gostosamente. - Kevin tem uma mulher como diretora espiritual! Mas isso é absolutamente maravilhoso. Conte-nos tudo sobre essa mulher, Kevin. Será que ela o obriga a fazer as suas orações todas as noites? Você faz uma lista de seus piores erros? É ela quem lhe dá a absolvição? Será  que é realmente bonita?

  - Ellen. . . - Herb repreendeu-a com suavidade.

  - Kevin sabe que estou rindo para não chorar... - Fitou-me com seus olhos úmidos. - Como estou contente porque você... não quero dizer que "encontrou ajuda"...

  - Exibiu um largo sorriso. - Estou até muito satisfetia porque você encontrou alguém com senso bastante para obrigá-lo a nos ver todos os meses. Quem sabe se não seria melhor de quinze em quinze dias?

  - Eu não sei, mas vou perguntar. - Eu queria escapar. Ela diz que os hábitos virtuosos devem ser adquiridos lentamente.

  - Diga-nos se ela é bonitinha mesmo, Kevin.

  - Absolutamente linda! Alta, esbelta, flexível, cabelos negros, tem a espécie de corpo que não precisa se preocupar com calorias e é imune às tentações terrenas como, por exemplo, o chocolate.

  A Sra. Strauss teve um muxoxo de desprezo e pediu musse de chocolate para a sobremesa. Os dois queriam, por força, conhecer a Irmã Mary Carmel.

  Nada disso.

 

  Pat era agora um magnífico amante. Era mais exigente que Sloane e mais delicado que o Fredo. As suas carícias preliminares eram ternas e sensíveis. Ele preparava-a lentamente, não se apressava, despertava todas as células de seu corpo, recusando-lhe a união até que ela estivesse louca de desejo. Agora, a sua pujança servia para agradá-la em todos os sentidos, e as suas exigências eram mais para a satisfação dela e não da sua.

  - Eu te agradeço muito, Pat... - ela sentia-se ofegante e cobria-se numa tardia manifestação de pudor que, muitas vezes, se seguia depois que faziam amor - ... tenho andado tão aborrecida por causa da Sheila. Precisava ser amada assim.

  Ele acariciava-lhe o rosto com as pontas dos dedos, falando com ternura.

  - A pobre Sheila tem que viver a sua vida da mesma forma que nós temos que viver a nossa. Lá em Dublin, ela está procurando encontrar a sua independência. Ela voltará - afastou-lhe a coberta do corpo já que desejava vê-la por inteiro. Ela pensou, mais uma vez, que precisava ficar mais magra e fazer mais exercícios.

  - Você é um homem muito sensível e terno, Pat.

  - Se sou mesmo assim é porque você me ensinou as duas coisas... - ele sussurrou-lhe, e o seu rosto preocupado mostrava aquela tristeza que significava estar ele pensando, mais uma vez, na terrível contradição que lhe arruinava a vida, - Tudo que tenho de bom em mim foi você quem me ensinou. Deus bem sabe que não é muito, mas eu devo tudo a você... - Começou a libertar-se de seus braços.

  Não haveria mais amor naquela tarde. Ela sentia-se prejudicada. Continuou deitada no sofá. Enquanto ele se vestia, ela desejava que a imagem de seu corpo ficasse gravada na memória dele e que ele voltaria antes de sair de Roma.

  - Estou admirada porque Kevin e Ellen com o Herb não vieram para o consistório - ela disse.

  - Pois eu não estou. - Ele já estava vestido e enfiava o paninho vermelho por baixo do colarinho.

  - Vocês dois ainda estão zangados? - Ela estava arrependida por não haver falado sobre aquilo que, afinal, era o assunto mais importante.

  - Como é que podemos fazer as pazes? - Ele enfiou o casaco preto que assentava bem em seus ombros largos. - Ele tem o poder de vida e morte suspenso sobre a minha cabeça. Tanto quanto eu saiba, pode até haver uma carta em cima da mesa de Villot ou de Caprio, denunciando-me. Sou obrigado a viver sabendo que Kevin pode liquidar minha carreira apenas estalando um dedo... - Seus ombros estavam tensos com a raiva contida.

  - Ele jamais faria uma coisa dessas, Pat. Nada fez até aqui, não é? Ele não o teria ameaçado se você não o houvesse encurralado. Tente fazer as pazes com ele, Pat.

  - Eu sei disso, Mo. - Ele veio sentar-se ao seu lado no sofá, e falou-lhe baixinho enquanto acariciava-lhe o rosto. - Foi uma grande estupidez de minha parte. Depois de você, Kevin é o melhor amigo que jamais tive. Não posso deixar de ficar furioso com ele, embora me corte o coração o fato dele não estar aqui celebrando junto comigo. É uma vitória dele tanto quanto minha.

  Era ela quem lhe ensinava o que dizer e o que fazer. Era ela também quem lhe ensinava como amar. Ela jamais poderia dar-lhe profundidade, da mesma forma que jamais poderia retirar de Kevin o excesso de profundidade que ele tinha, e que era o seu azar. Se apenas, de alguma forma, os dois pudessem se equilibrar.

  - Isto é a coisa que você sempre desejou desde que foi para o seminário em Quigley, não é mesmo?

  - Eu tive a impressão de ter visto isso na visão que tive da Virgem Maria. - Ele franziu a testa. - Só que nunca pensei que poderia acontecer. Talvez fosse melhor para mim se não tivesse acontecido. Você vem pensando nisso desde muito tempo, não é mesmo? - Ele estava ali de pé ao lado dela.

  - Eu poderia estar errada - ela tocou-Uie o braço.

  - Seja isso bom ou mau para mim, o fato é que aconteceu. Acho que deveria estar encantado. No entanto, na realidade, não parece fazer muita diferença. Como eu queria que Kevin estivesse aqui, mas sabendo que o meu chapéu vermelho não o impressionaria de maneira alguma... - Ele parecia não ter vontade de ir embora.

  - Já resolvi que vou me aposentar quando fizer vinte e cinco anos. Já então eu terei feito aquilo que vim fazer em Chicago. Então será a hora de tentar alguma coisa mais. Eu serei o primeiro a mostrar que ninguém precisa ser um cardeal para o resto de sua vida. - Ele dizia aquilo pensativamente e a sua imaginação estava muito longe.

  - E o que é que vai lazer quando chegar essa hora? - ela pegou-lhe a mão e pousou-a em seu seio. Ele não resistiu.

  - Eu não sei - ele acariciava-a ainda com o pensamento muito longe. Ele olhou para o relógio. - Puxa vida! É mais tarde do que eu pensava. Prometi

ao Tonio e ao Fredo que iria tomar uns drinques com eles, antes da recepção desta noite na Embaixada da Itália no Vaticano. Você não acha uma maravilha o

fato de Tonio e eu termos sido elevados na mesma ocasião?

  Ela largou-lhe a mão para que ele pudesse ir para o seu outro mundo. Ela não podia competir com Tonio Martinelli.

  Ela ficou pensando em todas as outras mulheres que haviam amado cardeais através dos séculos. Muitas delas tinham feito amor com seus cardeais naquele mesmo palazzo em que ela e Pat haviam estado abraçados, alguns momentos antes, de maneira tão maravilhosa.

  Ela e Pat faziam parte de um século errado. Em uma outra era eles teriam condições de se amarem abertamente. Agora era preciso fingir. E o que aconteceria se ele descobrisse que ela andava dormindo com o Fredo? Ele conseguiria compreender? Ele era um amante muito mais soberbo do que o depravado Fredo, que só conseguia chegar ao fim com brutalidade e crueldade. No entanto, e cada vez mais, ela tinha necessidade de alguém bruto e cruel, de alguém que a fizesse sentir uma dor que conseguisse dominar aquela outra dor que lhe ia na alma.

  A tarde era quente e uma agradável letargia percorreu seu corpo. Como era bom dormir nua num sofá de um velho palácio em Roma, ouvindo a distância as risadas de crianças... sonhando que era uma trágica heroína do passado.

  O Sínodo dos Bispos, no outono de 1977, foi o ponto mais alto do pontificado de Paulo VI. Os bispos do mundo inteiro acorreram a »Roma para discutir sobre a educação dos jovens. Até mesmo os mais obtusos sabiam que a Igreja não era bem-vista pela juventude devido à posição adotada a respeito de moralidade sexual e, especialmente, devido à insistência hipócrita quanto ao controle da natalidade, que era rejeitado pelos leigos, que o clero se recusava a fazer cumprir, e que sua hierarquia só respeitava de boca. Mesmo assim, ninguém se atrevia a falar nos problemas da moralidade sexual com receio de ofender o idoso Papa. Tampouco houve qualquer discussão quanto a um possível conclave, mesmo quando o Papa estava cada vez pior com o passar dos meses.

  - Será que estão todos cegos? - foi o que perguntei ao Padre Cárter quando estávamos os dois sentados em seu gabinete, bem dentro do Vaticano, vendo os jardineiros cuidarem das flores do outono ali nos jardins. - Quanto tempo ainda acham que o homem vai durar?

  Cárter era um jesuíta de Los Angeles que teria preferido assistir aos jogos lá, nas tardes dos domingos de outubro. Levantou as suas finas mãos de artistas.

  - É engraçado - disse. - No Sínodo de três anos atrás falava-se mais de um conclave. Ninguém imaginava que ele duraria tanto. Agora já todos dizem que ele está cada vez mais lúcido.

  - E você acredita nisso?

  - Acredito que ele esteja lúcido somente durante umas quatro horas por dia.

  Eu sentia tristeza a respeito de Paulo VI, um homem cheio de boas intenções cujos sonhos de mudanças tranqüilas na Igreja se tinham desmoronado. Ele agarrava-se à vida, como todos nós, alguns poucos anos para os melhores e piores de todos nós.

  - E o conclave?

  - Nada mudou, a não ser que o Benelli está agora em Florença como cardeal.

  - E ele é favorito? - Eu sabia que de seria um papa bem duro.

  - Duvido muito. - Cárter levantou-se e foi até a janelinha.

  - Não acredito, porque ele fez muitos inimigos aqui. O meu palpite, contudo, é que ele bancará o fazedor de reis em favor de algum italiano que não pertença à Cúria, talvez Ursi, de Nápoles, ou então Luciani, de Veneza.

  - Já ouvi dizer que Ursi é um pouco. .. instável... - Eu fingia que estava olhando os jardineiros lá fora, mas estava realmente prestando muita atenção a Cárter.

  - Cada dia que passa ele fica mais maluco! - Cárter sacudiu a cabeça, sempre mais interessado nos jardins do Vaticano que estavam ali perto e eram um problema imediato, ao passo que o conclave, pelos seus cálculos, estava, pelo menos, a um ano de distância. - O seu amigo Pat vai muito bem por aqui. É o único cardeal dos Estados Unidos que enxerga um palmo adiante do nariz. Poderia ser uma figura importante no conclave. Ele sabe o que fazer. - com alguma relutância ele voltou para sua mesa e deixou-se cair na poltrona, com o seu rosto ascético muito pensativo.

  - E um estrangeiro? - perguntei-lhe já na porta.

  - Não vejo possibilidade. Não há um número de votos prontos para quebrar a tradição. Não acredito. Terão que encontrar algum italiano aceitável.

  - Em quem é que vale a pena ficar de olho? - eu insistia.

  - Se alguém lhe der vantagem, pode apostar em Wojtyla, o que está em Cracóvia. . . mas é muito difícil...

  - Um papa polonês?! - Fiquei espantado e deixei escapar todo o meu preconceito de irlandês de Chicago. - Está brincando!...

 

  - Meu Deus, como é bom ver você e Ellen com o Herb outra vez. Pensei que estivessem zangados comigo. Não respondi às cartas de Ellen nem telefonei para você quando estive aqui da última vez. Acho que você sabe por que, não sabe mesmo, Kevin? Estou alegre porque você não tem raiva de mim. - Tudo isso era o que Maureen falava enquanto se desviava de um louco na direção de um Fiat.

  - Pelo que deduzi, você e Ellen tiveram uma discussão a respeito do Pat - eu queria primeiro sondar o terreno. - Mas ela não me deu detalhes.

  - Tudo isso já acabou. - Os olhos dela continuavam atentos na auto-estrada. - Pat pôs um fim em tudo no último verão. Não posso culpá-lo. Era o que tinha a fazer.

  Pôs um fim outra vez, pensei com meus botões.

  - Ele contou à Ellen e ao Herb sobre o casamento da Sheila e isso deu à Ellen uma boa desculpa para te telefonar, se bem que mesmo sem isso, ela sempre teria achado outra desculpa.

  - Ela sempre gostou muito de mim. Eu me portei muito mal com ela - Maureen acendeu um cigarro com o acendedor do carro.

  - O perdão é uma boa coisa, mas a reconciliação ainda é melhor - disse eu com voz untuosa.

  - Então você vai se reconciliar com o Pat, não é mesmo, Kevin? - Ela aproveitou a deixa. - Ele precisa muito de sua ajuda, sabe?

  - Duvido muito, Mo. Foi ele quem lhe disse?

  - Não. - Ela encaminhou o carro na direção das cargas no terminal internacional. - Eu não o vejo mais. Nós nos livramos, finalmente, um do outro.

  Isso eu só acredito vendo, pensei comigo mesmo, inclinando-me para a frente do carro e beijando-a no rosto com afeição.

  - Que bom, Kevin. Qual é a razão para toda esta atenção?

  - Não me peça explicações - disse eu abrindo a porta do carro.

  - Na sua próxima viagem você quer dar um pulo até Dublin para ver a Sheila? Ela ainda é muito moça para se casar. Durante um momento, o seu rosto bonito pareceu-me envelhecido.

  - Pode estar certa que vou mesmo, Mo.

  Coloquei no chão o meu saco de viagem e tornei a beijá-la, desta vez sem me preocupar com os limites da paixão. Ficamos os dois ali abraçados como já havíamos feito cerca de três décadas atrás na véspera do Ano-Novo na Flórida.

  - Não lhe vou perguntar porque, Kevin, já que conheço bem a razão. Muito obrigada. - Ela livrou-se de meus braços.

  Quando o avião, a caminho de casa, passava por cima do Mediterrâneo brilhante e azul, livrando-se do smog de Roma, fiquei a pensar nos brilhantes olhos azuis de Maureen.

  A Irmã Mary Carmel haveria de gostar daquilo.

 

  Ele caminhava devagar pelas ruas enlajeadas como se fosse um pedaço de ferro atraído sem remissão para um poderoso magneto. A Piazza Farnese estava deserta, sem vestígio algum do mercado a céu aberto que a mantinha numa azáfama constante o dia inteiro. Parou um pouco na entrada da pequenina rua sinuosa que levava ao palazzo de Maureen. Pobre mulher. Sua filha de dezoito anos já casada, em Dublin, sem que ela soubesse senão depois do casamento. Pobre, querida e frágil mulher. Ouvia com tristeza o barulho de seus passos.

  Não era, contudo, a piedade que o arrastava ao quarto de dormir de Maureen. Tudo tinfia acabado, mais uma vez, no último verão, quando ela viera para Beverly Shores, embora, no último minuto, quase houvesse sucumbido. Ele fora salvo por um chamado telefônico da Delegação Apostólica e uma urgente viagem a Washington. Voltara a Roma confiante que a tentação, a que resistira, no último verão, poderia ser novamente resistida. Durante três semanas fora bem-sucedido atirando-se ao trabalho do Sínodo, escondendo-se nos bastidores da política que se preparava para o conclave que, na sua opinião, ainda estava bem distante.

  Continuou a caminhar lentamente até chegar à porta do palazzo. Aquela área de Roma sempre cheirava um pouco a excremento humano, e aquele cheiro devia ter séculos de existência. O caso dela com Fredo, ao qual Tonio se referira com muita delicadeza, tornava aquilo mais fácil. Estaria ele ali agora? Não era muito provável, já que Fredo não passava noites com mulheres. Consultou o relógio. Uma e trinta. Não, ela devia estar só. Tirou do bolso a chave. Quando a colocara no bolso, naquela tarde, ele já sabia que iria lá.

  Sentia-se tenso como se nós cruéis o amarrassem. Iria puni-la por tê-lo tentado e por lhe ter sido infiel. Mais uma última trepada violenta e selvagem, e ele estaria livre dela para sempre.

  Ligou as luzes do quarto. Ela abriu os olhos e ficou observando-o enquanto ele caminhava para a cama. Ele sentia desejos de espancá-la, de castigá-la para depois deixá-la ali ensangüentada. Ela merecia ser estuprada sem piedade. As mãos deles fechavam-se e abriam-se rapidamente Estava ofegante. Seria o Fredo melhor do que ele na cama?

  Afagou-lhe a garganta. Passou os dedos em seu rosto. Ela relaxou-se reagindo aos seus carinhos. Ela precisava ser curada e não destruída.

 

  Fiquei observando o Cardeal Arcebispo enquanto eu pregava a homilia na missa de meus pais. O seu rosto angustiado refletia a mesma dor que o meu.

  - Nós todos devemos considerar a morte não como o começo de uma viagem e sim como o seu fim, não como o começo de uma misteriosa e perigosa viagem através de um oceano desconhecido, e sim como a chegada a um porto seguro. Não é um adeus duvidoso que damos àqueles que amamos quando eles embarcam para uma duvidosa peregrinação.

  É, isso sim, uma chegada de volta, a celebração de uma vitória, mais do que a confissão de uma derrota.

"Hoje, nesta manhã, os nossos corações estão cheios de tristeza, e essa é a maneira como deveriam realmente estar. Estamos aqui para dizer adeus, um adeus temporário, na verdade, mas mesmo assim um adeus. E, no entanto, todos nós sabemos que vamos encontrar o Coronel e sua Senhora, outra vez, quando eles estiverem presentes à nossa chegada, uma chegada que, nem é preciso dizer, o Coronel terá arranjado com a sua conhecida eficiência por trás dos bastidores.

  "Ele me disse em certa ocasião que, depois de Cassino, todo o resto de sua vida poderia ser considerado como uma bonificação. Nós todos nos alegramos por essa bonificação que o conservou entre nós, junto com a mamãe, por mais de trinta anos.

  A voz me faltava. Havia lágrimas na primeira fila. Mary Ann, Mike, Joe, Steve, Kathy, Helen, os nove netos. Elas não eram abundantes, no entanto, já que a família era recatada em sua dor.

  - Todos nós sabemos que eles se sentiram felizes em morrer juntos. - Um helicóptero tinha caído em cima da casa durante a noite. Tudo devia ter sido rápido e sem dor. - E todos nós sabemos que eles tratarão da nossa chegada juntos, com a mamãe sempre com a última palavra, como sempre acontece com as mães irlandesas.

  - Agora já se viam alguns sorrisos. - E é assim que a dor está conosco hoje de manhã, uma dor maior do que nós, os Brennan, mas, como católicos cristãos, com a nossa implacável esperança insopitável, e, até mesmo, uma esperança risonha com a qual nós, os irlandeses, desafiamos a morte, assim como o Coronel ,a desafiou em Cassino. Nós não dizemos adeus a James e Mary Brennan, mas, como católicos cristãos, com a nossa implacável esperança, dizemos apenas: "Até breve."

  Pat chorava abertamente, da mesma forma que Ellen. Estava certo de que o mesmo deveria estar acontecendo com Maureen. Terminei o sermão e continuei com a missa o mais rápido que me era possível.

  O Coronel tê-la-ia adorado.

  Nós os enterramos no cemitério que ficava bem atrás da nova igreja no lago. A absolvição final foi dada pelo cardeal e por mim ao mesmo tempo.

  Depois saí discretamente e fui até o Sugar Bowl, onde Herb, Bllen, e Mo já estavam, como se houvesse um pacto entre nós para nos. reunirmos ali. Não havia mais ninguém além de nós e a moça que servia. Ainda se sentia o cheiro de leite azedo.

  - Vocês se lembram da primeira noite... - disse Ellen.

  - Você era uma garotinha gulosa como ainda é hoje... disse eu.

  - A vitrola automática estava tocando It Might as Well Be Spring - lembrou Mo, enxugando os olhos.

  - E todo mundo achava que você se parecia com a Jeanne Crain...

  Herb olhava-nos, e seus olhos iam de um rosto ao outro fascinado, creio eu, e também espantado pela maneira como os irlandeses reagiam à morte.

  - E você me tratou como se eu fosse uma criança... A voz de Ellen ainda tremia um pouco.

  - Uma criança bem bonitinha, com um tremendo apetite pelos milk-shakes e dedos que fugiam logo quando se procurava segurálos.

  - Por favor, mocinha - Maureen achou que já era a hora de fazer os pedidos - traga-nos quatro milk-shakes, sim? Você está vendo, Kevin, que não é mais aquele que fazia o pedido por todos nós.

  - Será que não sou mesmo? Pois então traga seis, sim? Vi que o cardeal estava chegando acompanhado por Arthur McGrath.

  Pat hesitou um pouco como se quisesse fugir, mas depois resolveu-se e veio juntar-se a nós, sempre acompanhado de McGrath. Hoje os meus pensamentos não seriam maus.

  Houve umas duas ou três rodadas de nostalgia, mas logo chegou a hora de sair. Pat, Art e eu fomos os últimos.

  - Isto não é o fim, Kev. .. - Pat apertou-me a mão.

  - Não, Pat, eu sei que não é.

  Durante um momento nós ali ficamos ligados pelo sentimento da perda, mas logo saímos, cada um para seu lado.

 

  l.° de março Querida Mo.

  Está resolvido. Herb e eu iremos à Irlanda em setembro. Ficou também acertado que Kevin irá conosco. Ele ainda está muito tonto e talvez nem saiba que concordou. Depois iremos a Roma para ver você. Herb vai passar um fim de semana em Munique e nós vamos ficar uns dias em Florença (desculpe-me, Firenze) antes de voltar.

  A Ria vai fazer dezesseis amanhã. É muito parecida comigo. E logo, logo a Caroline já vai fazer seus vinte, embora haja ocasiões em que pareça ter trinta.

  O tempo passa.

  Ando muito preocupada com o Kevin. Todos nós sofremos quando perdemos os pais. Ele era muito agarrado ao pai. Ele leva uma vida tão solitária!... Aliás, isso é, em parte, por sua própria escolha, mas nem sei como ele agüenta. Herb acha que ele está quase no ponto de saturação. É como se não encontrasse uma razão para viver. Na metade do tempo ele nem mesmo ouve o que a gente fala.

  Ele ama a sua maldita Igreja mas, ao mesmo tempo, sofre com ela. Ele continua a amá-la e ela continua a magoá-lo. E sempre será assim. Como é que ele não vê que nós somos a igreja... que somos bem iguais aos miseráveis idiotas que a dirigem e que o fazem sofrer?

Risque os "miseráveis idiotas" e escreva "os frágeis seres humanos". Eu ando tão cheia de caridade que chegou até a me enjoar.

  Se eu o amo, se você o ama, se todos os nossos filhos o amam, especialmente a Ria que é apaixonada por ele, e se toda a sua família o ama, então, por que diabo, ele se deixa magoar pelo Cardeal e pelo Papa e pelos padres estúpidos que o invejam e o provocam?

  Deixe ficar "os padres estúpidos que o invejam". A minha caridade também tem seus limites.

  Herb diz que Kevin está entrando num período que deveria ser a sua ocasião mais criativa. Nós dois temos medo que ele se encarquilhe todo como uma fruta seca.

  Será que eu me parecerei com uma romancista romântica se disser que, a despeito de minhas preocupações por ele, acho que os seus sofrimentos serviram, de alguma forma, para purificá-lo? Aquela velha arrogância e brutalidade ainda estão bem ali.   Há ocasiões em que ele se mostra tão ferozmente competitivo como era antigamente.

  E no entanto, especialmente com as crianças, por mais estranho que pareça, ele é tão delicado que chega a meter medo. Herb acha que isso poderá ser um dos primeiros sinais para o colapso.

  Ele também ainda continua a chorar pela Patsy.

  Estou louca para nos encontrarmos.

com amor,  ELLEN.

 

  Nós estávamos em torno da piscina da casa da Ellen e do Herb tomando uns drinques quando chegou o Arcebispo de Chicago, como sempre acompanhado pelo fiel Art, ambos em trajes sacerdotais, e Pat estava até mesmo com meias vermelhas.

  - Herb, Ellen! - ele saudou-nos com efusão. - Nós estávamos vindo de Milwaukee e eu tive vontade de mostrar ao Art o lugar onde passamos a nossa juventude. Você tem aqui uma casa magnífica, Herb. Combina direitinho com as árvores. E Ellen até mesmo preservou o velho poço onde nadávamos. Meus parabéns. Maravilhoso. Kevin, mas que agradável surpresa encontrá-lo aqui. Agora quero conhecer a criançada.

  Aquela era uma magnífica entrada em cena. Ali estava o nosso democrático e efusivo cardeal.

  - Kevin, já ouvi dizer que você está escrevendo um livro sobre a próxima eleição papal. Acho que será bom esperar um pouco para terminá-lo. Eu vi o Papa antes dele ir para Castel Gondolfo. Para um homem com a sua idade, acho que está ainda bem lépido.

  Aquela não era a palavra que eu escolheria para descrever Giovanni Montini nem mesmo quando gozava de perfeita saúde.

  Apesar do calor, os dois não quiseram tirar os colarinhos protestando que ficariam apenas o tempo suficiente para um drinque.

  - Nós estávamos falando a respeito de celibato antes de você chegar - Ellen falou solenemente. - Acha que vão mudar, Pat?

  - Nós vamos tratar do assunto, El - ele mexeu o uísque pensativamente. - O ressurgimento da espiritualidade nos últimos anos mostra que as pessoas estão querendo dar mais destaque às dimensões escatológicas do catolicismo. O sacerdócio celibatário nada mais é senão um símbolo escatológico, não acha você, Herb? Estou certo de que nós atravessaremos essa crise da mesma forma que já atravessamos outras.

  - Tanto quanto nos é dado saber, o problema pode não ser o celibato - Arthur McGrath falou olhando-me cautelosamente. Pode ser que deixamos de incentivar as vocações porque já perdemos a fé em nós mesmos. Você já escreveu sobre isso, não foi mesmo Kevin?

  - É isso mesmo - então ele não era completamente um bobo como parecia. Hesitei um pouco. - Mas não estou convencido de que os padres sejam todos desumanos. Alguns de nós, pelo menos.

  - Qual é a razão para o celibato, Kevin? - Ellen enfiou um roupão por cima do maio ao fazer a pergunta, e esboçava aquele sorriso que parecia inocente, mas que eu aprendera a temer.

  - Talvez o melhor fosse tornar isso opcional - logo que comecei a falar eu sabia que ia causar escândalo - mas detestaria ver a hora em que isso passasse a ser usado. O mundo, católico ou não, precisa do testemunho de umas poucas pessoas que são a prova viva da possibilidade de amarmos, intensa e apaixonadamente, os membros do sexo oposto sem precisar ir para a cama com elas.

  Ellen mordeu os lábios como se quisesse esconder um sorrso e Herb arregalou os olhos. A garotada ficou toda muito quieta, já agora interessada no debate. Ouvia-se a campainha de um telefone ali por perto.

  - O problema, quando se tem gente como o Kevin na diocese, é que ele diz coisas dessa espécie. Coisas que põem um fim a conversa — McGrath disse isso ao mesmo tempo que apanhava uma batata frita.

  Brendan Saiu de casa correndo.

  - É o jornal da CBS no telefone, padre. Disse que é urgente.

  Depois de haver atendido, voltei para onde estavam os ouitros. Urgente. passando Pelas árvores. A conversa tinha mudado e agora discutiam a arquifetura da casa. Fiz sinal a Pat que queria falar com ele.

  - O Papa acaba de ter um ataque cardíaco em Castel Gandolfo. A CBS diz que não se espera que ele viva.

  - É melhor eu ir andando — ele resmungou. Meu Deus, Kevin, nos devíamos estar preparados, mas não estamos, precisamós estar em contato com Roma, Kevin. — Apertou calorosamente a mão de todos.

  - Pode ser que isso seja egoísmo meu — disse Ellen com o pobe homem ainda nem mesmo enterrado, mas será que isso vai interferir com a nossa viagem à Irlanda, em setembro?

  Eu não conseguia me lembrar de já haver concordado. Com tal viagem.

  - Ellen - Herb interferiu  com  tato - Kevin tem coisas mais sérias para pensar...

  - Desculpe-me, Kevin,  mas eu   sou   mesmo egoísta.

  Ela parecia preocupada e eu  não  tinha tempo para lhe peguntar a razão.

 

  Arthur McGrath deu o bilhete de Pat à empregada que estava no balcão do salão do Ambassador.

  - Quatro e trinta e quatro para Roma. O cardeal vai para o conclave.

  - Mas claro, padre - a moça ficou muita afobada - temos um lugar reservado para ele. Muito confortável, na primeira classe. É um lugar isolado. Ele poderá ficar completamente à vontade. - Depois ela viu Pat. — Nós temos um quarto aqui perto onde Vossa Eminência poderá descansar enquanto espera a hora de seu avião. Por favor, preciso ver o seu passaporte.

  Art entregou-lhe  o  que pedia.

  Pat tinha envelhecido nas últimas vinte e quatro horas. O seu secretário não conseguia entendê-lo. Art não imaginava que a responsabilidade na eleição de um novo Papa fosse tão pesada para ele. Ele imaginara que, para Pat, aquilo seria quase uma brincadeira e, em lugar disso, ele estava preocupado, sério e até mesmo triste...

  - Nós vamos rezar pedindo  ao Espírito Santo que o ajude - a moça sorria nervosa.

  - Muito obrigado... - Pat respondeu automaticamente. E então lembrou-se de seu lendário sorriso. - Nós vamos precisar mesmo.

 

  Jordan Bonfonte, chefe do escritório do Time em Roma, colocou no bolso o seu rádio portátil. No princípio a fumaça parecia branca, depois preta, e depois, durante quarenta e cinco minutos, ela estava cinzenta.

  Nós todos começamos a nos afastar juntando-nos  à multidão desapontada  naquele   entardecer.   Bonfonte falou  aliviado.

  - Graças a Deus não foi branca. Eu só teria doze horas para escrever a notícia para a capa.

  As luzes se acenderam por trás das cortinas nas janelas que davam para o balcão de S. Pedro. "Attenzione", gritou a voz sinistra no sistema de alto-falantes.

  A multidão gritava de alegria. Corremos de volta, passando pelas barricadas, até o pé do obelisco. As portas se abriram. Os faróis iluminaram o balcão. Felici. Bem, não fora ele o vencedor. "Annuntio vobis gaudium magnum. Habemus papam! Albunum Cardinalem Sanctae Romanae Eclesiae Luciani!" Nós temos um novo Papa! Via-se claramente que ele estava bem satisfeito consigo mesmo...

  Jordan desapareceu para ir transmitir a sua notícia. Fui saindo no meio da multidão que aplaudia, passando pelo sinistro palácio do Santo Ofício e descendo a Via Aurelia até o Michelangelo.

Aquilo era, de uma certa maneira, uma derrota. Somente quatro votos para escolher um virtual desconhecido no Norte da Itália. O resto do mundo iria fazer de nós um triste juízo.

  Já no hotel eu vi o novo Papa que tomara o nome de João Paulo, na TV do quarto. O seu sorriso era magnífico. Um sorriso de deslumbramento, de felicidade, radiante. Era um Papa com um sorriso alegre.

 

  Outra vez no Sabatini. Dessa vez era uma noite esplêndida de setembro com um céu sem nuvens e uma ligeira brisa que espantava o inevitável odor do Trastevere. O Padre Cárter, encantado pelas cabeças louras de Ellen e Mônica, como aliás todo mundo, contava coisas fascinantes a respeito daquele antigo distrito "do outro lado do Tibre", um lugar pitoresco até mesmo nos tempos dos Césares. Não deixou de contar o caso do mau-olhado de Alfredo Ottaviani.

  Foi Mônica quem falou.

  - Não quero acreditar que o pessoal do Vaticano leve isso muito a sério. Será que levam mesmo?

  Cárter estava adorando.

  - Eu sinto um arrepio todas as vezes que ele olha para mim. Os talheres faiscavam, os copos brilhavam, as toalhas brancas iluminavam, os garçons se mostravam especialmente prestativos e o vinho corria.

  - E como vai o seu livro sobre a eleição papal, Kevin? Cárter abordava, finalmente, o assunto que me trouxera a Roma.

  - Está quase acabado. Afinal, não há muito o que contar. Um conclave que só durou um dia e no qual um papa italiano foi eleito quase por aclamação. Que espécie de papa será? O que tem feito até agora?

  - Ele está aprendendo depressa, para uma pessoa que veio de fora - Cárter mexia o seu expresso pensativo. - Ouvi falar que ontem o Casaroli levou-lhe seis decisões que precisavam ser tomadas, a respeito da Europa Oriental, e ele resolveu logo cinco delas ali mesmo. O Papa Paulo VI teria levado cinco meses. E o Casaroli ainda diz que as decisões que tomou foram todas acertadas.

  - Então, por que ele não aparece mais na TV? Nós o vimos na audiência de ontem e ele tinha todo mundo na palma de sua mão. Até mesmo o Padre Brennan chegou a sorrir - quem assim falava era Mônica.

  O nosso encontro de acaso, no saguão do hotel em Roma, com Mómca e Tom, tinha-a deixado desconcertada, mas o convite caloroso de Herb para que jantassem conosco tinha-lhe restaurado a confiança. Se o seu antigo terapeuta não se importava, por que então iria ela se preocupar?

  - O Vaticano não tem nem mesmo capacidade para um videoteipe a cores - Cárter deu uma risada.

  - Pois então arranjem uma - ela sacudiu o braço como se aquilo fosse coisa de somenos. - Vocês têm aqui a mais formidável propriedade televisiva em todo o mundo.

  Por que não contratam o Papa?

  Todo mundo riu. Realmente, era o cúmulo. O Papa como uma formidável propriedade televisiva.

  Quando voltamos ao hotel, fui logo para a cama e sonhei com Herb e Ellen, confundindo-os com meus pais. Irmã Carmel me aparecia de biquini para me falar sobre a "vontade sagrada de Deus". Depois houve um helicóptero despencando e o barulho das sirenes. A Irmã Carmel ria diabolicamente, e gritava "a vontade sagrada de Deus".

  Despertei de meu sonho com a sirene continuando a focar, mas era só o telefone.

  - Pronto...

  - Aqui é o Cárter, Kevin. Desculpe se o acordei. A rádio do Vaticano acaba de anunciar que o Papa morreu. Foi o Magee quem encontrou o seu corpo esta manhã. Deve ter morrido durante a noite. Agora mesmo o Tucci está dizendo a Missa da Ressurreição no rádio. É bem possível que seu corpo já estivesse esfriando quando nós, ontem, achávamos que ele era uma propriedade quente.

  Já eu estava novamente preocupado. Tínhamos problemas. Tinha morrido o último italiano que servira como uma transigência.

 

  O Cardeal Patrick Donahue sacudiu queijo demais em cima de seu spagueiti alia bolognese.

  - Meu Deus, Kevin, quanto tempo já faz desde que almoçamos juntos pela última vez?

  - Séculos. - Eu disse aquilo só para responder alguma coisa. Estava intimamente contente em ver que o meu cardeal arcebispo já estava deixando transparecer seus anos. Comparado com os outros cardeais, ele era ainda jovem e bonitão, mas seus cabelos já começavam a encanecer e o seu rosto estava começando a ficar balofo.

  - O que é que você acha que vai acontecer depois de amanhã? - A sua pergunta foi feita expansivamente enquanto enchia o meu copo com o vino da casa. O cardeal arcebispo estava almoçando no Borgo Pio com um padre dissidente, mas não havia uma razão para esbanjar dinheiro. Tampouco queríamos ir a algum lugar onde fôssemos vistos por algum jornalista, no Marcello ou no Roberto, ali mesmo perto das paredes do Vaticano.

  - Os jornais todos estão dizendo que o Siri será o novo papa, mas eu não acredito, Pat. Ele não conta com os votos. Ele quer preparar a corrida para mais alguém.

  - Mordisquei um pedaço de pão.

  Pat empastava de manteiga uma grossa fatia de pão de Roma. Eu via o músculo do seu pescoço que pulsava. Ele estava novamente encrencado e queria que eu o tirasse da enrascada. Já desconfiara daquilo quando me convidara para almoçar.

  - Fredo DeLucca...

  Bebeu um bom gole para fazer descer o pão. Ele acabaria contando o que havia.

  - E, sem dúvida, o primo dele, o Arcebispo de Perugia, está também metido nisto, Pat.

  - É isso aí, Kevin - ele acenou com o garfo antes de enfiá-lo na pasta. - Eles e os seus amigos estão querendo manter o papado na Itália, Se for assim, são até capazes de colocar lá o próprio Antônio. Não acham que o Benelli seja velho demais com cinqüenta e sete, e o Antônio é cinco anos mais moço.

  - Devem estar loucos, Pat. - Eu não podia acreditar. Um papa homossexual com cinqüenta e dois anos.

  - Não necessariamente, Kevin... - Ele tornou a acenar com o garfo. - Este conclave agora é completamente diferente do outro. O povo está com medo. Querem alguém que não deixe a Igreja se desintegrar, alguém que seja bem duro com o comunismo. Alguém que ponha um fim a toda essa frouxidão que existe desde o Concilio. Antônio e seus amigos poderiam conviver com Siri, é claro, ou até mesmo com Felici, mas querem tudo só para eles.

  Já era tempo para acabar com a charada. Fitei-o inclinandome para a frente, e disse-lhe o que pensava.

  - Na primeira manhã, Benelli e Siri se eliminarão mutuamente. Na mesma tarde, encontrarão um meio termo, um acordo à italiana, mas não será Luciani. No dia seguinte eles, e você no meio deles, elegerão um dos stranieri.

  Pat ouvia com atenção sem nem mesmo tocar na comida, e sacudia a cabeça.

  - É difícil embrulhar um irlandês do West Side, não é mesmo, Kevin? Está claro que é isso mesmo que vai acontecer, mas não sem os votos dos Estados Unidos. E é aí que eu entro. - Bebeu um grande gole de vinho. - A maior parte de meus colegas dos Estados Unidos votará em Siri. Se eu convencê-los a votar em Colombo na parte da tarde, ele poderá ganhar. Mas mesmo que eu não faça isso, ele, ainda assim, poderá ganhar. Eu só fico importante no fim do primeiro dia quando se estabelecer o caos.

  - E o que acha você que serão as manchetes do Sun-Times e do Tríbune se vocês elegerem o Colombo, com setenta e seis anos, para suceder um de sessenta e cinco que morreu dentro de um mês?

  Com um imperioso gesto da mão ele mostrou que pouco estava ligando para as manchetes.

  - De qualquer forma, ele certamente terá o voto dos Estados Unidos. Ele e um bom homem, e o Antônio o aceitaria como o salvador de última hora de um papado italiano.

  - E quem é esse Antônio, com todos os diabos? O que é que o faz tão importante assim?

  Pat ficou muito pálido, respirou fundo e falou baixinho.

  - É ele que está fazendo chantagem comigo. Esvaziei o meu cálice.

  - Você sabe que o DeLucca foi amante de Maureen durante algum tempo - Pat continuou, falando muito depressa. - Antes do conclave de agosto ele deu a uns terroristas a chave do apartamento dela. Instalaram máquinas fotográficas no quarto e conseguiram tirar fotos quando nós estávamos... Em agosto não chegaram a usá-las.

  Sabiam que o Luciani ia ser eleito e pensavam que podiam manipulá-lo.

  - E quem são eles, Pat? - Eu tentava esconder a raiva que fervia dentro de mim. Não podia acreditar naquilo! Retratos de um cardeal na cama!

  - Eu nem mesmo sei, Kevin. O DeLucca, Antônio, alguns de seus amigos, uns poucos monarquistas e capitalistas de extrema direita, alguns banqueiros que querem ver o Marcinkus fora do banco do Vaticano, para depois poderem usá-lo. Depois há também um grupo de terroristas de direita que se intitulam os Escravos de Santo Antônio de Pádua. É essa espécie de gente.

  - E você já viu as fotos? - Uma chantagem de classe seria melhor que uma chantagem suja.

  Ele sacudiu a cabeça cheio de vergonha. Já não estava mais achando graça em coisa alguma.

  - O Fredo me mostrou algumas. Deram toda a história a um dos grandes jornais dos Estados Unidos e prometeram as fotos. O repórter procurou-me e

queria que eu confirmasse ou negasse. Eu lhe respondi que tudo aquilo era ridículo. Atirei-o para fora da Villa Strich. Era o pior sacana anticatólico que já conheci.

  Depois, recebi um telefonema do Antônio dizendo-me como estava chocado com todas aquelas calúnias que corriam a meu respeito. O seu primo Fredo me diria como pôr um fim a tudo aquilo. Eu almocei com o Fredo, aliás, foi aqui mesmo, na quinta-feira, e ele mostrou-me as fotos dizendo que eu não precisava ficar preocupado. O jornal dos EUA jamais iria consegui-las. Ele conseguira comprá-las dos terroristas. Ele me daria todas elas depois do conclave, pois só então as teria em suas mãos. O Antônio telefonou-me naquela mesma tarde dando-me as ordens para o conclave, mas sem mencionar as fotos. As ordens eram todas muito delicadas, mas eram ordens mesmo... - Gom um guardanapo ele limpou um dos cantos da boca.

  - E esse tal jornal é de escândalo? Ele sacudiu a cabeça negando.

  - Então nada farão sem documentação. Não publicarão as fotos, mas publicarão a história, e aí então as fotos irão parar nas mãos de algum jornal de escândalos que as publicará. Eles o pegaram. Pat. Não acredito que você saiba onde estão as fotos e os filmes, hem?

  - A verdade é que sei - ele juntou os punhos cerrados. Um jovem padre que trabalha com o Antônio me deve alguns.. . "favores'". As fotos estão na casa de Fredo, em Forio. É uma aldeia de pescadores nos confins de Ischia, na baía de Nápoles... Será que você poderia consegui-las para mim, Kev? - Os seus olhos eram os mesmos daqueles tempos de antigamente quando ele precisava que eu o ajudasse a encestar a bola.

  - E se eu não o fizer, Pat?

  - Então eu resolverei na hora - ele respondeu baixinho com o rosto contorcido na agonia. - Já cheguei a pensar em matar-me, mas se ainda não fiz isso até agora, o mais certo mesmo é que jamais o farei. Meu Deus do céu, Kevin... - A fachada já desmoronara e ele agora chorava. - Não escolhi o sacerdócio para que tudo isso me acontecesse, Kev. Eu só queria salvar a minha alma. A Virgem Maria prometeu-me que o faria. Foi por isso que eu desisti da família. Era tudo que eu queria. Talvez venha me enganando todo esse tempo. . . - Sua voz ia sumindo.

  - Como é que posso comunicar-me com você depois de sua entrada lá, quando a votação já houver começado?

  Ele logo recuperou o ânimo e tornou-se muito ativo.

  - Isso é fácil. Você aluga um Lancia Gamma vermelha. Três vezes, às oito e trinta da manhã, cinco e trinta da tarde & dez da noite, eu chegarei à janela do Palácio Apostólico que dá para a piazza. Se o carro estacionado em frente da Congregação dos Bispos piscar a luz do farol, durante três vezes, em cima da hora, eu saberei que você conseguiu destruir as fotos.

  Pesei cautelosamente a situação. Era óbvio que ele já calculara tudo. Durante toda a minha vida eu vinha ajudando o Pat a encestar suas bolas. Ele achava aquilo a coisa mais natural do mundo. Sabia que eu o faria. Encrencas? Chame o Kevin que ele dará um jeito.

  - Não - respondi incisivo.

  - Kevin, por favor! - ele estendeu os braços numa súplica.

  - E por que acha você que eu me daria a toda essa trabalheira? - Eu saí da cadeira. - Vamos supor que arriscaria a vida para conseguir essas fotos. Será que, com isso, você deixaria a Mo em paz, já que está estragando toda a vida dela? Será que iria votar por alguma coisa que não fosse a sua própria carreira logo que se apanhasse lá dentro? Conseguiria você me reintegrar nas rodas eclesiásticas? Afogue-se ou nade por sua própria conta, Eminenza. Já é tempo que o faça.

  Saí na direção do túmulo de Hadrian, embora o meu hotel fosse na outra direção.

  Duas horas- mais tarde voltei ao meu quarto no Michelangelo.

  Telefonei para a Villa Stritch. Devo ter acordado o Pat que fazia a sua siesta.

  - Oito e trinta, cinco e trinta, dez horas?

  - Isso mesmo! - Ele já estava completamente acordado.

  - Vou ver o que posso fazer.

  - Eu lhe serei grato para sempre, Kevin. Quando tudo isso estiver acabado eu apresento a minha demissão. É uma promessa.

  - A única coisa que eu quero é que me reintegre na burocracia da Igreja.

 

  Peguei um táxi e fui para o Hilton de Roma. Ellen não estava em seu quarto. O marido já tinha partido para sua reunião em Viena.

Fui ver na piscina. Ela cortava furiosamente a água como se estivesse tentando expelir as calorias da pasta. Saiu logo que me viu, embrulhando-se em uma toalha e correndo em minha direção. Senti um aperto na garganta ao vê-la ali, uma reação tão desconcertante quanto fora a de trinta anos atrás.

  - Qual é a razão para essa tristeza, Kevin?

  - Acho que vou ser obrigado a cancelar nosso encontro esta noite, Ellen.

  Ela encolheu-se na toalha tremendo um pouco ali naquele sol de outubro que já não esquentava muito.

  - Muito bem - ela falou séria. - Diga-me agora qual é o problema para tanta preocupação.

  Contei-lhe tudo.

  - Mas que sujeira. Sórdido e sujo. Pode deixar que eu farei as reservas em Ischia e alugarei o carro. Lancia vermelho, hein? O nosso cardeal gosta de coisas caras. Dois quartos no hotel. Deixe comigo. Você vai procurar o seu amigo da CIA na Embaixada, aquele que encontrou no avião, e traga alguns de seus brinquedos para explodir cofres e coisas parecidas. Nós só vamos poder sair amanhã, de qualquer maneira. Vou telefonar para o Herb em Munique para dizer-lhe que vamos passar um fim de semana fora e que ele deve ter confiança em minha virtude e nenhuma na sua. Não preciso contar-lhe os detalhes. Ele ficaria preocupado. Vamos precisar fazer algumas compras. Suéteres e slacks pretos. Sapatos com sola de borracha...

  - Você está louca se pensa que vou deixá-la...

  - Pois então tente deter-me... - Olhei para seu rosto decidido e vi que seria tempo perdido não concordar com ela.

  - Você tem marido e filhos, Ellen. Não pode arriscar a sua vida...

  - Kevin Brennan - ela empertigou-se toda e apertou os lábios - você pode discutir comigo toda esta tarde e todo o dia de amanhã. Eu irei de qualquer maneira. As preocupações com marido e filhos ficam por minha conta. Quando eu lhe contar tudo, ele se orgulhará de mim. Aliás, as crianças também. De qualquer forma, no entanto, ninguém vai sair ferido.

  Tentei convencê-la durante a metade da tarde, mas depois desisti. Nós, os irlandeses, somos maravilhosamente programados para entregar os pontos quando vemos aquele jeitinho do queixo.

  Estive com o Mikolitis na Embaixada, de onde trouxe uma coleção de brinquedos, alguns dos quais já vira com Calvin Ohira quando abrira um armário fechado a cadeado no porão. Fui obrigado a mostrá-los ao meu companheiro de aventura, que ficou de olhos arregalados como uma criança diante de bruxas e dragões.

  - Só não gosto muito do .38. - E eu, aliás, também não gostava dele. Duvidava se jamais teria a coragem de atirar contra alguém.

 

  Tentei novamente dissuadi-la na tarde seguinte quando a barca já ia saindo da baía de Nápoles. Ela apenas riu e seus cabelos esvoaçaram com a brisa do mar.

  Ischia era um bloco vulcânico que mal se via na bruma distante, maior do que Capri e mais para longe na baía. Consultando o guia turístico, Ellen me informou que Forio era uma velha aldeia de pescadores com uma colónia de artistas num dos lados da ilha. O nosso hotel era o Santa Catarina que, pelas informações recebidas, era muito bom, embora pequenino e encantador. Havia também umas termas muito procuradas pelos estrangeiros e famosas pelos seus poderes de recuperação.

  Ellen olhou em torno da barca onde a maioria dos carros eram Mercedes Benz e os seus ocupantes eram, geralmente, homens de negócio, alemães já entrados em anos, com suas amiguinhas de corpos firmes e bem-feitos.

  - Hmm... aposto como sei o que é que as águas aqui recuperam... - disse Ellen, mas logo franziu a testa quando se lembrou do que nós íamos fazer. - E o que vai acontecer com o Pat se descobrirem?

  - Eles não farão coisa alguma se o fato não se tornar público. Pat não é o único cardeal na história com uma mulher em sua vida. Que diabo! O seu antecessor tinha uma loura que morava na mesma casa com ele. Viajavam os dois juntos pelo mundo, tinha uma casa com ela na Flórida e foi preso pela polícia de Chicago por dirigir embriagado, sempre junto com ela. E Roma nunca fez coisa alguma contra ele.

  Ela perguntou baixinho.

  - Os cardeais todos são como ele? Eu não conseguia encará-la.

  - Não. A maioria deles mantém a castidade atualmente. Alguns porque são neutros, e outros porque se comprometeram com o celibato, como acontece comigo.

 

  A melodia do Veni Creator Spiritus ressoava e tornava a ressoar na cabeça de Pat. Durante uns poucos momentos da procissão ele sentia-se exaltado e orgulhoso. Ali estava o filho de um lixeiro votando peltí segunda vez, para jazer um papa. Ele era um intermediário do Espírito Santo. Depois veio o dramático Exeunt Omnes para o Monsenhor Noè, e depois de alguns momentos de hesitação, o Cardeal Villoí, camerlengo, o papa interino, fechou a porta e deu uma volta com a chave.

  Começava novamente o conclave.

  Ele mostrou-se paciente durante o longo e tedioso juramento na Capela Sistina. Aqueles velhos, que tinham sido eleitos para a mais alta posição na igreja, prestavam o mais solene de todos os juramentos, sob pena da mais terrível das excomunhões, quando prometiam não revelar o que se passava no conclave, não jazer política para serem eleitos nem para elegerem os atnigos. A capela era abafada e .quente, e os cardeais sentiam-se inquietos nas suas batinas escarlates e cappas. O Cardeal Wojtyla, de Cracóvia, que estava ao lado de Pat, lia uma revista filosófica que, a julgar pelo título, devia ser marxista.

  Pat inclinou-se para ele e falou em inglês:

  - Trazendo Marx para o conclave, Eminência? É uma vergonha.

  O cardeal, de ombros largos e um bonito tipo de homem, olhou furtivamente para os lados e sorriu.

  - Tenho a consciência tranqüila.

Pat olhava para um velho que tornara a jurar na Bíblia na frente da capela.

  Se conseguias se concentrar nas cerimônias ele poderia, talvez, esquecer, por alguns momentos, o perigo que corria. A chantagem parecia uma coisa fora da realidade ali naquela capela histórica, onde já se começava a sentir o cheiro daquelas roupas pesadas e dos corpos masculinos. O escândalo abalaria o mundo. Ele seria obrigado a demitir-se e talvez entrar para um convento onde passaria o resto de sua vida em penitência. Talvez um novo Mallery.

  Wojtyla cutucou-o. Era a sua vez de prestar o juramento. Caminhou desanimado até o altar. Ele era o mais novo dos eleitores, mas sentia-se como se fosse o mais velho.

  Depois da ceia, Mareei Flambeau aproximou-se dele no estreito corredor que levava ao refeitório improvisado. Era um homem bonito, Cardeal do Luxemburgo.

  - Nós acreditamos que amanhã, na hora do almoço, já o Cardeal Benelli estará perto da vitória.

  Estaria Flambeau jalando a respeito do que desejava que fosse ou do que, certamente, aconteceria? Pat decidiu-se pela primeira hipótese e então sacudiu a cabeça negativamente.

  - Sua Eminência jamais conseguirá setenta e seis votos.

  O rosto, geralmente impassível, de Flambeau deixou transparecer o desapontamento. Sacudiu a cabeça em silêncio e seguiu pelo corredor. Pat voltou-se e subiu os degraus que levavam ao ático do palácio. O sorteio tinha-lhe designado um pequenino quarto com uma janela alta e com grades. Lá ao longe viam-se as colinas que se projetavam contra o céu escuro. Mais perto dele estava o Janiculum, onde ele estivera no colégio e sonhara que algum dia estaria votando em um conclave.

  Tomou a cabeça nas mãos e soltou um gemido. Estava numa prisão, não somente num quartinho escuro e quente com uma cama inconfortável e cadeiras duras de plástico, mas também nas cadeias que o acorrentavam desde que era criança. Queria soluçar de vergonha e agonia, mas as lágrimas não lhe vinham aos olhos. Completamente desanimado, olhou para o relógio. Kevin não poderia ainda estar com as fotos. Mesmo assim, caminhou até a janela cujo peitoril estava à altura de seus olhos. Se ficasse na ponta dos pés poderia ver a piazza. Quase deserta. Alguns turistas, os guardas da segurança e talvez alguns jornalistas. Um fluxo de tráfego contínuo vinha pela Via delle Conciliazione. Havia um carro vermelho parado diante da Congregação dos Bispos, perto da loja de lembranças. Seu coração bateu forte cheio de esperança, mas o carro moveu-se para além das colunas de Bernini sem piscar as luzes. Aliás, nem mesmo era um Lancia.

  Esperou mais um quarto de hora. O tráfego noturno já tinha diminuído. Soltou um suspiro.

  Não haveria visitantes naquela noite. Os cardeais estariam esperando notícias dos primeiros dois escrutínios para começarem então as discussões que não pareciam violar os seus solenes juramentos. Na última vez houvera uma batida na porta naquela hora avançada da noite. Fora Flambeau, que estava cabalando os cardeais dos Estados Unidos para que votassem em Luciani O pobre Benelli, aquele homem abrupto, bem-dotado e pequenino com o seu sorriso mágico, tinha feito uma política melhor em favor dos amigos do que em favor de si mesmo. Os votos dados a ele seriam um desperdício. Patrick Donahue, de repente, sentiu-se culpado. O "Gianni", mais do que ninguém, fora quem lhe conseguira a promoção em Chicago. E ele o abandonara. A lealdade exigia que fizesse algo mais por Benelli.

  Pela primeira vez, em vários dias, ele pensou em Maureen e sentiu-se arrependido, não por ela, no entanto. Mo sempre sobreviveria. Ela sempre conseguia. Sentia-se arrependido pensando na bonita família que poderiam ter formado se ele houvesse escutado o conselho de Kevin e ido para Notre Dame, em 1949. Quantos padres, antes dele, e até mesmo quantos cardeais teriam desejado voltar atrás em suas vidas?

  Tornou a gemer e começou a desabotoar a sua batina encharcada de suor. Ele poderia ganhar tempo no primeiro dia mas, depois, seria preciso decidir-se.   A solução seria, provavelmente, clara. Deveria ele votar de acordo com a sua consciência e permitir que lhe destruíssem a vida e a carreira, ou deveria ele votar como ordenava Tonio e sobreviver ainda um dia?

 

  O porto da barca em Ischia já se escondia na bruma quando nós chegamos, e Forio já estava no escuro quando seguimos pelo caminho estreito com duas pistas. A pequenina aldeia parecia ser principalmente morros e areia. O Santa Catarina era limpinho, e próximo e cheio de alemães bonitos que não precisavam das águas para recuperação.

  - O tempo de outubro provavelmente atrai mais essa gente, embora a estação tenha terminado - disse Ellen enquanto esperava na fila para se registrar.

  Foi quando surgiu um problema. Havia uma reserva em nome do Sr. Brennan, mas nenhuma em nome da Sra. Strauss. Havia, porém, um quarto com duas camas se o signore e a signora... O sorriso do porteiro era em parte um deboche ao mesmo tempo que um pedido. O rosto de Ellen ficou muito pálido e ela apertou os olhos.

  Procurei esconder minha contrariedade por baixo de um sorriso urbano e disse ao homem da portaria que estávamos molto contento com a solução encontrada.

  Na medida em que o elevador subia lentamente para o segundo andar, Ellen tentava se explicar:

  - Não fui eu, Kevin... Não fui eu...

O quarto era espaçoso, pintado de branco, com um grande tapete vermelho. As camas, suficientemente separadas, estavam cobertas com colchas. Dei a gorjeta ao criado e agradeci.

  A nossa janela tinha vista para o mar, e no sopé da colina estava uma escuridão completa. Ellen, de blusa e jeans, estava feito a mulher de Lot, imóvel como uma estátua no meio do quarto.

  - Não fui eu, Kevin...

  - Eu sei que não foi você, Ellen - eu estava quase perdendo a paciência. - De qualquer forma, vou sair para uma inspeção.

  A aldeia estendia-se nas ruas mais baixas da colina por trás do hotel. A maioria das casas parecia ocupada, com as janelas abertas deixando passar a luz que ia iluminar a rua. A colina era acariciada por uma leve brisa vinda do oceano e que cheirava a sal e peixe. Um outubro romântico na romântica baía de Nápoles.

  Em meia hora eu já me sentia mais calmo e voltei para a sala do hotel onde estava a TV e onde Ellen assistia ao replay das notícias que mostravam os cardeais a caminho do conclave, saindo de Pauline em direção à Capela Sistina. Ela me falou baixinho: "Lá está ele", quando Patrick passou pela câmera cantando com todo o vigor como se não tivesse a menor preocupação deste mundo. Depois viu-se Villot fechando a porta, e o rosto do locutor italiano.

  - O que foi que você apurou? - Ellen tinha mudado de roupa e estava agora com um vestido preto e sem mangas.

  - O signor DeLucca ainda está em casa, mas talvez vá para Roma amanhã, embora não haja certeza. Ele é um homem muito fechado. No entanto os seus empregados foram para Roma ontem e todos acham que...

  - Então, por que não vamos logo jantar?

  Mais tarde, quando pedíamos o jantar, na espaçosa sala de teto baixo, do hotel, eu disse:

  - Nós não estamos tão desclassificados como você poderia supor no princípio. - Eu já me sentia mais calmo. Afinal tudo fora culpa do hotel.

  - Quem falou em desclassificado? Olhe aqui, este vestido custou...

  - Eu acho que é uma conspiração. Como a que fazíamos antigamente para aqueles jogos de bola. Fredo DeLucca tem ligações com alguns sacerdotes ambiciosos que exageraram um pouco em comparação com o que teriam feito outros padres da Cúria. Alguns homens de negócio duvidosos, quase neofascistas, que querem se apoderar do Banco do Vaticano, provavelmente para contrabandear divisas para fora do país, e um grupo de desmiolados terroristas de direita que não pertence às Brigadas Vermelhas. É possível que tenham engendrado tudo pensando em arrancar dirtheiro de todos os que estiverem envolvidos. É possível que tenham também alguma coisa contra outros cardeais, embora eu possa jurar que o cabeça é o DeLucca. Creio que são perigosos, mas principalmente porque são burros.

  - Nós vamos liquidá-los - ela respondeu-me com uma serena confiança.

  - Vou ser obrigado a isso, Ellen.

  Depois do jantar ficamos sentados no varandão do hotel ouvindo o barulho das ondas que morriam na praia e bebericando o café. Não quis o conhaque. O meu desejo por Ellen, que ficara adormecido durante a viagem desde Roma, tornava-se imperioso agora. O conhaque só serviria para enfraquecer minhas defesas. Ela estava extremamente divertida com a incongruência de nossa situação. Eu estava apavorado. O seu vestido preto muito simples que, deliberadamente, nada tinha de sexy, fazia com que ela se tornasse ainda mais atraente. Era uma matrona de meia-idade com um corpo de garota, olhos provocadores com cintilações que enfeitiçavam.

  Ela bebeu seu conhaque e favoreceu-me com um sorriso.

  - Sempre houve entre nós esta eletricidade, não foi mesmo Kevin? Desde aquela noite em que nós estávamos no banco traseiro do seu carro... naquele dia em que você ficou furioso só porque o Pat perdeu aquele jogo.

  - Vamos dar uma volta na praia antes que eu possa responder a isso.

  Descemos as escadas e entramos na areia que ainda estava morna. Segurando em meu braço, com uma das mãos primeiro e depois com a outra, ela tirou fora os sapatos.

  - Vamos agora falar sobre aquele outro jogo em que Pat não quis destruir o catcher.

  O meu rosto estava em fogo e eu fazia o possível para não encará-la.

  - Lembro-me bem da garotinha com o rabinho-de-cavalo... na manhã seguinte menti para a minha mãe a seu respeito.

  - Foi mesmo?!

  - Minha mãe disse que você tinha ficado muito bonitinha e eu respondi que nem tinha reparado.

  - E a eletricidade nunca se dissipou, não é mesmo, Kev? Ela achou graça. - Será que vai algum dia?

  - Não, Ellen, não vai mesmo... - Eu sentia-me fraco como se houvesse corrido quilómetros.

  - Nem mesmo com a morte?

  - Se a minha fé significa alguma coisa para mim - respirei bem fundo - isso também significa que essa eletricidade entre nós dois sobreviverá à morte, da mesma forma que o sol sobrevive à noite.

  - Vamos então supor que essa... bem, vamos continuar chamando de eletricidade... se desencadeia e nós fazemos amor esta noite. O que acontece então?

  - Acho que significaria que nós deveríamos, no futuro, ficar em quartos separados, especialmente quando estamos cuidando de eleições papais. Eu não deixarei a Igreja e você, certamente, também não deixará o Herb.

  - Os nossos compromissos não mudariam?

  - Nós já nos afundamos muito neles para poder mudar, Ellen. Você sabe muito bem.

  - Então não há muita razão para termos medo, não é mesmo? Quero dizer, falando francamente.

  - Não. - Eu só esperava que minha voz não lhe parecesse tão trémula como parecia a mim. - O pior não seria tão ruim assim.

  - Eu farei amor com você esta noite, Kevin, desde que você queira.

  - Muito obrigado - respondi bem devagar - mas não haverá o que agradecer.

  - E por que não? - O alívio dela era tão palpável como o céu estrelado lá em cima do oceano.

  - Ora, que diabo, Ellen, por uma porção de razões, mas principalmente porque eu acredito que isso destruiria, provavelmente, a eletricidade, que é uma coisa muito importante na minha vida e que não quero perder. - Levantei-lhe o queixo com a mão para poder ver bem a sua expressão à luz das estrelas. - E, com todos os diabos, mulher, se não parar de sorrir assim como a mãe que se orgulha de seu filho porque ele deu a resposta certa a uma pergunta na aula, eu vou levar você para o nosso quarto e enfio a sua cabeça no fundo da banheira durante meia hora.

  Quando íamos subindo para o segundo andar no elevador lento e arquejante, ela me perguntou numa voz muito petulante se eu jamais passara uma noite num quarto com uma mulher.

  - Passei com a Mo em certa ocasião e, aliás, na mesma cama - eu procurava recuperar o meu controle.

  - Você não vai querer que eu engula, esta, vai? E o que foi que vocês fizeram?

  - Eu não fiz nada. Ela adormeceu...

  - Ora essa! Eu, certamente, não adormeceria.

  - Quem sabe? - Afastei-me para deixá-la sair do elevador. Logo depois eu estava na cama seguramente coberto com lençol e um cobertor leve. Na cama de Ellen havia uma lâmpada.

  O barulho do chuveiro parou e Ellen saiu de lá enfiada numa camisola de dormir, mais ou menos recatada. Já eu passara em outro teste.

  - Suas pernas até que ainda são bonitinhas para uma mulher de meia-idade, Ellen - bocejei fingindo que estava com sono.

  Ela resmungou alguma coisa muito indignada, apagou a lâmpada e enfiou-se na cama.

  - Boa-noite, Kevin.

  - Boa-noite, Ellen.

  - Sabe de uma coisa, Kevin. Não teria dado certo. Você se teria transformado num advogado irlandês beberrão, pronto para um ataque cardíaco, e eu seria uma suburbana gorda, neurótica e frustrada. Nós jamais tocaríamos no assunto, mas, bem no fundo de nossos corações, saberíamos que tínhamos cometido um lamentável engano.

  - Talvez mesmo...

  - Não tem "talvez", Kevin. Não tem mesmo. Você não teria tido a sua Igreja e eu não teria tido o meu Herb, e nós nunca nos amaríamos como nos amamos agora. Deus foi muito bom para nós.

  - É, acho que você tem razão...

 

  Os cardeais italianos da Cúria caminhavam até o altar para depositar seus votos com arrogante confiança. O Cardeal Patrick Donahue segredou para o Príncipe Arcebispo de Cracóvia: "Estão triunfantes." O outro rolou os seus olhos muito azuis e continuou a ler o seu livro de filosofia marxista. Pat ficou imaginando o que estaria ele pensando. Tinha ouvido dizer que ele votaria em Benelli, mas e daí? O que pensaria ele de mim se soubesse?

  Giuseppi Siri, o Arcebispo de Gênova, voltou devagar ao seu lugar. Ele não era nem conspirador nem desmancha-prazeres. Era mais sincero do que a maioria de seus aliados, um velho que dizia abertamente o que sentia. O que tinha dito ele naquela tola entrevista que logo transpirara antes do conclave? Ele não sabia o Quc significava "colegialidade", aquela palavra mágica que se apresentara como significação de liberdade e democracia em todo o munao católico. E se a entrevista tivesse sido conhecida na hora em 1ue havia sido programada enquanto nós estávamos aqui? Meu Deus! Que festa para os jornais! E eu que acabei de votar nele...

  Sentiu um aperto no estômago, enojado consigo mesmo, e curvou-se todo procurando amenizar a dor.   Ao seu lado, Wojtyla ergueu uma sobrancelha mostrando-se preocupado.

  - Foi o desjejum italiano, Eminenza?

  Os votos estavam sendo anunciados e contados. Quarenta e seis para Siri. Mais vinte do que em agosto último, no primeiro escrutínio. Martinelli estava radiante e parecia acenar para Pat do outro lado da passagem.

  Pat sentia-se responsável por talvez a metade daqueles vinte votos a mais. Tornou a sentir a dor no estômago. Meus Deus, Maureen, como eu te amo, apesar de tudo isso!

  Wojtyla teve cinco votos. Pat comentou com ele:

  - Cinco mais do que eu tive, Eminenza. Espero que tenha aí consigo o seu eletrocardiograma.

O polonês esticou o braço para uma pasta que estava em cima da mesa e tirou de lá uma folha de papel.  Sem dizer palavra, passou-o às mãos de Pat. Era exatamente o que Pat perguntara e indicava um coração ainda bem forte e firme.

  O segundo escrutínio caminhou mais depressa. Já então Flambeau estava sorridente. E tinha razão para estar. Siri ficara para trás e Benelli avançara. Não o bastante, no entanto. Ainda não o bastante, pensava Pat consigo mesmo. Desculpe, Gianni, bem gostaria de poder votar em você.

  Quando caminhava para o almoço, ele ouviu um cardeal norte-americano falando com Siri e lastimando a perda. O altivo e aristocrático ancião respondeu-lhe em italiano:

  - É tudo uma questão de línguas, Vossa Eminência. Para ser o Papa é preciso falar muitas línguas, e eu estou muito velho para aprender.

  Pat Donahue sentou-se defronte de Flambeau na galeria de arte moderna do Museu do Vaticano que fora transformada em refeitório para o conclave. Ele lembrava-se de haver trazido Maureen ali logo depois de sua abertura por Paulo VI. Aquilo jora antes...

  - A coisa está engrossando, Monsieur lê Cardinal - disse ele a Flambeau, enquanto passava manteiga em um pão.

  - Para o senhor, cardeal - Flambeau respondeu, seus olhos falseando - ela sempre esteve assim...

Forio era um dos mais lindos lugares em todo o mundo. Não era de admirar que os alemães ricos quisessem permanecer jovens ali. Ellen e eu estávamos no ponto mais distante de um monte de areia por baixo de um enorme rochedo. A areia parecia um dedo que apontava para a baía, ao passo que o rochedo era a sua unha em ponto grande.

  Lá atrás de nós a aldeia brilhava à luz do sol como se fosse um cenário de cinema muito caro. As casas penduradas na montanha eram pintadas de amarelo, vermelho, azul, combinando com os barcos de pesca que balançavam no pequeno ancoradouro. Manchas de bruma passavam por cima da areia e logo eram levadas pela brisa.

  Com um poderoso binóculo, cortesia da CIA, eu olhava para a casa de DeLucca enquanto Ellen se estirava na areia de barriga para baixo.

  Consegui, afinal, ver o perfil inigualável de Fredo que descia as escadas em direção à saída.

  - Ele está vindo... - eu falei baixinho, embora não houvesse ninguém por perto capaz de nos ouvir.

  - Ainda bem. Já era tempo - ela respondeu com voz de sono.

  - Está a uns cinqüenta metros de distância - eu tinha-me levantado e olhava para lá escondido pelo rochedo - e traz um rádio portátil. Vai apanhar um pouco de sol e ouvir as notícias. Quer ver se alguém já foi eleito.

  - Deixe-me ver - Ellen levantou-se também. - Ora, ora, ele não é nada mau para quem gosta do tipo. Acho que o Signor DeLucca está precisando encontrar alguma norte-americana viúva e bonita.

  - Você não pode...

- Não seja tão quadrado, Kevin. Guarde estes anéis. - Hrou-os do dedo, fez-me uma festinha no rosto, enfiou o robe curto e saiu rebolando provocadoramente.

 

  Os partidários de Siri organizaram uma ruidosa sessão no pátio depois do almoço. Estavam furiosos porque a vitória tinha-lhes sido arrancada quando já era certa.

  Lá em cima, da janela, Pat observava-os. Ainda não via como sair da armadilha em que caíra. Quase seria melhor ele ir para lá e juntar-se a uma gente que ele desprezava.

  Só que também era um deles. Ainda mais desprezível que os outros todos.

  Teria que tomar uma decisão naquela noite. Caminhou lentamente para o quarto.

  Sentou-se à mesa e tentou organizar seus pensamentos. Ouviu uma discreta batida na porta. Antes que tivesse tempo para responder, já via os cabelos muito lisos e o rosto angular de Martinelli. Disse apenas "Colombo", e sumiu. Pat suspirou e abotoou sua batina escarlate. Ele precisava ainda visitar três cardeais dos Estados Unidos antes da votação recomeçar. Iria dizer a eles.

  Colombo, um velho de setenta e seis anos, que já se demitira de sua própria cidade, seria o Bispo de Roma. Pensaria Antônio que poderia controlar o velho, ou seria aquilo apenas uma última jogada para manter de fora os stranieri?

  Até então, a traição fora apenas a um homem que não podia ser eleito e a favor de um outro nas mesmas condições. Só que agora ele estava traindo a Igreja.

  Ellen atravessou de volta a praia e veio ajoelhar-se ao meu lado. Quando falou eu imaginei estar ouvindo a voz da mocinha atracada com um milk-shake muitos anos antes.

  - Não acho que seja assim tão bonitão. Não sei o que as mulheres vêem nele. O seu método é bem óbvio. De qualquer maneira, tenho um encontro com ele, às  seis horas, para ver a fumaça do conclave e depois um "pequeno jantar". Os empregados já foram todos embora, e ele também deve viajar para estar em Roma às nove horas. - As suas últimas palavras foram ditas lentamente para não perderem o efeito dramático. - E, olhe aqui, Kevin, não se preocupe com o que resta de minha virtude. Aquele nosso bom amigo da Embaixada deu-lhe aquela pílula sem gosto que você pode botar dentro do que desejar para fazer com que um homem durma em sessenta segundos para só acordar meia hora depois sem lembrar do que lhe aconteceu. Aliás, ela serve também para mulheres, se é nisso que você está pensando. Eu sei como manter um homem na expectativa durante sessenta segundos. Agora, volte ao hotel e suborne alguém para dizer que sou a Signora Brown, se alguém telefonar.

  Eu nunca deveria ter contado a ela as virtudes da pílula. O jeitínho de seu queixo dizia-me que seria inútil qualquer discussão.

 

  Aquela tarde tinha sido dramática e também aterradora. Benelli não vencera no terceiro escrutínio. Os votos de Siri tinham diminuído. O azarão do páreo ali no conclave estava correndo sem jóquei. Depois houve um espetacular aumento de votos para Colombo no último escrutínio do dia. O velho seria, certamente, eleito no dia seguinte.

  Antônio Martinelli parecia satisfeito. Wojtyla franziu a testa quando viu que tivera dez votos. Os seus frios olhos azuis {á não sorriam mais.

  Na hora do jantar, Colombo dissera bem alto e firme que não aceitaria se fosse eleito. Os outros italianos que estavam sentados perto dele, como se procurassem isolá-lo de qualquer contágio, tentaram fazê-lo calar, mas o velho, geralmente alegre e bem-humorado, estava realmente furioso. Ele não aceitaria. A Igreja precisava de um homem moço. Antônio já não sorria mais.

  Eu vi a jumata no fim do primeiro dia na TV do hotel em Ischia. Uma imensa multidão enchia a piazza e a passagem da Conciliazione para o Tibre. Uma lua muito grande surgiu lentamente por trás do Castelo Santo Angelo e ficou em cima do rio. Os faróis cruzavam por cima da cúpula de S. Pedro e as calçadas do Palácio Apostólico.

  Até mesmo ali naquele vídeo pequeno, eu sentia a eletricidade lá na multidão. O locutor italiano falava sem parar como se quisesse aumentar a tensão, o que era absolutamente desnecessário. No vídeo apareciam sempre os retratos de Benelli, Siri e Pappalardo. Finalmente surgiu a fumaça e a multidão parecia ter enlouquecido da mesma forma que os locutores que gritavam: "Bianco! Bianco!" Depois o branco foi ficando cinza e, finalmente, preto.

  - Nada funciona direito neste país - foi essa a observação de um norte-americano.

  - Os teatros são bons, mas os sindicatos são uma porcaria retruquei.

  O locutor logo recuperou o controle para gritar que a fumaça era agora: "Nero! Nero!" Parte da multidão já estava indo embora. Os que estavam ali vendo a TV também foram saindo veio o locutor para dizer que a Rádio Vaticano informara que a fumaça era mesmo preta. Fui até o pátio para jantar e esperar pela minha Mata Hari.

  Ellen tinha saído trajando um vestido desses de enrolar no corpo, em preto e branco, que era bastante atraente. Ela levara o vidro de pílulas e um compacto com um rádio em miniatura, um transmissor cujo receptor estava ali em meu bolso. Ao ouvir o bip eu devia sair correndo com o 38.

  A noite corria e eu não ouvia nem bip nem risadas. Estava começando a me dar conta da enormidade de nossa loucura. Não era preciso uma ameaça de morte para me dizer o quanto eu amava Ellen.

  Fui até a rua. Ninguém à vista. Nas noites de domingo Ischia vai dormir cedo. Quando fossem dez eu iria atrás dela sem olhar as conseqüências.

  Fui até o saguão e fiquei olhando o relógio andar com uma lentidão de enlouquecer. No momento em que o carrilhão bateu as dez eu voltei-me para a escada. Estava na metade do caminho quando ouvi o barulho dos saltos de sapato. Eram pés que andavam bem depressa.

  Quando corri para abraçá-la ela protestou:

  - Meu Deus, Kevin, não aqui no saguão...

  Encostada na parede do pátio, para onde tínhamos fugido para não sermos vistos pelo porteiro, ela fechou os olhos. Estava pálida e tensa.

  - Afinal de contas, acho que não fui feita para esta carreira. Sou apenas uma dona-de-casa do Condado de Cook. - Afinal abriu os olhos. - Não me olhe com essa cara, Kevin. A minha castidade está no mesmo ponto em que estava quando saí daqui. Ele não presta mesmo. Não consigo ver o que a Mo... - Sacudiu a cabeça. - De qualquer maneira, ele vai partir às onze e há um cofre oa parede do quarto. Consegui apanhar uma chave da casa, de maneira que não vai ser preciso você usar aqueles brinquedinhos. Kevin, vamos cair fora deste lugar horroroso o mais cedo possível.

 

  Elegante como sempre, sem vestígio de suor na batina, muito bem penteado, o Cardeal Martinelli deixou-se cair na cadeira de plástico. Estava com cara de poucos amigos.

  - Então é isso aí. Amanhã vai ser o dia do estrangeiro. Vão logar o trunfo polonês. Mas eu ainda acho que podemos dar um jeito. Ele jamais conseguirá ganhar sem o voto dos cardeais dos Estados Unidos - ele olhava especulativamente para o Cardeal Donahue.

  A dor no estômago de Pat era agora intensa. Não se sentia à vontade ali naquela cama dura.

  - Não sei se posso segurá-los, Tonio. Você sabe quantos poloneses nós temos nos Estados Unidos?... - Ele estava sentado na cama cujo colchão muito fino tornava-a ainda mais inconfortável do que as camas velhas de Mundelein.

  - Pois é preciso que alguém os segure - os olhos de Martinelli faiscavam. - Precisamos proteger a Igreja contra os seus inimigos. Diga-lhes que ele foi casado e que tem um filho. Diga-lhes que ele é muito mais tolerante com os comunistas do que Vyshinsky. Você mesmo viu quando ele lia aquela revista comunista na capela.

  Diga-lhes que ele está comprometido com a filosofia moderna e que é autor de poesias eróticas. Aliás, tudo isso é verdade. - Ele dizia aquilo tudo com o seu rosto vermelho de fervor.

  - Será que você já tentou dizer isso tudo ao John Krol, especialmente a respeito de um outro polonês?

  - Claro que vamos perder o Krol - ele mostrou que o Arcebispo de Filadélfia não contava muito com um simples aceno das mãos - mas você deve impedir que ele influencie os outros.

  - Isto é mais fácil dizer do que fazer. Wojtyla é conhecido e admirado nos Estados Unidos.

  - A Igreja deve ser protegida contra o comunismo - Antônio levantou-se. - Não permita que os seus colegas votem nele, caro mio. Seria muito ruim para a Igreja.

  As dez horas ainda não havia nenhum Lancia vermelho lá. Perturbado e nervoso, o Cardeal Patrick Donahue sentou-se à mesa que ficava ao lado da cama, com a cabeça nas mãos. Ainda mais uma chance. Ele iria esperar até às oito e meia da manhã. Se não houvesse sinal de Kevin, ele seria obrigado a bloquear a eleição de Karol Wojtyla.

 

  - Precisamos pegar a barca da meia-noite - enfiei um suéter preto. - Temos três horas até Roma e isso faz três horas e meia conforme for a viagem da barca. Mais uma hora para demoras. Estaremos lá às quatro e trinta. Muito a tempo. Se tivermos de esperar pela barca das duas vamos ficar presos no rush do tráfego. Ellen eufiava as roupas na mala. Estendeu a mão para pegar o suéter preto de cashmere. Quando o enfiava teve ainda tempo para dizer:

  - Você está de olhos arregalados, Kevin...

  - Meus olhos estão admirados com a graça que desarma / De Titaiiia em rendas negras e mágicas...

  - Puxa vida! - Ela soltou uma gargalhada. - Trinta anos entre versos românticos e você escolhe exatamente a hora em que estamos bancando a CIA. - Ela tocou-me o rosto com delicadeza, da mesma forma que eu lhe tocara os dedos na sorveteria. - Vamos, vamos. Temos que dar o fora daqui. Alguém tem de se mexer...

  Pagamos a conta do hotel. Saímos com as malas pela escada dos fundos e colocamos todas na mala do carro, com exceção da sacola preta da embaixada que foi conosco na frente. Depois saímos no carro andando muito devagar, já que o nevoeiro estava quase impenetrável. Estava muito frio.

  - E se a barca não puder sair por causa do nevoeiro, Kev?

  - Vamos pensar nisso na hora em que acontecer.

Era uma íngreme escalada pelas ruas calçadas com lajes de pedras até chegar lá em cima. O nevoeiro transformara-se numa chuvinha fina. Passamos pela casa de DeLucca na escuridão e tivemos que voltar.

  - Ali está ela, Kevin. Tenho a certeza. É a casa vermelha com um leão na porta. Seu carro não está mais aqui.

  Fomos até os fundos e saltamos o muro. Ellen saltou com mais agilidade do que eu. Subimos a escada escorregando nos dejraus de madeira. Ellen falseou o pé, caiu, mas eu agarrei-a.

  - Obrigada, Kevin. - Falou baixinho com a voz tremendo. Eu não conseguia abrir a porta.

  - Que diabo, Ellen, você tem certeza que esta é a chave?

  - Mas claro que tenho - ela respondeu com certa petulância. - Você quer que eu...

  - Chiii. .. Você com essa voz é capaz até de acordar os mortos. Pronto. Está aberta.

  Entramos no gabinete de DeLucca custosamente mobilado com os móveis em madeira clara e cortinas. Fechei a porta e ficamos numa escuridão total.

  - O cofre está na sua esquerda, Kevin - disse Ellen. - Por trás daquele quadro.

  Um pequenino foco de luz iluminou a escuridão, correu pela parede e chegou a um quadro com uma rapariga gordinha onde parou.

  Tirei-lhe das mãos que tremiam muito o foco de luz e levantei o quadro. Ali estava o cofre, exatamente como Ellen dissera. E foi aí que ouvimos os carros.

Eram dois que pararam do lado de fora com os faróis iluminando os muros do jardim, bem por trás de nós.

Ficamos ali sem nos mexer e sem saber o que fazer. Ellen quebrou o silêncio.

  - Há um closet no outro lado do escritório onde ele guarda coisas. Ali está. Vamos nos esconder ali. Tenha cuidado. Não tropece.

  Tornei á colocar o quadro no lugar. Derrubei uma cadeira. Esbarrei na mesa antes de encontrar o caminho para a alcova depois da Ellen.

Mal cabíamos os dois ali bem apertados. A porta fechou-se com um clique. Ouvi passos na escada. Quantos terroristas estariam ali armados de metralhadoras?

  A porta abriu-se e a sala iluminou-se. Lá de dentro via-se a luz num filete que enquadrava a porta. Os dedos de Ellen apertaram o meu braço. Havia uma fresta na porta pela qual eu podia ver a sala. Era DeLucca e mais duas outras pessoas. Um homem e uma mulher.

  - Foi uma estupidez vocês virem aqui - Fredo estava furioso. - Vocês não podem ser vistos juntos. Hoje esteve aqui uma mulher que pensei ser uma espiã, mas era estúpida demais...

  Senti que Ellen ficara dura de raiva.

  - O meu editor não quer pagar mais nada sem que eu veja a mercadoria.

  Eu reconheci logo a voz. Então era por isso que eles estavam ali falando inglês. Estava espantado ao ver que uma publicação norte-americana tão importante como aquela pudesse estar envolvida em chantagem. Lembrei-me então de que "Repórter Investigador'" cobria uma série imensa de escândalos.

  A terceira pessoa era uma moça com a clássica beleza romana - alta, esbelta, elegante, cabelos longos e lisos, seios levantados e pequenos, espremidos por um suéter muito parecido com o de Ellen. Os olhos e o rosto eram duros.

  DeLucca virou o segredo do cofre, abriu-o e tirou de lá um envelope grosso que entregou ao repórter.

  - Aqui estão. Olhe bem e diga ao seu patrão que se não tiver a ordem bancária amanhã, eu vou entregá-las a outra pessoa.

  - Que beleza! - Eu não conseguia ver o rosto do norte-americano mas a risada era de puro deboche.

  DeLucca perguntou à moça se ela também queria ver, mas a sua resposta foi concisa.

  - Não é preciso. Sabemos que ele é um degenerado.

  - Excelente - DeLucca virou-se para o repórter. - Agora peço-lhes que se retirem. Poderão pegar a barca da meia-noite. Eu serei obrigado a ir pela das duas, porque é preciso que seja visto na Salle Stampa do Vaticano amanhã de manhã.

  Fiquei arrasado. Teríamos então que ir pela de quatro horas. Três horas para Roma, três e meia com a viagem na barca... sobrava apenas uma.

  O repórter saiu sem mesmo se despedir. Alguns minutos depois ouvimos o barulho quando pôs o carro em movimento e partiu dentro da noite. Minhas pernas já estavam dormentes e talvez ainda fôssemos obrigados a ficar ali mais algum tempo. DeLucca devolveu o envelope ao cofre, fechou-o e pendurou o quadro no lugar.

  - Quer um copo de vinho, signorinal Ela resmungou alguma coisa.

  - Você é encantadora, carína. É uma vergonha que uma muiher tão bela esteja se estragando na política. Há tantas coisas melhores que você poderia fazer.

  A garota apenas respondeu-lhe que ele era um porco degenerado. Ele riu.

  - É uma vergonha que um corpo como o seu fique por aí se estragando. Dentro de pouco tempo você, certamente, estará morta ou então apodrecendo na prisão.

  Foi só então que ela pareceu perceber que estava em perigo. Disse-lhe então que os Servidores de Santo Antônio lhe arrancariam os órgãos genitais se tocasse nela.

  Ele achou aquilo muito divertido.

  - Não creio que o façam, cara mia. Eu sei bem que os seus amigos terroristas zelam muito pela pureza de suas moças, mas eu sou para eles um contato bom demais para ser estragado. Os seus defensores da fé precisam de homens como eu para fazer coisas que eles não podem fazer.

  Ela estava sentada junto à mesa, e ouvimos quando correu para a porta, mas ele foi mais ligeiro e segurou-a. Deu a volta na chave.

  - Pense bem na sua posição, cara. Eu sou mais forte que você. Ninguém ouvirá os seus gritos. Os seus colegas não me farão mal algum. Não seria então

melhor cooperar e aceitar minhas atenções? De qualquer forma, a sua resistência só aumentará o meu prazer.

  A moça correu na nossa direção, mas DeLucca segurou-a pelo braço antes que chegasse à porta.

  Ellen estava com os dedos fincados em meu braço. Não podíamos sair dali de forma alguma.

  DeLucca atormentava a moça imitando-lhe os gritos. Quando ela desistiu da luta sem mais forças para resistir, ele fez coisas em seu corpo que a obrigavam a gritar de dor. Então, a julgar pelo que ele dizia, descobriu que ela era virgem e dispôs-se então ao prazer de violentar uma inocente.

  Quando já iam saindo ele ainda acrescentou:

  - Pois é isso, cara mia, agora você pode chorar à vontade. Mas tudo passará, e pelo pouco tempo que tem de vida, você sempre se lembrará com prazer das coisas que o seu tio Fredo lhe ensinou... - a sua ternura era metade séria e metade sarcástica.

  Não era assim tão fácil arrombar uma porta como parece na TV, especialmente quando se procura abafar o som com um suéter enrolado. Tive que explodir um buraco na porta por onde passei a mão para abri-la pelo lado de fora.

  - Vamos pegar as fotos e cair fora daqui.

  Coloquei no cofre duas cápsulas pequeninas que liguei numa caixinha e acionei o contato. Ouviu-se um ruído abafado e a porta caiu. DeLucca era um amador e os autores do explosivo eram profissionais.

  Ellen estava calada. Passei-lhe a lanterna e fui até o cofre. Havia ali pilhas de envelopes. DeLucca era ativo. Apanhei o que estava em cima e abri-o. Puxei um pouco a primeira foto e logo coloquei-a de volta. Meu Deus! Pobre Maureen. Verifiquei se os negativos estavam mesmo ali.

  Ellen entregou-me uma lata de lixo que encontrara ali mesmo. Atirei dentro dela todos os outros envelopes. Ellen iluminava a lata enquanto eu esvaziava o líquido.

  Tudo que estava lá dentro pareceu evaporar-se como se fosse uma mancha de água exposta ao sol. Em menos de um minuto só restava no fundo da lata algumas gotas do líquido. Muitas outras almas estavam salvas do purgatório junto com a de Patrick Donahue. Agora, se chegássemos a tempo a Roma, ele poderia assumir a responsabilidade para a eleição de um novo papa.

  Descemos pela escada da frente e entramos no nevoeiro. A alguns passos do outro lado da rua escorregadia, encontramos dois homens com facas. Estavam vestidos como estudantes italianos de classe média, roupa escura e gravata. Ao contrário de seus companheiros de esquerda, os Escravos de Santo António não eram cuidadosamente treinados nem disciplinados. Eram românticos selvagens saídos de uma ópera de Verdi. Estavam também tremendo.

  Fizeram sinal para nós que, obedientemente, os seguimos até chegar à praia. Estavam com a faca no pescoço de Ellen e eu não queria conversa com eles. Levaram os nossos relógios e carteiras com dinheiro embora não parecessem estar muito interessados naquilo.

  Paramos diante do rochedo. O nevoeiro estava cada vez mais espesso. Um deles ficou perto de mim com a faca em riste. O outro fez Ellen girar nos calcanhares torcendo-lhe o braço nas costas e cortando o suéter em toda a sua extensão. Então era aquilo que eles queriam...

  - Nossa mulher foi estuprada e agora o mesmo vai acontecer à sua. Depois vocês dois serão julgados pelo tribunal sagrado. O que falava era o mais alto dos dois, um adolescente magro com uma feia cicatriz no rosto.

  - Não fomos nós que fizemos isso com a sua mulher - eu protestei. - Foi um dos seus próprios confederados.

  - Não importa - ele deteve-se. - Se não fosse pelo seu degenerado amigo, o cardeal, nada disso teria acontecido.

  - Santo António não aprovaria...

  - Da mesma forma que Santo António, nós somos os defensores da civilização cristã.

  Eu já estava cansado de discutir com um maluco. Ouvi as instruções de Calvin Ohira como se ele estivesse ali ao meu lado. Com uma rápida cutilada com a mão eu quebrei o pulso do assaltante que estava com a faca apontada para mim. Ele soltou um grito e largou a faca.

  O seu amigo hesitou, assustado pelo barulho no escuro. Vi o seu pescoço nitidamente delineado contra o céu. Atirei-me a ele e alcancei-o com precisão brutal. Ainda ouvi o suspiro que deu quando caiu na areia.

  Voltei-me para o outro que tinha conseguido apanhar a faca e que investia para mim. Dessa vez peguei-o em cheio no queixo e ele foi juntar-se ao amigo que estava ali estirado na areia inconsciente. Eu já estava em cima dele com a intenção de quebrar-lhe todos os ossos do corpo quando Ellen me puxou.

  - Por favor, Kevin. Não o mate. Por favor...

  Se eu soubesse o que eles iriam fazer dois dias depois, eu os teria liquidado ali mesmo sem qualquer remorso. Em lugar disso, recuperei os relógios e as carteiras, voltamos correndo para a aldeia e entramos no Lancia. Teríamos sorte *e pegássemos a barca das quatro.

  Eram cinco horas quando chegamos à auto-estrada para Roma. A barca se arrastara atravessando a baía com o mar encrespado como se o piloto não soubesse bem onde era a praia. Aquela meia hora a mais pareceu uma meia eternidade. Ellen chorou até dormir dentro do carro, enquanto eu procurava descobrir como tinha sido possível àqueles dois malucos descobrirem que a mulher fora violada.

  Estávamos a dois terços do caminho de Roma, e já rompia a madrugada quando chegamos a um ponto onde a polícia bloqueara a estrada. Estavam verificando todos os carros e isso levou meia hora. Os dois carabiniere uniformizados olharam os nossos passaportes e mandaram que passássemos. Perguntei-lhes em italiano a razão para aquilo.

  O tenente deu de ombros. Tinha havido um crime horrível, um homem muito conhecido fora mutilado e assassinado.

  - Quem era ele?

  O policial hesitou, depois, vendo que éramos norte-americanos, achou que não havia razão para esconder.

  - Foi o famoso jornalista Alfredo DeLucca.

  Ellen conseguiu conter sua histeria até passarmos. Aos poucos, consegui acalmá-la.

  Deixamos a auto-estrada na saída da Via Aurelia. Eram oito e dez. Tínhamos vinte minutos para chegar a S. Pedro, mas era a hora do rush.

  O Arcebispo de Chicago espiou lá para fora da janela de seu quarto. Eram oito e vinte e nove e nada do Lancia vermelho. Não haveria mais possibilidade de comunicação naquele dia. Por que não marcara ele uma outra hora na parte da tarde? Agora jâ não tinha importância. Ele só esperava que nada houvesse acontecido com Kevin.

  Também podia ser que nada acontecesse no conclave. Podiam chegar a um empate. Quem sabe se depois da fumata da noite ele chegaria à janela e veria lá o carro vermelho? Só que naquele meio tempo ele era obrigado a tentar vencer um homem que daria um excelente papa.

  Ele nem mesmo notou quando os números do seu relógio digital passaram de oito e trinta. Quando olhou outra vez já eram oito e quarenta. Nada do Lancia vermelho.

  Suspirou, abotoou a batina, atirou a cappa magna nos seus ombros largos e saiu do quarto.

 

  Levamos trinta e cinco minutos desde a Via Aurelia até a Piazza San Pietro. Eles já estavam novamente na Capela Sistina. A piazza estava cheia de turistas. Somente as barricadas, o grande número de policiais da segurança à paisana e as plataformas da televisão mostravam que aquela manhã de segunda-feira era diferente na Cidade Eterna. Nós deveríamos estar lá às oito e meia. Chegamos às oito e quarenta e cinco. Eu, afinal, tinha falhado para ajudar o Pat a encestar.

  Ellen, com uma cara muito desanimada e cansada, e eu resolvemos tomar o nosso café da manhã ali mesmo, na frente do Hotel Columbus, perto da Conciliazione.   Lemos os jornais da manhã, fomos até a Salle Stampa bater um papo com Micky Wilson, o brilhante e antigo repórter do Time em Roma, e ficamos esperando a fumata.

  Quando ela finalmente apareceu, às onze e quinze, era, sem dúvida alguma, bem preta. Os alto-falantes anunciaram confirmando. Afinal tinham conseguido fazer sair a fumaça certa, e algum gênio tinha também descoberto os alto-falantes. Havia coisas na Itália e na Igreja que jamais mudavam.

  Nada mais tínhamos a fazer até a noite. Disse a Ellen que fosse para o Hilton e tentasse dormir para esperar o Herb. Passei pelo portão do Santo Ofício, segui pela Via Aurelia e cheguei ao Michelangelo, onde dormi como se houvesse tomado uma daquelas pílulas.

 

  O Príncipe Arcebispo de Cracóvia deveria ter uns quinze ou dezesseis votos no primeiro teste das "matemáticas do espírito". Recebeu vinte e um, uns cinco a mais do que era esperado. John Krol ria como o gato que engoliu o passarinho. Antônio Martinelli olhava para Pai, frio como a morte. Karol Wojtyla ouvira, aterrado, à medida que seu nome ia sendo mencionado repetidamente na contagem dos votos. Quando o resultado foi anunciado ele deixou cair a cabeça em suas mãos enormes.

  Os que querem não conseguem e os que não querem conseguem. Pat trauteava uma canção polonesa que aprendera no St. Wenceslaus, em Chicago. O Príncipe Arcebispo levantou os olhos par-a ele. Estavam cheios de lágrimas agora.

  Eu fiz o sinal, acendendo três vezes, às cinco e trinta. Bem no fundo da minha alma eu sabia que era tarde demais, mas tínhamos que desempenhar a peça até o fim.

  Depois encontrei um lugar para estacionar perto da praça do Santo Ofício e fui encontrar-me com Ellen e Herb lá nas barricadas. Já estava anoitecendo e os holofotes estavam acesos. Parecia que havia menos gente que na noite anterior, mas ainda era cedo.

  Ellen estava com uma saia cinza e um casaquinho e Herb trajava um terno formal escuro. Ambos pareciam sombrios e perturbados. Maureen estava com eles e também tinha o rosto fechado.

  - Alfredo?

  - Eu já cansei de chorar, Kevin. Nós terminamos tudo em agosto. Ele era um homem terrível. Eu. .. Eu devo ter caído muito. De qualquer forma, sinto que ele esteja morto. Uma morte tão horrorosa! Ninguém merece...

  Às seis horas a praça já estava cheia. A multidão continuava a aumentar na medida em que os números digitais saltavam para as seis e quinze.

  - Quanto tempo ainda falta? - Ellen estava nervosa.

  - A qualquer minuto... - Eu já estava encontrando dificuldade para respirar e mais ainda para falar.

  Eram seis e treze minutos quando a fumaça começou a sair da chaminé, uma fumaça indiscutivelmente branca, que espiralava à luz dos holofotes antes de se perder na escuridão. A, multidão estava louca. Agora já não havia dúvida. Pela segunda vez, em três meses, tínhamos um novo Papa.

  Quem seria ele? Benelli? Siri? Willebrands, da Holanda? Alguém jamais sonhado? Eu sentia o peito apertado. Meus Deus!

  Se fosse o Siri, com que cara iríamos chegar de volta aos Estados Unidos?

  Havia um clima de festa, como se todos ali adorassem o suspense. Chegaram os Guardas Suíços que, para mim, eram os únicos profissionais na Igreja. Depois a banda do exército italiano, legitimamente presente porque a piazza é parte da Itália, apesar do domo estar na Cidade do Vaticano.

  Às seis e quarenta e três acenderam-se as luzes lá dentro. Alguém saiu para colocar os microfones. As cortinas se abriram. A porta do balcão também abriu-se lentamente de forma majestosa. Os portadores da cruz e os acólitos saíram, da mesma forma que no seminário, antigamente, só que aqueles estavam vestidos de vermelho. Então apareceu Pericle Felici. Dei graças a Deus por não ser ele.

  Ele tentou começar, mas foi interrompido pela gritaria da multidão. Meu coração estava aos saltos, quase saindo pela boca. Sentia a barriga apertar.

  - Annuntio vobis gaudium magnwn habemos papam... Houve uma nova explosão de aplausos. O Pericle não parecia muito satisfeito. Continuou em latim:

  - Carolum... - Um silêncio absoluto. Carlos, Carlos o quê?

  Ellen gritava:

  - Quem? Quem é?

  - Sanctae Romanae Ecclesiae Cardinalem... - Ele fez uma pausa para o último resquício de efeito dramático.

  - Wojtyla!

  - Qui sibi imposuit nomen Joh, annis Pauli. - Felici olhou rápido para a multidão e entrou apressado para a proteção de San Pietro.

  Ninguém se mexia. A multidão estava atônita e silenciosa.

  - Carlos o quê? - quis saber Ellen.

  Eu ria-me satisfeito. A história pespegara no mundo uma piada polonesa.

  - Padre. È Papa nero? - Um italiano me cutucou.

  - Non. - Não era um papa preto.

  - È papa asiático.

  - Non è papa asiático...

  - Ma.. . quale papa?

  - È papa polacco!

  Ele bateu na cabeça, num gesto caracteristicamente italiano, como querendo dizer que aquilo era o fim do mundo.

  - Mannaggia! Un papa polacco!

  - O que é que isso quer dizer, Kevin? O que é que isso significa? - Ellen me puxava pela manga.

  - Isto significa que, pela primeira vez na sua vida, o nosso amigo cardeal arcebispo conseguiu encestar uma bola sem o meu auxílio.

  Levei-os todos para a sala de imprensa do Vaticano. Queria ver a cara do Papa na televisão. Jimmy Roache, o coordenador da imprensa norte-americana, já estava distribuindo as biografias.

  - Quantas línguas ele fala? Fala italiano?

  - E ainda mais umas oito ou nove...

  - É preciso que ele fale para essa gente. Tradição ou não, estão todos surpresos e magoados, Jimmy.

  - E ele é mesmo capaz disso, Kevin - Jimmy deu de ombros. Na TV vimos que a porta se abria novamente sobre o balcão.

  Surgiu um homem forte, ombros largos, com o rosto muito sério. Os jornalistas italianos estavam furiosos e gritavam que não gostavam dele.

  - Ele nem parece Papa - Herb segredou-me ao ouvido.

  - Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo - Wojtyla saudou a multidão em italiano.

  - Agora e para sempre! - Do meio da multidão, muita gente respondeu.

  - Que Jesus Cristo seja louvado. - Sua voz era profunda e poderosa e sua presença era marcante. - Caríssimos irmãos e irmãs, ainda sentimos a morte de nosso muito amado Papa João Paulo Primeiro. E agora, os reverendíssimos cardeais nomearam um outro Bispo de Roma. Foram buscá-lo num país distante, distante, mas sempre muito perto para a comunhão na fé cristã e na tradição.

  "Tive medo quando recebi a nomeação, mas recebi-a no espírito de obediência ao nosso Senhor e com confiança total em Sua Mãe, a Santíssima Madona.

  "Embora não sabendo me expressar bem na vossa... na nossa... língua italiana, peço-lhes que me corrijam se cometer algum erro.

  "E aqui me apresento a todos vocês para confessar a nossa fé comum, nossa esperança, nossa confiança na Mãe de Cristo e da Igreja, e também... e também para começar de novo nesse caminho, no caminho da história e da Igreja, para começar com a ajuda de Deus e com o auxílio dos homens.

  Os aplausos foram de ensurdecer.

  - Ele faria sucesso lá em nossa terra, Ellen. Conhece todos os truques políticos. Já tomou conta dessa gente. Ouça só os aplausos.

  Então todos começaram a chorar. Maureen, Ellen, Herb e, do outro lado da sala, Kevin Star do Examiner de São Francisco.

  - Por que é que estão todos chorando, Herb? - Mas eu também chorava.

  - Esta sua maldita Igreja, Kevin, é ao mesmo tempo uma virgem e uma prostituta. Velha como o pecado e como um botão de flor. Esse é o tipo de mulher que

adoramos - Ele falava quase gritando.

  - Herbert - Ellen chegou-se a ele - mas que coisa tão terrível, tão feia e tão maravilhosa que você disse...

  - Mas, pelo menos, ela ainda está viva... - disse eu.

  - Com todos os demônios, está viva mesmo! - Ele acariciava a cabeça que se aninhava em seu braço.

  Ali, naquela hora, eu escolheria Ellen como um símbolo da Igreja.

  Maureen levou-nos todos para o seu apartamento e abriu champanha.

  - Você se lembra da primeira vez? - Ela sorria para mim ao passar-me a taça. Seus olhos estavam tristes e cansados. Ficariam eles assim para sempre?

  - Um outro tempo para começar de novo - eu levantei a taça para ela.

  Ela afastou-se rapidamente.

  Os vizinhos dela entravam trazendo suas garrafas. Os italianos estavam contentes como nós por se haverem libertado daquela tradição incômoda.

  Chegou finalmente a hora de voltar para o Michelangelo. No dia seguinte ia ter muito que fazer. Ouvi Ellen e Maureen planejando uma expedição para compras.

  Bem a contragosto aceitei o convite para almoçar com elas no L'Eau Vite.

  Quando já ia saindo, Maureen segurou-me pela mão.

  - Você acha que eu poderia mesmo fingir que estávamos no Ano-Novo de 1949?

  - É só você querer... - segurei-lhe a mão com força.

  - Será que já não estou muito feia para encontrar marido?

  - Está falando sério?

  - Bem que gostaria... - ela parecia desanimada.

  - Com o Pat?

  - Eu não sei, Kevin. Vamos falar nisso outra vez antes de você ir embora. Acho que o Sloane ainda está muito solitário.

 

  O Ristorante L'Eau Vite era um lugar fresco, elegante e clássico. Uma vez lá dentro, as pessoas deixavam para trás as ruas estreitas e sujas, paredes também sujas, pedestres carrancudos, cartazes pregados nos muros e já em pedaços, e o pungente cheiro de gasolina da moderna Roma. A atmosfera ali pertencia a um outro século, uma era que já fora, ou uma outra que ainda estava para chegar.

  Às duas e trinta, enquanto ainda estávamos na sobremesa e DO conhaque, todos os fregueses e empregados ficavam de pé para cantar, no idioma que preferissem, o Hino de Lourdes. Maureen, Ellen e eu cantamos vigorosamente, numa alegre lembrança dos nossos dias de escola quando todos nós rezávamos para a Nossa Senhora de Lourdes para pedir-lhe milagres como, por exemplo, passar no exame de inglês, ser convidado para uma festa importante ou até mesmo para a vitória de nosso time num jogo muito apertado. Herb olhava tudo aquilo com curiosidade, como, aliás, sempre fazia quando a fé religiosa da mulher interferia com a sua vida. Sempre muito respeitador, ficou de pé também como todos nós. Chegou até mesmo a trautear as últimas stanzas da melodia irresistível.

  Estávamos todos nos aquecendo ao calor do triunfo de Wojtyla, um sol que nascia brilhantemente rompendo a bruma e o nevoeiro espesso.

  - Seria interessante saber o que acha o Cardeal Pat - Herbert bebeu o conhaque de um só trago, como se aquilo fosse água.

  - Foi pena ele não poder vir almoçar conosco.

  - Ele nos diria que o Papa é um velho amigo seu, e que a sua eleição significa uma guinada na história da Igreja Católica disse Maureen. - Quer que eu lhe diga como ele vai falar? Pat, atualmente, está trabalhando pela sua imagem perante o público, até mesmo com os amigos.

  O sinal da raiva passou tão rápido como viera. O seu rosto ficou mais sereno. Vi outra vez, na minha imaginação, o espasmo de alívio no rosto do Cardeal Patrick Donahue, na entrevista com os jornalistas, quando eu lhe fizera o sinal erguendo o polegar. Aquela, aliás, seria a última vez que eu ajudaria aquele sacana a encestar a bola.

  A serenidade do L'Eau Vite desapareceu na claridade do sol de outono e no barulho do tráfego logo que saímos de lá.

  - O meu carro está ali mesmo do outio lado da rua - Maureen despediu-se apressada. - Até esta noite...

  Desculpei-me também dizendo que precisava ir à sala de imprensa do Vaticano. Ellen e Herb voltariam sós para o Hilton.

  Vi Maureen que caminhava apressada na pequenina Piazza San Eustacho com uma saia bem apertada. Lindas pernas, pensei comigo mesmo. Não era a primeira vez que uma coisa assim tinha afetado uma eleição papal. Acima dela, a cabeça de cavalo que estava no lugar da cruz do costume no topo de San Eustacho fez-me lembrar que Roma já vira muitas lindas mulheres durante os anos do paganismo e do cristianismo.

  Quando voltava para Ellen e Herb, vi com o canto do olho um homem que saía de um carro, a poucos metros de distância, com uma metralhadora na mão. Era um dos terroristas de Ischia, o que tinha a cicatriz no rosto.

  - Nossa mulher foi estuprada! - ele gritou em inglês. - A sua vai morrer!

  Depois disso, tudo me pareceu um cinema lento, quadro por quadro. O sangue escorrendo das pernas de Maureen, que caía na rua, o barulho dos tiros, o pistoleiro voltando-se para nós e apontando a arma. Agindo como um tolo, tentei cobrir Herb e Ellen. O homem levantou a arma. Tiros novamente.

  A arma caiu-lhe da mão. Manchas de sangue apareceram em seu peito e ele desabou no chão, caindo em cima da arma. O motorista tentou dar a partida no carro. Houve outro pipocar e o carro deu uma guinada, avançando contra o muro do restaurante.

  O cinema lento terminou e ouvi barulho de gente gritando, carros freando atrás de mim, as sirenes soando ao longe. Atravessei correndo a praça até o corpo que ali estava contorcido numa poça de sangue, pensando irreverentemente que eu era o último a ver aquelas pernas lindas antes que elas fossem cortadas. Ajoelheime ao seu lado e coloquei sua cabeça em meu colo. Ela abriu os olhos muito tristes.

  - Eu vou para o inferno, Kevin - ela dizia aquilo como se fosse a coisa mais natural do mundo, da mesma forma que dissera antes que ia pegar o seu carro. - Eu sou uma mulher má e vazia. Eu vou para o inferno. - Duas lágrimas surgiram e rolaram-lhe lentamente pelo rosto. Os olhos se fecharam.

  - Você não vai não, Mo. Deus gosta muito de você. Você não é vazia e não é má. - Voltei-me para o policial de capacete branco que ali estava com a metralhadora na mão. - Sono sacerdote - resmunguei em mau italiano. Apontei para Herb: - Lui e medico. - Só então vi que ele estava ali ajoelhado atrás de mim tentando estancar o sangue na perna de Maureen.   Ele olhou-me, sacudiu os ombros e voltou ao trabalho.

  Maureen abriu outra vez os olhos. Dei-me conta de que estava apertando demais o seu corpo inerte.

  - Será que ele me ama mesmo? - ela murmurou.

  - Pat? - a minha pergunta foi feita sem muita convicção.

  - Não, seu bobo, Deus. - Aquele mesmo sorriso de sempre.

  - Tenho tentado... Eu estou sempre fazendo trapalhadas, Kev... mas eu tento... pelo menos às vezes. - Fez uma careta de dor.

  Ellen ajoelhou-se ao meu lado com o rosto contorcido de terror e dor.

  - Deus ama tanto você, Mo, que ele nunca nos separa.

  - Da mesma forma que nunca se separa de Jesus - eu acrescentei. - Segure firme a Sua mão que Ele não te largará.

  Ela sacudiu a cabeça. Eu segurava-lhe uma das mãos e Ellen a outra. Estávamos ajudando bem a Deus.

  - Oh, meu Deus, como estou arrependida... - ela tropeçava no antigo ato de contrição, que já não é mais tão necessário, mas que, mesmo assim, ainda ajuda. – Diga a Sheila que eu a amo muito...

— Ego te absolvo...  — comecei em latim, sacudi  a cabeça aborrecido com o engano, e continuei em inglês. — Eu te absolvo de todos os pecados, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.

  Ela suspirou como se houvesse tocado a mão que Deus lhe estendia. Eu olhei para Ellen, cujos olhos brilhavam. Atrás dela parou a ambulância da polícia com uma porção de médicos vestidos de branco.

  — Conte-lhes tudo,  Kev — a  voz dela já estava novamente forte. — De qualquer maneira vão descobrir.   Sobre Pat e eu.  Escreva tudo direitinho.  Não é tão mal como pensam.  Nós tentamos. Prometa-me  que escreverá tudo...   — sua mão apertava-me com força.

  — Padre, per favore...  — um dos médicos insistia tentando separar-nos.

  — Prometo,  Mo.  — Eu disse para ela e então largou-me a mão.

 

  Estávamos todos numa pequena sala de espera da Clínica Gemelli, bem perto do lugar onde a vida de Maureen se esvaía. Herb, Pat, Ellen e eu. O comandante dos carabirdere, um homem bonito e esperto, com quem tínhamos acabado de conversar, disse que os assassinos eram membros dos Escravos de Santo Antônio de Pádua, e que nós tínhamos sorte por estarmos todos vivos. Um dos terroristas morrera e o outro já tinha prestado depoimento com muitas informações interessantes quanto ao resto do grupo, e que aquilo era, aparentemente, um ato de violência sem outras ligações. Ele olhou firme para mim quando falou "aparentemente", mas eu fiquei firme.

  O meu cardeal arcebispo estava derreado numa das cadeiras de madeira com a cabeça caída no peito.

  — Esta é a melhor clínica de Roma — ele disse. — O Keskur está aqui...

  — Quem?

  — É o mais íntimo amigo de Wojtyla em Roma.  É da Repartição de Comunicações Sociais.   Sofreu uma trombose pouco antes de entrar para o conclave.   Não se espera que viva. — Pat falava mecanicamente.

  — Você contou a alguém que vinha almoçar conosco no L'Eau Vite?

  — Realmente falei — ele não deu muita atenção à pergunta. — Disse a um amigo no secretariado.   Depois fiquei preso por causa de um telefonema de Chicago.

  Abriu-se uma porta no corredor e um homem grande de avental branco saiu apressado. Quando viu o vermelho na batina de Pat ele parou de repente.

  — Santita... — Fazendo um tremendo esforço, Pat pareceu acordar, mas logo corrigiu-se passando a falar inglês. — Uma mulher que foi nossa companheira de infância foi assaltada poi terroristas esta manhã... — engasgou-se, mas logo recuperou seu sangue-frio e apresentou-nos.

  O Papa teve um sorriso de aprovação para Ellen, cuja mão segurou durante mais tempo do que o faria qualquer outro papa deste século, apertou a mão de Herb que, graças a Deus, não deixou ficar bem claro que ele ali era apenas um observador marginal de católicos, e, para mim, teve apenas um frio sorriso.

  — Será que posso abençoar a   mulher? — ele colocou suas mãos enormes no peito.

  — Si, Santita — isso foi dito por uma freira que surgiu como por milagre. — Per favore...

  — Quer ir, por favor, padre... — Pat olhou-me desesperadamente — eu...

  Já eu estava novamente funcionando.

  Assim foi que o Papa, a freirinha nervosa e eu entramos no quarto de Maureen. Ela abriu os olhos cansados quando ele a abençoou, mostrou um sorriso muito fraco e estendeu a mão. O Papa segurou-a com delicadeza e o seu rosto demonstrava tanta dor quanto o meu.

  Maureen começou a rezar baixinho: "Lembrai, Ó muito Graciosa Virgem Maria..." O Papa e eu íamos repetindo, ele num inglês muito carregado e eu com a voz rouca de dor... "que nunca ninguém soube que aquele que pediu a Tua proteção, que implorou o Teu auxílio ou que procurou Tua assistência, foi deixado ao desamparo. A Ti nós vimos, diante de Ti nós estamos pecadores e cheios de tristezas. Não desprezes as nossas petições e as nossas necessidades, mas, na Tua bondade, ouça e responda-nos. Amém."

  Maureen fechou os olhos e sorriu.

  Os olhos de João Paulo estavam profundamente tristes quando se despediu de nós. Segurou-me a mão quase com ternura. O homem conhecia bem no seu íntimo o que era o sofrimento.

  Meia hora depois estávamos todos em torno da cama de Maureen. O fim estava próximo. Ellen começou a rezar, já que nenhum dos padres se lembrava de fazê-lo.

  Maureen Cunningham Haggarty saiu da vida com muito mais tranqüilidade do que quando vivera. Num momento ainda respirava, e logo depois não respirava mais.

  — Dona ei pacem.   Paz finalmente, prima Mo.

  Herb, com muito carinho, levou Ellen para fora. Teriam que ir buscar Sheila no aeroporto.

  O cardeal e eu ficamos ali em silêncio olhando para o corpo morto da mulher que havíamos amado.

  Depois de muito tempo Pat virou-se para mim.

  — Eu fiz tudo por você, Kevin. — Ele estava calmo e quase filosófico. — Eu fiz tudo em minha vida para agradar a você.  E você nunca, nem uma única vez, teve uma palavra amável  para mim. Joguei o basquete para te agradar, fui para o seminário para te agradar, fiz-me padre para te agradar, salvei a diocese para te agradar, votei no Papa para te agradar, e você nunca me ligou a mínima.  Você ainda é o que sempre foi, Kevin, o sacana rico que patrocina todo mundo, mas não ama ninguém.

  Eu fiquei calado.

  — Você é o chefe — ele continuou, quase como se estivesse sonhando — o escritor e o intelectual, o padre que todo mundo admira.   Eu posso ser cardeal, mas, para você, eu sempre serei o filho do lixeiro.  Você me vigia, você me critica e você me julga. Você não se importa comigo; você não gosta de mim, você não está ligando a mínima se eu gosto de você ou não. Você arruinou o meu amor.   Você tirou tudo  de mim.   Agora Maureen está morta, e tanto me faz viver como morrer.

  Sua voz estava abafada e o seu rosto contorcido pela dor.

  — Talvez você esteja certo, Pat.  Eu não fui a espécie de amigo que você queria.  Eu...

  — Eu te amei mais do que a todos os outros... — Ele ajoelhou-se ao lado da cama soluçando baixinho.

  Eu saí do quarto, e só me voltei na porta para olhar mais uma vez o tranqüilo rosto de madona de Maureen.

 

  Eu ajudei Ellen para que saísse do lago.

  — A velhota já não consegue mais sair sozinha — ela sorriu. — De qualquer forma, não quando há um braço forte por perto.

  — Graciosa Titania, como o bom vinho vermelho...

  — Pare com isso, seu bobo...   — Ela tocou seus lábios nos meus antes de enfiar   uma camisa  que   combinava com o  maio. Aquele rápido toque dos lábios já era conhecido, mas sempre surpreendia.

  — Titania é um diabinho, um  duende feminino, uma mulher leprechaun...

  — Fique quietinho e aprecie o sol.

  O sol brilhava com todo o seu calor lá em cima das árvores. Nós ficamos sentados na beira do poço batendo na água com os pés. A antiga magia jamais voltaria completamente. Aquilo ali era apenas um poço para nadar um pouco antes do jantar com o casal.

  Ellen perguntou cautelosamente se Pat estava gostando de seu novo cargo em Roma.

  — Art diz que ele  está adorando... — Apertei um pouco mais a toalha em torno dos ombros apesar do calor.

  — Será que ele foi mesmo promovido?  Será que sabem o que houve entre ele e Mo?

  — Em resposta à primeira pergunta, tudo depende da pessoa com quem fala. O cargo de secretário da congregação que estuda as canonizações pode ser considerado como uma diminuição, mas ele ainda é o único norte-americano na Cúria.

  — E a segunda?

  — Você viu o que os jornais publicaram.  Os carabiniere invadiram uma célula dos Escravos de Santo António de Pádua, mataram quatro rapazes e internaram uma moça numa clínica mental. Já é notada a ausência de Martinelli em Roma. Oficialmente, ninguém sabe a razão para a morte de Maureen. Isso não significa que Wojtyla não desconfie de alguma coisa.

  Fez-se um silêncio entre nós e só se ouvia o zumbido das moscas.

  Ela passou o braço pela minha cintura e encostou a cabeça em meu ombro.

  — Você nunca o desertou, Kevin. E também não é responsável pelas nossas vidas. Patrick, Maureen e Deus sabem que eu... que todos nós tomamos as nossas decisões.  Nós vivemos as nossas próprias  vidas.   Chore por Maureen, mas não exagere.

  — E o que teria acontecido se eu não me sentisse tão idiotamente responsável?  O que teria acontecido se eu houvesse deixado vocês todos em paz?...

  Fui interrompido por uma gostosa gargalhada.

  — Puxa vida, Kevin, eu hoje seria a mulher gorda do circo se você me houvesse deixado em paz.

  Ela, graciosamente, deixou de me abraçar mas continuou a segurar-me a mão.

  Com a sua gargalhada alegre nós estávamos novamente jovens, de volta ao passado, nossas vidas estavam começando e se estendiam por ali além como alguma misteriosa floresta que ultrapassasse o lago.

  Ela parecia ter lido o meu pensamento.

  — O riso, da mesma forma que o amor, é mais forte que a morte. Você sabe muito bem disso, Kevin.   É o que você prega. Então, por que não o pratica?

  O sol que se punha fazia com que as nuvens que flutuavam por cima dos topos das árvores do Wisconsin ficassem primeiro vermelhas e depois douradas.

  Uma parte de meu ser tinüa morrido com Maureen naquela Clínica Gemelli, mas a outra estava renascendo ali naquele lago perseguido pelos espíritos.

  Dor... caos... renascimento... morte... riso... ressurreição. O amor mais forte que a morte. Uma mulher escreveu isso no fim do Cântico de Salomão.

  Maureen, Patsy, mamãe, o Coronel, o Cardeal Meyer... todos mais fortes que a morte. Ellen, que entraria rindo no Vale das Trevas.

  Em seu sorriso havia um resquício de ansiedade.

  — Você vai permitir que eu te ame?

  — E será que tenho outra escolha?

  — Nenhuma.   Nem nunca teve.

  Todos os quadros se misturavam esmaecidos nas cores do sol poente. De alguma forma, eu teria que tirar tudo a limpo com o Pat.

  Interrompi o que havia no ar e que era quase religioso.

  — Vamos jantar, Ellen, estou morrendo de fome.

  — Isso é típico do homem irlandês. — disse ela com um suspiro enquanto eu lhe dava a mão. — Vou esperar uns versos adequados até amanhã de manhã.

  — Para vós, Titania, nada será adequado... — eu disse, empurrando-a na direção da casa.

  Ao voltarmos para a casa e para o jantar com os Strausses, os Brennans, os Currans, os McNeils, eu ouvia, dentro de meu cérebro, em latim, naturalmente, para que Deus pudesse entender, o De Profundis, o salmo para os mortos. Era eu que estava pedindo a Deus para que desse paz e luz a James e Mary Brennan, a Timothy Curran, a Maureen Cunningham, e a Patsy Carrey.

 

  Das profundezas clamo a Ti, Senhor.

  Escuta, Senhor, a minha voz:

  Estejam alerta os Teus ouvidos às minhas súplicas.

  Se observares, Senhor, iniqüidades, quem, Senhor, subsistirá?

  Contigo, porém, está o perdão, para que Te temam.

  Aguardo o Senhor, a minha alma O aguarda; eu espero na Sua palavra.

  A minha alma anseia pelo Senhor,  mais do que os guardas pelo romper da manhã.

  Mais do que os guardas pelo romper da manhã.

  Espere Israel no Senhor, pois no Senhor há misericórdia, e n'Ele copiosa redenção.

  É Ele quem redime Israel de todas as suas iniquidades.

Os chamados pecados cardeais (ou mortais ou capitais) não são, de forma alguma, pecados e sim apenas sete propensões desordenadas na nossa personalidade que nos leva a comportamentos pecaminosos. Soberba, avareza, luxúria, ira, gula, inveja e preguiça são tendências humanas sólidas e sadias que enveredaram por um caminho errado: amor-próprio, autopreservação, comunhão, liberdade pessoal, expressão própria, celebração, relaxamento.

  Os pecados mortais não resultam de uma maldade fundamental e sim de uma bondade da mesma espécie que se descontrola, de um amor humano que se sente confuso e apavorado e não confia o bastante no amor.

  É claro que os pecados mortais nada têm a ver com os membros do Sacro Colégio que, como todos nós sabemos, quase não cometem pecados.

  A tradicional espiritualidade católica vem afirmando que todos nós temos alguma "falta dominante", o pecado mortal que é o mais forte em nossa personalidade (da mesma forma que, nas peças de moralidade medieval, um caráter diferente representa, como exemplo, cada um dos sete vícios).

  Se nós fôssemos procurar a falta dominante dos quatro atores principais desta história, poderíamos concluir que o ponto fraco de Kevin é a soberba, o de Patrick é a avareza, o de Ellen é a ira (com uma ocasional dose de gula) e que o de Maureen é a preguiça (ou "acedia", como é muitas vezes chamada).

  Eles todos se sentem perturbados, e não pouco, pela inveja e a luxúria como, aliás, nos sentimos todos nós.

 

 

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 Patrick Donahue tinha sido o meu mais íntimo amigo desde tempos imemoriais. Éramos inseparáveis desde a escola primária até os três anos do ginásio dos jesuítas. Ele sempre fora um cara pequenino, muito mais-baixo do que eu quando ainda éramos calouros. De repente, porém, quase da noite para o dia, ele deu um salto. Embora tivesse crescido, era adorável quando pequeno, e agora encantava todo mundo com suas maneiras e com a sua cortesia de uma pessoa madura. As garotas mais velhas disseram, certa vez, que ele era "uma .gracinha" com seus cabelos louros, pestanas longas e olhos de um azul-prateado. Agora então, que já tinha dezessete anos, as mulheres de todas as idades diziam que ele era simplesmente magnífico.

 Dois anos antes, aos quinze, ele era um garoto de poucas palavras que se encabulava com as garotas, mas agora parecia que não pensava em coisa mais alguma senão em garotas, até mesmo quando elas eram apenas umas calouras bem desenvolvidas, como acontecia com a minha "prima" Maureen Cunningham.

 Diziam as garotas, então, que Pat era muito parecido com Guy Madison, uma coisa que só pode fazer sentido para aqueles que se lembram daqueles tempos ou então para os que ficam vendo os filmes da TV até tarde. Parecido ou não com Guy Madison, a sua risada era contagiosa e a maneira como fazia coisas engraçadas contribuía para tomá-lo o centro de qualquer grupo onde estivesse.

 Ele não era um estudante tão bom como eu, e também não era um líder. Era muito mais devoto do que eu, e esse é um fato importante que não posso deixar de registrar. Era uma espécie estranha de devoção marcada por clausuras, períodos contínuos de missas diárias e de rosários recitados, complicadas reformas de sua vida moral e depois tremendas fases de bebida e correrias atrás de saias, mas meu pai me dizia que aquele era o método irlandês, já que não aprovava o meu método mais tranqüilo para as coisas divinas.

 Numa certa manhã de sábado, bem cedo, no úmido mês de julho de 1948, Pat caminhava comigo, falando sobre minha prima Maureen, quando um Packard cinza caiu numa vala do outro lado da estrada onde nós estávamos, e explodiu. A coragem e a reação instantânea de Pat salvou as vidas dos ocupantes do carro. Eu fiquei ali estatelado na poeira do verão a esperar pela bola alaranjada de chamas e fumaça que devoraria o carro. Mesmo assim fui eu quem recebeu o crédito.

 Eu vinha descendo o morro, por trás da aldeia, a caminho da igreja. Pat subia o morro com seu rosto bonito e um sorriso alegre que não se mostrava diminuído depois da noite de uma farra na praia. Logo se ofereceu para voltar comigo descendo o morro até a igreja, principalmente porque, tenho quase a certeza, se voltássemos da igreja para casa juntos, minha mãe e meu pai não iriam fazer perguntas sobre a noite anterior. Eu deveria zangar-me com ele já que era meu hóspede e eu era o responsável pelo seu bem-estar espiritual e físico. Contudo, as risadas e alegrias de Pat, especialmente naqueles tempos, faziam com que fosse difícil alguém ficar zangado com ele.

 Ele sorria com complacência enquanto me explicava.

 - Não houve nada muito sério nos abraços e beijos. Nem mesmo o bastante para impedir que eu comungue na missa.

 - A cerveja depois das doze interrompe o seu jejum - respondi-lhe muito sério.

 Ele deu-me uma vigorosa palmada nas costas mostrando todo o seu bom humor.

 - Você já fala como se fosse um monsenhor. Eles logo vão lhe ordenar monsenhor, Kevin.

 - Pelo menos bispo, Pat. Quem sabe até cardeal? Ele deu uma gostosa risada.

 - Kevin, Cardeal Brennan. Gosto da maneira como isto soa. Será que você vai me fazer cavaleiro do Papa ou coisa parecida?

 O asfalto da estrada estava mole com o calor. Eu detestava aquela volta depois da missa. Aquele ia ser mais um dia terrível de calor.

 - E Maureen será uma dama papal. Dama Mo. Gosto disso!

 - Ela já é uma dama e tanto. - Pat sacudiu a cabeça como se apreciasse aquilo. - Eu sei que ela é sua prima, mas para uma caloura ela tem os lábios mais quentes de toda a praia.

 - Ela não é bem minha prima, Pat. Nossos pais vêm sendo sócios, no escritório de advocacia desde tanto tempo que nós nos tratamos de "primos", e, sendo assim, aqueles lábios tão quentes não são coisa proibida para mim, também.

 - Eu só queria ver esse dia em que Kevin Brennan, um dos pilares da devoção, fosse passar a noite na praia com as garotas.

 Aquele pensamento dos lábios de Mo apertados contra os meus era, realmente, coisa muito mais apetitosa do que eu estava disposto a reconhecer.

 - E onde está Maureen? Será que a sua ressaca ainda não permite que ela suba o morro? Ou será que está somente muito gasta?

 Pat deu de ombros.

 - Mary Delaney vai subir com eles no Packard e eu queria fazer um pouco de exercício. Disse-lhes que você ficaria zangado se eu não ficasse em condições para a estação do basquete.

 - A bolsa é sua e não minha.

 Ele nem se deu conta do que eu lhe dizia. Pat precisava daquela bolsa para entrar na universidade. Os Brennans eram bastante ricos e nenhum de nós se preocupava com dinheiro. Eu desconfiava que Pat considerava aquilo uma injustiça. Em compensação, eu achava que a injustiça era ele ser dez vezes mais charmoso do que eu.

 Antes que pudéssemos dizer mais alguma coisa, o Packard de Delaney entrou na curva final que separava a aldeia do morro, e vinha roncando feio. Marty devia estar fazendo uns 90 por hora. Ele teria entrado bem na curva se o velho Buick do Doe Crawford, a caminho do iate clube, não surgisse na curva, em sentido contrário. Delaney deu um golpe de direção - instintivamente, creio eu - para evitar o grande carro vermelho e derrapou para o lado da estrada onde nós estávamos andando, depois voltou ao asfalto escorregadio e caiu na vala. O Packard rolou como se fosse uma tartaruga na ponta de uma vara, e as suas rodas ficaram a girar desamparadas no ar.

 Pat disparou para o carro.

 - Vamos tirá-los de lá! - Gritou.

 Eu sentia meus pés como se eles estivessem colados no chão. Finalmente saí atrás dele, mas cada passo meu parecia uma eternidade.

 Dentro do carro os ocupantes estavam gritando. Pat conseguiu abrir uma porta, e então gritou para mim.

 - Venha me ajudar, Kevin.

 Arrancamos Marty Delaney do banco do volante. O seu rosto era uma máscara de sangue. Sue Hanlon estava ao lado dele inconsciente. O vestido estava rasgado e as suas pernas bem-feitas estavam trançadas num ângulo bem estranho. Eu ajudei Delaney, bem bombardeado, mas ainda consciente, para sair da vala enquanto Pat, com muito cuidado, depositava Sue na poeira do acostamento.

 Nós estávamos arrancando Joan Ryan e Joe Heeney do banco traseiro quando o tanque de gasolina explodiu, e a força da explosão atirou-nos todos para dentro da vala. O vestido fino de Joan pegou fogo e ela gritava histericamente enquanto as chamas saltavam para seus longos cabelos louros. Joe estava deitado na estrada sem falar coisa alguma. Durante um momento eu cheguei a pensar que íamos todos morrer. Foi aí que Pat derrubou Joan fazendo-a rolar na poeira para apagar o fogo, enquanto eu levava Sue para a segurança da estrada. Fiquei ali de pé abobalhado olhando Joan, com a histeria já dominada, mas com o rosto sardento todo sujo da poeira e da graxa. Pat arrastou os dois rapazes para longe das chamas.

 Doc Crawford tinha conseguido parar seu carro alguns metros adiante do acidente e logo surgiu ao meu lado tentando tirar Sue de meus braços. Eu ainda resisti um pouco, mas logo deitei-a na gjjama e sentei-me ao seu lado enquanto Doe apalpava e resmungava sacudindo a cabeça. A fumaça acre que saía do carro incendiado atacava-me o nariz e fazia-me arder os olhos.

 A ambulância da polícia estadual chegou depois do que me pareciam horas. Ted Smith, o tenente da polícia, e o padre O'Rourke, o beberrão que era o pastor da igreja da aldeia, estavam juntos do carro em chamas e sacudiam as cabeças.

 Pat ainda estava ofegante.

 - Se tivéssemos chegado apenas uns segundos mais tarde, eles todos teriam virado fumaça. - Ele tinha o rosto e os cabelos pretos, e a camisa branca com as calças estavam rasgadas e sujas.

 - E nós com eles - disse eu, que só então notei não estar Maureen no carro.

 O tenente estava zangado e falava com uma voz arrastada e anasalada que traía o interior do Wisconsin.

 - Nenhum deles tem o direito de estar vivo. Pestes de garotos malucos que passam a noite bebendo e depois fazem 90 por hora numa área onde a velocidade máxima é de 30. Foi uma sorte você estar aqui, Kevin.

 - Você salvou-lhes as vidas e talvez até mesmo as almas, Kevin - disse o velho padre aturdido enrolando uma estola escarlate já bem encardida. - Se eles tivessem morrido sem os últimos ritos, depois do que andavam fazendo lá na praia, iriam todos direitinho para o inferno.

 - Como é que o senhor sabe, padre? De qualquer forma, foi o Pat quem salvou todos eles e não eu.

 Ninguém parecia ouvir-me.

 Vi o espasmo de dor no rosto de Pat.

 Ted estava mexendo no bigodinho aparado à moda de Tom Dewey. (Famoso político da década por seu combate ao vício e à corrupção. Chegou a ser candidato à Presidência, mais foi derrotado.)

 - Dois deles parecem que estão liquidados, especialmente a garota. Se escaparem, Kevin, a culpa é toda sua.

 Ainda meio aturdido, voltei para casa mas, quando cheguei no alto do morro, vomitei até as tripas e enfiei-me no meu quarto para dormir o resto do dia.

 Minha mãe veio acordar-me para o jantar, e seus cabelos ruivos brilhavam à luz do sol da tarde.

 - Todos vão ficar bons, menos a moça Hanon que vai ficar aleijada para o resto de sua vida.

 Durante anos, eu via sempre em meus sonhos as pernas trançadas de Sue.. Agora já-posso distingui-las das pernas trucidadas de uma outra mulher que também persegue meus sonhos.

 Logo depois de serenados os ânimos a respeito do acidente, Pat voltou para a nossa casa de verão no lago na última semana de agosto. Uma tarde ele organizou um jogo de softball com os rapazes do lugar, mas eu não gostei da maneira como se houve no jogo.

 Na hora do jantar eu mostrei-me aborrecido com ele por ter perdido o jogo embora Pat, como sempre, pilheriasse com o resto da família. Depois do jantar perguntou se poderia sair com o Studebaker para ver o que estava acontecendo na cidade. Eu sabia, naturalmente, que ele ia pegar a Maurcen na casa vizinha. A mãe dela achava que ele era um jovem encantador, e não criava problemas para os passeios pelo sul do Wisconsin com o filho de de um empregado da limpeza pública.

 Sem dizer palavra, eu entreguei-lhe as chaves.

 - E você não quer vir? - A sua pergunta era como uma sondagem, e a expressão de seu rosto tinha aquele ar meio encabulado que tanto encantava as senhoras. - Nós poderíamos procurar a Cunningham e a Foley.

 Ellen Foley, que me era destinada para a semana por Maureen e Pat, era realmente o fim da picada. Maureen tinha tomado a pobrezinha sob a sua proteção e ela tinha-me cabido por azar.

 - Deixe pra lá. - A minha resposta mostrava claramente que eu não estava satisfeito.

 Sentei-me numa cadeira de balanço na varanda da frente que tinha vista para a aldeia e o lago. O meu avô e o avô de Maureen tinham comprado vários quilómetros quadrados nas colinas do lago antes da Primeira Guerra Mundial, preferindo a tranqüilidade e a solidão ao que a minha família chamava "a favela de recreio" ao longo da praia. Nos anos que se passaram na recuperação da Depressão, meu pai tinha sido tentado a vender a sua parte das terras. Finalmente, pouco antes dele se alistar, Tom Cunningham garantiu-lhe que haveria dinheiro bastante na firma de advocacia para cuidar de nossa família enquanto ele estivesse fora. O papai voltou depois de quase quatro anos com os cabelos brancos, o peito cheio de medalhas e com uma águia nos ombros, ainda a tempo de verificar que a firma estava em más condições. Tom estava mais interessado na sua linda filhinha do que nos negócios da firma. Papai, que agora era "o Coronel", permitiu-se apenas o comentário que aquilo era o resultado de um casamento tardio, e atirou-se ao trabalho na firma da mesma maneira como se atirara antes nas cargas em Cassino e Bastogne.

 Três anos mais tarde estávamos todos ricos como jamais tínhamos sonhado. Os Cunninghams, sem precisar trabalhar muito, vinham logo atrás. Papai já falava em fazer uma piscina no lago e uma casa de inverno na Flórida, e tanto ele como minha mãe não faziam a menor cerimónia quando se tratava de gastar dinheiro. Naqueles tempos, as expectativas de todo mundo subiam e se expandiam como se fossem balões de ar quente. Nunca mais haveria uma outra Depressão. O céu era o limite.

 Na nossa vizinhança em Chicago, no entanto, o "após guerra" tinha criado um espírito que, em 1948, parecia permanente. Os Cunninghams e os Brennans pareciam estar apenas um pouco à frente dos Donahues e dos Foleys durante os sofrimentos comuns dos anos anteriores, mas agora nós estávamos ricos, enquanto o pai de Pat era ainda um trabalhador na limpeza pública, o homem do lixo, e o de Ellen era um pobre policial irlandês.

 Eu fiquei olhando o lago lá embaixo que se avermelhava com o pôr-do-sol, as esteiras deixadas pelos barcos a motor cruzando o lago, os carros que rodavam na praia e que iam para as festas e jantares na noite de sexta-feira. Andava preocupado com Pat Donahue. Se não conseguíssemos ganhar o campeonato da cidade no ano seguinte, ele certamente não conseguiria a bolsa para entrar na Notre Dame. Se ele continuasse a pensar só em garotas durante a estação, como vinha fazendo naquele verão, então tudo iria por água abaixo.

 Meu pai veio sentar-se na outra cadeira de balanço ao meu lado.

 - É uma linda vista. Você não acha, Campeão?

 Eu resmunguei concordando. Meu pai já não sabia o que fazer comigo. Eu era apenas um garotinho simpático quando ele fora embora para a guerra, e ao voltar encontrara a mulher cada vez mais bonita, os filhos mais novos de olhos arregalados, de alegria, mas o mais velho era um garotão de quatorze anos, misterioso e calculista.

 Mais tarde ele diria: "Um garotão alto e magro com um rosto muito sério, cabelos ruivos abundantes e uns verdes olhos duros." Para tornar as coisas ainda piores, eu fui logo dizendo-lhe que queria ser padre.

 - Isto me faz lembrar uma porção de lugares na Itália e na Suíça... - disse ele pensativo. Era raro ele se deixar levar por reminiscências da guerra quando estava conosco - ... algumas vezes, eu pensava que nunca mais veria tudo aquilo outra vez.

 Eu continuei calado.

 Ele prosseguiu sondando o terreno.

 - Foi uma batalha que perdemos hoje.

 - Um simples jogo de brincadeira... - respondi, só para dizer alguma coisa.

 - Mas você gosta muito de ganhá-las todas...

 - Não posso imaginar onde fui buscar isso, Coronel. - A minha resposta foi bem seca.

 Naquela luz crepuscular o seu olhar era meio divertido.

 - Eu acho que essa coisa de ganhar ou não pouco significa para o Pat. Não é tão importante para ele como é para você.

 - Era isso mesmo que eu estava pensando, papai. Mas quando ele voltar com o carro e com as garotas, eu logo esqueço tudo.

 Ele deu-me uma palmada no joelho e foi-se na escuridão, deixando atrás um perfume agradável de fumo turco no ar da noite.

 Quando o Studebaker chegou com Pat e Maureen no banco da frente, eu não liguei para as descupas de Pat e sentei-me no banco de trás com a Ellen Foley. A mim pareceu-me que ela era uma garotinha assustada com o seu cabelo em rabo-de-cavalo e que tinha desobedecido as instruções do rapaz encarregado da vigilância.

 Pat desceu o morro em direção à aldeia guiando com muito cuidado. Maureen começou a provocá-lo dizendo que o carro era meu e que não havia razão para tanta cautela.

 Eu respondi um tanto áspero:

 - É isso mesmo, Pat. Pé na tábua! Ele está no seguro. O pai de Mo certamente fará absolver você como causador de morte acidental. O padre O'Rourke virá abençoar-nos, se não estiver bêbado, e nós poderemos jogar pôquer com Sue Hanlon no hospital.

 - Você deveria ter entrado para o seminário três anos atrás - disse Mo com ar de pouco caso para mim.

 - Lá você estaria num lugar em que todo mundo obedece às regras todo o tempo.

 - E eu não teria que aturar as filhinhas únicas dos papais que as estragam e acham que elas nunca fazem nada errado - respondi.

 Nós seguimos para o Sugar Bowl em silêncio, mas eu sentia a reprovação daquela pessoinha que ali estava ao meu lado.

 O Sugar Bowl era uma casa de sorvetes com uma vitrola automática, luzes muito fortes, cheiro de leite.azedo, e mesas de madeira que, provavelmente, já existiam antes da Guerra Civil. Todas as cabeças de homens e mulheres voltaram-se quando Maureen entrou. Ela percebia a sensação que estava fazendo, e adorava aquilo.

 Maureen era mesmo uma beleza. Pele muito branca, cabelos negros e longos, um porte de modelo, génio ferino, olhos escuros que desafiavam as pessoas. Para os garotos com menos de vinte anos ela era A Mulher com que todos sonhavam. Quando assistimos a State Ftàr, no princípio daquele verão, fomos todos unânimes em concordar que Mo era mais bonita do que Jeanne Crain.

 Maureen arranjou as coisas de modo que Pat ficasse sentado ao seu lado. Senti seu joelho roçar-me de leve quando passou.

 - Vocês vão à festa do Dia do Trabalho no clube? - A pergunta era dirigida a mim e claramente deixava de fora os outros dois que não eram sócios.

 Animado pelo contato inesperado, eu voltei-me para a garçonete e fiz o pedido para todas: dois banana split, um sundae de chocolate e um chocolate maltado para a minha "convidada".

Já mais calmo, respondi então à pergunta de Maureen.

 - Duvido muito. Você sabe muito bem como a minha mãe desaprova bebedeiras. Nós, provavelmente, ficaremos na piscina comendo cachorro-quente. Meu pai mandou limpá-la e já podemos nadar ali.

 - Puxa vida! Isso parece um barato! Precisamos ir lá um desses dias. - Foi essa apenas a resposta de Maureen.

 - É uma boa ocasião para você se apresentar com aqueles seus maios indecentes, não é? - Eu procurava fazer com que minha pergunta parecesse uma reprovação.

 - Nunca vi você desviar o olhar quando eu me apresento com eles. Para alguém que quer ser padre, você arregala os olhos como todos os outros - ela retrucou com voz ácida.

 A música na vitrola terminou com It Might as Well Be Spring e começou um jitterbug. Maureen agarrou Pat pela mão.

 - Vamos lá Pat. Vamos dançar. O chato do Kevin pode ficar aí explicando a Ellen por que é que eu sou a única que zomba dele.

 Eu fiquei olhando os dois dançarem. Eram dois jovens altos e bonitos, um par soberbamente equilibrado na plena posse de seus corpos flexíveis. Ali estavam uma princesa mágica de olhos negros com o seu cavaleiro louro e belo. Era com aquele material que se faziam os sonhos românticos.

 - Por que foi que você mandou ele para casa hoje? Procurei ver de onde vinha aquela voz que parecia o badalar de sinos distantes, e descobri que vinha de Ellen. Era a primeira vez, em toda aquela noite, que ela falava diretamente comigo.

 - Eu não mandei ele para casa. Eu fui para casa antes dele. Seus olhos eram grandes e suaves, e extraordinariamente claros.

 - Eu não estou falando disso. Estou falando do que aconteceu lá no jogo. Você poderia ter agido de outra forma, não acha? Você queria se mostrar da mesma maneira que ele, não era?

 - Nós estávamos ganhando forças. Se ele tivesse marcado, nós poderíamos ter feito mais.

 Ela continuava a me olhar sem piscar.

 - O Tim Curron é o melhor jogador do time na sua posição. Havia maiores chances para ele ajudar o Pat do que para o Pat derrubar o adversário. - O seu nariz pequenino e atrevido fez uma careta.

 - As garotas nada entendem de beisebol... - Logo me arrependi da resposta desajeitada, envergonhado por haver caído numa armadilha injusta.

 Ela continuou, e a sua voz era agora decisiva.

 - Ele não tinha lá muita vontade de ganhar, e de qualquer forma... - ela agora procurava agradar-me - eu acho bonito a maneira como você toma conta dele.

 - E ela então desviou os seus olhos.

 - Quando você crescer, Ellen, você pode ser uma garota perigosa.

 Ela corou até a raiz dos cabelos muito louros do rabinho-decavalo, e eu fiquei ali observando-a enquanto ela chupava o seu chocolate maltado. Havia alguma coisa muito agradável no seu pescoço muito liso e na sua pele muito branca além de um queixo muito decidido.

 - Será que há alguma coisa estranha na maneira como estou bebendo isto, Kevin Brennan? - Ao fazer a pergunta os seus olhos grandes encaravam-me com cinismo.

 - com alegria eu contemplo, e com assombro/a Etéria Titania chupando em seu canudinho mágico.

 Aquelas palavras me escaparam antes que eu pudesse contêlas. Seus lábios se abriram num sorriso.

 - Maureen já tinha-me dito que você era muito delicado duas vezes por ano.

 - Pois então, agora, você pode suspender a sua respiração e ficar esperando pela segunda vez. - Meus dedos, tão impulsivos como minha língua, procuraram alcançar a sua mão em cima da mesa. Ela retirou-as apressadamente, na hora em que a toquei. Eu sentia como se uma corrente elétrica estivesse saltando entre nós dois.

 - É bem bom que você, junto com sua língua tão rápida, siga logo para o seminário.

 A chegada de Tim Curran impediu que continuássemos a conversa. Os olhos dele brilhavam com a luz de duas cervejas.

 - Alô, chefe. Alô, garotinha... - Fez uma festinha na cabeça dela como se fosse um cachorrinho de estimação. - Posso ficar sentado aqui enquanto aqueles dois estão lá agarrados?

 Foi Ellen quem respondeu.

 - Eles nem vão se dar conta de estarmos aqui quando voltarem. Quais são os planos novos para o Cavaleiro Negro?

 Tim afastou da testa uma mecha de seus cabelos encaracolados que lhe tapava um olho.

 - Eu estou trabalhando num plano realmente bom para outubro. O Kevin aqui já está velho demais para essas coisas, mas que diabo, por que deve a gente crescer? Não estou certo, Kevin?

 Ela não passava de uma garota, mas, naquela noite, ela era a minha garota, e eu não gostava de ver o Tim sorrindo-lhe como se fosse um terrível pistoleiro do IRA.

 - Todos nós temos que crescer - respondi carrancudo.

 - E qual é esse tal plano para outubro? - perguntou Ellen sem se dar conta de meu mau humor.

 - Ainda não posso contar para você, mas vai ser bem melhor do que quando o velho Honnikar entrou na sua loja de comestíveis finos e viu que alguém andara por ali arrumando de novo as prateleiras.

E Ellen acrescentou:

 - Ou dos McGinitys quando voltaram para casa e encontraram a mobília da sala de estar na sala de jantar e vice-versa.

 Eu repreendi-a.

 - Você é muito moça para se lembrar disso.

Ela sacudiu a cabeça com um ar de desafio e acabou de chupar o seu chocolate.

 - Mas não sou muito moça para lembrar que foi você quem colocou a estátua de tamanho natural do Sagrado Coração no assento da privada no banheiro da Irmã Pauline.

 O meu rosto, que já estava bem esquentado desde algum tempo, ficou ainda mais esfogueado.

 - A idéia foi do Tim.

 - E Kevin jamais contará a alguém como foi que ele conseguiu entrar no convento com a estátua.

 - Aquilo foi fácil. Eu apenas... - Parei de repente porque percebi que estava tentando impressionar Ellen com as coisas que eu era capaz de fazer quando pertencia ao bando dos Cavaleiros Negros.

 Tim achou graça.

 - Você quase entornou o caldo. Você deve estar muito por dentro com ele, garotinha... - Ele bateu-me no ombro. - Ainda resta alguma cerveja lá na aldeia e seria uma vergonha desperdiçá-la. Ainda vejo vocês mais tarde. - Ele saiu esgueirando-se por entre os pares que dançavam, como se ainda fosse o misterioso e invisível Cavaleiro Negro de sua infância.

 Eilen não escondia a sua admiração.

 - Ele é um amor!

 - Mas bebe cerveja demais, para meu gosto.

 Felizmente para mim, Mo e Pat, ainda sem fôlego, mas exultantes, escolheram aquele momento para voltarem aos seus lugares. Não havia a menor dúvida que eu estava quase fazendo uma tolice.

 Na manhã seguinte, quando levei a louça do café para minha mãe na cozinha, ela perguntou:

 - Não era a garota dos Foley que estava no carro ontem à noite?

 Antes de responder eu coloquei a louça na pia e apanhei um pano para enxugar os talheres.

 - Nada escapa às mães, hein?

 - Pois é para isso que elas são feitas. Ela ficou uma moça muito bonitinha, mesmo, você não acha?

 - Eu nem reparei.

 - Não mesmo? Então deveria ter olhado bem. - Ela estava lavando um copo com o olhar perdido.

 - Da mesma forma que o papai, não gosto de mulheres pequeninas.

 - Se você é mesmo como o seu pai, você não escolhe muito aquilo que admira desde que se mostre bem em um maio.

 - Ainda não vi a Ellen num deles, mas acho que não afetaria muito a minha pressão sangüínea.

 - Eu me preocupo com as moças assim. A mãe trata-a como se fosse uma escrava. Obriga-a a tomar conta de todas as crianças pequenas como se a Ellen fosse a culpada pelo tamanho daquela família. Ela vai crescer e vai casar e jamais saberá ser outra coisa senão uma escrava do trabalho. Nem posso acreditar como a Kate a deixa passar algumas semanas aqui.

- Ellen esteve doente no mês passado. O médico achou que poderia ser um caso benigno de pólio. A Mo diz que foi simplesmente estafa. De qualquer forma, não se preocupe com ela. É uma garota muito esperta.

A minha mãe arregalou os olhos.

 - Você reparou na sua inteligência e não reparou como a moça é bonita, Kevin? Acho que o seu lugar é mesmo no seminário.

 Rimos bem os dois.

 - Afinal, o que é que vocês, os jovens, realmente esperam da vida? - A sua pergunta era feita com cuidado para parecer sem importância e também não ser dirigida a mim diretamente.

 Eu respondi com a mesma indiferença rebuscada.

 - Nós todos queremos contradições. Pat quer ser poderoso e popular. Maureen quer ser pintora, mas também gosta de se meter na política. Quanto a Ellen, não tenho muita certeza sobre o que se passa em sua cabeça, mas creio que quer ser escritora e também quer constituir família. São todos inocentes. Quanto a mim, tudo que desejo é ser padre.

 

 Pat Donahue estava com medo. Tinha a garganta seca e as mãos molhadas. Quanto mais eles se aprofundavam no mato escuro e úmido, mais indeciso ele ficava. Ela caminhava na frente, balançando-se ligeiramente, desviando-se aqui e ali para evitar que sua saia e blusa, que escolhera por se tratar de um domingo, ficassem presas por galhos.

 Ela não olhava para ele que vinha atrás enquanto caminhavam descendo por uma velha trilha já muito batida.

 Chegaram a uma clareira. Estaria ela ouvindo como pulsava forte a cabeça dele?

 Ela voltou-se para ele com um sorriso convidativo.

- Isto aqui foi antes um recanto de verão para onde meus avós vinham para beber chá e limonada. O Coronel tinha mandado limpá-la e pintá-la na mesma ocasião em que reformara o poço. Aquilo era uma gentileza dele, não era?

 Ele seguiu-a subindo os degraus que estalavam até chegar ao pequeno recinto octogonal cercado de treliças. Ali dentro estava escuro e úmido, e ainda se sentia o cheiro forte da tinta, mas tão isolado do resto do mundo que até parecia uma ilha deserta. Ela voltou-se outra vez para ele e seus olhos brilhavam com a expectativa.

 Ele tomou-a nos braços com brutalidade e começou a beijarlhe os lábios. Ela apertava o corpo contra o dele deixando cair a cabeça.

 Ela riu-se.

 - Nada mal, Pat. Nada mal mesmo! Gosto de sua maneira de beijar.

 Ele começou a beijá-la de novo, mas já então se mostrava mais paciente e cuidadoso. Os lábios de ambos se exploravam mutuamente, sondando, buscando, caçando. Ela deixou que ele a dominasse e entregou-se à sua força.

 Ele jogou-a ao chão da saleta. Suas mãos se enfiaram por baixo do vestido e subiram-lhe pelas coxos. Tocava-a com delicadeza apesar da febre que lhe corria no sangue. Com ternura ele acariciava-a numa busca ardente. Ela entregou-se às suas explorações, suspirando baixinho com prazer.

 Com a ajuda dela ele conseguiu despi-la um pouco. Ela se mostrava passiva em suas mãos e respirava ofegante. Ele ia chegar até o fim. Ela não estava esperando aquilo. A idéia era que não se ia até o fim. Ele iria dar-lhe uma lição.

 Ela lutou um pouco, mas logo desistiu, como se estivesse resignada a perder ali a sua virgindade.

 A paixão dele mudou, de repente, passando para o medo e a repulsa. Ele afastou-se e virou-se para não ver o seu corpo quase riu. Depois falou numa voz muito fraca:

 - É melhor irmos procurar o Kevin e a Ellen. Ela levantou-se devagar.

 - Não devemos deixar o Kevin esperando. - A voz dela ainda não estava muito firme enquanto se vestia.

 Saíram dali, daquele lugar abafado, para a sombra fresca da clareira. Pai sentia-se ludibriado. As coisas seriam melhores se cie tivesse ido até o fim?

Ele esperava a hora para se desculpar pelo que tinha feito. Ela fingia não se importar muito com o que acontecera. Afinal ele falou:

 - Nós vamos ter que fazer isso outra vez. Claro que é muito melhor do que jogar cartas. - Ele queria fazer parecer que aquilo era uma coisa que fazia todos os dias.

 - O que foi que você disse? - Fiz a pergunta a Ellen com o pensamento ausente.

 - Eu disse que nós não vamos fazer o mesmo que eles estão fazendo lá, não é? - Os seus olhos não demonstraram se ela estava impaciente ou não com a minha falta de atenção.

- E o que é que eles estão fazendo lá? - A observação de minha mãe a respeito de sua formosura não parecia muito certa, embora as bermudas brancas e a blusa que ela vestia não ajudassem muito.

 - Imagina que estarão fazendo tudo, mas sem chegar até o verdadeiro sexo, - Ela respondeu com a maior naturalidade.

 - Pois eu já não tenho tanta certeza de que estejam fazendo "tudo". E você quer isso, Ellen?

 - Não. E você quer? - Ela respondeu sem olhar para mim.

 - Não com alguém que acabou de sair do berço.

 Ela não respondeu. Tirei-a de minha cabeça. Pat e Maureen eram o problema. Rezei pedindo a Deus, mas sem muita confiança. Ele cuidaria de Pat e de Maureen desde que eu não me preocupasse mais com eles.

 Era a primeira vez que eu via o lago depois que papai mandara limpá-lo. Tinha cerca de trinta e cinco metros de comprimento, era alimentado por uma fonte natural e fluía num regato que descia até o lago lá embaixo. O pequeno lago ficava entre duas colinas e, provavelmente, tinha sido o resultado de uma pequena geleira. Era todo cercado por chorões já muito velhos. A não ser no tempo da seca, a água corria muito rápida e isso impedia a proliferação de mosquitos e insetos. As rochas que formavam a sua bacia estavam se desmanchando lentamente, e meu pai achava que a placa de granito, que era represa natural, não iria durar muito. E, quando chegasse

a hora, ele se transformaria num lago completamente artificial, mas nesse meio tempo nós poderíamos continuar a desfrutar dele como uma piscina natural, profunda o bastante na altura da represa, para permitir uns mergulhos.

 Aquele era um dia quente e úmido, a espécie de tarde de domingo do Meio-Oeste que somente um adorador de verões como eu podia suportar. O lago sempre me parecera misterioso com a sua superfície prateada e convidativa. Eu o imaginava habitado pelos espíritos das águas, alguns escuros como os chorões quando o sol já não dava mais neles, e outros claros como as jóias que pareciam dançar naquela água. Eu ali fiquei contemplando o lago e pensando em Maureen e Pat. "Pai nosso que estás no

céu, olhai por eles..."

 - É uma beleza. - Ellen estava ao meu lado. - É uma pena não termos trazido nossos maiôs.

 Eu fiquei aborrecido com aquele pequeno transtorno, como se fosse um gatinho miando do lado de fora da janela.

 - Você não precisa de maio para nadar aqui... - Disse isso com uma certa brutalidade e estendi a mão para o primeiro botão de sua blusa.

 Até hoje eu não sei bem nem compreendo como tudo aconteceu. Embora eu houvesse prometido a mim mesmo que pararia no primeiro botão, caí numa esparrela, da mesma forma que ela, nas garras de forças que escapavam a nosso controle e à nossa compreensão.

Meu dedo apertou o botão com tanta força que ele se quebrou. A expressão no rosto dela não mudou. Seus olhos continuavam claros e frios. Eu passei de um botão ao outro, e assim sucessivamente, com toda a calma, como se estivesse em transe. Quando lhe tirei a blusa, disse comigo mesmo que só o que queria era vê-la em suas roupas íntimas. Iríamos nadar com elas.

 No entanto, havia uma espécie de continuidade em meus movimentos, tão inevitáveis como os da água que escorria por cima da represa. Minhas mãos chegaram às alças de seu sutiã como se estivessem sendo acionadas por alguém. Aquela era uma peça ridiculamente complicada para uma criança, mas eu afinal consegui retirá-la com facilidade.

 A minha mãe tinha razão. Ellen era realmente uma mulher. Seus seios, muito claros, eram uma perfeição. Ela era o diminutivo de um ídolo que fora soberbamente esculpido.

 Nem um músculo seu contraiu-se enquanto eu a despia. Houve somente um grito contido de susto e depois uma corrente de emoções conflitantes que surgiram em seu rosto quando meus dedos pegaram no elástico e arriaram as suas calcinhas.

 Segurei uma de suas mãos e ali fiquei atônito a olhar toda a sua beleza. Não sentia desejo. Aliás, nem mesmo cheguei a pensar nisso. Mas, apesar de tudo, aquilo era algo mais do que uma simples admiração estética. O que eu sentia por Ellen estava infinitamente além do meu desejo físico.

 Ela soltou a sua mão da minha, apanhou suas roupas e arrumou-as cuidadosamente numa pedra. Depois começou a desabotoarme a camisa.

Aquilo era uma mistura de vergonha, alegria, dor, exaltação, escravidão, liberação. Quando, ajoelhando-se diante de mim, como eu já fizera com ela, retirou-me as bermudas, eu senti a mesma ferroada de embaraço e prazer que antes vira em seu rosto. Arrumou minhas roupas junto às suas e segurou-me as duas mãos enquanto os seios tremiam-lhe à medida que ia caminhando.

 Ali ficamos nós, mais um do que dois, durante muito tempo sem pronunciarmos uma só palavra e apenas sorrindo. Depois eu levei-a com todo o cuidado para as águas tépidas do lago. Ela deixou que a água escorresse em seu corpo, mergulhou e depois veio à tona e ficou boiando perto do rochedo chamando-me para junto dela. Eu caí na água mergulhando, e nadamos juntos, a princípio lentamente e depois com solenidade. Então, depois que mergulhou minha cabeça, nós começamos a brincar, perseguindo-nos mutuamente como se aquilo fosse o ato final de um bale aquático coreografado por forças invisíveis das quais éramos meros instrumentos.

 Depois, ficamos sentados nas pedras para secar ao sol. Nenhum tocou o outro e nem isso era preciso. Tenho a certeza de que foi Ellen quem manteve o iníerlúdio cheio de magia e mistério. Nua, ela era elegantemente graciosa, mais modesta na sua delicada posse de si mesma do que quando vestida. Era incapaz de uma vulgaridade. Tinha a mesma graça que as águas encrespadas do lago.

 Fui eu quem, afinal, rompeu o silêncio.

 - Será melhor voltarmos. A Maureen está, provavelmente, usando-nos como uma desculpa para escapar do meu predatório amigo.

 Ela sorriu e empurrou-me as roupas. Pela primeira vez eu me dei conta de toda a beleza de seu sorriso.

Alguns minutos depois de já estarmos vestidos, chegaram Pat e Maureen. Ele assobiava, mas ela estava inquieta e tensa.

 Logo que notou os cabelos molhados de Ellen, Maureen perguntou com ar superior.

 - O que foi que vocês dois andaram fazendo? Quem respondeu fui eu.

 - Estivemos conversando a respeito de deuses, livros e outras coisas.

 Quatro vezes mais, naquele agosto muito úmido, sem pensarmos em Harry Truman ou Alger Hiss*, Ellen e eu fomos até o lago para representar o nosso ritual solene e silencioso. Na última vez, com nuvens ameaçadoras que se formavam lentamente no céu daquela tarde, Ellen apareceu tranqüilamente em nossa varanda da entrada em sua inevitável blusa muito larga e bermudas. Já em transe, eu levantei-me e acompanhei-a até a mata. Em cima da pedra, depois de cansados de nadar, começamos a nos apalpar mutuamente, como se estivéssemos tocando nos cálices sagrados em um antigo santuário. Então eu coloquei meus braços em torno dela, que se aninhou contra

meu peito. Aquilo durou uma eternidade.

 Na noite de domingo do fim de semana do Dia do Trabalho, havia a tradicional fogueira na aldeia. Caixotes, engradados, caixas de papelão, papel, móveis quebrados, tudo, enfim, que fosse combustível, era atirado no parque público da praia do lago e então acendia-se a fogueira.

 Naquele ano o fim de semana estava fresco, e eu fiquei ali olhando a dança do fogo assoberbado por pensamentos melancólicos sobre o fim do verão e do fato de estar ficando mais velho. O reflexo do fogo fazia com que os rostos dos jovens que ali estavam assumissem cores estranhas e misteriosa, muito parecidas com os fantasmas de Halloween a dançar antes de se precipitarem de volta ao inferno.

 Tim Curran, com o seu entusiasmo reforçado por cerveja, tocava freneticamente sua guitarra havaiana e Pat seguia em frente do povo cantando o mais alto que podia com a sua bela voz de tenor. Mo, com um suéter atirado em cima da blusa, agarrava-se a ele como se Pat estivesse a caminho da guerra. Eu não cantava. Não estava a fim de entoar Buttons and Bows. Ellen e eu estávamos ali silenciosos e separados dos outros, hipnotizados pelo fogo.

 (Truman foi Presidente dos Estados Unidos. Alger Hiss era um homem da confiança de Roosevelt, esteve com a sua comitiva na conferência de Yalta, mas, mais tarde, descobriu-se que era um espião comunista. Foi julgado e condenado.)

 - O Pat chefia a brincadeira e você chefia tudo mais. - Ela falava com aquele seu jeito de Prudente Mulher Velha.

 - Cale a boca, você vai estragar tudo - disse-lhe baixinho. Ela não obedeceu à minha ordem e continuou.

 - Aquela fogueira faz-nos lembrar o incêndio do carro, não é? Mas você não precisa ficar triste por causa daquilo, Kevin. Você salvou-lhes as vidas. - Ela segurou-me a mão e eu cheguei-me mais para perto.

 - Foi o Pat quem salvou as vidas, Ellen.

 - Foi ele e você. Foram os dois. - Ela falava como se fosse uma professora repreendendo um aluno rebelde.

 Passei o braço em torno dela e apertei-a bem contra mim.

 

 Maureen encheu-me a taça com champanha morno. Naquela noite ela fazia quinze anos e caminhava para os trinta, em seus modos esfuziantes como o champanha que espumava ali. Satisfeita com a minha cuidadosa inspeção à luz das velas, ela ergueu-se bem para mostrar toda a sua altura de um metro e setenta, quase tão alta como eu.

 - À saúde de 1949, primo Kevin. - Ela saudava assim o ano e o primo ao mesmo tempo.

 Lá fora, os relâmpagos cruzavam o céu e a chuva batia forte nas janelas.

 Eu respondi o mais grave que me foi possível.

- Ao fim do bloqueio de Berlim e ao segundo período de Harry S. Truman.

 Ela bateu os pés com Impaciência.

- Mas que diabo! Vamos deixar de lado toda essa maldita seriedade. Vamos beber ao que você realmente deseja para o AnoNovo: ao campeonato da cidade e a um bom começo no seminário.

 - Ela virou a metade do champanha em sua taça.

Eu apenas beberiquei com cuidado. Meus pais, explorando as possibilidades de uma casa na Flórida e seguindo um impulso de momento, que era bem característico deles, tinham alugado uma casa velha na vizinhança de um pântano. Eles tinham ido para uma festa de Ano-Novo no hotel e tinham-me deixado como babá das crianças e de Maureen.

 As crianças me obedeciam, embora a minha irmã de quatorze anos, Mary Ann, resolvesse ficar acordada até às onze e meia. Depois, com olhos sonolentos, tinha ido na ponta dos pés para a cama. Ela era apenas um ano e meio mais moça que Maureen, mas pertencia à geração anterior. Mo e eu estávamos sozinhos na casa. Quando o relógio de cima da lareira bateu a meia-noite, nós abrimos a garrafa

de champanha que ela escamoteara durante o dia.

- Um feliz 1949 para você, prima Mo, e que todos os seus desejos sejam realizados, sejam eles quais forem. - Ela franziu a testa olhando-me e enchendo novamente a sua taça enquanto esmagava o cigarro no cinzeiro.

 - Olhe lá, cristã - disse eu - como é que você está roubando toda a água de fogo. - Nós tínhamos assistido a O Tesouro de Sierra Madre naquela tarde, pela terceira vez, e as suas expressões faziam agora parte de nosso vocabulário.

 Ela encheu também a minha taça.

 - É para fazer com que o seminarista goste de minha bebida mágica. Muito bem, vamos beber aos nossos amigos. Ao Pat Donahue e que ele consiga a sua bolsa em Notre Dame e também a sua primeira boa trepada.

 - Maureen! - Eu fingi-me chocado.

 - Mas que porra, Kevin. - Ela logo revidou. - O Pat é como a maioria dos caras que andam por aí. Ele tem que provar que é um homem e nunca se cansa disso. - Então a sua raiva passou da mesma forma que tinha passado a luz do sol logo no princípio do dia. - OK, Kevin, retiro a segunda metade. À bolsa de Pat e ao campeonato da cidade que vai junto com ela. - Ela estava sorrindo outra vez. O seu encanto, tornado ainda maior pelo slack marrom e o suéter, era Irresistível. Eu bebi um golezinho acompanhando-a e beijei-a.

 - Feliz Ano-Novo, Maureen. - Eu só esperava que ela não percebesse a minha respiração ofegante.

 - Puxa vida! Nada mal para uma babá. Sente-se aí enquanto vou buscar uns salgadinhos e colocar um disco. Se precisar de mim é só assobiar.

 Fiz como me mandavam. Aquela era a minha última noite de véspera de Ano-Novo antes de entrar para o seminário, ali sozinho à luz de velas, com uma linda garota, numa tempestade da Flórida, e o champanha estava fazendo girar minha cabeça cada vez mais depressa.

 - Você vai mesmo jogar no campeonato da cidade, Kev? Ela fez a pergunta ao mesmo tempo que colocava os salgadinhos em cima da mesa na minha frente e logo sentava-se ao meu lado no sofá que rangeu num protesto de velho. Eu logo lembrei-me de tudo que os chefes do retiro me haviam falado a respeito de comer até tarde da noite junto com uma garota. Bolas! Tudo que eu fizesse teria que sair no confessionário, embora aquela atitude em si já fosse um pecado.

 - Tudo depende de Pat. Quando ele está disposto, não há ninguém melhor na Liga Católica. Quando ele não está, o nosso time é completamente diferente. Leo é a única ameaça de verdade, e na última vez nós dêmos-lhes uma lavagem. Se o Pat conseguir os vinte e oito pontos outra vez, quando jogarmos com eles em março, vai ser uma barbada! - Já então eu estava virando o champanha com uma avidez igual à dela.

 Mo estava pensativa.

 - Ele é um ótimo rapaz, Kev. Até mesmo quando está jogando um jogo bruto. Tem medo de machucar os outros. - Encostou a cabeça em meu ombro e suspirou. - Quando estou junto de você, Kev, logo começo a me sentir responsável com respeito a alguém, exatamente como você. Deixa isso pra lá. Vamos beber uma para a pobre Ellen... Puxa vida, Kev. Você bebeu todo o champanha.

 - Não fui eu, não, Mo. Você bebia duas taças para cada umaque eu...

 Seus olhos negros flamejaram.

- Ah, ah. Então você estava contando, hein? Pois deixe-me dizer-lhe uma coisa, senhor babá, você não é assim tão esperto. Você me acreditaria se eu lhe dissesse que há uma outra garrafa na cozinha? Eu escamoteei-a ontem quando ninguém estava olhando. E você já está tão alto agora que nem vai poder impedir que eu vá buscá-la para abri-la.

 E com isso ela foi para a cozinha de onde logo voltou trazendo a outra garrafa.

 - Para a Ellen... - Eu disse, como se sonhasse, quando ela fez estourar a rolha e encheu as nossas, taças. - E o que é que vamos desejar para a Ellen?

 Uma das velas tinha chegado ao fim e eu mal podia ver o olhar carrancudo de Mo à luz da outra. Afinal ela falou.

 - Acho que meu desejo é vê-la afastada de sua horrível família. Ela é apenas uma empregadinha barata para eles, ou então coisa pior. As empregadinhas baratas sempre têm seu dia de folga. Ela quer ser escritora. Será que já lhe contou isso?

Eu hesitei um pouco.

 - Ela tem muita coisa boa.

 A minha resposta pareceu satisfazê-la. Colocou a taça na mesa, aninhou-se mais para perto e beijou-me. Dessa vez aquilo era um convite certo e cheio de promessas.

 - com todos os diabos, Kev - explodiu ela. - Eu não estou tentando seduzi-lo nem tampouco afastá-lo do seminário. Estamos na véspera do Ano-Novo e eu quero um pouco de carinho.

 Os seus lábios eram tudo o que Pat me dissera. Eram quentes, doces e muito bem treinados. Não estavam fora de meu alcance, Patrick.

 Enfiei os dedos por baixo do suéter para acariciar-lhe a barriga bem formada. A vitrola começou a tocar A Valsa do Tennessee. Ela tornou a suspirar, quase gemendo, quando lhe afaguei o sutiã. Os seios de Ellen vieram-me ao pensamento e eu logo me detive. Reacomodei-lhe o suéter que ficou certinho até a cintura dos slacks bem cortados.

 Ficamos os dois ali sentados, silenciosos e muito embaraçados.

 - Primo Kevin, você leva bem a sério as suas responsabilidades de babá... e você é também melhor nos beijos do que eu jamais poderia imaginar. Tome aqui, coma um salgadinho. - A sua voz já estava pastosa.

 Ainda estava sobrando a metade da segunda garrafa. Ela tornou a encher a sua taça, fez menção de encher a minha também, mas sacudiu a cabeça, desapontada, quando eu coloquei a mão em cima da taça.

 Ela conseguiu, de alguma forma, chegar até a outra extremidade do sofá.

 - Eu não pretendo lutar contra Deus, mas gostaria que você me dissesse outra vez por quê? Por que está querendo passar o resto de sua vida fechado numa reitoria e desligado do resto do mundo? Não acha que, com isso, está desperdiçando sua vida? - A segunda vela já estava quase apagando também.

 - Não há nenhum desligamento, Mo. Os padres estão conosco nos momentos mais importantes de nossas vidas. Padre Conroy bate as ruas da vizinhança todos os dias. Ele conhece todos nós e conhece também a maioria dos nossos problemas. Você recorre a ele quando precisa de ajuda, ou então ele vem até você quando vê que é preciso dar-lhe um chute no... no traseiro. - Ela deu uma risadinha e tornou a encher a taça. - Eles representam a Igreja. com toda a gente ganhando tanto dinheiro, os católicos vão mudar, e a Igreja vai ter que acompanhá-los. Muita gente está saindo de nossa vizinhança para ir morar nos arredores. Vai ser uma ótima ocasião para os padres. - A minha voz estava querendo fugir. Fiquei imaginando se o álcool no sangue estava tornando a minha explicação mais obscura do que ela, geralmente, era.

 - Não sei se tudo isso faz sentido para você, Mo.

Ela demorou algum tempo, mas finalmente falou.

 - Tanto melhor para Deus e tanto pior para mim. Você já nasceu padre, Kevin. Eu sinceramente desejo que você esteja por perto quando eu precisar de um, e também que você seja um padre tão carinhoso como é para... para outras coisas.

 Ficamos calados durante muito tempo, ambos mergulhados sozinhos em nossos pensamentos um tanto confusos por causa da bebida. A última vela apagou-se. Maureen estava mergulhada num sono profundo, com a cabeça encostada no braço meio esfarrapado do sofá. Ela tinha voltado a ser apenas uma garotinha um pouco mais velha que Mary Ann. Derramei o pouco que restava do champanha dentro da pia e joguei as garrafas vazias na lata do lixo que estava lá fora atrás da cozinha. A chuva agora era apenas pouco mais que uma garoa e o ar estava pesado com a umidade e o perfume das flores. Abri a janela da sala, quase caindo aos pedaços, para fazer sair o cheiro do champanha e dos cigarros e fui jogar fora na latrina as cinzas dos cigarros de Maureen. Não queriam que ela fumasse, mas eu duvidava que meus pais não soubessem.

 Cheguei até mesmo a lembrar-me de desligar a vitrola já, desde muito, silenciosa.

 Tentei acordá-la, mas ela apenas mergulhou o rosto no sofá e então, respirando fundo, carreguei-a para o quarto onde ela dormia junto com Mary Ann.

 Minha irmã dormia profundamente como era seu costume. Ela nem mesmo ouviria o chamado para o julgamento do Dia Final. Custei muito até chegar à outra cama igual à de Mary Ann, mas, afinal, consegui juntar os restos de minhas forças só pensando no que aconteceria se eu deixasse Maureen cair, e que explicação poderia dar.

 Deitei-a na cama, tirei-lhe os sapatos, cobri-a com a colcha. Seria preciso mais alguma coisa?

Beijei-a na testa, rezei pedindo que a vida fosse boa para ela e saí na ponta dos pés. Voltei para o meu quarto às apalpadelas. Meus irmãos Mike e Joe estavam dormindo ainda mais profundamente que Mary Ann.

 Na hora do café, na manhã seguinte, fiquei a imaginar como minha cabeça podia agüentar tudo aquilo e o quanto teria de confessar sobre o que acontecera. Mamãe perguntou-me se eu me sentia bem, e disse que Maureen parecia estar com uma gripe estomacal.

 Ora, ora. Uma gripe estomacal. Aquilo incluía uma grande variedade de doenças.

 - Eu estou OK, mamãe. Você não está pensando que eu seria capaz de fazer alguma coisa com a Mo para ela apanhar essa gripe, hein?

 Ela apenas suspirou.

 - Claro que não, querido. Jamais pensaria uma coisa dessas.

 A jogada de Pat saiu voando para a cesta num arco perfeito. Bateu no aro, parou durante segundos e então, como se uma mão invisível tivesse chegado até ela, pulou para fora batendo na tábua. Willewski, o grandalhão perto do Leo, chegou até a bola e fez um passe para um dos seus jogadores. Eu corri de volta para a nossa cesta, mas o passe do adversário levou a melhor. Dois a um. Voltei para o centro. Ele fez um passe para um dos zagueiros. A bola passou e nós perdemos quatorze pontos para os Lions. Desanimado, eu fiz o sinal de tempo esgotado para o juiz.

 Eu estava quase vomitando. Minhas pernas tremiam, meu peito estava doendo e sentia a garganta apertada. O treinador nem mesmo quis olhar para o nosso lado. Era o que fazia sempre que estávamos perdendo um jogo.

 Nós estávamos sendo liquidados pela precisão dos Lions de Leo que mais pareciam uma máquina, um time magnificamente treinado. Nós tínhamos já ganho uma partida deles no torneio de St. George, no Natal, porque Pat fizera vinte e oito pontos. Agora, ali estávamos na metade do terceiro turno e ele só fizera seis pontos. A torcida hostil gritava e entoava nomes para ridicularizá-lo sempre que ele apanhava a bola. Estávamos entrando pelo cano. O que é que havia de errado com Pat? Quando tinha a mão quente ele podia fazer doze pontos seguidos, mas quando estava fria...

 O seu peito arfava tanto quanto o meu.

 - Eu não sei o que está havendo de errado, Kevin, elas simplesmente não entram na cesta.

 Uma semana de elogios nos jornais de Chicago, entrevistas com a imprensa, a provável bolsa de Notre Dame, o assistente do treinador de South Bend na assistência, e Pat fracassando. Não fazia a menor diferença quando um jogador como eu fracassava, já que ninguém notava a diferença, a não ser, talvez, o treinador de Leo. Mas quando a estrela do time fracassava, todo mundo sabia.

 Dei-lhe uma pancadinha nas costas.

 - Não se aflija, Pat. Você vai ganhar. Nós vamos dar-lhes uma colher de sopa porque assim as finais vão ser grandes. Tim, você presta bem atenção. Quando eles botarem dois jogadores marcando o Pat, você estará livre e nós vamos passar-lhe as bolas.

 O Cavaleiro Negro sacudiu a cabeça, procurando economizar seu fôlego para os golpes de precisão. Ele não era dos bons, mas nunca desanimava.

 O apito tocou. Eu peguei a bola e passei-a para Larry Ryan, o nosso centro baixote, e ele entregou-a ao Tim que a devolveu para mim. Atirei-a para Pat que caminhava para a cesta e ele tornou a bater na borda. Felizmente ela voltou para mim na linha do tiro livre e eu encestei fácil. Doze menos.

 Gritei para que continuassem a apertar, mas já não tínhamos mais forças para agüentar senão alguns momentos. Roubei a bola de um dos guardas de Leo e passei-a para o Pat que estava perto da cesta. Ele deveria tê-la mandado de volta para mim, mas atirou-a mecanicamente. A bola bateu na madeira e caiu dentro da cesta. Dez menos. A nossa torcida começou a gritar.

 Fossem quais fossem os demónios que estavam tolhendo as mãos de Pat, eles foram exorcizados com aquela cesta de sorte. Leo também estava com tudo e Willewski encestava tanto quanto Pat, mas nós estávamos cada vez mais perto. Faltava apenas um minuto e nós perdíamos por quatro pontos. Eu fui vítima de uma falta quando corria para a cesta e o juiz mandou atirar uma vez. Disse-lhe que tinha direito a duas vezes. Ele apenas riu.

 Sem dar atenção à gritaria da assistência eu encestei.

 Leo estava paralisado. Tim Curran, completamente exausto, atirou-se desesperadamente à bola depois de Willewski tê-la passado para o centro deles. < Conseguiu tocá-la e atirou-a na minha direção. Corri para a cesta procurando Pat. Ele não estava lá. Duas em uma. Passeia-a para Tim e fiquei esperando a volta. Ela passou por mim sem tocar-me. Não voltou. Tim só tinha marcado cinco pontos até então, em todo o jogo, mas aquela cesta colocounos somente a dois pontos da vitória. Leo pediu tempo.

 Ficaram todos amontoados em torno do treinador, tratando de arranjar um jogo que matasse os vinte e cinco segundos que faltavam para acabar o jogo. Q nosso treinador ficou lá no banco porque não sabia o que poderia dizer-nos.

 - Onde é que você estava? - Perguntei-lhe zangado. Pat estava curvado procurando recuperar o fôlego.

 - Não agüento mais.

 - Claro que tem de agüentar. Vamos roubar-lhes a bola outra vez e você vai correr para a cesta mesmo que esteja se esvaindo em sangue.

 O passe de Leo foi perfeito. Calmos e frios, eles aturavam a bola na parte da frente da quadra ignorando os nossos desesperados esforços para contê-los. Eu saí atrás do Willewski logo que ele pegou um passe.

Bati na bola fazendo-a cair de suas mãos. Por incrível que pareça, o juiz não apitou. Talvez não tivesse sido falta.

  Dois em um outra vez. Quatro ou cinco segundos, e ali estava a minha oportunidade para ser um herói. Calculei as probabilidades e passei para Pat. Ele errou o tiro e Willewski, surgindo não sei bem de onde, correu junto comigo para a bola. Ele esbarrou em mim quando atirei a bola para Pat que ali estava desanimado e sem fazer um movimento. Mas ele encestou e logo a cigarra marcou o fim do jogo. Tínhamos vencido o campeonato da cidade.

  Muito mais tarde, quando o banheiro já estava vazio, senteime num banco com o estômago ainda embrulhado e o coração aos saltos. Martin, um jovem jesuíta que gostava de andar com os atletas, era a única outra pessoa que ali estava.

  - Será que ele estava bancando o herói, Kevin? Levantei os olhos para ele.

  - Pode apostar, Sr. Martin, que ele não estava mesmo.

  - Então por que ficou tanto tempo ali sem fazer nada? - O rosto fino do moço mostrava bem que não estava acreditando.

  - Ele estava ali apático porque estava mesmo apático... retruquei com uma certa grosseria enquanto esticava a mão para apanhar uma meia. - Eu não procuro entender o Pat Donahue. Apenas passo-lhe as bolas.

  - E devolve-lhe as que ele perdeu. - Aquela resposta mostrava mais compreensão do que eu julgava possível para ele.

  - É por isso que eu vou para o seminário, Sr. Martin. Enfiei minha camisa T. - Não precisarei mais devolver bolas para Pat Donahue.

  Como se eu soubesse...

  Ellen tinha os pés descalços na areia macia e fria. A água do lago molhava, por vezes, as pontas de seus dedos. Fora a própria mãe de Maureen quem telefonara pedindo licença para que ela viesse para aquele fim de semana. Mesmo assim, aquilo não lhe agradava muito. Havia muita coisa a fazer em casa. Dois de seus filhos pequenos estavam doentes e ela achava que Margaret Cunningham era uma grã-fina. Foi o que ela disse a Ellen. Além disso, se eram bons católicos mesmo, como era que só tinham um filho? O pai de Ellen, que, por vezes, defendia a filha, insistiu para que ela fosse, e Ellen entrou no ônibus que passava pelo lago disposta a divertirse bastante.

  - Então você acha que a Jeanne Crain não é uma boa artista? - Era o que ela perguntava a Pat aspirando a mistura de gasolina, fumaça de churrascos, óleo de bronzear e spray contra mosquitos que era o perfume daquela estação de veraneio.

  - Ela não precisa ser, Ellen. - Ele apertou-lhe os ombros e deu uma risada. - Esta noite ela nada mais fez senão mostrar-se bonita.

  Ellen continuava a defender sua heroína com vigor.

  - Ela precisava fazer muito mais do que simplesmente mostrar-se bonita em Quando a Carne Herda.

  Pat riu-se novamente, mas sem ridicularizá-la. Ele ouvia as suas opiniões sobre filmes com cuidado e discutia tudo com muita seriedade. Não podiam falar de livros porque ele não os lia.

  - É claro que Quando a Carne Herda era melhor do que Quem É o Infiel?, mas a Jeamezinha não se parece nada com uma negra, para mim.

  Ele gostou por não ter dito nigger, que era uma palavra imoral, pelo que diziam as freiras de St. Dominic. E ela insistia.

  - A gente pode ter sangue negro sem mesmo parecer que seja. Os entendedores dizem que vinte por cento das pessoas com sangue negro passam facilmente por brancos.

  - Pelo menos, ela pensava que aquilo fora o que a irmã Caroline tinha dito.

  Pat respondeu muito sério.

  - Se eu fosse negro, e se pudesse passar por branco, claro que era isso que eu faria. Eu não sei como eles agüentam isso. Já basta que... - Achou melhor não terminar a frase.

  Ellen resolveu trazer a conversa para um terreno mais seguro.

  - Eu aposto como você vai adorar Notre Dame.

  - Eu não sei.... - Ele continuou a beber a cerveja na garrafa que já era a quarta. - Pelo que tenho ouvido, aquilo me parece uma prisão muito parecida com aquela para onde vai o Kevin. E você? Para onde vai?

  Ela respondeu sem muito convicção.- Eu acho que vou para a escola de enfermagem de St. Anne.

  Ele soprou a espuma da cerveja que lhe grudara na boca.

  - Talvez fosse melhor ser logo uma freira em lugar de se misturar com aquelas freiras alemãs... Espere um pouco aqui.

  Vou buscar mais duas cervejas ali do outro lado da rua.

  Ela ficou pensando na paz que havia na vida de um convento. Depois de todo aquele barulho de sua casa, aquilo seria um alívio. Ainda tinha mais dois anos para se decidir. Os pais diziam que ela teria de ser uma enfermeira para poder ganhar dinheiro e pagar de volta tudo que eles tinham gasto com sua educação.

Pat estava calado, entregue aos seus próprios pensamentos, quando voltou com uma garrafa em cada mão.

  - O que é que há, Pat? O que foi que eles disseram para você?

  - Nada. - Ele respondeu de má vontade.

  - Não me venha com respostas dessa ordem. - Ela não gostou. - Eles lhe disseram alguma coisa lá, só para magoá-lo, e eu quero saber o que foi.

  Ele deu-lhe umas pancadinhas nas mãos.

  - Que garotinha esperta que você é, minha Ellenzinha. Pois muito bem. Um deles, um cara grã-fino que esteve em Notre Dame, disse que a escola estava muito por baixo já que aceitava até lixeiros.

  - Deixa pra lá, Pat. Não dê atenção para o que dizem aqueles bêbados. Você é tão bom quanto eles. Talvez mesmo melhor.

  - Não tenho tanta certeza assim, Ellen. Beba um gole disto aqui, não vai te fazer mal. - Ele falava sem calor enquanto lhe afagava os cabelos com as suas mãos enormes.

  Ela nunca bebera cerveja antes, e foi com uma surpresa misturada com culpa que gostou. Não devolveu a garrafa.

  A irmã Caroline dizia que o alcoolismo não era hereditário.

  - Você tem idéias formadas a respeito de tudo, Ellen. - Ele fidou-lhe carinhosamente. - Por que as pessoas são tão desagradáveis?

  Ela ficou pensando com cuidado.

  - Acho que é, principalmente, por inveja. Ninguém me detesta muito, e eu acho que é porque eu nada tenho que possa ser motivo de inveja. Se você não fosse famoso por haver ganho o campeonato da cidade, aquele cara iamais lhe diria qualquer coisa. Pat terminou sua garrafa.

  - Eu bem gostaria de enfiar essa maldita bolsa em... Eu vou mostrar-lhes. Há de chegar o dia em que eu lhes mostrarei. Então nós seremos os últimos a rir, Ellen, você e eu.

  Ela bebeu a cerveja muito devagar. Pensando bem, não era nada melhor do que um malted milk. Não era mesmo.

  Eles começaram a caminhar deixando para trás a aldeia, com as suas luzes alegres e vistosas refletindo-se nas águas tranqüilas e negras do hgo. As luzes das casas da beira do lago lançavam raios dourados e alaranjados naquele silencioso espelho negro. Por trás da aldeia e no alto da colina estavam as casas das pessoas ricas, dos Brennans e dos Cunninghams, e de gente como eles.

  Estavam agora perto da praia cheia de árvores frondosas do parque estadual. Durante o dia, aquela praia ficava cheia de visitantes. À noite o parque estava fechado e era proibido entrar ali. A rodovia corria entre as colinas e o parque. Era a South Shore Drive. Ellen e Pat tinham saltado por cima da cerca em silêncio. Os guardas do parque estavam mais interessados em manterem de fora as pessoas que vinham da estrada do que os garotos que saltavam a cerca.

  - Você é uma pessoa maravilhosa, Ellen. - Pat disse aquilo de repente, interrompendo a paz que baixara sobre eles.

  Ela respondeu com simplicidade:

  - Obrigada, Pat.

  Ele tomou-a em seus braços e beijou-a apaixonadamente. E ela pensou, como se sonhasse, que gostava de ser beijada assim.

  Depois ele mudou. Tirou-lhe a garrafa da mão e jogou-a no lago, fazendo-a sentar na areia. Ela ficou por demais surpresa para resistir e aterrorizada demais para implorar. Ele levantou-lhe o vestido com violência e apertou o seu corpo rígido com a mão. Ela gritou e tentou libertar-se.

  - Ninguém vai ouvir você gritar aqui.. . - Ele  berrou para ela enquanto a mantinha deitada na areia com a sua mão enorme. Ela desistiu, entregou-se reclamando baixinho enquanto ele apalpava-lhe o corpo todo.

  As lágrimas dela romperam o transe de sua violência. Ele largou-a e saiu cambaleando como um bêbado para a beira do lago. Ellen agarrou sua bolsa e fugiu para dentro da mata, evitando, apavorada, os monstros que surgiam de repente e que assombravam aquelas árvores escuras. Caminhou tropeçando e caindo às cegas por cima dos arbustos e galhos, cortando os pés, e finalmente esparramou-se no chão de terra batida depois de haver esbarrado num banco do parque. Ofegante como um coelhinho apavorado,  ela ouviu quando ele veio chegando e então pôs-se de pé e saiu correndo novamente pela escuridão. Finalmente, com o corpo alagado de suor e com o peito doendo, ela deixou-se cair no acostamento da rodovia. Enterrou os dedos no solo de areia.

  - Oh Deus, ajude-me por favor. - Não lhe veio resposta do céu estrelado daquela noite de verão. Ela obrigou o corpo a acalmar-se.

  A floresta lá atrás estava calma e tão silenciosa como as estrelas. De repente, sem nenhum aviso, ela foi envolvida por um foco de luz. que passou por ela como se fosse o próprio raio da morte e logo sumiu acompanhado de um barulho de rodas. Ela deixou-se rolar para a vala ao lado da estrada. Seus dentes batiam, seus braços e pernas tremiam. Ela ali ficou toda encolhida e chorando enquanto os fachos de luz passavam por ela e outros carros seguiam rugindo pela estrada.

  Mais uma vez. ela reagiu e conseguiu dominar a tremedeira. Teria que caminhar, morro acima, uns dois quilômetros e meio até a casa dos Cunninghams. Na bolsa estavam as sandálias que tinha tirado quando começara a andar na praia com Pat. Calçou-as. Os pés doíam-lhe e estavam todos cortados e arranhados pela sua desesperada fuga pelo parque. As canelas sangravam por causa do encontrão com o banco do parque. Sabia que teria de esconder os ferimentos para que a mãe de Maureen não os visse, e teria que inventar alguma coisa que justificasse a roupa rasgada.

  Luzes brilharam lá na frente entre as árvores, e ela, como um animal acuado, logo escondeu-se na vala. Foi só depois que o grande Packard passou que ela reconheceu o carro dos Brennans. Teriam eles visto a sua caminhada pela colina com os pés feridos, as pernas sangrando e as roupas rasgadas? Iriam contar a Kevín?

  Pat atirou-se no lago rasgando a superfície das águas. Que Deus me perdoe. .. por favor, perdoe-me, perdoe-me.

  Ele tinha corrido pelo parque à procura de Ellen para lhe pedir perdão. Ele adorava-a. Jamais quisera amedrontá-la. Depois voltara ao parque, arrancara fora as roupas e mergulhara no lago esperando que aquilo lhe limpasse a sujeira do seu pecado. Estava agora quase no meio do lago e começava a sentir-se cansado. A cerveja estava cobrando o que lhe era devido. Já não me importo. Vou afogar-me. Ninguém vai sentir falta de mim. Eu prometi no retiro de setembro último. O padre fez-me prometer antes de me dar a absolvição.

  Ele já estava afundando. Seus pulmões já estavam enchendo. Aquilo era doloroso como se fosse fogo. Instintivamente, ele veio novamente à superfície, sentiu um muro liso ao qual procurou se agarrar, e sua mão encontrou uma corda. Agarrou-se a ela, a sua última ligação com a vida. Deveria largá-la? E por que não?

  Preferiu viver.

  A corda era da âncora de um veleiro grande. com a respiração ofegante, ele procurou subir ao barco. Havia lá uma luz e ele escutava vozes. Vou descansar um pouco e depois volto para a praia.

  Havia no barco um homem e uma mulher. Não eram jovens nem velhos. Estavam ambos parcialmente despidos e abraçados naturalmente. Não conseguia ouvir o que diziam.

  Mais tentação. Ele deveria sair antes que visse alguma coisa que o sujasse ainda mais do que já estava.

  Não nadou de volta. Estava fascinado por aquela postura descontraída do casal. Como era que uma coisa podia causar-lhe uma febre venenosa enquanto para aqueles ali parecia tão natural? A mulher riu, um riso baixinho e suave de prazer. Ele sentiu o estômago embrulhar-se, cheio de nojo.

  com cuidado, para não fazer barulho, Pat largou a corda e nadou de volta para o banco do parque. Muito depois ele chegou lá e deitou-se nu, completamente exausto, e procurando recuperar o fôlego. Estava pensando nos soluços aterrorizados de Ellen e da risada satisfeita da mulher no barco. Deitou-se de costas e ficou olhando as estrelas. Que horas seriam? As luzes estavam apagadas na aldeia. Seriam talvez, duas ou três da madrugada. Ele gemeu de desespero. Se, pelo menos, Deus o fulminasse ali mesmo...

  Então uma luz estranha apareceu, uma bola de luz muito suave que se erguia das águas da lagoa. Girou em torno dele e depois envolvéu-o. O tempo parou. A paz, alegria, perdão e o amor penetraram no mais íntimo do seu ser. A luz aqueceu-o, lavou-o e renovou-o. Ellen apareceu-lhe na luz junto com a mulher do barco e também Maureen.

  Todas as mulheres do mundo ali estavam cuidando dele e amando-o.

  Depois todas elas se fundiram em uma só mulher com trajes brancos e dourados. Ela disse-lhe o que deveria jazer para se livrar da danação eterna que lutava para conquistar a sua alma.

  O diretor espiritual do Seminário Quigley, um homem grisalho e nervoso, avisou-me que seria necessário abandonar os meus colegas do ginásio, e acrescentou "homens e mulheres" destacando bem a última palavra. Eu iria agora trilhar um caminho muito diferente do que todos eles seguiriam. Devia eliminá-los de minha vida cortando tudo que me ligasse a eles. Quanto mais tempo eu levasse para fazer isso, muito mais difícil seria.

  Quigley transigiu com seus princípios fazendo-me entrar diretamente para o quinto ano de seu programa porque meu pai tinha procurado o seu velho amigo do exército, dos tempos da guerra, e que era agora o vice-chanceler da diocese. A maioria dos "especiais" era obrigada a voltar ao segundo ano para repetir todo o ginasial.

  Depois de um ano em Quigley eu iria para os sete anos do principal seminário em Mundelein, ao norte de Chicago, onde seria ordenado "se Deus quisesse", conforme dizia meu pai que, sem dúvida, repetia o que ouvira de seu antigo camarada do exército. O reitor foi convencido a salvar um pouco de sua dignidade insistindo para que eu fizesse um curso de verão de grego do Novo Testamento que não me tinham ensinado nos jesuítas.

  Foi assim que eu passei todo o verão indo de bonde até as torres góticas e bem sujas de Quigley, já que os seminaristas não tinham permissão para dirigir automóveis, para ali fazer a transição da vida que levara até então para a vida de seminarista. Foram dois meses tristes e insuportáveis, devido ao calor. Eu sentia falta do lago e de meus amigos. Enquanto estudava o terrível grego de São João e mergulhava em Charles Dickens por minha conta, eu não cessava de procurar convencer-me de que, em breve, tudo aquilo seria coisa do passado.

  Maureen telefonou-me na semana anterior ao Dia do Trabalho, na hora exata em que eu chegava em nossa casa vazia e quente, voltando de minha última aula.

  - Alô! Desconhecido. Será que está disposto a fazer um favor para uma sua antiga paixão?

  O som de sua voz fez com que eu me esquecesse de todas as agruras.

  - Tudo depende da paixão. - Ao dizer isso eu fazia tudo para que ela não percebesse a minha satisfação e o largo sorriso em meu rosto.

  - Você não vai querer ficar aí na cidade todo este fim de semana, vai? Nós não vamos roubar a sua vocação só em três dias.

  - Eu estou indo para lá de carro dentro de meia hora. Qual é o favor?

  - Leve a Ellen ao cinema quinta-feira à noite e à festa do clube de campo na sexta.

  - O que é que há com o Pat? - Eu fiz a pergunta sem ouvir a voz da consciência que não estava gostando de minha alegria ao ouvir a voz de Mo.

  - Acontece que ele foi a Mayslake para rezar a respeito da tal visão. Além disso, ele e Ellen tiveram uma brigazinha. Você sabe como o Pat é materialista.

  Minha mão apertou-se e meus dedos ficaram brancos com a força que fiz apertando o fone.

  - Que negócio é esse de visão?

Ela soltou uma risadinha de escárnio.

  - O coitado do maluco Pat anda por aí dizendo que viu a Virgem Maria, e que Ela lhe disse o que deve fazer com sua vida. Seja lá como for, Kev, você quer ou não quer livrar-me da Ellen? Não creio que ela possa ser uma ameaça para alguma maldita vocação de alguém.

  Se ela estivesse em condições de ouvir como batia forte o meu coração, é bem possível que modificasse a sua opinião sobre os atrativos sexuais de Ellen.

  - Você quer que eu a leve de carro? - Eu estava espantado com aquela minha atitude desabrida,

  - Puxa vida, Kevin. Você mudou muito depressa! Não. Aquela mãe dela nojenta... você nem imagina como eu detesto aquela mulher carola, ela não deixa

a Ellen vir senão na noite de quarta-feira...

  Depois de desligar, eu me lembrei que "carola" era um adjetivo que eu nunca vira a Maureen usar antes.  

  Estávamos todos ficando mais velhos.

  E foi assim que na quinta-feira eu estava no Sugar Bowl sentado com a Ellen, vendo-a demolir metodicamente mais um sorvete e ouvindo-a comentar o herói de A Grande Ilusão, a que acabara de assistir.

  Ela estava ainda mais bonitinha do que eu me lembrava, com um sorriso muito animado, olhos faiscantes, e uma voz rápida e decisiva. Ellen estava descobrindo o seu corpo e o seu espírito, e estava gostando daquilo.

  - Posso pedir um favor a você, Kevin? - Ela falava um tanto timidamente, com os olhos baixos atentos ao sorvete em sua frente. A vitrola estava começando a tocar Riders in the Sky.

  - Peça cem, minha bonitinha.

Uma mecha de seu cabelo louro, agora cortado curto, caiu-lhe na testa, e ela endireitou-a com impaciência.

  - Bem, isso não faz parte do trato que você fez com a Maureen a meu respeito... - ao dizer isso ela corou um pouco - ... e você pode dizer não se quiser. Será que dava para você me ensinar a esquiar na água amanhã? É um favor.

  Coloquei meu indicador embaixo de seu queixo e levantei-lhe a cabecinha.

  - Eu pego você quando for nove e meia. E não vá pensar que eu não gostei do trato que fiz com a Maureen.

  Depois ficamos os dois um tanto embaraçados, lembrando tudo aquilo que houvera entre nós dois e sobre .o que não gostávamos de falar.

  Na manhã seguinte, às dez e meia, não havia magia alguma. Eu estava zangado com Ellen e ela detestava-me.

  - Estou completamente exausta... - gemeu ela. - Por favor, deixe-me entrar no barco.

  Ela estava mais do que exausta. Era um camundongozinho todo encolhido e molhado que não queria, ou talvez não podia, seguir minhas instruções, e aquilo deixava-me furioso. Gritei então para ela:

  - Você não tem coragem! Se você confessar que não tem coragem mesmo, eu puxo você para o barco. De outra maneira vai ficar aí mesmo e vai ficar tentando acertar.

  Ela atirou-me um punhado de água e respondeu gritando:

  - Você é convencido, arrogante e insensível. Jogue-me a escada de corda para eu subir.

  Não liguei para os insultos nem para o pedido.

  - Mantenha a porcaria dessa corda entre os seus esquis, com as pontas fora da água e os joelhos juntos. Não se deixe amedrontar quando começar a deslizar. - Afinal, a sua coordenação não era tão má assim, o que a amedrontava eram a água espirrando, o barco puxando e o barulhão do motor.

  Ali perto de mim, Nick McAuliff, um seminarista que viera ao lago comigo naquele dia, estava achando muita graça. Vinha achando graça desde que eu dissera a Ellen:

  - Abaixe bem a... a parte inferior de seu corpo em cima dos esquis.

  Ela ficara zangada e respondera:

  - Não é nenhum pecado dizer "bunda", seu bobalhão estúpido!

  Manobrei o velho motor Higgins esticando bem a corda, engrenei e acelerei. Estava tão furioso que acelerei demais. A corda, certamente, ia fugir-lhe das mãos.

  - Ela está de pé! - Nick gritou.

  Eu, então, dei uma olhada. O camundongozinho se transformara num lindo e gracioso passarinho. Ellen não era daquelas que preferiam se encolher por trás do barco uma vez que estava lá de pé. Logo depois ela ali estava atravessando o lago tranqüilo, a toda velocidade, com os joelhos bem juntos gritando o mais alto que podia numa verdadeira alegria de animal.

  Ela agüentou-se bem para dar quase uma volta inteira no lago, cheia de confiança na esteira do enorme Chris Craft, deu um salto elegante e esparramou sua bundinha bonita com força contra a água. Estava ainda rindo quando encostei o barco ao seu lado.

  Três vezes ela tentou subir pela escada de corda e três vezes caiu de volta na água sempre às gargalhadas logo que punha a cabeça de fora.

  Estiquei-me por cima da borda do barco e peguei-a por baixo dos braços trazendo-a para dentro. Quando a sentei no banco os nossos corpos se tocaram levemente e eu senti um espasmo de desejo tão forte que pouco faltou para cair ali mesmo.

  - Você está mais pesada do que no verão passado, Ellen.

  - Só pouco mais de dois quilos. - Ela riu-se alegremente. Mas creio que perdi a metade lá dentro da água.

  Enrolei-a numa toalha, dei-lhe umas palmadinhas de aprovação como se ela fosse uma campeã, e levei-a até o banco de trás do barco.

  Ela virou-se para o Nick com os lábios muito vermelhos e os dentes ainda batendo de frio.

  - Você está vendo como é que o Kevin trata as garotas agora que ele já está no seminário? E ele faz isso com a garota na manhã do maior baile do verão, para que ela esteja derreada e então já não será obrigado a tirá-la para dançar.

  - Vocês dois são loucos. - Foi esse o comentário de Nick McAuliff.

  Ellen nada tinha de derreada naquela noite. Seus cabelos estavam muito bem ondulados. Trazia sapatos de saltos bem altos, um vestido cor-de-limão com alças muito finas, e tudo aquilo fazia com que parecesse uns seis anos mais velha. E ali estava eu, um garoto, com uma mulher jovem. Por baixo do vestido eu sentia os contornos de seu corpo flexível. Os sons de Some Enchanted Evening guiavam nossos corpos que deslizavam no salão. Perto de nós dançavam também meu pai com minha mãe.

  E foi ele quem disse.

  - O seu gosto a respeito de mulheres está bem bom neste ano, Campeão.

  E mamãe dizia para Ellen que ela estava absolutamente divina. Ela aceitou o elogio dos dois com uma graça natural. Eu apertei-a ainda mais. Ela dançava muito bem.

  - Eu quero lhe dizer duas coisas, Kevin... - Ellen falava como se fosse a madre superiora dando ordens para a vida da comunidade.

  - Pois diga uma centena.

  - São só duas. A primeira é que você será um padre maravilhoso, e eu rezarei para que você não desanime quando a coisa ficar dura.

  - Oh, Deus meu! "Não desanime." Conversa de freira durante um baile.

  - E qual é a segunda? - A minha pergunta não denotava grande interesse.

  Ela aninhou sua cabecinha loura em meu peito.

  - A segunda coisa, Kevin Brennan, é para lhe agradecer ter sido tão gentil comigo nestes dois últimos verões. Eu sei que você é gentil com todo mundo, mas principalmente porque você sente a responsabilidade. Eu... - As palavras escapavam-lhe agora como se fosse o ar sendo expelido de um pneu furado. - Eu acho que você não sente essa responsabilidade por mim de forma alguma. Você é bom comigo só porque gosta de mim, e... e... bem, eu apenas lhe sou muito grata por isso.

  Dois dos meus dedos acariciavam-lhe o pequenino sinal que ela tinha nas costas.

  - Eu gosto de você, Ellen. Mas você está errada. É você que tem sido muito boa para mim.

  Mais tarde, quando a beijei, desejando-lhe uma boa-noite, ela franziu o rosto.

  - Será que os seminaristas devem beijar desta maneira?

  - Se não beijasse você desta maneira, seria um pecado mortal. - E, como se desejasse provar o que dizia, tornei a beijá-la.

  O diretor espiritual disse-me que a gente atravessa a vida carregando as feridas do passado. Quando adormeci satisfeito naquela noite, sabia que Ellen Foley, a fada surgida das águas, cujos seios macios eu havia reverentemente acariciado no lago da floresta, seria a ferida que eu carregaria comigo durante muito tempo.

  Eu tentava conter a minha fúria.

  - Mas Pat, essa é a coisa mais maluca que você já fez em sua vida. Você não tem vocação.

  Ele também estava zangado. Um pequenino nervo em sua garganta estava pulsando. As mãos estavam apertadas com os dedos trançados.

  - Como é que você, com todos os diabos, sabe se eu tenho ou não vocação? Você está pensando que é o único que pode ser padre em toda esta maldita paróquia?!

  Estávamos na quarta-feira à noite depois do Dia do Trabalho. Pat e eu estávamos conversando na sala de nossa velha casa em Mason Avenue. O lago estava abandonado e o pessoal estava se aprontando para voltar à escola. O Seminário Quigley começaria às nove da manhã do dia seguinte. Era apenas a metade do dia para todo mundo, com exceção dos "especiais" que deviam ficar o dia inteiro. Pat tinha na mão a carta de recomendação que conseguira de nosso pastor. Ele queria que meu pai falasse com o seu amigo, o vice-chanceler. Afinal de contas, ele tinha feito o mesmo curso e as suas notas eram quase iguais às minhas. Meu pai saiu para deixar-nos sozinhos.

  - E a sua bolsa em Notre Dame, Pat?

  - Ela que se dane. A minha alma imortal é mais importante do que o basquete.

  - Você sempre poderá salvar a sua alma de outra forma... Ele ficou muito pálido antes de responder meio zangado:

  - Há gente que não pode. Eu não posso. A Virgem Maria me disse que eu só poderia salvar a minha se fosse padre. - A sua fisionomia estava tensa, mas os seus olhos muito azuis estavam com uma firme determinação. - O padre Plácido disse que eu tinha mesmo vocação. Seria um pecado mortal se eu não correspondesse.

  Procurei sondá-lo por um outro lado.

  - E a sua família?

  - Estão furiosos comigo, da mesma forma que você. Eu não estou ligando. Tenho que fazer o que Deus me ordenou. Por favor, Kevin, preciso de sua ajuda.

Era difícil ficar zangado com Pat. Via-se que ele era sincero.

  - Mas claro que vou ajudar, Pat. Será uma beleza ter você lá junto comigo.

  Ele ficou tão aliviado com a minha aprovação que não chegou a notar como eram ocas as minhas palavras.

  Depois que ele saiu eu fiquei olhando, meio apatetado, para as flores que desabrochavam em nosso jardim na frente da casa. O sol, que desaparecia cada vez mais cedo, fazia lembrar o inverno que se aproximava. Ele desenhava na grama, com a sua luz suave, um padrão meio louco. Deveria eu falar com o reitor a respeito da maluquice de Pat? Lá em Quigley eles não gostavam de gente que levasse muito a sério a santidade do padre Plácido. Resolvi não dizer nada. Eles é que deviam investigar. Não era de minha conta dizer-lhes que o lugar de Pat não era num seminário. Nem, tampouco, o sacerdócio.

  Maureen disse a palavra final no verão de 1949 quando me encontrei com ela, caminhando firme com saltos muito altos, na missa das onze de domingo.

  - O jogo ainda não acabou, não é mesmo, primo Kevin? Os seus olhos muito grandes dançavam cheios de malícia.

  Pobre Maureen. Ela teria que pagar um preço bem mais alto pela vocação de Patrick. Bem mais alto que o meu...

 

  - Que diabo, Kevin, não tente mostrar-se tão alheio. - Maureen esmagou o cigarro no cinzeiro. - Você deseja tanto ir para Roma que até já gosta de macarrão.

  Evitei olhar para Ellen que estava sentada ao lado de Maureen. Preferia olhar lá para fora, pelas janelas, para a neve que acabara de cair, limpa como cristais ao luar nos jardins dos Cunninghams. Era a casa nova deles em River Forest, a uma quadra de distância da casa de um famoso gangster italiano, e que era um palácio, embora minha mãe dissesse que era um palácio de mau gosto e muito vulgar. A única compensação era a quantidade de sol que entrava na sala de visitas e na de jantar, verdadeiras celebrações em rosa, amarelo e ouro de luz, fruto das aulas de arte de Mo.

  Procurei controlar minha voz.

  - Eu já estive em Roma com a família e tenho a certeza de que voltarei lá. Não há razão nenhuma para eu estudar teologia lá.

  Ela respondeu logo bebendo mais um bom gole de conhaque.

  - Bobagem. Você é ambicioso e quer ser bispo. Se Pat for para Roma, ele será o bispo em seu lugar. - A voz dela já estava pastosa com os efeitos do Chateau Lafite que bebera no jantar.

  Respondi sem muita convicção.

  - Eu não pretendo ser bispo. E desde que construíram o novo North American College no Janiculum, aquilo já não é mais uma escola para futuros bispos, e sim apenas um grande seminário norte-americano.

  - O Kevin não quer ser bispo - disse Ellen baixinho com os seus olhos cinzentos muito redondos e firmes, observando bem, toda a mudança em minha expressão do rosto. - Ele só quer é vencer. Você vai vencer mesmo, não vai, Kevin?

  - Eu não sei bem... - respondi suspirando. Já lá iam três anos e meio desde a última vez que eu falara com ela.

  As nossas férias de inverno, naquela época, eram no fim de janeiro. O Cardeal Mundelein deixara-se convencer de que o seu seminário, uma extensa coleção de edifícios georgianos em tijolos vermelhos, no campo, era um paraíso silvestre. Não podia imaginai razões para que seus seminaristas desejassem passar o Natal em casa. Embora ele já estivesse morto desde uns dez anos e meio atrás, nós ainda continuávamos a fazer coisas na arquidiocese, da mesma forma que elas eram feitas no seu tempo.

  As autoridades do seminário gostavam daquela decisão porque não queriam vernos de volta às nossas paróquias numa ocasião em que nossos amigos em idade de universidade estavam também em suas casas para as férias de Natal. Nunca lhes ocorrera que também havia as férias de meio de ano para os leigos.

  Eu estava violando diversas regras quando conversava com duas moças bonitas, eminentemente femininas, trajadas à última moda do new look, e que representavam exatamente a espécie de tentação contra a qual o padre McNulty, nosso diretor, nos alertava durante três semanas antes de começarem todas as férias.

  As duas já estavam no segundo ano da universidade e eram realmente encantadoras. Depois de quatro meses de seminário, onde as únicas mulheres eram as freiras e as irmãs dos seminaristas, que vinham visitá-los nos três domingos permitidos, durante duas horas, todas as garotas pareciam encantadoras. Eles chegavam a imaginar que estavam ouvindo o tique-taque dos saltos altos nas calçadas de concreto vazias.

  De repente, Ellen ficara sendo a mais bonita das duas. Ainda parecia frágil, mas já agora o seu rosto pálido deixava transparecer uma inteligência rápida a despeito de sua serena imobilidade. Eu não me sentia bem ali.

  - Mas é claro que você vai vencer. - Maureen explodiu, cobrindo com a mão o cigarro de Ellen para acender o seu, e elas pareciam dois elegantes pássaros bicando-se mutuamente. – Você, tem melhores notas, é mais popular entre os outros seminaristas e, além disso, é um líder natural.

- Não é isso que acontece, necessariamente. Tanto os jesuítas como a faculdade da diocese gostam muito do Pat. Ele é espirituoso e encantador. Eles me acham

muito casmurro e... - o vinho tinha-me soltado a língua e eu disse uma coisa da qual logo me arrependi. - ... também sou muito elegante e muito rico. Fui severamente repreendido por ter ido a Roma com a família antes de minha designação de verão para o orfanato no ano passado.

  Fui um tolo em reconhecer uma coisa daquelas somente para conquistar as simpatias femininas. Embora fosse muito popular com meus companheiros de classe, tendo sido o primeiro "especial" a ser eleito presidente da classe de formatura em Quigley, eu não era muito bem-visto pelas autoridades do seminário, e isso mesmo sob um ponto de vista tolerante. Eu obedecia a todas as regras, fazia todos os trabalhos, rezava tudo que era preciso, mas as autoridades não gostavam de todo aquele dinheiro

da família. As melhores nomeações eram sempre para o Pat, inclusive a que ele ocupava agora como prefeito-chefe. Ele governava com gostosas gargalhadas, com um sorriso sedutor e com uma rápida piada. Eu era apenas um funcionário subalterno, o chefe dos jogos, responsável pelas tabelas de atletismo, a-pessoa a quem Pat se dirigia para pedir conselhos sobre casos sérios como, por exemplo, a licença para "fumar dentro de casa" nos dias muito frios, isto é, licença para fumar no salão de recreio durante a meia hora em que isso era permitido depois das refeições.

   Maureen não se conformava.

  - Isto é a coisa mais estúpida que já vi. Mas, que diabo! Sente-se, Kevin, a Ellen e eu não vamos te estuprar. - Fez-nos sinal para um sofá antigo cheio de enfeites, de muito mau gosto e que não combinava com a sala em que estávamos. - Será que a Igreja não vai jamais acordar para reconhecer que estamos no século XX? Será que todos nós teremos de abandoná-la antes que ela mude? Por que sentirem inveja de você só porque sua família tem uns tantos dólares?

  - A Igreja está mudando - disse eu enquanto procurava uma cadeira na sala, o mais longe possível. - Aí temos a nova liturgia da Páscoa.

  Maureen ficou irritada e levantou-se do sofá para fazer tuncionar a vitrola.

  - Kevin Brennan, somente um seminarista poderia jamais pensar que os jovens estão ligando a mínima para essa tal de liturgia da Páscoa.

  - E como é que vocês dois se sentem com a rivalidade que o seminário lhes impôs? - A pergunta veio de Ellen com sua voz muito macia que era quase um sussurro.

  Ao contrário de Manhattanville onde Maureen se misturava com a aristocracia da costa do Atlântico, a Escola de Enfermagem de St. Anne não tinha, naquela época, as jovens rebeldes de hoje.

  - Nós não tocamos no assunto. - Eu apenas resmunguei.

  - E por que não? - Ellen era persistente.

  - Porque somos homens, e homens não sabem como contornar as dificuldades, da maneira como fazem as mulheres.

   - Aliás, na realidade - Ellen continuou - não faz a menor diferença o fato deles gostarem ou não de você. Assim como também não faz diferença você ganhar do Pat.

  - É isso mesmo, Ellen. É apenas um jogo bem tolo.

  Se eu fosse o perdedor no páreo com o Pat para ir a Roma, teria que aturar o seminário durante mais quatro anos, numa vida vazia e rígida com todos os segundos marcados desde cinco e vinte e cinco da manhã até nove e quarenta e cinco da noite com todos os momentos cuidadosamente vigiados à procura de sinais de "desobediência", já que a obediência, e não o zelo ou a caridade, era a mais importante das virtudes sacerdotais. A rígida disciplina do seminário era uma triste preparação para o sacerdócio das dioceses no século XX. Costumavam dizer que o nosso reitor era um dos mais esclarecidos espíritos do século XVIII. E a rotina de memorização dos livros didáticos em latim, que nós quase não compreendíamos, não era certamente útil para o treinamento de um trabalho entre os leigos que se formavam nas universidades e para a classe média superior.

  Devido ao fato de sermos seminaristas, estávamos isentos do serviço militar na guerra da Coréia que se arrastava depois de havermos ido para Mundelein. Larry Ryan, o nosso miudinho do centro na escola dos jesuítas, tinha sido morto na retirada do Rio Yalu e a minha consciência levou-me ao ponto de abandonar Mundelein para me alistar. Meu pai ficou furioso dizendo que eu devia saber exatamente onde estavam as minhas obrigações. Foi então que a linha de batalha se estabilizou e eu não fui requisitado para defender a democracia nas redondezas de Seul.

  Eisenhower era Presidente, o seminário estava dividido ao meio a respeito de Joe McCarthy e o país estava se preparando para o longo sono da década de cinqüenta. O mundo tinha a impressão de que o Papa Pio XII estivera sempre ali, da mesma forma que o Cardeal Stritch, o nosso arcebispo.

- Que diabo está havendo com o seu amigo Donahue? - Foi a pergunta que me fez TomO'Malley, um seminarista gregário, muito vermelho, numa noite fresca de primavera quando passeávamos em torno do lago.

  Aquela pergunta colocou-me logo na defensiva.

  - O que está querendo dizer com isso?

  - O que é que ele está pretendendo?

  - E que importância tem isso?

  Atravessamos a ponte por cima do malcheiroso ribeirão que as gerações anteriores de seminaristas tinham, cruelmente, batizado com o nome de Ribeirão Stritch, por causa do nome do arcebispo.

  Agora já era Tom que não se sentia à vontade.

  - Ninguém fala nisso com você porque os dois foram criados juntos, mas aqui, eles são o inimigo, e ele está do lado deles todas as vezes. Defende-os, adula-os.

  E muitos de nós acreditam que ele faz espionagem em favor deles.

  - Duvido muito. - A minha resposta foi evasiva. - Pat apenas gosta que gostem dele.

  - Que eles gostem, e não nós, Kevin.

  Fiquei calado esperando que O'Malley continuasse.

  - Alguns colegas nossos pensam que ele está querendo conseguir ir para Roma... - Ele falou baixinho sem me olhar de frente.

  - Pois ele pode ir se assim quiser.

  - Mas é você que deve ir. - Tony parecia um advogado defendendo um cliente. - Eles sempre enviaram o líder da classe. Eles sempre preparam o líder com antecipação ensinando-lhe o italiano durante dois anos. Você é o líder da classe, e eles estão i lhe ensinando italiano. Pat, porém, está sempre adulando os caras da faculdade que não gostam de você.

  - O seu "sempre" significa apenas três anos, Tony.

Fora somente depois da construção do novo colégio em Roma que a política do Cardeal Mundelein que consistia em mandar todos os seus rapazes para os seus próprios seminários fora violada, aliás, uma das poucas que o Cardeal Stritch conseguiu encontrar a energia suficiente para modificar.

  - Pois então você ainda não reparou como ele anda sempre a puxar o saco daquele maldito idiota, o Vandy? - O'Malley continuava.

  O Professor Harold F. X. Vandenbergue, S. J. era um jesuíta quase senil que ensinava filosofia, e com isso nos fazia dormir em quatro tardes da semana. Éramos obrigados a ouvi-lo, sentados nas cadeiras muito incómodas do grande salão de conferências decorado com quadros de nus da Renascença, falsificados e só de homens. Alguém tinha enganado o Cardeal Mundelein fazendo-o acreditar que eram autênticos originais de Paolo Veronese, Vandy nunca olhava para nós durante as lições, aparentemente obcecado pelas árvores que via lá fora através da janela. As suas aulas eram um monótono comentário sem fim, em latim, sobre a diferença entre Santo Tomás de Aquino e Francisco Suárez. Ele era a favor do último.

  - E daí? - Eu estava começando a perder a paciência com O'Malley e também com Pat.

  - E daí é que você sabe muito bem como a faculdade mantém viva a ficção que o Vandy sabe descobrir talentos. Donahue está de olho na colina do Janiculum, e você é o único cara em todo o edifício que não se dá conta disso. - Ele olhou-me com, ar inquiridor. - E esse negócio que há entre ele e o Stan Kokoleck? Eles estão sempre falando de "amizades particulares", mas a regra parece que não se aplica ao Donahue. Se ele não está chupando o Koko, não é porque o Mac não está olhando para o outro lado. Naqueles tempos, a palavra "homossexualismo" não era mencionada no seminário. Nós fingíamos que ela não existia. Não havia muita coisa ostensiva nesse sentido. Quando se enclausura umas duas centenas de moços solitários, as "ligações" podem vir a ser um problema, especialmente quando os superiores e a faculdade demonstram parcialidade e inclinação para o favoritismo para com alunos bonitões, como era o Pat Donahue.

  - Isso, pelo menos, eu posso dizer-lhe para esquecer, Tony. Se existe uma coisa que o Pat não é, essa coisa é... é esse negócio que você está querendo insinuar.

  Lá de onde nós viemos há uma grande quantidades de garotas que podem confirmar o que digo. - Eu procurava mostrar-me convincente, e hesitava em usar a palavra certa.

  Alguns dias depois disso o Pat pegou-me de surpresa e propôs-me que nos encontrássemos no ginásio, durante o recreio da noite, para falar sobre o torneio de basquete para o qual ainda faltavam seis semanas. O seu lugar de prefeito-chefe dava-lhe as chaves e o direito de estar no ginásio nas horas em que ninguém mais tinha permissão para ir lá. Foi somente quando ele ligou a luz no pequeno escritório do ginásio que eu percebi que estava voltando aos velhos tempos do basquete e das bolas que batiam na trave.

  - Eu estou ficando maluco, Kev. - Ele falou-me com uma voz agoniada. - Estou precisando de ajuda. Já é bastante ruim perdê-lo. Não posso vê-lo com mais ninguém.

  Um dos cantos de minha mente estava olhando lá para fora e vendo a neve derreter-se no primeiro grande degelo daquele inverno. A poça de água que se formava lá na frente do ginásio fez-me voltar à realidade.

  Procurei ganhar tempo fazendo que não entendia.

  - O que é que você quer dizer?

  - Eu... humm... - fez uma pausa muito embaraçado. Bem... eu estive com o Koko durante as férias e acho que bebi um pouco e... meu Deus... eu fui bruto com ele, e então ele não gosta mais de mim. Ele diz que gosta do Marty Fitzpatrick.

  - Dois porcariazinhos... - Interrompi-o irritado.

  - O Koko não é nada disso... - Ele falava implorando e defendendo. - Ele é sensível e compreensivo, e eu não me agüento aqui sem a sua ajuda. Eu preciso tê-lo de volta.

  Passou-me pela cabeça a tentação de perguntar-lhe se ele iria levar o Koko para Roma, mas contive-me.

  - O que é que você anda fazendo com o Stanley, Pat? Preciso saber, se você quer que eu o ajude.

  - Não é nenhum pecado, Kev. - E ali estava aquele herói lívido e acabrunhado, derreado em cima de uma mesa de cerejeira, num pequenino cubículo cimentado onde o cheiro de suor masculino jamais poderia ser exorcizado. - Não é mesmo. Pelo menos não é com uma garota...

  - É muito pior, Pat.

  - Não, não é não, Kev. Não é mesmo. Não é, desde que você entenda o que sentimos um pelo outro. Se não fosse por Koko eu já teria ido embora. Aqui a gente fica tão sozinho! Ele já estava chorando. - Sinto falta de meus pais e de meus irmãos.

  A minha raiva estava começando a se transformar em piedade. Talvez, afinal de contas, a culpa fosse do seminário. Todo mundo ficava um pouco estranho dentro daquele maldito lugar.

  - E o que é que você está querendo que eu faça, Pat?

  - Fale com o Koko. Diga-lhe que estou arrependido por ter batido nele. Diga-lhe que ele precisa deixar de ser amigo do Marty. Eu vou perder a cabeça se continuar a vê-lo com o Marty.

  - Vamos lá, Pat. Esqueça isso. Vá confessar-se e esqueça o passado.

  - Não posso confessar-me, Kev. Eles me obrigarão a ir embora se descobrirem. - Ele estava procurando controlar-se, mas o seu rosto bonito estava desfigurado pelo desespero.

  - Peça um confessor especial. O regulamento permite isso. Eles deixam a gente fazer tudo que quiser, mas você tem que desistir disso.

  Ele sacudiu a cabeça.

  - Eu sei que tenho que desistir, Kev. Já faz meses que eu ando querendo pedir a sua ajuda. Só quero que você fale com o Koko, e eu farei tudo que você mandar.

  Saímos do ginásio e caminhamos de volta pela lama para o prédio da residência. A névoa estava se transformando num jog. Pat, já mais alegre, fez perguntas sobre as férias e sobre a casa nova dos Cunninghams. A menos de cinco minutos depois de sua "confissão" comigo, já ele estava querendo saber como fora o meu encontro com Mo e Ellen.

  Durante um dia inteiro eu fiquei observando o Marty e o Koko, Eles eram mesmo algo mais do que simples "amigos". Falei com o padre Meisterhost, o velho diretor espiritual jesuíta, em seu gabinete decorado com cartões de santinhos, dizendo-lhe que me sentia obrigado a contar, por uma questão de consciência, a minha preocupação a respeito do relacionamento entre Martin Fitzpatrick e Stanley Kokoleck. O jesuíta olhou-me muito sério.

  - Ah, meu filho. Você está certo que sabe o que está me contando?

  - Sim, padre. Eu sei muito bem o que estou contando.

  Os dois não compareceram às aulas na manhã seguinte. Quando voltei de lá para o edifício de residência eles já tinham saído. Quando Pat e eu caminhávamos apressados para o almoço, estávamos os dois pensando sobre o que teria acontecido. Pat parecia notavelmente tranqüilo.

  Uma semana depois, ele saudou-me com um sorriso aberto quando saíamos juntos da aula de Vandy. (Os alunos sempre deviam sair juntos com aquele que encontrava na porta. Aquilo era mais uma proteção contra as tais "amizades particulares".)

  - Foi uma grande coisa eu ter conversado com você naquela noite, Kev - ele disse - já me sinto completamente melhor.

  Naquele ano eu ainda não me livrara daquelas bolas que batiam na cesta e voltavam.

  Em meados de abril, quando a primavera ainda fazia força para nascer, eu caminhava sozinho numa triste manhã de quintafeira, o dia em que não havia aulas porque era assim que eles faziam em Roma, no caminho de baixo entre a "Gruta de Lurdes" artificial e o lago muito sujo. Os alunos não deviam andar sozinhos, talvez porque isso pudesse levar a pensamentos sujos durante o trajeto, ou talvez mesmo só porque poderiam apenas pensar, e isso era uma coisa que o seminário não via com bons olhos.

  Sentei-me num banco, embaixo de um telhadinho que ia até o lago, e ali tentei resolver o problema de Roma. Ouvi o passo de dois homens andando lá em cima, e havia alguma coisa no Tomdas vozes que me fez ficar vagamente inquieto. Uma das vozes era de O'Malley.

  - Duas vezes por semana? Por quê? - Foi a outra voz que falou.

  - Ele tem uma garota em vista na cidade de Mundelein disse O'Malley. - Tiraram-lhe o Koko e agora ele está tentando o outro lado.

  - Você tem certeza? - Era claro que a outra voz estava muito impressionada sobre o que lhe dissera O'Malley, mas estava querendo uma prova.

  - Jerry, o barbeiro, me disse que viu quando Donahue apanhou-a em frente do drive-in onde ela trabalha. Ela está no ginásio de Libertyville. O Jerry diz que o Donahue aparece por ali por volta das 10:30 das terças e quintas, e eles saem no carango dela.

  - E por que ele lhe contou isso tudo? - Agora era Ted Froelich, um de nossos caras mais corretos e sensatos.

  - Eu não sei, mas o fato é que isso está acontecendo, e nós não podemos deixar um cara desses ir para Roma representando Chicago. Temos que avisar ao Mac. Se você não me acredita, vigie o quarto do Donahue esta noite. Depois você pode contar ao Mac na terça-feira.

  As vozes foram sumindo na distância.

  Eu fiquei ali no banco com o corpo e o espírito paralisados. O lugar de Patrick Donahue não era num seminário. Agora eu 'iria livrar-me dele de uma vez por todas.

  Não seria preciso que eu fizesse coisa alguma. Eu ia ganhar a parada de Roma já que meu adversário cometera falta.

  A moça guiava com cuidado pela estrada que levava ao seminário evitando o único carro da polícia que patrulhava aquela área todas as noites. Ela estacionou embaixo da casa de força, escorregou pelo banco da jrente e abraçou-o.

  Ele beijou-a na testa meio distraído, saiu do carro e esgueirou-se por entre as árvores a caminho do edifício de residência. A parte mais perigosa era voltar para ali. Esgueirou-se na direção da porta da frente que deixara aberta, na certeza de que ficaria assim até a sua volta. Ninguém usava aquela porta, e nem mesmo o Mac sabia que havia uma chave para abri-la. Caminhou cauteloso pelo corredor, iluminado apenas pelas luz.es que ficavam acesas a noite inteira e que eram do outro lado. Agora só faltava uma corrida silenciosa nos dois andares de escadas e ele estaria de volta em seu quarto. Agradecia a Deus pelo fato do Cardeal Mundelein ter destinado um quarto para cada seminarista. O momento mais perigoso era quando ele subia correndo o primeiro lance de escadas e começava o segundo. Mac iria vê-lo certamente se lhe acontecesse abrir a porta de sua suíte.

  Havia sempre alguns segundos de um terror delicioso quando ele chegava àquele ponto perigoso. Adorava a excitação da brincadeira quase ainda mais do que o corpo da garota.

  Mac não estava lá. com uma mistura de exaltação e alívio ele saltou sobre os últimos degraus e correu, já sem cautela, o pouco que ainda faltava para a segurança de seu quarto, uma sensação muito parecida com os últimos e rápidos momentos antes de possuir a garota. Ao abrir a porta ele pensava sobre o que iria experimentar na próxima vez. Havia algumas variantes que ele lera num livro no verão anterior...

  A meio caminho para a cama ele teve um susto. Havia alguém sentado em sua mesa de estudo.

  Eu saí apressado da capela já meio escurecida depois das orações da no'te, com a esperança de ainda conseguir um banho de chuveiro antes que as luzes se apagassem às nove e quarenta e cinco. Mundelein era provavelmente o único seminário do mundo que se dava ao luxo de ter banheiros particulares.

  Quando vi o Ted Froelich caminhando pelo corredor e batendo na porta de Mac, galopei pelas escadas até o terceiro andar e corri até o quarto de Pat. Bati na porta, baixinho primeiro e depois com mais força. Ninguém respondia. Abri a porta e olhei lá dentro. Tudo escuro. Liguei a luz mas logo desliguei-a depressa. Ele nem mesmo desmanchara a cama ou arrumara-a para fingir que havia alguém por baixo das cobertas.

  Se o Mac encontrasse uma cama vazia, ele iria ficar sentado ali para esperar a volta de Pat.

  Tirei fora a batina e as roupas, apanhei o pijama de Pat atrás da porta do banheiro, vesti-o e enfiei-me em sua cama cobrindo a cabeça com um travesseiro como se estivesse querendo abafar o barulho lá de fora.

  Quase não ouvi quando a porta se abriu. Não fiz um só movimento. Estaria o travesseiro bem colocado?

  No momento do medo ocorreu-me que talvez fosse necessário imitar a voz de Pat. Apertei bem os olhos. A respiração ofegante 'de Mac andava pelo quarto até perto do armário que marcava a entrada para a alcova e a cama. Percebi uma luz muito fraca. Talvez uma lanterninha de pilha. com muito cuidado abri um olho. Mac estava iluminando com cuidado os pés da cama para ter a certeza de que os contornos por baixo do cobertor eram mesmo de gente. Apagou a luz. Sem fazer barulho caminhou até a porta meio aberta e saiu. Solas macias. A porta fechou-se com um clique.

  Muito espertinho.

  Esperei muito tempo. Afinal levantei-me e tornei a arrumai a cama com muito cuidado, da melhor maneira que podia ali na escuridão, tornei a pendurar o pijama de Pat e vesti as minhas roupas.

  Fiquei ali sentado na cadeira dura ao lado da mesa de metal. Não havia muitos livros nas estantes. O meu amigo Pat não tinha muito de intelectual. O quarto foi ficando frio à medida que diminuíam a calefação do prédio. Começaria a esquentar de novo logo que três fortes badaladas do sino nos acordassem às cinco e vinte e cinco, badaladas que chegavam a abalar os nervos. Fiquei ali imaginando se deveria continuar minha vigília ou voltar para o aconchego de minha cama. Eu havia conseguido persuadir a boa freira encarregada do nosso andar para me dar mais dois cobertores, o que, aliás, era apenas uma violação técnica dos regulamentos.

  Foi então que ouvi passos no corredor, e não eram as solas macias dos sapatos de Mac. Fiquei com a respiração suspensa à medida que eles se aproximavam.

  A minha situação seria bem estranha se me pegassem ali sentado na mesa de estudos de Pat, principalmente se fosse alguém do seminário.

  A porta abriu-se e alguém entrou muito ofegante. com a luz fraca do corredor, eu consegui ver o seu rosto antes que fechasse a porta. Então era assim que um homem ficava depois de uma satisfação sexual.

  - Divertiu-se muito, Pat?

  Ele pareceu se encolher todo ao caminhar cambaleando para a mesa. Apoiou as duas mãos na superfície fria do metal e abaixou a cabeça.

  - O que é... - Estava ofegante e sem poder falar.

  - Um dos seus amigos descobriu o caso com a garota e avisou ao Mac. Ele esteve aqui procurando você, e aconteceu que eu estava em sua cama. Desta vez você conseguiu escapar, Pat.

  Ele deixou-se cair no chão com a cabeça encostada na mesa.

  - E como...

  - Deixa pra lá. Eu descobri. Você não disfarçou bem... Quando falou, a sua voz estava rouca.

  - Você não devia ter feito isso, Kevin. Nunca mais arrisque a sua vocação por minha causa. Eu não mereço isso.

  - Pode ser que eu tenha prazer em manter você fora de encrencas, Pat.

  Parei na porta e olhei cuidadosamente para um e outro lado do corredor, o meu quarto era apenas ali adiante a uns doze passos de distância. Eu queria dizer-lhe mais alguma coisa, mas não conseguia encontrar as palavras. Fui andando pelo corredor mal iluminado.

  O Pat nunca chegou a falar daquela nossa aventura noturna. Froelich não voltou ao seminário no ano seguinte. Imagino que tenha sido levado a isso com a pecha de ser um mentiroso contumaz. Entrou para um outro seminário e hoje é bispo em Kansas.

  Três semanas mais tarde a competição chegou ao fim.

  McNutty fez-me sinal, quando saíamos da capela depois do jantar em silêncio e em fila indiana.

  - Venha ao meu gabinete - foi tudo que ele disse.

  Fui ao seu gabinete abafado e tresandando a charuto e ali esperei uns vinte minutos, o suficiente para me fazer ficar tenso e inquieto, e era isso mesmo que ele desejava.

  Mac era um homem esbelto, mais ou menos do meu tamanho. e talvez apenas uns doze anos mais velho. Pelos meus padrões de hoje, era um padre bem moço. Tinha os cabelos louros já escasseando e um nariz grande e alto que o fazia parecer um pouco com um cão de caça. Ele ainda é padre, um pastor razoavelmente bemsucedido, mas eu ainda não gosto dele.

  - Você é orgulhoso, Brennan, orgulhoso - disse ele vindo ao meu encontro logo que entrei.

  Eu sabia que tinha perdido. Em certo momento terrível cheguei até mesmo a pensar que ia ser expulso do seminário como a única maneira que pudesse justificar o que pretendiam fazer comigo. Vim a saber, muitos anos depois, que Vandy e alguns outros jesuítas tinham querido fazer isso mesmo, mas que tinham sido dissuadidos por Mac.

  A minha resposta foi um tanto evasiva.

  - Acho que vou ter que cuidar disso...

  - Você deveria ir para Roma, deveria mesmo... mas não podemos mandar para lá uma pessoa tão convencida como você. O Sr. Donahue não é tão esperto e hábil como você, e tampouco exerce tanta influência sobre os outros, como acontece com você, mas você é frio e arrogante. Não sabe tratar com as pessoas...

  Eu interrompi-o desejando marcar, pelo menos, um ponto antes que me mandassem embora.

  - Sendo assim, como é que eu exerço tanta influência sobre os outros?

  - Se você vai querer discutir comigo, então podemos acabar já com a nossa conversa. . . - Mac estava recostado em sua poltrona olhando-me com solenidade.

  - Não, padre. É claro que eu não quero discutir com o senhor. Só estou procurando entender... - A minha maneira de falar era muito respeitosa. Aquilo pareceu amolecê-lo.

  - O seu problema é que você se julga melhor que todo o mundo só porque a sua família tem muito dinheiro...

  - Nós não éramos tão ricos assim quando meu pai se alistou... - Interrompi-o mais uma vez, acreditando que o apelo ao patriotismo o deixasse desconcertado.

- Infelizmente, você não aprende que o dinheiro não torna você superior a todos nós.

  - Sim, padre, eu vou tentar; - Respondi com humildade, embora desejasse gritar o meu desprezo por ele de forma que todo o seminário me ouvisse. Mas ele continuou.

  - Roma não é tudo. Você deve considerar os próximos quatro anos como um tempo de penitência, um tempo de perdão, um tempo para refletir sobre a pouca importância do dinheiro.

  - Sim, padre - mas aí eu não consegui resistir ao desejo de acrescentar - embora eu goste deste seminário, e, na verdade, não ache que quatro anos aqui seja mesmo uma penitência.

  - Você é um homem bem esperto, Brennan - disse ele sem muita convicção. - Ainda não sei se você está aceitando bem esse desapontamento, ou se está brincando comigo.

  - Ainda há uma terceira possibilidade, padre. - Nesse ponto, eu abandonei a prudência. - Pode ser que eu não esteja realmente desapontado.

Pat esperava por mim na porta com o rosto ansioso e pálido. Apertei-lhe a mão.

  - Congratulações, Pat. Posso vender-lhe o meu dicionário de italiano.

  O espasmo que exprimiu o seu rosto era de dor e não de alegria.

  - Eu não vou, Kev. - Falou-me baixinho. - Eles devem mandar você. Vou recusar... Minha família está precisando de minha ajuda lá em casa.

  Ele era sincero. Todas as palavras eram de pura sinceridade. Mas ele também sabia qual seria a minha resposta.

  - Você aqui não vai ajudar mais a sua família do que se estiver em Roma. De qualquer forma, eles não vão me mandar. Não há razão para você abrir mão disso em favor de alguém mais. É claro que você deve ir.

  Ele poderia ter insistido. Então seria eu o contemplado. Ele sabia que era assim, e eu também sabia. E ali, no corredor, os nossos caminhos começaram a sua separação. De uma certa forma, eu já não era mais o vitorioso.

 

  Eu não conseguia tirar de minha mente o que vira nos olhos de Pat Donahue. Seria ainda a mesma coisa antes dele ir para Roma? Qual era o medo que se escondia por baixo dos modos romanos suaves e amadurecidos que ele adquirira nos últimos dois anos? Por que parecia especialmente ansioso quando falava comigo? A graça e o encanto eram os mesmos de antes, conquistando todo mundo, e ele tinha uma coleção de piadas e coisas engraçadas, e pouco respeitosas, a respeito do Vaticano. Mesmo assim, aquela alegria parecia mais forçada do que antes. O que teria acontecido em Roma?

  A nossa caminhonete, já bem bombardeada, ia seguindo a custo desde a vila no Lago de Águas Claras, onde eu estava com meu colega Nick McAuliff, e entrou no caminho muito bem tratado que ia para a casinha de campo de Tansey onde passávamos o verão.  

  Ao chegar ali já eu tinha banido Pat do meu espírito da melhor maneira que me era possível.   

  Quatro mulheres estavam sentadas na varanda da frente, lendo tranqüilamente, como se fossem clientes de algum abrigo para velhos extremamente dispendioso, o que, aliás, era exatamente o que parecia ser Tansey. Minha mãe lia muito concentrada O Americano Tranqüilo; Mary Tansey lia muito séria Andersonvüle, com seu rosto pequenino franzido ainda mais do que era a sua normal e irritada careta para as indignidades da vida. Maureen, radiantemente linda, lia preguiçosamente O Homem do Terno Cinzento e Georgína Carrey, uma mulher vistosa, de cabelos negros, sete ou oito anos mais velha que Maureen, folheava com indiferença a Weekly Gazette, de Eagle River. Todas elas estavam mais ou menos despidas, dando a impressão de que iam para a praia ou então para a cama, embora no caso de Georgina Carrey eu suspeitasse um desejo de ter em cima de si o menos de roupa que fosse possível. Os restos do café da manhã, já bem tardio, estavam espalhados em cima da mesa coberta por uma toalha de linho. Havia ali restos de torradas, copos vazios usados para suco de laranja e dois bules de café mal cheios no meio do serviço de prata.

  O amplo e muito bem tratado gramado da casa dos Tanseys estendia-se até a beira do despenhadeiro. Lá embaixo, as águas azuis do Lago Minocqua pareciam brilhar de forma enganadora, dando muito pouca impressão de como o lago era bem mais frio que o nosso pequenino que ficava lá na outra extremidade do Estado.

  - Chegou tarde, Kevin - disse Maureen beijando-me repetidas vezes e com isso aquecendo o meu rosto. (Eu já percebia que o Nick ia ter um dia cheio quando chegássemos à vila.) - Os jogadores de golfe começaram cedo. - Mo estava com o cabelo como o de Audrey Hepburn, um resultado do impacto de A Princesa e o Plebeu que ainda se fazia sentir entre nós.

  Minha mãe recompensou-me com um sinal de afeto bem mais maternal; Mary Tansey quase não notou minha existência e Georgina Carrey avaliou-me bem com um olhar cuidadoso antes de voltar para a Gazette. Apresentei Nick, que tinha sido designado para me acompanhar da vila até onde estavam meus pais. Não era exatamente uma regra que obrigava a gente a trazer um colega. Era apenas uma coisa prudente a fazer se alguém esperava conseguir mais um dia de folga.

  Nick aceitou café e eu servi-me de chá. Os jogadores de golfe, Arnold Tansey; o Coronel; Pat Donahue; o namorado de Mo, um tal de Burke Haggarty, de Boston; e John Carrey, tinham saído cedo. Eu sabia que Arnold, uma antiga estrela do time de Notre Dame, e que agora era um dos 154 milionários dos Estados Unidos naquele ano, queria começar cedo, e foi o que aconteceu.

  Os Tanseys tinham inventado aquela peregrinação ao norte de Wisconsin. Eles tinham conhecido Pat numa viagem a Roma e, muito naturalmente, tinham ficado encantados. Tinham-lhe pago a passagem para voltar durante duas semanas, no fim de julho. Ele chegara como um herói conquistador, transbordante de urbanidade romana. Como meu pai era advogado de Tansey, ele e minha mãe foram convidados, da mesma forma que Maureen e Burke, que representavam alguma espécie de ligação política. John e Georgina já estavam lá com o filho. Ninguém me disse qual era a ligação entre os Carreys e os Tanseys, embora ambos fossem da mesma rica paróquia do lado sul de Chicago.

  - E qual foi o filme ontem à noite? - perguntou minha mãe fechando o Granam Greene com um arrepio de desagrado.

  - Foi Sindicato de Ladrões na noite passada, A Princesa e o Plebeu na noite anterior e Matar ou Morrer amanhã.

- O que é que vocês acham da Audrey Hepburn? - quis saber Mo.

- O cabelo fica melhor em você do que nela. - Quem respondeu fui eu.

- Humm... - ela fez um muxoxo. - É só isso que você faz aqui? Vendo filmes e jogando golfe?

- com isso temos uma oportunidade para nos pôr em dia com os filmes que perdemos quando estamos no seminário.

- E por que eles fecham vocês aqui durante a metade do verão? - Mo fez a pergunta dando um pontapé de reprovação na espreguiçadeira.

Foi minha mãe quem respondeu, já que não aprovava de forma alguma o sistema do seminário.

- É porque eles querem proteger os rapazes contra os perigos do mundo, Maureen. E como tal, eles se referem a gente como você, que usa roupas de banho que não são muito melhores do que as roupas íntimas, a lingerie. Nós não queremos que nossos futuros padres fiquem sabendo dessas coisas, não é mesmo?

  - Isso não é coisa em que os padres devem pensar - atalhou Georgina com muita carolice. - Já basta os problemas que encontram com a bebida.

  Senti que ela estava dizendo aquilo simplesmente porque achava que devia dizer alguma coisa e não porque realmente acreditasse naquilo. Mary Tansey, uma mulher que parecia ter sido recortada de um papelão, continuava pacientemente a ler o seu Andersonville.

  - Enquanto esperamos pelos golfistas vamos dar um mergulho no lago. Ele está frio o bastante para varrer qualquer tentação que nos ocorra. - Mo levantou-se. - Vamos lá, Nick.

  Eu ia dizer que aquilo não era muito provável, mas depois de descermos no elevador e de termos mergulhado, já me sentia inclinado a concordar com ela. Até mesmo a Mo num traje de banho de dois tons e sem alças deixava de ser uma ameaça naquela água abaixo de 16°C. Saímos às pressas para nos enxugarmos no píer novinho em folha e ficamos nos esquentando ao sol, adorando o perfume pungente dos pinheiros.

  - Um grupo estranho - disse eu quando nos esticamos no píer.

  - Capitalistas ricos e preguiçosos oprimindo nós, os proletários. - Nick acrescentou. - Puxa vida, aposto como eles têm calefação na casa para as noites, o que é mais do que têm na vila.

  Um golpe de vista rápido foi o suficiente para persuadir Mo a confiar em Nick.

  - Georgina é uma chata; a Mary é nojenta; Arnold é um cabeçudo e John realmente não existe. Graças a Deus temos sua mãe e seu pai, Kevin. - Ela tornou a enrolar-se na toalha. - E o que pensa você de Burke?

  - Agradável o bastante para um irlandês de Boston.    

  - Eu disse sem sentir o que dizia. Burke Haggarty era um cara bonitão mas vazio, que não mostrava mais inteligência só porque falava arrastado sem pronunciar os "rr", dizendo cahs quando queria dizer cars.

  Ela sentou-se e virou-se para mim.

  - Ele levou-me às casas dos Kennedys no mês passado e nós jogamos bola com eles. Gente engraçada. Quando o Jack concorrer à Presidência em 1960, Burke vai herdar a sua cadeira no Senado. É coisa decidida. - Os seus ombros nus moviam-se rapidamente para cima e para baixo quando ela respirava entusiasmada.

  - Não acredito que um católico possa ser eleito presidente disse Nick com cautela.

  - O Jack Kennedy pode - disse Maureen confiante. - Olhem ali! Vejam quem está vindo. Se namorar o Burke outra vez eu arranco-lhe os olhos!

  Ela cantarolou Whatever Lola Wants Lola Gets quando Georgina saiu do elevador e veio rebolando em nossa direção. Vinha num maio sem alças cujas costas desciam até onde era possível. Georgina fazia com que Mo parecesse a castidade em pessoa.

  - Posso juntar-me a vocês? - perguntou ela com a sua voz rouca.

  - E por que não? - Foi Mo quem respondeu com entusiasmo. Depois ela voltou-se para mim. - Olhe aqui. O que é que você pensa do romano? Ele tem ou não tem classe?

  - Estou impressionado com ele. - Eu concordei. - Não há dúvida de que adquiriu muito verniz juntando-se àqueles aristocratas italianos. É bem possível que façam dele um bispo.

  - Ele faz a gente parecer um bando de roceiros broncos disse Nick com uma certa amargura, e o seu rosto sardento mostrava bem como se sentia infeliz.

  - Acho que não gostaria de ter príncipes coroados aqui no nosso bucólico retiro de verão.

  - Então o que é isso? - Mo arqueou as sobrancelhas. - O povo não está satisfeito com o seu herói? Vamos lá, Kev, você precisa fazer alguma coisa a esse respeito.

  - Mo disse aquilo quando eu estava tentando passar o bronzeador nas costas.

  - A inveja eclesiástica é um pecado mortal. Todos nós gostamos do Pat, mas há uma grande distância entre o Lago de Águas Claras e a Via Veneto.

  - Parece que ele leva uma vida muito diferente da de vocês. Tem muito mais liberdade. - Mo não dava folga.

  Nick continuava a olhar para o lago. Depois falou com uma voz apertada:

  - Ele não é obrigado a levantar-se às cinco e vinte e cinco. Não é obrigado a rezar durante hora e meia antes de caminhar os oitocentos metros para o café da manhã; não tem só três curtos períodos para fumar todos os dias ele não vive como se estivesse num campo de treinamento da marinha; ele não passa a metade de seu tempo olhando para quatro paredes vazias, desde que acorda até a hora de ir dormir, e também pode ir à cidade mais do que umas poucas semanas durante todo o ano. Nós somos prisioneiros, enquanto ele se entope de cultura dos hábitos romanos.

- Também não é tanto assim... - resmunguei, olhando para o lago e fixando a vista nos pinheiros. Georgina não mostrava grande disposição para cair na água.

  Aquele seu maio era só para exibição e não para nadar.

  - Pat é o Pat e nós todos gostamos muito dele - disse o Nick.

  - Como é que vocês podem ficar zangados com ele, até mesmo sabendo que ele vai ser papa? O negócio é que eu já passei cinco anos sobrevivendo nesse maldito e estúpido sistema, e então tenho inveja de quem conseguiu escapar dele.

  - Então você confessa que odeia o sistema? - Mo sentou-se com um ar de triunfo.

  - E é por isso que os colegas de classe ficam tão unidos disse eu, agora que a verdade finalmente vieira à luz do sol. Nós já desperdiçamos muito tempo contra um inimigo comum, uma peça de museu georgiano que se espalha por algumas centenas de hectares na parte norte de Illinois, entre as montanhas, e que tenta fabricar padres da mesma forma que uma fábrica de lingüiças produz os seus salames.

  - E saem-se bem - intercalou Nick com amargura. - E para terem a certeza de não nos dar uma oportunidade para descobrir como é a vida, eles enviam-nos para esses lugares gelados durante quase todo o verão, só para nos isolar ainda mais.

  - Pat Donahue foi muito gentil conosco quando estivemos em Roma com os Tanseys. - Georgina falou com a voz sem expressão. - Até mesmo levou-nos às catacumbas que ficam embaixo da Igreja de S. Pedro.

  - Um lugar realmente cheio de atrativos, pelo que tenho ouvido dizer - atalhou Mo com ironia.

  - Acho que já estão almoçando lá em cirna - disse eu encaminhando-me para o elevador.

  Quando chegamos eles estavam mesmo almoçando, embora aqueL refeição mais se parecesse com um velório. Arnold Tansey, um homem grandalhão, com músculos que pareciam postes de iluminação, meio calvo, com apenas uns fios de cabelos pretos, um queixo que parecia uma marreta, estava ali bem enfezado. Gente assim constituía uma barbada para o Coronel lá no campo de golfe.

Tansey tinha feito fortuna na construção civil que herdara do pai depois da guerra. Era um homem com idéia fixa, cabeça de touro, com pouca inteligência mas com a disposição de um tanque Sherman. Aos quarenta e cinco já era milionário sem filhos, com uma mulher a quem ignorava e a convicção absoluta de que era um sabichão. Apesar de tudo isso, no entanto, a sua simplicidade não deixava de ter

algum atrativo, especialmente em contraste com John Carrey, um homem inofensivo, e gentil que usava óculos. Pelo que consegui saber, fizera fortuna com peças de automóveis.

  As mulheres tinham vestido blusas para o almoço, com exceção de Maureen, que desafiava o costume de Tansey de um almoço formal.

  - Estou vendo que Chicago tem um novo prefeito que arranjou enquanto eu estava fora - disse Pat procurando quebrar o gelo com a sua alegria.

  - O Dick Daley não vai se agüentar senão durante um período. - Arnold Tansey pegou logo a isca. - Martin Kennelly foi um ótimo prefeito e um bom homem de negócios.

  O Dick Daley está amarrado aos sindicatos. Ele e o Bill Lee acham que vão ser os donos da cidade. Quando o all e o CIO* se fundirem neste inverno, Chicago vai ser a primeira cidade a ter um governo trabalhista. O Dick Daley junto com o George Meaney estão querendo tomar conta da cidade. Vocês vão ver que eles apresentarão o Walter Reuther para presidente. A comunidade empresarial deve lutar para impedir isso. Acham que podem fazer isso no próximo ano por causa do ataque cardíaco do Presidente. Devemos formar uma frente unida sustentando o Senador Goldwater para impedir o golpe.

  - Sempre pensei que o Senador Daley fosse socialista - disse meu pai. - Como o seu pai, o Big Mike, era antes dele.

  - Vocês vão ver só. - Arnold parecia confiante. - O socialismo do New Deal vai arrasar este país. Teremos que voltar às virtudes empresariais dos velhos tempos.

 

* all (American Federation of Labor) e CIO (Congress of Industrial Organizations) eram dois poderosos sindicatos que acabaram se fundindo. (N. do T.)

 

  - Como em 1933 - disse Pat. Minha mãe e Mo estavam às voltas com a salada de atum que era servida por dois empregados em lindos pratos de porcelana.

  - Por que você não nos conta mais alguma coisa sobre o Senador Kennedy? - Mo virou-se para o seu namorado.

  Burke Haggarty já estava na sua segunda cerveja. Bocejou e os seus olhos azuis mostravam como estava chateado, ao mesmo tempo que um tique no seu nariz afilado deixava ver o seu desdém pelo que ouvia.

  - O Jack é um grande político - disse na sua voz arrastada é bom mesmo no jogo. No entanto, para lhes dizer a verdade, eu acho que Bobby, que foi meu colega em Harvard - ele pronunciava Haavud - é, aliás, bem melhor do que o Jack. Tem um instinto maravilhoso. Nós vamos revolucionar a política dos Estados Unidos.

  Haggarty tinha uns cinco ou oito quilos a mais de gordura, seus olhos eram vidrados como os de quem está habituado a beber muito, e seus cabelos negros, já com algumas mechas prateadas, davam uma impressão de desleixo apesar de serem bem tratados. Meu Deus, Mo, deixe ele de lado, não ligue a essa conversa de cadeiras no Senado dos Estados Unidos.

  - O Coronel pode bem entregar-lhe os votos do condado de Coo! - Pat estava agora atacando o presunto de Smithfield.

  - Um católico jamais será eleito presidente - pontificou Arnold.

  - E por que diabo não pode?! - Atalhei eu com calor desviando os olhos das costas nuas de Georgina o tempo suficiente para entrar na briga. - Não me agrada ganharmos com um cara de Haavud, mas vamos ganhar mesmo antes da década de 60 chegar ao fim.

  - Espero que você esteja com a razão, meu rapaz. Estou vendo que você tem o mesmo ardor de seu pai - disse Tansey meio contrariado.

  - Nada disso, tem o ardor de sua mãe e a beleza de seu pai - disse Pat.

  Logo que as gargalhadas terminaram Georgina entrou na conversa.

  - Quer me fazer o favor de passar o presunto, Arnold? Ela disse aquilo como se estivesse fazendo um convite para um encontro.

  Depois do almoço Pat veio conosco na caminhonete para voltar à vila. Nós íamos jogar tênis e depois íamos para uma "farra" naquela noite, uma louca revista satírica com base em O Barco das Ilusões, e para a qual eram convidadas as famílias dos seminaristas que estavam por ali, uma concessão que jamais teria sido feita em Mundelein.

  - Agora conte-nos coisas de Roma - disse o Nick quando descíamos com cuidado pela estrada de terra batida atravessando os pinheirais que ligavam a casa de Tansey à rodovia estadual.

  - É uma oportunidade maravilhosa, Nick. Nossos mestres são as melhores mentalidades da Igreja, nossos colegas vêm de todas as partes do mundo, estudamos no coração da cristandade. Vivemos, em Roma, o período do maior e mais progressista dos pontificados desde muitos séculos. Pio XII é realmente um santo.

  - Apesar de haver feito acordo com Hitler e Mussolini? Perguntei fingindo-me de inocente.

  - Espere aí, Kev. - Pat não perdeu a calma enquanto descíamos aos trancos e barrancos pela estradinha que levava à rodovia. - Você não está sendo justo.

  O seu encanto de jovem não era uma coisa praticada ou disciplinada. As palavras rápidas fluíam em sentenças completas e o sorriso caloroso aparecia na hora exata.

  Nem muito cedo nem, tampouco, muito tarde. Somente os olhos ainda mostravam o medo. Aquilo era estranho. Eu sempre me dera conta da existência daquele medo, mas agora, ali, e pela primeira vez, eu o via claramente.

  - Eu invejo a sua liberdade - disse Nick com o seu corpo magro muito tenso com a raiva que todos sentíamos pelo rígido sistema do seminário. - Você vive em uma das cidades mais urbanas do mundo, ao passo que nós vivemos aqui neste lugar do interior. Você passa as suas férias de verão correndo toda a Europa e nós vamos para o Lago de Águas Claras pelo amor de Deus.

  - Não é assim tão diferente, na realidade, Nick. - Pat riu. Alem disso, pense em todas as tentações que existem numa cidade como Roma.

  - Nós bem que precisávamos de um pouco de tentações em Mundelein.

  - Por falar em tentação - disse Pat - aquela tal de Georgina é uma mulher e tanto, não acham? Eu imagino o que o pessoal da vila pensa a seu respeito.

  - Não sei, Pat, mas prefiro, de longe, a sua amiga Maureen.

  - Você vai precisar entrar na fila para isso, Nick. É uma fila bem comprida e eu, de boa vontade, poria você na frente daquele pretensioso de Boston.

  - Vocês dois parece que sempre tiveram mulheres bonitas por perto. - Nick disse. - O que foi que aconteceu com aquela loura que quis aprender o esqui aquático com você, Kevin? Ainda se lembra dela?

  - Vagamente, Nick.

  - Ela formou-se em St. Anne em junho. - Pat respondeu logo. - Está trabalhando no departamento de psiquiatria do Hospital Loretto.

  - Fez as pazes com ela, hein? - A minha pergunta deixava transparecer um certo ressentimento.

  - Fiz sim, Kevin... Ela agora anda saindo com o Tim Curran, sabe?

  - O último dos Cavaleiros Negros...

  - Ele deixou de beber. Está trabalhando na seção de sapatos da loja Marshall Field e estuda à noite. Quer ser advogado.

  - E está fazendo tudo isso só por causa da Ellen?

  - Não acredito que seja. Acho que ela veio depois da... "conversão". De qualquer forma, acho que o Tim se tornou bem sério. O velho comediante desapareceu.

Pensei comigo mesmo que se houvesse alguém que pudesse manter viva a comicidade de Tim, esse alguém seria a Ellen.

  Depois da "farra" daquela noite, houve uma festa de sorvete na varanda de madeira que ficava na frente do salão da assembléia lá na vila. A lua cheia de agosto brilhava iluminando o Lago das Águas Claras.

  - Será que vai se encrencar se eu for vista conversando com você, Kevin? - Maureen fez a pergunta ao mesmo tempo que devorava um enorme sorvete de chocolate.

  - Vou ganhar uma quantidade de pontos pelo bom gosto, Mo. O que acha você de nossa vila? O Cardeal Mundelein construiu-a para nós, da mesma forma que construiu tudo mais, um campo com floresta ao lado de um lago para temperar os espíritos de sua turma durante os meses de verão cheios de pecados.

  - Não fale assim - disse ela com o seu sorriso quente e olhos generosos que me deixavam fervendo por dentro. - Eu acho que é um lugar muito bonito e também acho que você, realmente, gosta dele. Ali você pode ler, pode fazer exercícios e pode se divertir com ocasionais contemplações de gente como a Georgina. O que mais  pode esperar da vida um jovem que vai ser padre?

  - Posso garantir-lhe, Mo, que é muito mais do que isso.

  Ela estava com um vestido branco com as mangas arregaçadas e um fino suéter atirado sobre os ombros para se garantir contra o frio daquela área ao norte do Wisconsin.

  - Você é um romântico, Kev, muito mais que eu. É um romântico inocente. - Ela cruzou os braços como se o frio de um romântico inocente fosse momentaneamente pior do que o ar da noite. - Desejo sinceramente que a sua Igreja não o desaponte.

  - É, provavelmente, o que vai acontecer - disse eu tristonho.

  - Você perdeu para ele esta tarde? - Ela fez a pergunta levantando a cabeça.

  - Ganhei por seis a dois e seis a zero. - Respondi sem muito entusiasmo. - Só que não acho mais graça porque Pat aprendeu a perder com bom humor.

  - E você ainda não aprendeu a ganhar com bom humor? Ela fez uma careta.

  - Ainda vou aprender - concordei, e rimos os dois.

O Coronel chegou naquele instante com um reforço de mais sorvetes e veio logo avisando:

  - O Jerome Kern pode acioná-lo pelo que vocês fizeram a O Barco das Ilusões.

Todo encolhido por baixo de vários cobertores no dormitório, naquela noite, eu rezei pelo Cavaleiro Negro e a sua namorada. E depois, pensando bem, rezei também para que Deus exorcizasse o medo que havia nos olhos de Pat Donahue.

  Dois dias mais tarde, Pat e Maureen saíram de barco no Lago Minocqua. A temperatura tinha subido um pouco e já estava acima dos 25°C com o céu completamente limpo.

  Atravessaram o lago e foram desembarcar no lado oposto, num lugar onde não havia nenhum loteamento.

  - A floresta primeva - disse Maureen esticando as pernas para desentorpecê-las.

  - Não é bem isso. - Ele a corrigiu. - Os pinheiros já desapareceram. As companhias madeireiras cortaram todos eles no princípio do século.

  - Isto aqui é bem mais bonito do que o nosso lago - disse ela tirando fora a camisa que trazia por cima do maio e atirando-se na água bem fria.

  - Vou dar umas voltas pelo mato, Mo. Não facilite, hein? Ele já estava agora bem mais tranqüilo do que quando chegara logo nos primeiros dias. A irreverência alegre de Maureen parecia contribuir para a sua tranqüilidade.

  Encontrou uma trilhazinha e enfiou-se pelo mato durante wnt dez minutos até que deu de cara com um velho pinheiro que havia escapado à fúria dos madeireiros, e tão grande que ele só podia abarcar uma terça parte com seus braços. Achou estranho que ele houvesse escapado, porque havia ali perto uma trilha de mateiros. Ouviu vozes vindo da trilha e voltou depressa para o mato não querendo ser surpreendido como invasor.

  Escondido por trás da árvore ele percebeu que as vozes eram de Arnold e Georgina, e por pouco ele não saía do mato para ir cumprimentá-los. Eles estavam bem longe de casa.

  Enquanto ele hesitava, Arriold tomou a mulher nos braços e beijou-a. Ela pareceu lutar, mas não conseguia livrar-se de seus braços fortes. Pat estava achando graça naquele estupro fingido. Ela vinha provocando Pat desde a primeira vez em que se haviam encontrado em Roma, fingindo-se carola, mas bombardeando-o com insinuações que não deixavam dúvidas quanto às suas intenções.

  Os protestos dela logo cessaram e ela passou a cooperar de muito boa vontade. Pat assistiu tudo até o fim. Depois, sentindose culpado, ele voltou pelo mato até o lago onde Maureen estava estirada ao sol dormindo muito tranqüila.

  Já fazia muito tempo que eles se tinham namorado, um namoro que era bem inocente em comparação com os furiosos demônios que o assaltavam agora.

  Mais tarde, quando remavam de volta para casa, ele não conseguia esquecer a imagem do corpo de Georgina, arqueando-se todo para se juntar ao de Arnold.

 

  No dia seguinte, o Coronel e Pat deram uma tremenda surra no golfe na dupla de Tansey com Burke. O dono da casa não gostou e ficou emburrado durante todo o caminho da volta. Em lugar de agüentar a hora do coquetel com aquela recriminação silenciosa, Pat encontrou uma cadeira no gramado ao sol onde ficou para "repousar os olhos".

  Era uma tarde de verão quente e enfadonha. Sonhou que ele e Maureen estavam perdidos numa ilha deserta. E a ilha transformou-se em um iceberg ártico.

  Acordou tremendo de frio. O tempo tinha mudado. Ouvia-se ao longe uma trovoada e alguns relâmpagos. A chuva já começava a cair em todo o lago, e havia nuvens correndo empurradas pelo vento frio.

  Ele apanhou o suéter e levantou-se. No momento em que se encaminhava para casa viu uma canoa que emborcava no lago.

  Era uma canoa verde que trazia um menino e uma menina de uns dez anos. As suas cabecinhas saíram de baixo da canoa como se fossem pedaços de pau boiando e Pat ficou olhando aquilo como se estivesse assistindo a um filme de horror. A canoa continuava a girar na água e os esforços que eles faziam para endireitá-la só serviam para virá-la outra vez. Os dois já estavam em pânico. Estavam agora a mais de uns cinqüenta metros da praia e demonstravam medo de nadar ou, talvez, nem mesmo soubessem.

  Ele estava ali parado olhando com os pés enterrados no gramado espesso quando viu uma pessoa que nadava com braçadas fortes contra as ondas cada vez mais fortes. Não precisou olhar outra vez para ver que era Maureen.

  Ele correu de volta para casa. Kevin tinha conseguido sair da vila outra vez e estava na varanda lendo um jornal.

  Pat gritou-lhe que Mo estava tentando salvar umas crianças no lago e era melhor que fosse buscar ajuda.

  Sem esperar por uma resposta, Pat correu de volta para a beira do escarpado, achou que o elevador era muito lento e desceu pelo meio dos pinheiros afrontando-lhe os espinhos, mas, quando chegou lá, a chuva já caía na pequenina praia. A menina da canoa já estava no píer escorregadio chorando histericamente. A tempestade já derramava agora uma cortina de água que escurecia tudo, só permitindo que se visse as ondas que vinham bater no píer.

  Nesse momento a cortina de água clareou um pouco e ele viu a canoa virada que saltava nas ondas, mas não havia ninguém dentro dela. Uma cabeça veio à superfície.

  Tinha longos cabelos negros, mas logo desapareceu novamente. Mo tornou a mergulhar tentando achar o menino. Pai atirou longe os sapatos e ia mergulhar quando ela veio novamente à superfície trazendo alguma coisa, e começou a nadar para a praia. Ele atirou-se na água e foi ao seu encontro. Tirou-lhe a criança dos braços enquanto a chuva continuava, cada vez mais forte. Maureen estava sem fôlego e arquejava. A criança parecia que não estava respirando. No momento em que Pat a colocava no píer o Coronel surgiu e começou a tentar a respiração artificial. A mulher do Coronel agarrou a menina abraçando-a. Os Tanseys apareceram gritando para serem ouvidos por causa do vento e da trovoada.

  O menino já respirava. Engasgava-se, espirrava, arquejava, mas estava mesmo respirando.

  Maureen não estava ali no píer. Onde teria ela ido? Pat foi .encontrá-la, junto com Kevin, na garagem dos barcos, sentada no chão e chorando com a cabeça encostada em um velho banco.

  - O menino está bem, Mo. - Kevin abraçava-a. - Ele está bem. Como é que você pode pensar que isso não acontecesse depois que o Coronel tomou conta dele?

  No meio dos soluços ela conseguiu rir.

  - Está tudo bem, Mo. Está tudo bem. Você salvou os dois.

  Aos poucos o pranto foi cessando e ela relaxou-se em seus braços.

  Pat saiu logo devagarzinho, sentindo-se como alguém que entra por acaso num quarto onde estão marido e mulher.

  Ao subir a colina olhando o arco-íris que a chuva deixara para trás, ele ia abrindo e fechando as mãos com força. As fúrias negras que o vinham assaltando, desde que voltara à casa, estavam cada vez mais terríveis. Dentro dele havia uma luta entre 0 Odio o desejo e a solidão, tudo aquilo tentando dominá-lo. Kevin, Maureen e Ellen, as pessoas mais importantes do mundo, para ele não lhe davam importância.

  Na manhã seguinte ele desculpou-se com uma dor de estômago para fugir do gplfe. O demónio que estava dentro dele m0strava-se cada vez mais violento e exigente. Ouviu quando os carros sairam um de cada vez. Aquele era o dia de folga dos empregaaoSf jya casa ficavam somente ele e Georgina. Ela estava no quarto e não tinha aparecido para o café.

  Pensou consigo mesmo que o melhor seria ir nadar um pouco. Enfiou o calção de banho e saiu do quarto como se estivesse em transe. Resolutamente, deu dois passos para a escada e para a praia Seus pés resolveram o contrário e ele caminhou para o quarto dela. Sentia que a cabeça latejava como se fosse estourar.

  Empurrou a porta. O quarto era todo enfeitado de rendas e o sol atravessava as cortinas transparentes. Ela estava deitada com um penhoar branco amarrado na cintura.

  - Saia daqui!

  - Você vem querendo isto desde que nos encontramos em Roma. - Ele bateu a porta e fechou-a por dentro.

  - Vou contar ao meu marido. - Ela falava sem muita convicção.

  - Não creio que faça isso. - Ele exultava em sua masculinidade quando tirava o calção de banho. - Eu vi você com o Tansey. Não acredito que você queira que o John saiba o que Você anda fazendo.

  - Você é um miserável sujo - disse ela raivosa.

  Ele serviu-se dela com brutalidade. Como sabia que iria acontecer, ela adorou tudo.

  De volta ao seu quarto ele soluçava de nojo e odiando-se enquanto murmurava um ato de contrição.

 

  Alguns dias depois Pat estava de volta a Roma. Os Tanseys e os Carreys fecharam suas casas e voltaram às suas residências em St. Praxides, onde havia um clube de campo e o "único campo de golfe que valia alguma coisa em todo o Meio-Oeste". Meus pais voltaram para o nosso lago onde a temperatura era bem mais alta. Maureen voltou para Chicago, já que seus pais passavam agora muito pouco tempo no lago. Burke Haggarty, a ponto de morrer chateado, salvou sua vida voando de volta para Boston e para Cape.

  Antes da partida de Pat, ele e eu fomos a pé pela estrada da vila na direção da parada da estrada de ferro e da aldeia do Lago das Águas Claras onde havia uma loja que tinha um telefone público e de onde podíamos falar com nossas famílias em Chicago. Era somente em caso de emergência que tínhamos permissão para telefonar quando estávamos na vila. Um time de beisebol estava treinando num lado da estrada e, no outro, estava o campo de golfe cheio de gente. Havia nuvens no céu que pareciam

sorvete de creme com baunilha. O apito imperioso de um trem empurrounos de volta para a trilha.

  Caminhávamos silenciosos.

  - É o diabo, Kevin. Só há uma coisa ruim em Roma. - Pat enfiou as mãos nos slacks brancos muito justos. - Eu adoro aquilo, mas sinto saudades dos camaradas de Mundelein.

  E sinto saudades de você. Você devia estar lá também. Não achei direito quando eles começaram a mandar dois alunos para Roma logo no ano seguinte.

  - Acho que foi para não haver mais competição. - Eu sentia-me tão embaraçado quanto ele.

  - Mas, no nosso caso, não houve competição. Foram eles que criaram a competição e não nós. - O seu rosto bonito mostrava animação.

  - Foi mesmo...

  O trem da Northwestern já estava à vista. Estava na hora certa, o que era para causar admiração. As autoridades da vila tinham discretamente sugerido a Pat que seria melhor ele ir para casa de trem em lugar de ir com os Tanseys de carro.

  Ele empertigou-se, respirou fundo e estendeu-me a mão.

  - com tudo isso, Kev, eu vou sentir saudades de você. Vão ser só mais dois anos. Espero que mandem você para Roma para a formatura.

  Eu apertei-lhe a mão com o mesmo calor que ele apertava a minha.

  - Não creio que o façam. De qualquer maneira, já estou cheio de escolas.

  Ele hesitou como se quisesse dizer mais alguma coisa. Os pequenos sinais de medo apareceram novamente em seus olhos. Tornamos a nos apertar as mãos.

  O trem parou. Caminhamos depressa para ele e entreguei-lhe a sua elegante maleta.

  - Dê lembranças minhas para a sua família, Pat.

  - Sim, sim... Vou passar um ou dois dias com eles e depois you para Roma.

  Uma semana com os Tanseys, um dia ou dois com seus pais. E eu era o único seminarista que estava ali para se despedir dele.

  Ele encontrou um lugar do lado da janela e dali me acenou enquanto o trem amarelo e verde, bufando e estertorando, ia saindo lentamente. Fiquei ali olhando até ver apenas a fumaça do diesel a distância.

  A estada na vila estava chegando ao fim muito lentamente. Isso seria a 15 de agosto. Eu estava aflito para voltar ao seminário. Eram somente dois anos, e então a batalha com o sistema chegaria ao fim. Eu poderia começar a minha vida como padre para fazer as coisas que desejava desde os tempos em que via os padres de minha paróquia, quando eu era apenas um garotinho. No dia 8 de agosto, quando faltava só uma semana para fechar, o padre Desmon, um velho e cansado jesuíta, que tomava conta da vida na vila, chamou-me quando saíamos em fila depois da missa. Disse-me que havia um chamado para mim, de minha mãe, no seu gabinete. O seu rosto aflito parecia cada vez mais ansioso e os seus óculos escorregavam-lhe pelo nariz.

  Fiquei com medo. Muitos de meus colegas tomavam conhecimento de morte na família daquela mesma maneira. Seria o papai? Ou uma das crianças?

Mamãe não perdeu tempo.

  - A casa dos Cunninghams, lá em River Rorest, pegou fogo na noite passada.

  - E a Mo? - Eu soltei um grito.

  - Ela não estava em casa. - A voz da mamãe não estava muito firme. - Os dois velhos morreram quando chegavam ao hospital. Ellen não estava lá quando... Oh, Kevin, você precisa voltar. Venha para o enterro. É depois de amanhã. A Maureen precisa de você.

  Precisasse de mim ou não, eu não estaria lá. Não adiantou eu explicar ao padre Desmon que o TomCunningham e meu pai tinham sido sócios durante vinte e cinco anos, que seus pais também tinham sido sócios, que a família havia cuidado de nós durante a guerra e que a Mo era como se fosse minha irmã.

  Ele sacudia a cabeça com ar muito triste, e respondia-me de olhos baixos.

  - Se dependesse de mim, Kevin... Eu ia botar você no trem em cinco minutos. Infelizmente, não sou eu quem dita as regras. Você sabe o que iria dizer o reitor se ele descobrisse. Se deixarmos uma pessoa ir por motivos pessoais, teríamos que deixar ir todo o mundo. Eu sinto muito. Sinto muito mesmo, Kevin.

E eu percebia que ele sentia mesmo, o pobre homem. Telefonei para minha mãe.

  Quando lhe disse o que havia, ela deixou-se levar por um de seus raros momentos de indignação pouco cristã, mas falou baixinho.

  - Filhos da puta sem coração. Eles não entendem nada do que Jesus dizia.

  E ela estava com a razão. E eu fiquei lá na vila apesar de tudo.

  Maureen não morreu no incêndio. E isso, simplesmente, porque só voltara para casa às três horas da madrugada. Tinha estado numa festa onde a bebida andava solta, e chegara para ver os bombeiros diante da casa em chamas. Isso eu vim a saber mais tarde. Minha mãe me contou que ela se sentia culpada pela morte dos pais. Achava que, se estivesse em casa, teria sentido o cheiro da fumaça. O fogo fora causado pelo cigarro de seu pai que adormecera com ele aceso na mão.

  - A pobrezinha teria morrido também - dizia minha mãe procurando inocentá-la.

  Mas Maureen não se perdoava. Eu lera muitos livros de psicologia naquele verão para saber que as crianças muito mimadas sempre se sentiam culpadas quando os pais morriam.

  Fui visitá-la no mesmo dia que voltei da vila. Fui encontrá-la junto da nova piscina atrás da casa de verão dos pais, com uma lata de cerveja na mão e duas outras vazias atiradas ali perto de sua cadeira. Ela olhava fixa para um ponto acima dos chorões no outro lado da piscina. Como sempre, havia uma vitrola tocando em algum lugar. Parece-me que tocava Rock Around íhe Clock, o que não era uma música muito apropriada para quem estava de luto.

  - Alô, Mo! - Eu não sabia bem o que dizer, nem como começar.

  - Kevin, Kevin, Kevin! - Na sua excitação ela derrubou a cadeira e caiu em meus braços chorando.

  - Sinto muito não ter podido vir aqui antes, Mo. - Eu procurava encontrar palavras.

  - É melhor hoje do que nunca. - Ela estava com um biquini branco, a moda que conseguira chegar até o nosso lago, mas que só era vista em piscinas particulares.

  Maureen já não era mais aquela garota bonita que desabrochava, e sim uma elegante mulher feita.

  - Eu hoje estou precisando de um ombro forte e amigo. - O soluço foi diminuindo e ela soltou-se de meus braços. - Aposto como você não abraçaria assim por tanto tempo a Ellen com um biquini igual ao meu.  

  - Deu uma risadinha marota enquanto enxugava as lágrimas num lencinho de papel que estava por ali.

  - Ellen é recatada demais para mostrar tanto de seus encantos aos olhos de curiosos - respondi, agora já mais satisfeito por estarmos de volta a um quadro que me era conhecido.

  - Sempre o mesmo velho Kevin. - Ela ria-se enquanto enxugava a sua última lágrima, para reclinar-se novamente na cadeira.

  - Conte-me o que andou fazendo até agora. Nós não tínhamos oportunidade para isso lá em Eagle River.

Sentei-me numa cadeira que fora buscar do outro lado da piscina.

  - Não há muito que contar. Estou crescendo em sabedoria e virtude, só esperando a hora surgir embaixo de uma árvore de Natal de algum pastor. De qualquer forma, o assunto de hoje é você.

  - Bem, eu estou voltando para aquele buraco sujo em Purchase dentro de algumas semanas para aturar uns esnobes idiotas da costa do Atlântico e esperar contando os dias que faltam para a minha formatura. Depois disso... - ela sacudiu seus ombros lindos. - Eu não sei, Kev. Tenho esta piscina aqui que meus pais nunca chegaram a usar, tenho mais dinheiro do que aquilo que posso gastar e não tenho nenhum motivo para viver. Você jamais chegou a encontrar aquilo por que rezava para mim algum tempo atrás?

  - Não se sinta culpada pela morte de seus pais - supliqueilhe.

  - Culpada? - Ela olhou para mim inclinando a cabeça. Mas que diabo, Kev, eu não me sinto culpada. De qualquer forma, eles quase não viviam. Não venha me dizer que foram para o céu. Como é que gente com tão pouca vitalidade pode ir a algum lugar? Jamais conseguirei descobrir como arranjaram bastante paixão para me conceber.

  Eu apenas escutava em silêncio.

  - De qualquer forma, eles, certamente, não irão para o inferno. Rezo a ave-maria todas as manhãs e um rosário todas as noites. Pode ser que Deus tenha alguma espécie de limbo para as pessoas que não têm o fogo suficiente para pecarem ou serem virtuosos. Eles gostariam de um lugar assim. - Ela virou-se inquieta na cadeira. - Quanto a mim, Kev... eu vou direitinho para o inferno. Já sei que you mesmo. Eu sou vazia e perversa, com dons que you desperdiçar. you viver mais alguns anos e depois virão os sofrimentos ou talvez, até mesmo, o nada. De qualquer forma, não penso que a diferença seja muito grande.

  O seu rosto de madona era uma máscara implacável. Tentei arrancá-la àquele desespero.

  - Não vai acontecer nada disso. Tudo que você tem a fazer é falar com São Pedro no portão dizendo que conhece minha família. Ele tem coisa ruim em toda parte.

  Ela riu, saiu da cadeira e mergulhou na piscina. Depois de algumas braçadas saiu, sacudiu a água de seus longos cabelos negros e enrolou-se numa toalha.

  - Obrigada por ter-me arrancado da fossa. Vou buscar uma cerveja para você, meu querido primo.

  Quando voltou, com uma lata bem gelada de Heineken, já estava novamente muito séria.

  - Você acha que ainda há alguma esperança para mim, Kev?

  - Deus vai achar você irresistível como, aliás, todo o mundo acha, especialmente de biquíni.

  - Ora, que diabo! Ele pode espiar-me sempre que quiser no chuveiro nuazinha em pêlo. - Ela disse aquilo fazendo uma caretinha maliciosa. - Você acha que Ele faz isso, Kev? Será que Ele aprecia nossos corpos? Acho que deve, porque, afinal, Ele é o responsável por tudo.

  Pouco faltou para que eu a aconselhasse a pensar em Deus como alguma coisa mais humana, mas preferi não fazê-lo.

  - Se Ele fosse Ela, certamente teria inveja de seu corpo, Mo. Quando voltei para casa, minha mãe estava na varanda da frente e, olhando-me por cima dos óculos, perguntou:

  - Palavras de consolação?

  - Meia hora de risadas. - Eu estava desiludido. - Havia uma resposta de que ela precisava, mas eu não a tinha.

  - Você pode dar ainda um bom padre - ela disse, e voltou para o seu livro policial.

  Mesmo assim eu estava preocupado com o desespero de Maureen. O que é que a gente pode fazer com alguém que não acredita na possibilidade de ir para o céu? Lá no seminário ainda não me haviam dado a resposta para aquilo, a não ser a afirmativa de que era um pecado mortal.

  Na sexta-feira seguinte eu estava em Chicago, passando de carro pelo Boulevard Austin, depois de haver vasculhado uma livraria em Oak Park erri busca de uma coleção de livros de psicologia. Vi uma pessoa conhecida, com longos cabelos louros, que esperava pacientemente em mn ponto de ônibus.

  Ela estava com uma blusa de mangas curtas e mna saja rodada estampada. Dei uma marcha à ré no meu Chevrolet novo conversível, que me era proibido no seminário e na vila mas não era na cidade, pelo menos até que eu fosse ordenado.

  A senhora está esperando uma carona?

  Ela ficou muito séria, mas logo reconheceu-me, e então entrou no carro.

  - Desculpe, Kevin, mas não estou acostumada a ser paquerada.

  - Não posso entender por quê. Você está linda de morrer. Para onde quer ir? para o hospital?

  - Não, não. - Ela respondeu nervosa. - Eu Vou para Loyola, onde tenho uma aula. É muito longe. Por que não me deixa no Elevador?

  Meu coração estava aos saltos. Deus meu, como ela estava linda!

  - Nada disso. O que está estudando? Biologia?    

  - Literatura. Você nem vai acreditar. - Ela estava encaulada.

  - Pensei que quisesse ser enfermeira.

  - Será que as enfermeiras não podem ser escritoras? - A sua resposta tinha uns laivos de zanga.

  Então a maturidade também trazia o fogo.

  - Você sempre se veste assim para ir às aulas? Ou não é nada de minha conta se você tem um encontro com o Tim, quando elas terminam?

  - Claro que é de sua conta. - Ela sorriu. - Tim é um amor. Ele trabalha até as nove, mas nós nos encontramos depois das aulas.

  Eu virei na Avenida Chicago sem dar muita atenção ao tráfego. Vi de esguelha os seus olhos cinzentos muito solenes que me olhavam qe um modo parecido com uma adoração. Deus meu!

  - Você foi maravilhoso com a Maureen, Kevin. Ela me contou o que você falou com ela. Kevin, você fez com que ela voltasse à vida.

  Senti em mim um calor e senti-me também monumentalmente satisfeito comigo mesmo.

  Seus dedos tocaram de leve o meu braço.

  - A paróquia que ganhar você, Padre Kevin, vai ser uma paróquia de muita sorte.

  A despeito de Pat Donahue, de Burke Haggarty e de Georgina Carrey com Arnold Tansey, o inundo me parecia um lugar bem melhor.

  - Você alguma vez notou aquele jeito estranho nos olhos de Pat, Ellen? - Aquela foi uma pergunta impulsiva que me escapou.

  - Claro. - O seu rosto delicado já estava outra vez solene.

  - De que é que ele tem medo? - Mudei a velocidade e atravessei a Avenida Cícero desejando que a viagem até Loyola durasse a noite inteira, - Bem... pode ser de você, quando vocês estão juntos, e pode também ser de outros. Tudo depende.

  - Mas por quê?

  - Ele quer que as pessoas gostem dele.

  - Todos nós queremos isso, Ellen, - Eu estava de olho no carro que ia na minha frente.

  - Não dessa forma. - Ela insistia. - Não tão desesperadamente. De qualquer forma, o melhor mesmo é esquecer isso, Kevin. Você jamais vai conseguir livrá-lo de seu medo.

  Encostei o carro na esquina das ruas Rush e Pearson, num sinal que dizia ser aquilo proibido ali. O gótico cinza sujo do Seminário Quigley, do lado oposto da rua onde estavam as Lewis Towers de Loyola, muito sombrias e com tijolos escuros, fez-me lembrar que eu não devia estar num carro com uma moça bonita.

  - Você vai melhorando com a idade, Kevin.

  - Não somente um irritado fanático ou um pretensioso cheio de si mesmo?

  - Você finge ser tudo isso porque ficaria indefeso se as pessoas soubessem o quanto você realmente é delicado e gentil. - Os seus lábios roçaram os meus e eu pensei que o mundo estava pegando fogo. - Você é tão durão como uma taça de sorvete que se derrete.

Ela saltou rápida do carro, fechando a porta e caminhando para Towers. Então empertigou-se e voltou-se para o carro.

- Sorvete de chocolate derretendo-se. - Riu-se e piscou-me o olho.

  Apesar da reprovação que via nas torres de Quigley, eu fiquei ali olhando-a até que desapareceu no meio da garotada que se encaminhava para Loyola.

Mas não foi Ellen quem assombrou meus sonhos naquele outono em Mundelein. Foi Pat Donahue e as marcas do medo que eu vira em seus olhos.

 

- Padre, há uma moça lá fora na porta dizendo que conhece o senhor - berrou Harry Fagan, num esforço só em parte bem-sucedido, para abafar o Volare que estava sendo tocado por dezenove instrumentos musicais precariamente coordenados dos Cavaleiros da Melodia do ginásio dos jesuítas. Respondi gritando também:

  - Diga-lhe que falarei com ela amanhã antes do jogo.

  Aquela banda do ginásio dos jesuítas tinha agora mais entusiasmo do que em meu tempo, embora não fosse tão boa. Os quinhentos e tantos adolescentes que se amontoavam no salão da paróquia não se incomodavam muito. O fato de contar com os Cavaleiros da Melodia no baile do ginásio era, por alguma razão desconhecida, um sinal de grande prestígio. O Lou Carmody, um jesuíta de olhos muito vivos, ficava encantado com a presença deles, e eu era apenas, no momento, um "padre muito novo" pelos

padrões da garotada local.

  - Ela diz que seu nome é Ellen... - tornou a berrar o Harry com sua calva brilhando ali na luz artificial.

  - Vou já. - Eu tentava abrir caminho por entre uma multidão de adolescentes, de rapazes encostados nas paredes e nas colunas e de moças dançando umas com as outras.

  - Lembre-se do regulamento a respeito dos que não são sócios. .. - berrou novamente o Harry quando eu ia saindo.

  Um padre jovem em St. Praxides não tinha apenas um pastor e sim centenas deles. Todos os leigos da paróquia achavam-se na obrigação de mostrar os padrões de comportamento para os padres novos que tinham a sorte de serem bem recebidos naquela comunidade de novos-ricos. Até mesmo aqueles que conheciam meu pai não podiam se conformar com a idéia de que todos os padres vinham das classes mais pobres.

  Alguns adultos que ainda não tinham filhos naquela faixa de idade vinham dar uma espiada nos bailes do Clube para ver se eu estava andando direito. Leonard Gaspar, que andava sempre impecavelmente bem vestido e era usher chefe, uma espécie de introdutor diplomático, vinha dar uma espiada de alguns minutos em todos os bailes, e o seu rosto bonito, com um bigodinho como se fosse riscado a lápis, registrava uma completa reprovação do que estava ali acontecendo. E quando via a multidão de adolescentes em camisetas e bermudas, dizia com cara de nojo.

  —  Será que o pastor não pode obrigá-los e se apresentarem com paletó e gravata, e as moças com saias?

  — Fale com ele a esse respeito, senhor Gaspar — eu respondialhe de mau humor dando-lhe as costas, confiante que até então eu tinha os votos dos pais daquela garotada contra uma reforma que viria esvaziar o salão.

  Ellen estava esperando ao pé da escada, junto da mesa onde se faziam as admissões, e que levava ao salão de teto baixo no porão da paróquia.

  — Não tenho cartão de sócio, padre — disse ela com um sorrisinho maroto.

  — Ninguém com menos de vinte anos pode entrar sem mostrar o cartão de sócio — disse Georgina Carrey muito decidida. Ela estava sempre por ali, e eu desconfiava que era para vigiar o seu filho que estava naquela faixa de idade. — Não podemos fazer exceções, padre.   

  — Suas mãos estavam apoiadas em suas cadeiras volumosas para dar mais solenidade ao aviso.

  Aquele engano era fácil de entender. Ellen, de bermudas, e uma blusa branca por baixo do casaco um tanto sujo, e que era exigido, um rabinho-de-cavalo e sem o menor vestígio de maquilagem, era outra vez a garotinha da terceira série no banco de trás de meu Studebaker de gloriosa memória.

  — Tenho a licença de motorista — disse ela mostrando o cartão com um certo acanhamento.

— Georgina, esta aqui é a Ellen Foley, durante os próximos vinte anos ela vai continuar parecendo que ainda não tem vinte. Na realidade, ela é enfermeira formada especializada em psiquiatria.

  Ela hesitou, sem saber se devia acreditar em mim, mas viu o anel de noivado, um pequenino diamante, e tornou-se mais delicada.

  — Desculpe-me — disse irradiando todos os seus encantos que não eram poucos.

  Escapamos afinal de Georgina e voltamos para o tumulto dos adolescentes.

  Ellen estava entusiasmada.

  — Puxa vida, Padre Kevin, que maravilha. O senhor vai ser moço toda a sua vida.

  Eu sentia calor, estava cansado e tenso.

  — Você veio visitar-me ou veio para conversar?

  Os seus olhos grandes e cinzentos ficaram muito sérios.

  — Já faz dias que eu ando querendo falar-lhe. Tim deu-me seu carro esta noite e disse que era melhor eu vir para tirar logo isso da mente.

  Levei um susto. Tive medo de que ela quisesse me convidar para oficiar na sua missa de casamento. O Tim, muito solene e sério, no dia de minha ordenação, tinha-me pedido isso.

  Monsenhor Rafferty, o meu pastor, não me dava licença para eu sair num sábado para ir casar alguém noutro lugar. E ainda dissera:

  — Eu farei uma exceção, meu filho, mas somente para membros mais próximos de sua família. Irmãos e irmãs, mas não para primos.

  — Será que você não pode esperar até que eu mande essa gente toda para casa, Ellen?

  — Tenho toda a noite. Não há pressa.

  Chamei a Mônica Kelly, a chefe pequenina e magra da segunda série, cujos cabelos louros e encaracolados faziam com que fosse possível descobri-la numa multidão de garotas adolescentes, e apresentei-lhe Ellen.

  Ela foi logo cumprimentando Ellen.

  — Alô. Em que ginásio você está?

- Sienna, - Ellen nem mesmo piscou.

  Eu voltei às minhas obrigações no ginásio, expulsando os que bebiam demais, apartando brigas, varrendo os restos de garrafas quebradas e defendendo a Propriedade de St. Praxides contra as depredações que, no dia seguinte, certamente ofenderiam o monsenhor, a Irmã Superiora, o engenheiro-chefe, o usher chefe, o presidente da Confraria do Altar, e uma quantidade de outros funcionários interessados na eliminação daquela garotada. Eu adorava tudo aquilo. Pois aquela garotada era justamente uma das razões que me levaram ao sacerdócio.

  Eu aprendera no seminário a assumir uma atitude que era essencial ao meu sucesso em St. Praxides: o cinismo. A Igreja não ia mudar. A liderança ia continuar sempre nas mãos de homens como o Monsenhor Rafferty durante toda a minha vida. Se alguém queria fazer alguma coisa pelo povo, e eu queria, seria preciso aprender como aplacar e manipular homens como ele. Para alguém com o meu treinamento, não era difícil saber o que fazer. Era ficar de boca fechada, dizer-lhes o menos que fosse possível sobre o que se estava fazendo e fazer o máximo que fosse possível às escondidas, sempre esperando que não fosse descoberto por eles.

  Leo Mark Rafferty não queria que um bando de garotos e garotas muito barulhentos invadissem a propriedade nas noites de sexías-feiras. Na verdade, ele não queria ninguém ali na propriedade desde que fosse possível impedir, a não ser nas manhãs de domingos e, assim mesmo, desde que trouxessem na mão os envelopes para a coleta.

  No entanto, ele não estava em condições de discordar de Georgina Carrey, cuja fortuna o deixava boquiaberto. Quando ela quisesse um baile para o seu filho de quatorze anos, o John Júnior, esse baile se realizaria.

  Acabamos a limpeza às 11:30, mandamos os serventes para casa, pagamos aos Cavaleiros da Melodia, demos um último boanoite para Georgina, seu filho que parecia um cachorrinho sem dono, e o seu marido, e depois fomos sentar numa mesa para conversar, com uma garrafa de Coca-Cola na mão e mastigando docinhos que Ellen tinha conseguido escamotear dos ostrogodos que já tinham ido embora.

  Ellen acendeu um cigarro.

  - Essa mulher ainda está tentando seduzi-lo?

  - Não está, mas vai tentar.

  Ela tirou apenas uma tragada e esmagou o cigarro no cinzeiro.

  - Pelo menos enquanto você souber disso...

  - Eu não cederei. - Prometi-lhe.

  - Não tenho a menor dúvida. O seu gosto é diferente. - Ela olhou para o docinho que tinha na mão e que estava mordiscando. Sempre viciada em chocolates, mas as calorias não pareciam afetála.

  - O que é que há com você, Ellen? Vejo sua preocupação nesses seus olhos cinzentos.

  Ela virou-os lentamente para mim.

  - É a Mo. Ela não deve casar-se com ele. - Ellen disse aquilo com simplicidade.

  - Eu também acho que não devia. Ele é muito mais velho do que ela. Mais de dez anos, e me parece um playboy alcoólatra.

  - Eu acho - acrescentou a minha sombria amiguinha - que ela está se casando porque eu Vou me casar, e ela tem medo porque, se a Ellen achou um homem, então é porque o estoque está se es tando...

  - E você acha que esse é mais um dos impulsos de Mo?

  - Desde que os pais morreram ela vem agindo como louca. Ela precisa de sua ajuda, Padre Kevin.

  - A não ser que você deseje que eu passe a chamá-la "Enfermeira Ellen" é melhor deixar de lado esse negócio de "padre".

  O sorriso dela tornou a iluminar a sala.

  - Está bem. Aliás, o que é que está fazendo esse homem com os botões vermelhos andando para cima e para baixo na porta e vigiando-nos como se eu fosse uma mulher de má reputação?

  Eu suspirei.

  - Aquilo não é um homem, Ellen. E o monsenhor. Desculpeme um pouco, sim?

  Fui até a porta do salão silencioso. Leo Mark Rafferty, que se parecia com um corcunda zangado e gordo até mesmo quando estava alegre, não se mostrava nada alegre ali naquela ocasião.

  Ele caminhou para mim, e o seu rosto, que já era vermelho por natureza, estava ainda mais vermelho.

  - O que é que você pensa que está fazendo, meu rapaz?

  - Estou conversando com uma moça. - A minha resposta foi dada com um visível pouco caso. Inspirado pela presença de Ellen, eu ia deixar de lado um respeitoso oportunismo. Nem mesmo um cura, a mais baixa forma de vida na Igreja, pode ser tranqüilamente humilhado na presença da mulher que o ama.

  A cor de seu rosto ficou ainda mais carregada e suas bochechas se inflaram como se fossem explodir.

  - E você acha que está procedendo certo?

  - Ela é uma amiga muito íntima de minha família e está noiva de um de meus antigos colegas. Ela está falando comigo a respeito de um problema de um amigo comum.

  - Então ela que marque uma hora decente durante o dia. Agora, trate de mandá-la embora e volte para a reitoria. Você sabe que existe uma regra das onze horas nesta diocese.

  Eu estava muito calmo.

  - Vou dizer-lhe uma coisa, monsenhor. Fale com o vigáriogeral amanhã de manhã e pergunte-lhe se um padre que está dando conselhos a alguém, no salão da escola, depois do baile, está ou não infringindo a regra das onze horas. Diga-lhe também que o senhor quer me ver fora daqui. A mim não importa porcaria alguma que o senhor faça. Eu vou ficar aqui durante todo o tempo que julgar necessário para tratar deste problema.

  A cor de Leo Mark já agora tinha mudado. Estava brancopálido como um morto. Deu uns passos atrás abruptamente, como se alguém houvesse aberto a porta de uma fornalha.

  - Ora essa, Kevin. Eu não sabia que era assim tão importante. Fique o tempo que quiser... pode até fazer um cafezinho...

  Quando ele saiu apressado, eu sabia que havia descoberto o seu ponto fraco e agradeci a Deus por ter enviado Ellen. Ela me recebeu com um sorriso gaiato.

  - O Kevin venceu mais uma...

  - Não tenha tanta certeza assim. - Peguei um doce numa segunda porção que ela descobrira. - Vamos falar da Mo.

  - Veja se a convence a desistir, Kev.

Suspirei e tornei a colocar o doce de onde o tinha tirado.

  - Você acha que eu poderia convencer você e Tim a não se casarem?

  - É claro que não, Kev. Nós estamos apaixonados.

  - E você não acha que a Maureen irá me dar a mesma resposta?

  Ela suspirou e empurrou o prato de doces.

  - Será que o Tim e eu estamos tão cegos quanto ela? Eu sentia-me muito cansado e muito velho.

  - Olhe aqui, Ellen. Eu sou tão novo nesse negócio de padre de paróquia que^nem mesmo cheguei ainda a decorar algumas orações. A única coisa que já aprendi é que não se pode, de forma alguma, dissuadir os jovens quando eles pensam que estão amando. Você jamais consegue convencê-los de coisa alguma, a favor ou contra, Ellen.

  Ela ainda insistiu.

  - Mas você não quer, pelo menos, conversar com a Maureen?

  - Desde que ela também queira conversar comigo... se ela está procurando encontrar alguém para encorajá-la numa decisão que ela já tomou, de cair fora, então farei isso. Os seus conhecimentos psiquiátricos certamente lhe dizem que isso é tudo que posso fazer.

  Ela franziu a testa.

  - Você é padre, não é psiquiatra.

  - Se a Maureen sente-se culpada porque os pais morreram no incêndio, e deseja expiar a sua culpa destruindo-se, então nada há que você ou eu possamos fazer.

  - Então não vai fazer coisa alguma, Kevin?

  - Se eu pensar em alguma coisa que possa fazer, pode estar certa de que eu farei.

  Ela levantou-se e abotoou o casaco.

  - Acho que já sabia o que você iria me dizer. É melhor eu ir andando.

  Eu bem que gostaria de ficar conversando com ela até o sol nascer, até mesmo ali naquele triste salão da paróquia onde se ouvia o eco de nossas palavras.

  Regulei o despertador para as 5:45. O monsenhor tinha-me castigado, por causa do Clube do ginásio, dando-me a primeira missa dos sábados. Voltei para a cama logo depois da missa, mas, quinze minutos depois fui acordado pelo telefonema de Pat Donahue. Ele estava nojentamente alegre para uma madrugada de sábado.

  - Olá, Kev. Você tem um minuto?

  Sentei-me desanimado na cadeira que estava perto do meu telefone.

  - Vai falando, Pat.

  A nossa amizade parecia de volta à normalidade desde que ele voltara de Roma. Nós dois dávamos um duro danado, mas gostávamos de nosso trabalho. Em nosso mútuo compromisso com o sacerdócio tínhamos achado, assim pensava eu, uma base para um "relacionamento amadurecido", uma frase que eu vira nos tratados de psicologia. Ele ainda não se mostrava inteiramente franco comigo, mas aquelas marquinhas do medo só raramente apareciam agora.

  - Bem, eu... eu sei o quanto a Mo e a Ellen significam para você, Kev.

  - Elas significam muito, mas, mesmo assim, não posso oficiar nas missas de seus casamentos, Pat.

  - Você não se importaria, então, se eu as oficiasse?

  - Mas, por Deus, não, Pat. E por que me importaria? Isso fará com que elas tenham toda a elegância de Roma. As duas merecem isso, Pat.

  - Obrigado, Kev. - O seu bom humor ia estava de volta. Aprecio muito a sua atitude. Eu só queria ter a certeza. Vamos nos ver na quinta-feira, se você puder.

  Depois que ele desligou fiquei olhando para o telefone com um ar maligno. Depois mandei tudo às favas e voltei para a cama.

  Na quinta-feira seguinte, passei a tarde do meu dia de folga numa precária cadeira de campanha que estava no porão atulhado e mal iluminado de uma igreja na Northern Avenue esquina de Pauline, ouvindo uma conferência sobre as obrigações da Igreja com a cidade. Na audiência estavam o clero da Ação Católica, uma porção substancial dos padres liberais da diocese que ainda eram fiéis  seguidores de Monsenhor Reynold Hillenbrad, um reitor de seminário, carismático, mas sem diplomacia, que havia sido banido pelo Cardeal Stritch para uma paróquia alguns anos antes de eu entrar para Mundelein. A maior parte do fermento intelectual e organizacional que havia na diocese, naqueles tempos, estava sendo atiçada pelos seguidores de "Hilly". O Cardeal Stritch era suficientemente tolerante, para não dizer suficientemente preguiçoso, para permitir que essas atividades florescessem, confirmando a convicção geral de que, se o Hilly tivesse sido diplomático com os pastores da cidade, e com a faculdade jesuíta de Mundelein, nada lhe teria acontecido. O cardeal descobriu que era mais difícil defendê-lo do que substituí-lo, e então caiu fora. Os seus seguidores jovens foram muito mais tortuosos.

  Eu não fazia parte da Ação Católica. Havia muito trabalho na paróquia, e Monsenhor Rafferty não via com bons olhos a participação de seus padres naquelas "malditas atividades externas". Eu estava ali naquela reunião porque quem ia falar era Pat Donahue.

 Pat, bonitão e glorioso, estava na porta do porão cumprimentando os que chegavam. Quando me viu não conteve uma exclamação.

  - Puxa vida, que bom, Kev. É maravilhoso você ter vindo. Espero que não se arrependa.

  Pat estava fazendo um sucesso enorme na Igreja dos Quarenta Santos Mártires na parte sul da cidade. Havia uma certa magia na química que existia entre ele e os negros daquela área da cidade. Centenas deles vinham para as suas aulas de conversão todos os semestres. Já havia batizado mais de duas centenas de convertidos, a maior parte deles sendo pais que escolhiam aquela igreja para mandarem seus filhos, em lugar de mandá-los para as escolas públicas, decrépitas e desordenadas. Eu já tinha

ouvido uma das "instruções" de Pat numa classe de seus convertidos, e ficara impressionado pelo seu est Io simples, direto e eficaz.

  - O rapaz é mesmo bom. - Era essa a opinião de seu pastor, o velho Huch Mulcahey, conforme me disse, sussurrando, depois da aula. Aquilo era mais do que o meu pastor jamais dissera de mim.

  A maior parte dos ouvintes ali no porão da igreja, naquela tarde, esperava que ele falasse a respeito da técnica usada para converter negros ao catolicismo, e seu principal artifício era o de exigir que os pais de crianças não católicas na escola paroquial recebessem as instruções. Em lugar disso, ele falou a respeito do "ambiente social e humano" daquela área da cidade. Foi uma esplêndida demonstração, ajustada com sutileza para a mentalidade e disposição dos ouvintes do clero com inclinações liberais.

  Ele contou coisas impressionantes a respeito do impacto da pobreza e da injustiça nas vidas das famílias negras de sua paróquia, e descreveu os perigos da vida nas favelas e cortiços. Pintou um quadro bem triste das perigosas tentações que encontravam até mesmo os negros mais virtuosos, principalmente os jovens. Ele dizia que a Igreja deveria fazer alguma coisa quanto às necessidades humanas, sociais e religiosas da comunidade negra. (A palavra "preto" ainda não estava na moda naquela

época.)

  Ele não gostava de usar e, aliás, nem mesmo chegava a usar a palavra "cidadão" como fazia a maior parte dos padres empenhados naquele "trabalho". Achava que ela era uma palavra de código para "negro" inventada pelo clero.

  Começou a sua peroração dinâmica dizendo:

  - Nós precisamos nos tornar a Igreja dos pobres. Temos uma enorme oportunidade nesta área da cidade para educar, libertar e pregar, e temos a obrigação de nos identificarmos com a mentalidade da raça negra e com a sua causa. Nós colocamos muito dinheiro e muita gente nossa em paróquias de bairros de gente rica onde são poucos os problemas humanos e onde precisam pouco da Igreja. Todos os padres jovens deveriam servir nas paróquias dos bairros pobres das cidades. Devemos parar com a construção de escolas, igrejas e reitorias com ginásios para os ricos e passar a construir casas para os pobres.

Os aplausos foram tremendos e eu também aplaudi. Era uma infantilidade minha ficar imaginando ali se o terno de duzentos dólares de Pat, feito sob medida, e as dispendiosas abotoaduras francesas nos punhos da camisa eram compatíveis com a mensagem de pobreza, e também como era que, com um salário de setenta e cinco   dólares por mês, ele conseguia dinheiro para comprar tudo aquilo. Se ele tinha amigos generosos, ninguém tinha nada com isso.

  Duas semanas depois, Leo Mark apareceu-me na porta de meu quarto.

  - Há uma moça lá embaixo, no escritório, que diz ser sua irmã.

  - Desconfio que talvez seja mesmo. - Eu já estava começando a avaliar bem aquele homem. - Ela disse que se chama Mary Ann? Tem os cabelos escuros e encaracolados, olhos verdes e sardas como eu? Bonitinha. O tipo de moça atleta e decidida?

  Ele sacudiu a cabeça sem saber bem o que dizer.

  - É melhor eu ir logo falar com ela. - Comecei a abotoar a batina que apanhara em cima da cadeira e saí passando por ele. (Em St. Praxides, ninguém aparecia no escritório da reitoria sem batina, mesmo se fosse para ir falar com a irmã.)

  - Alô, padre. - Mary Ann falou assim que eu entrei. Estava com o casaco de couro obrigatório e bermudas.

  - Monsenhor me disse que você estava alegando que era minha irmã.

  Ela deu-me um beijinho no rosto.

  - Que espécie de bobalhão é ele? E que espécie de escritório de reitoria é este? - Ela apontava com reprovação para a complicada mobília dinamarquesa moderna e para os retratos muito sérios e formais dos três Pios - X, XI e XII - do século XX.

  - Pois fique sabendo que foi desenhada com cuidado. Eu não podia nem mesmo comprar uma lâmpada para a minha mesa de trabalho, pois tudo era escolhido pelo decorador de interiores.

  Ela parecia não acreditar.

  - Não me diga que chamaram um decorador de interiores! Eu sempre pensei que essas coisas só aconteciam por acidente.

  - O que é que há, Mary Ann? - Eu estava cansado e queria ir deitar-me. Na madrugada seguinte teria que sair a pé para dar a Comunhão. O pastor dizia que eu não precisava de carro, e o cura mais velho nunca se aventurava a me emprestar o seu. - Está tudo bem lá em casa?

  Ela fez um gesto com a mão.

- Não é nada disso. É a Ellen. Você tem que impedir aquele casamento.

  Senti um aperto no coração.

  - E por que motivo? Eles parecem combinar bem.

  - Os dois são gente séria, tranqüila e sensata. -    

  Ela respondeu sarcasticamente. - Meu irmão, não sei o que se passou entre você e Ellen, mas se você realmente a compreende, sabe muito bem que ela é sabida e esperta e que tem algo selvagem por dentro.

  - Sei disso muito bem.

  - Olhe aqui, Kev. Eu não tenho nada contra o seu amigo Tim, mas ele é agora sério demais. Já não ri mais nem faz as brincadeiras que costumava fazer. Nos últimos cinco anos ele não teve um só pensamento feliz. A Ellen não precisa disso. Isso vai matá-la. Ela vai logo ter um bandão de filhos e vai voltar direitinho para aquela chateação a que foi condenada antes por sua mãe, desde o dia em que nasceu.

  Ellen e Mary Ann eram amigas íntimas. As duas tinham se fixado ali mesmo nos arredores de Chicago para o curso universitário. O diagnóstico de minha irmã estava indiscutivelmente certo. Não havia lugar para a minha pequenina fada das águas na vida cuidadosamente calculada de Tim.

  - Faltam só duas semanas e, além disso, eu não posso impedir o casamento. Eu não sou Deus. E, tampouco, quero bancar o Deus na vida dela.

  Minha irmã ficou ali, olhando para mim, como se eu fosse algum espécimen clínico que ela tivesse observando num microscópio, - Sabe de uma coisa, irmão? Você é uma espécie interessante de padre. - Ela falava devagar. - Forte em entusiasmo e energia, e fraco em compaixão e bondade.

  - Quem sabe se, com os anos, eu consigo adquirir alguma compaixão.

  Ela mostrou-se contrita.

  - Desculpe-me se fui estúpida e grosseira. Mas você deve estar preocupado com o que está acontecendo com a Ellen. Eu quero dizer é que você não pode, simplesmente, permitir que ela jogue fora a sua vida.

  Procurei argumentar.

  - Não sei bem se casar com Tim significa jogar fora a vida, Mary Ann. E, aliás, ela nem mesmo me ouviria.

  Mary Ann insistiu.

  - Claro que vai ouvir. Você jamais conseguiria deter a Mo, mas poderia falar com Ellen amanhã de manhã e acabar logo com esse casamento.

  Eu ainda hesitava.

  - Mesmo e pudesse, não acho direito estar me metendo na vida dos outros, principalmente na dela.

  Minha irmã reconheceu com um suspiro o fato de saber que aquela seria a minha resposta. Sua missão fracassara. Ela saiu da reitoria e voltou de carro para a costa oeste.

  Eu sentia a garganta seca enquanto subia devagar para o meu quarto. A porta do pastor abriu-se no momento exato em que eu chegava no topo da escada. Estava espeiando para ter a certeza que o jovem padre não tentaria escapulir.

   Ellen e Maureen casaram-se nos dias marcados. Em lugar de minha presença, enviei-lhes cartas cheias de recomendações piedosas. Mo foi para Boston com o seu marido, e me disseram que ele ficara furioso com a minha ausência no casamento.

  Muita coisa mais aconteceu naquela primavera e no verão. Charles De Gaulle foi reeleito chefe do governo francês, Robert Welch fundou a Sociedade John Birch, e o Cardeal Stritch morreu em Roma. Pio XII, já também perto da morte, vetou a tentativa da Cúria para mandar Leo Binz para Chicago e insistiu na nomeação do "homem das escrituras", como ele o chamava, o segundo nome na lista de três, o Arcebispo Gregory Meyer, o estudioso das escrituras que estava em Milwaukee. Em princípios de outubro Pio XII morreu e foi sucedido a 25 de outubro por Ângelo Giuseppe Roncalli.

  Pat estava comigo no parlatório em St. Praxides quando a televisão da CBS mandou a notícia de Roma. Ainda não havia as transmissões "ao vivo" porque não tínhamos ainda os satélites, mas a voz cheia de Winston Burdette disse-nos que o novo Papa era o Patriarca de Veneza com setenta e cinco anos de idade.

  Pat mostrou-se admirado.

  - Meu Deus! Eles devem ter ficado num impasse. Roncalli e um diplomata de segunda ordem que nunca fez coisa alguma em sua vida. Isto é um desastre! - Foi o que disse a Leo Mark que se sentia honrado por ter ali no seu parlatório um verdadeiro romano na ocasião da eleição de um Papa.

  Depois veio a voz forte do Papa Roncalli com a sua bênção Urbi et Orbi, para a cidade e para o mundo. Vinte anos depois, quando faltava pouco mais de uma semana, os cardeais iriam eleger um outro papa. Três dos homens que haviam escolhido Roncalli Vyshmsky, Leger e Siri - estariam no Sacro Colégio. E Pat Donahue também estaria lá.

  Mas naquela manhã dourada de outubro, na parte sul de Chicago, Pat só conseguia sacudir a cabeça espantado. Depois, enfiou, de repente, as mãos nos bolsos.

  - É um papa transitório. Em breve teremos um outro conclave.

No dia 25 de janeiro de 1959, o Papa João anunciou que o Segundo Concilio do Vaticano iria reunir-se.

 

  Eu me lembro do momento exato em que descobri que Leonard Kaspar, o chefe dos ushers, estava roubando as coletas dos domingos em St. Praxides. Foi naquele outubro em que os White Sox de Chicago tinham chegado ao Campeonato Mundial pela primeira vez desde 1919, quando perdera, naturalmente. Pat, Nick McAuliff e eu estávamos sentados na sala do pastor ouvindo The Sound of Music no hi-fi de Leo Mark que tinha custado seiscentos mil dólares, mas que ele nunca usava. Leo Mark estava de férias, e eu então deixara de comparecer à minha visita de costume na liga de bowling para jantar com meus amigos. Pat estava profundamente preocupado a respeito do Papa João XXIII e sua última encíclica sobre a Liturgia Latina que, aparentemente, proibia até mesmo qualquer discussão quanto à possibilidade da missa  em inglês.

  - Vai ser uma complicação enquanto ele estiver no poder lamentava Pat tomando o seu segundo martíni, uma indulgência que era proibida pelo nosso juramento de vinte e cinco anos mas que não incluía Pat porque o sistema nunca se dera ao trabalho de pedir o mesmo juramento aos alunos do North American College. Roncalli é estritamente da terceira classe. Todos concordam que o Sínodo de Roma é um desastre. Só Deus sabe o que vai ser esse Concílio. O meu amigo Tonio Martinelli escreveu-me outro dia dizendo-me que ele, provavelmente, jamais se reunirá.

  - Então ele acha que nós nem mesmo podemos falar a respeito de uma Liturgia Inglesa? - A pergunta era de Nick.

  - Ele, provavelmente, nem está ligando. - Pat olhou com relutância para o copo vazio. - O rascunho foi escrito por um grande amigo seu, o Tonio, que, naturalmente, aprova a preservação do latim, diz que essa é a maneira como a Igreja é governada atualmente. Favores para velhos amigos.

  - O Coronel compreenderia isso - disse eu.

  - Pode ser que os seus paroquianos possam aturar o latim disse Pat com o rosto fechado - mas na Rua Trinta e Cinco a missa poderia ser rezada até em sânscrito.

  Ficamos ali ouvindo a música e tentando esquecer-nos da Igreja que insistia na missa em'latim para os moradores da Rua Trinta e Cinco.

  Estávamos no meio do Edelweis quando eu vi. Creio que foi o hi-fi de Leo Mark, Leonard Kaspar tinha um igualzinho. Lembro-me quando perguntei ao monsenhor, quando ele, muito orgulhoso, anunciou na mesa do jantar que o "Len" - Mr. Kaspar para os curas, naturalmente - tinha resolvido comprar um sistema igual àquele, e eu logo pensei como era que um homem com um emprego nos escritórios das Indústrias Tansey podia se dar ao luxo de ter um sistema daquele preço.

  Leo respondera logo.

  - Esta é uma pergunta descabida, meu jovem. Você deve se ocupar com a administração de St. Praxides em lugar de estar querendo avaliar o que ganham seus paroquianos.

  Além disso, a mulher de Kaspar é irmã da mulher de Tansey.

  Aquela resposta era irrelevante, já que Tansey não era de distribuir dinheiro com facilidade.

  O telefone veio interromper meus devaneios. Era Georgina Carrey perguntando, quase sem fôlego, qual era a orquestra que ia tocar na festa de caridade da primavera na Sociedade do Altar. Mesmo com o pastor ausente, era preciso fazer alguma coisa. Perguntou-me se sabia onde poderia encontrá-lo.

  Respondi sem me interessar muito.

  - Ele nunca nos diz para onde vai, Georgina. Nem tampouco quando vai voltar. Pode ser que o Sr. Kaspar saiba.

  - Mas o Leonard e a Martha estão na Flórida. Tenho a certeza de que o monsenhor não está com eles.

  - E como é que a paróquia pode sobreviver sem o seu pastor e sem o seu usher chefe. - Foi o que perguntei. - De qualquer forma, vou ver o que posso fazer-sobre isso amanhã.

  - Quem era? - Pat perguntou-me sorrindo. - Você me parecia muito obsequioso e solícito. Aposto que era uma mulher.

  - Não é o seu tipo, Pat. É muito religiosa. Vem à igreja todos os dias sem falta.

  - Nós ainda podemos pegar um cinema - disse Nick mostrando pouco interesse nas mulheres da paróquia.

  - Eu ainda tenho alguma coisa para fazer. Vocês podem ir.

  Acompanhei-os até o Falcon novo de Pat que estava estacionado atrás da reitoria. O carro, também, era contra o regulamento, mas, aparentemente, ninguém se lembrara de dizer isso a quem tinha estudado em Roma. A licença era somente para depois de cinco anos da ordenação.

  Pat apontou a imponente St. Praxides.

  - Meu Deus! Aquilo até parece uma árvore de Natal. O que é que está havendo ali?

  - Isso é normal nas noites de outono aqui nessas redondezas. É o coro ensaiando na igreja. Educação religiosa para as crianças das escolas públicas no salão, treino de basquete para o primário no ginásio, preparativos para uma reunião no escritório da reitoria, aulas de Marty Herlihy para os adultos antes da confirmação, em um outro escritório, o torneio de bridge na biblioteca, a Sociedade de São Vicente de Paulo que está preocupada com a ausência de pobres no porão da reitoria e não sei mais o que nas salas auxiliares para reuniões no porão do salão. Não há nada demais. É uma noite de rotina.

  Pat sacudiu a cabeça com as mãos nas cadeiras, espantado com tudo aquilo.

  - E foi para isso que te ordenaram, Kevin? É isso o que significa a pregação do Evangelho aqui nessas redondezas?

  Respondi com sinceridade.

  - Não sei. Tudo não passa de divertimentos, no entanto, e na maioria dos casos, nem mesmo precisa de minha ajuda. Como você vê, eu não tomo parte em nenhuma delas. Afinal de contas, que diabo, foram eles que pagaram as construções. Se quiserem usá-las para bridge e basquete, o problema é deles.

  Pat suspirou.

  - E aí vou eu outra vez, parecendo um fanático. Desculpeme, Kev, você está com a razão. Creio que isso faz parte de ser um padre jovem. - Ele sorria desculpando-se:

  - Quero dizer que pensamos* que aquilo que fazemos é a coisa mais importante do mundo, o mais importante que a gente pode fazer.

  Voltei depressa à minha sala quando o carro arrancou, tirei um envelope de meu arquivo e focalizei a luz mais intensa para os pedaços de papel que estavam lá dentro.

  Leo Mark era um "chorão" crônico. Estava sempre reclamando que as despesas aumentavam e a receita já não aumentava tanto. O seu relatório anual era uma obra-prima de coisas vagas e obscuras. Aos poucos, no entanto, eu consegui compreender as despesas o suficiente para ver que ele tinha razão para andar atribulado. Muito pouco faltava para que as finanças de St. Praxides passassem a ser deficitárias. Monsenhor não queria pedir mais dinheiro porque, para isso, precisaria apresentar à paróquia um balanço detalhado das finanças. Ele já me dissera, com muito orgulho, que isso seria o primeiro passo para que viessem controlar as finanças de sua igreja. Uma outra razão para a sua hesitação era que ele não conseguia descobrir o que havia de errado com a parte financeira de sua paróquia. Também tinha medo de que fosse tachado de incompetente numa região onde os grandes empresários julgavam que a competência financeira era uma prova sólida de masculinidade e, até mesmo, às vezes, um substituto.

  Somei o montante das coletas a partir das quatro primeiras missas de domingo nos últimos três meses. Os padres contavam regularmente o montante da coleta no porão da reitoria, mas aquilo não fazia parte de minhas atribuições.

  Durante alguns meses eu vinha abrindo os envelopes que traziam os recibos dos depósitos feitos todas as segundas-feiras de manhã, e vinha conservando comigo os totais semanais desses depósitos. Eu tinha a permissão para ir fazer os depósitos e depois passava na lavanderia para apanhar as roupas do pastor já bem passadas a ferro, mas nunca preenchia os talões de depósitos, já que essa responsabilidade era delegada a Leonard Kaspar, muito mais digno de confiança.

  Os nossos depósitos eram, geralmente, em torno de $2.400 e a coleta das primeiras quatro missas rendia geralmente uns $1.400. A igreja ficava quase vazia na missa das sete da manhã, ficava em menos da metade da lotação da das oito, e enchia para a das nove, mas era principalmente de garotos cujas contribuições eram muito pequenas.

  Também na das dez a igreja não ficava cheia. Mais da metade dos paroquianos, e entre eles estavam os mais ricos, vinha para as duas últimas. E, no entanto, nós só estávamos recebendo cerca de jnil dólares deles. Tornei a arrumar as cifras em folhas limpas. Dos mil dólares, havia quinhentos em cheques. Somente quinhentos dólares em dinheiro vivo para quase duas mil pessoas?

  Kaspar levava para casa as duas últimas coletas, depois da última missa, contava o dinheiro e depois voltava à reitoria no fim da tarde de domingo, para preencher as fichas dos depósitos, e deixava o dinheiro num cofre muito velho. Monsenhor achava que não havia perigo de roubo porque eram poucos os que sabiam do fato de Kaspar levar o dinheiro para contar em casa. Agora eu sabia a razão por que, sempre que estava de férias, ele voltava para casa de avião para as missas de domingos. Aquele sinal de dedicação fora, publicamente, exaltado pelo pastor por ocasião da missa de meia-noite de Natal.

  Desci e fui até o quarto do único padre que ali era mais novo do que eu.

  - Marty, você quer dar um pulo até o meu quarto? É só um minuto. Quero mostrar-lhe uma coisa.

  Marty Herlihy era um rapaz baixinho, veemente, com olhos flamejantes, cabelos claros e uma tremenda capacidade para passar longas horas de joelhos e rezando. Ele era mais tranqüilo e mais caridoso do que eu. Se ficasse convencido com as provas que eu tinha, eu teria um caso muito sério em mãos.

  Contei-lhe as minhas suspeitas e os seus olhos se arregalaram sem poder acreditar e quase mostravam indignação. Depois então mostrei-lhe os números.

  - Deus do céu, Kevin. - Ele falava baixinho. - Isso deve estar acontecendo durante anos.

  - E continuará durante anos a não ser que a gente ponha um paradeiro.

  Ele sacudiu a cabeça.

  - Monsenhor não vai acreditar em você. Eu tenho um irmãu na chancelaria...

  - Não quero ir até lá, a não ser que seja obrigado. A primeira coisa a fazer é obter as provas.

  - E como é que podemos consegui-las? - Ele coçou o queixo.

  - Quero dizer que, como sendo verdade, como é que vamos convencer o monsenhor?

  - Isso é fácil. É só somar os envelopes das coletas das duas últimas missas. Depois subtraímos o que registra para essas duas missas, do total do envelope, e temos o mínimo que ele tirou.

  Ele franziu o rosto. Parecia relutar para compreender o que eu estava dizendo.

  - O Kaspar mistura os envelopes. Como é que você vai saber quais são os das duas últimas missas?

  - Isso não é problema. Quando estivermos contando o dinheiro das quatro primeiras missas, marcamos um sinal no verso de cada envelope. Na manhã seguinte separamos os envelopes sem marcas e somamos o total.

  - E isso deixa de fora o que é trazido na cesta sem envelope. Isso mostrará uma estimativa conservadora do que foi roubado.

  - Exatamente.

Houve um momento de silêncio.

  - Você está gostando disso, não é Kevin?

com aquela pergunta ele não estava fazendo um julgamento. Estava só querendo saber.

  Aproveitei a ausência do pastor para telefonar a Ellen para marcar um jantar no apartamento em que morava com Tim.

  A Ellen que me recebeu na porta de seu apartamento malcuidado e pobre não tinha boa cara e estava um pouco mais gorda. Seus cabelos estavam viscosos e já não tinha mais o brilho antigo. O pior de tudo, porém, era que já não havia aquele brilho em se :s olhos grandes e cinzentos. Ela conseguiu .sorrir, mas foi com algum esforço.

  O seu aperto de mão, pelo menos, foi muito caloroso.

  - Kevin! É maravilhoso ver você! Parece que o trabalho na paróquia lhe faz bem. Não é mesmo, Tim? Quem sabe se não seria melhor sermos todos padres?

  O sorriso de Tim foi largo e natural, e havia nele ainda uns restos do antigo Cavaleiro, embora estivesse mais magro, cansado e nervoso. A freqüência na escola noturna e o emprego estavam cobrando o seu preço. Ele esfregava as mãos sem parar como se estivesse querendo enxugá-las.

  - Puxa vida, Padre Kevin, como o tempo corre. A sua primeira missa foi a última vez que nos vimos, não foi mesmo? Entre. Sente-se e venha ver a nossa filha.

  Não é mesmo uma beleza?

  E Caroline era mesmo tudo aquilo. Ali estava em meu colo um conjunto de energia, alegria e vivacidade com apenas seis meses.

  - Ela é mesmo uma belezinha muito especial, Ellen.

  - Ela é uma bichinha realmente encantadora, mas não acredita que é preciso dormir de noite. - Ela respondeu com o olhar cheio de ternura.

  - Você não deve usar esses termos com a nossa filha, El. Não fica bem para a mãe cristã que você é

  - Tim reprovou-a com delicadeza.

  Não houve a menor reação da parte dela. Foi como se não tivesse ouvido. Procurei então romper o silêncio perigoso que se seguiu.

  - Ela tem os olhos cinzentos da mãe. Aposto como já sabe quem eu sou.

  - E ela vai ter um irmãozinho na primavera. - Tim acrescentou muito orgulhoso. - Uma boa família católica. Dois filhos em dois anos.

  - E dez em dez anos... - disse Ellen sem a menor emoção.

  - Aliás, você poderá compará-la com Sheila, a filha de Maureen, quando a conhecer no mês que vem.

Antes que pudéssemos discutir a família Haggarty, a herdeira dos Currans, para grande humilhação de seus pais, achou por bem vomitar um resto de sua última refeição em cima de mim. Ela parecia divertir-se extraordinariamente quando a mãe e o pai correram para reparar os estragos. E também se recusava terminantemente a sair de meu colo. J

Não havia coisa alguma para se beber antes do jantar porque; Tim não gostava mais de beber, embora quisesse fazer uma exceção para Ellen e para mim com o vinho branco que eu trouxera para beber com o peixe da sexta-feira.

  - Não me lembro de haver conhecido você como abstêmio nos velhos dias... - Eu disse aquilo rindo para tentar encobrir o meu embaraço. O apartamento cheirava a comida cozinhada demais. A mobília era de segunda mão e o tapete estava puído em muitos lugares. - Houve um tempo em que todo mundo acreditava que você ia ter problemas, Tim...

  Ele inclinou-se um pouco, sempre esfregando as mãos.

  - Naqueles tempos eu não pensava no terrível desperdício de dinheiro que acompanha a bebida. Eu, simplesmente, não encontro uma justificativa para aquilo. - Seus ombros estavam pateticamente magros e frágeis. Fiquei pensando comigo mesmo onde estaria o velho Timmy tão exuberante.

  Ellen interrompeu-o abruptamente, querendo mudar de assunto.

  - E você tem visto alguns bons filmes ultimamente, Kevin? Veio outra vez uma reprovação sutil.

  - Você devia chamá-lo Padre Kevin, querida. Pois então não sabe que ele é padre?

  E, mais uma vez, não houve reação à reprimenda.

  - Vocês dois ficam aí falando dos velhos tempos e eu vou ver como vai indo aquele peixe na cozinha. Padre Kevin, se essa malandrinha aí lhe der algum trabalho, ponha-a de volta no berço. Ela vai chorar, mas isso é bom para os pulmões.

  Quando saiu para a cozinha, ela passou de leve os dedos pelo rosto e o pescoço de Tim.

  - Não deixe que ele coma muitas bolachas, querido, senão vai perder o apetite.

  O rosto de Tim mostrou como se sentia feliz, e começamos então a discutir sobre o campeonato no ginásio jesuíta. O queijo e as bolachas não iam ameaçar muito o meu apetite. O primeiro estava duro como pedra porque acabara de ser tirado da geladeira e as bolachas estavam passadas.

  Também o peixe com batatas deixava a desejar porque tinha sido cozido demais, e tudo porque a terrível Caroline tinha feito uma grande manha no momento crítico de sua preparação. U vinho, pelo menos, compensou um pouco. Comemos na cozinha, já que não havia sala de jantar. Tim fazia tudo que podia para Ijudir a servir a comida, e embora só -«P*^^ sempre lhe agradecia. Falamos a respeito de KMUMH. nas Nações Unidas, e Tim era de opinião que os Estados Unidos deviam cair fora. O casal concordava que a Maureen estava com a razão e que John Kennedy poderia conseguir sua designação para candidato do partido no ano seguinte.

  Conversamos principalmente sobre os planos de Um para quando se formasse e fosse autorizado a praticar. Ele falava com convicção.

  - Nós vamos comprar uma casa em River Forest e uma outra casa de verão no lago, perto de sua família, e a Ellen vai ser a mulher mais bem vestida da paróquia. Ela tem bom gosto para isso e vai chegar o dia em que ela terá o dinheiro que quiser.

  - O mais importante é que ela tem uma família que a adora a despeito das manhas da princesa.

  Eu tornaria a dizer aquilo mais mil vezes só pela gratidão que vi em seus olhos.

  - É isso que eu estou sempre dizendo para ele, Padre Kevin. Eu não desejo mais nada...

  - E nós também lhe daremos outras coisas mais, minha que rida. - Tim deu-lhe uma pancadinha na mão.

  - Qual é a espécie de trabalho a que você vai se dedicar quando estiver formado, Tim?

  - A minha idéia é entrar para uma firma de advocac que tenha ligações políticas. Talvez possamos reformar a política de Chicago. O que eu qüero dizer é que para cada advogado honesto como seu pai, existem vinte trambiqueiros – Quando ele falava assim com tanto entusiasmo, o seu rosto parecia ainda mais magro.

  - Seria melhor dizer cem... - Eu ri-me, já não

podia imaginar qualquer outra coisa para a qual ele tivesse menos aptidaão.

Fomos interrompidos pelo telefone. Tim atendeu e voltou desanimado. Teria que trabalhar no dia seguinte. Já não podia pintar a cozinha.

  - Mesmo assim, precisamos mais do dinheiro do que de uma cozinha sem aquelas manchas todas, não é mesmo, querida? Na próxima vez, quando o Padre Kevin vier, nós teremos uma cozinha novinha em folha.

Eu saí cedo, dando como desculpa a missa das seis e meia e que tinha também que rezar o Breviário. Eu já tinha feito isso, e a minha missa era a das oito e quarenta e cinco. Eu não tinha assunto nenhum para conversar com ele.

  Eles me pediram, muito respeitosos, que abençoasse a família. Ellen foi buscar Caroline que dormia tranqüilamente e os dois se ajoelharam de mãos dadas. Abençoei-os todos, pedindo a Deus nosso Pai, ao Filho e ao Espírito Santo que lhes desse o que eu não podia dar. E com essa invocação Caroline acordou chorando. Quando chegamos à porta, Tim abraçou a mulher pela cintura.

  - Foi ótimo vê-lo novamente, Padre Kevin. Foi uma verdadeira honra tê-lo em nossa casa. Prometa voltar em breve, sim?

  - Prometo sim, Tim. - Mas eu estava mentindo, e a expressão triste no rosto de Ellen disse-me que ela não se enganava.

  No dia seguinte falei com minha mãe ao telefone.

  - O pior de tudo é que ela se dá conta de ter feito uma péssima escolha. Quando eu saí, ela estava com os olhos cheios de lágrimas. Se, pelo menos, ela conseguisse se enganar que tudo vai dar certo...

  - Por que é que você sempre tem que ver as coisas debaixo de termos tão moralistas, Kev? - Ela demonstrava mais impaciência do que geralmente havia quando falava com o seu primogénito.

  - Quem sabe ainda vai dar certo, Kev. É preciso dar-lhes algum tempo.

  - Não foi essa a impressão que tive na noite passada, mamãe.

  - Eles estão atravessando um período difícil, meu filho. Já com um filho e outro a caminho. Tenho certeza que se amam.

  - Ela sente pena dele.

  - Mas isso faz parte do amor, meu filho. Ellen é uma moça com vontade muito forte. Não vai entregar os pontos com facilidade. Quando eles tiverem tempo, e quando não tiverem mais problemas, então você vai ver como o casamento deles vai melhorar.

  — E o que possa fazer? — Eu não conseguia acreditar.

  — Seja um bom amigo. Visite-os com freqüência. Leve-os para jantar fora. Anime-os. Não se mostre sombrio e sério com eles, por mais difícil que isso possa ser para você.

  Aquele era um conselho sensato, e eu tinha todas as intenções de segui-lo, mas, mesmo assim, sempre achava urrt pretexto para não lhes telefonar.

Na tarde da quarta-feira seguinte, com a porta de meu gabinete fechada, para que a irmã do pastor, que também toma conta da casa, não nos visse, eu e Marty somamos as cifras dos envelopes do domingo numa velha máquina.

  Apertei o botão do Total e puxei a manivela.

  — Mil e quinhentos dólares, Marty, e só dos envelopes. Isto não inclui os cheques nos envelopes nem o dinheiro miúdo.

  — Pelo menos mais uns quinhentos...

  — Ele falou em voz alta e com a voz apertada.

  — Mil dólares por domingo, cinqüenta mil por ano. E durante quantos anos, Marty?

  — Eu apertava a mão corn força.

  — Assim vale a pena voltar de avião para contar, não acha? E com isso ainda fica sendo um cidadão muito dedicado. E o que vamos fazer agora?

  — Marty estava mais indignado ainda do que eu.

  — Vamos continuar fazendo a mesma coisa até o Natal, só para ver quanto ele tira nessa ocasião. Depois vamos mostrar ao Leo. Se ele não acreditar em nós... e aposto como não vai mesmo... então nós ameaçamos com o seu irmão.

  — Comigo não vai haver nada, Kevin, por causa de meu irmão. Mas se o pessoal da cidade ficar sabendo que você fez isso com o Leo Mark, eles jamais o perdoarão. Você sabe como ele é respeitado como pastor.

  — Quando tudo isso ficar sendo conhecido, ele não vai mais ser tão respeitado. De qualquer forma, não ligo a mínima sobre o que possam fazer comigo.

  Os "missionários" chegaram nas primeiras duas semanas em novembro. Eram dois homens enormes, de caras feias, em hábitos religiosos azuis e capas pretas que trovejavam sobre os pecados, a morte, o inferno, lá de cima do púlpito nas manhãs de domingo e durante todas as noites da semana, trazendo à tona culpas do passado, deixando nervosas as consciências fracas e fazendo com que ficassem frias todas as camas de casais da comunidade, espalhando o pavor sobre "os pecados da carne" e o "suicídio da raça". Dois padres foram mandados embora para dar lugar a eles na primeira semana. Os outros dois foram na semana seguinte. Marty conseguiu folga para a primeira semana, e eu para a segunda, de maneira que um de nós ficasse para vigiar os envelopes de domingo.

  A primeira semana foi de um terror surrealista. Os homens foram as primeiras vítimas. Por mais estranho que parecesse, eles, mais do que as mulheres, ficavam a imaginar se haviam ou não mencionado, com todos os detalhes, todos os seus pecados em todas as confissões feitas durante sua vidas. Todas as noites, depois dos sermões, e todas as manhãs durante a missa, eu suava frio no confessionário, tentando persuadir os apavorados homens da paróquia de que Deus não era um advogado da acusação.

  Aquilo me era especialmente difícil, já que os missionários eram reconhecidos como homens santos e sábios, muito mais santos e mais sábios do que aquele jovem padre ruivo que, de qualquer forma, era mesmo um tanto radical.

  Embora a maioria dos homens de nossa paróquia fossem homens bem-sucedidos na vida e profissionais de valor, os seus antecedentes religiosos nas suas educações tinham deixado neles um resíduo de superstição e magia na maneira como encaravam Deus e os pecados. Era justamente aquilo que os missionários andavam procurando.

  - Está havendo uma grande quantidade de más confissões. Era o que dizia um dos missionários, um homem de cabelos brancos longos e que se embebedava todas as noites na reitoria. Ouvi um homem, esta noite, que não fizera uma boa confissão nestes últimos cinqüenta anos. Imaginem só que sacrilégio.    

  - Disse isso e emborcou mais um copo de uísque puro sem pestanejar.

  Eu continuava a beber a minha Pepsi, mas não me contive.

  - Parece uma vergonha enganar a Deus tirando-lhe todo o prazer que teria punindo um cara como esse.

  - A mim quer parecer - disse o missionário - que quando a gente encontra uma paróquia cheia de más confissões, isso só reflete mal nos padres que ali servem.

  Leo ficou branco, e eu tive ali a certeza de que eles jamais voltariam à nossa paróquia.

  - Nos padres, mas não no pastor. - Disse isso e levantei-me para atender ao telefone. - São eles que, durante esses cinqüenta anos, vêm ouvindo essas confissões.

  Era a Mônica Kelly.

  - Esses caras são malucos ou o que é que eles são, padre? O Pete me disse que não pode mais beijar-me o boa-noite porque, se o fizer, seus lábios ficarão queimados e serão apenas carvões para toda a eternidade. E o negócio, padre, é que ele não é tão

bom assim em matéria de beijos...

  Pete era o presidente do Clube e Mônica era a sua namorada em vigor.

  - Vá contando isso à garotada, Mônica. Diga-lhes para não acreditarem em nada do que dizem esses dois caras, especialmente quando eles dizem que, para amar a Deus, as pessoas precisam ser freiras ou padres. Diga-lhes que somente o Padre Herlihy ou eu somos infalíveis como o Papa. Está compreendendo?

  - Sim, padre. - Ela não parecia muito convencida. - Eles apavoraram a garotada toda.

  - Diga-lhes que venham até aqui amanhã depois das aulas, às cinco horas.

  Vou conversar com eles na biblioteca. Quanto a vocês, meninas, fiquem de fora.

  Conversaremos na noite seguinte. Está certo?

  - OK, padre. Vou espalhar por aí. Beijar não é nenhum pecado, não é mesmo, padre? Quer dizer... se não for muito demorado, não é?

  - Mônica, você poderia beijar o Pete durante vinte anos, e isso não seria nem mesmo um pecado venial.

  - É melhor que acredite mesmo, padre. - Ela deu uma risadinha.

  Pat ofereceu-se para me levar ao aeroporto para pegar o avião para Nova York. Isso evitaria que eu arrastasse a Mary Ann, ou mesmo o Coronel, até lá na parte sul.

  Ele parecia inquieto.

  - Kevin, eu já lhe devo mais favores do que me seria possível pagar durante toda a minha vida. Estou tentando pagar alguma coisa, só uns poucos deles, com o que vou lhe dizer, embora isso não lhe pareça assim. - Ele calou-se sem saber como continuar.

  - Pois diga lá o que é.

  - Bem, é o seguinte. Algumas pessoas de sua paróquia, sabendo como somos amigos, pediram-me que lhe falasse... sobre a sua atitude. Eles não estão gostando, e então me pediram para falar com você...

  - Já sei. Foram os Kaspars, os Tanseys e os Carreys... E então, de repente, fiquei sabendo de onde lhe vinham as abotoaduras e o carro novo em que ele me levava ao aeroporto.

  - Isso mesmo. Especialmente o Len Kaspar, que tem sido muito bom para nós lá na paróquia. Ele se responsabilizou por todas as despesas com as nossas aulas de instrução no inverno. E ele não tem a metade do dinheiro que têm o Arnold e o John.

  - Homem bom, esse. - A minha apreciação vinha com um sarcasmo que Pat não podia compreender. Era o nosso dinheiro que estava pagando as instruções dos convertidos e o carro de Pat.

  - Se você prefere que eu não diga mais nada, Kev...

  - Não, não. Continue falando, Pat.

  Ele passou a mão nos cabelos, fez uma careta e parou num sinal vermelho na Rua Sessenta e Sete.

  - É uma condenação muito ampla, e eu não estou fazendo um julgamento.

  - Claro que não...

  - Acham eles que você não respeita o Leo Mark, que olha com desprezo os paroquianos mais ricos e que está favorecendo radicais inovações litúrgicas. Que você prega demais a justiça racial, e que está querendo tomar conta da paróquia para manobrá-la ao seu gosto.

  - Culpado em todos os pontos. Volte e diga-lhes que é isso mesmo. E diga-lhes também que pretendo continuar a fazer justamente o que estou fazendo.

  Paramos na porta da United Air Lines em Midway. Saltei do carro e apanhei a mala que estava no banco traseiro. Apontei para o carro e perguntei:

  - Isto foi um presente do Kaspar?

  - Foi sim. O meu velho carro enguiçou e eu não tinha o dinheiro...

  - Era o que eu pensava. - Bati com força a porta do carro e entrei no terminal.

  Fui de trem até Boston para ver a Maureen antes de voar de volta para casa no fim de minhas férias.

  Sheila era uma garotinha encantadora, embora fosse tão plácida como Caroline era ativa. Depois de haver sido devidamente inspecionada, ela foi levada, sem protestos, por uma babá gorda, para algum lugar da casa onde uma possível manha sua não viesse perturbar as conversas dos adultos. A mãe também era um contraste chocante com a mãe de Caroline.   

  Esbelta, bem cuidada e elegantemente vestida.  

  Estava tensa e excitada com a campanha política que se aproximava. Maureen estava ali sentada junto  de uma mesa antiga no apartamento de Black Bay, como se já estivesse ensaiando para ser uma das anfitriãs de Washington.

  - Nós vamos conseguir, Kevin. - Bateu na mesa com a mão fechada e por pouco não enfiava o punho de pele do vestido dentro da sopa. - O Jack Kennedy vai ser designado e depois vai ser eleito. O Burke vai vencer na Assembléia, com a mais espetacular maioria da história, daqui a dois anos. Quando houver uma eleição especial para preencher a vaga deixada por Jack, ele vai ser o novo senador dos Estados Unidos pelo Estado de Massachusetts.

  - E você muda-se para Washington. E como vai o Burke na campanha?

  - Ele não é muito bom nisso. - Ela fechou a cara.   

  - Claro que são altos os padrões neste Estado, onde temos o Jack e o Bobby. O que conta é o que ele vai fazer depois de eleito.

  Não cheguei a perguntar se ele ainda estava bebendo muito, mas não me faltou vontade para isso.

  - E você é boa nas campanhas, como as mulheres dos Kennedys?

  - Claro. - Ela sorriu com orgulho. - Nós nos divertimos muito. Alguns homens dizem que eu sou ainda melhor do que Jean e Eunice, e Deus sabe como é fácil ser melhor que a Jackie.

  - E o que é que você lhes diz?

  - Eu digo que sou boa mesmo porque sou de Chicago. E com isso eles se calam. Será que o Prefeito Daley vai realmente entregar Chicago para o Jack? As pessoas mais esclarecidas acham que ele fica preocupado com o problema dos que são contra o catolicismo.

  - No Condado de Cook? - Eu dei uma risada. - Mas claro que Daley vai entregar Chicago, quando se convencer de que o Jack vai ganhar. Em Chicago nós não apoiamos perdedores, desde que isso seja possível. Meu pai diz que o Daley é tão católico como o Papa, e talvez, até mesmo, um pouco mais. Claro que ele vai apoiar o Kennedy.

  - Por falar em Papa. O que é que há com o meu amigo, o Papa do West Side? Ele não é dos que gostam de escrever cartas, hein? - Ao falar aquilo, o seu rosto angelical mudara de uma expressão para outra, ambas animadas, enquanto seus dedos brincavam nervosamente com a colher da sopa.

  - Está muito ocupado reconstruindo a Igreja e falando das incompetências do Papá Roncalli. - Enquanto falava, eu a observava com atenção. - O meu palpite é que ele está no caminho certo para subir. Uma coisa eu posso dizer: embora tenha procurado se aproximar de todos os seus antigos colegas, depois que voltou de Roma, ele está novamente com a turma. Não há vestígios do antigo jogador imprevisível de basquete.

  - Já tomou o seu lugar como líder, Kevin? - Ela disse aquilo arqueando as suas encantadoras sobrancelhas.

  - Caí fora desse papel quando tinha dezenove anos, Mo.

  - Você acha que ele quer ser bispo? - com os cotovelos na mesa e as mãos no queixo, Maureen debruçou-se para mim. Quando esteve aqui neste verão, ele mostrou-se em seu elemento quando esteve lá no Cape. - Ela empurrou a cadeira para trás com impaciência e começou a andar de um lado para outro como uma leoa enjaulada. - Você devia tê-lo visto exibindo todo o seu charme lá em Hyannis, nas casas dos Kennedys. Eles estão acostumados com padres de fala macia. Alguns sorrisos, umas boas gargalhadas de rapazes, algumas piadas e, em pouco tempo, estava com a mãe dos Kennedys, a Rose, enfeitiçada por ele. Ele realmente gosta disso. Adora estar no meio dos ricos e dos poderosos.

  - E quem não adoraria?

  - Eu gosto muito do Pat - Maureen nem me ouvia - mas ele não é muito bom quando se trata de resistir às tentações. Dinheiro, poder, prazeres, tudo isso ativa os seus demônios negros. Se ele não conseguir se entender com esses demônios com os seus paroquianos pobres, ele vai destruir-se.

  - Demônios negros? Acho que não estou...

  - Mas, que diabo, Kevin. Todos nós os temos. O Pat está na encruzilhada de sua vida. Agora ele está quase envolvido na corrupção... Não me olhe assim, Kev. Ele está mesmo. E se você não conseguir detê-lo, ele vai abandonar os seus pobres e vai sair em busca do poder. Aí então todos nós estaremos encrencados, e você muito mais que os outros.

  - Creio que você está exagerando, Mo.

  Como se já estivesse cansada de falar sobre Pat, ela mudou de assunto de repente.

  - E como vai a Ellen? As suas cartas não me contam nada.

  - Ela está grávida outra vez, e creio que isso não a ajuda muito...

  - Isso não vai acontecer comigo durante muito tempo. - Ela logo interrompeu-me. - É o que lhe posso garantir, Kev.

  - E embora eles se amem muito, parece que está faltando alguma coisa...

  - Você acredita em sexo, Kev? - Ela tornou a sentar-se e começou a comer seu pirão de batatas. - A Ellen não me conta, mas eu adivinho. Ela é uma sonhadora romântica, e os dois são inocentes. E quero dizer isso mesmo. Inocentes. Nada sabem a respeito de sexo. Depois que o Tim pôs à mostra o traseirinho dela, eu aposto como ele não tinha a menor idéia sobre o que fazer em seguida.

  - Eu não posso saber. Creio que com o tempo eles descobrirão. Tudo de que precisam são algumas oportunidades.

  - Pois não é isso mesmo que todos nós precisamos? - Ela falava com amargura, empurrando o prato e estendendo a mão para o copo.

  No aeroporto de Logan, enquanto esperava o avião para Chicago, pensei comigo mesmo que eram inúmeras as coisas que podiam sair erradas em um casamento, e isso sem contar o sexo. A caminho de casa eu me concentrava na melhor maneira de liquidar Leonard Kaspar.

  Foi somente no carro, já de volta à reitoria, que me lembrei. Esquecera completamente de abençoar Sheila quando saíra do apartamento de sua mãe em Boston. A pobrezinha certamente precisava de todas as bênçãos que conseguisse obter.

 

  Uma tremenda tempestade de inverno assolava a área de Chicago. Os rostos dos pedestres que caminhavam apressados pela Avenida Michigan estavam encolhidos e ansiosos.

  Eles nem mesmo se interessavam em levantar os olhos para a nova torre Hancock que se erguia como uma nova Torre de Babel em aço e vidro, e que chegava a penetrar nas nuvens escuras. Os aeroportos estavam fechados, tanto o Midway como o novo de O'Hare. Len Kaspar não ia conseguir voltar para Chicago quando voltasse da Flórida.

  Eu tinha certeza de que íamos pegá-lo. Seu plano era audacioso mas, na verdade, muito mal bolado. Somente um bestalhão como ele se meteria numa coisa assim. E não havia razão para se pensar que o seu sucessor não fosse também um bobalhão como ele.

  Nós conseguimos sobreviver as três primeiras missas sem um usher chefe. Às dez, quando o coro estava chegando, o sol conseguiu romper as nuvens.

  A última missa começava ao meio-dia e quinze e ele ainda não estava lá no seu lugar, na porta principal da igreja.

  - O chefe está lá todo nervoso pensando em quem vai contar o dinheiro - disse Marty. - Tudo que precisamos fazer é nos oferecermos.

  - Não vamos nos apressar. Se parecermos por demais interessados, o Len vai desconfiar. Não vamos querer botar tudo a perder, Marty.

  Era uma e cinco quando Kaspar apareceu, suave e despreocupado. Desculpou-se com o monsenhor, explicou que tinha sido o tempo e, com muita modéstia, recebeu os entusiásticos elogios do bom homem pela sua dedicação ao serviço.

  Algumas horas depois, naquela mesma tarde, eu estava no gabinete de meu pai olhando a neve derreter-se no gramado em frente de nossa casa enquanto o sol ia desaparecendo.

  - É incrível - meu pai fumava furiosamente o seu aromático cachimbo - absolutamente incrível. Que magnífico advogado você poderia ter sido, Kevin, embora, veja bem, eu tenha a certeza de que vai ser um padre ainda melhor. - Ele estava visivelmente embaraçado quando tentou corrigir o que dissera primeiro.

  - Senhor Promotor, onde é que ficamos?

  Ele franziu o rosto e passou a mão pelos cabelos brancos.

  - Suas provas são muito fracas, Campeão. Você tem razões para suspeitar que houve roubo de dinheiro nos meses em que vocês tomaram nota de tudo, mas, para os nove meses anteriores, tudo que vocês têm são conjecturas. Um júri provavelmente o condenaria com as provas que você tem, mas isso se vocês conseguissem chegar até lá. O seu grande problema seria um veredicto de não culpado em vista de provas insuficientes. A polícia poderia ajudar se você apresentasse queixa, mas então tudo escaparia de suas mãos. E então tudo se transformaria em um complicado escândalo público que viria prejudicar a paróquia e a Igreja. Poderia até mesmo causar a morte do seu pastor, e não acredito que você deseje isso.

  - Então nós vamos ameaçar o Kaspar, vamos recuperar tudo que for possível, e vamos ficar caladmhos? - Eu andava de um lado para outro muito nervoso.

  - Isso mesmo, Kevin. Se o Tansey estiver envolvido, você vai ter que se haver com um cara muito duro... e eu estarei em um conflito de interesses, possivelmente.

  - Será que poderíamos arrasar o Tansey?

  - Acredito que sim. Ninguém é invulnerável. O escândalo iria prejudicá-lo, e ele é tão orgulhoso como se fosse realmente um anjinho.

  O Coronel telefonou-me na tarde seguinte.

  - Os investimentos imobiliários do Kaspar na Flórida valem mais de dois milhões de dólares. Ele já tem dinheiro bastante para se aposentar de suas falcatruas na hora que quiser sem que isso lhe faça a menor mossa.

  - Mas que sacana!

  - Neste momento, a terra não representa um património líquido, com a economia do jeito que está. No entanto, ele poderia contrair um empréstimo sem a menor dificuldade. Se alguém oferecer duzentos mil, Campeão, você deve aceitar logo. E bem depressa.

  Eu tinha justamente acabado a tabela do voleibol feminino quando o Marty entrou muito afobado. Estava quase sem fôlego.

  - Contei o envelope de domingo. Ele tirou mil e duzentos dólares, ontem. Por quanto tempo vamos deixar que isto continue?

  - Até o dia em que ele cometer um erro. - Respondi com muita calma. - Aí vamos pegar tudo de volta. Ele tem muitos terrenos na Flórida.

  - E se ele não pagar?

  - Ele vai pagar, Marty. Será bastante ameaçarmos com uma denúncia ao Imposto de Renda.

  - Mas isso é chantagem, Kevirí. - Marty arregalou os olhos, muito chocado.

  - É a maneira de recuperarmos o nosso dinheiro, Marty. Dizendo isso voltei para a minha tabela do voleibol.

  O Natal foi um pesadelo em St. Praxides, com doze horas de confissões e muitos dos paroquianos combatendo as neuroses que os missionários tinham feito surgir, e depois a missa da meia-noite que só acabou às duas horas. Quarenta e cinco minutos foram consumidos com um sermão cheio de divagações em que o Monsenhor agradecia a todo mundo da paróquia pela cooperação, sem contudo ter uma palavra de agradecimento para os seus padres e para o Menino Jesus. Estávamos todos de pé às seis da manhã para ajudar nas comunhões das missas da manhã e para contar o dinheiro arrecadado no Natal. Cada Natal era considerado pelo pastor como uma espécie de plebiscito em que os seus paroquianos votavam dando-lhe apoio em vista de sua administração. Se a coleta aumentava, ele chegava à conclusão de que tinha sido aprovado. Se permanecesse constante, ou se diminuísse, então era porque ele fracassara. Todos os anos ele entrava em pânico antes do Natal, sempre esperando por um veredicto contrário à sua administração.

  Claro que isso nunca acontecia.

Naquele dia Kaspar contou apenas o dinheiro da última missa do dia.

  Às três horas da tarde nós todos nos reuníamos no porão da reitoria e, enquanto as outras famílias cristãs estavam jantando, chegávamos ao total geral. Leo Mark parecia que ia ter ali um ataque cardíaco à medida que anotava os números lidos por Len Kaspar, muito queimado e com um elegante terno novo.

  Monsenhor somou uma vez, depois tornou a somar sacudindo a cabeça, não conseguiu mais conter sua alegria, exclamando:

  - Seis mil dólares. Mais dois mil e quinhentos do que na última vez, no ano passado.

  - Congratulações, monsenhor. - Len parecia igualmente feliz. - O pessoal todo correu em seu auxílio novamente.

  Era a minha vez de levar o dinheiro ao banco. Não podíamos arriscar deixando-o passar a noite no precário cofre da paróquia. Algum pobre caixa do banco estava perdendo o seu jantar de Natal com a família para ficar esperando pelo nosso depósito. Como exceção especial, o padre que levasse o dinheiro poderia usar o Cadillac do monsenhor, já que a alternativa seria caminhar mais de uns dois quilómetros pela neve com uma sacola de dinheiro às costas.

  No dia seguinte Marty veio me contar o que tinha descoberto.

  - O espírito do Natal deve ter afetado o Kaspar. Ele só roubou quinhentos dólares.

  - E isso mal chega para pagar aquele terno novo, Marty.

  No domingo depois do Ano-Novo fui designado para a missa das dez horas da manhã. Eu poderia dormir até às nove, já que a minha primeira obrigação era assistir e ajudar na comunhão das nove e meia. Aquilo não agradava ao monsenhor, mas, apesar de muito procurar, ele não podia encontrar uma razão que obrigasse o padre da missa das dez a estar de pé antes das nove, aos domingos. Eu, geralmente, não dormia muito até tarde, mas, sempre que rezava a missa das dez, dormia até tarde por uma questão de princípios.

  Estava ainda meio tonto de sono quando o Marty deixou o altar. Deus está me castigando, foi o que pensei. Lá fora, no ar ainda frio, a fumaça branca das chaminés apontava para o céu como se fosse fogueiras de acampamentos de índios nas planícies.

  - Ele não está lá. - Marty estava ofegante.

  - Quem é que não está lá, Marty? - Eu estava colocando hóstias num cibório.

  - Kaspar. Foi para a Flórida, outra vez. Ele telefonou. Há outra tempestade e ele só poderá voltar no fim da tarde. Garantiu ao monsenhor que contará o dinheiro à noite.

  - E daí? - Acabei de encher o cibório e coloquei a tampa dourada.

  - E o Leo Mark está tonto. Se não tivermos o dinheiro contado até às três horas, isso vai atrapalhar tudo. Tenho uma vaga idéia de que teremos que fazer a contagem.

  - Vamos ter que contar nós mesmos. - O pastor fechou seu relógio de ouro e levantou-se da mesa.

Os dois padres velhos foram dispensados. Monsenhor, Marty e eu descemos para a sala de reuniões toda forrada de tábuas com nós de pinho, no porão, onde logo começamos a abrir os envelopes. Minha mão tremia.

  Eram três horas quando acabamos. Arrumei as três pilhas de papel verde em cima da mesa e anunciei:

  - Dois mil e trinta e cinco dólares, incluindo os cheques.

  - Menos do que no último domingo - disse o pastor.   

  - Isso é gente que está em férias de inverno. As pessoas não percebem que a boa sorte delas pode prejudicar a Igreja.

  - Estou falando só das últimas duas missas - disse eu com voz macia. Marty estava pálido e seus dedos formavam estranhos padrões em cima da mesa.

  - Deve haver algum engano. - O pastor não se conformava.

  - Vocês devem ter esquecido das duas primeiras missas.

  - Negativo. - Coloquei um saco de dinheiro em cima da mesa. - Aqui estão as quatro primeiras missas. - Esvaziei os montinhos verdes e a pilha de cheques que estavam dentro do saco, como se aquilo fosse uma comucópia.

  Leo contou todos os montinhos, somou os cheques mais uma vez na máquina de calcular muito bombardeada e depois contou outra vez o dinheiro.

  - Deve haver algum engano. - O seu rosto estava cinzento.

  - Aqui há mais de três mil dólares, e este domingo não é dos mais importantes.

  - Mas também é o primeiro domingo nesses últimos dez anos, mais ou menos, em que a contagem das duas últimas missas não foi feita por Len Kaspar - eu disse aquilo com o olhar desviado para um dos condicionadores de ar ali numa das janelas da sala.

  - Esta é uma afirmação ultrajante! - disse o monsenhor com a voz abafada onde não se percebia sinceridade. Ele já ouvira muita coisa a respeito de paroquianos que haviam prevaricado.

  - Olhe aqui estas listas, monsenhor. - Passei-lhe então as folhas com as quantias dos últimos quatro meses. - Note que os nossos depósitos no banco sempre mostram que os das duas últimas missas são menores do que os das primeiras quatro. Eu mesmo não conseguia descobrir isso, mas creio que, agora, já temos a explicação.

  Ele estava tão acabrunhado que nem mesmo me perguntou como eu tinha conseguido aqueles números.

  - Nós podemos ver os envelopes dos últimos domingos. Marty percebeu logo a "deixa" e entrou no assunto. - Eu ainda não os arquivei, e poderemos ver se as somas nos envelopes confirmam o que parece estar acontecendo.

  - O que vão dizer os meus amigos quando souberem disso?

  - Leo estava arrasado. Tremia e gaguejava. - A minha reputação como administrador estará arrasada. Nunca mais vamos poder recuperar isso, e eu vou apenas despedi-lo  do cargo e... também não vamos contar a ninguém. Não podemos permitir que isso se espalhe.

  - Talvez não se consiga recuperar tudo, mas vamos recuperar alguma coisa. Creio que podemos manter isso em segredo, mas se não houver qualquer tentativa de restituição, acho que devemos entregar o caso à Chancelaria, e ao procurador do Estado. Minha consciência me obriga a isso, e creio que você também pensa assim, não é Marty?

  Ele acenou com a cabeça.

  Leo Mark começou a tossir e eu tive medo de que ele se engasgasse e morresse. Foi nessa hora que Len Kaspar despencou pela escada com um sobretudo de cashmere cor de couro e um cachecol muito elegante.

  - Mas o que é que está havendo aqui? - A pergunta foi feita numa voz que escondia a sua inquietação.

  - Você está demitido de seu cargo de usher chefe a partir deste momento - disse o monsenhor abotoando a sua batina numa tentativa de recuperar a sua dignidade.

  Embora o seu bigodinho tremesse, Kaspar manteve-se calmo.

  - É o primeiro domingo que eu falto em doze anos, monsenhor, e o senhor me despede? - Ele mostrava-se muito magoado.

  A mulher dele veio logo atrás enrolada no seu custoso casaco de mink. Ela era mais moça e mais bonita do que Mary Tansey, e da mesma forma que a irmã, ela parecia recortada em papelão.

  - O que há é que encontramos mil dólares a mais na coleta quando contamos - disse eu, contente por poder entrar na conversa.

  - E você, seu sacaninha de merda - ele voltou-se para mim como uma fúria solta - o que é que está querendo insinuar?

  - O que eu estou querendo insinuar, Sr. Kaspar, é que tem havido algo de errado com as duas últimas coletas durante muitos anos. Tenho aqui os registros de quatro meses. - Atirei-os para ele por cima da mesa. - Nesse período, parece que a paróquia perdeu uns dezoito mil dólares.

  - O senhor vai permitir que este arrogante filho da puta me difame? - Kaspar voltou-se para o monsenhor. - Tudo isso é uma grande calúnia. No próximo domingo eu estarei lá no meu posto como de costume.

  A cara de Martha Tansey Kaspar com seu olhar muito duro matou a questão. Ela estava também na jogada e enterrada até o pescoço, onde estavam as suas lindas e perfeitas pérolas.

  - Se for uma calúnia, eu lhe ficarei devendo minhas desculpas. - Eu não perdi a calma. - No domingo que vem, quem vai contar somos nós, não é mesmo, monsenhor?

  Leo não sabia para onde se virar. Ele estava com medo da raiva do Kaspar, estava com medo do escândalo, e estava com medo por causa de sua reputação. E no entanto, o que era, aliás, bastante estranho, ele também estava com medo de mim.

  - É sim, Kevin... - a sua resposta estava cheia de humildade.

  Kaspar apanhou a papelada em cima da mesa, rasgou tudo e atirou-me em cima.

  - Os seus números, Brennan, são um monte de merda. Para mim eles não têm a menor importância.

  - Eu tenho cópias de tudo lá em cima. E lembre-se de que, para você, eu sou o Padre Brennan.

  - Vamos embora, Martha - ele agarrou a mão enluvada da mulher - não somos obrigados a aturar isto tudo.

  - Nós temos dados atrasados durante uma década, e você está devendo a esta paróquia, pelo menos, meio milhão de dólares. Acho que vai ser obrigado a vender uma parte de suas propriedades na Flórida. Nós lhe damos dez dias. Se não houver resposta sua, vamos levar o caso para o procurador do Estado e para o Imposto de Renda. - Eu dizia tudo aquilo inventando alguma coisa.

  Pela primeira vez, era fácil ver o medo estampado no seu rosto bem escanhoado. Ia dizer alguma coisa, mas a mulher puxou-o pelo braço. Eles fizeram meia-volta e subiram as escadas, para logo saírem no meio da neve que caía.

  O rosto de Leo estava enterrado nas mãos, e foi com a maior docilidade que me perguntou:

  - O que é que vai acontecer, Kevin?

  - Tudo depende deles envolverem ou não o Tansey. Não se preocupe, chefe. Não podemos perder. - Coloquei minha mão em seus ombros para acalmá-lo.

  De volta em meu quarto e sentado na poltrona de couro escuro, telefonei ao Coronel para lhe contar o sucesso. Meu pai respondeu dizendo-me que logo na manhã seguinte ele avisaria ao Tansey de que não podia continuar como seu advogado.

  - Eu, aliás, nunca fui muito com aquele cara - disse ele.

  Eu gostava da vitória, mas já não gostava tanto de suas seqüelas. Pensava nos soluços do pastor, no bigodinho de Kaspar que tremia, no ódio que via nos olhos de sua mulher e nos lábios apertados de Marty. Desejava ter alguém com quem fosse possível conversar.

  De repente, num impulso, agarrei o telefone, procurei na lista o nome Curran, no Jackson Boulevard, e comecei a discar. Já tinha discado cinco dos sete números quando desliguei.

  Na tarde de terça-feira o pastor veio ao meu quarto.

  - Kevin, humm... o seu amigo Pat Donahue está no telefone. Tansey quer que ele converse comigo sobre o nosso problema.

  - Filho da puta...

  - Kevin, por favor. Ele deixou bem claro que não está de lado nenhum. Apenas está tentando acomodar as coisas de uma forma cristã. Vamos falar com ele? Ele diz que pode vir esta noite.

  - Mas claro. E por que não?

  Eu estava furioso com Pat. Nós podíamos estar precisando de um intermediário honesto, mas não precisávamos dele.

  Depois do jantar, naquela noite, Pat chegou à reitoria em um outro Oldsmobile novo. Presente de Tansey por serviços prestados.

  Estávamos todos sentados em torno da mesa no gabinete do pastor: Marty Herlihy, Leo Mark Rafferty, Patrick Donahue e eu, que estava bebendo uma bebida irlandesa, já sem me lembrar do juramento dos cinco anos.

  - Olhem aqui, senhores - Pat falava com muita suavidade eu não aprovo o que aconteceu. Pelo contrário, considero tudo muito desprezível. Da mesma forma que vocês, eu também quero proteger a Igreja e evitar um escândalo. E esse é também o desejo do Sr. Tansey. Ele se obriga a garantir um pagamento de cinqüenta mil dólares por ano durante os próximos dois anos, e em troca só deseja que dêem suas palavras de que tudo será esquecido. O senhor concorda com isso, monsenhor?

  - Bem, isso é muito generoso do Arnold. Acho que nós, certamente. .. - ele esfregava as mãos muito satisfeito.

  - Nossos números mostram meio milhão de dólares - disse eu sem papas na língua.

  - O Sr. Tansey não acredita que isso possa ser provado - Pat mexeu-se inquieto e pôs de lado o copo   - e tampouco acredita que vocês tenham provas que sejam aceitas em um tribunal. Bem podem imaginar que ele não aprova o que vocês fizeram, mas, mesmo assim, como bem podem imaginar, ele quer que a Igreja nada sofra por causa desses prejuízos. Claro que ele não pode assumir a responsabilidade por todo o prejuízo.

  - Pois então faça com que o Sr. Kaspar assuma a responsabilidade por todo o prejuízo - eu insisti. - Ele que venda as suas propriedades na Flórida. Creio que o Sr. Tansey sabe bem o que poderia acontecer se o Imposto de Renda fizesse uma auditoria nos bens de seus parentes.

  - Claro que ele sabe, Kevin - Pat ficou muito pálido - embora ache que a Igreja haverá de preferir que seja evitada a publicidade que uma investigação dessa ordem causaria.

  - Mas não tanto quanto ele mesmo desejaria. E quanto às propriedades na Flórida?

  - Está tudo em nome da mulher dele - Pat passou a língua nos lábios. - O Sr. Tansey e a sua mulher não acham justo que a mulher de Kaspar seja castigada por alguma coisa que ela desconhecia.

  - Merda! - Eu não me contive mais e soltei um berro.

  - Devo então dizer ao Sr. Tansey que a sua oferta não é satisfatória? - Pat olhava, muito nervoso, para mim e para o Leo. Mas que filho da puta! Que filho da puta sujo!

  - Bem... eu... Você não acha, Kevin... - Leo estava indeciso sem saber para onde se virar e quase chegava a implorar.

  - Olhe aqui, Pat. Ligue para ele e diga-lhe que eu mandei dizer que são trezentos e cinqüenta mil dólares.

  - Eu não posso fazer isso. - Ele ficou tão vermelho que dava a impressão que ia arrebentar.

  - Pois é melhor que faça mesmo, porque senão quem vai telefonar sou eu.

  Pat foi ao gabinete do pastor e eu ouvi que falava baixinho.

  - O Sr. Tansey está no telefone. Ele está muito aborrecido com o que aconteceu na paróquia e já está inclinado a elevar a sua oferta para duzentos e cinqüenta mil dólares. - Ele falava como se o Tansey fosse o próprio Papa.

  - Fechado... - disse eu friamente.

  - O que quer dizer com isso? - Pat estava de boca aberta.

  - Fechado - disse eu esvaziando o copo e tornando a enchêlo.

  - Cinqüenta mil durante cinco anos?

  - Oitenta e três durante três anos.

  Pat voltou ao telefone, e regressou sorrindo.

  - O Sr. Tansey acha que está bem. Antes de desligar ele quer que eu lhes diga que considera isto um acordo entre cavalheiros, uma espécie de aperto de mãos oral, já que imagina estar tratando com cavalheiros.

  - Nós somos tão cavalheiros como ele. Pat voltou do gabinete.

  - Está tudo combinado. O primeiro cheque virá na semana que vem.

  - Será que ele vai querer antedatá-lo por causa dos impostos do ano passado? - A minha voz era amarga.

  Durante um momento, tudo ficou tão quieto que até parecia um túmulo.

  - É melhor eu ir andando. - Pat estava inquieto.

  - Até a vista, Pat. - Eu não lhe apertei a mão.

  A mulher estava com um robe vermelho bem grosso quando abriu a porta. Aquilo era, sem dúvida, um presente de Natal. Ele tinha lutado contra a tentação durante quase cinco anos. Agora ele se via apanhado, da mesma forma que logo ela se veria também •apanhada. Ela sorriu com satisfação. Sabia bem o que ele desejava. Suas mãos seguraram o cordão do robe. Lá fora havia gelo, mas ali dentro, em poucos momentos, haveria calor. O robe caiu de seus ombros.

  Na noite de quinta-feira encontrei Pat me esperando em meu quarto trançando os dedos.

  - Devo-lhe uma desculpa - disse muito sem jeito.

  - Esqueça. Mesmo agora, custo a acreditar no que aconteceu.

  - Eu estava certo de que...

  - Os ricos não são diferentes dos pobres, Pat, a não ser quando a gente se torna dependente deles. E é então que a pessoa se torna corrupta.

  - Para você isso é fácil de dizer, Kev... - ele falava com amargor.

  - Eu sei, Patrick, eu sei...

  - Eu preciso da ajuda deles para manter o programa de instrução e a escola da paróquia. O Mulcahey é um homem bom, mas é incompetente.

- Eu vou ajudar na administração desta paróquia de hoje em diante. Nós vamos estabelecer um fundo entre os paroquianos para ajudar você. Está bem assim?

  Alguma coisa de sua antiga vivacidade estava de volta.

  - Puxa vida, Kevin, você é generoso e eu não mereço isso.

  - Isso não vem ao caso. A sua paróquia merece.

  Os pontinhos do medo não desapareciam de seus olhos. Ele levantou-se e estendeu-me a mão.

  - Vamos trabalhar juntos outra vez, exatamente como nos velhos tempos.

  - Como nos velhos tempos, Pat. - Apertei-lhe a mão.

 

A Década de Sessenta

  Era uma noite quente de abril. Os Corpos da Paz tinham acabado de ser criados. Khrushev andava arrotando força a respeito de Berlim. John Kennedy já estava na Casa Branca, e João XXIII estava no Palácio Apostólico. Tinha chegado o degelo.

Marty Herlihy enfiou a cabeça na porta da sala de nós de pinheiro onde eu estava escrevendo cartas já bem atrasadas.

  - Telefone, Kevin...

  - Eu telefonarei depois, Marty. Receba o recado.

  - Pelo Tomde sua voz, ele está precisando falar com você agora.

  - E disse quem era?

  - Tim Curran. Lembra quem é?

  - É uma espécie de aviso.

  Fui falar no telefone que ficava na sala onde se contava o dinheiro e que ainda era a mais importante da reitoria, pelo menos na opinião de monsenhor.

  - Já soube que você tem um garoto para fazer companhia à princesa. Espero que a família esteja bem, Tim.

  - Sim, sim. Muito bem, obrigado, Padre Kevin. - A sua voz fina parecia desanimada. - A Ellen anda um pouco cansada e eu ando muito ocupado com os exames para advogado, em agosto. Mas creio que o pior já passou.

  - Dê lembranças minhas a Ellen, Tim. - Brendan, o filho deles, tinha já quase um ano, mas eu logo me esquecera da existência dele. Aquela antiga vizinhança, e a maior parte dos que a compunham eram agora parte do passado.

- Você precisa vir ver os dois... deixa passar os exames. A Caroline é uma maravilha ambulante.

  E aquilo era só o que lhes faltava. Uma filha de dois anos para meter medo ao irmão mais novo.

  - Já me disseram que ele tem os olhos da mãe. - Mary Ann e seu namorado Steve McNeil eram os padrinhos, e Pat batizara-o.

  - Tem sim, padre, e nós o adoramos. - Eu tinha a impressão de que ele estava fazendo um esforço enorme para amar. - Hum, hum. . . padre. Eu queria perguntar uma coisa, uma coisa particular. .. se é que o senhor não se importa.

  Resmunguei apenas uma coisa que não me comprometia.

  - É a respeito dessa coisa de controle de natalidade, padre. A Ellen está muito cansada e o médico diz que ela não deve ter outro filho nos próximos dois anos. Que assim seria melhor para ela. Faz três anos que nos casamos e ela esteve grávida durante dezoito meses e...

  Padre Kevin, isso não é fácil.

  Do que vale alguém ter uma mulher se não pode usufruí-la o tempo todo? Eu sabia todo o resto da conversa de cor.

  - Vocês já tentaram o ritmo? Ellen é enfermeira, e tenho a certeza de que ela... - E ali estava o padre, sempre parecido com um idiota pomposo naquela espécie de conversa.

  - Sim... bem... Os períodos dela são regulares, mas parece que isso não funciona bem em nosso caso.

Eu fiquei a pensar se eles, realmente, tinham tentado.

  - Eu sei que é duro. - Eu estava ali tentando as minhas últimas habilidades psicológicas, por meio de conselhos não direcionais e "centralizados no cliente".

  Afinal ele teve coragem de chegar aonde queria abertamente.

  - A Ellen quer usar essa tal pílula... Ela diz que a Igreja vai mudar e não há razão para ficar esperando até 1965, mais ou menos, para fazer isso. Vai mudar mesmo, padre? O caso é que eu não quero cometer um pecado mortal ou coisa parecida.

  - Não acho que haja razão para se antecipar à mudança, Tim.

  - Respondi-lhe com uma certa reserva. Se um dos cônjuges insistia em usar os anticoncepcionais, eu sempre estava pronto a lhe dar a absolvição no confessionário.

  Talvez fosse possível esticar um pouco para incluir casos como aquele. Deus meu, como gostaria se pudesse fazer isso.

  - O que eu quero saber é se seria um pecado mortal se a Ellen a usasse. - Na sua voz eu sentia a agonia que lhe ia na alma.

  Respondi com cautela.

  - Estou certo, Tim, de que a Ellen jamais faria alguma coisa que, em sua consciência, ela julgasse ser pecado. Ela deve fazer o que lhe indicar a consciência. - O cofre da paróquia parecia estar de olhos arregalados para mim por me estar afastando da ortodoxia.

  Ele ainda estava em dúvida. Talvez estivesse cansado demais para poder se dar conta da solução que eu lhe aconselhava.

  - Mas nós devemos ouvir a Igreja para formar a nossa consciência, não é mesmo, padre?

  - Tenho a certeza de que a Ellen sempre ouviu os conselhos da Igreja, Tim. - Eu já estava desesperado.

  - Acho que o senhor está certo, Padre Kevin. Eu sabia que não podíamos fazer isso, mas queria ter a certeza.

  Eu ainda pensei em tentar mais uma vez, mas afinal desisti. Tim, simplesmente, ainda não estava pronto para assumir a responsabilidade da tomada de suas decisões morais. Dentro de um ano haveria um outro filho. Nesse ponto, então, Ellen passaria a usar a pílula sem levar em conta a posição da Igreja. Mais tarde teriam problemas de consciência e recorreriam novamente ao ritmo, e teriam mais filhos antes de chegarem aos trinta e cinco anos. Em St. Praxides havia mais de cem famílias nas mesmas condições que eles.

  - Eu bem que gostaria de ajudar, Tim...

  - O senhor já ajudou muito, Padre Kevin. Reze por nós, por favor. - Eu chegava a ouvir o desespero de um homem que estivera numa caverna tanto tempo que já não conseguia mais reconhecer a luz outra vez.

Fiquei ali sentado, perto do contador de moedas, como se estivesse numa sala de espera de algum hospital depois da morte de alguém.

  Quando ia caminhando para cima, dei uma espiada no gabinete de Leo Mark.

  - Alguma novidade, monsenhor?

  Ele levantou os olhos muito nervoso. Sua visão estava ficando cada vez mais fraca, e as mudanças na Igreja estavam abalando a sua confiança.

  Ele ficou procurando uma folha de papel antes de responder em voz baixa:

  - Há sim, Kev. Gina Carrey telefonou para perguntar se você poderia levar-lhe os cheques cancelados do projeto da parte pobre da cidade. Ela quer fazer um relatório para apresentar aos diretores amanhã à noite. Aqui estão eles... Não vai ser muito trabalhoso para você? (Nos Estados Unidos os cheques pagos são devolvidos aos emitentes e são chamados "cancelados".)

  - Claro que não.

  Georgina Carrey era uma mulher difícil e, talvez, até mesmo "perigosa". Pouco tempo depois de havermos apanhado Kaspar, monsenhor tinha-me pedido para levar um maço de convites, para uma reunião da Associação Feminina, para a casa dela. Todos os seus pedidos eram sempre muito atenciosos e cautelosos, naquela época, e eu sempre atendia a tudo com muito boa vontade para levantar-lhe o moral.

  John Carrey tinha viajado a negócios, como fazia com freqüência, e o rapaz John Júnior já tinha ido dormir. Georgina estava com um vestido preto que tanto podia ser um vestido como uma peça de lingeríe, mas muito mais próximo da última hipótese.   

  Eu consegui evitar um olhar de espanto.

  - Podemos falar por alguns minutos, padre? - A sua voz não conseguia esconder a sua ansiedade.

  Ela estava então com uns trinta e poucos anos, tinha um rosto bonito e seus cabelos pretos caíam-lhe nos ombros num descuido artificial.

  Enquanto ela falava sem parar a respeito das "visões" que a perseguiam à noite, com serpentes, anjos e coisas dessa espécie, eu pensava na situação em que me encontrava.

  Eu era mais duro do que ela. Ela jamais conseguiria dominar-me, tanto na cama como em qualquer outro lugar. Seria bem divertido dobrá-la à minha vontade. Apertei a mão e meu coração começou a pulsar descontrolado. E por que não? Iria dar-lhe uma lição que ela jamais esqueceria.

  Ela me sussurrara numa voz bem rouca, e o cinto escorregara para o lado deixando à vista as ligas, as meias e as coxas.

  - John é um homem maravilhoso, mas ele, simplesmente, não consegue se interessar pelos meus problemas espirituais. Ele viaja muito.

  Ela acenou com as mãos desesperada, vulnerável e indefesa, O magnífico sofá em que ela se reclinava seria uma cama maravilhosa. Eu imaginava o gosto delicioso de sua pele de encontro aos meus lábios.   

  Parecia ter chegado a hora para eu experimentar a sensação de gozar uma mulher. Foi então que pensei em Ellen e percebi que estava sendo tentado. Relaxei as mãos apertadas.

  Levantei-me da macia poltrona onde me sentara como se estivesse caindo numa armadilha.

  - Quem sabe se não lhe seria possível ter uma longa conversa com ele para que viaje com menos freqüência? Terei muito prazer em aconselhar essa conversa, se acha que isso poderia ajudar.

  - Se ò senhor pensa assim, padre... - Ela levantara-se arrumando um pouco o vestido - agradeço-lhe muito pelo seu interesse. - Depois de uma pequena hesitação ainda acrescentou: Sinto muito por ter tomado o seu tempo.

  Aquele não fora o meu último encontro com Georgina. Agora, dois anos depois, eu estava entrando em meu carro, ou antes, no carro da paróquia que Leo Mark comprara para mim, e estava a caminho da casa dela. Lembrei-me que fora salvo da tentação não pela minha virtude ou inteligência, e sim por uma rápida imagem de uma mulher que eu condenara a uma terceira gravidez. Senti um nó no estômago e tive vergonha de mim mesmo.

  Respirei fundo, apertei o botão que abria a porta da garagem, e saí de costas para aquela noite de abril. Apaguei todos os pensamentos sobre Ellen enquanto dirigia o carro pelas ruas do arrabalde. Depois obriguei-me a pensar na decisão que em breve deveria tomar. Joe Herlihy, o irmão mais velho de Marty, trabalhava na Chancelaria.

  A sua informação era que dois padres iam ser mandados para Roma, no verão, por um período de três anos, para estudarem as leis canónicas e para trabalhar na equipe do Segundo Conselho do Vaticano, e o meu nome estava na lista.

  Eu já ocupara aquele cargo antes e não me agradava muito voltar para lá, especialmente porque, como me dizia Joe, Pat Donahue também estava na lista.

  O Segundo Conselho do Vaticano seria o mais importante acontecimento no mundo católico durante séculos. Eu queria ter a oportunidade de estar lá.   

  No entanto, mesmo assim, não tinha vontade de sair de St. Praxides quando tudo ali estava começando a funcionar direitinho.

  O trabalho de Pat em Quarenta Mártires Sagrados tinha-lhe granjeado a atenção do país inteiro. Três revistas católicas tinham escrito sobre ele que, além disso, estava sempre organizando retiros, conferências e dias de meditação em todo o Meio-Oeste. Ele talvez merecesse aquela missão em Roma. Talvez fôssemos juntos, e aquela possibilidade não me agradava muito.

  Eu sabia que meu nome estava na lista devido ao Cardeal Meyer que gostava muito de mim. Em certa ocasião, depois de uma missa fúnebre, ele me chamara de lado para dizer-me que havia lido alguns de meus memorandos para a Repartição de Educação para o Casamento, de Chicago, e gostara muito, achando-os interessantes. Aquele holandês grandalhão de Milwaukee não tinha jeito para conversas de menor importância, mas, de uma certa maneira, era muito acessível. Suas perguntas eram inteligentes e ele

ouvia tudo com cuidado. A observação que fez quando nos despedimos, "eu quero ver mais trabalhos dessa ordem", era mais um elogio do que uma ordem.

  Quando cheguei à frente da casa de Georgina fiquei imaginando o que diria dela o cardeal holandês.   

  Puxei a aldrava da porta, ouvi o gongo cantar lá dentro e esperei que Georgina viesse abrir. Como sempre, John estava fora e o filho tinha saído com amigos.

  Atirei em cima do sofá a caixa de sapatos com os cheques que ela pedira.

  - Não compreendo a sua pressa, Gina - dei-lhe um beijinho no rosto - mas você ordena e eu obedeço.

  Ela estava de slacks pretos, blusa branca, jóias caras e muito perfumada.

  - Queria muito falar com você. - Seus olhos eram frios e seu rosto estava duro.

  - Pois então fale, encantadora senhora. Fale. - Sentei-me na beira do sofá.

  - Eu estou grávida.

  - Que maravilha! Meus parabéns!

  - Você é um perfeito idiota! Já faz cinco anos que não durmo com John.

  - De quantos meses? - A minha pergunta foi feita quase automaticamente.

  - Ora... não são muitos. Provavelmente cinco semanas.

  - E você vai ter a criança?

  O seu queixo caiu. Ela parecia bem mais velha do que os seus trinta e cinco anos. Depois falou horrorizada:

  - Um padre sugerindo um aborto?

  - Não estou sugerindo coisa alguma. Estou apenas perguntando. Preciso conhecer os detalhes se deseja que eu a ajude.

  - Não vou fazer aborto nenhum. - Ela respondeu com decisão.

  - Então vai pedir o divórcio para casar com o homem? - Eu sentia muito pouca pena dela.

  - Ele não quer casar comigo - ela respondeu, e vi que tinha os olhos cheios de lágrimas.

  - Muito bem. Então o melhor a fazer é ir para a cama com o John logo que ele volte e mantê-lo aqui durante algum tempo.

  - Quer então que eu engane o John? - O seu rosto contraiuse cheio de veneno. - Que espécie de conselho é esse, partindo de um padre para uma mulher?

  - É bem possível que o John fique tão feliz por ser o alvo de alguma afeição que nem mesmo se importa em ser enganado, mesmo se vier a saber.

  - Tudo assim bem certinho, não é mesmo? - Ela caminhou para o bar, que ficava do outro lado da sala.

  - Você terá que tomar algumas decisões, Gina. Em algum lugar desse seu corpo encantador existe um impulso para que tente outra vez a maternidade. Se não fosse assim, você optaria pelo aborto, boa católica ou não. Você não sabe como o John reagirá quando souber que sua mulher andou dormindo com outro homem, diante dessa prova que desafia controvérsias. Você tem que escolher. Ou volta para a cama dele ou então vai correr o risco de ser obrigada a trabalhar para ganhar a vida, uma coisa que não é muito de seu gosto.

  Ela apanhou um copo grande de cristal Waterford e encheu-o de gim. Depois falou com ar desanimado:

  - Você parece que gosta de me ver humilhada.

  - Não muito. - Eu estava mentindo.

  Ela sentou-se à mesa do café, na minha frente.   

  Perguntou-me então com uma voz ausente:

  - Quer beber alguma coisa? Desculpe se me esqueci se oferecer.

  - Não, obrigado. Você vai ou não vai voltar para a cama com o John?

  - Mas, naturalmente. - Ela franziu o nariz como se eu fosse um idiota.

  - E quando é que ele volta?

  - Dentro de algumas horas. - Os seus ombros caíram.

  - Então é melhor eu deixá-la sozinha. Você, certamente, tem que se preparar... - Levantei-me para sair.

  Ela veio até a porta comigo, e ali falou-me friamente:

  - Algum dia eu talvez queira agradecer-lhe por ter sido um miserável sacana.

  Coloquei meu braço em torno dela e dei-lhe um beijo na testa. Senti correr-me nas veias uma terna letargia agradável. Uma voz nos distantes recessos de meu cérebro alertou-me: É outra vez a tentação.

  - Muito obrigada, padre. Reze por mim. - Sua voz era fraquinha.

  Em junho foram anunciadas as nomeações. Patrick H. Donahue de assistente em Quarenta Mártires Sagrados para estudos de formatura em Roma. Telefonei-lhe para dar os parabéns. Ele pareceu satisfeito em ouvir a minha voz e disse que a nomeação fora uma completa surpresa para ele.

  Aquilo era a reação usual de Roma. Eles tinham que ficar sabendo no primeiro dia de aula.

  Disse-lhe que o Concílio seria um acontecimento extraordinário e que nós estávamos entrando em uma nova era. Ele não se manifestou a respeito. Convidou-me para jantar com ele na noite seguinte, quando estaria sozinho na reitoria e então conversaríamos à vontade.

  Por mais pobre que fosse a paróquia dos Quarenta Mártires Sagrados, a comida era boa e o cozinheiro era excelente. Eu trouxera comigo uma garrafa de Barola e logo nos sentamos à mesa na velha sala de jantar, onde o pé-direito era muito alto.

  - Não me diga que vai infringir as regras outra vez para beber junto comigo - Pat sorriu com malícia.

  - A ocasião justifica. - Ele abriu a garrafa e serviu-nos de vinho. Eu levantei o brinde. - Ad muitos annos.

  - Puxa vida, Kevin. Eu desejaria muito que tivesse havido mais tempo nestes últimos três anos. - Ele parecia cansado e desgastado. Seu rosto estava enrugado e seus olhos mostravam o desânimo. De repente ele perguntou. - Você tem visto a Ellen e o Tim?

  - Não. - Eu sentia que ele houvesse rompido o rápido sentimento. - Como estão eles?

  - Não muito bem. Creio que Ellen está grávida outra vez. Tim estuda até não agüentar mais. O apartamento deles cheira a fraldas. A aparência da Ellen é terrível.

  Está gorda e flácida. As crianças choram o tempo todo. Ela se mostra terrivelmente amarga. Não vai mais à igreja. E você bem pode imaginar como o Tim sofre por causa da revolta dela contra a Igreja.

  - Nós somos os malditos bodes expiatórios, Pat. Talvez seja porque trabalhamos tanto para sê-lo.

  - Eu já fiz tudo que me foi possível, Kev. - Ele encheu-me o copo e passou-me o prato do assado. - A Ellen já não me ouve. Creio que até seria melhor se Tim a deixasse dar vazão à sua revolta. - Sorriu como se procurasse desculpar-se. - Desculpe se estou parecendo um psicólogo. Aliás, já li alguma coisa a respeito. Mas ele não lhe dá uma folga. Acha que é o responsável por sua alma. Aqueles dois nunca tiveram sorte... - Ficou calado alguns momentos... De repente perguntou-me: - Você não quer fazer uma tentativa?

  - Eu?! - Fiquei assombrado. - E por que cargas d'água iriam eles me ouvir? Já faz mais de ano que não os procuro por falta de tempo. Ellen me atiraria pela porta afora.

  - Não. Ela nunca faria isso. De qualquer maneira, pense um pouco nisso. A cada dia que passa ela se parece mais com sua mãe, e também se comporta da mesma maneira.

  - Ele parecia bem triste.

  - Pensarei sobre isso, Pat. Agora vamos falar de assuntos mais simples, como Roma, por exemplo.

  - Ainda não sei se aceito ou não. - Ele fechou novamente o rosto, parecendo contrariado. - O chanceler deu-me uma semana para pensar e resolver.

  - E por que não aceitar? - Eu avancei nas batatas.

  - Eu não quero deixar o meu trabalho - ele fez um gesto com a mão - e não quero ficar engaiolado numa chancelaria tratando de casos de casamentos para o resto de minha vida. Além disso, eu já estive em Roma e quatro anos é o bastante para uma estada lá.

  - Você irá.

  - Acredito que irei mesmo. Mas irei com emoções misturadas. Por que será que não mandaram você, Kev?

  - Porque eu sou indispensável para a salvação da alma de Leo Mark Rafferty, porque não sei italiano e porque não sou do material de que se fazem os bispos. Posso pensar em mais uma dúzia de boas razões, mas estas já são suficientes.

  - Eu tenho a certeza de que você estava na lista, Kev.

  - Eu sei que estava, mas duvido que fosse o segundo da lista, ou se eles queriam mesmo me mandar para Roma. Se quisessem, seria muito fácil mandar-me. Eles antes nunca hesitaram em mandar dois alunos.

  - Há grande falta de padres agora... - Ele dizia aquilo como se quisesse convencer-me, mas hesitava.

  - Olhe aqui, Pat. Lembra-se de mim? Kevin Brennan? O último dos grandes operadores na política? com duas gerações de sangue irlandês de Chicago em meus

antecedentes? Se eu quisesse alguma coisa daquela gente lá na chancelaria eu iria lá e pedia. Lembre-se de que fui o domador de Leo Mark Rafferty. Ou então eu pediria a meu pai que se mexesse. Já esqueceu que o Coronel conhece todo o mundo?

  - Desde que você se sinta feliz... - Ele pareceu ficar aliviado.

  Em fins de agosto recebi um telefonema do secretário do cardeal. Queria falar comigo às duas e meia daquela mesma tarde. Sim, claro que eu podia ir. Como se, na realidade, eu tivesse outra escolha.

Apesar de todo o luxo que havia em seu gabinete, Albert Meyer ainda era um homem muito acessível.

  - Não recebi mais memorandos seus, Kevin - ele começou atacando.

  - Tive um verão muito ocupado, eminência.

  - Você fuma? - Ele levantou uma sobrancelha e esticou o braço para apanhar um charuto.

  - Aceitarei um para o meu pai, se for possível.

  - Claro que conheço o seu pai. - Ele riu-se e deu-me o charuto. _ Homem notável. Não falou em você até eu dizer-lhe que sabia do fato dele ter um filho que era padre. - Arqueou novamente a sobrancelha.

  - Há sempre uma ovelha negra em todas as famílias...

  - Nem mesmo cinzenta. - O cardeal, apesar de sua fama de falta de senso de humor, gostava de terçar palavras da mesma forma que eu. - De qualquer forma, havia gente que queria mandar você para Roma nesta primavera e outros que não queriam. Eu intervim e resolvi o problema. Você estaria sendo desperdiçado em direito canónico. Eu quero que você se forme aqui mesmo na América. Creio que você gostaria de estudar psicologia.

  Fiquei desejando que aquele tobogã parasse para eu poder coordenar minhas idéias.

  - Sim, gostaria muito disso. - Eu estava ajustando a minha maneira de falar com a dele. Uma completa sinceridade.

  - Foi o que pensei. Roma não seria apropriada para essa espécie de estudo. Você poderia ficar em St. Praxides e estudar na universidade.

  - Claro que podia... - O tobogã corria cada vez mais.

  - Muito bem, Kevin. - Ele tomou nota num pedaço de papel.

  - Vou providenciar. Estou convencido de que, nos anos futuros, o bispo precisará ter na sua equipe cientistas sociais formados. Você pode ficar sabendo que está se preparando para isso. Vamos combinar com a universidade a respeito de sua admissão.

  - Minha família... - Eu comecei. O braço da poltrona em couro vermelho já estava ficando molhado com o suor de minhas mãos. Naquele momento, desejei que gostasse de fumar charutos, pois assim teria o que fazer com minhas mãos trémulas.

  - Nada disso. - Ele interrompeu-me. - Este assunto é de nossa responsabilidade. - Levantou-se da cadeira. - Mantenhame informado, Kevin. Envie-me tudo que você ache que eu deva ler. Tanto seu como de outros.

  A sua mão grandalhona envolveu a minha, e eu logo estava descendo as escadas a caminho da Avenida Wabash, quase sem perceber que já tinha saído de seu gabinete.

  Albert Gregory Meyer tinha virado a minha vida de cabeça para baixo em apenas doze minutos e vinte e nove segundos. Foi o que constatei depois de consultar o meu relógio.

  Não disse nada a ninguém, nem mesmo à minha família, até que a notícia saiu no New World, o jornal da diocese. Uma transição num Tombastante baixo para uma nova vida.

  Pat telefonou-me uma semana depois de haver sido publicada a notícia. Eu esperava parabéns.

  - Preciso de ajuda, Kevin - a sua voz demonstrava angústia.

  - Vá dizendo logo... - Eu já via uma outra bola que ricocheteava em minha direção.

  - Será que podemos falar, Kev. - Ele parecia aterrorizado. Quero dizer... agora, aqui, no telefone?

  - O pessoal aqui é bem ensinado, Pat. Pode falar.   

  - Eu já estava impaciente.

  - Eu me encrenquei com uma mulher.

  - Que espécie de encrenca, Pat?

  - Eu, huumm... Ela ficou grávida, e agora diz que vai falar com o cardeal...

  - Logo antes de você seguir para Roma, Pat...

  - Isso mesmo. Antes que eu parta para Roma. Não posso detê-la nem impedi-la. Ela vai mandar uma carta particular. O marido não vai saber. - Será que você poderia falar com ela?

  - E por que iria eu falar com ela? - Senti no cérebro um toque de alarme.

  - Ela respeita muito você, Kev. É Georgina... - A última informação veio quase como se houvesse escapado sem querer.

  Eu devia ter desconfiado.

  - Eu vou cuidar disso. Continue fazendo as malas... Desliguei.

  Fiquei ali sentado vendo o sol desaparecer por baixo das paredes da escola de St. Praxides. Era uma noite de verão quente e úmida. Se eu não conseguisse detê-la, aquela mulher iria liquidá-lo. Ele passaria a ser um obscuro pastor lá numa cidade do Sul para o resto de sua vida, e isso se escapasse de ser expulso da Igreja.

  Ajeitei meu colarinho romano e saí para a garagem.

Georgina, num vestido de verão verde e esvoaçante, estava sentada em sua mesa de trabalho ao lado do janelão.

  - A gravidez lhe assenta muito bem. Devia ficar assim com mais freqüência, Gina.

  - Pelo que diz a sua maldita psicologia, eu quero ficar assim ... - Ela apenas olhou-me de relance ao responder numa voz sem cor.

  - Não faça o que está pretendendo, Georgina. - Sentei-me no braço de uma poltrona ao lado de sua mesa.

  - Eu vou destruí-lo. - O seu rosto logo transformou-se numa desagradável máscara. - Eu farei com que seja impossível ele continuar sendo padre em qualquer lugar do mundo. Ele mentiu-me e enganou-me. Vou vê-lo no inferno antes de sua ida para Roma.

  - Suas mãos estavam fechadas com toda a força que tinha e o seu corpo estava rígido de fúria.

  - Acalme-se - ordenei. - Por que é que está assim tão furiosa agora? Não era essa a sua atitude na primavera.

  - Ele não atende aos meus chamados pelo telefone. Não quer mais me ver. Não quer vir para jantar. Já não se interessa mais por mim... - Ela desabou na cadeira depois de dar vazão ao ódio.

  Pobre e estúpido Pat. Umas poucas cortesias elementares e aquela mulher teria se resignado a tudo.

  - Você sabe como ele é, Georgina. Deveria ter esperado por isso quando se envolveu com ele.

  Esperava fidelidade da parte de Pat Donahue? Não seja tola.

  - Eu you esmagá-lo. Ele é um vermezinho vagabundo... Seus olhos encheram-se novamente de ódio.

  - Só porque você foi uma tola em certa ocasião, isso não justifica que queira repetir a tolice. Ou será que você está imaginando que a sua carta será mantida em segredo? Vai haver uma falha em qualquer lugar e tudo virá à tona. E aí então onde ficará você? - Eu, na verdade, não sabia se aquilo poderia acontecer, mas estava jogando a minha última cartada.

  - Pouco estou ligando para isso...

  - Mas claro que está ligando. Você, afinal, conseguiu seduzir o John?

  - É claro que consegui.

  - Aposto como ele está gostando de ter você de novo em seus braços, não está mesmo?

  - Mas certamente que está. - Eu via claramente que o ódio contra Pat já se voltava para mim. E tinha que ser assim. O seu orgulho obrigava-a a uma resposta.

  - E aposto como você também está gostando... de quando em quando... De qualquer forma, você tem o seu filho, John e tem o que vem por aí, tudo isso com uma vida boa e mansa. Será que valerá a pena você atirar tudo isso pela janela só pelo prazer de uma vingança que logo se tornará amarga?

  Suas mãos se fecharam novamente apertando o tecido do vestido verde à medida que eu falava. Depois elas se abriram e tornaram-se inertes e passivas.

  - Eu tenho ódio de você, Kevin Brennan. Tenho desprezo por você e não quero mais vê-lo em toda a minha vida... - Agora, ali no seu resplendente espelho, eram dois os rostos do carrasco.

  - Nesse caso, Gina, você terá que sair destas redondezas, mas eu não sairei de minha paróquia. - Levantei-me.

Saí para entrar na noite visguenta.

  A família mudou-se para Lake Forest algumas semanas antes do nascimento de Patrícia, uma garotinha loura por quem John se babava de satisfação e orgulho.

  Pat e eu caminhávamos na floresta deserta naquela manhã de uma terça-feira de verão, mas, mesmo assim, ela estava cheia de latas de cerveja e lixo do último fim de semana, um testemunho vivo da existência da humanidade ali bem perto.

  Foi Pat quem quebrou o silêncio falando com certa agitação:

  - Não se parece nada com o lago dos nossos tempos de antigamente, não é? Em agosto você vai sentir saudades.

  - Eu irei lá no fim do mês, depois do piquenique do clube do ginásio.

  - Acho que a floresta é para mim o que o lago é para você.

  - Ele passou a mão nos cabelos. - Fiquei satisfeito por você ter encontrado tempo para conversarmos. Você deve andar muito ocupado aprontando-se para a universidade.

  - Não tanto assim.

  - Foi num dia como hoje que nós salvamos aqueles garotos no carro do Delaney. Lembra-se?

  - Foi você quem os salvou, Pat. E era um domingo, um pouco antes e muito mais quente.

  - Não sei o que está acontecendo comigo, Kevin. - Ele enfiou as mãos nos bolsos e franziu o rosto. - Não é biológico. Não até o fim, de qualquer maneira. Esse terrível... nem sei como dizer... não é tensão exatamente, e sim força... parece que toma conta de mim. Não consigo deter-me.

  - Eu sou apenas um calouro em psicologia, Pat, e não um terapeuta. - Paramos numa pradaria ensolarada.

  - Eu sei disso, e agradeço-lhe muito pelo que fez por mim com a Georgina... Não consigo acreditar que vou ser pai.

  - Para todos os efeitos práticos você não é. - Começamos a andar novamente.

  - Ainda bem que estou indo para Roma. Isso me proporcionará uma vida nova.

  Ele acompanhou-me descendo pelo caminho. Os seus slacks cor de couro e a camisa aberta ao peito faziam dele um homem afeito ao ar livre que fora dotado de bom gosto e de uma sólida conta bancária.

  - Talvez você não devesse ir...

  - E por que não? - O seu rosto mostrou surpresa. - Você vai para a universidade e não poderia ocupar o meu lugar.

  - Eu acho que agora já estou convencido daquilo que você me disse quando saiu a nomeação na primavera passada. Seria melhor para você passar a vida no meio dos pobres do que no meio dos ricos.

  - Acho que não estou compreendendo.

  - Nós todos temos os nossos demônios, Pat. Se você for para Roma, certamente estará tendo acesso ao poder. Urna parte de você deseja isso, e uma outra não. E eu creio que a real em você é aquela que não quer. - Eu estava citando Maureen quase que palavra por palavra.

  - Você tem medo que eu vá me corromper se for a Roma para junto do poder, da fortuna, dos prazeres e tudo mais, Kev? Ele sorriu esperando que eu negasse aquilo.

  - Tenho sim, Pat. - Eu não precisava olhar para os seus olhos para ver que aquele medo estava ali de volta. - Vá, e diga ao Meyer que, por motivos ligados à sua vida espiritual, você prefere ficar em sua paróquia. Isso não diminuirá o conceito dele a seu respeito. Talvez, até mesmo, aumente.

  - Você não acha que eu deveria ficar longe da Georgina?

  - Eu já lhe disse o que penso, Pat.

Ele teve um riso contrafeito e deu-me uma palmada nas costas.

  - O bom e velho Kevin. Sempre sincero e sempre áspero. E é bem provável que esteja com a razão. Sabe de uma coisa? O simples fato de pensar em ficar na minha paróquia faz com que eu me sinta mais feliz. Durante algum tempo vou ficar agoniado, mas lhe escreverei.

  Foi para Roma três semanas depois sem nos termos visto mais.

  Na mesma tarde, depois de meu passeio com Pat, ganhei do Calvin Ohira no tiro de pistola. Ele era um japonês de terceira geração, nascido em Nebraska, tão metodista como eu era católico, e era o dono de uma elegante escola de karatê na Rua Noventa e Cinco. Aquilo era o lugar ideal para espantar as tensões. Cheguei a ser faixa preta, mas nunca consegui vencê-lo.

  Um certo dia, ele apanhou numa gaveta uma chave grande, e que chamava a sua "chave mágica", e levou - me ao porão onde instalara um stand de tiro numa sala à prova de som e bem acolchoada. Nessa ocasião, ele me dissera sorrindo que era preciso estar sempre pronto para uma outra invasão de orientais. Aquilo era a amargura que ele ainda sentia por causa dos campos de concentração para os japoneses na década de 40.

  O Coronel, apesar de herói de guerra, não tolerava armas e eu, naturalmente, ficava fascinado com elas. Cheguei a atirar bem com os .38, mas nunca conseguira ganhar de Calvin. Isso só me aconteceu naquela terça-feira.

  - Eu não gostaria de estar na pele daquele que você imagina ser o alvo. - O comentário dele foi bem significativo.

  - Nunca se pode dizer quando se vai precisar disto, Calvin. Ao guardar de novo a arma, eu me sentia nervoso.

  Eu viria a precisar do karatê e da arma uma vez na vida, na pequenina ilha ao largo da costa de Nápoles. E precisar muito, mesmo.

2 de outubro

 

  Minha querida Ellen,

  Esta carta ainda será mais confusa e desordenada do que todas as outras. Sempre tenho medo de colocar minhas notas em envelopes. Você escreve tudo à máquina tão bonitinho, pensa com tanta clareza, enquanto minhas cartas são uma trapalhada, como, aliás, é toda a minha vida.

  Eu nem mesmo sei como contar a você a maneira como tudo aconteceu. Eu deveria telefonar ou ir à sua casa para contar tudo se não fosse tão orgulhosa para confessar que tola tenho sido.

  E eu bem que merecia. Enquanto você continuava pura e boa, eu vivia namorando, esfregando-me com tudo que era rapaz bonito que aparecia, até ir com ele para a cama. Eu tentei parar. Meu Deus, como tentei parar! Ia confessar-me, prometia não repetir, pedia ajuda rezando à Virgem Maria, até que encontrava um bonitão qualquer e então tudo entrava pelo cano outra vez. Pensava que sabia tudo que era possível saber sobre os homens. Achava que poderia ter qualquer um que desejasse e que valesse a pena... bem, sem contar o Kevin.

  Eu, realmente, cheguei a amar o Burke, e essa foi a humilhação. A Mo, a velha sofisticada, sendo apanhada. Ele é espirituoso e brilhante, e é divertido a gente andar com ele que é bem típico da aristocracia que a gente encontra por aqui. Eu gostava de estar com ele e adorava as temporadas no Cape.

  Ficava preocupada com o seu vício de beber. Dizia a mim mesmo que tudo acabaria bem, e ele, realmente, tentou parar. Então, quando estava mergulhado nas eleições primárias do ano passado e os Kennedys o abandonaram, mas continuaram a tomar-lhe o dinheiro, ele voltou à bebida e, por vezes, chegava a abandonar o seu escritório de advocacia durante três ou quatro dias. Foi aí que percebi ter-me casado com um homem fraco, uma criança grande rica e mimada.    

  Estava resolvida a tirar daquilo o maior proveito, dizendo para mim mesmo que estava cuidando da Sheila, mas a verdade era que eu não queria que as outras pessoas soubessem como eu tinha sido tola.

  O sexo nunca foi muito importante para nós, mesmo no princípio. Acho que você não acreditará, mas o nosso namoro foi casto, e isso principalmente porque, para falar a verdade, ele nunca fez muita força. Claro que fizemos melhor depois do casamento, e a prova disso é a Sheila. Vez por outra, quando estava realmente "cheio", ele até que era bom.

  Eu estava preparada para viver também com aquilo, sem ligar muito para o sexo. Só Deus sabe que, a despeito de meus tremendos esforços de garota, eu não via nada de especial naquilo por mais que me excedesse, a não ser o espírito da aventura e o perigo...

  Tudo isso já foi há tanto tempo!... Mas agora eu preciso lhe contar a parte do horror em toda a história. Em meados de agosto, passei um fim de semana fora do Cape.

  De qualquer forma, a vida ali não estava muito divertida depois que havíamos sido riscados da lista de convidados dos Kennedys. Uma de minhas colegas em Purchase casara-se com um brâmane cuja família chegara aqui muito antes dos Cabots. Eles, geralmente, passam o verão em North Shore, onde somente os WASP com raízes no século XVIII eram normalmente recebidos. Ela estava promovendo uma reunião de antigas alunas. Burke disse que tomaria conta de Sheila, embora a babá estivesse lá.

  Um dia com verdadeiros aristocratas era tudo que eu podia esperar. Eles faziam com que Burke parecesse um protótipo de vitalidade e masculinidade. Então voltei de carro para Hyannys no sábado à noite.

  As luzes da casa estavam todas brilhando. Sheila estava dentro do seu cercadinho de brincar suja, esfaimada e chorando. Não encontrei a babá em lugar algum, e só mais tarde vim a saber que o Burke tinha-lhe dado folga. Havia gente rindo e gritando lá em cima. Em nosso quarto de dormir fui encontrar Burke, um outro homem de sua idade, e um garoto junto com uma garota de menos de vinte anos, bêbados e fazendo coisas que mantinham ocupados todos os seus orifícios.

  Quando entrei no quarto, Burke convidou-me para entrar na brincadeira, e quando recusei ele insultou-me, disse que eu era a responsável por suas bebedeiras, porque era frígida.

  Bem não preciso dizer mais nada, não é? Peguei Sheila, entrei no carro e fomos para um motel. No dia seguinte voltei para Boston e, apesar de ser domingo, liguei para um advogado. Na segunda-feira aluguei uma casa em Newburyport, onde existe uma grande escola de arte. Burke telefonou-me para pedir desculpas, mas recusei-me a atender.

  Não estou exigindo nada pelo divórcio. Só quero Sheila e as coisas que trouxe comigo por ocasião do casamento. Fui falar com o padre da paróquia na cidade a respeito de anulação do casamento, mas ele não se mostra muito otimista. Diz ele que o bissexualismo não é a mesma coisa que homossexualismo.

  Será que o Burke é um desses? Acredito que seja, pelo menos «m grande parte, mas não o suficiente para a Igreja. De qualquer forma, não estou interessada em repetir o casamento.

  Rezo pelo Burke todas as noites, quando rezo por meus pais. Para mim, ele está tão morto quanto eles. Logo de início imaginei que o estava abandonando

numa hora de necessidade, mas agora vejo que era a mim mesma que eu estava abandonando. E é bem possível que eu continue a fazer isso. com muito amor, Mo.

  P.S. Lembranças ao Tim. Escreva-me dizendo logo que ele terminar os exames.

 

  5 de outubro, Mo querida.

  Eu te amo. Eu te amo. Eu te amo. Tenho vontade de matar o Burke. Se eu ainda acreditasse em Deus pediria que Ele o amaldiçoasse. Tudo vai acabar bem, Mo. Eu sei que tudo vai acabar bem.

  Ando enjoada (é isso mesmo, o terceiro vem aí) e cansada. E o pior de tudo é que choro por você. Por favor, telefone-me, e então poderemos chorar juntas.

  E, com todos os diabos, fique com a pintura desta vez.

  Durante o meu primeiro semestre na universidade, li o livro de John Noonnan Contraception e juntei-me às fileiras de padres que estavam mudando de idéia a respeito de anticoncepcionais e controle de natalidade. Já vinha tarde demais para Ellen Foley Curran. Mary Ann, que se aprontava para o seu casamento, disse, no Natal, que Ellen estava esperando outro filho, para março.

  - São três, e ela ainda não tem vinte e oito anos.     

  - Ela comentou. - Quantos terá ela quando chegar aos quarenta?

  - É uma pena. - Eu estava ali simplesmente olhando para o monte de embrulhos junto à árvore de Natal da família Brennan.

  - E como é que ela está agüentando?

  - Ela continua a cuidar das crianças. Ele estuda até às duas da madrugada. Já não falam muito um com o outro. Mas também não brigam. Ainda se amam mas,

simplesmente, não encontram mais tempo.

  - Eu pensava que ele tinha feito o exame para advogado no verão...

  - Não passou. - Mary Ann, respondeu com um ar bem triste. - Papai acha que jamais passará. É uma espécie de impedimento emocional.

  Feliz Natal, Ellen.

 

  Quando eu estava saindo da piscina, minha mãe perguntou-me:

  - Quando é que o Pat volta de Roma para tirar suas férias? Enfiei meu casaco. Estava bem frio para um princípio de agosto. Eu precisava tanto de umas férias que já nem ligava mais.

  - No fim da semana, penso eu. Por quê?

  Ela levantou os olhos da carta que estava lendo. Seus cabelos ruivos já estavam bem entremeados de mechas cor de neve.

  - A Maureen vai para a Europa - ela disse pensativa. Vai estudar pintura em Roma. Diz que deseja uma vida nova.

  - Então não vai casar com aquele garotão de Newburyport?

  - Eu fiz a pergunta sentindo aquele buraco de culpa na boca do estômago. Era uma coisa que sempre me aparecia quando alguém falava a respeito de Maureen Cunningham Haggarty. Minha mãe sacudiu a cabeça.

  - Eu já contei para você como ele e sua família são religiosos - disse ela. - Maureen, afinal, não conseguiu a anulação do casamento no tribunal de Boston.

  - São uns miseráveis - resmunguei.

  Dois anos de trabalho em psicologia social tinham-me convencido de que a estreiteza da política de anulações da Igreja era inconcebível. A metade das pessoas do país, que se casavam, eram psicologicamente incapazes de contrair uma união que refletisse o amor entre Cristo e a Igreja, o que é aquilo que deve ser um casamento sacramentado e, por isso, indissolúvel. Haveria uma mudança quando a Igreja se igualasse com a moderna psicologia. Estaríamos então concedendo anulações da mesma

forma que Nevada concede divórcios. E isso seria tarde demais para Maureen e o seu Tom Murray.

  - Será que Pat vai poder fazer alguma coisa por ela em Roma? - Minha mãe perguntou numa voz conspiradora.

  - Ele saberá quais são as mãos que precisam ser amaciadas. Vamos ver o que tem para dizer na próxima semana.

  Todos os meses, enquanto eu lutava com os meus estudos e com a estabilidade financeira de St. Praxides, chegava-me uma longa carta de Pat que, indiscutivelmente, caíra nas boas graças do novo Papa, Paulo VI, o "maior homem da Igreja deste século" e o maior promotor do Segundo Concílio do Vaticano, e que chegara a escrever:

  "A próxima sessão irá mudar o curso da história do catolicismo." As cartas estavam cheias de detalhes que nunca apareceriam nos jornais. O que o Cardeal Suenens dissera a Paulo VI na manhã que se seguira à sua eleição; a reação hostil do Cardeal Mclntyre aos bispos negros; o comentário de um africano com dois doutorados para o velho reacionário de Los Angeles dizendo que jamais sentaria nos últimos bancos dos ônibus sem levar em conta a opinião do cardeal a respeito dos niggers.

  Apesar de todas as fofocas das cartas de Pat, havia sempre ali uma certa névoa. Ele não parecia perceber que havia diferenças de opinião entre os cardeais progressistas do Norte da Europa e os seus amigos e patrocinadores de Roma.

  - Se você fosse o padre da paróquia de TomMurray, você o aconselharia a romper o seu noivado com Mo? -   A pergunta era feita por minha mãe, e os seus olhos eram tão doces como os meus deveriam ser duros.

  - Está querendo descobrir se o filho mudou de ideologia? Respondi com uma risada. - Eu não conheço o torn. Você e meu pai gostavam muito dele. Se a Mo está apaixonada, então é porque ele é bom.

  - Você está contemporizando, igualzinho a seu pai, e nem mesmo é advogado. É isso mesmo. A Mo está caidinha por ele, e agora vem a Igreja e diz que ela  não pode casar com ele.

  Vi um pedacinho de azul aparecer no meio das nuvens e logo depois desaparecer. O vento chocalhava as árvores em torno da piscina.

  - Mesmo assim eles deviam casar. A Igreja vai mudar no que diz respeito às anulações. Maureen está livre e pode casar, mesmo que o tribunal de Boston não pense assim. Eles teriam apenas que esperar alguns anos para serem abençoados na igreja. Nessa altura a minha voz tornou-se amarga. - Se ele não estiver disposto a correr alguns riscos, então é porque não a ama de verdade, e não merece tê-la.

  - Arriscar a sua alma imortal, meu filho? - Ao fazer a pergunta as sobrancelhas de minha mãe se arquearam quando pronunciou as duas últimas palavras.

  - Um bom professor poderia tê-lo tranqüilizado a esse respeito. - Respondi-lhe já irritado.

  - Você poderia ter-lhes dito isso. - Minha mãe olhou-me com uma mistura de espanto e desapontamento.

  - Ninguém me perguntou. Quer uma cerveja? - Levanteime. Ela sacudiu a cabeça.

  - Não acorde Mary Ann, ela está muito cansada.

Mary Ann, que esperava um filho dentro de dois meses, era a própria figura de uma saúde perfeita e de satisfação com a vida. Mamãe estava mais preocupada do que ela a respeito do futuro neto.

Ouvi o telefone tocar e pensei em atender, mas quando já me dispunha a isso, e antes que pudesse chegar à cozinha, a campainha parou. Era provavelmente Steve chamando de Chicago. Ele chegaria naquela noite com papai para um longo fim de semana. Tirei duas latas de cerveja da geladeira e dei uma para meu irmão Mike, que estava debruçado sobre um livro de anatomia, Mary Ann entrou na sala, de shorts e uma blusa maternal. O seu rosto estava branco como um pergaminho e seus olhos estavam arregalados. Ela caminhava como se estivesse em transe.

  Mike levantou-se logo. Era o brilhante estudante de medicina que estava imaginando, apavorado e esperançoso, a possibilidade de ter que atender a um parto.

  - Você está bem, Mary Ann?

  - O quê? Oh... sim, estou bem, Mike... - Ela falou baixinho e deixou-se cair no sofá. Lá fora o vento gemia agourento.

  O terror apertava-me a garganta. Eu já tinha visto aquele olhar em outra ocasião.

  - Quem foi que morreu, Mary Ann? - Eu mal reconhecia a minha voz.

  - Foi o Tim... - Ela disse aquilo como se não pudesse acreditar em sua própria voz. - Morreu faz hora e meia. Quem falou foi o Padre Conroy. Ellen pediu-lhe que me chamasse. Ele morreu no Hospital St. Anne... embolia cerebral. - Ela olhava para o Mike sem ter a certeza se a palavra era mesmo aquela ou não.

  Nas profundezas da minha alma uma voz me dizia que eu o matara, da mesma forma que também condenara Mo a perder o seu amado torn.

  - Depois de toda aquela trabalheira e de todas aquelas preocupações ... e agora todas aquelas crianças, o cansaço, a tensão...

  - Mary Ann procurava chorar, mas as lágrimas não vinham.

  - As embolias não são causadas por estresse - eu a interrompi. - Ele teria morrido da mesma maneira, mesmo se fosse rico e solteiro.

  - É isso mesmo - Mike logo me apoiou. - Ninguém pode fazer coisa alguma para evitá-las.

  - Estou certa de que isto será uma grande ajuda para Ellen.

  - Mary Ann falou com amargura e, afinal, as lágrimas corriamlhe pelo rosto.

 

Ellen querida,

  Imagino que você já estivesse pensando que nunca mais iria ter notícias minhas. Da mesma forma que aquele penny falso, a Mo está de volta. De qualquer forma, estou em Roma. Imagine só! Já me enchi de Chicago, Boston, Newburyport e tudo mais. Aluguei um apartamento aqui. Sheila está numa escola maternal onde falam inglês. Eu estou estudando arte. Desta vez you levar a sério a pintura. you mesmo. O professor em Newburyport era bom, mas aí apareceu o Tome eu me apaixonei outra vez.  

  Não era bem a mesma coisa, ele era certamente heterossexual e não bebia. Sua fraqueza era a religião que, afinal de contas, é quase tão ruim como o vício de gostar de garotos. Ele me amava, sua família me amava, mas o tribunal de casamentos de Boston não me amava. Eles fugiram de mim como se eu fosse uma vagabunda das piores quando os monsenhores disseram que não podia ser. Já me disseram que está saindo com uma outra moça.

Desculpe-me se lhe pareço muito amarga. Eu amava torn. Não era como com o Burke. Era um amor sincero.

Roma é bonita, mas terrivelmente quente. Fui procurar o Pat depois de já estar instalada. Ele é completamente o padre jovem com futuro que está em Roma. Uma das mais antigas famílias daqui, os Martinellis, já o adotou da mesma forma que fizeram os Tanseys em Chicago. Eles têm muito dinheiro e muitos contatos no Vaticano.

  Exibem Pat em todas as decadentes festas de Roma. É a perfeita repetição de A Doce Vida, mas as mulheres não são tão bonitas. Ele é o padre americano bem escovadinho e limpinho- com uma batina cortada sob medida e porte atlético.

  Pat venderia a alma de sua avó para subir na Igreja. Ele não gosta de ver gente sofrendo, leva muito a sério essa história de justiça social, e realmente acredita que foi chamado pela Igreja. Ele divide a sua vida em pequeninos compartimentos e não permite nenhuma interferência entre eles.

  Eu saí para passearmos juntos um dia, e ele distribuía sorrisos e uma palavra agradável para todo mundo na rua. Os romanos detestam os padres por causa daquela história dos estados papais, mas os padres os odeiam de volta. Muitos padres tentam sorrir para as pessoas, mas sempre se arriscam a levar uma cusparada. Mas todo mundo sorri de volta para Pat. Ele está cada vez mais bonitão, e isso apesar de toda a pasta que come. E por falar nisso, estou fazendo agora mais uma dieta. Não quero engordar nesta altura da vida.

  Pat não é um cara mau. Não é mesmo. Apenas ele só olha numa direção e está sempre pronto a usar alguém desde que isso ajude a sua carreira. Mas ele não tem nada de mesquinho em todo o seu corpo, e é bondoso e sincero desde que isso não lhe prejudique a carreira. Vive paparicando a família Martinelli (o monsenhor é, obviamente, veado e o seu primo leigo, o Alfredo Delucca, é um tarado), contando-me a história do catolicismo em Roma, e é também um amor com Sheila, e tudo isso, no entanto, não parece inconsistente.

  Que diabo! Eu não tenho mais ninguém com quem conversar!

  Lembranças ao Tim. Espero que tudo esteja bem.

  com amor, Mo.

 

  A funerária de Cornelly estava cheia de gente, rapazes e moças que vinham prestar a Tim as suas últimas homenagens, ao mesmo tempo em que, bem lá no fundo de seus corações, se regozijavam por ter sido Tim e não eles. O prédio cheirava a perfume e flores murchas.

  - Eu já me tinha esquecido de como eram os velórios irlandeses ... - disse um Pat muito humilde que algumas horas antes tinha desembarcado do avião que o trouxera de Roma. - Agora já não é mais assim lá na Velha Pátria. Estou bem satisfeito por estar de volta. - Ele parecia um guia de turismo fazendo comentários.

  Ellen estava separada da família de Tim. Pelo que diziam Mary Ann e Steve, que tinham estado no velório na primeira noite, os pais dele, precisando de alguém para culpar, culpavam Ellen. Não havia ali ninguém da família dela. Nunca lhe haviam perdoado o casamento que, para eles, resultará em perda do dinheiro que ela trazia para casa.

  Ellen estava gorda, e aquilo não era só da gravidez que já estava em seu quinto mês. As calorias de seus doces de chocolate tinham, finalmente, levado a melhor.

  Seu rosto estava inchado e seus cabelos não tinham nenhum brilho. Até mesmo quando vistos de longe, os seus olhos ainda eram luminosos. Eu estava arrasado.

  - Como é que ela vai viver, Kev? - Pat fez a pergunta enquanto esperávamos pacientemente, e tínhamos preferido não usar nossos colarinhos romanos para entrar na frente da fila. Em torno de nós todo mundo conversava alegremente. O velório era um acontecimento social, e não se devia perder ali um só momento, nem mesmo aqueles que se passavam na fila para assegurar à viúva como "estavam sentindo a sua dor".

  Dei de ombros em silêncio, procurando palavras que não vinham. Os olhos de Ellen eram como faróis muito próximos que buscam com insistência o vazio escuro e frio do espaço. Apesar de seu estado, ela ainda era incrivelmente jovem naquelas roupas pretas malfeitas. Era uma garota gorda que ainda não chegara aos vinte anos.

  - Isso é apenas o começo da vida dele, Ellen... - eu disse aquilo segurando-lhe a mão, meio sem jeito.    

  Ela parecia um pedaço de madeira seca.

  - Eu sabia que tinha que vir aqui dizer-me uma coisa assim. .. - Os dois faróis fixaram-se em mim e ela recolheu a mão.

Oh, oh, isto não vai ser fácil. Foi o que pensei.

  - Estou surpreendida por ver que o senhor achou tempo para vir ao velório, Padre Brennan. Tenho a certeza de que o Tim ficaria encantado em saber que veio aqui.

  - Eu sinto muito, Ellen.

  - Aposto que está sentindo mesmo... O senhor está sempre sentindo, não é mesmo, Padre Brennan? Sentiu muito por não ter assistido ao casamento dele, sentiu muito porque não pôde batizar seus filhos, sentiu muito porque não podia conversar com ele sobre os seus problemas, sentiu muito porque não pôde jantar com ele, sentiu muito porque não pôde visitá-lo em sua casa. Claro que não era uma casa tão bonita como a dos seus amigos ricos, não é mesmo, Padre Brennan? - Na sua voz não havia nem mesmo o menor indício de histeria ou dor. A expressão de seu rosto não mudava. Aquela acusação era muito mais terrível e poderosa porque era dita com voz calma. Todo mundo que estava ali ficou silencioso. Ainda bem que meus pais não estavam.

  - Eu sinto muito, Ellen.

  - O que aconteceu com aquela presteza com que Kevin Brennan manejava as palavras? Não vai me dizer agora que não tem nada mais inteligente para me dizer, hein? - Ela estava provocando.

  - Nada.

  - Sabe como ele o amava? - Seus olhos agora já brilhavam de ódio. - Para ele, o sol nascia e morria em Kevin Brennan. Ele até mesmo chegava a ler aqueles incoerentes artigos sobre psicologia que o senhor escreve para as suas malditas revistas para sábios. Ele o citava como se fosse a própria Bíblia. Ele ansiava por uma simples palavra de aprovação de sua parte. Coisa que o senhor jamais lhe deu. Nem mesmo uma única palavra. Ele era apenas o garoto que marcava um ponto no basquete quando o seu ídolo precisava dele. Pouca diferença lhe fazia ele viver ou morrer. Agora ele morreu, e isso também nada significa para o senhor, não é mesmo, Padre Brennan?

  Eu nada mais podia fazer senão agüentar firme. Vi os seus dois filhos mais velhos, um menino e um menina, ambos com os grandes olhos cinzentos de Ellen e o mesmo narizinho atrevido. A menina, até mesmo, usava um rabinho-de-cavalo. Estavam me olhando, muito solenes, sem compreenderem o que estava acontecendo, mas estavam com medo.

  - Eu sei de tudo isso, Ellen.

  - Não, não sabe de nada. E não se dê ao trabalho de vir ao enterro amanhã, mesmo que tenha tempo. Tim foi obrigado a viver sem o senhor. Agora deixe que ele vá para a sepultura sem a sua presença.

  - Eu rezarei por vocês dois... - respondi baixinho.

  - Não desperdice as suas rezas. Nenhum de nós precisa delas. - Ao responder-me, os seus lábios estavam apertados e amargos.

  Quando saía do velório ainda vi Ellen soluçando abraçada ao Pat.

 

15 de setembro

Ellen querida,

  Oh, Deus meu, acabo de saber. O que posso dizer? Eu sinto tanto! Mandei rezar uma novena de missas na Igreja de S. Paulo. Telefonei para lá. Como desejaria estar aí com você! Como desejaria poder fazer alguma coisa! Qualquer coisa!

  Minha pobre, maravilhosa e querida Ellen. Você vai ficar bem. Eu sei que vai. Mas vai levar tempo. Deus vai protegê-la.

  Uma coisa mais. Sei que você está zangada com o Kevin. Perdoe-o. Faça isso, por favor.

  Eu não ligo a mínima para ele. Kevin é tão obtuso que isso não lhe vai fazer diferença. Perdoe-o por você e não por ele.

  Escreva-me, por favor.

  com amor, Mo.

 

  Pat e eu estávamos bebendo alguma coisa no meu quarto em St. Praxides. Marty e Leo Mark já tinham ido dormir desde algum tempo.

  - Bem, Kevin, você estava certo. - Ele virou um longo trago do martíni. - Eu deveria ter ficado lá na minha paróquia. As tentações da corrupção estão lá em toda a parte. Acho que you me defendendo, mas gostaria que você estivesse lá para me dar um murro na cabeça sempre que eu precisasse.

  - Mulheres?

  - Graças a Deus, não. - Ele piscou-me o olho. - Creio que já estou imune a isso, embora as ruas da cidade estejam repletas de garotas de abafar. O que me ajuda é ter a Maureen lá. A candura dela ainda é mais rude que a sua. - O seu rosto abria-se num sorriso que era uma súplica.

  - Mas então, qual é o problema?

  - O poder, o dinheiro, a capacidade para fazer coisas, a maioria das quais é admirável. O Concílio é um jogo político fascinante. Você ali seria o máximo!

  Para mim é como se fosse uma droga. E eu não quero ficar viciado. As pessoas... bem, elas são espertas e urbanas. Mas... eu nem mesmo sei como dizer... esgotadas, sem sangue nas veias. Há bispos que até dão a impressão de não terem hormônios de espécie alguma. Mas isso, e Deus bem sabe, não é o meu problema. - Mais um sorriso.

  - Então ainda não se decidiu?

  - Se eu quero ou não entrar no jogo do poder eclesiástico? É isso mesmo, ainda não me decidi. É um jogo em que a gente pode fazer muita coisa boa, Kev.

  - E também pode fazer muita coisa ruim para você.

  - Você provavelmente está certo... - Ele tornou a servirse de mais um martíni. - Olhe aqui, você já viu a minha filha? Ela é bonita?

  - Patrick, você não está... - Eu precisava beber mais um pouco. Bastante.

  - Não se apoquente, Kevin. Não you lhe dizer como foi que a vi, mas a Georgina nada teve que ver com a coisa. Eu me sinto verdadeiramente orgulhoso com aquele tiquinho de gente. Ainda não tem dois anos e já fala como se tivesse seis!

  - Você está louco, Pat. Por que arriscar-se assim? Por que atormentar-se desse jeito? Você queí ser marido da Georgina?

- Meus Deus, claro que não! - Ele estremeceu. - Mas eu sou o pai de Patsy. Nunca fiz muita coisa boa neste mundo, mas ela é uma coisa linda que eu deixo por aqui.

  - Você poderia destruir tudo. A sua vida, a dela, a do casal. - Reduzi substancialmente a quantidade de martíni.

  - Eu só a vi uma vez, Kevin, e, provavelmente, não o farei novamente durante muito tempo, ou talvez mesmo nunca mais. Mesmo assim, sinto-me orgulhoso dela. Eu só queria partilhar com você o meu orgulho. - Agora, ali, pela primeira vez naquela viagem, eu via o medo de volta em seus olhos. - Desculpe-me se o ofendi, Kev.

  - Não fiquei ofendido, Pat. Fiquei apavorado.

 

  Em novembro, John Kennedy morreu numa rua de Dálias. O Papa, o Presidente e Tim Curran.

  E a vida continuava. Uma semana depois da morte do Presidente, entrava neste mundo Steven Kevin McNeil, um ruivo com os tradicionais olhos verdes e duros. No dia de Natal apareceu Timothy Curran Jr., que se juntou a Brendan e Caroline e uma outra garotinha de ano e meio cujo nome eu jamais ouvira.

  Em Roma, os bispos, numa votação esmagadora, apoiaram a Liturgia em Vernáculo, cerca de uns trinta e sete anos antes da previsão de Pat Donahue imaginar que estivéssemos prontos para aquilo, e as forças da mudança pareciam dominar completamente o Concilio, apesar da aparente relutância do Papa Paulo VI em dar-lhes um completo apoio.

  Os documentos sobre as liberdades religiosas e os judeus foram adiados. Albert Gregory Meyer, agora um dos dez presidentes do Concilio, exercia um poderoso impacto através de suas declarações, escritas, em sua maioria, por dois brilhantes e progressistas estudiosos das escrituras, Frank McCool e Barnabas Ahern. O sucesso do cardeal em Roma tornou-o popular em Chicago e isso surpreendeu-o muito. Ele se preocupava com o resultado do Concüio.

  - Eles não fazem um jogo limpo - disse-me ele em seu gabinete durante uma breve estada. Eu acabara de lhe contar sobre a oferta que recebera para continuar no instituto depois de minha tese e ele logo aprovou a idéia. - Eles torcem todo o contexto do Concilio só para servir aos seus propósitos, e isso não é justo. Ofereceu-me um charuto, esquecido, mais uma vez, de que meus vícios eram todos espirituais.

  No primeiro domingo da Quaresma seguinte, todos os altares da arquidiocese foram virados para ficarem de frente para o público, pela primeira vez em um milênio e meio. E a missa foi rezada em inglês. Todos os pastores estavam prontos para uma tempestade de protestos que jamais ocorreu.

 

  Ellen falou muito pouco na festa. Ela compareceu porque uma de suas amigas lhe dissera que precisava sair um pouco. Era difícil diferençar os que tinham sido padres com suas mulheres, e os padres atuais e seminaristas com suas companhias femininas. Ela chegou a chamar de "irmã" uma mulher cujo marido tinha sido padre, pensando que ela fosse uma freira, engano esse fácil de se cometer, já que a maioria das mulheres pareciam realmente freiras, a não ser uma ou duas delas, tranqüilas e atraentes e que, afinal, eram mesmo freiras.

  Pensava consigo mesma que, se jamais ela fosse um padre que houvesse abandonado o sacerdócio, a primeira coisa que faria seria afastar-se para sempre da Igreja. E, no entanto, toda a conversa na festa girava em torno de fofocas eclesiásticas sobre quem substituiria o Cardeal Spellman de Nova York, como era o novo Arcebispo de Filadélfia e o que haviam dito Michael Novak e Daniel Callahan.

  Havia bebida demais; havia piadas sujas demais; havia muitas insinuações sobre sexo. Ela odiava a Igreja pelo que tinha sofrido quando acreditava nela. E aqueles idiotas, brincando já no fim da vida, fatiam com que a Igreja se transformasse numa nojenta piada. Pensou na Irmã Caroline e ficou imaginando se aquela boa mulher estaria agora de calças longas de poliéster. Ela tremeu ligeiramente.

Um rapaz chamado Tim Prindeville, acompanhado por uma mulher alta, angulosa e mais velha do que ele, falava a respeito de Pat Donahue, um assunto que interessava a todo mundo.

  - Pat está se agarrando com a metade dos cardeais - o ;ovem dizia. - Prestem atenção. Qualquer dia desses ele vai aparecer por aqui como arcebispo. Aí nós estaremos todos encrencados.

  - E então nenhuma mulher de Chicago estará em segurança.

  - O acompanhante de Ellen entrou na conversa. - Pat nunca conseguiu manter fechada as braguilhas das calças.

  Ela não quis mais ouvir. Seníia-se como se nem mesmo estivesse na sala. Era apenas uma espectadora que via tudo de uma grande distância. Era freqüente ela sentir-se assim ultimamente.

  O seu acompanhante tentou apalpá-la quando terminou a festa, mas ela deu-lhe um empurrão. Ele apertou-a com brutalidade contra a porta do apartamento dela e arrancou-lhe a blusa. Ela deixou de resistir, permitindo que ele se divertisse.

  - Abra a porta para eu poder entrar. Não lhe farei mais nada.

  - Nem que eu tenha que ficar aqui de pé a noite inteira ela respondeu sem a menor emoção.

Ele desistiu, finalmente, e foi-se embora. Durante muito tempo ainda ela ficou sentada na janela do apartamento. A casa estava silenciosa, as crianças estavam todas dormindo. A noite era fria e as estrelas estavam muito longe.

 

  Meu pai encostou-se na enorme poltrona de espaldar alto era seu escritório e suspirou ao ingerir um avantajado gole do Jameson com vinte e quatro anos, reserva especial. Ele estava nos sessenta agora, mas não parecia mais velho do que quando voltara da Alemanha.

  - Você vai se formar em junho - falou comigo com alegria.

  - Isso é depressa demais para um doutorado, não acha?

  - Eu sou o que eles chamam um aluno amadurecido. Fortemente motivado para acabar de uma vez, sem família para preocupações, e financiado pela Igreja. Assim não fica tão duro. Aquele Jameson era uma trovoada líquida, e eu fiquei imaginando quantos seriam os clientes homenageados com aquilo.

  - E depois, Kev?

  - Eu não sei. Mais pesquisa. Há gente interessada em minhas noções a respeito de comunidade local e desenvolvimento humano. Posso continuar em St. Praxides. Vou esperar até que o Concilio termine e o holandês grandalhão decida o que quer fazer comigo - dei de ombros.

  - E sente-se feliz? - Ele estava brincando com o abridor de cartas que tinha em cima da mesa.

  - Claro. E por que não haveria de estar?

  Ele hesitou. Afastou o abridor para o lado e começou a brincar com "um envelope do tamanho usado para cartas.

  - Campeão, nós, geralmente, não lhe pedimos favores.

  - Eu acho que lhes devo alguns. - Eu fiz uma careta e tentei quebrar o gelo.

  - Talvez você não saiba que nos deve este. - Dessa vez foi ele quem sorriu. - No domingo passado, na hora do jantar, nós tivemos um conselho de família. Você estava lá ocupado com a sua garotada...

  - É sim. - Eu senti-me culpado. - Desculpe-me por não haver comparecido...

  - Bem, nós decidimos que a Ellen está precisando de ajuda. - Os seus olhos observavam-me atentamente.

  - Ajuda?

  - Isso mesmo. Você sabe que ela está recebendo o auxílio de desemprego, não sabe? - Eu não sabia. - Não havia nenhum seguro. A família não lhe perdoa o casamento com Tim, e a família dele só ajudará se ela lhes entregar os filhos. Ela precisa voltar à sua profissão de enfermeira, em regime de meio expediente, para refazer seu amor-próprio. Ela vai precisar de alguém que tome conta da casa para as crianças e de dinheiro para roupas... e uma série de coisas. Nós chegamos à conclusão de que se não a ajudarmos, ninguém mais o fará. Então, resolvemos dar-lhe isto aqui. - Ele empurrou-me o envelope.

  Acabei de engolir o Jameson e apanhei o envelope. Não estava fechado, e dentro havia um cheque de doze mil e quinhentos dólares em nome de Ellen Foley Curran. Coloquei o cheque de volta no envelope e larguei-o em cima da mesa.

  - Ela não vai aceitar. - Eu desejaria estar naquela hora em algum lugar seguro, como o Saara, por exemplo, durante uma tempestade de areia.

  - Foi uma decisão unânime. - Ele não deu a menor atenção ao que eu dissera. - Não demorou muito tempo. A importância é apenas o resultado de uma transigência. Sua mãe e Mary Ann queriam que fosse quinze mil. Eu imaginava que ela não aceitaria nada acima de dez mil. Sua mãe e eu sempre achamos que a melhor coisa era transigir sempre que houvesse divergências na família. - Ele espalmou as mãos em cima da mesa.

  - Ela não vai aceitar coisa alguma, papai.

  - Mas você não tem nenhuma objeção a fazer quanto a nossa... preocupação com a Ellen, não é? Se for assim, vamos, voltar a fazer outros cálculos.

  - Objeção? - A minha reação foi um tanto brusca. - Não, claro que não tenho. Faz com que eu me sinta orgulhoso por pertencer a esta família. Mas Ellen não aceitará nem um penny. Sabe como é o orgulho irlandês.

  - Foi por isso que resolvemos pedir a você para cuidar da parte mais difícil. - Ele suspirou. - Você deve persuadi-la a que aceite.

  Olhei lá para fora da janela, para o novo edifício que estavam construindo ali bem defronte do escritório de meu pai e onde os martelos pneumáticos trabalhavam ativamente. Já não havia mais a neve de fins de março. Afinal respondi sem olhar para ele:

  - Você deve ter sabido sobre o que ela me disse lá no dia do velório, papai...

  - Mas é justamente por isso que eu quero que seja você quem vai levar-lhe isto. - A resposta dele foi categórica. - Nesta altura ela deve estar se sentindo tão culpada daquela explosão que julga dever-lhe um favor.

  Aquilo explicava por que ele era um dos maiores advogados de Chicago.

  Apertei o botão da campainha da porta pela terceira vez. Senti uma vaga esperança pensando que não havia ninguém em casa.

 

Logo depois ouvi aquela voz tão conhecida, muito fraca, que perguntava na caixinha ao lado do botão da campainha:

  - Quem é?

  - Kevin. - Respirei fundo.

  Houve uma longa pausa antes que a cigarra tocasse. Eu estava certo de que nunca chegaria a vencer aquele primeiro obstáculo.

  O prédio todo cheirava a repolho azedo. As paredes das escadas tinham sido pintadas em creme-escuro algum tempo antes da Grande Depressão. Havia uns pretinhos brincando tranqüilamente no patamar do segundo andar. No terceiro uma porta abriuse para mim.

  Eu esperava que no apartamento houvesse uma terrível confusão com crianças chorando, cheiro de fraldas, tapetes e mobília sem conservação. Mas tudo estava rigorosamente limpo, com uma decoração alegre, e muito claro com o sol que entrava pela janela da cozinha. Brendan e Caroline sorriram com muita delicadeza e depois voltaram a sua atenção para uma porção de brinquedos que estavam por ali. Maria estava dormindo e Timmy chupava uma mamadeira no colo da mãe.

  A única coisa que não estava certinha na casa era a mãe deles. Estava gorda demais, desarrumada em roupas que lhe caíam mal, meias curtas nos pés, um pacote com maços de cigarros em cima de uma mesa tosca ao lado de sua cadeira, uma pilha de livros baratos.perto dela, no chão, um prato com doces em cima da mesa e ao alcance de sua mão.

  Ela já era uma velha. Seu corpo bonito tinha desaparecido, as mãos estavam manchadas com nicotina, os olhos estavam cansados, a voz era apagada e os seus movimentos eram lentos e pesados.

  - Como vão as coisas, Ellen? - Fiz aquela pergunta desejando que houvesse encontrado coisa melhor para início de conversa. O envelope dentro de meu bolso já queimava tanto que certamente iria fazer um buraco no casaco.

  - Eu não retiro nem uma palavra daquilo que lhe disse no velório...

  - Nem eu esperava que o fizesse, Ellen. Pensei que poderíamos considerar isso ultrapassado.

  - Será que jamais poderia entrar nesta sua cabeça insensível e complacente que eu, realmente, amava Tim? - Ela continuava a balançar o pequenino Timmy com a maior delicadeza enquanto me estraçalhava impiedosamente. - Não. Claro que não. Você não sabe o que é o amor. É certo que o nosso casamento não foi grande coisa, mas isso não foi culpa dele. Eu o amava, eu o amava com todo o amor que tenho em mim. Eu nunca o fiz feliz, nunca o deixei em paz, e, praticamente, nunca lhe proporcionei prazer algum. Você e todos os seus malditos padres e freiras encheram o Tim com tanto medo e tanta culpa que ele chegava a ter medo de amar. - Ela falava num Tom monótono tão isento de emoção que era como se não lhe restasse mais nenhum sentimento. - Você disse que nós não podíamos fazer amor senão depois de casados, e então nós nos casamos sem que nenhum de nós soubesse bem o que era trepar ou qualquer coisa mais. Eu, praticamente, engravidei na própria noite

do casamento. Posso contar pelos dedos o número de vezes que fizemos amor durante os últimos dois anos do nosso casamento. E, no entanto, nós nos amávamos muito. Vá para o inferno com os seus olhos verdes cheios de preconceitos. Nós nos amávamos mesmo. Agora ele está morto, e nós não nos amaremos mais.

  Nessa altura eu já estava começando a modificar minha opinião a respeito da sabedoria e esperteza do Coronel. Mas não tentei interrompê-la. Deixei-a dar vazão a tudo que sentia. Os livros que ali estavam eram uma verdadeira bagaceira, e não havia entre eles um único exemplo de literatura. Pensei na minha Ellen que queria ser escritora e que lera todo o Dickens e Scott antes de entrar para o ginásio.

  - Você tem todo o direito de estar muito zangada, Ellen. ..

  - Não me venha bancar o bonzinho, seu filho da puta miserável. - A sua voz continuava sendo incolor. - Poderia você jamais imaginar no seu mundo de celibato que uma mulher possa ter paixão e desejos que não são realizados com o nascimento de quatro filhos em cinco anos, e que há coisas melhores que uma mulher poderia desejar e que não fossem apenas mudar fraldas o dia inteiro?

  - Mundo de celibato... - Eu a interrompi quase instintivamente. - Uma bonita frase bem imaginada...

  Dois pontos de cor apareceram em seu rosto pálido, e ela respondeu com presteza:

  - Kevin sempre tem a última palavra. - Lá fora, no beco estreito, a garotada gritava jogando basquete. Levantei-me.

  - Agora você vai ouvir-me, Ellen. Eu não saí ganhando no velório porque não ficaria bem para um padre fazer isso diante de tanta gente, e foi por isso que resolvi vir aqui para dizer a última palavra. Eu não vou permitir que uma gorducha desmantelada passe o resto da vida dizendo a todo mundo que levou a melhor numa discussão com Kevin Brennan.

  - Gorducha desmantelada?! com todos os diabos, com quem pensa que...

  - Cale-se e ouça a verdade - respondi gritando também porque eu sou a única pessoa disposta a dize-la para você. Você é uma mulher gorda e neurótica, que vive se queixando e também comendo e fumando desbragadamente para morrer mais depressa. Os únicos interesses que você encontra na vida são as novelas baratas e tolas.

  - Aquilo era um palpite meu, mas tive a impressão de que acertara em cheio. - Isso não lhe vai trazer o Tim de volta. Não vai ajudar no crescimento de seus filhos e nem mesmo a você. Pobre Ellen, aquele burro de carga que sofreu a vida inteira e que é tão digna de pena! Você é uma completa e maldita idiota, e eu uso as três palavras com pleno conhecimento de causa.

  Ela acompanhava-me com os seus terríveis olhos cinzentos enquanto eu me deslocava pela sala aos gritos.

  - E o que é que quer que eu faça? - Ela respondia-me também aos gritos.

  - A primeira coisa a fazer é parar com esta porcaria... e atirei o pacote de cigarros na cesta do lixo. - E parar também com isto aqui... - e os doces acompanharam os cigarros. - Livre-se desta tralha... - um pontapé nos livros - e vai logo emagrecer dez quilos.

  Ela levantou-se da cadeira, foi devagarinho até o berço vazio junto ao que era ocupado por Maria, que não se perturbara com a gritaria, deitou Timmy com muito carinho e voltou à sua cadeira.

  - Provavelmente quinze... E depois disso, padre? O que é que eu tenho que fazer?

  - Depois você vai voltar a trabalhar em St. Anne ou em Loretto. Vai usar os seus conhecimentos e a sua capacidade para recuperar o respeito por si mesma... E enquanto faz tudo isso, procure arranjar um outro homem.

  - Eu já tive um, e não quero outro. - Ela estava fazendo força para não chorar.

  - Quer queira, quer não queira, o melhor que você tem a fazer é arranjar um - continuei gritando. - Seus filhos precisam de um pai, e você precisa de um marido, e deve haver milhões de homens neste mundo que precisam de uma mulher como você. Eu já estava perdendo o entusiasmo e tentei mantê-lo forte. Pelo amor de Deus, pare com essa história de viver se lamentando. Quer saber de uma coisa, Ellen? Ninguém está ligando a mínima para as suas lamúrias. Desista disso.

  - Será que há alguma coisa em mim que não precise ser mudada, Kevin? - Ela olhava contrita para o chão.

  - Há sim. Você pode continuar com esses seus olhos cinzentos da forma como eles eram quando você estava zangada comigo, Ellen.

  - Aposto - ela levantou os olhos com o lábio superior ligeiramente virado - como você fez voda essa caminhada da universidade até aqui só para me fazer este elogio que, aliás, não me parece inteiramente sincero.

  Foi então que me lembrei da razão para a visita, e isso me tirou todo o entusiasmo. Sentei-me no sofá.

  - Isso é tudo que você tem para me dizer, Kevin? - A pergunta era feita com muita paciência.

  - Puxa vida, Ellen, eu fiz uma completa trapalhada. Desculpe-me. Não foi para isso que eu vim... - eu estava tentando achar uma brecha. - Hum... eu preciso de um favor seu.

  - E por que não disse logo? - O lábio superior subiu um pouco mais, mas não era um sorriso. - O que é?

  - O Coronel... não está pedindo muito. Vamos lá, Kevin Brennan. Coragem. Ele quer que eu faça uma coisa, e eu... bem, eu preciso de sua ajuda.

  Ela franziu o rosto. Tirei do bolso o envelope e estendi o braço para ela.

  - Você tem que me prometer que não vai rasgá-lo...

  - Não seja criança, Kevin. Claro que não vou rasgar. - Ela falava como se estivesse impaciente.

Pegou no envelope e abriu-o, olhou para o cheque e atirou tudo no chão.

  - Eu não preciso da caridade de sua família!

Apanhei o envelope e o cheque, que enfiei novamente onde ele estava, e depois coloquei tudo em cima da mesa do café cheia de manchas.

  - Então, pelo menos, você aceitaria o nosso amor?

  - Mas por que, Kevin? - Ela reagiu como se lhe tivessem dado uma facada. Via-se que estava outra vez fazendo força para não chorar.

  - Houve uma reunião de família, lá em casa, na semana passada ... mas eu não estava presente - acrescentei rapidamente, para que ela não pensasse ser minha a idéia - mas logo concordei quando me disseram...

  - E provavelmente ficou muito triste por não ter pensado nisso primeiro, não foi mesmo?

  - Eu me lembro de haver conhecido uma garota que estava sempre querendo me espicaçar dessa mesma forma... - eu mergulhei de cabeça. - Eles acham que você precisa voltar a trabalhar, pelo menos em meio expediente, e isso significa uma pessoa para tomar conta da casa, roupas e uma porção de outras coisas. Todos nós a amamos, Ellen... - eu continuava falando como se não percebesse a rápida mudança de expressões de dor em seu rosto - e então chegaram a essa conclusão.

  - Eu não poderia conseguir um lugar de meio expediente em Loretto. Eles só precisam de enfermeiras de psiquiatria de tempo integral. - Ela estava começando a perceber que caíra na armadilha.

  - Você não imagina que o Coronel deixaria de cuidar disso a tempo, não é? Claro que eles vão aceitar você em regime de meio expediente.

  - E quais são as condições? O que preciso fazer?

  - Se fosse eu a decidir, isso seria duro. Um certo número de trabalho diário; um certo número de quilos perdidos cada mês; um certo número de livros bons para exorcizar essa porcaria. Você tem até sorte porque minha família exige muito menos do que eu exigiria. Não há condições. O cheque virá todos os anos, até o dia em que eles verifiquem que você não precisa mais deles.

  - Então é um empréstimo? - Ela fez a pergunta como alguém que vê um salva-vidas ao alcance de suas mãos e então tenta alcançá-lo.

  - Nada disso. Nós não somos emprestadores de dinheiro. Nós o damos às pessoas que amamos. - Levantei-me e caminhei para a porta. Ela estava derreada. Olhou para o envelope como se ele houvesse sido posto ali em cima de sua mesa por algum disco voador.

  - Eu não quero ser obrigada a escolher, Kevin. - Sua voz estava abafada com a dor.

  - A favor da vida ou contra ela? - Eu estava com a mão na maçaneta.

  Ellen sacudiu a cabeça.

  - O caso é que os seus amigos fizeram uma crueldade com você. Estamos obrigando você a tomar uma decisão. - Eu já estava com a porta aberta.

  Ela estava ainda olhando fixamente para o envelope quando eu saí do apartamento.

<188>

 

Ellen querida,

  Estou de volta a Roma depois de uma triste tarde de domingo lá no alto, perto de Tivoli, a região montanhosa onde os exaustos aristocratas romanos passam os domingos de verão desde a época de Rômulo e Remo. São só árvores, sombra fresca, brisa leve sem a nojenta fumaça e nevoeiro de Roma. O lugar perfeito para um palácio de prazeres como a Casa Martinelli.

  As mulheres eram todas terrivelmente belas e com traços finos que fariam você chorar de inveja. Os homens eram todos imitações de Rodolfo Valentino. Durante as tardes só se ouviam suspiros e risadinhas sem contar com os comentários cínicos a respeito das artimanhas financeiras de figurões da Cúria.

  Os nossos anfitriões eram Monsenhor Martinelli, o protetor de Pat e veado reconhecido com certidão passada, e a sua mãe, a Princesa Martinelli que, na minha opinião, deve andar pelos cinqüenta e tantos, mas que parece quinze anos mais moça. Ela tem duas lindas "empregadinhas" que sempre acaricia despreocupadamente quando elas andam de um lado para outro servindo café-expresso e licores. Elas combinam bem com os dois lindos padres jovens que fazem parte da antourage do Monsenhor Martinelli. Levando tudo em conta, e com outros personagens variados, você pode imaginar ali a causa dos Borgias, só que os Martinellis consideram os Borgias como simples parvenus. As arcadas de mármore e os balcões batidos pela brisa na vila foram construídos quando os Borgias ainda eram simples lavradores na Espanha.

  Ninguém parece dar muita importância quanto à perversidade do lugar. Conforme a Princesa me disse em sua voz modulada, o Cardeal Rodrigo Martinelli, o fundador do clã nos idos de 1400, construiu a vila com duas alas, sendo uma para os seus bambinos e outra para as suas bambinas, e com isso ele não queria dizer filhos ou filhas.

Eu disse baixinho para o Pat que nós éramos as duas únicas pessoas direitas, por ali. Ele fez-me sinal para eu falar mais baixo ainda, e disse que aquela família era das mais antigas entre toda a nobreza e a mais leal ao Papa.

Nesse ponto, Tonio, o monsenhor, juntou-se a nós curvando-se mais uma vez para beijar-me a mão, embora os seus olhos castanhos e duros estivessem fitos no Pat, mais do que em mim. "O nosso' retiro na montanha é o ambiente perfeito para a sua beleza incomparável, signora." Os seus lábios finos e cruéis conseguiram sorrir de maneira agradável.

  Mais tarde, quando descíamos pela estrada da montanha, já bem no escuro, a reação de Pat foi fortemente defensiva. Ele me disse então que aquela gente era mais sofisticada e tinha mais experiência do que nós. Disse que eles eram mais cínicos e mais relaxados, e ainda que o sexo não era importante para a Cúria da maneira que o era no século passado, quando alguns dos homens que chegaram a papa já tinham filhos. Pat me dizia também que a maioria dos padres era fiel aos seus votos e não tinham amantes nem "amiguinhos".

  Eu lhe disse que aquilo era possível, embora o Tonio fosse realmente veado e estivesse de olho nele. Pat ficou zangado e chegou a gritar comigo dizendo que aquilo não era verdade. "Além disso, Maureen, não quero que você pense que eu vou subir na Igreja satisfazendo os desejos inconfessáveis de monsenhores."

  Eu pedi-lhe que me desculpasse, e disse-lhe que não punha em dúvida a sua castidade ou a sua heterossexualidade. Mas, mesmo assim estou inquieta. Pat acha que ele é muito esperto e pode usar o Martinelli e talvez, até mesmo, tornar-se seu amigo sem cair na esparrela. Mas eu, de qualquer forma, sempre preferiria aproximar-me de um crocodilo.

  Você está como enfermeira na psiquiatria. Aconselhe-me, por favor.

  Sheila já está quase boa da gripe do verão. Espero que a sua criançada esteja toda boa e que você esteja adorando o seu emprego.

  com amor, Mo.

 

Minha querida Mo,

  Vou dar-lhe um conselho, já que foi você quem pediu.

  Mantenha o Pat longe desses nojentos. Ele é ainda o garoto que nasceu no West Side, a zona ruim de Chicago.

  Adorei a descrição que você fez da vila dessa gente. Gostaria de ver o Kevin num lugar como esse em Tivoli. Aposto como ele reagiria aos Martinellis com a única emoção que eles não toleram, o dêsprezo ostensivo. A família dele, e até mesmo a Mary Ann que eu adoro, não é dada ao pecado mortal do sensualismo como acontece com você, Pat e eu mesma, além dos Martinellis. Na verdadeira tradição irlandesa, eles se concentram no orgulho, no ódio, na raiva e na vingança.

  Aliás, pensando bem, eu provavelmente estou nos dois campos.

  Às crianças estão ótimas. Espero que Sheila esteja melhor. Eu me sinto cansada e solitária. Agradeço as suas orações. Mal não podem fazer.

com amor, ELLEN.

 

  - Nenhum deles tem alguma coisa contra os seus judeus... Assim falava o franciscano barbado no seu sotaque carregado de Wexford, sacudindo a cabeça na direção da corrente vermelha de bispos que saía do portal de San Pietro. - O problema com os documentos sobre o anti-semitismo são os árabes cristãos.

  Fazia apenas uma semana que eu me encontrava em Roma. O céu por trás de S. Pedro era de um azul cristalino. A própria cúpula brilhava quase branca naquela manhã ensolarada. Os bispos da Igreja Católica Romana em esplendor multicolorido passavam pela piazza para entrarem em ônibus ou carros.

  - Você quer dizer que o Papa está contemporizando na declaração para as razões políticas? - Na minha exaltação eu coloquei a xícara de chá em cima da mesa com medo de entorná-la.

  - Se ele acusar o anti-semitismo - Maureen respondeu isso não lhe vai granjear muitos votos e coloca os árabes cristãos em foco... - Ela levantou-se.

  - Vou buscar mais um café.

  Fiquei a olhá-la até entrar no café. O seu corpo acomodava-se melhor com alguns quilos a mais do que o de Ellen, mas ela estava bem mais magra. Para quem gostasse de mulheres bem nutridas, aqueles quilos a mais eram até uma melhoria. Mas aquele desânimo que eu via em seus olhos não me agradava nada.

  - Diga-me uma coisa, Padre Kevin, será que o seu holandês apoiaria a declaração? O meu chefe gostaria de saber ao certo. Quem fazia a pergunta era Dermot McCarthy.

  - Eu preferiria que perguntasse isso ao Cardeal Spellman, que é o cardeal do Comitê Judaico-Americano sobre esse assunto.

  - Claro que eu não ia contar ao sabichão do Dermot McCarthy que o "holandês" Meyer e eu tínhamos limitado a nossa conversa em Roma a discussões sobre as condições meteorológicas de Chicago em outubro.

  - A Cúria vai-lhe dar a que fala sobre os judeus, Padre Kevin - disse Dermot suspirando - depois que ela tenha misturado tudo bem, mas eles não gostam mesmo da que fala em liberdade religiosa. Se começarmos a dar liberdade de crença fora da Igreja, é claro que o primeiro resultado será que vão começar a esperar isso por dentro, e então onde é que nós vamos parar?

  - O pessoal todo vai lutar por isso até o amargo fim - eu insistia.

  - Será que vão mesmo? - Ele olhou-me de frente. - Pois bem, você pode estar certo de que a Cúria não vai cometer o mesmo engano outra vez durante muito tempo de nomear bispos assim nos Estados Unidos.

  Maureen voltou para a mesa trazendo café para Dermot, cKá para mim e o expresso para ela.

  O garfo de Dermot estava brincando com um pedaço de doce cremoso. Então ele falou baixinho:

  - Muito bem, vou lhes dizer uma coisa. Eles vão fazer com que vocês, rapazes, aproveitem seu dinheiro. - Outra vez o sorriso franciscano, e ele levantou-se da cadeira saindo para a rua, caminhando rapidamente em direção ao Vaticano.

  - Não confie muito no charme irlandês, Kevin. - Maureen aconselhou-me. - Há ocasiões em que eu fico pensando se ele é capaz de distinguir o que está realmente acontecendo daquilo que ele imagina que está acontecendo. - Ela ficou ali brincando com uma pequena mecha de seu cabelo negro cortado muito rente. Parecia cansada.

  - Mo, o que é que nós podemos fazer por você? Mesmo com o Tomcasado, a anulação...

  - O que é que você tem com isso, Kevin? - Ela interrompeu-me logo. - O que é que você fará para se divertir? Claro que não pode estar gostando da brincadeira de poder que anda por aqui, não é mesmo? Qual é o prazer que você encontra em se inquietar com a trapalhada do meu casamento, com as aventuras amorosas de Pat ou com a viuvez solitária de Ellen ou seja lá qual for o nome que você lhe dá? Aposto como é isso que você faz lá na sua paróquia o tempo todo. E toda a trabalheira só para ter um grau? Por que se preocupa tanto? Por que se preocupa comigo? Bem sabe que sou uma causa perdida...

  - Você não é uma causa perdida, Mo - eu tinha acabado com o meu doce e estava agora comendo o de Dermot - e eu tenho prazer em me preocupar com sua vida. Sinto doer meu coração quando vejo o cansaço em seus olhos. Quanto às razões para... é possível que um pouco de psicologia seja perigoso. Um garoto cresce enquanto o seu supercompetente pai está longe tentando salvar o país. Ele aprende a cuidar de sua mãe e dos irmãos menores. Depois passa o resto de sua vida cuidando dos outros. Há ocasiões em que até se sai muito bem.

  - Meu Deus, Kevin - ela mostrou-se horrorizada - é isso que constitui toda a sua vocação? E por que não cai fora?

  - E por que iria fazer isso? Gosto de cuidar dos outros.

  - E você é feliz mesmo com esta explicação? - Ela levantou a xícara e logo tornou a colocá-la no pires sem tocar.

  - E por que não?

  Ela debruçou-se por cima da mesa e beijou-me ali à sombra de S. Pedro sem ligar para o escândalo que poderia causar.

  - Isto é por ter sido tão carinhoso e por preocupar-se tanto comigo. E não pense mais no Tom. Ele é um paspalhão e não compreendo o que jamais possa ter visto nele.

  Cheguei tarde de volta à casa do Villanova onde estava hospedado, e fui logo para a cama. Sonhei não com Maureen e sim com Ellen. Eu estava de novo no Hospital de Loretto por onde realmente passara algum tempo antes, logo depois de entregar o envelope a Ellen. No sonho ela estava correndo atrás de mim com uma faca na mão. Fui despertado com o ronco de uma Vespa embaixo de minha janela antes que ela pudesse me morder.

  Já se tinham passado dois meses depois daquele confronto e ainda me sentia humilhado. Eu fora visitar a pobre Mary Tansey que, apesar de ser o que era, não merecia aquele câncer no pulmão. Um paroquiano meu estava ali na unidade de psiquiatria e eu não sabia se passaria ou não pelo seu quarto. Eu receava mais não ver a Ellen do que realmente vê-la.

  A minha dúvida foi logo resolvida. Ellen estava ali na sala das enfermeiras, de prancheta na mão e cercada por um grupo de enfermeiras e atendentes.

  - Alô! - O meu cumprimento foi um tanto tímido depois que ela dispensou com frieza e competência o pessoal que a cercava.

  - Boa-tarde, padre. O Sr. McClutchey está no 417, se o senhor quiser vê-lo. Está passando muito bem.

  - Você também me parece que está indo muito bem. Já está a mais da metade do caminho para voltar à sua forma antiga. Tem lido alguns bons livros?

Houve um silêncio completo. Seus lábios ficaram brancos. Os olhos endureceram.

  - Desculpe-me. Que tolice a minha. Eu achava que iria me encontrar com você e que não saberia o que dizer. Dei mais uma mancada.

  - Claro que deu mesmo. - A sua resposta foi bem fria. - E, por favor, lembre-se de que por mais que eu seja grata à generosidade de sua família, não sou obrigada a me submeter a uma inspeção sua.

  Ela voltou-se e foi embora com seus sapatos batendo zangados no corredor muito liso. Fui ver o Joe McClutchey. Ellen não estava mais lá quando passei pela sala das enfermeiras.

  Depois que acordei de meu cochilo entrei no chuveiro. O não funcionamento adequado dos chuveiros italianos é a prova mais evidente de que realmente existe um purgatório.

  Depois fui para o salão comum que ficava no fim do corredor da casa. John Quinn, um peritus de Chicago em direito canónico, já tinha providenciado duas garrafas de Jameson. Dando graças às suas virtudes, falando comigo mesmo já que não havia mais ninguém ali "na sala, servi-me generosamente e fui buscar o gelo na máquina que o fabricava e que era também uma providência de Quinn. Só havia duas daquelas máquinas em Roma, naquele tempo, e a outra estava na Casa de Chicago, um presente do sempre atento Quinn para o cardeal.

  - Será que é um Jameson que você tem aqui? - disse uma voz de homem, precisa e distinta. - Mas que diabo, Kevin, será que só há duas pessoas com um gosto tão apurado em toda esta cidade?

  John Courtney Murray era um espírito alto, frio e incandescente com mais de um metro e oitenta de altura, pelo menos. Era calvo, usava óculos com lentes muito grossas e tinha um domínio sem igual do estilo literário. Ele tinha sido proibido, muitos anos antes, de continuar escrevendo sobre o apoio da Igreja à liberdade religiosa. Fora banido da primeira sessão do Segundo Concilio do Vaticano e depois convidado exatamente pelo Cardeal Spellman para agir como perito em todas as outras sessões. Agora ele estava redigindo um documento sobre o seu assunto predileto, documento esse que poderia criar uma revolução no pensamento católico a respeito da liberdade.

  Sentamos os dois nas cadeiras de espaldar duro e ali ficamos bebericando aquela ambrosia.

  - Será que eu preciso lhe dizer, Kevin, que será um desastre de proporções monumentais se a declaração sobre liberdade religiosa não for aprovada? Pode você imaginar, nos dias de hoje, que a Igreja sugira que num Estado católico será perfeitamente aceitável a perseguição religiosa às minorias? - Dizendo isso ele engoliu a sua bebida, e eu notei então que ela não fora poluída com o gelo. Mas ele continuava. - No entanto, eu não ficaria surpreso se aqueles que se opõem à liberdade religiosa tentarem explorar o Padre Donahue que, pelo que me dizem, é um amigo seu. É um jovem excelente, encantador, eficiente e inteligente, mas ainda não está à altura das maquinações deles. Todos nós temos que estar muito atentos quanto às nossas áreas de informações. Será que poderei contar com você?

  - Pode deixar que eu cuidarei dele - minha resposta foi em Tombem incisivo.

 

1.° de outubro - Ellen querida,

  Tenho hoje mais uma grande festa à noite, mas quero escrever para você antes que comece a me preparar. Eu não sei mais o que fazer com o Pat. A sua família abandonou-o, e estou certa de que você sabe o que isto significa. Tudo começou quando ele quase não os procurou durante todo o tempo que passou na paróquia dos Quarenta Mártires Sagrados. Esperavam que ele fosse jantar com eles todos os domingos. Sua mãe devia ter planejado exibi-lo todas as semanas durante os anos que passou no seminário. E então ele começou a aparecer pouco, já que a paróquia lhe ocupava todo o tempo, e passou a envolver-se com as pessoas que lhe davam o dinheiro para ir manobrando a paróquia como, por exemplo, os Tanseys, e que Deus lhe dê um bom descanso, e os Carreys. Creio que ele sempre achou a família muito chata. Não estou querendo procurar desculpas para ele. O caso é que eles não compreendiam bem o que ele estava fazendo e tampouco gostavam de vê-lo em uma paróquia ds negros. Depois, ficaram ainda mais zangados quando ele não ficou por ali, perto de casa, durante suas férias dois anos atrás.

  A carta que recebi da mãe dele ontem é de cortar o coração. Ela diz que ele não dá notícias, que não se importa com eles, que traiu a família e que estava  mais interessado em sua carreira do que na família. E eu quero crer que estejam com a razão, mas também eles são os principais culpados, você não acha? A idéia que eles fazem de um bom padre é que ele deve ser exatamente como foi o Padre Conroy em nossa paróquia uns vinte anos atrás. Todas as tardes de domingo ele corria de volta aos braços da mãe.

  Há ocasiões em que ele diz como teria vontade de abandonar tudo e voltar para a sua antiga paróquia para passar os domingos com a família. Se ele tivesse um pouco mais de coragem e um pouco menos de ambição, seguiria o seu instinto e seria um padre muito feliz.

  E é isso mesmo que eu vou dizer a ele. Depois a decisão terá que ser exclusivamente sua.

  Puxa vida, Ellen, estou até parecendo o Kevin, não é mesmo? Quem sabe ele é contagioso? Eu estive com ele hoje e tomamos um café juntos. Eu sei que você o detesta e você sabe que eu acho que não devia pensar assim. Então vou parar por aqui.

  Aposto como você está querendo saber o que eu penso dele agora que tem a mesma idade de Nosso Senhor quando morreu na cruz. É bem difícil responder a isso. Ele está pior e, de uma maneira engraçada, está muito melhor.

  O que eu quero dizer é que ele é, cada vez mais, o lutador cínico, impiedoso, que jamais existiu. E como são duros os seus olhos! Você tem que descascar uma boa quantidade de camadas para chegar até aquilo que ele sente. E no entanto... no entanto... aquela parte suave e delicada continua lá, e talvez até mais óbvia. Você certamente lembra como seus olhos verdes podem mostrar tristeza.

  O Pat quer ser bispo. Eu quero fazer alguma coisa útil com a minha vida. Você quer ser uma escritora... e eu não me importo com o que você diz. O que será que deseja o Kevin? Eu não sei.

  Você devia fazer as pazes com ele. Você sabe que acabará fazendo isso. Então, por que não fazer logo?

Agora vou me arrumar.

Com amor, Mo.

 

  Da mesma forma que todas as festas de Maureen, aquela foi um brilhante sucesso. Pat ficava admirado ao ver como Maureen fingia interessar-se pelos problemas do Conselho quando ela, na realidade, não dava àquilo a menor importância. Os seus quadros inacabados estavam espalhados negligentemente no antigo palazzo na Piazza Farnese, e as semanas se passavam sem que eles ficassem mais perto de seu fim. Maureen estava dando preferência à política do Concilio em detrimento de suas lições de arte.

  Pat sentia-se culpado por aquilo. Os quadros pareciam exibir algum talento. Um de seus amigos italianos, Fredo DeLucca, primo de Antônio Martinelli, dizia que, embora se tratasse de um modesto talento, sempre valeria a pena desenvolvê-lo.

  Dermot McCarthy estava ali do outro lado da sala, cada vez mais encantador. Estava numa conversa muito séria com a mulher loura de um repórter inglês. McCarthy, com seus trajes franciscanos e tudo mais, gostava muito das festas noturnas de Mo. Ninguém jamais sabia ao certo o que ele tinha em mente. Não se mostraria mais solícito com ela se fosse o seu marido. Ela estava cheia de Roma e era presa fácil para o charme do irlandês de fala macia.

  Maureen estava disposta a dedicar todo o seu tempo e energia à carreira de Pat. Eram velhos amigos que se haviam reencontrado, depois de muito tempo, numa cidade que não tinha coração. Tinham andado muito juntos quando Maureen procurava apartamento, contratava a babá da Sheila e procurava um professor para ela. Ele não lhe pedia que desse aquelas recepções, mas ela parecia imaginar que ele precisava de um outro lugar, além da Casa de Chicago, para ver e ser visto. O fleumático Meyer não gostava muito da vida social de Roma, e a sua presença tranqüila espantava o brilho e o chiste.

  Os romanos pareciam notavelmente tolerantes face a todos os arranjos humanos. Os jornalistas norte-americanos não pareciam desconfiar de nada no que dizia respeito a um jovem minutante e uma rica patrocinadora. Vez por outra Pat procurava explicar que eles tinham sido amigos de infância, ansioso para que não houvesse qualquer outra interpretação.

  Agora Kevin estava ali em Roma. Na realidade, ele estava trocando monossílabos com Antônio, na outra sala, parecendo vagamente aborrecido como, aliás, acontecia muitas vezes.

  Pat surgiu trazendo um prato de salaminho e passando por Hans Küng que estava numa profunda conversa com um outro teólogo. Uma das razões para soirées como aquela, conforme Pat certa vez explicara a Maureen, era para reunir membros de facções opostas para que eles aprendessem a se conhecerem e respeitarem mutuamente. O ministério da reconciliação com o qual o Papa se comprometera profundamente estava sob a responsabilidade de todos.

  A sala estava cheia de jornalistas importantes, dos homens que, para melhor ou para pior, estavam mostrando a reação do mundo ao Concilio. As recepções de Maureen eram famosas em toda Roma. Era uma situação perfeita para exercer influência sobre o que o mundo pensava. Pat ficava satisfeito com a oportunidade.

  Pat reparou que Kevin estava ouvindo o Monsenhor Maríinelli. Muito mais alto do que o homem da Cúria, Kevin não parecia muito impressionado. Aquilo era uma pena.

  Os dois eram pragmáticos e ambos procuravam soluções de transigência e também compreendiam o comportamento humano. Ele bem gostaria que Kevin desse mais atenção à sua maneira de trajar. A roupa preta tirada do armário e o suéter de gola rulê poderiam ser bem apropriados na universidade, mas ali, numa recepção grã-fina no coração de Roma, aquilo chegava a ser chocante.

  - O seu amigo aqui está me contando coisas muito interessantes a respeito da psicologia dos norte-americanos. Nós ainda temos muito que aprender. Ele, na verdade, deveria ser um peritus no Concílio. Talvez o Cardeal Meyer pudesse cuidar disso na próxima sessão, não acham? - Tonio falava mostrando os seus dentes muito brancos num rápido sorriso.

  - Ele está pensando que a Igreja não estará pronta para os psicólogos senão depois do próximo Concilio - disse Kevin.

  - Será que você e a Maureen poderiam almoçar comigo no Sabatini amanna? - Pat fez a pergunta de repente, e, num aparte para Tonio: - Nós crescemos os três juntos, monsignor, e ainda não tivemos tempo para falar dos velhos amigos.

  Tonio acenou com as mãos num gesto de tolerante urbanidade.

  - Mas claro, nós veremos se o Felici pode dispensar os pobres padres do Concilio dez minutos antes para que você possa fazer o seu pedido antes do rush.

  - Almoço? E por que não? - Kevin não parecia lá muito satisfeito com a perspectiva, mas concordou.

Pat afastou-se. O apartamento estava agora cheio, com uns setenta e cinco convidados, e todos eles "importantes".

  A mulher loura do repórter inglês ainda não estava completamente embriagada, mas continuava falando com Dermot que discretamente a mantinha a distância para que ela não se encostasse nele. Quando acendeu o seu cigarro ele percebeu nitidamente o convite que havia em seus olhos, e que Dermot não aceitava nem tampouco repelia.

  Tinha-se mais a impressão de que o convite ficava arquivado para 'uso futuro, quando valesse a pena usá-lo.

  Afinal, o apartamento esvaziou-se ficando ali apenas Sheila, que dormia, o último dos empregados e Pat com Maureen. Ele estava separando as garrafas que ainda tinham alguma coisa que escapara enquanto Maureen recostava-se no grande sofá cinzento do século XVIII para descansar.

  - Eu simplesmente não posso deixar de dar essas recepções. Adoro tudo isso. Eu poderia facilmente ser um dos personagens nos filmes de Fellini. O que é que você acha, Patríck?

  - Eu diria que a parte mais deliciosa é a elegância da conversa. - Ele fechou a porta do armário onde eram guardadas as bebidas.

  - O que você achou do Kevin? - Enquanto procurava um cigarro, ela mudou de conversa, de repente.

  - Ele talvez ainda esteja cansado - ele pensou bem antes de responder - mas me parece mais ensimesmado do que nunca. Mas nada lhe escapa, não acha? - Ele inclinou-se para acender o cigarro dela e pensou em Dermot e na moça inglesa. - Você reparou como ele estava observando Fiona e o seu amigo franciscano?

  - Ele trata o Dermot como se fosse um espécime de laboratório. - Mo sorriu. - E o Dermot, a quem também nada escapa, nem percebe aquilo.

  A proximidade dos ombros nus de Maureen perturbava-o. Acendeu também um cigarro esperando que aquilo lhe acalmasse os nervos. Sentia a cabeça leve. Era muito Campari com soda. O melhor seria ir embora logo.

  - Será que o Kevin não se dá conta de si mesmo? - Ele fez a pergunta sem muita convicção, lutando para esconder a tensão que tomava conta de seu corpo.

  - Creio que sim - Maureen bocejou e esticou-se espreguiçando-se - e é por isso que ele sorri tão raramente. Não vejo uma saída para o pobre Kevin.

  - Convidei-o para almoçar conosco amanhã no Sabatini. - O movimento do seu corpo deixou-o nervoso.

  - Para mim está ótimo. - Ela levantou-se e caminhou para a porta. - É melhor você voltar para Via Sardegna. Aquele seu cardeal lá não verifica os dormitórios?

  - Há alguma coisa que eu preciso fazer primeiro, Mo. - Ele observava seus ombros e costas nus, o perfume que se desprendia dela e os seus seios que o convidavam a tocá-los. Na porta do apartamento, ela voltou-se para ele, inquieta com o Tomde sua voz.

  - O que é que você quer, Pat? Por que me olha desse jeito? Oh... por favor, não faça isso.

Ele abafou o seu grito de susto com a sua boca enquanto a apertava com força.

  Ela debateu-se procurando escapar.

  Empurrou-a para o sofá e rasgou-lhe o vestido deixando nu o seu busto. Ele queria parar. O princípio começava a se fazer valer. Seus dedos afastaram-se de seus seios.

  Ele estava ofegante. Mas agora já podia parar. Deus meu, ela jamais vai perdoar-me. Preciso pedir-lhe perdão e sair correndo. Não vê-la nunca mais. Procurar um mosteiro. Ele já não lhe tocava mais a carne. Somente rendas pretas que eram muito menos perigosas.

  Então ela abraçou-o e puxou-o para cima de seu corpo.

  O amor deles foi violento e desesperado. Ficaram os dois abraçados até muito tempo depois com o suor dos dois corpos fundindoos num só. Nenhum dos dois falou.

 

  O meu táxi ficou detido no rush barulhento e fétido do começo da tarde. Praguejei contra a estupidez de uma cultura que criava duas horas de rush em lugar de uma só. A minha raiva, no entanto, de nada servia para me levar mais depressa da Piazza Hungaria em Parioli, do outro lado do rio, até o Trastevere. O motorista do táxi com um praguejamento dramático e gestos ainda mais dramáticos lutava para romper o caminho desde o Tibre até a igreja medieval de Santa Maria, no Trastevere. Eu já estava com vinte minutos de atraso. O encantador prédio romanesco com seus lindos mosaicos não me acalmou da mesma forma que a manifesta ansiedade de Pat ao  levantar-se da mesa na frente do Sabatini.

  - Você quer comer lá dentro, Kevin, ou você...

  - Aqui está bem - respondi mecanicamente. - Desculpem o atraso. O trânsito...

  - Faz com que Chicago até pareça bom, não é mesmo? - Ele parecia agora mais tranqüilo ao ver-me ali sentado. Encheu um copo com Frascati para mim. Aquilo parecia mais uma outra tarde boa para uma sesta.

  - Será que o Monsignor Martinelli fez você sair dez minutos mais cedo? - Fiz um sinal ao garçom pedindo manteiga. Meus nervos estavam ainda em frangalhos depois daquela viagem atravessando Roma.

  - Para falar a verdade, realmente saímos um pouco mais cedo. Creio que foi mera coincidência. Espero que você e Tonio tenham feito boa camaradagem na noite passada.

  - Creio que ele achou bem difícil compreender uma pessoa como eu. - A minha resposta foi cautelosa.

  - E você achou o Fredo DeLucca interessante? - Seus olhos estavam desviados.

  - Apenas um perverso Rodolfo Valentíno com tendências sadomasoquistas.

  - Isso é terrivelmente agressivo, Kevin. - Ele ficou muito vermelho.

  - E creio que é mesmo. Essas antigas famílias romanas me atacam os nervos. Nem sei bem por quê.

  - Ele é um dos mais respeitados jornalistas de Roma. La Você é um jornal muito influente, lido por todo mundo na Cúria. Fredo conta com leitores muito distintos.

  Resisti para não dizer as palavras que se formavam em meu espírito sobre as predileções sexuais dos leitores de Fredo. Em lugar disso fiz uma observação:

  - Parece que a Mo ficou retida no mesmo engarrafamento que também me atrasou.

  - É sim, provavelmente... - Ele fez uma pausa e depois falou precipitado. - Pois é realmente a seu respeito que eu quero lhe falar, Kevin. Não sei o que você pensa a respeito dessas reuniões que a Mo faz em meu benefício. Isto é, quem gosta de fazê-las é ela mesma, pensando que isso pode ajudar na minha carreira. Esboçou um sorriso irónico. - Como se eu não fosse fazer mais nada senão ficar sentado na Chancelaria atendendo telefones durante todo o resto de minha vida. De qualquer forma, achei melhor dizer a você que não existe nada entre Maureen e eu.

  - Deus do céu, Pat, isso nunca passou pela minha cabeça. A minha resposta foi justamente o que eu estava pensando.

  - Bem, você sabe que nós fomos namorados nos tempos do ginásio.

  - Aquilo foi amor de crianças - eu sorri. - E já lá vão dezesseis anos... não, não. Dezessete...

  - O negócio é que esta cidade está cheia de fofocas - ele disse. - Eu achei melhor dizer-lhe isso, e também que eu estou andando direito e ainda que lhe sou muito grato por me haver ajudado.

  Aquilo parecia tão formal. Os seus olhos estavam inquietos com o antigo medo voltando momentaneamente, como se ele estivesse esperando que eu lhe desse um voto de confiança. De repente uma idéia cruzou-me o espírito e eu fiquei a imaginar se seria possível que estivesse tarado por mim. Seria eu agora o Koko? Ultimamente eu havia encontrado muitos homossexuais entre os padres, mas logo descartei a idéia como absurda.

  Poderia satisfazê-lo dando-lhe o voto de confiança.

  - Eu nunca duvidei disso, Pat, mas sempre é bom saber. Se alguém vier com fofocas sobre você e Mo, eu responderei com um soco na boca.

  - Você costuma vê a Patsy? - De repente ele perguntou.

  - Georgina e o marido levaram ela ao enterro de Mary Tansey.

  - E como é que ela está agora? - Ele inclinou-se ansioso.

  - Uma garotinha de quatro anos muito bonitinha, loura e de olhos azuis. - A minha resposta foi dada com cautela.

  Ele sentou-se de novo, sacudindo a cabeça e bebendo o vinho.

  Logo Maureen saltou de um carro, numa minissaia verde-pálido que revelava bem as suas formas quando ela subiu na escada estreita. Estava radiantemente encantadora.

  Enquanto comíamos a pasta os dois me pediram notícias de Ellen.

  - Eu não sei muito bem - respondi com toda a sinceridade.

  - Durante algum tempo ela parecia ir muito mal, mas depois voltou a trabalhar e já perdeu uns oito quilos.

  - Então ela deve estar positivamente esbelta - disse Mo com inveja.

  - Eu não entendo muito do assunto, mas acho que ela ainda precisa perder mais uns cinco quilos. De qualquer forma, ela parece que está arrumando a sua vida. Nós, os irlandeses, temos a tendência para nos lamentarmos durante um ano para, depois então, recomeçar a vida. - Eu falava tudo aquilo lembrando-me bem de como Ellen excedera a minha expectativa.

  - Eu escrevi-lhe uma longa carta no Natal - disse Pat - e parece que isso ajudou bem.

  - É possível, sim. - Fiz o possível para esconder minha ironia.

  - Vamos escrever-lhe um postal daqui mesmo... - falou Mo entusiasmada com a idéia.

E então escrevemos uma porção de tolices num postal endereçado a Ellen. Eu me ofereci para colocá-lo no correio em Parioli.

  Depois do almoço fomos todos de táxi até o cruzamento da Via Veneto com a Via Sardegna. Pat, ainda pouco firme das pernas por causa do vinho, caminhou até a Casa de Chicago. Maureen e eu saímos passeando devagar na direção da Fontana de Trevi.

  - Você acha que eu estou sendo muito duro com o Pat? - A minha pergunta foi feita abruptamente, amenizada pelo vinho e pela agradável sensação de estar desfilando ali na Via Veneto com uma linda mulher cujas pernas faziam com que todas as cabeças se voltassem para admirá-las.

  - Ora essa, Kevin. - Ela olhou-me com um ar divertido. Você é mesmo impossível. Mas é claro que você não é muito severo com ele. - Ela segurou-me a mão. - Você avaliou esta cidade melhor em duas semanas do que ele em três anos e meio. Mas não se deixe enganar pela ingenuidade de Pat, meu querido. Ele trabalha muito e com muita eficiência e consegue fazer com que eles aqui compreendam o ponto de vista dos Estados Unidos. Eles o usam de uma forma ultrajante, mas, preste bem atenção e vai ver ele sair como ganhador.

  Contei-lhe a respeito do medo que tinha quanto à possibilidade de Martinelli usar Pat numa última tentativa para conseguir uma vitória simbólica no assunto das liberdades religiosas.

  - Pat poderia ser persuadido de que vai conseguir uma vitória e acabar fazendo alguma coisa que seja desastrosa para ele. vou ficar bem atenta. - Ela sacudiu a cabeça pensativamente. - Eu acho que... você sabe bem o que fazer em caso de encrenca. Ao dizer aquilo os seus olhos brilhavam olhando-me com um ar maroto e apertando-me a mão.

  - Eu poderia imaginar alguma coisa...

  Eu disse aquilo sem muita convicção. E também registrei em meu cérebro uma outra coisa. Mo não estava ligando a mínima quanto ao possível vencedor do conflito sobre as liberdades religiosas. Tampouco dava grande importância à Igreja institucional. A sua única preocupação era manter Pat longe de qualquer encrenca.

  Pat ajoelhou-se diante do altar da pequenina capela na Casa de Chicago. Ele queria chorar, mas as lágrimas não lhe vinham. Sentia-se tomado pela dor.

Eu não queria jazer aquilo. Estive a ponto de deter-me. Ela precisava de mim mais do que eu precisava... Oh Deus! Como estou arrependido... depois de todos esses anos. Pensei que já tinha vencido. Eu sabia que tinha... E foi aí... Perdoe-me, perdoe-me, por favor, perdoe-me.

  A única luz que havia ali tremeu.

  Jamais tornarei a jazer isso. Dê-me forças. Eu só desejo servir ao Senhor. Eu sei que posso fazer muito pela Igreja. Eu desisti do casamento para poder ajudar a Igreja. Foi o que a Vossa Mãe me disse para fazer lá no lago na noite em que Ela me apareceu.

  Houve um fraco ruído no fundo da capela. Era Albert Meyer que vinha fazer as suas orações. E se ele soubesse? Patrick estremeceu ligeiramente. O padre italiano dera-lhe a absolvição algumas horas antes, como um ato de rotina, metodicamente, como se a fornicação eclesiástica não fosse assim tão rara.

  Pai tornou a olhar para o tabernáculo que ainda estava ali no altar apesar das mudanças na liturgia. Estaria Deus dando valor àquilo? Estaria Ele ouvindo?

  Eu sinto muito. Sinto muito mesmo. Também menti para o Kevin. Estou arrependido por todas as coisas más que fiz. Dê-me mais uma outra chance. Só mais uma, por favor.

  Nunca mais permitirei que isso torne a acontecer.

  Ele percebia a aprovação, o perdão, a chance para um novo começo. Se o cardeal não estivesse ali, apenas a alguns bancos de distância atrás, ele teria chorado. Quando saiu da capela benzendose e sentindo-se como se houvesse renascido, ele percebeu que Meyer estava tão imerso em suas orações que nem mesmo notaria as lágrimas.

  John Murray esperava por mim na entrada da Casa Villanova. Fezme sinal para acompanhá-lo até a sala.

  - Correm por aí uns boatos de que a Cúria vai tentar conseguir que o Cardeal Cushing proponha ao Santo Padre, em nome de cem bispos norte-americanos, que o presente documento seja retirado, para o bem da Igreja, e substituído por alguma coisa mais à moda antiga e inócua. Isso seria um golpe devastador, porque daria ao grupo Otaviani uma oportunidade para se apoiar no Papa e então retirar tudo da agenda. O pobre Cushing nem sabia bem o que estava fazendo, mas ele já foi usado dessa mesma forma antes.

  - E o que é que o Otaviani ganha com isso? - Eu fiz a pergunta sem entender bem como o sombrio e reacionário chefe do Santo Ofício podia ser amigo de um liberal como John Quinn, o advogado canónico vindo de Chicago.

  Otaviani tinha nascido em Trastevere e estava quase cego poi causa de uma doença nos olhos que grassava entre os pobres de Roma quando ele era criança. Diziam que ele tinha malocchio, e muitos padres eram supersticiosos o bastante para terem medo de seu olhar, ou "mau olhado".

  - O Otaviani não é um homem mau. À direita do Imperadoi Justiniano, veja bem, e sim um homem de convicções, ao contrário de muitos outros. Acredita realmente que o erro não tem direitos.

  - Ele limpou cuidadosamente as suas lentes muito grossas.

  Eu pensei comigo mesmo que um cara que realmente acreditasse naquilo do erro não ter direitos, era muito mais perigoso do que um cara mau que acreditasse na mesma coisa.

  - Essa brincadeira leva ao vício - disse eu suspirando.

  - E é mesmo. Todo mundo em Roma escolhe o lado em que vai ficar. - Murray tornou a colocar os óculos em seu nariz aristocrático.

  Maureen atirou os embrulhos em cima da cama e deu uma espiada para dentro do quarto a fim de ver se Sheila estava dormindo. Ela estava acordada e de mau humor, como sempre. Maureen beijou-a e a garotinha abraçou-a com efusão. Sheila precisa de mim, pensou Maureen. Será que jamais lhe darei o suficiente?

Chamou a babá para vestir a menina para a hora do jantar, acusando-se de não ser uma boa mãe porque tinha empregadas para fazer aquilo.

  Abriu os embrulhos que tinham as roupas de baixo e arrumou tudo direitinho na cômoda. Já que ia ter um homem na casa, seria preciso estar em condições de lhe proporcionar uma paisagem agradável. Ela ria-se feliz. Pai ainda tinha muito que aprender quanto aos segredos do amor. Contudo, ele era forte e apaixonado. Ela ia se esquecera de como era bom ter um homem forte e apaixonado para o ato do amor. O seu corpo estava agradavelmente dolorido com a aventura da noite anterior. Viria ele outra vez. à noite? Não.

  Ele provavelmente estaria às voltas com problemas de consciência. Ela foi até a sala e acendeu um cigarro. De qualquer forma, a Igreja ia mudar no que dizia respeito ao celibato. Então por que esperar?

Voltou devagar para o quarto, já desabotoando o vestido. De uma forma ou outra, o mais provável era que Deus não se importaria com aquilo. Ele tinha feito os dois com partes importantes de suas personalidades ainda por acabar. Ela cuidaria dele para que não fizesse alguma tolice para ele ou para a Igreja. Algum dia ele seria cardeal e, com todos os diabos, ela faria com que ele fosse um bom cardeal.

  Atirou a roupa de baixo em cima da cama e foi até a cozinha, de chinelos, para beber um copo grande de Frascati. Sem dar importância ao costume italiano, colocou no copo vários cubos de gelo e voltou para o quarto.

  Estava ainda fazendo planos com cuidado quando abriu a torneira de água quente na banheira. O que pensaria você, meu caro Kevin, se soubesse que toda a minha ambição agora é tentar fazer um cardeal de seu amigo Patrick Donahue? Despiu-se completamente e experimentou a água com a ponta dos dedos. Aquela porcaria dos italianos, nem mesmo sabiam ser bons encanadores. Regulou a torneira fria.

  Entrou devagar na banheira e começou a bebericar com satisfação o vinho geladinho. Aquele caso seria inconveniente e Pai haveria de tentar o rompimento. Tudo estava bem. Mais algumas'noites com ele e Pat ficaria tão viciado com ela que nem mesmo pensaria em rompimento.

  Suspirou muito satisfeita. O único problema era o Kevin. Se ele jamais chegasse a descobrir... Ela franziu o rosto. Eu também amo você, meu querido Kevin, mas você é meu inimigo. Tomou a abrir a torneira da água quente. Estava escuro ali no banheiro. Em outubro, as noites chegavam cedo em Roma.

 

  Eu tinha atravessado todo o Oriente Médio sem me apressar, visitando o Líbano, a Síria, a Jordânia e Jerusalém. Em fins de novembro, quando só faltavam dez dias para a terceira sessão, eu estava sentado no Intercontinental de Jerusalém, olhando lá de cima as luzes da Cidade Santa e ouvindo música rock tocada por uma orquestra de árabes que tentavam imitar os Beatles.

  Comecei a ler a edição parisiense do New York Times onde havia uma manchete dizendo "Boatos de uma Retirada dos Estados Unidos sobre Liberdade Religiosa". O artigo de Israel Shenker noticiava movimentos nos bastidores, de parte de alguns bispos dos Estados Unidos aliviar o explosivo problema da liberdade religiosa mediante a substituição por um documento que fosse aceitável pelos conservadores da Cúria.

  Foi nesse momento exato que eu me decidi. Estávamos numa quinta-feira. O Conselho tinha entrado em recesso até a segundafeira de manhã. Eu pegaria o primeiro avião de domingo e estaria em Roma naquela mesma tarde.

  No Aeroporto de Lod, no domingo, encontrei John Carrey. Tentei livrar-me dele mas não foi possível. Como era bom me encontrar. Georgina estava viajando com ele agora. A sua atitude a respeito de viagens tinha mudado radicalmente depois do nascimento de Patsy. Não, eles iam voar diretamente para Nova York. Não havia tempo para uma parada em Roma. Talvez na próxima viagem. Suspirei aliviado. Estaríamos em vôos diferentes.

  Ele agarrou-me e arrastou-me até o salão das partidas para que eu falasse com Georgina. Ela estava mais magra, mais pálida, e parecia bem mais velha, mas, mesmo assim, ainda chamava a atenção na maior parte dos aeroportos do mundo. Ela foi muito delicada e reservada, mas os seus olhos estavam cheios de ódio. Algum dia ela ainda se vingaria, ou, pelo menos, tentaria. Eu me alegrava em saber que Patsy não era a minha filha.

 

Minha Querida Mo,

  Vejo-me obrigada a escrever para você esta noite. Tenho duas boas notícias que preciso partilhar com alguém. Fui nomeada Diretora da Enfermagem Psiquiátrica no hospital. Isso significa mais dinheiro, mais prestígio e mais tempo fora da Unidade, é isso é ótimo para mim. Também significa que sou um sucesso e isso é terrivelmente importante para mim. Agora já fiz uma das coisas que resolvera fazer quando a família Brennan me deu aquele dinheiro.

  A outra novidade não é tão importante. Não. Retiro o que disse. É mais importante . 'nda. Ontem o meu peso era exatamente o mesmo que quando eu tinha dezenove anos.

  E isso foi bem mais difícil do que o emprego. Fui  obrigada a concentrar-me e a levar em conta a minha aparência, coisa que não faço sempre. Experimentei alguns vestidos antigos e eles estão perfeitos. Sinto-me tão feliz em ter de volta o meu corpo que amanhã vou celebrar isso com um malted mük!

  Agora já sei que posso me arranjar sozinha. Em breve deixarei de receber o dinheiro dos Brennan e vou tentar dar um jeito para pagar o que eles me deram. Não o dinheiro, que eles jamais aceitariam e nem precisam dele, e sim o amor.

  Ainda não acabou tudo. Eu ainda não sou eu... como isso me parece terrivelmente psiquiátrico!... Mas estou a caminho. Dentro de um ou dois anos vou começar a procurar um homem, não porque precise de um, e sim porque sempre é bom ter alguém.

  Reli as cópias de algumas das histéricas cartas que escrevi para você quando o Tim morreu. Que amiga maravilhosa é você, Mo, por me haver aturado com toda aquela choradeira. Agora você vai ter que me aturar como uma complacente e pretensiosa que se analisou. Também vou tentar superar isso.

  Como eu gostaria de estar em Roma com toda a excitação que há por aí. Tenho pena do Pat. Você está certa quando diz que ele poderá encontrar a felicidade e a salvação, seja isso lá o que for, nos Santos Mártires e nos jantares de domingo com a família. Ele também poderia encontrar a paz com alguma boa mulher - desde que não seja você - mas não acredito que ele aceite qualquer dessas soluções, e eu não gosto de ver você envolvida com ele.

  A última frase é indesculpavelmente pretensiosa. Perdoe-me, mas fica assim mesmo.

  Sinto-me culpada com o Kevin. No último verão ele apareceu lá na Unidade e eu simplesmente agi como uma tola. Eu o odeio demais. Sei que é uma criancice, mas, pelo menos, eu agora posso ser sincera a esse respeito. Eu o odeio porque sempre quis que ele abandonasse o sacerdócio para se casar comigo. Talvez ainda queira. Eu culpo a Igreja pelo fracasso do meu casamento com*o Tim, e, realmente, penso que isso seja razoável, e também a culpo por não ter permitido que eu ficasse com o Kevin.

  Eu odeio o Kevin porque ele permitiu que a Igreja se metesse em nosso caminho.

  Você não acha que essa seja uma boa razão para a gente odiar alguém?

  Ou então por amá-lo tanto que chega a doer só em pensar nele? Especialmente desde que fiquei sabendo que se ele fosse meu marido e não um padre celibatário, jamais conseguiria ter feito por mim o que ele fez, obrigando-me a voltar à vida.

  A despeito de toda esta auto-analise, que é o resultado da gente passar o dia lidando com birutas, eu ainda não cheguei a uma conclusão. E nem tenho a certeza se quero mesmo chegar a ela.

  Continue a rezar por mim, já que eu não faço isso, ou, pelo menos, pretendo convencer-me de que não estou rezando.

Eu te amo, EL.

 

  O avião levantou vôo atrasado e chegou em Roma atrasado. Já estava quase noite quando o transporte do aeroporto chegou à Stazione Termini. Quando eu ia saindo ouvi uma voz conhecida.

  - Então é você que chega de volta para assistir ao foguetório final, hein?

  E ali estava o Dermot McCarthy, o irlandês moreno de cabelos crespos e bonito como é difícil imaginar.   

  Ele estivera em Nápoles, na véspera, para uma conferência, conforme garantiu-me, e voltara no rápido.

  - O seu amigo Pat Donahue está fazendo um figurão por aqui... - disse-me num sorriso aberto.

  - Está mesmo? - Procurei manter neutra a minha voz.

  - Se está! Acabo de saber de um amigo meu da imprensa inglesa que vai sair um grande artigo a seu respeito nos jornais de domingo, da próxima semana, mostrando como ele desempenhou um papel importante na solução da controvérsia sobre a liberdade religiosa.

  - Eu nem sabia que isso já estava resolvido.

  - Bem... ainda não está resolvido, se é que você me compreende ... - Piscou-me um olho quando chegamos junto ao meiofio onde uma horda de italianos lutava para conseguir táxis. Mas tenho razões para acreditar que vai ser resolvida amanhã de manhã com uma espetacular intervenção de um de seus cardeais norte-americanos.

  - Não conte muito com os cardeais dos Estados Unidos senti um aperto no estômago - especialmente de um que se torna imprevisível no decorrer da noite.

  - Ora essa, Padre Kevin - ele riu-se alegremente - você é muito engraçadinho. Já me disseram também que o autor do artigo vai falar também sobre a divorciada norte-americana que está patrocinando o Pat. Não acha que vai ser uma beleza mesmo?

  - Estou certo de que ela vai gostar da publicidade.

  - A amizade deles é muito grande. Mas é assim que as coisas são feitas, na minha opinião.

  Maureen estava desesperada quando discou novamente o número. A freira no Villanova respondia desanimada. Não, o Padre Brennan ainda não voltara. Sim, ele vai voltar hoje, mas ainda não chegou. Sim, claro, ela daria o recado. Como era que se escrevia o nome? Sim, sim. É claro H-A-G-G...

  Maureen desligou. Meu Deus, Kevin, por onde é que você anda? Temos um outro problema para você resolver.

  Ela apertou mais o robe sobre o corpo que tremia. O apartamento estava bem aquecido. O frio era dentro dela.

  Alguma coisa terrível ia acontecer naquela noite no Restaurante Polesi. Deus do céu! Como era que alguém poderia ser tão obtuso como o Pat? Aquele horrível Martinelli, aquela bicha suja, estava usando o Pat como um instrumento para um monstruoso complô. O pobre bobalhão do Pat está pensando que ele vai ser o salvador da Igreja!

  Eles tinham-se amado depois do almoço de uma maneira tranqüila, calmamente, cheia de ternura, enquanto a babá levara Sheila para passear. Pat e Sheila tinham-se tornado muito bons amigos. A sua filha parecia feliz como nunca o fora antes. Pat era maravilhoso com as crianças, uma coisa que era realmente de espantar. Mo tinha dormido depois de se amarem, e agora acordava com o barulho que Pat jazia vestindo-se.

  - Já vai? - ela bocejou.

  - Tenho um importante compromisso para jantar hoje à noite... com um cardeal - ele falava baixinho, como se aquilo fosse um segredo. Como era ingênuo e como eram fortes os seus braços.

  - Qual deles? - ela ficou logo atenta.

  - Richard Cushing - ele respondeu enquanto abotoava a camisa.

  - Eu nem sabia que você o conhecia o bastante para ser convidado para jantarem juntos.

  - Não o conheço assim tão bem - ele enfiava as calças em suas pernas fortes e bem-feitas - mas trata-se de um jantar importante que vamos ter no Polesi.

  - Não é muito elegante para um cardeal - ela automaticamente anotou o nome do restaurante.

  - Os jantares importantes não acontecem nos lugares óbvios...

  - Ele parecia tremendamente satisfeito consigo mesmo e com o seu segredo.

  - Liberdade religiosa? - ela perguntou num Tom misterioso. Ele apenas piscou-lhe o olho, deu-lhe um beijo rápido e saiu do apartamento.

  - Mas que diabo, Kevin Brennan, onde é que você está? O som de sua voz, no apartamento vazio, chegou a espantá-la. Por favor, meu Deus, ajude-me. - Ela começou a rezar pensando consigo mesma se Deus ouviria as preces de fornicadores sacrílegos.

  Telefonei para o apartamento de Maureen. A linha estava ocupada e eu esperei sem dar atenção aos italianos lá fora que faziam gestos ameaçadores porque eu estava monopolizando a cabine. Tentei outra vez e ouvi a campainha tocar. Mo atendeu e o gettone caiu na caixa.

  - Aqui é o Kevin, como vai você, Mo?

  - Você recebeu o recado que deixei na Casa Villanova? Ela estava quase em lágrimas.

  - Não. Estou falando aqui do Grande Hotel. Acabei de chegar do aeroporto.

  - Você ficaria contrariado e preocupado se soubesse que o Pat está jantando sozinho com o Cardeal Cushing, no Polesi?

  - Eu ficaria apavorado. Foi assim de repente?

  - Ele vem tratando de alguma coisa secreta nestes últimos dias. Creio que é sobre liberdade religiosa. Kevin, veja se pode segurá-lo para ele não fazer... não sei bem o que é, mas é preciso detê-lo.

  - É aquele lugar que fica defronte do Chiesa Nuova?

  - Isso mesmo - a voz dela estava novamente firme e confiante - no antigo lugar dos Borgia, Piazza Sforza Ceasarini.

  - Se eu não falar com você outra vez até as onze horas, vá para a cama e durma. Pode contar que ganhamos a parada.

  Desliguei e só então lembrei-me de que precisava de mais um gettone. Saí da cabine e entrei na fila na mesa do porteiro para comprar uma outra, e aceitei o seu olhar de desprezo porque não era hóspede do hotel, dali voltando para as cabines.

Estavam todas ocupadas e havia uma linda jovem romana esperando a sua vez e batendo nervosamente com o pé no tapete. Uma porta abriu-se e eu passei na frente dela.

  Chamou-me de alguns nomes bem desagradáveis, em italiano, e depois saiu dali quando a olhei zangado.

O telefone na Villanova tocava sem parar. O portiero indignado afinal atendeu, e o seu incisivo "pronto" dava a entender que somente um tolo poderia estar chamando às cinco e trinta de uma tarde de domingo.

  Houve mais uma longa espera antes que John Murray atendesse com o seu "pronto" na outra extremidade da linha.

  - Aqui é Kevin Brennan. O Pat Donahue vai jantar com o Cushing esta noite no Polesi. Eles estão tentando pôr um fim na liberdade religiosa amanhã de manhã. Vá até lá e intercepte o Pat.

  - Certo.

  - O restaurante é na Piazza Sforza.

  - Eu sei onde é. Obrigado, Kevin - desligou.

  Segurei a porta aberta para a moça cujos olhos de Sofia Loren fuzilavam de raiva. Curvei-me delicadamente e pedi-lhe desculpas num italiano remendado pela minha falta de delicadeza. Logo desaída ela mostrou-se monumentalmente fria, mas os cabelos ruivos sempre encontram uma forma para amolecer os corações femininos. Ela finalmente sorriu e aceitou minhas desculpas dando-me um adeusinho com sua mãozinha bonita.

  Entrei num bar no Corso Victore Emanuelli, uma espécie de lugar em que a gente se imagina estar em 1935 e que a Greta Garbo vai entrar ali a qualquer momento. Bebi rapidamente um uísque e, logo depois, mais outro.

  Do outro lado da rua havia apenas alguns fregueses numa mesa coberta com uma toalha de xadrez em frente da casa dos Borgias. Em uma delas estavam dois homens de batina e um deles tinha cabelos grisalhos que brilhavam com as luzes da rua. Pat estava provavelmente entregando o texto do documento sobre a liberdade de religião que Martinelli queria que fosse substituído.

  Amaldiçoei Pat por ser ingênuo e Cushing por ser uma pobre vítima sempre que se afastava da segurança de Boston. Amaldiçoei os meus patrícios aliados por não aparecerem.

  As maldições funcionaram. Um táxi parou na calçada, do outro lado da rua, e cinco homens dirigiram-se para a mesa. Houve gargalhadas gostosas. Pensei reconhecer a forma grandalhona de John Wright, o bispo de Pittsburgh, e a silhueta alta e magra de John Murray. Entrei num táxi e fui para o Parioli, sentindo-me cansado e aborrecido.

  Li os jornais até quase as onze horas, que era quando as boas irmãs fechavam a porta. Depois fui para o salão, onde havia muita gente. Murray e George Higgins, um monsenhor da ação social de Chicago, entraram com um largo sorriso estampado em seus rostos. Murray fez-me um sinal mostrando que tudo estava OK.

  A intervenção do Cardeal Cushing fora cancelada a pedido de Sua Eminência, disse Felici, às pressas, no meio de muitas outras notícias bem mais elegantes.

  Mesmo assim, a Cúria ainda saíra ganhando. Na última sessão do Concílio, antes do encerramento, um de seus presidentes anunciou que a votação das duas declarações, que teriam efeito imediato, fora prorrogada para a próxima sessão.

  Houve uma exclamação de espanto dos padres do Concílio. Meyer bateu na mesa do presidente com tanta força que ela estremeceu. Ele passou como um tufão pelo espantado Ottaviani, quase derrubando o pobre velho. Mais tarde, Ottaviani diria aos seus amigos norte-americanos, com toda a sinceridade, como depois se verificou, que aquele espetacular golpe da Cúria tinha-o apanhado completamente de surpresa, da mesma forma que aos outros.

  Saí de S. Pedro enojado com a Igreja e com o Papa. Aquele homem era um desastre. Não tinha coragem quando havia uma crise. Ele fracassara em todas as grandes crises.

  No dia seguinte Mo levou-me de carro para o Aeroporto de Fiumicino usando aquela sua minissaia verde-pálido. Ali nos despedimos com um casto beijo.

Quando nos separávamos, ela segredou em meu ouvido:

  - Sempre a mesma pergunta, Kevin. O que é que você ganha com isso?

  - A resposta é sempre a mesma, Mo. Além disso, acontece que, vez por outra, tenho uma oportunidade de beijar uma mulher bonita.

  - Você ganhou a batalha mas perdeu a guerra - ela estava triste.

  - O Meyer não pensa assim. Ele acha que a confusão e protestos posteriores amedrontaram ainda mais o Papa do que a própria Cúria. Nós abrimos o caminho. As declarações serão aprovadas na sessão final do ano que vem.

  - Espero que você esteja certo, Kevin. Sabe de uma coisa? Pat está elogiando o Meyer agora, dizendo que ele é o maior de todos os homens da Igreja atualmente.

  - Ele tem razão, Mo - apertei-lhe o braço e entrei na fila dos passaportes.

  O holandês grandalhão não viveu para saborear a vitória. Dentro de alguns meses ele morria com um câncer no cérebro.

  E, no que dizia respeito à Arquidiocese de Chicago, eu também estava morto.

  Patrick Donahue, no entanto, estava ainda bem vivo.

 

  Em princípios de março de 1966, Patrick Donahue convidou-me para ir jantar com ele na mansão do arcebispo. Ele insistiu dizendo que era apenas uma pequena reunião de romanos, mas eu não via bem como me enquadraria naquela categoria. O novo chefe era o Cardeal Daniel O'Neil, um homem extremamente agradável e loquaz.

  - É um prazer ver você, Kevin - ele disse, dando-me uma palmada nas costas. - Sempre fui grande admirador da capacidade jurídica de seu pai.

  Ele era um homem alto e magro, parecido com um espantalho, cabelos castanhos e raros numa cabeça ossuda. Para todos os convidados que chegavam ele tinha sempre um comentário que mostrava como estava bem a par de seus antecedentes. Aquilo poderia impressionar os que não soubessem que ali estava o seu risonho Chanceler Pat Donahue que, certamente, lhe dera todas as informações antes de nós chegarmos.

  O'Neil deixava-nos todos à vontade e era ele mesmo quem preparava os drinques. A bebida era tudo o que poderia haver de melhor, assim como o jantar muito caprichado que, logo depois, foi servido. A conversa geral não era séria nem profunda já que, em sua maior parte, eram as fofocas eclesiásticas entremeadas de piadas. À medida que corria o vinho tinto e que a carne era servida, já ninguém mais dava muita atenção àquilo.

  Eu bebi apenas um Jameson e um único copo de vinho branco. Estava fascinado pelo homem, quase como se fosse uma mosca fascinada pela aranha. Ele era um verdadeiro furacão de palavras, martelando, rodeando, gesticulando, completamente imprevisível, a não ser a respeito do assunto que era quase sempre, invariavelmente, ele mesmo.

  - E que tal aquele seu pastor, Larry? Ele bebe bastante? a pergunta era feita a um dos "romanos", um rapaz bem jovem ainda.

  O moço, ordenado havia pouco tempo, hesitou, e aquilo deu a O'Neil a resposta de que ele precisava.

  - Não muito, excelência, o senhor sabe como é. Ele foi capelão do exército. É um exigente disciplinador.

  - Eu nunca fui capelão - o arcebispo engoliu um pedaço bem grande do bife - mas tive muita experiência com eles quando trabalhava no secretariado, na porta ao lado de Monsenhor Montini, o nosso Papa atual. Passei algum tempo em Berlim logo depois da guerra. Desci de avião em Tempelhof no primeiro DC-6 que chegou ali logo depois da rendição. Ajudei-os a organizar a ponte aérea para Berlim. Você sabe que Roma desempenhou uma parte importante naquilo, não sabe? Nunca saí de lá. Tudo isso terá que esperar pelas minhas memórias, creio eu.

  - Acabou de engolir a carne e esvaziou um cálice de vinho.

  Eu olhei bem para o arcebispo. Não havia ainda nenhum DC-6 na Europa. Eles só chegaram alguns anos depois da guerra. Quando a ponte aérea começou, em 1948, O'Neil já era o chanceler em Paterson, New Jersey.

  - Gostou de sua estada em Roma, Kevin?

  - Foi uma satisfação para mim ver a aprovação da declaração da liberdade religiosa, finalmente, depois da quarta sessão. Significa muito para este país, excelência.

  - Se, pelo menos, pudesse lhe contar tudo que houve e como nós tivemos que lutar para conseguir a aprovação - ele espetou um outro bife que estava num prato grande à sua frente e continuou: - Você nem acreditaria, mas houve alguns daqueles safardanas romanos que tentaram fazer com que o pobre Cushing apresentasse uma alternativa no fim da terceira sessão. Foi uma luta para impedir. Na noite anterior recebi alguns telefonemas pedindo-me para procurar os amigos do Cushing para tentarem convencê-lo. Escapamos por pouco, sabem?

  Fiquei a imaginar se ele saberia que fora eu quem telefonara ao Murray. Pouco provável. Ele, na certa, ouvira falar da forma como haviam convencido o Cushing, e então agora ali estava querendo bancar o herói.

  Pat nem piscou enquanto continuava a comer o seu bife.

  Resolvi tentar uma experiência.

  - É isso aí. É claro que alguns daqueles que levaram a petição ao Papa naquela tarde, depois que a Cúria tinha bloqueado a votação na terceira sessão, realmente conseguiram o que queriam.

  As sobrancelhas de Pat se arquearam de espanto como se eu fosse alguém qOe acabava de chegar de Marte. Naquele dia, O'Neil não levantara um dedo. Até mesmo desaparecera convenientemente quando o Cardeal Murray o procurara para assinar a petição.

Assim mesmo, O'Neil mordeu a isca.

  - Pois quero dizer-lhe uma coisa, Kevin, aquilo esteve por pouco. - Entornou mais um cálice. - Se eu não tivesse empurrado aquela petição, eles teriam vencido.

  Nós trabalhamos bem naquele dia e naquelas poucas horas. E eu vi bem no rosto do Papa que ele estava satisfeito. Aquilo dava-lhe justamente a força que ele precisava para que as coisas tomassem outro rumo. É isso aí... um dia ele chegou a me dizer...

Eu já não ouvia mais. Estava atordoado.

  Pat não me parecia muito satisfeito quando me apertou a mão na despedida ao chegarmos à porta da mansão. Li nos seus olhos um apelo.

  - Ele é realmente um ótimo eclesiástico, Kevin...

  - Merda - foi tudo que achei para dizer.

 

  Mo querida,

  Já encontrei o homem. Ele é perfeito... bem, não exatamente, mas servirá bem. É psiquiatra e judeu. Imagine só o que minha família vai dizer.

  Ele é alto, comparado comigo, pelo menos, tem cabelos castanhos e crespos, já com algumas estrias grisalhas, um rosto magro e distinto, parecendo até um asceta do Velho   

  Testamento sem a barba. E os seus olhos são doces e  castanhos.

  Pouco me importa se ele casa ou não comigo. vou repetir de forma mais forte. Eu não vou me casar com ele, pelo menos por enquanto.

  Quero ser ainda uma viúva maliciosa durante alguns anos mais, só para saber como é.

  O seu amigo Pat é um cara muito importante agora na igreja de Chicago. Ele tinha uma aparência terrível no enterro do pai em fevereiro. Cansado, angustiado, desfigurado.

  Contarei mais sobre o meu psiquiatra depois.

Com amor, ELLEN.

 

  - Você alguma vez já pensou em casar, Kevin? Quero dizer, ter a mulher em vista e considerar a coisa como bem possível? - Joe Herlihy, o irmão mais velho de Marty, tremia ao vento áspero de março no cemitério de Mount Olivet.

  Tínhamos acabado de enterrar os restos mortais de Annie Prindeville, nascida em Galway, na Irlanda, sessenta anos antes. Seu filho Tom, com os olhos vermelhos e o rosto amargurado, arrancou o ritual das mãos do padre da paróquia e leu a oração à beira da sepultura, dando as bênçãos finais da igreja para a sua mãe. A mulher de Tom, a Irmã Mary Dolores, segurava-lhe a mão com ar feroz e gritava-lhe os responsos como se fossem um desafio. Todos nós acompanhávamos, compreendendo, mais ou menos, que participávamos de um ato de rebelião. Até mesmo Joe Herlihy, vice-chanceler e membro do gabinete do cardeal, também rezava.

  - Você quer dizer desde a ordenação? Mas que diabo, Joe, eu tenho andado muito ocupado.

  - Eu estou querendo dizer algum dia, Kevin. Existe alguma mulher, em algum lugar, com quem você jamais tenha pensado em casar?

  Eu fiquei a imaginar se o Joe, incrivelmente atropelado pelo maluco do cardeal, estava, realmente, pensando em abandonar o sacerdócio. Começamos a caminhar de volta para os carros, passando pelas sepulturas, e contornando os vestígios de neve que ainda estavam ali espalhados no chão do cemitério.

  - Houve uma sim... - a minha resposta saiu num raro momento de candura enquanto ia esmagando com os pés a relva congelada.

  - Você jamais imaginou como poderia ter sido?

  - Seria um inferno para ela, quero crer. Minha irmã Mary Ann diz que eu teria dado um péssimo marido. - Eu queria mudar de assunto.

  - O Papa vai publicar uma encíclica sobre o celibato nesta primavera. Primeiro virá uma sobre ação social, que será liberal, e depois a do celibato, que conserva as coisas como estão. Pat diz que o problema está morto e enterrado, pelo menos no que respeita a Paulo VI.

  - Você não precisa das fontes de informação de Roma do seu chefe para chegar a essa conclusão, Joe.   

  - A minha resposta foi um tanto rude enquanto íamos descendo a ligeira elevação do cemitério, passando pelos túmulos até chegarmos ao carro de Joe. É fácil ser liberal nas coisas fora da organização e conservador nas de dentro.

  Não é preciso nenhuma coragem para isso.

  - E o que é que você acha, Kev? A maneira como você foi criado deve lhe dar uma boa opinião. - Ele abriu a porta do Pontiac preto para eu entrar e sentar-me ao seu lado.

  - E por que devo eu ter uma opinião? Eu mesmo não sei o que pensar a tal respeito, Joe. - Entrei no carro e bati a porta com força para dar vazão à minha irritação.

  Joe ligou o motor e ficou esperando pacientemente que o carro da frente saísse a caminho da Rua 111. O céu estava cinza. A previsão do tempo prometia mais neve. Arrependi-me de ter sido brusco com ele. O coitado já tinha tanta coisa para o atrapalhar. Tinha o cardeal maluco, e ainda o Pat, que era mais moço do que ele cinco anos e que fora promovido a chanceler, passando por cima dele. Sem falar na diocese, que estava desmoronando.

  Além disso, Joe me salvara do Cardeal Daniel O'Neil dois anos antes. Depois da morte de Meyer, e antes da chegada do Arcebispo de Newark que vinha substituí-lo, eu fora transferido de St. Praxides e designado para a universidade. Joe insistira na transferência dizendo que eu poderia trabalhar nos fins de semana em St. Praxides, e estaria numa boa posição se o novo cardeal não gostasse deacadémicos. Fiquei furioso com ele e desabafei chamando-lhe de uma porção de nomes bem feios. Depois que O'Neil já estava na cidade havia alguns meses, eu pedi-lhe desculpas. O pobre Leo Mark Rafferty foi aposentado de surpresa pelo cardeal, que andava pela cidade com uma lista de velhos pastores para serem também aposentados, destruindo assim os centros de poder que talvez se opusessem a ele.

  Leo morreu três meses depois, sem ter ainda conseguido se recuperar do que ouvira do arcebispo: "Monsenhor, creio que está ficando senil." Uma animadora afirmativa ouvida do seu superior eclesiástico na tarde do domingo antes do Natal. O novo pastor, pensando que o arcebispo poderia estar atrás de mim, dispensoume dos serviços do fim de semana. Depois de oito anos e meio, a minha querida St. Praxides fora-me arrancada e eu passei a ser um académico exilado morando no porão do Newman Club, afastado das pessoas a quem eu desejava servir e, por isso, me tornara padre. É verdade que alguns dos garotos de St. Praxides, agora já adultos, continuavam a me procurar, e eles eram os únicos paroquianos que eu tinha.

  Sem muita coisa para fazer, além de minhas pesquisas, volteime para escrever psicologia religiosa popular. O meu primeiro livro era adequadamente intitulado Autodecepção, e foi um tremendo sucesso. Eu encontrara uma nova vocação que me trazia dinheiro, fama, leitores pelo país inteiro e a animosidade de parte de meus colegas do clero.

  - Você estava certo, mesmo, a respeito do O'Neil, Kev. Joe entrava finalmente na Rua 111. - O cara é um psicótico.

  - Tecnicamente falando, Joe, ele é uma personalidade antisocial. Uma pessoa que não pode estabelecer relacionamentos de confiança com outras pessoas; que não dá bola para os sentimentos alheios, e nem mesmo sabe se eles existem; que não consegue distinguir entre a verdade e a falsidade; que não cumpre suas promessas; que não tem princípios, mas que pode ser o homem mais encantador e atraente que se possa imaginar desde que o deseje. Aquilo era uma espécie de dissertação a que eu já me acostumara na minha nova vocação.

  - Você nem sabe da missa a metade, Kev. - O Joe tinha uma cara bem triste. - Ele é também financeiramente incompetente, apesar de sua brilhante reputação de negocista.

  Ele deixou as suas outras dioceses à beira da falência e, da maneira como gasta o dinheiro da nossa, isso é também o que nos espera.

  - Mas como pode ser, Joe? Ele não está constraindo escolas novas nem tampouco paróquias...

  - Está fazendo maus investimentos. Está enviando dinheiro para Roma a fim de conquistar simpatias. Uma espécie de subomo. Se eu, ao menos, pudesse contar-lhe...

  - a sua voz foi ficando mais baixa. - E as pessoas que o cercam, com exceção de Pat, é claro, são gananciosas ou estúpidas, ou talvez mesmo ambas as coisas.

  - Então é pior do que eu pensava, Joe. - Eu não compreendia bem por que Joe estava me contando aquilo tudo.

  - E você ainda não sabe o que vai por lá a respeito de bebidas e mulheres...

  - Mulheres?! - Eu nem queria acreditar. - Os psicopatas não gostam de mulheres, Joe.

  - Mas ele gosta - Joe continuou cada vez mais triste. - O nome dela é Margaret Johnson. Já faz uns vinte e cinco anos que estão juntos. Ela vem acompanhando-o em todas as dioceses onde tem servido. Ele diz que ela é sua prima, mas isso não é verdade. Ele tem um negócio de imóveis com um filho dela. Ela tem um apartamento lá na estrada. Falam ao telefone todos os dias, e quase todas as noites ele vai para lá... - Parou o carro na frente de um drugstore na Western Ave.

  - A noite inteira, Joe? - Eu já estava começando a pensar que o Joe estava ficando biruta.

  - Não. Ele volta para casa aí pelas onze, bêbado como um gambá. Eu estive no segundo andar da mansão do cardeal umas semanas atrás. Vi roupas de mulher no quarto oposto ao seu.

  - Eu nem posso imaginar. .. - Eu estava procurando digerir aquilo tudo.

  - Não sei se eles fazem amor. - Joe derreou-se ainda mais.

  - Ele é tão maluco que a gente não sabe o que esperar. Ele vem conseguindo isso durante vinte e cinco anos, e são poucas as pessoas que sabem. Fique certo, Kev, o homem é diabolicamente esperto. E, com tudo isso, não passa de um paspalhão. Estou certo de que estão roubando o dinheiro bem ali na frente de seu nariz. É esperto o bastante para manter o segredo sobre a Margaret, mas também estúpido o bastante para permitir que eles roubem uma fortuna. - Eu nem pensava em perguntar quem eram "eles". Se não fosse o Pat, nós todos estaríamos loucos. Você nem imagina como são esses bispos, Kev. Eu diria que eles são uma penca de mulheres velhas, só que isso seria uma injustiça para as velhas decentes. Eles são uma coleção de chorões efeminados sem nenhum tutano. O'Neil é apenas o pior de um love ruim - Joe conseguiu, afinal, com muito esforço, disciplinar a sua indignação para engrenar novamente o carro.

  - Mas o Meyer não era assim, Joe. ..

  - Não, não era mesmo. - Ele suspirou resignado. - Era um ser humano sensível e correto como muitos que conheci. Que merda, Kev, eu sei que estou exagerando. O meu problema é que tudo que vejo ultimamente são os produtos de uma camaradagem sem hormônios.

  - Mas se o O'Neil mantém essa mulher, ele deve ter alguma espécie de hormônios.

  - Kevin - Joe sacudiu a cabeça - se eu soubesse que ele era homem bastante para trepar naquela mulher, eu não odiaria aquele filho da puta da forma que odeio.

  - A melhor coisa que você tem a fazer, Joe, é cair fora daquele escritório. O Pat pode cuidar do cardeal sem precisar de sua ajuda.

  - É engraçado, Kev. O Pat é o único que consegue mantê-lo na linha. Eu, às vezes, ponho-me a pensar a respeito do Pat. Ele diz que o chefe é um grande eclesiástico. Será que ele é mesmo sincero, Kev? Você o conhece melhor do que ninguém.

  - Mas que diabo, Joe. Já que ele diz que é, isso não significa que daqui a um ano ele diga coisa diferente com a mesma sincera convicção.

  - O Pat é sempre bom com os padres que desistem - Joe procurou defender o chefe. - Você sabe que ele é completamente a favor do celibato, mas, mesmo assim, ele os trata como se fossem cavalheiros. Todos eles juram que se houvesse mais chefes como ele, pouca gente pensaria em cair fora.

  - Claro... - respondi-lhe sem me importar que ele pudesse me julgar sarcástico.

  De volta ao meu quarto, eu ia saboreando a ironia de Pat Donahue acreditar piamente no celibato.

  Em fevereiro, numa noite bem fria, eu tinha passeado pela neve nas colinas que cercavam o lago, tentando, em vão, descobrir algum significado naquilo que estava acontecendo com a Igreja e comigo. Havia luz na casa dos Cunninghams. Mo devia estar em Roma. Ela voltara a Chicago somente duas vezes, desde o fim do Concílio, durante agosto e no Natal. Nessas duas viagens eu a vira em casa de minha família, cada vez mais adoravelmente linda.

  Se Mo estava em Roma, quem, então, poderia estar lá na casa dela?

  Fui até o lado da casa e dei uma espiada pela fresta da cortina. Maureen e Pat estavam nus em cima do tapete branco diante da lareira crepitante. Aquela cena ali diante de meus olhos era um espetáculo lindo, doce e cheio de ternura. Afastei-me sem fazer barulho.

  Na manhã seguinte eu estava furioso com eles por se arriscarem daquela maneira. E mais furioso ainda estava comigo mesmo por haver permitido que Pat me enganasse tão cinicamente em Roma.

 

  Mo querida,

  O Herb insiste para nos casarmos. Diz ele que é para o bem das crianças. Ele quer uma família e eu sou uma família já prontinha. Durante alguns meses deliciei-me no meu papel de amante, mas ele diz que eu vou acabar ficando chateada.

  Posso te garantir que ainda não me chateei com o sexo. Sou mais sensual do que jamais poderia acreditar que fosse. Quero sempre saber e fazer tudo.

  Acho que seria bem legal ter novamente um marido. Posso largar o trabalho e voltar à escola. As crianças já terão um pai. Já não serei obrigada a ficar pensando na hora de mandá-los para a universidade.

  Ora, Mo, quer saber mesmo de uma coisa? Eu vou casar com o Herb porque estou louca por ele. Sinto-me tonta só de pensar nele e quase morro de paixão quando ele não está comigo. Quero tê-lo ao meu lado, na cama, a noite inteira e todas as noites também.

  Aí tem você a verdade verdadeira, Mo. Por baixo do sensualismo e por baixo da clínica profissional, você tem sempre a Ellen romântica de antes dos vinte anos, loucamente apaixonada quando já tem idade bastante para ter um pouco de juízo.

  Vamos conversar com Monsenhor Pat a respeito de uma igreja. Herb diz que o catolicismo é importante para mim e que será melhor acertar tudo agora. Acho que ele está errado. Acho que também não podemos casar na igreja porque ele já foi casado. Acho que me esqueci de dizer isso a você, não foi?

  Tenho que sair correndo.

  com amor,  Eu

 

  A governanta do Newman Club gritou lá de cima da escada que uma moça estava me procurando. A sua maneira de falar era um tanto marota.

  A aparência, pelas costas, de minha visita, que estava de pé olhando lá para fora da janela, explicava bem a reprovação que havia na voz da governanta. Suas pernas esbeltas projetando-se da minissaia eram o bastante para conseguir a desaprovação até mesmo da mais discreta das governantas de uma reitoria.

  - Boa-tarde - cumprimentei-a formalmente.

  - Boa-tarde, padre - ela voltou-se.

  Na entonação de sua voz havia alguma coisa de petulante. Ali estava novamente a minha sereia esbelta e encantadora, e mais sexy do que nunca. Via-se que estava pronta para uma briga. Meu coração estava aos saltos.

  - Você está com um penteado diferente, El.

  Durante um curto instante pareceu-me que a sua zanga ia dissolver-se em uma risada, mas logo a seguir seus lábios se apertaram.

  - Pode dizer à sua família que não vou precisar do cheque deste ano. vou me casar.

  - Meus parabéns.

  - Guarde-os um pouco até conhecer os detalhes. vou casar com um psiquiatra, judeu e divorciado.

  - Se você o ama, Ellen, estou certo de que é um bom homem. Vamos sentar para conversar?

  Ela sentou-se numa cadeira de espaldar alto e duro.

  - Ele quer casar comigo numa igreja. Para mim não faz diferença. Quero que o conheça, e que fale com ele.

  - Por quê? - perguntei-lhe baixinho.

  - Ele conhece o seu trabalho, e eu quero que ele conheça um padre que não seja um tolo completo. - Enquanto falava, seus dedos moviam-se nervosos.

  - Por que isso faz diferença, se você já não se importa mais com a Igreja?

  Ela respirou fundo procurando uma resposta, e então torceu a boca num sorriso triste.

  - Kevin sempre leva a melhor numa discussão.

  - Somente quando a oposição se contradiz. Claro que terei prazer em falar com...

  - Herbert Strauss.

  - Um nome muito conhecido. Será um prazer, para mim, almoçar com o Dr. Strauss no clube da faculdade. As coisas ficariam mais fáceis se eu soubesse de antemão o que devo fazer.

  - Nós falamos com Pat. - Ela esboçou um gesto de desespero. - Ele diz que não podemos nos casar numa igreja a não ser que Herb se torne católico. Isso... isso não me parece justo...

  - E quem foi que falou em "justo"? - Eu a interrompi, sentindo em mim um imenso desejo de espantar para sempre aquela dor. - Acredito que Pat disse a vocês que a Igreja não reivindica qualquer jurisdição sobre o primeiro casamento do doutor, não foi isso mesmo?

  - Herb foi para Israel quando tinha dezessete anos - ela deixou cair os ombros - e viveu num kibbutz durante dois anos. Quando se desligou do exército de Israel, do departamento de informações, ou sei lá o que era então, ele casou-se depois de haver conhecido a moça durante três semanas. Dentro de um ano estavam já divorciados. Herb tinha vinte anos.

  - Acredito que Pat mostrou-se muito afável e desejoso de ajudar e teria, para isso, até mesmo encantado os passarinhos nas árvores, mas acontece que ele é ainda o nosso chanceler, e a Igreja ainda tem as suas leis.

  - Você é um psicólogo, Kevin. - Ela sacudiu a cabeça com tristeza. - Acha que aquilo foi um casamento?

  - Eu não sou um advogado canónico nem tampouco o chanceler...

  - Oh. Pat mostrou-se tão suave e efusivo... - Ela continuava triste. - Fiquei com ódio dele. Falou de homem para homem com Herb, mas sem sinceridade. Será que não posso fazer alguma coisa, Kevin? Ele é um homem tão delicado e refinado! Se você não quiser, não é obrigado a falar com ele.

  - Mas eu quero muito conhecê-lo, Ellen. Só espero que ele não julgue a nossa herança por mim melhor do que julga pelo Patrick.

  - Acho que o critério está comigo, Kevin. - Ela continuava triste.

  O Cardeal Daniel O'Neil entrou como um tufão pelo meu gabinete, um tufão vindo lá das planícies. Atirou em cima da mesa um exemplar de Autodecepção com tanta força que a estátua do Sagrado Coração estremeceu e o retrato de Pio XII na parede forrada de vermelho chegou a balançar.

  - Você anda escrevendo demais, Kevin. - Ele disse aquilo como se estivesse falando de um assunto já encerrado.

  Todo mundo sabia que ele sempre tentava intimidar os outros num primeiro arroubo. A estratégia certa era ficar firme e não ceder. Algumas vezes isso era difícil porque ele era um homem que chegava mesmo a intimidar.

  - Dois livros em dois anos não é tanto assim...

  - E quem lhe deu permissão para escrever? E a censura? Para onde é que vai o dinheiro? Quem é que lhe paga? Qual é o seu status canónico? Ainda continua ouvindo confissões? Que espécie de padre é você?

  - Quanto à última pergunta, sou um padre pobre, como a maior parte deles. As respostas para as outras estão todas em meus arquivos. O Cardeal Meyer deu-me permissão para escrever e também disse que eu não estava sujeito à censura.

  - Sei de tudo isso. - Ele retomou a palavra bruscamente.

  - Não posso deixar você nesse trabalho para sempre. Vai perder o contato com as pessoas.

  - Os meus colegas no instituto de pesquisas também são pessoas, Vossa Eminência. Da mesma forma que os jovens com quem trabalho e os estudantes da universidade.

  - Não são pessoas de verdade! - Ao mesmo tempo que falava, ele brincava com a cruz que trazia ao peito.   

  - Olhe aqui, padre. Para ser um bom padre, você precisa trabalhar com gente de verdade.

  - Sim, Vossa Eminência.

  - Quanto é que eles pagam a você lá nessa tal coisa de pesquisa? - Ele deu um murro na mesa. - Não podemos permitir que alguns padres enriqueçam enquanto outros fazem o serviço.

  - Eles me pagam o salário estabelecido para os que fazem pesquisas em meu nível...

  - E a quanto monta isso?

  - O senhor pode encontrar isso em muitas das publicações jacadêmicas, cardeal. - Eu continuava calmo. - No que diz respeito à minha renda real, acho que a pergunta só é pertinente a mim, a Deus e ao Imposto de Renda. Falando com toda a franqueza, isso não é de sua conta!

  - Muito bem. - O tufão pareceu acalmar-se. Finalmente ele falou: - Espero que você mereça o que eles lhe pagam, já que seu trabalho é muito bom. Um homem como você pode ser um verdadeiro prémio para um bispo. Eu posso dizer aos outros bispos que um dos meus homens é tão bom que uma grande universidade secular faz questão de que ele pertença à faculdade. Tudo que peço é que você faça de forma a nos sentirmos orgulhosos com o seu comportamento.

Ele continuou a falar durante quase uma hora mais, sempre, procurando conseguir alguma informação sobre a vida amorosa do capelão do Newman Club, que, aliás, não existia, contando caso improváveis e enchendo-me de tanto uísque que eu me vi obrigado a caminhar durante uma hora antes de entrar no carro para voltar à casa.

  Pat nunca me disse coisa alguma sobre aquela discussão. Alguns meses depois eu já não recebia mais correspondência alguma vinda da Chancelaria. O meu nome havia sido riscado da lista dos que recebiam coisas da Chancelaria da diocese por instruções diretas do Cardeal O'Neil. Foi o que me contou um Joe Herlihy muito encabulado e procurando desculpar-se. Ele abandonou o sacerdócio antes de terminar o ano de 1967, com grande desgosto para o seu irmão mais moço, Marty, que continuava a proteger St. Praxides.

 

  Mo querida,

  É isso aí, Mo. Afinal de contas vamos mesmo casar numa igreja. Adivinhe quem arranjou isso? Errou. Não foi o chanceler, e sim o nosso amigo comum, o Reverendo Kevin James Sarsfield Brennan, o homem que, na opinião de meu querido, é uma das maiores dádivas de Deus para a humanidade.

  Não vou aqui explicar a você todos os chatos detalhes canónicos. O Pat atrapalhou tudo, e então eu fui falar com o Kevin, com quem tive uma briga feia, como quase sempre acontece. Isto é, eu briguei e gritei e ele foi muito delicado. Depois ele conversou com o Herb e encontrou uma saída. Foi um negócio qualquer com a mulher do Herb, que era judia mas se tornara católica durante alguns anos antes de completar os vinte.

  Herb voltou do almoço com Kevin completamente assombrado. A mim jamais poderia ocorrer que um homem também se apaixonasse assim por aquele filho da puta, também.

  O Herb está procurando conhecer-nos todos. E ainda não conheceu você. Ele ainda não sabe que está se casando com toda uma comunidade irlandesa e não apenas com uma família dessa ilha. Só quero ver quando ele se encontrar com o Coronel.

  Desculpe a minha tagarelice

  com muito amor, EL.

 

  Foi Monsenhor Patrick Donahue quem celebrou o casamento de Herbert Strauss com Ellen Curran. Ela estava ofuscante num vestido azul-claro, que Mary Ann sussurrava ser um verdaderio Chanel que valia, pelo menos, uns quinhentos dólares. Ellen, afinal, podia dar vazão ao seu bom gosto pelas roupas.

  Ficou zangada comigo porque eu permiti que fosse casada pelo Patrick. Quase não falou comigo na igreja nem no banquete. Mostrava-se radiante para todo mundo e fechada para mim.

  - A sua missa é uma cerimônia interessante - disse Herb enquanto caminhávamos do salão de banquetes do Drake para o saguão. - Bem parecida com o nosso serviço israelita.

  - Ao qual você nunca comparece, Herb - disse a sua nova mulher, fingindo ignorar-me.

  - Na verdade - disse eu - são da mesma raiz. Ambos fazem parte da cultura religiosa da era do Segundo Templo. Um antropólogo que viesse de Marte julgaria que eram da mesma religião, o que não deixa de ser verdade. A malfadada cisão depois da queda de Jerusalém é apenas temporária, até mesmo depois de alguns milhares de anos bem sangrentos.

  - Essa é uma estranha perspectiva sobre a qual precisamos conversar - os olhos castanhos e intensos de Herb arregalaram-se fascinados.

  - Mas não na noite de nosso casamento, querido. Ela pegou-o pelo braço com firme autoridade. Eu fui premiado com um sorriso divertido de quem perdoa. - Se vocês dois, os intelectuais, começam com essa discussão, nós vamos perder o avião para a Irlanda.

  - Eu cuidarei bem dela para você. - Herb apertou-me calorosamente as mãos.

  Ela me telefonou às três da madrugada, hora de Chicago, do aeroporto de Shannon.

  - Desculpe se o acordei, Kevin. .. - ela falava apressada depois da ligação ter sido feita pela telefonista internacional. - E também peço desculpas por ter sido tão grosseira com você no casamento, e também, ainda, por todas as más palavras minhas nos momentos de zanga. Eu o amo, Kevin.

  Não há nada que precise ser desculpado, Ellen. Desejo para você uma feliz lua-de-mel - resmunguei ainda meio tonto.

  Na manhã seguinte, depois de meu segundo bule de chá, achei que aquela resposta não fora das mais brilhantes.

  Passei por alguns maus momentos quando irrompeu a Guerra dos Seis Dias. De acordo com o itinerário que haviam traçado, eles deviam estar em Jerusalém quando as bombas começaram a cair. Tanto quanto eu conseguia lembrar, o hotel em que estavam, o New City, ficava bem perto do Portão Mandelbaum. Foram precisos uns cinco ou seis dias até que eles conseguissem enviar notícias dizendo que tudo estava bem, que nada haviam sofrido.

 

   O rosto bonito do monsenhor estava desfigurado e seus olhos brilhavam. Esticou os braços embrulhando-se na sua capa escarlate para se proteger da brisa da noite.

  Estendeu as mãos numa súplica.

  - Por favor, vão todos para suas casas! - A sua voz atroava pelos alto-falantes. Ele ajustou o microfone pregado à batina de botões vermelhos. - Vocês já deram vazão à dor e indignação de todos! Agora voltem para as suas casas antes que haja mais violência. A memória do Dr. King não se sente honrada com o saque desenfreado e sem sentido. Voltem para casa antes que alguém seja ferido!

  Ele afastou-se dos carros azul e branco da polícia e caminhou em direção da multidão de jovens negros, muitos dos quais já com pedras nas mãos. Os policiais vinham logo atrás dele com as armas nas mãos. A rua estava coberta de vidros quebrados e um carro dos bombeiros veio estacionar junto ao meio-fio. A fumaça ainda saía pela porta de uma loja incendiada. Os faróis vasculhavam a rua para cima e para baixo.

  - Vocês todos devem se lembrar bem de mim. Eu jogava o basquete com vocês aqui não faz muitos anos. Por favor, voltem para suas casas antes que alguém mais fique seriamente ferido.

  Um negro jovem, de rosto contorcido pelo ódio, atirou uma pedra, não contra o monsenhor e sim contra o policial que estava logo atrás dele. Ouviu-se uma rajada de tiros. Alguns moços negros caíram ao chão. Os outros separaram-se e correram. O monsenhor balançou por um momento e depois desabou lentamente. O escarlate de sua batina estava agora manchado de sangue.

  Ouviu-se a voz do locutor dominando as sirenas e os tiros. "Acabaram de ver o episódio filmado do tiro que atingiu Monsenhor Patrick Donahue, Chanceler da Arquidiocese de Chicago, que fora ferido antes quando tentava intervir na rebelião que estourara no lado sul. O movimento é em protesto contra o assassinato de ontem do Dr. Martin Luther King, Jr. Monsenhor Donahue voltou àquela área onde serviu como padre da paróquia até alguns anos atrás. Do Hospital Mercy informam que ele não está seriamente ferido. O Cardeal O'Neil acorreu ao Hospital Mercy para ficar ao lado do Monsenhor Donahue logo que soube do acontecido." Houve alguns metros de filme onde se via Daniel O'Neil entrando no hospital. A sua preocupação quanto ao estado do seu chanceler não impedia que ele sorrisse e acenasse para as câmaras da TV. "Há boatos que o Prefeito de Chicago, Daley, pediu ao Presidente Johnson para enviar a Divisão 101 Aerotransportada, para manter a ordem aqui. Eles chegarão tarde demais para Monsenhor Donahue, o terceiro no escalão eclesiástico da arquidiocese, e que foi ferido, acidentalmente, pelas costas com um tiro de um policial da cidade."

  Eu desliguei a TV. Aquele fora um gesto de bravura idiota e louco. Aqueles garotos com as pedras não eram os mesmos com quem Pat jogara o basquete anos atrás.

  Provavelmente nem o conheciam. Estava desafiando o perigo quando se colocara entre as pedras dos garotos e as armas da polícia. Jamais encontrariam a bala que atingira o seu ombro, e o policial que atirara nem mesmo sabia que sua bala perdida havia derrubado o chanceler da arquidiocese. Um padre negro talvez houvesse conseguido alguma coisa, mas um branco envolto em púrpura...

  Mas quem era eu para criticá-lo. Fora de propósito ou não, o seu gesto e a sua coragem foram uma boa resposta para a rebelião. Eu contentava-me em ficar ali no porão vendo a televisão e esperando pela chegada da Divisão 101.

  Se Roma tinha a intenção de fazer de Pat um bispo, seria melhor que o fizessem logo. O Cardeal O'Neil não tolerava que alguns de seus padres merecessem a atenção da imprensa, e Monsenhor

Donahue era agora o seu herói. Era certo que perderia as graças do cardeal.

 

  Maureen e Ellen estavam no quarto do Pat no hospital quando lá cheguei, na manhã seguinte ao tiroteio. Ele descansava confortavelmente protestando que aquilo não tinha importância e que seu ombro logo estaria novamente bom depois que lhe tirassem os curativos, e ridicularizando a sua estupidez que causara toda aquela confusão.

  Era uma perfeita representação. O pessoal da TV teria adorado aquilo. Eu não sabia bem se o cardeal seria da mesma opinião.

  - Que bom que você veio, Kevin. . . - ele repetia aquilo talvez pela quinta vez. - O cardeal acaba de sair.

  - Ele parecia pensar que era o ferido. . . - Maureen estava furiosa.

  - Maureen - Pat olhou-a com reprovação - ele estava preocupado a meu respeito. - Pat parecia até notavelmente saudável e relaxado para uma pessoa que fora tocada pela morte. Eu, bem contra a vontade, cheguei a admirá-lo.

  - A preocupação dele era que você poderia estar esgotado com as entrevistas à imprensa - disse Ellen. - Ele falou que gostaria muito de cuidar deles para você.

  É um homem muito bom e atencioso.

  Aproveitei a oportunidade para olhar bem de perto a Sra. Herbert Strauss. Minha primeira impressão estava certa. Não era apenas aquele elegante vestido cinza que a tornava tão bela. Era óbvio que ela se sentia completamente feliz.

  - Escreva um artigo sobre ele para a escola - Maureen deu uma risada. - Você consegue acreditar, Kevin, que Ellen voltou para a escola? Quer tirar um diploma de literatura criativa.

  - Olhe aqui, Ellen, não vá escrever nada negativo sobre o cardeal, hem? - Pat pedia aquilo com ar desconsolado e cansado.

  - Pode ficar sossegado, querido - Ellen beijou-o na testa.

  - Agora acho que é melhor mandar sair todos esses anticlericais que aqui estão para você poder dormir. Fique aqui quietinho até lhe darem alta, hem? Não dê ouvidos aos apelos de Sua Eminência quando diz o quanto precisa de você lá na Chancelaria. - Depois voltou-se para nós como se fosse a enfermeira-chefe, e ordenou:

  - Fora!

  Nós saímos todos devagar.

  - Venha ver-nos qualquer dia desses - Ellen disse quando se despedia de mim e de Maureen.

  - Claro, Ellen. - Só que, para mim, não havia mais razão para ir visitar Ellen Foley Curran Strauss.

  Ela estava riscada de minha lista de preocupações.

Maureen, contudo, ainda continuava ali. Caminhamos a pé pela beira do lago ao norte do píer da marinha. Mo tinha levantado a gola do casaco para se proteger da umidade que vinha do lago. As torres da Northwestern Medicai School e do Centro Hancock apareciam e desapareciam com o nevoeiro. Os blocos de vidro do elegante Mier van der Rohe projetavam-se altivos sobre os vizinhos vitorianos.

  - Você devia sentir-se satisfeito porque aquele sujeito ruim impediu que fizesse parte da comissão sobre o controle da natalidade ... - Quando disse aquilo ela estava tremendo, talvez por causa do nevoeiro ou então só de pensar no cardeal que vira, pela primeira vez, na cabeceira da cama de Pat.

  - Pois eu achei o relatório deles muito bom, Mo. Eles deram ao Paulo VI uma saída desde que ele queira aproveitá-la.

  - Aquele santarrão sem-vergonha! - A sua resposta estava cheia de raiva e amargura.

  - Isso é um pouco forte até mesmo para mim, Mo... - eu protestei. O tráfego da hora do rush passava por nós em Lake Shore Drive com um barulho atordoante.

  - Desculpe-me, Kevin - ela pareceu arrependida. - Você bem sabe que eu não estou ligando para a Cúria. Observo-a somente por causa do Pat.

  - Quando não está pintando...

  Entramos na curva onde termina a Rua Oak e dali olhamos para o imenso desfiladeiro enevoado e dourado da Avenida Michigan e que davam o nome de "Esplendorosa Milha".

  - E também faço isso, Kevin.

Caminhamos em silêncio durante alguns minutos, chegando até perto da Praia da Rua Oak. Maureen agora voltava a Chicago de dois em dois meses, mais ou menos. Ela estava no O'Hare, esperando um avião de Roma que estava atrasado, quando ouviu a notícia do tiroteio. Voltou correndo para o hospital e conseguiu se avistar com Pat antes do cardeal.

  - Você sabe de tudo a nosso respeito, não é mesmo, Kevin?

  - A sua pergunta, muito baixinho, apanhou-me de surpresa.

  - Eu sei de tudo, sim, Mo. - Nossos passos agora ecoavam por baixo do viaduto da estrada.

  - E o que é que você pensa de nós, Kevin? - Ela fez a pergunta como se estivesse querendo saber o que eu achava do seu novo casaco de inverno.

  - Só espero que não sejam apanhados - a minha resposta foi evasiva.

  - Oh, Kevin - ela soltou uma risada - você é mesmo um amor. Sempre preocupado com os amigos. Certos ou errados, nós ainda somos seus amigos. Muito bem, sem contar com isso, o que é que você pensa a nosso respeito?

  - Não acho que seja uma coisa boa para nenhum dos dois, Mo. Ele não vai largar a batina.

  - Mas claro que não vai. - Ela mostrou-se impaciente. Eu desejo ser a sua amante e não sua mulher. Ele não precisa de mulher e eu não preciso de marido.

  - E o que vai acontecer quando ele chegar a bispo? Você bem sabe que ele está na lista.

  - Mas claro que sei, Kevin. Eu moro em Roma, lembra-ise? - Os saltos dos seus sapatos batiam compassados quando entramos na Avenida Michigan, e ela começou a andar mais depressa.

  - É provável que ele tente abandonar-me então. E eu não vou permitir que isso aconteça. Ele não poderá sobreviver sem mim, Kev. Ele será um bispo maravilhoso enquanto estiver sob minhas vistas, enquanto eu lhe disser o que tem a fazer e enquanto lhe proporcionar noites agradáveis na cama. Você está vendo que eu encontrei o que devo fazer, embora isso não seja exatamente aquilo que você tinha em mente.

  - Ele não seria o primeiro bispo que...

  - O celibato pode ser muito bom para alguém como você, mas não dará certo para Pat, e nós dois sabemos disso muito bem. Não há razão para que ele deixe de ser padre... ou até bispo. Depois de um momento de silêncio ela perguntou. - Você vai denunciar-nos? - Enfiou as mãos nos bolsos do casaco esperando a resposta.

  - Creio que já é bem tarde para eu pensar nisso, não acha?

  - Você nunca compreendeu o Pat, Kevin. - Ela sacudiu a cabeça coberta com um lenço como se estivesse tentando ensinar alguma coisa a um aluno relutante.

  - Você é muito bom para ele, mas existe sempre aquela parte de você sentado na cadeira jurídica do Coronel, avaliando, catalogando, formando uma opinião, para então proclamar a sentença do Pat. Você não vê como ele é generoso, dedicado e sério. Você não vê o que o sacerdócio significa para ele. Você não vê como ele ama a Igreja e a Virgem Maria. Você não vê como ele é paciente, bom e sensível.

  - Acho que não vejo mesmo - respondi, imaginando se, quando estavam na cama, eles falavam também da Virgem Maria.

  - Eu conheço todos os seus defeitos - ela continuava falando muito depressa. - Conheço-os bem melhor do que você, Kevin. E também posso ver todas as coisas boas a que você permaneceu cego, Kevin. Eu vejo um homem maravilhoso que vai fazer coisas maravilhosas para a Igreja. É só dar-lhe a oportunidade.

  - E agora quem é que vai ajudá-lo a encestar? - A minha pergunta foi cheia de amargura.

Ela começou a soluçar baixinho. Abracei-a por alguns instantes.

   - Eu acho que o que vocês estão fazendo é uma loucura, é muito perigoso e também é errado, mas eu ainda gosto muito de vocês.

  - Ele é um ótimo homem, Kevin. - Ela encostou a cabeça no meu suéter das ilhas Aran e deixou-se ficar ali. - Se você o conhecesse como eu o conheço, você o amaria tanto quanto eu.

  A meninazinha trouxe-lhe um buquê de flores silvestres que apanhara no parque. Ela era uma coisinha linda e delicada com olhos que brilhavam e rosto que sorria.

  - Eu gosto de você - disse ela muito úmida.

  - Eu também amo você. Sheila - disse Pat acariciando-lhe os cabelos. Ela precisava de um pai. Como seria a sua própria filha? Alguns anos mais moça...

  - Por que não vem à nossa casa mais vezes? Eu sinto muitas saudades quando você não vai lá em casa. - Ela subiu em seu colo. Maureen dizia que aquela menina ficava transtornada quando ele aparecia.

  - Eu sou obrigado a viajar muito, Sheila. Eu gostaria bem de ficar mais tempo com você.

  - Eu não tenho um papai - ns olhinhos dela encheram-se de lágrimas. - As outras meninas todas têm o seu papai, só eu não tenho.

  - Deus é o papai de todos nós... - Ele apertou-a nos braços.

  - Você quer vir morar com a gente para ser meu papai para sempre? - Ela segurou-lhe o rosto com as mãozinhas.

  - Eu bem que gostaria, Sheila - os olhos dele também estavam cheios de lágrimas. - Quem sabe se algum dia eu farei isso, hem?

  Ela ficou satisfeita e correu para os balanços.

  Os olhos torturados da meninazinha ainda estavam em seu espírito naquela noite enquanto fazia amor com a mãe dela e quando a acariciou para fazê-la dormir. Seria bom ficar com ela e a filha para o resto da vida. Tudo mais era coisa destituída de importância.

  Na manhã de domingo, depois da missa, eu estava de pé nos fundos do Newman Center da universidade. O novo capelão chegara à conclusão de que não gostava muito do cardeal e pedira-me para subir saindo de minha toca. Eu era então um pária na arquidiocese. Escrevia livros demais, ganhava muito dinheiro, não fazia parte da estrutura da paróquia e todos sabiam que eu era anátema para o cardeal. O novo capelão precisava de mais um pregador para os domingos.

  - Contanto que, lá na cidade, eles não saibam o que estou fazendo aqui. Por mim, eles podem ir todos para o inferno.

Ele era um recente convertido ao conceito de uma diocese espalhada. Dentro de alguns anos, todo mundo pensaria da mesma maneira.

  Uma moça bonitinha saiu da capela e aproximou-se de mim i com muita timidez. Parecia que tinha pouco mais de vinte anos, tinha cabelos louros encaracolados e curtos, ombros estreitos por l baixo da capa de pano e era muito clara vista ali naquela luz da primavera. Foi ai que-a reconheci.

  - Mônica Kelly, já está de volta à cidade?

  Ela ficou ali indecisa sem saber se me abraçava ou não, mas, i finalmente, decidiu-se.

  - Estou de volta da escola de jornalismo. Tenho um apartamento perto da universidade e um emprego no Tribune.

  - Puxa vida, Mônica. Já faz bastante tempo, hem? Logo de saída eu não a reconheci. Você ficou ainda muito mais bonita do que jamais imaginei que poderia.

  Ela ficou muito vermelha, resmungou alguma coisa, e resolveu-se a falar.

  - Eu tenho o começo de um artigo que gostaria de lhe mostrar para ter a sua opinião. - Ela falava com muita timidez.

  - Quer entrar?

  - Não, padre - ela sacudiu a cabeça fazendo esvoaçar os cabelos louros. - Não é assim tão complicado. Eu sei como é amigo de Monsenhor Donahue e fico imaginando se já ouviu alguma coisa a respeito do escândalo financeiro na diocese.

  - Não ouvi nada disso, Mônica - resolvi ser cauteloso. O que é que você ouviu?

  - Eu sei que o cardeal perdeu quatro milhões de dólares no ano passado, dos fundos da Conferência Nacional de Bispos Católicos. Maus investimentos. O senhor sabe que ele é o tesoureiro, não sabe? Pois eu também sei que o cara que cuida dos investimentos da Igreja, no Illinois National Bank, vai ser indiciado na próxima semana. Eu sei que o Imposto de Renda está investigando gente da Chancelaria. Sei que Monsenhor Donahue tem tido conversas muito sérias com os advogados da Igreja. O que é que o senhor acha de tudo isso, padre?

  - Eu não estou a par de coisa alguma, Mônica. - Escolhi as palavras com a máxima cautela. - É possível que você tenha realmente alguma coisa, mas tenha muito cuidado. Lá na Chancelaria há gente perigosa envolvida na parte financeira.

  - Do Cardeal Daniel O'Neil para baixo... - ela disse numa voz muito suave. Na hora em que ia saindo ela voltou-se. -. Um grande sermão o seu, padre.

  Na semana seguinte, depois do assassinato de Bobby Kennedy, eu estava em Washington, uma cidade ainda atordoada e de luto, tentando conseguir mais verbas para uma pesquisa sobre o bemestar emocional. Jantei com um membro muito importante da Conferência Nacional dos Bispos Católicos que estava interessado nas implicações de meu trabalho sobre renovação de paróquias.

  Quando tomávamos o café, ele me disse que eu deveria escrever um livro sobre a comunidade religiosa local.

  - É uma boa idéia, bispo - resolvi dar um salto no escuro.

  - Assim talvez os meus direitos autorais possam servir para salvar a diocese depois que ela tiver sido levada à falência pelo Cardeal O'Neil.

  - O que é que você sabe a esse respeito? - O outro pegou na xícara do café.

  - Quatro milhões perdidos em maus investimentos. Investigação do Imposto de Renda. Condenação de um associado. Os jornais ainda estão calados porque estão com medo. - Então, como a última pá de cal, ainda acrescentei. - Estão envolvidos com a Máfia.

O bispo engasgou-se com o café.

  - Na idade Média você seria queimado como feiticeiro...

  - Ele tentava recuperar a sua compostura.

  - O Pat Donahue está limpo, bispo?

  - Quem pode saber? - Ele fechou a cara. - É bem provável que esteja. Tudo está ainda muito confuso e incerto. O'Neil está em Chicago faz muito poucos anos. Roma ainda não quer enviar um visitador para verificar os livros.

  - Eles sabiam muito bem que ele já tinha enterrado as outras dioceses. Por que então imaginariam que seria diferente agora?

  - Desta vez é muito pior. - Meu amigo apenas sacudiu a cabeça. - Não só porque Chicago é muito maior, mas também porque, pela primeira vez, ultrapassa as raias da incompetência. O Departamento de Justiça acha que houve uma possível violação da lei do mercado de ações com o papel comercial que ele negociou. Ainda não prosseguiram porque não querem arrastar um cardeal à barra do tribunal, e porque talvez se trate de um inocente engano.

  0'Neil não é um vigarista, não exatamente, isto é. Muita gente em torno dele é, certamente, corrupta. O encarregado dos investimentos, por exemplo, já roubou milhões de muita gente. Não há razão para se acreditar que ele deixou escapar a Igreja. Neste exato momento todo mundo está com medo de mexer nisso.

  Encomendei um drinque para nós dois. Limpo ou não, Pat estava à beira de problemas sérios.

  Na volta para Chicago resolvi que nada diria a Mônica. Ela poderia derrubar O'Neil, mas também poderia arrastar Pat e talvez, até mesmo, ficar seriamente prejudicada no processo. Eu tinha a certeza de que O'Neil acabaria liquidando-se sozinho, da mesma forma que Kaspar fizera antes.

  Eles saíram correndo da água tépida e estiraram-se no cobertor muito grande. Até onde a vista alcançava em todas as direções, a praia muito ampla estava completamente deserta. Ele sentia-se repousado pela primeira vez depois do tiro. Ali, pegando as ondas, sentia um contentamento saudável, como um homem reabilitado depois de uma longa guerra. Se apenas o ofuscante sol do Mediterrâneo, suas águas purpúreas, e a areia confortadora fossem as únicas realidades... além da mulher em topless que ali estava ofegante no cobertor ao seu lado.

  Ele rolou de barriga para baixo para não ver os seus seios. Maureen sempre achava que ele conseguia dividir sua vida em compartimentos estanques. Faüa o amor com ela ao mesmo tempo em que bancava o futuro bispo, isento de culpa. Se, ao menos, fosse verdade. Já que não era, tinha chegado a hora de dizer a ela que suas vidas tinham que mudar. Embora corroído pela vergonha e humilhação, ele lhe dizia:

  - Nós precisamos acabar com isto, Maureen. Eu preciso arrumar a minha vida. Não posso ser bispo e continuar vivendo assim. Não posso continuar sendo um hipócrita... - Não conseguiu continuar.

  Ela ficou ali calada, com o queixo apoiado no peito e os pés mexendo na areia sem parar.

  - Eu te amo - ele continuou - e sempre hei de te amar. Não tenho vergonha do nosso amor. Só tenho vergonha de minha hipocrisia.

  - Você não ê o único hipócrita na Igreja - ela respondeu baixinho: - De qualquer forma, a Igreja vai mudar, provavelmente quando já formos velhos demais para que isso faça diferença. Por que então esperar?

  - Nada vai mudar. E, certamente, nada mudará para os bispos. Se você quiser, eu desisto do bispado, desisto do sacerdócio s vamos começar uma vida nova.

  - Ele voltava a um assunto que já tinha sido muito debatido.

  - Não seja estúpido - ela respondeu com impaciência. Você jamais se sentiria feliz numa domesticidade de classe média e aliás, tampouco eu.

  - Então vamos voltar já para Roma - ele respondeu com ar triste - onde eu serei novamente casto. Sei que poderei fazer isso agora.

  - Não, não poderá - ela falou, e começou a explorar o corpo dele com as mãos.

  - Não, por favor, Maureen - ele implorou, afastando-a. - Pare com isso. Chegamos ao fim. Estou falando sério.

  Ele levantou-se e caminhou decidido de volta para o caminho de terra batida onde estava o pequenino Fiat. Esperou muito tempo até ela chegar também.

  No dia 25 de julho foi publicada a encíclica sobre o controle da natalidade. Minha família estava no lago e eu estava esquiando na água com meu irmão Mike e sua nova noiva Kathy, uma moreninha que era modelo de modas e cujo QI andava perto dos 160. Quando voltamos para casa na colina, toda a família lá estava mamãe, papai, Joe, Mary Ann e seu marido, todos sentados na varanda da frente e de caras amarradas.

  - A NBC quer ouvir sua opinião. Estão a caminho -• o Coronel falou com a cara mais preocupada que eu já lhe vira desde que voltara da guerra.

  - Não se preocupem comigo. Não tenho nada a perder.

  Li o texto da encíclica. Era pior do que eu esperava. O Papa não levara em conta o relatório da maioria, e simplesmente ignorava o que ele dizia.

  Naquela noite, Pat Donahue e eu fomos ao ar no Canal 5 em teipe. Muito calmo e frio, Pat leu uma declaração em nome do cardeal. "Nós nos congratulamos com a decisão do Santo Padre que acabará com a inquietação de muita gente da arquidiocese com relação a esse problema. Estamos certos de que todos os leigos católicos reagirão com entusiasmo à decisão do Papa e que, na plenitude de uma madura reflexão de suas consciências, eles chegarão a uma decisão acertada sobre esse assunto difícil e delicado."

  - E o que significa isto? - quis saber Kathy.

  - Não significa coisa alguma - respondi com impaciência.

  - O'Neil partiu para o Alasca logo que soube da publicação da encíclica, e deixou a bomba nas mãos do Pat.

  - Claro que significa alguma coisa, Kevin - meu pai respondeu. - Pat está passando a bola para a consciência dos leigos.

  - Porque ele sabe muito bem, muito melhor do que qualquer outro, que os leigos vão resolver como muito bem entenderem.

  - Se houver bastantes chancelarias para reagirem dessa forma, será que os padres não vão receber instruções para agirem como quiserem? - Ao fazer a pergunta, Mary Ann tinha os olhos frios e espertos que eu já estava acostumado a ver no meu espelho.

  - E é isso mesmo que eles vão fazer, de qualquer forma. Pelo menos aqui em Chicago eles não vão se deixar levar.

  Depois então eu já estava diante da TV dizendo a um perturbado repórter católico que ninguém iria dar importância à encíclica.

  - A maioria dos padres e dos leigos já resolveram o que vão fazer. E não vão mudar de idéia. Não quero dizer com isso que seja essa a reação certa. Digo somente que é. isso, provavelmente, o que vai acontecer.

- Acho então que vão desobedecer ao Papa? - O repórter insistia.

  - Não é muito provável que obedeçam... - Procurei fugir da palavra "desobedecer".

  - Quer dizer então que eles vão largar a Igreja? - O homem continuava a me apertar.

  - Alguns, talvez. Não muitos.

  - Mas, olhe aqui, Padre Brennan, há gente dizendo que os católicos vão abandonar a Igreja, mas há também quem diga que vão obedecer ao Papa...

  - E eu lhe digo que as duas afirmações estão erradas. Os católicos não vão abandonar a Igreja, mas também não vão aceitar a encíclica na íntegra, por mais que admirem o seu espírito. Não acredito que os padres e bispos insistam na sua observação. Não vejo como poderiam fazê-lo, a não ser que colocassem espiões em todos os quartos de dormir dos católicos.

  Minha mãe levou um susto coma minha declaração, mas os outros todos acharam muita graça e riram.

  - Então, a sua opinião é que... hum... a Humanae Vitae não vai causar um impacto na Igreja?

  - Ao contrário. Vai ser um desastre. Muita gente vai achar que o Papa não deu atenção aos seus problemas, e até mesmo que traiu os seus crentes. Os padres e as freiras vão abandonar a Igreja em números cada vez maiores. Não quero pôr em dúvida a integridade da decisão. Só o que estou dizendo é que o custo vai ser terrível...

  Herb Strauss telefonou-me logo depois.

  - Kevin, você devia aparecer sempre na TV. Brilhante! Os católicos, em sua grande maioria, vão se sentir liberados com aquilo que você disse.

  - Sentir-se-ão apenas confirmados em suas convicções. Quando voltei, o Coronel quis saber quem tinha telefonado.

  - Foi o Herb Strauss...

  - Isso me faz lembrar... Vocês não se importariam se eu lhe vendesse aquele pedaço de terra lá perto da piscina natural, hem? Ele quer comprá-la para construir lá uma casa para a Ellen e as crianças. Sua mãe e eu achamos que não devemos ficar guardando toda a terra da colina.

  - E o dinheiro vai ajudar para construirmos uma casa maior na Flórida... - Mamãe ainda reforçou.

  - Podem até comprar a metade do Estado da Flórida intercalou Steve.

  Eles queriam a Ellen como nossa vizinha. Eu não queria que ninguém comprasse o meu poço mágico. Por outro lado, Ellen seria a escolha lógica se fôssemos vendê-lo. Levantei os braços.

  - Por que diabo iria eu me incomodar se vocês querem ter judeus como vizinhos?

 

  Minha muito querida Ellen,

  Você é uma amiga de verdade. Uma amiga das boas. Todos esses anos você vem me dizendo a verdade e eu venho mentindo para você... ou, pelo menos, venho te enganando.

  Ou será que venho mesmo? Você talvez tenha desconfiado de meu caso com Pat.

  Foi apenas mais um caso da Velha Mo tentar endireitar um homem fraco. Foi aí que eu me deixei apanhar na ratoeira. Aquilo significava tanto para mim, do ponto de vista físico e psicológico, que eu deixei de pensar sobre a loucura que era. E então chegou a hora em que ele terminou tudo. Agora, que já é bispo, quer tornar a ser casto. Acho até que é razoável, não é? Fiquei furiosa com ele, e isso mostra a você como eu estava enredada.

  Está tudo acabado agora, e eu me sinto como se estivesse convalescendo de uma longa doença. Sou agora outra mulher. Estou pintando uma tempestade, e estou saindo com um jovem viúvo da embaixada.

  Creio que fui de alguma ajuda para Pat. Não posso ter certeza. Talvez estivesse brincando comigo mesma o tempo todo. Rezo para que ele consiga safar-se sozinho como bispo. Suas intenções são boas. Só que é fraco como eu. E também é um bobo... não, não, isso não é verdade. Ele é muito inteligente e esperto. É elegante no traje e no espírito. O problema é que ele dividiu a sua vida em pequenas celas estanques. E é aí que comete tolices.

  É isso ai. Está tudo acabado. Já posso viver outra vez.

  Seja boa para o Herb e, por favor, não confunda eu e Pat com você e Kevin. Completamente diferente.

  Que Deus a abençoe, Mo.

 

  Eu estava no Hospital Mercy fazendo uma visita ao que sobrara de Mônica Kelly, no dia em que a delegação apostólica anunciou a nomeação de Patrick H. Donahue como Bispo Titular de Heliópolis e auxiliar do Cardeal O'Neil, Arcebispo de Chicago. Mônica tinha o rosto inchado e muito castigado. Seus maxilares estavam presos com arame. O nariz e os ossos do rosto estavam quebrados. O jovem residente, um homem moreno e bonitão, disse-me que ela fora estuprada repetidas vezes, e que seus seios tinham sido lacerados por um instrumento afiado. Havia mais de quarenta queimaduras de cigarros em seu corpo. Os dentes da frente tinham sido quebrados. Ela encarou-me com olhos apagados.

  - Quais são as suas chances, doutor? - Eu fiz a pergunta quando já estávamos lá fora no corredor.

  - Nós vamos recompô-la direitinho. Não ficará muito diferente do que era antes. Só não sei o que será possível fazer quanto aos danos psíquicos. Ela era virgem, padre. Uma criança inocente. Na melhor das hipóteses, vai levar muito tempo...

  Aquilo era obra de um profissional. Somente a Máfia fazia aquela espécie de coisa, e só faziam quando alguém estava chegando muito perto de alguma coisa muito séria.

  Mônica Kelly não era uma pessoa importante. Era apenas uma moça que um dia elogiara um sermão que eu fizera. E era também a vítima da podridão que se infiltrara na Arquidiocese de Chicago. Jurei ali que iria encontrar os responsáveis... mesmo se isso incluísse a destruição do Bispo de Heliópolis, o mais jovem bispo dos Estados Unidos.

  Fat foi consagrado bispo pelo Cardeal Daniel O'Neil, o Arcebispo Martinelli e o delegado apostólico, em princípio de setembro. Maureen não veio de Roma, e eu não me sentia como se pertencesse àquela celebração. Herb e Ellen, pelo que me contou Mary Aun, estavam sentados bem perto da mesa do orador.

  Uma mulher de Chicago, com mais de sessenta anos, quando entrevistada para a TV, falou com muito orgulho:

  - Ele é um ótimo menino. Conheci a sua mãe toda a minha vida. Tome nota do que eu digo, ele ainda será cardeal.

  Eu sorri com tristeza com aquele palpite, mas o Cardeal O'Neil não ia achar graça nenhuma.

  Afinal, não houve o êxodo maciço que tinha sido previsto pelos jornais católicos liberais como resultado da Humanae Vitae. Os católicos fizeram uma importante descoberta. Era possível ignorar o Papa e continuar a viver.

 

  - E aqui, senhor bispo, está a nossa classe do segundo grau. A maior parte das meninas já tem sete anos. Meninas, cumprimentem o nosso novo bispo - a freira velha estalou os dedos com a ordem. As crianças curvaram-se numa mesura respeitosa. As irmãs ainda lhes ensinavam aquelas boas maneiras. Ainda havia poucas coisas que não tinham mudado no mundo.

  - Uma das meninas vai falar em nome de todas - foi o que anunciou a professora secular. Já eram poucas as religiosas que podiam servir de professoras, até  mesmo numa escola de convento.

  Uma lourinha muito bonitinha veio colocar-se na frente da classe. O bispo sentiu como se uma garra de ferro lhe apertasse o coração.

  A menina curvou-se. Falava baixinho, mas sua voz era firme.

  - Bom-dia, senhor bispo, meu nome é Patrícia Carrey. Todas nós do segundo grau desejamos dar-lhe as boas-vindas à nossa escola. Queremos agradecer-lhe pelas coisas maravilhosas que fez para a nossa gente. Desejamos que Deus o ajude a ser um ótimo bispo. Todas noa rezaremos pelo senhor... - ela parou hesitando, respirou fundo e depois continuou:   

  - O senhor rezará por nós? E agora, será que o senhor pode nos dar, por favor, a sua bênção e-e-episcopal? - ela suspirou aliviada e veio ajoelhar-se aos seus pés.

  Toda a classe também ficou de joelhos. Foi a custo que ele conseguiu falar.

  - Muito obrigado, Patrícia, Muito obrigado a todas vocês do segundo grau. Estou certo de que Deus ouvirá suas orações para mim muito mais do que as minhas para vocês. Deus ama muito a todas vocês... e... e eu também. Agora... - ele fez uma pausa e sentiu que a sala girava em torno, mas afinal encontrou forças para continuar: - Agora, desejo que as bênçãos de Deus TodoPoderoso, do Pai, do Filho e do Espírito Santo desçam sobre vocês todas e que aí continuem para todo o sempre.

  Deu um beijo na cabeça de Patrícia.

  Mais tarde, já no seu quarto, na reitoria da catedral, o bispo chorou amargamente.

 

  A Década de Setenta

  - Eu bem desejaria que ele tivesse voltado no ano seguinte, padre. -, Harry Willewski sacudiu a cabeça já agora coberta de cabelos grisalhos e abundantes cortados bem curtos. - Eu sempre desejei dar uma boa surra naquela cara. . - Esfregou o tampo da mesa limpa como se estivesse arrependido. - Os jesuítas nunca chegaram às finais naquele ano, com todos os diabos.

  - E o Quigley não chegou a jogar pela universidade naquele ano...

  A minha resposta foi dada com delicadeza já que eu não queria perturbar a nostalgia de Harry daqueles dias no passado em que nenhum de nós estava perto dos quarenta.

  O escritório dele* no Edifício Federal era todo em aço e vidro num dos cantos como convinha ao primeiro assistente do procurador do Estado de Illinois. Todo o mobiliário era também cinza como os seus cabelos. Das imensas janelas que iam do chão até o teto, descortinava-se a parte sul do Loop, o Parque Grant e o lago lá ao longe. O rosto redondo de Harry estava ainda mais redondo, seu corpanzil com tendências à gordura, já que aquela era a sorte dos atletas cujos cargos não permitem exercícios quando lutam com as múltiplas crises da idade provecta.

  - Como, diabo, você consegue continuar em tão boa forma? - ao fazer a pergunta ele brincava com uma baioneta da Coreia do Norte transformada em.' abridora de cartas, ganhando tempo para a pergunta, que me trouxera ao seu escritório. Numa das estantes, por trás de sua mesa, estava o retrato de uma mulher bonitinha com uma porção de crianças.

  - Jogo de bola, karatê e gens. Será que você tem notado algum peso a mais no Coronel?

  - Quanto menos eu botar os olhos nesse cara, tanto melhor será para num - a sua resposta foi acompanhada de uma risada.

  - Todas as vezes em que ele entra numa sessão do tribunal eu tenho logo vontade de atirar a toalha no ringue.

  O condicionador de ar não estava funcionando bem e o sol de verão estava transformando o escritório- numa estufa. Eu tinha um encontro marcado na Avenida Michigan dentro de uma hora e não queria faltar.

  - O que é que está acontecendo, Harry?

  - Eu devo a você um almoço no Clube dos Advogados ele começou a falar devagar. - Detesto tê-lo feito vir aqui dessa maneira. Aliás, padre, aprecio o fato de você não estar com o colarinho clerical.

  - O nome ainda é Kevin, Harry. Vamos lá, desembuche logo. - Eu mudei de posição na cadeira de aço.

  - O seu amigo Donahue, com todos os seus botões vermelhos, está atolado até o pescoço em duvidosos negócios financeiros. Não estou me referindo aos maus investimentos, à violação a respeito de ações, ou coisas parecidas. Há alguma coisa muito estranha acontecendo na Chancelaria. Muitos leigos que trabalham lá estão cheios demais de dinheiro. A Máfia está por trás de tudo. Um dos grupos marginais que os dons toleram. Temos denúncias bastantes para fazer uma investigação para o Imposto de Renda contra dois deles, e isso vai deflagrar uma reação em cadeia. Seu amigo, é o controler junto com o Vigário-Geral. É ele quem assina os cheques. Ou ele faz parte de um plano de apropriação indébita ou então está permitindo que os outros o façam. Se tudo isso vier à tona, ele poderá ir parar na cadeia de Lexington apesar de sua qualidade de bispo.

  Senti como se todo o edifício estivesse mergulhando e girando. Só desejava que aquela cadeira de aço estivesse pregada no chão.

  - O Cardeal... não é lá muito esclarecido.

  - Não é muito esclarecido! - O outro soltou um grito. O'Neil vende terras por meio milhão e logo, na semana seguinte, das são vendidas por setecentos e cinqüenta mil dólares. Não é muito esclarecido, nem? Ele está louco varrido. E esse dinheiro é parte do meu salário e do salário de todos aqueles que todos os domingos deixam lá uma nota com o retrato do Lincoln. Desculpeme, padre. - Ele estava procurando recuperar a sua calma profissional.

  - Eu continuo a ser Kevin e não o culpo pela indignação. Tudo que o cardeal faz é mandar dinheiro para Roma, milhares de dólares dos estipêndios das missas, ou coisa parecida, para os seus cupinchas. Donativos de meio milhão de dólares para o Papa. Ele não é um peculatário comum, também, hem?

  - Não acreditamos que seja. - Ele suspirou fundo. - Não se esqueça de que estamos com medo de mexer nisso. Quem, com todos os diabos, estaria disposto a trazer um cardeal e o seu bispoauxiliar perante um tribunal? Nós apenas sabemos que o casal J. Bernard O'Keefe, ela née Sally McCornack, tem muito dinheiro e é freqüentemente visto na companhia de um vigarista chamado Dom Corso, vulgo "o Morto". O'Keefe é o coordenador dos serviços na Chancelaria e Sally é a secretária particular do cardeal.

  Os dois possuem Cadillacs, moram em Lake Shore Drive, passam as férias em Cortina e usam.' roupas que devem custar o meu salário de um ano. Não é com os seus salários que eles pagam suas contas.

  1. Bernard O'Keefe era um homem bonitão, de ombros largos, e cujo rosto queimado dava a entender o uso de tratamento de raios violeta. Sua mulher era uma loura platinada e estatuesca que obrigava muitas cabeças eclesiásticas a se voltarem para admirá-la quando passava pelos corredores da Chancelaria muito bem atapetados. Os dois eram figuras escusas de segunda classe que fugiam do mundo dos negócios. Meu pai classificava O'Keefe dizendo que ele "era o tipo de presidente de alguma sociedade com nome de santo que, se fosse instalador de eletricidade e água, daria à sua paróquia um orçamento pelo dobro do preço de qualquer outro e sempre esperava conseguir o contrato só porque era bem apresentado e também amigo do pastor".

  - Harry, esse tal de OTieefe é um vampiro.

  - E perto do Dom Corso, ele parece um vegetariano enquanto falava ele brincava novamente com a sua baioneta.

  - Foi ele quem mandou liquidar a Mônica - a verdade surgiu diante de meus olhos.

  - Isso mesmo. - Harry olhou-me surpreso. - Foi ele. Ela estava chegando muito perto. Não era tão perto assim, mas ele gosta de maltratar mulheres. Não podemos acusá-lo. Depois das eleições de novembro, nós vamos pegar o casal sem ligar para a Igreja. Diga ao seu amigo Donahue para se livrar deles antes dessa data, porque senão teremos que pegá-lo também, - Quando acabou de falar bateu na mesa com o cabo da baioneta.

  - Então você quer que eu faça o papel de mensageiro não oficial entre o Procurador dos Estados Unidos e o Vigário-Geral da Arquidiocese de Chicago?

  - Este é o seu lado acadêmico, padre. - Ele recostou-se na cadeira. - O Coronel nunca falaria com tanta clareza.

  - Só quero pedir um favor a você, Harry. Pegue o Dom Corso. - Eu me levantei.

  - Você é o mesmo de sempre, não é isso, Kevin? - Ele sacudiu-me calorosamente a mão.

  - Sempre quero ganhar, Harry. Você ainda se lembra, não é mesmo? - Caminhei para a porta.

  - O que é que a moça representa para você? - ele mostrou-se curioso. - E, por falar nisso, como vai ela passando?

  - Ela gostou de um dos meus sermões, e nos dias que correm isso é o bastante. Ela está passando bem. Fisicamente, isto é. Creio que, psicologicamente, ainda deve estar bem ferida. Ficará talvez assim para o resto da vida, embora a Tribune esteja ajudando dando-lhe serviços internos.

  - Faça-me um favor e tire o Donahue para fora da jogada. Eu cuidarei do "Morto" em seu nome. Fechado?   - Harry tornou a apertar-me a mão.

  - Fechado.

  Eu sentia-me deprimido. Os críticos eclesiásticos arrasavam os meus livros, mais como um ataque pessoal, enquanto os críticos seculares falavam maravilhas. Eu escrevia livros, chamava a atenção para a minha pessoa, tinha um emprego fora da igreja, ganhava dinheiro e, por isso, era considerado um pária. Se desistisse de tudo aquilo, eu poderia voltar a ser humilde novamente e também feliz.

  Considerei a possibilidade, já que a elite que mandava na universidade resolvera recusar a minha vitaliciedade. Eles achavam que só poderia ser um cientista social o padre que se desligasse completamente de seus vínculos eclesiásticos e de sua autoridade como padre. Um dos administradores de alto nível explicou-me:

  - É claro que não precisa abandonar o sacerdócio, Sr. Brennan. Isso não nos diz respeito. Nós, simplesmente, precisamos ter a certeza de que isso não interferirá. Se tivermos uma prova disso, estou certo de que a maior parte das objeções desaparecerão, Esse mesmo administrador disse a um de meus colegas de psicologia social, deixando-o espantado:

  - Um padre não pode ser um estudioso objetivo em psicologia, da mesma forma que um comunista convicto, membro do partido, já que, pela mesma razão, as suas convicções influirão em suas conclusões.

  Foi a minha teimosia que me manteve onde eu estava. Seria um cretino se desse à universidade ou ao cardeal a satisfação de me expulsarem. E então, para aumentar ainda mais os meus problemas, tive um pega com a Georgina Carrey, que voltara de meu passado só para me atormentar.

  Fiquei profundamente abalado. Aconteceu na época da tragédia do Kent State. O instituto de pesquisas, onde eu agora era o chefe, continuava em suas atividades, embora com algum temor de minha parte, imaginando que a garotada violenta poderia explodi-lo.

  Estava sentado em meu gabinete, vendo na TV uma reunião no Chicago Circle. Quem falava era o Padre Rick Flannery, discípulo dos Berrigans. Ele era um homem magro e alto, parecido com o chefe de um grupo de flageladores da Idade Média.

  - Já chegou a hora de estraçalharmos essa sociedade apodrecida. Esta é a revolução desde muito esperada por todos nós. Vamos sair daqui desta reunião para obrigar este país a cair de joelhos.  Nós fabricaremos bombas, acharemos armas, incendiaremos, arrasaremos e destruiremos. Nós seremos a imensa peneira do Senhor que varrerá toda esta cidade para purificá-la de seus pecados e da sua corrupção. Nós levaremos Chicago e a América diante da sede de julgamento de Deus. Vamos paralisar o capitalismo corrupto de todo este país pecador. Vamos libertar os pobres e os infelizes de todo o mundo. Abaixo a América! Vivam os pobres! Uma longa vida para a República Democrática do Vietnã! O poder para o povo!

  Um de meus colegas que assistia ao programa junto comigo disse:

  - A gente quase pensa que ele é protestante.

  De volta ao vídeo lá estava o rosto gasto e belo do Reverendíssimo Patrick H. Donahue, Bispo-Auxiliar de Chicago. Não havia uma única demonstração com marcha pela paz, naquela época, sem que logo aparecesse Pat envolto em seu manto, o que, certamente, era uma completa mudança de estilo depois da desleixada aparência de Rick Flannery.

  Ele esperou com paciência até que os jovens se aquietassem, pedindo silêncio com seu porte imponente e, finalmente, conseguindo-o.

  - Meus caros jovens - começou falando lentamente - a guerra no Vietnã, seja lá o que for que pretendessem que ela fosse, é um trágico engano. O bombardeio é maldoso e imoral. A morte de estudantes quando exerciam seus direitos constitucionais, que garantem a reunião, foi um crime de bradar aos céus. Os protestos de vocês representam a tradição política destes Estados Unidos naquilo que ela tem de mais belo. Sinto-me orgulhoso por estar aqui com vocês hoje para lhes demonstrar o meu apoio irrestrito a este protesto. Vocês vão pôr um fim na guerra do Vietnã. Vocês vão transformar este país. Vão fazer renascer a sua alma.

  Vocês vão dar início a uma nova era na história dos Estados Unidos. - Todas as suas frases eram interrompidas por calorosos e atordoantes aplausos.   

  - Só poderemos acabar com a guerra quando obtivermos o controle do Congresso. Em novembro, precisamos eleger os candidatos que se batem pela paz em todo o país. Nosso protesto aqui, hoje, não é apenas um grito ultrajado contra as coisas terrívies que têm sido feitas em nome de nossa grande herança aqui nos Estados Unidos. Nós vamos marchar daqui com o compromisso formal de enviarmos para o Congresso, em novembro, uma maioria formada por candidatos que se batem pela paz. Nós venceremos.

  Nesse ponto, todos começaram a cantar o hino nacional. Rick Flannery abraçou o bispo como se os dois houvessem falado as mesmas coisas. Alguns dos tipos mais sabidos de profissionais da paz não pareciam muito satisfeitos.

  Os jornais todos elogiaram sem restrições a atitude do Bispo Donahue por haver contornado a ameaça do comício. A verdade era que os garotos, de qualquer forma, voltariam todos aos seus deveres domésticos.

  Já no fim da tarde a minha secretária veio avisar-me de que uma Sra. Carrey estava ao telefone. Eu já vinha esperando, mais ou menos, aquele chamado depois que seu marido morrera.

  - Você o viu na TV? - Sua voz estava cheia de amargor.

  - Claro que o vi. - Eu sentia-me culpado por não haver comparecido ao enterro do John. O seu fulminante ataque cardíaco viera sem aviso prévio, e Georgina ficava sendo uma das mulheres mais ricas de Chicago.

  - Eu agora vou pegá-lo. - Ela falou tão baixinho que eu mal podia ouvi-la. - O John está morto e já não tenho nada a perder.

  - Isso é lá com você, Georgina. - Eu só desejava ver-me livre dela para voltar ao meu trabalho. Ela estava metida na política da direita, e tanto quanto me era dado perceber de suas declarações à imprensa, ela queria que se jogasse uma bomba atómica em Hanói e outra em Pequim.

  - E também vou destruir aquela amiguinha dele com quem anda dormindo - ela acrescentou ainda mais baixinho.

  - Mas que amiguinha? - Eu fiz a pergunta imaginando se ela teria ou não contratado detetives particulares para vigiarem o Pat.

  - Você sabe muito bem quem é! - Agora a voz dela já era histérica. - É melhor que venha ao meu apartamento esta noite, ou então eu vou telefonar amanhã cedo para a Delegação Apostólica. Tenho todas as provas.

  A empregada fez-me entrar no edifício de apartamentos em condomínio de quinze andares de onde se descortinava o lago, disse-me que a senhora viria logo e saiu deixando-me só. Os pisos eram de desenhos embutidos, tapetes orientais, uns originais de Jackson Pollock, e um móbile que só podia ser de Calder. Georgina tinha adquirido o bom gosto junto com o dinheiro.

  Num dos cantos da sala havia um bar. Servi-me de uma dose grande de Jameson on lhe rocks e virei-o em três goles enquanto olhava lá embaixo o tráfego e o pôr-do-sol.

  Em cima do lago havia nuvens negras de tempestade. Vindo dos fundos do apartamento ouvi o barulho de água que escorria. Talvez alguém estivesse embaixo do chuveiro.

  Pela primeira vez, depois que ela me telefonara, eu agora pensava se o assunto seria algo mais que Pat Donahue. Servi-me de outra dose.

  Continuei esperando. O terceiro uísque foi o meu maior engano, maior ainda do que em haver concordado com aquela visita. Estava no meio do drinque quando ela apareceu, cheirosa como um jardim na primavera, com uma toalha vermelha em torno da cintura. Fiquei completamente tonto, mais dos uísques do que da vista de seu peito, embora, e só os céus sabiam, aquilo fosse também esplêndido.

  Ela apresentava um quadro preparado com muita arte. Os cabelos, já ligeiramente prateados, estavam soltos e cobriam, em parte, seus opulentos seios que vibravam quando ela andava. Estava mais magra e mais pálida e, a despeito dos anos, muito mais atraente do que quando a conhecera antes. Percebi então que a vingança seria uma espetacular sedução.

  - Boa-noite, Padre Brennan. Eu sabia que viria. - Ela estava de pé e eu sentado.

  - Você está com uma boa aparência, Gina. - Esvaziei o copo. Fingi que a avaliava com cuidado enquanto meu sangue chegava ao ponto de fervura com a fúria brigando com o desejo. Foi então que surgiu a inevitável imagem de Ellen. - É notável o que se pode fazer hoje com a cirurgia plástica...

  - Desta vez não vai ser tão fácil você se livrar de mim, Kevin. Ou você aceita fazer amor comigo, ou então os seus amigos vão estar nas páginas do Sun-Times depois de amanhã. - Ela foi até o bar, virou um pouco de gim num copo de cristal e voltou para onde eu estava, rebolando-se de forma provocante. O desânimo e a depressão dos anos eliminaram as minhas defesas.

  - Você é uma puta velha, e barata, Gina, e, além de tudo, patética. Eu não estou ligando a mínima quanto ao que você possa fazer com o Pat. Se quiser atrapalhar a vida dele, isso é lá com você e mais ninguém. O problema é seu. Eu vou-me embora para casa.

  Levantei-me para sair, ainda sem muita certeza se conseguiria ou não. Caminhei na direção da porta pedindo a Deus que não me deixasse fraquejar. Tinha que sair bem depressa, antes que mudasse de idéia.

  A minha língua, já agora solta pela bebida, ainda deu para mais uma flechada quando já estava na porta.

  - Olhe aqui, Gina, com plástica ou não, as suas tetas ainda são bem apetitosas para uma mulher de sua idade.

  Na tarde seguinte, quando o resultado dos uísques da noite anterior estava já desaparecendo, a minha secretária veio dizer-me que um moço esperava por mim no meu gabinete.

  - Tommy Valero - ele estendeu-me a mão logo que entrei, apresentando-se - lembra-se de mim? Nós nos conhecemos no Hospital Mercy.

  - O residente da Mônica? - Apertamo-nos as mãos calorosamente. A moça ainda vinha à missa dos domingos, muito pálida, retraída e amedrontada. Já não tinha mais comentários elogiosos para os meus sermões. Ao contrário, evitava-me sempre que podia.

  - Eu preciso de um favor seu, padre.

  - Conheço bem essa palavra, doutor. - Recostei-me na cadeira e coloquei os pés em cima da mesa como fazem os guardas de prisões. - E, por falar nisso, foi você quem lhe fez a plástica? Está uma beleza.

  - Fico contente com o seu elogio. - O seu rosto abriu-se num sorriso. - Eu também me sinto orgulhoso do resultado. Ela ficou bonita como era... - Ele ficou mais sério. - Bem, quero dizer, como eram os retratos. Não a conheci antes.

  Eu apenas resmunguei e fiquei esperando que ele dissesse ao que vinha. Afinal, foi meio envergonhado que ele conseguiu falar.

  - Como o senhor pode imaginar, padre, eu me apaixonei por ela.

  - Uma reação muito inteligente, doutor. E ela? Como é que vê isso?

  - Mais ou menos. - Ele suspirou. - Vejo que ela gosta de mim... mas o trauma... ela... bem, ela acha que está arruinada para um homem. De uma certa forma, ela está mesmo, mas não da maneira como imagina. Se não conseguir sair de sua depressão, ela jamais poderá casar-se. E é aí que entra o favor...

- Seus olhos brilhavam intensamente. Ali estava um jovem perdidamente apaixonado. - Há um psiquiatra que é o melhor de todos no Meio-Oeste quando se trata de problemas como este. Ele tem uma lista imensa de pacientes. Fiquei sabendo que o senhor o conhece e então... a Mônica simplesmente adora o senhor, e então eu pensei que...

  - É o Herb Strauss?

  Apanhei o telefone em cima da mesa e disquei. O Tommy era uma versão italiana do Herb, só que tinha os cabelos mais negros, a pele mais clara, um cabeludo corpo de atleta com ombros muito largos.

  - Herb? Aqui é o Kevin. Preciso de um favor seu. É uma moça chamada Mônica Kelly que foi muito maltratada pela gangue. Ótimo. O Dr. Varco vai procurar você. As sobrancelhas do médico estavam mais altas do que o teto da capela na universidade. Falou titubeando:

  - Muito obrigado, padre. A Mônica ainda não se decidiu se quer mesmo ver um outro especialista de cucas. Houve uns lá no hospital que foram pouco delicados com ela. Quando souber que se trata de um amigo seu, ela vai ter confiança nele.

  Naquela noite eu senti-me um tanto deprimido.

 

  7 de maio Ellen querida,

  vou falar com você com a máxima franqueza. Você precisa deixar de agir como uma burrinha, e deve fazer as pazes com a Igreja.

  A fé não foi culpada pela embolia do Tim, não foi ela que fez de sua mãe a porcaria que ela é, nem tampouco é a culpada pela fraqueza dü seu pai. Também não foi ela quem lhe pespegou os quatro filhos antes dos trinta anos. Você sabe muito mais do que eu a respeito da psicologia, e portanto sabe também que todos os nossos problemas estão bem dentro de nós. Se a sua vida resultou naquela trapalhada, isso foi porque você assim o quis. E se você deu um jeito nela, em parte, foi porque você quis, realmente, fazê-lo. Eu não estou ligando a mínima a respeito de suas relações com a Igreja, a não ser porque sei que você precisa dela e também a deseja muito, e você também sabe disso, Nenhum de nós pode, realmente, jamais se livrar da Igreja. Ela era uma parte muito importante em nossas vidas quando éramos crianças e adolescentes. É possível que a gente não faça tudo que ela manda, mas nós sempre recorremos a ela na hora da necessidade.

  Perdoe-me, Ellen, se estou gritando com você. Eu pensava que já tinha desistido disso há muito tempo. Fiquei furiosa com a sua última carta. Você não precisa se atormentar, principalmente a respeito de religião. Deixe o Kevin fora disso. Ele é apenas uma distração.

  De qualquer forma, eu rezo todas as noites para a Madonna. O pessoal daqui diz que ela sempre atende às orações quando a gente pede alguma coisa para os outros. Sendo assim, quero ser franca, e você fica avisada de que tem uma Madonna italiana que não tira os olhos de cima da sua pessoa.

  Lembranças para o Herb e beijos nas crianças, Mo.

 

  Patrick Henry Donahue estava em seu quarto parcamente mobiliado aa reitoria da catedral. Ele vestia uma camisa branca sem colarinho com punhos franceses e que, claramente, tinha sido feita sob medida. Estava mais magro, parecia mais alheio e gasto e seus olhos já não tinham o mesmo brilho de antes. Dei-lhe os parabéns pela sua ótima atuação no comício. Seus olhos brilharam só por um momento. Quando lhe falei sobre o recado de Willewski, ele ficou branco como a camisa que vestia.

  - Invoco Deus como minha testemunha, Kevin - ele começou, e a sua voz tremia - como a culpa não é minha. O mesmo está acontecendo em todo o país. Todos agem como se o dinheiro fosse deles para fazer com ele o que bem entenderem. Hospitais, asilos de velhos... milhões e milhões entrando pelo cano sem que ninguém saiba. Acham que por serem bispos e pastores podem fazer o que bem entenderem, podem mentir e podem roubar, e nós somos obrigados a lhes dar cobertura para proteger a Igreja. Confesso que procurei dar-lhes cobertura, mas nunca fiquei com um único centavo para mim.

  - Eu sei disso, Pat... - Estiquei-me colocando os pés em cima de um rico sofá otomano. - Mas você assinou um monte de cheques. Isso é o suficiente para fazer com que o pessoal do Governo desconfie. O que é que você sabe ao certo?

  Apesar do barulhento condicionador de ar, o seu rosto estava coberto de suor. Suas mãos tremiam. Ele estava precisando de um drinque, embora fossem apenas onze da manhã.

  - Eu sei que há alguma coisa por aí. O Bernard e a Sally tomam conta do escritório. O cardeal não me dá a mínima atenção. É como se eu não existisse... - Sacudiu a cabeça num movimento de desespero. - Eles estão levando uma vida muito acima do que ganham em seus salários. Creio que jogam nas corridas. Não vejo maneira alguma para conseguir provas. Não sei o que fazer, Kevin. Já rezei pedindo a Deus que me oriente.

  Eu pensei comigo mesmo. Será que ele não pode fazer o que é certo sem.' ter a Maureen para ajudá-lo?

  - O Coronel acha que estão alterando os cheques e que há alguém do banco por dentro da jogada - eu disse. - Você também assina os cheques para a caixa pequena?

  Você examina-os quando eles são devolvidos com os extratos?

  - Eu ainda sou o encarregado do controle. O Dan... o cardeal não despede ninguém. Apenas retira-lhes as atribuições. Eu assino tudo, mas a Sally não me mostra os cheques pagos quando eles voltam com os extratos.

  - Na primeira vez que lhe derem um cheque para assinar, para a caixa pequena, ligue para mimi. Dê uma desculpa qualquer ao O'Keefe antes de lhe entregar o cheque e tire um xerox. No dia seguinte, de manhã, iremos ao banco. O seu presidente é amigo do Coronel. Nós poderemos pegar o cheque já pago sem que eles se dêem conta.

  Tiraremos cópias. Depois colocaremos o cheque de volta nos arquivos da arquidiocese no banco. Aí já teremos as provas e eles de nada saberão.

  - E o que é que eu vou fazer com as provas, Kevin? Ele sacudiu a cabeça completamente desanimado. - O cardeal não admite queixas contra Sally ou Bernard.

 - Vá ao delegado e peca-lhe que mande um visitador. Eu falava-lhe com severidade ao mesmo tempo que pensava comigo mesmo o que teria acontecido com aquele orador confiante do comício. Aquilo era mais um compartimento na sua vida.

  - Não posso fazer isso, Kev. O cardeal saberia logo no dia seguinte. O delegado jamais aceitaria a prova e, ainda por cima, ficaria furioso. Você quer ir em meu lugar?

  Aquele era um outro ricochete da bola batendo na boca de cesta. Mo tinha razão. Eu teria sempre que ajudá-lo a encestar.

  - É claro que irei, e depois irei também a Roma se for necessário. Será que o Martinelli...

  - Não, não! - ele levantou as mãos horrorizado, - O Tonio é muito chegado ao cardeal. Você teria que falar com o Benelli. Ele é o subsecretário de Estado.

  - Já ouvi falar nele. - Eu já estava impaciente.

  Na tarde da sexta-feira seguinte Pat telefonou-me às quatro e meia.

  - Estou numa cabine telefónica, Kev. Não sei se a Sally escuta os meus telefonemas. Assinei um cheque de cinqüenta dólares para a caixa pequena esta manhã. O Bernard ficou muito zangado, mas eu demorei o bastante para poder tirar um xerox. Espero que você saiba o que está fazendo. Eu acho... eu acho que a Máfia está na jogada.

  - Mas claro que está, com todos os diabos, Pat.

  O Coronel, felizmente, ainda não tinha saído para o fim de semana. Ele ia falar com o presidente do banco e depois me telefonaria. Dentro de dez minutos estava falando comigo.

  - Marquei uni encontro para você e Pat, no meu escritório com o Murphy, às dez horas. Você tem as chaves e então chegue mais cedo. Eu já providenciei com uns amigos... para que o Pat tenha uma proteção discreta durante vinte e quatro horas. Se você estiver de cardo, eu vou avisar ao Willewski.

Na manhã seguinte, um Cornelius Murphy, pálido como cera, estava comparando o seu xerox de um cheque de cinco mil dólares com o xerox do outro que o Pat assinara de cinqüenta dólares.

  - Está muito malfeito - ele estava assombrado. - Eles devem andar fazendo isso desde muito para se mostrarem assim tão confiantes. Tenho a certeza de que há gente minha envolvida. Isso deve andar por centenas de milhares, senhor bispo...

  - A mim parece que chega ao milhão, ou mais!

  - O que vai fazer agora, senhor bispo? - Murphy estava nervoso. - Acha que devemos começar já uma investigação?

  - Acho que não, Sr. Murphy. Será melhor investigar discretamente, mas tenha cuidado. Temos que ser muito cautelosos do nosso lado para podermos conseguir todas as provas necessárias. Dê-me... uma semana, mais ou menos. - Falava olhando para mim como se pedisse a minha aprovação.

  Eu sacudi a cabeça discretamente.

  - Muito bem, senhor bispo - Murphy estava preocupado.

  - Nós vamos pôr isso tudo em pratos limpos. Note bem minhas palavras.

   Eu pensei com meus botões. Contanto que não acabemos todos lá no fundo do lago com um pijama de cimento.

 

  O Arcebispo Raefaelo Crespi não se mostrava interessado. Deixou-me na sala de espera da Delegação Apostólica durante mais de uma hora, o que era um velho truque eclesiástico para colocar a gente em seu lugar. Visto do lado de fora, o edifício da Delegação era parecido com todos os outros que ali se enfileiravam como embaixadas.

Por dentro, ele se parecia mais com uma reitoria ou convento em ponto grande, com os mesmos retratos de papas, os mesmos tapetes caros, mas feios, e o mesmo mobiliário heterogêneo e desconfortável.

  Afinal Crespi apareceu, com o rosto vincado mais profundo dó que de costume. Ignorou a mão que lhe estendi.

  - Eu não costumo receber padres que não sejam bem-vistos por seus cardeais - disse com entonação bem desagradável.

  Ele era baixo e gordo, e considerava a sua nomeação para Washington como um prêmio por uma carreira de serviços leais e uma oportunidade de voltar para casa em Roma para o chapéu vermelho e uma boa fortuna para ele e a família. O delegado sempre recebia presentes por ocasião da nomeação de novos bispos e também quando se instalavam, desde que estivesse presente. Só que ele arrumava as coisas de forma que estava sempre presente em quase todas elas.

  A sua figura atarracada, pele morena e testa estreita, faziamme pensar no estereótipo do mafiosa. Sem querer, fiquei a imaginar se ele seria parente do Dom o "Morto".

  Contei-lhe o que sabia e ele nem mesmo se deu ao trabalho de esconder seu ceticismo. Entreguei-lhe as cópias dos cheques, e ele quase não as olhou. Entreguei-lhe as cartas de Murphy e de Willewski que ele nem mesmo olhou.

  - Senhor arcebispo, se não acredita em mim, tudo que tem a fazer é pegar no telefone e falar com o Sr. Murphy ou o Sr. Willewski.

  - E por que iria eu fazer isso? - Ele gritou. - Tudo isto é um absurdo. Quem é este Murphy? Quem é este Willewski? O cardeal não me falou nada sobre isto.

  E por que irei eu levar a sério um padre desacreditado como você é? Por que devo eu acreditar nesta fábula ridícula? Estou perdendo tempo com você.

  - Levantou-se dando por encerrada a audiência.

  - Dentro de menos de um mês, senhor arcebispo, o Procurador dos Estados Unidos vai iniciar uma investigação. O Cardeal O'Neil e o Bispo Donahue vão ser intimados a comparecerem diante de um tribunal. O Bispo Donahue poderá ser indiciado. Eu íhe prometo que o próprio Papa vai ficar sabendo que o senhor se recusou a dar um simples telefonema para obter a confirmação do que eu lhe dizia.

  Crespi hesitou. Via o seu chapéu vermelho em perigo. Olhouine com atenção. Seria eu um louco? Era bem provável.

  - Você está suspenso como padre... - e ele esticava o beiço com desprezo.

  - Nada disso, senhor arcebispo. Aqui está a minha ficha. Olhe-a bem. - Apresentei-lhe a minha pasta.

  - Você poderia ter escondido o documento da suspensão. - Ele acenou com a mão afastando-a. - vou transmitir esta conversa para Roma. É possível que eles queiram fazer alguma coisa. Eu, por mim, recuso-me a levá-lo a sério. Agora, peço-lhe que me desculpe, - Levantou-se e saiu da sala.

  Ele encontrara a solução. Chutava a bola para os escalões superiores. Dessa forma, não poderia ser censurado se alguma coisa não saísse certa. O seu chapéu vermelho estava garantido.

  Uma chuva com vento varria a Avenida Massachusetts quando saí da Delegação. Antes de entrar num táxi já a minha roupa estava encharcada. Crespi certamente iria falar com O'Neil que, por sua vez, abriria o bico com o O'Keefe. Antes do anoitecer já Dom, o "Morto", saberia de tudo. A vida de Pat poderia estar em perigo. Eu sentia-me inquieto à medida que o táxi se arrastava na direção do Statler embaixo de chuva e na hora do rusli em Washington.

  Logo que cheguei ao meu quarto, ainda molhado até os ossos, dei o primeiro telefonema.

  A reação do Coronel foi a que seria de esperar.

  - Que sacana! E o que você vai fazer agora?

  - Não tenho outra escolha. Já fiz minha reserva no aeroporto de Dulles de onde partirei dentro de três horas. Amanhã de manhã estarei em Roma.

  - Será que vão te receber?

  - Telefonarei para a Mo. Estou certo de que ela dará um jeito. .. - Eu não tinha tanta certeza assim, mas era o meu único trunfo. - Será que você pode reforçar a guarda para o Pat? E para a Mônica também. O tal de "Morto" pode querer divertir-se novamente.

  - Deixe comigo, meu filho. Quem me preocupa é o casal O'Keefe. Quando se sentirem encurralados, só Deus sabe o que poderão fazer.

  - Eles têm vivido perigosamente tanto tempo que, a esta altura, já se devem julgar invulneráveis.

  - Espero que você esteja certo, Kevin. - A voz do Coronel não mostrava que ele estivesse muito convencido.

  Pedi a ligação para Roma e tirei fora a roupa molhada. Estava ainda no chuveiro quando o telefone tocou.

  - Alô... - A voz de Mo era sonolenta e confusa.

  - Eu preciso falar com o Giovanni Benelli amanhã à tarde. É um caso de vida ou morte. Diga-lhe isso, e diga-lhe também que há três milhões de dólares em jogo.

  - Kevin? É você mesmo, Kevin? - A voz dela continuava empastada.

  - Continuo sempre agüentando os rebotes da bola, Mo. Benelli, amanhã na parte da tarde. Chegarei no vôo 890 da TWA. - Ao lado do telefone na mesa já havia água escorrendo.

  - É mais fácil conseguir uma audiência com o Papa do que com o Benelli...

  - Se alguém pode conseguir isso, esse alguém é você, Mo.

  - vou tentar. Você quer ficar comigo ou quer que faça uma reserva no hotel?

  Eu nem hesitei. Afinal de contas, que diabo, ela não era minha amante.

  - vou ficar com você, Mo. Quer ir buscar-me no aeroporto?

  - Claro. Tenha cuidado, Kevin.

  Meu coração sossegou quando a sanfona no aeroporto esticou-se na direção do 747.

  No avião, junto comigo, estava John Mikolitis, um rapaz que morava na Rua 67 com Califórnia e que estivera na segunda turma do nosso time quando tiramos o campeonato da cidade. Ao contrário de Willewski, ele parecia muito bem-disposto, embora já escasseassem os seus cabelos louros.

  - Estou na Embaixada em Roma. Vim para assistir ao enterro de minha avó. Era uma mulher maravilhosa. Imagine que escapou dos cossacos atravessando a fronteira correndo quando tinha só dezesseis anos.

  - Acho que, hoje em dia, isso seria bem mais difícil. - Eu jantara e agora estava bebericando um drinque.

  - É mesmo... - Ele esticou-se contra um lugar vazio à nossa frente.

  Só para começar uma conversa, perguntei-lhe o que fazia na Embaixada.

  - Trabalho para o Governo... - O seu rosto redondo tornou-se um pouco tenso.

  - Você é um dos tais...

  - Alguma objeção?

  - Não de minha parte, John.

  - O Pat poderia talvez... - O rosto ficou mais tenso ainda.

  - Tudo dependeria da pessoa com quem estivesse falando. Ele falava a favor ou contra a Companhia com a mesma veemência. A palavra é mesmo Companhia, não é?

  - Em alguns romances policiais.

  Eu anotei a informação. Quem sabe quando alguém1 pode ter necessidade de um contato com a CIA na Via Veneto?

  Eram precisamente oito e meia da noite seguinte quando entrei no amplo gabinete do Arcebispo Giovanni Benelli que era, tecnicamente, subsecretário de Estado quando, na realidade, era o chefe do gabinete de Paulo VI. Eram oito horas quando Mo me deixou no pátio de lajes, onde mereci a honra de uma continência especial do bonito guarda suíço. Unia série de funcionários levou-me de uma ante-sala para outra. Benelli escandalizava o estilo do Vaticano porque trabalhava até mesmo nas horas de sesta, e muito mais ainda porque continuava trabalhando pela noite afora. Creio que o escândalo maior era a sua paixão pela pontualidade, uma coisa inédita na Cúria.

  A sua mesa de trabalho, de nogueira, estava limpa como a de Willewski. Não havia decoração nas paredes. A cadeira que me apontou, num gesto mudo, era bem mais confortável do que aquela (que o Governo dava ao Harry. Giovanni Benelli era quase inteiramente calvo. Seus olhos castanhos eram luminosos e inteligentes e a sua postura era tensa como se fosse a de uma mola em espiral. As mãos, cruzadas em cima da mesa, na sua frente, pareciam estranhamente passivas em comparação com o resto do corpo que irradiava uma tremenda energia. Giovanni Benelli era uma carga de explosivo pronta a deflagrar.

  Não houve preliminares.

  - Quero ver seus documentos, padre. Monsenhor Crespi já imaginava que o senhor viria a Roma.

  Eu levantei-me e atirei tudo em cima de sua mesa sem fazer nenhuma cerimônia, o que me deixou um tanto amedrontado.

  - Aqui estão os xerox dos cheques, a carta de Harry 'Willewski, a carta de Cornelius Murphy, a minha ficha oficial, sem nenhuma notificação de suspensão... Tinha a esperança de estar me mostrando tão decidido como me sentia.

  - O que o senhor acha de Monsenhor Crespi? - Ele usou o mesmo Tomde voz que o meu.

  - Monsenhor Crespi é um tolo. Um telefonema seu me teria poupado esta viagem, teria poupado o tempo que está perdendo comigo e teria evitado um embaraço potencial para a Igreja. Também pode acontecer que uma ou duas vidas estejam correndo perigo.

  Ele olhou-me fixamente durante um momento e depois pegou nos documentos. Examinou com cuidado os cheques e seus respectivos xerox, leu e releu as duas cartas, passou os olhos na minha ficha.

  - Então... o grande Meyer gostava muito do senhor.

- Nunca consegui descobrir a razão...

  Enquanto olhava os cheques, mais uma vez ele resmungou:

  - Os opostos se atraem. Mas que falsificações grosseiras! Idiotas! Idiotas!

  - Quais são os idiotas a que Vossa Excelência está se referindo?

  Nesse ponto fui agraciado com um dos famosos sorrisos de Benelli... um sorriso sincero contagioso que desarmava qualquer um.

  Neste caso, padre, a todo mundo, menos o senhor e eu.

  Já eu tinha mais uma vez cuidado do rebote.

  Ele tornou a arrumar todo o material bem direitinho.

  - O senhor acha que nós não sabemos o que se passa em Chicago? Acha que não sabemos o que há com o seu cardeal? Acha que já não descobrimos nosso engano?

Sabe que o idiota tentou um dia dar-me um estipêndio de mil dólares por uma única missa? Será que eu tenho cara de ser um homem capaz de aceitar essa espécie de suborno? O senhor pensa que nós não sabemos que o seu prefeito escamoteou uma ordem de prisão contra ele por dirigir embriagado? Pensa talvez que ignoramos tudo? - As suas perguntas vinham como uma saraivada de metralhadora.

  - Eu não sei até onde o senhor arcebispo sabe. De qualquer forma, O'Neil não foi um engano seu.

  - O senhor precisa entender, padre - os seus dedos tamborilavam na mesa lentamente - Que Sua Santidade ficou terrivelmente magoado quando ele foi enviado para Milão pelo Papa Pio XII. - As mãos fizeram um pequeno gesto antes de voltarem para a sua posição. Eram mãos muito pequenas.

  - Enquanto isso - eu disse rudemente - milhões de dólares são roubados, vidas são arruinadas e Chicago se transformou num deserto eclesiástico só por causa da sensibilidade do Papa a respeito dos sentimentos do cardeal. Ele se preocupa com um psicopata sem se importar com o resto de nós.

  Em lugar de explodir, como eu esperava que fizesse, ele abriu uma pasta onde estavam os meus documentos e a minha ficha.

  - Ora, ora. É como eu pensava. O senhor é psicólogo. E este é o seu diagnóstico. E o meu também. Devo dizer... Muito Dem, padre, o que vamos agora fazer sobre o problema do dinheiro? Devemos cuidar disso em primeiro lugar.

  - A primeira coisa a fazer seria nomear o Bispo Donahue como visitador financeiro com poderes para contratar uma firma de auditores e iniciar uma investigação. Ele cuidará de fazer uma limpeza geral na parte administrativa da Chancelaria. Ele deverá despedir o casal O'Keefe. As nomeações não devem ser tornadas públicas. Sempre pode haver alguma indiscrição. Assim parecerá que as irregularidades foram logo descobertas pela atividade do Bispo Donahue. Não se deve permitir que o cardeal tenha acesso ao dinheiro outra vez.

  - O senhor acha - Benelli sacudiu a cabeça pensativo que essas instruções devem ser dadas claramente e em detalhe ao Monsenhor Donahue no documento que lhe será enviado?

  - Da maneira mais clara possível, e tudo deve seguir logo amanhã.

  - vou fazer o que for possível. - Ele franziu a testa. Diga-me, padre, será que há em Chicago alguma firma de auditoras que se encarregue de administrar as finanças?

  - Arthur Anderson, é a melhor que há. - Eu respondi logo. Ele levantou-se e enfiou as mãos na faixa vermelha.

  - Muito bem, volte aqui amanhã à mesma hora, padre. Não prometo nada, mas farei o que for possível.

  Veio até a porta comigo e ali, pela terceira vez, agraciou-me com o mesmo sorriso. Apertou-me a mão. Depois disse com simplicidade.

  - Somos-lhe muito gratos, padre.

 

  Não quis jantar com a Mo no Tre Scalini e preferi voltar ao apartamento. Sheila já estava dormindo. Naquele mesmo dia eu tinha tentado abraçá-la, mas ela mostrara-se fria e distante. Era uma pobre meninazinha solitária e infeliz.

  Eu perguntara ligeiramente a Mo se havia algo de errado com ela.

  - Sente falta do Pat. Ele tinha um jeito incrível com crianças. Creio que me culpa por tê-lo perdido.

- Ela falava sem encarar-me.

  Eu bebericava o café-expresso e comia o bolo ao mesmo tempo que ia contando a Mo tudo o que acontecera, do princípio ao fim. Ela ouvia atentamente, e o seu rosto, geralmente expressivo, mostrava-se imóvel como era o de Ellen antigamente.

Quando terminei ela disse confiante:

  - O Benelli vai cuidar de tudo. Ele é inteligente o bastante para saber que você deve dar ao Pat instruções detalhadas. Sacudiu a cabeça. - Agora, pelo menos, o Pat já ficou sabendo quem é o O'Neil. O que acha você que eles vão fazer?

  - A minha opinião é que darão ao O'Neil um cargo insignificante por aqui e depois então, quando o Pat já tiver arrumado tudo, colocarão lá um outro arcebispo.

  Depois, passados alguns meses, darão ao Pat uma boa, mas pequena diocese. Depois disso, então, o céu é o limite, na minha opinião.

  Mo tinha tirado o seu vestido de verão e estava agora com um robe branco, transparente mas muito discreto, cuja gola segurava com os dedos que me pareceram muito magros.

  - Isso seria a coisa mais sensata que poderiam fazer, mas a gente nunca pode ter a certeza nesta cidade. Como é que você aoha que ele está agora, Kev? - Ela apertava bem a gola com os dedos, temendo, talvez, que a vista de sua garganta me tentasse.

  Espetei mais um pedaço do bolo antes de responder.

  - Eu não gostaria de ter Giovanni Benelli como um inimigo.

  - Eu estava falando do Pat. - Ela sorriu com tristeza. Havia apenas uma luz ali naquela sala elegante e isso resultava em sombras sutis nas cadeiras e na mesa. Nossas silhuetas pareciam figuras clássicas nas paredes. O barulho da rua, perto da Piazza Farnese, parecia estar vindo de quilómetros de distância. Eu passei a mão na testa.

  - Depois de todos esses anos, eu não sei o que dizer. Sei que sou duro com ele e preciso ter muito cuidado com o que digo porque estou por demais condicionado para ser cínico quando falo dele. Ele vem desempenhando bem suas funções em circunstâncias bem difíceis. No que diz respeito aos problemas públicos, ele tem sido mais sincero e valente do que muita gente. É ele quem ainda mantém unida a Igreja em Chicago. Está agindo com coragem nessa trapalhada financeira, sabendo que sua vida pode correr perigo.

  - Mas. . . - Ela soltou as mãos da gola deixando ver uma bela garganta.

  - Não tem nenhum mas. . . - Eu dei de ombros e enchi a minha quarta xícara de chá.

  - Você pensa que ele é um cabeça oca, um imprevisível e, talvez, até mesmo uma pessoa sem consciência, como O'Neil, não é mesmo? Você acha que falta alguma coisa na sua personalidade, especialmente porque ele nunca observou muito o celibato, não é mesmo? - Ela até parecia o Coronel interrogando uma testemunha.

  - Todo mundo tem alguma coisa faltando em sua personalidade, Mo, e a minha não escapa. No cerne de Pat deve haver alguma coisa boa. Eu sempre fiz tudo para ajudá-lo.

  E você está apaixonada por ele.

Ela apanhou um lenço de papel e começou a chorar baixinho.

  - Eu sei que estou completamente livre dele mas, mesmo assim, as saudades são terríveis.

  Achei que tinha chegado a hora de lhe falar sobre a nova casa de Ellen no lago, num ambiente seguro, e também fazer algumas perguntas discretas sobre suas atividades na pintura, coisa com que ela se ocupava agora muito pouco.

  Quando ia subir para meu quarto, ela desejou-me boa-noite com um beijo cheio de ternura, e depois disse baixinho:

  - Você é maravilhoso, Kev.

  - Gosto muito de receber elogios assim. - Retribuí-lhe o beijo.

  Fechei a pó 'a por dentro e despi-me para entrar no chuveiro, mas depois envergonhei-me e abri a chave deixando-a só na maçaneta.

  Na noite seguinte, Benelli esperava-me de pé em seu gabinete no momento exato em que o carrilhão de S. Pedro dava as oito e meia. Ele entregou-me um envelope grande que ainda estava aberto.

  com a mão sempre enfiada na cintura, ele falou efusivamente.

  - Pode ler tudo, se quiser, padre. Contém tudo aquilo que me pediu ontem.

  Fechei primeiro o envelope que estava endereçado a Patrick Donahue.

  - Não é necessário, Excellenza, tenho confiança no senhor.

  - Se, algum dia, quiser vir trabalhar aqui... - Dessa vez o sorriso foi ainda mais aberto.

  - Nós estaríamos brigando o dia inteiro, Excellenza. Rimos muito os dois.

  - Quanto foi o dinheiro, padre? - Ele ficou novamente sério.

  - Na minha opinião, deve andar entre três ou quatro milhões. Estou certo de que o Pat o manterá informado. Vai chegar o dia em que o senhor chegará à conclusão de que o melhor mesmo é não saber a quantia exata.

  Ele sacudia a cabeça com tristeza.

  - Quanto ao outro assunto, padre, vou fazer o que me for possível. Mais uma vez, não lhe prometo nada. O cardeal andou distribuindo presentes para muita gente altamente colocada... Ao dizer isso suspirou de forma expressiva.

  - Eu sei que fará o melhor, Excellenza. - E eu era sincero.

  Pat não perdeu tempo e agiu rapidamente. O casal foi despedido na sexta-feira e os contadores de Arthur Anderson apareceram discretamente logo de manhã, na segunda-feira.

  O Coronel, ainda mais discretamente, instalou-se numa das mesas da Chancelaria. Willewski visitou Pat e logo depois telefonou-me.

  - O sacana virou bonzinho. Está agindo muito bem.

  - Vai indiciar alguém, Harry?

  - Na verdade, Kevin, ainda não sei... - Ele hesitou. Ora, que diabo, você tem o direito de saber. Não queremos indiciálos. Seria mais prejudicial do que bom. De qualquer maneira, eles vão escorregar outra vez, e então alguém, talvez de uma outra jurisdição, vai pegá-los.

  Ele estava querendo dizer que o seu chefe sabia bem que qualquer providência mais enérgica contra alguém que trabalhasse para a Igreja redundaria num tremendo ônus político.

  Dom, o "Morto", porém, não estava satisfeito.

Pat telefonou-me pouco antes do fim de semana do Dia do Trabalho e perguntou-me baixinho numa voz abafada.

  - Você já viu os jornais?

  - Eu tenho andado muito ocupado tentando recuperar o tempo perdido com a viagem e quero pôr em dia o meu trabalho. O que foi que houve?

  - Sally foi espancada, estuprada, cortada, na noite passada. Obrigaram Bernard a assistir. Meu Deus, Kevin, o que foi que nós fizemos? - Ele parecia bem chocado.

  - Nós não fizemos coisa alguma, Pat, mas eu vou fazer agora. Telefonei para o Coronel e disse-lhe o que ia fazer.

  - Você está querendo bancar o Deus, Campeão. . .

  - Se o Governo dos Estados Unidos e o Estado de Illinois não podem proteger o seu povo, então não temos outra escolha, pai. Não é mesmo? - Houve uma pausa.

  - Você está certo, Kevin. Eu não teria coragem para isso. Acho que sou civilizado demais. Isto não é um insulto, Campeão. Há ocasiões em que um pouco de falta de civilização torna-se até necessário. . .

  - E, além disso, ele poderia tentar uma repetição com Mônica. Afinal, foi ela quem apitou pela primeira vez. Nós todos lhe devemos alguma coisa.

  - Você tem toda a razão, Campeão. . . vou mandar dobrar a segurança dela nestes próximos dias.

Durante muito tempo eu fiquei ali sentado e olhando para fora pela janela do instituto. O campus estava deserto. O prédio estava quase vazio. Eu devia ir para o lago e aproveitar o fim de semana. Sabia que não iria. Lutei um pouco mais com meus pensamentos e, afinal, cheguei à conclusão de que, de qualquer forma, eu estava mesmo bancando o Deus e, sendo assim, a minha primeira obrigação era proteger aqueles qtre me eram caros.

  Embora eu tivesse telefonado antes de chegar lá, Mônica abriu a porta de seu apartamento na Rua 53 com alguma indecisão e sem retirar a corrente de segurança.

  Ela parecia cansada e desanimada. Quando viu que era eu seus olhos brilharam. Havia ali um vestígio do sorriso inocente que eu vira no rosto de uma caloura no High Club já fazia muito tempo.

  Ela apertou a gola da mesma forma que a Mo fizera em Roma.

  - Desculpe-me, padre. Fiquei com o Tommy até muito tarde na noite passada, e como hoje é o meu dia de folga, dormi um pouco mais.

  A recuperação do seu rosto estava perfeita. Uma cicatriz quase invisível, aqui e ali, ainda tornava seu rosto mais interessante.

  - Estou vendo que o Tommy se interessa muito por seus pacientes...

  - Ele é o meu Pigmalião. Reconstituiu o meu rosto e o meu corpo e depois se apaixonou por sua obra.

  - Você anda lendo demais para pensar dessa forma. E onde está o chá para o padre?

  Ela voltou logo depois com o chá e bolinhos de chocolate.

  - Quero agradecer-lhe pelo Dr. Strauss, padre. Agora, quando sei que tudo vai dar certo, vejo o mundo de forma diferente.

  Ia haver um casamento 10 Natal e eu teria que cerebrá-lo. Contei-lhe o que tinha acontecido e ela ouviu tudo muito pensativa sacudindo a cabeça. Se quisesse, poderia escrever o seu artigo para o jornal, mas eu lhe impunha certas condições.

  - É preciso que alguém revele tudo isso, padre. E é o que eu vou fazer. vou telefonar para o editor...    - Voltou logo depois. - Ele me disse que vá em frente. Eu lhe prometo que tudo vai aparecer como se o roubo fosse descoberto, muito discretamente, devido ao trabalho do Bispo Donahue.

  O artigo sai; no jornal de domingo e Dom Corso era citado explicitamente COMO o torturador de Sally CTKeefe. Falava nos grandes prejuízos do casal nas corridas e também de haverem sido despedidos da Chancelaria pelo Vigáriop Geral, Monsenhor Patrick Donahue. Mostrava abertamente que o casal fora vítima da gangue de Corso.

  Não havia comentário algum de parte do Bispo Donahue.

  Alguém na Chancelaria Kevin Brennan, para falar a verdade explicara que o Bispo Donahue, tendo sabido do envolvimento do casal O'Keefe com uma gangue de jogadores, não tivera outra escolha, e então despedira-os.

  Não havia menção alguma a respeito do cardeal, como também não havia nenhuma sugestão de que o casal fizesse parte de uma gangue de estelionatários. Mônica não falou dos que tinham sido despedidos no banco porque Kevin nada lhe dissera a tal respeito.

  Afinal, O'Neil recusou-se terminantemente a aceitar sua transferência para Roma, mas Pat foi nomeado para Benton Harcour, Michigan, como bispo da cidade. A turma de Arthur Anderson ficou na Chancelaria, onde não houve mais desvio de dinheiros. O cardeal, no entanto, continuava a vender terras a preços de liquidação e a enviar estipêndios de mil dólares para missas em Roma.

  - Eu resolvi que ficaria ali sentada até que ele me visse - disse Ellen com um sorriso maroto.

  Ela trajava um vestido marrom maternal e estava muito bonita.

  - Estou vendo que posso dar-lhe os parabéns...

Estava ali sentada, bem esticadinha, em meu gabinete, ainda uma noviça, embora fosse uma noviça grávida.

  - Desta vez é muito diferente. Antigamente, eu nunca tinha tempo para saber se queria ou não os outros filhos, coitadinhos deles. Mas este aqui, nós o esperamos nestes últimos dois anos sem que ele se resolvesse a cooperar. Acho que foi bem feito para mim... - Ela falava acariciando a barriga.

  - Eu diria que ele é um cara de sorte. Os gens irlandesesjudeus são duros de roer.

  Ela apanhou sua bolsa de couro trabalhada à mão e tirou dali um livrinho que me ofereceu com alguma hesitação.

  - É uma oferta de paz.

  O livro tinha como título Nutmeg, e sua autora era Ellen Foley.

  Ela explicou-me que o marido achava que aquele era um livro irlandês e, portanto, deveria ter um nome irlandês como autor.

Parecia ser uma coletânea de ensaios cómicos sobre a vida em família.

  - Meus parabéns...

  - Olhe a dedicatória, Kevin.

  Eu a li em voz alta: "Para todos os Brennans." Senti qualquer coisa nos olhos.

  Depois ela falou com alguma complacência. Estava alegre como um passarinho.

  - As primeiras vendas já excederam quinze mil exemplares. Estou instituindo uma bolsa para seminaristas em honra ao Coronel... - Ela hesitou e seus olhos cinzentos estavam sombreados com a preocupação. - Será que ele vai gostar?

  - Gostar? - Eu recostei-me na cadeira. - E você acha que o urso polar não gosta da neve?

  Seguiu-se uma pausa um tanto desajeitada entre nós dois. Então era aquela a razão que levara Ellen a me procurar. Queria dar-me um livro e queria me dizer como iria pagar o que havíamos feito por ela.

  Depois falou muito séria.

  - Eu quero me confessar, Kevin.

  - vou chamar um padre. - Eu levantei-me caminhando para a porta. - Entre na capela e...

  - Você não está compreendendo. Quero me confessar com você. - Logo ajoelhou-se ali na minha frente e eu não tive muita escolha.

  - Abençoe-me, padre, porque pequei... Já faz... Oh Kevin. .. faz quase dez anos... Eu estou com medo. - Segurou-me a mão.

  - Eu também estou com medo, Ellen.

  - Eu creio que a pior coisa que fiz, além de me manter afastada durante tanto tempo, foi... eu cometi o pecado da fornicação com Herb muitas vezes, antes de nos casarmos. Eu o seduzi da maneira mais fria e calculada que podia... Ele não podia escapar. Eu gostava daquilo, Kevin, em.1 parte porque sentia prazer em desafiar a Igreja... - Ela estava de cabeça baixa e eu não lhe via o rosto.

  - Espere um pouco, Ellen. Não creio que você achasse aquilo errado naquela época, e não creio que você ache errado nem mesmo agora. - Ela afrouxou a mão.

  - Eu andava tão confusa e revoltada. Será que você aceita esta desculpa quando digo que andava confusa e revoltada, fazendo coisas que me envergonham agora? - Ela ainda não me olhava de frente.

  - Desde que você não inclua ter obrigado o Herb a fazer as coisas de que se envergonha agora.

  Ela deu uma risadinha. Depois ficou séria.

  - Gasto dinheiro demais com roupas. Sou muito vaidosa. Fico impaciente com as crianças e respondo mal ao Herb. Arrependo-me de tudo isso à noite quando faço as minhas orações.

  - Você reza todas as noites?

  Ela, afinal, encarou-me com os olhos arregalados de espanto.

  - Mas claro que rezo. Não consigo dormir sem dar boa-noite para Deus. Até mesmo quando estou zangada com Ele.

  Fornicação, sedução, impaciência com os filhos e boa-noite para Deus. Sem dúvida ela dava-Lhe boa-noite até mesmo quando ia para a cama e pecava com o Herb.

  - Eu continuo esperando pelo pecado real, o único pecado, Ellen.

  - Eu já disse tudo... - Ela levantou a cabeça.

  - Você não me disse a coisa mais importante de todas. Você estava zangada com Deus e estava zangada com a Igreja, e durante muito tempo pensou que isso podia ficar assim.

  - Não quero tocar nesse assunto...

  - Então não poderá ter a absolvição. - Ela procurou retirar a mão, mas eu não a larguei.

  - Será que nessa sua alma fria como gelo não existe o menor resquício de compaixão?

  - Se você está procurando compaixão, Ellen, vá procurar seu marido e peca-lhe que a apresente a algum psiquiatra que a ouvirá com simpatia. Se quiser a absolvição, pare com a brincadeira.

  Ela deixou de puxar a mão. Ficamos muito tempo em silêncio.

  - Então é só isso que conta, não é? Pois muito bem, Kevin, eu vou lhe contar e você terá que enxugar as lágrimas que vão cair neste seu chão muito duro. Eu culpava a Igreja e Deus por coisas que estavam dentro de mim e de minha família. Eu só via as coisas feias e esquecia-me do Padre Conroy, da Irmã Carolina, da primeira comunhão, das coroações de maio, das festas no clube, da Missa do Galo e de todas as coisas maravilhosas que adoro tanto. Desisti de tudo porque estava revoltada. Achei que a Igreja era a culpada pela morte de Tim. Eu amava-o demais. Não podia salvá-lo, mas achava que a Igreja podia. Até mesmo quando fazia tudo isso eu sabia que estava errada e que, algum dia, eu me ajoelharia no chão diante de você para lhe implorar que me recebesse de volta.

  - E agora já o fez. E a maldita e idiota Igreja lhe diz: "Ellen Foley Curran Strauss, nós, realmente, não nos demos conta de que você fugira porque nós nunca permitimos que você se fosse."

  - Senti como se um imenso peso se elevasse de meus ombros e saísse espiralando pelo espaço.

  Ela encostou a cabeça em meu joelho e chorou. Depois recuperou-se.

  - Então o pior pecado de Ellen era contra a própria Ellen... Por esses e todos os outros pecados de minha vida, eu me arrependo de todo o coração e peço perdão a Deus, e ao senhor, padre, eu peço a penitência e a absolvição. É assim mesmo que a gente fala, Kevin? Eu me sinto tremendamente desatualizada.

  - Está bem assim. - Eu sentia-me relaxado. - E a penitência vai ser bem pesada. Vai ter que rezar um pai-nosso para todos os homens que existiram em sua vida. Para seu pai, o Tim, o Herb, seus filhos, o Pat e eu.

  - Só um pai-nosso? - Ela parecia espantada.

  - Não creio que Deus precise ouvi-lo duas vezes para saber qual é a oração. - Depois disso dei-lhe a absolvição, ou a reconciliação, que é o nome obrigatório atualmente.

  Deixei que minha mão ficasse ainda um instante em sua cabeça antes de ajudá-la a levantar-se.

  - Você batizará meu filho?

  - Claro que batizarei.

  - E também virá jantar conosco de vez em quando?

  - Claro que irei. Preciso conhecer melhor os meus filhos.

  Eu disse aquilo sem saber bem quantas vezes lá iria.

  - Puxa vida, Kevin, como me orgulho deles todos! - Ela vibrava em seu amor materno.

  - Os pais são ótimos.

  Houve um momento de silêncio sem nenhuma angústia, mas apenas tranqüilo, em que pensamos ambos em Tim.

  - Muito obrigada. - Ela estava alegre agora.

  Já estava na porta quando se voltou bruscamente. Os olhos estavam muito abertos e angustiados.

  - Não quero ir-me embora sem lhe pedir muitas desculpas, Kevin. Tem que me perdoar por ter sido uma verdadeira pestezinha com você... - Aquela frase mágica apagava toda uma década de ira.

  - Realmente acho que você tem direito a uma licença especial para ficar zangada comigo sempre que assim o desejar. Eu lhe perdôo, Ellen, esperando que você também já me tenha perdoado.

 

  27 de dezembro Querida Mo,

  Será que você pode adivinhar quem foi a nova mãe que, com um bebé no braço e cercada pelos seus outros quatro filhos, caminhou até o altar na Missa do Galo em St. Luke para se comungar pela primeira vez depois de passados dez anos? E com o marido judeu sorrindo orgulhosamente como se houvesse conseguido converter alguém?.

  Agora já me reconciliei com a Igreja e com Kevin, embora nenhum dos dois queira reconhecer o fato de termos estado zangados todo essse tempo. Aquilo foi como se eu já houvesse comungado na antevéspera.

  Eu amo Kevin com toda a minha ternura, e já não me sinto zangada com ele. Ele ainda sente medo de mim, e eu acho que isso só passará quando eu me oferecer para ir com ele para a cama, e que ele tenha então a oportunidade para me dizer não.

  De qualquer maneira, eu vou ter um Ano-Novo muito feliz. Estou começando um outro livro. Eu sei que devo a você uma grande parte de minha felicidade. Será que existe alguma maneira para eu lhe fazer também feliz no Ano-Novo? Por favor, dê-me a oportunidade se isso for verdade.

  Dois dos meus garotos estão doentes. Excessos do Natal. Portanto, desculpe-me por esta carta tão curta.

  Com amor,  ELLEN.

 

  P.S. Se o Kevin dissesse sim, fico a imaginar o que eu faria.

 

  Quando voltava de minhas férias de Natal com a família, no Arizona, eu não me sentia feliz ali sentado no avião, e essa condição não melhorava com a presença de dois jovens jesuítas sentados perto de mim em vestes sacerdotais, um fenómeno bem raro para jesuítas nos dias que correm. Eram ambos de uma província da Costa do Pacífico e estudavam psicologia, um em Harvard e outro em Yale. Eu ainda estava em trajes esportivos e eles não indagaram nada a meu respeito, empolgados como estavam com a sua missão para a renovação e atualização da Igreja. Logo descobri que eram behavioristas e discípulos fanáticos de B. F. Skinner.

  - Como o senhor sabe - um deles informou-me, com uma entonação apropriada para uma aula de calouros - a Igreja tornou-se irrelevante porque todo o seu reforço positivo é programado para a outra vida, ao passo que o negativo cuida desta vida. Só nos prometem a alegria depois da morte.

  - É isso mesmo - o outro confirmou. - Somente quando introduzirmos mais reforços positivos neste mundo e esquecermos o que vem depois, é que as pessoas vão dar-nos atenção outra vez.

  - Sim, sim. - Eu estava deixando que eles me vissem como um leigo. - Mas o que é que acontece com a sua tabela de reforços positivos e negativos depois da... da Ressurreição?

  - Achamos que essa espécie de reforço é irrelevante, - Os dois tiveram um risinho sardónico.   

  - O mito da Ressureição já está fora de moda. Obviamente, ele representa a espécie de renascimento psicológico que acontece quando a mistura certa de sanções positivas e negativas resulta num comportamento satisfatório como uma substituição para o comportamento insatisfatório. Não, agora já não precisamos mais da vida que vem depois da morte.   

  - Quem falava era o de Yale.

  - Quer dizer que não há céu? Não há Ressurreição?

  - Mas claro que não. - Agora a palavra estava com o de Harvard. - Aliás, a maior parte das pessoas já não acredita mais nisso.

  - E como é que os psicólogos católicos ainda não descobriram isso? Esse tal de Brennan...

  - Ele não deve ser levado a sério - o de Yale interrompeume. - Não tem a menor reputação na profissão.

  - Quase se pode até dizer que ele nem é padre - disse o outro. - Ele não está interessado na Igreja. Só pensa em ajuntar dinheiro.

  - E também é muito difícil trabalhar com ele. Quase não tem amigos.

  - É mesmo?!

  O avião continuava em sua rota junto com a lição que eles me davam. Foi um alívio quando saltei em Chicago e eles seguiram para Boston.

  Antes de desembarcar, contudo, pensei em tirar uma pequenina forra.

  - Foi um prazer a conversa que tivemos, padres. Estou tão interessado em tudo que disseram que até mesmo vou mandar uma cartinha para o seu provincial congratulando-me com ele pela educação que dá a jovens progressistas e brilhantes como vocês. Estou certo de que ele estará muito interessado em tudo aquilo que me disseram.

  Em lugar de ficarem apavorados, eles ficaram muito satisfeitos.

  A guerra continuava a devastar o Vietnã. Os Colts ganharam dos Cowboys no Super Bowl. Descobriram que nós tínhamos invadido o Laos e o Camboja. A violência estava mais forte do que nunca na Irlanda. E eu continuava ali sentado em minha toca desanimado, descobrindo que a Igreja era uma puta que estraçalharia o meu coração todas as vezes que eu tentasse amá-la. Os cabelos de minha mãe já estavam tão brancos como os de meu pai, e os meus já tinham também seus laivos encanecidos.

  No meio de todas as tristezas, Maureen, cada vez mais adorável, veio visitar-me no porão do Centro Católico onde eu tinha o meu gabinete e onde o novo capelão permitia que recebesse meus amigos.

Ela sentou-se, cruzou as pernas e acendeu um cigarro.

  - É um favor enorme o que eu venho lhe pedir, Kevin. Gostaria que olhasse pela Sheila enquanto eu estiver fora.. . Eu fazia o possível para não olhar as suas pernas, ao mesmo tempo em que pensava no tempo que ela devia levai- para se maquilar daquele jeito.

  - Foi a sua gente que olhou a criançada dos Brennans durante a guerra, Mo. Claro que será um prazer olhar pela Sheila. Mas mesmo se não fosse assim, nós ainda estaríamos devendo isso, pelo menos.

- Exatamente o que disse o Coronel. - Ela fez uma careta com o nariz. - Vocês dois são vinho da mesma pipa. De qualquer forma, a Sheila precisa ficar aqui, longe de mim. Voltarei com freqüência para cuidar das minhas exposições. Creio que ela não vai sentir muita falta... - O seu rosto enuviou-se. - E eu ficarei mais tranqüilo sabendo que você está olhando por ela...

  - Acho que devia ser discreto e não perguntar. . . mas você esteve com Pat?

  Ela esticou o braço para a bolsa, mas logo se arrependeu. Não queria fumar tanto em minha presença.

  - Não. Não estive. Sei que ele anda muito ocupado em sua diocese e eu ando muito ocupada com a minha nova vida. Está tudo acabado, Kevin. Já sou uma moça crescida.

  E tenho também um homem fisgado que não precisa de atenções maternais.

  - É Sloane? O protestante?

  - Da cama de um bispo para a de um WASP. . . - Ela deu uma risada. - Eu sempre fui imprevisível, Kevin.

  - E também maravilhosa. . . - Estava com inveja do Sloane Adams, que era das Relações Exteriores.

  Ela beijou-me e penetrou no nevoeiro do inverno. Eu cruzei os dedos.

  Nunca me faltarajm favores para eu prestar. Em março foi um antigo amigo dos meus anos de seminário, Casey Zenkowski, rotundo, calvo e folgazão.

  - Puxa vida, Kevin. Sua aparência é horrorosa. Magrela e oco.

  - É excesso de exercício.

  - Essa não! - Ele acendeu um charuto e ficou a admirá-lo. - Este aqui é Havana legítimo. - Ele tirou algumas tragadas com ar satisfeito. Era o pastor de uma paróquia polonesa que se transformara em espanhola. Rezava três missas aos domingos. Fazia uma prédica em polonês, uma em espanhol e outra em inglês.

  - E como vão os outros, Casey?

  - Mas que outros, Kevin? Os únicos que sobraram são o Nick e eu. Ninguém se exilou. O Nick está cansado. Leva as coisas das encíclicas papais muito mais a sério do que nós. Ultimamente ele vem se lamentando e achando que a Igreja vai mal e como é possível que nos mande caras como o O'Neil.

  - Nós não devíamos permitir que eles tivessem tanta força assim, Casey.

  - É isso aí. Então você vai jantar com o Nick um dia desses para animá-lo um pouco?

  - Claro, Casey. E obrigado por me avisar.

O pedido de Casey foi devidamente arquivado para uma futura ação.

  O pedido seguinte para um favor veio bem disfarçado. Era de Patrick Donahue.

  Ele telefonou-me de Benton Harbour propondo-me, com a sua voz aveludada e charmosa, um passeio no seu novo veleiro, St. Brendan, numa quinta-feira em fins de maio.

  Eu não era muito apaixonado por veleiros, mas o calor e a amizade no convite eram irresistíveis.

  O St. Brendan tinha seus nove metros e Pat manobrava-o como se fosse um barquinho de brinquedo dentro de uma banheira, apesar de enfrentarmos ondas de mais de um metro num vento de nordeste de vinte milhas. Saímos da marina de New Buffalo, tresandando a gasolina, nos limites de sua diocese, e descemos o canal em direção ao lago. Segurei o leme enquanto Pat, muito elegante em shorts brancos, andava de um lado para outro manobrando as velas, gritando comandos náuticos que eu não entendia.

  Ele, afinal, veio sentar-se ao meu lado ainda ofegante e tomando o leme de minhas mãos inexperientes.

  - Eu guardo o barco dentro da diocese porque não quero esconder a sua posse. Dou um duro danado durante toda a semana e não quero esconder de meus padres ou de meus paroquianos que preciso relaxar um pouco no lago em algumas tardes.

  - Você tem uma ótima aparência, Pat. - Eu estava todo encolhido dentro do suéten com ou sem o sol quente de maio, eu não sabia como ele podia andar ali nu da cintura para cima, mas era obrigado a reconhecer que era a imagem típica de um jovem atleta saudável e bem disciplinado.

  - A saída de Chicago foi a melhor coisa que podia ter acontecido para mim, Kevin. Livrou-me da maior parte da pressão. Deus bem sabe que não tenho muito tempo livre aqui em Benton Harbour, mas a minha parte espiritual está novamente em perfeita ordem. Rezo todos os dias. Estou fazendo tudo, o que é humanamente possível... - A sua voz foi desaparecendo, e eu sabia que, se olhasse bem em seus olhos azuis, veria lá, novamente, aqueles sinais do medo.

  - Eu sei que você está mesmo, Pat. O pior já ficou para trás.

  - É o que, certamente, espero. No princípio foi muito duro, mas agora já está mais fácil.

  - Eu nunca o vi assim tão feliz. Parece que você encontrou o seu papel. Bispo e capitão de seu barco.

  - Eu acho que me enredo com as mulheres quando são muito fortes as pressões e as responsabilidades. - Ele riu. - Benton Harbour tem a conta certa do que preciso. Se fosse mais... eu estaria novamente encrencado.

  Começamos a viagem de volta, e o meu estômago ainda não se decidira se enjoava ou não.

  - Você não gostaria de uma promoção? - perguntei.

  - Absolutamente. De forma alguma. Nem mesmo Grand Rapids ou Detroit, e muito menos Chicago. Sei que gostam do que eu estou fazendo por aqui e que estou marcado para coisas maiores, mas vou recusar tudo categoricamente. Mesmo se a minha vida ainda durar outros quarenta anos, eu pretendo morrer como bispo de Benton Harbour.

  - Acho que é uma decisão muito sensata, Pat.

- Você me disse um dia que eu devia ficar lá nos Mártires.

  - Ele agarrou-me o braço com força. - E você estava certo. Cada vez que subo um pouco, eu me meto em encrencas. Não posso voltar para lá, mas posso parar de subir e ficar aqui. E é o que vou fazer.

  Eu sabia que ele estava sendo sincero, mas já não tinha tanta certeza se iria pensar assim nos dias seguintes.

  Lá em cima de nós as nuvens em flocos amarelados iam deslizando e a água azul e verde com a espuma branca passava por nós à medida que o St. Brendan deslizava para a praia. O sol e o vento banhavam-nos com uma paz cheia de segurança. Antes de terminarmos a viagem já eu tinha despido o casaco e a camisa e andava por ali cheio de entusiasmo, puxando as cordas... ou os lençóis, conforme me ensinaram a chamá-las. Quando, finalmente, entramos na baía, Pat e eu estávamos sentados ao lado um do outro, na proa, ofegantes, relaxados, felizes e novamente amigos íntimos.

  - Kevin, estou precisando de mais um favor seu. - O seu rosto estava sério e havia um sulco profundo em sua testa.

  - Eu nunca te disse não, Pat.

  - Desta vez, não é coisa muito grande. - Ele riu-se sem muita vontade. - Apague o que eu disse. É muito grande para mim, embora não exija muito esforço de sua parte.

  - Desembuche logo, homem.

  - É a Patsy. Estou preocupado com ela. Tanto quanto eu saiba, o John cuidou bem dela. Creio que a Gina não liga a mínima. Ela vai casar com o Arnold Tansey, que se dá muito bem com o John Júnior. De qualquer maneira, a Patsy vai ficar sobrando. - A sua voz estava tensa. Manobrou com perícia o barco para o seu ancoradouro, dando a marcha à ré no momento certo. Não é a questão do dinheiro que me preocupa. É o que não falta por lá, O que vai faltar é o afeto humano. Ela está na escola com a filha da Mo, a Sheila, que é, realmente, uma menina encantadora. E já me disseram que as duas andam muito juntas com a Caroliné, a filha mais velha de Ellen. Sei também que você é muito chegado a Sheila e a Caroliné, de forma que não lhe seria difícil tê-la sempre de olho...

  - Você adora a menina...

  O barco encostou no píer e parou como se fosse um pássaro de volta ao ninho.

  - Ela é tudo que eu tenho agora, Kevin. Você sabe como a minha família ficou furiosa por eu ter vindo para aqui. Acham que sou culpado pela morte da mamãe, como se fosse possível recusar a nomeação para ficar em Chicago. Quem mais existe neste mundo e que eu possa amar senão a Patsy? Você faz isso para mim, Kevin? - Enrolou a amarra e olhou para mim.

 

  1.° de julho Querida El,

  É apenas um bilhetinho para dizer a você que estarei ai dentro de alguns dias. Preciso tomar algumas providências a respeito de minha próxima exposição, que é a primeira. vou passar um fim de semana com o exibidor em Michiana e depois irei até o lago na semana de 7 de agosto. Eu preciso ver Sheila. As suas cartas são ótimas.

  Você, os Brennans e os MacNeils têm sido uns amores para ela. Eu talvez possa passar todo o verão no lago. Seria tão bom estarmos todos juntos outra vez. Uma espécie de volta à juventude. Só que preciso ter os quadros prontos para a exposição. E também, com todos os diabos, quero passar algum tempo com Sloane. Temos um relacionamento caloroso, agradável, sem nada de espetacular. Ele não é um fraco, no entanto, e é mais do que passável na cama. Gosta mais de família do que eu, e quer, por força,

casar. O verão será uma boa época para eu conhecê-lo melhor. Creio que estou me inclinando a fazer a sua vontade.

  Até breve, Mo.

 

  15 de julho Querida Mo,

  Todo mundo está entusiasmado com a sua próxima vinda. Temos uma casa para hóspedes por trás de nossa casa onde você poderá ficar com a Sheila para matarem as saudades e se conhecerem novamente. Ela está ótima, desinibida e muito alegre. Já está rindo outra vez.

  É uma pena você não estar aqui nesta semana. Kevin está na casa dos pais, cada vez mais magro e mais solitário. Caroliné e & sua turminha se apaixonaram por ele e passam o tempo todo na beira da piscina dos Brennans encharcando-se de sua sabedoria como se fosse o bronzeado do sol. Ele é um amor para elas e sabe como se adaptar aos problemas de cada uma, e até mesmo de uma garotinha linda e doce chamada Patsy Carrey. Tem sido uma maravilhosa experiência para elas e também tem servido para restabelecer a confiança do Kevin mostrando que ele é um bom padre. Só que não vai durar e ele vai voltar para a porcaria daquele buraco onde mora. É uma forma de se castigar tão óbvia que nem sei como ele mesmo não se dá conta disso.

  Ah, é verdade Já ia-me esquecendo. Case com o Sloane. Nós não queremos nem mesmo discutir qualquer outra alternativa.

  Eu te adoro, e até breve, EL.

 

  Maureen caminhava ao longo do lado da sombra da estrada de Michianà sentindo-se plenamente satisfeita. Sheila estava gostando muito da escola. A dona da galeria estava encantada com os planos para a exposição no ano seguinte, da mesma forma que o seu marido, negociante de atacado de gêneros alimentícios e que, como Maureen desconfiava, era quem arcava com o prejuízo da galeria. O melhor de tudo era aquele carro cheio de rapazolas que tinham assobiado para ela. Ela se dizia que aquilo, para quem já estava perto dos quarenta, valia para uma semana em qualquer estação de águas. Estava satisfeita por haver emagrecido e a sua aparência era muito sexy quando usava shorts e uma camisa T.

  Estava pensando em Sloane. Quando voltasse a Roma ele ia querer casar com ela. Talvez já fosse tempo.

  Chegou até a estrada ao pé das dunas. O lago brilhava ao sol da tarde enquanto pequenas ondas preguiçosas vinham se espraiar na areia. Por que o seu avô e o velho Jeremiah Brennan não tinham comprado ali as terras em lugar do Wisconsin?

  Um grande Ford preto passou na estrada do lago, parou e deu marcha à ré.

  - Oi! Bonitinha! - disse uma voz conhecida.

  - Pat! - O mundo inteiro parecia girar em torno dela. Encostou-se no carro.

  - Eu tenho um barco em New Buffalo. Um dia ótimo para velejar...

  - Eu adoro barcos... - Ela esqueceu tudo que podia haver em sua vida.

  O barco mal tinha saído da marina e já os dois estavam abraçados.

 

  Daniel O'Neil fez com ele aquilo que Roma não conseguira fazer. Uma noite, no outono de 1972, pouco antes da reeleição de Richard M. Nixon, ele atirou o seu Cadillac contra a cerca do Lake Shore Drive e caiu lá embaixo no lago. O carro afundou como uma pedra. Mônica telefonou-me antes que a notícia fosse para o ar.

  - Ninguém vai falar nisso, padre, mas havia uma garrafa vazia de bourbon no carro. - Ela agora já era a Sra. Tommy Varco para os íntimos. - Ele já tinha sido preso pela polícia várias vezes neste ano por dirigir embriagado. O prefeito botou uma pedra em cima com muito pouca vontade.

  - E você vai publicar isso? - Eu estava ainda com voz de sono sem saber bem se estava dormindo ou acordado.

  - Você está brincando! Nesta cidade? Quem você acha que vai ser o novo bispo?

  Eu sugeri um nome, mas pedi-lhe que não mencionasse a fonte, Roma não esperou muito. Dentro de seis semanas o Bispo Patrick H. Donahue, de Benton Harbour, era nomeado o sétimo Arcebispo de Chicago. Tinha quarenta e um anos e era o mais jovem arcebispo do país. Quando ouvi a notícia no jornal da manhã, senti-me como se estivesse perdido no meio de uma tempestade de neve.

  - Então, nós já trabalhamos muito, não é mesmo? - Tonio espreguiçou-se como se estivesse acordando.

  - Sim - Pat arrumou os papéis em cima da mesa. - Já estamos prontos para a reunião de amanhã. Eu lhe disse que não levaria toda a tarde.

  - Temos sorte da principessa ter ido para Ischia para aproveitar as águas. - Tonio tornou a encher outra vez os dois copos - O sossego aqui na nossa vila facilita muito o trabalho, não é mesmo? Não é assim que falam os norte-americanos? Facilitar?

  - Ele estava nos seus dias de born humor. Pat nunca o vira assim tão descontraído e alegre. Tinha até mesmo desabotoado a gola da batina. - Você não acha este pôr-do-sol uma beleza, Pat? Tudo está tão lindo, tão tranqüilo... e, naturalmente, temos ainda o calor da amizade. - Ergueu seu copo numa saudação. Pai levantou também

o seu copo.

  - Eu estou preocupado com algumas das nomeações lá nos Estados Unidos. Uma quantidade de bispos fracos que não parecem compreender...

  - Não se preocupe, caro mio. - Tonio bebericava o seu conhaque, lentamente. - Sua Eminência me disse no outro dia que está muito bem impressionado com a maneira como você compreende as suas responsabilidades.

  - Fico satisfeito sabendo que a Santa Sé confia em mim. Pat sentiu-se corar de orgulho.

  - Você irá longe, meu born amigo. - Tonio observava-o com olhos intensos c ansiosos. - Como norte-americano que é, não vai esquecer aqueles que o ajudaram.

  Acho que nós, os italianos não damos tanto apreço à lealdade. - Ele levantou-se e caminhou para Pat. - Vamos ouvir um disco de Vivaldi?... - Sua mão apertava o braço de Pat de uma forma que era ao mesmo tempo terna e tenaz.

  Pat estava confuso e disse, muito sem jeito, que preferia Cherubini.

  - Ah, ah - Tonio deu uma risada. - Finalmente começamos a civilizar o nosso amigo americano. Já está começando a compreender a sutil diferença de nossa música.

  Ligaram a vitrola que começou a tocar ali na meia sombra. Tonio voltou e passou o braço em torno de Pat.

  - Estou certo de que vai me permitir oferecer-lhe uns frios. Tenho uma garrafa muito velha de um vinho do Pó que poderíamos beber com queijo e salaminho...

uma refeição verdadèiramente rural. Os criados já foram todos embora. Estamos só os dois. Você e eu. - A voz dele era macia e sedutora.

  - É muita bondade sua, Tonio - a voz de Pat tremia ligeiramente. - Mas... sabe como é... Fico com medo de voltar a Roma dirigindo o carro com mais meia garrafa de vinho no bucho.

  - Não seria necessário voltar com a noite já fechada. Claro que poderá partir de manhã cedo. Haverá menos tráfego na segunda-feira de manhã do que neste domingo à noite... - Havia nas suas palavras uma nuança de carícias.

  Pat. bebia o seu conhaque em pequeninos goles c já estava nervoso. Já estava transpirando apesar da suave brisa que soprava, vinda das montanhas.

  - Eu bem que gostaria, Tonio. Fica para uma outra vez. Prometi jantar com uns amigos...

  - Mas, claro, caro mio. - Percebia-se o desapontamento em sua voz, mas ele continuava sendo atencioso e encantador como se nada houvesse acontecido.

  Enquanto descia para Roma, para os braços de Maureen, ele ia imaginando se o outro iria ficar magoado ou, até mesmo, se faria alguma coisa para prejudicá-lo.

 

  No inverno anterior à nomeação de Pat para Chicago, Maureen tinha vendido a luxuosa casa da família no nosso lago, e tinha comprado uma pequena casa em Beverly Shores, Indiana, que ficava logo do outro lado da fronteira da diocese de Pat. Ela passara a viajar para Roma com menos freqüência. Já tinha quadros bastantes para apresentar na exposição em Chicago onde os críticos a acolherem com opiniões diferentes. O Sun-Times disse que "... a senhora Cunningham tem instinto para o colorido do MeioOeste

dos Estados Unidos, especialmente para as luzes que saem da escuridão. No entanto, tudo indica que ela ainda não tem a seriedade ou, talvez, a disciplina, para se concentrar o suficiente naquilo que vê. O resultado é uma coleção de obras que são, em verdade, atraentes mas, de um certo mudo, desapontadoras. Levanos a desconfiar de que a sua visão vai muito além daquilo que nos mostra."

Li aquilo quatro vezes sem conseguir chegar a uma conclusão se era uma crítica boa ou má. Quando lhe falei na Galeria, ela estava realmente encantada. Veio correndo abraçar-me.

  - Oi, Kev, esses malditos liberais gostam dos meus quadros.

  - Pois eu pensei que eles estavam dizendo que você poderia fazer coisa melhor. . . - Consegui recuperar a respiração com alguma dificuldade.

  - Puxa vida! Não seja um desmancha prazeres. Todos sabem que sou mesmo superficial, Kevin. Dizem que sou superficial, mas que os quadros são bonitos. - Maureen já começava a mostrar seus trinta e oito anos, mais no seu rosto desanimado do que nas linhas de seu corpo.

  - A exposição é um sucesso?

  - Claro que não, que diabo! - Ela respondeu alegremente.

  - Não vou ganhar o bastante para cobrir as despesas. Olhe aqui, guando é que você vem ver a minha casa lá em Beverly Shores?

  Disse-Lhe que iria até lá no verão, sabendo, de antemão, que não iria cumprir a promessa. Naqueles anos nós a vimos muito pouco. O Coronel se aposentara, já que o Joe estava na firma, e viajava sempre entre o lago e Tucson, depois de haver vendido tudo que tinha na Flórida para comprar o que parecia ser a metade das montanhas de Santa Catalina. Embora ele e minha mãe adorassem os seis netos, os dois preferiam gozar os seus sessenta anos juntos e com mais tranqüilidade. A mão dele já tremia ligeiramente quando pegava o talher, mas, ao contrário de muita gente, ele não procurava esconder a tremedeira.

  - Posso garantir-lhe que tremia muito mais em Bastogne, no Natal de 1944, e posso garantir que não era por causa do frio.

  - E terminava com uma gargalhada.

  Eu já não me entristecia por vê-los envelhecerem, e rezava, quando tinha tempo para isso, pedindo a Deus que me desse uma velhice cheia de graças como a deles.

  Algumas semanas depois da exposição de Maureen, eu ia caminhando para o Kroch num daqueles dias de primavera repentina que enganam a todos nós do Meio-Oeste, quando ouvi uma voz musical que me chamava.

  - Padre, como vai o senhor?

  Era Ellen, enfiada num jeans e numa camisa de Notre Dame tendo por cima uma jaqueta e que poderia parecer tudo, menos a mãe de cinco filhos. O rabo-de-cavalo estava amarrado por uma banda de borracha e não usava maquilagem. Parecia dez anos mais moça que a Mo.

  - Estava bom no México, Ellen?

  - Herb estava, realmente, precisando de umas férias... Ela resmungou pensativamente. - Aliás, você também está precisando, Kevin. - Seus olhos cinzentos encararam-me com compaixão. - Herb queria, por força, convidar você também, mas eu achei que você se sentiria deslocado...

  - Não sei bem... - Eu tentei uma piada. - Um ménage à trois seria até engraçado. - Abri a porta da livraria para deixá-la entrar.

  - Animal vulgar! Então isto é coisa para um padre dizer?

  - Sou um padre terrível.

  - Nada disso, Kevin. - Ela bateu-me no braço. - Você sabe se a Maureen e o Pat estão juntos novamente?

  - Por que me pergunta isso? - Minha vista estava presa à mesa onde estavam oferecidos os bestsellers lá dentro.

  - Logo que chegamos ao nosso quarto do hotel no México, fui para a varanda a fim de gozar a paisagem, ver o mar e a areia, quando ouvi vozes na porta ao lado. As varandas possuem anteparos para garantir a privacidade dos hóspedes... mas logo reconheci as vozes... - Aí faltou-lhe o fôlego. Ela procurou esconder a confusão e pegou um dos livros, mas ele estava de cabeça para baixo.

  - E você viu-os depois?

  - Deus do céu! Não. Isto é, eu não quis que Herb descobrisse. O que iria ele pensar da Igreja? No dia seguinte vim a saber que eles tinham saído. Eram o Sr. e Sra. Cunningham. Ele era alto, bonito, com cabelos louros já grisalhos. Eu não tinha nada com aquilo, mas...

  - Se a Guarda Costeira apanhá-los trepando, numa das tempestade do Lago Michigan, nós todos vamos ter alguma coisa com isso.

  Ela não chegou a abrir o livro e colocou-o de novo na estante.

  - Por favor, meu Deus, não permita que isso aconteça.

   A caminho de casa eu ia fantasiando a respeito das férias românticas no México. Continuava apaixonado pela Ellen da mesma forma que estava naquele baile do Iate Clube vinte e quatro anos atrás.

 

  Eu também adorava a Patsy. Aquela menininha de onze anos mexia com meus nervos como se fosse a minha própria filha. Eu comparecia regularmente à porta do convento, uma vez por semana, para sair com Sheila e ela, para darmos umas voltas e tomarmos sorvete. A minha desculpa era a Sheila, cuja mãe, minha amiga, me pedira que olhasse por ela. Patsy vinha com ela, naturalmente, como sua melhor amiga. As duas desabrochavam e tornavam-se umas mulherezinhas realmente encantadoras. Sheila era imprevisível, algumas vezes solene e piedosa, enquanto em outras era come a sua mãe, voluntariosa e engraçada.

  Patsy era sempre a mesma. Delicada, frágil, incrivelmente doce e carinhosa. Todas as semanas ela me trazia um presente que podia ser um poema, um desenho, algum trecho copiado numa ortografia interessante. Aquilo, para mim, no princípio, tinha sido quase uma obrigação tediosa, mas no fim já era um prazer que esperava com ansiedade. Nada dizia ao seu pai, nem tinha intenção de fazê-lo, a não ser que ele me perguntasse.

  Em abril, com as chuvas se alternando com pedaços de céu azul, Patsy e eu estávamos sentados numa mesa de fórmica no 31 Flavors bebendo núlk-shake. Patsy ia sorvendo o seu muito •devagar, na tentativa de prolongar o prazer o mais possível. Sheila estava gripada e não pudera vir.

  A irmã achava que eu podia sempre sair com qualquer das duas para aqueles passeios semanais, já que se tratava do Padre Brennan. Eu ficava a imaginar se a Georgina sabia ou se pouco se importava.

  Ela olhou-me e brindou-me com um sorriso encantador com as pestanas piscando sem parar.

 - Padre Brennan, será que posso lhe fazer umas perguntas?

  Já havíamos falado sobre sexo, com ela e Sheila, algumas vezes e esperava que agora o assunto fosse outro.

  - Vai dizendo, Patsy. - Primeiro pensei se deveria tomar mais um milk-shake. Poderia desculpar-me com Calvin Ohira na sessão do dia seguinte.

  - O senhor gosta mesmo de mim?

  - Mas claro que sim. Gosto muito, Patsy. - Ela corou, da mesma forma que Pat quando recebia um elogio.

  - Por que, padre?

  - Porque você é muito boazinha. Você é adorável.

  - Mas há alguma razão especial!

  - A minha fraqueza são as lourinhas bonitas.

  - O senhor é meu pai? - A pergunta foi feita baixinho.

  - Não, Patsy. - Eu senti qualquer coisa que me enchia os olhos. - Por que é que você imagina que sou?

  - Eu sei que meu pai não era o meu pai verdadeiro - ela corou ainda mais e passou a mão no rosto para limpar as lágrimas.

  - Eu tenho olhos azuis e minha mãe, como meu pai, tinha olhos castanhos. O John também não era filho dele. Pensei que o senhor fosse o meu pai, já que gosta tanto de mim.

  - Eu não sou o seu pai, Patsy, mas se fosse teria um grande orgulho por uma filha como você. - A dor que senti no peito devia ser bem igual àquela que se sente quando o coração se dilacera.

  - Eu posso fingir que o senhor é meu pai? - o sol do seu sorriso doce conseguia afastar a tristeza que eu sentia.

  - Não, Patsy. A gente não deve brincar com coisas Como essa. Você deve apenas ficar certa de que eu amo você como se fosse minha filha de verdade.

 

  Patrick Donahue veio para Chicago como se fosse um vento quente do sudoeste no fim de um duro inverno. Ele nomeou para seus consultores o comitê executivo do Senado Eclesiástico, instituiu um conselho pastoral eletivo com um representante de todas as paróquias da cidade, prometeu um sólido apoio financeiro para todas as paróquias dentro da cidade, deu vida nova aos Clubes  Newman, dando-lhes um assistente que me obrigou, a sair do Centro Católico para um apartamento, passou a freqüentar os concertos sinfônicos e as exposições do Instituto de Artes, falava em programas da TV, reunia-se com os redatores dos dois maiores jornais, queria que todos os padres o chamassem de Pat, pôs à disposição do público todos os livros de contabilidade da diocese, e prometeu que os gastos acima de trinta mil dólares teriam que ser aprovados pelo comitê executivo do Senado e do conselho pastoral. Chegou, até mesmo, a jogar basquete com os garoto do seminário.

  Na primavera de 1973, com o escândalo de Watergate no apogeu, ele era o querido da cidade, era o belo, progressista, encantador e democrático arcebispo. Era, disparado, o mais popular arcebispo dos Estados Unidos. Os editoriais dos jornais de Chicago chegava a saudá-lo como a espécie de líder que o país estava precisando naquela época de crises e desilusões.

 

  Aquele foi o ano em que Nick McAuüff abandonou o  sacerdócio.

  - Estou cansado, Kevin - ele disse em meu gabinete, com o rosto desfigurado pela dor. - Estou cansado como o diabo. Já não me importo mais com a política, o controle da natalidade nem todas essas coisas, E&tou na última lona. Já dei de mim tudo que tinha para dar. Já estou vazio. Preciso de um pouco de amor antes de morrer. Sinto-me tão solitário! - Chegou a engasgar-se. - Ela é uma mulher maravilhosa. Cinco filhos extraordinários. Não é uma questão de sexo, Kevin. Não ligo muito para isso. O que preciso é de amor. E ela me ama. Não posso continuar vazio assim.

  - Se é isso o que você vai fazer, Nick - respondi tentando esconder o meu sentimento de traição e deserção - eu tenho a certeza de que vai fazer a coisa certa. Desejo que tenha toda a felicidade que tão bem merece.

  Um mês depois do casamento, ele convidou-me para jantar em sua casa e conhecer "Lonie". Eu tinha uma reunião em Washington e não pude aceitar o convite. Pelo Tom de sua voz eu percebi que ele estava imaginando ser aquilo apenas uma desculpa.

Até mesmo com o rejuvenescimento da Arquidiocese de Chicago, sob a brilhante chefia de Pat Donahue, a Igreja, nos Estados Unidos, continuava a escorregar para o despenhadeiro. As escolas se fechavam. Os padres e freiras estavam indo embora, e os que ficavam continuavam confusos e sem saber o que fazer. Os seminários e noviciatos estavam fechando as portas. A hierarquia desistiu do controle da natalidade e começou a caminhar para uma nova política a respeito das anulações. A despeito da nomeação de mais pastores pelo novo delegado, a chefia não conseguia recuperar muita credibilidade, a não ser o Pat, que era um herói nacional. Novas modas e manias varriam a Igreja com frenética velocidade. As bolsas escolares que eu conhecia tão bem eram agora vistas com desprezo ostensivo. O eomparecimento às missas reduzira-se à metade, embora a população jovem compensasse um pouco. Surgian escândalos financeiros em dioceses e ordens religiosas. Os novos bispos estavam descobrindo que  os seus antecessores tinham gasto dinheiro de forma descontrolada e que, no dia em que se instalavam, já encontravam fiscais do governo à sua espera.

  Meus pais estavam quase sempre fora. Meus irmãos estavam todos ocupados com as suas famílias. A comunidade de jovens de St. Praxides tinha desaparecido. Eu sentia-me só.

  Ia resistindo, escrevendo relatórios sobre pesquisas e livros. PC quando em quando, algum bispo me telefonava, tarde da noite, pedindo sugestões. Creio que o faziam às escondidas com medo de Pat, a quem não queriam ofender.

  Kevin Brennan, o inevitável líder de 1948, já não existia como pessoa. Patrick Donahue, que sobrevivera graças à discrição de Kevin Brennan, era o arcebispo de Chicago.

 

  Já fazia seis meses que de estava em Chicago quando recebi um telefonema. Minha secretária veio avisar-me, muito nervosa, que havia um telefonema do gabinete do arcebispo. Atendi.

  - Sim?... O endereço certo para a correspondência é aqui no instituto de pesquisas.

  Do outro lado da linha houve um frígido silêncio. Depois uma voz impessoal e eficiente falou:

  - O arcebispo quer vê-lo esta tarde.

  - Tenho um seminário hoje à tarde, mas se Pat Donahue quer falar comigo, ele sabe o número de meu telefone. - Eu estava querendo uma briga de qualquer  maneira.

  - vou dar o seu recado, padre. - A resposta foi uma ducha gelada.

  Em cinco minutos Pat estava me chamando. Falou logo muito alegre.

  - Oi, Kevin. O que é que está havendo?

  - É o meu nome para a correspondência. Tenho sentido falta de suas palavras cheias de sabedoria todas as semanas.

  Ele deu uma gargalhada como se aquilo fosse uma grande piada.

  - Kev, eu não tenho mais tempo para nada. Quando cheguei aqui prometi-me que iria conversar com você logo na semana seguinte. Não tenho palavras para dizer a você o quanto aprecio o seu tato e discrição mantendo-se nos bastidores. Há muita gente de olho em mim para ver se há favoritismo por aqui. Todo mundo sabe que eu não posso dizer não para você. De qualquer maneira, vamos esquecer tudo isso agora. Você tem alguma noite livre nas próximas semanas? Queria que viesse jantar comigo.

  Marcamos o dia.

  Pat passava a maior parte de seu tempo na reitoria da catedral, mas continuava com a casa em North State Parkway, como um lugar onde poderia receber convidados, especialmente pessoas cívicas, reuniões para padres, uma vez por semana, e para "conversas particulares", conforme me explicou com um sorriso em que se desculpava numa reunião do Senado Sacerdotal. Acho que o meu caso era uma "conversa particular".

  Era uma magnífica noite de verão quando um padre, jovem ainda, veio abrir a porta. Era um moço muito bonito, extremamente parecido com o Pat dos velhos tempos, a não ser pelos cabelos que eram castanhos e não louros. Ele apresentou-se respeitosamente.

  - Art McGrath, padre. É uma honra conhecê-lo. Tenho lido todos os seus livros e espero o próximo com ansiedade, sobre o Entusiasmo. Aposto como vai substituir o de Ronald Knox como a principal contribuição nesse campo. - Ali estava um outro porcaria de fala macia.

  - Meu nome é Kevin, Art. E o meu ponto de vista não será histórico como o de Knox. Só pretendo complementar a sua obra e não substituí-la. - Enquanto falava, apertava-lhe a mão.

  - De qualquer forma, quero lê-lo.

  Fui introduzido no gabinete particular do arcebispo no segundo andar. Art explicou-me que ele iria demorar um pouco porque tivera uma longa conversa com o Arcebispo Benelli naquela tarde, e isso prejudicara um pouco a sua agenda.

  Numa sala ao fundo do corredor, uma datilografa jovem e bonita trabalhava com afinco. Às seis em ponto ela levantou-se, veio até ao gabinete, olhou-me com desconfiança e colocou uma volumosa pasta em cima da mesa. Depois falou com severidade:

  - Isto é somente para os olhos de Sua Excelência.

  - Onde está a máquina Xerox? - olhei para ela rindo.

  A moça lançou-me um olhar rancoroso e saiu apressada. Fiquei ali a iiuaginar se o Pat andava trepando com ela.

  Esperei quarenta e cinco minutos, muito menos do que O'Neil me obrigara a esperar.

  Pat abraçou-me no estilo romano mas sem os beijos.

  - Kevin, Kevin! Meu Deus, como é bom ver você. Está com uma ótima aparência. Nem meio quilo de gordura a mais. Quer um Jameson? Um Special Reserve de dezesseis anos?

  - Quero uma Pepsi, Pat.

  Ele tirou fora a batina de botões vermelhos, atirou-a num sofá e foi para o bar muito enfeitado. O martíni que tomou era muito mais seco do que os de antigamente.

  Ele parecia estar em boas condições. No entanto, não havia a menor dúvida, seus cabelos estavam pintados, mas isso não o diminuía a meus olhos, Ele era um arcebispo bonitão, com jeito de garoto.

  - Ao futuro de Chicago, Kevin.

  Tocamos os copos, e já a minha hostilidade tinha desaparecido.

  O jantar foi tranqüilo e agradável. Ele explicou-me a norma de suas decisões e pediu-me conselhos sobre assuntos pessoais, anotando o que eu dizia. Estava especialmente interessado na espécie de pesquisa empírica que eu achava boa para a diocese. Comeu  pouco e bebeu só alguns goles do vinho. Ele sacudiu o garfo alegremente enquanto eu espetava um outro pedaço do rosbife.

  - O que é que você acha da nova Chicago, Kevin? A contabilidade dos recursos à disposição do público, promoções por merecimento, tomada de decisões democrática, consultas com os leigos, renovação espiritual. Você pode me apontar uma outra diocese, posterior ao Concílio do Vaticano, que esteja em melhores condições?

  A satisfação que demonstrava pelas mudanças ocorridas na diocese fazia com que o seu rompante parecesse infantilmente inócuo.

  - Ainda está na lua-de-mel... - respondi um tanto ácido. A sua expressão de desconsolo implorava alguma coisa mais.

  Pensei comigo mesmo que ele não a teria enquanto não me disaesse o que queria de seu amigo Kevin.

  Depois do jantar voltamos ao seu gabinete, onde ele me ofereceu um magnífico Porto e um de seus charutos de Cuba, que recusei. Ele recostou-se em sua poltrona com ar muito satisfeita.

  - Muito bem, Kevin, diga-me agora o que você deseja fazer nesta nova Chicago?

  - A mesma coisa que venho fazendo até agora, Pat. A pesquisa que faço é importante para a Igreja, da mesma forma que meus livros.

  - Eu sei. - Acenou com o charuto. - Mas ouvi dizer que houve algum problema com a universidade a respeito da qualidade de suas pesquisas...

  - O instituto de pesquisa é independente da universidade, Pat - os músculos do braço começaram a ficar tensos. - Eu tenho com eles um contrato de dez anos. Tentaram arranjar para mim uma nomeação na universidade, mas houve oposições. Isso nào afeta o instituto.

  - Eu não sou académico, Kevin - ele franziu a testa pensativo - mas não posso acreditar que houvesse discriminação em sua universidade nos dias que correm.

  - Pois então tente imaginar. Quer alguns detalhes?

  - Não, não - ele sacudiu o charuto outra vez. - Isso nào será necessário.

  - Ótimo vinho, Pat - eu bebericava o Porto. - De qualquer forma, eu recebi ofertas de algumas universidades importantes, mas gosto demais de Chicago e, por isso, não quero sair daqui.

  - Tenho a certeza de que não pode haver ninguém melhor do que você na Igreja, e é por isso que desejo vê-lo na minha equipe. Você aceitaria ficar com o nosso Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento? Tenho aqui as suas notas e estou certo de que havemos de arranjar verbas para fazê-lo funcionar. Não temos muito dinheiro, mas estou certo de que são muitas as fundações em Chicago... -   Cruzou as mãos atrás da cabeça com um ar satisfeito. - Seria tão bom se pudéssemos trabalhar  juntos outra vez, Kevin.

  - Não - a minha resposta foi dita em voz muito baixa.

  - Kevin, eu gostaria muito que você pensasse no assunto. Nós, realmente, precisamos muito de você aqui, na diocese.

  - Eu trabalho por conta própria, Pat. Se fosse a uns cinco ou dez anos atrás, talvez aceitasse correndo. Agora eu sou o meu próprio patrão. Recebo dotações muito maiores do que a diocese pode imaginar, e faço o que bem entendo. Estou velho demais para mudar.

  - Nem mesmo pela Igreja? - suas sobrancelhas arquearam-se numa reprovação ligeira.

  - Eu serei o juiz daquilo que a Igreja espera de mim, Pat levantei um pouco a voz.

  - Eu sou o seu arcebispo, Kevin. - Ele soltava baforadas do charuto com ar pensativo. - Tenho o direito de exigir alguma coisa, não acha?

  - Pois então exija - apanhei a garrafa do Porto e enchi meu cálice.

  - O problema que eu enfrento é a unidade do presbiterado, Há muita gente ressentida com a sua independência e, para falar francamente, com a sua renda. Eu não posso tolerar a grande desigualdade em responsabilidade, trabalho e... salário que representa um emprego como o seu, já que ele é de uso duvidoso para a Igreja numa ocasião em que há uma crescente falta de padres. Torna-se especialmente difícil porque todos sabem que você é meu amigo. Estou sob tremendas pressões, Kevin...

  - Nem mesmo O'Neil se meteu com as minhas atribuições, que me foram dadas pelo Meyer.

  - Por favor, Kevin - ele inclinou-se para mim. - Não torne as coisas ainda mais difíceis para mim...

  Eu sorri com benignidade. Ele franziu a testa e rolava o charuto na mão.

  - Você não me deixa muita escolha, Kevin. vou ser obrigado a ordenar que saia do instituto e que venha trabalhar comigo. Darei essa ordem em nome da santa  obediência.

  Senti desencadear-se dentro de mim uma reação em cadeia. Continuei calmo e com o controle de meus sentimentos externamente. Por dentro eu estava fervendo.

  - Você ainda anda trepando com a Maureen? - a pergunta foi convencional.

  - O quê? - ele ficou muito pálido.

  - Não quero dizer esta noite. Estou me referindo a quando você está em Roma e ela está em Beverly Shores. Ou será que ela vem aqui também na calada da noite? Será que ela é a primeira mulher que foi para a cama em North State 1555? Ou entáo, se não é Maureen, quem é que você anda levando para a cama? Ou será aquela pedra de gelo bonitinha que bate a papelada e que dá os telefonemas? Você já conseguiu pegá-la?

  - Kevin... Como se atreve...

  - Ora, Pat. Eu me atrevo a tudo. - Virei o cálice e levantei-me. - De você eu nada mais quero senão que me deixe em paz e ao meu trabalho. É só isso. Você não me incomoda e eu não o incomodo, está bem? Mas se tentar mexer comigo mais uma vez só, todo o seu dossiê estará em cima da mesa do Benelli antes de você ter tempo de dar um pio.

  - Dossiê?

  - Todos os seus casos de amor, desde o Stanley Kokoleck e aquela empregadinha em Mundelein, e daí para baixo. Tudo com os mínimos detalhes. - Era tudo mentira, mas era o trunfo que eu tinha escondido. - Estou certo de que a Santa Sé estaria especialmente interessada nas escapadas de um casal, Sr. e Sra. Cunningham, em Acapulco. E o que me diz de sua filha? Da Patsy?

Certamente gostaria de saber que o pai é um arcebispo. Será que você pensa nela, Pat?

  - Penso sempre - ele estava derreado na cadeira com o rosto escondido nas mãos.

  - É impressionante a semelhança, Pat. Isso daria uma ótima manchete. A minha amiguinha Mônica Kelly não gosta muito de você. Não creio que ela se importasse muito com o que pudesse acontecer com Patsy. - Tudo aquilo era uma mentira deslavada. Só que ele não sabia.

  - Você não faria... Você não poderia... - Ele já era agora uma casca completamente vazia.

  - Muito obrigado pelo jantar... - Encostei-me na moldura da porta. - E pelo Porto.

  - Isso destruiria a Maureen... - ele agora já implorava.

  - Ela sabia bem onde estava se metendo, garotão. E se for destruída, a culpa será sua. Deixe-me em paz e o dossiê continuará com o meu advogado.

  - Advogado?! - Ele tirou as mãos do rosto, onde se lia agora o terror.

  - Mas claro. Você não vai pensar que quero me arriscar hem? E, por falar nisso, Pat, é melhor que você continue sendo o melhor arcebispo deste país, com todos os diabos, até mesmo depois que terminar a sua lua-de-mel com o público. Se não andar bem direitinho, eu enviarei o seu famoso dossiê a quem de direito, só para ver o circo pegar fogo.

  Seus lábios muito pálidos moveram-se como se quisesse dizer alguma coisa.

  - Até breve, Pat. Lembranças a Mo. - Depois, quando já estava saindo, desferi o golpe final. - Exatamente como nos velhos tempos, hem Patrick?

  Semanas mais tarde, quando minha consciência finalmente reagiu dizendo-me culpado de crueldade exagerada, eu, mesmo assim, ainda não me sentia tão culpado.

 

  No verão de 1974 Richard Nixon estava deixando a Presidência, Chinatown era o filme mais popular. Soljenitzyn veio para os Estados Unidos, a garotada ouvia The Who, e o Chicago Cubs não ganhou o campeonato.

  A minha monografia sobre saúde mental teve uma boa aceitação pela crítica, excetuando-se apenas umas poucas escritas por padres ou por críticos que já tinham sido padres; fui eleito para uma sociedade profissional honorífica e recebi convites em número menor do que me era possível aceitar para fazer conferências; muitos bispos ignoravam o interdito formal que existia em Chicago e estavam recorrendo ao meu serviço de consultas; um ou outro padre moço sempre me aparecia para conversar a despeito de ser eu um banido pela Igreja de Chicago. Eu pensava comigo mesmo que o pior já passara.

 Via bastante Ellen, o suficiente para ver que ela era feliz. Patsy, Sheila e eu estávamos sempre juntos. Sheila estava agora mais desinibida e alegre do que antes, embora continuasse a ser muito religiosa. Caroline Curran era incrivelmfcnte bela, e serenamente indiferente às atenções que isso lhe trazia.

  A vida continuava, irresistível e vigorosamente. Era isso mesmo, o pior estava para trás. Era o que eu pensava.

  Na verdade, porém, o pior ainda estava para vir.

 

  Querida Ellen,

  Desculpe-me se demorei muito a responder. Não haverá exposição este ano. Acho que é fato consumado, infelizmente. Não tenho trabalhado muito, e o meu coração não está naquilo que pinto. Tem sido um inverno feio aqui e não me sinto tão bem como devia. Passarei várias semanas em Chicago, a maior parte delas em Beverly Shores, mas isso não quer dizer que não aceite com alegria o seu convite para passar algum tempo com Sheila, mais uma vez, na sua casa de hóspedes. Minha filha é quase uma estranha para mim, embora ache que é uma estranha bem mais feliz do que era antes. Sei que fracassei com ela, e sinto-me culpada por isso. Está feito, no entanto, e o que está feito não tem mais rerr.édio. Você, os Brennans e as irmãs na escola compensaram  uma grande parte de meus erros. Tudo que posso fazer é rezar por ela, e é exatamente o que faço todas as noites.

  Há ocasiões em que a minha piedade me enoja, mas, a despeito de todas as coisas más que fiz, eu ainda acredito.

  Também estou engordando outra vez. Amanhã vou começar uma dieta. Na próxima vez que nos virmos eu já serei novamente uma matrona esbelta que está envelhecendo, ou então não me verá.

  O meu caso com o Sloane continua, pois não tenho coragem para mandá-lo embora. De maneira alguma vou abrir mão de minha liberdade me amarrando a alguém. Já acho bem chato o ato do amor. Vez por outra eu saio com um tal de Alfredo DeLucca. Talvez você já tenha ouvido, o Kevin falar a respeito dele. Faz parte de uma das famílias da velha Igreja aqui. É um cara interessante e muito sexy. Até breve. Lembranças para o Herb e as crianças.

  Mo.

 

  Fredo DeLucca andava magoando-a deliberadamente, com muita arte e precisão. Ela adorava a experiência da dor e do prazer, adorava a afiada estocada da agonia que, repetidamente, sentia em todo o corpo. A dor lhe era infligida com cuidado. Não o bastante para causar dano e não o bastante para ser insuportável.

  Ele ria-se baixinho divertido com as suas reações. Então a dor ultrapassava o limite da tolerância e ela gritava. Fredo ria-se outra vez. Ele a mantinha suspensa sobre o vale do sofrimento e do prazer e fazia com que se movesse de um lado para outro desse vale. E então, quando ela implorava, ele infligia-lhe uma rápida tortura excruciante seguida imediatamente pelo êxtase sublime.

  Depois de haver perguntado ao Marty Herlihy, que era "o melhor diretor espiritual da diocese", fui levado à presença solene e imponente da Irmã Mary Carmel, que me ouviu em silêncio quando lhe contei sobre a responsabilidade que assumira a respeito de Sheila.

  - Sim, padre - ela disse quando terminei - e não também.

  - Como assim?!

  - Digo-lhe sim porque o senhor está fazendo exatamente o que é certo para a menina - ela sorriu com aquela doçura de freira que eu pensava estar já bem fora de moda - e não, porque não vou substituí-lo como diretor dela. E por que iria fazer isso? O senhor tem a competência psicológica, a simpatia e a confiança da menina. Não me proponho a deixá-lo fugir à responsabilidade que Deus colocou em seus ombros. Se precisar de conselhos sobre problemas específicos, venha procurar-me.

  - Acho que está certa, irmã. Muito obrigado pelo conselho.

  - Levantei-me para sair.

  - Padre... - ela pareceu hesitar. - Sente-se por favor. Disse-me aquilo com o Tom que somente as madres superioras sabem ter. - Não ficou zangado com o que acabei de lhe dizer, ficou?

  - Tamborilava na mesa com um ar pensativo. - O senhor já é um psicólogo famoso, e eu sou apenas uma freira sem credenciais acadêmicas...

  - Irmã, eu poderia dar-lhe uma longa lista de jesuítas que não pensam assim... - Levantei-me novamente querendo escapar daqueles olhos inquisidores.

  - Por favor, sente-se padre. - Ela mostrou que não dava importância àquilo com um gesto imperioso de sua mão elegante.

  - Eu não vou mordê-lo.

  - Sim, irmã... - disse eu com toda a humildade.

  - Eu sou a madre superiora, padre, embora já não se use mais esse título. Não obstante, ou talvez mesmo por esta razão, vou ser completamente franca. Eu não aceito ser a diretora espiritual de uma menina que já tem o senhor e que, portanto, não precisa de mim. Posso, no entanto, agir como sua diretora espiritual, já que o senhor precisa de mim porque não tem nenhuma. Quem decide é o senhor, naturalmente... - Eu engoli em seco. Ela tornou a acenar com a mão da mesma forma que fizera para os psicólogos jesuítas. - É claro que vai querer pensar sobre isso...

  - Não, irmã, e sim também.

  Ela arqueou as sobrancelhas.

  - Touché!

  Levantei-me outra vez e consegui chegar até a porta. Como sm breve eu acabaria descobrindo, com credenciais acadêmicas ou não, a Irmã Mary Carmel era perfeitamente capaz para se afundar o bastante na psique de um homem até chegar à verdade.

 

  Eu não precisava de diretor espiritual para Patsy.

  Estávamos sentados diante de nossos sorvetes, que eram os últimos daquela estação. Maureen estava na cidade, e Sheila não estava conosco.

  Como já lhe dera a permissão, ela segurava-me a mão. Estava, transbordante de alegria. Caroline sempre conseguia arranjar rapazes para saírem com ela e todos eles a apreciavam e tratavam com

respeito.

  - Este ano foi muito importante para mim, Kevin. Já cresci bastante e sei que sou uma boa pessoa. Já sei como enfrentar a indiferença de mamãe e do Arnold. Compreendo o quanto eles sofreram. Já posso ser eu mesma. - Ela dizia aquilo tudo sorrindo, e os seus dentes muito brancos e certinhos eram a cópia exata dos de seu pai.

  Aquilo era a pseudo-seriedade e a pseudo-introvisão das pessoas muito jovens. Muitas vezes eu me surpreendia temendo que ela fosse uma frágil peça de porcelana que se quebraria com facilidade. Mesmo assim, no entanto, ninguém lhe poderia negar aquele momento de satisfação consigo mesma.

  - Em breve estaremos juntos no lago, Patsy.

  - É mesmo. - O seu rosto muito claro ficou avermelhado.

  - A mamãe e o Arnold sentem-se tão felizes como eu quando vou para casa de seus pais, e para me encontrar com Anne. Ela se parece muito com você, Kevin.

  - Até mesmo mais do que com sua mãe.

  - A sua família toda é maravilhosa. . .

  Aquilo calou fundo no meu coração que chegou a pulsar com mais violência. Para tornar as coisas bem claras eu ainda acrescentei que Anne também era, em parte, uma McNeil.

Sheila caminhava apressada no píer de New Buffalo. Sua mãe não estava em casa, em Beverly Shores, quando o táxi ali deixara Sheila. Havia uma nota dizendo que tinha ido velejar no barco do arcebispo. Sheila não compreendia bem como era que um arcebispo tinha um barco, mesmo quando se tratava de um como o Arcebispo Donahue, que trabalhava tanto e que era um homem tão encantador.

  Pensou um pouco naquilo e, afinal, resolveu que um padre tão santo como o arcebispo certamente sabia bem o que estava fazendo. Se ele estava certo quando andava no barco, então devia estar certo também o fato de sua mãe acompanhá-lo. Aliás, a sua mãe não a convidava muito .para sair de barco também mas, por outro lado, não a proibia. Sheila mudou de roupa enfiando um maio e uma camisa T, e depois foi pedir ao rapaz da casa ao lado que a levasse até a marina.

Ele ficou satisfeito e logo convidou-a para um cinema no sábado. Quando saltou no píer, ela agradeceu-lhe com seu sorriso mais lindo e prometeu-lhe que iria ao cinema.

  Ela vivia num mundo de névoas, e de confusão e de comportamentos variados, de temores sem nome e de esperanças sem razão de ser, de profunda religiosidade e de saudades vagas mas muito poderosas. O tempo que passara nos Estados Unidos não conseguira mudar o seu mundo, mas dera-lhe mais confiança quanto à sua capacidade para sobreviver nele.

  Sheila procurou algum tempo tentando localizar o barco e ficou pensando que perdera o passeio. De repente, viu as letras douradas na proa de um barco que estava ali adiante. Correu e chegou até o píer seguinte onde, ofegante, soltou para dentro do barco e empurrou a porta da cabine.

  Todos os detalhes do quadro ficaram gravados para sempre em sua mente. Jamais poderiam se apagar. Sua mãe estava com um jeans branco, mas também estava nua da cintura para cima. Estava encostada na mesa de jantar apoiando-se nela com as duas mãos. O seu rosto estava contorcido numa máscara de dor e de prazer. Os cabelos longos caíam-lhe nos ombros como se fossem fuligem em cima da neve. O arcebispo, completamente nu, estava curvado sobre os seus seios, chupando-os como se fosse um bebé se alimentando. Uma de suas mãos segurava o seio que estava chupando enquanto a outra acariciava o outro seio. Sheila lembrou-se de que nunca antes tivera ocasião de ver as tetas de sua mãe.

  E então ela começou a gritar histericamente.  

  Afinal, a gritaria passou e veio a escuridão.

 

  A Irmã Mary Carmel olhou discretamente o seu relógio.

  - O senhor se sente desligado dos outros padres? Sente-se vítima da inveja dos outros padres? Tem a certeza de que não está sendo vítima daquilo que, nos outros, chamaria de paranóia?

  - Eu não sei qual a importância que tem. Creio que não seja muito importante... - Eu já estava arrependido de lhe ter falado sobre o aviso na paróquia de Ellen.

  Ela, porém, persistia numa voz firme e que não admitia recusa.

  - E como é que pode não ser importante? Um pastor que orgulhosamente afirma jamais ter lido um de seus livros e que, no entanto, o acusa como inimigo da Igreja, atribuindo-lhe ensinamentos que o senhor nunca escreveu e atitudes que nunca assumiu, junto com motivações que não poderia, de forma alguma, conhecer, mesmo que tudo isso se encontre em sua personalidade. É claro que o senhor fica magoado com a sua desonestidade, mas por que acha que é uma virtude o fato de sermos insensíveis aos ataques de pessoas invejosas? E por que tem medo que descubram como sua pele é fina, especialmente quando isso é a verdade?

  - Pode ser que eu seja um paranóico...

  - Ora, ora, padre. Duvido muito que seja. Eu apenas fiz a pergunta. Estou certa de que a reação é comum. O senhor receberá muito pouco apoio de seus colegas de sacerdócio. Mais forte, portanto, é a razão para que nós encontremos alguma maneira de construir uma comunidade que o apoie. Um homem sensível, solitário e amável como o senhor não pode continuar nessa solidão.

  Aquela foi a primeira vez, dentre as muitas, em que eu me senti como se a Irmã Mary Carmel me houvesse arrancado as roupas.

 

  Hoje tive uma séria confrontação com Maureen que bem pode ter arruinado para sempre a nossa amizade.   Estou escrevendo o que se passou porque Herb não está aqui e eu preciso desabafar. Tenho ft certeza de que atrapalhei tudo. E também tenho a certeza de que, embora estivesse querendo ajudar, eu estava também indignada, e foi a indignação que prevaleceu destruindo a possibilidade de ajuda.

  De forma bem apropriada, nós estávamos nuas na piscina e, portanto, estávamos ambas completamente indefesas no sentido mais pri. mitivo da palavra. Mo sempre se escandalizava quando as crianças e eu nos despíamos completamente para cair na água. Eu gostava de pensar que, embora tivesse sido uma garota "pra frente" quando mocinha, ela exibia agora uma falsa modéstia, enquanto eu tinha uma modéstia válida.

  Enquanto se despia, ela reclamava que estava gorda demais para fazer aquilo.

  - Que tolice é essa? - Eu sorri. - Você ainda é um modelo perfeito para um nu artístico.

  - Os quadros de Rubens já passaram de moda - e dizendo isso ela mergulhou na piscina.

  De qualquer maneira, ela gostava da brincadeira da mesma forma que qualquer um de nós. Depois eu toquei a garotada para a casa, Caroline, Anne, Sheila e Patsy.

  - Nós, como mulheres velhas, precisamos conversar, Mo.

  Ela respondeu com alguma tristeza na voz, enquanto as menina caminhavam para a casa:

  - É a mocidade! Estão cheias de vida. E eu concordei.

  Estávamos as duas penduradas na beira da piscina, ainda ofegantes com o exercício feito.

  - Vamos sentir falta da Sheila, Mo. Ela já se tornou a mais entusiasmada da turma...

  - Tem sido muito bom para ela. - Ela não me encarou. - Mas se quiser mesmo acabar o curso na Irlanda, isso é lá com ela, acho eu.

  - Ficamos todos muito surpreendidos...

  - Ela explicou-lhe a razão? - Ela encarou-me com um olhar cheio de desconfiança.

  - Não. Não lhe perguntei, e creio que a Mary Ann também não Ela encostou a cabeça na beira da piscina.

  Ela nos surpreendeu, o Pat e eu, fazendo coisas no barco. Ficou histérica. Fomos obrigados a levá-la para um hospital em Michigan. Foram necessários alguns dias para ela se recuperar. Chamoume de puta suja. Não fala mais comigo quando estamos sós. Vai para a Irlanda porque quer ficar longe de nós dois.

Eu fechei os olhos e ali fiquei na beiia da piscina sem saber o que fazer.

  - Vamos lá, pode dizer. Diga-me que nojenta vagabunda sou eu e ainda a espécie de mãe que sou.

  A medida que escrevo estas linhas começo a compreender que se houvesse dito aquilo, ou coisa parecida, teria havido um pega feio. E era o que a pobre Mo precisava.

  Em lugar disso eu procurei consolá-la.

  - Não vou dizer, porque não é isso o que penso. Eu gosto demais de você, Mo.

  - Eu não mereço isso. Também não estou ligando. E também, com todos os demônios, não me venha com esse seu ar de boazinha.

  - Não sinta raiva de si mesma, Mo... Ela ficou calada.

  - Desculpe-me. Estou agindo como se estivesse fazendo um sermão. .. - que era realmente o que eu estava fazendo. - Eu só me preocupo com você. Sheila vai crescer. Pat sempre terá a Igreja. E o que vai acontecer com você? Você é uma linda mulher que tem ainda a metade da vida à sua frente. Quando não está

com Pat, você pinta os seus quadros. Você é feliz e tem outras amizades. Você não o ajuda, e ele a prejudica... - Tentei enlaçá-la nos braços.

  Ela sacudiu fora o meu braço e afastou-se na piscina como se quisesse ficar longe de mim. Depois falou em voz baixa e magoada:

  - Você não entende nada disso.

  - E não entendo mesmo. Só o que entendo é que você está sofrendo e eu não quero que sofra.

  - Você tem o Kevin - ela respondeu gritando - e eu tenho o Pat, qual é a diferença? - Da mesma forma que todos os amigos, ela conhecia os elos fracos na cota de malhas de todos eles.

  - Só que eu não trepo com ele.

  - Treparia, se pudesse.

  - E treparia mesmo, mas não trepo... - E foi nesse ponto que fiquei indignada. - Também não durmo com ele. Não permito que meu amor por ele interfira com minha família e meu casamento. Não permito que me impeça de escrever, e não quero vê-lo cheio de desprezo e culpa.

  - Mas isso é só porque ele não tem tutano. Se ele desse em cima de você, teria tudo que quisesse. - Ela encarava-me e o seu rosto estava desfigurado com

a emoção.

- Você está errada, Mo. - Respondi solenemente. - Não porque eu seja melhor que você, e sim porque tive sorte bastante para encontrar outros amores

na vida. Você também pode fazer isso.

  Já então, em retrospecto, era tarde demais. Desde que eu lhe permitira falar da nossa loucura a quatro, nós estávamos engajadas numa luta da qual não podíamos sair.

  Acho que teria sido melhor se eu houvesse ficado caladinha.

  Ela saiu da piscina e cobriu-se com um robe.

  - Quando precisar de seus conselhos, pode estar certa de que os pedirei. Você nada sabe sobre os homens. Vá se foder. Você jamais encontrará um homem

para uma boa foda.

  Ela caminhou furiosa para a casa apertando o robe cuja cauda branca flutuava atrás dela como se fossem as asas de algum anjo muito irado.

  No jantar com a família nós duas nos mostramos razoavelmente civilizadas. Depois ela retirou-se em silêncio para a casa de hóspedes.

  Em certa ocasião Kevin dissera que nós todos devemos viver coro os nossos erros e enganos, e, algumas vezes, até mesmo sem saber se foram realmente erros.

 

  O céu estava cinzento e ameaçador quando caminhávamos para a nossa casa de verão, a espécie de dia que o pessoal da terra chamava de "tempo traiçoeiro". A minha cunhada Kathy desceu correndo a escada com o rosto vermelho de tanto chorar.

  Era tal a sua emoção que não conseguia encontrar as palavras certas.

  - Patsy foi para o hospital. Está muito ferida. Um motorista maluco atropelou-a junto com Sheila e Caroline hoje de manhã. Mike e Herb estão lá. Todos os outros também. Estão querendo você lá para... para... para os últimos ritos - e desatou a chorar novamente. Aquilo me deixou tonto. Liguei o carro novamente.

  - E as outras?

  - Sheila está com um braço quebrado e Caroline está muito machucada, com cortes e contusões.

  O pequenino hospital católico de Genoa, Wisconsin, parecia pequeno demais para abrigar uma tragédia tão grande. Entrei correndo e a moça na recepção, sem que eu lhe perguntasse, foi logo dizendo: "O trezentos e doze." Continuei a correr pelas escadas e pelo corredor.

  Quando entrei estavam todos rezando com Ellen na direção. O quarto estava cheio de freiras, e ali estavam os Currans, os Brennans, com exceção de Kathy. Herb e Mike estavam na cabeceira da cama. Do outro lado estava um padre jovem e um interno, também jovem. Mike sacudiu a cabeça. O murmúrio da reza, muito baixinho, enchia o quarto com uma espécie de paz muito solene.

  No centro de tudo aquilo estava um rosto pequenino e machucado rodeado por uma auréola de cabelos muito louros e revoltos. Os olhos dela estavam fechados.

  - Sinto muito, padre - o padre chegou-se ao meu lado. Já lhe dei os últimos sacramentos. Não tínhamos a certeza se...

  - Está bem, padre - apertei-lhe o braço. - O senhor fez exatamente o que devia...

  O rosário prosseguia. Patsy abriu os olhos, olhou nervosamente em torno e depois tornou a fechá-los.

  - Ferimentos internos - o Coronel segredou ao meu ouvido:

  - O motorista fugiu. Elas estavam lá fora passeando na estrada. O motorista estava bêbado ou drogado. Saiu da estrada e pegou-as. Depois fugiu. Provavelmente era um carro roubado. Caroline tomou nota do número.

  Os meus olhos logo a encontraram ajoelhada ao lado do padre. Não havia expressão em seu rosto e os lábios moviam-se automaticamente na oração.

  Eígueirei-me para fora do quarto e telefonei para a Chancelaria. Art, o secretário do arcebispo, atendeu.

  - Aqui é Kevin Brennan, Art Diga ao seu chefe que é questão de vida e morte.

  - Arcebispo Donahue falando... - disse a voz fria e informal.

  - Patsy está morrendo - fui direto ao assunto. - Foi atropelada e está num hospital em Genoa.

  - Não, meu Deus! Não! - Ele gritou. Houve uma pausa enquanto ele tentava se controlar. - vou rezar uma oração especial para ela na hora da missa, Kevin.

  - Você parece que não está compreendendo, Pat. Ela está morrendo. Em poucas horas estará morta. Você não vai querer vir...

  Ele desligou, mas não antes que me chegasse aos ouvidos um soluço atormentado.

  Voltei ao quarto. Ela estava tentando sentar-se e o seu rosto delicado estava contorcido pela dor e pelo medo.

  - Eu não quero morrer - ela disse muito baixinho. - Por favor, não me deixem morrer...

  O murmúrio suave da oração cessou. Eu procurava alguma coisa para dizer.

  Cároline passou-me na frente. Sentou-se na beira da cama e enlaçou a amiga em seus braços.

  - Não tenha medo, Patsy - falou com imensa ternura. Tudo vai passar. Nós estamos todos aqui com você, e vamos cuidar de você até que Jesus e Maria cheguem para levar você para casa. Eu estou muito zangada com Eles. Nós amamos você tanto quanto Eles e, por isso, achamos que não devem levar você para longe de nós. Acho que Eles estão pensando que precisam de alguém como você para aprontar tudo lá para quando nós chegarmos. É bom que prepare uma bonita festa para mim... um imenso gramado com uma porção de meninos cantando o dia inteiro.

  Patsy sorriu e encostou a cabecinha no ombro de Cároline e depois deixou-se cair tranqüilamente em seu travesseiro.

  - Kevin, você também está aí, Kevin?

  - Eu estou bem aqui, Patsy - aquela não parecia, de forma alguma, a minha verdadeira voz.

  - Posso segurar a sua mão enquanto Jesus não vem? Você é o meu verdadeiro pai.

  Mike fez-me um sinal dizendo que era o fim. Questão de momentos.

  O padre entregou-me o ritual.

  "Pai, em Vossas mãos entrego minha alma. Senhor Jesus, recebei o meu espírito. Santa Virgem Maria rogai por mim. Maria, mãe da graça, mãe de misericórdia, protegei-me do inimigo e recebei-me na hora da morte.

  São José rogai por mim. São José com a Virgem bem-aventurada vossa esposa. Abri-me o seio da divina misericórdia.

  Jesus, Maria, José, eu vos dou meu coração e minha alma.

  Jesus, Maria, José, ajudai-me na última agonia. Jesus, Maria, José, fazei-me repousar em vossa paz."

 

  Logo que acabei a oração, Patsy estendeu seus braços como se quisesse abraçar alguém. Numa voz cheia de doçura e amor ela falou:

  - Sim, sim, já estou pronta. ..

E então morreu.

 

  Art McGrath estacionou o Cadillac nos fundos do hospital. O carro ostentava a placa 100.

  - Entre e vá ver o que há, Art.

  Em poucos instantes o jovem padre estava de volta.

  - Todo mundo já foi, e o corpo está no necrotério do hospital, embaixo, no porão, esperando o agente funerário. A irmã compreende que o senhor prometeu

à família dar-lhe a sua bênção apostólica mesmo se... se já não houver sinais de vida.

  Pat saltou do carro com o rosto transtornado pela dor.

  - Acho que isto vai de encontro à sua teologia, Art. E a minha também, acho eu. Mas, mesmo assim, é um símbolo, e significa muito para os pais.

  Art deu de ombros.

  Deram alguns passos no pátio ensolarado e logo entraram no corredor dos fundos do hospital, fresco e escuro. Uma freira idosa, num hábito à moda antiga, beijou o anel do arcebispo.

  - Minhas orações para todos que a conheceram - disse ela.

  - Muito obrigado, irmã, muito obrigado - ele falava baixinho como se estivesse numa igreja.

  A freira desceu com eles até chegar a um corredor escuro e abriu uma porta com uma das muitas chaves que trazia numa penca na cintura. Ao entrarem, ela acendeu a luz. A sala era toda branca, as paredes, o piso, a mesa e duas cadeiras. Brilhava mais do que lá fora a luz do sol. Numa das paredes havia uma fileira de armários que pareciam arquivos. Art sentiu o estômago embrulhado. Nunca estivera antes em um necrotério. Tudo era limpo e cheirava a desinfetante, ao mesmo tempo negando e afirmando a morte.

  A freira escolheu uma outra chave e abriu um dos armários, puxando uma prateleira. Lá, dentro de um saco plástico, como os que são usados para cobrir equipamentos de escritórios, estava uma linda boneca de cera. com muito cuidado, a irmã abriu a parte superior do saco para revelar um rostinho lindo com cabelos louros. O resto do corpo estava coberto por um lençol muito bem passado. Ela parecia uma estátua, quase viva apesar de estar tão distante da vida. Ao abrir o plástico a freira benzeu-se.

  Pat conseguiu abafar um soluço. An olhava-o inquieto. Toda aquela viagem louca estava muito longe de se parecer com alguma coisa de Patrick Donahue. Ele estendeu o braço mecanicamente, e Ari deu-lhe uma estola de bolso e o ritual.

  Ele rezou monotonamente em latim, mal dando à freira e ao Art o tempo necessário para responderem "Amém". Depois deu a bênção apostólica, já então em inglês, como se a moça morta pudesse ouvi-lo.

  - E, pelo poder que me foi concedido pela Santa Sé, eu a absolvo de todos os seus pecados e concedo-lhe a indulgência plena. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amém.

  Art não acreditava muito em indulgência plena e também desconfiava que Pat pensava da mesma forma. Mesmo assim, por um momento, ele imaginou que poderia visualizar a menina entrando no céu com as asas de anjo. Ela, certamente, parecia um anjo com seu rostinho suave e inocente que, de alguma forma, lhe parecia conhecido.

  - Muito bem, irmã - Pat fez uma pausa. - Muito obrigado. - Falava muito baixo.

  A freira benzeu-se novamente, tornou a fechar o saco, fechou a porta do armário e deu a volta na chave.

  Na volta para Chicago, o arcebispo foi sentado no banco de trás com as lágrimas a escorrer-lhe pelo rosto. De repente, Art compreendeu por que estava achando aquele rosto da moça tão parecido com algum outro.

  Soltou um assovio baixinho e ficou com muita pena de Patrick Donahue. O engraçado era que ele sempre desconfiara que o homem seguia na direção oposta. Afinal de contas, talvez houvesse alguma coisa por baixo daquela fachada impassível.

 

  Arnold Tansey telefonou para meu pai naquela noite para dizei que ele e Georgina consideravam-nos pessoalmente responsáveis pela tragédia e que seus advogados viriam procurar-nos. Aquilo, naturalmente, era uma ameaça tola. Também nos intimou a não comparecer ao enterro, ou ao velório.

  Eu queria ir, de qualquer maneira, mas fui impedido por todo mundo. Rezamos uma missa fúnebre particular na varanda da frente de nossa casa. Não me lembro mais do que disse no sermão.

  Quem rezou a missa foi Pat, já que era íntimo da família Tansey. Em toda a diocese, os padres só falavam de sua grande emoção. Chegara a chorar durante a metade do sermão. Afinal de contas, aquilo servia para provar que ele tinha um coração.

 

  - Este foi o ano em que as mulheres se tornaram um problema mais sério para o senhor do que para o seu arcebispo. - A Irmã Mary Carmel cruzou as mãos por baixo de seu escapulário escuro, como sempre fazia quando marcava um ponto contra mim. - Fico imaginando se um bom psicólogo como o senhor conseguiu encontrar um padrão nesses acontecimentos.

  Em seu hábito marrom e branco à moda antiga, ela poderia ter trinta e cinco anos, como poderia ter cinqüenta. O seu rosto, liso como alabastro, e as sobrancelhas carregadas não ajudavam muito.

  Mexi-me nervosamente na cadeira já minha conhecida que talvez tivesse a mesma idade do prédio, e que tanto poderia ser anterior ao Incêndio como também à Guerra Civil.

  - Seriam as manchas do sol? - eu disse esperançosamente.

  - vou apresentar-lhe duas possibilidades, padre - ela suspirou impaciente. - Pode ser devido ao fato do senhor estar ficando mais velho e, portanto, menos capaz no seu trato com as mulheres usando os métodos comuns para protegê-las, encantá-las ou dominá-las, como também pode ser que tenha sido purificado suficientemente pelos seus sofrimentos, de forma que já esteja agora mais capaz de entreter um relacionamento mais amadurecido com elas. Elas percebem essa nova vulnerabilidade, e então agem de acordo com isso, cada uma ao seu modo.

  - Que sofrimentos?

  - A encruzilhada surgiu - ela continuou pacientemente quando Ellen se tornou uma pessoa de verdade. Ela ofereceu-lhe uma amizade adulta. O senhor não pode aceitar isso, mas também não está preparado para rejeitar. E então hesita. A única graça salvadora que o Senhor lhe concedeu foi o fato de gostar delas.

  - Mas é claro que gosto de mulheres. com o celibato ou sem ele eu sou heterossexual.

  Ainda uma vez ela acenou com a mão, como se não admitisse aquilo.

  - Pois esse é precisamente o ponto. O senhor conservou as mulheres a distância durante toda a sua vida só porque precisava proteger a sua vocação sacerdotal. É bem possível que, já agora, perceba que, no seu caso, esta vocação está protegida pela graça de Deus.

 

  A Irmã Rogéria apareceu em meu gabinete num dia de agosto muito quente dizendo que estava fazendo um master em psicologia da religião. Queria conversar comigo a respeito da orientação que deveria seguir. Aquela foi a primeira das muitas mentiras daquela moça muito simples com um rosto incisivo e cabelos castanhos em desalinho.

  A maior parte das perguntas que ela fazia nada tinha a ver com psicologia ou religião. Ela queria saber tudo sobre meus hábitos de trabalho, meu estilo de vida, minhas atitudes para com o "Terceiro Mundo", o que eu achava do homossexualismo e sobre o papel da mulher na Igreja. Fui ficando impaciente com ela à medida que, laboriosamente, ia anotando literalmente as minhas respostas. Mesmo assim, eu a aturei durante três horas e meia, já que a ajuda a padres e freiras, na minha opinião, fazia parte do resto de vocação que me deixara Pat Donahue.

  Pouco antes de minha partida para Roma em fins de setembro, para um projeto de pesquisa, desde muito planejado, nos arquivos do Vaticano, saiu publicado no National Catholic Repórter o primeiro artigo da Irmã Rogéria. O seu título era "Padre Professor Rico Ridiculariza o Terceiro Mundo e Defende o Colonialismo." O artigo falava sobre a minha suposta fortuna mas, na verdade, colocava-a bem abaixo da realidade, já que não sabia o que me cabia na parte da família. Citava um comentário meu de que o Terceiro Mundo era principalmente um amontoado de ditaduras militares e que o seu povo comum astava em melhores condições quando os governos da Inglaterra e da França o protegiam do genocídio entre as tribos. Eu dissera muitas coisas mais, também, mas nenhuma delas era assim tão escandalosa. A Irmã Rogéria não se interessava por uma comparação entre Tanzânia e Quénia, nem tampouco por uma cuidadosa análise económica dos vários países do Terceiro Mundo.

  Pat enviou-me um recorte do artigo junto com seu cartão pessoal onde o nome, naturalmente, era impresso em vermelho, e um bilhete dizendo:   

  "Preferia que você não dissesse essas coisas, Kevin. Isso só serve para criar embaraços para toda a diocese."

  Parti para Roma sem responder ao seu bilhete. A Irmã Rogéria já havia dado o seu tiro, e não havia mais nada a fazer. Só que eu não sabia que ela tinha um arsenal completo.

  Na primeira noite que passei em Roma jantei com meu amigo Monsenhor Adolpho, no Roberto, que fica na esquina perto do Vaticano e o Borgo Pio. Enquanto bebericávamos os nossos Campari com soda, Adolpho, sem dizer palavra, entregou-me o último numero do National Caíholic Repórter; "Padre Psicólogo Ataca Homossexuais", dizia a manchete. No seu artigo, a Irmã Rogéria dizia que, embora, a American Psychiatric Assodation houvesse resolvido retirar o homossexualismo da lista de doenças mentais, um padre, "que se intitulava psicólogo", classificava os homossexuais e as lésbicas como vítimas de "perturbações muito sérias". Ela deixara de mencionar todas as qualificações, toda a insistência quanto aos direitos humanos dos homossexuais, todas as diferenças entre a reação pastoral e a pessoal, para se concentrar apenas na minha observação de que as ligações homossexuais não possuem as características que reforçam a "durabilidade das relações heterossexuais". Para refutar-me, ela citava muitos "notáveis" psicólogos católicos que consideravam as relações e uniões homossexuais tão boas e válidas como as heterossexuais. A maior parte das pessoas que ela citava era apenas de terapeutas com graus de master em conselhos e orientação.

  - E assim, o Santo Ofício ficará satisfeito sabendo que você concorda com eles, Kevin.

  - Acho que vou receber um outro bilhete de meu arcebispo pedindo-me que não o embarace. Isso ainda vai continuar, pois desconfio que ela ainda tem mais munição.

  - Eu estava sinceramente aborrecido.

  - Não se preocupe com o seu arcebispo - Adolpho fez um gesto expansivo com suas enormes mãos de camponês. - Todo mundo por aqui já sabe que ele é um peso leve.

  O restaurante se enchia e a sala de jantar estava abafada devido à noite quente. A freguesia, toda ela ostentando alguma forma de vestes sacerdotais, desde as batinas até os ternos cinzentos dos protestantes, parecia entregue a conversas de conspiradores.

  Achei-me na obrigação de defender Pat.

   Ele fez um magnífico trabalho repondo tudo em seus verdadeiros lugares. Todos gostam dele, os padres e o povo. E digame, desde quando é preciso ser um peso pesado para ser arcebispo nos Estados Unidos?

  O Adolpho deu uma risada.

  - Eu não tenho influência - o que era uma patente mentira - eu apenas ouço o que dizem. Agora diga-me quais são os seus planos.

  Expliquei-lhe que estava fazendo um estudo psicológico sobre a eleição papal. Ele ficou logo fascinado.

  - Você não imagina, meu amigo, o que significa o papado. Neste último domingo, no fim de uma dessas canonizações intermintáveis com as quais nós divertimos o povo, principalmente durante este ano santo, o pobre Papa, depois de terminar a missa, foi até a frente do altar e, só por alguns instantes, sorriu e acenou para o povo. Ficaram todos loucos de alegria. Ninguém lê as suas encíclicas; ninguém gosta de sua caligrafia; todos acham ruim a sua recusa para aposentar-se aos setenta e cinco anos como todos os bispos são obrigados a fazer. No entanto, quando sorri e acena com as mãos, ele é, durante aqueles rápidos momentos, a verdadeira encarnação da cristandade católica. É isso o que significa ser papa. Ele tem dado um duro, meu amigo... todas as viagens, a luta contra os conservadores na Cúria, a proteção ao Concílio. Você talvez ache que ele alienou os liberais que o teriam apoiado de muito boa vontade. Concordo, mas você não imagina o desastre que ele evitou...

  - Como no caso da encíclica sobre o controle da natalidade? - eu já tinha começado a atacar o meu fettucine.

  - Vocês, lá nos Estados Unidos são os únicos que se preocupam com isso. Aqui, eles olham a multidão que acorreu a Roma para o Ano Santo em peregrinações e, então, acham que o Santo Padre estava certo. Que o povo deu-lhe ouvidos.

  - Será que todos eles olham os índices de natalidade nos países católicos? Será que se dão conta do número de peregrinos que trazem a pílula nas bolsas e ao mesmo tempo, gritam: "Viva o Papa"? Será que sabem como entrou pelo cano a credibilidade deles a respeito de sexualidade? Será que sabem o que está acontecendo com as vocações?

  - Há os que sabem, Kevin, e há os que não sabem. - Adolpho levantou novamente os braços. - Todos ainda se deixam levar pela fé dos. peregrinos. Autodecepção? Claro que é, mas você ainda não compreende Roma se está pensando que uma crise de pouca duração deixa-os perturbados. A resposta que lhe darão é que representa uma vergonha o fato da Igreja estar morrendo no mundo do Atlântico Norte, mas que a Europa Oriental e o Terceiro Mundo representam o futuro para ela.

  - Será que abrem mão do Ocidente assim com tal facilidade? - eu estava espantado.

  - Vista aqui - com o copo de vinho na mão, ele acenou na direção do Borgo - de dentro das paredes do Vaticano, Chicago não passa de uma cidade nova e pequena. Eles pensam em coisas remotas, isto é, em séculos. É uma desculpa maravilhosa para não voltarmos ao trabalho depois da sesta.

  - E a eleição?

  - Ninguém fala nisso. O Sínodo dos Bispos, no ano passado, trouxe a Roma muitos dos cardeais eleitores. O Papa não está bem de saúde, mas, mesmo assim, ninguém falou em conclave. Seria uma indecência falar nisso enquanto o Papa está vivo, não acha você? - ele sorria amavelmente.

  - E como é que descobrem quais são os candidatos?

  - Ficam sabendo disso quando lerem a revista Time. Ele levantou os braços. - Onde mais acha que poderiam descobrir?

  - E a Cúria dominará a eleição? - eu estava desanimado.

  - Você precisa compreender, Kevin - ele empurrou para o lado o seu fettucine ainda pelo meio - que a Cúria tem muitas vantagens. Os cardeais serão convocados em todas as partes do mundo sem qualquer aviso prévio. Serão arrancados de seus afazeres. Chegarão cansados da viagem a jato. Pode ser que aqui esteja muito quente.

  Eles não terão conhecimento dos processos, dos problemas ou dos candidatos. A Cúria sabe como fazer as coisas. Irão escolher aqueles que pregam nas novenas rezadas para o repouso do Papa. Todos saberão onde ficam os banheiros. Controlarão tudo - dizendo isso, ele cruzou os braços fortes e encostou-se na mesa.

  - Então eles ditarão o resultado? - eu estava quase desesperado.

  - Vou-lhe contar um grande segredo, Padre Kevin Brennan.

  - Ele abaixou a voz e falou solenemente. - Eles estão desorganizados, divididos por facções, politicamente ineptos. Controlam a Igreja porque são os únicos aqui.

  Sempre que um stranierí aparece por aqui, ele vence a Cúria. - Acenou com o garfo na direção da sala. - Quando surge uma luta entre políticos medíocres e políticos sabidos, quem é que vai ganhar?

  - Uns poucos irlandeses de Chicago poderiam ir longe, Adolpho.

  - Talvez como o Cardeal Patrick Donahue, nem?

 

  Maureen já estava recolhida quando cheguei ao apartamento. Os nossos cumprimentos no aeroporto tinham sido apenas superficiais. Ela sabia das ameaças que eu fizera ao Pat e mostrara-se fria comigo nas poucas vezes que nos encontramos depois daquilo.

  Tomei um banho de chuveiro e deitei-me deixando a janela aberta para aproveitar a brisa fresca da noite. Na manhã seguinte era possível que a chuva entrasse no quarto trazida pelos ventos do sudoeste. O cheiro da cidade estava ainda mais forte do que durante o Concílio, mas havia menos barulho porque as Vespas tinham sido substituídas por pequenos Fiats.

  As chuvas vieram mais cedo do que fora previsto. Relâmpagos, trovoadas e uma chuva torrencial varriam a cidade. Acordei com o barulho de Mo fechando a janela de meu quarto.

  - Se não fechar a janela, tudo isto vai ficar encharcado... - a sua voz ainda era sonolenta.

  - Claro...

  - Podemos conversar um pouco, Kevin? - Ela veio sentarse na beira de minha cama.

  - Desde quando é preciso perguntar isso, Mo? - Eu estava de sobreaviso tanto quanto às minhas emoções como às dela. Se é o que você está pensando, esse tal de dossiê não existe.

  - Aquele pobre idiota! Não sei o que lhe deu na cabeça. Só porque um bando de padres reclamava contra você.

  Eu estava ali sem jeito, arrependido de não ter trazido um pijama.

  - Você sabe que não era só isso, Mo. - Eu via que ela estava impaciente comigo.

  - Muito bem. Ele tem algumas coisinhas contra você, da mesma forma que você tem contra ele. Mesmo assim, foi uma tolice da parte dele pensar que podia mandar em você. Só que você não precisava ser tão cruel como foi. Aposto como você adorou o que fez.

  - Não fui eu quem começou a briga. Mo - Eu estava na defensiva.

  - Mas foi você quem acabou, não foi mesmo? - Ela estava furiosa. - Sabe que ele queria demitir-se naquela mesma noite? Gastei duas horas de telefone interurbano para convencê-lo de que estava maluco. Ele está sempre pensando em se retirar para um mosteiro e penitenciar-se para o resto da vida.

  - Olha que não era má idéia, sabe? - Eu queria ver o seu rosto, mas não conseguia.

  - De forma alguma, com todos os diabos! Ele é um bom arcebispo, não é mesmo? É o melhor do país, não é?

  - Porque você lhe diz o que deve fazer. - Eu também já estava furioso.

  - E que diferença faz isso? Ele precisa de ajuda que você não lhe dá... - Ela socava a cama, furiosa.

  - Ele não devia ser arcebispo. - Eu insistia.

  - E quem devia ser? Você? A sua mágoa é que ele passou na sua frente. Você, seu miserável filho de uma puta...

  - Pelo menos eu não fico entrando e saindo da cama com toda mulher que aparece. De qualquer forma, não se assustem que eu não vou pôr o apito na boca contra vocês dois. Claro que nunca pensei em concretizar a ameaça, e você sempre soube muito bem disso. Ele é estúpido demais para ver que eu jamais o faria.

  - Eu o amo tanto, Kev. - Ela soluçava como se estivesse sofrendo dor atroz. - Todas as vezes que ele tenta acabar eu deixo que ele parta, mas ele sempre acaba voltando. Eu não posso viver com ele e também não posso viver sem ele. Eu também estou contribuindo para destruí-lo. Deus meu! Eu não sei o que fazer. Passo noites sem dormir só pensando nisso.

  Puxei sua cabeça para o meu peito e acariciei-lhe os cabelos negros e longos.

  - Tudo vai acabar bem, Mo...

  - Não. Não vai não. - A sua resposta foi cheia de convicção. - Nós dois estamos amaldiçoados. Bem que eu gostaria de encontrar ainda alguma felicidade nos poucos anos que nos restam.

  Comecei a acariciar-lhe a pele de veludo das costas, gostando de sentir a maciez de seu corpo por baixo da camisola muito fina.

  - Você não vai para o inferno, Mo. Nem tampouco o Pat. Tudo vai se resolver. É uma questão de tempo. Tudo vai acabar bem, Mo.

  Ela estava ali em meus braços completamente relaxada e tranqüila. Afinal falei desajeitadamente:

  - Você devia arranjar um marido...

  - E quem vai querer uma mulher velha e já usada, Kev?

  - Você não é nem velha nem usada, Mo. - Eu respirei fundo.

  Pouco depois já ela dormia tranquilamente em meus braços.

  Arrumei-a na cama cobrindo-a com um lençol.

  Fiquei a pensar comigo mesmo. "Que grande amoroso é você, Brennan. Pega uma linda mulher na cama com você depois de quatro décadas de fantasias, e tudo o que consegue é fazê-la dormir."

  Como resposta, resolvi dormir também.

 

  Quando voltei de Roma verifiquei que a Irmã Rogéria continuava a sua fuzilaria. Tinha vasculhado todas as críticas de meus livros técnicos junto com os populares e transformara uma série de citações isoladas, fora do contexto, para condenar a minha competência profissional. Uma das manchetes dizia "Padre 'Especialista Desancado pelos Críticos." Depois vinha uma versão espúria de minha luta com a universidade. "Revelação de Incompetência é a Razão para a Decisão de Vitaliciedade de Padre 'Especialista'." O Coronel telefonou de Tucson.

  - Ela agora se excedeu. Vamos atirar em cima dela uma ação por calúnia. "Incompetência profissional" é uma acusação que nos dá razão para isso.

  - Talvez não valha a pena, pai - respondi-lhe sem muito entusiasmo.

  - Campeão, quem está ficando velho sou eu, e não você. Pois então não quer ganhar? - Ele pareceu assombrado.

  - Eu talvez consiga os votos por uma questão de simpatia...

  - E então, pela primeira vez pensei nessa possibilidade.

  - Ela vai mandar o seu livrinho para todos os bispos e pastores do país, Kevin,

- Quem é que lhe dá o dinheiro? - Aquilo já me cheirava a uma conspiração e eu já estava começando a pensar como o Coronel e sentindo o cheiro da pólvora.

  - A sua velha amiga Georgina Carrey - a sua resposta foi imediata - que agora é Georgina Tansey.   

  - Até mesmo lá naquele fim de mundo, à sombra do Monte Lennon, ele estava a par de tudo.

 

  Ellen achava que a poltrona do arcebispo era como uma enorme banheira. Quem caísse lá dentro teria, praticamente, uma escalada para sair. Ela sentia-se só, cansada e razoavelmente "alta". Não queria ser obrigada à escalada.

  - Esta é uma casa bonita, Pat - ela disse, engolindo um pouco de conhaque. - No entanto, apesar de seu tamanho e de todas as suas chaminés, ela não me parece confortável.

  - Eu quero crer que o Arcebispo Feehan construiu isto aqui mais para se exibir do que para conforto. Sabe que estas terras pertencem às freiras do Mercy? A irmã de Feehan era freira do Mercy. Eles, aparentemente, compraram o terreno para que ele pudesse construir a casa. O O'Neil tentou vender o terreno trocando-o por um arranha-céu, mas descobriu que não podia fazê-lo. As irmãs disseram-lhe que ele poderia vender o terreno, mas o dinheiro seria delas. - Ele soltou uma risada.

  - É por isso que a casa ainda está aqui como um marco histórico terrivelmente inconfortável e também inconveniente. Custa um dinheirão para a calefação e para a refrigeração.

  Apesar de todos os seus tapetes e valiosos móveis antigos, de seus lambris de carvalho e de tecidos que cobriam as paredes, a "Mansão do Cardeal" não valia todo aquele esforço. A volta pela mansão era o anticlímax até mesmo depois do soturno jantar da Diretoria da Orquestra a que comparecera antes. Viera só porque Herb estava viajando e tinha ficado encantada quando se sentara ao lado de Pat no jantar.

  - Onde é que estão as vantagens, Pat? - Sua língua já estava pastosa depois do uísque, do vinho e agora do conhaque. - Eu não acredito que sejam estas acomodações muito caras, a placa especial do carro ou os bilhetes de primeira classe nos aviões.

  - Há sempre algumas - ele sacudiu a cabeça mostrando que compreendia - como, por exemplo, o poder, a possibilidade de fazer com que os outros se dobrem às suas vontades. Há ainda outras, como a aclamação, o título "Sua Eminência" ou "Sua Excelência", o olhar de respeito, e até mesmo de subserviência na fisionomia das outras pessoas. Eu vi a que tudo isso levou no caso do O'Neil, e não quero que me aconteça o mesmo. Eu sou humano, como você bem sabe, e por isso não desprezo todas essas coisas que forjem parte do cargo. Mas se isso fosse tudo, eu me demitiria em cinco minutos. Você e o Kevin podem não acreditar, mas é a pura verdade.

  - Eu acredito sim - ela respondeu-lhe com solenidade. É possível que tudo isso atraísse você antes, mas é alguma coisa mais que o mantém morando aqui neste horroroso prédio vitoriano.

  Ele sacudiu a cabeça concordando em silêncio.

  - O que é? - Ela insistia, terminando o seu conhaque e jurando que não beberia mais nada.

  - Eu sou um arcebispo bom como o diabo, Ellen - ele fez uma careta. - Sou um dos melhores do país. Você não encontrará, em todo o mundo, uma diocese mais democrática, responsável e progressista do que esta aqui. Nós limpamos toda a sujeira que havia, obra do O'Neil, e estamos indo em frente... - Hesitou um momento, sacudiu a cabeça como se quisesse limpá-la. Sinto-me feliz com tudo que consegui fazer. Não acha que isso é o bastante?

  - É mais do que o bastante, Pat.

  Ele tornou a encher o copo dela com conhaque e voltou para o sofá com o corpo tenso.

  Ela devia partir. A conversa àquela hora da noite, à luz difusa do gabinete opulento mas inconfortável, estava fazendo com que tudo aquilo parecesse um sonho surrealista, - Preciso ir para casa, agora, Pat.

  - Muito bem, vou buscar o seu casaco.

  Ele saiu da sala e voltou logo depois com o casaco no braço. Ela levantou-se sentindo que suas pernas não estavam muito firmes. Quando ele segurou o casaco para que o vestisse, pareceu-lhe que havia em seus olhos azuis um brilho muito duro.

  Quando ela se voltou para enfiar as mangas no casaco, ele segurou-a pelos ombros fazendo-a girar. Seus lábios apertaram-se contra os dela. O álcool e o medo paralisavam seus movimentos.

  - Não... - ela suplicou.

  Primeiro ela tentou lutar, mas ele era forte e ela era pequenina, fraca e embriagada. A sua resistência só servia para diverti-lo e para aumentar o brilho cruel que via em seus olhos. À medida que ia mergulhando naquele pesadelo, ela continuava a pensar que ele odiava as mulheres.

  Ele agora tinha mais prática do que naquela noite no parque Mantendo-a imóvel com um de seus fortes braços, ele ia despindo-a com o outro sem se apressar, como se estivesse brincando. Exausta e vencida ela deixou-se cair no fundo do pesadelo.

  Ele levou-a até o sofá onde recomeçou suas explorações. Ela estava pronta para ele. Mais do que pronta. Seus suspiros já eram agora gemidos de prazer. Deus meu, eu não quero...

  Ele continuava a brincar com ela, levando-a até à beira do prazer e logo retrocedendo.

  De repente parou.

  Afastou-se, cambaleando, do sofá e deixou-se cair de joelhos ao lado de sua mesa, soluçando. Bateu com a cabeça contra a almofada da poltrona como se fosse um ataque epiléptico.

  Imediatamente, ela viu-se lúcida, outra vez. Era, de novo, a enfermeira. Sua excitação sexual desaparecera. Cobriu-se com a roupa de baixo, correu ao corredor onde encontrou um banheiro e voltou logo com toalhas molhadas. Ajoelhou-se ao lado do arcebispo em convulsões e enrolou-lhe no rosto uma toalha molhada.

  - Tudo está bem, Patrick. - Ela procurou acalmá-lo. Tudo está bem.

  Aos poucos, ele deixou de tremer e os soluços se extinguiram Então, como um balão furado, ele deixou-se cair. Ela ajudou-o a voltar para o sofá. O seu rosto parecia o de um morto.

  Ela sentou-se na cadeira mais perto dele, 'ainda encolhida em sua combinação.

  - Se alguém vai desmaiar - ele falou com voz rouca sempre é melhor que o faça na presença de uma enfermeira psiquiátrica. - Mais uma vez, a sua gargalhada tocava as raias da histeria.

  - Pare com isso, Patrick! - ela gritou.

  - Ellen, eu te adoro. - Ele escondeu o rosto nas mãos. Sempre te adorei. Eu não queria fazer aquilo. É uma coisa terrível que explode dentro de mim. Eu não queria fazer aquilo.

  - Eu sei disso, Patrick. - Embora o seu coração ainda estivesse aos saltos, ela procurava acalmá-lo.   - Se você quisesse mesmo, então teria ido até o fim.

  - Eu estou maluco. Sempre fui, creio eu. Quando estou longe da Mo e quando as coisas não vão bem por aqui... - Continuava com a cabeça enterrada nas mãos.

  - Você está precisando de ajuda, Patríck... - ela falava calmamente, como se fosse a coisa mais natural do mundo estar ali sentada, quase nua, na casa do arcebispo, discutindo seus problemas emocionais.

  - Eu sinto-me tão envergonhado... - Ele continuava a soluçar, embora já não histericameníe, e sim profundamente, cheio de tristeza. - Você, a Mo e o Kevin são mais importantes para mim do que qualquer outra pessoa neste mundo. E mesmo assim, eu atrapalho a vida da Maureen, afasto-me do Kevin e depois ainda tento violentá-la.

  Eu não quero magoar nenhum dos três, porque são três pessoas que amo.

  - Especialmente o Kevin - disse ela numa explosão de compreensão.

  - Você também sabe disso? - Ele levantou os olhos para ela. - Especialmente o Kevin. Não diga nada a ele, sim?

  - Claro que não vou dizer.

  - Creio que, provavelmente, eu sou mais homossexual do que qualquer outra coisa. Não existe a ira nem o ódio. Tudo é paz. É estranho que esta seja a primeira vez que pronuncio essa palavra a respeito de mim mesmo.

  - Isto é querer simplificar demais, Paírick. As suas relações com a Mo desmentem o que você diz.

  - De qualquer maneira, sou maluco mesmo - ele levantou-se ainda meio cambaleaníe, como uma pessoa que se recupera de uma longa doença.

  - Você é uma boa perspectiva para a terapia. Você logo veria tudo claramente, Pat. Você tem que fazer isso. Isso vem atrapalhando toda a sua vida.

  - Você está brincando, Ellen - ele esboçou um risinho fraco. - Já imaginou um arcebispo às voltas com essa terapia? Nunca daria resultado... Não se preocupe mais, você aqui está tão garantida como se estivesse num convento.

  Foi somente depois que ele saiu da sala que ela pensou em se vestir. À medida que o fazia, quase chegava a se persuadir de que tudo aquilo fora apenas um sonho.

  Ele voltou e ofereceu-se para levá-la de volta para casa.

  Quando abria a porta para saírem ele ainda lhe pediu perdão mais uma vez.

  - Mas é claro, Pat. - Ela esperou que suas palavras parecessem sinceras. - Prometa-me que você vai pensar em tratatamento, sim?

  - Está bem, El. vou pensar nisso seriamente.

  Na luz difusa da iluminação da rua o seu rosto bonito estava devastado e encovado.

  Ela sabia que ele não ia procurar ajuda. Jamais o faria.

 

  Patrick Henry Donahue conseguiu o seu chapéu vermelho dentro de uma semana do meu vigésimo aniversário como sacerdote.

  Eu tinha lutado até chegar à beira da depressão e desânimo. Meus livros vendiam mais que nunca. O meu grupo de jovens dos tempos de St. Praxides, a maior parte deles já na casa dos trinta, estava rejuvenescido. Eu estava arranjando para mim um nicho na Igreja dos Estados Unidos, na periferia, não havia dúvida, mas sempre era um lugar onde me seria possível encontrar a satisfação. Mesmo assim, no entanto, eu não conseguia dar os passos finais para sair de dentro da bruma. A nomeação de Pat para o Sacro Colégio, para a qual eu deveria estar preparado, atirou-me de volta ao nevoeiro espesso.

  - A Igreja está melhorando - eu disse à Irmã Mary Carmcl. - As pessoas estão voltando a ela. Chegaram à conclusão de que podem ser bons católicos e também ignorar os ensinamentos da Igreja. Meus irmãos todos são leigos dedicados cujas consciências não se deixam perturbar pelo controle da natalidade.

  - E Deus conseguiu tudo isso sem a sua ajuda e a despeito de suas previsões - a Irmã deu-se ao luxo de um sorriso. - Foi uma falta de consideração da parte do Senhor!

  Eu já vivia triste, acabrunhado e solitário. Não precisava que ela ainda tornasse as coisas piores.

  - O senhor está perturbado agora porque o seu amigo e colega foi elevado a cardeal - ela continuava. - O senhor mesmo reconhece que ele é um dos melhores arcebispos dos Estados Unidos. O que o ofende e deprime é o pensamento de ser, em parte, o responsável pelo seu sucesso. O senhor deve decidir, a cada nova promoção, se vai continuar a arcar com a responsabilidade.

  - Ele é um homem feito de papier-maché, irmã. É um boneco que anda. A senhora o viu no comício da Chamada à Ação, em Detroit. Ele repetia todos os chavões liberais que estão nos livros. Depois ele foi à reunião dos bispos onde ajudou a torpedear as recomendações da conferência e então, como recompensa, ganhou o chapéu vermelho.

  - Acha que ele é o único homem de igreja de grande competência política? - ela suspirou, mais desesperada do que nunca.

  - Será que é o primeiro arcebispo que considerou impossível o celibato? Será que ele é o primeiro cardeal de papier-maché? O senhor jamais irá denunciá-lo, padre. Vai continuar a ajudá-lo como sempre fez desde os tempos de colégio, e durante toda a sua vida, se for necessário, como o senhor mesmo o diz. O senhor deve, no entanto, desistir dessa ridícula pretensão quando acha que, se não fosse pela sua ajuda, o Todo-Poderoso não encontraria outro instrumento para usar Patrick Donahue como agente para o Seu Plano. O senhor exagera muito quando quer se atribuir a responsabilidade de coisas feitas pelo Todo-Poderoso e não por Kevin Brennan.

  - Ele vai se deixar apanhar, irmã... - eu não conseguia esconder minha tristeza.

  - É possível que isso aconteça, meu bom padre - ela já tinha novamente enfiado as mãos por baixo do escapulário - mas a igreja sobreviverá da mesma forma que o amor de Deus pelo senhor.

 

  Naquela noite eu jantei no Chicago Club com Ellen e Herb, cujo cabelo já estava completamente grisalho. Ellen também se permitia uns laivos brancos em seus cabelos louros e macios porque sabia que aquilo ainda a tornava mais alucinantemente bela. Aos quarenta e três anos a minha ninfa irradiava maturidade e sensualidade satisfeita, da mesma forma que uma mamãezinha dourada irradia alegria diante da inevitabilidade do Inverno.

  - Meu querido Kevin - o seu sorriso já era agora mais demorado e cativante - será que eu me arriscaria a pecar se perguntasse por que você tornou a descobrir o bom doutor e eu mesma?

O garçom trouxe-lhe o salmão que ela pedira. Havia muito poucas mesas ocupadas na solene e augusta sala de jantar. Os homens nas outras mesas não tinham tirado os olhos de cima de Ellen desde que ela entrara.

  - Logo de saída nós pensamos - disse Herb, provando cautelosamente o clarete - que você estava preocupado com a Caroline. No entanto, quem jamais poderia ter uma filha de dezoito anos tão sossegada e adorável, até mesmo quando ela vai para Notre Dame, se Deus quiser?

  - Quer dizer que temos um mistério. - Os olhos cinzentos de Ellen perseguiam-me da mesma forma que sempre o haviam feito desde os tempos do lago quando éramos garotos.

  - Por que será que o Kevin anda preocupado conosco? Não é pela Caroline nem nenhuma das outras crianças. Será que pensa estarmos com problemas conjugais?

  - Então você acha que eu procuro a companhia de vocês só quando me sinto responsável pelo que possa haver com o casal?

  - Uma vez por mês, regular como um relógio, durante os últimos cinco meses - Ellen largou o garfo. - De repente, sem avisar, Kevin Brennan passa a fazer parte de nossas vidas... Segurou-me a mão. - Quando isso acontece com alguém, a razão é que anda preocupado com eles e está querendo ajudar. Nós apreciamos e gostamos da ajuda, mas queremos saber a razão.

  - Eu procuro vocês todos os meses porque a Irmã Mary Carmel acha que devo fazer isso. - Eu sentia o meu rosto pegar fogo.

  - Ela acha que é bom para minha vida espiritual ter vocês como amigos.

  - E quem é essa Irmã Mary Carmel? - Ellen olhou-me desconfiada e um pouco zangada.

  - É a minha... bem, acho que "diretora espiritual" seria o título certo. . . - Abaixei a cabeça no prato atacando o bife. Ela é encantadora... e se preocupa muito com o meu bem-estar espiritual. Receitou-me mais interação com amigos íntimos. Deus sabe que é verdade. - Eu estava radiante porque via a Ellen com ciúmes.

  - Ela sabe quem eu sou... quem nós somos? - Ellen ainda tinha as suas dúvidas, mas os cantos de sua boca já esboçavam um sorriso.

  - Ela sabe o que você e Herb significam para mim. Diz que eu preciso passar mais tempo com pessoas. Espero que não pensem que apenas pretendo usá-los.

  - Mas pelo amor de Deus. . . - explodiu Herb numa rara vazão de profanação.

  - Imaginem só! - Ellen ria gostosamente. - Kevin tem uma mulher como diretora espiritual! Mas isso é absolutamente maravilhoso. Conte-nos tudo sobre essa mulher, Kevin. Será que ela o obriga a fazer as suas orações todas as noites? Você faz uma lista de seus piores erros? É ela quem lhe dá a absolvição? Será  que é realmente bonita?

  - Ellen. . . - Herb repreendeu-a com suavidade.

  - Kevin sabe que estou rindo para não chorar... - Fitou-me com seus olhos úmidos. - Como estou contente porque você... não quero dizer que "encontrou ajuda"...

  - Exibiu um largo sorriso. - Estou até muito satisfetia porque você encontrou alguém com senso bastante para obrigá-lo a nos ver todos os meses. Quem sabe se não seria melhor de quinze em quinze dias?

  - Eu não sei, mas vou perguntar. - Eu queria escapar. Ela diz que os hábitos virtuosos devem ser adquiridos lentamente.

  - Diga-nos se ela é bonitinha mesmo, Kevin.

  - Absolutamente linda! Alta, esbelta, flexível, cabelos negros, tem a espécie de corpo que não precisa se preocupar com calorias e é imune às tentações terrenas como, por exemplo, o chocolate.

  A Sra. Strauss teve um muxoxo de desprezo e pediu musse de chocolate para a sobremesa. Os dois queriam, por força, conhecer a Irmã Mary Carmel.

  Nada disso.

 

  Pat era agora um magnífico amante. Era mais exigente que Sloane e mais delicado que o Fredo. As suas carícias preliminares eram ternas e sensíveis. Ele preparava-a lentamente, não se apressava, despertava todas as células de seu corpo, recusando-lhe a união até que ela estivesse louca de desejo. Agora, a sua pujança servia para agradá-la em todos os sentidos, e as suas exigências eram mais para a satisfação dela e não da sua.

  - Eu te agradeço muito, Pat... - ela sentia-se ofegante e cobria-se numa tardia manifestação de pudor que, muitas vezes, se seguia depois que faziam amor - ... tenho andado tão aborrecida por causa da Sheila. Precisava ser amada assim.

  Ele acariciava-lhe o rosto com as pontas dos dedos, falando com ternura.

  - A pobre Sheila tem que viver a sua vida da mesma forma que nós temos que viver a nossa. Lá em Dublin, ela está procurando encontrar a sua independência. Ela voltará - afastou-lhe a coberta do corpo já que desejava vê-la por inteiro. Ela pensou, mais uma vez, que precisava ficar mais magra e fazer mais exercícios.

  - Você é um homem muito sensível e terno, Pat.

  - Se sou mesmo assim é porque você me ensinou as duas coisas... - ele sussurrou-lhe, e o seu rosto preocupado mostrava aquela tristeza que significava estar ele pensando, mais uma vez, na terrível contradição que lhe arruinava a vida, - Tudo que tenho de bom em mim foi você quem me ensinou. Deus bem sabe que não é muito, mas eu devo tudo a você... - Começou a libertar-se de seus braços.

  Não haveria mais amor naquela tarde. Ela sentia-se prejudicada. Continuou deitada no sofá. Enquanto ele se vestia, ela desejava que a imagem de seu corpo ficasse gravada na memória dele e que ele voltaria antes de sair de Roma.

  - Estou admirada porque Kevin e Ellen com o Herb não vieram para o consistório - ela disse.

  - Pois eu não estou. - Ele já estava vestido e enfiava o paninho vermelho por baixo do colarinho.

  - Vocês dois ainda estão zangados? - Ela estava arrependida por não haver falado sobre aquilo que, afinal, era o assunto mais importante.

  - Como é que podemos fazer as pazes? - Ele enfiou o casaco preto que assentava bem em seus ombros largos. - Ele tem o poder de vida e morte suspenso sobre a minha cabeça. Tanto quanto eu saiba, pode até haver uma carta em cima da mesa de Villot ou de Caprio, denunciando-me. Sou obrigado a viver sabendo que Kevin pode liquidar minha carreira apenas estalando um dedo... - Seus ombros estavam tensos com a raiva contida.

  - Ele jamais faria uma coisa dessas, Pat. Nada fez até aqui, não é? Ele não o teria ameaçado se você não o houvesse encurralado. Tente fazer as pazes com ele, Pat.

  - Eu sei disso, Mo. - Ele veio sentar-se ao seu lado no sofá, e falou-lhe baixinho enquanto acariciava-lhe o rosto. - Foi uma grande estupidez de minha parte. Depois de você, Kevin é o melhor amigo que jamais tive. Não posso deixar de ficar furioso com ele, embora me corte o coração o fato dele não estar aqui celebrando junto comigo. É uma vitória dele tanto quanto minha.

  Era ela quem lhe ensinava o que dizer e o que fazer. Era ela também quem lhe ensinava como amar. Ela jamais poderia dar-lhe profundidade, da mesma forma que jamais poderia retirar de Kevin o excesso de profundidade que ele tinha, e que era o seu azar. Se apenas, de alguma forma, os dois pudessem se equilibrar.

  - Isto é a coisa que você sempre desejou desde que foi para o seminário em Quigley, não é mesmo?

  - Eu tive a impressão de ter visto isso na visão que tive da Virgem Maria. - Ele franziu a testa. - Só que nunca pensei que poderia acontecer. Talvez fosse melhor para mim se não tivesse acontecido. Você vem pensando nisso desde muito tempo, não é mesmo? - Ele estava ali de pé ao lado dela.

  - Eu poderia estar errada - ela tocou-Uie o braço.

  - Seja isso bom ou mau para mim, o fato é que aconteceu. Acho que deveria estar encantado. No entanto, na realidade, não parece fazer muita diferença. Como eu queria que Kevin estivesse aqui, mas sabendo que o meu chapéu vermelho não o impressionaria de maneira alguma... - Ele parecia não ter vontade de ir embora.

  - Já resolvi que vou me aposentar quando fizer vinte e cinco anos. Já então eu terei feito aquilo que vim fazer em Chicago. Então será a hora de tentar alguma coisa mais. Eu serei o primeiro a mostrar que ninguém precisa ser um cardeal para o resto de sua vida. - Ele dizia aquilo pensativamente e a sua imaginação estava muito longe.

  - E o que é que vai lazer quando chegar essa hora? - ela pegou-lhe a mão e pousou-a em seu seio. Ele não resistiu.

  - Eu não sei - ele acariciava-a ainda com o pensamento muito longe. Ele olhou para o relógio. - Puxa vida! É mais tarde do que eu pensava. Prometi

ao Tonio e ao Fredo que iria tomar uns drinques com eles, antes da recepção desta noite na Embaixada da Itália no Vaticano. Você não acha uma maravilha o

fato de Tonio e eu termos sido elevados na mesma ocasião?

  Ela largou-lhe a mão para que ele pudesse ir para o seu outro mundo. Ela não podia competir com Tonio Martinelli.

  Ela ficou pensando em todas as outras mulheres que haviam amado cardeais através dos séculos. Muitas delas tinham feito amor com seus cardeais naquele mesmo palazzo em que ela e Pat haviam estado abraçados, alguns momentos antes, de maneira tão maravilhosa.

  Ela e Pat faziam parte de um século errado. Em uma outra era eles teriam condições de se amarem abertamente. Agora era preciso fingir. E o que aconteceria se ele descobrisse que ela andava dormindo com o Fredo? Ele conseguiria compreender? Ele era um amante muito mais soberbo do que o depravado Fredo, que só conseguia chegar ao fim com brutalidade e crueldade. No entanto, e cada vez mais, ela tinha necessidade de alguém bruto e cruel, de alguém que a fizesse sentir uma dor que conseguisse dominar aquela outra dor que lhe ia na alma.

  A tarde era quente e uma agradável letargia percorreu seu corpo. Como era bom dormir nua num sofá de um velho palácio em Roma, ouvindo a distância as risadas de crianças... sonhando que era uma trágica heroína do passado.

  O Sínodo dos Bispos, no outono de 1977, foi o ponto mais alto do pontificado de Paulo VI. Os bispos do mundo inteiro acorreram a »Roma para discutir sobre a educação dos jovens. Até mesmo os mais obtusos sabiam que a Igreja não era bem-vista pela juventude devido à posição adotada a respeito de moralidade sexual e, especialmente, devido à insistência hipócrita quanto ao controle da natalidade, que era rejeitado pelos leigos, que o clero se recusava a fazer cumprir, e que sua hierarquia só respeitava de boca. Mesmo assim, ninguém se atrevia a falar nos problemas da moralidade sexual com receio de ofender o idoso Papa. Tampouco houve qualquer discussão quanto a um possível conclave, mesmo quando o Papa estava cada vez pior com o passar dos meses.

  - Será que estão todos cegos? - foi o que perguntei ao Padre Cárter quando estávamos os dois sentados em seu gabinete, bem dentro do Vaticano, vendo os jardineiros cuidarem das flores do outono ali nos jardins. - Quanto tempo ainda acham que o homem vai durar?

  Cárter era um jesuíta de Los Angeles que teria preferido assistir aos jogos lá, nas tardes dos domingos de outubro. Levantou as suas finas mãos de artistas.

  - É engraçado - disse. - No Sínodo de três anos atrás falava-se mais de um conclave. Ninguém imaginava que ele duraria tanto. Agora já todos dizem que ele está cada vez mais lúcido.

  - E você acredita nisso?

  - Acredito que ele esteja lúcido somente durante umas quatro horas por dia.

  Eu sentia tristeza a respeito de Paulo VI, um homem cheio de boas intenções cujos sonhos de mudanças tranqüilas na Igreja se tinham desmoronado. Ele agarrava-se à vida, como todos nós, alguns poucos anos para os melhores e piores de todos nós.

  - E o conclave?

  - Nada mudou, a não ser que o Benelli está agora em Florença como cardeal.

  - E ele é favorito? - Eu sabia que de seria um papa bem duro.

  - Duvido muito. - Cárter levantou-se e foi até a janelinha.

  - Não acredito, porque ele fez muitos inimigos aqui. O meu palpite, contudo, é que ele bancará o fazedor de reis em favor de algum italiano que não pertença à Cúria, talvez Ursi, de Nápoles, ou então Luciani, de Veneza.

  - Já ouvi dizer que Ursi é um pouco. .. instável... - Eu fingia que estava olhando os jardineiros lá fora, mas estava realmente prestando muita atenção a Cárter.

  - Cada dia que passa ele fica mais maluco! - Cárter sacudiu a cabeça, sempre mais interessado nos jardins do Vaticano que estavam ali perto e eram um problema imediato, ao passo que o conclave, pelos seus cálculos, estava, pelo menos, a um ano de distância. - O seu amigo Pat vai muito bem por aqui. É o único cardeal dos Estados Unidos que enxerga um palmo adiante do nariz. Poderia ser uma figura importante no conclave. Ele sabe o que fazer. - com alguma relutância ele voltou para sua mesa e deixou-se cair na poltrona, com o seu rosto ascético muito pensativo.

  - E um estrangeiro? - perguntei-lhe já na porta.

  - Não vejo possibilidade. Não há um número de votos prontos para quebrar a tradição. Não acredito. Terão que encontrar algum italiano aceitável.

  - Em quem é que vale a pena ficar de olho? - eu insistia.

  - Se alguém lhe der vantagem, pode apostar em Wojtyla, o que está em Cracóvia. . . mas é muito difícil...

  - Um papa polonês?! - Fiquei espantado e deixei escapar todo o meu preconceito de irlandês de Chicago. - Está brincando!...

 

  - Meu Deus, como é bom ver você e Ellen com o Herb outra vez. Pensei que estivessem zangados comigo. Não respondi às cartas de Ellen nem telefonei para você quando estive aqui da última vez. Acho que você sabe por que, não sabe mesmo, Kevin? Estou alegre porque você não tem raiva de mim. - Tudo isso era o que Maureen falava enquanto se desviava de um louco na direção de um Fiat.

  - Pelo que deduzi, você e Ellen tiveram uma discussão a respeito do Pat - eu queria primeiro sondar o terreno. - Mas ela não me deu detalhes.

  - Tudo isso já acabou. - Os olhos dela continuavam atentos na auto-estrada. - Pat pôs um fim em tudo no último verão. Não posso culpá-lo. Era o que tinha a fazer.

  Pôs um fim outra vez, pensei com meus botões.

  - Ele contou à Ellen e ao Herb sobre o casamento da Sheila e isso deu à Ellen uma boa desculpa para te telefonar, se bem que mesmo sem isso, ela sempre teria achado outra desculpa.

  - Ela sempre gostou muito de mim. Eu me portei muito mal com ela - Maureen acendeu um cigarro com o acendedor do carro.

  - O perdão é uma boa coisa, mas a reconciliação ainda é melhor - disse eu com voz untuosa.

  - Então você vai se reconciliar com o Pat, não é mesmo, Kevin? - Ela aproveitou a deixa. - Ele precisa muito de sua ajuda, sabe?

  - Duvido muito, Mo. Foi ele quem lhe disse?

  - Não. - Ela encaminhou o carro na direção das cargas no terminal internacional. - Eu não o vejo mais. Nós nos livramos, finalmente, um do outro.

  Isso eu só acredito vendo, pensei comigo mesmo, inclinando-me para a frente do carro e beijando-a no rosto com afeição.

  - Que bom, Kevin. Qual é a razão para toda esta atenção?

  - Não me peça explicações - disse eu abrindo a porta do carro.

  - Na sua próxima viagem você quer dar um pulo até Dublin para ver a Sheila? Ela ainda é muito moça para se casar. Durante um momento, o seu rosto bonito pareceu-me envelhecido.

  - Pode estar certa que vou mesmo, Mo.

  Coloquei no chão o meu saco de viagem e tornei a beijá-la, desta vez sem me preocupar com os limites da paixão. Ficamos os dois ali abraçados como já havíamos feito cerca de três décadas atrás na véspera do Ano-Novo na Flórida.

  - Não lhe vou perguntar porque, Kevin, já que conheço bem a razão. Muito obrigada. - Ela livrou-se de meus braços.

  Quando o avião, a caminho de casa, passava por cima do Mediterrâneo brilhante e azul, livrando-se do smog de Roma, fiquei a pensar nos brilhantes olhos azuis de Maureen.

  A Irmã Mary Carmel haveria de gostar daquilo.

 

  Ele caminhava devagar pelas ruas enlajeadas como se fosse um pedaço de ferro atraído sem remissão para um poderoso magneto. A Piazza Farnese estava deserta, sem vestígio algum do mercado a céu aberto que a mantinha numa azáfama constante o dia inteiro. Parou um pouco na entrada da pequenina rua sinuosa que levava ao palazzo de Maureen. Pobre mulher. Sua filha de dezoito anos já casada, em Dublin, sem que ela soubesse senão depois do casamento. Pobre, querida e frágil mulher. Ouvia com tristeza o barulho de seus passos.

  Não era, contudo, a piedade que o arrastava ao quarto de dormir de Maureen. Tudo tinfia acabado, mais uma vez, no último verão, quando ela viera para Beverly Shores, embora, no último minuto, quase houvesse sucumbido. Ele fora salvo por um chamado telefônico da Delegação Apostólica e uma urgente viagem a Washington. Voltara a Roma confiante que a tentação, a que resistira, no último verão, poderia ser novamente resistida. Durante três semanas fora bem-sucedido atirando-se ao trabalho do Sínodo, escondendo-se nos bastidores da política que se preparava para o conclave que, na sua opinião, ainda estava bem distante.

  Continuou a caminhar lentamente até chegar à porta do palazzo. Aquela área de Roma sempre cheirava um pouco a excremento humano, e aquele cheiro devia ter séculos de existência. O caso dela com Fredo, ao qual Tonio se referira com muita delicadeza, tornava aquilo mais fácil. Estaria ele ali agora? Não era muito provável, já que Fredo não passava noites com mulheres. Consultou o relógio. Uma e trinta. Não, ela devia estar só. Tirou do bolso a chave. Quando a colocara no bolso, naquela tarde, ele já sabia que iria lá.

  Sentia-se tenso como se nós cruéis o amarrassem. Iria puni-la por tê-lo tentado e por lhe ter sido infiel. Mais uma última trepada violenta e selvagem, e ele estaria livre dela para sempre.

  Ligou as luzes do quarto. Ela abriu os olhos e ficou observando-o enquanto ele caminhava para a cama. Ele sentia desejos de espancá-la, de castigá-la para depois deixá-la ali ensangüentada. Ela merecia ser estuprada sem piedade. As mãos deles fechavam-se e abriam-se rapidamente Estava ofegante. Seria o Fredo melhor do que ele na cama?

  Afagou-lhe a garganta. Passou os dedos em seu rosto. Ela relaxou-se reagindo aos seus carinhos. Ela precisava ser curada e não destruída.

 

  Fiquei observando o Cardeal Arcebispo enquanto eu pregava a homilia na missa de meus pais. O seu rosto angustiado refletia a mesma dor que o meu.

  - Nós todos devemos considerar a morte não como o começo de uma viagem e sim como o seu fim, não como o começo de uma misteriosa e perigosa viagem através de um oceano desconhecido, e sim como a chegada a um porto seguro. Não é um adeus duvidoso que damos àqueles que amamos quando eles embarcam para uma duvidosa peregrinação.

  É, isso sim, uma chegada de volta, a celebração de uma vitória, mais do que a confissão de uma derrota.

"Hoje, nesta manhã, os nossos corações estão cheios de tristeza, e essa é a maneira como deveriam realmente estar. Estamos aqui para dizer adeus, um adeus temporário, na verdade, mas mesmo assim um adeus. E, no entanto, todos nós sabemos que vamos encontrar o Coronel e sua Senhora, outra vez, quando eles estiverem presentes à nossa chegada, uma chegada que, nem é preciso dizer, o Coronel terá arranjado com a sua conhecida eficiência por trás dos bastidores.

  "Ele me disse em certa ocasião que, depois de Cassino, todo o resto de sua vida poderia ser considerado como uma bonificação. Nós todos nos alegramos por essa bonificação que o conservou entre nós, junto com a mamãe, por mais de trinta anos.

  A voz me faltava. Havia lágrimas na primeira fila. Mary Ann, Mike, Joe, Steve, Kathy, Helen, os nove netos. Elas não eram abundantes, no entanto, já que a família era recatada em sua dor.

  - Todos nós sabemos que eles se sentiram felizes em morrer juntos. - Um helicóptero tinha caído em cima da casa durante a noite. Tudo devia ter sido rápido e sem dor. - E todos nós sabemos que eles tratarão da nossa chegada juntos, com a mamãe sempre com a última palavra, como sempre acontece com as mães irlandesas.

  - Agora já se viam alguns sorrisos. - E é assim que a dor está conosco hoje de manhã, uma dor maior do que nós, os Brennan, mas, como católicos cristãos, com a nossa implacável esperança insopitável, e, até mesmo, uma esperança risonha com a qual nós, os irlandeses, desafiamos a morte, assim como o Coronel ,a desafiou em Cassino. Nós não dizemos adeus a James e Mary Brennan, mas, como católicos cristãos, com a nossa implacável esperança, dizemos apenas: "Até breve."

  Pat chorava abertamente, da mesma forma que Ellen. Estava certo de que o mesmo deveria estar acontecendo com Maureen. Terminei o sermão e continuei com a missa o mais rápido que me era possível.

  O Coronel tê-la-ia adorado.

  Nós os enterramos no cemitério que ficava bem atrás da nova igreja no lago. A absolvição final foi dada pelo cardeal e por mim ao mesmo tempo.

  Depois saí discretamente e fui até o Sugar Bowl, onde Herb, Bllen, e Mo já estavam, como se houvesse um pacto entre nós para nos. reunirmos ali. Não havia mais ninguém além de nós e a moça que servia. Ainda se sentia o cheiro de leite azedo.

  - Vocês se lembram da primeira noite... - disse Ellen.

  - Você era uma garotinha gulosa como ainda é hoje... disse eu.

  - A vitrola automática estava tocando It Might as Well Be Spring - lembrou Mo, enxugando os olhos.

  - E todo mundo achava que você se parecia com a Jeanne Crain...

  Herb olhava-nos, e seus olhos iam de um rosto ao outro fascinado, creio eu, e também espantado pela maneira como os irlandeses reagiam à morte.

  - E você me tratou como se eu fosse uma criança... A voz de Ellen ainda tremia um pouco.

  - Uma criança bem bonitinha, com um tremendo apetite pelos milk-shakes e dedos que fugiam logo quando se procurava segurálos.

  - Por favor, mocinha - Maureen achou que já era a hora de fazer os pedidos - traga-nos quatro milk-shakes, sim? Você está vendo, Kevin, que não é mais aquele que fazia o pedido por todos nós.

  - Será que não sou mesmo? Pois então traga seis, sim? Vi que o cardeal estava chegando acompanhado por Arthur McGrath.

  Pat hesitou um pouco como se quisesse fugir, mas depois resolveu-se e veio juntar-se a nós, sempre acompanhado de McGrath. Hoje os meus pensamentos não seriam maus.

  Houve umas duas ou três rodadas de nostalgia, mas logo chegou a hora de sair. Pat, Art e eu fomos os últimos.

  - Isto não é o fim, Kev. .. - Pat apertou-me a mão.

  - Não, Pat, eu sei que não é.

  Durante um momento nós ali ficamos ligados pelo sentimento da perda, mas logo saímos, cada um para seu lado.

 

  l.° de março Querida Mo.

  Está resolvido. Herb e eu iremos à Irlanda em setembro. Ficou também acertado que Kevin irá conosco. Ele ainda está muito tonto e talvez nem saiba que concordou. Depois iremos a Roma para ver você. Herb vai passar um fim de semana em Munique e nós vamos ficar uns dias em Florença (desculpe-me, Firenze) antes de voltar.

  A Ria vai fazer dezesseis amanhã. É muito parecida comigo. E logo, logo a Caroline já vai fazer seus vinte, embora haja ocasiões em que pareça ter trinta.

  O tempo passa.

  Ando muito preocupada com o Kevin. Todos nós sofremos quando perdemos os pais. Ele era muito agarrado ao pai. Ele leva uma vida tão solitária!... Aliás, isso é, em parte, por sua própria escolha, mas nem sei como ele agüenta. Herb acha que ele está quase no ponto de saturação. É como se não encontrasse uma razão para viver. Na metade do tempo ele nem mesmo ouve o que a gente fala.

  Ele ama a sua maldita Igreja mas, ao mesmo tempo, sofre com ela. Ele continua a amá-la e ela continua a magoá-lo. E sempre será assim. Como é que ele não vê que nós somos a igreja... que somos bem iguais aos miseráveis idiotas que a dirigem e que o fazem sofrer?

Risque os "miseráveis idiotas" e escreva "os frágeis seres humanos". Eu ando tão cheia de caridade que chegou até a me enjoar.

  Se eu o amo, se você o ama, se todos os nossos filhos o amam, especialmente a Ria que é apaixonada por ele, e se toda a sua família o ama, então, por que diabo, ele se deixa magoar pelo Cardeal e pelo Papa e pelos padres estúpidos que o invejam e o provocam?

  Deixe ficar "os padres estúpidos que o invejam". A minha caridade também tem seus limites.

  Herb diz que Kevin está entrando num período que deveria ser a sua ocasião mais criativa. Nós dois temos medo que ele se encarquilhe todo como uma fruta seca.

  Será que eu me parecerei com uma romancista romântica se disser que, a despeito de minhas preocupações por ele, acho que os seus sofrimentos serviram, de alguma forma, para purificá-lo? Aquela velha arrogância e brutalidade ainda estão bem ali.   Há ocasiões em que ele se mostra tão ferozmente competitivo como era antigamente.

  E no entanto, especialmente com as crianças, por mais estranho que pareça, ele é tão delicado que chega a meter medo. Herb acha que isso poderá ser um dos primeiros sinais para o colapso.

  Ele também ainda continua a chorar pela Patsy.

  Estou louca para nos encontrarmos.

com amor,  ELLEN.

 

  Nós estávamos em torno da piscina da casa da Ellen e do Herb tomando uns drinques quando chegou o Arcebispo de Chicago, como sempre acompanhado pelo fiel Art, ambos em trajes sacerdotais, e Pat estava até mesmo com meias vermelhas.

  - Herb, Ellen! - ele saudou-nos com efusão. - Nós estávamos vindo de Milwaukee e eu tive vontade de mostrar ao Art o lugar onde passamos a nossa juventude. Você tem aqui uma casa magnífica, Herb. Combina direitinho com as árvores. E Ellen até mesmo preservou o velho poço onde nadávamos. Meus parabéns. Maravilhoso. Kevin, mas que agradável surpresa encontrá-lo aqui. Agora quero conhecer a criançada.

  Aquela era uma magnífica entrada em cena. Ali estava o nosso democrático e efusivo cardeal.

  - Kevin, já ouvi dizer que você está escrevendo um livro sobre a próxima eleição papal. Acho que será bom esperar um pouco para terminá-lo. Eu vi o Papa antes dele ir para Castel Gondolfo. Para um homem com a sua idade, acho que está ainda bem lépido.

  Aquela não era a palavra que eu escolheria para descrever Giovanni Montini nem mesmo quando gozava de perfeita saúde.

  Apesar do calor, os dois não quiseram tirar os colarinhos protestando que ficariam apenas o tempo suficiente para um drinque.

  - Nós estávamos falando a respeito de celibato antes de você chegar - Ellen falou solenemente. - Acha que vão mudar, Pat?

  - Nós vamos tratar do assunto, El - ele mexeu o uísque pensativamente. - O ressurgimento da espiritualidade nos últimos anos mostra que as pessoas estão querendo dar mais destaque às dimensões escatológicas do catolicismo. O sacerdócio celibatário nada mais é senão um símbolo escatológico, não acha você, Herb? Estou certo de que nós atravessaremos essa crise da mesma forma que já atravessamos outras.

  - Tanto quanto nos é dado saber, o problema pode não ser o celibato - Arthur McGrath falou olhando-me cautelosamente. Pode ser que deixamos de incentivar as vocações porque já perdemos a fé em nós mesmos. Você já escreveu sobre isso, não foi mesmo Kevin?

  - É isso mesmo - então ele não era completamente um bobo como parecia. Hesitei um pouco. - Mas não estou convencido de que os padres sejam todos desumanos. Alguns de nós, pelo menos.

  - Qual é a razão para o celibato, Kevin? - Ellen enfiou um roupão por cima do maio ao fazer a pergunta, e esboçava aquele sorriso que parecia inocente, mas que eu aprendera a temer.

  - Talvez o melhor fosse tornar isso opcional - logo que comecei a falar eu sabia que ia causar escândalo - mas detestaria ver a hora em que isso passasse a ser usado. O mundo, católico ou não, precisa do testemunho de umas poucas pessoas que são a prova viva da possibilidade de amarmos, intensa e apaixonadamente, os membros do sexo oposto sem precisar ir para a cama com elas.

  Ellen mordeu os lábios como se quisesse esconder um sorrso e Herb arregalou os olhos. A garotada ficou toda muito quieta, já agora interessada no debate. Ouvia-se a campainha de um telefone ali por perto.

  - O problema, quando se tem gente como o Kevin na diocese, é que ele diz coisas dessa espécie. Coisas que põem um fim a conversa — McGrath disse isso ao mesmo tempo que apanhava uma batata frita.

  Brendan Saiu de casa correndo.

  - É o jornal da CBS no telefone, padre. Disse que é urgente.

  Depois de haver atendido, voltei para onde estavam os ouitros. Urgente. passando Pelas árvores. A conversa tinha mudado e agora discutiam a arquifetura da casa. Fiz sinal a Pat que queria falar com ele.

  - O Papa acaba de ter um ataque cardíaco em Castel Gandolfo. A CBS diz que não se espera que ele viva.

  - É melhor eu ir andando — ele resmungou. Meu Deus, Kevin, nos devíamos estar preparados, mas não estamos, precisamós estar em contato com Roma, Kevin. — Apertou calorosamente a mão de todos.

  - Pode ser que isso seja egoísmo meu — disse Ellen com o pobe homem ainda nem mesmo enterrado, mas será que isso vai interferir com a nossa viagem à Irlanda, em setembro?

  Eu não conseguia me lembrar de já haver concordado. Com tal viagem.

  - Ellen - Herb interferiu  com  tato - Kevin tem coisas mais sérias para pensar...

  - Desculpe-me, Kevin,  mas eu   sou   mesmo egoísta.

  Ela parecia preocupada e eu  não  tinha tempo para lhe peguntar a razão.

 

  Arthur McGrath deu o bilhete de Pat à empregada que estava no balcão do salão do Ambassador.

  - Quatro e trinta e quatro para Roma. O cardeal vai para o conclave.

  - Mas claro, padre - a moça ficou muita afobada - temos um lugar reservado para ele. Muito confortável, na primeira classe. É um lugar isolado. Ele poderá ficar completamente à vontade. - Depois ela viu Pat. — Nós temos um quarto aqui perto onde Vossa Eminência poderá descansar enquanto espera a hora de seu avião. Por favor, preciso ver o seu passaporte.

  Art entregou-lhe  o  que pedia.

  Pat tinha envelhecido nas últimas vinte e quatro horas. O seu secretário não conseguia entendê-lo. Art não imaginava que a responsabilidade na eleição de um novo Papa fosse tão pesada para ele. Ele imaginara que, para Pat, aquilo seria quase uma brincadeira e, em lugar disso, ele estava preocupado, sério e até mesmo triste...

  - Nós vamos rezar pedindo  ao Espírito Santo que o ajude - a moça sorria nervosa.

  - Muito obrigado... - Pat respondeu automaticamente. E então lembrou-se de seu lendário sorriso. - Nós vamos precisar mesmo.

 

  Jordan Bonfonte, chefe do escritório do Time em Roma, colocou no bolso o seu rádio portátil. No princípio a fumaça parecia branca, depois preta, e depois, durante quarenta e cinco minutos, ela estava cinzenta.

  Nós todos começamos a nos afastar juntando-nos  à multidão desapontada  naquele   entardecer.   Bonfonte falou  aliviado.

  - Graças a Deus não foi branca. Eu só teria doze horas para escrever a notícia para a capa.

  As luzes se acenderam por trás das cortinas nas janelas que davam para o balcão de S. Pedro. "Attenzione", gritou a voz sinistra no sistema de alto-falantes.

  A multidão gritava de alegria. Corremos de volta, passando pelas barricadas, até o pé do obelisco. As portas se abriram. Os faróis iluminaram o balcão. Felici. Bem, não fora ele o vencedor. "Annuntio vobis gaudium magnum. Habemus papam! Albunum Cardinalem Sanctae Romanae Eclesiae Luciani!" Nós temos um novo Papa! Via-se claramente que ele estava bem satisfeito consigo mesmo...

  Jordan desapareceu para ir transmitir a sua notícia. Fui saindo no meio da multidão que aplaudia, passando pelo sinistro palácio do Santo Ofício e descendo a Via Aurelia até o Michelangelo.

Aquilo era, de uma certa maneira, uma derrota. Somente quatro votos para escolher um virtual desconhecido no Norte da Itália. O resto do mundo iria fazer de nós um triste juízo.

  Já no hotel eu vi o novo Papa que tomara o nome de João Paulo, na TV do quarto. O seu sorriso era magnífico. Um sorriso de deslumbramento, de felicidade, radiante. Era um Papa com um sorriso alegre.

 

  Outra vez no Sabatini. Dessa vez era uma noite esplêndida de setembro com um céu sem nuvens e uma ligeira brisa que espantava o inevitável odor do Trastevere. O Padre Cárter, encantado pelas cabeças louras de Ellen e Mônica, como aliás todo mundo, contava coisas fascinantes a respeito daquele antigo distrito "do outro lado do Tibre", um lugar pitoresco até mesmo nos tempos dos Césares. Não deixou de contar o caso do mau-olhado de Alfredo Ottaviani.

  Foi Mônica quem falou.

  - Não quero acreditar que o pessoal do Vaticano leve isso muito a sério. Será que levam mesmo?

  Cárter estava adorando.

  - Eu sinto um arrepio todas as vezes que ele olha para mim. Os talheres faiscavam, os copos brilhavam, as toalhas brancas iluminavam, os garçons se mostravam especialmente prestativos e o vinho corria.

  - E como vai o seu livro sobre a eleição papal, Kevin? Cárter abordava, finalmente, o assunto que me trouxera a Roma.

  - Está quase acabado. Afinal, não há muito o que contar. Um conclave que só durou um dia e no qual um papa italiano foi eleito quase por aclamação. Que espécie de papa será? O que tem feito até agora?

  - Ele está aprendendo depressa, para uma pessoa que veio de fora - Cárter mexia o seu expresso pensativo. - Ouvi falar que ontem o Casaroli levou-lhe seis decisões que precisavam ser tomadas, a respeito da Europa Oriental, e ele resolveu logo cinco delas ali mesmo. O Papa Paulo VI teria levado cinco meses. E o Casaroli ainda diz que as decisões que tomou foram todas acertadas.

  - Então, por que ele não aparece mais na TV? Nós o vimos na audiência de ontem e ele tinha todo mundo na palma de sua mão. Até mesmo o Padre Brennan chegou a sorrir - quem assim falava era Mônica.

  O nosso encontro de acaso, no saguão do hotel em Roma, com Mómca e Tom, tinha-a deixado desconcertada, mas o convite caloroso de Herb para que jantassem conosco tinha-lhe restaurado a confiança. Se o seu antigo terapeuta não se importava, por que então iria ela se preocupar?

  - O Vaticano não tem nem mesmo capacidade para um videoteipe a cores - Cárter deu uma risada.

  - Pois então arranjem uma - ela sacudiu o braço como se aquilo fosse coisa de somenos. - Vocês têm aqui a mais formidável propriedade televisiva em todo o mundo.

  Por que não contratam o Papa?

  Todo mundo riu. Realmente, era o cúmulo. O Papa como uma formidável propriedade televisiva.

  Quando voltamos ao hotel, fui logo para a cama e sonhei com Herb e Ellen, confundindo-os com meus pais. Irmã Carmel me aparecia de biquini para me falar sobre a "vontade sagrada de Deus". Depois houve um helicóptero despencando e o barulho das sirenes. A Irmã Carmel ria diabolicamente, e gritava "a vontade sagrada de Deus".

  Despertei de meu sonho com a sirene continuando a focar, mas era só o telefone.

  - Pronto...

  - Aqui é o Cárter, Kevin. Desculpe se o acordei. A rádio do Vaticano acaba de anunciar que o Papa morreu. Foi o Magee quem encontrou o seu corpo esta manhã. Deve ter morrido durante a noite. Agora mesmo o Tucci está dizendo a Missa da Ressurreição no rádio. É bem possível que seu corpo já estivesse esfriando quando nós, ontem, achávamos que ele era uma propriedade quente.

  Já eu estava novamente preocupado. Tínhamos problemas. Tinha morrido o último italiano que servira como uma transigência.

 

  O Cardeal Patrick Donahue sacudiu queijo demais em cima de seu spagueiti alia bolognese.

  - Meu Deus, Kevin, quanto tempo já faz desde que almoçamos juntos pela última vez?

  - Séculos. - Eu disse aquilo só para responder alguma coisa. Estava intimamente contente em ver que o meu cardeal arcebispo já estava deixando transparecer seus anos. Comparado com os outros cardeais, ele era ainda jovem e bonitão, mas seus cabelos já começavam a encanecer e o seu rosto estava começando a ficar balofo.

  - O que é que você acha que vai acontecer depois de amanhã? - A sua pergunta foi feita expansivamente enquanto enchia o meu copo com o vino da casa. O cardeal arcebispo estava almoçando no Borgo Pio com um padre dissidente, mas não havia uma razão para esbanjar dinheiro. Tampouco queríamos ir a algum lugar onde fôssemos vistos por algum jornalista, no Marcello ou no Roberto, ali mesmo perto das paredes do Vaticano.

  - Os jornais todos estão dizendo que o Siri será o novo papa, mas eu não acredito, Pat. Ele não conta com os votos. Ele quer preparar a corrida para mais alguém.

  - Mordisquei um pedaço de pão.

  Pat empastava de manteiga uma grossa fatia de pão de Roma. Eu via o músculo do seu pescoço que pulsava. Ele estava novamente encrencado e queria que eu o tirasse da enrascada. Já desconfiara daquilo quando me convidara para almoçar.

  - Fredo DeLucca...

  Bebeu um bom gole para fazer descer o pão. Ele acabaria contando o que havia.

  - E, sem dúvida, o primo dele, o Arcebispo de Perugia, está também metido nisto, Pat.

  - É isso aí, Kevin - ele acenou com o garfo antes de enfiá-lo na pasta. - Eles e os seus amigos estão querendo manter o papado na Itália, Se for assim, são até capazes de colocar lá o próprio Antônio. Não acham que o Benelli seja velho demais com cinqüenta e sete, e o Antônio é cinco anos mais moço.

  - Devem estar loucos, Pat. - Eu não podia acreditar. Um papa homossexual com cinqüenta e dois anos.

  - Não necessariamente, Kevin... - Ele tornou a acenar com o garfo. - Este conclave agora é completamente diferente do outro. O povo está com medo. Querem alguém que não deixe a Igreja se desintegrar, alguém que seja bem duro com o comunismo. Alguém que ponha um fim a toda essa frouxidão que existe desde o Concilio. Antônio e seus amigos poderiam conviver com Siri, é claro, ou até mesmo com Felici, mas querem tudo só para eles.

  Já era tempo para acabar com a charada. Fitei-o inclinandome para a frente, e disse-lhe o que pensava.

  - Na primeira manhã, Benelli e Siri se eliminarão mutuamente. Na mesma tarde, encontrarão um meio termo, um acordo à italiana, mas não será Luciani. No dia seguinte eles, e você no meio deles, elegerão um dos stranieri.

  Pat ouvia com atenção sem nem mesmo tocar na comida, e sacudia a cabeça.

  - É difícil embrulhar um irlandês do West Side, não é mesmo, Kevin? Está claro que é isso mesmo que vai acontecer, mas não sem os votos dos Estados Unidos. E é aí que eu entro. - Bebeu um grande gole de vinho. - A maior parte de meus colegas dos Estados Unidos votará em Siri. Se eu convencê-los a votar em Colombo na parte da tarde, ele poderá ganhar. Mas mesmo que eu não faça isso, ele, ainda assim, poderá ganhar. Eu só fico importante no fim do primeiro dia quando se estabelecer o caos.

  - E o que acha você que serão as manchetes do Sun-Times e do Tríbune se vocês elegerem o Colombo, com setenta e seis anos, para suceder um de sessenta e cinco que morreu dentro de um mês?

  Com um imperioso gesto da mão ele mostrou que pouco estava ligando para as manchetes.

  - De qualquer forma, ele certamente terá o voto dos Estados Unidos. Ele e um bom homem, e o Antônio o aceitaria como o salvador de última hora de um papado italiano.

  - E quem é esse Antônio, com todos os diabos? O que é que o faz tão importante assim?

  Pat ficou muito pálido, respirou fundo e falou baixinho.

  - É ele que está fazendo chantagem comigo. Esvaziei o meu cálice.

  - Você sabe que o DeLucca foi amante de Maureen durante algum tempo - Pat continuou, falando muito depressa. - Antes do conclave de agosto ele deu a uns terroristas a chave do apartamento dela. Instalaram máquinas fotográficas no quarto e conseguiram tirar fotos quando nós estávamos... Em agosto não chegaram a usá-las.

  Sabiam que o Luciani ia ser eleito e pensavam que podiam manipulá-lo.

  - E quem são eles, Pat? - Eu tentava esconder a raiva que fervia dentro de mim. Não podia acreditar naquilo! Retratos de um cardeal na cama!

  - Eu nem mesmo sei, Kevin. O DeLucca, Antônio, alguns de seus amigos, uns poucos monarquistas e capitalistas de extrema direita, alguns banqueiros que querem ver o Marcinkus fora do banco do Vaticano, para depois poderem usá-lo. Depois há também um grupo de terroristas de direita que se intitulam os Escravos de Santo Antônio de Pádua. É essa espécie de gente.

  - E você já viu as fotos? - Uma chantagem de classe seria melhor que uma chantagem suja.

  Ele sacudiu a cabeça cheio de vergonha. Já não estava mais achando graça em coisa alguma.

  - O Fredo me mostrou algumas. Deram toda a história a um dos grandes jornais dos Estados Unidos e prometeram as fotos. O repórter procurou-me e

queria que eu confirmasse ou negasse. Eu lhe respondi que tudo aquilo era ridículo. Atirei-o para fora da Villa Strich. Era o pior sacana anticatólico que já conheci.

  Depois, recebi um telefonema do Antônio dizendo-me como estava chocado com todas aquelas calúnias que corriam a meu respeito. O seu primo Fredo me diria como pôr um fim a tudo aquilo. Eu almocei com o Fredo, aliás, foi aqui mesmo, na quinta-feira, e ele mostrou-me as fotos dizendo que eu não precisava ficar preocupado. O jornal dos EUA jamais iria consegui-las. Ele conseguira comprá-las dos terroristas. Ele me daria todas elas depois do conclave, pois só então as teria em suas mãos. O Antônio telefonou-me naquela mesma tarde dando-me as ordens para o conclave, mas sem mencionar as fotos. As ordens eram todas muito delicadas, mas eram ordens mesmo... - Gom um guardanapo ele limpou um dos cantos da boca.

  - E esse tal jornal é de escândalo? Ele sacudiu a cabeça negando.

  - Então nada farão sem documentação. Não publicarão as fotos, mas publicarão a história, e aí então as fotos irão parar nas mãos de algum jornal de escândalos que as publicará. Eles o pegaram. Pat. Não acredito que você saiba onde estão as fotos e os filmes, hem?

  - A verdade é que sei - ele juntou os punhos cerrados. Um jovem padre que trabalha com o Antônio me deve alguns.. . "favores'". As fotos estão na casa de Fredo, em Forio. É uma aldeia de pescadores nos confins de Ischia, na baía de Nápoles... Será que você poderia consegui-las para mim, Kev? - Os seus olhos eram os mesmos daqueles tempos de antigamente quando ele precisava que eu o ajudasse a encestar a bola.

  - E se eu não o fizer, Pat?

  - Então eu resolverei na hora - ele respondeu baixinho com o rosto contorcido na agonia. - Já cheguei a pensar em matar-me, mas se ainda não fiz isso até agora, o mais certo mesmo é que jamais o farei. Meu Deus do céu, Kevin... - A fachada já desmoronara e ele agora chorava. - Não escolhi o sacerdócio para que tudo isso me acontecesse, Kev. Eu só queria salvar a minha alma. A Virgem Maria prometeu-me que o faria. Foi por isso que eu desisti da família. Era tudo que eu queria. Talvez venha me enganando todo esse tempo. . . - Sua voz ia sumindo.

  - Como é que posso comunicar-me com você depois de sua entrada lá, quando a votação já houver começado?

  Ele logo recuperou o ânimo e tornou-se muito ativo.

  - Isso é fácil. Você aluga um Lancia Gamma vermelha. Três vezes, às oito e trinta da manhã, cinco e trinta da tarde & dez da noite, eu chegarei à janela do Palácio Apostólico que dá para a piazza. Se o carro estacionado em frente da Congregação dos Bispos piscar a luz do farol, durante três vezes, em cima da hora, eu saberei que você conseguiu destruir as fotos.

  Pesei cautelosamente a situação. Era óbvio que ele já calculara tudo. Durante toda a minha vida eu vinha ajudando o Pat a encestar suas bolas. Ele achava aquilo a coisa mais natural do mundo. Sabia que eu o faria. Encrencas? Chame o Kevin que ele dará um jeito.

  - Não - respondi incisivo.

  - Kevin, por favor! - ele estendeu os braços numa súplica.

  - E por que acha você que eu me daria a toda essa trabalheira? - Eu saí da cadeira. - Vamos supor que arriscaria a vida para conseguir essas fotos. Será que, com isso, você deixaria a Mo em paz, já que está estragando toda a vida dela? Será que iria votar por alguma coisa que não fosse a sua própria carreira logo que se apanhasse lá dentro? Conseguiria você me reintegrar nas rodas eclesiásticas? Afogue-se ou nade por sua própria conta, Eminenza. Já é tempo que o faça.

  Saí na direção do túmulo de Hadrian, embora o meu hotel fosse na outra direção.

  Duas horas- mais tarde voltei ao meu quarto no Michelangelo.

  Telefonei para a Villa Stritch. Devo ter acordado o Pat que fazia a sua siesta.

  - Oito e trinta, cinco e trinta, dez horas?

  - Isso mesmo! - Ele já estava completamente acordado.

  - Vou ver o que posso fazer.

  - Eu lhe serei grato para sempre, Kevin. Quando tudo isso estiver acabado eu apresento a minha demissão. É uma promessa.

  - A única coisa que eu quero é que me reintegre na burocracia da Igreja.

 

  Peguei um táxi e fui para o Hilton de Roma. Ellen não estava em seu quarto. O marido já tinha partido para sua reunião em Viena.

Fui ver na piscina. Ela cortava furiosamente a água como se estivesse tentando expelir as calorias da pasta. Saiu logo que me viu, embrulhando-se em uma toalha e correndo em minha direção. Senti um aperto na garganta ao vê-la ali, uma reação tão desconcertante quanto fora a de trinta anos atrás.

  - Qual é a razão para essa tristeza, Kevin?

  - Acho que vou ser obrigado a cancelar nosso encontro esta noite, Ellen.

  Ela encolheu-se na toalha tremendo um pouco ali naquele sol de outubro que já não esquentava muito.

  - Muito bem - ela falou séria. - Diga-me agora qual é o problema para tanta preocupação.

  Contei-lhe tudo.

  - Mas que sujeira. Sórdido e sujo. Pode deixar que eu farei as reservas em Ischia e alugarei o carro. Lancia vermelho, hein? O nosso cardeal gosta de coisas caras. Dois quartos no hotel. Deixe comigo. Você vai procurar o seu amigo da CIA na Embaixada, aquele que encontrou no avião, e traga alguns de seus brinquedos para explodir cofres e coisas parecidas. Nós só vamos poder sair amanhã, de qualquer maneira. Vou telefonar para o Herb em Munique para dizer-lhe que vamos passar um fim de semana fora e que ele deve ter confiança em minha virtude e nenhuma na sua. Não preciso contar-lhe os detalhes. Ele ficaria preocupado. Vamos precisar fazer algumas compras. Suéteres e slacks pretos. Sapatos com sola de borracha...

  - Você está louca se pensa que vou deixá-la...

  - Pois então tente deter-me... - Olhei para seu rosto decidido e vi que seria tempo perdido não concordar com ela.

  - Você tem marido e filhos, Ellen. Não pode arriscar a sua vida...

  - Kevin Brennan - ela empertigou-se toda e apertou os lábios - você pode discutir comigo toda esta tarde e todo o dia de amanhã. Eu irei de qualquer maneira. As preocupações com marido e filhos ficam por minha conta. Quando eu lhe contar tudo, ele se orgulhará de mim. Aliás, as crianças também. De qualquer forma, no entanto, ninguém vai sair ferido.

  Tentei convencê-la durante a metade da tarde, mas depois desisti. Nós, os irlandeses, somos maravilhosamente programados para entregar os pontos quando vemos aquele jeitinho do queixo.

  Estive com o Mikolitis na Embaixada, de onde trouxe uma coleção de brinquedos, alguns dos quais já vira com Calvin Ohira quando abrira um armário fechado a cadeado no porão. Fui obrigado a mostrá-los ao meu companheiro de aventura, que ficou de olhos arregalados como uma criança diante de bruxas e dragões.

  - Só não gosto muito do .38. - E eu, aliás, também não gostava dele. Duvidava se jamais teria a coragem de atirar contra alguém.

 

  Tentei novamente dissuadi-la na tarde seguinte quando a barca já ia saindo da baía de Nápoles. Ela apenas riu e seus cabelos esvoaçaram com a brisa do mar.

  Ischia era um bloco vulcânico que mal se via na bruma distante, maior do que Capri e mais para longe na baía. Consultando o guia turístico, Ellen me informou que Forio era uma velha aldeia de pescadores com uma colónia de artistas num dos lados da ilha. O nosso hotel era o Santa Catarina que, pelas informações recebidas, era muito bom, embora pequenino e encantador. Havia também umas termas muito procuradas pelos estrangeiros e famosas pelos seus poderes de recuperação.

  Ellen olhou em torno da barca onde a maioria dos carros eram Mercedes Benz e os seus ocupantes eram, geralmente, homens de negócio, alemães já entrados em anos, com suas amiguinhas de corpos firmes e bem-feitos.

  - Hmm... aposto como sei o que é que as águas aqui recuperam... - disse Ellen, mas logo franziu a testa quando se lembrou do que nós íamos fazer. - E o que vai acontecer com o Pat se descobrirem?

  - Eles não farão coisa alguma se o fato não se tornar público. Pat não é o único cardeal na história com uma mulher em sua vida. Que diabo! O seu antecessor tinha uma loura que morava na mesma casa com ele. Viajavam os dois juntos pelo mundo, tinha uma casa com ela na Flórida e foi preso pela polícia de Chicago por dirigir embriagado, sempre junto com ela. E Roma nunca fez coisa alguma contra ele.

  Ela perguntou baixinho.

  - Os cardeais todos são como ele? Eu não conseguia encará-la.

  - Não. A maioria deles mantém a castidade atualmente. Alguns porque são neutros, e outros porque se comprometeram com o celibato, como acontece comigo.

 

  A melodia do Veni Creator Spiritus ressoava e tornava a ressoar na cabeça de Pat. Durante uns poucos momentos da procissão ele sentia-se exaltado e orgulhoso. Ali estava o filho de um lixeiro votando peltí segunda vez, para jazer um papa. Ele era um intermediário do Espírito Santo. Depois veio o dramático Exeunt Omnes para o Monsenhor Noè, e depois de alguns momentos de hesitação, o Cardeal Villoí, camerlengo, o papa interino, fechou a porta e deu uma volta com a chave.

  Começava novamente o conclave.

  Ele mostrou-se paciente durante o longo e tedioso juramento na Capela Sistina. Aqueles velhos, que tinham sido eleitos para a mais alta posição na igreja, prestavam o mais solene de todos os juramentos, sob pena da mais terrível das excomunhões, quando prometiam não revelar o que se passava no conclave, não jazer política para serem eleitos nem para elegerem os atnigos. A capela era abafada e .quente, e os cardeais sentiam-se inquietos nas suas batinas escarlates e cappas. O Cardeal Wojtyla, de Cracóvia, que estava ao lado de Pat, lia uma revista filosófica que, a julgar pelo título, devia ser marxista.

  Pat inclinou-se para ele e falou em inglês:

  - Trazendo Marx para o conclave, Eminência? É uma vergonha.

  O cardeal, de ombros largos e um bonito tipo de homem, olhou furtivamente para os lados e sorriu.

  - Tenho a consciência tranqüila.

Pat olhava para um velho que tornara a jurar na Bíblia na frente da capela.

  Se conseguias se concentrar nas cerimônias ele poderia, talvez, esquecer, por alguns momentos, o perigo que corria. A chantagem parecia uma coisa fora da realidade ali naquela capela histórica, onde já se começava a sentir o cheiro daquelas roupas pesadas e dos corpos masculinos. O escândalo abalaria o mundo. Ele seria obrigado a demitir-se e talvez entrar para um convento onde passaria o resto de sua vida em penitência. Talvez um novo Mallery.

  Wojtyla cutucou-o. Era a sua vez de prestar o juramento. Caminhou desanimado até o altar. Ele era o mais novo dos eleitores, mas sentia-se como se fosse o mais velho.

  Depois da ceia, Mareei Flambeau aproximou-se dele no estreito corredor que levava ao refeitório improvisado. Era um homem bonito, Cardeal do Luxemburgo.

  - Nós acreditamos que amanhã, na hora do almoço, já o Cardeal Benelli estará perto da vitória.

  Estaria Flambeau jalando a respeito do que desejava que fosse ou do que, certamente, aconteceria? Pat decidiu-se pela primeira hipótese e então sacudiu a cabeça negativamente.

  - Sua Eminência jamais conseguirá setenta e seis votos.

  O rosto, geralmente impassível, de Flambeau deixou transparecer o desapontamento. Sacudiu a cabeça em silêncio e seguiu pelo corredor. Pat voltou-se e subiu os degraus que levavam ao ático do palácio. O sorteio tinha-lhe designado um pequenino quarto com uma janela alta e com grades. Lá ao longe viam-se as colinas que se projetavam contra o céu escuro. Mais perto dele estava o Janiculum, onde ele estivera no colégio e sonhara que algum dia estaria votando em um conclave.

  Tomou a cabeça nas mãos e soltou um gemido. Estava numa prisão, não somente num quartinho escuro e quente com uma cama inconfortável e cadeiras duras de plástico, mas também nas cadeias que o acorrentavam desde que era criança. Queria soluçar de vergonha e agonia, mas as lágrimas não lhe vinham aos olhos. Completamente desanimado, olhou para o relógio. Kevin não poderia ainda estar com as fotos. Mesmo assim, caminhou até a janela cujo peitoril estava à altura de seus olhos. Se ficasse na ponta dos pés poderia ver a piazza. Quase deserta. Alguns turistas, os guardas da segurança e talvez alguns jornalistas. Um fluxo de tráfego contínuo vinha pela Via delle Conciliazione. Havia um carro vermelho parado diante da Congregação dos Bispos, perto da loja de lembranças. Seu coração bateu forte cheio de esperança, mas o carro moveu-se para além das colunas de Bernini sem piscar as luzes. Aliás, nem mesmo era um Lancia.

  Esperou mais um quarto de hora. O tráfego noturno já tinha diminuído. Soltou um suspiro.

  Não haveria visitantes naquela noite. Os cardeais estariam esperando notícias dos primeiros dois escrutínios para começarem então as discussões que não pareciam violar os seus solenes juramentos. Na última vez houvera uma batida na porta naquela hora avançada da noite. Fora Flambeau, que estava cabalando os cardeais dos Estados Unidos para que votassem em Luciani O pobre Benelli, aquele homem abrupto, bem-dotado e pequenino com o seu sorriso mágico, tinha feito uma política melhor em favor dos amigos do que em favor de si mesmo. Os votos dados a ele seriam um desperdício. Patrick Donahue, de repente, sentiu-se culpado. O "Gianni", mais do que ninguém, fora quem lhe conseguira a promoção em Chicago. E ele o abandonara. A lealdade exigia que fizesse algo mais por Benelli.

  Pela primeira vez, em vários dias, ele pensou em Maureen e sentiu-se arrependido, não por ela, no entanto. Mo sempre sobreviveria. Ela sempre conseguia. Sentia-se arrependido pensando na bonita família que poderiam ter formado se ele houvesse escutado o conselho de Kevin e ido para Notre Dame, em 1949. Quantos padres, antes dele, e até mesmo quantos cardeais teriam desejado voltar atrás em suas vidas?

  Tornou a gemer e começou a desabotoar a sua batina encharcada de suor. Ele poderia ganhar tempo no primeiro dia mas, depois, seria preciso decidir-se.   A solução seria, provavelmente, clara. Deveria ele votar de acordo com a sua consciência e permitir que lhe destruíssem a vida e a carreira, ou deveria ele votar como ordenava Tonio e sobreviver ainda um dia?

 

  O porto da barca em Ischia já se escondia na bruma quando nós chegamos, e Forio já estava no escuro quando seguimos pelo caminho estreito com duas pistas. A pequenina aldeia parecia ser principalmente morros e areia. O Santa Catarina era limpinho, e próximo e cheio de alemães bonitos que não precisavam das águas para recuperação.

  - O tempo de outubro provavelmente atrai mais essa gente, embora a estação tenha terminado - disse Ellen enquanto esperava na fila para se registrar.

  Foi quando surgiu um problema. Havia uma reserva em nome do Sr. Brennan, mas nenhuma em nome da Sra. Strauss. Havia, porém, um quarto com duas camas se o signore e a signora... O sorriso do porteiro era em parte um deboche ao mesmo tempo que um pedido. O rosto de Ellen ficou muito pálido e ela apertou os olhos.

  Procurei esconder minha contrariedade por baixo de um sorriso urbano e disse ao homem da portaria que estávamos molto contento com a solução encontrada.

  Na medida em que o elevador subia lentamente para o segundo andar, Ellen tentava se explicar:

  - Não fui eu, Kevin... Não fui eu...

O quarto era espaçoso, pintado de branco, com um grande tapete vermelho. As camas, suficientemente separadas, estavam cobertas com colchas. Dei a gorjeta ao criado e agradeci.

  A nossa janela tinha vista para o mar, e no sopé da colina estava uma escuridão completa. Ellen, de blusa e jeans, estava feito a mulher de Lot, imóvel como uma estátua no meio do quarto.

  - Não fui eu, Kevin...

  - Eu sei que não foi você, Ellen - eu estava quase perdendo a paciência. - De qualquer forma, vou sair para uma inspeção.

  A aldeia estendia-se nas ruas mais baixas da colina por trás do hotel. A maioria das casas parecia ocupada, com as janelas abertas deixando passar a luz que ia iluminar a rua. A colina era acariciada por uma leve brisa vinda do oceano e que cheirava a sal e peixe. Um outubro romântico na romântica baía de Nápoles.

  Em meia hora eu já me sentia mais calmo e voltei para a sala do hotel onde estava a TV e onde Ellen assistia ao replay das notícias que mostravam os cardeais a caminho do conclave, saindo de Pauline em direção à Capela Sistina. Ela me falou baixinho: "Lá está ele", quando Patrick passou pela câmera cantando com todo o vigor como se não tivesse a menor preocupação deste mundo. Depois viu-se Villot fechando a porta, e o rosto do locutor italiano.

  - O que foi que você apurou? - Ellen tinha mudado de roupa e estava agora com um vestido preto e sem mangas.

  - O signor DeLucca ainda está em casa, mas talvez vá para Roma amanhã, embora não haja certeza. Ele é um homem muito fechado. No entanto os seus empregados foram para Roma ontem e todos acham que...

  - Então, por que não vamos logo jantar?

  Mais tarde, quando pedíamos o jantar, na espaçosa sala de teto baixo, do hotel, eu disse:

  - Nós não estamos tão desclassificados como você poderia supor no princípio. - Eu já me sentia mais calmo. Afinal tudo fora culpa do hotel.

  - Quem falou em desclassificado? Olhe aqui, este vestido custou...

  - Eu acho que é uma conspiração. Como a que fazíamos antigamente para aqueles jogos de bola. Fredo DeLucca tem ligações com alguns sacerdotes ambiciosos que exageraram um pouco em comparação com o que teriam feito outros padres da Cúria. Alguns homens de negócio duvidosos, quase neofascistas, que querem se apoderar do Banco do Vaticano, provavelmente para contrabandear divisas para fora do país, e um grupo de desmiolados terroristas de direita que não pertence às Brigadas Vermelhas. É possível que tenham engendrado tudo pensando em arrancar dirtheiro de todos os que estiverem envolvidos. É possível que tenham também alguma coisa contra outros cardeais, embora eu possa jurar que o cabeça é o DeLucca. Creio que são perigosos, mas principalmente porque são burros.

  - Nós vamos liquidá-los - ela respondeu-me com uma serena confiança.

  - Vou ser obrigado a isso, Ellen.

  Depois do jantar ficamos sentados no varandão do hotel ouvindo o barulho das ondas que morriam na praia e bebericando o café. Não quis o conhaque. O meu desejo por Ellen, que ficara adormecido durante a viagem desde Roma, tornava-se imperioso agora. O conhaque só serviria para enfraquecer minhas defesas. Ela estava extremamente divertida com a incongruência de nossa situação. Eu estava apavorado. O seu vestido preto muito simples que, deliberadamente, nada tinha de sexy, fazia com que ela se tornasse ainda mais atraente. Era uma matrona de meia-idade com um corpo de garota, olhos provocadores com cintilações que enfeitiçavam.

  Ela bebeu seu conhaque e favoreceu-me com um sorriso.

  - Sempre houve entre nós esta eletricidade, não foi mesmo Kevin? Desde aquela noite em que nós estávamos no banco traseiro do seu carro... naquele dia em que você ficou furioso só porque o Pat perdeu aquele jogo.

  - Vamos dar uma volta na praia antes que eu possa responder a isso.

  Descemos as escadas e entramos na areia que ainda estava morna. Segurando em meu braço, com uma das mãos primeiro e depois com a outra, ela tirou fora os sapatos.

  - Vamos agora falar sobre aquele outro jogo em que Pat não quis destruir o catcher.

  O meu rosto estava em fogo e eu fazia o possível para não encará-la.

  - Lembro-me bem da garotinha com o rabinho-de-cavalo... na manhã seguinte menti para a minha mãe a seu respeito.

  - Foi mesmo?!

  - Minha mãe disse que você tinha ficado muito bonitinha e eu respondi que nem tinha reparado.

  - E a eletricidade nunca se dissipou, não é mesmo, Kev? Ela achou graça. - Será que vai algum dia?

  - Não, Ellen, não vai mesmo... - Eu sentia-me fraco como se houvesse corrido quilómetros.

  - Nem mesmo com a morte?

  - Se a minha fé significa alguma coisa para mim - respirei bem fundo - isso também significa que essa eletricidade entre nós dois sobreviverá à morte, da mesma forma que o sol sobrevive à noite.

  - Vamos então supor que essa... bem, vamos continuar chamando de eletricidade... se desencadeia e nós fazemos amor esta noite. O que acontece então?

  - Acho que significaria que nós deveríamos, no futuro, ficar em quartos separados, especialmente quando estamos cuidando de eleições papais. Eu não deixarei a Igreja e você, certamente, também não deixará o Herb.

  - Os nossos compromissos não mudariam?

  - Nós já nos afundamos muito neles para poder mudar, Ellen. Você sabe muito bem.

  - Então não há muita razão para termos medo, não é mesmo? Quero dizer, falando francamente.

  - Não. - Eu só esperava que minha voz não lhe parecesse tão trémula como parecia a mim. - O pior não seria tão ruim assim.

  - Eu farei amor com você esta noite, Kevin, desde que você queira.

  - Muito obrigado - respondi bem devagar - mas não haverá o que agradecer.

  - E por que não? - O alívio dela era tão palpável como o céu estrelado lá em cima do oceano.

  - Ora, que diabo, Ellen, por uma porção de razões, mas principalmente porque eu acredito que isso destruiria, provavelmente, a eletricidade, que é uma coisa muito importante na minha vida e que não quero perder. - Levantei-lhe o queixo com a mão para poder ver bem a sua expressão à luz das estrelas. - E, com todos os diabos, mulher, se não parar de sorrir assim como a mãe que se orgulha de seu filho porque ele deu a resposta certa a uma pergunta na aula, eu vou levar você para o nosso quarto e enfio a sua cabeça no fundo da banheira durante meia hora.

  Quando íamos subindo para o segundo andar no elevador lento e arquejante, ela me perguntou numa voz muito petulante se eu jamais passara uma noite num quarto com uma mulher.

  - Passei com a Mo em certa ocasião e, aliás, na mesma cama - eu procurava recuperar o meu controle.

  - Você não vai querer que eu engula, esta, vai? E o que foi que vocês fizeram?

  - Eu não fiz nada. Ela adormeceu...

  - Ora essa! Eu, certamente, não adormeceria.

  - Quem sabe? - Afastei-me para deixá-la sair do elevador. Logo depois eu estava na cama seguramente coberto com lençol e um cobertor leve. Na cama de Ellen havia uma lâmpada.

  O barulho do chuveiro parou e Ellen saiu de lá enfiada numa camisola de dormir, mais ou menos recatada. Já eu passara em outro teste.

  - Suas pernas até que ainda são bonitinhas para uma mulher de meia-idade, Ellen - bocejei fingindo que estava com sono.

  Ela resmungou alguma coisa muito indignada, apagou a lâmpada e enfiou-se na cama.

  - Boa-noite, Kevin.

  - Boa-noite, Ellen.

  - Sabe de uma coisa, Kevin. Não teria dado certo. Você se teria transformado num advogado irlandês beberrão, pronto para um ataque cardíaco, e eu seria uma suburbana gorda, neurótica e frustrada. Nós jamais tocaríamos no assunto, mas, bem no fundo de nossos corações, saberíamos que tínhamos cometido um lamentável engano.

  - Talvez mesmo...

  - Não tem "talvez", Kevin. Não tem mesmo. Você não teria tido a sua Igreja e eu não teria tido o meu Herb, e nós nunca nos amaríamos como nos amamos agora. Deus foi muito bom para nós.

  - É, acho que você tem razão...

 

  Os cardeais italianos da Cúria caminhavam até o altar para depositar seus votos com arrogante confiança. O Cardeal Patrick Donahue segredou para o Príncipe Arcebispo de Cracóvia: "Estão triunfantes." O outro rolou os seus olhos muito azuis e continuou a ler o seu livro de filosofia marxista. Pat ficou imaginando o que estaria ele pensando. Tinha ouvido dizer que ele votaria em Benelli, mas e daí? O que pensaria ele de mim se soubesse?

  Giuseppi Siri, o Arcebispo de Gênova, voltou devagar ao seu lugar. Ele não era nem conspirador nem desmancha-prazeres. Era mais sincero do que a maioria de seus aliados, um velho que dizia abertamente o que sentia. O que tinha dito ele naquela tola entrevista que logo transpirara antes do conclave? Ele não sabia o Quc significava "colegialidade", aquela palavra mágica que se apresentara como significação de liberdade e democracia em todo o munao católico. E se a entrevista tivesse sido conhecida na hora em 1ue havia sido programada enquanto nós estávamos aqui? Meu Deus! Que festa para os jornais! E eu que acabei de votar nele...

  Sentiu um aperto no estômago, enojado consigo mesmo, e curvou-se todo procurando amenizar a dor.   Ao seu lado, Wojtyla ergueu uma sobrancelha mostrando-se preocupado.

  - Foi o desjejum italiano, Eminenza?

  Os votos estavam sendo anunciados e contados. Quarenta e seis para Siri. Mais vinte do que em agosto último, no primeiro escrutínio. Martinelli estava radiante e parecia acenar para Pat do outro lado da passagem.

  Pat sentia-se responsável por talvez a metade daqueles vinte votos a mais. Tornou a sentir a dor no estômago. Meus Deus, Maureen, como eu te amo, apesar de tudo isso!

  Wojtyla teve cinco votos. Pat comentou com ele:

  - Cinco mais do que eu tive, Eminenza. Espero que tenha aí consigo o seu eletrocardiograma.

O polonês esticou o braço para uma pasta que estava em cima da mesa e tirou de lá uma folha de papel.  Sem dizer palavra, passou-o às mãos de Pat. Era exatamente o que Pat perguntara e indicava um coração ainda bem forte e firme.

  O segundo escrutínio caminhou mais depressa. Já então Flambeau estava sorridente. E tinha razão para estar. Siri ficara para trás e Benelli avançara. Não o bastante, no entanto. Ainda não o bastante, pensava Pat consigo mesmo. Desculpe, Gianni, bem gostaria de poder votar em você.

  Quando caminhava para o almoço, ele ouviu um cardeal norte-americano falando com Siri e lastimando a perda. O altivo e aristocrático ancião respondeu-lhe em italiano:

  - É tudo uma questão de línguas, Vossa Eminência. Para ser o Papa é preciso falar muitas línguas, e eu estou muito velho para aprender.

  Pat Donahue sentou-se defronte de Flambeau na galeria de arte moderna do Museu do Vaticano que fora transformada em refeitório para o conclave. Ele lembrava-se de haver trazido Maureen ali logo depois de sua abertura por Paulo VI. Aquilo jora antes...

  - A coisa está engrossando, Monsieur lê Cardinal - disse ele a Flambeau, enquanto passava manteiga em um pão.

  - Para o senhor, cardeal - Flambeau respondeu, seus olhos falseando - ela sempre esteve assim...

Forio era um dos mais lindos lugares em todo o mundo. Não era de admirar que os alemães ricos quisessem permanecer jovens ali. Ellen e eu estávamos no ponto mais distante de um monte de areia por baixo de um enorme rochedo. A areia parecia um dedo que apontava para a baía, ao passo que o rochedo era a sua unha em ponto grande.

  Lá atrás de nós a aldeia brilhava à luz do sol como se fosse um cenário de cinema muito caro. As casas penduradas na montanha eram pintadas de amarelo, vermelho, azul, combinando com os barcos de pesca que balançavam no pequeno ancoradouro. Manchas de bruma passavam por cima da areia e logo eram levadas pela brisa.

  Com um poderoso binóculo, cortesia da CIA, eu olhava para a casa de DeLucca enquanto Ellen se estirava na areia de barriga para baixo.

  Consegui, afinal, ver o perfil inigualável de Fredo que descia as escadas em direção à saída.

  - Ele está vindo... - eu falei baixinho, embora não houvesse ninguém por perto capaz de nos ouvir.

  - Ainda bem. Já era tempo - ela respondeu com voz de sono.

  - Está a uns cinqüenta metros de distância - eu tinha-me levantado e olhava para lá escondido pelo rochedo - e traz um rádio portátil. Vai apanhar um pouco de sol e ouvir as notícias. Quer ver se alguém já foi eleito.

  - Deixe-me ver - Ellen levantou-se também. - Ora, ora, ele não é nada mau para quem gosta do tipo. Acho que o Signor DeLucca está precisando encontrar alguma norte-americana viúva e bonita.

  - Você não pode...

- Não seja tão quadrado, Kevin. Guarde estes anéis. - Hrou-os do dedo, fez-me uma festinha no rosto, enfiou o robe curto e saiu rebolando provocadoramente.

 

  Os partidários de Siri organizaram uma ruidosa sessão no pátio depois do almoço. Estavam furiosos porque a vitória tinha-lhes sido arrancada quando já era certa.

  Lá em cima, da janela, Pat observava-os. Ainda não via como sair da armadilha em que caíra. Quase seria melhor ele ir para lá e juntar-se a uma gente que ele desprezava.

  Só que também era um deles. Ainda mais desprezível que os outros todos.

  Teria que tomar uma decisão naquela noite. Caminhou lentamente para o quarto.

  Sentou-se à mesa e tentou organizar seus pensamentos. Ouviu uma discreta batida na porta. Antes que tivesse tempo para responder, já via os cabelos muito lisos e o rosto angular de Martinelli. Disse apenas "Colombo", e sumiu. Pat suspirou e abotoou sua batina escarlate. Ele precisava ainda visitar três cardeais dos Estados Unidos antes da votação recomeçar. Iria dizer a eles.

  Colombo, um velho de setenta e seis anos, que já se demitira de sua própria cidade, seria o Bispo de Roma. Pensaria Antônio que poderia controlar o velho, ou seria aquilo apenas uma última jogada para manter de fora os stranieri?

  Até então, a traição fora apenas a um homem que não podia ser eleito e a favor de um outro nas mesmas condições. Só que agora ele estava traindo a Igreja.

  Ellen atravessou de volta a praia e veio ajoelhar-se ao meu lado. Quando falou eu imaginei estar ouvindo a voz da mocinha atracada com um milk-shake muitos anos antes.

  - Não acho que seja assim tão bonitão. Não sei o que as mulheres vêem nele. O seu método é bem óbvio. De qualquer maneira, tenho um encontro com ele, às  seis horas, para ver a fumaça do conclave e depois um "pequeno jantar". Os empregados já foram todos embora, e ele também deve viajar para estar em Roma às nove horas. - As suas últimas palavras foram ditas lentamente para não perderem o efeito dramático. - E, olhe aqui, Kevin, não se preocupe com o que resta de minha virtude. Aquele nosso bom amigo da Embaixada deu-lhe aquela pílula sem gosto que você pode botar dentro do que desejar para fazer com que um homem durma em sessenta segundos para só acordar meia hora depois sem lembrar do que lhe aconteceu. Aliás, ela serve também para mulheres, se é nisso que você está pensando. Eu sei como manter um homem na expectativa durante sessenta segundos. Agora, volte ao hotel e suborne alguém para dizer que sou a Signora Brown, se alguém telefonar.

  Eu nunca deveria ter contado a ela as virtudes da pílula. O jeitínho de seu queixo dizia-me que seria inútil qualquer discussão.

 

  Aquela tarde tinha sido dramática e também aterradora. Benelli não vencera no terceiro escrutínio. Os votos de Siri tinham diminuído. O azarão do páreo ali no conclave estava correndo sem jóquei. Depois houve um espetacular aumento de votos para Colombo no último escrutínio do dia. O velho seria, certamente, eleito no dia seguinte.

  Antônio Martinelli parecia satisfeito. Wojtyla franziu a testa quando viu que tivera dez votos. Os seus frios olhos azuis {á não sorriam mais.

  Na hora do jantar, Colombo dissera bem alto e firme que não aceitaria se fosse eleito. Os outros italianos que estavam sentados perto dele, como se procurassem isolá-lo de qualquer contágio, tentaram fazê-lo calar, mas o velho, geralmente alegre e bem-humorado, estava realmente furioso. Ele não aceitaria. A Igreja precisava de um homem moço. Antônio já não sorria mais.

  Eu vi a jumata no fim do primeiro dia na TV do hotel em Ischia. Uma imensa multidão enchia a piazza e a passagem da Conciliazione para o Tibre. Uma lua muito grande surgiu lentamente por trás do Castelo Santo Angelo e ficou em cima do rio. Os faróis cruzavam por cima da cúpula de S. Pedro e as calçadas do Palácio Apostólico.

  Até mesmo ali naquele vídeo pequeno, eu sentia a eletricidade lá na multidão. O locutor italiano falava sem parar como se quisesse aumentar a tensão, o que era absolutamente desnecessário. No vídeo apareciam sempre os retratos de Benelli, Siri e Pappalardo. Finalmente surgiu a fumaça e a multidão parecia ter enlouquecido da mesma forma que os locutores que gritavam: "Bianco! Bianco!" Depois o branco foi ficando cinza e, finalmente, preto.

  - Nada funciona direito neste país - foi essa a observação de um norte-americano.

  - Os teatros são bons, mas os sindicatos são uma porcaria retruquei.

  O locutor logo recuperou o controle para gritar que a fumaça era agora: "Nero! Nero!" Parte da multidão já estava indo embora. Os que estavam ali vendo a TV também foram saindo veio o locutor para dizer que a Rádio Vaticano informara que a fumaça era mesmo preta. Fui até o pátio para jantar e esperar pela minha Mata Hari.

  Ellen tinha saído trajando um vestido desses de enrolar no corpo, em preto e branco, que era bastante atraente. Ela levara o vidro de pílulas e um compacto com um rádio em miniatura, um transmissor cujo receptor estava ali em meu bolso. Ao ouvir o bip eu devia sair correndo com o 38.

  A noite corria e eu não ouvia nem bip nem risadas. Estava começando a me dar conta da enormidade de nossa loucura. Não era preciso uma ameaça de morte para me dizer o quanto eu amava Ellen.

  Fui até a rua. Ninguém à vista. Nas noites de domingo Ischia vai dormir cedo. Quando fossem dez eu iria atrás dela sem olhar as conseqüências.

  Fui até o saguão e fiquei olhando o relógio andar com uma lentidão de enlouquecer. No momento em que o carrilhão bateu as dez eu voltei-me para a escada. Estava na metade do caminho quando ouvi o barulho dos saltos de sapato. Eram pés que andavam bem depressa.

  Quando corri para abraçá-la ela protestou:

  - Meu Deus, Kevin, não aqui no saguão...

  Encostada na parede do pátio, para onde tínhamos fugido para não sermos vistos pelo porteiro, ela fechou os olhos. Estava pálida e tensa.

  - Afinal de contas, acho que não fui feita para esta carreira. Sou apenas uma dona-de-casa do Condado de Cook. - Afinal abriu os olhos. - Não me olhe com essa cara, Kevin. A minha castidade está no mesmo ponto em que estava quando saí daqui. Ele não presta mesmo. Não consigo ver o que a Mo... - Sacudiu a cabeça. - De qualquer maneira, ele vai partir às onze e há um cofre oa parede do quarto. Consegui apanhar uma chave da casa, de maneira que não vai ser preciso você usar aqueles brinquedinhos. Kevin, vamos cair fora deste lugar horroroso o mais cedo possível.

 

  Elegante como sempre, sem vestígio de suor na batina, muito bem penteado, o Cardeal Martinelli deixou-se cair na cadeira de plástico. Estava com cara de poucos amigos.

  - Então é isso aí. Amanhã vai ser o dia do estrangeiro. Vão logar o trunfo polonês. Mas eu ainda acho que podemos dar um jeito. Ele jamais conseguirá ganhar sem o voto dos cardeais dos Estados Unidos - ele olhava especulativamente para o Cardeal Donahue.

  A dor no estômago de Pat era agora intensa. Não se sentia à vontade ali naquela cama dura.

  - Não sei se posso segurá-los, Tonio. Você sabe quantos poloneses nós temos nos Estados Unidos?... - Ele estava sentado na cama cujo colchão muito fino tornava-a ainda mais inconfortável do que as camas velhas de Mundelein.

  - Pois é preciso que alguém os segure - os olhos de Martinelli faiscavam. - Precisamos proteger a Igreja contra os seus inimigos. Diga-lhes que ele foi casado e que tem um filho. Diga-lhes que ele é muito mais tolerante com os comunistas do que Vyshinsky. Você mesmo viu quando ele lia aquela revista comunista na capela.

  Diga-lhes que ele está comprometido com a filosofia moderna e que é autor de poesias eróticas. Aliás, tudo isso é verdade. - Ele dizia aquilo tudo com o seu rosto vermelho de fervor.

  - Será que você já tentou dizer isso tudo ao John Krol, especialmente a respeito de um outro polonês?

  - Claro que vamos perder o Krol - ele mostrou que o Arcebispo de Filadélfia não contava muito com um simples aceno das mãos - mas você deve impedir que ele influencie os outros.

  - Isto é mais fácil dizer do que fazer. Wojtyla é conhecido e admirado nos Estados Unidos.

  - A Igreja deve ser protegida contra o comunismo - Antônio levantou-se. - Não permita que os seus colegas votem nele, caro mio. Seria muito ruim para a Igreja.

  As dez horas ainda não havia nenhum Lancia vermelho lá. Perturbado e nervoso, o Cardeal Patrick Donahue sentou-se à mesa que ficava ao lado da cama, com a cabeça nas mãos. Ainda mais uma chance. Ele iria esperar até às oito e meia da manhã. Se não houvesse sinal de Kevin, ele seria obrigado a bloquear a eleição de Karol Wojtyla.

 

  - Precisamos pegar a barca da meia-noite - enfiei um suéter preto. - Temos três horas até Roma e isso faz três horas e meia conforme for a viagem da barca. Mais uma hora para demoras. Estaremos lá às quatro e trinta. Muito a tempo. Se tivermos de esperar pela barca das duas vamos ficar presos no rush do tráfego. Ellen eufiava as roupas na mala. Estendeu a mão para pegar o suéter preto de cashmere. Quando o enfiava teve ainda tempo para dizer:

  - Você está de olhos arregalados, Kevin...

  - Meus olhos estão admirados com a graça que desarma / De Titaiiia em rendas negras e mágicas...

  - Puxa vida! - Ela soltou uma gargalhada. - Trinta anos entre versos românticos e você escolhe exatamente a hora em que estamos bancando a CIA. - Ela tocou-me o rosto com delicadeza, da mesma forma que eu lhe tocara os dedos na sorveteria. - Vamos, vamos. Temos que dar o fora daqui. Alguém tem de se mexer...

  Pagamos a conta do hotel. Saímos com as malas pela escada dos fundos e colocamos todas na mala do carro, com exceção da sacola preta da embaixada que foi conosco na frente. Depois saímos no carro andando muito devagar, já que o nevoeiro estava quase impenetrável. Estava muito frio.

  - E se a barca não puder sair por causa do nevoeiro, Kev?

  - Vamos pensar nisso na hora em que acontecer.

Era uma íngreme escalada pelas ruas calçadas com lajes de pedras até chegar lá em cima. O nevoeiro transformara-se numa chuvinha fina. Passamos pela casa de DeLucca na escuridão e tivemos que voltar.

  - Ali está ela, Kevin. Tenho a certeza. É a casa vermelha com um leão na porta. Seu carro não está mais aqui.

  Fomos até os fundos e saltamos o muro. Ellen saltou com mais agilidade do que eu. Subimos a escada escorregando nos dejraus de madeira. Ellen falseou o pé, caiu, mas eu agarrei-a.

  - Obrigada, Kevin. - Falou baixinho com a voz tremendo. Eu não conseguia abrir a porta.

  - Que diabo, Ellen, você tem certeza que esta é a chave?

  - Mas claro que tenho - ela respondeu com certa petulância. - Você quer que eu...

  - Chiii. .. Você com essa voz é capaz até de acordar os mortos. Pronto. Está aberta.

  Entramos no gabinete de DeLucca custosamente mobilado com os móveis em madeira clara e cortinas. Fechei a porta e ficamos numa escuridão total.

  - O cofre está na sua esquerda, Kevin - disse Ellen. - Por trás daquele quadro.

  Um pequenino foco de luz iluminou a escuridão, correu pela parede e chegou a um quadro com uma rapariga gordinha onde parou.

  Tirei-lhe das mãos que tremiam muito o foco de luz e levantei o quadro. Ali estava o cofre, exatamente como Ellen dissera. E foi aí que ouvimos os carros.

Eram dois que pararam do lado de fora com os faróis iluminando os muros do jardim, bem por trás de nós.

Ficamos ali sem nos mexer e sem saber o que fazer. Ellen quebrou o silêncio.

  - Há um closet no outro lado do escritório onde ele guarda coisas. Ali está. Vamos nos esconder ali. Tenha cuidado. Não tropece.

  Tornei á colocar o quadro no lugar. Derrubei uma cadeira. Esbarrei na mesa antes de encontrar o caminho para a alcova depois da Ellen.

Mal cabíamos os dois ali bem apertados. A porta fechou-se com um clique. Ouvi passos na escada. Quantos terroristas estariam ali armados de metralhadoras?

  A porta abriu-se e a sala iluminou-se. Lá de dentro via-se a luz num filete que enquadrava a porta. Os dedos de Ellen apertaram o meu braço. Havia uma fresta na porta pela qual eu podia ver a sala. Era DeLucca e mais duas outras pessoas. Um homem e uma mulher.

  - Foi uma estupidez vocês virem aqui - Fredo estava furioso. - Vocês não podem ser vistos juntos. Hoje esteve aqui uma mulher que pensei ser uma espiã, mas era estúpida demais...

  Senti que Ellen ficara dura de raiva.

  - O meu editor não quer pagar mais nada sem que eu veja a mercadoria.

  Eu reconheci logo a voz. Então era por isso que eles estavam ali falando inglês. Estava espantado ao ver que uma publicação norte-americana tão importante como aquela pudesse estar envolvida em chantagem. Lembrei-me então de que "Repórter Investigador'" cobria uma série imensa de escândalos.

  A terceira pessoa era uma moça com a clássica beleza romana - alta, esbelta, elegante, cabelos longos e lisos, seios levantados e pequenos, espremidos por um suéter muito parecido com o de Ellen. Os olhos e o rosto eram duros.

  DeLucca virou o segredo do cofre, abriu-o e tirou de lá um envelope grosso que entregou ao repórter.

  - Aqui estão. Olhe bem e diga ao seu patrão que se não tiver a ordem bancária amanhã, eu vou entregá-las a outra pessoa.

  - Que beleza! - Eu não conseguia ver o rosto do norte-americano mas a risada era de puro deboche.

  DeLucca perguntou à moça se ela também queria ver, mas a sua resposta foi concisa.

  - Não é preciso. Sabemos que ele é um degenerado.

  - Excelente - DeLucca virou-se para o repórter. - Agora peço-lhes que se retirem. Poderão pegar a barca da meia-noite. Eu serei obrigado a ir pela das duas, porque é preciso que seja visto na Salle Stampa do Vaticano amanhã de manhã.

  Fiquei arrasado. Teríamos então que ir pela de quatro horas. Três horas para Roma, três e meia com a viagem na barca... sobrava apenas uma.

  O repórter saiu sem mesmo se despedir. Alguns minutos depois ouvimos o barulho quando pôs o carro em movimento e partiu dentro da noite. Minhas pernas já estavam dormentes e talvez ainda fôssemos obrigados a ficar ali mais algum tempo. DeLucca devolveu o envelope ao cofre, fechou-o e pendurou o quadro no lugar.

  - Quer um copo de vinho, signorinal Ela resmungou alguma coisa.

  - Você é encantadora, carína. É uma vergonha que uma muiher tão bela esteja se estragando na política. Há tantas coisas melhores que você poderia fazer.

  A garota apenas respondeu-lhe que ele era um porco degenerado. Ele riu.

  - É uma vergonha que um corpo como o seu fique por aí se estragando. Dentro de pouco tempo você, certamente, estará morta ou então apodrecendo na prisão.

  Foi só então que ela pareceu perceber que estava em perigo. Disse-lhe então que os Servidores de Santo Antônio lhe arrancariam os órgãos genitais se tocasse nela.

  Ele achou aquilo muito divertido.

  - Não creio que o façam, cara mia. Eu sei bem que os seus amigos terroristas zelam muito pela pureza de suas moças, mas eu sou para eles um contato bom demais para ser estragado. Os seus defensores da fé precisam de homens como eu para fazer coisas que eles não podem fazer.

  Ela estava sentada junto à mesa, e ouvimos quando correu para a porta, mas ele foi mais ligeiro e segurou-a. Deu a volta na chave.

  - Pense bem na sua posição, cara. Eu sou mais forte que você. Ninguém ouvirá os seus gritos. Os seus colegas não me farão mal algum. Não seria então

melhor cooperar e aceitar minhas atenções? De qualquer forma, a sua resistência só aumentará o meu prazer.

  A moça correu na nossa direção, mas DeLucca segurou-a pelo braço antes que chegasse à porta.

  Ellen estava com os dedos fincados em meu braço. Não podíamos sair dali de forma alguma.

  DeLucca atormentava a moça imitando-lhe os gritos. Quando ela desistiu da luta sem mais forças para resistir, ele fez coisas em seu corpo que a obrigavam a gritar de dor. Então, a julgar pelo que ele dizia, descobriu que ela era virgem e dispôs-se então ao prazer de violentar uma inocente.

  Quando já iam saindo ele ainda acrescentou:

  - Pois é isso, cara mia, agora você pode chorar à vontade. Mas tudo passará, e pelo pouco tempo que tem de vida, você sempre se lembrará com prazer das coisas que o seu tio Fredo lhe ensinou... - a sua ternura era metade séria e metade sarcástica.

  Não era assim tão fácil arrombar uma porta como parece na TV, especialmente quando se procura abafar o som com um suéter enrolado. Tive que explodir um buraco na porta por onde passei a mão para abri-la pelo lado de fora.

  - Vamos pegar as fotos e cair fora daqui.

  Coloquei no cofre duas cápsulas pequeninas que liguei numa caixinha e acionei o contato. Ouviu-se um ruído abafado e a porta caiu. DeLucca era um amador e os autores do explosivo eram profissionais.

  Ellen estava calada. Passei-lhe a lanterna e fui até o cofre. Havia ali pilhas de envelopes. DeLucca era ativo. Apanhei o que estava em cima e abri-o. Puxei um pouco a primeira foto e logo coloquei-a de volta. Meu Deus! Pobre Maureen. Verifiquei se os negativos estavam mesmo ali.

  Ellen entregou-me uma lata de lixo que encontrara ali mesmo. Atirei dentro dela todos os outros envelopes. Ellen iluminava a lata enquanto eu esvaziava o líquido.

  Tudo que estava lá dentro pareceu evaporar-se como se fosse uma mancha de água exposta ao sol. Em menos de um minuto só restava no fundo da lata algumas gotas do líquido. Muitas outras almas estavam salvas do purgatório junto com a de Patrick Donahue. Agora, se chegássemos a tempo a Roma, ele poderia assumir a responsabilidade para a eleição de um novo papa.

  Descemos pela escada da frente e entramos no nevoeiro. A alguns passos do outro lado da rua escorregadia, encontramos dois homens com facas. Estavam vestidos como estudantes italianos de classe média, roupa escura e gravata. Ao contrário de seus companheiros de esquerda, os Escravos de Santo António não eram cuidadosamente treinados nem disciplinados. Eram românticos selvagens saídos de uma ópera de Verdi. Estavam também tremendo.

  Fizeram sinal para nós que, obedientemente, os seguimos até chegar à praia. Estavam com a faca no pescoço de Ellen e eu não queria conversa com eles. Levaram os nossos relógios e carteiras com dinheiro embora não parecessem estar muito interessados naquilo.

  Paramos diante do rochedo. O nevoeiro estava cada vez mais espesso. Um deles ficou perto de mim com a faca em riste. O outro fez Ellen girar nos calcanhares torcendo-lhe o braço nas costas e cortando o suéter em toda a sua extensão. Então era aquilo que eles queriam...

  - Nossa mulher foi estuprada e agora o mesmo vai acontecer à sua. Depois vocês dois serão julgados pelo tribunal sagrado. O que falava era o mais alto dos dois, um adolescente magro com uma feia cicatriz no rosto.

  - Não fomos nós que fizemos isso com a sua mulher - eu protestei. - Foi um dos seus próprios confederados.

  - Não importa - ele deteve-se. - Se não fosse pelo seu degenerado amigo, o cardeal, nada disso teria acontecido.

  - Santo António não aprovaria...

  - Da mesma forma que Santo António, nós somos os defensores da civilização cristã.

  Eu já estava cansado de discutir com um maluco. Ouvi as instruções de Calvin Ohira como se ele estivesse ali ao meu lado. Com uma rápida cutilada com a mão eu quebrei o pulso do assaltante que estava com a faca apontada para mim. Ele soltou um grito e largou a faca.

  O seu amigo hesitou, assustado pelo barulho no escuro. Vi o seu pescoço nitidamente delineado contra o céu. Atirei-me a ele e alcancei-o com precisão brutal. Ainda ouvi o suspiro que deu quando caiu na areia.

  Voltei-me para o outro que tinha conseguido apanhar a faca e que investia para mim. Dessa vez peguei-o em cheio no queixo e ele foi juntar-se ao amigo que estava ali estirado na areia inconsciente. Eu já estava em cima dele com a intenção de quebrar-lhe todos os ossos do corpo quando Ellen me puxou.

  - Por favor, Kevin. Não o mate. Por favor...

  Se eu soubesse o que eles iriam fazer dois dias depois, eu os teria liquidado ali mesmo sem qualquer remorso. Em lugar disso, recuperei os relógios e as carteiras, voltamos correndo para a aldeia e entramos no Lancia. Teríamos sorte *e pegássemos a barca das quatro.

  Eram cinco horas quando chegamos à auto-estrada para Roma. A barca se arrastara atravessando a baía com o mar encrespado como se o piloto não soubesse bem onde era a praia. Aquela meia hora a mais pareceu uma meia eternidade. Ellen chorou até dormir dentro do carro, enquanto eu procurava descobrir como tinha sido possível àqueles dois malucos descobrirem que a mulher fora violada.

  Estávamos a dois terços do caminho de Roma, e já rompia a madrugada quando chegamos a um ponto onde a polícia bloqueara a estrada. Estavam verificando todos os carros e isso levou meia hora. Os dois carabiniere uniformizados olharam os nossos passaportes e mandaram que passássemos. Perguntei-lhes em italiano a razão para aquilo.

  O tenente deu de ombros. Tinha havido um crime horrível, um homem muito conhecido fora mutilado e assassinado.

  - Quem era ele?

  O policial hesitou, depois, vendo que éramos norte-americanos, achou que não havia razão para esconder.

  - Foi o famoso jornalista Alfredo DeLucca.

  Ellen conseguiu conter sua histeria até passarmos. Aos poucos, consegui acalmá-la.

  Deixamos a auto-estrada na saída da Via Aurelia. Eram oito e dez. Tínhamos vinte minutos para chegar a S. Pedro, mas era a hora do rush.

  O Arcebispo de Chicago espiou lá para fora da janela de seu quarto. Eram oito e vinte e nove e nada do Lancia vermelho. Não haveria mais possibilidade de comunicação naquele dia. Por que não marcara ele uma outra hora na parte da tarde? Agora jâ não tinha importância. Ele só esperava que nada houvesse acontecido com Kevin.

  Também podia ser que nada acontecesse no conclave. Podiam chegar a um empate. Quem sabe se depois da fumata da noite ele chegaria à janela e veria lá o carro vermelho? Só que naquele meio tempo ele era obrigado a tentar vencer um homem que daria um excelente papa.

  Ele nem mesmo notou quando os números do seu relógio digital passaram de oito e trinta. Quando olhou outra vez já eram oito e quarenta. Nada do Lancia vermelho.

  Suspirou, abotoou a batina, atirou a cappa magna nos seus ombros largos e saiu do quarto.

 

  Levamos trinta e cinco minutos desde a Via Aurelia até a Piazza San Pietro. Eles já estavam novamente na Capela Sistina. A piazza estava cheia de turistas. Somente as barricadas, o grande número de policiais da segurança à paisana e as plataformas da televisão mostravam que aquela manhã de segunda-feira era diferente na Cidade Eterna. Nós deveríamos estar lá às oito e meia. Chegamos às oito e quarenta e cinco. Eu, afinal, tinha falhado para ajudar o Pat a encestar.

  Ellen, com uma cara muito desanimada e cansada, e eu resolvemos tomar o nosso café da manhã ali mesmo, na frente do Hotel Columbus, perto da Conciliazione.   Lemos os jornais da manhã, fomos até a Salle Stampa bater um papo com Micky Wilson, o brilhante e antigo repórter do Time em Roma, e ficamos esperando a fumata.

  Quando ela finalmente apareceu, às onze e quinze, era, sem dúvida alguma, bem preta. Os alto-falantes anunciaram confirmando. Afinal tinham conseguido fazer sair a fumaça certa, e algum gênio tinha também descoberto os alto-falantes. Havia coisas na Itália e na Igreja que jamais mudavam.

  Nada mais tínhamos a fazer até a noite. Disse a Ellen que fosse para o Hilton e tentasse dormir para esperar o Herb. Passei pelo portão do Santo Ofício, segui pela Via Aurelia e cheguei ao Michelangelo, onde dormi como se houvesse tomado uma daquelas pílulas.

 

  O Príncipe Arcebispo de Cracóvia deveria ter uns quinze ou dezesseis votos no primeiro teste das "matemáticas do espírito". Recebeu vinte e um, uns cinco a mais do que era esperado. John Krol ria como o gato que engoliu o passarinho. Antônio Martinelli olhava para Pai, frio como a morte. Karol Wojtyla ouvira, aterrado, à medida que seu nome ia sendo mencionado repetidamente na contagem dos votos. Quando o resultado foi anunciado ele deixou cair a cabeça em suas mãos enormes.

  Os que querem não conseguem e os que não querem conseguem. Pat trauteava uma canção polonesa que aprendera no St. Wenceslaus, em Chicago. O Príncipe Arcebispo levantou os olhos par-a ele. Estavam cheios de lágrimas agora.

  Eu fiz o sinal, acendendo três vezes, às cinco e trinta. Bem no fundo da minha alma eu sabia que era tarde demais, mas tínhamos que desempenhar a peça até o fim.

  Depois encontrei um lugar para estacionar perto da praça do Santo Ofício e fui encontrar-me com Ellen e Herb lá nas barricadas. Já estava anoitecendo e os holofotes estavam acesos. Parecia que havia menos gente que na noite anterior, mas ainda era cedo.

  Ellen estava com uma saia cinza e um casaquinho e Herb trajava um terno formal escuro. Ambos pareciam sombrios e perturbados. Maureen estava com eles e também tinha o rosto fechado.

  - Alfredo?

  - Eu já cansei de chorar, Kevin. Nós terminamos tudo em agosto. Ele era um homem terrível. Eu. .. Eu devo ter caído muito. De qualquer forma, sinto que ele esteja morto. Uma morte tão horrorosa! Ninguém merece...

  Às seis horas a praça já estava cheia. A multidão continuava a aumentar na medida em que os números digitais saltavam para as seis e quinze.

  - Quanto tempo ainda falta? - Ellen estava nervosa.

  - A qualquer minuto... - Eu já estava encontrando dificuldade para respirar e mais ainda para falar.

  Eram seis e treze minutos quando a fumaça começou a sair da chaminé, uma fumaça indiscutivelmente branca, que espiralava à luz dos holofotes antes de se perder na escuridão. A, multidão estava louca. Agora já não havia dúvida. Pela segunda vez, em três meses, tínhamos um novo Papa.

  Quem seria ele? Benelli? Siri? Willebrands, da Holanda? Alguém jamais sonhado? Eu sentia o peito apertado. Meus Deus!

  Se fosse o Siri, com que cara iríamos chegar de volta aos Estados Unidos?

  Havia um clima de festa, como se todos ali adorassem o suspense. Chegaram os Guardas Suíços que, para mim, eram os únicos profissionais na Igreja. Depois a banda do exército italiano, legitimamente presente porque a piazza é parte da Itália, apesar do domo estar na Cidade do Vaticano.

  Às seis e quarenta e três acenderam-se as luzes lá dentro. Alguém saiu para colocar os microfones. As cortinas se abriram. A porta do balcão também abriu-se lentamente de forma majestosa. Os portadores da cruz e os acólitos saíram, da mesma forma que no seminário, antigamente, só que aqueles estavam vestidos de vermelho. Então apareceu Pericle Felici. Dei graças a Deus por não ser ele.

  Ele tentou começar, mas foi interrompido pela gritaria da multidão. Meu coração estava aos saltos, quase saindo pela boca. Sentia a barriga apertar.

  - Annuntio vobis gaudium magnwn habemos papam... Houve uma nova explosão de aplausos. O Pericle não parecia muito satisfeito. Continuou em latim:

  - Carolum... - Um silêncio absoluto. Carlos, Carlos o quê?

  Ellen gritava:

  - Quem? Quem é?

  - Sanctae Romanae Ecclesiae Cardinalem... - Ele fez uma pausa para o último resquício de efeito dramático.

  - Wojtyla!

  - Qui sibi imposuit nomen Joh, annis Pauli. - Felici olhou rápido para a multidão e entrou apressado para a proteção de San Pietro.

  Ninguém se mexia. A multidão estava atônita e silenciosa.

  - Carlos o quê? - quis saber Ellen.

  Eu ria-me satisfeito. A história pespegara no mundo uma piada polonesa.

  - Padre. È Papa nero? - Um italiano me cutucou.

  - Non. - Não era um papa preto.

  - È papa asiático.

  - Non è papa asiático...

  - Ma.. . quale papa?

  - È papa polacco!

  Ele bateu na cabeça, num gesto caracteristicamente italiano, como querendo dizer que aquilo era o fim do mundo.

  - Mannaggia! Un papa polacco!

  - O que é que isso quer dizer, Kevin? O que é que isso significa? - Ellen me puxava pela manga.

  - Isto significa que, pela primeira vez na sua vida, o nosso amigo cardeal arcebispo conseguiu encestar uma bola sem o meu auxílio.

  Levei-os todos para a sala de imprensa do Vaticano. Queria ver a cara do Papa na televisão. Jimmy Roache, o coordenador da imprensa norte-americana, já estava distribuindo as biografias.

  - Quantas línguas ele fala? Fala italiano?

  - E ainda mais umas oito ou nove...

  - É preciso que ele fale para essa gente. Tradição ou não, estão todos surpresos e magoados, Jimmy.

  - E ele é mesmo capaz disso, Kevin - Jimmy deu de ombros. Na TV vimos que a porta se abria novamente sobre o balcão.

  Surgiu um homem forte, ombros largos, com o rosto muito sério. Os jornalistas italianos estavam furiosos e gritavam que não gostavam dele.

  - Ele nem parece Papa - Herb segredou-me ao ouvido.

  - Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo - Wojtyla saudou a multidão em italiano.

  - Agora e para sempre! - Do meio da multidão, muita gente respondeu.

  - Que Jesus Cristo seja louvado. - Sua voz era profunda e poderosa e sua presença era marcante. - Caríssimos irmãos e irmãs, ainda sentimos a morte de nosso muito amado Papa João Paulo Primeiro. E agora, os reverendíssimos cardeais nomearam um outro Bispo de Roma. Foram buscá-lo num país distante, distante, mas sempre muito perto para a comunhão na fé cristã e na tradição.

  "Tive medo quando recebi a nomeação, mas recebi-a no espírito de obediência ao nosso Senhor e com confiança total em Sua Mãe, a Santíssima Madona.

  "Embora não sabendo me expressar bem na vossa... na nossa... língua italiana, peço-lhes que me corrijam se cometer algum erro.

  "E aqui me apresento a todos vocês para confessar a nossa fé comum, nossa esperança, nossa confiança na Mãe de Cristo e da Igreja, e também... e também para começar de novo nesse caminho, no caminho da história e da Igreja, para começar com a ajuda de Deus e com o auxílio dos homens.

  Os aplausos foram de ensurdecer.

  - Ele faria sucesso lá em nossa terra, Ellen. Conhece todos os truques políticos. Já tomou conta dessa gente. Ouça só os aplausos.

  Então todos começaram a chorar. Maureen, Ellen, Herb e, do outro lado da sala, Kevin Star do Examiner de São Francisco.

  - Por que é que estão todos chorando, Herb? - Mas eu também chorava.

  - Esta sua maldita Igreja, Kevin, é ao mesmo tempo uma virgem e uma prostituta. Velha como o pecado e como um botão de flor. Esse é o tipo de mulher que

adoramos - Ele falava quase gritando.

  - Herbert - Ellen chegou-se a ele - mas que coisa tão terrível, tão feia e tão maravilhosa que você disse...

  - Mas, pelo menos, ela ainda está viva... - disse eu.

  - Com todos os demônios, está viva mesmo! - Ele acariciava a cabeça que se aninhava em seu braço.

  Ali, naquela hora, eu escolheria Ellen como um símbolo da Igreja.

  Maureen levou-nos todos para o seu apartamento e abriu champanha.

  - Você se lembra da primeira vez? - Ela sorria para mim ao passar-me a taça. Seus olhos estavam tristes e cansados. Ficariam eles assim para sempre?

  - Um outro tempo para começar de novo - eu levantei a taça para ela.

  Ela afastou-se rapidamente.

  Os vizinhos dela entravam trazendo suas garrafas. Os italianos estavam contentes como nós por se haverem libertado daquela tradição incômoda.

  Chegou finalmente a hora de voltar para o Michelangelo. No dia seguinte ia ter muito que fazer. Ouvi Ellen e Maureen planejando uma expedição para compras.

  Bem a contragosto aceitei o convite para almoçar com elas no L'Eau Vite.

  Quando já ia saindo, Maureen segurou-me pela mão.

  - Você acha que eu poderia mesmo fingir que estávamos no Ano-Novo de 1949?

  - É só você querer... - segurei-lhe a mão com força.

  - Será que já não estou muito feia para encontrar marido?

  - Está falando sério?

  - Bem que gostaria... - ela parecia desanimada.

  - Com o Pat?

  - Eu não sei, Kevin. Vamos falar nisso outra vez antes de você ir embora. Acho que o Sloane ainda está muito solitário.

 

  O Ristorante L'Eau Vite era um lugar fresco, elegante e clássico. Uma vez lá dentro, as pessoas deixavam para trás as ruas estreitas e sujas, paredes também sujas, pedestres carrancudos, cartazes pregados nos muros e já em pedaços, e o pungente cheiro de gasolina da moderna Roma. A atmosfera ali pertencia a um outro século, uma era que já fora, ou uma outra que ainda estava para chegar.

  Às duas e trinta, enquanto ainda estávamos na sobremesa e DO conhaque, todos os fregueses e empregados ficavam de pé para cantar, no idioma que preferissem, o Hino de Lourdes. Maureen, Ellen e eu cantamos vigorosamente, numa alegre lembrança dos nossos dias de escola quando todos nós rezávamos para a Nossa Senhora de Lourdes para pedir-lhe milagres como, por exemplo, passar no exame de inglês, ser convidado para uma festa importante ou até mesmo para a vitória de nosso time num jogo muito apertado. Herb olhava tudo aquilo com curiosidade, como, aliás, sempre fazia quando a fé religiosa da mulher interferia com a sua vida. Sempre muito respeitador, ficou de pé também como todos nós. Chegou até mesmo a trautear as últimas stanzas da melodia irresistível.

  Estávamos todos nos aquecendo ao calor do triunfo de Wojtyla, um sol que nascia brilhantemente rompendo a bruma e o nevoeiro espesso.

  - Seria interessante saber o que acha o Cardeal Pat - Herbert bebeu o conhaque de um só trago, como se aquilo fosse água.

  - Foi pena ele não poder vir almoçar conosco.

  - Ele nos diria que o Papa é um velho amigo seu, e que a sua eleição significa uma guinada na história da Igreja Católica disse Maureen. - Quer que eu lhe diga como ele vai falar? Pat, atualmente, está trabalhando pela sua imagem perante o público, até mesmo com os amigos.

  O sinal da raiva passou tão rápido como viera. O seu rosto ficou mais sereno. Vi outra vez, na minha imaginação, o espasmo de alívio no rosto do Cardeal Patrick Donahue, na entrevista com os jornalistas, quando eu lhe fizera o sinal erguendo o polegar. Aquela, aliás, seria a última vez que eu ajudaria aquele sacana a encestar a bola.

  A serenidade do L'Eau Vite desapareceu na claridade do sol de outono e no barulho do tráfego logo que saímos de lá.

  - O meu carro está ali mesmo do outio lado da rua - Maureen despediu-se apressada. - Até esta noite...

  Desculpei-me também dizendo que precisava ir à sala de imprensa do Vaticano. Ellen e Herb voltariam sós para o Hilton.

  Vi Maureen que caminhava apressada na pequenina Piazza San Eustacho com uma saia bem apertada. Lindas pernas, pensei comigo mesmo. Não era a primeira vez que uma coisa assim tinha afetado uma eleição papal. Acima dela, a cabeça de cavalo que estava no lugar da cruz do costume no topo de San Eustacho fez-me lembrar que Roma já vira muitas lindas mulheres durante os anos do paganismo e do cristianismo.

  Quando voltava para Ellen e Herb, vi com o canto do olho um homem que saía de um carro, a poucos metros de distância, com uma metralhadora na mão. Era um dos terroristas de Ischia, o que tinha a cicatriz no rosto.

  - Nossa mulher foi estuprada! - ele gritou em inglês. - A sua vai morrer!

  Depois disso, tudo me pareceu um cinema lento, quadro por quadro. O sangue escorrendo das pernas de Maureen, que caía na rua, o barulho dos tiros, o pistoleiro voltando-se para nós e apontando a arma. Agindo como um tolo, tentei cobrir Herb e Ellen. O homem levantou a arma. Tiros novamente.

  A arma caiu-lhe da mão. Manchas de sangue apareceram em seu peito e ele desabou no chão, caindo em cima da arma. O motorista tentou dar a partida no carro. Houve outro pipocar e o carro deu uma guinada, avançando contra o muro do restaurante.

  O cinema lento terminou e ouvi barulho de gente gritando, carros freando atrás de mim, as sirenes soando ao longe. Atravessei correndo a praça até o corpo que ali estava contorcido numa poça de sangue, pensando irreverentemente que eu era o último a ver aquelas pernas lindas antes que elas fossem cortadas. Ajoelheime ao seu lado e coloquei sua cabeça em meu colo. Ela abriu os olhos muito tristes.

  - Eu vou para o inferno, Kevin - ela dizia aquilo como se fosse a coisa mais natural do mundo, da mesma forma que dissera antes que ia pegar o seu carro. - Eu sou uma mulher má e vazia. Eu vou para o inferno. - Duas lágrimas surgiram e rolaram-lhe lentamente pelo rosto. Os olhos se fecharam.

  - Você não vai não, Mo. Deus gosta muito de você. Você não é vazia e não é má. - Voltei-me para o policial de capacete branco que ali estava com a metralhadora na mão. - Sono sacerdote - resmunguei em mau italiano. Apontei para Herb: - Lui e medico. - Só então vi que ele estava ali ajoelhado atrás de mim tentando estancar o sangue na perna de Maureen.   Ele olhou-me, sacudiu os ombros e voltou ao trabalho.

  Maureen abriu outra vez os olhos. Dei-me conta de que estava apertando demais o seu corpo inerte.

  - Será que ele me ama mesmo? - ela murmurou.

  - Pat? - a minha pergunta foi feita sem muita convicção.

  - Não, seu bobo, Deus. - Aquele mesmo sorriso de sempre.

  - Tenho tentado... Eu estou sempre fazendo trapalhadas, Kev... mas eu tento... pelo menos às vezes. - Fez uma careta de dor.

  Ellen ajoelhou-se ao meu lado com o rosto contorcido de terror e dor.

  - Deus ama tanto você, Mo, que ele nunca nos separa.

  - Da mesma forma que nunca se separa de Jesus - eu acrescentei. - Segure firme a Sua mão que Ele não te largará.

  Ela sacudiu a cabeça. Eu segurava-lhe uma das mãos e Ellen a outra. Estávamos ajudando bem a Deus.

  - Oh, meu Deus, como estou arrependida... - ela tropeçava no antigo ato de contrição, que já não é mais tão necessário, mas que, mesmo assim, ainda ajuda. – Diga a Sheila que eu a amo muito...

— Ego te absolvo...  — comecei em latim, sacudi  a cabeça aborrecido com o engano, e continuei em inglês. — Eu te absolvo de todos os pecados, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.

  Ela suspirou como se houvesse tocado a mão que Deus lhe estendia. Eu olhei para Ellen, cujos olhos brilhavam. Atrás dela parou a ambulância da polícia com uma porção de médicos vestidos de branco.

  — Conte-lhes tudo,  Kev — a  voz dela já estava novamente forte. — De qualquer maneira vão descobrir.   Sobre Pat e eu.  Escreva tudo direitinho.  Não é tão mal como pensam.  Nós tentamos. Prometa-me  que escreverá tudo...   — sua mão apertava-me com força.

  — Padre, per favore...  — um dos médicos insistia tentando separar-nos.

  — Prometo,  Mo.  — Eu disse para ela e então largou-me a mão.

 

  Estávamos todos numa pequena sala de espera da Clínica Gemelli, bem perto do lugar onde a vida de Maureen se esvaía. Herb, Pat, Ellen e eu. O comandante dos carabirdere, um homem bonito e esperto, com quem tínhamos acabado de conversar, disse que os assassinos eram membros dos Escravos de Santo Antônio de Pádua, e que nós tínhamos sorte por estarmos todos vivos. Um dos terroristas morrera e o outro já tinha prestado depoimento com muitas informações interessantes quanto ao resto do grupo, e que aquilo era, aparentemente, um ato de violência sem outras ligações. Ele olhou firme para mim quando falou "aparentemente", mas eu fiquei firme.

  O meu cardeal arcebispo estava derreado numa das cadeiras de madeira com a cabeça caída no peito.

  — Esta é a melhor clínica de Roma — ele disse. — O Keskur está aqui...

  — Quem?

  — É o mais íntimo amigo de Wojtyla em Roma.  É da Repartição de Comunicações Sociais.   Sofreu uma trombose pouco antes de entrar para o conclave.   Não se espera que viva. — Pat falava mecanicamente.

  — Você contou a alguém que vinha almoçar conosco no L'Eau Vite?

  — Realmente falei — ele não deu muita atenção à pergunta. — Disse a um amigo no secretariado.   Depois fiquei preso por causa de um telefonema de Chicago.

  Abriu-se uma porta no corredor e um homem grande de avental branco saiu apressado. Quando viu o vermelho na batina de Pat ele parou de repente.

  — Santita... — Fazendo um tremendo esforço, Pat pareceu acordar, mas logo corrigiu-se passando a falar inglês. — Uma mulher que foi nossa companheira de infância foi assaltada poi terroristas esta manhã... — engasgou-se, mas logo recuperou seu sangue-frio e apresentou-nos.

  O Papa teve um sorriso de aprovação para Ellen, cuja mão segurou durante mais tempo do que o faria qualquer outro papa deste século, apertou a mão de Herb que, graças a Deus, não deixou ficar bem claro que ele ali era apenas um observador marginal de católicos, e, para mim, teve apenas um frio sorriso.

  — Será que posso abençoar a   mulher? — ele colocou suas mãos enormes no peito.

  — Si, Santita — isso foi dito por uma freira que surgiu como por milagre. — Per favore...

  — Quer ir, por favor, padre... — Pat olhou-me desesperadamente — eu...

  Já eu estava novamente funcionando.

  Assim foi que o Papa, a freirinha nervosa e eu entramos no quarto de Maureen. Ela abriu os olhos cansados quando ele a abençoou, mostrou um sorriso muito fraco e estendeu a mão. O Papa segurou-a com delicadeza e o seu rosto demonstrava tanta dor quanto o meu.

  Maureen começou a rezar baixinho: "Lembrai, Ó muito Graciosa Virgem Maria..." O Papa e eu íamos repetindo, ele num inglês muito carregado e eu com a voz rouca de dor... "que nunca ninguém soube que aquele que pediu a Tua proteção, que implorou o Teu auxílio ou que procurou Tua assistência, foi deixado ao desamparo. A Ti nós vimos, diante de Ti nós estamos pecadores e cheios de tristezas. Não desprezes as nossas petições e as nossas necessidades, mas, na Tua bondade, ouça e responda-nos. Amém."

  Maureen fechou os olhos e sorriu.

  Os olhos de João Paulo estavam profundamente tristes quando se despediu de nós. Segurou-me a mão quase com ternura. O homem conhecia bem no seu íntimo o que era o sofrimento.

  Meia hora depois estávamos todos em torno da cama de Maureen. O fim estava próximo. Ellen começou a rezar, já que nenhum dos padres se lembrava de fazê-lo.

  Maureen Cunningham Haggarty saiu da vida com muito mais tranqüilidade do que quando vivera. Num momento ainda respirava, e logo depois não respirava mais.

  — Dona ei pacem.   Paz finalmente, prima Mo.

  Herb, com muito carinho, levou Ellen para fora. Teriam que ir buscar Sheila no aeroporto.

  O cardeal e eu ficamos ali em silêncio olhando para o corpo morto da mulher que havíamos amado.

  Depois de muito tempo Pat virou-se para mim.

  — Eu fiz tudo por você, Kevin. — Ele estava calmo e quase filosófico. — Eu fiz tudo em minha vida para agradar a você.  E você nunca, nem uma única vez, teve uma palavra amável  para mim. Joguei o basquete para te agradar, fui para o seminário para te agradar, fiz-me padre para te agradar, salvei a diocese para te agradar, votei no Papa para te agradar, e você nunca me ligou a mínima.  Você ainda é o que sempre foi, Kevin, o sacana rico que patrocina todo mundo, mas não ama ninguém.

  Eu fiquei calado.

  — Você é o chefe — ele continuou, quase como se estivesse sonhando — o escritor e o intelectual, o padre que todo mundo admira.   Eu posso ser cardeal, mas, para você, eu sempre serei o filho do lixeiro.  Você me vigia, você me critica e você me julga. Você não se importa comigo; você não gosta de mim, você não está ligando a mínima se eu gosto de você ou não. Você arruinou o meu amor.   Você tirou tudo  de mim.   Agora Maureen está morta, e tanto me faz viver como morrer.

  Sua voz estava abafada e o seu rosto contorcido pela dor.

  — Talvez você esteja certo, Pat.  Eu não fui a espécie de amigo que você queria.  Eu...

  — Eu te amei mais do que a todos os outros... — Ele ajoelhou-se ao lado da cama soluçando baixinho.

  Eu saí do quarto, e só me voltei na porta para olhar mais uma vez o tranqüilo rosto de madona de Maureen.

 

  Eu ajudei Ellen para que saísse do lago.

  — A velhota já não consegue mais sair sozinha — ela sorriu. — De qualquer forma, não quando há um braço forte por perto.

  — Graciosa Titania, como o bom vinho vermelho...

  — Pare com isso, seu bobo...   — Ela tocou seus lábios nos meus antes de enfiar   uma camisa  que   combinava com o  maio. Aquele rápido toque dos lábios já era conhecido, mas sempre surpreendia.

  — Titania é um diabinho, um  duende feminino, uma mulher leprechaun...

  — Fique quietinho e aprecie o sol.

  O sol brilhava com todo o seu calor lá em cima das árvores. Nós ficamos sentados na beira do poço batendo na água com os pés. A antiga magia jamais voltaria completamente. Aquilo ali era apenas um poço para nadar um pouco antes do jantar com o casal.

  Ellen perguntou cautelosamente se Pat estava gostando de seu novo cargo em Roma.

  — Art diz que ele  está adorando... — Apertei um pouco mais a toalha em torno dos ombros apesar do calor.

  — Será que ele foi mesmo promovido?  Será que sabem o que houve entre ele e Mo?

  — Em resposta à primeira pergunta, tudo depende da pessoa com quem fala. O cargo de secretário da congregação que estuda as canonizações pode ser considerado como uma diminuição, mas ele ainda é o único norte-americano na Cúria.

  — E a segunda?

  — Você viu o que os jornais publicaram.  Os carabiniere invadiram uma célula dos Escravos de Santo António de Pádua, mataram quatro rapazes e internaram uma moça numa clínica mental. Já é notada a ausência de Martinelli em Roma. Oficialmente, ninguém sabe a razão para a morte de Maureen. Isso não significa que Wojtyla não desconfie de alguma coisa.

  Fez-se um silêncio entre nós e só se ouvia o zumbido das moscas.

  Ela passou o braço pela minha cintura e encostou a cabeça em meu ombro.

  — Você nunca o desertou, Kevin. E também não é responsável pelas nossas vidas. Patrick, Maureen e Deus sabem que eu... que todos nós tomamos as nossas decisões.  Nós vivemos as nossas próprias  vidas.   Chore por Maureen, mas não exagere.

  — E o que teria acontecido se eu não me sentisse tão idiotamente responsável?  O que teria acontecido se eu houvesse deixado vocês todos em paz?...

  Fui interrompido por uma gostosa gargalhada.

  — Puxa vida, Kevin, eu hoje seria a mulher gorda do circo se você me houvesse deixado em paz.

  Ela, graciosamente, deixou de me abraçar mas continuou a segurar-me a mão.

  Com a sua gargalhada alegre nós estávamos novamente jovens, de volta ao passado, nossas vidas estavam começando e se estendiam por ali além como alguma misteriosa floresta que ultrapassasse o lago.

  Ela parecia ter lido o meu pensamento.

  — O riso, da mesma forma que o amor, é mais forte que a morte. Você sabe muito bem disso, Kevin.   É o que você prega. Então, por que não o pratica?

  O sol que se punha fazia com que as nuvens que flutuavam por cima dos topos das árvores do Wisconsin ficassem primeiro vermelhas e depois douradas.

  Uma parte de meu ser tinüa morrido com Maureen naquela Clínica Gemelli, mas a outra estava renascendo ali naquele lago perseguido pelos espíritos.

  Dor... caos... renascimento... morte... riso... ressurreição. O amor mais forte que a morte. Uma mulher escreveu isso no fim do Cântico de Salomão.

  Maureen, Patsy, mamãe, o Coronel, o Cardeal Meyer... todos mais fortes que a morte. Ellen, que entraria rindo no Vale das Trevas.

  Em seu sorriso havia um resquício de ansiedade.

  — Você vai permitir que eu te ame?

  — E será que tenho outra escolha?

  — Nenhuma.   Nem nunca teve.

  Todos os quadros se misturavam esmaecidos nas cores do sol poente. De alguma forma, eu teria que tirar tudo a limpo com o Pat.

  Interrompi o que havia no ar e que era quase religioso.

  — Vamos jantar, Ellen, estou morrendo de fome.

  — Isso é típico do homem irlandês. — disse ela com um suspiro enquanto eu lhe dava a mão. — Vou esperar uns versos adequados até amanhã de manhã.

  — Para vós, Titania, nada será adequado... — eu disse, empurrando-a na direção da casa.

  Ao voltarmos para a casa e para o jantar com os Strausses, os Brennans, os Currans, os McNeils, eu ouvia, dentro de meu cérebro, em latim, naturalmente, para que Deus pudesse entender, o De Profundis, o salmo para os mortos. Era eu que estava pedindo a Deus para que desse paz e luz a James e Mary Brennan, a Timothy Curran, a Maureen Cunningham, e a Patsy Carrey.

 

  Das profundezas clamo a Ti, Senhor.

  Escuta, Senhor, a minha voz:

  Estejam alerta os Teus ouvidos às minhas súplicas.

  Se observares, Senhor, iniqüidades, quem, Senhor, subsistirá?

  Contigo, porém, está o perdão, para que Te temam.

  Aguardo o Senhor, a minha alma O aguarda; eu espero na Sua palavra.

  A minha alma anseia pelo Senhor,  mais do que os guardas pelo romper da manhã.

  Mais do que os guardas pelo romper da manhã.

  Espere Israel no Senhor, pois no Senhor há misericórdia, e n'Ele copiosa redenção.

  É Ele quem redime Israel de todas as suas iniquidades.

 

 

                                                                               Andrew M. Greeley 

 

 

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