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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UMA ALIANÇA DE CHOQUE Amanda Quick
UMA ALIANÇA DE CHOQUE Amanda Quick

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

AMANDA QUICK regressa com o seu novo e emocionante romance de mistério, em que apresenta uma aliança extraordinariamente compatível e incendiária entre Tobias March e a sua atraente companheira, Lavinia Lafee. Um convite para uma festa no campo, oferece uma solução perfeita para o mais irritante desafio com que ultimamente se deparavam: como fugir ao caos de Londres, em busca de um local retirado, longe das más-línguas e dos olhares curiosos. Contudo, os planos dos amantes são arruinados, quando o primeiro interlúdio do fim-de-semana é interrompido pelo aparecimento de uma mulher espantosa, vinda do passado de Tobias. A beleza de Aspasia Gray é tão assombrosa quanto a sua ligação com Tobias. O seu noivo, há muito falecido, era amigo deste, para além de ser um assassino excêntrico. A misteriosa natureza do laço que une Tobias e Aspasia incomoda Lavinia, principalmente porque o seu primeiro encontro com Aspasia tem lugar quando a encontra no quarto de Tobias... Aparentemente, Aspasia procura protecção - e consolo depois de receber uma agoirenta mensagem que, misteriosamente, lhe recorda o passado. De súbito, os obstáculos entre Tobias e Lavinia já não se limitam aos mexericos de Londres e tornam-se mais perigosos. Quando os acontecimentos no castelo sugerem que alguém quer imitar os métodos do assassino morto, a equipa formada por Tobias e Lavinia prossegue afanosamente a investigação, cujas pistas os levam das mais elegantes caçadas na alta sociedade e dos mais discretos esconderijos, para as ruelas sombrias de Londres. A intriga inflama-se a par da relação de ambos. Em breve, Lavinia terá de empregar todos os seus talentos para desorientar o meliante que tão indelicadamente lhes interrompeu o rendez-vous. Depois ela e Tobias podem voltar a entregar-se aos seus prazeres...

 

 

 

 

ASSIM QUE ABRIU A PORTA DO QUARTO, TOBIAS COMPREENDEU que os seus planos cuidadosamente arquitectados para aquela noite se arriscavam a ficar comprometidos. Diante de si encontrava-se uma jovem disfarçada de Cleópatra.

- Bonito! - comentou a meia voz. - eu que esperava Minerva! A esperança de partilhar uma maravilhosa noite de amor, numa cama confortável, com Lavinia, sua amante e sócia ocasional, desmoronou-se. O passado acabava de o surpreender no momento mais inoportuno.

- Boa-noite Tobias.

A jovem baixou a mascarilha verde e dourada que trazia a cobrir-lhe os olhos. Um diadema com cabeça de cobra adornava-lhe a longa cabeleira elaboradamente entrançada e cintilava à luz de um candeeiro de parede.

- Há já uma eternidade, não é verdade - acrescentou, com uma expressão irónica no olhar. - Posso entrar?

Havia exactamente três anos que Tobias não via Aspasia Gray, mas esta pouco tinha mudado. Era ainda uma mulher esplêndida, cujo perfil de medalha se conciliava perfeitamente com o seu disfarce de rainha do Egipto. Sabia que a sua cabeleira natural era de um castanho profundo e rico. Trazia naquela ocasião um vestido verde pálido, debruado a ouro, que realçava a elegância da sua silhueta.

A última coisa que Tobias desejava naquele momento era o reatar de antigas relações. Sentiu-se perturbado, vendo-a de repente, diante de si, e vieram-lhe à memória furiosas ondas de recordações de acontecimentos passados havia mais de três anos.

Dominou-se com algum esforço e olhou rapidamente para o corredor escuro por cima do ombro de Aspasia. Não havia sinais de Lavinia. Talvez, se agisse com rapidez, pudesse ver-se livre de tão incómoda visitante antes que a noite ficasse totalmente arruinada.

- Suponho que não tenho escolha - respondeu de má vontade, antes de se afastar para a deixar entrar.

- Vejo que não mudou. Sempre tão amável.

A jovem transpôs a entrada do quarto num roçagar de sedas, deixando atrás de si um rasto deliciosamente perfumado. Tobias fechou a porta e voltou-se para ela.

Naquela noite não se lembrava de ter reparado em ninguém com um fato de Cleópatra durante o baile, mas isso não tinha nada de especial. O castelo de Beaumont era tão amplo que uma pessoa facilmente se perderia lá. E, naquela noite, havia uma multidão. Ele estivera apenas interessado numa das convidadas.

O convite para aquela festa tinha-lhes chegado através dos auspícios de Lorde Vale. Tobias começara por recusar. Pouco interesse sentia por tais mundanismos. Considerava entediantes os bailes em casas de família, embora a sua experiência fosse limitada nesse campo.

Todavia, Vale tinha-lhe habilmente gabado os encantos de um fim-de-semana bem organizado naquela residência.

Sim, haverá pequenos-almoços longos e aborrecidos, conversas frívolas e jogos tolos, mas tenha em conta este ponto extremamente importante: o meu amigo e a Mrs. Lake terão cada um o seu quarto. E ninguém se preocupará em saber onde cada um dorme. O interesse destas festas, é justamente oferecer uma enorme liberdade de movimentos.

Tobias sentiu-se atingido pela força de um raio quando se apercebeu da natureza da festa. E quando Vale, que não tinha intenção de ir a Beaumont, se prontificou a emprestar-lhes uma das suas carruagens particulares, Tobias rendeu-se.

Para grande surpresa sua, e também alívio, Lavinia aceitara, sem pôr grandes entraves. Sem dúvida porque essa recepção seria para ela uma oportunidade para encontrar potenciais novos clientes, pensava Tobias. No entanto, não quis que esse facto o deprimisse. No fim de contas, e isso é que era importante, pela primeira vez desde que se conheciam, poderiam aproveitar grande parte não de uma, mas de duas noites seguidas, no conforto e na privacidade de um autêntico quarto e de uma autêntica cama.

Quase que era bom demais para ser verdade. Por fim, não haveria necessidade de ficarem quase reduzidos a encontros furtivos num qualquer recanto isolado do Hyde Park ou de ter de usar a secretária do pequeno escritório de Lavinia. Durante três preciosos dias não seriam obrigados a contar com a cumplicidade da governanta da jovem que, por vezes, tinha de ser convencida a ir fazer compras quando ele vinha fazer uma visita.

Embora apreciasse esses encontros demasiado breves com Lavinia, pois eram extremamente excitantes, a clandestinidade começava a pesar a Tobias. Não era raro que começasse a chover assim que se encontravam no parque, ou que a sobrinha de Lavinia, Emeline, chegasse a casa num momento pouco oportuno.

No escritório, estavam à mercê dos clientes que podiam bater à porta, a qualquer momento - o que não tinha nada de extraordinário quando se tinha um gabinete de detective privado.

- Que diabo faz aqui? - perguntou a Aspasia. - Julgava-a em Paris.

- Sei que tem tendência para uma franqueza que por vezes toca a grosseria, Tobias, mas ainda assim eu mereço um acolhimento um tudo-nada mais caloroso da sua parte. Que eu saiba, não somos apenas simples conhecidos.

Ela tinha razão. A morte de Zachary Elland tinha-os, de alguma forma, ligado um ao outro de modo definitivo.

- Peço desculpa - disse ele. - A verdade é que, sinceramente, apanhou-me de surpresa. Tanto mais que não dei por si esta tarde quando os outros convidados desceram, nem esta noite, durante o baile.

Aspasia descalçou as luvas com uma graça lânguida e estendeu as mãos para a lareira para as aquecer.

- Cheguei ao final da noite, quando os festejos já atingiam o auge. Vi-o no baile, mas estava demasiado preocupado com a ruivinha para reparar no que quer que fosse. Quem é ela, Tobias? Jurava que esse tipo de mulher não fazia de modo algum o seu género.

- É a Mrs. Lake - retorquiu Tobias, sem tentar dissimular a sua irritação.

Aspasia contemplava as chamas na lareira.

- Ah, compreendo. São amantes.

Era uma constatação, não uma pergunta.

- Presentemente somos também sócios - concluiu ele. Aspasia lançou-lhe um olhar intrigado.

- Não compreendo. Quer dizer que têm investimentos em comum?

- De certo modo. Com efeito, eu e a Mrs. Lake ganhamos a vida do mesmo modo. E, por vezes, investigamos juntos.

Aspasia esboçou um ligeiro sorriso.

- Creio que ser-se detective privado, é quase o mesmo que ser espião. Mas certamente está longe de ser tão respeitável quanto a sua antiga carreira de homem de negócios.

- Acontece que este trabalho está de acordo com o meu temperamento.

- Nem lhe pergunto como é que a sua sócia ganhava a vida antes de abraçar essa curiosa profissão.

Tobias considerou que era suficiente. Havia limites para a cortesia.

- Explique-me antes a razão da sua presença aqui, Aspasia. Tenho outros projectos para a noite.

- Projectos que, sem dúvida, incluem a Mrs. Lake - adivinhou ela, antes de arvorar um ar constrangido. - Estou francamente desolada, Tobias. Acredite que não me teria permitido a vir bater-lhe à porta do quarto a uma hora tão tardia sem um motivo urgente.

- Tem a certeza de que não pode esperar até amanhã de manhã? A jovem afastou-se do lume e aproximou-se dele.

- Receio que não.

Aspasia Grey era uma autêntica mulher do mundo, que possuía um alto grau na arte de dissimular os seus verdadeiros sentimentos. No entanto, denunciou no olhar e nos gestos indícios que não enganavam. Já muitas vezes vira noutros aquela emoção e reconheceu-a imediatamente. Aspasia tinha medo.

- O que se passa? - perguntou ele num tom menos seco. A jovem suspirou.

- Até à noite passada, não tinha, de modo algum, previsto passar um fim-de-semana rústico. Até ontem à noite nem sequer fazia a mínima intenção de aceitar o convite para a festa em Beaumont. Mas as circunstâncias obrigaram-me a mudar de opinião. Na verdade, segui-o Tobias.

Tobias deitou uma olhadela ao relógio de bolso, que estava em cima do toucador, e constatou que era quase uma da manhã. Dentro de minutos, Lavinia viria bater-lhe à porta. Até lá, seria preciso desembaraçar-se de Aspasia.

- Porquê seguir-me até aqui, a seis horas de caminho de Londres, quando ainda ontem me poderia ter encontrado lá?

- Não tive escolha. Esta manhã, dirigi-me a sua casa, na Slate Street, mas já tinha saído. O seu criado explicou-me que tinha vindo para o castelo de Beaumont e que estaria fora vários dias. Felizmente, que o convite falava de um baile de máscaras, então procurei à pressa esta cabeleira e vim.

- Recebeu convite? - quis saber Tobias, curioso.

- Claro que sim - replicou Aspasia, como se o pormenor fosse de somenos importância. - Lady Beaumont convidou toda a alta sociedade. Adora receber, e o marido gosta de lhe satisfazer todos os caprichos.

Tobias tinha plena consciência de não pertencer à alta sociedade. E Lavinia ainda menos. O convite devia-se unicamente ao facto de antigos clientes riquíssimos, como Vale ou a Mrs. Dove, os honrarem com a sua amizade e os admitirem em algumas recepções. Mas na verdade não os convidavam sistematicamente.

Em contrapartida, Aspasia podia gabar-se de possuir uma linhagem impecável. Filha única, dispunha de uma confortável herança recebida após a morte do pai. Aos dezassete anos, casara com um homem quarenta anos mais velho do que ela, que ao morrer, seis meses mais tarde, lhe deixara um rendimento suplementar. O berço, a riqueza e a beleza acumulados transformavam Aspasia, apenas com vinte e oito anos, numa das mulheres mais destacadas da alta sociedade londrina. Não era de espantar que tivesse recebido o convite para a festa no castelo de Beaumont.

- Conseguiram arranjar-lhe um quarto à última hora? O castelo está a abarrotar.

- Está de facto muita gente. Mas, quando cheguei, deixei bem claro que tinha havido um engano nos convites e o mordomo e a governanta fizeram maravilhas. Suspeito que tenham transferido qualquer outro convidado, menos prestigiado, para me instalarem no quarto dele.

- Explique-me ao que veio, Aspasia.

A jovem começou a andar de um lado para o outro, em frente à lareira.

- Não sei bem por onde começar. Há um mês, voltei para Paris e aluguei uma casa na cidade. Evidentemente, tinha a intenção de lhe enviar um convite formal, mal acabasse de me instalar.

Tobias não se deixou convencer com esta última confissão. Estava absolutamente certo de que, se Aspasia pudesse, nunca o receberia, nem pensaria em lamentar o facto. De resto, não podia ter ressentimentos para com ela. Na alma da jovem, estaria sempre associado aos trágicos acontecimentos que se tinham desenrolado três anos antes.

- O que a fez mudar de ideias?

A expressão de Aspasia não se alterou, mas os seus ombros elegantes pareceram ficar rígidos da tensão. Tobias reflectiu que era preciso muito para perturbar os nervos da jovem.

- Passou-se algo esta manhã - Aspasia imobilizou-se em frente à lareira e perdeu-se na contemplação das chamas. - Algo tão perturbador que me pareceu indispensável consultá-lo o mais rapidamente possível, Tobias.

- Posso sugerir-lhe que passe ao assunto? Aspasia suspirou.

- Sim, claro. Mas, antes de mais nada, preciso mostrar-lhe o que encontrei no degrau da minha casa esta manhã.

Abriu a pequena bolsa bordada a contas e tirou de lá um pequeno objecto enrolado num lenço de linho. Estendeu-o a Tobias.

Este pegou nele e atravessou o quarto, para o examinar à luz de uma vela. Aí, desatou o lenço, deixou-o cair.

Olhou então para o anel e passou-lhe um arrepio pela espinha.

- Credo... - murmurou.

Aspasia continuou em silêncio. Cruzara os braços e esperava com os olhos baixos.

Tobias examinou a jóia com atenção. Pedras pretas cintilantes circundavam um pequeno ataúde de ouro. Levantou a tampa com a ponta do dedo. Uma minúscula caveira requintadamente esculpida em marfim lançou-lhe um sorriso trocista de dentro do sarcófago em miniatura. Rodando o anel entre os dedos, Tobias descobriu uma inscrição em latim gravada no interior da tampa, avisando-o silenciosamente: A morte vem aí.

Fitou Aspasia.

- É um antigo anel memento-mori.

- Sim - concordou ela, apertando ainda mais os braços à volta do corpo.

- E diz-me que encontrou isto no degrau da sua porta?

- Foi a minha governanta que o encontrou. Estava num estojo de veludo negro.

- Não trazia nenhuma nota? Nenhum tipo de mensagem?

- Não. Apenas este maldito anel - murmurou a jovem. E, já sem esconder a sua inquietação, acrescentou em voz insegura: - Compreende, agora, porque estava com tanta pressa em lhe falar ainda esta noite?

- É impossível - declarou categoricamente Tobias. - Zachary Elland está morto, Aspasia. Ambos vimos o corpo dele.

Aspasia fechou os olhos por instantes, como que para conter a sua aflição, depois voltou a abri-los.

- É inútil recordar-mo.

Tobias sentiu de novo o antigo remorso.

- É verdade. Peço desculpa.

- Mas, recordo-me - continuou ela - que me falou de um outro assassino, que também assinava os seus homicídios com jóias macabras e que teria inspirado Zachary.

- Acalme-se Aspasia...

- Recordo-me que me disse que ninguém o prendeu porque se desembaraçava sempre para disfarçar os crimes como acidentais ou naturais.

- Aspasia...

- Talvez ele ainda ande pelas redondezas, Tobias. Quem sabe se...

- Escute-me com atenção - interrompeu ele num tom que conseguiu por fim silenciá-la. - Se ainda estiver vivo, o original Homem do Memento-Mori, deve ser muito velho. Provavelmente estará morto há muito tempo. Os rumores a seu respeito datam de há várias dezenas de anos. Crackenburne e alguns dos seus companheiros ouviram-nos quando ainda eram muito novos.

- Sim, eu sei.

- Acabaram por concluir que a história do assassino profissional contratado, não passou de uma lenda macabra, alimentada pelos criados que a espalhavam pelas tabernas. Zachary tinha sem dúvida prazer em invocar as antigas histórias porque se adequavam à sua queda para o melodrama. Sabe como ele adorava essa emoção.

- Sem dúvida. - O quarto estava quente, mas ela esfregava os braços como se sentisse um arrepio. - Estava tão viciado no drama e no macabro como alguns o estão na heroína - hesitou. - Sem dúvida que lhe agradou recriar a lenda do Homem do Memento-Mori. Aparentemente, alguém parece querer imitá-lo.

- Com efeito, dir-se-ia que sim.

- Tobias, devo confessar-te que tudo isto me assusta.

- É óbvio que quem lhe enviou o anel conhecia forçosamente as suas ligações com Zachary. - Contemplou a caveira em miniatura no seu caixão doirado. - Tem mesmo a certeza de que não havia nem uma palavra junto ao anel?

- Absoluta. - Olhou, assustada para o anel. - Quem deixou isto à minha porta, fê-lo para me aterrorizar.

- Mas por que faria semelhante coisa?

- Não sei. - Percorreu-a um arrepio. - Não deixei de pensar nisto durante todo o dia, mas foi em vão - fez uma pausa. - A menos que... E se se trata de alguém que me quer culpar da morte de Zachary e procura uma louca vingança?

- Mas se nada teve a ver com a morte dele. Zachary suicidou-se quando compreendeu que eu estava prestes a detê-lo por assassínio.

- A pessoa que me enviou o anel talvez o ignore.

- Com efeito, é possível - admitiu Tobias, sem ter ar de acreditar verdadeiramente em tal coisa. Observou de novo o anel à luz da vela. A caveira olhava-o com as suas órbitas vazias, ameaçando-o com o seu riso macabro. - É preciso não rejeitar a possibilidade de que este envio seja a maneira de anunciar um acontecimento.

- Que quer dizer?

Tobias pesou o anel na palma da mão.

- Poucas pessoas compreendem o significado deste anel. Acontece, Aspasia, que faz parte desse número, porque sabe que Zachary se servia de jóias semelhantes para assinar os seus crimes. Talvez algum tratante nos tenha querido advertir de que tem planos para tomar o lugar de Zachary.

- Pensa que outro assassino procuraria imitar O Homem do Memento-Mori? Que horror! - A jovem fez uma pausa. - Mas supondo que tenha razão, teria sido mais lógico enviar-lhe a si o anel, uma vez que foi o senhor quem perseguiu Zachary.

- Para dizer a verdade, não ficaria espantado se um anel semelhante estivesse à minha espera em Londres - replicou Tobias tranquilamente. - Parti muito cedo, esta manhã. Talvez lhe tenham levado o anel primeiro a si e quando o meu foi entregue em minha casa, já eu tinha saído.

Aspasia deu um passo em direcção a ele. O brilho das pupilas traduzia a sua ansiedade.

- Tobias, quem fez aquilo, provavelmente arquitecta projectos horrorosos. Se a sua hipótese está correcta e se se trata de um aviso, trata-se de um novo Homem do Memento-Mori. Tem todo o interesse em desmascará-lo o mais depressa possível, antes que cometa algum assassínio.

LAVINIA OUVIU UMA PORTA ABRIR-SE, NO MOMENTO EM QUE chegava ao fundo da escada. A meio do corredor de pedra avistou o brilho da luz de uma vela. Uma silhueta masculina, saía furtivamente de um quarto e caminhava na sua direcção.

Tanto movimento. Não era a primeira vez, que se via obrigada a meter-se num armário ou a esconder-se apressadamente num canto nos últimos minutos. Nessa noite os corredores do castelo de Beaumont estavam, no mínimo, tão frequentados quanto as ruas de Londres. Todas essas idas e vindas de um quarto para o outro não teriam deixado de ser divertidas, se Lavinia não tentasse ela própria entregar-se a um encontro clandestino.

Recordou-se de que a culpa era unicamente sua. Tobias tinha-lhe proposto vir ter com ela ao quarto, assim que os convidados se retirassem à noite. Evidentemente que ela tinha aprovado o plano, tanto mais que o seu quarto era confortável e bastante espaçoso. Mas, por uma razão um tanto obscura, tinham-na obrigado a mudar-se nessa tarde, alojando-a num quarto muito mais modesto.

A cama do seu novo quarto era tão estreita que seria bastante desconfortável dormirem nela duas pessoas, principalmente se uma delas fosse um homem dotado de ombros largos. Lavinia tinha então prevenido Tobias que afinal seria ela a deslocar-se ao quarto dele. Mas não tinha imaginado que essa pequena expedição se revelasse tão delicada de pôr em prática, sem chamar a atenção sobre si mesma.

Não ignorava que a maior parte dos convidados não se interessaria em saber quem dormia com quem e em que quarto. Este tipo de idas e vindas seria completamente ignorado por aqueles transeuntes. Recordou-se de que era assim que as pessoas se movimentavam na alta sociedade.

Todavia, Lavinia estava convencida de que o facto de ser vista a dedicar-se a uma relação nocturna tão pouco discreta, teria muito mau efeito, no plano profissional, já que era uma senhora com a reputação de conduzir as suas investigações o mais discretamente possível. Era preciso nunca deixar de ter em conta que alguns dos convidados presentes no castelo nesse fim-de-semana, talvez fossem futuros clientes.

Felizmente, tinha tido a presença de espírito de não ter retirado a máscara prateada, a espada e o escudo do seu disfarce de Minerva antes de sair do quarto. Esperou assim, com as feições cobertas no seu esconderijo do vão da escada, mas o homem nem reparou nela, tanta pressa tinha em chegar ao seu destino. Quando começou a subir a escada, ouviu uma pancada seca seguida de um gemido.

- Valha-me Deus!

O cavalheiro deteve-se, curvou-se e apalpou desajeitadamente as vizinhanças dos dedos dos pés. Depois de mais alguns impropérios em surdina, subiu as escadas a coxear.

Lavinia aguardou, até ter a certeza de que ele tinha desaparecido e decidiu-se a sair cautelosamente do seu esconderijo.

Mas, mesmo na altura em que se preparava para retomar o caminho, abriu-se outra porta.

- Bolas! - Resmungou em surdina.

Por aquele andar, nunca mais chegaria ao quarto de Tobias. À luz fraca do candeeiro de parede, viu um homem e uma mulher saírem do quarto. A mulher cacarejou:

- Segui-me então, senhoria. Com certeza que não o lamentareis. Uma das criadas, descobriu Lavinia. Realmente, os convidados não eram os únicos a tomar parte nos entretenimentos nocturnos de uma festa no castelo. Refreando a sua irritação, a jovem ergueu de novo a máscara e esperou na sombra da escada.

- Não compreendo porque é que não queres fazer isto no meu quarto, observou o homem numa voz pastosa da bebida. Tenho uma cama grande e bastante quente.

- Eu vou aquecê-lo bem depressa. Não se preocupe com isso. O homem troçou com uma gargalhada rouca.

- Bem, então vamos a isso. Onde fica o teu quarto?

- Oh! Não o posso utilizar, senhor! Dormem lá outras três criadas porque hoje a casa está cheia. Vamos para o telhado. É um bocadinho frio, mas há mantas para nos aquecermos.

- Queres dizer então que vou ser obrigado a subir até ao cimo deste maldito castelo, justamente para ser contemplado com alguns momentos de prazer?

- Vai ver que vale a pena, senhor. Tenho lá em cima uns acessórios que muito deverão agradar a um homem mundano como vossa senhoria.

- Com que então acessórios? - interrogou o homem numa voz em que se notava agora o desejo e a excitação. - O chicote não me desagrada.

A criada cochichou algumas palavras que Lavinia não entendeu.

- Hum, vamos lá” então - comentou o homem. - Estou desejoso de uma demonstração.

A criada arrastou-o para a escada.

- Assim que chegarmos lá a cima.

O par seguiu em frente. Lavinia reparou que o homem era corpulento e deveria ter cerca de sessenta anos. Vestia um casaco de veludo cor de ameixa e calças antiquadas, bem como uma gravata com um nó complicado. A sua calva brilhava à luz do candeeiro de parede.

Quanto à rapariga, estava vestida como qualquer criada do castelo de Beaumont, vestido preto e avental branco. Lavinia não pôde ver-lhe o rosto, pois estava, em parte, dissimulada por uma touca mole.

O cavalheiro tropeçou ao pôr o pé no primeiro degrau, o que o fez exclamar:

- Um tributo ao excelente brandy de Beaumont. Deixa-me experimentar mais uma vez.

- Não, esta escada não - a criada puxou-o por um braço. - Vamos pelas escadas de serviço. Se o mordomo ou a governanta me apanhassem com vossa senhoria, despediam-me.

- Está bem, está bem - o homem calvo concordou em deixar-se conduzir pelo corredor.

A criada agarrou as saias, revelando sapatos fortes e práticos e meias. Apressou o companheiro quando passaram por outro candeeiro de parede. Debaixo da touca agitava os caracóis louros em forma de saca-rolhas.

O homem embriagado deixou-se conduzir e virou a esquina que dava para outro corredor.

Aliviada por se encontrar de novo sozinha, Lavinia emergiu por fim do esconderijo e apressou-se a seguir até ao quarto de Tobias, imaginando que um copo de xerez lhe acalmaria os nervos após todas aquelas emoções.

Um raio de luz filtrava-se por baixo da porta. Lavinia hesitou em bater com receio que o barulho alertasse o ocupante do quarto contíguo.

Retendo a respiração, rodou a maçaneta, que não opôs qualquer resistência. Após uma última olhadela para trás das costas, para se assegurar que não havia ninguém à vista, Lavinia empurrou a porta.

Imobilizou-se na soleira, descobrindo um casal abraçado em frente à lareira. O homem estava de costas. Tinha despido o casaco, tirado a gravata e aberto o colarinho. A estatura parecia-lhe vagamente familiar. Não lhe via o rosto, pois a cabeça estava inclinada para a mulher de longo cabelo negro que tinha os braços em redor do seu pescoço.

- Peço desculpa - balbuciou Lavinia, recuando e afastando o olhar. Enganei-me no quarto. Lamento ter-vos incomodado.

- Lavinia? - pronunciou a voz de Tobias, a curta distância. Ficou boquiaberta. Compreendia, agora, porque as costas lhe tinham parecido tão familiares.

- Tobias?

- Divina bondade - exclamou ele afastando-se rapidamente da rapariga que estivera pendurada ao seu pescoço. - Fecha a porta. Quero apresentar-te uma pessoa.

A mulher, por sua vez, recuou um passo.

- Meu Deus! - disse ela, com uma nota de divertimento na voz. - Creio que escandalizámos a pobre Minerva.

Desconcertada, como se tivesse sido apanhada por um passe de magia Lavinia fechou suavemente a porta, enquanto Tobias, de rosto sombrio, se dirigia à mesa dos licores e pegava num frasco de cristal.

- Lavinia, permite-me que te apresente a Mrs. Gray - serviu-se de brandi. - Está aqui por razões profissionais. Aspasia, esta é a minha... hummm... a minha sócia, a Mrs. Lake.

Lavinia reconheceu o tom frio e sem inflexão. Alguma coisa não estava bem naquele quarto.

Lavinia voltou-se para Aspasia.

- Presumo que seja cliente de Tobias, Mrs. Gray.

- Digamos que passei a ser, há muito pouco tempo. Mas peço-lhe que me trate por Aspasia.

Lavinia achou-a muito segura de si e da sua posição na vida de Tobias. Teve a intuição que eles se conheciam havia muito tempo. Percebeu que os dois tinham tido uma ligação, que havia entre eles um laço que a excluía.

- Estou a ver - disse ela, sentindo um arrepio, antes de perguntar a Tobias: - Precisarás da minha ajuda para esse trabalho?

- Não - Tobias engoliu um trago de brandy, antes de responder: - Desembaraçar-me-ei sozinho.

A resposta causou nela o mais completo desânimo. Talvez tivesse acalentado demasiadas esperanças. Depois do seu recente sucesso no caso do hipnotizador louco, a jovem imaginara-se, cada vez mais, como sócia efectiva de Tobias. Visivelmente, tinha tomado os seus desejos por realidades e afinal não era assim.

Com efeito as suas relações de trabalho estavam à imagem da sua curta relação pessoal. Por vezes, trabalhavam juntos, da mesma forma que, por vezes, faziam amor. Mas cada um prosseguia também pelo seu lado uma carreira a solo do mesmo modo que cada um morava na sua casa.

Lavinia recuou até à porta, esforçando-se por sorrir.

Porém, Tobias não hesitara em envolver-se nos seus dois últimos casos e, para ela, era dolorosamente surpreendente descobrir que agora não aceitava de bom grado a sua ajuda.

- Muito bem - controlou-se, exibindo aquilo que esperava que fosse um sorriso delicado e natural e abriu a porta. - Nesse caso, não vos incomodarei por mais tempo. E desejo-vos uma boa-noite a ambos.

Tobias crispou os maxilares de tal maneira que Lavinia não teve qualquer dificuldade em compreender que ele estava de mau humor. Tanto melhor. Ela própria não se sentia precisamente cheia de felicidade.

A sua mão forte agarrou com força o gargalo da garrafa de brandy. Por instantes, acreditou que ele tinha mudado de ideias e lhe ia pedir para ficar. Mas, no fim, nada disso aconteceu.

- Vou ter contigo em seguida - disse ele. - Quando tiver acabado de falar com Aspasia.

Por outras palavras, ele acabava quase de lhe ordenar que voltasse para o quarto e que se deixasse lá ficar às suas ordens. Sentiu-se furiosa. Se ele esperava que ela lhe abrisse docilmente a porta, depois de ter sido assim expulsa sem consideração, enganava-se rotundamente!

- Não se dê a esse incómodo - replicou, com um sorriso suave. É tarde e o dia foi longo. Estou certa de que estará cansado depois da sua conversa com a Mrs. Gray e não quero obrigá-lo a subir dois andares. Ver-nos-emos amanhã, ao pequeno-almoço.

Tobias não respondeu, mas uma chispa de cólera resplandeceu-lhe nos olhos. Satisfeita com a tirada, Lavinia deslizou para o corredor e fechou a porta com mais força do que era necessário.

A meio caminho do quarto, decretou que detestava Aspasia Gray.

 

OS DEGRAUS ERAM ALTOS E O CORREDOR MAL ILUMINADO. TERIA caído por várias vezes se a criada não o tivesse agarrado solidamente pelo braço.

- Não tenha pressa, senhoria - disse-lhe ela. - Seria uma pena magoar-se antes de ter chegado lá acima, não é verdade?

- De que é que estás à espera? Está escuro, como breu - murmurou ele, pensando que, sem dúvida, deveria ter recusado os dois últimos copos de brandy que ela o tinha convidado a beber, antes de terem saído do quarto. Sentia a cabeça à roda e o estômago começava a preocupá-lo.

- Devíamos ter vindo pela escada principal?

- Já lhe expliquei, senhoria, que o patrão não gosta que as criadas se metam nos quartos com os convidados.

- O Beaumont sempre foi um pouco pedante nessas coisas.

A rapariga era mais sólida do que ele tinha imaginado. Era capaz de levar o candelabro numa mão e sustê-lo com a outra, mas recordou-se que, afinal, as boas criadas tinham de ser fortes. Tinham de transportar os pesados tabuleiros dos pequenos-almoços, os bacios cheios e as enormes pilhas de lençóis, subindo e descendo enormes lances de escadas como esta. Para além desse exercício tinham ainda de varrer, esfregar e lavar, o que dava energia e força a uma mulher. Mas era assim que gostava delas. E por isso preferia partilhar aquele desporto nocturno com uma criada a qualquer prostituta profissional nos bordéis, pois estas tinham tendência para serem fracas e apáticas, devido ao excesso de genebra e ao leite da papoila. Assim, disse para consigo que o longo caminho valeria provavelmente a pena, quando chegassem. Subiu teimosamente mais uns degraus.

- Ainda é longe? - perguntou ele, respirando ruidosamente. Tinha o coração a bater tanto que pensou que ela o pudesse ouvir.

- Estamos quase a chegar.

O degrau diante dele pareceu estremecer à luz da vela. Teve de se esforçar para colocar o pé sobre ele e mesmo assim, quase tropeçou.

- Vamos lá - disse a criada agarrando-o e obrigando-o a subir. Mal podia respirar quando chegou ao cimo das escadas.

A rapariga parou em frente a uma porta e ele aproveitou a pausa para descansar pois já não conseguia esconder a sua respiração entrecortada. Transpirava abundantemente e praguejava contra o casaco e a gravata que lhe faziam calor. Não faz mal. Em breve os vou despir.

- Está tudo bem, senhor? - perguntou ela. - Parece extenuado. Talvez tenha bebido um pouco a mais esta noite, não? Espero que, mesmo assim, não queira ir dormir antes de se ter ocupado de mim. Seria uma pena ter feito todo este caminho para nada.

Ele ficou surpreendido com a mudança na voz dela. Já não falava como uma criada. A sua entoação era a de uma mulher mais educada. Quis fazer-lhe uma pergunta, mas tinha a língua tão pastosa que falar parecia estar acima das suas forças. Começara a sentir fortes vertigens. Fosse porque fosse, sentiu-se aterrorizado ao ver o céu nocturno.

- Não vos inquieteis, senhor. O brandy produz sempre este efeito quando se lhe junta uma gota de láudano.

- Que história é essa do láudano? A rapariga abriu a porta.

- Não importa. Sei exactamente do quê vossa senhoria precisa para se recuperar - a criada abriu a porta. - De um pouco de ar fresco.

- Não... não - balbuciou, quando ela o quis puxar lá para fora. - Não me sinto muito bem. Gostaria... de voltar para o meu quarto.

- Não diga disparates, senhor. O que lhe faz falta é exercício. Ouvi dizer que está noivo de uma jovem senhora. Ela é nova, saudável e quererá um marido cheio de vigor na sua noite de núpcias.

Ele sobressaltou-se.

- Como... sabes que estou noivo?

- As novidades correm depressa.

O ar fresco da noite não chegou para lhe aclarar as ideias. A Lua cheia começou a mover-se num círculo sobre a sua cabeça. Quis fechar os olhos, mas a sensação de vertigem aumentou.

- Está quase a chegar a altura do seu pequeno acidente, senhor anunciou a criada com vivacidade.

Sentiu-se invadido pelo pânico. Conseguiu entreabrir os olhos.

- O m... eu q... quê?

- Pode crer que, pessoalmente, não tenho nada contra si. Mas negócios são negócios.

 

ANTES MESMO DE ENTRAR NO QUARTO, LAVINIA LAMENTAVA a maneira como se tinha despedido de Tobias. Não se tinha mostrado particularmente original nem muito inteligente. O quarto encontrava-se numa ala do castelo que fora reservada aos convidados de menor importância, como ela, bem como para as várias damas de companhia, criados de quarto e criadas de senhoras. Lady Oakes, uma grande dama, sempre na última moda, tinha vindo ao baile com o seu cabeleireiro preferido, a quem tinham dado um alojamento bastante próximo do de Lavinia.

Esta entrou no quarto atravancado e acendeu a vela no toucador. A luz reflectiu-se no espelho rachado, lançando um brilho fraco sobre a parca mobília.

Suspeitava que aquele quarto fosse ocupado por uma criada ou por um parente muito pobre. Para além da caminha estreita, que ocupava quase toda a divisão, havia um armário encostado à parede. A bacia e o jarro sobre o lavatório estavam rachados.

Lavinia abriu a janela. O ar estava um pouco fresco, para uma noite de Junho, mas não estava frio. Sobreviveria sem uma lareira para se aquecer. A Lua cheia banhava o parque e os jardins. A calma desse cenário campesino oferecia um contraste tão impressionante com a agitação londrina, a que ela estava habituada, que se interrogou se conseguiria conciliar o sono.

Apoiou os cotovelos no parapeito e reflectiu naquele cenário tranquilo. Estava mais que nunca convencida de ter cometido um erro táctico, no que se tinha acabado de passar no quarto de Tobias. Na verdade, ela tinha todo o direito de estar furiosa com ele. Mas que mosca lhe teria picado para o proibir de vir ter com ela nessa noite? Infelizmente o resultado seria ter de esperar até ao pequeno-almoço para saber o que estava a ser tramado entre Tobias e Aspasia. Porém, sabia que não conseguiria conter a curiosidade até lá.

Tamborilava com os dedos no parapeito enquanto reflectia e descobriu que o único meio de resolver o seu dilema seria voltar ao quarto de Tobias. Este devia-lhe uma explicação e ela sabia que não conseguiria conciliar o sono se não a obtivesse nessa noite. O que ainda era pior, não gostava de o saber a sós com Aspasia Gray.

Restava-lhe saber quanto tempo esperar. Um quarto de hora? Vinte minutos, decidiu ela rezando aos céus para não ser constrangida mais uma vez, a esconder-se durante o caminho.

Lá se iam as diversões deliciosas de uma festa no campo. Logo a princípio tivera dúvidas, mas Joan Dove tinha-lhe assegurado que iria adorar esse curto fim-de-semana. Sim há conversas e jogos muito enfadonhos e terá de suportar gente obnóxia mas, confia em mim, vais ver que vale a pena. O que é bom nestas festas é que ninguém se preocupa em saber onde é que vão os outros, uma vez caída a noite.

Simplesmente, Joan não tinha previsto complicações do tipo Aspasia Gray.

De repente, um pensamento angustiante atravessou o espírito de Lavinia: que faria ela se aquela mulher se encontrasse ainda no quarto de Tobias quando lá voltasse?

Quis convencer-se de que não era ciumenta. Estava profundamente inquieta. Durante toda a noite Tobias tinha-se mostrado de excelente humor. Aquilo que a sua nova cliente lhe tinha contado deveria então ser sério, para que ele ostentasse a expressão sombria, quase sinistra, que Lavinia sabia não ser de bom presságio. Não era o facto de ele lhe ter parecido assustador que a preocupava. Afinal só para os vilãos é que representava uma ameaça. Era até quando se encontrava nessa disposição que era mais inclinado a correr riscos.

Umas pancadas discretas na porta arrancaram-na bruscamente ao seu devaneio. Deu meia volta atravessou o quarto e foi abrir.

Era Tobias. Semi-oculto nas sombras do corredor mal iluminado. Arvorava uma cara ainda mais grave do que pouco antes, e nem sequer tinha tido o cuidado de tornar a vestir o casaco ou de abotoar o colarinho da camisa. Lavinia via-lhe os pêlos escuros que lhe cobriam o peito forte.

- Sim senhor, mas que surpresa! - exclamou ela.

Ele lançou uma olhadela ao corredor, provavelmente para se certificar de que não havia por ali ninguém, e depois entrou no quarto.

- Promete-me uma coisa - murmurou enquanto fechava a porta atrás de si. - Da próxima vez que te sugira que aceitemos um convite para uma festa no campo, manda-me passear.

- É estranho que digas isso, ia precisamente pedir-te a mesma coisa replicou Lavinia. Voltou para a janela e acrescentou: - Quem é ela, Tobias?

- Já te disse. Chama-se Aspasia Gray; é uma velha conhecida.

- Pareceu-me que estavam muito próximos um do outro.

- Eu disse conhecida, não amante - ripostou Tobias. - Mas afinal, Lavinia, não vais tirar conclusões porque a viste pendurada ao meu pescoço quando entraste no meu quarto.

- Pois bem, já que falas nisso...

- Posso explicar essa cena infeliz. Aspasia queria simplesmente agradecer-me por aceitar investigar por conta dela. Repeli-la seria indelicado.

- Estou a ver.

- Por favor, Lavinia! Apareceu-me de surpresa. No momento em que a porta se abriu, lançou-se-me ao pescoço.

- Mmm.

Tobias aproximou-se da jovem e pôs-lhe a mão sobre o ombro, para a voltar para si.

- Lavinia, de certeza que não imaginas que eu a ia abraçar mesmo a sério? Eu amo-te, sabes bem. Pensava que estávamos de acordo em ter plena confiança um no outro.

A jovem sossegou por fim. Acariciou-lhe a face.

- Eu sei. Eu também te amo, Tobias. E tenho confiança em ti. Ele exalou um suspiro de alívio.

- Deus seja louvado! Começava a ficar seriamente preocupado. Ela ergueu as sobrancelhas.

- Não conheço a Mrs. Gray, e não tenho razão nenhuma para, a priorí, confiar nela.

Ele encolheu os ombros.

- Não tens de te preocupar com Aspasia. Lavinia abanou a cabeça.

- Não impede que o faça. E não é por que acredito em ti que me agrada ver-te em mangas de camisa com outra mulher pendurada ao teu pescoço.

Ele sorriu.

- Fizeste-te entender perfeitamente minha querida.

- O senhor não vai fazer disso prática habitual. Estamos entendidos?

Tobias ergueu a mão para tocar a esfinge de Minerva que ornava o medalhão de prata que ela usava e acrescentou:

- És a única mulher cujos braços nus quero sentir no meu pescoço. Dito isto, e sem avisar, apoderou-se dos lábios dela e beijou-a com paixão. Essa paixão, ávida e urgente, emocionava Lavinia que, ao mesmo tempo, não pôde deixar de se interrogar, uma vez mais, acerca da natureza da conversa com a nova cliente.

No passado já sentira aquele desejo incendiário da parte dele e reconhecia-o. As suas paixões obscuras tinham origem num poço de escuridão, profundamente encerrado dentro dele. Lavinia sabia que ele as refreava a maior parte do tempo mas, naquela noite, deixava-as em liberdade. Não pôde evitar a suspeita de que Aspasia não era estranha àquele despertar.

- Tobias?

Ele puxou-a para si, um braço em redor do pescoço, o outro apertando-lhe a cintura.

- Há pouco - murmurou ele - quando declaraste que não valia a pena que viesse até cá, foi como se me tivesses espetado a tua espada de Minerva no coração.

- Desculpa. Não medi as palavras. Aliás, quando bateste à porta, preparava-me para ir ter contigo.

Tobias beijou-lhe os lábios, as faces e o pescoço.

- Reconheço que tinhas o direito de estar furiosa. Mas juro-te que não havia qualquer razão.

- Ela fê-lo de propósito, não foi? Pendurou-se ao teu pescoço à espera que a porta se abrisse, e eu vos visse abraçados.

- Não. Estou convencido que queria simplesmente exprimir-me a sua gratidão, porque eu concordei em fazer umas investigações por conta dela. O acaso quis que entrasses precisamente nesse momento.

- Patranhas.

- Esquece esse maldito gesto, Lavinia. Aspasia nada representa para mim. Nenhuma outra me interessa para além de ti - sussurrou, erguendo a jovem nos braços, e começando a atravessar o pequeno quarto. - Só te quero a ti e só este abraço importa.

- Tobias, a cama... - protestou ela.

- Vou chegar lá o mais rapidamente possível!

- É demasiado estreita para nós os dois.

- Conhecemos muito pior. Lembro-me de já termos feito isto no banco de uma carruagem. Tenho a certeza que nos arranjaremos numa pequena cama.

Pousou-a com precaução sobre o colchão, deitando-se depois sobre ela, que logo se sentiu esmagada. O vestido caro que Lavinia tinha comprado propositadamente para aquela noite ficaria todo amachucado, mas, na altura, não havia remédio.

Tobias baixou-lhe o corpete e depositou uma chuva de beijos inflamados no princípio da garganta. Ela tomou-lhe o rosto entre as mãos e beijou-o com tal ardor que, uma vez mais, não deixou de a surpreender. Antes de o encontrar, nunca teria pensado ser capaz de experimentar sentimentos tão intensos. Mesmo nestes momentos em que ele parecia possuído pelas suas obscuras paixões ela lhe correspondia. Não, era mais do que isso, precisava corresponder-lhe exactamente nessas alturas.

Nas raras ocasiões em que abria o atalho para o poço obscuro que Tobias tinha dentro de si, Lavinia avistava um aspecto da sua verdadeira natureza que nunca ninguém tivera permissão para conhecer. Reconhecia nele uma força poderosa, elementar, que os atraía um para o outro. Uma força da qual não compreendiam inteiramente a natureza nem a origem, mas que não era possível negar.

Nas últimas semanas, começara a aceitar que ela e Tobias estavam ligados por uma espécie de laço metafísico que não entendia bem. Talvez nunca a entendesse, mas agora sabia que já não a podia negar.

Lavinia não ousara falar disso a Tobias, pois sabia que este não gostava particularmente de discussões que tivessem por tema a metafísica. No entanto, em ocasiões como aquela, em que ele estava dentro dela, segurando-a como se nunca na vida se quisesse separar dela, custava-lhe a crer que não sentisse, também ele, a força do laço que os unia.

Tobias acabava de lhe levantar as saias com um grunhido impaciente e metia-lhe agora os dedos por entre as coxas. Muda por um desejo igual ao dele, Lavinia desabotoou-lhe a camisa para lhe acariciar o tronco.

Tobias procurou docemente, até lhe encontrar o delicado botão sensível que acariciou lentamente, ao ponto de dar por ela a murmurar-lhe ao ouvido palavras deliciosamente chocantes cuja crueza, noutras circunstâncias, a teriam horrorizado. Palavras que ela pensara não conhecer, antes de encontrar Tobias.

Ele fez deslizar o dedo mais profundamente. - Tobias... - implorou, agitando-se encostada à mão dele.

Ele começou a desabotoar as calças.

Neste momento, ouviu-se um grito arrepiante na noite de Verão e o momento foi estilhaçado com o impacto de um baque surdo. Lavinia estremeceu e abriu os olhos, ainda a tempo de ver uma sombra escura passar pela janela.

- Com mil diabos! - exclamou Tobias saltando da cama e já de pé no momento em que o grito terminava.

- Deus do céu, o que foi isto? - Lavinia levantou-se da cama. - Uma ave nocturna? Um morcego gigante?

Tobias precipitava-se já para a janela para deitar uma olhadela lá para baixo para o jardim.

- Valha-me Deus! - murmurou. Lavinia juntou-se-lhe.

- O que se passou?

Outro grito ressoou ao longe. Desta vez era de mulher. Debruçando-se por sua vez na janela, Lavinia avistou, numa varanda à esquerda, uma mulher em roupão que fixava o jardim sem se mover. Corajosamente, arriscou um olhar lá para baixo. Um corpo semelhante a um boneco desarticulado jazia na relva. A jovem sentiu um arrepio no estômago ao pensar que a sombra que vira passar diante da sua janela era de facto a silhueta do homem que acabava de cair no vazio.

- Deve ter caído do telhado - arriscou.

- Pergunto-me o que estaria a fazer lá em cima. É evidente que não é um criado.

Lavinia observou de novo o corpo e viu o homem com a calva brilhante ao luar.

- Oh não, claro que não.

Entretanto, tinham-se aberto outras janelas, o que gerou um concerto de gritos e exclamações, enquanto um criado munido com uma lanterna se aproximava do corpo, com grande relutância.

- Vou ver se posso ser útil - declarou Tobias. - Espera por mim aqui.

- Não, eu vou contigo.

- Não há necessidade, Lavinia. Deve ser muito desagradável de ver. A jovem engoliu com dificuldade.

- Não posso ter a certeza de nada enquanto não o vir mais de perto, mas creio ter uma boa razão para te acompanhar.

Tobias, que já tinha a mão no puxador da porta, voltou-se, intrigado.

- O que queres dizer?

- Penso ter sido a última pessoa a ver aquele homem com vida explicou compondo o corpete. - Além da criada, claro.

Tobias abriu a porta.

- Mas que diabo estás tu a dizer? Conhecias aquele homem?

Lavinia seguiu-o pelo corredor.

- Não exactamente. - Saiu atrás dele para o corredor escuro, fechando a porta do quarto. - Mas creio que foi com ele que me cruzei há bocado, quando tentava chegar ao teu quarto. Para ser mais exacta, escondi-me num recanto quando ele saiu do quarto ao lado de uma criada.

Aquilo chamou-lhe a atenção.

- Tens a certeza que era uma criada?

- Tenho. E enquanto subiam para o telhado, a rapariga fez claramente alusão ao género de desporto a que se iam entregar. Parecia de tal modo entusiasmada, que não me espanta se ele lhe tivesse prometido uma bela recompensa. Pergunto-me se Lady Beaumont está ao corrente do que se passa em sua casa.

- Provavelmente sabe e fecha os olhos.

Tinham chegado ao patamar e começaram a descer as escadas. Lavinia ouvia as portas abrirem-se de todos os lados. Atónitas e curiosas, as pessoas saíam dos quartos e interpelavam-se umas às outras.

- Não compreendo como pôde ele cair - disse Tobias.

- Foi certamente um acidente. Parecia muito embriagado quando o vi.

Abriam-se mais portas no andar de baixo. Os convidados que ainda não estavam deitados apareciam uns meio vestidos outros meio despidos. Alguns juntaram-se a Tobias e Lavinia nas escadas, mas a maioria ficou no patamar a especular sobre os acontecimentos.

Quando chegaram ao andar térreo, Tobias seguiu adiante para o jardim. Um pequeno grupo juntara-se já em redor do cadáver.

Lorde Beaumont, baixo, gordo e careca, de calças, chinelos e envergando um roupão de seda, precipitou-se em direcção a Tobias.

- March, obrigado por ter descido. Lembro-me que Lorde Vale me disse um dia que você é um excelente conselheiro em situações de crise.

Reparando em Lavinia, acrescentou:

- Mrs. Lake, receio que não seja espectáculo para uma dama. Deveria ficar lá dentro.

A jovem abriu a boca para explicar a razão da sua presença, mas Tobias interrompeu-a:

- Quem é a vítima? - inquiriu em voz baixa.

Lorde Beaumont lançou um olhar em direcção ao corpo.

- Lorde Fullerton.

- Chamou um médico?

- Aahh... não - confessou Lorde Beaumont. - Aconteceu tudo tão depressa que eu... - Beaumont fazia esforços evidentes por se controlar. Tem razão, um médico saberá o que fazer com o corpo. Não se pode deixar no jardim, evidentemente. Obrigado pelo conselho, March. Vou mandar chamar imediatamente um médico.

Como se ficasse aliviado por ter com que se ocupar, Lorde Beaumont dirigiu-se a passos largos na direcção de uma criada.

- Queria examinar o corpo de perto - anunciou Tobias a Lavinia. Pensas que podes aguentar o golpe?

- Sim.

Dirigiram-se ao local onde Fullerton jazia sobre a relva molhada. Lavinia não se espantou ao ver as pessoas afastarem-se espontaneamente assim que eles se aproximaram do cadáver, para deixar passar Tobias. Muitas vezes exercia esse efeito sobe os outros. Um homenzinho magro tinha-se ajoelhado junto da vítima e lamentava-se:

- Meu Deus, que desgraça! Que vou eu fazer? É uma catástrofe... Tobias virou-se para Lavinia.

- Tens a certeza que serás capaz?

- Sim.

Não era a primeira vez que se confrontava com o espectáculo de uma morte violenta, mas sabia que nunca se habituaria. No entanto, desta vez, não havia sangue. Todavia a cabeça de Lorde Fullerton formava com o pescoço um ângulo tão estranho que não pôde conter uma náusea.

Temendo desmaiar, fez um esforço para se concentrar nos pormenores e reconheceu, sem hesitação, o casaco cor de ameixa e a gravata de nó complicado. Era o mesmo que tinha visto nessa noite, na companhia de uma criada loura.

- E então? - perguntou Tobias em voz baixa.

- É ele. É o homem que vi há pouco - respondeu Lavinia. O homem ajoelhado continuava a lamentar-se.

- Que desgraça. Que vamos fazer?

- É estranho - murmurou Tobias. - Está completamente vestido.

- Como assim?

- Tu contaste-me que ele tinha subido com a rapariga, para passar um bom bocado, não foi? Nesse caso, porque é que ainda tinha a gravata e a camisa e as calças abotoadas?

- Estou a perceber - reflectiu por uns instantes. - Suponho que... hãã... não terão tido tempo de pôr o projecto em execução.

Tobias abanou a cabeça categoricamente.

- Tendo em conta o que acabas de me dizer, ele estava lá em cima havia já algum tempo. O suficiente, em todo o caso, para desabotoar as calças.

Lavinia estudou de novo o cadáver.

- Estarás a insinuar alguma coisa?

- Ainda não tenho a certeza de nada - replicou Tobias, antes de perguntar ao homem ajoelhado: - Quem é o senhor?

O homem magro pousou nele uns olhos desvairados.

- Chamo-me Burns, senhor. Sou o criado de sua senhoria. Enfim, era o criado. Era um excelente emprego, acredite. Acabávamos justamente de encomendar uma dezena de fatos novos e um roupão. Sua senhoria ia casar-se, imagine. E queria mostrar-se radiante diante da futura esposa. Pergunto-me o que vai acontecer a todos esses belos fatos.

- Naturalmente, o melhor será emalá-los e enviá-los à família, claro - sugeriu Lavinia.

O criado pôs-se de pé e recuou:

- Não minha senhora, não o posso fazer. Já não tenho quem me pague. Vou ter que encontrar um novo patrão.

- Quando viu o seu patrão pela última vez? - quis saber Tobias.

- Esta noite, antes de ele descer para o baile. Vi que estava com óptimo aspecto. Estava principalmente muito satisfeito com o nó da gravata. Fui eu que o inventei especialmente para ele.

- Não o voltou a ver depois? - insistiu Tobias.

- Não. Tinha-me dito para não esperar pelo seu regresso.

- Era uma ordem normal?

- Sim. Sua senhoria gostava bastante de se distrair um pouco, antes de adormecer. Não gostava que eu estivesse no quarto nessa altura.

Tobias abanou a cabeça. Depois, como que movido por uma inspiração repentina, pegou no braço de Lavinia.

- Anda.

- vamos? - perguntou a jovem.

- Queria dar uma vista de olhos ao quarto de Fullerton.

- O que esperas encontrar lá?

- Não sei.

Tobias perguntou ao mordomo, meio vestido, onde ficava o quarto de Lorde Fullerton. O homem deu-lhe as indicações necessárias. Nesse momento, surgiu Lorde Beaumont, visivelmente agitado.

- O que se passa, March? Aconteceu outro drama?

- Que eu saiba, não. Desejava simplesmente deitar uma vista de olhos ao quarto de Fullerton. Aliás, seria bom que viesse connosco.

Era mais uma ordem do que uma sugestão. Mas Lorde Beaumont estava tão perturbado que não parecia aperceber-se de que recebia ordens de alguém socialmente inferior a si.

- Com certeza - disse, apressando-se a conduzi-los até casa. Lavinia, por seu lado, estava habituada a ver toda a gente obedecer, sem pestanejar, quando Tobias falava naquele tom de voz sonoro e perfeitamente seguro. Parecia possuir uma autoridade natural que fazia maravilhas em situações em que ninguém sabia o que fazer. Desconfiava também de que aquela sua subtil habilidade era mais complexa do que ele alguma vez desejaria reconhecer.

No decorrer de uma anterior investigação, ocorrera um incidente que a convencera de que Tobias possuía o talento natural de um poderoso hipnotizador. Estava certa de que a fonte das suas capacidades se situava nas obscuras profundezas do seu ser. Tinha também a certeza absoluta, que ele nunca admitiria possuí-las, nem sequer a si próprio. Por razões que Lavinia não compreendia bem, preferia ocultar esse lado da sua natureza, debaixo de várias camadas de lógica obstinada e de uma vontade férrea. Até a conhecer, considerava charlatães e fraudulentos todos os hipnotizadores que se aproveitavam dos mais fracos e crédulos.

Quando soube que ela era entendida nessa arte, a sua primeira reacção foi não acreditar nos seus poderes. Ultimamente Lavinia notava que, embora contrariado, ele ia aceitando as suas capacidades, mas tinha consciência de que preferia ignorá-las sempre que possível.

Dentro do castelo ela e Tobias seguiram o seu anfitrião até ao primeiro andar. Beaumont respirava com dificuldade quando chegou ao patamar. Fez uma pausa para recuperar o fôlego.

Um pequeno grupo de convidados tinha-se juntado no corredor. Lavinia reparou em particular numa mulher jovem com uma soberba cabeleira castanha, mas assim que esta se voltou, reconheceu Aspasia, que tinha trocado o disfarce de Cleópatra por um simples roupão de seda verde. Reparando em Tobias, precipitou-se para ele.

- O que se passa? - perguntou a meia voz. - Dizem que Fullerton partiu o pescoço ao cair do telhado.

- Parece que?

- Sim - confirmou Tobias.

Beaumont, que limpava a fronte a um lenço, quis tranquilizar os convidados.

- Foi um acidente dramático - explicou -, mas temos a situação perfeitamente controlada. O médico já não deve demorar. Podem voltar para os vossos quartos.

As belas sobrancelhas de Aspasia erguiam-se ao de leve. Lavinia viu que Tobias abanava discretamente a cabeça e ela deteve-se.

- Por favor - disse ele. - Estamos com pressa. Lorde Beaumont deve conduzir-nos ao quarto de Fullerton.

Aspasia pareceu sobressaltada e Lavinia viu-lhe no olhar uma centelha de compreensão.

- Tobias? - murmurou Aspasia em tom rouco. - Pensa que...

- Mais tarde falarei consigo, Aspasia - disse delicadamente.

- Está bem.

Afastou-se graciosamente para lhes dar passagem, observando pensativamente Lavinia, que nada tinha perdido da troca de olhares entre os dois e podia medir até que ponto, noutros tempos, haviam estado próximos um do outro. Aspasia sentiu que ela tinha um qualquer ascendente sobre Tobias e que ele, por sua vez, aceitava ter responsabilidades em relação a ela.

Nos últimos tempos, Lavinia tinha aprendido que Tobias levava as suas responsabilidades muito a sério.

Quando se voltou para trás, viu Aspasia entrar no quarto, cuja porta lhe parecia familiar.

Pelo menos um mistério estava resolvido, pensou. Ignorava a razão pela qual fora sumariamente enviada para o quartinho lá de cima, no fundo do corredor. Afinal, o mordomo e a governanta tinham conspirado para dar a Aspasia Gray o seu confortável aposento naquele andar.

Lorde Beaumont parou diante de uma porta.

- Eis o quarto de Lorde Fullerton - anunciou.

Tobias foi o primeiro a entrar. Acendeu uma vela, depois percorreu o compartimento com os olhos, antes de ir correr as cortinas.

O luar inundou o aposento, aumentando a fraca iluminação da vela.

Lavinia entrou por sua vez. O quarto era tão espaçoso quanto o de Tobias. A grande cama de dossel estava preparada para a noite, mas era evidente que não tinha sido usada. Os lençóis e as almofadas encontravam-se intactos. Via-se a pega de uma braseira de cama a sair do edredão.

- Lembro-me que ele declarou à criada que teria preferido aproveitar a sua cama, quente e confortável - participou Lavinia.

Tobias abriu metodicamente gavetas e armários, inspeccionando o conteúdo com atenção.

- Que disse mais? - perguntou ele, prosseguindo a sua tarefa.

- Queria que a criada lhe explicasse porque era preciso subir até ao telhado.

- Que história é essa da criada? - interveio Lorde Beaumont, fazendo um gesto zangado da soleira da porta.

- Cruzei-me com Fullerton num corredor, esta noite - respondeu Lavinia. - Estava acompanhado por uma criada loura, bastante alta, e tive a sensação de que se preparavam para um certo tipo de divertimento.

- Impossível - replicou Lorde Beaumont, com sincera indignação.

- As nossas criadas sabem que é estritamente proibido manter semelhantes relações com os convidados. Lady Beaumont nunca o permitiria.

Lavinia tinha-se aproximado da mesa-de-cabeceira para examinar os objectos que se encontravam sobre a sua superfície polida.

- A criada em questão parecia ansiosa por prestar o serviço a Fullerton. Foi ela, aliás, que sugeriu subirem antes ao telhado, em vez de utilizarem o quarto dele.

- Vou dizer ao mordomo que ponha este assunto em pratos limpos - declarou Lorde Beaumont, com uma expressão intrigada. - Uma loura alta, disse? Não vejo entre o meu pessoal ninguém que corresponda a essa descrição. Talvez seja uma eventual, da aldeia vizinha, contratada para o fim-de-semana. Com tantos convidados são sempre necessárias outras serviçais.

- Talvez - admitiu Lavinia, que não tinha encontrado em cima da mesa-de-cabeceira mais nada para além de objectos com todas as razões para aí se encontrarem: um castiçal, um par de óculos e um anel.

Em seguida, abriu o guarda-fato. Tobias aproximou-se e, juntos, inspeccionaram o conteúdo à luz da vela: fatos caros, feitos por medida.

- Gostaria de falar com essa criada loura - disse Tobias, enquanto abria as gavetas do guarda-fato, examinando a roupa interior e os lenços cuidadosamente dobrados. - Senhoria, poderia pedir ao seu mordomo que a chamasse?

Lorde Beaumont recuou um passo, hesitante.

- Se pensa que é necessário... Mas o que é que o preocupa, March?

- Quero saber se Lorde Fullerton ainda estava na companhia dela quando caiu lá de cima. - Explicou Tobias, que se tinha afastado do guarda-roupa para examinar por sua vez a mesa-de-cabeceira. Nesse caso, ela poderia contar-nos exactamente tudo o que se passou.

- Muito bem, vou falar com Drum - Beaumont deu meia volta e desapareceu no corredor, parecendo aliviado por ter mais alguma coisa que fazer.

Lavinia abriu uma mala e espreitou. Estava vazia. O seu conteúdo provavelmente fora arrumado no guarda-fato. Fechou-a e virou-se para Tobias, que se tinha ajoelhado para olhar para debaixo da cama. Quando este se levantou, fez uma careta de dor, mas Lavinia absteve-se de lhe fazer perguntas. Ele detestava que lhe recordassem o ferimento da coxa, sofrido em Itália alguns meses antes. Apesar de ter cicatrizado há muito tempo, fazia-se sentir de tempos a tempos.

- O que esperavas encontrar debaixo da cama? - perguntou-lhe.

- Não sei, diabos - terminou a busca e ergueu-se, agarrando-se à cama. - Bem, creio que terminámos, por aqui. - Impaciente, esfregou a coxa esquerda.- Agora, vamos inspeccionar o telhado.

- Tobias, qual é exactamente a tua ideia? Não acreditas que a morte de Lorde Fullerton tenha sido acidental, pois não?

Ele pareceu querer iludir a resposta, mas depois encolheu os ombros:

- Penso que Fullerton foi assassinado.

- Já receava que fosse essa a tua ideia. E como chegaste a tal conclusão? Tobias dirigia-se já para a porta com uma vela na mão.

- É uma longa história. E, sinceramente, não tenho tempo para ta contar agora. - Dirigiu-se à porta, levando consigo a vela numa pequena palmatória.

Estava de novo a evitá-la, mas, de momento, Lavinia preferiu não insistir.

- Muito bem. Mas podes ter a certeza que terás de me dar explicações mais precisas na primeira ocasião.

Tobias saiu para o corredor. A jovem preparava-se para lhe seguir as pisadas quando, sem razão aparente, se voltou para mais uma vez passar os olhos pelo quarto. Um raio de luar iluminava a mesa-de-cabeceira. Lavinia teve a sensação de que alguma coisa tinha mudado. Então, de repente, compreendeu que a disposição dos objectos se alterara.

Logo a seguir, apercebeu-se de qual era a diferença: o anel tinha desaparecido.

Um desagradável arrepio percorreu-lhe a espinha. Tobias não era um ladrão. Se tivesse levado o anel era porque tinha uma boa razão para o fazer - uma razão que não tinha querido confiar, nem a Lorde Beaumont nem a ela.

Decididamente, o sócio comportava-se de maneira curiosa, desde que tinha estado com Aspasia Gray...

- Não gosto mesmo nada dessa mulher - declarou em voz alta, antes de, por seu turno, deixar o quarto.

 

NOS APOSENTOS DOS CRIADOS REINAVA UMA CONFUSÃO, uma emoção e um pavor idênticos aos que Lavinia assistira nos andares inferiores. Tinham-se formado pequenos grupos, que discutiam em voz baixa pelos corredores estreitos e de tectos baixos. Quando Tobias e Lavinia apareceram, as conversas pararam de imediato. Todos se voltaram para olhar os intrusos provenientes dos andares dos hóspedes.

Tobias dirigiu-se à pessoa mais próxima, uma criada de camisa de noite.

- Onde é a escada para o telhado? - perguntou.

A rapariga encolheu-se como um coelho em frente de um lobo. Abriu a boca, mas dela só saíam gaguejos incoerentes.

- Então? - insistiu Tobias, num tom de voz onde havia um leve eco de condenação. - Onde fica essa bendita escada?

Os companheiros recuaram rapidamente, deixando-a sozinha diante de Tobias.

- P...p..or favor, senhor - a rapariga deteve-se quando Tobias se aproximou mais. Parecia prestes a desfazer-se em lágrimas.

Lavinia suspirou. Resolveu encarregar-se do assunto.

- Não vês que a estás a aterrorizar. - Colocou-se entre Tobias e a criada que tremia agora visivelmente. - Deixa que eu trato disto.

Tobias encolheu os ombros, aborrecido por ter de largar a sua presa, mas sem retirar da rapariga o seu olhar gelado.

- Se quiseres, mas despacha-te. Não temos tempo a perder.

Lavinia compreendia a reacção da criada. Tobias por vezes mostrava-se terrivelmente intimidatório. A sua atitude recordou-lhe quando se tinham conhecido.

Recordava bem a ocasião. Nessa noite, em Roma, quando tinha quase devastado a loja de antiguidades que ela abrira com Emeline, sob o pretexto de que a julgava cúmplice de uma rede de criminosos. Chegara a pensar que se tratava de um louco, mas depois vira a gelada inteligência do seu olhar e apercebera-se exactamente do que se tratava. De qualquer forma, aquilo ainda o tinha feito parecer mais ameaçador.

- Acalma-te - disse à jovem criada, tocando no medalhão de prata que trazia ao pescoço e falando em voz baixa e doce, como se a quisesse induzir a um transe hipnótico. - Olha para mim. Não tens nada a recear da nossa parte. Como te chamas?

- Nell, minha senhora.

- Ora bem, Nell, podes indicar-nos como chegar ao telhado?

- A escada fica ao fundo do corredor, minha senhora. Mas Drum, o mordomo, proibiu-nos de ir lá acima. Tem medo que caia alguém. A parede é muito baixa, sabe.

- Compreendo. - Pelo canto do olho, Lavinia viu Tobias encaminhar-se para a escada. Ia segui-lo, mas mudou de ideias.

- Conheces todos os empregados da casa, Nell? - perguntou.

- Sim, minha senhora. Somos todas da aldeia ou de uma das quintas aqui próximas.

A rapariga mostrava-se já mais à vontade. Não havia necessidade de a obrigar a olhar para o medalhão. Lavinia deixou de mexer no colar. A criada pestanejou e ergueu os olhos para os de Lavinia.

- Conheces uma rapariga um pouco mais alta do que tu, e talvez um pouco mais velha? Tem cabelos compridos, muito louros. Caracóis em forma de saca-rolhas. Esta noite usava uma touca enfeitada com uma fita azul. Parecia nova e tinha uma aba muito maior do que a tua.

- Uma touca nova com fitas azuis? - Nell referia-se àquilo que, sem dúvida, era a parte mais importante da descrição. - Não, minha senhora. Se alguma de nós tivesse a sorte de ter uma touca nova, decerto todas o saberíamos, garanto-lhe.

- Tens alguma colega alta e loira?

- Não estou a ver, minha senhora. Annie é alta, mas é morena. E Betty é loura, mas é bastante mais baixa que eu - a rapariga tinha uma expressão concentrada. - Não me lembro de ninguém com essa descrição.

- Não tem importância, Nell. Obrigada pela ajuda.

- De nada, minha senhora - Nell fez uma pequena vénia e lançou um olhar hesitante para o fundo do corredor, onde Tobias abria uma porta. Engoliu em seco. - O senhor deseja fazer-me mais perguntas?

- Não te assustes. Se ele quiser falar contigo eu venho com ele. Nell pareceu aliviada.

- Muito obrigada, minha senhora.

Lavinia apressou-se a ir ter com Tobias. Quando chegou à porta, já ele tinha desaparecido.

Sem uma vela, viu-se obrigada a subir às apalpadelas o estreito lance de escadas. Mas quando chegou ao cimo, a porta estava aberta.

Saiu e viu Tobias, à luz do luar, debruçado da parede baixa a olhar para o jardim.

- Foi daqui que Fullerton caiu? - perguntou, aproximando-se.

- Sim, creio que sim Olha. As marcas dos passos são claramente visíveis no soalho empoeirado.

Ergueu a vela para iluminar o outro lado da barreira. Com efeito, notavam-se na pedra marcas de pó e sujidade, feitas sem dúvida por alguém desesperado, que quisesse escapar a uma morte certa. Lavinia sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha.

- Sim, estou a ver.

- Parece-me que a mulher o atraiu aqui ao telhado - Tobias andava de um lado para o outro junto à parede. - Se Fullerton estava bêbado, como te pareceu - continuou - não deve ter sido difícil fazê-lo perder o equilíbrio. Bastou esperar pelo momento exacto.

- Sem dúvida. Contudo, isso não me explica porque te inclinas mais para a tese de assassínio do que para a de acidente.

- Soubeste alguma coisa da criada loura?

- Nell não conhece ninguém que se assemelhe à minha descrição revelou Lavinia, hesitante.

Tobias fez uma pausa e fitou-a. À luz da vela, o seu rosto tinha decididamente um aspecto sinistro. Lavinia entendia a reacção de Nell. Quem não o conhecesse bem, poderia sentir-se inclinado a fugir dele a sete pés quando o visse concentrado numa investigação.

- Então, talvez fosse uma convidada - concluiu Tobias. - Mais plausivelmente uma convidada que ainda estava vestida com o traje do baile de máscaras.

Lavinia lembrou-se da criada tal como a tinha vislumbrado. E negou-o com veemência.

- Não era um traje de baile de máscaras. Era vulgar, demasiado realista, percebes o que estou a dizer? O tecido do vestido era muito comum para ser usado por uma dama, mesmo para se divertir. Era uma fazenda grossa e feia. Os sapatos, as meias e o avental eram muito semelhantes aos que usam as criadas desta casa.

- Nesse caso, não era um traje mas sim um verdadeiro disfarce concluiu Tobias.

- Creio que está na altura de me explicares o que se passa - proferiu Lavinia.

Tobias manteve-se em silêncio, por uns instantes, continuando a inspecção ao telhado. Procurava, sem dúvida, quaisquer indícios susceptíveis de explicar o que se tinha passado, mas Lavinia receava que apenas se aproveitava disso para iludir a questão. Finalmente, no momento em que chegava ao canto mais afastado, resolveu-se a responder.

- Contei-te que, durante a guerra, fiz várias investigações confidenciais a pedido do meu amigo Lorde Crackenburne.

- Sim, já sei que foste espião mas, por favor, vai direito ao assunto.

- Preferia que evitasses empregar o termo espião quando discutisses as minhas actividades passadas - inclinou-se para observar qualquer coisa no pó. - Tem conotações pejorativas.

- Bem sei que a tua profissão não é considerada respeitável para um cavalheiro, mas não vejo porque temos de estar com pruridos quando estamos a sós. Tu foste espião e eu era comerciante para poder manter-me em Roma. Nenhum de nós tem um passado de que nos gabemos na alta sociedade. Mas, dados os factos, isso não tem importância. Continua a tua história.

Ele endireitou-se, aproximou-se da janela e contemplou a noite.

- Cos diabos, Lavinia, o problema é que eu não sei muito bem por onde começar.

- Ora bem, começa por me explicar porque ficaste com o anel que se encontrava em cima da mesa-de-cabeceira de Fullerton.

Tobias não pôde conter um sorriso.

- Então, reparaste? Foi bem observado pela tua parte. Decididamente, estás a fazer grandes progressos na tua nova profissão. Com efeito, guardei esse maldito anel.

- Por que razão? Não és um gatuno.

Procurou no bolso e tirou a jóia em questão. Examinou-a por uns instantes à luz da vela.

- Mesmo que me sentisse inclinado a praticar furtos, não teria pegado de boa vontade neste anel. Estou convencido que o deixaram lá para que eu o encontrasse.

Lavinia sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias. Aproximou-se de Tobias e examinou o anel que ele lhe estendia na palma da mão. À luz trémula da vela, viu um pequeno ataúde de ouro que Tobias abriu com aponta do dedo. Lá de dentro olhava-a uma caveira poisada sobre duas tíbias.

- É um anel memento-mori - disse Tobias franzindo levemente a testa. Foram muito populares em épocas passadas, embora eu não perceba porque é que as pessoas desejavam ser constantemente recordadas da inevitabilidade da morte.

- Há três anos atrás - continuou Tobias - dois cavalheiros, uma velha condessa e uma viúva riquíssima, desapareceram aparentemente de modo acidental ou suicidando-se. Uma tarde decidi discutir os acontecimentos com o meu amigo, o Lorde Crakenburne. Durante essa conversa, ocorreume que, de todas as vezes, a morte inesperada beneficiara alguém de um modo substancial.

- Referes-te a heranças?

- Sim. Nos quatro casos, mudaram de mão consideráveis fortunas, consideráveis propriedades e um ou dois títulos.

- Não vejo o que tem isso de extraordinário. Costuma ser assim, quando desaparece alguém rico e titular.

- Certo. Mas havia outros aspectos duvidosos que me despertaram curiosidade. Os dois suicídios, por exemplo, pareceram-me estranhos. Crackenburne, que sabia sempre tudo sobre toda a gente da alta, nunca tinha ouvido dizer que os dois cavalheiros em questão sofressem de melancolia ou de qualquer outra doença grave. Nenhum deles havia suportado revezes de fortuna que pudessem explicar semelhante atitude.

- E para os acidentes?

- A velha condessa andava a passear num lago gelado, numa tarde de Inverno. Quanto à viúva rica, partiu o pescoço ao cair da escada, numa tarde em que estava sozinha em casa.

Lavinia permaneceu silenciosa, olhando para o local onde Fullerton parecia ter feito frenéticas tentativas para evitar a queda que o vitimara. Tobias seguiu-lhe o olhar e abanou a cabeça antes de prosseguir:

- Pode dizer-se que a morte dela foi de certo modo semelhante à de Fullerton.

- Continua.

Tobias voltou a andar de um lado para o outro.

- Crackenburne, que tinha suspeitas, pressionou-me para investigar essas quatro mortes. Discretamente, é claro. Ainda ninguém tinha levantado a hipótese de assassínio, e as famílias das vítimas certamente não teriam apreciado semelhante suspeita.

- O que descobriste?

- Para começar, que a governanta da viúva tinha descoberto uma estranha jóia junto do corpo da patroa.

Lavinia sentiu as palmas das mãos geladas.

- Um anel memento-mori?

- Sim - Tobias fechou com força a mão que continha o anel. - Ora, a governanta trabalhava na casa havia já muitos anos e afirmou que esse anel não fazia parte das jóias da patroa, e contudo estava ao serviço dela havia muitos anos. Tendo-me interessado em seguida pelos dois suicídios, descobri que tinham encontrado anéis semelhantes nas bibliotecas de ambos os falecidos. Os criados também não os reconheceram.

Lavinia teve subitamente consciência do ar frio da noite.

- Já compreendo melhor as tuas suspeitas no caso de Fullerton.

- Uns quinze dias depois de começar a investigação, houve uma quinta morte. Desta vez, era um membro respeitável da Câmara dos Lordes que tinha aparentemente abusado do láudano. Graças às relações de Crackenburne, fui imediatamente prevenido dessa morte e autorizado a entrar na residência, antes do corpo ter sido retirado. Pude revistar o quarto onde o homem tinha morrido. Conforme o previsto, descobri outro anel em cima da secretária do defunto. Mas isso não foi tudo.

- Que mais descobriste?

- Havia manchas de lama no parapeito da janela. Aparentemente, alguém se tinha introduzido no quarto durante a noite, talvez para lá colocar o láudano. No jardim, por baixo do quarto, descobri um bocado de seda preta, preso a um ramo. Munido desse indício, acabei por descobrir a loja em que a roupa tinha sido comprada e, no prosseguimento, obtive a descrição do homem que a tinha adquirido.

- Bom trabalho!

- Surgiram outras pistas - Tobias fez uma pausa. - Poupo-te os restantes pormenores; basta-te saber que finalmente consegui identificar o assassino. Mas, por outro lado, este tinha compreendido que eu me aproximava perigosamente dele.

- Imagino que tenha saído de Inglaterra.

Tobias colocou um pé no baixo muro de pedra e apoiou o antebraço sobre a coxa. Parecia perdido em fosse o que fosse que procurava na noite.

- Não - disse por fim. - Considerava-se um cavalheiro que me tinha desafiado para um duelo mortal. Quando compreendeu que tinha perdido a partida, preferiu meter uma bala na cabeça.

- Estou a ver...

- Descobri, num cofre do seu escritório a colecção de anéis memento-rnori e uma espécie de diário pessoal, em que tinha registado todos os seus crimes.

- Meu Deus! Mantinha um diário pessoal?

- Sim.

- E os anéis? Porque razão os deixava nos locais dos crimes?

- Julgo que eram a sua assinatura, o modo de afirmar que os crimes eram seus.

Ela olhou-o atónita.

- Queres dizer que assinava as suas mortes, como um artista assina um quadro?

- Sim. Estás a ver? Tinha orgulho da sua habilidade. Evidentemente que não se poderia gabar deles no seu clube, por isso limitava-se a deixar os anéis entre os pertences da vítima.

- Meu Deus! Felizmente descobriste tudo e conseguiste pôr fim à sua carreira criminal!

- O caso, claro, foi abafado. De qualquer modo, eu nunca tinha tido a mínima prova directa dos crimes, e as famílias abastadas dos defuntos queriam evitar o escândalo que inevitavelmelmente teria suscitado uma investigação oficial. - O tom de voz de Tobias era agora mais duro. - Muitas vezes pensei que se tivesse sido mais atento e agido com maior celeridade, teria salvo algumas vidas.

- Que tolice - Lavinia colocou-se na frente dele. - Já chega dessa conversa, Tobias. Não quero que te culpes por não teres resolvido imediatamente os casos. Parece-me que ninguém tinha dado conta de que se tratavam de crimes, até tu teres aparecido para fazer encaixar as peças do enigma. É óbvio que identificaste um assassino extremamente inteligente que teria certamente continuado a matar indefinidamente se não o tivesses impedido de o fazer.

Tobias apertou com força o anel na mão e nada disse.

- O assassino escolhia as vítimas ao acaso, unicamente pelo prazer de matar? Ou tinha um móbil qualquer?

- Sem dúvida que o dinheiro era, em parte, um móbil. Ganhava uma comissão por cada morte. As transacções estavam muito bem indicadas no seu diário, juntamente com as datas das mortes e as quantias recebidas.

Mas não os nomes dos clientes, claro! Por seu lado, eles nunca souberam a identidade do homem que tinham contratado para cometer assassinatos a sangue-frio.

- Um assassino profissional - murmurou Lavinia, estupefacta. - Que estranha maneira de ganhar a vida. E dizes que era um cavalheiro?

- Sim. Tinha excelentes modos, elegância e encanto para dar e vender. Era do tipo que agrada tanto aos homens como às mulheres. Nunca lhe faltavam convites. Fazia parte de dois ou três clubes e era recebido em todo o lado pela alta sociedade. - Tobias olhou para a pequena caveira.

- Era esse o seu terreno de caça, sabes.

- Terreno de caça. Mas que expressão tão desagradável.

- Era aí que seleccionava os seus clientes e as suas vítimas. Desdenhava pura e simplesmente os vulgares malfeitores, gatunos e assassinos. Sem dúvida porque se considerava, ele próprio, fora do comum.

- Ora bem, mas já descobrimos criminosos nascidos em círculos sociais muito respeitáveis - fez uma pausa preocupada mais que nunca pela disposição lúgubre de Tobias.

Lavinia sentia intuitivamente que esta história tinha tocado Tobias de um modo muito pessoal. Pois, três anos passados, ainda parecia afectado.

- Antes de o descobrir, não sabias que era um assassino a soldo? Era teu amigo?

- Houve um tempo em que eu tinha confiança cega em Zachary Elland. Pode dizer-se que várias vezes lhe confiei a vida.

Essa simples confissão foi a resposta ao que ela desejava saber.

- Lamento - disse Lavinia pondo a mão no ombro do companheiro, num gesto afectuoso. - Que choque terrível deve ter sido quando descobriste a verdade.

- Foi a nossa maldita amizade que me impediu de ver a verdade durante tanto tempo - apertou a coxa com a mão num gesto de autocomiseração. - Contava com isso. Usou-a no seu falso jogo comigo. Fingiu até ajudar-me na investigação dos crimes.

- Tobias, falas como se tivesses falhado. Mas resolveste o caso. Ele pareceu não ter ouvido. Continuou a olhar para o bosque, ao luar,

que ficava para lá do jardim.

- Crackenburne apresentou-nos. Observava nessa altura Zachary nas mesas de jogo, pois sabia que precisávamos de alguém com habilidade para as cartas, para uma investigação especial. Crackenburne pensava que ele tinha sangue-frio necessário para ser um bom espião. Por outro lado, Zachary gostava de correr riscos.

Lavinia deixou ficar a mão nas costas de Tobias, como que para reconfortá-lo.

Não compreendo ainda porque tudo isso parece afectar-te tão profundamente, Tobias.

- Lamento dizer que talvez tenha sido eu quem o arrastou para o mundo do crime.

Lavinia sobressaltou-se:

- Que disparate! Como podes acredifar em semelhante coisa? - Apertou-lhe o ombro com força. - Não te podes de modo algum culpar porque um amigo teu se transformou num criminoso. Seria o mais completo disparate.

- Quem me dera que tivesses razão. Mas o facto é que as primeiras entradas no seu diário datam de pouco tempo depois de termos começado a trabalhar juntos.

- Não vejo em que é que isso o teria incitado a tornar-se num assassino.

- Eu era o instrutor dele. Ensinei-lhe a profissão. Era eu quem lhe atribuía as missões - Tobias respirou fundo. - Não havia dúvida que tinha uma aptidão especial para aquele trabalho.

- Continua.

- Logo na sua segunda missão ocorreu um incidente ao qual, na altura, eu deveria ter prestado mais atenção.

- Que incidente? - perguntou ela em tom crispado.

- Tinha-lhe pedido para vigiar um indivíduo que suspeitávamos estar ligado com um grupo de traidores. E, a acreditar em Zachary, o homem, tendo-se apercebido de que era seguido, puxou de uma faca e tentou assassiná-lo. Zachary, disse-me mais tarde não ter tido outra hipótese senão matá-lo; em seguida desembaraçou-se do corpo num rio. Na altura não houve razão para questionar a sua versão dos acontecimentos.

- Continua.

- Zachary desempenhou bem essa investigação e estava desejoso de que lhe fossem atribuídas outras missões. Os amigos de Crackenburne, bem colocados no governo, ficaram extremamente satisfeitos. Disseram-me que lhas atribuísse.

- E houve mais mortes?

- Sim, que eu saiba, mais uma. Mais uma vez, os amigos de Crackenburne concordaram tratar-se de um caso de legítima defesa e, como o morto era também um assassino, ninguém derramou muitas lágrimas. Pode ter havido mais outros dois incidentes. Nunca o saberei ao certo. Zachary não o admitiria e ninguém desejou mandar abrir uma investigação.

- Porque as mortes eram convenientes ao governo?

- Não foi só isso. Delas resultaram também a aquisição de informações sobre a marinha e o exército franceses - Tobias hesitou. - Mas interroguei-me muitas vezes se Zachary não teria tomado o gosto pelo assassínio ao trabalhar para nós como espião.

- Mas o que se passou depois de Napoleão ter sido derrotado pela primeira vez?

- Zachary voltou às mesas de jogo e a vida parecia correr-lhe bem. Os nossos caminhos afastaram-se, mesmo se nos acontecia, por acaso, encontrarmo-nos num clube qualquer.

- Foi então que ouviste os primeiros boatos de que andavam a ocorrer mortes na alta sociedade?

- Sim, acho que sim. Mas tenho de admitir que a morte de um senhor idoso ou de uma viúva rica não me provocavam grande curiosidade. Estava ocupado com a minha carreira de homem de negócios e com a educação de Anthony. Tinha pouco tempo para especulações ociosas. Depois, Napoleão fugiu da ilha de Elba e entrámos de novo em guerra.

- E Crackenburne pediu que retomasses a tua antiga profissão.

- E chamou também Zachary. Mas desta vez não me pediu que fosse eu a dar-lhe as instruções. Passámos a ser uma espécie de colegas e trocávamos informações. Contudo não trabalhávamos juntos.

- Quando começaste a suspeitar dele?

- Nos meses que se seguiram à vitória em Waterloo. A série de suicídios e acidentes ocorreu num curto espaço de tempo. Nessa altura, começava eu a estabelecer-me na minha nova carreira de detective privado. Tal como te disse, comecei a notar os pormenores semelhantes das mortes.

- E acabaste por chegar a Zachary Elland - concluiu ela.

- Sim, no decorrer da investigação, mostrei a Crackenburne os anéis das caveiras. Ele recordava-se de um assassino profissional que assinava os crimes da mesma maneira. Chamavam-lhe o Homem do Memento-Mori. Dizia-se que ninguém que tivesse conhecimento da sua verdadeira identidade, sobreviveria para o denunciar. Certamente que Elland teria também ouvido a história e decidira-se a copiar a lenda.

- Francamente, Tobias, não encontro qualquer relação entre os crimes de Zachary Elland e o seu passado como espião à tua responsabilidade.

- Quando encontrei o seu diário, deparei igualmente com uma carta que me era destinada. Zachary felicitava-me por lho ter vencido como se tudo aquilo se tratasse de um jogo de xadrez.

- Essa vilania é quase incompreensível.

- Informava-me na carta de que eu fora um adversário à sua altura. Dizia na última linha da carta: Vou sentir muito a falta da emoção da caçada.

- Não há dúvida de que era um monstro.

- Com efeito, para ser franco - disse Tobias em voz baixa. - Acontece-me por vezes entender a sua paixão pela caçada.

- Tobias!

- É inegável que se sente uma certa excitação com a ideia de pôr a mão numa presa. - À luz da vela, os seus olhos cintilavam como os de um enorme predador nocturno. - Elland disse-me uma vez que tínhamos muito em comum. É possível que tivesse razão.

Lavinia pegou-lhe no braço para o abanar.

- Basta, Tobias. Não vais sugerir, já agora, que eram parecidos. Uma coisa é o prazer da caçada. Mas tu, tu sempre estiveste do lado da justiça. Tu e eu sabemos perfeitamente que não és capaz disso.

- Por vezes, a meio da noite, pergunto-me se a diferença entre Elland e eu não será apenas uma questão de grau.

- Credo, Tobias, não vou tolerar essa conversa, ouviste? Ele sorriu sem vontade.

- Sim, Mrs. Lake, ouvi-a.

- Nunca conheci Zachary Elland, mas estou convencida de que vocês eram tão diferentes um do outro, como o dia da noite.

- Tens mesmo a certeza disso? - perguntou Tobias, com voz muito doce.

- Certeza absoluta. E, tal como sabes, a minha intuição nunca se engana. Tu não és um assassino, Tobias March. - Estava com vontade de o abanar.

Tobias não pronunciou palavra, mas o seu olhar mantinha-se desconcertante e firme. Então lembrou-se do último caso de ambos, aquele que intitulara no seu diário como o caso do hipnotizador louco. Aclarou a garganta.

- Bom, pode ter havido um ou dois infelizes incidentes nestes últimos anos, mas não passaram de acidentes.

- Acidentes - repetiu Tobias em tom neutro.

- Não, não foram acidentes - corrigiu ela, instantaneamente. - Foram actos desesperados de enorme coragem para salvar a vida de outras pessoas, inclusivamente a minha. Não foram certamente assassinatos a sangue frio. Há uma diferença enorme, Tobias - respirou fundo. - Mas já falaste demais sobre esse assunto. Explica-me agora o que é que Aspasia Gray tem a ver com este assunto. Ele franziu as sobrancelhas.

- Aspasia? Ainda não te expliquei?

- Não.

- Era a amante de Zachary.

- Amante de Elland, percebo. Isso já explica algumas coisas.

- Tinham-se conhecido umas semanas antes em Waterloo. Aspasia ficou loucamente apaixonada por Zachary. Era de resto recíproco e já tinham planos para o casamento. Nesse Verão, quando Zachary voltou ao trabalho de espião usou a apresentação de Aspasia na sociedade para aceder a certas pessoas importantes e ricas. Julgamos que, para além de usar os conhecimentos para conseguir informações, também se aproveitou dessas oportunidades para arranjar os seus clientes particulares.

- Valha-me Deus!

- Depois, um belo dia, Aspasia descobriu o segredo. Horrorizada, fugiu dele. Muitas vezes me perguntei se não teria sido a perda da sua amada, mais que os progressos da minha investigação, que o tinha levado ao suicídio.

- Custa-me a acreditar que um assassino dessa têmpera possa nutrir sentimentos tão românticos - objectou Lavinia.

- Curiosamente, Zachary possuía uma natureza umas vezes violenta, outras, romântica. Fazia-me lembrar aqueles artistas que procuram inspiração nas experiências que lhes proporcionam extremos de emoção e sensação.

- Seja qual for o preço a pagar?

- Zachary não se importava com isso. Queria viver intensamente.

- Como é que Aspasia reagiu ao suicídio?

- Ficou completamente aniquilada. Nunca a tinha visto em semelhante estado. Zachary fora o grande amor da sua vida e estava inconsolável. Se sofria tanto, não era apenas pela morte dele.

- Imagino que estaria bastante afectada por não ter sabido descobrir a sua verdadeira natureza.

- É certo. Aspasia é uma mulher do mundo, como sem dúvida verificaste. Considera-se por demais inteligente para ser enganada em matéria de amor. A burla de Zachary abalou-a no mais íntimo do seu ser.

Lavinia sabia que não teria dúvidas em sentir um mínimo de compaixão por Aspasia, mas o simples facto de a recordar pendurada ao pescoço de Tobias bastava para lhe fazer desaparecer qualquer sentimento de piedade.

Contudo, devia reconhecer que o facto de ter descoberto que o homem que amava era na realidade um assassino profissional, cujo prazer pelo trabalho o levava a assinar os próprios crimes seria o suficiente para abalar os nervos da própria Cleópatra.

- Aposto que sentes que tens responsabilidades para com ela - salientou. - E não duvido que a Mrs. Gray se aproveite disso. Nunca te censurou por teres ajudado Zachary a seguir a sua tendência malvada?

- Nunca de viva voz, mas, com efeito, suspeito que o pense.

- Tolices! - exclamou em voz áspera. - Não passam de tolices.

- Aspasia certamente também sente culpas, pois foi ela que acabou por abrir as portas do grande mundo a Zachary, o que o conduziu a certos crimes.

Lavinia suspirou.

- Não duvida de que se trata de uma triste história.

Tobias abriu a mão e contemplou mais uma vez o anel sinistro à luz da vela.

- Dá a ideia de que alguém decidiu continuar a história.

- Certamente que não acreditas que seja mesmo Zachary Elland, que veio de entre os mortos para voltar ao trabalho!

- Claro que não. Fui eu quem descobriu o corpo dele e assisti ao seu enterro. Mas o novo assassino já enviou um anel igual a Aspasia, e estou convencido que este me estava reservado.

- Juraria que estás a falar de um velho conhecido que te anuncia o regresso à cidade.

- Com efeito assim parece. Esta manhã, Aspasia ficou transtornada com a descoberta do anel à sua porta. Foi por isso que me seguiu até aqui.

- Hmm.

Tobias franziu a sobrancelhas.

- O quê? O que há?

- Preciso de te fazer lembrar que, há pouco, Aspasia não parecia particularmente transtornada.

Ele esboçou um sorriso irónico.

- Não é o género de mulher que desmaie à primeira contrariedade. Mas eu conheço-a melhor que tu e garanto-te que esta noite estava seriamente perturbada.

- Se tu o dizes... Pessoalmente, acredito antes que procura tirar proveito do teu sentimento de culpa para te manipular.

Tobias meteu o anel no bolso.

- Aspasia não precisa de recorrer a semelhantes artifícios para obter o meu apoio e sabe-o muito bem - Tobias enfiou o anel no bolso. - Ninguém mais do que eu deseja encontrar este novo Homem do Memento-Mori. Acabam de me lançar um desafio e não há tempo a perder.

- Deixa-me ajudar-te, Tobias.

- Está fora de questão. Não quero que te mistures nesta história.

- Acabaste de dizer que era preciso agir rapidamente. Precisas de toda a ajuda que possas obter. E recordo-te que já não sou principiante.

- Por favor, Lavinia...

A jovem levantou a mão para o fazer calar.

- Também te recordo que, por enquanto, sou a única testemunha que tens à disposição. De acordo, a minha descrição da criada não nos levou a lado algum, mas eu também reparei noutros detalhes que se poderão tornar úteis.

Enquanto falava, Lavinia reparou, pelo canto do olho, num bocado de tecido branco na sombra da chaminé. Tirando a vela das mãos de Tobias, correu a apanhá-lo.

- Ora, ora, mas o que temos aqui?

Tobias retirou o pé de cima do muro e seguiu-a.

- O que é?

- Não tenho bem a certeza, mas talvez seja o nosso primeiro indício - anunciou Lavinia. - A touca.

Tobias tirou-lhe das mãos a enorme touca mole e examinou-o com atenção à luz da vela.

- Isto pode ser a touca de qualquer uma das criadas.

- Não. É uma touca particularmente grande e está ornada por uma fita. Não me espantaria encontrar cabelos louros nela, quando olharmos com mais atenção e a uma luz mais forte. Tobias, isto pode provar que o assassino é uma mulher.

Tobias examinou a touca durante algum tempo.

- Ou um homem disfarçado de mulher.

 

LORDE BEAUMONT ESPERAVA-OS NA BIBLIOTECA NA COMPANHIA do mordomo, Drum, e de um homenzinho nervoso que lhes foi apresentado como sendo o Dr. Hughes.

O dono da casa parecia ainda mais baixo e mais gordo, sentado atrás da enorme secretária, com um copo meio vazio na mão.

O álcool parecia tê-lo acalmado, pois já não parecia ansioso ou hesitante.

Sua senhoria reassumira de novo a autoridade nos seus domínios. Em resposta à pergunta de Lavinia, Drum assegurou que ninguém,

de entre as empregadas do castelo, correspondia à descrição da criada loura.

Lavinia agitou então a touca.

- E isto? - perguntou.

Todos os olhares convergiram para a touca.

- Não duvido que tenha visto Fullerton com uma mulher - interveio Beaumont. - Mas podia tratar-se de uma das raparigas da aldeia. Quem quer que fosse, era evidente que Fullerton tinha bebido demais. Quis subir ao telhado com essa criatura e isso terminou num lastimável acidente. - Virou-se para o médico para obter o assentimento deste. - Isso parece-lhe correcto, Dr. Hughes?

O médico aclarou a garganta e fez uma tentativa para se endireitar um pouco mais na cadeira.

- Com efeito. Examinei o corpo com atenção e não há dúvida que Lorde Fullerton foi vítima de um malfadado acidente.

Tobias praguejou em surdina. Lorde Beaumont tinha visivelmente decidido encerrar o caso o mais rapidamente possível. A possibilidade de um assassínio seria muito mal acolhida.

Lavinia enrugou a testa.

- Senhoria, o Mr. March e eu suspeitamos que essa criatura, seja ela quem for, tenha deliberadamente empurrado Lorde Fullerton para o vazio. Precisaríamos de outras testemunhas que eventualmente nos permitissem identificá-la.

Beaumont franziu as sobrancelhas em direcção a Drum que assumiu um ar impassível.

- Como sua senhoria explicou, provavelmente essa rapariga terá vindo da aldeia, para trabalhar aqui só estes dias. Quando Lorde Fullerton caiu, muito provavelmente desorientou-se e fugiu antes de poder ser interrogada. O que é compreensível. Se se espalha a notícia que estava com um cavalheiro, mais ninguém na vizinhança lhe quererá dar emprego.

- Mas também é possível que ela ainda se encontre no castelo insistiu Lavinia. - Devemos reunir rapidamente os criados, bem como os convidados, a fim de os interrogar.

Lorde Beaumont fez-se vermelho. Abriu e fechou várias vezes a boca, antes de conseguir falar.

- Interrogar os meus convidados? Enlouqueceu, Mrs. Lake? Isso está fora de questão. Estão absolutamente proibidos.

- Sabe que talvez estejamos perante um assassinato.

- Fullerton não foi assassinado. Foi um acidente.

- Infelizmente, temos boas razões para pensar que...

- Pense o que quiser, Mrs. Lake. Mas estou na minha casa e não vou permitir que incomodem mais os meus convidados.

Tobias compreendeu que um confronto tão directo não os levaria a lado algum. Tentou então outra táctica.

- Admite que Fullerton se encontrava com uma mulher pouco antes de cair lá de cima, mas o senhor acha que ela não tem nada a ver com o caso.

- Fullerton tinha bebido demais - repetiu Lorde Beaumont antes de despejar o copo. - Perdeu o equilíbrio e caiu, ponto final. É uma tragédia, mas não um assassinato.

Tobias apenas pôde lamentar a rapidez com que o seu anfitrião tinha recuperado da anterior confusão, conseguindo o apoio do mordomo e do médico. A situação voltara a ficar controlada no que a sua senhoria dizia respeito, pois recuperara a autoridade. Na verdade, ninguém o poderia censurar por não querer reconhecer a hipótese de haver sido cometido um assassínio debaixo do seu tecto: a sua reputação seria afectada por muito tempo.

- Permita-me fazer-lhe notar que, sob o meu ponto de vista profissional, este assunto levanta algumas questões para as quais seria vantajoso encontrar respostas - começou Tobias prudentemente: - Com a sua autorização, pretendia continuar discretamente o meu inquérito.

Lorde Beaumont pousou as mãos em cima da secretária e levantou-se. - É de todo impossível, March. Já houve agitação suficiente nesta casa. Lady Beaumont está transtornada.

Lavinia batia com o pé no tapete. Tobias percebia-lhe o olhar fulminante. Fez-lhe sinal para se acalmar, mas ela ignorou o aviso silencioso.

- A preocupação de Lady Beaumont é perfeitamente compreensível - interveio ela numa voz brusca. - Mas como acabámos de lhe explicar, é possível que se trate de um homicídio. Algumas perguntas tornam-se indispensáveis. Não vejo em que iriam aborrecer os convidados.

- Pela última vez, repito-lhe que não houve assassinato - contrariou Lorde Beaumont, em tom autoritário. - E deixe-me a mim julgar quem pode, ou não, aborrecer os meus convidados, minha senhora.

- Perdoe-me, senhoria, mas insisto que nos autorize as investigações - repetiu Lavinia. - Temos bastante experiência neste género de assuntos para...

Lorde Beaumont reagiu exactamente como Tobias esperava: explodiu.

- Insiste, Mrs. Lake? Mas quem pensa a senhora que é?

Tobias suspirou, preparando-se para o inevitável. E dizer que Lavinia o censurava frequentemente por não se mostrar muito diplomático com os clientes!

- A senhora não tem o direito de insistir dentro desta casa - vociferou Lorde Beaumont. - De resto, e para pôr um ponto final no assunto, nem a senhora nem o Mr. March teriam sido convidados esta noite, se eu não tivesse um favor a retribuir a Lorde Vale.

- Compreendo perfeitamente - replicou Lavinia, apressadamente. - Foi muito amável da sua parte convidar-nos para o seu castelo. O Mr. March e eu apreciámos muito a sua hospitalidade. Foi tudo da maior elegância. O facto de meu quarto ser pequeno e mal mobilado foi apenas um lapso.

Lorde Beaumont ficou por instantes sem voz.

- O quê? - sufocou ele, com os olhos esbugalhados. - Tem a ousadia de se queixar do tamanho do quarto?

- Acredite mesmo que não. Certamente que não foi por culpa de vossa senhoria que me desalojaram dos confortáveis aposentos que me tinham sido destinados no segundo andar, para me mandarem praticamente para as águas-furtadas, para um quarto muito menos apropriado

- fez um gesto com a mão, como se se tratasse de uma questão sem importância.

- Não falemos mais nisso. Bastará para o pouco tempo que vamos passar aqui. Mas para voltar ao assunto da nossa preocupação...

Agarrado ao rebordo da secretária, Lorde Beaumont debruçou-se para a frente, como um touro prestes a atacar.

- Parece-me, minha senhora que estando obcecados como estão pela vossa teoria fantasista, nem a senhora, nem o Mr. March já estarão em condições de apreciar a vossa estada entre nós.

- É muito gentil da sua parte preocupar-se com o nosso bem-estar, mas, tranquilize-se, correrá tudo bem.

- Duvido. E não ficaria surpreendido que a senhora e o Mr. March tivessem pressa de voltar a Londres - resmungou Beaumont.

- Não, na verdade, nós...

- Logo de manhã, Drum vai mandar uma criada e um criado para vos ajudar a fazer as malas. A vossa carruagem estará pronta às nove horas. Não, às oito e meia. A viagem até Londres é grande, e estou certo que gostará de chegar à capital o mais cedo possível.

Estupefacta, Lavinia fixou-o por um momento em silêncio. Depois a fúria faiscou-lhe nas pupilas e entreabriu os lábios.

- Excelente sugestão, senhoria - disse Tobias, antes que Lavinia pudesse falar. Agarrou a jovem pelo braço antes de a conduzir para a porta. - Venha, Mrs. Lake, vamos então lá a cima fazer os preparativos para a nossa viagem.

Por momentos, pensou que ela quisesse resistir. Apertou os dedos em redor do seu braço, num aviso silencioso.

- Claro - Lavinia conseguiu fazer um sorriso glacial a Lorde Beaumont. - Boa-noite, senhoria. Espero que nenhum outro acidente venha estragar o prazer dos seus convidados depois da nossa partida. Isso seria deplorável para a sua reputação. Suponho que mais ninguém se arriscará a assistir às suas recepções, se se espalhar a notícia de que acontecem acidentes seja a quem for.

Tobias estremeceu, mas era demasiado tarde. As suíças de Beaumont estremeciam de fúria.

- Como ousa, minha senhora? Se insinua que tento deliberadamente dissimular uma tentativa de assassinato...

- Não insinuo, verifico-o, senhoria - cortou Lavinia em tom muito mais suave.

- Já basta - sussurrou-lhe Tobias ao ouvido, antes de se virar para Lorde Beaumont. - Desculpe o nervosismo dela, senhoria. Acredito que a morte de Fullerton a abalou. Tem toda a razão, é preferível que a leve para casa, sem demora. Partiremos portanto logo às primeiras horas da manhã.

Lorde Beaumont tinha-se acalmado um pouco.

- A Mrs. Lake está visivelmente perturbada. Estou certo que se sentirá melhor, quando estiver em casa.

Tobias notou que Lavinia se preparava para objectar. Felizmente já tinha aberto a porta. Empurrou-a para o corredor antes que ela tivesse tempo de deitar mais achas na fogueira.

Lavinia tremia de raiva pelo ultraje. O ar quase assobiava à sua volta.

- Corrige-me se estou enganada - disparou ela após ter dado uns passos -, mas parece-me que Lorde Beaumont acaba de nos expulsar do seu castelo.

- Também me parece. Mas consolo-me dizendo que talvez não fossemos feitos para este género de divertimentos.

 

SUBIRAM A ESCADA EM SILÊNCIO.

- Suponho que pensas que é por culpa minha que somos obrigados a partir - arriscou Lavinia, quando chegaram ao primeiro andar.

- Sim, mas não te preocupes muito com o assunto. De qualquer maneira, já tinha chegado à conclusão que era preferível voltarmos para Londres.

Lavinia lançou-lhe um olhar confuso.

- E o inquérito no local do crime?

- Penso que já vimos tudo o que havia para ver aqui. Duvido muito que o assassino, tendo acabado o trabalho, se tenha demorado no castelo. Provavelmente, já deixou a região.

- Mmm. Percebo. Teria então vindo matar Fullerton, porque sabia que tu estarias por aqui. Queria assegurar-se de que terias conhecimento do seu crime.

- Com efeito, suspeito que raciocinou assim - respondeu. Continuaram até ao andar de Lavinia. Quando estavam a chegar ao patamar, deram com um pequeno grupo reunido no corredor. Duas mulheres de idade indeterminada, vestidas com roupões estampados e toucas enormes, mantinham uma conversa animada com um jovem que não devia ter muito mais que vinte anos. Discutiam, evidentemente a morte de Fullerton.

- Estão instalados no meu andar - explicou Lavinia a Tobias, em voz baixa. - O jovem é o Mr. Pierce, cabeleireiro de Lady Oakes e as duas mulheres são as damas de companhia de duas das convidadas dos Beaumont.

As três cabeças voltaram-se ao mesmo tempo para Tobias e Lavinia, com os olhos a brilhar de curiosidade. Qualquer coisa na atitude das duas mulheres inquietou Tobias. Olhavam-no com um ar estranhamente firme e ao mesmo tempo levemente atónito.

Mesmo sem Lavinia o ter informado, facilmente teria adivinhado a profissão delas. Ambas mostravam a postura resignada, discreta e quase descolorida das mulheres a quem um revés da fortuna transformara em damas de companhia.

Tobias calculava que se tivessem deitado cedo, já que a sua posição não lhes permitia participarem nas festas nocturnas dos patrões. No plano social, uma dama de companhia estava apenas acima de uma governanta. Não eram criadas mas, em caso algum, podiam pretender a uma igualdade com aqueles que serviam. A combinação da educação refinada com a pobreza condenara-as a uma profissão em que se esperava que permanecessem em silêncio e discretamente na sombra.

Imaginou então que aquela pequena bisbilhotice nocturna a respeito de uma morte violenta fosse a coisa mais emocionante que alguma vez tivesse acontecido àquelas duas mulheres.

Só uma única vez Tobias tinha encontrado duas damas de companhia que não correspondiam a esse perfil: Lavinia e a sua sobrinha, a Emeline. De resto, não tinham permanecido muito tempo numa profissão que não estava adaptada aos seus temperamentos impetuosos.

- Mrs. Lake! - exclamou o jovem cabeleireiro. - Estávamos justamente a falar em si. Tínhamos medo que tivesse ficado chocada com o espectáculo do corpo. Está tudo bem? Não precisa de sais?

- Sinto-me perfeitamente. Obrigada, Mr. Pierce - sossegou-o Lavinia, com um sorriso, antes de se dirigir às duas mulheres: - Permitam-me que lhes apresente o meu amigo, Mr. March. Tobias, apresento-te Miss Richards e Míss Gilway.

Tobias inclinou-se delicadamente.

- Encantado, minhas senhoras.

Ambas coraram até aos cabelos.

- Igualmente, Mr. March - disse Miss Gilway, a sorrir.

- Como está? - murmurou Miss Richards.

- E este é o Mr. Pierce - rematou Lavinia, executando um gesto teatral, como se quisesse anunciar a chegada ao palco de um actor célebre.,

- É o autor do espectacular penteado que Lady Oakes ostentava no baile, esta noite. Calculo que tenhas reparado, Tobias.

- Não creio - admitiu este último.

- Fileiras e fileiras de complicados caracóis amontoados à frente - ergueu as mãos sobre a testa em forma de pequena pirâmide. - Um carrapito atrás, entrançado e enrolado com mais caracóis em cima? Garanto-te que Lady Oakes estava impressionante.

- Com certeza - não tinha qualquer lembrança do penteado de Lady Oakes nessa noite, mas acenou imediatamente em direcção a Pierce.

- Fantástico.

- Obrigado - respondeu Pierce, inclinando-se com calculada modéstia. - Penso que me saiu muito bem. A fileira de caracóis sobre o carrapito e o rolo são da minha autoria. Considero-os a minha assinatura.

- Mmm. Lavinia sorriu

- Demorei a subir ao meu quarto, porque o Mr. March e eu precisámos de nos informar quanto ao acidente de Fullerton.

Pierce abanou a cabeça com ar de entendido.

- Compreendo - Pierce olhou Tobias, com uma breve expressão de apreço. - Recordo-me que me falou sobre o seu trabalho com o Mr. March. Investigações particulares, não é? Seja o que for, não se deveria ter exposto a um espectáculo tão chocante. Arrisca-se a ter pesadelos.

A solicitude que o cabeleireiro manifestava para com Lavinia teve o condão de irritar Tobias. Pierce era um desses homens que Emeline e Priscilla, sua amiga inseparável, descreviam como loucamente românticos.

Por pouco que conhecesse de moda, Tobias estava convencido que os caracóis que lhe caíam negligentemente pela testa não deviam nada à natureza. Vários amigos de Anthony exibiam penteados semelhantes. Este explicara-lhe que só não cedera ao movimento, devido à necessidade de utilizar um ferro quente de frisar e de passar horas e horas em frente ao espelho.

Pierce parecia ter sido interrompido, quando se preparava para se deitar. Apenas trazia uma camisa branca de folhos e umas elegantes calças franzidas. Uma fita preta enrolada ao pescoço de modo desenvolto evocava a moda lançada por Byron e pelos românticos. Não se preocupara em cobrir a pele nua exposta pela camisa aberta.

- Que género de informações conseguiram? - inquiriu Miss Gilway, sem desviar os olhos de Tobias.

- Queríamos assegurar-nos de que não se tratava de um delito explicou Lavinia.

- Delito? - Miss Richards trocou com a amiga um ar de delicioso terror. - Não foi um assassinato?

Miss Gilway, pela sua parte, abanava-se com a mão.

- Deus do Céu! Quem poderia imaginar uma coisa dessas?

- Assassinato? - Pierce fitava Lavinia. - Está a falar a sério, Mrs. Lake? Tobias lembrava-se de ter visto a mesma expressão fascinada no rosto de Anthony. Reflectia certamente o entusiasmo do jovem pelas coisas macabras.

- A acreditar em Lorde Beaumont e no seu médico, a hipótese de homicídio não é aceitável - respondeu Lavinia num tom neutro.

- Ah... - disse Pierce, cuja excitação já se tinha dissipado.

As duas damas, também, pareciam decepcionadas, mas Miss Gilway murmurou delicadamente:

- Deus seja louvado!

- Que alívio - apressou-se a acrescentar Miss Richards. - Arrepia-me a ideia de que um assassino pudesse andar pelo castelo.

Fixaram ambas o olhar em Tobias.

- Não há com que se preocupar - assegurou-lhes Lavinia. - Podem voltar para a cama sem receio. Não é verdade Tobias?

- Sim - confirmou este e, pegando no braço da jovem, acrescentou: - Permite-me que te conduza até à porta. Está a fazer-se tarde e partimos amanhã cedo.

- Voltam para Londres? - admirou-se Miss Gilway. - Porquê tão cedo?

- Assuntos pessoais - replicou Lavinia, sorrindo para os três. Prefiro dizer-vos agora adeus, pois sem dúvida estarão a dormir quando partirmos.

Pierce inclinou-se delicadamente, de novo.

- Desejo-lhe uma boa viagem, minha senhora. - Pierce fez outra vénia graciosa. - E recorde-se daquilo que eu lhe disse, há bocado, quando se preparava para descer ao baile: ficaria encantado em tê-la como cliente. Penso que poderia fazer prodígios com o seu cabelo.

- Obrigado, Mr. Pierce. Pensarei nisso.

Deu o braço a Tobias mas, de repente, mudou de ideias:

- A propósito de cabelos, tenho uma pergunta a fazer-lhe.

- Às suas ordens, minha senhora, - respondeu Pierce, que decididamente investia em galanteria. - Essa pergunta estará relacionada com os acontecimentos desta noite?

- Oh, trata-se apenas de um pormenor insignificante - afirmou Lavinia. - Imagino que deve ter uma certa experiência em matéria de postiços e perucas, não é?

- Qualquer jovem elegante deve possuir, pelo menos, um ou dois carrapitos postiços - replicou Pierce com segurança. - Depois de certa idade, as mulheres deverão investir em várias perucas. Não têm alternativa, se quiserem estar na moda.

- Viu os convidados chegar ao baile, esta noite. Terá, por acaso, reparado nalguma mulher que usasse uma peruca loura?

Pierce franziu as sobrancelhas, admirado.

- Loura? Deus do Céu, não. Semelhante espectáculo ter-me-ia horrorizado.

Tobias espantou-se.

- Porque o teria horrorizado? Acaba de nos dizer que as perucas são um acessório muito apreciado pelas damas.

- Sim, mas não perucas louras! - Pierce ergueu os olhos ao céu, desejando certamente não ser obrigado a responder a perguntas tão estúpidas.

- É evidente que não conhece nada de moda, Mr. March. Permita-me que o informe que, em matéria de postiços, o louro é tão vulgar quanto o ruivo.

Fez-se um pesado silêncio. Olharam todos para Lavinia cujos cabelos ruivos brilhavam à luz do candeeiro de parede. Os olhos de Tobias fuzilaram o cabeleireiro, pois pensou que este tivesse insultado a jovem.

- Pessoalmente, acho os cabelos da Mrs. Lake perfeitos assim declarou.

Embora Tobias não tivesse levantado a voz, as duas mulheres sobressaltaram-se e recuaram. Fixavam agora Tobias como se este, de repente, se tivesse transformado num animal selvagem.

- Tobias pára imediatamente! - avisou Lavinia.

Mas ele não tinha vontade de parar. Não estava de bom humor após aquela interminável noite cheia de dificuldades.

Pierce, entretanto, parecia não ter consciência do perigo. A sua atenção concentrara-se em Lavinia.

- Na verdade, deveria permitir que lhe fizesse uma visita depois de voltarmos para Londres - disse a Lavinia e era visível que tinha verdadeiro interesse no seu penteado. - Ficaria maravilhosa com uma peruca escura. O contraste com os seus olhos seria surpreendente.

Franzindo as sobrancelhas, Lavinia afagou os cabelos.

- Acha que sim?

- Não tenho a mínima dúvida - Pierce dobrou um braço, apoiou sobre ele o outro cotovelo e coçou o queixo com ar pensativo, contemplando agora a jovem como um escultor que examina uma estátua quase terminada. - Já estou a ver o resultado, e seria fantástico, garanto-lhe. Um postiço e uns frisados para lhe proporcionar um pouco mais de altura. Deveria ser um pouco mais alta, para ser perfeitamente elegante.

- Irra! - explodiu Tobias. - Quanto a mim, a altura da Mrs. Lake está muito bem assim.

Pierce dignou-se a conceder-lhe um olhar em que conseguiu resumir todo o seu desprezo. Fez depois um gesto desdenhoso com a mão.

Nada mau para um cabeleireiro, pensou Tobias, vagamente divertido.

- O senhor não conhece nada de estilo - disse Pierce. - Portanto não está em posição de julgar as potencialidades da Mrs. Lake.

Tobias já pensava torcer o pescoço ao cabeleireiro, quando Lavinia lhe agarrou firmemente o braço, obrigando-o a desistir do projecto. Seria desagradável e a noite já ia longa.

- Foi muito amável em me ter oferecido o seu conselho profissional, Mr. Pierce - declarou a jovem obsequiando-o com um sorriso caloroso. - Pode ter a certeza de que vou considerar a sua proposta.

Pierce remexeu num bolso e tirou um cartão de visita.

- Permita-me que lhe dê o meu cartão. E todavia, não hesite em enviar-me uma palavra quando se decidir pôr em prática um plano da elegância mais sofisticado. Far-lhe-ei rapidamente uma marcação.

- Obrigada. - Lavinia pegou no cartão e inclinou a cabeça para desejar as boas-noites a Miss Richards e a Miss Gilway.

- Boa-noite, desejo-vos a todos um feliz regresso. Ouviu-se um pequeno coro de despedidas. Pierce retirou-se para o quarto. Miss Gilway e Miss Richards entraram no aposento que partilhavam.

Tobias e Lavinia continuaram no corredor.

- Porquê esse ar? - Lavinia abriu a porta do quarto, entrou e voltou-se para Tobias. - Parecia que ”ias explodir.

Tobias olhou para o corredor, agora vazio, pensando na conversa, que acabavam de ter.

- A tua pergunta sobre perucas louras foi muito astuciosa - reconheceu. - A resposta dele abre-nos perspectivas interessantes.

- Obrigada - respondeu ela, sem procurar esconder o prazer que lhe proporcionava o cumprimento. - Se as perucas louras estão tão pouco na moda, seria normal que um assassino não comprasse uma que inevitavelmente impressionasse eventuais testemunhas. Isso parece confirmar a hipótese de o homicida ser mesmo uma mulher, com cabelos muito louros.

Tobias abanou a cabeça.

- Julgo que devemos concluir exactamente o contrário. Lavinia franziu os sobrolhos.

- Como assim?...

- Reflecte, Lavinia. Foram os cabelos louros do assassino que mais mpressionaram. Tal como a sua touca de fitas. Tenho ou não razão?

- Tens, mas... - quis objectar a jovem, antes de abanar bruscamente a cabeça em sinal de assentimento. - Estou a ver! Pensas que o assassino escolheu deliberadamente esses acessórios facilmente identificáveis, no caso de se cruzar com alguma testemunha? Ele acenou afirmativamente.

- A imitação do Homem do Memento-Mori foi para despistar. Se este novo assassino lhe quer seguir os passos, vai adoptar a mesma estratégia. Por isso, estou convencido de que se tratava de uma peruca loura. E que estamos perante um homem que, na altura, estava disfarçado de mulher.

Lavinia não parecia ainda completamente convencida.

- Quanto à peruca, penso que tens razão. Por outro lado, por agora, nada nos permite afirmar que o assassino é um homem.

- Pelo menos é um início - sustentou Tobias, com o braço negligentemente apoiado na ombreira. - Uma vez que as perucas louras estão fora de moda, não serão muito vulgares nas lojas. Os fabricantes de perucas de Londres não são assim tão numerosos. Não deveremos ter dificuldade em descobrir quem vendeu uma recentemente, nem a quem.

- Não compartilho do teu optimismo. É verdade que qualquer comerciante deve recordar-se facilmente, se vendeu um artigo que dê tanto nas vistas. Mas não podemos depender da localização da loja. Quem nos diz que o assassino não a encomendou em qualquer outro lado. Muitas damas e cavalheiros elegantes mandam vir as perucas directamente de Paris. Também poderá ter sido roubada de um teatro ou, por exemplo, da mala de um actor. A busca deste fabricante de perucas, em particular, pode afigurar-se-nos uma perda de tempo.

- Seja como for, esta peruca loura é um indício. E não temos muito mais a que deitar o olho, por enquanto.

Lavinia foi obrigada a admitir que, nesse ponto ele tinha razão. No entanto continuava de testa franzida.

- Tobias, não é por o homicida usar uma peruca que devemos concluir que se trata de um homem. Arriscamo-nos a negligenciar indícios válidos se afastamos logo ao princípio a ideia de que foi uma mulher que eu vi na companhia de Fullerton.

Tobias agarrou a porta com força.

- Não é apenas uma questão de peruca.

- Deve custar-te imaginar uma mulher na pele de um assassino profissional, não é verdade?

- Não. Mas o anel leva-me a pensar que procuramos um homem. Recorda-me muito o trabalho de Zachary Elland.

- Porque é que uma mulher não havia de querer igualá-lo, até mesmo ultrapassá-lo?

Tobias abanou a cabeça. Não sabia como explicar com argumentos lógicos aquilo que dependia da intuição.

- Parece mais provável que um homem procure comparar-se a outro homem.

- Certo - admitiu Lavinia, com ar sonhador. - Já muitas vezes notei que os homens têm tendência para ser altamente competitivos. Adoram corridas de cavalos, combates de boxe e apostas, não é verdade?

Ele ergueu uma sobrancelha.

- Não tentes fazer-me crer que as mulheres são desprovidas de espírito de competição. Já vi planos de guerra postos em prática, num salão de baile, durante a temporada. Uma mãe da alta sociedade, que pretenda casar a filha, pode vir a revelar-se uma estratega capaz de fazer Wellington corar de inveja.

Para grande espanto de Tobias, a jovem não sorriu. Inclinou a cabeça reconhecendo, com ar sombrio, a verdade da observação.

- Um casamento exige muito mais reflexão e atenção. É o futuro de uma mulher que está em jogo. Sem falar nos filhos que possa vir a ter.

- Admitamos. Eu não tinha encarado as coisas em termos tão dramáticos.

- Aí é que está o problema. Os homens raramente encaram o casamento em termos tão dramáticos. -

Pelo tom de voz de Lavinia, Tobias compreendeu que lhe tinha escapado alguma coisa. Mas antes de poder pedir explicações, a jovem reprimiu um bocejo e declarou:

- Já não me sinto com energia para reflectir a sério sobre o assunto esta noite. Sugiro que continuemos a falar disso amanhã. Será o nosso tema de discussão para a longa viagem de regresso à cidade. Teremos muito tempo para isso.

- Nem me fales. - Olhou pensativo para o corredor.

- Boa-noite, Tobias.

- Só mais uma pergunta, antes de me ir embora.

- O quê?

- Estará na moda, entre os cabeleireiros, apresentarem-se de camisa aberta diante de senhoras respeitáveis?

Lavinia soltou uma gargalhada:

- Os cabeleireiros são artistas, meu caro. Criam o seu próprio estilo.

- Estou a ver.

A jovem recuou um passo, com intenção de fechar a porta. As pupilas ainda brilhavam de contentamento.

- Não te preocupes com a sensibilidade de Miss Richards e Miss Gilway. O desalinho do Mr. Pierce provavelmente não lhes provocou tantos estímulos como o espectáculo que tu próprio lhes proporcionaste.

Tobias apercebeu-se de que olhava para o seu próprio peito.

- Que disparates são esses?

Ele baixou a cabeça e reparou que tinha grande parte da camisa aberta. Era um vestígio, sem dúvida, de alguns minutos de intimidade passados com Lavinia, antes de Fullerton os ter interrompido bruscamente. Naquele momento, compreendia melhor porque é que as duas damas de companhia tinham olhado para ele com tanta curiosidade.

- Com mil raios... - murmurou.

- Parece-me que tu e o Mr. Pierce deram às duas senhoras motivo para conversa que as manterá ocupadas durante muitos meses - disse Lavinia.

Depois disso, começou a rir e fechou-lhe suavemente a porta na cara.

Tobias deu meia volta, ruminando sobre aquela festa no campo que se tinha transformado num desastre. Embora tivesse começado muito bem, tudo tinha ido de mal a pior. Até a sua perna esquerda que, nos últimos meses se comportara bem, devido ao bom tempo, lhe doía agora, provavelmente também como resultado de tantas subidas e descidas nas escadas.

Para cúmulo, tivera de renunciar ao seu plano, preparado com tanto optimismo e entusiasmo: passar uma noite inteira na companhia de Lavinia e numa cama confortável.

Por agora, Tobias nem sequer podia voltar para a sua própria cama. Precisava de tratar de um último detalhe.

De volta ao primeiro andar, reparou que a calma tinha voltado ao corredor bem iluminado. Os convidados tinham voltado para os quartos e o castelo mergulhava de novo no sono.

Alguns candeeiros de parede iluminavam o caminho para o quarto de Aspasia. Tobias encaminhou-se para a porta, hesitou por um momento, e decidiu bater discretamente.

Ela abriu de imediato, como se esperasse a sua visita. O roupão de cetim verde agitou-se-lhe em redor dos tornozelos. Os olhos escondiam a sua grande ansiedade e a boca parecia rígida de tensão.

- Então? - murmurou.

Ele olhou-a, reflectindo que Aspasia era sem dúvida a mulher mais bonita que já conhecera e sentiu-se subitamente muito cansado. Compreendeu também que aquela fadiga era demasiado profunda para poder desaparecer com umas horas de sono. Persegui-lo-ia até que terminasse aquele seu contacto com o passado.

Massajou a nuca com ar ausente.

- A sua hipótese era a correcta - confirmou. - Alguém reencarnou na pele do assassino do anel. E esse alguém esteve aqui esta noite.

Aspasia apertou o roupão, como se, de súbito, tivesse sentido frio.

- Fullerton?

- Sim. Encontrei um anel no quarto dele.

Ela fechou os olhos por instantes e quando os abriu, o medo que não conseguia esconder apesar de toda a sua experiência mundana, dilatava-lhe as pupilas.

- Ele cometeu este crime em sua honra - disse ela. - Sabia que estava cá esta noite e queria avisá-lo de que regressara.

Tobias sentiu-se irritado.

- Não diga isso. Elland não se levantou de entre os mortos.

Ela suspirou.

- Sei muito bem. Mas entenda-me, estou numa pilha de nervos! desde esta manhã, quando a minha governanta encontrou aquele anel à minha porta. Tudo isto me deixou numa grande confusão.

Tobias pensou que não deveria mostrar-se indelicado para com ela. Aspasia era uma mulher forte e inteligente, mas justificava-se que estivesse abalada pelo que passara ”com Zachary Elland três anos antes. Aliás, ele sentia o mesmo.

- Alguém nos quis avisar de que existe um novo Homem do Memento Mori - declarou, em voz baixa. - Muito bem, a mensagem foi recebida. Não me resta outra coisa, senão seguir as suas pistas tal como segui as de Zachary.

Aspasia esboçou um trémulo sorriso.

- Obrigada, Tobias. Sabia que podia contar consigo. Lamento apenas não o ter percebido há três anos, em vez de me deixar cegar pelos encantos de Zachary.

Tobias não queria ouvir mais nada. Retrocedeu um passo.

- Vá descansar, Aspasia. Vou-me embora amanhã de manhã cedo, mas ver-nos-emos em Londres.

Aspasia franziu as sobrancelhas.

- Porque é que se vai já embora?

Era inútil explicar-lhe que Lavinia tinha conseguido que fossem xpulsos. Seria muito mau para a imagem da firma Lake & March.

- Não tenho mais nada a fazer aqui. Vou voltar para Londres sem perder tempo, para prosseguir a investigação.

- Sim, claro - disse Aspasia, que no entanto não parecia disposta a fechar a porta.

Após um momento de hesitação, arriscou:

- Tobias, eu falava francamente, há bocado. Na verdade teria gostado de ter entendido há três anos o quanto era diferente de Zachary. Felizmente, amadureci depois disso. Aprendi muitas coisas durante o tempo em que estivemos separados. E estou convencida que também deve lamentar o que aconteceu nessa altura. Quer entrar para que possamos conversar?

O convite dificilmente poderia ser mais explícito. Aspasia propunha-lhe pura e simplesmente levá-lo para a cama.

- Não creio que seja uma boa ideia. Já é tarde e, amanhã, tenho de partir muito cedo. Boa-noite, Aspasia.

Ela esboçou um sorriso malicioso.

- Sim, compreendo. E estou feliz por que encontrou alguém que ame, Tobias.

Enquanto se afastava pelo corredor, ouviu a porta fechar-se suavemente.

Chegado ao patamar, parou. A experiência recomendava-lhe voltar para o seu quarto. Se não tivesse sono, poderia dedicar-se a fazer as malas.

Permaneceu ali mais alguns instantes. Não se via ninguém, nem se ouviam passos na escada. A morte violenta tinha apagado o entusiasmo dos outros hóspedes para jogos nocturnos.

Após mais alguns segundos de reflexão, Tobias mudou de ideias. Já não achava tão sensato voltar para o quarto. Subiu as escadas e avançou pelo corredor até à porta de Lavinia. Decidiu bater levemente. Se ela não respondesse, deduziria que estava a dormir e regressaria prudentemente aos seus aposentos.

Bateu à porta com a ponta dos dedos.

A porta entreabriu-se. Lavinia sorriu-lhe e deixou-o entrar imediatamente. Tinha trocado o roupão por uma camisa de dormir branca, de algodão, com decote de renda. O espectáculo inflamou os sentidos de Tobias.

- Pensei que era inútil desperdiçar a noite - disse, enquanto franqueava a ombreira.

- Excelente ideia.

A jovem fechou a porta. Tinha soltado os cabelos e um brilho sensual reflectiu-se-lhe na expressão inteligente e curiosa do seu rosto. O seu olhar era um lago de misterioso desejo. Esboçou aquele sorriso secreto que tanto o excitava.

Tobias puxou-a para os seus braços. Assim que os lábios se uniram a centelha do desejo incendiou-os num braseiro, como sempre acontecia em circunstâncias semelhantes. Esta mulher foi feita para mim.

Com ela não tinha de se conter, não tinha de se acautelar com receio de a assustar. A paixão de Lavinia era tão forte e violenta como a sua.

Era diferente de todas as mulheres que já conhecera. Com ela podia arriscar-se a deixá-la aproximar-se da parte de si próprio que sempre quisera esconder e controlar, durante toda a sua vida.

Levantou-a nos braços e deitou-a na cama antes de se despir à pressa. Quando acabou, Lavinia sorriu-lhe e estendeu os braços para o receber.

A sua hipnotizadora, pensou. A única que o punha em transe.

- Lavinia... - murmurou. Levado por um sentimento imediato, posicionou-se entre as suas coxas macias e quentes, prendendo-lhe suavemente os punhos de cada lado da cabeça e sentindo o desejo latejar dentro de si.

Inclinou a cabeça e beijou-lhe o pescoço.

- Por vezes, desejo-te tanto que é um milagre que não me incendeie - murmurou.

- Oh, Tobias, quando ardes de desejo por mim, eu consumo-me do mesmo modo.

A excitação subia nele como uma chama.

Largando-lhe um pulso, subiu-lhe a camisa de dormir e abriu caminho com a mão. Encontrou o interior das suas coxas quentes e húmidas, prontas para o acolher; o perfume do corpo dela entontecia-o.

Acariciou-a. Ela gemeu e começou a ondular debaixo dele.

- Tobias... - suplicou, agarrando-lhe um ombro nu com a mão livre, enterrando-lhe os dedos na pele e tentando libertar a outra mão.

Contudo ele mantinha-a suavemente presa à cama.

- Ainda não - sussurrou junto ao seio dela. - Diz como queres que te acaricie.

- Sabes muito bem como - tentou recuperar o fôlego. - Sabes sempre muito bem o que deves fazer.

Ele subiu um pouco mais os dedos, acariciando-a um pouco mais depressa.

- Talvez seja melhor assim.

Ela gemeu e ergueu um pouco as ancas.

- Oh, sim, assim é perfeito.

- E assim? - fez deslizar um dedo para dentro dela.

- Tobias.

- Parece-me que ainda é melhor.

- Sim - ela movia-se ofegante, encostada à mão dele. - Mais que perfeito.

Ele começou a retirar os dedos e sentiu apertarem-se os pequenos músculos.

- Não - ela parecia agora sufocar. - Não, quero que me acaricies outra vez.

- Diz-me como.

Ela meteu-lhe os dedos por entre os cabelos e puxou-lhe a cabeça para os seios.

- Sabes como é, Tobias. És o único homem que sabe. Toca-me Tobias. A ordem pôs-lhe o sangue a ferver.

- Estou às suas ordens, minha senhora - replicou ele, antes de prender o bico de um seio entre os lábios, enquanto a mão continuava a explorar o jardim secreto.

Lavinia arqueou os rins, com a respiração ofegante. Quis libertar o pulso ainda aprisionado. Como era forte, muito mais forte do que parecia.

- Ainda não - murmurou. - Quero que te abras nas minhas mãos.

- Tobias!

Ele prosseguiu com as carícias, insinuando mais profundamente o dedo nela, arrancando-lhe gemidos surdos. Persistiu até ela não suportar mais o desejo. Só então lhe libertou o braço. De imediato, a jovem agarrou-se a ele, enlaçando fervorosamente as pernas à volta das suas ancas.

Tobias penetrou-a de uma só vez. Ela agitou-se em redor dele com um grito surdo e o seu latejar provocou-lhe um clímax que o varreu como uma invisível tempestade.

Juntos, deixaram-se cair num turbilhão.

Muito mais tarde, Tobias emergiu daquela doce letargia em que mergulhara depois do seu arremesso de paixão. Com efeito, a cama era um pouco estreita para dois, no entanto não pensava queixar-se.

No ar pairava ainda o odor potente do sexo que o fazia sentir para sempre ligado a ela.

Lavinia estava meio-deitada por cima dele, com a cabeça anichadA na concavidade dos seus ombros, a cabeleira resplandecente espalhada sobre o seu tronco. A vela já ardera quase toda, mas havia ainda luz para poder ver as curvas deliciosas das suas ancas e coxas reveladas pela camisa de dormir arregaçada.

Tobias deixou a mão correr preguiçosamente ao longo das costas da jovem.

- Estás a dormir? - perguntou suavemente.

- Não - murmurou.

- Amo-te Lavinia - sussurrou. - Aconteça o que acontecer, nunca te esqueças disso.

Lavinia levantou ligeiramente a cabeça e depositou-lhe um beijo nos lábios.

- Amo-te, Tobias. Aconteça o que acontecer, nunca te esqueças também.

Ele acariciou-lhe a cabeleira em desalinho.

- Nunca me esquecerei, meu anjo. Era quase como se tivessem falado a duas vozes, pensava Tobias maravilhado.

- Já é altura de voltar para o meu quarto - afirmou sem entusiasmo, Com um sorriso malicioso. Lavinia fez deslizar a sua mão pelo baixo-ventre de Tobias e fechou-lhe os dedos à volta do sexo.

- Tens a certeza de que queres passar o resto deste fim-de-semana a dormir?

Tobias sentia já o sangue a ferver-lhe nas veias.

- Acabei de me lembrar que a viagem de regresso vai ser muito longa. - soprou-lhe aos ouvidos. - Temos muito tempo para fazer uma sesta reparadora na carruagem.

 

O VULCÃO MINIATURA ENTROU EM ERUPÇÃO, DEIXANDO ESCAPAR um fio de vapor: depois ouviu-se um estalido no interior da pequena montanha e as faíscas saíram pelo cume. O público lançou um grito de admiração. O conferencista, um homenzinho muito baixo e magro chamado Horace Kirk, avançou um passo, em cima do estrado, fez uma vénia e sorriu à multidão que enchia a sala.

- E assim termino a minha conferência sobre os vapores quentes. Na próxima semana expor-vos-ei os princípios da electricidade.

Estalou uma salva de palmas na sala.

Sentada na segunda fila, entre Anthony e Priscilla, Emeline também aplaudia.

Priscilla, por seu lado, dificilmente continha o seu entusiasmo. Olhava o homenzinho, que nada tinha de sedutor, como se se tratasse de um dos mais fascinantes poetas românticos.

- Já alguma vez tinhas assistido a uma coisa tão espantosa? - cochichou a Emeline. - Devo confessar que as conferências do Mr. Kirk me abrem horizontes insuperáveis.

- De facto, foi muito interessante - anuiu Emeline.

Na verdade, tinha de confessar que considerava muito mais apaixonante tudo o que dizia respeito às antiguidades, do que as maravilhas da electricidade ou da física. Todavia, devia reconhecer que aquela demonstração fora emocionante.

- Juro que quando me sugeriste assistir às conferências do Mr. Kirk, receei que fossem enfadonhas. Não foi o caso. Não achas, Anthony?

- Inteiramente de acordo - comprovou este último, igualmente impressionado pelo que tinha acabado de ver. - Foi uma excelente ideia, Priscilla.

Apontando para o caderno que a jovem tinha em cima dos joelhos, acrescentou:

- Vejo que tomou muitas notas.

Priscilla abraçou o caderno e lançou a Horace Kirk um olhar fascinado.

- Aprendo tanto nestas conferências! Se conseguisse convencer a mamã a deixar-me comprar alguns instrumentos. Estava disposta a tudo para poder montar o meu próprio laboratório. Mas ela recusa categoricamente ouvir falar no assunto.

Emeline não ficou surpreendida. Imaginava sem dificuldade a reacção horrorizada de Lady Wortham à ideia de que Priscilla montasse um laboratório em casa.

Lady Wortham levava as suas responsabilidades de mãe muito a sério. A sua ambição principal era ver a filha desposar um jovem respeitável, de boas famílias e além do mais, susceptível, de herdar uma bonita fortuna. E não seria difícil, pois Priscilla era, sem dúvida, uma jovem extremamente sedutora.

Na verdade, o cabelo muito louro da amiga não era considerado o último grito da moda mas, na opinião de Emeline, complementava na perfeição os seus olhos azuis. Sabia que não era a única a pensar assim. Priscilla estava sempre rodeada por uma corte de pretendentes assíduos em cada baile ou soirée a que assistiam.

Independentemente da opinião daqueles que ditavam a moda, não havia qualquer dúvida de que muitos cavalheiros se sentiam atraídos por damas de cabelo loiro.

Ainda para mais a sua amiga possuía, entre outros trunfos, um rosto de traços perfeitos e modos plenos de encanto, bem como uma figura graciosa que acabava por torná-la irresistível.

Infelizmente, segundo a opinião de Emeline, Lady Wortham insistia em vesti-la apenas de cor-de-rosa. Francamente, aquela cor não era a que melhor lhe assentava.

Na realidade, o facto não tinha grande importância, pois os melhores atributos de Priscilla eram a inteligência, o bom humor e o bom senso. Aliás, tinham sido essas qualidades a seduzir Emeline e a fomentar, lentamente, entre as duas jovens uma boa amizade, sincera e sólida.

Contudo, poderiam ter sido rivais. Todavia, encorajando as duas raparigas a conviverem, Lady Wortham tinha obedecido a motivos que nada tinham de altruístas: aquela mãe casamenteira pensava que, comparada com Emeline, a sua querida Priscilla pareceria ainda mais pura e virginal aos olhos dos futuros pretendentes.

Emeline tinha consciência de apenas ter como verdadeiro trunfo da moda a sua longa cabeleira preta. Quanto ao resto, sabia perfeitamente que não estava de acordo com os verdadeiros conhecedores. Era muito alta e magra segundo os cânones do estilo actual, e mostrava-se muitas vezes demasiado directa, um traço de carácter que deliberadamente imitava da tia Lavinia, que nunca hesitava em emitir a sua opinião.

- Após todas estas demonstrações explosivas, sinto um desejo louco de comer um gelado refrescante - anunciou Anthony, levantando-se. E as meninas? Desejam acompanhar-me?

- Com muito gosto - respondeu Emeline. - Está um calor nesta sala!

- Concordo com um gelado - apoiou Priscilla. - Na verdade está calor. Nem me tinha apercebido disso.

Emeline desatou a rir.

- É porque estavas muito ocupada com as maravilhosas demonstrações do Professor Kirk.

Anthony recuou para deixar passar Emeline e Priscilla à sua frente, em direcção ao átrio. Houve alguma dificuldade na saída, pois toda a gente se levantara ao mesmo tempo da plateia para se dirigir às portas.

Quando, por fim, conseguiram abrir caminho, Emeline apercebeu-se de uma silhueta familiar encostada negligentemente à parede. Sentiu um ligeiro mal-estar. Não era a primeira vez que Dominic Hood se materializava como por magia, quando ela estava com os amigos.

- Mas que raio - murmurou Anthony atrás dela. - Hood está aqui. Priscilla foi a única que se alegrou ao vê-lo:

- Não sabia que o Mr. Hood se interessava pela ciência.

- É de facto surpreendente - resmungou Anthony.

- Tem calma - sussurrou-lhe Emeline. - Desconheço porque é que o Mr. Hood e tu se detestam tanto, mas hoje não quero cenas. Compreendido?

- Não sou o responsável pelo que se passou ontem no museu defendeu-se Anthony.

- O Mr. Hood talvez tenha feito um comentário desastroso sobre aquela estátua de Hércules a combater a Hidra, mas tu fizeste bem pior, quando declaraste que ele não percebia nada de arte.

- Eu apenas disse a verdade - teimou Anthony. - Hood não é capaz de apreciar uma antiguidade.

- Pode ser. Mas foi muito indelicado teres-lho deitado em cara.

- Deveria ter guardado para si os seus comentários. Gostaria de saber se também é tão ignorante em ciências.

- Já te disse que não quero cenas, Anthony. E estou a falar a sério. Anthony esboçou um sorriso frio, desagradavelmente semelhante ao de Tobias March.

- Prometo-te que não vou desencadear a discussão em público. Já era muito tarde para conseguir pormenores de tão vaga promessa,

uma vez que estavam a chegar à porta. Apertando a fita da touca, Emeline aproveitou para observar Dominic Hood mais de perto. E pela enésima vez se interrogou sobre o que poderia ter ocasionado semelhante hostilidade entre Anthony e ele.

Pelo contrário, deveriam ser amigos, pois tinham muitas coisas em comum. Tinham a mesma idade - vinte e dois anos - porte atlético, e possuíam o mesmo sentido inato do estilo. Assim, o casaco que Dominic levava naquele dia era praticamente igual ao de Anthony: azul-escuro, talhado para lhe acentuar os ombros. As calças vincadas e o colete também eram do mesmo estilo. Ambos usavam relógios de bolsos, presos por uma corrente e os nós das gravatas eram igualmente complicados.

Na verdade, Dominic parecia possuir recursos que lhe permitiam o luxo de se vestir num alfaiate mais caro, mas o aspecto geral era quase idêntico ao conseguido pelo de Anthony, o que talvez se devesse ao facto de nenhum dos dois depender do vestuário para causar sensação. Tanto de um como de outro emanava uma força interior que nem mesmo trapos poderiam dissimular.

Assim que o pequeno grupo chegou à porta, Dominic endireitou-se para cumprimentar Priscilla e Emeline.

- Minhas senhoras - disse. - Que prazer em vos encontrar. Estão absolutamente deslumbrantes.

Priscilla corou.

- Mr. Hood, não nos tinha dito, ontem, que tencionava assistir à conferência do Professor Kirk.

- A ciência é um dos meus passatempos - afirmou Dominic, em tom lacónico.

Em seguida, voltando-se para Anthony, acrescentou em tom de desafio:

- Pretende-se tão entendido em matéria de química como em antiguidades, Sinclair?

- Não - respondeu bruscamente Anthony. - Não estudei Ciências.

- Compreendo - ironizou Dominic. - Talvez seja preferível. - Compreender os princípios da electricidade, da astronomia e outros que tais, requer um espírito lógico e razoável. A ciência não tem nada a ver com a arte nem com as emoções estéticas. Obedece às leis da natureza.

Emeline sentiu Anthony ficar tenso de cólera. Apressou-se a intervir.

- Achei a conferência de hoje apaixonante. Em particular, a demonstração para exemplificar uma erupção vulcânica.

- Sim, foi sensacional - confirmou Priscilla. Dominic esboçou um sorriso condescendente.

- Belo espectáculo. Mas receio que o Professor Kirk seja mais um homem de teatro do que um grande químico.

Priscilla franziu as sobrancelhas.

- O que quer dizer com isso, Mr. Hood? Dominic concentrou nela a sua atenção.

- Neste momento trabalho numa nova fórmula de explosivos que produzirá efeitos muito mais espectaculares que o pequeno vulcão de Mr. Kirk.

Priscilla arregalou os olhos.

- Tem o seu próprio laboratório?

- Tenho.

- Mas isso é maravilhoso - exclamou, arrebatada. - Que instrumentos utiliza?

Dominic hesitou em responder, parecendo aborrecido. Emeline teve a súbita sensação de que ele não os tinha abordado para falar de química, mas, pelo contrário, decidiu encorajá-lo a prosseguir.

- Rogo-lhe, Mr. Hood. Descreva-nos o seu equipamento. Deixou-me bastante intrigada.

- Bem, possuo os instrumentos básicos - acedeu, por fim. - Um microscópio, uma pilha eléctrica, um telescópio, uma balança e alguns aparelhos químicos.

- Tem uma pilha eléctrica - maravilhou-se Priscilla. - Que sorte! Daria tudo para ter um laboratório.

Atraída pela curiosidade, Emeline perguntou:

- É capaz de criar pequenas bolas de fogo como as que o Professor Kirk nos mostrou?

- Com certeza - respondeu Dominic. - As experiências de Kirk estão ao alcance dos principiantes. - Fez uma pausa, olhou para Priscilla e, depois, sorriu deliberadamente para Emeline. - Se quiserem, posso organizar uma pequena demonstração, que julgo ser mais emocionante do que as que Kirk realizou esta tarde.

- Adoraria ver isso - apressou-se Priscilla a declarar.

- Porque não? - disse Emeline. - Até agora a ciência não me interessava particularmente, mas devo dizer-vos que a conferência do Professor Kirk me aguçou a curiosidade.

Anthony cerrou os punhos.

- Está fora de questão. Não podem ir a casa de Hood sem serem acompanhadas. Sabem muitíssimo bem.

Priscilla mostrava uma expressão desolada.

- Talvez consiga convencer a mamã a vir connosco - disse ela, sem grandes esperanças.

- Duvido muito que Lady Wortham aceite perder uma tarde para assistir a demonstrações científicas - salientou Anthony.

- Provavelmente tens razão - concordou Priscilla. - A mamã apenas se interessa por moda.

Foi a vez de Dominic cerrar os punhos.

- Bem - continuou Anthony, puxando pelo relógio. - Está a fazer-se tarde, meninas. É melhor irmo-nos embora se quisermos comer um gelado antes de voltarmos para casa.

Priscilla parecia tão decepcionada que Emeline quis consolá-la.

- Tenho a certeza que não haverá mal nenhum se a tia Lavinia nos acompanhar ao laboratório de Mr. Hood - declarou.

Um brilho de gratidão surgiu nos olhos de Priscilla.

- Achas que a Mrs. Lake se prestará a isso?

- Não vejo porque não - respondeu Emeline. - Vou pedir-lhe assim que ela chegar do campo.

- Oh, obrigada! - manifestou Priscilla, de novo radiante. - É muito simpático da tua parte, Emeline.

Dominic presenteou Anthony com um sorriso triunfante, antes de se despedir das duas jovens.

- Receber-vos-ei às duas e à Mrs. Lake com muito prazer e quando o desejarem, na minha casa de Stelling Street.

Depois disto, virou as costas e afastou-se, sem olhar para trás. Anthony ficou mudo, mas Emeline sentia-o a ferver por dentro. Pela primeira vez, desde que o conhecia, sentiu-se inquieta.

Uma hora e meia depois de terem acompanhado a ainda exuberante Priscilla a casa, Anthony e Emeline tomaram o caminho do número 7 de Claremont Lane.

Era uma daquelas deliciosas tardes de Verão que tornavam tão agradáveis os passeios em Londres. Pairava no ar o suave perfume das flores, os parques estavam cobertos de erva verdejante e as crianças brincavam com bolas e pequenas carroças. Havia uma profusão de flores no cesto das vendedoras e, no mercado da fruta, as bancas ofereciam pêras e pêssegos sumarentos, bem como amoras, framboesas e morangos. Todos pareciam mais alegres e vestidos de cores vivas, agora que o Inverno chegara ao fim. Mas talvez Emeline se sentisse assim porque caminhava ao lado do homem que amava. Era pena que Anthony estivesse ”de tão mau-humor!

- Sabes que eu ignorava por completo que Priscilla era apaixonada pela ciência, até me ter sugerido que assistíssemos a uma das conferências de Mr. Kirk? - começou ela em busca de um tema inofensivo. - Confidenciou-me que a mãe a tinha proibido de abordar esse género de temas em público, para não se arriscar a maçar os interlocutores.

- Lady Wortham é a pessoa mais maçadora daquela família - retorquiu Anthony.

- Digamos que é simplesmente uma mãe dedicada, que faz o seu melhor para arranjar um bom partido para a filha.

- Hummm... - pronunciou Anthony, sem mostrar grande interesse.

E queria ela melhorar-lhe a disposição. Por vezes, Anthony parecia-se muito com o cunhado. Emeline começava a compreender a razão porque Lavinia perdia por vezes a cabeça com o Mr. March.

- Acabemos com isto - disse ela, quando estavam a chegar à frente do número 7. - Estás aborrecido por eu ter concordado em pedir à tia Lavinia para nos acompanhar, a Priscilla e a mim, ao laboratório de Dominic.

- Preferia que falássemos de outra coisa.

- Não. Tu preferes ruminar em silêncio. Mas permite-me que te diga que esse género de humor é suportável durante dez minutos, mas que depois passa a ser maçador.

Procurou a chave na bolsa e abriu a porta. Uma leve brisa circulava no longo corredor que atravessava a casa. A porta das traseiras também estava aberta. Olhou para o extremo oposto e viu uma saia cinzenta agitar-se no quintal. A Mrs. Chilton apanhava alfaces.

- Porque não me explicas porque detestas o Mr. Hood a esse ponto? - sugeriu Emeline tirando o chapéu e as luvas.

Anthony fechou a porta atrás de si.

- Detesto-o porque já compreendi as suas intenções.

- Sim? E, na tua opinião, quais são elas?

- Trata de aparecer em todos os lados a que vamos, porque quer afastar-te de mim.

Emeline ficou confusa por instantes, com a touca na mão.

- Que disparate tão grande.

- Não estou a brincar, é a pura verdade.

- Tony, não estás a falar a sério...

- Pelo contrário, estou a falar muito a sério.

- Estás com ciúmes! - exclamou a rapariga, estupefacta.

- Censuras-me?

- Sim. Porque não tens motivos para te preocupares no que se refere à minha relação com o Mr. Hood. Tenho pena dele porque está sozinho. Chegou há pouco tempo a Londres e ainda não tem amigos ou relações.

Anthony pôs o chapéu em cima de uma mesa.

- Isso não tem nada de estranho. Hood não tem uma personalidade que provoque simpatia.

Ela lembrou-se do modo como Dominic se mantivera à parte, na sala de conferências.

- Talvez seja um pouco distante - admitiu ela. - Mas penso que é sobretudo porque não está à vontade com as pessoas. Quanto a mim, não deve ter passado muito tempo em sociedade.

- Ignoro a sua experiência social. Mas deve ter alguns conhecimentos. É membro do meu clube.

- Foi lá que se conheceram?

- Infelizmente, sim - murmurou Anthony. - E, presentemente, segue-me como uma sombra, com o único objectivo de te separar de mim.

- Anthony, estás a tornar-te ridículo. Asseguro-te que não há razão nenhuma para...

Emeline não teve tempo de terminar a frase. Sem avisar, ele tinha avançado rapidamente e atraído para si.

- Ele não tem nada em comum com os outros jovens que te cortejam, Emeline - disse-lhe em voz baixa. - Esses são maçadores, mas inofensivos. Hood é diferente. É perigoso.

A irritação de Emeline transformou-se em cólera.

- Imaginas, mesmo assim, que me sinto atraída por ele? Não posso acreditar que ouses sequer insinuar uma coisa dessas. Achas-me então tão leviana?

- Claro que não. Tenho plena confiança em ti, Emeline. Mas compreende-me: é a determinação de Hood, em destruir o que nos une, que me preocupa.

Emeline acalmou-se um pouco.

- Ainda me custa acreditar que ele tenha semelhante propósito, mas, supondo que fosse esse o caso, posso jurar-te que não conseguirá afastar-me de ti.

Anthony abanou a cabeça, como se achasse Emeline a pessoa mais ingénua deste mundo.

- Não compreendes o meu receio. Temo que ele procure prejudicar-te.

- Mas de que diabo estás tu a falar?

- Não me espantaria se ele tentasse comprometer-te de algum modo - fez uma pausa com ar lúgubre. - Ou talvez pior.

Emeline viu-lhe na expressão do rosto, que Anthony estava plenamente convencido de ter dito a verdade.

- Pensas que ele me poderia... me poderia... - balbuciou ela, incapaz de pronunciar a palavra violar. - Mas isso não faz sentido! Porque é que iria fazer semelhante coisa?

- Quanto a isso, infelizmente, não sei de nada.

- Ele não me pode detestar - murmurou ela. - Mal nos conhecemos.

- Não estás a compreender, meu amor - Anthony tomou-lhe o rosto nas mãos. - Não creio que ele te deteste.

- Então porque desejaria fazer-me mal?

- É a mim que ele despreza. É a mim que deseja atingir. E adivinhou, com toda a razão que nada no mundo me poderia causar maior desgosto que ver-te sofrer.

Emeline estava profundamente perturbada com as palavras de Anthony.

- Mas vocês mal se conhecem. Tu acabaste mesmo de o conhecer. O que poderá suscitar tal rancor?

- Por agora não sei. Mas espero vir a descobrir. Entretanto, espero que não te aproximes dele.

- Mesmo que eu concorde em manter as distâncias, sabes muito bem que não podes evitar que ele se aproxime. A menos que decidas encerrar-me nesta casa, coisa em que eu nunca consentiria.

- Valha-me Deus! Emeline...

A rapariga pôs-lhe o indicador nos lábios, para o manter em silêncio.

- Olha para nós. Até parecemos a tia Lavinia e o Mr. March, quando se envolvem numa das suas acaloradas discussões. Lembra-te que nos comprometemos a tratar das coisas de um modo diferente.

Anthony semicerrou os olhos.

- Neste caso, não se trata da nossa relação.

- Pelo contrário, é exactamente disso que se trata. A nossa relação deveria ser a ligação metafísica harmoniosa de duas almas gémeas. Tínhamos decidido não discutir inutilmente, por tudo e por nada, como o teu cunhado e a minha tia têm tendência para fazer. Jurámos não teimar sistematicamente pelas nossas posições e não seguir o mesmo caminho espinhoso que escolheram para eles.

Pela primeira vez, após o início da discussão, Anthony esboçou um sorriso.

- Estou a ver que somos muito mais teimosos do que a Mrs. Lake e Tobias. E lamento dizer-te, Emeline, que nos arriscamos muito a seguir o mesmo caminho.

- Que disparate. Com um pouco de esforço poderemos evitar esse destino.

- Isso prova que tenho razão: chegamos até a discutir para saber se somos ou não capazes de controlar as nossas discussões.

As bocas estavam agora muito próximas e ela sentia uma centelha de desejo a percorrê-la. Tentou concentrar-se.

- Por agora não estamos a discutir - rectificou Emeline, um pouco ofegante. - Defendemos os nossos pontos de vista. É diferente.

- Chama-lhe o que quiseres - replicou Anthony, que contemplava os lábios da jovem como se se tratassem de um fruto delicioso, que desejava devorar. - Neste momento isso não me interessa.

- Mas temos de resolver este assunto.

- Uma vez que não conseguimos entender-nos quanto a este ponto, será melhor passarmos a outra coisa muito mais agradável.

- Anthony, estás a querer mudar de assunto!

- Como é que adivinhaste?

Ele beijou-a para evitar outro protesto. Pensando que, afinal, poderiam acabar a conversa mais tarde, Emeline abandonou-se ao seu abraço. De qualquer maneira, tinha imensa dificuldade em reflectir quando estava nos braços de Anthony.

Lançou-lhe os braços ao pescoço e abandonou-se ao prazer único daquele momento. Um enorme estremecimento de desejo varreu Anthony, não lhe deixando qualquer dúvida sobre a força da sua paixão.

Aliás, Emeline já percebera que, nos últimos tempos, Anthony encontrava inúmeras ocasiões para a abraçar. Além disso, cada beijo era mais ousado e mais fervoroso do que o precedente. Nunca até então tinha deixado um homem tomar tais liberdades com ela, mas também nunca tinha amado...

A sociedade tinha elaborado regras severas sobre este comportamento. Uma viúva, como Lavinia, podia permitir-se a ter um romance discreto. Mas uma menina solteira deveria evitar todos os actos que pusessem em risco a sua reputação. Na alta sociedade apenas contavam as aparências.

Mas tratava-se de Anthony, o homem que amava e, ultimamente, parecia ter cada vez menos interesse em ser cuidadosa.

- Emeline - murmurou junto ao pescoço dela -, o que é que havemos de fazer? Mesmo quando discutimos, desejo-te.

- Eu também te amo - confessou ela, apertando-se contra ele. - Amo-te tanto!

Ele ergueu-lhe o queixo, para a olhar nos olhos.

- Infelizmente, ainda não estou em condições para te pedir que cases comigo. Tu sabes. A triste verdade é que ainda não poderia satisfazer, de modo algum, todas as tuas necessidades.

- Quantas vezes preciso dizer-te que não me preocupa o estado das tuas finanças?

- Mas preocupa-me a mim. Não te peço que cases comigo enquanto não tiver os meios com que possamos sobreviver.

- És muito orgulhoso.

- Talvez, mas é assim. Nada me fará mudar de ideias sobre este assunto. O que não me impede de ter medo que acabes por te cansar de esperar. Pode aparecer outro e oferecer-te tudo o que não estou em condições de te dar neste momento.

- Nunca - jurou ela. - Esperarei toda a minha vida, se for preciso. Mas recuso-me a acreditar que duas pessoas tão inteligentes não consigam arranjar um modo de ficar juntos.

Anthony sorriu.

- Espero que tenhas razão. Hesitou, mas prosseguiu:

- Meu amor, há uma coisa que quero que saibas: talvez não devesse falar nisto, porque não estou certo que resulte, mas acontece que, com o dinheiro que ganhei colaborando com Tobias na última investigação, comprei acções de uma das companhias de transportes marítimos de Lorde Crackenburne. Mas é preciso esperar vários meses para saber se obtive lucros que se vejam. Estes investimentos comportam sempre os seus riscos.

Emeline sorriu.

- Também eu tenho uma confissão a fazer-te. A Mrs. Dove propôs-nos, a mim e a Lavinia, investir algum dinheiro num dos seus projectos imobiliários. As casas ficarão prontas dentro de seis meses e serão imediatamente postas à venda ou arrendadas. Se tudo correr bem, deverei ter um pequeno pecúlio antes do fim do ano. Aqui para nós, se juntarmos os nossos rendimentos, estou convencida de que nos poderemos arranjar.

- Falando de imóveis, há ainda um problema. Se nos casarmos, precisamos de arranjar uma casa em condições. - Poderíamos ir morar para a tua casa.

- Nem pensar nisso. O meu apartamento em Jasper Street é próprio para um solteiro, como eu, mas nem sonharia fazer-te sair desta casa tão confortável para te levar para lá.

- Sinceramente, isso não me importaria - retorquiu Emeline.

- Mas a mim, sim. Nem sequer há espaço para ter uma governanta, supondo que tivéssemos posses para arranjar uma. - Gemeu e chegou-a mais a si. - Não, não vejo outra solução que não seja esperar ainda mais alguns meses para anunciar o nosso noivado.

Assim que pronunciou estas palavras, Anthony largou-a de repente,

como se tivesse sido atingido por um raio.

- A menos que... Emeline reconheceu aquele tom de voz. Recuou ligeiramente e olhou-o.

- Tens outro plano? Diz-me depressa o que é.

- Ainda é um pouco vago - disse ele com prudência, de modo a não lhe suscitar esperanças vãs. - Será necessário adoptar uma grande estratégia. Terei de agir com grande cautela mas pode haver um meio de fazer as coisas andarem para a frente, um pouco mais depressa.

Emeline estava repartida entre a excitação e a frustração.

- Tens de me contar!

- Não. Enquanto não tiver sérias ideias das possibilidades de êxito. Ela agarrou a dobra do casaco.

- Anthony, não abuses da minha paciência. Ele não vacilou, mas parecia divertido. Tomou-lhe as mãos.

- Acredita mesmo que não és a única a estar impaciente, meu anjo. Há noites em que penso que vou enlouquecer, à força de esperar por ti.

Emeline abanou a cabeça.

- Compreendo-te. - Largou-o com certa relutância, alisando a lapela do casaco que tinha amachucado. - É engraçado, não é? Podia dizer-se que os nossos beijos ajudam a aliviar a nossa frustração, quanto mais nos beijamos, mais eu te desejo.

Anthony deitou-lhe um olhar malicioso e sensual.

- Realmente já tinha notado esse efeito estranho. Curvou-se para lhe mordiscar a orelha. Emeline suspirou. - Talvez devêssemos evitar... Ele franziu as sobrancelhas.

- Nada de beijos? Não, obrigada, mais valia enlouquecer.

Ela quis rir, mas ele tomou-lhe os lábios, e o riso dela emudeceu num longo gemido. Anthony tinha razão. Mais valia enlouquecer do que privar-se dos seus beijos.

Enquanto ela o abraçava, o jovem tinha-a agarrado contra si. Emeline sentia contra o ventre a prova tangível do seu desejo. Estremecia de prazer.

Um ruído surdo à porta de casa, seguido do barulho de uma chave a girar na fechadura fê-los sobressaltar. Anthony endireitou-se e tentou recuar, mas a porta abriu-se, antes que os jovens tivessem tempo de se separar um do outro.

Dando-se por vencida, Emeline viu entrar a tia Lavinia, seguida de Tobias que ajudava um cocheiro a transportar a mala.

- Por fim em casa! - exclamou Lavinia atirando o chapéu de palha amarela para cima da mesa mais próxima. - Quem afirma que as estadas no campo são excelentes para os nervos não sabe o que está a dizer.

 

COM O CESTO NA MÃO, MRS. CHILTON VOLTOU DO QUINTAL no momento em que Tobias despedia o cocheiro. Deitou um olhar surpreendido ao pequeno grupo reunido no vestíbulo.

- Passou-se alguma coisa, minha senhora? - perguntou a Lavinia. - Só a esperávamos amanhã à noite...

- Alterámos os planos, Mrs. Chilton - explicou Lavinia. - É uma longa história. Entretanto eu e Mr. March estamos a morrer de fome. A estalagem em que parámos para almoçar tinha uma comida tão insuportável como o resto da viagem.

- A senhora tem razão - confirmou Tobias. - A comida era de facto péssima. Também já sinto uma fome de lobo.

A Mrs. Chilton emitiu um pequeno ruído de desdém.

- Não tenho a mínima dúvida - disse. - Muito bem. Vou-vos preparar uma refeição fria.

- Muito obrigado, Mrs. Chilton - Tobias sorriu-lhe deliberadamente. Não terá por acaso aí à mão alguma das suas extraordinárias tartes de passas? Desde que parámos na estalagem que não consigo deixar de pensar nelas.

Mrs. Chilton lançou-lhe um olhar de reprovação.

- Nem sei como o senhor ainda tem energia para comer tartes de passas, com uma viagem tão cansativa que acabou de fazer.

- A carruagem de Vale tem umas molas tão boas que fui capaz de descansar um pouco.

Lavinia franziu a testa ao ouvir tamanha mentira. Tobias não pregara olho a caminho de casa. Os dois tinham ocupado o tempo a delinear a estratégia e a discutir o novo caso.

A governanta abanou a cabeça, sem se iludir.

- Talvez tenha ainda uma ou duas tartes na despensa, daquelas que sobraram das que fiz para a senhora levar no seu cesto para a viagem ao campo.

- Agradeço-lhe muito, Mrs. Chilton - disse Tobias com ar humilde. Lavinia observou-os. Não era a primeira vez que tinha razões para suspeitar de que não percebia uma piada particular que os dois pareciam partilhar. Tobias e a Mrs. Chilton não eram as únicas pessoas que pareciam inexplicavelmente divertidas. Tony examinava fixamente o chão, com os cantos da boca trémulos. Emeline voltou-se subitamente, para pendurar no cabide o chapéu de palha amarela.

Para Lavinia foi suficiente. Pôs as mãos nas ancas e semicerrou os olhos na direcção de Tobias.

- Mais tartes de passas? Permita-me que lhe diga que, nas últimas semanas, o senhor se tornou obcecado pelas passas. Anda constantemente a solicitar à Mrs. Chilton doces feitos com passas. Palavra de honra! Já temos compota de passas, bolo de passas e tartes de passas que bastem para alimentar um exército.

- Julgo que na minha dieta habitual há a deficiência de um qualquer elemento que pode ser suprido pelas passas - disse Tobias.

- Sirvo-vos no escritório - avisou a Mrs. Chilton, antes de se dirigir rapidamente à cozinha.

Lavinia abandonou o assunto das passas com alguma relutância, pois havia coisas mais importantes a fazer, e encaminhou os outros para o escritório. Poisando o pequeno caderno que tinha retirado da bolsa, foi direita ao armário das bebidas.

- Vamos explicar-vos o motivo do nosso regresso prematuro - prometeu a Anthony e a Emeline. - Mas primeiro, Tobias e eu precisamos de um pequeno estimulante.

- Isso não discuto - disse Tobias deixando-se cair em cima de sofá de couro, e, conforme se tornara hábito, colocou o pé esquerdo sobre um tamborete, como se estivesse em sua casa.

Lavinia ainda não sabia o que sentir em relação à facilidade com que Tobias se imiscuía no seu dia-a-dia. Acontecera progressivamente, no decorrer dos últimos meses. No entanto ele tinha uma casa encantadora, não muito longe, em Slate Street, onde afinal parecia passar cada vez menos tempo. Habituara-se a aparecer à porta dela sempre que lhe apetecia.

Muitas vezes se queixava a Emeline e à Mrs. Chilton de como conseguia chegar justamente à hora do pequeno-almoço e não hesitava em sentar-se à mesa para se servir dos seus ovos com presunto. Tinha-se tornado, por exemplo, especialista em bater-lhe à porta quando estava sozinha em casa. Essas felizes coincidências não paravam de surpreender Lavinia, que começava a ter algumas suspeitas. Era capaz de jurar que Tobias estava informado das idas e vindas de Emeline e da Mrs. Chilton. Normalmente, aproveitava a ausência destas para fazer apaixonadamente amor com ela, embora fosse por vezes um pouco apressado.

Lavinia, que tinha dito alto e bom som a quem a queria ouvir que as visitas contínuas de Tobias a irritavam, tinha de admitir ter-se habituado tranquilamente à presença dele.

E o facto de saber que, lá no fundo gostava de o ter por ali, perturbava-a profundamente.

Dez anos antes, com John, seu falecido marido, as coisas tinham-se passado de maneira diferente. Lavinia apaixonara-se rapidamente por aquele poeta e o casamento parecera a consequência lógica dessa afeição romântica. Mas a união terminara tragicamente, passados apenas dezoito meses, quando John sucumbira a uma doença de pulmões. Durante quatro anos, Lavinia teve de se desenvencilhar sozinha. Então, Emeline veio morar com ela. O facto de ter a sobrinha à sua responsabilidade, obrigou-a a renovar energias. Não era a mesma mulher de antigamente.

Não tinha apenas amadurecido, tinha, sobretudo, aprendido a amar a liberdade e a independência que lhe conferiam o estatuto de viúva. Ao contrário de Emeline, já não estava sujeita às rigorosas normas que governavam as meninas solteiras. Era livre de ter um romance apaixonado, se assim o desejasse. Deveria apenas manter-se razoavelmente discreta. Dizia para consigo que as viúvas possuíam o melhor de ambos os mundos. Podiam gozar os prazeres da paixão e manter o controle e independência que lhe eram conferidos pelo seu estado civil.

Em determinada altura pensara ter chegado à conclusão de que não voltaria a casar e sentia-se muito feliz com essa perspectiva.

Até há pouco.

Mas agora, as coisas não lhe pareciam tão claras. Na verdade, não era capaz de dizer como iria ser o seu futuro.

Não previra apaixonar-se por Tobias. Além disso, faltara-lhe tempo para compreender se o que sentia por ele era mesmo amor, já que essa ligação sempre explosiva, não tinha nada a ver com as ternas e inocentes efusões que conhecera durante o seu casamento.

Já haviam passado dez anos desde a morte de John, mas nunca, durante os poucos meses que durara o seu casamento, tinham discordado, quanto mais discutido. Também era verdade que ela não tinha tido razões de queixa já que quando se tratava de tomar uma decisão, John ficava muito mais satisfeito se fosse ela a tomá-la.

John tinha dedicado a sua existência à poesia. Não pedia nada mais do que ser dispensado das contingências do dia-a-dia, inclusivamente da necessidade de ganhar a vida.

Lavinia tinha então tomado nas mãos as rédeas da casa. John, não sendo ainda reconhecido como poeta, não tirava qualquer proveito dos seus escritos de modo que era Lavinia quem assegurava a subsistência de ambos com as suas sessões de hipnose.

O acordo resultara muito bem durante o curto espaço de tempo que durara o casamento. Lavinia sentira-se satisfeita pois sabia que John a amava sinceramente. Mas ainda hoje estava convencida que a única grande paixão do marido fora a escrita. E essa era sem dúvida a verdadeira razão pela qual nunca tinham discutido, John com pouco mais se preocupara para se dar ao trabalho de discutir.

Na sua relação com Tobias, acontecia exactamente o contrário. Ambos se emocionavam facilmente. Por acaso, as discussões ríspidas e animadas acabavam frequentemente em abraços não menos vulcânicos.

Ela via-se obrigada a admitir que nunca conseguiria manobrar Tobias como manobrara John e não estava ainda certa do que sentia a esse respeito. De noite, sozinha na cama, quando não tinha sono, tentava convencer-se que uma relação como a que eles viviam era a melhor solução.

Afastando estes pensamentos incómodos, Lavinia serviu o xerez. Quando se voltou para entregar o copo a Tobias, viu-o esfregar a perna e franziu a testa.

- A ferida está a incomodar-te? - perguntou.

- Não te preocupes - pegou no copo. - A viagem foi muito comprida e não pude mexer-me. Não é nada que um bom xerez não possa curar

- tomou metade do conteúdo do copo e olhou para o que restava. - Ou talvez dois ou três.

Ela encheu-lhe o copo antes de se deixar cair no sofá.

- Ah, que delícia encontrar-me de novo em casa! - exclamou para Emeline e Anthony.

Emeline sentou-se numa cadeira perto do globo. O seu rosto bonito traía sinais de inquietação.

- O que se passou no castelo de Beaumont? - quis saber.

- O nosso fim-de-semana no campo foi um desastre completo resumiu Lavinia.

Tobias sorveu um gole de xerez, com ar pensativo:

- Eu não diria isso. A festa teve os seus bons momentos. Lavinia entendeu, pelo brilho que lhe passou pelos olhos, que ele aludia ao delicioso interlúdio de prazer no quarto dela. Lançou-lhe um olhar de aviso, em que ele pareceu não reparar.

Anthony sentou-se em cima da secretária e cruzou os braços.

- Vamos directos ao assunto. Sabem muito bem que eu e Emeline detestamos ficar em suspenso. Porque é que regressaram a Londres tão depressa?

Tobias fazia girar o copo, já a meio, entre as mãos.

- Por onde havemos de começar? Pode dizer-se praticamente que a morte de Lorde Fullerton foi uma espécie de ponto de viragem.

- Um assassinato! - exclamou Emeline estupefacta. - De facto, só isso pode explicar muitas coisas - acrescentou, com uma centelha de ansiedade no olhar.

- Devo concluir que arranjámos outra investigação? - perguntou Anthony, sem esconder o seu entusiasmo.

- Podem. - Confirmou Lavinia, que se virou para Tobias: - Porém, se bem me lembro, ainda não discutimos os preços com o nosso novo cliente?

Tobias emborcou o copo e respondeu:

- A Mrs. Gray tem boas posses.

- E se nos contassem tudo desde o princípio? - sugeriu Emeline. Com um gesto, Lavinia convidou Tobias a fazê-lo.

- Cabe-te a ti a honra. Pelo meu lado, creio que vou tomar mais um pouco de xerez.

Tobias estendeu o copo, para que ela o enchesse. Depois começou a resumir o que tinha acontecido no castelo de Beaumont.

Para grande alívio de Lavinia, não entrou em pormenores. Assim, não explicou o que é que estava ela a fazer no corredor, a meio da noite.

Quando terminou, Anthony e Emeline queriam fazer perguntas, comentários e sugestões.

- O tempo urge - comentou Anthony. - Vão precisar da nossa ajuda para este caso.

- Na verdade - confirmou Tobias, com a mão crispada à volta do copo. - O tempo urge. E a vossa ajuda não será demais.

- Já estabelecemos algumas pistas a explorar - informou Lavinia. Pegou no pequeno caderno que tinha lançado para cima da mesa e abriu-o. - Há várias pistas a seguir. Em primeiro lugar, o anel memento-mori que encontrámos no quarto de Fullerton é antigo. Há portanto muitas hipóteses de o assassino o ter comprado ou roubado num antiquário.

Emeline fez girar distraidamente o globo.

- Também poderia ter sido empenhado a um joalheiro que depois o vendeu - fez notar Emeline.

Tobias acenou afirmativamente.

- Exacto. Mas, à partida, não é o género de anéis que um joalheiro goste de vender.

- Hoje em dia não há grande procura destes anéis - acrescentou Lavinia. - Já estão fora de moda.

- Mas é uma pista - afirmou Tobias. - Não podemos ignorá-la. Anthony tomou a palavra:

- Suponho que a nossa missão, a minha e a de Emeline, seja interrogar os antiquários e os joalheiros, para tentar saber qualquer coisa sobre o anel.

- Exacto - confirmou Tobias. - Há ainda a peruca.

- Uma peruca loura - reflectiu Emeline. - Não deve ser muito vulgar.

- Pensamos que é precisamente essa a razão pela qual o assassino a escolheu - explicou Lavinia. - Queria assegurar-se de que as eventuais testemunhas se lembrassem apenas de ter visto uma mulher loura. E, mais uma coisa, embora Tobias tenha a certeza de que o assassino é um homem, eu pelo contrário, ainda não estou completamente convencida disso.

Anthony e Emeline olharam para Tobias com ar interrogativo.

- Com efeito, a minha intuição diz-me que o homicida é um homem - confirmou Tobias. - Mas Lavinia tem razão: no ponto da investigação em que estamos, não podemos excluir que possa ser uma mulher.

- Bem - disse Anthony, descendo da secretária. - Eu e Emeline vamos ver o que conseguimos descobrir acerca de cabeleiras louras e de anéis memento-mori,

- Primeira etapa: organizar uma lista de todos os vendedores de perucas da capital e dos antiquários especializados em anéis antigos declarou a jovem.

- Sejam prudentes ao fazerem as perguntas - aconselhou-lhes Tobias. - Temos pela frente um indivíduo que procura desafiar-me abertamente. Receio que queira jogar comigo um perigoso jogo de xadrez, para imitar Zachary Elland. Quero que a sua atenção continue concentrada em mim e não que suspeite do vosso interesse nele, compreendido?

- Não se preocupe - garantiu Emeline. - Anthony e eu seremos extremamente discretos. Aliás, não é esse o lema da nossa pequena agência? Discrição garantida.

- Enquanto nós investigamos pelo nosso lado, o que vais tu e a Mrs. Lake fazer? - quis saber Anthony.

Tobias lançou um olhar a Lavinia.

- Vamos tentar saber quem beneficia com a morte de Fullerton respondeu ele.

Emeline acenou com a cabeça.

- Logicamente. É sempre preciso saber quem beneficia com um crime. Lavinia bateu com o caderno no braço da cadeira.

- O nosso segundo objectivo será mais complicado - disse. - Esperamos descobrir se, no decurso dos últimos meses, ocorreram outras mortes semelhantes. E, se for o caso, quem beneficiou com elas.

Tobias pôs-se à vontade no sofá.

- Zachary Elland nunca matava ao acaso - recordou. - Gabava-se de ser um verdadeiro profissional, e, excepto quando trabalhou como espião, cada homicídio estava associado a uma substancial comissão.

 

TOBIAS E ANTHONY DEIXARAM O N. 7 DE CLAREMONT LANE uma hora mais tarde, após terem devorado um empadão de batata e alho francês, um enorme bocado de queijo, uma boa porção de salmão em conserva, um pão quase inteiro, e várias tartes de fruta.

- O Mr. March e o Mr. Sinclair foram abençoados com um belo apetite - comentou a Mrs. Chilton com ar satisfeito, levantando os pratos vazios. - Sempre disse que isso era sinal de uma constituição saudável num homem.

- Ainda assim é preciso uma pessoa ter posses para encher semelhantes estômagos dia sim, dia não - murmurou Lavinia. - Espero que não adquiram o hábito de se fazerem convidados regulares para almoçar ou jantar durante a investigação. Já sai caro oferecer todos os dias o pequeno-almoço a Mr. March, para não falar nos dias em que aparece acompanhado de Anthony. Juro que se jantassem connosco todos os dias, teríamos de abrir falência.

Emeline pousou a chávena de chá com um suspiro irritado.

- Francamente, Lavinia, podemos perfeitamente permitirmo-nos a dar-lhes de comer, e tu sabes isso muito bem. Mas quando se trata das excentricidades e fraquezas do Mr. March, tens sempre de exagerar.

- Chamas pequena excentricidade ao seu apetite? - Lavinia apontou para as poucas migalhas que tinham restado nos pratos. - Por amor de Deus, creio que Tobias comeu todas as tartes de passas de Mrs. Chilton.

Esta abanou a cabeça e levantou o tabuleiro.

- Já estou à espera que ele me peça para comprar mais passas esta semana. O apetite de Mr. March pelas passas parece não conhecer limites.

- Sim, já reparei - Lavinia descalçou as botinas e enfiou os pés, ainda com meias, nuns confortáveis chinelos. - Não há dúvida de que as consome como se as considerasse uma espécie de tónico revigorante.

Emeline engasgou-se e cuspiu.

- Desculpa - resmungou, cobrindo a boca com o guardanapo. - Engasguei-me com o chá.

A Mrs. Chilton emitiu um ruído estranho e apressou-se a sair da sala. Um dia, pensou Lavinia, ainda vou descobrir porque é que as passas têm este efeito cá em casa.

Lavinia dobrou o guardanapo.

- Na verdade, estou extenuada. A carruagem de Vale é muito confortável, mas, apesar disso, a viagem é longa e penosa. Vou deitar-me cedo esta noite, para enfrentar o dia de amanhã que será provavelmente complicado.

Em silêncio, Emeline encarou a tia e depois poisou a chávena.

- Estavas a gostar da festa no campo, antes do assassínio vos estragar a noite? - acabou por perguntar.

- Oh, sim - respondeu Lavinia sem hesitar. - À parte o episódio de me terem transferido para outro quarto, corria tudo muito bem. As coisas começaram a azedar quando encontrei a Cleópatra no quarto de Tobias.

Emeline arregalou os olhos.

- Perdão?

- A nossa nova cliente, Aspasia Gray tinha-se mascarado de Cleópatra para o baile.

- Já tinha compreendido. Mas o que é que ela estava a fazer no quarto de Mr. March?

- É uma óptima pergunta, que me esqueci de fazer - confessou Lavinia. - São velhos amigos, como Tobias vos explicou há bocado.

- Do género de amigos que têm o hábito de serem encontrados no quarto um do outro? - perguntou Emeline com voz irritada.

- Tobias assegurou-me que nunca houve qualquer relação desse género entre eles.

Emeline abanou a cabeça, com ar perturbado.

- E tu acreditaste?

Lavinia lançou-lhe um olhar surpreendido.

- Evidentemente. Tobias tem algumas excentricidades e fraquezas, como tu própria fizeste notar, mas não me ia mentir sobre um assunto tão sério.

Emeline abanou de novo a cabeça, desta vez em sinal de assentimento.

- Chegaram ambos a um certo grau de confiança, não é verdade?

- Sim. Tobias responde sempre sinceramente às minhas perguntas

- Lavinia respirou fundo. - Descobri que o problema era fazer-lhe as perguntas certas...

- Imagino que não tenha nada de surpreendente, o facto de um homem com a idade e a experiência do mundo de Mr. March ter alguns assuntos pessoais no seu passado para os quais deseje uma confidencialidade total.

- Sem contar que, ainda por cima, tem um temperamento que o impele ao segredo - resmungou Lavinia - Este novo trabalho preocupa-te, não é verdade?

- E com razão. Temos pela frente um assassino sem escrúpulos.

- Sim, está bem. Mas, sobretudo, tenho a impressão que são as ligações entre este caso e o passado de Mr. March que te põem problemas.

Lavinia apertou os lábios.

- Preocupam-me vários aspectos. A começar pela nova cliente.

- Que te preocupa em Aspasia Gray?

- Principalmente o tê-la encontrado pendurada ao pescoço de Tobias. Confesso que para um primeiro encontro, não foi muito atraente!

- Não me digas que ele a estava a beijar? - Emeline ficou estupefacta. - Acabaste de me dizer que acreditaste quando Mr. March te assegurou a relação entre eles era de amizade?

- Segundo ele, era ela que tentava beijá-lo para lhe agradecer o ter-se interessado por este caso. Um beijo de gratidão. Jurou-me que não era conivente e, como te disse, acreditei nele.

Emeline descontraiu-se um pouco.

- Estou a ver. Aquele beijo, no fim de contas, pode compreender-se. A Mrs. Gray terá agido de um modo muito liberal, e porque conhecia o Mr. March há muito tempo. Quanto ao pobre Mr. March, não sabia como desembaraçar-se daquele abraço sem se tornar grosseiro.

- Desde que conheço esse pobre Mr. March, nunca o vi numa situação de que não se pudesse desembaraçar, usando ou não modos grosseiros.

- Na verdade ele não parece parco em recursos e com certeza que não lhe falta competência.

Lavinia observou os chinelos por alguns instantes

- Tenho confiança em Tobias - disse, por fim. - Mas não confio em Aspasia Gray.

- Não é o Mr. March que costuma dizer que nunca se deve confiar por completo nos clientes?

- Por certo. E tenho a firme intenção de aplicar a regra neste caso declarou Lavinia. - Mas receio que Tobias se venha a esquecer dos seus próprios princípios quando se trata de Aspasia.

- Acalma-te, Lavinia. O Mr. March é uma pessoa muito prudente. Não vai deixar que os seus sentimentos pela Mrs. Gray, sejam eles quais forem, alterem o seu discernimento.

Lavinia batia com os chinelos no chão.

- Espero que tenhas razão. Em todo o caso, os dados estão lançados. Tobias dificilmente poderia recusar este caso, mesmo que tivesse vontade disso.

- E uma vez que está implicado nele, tu também o deves estar concluiu Emeline.

- Está fora de questão deixá-lo trabalhar sozinho.

- Compreendo.

Emeline levava a chávena aos lábios quando, subitamente, se imobilizou. Durante alguns segundos, observou Lavinia com uma expressão hesitante, mas logo a seguir continuou com firmeza.

- Uma vez que estamos a falar de assuntos pessoais que dizem respeito ao Mr. March, há uma coisa que gostaria de discutir contigo.

Lavinia preparou-se interiormente.

- Se se trata da tua relação com o Mr. Sinclair, isso não pode esperar? Sei que gostas dele. Ademais, estou convencida de que é um homem respeitável e responsável, e que não te pedirá em casamento enquanto não se sentir em condições de manter uma casa. Tenho medo, meu Deus, que isso não aconteça muito em breve. Enquanto ele trabalhar com Tobias, os seus fundos vão continuar em baixo. No entanto, penso que seria um bom...

- Não se trata da minha relação com Anthony - interrompeu Emeline, com alguma dificuldade. - É sobre a tua com o Mr. March.

Lavinia olhou-a espantada. Pestanejou várias vezes, mas conseguiu recompor-se.

- De que diabo estás a falar?

- Escuta, Lavinia, eu já não sou uma criança. Sabes muito bem que a nossa estada em Roma como damas de companhia daquela horrorosa Mrs. Underwood me abriu os olhos mais cedo do que a algumas raparigas quanto a... digamos, certas realidades da vida. Há já algum tempo que não tenho quaisquer dúvidas quanto à natureza muito... íntima da tua relação com o Mr. March.

Lavinia sentiu o sangue subir-lhe à cara. Na sua idade era perfeitamente ridículo. Aclarou a garganta.

- Ah... sim... pois bem... a natureza da minha relação com Tobias só a mim diz respeito. Trata-se de um assunto estritamente pessoal.

A sobrinha não pestanejou.

- Evidentemente. Pode ser pessoal mas decerto já não é um segredo, não achas?

- Admitamos que sim. Mas onde é que queres chegar? Emeline tomou fôlego antes de avançar:

- Reparei que, nos últimos tempos, passavas muito mais tempo em privado com o Mr. March.

- A nossa sociedade assim o exige - Lavinia esforçava-se por adoptar um tom susceptível de desencorajar Emeline de prosseguir com aquela conversa. - Precisamos de trocar informações com grande frequência. Sabes muito bem.

Emeline não pareceu minimamente desencorajada. Pelo contrário, parecia mais determinada que nunca a prosseguir com as suas ideias.

- Vou ser franca, tia Lavinia: não foi a tua sociedade com o Mr. March que vos obrigou aos dois a partir para o castelo de Beaumont. Sabes isso tão bem como eu.

- Estou exausta, Emeline - disse Lavinia esfregando as têmporas com a ponta dos dedos. - Podes-me explicar porque de repente mostras tanto interesse na minha relação com Tobias? Por amor de Deus, pensava que gostavas dele. Aliás, se a memória não me falha, quando o encontrámos em Roma, tiveste, logo à primeira vista, muito melhor opinião a seu respeito do que eu.

- Gosto muito do Mr. March, mesmo muito - Emeline poisou a chávena. - Não são os meus sentimentos por ele que estão em causa.

- Percebo.

- Tia Lavinia, confessa a verdade: estás apaixonada por ele, não estás?

- Mmm...

- E ele também te ama.

- Mmm - fez de novo Lavinia, tentando imaginar se lhe seria possível dar o pretexto de uma doença súbita, para desaparecer escada acima.

- Toda a gente sabe muito bem porque é que duas pessoas intimamente ligadas aceitam um convite para uma festa no campo.

- Não me digas - Lavinia agarrou com rigidez os braços da cadeira. - Pelo prazer dos passeios ao ar puro, para contactar com a natureza.

E pelos divertimentos rústicos.

- Não sou ingénua a esse ponto, tia Lavinia, e tu sabes muito bem. É do domínio público que as festas no campo são a ocasião, para damas e cavalheiros que tenham um caso, gozarem de um pouco de intimidade. E não tentes fazer-me crer que não era o que tu e o Mr. March tinham em mente, ao aceitarem aquele convite.

- Quaisquer que fossem os projectos que eu e o Mr. March pudéssemos ter, garanto-te que foram interrompidos pela morte de Lorde Fullerton.

- Não duvido. Mas o que interessa é que tinham feito projectos. O embaraço de Lavinia transformou-se em irritação.

- Foi Tobias que teve a ideia de aceitar o convite dos Beaumont.

- Mas tu não recusaste - insistiu Emeline. - Contudo, sabias o que isso implicava.

- Basta! - exaltou-se Lavinia, que se levantou bruscamente da mesa para se dirigir à janela. - Queres dizer-me o que significa este interrogatório?

- Desculpa-me por ser tão directa - respondeu calmamente Emeline - mas, na verdade, pensava que, quando regressassem do campo, tu e o Mr. March me comunicassem que pensavam casar.

Lavinia sentiu a boca seca e o chão faltar-lhe debaixo dos pés. Teve de se agarrar ao cortinado para não cair.

- Pensavas que te comunicássemos o quê? - conseguiu perguntar, a muito custo.

- Ouviste perfeitamente. Estava convencida que o Mr. March aproveitaria a estada no castelo de Beaumont para te pedir em casamento.

Lavinia deu meia volta.

- O que é que te fez pensar semelhante coisa? Emeline levantou-se por sua vez.

- Já há alguns anos que vivo contigo e julgo conhecer-te o suficiente para poder afirmar que a tua relação com o Mr. March é singular. Em todo o caso, esta não tem nada a ver com os pequenos casos sem importância que possas ter tido desde que enviuvaste. Diz-me se estiver enganada, mas nenhum desses cavalheiros com quem te podes ter relacionado foi alguma vez autorizado a vir tomar o pequeno-almoço aqui quando muito bem lhe apetecesse. E tu nunca acedeste a ir a uma festa no campo com nenhum deles.

- Emeline...

- Não me desmentiste quando afirmei que estavas apaixonada pelo Mr. March. E é evidente que é recíproco. Tenho todo o direito de concluir que a vossa ligação só pode acabar em casamento.

- Todo o direito? - Lavinia apercebeu-se que ainda estava agarrada à cortina. Largou-a e alisou-lhe as pregas. - Muito bem, estás enganada.

Emeline tinha no rosto uma expressão entre o assombro e a indignação.

- Estás a querer dizer-me que o Mr. March nunca tocou nesse assunto?

- De facto, não - confessou Lavinia, erguendo o queixo. - Mas porque havia de o fazer? Não estou à espera de nada disso da sua parte.

- Não estás a falar a sério, Lavinia.

- E porque não? Acontece que o nosso actual entendimento agrada aos dois.

Emeline abriu os braços.

- Mas assim, esse vosso entendimento pouco mais é que uma ligação pouco convencional, que um caso. Não podem viver assim eternamente.

Lavinia pensou divisar no tom da sobrinha uma nota de reprovação moral que a irritou ao máximo.

- Não percebo porque não possa continuar indefinidamente? Há muitas mulheres que mantêm este tipo de relações a longo prazo.

- Tu não, Lavinia.

- Raios! Não é preciso assumires um ar tão escandalizado! - Lavinia sentiu a necessidade de outro cálice de xerez, de modo que abriu a porta do armário das bebidas. - Sabes muito bem que embora uma jovem da tua idade e posição pudesse ficar com a sua reputação irremediavelmente arruinada por uma ligação pouco convencional, o meu estatuto de viúva permite-me fazer o que bem me apetece.

- Sei muito bem que a sociedade tem regras diferentes para cada uma de nós - disse Emeline em tom severo. - Isso não é razão para que concorde com os teus... favores ao Mr. March, sem que haja entre vós um entendimento acerca da vossa futura relação.

- Meu Deus, Emeline, quem te ouvisse falar, era capaz de jurar que sou uma galdéria!

A rapariga teve o bom senso de corar.

- Não quis dizer nada disso. Queria simplesmente assegurar-me que as intenções do Mr. March são sérias.

- Deus do céu! - Encheu de xerez o cálice que já tinha usado. Claro que são sérias.

- Como sabes, uma vez que ele ainda não te falou em casamento?

- Custa-me a acreditar que tenhas a ousadia de me repreender acerca do decoro do meu comportamento!

Emeline, no entanto, não desistia.

- Lamento ter de te dizer isto, mas não podemos de modo algum excluir a hipótese de o Mr. March se tentar aproveitar de ti.

Aquilo já era demais.

- Aproveitar-se de mim? Nunca te passou pela cabeça que talvez fosse eu a aproveitar-me dele?

Emeline observou a tia, de boca aberta.

- Como é que é isso?

- Tenta encarar a situação pelo meu ponto de vista, Emeline - sugeriu Lavinia, enquanto se encaminhava para a porta. - No actual estado de coisas, tenho tudo o que uma mulher poderia desejar. Tenho uma ligação afectiva com um homem, sem ter de suportar os sacrifícios que muitas vezes se têm de pagar pelo casamento, e sem nada perder da minha autonomia legal e financeira. Ainda por cima, sou livre de entrar e sair quando bem me apetecer e não tenho que dar justificações a ninguém. Tenho o meu negócio, sem dar contas a um homem. Francamente, Emeline, não vejo que situação me poderia ser mais vantajosa.

Emeline parecia chocada. Sem lhe dar tempo a recuperar-se, Lavinia apressou-se a sair da sala. E a subir rapidamente as escadas.

Apenas quando se encontrou sozinha no santuário do seu quarto, ousou confessar a si própria que tinha mentido descaradamente à sobrinha.

Na verdade, encontrava vantagens na situação e os motivos que tinha invocado para não se voltar a casar não eram desprovidos de razão.

Mas nenhum deles era o verdadeiro motivo que a fazia recear casar com Tobias.

 

- É EVIDENTE, QUE A VIDA DO CAMPO NÃO SE COADUNA CONSIGO, March - comentou Crackenburne, com as sobrancelhas grisalhas e frondosas a saírem por cima dos óculos. - Deixe ver se compreendi bem: do decurso da única noite que passaram em Beaumont, ocorreu uma morte misteriosa, teve provas de que um novo Homem do Memento-Mori actuou e uma jovem senhora, que outrora conheceu, apareceu de repente na sua vida, colocando-o numa situação embaraçosa perante a Mrs. Lake.

- E a lista dos alegres acontecimentos ainda não terminou - acrescentou Lorde Vale, que assistia à conversa, com um sorriso sardónico. - Não nos podemos esquecer de que essa encantadora festa no campo culminou com o meu amigo e a Mrs. Lake praticamente expulsos do castelo.

Tobias esticou a perna esquerda, que ainda lhe doía após a longa viagem do dia anterior, e instalou-se mais comodamente na sua cadeira. À uma da tarde, a sala de fumo do clube estava praticamente deserta, o que não era de admirar: o dia estava bonito e a maioria dos membros que tinham ficado na cidade para passar o Verão tinha arranjado ocupações mais interessantes para levar a cabo ao ar livre. A sala só se encheria ao fim da tarde, quando esses senhores viessem saborear um aperitivo e conversar um pouco antes de irem jantar fora.

Nesta época do ano as exigências da sociedade eram relativamente poucas. A temporada com o seu rigoroso calendário de bailes, soirées e festas, tinha definitivamente terminado. A maioria das elegantes anfitriãs tinha já partido para passar o Verão nas suas propriedades.

Mas nem todos os elegantes saíam de Londres durante o Verão. Por várias razões - incluindo as viagens longas e desconfortáveis, a falta de uma residência apropriada ou o temor do simples aborrecimento da vida do campo - muitas pessoas que se moviam nos melhores círculos preferiam ficar na cidade.

Algumas, como Lorde Crackenburne, nem sequer saía do clube.

Após a morte da mulher, alguns anos antes, o conde tinha, por assim dizer, estabelecido a sua residência no salão de fumo. Fazia praticamente parte da decoração, de modo que os frequentadores, considerando-o uma espécie de sofá ou tapete, não se constrangiam em falar na sua presença, pensando, sem dúvida, que ele era mais ou menos surdo. E eis como Crackenburne, sem nunca sair do clube, absorvia as notícias como se fosse uma esponja. Estava sempre ao corrente dos mais profundos segredos da sociedade.

- Concedamos a Mrs. Lake o que lhe pertence - disse Tobias. - Foi graças a ela que fomos enxotados do castelo. Se ela não tivesse insistido excessivamente junto de Lorde Beaumont para o convencer que se tinha produzido um assassinato sob o seu tecto, não nos teriam posto fora com tão pouca cerimónia.

Crackenburne parecia divertir-se com esta narrativa.

- Dificilmente se pode censurar Beaumont por não querer esclarecer as causas da morte de Fullerton. Se os convidados menos aventureiros tivessem sabido que se tratava de um homicídio, sem dúvida alguma nunca mais desejariam aceitar os convites para as festas da mulher. Lady Beaumont teria ficado negra de raiva se a sua reputação de anfitriã ficasse de rastos, devido a uma suspeita desse calibre.

- Exacto - concordou Tobias, afundando-se mais na sua cadeira. - De qualquer maneira, não tínhamos provas para lhe apresentar.

- No entanto, para si, não há dúvidas de que foi homicídio? - perguntou Vale.

Tobias não se espantou com o frio interesse demonstrado pelo olhar desse homem. Vale escutara a descrição dos acontecimentos no castelo de Beaumont com o mesmo interesse que sentia pela sua colecção de antiguidades.

Tinha cerca de cinquenta anos. Era alto, de uma elegância distinta e longos dedos de artista. O cabelo, que lhe começava a faltar, realçava-lhe o perfil altivo que não destoaria entre os bustos romanos da sua colecção.

Tobias não sabia muito bem o que fazer com aquele interesse recente que Vale parecia demonstrar pelo trabalho de investigador. Era, antes de tudo, um erudito e um perito em antiguidades romanas. Aliás, passava a maior parte do tempo a esquadrinhar locais arqueológicos por toda a Inglaterra. Mas também ele era um mistério. Tobias não compreendia bem porque teria insistido em consultar a agência Lake & March.

Por outro lado, não havia dúvida nenhuma que o título e a riqueza de Vale, aos quais se acrescentavam a sua intimidade provável com Joan Dove, a nova amiga de Lavinia, lhes tinham servido de grande ajuda na última investigação. Não estava portanto fora de questão que Vale se revelasse, ainda desta vez, bastante útil. Tobias recordou-se de que precisava de toda a ajuda que conseguisse arranjar.

Juntou os dedos e observou o mármore talhado da lareira, na esperança de que este lhe pudesse oferecer uma pista.

- Tenho a certeza que a queda de Fullerton nada teve de acidental declarou Tobias. - A Mrs. Lake encontrou a touca que o assassino usou para esconder as feições. Até mesmo o anel memento-mori que encontrei em cima da sua mesa-de-cabeceira seria uma prova indiscutível.

- E agora quer descobrir quem vai beneficiar com a morte de Fullerton - disse Crackenbume com ar meditativo.

- Sim - confirmou Tobias. - Posto que este assassino parece querer deliberadamente imitar o seu predecessor. Ora, a acreditarmos no seu diário Zachary considerava-se um profissional do crime. Não só se orgulhava da estratégia que criava para levar a cabo os crimes, como também obtinha proventos com eles. Era uma espécie de homem de negócios.

- Por outras palavras, este novo assassino terá um cliente - concluiu Vale, que parecia mais intrigado que nunca. - Alguém que lhe tenha pago pela morte de Fullerton

- Com efeito. Se eu conseguir identificar esse cliente, não deverei ter grande dificuldade em descobrir quem cometeu o crime - concluiu Tobias. Nesse momento era tudo o que o preocupava. Tinha também um cliente e estava decidido a proteger Aspasia.

- Lógico - comentou Crackenburne, ainda pensativo. - Há uma leve possibilidade - continuou depois de um curto silêncio. - Mas não tenho a certeza que seja uma boa pista.

Tobias ficou à espera.

- Fullerton já foi casado. Mas não teve filhos. Após a morte da mulher, parecia satisfeito entre as suas amantes e os seus cavalos. Concluiu-se que, por sua morte, a fortuna e o título iriam passar para o sobrinho. Mas este ano, no fim da temporada, surpreendeu toda a gente ao anunciar o seu noivado com a herdeira dos Panfield.

Vale fez um trejeito aborrecido.

- Fullerton tinha sessenta anos, no mínimo. Enquanto que a rapariga acabou de sair da escola. Aposto que não tem mais de dezassete anos.

- Ouvi dizer que é muito bonita e de uma ingenuidade capaz de dar a volta à cabeça de um homem, ademais maduro - observou Crackenburne. - Por seu lado, Fullerton proporcionava-lhe título e fortuna. Era portanto um excelente partido, sob o ponto de vista dos pais, que desejavam elevar o estatuto social da família.

Tobias reflectiu por momentos.

- Os Panfield não tinham qualquer interesse em eliminar Fullerton, pelo menos antes que o casamento fosse consumado. O que nos deixa o sobrinho como possível suspeito. Não seria nada de espantar. A acreditar na minha experiência. O dinheiro é sempre um excelente móbil.

- Neste caso pode não ser - advertiu Crackenburne. - Segundo as minhas informações, o sobrinho não está a precisar de dinheiro. E, para mais, está noivo da herdeira dos Dorlingate.

- Ela levará uma autêntica fortuna por dote - retorquiu Vale. - Crackenburne tem razão, o sobrinho de certeza não está com a corda na garganta.

Tobias fez uma careta.

- E o título?

- Herdará o título de conde do pai - explicou Crackenburne secamente.

Fullerton era apenas barão, pensou Tobias. Não se matava um barão na esperança de herdar o seu título, quando se pode alcançar o de conde.

- Ainda para mais - continuou Crackenburne -, soube que o sobrinho tem fama de gerir inteligentemente as suas propriedades e é um homem generoso. Não parece ser do género de contratar um assassino para se desembaraçar do tio.

- Mais alguém teria um bom motivo para desejar a morte de Fullerton? - perguntou Tobias. - Um sócio decepcionado, por exemplo, alguém com rancores pessoais?

- Não vejo ninguém - disse Crackenburne.

- Nem eu - Vale abanou a cabeça.

- O que não significa que não estejamos a esquecer alguém - disse Tobias. - Crackenburne, não se importaria de aprofundar um pouco este campo?

- De modo nenhum, meu caro.

- Outra coisa - prosseguiu Tobias. - Algum de vós terá ouvido falar recentemente de uma morte que pudesse ter parecido suspeita, ou pelo menos inesperada?

Os dois homens reflectiram por momentos em silêncio. Em seguida Crackenburne agitou-se no cadeirão.

- A única que me vem à cabeça é a de Lady Rowland, no mês passado. Morreu a dormir. A família pôs a correr o rumor de que foi uma paragem cardíaca. Mas fala-se que, quando a criada de quarto a encontrou, viu em cima da mesa-de-cabeceira o frasco meio vazio do remédio que Lady Rowland tomava para dormir.

- Seria suicídio? - arriscou Vale.

- É o que se murmura - confirmou Crackenburne. - Mas eu conhecia muito bem Lady Rowland. Não era do tipo de atentar contra a própria vida.

- Era bastante rica - sublinhou Vale. - E usava e abusava da sua fortuna para controlar os membros da família, o que deve ter suscitado alguns rancores, entre os mais chegados.

- Era só o que me faltava - resmungou Tobias. - Uma família inteira de suspeitos.

- Sempre é melhor do que não ter nenhum - fez valer Vale.

Lavinia entrou no pequeno jardim e deteve-se à sombra de uma frondosa árvore. Ficara decepcionada ao descobrir uma reluzente carruagem em frente ao número 14 de Azelton Square. Aparentemente, Joan Dove tinha visitas nessa tarde.

Evidentemente, deveria ter enviado um bilhete a anunciar a sua visita. Mas estava tão bom tempo que decidira de um momento para o outro, ir passear até ao elegante bairro em que Joan morava, sem pensar em mais nada. Quase tinha a certeza de que não encontraria outros visitantes. Embora Joan estivesse a aliviar o luto de viúva e a sair um pouco mais nos últimos tempos, era uma mulher muito discreta e não mantinha um grande círculo de amigos e conhecidos.

Paciência, pensou Lavinia. Só lhe restava deixar um cartão ao entroncado mordomo e passar por lá noutra vez.

Com a mão enluvada, abria a bolsa à procura de um cartão de visita, quando se abriu a porta do número 14. Lavinia viu sair Maryanne, a filha de Joan, que desceu os degraus. A jovem era tão bela e elegante como a mãe. O seu casamento, com o herdeiro dos Colchester, tinha sido um dos acontecimentos mundanos da temporada. A união era social e financeiramente excelente, mas Joan confiara a Lavinia que estava sobretudo feliz, porque os jovens esposos estavam realmente muito apaixonados.

Nesta altura, Maryanne parecia ter pressa e encaminhou-se com rapidez para a carruagem. Lavinia notou-lhe uma expressão tensa no rosto quando o cocheiro de libré lhe veio abrir a porta. Assim que a jovem se instalou no interior do veículo, este pôs-se em andamento.

A carruagem passou diante de Lavinia e esta viu Maryanne limpar os olhos com um lenço. A jovem estava a chorar

Lavinia sentiu um arrepio de inquietação. O que se passara entre Maryanne e a mãe não deveria ter sido agradável; talvez mais valesse adiar a visita para o dia seguinte.

Ponderou os prós e os contras e, por fim, decidiu-se a atravessar a rua. A sua investigação era por demais importante, para que se pudesse dar ao luxo de perder um dia que fosse.

Subiu a escada da elegante casa e, mal tinha acabado de bater a aldraba, a porta abriu-se.

- Bom-dia, Mrs. Lake - disse o enorme mordomo. - Vou informar Mrs. Dove da presença da senhora.

- Obrigada.

Aliviada por não lhe ter sido impedida a entrada, com a desculpa de que Joan não recebia nesse dia, Lavinia entrou para o grande vestíbulo pavimentado a mármore negro e branco e tirou o chapéu. Lançou um rápido olhar a um dos espelhos de moldura dourada que lhe revelou que o fecho que colocara no corpete do vestido cor de violeta estava um pouco torto. Madame Francesca a sua prepotente modista, sentir-se-ia ultrajada.

Acabava justamente de terminar, quando o mordomo reapareceu.

- A Mrs. Dove vai recebê-la na sala de estar.

Lavinia seguiu-o até um aposento dourado, com as paredes forradas a tecido amarelo e verde. As janelas que davam para o parque estavam guarnecidas de pesados cortinados presos por fitas douradas. A luz que entrava pelas vidraças iluminando o desenho do enorme tapete. Grandes vasos repletos de flores dominavam em todos os cantos.

Joan Dove estava de pé, em frente a uma janela, olhando pensativamente para a rua. Na opinião de Lavinia fazia um par excelente com Lorde Vale, seu novo amante. Aos quarenta e poucos anos, Joan tinha conservado uma graça e um andar que lhe prometiam continuar a ser uma bela mulher ainda durante muito tempo.

Na verdade, nem sempre acontecia a Lavinia tornar-se amiga de uma mulher como aquela. Aparentemente, muito pouco tinham em comum. Joan tinha vindo ter com ela como cliente. Pela morte do marido, havia pouco mais de um ano, tinha herdado, não só a sua fortuna mas também, julgava ela, o seu lugar à frente de uma poderosa organização secreta denominada Clube Azul.

No auge do seu poder, sob a alçada de Fielding Dove, os tentáculos do Clube Azul tinham-se estendido por toda a Inglaterra, chegando até ao Continente. Segundo Tobias, que tinha investigado aprofundadamente este assunto por conta do governo, a organização tinha abrangido todo o tipo de actividades, algumas das quais altamente ilegais. Outras não o tinham sido tanto. Mas era tudo suspeito.

A morte de Fielding Dove tinha oficialmente marcado o fim do Clube Azul. As poucas pessoas que conheciam a verdade quanto às suas actividades ilícitas, haviam deduzido que Dove escondera à mulher e à filha que tinha dirigido um império criminoso. O que não tinha nada de extraordinário quando se sabia que os cavalheiros raramente comentavam os negócios, mesmo os mais honestos, com as suas esposas.

Por nascimento, Dave não pertencera a uma boa família. Além disso, sempre tinha sido uma pessoa muito misteriosa, portanto não havia qualquer razão para se pensar que confiara em Joan.

Lavinia e Tobias, no entanto, tinham as suas dúvidas. Em certos meios duvidosos, murmurava-se que o Clube Azul ainda existia e era, hoje em dia, dirigida por um novo cabecilha. Ora, a única pessoa susceptível de ter tomado as rédeas da organização seria a própria Joan Dove.

Claro que Lavinia nunca tivera a intenção de perguntar a Joan se tais rumores tinham fundamento. Era o género de perguntas que se evitavam fazer a uma amiga. Por outro lado, era difícil não reparar que Joan que começara a aliviar o luto, se vestia de preferência com uma certa tonalidade de azul. O tom de muitos dos seus elegantes vestidos, bem como algumas jóias que usava, poderia ser descrito como anil.

Anil fora o nome secreto de Fielding Dove, durante os anos em que dirigira a organização do Clube Azul.

- A Mrs. Lake, minha senhora - anunciou o mordomo. - Deseja que lhe traga outra chávena? - acrescentou indicando a bandeja que estava em cima da mesa.

- Obrigada, Pugh, mas não é preciso - respondeu Joan, em voz baixa. - Maryanne não usou a chávena. A Mrs. Lake pode ficar com ela.

- Muito bem, minha senhora - Pugh inclinou-se, saiu e fechou a porta.

- Sente-se, por favor, Lavinia. - O sorriso de Joan era triste embora caloroso. - Estou satisfeita por vê-la, mas tenho que admitir que estou surpreendida. Que se passou no campo?

- Houve algumas complicações - explicou Lavinia. Sentou-se e encarou a dona da casa com inquietação. - Aconteceu alguma coisa, Joan? Está doente? Acima de tudo, não queria incomodar. Posso voltar noutro dia, se achas melhor.

- Não, não, pelo contrário, é uma óptima ocasião - disse Joan, que por sua vez se sentou ao lado dela e pegou no bule, poisado sobre o pesado tabuleiro de prata trabalhada. - Acabei de ter uma desagradável conversa com a minha filha e preciso de me distrair um pouco.

- Compreendo - Lavinia pegou na chávena e no pires que Joan lhe estendia. - Acontece que é precisamente isso que eu lhe trago.

Joan pousou o bule e lançou um olhar interessado à sua convidada.

- Perfeito. Devo concluir que a agência Lake & March tem em mãos um novo trabalho? Um trabalho relacionado com a trágica morte de Lorde Fullerton?

Lavinia não conseguiu evitar um sorriso de admiração.

- Nunca deixarei de me espantar com a rapidez com que se mantém ao corrente dos últimos acontecimentos.

- Imagine que a notícia da queda de Fullerton do telhado chegou a Londres antes de si. Como foram numa carruagem pertencente a Vale, o vosso regresso, antes do previsto, levou-nos a pensar que estariam interessados no caso.

- Estou a ver.

Joan esboçou um sorriso, que pretendia ser reconfortante.

- Estou desolada por a vossa estada no campo ter sido abreviada fez uma pequena pausa. - Suponho que não tenham tido muito tempo para... hum... usufruir de alguns momentos de comunhão privada com a natureza, antes da tragédia.

- Lorde Fullerton teve a péssima ideia de cair diante da minha janela precisamente no momento em que o Mr. March e eu partilhávamos um desses momentos de comunhão - Lavinia estremeceu ao recordar-se e explicou: - Ele gritou, Joan.

- Suponho que não se esteja a referir ao Mr. March.

- Não consigo imaginar Tobias a gritar nem que se visse às portas do inferno quanto mais por ver passar um cadáver pela janela... Não, foi Fullerton que soltou um berro de fazer gelar o sangue nas veias, acredite!

Joan sorveu um gole de chá e pousou a chávena.

- Não duvido. E suspeitou imediatamente de homicídio?

- Não era possível chegar a outra conclusão. E tivemos provas disso, pouco tempo depois.

Lavinia fez um breve resumo dos acontecimentos. Quando terminou o seu relato, Joan assumiu um ar grave.

- Este não é um caso como os outros, pois não? Lavinia pousou a chávena com cuidado.

- Na verdade, não. Vou ser franca consigo, Joan. Tobias pensa que este novo assassino do anel memento-mori está apenas a lançar um desafio ou a levar a cabo um qualquer jogo mortal. Porém, receio que ele se queira vingar.

- Do Mr. March ou da Mrs. Gray? Lavinia encolheu os ombros, indecisa.

- Talvez de ambos. Mas não escondo que estou preocupada com a segurança de Tobias.

Joan ergueu as sobrancelhas.

- Julgo adivinhar que não morre de amores pela sua nova cliente.

- A Mrs. Gray é muito bonita. É também uma mulher do mundo, e tenho a intuição que não hesitaria em se servir dos seus encantos para manipular um homem, se lhe parecesse que poderia servir os seus interesses.

Joan não pôde reprimir um sorriso.

- Duvido muito que tal estratégia resulte com o Mr. March. Vale e ele têm, entre outros pontos em comum, uma independência de apreciação que os dignifica. Não são do género de se deixar enganar facilmente por uma cara bonita ou modos sedutores.

- Concordo consigo. Mas o problema é que Tobias se sente responsável em relação à Mrs. Gray, pelo que se passou há três anos. Censura-se por ter encorajado Zachary Elland a seguir o caminho que acabou por levá-lo a tornar-se num assassino profissional.

- Isso é absurdo.

- Claro que é absurdo! - Lavinia, estendeu as mãos, aliviada por enfim poder confessar as suas angústias. - Já lho expliquei em termos muito claros.

Joan sorriu.

- Acredito perfeitamente. A minha amiga raramente hesita em dar a sua opinião ao Mr. March. Mas, neste caso, parece-me que ele não lhe deu ouvidos.

- Infelizmente, quando se trata de responsabilidade, Tobias têm o hábito irritante de se acusar por não ter podido controlar tudo.

Joan abanou a cabeça.

- É um defeito que igualmente notei em Lorde Vale. Os homens como eles culpam-se sempre quando as coisas correm mal, mesmo quando nada podem fazer para alterar o curso dos acontecimentos. Fielding tinha o mesmo hábito. Suponho que é o complemento inevitável do orgulho e da vontade.

- Tobias pensa o mesmo por não se ter dado conta mais cedo que Zachary Elland se tinha transformado num assassino profissional.

- Muitas vezes é mais difícil ver o mal naqueles que acreditamos conhecer muito bem.

- Como isso é verdade! - disse Lavinia. - Bem, já conhece toda a história. Pelo menos, tudo o que sabemos até hoje. Como pode ver, a única maneira de saírmos desta confusão será desmascarando o assassino.

- E começar por descobrir quem lucrará com a morte de Fullerton.

- É precisamente esse o motivo da minha visita. Queria saber a sua opinião sobre este assunto, já que conhece tanta gente na alta sociedade.

- Deixe-me pensar. À primeira vista, o sobrinho de Fullerton será o seu único herdeiro. Mas, pelo que sei, é rico e prepara-se para casar com uma herdeira. Além disso, pela morte do pai herdará um título mais alto que o que Fullerton lhe poderia transmitir. Não vejo que tenha verdadeiros motivos para o fazer.

- Tem razão - concordou Lavinia, relutante em abandonar a teoria. - Quanto a si, a morte de Fullerton poderia provocar alguma mudança significativa?

Joan tamborilou na chávena com a ponta dos dedos.

- Fullerton devia casar com a herdeira dos Panfield. Sendo a boda cancelada, a menina ficará de novo no mercado do casamento da próxima temporada. Os pais devem estar destroçados. Era do domínio público que Panfield sonhava com um título para a filha.

Lavinia considerou esta pista.

- E a jovem? Estava tão entusiasmada como os pais com a ideia de casar com Fullerton?

- Desconheço por completo o que é que pensava de tal projecto. De qualquer modo é tão nova que nem terá tido oportunidade de dar a sua opinião. Todavia, custa-me a acreditar que o herói romântico dos seus sonhos fosse um barão velho e obeso.

- Hummm.

A reacção de Lavinia divertiu Joan.

- Esqueça desde já a ideia de que a jovem pudesse imaginar um meio tão drástico de se desembaraçar de um noivo que não lhe agradava. Não estou a ver uma menina inocente a recorrer aos serviços de um assassino profissional. E, além disso, a ter meios para lhe pagar!

- É evidente - admitiu Lavinia. - Mas talvez seja preciso procurar para os lados do verdadeiro herói romântico dos seus sonhos. - Como assim?

- Quem sabe se não há um jovem extremamente apaixonado pela menina Panfield e que não teria hesitado em arquitectar um esquema para se desembaraçar de Fullerton?

Joan reflectiu por um momento.

- Não é impossível. Mas confesso que ignoro se a menina Panfield tinha ou não um pretendente.

As duas amigas acabaram o chá em silêncio. Em seguida, Lavinia retomou a conversa:

- Pergunto a mim própria que género de temperamento será preciso uma pessoa ter para se decidir a contratar os serviços de um assassino.

- A meu ver, a cobiça ou uma ambição desmesurada são suficientes.

- Talvez uma pessoa capaz de albergar uma raiva enorme - disse lentamente Lavinia. - Lembra-se de alguém que tivesse razões para odiar Fullerton a esse ponto?

- Qualquer cavalheiro rico, da sua idade faz forçosamente inimigos ao longo da vida - respondeu Joan, intrigada - Mas eu não lhe conhecia inimizades particulares. Quer que tente indagar nesse sentido?

- Ficar-lhe-ia bastante reconhecida. O tempo urge e não devemos desprezar nenhuma pista. Este caso parece bastante complexo. Nem sequer sabemos se Fullerton foi a primeira vítima do assassino.

Joan deteve-se com a chávena perto dos lábios. Franziu levemente as sobrancelhas.

- Tem motivos para suspeitar que possa ter havido outras? Sentindo-se inquieta e frustrada, Lavinia levantou-se e aproximou-se de uma jarra para examinar os enormes crisântemos doirados.

- É possível. Mas ignoramo-lo, por agora. Terá, por acaso, nos últimos tempos, ouvido falar de mortes inesperadas ou sem explicação?

Joan apertou os lábios.

- Apsley teve um ataque de coração em Maio, mas como era um homem doente ninguém se surpreendeu. No mês passado, Lady Thomby morreu de uma febre, mas estava de cama havia um ano.

Joan reflectiu em silêncio enquanto Lavinia escutava o tiquetaque do relógio.

- Porém, confesso que me surpreendeu a morte de Lady Rowland, no mês passado - disse por fim. - Dizem as más línguas que, terá abusado do remédio para dormir e que morreu durante o sono. Mas os que a conheciam bem garantem que, desde há vários anos, era ela própria que o preparava todas as noites e que nunca tinha havido o mais pequeno incidente.

Lavinia voltou-se imediatamente.

- Ter-se-ia suicidado?

- Admirar-me-ia muito.

- Como pode estar assim tão certa?

- Lady Rowland era uma déspota em casa - esclareceu Joan. - Controlava as finanças da família e não hesitava em servir-se delas para obrigar os parentes a dobrarem-se à sua vontade. Morreu precisamente numa altura em que teria uma excelente razão para desejar continuar a viver.

Esta última observação despertou a curiosidade de Lavinia.

- Porque diz isso?

- Segundo me contaram, Lady Rowland tinha pensado anunciar o noivado da neta mais velha no próximo mês. Tinha oferecido um dote muito bom, a fim de convencer o pai da menina a aceitar o pedido de casamento do filho mais velho de Ferring. Não era segredo que Lady Rowland estava obcecada por essa união.

- E porquê?

- Porque, segundo se diz, Lady Rowland tinha acalentado, na sua juventude, uma grande paixão pelo pai de Lorde Ferring. Os pais obrigaram-na a casar-se com Rowland, mas ela nunca esqueceu os seus sentimentos por Ferring. Ele acabou igualmente por se casar, mas, mesmo assim, parece que mantiveram uma longa ligação. Ferring morreu há alguns anos.

- Pensa que Lady Rowland quis concretizar o seu sonho de juventude através da neta mais velha?

- Foi o que me disseram. Não é segredo que, depois do marido ter morrido, Lady Rowland utilizou a sua fortuna para comprar o herdeiro dos Ferring. - Joan bebeu o chá em pequenos goles e baixou lentamente a chávena. - Mas creio que, actualmente, as coisas mudaram.

- Como?

- Na semana passada, Maryanne contou-me que o noivado não seria anunciado. O pai da rapariga teria, pur fim, recusado a oferta de Lorde Ferring.

Lavinia sentia o coração a bater de excitação.

- O que aconteceu, para que tenha mudado assim de opinião?

- Não sei. Nessa altura, o assunto não tinha interesse - Joan fez uma pausa. - Mas posso tentar saber mais.

- Seria, sem dúvida, muito útil conhecer o final da história - Lavinia bateu com a biqueira da botina no tapete fofo. - Quem controla agora a fortuna de Lady Rowland?

- O filho. O pai da jovem em questão.

- Bem... bem... - murmurou Lavinia para consigo. Joan lançou-lhe um olhar curioso.

- Em que está a pensar?

- Acabo de me dar conta de que as mortes de Lady Rowland e de Lorde Fullerton, alteraram drasticamente planos de casamento.

Joan inclinou a cabeça, enquanto meditava nesta conclusão.

- Se analisarmos a questão sob esse ângulo, pressinto que uma outra morte se possa ter caracterizado pelo mesmo esquema. A de um cavalheiro de cerca de quarenta anos, chamado Newbold. Há umas semanas, encontraram-no morto, de manhã, junto à escada. Toda a gente pensou que se tivesse desequilibrado lá de cima depois de ter bebido demais.

- Que noivado foi desfeito com a morte dele?

- O dele - esclareceu Joan, antes de fazer esgar de desgosto. - Era um devasso que frequentava os mais infames bordéis para aí procurar crianças, muito novas.

- Um pervertido - concluiu Lavinia.

- Sim, mas um pervertido riquíssimo. Tal como Fullerton, tinha-se comprometido recentemente com uma jovem dama. Não sei bem se ela compreendeu a sorte que teve por se ter livrado de tal casamento.

- Interessante - comentou Lavinia. Joan franziu a testa.

- Acontece Lavinia que, do mesmo modo que nos outros dois casos, ninguém, que eu saiba, tentou opor-se ao casamento de Newbold. De facto em todos os casos, tratavam-se de uniões muito vantajosas para os dois lados, em termos de dinheiro e prestígio social. Sabe tão bem como eu que, na alta sociedade, só isso importa.

- A maior parte das vezes, sim. Mas nem sempre. Por exemplo, sei como a minha amiga se preocupou com a felicidade de Maryanne quando ela pensou em casar-se.

- É certo - concordou Joan, olhando com ar imperscrutável para o retrato de Fielding Dove por cima da lareira. - Fielding também se preocupava com isso. O nosso casamento tinha sido tão feliz...

Lavinia sentiu que Joan estava a tentar conter uma forte emoção. Interrogou-se se a deveria encorajar a desabafar ou se, pelo contrário, se deveria manter à distância. Não eram ainda assim tão íntimas para que se permitisse a demasiadas liberdades. Não desejava ultrapassar determinados limites a menos que ela lho solicitasse. Voltou para junto do sofá e aí ficou.

- Sei que gostava muito do seu marido - disse simplesmente.

Se Joan não quisesse falar, aceitaria essa atitude como uma aquiescência silenciosa.

Joan abanou efectivamente a cabeça, sem deixar de olhar para o retrato. Por momentos, Lavinia concluiu que estava acabada a conversa. Depois Joan levantou-se de repente e foi colocar-se em frente à janela.

- Precisamente antes da sua chegada, a minha filha empenhou-se em mo recordar.

- Não queria parecer indiscreta, mas acho-a triste, Joan. Posso fazer alguma coisa por si?

O elegante queixo de Joan pareceu endurecer. Pestanejou várias vezes, como que a procurar conter as lágrimas.

- Maryanne veio dar-me uma lição sobre a inconveniência da minha amizade com Lorde Vale.

- Valha-me Deus...

- Considera que, de certo modo, estou a ser infiel à memória de Fielding.

- Compreendo.

- É muito desagradável ouvir sermões sobre esse assunto, vindos da própria filha.

Lavinia não pôde conter um sorriso.

- Se é que isto lhe pode servir de consolo, a minha sobrinha fez-me recentemente um sermão semelhante. Emeline deu-me a entender que a minha relação com o Mr. March durava há tempo demais e que já se impunha a formalidade de um compromisso matrimonial.

Joan devolveu-lhe um olhar de simpatia.

- Nesse caso, deve compreender o que sinto. Sinceramente, Lavinia, pensa que a minha ligação com Lorde Vale é a prova de que não amei, nem que respeito já a memória de Fielding?

- Joan, a natureza da sua relação com Lorde Vale não me diz respeito. Mas uma vez que me pediu a opinião, vou-lha dar. Desde que me falou do seu casamento, nunca duvidei que se amavam ambos profundamente. Por conseguinte, creio que Fielding Dove a amou muito. Portanto, não creio que lhe recusasse o direito de conceber ainda a felicidade e o afecto após a sua morte.

- É disso que me tento convencer.

- Se ainda sentir remorsos, encare a situação de modo inverso. Suponhamos que tinha morrido primeiro, pretenderia que Fielding vivesse sozinho o resto dos seus dias?

- Não - respondeu Joan, calmamente. - Desejaria a sua felicidade acima de tudo.

- Bom, estou convencida de que ele tinha respondido o mesmo se lhe tivessem posto a questão.

- Obrigada - disse Joan, que parecia aliviada de um grande peso. É muita bondade sua incutir-me confiança. Reconheço que as acusações de Maryanne me abalaram. Começava a interrogar-me seriamente se não estaria a atraiçoar a memória de Fielding.

- As considerações de Emeline sobre a minha relação com Tobias também não me deixaram indiferente.

- Noutras circunstâncias, isto seria quase ridículo. Dedicámos muito tempo e energia à educação destas duas raparigas, ensinando-lhes o decoro e o comportamento correcto. E eis que agora, viram contra nós as regras que lhes inculcámos.

Lavinia franziu as sobrancelhas.

- Interrogo-me sobre se a nova geração não estará a desenvolver um gosto por um exagerado recato.

Joan estremeceu.

- Espero que não. A discrição e a decência são certamente importantes, mas seria lamentável que a actual geração de rapazes e raparigas deste país se viessem a transformar em gente afectada e tacanha.

 

TOBIAS SUBIU OS DEGRAUS DO NÚMERO 7 DE CLAREMONT LANE,

impaciente, desde essa manhã ao pequeno-almoço, com a ideia de passar uma ou duas horas dessa tarde com Lavinia.

Era a única perspectiva agradável que lhe surgia num dia que se mostrara, até ali, extremamente frustrante e pouco produtivo. Nada mais desejava do que afundar-se na cama dela, lá em cima no quarto, e perder-se nos braços da amante.

As suas esperanças desvaneceram-se, logo que a Mrs. Chilton abriu a porta.

- Mrs. Chilton? Não esperava encontrá-la. Pensei que hoje de manhã me tinha dito que esta tarde sairia para comprar passas e que a Mrs. Lake estava sozinha em casa.

- Não vale a pena olhar-me dessa maneira - respondeu a Mrs. Chilton, sorrindo. - Houve mudança de planos. A culpa não foi minha. De repente a Mrs. Lake anunciou que iria visitar a Mrs. Dove. Disse que voltava às três.

- São três da tarde, Mrs. Chilton.

- Bom, isso quer dizer que está um pouco atrasada. De qualquer maneira, mesmo que ela cá se encontrasse, não mudaria nada para si.

- E porquê?

A Mrs. Chilton olhou em direcção ao salão, cuja porta estava fechada, e continuou a meia voz, em tom conspirativo:

- Ainda não há dez minutos, chegou uma senhora. Quando lhe disse que a Mrs. Lake tinha saído, exigiu saber quando voltaria. Respondi-lhe que cerca das três horas. Logo a seguir, declarou que esperava por ela.

- Ora esta! E a senhora ainda aí está?

- Sim. Mandei-a entrar para o salão e servi-lhe o chá. Não podia fazer outra coisa - a Mrs. Chilton limpou as mãos rudes ao avental. - Diz ser uma cliente. Pensei que pudesse ter lido o anúncio que a Mrs. Lake mandou publicar nos jornais há algum tempo. Sabe que a Mrs. Lake acredita com entusiasmo que deve anunciar os seus serviços. Está convencida que é o mais moderno meio para gerir um negócio.

Tobias entrou para o vestíbulo e atirou o chapéu para cima da mesa.

- Não me fale nisso! - suspirou. - Já conhece a minha opinião sobre esse assunto.

- Sim, o senhor foi muito claro - respondeu a governanta, que fechava já a porta. - Mas como não pareceu atrair clientes, também parece que não fez mal. Para falar verdade, acho que a Mrs. Lake está a ficar um pouco aborrecida com tudo isso.

- Infelizmente o aborrecimento não foi suficiente para acabar com o esquema.

Até ali os receios de Tobias, que os anúncios publicados por Lavinia na imprensa atraíssem até à sua porta toda a espécie de loucos, não se tinham realizado. Apenas três pessoas se haviam apresentado em busca de quem lhes pudesse realizar investigações de natureza pessoal e privada e todos três tinham mudado de ideias, após descobrirem que o especialista em investigação era uma mulher.

- Não tenho culpa que a dama que se encontra no salão tenha decidido vir visitar a Mrs. Lake precisamente esta tarde - resmungou a governanta.

Tobias dirigia-se já para o salão.

- Não tem nada que se censurar, Mrs. Chilton. Mas creio que tenho duas palavras a dizer a essa senhora antes do regresso da Mrs. Lake.

- Espere! - alarmou-se a governanta, que corria para o alcançar. Não sei se a Mrs. Lake gostaria que falasse com a sua cliente na ausência dela.

Tobias presenteou a Mrs. Chilton com o seu melhor sorriso.

- E o que teria ela a objectar? - Tobias lançou-lhe o seu mais inocente sorriso. - Somos sócios, não somos?

- Apenas em certos assuntos. E sabe muito bem que ficará furiosa se descobrir que lhe espantou uma cliente.

- Só me quero assegurar se essa senhora é respeitável e pode pagar. Abriu a porta do salão e desapareceu no seu interior antes que a Mrs. Chilton pudesse impedi-lo.

O ruído da porta fez com que a dama sentada no sofá se voltasse.

Raios! praguejou interiormente Tobias. Era com efeito uma cliente. Portanto não se podia livrar dela antes do regresso de Lavinia.

- O que faz aqui, Aspasia? - perguntou.

Esta lançou-lhe um sorriso calmo e de cumplicidade.

- Tobias! Que coincidência! Vim falar com a Mrs. Lake porque supunha que estava muito ocupado com as suas buscas. Queria saber como está a decorrer a investigação.

Com qualquer outro cliente, Tobias não teria hesitado em mentir, pretendendo ter feito já progressos significativos. Era o que habitualmente fazia com quem lhe pagava. Mas Aspasia era uma cliente diferente.

Aproximou-se da janela, com a luz por trás de si e olhou para ela.

- Não posso falar em nome da Mrs. Lake, pois esta tarde ainda não tivemos ocasião de comparar as nossas averiguações. Pela minha parte, não fiz muitos progressos. Os nossos assistentes, que enviei para que investigassem as joalharias e os cabeleireiros, talvez recolham algumas informações interessantes sobre os anéis e a cabeleira loura.

Pelo canto do olho, apercebeu-se que Lavinia já se encontrava à porta e, acrescentou:

- Aí está justamente a minha sócia! Talvez nos traga notícias. Lavinia apareceu muito bela, vestida de violeta escuro. Tobias não pôde conter um sorriso de pura satisfação, apesar dos seus projectos para a tarde parecerem ter ido definitivamente por água abaixo. Algo dentro de si reagia ao simples facto de a ver.

Ouviu o som abafado da porta da rua a abrir e a fechar.

Segundos mais tarde, Lavinia entrou no salão. Já tinha tirado o chapéu no vestíbulo e tinha as faces rosadas pelo passeio. Tobias sentiu a beliscadura familiar do desejo que lhe provocava a vitalidade feminina que dela irradiava. Sentiu-se atormentado pela visão do leito vazio.

- Boa-tarde Mrs. Gray - disse ela, inclinando a cabeça. - Perdoe-me mas não esperava a sua visita.

O seu sorriso era tão educado e profissional, pensou Tobias, que era preciso conhecê-la muito bem para compreender a sua frieza.

- Sou eu que peço desculpa por não a ter avisado antes, Mrs. Lake. Mas não conseguia ter descanso. Voltei ontem a Londres e tinha pressa em saber se o Mr. March e a senhora já tinham descoberto alguma coisa.

Lavinia instalou-se num sofá, sem esboçar um sorriso.

- Sim. De facto fizemos. - Lavinia sentou-se numa cadeira junto do tabuleiro do chá e arranjou as saias com um floreado. O seu sorriso alargou-se. - Fizemos progressos substanciais.

Tobias reflectiu que, ao contrário dele, ela não sentia quaisquer escrúpulos em mentir a Aspasia.

- Verdade? - admirou-se Aspasia. - Tobias tinha acabado de me dizer que ainda não tinha encontrado nada. Não é, Tobias?

Este cruzou os braços atrás das costas.

- Com efeito. Até agora, os meus esforços não resultaram em grande coisa.

Lavinia lançou-lhe um olhar de repreensão.

- Pois é uma sorte que eu, pela minha parte, tenha informações úteis - declarou Lavinia.

Tobias pensou que ela estava decidida a seguir as regras que utilizavam para com todos os clientes, mesmo que ele se recusasse a fazer o mesmo.

- Os seus dotes profissionais nunca deixam de me surpreender, minha senhora - replicou Tobias. - Afinal o que soube pelo seu informador secreto?

Percebeu imediatamente que Lavinia se tinha dado conta da inflexão conferida às duas últimas palavras. Duvidava que ela quisesse arrastar o nome da Mrs. Dove para a conversa, mas, mais valia tomar precauções.

Lavinia virou-se para Aspasia.

- Descobri que havia pelo menos duas mortes que pareciam bastante suspeitas: Lady Rowland e um tal Mr. Newbold. Ambos partiram deste mundo inesperadamente.

Tobias arrebitou as orelhas.

- Estou ao corrente, no que diz respeito a Lady Rowland - disse. Uma dose excessiva de soporíferos. Mas ninguém me falou de Newbold.

Aspasia franziu ao de leve as sobrancelhas.

- Newbold caiu da escada há mês e meio, em sua casa. Estava embriagado, penso eu. Pelo menos foi o que ouvi dizer pouco depois do meu regresso a Londres. Mas não prestei muita atenção.

- A maior parte das pessoas ignorou a sua morte - Lavinia fez um trejeito com a boca que lhe acentuou o desprezo que sentia. - Era um porco debochado e frequentava bordéis daqueles onde há crianças à disposição desses infames. Quanto a mim, a menina, que estava noiva dele, livrou-se de boa. Imagine-se o horror de estar casada com um homem assim.

- Com certeza - aquiesceu Aspasia, sem mais comentários. Lavinia dirigiu-se a Tobias:

- De qualquer maneira, considero uma coincidência no mínimo intrigante, não?

- As mortes súbitas? Sim, claro.

- As mortes não - disse ela, impaciente. - O facto de todas elas terem conduzido ao cancelamento de casamentos.

Tobias compreendeu que Lavinia estava a falar a sério. Custava-lhe a acreditar nela. E a Aspasia também, pela sua expressão.

- Lavinia - disse ele, com precaução -, estás a querer insinuar que os motivos desses três assassinatos foram o desejo de evitar que um casamento se realizasse?

Lavinia pousou o bule.

- Tens um móbil melhor para me propor?

- É precisamente nisso que estou a trabalhar - replicou Tobias, a quem a segurança da jovem começava deveras a irritar. Aquelas três mortes tinham, acima de tudo, feito com que grandes fortunas mudassem de mãos. O que estabelecia a existência de muitos suspeitos em cada uma das famílias.

Incrédula ao princípio. Aspasia parecia agora reflectir.

- Ouvi rumores quanto ao desejo obsessivo de Lady Rowland em casar a neta com o neto do seu antigo amante - interveio ela. - Sabia-se que realmente utilizava a fortuna para manipular toda a família. Mas porque a teriam matado? Ela tinha prometido um dote generoso à neta.

- Apenas se aceitasse casar com Ferring - lembrou Lavinia. - Mas agora, é o pai que controla a fortuna de Lady Rowland e evidentemente que não está muito interessado nessa proposta de casamento. A neta é livre de se casar com outra pessoa. Nas duas outras mortes que nos preocupam, as jovens escaparam-se, da mesma maneira, de uma futura união que se arriscava muito a ser infeliz.

- Não estás a sugerir que essas jovens arquitectaram um esquema diabólico para recorrer aos serviços de um assassino profissional? - objectou Tobias. - Não parece possível.

Aspasia apertou a boca.

- Tobias tem razão, Mrs. Lake. A sua hipótese não deixa de ser interessante, mas parece impossível imaginar que três jovens extremamente protegidas, sem experiência do mundo pudessem ter razões para contratar e muito menos pagar a um assassino profissional.

Lavinia encolheu os ombros de um modo que Tobias sabia querer dizer que defenderia o seu ponto de vista.

- Devo fazer-vos lembrar, a ambos, que em matéria de casamentos na alta sociedade, outras pessoas, que não os noivos, podem estar interessadas na concretização ou não de uma aliança.

- Se bem te entendo, sustentas que, membros dessas três famílias teriam recorrido a assassinatos para impedir os casamentos? - resumiu Tobias cruzando os braços. - É uma loucura. Estamos a falar de um assassino que imita o Homem do Memento-Mori. É impossível imaginar um assassino profissional a trabalhar para uma mãezinha casamenteira.

Para surpresa dele, Aspasia respondeu, sem dar tempo a que Lavinia reagisse.

- O casamento é uma coisa muito importante e as meninas pouco têm a dizer dos planos que fazem para elas - fez um trejeito com a boca. Sei do que estou a falar. O meu pai não se preocupou muito em saber se eu seria feliz quando cedeu a minha mão.

Este último comentário surpreendeu Tobias. Nunca tinha ouvido Aspasia evocar o seu breve casamento.

Lavinia contemplava-a em silêncio e Tobias viu que estava com curiosidade no que Aspasia tinha para contar sobre o assunto.

- Seja como for - continuou esta - e no que diz respeito às ligações na sociedade, não há nada de invulgar nessas combinações. E nunca ouvi dizer que alguém tivesse cometido um homicídio para impedir um casamento.

- Como profissional, posso garantir-lhe, Mrs. Gray, que já encontrámos gente que matou por muito menos - fez notar Lavinia. - Não é Tobias?

Tobias recusou-se a entrar na polémica. Procurou uma saída diplomática.

- Pode matar-se por todo o tipo de motivos - acedeu ele, com discrição. Mas a resposta não pareceu convencer nenhuma das duas mulheres. Aspasia franziu as sobrancelhas.

- Tenho confiança em que não percam tempo a seguir pistas falsas. Ele inclinou a cabeça.

- Vou tentar evitá-lo.

- Eu também - retorquiu Lavinia num tom seco. Aspasia levantou-se e dirigiu-se para a porta.

- Tenho de ir. Por favor, mantenham-me ao corrente dos vossos progressos.

Tobias atravessou o salão, para lhe abrir a porta.

- Evidentemente. Até à vista, Aspasia.

Hesitou por momentos, antes de passara ao vestíbulo.

- Não temos tempo a perder, Tobias. É preciso desmascarar o novo Homem do Memento-Mori, o mais rapidamente possível. Quem sabe que outro crime estará a preparar?

Tobias crispou a mão sobre a maçaneta da porta, e quase a arrancou.

- Estou plenamente consciente dessa urgência.

Mrs. Chilton encontrava-se no vestíbulo. Já tinha aberto a porta da casa e Aspasia saiu rapidamente.

Tobias esperou que ela descesse a escada. Depois tirou o relógio do bolso e sorriu para a governanta.

- Acho que ainda tem tempo de ir comprar passas. A mulher levantou os olhos para o céu.

- Muito bem - concordou. Empregou um tom mais baixo, para que não fosse ouvida no salão: - Mas apresse-se. A menina Emeline deve estar de volta às cinco. Não se deixem surpreender.

- Obrigado pelo aviso, Mrs. Chilton. Não há necessidade.

- Ora!

Tobias voltou para junto de Lavinia, que estava em frente da janela e olhava para a rua. Aproximou-se, pôs-lhe as mãos sobre os ombros e seguiu-lhe o olhar. Viram os dois Aspasia desaparecer à esquina da rua. Lavinia não se voltou.

- Deves mostrar-te indulgente para com Aspasia - murmurou Tobias. - Está assustada.

- Mmm.

- Tem todos os motivos para estar inquieta - prosseguiu. - Zachary Elland matava a sangue frio e o seu sucessor parece possuir o mesmo temperamento. E, depois, reconheço que ela tem razão. A ideia de que há uma ligação entre estes três supostos crimes e a mudança de planos dos casamentos não parece muito sólida por enquanto.

- Mmm.

- Lavinia, penso que estás perturbada. Terás conversado com a Mrs. Dove sobre qualquer outro assunto de que ainda não tenhas falado?

- Joan perguntou-me se eu pensava que ela estava a trair a memória do marido ao ter uma ligação com Vale. Parece que isso está a preocupar a filha.

- Estou a entender - disse Tobias, que não esperava por aquilo. - E o que lhe respondeste?

- Que o marido a tinha amado profundamente e que certamente desejaria que fosse de novo feliz, tal como ela o quereria, se ele tivesse morrido primeiro.

- Com certeza - pronunciou Tobias, que se sentia pouco inspirado. Mas o que seria aquilo? - Bom, tenho a certeza de que a tranquilizaste.

Mudando de assunto, a Mrs. Chilton disse-me que ia fazer umas compras para o jantar. O que achas se nós...

- Tobias?

- O que é? - Perguntou ele, extremamente cauteloso

- Se me acontecer qualquer coisa e ficares sozinho, quero que procures a tua felicidade.

Instintivamente, Tobias apertou os ombros da jovem. A ideia de a poder vir a perder tinha-lhe feito gelar o sangue nas veias. Viu tudo vermelho. Ocorreu-lhe que, se a perdesse, poderia enlouquecer.

- Queria que encontrasses a felicidade - repetiu ela, aparentemente inconsciente do efeito que as suas palavras produziam. - Mas não com Aspasia Gray.

Sem saber porquê estas palavras, libertaram-no do terrível feitiço. Descobriu então que podia respirar de novo. Fez a jovem rodar de modo a ficar frente a frente com ele.

- Não imagino desejar outra mulher como te desejo a ti - declarou com uma voz áspera e rouca que nem ele reconhecia.

- Oh, Tobias! - exclamou ela passando-lhe os braços à volta do pescoço. - Amo-te tanto.

- Estou radiante por te ouvir - disse ele, beijando-lhe o cabelo e deixando que o perfume dela o inebriasse. - Mas, por amor de Deus, não me fales mais em desapareceres. Para mim, isso é insuportável.

Lavinia apertou-se contra ele.

- Também para mim é insuportável a ideia de te perder. Ficaram abraçados por um bom bocado. Depois Tobias levou-a para o primeiro andar.

Mais tarde, no quarto, Tobias pegou no relógio, que estava em cima da mesa-de-cabeceira, para ver as horas. Eram quatro e um quarto, horas de se vestir. Era cada vez mais difícil abandonar a cama dela. Contravontade, sentou-se na beira da cama.

- Tobias?

Tobias voltou-se para ela. Lavinia estava deitada na cama, encostada às almofadas, com os olhos muito verdes à luz da tarde

- Preciso de ir, meu amor. Emeline vai chegar dentro de três quartos de hora e eu combinei encontrar-me com Anthony às cinco. Com um pouco de sorte, talvez ele saiba mais alguma coisa em relação aos anéis.

- Bem sei - Lavinia cruzou as mãos atrás da cabeça, deixando a descoberto um seio. - Tobias - continuou -, dei a Joan um conselho acertado, não dei? Acreditas que Dove desistiria da sua felicidade com mais alguém, depois da morte dela?

Em vez de responder, ele debruçou-se para dar um beijo no seio nu de Lavinia. Sentiu-lhe a pele suave e quente depois de terem feito amor. Descobriu nela vestígios do seu próprio cheiro e sentiu-se, de repente, atormentado por um indomável sentimento de posse. Era a sua mulher.

Lavinia franziu a testa.

- Então? Concordas comigo? Fielding Dove ter-se-ia sentido assim nessa situação?

Tobias olhou-a nos olhos durante muito tempo e, depois, inclinou-se deliberadamente sobre ela, envolvendo-a com os braços. Inclinou a cabeça e tocou-lhe nos lábios.

- Não posso responder por Fielding Dove. Mas posso prometer-te que se procurasses nos braços doutro qualquer aquilo que já partilhámos juntos, voltava do túmulo para te atormentar.

 

TOBIAS TINHA REGRESSADO PARA O ESCRITÓRIO ÀS CINCO E MEIA e lá se encontrava com os pés sobre a secretária. O breve intervalo passado no quarto de Lavinia tinha-o aliviado de parte da tensão acumulada após os acontecimentos no castelo de Beaumont. No entanto, enquanto ouvia o relatório de Anthony, sentiu essa tensão regressar a toda a força.

- Nenhum antiquário, dos que contactámos, vendeu um anel parecido com os que foram deixados pelo assassino. - Informou este. - No entanto, ainda restam alguns nomes na lista. Queres que continuemos amanhã de manhã?

- Sim - respondeu Tobias, que analisava a lista em questão. - Estes malditos anéis são uma das poucas pistas que possuímos. O assassino deve tê-los comprado em qualquer lado. E quanto às perucas louras?

- Por enquanto, fomos apenas a dois fabricantes de cabeleiras postiças. Um deles recebeu de facto uma encomenda nos últimos meses.

Tobias levantou os olhos com interesse.

- Conseguiram saber o nome do comprador?

- Sim, mas não serviu de nada. O fabricante conhece a cliente há vários anos. Descreveu-a como uma velha senhora algo excêntrica. Vive no campo e apenas vem a Londres duas ou três vezes por ano para fazer compras. Duvido muito que se trate do nosso assassino profissional, Tobias.

- Maldição - Tobias voltou a contemplar a lista por mais um momento e em silêncio. Por fim, rasgou-a pelo meio, guardou metade e entregou a outra a Anthony.

- Tu e Emeline vão acabar de interrogar os antiquários. Eu e Lavinia vamos averiguar junto dos fabricantes de perucas. Entre os quatro, devemos ter tudo acabado daqui a dois ou três dias.

- Está bem - disse Anthony, encostando-se na sua cadeira. - Whitby disse-me que pensavas ir ter com Jack, esta noite, ao Gryphon. Queres que vá contigo? À noite, é um sítio perigoso.

- Obrigado, mas não é preciso. Vou de carruagem e peço ao cocheiro que espere por mim.

Anthony lançou-lhe um olhar curioso.

- Porque é que vais falar com o velho Smiling Jack sobre este caso? Pelo que nos contaste, o primeiro Homem do Memento-Mori nada tinha a ver com os vulgares marginais da capital. Pensas que este novo assassino é diferente?

- Não. Mas ontem à noite dei-me conta de que, ao fim e ao cabo, pouco sabíamos sobre Zachary Elland. Aparentemente, não tinha família. Após a sua morte, ninguém veio reclamar os seus bens pessoais. Não há vestígios dele na sociedade. Dir-se-ia nunca ter existido. Talvez que, ao reconstruir o seu passado, encontre um indício interessante.

- Está bem - disse Anthony levantando-se para se ir embora. Desejo-te boa sorte. - Já com a mão no puxador da porta, voltou-se com a testa levemente franzida. - Tobias, tenho uma pergunta a fazer-te. É..., digamos, de natureza pessoal.

- De que se trata?

- Imagino que a morte de Fullerton tenha atrapalhado um pouco os vossos projectos. Mas antes dessa tragédia, tu e Lavinia tiveram tempo para conversar sobre as vossas relações privadas?

Tobias baixou lentamente a folha de papel que tinha cortado.

- As nossas quê?

Anthony corou ligeiramente, mas não se mexeu.

- Eu e Emeline pensámos que tinhas convidado a Mrs. Lake para essa festa no campo, porque querias aproveitar a ocasião para lhe comunicares as tuas intenções.

- Que intenções? - perguntou Tobias em tom monocórdico. O olhar de Anthony transformou-se em reprovação.

- Não me digas que nem sequer falaste no assunto.

- Mas afinal do que é que estás a falar? O jovem largou o puxador da porta.

- Pediste ou não a Mrs. Lake em casamento?

- Santíssimo sacramento! - disse Tobias em voz baixa.

- Que aconteceu? - perguntou Anthony em tom assustado. - Meu Deus, não me digas que perdeste a coragem.

- Não tens absolutamente nada a ver com as minhas intenções, em relação à Mrs. Lake - replicou Tobias com ar glacial.

- Reparei simplesmente que têm tido muitos encontros em privado nestes últimos meses.

- E então? Lembra-te que somos sócios.

- Sócios? E essa história de mandar a Mrs. Chilton comprar passas? Tobias começava a sentir-se irritado.

- As tartes de passas da Mrs. Chilton são as melhores que já comi.

- Sabes muito bem que isto não tem nada a ver com as tartes de passas da Mrs. Chilton - o cunhado deteve-se com os pés ligeiramente afastados. - A Mrs. Lake é uma mulher respeitável. Não há qualquer dúvida de que estão muito ligados um ao outro. Não achas que já é altura de te portares como um cavalheiro?

- Sabes muito bem que não estou em condições de pedir a mão de Lavinia. Investi todo o dinheiro que tinha no navio fretado por Crackenburne. Enquanto o barco não voltar ao porto, com a equipagem sã e salva e os porões cheios, não tenho nada para oferecer a Lavinia.

Anthony assumiu um ar condoído.

- Sei muito bem das tuas preocupações financeiras. De resto, as minhas são as mesmas. É por isso que tenho vindo a reflectir numa solução que poderia resolver todos os nossos problemas.

- Ah, sim? E que sugeres que façamos? - Tobias lançou para cima da secretária a lista dos fabricantes de perucas. - Encontraste algum alquimista que consiga transformar chumbo em ouro?

Anthony fez um gesto vago com a mão.

- Não, pensava pura e simplesmente nesta casa.

- O que é que tens contra a casa? É minha. A bem dizer, é o meu único património.

- Bem sei - disse calmamente Anthony. - Pela minha parte, mal consigo pagar os meus aposentos em Jasper Street.

- De certeza que não é por culpa minha. Lembra-te que foste tu que quiseste sair de casa, para te tornares independente. Querias poder receber os teus amigos a qualquer hora do dia ou da noite.

- O problema é que, embora esse apartamento sirva perfeitamente para um homem solteiro, não posso pedir a Emeline que se estabeleça lá. E para mais, ela está habituada à bonita casa de Claremont Lane.

- O que facilmente se compreende.

- Do modo como eu vejo as coisas, Tobias, temos uma residência a mais.

- Podes explicar-te?

- É muito simples. Se te casasses com a Mrs. Lake, como é teu dever, podiam ir morar juntos para o número 7 de Claremont Lane. Eu deixava os meus aposentos de Jasper Street, casava com Emeline e vínhamos morar para aqui. Seria o melhor para todos. Tobias compreendeu.

- Vamos lá ver - retirou rapidamente os pés de cima da secretária. Estás a tentar apoderar-te da minha casa para te poderes casar com Emeline? É disso que se trata, não é verdade?

Anthony recuou um passo, erguendo as mãos em jeito .

- Não vale a pena aborreceres-te, Tobias. Pensava sinceramente que era uma boa ideia, da qual lucraríamos os quatro. Ainda mais, eu economizava a renda. E nós não precisávamos de uma terceira governanta. Ficavas com Whitby e nós mantínhamos a Mrs. Chilton.

- Se pensas que te vou deixar ficar com esta casa, que é a única coisa que possuo - retorquiu Tobias em voz baixa - perdeste a cabeça. Por agora, sugiro-te que vás acabar este trabalho, pelo qual te pago mais do que mereces, antes que decida contratar outro assistente.

- Tobias, escuta-me, por favor...

- Rua! - disse Tobias, apontando com o indicador para a porta. E encontra-me quem vendeu estes malditos anéis memento-mori a um assassino profissional. Entendido?

- Entendido.

Anthony abriu a porta e saiu para o vestíbulo. Quando a porta se fechou, Tobias voltou a sentar-se. Em seguida contemplou o escritório com olhar pensativo. Um pouco por todo o lado encontravam-se objectos que tinha adquirido ao longo dos anos: os seus livros, o globo terrestre, um telescópio, o frasco do brnndy...

A casa não era apenas o seu bem mais importante, era também a sua residência, era a sua casa. Tinha-a comprado graças a um empréstimo de Crackenburne, pouco antes de ter conhecido Ann e o seu irmão mais novo, Anthony.

Naquela casa, Tobias tinha conhecido cinco anos de felicidade com Ann, até a mulher morrer ao dar à luz um nado morto. E fora sob esse mesmo tecto que Anthony e ele tinham partilhado o seu desgosto.

Anthony tinha treze anos quando a irmã morreu. Sem Tobias, teria ficado sozinho no mundo, a mãe tinha morrido quando ele tinha oito anos, pouco depois do pai, jogador, ter sido morto numa disputa por causa de um jogo de cartas.

Anthony e Ann tinham ido viver com uns tios horríveis, os únicos parentes que lhes restavam. Poucos meses depois de se encontrarem nessa horrível família a tia quis livrar-se de Ann, tratando de lhe arranjar um compromisso com Tobias. O seu objectivo era casar a sobrinha e meter, logo a seguir, o sobrinho num orfanato.

Bastou a Tobias aperceber-se do que se passava com Arun e com o irmão mais novo para se dispor a salvá-los a ambos. Não pensara casar com Ann quando a tirou de casa da tia, mas em breve mudava de ideias. Ann não era só muito bela, como também simpática e bondosa, o tipo de mulher a que os poetas chamam etérea.

Provocara nele sentimentos ternos e protectores. Tratara-a sempre com o cuidado que dedicaria a uma flor delicada. Sabia agora que controlara as suas paixões, sempre consciente dessa necessidade. Não se lembrava de que alguma vez tivessem discutido. Com ela, nunca perdera a cabeça.

Porém, afinal, fora incapaz de a proteger. Talvez que, conforme Anthony muitas vezes afirmara, Ann fosse demasiado boa para este mundo.

Partira provavelmente para um lugar melhor, mas Tobias e Anthony tinham tido de encarar as duras realidades do mundo. A princípio Anthony combatera os seus medos da única maneira que sabia: com raiva. Assumira o ar de desafio de um rapazinho de treze anos e exigira saber quanto tempo tinha para fazer as malas e deixar a casa.

Não tens de me aturar, agora que ela se foi. Só me aceitaste porque ela não viria sem mim. Compreendo. Já não estou à tua responsabilidade. Posso muito bem tomar conta de mim.

Tobias tinha feito os possíveis para consolar o rapazinho desesperado e assustado, pois também ele sentia o desgosto. Depois de Ann ter sido enterrada sentira-se consumido de remorsos. Tivera também consciência de que tinha sido a sua paixão - embora muito controlada - a causadora da gravidez dela e por fim da sua morte. Em certos dias, dizia mesmo a si próprio que nunca deveria ter casado com ela. Não tivera o direito de a expor aos perigos e riscos do leito matrimonial. Ela não fora feita para tal. Ele e Anthony tinham vagueado pela casa durante muito tempo, duas pessoas feridas, fechadas em si próprias, nadando num mar de emoções. Mas a vida tinha a as suas inexoráveis exigências. Arrastando Anthony consigo, Tobias começara a cumpri-las. Juntos encontraram um curioso alívio na rotina diária.

Por fim, num processo que, de tão lento quase fora imperceptível, ele e Anthony começaram a navegar em águas mais calmas. Aquela casa, a tudo assistira.

Agora, rodeado pelos seus livros, globo, telescópio e frasco de brandy, Tobias reflectia que estava impaciente por voltar a estender as pernas diante da confortável lareira de Lavinia.

Às dez e meia da noite, Tobias, vestido de estivador, sentava-se no escritório de Smiling Jack, partilhando com ele um copo do melhor brandy de contrabando. O ruído da taberna era abafado pela parede.

Jack abrira o Griphon havia dois anos, quando se reformara da sua carreira de contrabandista. Tobias conhecera-o durante a guerra, quando era espião ao serviço da Coroa e Jack se aproveitava do tráfico ilegal com o continente para trazer juntamente com o brandy, informações capitais sobre os movimentos das tropas francesas. Os dois homens, sendo oriundos de meios completamente diferentes, tinham conseguido formar entre si um forte laço, baseado no respeito mútuo e também no interesse.

A sua associação tinha continuado, mesmo depois de ambos terem seguido caminhos diferentes. Pela sua posição, a taberna de Jack era um óptimo local para se saberem todos os boatos e rumores do bas-fond de Londres, o que demonstrou ser de grande utilidade para Tobias.

- O Homem do Memento-Mori - repetiu Jack coçando pensativamente a cicatriz que lhe corria do canto da boca até à orelha. - Referes-te ao primeiro ou ao segundo com esse nome?

- É o segundo, Zachary Elland, que me interessa. Mas, estou receptivo a toda a informação sobre o assunto.

- Não sei se te posso dar uma grande ajuda - disse Jack, rodando o cálice de brandy entre as mãos enormes. - Havia rumores, na época em que Zachary operava, acerca de um cavalheiro assassino. Mas, como sabes, frequentava a melhor sociedade. Tanto quanto sei, nunca procurou os clientes, as vítimas ou os prazeres nos ambientes normais do crime. Assim posso dizer que imitou aquele que veio antes dele.

Tobias fez uma pausa antes de engolir o brandy. Baixou lentamente o copo.

- E o primeiro assassino? Tu eras um rapazote, mas lembras-te do que se contava a seu respeito?

- Falava-se dele quase até com admiração. Dizia-se que era tão hábil que nunca ninguém conseguira saber quantas encomendas aceitara no decorrer da sua carreira. Ele ananjava maneira de que as suas mortes parecessem acidentes, suicídios ou ataques de coração. Era uma lenda.

- Porque conseguia safar-se sempre?

- Não. Porque era considerado um homem de palavra. Não aceitava matar pessoas que não merecessem morrer. Segundo se dizia, preferia combater, à sua maneira, os vícios e a maldade que pudessem existir na alta sociedade... os ricos e poderosos, que também cometiam crimes. Matava por dinheiro, mas apenas se achasse que era um caso de justiça.

- Por outras palavras, nomeou-se a si próprio juiz e carrasco.

- Sim, exactamente isso.

- Crackenburne explicou-me que se deixou de falar nele há muitos anos. Pensou-se que tinha morrido.

- É possível, com efeito. Mas também se disse que simplesmente se tinha retirado para viver numa casinha à beira-mar.

- O Homem do Memento-Mori a viver numa casinha à beira-mar? comentou Tobias, quase divertido. - Que encantadora ideia. As lendas nunca morrem, pois não?

- De qualquer maneira, se não morreu, hoje em dia, deve ser muito velho. Não acredito que possa ainda constituir uma ameaça seja para quem for.

- Certamente não é ele o assassino que eu procuro. A Mrs. Lake viu-o no castelo de Beaumont. Estava disfarçado de mulher, mas seja ele quem for o assassino não é idoso. Ela está convencida e que era alguém vigoroso e atlético.

- É um trabalho que exige uma boa condição física - disse Jack. - Nem que seja para se introduzir nas casas das pessoas, trepando às janelas durante a noite. E depois, é preciso força para sufocar as vítimas ou para as manter debaixo de água até que se afoguem.

- Elland estava bem preparado para isso - concluiu Tobias, levantando-se. - Obrigado pelo brandy, Jack. Agradeço-te que espalhes que estou na disposição de pagar generosamente por qualquer informação susceptível de me pôr na pista deste novo assassino.

- Mando avisar-te se descobrir alguém que saiba alguma coisa. Mas tenho poucas esperanças, meu amigo. O assassino vem do teu mundo. Não do meu.

DOMINIC INCLINOU A LENTE DE MANEIRA A CAPTAR DIRECTAMENTE os raios de sol. Estava um dia claro e sem nuvens, perfeito para a sua demonstração. Alguns bocados de papel que tinha posto na bacia ateariam num abrir e fechar de olhos. Tratava-se de uma experiência insignificante, mas as pessoas davam sempre grandes gritos quando o conteúdo da bacia se incendiava.

Após a visita ao seu laboratório e de algumas demonstrações com a máquina eléctrica, Dominic tinha escolhido o pequeno parque junto à sua residência para exibir o poder das lentes.

Em seu redor, sentara-se um pequeno público ansioso. Após o início, a Mrs. Lake, Emeline e Priscilla mostraram-se bastante interessadas. Até Anthony, que chegara um pouco carrancudo e se mostrara pouco educado, não tinha conseguido dissimular a sua curiosidade frente aos diferentes aparelhos.

De repente, os papéis, aquecidos pelos raios de sol que atravessavam a lente de aumentar, incendiaram-se. Exactamente como o previsto, pensou Dominic satisfeito.

- Valha-me Deus! - exclamou Lavinia, fascinada. - É impressionante, Mr. Hood.

Todavia, uma hora antes, esta aparecera com Emeline e Priscilla, distraída e com pressa de se ir embora. Em tom de desculpas, Emeline explicara que, à excepção de Priscilla estavam todos envolvidos numa nova investigação e não dispunham de muito tempo para assistir a experiências.

Porém, à medida que estas se tornavam mais espectaculares, a Mrs. Lake começara a demonstrar o seu interesse.

- É antes de tudo astucioso - admitiu Anthony. - Mas não vejo qual é a verdadeira utilidade deste tipo de lentes.

- São muito úteis para as experiências que requerem calor - explicou Priscilla, ansiosa. Olhava para o instrumento com inveja. - Quem me dera poder ter uma. Mas a minha mãe nunca o permitiria.

Caprichosamente, a fascinação da jovem pela lente irritava Dominic. Deu por si a interrogar-se o que sentiria se Priscilla o olhasse com a mesma admiração. Depois recordou-se que ela não contava. O seu alvo era Emeline. Tinha esperanças de atrair a atenção dela com as suas experiências e, aparentemente, tinha atingido o objectivo.

No entanto, de todas as vezes, fora Priscilla que tinha manifestado mais entusiasmo nas experiências preparadas com tanto custo. E era ela, também, que melhor tinha compreendido os mecanismos postos em evidência em cada demonstração.

Dominic tinha ficado surpreendido pela extensão dos seus conhecimentos. O seu rosto arrebatador, os seus cabelos louros e olhos azuis podiam levar a crer que não tinha nada dentro da cabeça. Pois bem, pelo contrário, citava Newton e Boyle com uma facilidade desconcertante. As suas perguntas tinham sido sempre pertinentes e não tinha parado de tomar notas desde que chegara.

Emeline não parecera grandemente interessada.

- Foi tudo muito instrutivo - concluiu a Mrs. Lake, quando os papéis acabaram de arder. - Muito obrigada, Mr. Hood. - Olhou para o pequeno relógio que usava preso ao seu vestido de passeio e lançou a Dominic um sorriso simpático. - Meu Deus, precisamos de nos ir já embora. Emeline, Priscilla, vamos?

- Claro, Mrs. Lake - Priscilla tentou dissimulada sua decepção de ter de partir tão depressa. - Estou-lhe muito grata por ter aceite dedicar-nos um pouco do seu tempo para nos permitir visitar o laboratório do Mr. Hood. Sem a senhora, a minha mãe jamais me teria autorizado a vir.

- De nada - respondeu Lavinia, que se apercebeu de repente de uma silhueta familiar atrás de Dominic. - Ah, aqui está o Mr. March! Tinha-lhe dito que acabaríamos às dez horas. Teve a maçada de nos vir buscar.

- Não parece estar de bom humor - observou Emeline.

- Está assim desde que voltou do castelo de Beaumont - murmurou Anthony.

Dominic virou-se para lhes seguir o olhar. Sentiu um arrepio ao ver o homem de rosto sombrio que se aproximava deles a passos largos.

March cortara caminho pelo pequeno parque e parecia uma força da natureza, escura e decidida, recortado no campo verdejante e na cor clara das flores. Coxeava imperceptivelmente e o jovem interrogou-se se não teria sido ferido no passado. De qualquer modo, essa ligeira deficiência não afectava em nada a força que emanava dele. Pelo contrário, dir-se-ia ser um veterano, muito mais perigoso do que qualquer recruta jovem e inexperiente.

Dominic agarrou com força as suas lentes e pensou que deveria mostrar-se muito prudente com aquele homem.

- Mr. March - disse Lavinia. - Já conheces o Mr. Hood?

- Hood - disse Tobias abreviadamente, saudando Dominic com a cabeça.

- Muito gosto.

- Que pena não ter chegado mais cedo, Mr. March! - lamentou-se Priscilla. - O Mr. Hood acaba de terminar as suas interessantíssimas experiências!

- Fica para outra vez - replicou Tobias e acrescentou: - Minha senhora, se já terminou aqui, deixe-me recordar-lhe que temos assuntos urgentes à espera - olhou também para Anthony. - O senhor e Miss Emeline também.

- Bem - disse Anthony, desejoso de abandonar o parque. - Emeline e eu vamos acompanhar Priscilla a casa e depois reataremos as nossas investigações.

- Não vale a pena preocuparem-se - observou Lavinia, que calçava as luvas. - As lojas acabaram agora de abrir. Não perdemos tempo.

Dominic achou por bem ficar em silêncio, mas a curiosidade apoderou-se dele.

- Posso perguntar-vos o que estão a investigar?

- Procuramos um homem que tem como profissão matar pessoas explicou Lavinia. - Mata por dinheiro. O Mr. March receia que cometa em breve outro crime, se não o desmascararmos rapidamente.

Dominic franziu a testa.

- Procuram um assassino? Mas eu pensava que isso era trabalho para a polícia.

- Este assassino é inteligente demais para a polícia - interveio Anthony. - Tão inteligente que não deixa nenhuma prova que permita estabelecer que se trate de assassinatos - deu o braço a Emeline. - Vamos.

Emeline sorriu a Dominic.

- Mais uma vez obrigada por esta manhã instrutiva, Mr. Hood. Priscilla presenteou-o com um sorriso ainda mais caloroso.

- Foi na realidade fascinante - disse ela.

- De nada - replicou Dominic num tom brusco.

Anthony afastou-se sem se preocupar em despedir-se, acompanhando Emeline e Priscilla através do parque.;

Tobias deu o braço a Lavinia.;

- Desejo-lhe um bom dia, Mr. Hood.

- Também para si, meu caro senhor - respondeu Dominic, inclinando-se depois diante de Lavinia: - Agradeço-lhe ter acompanhado Miss Priscilla e Miss Emeline esta manhã. Tenho consciência que as regras do decoro as teriam proibido de franquear a minha porta sem a sua presença,

- Eu própria apreciei imenso esta visita - assegurou-lhe Lavinia. - Espero que nos encontremos dentro em breve, Mr. Hood, quando eu tiver um pouco mais de tempo.

Dominic viu-os afastarem-se. Custava-lhe bastante admiti-lo, mas tinha ciúmes de Anthony. Perseguir um assassino deveria ser um trabalho emocionante. Isso fê-lo lembrar-se que ele próprio tinha entre mãos uma tarefa importante.

Sabia que precisava mudar de estratégia. O plano que tinha traçado para afastar Emeline de Anthony não funcionava.

Uma ligeira brisa agitava as folhas do jardim. Dominic teve a impressão de ouvir a mãe sussurrar-lhe ao ouvido que nunca renunciasse. Era o único que a poderia vingar, pensou. Não havia mais ninguém.

O pequeno grupo tinha atingido a extremidade do parque e aí se separaram. O Mr. March e a Mrs. Lake viraram à esquerda, e Anthony e as suas acompanhantes à direita.

Dominic esforçou-se por fixar a sua atenção em Anthony, até ao último momento. Não se podia deixar distrair. Por fim, foram os caracóis louros de Priscilla a sair do chapéu cor-de-rosa que lhe prenderam o olhar, quando o grupo voltou a esquina.

Ficou ainda imóvel por algum tempo, antes de se decidir a guardar o recipiente em que os papéis tinham ardido. Apenas restava um pequeno monte negro, no fundo. Contemplou-o pensativamente.

A vingança não era uma coisa agradável. Começava a interrogar-se se, quando acabasse, apenas recolheria um punhado de cinzas.

 

DOIS DIAS DEPOIS, AO FIM DA TARDE, LAVINIA ACOMPANHAVA A Tobias à loja de um dos últimos fabricantes de perucas que figuravam na lista. Até ao momento, as suas pesquisas não tinham dado em nada e ela tinha perdido a esperança de recolher o mais pequeno indício.

Olhou em redor da Cork & Todd e sentiu-se pouco à-vontade. O seu interior era em tudo semelhante às outras lojas que já tinham visitado. Concluiu que se sentia perturbada pelas fileiras de bustos, cujos crânios estavam cobertos de diferentes modelos de perucas e postiços, fabricados pela casa. O proprietário não tinha a culpa de que os modelos lhe recordassem cabeças cortadas.

Na Cork & Todd, a maior parte dos modelos eram femininos, mas havia algumas cabeças que tinham perucas destinadas a cavalheiros.

Não havia ninguém atrás do balcão, mas uma voz calorosa veio do armazém:

- Vou em seguida.

Tobias aproveitou esta espera para tirar a lista do bolso e examiná-la.

- Só nos faltam três fabricantes de perucas para acabarmos. Repara, qual foi a sua utilidade. Perdemos quase três dias a procurar quem vendeu a cabeleira loura ao assassino, sem qualquer resultado.

- Anthony e Emeline talvez tenham tido mais sorte com os antiquários - alvitrou Lavinia, que deambulava pela loja e se dirigiu ao balcão para examinar mais de perto uma cabeleira. - E não te esqueças do primeiro armazém por onde passámos, aquele em que tinha uma indicação na montra a dizer que estava fechado até ao fim do mês. O que pensas fazer quanto a isso?

- Ocupar-me-ei dele esta noite. Lavinia voltou-se.

- Vais forçar a fechadura?

Tobias limitou-se a encolher os ombros.

- Irei contigo - declarou Lavinia, entusiasmada com a ideia dessa expedição nocturna.

- Está fora de questão.

Apesar da firmeza do tom, ela percebeu uma matiz de resignação na voz dele e compreendeu que ganhara a causa.

- Isso dar-me-á uma óptima ocasião de te ver a trabalhar - continuou ela. - Dizia para comigo, um dia destes, que deveria aperfeiçoar os meus conhecimentos em matéria de fechaduras. Até agora, não foste um professor muito persistente.

- Digamos que, acima de tudo, tenho sido prudente.

- Tolices. Não vou permitir que me impeças de aprender todas as actividades deste trabalho. E como somos sócios, tu deverias mostrar-te mais prestativo...

Interrompeu o que estava a dizer quando a cortina que separava a loja do armazém se abriu para deixar passar um homem de uns cinquenta anos, gordo, vestido com um colete de cetim ornamentado, um casaco castanho-avermelhado e uma gravata extravagante. Lavinia achou muito suspeita a cor escura dos seus cabelos, pois era um homem já de certa idade. Não havia um fio grisalho nos caracóis crespos que lhe saíam do couro cabeludo.

- Bons-dias, minha senhora, meu cavalheiro - disse ele, com os olhos a brilhar atrás dos óculos de armação dourada. - Bem-vindos ao meu estabelecimento. Sou . P. Cork ao vosso serviço. - O seu olhar deteve-se em Lavinia e adoptou um ar compadecido. - Minha senhora, bateu à porta certa. Posso salvá-la do seu triste destino.

- Não me diga! - disse Lavinia, ignorando deliberadamente os olhos negros de Tobias.

Não era a primeira vez, no decurso dos dois últimos dias, que a acolhiam com tanto entusiasmo. A maior parte dos fabricantes, que tinham interrogado, pareciam ficar espantados ao descobrir a sua cabeleira ruiva e prometiam ajudá-la a livrar-se daquilo que aqueles profissionais consideravam ser pior que a própria morte.

- Quando abandonar esta loja, minha senhora - continuou Cork, saindo de trás do balcão e pegando numa das mãos enluvadas de Lavinia com a sua mão gorducha -, será uma nova mulher, acredite em mim.

- A experiência certamente não deixaria de ser interessante - acedeu Lavinia. - Mas, infelizmente eu e o meu amigo não estamos aqui para comprar uma peruca.

O proprietário fez um pequeno ruído de impaciência e abanou resolutamente a cabeça.

- Se a sua cor natural fosse pura e simplesmente castanha ou negra, poderia tirar partido de um postiço. Mas perante um tal vermelho, receio bem que apenas uma peruca completa possa resolver o seu problema. Não vejo outra maneira de dissimular o seu verdadeiro cabelo.

Tobias avançou um passo, para atrair a atenção do fabricante de perucas.

- Mr. Cork, o meu nome é Tobias March e gostaria de lhe fazer umas perguntas sobre perucas.

Cork estudou a cabeleira de Tobias com um olhar profissional.

- Desculpe-me Mr. March. Eu estava tão assombrado com o cabelo da senhora que não prestei atenção ao seu caso. Mas agora que o observo mais de perto, compreendo que deseje apagar esse toque cinzento das suas têmporas. Tenho precisamente o que lhe faz falta. Tem toda a razão em tomar já previdências antes de ficar completamente grisalho.

- Com mil diabos - resmungou Tobias. - Não ando à procura de uma peruca para mim!

Mas Cork já se tinha dirigido a um busto masculino a que retirou a peruca castanha para a brandir triunfante, como um caçador a exibir um trofeu.

- Garanto-lhe que este modelo o satisfará por completo, caro senhor. Dissimulará os danos do tempo e fá-lo-á parecer, pelo menos dez anos mais novo.

- Repito-lhe que não vim comprar uma peruca - insistiu Tobias, olhando para o chinó como se fosse um rato morto. - A Mrs. Lake e eu pretendíamos fazer-lhe umas perguntas, nada mais.

- Será compensado - acrescentou rapidamente Lavinia, tentando evitar um sorriso. Tobias não escondia o facto de achar estas entrevistas tremendamente difíceis. As pessoas que se dedicavam a fabricar perucas consideravam-se artistas e Tobias não tinha muita paciência para os seus temperamentos.

O sorriso de Cork perdeu todo o calor.

- Que tipo de perguntas?

- Queríamos saber se vendeu recentemente uma peruca loura?

- Loura? - Repetiu Cork em tom de total desaprovação. - Há meses que não vendo uma peruca loura, graças a Deus. Já lá vai o tempo em

que essa era a cor da moda, sabe. O louro perdeu a popularidade desde que a Mrs. Tallien declarou que o negro era a cor mais elegante. E já lá vão vinte anos.

- A Mrs. Tallien? - admirou-se Lavinia. - A mulher do revolucionário francês?

- Pouco importam as suas horrorosas ideias políticas - replicou Cork, com um gesto de mão, mostrando que o assunto era de pouca monta. O que importa, é que o seu salão era o mais bem frequentado de toda a cidade de Paris e que reinava, por completo, no mundo da moda. Diz-se que tinha uma enorme colecção de perucas, e que as mudava várias vezes ao dia. Usava uma cor de manhã e outra à noite. As elegantes inglesas seguiram-lhe o brilhante exemplo. Torna-se inútil dizer-vos que, todos os fabricantes de perucas sentem por ela um reconhecimento eterno.

- Imagino - comentou Lavinia, consciente de que a guerra entre Inglaterra e França não tinha em nada impedido a influência da França sobre a moda inglesa. Havia coisas que transcendiam a política. - Mas o que gostaríamos de saber é...

- A Mrs. Tallien salvou-nos praticamente da ruína - fungou Cork desdenhoso. - A Coroa colocou um imposto perfeitamente absurdo no pó para as perucas, o que fez com que as cabeleiras empoadas deixassem de ser procuradas. Nessa altura o mesmo aconteceu com os grandes cabeleireiros. Foi uma tristeza. Eu e o Mr. Todd quase ficámos arruinados.

Lavinia trocou um olhar com Tobias, antes de tentar interromper de novo o fabricante de perucas.

- Mr. Cork, gostaríamos de saber se...

- Ah, essa foi uma época dourada, se querem a minha opinião prosseguiu Cork, imperturbável. - E receio não voltar a ver nada disso enquanto for vivo. Nesses tempos, todas as grandes casas tinham uma sala especial, onde as perucas eram conservadas e empoadas regularmente. Devo dizer que os cabeleireiros tinham de ser extremamente hábeis. Conheço alguns capazes de criarem penteados de tal modo altos e magníficos que as senhoras que os usavam não podiam viajar nas suas carruagens senão ajoelhadas no chão ou com a cabeça de fora das janelas.

- Mr. Cork - insistiu Lavinia, um pouco mais firme desta vez. Queríamos saber...

A porta da loja abriu-se nesse momento. Entrou um homem da idade de Mr. Cork, mas bastante mais elegante. Trazia um embrulho debaixo do braço.

- Ah, eis o Mr. Todd - anunciou Cork. E cumprimentou-o com uma familiaridade que evidenciava serem muito íntimos. - Começava a interrogar-me sobre o que se teria passado contigo.

- Lady Brockton mudou de ideias pelo menos três vezes até se decidir se a filha deveria usar tranças ou canudos - explicou Todd, com desprezo. - A infeliz menina precisava sobretudo de caracóis que lhe disfarçassem a testa demasiado alta. Mas conseguir convencer Lady Brockton custou-me tempo e diplomacia. Felizmente que não tinha outra visita esta tarde.

- Lady Brockton é maçadora, mas é uma das nossas melhores clientes.

- Bem sei, bem sei - disse Todd, olhando para Lavinia e Tobias. - Mas não queria interromper.

- Apresento-te a Mrs. Lake e o Mr. March - disse Cork. - Vieram fazer-nos umas perguntas. Estava a ponto de lhes falar sobre a época mais fascinante da nossa profissão. - Voltou-se para Lavinia e Tobias. - Ia dizer-vos que, nesses tempos, as pessoas não precisavam de se preocupar com o tom exacto do cabelo postiço, pois sabia-se que as cabeleiras seriam empoadas ou cobertas de brilhantina.

Todd pousou o embrulho sobre o balcão.

- Os pós são um elemento fantástico - juntou as mãos e fechou os olhos para controlar um excesso de emoção. - Basta misturar algumas cores para se obterem uma infinidade de tonalidades. Quando os misturava sentia-me um verdadeiro artista.

- Charles Todd, o meu sócio, é um artista na coloração e nos pós. sublinhou Cork. - No seu género, o Mr. Todd é um verdadeiro mestre Consegue criar tonalidades admiráveis de azul e rosa, amarelo, alfazema e violeta pálido. E os seus carrapitos são uma maravilha de arquitectura capilar. À noite, nos salões de baile, os seus penteados eram bem conhecidos. Eram os mais famosos de toda a cidade de Londres.

- Isso é que eram tempos!

- Acabava de dizer à Mrs. Lake e ao Mr. March como a Madame Tallien nos salvou, quando lançou a moda das cabeleiras de cor natural

- disse Cork. - E fazemos agora belos carrapitos, rolos e chinós. Mas o negócio das perucas nunca mais foi o mesmo.

- Houve ainda outra época de incerteza, há alguns anos, quando todas as damas insistiram em cortar o cabelo muito curto para imitar a moda grega e romana. Mas os cabeleireiros voltaram a ser procurados quando quiseram usar de novo o cabelo comprido - disse Tod, com alguma satisfação.

- Damos graças aos céus pelas mudanças da moda - acrescentou Cork. - Felizmente posso dizer que o Mr. Todd é um dos mais distintos cabeleireiros da cidade. Tem uma clientela muito elegante. Os seus desenhos são obras de arte verdadeiramente únicas e originais.

- Não me diga - comentou Tobias, pouco interessado no assunto.

- A concorrência tentou copiá-lo, mas nunca o conseguiram igualar - retorquiu Cork. - Ninguém consegue imitar um autêntico artista.

- Costumo dizer que o segredo de um bom cabeleireiro está no carrapito - explicou ainda Todd. - É a base de apoio do resto do penteado. É o que dá à criação a verdadeira elegância. Se for de desenho pouco inspirado ou ficar mal colocado na cabeça, nem todos os frisados ou caracóis deste mundo o podem salvar.

Lavinia pensou nos penteados que o cabeleireiro da Mrs. Dove criara para Emeline e para ela própria, para certos bailes importantes durante a última temporada. Os carrapitos tinham sido, de facto obras de uma arte quase arquitectónica.

- Não é apenas o desenho do carrapito que é crítico - continuou Todd. - Os enfeites utilizados têm de ser escolhidos e colocados, tendo em vista o efeito final. Lamento dizer que a maior parte dos meus colegas recorre muito facilmente a flores, pérolas, já para não falar nas plumas. Como declarou Lafoy, o nosso trabalho deve ser marcado pela simplicidade.

- Quem diabo é Lafoy? - suspirou Tobias, que parecia ter perdido todas as esperanças de poder controlar a conversa.

Todd e Cork olharam-no como se ele fosse um bárbaro.

- Não conhece Lafoy? - exclamou Todd, que sem deixar de falar desembrulhava o pacote que trouxera consigo, para revelar um livro. Estou a falar do grande Lafoy, bem entendido.

- Nunca ouvi falar dele - confessou Tobias.

- Lafoy não é apenas um artista no mundo dos penteados, é também um grande poeta - afirmou Todd que, abrindo o livro, prosseguiu: - O ano passado publicou esta excelente obra sobre a arte dos penteados. Fui obrigado a procurar um segundo exemplar, pois tinha estragado o primeiro.

- Cork abanou a cabeça, divertido.

- No mês passado adormeceu uma noite a lê-lo no banho. O livro caiu dentro de água e ficou irrecuperável.

Todd abriu a preciosa obra com uma expressão de profundo respeito.

- Escute então algumas linhas sobre a arte do penteado - insistiu Charles. - Sentimo-nos vencidos pela sensibilidade e intensidade das emoções. A ode de Lafoy ao penteado traz-me as lágrimas aos olhos, de cada vez que a leio.

Aclarou a voz, pronto para declamar a passagem em questão. Felizmente, Cork interrompeu-o com um gesto da mão.

- Fica para a outra vez, Todd. A Mrs. Lake e o Mr. March estão aqui em trabalho.

- Sim, com certeza, onde tinha eu a cabeça? Perdoem-me - desculpou-se Todd.

Fechou o livro, depois olhou para Lavinia, com os lábios apertados.

- Fez bem em nos vir consultar, minha senhora. Para os cabelos ruivos não há muitas soluções: é preciso escondê-los. Tenho várias tintas que podem escurecer o cabelo mas nenhuma suficientemente forte que sirva para o seu. Desde que escolha uma peruca, terei muito gosto em arranjar-lha. Pessoalmente, recomendo-lhe cabelos negros. O que achas, Cork?

- É também a minha opinião - aprovou este. - A senhora ficaria deslumbrante.

Todd rodeou Lavinia, examinando-a com olhar profissional.

- Ficaria bem com um dos meus carrapitos da colecção Minerva. Acrescentava-lhe altura. O que dizes, Cork?

- Tens razão, como de costume - respondeu Cork. - Mas infelizmente, a senhora já deu a entender, antes da tua chegada, que não pretendia comprar nenhuma peruca hoje.

- Que pena - disse Todd. - Há uma grande variedade, sabe...

- E se voltássemos às vendas de perucas louras nos últimos meses? - Arriscou Tobias.

- Ah, sim, - disse Cork, pondo as mãos atrás das costas e balançando-se sobre os calcanhares. Julgo que disseram que seria recompensado se discutisse as vendas recentes de perucas louras, não é isso?

Tobias olhou para Lavinia erguendo uma sobrancelha.

- A minha assistente tratará das negociações.

Lavinia aclarou a garganta e preparou-se para negociar do mesmo modo que com os outros fabricantes de perucas.

- Também nós trabalhamos, para uma clientela muito exclusiva, Mr. Cork. Investigamos para a alta sociedade.

- Estou a ver - murmurou Cork.

- Todas as profissões precisam de um pouco de publicidade - prosseguiu Lavinia. - Em troca da informação em que estamos interessados, poderíamos recomendar-vos calorosamente a algumas das nossas clientes.

Cork não procurou disfarçar o seu cepticismo.

- Não vejo em que é que isso nos seria útil.

- Estamos a falar de pessoas muito importantes, meu caro senhor. Uma palavra insinuada ao ouvido decerto vale muitas vezes mais que todos os anúncios publicados nos jornais.

- Ora - Cork balançou-se um pouco mais nos calcanhares mas depois acedeu. - Muito bem, pediram-me para fazer um ou dois chinós louros e alguns carrapitos para esta temporada, mas é tudo. Como já lhes disse, essa cor já não está na moda e nem sequer tenho já em armazém o amarelo alemão. A grande procura é agora o castanho e o negro francês.

- Obrigado pela informação - interrompeu Tobias aborrecido. - Sabe que o apreciamos pelo seu justo valor. A Mrs. Lake terá muito prazer em mencionar a vossa loja às suas clientes, desde que a ocasião se proporcione.

Dito isto, pegou no braço de Lavinia e empurrou-a para a saída.

- Francamente, foi uma perda de tempo - resmungou ele, quando chegaram à rua. - Nestes dois últimos dias aprendi mais sobre a arte de fazer perucas do que na minha vida toda.

- Pouco importa, temos de continuar. Como disseste, não nos podemos permitir a negligenciar uma pista tão importante.

- Vamos ver em seguida os três últimos fabricantes que constam da lista e irei dar uma volta esta noite àquele que estava fechado. E assim acabaremos com esta parte do inquérito. diabos, Lavinia temos de ver o caso de outro ângulo.

Lavinia alisou os dedos da luva esquerda

- Estava a pensar que na verdade te devia acompanhar esta noite, Tobias. Podes precisar de mim.

- Ah, sim? E porquê? - disse ele com ar distraído, como se nem sequer a estivesse a ouvir.

- Porque, apesar do que pudeste aprender sobre perucas em dois dias, ignoras tudo sobre moda e não saberás minimamente o que procurar na loja. Corres o risco de deixar escapar algum detalhe importante.

Ele meditou no argumento por uns segundos e, depois, para grande espanto de Lavinia, acabou por encolher os ombros.

- Talvez tenhas razão. Suponho que não há grande perigo, uma vez que o proprietário, o Mr. Swaine, está ausente de Londres.

- Perfeito - comentou Lavinia com um sorriso de aprovação. - Quando chegarmos, vais emprestar-me uma das tuas gazuas, para eu treinar um pouco, antes de sairmos.

- Muito bem - respondeu com ar ausente.

Lavinia foi invadida por um sentimento de profunda satisfação. Por fim, Tobias começava a tratá-la como uma verdadeira sócia.

Porém, quando chegaram ao final da rua, a alegria da jovem deu lugar à suspeita. Tinha vencido a batalha com demasiada facilidade. Ou Tobias não percebera, ou estava demasiado preocupado com outros problemas relacionados com o caso e nem se dava ao trabalho de discutir...

- Diga lá o que se passa - ordenou bruscamente. - Hoje não está nos seus dias. Em que está a ruminar?

- Nos estragos do tempo, cujos efeitos se começam a notar no meu cabelo, creio eu.

Lavinia ficou boquiaberta.

- Que estragos do tempo? Que disparate! - Deteve-se para olhar para ele e observar os fios prateados nas suas têmporas. Só lhe aumentavam o encanto das pequenas rugas ao canto dos seus olhos fascinantes. - Decerto não queres que eu acredite que levaste a sério os comentários de Cork? Tobias, o homem não passa de um comerciante que procura vender a sua mercadoria.

- Mas ele tinha razão. Já não sou muito novo, Lavinia.

- Não, já não és um garoto, concordo. És um homem na força da idade. E, se me permites, acho que os estragos do tempo no teu cabelo te tornam imensamente irresistível.

Ele esboçou um sorriso.

- Imensamente?

Lavinia olhou-o de frente, nos olhos.

- Sim, imensamente.

Tobias pegou no queixo da jovem e ergueu-o ligeiramente.

- Tanto melhor. Porque, pelo meu lado, adoro os teus cabelos. Lavinia sentiu um arrepio de prazer a subir-lhe pela espinha.

- Mesmo que a cor não esteja na moda?

- Deixe-me lembrar-lhe, minha senhora, que nunca fui escravo da moda. Lavinia começou a rir daquela resposta tão perspicaz, mas Tobias não lhe deu tempo. Beijou-a mesmo no meio da rua, sem se preocupar com os olhares dos transeuntes que hesitavam entre a desaprovação e a curiosidade.

Lavinia deixou de rir.

 

PELA PRIMEIRA VEZ, APÓS A VISITA A CASA DE DOMINIC HOOD, Anthony estava de bom humor. Fremindo de impaciência, seguiu Emeline até ao escritório de Lavinia. O seu olhar recaiu sobre Tobias, confortavelmente instalado na sua poltrona preferida, com as pernas esticadas e um copo de xerez na mão.

- Bom-dia, Mr. March - cumprimentou Emeline. - A Mrs. Chilton avisou-nos que estavam aqui. Mas o que fez com a minha tia? - acrescentou olhando à volta da sala.

- Receio bem que ela tenha escolhido fazer carreira no mundo do crime - anunciou Tobias antes de beber um gole de xerez. - Contudo, devo reconhecer que mostra aptidões para a profissão.

- Estou aqui! - disse Lavinia, cuja cabeça emergiu por cima do tampo da secretária, mostrando uma gazua. - Estou a treinar. Tobias e eu vamos introduzir-nos numa loja de perucas, esta noite.

Anthony apercebeu-se de que nunca tinha visto uma dama sentada no chão.

- Que emoção! - exclamou Emeline, que já tinha contornado a secretária para ver a tia debater-se com as fechaduras das gavetas. - Posso ir convosco?

- Nem pensar - replicou Tobias em voz firme. - Não posso encarregar-me de mais que uma aprendiza de cada vez. - Virou-se para Anthony e observou-o, com os olhos franzidos. - Pareces satisfeito contigo. Descobriram alguma coisa?

O jovem achou que tinha chegado a altura de adoptar o mesmo ar de eficácia indolente que Tobias geralmente mostrava naquelas ocasiões. Sem pressas, foi sentar-se na borda da secretária e cruzou os braços.

- Julgamos ter descoberto de onde provêm os anéis memento-tnori. Lavinia apareceu de novo, com os olhos a brilhar de admiração.

- Isso é verdade? Aí está uma óptima notícia!

- Bom trabalho - aprovou Tobias.

Anthony teve dificuldades para não deixar transparecer o seu orgulho. Os cumprimentos de Tobias tinham sempre este efeito nele, o que não tinha nada de espantoso, visto que era a pessoa que mais admirava na vida. O seu modelo em tudo - excepto em matéria de roupas, recordou-se divertido. A insistência do seu mentor em que os casacos fossem cortados tendo em vista a facilidade dos movimentos e não o estilo, e a sua falta de interesse pelos nós de gravata complicados impediam que Tobias alguma vez se tornasse num padrão da moda.

- É Emeline, sobretudo, que merece as felicitações - disse, designando a rapariga. - Soube muito bem fascinar o director do museu que acabou por nos revelar a perda dos anéis.

- Mas foi Anthony que teve a ideia de dar uma volta por esse curioso museuzinho, já que não tínhamos tido sorte com os antiquários - precisou Emeline. - Foi uma ideia genial.

Anthony fez uma careta.

- Ditada pelo desespero!

- Que história é essa do museu? - perguntou Lavinia.

- Um dos antiquários que visitámos revelou-nos a existência de um pequeno museu em Peg Street, com uma vasta colecção de anéis memento-mori. Como não tínhamos nada a perder, decidimos visitá-lo.

- O conservador insistiu em que comprássemos um bilhete de entrada, antes de responder às nossas perguntas - interveio Emeline. - Assim que mencionámos os anéis, ficou nervoso.

- Mas Emeline conseguiu acalmá-lo com sorrisos e palavras simpáticas - resumiu Anthony. - Por fim, acabou por nos revelar que a colecção de anéis tinha sido roubada.

- Quando? - perguntou Tobias, sem se mexer na cadeira. Anthony reconheceu o tom cortante da pergunta.

Pensou que, de facto, era uma sorte que o cunhado estivesse obcecado pela justiça e quisesse corrigir o mal. Aquelas habilidades num homem sem um código de honra tão rigoroso, seriam terríveis.

- Há dois meses - Anthony sacara o bloco de notas do bolso e consultava-o. - Perguntei-lhe se se lembrava de algum visitante que tivesse demonstrado interesse por essa colecção, antes de ser roubada.

- Uma pergunta muito boa - aprovou Tobias. - O que respondeu ele?

Anthony voltou-se para Emeline, passando-lhe a palavra.

- Um ou dois dias antes do desaparecimento, o conservador reparou numa mulher de cabelo louro que examinava de perto os anéis.

Lavinia saltitou.

- Uma loura? De verdade?

- Sim - confirmou Anthony fechando o bloco. - Infelizmente, o conservador não conseguiu distinguir os traços dela. Trazia um chapéu de aba larga com um véu.

- A idade dela e a altura? - perguntou Tobias rapidamente, usando o mesmo tom cortante.

- Infelizmente mostrou-se muito vago, quanto aos pormenores - lamentou-se Anthony. - Não podemos esquecer que já passaram dois meses. A única coisa que o parece ter impressionado foi o cabelo louro da visitante.

Tobias ergueu as sobrancelhas.

- Recordava esse pormenor, não é verdade?

- Nitidamente - respondeu Anthony.

- Uma mulher disfarçada? - sugeriu Emeline.

- Mais seguramente, um homem vestido de mulher - rectificou Tobias.

Anthony soltou uma exclamação de desdém.

- Bem te esforças para que assim seja, mas a tua teoria parece-me extremamente bizarra.

- Não é assim tão raro - observou Tobias. Anthony soltou uma gargalhada.

- Estás a brincar!

- Porque te espantas tanto? - perguntou Lavinia. - A moda das mulheres muitas vezes imita a dos homens. Basta lembrarmo-nos daqueles chapelinhos elegantes e dos casacos inspirados nos uniformes militares que se usaram há uns anos. Julgo que todas as mulheres elegantes tinham uma ou duas dessas peças de roupa.

- Sim mas eram desenhadas para serem usadas com vestidos - respondeu Anthony. - Não com calças.

- Sabem - interveio Lavinia -, há ocasiões em que seria muito mais cómodo usar calças que saias.

- Oh, sim! - aprovou Emeline, entusiasmada. - Não só seria mais cómodo, como também mais prático.

Anthony olhou para ela, espantado demais para falar.

- Vejam esta noite, por exemplo - conciliou Lavinia. - Se pudesse levar calças, poderia entrar na loja com maior facilidade.

- Pensando nisso - continuou Emeline -, na nossa profissão não faltam ocasiões em que umas calças seriam o vestuário perfeito. Talvez pudéssemos pedir a Madame Francesca que nos fizesse umas?

- Excelente ideia! - aprovou Lavinia.

- De que diabos estás a falar, Emeline? - gritou Anthony, que tinha, por fim, recuperado a voz. - Sabes muito bem que não podes sair à rua de calças.

A jovem lançou-lhe um sorriso encantador.

- E porque não, se fazes favor?

- Ehhh...

A questão tinha-o apanhado desprevenido. Procurou a ajuda de Tobias.

- Cos diabos! - exclamou este, antes de beber o resto do xerez. Depois levantou-se e dirigiu-se à porta. - Vamo-nos embora, enquanto é tempo, Tony. Não será razoável da nossa parte prosseguir com esta conversa.

Anthony deitou um último olhar em direcção a Emeline, que arvorava uma expressão determinada, e decidiu-se a seguir o tio. Não lhe apetecia discutir aquele assunto. Despediu-se e seguiu rapidamente o cunhado.

- Achas que elas estão a falar a sério? - perguntou, quando já se encontravam na rua. - Quanto às calças?

- Aprendi a levar a sério tudo o que Lavinia diz. E tu terás todo o interesse em fazer o mesmo com Emeline, se não te queres arriscar a ser apanhado de surpresa, o que não é sensato na nossa profissão.

- Mesmo assim, julgo que estão a troçar de nós.

- No teu lugar, renunciaria a essa possibilidade. Anthony hesitou, mas depois preferiu mudar de assunto.

- Falando da nossa profissão, tenho uma pergunta a fazer-te. Tem a ver com técnica.

- Sim?

- Como se faz para investigar o passado de um homem? Tobias deitou-lhe um olhar intrigado.

- Com extrema prudência. Porque perguntas isso?

- Estou preocupado quanto a Dominic Hood.

- Quer dizer que estás com ciúmes, não é? - perguntou Tobias em voz baixa. - Garanto-te que não vale a pena.

Anthony cerrou os maxilares.

- Não gosto da maneira como olha para Emeline.

- Tem calma, Tony. Emeline apenas tem olhos para ti. Segue o meu conselho e não te metas na vida de Hood. Os cavalheiros não gostam que os outros se interessem pela sua vida privada. Vêem nisso uma espécie de insulto. Um passo em falso e podes ver-te a ser desafiado para um duelo.

- Queria apenas assegurar-me que ele não representa uma ameaça para Emeline.

Tobias ficou em silêncio por alguns minutos.

- Vou pedir a Crackenburne para ver o que pode descobrir a seu respeito - propôs por fim. - A posição dele permite-lhe fazer algumas perguntas sem levantar suspeitas.

- Obrigado.

- Em troca, quero a tua palavra de que não vais tentar nada pelo teu lado - continuou Tobias. - Estou muito preocupado, Tony. Têm morrido homens em duelo por menos que isso.

- Eu sei - respondeu o rapaz, ajustando a aba do chapéu para evitar que o sol da tarde lhe ferisse os olhos. - O meu pai, por exemplo.

Tobias protegia a chama vacilante da vela com a mão, enquanto Lavinia, enrolada numa capa negra, se empenhava com a fechadura da porta de serviço da loja das perucas.

Uma lua quase cheia brilhava num céu sem nuvens. O luar prateado iluminava toda a cidade com uma aura etérea. Os seus raios introduziam-se até nas vielas e becos mais estreitos, tornando-lhes a missão mais fácil, mas também mais arriscada. O mesmo luar que lhes facilitava a visão, também permitiria que outros os descobrissem.

A fechadura emitiu um pequeno estalo.

- Já está - murmurou a jovem, que parecia encantada com a sua habilidade.

- Schiuu! - avisou Tobias, lançando um olhar por cima do ombro em busca de sombras ou de sinais de movimento.

Nada. Uma luz fraca brilhava num quarto sobre uma loja no outro extremo da rua, mas todos os estabelecimentos das proximidades estavam envolvidos na escuridão. Escutou com atenção por um momento e sussurrou, tranquilizado:

- Tudo bem. Podemos entrar.

Lavinia endireitou-se e girou o puxador com precaução. A porta abriu-se rangendo sobre os gonzos.

Do interior da loja saíram baforadas desagradáveis, às quais se misturavam um fedor que já lhes era familiar.

- Meu Deus - disse Lavinia sufocada, tapando a boca e o nariz com a capa, antes de trocar um olhar com Tobias.

Era evidente que também ele tinha identificado o cheiro. Não era a primeira vez que eram confrontados com a morte.

- Eu entro primeiro - propôs ele. Lavinia não levantou qualquer objecção.

Erguendo a vela, Tobias começou a inspeccionar o pequeno armazém da loja de perucas. Estava cheia de artigos que tinham a ver com aquele ramo de negócio.

Cabeças calvas atiradas em monte saíam de um grande cesto. À luz vacilante da chama, dir-se-iam produto de uma guilhotina.

Perucas de diferentes cores e tamanhos, estavam dispostas em cima de uma mesa, parecendo a Tobias a pele de pequenos animais mortos. Um sortido de pentes e tesouras estava cuidadosamente alinhado junto a uma pilha de chinós. Sobre uma bancada, via-se um pequeno tear para tecer cabelo falso, de onde pendia uma cabeleira castanha ainda por terminar.

Tobias ergueu a vela e apercebeu-se de um estreito lance de escadas que levava à escuridão do andar de cima.

E, diante da escada, encontrava-se outro grande cesto de vime de onde saía um pé com uma meia calçada.

- Creio que encontrámos o Mr. Swaine - dirigiu-se às escadas. Lavinia juntou-se a ele.

Tobias ergueu a vela para examinar a cena. O corpo era de um homem de cerca de sessenta anos, calvo, envergando uma camisa de dormir. A vítima jazia de bruços, numa postura pouco natural. Um mar de sangue coagulado formava-lhe uma auréola por baixo da cabeça.

Lavinia imobilizou-se a pouca distância e contemplou tristemente o cadáver, apertando mais a capa contra si.

- Achas que se levantou a meio da noite e caiu pela escada? - murmurou, sem grandes esperanças.

Tobias debruçou-se para examinar o corpo.

- Não. Tenho a impressão de que foi agredido atrás da cabeça com um objecto pesado e, em seguida, atirado do cimo das escadas, para simular um acidente. Na minha opinião, a morte não remonta a mais de um dia ou dois.

- Talvez tenha surpreendido um assaltante? Tobias endireitou-se e olhou para o cimo das escadas.

- É possível, sim - respondeu, mas a sua intuição dizia-lhe que quem tinha assassinado o dono da loja não era um simples assaltante. - Vou subir e deitar uma vista de olhos lá a cima.

Lavinia voltou-se e, avistando uma palmatória com uma vela, acendeu-a na de Tobias.

- Aproveito para dar uma volta pela loja - disse.

Tobias passou cautelosamente por cima do corpo e começou a subir a escada. Deteve-se ao fim de alguns degraus.

- Procura os livros em que apontava as vendas e os recibos recentes - pediu à jovem. - E um anel.

Lavinia levantou os olhos para ele.

- Pensas que é obra do assassino do Homem do Memento-Mori?

- Sabes o que penso das coincidências.

No primeiro andar, descobriu um pequeno escritório mobilado com uma mesa de trabalho, um sofá e um tapete. A qualidade do mobiliário traduzia um razoável desafogo, mas nada mais. Uma porta comunicava com um pequeno quarto.

Um atiçador permanecia no meio da lareira apagada. Tobias examinou-o à luz da vela; viam-se alguns cabelos grisalhos, colados à extremidade. Estava aí a prova de que Swaine não tinha sido vítima de uma queda acidental.

Tobias revistou metodicamente a cómoda e o guarda-fato. Havia várias perucas penduradas em cabides nas paredes. Era evidente que o Mr. Swaine tinha usado algumas das suas criações.

Quando terminou, voltou para o escritório e começou a investigar a secretária. Lá em baixo, ouviam-se sons abafados que indicavam que Lavinia examinava os armários.

Tobias abriu por seu lado as gavetas, onde descobriu os objectos habituais: um canivete, frascos de tinta, vários papéis e alguns livros de contas, que retirou lá de dentro para os folhear rapidamente, esperando que a sorte lhe sorrisse.

Era evidente que Swaine tratava da contabilidade com um cuidado escrupuloso. Todas as transacções estavam datadas e pormenorizadas. Tobias escolheu o livro mais recente e meteu-o debaixo do braço.

Talvez que a sorte tivesse mudado.

Erguendo a vela examinou de novo os dois aposentos, fazendo uma pausa para olhar de perto o tampo da mesa-de-cabeceira e a cómoda. Pôs-se de joelhos para espreitar debaixo da cama.

Não viu qualquer anel.

Durante algum tempo, deixou-se ficar a pensar no meio do escritório do morto. Como não sentiu centelhas inspiradoras de perspicácia ou de lógica, desceu ao rés-do-chão onde Lavinia o esperava, erguendo mais uma vez os pés com cautela, para não pisar o morto.

- Que vamos fazer com o corpo? - perguntou ela. - Não o podemos deixar assim. Podem passar-se dias antes que alguém dê conta de alguma coisa.

- Vou avisar as autoridades. Com discrição Não quero que se saiba que estivemos aqui esta noite.

- Porquê?

- Quanto menos o assassino souber dos nossos progressos, melhor explicou apagando a vela e dirigindo-se para a saída. - Não, que tenhamos feito grandes progressos. A menos que tenhas encontrado algo de novo?

- Não. Mas concordo contigo: não se trata de um assaltante. Não há sinais que alguém tenha aberto os armários em busca de coisas de valor.

- Seguiu Tobias e fechou a porta. - O que é que tens debaixo do braço?

- O livro de contabilidade de Swaine, referente aos últimos seis meses.

- Crês que foi aqui que o assassino comprou a peruca?

- Sim, acho que é muito provável. Mas Swaine foi morto recentemente e interrogo-me se o assassino não descobriu que estávamos a investigar junto dos fabricantes de perucas, o que o levou a fazer calar para sempre aquele que o poderia descrever.

- Santo Deus! Isso quer dizer que somos...

- Em parte responsáveis pela morte deste pobre homem, sim agarrou o livro com força. - Receio bem que seja uma maneira de ver a situação.

- Não me estou a sentir bem - murmurou ela.

- Temos de o descobrir, Lavinia. É a única maneira de o determos.

- Contas encontrar alguma pista nesse livro?

- Não sei. Mas espero que sim. - Encaminhou-a para o fim da rua. Uma coisa é certa: não havia anel em lado nenhum.

Lavinia voltou-se para ele.

- O que é que isso significa, a teu ver?

- Que o assassino não considera este crime como uma das suas proezas profissionais. Não era uma morte encomendada. Apenas um expediente. - Olhou para trás para a porta da loja do morto. - O preço de um negócio.

 

DESTA VEZ, EMBOLSARIA UMA COMISSÃO DE REI. A PERSPECTIVA encantava o Homem do Memento-Mori. Claro que sir Rupert não cumpria os requisitos estabelecidos por aqueles que o tinham treinado, mas ele concluíra que tais restrições eram exageradas.

Estava muito bem para o seu mentor falar-lhe dos nobres objectivos da forma, pensou o Homem do Memento-Mori, mas a questão era que a morte de sir Rupert lhe proporcionaria o dobro do que tinha ganho pelos três contratos anteriores.

Além disso, a operação seria fácil de levar a cabo. Sir Rupert era velho e estava acamado. O seu único crime era, aos olhos de um dos herdeiros, o de ainda se agarrar à vida. Mas isso não o preocupava.

Um homem de negócios, de vistas largas, não se podia permitir que ideias de honra antiquadas se intrometessem nos seus lucros.

O pagamento da comissão seria feito de maneira tão discreta e anónima como das outras vezes. O cliente deixaria o dinheiro no local indicado, numa pequena rua nas traseiras de Bond Street. Mais tarde o Homem do Mementn-Morí iria buscar a sua paga, assegurando-se de que não havia testemunhas.

Os negócios corriam bem. A publicidade boca a boca era de facto a melhor forma de se dar a conhecer. Ainda por cima, o pequeno jogo do gato e do rato com Tobias March acrescentava-lhe algo de picante que droga alguma poderia igualar.

Estava no bom caminho para provar que era tão hábil e inteligente como Zachary Elland. Quando houvesse ultrapassado as comissões recebidas por este, tendo a certeza de que March tinha conhecimento desse feito, chegaria então a hora da vingança.

 

NA MANHÃ SEGUINTE, TOBIAS FOI VISITAR CRACKENBURNE.

Ainda eram só onze horas e o clube estava praticamente deserto. Crackenburne baixou o jornal para olhar para Tobias através dos óculos.

- Não parece de bom humor - observou. - Estou a ver que a sua nova investigação não está a correr bem.

- Até aqui, apenas encontro becos sem saída e pontas soltas. - Tobias inclinou-se para diante, descansando os cotovelos nas coxas e olhando para a lareira apagada. Pensou que fazia demasiado calor para a terem acesa.

- Parece um nó górdio. De qualquer lado que o encare, não vejo maneira de o desatar.

- A sua expedição de ontem à noite ao fabricante de perucas, não deu em nada?

- Creio que o Homem do Memento-Mori já se tinha antecipado. Matou o pobre dono da loja.

- Pode-se então concluir que foi lá que tinha comprado a famosa peruca loura - afirmou calmamente Crackenburne.

- Sim, é a única explicação plausível. Mas passei a noite a esquadrinhar o livro de contabilidade do fabricante de perucas e não encontrei alusão à venda de uma única peruca loura no decurso dos últimos seis meses. A única compra dessas registada, datava de dois dias depois do assassinato de Fullerton.

- Fosse ele quem fosse, não deve sentir-se responsável pela morte desse homem.

Tobias não respondeu.

- Mas já estou a ver que sente - Crackenburne respirou fundo e ficou por momentos em silêncio. - Está-lhe na massa do sangue. Qual é a sua próxima etapa? - inquiriu por fim.

- Lavinia e Joan Dove estão convencidas de que os homicídios são encomendados por pessoas que pretendem impedir a realização de um casamento. A teoria delas parece-me muito forçada, mas, têm pelo menos, uma explicação. Entretanto espero ter em breve notícias do Smiling Jack.

- Porque pensa que ele o pode ajudar?

- Lembrei-me de que Zachary Elland apareceu do nada e, presentemente, isso intriga-me. É possível que não fosse um cavalheiro. Não se pode excluir a hipótese de que fosse um impostor.

- Não teria sido o primeiro - Crackenburne franziu a testa. - Mas garanto que nunca tinha encarado essa possibilidade. Estava tão à-vontade dentro da alta sociedade que juraria que este era o seu elemento natural. Não havia razão para não acreditar que era órfão e que fora criado por um parente distante que já falecera.

- Deveria ter vasculhado melhor o seu passado, após a morte dele.

- Não se torture com remorsos. - Insistiu severamente Crackenburne. - Estávamos todos convencidos, na altura, que o suicídio de Zachary Elland punha fim ao assunto do assassino do Homem do Memento-Mori. Era uma conclusão perfeitamente lógica.

- Na altura, sim - resmungou Tobias. Crackenburne observou-o mais de perto.

- Parece-me que não tem andado a dormir bem.

- Não posso perder tempo a dormir. De resto, esta história do assassino do anel não é a minha única preocupação neste momento. Sabe alguma coisa sobre um jovem chamado Dominic Hood? Tem pouco mais ou menos a idade de Anthony e professa grande interesse pela ciência. Mora em Stelling Street e, a julgar pelo corte dos seus fatos, não passa dificuldades.

- Esse nome não me diz nada. Porque é que está interessado nele?

- Anthony tomou-o de ponta. Crackenburne franziu a testa.

- Pensava que Anthony era muito sociável.

- E é. Mas meteu-se-lhe na cabeça que Hood era seu rival no coração de Emeline. Devo dizer que não vejo qualquer indício de que Emeline esteja interessada em Hood. Mas é impossível levar Anthony à razão. E tenho medo que acabe por fazer algum disparate.

Crackenburne fechou o jornal e pô-lo de lado.

- Compreendo. Os jovens têm o sangue quente e facilmente cometem loucuras. Sobretudo quando está em causa uma rapariga. Esse tal Hood é sócio de algum clube?

- Sim. Precisamente do de Anthony.

- Nesse caso, não tenho qualquer dificuldade em obter informações.

- Obrigado. Fico-lhe muito grato.

O porteiro, um homem corcunda, de idade indeterminada, aproximou-se de Tobias.

- Desculpe-me, senhor, mas está aí fora um rapazito bastante sujo, que diz ter uma mensagem. Insiste muito em falar-lhe.

- Vou tratar disso - disse, levantando-se. - Até à vista - acrescentou em direcção a Crackenburne.

- Tobias.

Este deteve-se, por um momento. Raramente Crackenburne o tratava pelo nome próprio.

- Preocupo-me igualmente com esta história do Homem do Memento-Mori - disse calmamente. - Mas não queria que isso o afectasse em exagero. Lembre-se de que não tem nada que se censurar pelo que se passou há três anos. Não foi por culpa sua que Zachary Elland se transformou num assassino.

- É o que Lavinia não pára de me repetir, mas não posso deixar de pensar que, sem aquilo que lhe ensinei, Zachary sem dúvida nunca teria desenvolvido o gosto por esse tipo de emoções.

- Engana-se. Cedo ou tarde, Elland teria seguido o caminho que tomou. Acredite em mim. Tenho idade suficientemente para saber que ninguém mata a sangue-frio na sequência de um qualquer incidente de percurso. O mal estava nele, logo desde o princípio.

Tobias acenou afirmativamente, por delicadeza, e afastou-se. Sabia que Lavinia e Crackenburne tinham razão. Mas isso não mudava em nada o facto de se sentir responsável por aquilo em que Zachary se tinha transformado. E não ignorava que Aspasia pensava como ele.

O Sol cintilava num céu sem nuvens, mas pareceu a Lavinia que o seu calor e luminosidade não chegavam ao pequeno cemitério. A sombra das grandes árvores que ladeavam as áleas lançava sobre as sepulturas como que um manto transparente de obscuridade e frieza.

Emanava daquele lugar uma tristeza e uma impressão de abandono que o tornavam sinistro. A começar pelo portão de ferro, que rangia nos gonzos. E os muros altos, de pedra cinzenta, que separavam as campas do cenário e dos ruídos da cidade. A pequena capela de pedra erguia-se solitária, com as portas fechadas no alto dos degraus.

Lavinia pensou que a cena era deprimente. Era o género de cemitério que se imaginava frequentado por aqueles que forneciam cadáveres recém-enterrados às escolas médicas. Assim não se espantaria se descobrisse que muitas daquelas campas tinham sido esvaziadas há bastante tempo atrás.

Não que o progresso no campo da ciência médica não fosse um objectivo digno, pensou. Mas só esperava que, quando chegasse a sua vez, os seus restos mortais não acabassem na mesa de anatomia à mercê de um grupo de ávidos estudantes.

Além do mais, a visão de ser fechada num caixão, enterrada no chão ou emparedada numa catacumba, pouco mais agradável era. Alguma coisa dentro de si a enervava sempre que se imaginava confinada a um espaço pequeno e fechado. Mesmo agora, só de olhar para a entrada escura de uma das criptas ali próximo, faziam-na sentir que o pânico se queria apoderar do seu espírito.

Já basta. Deixa de imaginar essas coisas. Mas em que diabo estás a pensar para deixar que este lugar te afecte assim? Não passa de um cemitério igual aos outros, por amor de Deus!

Talvez fossem os nervos, pensou. Tinham estado em franja, nessa manhã. Tinha razões para isso. Praticamente não pregara olho durante a noite, após a descoberta do cadáver de Swaine, na loja. Porém a verdade era que aquela sensação de inquietude e perturbação tinha piorado depois de sair de casa algum tempo atrás. Pensara que um pequeno passeio a acalmaria, mas acontecera precisamente o contrário.

Deixa de pensar nos nervos, repreendia-se, tens trabalho à tua espera.

Inspirou profundamente e recorreu à sua prática de hipnose para afastar os pensamentos que tanto a perturbavam.

Percorreu o atalho de areia grossa e parou diante de Aspasia Gray.

- Recebi a sua mensagem - disse.

- Obrigada por ter concordado em encontrar-se comigo - respondeu Aspasia, em tom preocupado - Mesmo que este não seja, sem dúvida, o local mais agradável para se conversar. Espero que com isso não conclua que os meus gostos são melodramáticos. Mas tinha forçosamente de a fazer compreender algo que creio ter-lhe passado despercebido.

- De que está a falar?

- Sei que pensa que estou interessada em Tobias. Ora, não é o caso. - Aspasia baixou os olhos para a campa. - Apenas amei um único homem. E esse repousa aqui.

Lavinia leu a inscrição gravada na lápide: Zachary Elland. Falecido em

  1. Uma brisa fresca arrastou as folhas mortas que cobriam a campa.

- Compreendo - disse num tom neutro.

- Como ignorávamos a data do seu nascimento, não pusemos nada explicou Aspasia, sempre com os olhos pregados na laje de granito. - Com efeito, descobrimos, um pouco tarde, que realmente sabíamos muito pouco de Zachary.

- Nós?

- Tobias e eu. Fomos nós que cobrimos as despesas do funeral. Não apareceu mais ninguém - Aspasia fez uma pausa. - Fomos as duas únicas pessoas que a ele assistiram.

- Compreendo.

- Tobias e eu partilhámos muitas coisas através de Zachary. Mas nunca fomos íntimos. Queria que o soubesse.

- Já sabia. Tobias tinha-me dito.

Aspasia esboçou um pequeno sorriso de entendimento.

- E acreditou, porque o ama e tem confiança nele.

- Sim.

- É exactamente o que eu sentia por Zachary.

- Já calculava. Lamento sinceramente, Aspasia. Esta voltou à contemplação da campa.

- Quando conheci Zachary, não tencionava apaixonar-me, muito menos casar-me. Já tinha aprendido a lição.

- Que quer dizer?

- O meu pai era um homem excepcionalmente cruel. Tornou a vida da minha mãe num inferno, a ponto de ela ingerir uma dose excessiva de láudano para conseguir ter paz. Mas eu não tive outra saída. Fui obrigada a suportar as suas fúrias e, pior que isso, os seus abusos pouco naturais, até eu ter dezasseis anos. Deu-me então, em casamento a um homem muito mais velho que eu. Pensei que estava salva, percebe?

Lavinia ouvia-a em silêncio, mas as folhas mortas, sobre a campa, murmuravam ainda mais alto. O seu instinto dizia-lhe que Aspasia não estava a mentir.

- Estava enganada. O meu marido revelou-se tão depravado e cruel como o meu pai. A minha sorte foi ele ter sido morto uma noite por um ladrão de estradas. E o meu pai morreu de febres, pouco depois.

- Não é obrigada a contar-me tudo isso, Aspasia. Sei que deve ser difícil para si.

- Sim. Tão difícil, que nunca falei disto a ninguém, excepto a Zachary. Nem sequer Tobias está ao corrente. Se lhe confesso tudo isto hoje, é para que me compreenda. Aos dezassete anos, encontrei-me sozinha no mundo, mas dona de uma enorme fortuna. Estava decidida a nunca mais deixar que um homem me controlasse o destino.

- Compreendo o que deve ter sentido - comentou Lavinia, em voz baixa.

- Tinha vinte e cinco anos quando conheci Zachary. Era uma mulher independente. Já tivera amantes, mas não amara nenhum deles. E, na verdade, não imaginava poder ser enganada por um homem. Mas todas as minhas boas intenções se esvaneceram quando entreguei o meu coração a Zachary.

As folhas restolharam em cima da sepultura, como se fossem movidas por dedos esqueléticos.

- Que drama deve ter sido descobrir que ele era um assassino comentou Lavinia. - Como descobriu a verdade?

- Não foi nenhum detalhe em particular que despertou as minhas suspeitas. Foi antes um conjunto de pequenos elementos que, entretecidos, conduziram a uma conclusão que se me tornava impossível de ignorar.

- Que tipo de elementos?

- Por exemplo, o interesse obsessivo dele pelas investigações de Tobias relativas a assassínios. E também as suas idas e vindas a horas estranhas. Zachary tinha sempre motivos excelentes para explicar os seus súbitos desaparecimentos. Mas, um dia, por mero acaso, descobri que me tinha mentido sobre o que fizera na noite da véspera. E, também por acaso, tinha sido precisamente numa noite em que o Homem do Memento-Mori tinha atacado.

- Foi então que o associou ao assassino?

- Não - Aspasia entrelaçou os dedos. - Para ser honesta, tinha encarado a possibilidade que ele me andasse a trair com outra mulher. Seria escusado dizer que o meu coração ficaria destroçado, se fosse esse o caso. Precisava forçosamente de descobrir a verdade.

- E o que fez?

- Zachary tinha um cofre no escritório. Calculei que, se tivesse segredos estariam escondidos lá dentro. A chave andava sempre com ele. Uma noite, enquanto ele dormia, após termos feito amor, consegui fazer uma cópia em cera. Dias mais tarde, tive oportunidade de entrar no escritório dele e abrir o cofre. - Aspasia fez uma careta - Deve calcular o meu alívio quando a primeira coisa que lá encontrei foi um livro de contabilidade.

- Como é que soube que não se tratava de um livro normal?

- Fiquei curiosa quando me apercebi de que não era um livro das despesas da casa, como muitos cavalheiros possuem. De imediato me dei conta que apenas continha uma relação de datas e de pagamentos. Parecia a contabilidade de um comerciante. Mas isso não fazia sentido.

- Porque Zachary era um cavalheiro?

- Precisamente. Não tinha negócios. Primeiro pensei que tinha apontado os lucros do jogo. Depois, apercebi-me de que as datas correspondiam às dos assassínios que Tobias investigava.

- Conhecia os pormenores da investigação? Aspasia suspirou.

- Sim. Tobias vinha frequentemente à minha casa para discutir os crimes com Zachary, e eu estava presente a maior parte das vezes. Até acontecia dar a minha opinião. Conforme sabes, Tobias é um dos poucos homens que ouvem uma mulher desde que esta tenha alguma coisa para dizer. Zachary partilhava essa característica. Era, aliás, uma das razões, entre muitas outras, por que eu... gostava tanto dele.

- O que aconteceu depois de descobrir o livro?

- No fundo do cofre, encontrei uma caixinha em que Zachary guardava os anéis memento-mori - a voz de Aspasia era agora um murmúrio atormentado. - Não conseguia acreditar no que via. Fui ter directamente com Tobias e levei o livro de contabilidade. Queria que ele me sossegasse, que me dissesse que estava enganada. Mesmo sabendo, do fundo do coração, que estava tudo perdido. Quando Zachary viu que o cofre estava aberto e que o livro tinha desaparecido, compreendeu que tinha sido desmascarado.

- E foi então que meteu uma bala na cabeça. Aspasia apertou os lábios.

- Dizem que foi uma morte de cavalheiro. Creio que, com efeito, foi melhor do que a forca.

Parecia tudo tão terrivelmente trágico, pensou Lavinia. Depois de anos a proteger-se da dor que os homens lhe tinham causado, Aspasia tinha-se apaixonado por um assassino impiedoso.

- Lamento - sussurrou Lavinia.

Aspasia fechou os olhos para conter as lágrimas.

- Desculpe a minha emoção. Queria justamente que soubesse que não tem nada a recear de mim em relação a Tobias. De qualquer maneira, mesmo que tencionasse seduzi-lo, não creio que fosse possível. É evidente que ele a ama a si. E, pela minha parte, nunca iria correr o risco de entregar o meu coração a outro homem.

Sem saber o que pensar, Lavinia manteve-se em silêncio.

- Até à vista, Lavinia - continuou Aspasia. - Desejo-lhe muitas felicidades junto a Tobias. É um homem de bem, sinceramente. Invejo-a, mas não trocaria o meu lugar pelo seu, nem sequer por causa dele.

Depois destas palavras, Aspasia virou as costas e afastou-se a passo rápido. Lavinia viu-a atravessar o portão do cemitério e, em seguida, pousou os olhos na campa de Zachary Elland, pensando nas voltas do destino.

- Fez muito mal enquanto andou por este mundo - murmurou, dirigindo-se ao defunto. - Quem é que o pode admirar tanto a ponto de o querer imitar?

As folhas caídas agitaram-se com um ruído sinistro.

 

O Sr MILING JACK SAÍRA PARA A VIELA QUE FICAVA POR TRÁS DO Gryphon, com a sua enorme silhueta recortada na porta das traseiras da taberna. Vociferava ordens para dois homens que descarregavam vários cascos de uma carroça.

- Tenham cuidado com esse brandy francês - ralhou a um deles. Custou-me uma fortuna.

Tobias chegou entretanto e deteve-se junto de Jack. Deitou uma vista de olhos aos barris.

- Brandy, Jack? Não é elegante demais para a tua clientela? Tinha a impressão de que gostavam mais de cerveja e de genebra.

Jack soltou uma gargalhada que lhe transformou num sorriso horrível a enorme cicatriz que lhe corria da boca até à orelha.

- É certo, mas isto é para consumo próprio. Tobias examinou de novo os barris.

- É muito brandy para um homem só, não?

- Tenho muitas vezes convidados - replicou Jack, dando-lhe uma palmada nas costas. - Cavalheiros como tu, por exemplo, que dignificam quem os serve.

Tobias abanou a cabeça.

- Tenho que reconhecer que a tua adega é excelente.

Tobias raramente vinha ao Gryphon durante o dia. Preferia a cobertura da noite para visitar Jack. Contudo a mensagem que recebera pouco antes no clube, parecera-lhe urgente, pelo que tinha logo, tomado precauções especiais para ocultar a sua identidade. Antes de se dirigir para aquela zona da cidade dera-se ao trabalho de vestir roupas velhas e botas pesadas, próprias de um estivador. Apesar do calor do dia, acrescentara um volumoso casaco de gola levantada e um enorme chapéu de aba larga inclinado para lhe ocultar as feições. Usara também deliberadamente a entrada das traseiras, para evitar a porta da taberna.

- Recebi o teu recado - disse em voz baixa, para não ser ouvido pelos empregados que descarregavam a carroça. - Tens novidades?

- Não passam de rumores - respondeu Jack, no mesmo tom. - Por enquanto, ainda não está confirmado. Mas pensei que te deveria informar o mais depressa possível.

- Diz lá.

- Diz-se que um jovem que dá pelo nome Sweet Ned recebeu recentemente uma comissão.

- Para fazer o quê?

- Não te posso dizer - respondeu Jack lançando-lhe um olhar sinistro. - O meu informador não sabe ao certo. Mas parece que pediram a Sweet Ned que seguisse determinada pessoa. Uma dama, neste caso. E duvido muito que seja para a ajudar a atravessar a rua.

Tobias ficou tenso.

- De que mulher se pode tratar?

- Da tua.

Ao cabo de um momento, Lavinia decidiu afastar-se da campa de Elland e voltou pelo atalho até aos portões do cemitério.

A pequena rua que o contornava estava silenciosa e deserta. Apenas divisou um jovem, provavelmente um operário ou um moço de estrebaria, a julgar pelo casaco castanho, mal feito, e pelas botas velhas. Tinha o chapéu puxado para os olhos.

O seu comportamento tinha algo de animalesco e ansioso. Fazia-lhe lembrar aqueles gatos vadios que pululavam pelos becos obscuros e sobreviviam perseguindo as ratazanas. Estava oculto nas sombras da porta de um edifício situado num dos extremos da rua.

Mas o mais estranho, é que o chapéu e a postura eram conhecidos de Lavinia. Quase tinha a certeza de já o ter visto quando estava a sair de casa em Clarmont Lane. Sentiu o estômago apertado, tinha a certeza de que, ele a espreitara no pequeno parque situado ao fundo da rua.

Invadiu-a um frio glacial, os pêlos do pescoço ergueram-se-lhe. Olhou para o fundo do atalho, pensando sair por esse lado. Mas seria impossível. A passagem estreita terminava num muro de pedra.

O homem reparara que ela hesitava entre os portões. Endireitou-se com ar indolente, enquanto metia a mão no bolso. Lentamente, tirou a mão do bolso.

A lâmina da navalha brilhou ao sol.

Lavinia não tinha outra possibilidade senão fugir para o cemitério, mesmo arriscando-se a entrar para uma armadilha formada pelos altos muros e pela capela.

O homem avançava sem pressas, com um sorriso nos lábios, como se tivesse todo o tempo do mundo.

Lavinia deu meia volta e voltou ao cemitério.

Ele sorriu, sem dúvida satisfeito por ela ter mostrado a sua ansiedade.

Lavinia não tinha escolha possível. Deu meia volta e fugiu para dentro do cemitério.

A Mrs. Chilton enxugou as mãos ao avental.

- A Mrs. Lake falou em ir a um cemitério em Benbow Lane. A nova cliente, a Mrs. Gray, marcou lá um encontro com ela.

- Saiu há quanto tempo? - perguntou Tobias. A governanta olhou para o relógio.

- Há cerca de uma hora. Há algum problema?

- Há.

Tobias desceu os degraus. Não valia a pena tomar um fiacre. Conhecia bem o cemitério. Ficava a dois passos, mas rodeado por um labirinto de pequenas ruas onde a circulação se tornava difícil. Iria mais depressa a pé.

 

WEET NED INSPIROU PROFUNDAMENTE E APROXIMOU-SE DO portão do cemitério. Queria tratar daquele caso como um profissional. Negócios. Gostava do som da palavra. Aceitara uma verdadeira comissão da parte de um verdadeiro cliente. Daí em diante, deixaria de ser um vulgar ladrão de rua, que praticava roubos fáceis. A partir da última noite, tinha-se tornado um profissional com negócio montado.

Quando aceitara a proposta era como se uma porta mágica se lhe tivesse aberto, permitindo-lhe a visão espantosa de um novo futuro. Tratava-se de um cenário verdadeiramente deslumbrante, onde ele era senhor do seu próprio destino, bem sucedido e próspero. Principalmente respeitado.

Tinham-se acabado os golpes miseráveis para os malditos receptadores que nunca davam o devido valor à mercadoria pela qual ele arriscava o pescoço. Nunca mais percorreria as ruelas em busca de cavalheiros embriagados a quem roubar, quando saíam dos bordéis a altas horas da madrugada. Não mais teria negócios com os contrabandistas. Doravante, far-se-ia pagar com comissões por clientes ansiosos por contratarem um especialista.

Teria de pensar no melhor meio de dar a conhecer os seus serviços, pensava enquanto se encaminhava para os portões de ferro. Infelizmente não poderia pôr um anúncio no jornal. Teria de depender da publicidade boca a boca, o que não seria um problema depois de correrem as notícias do modo como tinha levado a cabo a sua primeira comissão. A mulher que lhe tinha encomendado este trabalho falaria dele às amigas, e seria assim que arranjaria clientes.

Que pena o pai ter morrido tão cedo, por causa do álcool. Teria agora uma oportunidade de poder assistir ao seu êxito.

Ao pensar no pai morto num beco com uma garrafa de genebra na mão, Ned sentiu regressar a antiga raiva que quase o cegava. A recordação das pancadas obrigaram-no a segurar com força o cabo da faca., Tinham se tornado mais frequentes e violentas depois da morte da mãe. Por fim não tivera outro remédio senão fugir de casa e passar a viver na rua.:

Havia momentos em que a necessidade de bater em alguém ou nalguma coisa eram mais fortes do que ele. Tinha vontade de desferir golpe após golpe até a fúria se evaporar.

Mas recusara entregar-se à raiva feroz. Havia muito que tinha jurado não seguir as pisadas do pai. A partir daquele dia tudo seria diferente.? A partir daquele dia saber-se-ia que ele era um profissional de confiança, lançado numa nova carreira.

Mas primeiro teria de levar a cabo a sua primeira comissão.

Parou em frente ao portão do cemitério, para acalmar os nervos. Não gostava de ali estar. Um amigo seu, que se tinha especializado em roubar corpos das sepulturas para os vender às escolas médicas, tentara convencê-lo a que se lhe juntasse no negócio. Ned desculpara-se, alegando outras ocupações, mas a verdade é que a ideia de escavar as tumbas e de abrir os caixões enchia-o de horror.

Deu uma vista de olhos para dentro do cemitério, em busca da presa. Invadiu-o uma lufada de pânico quando se deu conta de que ela tinha desaparecido.

Impossível! Tinha forçosamente que estar em qualquer lado. Conhecia bem aquele local. Não podia ter escalado o muro e o portão em frente do qual se encontrava era a única saída. A pequena capela estava fechada havia meses e com a porta fechada a sete chaves e trancada.

Ned deduziu então que a sua presa tinha tentado refugiar-se numa cripta. Sim, não havia dúvida. Tinha-se apercebido de que ele era uma ameaça e procurara refugiar-se numa das criptas mais espaçosas. Como se lhe fosse possível escapar.

As criptas estavam alinhadas do mesmo lado. Algumas remontavam já a várias gerações, tendo atingido um tamanho impressionante. Reparou num bocado de tecido no chão, em frente à porta de uma delas.

Parecia um lenço de assoar de mulher.

A sua presa devia estar a tremer de medo no interior daquela cripta escura, repleta de esqueletos. Por instantes, Ned sentiu pena dela. Não gostaria de estar no seu lugar. Mas se ela estivesse a tremer de medo facilitar-lhe-ia o trabalho.

Aproximou-se da cripta e apanhou o bocado de tecido. Era mesmo um lenço, de linho bordado, que só podia pertencer a uma mulher. Quando tudo terminasse, oferecê-lo-ia a Jenny.

Transpôs a porta e deu uma olhadela lá para dentro. Um estremecimento percorreu-lhe a espinha. Que ideia, a de se esconder naquele sítio!

- Está aqui, já sei - gritou. - Saia imediatamente. Tenho um recado para si.

A voz ecoou nas paredes frias, mas ninguém se mexeu dentro da cripta. Ned interrogou-se se ela não teria desmaiado de terror.

- Maldita mulher! Decidiu complicar-me as coisas, não?

Nada mais havia a fazer. Teria de entrar na cripta para a fazer sair de lá. Se pelo menos tivesse uma vela! Lá dentro estava escuro como breu.

Decidiu-se a entrar. Um pequeno vestíbulo dava para uma espécie de mausoléu onde os nomes dos defuntos estavam inscritos nas paredes. Graças à fraca luminosidade vinda da porta aberta, viu que, no meio, havia dois grandes túmulos de pedra. A mulher dever-se-ia ter escondido atrás de um deles.

Ned deu alguns passos. O chão estava coberto por uma espessa camada de pó.

Pó?

Piscou os olhos. Havia outros rastos no chão, que não os seus.

- Raios me partam!

Deu meia volta em direcção à saída. Mesmo a tempo de se aperceber que a saia verde de uma mulher transpunha a porta do cemitério.

Enganara-o. Tinha atirado o lenço para o chão em frente àquela cripta e tinha-se escondido noutra.

Precipitou-se para o portão, determinado a apanhá-la custasse o que custasse. Sentia-se desesperado. Certamente que poderia correr mais do que uma dama elegante. O seu futuro dependia disso.

Lavinía corria até perder o fôlego pela pequena rua que atravessava o cemitério, agarrando as saias com as duas mãos. Ouvia o homem persegui-la pelo cemitério. Não teria dificuldade em alcançá-la. Era jovem, forte e rápido e sabia que não conseguiria escapar-lhe durante muito tempo. A sua única esperança era chegar à rua e esperar que alguém aparecesse, para pedir ajuda.

Era numa daquelas ocasiões que gostaria de usar calças. Se escapasse ao homem da faca, jurava ir falar com Madame Francesca para discutir o assunto.

Ouvia os passos a martelarem atrás de si, e sentiu a mão de um homem estender-se para a agarrar, mas não se atreveu a olhar para trás. Mais alguns metros e a pequena rua desembocaria numa grande artéria. Nem tudo estava perdido.

Mais dois passos e estaria a salvo. Talvez...

Estava a chegar ao cruzamento e chocou com um homem alto, vestido com um casaco escuro e um chapéu de copa baixa. O seu primeiro pensamento foi que o seu perseguidor tivesse um cúmplice. Sentiu de novo uma onda de terror. Debateu-se e abriu a boca para gritar.

- Lavinia - exclamou Tobias, agarrando-a pelos pulsos. - Estás bem? Responde, Lavinia. Estás ferida?

- Tobias - murmurou a jovem, sentindo os joelhos fracos, de tão aliviada. - Deus seja louvado! Sim, sim estou bem. Mas anda por aí um homem, com uma faca.

Sempre a falar, olhou para trás. O seu agressor tinha-se imobilizado a alguns metros. Fitava os olhos de Tobias.

- É ele - continuou Lavinia. - Creio que me seguiu até aqui. Esperou que Aspasia se fosse embora para se dirigir a mim com a faca na mão. Eu...

- Fica aqui - ordenou-lhe Tobias antes de se aproximar do homem. Lavinia percebeu que ele ia tentar capturar o homem armado.

- Não, Tobias, não vás. Ele está armado.

- Não será por muito tempo - replicou Tobias, calmamente, continuando a avançar e encurtando a distância entre ele e o homem no atalho.

Lavinia viu o medo estampado na cara do homem. A expressão de Tobias aterrorizara-o certamente. Sabia que estava encurralado. Longe de tranquilizar Lavinia, esta constatação mais a transtornou. A caça encurralada era sempre a mais perigosa.

Tobias não parecia impressionado pelo punhal na mão do adversário. Avançou em direcção a ele com passo de predador, como um lobo certo de caçar a presa.

O outro entrou em pânico. Ergueu a lâmina à sua frente, como um talismã capaz de afastar os demónios e atirou-se a toda a velocidade, cortando o ar. Era evidente que queria passar por Tobias e fugir para a rua em liberdade.

Este evitou a faca e, com velocidade desconcertante, agarrou o braço do homem no momento em que este passava junto a ele. Utilizando o impulso do agressor, fê-lo projectar-se num voo planado que o fez embater contra a parede mais próxima.

O assaltante gemeu de medo, raiva e dor. Caiu no chão. A faca tombou nas lajes e Tobias apressou-se a apanhá-la.

- Sweet Ned, suponho? - disse-lhe.

O homem começou a tremer como se lhe tivessem batido. Lavinia juntou-se-lhes.

- Como sabes o nome dele?

- Explico-te mais tarde - respondeu Tobias sem tirar os olhos do rapaz. - Olha para mim, Ned, quero ver a tua cara.

Lavinia estremeceu ao ouvir o tom cortante da ordem de Tobias. Sem saber o que ele pensava lançou-lhe outro olhar. Por baixo da aba do chapéu viu que as feições eram mais duras do que as dos anjos de pedra que ornamentavam a campa.

Sweet Ned estremeceu de novo e Lavinia percebeu que também ele ouvia o terrível tom da voz de Tobias. E, como se tivesse recebido instruções de um poderoso hipnotizador, rolou o corpo e ficou deitado de costas.

Lavinia viu-lhe as feições pela primeira vez.

- Mas é tão novo - murmurou. - Nem tem a idade de Anthony. Dezassete ou dezoito anos, quanto muito.

- Dada a sua profissão, o mais provável é que seja enforcado antes que passe mais um ano - disse Tobias, que estudava a vítima fora do seu alcance e sem a menor compaixão. - O que é que vieste aqui fazer, Ned?

A pergunta teve o efeito de uma chicotada, exigindo resposta imediata.

- Não queria fazer mal à senhora - defendeu-se o rapaz. - Juro pela alma da minha mãe. Apenas a queria assustar, só isso.

- Que espécie de susto? - perguntou Tobias, baixando a voz ainda mais.

Ned estava agora completamente aterrorizado.

- Eu.., eu queria convencê-la a não fazer mais perguntas - gaguejou Ned.

- Perguntas? - repetiu Lavinia, estupefacta.

Até agora, tinha pensado que Ned não passava de um vulgar ladrão de rua que tinha visto nela uma vítima fácil.

Em contrapartida, Tobias não parecia minimamente surpreendido por aquela resposta.

- Que espécie de perguntas é que esta senhora não deve fazer?

- Não sei. Apenas recebi uma comissão para a assustar. Uma senhora pagou-me metade da quantia. Pagar-me-á a outra depois.

Lavinia tentou ouvir melhor.

- Uma senhora?

- Descreve-a - ordenou-lhe Tobias. - Se tens amor à vida, aconselho-te a dar-me todos os detalhes que tens na memória.

- Eu... eu... não sei mais nada - gaguejou Ned.

Tentava visivelmente lembrar-se mas o terror que Tobias lhe inspirava, impedia-o de se concentrar.

Lavinia deduziu disso que aquela abordagem não ia dar em nada. Tirou o pequeno medalhão de prata que trazia ao pescoço.

- Sugiro que me deixes interrogá-lo - disse a Tobias.

Este olhou para o medalhão, hesitou e, em seguida, encolheu os ombros.

- Está bem. Tenta. Quero que ele me diga tudo o que sabe sobre a mulher que o contratou para te assustar.

- Sweet Ned, olhe para mim - disse em voz baixa.

Mas Ned mostrava-se incapaz de desviar os olhos de Tobias.

- Afasta-te, Tobias - pediu Lavinia calmamente. - Está aterrorizado contigo. Assim não consigo sacar nada dele.

- Tenho de o vigiar - Tobias não afastava os olhos do homem. Não quero surpresas.

- Por amor de Deus, ele está numa espécie de transe por tua causa murmurou Lavinia. - Tens de te afastar. Desvia os olhos por uns momentos. Acho que bastará.

- Mas de que diabo estás tu a falar? Não está em transe. Está cheio de medo e com toda a razão - Tobias sorriu friamente para Ned.

Ned não se movia, nem sequer pestanejava. Deixou-se ficar ali no chão, olhando fixamente para Tobias.

- Tobias, por favor - pediu Lavinia já desesperada. Tobias encolheu os ombros de novo e obedeceu.

- Como queiras - Tobias desviou os olhos de Ned e passou a olhar para ela. - Mas se isso não resultar contigo, encarregar-me-ei de o fazer falar. À minha maneira.

Ela olhou-o por uns momentos e, vendo o mesmo que Ned, susteve a respiração. Os olhos de Tobias eram mares insondáveis cobertos por uma bruma turva, cinzento-prateada. O mundo em seu redor começou a dissolver-se. Perdeu o equilíbrio e começou a cair de cabeça, num turbilhão escuro e insondável.

- Lavinia - a voz de Tobias parecia um raio. - Que se passa? Parece que vais desmaiar.

Ela saiu do transe e recuperou voluntariamente o equilíbrio.

- Tolices - respirou fundo. - Devo dizer-te que nunca desmaiei na vida.

Voltou-se apressadamente para Ned que se tinha apoiado sobre os cotovelos e abanava a cabeça, como a tentar sair de um pesadelo. Pelo menos já não estava petrificado.

Lavinia recompôs-se

- Olhe para o meu colar, Ned - disse-lhe docemente, enquanto balançava o medalhão, de modo a que este captasse os raios de sol. - Veja como brilha.

Ned fixou o medalhão. Lavinia imprimiu-lhe um ligeiro movimento de balanço.

- Observe a luz - repetiu com aquela voz especial que usava para provocar um transe. - Vai acalmar o seu espírito e os seus nervos. Deixará de ter medo. Concentre-se na dança da luz. Sinta os membros pesados. Ouça-me, Ned. Ouça apenas a minha voz. Esqueça tudo o resto para que se possa sentir descontraído.

A expressão de Ned distendeu-se visivelmente. Já não parecia consciente da presença de Tobias.

- Descreva-me a mulher que o contratou para me seguir - continuou Lavinia, quando sentiu que ele estava sob o seu controle. - Tente descrevê-la como se ela estivesse aqui, à sua frente. Está a vê-la, Ned?

- Há Lua cheia e ela traz uma lanterna na mão - articulou o rapaz num tom de voz átono, completamente isento de emoção. - É alta. Quase tão alta como eu.

- Como é que está vestida?

- Traz um chapeuzinho com um véu. De quando em quando, vejo o brilho dos olhos dela, mas nada mais.

- Como é o vestido?

A pergunta pareceu deixar Ned perplexo.

- É um vestido vulgar. Preto. Lavinia fez outra tentativa:

- É do género de vestidos que usam as mulheres elegantes? O tecido é fino?

- Não - respondeu Ned, sem hesitar. - É de tecido grosseiro, um pouco como o vestido que Jenny, a minha namorada, usa para trabalhar na taberna.

- Tem jóias?

- Não.

- E os sapatos? Está a vê-los?

- Sim. Poisou a lanterna aos pés. Há muita luz junto ao chão e tem as saias um pouco subidas para não as sujar no pó. Vejo-lhe as botinas.

- Vê o cabelo da mulher?

- Em parte.

- De que cor é?

- Ao luar parece muito claro. Louro, sem dúvida. Ou branco. Não tenho bem a certeza.

- Como é que o usa?

Ned pareceu outra vez confuso.

- Num carrapito na nuca.

- E o que é que lhe pede exactamente essa senhora?

- Que me dirija ao número 7 de Claremont Lane, para seguir a mulher ruiva que aí mora. Quer que a siga quando sair de casa e que a ameace com a navalha quando estiver sozinha, de modo a meter-lhe medo. Devo dizer-lhe que se continuar a fazer perguntas, voltarei e, dessa vez, corto-lhe a garganta.

Tobias deu um passo em frente. Lavinia abanou a cabeça, mandando-o ficar quieto.

- Tê-lo-ia feito, Ned? - perguntou ela. - Era capaz de cortar a garganta a uma mulher?

Ainda que mergulhado num profundo transe hipnótico, Ned começou a agitar-se.

- Não! Eu não sou um assassino. Mas não queria que a senhora soubesse. É a minha primeira cliente e não a quero perder. Digo-lhe que faria o trabalho se fosse preciso. Ela acredita em mim, vejo que sim.

- Acalme-se, Ned - disse rapidamente Lavinia. - Fixe o medalhão e descontraia-se. O seu corpo está pesado, pesado...

Os músculos de Ned relaxaram-se e entrou de novo numa profunda letargia.

- Como é que conheceu essa mulher? - perguntou Lavinia.

- Disse-me que tinha andado à procura. Alguém lhe havia garantido que eu era o homem indicado para o que desejava.

- Se tivesse sido bem sucedido, como deveria proceder para cobrar o resto do dinheiro?

- Ela disse-me que saberia como me encontrar, tal como da primeira vez.

Lavinia voltou-se para Tobias. Este abanou a cabeça, dando com isso sinal que, pela sua parte, não tinha outras perguntas a fazer a Ned.

- Podes terminar a sessão.

Lavinia transferiu a atenção para o rapaz.

- Ned, quando eu estalar os dedos vai acordar, mas não se vai lembrar desta conversa.

Estalou os dedos.

Ned piscou os olhos, com ar aturdido e pareceu de novo consciente do que o rodeava. Fitou Tobias com angústia.

- Se me deixar ir embora - disse com convicção a Tobias, sem se aperceber de que a conversa tinha sido interrompida. - Juro-lhe que nunca mais me aproximarei desta dama. Dou-lhe a minha palavra de profissional.

- Profissional de quê? De intimidador de damas? - perguntou Tobias em voz baixa.

- Juro que não lhe toco num fio de cabelo.

- Nisso tens toda a razão - concordou Tobias. - Volta-te! Ned sobressaltou-se violentamente:

- O que vai fazer comigo? Prometo-lhe que nunca mais aceito serviços destes se me deixar ir embora.

Tobias tirou uma estreita tira de couro das calças que usava.

- Disse que te voltasses. E cruza as mãos atrás das costas.

Ned parecia a ponto de explodir em soluços. Entretanto decidiu-se a obedecer com visível relutância.

Tobias atou-lhe os pulsos com algumas voltas hábeis.

- E agora, de pé.

O rapaz levantou-se desajeitadamente, com uma expressão de desespero no rosto.

- Vai entregar-me à guarda, não é? Faria muito melhor se me matasse já. De qualquer maneira serei enforcado.

Tobias agarrou-o pelo braço.

- Não iremos à polícia - disse secamente. Depois dirigiu-se a Lavinia: - Vamos juntos até ao cruzamento. Vou chamar um fiacre que te levará a Claremont Lane. Esperas lá por mim.

Ela hesitou.

- E Ned?

- Vou encarregar-me dele.

Lavinia não gostou daquele tom de voz

- Não passa de uma criança, Tobias - lembrou-lhe ela.

- Não, já não é uma criança. É um jovem em vias de se tornar num temível malfeitor. Da próxima vez que aceitar um serviço, pode decidir que assassinar alguém já não tem tanta importância.

- Não, jamais! - protestou Ned. - Sou um ladrão, não um assassino.

- Tobias, não penso que tivesse outras intenções, para além de me assustar - insistiu Lavinia.

- Eu ocupo-me dele - declarou Tobias arrastando Ned atrás de si até à entrada do atalho. - Acabemos com isto. Tenho vários assuntos a tratar e não tenho tempo a perder.

Lavinia acabou por se convencer que ele não iria fazer mal a Ned. Tobias por mais mal disposto que estivesse, sabia controlar a situação, como de costume.

Por vezes uma pessoa tinha de confiar no sócio.

 

VALE VIA JOAN DEAMBULAR POR ENTRE A SUA COLECÇÃO DE antigos vasos e sarcófagos de pedra. Deteve-se em frente de uma vitrina onde estavam expostos várias pulseiras e colares de pedras coloridas. O sol que entrava a jorros pelas grandes janelas tingia-lhe o cabelo de ouro puro.

O seu perfil clássico faria jus à estátua de uma deusa grega. No entanto, não era o físico dela que mais atraía Vale. Afinal, Londres transbordava de mulheres mais jovens, que a superavam em beleza, ainda que aos seus olhos, lhes faltasse aquela elegância e aquela segurança próprias da maturidade.

Não, o que acima de tudo o seduzia, era a força invisível da personalidade de Joan. Uma força que atraía nele tudo o que havia de masculino.

Encantava-o a intensidade do seu desejo. Vale não sabia dizer em que preciso momento se apaixonara por aquela mulher, mas presentemente, os seus sentimentos consumiam-no por completo. Esse amor era tão forte que tinha superado a grande paixão da sua vida: as antiguidades que os romanos haviam deixado em Inglaterra.

Em vida do marido de Joan, Vale nunca se teria permitido a pensar nela em termos íntimos. Fielding Dove fora um dos seus poucos amigos e dava grande valor a essa amizade para se permitir a pôr os olhos em cima da mulher dele. De resto, teria sido sem esperanças. Em vida do seu bem amado marido, Joan jamais teria olhado para outro homem.

Mas Fielding tinha morrido havia mais de um ano e Joan aliviava o luto pouco a pouco. Vale tinha iniciado uma prudente campanha de sedução à volta de conversas sobre antiguidades e dos múltiplos gostos que tinham em comum. A paixão surgira facilmente entre eles, mas, em determinada altura, Vale tinha-se dado conta que desejava mais do que isso.

Com efeito, queria que Joan o amasse tanto como ele a amava.

Por agora, acalentava a esperança de que os seus sentimentos fossem correspondidos. Mas nos últimos tempos, Joan parecia retrair-se. Vale sentia que se arriscava a perdê-la e essa perspectiva era para ele um suplício, ainda mais porque ignorava a razão daquela súbita frieza de Joan.

- O Mr. March falou consigo sobre aquele caso do assassino do memento-mori? - perguntou de súbito Joan, examinando um camafeu em ónix. - A Mrs. Lake e ele estão bastante preocupados com esse caso.

- De facto, March falou-me no assunto, mas não lhe pude dar grande ajuda. Ele e Crackenburne estão a tentar descobrir quem beneficia com essas mortes encomendadas.

- Procuram alguém que tirasse proveito financeiro das mortes. Mas a Mrs. Lake e eu formulámos outra hipótese. Pareceu-nos que essas três mortes alteravam provídencialmente os projectos matrimoniais de algumas das jovens damas da nossa sociedade.

- E está a ver alguma ligação? Parece-me um bocado forçado. Joan deixou a caixa das jóias e aproximou-se doutra vitrina, cheia de peças de barro.

- Não tenha tanta certeza. Mesmo que, à primeira vista, pareça de facto difícil imaginar que alguém encomende uma morte apenas para impedir um casamento ou arranjar outro.

- Deve admitir que é pouco provável.

Ela passou um dedo enluvado ao longo da aresta trabalhada da pedra de um altar.

- Não, se considerarmos o que está em jogo num casamento objectou Joan. - Sobretudo, na alta sociedade.

Vale pensou nas fortunas que por vezes mudavam de mãos nos acordos de casamento. Para não falar em propriedades e títulos de nobreza.

- Talvez tenha razão - concordou ele. - Talvez não seja totalmente improvável que uma pessoa mate para alterar um contrato de casamento particularmente lucrativo. Como March sublinha frequentemente, o dinheiro é um excelente móbil para um crime. Mas julgo que estas mortes não resultam numa óbvia e substancial mudança na prosperidade daqueles que mais poderiam beneficiar.

- O dinheiro não é a única coisa em jogo, num casamento - fez notar Joan, olhando-o do outro lado da galeria. - Com efeito, dados os riscos enormes que uma mulher corre quando se casa, fico espantada por não se cometerem mais homicídios por esse motivo.

Vale franziu a testa.

- Receio não estar a perceber.

Joan mudou de posição para observar parte de uma coluna que tinha retirado no decorrer da escavação de um templo romano perto de Bath.

- Ao casar-se, uma jovem corre vários riscos - disse em voz baixa. Nem todos têm a ver com problemas financeiros.

- Receio não estar a seguir a sua lógica, minha querida.

- Para uma jovem há o grave risco de dar à luz, sem falar no facto de perder todo o controle legal sobre a sua própria fortuna.

Vale acenou com a cabeça.

- O mundo está feito assim.

Joan lançou-lhe um olhar que o fez arrepender-se daquela tirada demasiado convencional.

- Pode também encontrar no parceiro um marido vicioso, que não hesite em lhe fazer mal, a ela ou aos filhos - continuou, com ar lúgubre. Ou encontrar-se ao lado de um jogador capaz de delapidar a herança dos filhos numa única noite. E depois, pura e simplesmente, pode estar condenada a suportar até ao fim dos seus dias um marido que não a ama e que apenas se casou por interesse.

- Joan... - começou Vale, antes de se deter, por não ter palavras. De um momento para o outro, a conversa, tinha dado uma volta que o ultrapassava.

Joan olhou para ele, com os olhos velados

- Uma mulher não tem fuga possível desses riscos, uma vez que sejam trocadas as alianças e haja papéis assinados.

Vale interrogou-se sobre se todas as mulheres veriam assim o casamento: como uma empresa de alto risco, não só para elas, mas também para a sua descendência. Nunca encarara as coisas sob tal prisma.

Na alta sociedade, os casamentos por amor eram raros. Por outro lado, depois do nascimento de um herdeiro, os casais davam-se a certas liberdades. Era corrente tanto o marido como a mulher permitirem-se a aventuras discretas.

Mas havia limites, é claro. E o divórcio era quase impossível. Joan tinha razão. Do ponto de vista da mulher, o casamento revelava-se uma armadilha, tanto sob o ponto de vista físico, como emocional e financeiro.

Encostado a um sarcófago de pedra, Vale cruzou os braços.

- Compreendo - disse. - E concordo que um casamento não se resume a uma história de dinheiro. Mas onde é que isso nos conduz, neste caso? Pelo que sabemos, as respectivas três famílias estavam encantadas com esses projectos de casamento. As jovens noivas talvez pensassem de maneira diferente, mas acredita mesmo que teriam tido a audácia e os meios para recorrerem a um assassino profissional?

- Não. Lavinia e eu pensamos que os contratadores são provavelmente mais velhos e financeiramente independentes. São pessoas com interesses no desfecho desses casamentos. Não é também impossível que se conheçam entre si.

Vale estava intrigado.

- O que é que a leva a dizer isso?

- Nomeadamente, a semelhança dos móbiles. Referenciei três nomes, em cada uma das relativas famílias. Parece-me provável que um assassino que ofereça os seus préstimos à alta sociedade seja forçado a confiar nas informações pessoais para publicitar os seus serviços.

- Não me tinha lembrado desse problema - esboçou um leve sorriso.

- Até aqui consegui nas três famílias os nomes de mulheres de uma certa idade, dotadas, cada uma delas, de vontade de ferro, de grande fortuna e com interesse em que os casamentos fossem avante.

- Três mulheres da alta sociedade?

- Sim.

Vale não queria acreditar.

- Como é que mulheres que passam grande parte do tempo a fazer visitas ou em salas de baile poderiam desencantar um assassino profissional a quem confiar um caso destes? Reconheço de boa vontade que algumas senhoras da alta sociedade sejam algo bizarras e excêntricas, mas isso não vai até ao ponto de se associarem à escumalha.

- Deixemos a Lavinia e ao Mr. March a preocupação de descobrir mais coisas. Mas antes de lhes entregar esses três nomes, gostaria de encontrar uma ligação entre elas. Sei que duas são amigas de longa data. Jogam às cartas todos os Sábados e vêem-se com regularidade. Mas a terceira não mora em Londres. E não sei se conhece as outras.

- Quem são as três mulheres de quem suspeita?

- Lady Huxford e Lady Ferring são as duas amigas de quem falava. A terceira é a Mrs. Stockard. Não gosta da vida da capital e não se desloca cá senão muito raramente. Vive em casa de um filho, no campo.

- Ora esta... - murmurou Vale.

Joan afastou-se das velhas moedas romanas que estava a contemplar.

- O que há, Vale?

- Não sei se isso tem algum significado, mas lembro-me de ter visto a Mrs. Stockard com Lady Huxford e Lady Ferring no Verão passado, em Bath. Encontrava-me lá a proceder a escavações nas ruínas de uma vila romana.

Joan aproximou-se dele, com os olhos brilhantes de emoção.

- Viu-as juntas! Pareciam ser amigas? Vale encolheu os ombros.

- Sabe que não sou muito mundano. Tenho pouca paciência para a alta sociedade e para aqueles que lhe pertencem. Mas Bath é uma cidade tão pequena que é impossível não saber quem lá se encontra.

Ela sorriu, perspicaz.

- E além disso, o meu amigo é observador por natureza. Diga-me o que veio a saber acerca dessas senhoras?

- Não soube grande coisa. Cruzei-me com elas na rua por diversas vezes, bem como numa livraria - hesitou. - Mas, por aquilo que diziam, tive a impressão que as três iam a águas para Bath desde há bastantes anos.

Tobias entrou no escritório de Lavinia pouco depois das cinco da tarde, precisamente no momento em que a jovem pensava servir-se de um segundo copo de xerez para acalmar os nervos. Aliviada, levantou-se quando ele entrou.

- Até que enfim! Começava a ficar preocupada. Senta-te. Preparo-te um copo de xerez?

- Esquece o xerez - disse Tobias, mostrando-lhe um embrulho de pano que trazia debaixo do braço. - Já me apercebi de que, quando trabalhamos juntos num caso, preciso de qualquer coisa mais forte.

Pousou o embrulho em cima da secretária.

- O que é? - perguntou Lavinia. Tobias abriu o pacote.

- Brandy francês. O Smiling Jack quis vender-me uma garrafa da sua nova remessa.

Lavinia viu-o com interesse a abrir a garrafa e a servir-se de uma dose generosa.

- É de contrabando, aposto. Tobias ergueu uma sobrancelha:

- Conhecendo a repugnância que Jack tem em pagar impostos, receio bem que sim. Mas, francamente, não estou interessado em saber a sua proveniência. Queres?

- Não, obrigada. Vou continuar no xerez.

Lavinia dirigiu-se ao armário, pegou no frasco e serviu-se de uma boa quantidade. Observou o nível do líquido no copo durante alguns segundos e acrescentou mais um pouco. Fora um dia difícil, pensou, ao sentar-se, enquanto Tobias se instalava no seu sofá preferido, colocando um calcanhar sobre o tamborete.

- Então, o que fizeste a Ned?

- Deixei-o entregue a Jack. Lavinia baixou o copo.

- Porquê?

- O rapaz precisa de aprender uma profissão.

- E o que é que Jack tem intenção de fazer? Ensinar-lhe a profissão de taberneiro?

- Não. Pelo menos para já. As antigas actividades de Jack permitiram-lhe conhecer bastantes capitães de navios, que andam sempre à procura de homens para a guarnição. A esta hora, provavelmente já Ned estará no mar.

- A acreditar no que me contaste de Jack, Ned encontrar-se-á sem dúvida a bordo de um barco de contrabandistas.

- Vê as coisas pelo lado bom. Se tudo correr bem, esse rapaz vai ganhar dinheiro suficiente para se retirar dentro de alguns anos. Nós não podemos dizer o mesmo.

- E se não correr tudo bem?

- Não te preocupes. Jack terá tido o cuidado de confiar Ned a um capitão que saiba o que está a fazer.

Lavinia encostou a cabeça às costas da cadeira.

- É tão jovem, Tobias. É ainda quase uma criança, garanto-te. E muito provavelmente está sozinho no mundo.

- Não percas tempo a lamentar-te sobre a sorte dele. Não hesitou em aceitar dinheiro para te aterrorizar com uma faca. Dentro de um ou dois anos, estaria disposto a enfiar-te a faca nas costelas, pela mesma quantia.

- Francamente, não creio que...

- Acredita em mim, Lavinia, Ned tem o perfil de um bandido em potência.

- Talvez. Mas se pensarmos que cresceu na rua, sem qualquer perspectiva de futuro, só se pode sentir pena.

- Não foi precisamente isso que senti quando vi a lâmina com que te ameaçava.

Lavinia não pôde conter um sorriso.

- Não me queiras fazer acreditar que não sentiste pena dele. Podias muito bem tê-lo entregue à polícia, onde, sem dúvida, teria sido posto a ferros e depois enforcado. Em vez disso, preferiste confiá-lo ao teu amigo.

Tobias contemplava o copo, com ar pensativo.

- O que sem dúvida não impedirá o rapaz de acabar os dias pendurado numa corda.

- Nesse caso, a culpa não terá sido tua.

Tobias bebeu outro gole de brandy e a sua expressão ficou menos tensa.

Deixaram-se ficar em silêncio durante algum tempo. Depois, Tobias mexeu-se um pouco na cadeira

- De que é que Aspasia te queria falar?

Lavinia fez girar o xerez no copo e bebeu rapidamente mais um pouco.

- Queria que eu tivesse a certeza de que não estava interessada em ti.

- Eu mesmo to poderia ter dito - fez um gesto zangado. - Se a memória não me falha até já o fiz, declaradamente

- Não foi bem assim. Tu disseste-me que não estavas interessado nela.

Ele encolheu os ombros.

- Vai dar ao mesmo.

- Nem por isso. Mas sobretudo, o que percebi dessa conversa, foi que Aspasia sofreu muito com o pai e com o marido. Zachary Elland apareceu na sua vida quando ela tinha jurado nunca entregar o coração a um homem. Tinhas razão... Acreditava de facto que ele era a sua alma gémea. A descoberta da verdade foi um golpe terrível.

- Estou contente por terem acabado por se entender, as duas, mas teria preferido que ela não tivesse marcado o encontro naquele maldito cemitério.

- A culpa não foi dela. Não podia saber que Ned me iria seguir logo que eu saísse de casa e que esperaria pelo momento em que estivesse sozinha. Poderia ter acontecido em qualquer outro lado. Numa rua ou num parque, suponho.

- Não me lembres disso - disse Tobias, que encheu o copo antes de continuar: - Tentemos antes saber porque é que o assassino contratou Ned para te intimidar.

- Tens alguma ideia?

- Penso que o nosso Homem do Memento-Mori vê em ti uma complicação imprevista. Quer desafiar-me e aterrorizar Aspasia, mas tu, não entravas nos seus planos.

- Quer então, afastar-me?

- Certamente imagina que não te deixarei continuar a ajudar-me nesta investigação se pensar que a tua vida está em perigo - respondeu Tobias. - E pode ser que tenha razão - acrescentou lançando um olhar a Lavinia.

- Está fora de questão - respondeu esta. - Nem penses em ordenar-me que abandone este caso. Já estou demasiado implicada.

Lavinia calou-se ao ouvir bater à porta.

- Sim, Mrs. Chilton.

- A Mrs. Dove e Lorde Vale desejam vê-la, minha senhora - anunciou a governanta no tom sonante que reservava, para anunciar os convidados mais distintos.

- Deus do Céu! Os dois?

Lavinia levantou-se de um salto. Sentia-se quase deslumbrada por ir receber a visita de Joan, mas a presença de Vale era ainda mais importante.

- Mande-os entrar para o salão, Mrs. Chilton. E sirva-lhes chá, por favor. Do melhor. Diga-lhes que eu e Mr. March já lá vamos ter com eles.

- Está bem, minha senhora.

- Não consigo acreditar que Lorde Vale esteja na minha casa! - exclamou Lavinia, sacudindo os folhos do vestido e indo ao espelho compor o penteado.

- Crês que bastará o chá? Talvez lhes devesse oferecer xerez? Tobias levantou-se com ar indolente.

- Alguma coisa me diz que Vale irá preferir o meu brandy. Lavinia afastou-se do espelho.

- Excelente ideia. Precisamos de copos. Vai para o salão enquanto eu vou dar uma palavrinha à Mrs. Chilton.

Tobias assumiu uma expressão divertida.

- Não estavas assim tão perturbada, há bocado, quando te fui encontrar com aquele malandro atrás de ti.

- Trata-se de Lorde Vale, Tobias. Muitas damas, nesta cidade, seriam capazes de matar para o terem nos seus salões de baile. E ele está sentado na minha sala! Vamos, despacha-te - disse, agitando as mãos. - Não os podemos fazer esperar. Vou dizer à Mrs. Chilton para levar os copos.

Tobias dirigiu-se para a porta, com a garrafa de brandy na mão.

- Pede-lhe também que nos sirva uns bolinhos de passas - Tobias pegou na garrafa de brandy e dirigiu-se vagarosamente para a porta.

- Parece-me que a ouvi dizer que lhe tinham sobrado alguns.

- Está bem, vai lá!

Enquanto Tobias entrava para o salão, ela dirigiu-se a toda a pressa para a cozinha.

- Mrs. Chilton, leve cálices de brandy para os cavalheiros. Ah, e o Mr. March pediu também bolos de passas!

A governanta ergueu a chaleira.

- Sim, minha senhora. Já levo o tabuleiro. Pode ir ter com os convidados.

- Claro.

Lavinia emitiu um profundo suspiro e seguiu pelo corredor. A porta do salão estava aberta. Cruzou-a com o que esperava ser aprumo.

Vale estava de pé em frente à janela, ao lado de Tobias. Joan tinha-se instalado no sofá, os folhos do vestido cor de anil arranjados com graça em seu redor.

Vale cumprimentou Lavinia com a cabeça.

- Ah, como está, Mrs. Lake? Devo confessar que tem um óptimo aspecto, para alguém que passou a tarde num cemitério, a brincar ao gato e ao rato com um bandido.

Lavinia esboçou uma reverência.

- Constato que Tobias já vos pôs ao corrente.

- Não se magoou? - perguntou Joan, preocupada.

- Não, está tudo bem, obrigada - respondeu Lavinia.

Tomou lugar num cadeirão, com esperanças que o vestido caísse com tanta elegância como o de Joan.

- Eu e Tobias estávamos precisamente a discutir esse incidente. Tobias pensa que o assassino me considera um empecilho e quis aterrorizar-me para que eu me afaste da investigação.

- É precisamente essa investigação que me traz aqui - explicou Joan que trocou um rápido olhar com Vale antes de prosseguir: - Tenho informações que talvez vos possam ser úteis. A falar verdade, penso quase ter convencido Lorde Vale que estes três homicídios estão todos ligados a casamentos cancelados.

Tobias interrogou Vale com os olhos.

- É verdade?

- Ainda me custa um pouco a acreditar nessa hipótese - respondeu Vale. - Mas devo concordar que Joan citou os nomes de três damas de idade que têm inegavelmente um móbil para o crime. E não há dúvidas de que todas elas têm recursos para contratarem os serviços de um assassino, se assim o desejarem. Lavinia exultava.

- Três senhoras de idade? De quem se trata? - Perguntou ansiosamente a Joan.

- A primeira é Lady Huxford. Penso que tivesse boas razões para desejar a morte de Lorde Fullerton, no castelo de Beaumont. O qual, se se recorda, estava noivo da herdeira Panfield.

- Sim, sim, continue.

- Lady Huxford é a avó materna da noiva. Tem cerca de sessenta anos, mais ou menos a idade de Fullerton. Segundo uma fonte muito segura, ele tê-la-ia seduzido, quando ainda não tinha vinte anos, quando ela debutou na sociedade. Depois quebrou o compromisso e optou por um partido mais vantajoso para se casar. Felizmente, o pai de Lady Huxford era bastante rico para encontrar outro pretendente para a filha, antes que a reputação da jovem ficasse arruinada. Mas esta ficou com o coração destroçado e nunca perdoou a Fullerton.

- E quarenta anos mais tarde, eis que descobre que o homem que lhe roubou a inocência quer casar com a neta! - exclamou Lavinia, chocada. - Lady Huxford deve ter ficado louca de raiva.

- Certamente. Mas como impedir esse casamento sem revelar publicamente o que se tinha passado na sua juventude? - completou Joan.

A Mrs. Chilton entrou entretanto com a bandeja. Tobias pegou num cálice de brandy e estendeu-a a Vale.

- Quem é o segundo suspeito na sua lista de possíveis clientes? - perguntou ele.

- A viúva, Lady Ferring. Penso que contratou o assassino para se ver livre de Lady Rowland, que oficialmente morreu durante o sono por excesso de soporífero. Lembre-se que a morte de Lady Rowland teve como consequência a anulação do casamento da neta desta com o neto de Ferring.

Lavinia abanou a cabeça.

- A minha amiga contou-me que Lady Rowland estava obcecada pelo projecto do casamento da neta na família Ferring, pois ela própria tinha nutrido uma grande paixão pelo avô do noivo.

- Com efeito. Parece que Lady Ferring estava ao corrente da ligação adúltera do marido e tinha uns ciúmes terríveis de Lady Rowland que fora uma grande beleza na sua juventude. Não lhe disse que estas duas mulheres chegaram a ter violentas discussões em público. O caso, que alimentou as crónicas da época, remonta há uns trinta anos. Mas a animosidade entre as duas rivais permanecera.

- E um dia, Lady Ferring sabe que a sua arqui-inimiga conspira para unir as duas famílias, casando a neta dela com o seu próprio neto - murmurou Lavinia - Suponho que também ficou negra de raiva.

- O que me está a escapar - interveio Tobias - é o motivo pelo qual o casamento foi anulado após a morte de Lady Rowland.

- Acontece que ela era a única a querer esse casamento - explicou Joan. - A partir do momento em que recebeu a herança da mãe, o pai da rapariga mudou de ideias. Na verdade, tinha sete filhas para casar e decidiu repartir a herança equitativamente por elas. A mais velha viu assim o seu dote diminuir consideravelmente diminuído. De um momento para o outro, já não era um partido tão aliciante. E o jovem Ferring preferiu procurar por outro lado.

- E, quanto a si, quem é o contratante do terceiro homicídio? - perguntou Tobias, já visivelmente intrigado.

- A terceira vítima foi o Mr. Newbold - lembrou esta. - De certo modo é a mais fácil de explicar. Este senhor era muito rico, mas, na verdade, era um sujeito desprezível. Quando propôs casamento à menina Wilson, a família da rapariga decidiu fechar os olhos à sua reputação, pensando apenas na fortuna dele. Só a avó materna da noiva, a Mrs. Stockard, se recusou a isso. Ela própria tinha-se casado na juventude com um crápula do género de Newbold e não queria que a neta tivesse tão horroroso destino.

- Excelente trabalho, Joan! - exclamou Lavinia, intensamente satisfeita. Voltou-se para Tobias. - Aí tens: os mobiles e os meios financeiros para os pôr em acção.

Tobias trocou um olhar com Vale.

- Há uma lógica evidente em tudo isto - comentou este último.

- Outra coisa - interveio Joan, aclarando a garganta. - Estas três mulheres são amigas de longa data. Posso garantir que, duas delas, Lady Huxford e Lady Ferring, são mesmo inseparáveis.

- Isso é bastante interessante - disse Tobias em voz baixa. - Eis o que poderia explicar o terem recorrido ao mesmo assassino. Basta que uma o tivesse conhecido e, em seguida, falado dele às outras.

Lavinia tamborilava com os dedos sobre o braço do sofá, reflectindo profundamente em como proceder.

- Gostaria bastante de poder fazer algumas perguntas a essas senhoras - declarou.

Ninguém respondeu. A jovem reparou que todos os olhos estavam postos nela.

- Apelando a muita subtileza, evidentemente - apressou-se a acrescentar.

- Evidentemente - repetiu Tobias com ar trocista. - És muito dotada nessa arte.

- Escuta, Tobias...

- Se a memória não me falha, a última vez que manifestaste a tua subtileza, conseguiste fazer com que fossemos expulsos do castelo de Beaumont. E sem pequeno-almoço!

- Tencionas recordar-me esse incidente de cada vez que tiveres ocasião para tal? - perguntou Lavinia.

- Com certeza.

Joan sorriu, divertida.

- Já calculava que gostasse de falar com estas damas, Lavinia. Com a Mrs. Stockard não posso fazer grande coisa, pois não mora em Londres. Em contrapartida, posso arranjar-lhe um encontro com Lady Huxford e Lady Ferring.

- Seria uma grande ajuda - disse Lavinia. - Como pensa fazê-lo?

- Segundo aquela amiga que me falou das antigas bisbilhotices, raramente faltam a um concerto ao ar livre, em Vauxhall, desde que seja seguido de fogo de artifício. Sucede que há um amanhã à noite. Poderíamos ir as duas e eu arranjaria maneira de vos apresentar. O que acha?

- Perfeito - respondeu Lavinia, já impaciente. - Tenho o pressentimento que este caso está a chegar ao fim.

Tobias olhou para a janela, com ar pensativo.

- É curioso, mas, pela minha parte, tenho a desagradável sensação de que se nos escapou um indício importante.

- Sem dúvida é porque a tua natureza só te leva a ver o lado mau das coisas - replicou Lavinia, um pouco irritada. - Devias cultivar uma visão mais optimista da vida. Far-te-ia um bem imenso.

Para grande espanto de Tobias, assim que saíram do número 7 de Claremont Lane, Vale propôs-lhe caminharam ambos até ao clube. Da parte de um homem tão discreto e que saía tão pouco, andar a pé pela cidade era quase um acontecimento. Por outro lado, como passava muito tempo no campo escavando as suas ruínas romanas, era evidente que, por princípio, não se opunha ao exercício físico.

O Sol poente daquele dia de Verão banhava as ruas e os parques da cidade com uma luz doce, tão especial naquela época do ano. Havia uma profundidade e uma definição nos pormenores da rua que atraíam os sentidos. Todas as janelas e portas eram delineadas como uma precisão impossível de captar pelo melhor artista. No entanto a claridade e o calor dos locais iluminados servia penas para contrastar com a intensidade das sombras dos becos e ruelas estreitas.

- Considerando bem - disse Vale -, a intuição da sua sócia sobre o móbil destes crimes parece fundamentada.

- Devo admitir que Lavinia e Joan conseguiram uma ligação entre as três senhoras que não me posso permitir a ignorar - Tobias abanou a cabeça. - E, no entanto, a ideia de que três damas de idade tenham podido encomendar as mortes com o único fim de fazerem gorar casamentos deixa-me bastante preocupado.

- Confesso que quando Joan me falou nisso pela primeira vez, senti uma lufada de terror.

Tobias sorriu.

- Temos muitas vezes tendência para subestimar o belo sexo.

- É verdade - reconheceu Vale, observando um grupo de rapazitos que lançavam papagaios no parque. - Hoje tive direito a uma lição que me perturbou razoavelmente. Para lhe contar tudo, tive uma discussão com Joan que foi como que um esclarecimento. Já alguma vez pensou que um casamento represente constrangimentos de toda a espécie para uma mulher inteligente e independente?

Tobias olhou para um dos papagaios que subia já acima da copa das árvores.

- Se tem intenção de me explicar que a instituição do casamento não foi pensada em favor das mulheres, poupe o esforço - respondeu Tobias.

- Nos últimos tempos, não me têm faltado ocasiões para pensar nisso.

- Estou a ver - murmurou Vale. Tobias olhou-o de revés.

- Devo deduzir que também reflectiu sobre a questão? Vale abanou imperceptivelmente a cabeça.

- Depois da morte da minha mulher, não encarava a ideia de me voltar a casar. Até há pouco tempo, não via necessidade disso. Tenho dois filhos e netos, o que me assegura o futuro dos títulos e das propriedades. E a minha paixão pela Antiguidade ocupa quase todo o meu tempo.

Quanto ao prazer que posso obter junto a uma mulher, sabe, tão bem como eu, que existem maneiras de o procurar facilmente.

Sobretudo quando se é rico e se se pode permitir a manter várias amantes, pensou Tobias. Mas, bem entendido, guardou para si a reflexão, posto que ela não se justificava, no que dizia respeito a Vale. Embora este tivesse tido algumas ligações discretas, não era do género de homens de dar nas vistas com mulheres de reputação duvidosa.

- Foi passando cada vez mais tempo com Joan que tomei consciência da minha solidão - prosseguiu Vale. - É como se tivesse de repente descoberto um elixir do qual ignorava estar sequioso antes de o ter provado.

- E agora, receia a possibilidade de que um dia, alguma coisa o possa impedir de saciar a sua sede.

Vale lançou um olhar divertido a Tobias.

- Vejo que também adquiriu o gosto pelo mesmo tónico.

- Creio que há, pelo menos, um ponto positivo na nossa situação.

- Qual?

- Se chegarmos a convencer as senhoras em questão a casar connosco, teremos pelo menos a satisfação de que elas o farão por amor. E unicamente por amor.

- E não por considerações sociais ou financeiras? - Vale esboçou um sorriso, sem humor. - E que diabo faremos, se elas recusarem?

- Penso que é precisamente esse receio que nos impediu até agora de lhes pedirmos a mão.

Vale suspirou.

- Sim - Vale soltou um profundo suspiro. - Está bem, é sem dúvida inútil discutir mais o assunto. Apenas servirá para ficarmos mais deprimidos. Voltemos antes a essa história de mortes. Fiquei intrigado pela sua reflexão de há bocado, no salão da Mrs. Lake. Pensa na verdade que deixámos escapar um indício importante?

Tobias seguiu com os olhos um papagaio que dava reviravoltas e acabou por vir direito ao chão.

- Estou convencido disso. A minha sócia não é a única a ter intuição. E aprendi à minha custa a não desprezar a minha, neste domínio.

 

CRACKENBURNE BAIXOU O JORNAL COM MAIS VIVACIDADE QUE o costume.

- Ei-lo, por fim, March! Onde diabo andou metido?

Tobias deixou-se cair num cadeirão perto da lareira, em frente ao seu velho amigo.

- Investigava, imagine. Recordo-lhe que ainda é assim que ganho a vida. Nem toda a gente tem a hipótese de ser tão afortunado que possa passar os dias num clube.

Crackenburne fechou o jornal com um golpe seco e pousou-o em cima da mesa.

- Vejo que está de muito mau humor. Deduzo que a investigação não avance como queria.

- Pelo contrário - respondeu Tobias. - Tenho mais elementos do que os que me fazem falta, por agora. Mas nenhum me convence inteiramente... - Tobias poisou os cotovelos nos braços da cadeira e estendeu a perna esquerda. - Diga-me, parece-lhe possível que uma dama de idade respeitável tenha encomendado um assassínio para impedir o casamento da neta?

Crackenburne pestanejou várias vezes. Depois fez um gesto de ignorância.

- Nunca reflecti sobre o assunto, mas não se pode ignorar o facto do casamento ser um negócio muitíssimo importante na alta sociedade. A partir do momento em que uma fortuna e um título estejam em jogo, quem sabe a que extremos pode chegar uma pessoa sem escrúpulos. Já soube de pais que conspiraram para comprometer as filhas com jovens cavalheiros de modo a forçarem um pedido. Todas as temporadas aparecem damas e cavalheiros prontos a vender a sua prole em troca de uma miserável aliança, apenas para garantir uma boa herança. Porque não cometer um assassinato se se puder chegar àquilo que se pretende?

- Certo - concordou Tobias. - Bom, parece que o novo Homem do Memento-Mori se apercebeu dessa procura no mercado e aproveitou a oportunidade. A Mrs. Lake e a Mrs. Dove estão convencidas que Lady Huxford, Lady Ferring e uma certa Mrs. Stockard poderiam ter contratado o nosso assassino.

Expôs detalhadamente a teoria de Lavinia. Crackenburne ouvia-o com atenção, de testa franzida.

- Tudo isso me parece extravagante, à primeira vista - comentou. Mas reflectindo bem, a conclusão das senhoras não deixa de ter uma certa pertinência. Lembro-me, por outro lado, que certas cenas entre Lady Rowland e Lady Ferring, eram muito divertidas. E os antigos mexericos a propósito de Lady Huxford e Fullerton, que deixavam toda a gente a pensar. Quanto a essa Mrs. Stockard, não a conheço, mas pode compreender-se facilmente que tenha rejeitado a ideia de que a neta casasse com um depravado como Newbold.

- A Mrs. Lake e a Mrs. Dove querem interrogar discretamente Lady Ferring e Lady Huxford, amanhã à noite, em Vauxhall. Quanto a mim, vou encarregar-me de saber mais sobre a pessoa que pagou a um patife para intimidar a minha sócia.

- Tem alguma ideia nesse sentido?

- Tenho. Para recrutar alguém como o Sweet Ned foi preciso ir procurá-lo às sargetas. Segundo a minha experiência, essa esfera é o espelho da Sociedade, governada pelas mesmas leis imutáveis da natureza.

- Quer isso dizer que, as bisbilhotices e os rumores também aí correm depressa, é isso?

- Exactamente.

- Por outras palavras, o seu velho amigo Jack do Gryphon não deverá demorar muito a descobrir quem contratou o Sweet Ned.

- Jack continua à pesca. Com um pouco de sorte vai descobrir alguma coisa que me sirva.

- E quanto a Elland? Descobriu alguma coisa pelo seu lado?

- Ainda não.

Crackenburne franziu as sobrancelhas por cima dos aros dos óculos.

- Veja, reflecti bastante sobre o que me disse a respeito de Elland desprezar os vagabundos e sabe que tem razão. Considerava-se um assassino elegante. Tinha um orgulho profissional devido ao facto de se movimentar por entre a alta sociedade e não nesse espelho que acabou de me descrever.

- Lembro-me que se recusava sempre a acompanhar-me às tabernas mal afamadas e aos bordéis para recolher informações. Pretendia ignorar todos esses lugares e garantia que não me seria útil para nada. Mas, em retrospectiva, creio que ele sentia apenas desdém pela clientela desses estabelecimentos que considerava ser constituída por seres inferiores. Havia qualquer coisa que revelava medo na atitude dele.

- Medo? - repetiu Crackenburne, pensativo. - Não seria certamente o primeiro a empregar o desdém para ocultar uma emoção.

- Espero que, no caso de Elland tivesse boas razões para ser cauteloso nesses meios.

Crackenburne franziu a testa.

- Que razões?

- Se fosse proveniente desse meio, imagina-se muito bem porque receava voltar aí.

- Com medo de ser reconhecido?

- Ou de provocar algumas lembranças. Quem sabe? Mas seja qual for a resposta no caso de Elland é evidente que o nosso novo assassino não tem os mesmos escrúpulos, uma vez que não hesitou em descer até lá para recrutar o Ned.

- Talvez tenha sido empurrado pelo desespero.

- Quem quer que ele seja, tenho esperanças que tenha deixado vestígios da sua passagem por esses bairros.

- Só lhe posso desejar boa sorte - disse Crackenburne. - Ah, a propósito, tenho novidades para si acerca de outro assunto.

Tobias ficou imóvel.

- Dominic Hood? Crackenburne encostou-se na cadeira.

- Não sei se lhe vai ser útil, mas pode proporcionar-lhe o princípio de uma pista.

Tobias voltou a guardar a gazua na bolsa de couro e observou o laboratório mergulhado na penumbra. Reconheceu alguns aparelhos e equipamento. Várias prateleiras estavam ocupadas com filas de provetas. Havia uma enorme pilha eléctrica a um canto e um belo telescópio sobre uma bancada, ao lado de um microscópio.

O espaço era ocupado por muitos outros instrumentos que Tobias não conseguia identificar, mas todos pareciam dispendiosos e testemunhavam a paixão do seu proprietário pela ciência.

Já tinha examinado o quarto e a sala. Sem sucesso. Tinha reservado o laboratório para o fim e, de repente, teve a intuição que se Dominic Hood tivesse segredos, seria nessa divisão que os esconderia.

Passava pouco das nove da noite. Meia hora antes, coberto pela sombra, Tobias vira Dominic sair de casa em traje de noite. Provavelmente para se dirigir ao seu clube ou às mesas de jogo. Portanto não voltaria durante várias horas. E o seu único criado tinha saído quase imediatamente, dirigindo-se a um bar ali próximo.

Tobias empreendeu uma busca rápida mas meticulosa ao laboratório. Dominic era um homem organizado, o que lhe facilitou consideravelmente a tarefa. Encontrou o que procurava na pequena gaveta da mesa de trabalho.

Era um diário íntimo encadernado a couro. A letra era feminina. As datas atestavam que o texto registado nestas páginas remontava a vinte e dois anos atrás.

... O meu coração bate tão rápido quando ele toca na minha mão, que receio desmaiar a cada vez. Não encontro palavras para descrever a emoção que me causa a sua presença. Arrebata-me o simples facto de o saber junto a mim. Aconselhou-me a não falar da nossa relação a ninguém, nem aos meus pais nem sequer às minhas amigas. Mas como vou poder guardar este maravilhoso segredo só para mim?

Tobias folheou rapidamente algumas páginas e retomou a leitura.

... Não consigo acreditar que me tenha abandonado. Tinha-me jurado que o seu amor por mim era tão grande quanto o meu por ele. Mais tarde ou mais cedo, vai voltar para mim, tenho a certeza. E fugiremos juntos...

... A mamã garante-me que a minha reputação está arruinada. Passou todo o dia a chorar no quarto. Quanto ao papá, fechou-se à chave no escritório. Philips diz que ele se embebedou com clarete e brandy. Estou muito assustada. Enviei uma mensagem ao amor da minha vida, mas não me respondeu. Meu Deus, o que vai ser de mim se ele não aparecer? A ideia de viver sem ele é para mim insuportável...

... O papá acaba de me contar que o meu amor é casado com outra mulher. A mamã diz que não é só isso: tem uma filha pequena e a esposa espera outra criança no Verão. É impossível. Não me teria mentido a esse ponto...

... Amanhã de manhã, partiremos para o campo. O papá diz que não tenho outra escolha senão aceitar o pedido que o Mr. Hoodfez da minha mão. Se não me casar depressa, serei desprezada por todos. Esta tarde, Philips levou outra mensagem ao meu amor, mas, mais uma vez, não houve qualquer resposta. Meu Deus, tenho o coração partido. E nenhum desejo de viver. O Mr. Hood é um velho...

Anthony pôs-se de pé num salto.

- O quê?! Dominic é meu irmão?

- Meio-irmão, para ser mais preciso - rectificou Tobias, sentado na ponta da secretária. - No seu diário íntimo, Helen Clifton acabou por revelar o nome do teu pai como sendo o homem que a seduziu quando ela veio para Londres, para debutar na sociedade.

Anthony foi plantar-se diante da janela e fixou as trevas.

- É impossível! - Anthony atravessou o escritório para se dirigir à janela. - Se tivesse um irmão, sabê-lo-ia.

- Não necessariamente. Imagina-se facilmente que os Clifton tenham tido de guardar o segredo. Quanto a Hood, deve ter ficado muito feliz por reconhecer Dominic como filho. Crackenburne contou-me que tinha vinte anos a mais que Helen. Era já viúvo por duas vezes e não tinha filhos. Estava desesperado por ter um herdeiro.

- Assim, quando a jovem esposa lhe anunciou que estava grávida, quis acreditar que a criança era sua.

- Disseram-lhe sem dúvida que o bebé tinha nascido antes do tempo. É prática habitual em casos deste género. O diário de Helen termina três meses depois do nascimento do filho. Na última página explica que ama o filho e que não lhe revelará a verdade enquanto este não tiver idade para a compreender e para lhe perdoar. Suponho que tenha guardado o segredo até ao último suspiro. Talvez nem sequer tenha dito nada.

- Achas que Dominic terá encontrado o diário após a morte dela?

- Não faço a mínima ideia. Fosse como fosse, deve ter sido um choque para ele. Segundo Crackenburne, Hood pai morreu há cerca de cinco anos. E a mãe de Dominic morreu o ano passado.

- De doença?

- Não. Aparentemente, sofria de melancolia. Ainda segundo Crackenburne, teria abusado voluntariamente do láudano. Dominic herdou uma quantidade de propriedades, assim como uma boa fortuna de ambos os lados da família.

- O que explica as suas botas e os seus fatos de qualidade - murmurou Anthony. - Bem como um laboratório tão bem equipado.

- Dominic talvez não tenha preocupações de dinheiro, mas doravante já não tem mais ninguém no mundo - observou Tobias. - Excepto tu.

Anthony rodopiou sobre os calcanhares. O seu olhar exprimia a maior confusão.

- É difícil acostumar-me à ideia de que tenho um irmão - confessou. - Mas se o que dizes é verdade e se Dominic, por sua vez, tem um nome respeitável e uma bonita fortuna, porque me detesta tanto?

- Sugiro que sejas tu próprio a perguntar-lhe - respondeu Tobias.

 

NA NOITE SEGUINTE, LAVINIA E JOAN ESTAVAM INSTALADAS num camarote privado protegido por um toldo e admiravam deliciadas as barracas e os elegantes pavilhões que as rodeavam.

Vauxhall estava imensamente iluminado, nessa noite. Lampiões presos às árvores iluminavam o parque, enquanto que a orquestra instalada ao ar livre tocava Haendel. Grutas mágicas, quadros históricos e galerias de quadros atraíam enormes multidões. A pouca distância, nos atalhos do jardim, com árvores de ambos os lados, muitos deles escuros e afastados, escondiam-se pares amorosos para se darem a comportamentos um pouco mais escandalosos.

Se Lavinia não se encontrasse ali por razões profissionais, ainda mais teria apreciado aquela noite excepcional.

- Havia uma eternidade que não vinha aqui - observou Joan, ocupada em examinar o conteúdo do seu prato com algum divertimento. - Mas verifico que não mudou nada. O fiambre é sempre cortado tão fino que se pode ler o jornal através de uma fatia.

- Vim cá duas ou três vezes com os meus pais, quando era pequena - explicou Lavinia. - Recordo-me que me compravam gelados. Lembro-me de um balão a subir, de uns acrobatas e, claro, do fogo de artifício.

A evocação destas recordações trouxe-lhe à memória a época em que era jovem, inocente e vivia no casulo seguro da moradia familiar. O mundo era um local muito diferente, pensou. Ou o mais provável é que ela fosse diferente.

Mas, apesar de tudo, era destino de cada um crescer. Fizera-o havia uma década quando, no decorrer de dezoito meses, perdera no mar os seus amados pais. No que lhe parecera um momento desesperado, vira-se sozinha no mundo, obrigada a sobreviver com a sua inteligência e as suas capacidades de hipnotizadora. Joan também tinha conhecido altos e baixos. O que sem dúvida explicava aquela inesperada amizade, que não parava de crescer entre as duas mulheres.

- Parece perdida nos seus pensamentos - reparou Joan, enquanto espetava o garfo num bocadinho de fiambre muito fino. - Estaria a reflectir sobre o modo de interrogar Lady Huxford e Lady Ferring?

Lavinia negou com a cabeça.

- Nada disso - Lavinia esboçou um leve sorriso. - Talvez possa achar esquisito, mas pensava no destino que nos reuniu à volta desta mesa, esta noite, para saborear uma ceia caríssima, vestindo as últimas criações de uma das modistas mais em voga de Londres.

Joan pareceu surpreendida. Depois desatou a rir, coisa que raramente acontecia. Os olhos brilhavam-lhe de contentamento, por partilhar coisas com a amiga.

- O destino poderia ter-se mostrado muito mais hostil connosco, não acha? - Ergueu o copo. - Bebamos pela sorte que nos fez escapar a um destino menos invejável. Poderíamos ter acabado governantas. Ou amantes de um qualquer tirano doméstico.

Lavinia tocou com o copo no de Joan.

- Certo. Mas não é apenas o destino que está em causa. Nós também pusemos muito boa vontade para conseguirmos evitar essas profissões.

- Concordo - reconheceu Joan antes de beber um gole de vinho. Ambas soubemos correr os riscos, que sem dúvida teriam aterrorizado muita gente.

- E sobrevivemos - concluiu Lavinia, encolhendo os ombros. Joan parecia pensativa.

- Não creio que alguma de nós pudesse ter pensado em fazer outra coisa diferente. Sem dúvida porque possuímos um carácter que nos empurra a tomar as rédeas da nossa vida - opinou Joan. - Fielding dizia sempre que o que mais admirava em mim, era a capacidade de saber virar a página para espreitar o futuro.

Lavinia esboçou um sorriso.

- Devo concluir que decidiu que a sua ligação com Lorde Vale não profanava a memória do seu marido.

- Deve, com efeito - admitiu Joan, que cortava uma fatia de carne, num gesto resoluto, antes de responder: - Reflecti bastante na nossa conversa. E estou certa do que diz o meu coração, presentemente. Por conseguinte já participei a minha decisão a Maryanne. Precisará de algum tempo para aceitar a situação, mas acabará por compreender que não posso viver eternamente vergada ao passado. Fielding, em todo o caso, não teria desejado isso.

- Ela vai compreender - assegurou Lavinia. - É ainda muito nova.

- Sim, bem sei... - Joan mastigou delicadamente e engoliu. - Acredita que nós também já fomos jovens e inocentes? Confesso que já não me lembro... - Joan interrompeu-se de repente e piscou o olho.

- Ei-las! Começava a recear que tivessem alterado o programa.

- Lady Huxford e Lady Ferring?

- Sim. Perfeito. Instalaram-nas na mesa mesmo atrás de si. Como eu desejava.

Um desejo apoiado por uma gratificação principesca, calculou Lavinia, que teve de se debater para não se voltar.

- Lady Huxford já me viu - sussurrou Joan.

Sorriu calmamente e continuou, elevando um pouco a voz:

- Lady Huxford, Lady Ferring! Que prazer em vos encontrar aqui, esta noite!

- Boa-noite, Mrs. Dove - respondeu a primeira voz gauda e irregular.

- Boa-noite, Mrs. Dove - fez eco a segunda, muito rouca.

- Permitam-me que lhes apresente a minha amiga, a Mrs. Lake. Lavinia achou que devia ter calma. Virou-se lentamente e, imitando Joan, inclinou a cabeça em jeito de saudação.

O seu primeiro pensamento foi de ter cometido um erro terrível. Foi atacada pelos remorsos. Não era possível que duas mulheres idosas, apoiadas em bengalas, tivessem podido recorrer a um assassino profissional.

Lady Huxford era frágil e mais magra que as fatias de fiambre servidas ao jantar. Lady Ferring parecia mais forte e provavelmente tinha perdido alguns centímetros desde a juventude. Tinha agora os ombros curvados.

Contudo, o sentimento de culpa de Lavinia desvaneceu-se a partir do momento em que cruzou os olhos com as duas velhas. Divisou nelas uma força de carácter e uma arrogância que falavam de uma vida longa a manipular acontecimentos e pessoas para obter os seus objectivos. Os corpos de Lady Huxford e de Lady Ferring tinham vergado ao peso dos anos, mas não as suas capacidades mentais, pensou Lavinia.

As suas ideias de elegância em nada tinham diminuído o seu conceito de perspicácia. Lady Huxford usava um vestido cor de bronze ornamentado com laços amarelos, enquanto Lady Ferring vestia um sumptuoso traje de seda cor-de-rosa. Ambas traziam golas altas de folhos, sem dúvida destinadas a esconder as rugas e a pele caída do pescoço. Usavam ambas pequenos chapéus, colocados de lado, sobre abundantes cabelos prateados, penteados com requinte. Perucas, deduziu Lavinia. O cabelo postiço frisado era apanhado no alto da cabeça para lhes dar altura. Daquele ângulo não conseguia ver a nuca das senhoras, mas tinha um palpite de que os carrapitos eram igualmente elaborados.

- Lady Huxford - disse Lavinia, com naturalidade -, permita-me que lhe apresente as minhas condolências pela sua recente perda.

Lady Huxford ajeitou as lunetas, franzindo os sobrolhos.

- Que perda? O meu marido morreu há catorze anos e, desde então, não perdi mais ninguém.

- Pensava na morte inesperada do noivo da sua neta, Lorde Fullerton - precisou Lavinia. - Os pais devem estar destroçados. Era um bom partido...

- Encontrarão facilmente outro, ainda mais vantajoso - replicou Lady Huxford, baixando as lunetas.

Lavinia virou-se em seguida para Lady Ferring.

- Uma vez que falamos em casamentos desfeitos, ouvi dizer que o seu neto já não tem intenção de pedir a mão da neta mais velha de Lady Rowland. Que pena! Parecia uma aliança tão boa. Todos pensavam que o título do jovem resultaria muito bem aliado à fortuna dessa menina.

Lady Ferring fechou-se como uma ostra.

- Mas pareceu-me ter ouvido que com a morte de Lady Rowland, a situação se alterou, no campo financeiro - continuou delicadamente Lavinia. - Faleceu na pior altura, não é verdade? Dizem que sucumbiu antes de poder mudar o testamento para deixar o dote que pretendia à neta mais velha. Dizem que é o pai que controla a herança e tenciona dividi-la pelas sete filhas.

- O destino tem caminhos misteriosos - limitou-se a observar Lady Ferring.

- De facto, assim é - assentiu Lavinia, antes de se virar para Lady Huxford. - A propósito de destino, imagine que eu me encontrava no castelo de Beaumont na noite em que Lorde Fullerton morreu.

Lavinia seria capaz de jurar que Lady Huxford se sobressaltara. Mas a velha senhora recompôs-se muito depressa.

- A acreditar no que me disseram, nessa noite havia lá muita gente respondeu na sua voz aflautada. - As festas no castelo de Beaumont são sempre muito concorridas.

- Havia, com efeito, uma multidão - continuou Lavinia -, mas eu fui uma das últimas pessoas a ver Lorde Fullerton com vida. Passou à minha frente minutos antes de morrer.

Lady Huxford olhava para ela, sem dizer palavra.

- Evidentemente que estava embriagado - interveio Lady Ferring, na sua voz rouca. - Fullerton era conhecido por beber como uma esponja.

- Admito que parecia ter bebido - respondeu Lavinia. - E lamento dizer que, quando o vi, estava acompanhado por uma jovem criada.

- Os homens hão-de ser sempre homens - comentou Lady Huxford, com uma expressão de desdém. - Mas não me parece assunto próprio para se discutir.

- Neste caso a discussão é pertinente - insistiu Lavinia, friamente. O meu sócio, o Mr. March, e eu, fomos solicitados para investigar a trágica morte de Lorde Fullerton. Chegámos à conclusão que Fullerton foi assassinado e que só a criada em questão poderia ser o assassino, disfarçado de mulher.

Lady Huxford ficou de boca aberta.

- Um assassinato? O que me está a dizer? Nada deixa pensar que se pode ter tratado de um assassinato.

- Pelo contrário - murmurou Lavinia. - Os indícios confirmam. Desta vez, o assassino cometeu vários erros.

- Desta vez? - repetiu Lady Ferring, irritada. - Insinua que houve outras mortes?

- Sim. Para ser franca, temos suspeitas quanto à morte de Lady Rowland.

- Ouvi dizer que tinha morrido por ter ingerido tónico soporífero em excesso - objectou Lady Ferring. - Nunca ninguém evocou a hipótese de assassínio.

Lady Huxford parecia ofendida.

- Não compreendo porque vos encarregaram de investigar estas histórias.

- A Mrs. Lake e o sócio, o Mr. March, fazem investigações privadas, não sabiam? - interveio Joan com ar surpreendido. - Aceitam estes serviços da parte de pessoas que desejam descobrir a verdade, em casos suspeitos, como é o caso destas recentes mortes.

- Investigações privadas? - articulou Lady Ferring, olhando de revés para Lavinia. - Não é um trabalho digno de uma senhora.

- Quem teve a absurda ideia de vos pedir para investigar a morte de Fullerton? - quis saber Lady Huxford com uma expressão de uma intensidade quase febril. - A família nunca teve suspeitas, que eu saiba.

- Infelizmente é-me impossível divulgar o nome do nosso cliente respondeu Lavinia. - O que decerto compreende. Eu e o Mr. March trabalhamos apenas para os membros mais exclusivos da alta sociedade, os quais exigem a maior discrição. Mas posso garantir-lhe, em contrapartida, que estamos a fazer grandes progressos. Desde que identifiquemos o assassino, estou convencida que poderemos desmascarar quem o contratou.

- Que disparate! - rosnou Lady Huxford. - Um disparate completo. Investigadores privados. Nunca ouvi falar em tal.

- Por outro lado, talvez a senhora me pudesse ajudar nesta investigação - continuou Lavinia. - Sem dúvida, conhecia Lorde Fullerton, que deveria ser mais ou menos seu contemporâneo. Devem ter-se conhecido na juventude. Quanto à senhora, quem lhe poderia desejar a morte?

Lady Huxford assumiu um ar de estupefacção ultrajada.

- Está completamente louca - murmurou por fim. Lavinia dirigiu-se a Lady Ferring:

- Sabe, minha senhora? Se virmos melhor, reparamos que há semelhanças entre a morte de Lady Rowland e a de Lorde Fullerton. Tenho de anotar o que têm em comum. Provavelmente os motivos são idênticos. Estas duas mortes resultaram na anulação de casamentos.

Lady Ferring arregalou os olhos.

- Não estou a perceber nada do que me está a dizer. É a conversa mais ridícula que já ouvi. Lady Huxford tem razão. A senhora é sem dúvida uma candidata ao hospício.

- Já ouvi disparates que bastem por hoje, Sally - declarou Lady Huxford, que se levantara, amachucando o guardanapo com a mão enluvada e agarrando a bengala com a outra. - E não tenho vontade nenhuma de cear em tão detestável companhia. Vamo-nos embora.

- Concordo plenamente. - Lady Ferring agarrou também na sua bengala de ébano com ambas as mãos para se pôr de pé. Olhou em seu redor com uma expressão feroz.

- Daniels? Onde está? Vamo-nos embora!

- Com certeza, minha senhora - um criado avançou apressadamente para que ela se apoiasse no seu braço.

Surgiu outro criado, com uma libré diferente, que pegou no braço de Lady Huxford.

- Perdão minha senhora, não sabia que desejava partir tão cedo.

- Os clientes não estão à altura, esta noite - declarou Lady Huxford.

- É inadmissível!

Os dois criados escoltaram as patroas por entre o labirinto de tendas. Joan seguiu-as com um misto de divertimento e decepção no olhar.

- Pensava que as fosse interrogar com perspicácia - murmurou.

- Ora! Vi de imediato que a perspicácia não levaria a nada - replicou Lavinia. - Preferi jogar com os seus nervos. A acreditar em Tobias, deixar um suspeito ansioso pode dar bons resultados.

Joan seguiu as senhoras com os olhos.

- Não sei se ficaram ansiosas, mas furiosas, lá isso ficaram.

- Só nos resta esperar que se descuidem e cometam um erro que nos forneça uma pista.

- Supondo que sejam efectivamente culpadas.

- Agora, que as conheci, estou convencida que não hesitariam em recrutar um assassino, se isso pudesse servir os seus intuitos.

- A verdade é que não deve ser agradável, alguém encontrar-se no seu caminho ou daquilo que elas possam planear - comentou Joan.

- Não tenho a menor dúvida - Lavinia olhou também para as duas mulheres que se afastavam devagar e reparou então nas suas volumosas perucas. - Meu Deus... - murmurou.

- O que foi? - Joan seguiu-lhe o olhar. - Passa-se alguma coisa?

- Os carrapitos!

Joan deitou uma olhadela aos dois postiços elegantemente penteados.

- São demasiado elaborados, é certo. Mas qual é o problema?

- São absolutamente iguais. Está a ver as pequenas fileiras de caracóis na parte superior e o modo como a parte inferior faz uma volta entrançada?

- Sim, e então?

Naquele momento, o som da música aumentou, a luz das árvores diminuiu como por magia e uma série de estalos e explosões anunciou o início do fogo de artifício. A multidão gritou de entusiasmo.

Uma chuva de centelhas de luz encheu a noite. A multidão soltou uma ovação. Um forte aplauso subiu no ar:

- O cabeleireiro - disse Lavinia.

- O quê? - perguntou Joan, levantando a voz. - Não consigo ouvi-la.

- Foi o mesmo cabeleireiro que lhes fez os carrapitos - respondeu Lavinia, levantando também ela a voz, para se fazer ouvir sobre a algazarra envolvente.

- Nada disso me surpreende. É evidente que os seus vestidos vêm da mesma modista. Já lhe tinha dito que Lady Huxford e Lady Ferring eram amigas inseparáveis. É lógico que tenham a mesma modista e o mesmo cabeleireiro.

- Não me fiz entender - disse Lavinia. - Quem as penteou acompanhava também a Mrs. Oakes na festa dos Beaumont. Ela tinha um carrapito exactamente igual, na noite do baile de máscaras. Ora, esse cabeleireiro explicou-me que se reconhecia a sua assinatura pela maneira como enrolava as madeixas.

- E o que deduz daí?

- Não está a ver? O cabeleireiro é o nosso Homem do Memento-Morí!

Tobias desceu os degraus da escada em dois grandes passos, vestindo um enorme casaco com a gola levantada sobre uma camisa escura e calças que lhe davam a aparência de um ladrão de estradas.

A carruagem de Joan Dove parou em frente à porta. Um criado de libré abriu imediatamente a porta e convidou-o a subir. Apesar da sua perna doente, Tobias nem esperou que ele lhe baixasse o degrau. Agarrou na pega do lado e içou-se para o interior mal iluminado da carruagem. Sentou-se no banco ao lado de Lavinia e olhou intrigado, primeiro para ela e depois para Joan.

- Mas que diabo se passa? - perguntou. - Preparava-me precisamente para ir fazer uma visita a Jack no Griphon. Parece que encontrou alguém que sabe qualquer coisa sobre Zachary Elland.

- Lavinia está convencida de ter identificado o assassino - declarou Joan.

Tobias desviou para Lavinia o seu olhar de salteador de estradas.

- Deduzo que tenhas descoberto algo útil em Vauxhall.

- Não vale a pena ficares tão espantado. Tinha-te dito que seria interessante interrogar Lady Huxford e Lady Ferring, e tinha razão. O cabeleireiro que estava com Lady Oakes, no castelo de Beaumont, é, muito provavelmente, o assassino a soldo que procuramos.

Tobias não recusou de imediato a hipótese. Mas, subentendeu Lavinia, era apenas porque necessitava urgentemente de arranjar uma pista.

- Estás a referir-te ao idiota que afirmou que os teus cabelos ruivos estão fora de moda? - perguntou cauteloso.

- Ultimamente não foi a única pessoa que mo disse, mas sim, estou a falar do Mr. Pierce. Não te lembras do carrapito que ele tinha imaginado para Lady Oakes? - Lavinia tocou na nuca. - Pequenos caracóis e uma trança? - Usou o dedo para fazer o desenho no ar. - Uma criação muito original.

- Não. Não tenho a mínima ideia do penteado de Lady Oakes.

- Olha, Tobias, eu reparei bem em Lady Huxford e em Lady Ferring e, esta noite, tinham carrapitos iguais ao que Lady Oakes usou no castelo de Beaumont.

- E então?

- Já te esqueceste da nossa conversa com o Mr. Cork e o Mr. Todd? Na altura explicaram-nos que um cabeleireiro elegante era um artista que se orgulhava em criar modelos únicos. O Mr. Todd afirmou mesmo que considerava um carrapito a sua assinatura.

Tobias lançou um olhar em direcção a Joan, como que em busca de ajuda. Mas esta limitou-se a encolher elegantemente os ombros.

- Tentei explicar-lhe que poderia tratar-se de uma simples coincidência - disse Joan. - Mas quanto mais penso no assunto, mais acho que ela tem razão. Há-de reconhecer que é estranho que o cabeleireiro, que criou os penteados das duas mulheres, que suspeitamos terem pago ao assassino, se encontrasse precisamente no castelo de Beaumont, na noite da morte de Fullerton.

Lavinia observou Tobias com toda a atenção. Via muito bem que ele ainda não estava completamente convencido, mas que estudava a teoria como possível.

- Isso explicaria muitas coisas - disse ela em tom persuasivo. Tobias franziu a testa.

- Referes-te à peruca loura?

- Sim. Um cabeleireiro saberia, melhor que ninguém, a influência que uma cabeleira loura teria nas eventuais testemunhas. Se o criminoso for o Mr. Pierce, também ficará explicada a altura da criada. A estatura do cabeleireiro não é de modo algum, notável para um homem, podemos dizer que era mais para o baixo.

Joan ajustou a luva.

- Isso justificaria também como velhas damas muito respeitáveis acabariam por de cruzar no caminho de um assassino profissional. Afinal, um cabeleireiro pratica a sua arte até no toucador de uma dama.

Tobias semicerrou os olhos.

- Se tiveres razão, as nossas três damas teriam comentado assuntos pessoais e confidenciais com o cabeleireiro.

- Pois bem, é isso mesmo - disse Lavinia. - O que é que tem de extraordinário?

- Não vais querer fazer-me acreditar que uma senhora iria confiar a um cabeleireiro segredos que nem confiaria à sua melhor amiga?

Lavinia trocou um olhar com Joan.

- É melhor explicar a verdade a este pobre homem, Lavinia - murmurou Joan.

- Que verdade é essa? - perguntou Tobias.

- Sei que vai ser um choque para os teus nervos, mas a maior parte das mulheres confia ao cabeleireiro segredos que não confia a mais ninguém. Há uma certa intimidade no arranjo do cabelo, percebes? Está-se a sós no quarto, com um homem que se ocupa em pentear-nos e encaracolar-nos o cabelo. É de facto muito agradável.

- Agradável?

- Ficamos a sós com um homem que discute connosco a moda e o estilo - acrescentou Joan. - Um homem que nos conta os últimos mexericos, que nos escuta com atenção. Sim, é bem possível que uma mulher possa conspirar um assassinato com um homem assim.

- Com mil diabos, eis um pensamento desconcertante - resmungou Tobias.

Lavinia e Joan trocaram um olhar de mútua compreensão. Como explicar a um homem as ligações que se podiam tecer entre um cabeleireiro e a sua cliente?

- Mas quem é que, no seu juízo perfeito, iria acreditar que um cabeleireiro seria capaz de cometer um assassínio a sangue frio sem se deixar apanhar? - insistiu Tobias. - Sem contar com que ele pudesse trair as clientes e denunciar quem lhe tivesse encomendado o crime?

- Duvido muito que alguém em posição de autoridade aceitasse a palavra de um simples cabeleireiro contra a de três respeitáveis senhoras, pertencentes à alta sociedade - fez notar Lavinia. - Para mais, como tu próprio salientaste, quem é que iria imaginar que mulheres que passam a vida em salas de visita de casas tão exclusivas, se pudessem cruzar com um assassino?

- Lady Huxford e as outras duas talvez nem saibam que Pierce seja o assassino - sugeriu Joan. - Provavelmente pensam que ele é um intermediário. Certamente que tudo foi feito com uma piscadela de olho e um aceno de cabeça. O Mr. Pierce disse-lhes que conhecia alguém que poderia tratar deste tipo de coisas. Duvido muito que ele próprio se apresentasse como assassino a soldo.

- E o pagamento? - perguntou Tobias. Joan fez um gesto com a mão.

- É muito fácil tratar de um pagamento anónimo.

Lavinia olhou para Tobias e percebeu que ele pensava o mesmo que ela. Como viúva de um homem que gerira uma vasta organização criminosa, Joan sabia sem dúvida, como se tratavam esses assuntos.

Tobias suspirou.

- Muito bem - disse Tobias, por fim. - Não posso negar a existência de coincidências e sabes o que eu penso das coincidências. Imaginemos que as duas têm razão e o Mr. Pierce esteja efectivamente ligado a este caso. Quanto a vós, como foi que ele conseguiu persuadir Lady Oakes a levá-lo à festa dos Beaumont? Acham que ela estava ao corrente do que se estava a tramar nessa noite?

- Pessoalmente, estou em crer que Lady Oakes não tem nada a ver com o plano para matar Fullerton - disse firmemente Joan. - É uma mulher encantadora mas, para dizer a verdade, não peca pela inteligência. Pierce não deve ter tido a mínima dificuldade em convencê-la de que os seus serviços eram indispensáveis naquele baile.

Fez-se silêncio no interior da carruagem.

Encostado ao assento, Tobias olhou fixamente a porta de entrada de sua casa, enquanto massajava distraidamente a coxa esquerda.

- Pode de facto parecer espantoso - disse, passado um momento. Mas não nego que, efectivamente, possa haver ligação entre Pierce, as suspeitas e, pelo menos, uma das vítimas. Resta saber se há possibilidades de estabelecer relação entre esse homem e as outras duas mortes. Vou ocupar-me disso a partir de amanhã.

Lavinia sentiu-se aliviada e vingada.

- Sabia que acabarias por ver que tenho razão. Era apenas uma questão de tempo.

- A tua confiança nas minhas capacidades intelectuais é muito gratificante - respondeu Tobias com ar lúgubre.

- E o que fazemos agora? - perguntou Joan, com curiosidade. Tobias virou-se para Lavinia.

- Guardaste o cartão de visita que Pierce te deu na noite do baile?

- Claro. Mora em Piper Street.

- Ainda não estou convencido de todo de que o cabeleireiro seja mesmo o Homem do Memento-rori - declarou Tobias. - Mas parece-me na verdade mais prudente mantê-lo debaixo de olho.

 

RINAVA UM AMBIENTE ELECTRIZANTE NA SALA DE JOGO DO clube. Da maioria dos jogadores irradiava um entusiasmo logo ocultado atrás da máscara necessária de um distinto aborrecimento, quando rolavam os dados ou era distribuída uma nova mão de cartas. As boas maneiras ordenavam que um distinto cavalheiro demonstrasse suprema indiferença quanto aos destinos da sorte. Mas, pensou Anthony, nada dissimulava o cheiro da transpiração e da ansiedade que se misturava com o fumo dos charutos. Era um odor que se fixava em toda a sala.

Era neste ambiente venenoso, de desespero febril que Edward Sinclair, seu pai, tinha escolhido passar os últimos anos de vida. E fora aquela atmosfera que o levara à morte.

Anthony deteve-se, à porta, por momentos, a ouvir o barulho dos dados, das garrafas e dos copos sobre as mesas de jogo. Não importava o que se bebia durante os jogos de azar. O resultado do lançamento dos dados estava nas mãos do destino, a menos que a gerência tivesse viciado secretamente os pequenos cubos. Mas não fazia sentido um jogador embriagar-se enquanto tentava usar a lógica numa partida de whist, pensou. No entanto era aquilo que quase todos eles decidiam fazer.

Com excepção de Dominic Hood.

Tal como os outros, este jogava whist com uma garrafa de Borgonha à mão. Mas Anthony reparou que não tocava no copo. Tinha uma pilha de papéis à frente: os comprovativos das dívidas contraídas por aqueles, que tinham perdido a jogar com ele.

Anthony observou-o, em busca de qualquer traço de família. Havia certamente semelhanças entre eles. O pai tinha-lhe deixado marcada a forma do nariz e a posição dos ombros. E, sobretudo, a cor dos olhos, pensou.

Até se espantou por nunca ter reparado que os olhos de Dominic eram do mesmo tom de castanho dourado que aqueles que todas as manhãs via no espelho.

A partida de whist terminou na mesa de Dominic. Dessa vez, apesar de toda a sua cautela em não tocar no vinho, Dominic perdera e tivera de apontar também a sua dívida num pedaço de papel. A sobriedade ajudava a manter a cabeça fria, mas não bastava para influenciar a sorte. Não bastavam a astúcia e um jogo lógico para compensar um jogo mau.

Dominic abandonou a mesa com um sorriso descuidado e um aceno de cabeça aos seus companheiros e dirigiu-se para a saída. Ao ver Anthony, fez um compasso de espera e em seguida, com os maxilares apertados, prosseguiu o caminho.

- Surpreende-me vê-lo por aqui esta noite - observou, ao passar por Anthony. - Pensava que evitava as mesas de jogo - esboçou um sorriso levemente trocista. - Sem dúvida com receio de perder.

O insulto atingiu o seu fim, mas Anthony sentiu-se orgulhoso por poder devolver o sorriso a Dominic.

- Tem sobretudo a ver com o meu receio de morrer estupidamente por causa de uma discussão motivada por uma partida de cartas - fez uma pausa deliberada. - Como aconteceu com o nosso pai.

Os olhos de Dominic traíram por breves instantes a sua emoção, mas recompôs-se depressa.

- Então, finalmente acabou por se aperceber! Levou tempo. Deveria pensar em mudar de profissão. É de supor que um detective privado demonstre perspicácia, não?

- Não tenho outra hipótese, senão manter este trabalho. Ao contrário do que acontece consigo, não tenho a possibilidade de me dedicar a experiências científicas durante o dia e a jogar às cartas à noite. Esse tipo de ociosidade é reservada aos que tiveram a sorte de herdar propriedades e um rendimento.

Dominic acenou afirmativamente.

- Retiro o que disse em relação à sua falta de sentido de observação, Sinclair. Não conheci o meu pai, mas é verdade que recebi uma herança. Isso significa que tenho mais do que o senhor para oferecer à menina Emeline.

Em seguida, deixou Anthony ali e afastou-se sem esperar resposta. Anthony ficou furioso.

- Com mil raios! - murmurou.

Alcançou Dominic no vestíbulo, onde o porteiro, sentindo a tensão a aumentar, se apressou a estender-lhes os chapéus antes de lhes abrir a porta.

- Afaste-se de Emeline - disse Anthony, furioso, do cimo dos degraus. Dominic imobilizou-se e deu meia volta sobre os calcanhares. À luz de um bico de gás, era visível que dificilmente conseguia conter a raiva.

- Porque é que havia de me privar da companhia dela, meu irmão? Anthony desceu a escada, cerrando os punhos.

- Porque não gosta dela. Procura simplesmente utilizá-la para se vingar de mim. Confesse, Hood.

- Não tenho intenção de discutir consigo o meu interesse sobre a menina Emeline.

- Santo Deus, nada disto tem a ver com Emeline, é a mim que quer destruir. Precisa de se esconder atrás das saias de uma mulher para se vingar?

- Raios, poderia desafiá-lo para um duelo por causa desse insulto.

- Esteja à vontade - replicou Anthony. - Mas, pelo menos, tenha a coragem de admitir porque razão me desafia. Pergunto-lhe mais uma vez: porque me odeia a esse ponto? Porque a sua mãe se deixou seduzir pelo nosso pai? Mesmo assim, não me pode considerar responsável por isso. Nem a ela. O único culpado foi Edward Sinclair. E está morto e enterrado há catorze anos.

- Vá para o diabo, Sinclair! - Dominic atirou fora o chapéu e lançou-se para diante. - Proíbo-o de falar na minha mãe. O seu pai desonrou-a.

Aplicando as lições de Tobias, Anthony deu um salto para o lado para se esquivar do soco do irmão. No entanto, não foi suficientemente rápido para evitar a colisão e os dois homens rolaram no chão duro. Tentou esquivar-se a uma série de socos às cegas, ao mesmo tempo que ripostava.

Na febre da primeira luta em que verdadeiramente participava, o cérebro de Anthony deixou de funcionar com lógica. De resto, Tobias tinha-o prevenido de que seria assim. Seria impossível pensar com clareza, impossível recordar as subtilezas da arte e da ciência das várias técnicas de pugilismo que tinham praticado juntos. Anthony batia-se por instinto e nem sequer sentia os golpes que Dominic lhe infligia.

Contudo, as lições do cunhado não tinham sido em vão, pois acabou por aplicar alguns bons socos nas costelas do adversário, e mais outro em pleno queixo. Sentia uma alegria selvagem correr-lhe nas veias, de cada vez que o adversário estremecia.

A zaragata absorvia-o tão completamente que não ouviu uma carruagem parar perto deles e só deu por que não estavam sozinhos quando sentiu, uma mão forte agarrá-lo pelo pescoço e puxá-lo violentamente para trás, separando-o do irmão. Caiu, depois, sem apoio, ao lado de Dominic.

Abriu os olhos, pestanejou para limpar o sangue que lhe obscurecia a visão e percebeu que se tratava de Tobias.

Uma carruagem castanha encontrava-se um pouco afastada. A Mrs. Lake e Joan Dove espreitavam com ar ansioso através do vidro. Anthony ficou aliviado ao constatar que Emeline não estava com elas.

Sentou-se prudentemente no passeio e limpou o fio de sangue que lhe corria da sobrancelha.

- Tobias? Que diabo fazes aqui? - murmurou.

De joelhos, junto a ele, Dominic massajava as costelas deitando olhares cautelosos a Tobias.

- Perdoem-me ter interrompido o vosso entretenimento desta noite, meus senhores - disse Tobias com frieza -, mas acontece que preciso de assistentes em bom estado. Pode haver uma vida em risco. Fico-vos portanto agradecido se deixarem a continuação deste pequeno exercício para outra vez.

Anthony levantou-se com dificuldade, agarrando-se a uma escada de ferro, para se apoiar.

- Que se passa? - perguntou, antes de se lembrar que a presença de Lavinia e Joan Dove em frente a um clube masculino, a uma hora tão tardia, teria obrigatoriamente uma grave justificação. - Encontraram o assassino?

- A Mrs. Lake pensa que talvez o tenhamos identificado - explicou Tobias. - Estou menos convencido do que ela, mas, seja ele quem for, não podemos correr o menor risco.

Virando a atenção para Dominic, Tobias prosseguiu:

- Proponho que nos organizemos na vigilância do nosso suspeito. E penso que dois homens valeriam mais do que um, no caso de ser necessário entrar em acção. Interessa-lhe?

Dominic levantou-se por sua vez, reprimindo um esgar de dor.

- Entrar em acção? - Dominic pôs-se de pé e estremecendo de novo. - Que quer o senhor dizer?

- Se a minha sócia tiver razão, esse homem é um assassino. E temos fortes razões para pensar que planeia cometer outros crimes. Se se aperceber de que está a ser seguido e se sentir encurralado, pode tornar-se muito perigoso. Será melhor que sejam dois homens a impedi-lo.

- Porque haveria de precisar de mim? - perguntou Dominic com um gesto zangado, tocando desajeitadamente no maxilar. - Já tem Sinclair como ajudante.

- Não posso monopolizar todo o meu tempo para espiar um potencial suspeito. A investigação tem de prosseguir. Aceita ajudar-me, Mr. Hood? Como lhe disse, uma vida pode estar em jogo.

Dominic deitou um olhar indecifrável a Anthony, antes de responder a Tobias.

- Pensa que na verdade ele possa matar de novo?

- É apenas uma questão de tempo. Ficar-lhe-ei pois bastante reconhecido se esta noite me ajudar a manter o nosso suspeito debaixo de olho.

- Devo poder permitir-me a dispensar um pouco de tempo a essa tarefa de vigilância - observou Dominic prudentemente.

- Obrigado - agradeceu-lhe Tobias. - Até aqui, todos os assassínios foram cometidos de noite, pelo que deduzo que o nosso assassino prefira agir na obscuridade. Por isso, durante o resto da noite, quero que ambos vigiem a sua residência. Não deixem que ele vos veja. Se sair de casa, sigam-no. Mas não interfiram, a menos que se prepare para cometer um acto de violência. Está claro?

- Quem é o suspeito? - quis saber Anthony, sentindo o sangue a ferver, não de fúria, mas de desejo de entrar em acção.

- Estava com medo que fizesses essa pergunta - respondeu Tobias.

- Vamos vigiar um maldito cabeleireiro? - perguntou Dominic, com um olhar céptico encoberto pela sombra, junto à porta da residência do Mr. Pierce. - Não consigo acreditar - murmurou. - Na tua opinião, como se arranja ele para matar as vítimas? Sufoca-as com as perucas?

- Tu é que decidiste ajudar Tobias neste caso - retorquiu Anthony. Ninguém te forçou a aceitar.

- March afirmou que havia uma vida em jogo. Não podia recusar. Mas confesso que é difícil imaginar um cabeleireiro na pele de um assassino a soldo.

- Pode ser precisamente por isso que foi bem sucedido até aqui - sugeriu Anthony. - Ninguém suspeita dele.

Dominic abanou pensativamente a cabeça.

- Não tinha encarado as coisas sob esse ângulo.

- Pareceu-me que Tobias também tinha algumas dúvidas - continuou Anthony. - Mas a experiência ensinou-lhe a nunca encarar com ligeireza a intuição da Mrs. Lake.

Continuaram a vigiar em silêncio a residência de Pierce. O luar e alguns candeeiros a gás iluminavam a rua estreita, envolvida na noite. Salvo um ou outro fiacre que passava de tempos a tempos, a rua estava deserta.

Anthony sentia o olho inchado e as dores nas costelas. Sem dúvida que de manhã, se iria levantar cheio de nódoas negras. Consolava-se a pensar que Dominic guardaria recordações idênticas da sua escaramuça.

- A Mrs. Lake é uma mulher de carácter - observou este último ao fim de momentos.

Anthony tentou sorrir, mas um golpe no lábio inferior impediu-o.

- É isso que Tobias diz muitas vezes. Mas geralmente não utiliza termos tão contidos.

Tapou o canto dos lábios com o lenço embebido em álcool que Lavinia lhe tinha dado. Dominic tinha também um. A Mrs. Lake insistira em pedir para que o porteiro do clube lhos trouxesse, antes de concordar em levá-los aos seus postos de observação.

Após uns instantes em silêncio, Anthony ouviu Dominic abrir um embrulho de empadas de carne que Lavinia tinha igualmente encomendado ao porteiro.

- É um pouco autoritária - comentou Dominic. - Mas estou-lhe agradecido por ter pensado nas empadas. Queres uma?

Anthony apercebeu-se de que estava esfomeado.

- De boa vontade.

Comeram sem conversar durante alguns minutos.

- Como era ele? - perguntou de repente Dominic, sacudindo as migalhas das mãos.

Anthony compreendera a quem o irmão se referia.

- Não me lembro bem, na verdade. Morreu pouco tempo depois de eu ter feito oito anos. A minha mãe morreu uns meses mais tarde. Ann e eu fomos viver com uns parentes durante uns meses.

- Mas pelo menos deves lembrar-te de alguma coisa? - insistiu Dominic em tom zangado. - Já tinhas mais de sete anos.

Anthony encolheu os ombros.

- O pai não passava muito tempo em casa. Vivíamos no campo, mas ele passava a maior parte do tempo em Londres. Preferia o jogo à vida em família. - Após uma pausa, acrescentou: - Ann deixou-me uma miniatura que está muito parecida.

- Descreve-mo.

- Amanhã mostro-te a miniatura. Parece-se com...

- Com quem?

- Connosco. Os mesmos olhos. O mesmo físico. O mesmo nariz.

- E o carácter dele? Era irascível? Gostava de rir? Era inteligente?

- Não o suficiente para evitar uma discussão de jogo, aparentemente. Quanto ao resto, penso que as mulheres o achavam encantador.

Dominic suspirou.

- Sim, acho que isso é verdade.

- Sobretudo, o que me recordo, é que fazia a minha mãe chorar muitas vezes. E que morreu sem nada nos deixar. Nem mesmo a casa em que morávamos. Tinha perdido tudo ao jogo.

- Só isso? Não te lembras mesmo de mais nada? Anthony sentiu de novo a cólera a subir por ele.

- Queres saber do que realmente me lembro? Lembro-me do homem que me criou até à idade adulta. Lembro-me que foi Tobias que me ensinou a jogar xadrez. Foi Tobias que pagou a um tutor para que eu não fosse obrigado a ir para um colégio interno depois da morte de Ann. Foi Tobias que me ofereceu a primeira navalha de barbear e me ensinou a servir-me dela. Foi Tobias que me ensinou o sentido da honra. Foi ainda Tobias que...

- Está bem - cortou Dominic, levantando a mão. - Compreendi. Anthony deu uma dentada na empada, antes de perguntar, por sua vez:

- E ele, como era? O que te tratou como filho? Dominic fixou os olhos na rua escura.

- Via-o mais como avô do que como pai. Sofria da gota e passava muito tempo sentado, com a perna em cima de um tamborete.

- Que mais? Dominic hesitou.

- Foi ele que me ofereceu o primeiro telescópio e me ensinou como ver a Lua. E me ensinou matemática. Foi ele que me levou à primeira conferência científica e que depois me comprou o equipamento para que eu pudesse realizar experiências simples de química.

- Tratava-te como filho?

- Sim. E, por minha parte, amava-o e respeitava-o como se fosse o meu próprio pai. Morreu quando eu tinha dezassete anos. Só descobri a verdade a seu respeito ao ler o diário íntimo da minha mãe, depois da morte dela. Se Bartholomew Hood sabia que não era filho dele, nunca mo fez sentir.

- Reflectindo bem, tivemos muita sorte - concluiu Anthony. - Fomos criados por homens de valor. Poderia ter sido pior.

Dominic emitiu um grunhido que poderia ser interpretado como um riso irónico.

- Queres dizer que podíamos ter caído nas mãos de alguém como o nosso pai? Nunca tinha visto as coisas dessa maneira. Mas talvez tenhas razão.

Lavinia serviu-se de um copo de xerez e foi sentar-se no cadeirão ao lado de Tobias. Ergueu os pés sobre o banquinho e contemplou o pequeno lume que ardia na lareira.

Eram quase duas da manhã e a casa estava em silêncio. A Mrs. Chilton e Emeline estavam já deitadas quando eles chegaram. Joan tinha proposto a Tobias deixá-lo em casa, mas este recusara sob o pretexto de que primeiro queria discutir com Lavinia os últimos desenvolvimentos do caso.

Lavinia lamentava agora não ter insistido com ele para que aproveitasse o carro da amiga. Por mais que se esforçasse por não deixar transparecer, estava visivelmente tenso e fatigado e ela apercebia-se disso pelo modo como massajava distraidamente a perna esquerda e ainda pelas rugas de tensão nos cantos dos olhos e na boca.

Sabia que Tobias não tinha dormido muito desde o regresso do castelo de Beaumont e este caso começava a pesar-lhe. Não lhe agradava pensar que voltaria sozinho para casa naquela noite, mas conhecia-o o suficiente para saber que não gostaria de a ter atrás dele a demonstrar a sua preocupação.

- Crês que foi sensato deixar Anthony e Dominic sós a vigiar Pierce? - perguntou ela. - Não receias que briguem de novo?

- Não penso que corram esse risco enquanto estiverem ocupados com a missão de vigiar Pierce - respondeu Tobias, bebendo um gole de brandy antes de acrescentar: - Com um pouco de sorte, a longa noite que os espera talvez os ajude a resolver os seus desentendimentos.

Lavinia sorriu e encostou a cabeça.

- Estou a ver... Bastante astucioso, o teu estratagema. Obriga-los a passar várias horas juntos e esperas que comecem a conversar um com o outro. Sim senhor, muito inteligente

Tobias contemplava o lume.

- Veremos.

- Como é que sabias que Dominic aceitaria ajudar-te, juntando-se a Anthony?

- Os jovens daquela idade adoram a acção e a valentia. Tinha a certeza que, pelo menos por uns tempos, a perspectiva de salvar uma vida e ajudar a capturar um assassino preocupá-lo-ia mais do que vingar a mãe. A menos que fosse um patife.

Lavinia observava o conteúdo do copo à luz das brasas.

- Pensas mesmo que a história da mãe esteja na origem do seu ressentimento contra Anthony? Que sente que deve vingar a memória dela por causa do que aconteceu há tantos anos?

- Sem dúvida que é um pouco mais complicado que isso. Também deve ter tido dificuldade em aceitar a ideia de que nunca ninguém lhe disse a verdade sobre o seu nascimento. A sua raiva é compreensível. E Anthony é o único parente vivo sobre quem a pode descarregar.

- Mas a vingança é impossível, neste caso. O pai de Anthony morreu há muito tempo. Dominic não tem nenhum meio de fazer justiça à mãe.

Tobias bebeu mais um trago de brandy.

- Os jovens raramente têm uma abordagem racional à vida. Preferem embriagar-se com ideais, com um sentido de honra demasiadamente refinado e com uma ideia apaixonada do que é o bem e o mal, e tudo isto interfere com a lógica e o bom senso.

- Talvez.

- Não há talvez - retorquiu Tobias. Encostou a cabeça às costas do cadeirão e fechou os olhos. - Tenho notado frequentemente em Anthony as mesmas tendências, por isso sei de que estou a falar. Preciso de encontrar maneira de os ensinar, a ambos, que não têm que carregar o fardo de velhos pecados.

Lavinia sorriu, pousou o copo e levantou-se. Tobias entreabriu os olhos e viu-a aproximar-se de si.

Ela ajoelhou-se no tapete, em frente ao cadeirão e pousou o braço sobre a sua coxa direita. As saias do vestido azul-alf azema amarrotaram-se em redor das suas pernas.

- Não estou certa de que Anthony e Dominic sejam os únicos a quem falta ponderação - observou Lavinia. - Também tu, Tobias, és um apaixonado que se alimenta de ideais e que tem um profundo sentido do bem e do mal. Não critiques muito duramente a maneira de ser dos outros. Entre tantas outras, é uma das razões para te amar do fundo do meu coração.

Surpresa - e paixão - leram-se-lhe por instantes, entre as pestanas.

- Lavinia...

Com um pequeno gemido sensual, Tobias atraiu-a bruscamente para os seus braços e apertou-a contra o peito. Cobriu os lábios dela com os seus, abraçou-a febrilmente. Ela restituiu-lhe o beijo com um ardor emocionado.

Pensara que ele estava à beira do esgotamento, mas quando os seus braços a apertaram e as suas mãos lhe começaram a acariciar os seios, compreendeu que se tinha enganado. Parecia até ter bebido um tónico revigorante em vez de brandy. Num espaço de poucos segundos a sua excitação foi completa.

Sentiu os dedos dele nas costas do vestido e, em poucos segundos, encontrava-se nua até à cintura. O polegar dele acariciava-lhe o mamilo. Lavinia sentia-se sufocada. Todavia, não era a primeira vez que ela lhe tocava daquela maneira, mas o efeito era sempre impressionante. Cortava-lhe a respiração.

O fato que ele escolhera para vestir naquela noite não tinha gravata. Deslizando as mãos por dentro da camisa, Lavinia deliciou-se, uma vez mais, ao sentir os músculos firmes do peito dele. Começou em seguida a desabotoar-lhe as calças e, sem hesitar, dobrou os dedos à volta do seu sexo. Tobias deixou escapar um gemido rouco e pousou a mão sobre a de Lavinia para lhe impedir as carícias.

Tobias levantou-se. Ela compreendeu que ele queria deitá-la diante da lareira para fazer amor com ela.

- Não - murmurou-lhe ela ao ouvido. - Esta noite, deixa-me fazer-te isto.

- Lavinia...

Fê-lo calar com um beijo antes de se pôr de joelhos no tapete entre as coxas dele, para o tomar na boca.

Submergido de prazer, Tobias enfiou as mãos na cabeleira da jovem.

Em poucos segundos, Lavinia sentiu os músculos das coxas retesarem-se. Uma vez mais, obrigou-a a parar.

- Não vou conseguir reter-me por mais tempo - murmurou ele. Ela libertou-o por um momento, segurando-o com os dedos.

- Não quero que te retenhas - respondeu.

tomou-o outra vez na boca. Ele largou-lhe os cabelos, agarrou-se ao espaldar do cadeirão, atirou a cabeça para trás, e todo o seu corpo ficou rígido, como que formando um arco.

Lavinia sentiu-lhe o clímax numa vaga formidável. Quase não fez ruído enquanto se abandonava completamente àquela libertação, como se tivesse perdido a energia para murmurar ou gemer.

Após alguns segundos, endireitou-se. Levantando a cabeça, Lavinia apercebeu-se que ele tinha fechado os olhos. Compreendeu que tinha adormecido.

Lavinia levantou-se lentamente e pegou-lhe na perna direita. Ele nem se mexeu quando ela ergueu um pé calçado para o colocar ao lado do outro no banquinho.

Foi buscar uma manta a um armário e tapou-o. Depois pôs mais uma acha na lareira e deixou a sala na ponta dos pés.

Saiu para o vestíbulo, fechou a porta atrás de si e subiu as escadas.

Minutos depois estava deitada na cama, sozinha na escuridão, olhando para as sombras do tecto. Durante muito tempo, pensou que Tobias estava a dormir lá em baixo no seu escritório, antes de finalmente conseguir voltar-se para o outro lado e adormecer.

 

DE MANHÃ TOBIAS FOI ACORDADO PELO RUÍDO DOS TACHOS. O seu primeiro pensamento foi que Whitby, fazia mais barulho do que o normal, lá em baixo na cozinha. O segundo pensamento foi que tinha dormido bem e que se sentia fresco e bem disposto. Era a sua primeira noite de autêntico sono desde o regresso do castelo de Beaumont e não era sem tempo. Já não tinha a idade de Anthony para passar noites seguidas em branco, sem sofrer as consequências.

Ah, os estragos do tempo...

Depois abriu os olhos e apercebeu-se dos livros de poesia alinhados nas prateleiras que rodeavam a lareira.

Estava no escritório de Lavinia.

Olhou pela janela e viu que a luz alegre da madrugada estival entrava no confortável aposento. E que o barulho dos tachos era provocado pela Mrs. Chilton na sua cozinha e não nos domínios de Whitby.

Vieram-lhe então à memória as agradáveis imagens do serão.

A lembrança de Lavinia ajoelhada entre as suas pernas fez-lhe despertar brutalmente o desejo.

Levantou os olhos para o tecto e tentou imaginar a sua sócia adormecida, no andar de cima, debaixo das cobertas, corada do sono, com os cabelos ruivos metidos numa bonita touca de renda.

Um novo barulho de tachos arrancou-o subitamente ao sonho. Aparentemente, a Mrs. Chilton tentava enviar-lhe uma mensagem. Soavam passos leves sobre a sua cabeça.

Foi então que pensou que Lavinia e a governanta não se encontravam sozinhas em casa. Emeline era uma jovem sensata, mas ficaria sem dúvida muito chocada se descobrisse que ele tinha passado a noite no

escritório da tia. A nova geração parecia ter assumido noções mais rígidas do que era ou não próprio. Só restava esperar que, com a idade, as ultrapassassem.

Tobias desembaraçou-se da manta que o cobria, levantou-se, espreguiçou-se e fez movimentar um pouco os ombros para se ver livre da rigidez causada por uma noite passada numa cadeira. Pensou utilizar em seguida as comodidades da pequena casa de banho situada atrás da escada, mas renunciou a isso. Não era de excluir que Emeline aparecesse no momento em que ele estivesse a sair de lá. As suas necessidades esperariam até encontrar um local retirado, num parque, a caminho de casa.

Com gestos decididos, repôs a ordem na sua roupa, metendo a fralda da camisa para dentro das calças e penteou-se com os dedos.

Depois abriu cuidadosamente a porta do escritório.

A Mrs. Chilton esperava-o no hall com uma chávena de chá na mão e uma expressão indecifrável no rosto.

- Pensei que gostaria de tomar alguma coisa antes de voltar para casa - disse bruscamente. - Aqui tem uma caneca de chá e um queque de passas para ir comendo pelo caminho. Pode até trazer a chávena quando vier tomar o pequeno-almoço.

- Mrs. Chilton, a senhora é um anjo - disse ele, antes de lhe tirar das mãos a caneca e o queque e de se dirigir à porta. - Até daqui a bocado.

- Não tenho qualquer dúvida.

A Mrs. Chilton seguiu-o e estendeu o braço para lhe abrir a porta, não sem antes ter dado uma olhadela em direcção à escada que levava ao andar de cima.

- Isto não se deve repetir, senhor - advertiu em voz baixa, semicerrando os olhos. - Há uma menina solteira nesta casa. Não pode ser.

- Bem sei, Mrs. Chilton - assegurou ele. Uma vez no patamar, acrescentou: - Promete ser um dia magnífico.

- Não vai durar muito tempo - previu a governanta. - Sinto que em breve haverá tempestade.

Fechou-lhe deliberadamente a porta na cara, embora o fizesse muito devagar.

Ele assoprou o chá, deu uma dentada no queque ainda quente e desceu os degraus.

Como se tivesse sido avisado, Tobias levantou espontaneamente a cabeça para as janelas do andar superior do número 7. Vestida com um deslumbrante roupão às flores e com uma bonita touca de renda a cobrir-lhe os cabelos, Lavinia observava-o da janela do quarto.

Sorriu-lhe e levou a ponta dos dedos aos lábios para lhe enviar um terno beijo. A Mrs. Chilton estava enganada: não haveria tempestade. Os pássaros chilreavam e o sol já brilhava no horizonte. Havia apenas algumas nuvens altas no céu azul.

Seria um dia muito bonito.

Duas horas mais tarde, o sol continuava a brilhar, quando a Mrs. Chilton começou a levantar a mesa do pequeno-almoço.

- Continuo na minha, que se está a formar uma tempestade - murmurou, ao passar junto a Tobias.

Lavinia levantou os olhos do jornal, a tempo de ver uma expressão dura no rosto da Mrs. Chilton.

- Se chover, não me vou queixar. Será bom para a alameda - respondeu Tobias servindo-se de mais compota de amora. - Parece que há pouco doce, Mrs. Chilton.

A governanta preparava-se para sair, com a bandeja na mão.

- Não, senhor - respondeu secamente. - Tenho mais três frascos cheios. Vai chegar para vários dias.

- Duvido - Tobias espalhou a compota sobre uma fatia de pão. Acabo com os três frascos num instante.

- Se fosse ao senhor, fazia-os durar - disse a Mrs. Chilton num tom cheio de intenções. - Não sei quando terei tempo de fazer mais.

E, dizendo isto, apressou-se a desaparecer na cozinha.

Tobias deu uma dentada na torrada.

Lavinia fez algum ruído com o jornal e olhou fixamente Tobias.

- Disseste ou fizeste alguma coisa que tivesse ofendido a Mrs. Chilton, quando chegaste para tomar o pequeno-almoço? - perguntou. - Está de péssimo humor, esta manhã.

- Também reparei - confirmou Emeline, servindo-se de uma chávena de café. - Embirra com tudo, não acham?

- Tobias, não admito que incomodes a minha governanta - avisou-o Lavinia. Ele adoptou um ar pretensamente inocente.

- Não sei do que estás a falar. Garanto-te que não disse nada de desagradável à Mrs. Chilton. Nunca pensaria em fazer tal coisa. De resto, sabes muito bem que a adoro.

- Hum...

Lavinia não estava inteiramente satisfeita mas, não sabendo o que mais acrescentar, refugiou-se atrás do jornal.

Efectivamente, estava intrigada com a estranha relação que se tinha estabelecido entre Tobias e a governanta ao longo de semanas. Era notório que a Mrs. Chilton demonstrava muita indulgência no que lhe dizia respeito. Quanto a Tobias, não parava de gabar em voz alta a cozinha dela, principalmente qualquer bolo que levasse passas. Poderia jurar que conspiravam os dois.

No entanto, as coisas tinham mudado depois do regresso do castelo de Beamont. A Mrs. Chilton já não era tão afável com Tobias. Era como se esperasse qualquer coisa dele, que não tinha chegado. Para dizer a verdade, parecia decepcionada.

Lavinia teve de súbito um mau pressentimento. Fechou bruscamente o jornal.

- Tobias, espero que não tenhas tido a ideia de me roubar a Mrs. Chilton?

Ele pareceu sinceramente surpreendido com tal acusação.

- Isso nunca me viria à cabeça - replicou, mastigando um bocado de queque barrado de compota. - Whitby não me perdoaria se introduzisse uma governanta nos seus domínios.

Emeline soltou uma gargalhada:

- Não te preocupes, Lavinia. Estou convencida que a Mrs. Chilton não tem a menor vontade de te deixar.

- Huumm... - resmungou Lavinia, voltando a pegar no jornal, ainda com mais desconfianças. Havia qualquer coisa que não estava bem, disso não tinha dúvidas.

Pois se a Mrs. Chilton estava de mau humor naquela manhã, Tobias, em contrapartida, parecia bastante optimista para alguém que tinha um assassinato para resolver. Quando uma hora atrás aparecera à sua porta, havia tomado banho e estava bem barbeado. Uma determinação renovada cintilava-lhe nos olhos. Claro que tudo o que lhe fazia falta era uma boa-noite de sono.

- Sabem - disse Emeline, retomando o fio da conversa que estavam os três a ter e que tinha sido interrompida pela pequena escaramuça da Mrs. Chilton com Tobias -, não fiquei nada surpreendida ao saber que o Mr. Hood é meio-irmão de Anthony. Isso explica certas semelhanças entre eles, em que eu já tinha reparado.

- Com efeito - confirmou Tobias.

- Precisa da minha ajuda hoje? - perguntou a rapariga, cheia de esperanças.

- Creio que não - respondeu Tobias.

Emeline parecia tão desapontada, que este lhe perguntou:

- Porquê?

- Oh, por nada! É que Priscilla me mandou um recado esta manhã praticamente implorando-me que passasse por casa dela precisamente esta tarde. Deduzi que a mãe marcou alguma entrevista com uma costureira e ela não quer enfrentar a prova sozinha.

Lavinia desatou a rir.

- Lady Wortham vai querer, sem dúvida, acrescentar um pouco de rosa nas roupas da filha.

- É de desconfiar. Priscilla diz que a única boa razão para se casar é que a mãe já não poderá obrigá-la a vestir de cor-de-rosa.

Lavinia virou-se para Tobias.

- Qual é o teu programa para hoje?

- Tenho de arranjar provas do envolvimento de Pierce neste caso. Tenciono revistar-lhe a casa esta tarde, enquanto ele for atender as clientes - o rosto de Tobias endureceu. - Se é que ele é verdadeiramente um cabeleireiro.

- Tenho a certeza que é - afirmou Lavinia. - Como te disse, é muito hábil na sua profissão. Deve ter muitas clientes habituais.

Nesse momento, ouviram bater à porta. Os passos pesados da Mrs. Chilton ressoaram no vestíbulo. Emeline dobrou o guardanapo.

- Quem será, tão cedo? Um cliente novo para ti, Lavinia?

- Receio bem que seja antes uma velha cliente a perguntar sobre os nossos progressos - resmungou a tia.

Tobias sorriu, divertido.

- Os clientes gostam de estar bem informados.

Um sussurro de vozes fez-se ouvir na entrada. Dois segundos depois, a Mrs. Chilton apareceu na sala do pequeno-almoço.

- A Mrs. Gray deseja vê-la, minha senhora. E também ao Mr. March Lavinia suspirou.

- Eu não disse? Pelo menos, temos novidades para lhe dar. Tobias bebeu mais um gole de café e levantou-se.

- Apenas faltam as provas.

Nessa tarde, pouco depois das duas, Lavinia e Tobias estavam em frente ao salão de Pierce. Por sorte, as previsões meteorológicas da Mrs. Chilton ainda não se tinham concretizado, e assim não foram obrigados a fazer a sua introdução clandestina com os sapatos molhados e os fatos a pingar. As cortinas estavam corridas, tapando o sol da tarde. As longas sombras ocultavam o espaço pequeno e arrumado.

Cinco minutos antes, o rapazito a quem Tobias tinha oferecido uma moeda para vigiar a casa, enquanto Anthony e Dominic recuperavam da noite em branco, tinha corrido ofegante à pequena praça onde Tobias e Lavinia esperavam. Disse-lhes que acabava justamente de ver Pierce sair de casa com a sua mala de mão. A criada da casa ao lado tinha-lhe dito que ele saía sempre àquela hora e nunca voltava antes das cinco.

- Porque é que ela sabe das idas e vindas de Pierce? - perguntou Tobias, procurando no bolso uma moeda de prata para pagar ao seu pequeno espião.

- Acho que está apaixonada por ele - o rapaz guardou as moedas. Não se preocupe, vou continuar a vigiar, ali da esquina. Se ele voltar antes do previsto, avisá-los-ei atirando um punhado de cascalho aos vidros.

Lavinia apercebia-se da sua extrema emoção que lhe provocava um aperto no estômago e a pulsação acelerada. Gostaria de saber se os agentes profissionais alguma vez se habituariam ao entusiasmo inerente ao facto de se estar perto de encontrar as respostas.

Sentia a antecipação muito controlada que emanava de Tobias e sabia que as suas emoções eram semelhantes. Talvez que a previsão impetuosa fosse mais um elixir para quem trabalhava naquele ramo.

- Fico com o quarto? - sugeriu ela.

- Sim. Não te esqueças do guarda-fatos - recomendou-lhe Tobias, enquanto abria um armário. - E não percas tempo. Não gosto de fazer estas coisas durante o dia.

- Conheço bem as tuas preferências - dirigiu-se ao pequeno quarto e começou a inspeccionar as gavetas da mesa-de-cabeceira. - Seria bom demais encontrar uma peruca loura e vestidos de mulher.

- Quem sabe? Forçosamente, escondeu essa maldita peruca loura em qualquer lado. E depois, já é tempo da sorte rodar um pouco a nosso favor.

- Estou plenamente de acordo - disse Lavinia, fechando a última gaveta e ajoelhando-se para espreitar debaixo da cama. - Não reparaste que Aspasia parecia duvidar das nossas conclusões? Se não tivesses estado lá para apoiar as minhas palavras, penso que, pura e simplesmente, me teria despedido.

Aspasia parecera incrédula quando Lavinia lhe explicara que o Mr. Pierce era o presumível assassino. Não se tinha deixado convencer até Tobias lhe haver confirmado que partilhava as suspeitas da sócia, sobre a culpabilidade do cabeleireiro.

- Tinha todas as razões para ficar estupefacta - disse Tobias do outro aposento. - Eu próprio, ainda não me conformei. No entanto, na minha carreira, cruzei-me com muitos criminosos. E de todas as espécies. Mas é a primeira vez que suspeito verdadeiramente de um cabeleireiro.

Lavinia acabava de abrir o guarda-fatos, que transbordava de camisas e gravatas muito bem engomadas.

- Garanto que é uma excelente capa para alguém que pretenda chegar junto da alta sociedade. Um bom cabeleireiro é convidado para as melhores casas e ninguém pensa duas vezes antes de o deixar entrar no quarto de uma dama.

- Ocorreu-me agora que um maldito cabeleireiro pode entrar no teu quarto com maior facilidade do que eu - resmungou Tobias. - Eu tenho de conspirar, de fazer planos e de esperar até que Priscilla vá visitar Emeline e que a Mrs. Chilton vá às suas compras.

- Não é bem a mesma coisa, Tobias.

- Talvez, mas é terrivelmente injusto. E na verdade muito inconveniente. Por outro lado, desde há pouco que queria falar contigo sobre isso.

A mão da jovem crispou-se no puxador da porta do guarda-fatos. Reprimiu um suspiro e depois esperou, quase se esquecendo de respirar. Houve um silêncio; em seguida Tobias murmurou:

- Ora, ora, ora...

Lavinia respirou fundo. Os dedos distenderam-se-lhe sobre o puxador, mas não era capaz de dizer o que tinha sentido durante um curto momento. Alívio? Decepção?

Mas na verdade, o que esperava? Tobias nunca lhe iria falar de casamento, no meio de uma busca em casa de um suspeito!

A jovem aproximou-se da porta e viu que ele tinha levantado o tapete e que observava o soalho com grande atenção.

- Encontraste alguma coisa? - Perguntou em voz baixa.

- Talvez.

Tirou uma das suas gazuas do saco de cabedal e introduziu-a na longa racha que separava duas tábuas do soalho.

- Tenho a impressão que há um esconderijo aqui por baixo - experimentou com a gazua. - O que não me espantaria nada. Foi também debaixo do tapete do escritório que Zachary Elland tinha dissimulado o cofre em que Aspasia encontrou o diário dele e os anéis. Talvez este Homem do Memento-Mori o queira imitar até aos mínimos pormenores.

- Mas como é que ele pode saber tantas coisas sobre Zachary Elland, Tobias? Os anéis, o estilo das mortes e agora o esconderijo... É mesmo estranho. Devia conhecê-lo muito bem.

- É precisamente sobre essa teoria que estou a trabalhar - Tobias tentou com mais força. - Jack conseguiu-me um encontro com uma pessoa que talvez tenha coisas para me dizer sobre o passado de Zachary.

Ela ouviu um estalido e depois uma secção das tábuas ergueu-se.

- Meu Deus - Lavinia ajoelhou-se imediatamente no chão para poderem espreitar ambos para dentro do espaço que tinham descoberto.

- Vazio - anunciou Tobias, sem conseguir dissimular a decepção.

Voltou a colocar a ripa no lugar, depois o tapete e levantou-se, procurando com os olhos outro possível esconderijo, como se fosse um falcão em busca da presa.

- O que devia estar ali?

- Os seus livros de contas. Expliquei-te como Elland tinha cabeça para o negócio. Registava por escrito a mínima transacção.

- Não te esqueças, Tobias - disse ela calmamente - que embora se possam ter conhecido não é com ele que estamos a tratar. Não temos razões para pensar que aja em tudo da mesma maneira que ele.

- Não concordo. Quanto mais tento desfazer este nó górdio, mais me convenço que a pista mais importante reside nas semelhanças entre os métodos de Zachary e os no novo assassino. Leva a crer que estudaram os golpes em conjunto.

- Ou que talvez um tenha ensinado o outro - sugeriu Lavinia, nervosa.

- Precisamente.

Tobias olhou para um pequeno espaço entre a escrivaninha e a parede. A sua expressão irritada deu a perceber a Lavinia que nada havia ali. Reparando numa mesinha, a um canto, Tobias aproximou-se dela e abriu a gaveta.

- Eu sabia! - exclamou em tom triunfante bramindo um caderno encadernado a couro.

- O que encontraste aí? - Lavinia juntou-se-lhe e ambos examinaram o conteúdo do livro. Havia nomes, datas e horas escritos numa determinada ordem.

- Parece mais uma agenda de compromissos do que um livro de contas - observou Lavinia.

Tobias continuou a folhear o caderno.

- Tens razão. É aqui que ele anota as visitas aos clientes. Mas talvez também tivesse anotado o nome de quem o contrata para matar.

- Duvido que Pierce se mostre tão imprudente. Acima de tudo, é um profissional.

Tobias tirou um papel e um lápis do bolso e começou a escrever os nomes das clientes mais recentes.

- Não vale a pena recordares-mo. O que quer que seja, é melhor que nada. Pelo menos, ficamos com uma ideia de como vai empregar o tempo, nos próximos dias. Pode revelar-se útil.

Lavinia analisou detalhadamente a lista de nomes. Saltou-lhe aos olhos um.

- Lady Huxford! Repara, tinha um encontro com ele no dia três. Quinze dias antes da morte da festa no castelo de Beaumont.

- O que vem provar que Lady Huxford e Pierce se conhecem, mas isso já nós sabíamos depois da tua ida a Vauxhall. Pergunto-me se nós...

- Tobias voltou a página e ficou imóvel - Raios!

- O que foi?

Tobias apontou um nome com o dedo.

- A cliente desta tarde.

Lavinia viu por sua vez e sentiu gelar-se-lhe o sangue.

- Meu Deus! Ele está em casa de Lady Wortham! Foi arranjar o cabelo de Priscilla. Era esse o compromisso aborrecido que Priscilla não queria suportar sozinha.

- Preparemo-nos para o pior - murmurou Tobias. - Não pode ser coincidência. É evidente que Pierce está ao corrente da amizade entre Priscilla e Emeline e portanto da sua ligação contigo. Sem dúvida marcou este encontro com intenção de interrogar a melhor amiga da tua sobrinha para tentar saber em que ponto estamos nesta investigação.

 

- QUERIDA MENINA PRISCILLA, NÃO PODEMOS FUGIR À NATUREZA declarou Pierce cruzando o olhar com a jovem cliente através do espelho do toucador. - É decididamente loura.

Priscilla corou.

- Tenho plena consciência de que não é uma cor que esteja na moda.

Sentada a alguma distância da amiga, um pouco afastada do toucador, Emeline tinha a impressão de ter um papel numa estranha peça de pesadelo. Para grande alívio seu, Priscilla desempenhava o seu papel às mil maravilhas.

Tinham tido menos de dez minutos para se prepararem.

Chegada a casa da amiga, Emeline soubera que Lady Wortham tinha marcado um encontro com um cabeleireiro. Podia ter pensado que se tratasse de mera coincidência, mas desde que trabalhava para a firma Lake & March, aprendera a desconfiar das coincidências. Apressara-se a pôr Priscilla ao corrente dos últimos desenvolvimentos da investigação. Esta tinha decidido então deixar a mãe de fora de tudo aquilo, pois corria o risco de a ver enlouquecer se soubesse que tinha chamado um assassino para pentear a filha.

Quando o Mr. Pierce chegou à porta com o seu estojo de couro, cheio de pentes, ferros de frisar, papelotes, tesouras e postiços, Priscilla recebeu-o com um aprumo digno de admiração.

Instalara-se diante do toucador, com um penteador imaculado pelas costas e abandonara-se às mãos deste cabeleireiro assassino como se fosse a coisa mais natural do mundo.

Comportava-se mesmo com tanta naturalidade e tanto entusiasmo que Emeline chegou a perguntar-se se ela não se estaria a divertir. O facto

de Pierce ser um belo homem - e muito elegante, com a fita negra atada ao pescoço e os caracóis descuidados - talvez facilitasse as coisas.

Emeline tinha de admitir que era na verdade muito difícil imaginá-lo como um assassino a soldo.

A Mrs. Wortham, sentada do outro lado do toucador, nem por sombras suspeitava que o homem que empunhava a enorme tesoura nas vizinhanças da garganta da filha, teria provavelmente matado pelo menos três pessoas no decurso nos últimos meses.

- Acha que deveríamos pintar os cabelos de Priscilla de um tom mais escuro, Mr. Pierce? - arriscou, com uma ponta de ansiedade na voz.

- Pintá-los? - protestou Pierce. - Esqueça essa ideia, minha senhora - acrescentou, exibindo entre os dedos uma madeixa de cabelos de Priscilla como o faria um mágico. - É ouro puro, minha senhora. Seria um crime contra a natureza alterar com tinta semelhante colorido. - Bateu com o pente contra a borda do toucador e olhou para a imagem de Priscilla no espelho. - Proíbo-a terminantemente de recorrer à hena. Está entendido?

- Sim, senhor Pierce - concordou Lady Wortham, abanando-se nervosamente com o leque. - Mas se acha que ela não deve pintar o cabelo, o que sugere então? Uma peruca?

- Está fora de questão numa pessoa tão jovem. Seria uma vergonha colocar uma cabeleira que lhe estragaria a frescura da pele e a perfeição do seu perfil clássico. - O Mr. Pierce fez uma profunda vénia a Lady Wortham: - Que, aliás, herdou da senhora.

Lady Wortham ficou por um instante de boca aberta. Emeline teve mesmo a surpresa de a ver corar ligeiramente.

- Está bem, Mr. Pierce, obrigada - disse por fim, abanando-se com um requebro de energia. - Atrevo-me a dizer que na minha juventude, nunca me faltaram pares num baile. E Priscilla parece-se comigo... - aclarou a garganta. - Salvo no que diz respeito ao cabelo, que, aliás, herdou do pai.

- Com efeito. Pois bem, como lhe dizia, tento não aconselhar perucas às minhas jovens clientes, a menos que não haja outra alternativa - o Mr. Pierce fez uma pausa para dar ênfase ao que acabara de dizer. - Ora, por sorte, temos uma alternativa. E informo que é fabulosa.

Houve um silêncio sufocado. Emeline apercebeu-se que, não obstante a intolerável tensão, sob a qual ela e Priscilla se encontravam, estavam tão curiosas quanto Lady Wortham para ouvir a proposta de Pierce.

- Qual é a alternativa, Mr. Pierce? - apressou-se a perguntar Lady Wortham.

Pierce semicerrou os olhos como se estivesse a espreitar pelo cano de uma arma.

- Uma vez que não podemos fazer com que a sua filha siga a moda, inverteremos as coisas. Vamos transformá-la, a fim de que seja ela, com o seu estilo, a inspirar a moda.

Lady Wortham parecia prestes a desmaiar.

- Meu Deus... ser ela a inspirar a moda.

- Confie em mim, minha senhora. Estudei a minha arte em Paris e sei do que estou a falar - assentou Pierce.

Remexeu na mala, e tirou de lá ganchos e papelotes.

- Mas antes de fazer qualquer coisa - continuou - quero a vossa palavra de que a minha criação nunca mais será enquadrada a cor-de-rosa.

Lady Wortham retesou-se com a boca e os olhos muito abertos. Ficara praticamente sem palavras.

Pierce pegou na tesoura e fixou nela um olhar severo.

- Calculo que a menina Priscilla tenha no seu guarda-vestidos roupas de outra cor. Não anda com certeza permanentemente vestida nesse ridículo tom.

Priscilla emitiu um pequeno ruído abafado e pegou na chávena de chá que estava colocada sobre o toucador. Emeline trocou um olhar com ela através do espelho. Nem uma nem outra ousaram falar.

Lady Wortham pigarreou.

- Acho que o rosa é muito próprio para uma jovem da idade e com o aspecto físico da minha filha.

Pierce começou a manejar a tesoura, não sem antes deixar escapar um suspiro.

- Permita-me que lhe diga, minha senhora, que qualquer vestido cor-de-rosa, associado a uma cabeleira tão loura, não deixa de fazer lembrar um bolo de creme coberto de chantilly. Um cavalheiro olha para um bolo assim e pensa: ”Olha, olha que petisco. Se estiver disponível vou servir-me de uma ou duas dentadinhas e depois não como mais.”

Lady Wortham estava à beira da apoplexia.

- A minha filha? Um bolo de creme? Que ousadia!

- Um bolo de creme não pode ser elegante, nem ter estilo. Não deixa uma impressão duradoura ao gosto - prosseguiu Pierce, continuando a trabalhar, sem se preocupar com a expressão escandalizada de Lady Wortham. - Em contrapartida, estou convencido que cores mais fortes,

verde-esmeralda, por exemplo, ou azul-safira, já não dariam à menina Priscilla o aspecto de um bolo de creme.

- Ficaria com aspecto de quê? - quis saber Lady Wortham, espantada.

- De deusa.

Lady Wortham pestanejou.

- Deusa? A minha Priscilla?

Pierce cruzou os olhos com a jovem através do espelho.

- Tem esse tipo de roupa no seu guarda-vestidos, menina? Se não, aconselho-a a procurar a sua modista o mais depressa possível.

- Bem - começou Priscilla - há o novo vestido de passeio que a tia Beatrice me ofereceu pelo meu aniversário.

- Sinceramente, não penso que seja adequado à minha filha - opinou Lady Wortham, que, no entanto, parecia menos segura de si. - Beatrice encomendou-o sem me pedir opinião.

- Mostre-mo - ordenou Pierce. Emeline saltou da cadeira.

- Eu vou buscá-lo! - propôs. - Acho-o fantástico Abriu o guarda-vestidos e tirou o vestido em questão.

As três mulheres olharam a peça de roupa turquesa esperando o veredicto de Pierce.

- Perfeito - declarou este, fazendo uma profunda vénia diante de Priscilla. - Absolutamente perfeito. Fique com a certeza, minha senhora

- acrescentou em direcção a Lady Wortham - que os, cavalheiros se arrojarão aos pés da sua filha. E bater-se-ão para a conduzir ao altar.

Um pouco mais tarde, Lady Wortham contemplava a filha, estupefacta.

- É incrível! - exclamou. - O resultado é espectacular. Nunca teria imaginado que um penteado tão simples se pudesse revelar tão elegante.

Pierce ajeitou o cabelo alisado de Priscilla com orgulho profissional.

- A simplicidade é a essência da elegância, minha senhora. Emeline não estava menos estupefacta que Lady Wortham. Pierce tinha desafiado a moda actual dos complicados rolos entrançados e de uma profusão de caracóis na testa e nas têmporas. Resolvera libertar o rosto de Priscilla e apenas com a ajuda de uns ganchos enrolara-lhe os cabelos num gracioso carrapito, acentuando-lhe assim o pescoço e o perfil. Apenas umas pequenas madeixas lhe dançavam junto às orelhas.

Emeline sempre considerara a amiga deslumbrante, mas presentemente havia nela uma segurança e um mistério que não existiam antes.

- Priscilla, estás esplendorosa - murmurou.

A amiga corou, mas parecia não poder desviar os olhos do seu reflexo no espelho.

- Gostas?

- Sem sombra de dúvida. Estou desejosa de te ver com o vestido novo. Pierce virou-se para Emeline.

- Estou arrebatado por lhe ter agradado, menina Emeline. Tenho uma hora pela frente antes da minha próxima visita. Quer que a penteie também? Julgo que posso melhorar o seu estilo. Não que este seja pouco atraente, muito pelo contrário. Mas está demasiado à moda, decerto me faço compreender. Ficar-lhe-ia bem um género mais original.

- Oh, não queria abusar do seu tempo, nem da hospitalidade de Lady Wortham - respondeu apressadamente Emeline, sem deixar de ter pena.

Pierce talvez fosse um assassino, mas não se lhe podia negar o talento em matéria de penteados. Teria sido tão divertido descobrir naquilo que ele a podia transformar

Priscilla abandonou o toucador.

- Mas sim, Emeline, deixa-o pentear-te. A mamã não porá qualquer objecção.

- Claro que não - confirmou Lady Wortham, magnânima. - É fascinante ver o Mr. Pierce a trabalhar. Sinto-me nas proximidades de um grande talento.

Por fim, Emeline acedeu a sentar-se em frente ao toucador.

- Muito obrigada.

Pierce sacudiu o penteador branco e pôs-lho sobre os ombros. Depois muniu-se da escova e olhou para a jovem através do espelho.

- Sim já sei o que hei-de fazer aqui. É um autêntico prazer pentear jovens preocupadas com a última moda - assegurou. - A maior parte das minhas clientes são nitidamente mais velhas e insistem em usar os penteados mais complicados do passado, os que foram desenhados para aquelas cabeleiras postiças altíssimas, que estavam em moda na sua juventude.

- Devo admitir que me lembro bem deles - disse Lady Wortham. Pareciam muito elegantes no salão de baile, mas eram muito quentes e pesados.

Com movimentos rápidos, o Mr. Pierce retirou os ganchos que prendiam o cabelo de Emeline.

- Como ia dizendo, geralmente trabalho para clientes mais velhas. Mas é muito mais agradável trabalhar nas cabeças jovens. Diga-me, menina Emeline, a sua tia disse-lhe que nos conhecemos no castelo de Beaumont?

Emeline sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias. Pelo canto do olho, viu Priscilla ficar tensa. Sem se aperceber de nada, Lady Wortham serviu o chá. Esforçou-se por se controlar.

- Com efeito contou-me que tinha encontrado um cabeleireiro que lhe tinha dito que os seus cabelos ruivos não estavam na moda, mas não se lembrava do nome dele.

Pierce pareceu muito humilhado.

- Tinha-lhe dado o meu cartão.

- Deve tê-lo perdido - alvitrou Emeline.

- O que não é nada de espantar; ela e o amigo, o Mr. March, estavam bastante preocupados nesse momento. Pareciam convencidos de que a morte de Lorde Fullerton não fora um acidente. E tentavam prová-lo.

- Não foi um acidente? - repetiu Lady Wortham, estupefacta. Nunca ouvi nada disso sobre a morte de Fullerton.

- Porque a minha tia e o Mr. March não conseguiram encontrar qualquer prova de assassínio - explicou Emeline. - De qualquer maneira, Lorde Beaumont recusou que se levasse a cabo uma investigação debaixo do seu tecto.

- Por conseguinte, as suas pesquisas não deram em nada? - perguntou Priscilla, num tom completamente inocente.

- Receio que não - confirmou Emeline. - É difícil investigar um caso de assassinato quando ninguém acredita que ele tenha acontecido.

- Fascinante - Pierce fez uma pausa e olhou-a com grande interesse. - E aqui na cidade, fizeram progressos?

- Nada. O Mr. March está bastante contrariado. A minha tia pensa que estão a perder tempo. Gostaria de o convencer a renunciar àquele caso - acrescentou com orgulho, esta última mentira.

- Acredita que ela vai conseguir? - perguntou Pierce, em tom indiferente.,

- Oh, sim - assegurou Emeline, antes de lançar a mentira final a meia voz: - A família Fullerton não quer sequer ouvir falar do inquérito. A minha tia acha ridículo perder tempo com um caso para o qual não há clientes e acha que ela e o Mr. March deveriam voltar as atenções para outras coisas.

- Sem a querer ofender, minha cara Emeline - interveio Lady Wortham em tom reprovador -, devo confessar-lhe que acho o novo passatempo da sua tia, no mínimo, estranho.

Emeline interrogou-se sobre como reagiria Lavinia se lhe contasse que Lady Wortham considerava o trabalho dela como um passatempo.

- Imagino que uma mulher inteligente com a Mrs. Lake encontre nesse trabalho um desafio interessante - interveio Pierce.

Emeline sentiu os cabelos porem-se-lhe de pé. Rezou aos céus para que Pierce não se apercebesse disso.

 

EMELINE E PRISCILLA ENTRARAM JUNTAS NO PARQUE, ONDE tinham combinado encontrar-se com Anthony e Dominic. Tinham aberto as sombrinhas para se protegerem do sol, mas não levavam chapéu, a fim de mostrarem os seus novos penteados.

- Tenho o coração a bater com toda a força - confiou Emeline. Será que não vou conseguir acalmar-me?

- Ainda estou a tremer - retorquiu Priscilla. - Cada vez que olhava para ele no espelho, via-lhe a tesoura na mão e pensava nas pessoas que provavelmente matou.

- A partir de agora, nunca mais verei um cabeleireiro com os mesmos olhos.

- Nem eu. Mas que pena que o Mr. Pierce seja um assassino! Estarei eternamente em dívida para com ele. Numa tarde, mudou toda a minha vida, ao convencer a minha mãe de que o rosa não me fica bem.

Emeline deitou uma vista de olhos à amiga, que trazia o vestido turquesa.

- Ele tinha razão. As cores fortes de facto valorizam-te.

- Obrigada - agradeceu Priscilla. - Que tarde, não achas? Penso que nos saímos bastante bem com Pierce. Até parece que nascemos para o teatro.

- Não sugiras uma carreira tão escandalosa diante da tua mãe. Desmaiaria de imediato. Quanto ao resto, tens razão: fizemos-lhe frente. Aliás, mostraste-te particularmente brilhante.

- O elogio é também para ti. Pierce talvez não tivesse acreditado que a Mrs. Lake e o Mr. March iam renunciar à investigação por falta de clientes, mas estou convencida que partiu com a sensação de que eles não tinham progredido um passo.

Emeline não conseguiu reter um estremecimento.

- Assim o espero. Vais ver quando eu contar a nossa tarde à minha tia e ao Mr. March! Não vão acreditar nos seus ouvidos.

- É evidente que ele tinha programado este encontro com a minha mãe na esperança de saber qualquer coisa pela minha boca - assegurou Priscilla. - Deve ter ficado satisfeito por estares lá - interrompeu-se e sorriu. - Ah, aí estão Anthony e Dominic! Confesso que fiquei tão estupefacta ao saber que eram meio-irmãos como quando vi o Mr. Pierce no hall.

- Suponho que é precisamente esse laço familiar que justificava as fricções entre eles - salientou Emeline, enquanto os dois jovens vinham ao encontro delas. - Espero que tenham conseguido superar o diferendo, agora que já se conhece a verdade.

Priscilla crispou a mão sobre a sombrinha.

- Emeline - disse com desinteresse estudado -, achas que o Mr. Hood gostará do meu novo penteado? E do meu vestido?

- Priscilla, tu és irresistível. Ele vai arrastar-se aos teus pés, exactamente como o Mr. Pierce previu.

Priscilla fez uma careta.

- Preferia que me ensinasse a servir-me do microscópio.

Anthony e Dominic estavam quase junto delas. Emeline apercebeu-se então que caminhavam a grandes passadas e que o vestuário deles não era tão cuidado como o habitual. Não estavam vestidos para um passeio no parque, durante a tarde. Tinham as botas por engraxar e os casacos pareciam aqueles que o Mr. March tanto gostava. Até as gravatas pareciam postas à pressa. Nenhum dos cavalheiros se preocupara com o nó.

- Há qualquer coisa que não está bem - sussurrou à amiga. Anthony e Dominic pararam diante delas.

- O que estão a fazer aqui? - perguntou Dominic, sem ao menos ter feito um aceno de cabeça para as cumprimentar. Tinha o chapéu sobre os olhos, o que lhe dava um ar sinistro. - Estão loucas?

- Como disse? - Emeline estava pasmada com a grosseria. - Recordo-lhe que tínhamos combinado encontrarmo-nos os quatro aqui.

- Isso foi antes de sabermos que tinham passado a tarde na companhia de um assassino - rosnou Dominic. Tinha o chapéu também deitado sobre os olhos, com um ângulo ameaçador.

- Estão ao corrente do meu encontro com o Mr. Pierce? - espantou-se Priscilla.

- Tobias e a Mrs. Lake descobriram que ele tinha um encontro convosco ao revistarem-lhe a residência - explicou Anthony, olhando alternadamente para as duas raparigas. - Estão bem?

- Claro que estamos - respondeu Emeline. - Correu tudo muito bem. Pensamos mesmo ter convencido Pierce de que a investigação não levava a nada.

Priscilla franziu as sobrancelhas.

- Porque é que estão os dois vestidos de maneira tão curiosa?

- O Mr. March não nos deu tempo para cuidar da apresentação informou Dominic. - Insistiu para que viéssemos ter convosco o mais rapidamente possível a fim de vos levar ao número 7 de Claremont Lane. A Mrs. Lake quer falar-vos imediatamente. Em seguida, acompanhá-la-emos a casa, Priscilla.

- Agora que Pierce está interessado em vocês, Tobias proíbe-vos, a ambas, de sair sós - informou Anthony.

- Por amor de Deus - resmungou Emeline. - Repito que está tudo bem. E Pierce não tem motivos para nos querer ver de novo, uma vez que obteve as informações que desejava.

- É exactamente por isso, não acham? - retorquiu Anthony. Emeline notou que havia um tom irritado nas palavras dele. Porém,

antes que ela lhe pudesse lançar uma resposta severa, deu-lhe o braço e conduziu-a em direcção do portão.

- Não penso que estejamos em perigo - retorquiu rapidamente Priscilla.

- Esse homem é um assassino - declarou Dominic, num tom que não admitia réplica, pegando no braço de Priscilla. - De resto, eu e Tony hoje não podemos perder tempo com passeios no parque. Temos trabalho a fazer.

- Que tipo de trabalho? - perguntou Emeline, vendo-se obrigada a saltitar para poder acompanhar o passo largo de Anthony.

- Temos de vigiar noite e dia a residência de Pierce - explicou Anthony. - E temos uns preparativos a fazer. É por isso que as levamos para casa.

Emeline pensou que já era demais.

- Tenham a gentileza de não nos tratarem como duas pobres idiotas, incapazes de cuidarem de si. Recordo-vos que eu e Priscilla acabámos de representar uma comédia perante um assassino. Não somos incompetentes.

- Efectivamente - aprovou Priscilla com veemência.

Anthony virou a cabeça para Emeline. A luz baixa da tarde iluminava-lhe o rosto sob a aba do chapéu e, pela primeira vez ela viu-lhe as feições.

- O teu olho! - exclamou, parando de repente, obrigando Anthony a imitá-la. - Estás ferido! Por amor de Deus, o que é que te aconteceu, Tony?

Priscilla imobilizou-se por sua vez, para perscrutar a cara de Dominic.

- Tem uma nódoa negra no queixo! - salientou. - Deus do Céu, o assassino atacou-vos ontem à noite? Porque é que não nos disseram nada?

Dominic levou a mão ao queixo ainda dorido.

- Mil raios! - Dominic fez uma careta, gemeu e depois tocou no maxilar. - Garanto-vos que o responsável por isto não foi Pierce.

- Claro que não - retorquiu Anthony, corando. - Não se esqueçam que ele é um cabeleireiro.

- É um assassino a soldo, se a tia Lavinia e o Mr. March tiverem tirado as conclusões correctas - sublinhou Emeline. - Mas se não foi Pierce, então quem vos fez isso?

Anthony trocou um olhar indecifrável com Dominic, depois encolheu os ombros.

- Estava muito escuro em frente à casa de Pierce, esta noite. Sem querer bati no arco de pedra de uma porta.

- Estou a ver - disse Emeline. - Com efeito esses arcos, são muito perigosos para os peões.

Priscilla interrogou Dominic com um olhar.

- E o senhor? Aconteceu-lhe a mesma desgraça?

- Tropecei num degrau - murmurou Dominic - e bati no corrimão.

 

UM POUCO ANTES DA MEIA-NOITE, ANTHONY ABRIU A BOLSA das empadas que tinha comprado ao fim da tarde e retirou uma das duas que restavam. Estendeu a bolsa a Dominic,

que se serviu e se encostou à parede da ruela estreita.

- Amanhã à noite, comprarei mais quantidade - prometeu a Anthony entre duas dentadas.

- Nós é que tivemos a culpa de que se tivessem acabado tão depressa - observou Dominic. - Talvez não devêssemos ter dado metade aos dois miúdos que passaram a noite na soleira da porta da capelista.

Anthony lembrou-se dos dois rapazinhos atrevidos e velhacos que tinham encontrado, um pouco antes, nessa noite. Não deviam ter mais de oito ou nove anos, mas demonstravam um conhecimento da rua que não era próprio da sua idade. Pareciam tão famintos, que nem Anthony nem Dominic conseguiram resistir a oferecer-lhes parte das empadas. Os miúdos ficaram encantados e repartiram-nas como se fossem um tesouro, para depois se instalarem na soleira da porta do outro extremo da rua.

- Poderia, talvez, pedir a Whitby para as fazer - sugeriu Anthony. E também umas sanduíches de salmão e frango como as que nos preparou esta tarde.

- Excelente ideia. Pede-lhe que, desta vez, duplique a dose para o caso dos dois jovens se encontrarem outra vez na porta amanhã à noite Dominic mastigou a empada. - No entanto, talvez não seja necessário. A nossa vigilância não vai durar eternamente. Tobias parece convencido de que Pierce não vai demorar muito a entrar em acção. Diz que o cabeleireiro é, não só arrogante, como está também obcecado pela necessidade de provar que é tão bom como o Homem do Momento-Mori.

O tempo passou. A rua, iluminada por um pálido raio de luar, estava deserta à parte uma ou outra carruagem ou carroça que passavam. Havia meia hora que a luz da janela de Pierce se apagara. Podia-se portanto deduzir que se tinha deitado.

Anthony esticou os braços para aliviar a rigidez dos músculos.

- Não notaste nenhuma diferença, em Emeline e Priscilla, esta tarde? - perguntou de repente.

Dominic reflectiu por um momento.

- Uma diferença? Que queres dizer com isso?

- Não sei. Pareceu-me que estavam particularmente belas.

- São sempre muito bonitas.

- É verdade.

Houve outro prolongado silêncio.

- Acho que Priscilla se sente muito atraída por ti - atreveu-se Anthony a dizer, pouco depois.

- Sente-se sobretudo atraída por aquilo que tenho no meu laboratório, não por mim - respondeu Dominic macambúzio.

- Não estejas assim tão certo. Vocês os dois têm muitos pontos em comum.

- Hummm...

- Tu acha-la bonita. Admite que nunca estiveste interessado em Emeline. A única razão que a levava a cortejá-la era o desejo de me aborreceres.

Dominic encolheu os ombros, movimento que foi quase imperceptível na sombra.

- Estás muito apaixonado por Emeline, não estás?

- Estou. A tia dela quer que esperemos antes de anunciar o noivado, mas Emeline e eu temos outros planos. Primeiro, preciso de convencer Tobias a casar com a Mrs. Lake e a instalar-se no número 7 de Claremont Lane.

- Para que tu e Emeline possam ficar com a casa dele? - Dominic parecia intrigado. - É uma ideia muito astuciosa. Acreditas que ele vai aceitar?

- Até agora, tive um pouco de dificuldade em convencê-lo da sensatez do meu plano, mas tenho esperança de acabar por conseguir.

Qualquer coisa cintilou no outro lado da rua.

- Viste?

- O quê?

- Tive a impressão que está alguém à entrada do caminho que leva às traseiras da casa de Pierce.

A figura moveu-se deslizando cautelosamente da escuridão para a luz da lua.

Dominic endireitou-se rapidamente

- Estou a vê-lo. Ou antes, estou a vê-la. É uma mulher coberta com uma grande capa.

- Aposto que é Pierce disfarçado de mulher - sussurrou Anthony.

- Tens razão - Dominic falou em voz baixa. - Fiquemos quietos. É preciso que ele não nos veja.

A silhueta embuçada desceu rapidamente a rua. Pierce não levava uma lanterna, parecendo confiar na luz da lua. Havia algo de misterioso no silêncio dos seus movimentos.

- Parece um fantasma na noite - murmurou Dominic.

A velha alcoviteira emborcou outro enorme gole de genebra e limpou os lábios às costas na mão. Semicerrou os olhos para ver bem Tobias do outro lado da mesa e soltou uma gargalhada.

- Nessa altura, chamavam-me a mãe Maud - explicou. - Os negócios corriam bem. Especializei-me em rapazinhos e meninas. Era incrível a clientela para os garotos. E de todas as classes sociais, altas e baixas, acredite.

Tobias sentiu um frio no estômago, mas não quis mostrar a repulsa que sentira. A taberna, uma das mais mal afamadas da cidade era escura e estava cheia de fumo. Comparado com ela, o Gryphon poderia passar por um clube exclusivo de cavalheiros.

A mãe Maud interrompeu a narração e esperou.

Tobias pôs mais algumas moedas em cima da mesa. E pôs ao lado o anel memento-mori que tinha encontrado ao lado do cadáver de Fullerton. O pequeno ataúde dourado brilhava com uma luz maléfica naquele cenário.

- O Smiling Jack disse-me que vendeu, há alguns anos, dois jovens a um homem que usava um anel parecido com este - abriu o pequeno caixão.

Maud contemplou longamente a jóia sem dizer palavra. Depois, desviou a atenção para o dinheiro. O desagrado lia-se-lhe no rosto. Tobias acrescentou mais uma moeda.

- Pois! - murmurou a mãe Maud e bebeu outro copázio de genebra para arranjar coragem. - Fiz negócios com um homem que usava um anel como esse.

- Fale-me dessa transacção.

- Ele era diferente dos meus clientes habituais.

- Como?

- A maior parte deles compravam-me crianças para as pôr a roubar ou a pedir na rua ou noutro lado qualquer, ou para os usar como limpa-chaminés. As meninas iam para os bordéis ou tinham de ganhar a vida na rua - encolheu os ombros magros. - Havia quem os comprasse por razões que preferia desconhecer.

Se algumas das crianças tinham sido usadas de um modo que causava alguns pruridos a Maud, Tobias também preferia não pensar nisso. Mas, naquela noite, precisava de conhecer a verdade.

- E o homem do anel - insistiu - para que é que queria esses dois rapazes?

Maud tomou outro copázio de genebra. Os seus olhos lacrimejantes cintilaram malévolos.

- Dizia que era um homem de negócios, mas que não tinha filhos para ficarem com a empresa. Procurava dois aprendizes. Para lhes ensinar a profissão, ao que dizia - semicerrou os olhos. - Mas, se fosse verdade, podia muito bem ter recorrido a um orfanato, não é verdade?

- Ora, foi a si que ele veio ver.

- Pois foi! E pagou muito bem aqui à mãe Maud. Repare no que lhe dei pelo seu dinheiro. Dois belos rapazes, de boa saúde e para mais, espertos como um alho. Dois irmãos. Um tinha à volta de oito anos e o outro quatro ou cinco.

- O que tinha acontecido aos pais?

- A mãe morreu num bordel. As duas crianças já estavam na rua quando as encontrei. O mais velho cuidava do mais novo. Roubavam os bolsos dos cavalheiros embriagados que se davam ao prazer nesta parte da cidade.

- E o pai?

- Sabe-se lá!

Tobias contemplou o anel.

- Sabe o que aconteceu aos dois rapazes que vendeu a esse homem?

- Não tenho por hábito fazer perguntas - respondeu Maud com desprezo - É graças a isso que os negócios correm bem. Os clientes sabem que podem contar com a minha discrição.

- Mas nunca ouviu nenhum rumor sobre a natureza do trabalho que esse homem queria ensinar aos dois rapazes?

- Sim - Maud pensava no anel. - De vez em quando diziam-se coisas sobre o dono desse anel. Parece que, pagando-lhe o que ele pedia, se desembaraçava de qualquer pessoa. Até de um cavalheiro ou de uma dama. Mas só se ele concordasse que deveriam ser mortos.

- E sabe o que aconteceu a esse homem que trabalhava com a morte?

Maud ergueu a garrafa de genebra.

- Ouvi dizer que se reformou. E deixou a empresa aos aprendizes.

Anthony e Dominic estavam emboscados na pequena praça em frente ao número 20 de Treadhall Square. A casa que vigiavam era uma elegante residência de três andares, igual a todos os do quarteirão. Cada um deles tinha um jardim em frente com um gradeamento e um portão à altura da cintura.

Conforme as instruções de Tobias, tinham seguido Pierce, com o cuidado de se manterem à distância para evitarem ser descobertos. A actividade das ruas movimentadas cobrira-lhes os passos.

Mas uns segundos após terem chegado à praça, viram-no saltar com leveza por cima do gradeamento que protegia o jardim de uma das casas. Pierce desapareceu, descendo os degraus que conduziam à porta da cozinha, que se situava abaixo do nível da rua.

- Se queres a minha opinião - sussurrou Dominic -, só há uma explicação para a sua presença nesta casa, com aquela capa. E certamente não foi chamado à uma hora da manhã para arranjar o cabelo a uma dama.

- Bem sei - respondeu Anthony, que estremeceu ao pensar no que se poderia passar diante dos seus olhos.

- O que é que havemos de fazer, raios? - murmurou Dominic.

- Só vejo uma solução. Bater à porta principal e acordar toda a gente.

- Vão tomar-nos por malucos, se lhes dissermos que têm um assassino debaixo do seu tecto.

- Tens uma ideia melhor?

- Não.

- Nesse caso é melhor despacharmo-nos - disse Anthony, avançando. - Duvido que Pierce leve muito tempo para completar o seu serviço. Não nos podemos esquecer de que é um profissional.

Atravessaram a rua a correr e subiram os degraus da casa adormecida. Anthony deitou a mão à pesada aldraba de bronze e bateu com toda a força cinco ou seis vezes seguidas contra o batente.

- Isto deve acordar pelo menos um criado, ou uma criada - murmurou Dominic.

Mas, para grande espanto de Anthony, ninguém veio abrir a porta para pedir explicações por aquele barulho a meio da noite.

- Tenta outra vez - sugeriu Dominic. - Com mais força, por amor de Deus.

Anthony bateu várias vezes, sem obter qualquer sucesso. Recuou um passo e olhou para as janelas escuras dos andares superiores.

- Talvez quem aqui viva tivesse deixado a noite livre aos criados.

- A casa é grande. Custa-me a acreditar que todo o pessoal se tenha ausentado na mesma noite. Deve certamente haver alguém no interior.

- Temos de fazer rapidamente alguma coisa - disse Anthony. - E se tentássemos partir um vidro? - propôs Anthony.

- E arriscarmo-nos a ser tomados por assaltantes? Não. Não me parece bem. Tenho uma ideia melhor.

Dominic pôs a bolsa que trazia ao ombro em cima do passeio. Abriu o cordão e retirou lá dentro aquilo que pareciam ser dois pauzinhos.

- O que é isso? - perguntou Anthony.

- Tubos com a minha nova fórmula explosiva.

- Uma fórmula explosiva? - repetiu Anthony, afastando-se apressadamente uns passos. - Espera aí. Que diabo vais fazer?

- Admito que a mistura ainda precisa de ser aperfeiçoada, mas, em pequenas quantidades, cria um belo espectáculo de fogo de artifício. Pensei em trazer estes tubos para o caso de precisarmos de uma arma qualquer se o cabeleireiro nos encontrasse e tentasse algum gesto violento.

- Foi bem pensado - Anthony viu Dominic acender um fósforo. - Mas tem cuidado com essas coisas.

- Vou usá-los porque preciso de uma distracção que acorde toda a rua e também quem se encontrar dentro de casa - Dominic acendeu as mechas que saíam dos tubos. - Isto deve bastar.

Depois lançou-as a rebolar pelo passeio. Houve uns segundos de extrema tensão, durante os quais as mechas se consumiam com força cintilante.

Depois, os dois tubos explodiram em simultâneo, com um estrondo de fazer rebentar os tímpanos. A detonação, ensurdecedora, espalhou-se a toda a volta pelas paredes das casas e repercutiu-se interminavelmente pelo ar enquanto os tubos desprendiam centelhas ofuscantes.

- Impressionante - gritou Anthony.

- Estou a tentar desenvolver uma maior variedade de cores - respondeu Dominic também a gritar. - Neste momento estou limitado ao vermelho, branco e verde.

A janela de uma casa vizinha abriu-se a toda a pressa. Um homem com um barrete de dormir debruçou-se no parapeito.

- Fogo! - gritou. - Há fogo na rua. Chamem os bombeiros! Abriram-se outras janelas e outras pessoas se assomaram. O grito

Fogo! espalhou-se pela rua. Uma mulher lançou um urro estridente. Abriram-se portas. Entre as quais a do número 20.

- O que é que se passa? - perguntou uma mulher com o cabelo grisalho coberto por uma touca e apertando um roupão debotado, sobre o corpo magro. Olhava com os olhos remelosos para Dominic e Anthony.

- Que se passa aqui? - perguntou.

- Há um assassino dentro de casa - gritou Anthony. A mulher pôs a mão em concha atrás da orelha.

- O que é que está a dizer? Fale mais alto, jovem.

- Um assassino! - repetiu Anthony, entrando para o vestíbulo. - Veio matar alguém.

- Fique aqui - ordenou Dominic à mulher, antes de seguir as pisadas de Anthony. - Temos de o deter.

- Olhem lá, onde pensam que vão? - gritou. - Ajuda! Socorro! Gatunos!

Anthony mudou de estratégia.

- É por causa do incêndio - gritou-lhe ao ouvido. - Vamos evacuar a casa.

- Fogo? Há fogo? - exclamou a mulher desorientada.

- Há mais alguém em casa? - gritou Dominic por sua vez.

- Sim. O patrão. Está na cama, no andar de cima. Mas ele não pode andar. Vai ficar encurralado.

- Nós vamos buscá-lo - prometeu Anthony.

Precipitou-se para a escada, com Dominic no seu encalço. Subiram os degraus dois a dois e chegaram ao patamar escuro.

Anthony reparou num raio de luz que emanava debaixo da porta de um quarto ao fundo do corredor. Esta abriu-se de repente e apareceu um vulto envolvido numa capa.

- Ei-lo! - gritou Anthony.

Atiraram-se ao intruso. Este precipitou-se para o outro lado do corredor, depois, bruscamente deu meia volta, fazendo rodopiar a capa.

- Cuidado! - advertiu Dominic. - Pode ter uma pistola. Abrandaram o andamento, mas o intruso limitou-se a abrir uma porta e desaparecer pela escada de serviço.

- Diabos! - explodiu Anthony. - Vai escapar-se.

- Tony! - chamou de repente Dominic. - Olha para o quarto! Deitou-lhe fogo.

Anthony voltou-se. A luz, proveniente do quarto, era, com efeito, demasiado intensa para ser a de uma vela. Deteve-se e voltou-se para olhar lá para dentro. Dominic tinha corrido já para o interior e tentava apagar com uma manta, as chamas que já invadiam os pés da cama.

Um velho frágil de barrete de dormir encolhia-se encostado à almofada, agitando desesperadamente os braços.

- Salvem-me! Salvem-me! Ela tentou sufocar-me. Tentou assassinar-me na minha própria cama.

Anthony pegou noutra manta pesada e começou a lutar contra o incêndio ao lado de Dominic.

O assassino corria, a deitar os bofes pela boca, incapaz de reflectir. Quando não conseguiu correr mais, refugiou-se numa viela para retomar fôlego. Depois desembaraçou-se da peruca loura e da capa, que atirou para o chão.

Com o coração a bater com toda a força, ficou alguns momentos ali, a tentar acalmar-se. Raios, estivera próximo de se deixar apanhar. Muito próximo, dessa vez. Tinha o coração a bater e sabia que não era apenas devido à longa correria para se pôr em segurança. Não podia negar o medo que o invadia ensombrando-lhe o cérebro e dando-lhe vontade de vomitar. Terá sido assim, Zachary, terás sentido o mesmo pavor, nas mesmas circunstâncias?

Ainda não conseguia acreditar que tinha estado tão perto de ser apanhado. De onde poderiam ter saído aqueles dois, que tinham soltado aquele fogo na rua, e o tinham perseguido pela casa, obrigando-o a sair antes de terminado o trabalho?

De repente, compreendeu. Emeline e Priscilla tinham mentido. March e a sócia haviam avançado bastante na investigação e tinham-no, por fim, identificado como suspeito.

March enviara aqueles dois tipos para o vigiarem. Tinham-no seguido, na esperança de o apanharem em flagrante.

A partida tinha acabado. March tinha ganho.

Deu uma vista de olhos à capa e à peruca loura. Alguém as iria encontrar, talvez no dia seguinte, mas nunca ninguém as iria associar a ele. Aliás, jamais encontrariam a mais pequena prova dos seus crimes.

No entanto, não queria correr o mínimo risco. March tinha relações altamente posicionadas.

Saiu prudentemente da viela, certificou-se de que não havia ninguém pelas redondezas e, em seguida, retomou o seu caminho desvairado. Os outros dois iriam perder tempo a apagar o incêndio, antes de irem falar com March. Podia então tirar proveito do avanço em relação a eles. Bastar-lhe-iam alguns minutos. Desde há muito tempo que estava preparado para qualquer eventualidade. Até o fracasso.

Desapareceria, pura e simplesmente de circulação. Talvez passasse um ano ou dois em Paris. Ou em Itália. Depois regressaria a Londres, como um cavalheiro. Ninguém o iria reconhecer, muito menos ligá-lo aos crimes que cometera naquele Verão.

Este pensamento acalmou-lhe os nervos enquanto fugia pela noite luarenta.

Um pouco mais tarde, a transpirar, Anthony e Dominic ruminavam a sua frustração, espreitando para as sombras da escada das traseiras.

- Diabos! - exclamou Dominic, batendo na parede com a palma da mão. - Quando penso que quase o apanhámos.

- Ele ateou o incêndio quando se apercebeu de que tínhamos lançado o fogo de artifício para acordar toda a casa - Dominic passou os dedos pelo cabelo. - E ficou com tempo de sobra para fugir.

- O que é certo é que agora sabe que foi descoberto. Certamente vai desaparecer num bairro de má fama ou procurar um local seguro onde se possa esconder.

- Suponho que seja inútil voltar a casa dele - adiantou Anthony. Não é tão estúpido ao ponto de ir para lá.

- Não estou muito interessado em informar Tobias que perdemos o rasto da caça - confessou Dominic.

- Nem eu - retorquiu Anthony, que apertava na mão o anel encontrado em cima da mesa-de-cabeceira do ancião. - Mas não temos outra alternativa. O maldito cabeleireiro estava disposto a pegar fogo a toda a casa e a todos os que estivessem cá dentro, só para conseguir fugir.

- Vamos. - Tobias desceu a escada. - Temos de avisar Tobias. Espero que ele já tenha voltado do tal antro onde ia. Anthony deu meia volta e seguiu-o.

O assassino entrou em casa, pela porta de trás, a mesma por onde tinha saído ainda não havia uma hora. Aí ficou, nas profundas sombras, respirando com tanta dificuldade que o ar lhe raspava os pulmões. Ainda se debatiam dentro dele a cólera e o pavor. Tinha vontade de bater em qualquer coisa.

- Maldito, maldito, maldito - exclamava na escuridão.

Mas não era altura para lamentações. Não havia tempo a perder. Vingar-se-ia de March mais tarde e para lhe provar que não era invencível.

Entrou no quarto e afastou um quadro. Depois, pressionando a palma da mão contra a parede, fez girar silenciosamente um painel que descobriu um esconderijo secreto. Tirou a pistola, a carta, os restantes anéis memento-mori, o dinheiro e as jóias que os clientes lhe tinham dado como pagamento dos seus serviços.

Dirigiu-se depois ao guarda-fatos. Levaria apenas uma muda de roupa. Desgostava-o a ideia de deixar atrás de si todos os seus belos fatos, mas não podia dar-se ao luxo de ser embaraçado pela bagagem pesada que não faria mais do que atrasá-lo. A doutrina do seu ofício era rigorosa nesse ponto. Quando a fuga era necessária, devia levar-se o menos possível.

Abriu a porta do guarda-fato e deu por si a olhar para o rosto do assassino.

Antes mesmo de poder reagir ao choque, um vulto sombrio encostou-lhe uma pistola à testa e puxou o gatilho.

 

TOBIAS APONTOU A LANTERNA PARA CIMA, PARA ILUMINAR A porta das traseiras da residência de Pierce. Um pouco atrás, Anthony e Dominic viram-no rodar a maçaneta. - Não está trancada - anunciou Tobias. Entregou a lanterna a Dominic e sacou da pistola.

- Duvido que ainda esteja aqui, mas não quero que nenhum de vós corra riscos. Fiquem atrás de mim.

- Já deve estar muito longe - murmurou Anthony. - Quando penso que quase o apanhámos!

- Se ele não tivesse tido a ideia de atear o incêndio, tínhamo-lo apanhado - concordou Dominic.

- Fizeram o que estava certo. - disse Tobias. - O mais importante era apagar o fogo. Não se culpem pela fuga de Pierce. Se não o tivessem feito, a estas horas, sir Rupert estaria morto. E, provavelmente, a sua velha governanta também.

Abriu a porta, tão bruscamente que o batente foi chocar contra a parede. A lanterna iluminou a cozinha vazia. Avançou prudentemente pelo pequeno aposento, com os dois jovens a seguirem-lhe os passos.

- Dêem-me a lanterna - pediu em voz baixa.

Anthony entregou-lha. Tobias colocou-a no chão, e usou a biqueira da bota para a empurrar para o estreito vestíbulo. Não havia sombras nas paredes. O pequeno aposento estava deserto.

Encostou-se ao canto. Dali tinha a vista da sala. Satisfeito por encontrá-la vazia, voltou para o vestíbulo, pegou na lanterna e, sempre junto à parede, dirigiu-se rapidamente à porta do quarto.

Apercebeu-se do cheiro da morte recente antes de ver o cadáver no chão.

- No fim de contas, Pierce não fugiu - declarou, impassível. Dominic e Anthony detiveram-se junto a ele, de olhos postos na horrível cena.

- A cabeça dele - disse Dominic numa voz impressionada. - E todo aquele sangue... e o resto.

- Deus tenha piedade da sua alma - murmurou Anthony. Tobias pensou que era a primeira vez que os dois rapazes eram confrontados com uma morte violenta.

- Fiquem os dois aqui - ordenou.

Ele próprio entrou no quarto com precaução, para não destruir possíveis indícios. Mas não viu impressões digitais ensanguentadas, nem bocados de pano arrancados numa luta. Nada que pudesse deixar adivinhar que outra pessoa, para além de Pierce, houvesse estado, nessa noite naquele aposento.

O cabeleireiro jazia, com a cara virada para o chão, num mar de sangue coagulado, a mão direita crispada sobre uma pistola.

- Deve ter compreendido que estava tudo acabado para ele - conjecturou Anthony. - Apercebeu-se de que andávamos atrás dele e preferiu morrer pelos seus próprios meios do que ser enforcado. Resolveu que era melhor não subir ao cadafalso.

Dominic limpou o suor da testa com as costas da mão.

- Suicidou-se. Quis morrer como um cavalheiro. Tobias contemplava o cadáver.

- Como o irmão.

Um pouco antes do alvorecer, Lavinia e Tobias foram anunciar as novidades a Aspasia. A jovem desceu assim que a governanta, arrancada ao sono, lhe disse que tinha visitas. Lavinia não pôde deixar de reparar que Aspasia, apesar de ter saído da cama, estava, como sempre, elegante, com um roupão de cetim negro, chinelos macios de pelica e uma pequena touca de renda.

- Pierce suicidou-se? - repetiu, deixando-se cair no sofá do salão. - Meu Deus! Exactamente como Zachary.

- Anthony e Dominic quase o apanharam em flagrante - explicou Tobias. - Terá compreendido que havia perdido a partida.

Lavinia seguiu-o com os olhos enquanto ele se ia pôr em frente à lareira apagada. Parecia tenso, nervoso. Já um pouco antes, quando lhe abriu a porta, ela tinha reparado que ele estava inquieto. Oferecera-lhe um grande cálice de brandy, mas não bastara para o acalmar. Ele contara-lhe os últimos desenvolvimentos do caso. E quando lhe anunciara que ia a casa de Aspasia para a pôr ao corrente, decidira acompanhá-lo.

- Não compreendo - disse Aspasia, unindo as bandas do roupão. Parecia estupefacta. - Segundo me disseram, levava um bom avanço. Porque não fugiu, pura e simplesmente?

- Não posso responder pelo que estava a pensar - disse Tobias. Mas, desde o princípio, que desejou imitar o irmão. Talvez que ao aperceber-se que tinha sido descoberto, quisesse apresentar as despedidas da mesma maneira que Zachary.

Aspasia fechou os olhos.

- Suicidou-se. É horrível.

- Só ontem à noite é que Tobias, depois de falar num bar duvidoso com uma velha, que costumava vender crianças, soube que Zachary tinha um irmão - explicou Lavinia. - Há vários anos, entregou dois rapazitos a um homem sem filhos, que procurava aprendizes para ficarem com a sua empresa.

- Suponho que o homem em questão era o primeiro assassino do Metnento-Mori - disse Tobias, sem tirar os olhos da lareira apagada. - E os dois aprendizes seguiram-lhe as pisadas.

- E agora, estão os dois mortos - concluiu Lavinia.

O velho fiacre que os conduzira a casa de Aspasia esperava-os na rua quando saíram, vinte minutos mais tarde. Tobias ajudou Lavinia a subir para o carro e depois instalou-se no banco em frente dela. À luz fraca da lâmpada interior o seu rosto parecia soturno e triste.

- Compreendo que este caso te tenha afectado - murmurou ela, agarrando-se à pega para se equilibrar quando o velho veículo se pôs em movimento. - Mas agora acabou.

- Sim - olhou para a noite, pela janela.

Lavinia sentiu a escuridão que havia nele e soube que Tobias corria o risco de se afundar no seu inferno particular.

- Sentir-te-ás melhor após algumas horas de sono, vais ver - garantiu-lhe ela.

- Sem dúvida.

Lavinia procurava desesperadamente um meio de chegar até ele, quebrando o gelo atrás do qual se tinha resguardado. Não encontrando nada, decidiu ser o mais directa possível.

- Diz-me lá, Tobias. Acabas de resolver com êxito as investigações de um crime. Qual é o problema?

Durante momentos pensou que não lhe ia responder. Mas, por fim, ele levantou a cabeça e olhou-a nos olhos.

- Pierce não era muito mais velho que Anthony e Dominic - disse ele sem dar qualquer inflexão à voz

Desta vez, Lavinia compreendeu.

- Nem muito mais velho que Ned, também - acrescentou ela, pegando-lhe na mão. - Tu não podes salvar todos, Tobias. Já fizeste bastante. Não tornes a tua vida impossível. Se não aceitares a verdade, sucumbirás à sensação de desespero que tornará impossível salvares seja quem for.

Ele apertou-lhe a mão com força, sem dizer uma palavra. A tempestade dos seus olhos ameaçava varrê-la para as profundidades. Tobias não falou mas, depois, atraiu-a para os seus braços. Continuaram assim abraçados até o fiacre parar em frente à porta.

Tobias desceu do carro, ofereceu o braço a Lavinia e escoltou-a até à porta. Lavinia abriu a bolsa para tirar a chave.

- Há outra coisa - disse ele, quando ela estava a meter a chave na fechadura.

A jovem virou-se bruscamente.

- O quê?

- Este caso ainda não está encerrado.

- Pierce suicidou-se. O que é que te falta descobrir?

- A identidade do primeiro Homem do Memento-Mori.

- Mas, Tobias, tu próprio disseste que, provavelmente, ele estaria morto. E se estivesse vivo seria muito velho. Porquê procurá-lo?

- Porque quero saber quem é que transformou dois garotos inocentes em assassinos profissionais.

 

NA TARDE DO DIA SEGUINTE, LAVINIA REPAROU NO Candeeiro, na montra de um antiquário. Era uma cópia deslumbrante de uma antiguidade romana. A cena esculpida no pé representava Alexandre a cortar o nó górdio. Era perfeita. A jovem entrou na loja sem hesitar.

- Wedgewood - informou-a o antiquário. - É bonita, não é? Este candeeiro ficaria muito bem no escritório de um cavalheiro.

Lavinia segurou uns instantes o candeeiro, tentando imaginá-lo sobre a secretária de Tobias.

- Sim, ficaria perfeitamente - aquiesceu.

Minutos depois, saía da loja com o candeeiro cuidadosamente embrulhado em várias camadas de papel de seda. Meteu o embrulho no saco que trazia no braço, aninhando-o entre uns pêssegos maduros que comprara no vendedor de fruta da esquina. Pelo menos seriam uma boa alternativa às passas.

Parou à porta da loja para abrir a sombrinha, e, ao fundo da rua viu Aspasia Gray, deslumbrante num vestido de passeio, os pés finos calçando botinas de pelica, a descer de uma elegante carruagem, para entrar na loja de uma costureira.

Movida por um impulso inexplicável, Lavinia decidiu seguir outro caminho para se dirigir ao número 7 de Claremont Lane.

Não seria certamente a ideia mais brilhante que tivera durante a sua curta carreira como investigadora privada, pensou Lavinia, um pouco mais tarde, quando se encontrou no pequeno parque, em frente à residência de Aspasia. Mas, depois de ter tido essa ideia, não lhe tinha conseguido resistir. A sua intuição conferia-lhe uma sensação de grande urgência.

Na realidade, Tobias não era o único a pensar que aquele caso não tinha terminado. Lavinia tinha acordado naquela manhã com a mesma certeza.

A praça estava deserta, à excepção de um velhote adormecido num banco de ferro, com as mãos enluvadas sobre o castão da bengala, que segurava entre as pernas.

Abriu os olhos à passagem de Lavinia a quem lançou um olhar de discreta aprovação masculina. A jovem suspeitou que tivesse sido um sedutor, na sua juventude.

- Não há nada mais agradável aos olhos, do que uma bela mulher ruiva num parque, numa tarde de Verão - disse ele, em voz rouca. - Boa-tarde, minha senhora.

Lavinia parou e sorriu-lhe.

- Boa-tarde. Desculpe-me por ter interrompido a sua sesta. Ele fez um gesto com a mão, com graça surpreendente.

- Não há problema, não se preocupe. Os meus sonhos de velho não têm grande importância.

- Que tolice. Todos os sonhos são importantes - impulsivamente Lavinia tirou um pêssego do saco e estendeu-o ao velhote: - Quer um pêssego? Têm um ar tão apetitoso que não lhes pude resistir.

O homem pegou no fruto com as mãos enluvadas e contemplou-o com um sorriso.

- É muito gentil da sua parte. Agradeço muito.

- Faça favor. E não pense que os seus sonhos não são importantes.

- Mesmo quando são sonhos de juventude e que não conduzem a nada?

Por instantes, Lavinia meditou naquela resposta.

- É, sem dúvida, maravilhoso ver realizarem-se os sonhos, mas, na verdade, isso não acontece muitas vezes.

- Pois não.

- Talvez seja melhor assim. Nem todos os sonhos são bons. Alguns não merecem ser realizados e, provavelmente, o destino de outros nem sequer foi realizarem-se.

- A senhora tem razão. Mas permita-me que lhe diga que, segundo a experiência dos meus avançados anos, vale a pena correr riscos para os concretizar.

- Acredito - hesitou Lavinia. - Mas o essencial é que, por fim, tenhamos feito alguma coisa para os concretizarmos. Assim, mesmo que falhemos, pelo menos teremos a satisfação de saber que não foi por falta de vontade ou de determinação da nossa parte.

O homem sorriu.

- Ah! Uma filósofa, como eu. Concordo inteiramente, minha senhora. É uma tristeza uma pessoa chegar ao fim da vida e aperceber-se que não ousou correr alguns riscos necessários.

Lavinia estava fascinada pela intensidade daqueles brilhantes olhos azuis.

- Alguma coisa me diz, que se os seus sonhos falharam, não foi porque lhe faltasse determinação.

- E alguma coisa me diz que, a senhora se parece comigo, nesse ponto. - Tirou um canivete do bolso e começou a descascar o pêssego, antes de acrescentar: - Estou satisfeito por a senhora ter ainda muitos anos para viver e dar forma aos seus sonhos. O meu médico avisou-me que só me restavam, quando muito, seis meses de vida. Tenho o coração muito cansado, sabe?

Lavinia franziu as sobrancelhas.

- Ora, não dê muita atenção aos médicos. Enganam-se muitas vezes quando se trata de diagnosticar este tipo de coisas. Ninguém sabe ao certo quanto tempo lhe resta de vida.

- É verdade - reconheceu o ancião, provando um bocado de pêssego e semicerrando os olhos, com prazer quase sensual.

- Há uma ervanária na Wren Street - continuou Lavinia. - A Mrs. Morgan. A minha mãe sempre me garantiu que ela sabia mais do que muitos médicos. Vá lá e descreva-lhe os seus sintomas. Talvez ela lhe possa receitar um tónico eficaz.

- Obrigado pelo conselho, vou segui-lo - respondeu, antes de cortar outro bocado de pêssego. - Veio até aqui para aproveitar o sol?

- Não exactamente - Lavinia lançou uma olhadela para a porta de Aspasia. - Queria visitar uma pessoa que aqui mora.

O velho seguiu-lhe o olhar.

- A senhora que mora no número dezassete?

- Sim.

O homem voltou a atenção para o pêssego.

- Saiu para passar a tarde fora. Vi-a subir para a carruagem há bocado.

- Sim? - murmurou lentamente Lavinia. - Que pena. Não cheguei a tempo. Tanto pior, vou deixar um cartão à governanta.

- A governanta também não está - informou o velhote comendo mais um pouco de pêssego. - Vi um garoto bater à porta. Deve ter ido dar-lhe um recado, pois saiu a toda a pressa, pouco depois da patroa.

- Ah, não me diga.

Lavinia tinha pensado introduzir-se em casa de Aspasia convencendo a governanta que tinha notícias importantes para a patroa e que preferia esperar pelo regresso dela. Não é necessário levar-me para o salão. A biblioteca ou o escritório da Mrs. Cray servem perfeitamente. Esperava poder aproveitar para dar uma vista de olhos enquanto a governanta regressasse inevitavelmente à cozinha para fazer o chá. Senão, uma visita poderia dar sempre a desculpa de que necessitava usar o toilette.

O plano não era muito preciso, na medida em que não fazia a mínima ideia do que devia procurar, e ainda menos do que esperava encontrar. Mas a sua intuição aconselhava-a a saber mais sobre Aspasia Gray.

- Não está ninguém em casa - declarou o velho, erguendo as frondosas sobrancelhas. - Terá de voltar noutra altura.

Lavinia abanou a cabeça.

- Bem, tanto pior. De momento, tenho de me ir embora. Não se esqueça da ervanária da Wren Street.

- Não me vou esquecer - guardou o canivete. - Nem sequer da nossa pequena conversa sobre os sonhos.

- Nem eu. Até à vista. - Lavinia lançou-lhe um breve sorriso e afastou-se.

Em seguida, saiu da praça, atravessou a rua e foi até à esquina. Aí, parou e olhou para trás. O velho acabara de comer o pêssego e voltara à sua sesta, inclinando a cabeça para o peito.

Lavinia meteu-se pela viela, que passava por trás das casas, e contou os portões das traseiras até chegar ao do número 17.

Este estava fechado à chave. E o muro era um pouco mais alto do que ela. Se o quisesse transpor, Lavinia precisava de qualquer coisa à qual pudesse subir.

Olhando em seu redor, avistou uma escada de mão, possivelmente esquecida por um jardineiro. Assegurou-se de que ninguém a estava a ver, encostou-a ao muro de pedra do número 17, subiu-a e, olhando para o outro lado, viu que havia um banco convenientemente colocado.

Apanhando as saias, ergueu primeiro uma perna, depois a outra no cimo do muro. Deixou-se então cair sobre o banco.

Nas traseiras do número 17 tudo estava em silêncio. Lavinia aproximou-se da porta de serviço e abriu a bolsa para tirar as suas novas gazuas. Demorou mais tempo do que se fosse Tobias, mas acabou na mesma por ouvir o pequeno estalido que a avisou que tinha conseguido.

Susteve por instantes a respiração e, por fim, decidiu-se a transpor a porta. Entrou na copa, com o ouvido à escuta, antes de chegar à escada que os criados usavam. A atracção era irresistível.

Teve um súbito pressentimento que se Aspasia escondesse algum segredo, seria na intimidade do seu quarto.

Sentado atrás da secretária, Tobias abriu o livro de contas que pertencera a Swaine, o fabricante de perucas assassinado. Não sabia precisamente o que esperava descobrir desta vez, e o que lhe teria escapado quando passara revista às transacções do fabricante. No entanto, estava convencido de que tinha deixado passar um pormenor importante.

Na noite anterior, explicara a Lavinia que queria descobrir quem tinha ensinado a arte do crime a Zachary e a Pierce. Mas, durante a noite, sonhara com perucas e livros de contas, e com Pierce a estender a Lavinia o seu cartão de visita.

Quando acordou, pouco antes de amanhecer, teve a certeza de que o caso ainda não estava encerrado. Havia outro assassino. Que, sem dúvida, não tardaria a atacar de novo.

Emeline encontrava-se no átrio do instituto com Priscilla e viram Anthony e Dominic subir as escadas.

Os dois jovens vinham de novo vestidos segundo os ditames da moda e não parecia haver qualquer hostilidade entre eles. Porém, Emeline percebeu que se passava qualquer coisa. Tanto um como o outro tinham um ar sombrio.

- Dir-se-ia que lhes pediram para cavar uma sepultura - comentou Priscilla.

Emeline recordou-se de que Lavinia lhe dissera que Anthony e Dominic acompanhavam o Mr. March, quando este encontrou o corpo do cabeleireiro.

- A cena em casa de Pierce deve tê-los abalado, ontem à noite observou Emeline.

Priscilla engoliu em seco.

- Compreendo perfeitamente que não estejam com disposição para ouvir a conferência de hoje. Nem eu me sinto muito entusiasmada. É muito desagradável imaginar o Mr. Pierce jazendo numa poça de sangue. Era jovem, bonito e talentoso.

- Pois. E se é difícil para nós, mais deve ter sido para Dominic e Anthony. Sei que ambos perderam já entes queridos, mas ouvi Tobias explicar à tia Lavinia que ainda nunca tinham sido confrontados com uma morte violenta.

- Sugiro que renunciemos à conferência para ficarmos no salão de chá, onde possamos beber uma limonada e discutir tranquilamente propôs Priscilla.

Emeline concordou sem hesitar.

A nota no livro do fabricante de perucas era irritantemente lacónica:

Uma peruca loura, cabelos de comprimento médio.

O preço e a data figuravam em frente desta descrição, mas nada permitia identificar o comprador. Tobias contemplou a data durante muito tempo. E um mistério permanecia: a peruca havia sido vendida dois dias depois da morte de Fullerton. Portanto, o assassino não a podia ter usado no castelo.

Tinha então de haver anteriormente a venda de outra cabeleira loura. Se não, para quê matar Swaine? Talvez o fabricante se tivesse esquecido de registar a cor numa das vendas anteriores. Em vez de procurar os registos de cabeleiras louras ou douradas, o melhor seria examinar cada venda individualmente para saber se tinha deixado passar algum pormenor importante, pensou Tobias.

Recordou-se de que as mulheres elegantes empregavam um vocabulário particularmente matizado para descrever as diversas cores das suas roupas. Já ouvira Lavinia e Emeline usarem palavras e expressões como chama russa, aurora, pomona, quando falavam das mais modernas tonalidades. Talvez que o fabricante de cabeleiras tivesse aplicado outro termo que não louro ou dourado para descrever uma peruca clara.

Emeline trocou um olhar entendido com Priscilla. Desistir da conferência tinha sido uma decisão acertada.

Anthony e Dominic tinham aceite de imediato a alteração de programa e acompanharam-nas ao pequeno salão de chá onde pediram limonada e bolinhos. Os dois rapazes continuavam cabisbaixos, até que Emeline, resolveu ser directa e lhes pediu que contassem o que se passara da noite anterior.

- Penso que temos o direito de saber - justificou-se. - No fim de contas, eu e Priscilla estivemos implicadas nesta investigação.

Era como se de repente se tivesse quebrado o encanto. Começaram o relato do que tinha sido a noite deles, revezando-se para contar tudo do princípio ao fim.

- Havia tanto sangue que era difícil acreditar - concluiu Anthony, apertando o copo com força.

Dominic olhava também para o seu copo.

- O Mr. March voltou o corpo para examinar a ferida. Confesso que eu nunca seria capaz de o fazer.

- Tobias já foi, por muitas vezes, confrontado com esse género de mortes - lembrou-lhe Emeline. - Suponho que aprendeu a aguentar.

- E o cheiro - murmurou Anthony. Priscilla enclavinhou as mãos no colo.

- Não imagino o que será encostar uma pistola à cabeça e disparar. Dominic nada disse. Continuou a olhar para o copo de limonada.

- Ainda tinha a pistola na mão quando o encontrámos - murmurou Anthony, que fixava a sua própria mão crispada sobre o copo.

Os outros três seguiram-lhe o olhar. Ninguém disse nada e contemplaram-lhe a mão direita com ar mórbido.

Emeline estremeceu de medo. Não conseguia desviar os olhos das mãos de Anthony.

- Em que mão? - perguntou.

O rapaz levantou os olhos, perplexo.

- Desculpa?

- Tu tens o copo na mão direita - Emeline engoliu em seco. - Foi assim que encontraram Pierce, ontem à noite? Com a pistola na mão direita?

- Sim - confirmou Anthony. Priscilla imobilizou-se.

- Têm ambos a certeza? Era mesmo na mão direita? Dominic acenou com a cabeça.

- Com o braço estendido assim, ao lado da cabeça - disse, erguendo a mão direita.

Emeline olhou para Priscilla e viu no olhar da amiga a mesma expressão do horror que a invadia.

- Meu Deus... - murmurou Priscilla. - Passa-se aqui qualquer coisa.

Tobias leu mais uma vez a lista de vendas efectuadas por Swaine no dia da festa dos Beaumont. Deteve-se, de novo, a meio da página.

Observou o breve registo de venda de uma determinada peruca, anotado como se fosse em código. Percebeu como se deveria ter sentido Alexandre ao puxar da espada para desatar o nó górdio.

- Mas, claro! - exclamou, fechando o livro de contas, com um mau pressentimento. - É isso mesmo.

Ouviu passos apressados pelo corredor quando foi apanhar o casaco. Anthony não corria assim pela casa desde a adolescência. Acompanhava-o alguém. Provavelmente, Dominic. Os dois tinham-se tornado inseparáveis.

A porta do escritório abriu-se com toda a força. Anthony e Dominic irromperam pela sala, como dois foguetes prestes a explodir.

- Tobias, ele era canhoto! - exclamou Anthony.

- Emeline e Priscilla têm a certeza - retorquiu Dominic. - Passaram uma tarde com Pierce, quando ele lhes arranjou o, cabelo. Lembram-se muito bem de que era canhoto.

- Obrigado, meus senhores - agradeceu Tobias, abrindo uma gaveta para tirar de lá a pistola. - A vossa informação vem confirmar as minhas próprias recordações. Lembro-me que quando, Pierce entregou o cartão a Lavinia, usou a mão esquerda. Portanto, o cabeleireiro não se suicidou. Foi assassinado, tal como Zachary Elland há três anos.

- Onde vais?

- Continuar a minha investigação - deu a volta à secretária e dirigiu-se à porta. - Este caso está longe de ser encerrado. E ainda preciso da vossa ajuda.

- Não há problema - assegurou Anthony.

- Que quer que façamos? - perguntou Dominic.

Estavam já visivelmente recompostos do choque da véspera, pensou Tobias. Talvez fosse a prova de que tinham sido feitos para aquela profissão.

- Onde estão Emeline e Priscilla?

- Deixámo-las no salão de chá.

- Vão ter com elas e acompanhem-nas até casa de Lavinia - ordenou Tobias, enquanto atravessava rapidamente o vestíbulo. - Esperem lá por mim e não as percam de vista, um minuto que seja, até que eu lá vá dizer que estão em segurança.

Whitby, com uma expressão estóica no rosto, já abrira a porta. Tobias saiu e desceu os degraus.

- Que se passa? - Dominic ia-lhe no encalço. - Tem motivos para crer que correm perigo?

- Sim. E a Mrs. Lake mais que ninguém.

O velho levantou os olhos para a mulher que tinha parado em frente do banco.

- Não conheço nada mais bonito para a vista, do que uma bela mulher numa praça, numa bela tarde de Verão - murmurou.

- Com a sua idade, imagino que não esteja em estado de fazer outra coisa que não seja olhar para as mulheres - replicou ela friamente.

O homem encolheu os ombros.

- Ainda me restam alguns sonhos.

- Devem estar tão fatigados como o senhor.

- Tem razão. O meu médico diz que não tenho mais do que seis meses de vida. Sofro do coração, sabe.

Aspasia Gray abriu a bolsa e tirou uma pequena pistola.

- Nesse caso, creio que não recusará um último favor a uma dama.

Lavinia abriu a última gaveta do guarda-vestidos e conteve um grito de triunfo: continha uma peruca loura.

- Sabia que ela tinha que estar nalgum sítio - disse em voz alta, entusiasmada com o achado.

Todavia, a peruca, só por si, não constituía prova suficiente de um assassinato. Lavinia precisava de descobrir outros indícios que ligassem Aspasia, de forma irrefutável, aos acontecimentos do passado. Mas, pelo menos, aquela cabeleira postiça constituía um bom começo. Estava impaciente por anunciar a sua descoberta a Tobias.

De repente, ouviu o som abafado da porta da frente a abrir-se.

Sentiu as mãos dormentes e, por um ou dois segundos, nem conseguiu respirar.

Esforçou-se por superar o medo paralisante que a tinha tolhido e apressou-se a fechar o guarda-vestidos e voltou-se para a porta. A pessoa que entrara fizera-o pela porta da frente. Com um pouco de sorte, podia ainda escapar-se pelo caminho por onde tinha chegado.

Avançou e encostou o ouvido à porta.

- Sei que está aí, Lavinia - gritou Aspasia, do fundo da escada principal. - Vá, mostre-se, senão dou um tiro na cabeça do velho que está comigo. Acabo-lhe logo com os sonhos que ainda tem.

Lavinia estremeceu da cabeça aos pés. Aspasia tinha tomado como refém o velho da praça.

- Eu sabia, desde o princípio, que me iria complicar as coisas - continuou Aspasia. - Nunca me deu muita importância, pois não? Foi por isso que encarreguei dois rapazes de a manterem debaixo de olho e, isso, se bem que a investigação do Memento-Mori esteja terminada. Quando a viram aproximar-se da minha casa, foram prevenir-me.

A voz dela parecia mais próxima, agora. Lavinia ouviu passos pesados na escada e percebeu que Aspasia obrigava o velho a subir.

A jovem tirou o medalhão de prata que trazia ao pescoço, pegou nele pela corrente, e saiu para o corredor, aproximando-se lentamente do patamar.

Quando olhou para baixo, os seus receios confirmaram-se. Aspasia e o velho já vinham a meio da escada e ela encostava-lhe uma pistola à cabeça.

O velho respirava com dificuldade e apoiava-se com uma mão ao corrimão, enquanto com a outra se agarrava à bengala.

Deteve-se e olhou para Lavinia.

- Perdão, minha querida - conseguiu dizer, meio sufocado.

- Solte-o Aspasia - ordenou-lhe Lavinia, imprimindo um ligeiro movimento pendular à corrente, a fim de que o medalhão captasse a luz que entrava por uma janela alta. - Ele não lhe pode fazer mal.

Aspasia pareceu divertida.

- Evidentemente - respondeu. - Em contrapartida, de momento é-me bastante útil. Imagine que aprendi muito consigo, nos últimos tempos, Lavinia. Compartilha com Tobias um grande sentido de honra. Nem um nem outro deixariam alguém morrer em vosso lugar para lhes facilitar a fuga.

- Não penso fugir, Aspasia - argumentou Lavínia, num tom que esperava parecesse despreocupado e sem parar de balançar o medalhão, para que este continuasse a reflectir a luz. - Está a ver? Estou aqui, à sua frente. Portanto, pode soltá-lo.

- Ainda não.

Aspasia contemplava o medalhão. Abanou a cabeça, como se a vista se lhe turvasse. Depois empurrou o velho com a pistola.

- Só depois de estarmos mais perto. A esta distância, as pistolas não são de muita confiança.

- Fala como especialista, suponho. Quantas pessoas já matou, Aspasia? Esta deu uma ligeira gargalhada.

- Contando as que eu e Zachary planeámos? Treze, no total.

- Um número que dá azar - observou o velhote.

- Cala-te, velho tonto! - intimidou-o Aspasia, encostando mais o cano da pistola. - Ou aperto o gatilho.

Lavinia debruçou-se na balaustrada balançando o medalhão.

- Não! Aspasia, olhe para mim. Ouça-me. Ele não tem nada a ver com esta história. Liberte-o.

- Fuja - aconselhou o velhote, que tinha parado, mais uma vez, para recuperar fôlego. - Não creio que ela tenha outra arma. O tempo que seria preciso para a recarregar depois de me ter matado deverá permitir-lhe escapar.

- Disse-te para te calares, velho! - Aspasia ergueu a pistola e ameaçou dar-lhe uma coronhada.

- Matou o cabeleireiro, não é verdade? - perguntou Lavinia, para a distrair.

- Sim - confessou Aspasia, baixando a mão com que segurava a pistola e parecendo cativada pelo medalhão cintilante. - Não tinha alternativa. Fazia chantagem comigo. Queria que eu lhe deixasse o primeiro dos muitos pagamentos que certamente exigiria, num pequeno beco nas traseiras de Bond Street. Como se eu fosse uma das suas clientes, imagine.

Lavinia apercebeu-se de uma sombra no vestíbulo. Pareceu-lhe primeiro um efeito da luz, mas entretanto recuperou a esperança. De repente, pareceu-lhe vital fazer Aspasia falar.

- Porque a chantageava Pierce? - perguntou, continuando a balançar o medalhão. - O que tinha ele descoberto a seu respeito?

Aspasia esboçou um sorriso radiante.

- Ainda não compreendeu? Decepciona-me, Lavinia. Eu não era apenas a amante de Zachary, também era sua sócia.

Lavinia ficou estupefacta.

- Sua sócia?

- Não vejo o que tenha isso de estranho. Você e Tobias não são sócios? Infelizmente Zachary guardou alguns dos seus segredos até ao fim. Claro que tomou a precaução de escrever uma carta. Nela confiava a natureza da minha ligação a alguns dos seus negócios. Não sei porquê, a carta desapareceu durante algum tempo. Mas, recentemente, acabou por cair nas mãos de alguém.

- Porque é que Elland fez de si sua sócia? Aspasia esboçou um sorriso frio.

- Porque me amava. E porque reconheceu em mim um espírito semelhante ao seu.

- Tobias, tinha razão a esse respeito.

- Veja, Zachary tinha tido muito prazer em trabalhar como espião para a coroa, durante a guerra. Julgo que se considerava um herói. Mas, infelizmente, o trabalho de espião não compensa. Por isso, preferiu lançar-se em actividades mais lucrativas, ao mesmo tempo que trabalhava para o país.

- E ajudou-o?

- Ele gostava de me ensinar e eu descobri que nenhuma droga me dava um prazer tão intenso como o de matar. Dá-nos uma sensação de extraordinário poder. Não se pode imaginar antes de ter tido a experiência.

- Mas, se o amava e se eram sócios, porquê, em nome dos céus, o matou? - perguntou Lavinia.

- Zachary deliciava-se com o que considerava um jogo entre Tobias e ele. Na sua imaginação eram dois jogadores de xadrez, envolvidos numa última partida. Mas eu, estava a ver que March progredia rapidamente na investigação. Insisti para que nos víssemos livres dele, mas não me quis escutar. Tinha a certeza de que ganharia a partida. Sentia uma estranha obsessão por Tobias. Julgo que queria provar a si próprio que era melhor caçador que ele.

- Já sabia que era apenas uma questão de tempo até Tobias o acusar de assassinato, não é verdade, Aspasia?

- Sim. E também sabia que assim que isso acontecesse, eu seria associada a determinados crimes de Zachary. Pensei mesmo em acabar com Tobias, mas por fim pensei que seria mais simples, e mais seguro, desembaraçar-me de Zachary.

- E depois partiu para Paris.

- Pareceu-me mais prudente sair de Inglaterra durante algum tempo - Aspasia sorriu - para permitir que Tobias esquecesse as perguntas incómodas que o poderiam conduzir à minha pessoa. E então, regressei há dois meses a Londres, para retomar a minha vida.

- E também as suas actividades criminosas.

- A meu ver, é mais um desporto do que uma profissão - explicou Aspasia. - Quando estava em Paris, fui várias vezes à caça e tinha planeado continuar esse desporto aqui em Londres. Acho as minhas pequenas aventuras um excelente tónico para o meu enfado. Mas, na manhã da festa em casa dos Beaumont, recebi a primeira carta de chantagem, acompanhada do maldito anel.

Lavinia abanou a cabeça. De repente, tudo se esclarecia.

- Não sabia quem era o autor dessa carta, pois não? Teve então a ideia de contratar Tobias para o descobrir.

- Cada qual com os seus talentos. O meu, era matar. Mas não sou particularmente dotada para investigar.

- E o que se passou ontem à noite?

- Assim que soube que tinham identificado Pierce como assassino, decidi, de imediato, mandar vigiar a casa dele pelos dois garotos que, aliás, a seguiram hoje. Assim que Pierce saiu, avisaram-me. Dirigi-me então para lá, na esperança de deitar a mão à carta de Zachary.

- Mas não a encontrou.

- Não. Ele tinha um esconderijo, no soalho, mas estava vazio. Esperei então o regresso de Pierce escondida no guarda-fatos. Pensava obrigá-lo a revelar-me onde tinha a carta. Pouco depois, ouvi-o entrar. Respirava com dificuldade e compreendi imediatamente que qualquer coisa se havia passado. Espreitei pelo buraco da fechadura e vi-o abrir um cofre escondido. Já sabia o bastante. Abri a porta do guarda fato, dei-lhe um tiro, peguei na carta e fugi.

O velhote tinha-se encostado ao corrimão, tentando ainda recuperar o fôlego. As sombras movimentaram-se de novo no vestíbulo e apareceu Tobias, de arma em punho, ao fundo da escada.

- Afinal, cometeu vários erros, Aspasia.

Ela voltou-se, de olhos esbugalhados pela surpresa.

- Tobias! Como é que...

Depois, tudo se passou num abrir e fechar de olhos. O velho endireitou-se bruscamente, com a velocidade de uma víbora e fez descrever com a bengala um arco de circunferência que terminou bruscamente na cabeça de Aspasia.

Esta caiu para a frente num movimento curiosamente lento. A pistola disparou, enchendo o vestíbulo de ruído, fumo e cheiro de pólvora queimada, mas a bala perdeu-se contra a parede.

Aspasia caiu pela escada, chocando em cada degrau com um ruído sinistro. Tobias teve de se encostar à parede para que ela não o atingisse.

Com os olhos presos no corpo imóvel, Lavinia nem sequer se apercebeu que o velhote tinha acabado de subir a escada e alcançara o patamar.

- É de mulheres como a senhora, Mrs. Lake que se fazem os sonhos - declarou a sorrir. - Se eu tivesse trinta anos a menos, esta história tinha acabado de maneira completamente diferente, isso garanto-lhe eu.

Lavinia olhou-o, sem palavras.

O velhote descobriu Tobias, que subia, por sua vez, de pistola na mão.

- Ou talvez não - continuou. - O Mr. March merece-a. Teria mesmo gostado de o ter como aprendiz. Quem me dera ter tido a oportunidade de o ter tido como aprendiz há muitos anos. Seria um brilhante sucessor meu - tocou no chapéu. - Até à próxima, minha senhora. Espero que, de tempos a tempos se lembre da nossa conversa sobre os sonhos.

Com estas palavras dirigiu-se para a escada de serviço e empurrou a porta.

Para grande surpresa de Lavinia, e para grande alívio seu, Tobias não se lançou em perseguição dele. Lado a lado, contemplaram a porta pela qual o velho acabava de desaparecer.

- Estás bem? - perguntou Tobias, rapidamente.

- Sim. - respondeu ela, recompondo-se - E Aspasia?

- Está morta. Penso que já tinha o crânio partido, mesmo antes de cair pela escada.

Lavinia estremeceu ao recordar-se da violência do golpe que Aspasia recebera.

- Tobias, diz-me que estou enganada a respeito da identidade dele murmurou.

Tobias debruçou-se para apanhar um pequeno objecto caído em cima do tapete. Segurou, entre o polegar e o indicador, um anel decorado com uma caveira de ouro.

- Creio que estamos de parabéns, meu amor - declarou tranquilamente. - Acabámos de nos atravessar no caminho do lendário Homem do Memento-Mori e ficámos vivos para contar a história.

 

ESTAVAM REUNIDOS NO ELEGANTE SALÃO VERDE E OURO DE JOAN Dove. Lavinia sentara-se no sofá em frente à dona da casa. Tobias e Lorde Vale tinham-se encostado à parede, perto das janelas.

- As minhas condolências pela perda da vossa cliente - disse Vale a Tobias. - Julgo que, dadas as circunstâncias, não terão a possibilidade de lhe cobrar os vossos honorários.

Tobias fez uma careta.

- Com efeito. É essa exactamente a situação. Perdemos os nossos honorários. Mas, pelo menos, não perdi a minha sócia.

Lavinia fingiu não ter ouvido. Depois dos acontecimentos da véspera, Tobias não perdera uma única ocasião de lhe lembrar que ela tinha estado à beira do desastre.

- Restam um ou dois pormenores, que não compreendi - interveio Joan. - Contem-me um pouco mais sobre essa história das perucas.

- Nunca chegaremos a saber onde Pierce arranjou a cabeleira loura que usou quando assassinou Fullerton no castelo de Beaumont - respondeu Lavinia. - Mas desde o princípio que eu avisara Tobias, sobre a dificuldade de descobrirmos a origem dessa compra. Pessoalmente, penso que Pierce a terá trazido de Paris, onde estudou a arte de cabeleireiro. Falou disso a Emeline e a Priscilla. Tudo o que sabemos é que se serviu dela. E Aspasia também o sabia, uma vez que lho tínhamos dito. Quando regressou a Londres, chegou rapidamente à conclusão que eu era uma fonte de contrariedades, de que se deveria desembaraçar. Foi por isso que comprou, por sua vez, uma cabeleira loura, pois, assim enfarpelada, foi contratar um valentão para me assustar.

- Assegurou-se de que Ned reparava no seu cabelo, na esperança de que se deixaria prender, e todos supuséssemos que fora o Homem do Memento-Mori que o contratara. - esclareceu Tobias.

- E o que se passou na loja de Swaine? - Perguntou Vale.

- Apenas ontem, ao examinar de novo o seu livro de contas, é que, por fim, compreendi - respondeu Tobias. - Procurava um registo anterior de venda de uma peruca loura, partindo do princípio de que o assassino a teria comprado antes de partir para o castelo de Beaumont. Porém encontrei duas outras transacções extremamente interessantes. Uma era de uma cabeleira loura, comprada dois dias depois do crime.

- E a outra? - Perguntou Joan.

- No dia do baile, Swaine vendera uma peruca castanha - disse Tobias em voz baixa. - Tinha anotado no registo: Uma cabeleira castanha, em estilo egípcio.

- Tobias descobriu que Aspasia estivera pelo menos numa ocasião anterior, na loja do fabricante - indicou Lavinia.

Vale franziu as sobrancelhas.

- Isso foi o suficiente para o fazer suspeitar que era ela a assassina?

- O facto dela ter comprado uma cabeleira de Cleópatra na loja do único fabricante assassinado, ao longo da nossa investigação, parecia mais do que uma coincidência, não acha?

Vale sorriu.

- Bem vistas as coisas, estou de acordo consigo.

- A venda de uma peruca loura, dois dias apóso baile, tomaria de imediato um novo significado - acrescentou Tobias. - Lembrei-me então que fora a convite de Aspasia que Lavinia tinha entrado no pequeno cemitério isolado, onde fora atacada. Também me lembrei, um pouco tarde, é certo, que Pierce era canhoto. Detalhe esse confirmado por Anthony e Dominic Hood. Pierce não se podia ter suicidado tendo a arma na mão direita. Existiria certamente outro assassino.

- Tobias deduziu que Aspasia era a única pessoa implicada na história que, não só conhecia os acontecimentos sucedidos há três anos, mas que também sabia que nós tínhamos identificado Pierce como sendo o Homem do Memento-Mori.

- Todos esses elementos, juntos a outro facto curioso, acabaram por resolver o enigma.

- Que outro facto? - quis saber Lorde Vale.

- Não conseguia explicar porque é que o assassino enviara um anel a Aspasia. Podia compreender que procurava desafiar-me, uma vez que parecia decidido a imitar Zachary Elland e pensei que ele me considerasse responsável pelo facto de Zachary se ter suicidado. Mas porquê assustar Aspasia? Ela dizia que era por ter sido amante de Elland. Claro que não se pode esperar um raciocínio claro da parte de um criminoso, mas de qualquer forma aquilo não fazia grande sentido.

- É verdade - Vale observou-o. - Tinha-se fixado em si como seu rival. Porque se haveria de preocupar com a amante do irmão, a menos que pudesse tirar algum proveito disso?

- Tinha alguma razão para lhe mandar o anel - disse Lavinia. - Era o modo de lhe dar a saber que conhecia o segredo dela e que tinha uma certa carta para a chantagear.

- Muito bem - disse Joan. - Compreendo os motivos que levaram Tobias a precipitar-se para casa de Aspasia, ontem. Mas, Lavinia... - acrescentou, olhando para a amiga. - O que a induziu a ir revistar a casa?

- Excelente pergunta - aprovou Tobias deitando um olhar a Lavinia. - Pode ter a certeza de que também lha fiz.

- Não, que tenha dado atenção à minha resposta - retorquiu bruscamente Lavinia. - Não me deixou em paz ontem à noite. Foi muito incómodo. Nem me deixou apreciar a ceia fria que tentei comer. Fui obrigada a pô-lo na rua aconselhando-o a voltar quando estivesse de melhor humor.

- Então? - insistiu Vale. - Qual é essa resposta? Porque foi a casa de Aspasia?

Houve um silêncio. Lavinia sentia sobre si todos os olhares. Bebeu um pequeno gole de chá e poisou a chávena.

- Um impulso - confessou.

Tobias fez uma cara ainda mais zangada.

- Ontem à tarde vi Aspasia em Oxford Street - prosseguiu. - Quando saiu da carruagem reparei nas suas botinas e lembrei-me de qualquer coisa que Med dissera quando lhe pedi que descrevesse o vestuário da mulher que o tinha contratado. Entre outras coisas, Ned evocou umas botinas de pelica.

Joan abanou a cabeça com ar entendido.

- Calçado caro e muito moderno - comentou. - Claro que Ned lhe disse que a mulher tinha um vestido velho, o que a levou a pensar que as botas da assassina não condiziam com as roupas de má qualidade que a mulher vestia, não é verdade?

- Não foi bem isso - respondeu Lavinia. - Sobretudo, disse para comigo que um homem a querer fazer-se passar por mulher não teria tido o cuidado de investir em calçado caro. Por outro lado, no castelo de Beaumont, o assassino calçava sapatos simples, de cabedal grosso, do género que as criadas usam.

- O calçado que um homem usaria se precisasse de fugir - acrescentou secamente Tobias.

- Uma observação muito inteligente da sua parte - disse Joan.

- Depois, reparei que o cabelo de Aspasia estava penteado numa profusão de caracóis e canudos - continuou. - Recordei-me também que Ned tinha dito que a cabeleira loira de quem o contratara tinha apenas um carrapito atrás. De repente percebi que uma pessoa que escolhesse uma cabeleira tão simples para se disfarçar não poderia ser um cabeleireiro.

- Muito bem - disse Joan. - Isso explica o impulso de passar por casa dela. Afinal, Aspasia parecia andar a fazer compras.

Lavinia fez uma careta.

- Infelizmente tinha mandado dois garotos atrás de mim. Quando me viram entrar na rua em que vive, correram a avisá-la que eu ia a casa dela. Tinha dito aos pequenos espiões onde a poderiam encontrar. Seguiu-me a pé. Viu-me conversar com o velho no parque e depois desaparecer na rua das traseiras de sua casa.

Tobias cruzou os braços.

- A partir desse momento, também Aspasia agiu por impulso. Compreendeu que se Lavinia se tinha introduzido na sua casa, era porque a consideravam também suspeita. Começou imediatamente a pensar como se haveria de desembaraçar dela e sair do país o mais depressa possível.

- Daí a ideia de tomar como refém um desconhecido para fazer pressão sobre mim - explicou Lavinia. - Mas quem ela tinha tomado por um homem velho inofensivo era na realidade um assassino profissional já reformado.

- Mas o que fazia o Homem do Memento-Mori em frente à casa dela? - perguntou Joan.

Tobias tirou do bolso o anel que tinha encontrado em casa de Aspasia.

- Esperava calmamente o regresso dela. Provavelmente para a matar. Foi sem dúvida ele que entregou o recado à governanta para que ela saísse de tarde.

- Estava à espera da sua presa - disse Vale. - Só que Lavinia chegou-primeiro. Tobias olhou para Lavinia.

- Sem dúvida que isso lhe complicou um pouco os planos, mas ele pareceu muito tolerante e alterou-os. A sua capacidade de ajustar a estratégia, conforme as necessidades, é, sem dúvida, uma das razões para o seu sucesso profissional há tantos anos.

- Onde pensa que ele esteja neste momento? - perguntou Joan.

- Deve ter voltado para a sua casa à beira-mar - sugeriu Lavinia. Apenas veio para vingar a morte dos seus dois aprendizes.

- Foi pelo menos isso que ele nos quis fazer crer - resmungou Tobias. - Pela minha parte, apenas dou um crédito limitado àquilo que ele disse, Lavinia.

Lavinia abanou a cabeça.

- É um velho, Tobias. Não tinha outra arma, para além da bengala. Terias podido facilmente lançar-te em sua perseguição e matá-lo, ontem. Porque não o fizeste?

Tobias apertou as mãos atrás das costas e olhou pela janela.

- Penso que não ofereceu resistência a Aspasia porque sabia que te encontravas lá dentro e que ela pensava matar-te. O seu objectivo, antes de mais, era proteger-te. Dando conta dela, daquele modo, pode muito bem ter-te salvo a vida. Por isso, fiquei em dívida para com ele.

Ficaram todos a meditar em silêncio. Em seguida, Lavinia aclarou a garganta.

- Houve ainda outra coisa, que ditou o meu impulso. - Todos aguardaram. - Andava à procura de uma desculpa para ligar Aspasia àqueles assassinatos. Nunca gostei dela.

Ao chegar na manhã seguinte, para o pequeno-almoço, Tobias descobriu o envelope no patamar. Quando se baixava para o apanhar, sentiu um formigueiro na nuca.

Levantou-se rapidamente e inspeccionou a rua com o olhar. Não havia ninguém à vista, a não ser um velho jardineiro, ocupado a cortar uma sebe um pouco mais longe. Tinha o rosto escondido por um chapéu de aba larga. Tobias observou-o por um momento, mas se o jardineiro se apercebeu, nada deixou transparecer.

lobias observou-o durante algum tempo, antes de observar o motivo impresso na cera negra que encerrava a carta. Sorriu para consigo. Quando olhou de novo, o jardineiro tinha desaparecido. Abriu a porta e entrou.

- Ah, é o Mr. March - A Mrs. Chilton veio ter com ele, a limpar as mãos ao avental. - Bem me parecia que tinha ouvido alguém. Chegou mesmo a tempo para o pequeno-almoço.

- Surpreendente, não é?

A governanta levantou os olhos ao céu e empurrou-o para a sala de jantar. Ele atravessou o vestíbulo com o envelope na mão e encontrou Emeline e Lavinia já à mesa da sala cheia de sol.

- Bom-dia - cumprimentou Emeline. - O que é que tem aí?

- Uma carta, que acabei de encontrar à tua porta.

Lavinia baixou o jornal e examinou o envelope com curiosidade.

- À porta, dizes tu? Quem a pôs lá?

- Abre-a e terás a chave do mistério - sugeriu Tobias, sentando-se e estendendo-lhe a carta.

A princípio, Lavinia, apenas passou um olhar distraído pelo envelope. Depois reparou no selo de cera negra, que representava uma caveira, e soltou uma pequena exclamação.

- Foi o Homem do Memento-Mori que a deve ter trazido - disse a Emeline, enquanto abria a carta. - Pergunto-me se... - ficou sem palavras ao ver cair do envelope uma ordem de pagamento de mil libras. - Meu Deus! Mil libras!

- Lê a carta - apressou-a Emeline entusiasmada. - Depressa, por favor! Não aguento esperar mais.

Tobias serviu-se de café.

- Há qualquer coisa que me diz que nos pagaram os honorários do caso do Memento-Mori.

Lavinia contemplou por instantes a elegante letra, antes de começar a leitura em voz alta:

Caros Mrs. Lake e Mr. March,

Espero que a ordem de pagamento que acompanha esta carta cubra as vossas despesas e os vossos honorários, no caso que terminou. Perdoem-me, ambos, por terem corrido tantos riscos.

Estou consciente de que têm várias dúvidas. Devo, portanto, tentar dar-vos alguns esclarecimentos; é o mínimo que posso fazer, dadas as circunstâncias.

Interrogam-se, sem dúvida, sobre porque é que eu não fiz nada contra Aspasia Gray há três anos atrás. A triste verdade é que nunca suspeitei dela. Tinha aceite o veredicto ao suicídio, nomeadamente porque parecia satisfazê-lo, Mr. March. E habituei-me a ter confiança na sua opinião.

Mas dois outros motivos me incitaram a acreditar que Zachary pura e simplesmente se tinha suicidado. O primeiro era que o conhecia muito bem, tendo-o educado desde os oito anos, e sabia que a sua natureza romântica e o seu temperamento eram próprios daqueles que se costumam suicidar.

O segundo motivo - e espero que me perdoe, Mrs. Lake é que, nem por um segundo tinha pensado que uma mulher pudesse exercer o ofício que eu tinha ensinado aos meus aprendizes - e ainda menos apanhar um deles de surpresa. Ignorava completamente, bem entendido, que Aspasia Gray se tinha tornado sócia de Zachary.

Há mais ou menos um ano, outro dos meus aprendizes enveredou pela carreira para a qual tinha sido formado. Tinha crescido admirando o irmão e desejando, acima de tudo, mostrar que era tão corajoso, ousado e profissional como ele.

Pouco depois da sua chegada a Londres, dirigiu-se à antiga residência de Zachary e descobriu uma carta no esconderijo da parede. Sempre ensinei aos meus rapazes a importância de ter permanentemente dois esconderijos. Quem investiga satisfaz-se sempre com a descoberta do primeiro.

- Esse foi um dos meus erros, há três anos - apontou Tobias, que barrava uma torrada com compota. - Tinha encontrado o primeiro esconderijo, pois Aspasia tinha-mo posto no caminho certo. E não procurei mais nenhum. Nem sequer ela, evidentemente, sabia da sua existência.

Na carta para Pierce, Zachary explicava que fizera de Aspasia, não apenas sua amante, como também sua sócia. No entanto, apesar de ter ficado loucamente apaixonado por ela, a prudência aconselhara-o a precaver-se contra uma possível traição sua. Daí aquela carta. Provavelmente tinha intenção de a pôr no correio no dia em que suspeitasse dela. Mas demorou demais e a carta nunca chegou a ser enviada.

Quando Pierce a encontrou, compreendeu de imediato o proveito material que poderia tirar dela. E como Aspasia voltara a viver em Londres, começou a chantageá-la.

Também me escreveu, para me informar da sua descoberta. Infelizmente, eu estava em viagem, nessa altura e, por isso, não recebi a carta logo que ela chegou. Quando, por fim, a recebi, pressenti de imediato o perigo e decidi vir a Londres, sem esperar mais. Mas, tal como já sabem, foi tarde demais para salvar Pierce.

Cheguei a casa dele no preciso momento em que o Mr. March e os dois jovens que o acompanhavam estavam a sair pela porta das traseiras, depois de terem encontrado o corpo. Compreendi imediatamente que os meus piores receios se tinha confirmado.

Com os dois aprendizes mortos em casos que implicavam Aspasia Gray, já não tinha a menor dúvida sobre a identidade do assassino. Dirigi-me então a casa dela. Vocês conhecem o que se seguiu.

Devo confessar que, com grande desgosto meu, quer Zachary, quer Pierce não revelaram ter sido talhados para o trabalho a que eu os destinava. Zachary tinha desenvolvido um gosto pelo aspecto mais sombrio desta tarefa e perdera de vista a importância de apenas seleccionar presas que mereciam ser caçadas. Quanto a Pierce, estava demasiado interessado no aspecto financeiro do negócio, embora me sinta feliz por poder dizer que as suas primeiras escolhas estavam mais adequadas aos objectivos da empresa.

Mas, independentemente de tudo isso, os dois rapazes foram meus discípulos e era meu dever vingá-los. Agora a coisa está feita.

Assim, já vos disse tudo. Só resta retirar-me e não mais vos importunar.

Oh, sim, só mais uma coisa: Mrs. Lake, fiz uma visita à ervanária de Wren Street que me recomendou. Receitou-me um tónico excelente que, espero, venha a fazer com que eu sobreviva ao meu médico. Talvez ainda tenha algum tempo para sonhar.

Vosso dedicado, M.

- Muito bem - disse Lavinia, dobrando a carta - penso que não voltaremos a ouvir falar do Homem do Memento-Mori. Evidentemente que não poderemos provar que Lady Ferring, Lady Huxford e a Mrs. Stockard tinham contratado Pierce, mas isso não me aflige por aí além. Não posso deixar de admirar a obstinação manifestada por essas mulheres para conseguirem uma justiça que a sociedade lhes recusava.

- A identidade dos contratantes de Pierce é a única questão a que o Homem do Memento-Mori não respondeu - disse Tobias metendo na boca uma garfada de ovos mexidos. Pela minha parte, teria mais duas perguntas a fazer-lhe.

Emeline franziu a testa.

- Quais?

- Primeiro, gostaria de saber se ele realmente se reformou, ou se pretende simplesmente convencer-nos disso, para nos dissuadir de investigar mais a seu respeito.

Emeline estremeceu.

- Esperemos que tenha de facto renunciado às suas actividades. Lavinia franziu as sobrancelhas.

- E a outra interrogação? - perguntou. Tobias engoliu os ovos e pegou na cafeteira.

- Sabemos que Maud lhe tinha arranjado dois aprendizes. Mas nada nos diz que não tenha ensinado outros. Gostaria muito de saber a quantos ensinou afinal.

 

TRÊS DIAS MAIS TARDE, LAVINIA E TOBIAS PASSEAVAM POR UM grande parque, numa zona mais remota e frondosa que Tobias, havia muito, escolhera para descansar. Chegados perto de uma ruína gótica, estenderam uma manta na relva. Em seguida,

dispuseram o conteúdo da cesta de piquenique que a governanta de Lavinia lhes tinha preparado. O sol quente brilhava por entre as árvores.

Enquanto abria uma garrafa de vinho, Tobias examinou a refeição: empadas, pickles, frango frio, ovos cozidos, queijo e pão.

- A Mrs. Chilton excedeu-se outra vez - observou Tobias abrindo uma garrafa de vinho.

- Excede-se sempre, quando se trata de arranjar comida para ti... Lavinia procurou no interior do cesto e tirou um embrulho de papel de seda, que estendeu a Tobias.

- É para ti. Para festejar o fim da investigação do caso do Memento-Morí.

Ele contemplou o embrulho com uma expressão espantada. A jovem lembrou-se então que, se ele próprio muitas vezes lhe tinha dado presentes, era a primeira vez que ela lhe oferecia um.

- Obrigado - disse ele pegando no presente.

Abriu-o com tais precauções que Lavinia se arrependeu de não ter comprado um objecto mais imponente e mais caro.

Mas, quando ele desenrolou o papel e descobriu o candeeiro, o prazer que lhe leu nos olhos disse-lhe que tinha acertado.

Tobias examinou o complicado motivo esculpido na base.

- Alexandre a cortar o nó górdio - murmurou ele.

- Pensei logo em ti, quando o vi na montra.

Tobias pousou o candeeiro em cima da manta e levantou os olhos para a jovem.

- Vou guardá-lo com o maior cuidado, minha querida.

- Fico satisfeita por teres gostado.

Tobias encheu os copos de vinho e entregou-lhe um. Ela cortou duas fatias de empada e arranjou os pratos com pickles, frango e ovos. Começaram a comer, conversando sobre várias coisas. Quando acabaram a refeição, Tobias apoiou-se nos cotovelos e olhou para Lavinia.

- Parece-me que, por esta altura, o amor anda no ar - observou. Anthony deu-me a entender que muito em breve me vai anunciar o seu noivado com Emeline.

- Era inevitável. Foram feitos um para o outro. Tobias aclarou a voz.

- Parece-me também que Priscilla e Dominic estão muito interessados um no outro.

- Com efeito - confirmou Lavinia. - E a mãe de Priscilla está deslumbrada. Dominic enfeitiçou-a literalmente.

- Bom, bom. Aprendi recentemente com uma autoridade na matéria que um casamento comportava muitos riscos para uma mulher.

- Hummm. Tobias hesitou.

- É assim que tu vês as coisas?

Lavinia que começara a arrumar os pratos vazios no cesto do piquenique, ficou imóvel. Por qualquer razão desconhecida, parecia-lhe de repente difícil ordenar os pensamentos. O coração começou a bater-lhe com toda a força.

- Comporta também alguns riscos para o homem - respondeu ela prudentemente.

- Sem dúvida. Mas não o mesmo tipo de riscos.

- Não, penso que não. Houve um silêncio. Tobias aclarou a voz.

- Ultimamente, fiquei com a impressão de que o nosso acordo constitui um deplorável exemplo para Emeline e Anthony.

- Se nos criticam, o problema é deles, não nosso.

- Por certo - admitiu ele, tamborilando sobre a manta. - Tmagina que um dia destes, Anthony comentou-me que se nós partilhássemos o número 7 de Claremont Lane, ele e Emeline poderiam instalar-se na minha casa.

- Tobias, se estás a insinuar que nos devíamos casar, unicamente para conforto de Emeline e Anthony, devo dizer-te que...

- Não - atalhou Tobias, com os olhos brilhantes. - Sugiro que nos casemos porque o desejo. Desejo-o terrivelmente. Tinha prometido a mim mesmo esperar pelo regresso do barco em que investi as minhas economias, mas não consigo aguentar mais.

Lavinia olhou fixamente para ele, com a respiração acelerada. Havia semanas que se interrogava sobre como iria reagir se Tobias lhe pedisse a mão. E esse momento tinha chegado.

- Oh - pronunciou, depois de ter humedecido os lábios.

- Não tenho grande coisa para te oferecer, mas também não estou completamente desprovido. Para além da casa, que me pertence, tenho outros pequenos investimentos que fui fazendo durante estes anos. Ultimamente as investigações privadas parecem estar a render mais, possivelmente porque agora és minha sócia. Não posso comprar-te diamantes, claro, mas pelo menos não vamos morrer de fome e teremos um tecto.

- Estou a ver.

- Amo-te, Lavinia - continuou acercando-se para lhe pegar na mão. Já não posso voltar a casa, noite após noite, e deitar-me sozinho na minha cama. Quero passar os dias e as noites contigo. Quero sentar-me contigo junto à lareira, nas noites frias de Inverno e ler à luz do meu novo candeeiro. Quando não conseguir conciliar o sono, porque uma investigação me preocupa, quero poder acordar-te a meio da noite para a discutirmos juntos.

- Tobias...

- Peço-te que corras o risco de casar comigo, meu amor. Mas juro fazer tudo o que esteja na minha mão para que nunca te tenhas de arrepender da tua decisão.

A jovem entrelaçou os dedos com os dele.

- Tobias, compreendeste-me mal. É verdade, o casamento é um risco para uma mulher. Mas eu não receio casar-me contigo. O que receio, pelo contrário, é que tu acabes um dia por te arrepender, pois é uma aliança que não se pode quebrar.

- Como é que podes, sequer, sugerir tal coisa?

- Eu sou tão diferente da tua bem amada Ann. Ela era um anjo de doçura e de bondade. Nunca a poderei igualar.

Tobias apertou-lhe as mãos com força.

- Escuta bem, Lavinia, eu amei Ann, mas ela desapareceu há muito tempo. Mudei, no decurso dos anos que passei sozinho. Se ela tivesse vivido teríamos decerto mudado juntos, mas não tinha de ser. Por um lado, já não sou o mesmo homem e já não procuro o mesmo género de amor. E só posso esperar que tenha acontecido o mesmo contigo e com o teu marido poeta.

Lavinia sentiu uma alegria indescritível a invadi-la. De repente, parecia que o sol brilhava mais forte no céu.

- Oh, sim, meu amor - debruçou-se sobre ele e beijou-o na boca. A vida também me mudou. Tobias, antes de te conhecer, nunca teria imaginado que o amor pudesse ser qualquer coisa tão intensa e maravilhosa.

Tobias sorriu e atraiu-a lentamente para os seus braços. Ela estava plenamente consciente da força das suas mãos e da certeza dos seus olhos. O dia de Verão era perfeito e límpido, tão cintilante e exótico como uma pedra preciosa junto do fogo.

- Devo concluir com isto que aceitas a minha oferta? - perguntou, inclinando a boca para a dela.

- De todo coração.

No momento em que Tobias a beijava, as palavras do velho, sentado no banco da praça vieram-lhe à memória.

Vale a pena correr riscos para concretizar certos sonhos.
São os pequenos pormenores que criam a atmosfera e o imediatismo de uma história, tal como acontece na vida real. Os meus maiores agradecimentos a Donald Bailey, do Departamento de Antiguidades gregas e romanas do Museu Britânico, pelos seus preciosos conselhos acerca de um diadema, de uma certa lâmpada e de uma cabeleira de Cleópatra.

Desejo também agradecer-lhe as suas pacientes instruções na arte de preparar um gim tónico.

Os erros que possam surgir no texto ou na preparação da bebida são da minha inteira responsabilidade. 

 

                                                                  Amanda Quick

 

 

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