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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS TRAFICANTES DE ALAZE / William Voltz
OS TRAFICANTES DE ALAZE / William Voltz

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Mark Denniston soltou um suspiro e deixou-se cair na poltrona muito macia que se encontrava à frente da mesa de Princer. Denniston era um homem de aspecto robusto, de pouco mais de quarenta anos, que tinha um rosto enérgico e mãos que pareciam patas de urso. Mas naquele instante não dava mostras de sua energia.

— O senhor não pode exigir uma coisa dessas de mim, chefe! — exclamou com um gemido. — O senhor sabe que eu seria capaz de ir buscar uma caixa de limões no inferno. Mas isso não!

Princer contemplou-o com uma expressão de benevolência. A idéia de que, se necessário, poderia contar com limões vindos do inferno, parecia dar-lhe uma disposição pacata. Piscou para Denniston, movimentando suas sobrancelhas hirsutas.

— Sabe por que gosto tanto do senhor, Mark? — perguntou.

Ao que parecia, Denniston não fazia questão de agradar e manteve-se num silêncio obstinado. Princer prosseguiu:

— O senhor tem um jeito muito agradável de se opor às minhas ordens e... depois... cumpri-las.

Denniston comprimiu as mãos gigantescas uma contra a outra, como se quisesse esmagar alguma coisa.

— Escute, chefe — disse, fazendo mais uma tentativa. — Sou comandante de uma de suas naves cargueiras. Levo verduras e frutas para Vega ou para qualquer lugar que o senhor queira. Há anos trabalho para a Intercosmic Fruit Company. E agora o senhor quer que eu faça o papel de baby sitter.

O rosto de Princer assumiu a expressão de quem havia mastigado alguns grãos de pimenta.

— Ora, Mark, o senhor está falando de meu filho John Edgar Princer. Afinal, o bebê já é vice-presidente de nossa companhia.

Denniston não deu nenhuma resposta, mas pela expressão de seu rosto notava-se que não gostava de vice-presidentes, especialmente desse que acabava de ser mencionado. Lançou um olhar sombrio para Princer.

— O bom menino — Denniston estremeceu ao ouvir estas palavras — acaba de casar. Dei uma pequena nave de presente a ele e a sua esposa. Quer usá-la na viagem de núpcias. Uma vez que nossa família costuma combinar o útil com o agradável, levará uma carga de gigante-supermacio, que deve ser entregue em Ferrol, no sistema de Vega.

O astronauta começou a demonstrar um pouco de interesse.

— Gigante-supermacio? O que é isso? — perguntou.

Archibald Princer, presidente do Conselho Fiscal da IFC, lançou um olhar para seu interlocutor, revelando não ter uma boa impressão das pessoas que não sabiam o que vinha a ser o gigante-supermacio.

— É nossa nova semente de espinafre — explicou em tom compenetrado.

Denniston enrubesceu.

— Espinafre...? — repetiu em tom incrédulo. — O senhor quer que eu voe para Vega com essa supersemente e os recém-casados?

— Modere sua linguagem, Mark — pediu o velho Princer, com severidade. — Em nossa firma não se costuma fazer tal tipo de piadas.

Denniston ficou um tanto perplexo.

— Não tenho escolha — disse em tom desanimado. — Comunique a seu filho que decolaremos dentro de alguns dias.

Princer parecia ter mais uma novidade para o comandante. E realmente tinha.

— Mark, como sabe, meu filho não foi aceito na Frota Solar. Pelo que dizem tem um defeito na estrutura óssea e é daltônico. Estas... bem, estas ninharias bastaram, e meu filho John Edgar foi rejeitado. Dei-lhe oportunidade para obter numa academia particular o breve de piloto espacial de segunda classe. Quer dizer que tem o direito de pilotar a nave-disco que lhe ofereci como presente de casamento.

Nos olhos de Denniston surgiu uma expressão que parecia ser de esperança.

— Quer dizer que seu filho pode dispensar minha companhia — disse.

O presidente da IFC balançou a cabeça.

— Não, Mark. John Edgar não tem experiência no espaço. Além disso, sua finada mãe lhe deu uma educação muito branda. O rapaz precisa de um apoio. Quero que o senhor o acompanhe e cuide para que eu o reveja são e salvo.

— Quer dizer que é um novato — respondeu o astronauta.

Princer levantou as mãos, num gesto negativo.

— Não pense em tutelar o rapaz. Deixe que cuide das coisas sozinho. Ele não sabe que o senhor é uma velha raposa-do-espaço. Pensa que é uma espécie de... bem, uma espécie de mordomo.

— Mordomo! — disse Denniston, fortemente abalado. — Era só o que faltava!

— Não lhe diga o que deve fazer. Quero que o rapaz se torne independente. Mark, prometa-me que só intervirá, quando houver uma necessidade absoluta.

Denniston respondeu em tom rígido:

— Serei um perfeito mordomo.

— A quarentena já foi suspensa — disse Princer. — Toda a população da Terra foi vacinada. Terrânia é o único lugar do qual ainda não pode decolar nenhuma espaçonave. Acho que essa medida de Rhodan é muito inteligente. Não quer arriscar nada. Se, dentro de uma ou duas semanas, não surgirem outros casos de doença, também em Terrânia as coisas voltarão ao normal. De qualquer maneira, poderemos decolar. Ou melhor, Cora, John Edgar e o senhor poderão decolar.

— Não se esqueça da gigantesca semente supermacia — disse Denniston em tom aborrecido.

 

O espaçoporto particular da Intercosmic Fruit Company ficava a pouco menos de duzentos quilômetros de Denver, capital do Colorado, um dos estados-membros dos E.U.A. Era o lugar ideal para o recebimento e a expedição de mercadorias, principalmente de frutas e verduras. Gigantescos silos e instalações frigoríficas cercavam a extensa área.

Mark Denniston olhou pela janela do escritório do setor de tráfego. Um grande cargueiro estava sendo descarregado. Os guindastes retiraram as caixas pelas escotilhas e empilharam-nas no chão. Para Denniston, aquilo era um espetáculo familiar.

De repente viu uma coisa que lhe era menos familiar, mas, em compensação, muito engraçada. Um homem passou pelo portão dos fundos e atravessou obliqua-mente o campo de pouso. Estava carregado de embrulhos. Denniston sorriu. O estranho andava como se fosse uma ursa-da-austrália balançando seu filhote. Era alto e magro; as roupas esvoaçavam em torno do corpo. Movia-se com a compenetração infeliz de um flamingo que encolheu uma perna e tem de saltitar com a outra.

Denniston soltou uma gargalhada.

— Olhem — disse, dirigindo-se aos funcionários do escritório. — Quem será essa ave estranha?

— É John Edgar Princer — disse com um sorriso um homem que se encontrava atrás de um ditafone. — É filho do presidente.

A alegria de Denniston desapareceu mais depressa que uma gota de água no bocal de um jato. O “animal de carga” aproximara-se o bastante para que o comandante pudesse ver-lhe o rosto. Denniston teve a impressão de que esse rosto bastaria para encher todas as noites a transmissão de despedida. Um par de enormes olhos azuis, transbordantes de tristeza, fitava o mundo com uma expressão de melancolia.

O comandante Mark Denniston engoliu em seco e saiu do escritório. Na porta trombou com Princer Jr., cuja visão era obstruída pelos embrulhos.

— Desculpe! — gritou uma voz fina para Denniston.

A primeira tarefa do astronauta consistiu em ajudar John Edgar a recolher o conteúdo de alguns embrulhos que se haviam arrebentado. Princer estava de joelhos, e seu corpo executava contorções de que Denniston nunca o teria julgado capaz, se não as tivesse visto com seus próprios olhos.

O comandante rastejou para junto de Princer e colocou alguns objetos sobre os braços do vice-presidente.

— Bom dia, sir — disse. — Meu nome é Mark Denniston.

Levantaram-se. Princer procurou apertar-lhe a mão. Com isso, a carga começou a balançar perigosamente. Denniston pegou a metade dos embrulhos.

— Por que não chama alguém que carregue isso para o senhor? — perguntou em tom de espanto. — É muito pesado para uma pessoa.

Princer enrubesceu.

— Não quero incomodar ninguém — disse em tom apressado. — Por favor, não me chame de sir. Meu nome é Johnny.

— Está bem, Johnny — disse Denniston, com uma alegria forçada. — O que pretende fazer agora?

Princer lançou-lhe um olhar embaraçado. Ao que parecia, não estava acostumado a que deixassem as decisões por sua conta. Provavelmente teria preferido enfiar-se numa toca de rato, se houvesse uma do seu tamanho.

— Vamos até a Error — sugeriu.

Apavorado, Denniston perguntou de si para si o que significava esse estranho nome. Mas Princer, em cujo rosto surgira um sorriso embaraçado, logo o esclareceu a este respeito.

Error significa erro — disse. — Dei este nome ao jato espacial que papai me deu. Trata-se de uma alusão ao erro que os médicos da Frota Solar cometeram ao rejeitar-me por várias vezes.

Para Denniston, estas palavras representavam as linhas fundamentais de uma nova filosofia. Conformado, segurou firmemente os embrulhos e seguiu Princer, que caminhava todo empertigado, movendo sua longa figura com uma graça toda especial.

Dali a poucos minutos chegaram ao pequeno jato espacial. Ao primeiro lance de olhos, Denniston notou que a pequenina espaçonave fora equipada com tudo quanto era novidade. Representava uma imitação das famosas naves-disco da Frota Solar, e provavelmente nada ficava devendo às mesmas. Em relação ao conforto não deixava nada a desejar.

— A semente do gigante-supermacio já foi colocada a bordo — disse Princer. — Ainda tenho alguns cigarros que levarei para um amigo do papai.

Lançou um olhar indagador para o comandante, mas como este ficasse calado, prosseguiu apressadamente:

— Papai também está aqui. Está sentado no escritório para acompanhar minha decolagem.

Cada vez que Princer pronunciava a palavra papai, Denniston se encolhia alguns centímetros. A idéia da decolagem que seria realizada por esse rapaz deixava-o apavorado. Mas antes que pudesse refletir sobre isso, uma moça aproximou-se do jato espacial. A mesma correspondia em toda linha à idéia que Denniston fazia de uma mulher bonita; talvez até chegasse a ser algo mais.

— Quem é? — perguntou sem pensar em nada.

Princer lançou-lhe um olhar triste.

— Minha esposa — disse em tom nervoso.

Os campônios mais bobos sempre colhem as maiores batatas”, pensou o astronauta.

— Esposa? — repetiu em voz alta. — Como foi que o senhor conseguiu isso?

Mais uma vez, Princer enrubesceu. Suas mãos apalpavam a jaqueta, e a língua passou nervosamente pelos lábios.

— Bem, eu... eu casei com ela — disse, para explicar o fenômeno.

Naquele instante, Denniston viu o cachorro. Não o vira antes, porque dedicara sua atenção exclusivamente à mulher, que conduzia o animal por uma correia amarela. Aquele cachorro era uma das coisas mais feias que Denniston já vira, com exceção talvez do vaso que a tripulação de sua nave lhe entregara solenemente no dia em que fez quarenta anos. O animal tinha a cor do barro; seu corpo era de um bassê! A cabeça lembrava a de um sheltie, enquanto o rabo achava-se tão enroscado que não se poderia ter certeza sobre sua raça ou origem. Com uma expressão de perplexidade, Denniston fitou o par “desigual” que se aproximava.

— Este é Mark Denniston, Cora — disse Princer, fazendo as apresentações. — Mark, esta é minha esposa.

Cora Princer tinha olhos escuros, nos quais se notava um brilho quente. Denniston pegou a mão que a jovem lhe ofereceu, a fim de cumprimentá-la. Naquele instante, o bastardo cor de barro rosnou e procurou morder a perna de Denniston. Este deu um salto para trás. O cachorro fitou-o atentamente.

— Minha esposa possui Príncipe, desde antes do casamento — disse Princer, em tom orgulhoso.

Esse Príncipe é uma coisa mais do que repugnante!”, pensou Denniston.

— O cachorro ficará aqui — decidiu. — Seria um absurdo se nós o levássemos. Só teríamos aborrecimentos.

Princer parecia decepcionado. Sua esposa lançou um olhar zangado para Denniston. Abaixou-se e acariciou o pêlo do animal.

— Deixe-o com meu pai — pediu Princer. — Enquanto isso, Cora e eu guardaremos a bagagem.

Denniston sentiu-se feliz por afastar-se de Princer, mesmo que fosse apenas por alguns minutos. Segurou cautelosamente a correia de Príncipe e arrastou-o. O cachorro resistiu e fez menção de morder o astronauta, mas Denniston estava preparado.

Quando entrou no gabinete particular do velho Princer, o presidente encontrava-se parado junto à janela e olhava para o campo de pouso. Denniston fez um sinal.

— O que deseja? — perguntou o presidente, sem virar a cabeça. — Eu o vi chegar com... bem, com esse animal.

— Príncipe ficará aqui — disse Denniston. — Seu filho resolveu confiá-lo ao senhor, chefe.

Amarrou a correia a uma cadeira. Príncipe rosnou baixinho. De repente as vidraças tremeram e um rugido penetrou na sala, fazendo-a vibrar.

— O que é isso? — perguntou Denniston, dirigindo-se à janela.

— É a Error — disse Princer muito baixo.

Denniston arregalou os olhos em direção ao jato espacial, que se erguia lentamente do solo.

— Ele o enganou, Mark — disse Princer. — A mim também. Quis ir só para Vega, e conseguiu. A história do cachorro foi um truque. Sabia que o senhor não o levaria. Nenhum homem que tenha um pouco de juízo leva um bastardo como este.

— Mas... — principiou Mark Denniston, em tom de perplexidade.

A Error já se encontrava fora do alcance de sua vista, mas o presidente continuava parado junto à janela.

— Como foi a decolagem dele, Mark? — perguntou em voz baixa.

— Mais ou menos — respondeu Denniston.

De repente o presidente parecia animar-se. Virou-se e fitou o astronauta.

— Tenho outro trabalho para o senhor — anunciou.

— Ah, é? — disse Denniston, em tom cauteloso. — Qual é?

Princer não respondeu. Baixou os olhos para o cachorro cor de barro, que fitava Denniston com uma expressão furiosa. Um sorriso malicioso surgiu no rosto do presidente. O comandante empalideceu.

— Esta não, chefe! — disse, muito abalado.

— Sim senhor! — ordenou Princer. Naquele instante, Mark Denniston compreendeu que, até o regresso de John Edgar Princer, teria de andar por aí, com uma criatura feia e malvada, que parecia a encarnação de Cérbero.

 

O rádio emitiu um estalo. John Edgar Princer seguira as regras para a decolagem de uma nave não pertencente à frota.

— Nave-controle Netuno para nave-disco — disse a voz do oficial de plantão. — Favor fornecer código e identificação.

Princer tropeçou sobre as próprias pernas e dessa forma “chegou” ao rádio mais rapidamente do que esperava. Mexeu nervosamente no aparelho.

— Nave particular Error — anunciou. — Decolamos do espaçoporto da IFC em Denver. Licença de decolagem III/b-41, passe amarelo.

E com um sorriso para a esposa, concluiu:

— A nave está sendo pilotada por John Edgar Princer.

O oficial que se encontrava a bordo da nave-controle Netuno nunca ouvira falar em Princer, ou então estava de mau humor.

— Está levando alguma carga? — perguntou em tom frio.

Princer acenou com a cabeça.

— Sim senhor. Cento e cinqüenta quilos de gigante-supermacio.

Uma bomba parecia ter explodido na cabina de rádio da Netuno, a julgar pelos ruídos que o casal ouviu. Perplexo, Princer fitou o alto-falante.

— Faça o favor de repetir — disse o operador de rádio que se encontrava na outra nave.

Princer fez-lhe este favor.

— Trata-se de semente de espinafre de um tipo especial. Foi selecionada em nossos laboratórios. Pelo que diz o chefe da nossa equipe de biólogos, trata-se de uma mutação da variedade trapajera, do sistema de Vega, e...

— Isso basta — interrompeu o oficial apressadamente. — Apenas preciso saber ainda a finalidade da viagem.

— É minha viagem de núpcias — disse Princer, quase sussurrando.

Evidentemente, o oficial da equipe de rádio tinha uma antipatia toda especial pelos casais em viagem de núpcias, pois disse alguma coisa nada amável. Após isso forneceu a Princer as coordenadas do setor espacial onde o vice-presidente da IFC poderia entrar em transição.

— O local fica bem afastado da órbita de Plutão — explicou Princer a sua esposa, depois que o rádio silenciou. — Enquanto não chegarmos lá, poderei mostrar-lhe a nave e sua carga.

Caminhou meio desajeitado pela cabina e mostrou os aparelhos de localização e de rádio, as instalações de comando e o sistema de propulsão, o sistema de renovação de ar e os mapas estelares.

— Você já deve ter compreendido — disse com a voz chorosa — que cometeram uma injustiça, quando não fui aceito na Academia Espacial da Frota Solar. Entendo tanto de astronáutica como qualquer membro da Frota. E o daltonismo... Ora, isso é uma coisa ridícula. Quanto ao defeito na estrutura óssea... Bem, uma pequena fratura na perna, proveniente do jogo de rugby na universidade, não representa um defeito que possa exercer maior influência num grande talento.

Seu rosto ficou vermelho como um pimentão ao concluir:

— Naturalmente não vou afirmar que sou um talento.

Sua esposa lançou-lhe um olhar que deixaria qualquer homem esfogueado. Mas Princer dirigiu-lhe apenas um sorriso abobalhado.

— Vou mostrar-lhe a semente de espinafre — disse.

Desenvolvendo a atividade de um trabalhador pago por tarefa, atravessou a carga até encontrar um volume que correspondia aos seus desejos. Abriu a tampa.

— É isto — disse em tom orgulhoso. — A última novidade da IFC, o gigante-supermacio.

Cora Princer olhou para dentro da caixa. Parecia um tanto decepcionada. As minúsculas bolinhas azuladas não faziam jus ao nome, pois não pareciam gigantes nem supermacias.

— Assemelham-se a sementes de papoula — disse.

Princer suspirou de satisfação; até parecia que era responsável pela descoberta.

— É verdade — disse. — Só mesmo por meio de uma análise pode-se distinguir esta semente da de papoula.

Fechou o volume e voltou a colocá-lo no lugar. Pôs a mão no ombro da esposa, num gesto paternal.

— Agora serão realizados os cálculos da transição, Cora. O pequeno computador positrônico de bordo cuidará disso para nós. Basta que eu programe os dados, fornecidos pelo oficial da Netuno.

Sua esposa parecia um tanto assustada.

— Ouvi falar que a transição provoca uma dor bastante desagradável — disse.

Princer fez um gesto de desprezo.

— É a chamada dor da desmaterialização. A distância, que nos separa do setor de Vega, é de vinte e sete anos-luz. Percorreremos essa distância num único hipersalto, mas você não sentirá quase nada.

Quanto menor a distância entre os pontos extremos da transição, menos intensa é a dor.

Colocou um cartão perfurado no computador de bordo e esperou.

— Falta pouco para atingirmos a velocidade da luz — explicou.

Observou o cintilar pulsante do setor de armazenamento de dados e, logo depois, chegou-lhe o resultado. Levantou-se e foi até o assento do piloto.

— Será preferível deitar-se — disse, dirigindo-se a Cora. — Logo passará.

Seus dedos passaram sobre os indicadores coloridos do dispositivo automático que realizava a transição. Face ao seu daltonismo, guardara na memória não a cor, mas a posição das teclas. Mexeu nervosamente nos respectivos controles. Finalmente comprimiu o botão verde.

A dor da desmaterialização foi tão intensa que, antes de perder a consciência, John Edgar Princer compreendeu que acabara de cometer um imperdoável engano.

 

Princer teve a impressão de que alguém martelava com precisão mortífera uma chapa de ferro presa à sua testa. Abriu os olhos e notou uma profusão de figuras coloridas. Finalmente o quadro tornou-se mais nítido; viu o teclado automático do aparelho de transição.

— Já pensava que você nunca mais recuperaria os sentidos — disse Cora, inclinando-se sobre ele. — O que houve com você?

Princer lançou-lhe um olhar triste.

— Será que você recuperou os sentidos antes de mim? — perguntou em tom queixoso.

Sua esposa fez que sim. Ajudou-o a levantar-se. O jovem arrastou-se com um gemido. Ligou as telas e os aparelhos de localização.

— Eu sabia que você conseguiria — observou Cora, em tom orgulhoso. — A transição foi realizada na primeira tentativa.

— Acho que sim — disse Princer, esfregando a testa. Apontou para o botão que acionara antes do salto.

— Qual é a cor deste botão? — perguntou em voz baixa.

— Verde — respondeu Cora, um tanto perplexa. — Por que faz essa pergunta?

Princer soltou um gemido e caiu no assento de piloto. Sua figura nunca parecera muito esportiva, mas agora achava-se dobrado sobre si mesmo. Cora começou a desconfiar de que algo de grave acontecera. Era inteligente e corajosa, e acreditava que seu marido também o fosse, embora até então não tivesse dado provas disso.

— O botão verde — lamentou-se Princer — destina-se a saltos a grande distância. Provoca um dispêndio energético mais elevado. Troquei-o com o botão vermelho. Você compreende... sou daltônico. É claro que decorei a posição das teclas, mas estava muito nervoso...

— O que significa isso? — perguntou Cora, em tom tranqüilo.

Princer segurou suas mãos.

— Isso significa que viemos parar em qualquer lugar da Galáxia, menos nas proximidades do sistema de Vega.

— Nesse caso vamos voltar — disse sua esposa.

Princer balançou a cabeça.

— Acho que isso não será possível. Se não descobrirmos onde estamos, não conseguiremos voltar. Qualquer transição será um salto no desconhecido e poderá afastar-nos ainda mais da Terra.

Na realidade, sua situação era ainda mais desesperadora. Se não houvesse por perto nenhuma estrela pela qual Princer pudesse orientar-se, qualquer tentativa seria inútil. O salto do jato espacial fora dado praticamente ao acaso e podia tê-los levado a qualquer ponto, situado no interior de uma esfera, cujo ponto central era a Terra. Evidentemente um hipersalto tinha seus limites espaciais, mas esse fato representava um insignificante consolo.

— E agora? O que vamos fazer? — perguntou Cora e, esforçando-se para dar um tom firme à voz, prosseguiu: — Não podemos ficar sentados por aqui e esperar até... até...

Princer sabia perfeitamente o que sua esposa queria dizer. Seu orgulho másculo foi despertado. Ergueu-se por meio de movimentos que pareciam descontrolados. Oferecia um quadro que não poderia ser menos elegante.

— Faça o favor de trazer os catálogos estelares, Cora. Estudarei a estrela mais próxima. Talvez esteja registrada e, nesse caso, poderemos orientar-nos por ela.

John Edgar Princer trabalhou durante três horas. Realizou localizações goniométricas, medições e cálculos. Comparou os resultados com os dados constantes do catálogo. A estrela mais próxima ficava a dois anos-luz. Era um anão. Constava do catálogo sob o nome bem-sonante de Alaze. Princer leu que essa estrela tinha três planetas. O planeta número dois era habitado e possuía oxigênio.

Esse mundo era conhecido como o planeta Alaze. Tinha, portanto, o mesmo nome do seu sol. Para John Edgar Princer, o nome não parecia ter tanta importância. Muito mais importante era a frase grifada:

É uma grande base dos saltadores.

Princer fechou abruptamente o catálogo, e sua esposa estremeceu com o estalo. Fitou-o.

— Descobriu onde estamos?

— Descobri — disse Princer com a voz fina. — Viemos parar num ninho de marimbondos.

Ele sabia dos ataques traiçoeiros dos mercadores galácticos. Sabia que investiam impiedosamente contra qualquer nave terrana, que se atrevesse a penetrar nas áreas a que se julgavam com direito. Os saltadores não estariam interessados em saber se a presença da Error fora causada por um engano. Abririam fogo antes de fazer perguntas.

— Temos que dar o fora, Cora — disse Princer.

Realizou o mais depressa possível outra programação do computador de bordo. A jovem mulher fitava-o em silêncio.

Mas a pressa foi em vão.

Os marimbondos já estavam esvoaçando em torno dele!

 

A primeira onda de choque atingiu a Error com uma tremenda fúria. A pequena nave-disco sofreu um forte abalo. Princer sentiu-se arrancado da poltrona e arremessado pela cabina. Ouviu o grito apavorado de Cora. O jato espacial tremia. Rastejando, Princer conseguiu chegar ao assento de piloto. Ligou as telas. Fazendo um grande esforço, voltou a acomodar-se na poltrona. Ligou os campos de absorção. Os aparelhos de localização emitiram o sinal de alarma. Havia uma nave desconhecida nas proximidades. Com a mão trêmula, Princer orientou as telas para o local indicado pelos instrumentos.

E o que viu lhe fez o sangue gelar nas veias.

Uma gigantesca nave cilíndrica destacava-se contra o negrume do espaço. Parecia que sua iluminação vinha de dentro. Princer pensou que fossem os campos defensivos. Soltou uma risadinha. O que é que poderia fazer contra um gigante como este? Percebeu que suas medidas defensivas seriam inúteis. No entanto, os campos de absorção neutralizaram razoavelmente a segunda onda de choque. Princer ficou sentado, sem saber o que fazer. Não se atreveu a olhar para Cora.

— Ligue o videofone, seu imbecil — disse ela, com uma voz cavernosa.

Apavorado, Princer fitou o aparelho de rádio. Ao que tudo indicava, os ocupantes da nave dos saltadores queriam falar com ele, antes de transformá-lo numa nuvem atômica.

— O que será que vão fazer conosco, Johnny? — perguntou Cora, em tom apavorado.

A garganta de Princer estava tão ressequida que o jovem não conseguiu pronunciar uma única palavra. Sabia que já podiam vê-lo na nave dos saltadores. A tela da Error também começou a iluminar-se. Um rosto grosseiro e largo, com uma barba imponente, apareceu na lâmina. A visão quase fez o terrano desmaiar. Já ouvira falar muitas vezes nos patriarcas dos saltadores, mas o aspecto desse mercador ultrapassava tudo que já imaginara.

O patriarca fitou-o com uma expressão de curiosidade.

— Onde está Shaugnessy? — perguntou em tom contrariado.

Princer fez um ligeiro esforço para sorrir, mas só conseguiu tremer os lábios. Nunca ouvira tal nome, e não tinha a menor idéia sobre os motivos por que o salta-dor queria que justamente ele lhe desse informações a respeito de Shaugnessy.

— Não lhe avisaram que deveria expedir a mensagem codificada assim que chegasse aqui? — perguntou o mercador, em tom indignado. — Se resolveu aceitar o trabalho de Shaugnessy, aja como um homem sensato. Para que esse jogo de cabra-cega?

Todo encabulado, Princer fitou a tela. Não conseguia descobrir o sentido das palavras do saltador. Era evidente que a Error estava sendo confundida com outra nave. Princer resolveu acompanhar o jogo. Era a única possibilidade de sobreviver por mais algum tempo.

— Sinto muito — disse em tom cauteloso. — Shaugnessy está doente. Pediram que eu viesse. Fiquei um pouco nervoso e esqueci o código.

O saltador lançou-lhe um olhar de desprezo.

— Ao menos trouxe a coisa?

— Trouxe — disse Princer, mentindo valentemente. — Está a bordo.

Que coisa seria essa a que o saltador acabara de aludir? Seria inútil refletir sobre isso.

Naquele momento o patriarca descobriu Cora, que se colocara ao lado de Princer e pusera a mão sobre o ombro do esposo.

— Quem é essa mulher? — perguntou em tom violento.

O jovem encolheu-se na poltrona. A palestra estava sendo travada em intergaláctico. O filho do presidente da IFC sabia que sua esposa dominava esta língua.

— É uma nova colaboradora — disse Princer. — Vai ser treinada...

Rezou para que não tivesse dito nada de errado.

— Mulheres! — exclamou o saltador em tom de desprezo. — É preferível que Aplied não as use. Só pode dar aborrecimentos.

— Deixe isso por nossa conta — disse Cora, com a voz atrevida.

Princer lançou-lhe um olhar de súplica. O saltador soltou uma estrondosa gargalhada. Seu rosto barbudo movimentou-se.

— Parece que a senhora tem um pouco mais de tutano que essa coisa desengonçada que está no assento do piloto — dizendo isto com um gesto aprovador, voltou a dirigir-se a Princer. — Como é seu nome?

— John Edgar Princer — disse corajosamente. — Como é seu nome?

— Valmonze — respondeu o saltador.

Princer soltou um suspiro de alívio. Seu nome não provocara qualquer desconfiança no patriarca. Era imprescindível que descobrisse o mais cedo possível com quem estava sendo confundido. Assim que cometesse o menor engano, Valmonze ordenaria aos seus artilheiros que destruíssem a Error.

— Basta de conversa — disse Valmonze. — Vamos recolhê-lo.

— Está bem — concordou Princer, embora não soubesse o que o saltador queria dizer com recolher.

Parecia que Valmonze queria saltar da tela, quando retrucou:

— Está bem o quê? Desligue logo esse ridículo campo de absorção, para que possamos introduzi-lo a bordo com o raio de tração.

A tela escureceu e Princer cumpriu a ordem. Não havia a menor possibilidade de resistir.

— Daqui a poucos minutos estaremos a bordo da nave dos saltadores — disse, dirigindo-se à esposa. — Examinarão nossa carga e verificarão que não trouxemos nada, além do gigante-supermacio e de alguns pacotes de cigarros.

— Isso não os deixará muito felizes — conjeturou Cora. — O que farão conosco, Johnny?

Ele colocou o dedo sobre seus lábios. Por que assustar sua esposa? Depois da descoberta do gigante-supermacio, seriam inapelavelmente atirados pela comporta da nave dos saltadores.

Naturalmente, sem traje espacial.

Princer pensou que finalmente conseguira aquilo pelo que sempre ansiara: uma aventura no cosmos. Por isso lutara para ser admitido na Frota Solar, mas fora sempre rejeitado.

Quando a Error foi introduzida a bordo da nave saltadora Vai I, ele ainda continuaria a ser considerado como: John Edgar Princer, um novato.

 

Um ligeiro solavanco revelou que o jato espacial se imobilizara. Princer enxugou o suor da testa. O fato de ter a Error, um veículo espacial de 35 metros de diâmetro, passado pela comporta da nave dos saltadores, mostrava as dimensões desse gigante. Provavelmente se encontravam num dos porões de carga da Vai I, equipado como um hangar.

— Acho que é preferível abrir a comporta — disse Princer.

Ele o fez e desceu, seguido por Cora. A Error encontrava-se no interior de um amplo recinto, muito bem iluminado, que poderia recolher facilmente mais três jatos espaciais. Em toda parte viam-se mercadorias empilhadas. Havia alguns saltadores no recinto, mas estes não lhes deram a menor atenção. Princer já ouvira falar nos costumes rígidos dos clãs de saltadores. O patriarca era a única pessoa autorizada a resolver os assuntos mais importantes. Nenhum membro de seu clã se atreveria a aproximar-se da Error, sem ordens para tal. Subitamente viram o patriarca Valmonze. Alguns saltadores jovens encontravam-se em sua companhia. Provavelmente eram seus filhos. A figura de Valmonze era imponente.

Princer parou. Deixou pender os braços e ficou à espera. Cora encontrava-se meio metro atrás dele, e chegou a ouvir sua respiração.

Valmonze trajava uma capa ampla e preciosa. Calçava sandálias flexíveis presas por cordões. Trazia a pesada corrente, que assinalava sua qualidade de membro mais velho do clã, pendurada ao pescoço.

Parou bem à frente de Princer. Bateu no ombro do terrano. Era um gesto amistoso, mas o jovem teve a impressão de que o barbudo lhe fraturara a espinha.

— Bem-vindo a bordo da Vai I — disse Valmonze.

Seus olhos brilharam numa expressão astuciosa.

— Bons negócios, terrano.

Apavorado, Princer lembrou-se de suas reduzidas possibilidades comerciais. Talvez conseguisse evitar que o saltador inspecionasse a Error. Estendeu a mão para Valmonze.

— Bons negócios — respondeu. Valmonze segurou a mão do jovem, comprimiu-a e riu que nem um demônio.

— Mostre-me a carga — pediu. Cora interveio na palestra.

— Por quê? — perguntou. — Está tudo em ordem. Podemos descarregar.

Valmonze fitou-a como quem não compreende nada.

— Aplied não lhe disse que a mercadoria será levada para o planeta Alaze? Uma vez lá, receberá outra carga, que deverá ser entregue ao patriarca Zomake, no caminho de volta para a Terra.

Princer fez um gesto indiferente.

— Naturalmente sabemos — disse em tom arrogante. — Aplied explicou minuciosamente. Minha... minha companheira apenas acha que a inspeção da carga seria um trabalho inútil. Garanto-lhe que está em ordem.

Valmonze levantou os braços, numa atitude de protesto. Esfregou a barba com as pontas dos dedos.

— Ninguém seria capaz de duvidar que a carga está correta, minha senhora — disse num sorriso. — Aplied nunca nos enganou. Aliás, isso não lhe adiantaria nada. Mas — fez um gesto convidativo em direção à comporta aberta da Error — os olhos de um mercador gostam de deleitar-se com coisas que sirvam para fazer negócios.

Por pouco Princer não lhe revelou que seus olhos sombrios de saltador teriam de suportar a visão nada agradável da semente de espinafre. Mas apenas conseguiu engolir em seco e acompanhar o patriarca até o interior da Error.

Valmonze caminhava ruidosamente pelo jato espacial. Seus filhos seguiam-no, em silêncio, mas com os olhos e os ouvidos bem abertos. Princer gostaria de cochichar algumas palavras para Cora. Queria dizer que sentia muito tê-la colocado numa situação como esta. Mas não teve oportunidade para isso.

Valmonze estacou. Seus filhos formaram um semicírculo às suas costas. Pareciam uns verdadeiros ursos, de tão robustos que eram. Essa visão bastaria para fazer fraquejar um homem mais corajoso que Princer.

— Traga uma amostra — ordenou o patriarca, em tom de expectativa.

Em movimentos automáticos, o terrano saiu tateando em direção ao lugar onde estava guardado o gigante-supermacio. Sentia-se vazio e ressequido por dentro. Assim que entregasse um pacote de semente ao patriarca, estaria assinando sua sentença de morte. No entanto, não tinha outra alternativa.

Suas mãos trêmulas tiraram uma caixa. Valmonze aguardava com os braços cruzados sobre o peito. Princer sentia-se incapaz de dizer qualquer coisa. Viu Cora sentada na poltrona do piloto, muito pálida. Sem dizer uma palavra, entregou o volume ao saltador.

— O senhor tem o direito de abri-lo disse Valmonze, em tom cortês.

Princer sentiu-se como um homem que está deitado sob a guilhotina e é obrigado a acionar seu mecanismo. Abriu a tampa e colocou a caixa no chão, à frente de Valmonze.

O patriarca abaixou-se e, enquanto os olhos do terrano quase saltavam das órbitas, encheu a mão de gigante-supermacio e deixou a semente escorrer entre os dedos, em meio a uma estrondosa gargalhada.

— Isto é mais precioso que ouro! — exclamou. — Este material nos traz bons negócios, além do poder político.

Enlouqueceu”, pensou Princer. “Será que perdeu o juízo? Umas simples sementes de espinafre...

— Olhem! — gritou Valmonze para seus filhos. — Vejam isto!

John Edgar Princer viu o inacreditável transformar-se em realidade. Os filhos de Valmonze precipitaram-se sobre o pacote como um bando de lobos. O gigante-supermacio escorria entre seus dedos, enquanto batiam nos ombros uns dos outros, entusiasmados. E o remate da cena era dado por Valmonze em pessoa, um rei a bordo da supernave cilíndrica. Sorria e não parecia nem um pouco aborrecido.

A cor foi voltando ao rosto de Cora. Princer apenas conseguiu fitar a cena, perplexo.

— Formidável — disse a voz retumbante do saltador. — Aplied é um homem de confiança. Sabe lá o que poderemos fazer com esta semente de papoula, meu jovem?!

Papoula!”, pensou o terrano. “Então é isso”.

Princer já sabia o que estava acontecendo. Valmonze acreditava que a semente de espinafre fosse semente de papoula.

— Ópio — disse Valmonze. — Poderemos fabricar ópio e outros entorpecentes. Princer, eu lhe garanto que esta papoula representa um poder que talvez seja maior que o de uma frota de espaçonaves. Poderemos ganhar dinheiro com isso, muito dinheiro. Mas, o que é mais importante, poderemos transformar Perry Rhodan e seu ridículo império numa inviabilidade política. A indignação das raças atingidas pelo vício face às drogas terranas cresce a cada dia que passa. Acusam Rhodan de não fazer nada para impedir o tráfico de entorpecentes.

Enojado, Princer baixou os olhos.

Que gente é essa?”, indagou-se mentalmente. “Não têm o menor escrúpulo em empregar a influência das perigosas drogas para alcançar seus objetivos.”

Princer sabia perfeitamente que o administrador fazia tudo que estava ao seu alcance para desmantelar a organização dos contrabandistas.

Entesou-se involuntariamente. O acaso fizera com que penetrasse num covil de criminosos. E agora lhe oferecia a possibilidade de desmascará-los e transmitir uma informação preciosa a Rhodan.

Aplied”, lembrou-se. “Deve ser um nome muito importante. Preciso obter outras informações sobre esse homem.”

— Aplied está preocupado, Valmonze — disse. — Acha que o negócio não é seguro. Tem medo de que Rhodan utilize seus mutantes.

— Mutantes? — repetiu Valmonze. — Nunca vi nenhum. Ora, vejam: Vincent Aplied está com medo. Quem diria!? O que está querendo? Afinal, fica tranqüilamente na Cidade do Cabo e ganha um bom dinheiro.

Vincent Aplied! Cidade do Cabo!

Princer teve de esforçar-se para disfarçar a surpresa. Aplied era um dos fazendeiros mais conceituados da África do Sul. Princer nunca teria imaginado que Valmonze, quando em comunicação internaves, se referia a esse Aplied. Agora tinha certeza. O chefe do grupo de traficantes era um terrano. Princer não compreendia. Afinal, Aplied devia conhecer as conseqüências de sua ação criminosa.

Como comunicar essa descoberta a Rhodan?”, perguntou-se.

Por enquanto não havia a menor possibilidade. Talvez o acaso, que o salvara, poderia ajudá-lo mais uma vez.

— Assim que chegarmos ao planeta Alaze, a papoula será redespachada. Nossos fregueses estão esperando. Terrano, o senhor já viu um viciado pertencente a uma raça extraterrena? Não é uma visão nada agradável. A reação destas criaturas diante dos entorpecentes é muito mais intensa que a dos homens.

Princer teve de fazer um grande esforço para não precipitar-se sobre o saltador. Isso estragaria tudo. Pensou nas palavras de Valmonze. O patriarca acabara de dizer que a papoula seria redespachada imediatamente. O gigante-supermacio podia ter o aspecto da papoula, mas não havia dúvida de que seus efeitos não eram os mesmos. Isso significava que o prazo, que Princer e sua esposa haviam conseguido, chegaria ao fim assim que pousassem no planeta Alaze. O terrano abaixou-se e pegou a caixa com semente de espinafre. Recolocou-a no devido lugar. Valmonze observou-o com um sorriso nos lábios.

— Daqui a pouco realizaremos uma pequena transição — anunciou o patriarca. — Se desejar, poderá dispor de dois aposentos a bordo da Vai I. Naturalmente pode ficar a bordo de sua nave, se preferir.

— Ficaremos aqui — decidiu Princer. — Não demoraremos a chegar, e por isso não adianta mudar de lugar.

— Naturalmente — disse Valmonze. Fez uma ligeira mesura para Cora. Foi um gesto irônico, pois em sua opinião não havia lugar para mulheres, durante as negociações dos saltadores.

Saiu da Error. Seu filhos seguiram-no.

Empertigado que nem um pastor de aldeia, John Edgar Princer caminhou em direção a uma poltrona e deixou-se cair. Só agora lembrou-se de outro perigo.

O que aconteceria quando Shaugnessy aparecesse com a verdadeira papoula?”, indagou-se em pensamento.

A resposta era simples. Quer descobrisse a verdade sobre o gigante-supermacio, quer a chegada de Shaugnessy o esclarecesse sobre a situação, a reação de Valmonze seria violenta. Princer sabia perfeitamente que suas vidas continuavam em perigo; apenas haviam conseguido um adiamento. E, ainda dentro deste adiamento, teriam de encontrar um meio de enviar uma mensagem de rádio à Terra, a fim de informar Perry Rhodan sobre as maquinações de Vincent Aplied.

— Foram embora — disse Cora em meio às suas reflexões. — Nunca acreditaria que conseguíssemos sobreviver a isso.

Parecia cansada. Princer sentiu pena dela.

— Tivemos sorte — disse. — A sorte não se repetirá.

Cora levantou-se do assento do piloto e foi para junto do marido. Perplexo, este indagou a si mesmo se seria a presença da esposa que lhe dava forças para controlar-se.

— Devemos tentar entrar em contato de rádio com a Terra ou com alguma nave terrana — disse. — Rhodan precisa saber quem está atrás do tráfico de entorpecentes.

Cora apontou para as instalações de rádio da Error.

— Não — disse Princer. — Valmonze interferiria imediatamente na minha transmissão. Seu rádio é mais potente que o nosso. E dentro de um minuto estaria aqui, com uma arma e uma série de perguntas desagradáveis. Devemos ter certeza de que conseguiremos transmitir um texto completo.

O videofone emitiu um zumbido. Princer foi para junto do aparelho e ligou-o. O rosto barbudo de Valmonze apareceu na tela. Fitou o jovem por um instante e resmungou:

— Prepare-se para a transição. Não será muito ruim, pois a distância é pequena.

— Obrigado — disse o terrano.

Um único hipersalto os levaria para dentro da cova do leão.

 

O planeta Alaze era um mundo de oxigênio, mas à primeira vista Princer teve uma decepção.

A atmosfera densa permitia que se respirasse sem traje protetor. Porém o terrano teve a impressão de que, em comparação com o da Terra, o ar do planeta era irrespirável. Tinha um cheiro de terra úmida, semelhante ao das folhas apodrecidas.

A Val I pousara sem problemas no espaçoporto. Mais duas naves cilíndricas, a Val IV e VII, repousavam sobre as colunas de apoio. Valmonze informou que precisavam de reparos.

Princer encontrava-se na comporta de tripulantes da Val I, juntamente com a esposa e com o patriarca. Embaixo deles já rolavam os veículos de carga, todos eles tripulados por saltadores. O jovem não descobriu nenhum nativo. Provavelmente o espaçoporto era cuidadosamente isolado pelos saltadores.

Valmonze, um espírito empreendedor, berrava suas ordens. Vez por outra virava-se para Princer, com um sorriso no rosto.

— Retiraremos sua navezinha; a papoula será descarregada imediatamente — anunciou. — Há tempo esperamos uma oportunidade de cultivarmos nossa própria papoula.

Entrou no elevador que levava da comporta para o campo de pouso. O vento brincava em sua barba e fazia esvoaçar a capa. Princer conseguiu lançar um olhar para o braço, que era mais grosso que a coxa do jovem.

— Venha — pediu Valmonze. — Vamos descer.

O terrano parecia inseguro no elevador. Apoiava-se com as duas mãos. Valmonze ajudou Cora. Lançou um olhar de desprezo para Princer. Este sentiu o olhar e começou a ficar nervoso.

— O que houve com o senhor? — perguntou Valmonze.

— Sempre me sinto mal nos elevadores — respondeu em tom desolado.

Valmonze fitou-o perplexo; até parecia que o via pela primeira vez.

— O senhor não é um astronauta?

O elevador começou a movimentar-se. O rosto de Princer mudava do pálido para o vermelho. Segurava-se desesperadamente na balaustrada. Valmonze cocou a barba, pensativo. Cora viu-o balançar a cabeça. Finalmente a plataforma chegou ao solo. Valmonze saltou. O terrano seguiu-o com os joelhos trêmulos. Alguns saltadores, que se encontravam nas proximidades, não fizeram o menor esforço para disfarçar o quanto os divertia a triste figura de Princer.

— Se estiver em condições, dirija o olhar para a comporta de carga — disse Valmonze, em tom mordaz.

Princer parou. O quadro que se lhe ofereceu não contribuiu para que se sentisse melhor. A Error estava saindo do ventre da Vai I. A comporta do jato espacial estava aberta. Carros aproximaram-se. Alguns saltadores tiraram o gigante-supermacio do interior da Error e o colocaram nos carros.

— Gostaria de apanhar alguns dos meus pertences — disse Princer. — Vou dar um pulo até a nave.

Valmonze limitou-se a acenar com a cabeça. O terrano piscou para Cora e saiu.

Quando chegou à Error, os saltadores já haviam concluído seu trabalho. O coração do jovem disparou. Teria ainda chance de expedir uma mensagem pelo rádio! Andou mais depressa. Um dos carros passou por ele. Na plataforma de carga estavam empilhados os volumes de semente de espinafre destinados a Ferrol.

Princer entrou na comporta da nave e olhou apressadamente em torno. Não havia ninguém em seu interior. Os pacotes de cigarros continuavam no mesmo lugar.

Com dois passos, o jovem colocou-se junto ao aparelho de telecomunicação. Num instante acionou os controles. O aparelho emitiu um estalido e começou a zumbir. Princer inclinou-se sobre o microfone.

Mas não chegou a proferir uma única palavra.

— Por que está mexendo nisso? — disse a voz de barítono de Valmonze.

Princer estremeceu. Virou-se apressadamente. Deparou-se com Valmonze, em cujo rosto havia uma expressão obstinada. Cora encontrava-se no interior da comporta. Seus olhos denotavam temor.

— Eu me esqueci de desligar o aparelho — gaguejou Princer. — O senhor me assustou.

Depois de sorrir para Valmonze e desligar o telecomunicador, completou:

— Também queria levar estes cigarros. Pegou os pacotes.

— Deixe-se de brincadeiras com o rádio. A área está sendo vigiada ininterruptamente. Quer pôr nossos controles em pânico?

— É claro que não — asseverou Princer. — Afinal, não aconteceu nada.

— Está na hora de irmos à sede — disse Valmonze. — Estou curioso para saber o que dirão meus amigos, quando virem a semente.

O terrano não se sentia capaz de compartilhar da curiosidade de Valmonze. Sabia perfeitamente que a primeira tentativa de obter papoula da semente de gigante-supermacio representaria um fracasso total.

O filho do presidente da IFC parou em atitude indecisa, segurando os pacotes de cigarros como se fossem uma arma.

— O que está esperando? — perguntou Valmonze, em tom impaciente.

O sorriso simplório de Princer deixou o patriarca nervoso.

— Não quero ser indelicado — disse o jovem. — É a primeira vez que minha companheira e eu estamos neste planeta. O senhor há de compreender que nos interessamos pelos nativos. A fabricação de entorpecente não nos pode oferecer qualquer novidade, pois lidamos muitas vezes com isso. Gostaríamos de andar um pouco por aí.

Percebia-se perfeitamente o que Valmonze achava de passeios desse tipo. Apesar disso dirigiu-se a Cora.

— O que acha?

— As conversas sobre negócios me causam tédio — disse Cora.

— Bem que eu gostaria de conhecer os princípios que Aplied usa na seleção do seu pessoal — resmungou Valmonze. — Shaugnessy sempre teve suas idéias malucas, mas nunca deixou de participar das reuniões. Bem, se quiserem, andem um pouco por aí. Há uma aldeia dos nativos próxima ao campo de pouso. Essas criaturas falam sofrivelmente o intergaláctico. Talvez consiga fazer com que alguns deles desçam das árvores.

Por pouco Princer não pergunta o que os nativos faziam em cima das árvores. O patriarca deveria supor que Shaugnessy ou Aplied informaram os novos contrabandistas sobre as condições reinantes no planeta Alaze. Qualquer pergunta suspeita poderia provocar a desconfiança do saltador.

O terrano movimentou as pernas longas e magras, e saiu da Error. Cora e o patriarca seguiram-no. Valmonze apontou para um edifício situado na periferia do espaçoporto.

— Siga nessa direção. Mas não faça nenhuma marcha forçada. Deverá permanecer ao nosso alcance, para quando precisarmos do senhor.

Princer fez que sim. Cora apoiou-se em seu braço, e caminharam em direção ao edifício que lhes fora indicado. Por um instante Valmonze seguiu-os com os olhos, balançando a cabeça. Depois saiu em direção... à maior surpresa que já tivera em sua vida!

 

Face às dimensões das naves dos salta-dores, o espaçoporto do planeta Alaze era enorme. Ficava no fundo de um vale e estendia-se por uma área de três quilômetros. Para os mercadores galácticos, a instalação de um entreposto comercial era apenas uma questão de rentabilidade. Um espaçoporto dessa extensão era bastante dispendioso, e, evidentemente, não era construído em todos os seus entrepostos. Só os mundos que apresentassem condições especiais possuíam instalações desse tipo.

Os saltadores encaravam qualquer questão sob o ângulo econômico e comercial. Praticamente viviam como nômades e geralmente ficavam mais tempo no interior de suas naves. Por isso precisavam de espaçoportos em que pudessem pousar a intervalos regulares, a fim de cuidarem do reparo de suas naves ou de outros assuntos importantes. A riqueza de cada clã dos saltadores dependia da capacidade do patriarca.

Há várias gerações os saltadores detinham o monopólio do comércio em todos os planetas habitados que podiam ser alcançados com suas naves cilíndricas. Mas, nos últimos anos, surgira um forte concorrente:

O Império Solar.

Os comerciantes e economistas terranos lutavam obstinadamente contra o poder financeiro dos mercadores galácticos. Por enquanto os saltadores se haviam guiado por um princípio muito simples. Agarravam tudo que pudessem conseguir por suas mercadorias. Objetos adquiridos a preços vis eram “trocados” por mercadorias valiosas.

Mas essas condições chegaram ao fim. As naves cargueiras terranas apareceram pelos planetas e pela primeira vez eram oferecidos às outras inteligências da Galáxia preços honestos por suas mercadorias. Antes que os saltadores compreendessem o que estava acontecendo, a Terra já tinha firmado contratos comerciais com inúmeros planetas.

Daí em diante, os mercadores das naves, galácticas passaram a recorrer a qualquer meio, fosse ele qual fosse, para enfraquecer a posição da Terra.

John Edgar Princer sabia sobre os saltadores tanto quanto qualquer cidadão da Terra, interessado no destino de seu povo. Ao que tudo indicava, isso estava para mudar.

Acompanhado pela esposa atingira a extremidade do campo de pouso. Cora agarrou sua mão.

— Johnny, não demorarão a perceber o que realmente temos a bordo da Error — disse Cora. — Quando isso acontecer, eles nos levarão de volta.

Princer olhou para as montanhas, onde se estendiam florestas sombrias.

— Temos de fugir — disse. — É nossa única possibilidade de sobrevivência. Talvez os saltadores tenham outros estabelecimentos neste planeta, e muita coisa a fazer. Depois de algum tempo, talvez reduzam a vigilância. Quando isso acontecer, teremos uma chance de expedir nossa mensagem.

Cora olhou para trás. Teve a impressão de que Johnny não conseguiria enganar os saltadores.

— Fugir! — repetiu Cora. — Dê uma olhada, Johnny! Não conhecemos este planeta. Nem sequer sabemos para onde dirigir nossos passos. Antes que tenhamos tempo de achar um esconderijo, eles nos encontrarão.

Continuaram andando. Princer não tinha nenhuma idéia clara sobre a maneira pela qual poderiam salvar-se. Mas uma coisa era certa: se parassem, dentro em breve estariam em poder de Valmonze.

Passaram do pavimento liso do espaço-porto para uma área coberta de pedregulho cinzento, na qual se viam algumas moitas de capim. Princer olhou para trás. Ninguém os seguia. A uns cem metros do lugar em que se encontravam, ficavam as primeiras árvores. Os gigantescos troncos eram marrom-escuros. A folhagem era tão densa que tinha o aspecto de uma massa compacta. O terrano esperava que por ali houvesse um local onde pudessem esconder-se.

— Você está andando muito depressa — queixou-se Cora.

Dando-se conta do seu erro, Princer andou mais devagar. Se cansasse Cora demais, teria de pagar por isso mais tarde. Precisavam controlar suas forças.

— Pensei que minha viagem de núpcias fosse mais confortável — disse Cora, em tom sarcástico.

— A culpa é exclusivamente minha — disse ele, muito abatido. — Fiquei em cima do papai, pedindo que me desse o jato espacial. Agora, papai deve estar preocupado, pois eu lhe prometi que, chegando em Ferrol, entraria logo em contato com ele. A esta hora já deve esperar meu chamado.

— Talvez mande procurar-nos — disse Cora esperançosa.

— Sim; em Ferrol — confirmou Princer.

— E se não nos encontrarem lá, onde poderão nos procurar? Não existe a menor possibilidade de localizar uma pessoa perdida no espaço.

Princer era um homem estranho. Preocupava-se com os outros, embora ele mesmo se encontrasse em situação muito mais grave. O fato de que o pai o procuraria em vão deixava-o muito mais triste que o perigo de ser capturado pelos saltadores.

Atingiram as primeiras árvores. O terrano suspirou aliviado. Avançavam com mais dificuldade, já que a vegetação rasteira e os montes de folhas secas lhes barravam o caminho. Quando viram aparecer os dois seres humanos, as aves nos galhos fizeram um pandemônio.

— Será que por aqui faz muito frio de noite? — perguntou Cora.

À noite! Princer estremeceu. Nem se lembrara disso. Não sabia quanto tempo duraria a escuridão nesse mundo. O planeta Alaze possuía um tipo de rotação estranha. Princer lembrava-se de ter lido alguma coisa a este respeito no catálogo estelar.

— Não creio — respondeu. Abaixou-se para afastar alguns galhos.

Naquele momento, Cora, que se encontrava atrás dele, soltou um grito de pavor.

Princer virou-se abruptamente. Cora estava pendurada pela cintura, num laço que saía da folhagem impenetrável. Princer precipitou-se sobre ela, mas o corpo de sua esposa foi puxado para cima aos solavancos. O terrano agarrou-se desesperada-mente às suas pernas, mas as forças invisíveis eram mais fortes.

Apavorado, o jovem viu Cora desaparecer em meio à folhagem.

— Cora! — gritou.

— Vá embora, Johnny — ouviu sua voz. Mas o terrano nem pensava em fugir.

Entretanto, quando tentou galgar o tronco, sentiu-se também agarrado e erguido do chão. Virou-se rapidamente, porém um segundo laço selou seu destino. Travou uma luta silenciosa e inútil contra as cordas que o amarravam. Os seres invisíveis puxavam-no lentamente para cima.

 

Amat-Palong era um ara, um médico galáctico. Era alto e em sua cabeça não havia um único fio de cabelo.

Amat-Palong despejou uma substância cinzenta, que se encontrava num tubo de ensaio, para dentro de um funil. O pó deslizou para o interior de uma caixa. Amat-Palong colocou o resto do pó sobre uma laminazinha transparente. A lâmina foi colocada embaixo de um microscópio. Por alguns instantes, o ara olhou para dentro do microscópio, sem dizer uma palavra. Retirou a lâmina. Colocou-a na palma da mão e levou-a à boca. Umedeceu lentamente os lábios e soprou o pó cinzento que se encontrava sobre a laminazinha.

Amat-Palong balançou a cabeça. Dirigiu-se à escrivaninha e ligou o aparelho de intercomunicação.

— Valmonze está por aí? — perguntou. Sua voz era monótona. Não tinha altos nem baixos; parecia inumana.

— Está na cantina — responderam pelo pequeno alto-falante. — Seus filhos estão com ele.

— Quero falar apenas com o patriarca — disse Amat-Palong, com suavidade. — Faça o favor de pedir-lhe que venha imediatamente ao meu laboratório.

Não aguardou a confirmação. Desligou. Lançou um olhar pensativo para suas mãos. Puxou uma cadeira para perto do lugar em que se encontrava. Ouviu o zumbido do elevador, e dali a pouco Valmonze entrou no laboratório. Segurava uma garrafa bojuda. Seus olhos achavam-se avermelhados.

— Estava comendo — resmungou. — Talvez o senhor não compreenda... Mas, para mim, isso é uma atividade muito importante, durante a qual não gosto de ser incomodado.

Sem impressionar-se com a ira do saltador, Amat-Palong levantou-se. Valmonze tomou um grande gole da garrafa e arrotou. O médico lançou-lhe um olhar indiferente.

— Então — disse Valmonze, em tom áspero. — Qual é o assunto tão importante que o senhor tem a me dizer?

Amat-Palong cruzou tranqüilamente os braços diante do peito.

— Guarde a garrafa, mercador — disse com a voz fria. — Daqui a pouco, quando começar a dar ordens, o senhor precisará ter os pensamentos em ordem.

Valmonze fitou-o com uma expressão de incredulidade. Seus olhos estreitaram-se. Aproximou-se lentamente do ara.

— Que modos são estes? — esbravejou. — Não se esqueça de que o senhor está falando com um patriarca.

Amat-Palong confirmou com um gesto.

— Sei disso — respondeu. — Mas por quanto tempo o senhor ainda será patriarca?

Valmonze deu um passo para trás. Atirou a garrafa ruidosamente sobre a escrivaninha. Estava furioso. Mas, ao mesmo tempo, a segurança do ara o desconcertava.

— Fale, antes que eu lhe quebre o pescoço pelas ofensas que acaba de proferir — berrou para Amat-Palong.

O ara não se abalou. Abaixou-se e abriu um armário. Suas mãos hábeis retiraram alguns sacos de plástico cheios de um pó branco. Ergueu-os até o rosto de Valmonze.

— O que é isto, patriarca?

— Heroína — fungou Valmonze. Amat-Palong pegou outros sacos, cujo conteúdo era marrom-escuro.

— Isto é ópio — disse. — Foi extraído de sementes de papoulas não amadurecidas. Contém cerca de quinze por cento de morfina e quantidades menores de outros alcalóides. Até agora, sempre adquirimos os entorpecentes já preparados na Terra.

O patriarca fechou violentamente o armário. Segurou o médico pelo ombro.

— O senhor sabe perfeitamente que a longo prazo isso se torna muito perigoso. Fizemos um acordo com Aplied, para ele nos mandar uma remessa de sementes de papoula, a fim de que possamos ter nossas próprias plantações. A semente já chegou. O que é que o senhor ainda deseja?

— Quero semente de papoula... — disse Amat-Palong, em tom de desprezo. — O senhor pode ser um bom mercador, mas não entende nada destas coisas...

Valmonze lançou-lhe um olhar desconfiado.

— O que quer dizer com isso?

Com a maior tranqüilidade, Amat-Palong pegou a caixa com o pó cinzento.

— Aqui está, patriarca. E isto que o senhor acredita ser semente de papoula. Dê-se por satisfeito por não a ter redespachado. Dei-me ao trabalho de moer e examinar alguns grãos.

Valmonze apoiou pesadamente os dois braços sobre a mesa. Seu hálito chegava até o rosto do médico.

— Há algo de errado com a semente? — perguntou.

— Com a semente em si, não há nada de errado — respondeu Amat-Palong. — Apenas, se o senhor a semear, colherá legumes.

O patriarca arrancou a caixa da mão de Amat-Palong. A veia do seu pescoço estufou. Contemplou a semente moída.

— Quer dizer que isto não é semente de papoula?

— Tem o aspecto da semente de papoula — disse o ara. — Na verdade, porém, é coisa bem diferente.

Valmonze atirou longe a caixa e soltou uma forte praga. Levantou o punho, num gesto de ameaça.

— Aplied enganou-me; que patife... Não teve a menor dúvida em brindar seu parceiro de negócios com certas expressões, que se aplicariam perfeitamente a ele mesmo.

— Sem dúvida acreditava que eu venderia a semente, sem examiná-la! — berrava o patriarca.

Amat-Palong manteve-se tranqüilo diante da irrupção do mercador. Quando Valmonze se acalmou, disse:

— Não posso imaginar que Aplied use truques tão primários. O senhor deveria interessar-se por seu elemento de ligação, o tal do Shaugnessy. Quem sabe se ele não pensou que nos podia enganar?

— Shaugnessy? — os olhos de Valmonze chamejavam. — Shaugnessy não veio. Aplied mandou outra pessoa. Seu nome é Princer.

— Será que isso faz alguma diferença? Pouco importa que o senhor seja enganado por uma pessoa que se chama Shaugnessy ou Princer.

— O senhor deveria ver esse terrano — gritou Valmonze, em tom indignado. — É o maior imbecil que já apareceu neste sistema. Tem medo de elevadores e não tem a menor idéia do nosso negócio.

Bateu fortemente no peito do ara.

— Mandarei buscá-lo. Veremos se mentiu para nós.

Amat-Palong riu.

— Não há nada mais fácil que isso. Prepararei uma injeção que fará o tal do Princer contar qualquer coisa que o senhor queira.

Valmonze dirigiu-se ao sistema de intercomunicação do ara e ligou-o. Resmungou seu nome e começou a dar ordens.

— Procurem o terrano e a mulher que vieram conosco na Val I. Têm de ser trazidos imediatamente. Aguardo no laboratório.

Satisfeito, deixou-se cair numa cadeira.

— Pronto — disse. — Vamos cuidar do Princer.

 

Folhas e galhos roçaram em seu rosto. Subitamente sentiu chão firme sob os pés.

Os laços foram afrouxados. O terrano olhou em torno. Encontrava-se sobre uma plataforma construída entre os galhos. Era feita de tábuas toscas. Cora, que se encontrava a um metro de distância, desvencilhava-se da corda.

Princer olhou para o alto. Acima de sua cabeça havia uma cabana de folhas, presa aos galhos mais grossos. Quatro estranhas criaturas estavam sentadas na entrada da mesma. Seu tamanho era o de um homem normal. Mas este era o único ponto de semelhança com os terranos. Em suas cabeças de pássaros brilhava um par de olhos negros e inteligentes, rodeados por um círculo de penas. Um bico largo e curto dominava o rosto. Princer notou que seus braços, quando abertos, formavam asas. Imaginava que naquela atmosfera densa deviam ser perfeitamente capazes de voar. Os corpos estavam cobertos por penas.

Princer compreendeu o que Valmonze quis dizer quando lhe sugeriu que tirasse os nativos de cima das árvores.

— São nativos — disse a Cora, em tom tranqüilizador. — Não devem ser perigosos, pois do contrário o saltador nos teria prevenido.

Um dos pássaros desceu para a plataforma em que se encontravam. A folhagem densa não permitia que voasse, motivo por que desceu pelas cordas.

— Nós fazer brincadeira gostosa — disse, cumprimentando Princer num péssimo intergaláctico. — Puxar gente sem asas do chão.

Enquanto falava, seu bico batia. A voz parecia rouca e estridente. Princer tinha idéias bem definidas sobre o senso de humor. E essas idéias não incluíam o uso de armadilhas. Piscou para Cora.

— Deixe-nos descer — pediu. — Estamos com pressa.

O ser-pássaro contemplou-o com uma expressão astuciosa. Sua mão em garra apontou para os pacotes de cigarros que Princer trazia sob o braço.

— Isso ser presente para Schnitz? — perguntou em tom curioso.

O terrano caminhou em sua direção. A plataforma começou a balançar. Schnitz parecia não se importar com isso, mas Princer empalideceu. Seu corpo balançava no ritmo das tábuas. Cora segurou-se num galho.

— Presente? — repetiu Schnitz, impaciente.

Princer não se sentia muito disposto a fazer presentes. Enquanto estavam perdendo tempo, os saltadores talvez já tivessem iniciado a perseguição.

— Nada feito, amigo — disse ao nativo. — Não temos presentes. Queremos seguir nosso caminho.

Schnitz fitou-o prolongadamente. Grasnou em sua língua incompreensível para os três companheiros que continuavam sentados na frente da cabana. Princer assustou-se ao notar que estes também desceram para a plataforma, que estremeceu sob o peso. O jovem usou a mão livre para segurar-se numa das cordas.

— Gente sem asas agora querer dar presente para Schnitz? — perguntou o nativo, numa ameaça evidente.

— Dê-lhe um maço — disse Cora. — Talvez com isso ele se torne mais amistoso. E eu também gostaria de fumar.

Princer cedeu contra a vontade ao desejo da mulher. Entregou um maço a Schnitz e abriu um outro para Cora.

Schnitz, muito nervoso, começou a examinar seu presente. Os companheiros acompanharam-no com uma tagarelice insuportável.

— Isto me acalma — disse Cora, com um suspiro de alívio e soltando uma baforada.

Schnitz fitou-a com uma expressão de curiosidade. Aspirou a fumaça.

— Não quer fumar, Johnny? — perguntou Cora.

Princer lançou um olhar acanhado para a copa da árvore.

— Você sabe perfeitamente que não fumo — respondeu. — Meu estômago não suporta.

Schnitz, que chegara mais perto de Cora, aspirou fortemente a fumaça. O terrano contemplou a cena com uma expressão de repugnância. Não compreendia como um ser inteligente podia agir dessa forma.

— Parece que está gostando — observou Cora.

De repente Schnitz começou a girar em torno do próprio eixo. Estendeu os braços, e as asas entesaram-se. Cambaleava de uma extremidade da plataforma para outra, como se estivesse bêbado. As tábuas rangiam e estalavam.

— Este sujeito ainda acabará nos atirando lá embaixo! — exclamou Princer.

Cambaleante, Schnitz voltou a aproximar-se de Cora. O terrano preferiu não barrar seus passos. Para isso teria de soltar a corda. E se o fizesse, poderia perder o equilíbrio e cair da plataforma. Os outros três seres-pássaro também tiveram seu interesse despertado para a fumaça. Seguiram Schnitz e aspiraram gulosamente as emanações do tabaco.

— Jogue fora o cigarro! — gritou Princer para a esposa. — Você não vê que a fumaça os embriaga?

Schnitz e seus companheiros deixaram de lado toda a cautela e todas as considerações. Executaram uma dança sobre as tábuas, fazendo com que o suor porejasse na testa de Princer.

— Pare! — gritou o terrano. — Pare com isso!

Schnitz cambaleou em sua direção; parecia feliz.

— Gente sem asas trazer bom presente — gritou com a voz rouca. — Também ter desejo?

— Tenho — disse Princer, falando com dificuldade. — Estamos fugindo dos saltadores. É importante que encontremos um esconderijo e saiamos logo daqui. Pode ajudar-nos?

— Ajudamos — disse prontamente o nativo. — Schnitz mandar amigo ao campo de pouso. Amigo observar saltadores. Enquanto isso Schnitz fazer assentos de carregar.

O nativo conversou com um dos companheiros, que subiu à copa da árvore. Princer imaginou que o ser-pássaro voaria para o espaçoporto.

— O que vêm a ser os tais dos assentos de carregar? — perguntou Cora, em inglês. — Será que os nativos pretendem carregar-nos pela selva?

Princer imaginava que a intenção de Schnitz não seria muito diferente da suposição levantada por Cora. E devido a tal idéia, uma sensação de insegurança invadiu-o. Perguntou a si mesmo se, depois que cessasse o efeito do cigarro, a disposição amistosa dos seres-pássaro continuaria.

— Que tal se, vez por outra, você fumasse um cigarro? — sugeriu a Cora. — Com isso nossos amigos continuarão bem-humorados...

Mas antes que concluísse, sua consciência começou a acusá-lo.

— Não, não é justo que nós os exploremos em nosso benefício — censurou-se em tom violento. — Nós os envolvemos em algo com que não têm nada a ver.

— Se você não quer fazer nada por si mesmo, comece a pensar em mim — respondeu Cora. — Ou então procure lembrar-se do plano de informar Perry Rhodan sobre as pessoas envolvidas no contrabando. Mas se, a cada passo, você ficar refletindo sobre o que é certo ou não é, nada conseguiremos. Não acha?

Enquanto Cora falava, Princer enrubesceu. Fitou-a com uma expressão desolada. Seus dedos começaram a puxar a corda, como se aquilo fosse um trabalho inadiável. Cora aproximou-se pela plataforma balouçante.

— Sinto muito, Johnny — disse. — Acho que fiz mal em recriminá-lo. Concordo com tudo que você fizer — acariciou seu rosto.

— Você está com a razão — contrapôs Princer em tom áspero. Inclinou-se para beijá-la, mas o balanço da plataforma fez com que desistisse imediatamente do seu intento. — Você não precisa fumar todos os cigarros, pois também fumarei alguns.

Entesou o corpo e voltou a dirigir-se a Schnitz, que se balançava tranqüilamente numa corda.

— O que pretende fazer com os assentos? — perguntou.

— Voar com gente sem asas — anunciou Schnitz laconicamente. — Faremos vôo longo, até chegar bom esconderijo.

A simples idéia de um vôo fez com que o estômago de Princer se revoltasse.

— Somos muito pesados — objetou. — Nenhum de vocês conseguirá carregar-nos.

— Em quatro — disse Schnitz, em tom alegre. — Dois de nós carregarão um sem asas.

— O que você acha do plano? — perguntou Princer, dirigindo-se à esposa.

— Os nativos conhecem esta terra — ponderou Cora. — Sabem perfeitamente para onde ir. Penso que essa forma é a única segura. Tenho a impressão de que uma marcha pela floresta torna-se perigosa.

— Está bem — disse Princer. — Schnitz, vamos voar nos assentos de carregar.

Schnitz deu uma ordem a um dos companheiros, e o nativo subiu até ao “palanque”. O terrano gostaria de obter outras informações sobre esses seres-pássaro, mas não queria perder tempo com perguntas.

Tinha a impressão de que o lugar, onde no momento se encontravam, era um posto de observação que lhes permitia vigiar os saltadores. A plataforma não parecia ser a residência dos seres-pássaro.

Cora acendeu outro cigarro. Schnitz contemplou-a com uma expressão feliz e farejou gostosamente. Princer sentia uma simpatia inexplicável pelos nativos. Justamente por isso não estava gostando de recorrer a este método, isto é, embriagá-los com fumaça.

A volta do amigo de Schnitz fez com que o terrano esquecesse suas preocupações por alguns minutos.

— Kankantz buscar material para assentos — disse Schnitz aos terranos. — Fazer muito depressa.

Kankantz parecia alegre; soltou um som borbulhante. Piscou amavelmente e as penas em torno de seus olhos balançavam-se para cima e para baixo. Mas Princer só viu duas tábuas finas e algumas cordas desfiadas, que Kankantz trouxera.

— Será que estes são os assentos? — perguntou bastante abalado.

Schnitz pegou uma das tábuas e agitou-a energicamente diante do rosto de Princer. Parecia querer demonstrar a resistência da madeira.

— Você acredita que este meio de transporte é seguro? — perguntou o terrano, dirigindo-se à esposa. — Não acredito que com isso consigamos chegar muito longe.

— Será que temos outra alternativa, Johnny?

Schnitz, Kankantz e o outro nativo já haviam começado a fazer entalhes nas tábuas. Para isso utilizavam facas que, sem a menor dúvida, eram mercadorias do comércio dos mercadores. Fizeram duas reentrâncias em cada um dos lados das tábuas. Depois amarraram as cordas, fazendo-as passar pelos entalhes. Uma vez prontos, os assentos tinham o aspecto de antigos balanços.

Schnitz dobrou a faca e a fez desaparecer no montão de penas que cobria seu corpo. Contemplou sua obra com uma expressão de orgulho. Princer fitou-o um tanto constrangido.

— Fazer bom trabalho — disse Schnitz e coçou-se.

Com isso, o assunto parecia estar liquidado para ele. Sentou calmamente na frente de Cora e inalou a fumaça do cigarro. Revirava os olhos e batia com o bico, a fim de demonstrar sua satisfação. Kankantz sentou-se a seu lado e o outro nativo ajeitou-se num galho, balançando a cabeça na frente de Cora.

— O que vamos fazer agora? — perguntou Princer. — Schnitz, não podemos ficar para sempre nesta plataforma.

Schnitz ficou visivelmente aborrecido com a perturbação.

— Esperar Lupatz — limitou-se a dizer.

O terrano teve sua atenção despertada pelos ruídos vindos da mata. A folhagem era tão densa que mal conseguia enxergar o que havia lá embaixo. Mas o pouco que viu bastou para acelerar seu pulso.

A cem metros da árvore onde se encontravam, três saltadores abriam caminho pela mata.

Vinham na direção do esconderijo!

 

O embaixador dos morgs possuía uma cauda mais grossa que um braço humano. Por isso não se podia esperar que ele se acomodasse numa poltrona comum. Foi, então, construído um encosto que se adaptasse ao feitio do corpo do morg, a fim de proporcionar-lhe o máximo de conforto.

Mas, naquele instante, Stanour, o embaixador dos morgs, nem parecia pensar em fazer uso desse encosto. Muito nervoso, aproximou-se do lugar em que estava Perry Rhodan. Seus olhos salientes emitiam um brilho azulado. Possuía seis olhos, distribuídos de maneira uniforme pelo crânio oval. Geralmente os morgs eram um povo pacato, não se envolvendo nas lutas cósmicas. Mas, no caso de Stanour, notava-se muito pouco desse espírito pacato.

— A cada dia que passa, encontramos um número maior de pessoas viciadas, administrador — latiu na sua língua estranha. — Pastonar, uma cidadezinha situada no oeste do país de Troatara, é habitada exclusivamente por pessoas loucas. O entorpecente vem se transformando num perigo para nosso povo.

Eduard Deegan, encarregado de negócios da Terra em Morg, traduziu as palavras da criatura extraterrena para os presentes. Além de Rhodan, Deegan e do morg, encontravam-se também no recinto Allan D. Mercant, chefe da Segurança Solar, e Reginald Bell. Perry deixara propositadamente de convocar outras pessoas. Queria evitar que a presença de muitos subordinados desse ao morg a impressão de que ele, o administrador, não levava a sério as preocupações que o atormentavam. Stanour conhecia pessoalmente Rhodan e Bell. Além disso, lhe haviam explicado quem era Mercant. O fato de poder encontrar-se a sós com esses personagens importantes já o acalmara um pouco.

— Não é só do planeta Morg que recebemos estas informações — disse Rhodan.

Via-se que, nos últimos meses, Perry trabalhara demais. As experiências com o mecanismo de propulsão linear e o encontro com os acônidas deixara seus vestígios. E a carga causada pelas atividades criminosas dos traficantes de tóxicos afetou ainda mais seu estado psicológico.

— Ao que parece, o negócio dos entorpecentes assume proporções cada vez mais amplas — prosseguiu Rhodan. — Parece que os fornecedores estão na Terra, enquanto os mercadores galácticos exercem as funções de distribuidores.

Deegan traduziu as suspeitas de Rhodan para o morg. Mas aquela criatura, cujos antepassados viveram nos pântanos, não se mostrou disposta a assumir uma atitude mais gentil.

— Os saltadores afirmam que os terranos são os únicos culpados da propagação do tóxico! — exclamou o morg. — Administrador, o senhor não deve esquecer-se de que a substância que apareceu em toda parte é ópio terrano. Pelo que dizem os saltadores, os políticos terranos querem contaminar várias raças da Galáxia com o veneno, a fim de incorporá-las ao Império Solar.

Deegan hesitou em traduzir a acusação. Enquanto este falava, Rhodan começou a morder os lábios. Mas de resto continuou tranqüilo. Bell, porém, não conseguiu dominar-se.

— Que demônios — disse, levantando-se de um salto. — Realizam um trabalho sistemático para incompatibilizar-nos com os outros povos. Quem me dera que eu soubesse quem são os canalhas de nossa raça que colaboram nisso. Teria o maior prazer em despachá-los pessoalmente para Plutão.

— Meus agentes trabalham dia e noite — disse Mercant. — Interrogamos todos os suspeitos. Deve ser um grupo inteiramente novo. As velhas raposas não têm nada a ver com a negociata. Provavelmente o chefe vive entre nós sob a máscara do bom burguês. Como poderemos encontrá-lo? Será que devemos submeter todos os homens a um teste mental, realizado por telepatas? Tal proceder entraria em choque com nossos princípios éticos e, além disso, seria praticamente inútil. Quando concluíssemos o trabalho, os saltadores já teriam alcançado seu objetivo, ou seja, a maior parte das raças, que têm negócios com o Império Solar, proibiria nossa entrada em sua área de influência.

— Já expliquei isso inúmeras vezes a Stanour, sir — disse Eduard Deegan, em tom de desânimo. — O senhor nem imagina a miséria que o ópio causa neste povo. Em comparação com as vítimas morgs, um terrano viciado parece um raio de sol...

Rhodan interrompeu-o com um gesto.

— Diga-lhe que faremos tudo que estiver ao nosso alcance para descobrir os criminosos. Estamos dispostos a enviar médicos para Morg, que mitigarão os males. Não podemos fazer mais que isso.

— Fomos honestos com os terranos! — exclamou Stanour em tom amargurado, depois que Deegan traduzira com voz sombria as palavras de Rhodan. — Estes tempos passaram. Não estamos mais interessados na presença dos cargueiros terranos em Morg. Mr. Deegan tem sido um excelente amigo; não tem culpa de nada. Apesar disso vemo-nos obrigados a fechar o entreposto comercial. Façam o favor de retirar seus homens num prazo razoável. Nosso governo ainda lhes indicará com exatidão o tempo para tal retirada. Desde logo posso adiantar que Quatrox-Zuat, Imperador de Saastal, seguirá nosso exemplo. Também falo como representante de Sua Majestade. Afinal, Saastal é nosso planeta gêmeo, e mantemos excelentes relações com essa raça.

Deegan concluiu fielmente seu trabalho de tradução. Bell fez menção de investir furiosamente contra o morg, mas o olhar de Rhodan o deteve.

— Cuide de nosso amigo, até que ele deixe a Terra. Diga-lhe que respeitamos os desejos de seu governo e romperemos as relações comerciais.

Deegan esteve a ponto de levantar-se, mas Rhodan ainda não chegara ao fim.

— Um momento, Deegan. Diga-lhe, também, que um belo dia as naves cargueiras terranas voltarão a ser bem vistas em Morg e Saastal... ou então não me chamo Perry Rhodan.

Bell, o grande amigo do administrador, foi o único que notou a exaltação que se apoderou de Rhodan.

— Passe bem, administrador — disse Stanour, e saiu da sala, acompanhado por Eduard Deegan.

Os três grandes permaneceram em silêncio por algum tempo. Cada um estava entregue às suas próprias reflexões. Mercant foi o primeiro que voltou a falar.

— Estamos mal — disse em tom de desânimo. — Realmente acreditam que nós é que espalhamos os entorpecentes.

Rhodan confirmou com a cabeça. Estava sentado na poltrona. Alto, quase chegava a ser uma figura lendária no seu uniforme simples e limpo. Os olhos pareciam ser a única coisa viva naquele rosto anguloso. Só mesmo um homem, que carregava uma enorme responsabilidade em todos os minutos de sua vida, poderia ter um rosto como este. A ducha celular do planeta artificial Peregrino mantivera jovem o corpo de Rhodan, mas as experiências pelas quais havia passado se acumularam em seu espírito.

— Isso foi apenas o começo — disse em tom tranqüilo. — Outros planetas seguirão o exemplo de Morg e Saastal. É exatamente o que os saltadores querem. Se conseguirem nosso isolamento econômico, não teremos a menor chance de manter o Império Solar. Nem os propulsores lineares e nem os mutantes deverão iludir-nos quanto a isso.

Bell cerrou os punhos.

— Esse morg idiota! Não demorará a perceber que seus amigos saltadores são uns carrascos e...

Sempre que Bell soltava uma frase mais longa, podia-se ter certeza de que esta continha algumas pesadas expressões. Mas, naquele momento, sua indignação era genuína, e ninguém pensou em criticá-lo por isso. O vice-administrador conhecia perfeitamente as conseqüências que o tráfico de entorpecentes poderia produzir.

— Quando isso acontecer, será tarde, tanto para nós como para os morgs e para as outras raças interessadas — objetou Mercant. — Penso constantemente no que poderá acontecer se os saltadores conseguirem pôr as mãos em sementes que lhes permitam plantar suas próprias papoulas... Seria o fim.

— Este raciocínio tem um ponto falho — interferiu Bell. — O senhor realmente acredita que os contrabandistas terranos estariam dispostos a proporcionar essa possibilidade aos mercadores? Caso eles agissem assim, perderiam o negócio.

Rhodan ouvira as palavras dos dois amigos. Parecia pensativo.

— Acho que não devemos deixar de lado as suspeitas de Allan — disse. — Não sabemos se, além dos motivos econômicos, o grupo de bandidos terranos não é movido por motivos políticos.

— Motivos políticos? — repetiu Bell, em tom exaltado. — Não compreendo.

Um sorriso frio surgiu no rosto de Rhodan. Saiu de trás da mesa e foi à janela. Abaixo dele estendia-se Terrânia, a cidade dos superlativos. Para Rhodan, que era norte-americano, a metrópole terrana tinha um encanto todo especial. Transformara-se em sua segunda pátria.

— É possível que na Terra exista algum grupo interessado em derrubar o atual governo — disse Rhodan. — Como deveria agir um grupo desses? Se forem inescrupulosos, usarão de todos os meios para incompatibilizar-nos com os outros.

— Infelizmente você tem razão — admitiu Bell. — Acho que teremos de nos ocupar ainda mais intensamente com a organização de contrabandistas.

Rhodan afastou-se da janela. Fitou Bell e o chefe do Serviço de Segurança.

— É o que faremos, meus caros. Dentro de quatro horas convocarei uma conferência. Allan trará seus oficiais. E os elementos de ligação com nossos entrepostos comerciais estelares também estarão presentes. Estou pensando em recorrer a alguns mutantes.

A conferência foi realizada na hora prevista. Eram 18 horas, quando o administrador abriu os trabalhos.

Os vespertinos daquele dia publicaram uma entrevista de Archibald Princer, Presidente da Intercosmic Fruit Company. Princer exigia que a Frota Solar saísse imediatamente à procura de seu filho John Edgar que, segundo tudo indicava, se perdera durante a viagem de núpcias para Vega. Os leitores, que não sorriam ao lerem a entrevista, tiveram um acesso de riso, quando viram o retrato, também publicado nos jornais. A foto mostrava um jovem de olhos sonhadores e orelhas de abano. Era John Edgar.

O jovem Princer tinha o aspecto de um homem capaz de se perder em sua própria casa. Ninguém pensaria que era um piloto espacial arrojado que saía para o cosmos, em viagem de núpcias.

Perry Rhodan encerrou a conferência pouco depois das 20 horas. Decidira, juntamente com os presentes, a adoção de várias medidas destinadas a pôr fim ao contrabando. Naquela mesma noite, Stanour, embaixador de Morg, decolou do espaço-porto de Terrânia.

A população da Terra nem desconfiava das dificuldades pelas quais iria passar. Se alguém perguntasse a qualquer um sobre o acontecimento mais importante do dia, este talvez responderia com um sorriso:

— Bem, um homem jovem desapareceu durante a viagem de núpcias.

Mas não era só isso.

Naquele momento, a única chance de o Império Solar impedir o início do boicote econômico repousava sobre os ombros de John Edgar Princer, o novato.

 

Os três mercadores pararam, indecisos. Olharam em torno. Princer observou-os; prendeu a respiração. Atrás dele, a plataforma começou a balançar ligeiramente. Lupatz voltara sem o menor ruído. Princer bateu levemente nas costas de Schnitz e fez um sinal em direção aos saltadores. O nativo não se mostrou assustado.

— Gente sem asas esconder mais em cima, na cabana — disse, dirigindo-se a Princer. — Schnitz fazer grande truque.

Schnitz lembrava de certa forma um prestidigitador que, a cada momento, apresenta uma idéia nova, para deixar perplexo seu público. Era bem verdade que os meios escolhidos por Schnitz eram ainda bem primitivos. Apesar disso irradiava uma segurança, fazendo com que Princer conservasse a calma. Esses seres-pássaro eram os extraterrenos mais otimistas de que Princer ouvira falar.

O terrano dirigiu-se à esposa.

— Temos de esconder-nos na cabana. Schnitz quer desviar a atenção dos saltadores. Você acha que é capaz de subir por esta corda?

Cora fez que sim. Apagou o cigarro e puxou-se corda acima. Schnitz contemplou-a com a maior tranqüilidade.

— Agora homem sem asas também subir — disse, dirigindo-se a Princer.

Aquele jovem nunca tentara uma escalada desse tipo. Parecia fácil, pois Cora conseguira sem a menor dificuldade. O terrano estendeu os braços, agarrou-se à corda e levantou-se. Mas o cipó começou a movimentar-se, levando Princer para além da plataforma. As folhas e os galhos roçaram nele. Não se atreveu a olhar para baixo.

A corda voltou a trazê-lo para cima das tábuas. As garras de Schnitz seguraram-no pela jaqueta.

— Sem asas não conseguir — constatou o nativo. — Schnitz ter que ajudar.

Princer sentiu-se envergonhado por ter que aceitar a ajuda do ser-pássaro. Lupatz e o quarto nativo olharam indiferentes, enquanto o terrano se martirizava para subir.

Schnitz, segurando-o pela gola, fê-lo subir de um galho a outro. Finalmente viu-se ao lado de Cora, junto à entrada da cabana. Não se atreveu a fitá-la diretamente.

— Pode entrar — disse sua esposa, sorrindo. — Nossa nova casa não é nada senhorial, mas parece oferecer um máximo de segurança. Talvez seja preferível tapar o nariz...

Princer percebeu que a esposa não lhe levava a mal a figura desastrada, que fizera durante a escalada. Feliz, seguiu-a para o interior da cabana. Schnitz ficou parado junto à entrada. As paredes eram feitas de tábuas, capim, folhas e musgo. A luz penetrava pelas frestas.

— Ficar quieto — disse Schnitz. — Schnitz agora falar com saltadores.

Deixou-se cair para trás. Cora não conseguiu reprimir um grito. Princer lançou-lhe um olhar de advertência, pois pelos estalos vindos de baixo concluía-se que os saltadores já se haviam aproximado da árvore.

— Olá, guerrilheiros! — grasnou Schnitz, que se encontrava na plataforma.

Antes que Princer tivesse tempo de espantar-se com essa expressão, o nativo prosseguiu.

— Vocês trazer presente para nós?

— Não, seu bicho de penas — respondeu a voz profunda de um mercador. — Não trouxemos nenhum presente para seu bando.

— Então desaparecer depressa — exigiu Schnitz, com a arrogância de um general.

— Se sua habilidade for tão grande quanto seu atrevimento, poderemos confiar nele, sem o menor receio — cochichou Cora para o marido.

— Preste atenção, pássaro — gritou o saltador, em tom de ameaça. — Estamos procurando um homem e uma mulher. São mais magros que nós e não usam barba. Usam vestes estranhas.

— Bons amigos de Schnitz — disse o nativo. — Fazer grande presente. Tomara que voltem logo.

— Em que direção foram?

— Para dentro do mato. Por lá — Princer não pôde ver a direção indicada por Schnitz. — Já faz muito tempo.

O estalo dos galhos e o farfalhar das folhas provavam que os saltadores prosseguiam nas buscas. Dali a pouco, a silhueta de um ser-pássaro apareceu na entrada da cabana. Era Schnitz. Recostou-se calmamente à parede.

— Obrigado — disse Princer com um suspiro de alívio. — Muito obrigado, amigo.

Schnitz levou a mão-garra ao bico, com um cigarro imaginário. Era um pedido inequívoco.

— Que tal se você fumasse um cigarro? — perguntou Cora.

— Vou tentar.

Schnitz esperou ansiosamente até que o terrano acendesse um cigarro. Princer tossia.

— Você não deve tragar recomendou Cora.

— Sim, querida — disse Princer, com a voz rouca.

Seus olhos lacrimejavam. Já umedecera tanto o cigarro que os pedacinhos de tabaco se desprendiam e grudavam nos lábios. Tudo que fazia dava errado. Começou a pensar que jamais conseguiria transmitir a notícia a Rhodan.

— Agora sair voando — sugeriu Schnitz, libertando Princer de suas sombrias reflexões. — Lupatz, Kankantz e Tonitutz estar prontos.

Entrou na cabana e desprendeu a parede dos fundos, dobrando-a para dentro. Perplexo, Princer viu que os nativos haviam aberto uma espécie de canal de entrada pela copa da árvore. Kankantz apareceu com os assentos.

— Ainda está na hora de mudarmos de opinião — disse o terrano, virando o rosto e soltando a fumaça.

Cora balançou a cabeça, em sinal negativo.

De repente ouviram o ruído característico de uma espaçonave. Olhando pela clareira aberta pelos nativos, Princer viu-a passar.

Não deveriam hesitar mais; teriam de fugir logo.

A espaçonave era de procedência terrana.

Princer não teve a menor dúvida de que o homem que viria na nave era aquele que Valmonze já aguardava há muito tempo.

Shaugnessy!

Isso não significava nada mais nada menos que a sentença de morte para John Edgar Princer e sua jovem esposa.

 

Toraman era o filho mais velho de Valmonze. Muitas vezes vira o pai nervoso e zangado. Mas a disposição de ânimo, em que o patriarca agora se encontrava, era bem superior às irrupções anteriores. O velho mercador segurava com ambas as mãos a armação, sobre a qual se encontrava o videofone. Na tela surgiu o rosto de um terrano, que também não parecia muito bem-humorado.

— Shaugnessy! — esbravejou Valmonze. — Exijo explicações imediatas.

— O senhor só pode estar brincando — afirmou o contrabandista. — É o senhor que tem de explicar o que está acontecendo por aqui. Não compareceu ao lugar combinado para introduzir-me na Val I. Quando finalmente consegui estabelecer contato pelo rádio, o senhor me contou uma história maluca, a respeito de uma semente de papoula que não é semente de papoula. Já não compreendo mais nada. E, além de tudo, o senhor exige explicações!?

Valmonze reconheceu que desse jeito não conseguiria nada. Shaugnessy sabia representar muito bem, ou então realmente não sabia o que o patriarca estava dizendo.

— Pouse — disse o chefe de clã. — Depois conversaremos.

— Isso já são falas melhores — disse o homem que aparecia na tela. — Apenas espero que, quando eu pousar, seu bom humor tenha voltado.

Valmonze resmungou alguma coisa e desligou. Esbarrou em Toraman, que se encontrava atrás dele. Seu filho retirou-se imediatamente, em atitude respeitosa. Os saltadores, que se encontravam presentes, fitaram tensos o chefe. Somente Amat-Palong, que se mantinha num ponto mais afastado, exibiu um sorriso irônico.

Mas, para Valmonze, os acontecimentos chocantes ainda não haviam chegado ao fim. Os três saltadores, que foram enviados à floresta para trazer Princer, entraram na sala. Não tiveram necessidade de fornecer explicações. O patriarca logo notou que não haviam encontrado o terrano.

— Não conseguimos alcançá-los patriarca — disse um deles. — Tinham uma dianteira muito grande.

— Ainda bem que temos entre nós um sujeito “inteligente” como você — gritou Valmonze. — Descobrirei os dois terranos, nem que tenha que incendiar toda a floresta.

Por um instante, uma expressão de revolta surgiu nos olhos do mais jovem dos dois saltadores. Mas a tradição acabou levando a melhor. Era impossível contraditar um patriarca.

O saltador deu mais uma informação:

— Encontramos alguns nativos, patriarca. Eles nos disseram que os fugitivos estão a caminho da grande depressão. Se pegarmos um planador, poderemos chegar lá antes deles.

Um brilho colérico surgiu sob as sobrancelhas hirsutas de Valmonze. Como chefe do clã queria dar todas as ordens, mas ao mesmo tempo esperava que os membros do clã desenvolvessem uma atuação independente. A contradição entre essas idéias nem lhe acudiu à mente. Seu poder era de natureza totalitária, e jamais tal tipo de comando fizera bem a qualquer criatura pensante.

— O que estão esperando? — berrou o patriarca fora de si. — Razmon pilotará o planador. Dirijam-se imediatamente à grande depressão.

— Será que o senhor realmente é tão criança? — disse uma voz, vinda dos fundos da saía.

Valmonze ficou rígido. O silêncio era tamanho que se poderia ouvir o tiquetaquear de um relógio de pulso. Finalmente os saltadores fitaram o homem que se atrevera a ofender o patriarca em público.

Depararam-se com o rosto frio de Amat-Palong, o ara. Era um homem grande mas, ao contrário dos saltadores, era magro. Estava encostado a uma prateleira cheia de pastas. Quando Valmonze olhou em sua direção, um sorriso ligeiro aflorou-lhe nos lábios.

Sem dúvida alguns dos saltadores sentiram-se alegres com as palavras do médico. Mas estes esperavam que Valmonze desabasse sobre Amat-Palong com a força de uma tormenta, sentiram-se decepcionados. O patriarca provou que sabia dominar seus sentimentos, quando a situação assim exigisse.

— Sua crítica só se justifica se o senhor tiver uma idéia melhor, ara — disse Valmonze, em tom indiferente. — Estamos curiosos para ouvi-la.

Amat-Palong empurrou-se com o ombro e afastou-se da prateleira. Lançou um olhar de tédio para o saltador.

— Coloque um planador à minha disposição — pediu a Valmonze. — Eu lhe trarei o tal do Princer.

Se o saltador já exibiu um sorriso matreiro, foi nesse instante. Se não cumprisse, a promessa que acabara de fazer, Amat-Palong cairia no descrédito.

— Também pretende ir à grande depressão? — perguntou.

— Não — respondeu Amat-Palong, laconicamente.

Era evidente que preferia não revelar seu destino.

— Está bem; dar-lhe-ei um planador — disse Valmonze. — Mas, de qualquer maneira, Razmon irá também à depressão.

O ara acenou tranqüilamente com a cabeça e saiu, sem demonstrar a menor pressa. Com um gesto, Valmonze mandou que os três saltadores, que reiniciariam as buscas ao lado de Razmon, também se retirassem.

— Shaugnessy acaba de pousar — disse uma voz saída do intercomunicador. — Quais são suas ordens, patriarca?

— Estou no escritório central — disse Valmonze. — Tragam o terrano para cá.

Dali a menos de quinze minutos, Clifton Shaugnessy entrou na sala. Era um homem baixo, de ombros largos. O nariz adunco formava um contraste desagradável com o rosto. O contrabandista usava uma jaqueta curta, enfeitada com bordados. Falava quase sem movimentar os lábios, o que dava um tom cavernoso à sua voz. Uma arma térmica de fabricação antiga estava pendurada no cinto.

— Perry Rhodan colocou a Terra sob quarentena — disse a título de cumprimento. — Por isso não pude chegar na hora marcada. Não trouxe semente de papoula, nem a mercadoria de sempre. Aplied achou que seria muito perigoso reiniciar os negócios agora. As naves-controle estão realizando inspeções extremamente rigorosas. Nenhuma nave cargueira pode decolar sem permissão. Em Terrânia ainda prevalece a proibição de pousar e decolar. O motivo é a doença que grassou por lá. Segundo os boatos, até mesmo Rhodan foi atacado. Dizem que se contagiou durante uma experiência. Aliás, essa experiência originou estranhas suposições, que estão dando o que pensar. Conta-se que Rhodan experimentou com pleno êxito um novo sistema de propulsão e, na oportunidade, encontrou uma raça que, segundo se diz, é muito mais poderosa que Árcon, a Terra e os saltadores reunidos.

— O senhor me traz boatos — disse Valmonze, em tom zangado. — Esperamos mercadorias e Aplied o manda para cá com boatos, que não têm o menor valor para nós.

Shaugnessy não parecia nervoso. Tinha o aspecto de um homem que não se preocupa com nada, muito menos com os problemas de um mercador galáctico.

— O senhor conhece um certo Princer, que trabalha para Aplied? — perguntou Valmonze.

— Princer? — repetiu Shaugnessy, puxando o zíper da jaqueta, como se isso servisse para reavivar-lhe a memória. — Não. Nunca ouvi esse nome.

— Pois ele apareceu por aqui e diz ser seu representante. Trouxe uma remessa de sementes de papoula, mas quando as examinamos, verificamos que eram falsas — informou Valmonze.

Shaugnessy fez um gesto de aprovação.

— Que sujeito formidável — disse numa objetividade que, para Valmonze, só poderia parecer incompreensível. — Onde está?

— Fugiu. Mas nós o pegaremos. Tem uma idéia de quem pode ser esse homem? Veio acompanhado por uma mulher.

— Talvez seja uma agente de Rhodan — disse Shaugnessy, que não parecia nem um pouco nervoso com sua suspeita. — Um belo dia terão que descobrir nossa pista...

Valmonze preferiu não explicar ao contrabandista por que, em hipótese alguma, se poderia permitir que, naquela altura, Rhodan descobrisse os elementos de ligação do bando de traficantes. Seria inútil falar em política galáctica a esse bandidozinho. Shaugnessy transportava ópio, a mando de Aplied, para Valmonze. Aplied levava a mercadoria a mais seis patriarcas. Além de Shaugnessy, havia mais oito elementos que faziam a ligação com Aplied, e atendiam a outros clãs dos saltadores. Isso representava um total de 63 traficantes que, com o intuito de provocar uma modificação fundamental na situação econômica da Terra, recebiam os entorpecentes.

Até era possível que Shaugnessy nem soubesse que os mercadores se interessavam pelos tóxicos porque esperavam que, com isso, conseguiriam enfraquecer a posição da Terra. Sob o ponto de vista comercial, seus lucros com os alcalóides não eram maiores que os que lhes eram proporcionados por outras mercadorias. Quem fazia o grande negócio era Vincent Aplied, da Cidade do Cabo.

— Seja quem for esse Princer — disse Valmonze — precisamos encontrá-lo. Não poderá sair deste planeta. Mais dia menos dia, nós o prenderemos.

— Se realmente for um agente da Segurança Solar, o senhor terá problemas com ele — ponderou Shaugnessy. — Se for um simples impostor, não podemos deixar de admirar sua coragem.

Valmonze fez um gesto de recusa.

O único sentimento que o terrano Princer provocava em Valmonze era o ódio, pois o grande patriarca sentiu-se ludibriado.

E quando se encontrava nesse estado, o patriarca era um homem perigoso. Sua ira atingiria o jovem de forma implacável.

 

O vice-presidente da Intercosmic Fruit Company, John Edgar Princer, apresentava um aspecto lamentável. Se Valmonze tivesse oportunidade de vê-lo em tal estado, logo abandonaria a idéia de que podia tratar-se de um agente.

Princer, que estava sendo carregado sobre a floresta, numa altura estonteante, achava-se sentado numa tábua de vinte e cinco centímetros de largura, cujas extremidades encontravam-se presas a cordas que subiam até Schnitz e Lupatz. Os dois seres-pássaro planavam com as asas abertas.

O estômago de Princer não atendia sequer às exigências de um elevador comum. Por isso o terrano atravessava a pior hora de sua vida. Seu estômago “murchara”. A falta de sangue no cérebro turvava-lhe a vista. Talvez fosse bom, pois os efeitos da visão àquela altura poderiam ser desastrosos para Princer.

Uns vinte metros à sua frente, Cora estava sendo carregada por Kankantz e Tonitutz. Ele congratulou-se por ter deixado que a esposa voasse à sua frente. Dessa forma, a jovem ficara livre de uma visão nada agradável, e o vice-presidente da IFC, de explicações confusas. As asas dos nativos possuíam uma envergadura extraordinária. Quando se moviam, provocavam um deslocamento de ar, fazendo com que Princer estremecesse de susto.

Suas mãos seguravam firmemente as duas cordas. Não se atrevia a fazer o menor movimento. A tábua fina tremia e balançava. O estado de Princer não lhe permitia avaliar a velocidade com que se deslocava. A cada metro que avançava, a distância que o separava dos saltadores aumentava. Mas nem por isso sentia-se mais feliz.

A qualquer momento trocaria seu assento arejado por uma cadeira situada no interior da nave de Valmonze.

Mas logo disse para si que, pensando dessa maneira, estava sendo egoísta. Não devia pensar apenas em si mesmo. Sua valente esposa enfrentava iguais perigos.

Se eu fraquejar”, pensava o terrano, “perderei a oportunidade de informar Perry Rhodan.

Por isso continuou a sofrer. Era uma figura contorcida sentada sobre um pedacinho de madeira.

Não saberia dizer quanto tempo durou o estranho vôo. Acreditava não poder agüentá-lo por mais tempo, mas naquele momento Schnitz e Lupatz começaram a descer. A aterrissagem foi-lhe apavorante. Um suor frio cobriu o corpo de Princer. Sombras surgiram à sua frente, além de círculos coloridos. O terrano respirava com dificuldade. De repente sentiu um forte solavanco, e rolou pelo chão firme.

— Vôo terminou — disse — Schnitz, em tom indiferente. — Homem sem asas poder levantar.

Acontece que Princer teve de enfrentar o efeito retardado de seus nervos. Engatinhando, conseguiu avançar um pedaço. A primeira tentativa de pôr-se de pé foi um lamentável fracasso. Finalmente ergueu-se com as pernas trêmulas. Sua cabeça zumbia.

Viu-se num prado que se estendia no meio da floresta. Cora achava-se a uns cem metros do lugar em que ele se encontrava. Aproximou-se juntamente com Kankantz e Tonitutz. Princer esforçou-se para dissimular seu estado desolador. A passos largos caminhou ao encontro da esposa.

— Você não achou que o vôo foi maravilhoso, Johnny? — perguntou Cora. — Ele me refrescou.

Princer enrubesceu até a raiz dos cabelos. Sua atitude máscula desmanchou-se. Voltou a transformar-se no John Edgar Princer, o desajeitado, que sempre fora.

— É verdade, querida — mentiu.

Seu sorriso desmanchou-se, quando a esposa o abraçou.

— Não viemos para fazer um piquenique — disse em tom sério. — Você se lembra de que Valmonze aludiu a várias estações de controle, quando tentava expedir uma mensagem de bordo da Error?

— Não é bem assim — retificou Cora. — Apenas disse que a área é mantida constantemente sob controle.

Princer levantou o dedo indicador muito fino, numa atitude professoral.

— Conclui-se que é perfeitamente possível que, no planeta Alaze, existam várias estações de rádio. Cabe-nos descobrir uma delas.

Voltou-se para Schnitz e tornou a falar em intergaláctico, que os nativos dominavam razoavelmente.

— Existem outras estações de saltadores, além do espaçoporto? — perguntou. — Sabe onde poderíamos encontrar uma?

O anel de penas azuis, que cercava os olhos negros de Schnitz, balançava, numa atitude de quem não compreendia.

— Schnitz não compreender homem sem asas — disse. — Primeiro quer fugir, depois volta a procurar saltadores.

Princer lançou um olhar de súplica para a esposa.

— A coisa é um tanto complicada, Schnitz. Queremos entrar em contato com nossos amigos, que estão num outro planeta, para que venham salvar-nos. Para isso precisamos de certos aparelhos. Os saltadores têm esses aparelhos. Portanto, precisamos encontrar uma de suas bases.

Schnitz bateu o bico, o que era um sinal de que entendera. Será que Princer se enganara, ou havia realmente um sorriso astucioso no rosto de pássaro?

— Sem asas querer fazer palestra a grande distância — constatou o nativo. — Schnitz saber. Conhecer muitas estações. Muitas ficam longe, longe demais. Só uma nas proximidades.

Lançou um olhar ansioso para Cora e fez o movimento típico de um fumante. Princer aguardou pacientemente que Cora acendesse um cigarro e soprasse a fumaça para cima dos nativos de Alaze. Schnitz farejou, pigarreou, fitou Princer com os olhos lacrimejantes e prosseguiu visivelmente satisfeito.

— Todas as estações guarnecidas por nativos, que prenderam aparelhos de saltadores — disse.

Princer fez um sinal para a esposa. Parecia sentir-se aliviado. Se Schnitz os levasse até uma das estações de rádio e de controle, apenas teriam de lidar com os nativos, não com os saltadores.

— Leve-nos para este lugar, amigo — pediu a Schnitz.

Pela primeira vez viu uma certa insegurança nas atitudes do ser-pássaro. Schnitz abriu as asas.

— Não ser possível — disse um pouco mais alto do que seria necessário. — Área de outra tribo. Não ser amigos de Schnitz.

Passou a falar com os companheiros, usando sua língua. O vice-presidente da IFC compreendeu os gestos de Kankantz, Lupatz e Tonitutz. Os alazes recusavam terminantemente a idéia de penetrar na área da tribo estranha.

— Minha mulher e eu iremos sós — anunciou Princer. — Indiquem o caminho.

— Melhor não — objetou Schnitz, em tom violento. — Homem sem asas ser morto naquela área.

— De qualquer maneira seremos mortos — disse o terrano. — Por isso queremos agarrar qualquer chance, por menor que seja. Por favor, Schnitz, ajude-nos mais uma vez. Diga-nos como devemos fazer para encontrar a estação.

De repente Schnitz tornou-se sério. Estendeu a mão em garra e apontou para além do prado.

— Sem asas caminhar nessa direção. Antes do anoitecer chegará à estação.

— Está bem — disse Princer, satisfeito. — Vamos andando.

— Esperar mais um pouco — falou Schnitz em voz baixa.

Pegou o pacote de cigarros que Princer lhe dera. Seus olhos negros cintilaram.

— Schnitz não aceitar presente de um morto — grasnou.

Sem dizer uma palavra, o terrano pegou os maços. Cumprimentou os seres-pássaro com um gesto e segurou a mão da esposa. Atravessaram o prado e dirigiram-se à mata.

Os nativos esperaram mais alguns segundos. Depois abriram as asas e levantaram vôo. Princer ouviu o ruído das asas. Mas quando virou a cabeça, o prado já estava vazio.

— Foram embora — disse, dirigindo-se a Cora. — Agora dependemos exclusivamente de nós. É melhor andarmos depressa, para que cheguemos à estação antes de escurecer.

O terrano teve de reconhecer mais depressa do que esperava que seu plano era inexeqüível, que os temores de seu amigo Schnitz tinham bons fundamentos. Quando penetraram na floresta, já estavam sendo esperados. Cerca de trinta nativos saíram de trás das árvores. Traziam armas parecidas com lanças. O chefe interpôs-se no caminho de Cora e John. Levantou a lança.

— Trouxemos presentes para vocês — disse Princer, em tom amável. — Basta que nos deixem passar. Temos um caminho longo pela frente.

Mais uma vez John Edgar Princer teve de rever sua idéia, segundo a qual o Universo era povoado exclusivamente de criaturas pacatas como ele. O nativo deu ao jovem uma demonstração drástica da idéia que fazia dos presentes. Brandiu a lança e enfiou-a no chão bem à frente de Princer.

— Parece que está furioso — cochichou Cora, apreensiva.

Seu esposo apertou-lhe a mão. Com uma naturalidade extraordinária tirou a lança do chão e examinou-a com uma expressão de curiosidade. Sob o ponto de vista psicológico, achava que este seria o procedimento correto. Acontece que não era.

Metade dos nativos precipitaram-se sobre eles e amarraram-nos com cordas. O terrano, que depois de envolto pelas cordas parecia ainda mais magro, disse algumas palavras animadoras para a esposa. No seu íntimo confessou que haviam percorrido o longo trecho em vão.

Haviam escapado aos saltadores, mas isso apenas para serem presos por um bando de nativos rudes, que evidentemente não eram menos hostis que os mercadores galácticos. Tanto Princer como sua esposa foram carregados para o interior da floresta por quatro seres-pássaro.

Para o terrano, finalmente se transformara em realidade a aventura cósmica pela qual tanto ansiara. Mas agora, que sentia o perigo na própria carne, teve a impressão de que os desejos da juventude eram bastante tolos.

Cada um deve fazer apenas aquilo para que foi feito”, refletiu, muito desanimado.

Sem dúvida era verdade. Mas para que fora feito John Edgar Princer, que parecia ter o azar grudado ao corpo? Se o filho do poderoso Archibald Princer se tivesse tornado filósofo, talvez encontrasse uma explicação. Acontece que não passava de um jovem desamparado que se envolvera numa tremenda confusão.

Quando os seres-pássaro o deixaram cair, suas reflexões sofreram uma violenta interrupção. Via-se uma grande área situada entre as árvores. O chão era batido. Nos galhos, Princer viu inúmeras cabanas, diante das quais muitos nativos estavam agachados ou de pé e cumprimentavam os recém-chegados com uma terrível gritaria. Cora e John foram levados para o centro da área livre e deitados no solo. Os habitantes da aldeia reuniram-se em torno deles.

— Você tem uma idéia do que farão conosco, Johnny? — perguntou Cora, esforçando-se para virar o corpo, a fim de que seu marido pudesse ver seu rosto.

Princer tinha uma fantasia bastante desenvolvida, e por isso imaginou uma porção de coisas que poderiam acontecer nas próximas horas. Mas nada disso se prestava aos ouvidos de uma mulher, muito menos da mulher que ele amava. Então, limitou-se a dizer:

— Não sei.

Um nativo de uma só perna manquejou em sua direção. Era velho e apoiava-se num bastão. Falava um intergaláctico impecável.

— De onde vieram? — perguntou.

— Da Terra — disse Princer, usando o vocábulo intergaláctico que designava o terceiro planeta do Sol.

O velho apoiou-se sobre a perna sã e apontou o bastão para o céu. Aglomerada atrás dele, a multidão manteve-se num respeitoso silêncio.

— De lá? — perguntou.

— Sim — respondeu Princer. — De lá.

— Trouxeram o pó branco? — perguntou o nativo.

Pela primeira vez o terrano notou certa gulodice em suas atitudes.

O coitado é um viciado”, pensou.

Sentiu-se apavorado. A compaixão por aquela criatura praticamente indefesa sobrepujou a desconfiança. Devia haver uma possibilidade de ajudar aquele velho e os outros seres viciados.

— O pó é prejudicial — gritou para a multidão, embora só o velho pudesse entendê-lo. — Não o tomem, senão ficarão doentes e morrerão.

O ser-pássaro ancião bateu com o bastão em seu peito. De tão velho que era, a pancada foi fraca. Mas o que mais chocava o vice-predidente da IFC era a atitude mental daquele velho, e não a agressão. Aquilo encarnava o mal. E o pior era que o mal fora causado por um tóxico vindo da Terra. Princer sentiu-se profundamente envergonhado.

O que poderia ter levado os saltadores a distribuírem entorpecentes no planeta Alaze? Os nativos não sabiam nada a respeito da Terra e, por isso mesmo, não poderiam responsabilizar os terranos. Schnitz o informara de que certos membros de sua raça trabalhavam nas estações de controle dos saltadores. Talvez os mercadores recorressem ao ópio para criar uma dependência, tornando aquelas criaturas submissas às suas ordens.

— Vocês trouxeram o pó branco? — voltou a perguntar o ancião.

Princer ouviu naquela voz um medo terrível de que o não tivesse.

— Não — disse — não trouxemos o pó.

Pensou que o nativo fosse precipitar-se sobre ele numa raiva incontida, mas o velho apenas se agachou e tirou um maço de cigarros do bolso de Princer. Abriu-o e puxou um. Mordeu-o. Enojado, atirou-o para longe.

— Devíamos mostrar-lhe como se faz — disse Cora. — A fumaça deve produzir neles o mesmo efeito que em Schnitz e seus amigos. Talvez dessa forma poderemos convencê-lo a soltar-nos.

— Não sou nenhum mágico para desamarrar as cordas — respondeu Princer, em tom contrariado. — Como posso acender um cigarro no estado em que me encontro?

— Ao amanhecer experimentaremos para ver se vocês são amigos ou inimigos — grasnou o velho. — Até lá ficarão jogados aqui.

Afastou-se, antes que o terrano tivesse tempo de perguntar que tipo de experiência tinha em mente.

 

O planeta Alaze não possuía lua, e a luz das estrelas era quase totalmente absorvida pela densa atmosfera. A noite que Princer e sua esposa atravessaram não poderia ser comparada a uma noite terrana. A escuridão era impenetrável. Parecia que uma camada de tinta preta cobrira o solo.

Os nativos haviam-se recolhido às cabanas. Princer conversara durante muito tempo com a esposa. Depois de algumas horas mergulharam num sono agitado.

O terrano não saberia dizer por quanto tempo dormira, sempre atormentado pelos pesadelos.

Despertou com a sensação de que havia alguém por perto. Preferiu não acordar Cora. Amarrados como estavam, não tinham meio de defender-se.

O que poderia fazer se algum animal se aproximasse, à procura de uma presa? Por mais que esforçasse a vista, não conseguiu distinguir nem mesmo as sombras das árvores mais próximas.

Um galho seco estalou sob o peso de um corpo. Princer estremeceu com o ruído. Conteve a respiração e aguçou o ouvido. O silêncio voltou a reinar. Das árvores descia o zumbido dos insetos noturnos.

Lembrou-se da infância. Muitas vezes despertara no meio da noite, acreditando que as criaturas mais estranhas do seu mundo de fantasia se encontravam no quarto. Enfiava-se embaixo da coberta e voltava a adormecer, amedrontado. Na manhã seguinte via que nada de mais acontecera.

A criatura que vagava pela escuridão aproximou-se lentamente. Desesperado, John Edgar Princer começou a debater-se nas cordas. Mas os nativos eram verdadeiros mestres na arte de fazer nós. Quanto mais lutava contra as cordas que o prendiam, mais profundamente estas o apertavam. Cansado, desistiu.

Uma lufada de ar passou pelo seu rosto. No mesmo instante sentiu a lâmina fria de uma faca encostada ao seu pescoço.

 

Valmonze pegou um pedaço de giz, desenhou um círculo e fez um ponto no centro do mesmo. O giz quebrou.

— Isto aqui — disse o patriarca, apontando para o ponto branco — somos nós, ou melhor, o espaçoporto. O círculo representa a distância máxima a que Princer e a mulher se podem encontrar. Em hipótese alguma podem ter ido mais longe. A caminhada pela floresta é muito penosa. Quer dizer que no máximo podem estar aqui, em torno da extremidade exterior do círculo. Razmon não os encontrou na grande depressão. Amat-Palong ainda não apareceu e não responde aos nossos chamados pelo rádio. Por isso é de supor que também não tenha alcançado qualquer resultado.

Soltou uma risada alegre, e prosseguiu:

— Já é noite. Ao amanhecer, eu mesmo comandarei uma patrulha. Todos os planadores disponíveis serão empregados na operação. Quer dizer que é só uma questão de tempo. Os terranos fatalmente serão presos.

Shaugnessy, que se encontrava junto ao quadro-negro, contemplou o desenho de Valmonze como se fosse um quadro célebre.

— O que adianta fazer os planadores voarem por cima do mato? — perguntou. — Os pilotos não poderão enxergar através da folhagem.

— Utilizamos instrumentos de localização — explicou o mercador. — Estes aparelhos registram a presença das emanações térmicas do corpo humano.

— Qualquer nativo provocará uma reação em seu mecanismo — ponderou Shaugnessy.

— É verdade — admitiu Valmonze. — Acontece que o instrumento também indica o número de unidades térmicas irradiadas pelos corpos. Quer dizer que só pousaremos, quando tivermos constatado a presença da quantidade aproximada de calor irradiada por dois corpos. Naturalmente é possível que em certos lugares haja dois ou três nativos, mas via de regra os mesmos são bastante sociáveis e vivem em grandes grupos.

Os saltadores presentes fizeram um murmúrio de aprovação. A porta abriu-se e Toraman, o filho mais velho de Valmonze, entrou. Segurava várias folhas de papel. Inclinou-se ligeiramente à frente do pai.

— Diga, meu filho — pediu o patriarca. Se não fosse essa permissão, Toraman nunca se atreveria a falar numa reunião a que seu pai estivesse presente.

— Da mesma forma que todos nós — principiou Toraman — fiquei refletindo sobre quem poderia ser o tal do Princer. E a idéia que me ocorreu foi a de revistar cuidadosamente sua espaçonave.

— Você tem razão — interrompeu-o o pai. — Não sei como não tive essa idéia. O que foi que você descobriu?

Toraman entregou os documentos ao pai.

— Não domino a língua dos terranos — disse. — Acontece que Shaugnessy está aqui. Ele poderá traduzir o que está escrito nestes papéis.

— Ótimo — disse o patriarca, em tom de elogio.

Passou os papéis a Shaugnessy e perguntou:

— O que é que o senhor conclui disso? O contrabandista leu atentamente. À medida que estudava os escritos, seu sorriso tornava-se mais largo. Valmonze, que se sentia ansioso para compartilhar daquilo que o terrano sabia, insistiu:

— Então, o que é?

Shaugnessy balançou os papéis.

— Se estes documentos forem legítimos, não haverá a menor dúvida de que nosso amigo é totalmente inofensivo.

Levantou a primeira folha.

— Isto — continuou, dirigindo-se aos presentes — é uma certidão de casamento de um certo John Edgar Princer e sua esposa Cora, em solteira Hatfield. Contraíram matrimônio em Denver, no dia... deixe-me ver... no dia 25 de julho de 2.102 do calendário terrano. Estamos em meados de agosto. Por isso é de supor que o casal fugitivo esteja fazendo sua viagem de núpcias.

Riu tanto que as lágrimas lhe correram dos olhos. Valmonze, que não conhecia nenhum senso de humor, lançou-lhe um olhar de recriminação. Quando parou de gargalhar, Shaugnessy pegou outra folha.

— Isto é uma licença relativa a uma nave-disco de nome Error — explicou. — Esta confere ao proprietário, chamado John Edgar Princer, o direito de decolar do espaçoporto particular da Intercosmic Fruit Company, em direção ao espaço cósmico. E aqui ainda temos um manifesto de carga — prosseguiu. — Foi emitido pela IFC e traz o carimbo do Ministério do Comércio do Império Solar. Consigna duzentos quilos de gigante-supermacio, cujo ponto de destino é o planeta Ferrol, no sistema de Vega.

Devolveu os papéis a Valmonze.

— Quer dizer que aquilo que o senhor acreditava ser semente de papoula não passava de um novo tipo de semente de espinafre.

Valmonze desconfiou de que a alegria do terrano tinha sua origem principalmente no fato de que ele, o patriarca, se enganara. Muito contrariado, gritou para Shaugnessy:

— Quando o senhor se acalmar, poderemos continuar a falar como pessoas sensatas.

O contrabandista reprimiu mais um ataque de riso e enxugou os olhos.

— O que vem a ser espinafre? — perguntou Valmonze.

— É uma verdura que, segundo dizem todas as mães terranas, é muito nutritiva — explicou Shaugnessy. — Costumam dá-la às crianças, até que o espinafre lhes saia pelas orelhas.

Valmonze disse em tom sombrio:

— Parece que, para o senhor, isto não passa de uma excelente piada. Mas como se explica que Princer veio parar aqui, quando seu destino era o sistema de Vega?

— Provavelmente quis tornar mais interessante sua viagem de núpcias e, por isso, resolveu dar mais uma volta — disse Shaugnessy, com um sorriso.

— Deixe-me em paz com suas brincadeiras idiotas — esbravejou o patriarca. — Estou farto de ver o senhor divertir-se à minha custa. Há algo de errado nisso. Para descobrir o que é, precisamos pegar o tal do Princer. E, por Talamon, nós o traremos para cá.

Shaugnessy deixou-se cair confortavelmente na poltrona. Não disse nada, mas sua atitude exprimia o que pensava:

— Acontece que ele é um terrano. Será que o senhor se esqueceu disso?

 

Uma mão quente e áspera tapou a boca de Princer e evitou que o terrano soltasse um grito.

— Sem asas ficar quieto — cochichou uma voz familiar ao ouvido do vice-presidente. — Qualquer ruído, e todos os inimigos virão para cá.

Uma onda de alivio percorreu Princer.

— Schnitz! — balbuciou. — Schnitz, seu patife!

As mãos treinadas no nativo cortaram as cordas. Imediatamente Princer começou a massagear as juntas, para que o sangue voltasse a circular. Enquanto isso, Schnitz ocupou-se com Cora, libertando-a tão depressa como fizera com Princer.

— Schnitz observar quando sem asas foi preso — contou o ser-pássaro. — Esperar noite. Agora aqui.

Princer apertou a mão do nativo, num gesto de gratidão. Schnitz ajudara, independentemente da influência da fumaça do cigarro. O jovem sabia que Schnitz arriscara a vida. A tribo inimiga não hesitaria em matá-lo, se conseguisse pôr as mãos nele.

Os olhos de Princer procuraram romper o negrume da noite. Como poderiam deslocar-se nessa escuridão compacta? Perguntou a si mesmo como Schnitz conseguira encontrá-los. Talvez os olhos dos nativos estivessem adaptados à escuridão e possuíssem um centro adicional de percepção.

— Dar mão para mim — pediu Schnitz, em voz baixa. — Schnitz caminhar na frente.

Princer empurrou a esposa para a frente, e esta segurou a mão-garra do nativo. O terrano caminhou no fim. Moveram-se com uma rapidez espantosa. Os dois seres humanos não tiveram outra alternativa senão confiar exclusivamente em Schnitz. Não reconheciam nenhum obstáculo. Depois de terem cruzado a área livre, passaram a caminhar com maior dificuldade.

Naquele instante ouviu-se uma tremenda barulheira na extremidade oposta da aldeia construída nas árvores. Princer parou, apavorado. Um verdadeiro exército parecia executar uma música infernal.

Schnitz deu uma risadinha.

— Isso ser Kankantz, Lupatz e Tonitutz — disse. — Fazer grande truque. Tribo inimiga correr direção errada. Assim sem asas ter tempo para fugir.

As cabanas construídas nas árvores adquiriram vida. Ouviram-se grasnados e vozes estridentes. A aldeia estava revolta. Schnitz passou a andar mais depressa. Já não precisavam preocupar-se com o ruído, pois o barulho que havia na aldeia sobrepujava tudo. Bem ao longe, os amigos de Schnitz ficaram com os pescoços doloridos de tanto gritar.

Schnitz abriu caminho pela floresta com a segurança de um sonâmbulo. Os uivos dos habitantes da aldeia propagaram-se em outra direção, e, depois de algum tempo, tornaram-se praticamente inaudíveis.

— Por favor, Johnny — fungou Cora. — Vamos fazer uma pequena pausa.

— Fazer boa fumaça? — perguntou Schnitz, em tom esperançoso.

Ninguém respondeu. Por algum tempo houve um silêncio total. Finalmente o ser-pássaro voltou a perguntar, desta vez em tom de desânimo:

— Sem asas fazer boa fumaça para Schnitz?

— Diga a ele, Johnny — pediu Cora. “Ele nos abandonará”, pensou Princer. “Sairá voando.”

Apesar disso resolveu falar:

— Não podemos fazer fumaça. Tiraram-nos os cigarros.

Na escuridão Princer não pôde ver a reação do nativo. Schnitz manteve-se calado. Mas não saiu voando. Cora encostou-se ao marido e ele acariciou seu cabelo. No íntimo, o jovem admirava a conduta exemplar da esposa.

— Vamos andando — disse Schnitz depois de alguns minutos. O terrano percebeu que o nativo se sentia decepcionado.

Um sentimento de culpa começou a manifestar-se em sua mente. Cora começara a usar os cigarros, quando ainda não sabia do seu poder sobre os nativos. Mas, depois disso, passaram a aproveitar-se da fraqueza dos alazes para alcançar seus objetivos.

— Se quiser pode voltar para junto de seus amigos — disse Princer.

— Sem asas ser amigos — disse Schnitz em tom categórico.

Ao amanhecer chegaram à estação de rádio dos saltadores. Era um edifício quadrado, construído numa das extremidades de uma clareira. Ao lado deste havia um pequeno campo de pouso, que poderia receber um planador. Mas não se via nenhum veículo dos saltadores. Tudo parecia quieto e abandonado.

Schnitz parou. Encontravam-se na extremidade oposta da clareira. Cora estava totalmente exausta.

— Parece que não há ninguém — disse Princer, com a voz abafada.

— Três nativos dentro da estação — disse Schnitz. — Sem armas. Homem sem asas pode dominá-los.

Princer não tinha tanta certeza. Indeciso, contemplou o edifício. Se por ali houvesse um transmissor de longo alcance, poderia se comunicar com a Terra ou com uma nave do Império Solar. Ficou indeciso entre a confiança e o medo. Durante todo o tempo quisera chegar a este lugar, e agora, que o atingira, não conseguia tomar a resolução de empenhar todas as energias na execução de seu plano.

Não poderiam ficar sempre contando com a sorte. Não tinha a menor dúvida quanto a isso. Mais dia menos dia, ele e Cora seriam apanhados pelos saltadores. Se expedisse uma mensagem, os mercadores poriam as mãos neles, algumas horas depois.

— Vou me aproximar do edifício — disse depois de algum tempo. — Schnitz, eu gostaria que você ficasse com minha esposa. Se surgir algum perigo, fuja com ela. Não tome nenhuma consideração por mim.

— Schnitz cuidar de mulher sem asas — prometeu o ser-pássaro.

Cora passou por Schnitz.

— Acho que também tenho que dizer uma palavra — disse. — Irei com você.

Princer fitou-a com uma expressão desolada. Não gostava de contradizer ninguém, ainda menos a uma bela mulher, que além do mais era sua esposa. Levantou os braços num gesto de súplica.

— Não adianta explicar — disse Cora apressadamente. — Eu o acompanhei até aqui e continuarei a acompanhá-lo.

Schnitz soltou a risadinha que lhe era peculiar.

— Acreditar ser inútil falar muito, sem asas — disse.

— Também acredito — disse Princer. — Vamos andando. Obrigado pelo auxílio, Schnitz.

Por um instante, o ser-pássaro fitou-o em silêncio.

— Schnitz também ir — anunciou. — Talvez poder fazer grande truque.

Ao que parecia o nativo tinha uma autoconfiança e uma fé nos seus truques, considerando-os verdadeiramente admiráveis. Schnitz demonstrava sempre uma estranha e profunda alegria. Ao que parecia, tinha uma filosofia de vida que fazia com que compreendesse e suportasse todas as coisas, com um sorriso matreiro.

Princer sentiu-se ligado a este ser. Era uma ligação que nunca sentira para com seus amigos terranos.

Confirmou com um gesto e foi caminhando em direção ao edifício. Schnitz e Cora seguiram-no. Ninguém parecia interessar-se pela presença do trio. A estação não possuía janelas. Havia apenas uma fresta de luz e uma porta, que estava fechada. Aproximaram-se. Princer parou.

— Está tudo quieto — disse bem baixo. — Será que não há ninguém por aqui? Talvez tenham evacuado a estação e levado todos os aparelhos.

— Nós olhar — sugeriu Schnitz.

Princer aproximou-se da porta. Seu coração bateu mais depressa. Era possível que houvesse apenas uma fina parede de plástico que o separava da morte. Apesar disso, sua mão não tremeu nem um pouco, quando pegou a maçaneta.

Girou o botão e abriu rapidamente a porta, que girou para dentro. Ouviu-se um ruído. Não aconteceu nada. O edifício estava dividido em duas salas. O terrano viu imediatamente uma delas. Não havia ninguém por lá. A luz que penetrava pela fresta permitia que Princer reconhecesse todos os objetos. A sala estava repleta de instrumentos de controle e de localização. Provavelmente os aparelhos de rádio se encontravam na sala contígua.

Princer entrou resolutamente. Cora e Schnitz mantiveram-se silenciosamente atrás dele.

— Parece que não há ninguém, nem mesmo os nativos — disse o vice-presidente, em tom de alívio.

Deu um passo para a frente. Naquele instante, um homem saiu da sala contígua. Era alto e magro. Em sua cabeça não havia um único cabelo. Seu rosto estava marcado por uma expressão fria.

Sem dizer uma palavra, fitou os intrusos. Princer não conseguiu fazer qualquer movimento.

O desconhecido tirou lentamente uma arma, que se encontrava sob a jaqueta, e com um sorriso frio apontou-a para o peito de Princer.

— Um dia, até mesmo o homem mais esperto tem de reconhecer que existe alguém mais esperto que ele — disse.

Nesse momento, o homem mais esperto era Amat-Palong, o ara.

 

As medidas tomadas por Perry Rhodan e seu estado-maior revelaram-se inúteis e impopulares. Toda nave cargueira, que saía da Terra, era cuidadosamente examinada e controlada. No entanto, não se conseguiu prender nenhum criminoso. Ao que parecia, os contrabandistas desconfiaram de alguma coisa e suspenderam seus fornecimentos.

Os controles faziam com que as grandes organizações comerciais da Terra perdessem tempo e capital. Mais uma vez via-se que o egoísmo de certas pessoas é maior que sua inteligência. O Ministério do Comércio Solar recebeu telefonemas indignados. Os comandantes de naves cargueiras proferiam ameaças contra os funcionários incumbidos do controle. Como até então o povo nunca tivesse ouvido falar no bando de traficantes, o perigo foi minimizado. Rhodan foi acusado de ver as coisas muito pretas e de ter uma consideração excessiva por seus amigos extraterrenos.

Mais uma vez a maior parte da imprensa diária criticou os atos do administrador. Supunha-se que, por trás das ordens de Rhodan, houvesse certas maquinações econômicas. Vez por outra, os artigos de fundo forneciam explicações fantasiosas, mas nunca apresentavam uma proposta melhor.

A situação era esta, embora as medidas só tivessem entrado em vigor há um dia. A opinião pública representava um fato que não poderia deixar de ser considerado por Rhodan. É bem verdade que, segundo um velho ditado, a opinião das massas nem sempre é correta. Mas, nem por isso, a posição destas deixa de representar um elemento de pressão política.

Reginald Bell apareceu diante de Rhodan, trazendo um enorme maço de jornais. Com a fisionomia sombria, atirou-o na mesa do chefe.

— Não demorará, e voltarão a gritar “crucifique-o” — conjeturou em tom amargo. — Eles vêem em você uma espécie de freio econômico.

Rhodan nem olhou para os jornais. Como sempre acontecia nessas oportunidades, irradiava calma e segurança.

— Allan já me contou — disse. — Resta saber quem tem mais resistência: as medidas adotadas por nós ou eles — apontou para os jornais. — Com o tempo, as empresas se acostumarão aos controles rígidos.

— Nenhum homem livre gosta de ser controlado — observou Bell.

Rhodan sorriu.

— Você diz isso logo a mim, gordo? Assim que tivermos qualquer indicação que nos leve ao grupo de contrabandistas, as medidas serão revogadas e tudo voltará a ser como antes.

— Pois sim — disse o homem baixo. — Até lá os contrabandistas ficarão bem quietos, e nós não lhes descobriremos a pista.

— Não se esqueça de que inúmeros agentes estão trabalhando no caso, e estes não desprezarão nenhuma pista. Ninguém consegue enganar-nos para sempre — disse Rhodan em tom enfático.

Antes que Bell tivesse tempo para responder, o ar tremeluziu à sua frente, e uma mistura de rato e castor, de dimensões exageradas, fez sua aparição. Era Gucky. Suas mãos pequeninas seguravam um número do Terrania Observer. Parecia indignado.

— Tenente Guck — disse Rhodan, em tom de recriminação. — Isto é um recinto privado, no qual não se deve penetrar sem ser chamado.

— Não penetrei, Perry — disse Gucky, indignado. — Eu me teleportei. E que assunto privado pode ser tratado neste recinto, quando — fez uma pausa de efeito e dirigiu um olhar para Bell — quando este indivíduo está presente?

— O oposto de privado é público — explicou Bell. — Pouco importa que eu lhe torça o pescoço em particular ou em público. O resultado será o mesmo: ficaremos livres de você.

O dente roedor de Gucky subiu num gesto de indignação. Agitou o jornal na frente dos amigos.

— Sua insensibilidade quase chega a ser tanta quanto a destes escribas — observou, ofendido. — Este artigo de fundo é o cúmulo. Ouçam: Existe uma possibilidade de que os amigos de Rhodan sejam atingidos por suas medidas com a mesma intensidade das empresas comerciais. Um retardamento de todas as remessas trará uma falta de cenouras, que Rhodan dificilmente poderia justificar perante seus amigos extraterrenos.

Gucky arrastou os pés para junto da escrivaninha de Rhodan, embora seus dons extraordinários lhe permitissem deslocar-se muito mais depressa. Mas naquele instante estava interessado em parecer fraco e desamparado.

— Isso não passa de uma ironia tola — disse Rhodan. — Um grande espírito não se importa com essas coisas.

Gucky começou a esbravejar.

— Ainda não tinha notado que me encontro num ilustre círculo de corifeus econômicos. As palavras relativas às cenouras representam uma alusão aos meus amigos de Marte.

— Representam, antes, uma alusão à minha pessoa — explicou Rhodan. — Para mim, isso não é nenhuma tragédia. Afinal, o repórter tem direito de escrever o que lhe pareça mais acertado. A opinião dele é diferente da minha. A publicação do artigo não é motivo para ficarmos nervosos. Cada um de nós expôs seus pontos de vista.

Naquele momento, o rato-castor mostrou as cartas.

— Está na hora de fazer alguma coisa contra esse bando de traficantes. São os únicos culpados. Uma vez que as férias-de-verão de qualquer maneira estão atrasadas, sugiro que um mutante capaz como eu...

— Basta — interrompeu Rhodan. — Um mutante capaz como você fará exatamente aquilo que lhe for ordenado. Nem penso em utilizá-lo num trabalho que praticamente obrigaria a maltratar gente inocente com suas faculdades.

O rato-castor, uma criatura de um metro de altura, apoiou-se sobre a cauda e, muito satisfeito, passou as mãos pelo uniforme espacial.

— Você sabe perfeitamente que no fim Não terá outra alternativa, Perry — piou. — Enquanto vigoram os controles, os contrabandistas ficam quietos. Têm tempo para procurar novos meios, que lhes permitam neutralizar as medidas adotadas por você. Os funcionários não podem desmontar as espaçonaves por ocasião do controle. É verdade que têm instrumentos que os ajudam nas buscas, mas os bandidos não são idiotas. Encontrarão esconderijos onde não possam ser localizados.

Rhodan sabia que os argumentos do mutante não deixavam de ter seus fundamentos. A sugestão de Gucky não se inspirara unicamente na sede de aventura, mas também na preocupação que sentia por seus amigos, os humanos.

Mas, se o administrador fosse obrigado a lançar mão de mutantes, estes seriam humanóides, como Fellmer Lloyd ou André Noir. Seu trabalho seria mais discreto que o de Gucky.

— Compreendo perfeitamente que você se sinta martirizado pelo tédio — disse Rhodan, dirigindo-se ao rato-castor. — Acontece que há muito trabalho para você.

Um sorriso triste surgiu no rosto de Gucky.

— Sei que são serviços de rotina, mas... — lamentou-se e procurou mudar de assunto. — Estes registros, que estão sendo realizados por psicólogos meio malucos, provocam um vazio dentro de mim. Eles não querem compreender que existe certa diferença entre meu método de teleportação e o de Ras Tschubai. No momento estamos experimentando com...

— Tenente Guck — interrompeu Rhodan.

O rato-castor estremeceu, como se tivesse sido golpeado fisicamente. Quando Rhodan o chamava de Tenente Guck, era recomendável abster-se de novas brincadeiras.

— Está bem, Perry — disse em tom de desânimo. — Vou me recolher ao laboratório. Mas é bom que saiba de uma coisa — levantou a voz. — Se um dia eu conseguir agarrar esse escriba do Observer, eu o farei girar embaixo do teto como se fosse um pião.

Assim que acabou de proferir a ameaça, o rato-castor desapareceu.

— Voltou a mostrar-se violento — disse Bell, com um sorriso.

— Acontece que não deixa de ter sua razão — observou Rhodan, em tom pensativo. — É impossível revistar todo cargueiro de tal forma que se possa afirmar com toda segurança que não existe qualquer quantidade de entorpecente a bordo. Isso demoraria vários dias. Sabemos perfeitamente que um controle desse tipo é impraticável.

— Quer dizer que nosso controles são inúteis — disse Bell.

— Podemos dizer que preenchem uma finalidade psicológica. No momento, os criminosos se vêem impedidos de fazer novos fornecimentos aos saltadores. Antes que abandonem as cautelas e comecem a usar outros truques, algum tempo se passará. Devemos dar nosso golpe enquanto durar a pausa.

— Para isso precisamos de um ponto de apoio.

— Perfeitamente — concordou Rhodan. — Bem que gostaria que já o tivéssemos.

 

Em todos os tempos, uma arma de fogo representou um argumento que não podia ser desprezado em qualquer discussão. No momento em que o desconhecido apontou o radiador térmico em sua direção, John Edgar Princer compreendeu que todos os trunfos estavam nas mãos do inimigo. O homem armado interpunha-se entre ele e os aparelhos de rádio que ficavam na sala contígua.

— O senhor fará tudo que eu lhe ordenar — disse Amat-Palong, em tom penetrante. — Depende exclusivamente do senhor, se eu mato ou não o senhor e sua companheira.

Princer “acordou”.

— O que deseja de mim? — perguntou.

— Perto daqui existe um lugar livre entre as árvores. Preferi pousar meu planador nesse lugar, para que não fosse visto pelo senhor. Não estou interessado no nativo; pode dar o fora. Valmonze ficará surpreso ao ver-me aparecer com os fugitivos, mas sua autoconfiança receberá um pequeno golpe.

Falava no tom monótono de quem lê um relatório. O jovem vice-presidente nunca encontrara um homem tão insensível e... tão perigoso.

— Temos de fazer o que ele mandar — disse Princer.

O terrano estava totalmente abatido. Temia por Cora. E este medo avolumou-se até transformar-se numa sensação insuportável.

Amat-Palong fez um sinal com a arma.

— Vamos andando — disse com a voz suave.

Uma sombra passou por Princer, em direção ao ara. Foi tudo tão rápido que o terrano não teve tempo de esboçar qualquer reação. O ser-pássaro precipitou-se sobre o inimigo como se fosse uma flecha.

— Schnitz! — gritou Princer.

Amat-Palong saltou para o lado e disparou. Schnitz foi atirado para trás. Cambaleou e caiu. Imediatamente o ara voltou a dirigir a arma para o terrano, que só estava interessado pelo nativo.

Aproximou-se do ser-pássaro juntamente com Cora. Schnitz ainda estava vivo. O anel de penas azuis que cercava seus olhos tremia. Princer passou a mão pela cabeça de Schnitz.

— Schnitz tentar grande truque — balbuciou o nativo, fazendo um grande esforço.

— Sim — disse Princer com a voz áspera. — Foi um truque formidável, amigo.

Um sorriso parecia esboçar-se em torno do bico largo. Ou seria apenas uma contorção produzida pela dor? Uma mão em garra segurou a jaqueta de Princer.

— Sem asas... fazer... fumaça? — perguntou a voz débil de Schnitz.

— Sim — respondeu. — Está sentindo o cheiro?

O nativo não teve forças para responder. O terrano viu que começava a farejar. Finalmente acenou com a cabeça. Satisfeito, deixou-se cair para trás.

— Schnitz! — gritou o terrano em tom de desespero.

O ser-pássaro não respondeu.

Estava morto.

Neste instante houve uma modificação em John Edgar Princer. Já não era o jovem desajeitado, que provocava risos. Quem se ergueu foi um terrano sério e controlado. Ficou ereto ao lado do cadáver do nativo. Fitou Amat-Palong.

— O senhor o assassinou — disse com a voz ressentida.

Instintivamente, o médico galáctico recuou um passo. Alguma coisa em Princer parecia servir-lhe de advertência.

— Não faça tolices — gritou em tom estridente.

O terrano sacudiu a cabeça.

— Não o assassinei — disse Amat-Palong. — Ele me atacou. Além disso, é apenas um nativo.

De repente deu-se conta de que se defendia perante um prisioneiro. Aborrecido, fez um sinal com a arma e ordenou:

— Vamos andando, Princer.

Sem dizer uma palavra, o terrano segurou a mão de Cora, e foram andando. Amat-Palong seguiu-os numa distância segura. Quando saíram do edifício, disse:

— Vá na direção daquela árvore grande que fica junto ao campo de pouso.

Princer obedeceu sem a menor objeção.

— Mais rápido! — ordenou o ara.

O vice-presidente apressou o passo e arrastou Cora.

— Oh, Johnny, o que vamos fazer agora? — perguntou em inglês.

— Nada de conversa — advertiu o inimigo. — Silêncio.

— Fique quieta, querida — disse Princer, em tom suave.

Chegaram e penetraram na floresta. Vez por outra o homem, que caminhava atrás deles, dava uma ordem sobre a direção que deviam tomar.

Dez minutos depois, Princer viu o espaço livre entre as árvores. O planador ao qual o desconhecido se referira estava pronto para decolar.

O terrano resolveu agir no momento em que penetrassem na comporta da pequena nave. Sabia que, durante essa ação, provavelmente seria morto. Mas, perante si mesmo, perante a Humanidade, perante Schnitz e principalmente perante Cora, tinha a obrigação de não se conformar com o destino sem resistência.

Porém não chegou a fazer aquilo que pretendia, pois não chegaram ao planador.

Ao atingirem a clareira, Princer ouviu, de repente, um farfalhar de galhos. Seguiu-se um grito abafado, e o feixe de fogo de um radiador perdeu-se nas folhagens.

Princer virou-se abruptamente. Três nativos haviam saltado de uma árvore! Amat-Palong estava agora deitado no chão. Kankantz, Lupatz e Tonitutz inclinaram-se sobre ele. Achavam-se prestes a matar o homem. Sem dúvida já haviam encontrado o corpo de Schnitz.

— Para trás — gritou Princer. — Não o matem.

Procurou fazer com que os nativos furiosos recuassem. Quando conseguiu acalmá-los, já era tarde. Bastou um ligeiro olhar ao assassino de Schnitz, para convencê-lo de que tivera o mesmo destino do nativo. Princer afastou Cora do local.

Kankantz seguiu-os. Seu aspecto deixou o terrano abalado. Seus olhos escuros exprimiam uma inconfundível tristeza.

— Agora caminhos de sem asas e amigos de Schnitz se separar — disse Kankantz, em tom amargo. — Sem asas só trazer tristeza.

Seria inútil discutir com o nativo. Devido ao assassinato, o ser-pássaro estava coberto de razão.

— Está bem, Kankantz — disse Princer. — Vá em paz.

O alaze virou-se e foi para junto de Tonitutz e Lupatz, que o esperavam. Os três seres-pássaro galgaram os galhos e desapareceram.

Cora lançou um olhar para o cadáver.

— O que será feito dele? — perguntou.

— Os saltadores o encontrarão — disse Princer, embora não tivesse muita certeza.

Colocou o braço em torno do ombro de Cora.

— Precisamos voltar à estação de rádio. Agora não há ninguém por lá. Isso nos oferece uma oportunidade de expedir uma mensagem.

Quando voltaram a entrar no edifício, o cadáver de Schnitz já havia desaparecido.

— Vieram buscar o amigo — conjeturou Princer. — Bem que eu gostaria de sepultá-lo. Seria o mínimo que poderíamos fazer por ele.

Dirigiram-se à outra sala. Procuraram localizar um telecomunicador, ou ao menos aquilo que representasse a versão saltadora de um aparelho desse tipo.

— Temos de contar com a possibilidade de que os saltadores localizem o ponto de partida de nossa mensagem — disse o terrano, dirigindo-se à esposa. — Dentro de uma hora estarão aqui. Acho que apesar disso devemos tentar.

Cora acenou com a cabeça, sem dizer uma palavra. Princer puxou uma cadeira e sentou-se à frente do aparelho. Contemplou as mãos, como se o êxito de sua ação dependesse das mesmas. Passou os olhos pelos controles. Antes de tocá-los, teria de compreender suas finalidades. Cada minuto de experiências representaria um tempo perdido.

— Acho que já estou em condições de manipular o telecomunicador — disse Princer, dirigindo-se à esposa. — Esta chave serve para ligar a tela. Vejo pela posição.

Passou os dedos lentamente pelas diversas teclas.

— Está bem — disse em tom resoluto. — Vou tentar.

Num gesto rápido girou vários botões.

O aparelho emitiu um leve zumbido. Luzes de controle acenderam-se. O telecomunicador começou a irradiar energia. E a energia poderia ser localizada.

Tudo dependia de que o vice-presidente da IFC conseguisse entrar em contato com os terranos, antes que os saltadores aparecessem.

 

O Major James Woodsworth era de opinião que um destino cruel o condenara a ficar estacionado constantemente longe de todos os centros dos acontecimentos cósmicos. Sempre que havia alguma coisa, Woodsworth se encontrava longe. Sentia inveja de seus colegas, pois ele, Woodsworth, tinha de conquistar seus louros em teoria, já que na prática dificilmente surgia-lhe oportunidade para isso. Era um homem temperamental, que não gostava de um sossego prolongado.

Naquele momento, o major encontrava-se na sala de comando do cruzador pesado Cape Canaveral. Woodsworth era um homem de estatura média, cabelos curtos, rosto inexpressivo e uma cova no queixo.

— O que acha de nossa tarefa? — perguntou, dirigindo-se a Jens Poulson, que exercia as funções de piloto.

Na verdade, Poulson não fazia quase nada. Limitava-se a verificar vez ou outra os controles, pois a nave deslocava-se em queda livre, e o dispositivo automático era perfeitamente capaz de mantê-la numa trajetória constante.

Poulson bocejou. Isso bastava para exprimir sua opinião. Mas Woodsworth era seu superior, e por isso respondeu:

— Para dizer a verdade, não acho nada, sir.

Woodsworth olhou para o relógio e confirmou com um aceno de cabeça.

— A próxima transição está programada para daqui a duas horas. Depois disso “rastejaremos” pelo espaço a uma distância de seis anos-luz, à procura de fantasmas.

— O General Deringhouse recebe ordens do chefe, sir — disse Poulson. — Se os dois acham que é importante realizar vôos de patrulhamento, devem ter seus motivos para isso.

— A única coisa que o senhor tem de fazer é prestar atenção para localizar eventuais naves desconhecidas — disse Woodsworth, fazendo uma tentativa de imitar a voz do General Deringhouse. — Jens, o senhor acha que nossa tarefa tem algo a ver com aquela raça misteriosa a respeito da qual correm tantos boatos?

— Não sei, sir.

Os outros homens da sala de comando levantaram instintivamente a cabeça, ao ouvir falar numa raça desconhecida. Mas o major não aludiu mais à mesma. Passou ao seu assunto predileto.

— Jens — disse — já chegamos a um ponto em que os homens da frota não querem trabalhar mais sob minhas ordens. Acham que represento uma garantia segura de que comigo passarão uma espécie de férias prolongadas. E qual homem, que tem sangue nas veias, gostaria de uma coisa dessas?

Como ninguém respondesse, Woodsworth interpretou o silêncio como sendo uma manifestação de concordância. Atravessou a sala de comando com passos rápidos e curtos.

— Sir! — gritou Oliver Durban, chefe da equipe de rádio.

Woodsworth virou-se abruptamente. Durban reclinara-se em sua poltrona e fitava os instrumentos com uma expressão de incredulidade. Mas, no momento em que o major se precipitou para seu lado, o operador de rádio pareceu adquirir vida. Moveu vários controles. A tela do aparelho de telecomunicação iluminou-se. Jens Poulson saiu de seu lugar e dirigiu-se apressadamente para junto de Durban.

— O que é isso? — perguntou Woodsworth, apontando para a luz vermelha.

Naturalmente sabia o significado, mas gostava que seus tripulantes lhe explicassem qualquer tipo de variação, para deleitar-se por mais tempo com isso, conforme dizia.

— É uma mensagem vinda pelo telecomunicador, sir — explicou Durban.

— Vem da Terra? — perguntou o major.

— Não, não creio.

Percebeu-se que Woodsworth teve vontade de abraçar seu operador de rádio. Por ser tal atitude impossível, contentou-se em dar um tapinha no ombro de Durban.

O chefe da equipe de rádio fez a regulagem da tela. Um rosto confuso adquiriu contornos nítidos. No mesmo instante, o dispositivo sonoro do hiper-rádio emitiu um estalo. Ouviu-se uma voz.

...Avisem imediatamente Perry Rhodan. Atenção. Repito a mensagem. Qualquer pessoa que me ouça, deverá avisar imediatamente Perry Rhodan...

— Se continuar assim, metade da Galáxia acabará por ouvi-lo — disse Durban, em tom contrariado.

Woodsworth fez um gesto para que se calasse.

— Aqui fala John Edgar Princer da Intercosmic Fruit Company. Eu e minha esposa encontramo-nos no planeta Alaze, uma base dos saltadores. O centro do tráfico de entorpecentes fica neste planeta.

Quem dirige o negócio na Terra é Vincent Aplied, residente na Cidade do Cabo. Se alguma estação terrana me ouvir, peço à mesma que avise imediatamente Perry Rhodan. Atenção. Repito...

— Isso está me deixando doido — gritou Woodsworth, em tom entusiasmado. — Durban, entre imediatamente em contato com Terrânia e faça com que Rhodan compareça junto ao aparelho.

— O chefe? — perguntou o operador de rádio.

— Será que terei de matá-lo para que o senhor cumpra minhas ordens? — perguntou Woodsworth num berro nada lógico. — Será que, por não acontecer nada de anormal em nosso setor, o operador de rádio continua dormindo?

— Sir, peço licença para ponderar que o planeta Alaze fica a mais de mil anos-luz daqui. Não pertence ao nosso setor.

Enquanto falava manipulara alguns controles, o que o salvou da cólera de Woodsworth.

— Procure descobrir onde está o tal do Princer. Iremos buscá-lo — anunciou o major.

Durban, que nada tinha a objetar a essa manifestação de entusiasmo, com exceção de alguns detalhes relativos à técnica de rádio, teve sua voz abafada pelos gritos de alegria que ressoaram na sala de comando.

O cruzador pesado Cape Canaveral parecia estremecer sob os brados dos tripulantes.

— A lenda das viagens monótonas de James Woodsworth chegou ao fim — exclamou o major. — Uma nova época está começando para meus homens e para mim.

Durban, que pretendia ponderar delicadamente que acontecera apenas o recebimento de uma mensagem de telecomunicação, e que talvez nada mais ocorreria, limitou-se a balançar a cabeça.

Estabeleceu-se contato com a central de rádio da Frota Solar em Terrânia. O rosto de um jovem oficial apareceu na tela. Via-se perfeitamente que não estava muito satisfeito com a perturbação inesperada.

— Aqui fala o Major Woodsworth — disse o comandante, inclinando-se sobre o ombro de Durban. — Ligue-me imediatamente com o administrador.

— Para isso, o senhor terá de fornecer um motivo muito importante — respondeu o operador de rádio de Terrânia. — Se estiver sentindo algumas pontadas no apêndice, faça o favor de dirigir-se...

— Não estou sentindo pontada nenhuma — gritou Woodsworth, em tom indignado. — Mas se não me ligar imediatamente com o administrador, o senhor não demorará a sentir alguma coisa...

O oficial de rádio era tão frio quanto melancólico. Não se abalou. Repetiu:

— Faça o favor de indicar um motivo, major.

Woodsworth percebeu que teria de modificar sua tática.

— Encontramos o bando de traficantes de entorpecentes — disse.

Naturalmente isso era um exagero mas, na exaltação que sentia, Woodsworth não formulava suas idéias com muita precisão.

— Por que não disse logo? — observou o oficial de rádio. — Tentarei imediatamente. Só não posso prometer que conseguirei entrar em contato com o chefe em pessoa. O senhor também se daria por satisfeito com Bell... bem, com seu representante, Mr. Bell, ou com o Marechal Solar Freyt?

Woodsworth perdeu a paciência.

— Eu lhe imploro, meu jovem. Coloque em contato com alguém que tenha poderes para decidir alguma coisa, pois do contrário acabarei enlouquecendo.

Mais depressa do que esperava, o rosto marcante de Rhodan fitou-o da tela.

— Encontrou os contrabandistas, major? Se não estou enganado, o senhor comanda o cruzador pesado Cape Canaveral, uma das naves de patrulhamento que devem registrar a aproximação de naves desconhecidas.

— Sim senhor — confirmou Woodsworth.

Sentiu-se espantado ao notar que Rhodan se lembrara imediatamente da tarefa que fora confiada ao cruzador pesado por ele comandado. Relatou ao administrador, em palavras lacônicas, a mensagem que haviam captado.

Rhodan tomou imediatamente uma decisão.

— Seria um absurdo se aparecêssemos com um enorme comando da frota junto ao planeta Alaze — disse. — Com isso poderíamos provocar um conflito de grandes proporções com os mercadores galácticos, e, no momento, isto seria uma das coisas que menos nos convém. Quero que o senhor salve o tal do Princer. Sem dúvida, ele ainda poderá ajudar-nos.

— Sir! — exclamou Woodsworth em tom entusiasmado. — O senhor pode confiar na minha tripulação e em mim. Tiraremos Princer de lá!

Um sorriso surgiu no rosto de Rhodan.

— Devagar, major. Uma ação precipitada não seria nada recomendável. Aproxime-se com a Cape Canaveral o mais que puder do planeta e faça sair do hangar um destróier com três tripulantes. Só mesmo uma ação-relâmpago dessa nave versátil poderá salvar Princer. Enquanto isso vamos nos ocupar detidamente com Mr. Vincent Aplied. Se as informações forem corretas e não nos encontrarmos diante de uma brincadeira de mau gosto, dentro em breve superaremos algumas preocupações.

— Faremos tudo que estiver ao nosso alcance, sir — prometeu Woodsworth.

Rhodan fez um gesto amável.

— Há mais um detalhe — disse. — Se a tentativa falhar, não inicie outra. Em hipótese alguma deverá pousar com a Cape Canaveral. Isso faria os saltadores ferverem de raiva. Não quero nenhuma demonstração de força militar. Limite-se a uma ação com um destróier.

— Sim senhor — disse Woodsworth. — Obrigado, sir.

Rhodan fitou-o com uma expressão de espanto.

— Obrigado por quê, major?

— Pela tarefa que me confiou, sir. Tenho que apagar minha má fama.

— Nenhum comandante da Frota Solar tem má fama — respondeu Rhodan, em tom sério.

A imagem do administrador desfez-se.

O oficial de rádio voltou a aparecer e pôs fim à palestra.

— Poulson! — gritou Woodsworth. — Por que está parado por aqui? Acelere imediatamente até à velocidade da luz. Felton, veja as coordenadas da transição. Daremos um salto que nos aproxime a dois anos-luz do planeta Alaze.

— Sir, os tripulantes não estão acostumados a que se exija tanto deles — disse Durban, com um sorriso irônico.

Woodsworth fitou-o por um instante. A cova do seu queixo avivou-se.

— Pois eu lhes ensinarei — gritou.

Trinta minutos depois, a Cape Canaveral entrou em transição. O hiperespaço engoliu-a, para libertá-la mais adiante. Encontravam-se a menos de dois anos-luz do planeta Alaze.

 

Valmonze sabia que sua ordem de estabelecer o bloqueio às comunicações de rádio chegara tarde. A mensagem do terrano havia sido irradiada pelo menos seis vezes. Naquela altura, o patriarca só podia fazer votos de que esta não fora captada por nenhuma nave terrana.

Seria inútil ficar refletindo sobre isso. Se Princer tivesse conseguido estabelecer contato, o receptor seria suficientemente inteligente para não revelar sua posição por meio de uma resposta. Valmonze era uma raposa e sabia como ninguém conjeturar os acontecimentos cosmopolíticos. Por isso tinha certeza de que Rhodan jamais ordenaria qualquer medida que acarretasse um ataque direto contra o planeta Alaze.

O que faria o administrador para salvar os dois terranos?

Quanto mais refletia sobre isso, mas se fortalecia na convicção de que Rhodan tentaria obter a salvação dos dois por via diplomática. Valmonze imaginou uma espécie de tratado comercial. Libertaria Princer e a esposa, em troca de alguns contrabandistas. Realmente, a negociação era a única possibilidade de que Rhodan dispunha. O terrano sabia calcular muito bem. Portanto, não se arriscaria a transformar essa situação num motivo de guerra com os saltadores.

Tudo isso pressupunha que a mensagem de Princer já havia sido captada por alguém.

Valmonze encontrava-se na central de rádio do edifício principal, situada junto ao campo de pouso espacial. Todos os planadores estavam avisados. Dentro de alguns minutos, estes começariam a chegar à estação e prenderiam Princer e sua companheira. Depois disso as buscas seriam encerradas.

Shaugnessy entrou. Sua postura já não era tão relaxada. O contrabandista parecia preocupado.

— Tomei a liberdade de acompanhar suas instruções — disse. — Se esse sujeito conseguiu fazer chegar sua mensagem a um destino, o contrabando está no fim. Os agentes de Rhodan prenderão Aplied. E este falará, porque terá de fazer tudo para salvar a pele, e terminará seus dias no desterro.

Valmonze fitou-o com uma expressão irônica.

— Ainda bem que o senhor está em segurança em nossa companhia.

Shaugnessy fitou-o muito assustado.

— Será que pretende mandar-me de volta? Toda a Frota Solar estaria à minha espera...

— Há uma coisa que eu não compreendo — disse o patriarca, sem dar atenção à pergunta de Shaugnessy. — Princer devia saber que, ao expedir a mensagem, revelaria sua posição. Estava ciente de que não poderia escapar-nos. Apesar disso não teve a menor dúvida em penetrar na estação.

— O senhor raciocina como um saltador — disse Shaugnessy. — Um terrano não pensa assim. Antes de tudo, aquele jovem pensou em prestar um serviço a seu povo. Sua própria segurança viria em segundo lugar. Se teve sorte, sua coragem salvará a Terra da ruína econômica. E qual será o preço, Valmonze? Provavelmente esse preço consistirá em duas vidas humanas. O senhor sabe fazer cálculos, patriarca? Sabe perfeitamente quantos homens existem. Quase todos agiriam como Princer. É por isso, saltador, que nada conseguirá deter nossa raça. Um mercador galáctico pensa em primeiro lugar em seu clã, e só depois disso em sua raça. O senhor está vendo o resultado. Aposto...

— Cale-se! — ordenou Valmonze, contrariado. — Não estou interessado em ouvir suas observações. Aliás, por que o senhor concordou em colaborar conosco, já que tem tanta certeza de que no fim sua raça será vitoriosa?

— Sou um homem mau — disse Shaugnessy, em tom triste. — Não posso evitar isso.

— O senhor é um idiota — afirmou Valmonze. — O medo deixou-o perturbado.

O patriarca dedicou sua atenção aos instrumentos. O contrabandista ficou de pé atrás dele, sem dizer uma palavra. Seu rosto não revelava a menor emoção.

Valmonze ligou um aparelho de comunicação. Esperou um instante e perguntou:

— Razmon, ainda falta muito?

— Daqui a pouco estaremos lá, patriarca. Prepare-se para receber os prisioneiros.

Valmonze soltou uma estrondosa gargalhada e cocou a barba. Ao que parecia, o saltador não levava muito a sério o perigo de uma intervenção terrana.

— Recupere-se, Shaugnessy. Pare de matutar. Ajeitaremos as coisas.

Shaugnessy fitou-o. Sem abrir demais a boca, disse:

— Saio definitivamente de sua canoa, Valmonze.

O saltador mostrou-se indiferente. Shaugnessy deu-lhe um empurrão e recuou um passo.

Tirou a velha arma térmica do cinto.

— O senhor não compreendeu, patriarca — enfatizou em tom tranqüilo. — Alguma coisa mudou.

Valmonze virou-se devagar e fitou o radiador. Finalmente levantou os olhos e encarou, perplexo, Clifton Shaugnessy.

— O que espera conseguir com isso? — perguntou. — Pretende matar-me?

— Deixe Princer em paz — exigiu o contrabandista.

Valmonze poderia ter muitos defeitos, mas não era covarde. Não deu atenção à arma que o ameaçava. Cruzou os braços sobre o peito e encostou-se aos instrumentos. Representava muito bem a figura de um homem poderoso que estava acostumado a que todos obedecessem às suas ordens.

— O senhor superestima isso — disse, apontando com a cabeça para o radiador. — Razmon está a caminho da estação de rádio, com todos os planadores disponíveis. Princer e sua companheira serão presos.

— Dê ordem para que Razmon volte — exigiu Clifton.

— Não — respondeu Valmonze.

Voltou a estabelecer a ligação com os planadores. Shaugnessy, que permanecia imóvel, ouviu-o dizer:

— Razmon, aqui fala o patriarca. Shaugnessy ameaça-me com uma arma. Exige que eu o chame de volta. Ordeno-lhe que prenda Princer, e não se importe com o que aconteça por aqui.

— Patriarca! — gritou Razmon, perplexo.

— Se vocês quiserem rever o velho, soltem os terranos — gritou Shaugnessy, em tom nervoso. — Volte, Razmon.

Valmonze perdeu a paciência. Sem dar a menor atenção à arma térmica, atirou-se sobre Shaugnessy!

 

John Edgar Princer efetuou uma última regulagem.

— Não acredito que adiante alguma coisa — disse, dirigindo-se à esposa. — Mas liguei um raio vetor automático, pelo qual nossos amigos poderão orientar-se, se aparecerem por aqui.

Um brilho de esperança surgiu nos olhos de Cora.

— Você acredita que seremos salvos?

— Eles tentarão — respondeu, e ainda acrescentou: — Tenho certeza de que captaram nossa mensagem. A Frota fará tudo para tirar-nos daqui.

Um sorriso aflorou aos lábios de Cora. Notara a modificação que se processara com seu marido. Ele perdera a insegurança. Seus atos eram seguros e bem planejados. Não duvidava mais da sua capacidade.

— Bem — disse Princer. — Vamos sair e esperar nossos amigos.

— Ou os saltadores — objetou Cora.

Dali a alguns minutos viram que ela tinha razão. As sombras de vários planadores apareceram sobre o pequeno campo de pouso.

— São os saltadores — constatou Princer, em tom de desânimo. — Foram mais rápidos.

As navezinhas começaram a circular sobre o campo de pouso, como se os tripulantes estivessem indecisos sobre os passos que deveriam seguir. Princer sabia que qualquer tentativa de fuga seria inútil. Provavelmente já o haviam descoberto.

 

O Major Woodsworth e mais dois tripulantes estavam sentados na cabine de piloto do destróier, que fora retirado do hangar da Cape Canaveral. Seus dois auxiliares eram Buster Felton e Adam Spahn.

Assim que penetraram na atmosfera do planeta Alaze, captaram o raio vetor.

— Isso significa que bloquearam todas as comunicações de rádio para fora — disse Felton.

Evidentemente, para fora significava para o espaço.

Spahn, que observava os aparelhos de localização, disse sem o menor entusiasmo:

— Por lá há uma quantidade enorme de naves estranhas. Pela intensidade do eco conclui-se que são veículos pequenos.

Conversou em voz baixa com Felton, enquanto Woodsworth colocava o pequeno destróier numa órbita de aterrissagem.

— Os sinais goniométricos vêm da mesma direção em que Spahn descobriu as naves dos saltadores, sir — disse Felton, depois de algum tempo. — Seria suicídio pousarmos lá. Mesmo que sejamos mais rápidos que os saltadores, eles têm a vantagem do número. Além disso, conhecem a área melhor que nós. Antes de tocarmos o solo, eles nos transformariam num montão de cinzas e poeira. Isso não serviria nem a Princer nem a nós.

Woodsworth olhou em torno.

— Desde quando o senhor se tornou tão loquaz, Felton? Ao menos devemos tentar. O fato de Princer ter expedido a mensagem prova que ainda não se encontra em poder dos saltadores.

— Isso pode ter mudado — ponderou Spahn.

O major não se abalou. Fez descer a navezinha em direção à superfície do planeta. Os saltadores já deviam ter localizado o pequeno destróier, a não ser que estivessem dormindo ou se mantivessem ocupados com outra coisa.

Woodsworth esperava ver a qualquer momento na tela a silhueta cilíndrica de uma nave dos saltadores, que abriria fogo contra eles. Mas tudo parecia correr conforme o plano. O major manteve-se bastante realista para não subestimar o perigo. Assim que pousassem em meio às naves dos saltadores, localizadas por Spahn, terminaria a segurança relativa em que ainda se encontravam os terranos.

Woodsworth era o único conhecedor do plano, pois este era exclusivamente de sua autoria. Teve bons motivos para hesitar em informar seus objetivos táticos aos subalternos...

Ninguém gosta de voar para a morte com os olhos abertos!

 

Para qualquer homem que sempre esteve acostumado a seguir ordens, quer seja ele um terrano, quer seja um saltador, torna-se difícil agir por iniciativa própria.

No momento em que o piloto Razmon ouviu pelo alto-falante o choque dos dois corpos, sua perplexidade atingiu o auge. Sabia que a vida do patriarca estava em perigo. Uma luta entre Valmonze e Shaugnessy parecia ter irrompido no interior do edifício principal do espaçoporto. Como o terrano possuísse uma arma e Valmonze estivesse desarmado, Razmon podia imaginar perfeitamente o resultado da luta.

O patriarca dera ordem para que Princer fosse preso, acontecesse o que acontecesse. Razmon sentiu-se atormentado por sentimentos conflitantes. Cinco planadores sobrevoavam o pequeno campo de pouso, situado no meio da mata. Na extremidade da pista viam-se dois pequenos pontos. Eram Princer e sua esposa.

Razmon chegou à conclusão de que só havia um meio de harmonizar os desejos conflitantes que lhe enchiam a mente: teria de tomar duas providências ao mesmo tempo. Tornava-se necessário salvar o patriarca; além disso, o terrano e sua companheira teriam de ser presos. Isso significava que o grupo de planadores seria obrigado a dividir-se.

Razmon entrou em contato com os outros planadores. Mandou que três pilotos voltassem imediatamente ao espaçoporto para ajudar Valmonze. Ele e a tripulação de outro planador pousariam e pegariam Princer, a fim de aplicar-lhe o castigo merecido.

Os dois planadores desceram vertiginosamente para o campo de pouso.

— Razmon — gritou alguém, em tom exaltado. — Uma nave estranha.

O piloto olhou para os instrumentos. A tela só mostrava um pontinho.

Razmon praguejou.

Agora, que nós nos dividimos” pensou, “os terranos aparecem para salvar o companheiro.

Tentou desesperadamente entrar em contato com Valmonze, mas nada conseguiu.

O ponto que aparecia na tela cresceu. Com a voz nervosa ordenou aos tripulantes dos planadores que preparassem os canhões de radiações. Os campos defensivos foram ativados.

Certa vez um velho saltador dissera a Razmon:

— Os terranos sempre vêm, quando menos os esperamos. Só fazem aquilo que nos parece impossível. É este o segredo do seu êxito.

Razmon não sabia se a teoria era correta, mas não demoraria em descobrir.

 

A história da evolução da Humanidade não menciona o nome Clifton Shaugnessy. E é bem possível que, se não fosse sua intervenção, essa história nem poderia ter sido escrita. Shaugnessy era um dos muitos desconhecidos de cujos atos não se sabia nada, ou que logo são esquecidos.

Nunca saberemos se Shaugnessy teve a intenção de atirar contra Valmonze, ou se apenas quis intimidá-lo.

Provavelmente, o contrabandista foi muito lento.

Caiu para trás, sob o impacto do corpo de Valmonze. A arma que tinha na mão foi atirada para longe. Shaugnessy levantou os braços, tentando defender-se do ataque. O patriarca repetiu o salto na direção do pequeno terrano. Este soltou um grito e rolou para o lado. Valmonze novamente atirou-se sobre seu corpo. E outra vez, num movimento rápido, o contrabandista rolou para o lado. Viu sua arma, mas não pôde pegá-la. A raiva fizera com que os olhos de Valmonze se estreitassem. Denotativamente estava cego de ódio. Seus punhos desceram sobre Shaugnessy, mas não o encontraram. Na verdade, a luta resumia-se a uma fuga contínua do terrano. Por ser a sala não muito espaçosa, os braços de Valmonze logo iriam alcançá-lo.

Shaugnessy regateou e chegou à porta. Saiu apressadamente. Valmonze soltou um berro e correu atrás dele. Shaugnessy conhecia o edifício. Ganhou o comprido corredor que se estendia à sua frente. No fim dessa galeria havia um elevador que poderia levá-lo ao pavimento inferior.

Valmonze seguiu-o, fungando. Shaugnessy não olhou para trás. Ao atingir o elevador, soltou um suspiro de alívio. Por enquanto estava praticamente salvo.

Mas o alívio transformou-se repentinamente na idéia amarga de que a fuga chegara ao fim. O elevador abriu-se e dois saltadores surgiram.

— Segurem-no! — gritou a voz estridente do patriarca.

Shaugnessy não tinha a menor chance. Estava perdido. Virou-se lentamente e fitou o rosto de Valmonze, afetado pelo triunfo.

A História não nos conta nada sobre Clifton Shaugnessy. O silêncio espalha-se sobre o fim desse homem, cuja vida marginal adquiriu um sentido, devido a este ato de bravura.

 

Buster Felton era por natureza um homem inofensivo, sem a menor ambição guerreira. Mas quando viu que as duas naves dos saltadores se preparavam para o combate, suas feições tornaram-se rudes. Preparou os canhões de proa do destróier.

— É o comitê de recepção, sir — gritou Spahn, dirigindo-se a Woodsworth. — Eles se dividiram. Tomara que os outros três não estejam à espreita em algum lugar, para atacar-nos de surpresa.

— Logo descobriremos, desde que o senhor fique de olho nos instrumentos — lembrou o major. — Atenção, vou pousar.

— Sir! — gritou Felton. Woodsworth imaginava o motivo das preocupações do homem. No ar poderiam ter condições de enfrentar os saltadores, mas no solo estariam perdidos.

— Não se preocupe — disse. — Nós lhes prepararemos um belo espetáculo.

James Woodsworth, que era um oficial com pouca experiência de combate e dependia exclusivamente de seus conhecimentos teóricos, provou ser um ótimo combatente.

Fez baixar a nave.

Os saltadores farejaram uma imensa vantagem e aproximaram-se rapidamente. Os campos defensivos do destróier oscilaram sob a carga do bombardeio violento. Os saltadores pairaram que nem abutres furiosos sobre a pequena nave terrana. Subitamente Woodsworth puxou o comando. O destróier subiu com uma velocidade incrível.

Felton, que quase fora arrancado do assento, abriu fogo contra as naves dos saltadores, que subitamente surgiram à sua frente. Gritou ininterruptamente para Spahn. Berrava palavras insensatas, mas ao que parecia estas não incomodavam nem a Spahn, nem ao major. Os campos energéticos dos saltadores não estavam em condições de resistir ao bombardeio cerrado. A nave terrana, aparentemente tão insignificante, transformara-se numa fortaleza que cuspia fogo.

Bastante danificados, os planadores foram descendo e desapareceram em meio às copas das árvores.

— Agora só a rapidez poderá salvar-nos — disse Woodsworth e fez a nave descer sobre o campo de pouso.

Felton abriu a comporta. O major abandonou o lugar à frente dos comandos.

Ao chegar à comporta, viu um homem e uma mulher que atravessavam o campo de pouso. O homem era alto, magro e desajeitado. A mulher parecia muito cansada, mas ainda era bastante atraente para deixar nervoso um homem do temperamento de Woodsworth.

O par desigual chegou à comporta. Naquele instante, o homem disse algumas palavras de que Woodsworth jamais se esqueceria.

— Meu nome é John Edgar Prince. Esta é minha esposa — sorriu. — Não o esperávamos tão cedo, major.

Felton soltou um gemido e, juntamente com Woodsworth, puxou os dois fugitivos para dentro da nave.

— Rápido! — gritou Spahn. — Daqui a pouco receberemos visita.

Woodsworth deixou que Felton cuidasse das duas pessoas, que acabavam de ser salvas, e correu para o assento do piloto. Não estava disposto a aguardar a chegada de outras naves dos saltadores. Realizou uma decolagem de emergência. E John Edgar Prince desequilibrou-se, caiu e quebrou o nariz.

 

A prisão de Vincent Aplied acarretou uma pequena queda da Bolsa, que se recuperou dois dias depois. Aplied foi submetido a um rigoroso interrogatório e contou tudo que os agentes queriam saber. A esse interrogatório seguiu-se uma onda de prisões. Alguns criminosos conseguiram fugir, mas nem por isso a ação deixou de ser considerada excelente. Toda a imprensa mundial teceu elogios ao governo e festejou Rhodan como um homem ativo e ponderado.

Antes que Prince chegasse à Terra, seus atos já se haviam tornado conhecidos. No dia em que deveria chegar, milhares de pessoas correram ao espaço para festejar o jovem. As emissoras de televisão enviaram grande número de repórteres.

Perry Rhodan, que geralmente não gostava desse tipo de movimento, concordara a contragosto, por insistência de amigos, e concedera as autorizações que se tornavam necessárias.

Sentou-se ao lado de Bell e do Marechal Solar Freyt na tribuna construída especialmente para esse fim.

— Não faça cara feia — pediu Bell. — É perfeitamente possível que neste momento haja câmara dirigida para nós.

Rhodan lançou-lhe um olhar recriminador.

— Então é por isso que você está exibindo esse sorriso ridículo. Já fiquei dando tratos à bola para descobrir por que estava rindo.

— Escute aí — gritou Bell, indignado. — Isto é uma solenidade oficial, e ninguém me impedirá de comportar-me da forma que julgo ser do agrado de meus numerosos amigos, espalhados pelo mundo.

Nem mesmo a presença de espírito de Rhodan soube formular qualquer objeção a estas palavras. Fitou a massa dos espectadores.

— Daqui a alguns minutos, John Edgar Princer estará diante dos senhores — disse a voz saída do alto-falante.

Freyt levantou a cabeça. Só costumava dizer o necessário.

— A Cape Canaveral — disse. — Está chegando.

O sorriso de Bell congelou-se numa máscara, que daria o que pensar a qualquer um dos seus inúmeros amigos.

Para Bell, a tal máscara representava um aspecto bem fotogênico...

 

A velocidade com que o destróier saiu do sistema impediu Valmonze de desferir seu golpe. Muito contrariado, não teve outra alternativa senão deixar que os fugitivos se fossem.

A Cape Canaveral voltou a recolher a pequena nave em seu hangar. Depois de duas transições chegou ao Sistema Solar.

Princer sentia dor no nariz quebrado e, mais do que isso, a perda do jato espacial deixava-o muito triste. A Error representava um patrimônio valioso, e a idéia de que se encontrava nas mãos dos saltadores não era nada agradável. Mas, como o vice-presidente não sentisse vontade de realizar outras viagens espaciais, conformou-se com a perda. O que importava era que sua vida estava salva.

Depois da segunda transição o Major Woodsworth compareceu ao camarote de Princer. Disse que lamentava o acidente.

— Como vai o senhor? — perguntou.

— Muito bem — mentiu o jovem.

Sabia que Woodsworth percebera a verdade, mas não se importou com isso.

— Daqui a pouco o senhor se sentirá ainda melhor, se eu lhe disser que lhe prepararam uma recepção formidável — disse Woodsworth, com um sorriso.

Princer olhou para a esposa, que se acomodara numa confortável poltrona. Ela levantou os olhos com uma expressão indagadora.

— O senhor poderia fazer o favor de explicar melhor, major?

— Pois não. Nas proximidades do espaçoporto o senhor será recebido por uma grande multidão, por Perry Rhodan, por várias personalidades e pelo pessoal da televisão.

Princer apalpou cuidadosamente o nariz. Woodsworth não conseguia ocultar o quanto se divertia com aquilo que esperava o jovem.

— Como poderei escapar disso? — perguntou.

— Não pode — observou Woodsworth, em tom indiferente. — Saberei impedir que isso aconteça. O senhor é a melhor propaganda para meu cruzador. Os cadetes terão vontade de ser enviados à nave de James Woodsworth.

— Não compreendo — disse Princer. Um sorriso matreiro surgiu no rosto de Woodsworth.

— Prepare-se, meu jovem — disse. — Embeleze seu exterior, para conquistar a massa.

O vice-presidente da IFC olhou para seu corpo. As roupas haviam sofrido bastante com as aventuras no planeta Alaze. E com Cora, as coisas não eram diferentes.

Woodsworth seguira aqueles olhares com uma expressão compassiva.

— Mandarei trazer roupas para o senhor e sua esposa — prometeu.

Fez meia-volta, mas Princer segurou-o pela manga do casaco.

— Fico-lhe muito grato, major. O senhor arriscou sua vida para salvar-nos.

— Quer saber de uma coisa, Princer? — disse Woodsworth. — Em comparação com aquilo que o valente casal fez pela Terra, a ação Cape Canaveral representa um empreendimento bem modesto.

Assim que acabou de proferir estas palavras, saiu do camarote.

— Gostaria de esconder-me num canto — confessou Princer. — Tomara que a recepção não demore muito.

Esticou o corpo.

— Estou ansioso para tomar um banho e dormir numa cama de verdade.

Nem desconfiava de que um velho conhecido lhe estragaria o prazer...

 

Quando John Edgar Princer e sua esposa saíram da comporta da Cape Canaveral e desceram pelo elevador, o Hino do Império Solar fez-se ouvir. Os expectadores que se encontravam na tribuna levantaram-se e descobriram a cabeça.

Princer estremeceu e parou. Os acordes da música cessaram. Alguém pigarreou às suas costas.

— Vá andando, Princer — cochichou a voz do Major Woodsworth. — Vá diretamente para a tribuna.

Bell voltara a sentar-se e cutucou Rhodan.

— Sempre imaginei que esse Princer fosse diferente.

Estavam sentados sobre uma plataforma, à frente da tribuna. No momento em que o jovem, sua esposa e o Major Woodsworth subiram pela escada, Perry Rhodan, Bell e o Marechal Solar Freyt levantaram-se.

A primeira coisa que viram foi o rosto de Princer. Um esparadrapo muito largo cobria seu nariz. Acima deste, havia um par de olhos azuis muito claros, que fitaram Rhodan com uma expressão de infinita tristeza. Princer subiu os últimos degraus, tropeçou e enrubesceu até as enormes orelhas. Rhodan saiu do lugar e foi ao encontro de Princer. Falando muito baixo, para que nenhum microfone pudesse transmitir sua voz, disse:

— Quero agradecer-lhe em caráter não-oficial e dizer-lhe que o senhor é um sujeito formidável.

Da resposta de Princer concluía-se que ele não estava tão confuso como poderia dar a perceber:

— Quero retribuir o elogio em caráter não-oficial — cochichou ao administrador.

Apertaram-se as mãos e sorriram um para o outro. A televisão transmitiu a imagem ampliada. Na cidade de Denver, Archibald Princer quase chegou a entrar no aparelho!

Com um gesto suave, Rhodan colocou o jovem diante dos microfones. Aplausos estrondosos soaram na tribuna. Princer engoliu em seco, apalpou a ferida e procurou descobrir uma pose adequada à ocasião.

O discurso do administrador foi breve.

— Cumprimentamos este jovem, e também cumprimentamos sua bela esposa. Ambos prestaram um serviço relevante à Terra. Ficamos-lhes muito gratos por isso. Venha. Todo o Império quer ouvi-lo.

Princer lançou um olhar tão apavorado para os microfones que até parecia que Valmonze se encontrava à sua frente. Rhodan sorriu com uma expressão animadora, e o jovem deu um passo à frente.

— No planeta Alaze — principiou — encontrei um nativo. Seu nome era Schnitz. Está morto. Ele merece nosso respeito e nossos agradecimentos. Se não fosse a sua ajuda e a de seus amigos, não conseguiria enviar a mensagem. Ainda quero mencionar o Major James Woodsworth, que os senhores vêem aqui a meu lado. Ele e seus subordinados arriscaram a vida para libertar-nos.

Princer acenou com a cabeça, e um sorriso espalhou-se por seu rosto sonhador.

— Ainda devemos agradecer por tudo isso a esta mulher brava e bela, que se chama Cora Princer.

Virou-se e voltou a apertar a mão de Perry Rhodan. Bell e Freyt cumprimentaram-no em silêncio.

Princer segurou o braço da esposa e desceu a escada.

— Os médicos da Frota Solar sempre o rejeitaram — disse Rhodan, em tom de espanto. — Deveríamos esforçar-nos para arranjar um lugar para ele.

— Não acredito que ele agora aceite a oferta — respondeu Bell, em tom pensativo.

Quanto mais refletia, mais Rhodan acreditava no que Bell acabara de dizer.

 

Com um suspiro, John Edgar Princer deixou-se cair na cama senhorial.

— Finalmente temos paz — disse em tom agradecido.

— Contemplou a esposa, que estava separando as roupas enviadas pela direção do hotel.

— Você já pensou sobre o lugar de nossa viagem de núpcias? — perguntou.

— O que não quero é ir para o espaço — disse Cora, em tom resoluto.

— Não — disse Princer. — Escolheremos um lugar tranqüilo.

Alguém bateu à porta. Aborrecido, levantou-se do leito conjugal.

— Entre! — gritou.

Era o boy do hotel, que contemplou Princer como se fosse um animal estranho.

— Enviaram algo para os senhores — balbuciou o rapaz.

— Flores — conjeturou Cora. — Devem ser flores.

O rapaz negou com a cabeça. Princer fez um sinal para que fosse buscar o objeto que lhe fora entregue. Dali a pouco voltaram a bater à porta.

Uma fresta estreita abriu-se e uma criatura cor de barro entrou no quarto, latindo alucinadamente.

— Isto veio com recomendações de um certo Mr. Denniston, de Denver — disse o boy, já no corredor.

— Príncipe! — gritou Cora, em tom alegre.

O cachorro saltou para cima dela. Abanava a cauda que nem um louco. Finalmente afastou-se da dona e começou a farejar. Avistou Princer e parou de abanar o rabo.

— Parece que Príncipe não o conhece mais — disse Cora, com a voz insegura.

Princer lançou um olhar amoroso para a esposa. Achava que já estava na hora de abraçá-la. Aproximou-se.

Príncipe pôs-se a rosnar furiosamente. Estava entre o casal. Princer parou, indeciso.

— Escute aí, meu velho — disse o jovem, em tom amável. — Esta é minha esposa, compreende? Você não me poderá impedir de beijá-la.

O animal rosnou furiosamente. Seus olhos verdes chamejaram ameaçadores para John Edgar.

Depois disso, Princer foi recuando devagar...

 

 

                                                                  William Voltz

 

 

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